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Ruinas

de Gelo

O confronto final
Livro 3

Kel Costa
Copyright © 2017 Ler Editorial

Texto de acordo com as normas do novo acordo ortográfico da língua


portuguesa (Decreto Legislativo Nº54 de 1995).

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de


qualquer forma ou por qualquer meio, mecânico ou eletrônico, incluindo
fotocópia e gravação, sem a expressa permissão da editora.

Editora – Catia Mourão


Ilustração – Ana Paula Salvatori
Capa – Jéssica Gomes/Magic Capas
Diagramação – Catia Mourão
Revisão – Vanuza Rúbia F. Freitas

ISBN 978-85-68925-47-8
PRÓLOGO

Fogo! E dor, muita dor!


Acordei gritando e com as piores sensações à flor da pele.
Permaneci imóvel na cama, minhas unhas afundavam no colchão e minha
boca estava escancarada, deixando que o som de horror saísse sem encontrar
nenhum obstáculo. Eu me sentia estranha, pois aquela não parecia a minha
voz e o escândalo que eu estava fazendo sequer se assemelhava com algo que
eu faria. Aquela era a reação de uma lunática.
— Ela acordou! — Ouvi alguém gritar perto de mim.
Desviei os olhos do teto e tentei reconhecer o lugar onde estava. Então,
fechei a boca para cessar aquele som histérico e irritante.
Eu tinha motivos para gritar?
Processei a informação rapidamente e concluí que não sentia nenhuma
dor. Tampouco me sentia queimar como havia sentido durante o pesadelo e
pensei que podia ter sido apenas um reflexo psicológico. No entanto, eu me
sentia diferente, como se cada célula minha quisesse explodir, tamanha a
energia que pulsava em meu corpo.
Pelo menos, eu não estava morta.
Ao olhar para os tubos que injetavam sangue nas minhas veias, entendi
que algum Mestre fizera seu papel e me curara. Mas nenhum sangue, nem
mesmo o do vampiro mais poderoso, apagaria a terrível sensação que ficaria
eternamente gravada na minha memória.
Queimar.
CAPÍTULO 1

Quando abri novamente os olhos, já estava um pouco mais calma. A


terrível sensação de ser consumida pelo fogo havia passado e se eu evitasse
pensar no assunto, talvez, tudo pudesse ficar bem.
Logo percebi que havia um homem sentado na beira da minha cama e,
inicialmente, não consegui identificar quem era. Sabia apenas que ele vestia
roupas pretas e estava de cabeça baixa. Com minha visão ainda turva, pisquei
um pouco para enxergar com mais clareza e notei os contornos do rosto de
Kurt. Confesso que depois de quase morrer, a pessoa que eu esperava ver ao
meu lado assim que acordasse era Mikhail. Ou até mesmo os meus pais. Mas,
de qualquer forma, fiquei aliviada por saber que alguém estava esperando que
eu acordasse.
— Oi... — murmurei e senti de imediato a garganta seca. Um copo d’água
seria um ótimo agrado naquele momento.
Estiquei a mão para tocar em Kurt e a puxei de volta assim que ele virou o
rosto e me olhou. Não podia ser! Os olhos dele! Os olhos estavam vermelhos!
— Achei que fosse dormir a semana inteira — ele sorriu e exibiu longas
presas no lugar dos lindos dentes perfeitos.
O pânico me atingiu.
— Kurt! — Balancei a cabeça, horrorizada. — Não pode ser!
Ele baixou os olhos e suspirou. Ao tocar meus dedos, senti suas mãos
frias. Engoli em seco, aturdida.
— Só posso estar sonhando. — Fechei os olhos com força. — Preciso
acordar. Preciso acordar...
— Sasha! — As mãos frias seguraram meu rosto e eu voltei a encarar
Kurt. Ele sorriu e sussurrou. — Você está acordada.
As lágrimas escorreram pelas minhas bochechas enquanto eu absorvia a
nova informação. Kurt tinha se transformado num vampiro. Todo o meu
esforço de tirá-lo das garras dos Mestres havia sido em vão.
— Isso deve ser outro pesadelo — murmurei. — Kurt, você não pode ser
um vampiro!
— É claro que eu posso! — Ele sorriu e piscou com seu jeito brincalhão.
— Assim como você!
A última frase me atingiu como um soco na boca do estômago.
Assim como você.
Para os meus ouvidos, soava como uma maldição. Kurt me observava com
o semblante tranquilo, como se soubesse o quanto aquela informação me
afetava.
— Eu não sou... — balbuciei e levei a mão ao peito, sem conseguir
terminar a frase. O gesto fez com que eu me desse conta de um detalhe: eu
não estava sentindo meus batimentos cardíacos.
Ofeguei e engasguei no meu próprio fôlego. Levantei minhas mãos e, pela
primeira vez desde que acordei, realmente olhei para elas. Reparei na cor
desbotada da minha pele. Eu sempre fui muito branca, mas aquele era um
tom anormal para um humano. Além disso, minhas unhas que sempre foram
fracas e curtas, agora estavam longas e afiadas nos polegares.
Como se precisasse me convencer de uma vez por todas, Kurt levantou um
espelho virado para mim e um par de olhos vermelhos me encarou de volta.
Meus olhos.

O grito que saiu pela minha boca foi tão estridente que tapei meus
ouvidos. Segurei minha cabeça, sentada na cama e com o coração prestes a
abrir um buraco no meu peito. Minha nuca latejava como se centauros
estivessem me dando coices, um atrás do outro. Eu só podia ter enlouquecido.
Estava vivendo um pesadelo dentro de outro pesadelo e a tortura não parecia
ter fim.
— Não é possível — sibilei.
Olhei em volta com atenção. Aquele era o mesmo quarto de antes, mas
dessa vez Kurt não estava por perto. Não havia ninguém ao meu lado, nem
mesmo um enfermeiro. Fechei os olhos, desejando que os pesadelos tivessem
cessado. Quando os abri novamente, vi que continuava sozinha.
Acompanhei o tubo fino e transparente que levava soro até minha veia. O
quarto era modesto e, além daminha cama estreita, só havia uma pequena
mesa de cabeceira. Puxei a agulha para arrancar o acesso do soro e parei para
conferira cor da minha pele e minha arcada dentária. Senti o alívio me
preencher ao constatar que ainda era humana. Ao contrário de algumas
pessoas, eu me sentia muito bem sabendo que meu coração batia
normalmente.
Parecia tudo bem, até o momento em que olhei com atenção para minha
mão direita. Meu peito se comprimiu quando vi cicatrizes horríveis de
queimadura, que começavam nas pontas dos meus dedos e se estendiam
quase até o cotovelo. A pele tinha ficado com uma aparência estranha e
exibia uma cicatrização madura, que deve ter sido acelerada por causa da
transfusão de sangue que recebi. Não era à toa que eu tinha pesadelos com o
fogo.
— O que foi que eu fiz? — Solucei, sentindo meus olhos arderem com as
lágrimas.
Decidi tirar a camisola de hospital para verificar se alguma outra parte do
meu corpo também tinha sido atingida. Sem nenhum espelho por perto, fiz
um contorcionismo para poder conferir minhas costas. Felizmente, não havia
mais nada, apenas a queimadura no braço.
Respirei fundo, enxuguei o rosto e me vesti novamente, esperando o
nervosismo passar. Não adiantaria ficar naquele quarto sozinha, chorando e
me vitimizando, enquanto Kurt podia estar em algum lugar, machucado,
precisando de mim. Eu temia por ele, pois no momento do resgate de Klaus,
ele tinha sido muito mais atingido pelas chamasdo que eu.
Balancei a cabeça para afastar os pensamentos negativos. Claro que Kurt
estava bem. E Klaus... eu nem conseguia imaginar.
— Por favor, estejam vivos — murmurei.
Não havia nenhum sapato que eu pudesse calçar, então caminhei descalça
até a porta e coloquei apenas a cabeça para fora. O corredor estava
completamente vazio e todas as portas estavam fechadas. Um calafrio
percorreu minha espinha enquanto pensava no motivo daquele silêncio.
Afinal, nós estávamos ou não no meio de uma guerra? Eu lembrava
perfeitamente de toda a confusão que se instalara na Morada com o retorno
de Rurik. Além disso, com tantos soldados novos andando pelo lugar, era de
se estranhar que estivesse deserto.
— Tem alguém aí? — Perguntei, recebendo um eco como resposta.
Sem aguentar ficar mais um segundo naquele quarto, fechei a porta e
caminhei na direção da escada. Esperava não me deparar com nenhum
mitológico pelo caminho. Mas se algo tivesse que acontecer, eu enfrentaria.
Já tinha passado por tanta desgraça, o que seria mais uma? Em minha última
lembrança eu estava pegando fogo. Nada podia ser pior, a não ser a morte.
Por um instante, achei que tivesse entrado numa realidade paralela porque
a Morada parecia mesmo abandonada. Mas tudo não passou de uma
impressão passageira, pois quando estiquei a mão para tocar o corrimão da
escada, um grupo de soldados surgiu e a velocidade deles me lançou para
fora do caminho.
— Ei! — gritei, mais para ser vista do que para brigar.
Nenhum, entretanto, preocupou-se em me enxergar. Eu me equilibrei para
não cair de bunda no chão e observei mais um grande grupo descendo os
degraus com urgência. Aquilo me ativou um botão interno, avisando que algo
muito ruim devia estar acontecendo.
Por que eles estavam com tanta pressa? E para onde estavam indo?
Pensei em perguntar, mas antes mesmo que eu tivesse chance de abrir a
boca, todos já tinham sumido de vista.
Não estava preparada para o que aconteceu a seguir. O chão abaixo dos
meus pés tremeu como num terremoto de grandes proporções. Segurei no
corrimão enquanto esperava o lustre de cristal no início do corredor parar de
balançar. Nunca imaginei que um dia sentiria a Morada dos Mestres sacudir,
mesmo com toda sua imponência e opulência.
Aturdida, comecei a descer os andares. Com os pés ainda um pouco
descoordenados, eu não conseguia ir muito rápido e acabei sendo
ultrapassada por mais soldados. A impressão que eu tinha era de que não me
exercitava há meses.
Por quantos dias será que eu tinha ficado naquela cama?
— Sasha! — Mãos fortes me tocaram nas costas e eu nem precisei me
virar para saber de quem eram. — Aonde pensa que vai?
Fui arrancada do chão e meus pés balançaram no ar, enquanto era
carregada para longe da escada. E então, quando a pessoa me soltou no meio
de um corredor vazio, eu a encarei, espantada.
— Kurt... — sussurrei, mas não soube mais o que dizer. Minha voz tinha
falhado diante dos olhos vermelhos.
— Sou um vampiro. — Ele franziu a testa, como se sentisse culpado em
confirmar minha suspeita. — Eu sei. Temos muito o que conversar, mas
agora não dá.
— O que... — comecei perguntando, mas ele passou um braço pelas
minhas pernas e me pegou no colo. — Kurt!
— Já disse que agora não dá. Estamos sob ataque, Sashita — disse,
enquanto descia correndo a escada — e preciso te levar para o abrigo.
Abrigo? Existia um lugar assim dentro da Fortaleza?
Fechei os olhos por um segundo, ao me sentir muito tonta. Precisei me
agarrar à roupa de Kurt e esperar que aquela sensação horrível passasse.
Outro tremor nos atingiu em cheio e, apesar de agora possuir a
supervelocidade, Kurt o sentira tanto quanto eu. Talvez, até com mais
intensidade, considerando que os sentidos dos vampiros eram muito mais
aguçados.
— Por favor, Kurt, explique o que aconteceu — pedi, abrindo os olhos
para encarar meu amigo.
Nós finalmente paramos quando adentramos uma passagem subterrânea e
ele me colocou no chão. À nossa volta, soldados e civis caminhavam em fila
indiana pelo corredor e o burburinho era intenso. Alguns nos olhavam de cara
feia, como se estivéssemos atrapalhando a passagem, parados ali no meio do
caminho.
— Não faça perguntas, apenas vá com eles. Eu preciso voltar lá pra cima.
—Kurt avisou, me dando um leve empurrão para frente e se virando para
voltar por onde viemos.
— Kurt! — Eu o segurei pela camisa, obrigando-o a parar. — O que está
acontecendo?
— Estamos sendo atacados! — Gritou. — Qual parte você não entendeu?
Vai logo, Sasha!
E, num piscar de olhos, ele correu de volta para a porta que levava ao
interior da Morada e sumiu. Pensei em fazer o caminho de volta, mas fui
empurrada por mais pessoas que se aglomeravam enquanto fugiam.
Olhei em volta, tentando encontrar um rosto familiar, mas tudo que via
eram homens, mulheres e crianças assustadas, além dos soldados que
tentavam manter o controle da situação.
Sem opção, fui levada pelo fluxo. Deixei que meus pés se arrastassem na
direção desconhecida, tentando imaginar onde a minha família estaria. Se a
Fortaleza estava mesmo sob ataque, eu esperava que algum Mestre tivesse
lembrado de proteger o humano mais valioso do momento. E que aquilo
incluísse também a família dele.
Pressionei meus lábios, apreensiva. Quanto mais adentrávamos aqueles
corredores subterrâneos, mais o burburinho diminuía e as pessoas se
mostravam apreensivas. Eu me dei conta de que devia ser um dos poucos
humanos — ou o único — que já tinha andando por aquelas passagens. O
lugar podia ser um pouco claustrofóbico, principalmente num momento tão
tenso como aquele. Algumas pessoas andavam de mãos dadas, outras
mantinham as cabeças baixas e muitas choravam. Queria muito perguntar se
alguém sabia o que estava acontecendo lá fora, que ataque era aquele, mas
achei melhor esperar até chegar ao nosso destino. Uma coisa de cada vez.
Depois de andar por alguns minutos, comecei a reconhecer alguns
corredores e entender para onde estavam nos levando. Eu já tinha percorrido
aquele subterrâneo vezes suficientes para distinguir alguns detalhes do
caminho.
Um pouco mais adiante, já podia enxergar a escadaria que saía dentro da
sala do diretor do colégio. Tudo indicava que os Mestres, por algum motivo
que ainda era desconhecido para mim, estavam enviando todos os civis da
Fortaleza para aquele prédio.
Então, o colégio era o tal abrigo? Desde quando?
Ao subir as escadas e sair da sala, tive uma boa noção de como a situação
estava feia. Os corredores estavam lotados de humanos atordoados e
assustados, que tentavam se acomodar ou obter algum tipo de informação. Vi
várias pessoas com feridas superficiais sendo carregadas na direção do
ginásio e me perguntei, mentalmente, por quanto tempo eu havia dormido. A
última lembrança que tinha era de Klaus e Rurik duelando ao ar livre,
debaixo do sol que brilhava no céu. Apesar da luta entre os irmãos, naquele
momento nós não estávamos sob ataque mitológico.
— Ei! Você! — Olhei para a pessoa que me chamou e vi um soldado se
aproximando. — Nao pode ficar parada no meio do caminho! Escolha uma
sala e se acomode.
— Farei isso — sorri — depois de achar minha família.
— Abram caminho! — gritaram atrás de mim e pulei para o lado, dando
passagem para um homem que carregava uma criança com o pé
ensanguentado.
Eu me virei para fazer uma pergunta ao soldado que tinha falado comigo,
mas ele já tinha sumido. Então, corri pelos corredores do colégio, procurando
por meus pais e por Victor. Eles tinham que estar em algum lugar. Evitei
gritar os nomes deles, visto que a tensão no local já era grande e os soldados
insistiam para que se fizesse silêncio.
Entrei de sala em sala, escrutinando atentamente cada grupinho, sentindo a
bile deixar um gosto amargo em minha garganta. Se nenhum Baker estivesse
ali, eu não saberia o que fazer em seguida. E se eles ainda estivessem na
Morada? Eu precisava encontrá-los e ficar com eles. Pela quantidade de
soldados espalhados ali, achava bem difícil conseguir sair do colégio. Não
sem criar toda uma enorme confusão.
— Sasha? — Parei imediatamente ao ouvir a voz do meu irmão.
Com o coração acelerado, virei o rosto e encontrei os olhos de Victor
sobre mim. Ele estava sentado ao lado dos meus pais, atrás da mesa que a
professora de Física costumava usar para lecionar. Corri na direção deles e
me ajoelhei para abraçá-los antes que conseguissem se levantar. Entre choros
e suspiros, senti mãos urgentes me tateando para conferir se eu estava inteira.
Os dedos da minha mãe alisaram minha pele queimada e a ouvi respirar
fundo, mas não queria me concentrar naquilo, tinha outras coisas em mente e
muitas perguntas para fazer. Puxei minhas mãos e levantei a cabeça para
observá-los com atenção. Para meu espanto, minha mãe e Victor estavam
sujos de um pó preto que parecia fuligem.
— Ah, querida! — Mamãe enxugou os olhos.
— Você está melhor? — meu pai perguntou. — Como chegou até aqui?
— Achei que estivesse segura na Morada, sendo protegida pelos Mestres.
Se soubéssemos que não estaria... — mamãe abafou um soluço e cobriu a
boca. — Não acredito que deixei minha filha para trás. Você veio para cá
sozinha?
— Você não deixou ninguém para trás, Irina — papai declarou, segurando
a mão dela. — Mestre Mikhail avisou que ela estaria a salvo. E, cá entre nós,
ultimamente ela tem se cuidado melhor que a gente.
— Eu estou bem — tranquilizei a todos, apesar de não ter a menor noção
do que tinha acontecido comigo.
Eu tentava acompanhar a conversa, mas tinha urgência em saber dos fatos
e não de vê-los debater onde eu estaria mais segura.
Victor pigarreou ao meu lado enotei que parecia o menos abalado dos três.
Sentei, dobrando as pernas e inclinando meu corpo na direção dele. Não
precisei perguntar, meus olhos fizeram a pergunta por mim.
— Estão explodindo as casas — disse meu irmão.
— O quê?
Pisquei, pensando ter entendido errado. A expressão de desalento dele
deixou claro que não havia engano algum.
Quem estava explodindo as casas? Como isso foi acontecer?
Antes que eu o bombardeasse com perguntas, meu irmão apareceu com a
resposta.
— Nós estávamos terminando de jantar quando tudo começou. — Victor
pressionou os dedos contra a testa, como se estivesse com dor de cabeça. —
Parecia um filme. Foi... surreal. Acho que a primeira explosão aconteceu na
nossa rua.
Como se fosse preciso uma demonstração para ilustrar o que dizia, um
barulho fez com que tudo ao nosso redor tremesse e as paredes do colégio
parecessem tão finas a ponto de quase desabarem sobre nós. Aquela explosão
parecia ter sido em algum lugar bem próximo do prédio onde estávamos.
Enquanto todo mundo gritava, minha mãe puxou Victor e eu para mais
perto, apesar de já não haver muito espaço entre nós. Ela beijou minha testa
suada e começou a sussurrar palavras incompreensíveis em meus ouvidos,
pedindo proteção a uma entidade divina proibida de ser proferida.
— Pai, por que estamos aqui? — perguntei. — Foram os Mestres que nos
enviaram para cá?
— Assim que as explosões começaram, Mestre Mikhail nos tirou de casa.
— Ele encolheu os ombros. — Acho que tem medo que eu morra porque
fomos escoltados pessoalmente por ele. E parece que o colégio foi escolhido
como o lugar mais seguro para todos nós. — Olhou para o teto e suspirou. —
Ou parecia ser.
Eu me coloquei de pé, sendo acometida por uma sensação horrível. Não
sabia onde estava Lara e nem se estava bem.
— Preciso saber se Lara conseguiu chegar aqui.
— Ela estava no refeitório com os pais há alguns minutos — meu irmão
avisou, levantando-se. — Quer que eu te leve lá?
Sorri um pouco condescendente com a intenção ingênua de Victor. Ele
não precisava me mostrar o lugar que eu conhecia tão bem. Pensei em dizer
isso, mas seria bom ele ocupar um pouco a mente e se sentir útil.
Sob os protestos de minha mãe, assenti, passando meu braço por dentro do
dele e deixando que nos guiasse por entre o tumulto que se formara no nosso
colégio. No caminho, Victor explicou que o refeitório estava servindo para
distribuição de suprimentos e o ginásio tinha sido preparado para atender os
feridos.
— Faz quanto tempo que vocês estão aqui?
—Acho que umas três horas — ele deu de ombros. — Como o papai disse,
Mestre Mikhail nos trouxe. Nós fomos os primeiros a chegar e depois as
outras pessoas foram trazidas.
Assenti, observando o rastro de sangue que estampava o chão em que
pisávamos. Horrorizada, me dei conta de que alguém muito ferido passara
por ali e era óbvio que a situação impedia que a limpeza do lugar fosse uma
prioridade. Mais sangue se espalhava pelas paredes e por outros corredores.
Qual teria sido o tamanho da destruição causada pelas explosões?
— Mikhail deu alguma informação para vocês a respeito do que estava
acontecendo? — Perguntei, observando as pegadas que os sapatos sujos de
sangue iam deixando por todos os lados.
— Ele só contou que estávamos sofrendo um ataque, mas acho que não
sabia de onde estava vindo.
Victor empurrou as portas duplas do refeitório e estanquei logo na entrada.
O tumulto era grande, por haver muita procura e poucas pessoas para ajudar a
todos os presentes.
— Consegue ver Lara em algum lugar? — Perguntei, enquanto me
equilibrava nas pontas dos pés e tentava olhar por cima do mar de cabeças.
Victor tocou meu braço e me olhou com pesar. Deixei que me puxasse
para fora do refeitório e me impedisse de esbarrar num soldado que passava
por nós.
— Ela já deve ter se acomodadoem alguma sala. — Meu irmão olhou para
os dois lados opostos do corredor, tentando escolher uma direção, até que se
encaminhou para a direita.
— Sabe o que não entendo? Por que juntar todo mundo num único lugar?
— Falei, seguindo Victor. — Se estão nos atacando, o que os impede de
explodir o colégio e matar todos que estão aqui dentro?
— Seu namorado disse que eles verificaram o prédio inteiro antes de nos
trazer para cá.
Ignorei a vontade de retrucar e dizer que Mikhail não era meu namorado,
pois havia algo mais urgente a discutir.
— Eles verificaram? — Franzi minha testa, cheia de dúvidas. — Será que
achavam que fossem encontrar algum mitológico escondido aqui dentro?
Era inevitável não olhar para os lados, esperando que uma daquelas bestas
saísse de alguma sala e pulasse em cima da gente. Mas eu sabia que se
houvesse mesmo um mitológico por ali ele, com certeza, já teria atacado. Não
faltariam vítimas para a brincadeira.
Victor parou de andar de repente e como eu estava distraída, quase caí por
cima dele. Quando me encarou, franziu os lábios.
— Esqueci de dizer:Mestre Mikhail nos confidenciou que as
explosõesforam causadas por bombas escondidas pela Fortaleza.
— Bombas escondidas? — Meus olhos se arregalaram.
Victor encolheu os ombros.
—Parece que elas foram colocadasnos telhados das casas. É só o que sei.
Entramos em mais duas salas e, novamente, não encontramos Lara. Eu já
começava a me preocupar, com medo de que Victor tivesse se confundido ao
dizer que a tinha visto. Continuamos a procurar de sala em sala, mas minha
mente não parava de pensar nas bombas. Em que momento os mitológicos
teriam-nas espalhado pela Fortaleza? Será que fizeram tudo durante aquele
último ataque?
Lancei meus olhos ao teto, desejando que os Mestres tivessem mesmo
verificado cada milímetro do colégio. Seria uma catástrofe se o prédio
desabasse sobre nossas cabeças. A maioria daquelas pessoas mal tinham
conseguido se recuperar das últimas explosões, provavelmente não
aguentariam outra. Ja havia feridos demais no ginásio.
— Quer olhar aqui dentro? — Meu irmão perguntou, ao passarmos pela
porta de um dos banheiros femininos.
Sabia que ele esperava pela minha resposta, mas, ao mesmo tempo, minha
mente trabalhava em outra coisa. Havia algo lá no fundo me incomodando
demais. Uma sensação estranha, como se um pedaço da minha memória
tivesse sumido. Eu simplesmente não conseguia me lembrar se Mikhail havia
me contado o que aconteceu com os vampiros traidores. Eles tinham sido
todos encontrados?
— Sasha? — Victorbalançou meus ombros.
Eu o ouvi me chamar, mas meus olhos estavam fixos no soldado que se
aproximava do local onde estávamos. Ele exibia o porte altivo natural de um
soldado e não se deu ao trabalho de nos olhar quando passou do nosso lado e
sumiu ao virar no corredor seguinte.
Finalmente, olhei para Victor e ia pedir para que esperasse um pouco
enquanto eu olhava dentro do banheiro, mas então, o soldado voltou e
novamente prendeu minha atenção.
— Tem alguma coisa errada — sussurrei, tentando descobrir o que estava
me incomodando.
— O que foi? — Victor perguntou, distraído. Ele começou a bater na porta
do banheiro para ver se alguém respondia.
Na terceira batida contra a madeira, minha mente se iluminou num flash.
A maleta! Virei a cabeça na direção do soldado, que já tinha sumido de vista.
Quando ele passou por nós pela primeira vez, estava carregando uma maleta
preta e, ao voltar, estava de mãos vazias. Eu me arrepiei e, por milésimos de
segundos, tentei decidir se saía correndo ou se procurava a maleta para
conferir o que havia dentro dela. Optei pela coisa mais inteligente a se fazer.
— Corra, Victor — pedi.
No dia em que fomos atacados no ônibus escolar, precisei insistir para que
meu irmão obedecesse meu comando. Mas, dessa vez, ele sequer contestou.
Eu o empurrei com força na direção contrária de onde, supostamente, o
soldado largara a maleta. Victor tropeçou, mas logo se equilibrou e começou
a correr, comigo logo atrás, usando toda a força em meus pulmões para avisar
sobre a ameaça de uma bomba entre nós.
Os soldados mais próximos de onde estávamos, ao ouvirem meus gritos,
começaram a correr na nossa direção, mas dois segundos depois, tudo foi
pelos ares.
CAPÍTULO 2

Meus ouvidos estavam doloridos e o barulho que eu ouvia era irritante,


como se houvesse um inseto dentro deles que não parava de zumbir. Abri e
fechei a boca para tentar melhorar a sensação, mas não adiantou nada. Parecia
também que eu estava ouvindo coisas demais, muitas vozes de pessoas pelo
colégio inteiro. Devia ter sofrido alguma concussão.
Arregalei os olhos e observei o cenário caótico à minha volta. Eu estava
estirada de bruços sobre uma placa de concreto que antes devia ter sido um
pedaço de parede. Tentei me levantar, mas descobri que minha perna direita
estava presa debaixo de uma porta pesada demais para que eu
conseguissechutá-la. A uns cinco metros mais à frente, meu irmão se mexia
entre os escombros e, felizmente, não parecia ferido.
— Victor! — Chamei, descobrindo que abrir a boca me fazia inalar a
fumaça do incêndio que tinha se formado em alguns pontos.
Usei uma das mãos para limpar direito os olhos e tirar o pó que cobria
meu rosto. Tossi que nem uma louca e respirei fundo, ignorando a ardência
nas narinas e na garganta. Senti o suor concentrado em minha testa, mas logo
descobri que era sangue que estava escorrendodealguma ferida na minha
cabeça. Como se não bastasse todo o resto.
— Você está bem? — Um soldado perguntou, ao levantar a porta que
prendia minha perna e me ajudar a ficar de pé.
Balancei a cabeça automaticamente, mas, na verdade,“estar bem” não
condizia mais com nenhuma situação dentro da Fortaleza.
Depois de ajudar Victor a se levantar, o vampiro se apressou em continuar
a inspeção pelo corredor. Ao olhar para trás a fim de observá-lo, pude notar
que havia muito mais vítimas daquele lado, na direção onde estava a maleta.
— Nossos pais... — Victor murmurou, esticando a mão para me ajudar a
pular os escombros entre nós. — Precisamos ir, Sasha.
Entrelacei meus dedos aos dele, mas um cheiro forte alcançou minhas
narinas. Olhei em volta, procurando a origem dele, até que umpedido de
socorrovindo de dentro do banheiro me fez soltar a mão de Victor e correr até
lá.
— Pode ir sem mim! Eu já te alcanço — falei, quando ele começou a abrir
a boca para reclamar. —Vou ver se alguém lá dentro precisa de ajuda. Vá na
frente e veja se nossos pais estão bem, certo?
Victor praguejou, mas não tentou me convencer do contrário e seguiu seu
caminho. Entrei no banheiro, tomando cuidado para não pisar nas centenas de
pedaços de espelho pelo chão.
— Onde você está? — Gritei, desviando dos destroços.
— Aqui dentro... — a garota choramingou. — Me ajuda... por favor.
Passei pelos dois primeiros reservados e já podia ver o braço da menina
esticado para fora do terceiro. Só não estava preparada para a cena seguinte.
O vaso sanitário tinha se partido em dois e um dos pedaços havia cortado a
lateral da coxa dela, abrindo a pele de uma forma que eu nem imaginava ser
possível. A garota estava caída no chão sobre uma poça de sangue enorme.
Muito mais sangue do que eu esperava ver.
— Minha nossa! — Apoiei minhas mãos nas paredes laterais e senti um
desespero crescente. Como eu tiraria a menina dali?
— Por favor... — ela fechou os olhos e por um instante eu temi que tivesse
desmaiado, mas então falou novamente, com uma força que parecia se
extinguir. — Está tudo dormente...
— Eu vou buscar ajuda, ok?
— Não... não me deixa... — pediu.
Mas eu não ajudaria em nada se ficasse ali parada. A única coisa que eu
podia fazer era chamar alguém que pudesse tirá-la daquele lugar e levá-la
imediatamente para receber cuidados médicos. Saí correndo do banheiro,
procurando por algum vampiro que pudesse resgatar a menina. O que não era
nada fácil, pois a fumaça estava aumentando e eu só conseguia enxergar no
máximo uns dois metros à frente, fora a dificuldade para respirar.
— Alguém me ajuda! — Gritei, já que os escombros me impediam de ir
mais rápido.
Tropecei e quase caí sobre um corpo estirado no meio do caminho. O
homem, com o rosto chamuscado, estava soterrado da cintura para baixo.
Tateei pelo pescoço dele em busca de pulsação, sem conseguir identificar se
ele ainda estava vivo. Aquilo parecia mais simples nos filmes.
— Está morto — a voz de Kurt foi como música para meus ouvidos. —
Sasha, você está sangrando!
Eu pulei no pescoço dele, feliz por ver que estava bem e agradecida por
alguma ajuda ter aparecido. Ele tentou me pegar no colo, mas eu o impedi e
voltei correndo na direção do banheiro.
—Kurt! — Chamei. — Tem uma menina precisando de socorro!
Ele me ajudou a ir mais rápido e eu o guiei até a vítima. Quando
chegamos, ela já tinha desmaiado. Ajoeilhei ao lado dela e olhei para Kurt na
esperança de que ele confirmasse que estava tudo bem. O novo vampiro
recuou alguns passos.
— Sasha... É muito sangue. — Vi o pomo de adão dele subir e descer. —
Ainda não tenho tanto controle...
Ao me levantar, diminuí a distância entre nós e dei um tapa no rosto dele.
Praguejei com o ardor que senti na palma da mão e vi Kurt rosnar em
resposta. Seus olhos brilharam quando exibiu os caninos para mim.
— Se você não socorrê-la agora, ela vai morrer!
— Não temos médicos suficientes, Sasha! — Ele encarou a garota no chão
e eu vi a agonia nos olhos do meu amigo. — Nem mesmo o sangue de um
Mestre seria capaz de curá-la tão rápido, antes que ela... São muitas vítimas
e...
— Kurt! — Meus lábios tremeram e senti meus olhos arderem. — Não a
deixe aqui. Por favor... Se o coração dela ainda bate, dê uma chance a
menina. Eu mesma faria, mas não tenho força para carregá-la no colo, muito
menos supervelocidade.
Meu amigo respirou fundo e se aproximou do reservado. Antes de tocar na
menina, ele baixou a cabeça e procurou se controlar, fechando e abrindo as
mãos várias vezes. Então, curvou-se para arrancar um pedaço da porcelana
que ainda estava cravado na carne da garota.
— Antes de fazer isso, é melhor rasgar um pedaço da camisa dela. —
Avisei, lembrando dos meus dias em cativeiro. — Para evitar que a
hemorragia se intensifique depois que você puxar o... o objeto.
Ele seguiu meu conselho e me encarregou de amarrar o tecido no instante
em que livrasse a garota daquele pedaço afiado de cerâmica. Eu não estava
pronta, mas tive que fazer. O sangue saía em jatosenquanto eu me esforçava
para amarrar as duas pontas do tecido. Meus dedos escorregavam no líquido
viscoso e o suor, misturado ao sangue que caía em meus olhos, me fazia
lacrimejar.
— Rápido, Sasha! — Kurt parecia impaciente.
— Pronto, pronto! — Gritei, caindo sentada no chão, enquanto ele erguia
a garota no colo.
— Vamos logo!
Tive dificuldades para levantar porque o sangue fazia meus pés
escorregarem, mas quando fiquei de pé, abanei a mão para Kurt. A garota
podia morrer a qualquer momento.
— Ela não pode esperar. Vá na frente — implorei. — Estarei logo atrás de
vocês.
Como ele parecia saber que aquela vida estava por um fio, Kurt sumiu do
meu alcance num piscar de olhos. Eu saí do banheiro logo em seguida,
tentando tapar o nariz e a boca com uma das mãos. A fumaça fazia meus
pulmões arderem. Passei pelo local onde caí durante a explosão e estava me
aproximando novamente do homem soterrado quando senti um arrepio e uma
necessidade de olhar para trás.
Klaus e Vladimir atravessaram as enormes janelas do prédio, que agora
não possuíam mais nenhum vidro no lugar. Uma ventania chegou junto com
eles e lançou um pouco de poeira contra meus olhos. Vladimir se dirigiu para
o lado oposto de onde eu estava e o Mestre mais velho marchou em minha
direção.
— Não acredito que você está vivo — sibilei, chocada. Meu queixo quase
tocou meus pés.
— É sempre um prazer surpreendê-la, Aleksandra — o Mestre parou
diante de mim e tomou minha mão, depositando um beijo em meus dedos
com cicatrizes. — Se não me queria vivo, não devia ter se queimado tanto.
Aquele era mesmo Klaus? Senti que meus olhos podiam acabar saltando
das órbitas, de tão arregalados que estavam. Eu realmente devia ter batido
com a cabeça durante a explosão e agora estava alucinando.
Klaus olhou em volta com uma expressão desolada, com tanto pesar nos
olhos que meu peito chegou a doer. Ele inclinou a cabeça de lado,
observando atentamente o estrago que o colégio havia sofrido. Quando voltou
a me notar, estalou a língua e me mostrou um sorriso incompleto.
— Vou me divertir com isso — disse ele.
— O quê?
Sem me responder, ele abaixou e puxou meus joelhos, me lançando sobre
seu ombro esquerdo. Fiquei de cabeça para baixo e bunda para o alto,
situação típica de uma mulher sendo arrastada por um homem das cavernas.
Eu o soquei várias vezes nas costas e pedi para que me colocasse de volta no
chão, mas nada surtiu efeito. Onde estava Mikhail quando eu mais precisava
dele?
Admitindo que não podia vencer a força de Klaus, pressionei o machucado
na minha testa, pelo qual o sangue não parava de pingar. Observei os
soldados atônitos, socorrendo todos que precisavam de ajuda e carregando os
mais necessitados. O colégio inteiro, ou pelo menos aquele andar, estava
destruído.
— Havia mais de uma maleta? — Perguntei, aos berros. — Eu vi uma
maleta, Klaus! — Bufei. — Mestre Klaus!
Ele, claro, me ignorou.
Em determinado momento, Klaus me colocou no chão e usou as mãos
livres para tirar um adolescente debaixo de duas vigasque caíram do teto. O
garoto não parecia ter nenhuma ferida externa, mas o sangramento pela boca
indicava alguma hemorragia interna.
O Mestre se ajoelhou numa perna e cravou os dentes no próprio pulso
antes de oferecê-lo ao rapaz.
— Beba — ordenou.
A reação do humano foi parecida com a minha na primeira vez em que
Mikhail me ofereceu o próprio sangue. Eu havia sentido muito nojo porque,
pelo meu ponto de vista, beber sangue era uma das coisas mais absurdas que
um humano poderia fazer. Não conseguia culpar o garoto por reagir daquele
jeito.
Ele me olhou e Klaus levantou o rosto para me olhar também, com uma
expressão ameaçadora.
— Pode beber — eu sorri para o rapaz. — É um pouco nojento, mas o
sangue irá curá-lo muito mais rápido.
O pobre coitado estreitou os olhos, como se ponderasse minhas palavras.
No entanto, estávamos diante de um Mestre que não era famoso pela sua
paciência. Klaus se irritou com a demora e segurou a cabeça do garoto,
encostando à força o seu pulso nos lábios dele. A vítima se engasgou de
início e fechou os olhos, ciente de que seria inútil medir forças com o
vampiro. Segundos depois, Klaus se afastou e levantou.
Recuei antes que ele me pegasse no colo daquele jeito estúpido e cruzei os
braços. Estava quase arrependida de ter ajudado Kurt a salvá-lo e ter me
queimado no processo.
— Muito bonito! Você o obrigou a beber seu sangue — frisei, mesmo
falando o óbvio. — Mikhail nunca teria feito isso.
Ele respirou fundo de forma dramática e desnecessária.
— Como eu sou grato a você por ter ajudado a salvar minha vida, acho
melhor deixá-la aqui para que outra pessoa venha em seu resgate. — Ele deu
um sorriso forçado. — Para sua sorte, hoje não estou tão propenso a
estrangular seu pescoço.
— Só quero achar minha família — murmurei, num acesso de tosse.
Eu tinha certeza de que Klaus estava prestes a me alfinetar mais um
pouco, mas um barulho acima de nossas cabeças desviou nossa atenção.
Olhamos os dois para o alto bem a tempo de ver uma viga do teto cair na
minha direção. Senti a morte se aproximar, mas Klaus me envolveu num
abraço e curvou o corpo sobre o meu.
O impacto nos derrubou, mas ele não se moveu até que os escombros
terminassem de cair à nossa volta. Ao soltar a respiração, em choque, vi mais
um enorme pedaço de concreto cair do nosso lado.
— Se você deixasse o idiota do meu irmão transformá-la — Klaus se
levantou e me puxou junto—, não daria tanto trabalho aos outros.
— Obrigada! — Sorri. — Sabia que você se importava comigo.
— Sasha! — O grito desesperado me fez olhar para trás.
Victor corria na nossa direção, em pânico. Antes mesmo que ele falasse
qualquer coisa, o olhar que lançou para mim foi arrepiante. Uma sensação
horrível me tomou por completo esenti que a urgência tinha algo a ver com
nossos pais.
Esquecendo da minha discussão com Klaus, corri até meu irmão, que
agarrou minha mão e me levou para a sala onde papai e mamãe estavam.
De tão nervosa que estava, meus pés não me obedeciam direito e eu
tropeçava pelos escombros do caminho. Sentia o coração martelando dentro
do meu peito, cheio de pavor. Em algum momento, torci o tornozelo, ao pisar
em falso num pedaço pequeno de concreto, mas tive que continuar a correr. A
dor eu suportaria quando tudo passasse.
Victor foi o primeiro a entrar na sala, passando pelo buraco onde antes
havia uma porta. Ele se ajoelhou diante do meu pai, que estava sentado e
segurava minha mãe nos braços. Meu coração parou quando vi a cena em
questão.
— Não, não, não! — Gritei e me deixei cair ao lado deles.
Numa rápida avaliação do ambiente, entendi que no momento da explosão
os vidros se estilhaçaram e um pedaço do vidro da janela caiu com a ponta
cravadano abdômen da minha mãe, bem próximo ao umbigo. Mesmo
parecendo quase inscosciente, ela estendeu a mão quando viu que Victor e eu
nos aproximamos. Ao abrir a boca, no entanto, não encontrou forças para
falar.
— Mãe... — solucei. — Não...
Meu pai chorava e sussurrava palavras carinhosas para ela e Victor parecia
em choque. Reuní toda minha força para ficar de pé e voltar lá fora
paraprocurar por Klaus. Imploraria para que ele ajudasse minha mãe, mas
quando me virei para sair, ele já estava entrando na sala. O Mestre olhou
primeiro para minha mãe e depois me encarou com os lábios formando uma
linha reta.
“Ela precisa ser levada daqui com urgência.” — falou.
— Você pode resolver aqui mesmo. Por favor! — Pedi, apreensiva pelo
sangue que minha mãe estava perdendo. — Por favor!
Sem conseguir parar de chorar, agarrei o Mestre pelo tecido do seu manto,
deixando a discrição de lado.
— Cure minha mãe, Klaus — implorei. — Por favor!
Ele me lançou um olhar que deixava clara a sua insatisfação com meu
contato físico. Porém, atendeu meu pedido e tirou minha mãe dos braços do
meu pai, carregando-a para fora da sala e sumindo num piscar de olhos.
Levei alguns minutos para fazer com que meu pai e Victor saíssem do
estado de choque em que se encontravam. Fomos orientados a deixar o
colégio para trás. Os soldados escoltavam a todos nós — ao menos os que
estavam bem o suficiente para caminhar — até a Morada dos Mestres.
Diziam que, no momento, era o único local seguro na Fortaleza. Eu, no
entanto, começava a duvidar que encontraríamos segurança de verdade em
algum lugar.
Durante o percurso, acabei encontrandoLara, que andava com os pais
alguns metros à nossa frente, e quando a chamei pelo nome ela virou o rosto
para trás, espantada por me ver ali. Corremos uma na direção da outra e nos
abraçamos. Diante de tanta tragédia, era um alívio ver que pelo menos minha
amiga estava bem.
— Não acredito que você está aqui fora! — Lara riu ao me soltar e avaliar
atentamente cada centímetro da minha pele exposta. Seus olhos passaram
pelas queimaduras, mas não se detiveram ali. — Não perde uma catástrofe,
não é mesmo?
— Parece que eu sou mesmo um imã para confusões, como dizem as más
línguas — encolhi os ombros e tentei dar um sorriso mais animadinho. —
Ainda bem que você está aqui! Victor e eu estávamos te procurandoquando
aconteceu a explosão.
Ela apertou o ombro do meu irmão e também cumprimentou meu pai, mas
em seguida, olhou em volta com a testa franzida. Eu sabia a quem estava
procurando.
— Cadê a sua mãe?
Eu quis chorar, mas me detive. Aquela era uma pergunta que me doía ter
que responder. Nem eu mesma sabia exatamente onde minha mãe estava
naquele instante. Klaus tinha atendido meu pedido e saíra de lá às pressas
com ela nos braços, mas não dera nenhuma informação sobre para onde a
levaria. Assim que chegássemos na Morada dos Mestres, eu iria em busca de
informações, pois nossos corações estavam carregados de preocupação.
Lara se mostrou apreensiva quando contei sobre o acidente, mas tentou
disfarçar e enganchou o braço no meu, mudando de assunto.
— Ei! Aí estão vocês duas! — Kurt nos surpreendeu ao aparecer de
repente ao nosso lado e nos puxou para um abraço. — Não estava
encontrando nenhuma das duas e comecei a me desesperar. Não me assustem
assim!
— A dona Irina se feriu. — Lara contou para Kurt.
— Sua mãe? — Ele franziu a testa e só então percebeu a ausência dela. —
O que houve? Onde ela está?
— Um pedaço de vidro da janela cortou o abdômen dela e Klaus a tirou de
lá— respondi, tentando manter a calma.
— Se foi Klaus que a resgatou... — com os olhos brilhando, ele deu um
sorriso confiante.
Ao contrário de Kurt, eu não estava disposta a depositar toda a minha fé
no Mestre. Não sabia o quanto ele se esforçaria para salvar a mãe da pessoa
que ele detestava. E, infelizmente, eu tinha sido um pouco arrogante com ele
instantes atrás.
Respirei fundo, espantando os pensamentos ruins da mente. Olhei para
meu pai, que caminhava cabisbaixo ao meu lado e segurei a mão dele.
— Ela vai ficar bem — eu disse, apertando os dedos dele.
Kurt se apressou em chegar antes de nós, a fim de buscar informações
sobre minha mãe, e Lara voltou para perto dos pais. À nossa volta, as pessoas
demonstravam estar perdidas e esgotadas. Muitos exibiam machucados
superficiais que não precisavam de socorro imediato e, ao constatar aquilo,
observei meu pai e meu irmão. Eu estava tão agitada e preocupada com
minha mãe, que não tinha parado para prestar atenção neles dois.
Meu pai tinha um corte grande na bochecha e o braço de Victor sangrava
por alguma ferida que eu não consegui identificar. Estiquei a mão para tentar
limpar o sangue e procurar o machucado, mas ele se desvencilhou de mim e
cruzou os braços.
— Eu estou bem — murmurou, fingindo-se de forte.
— Você está machucado, Victor.
— Você também está.
Franzindo a testa, olhei para o mesmo local que ele olhava e descobri que
meus pés estavam imundos de sujeira e sangue. Lembrei de ter escorregado
no sangue que havia no chão do banheiro feminino. Então, ficava difícil saber
o que era da garota e o que era meu. Claro, também havia um corte de mais
ou menos cinco centímetros sobre meu peito do pé direito, mas não estava
doendo e aquilo me deixava aliviada.
Aproveitei e tateei minha testa, sabendo que também tinha me ferido
naquela região. Encontrei sangue fresco em volta do corte, mas, por mais
estranho que fosse, não havia dor.
— Acho que recebi muitas transfusões de sangue de Mestres... —
sussurrei para Victor. — Posso estar machucada, mas não estou sentindo dor.
Ao terminar de falar, senti a injustiça presente naquela sentença. Minha
mãe estava gravemente ferida e, provavelmente, sentia dores terríveis.
Enquanto isso, eu estava me sentindo muito bem, como se não tivesse sofrido
nada. Ainda por cima, me sentia transbordar de energia. Imaginei que poderia
correr uma maratona, se preciso fosse.
Eu me deixei pensar um pouco em toda aquela loucura. Lembrei que, ao
despertar na Morada, tinha sido instantaneamente atingida por uma sensação
de letargia, que logo passou quando comecei a me movimentar. Mas,
momentos antes da explosão no colégio, eu me sentia diferente, mais agitada.
Eu sabia que era o sangue. Só podia ser. A sensação era parecida com a de
quando o ônibus escolar fora atacado e eu precisei enfrentar os mitológicos
para sobreviver. Assim como no dia em que Zênite invadiu a Fortaleza e eu
tomei o sangue de Mikhail antes de procurar minha família e protegê-la. Era
uma adrenalina que corria pelas minhas veias e fazia eu me sentir invencível.
E me dei conta, então, de que devia ser daquele mesmo jeito que os vampiros
se sentiam.
Faltando alguns metros para alcançarmos a Morada, avistei Mikhail ao
lado de Vladimir, ambos parados diante das portas duplas. Eles recebiam e
encaminhavamos humanos que chegavam escoltados pelos soldados.
Ao terminar de subir a imensa escadaria do prédio, os olhos do Mestre
encontraram os meus. Queria ser discreta, mas ao fazer contato visual com
ele não era possível impedir que meu coração acelerasse. Além disso, eu não
via Mikhail desde o fatídico momento em que me atirara sobre Kurt enquanto
ele tentava salvar Klaus.
O Mestre não perdeu tempo e me avaliou dos pés à cabeça. Seu semblante
se anuviou ao notar meus machucados e ele deu um passo à frente, mas foi
interceptado pelo meu pai.
— Por favor, Mestre! — Meu pai juntou as mãos, implorando, com a voz
embargada. — Preciso saber da minha esposa. Nos ajude com alguma
informação.
Mikhail desviou os olhos e o encarou, desfazendo a expressão de raiva que
era destinada a mim.
— Venham comigo — pediu o Mestre, girando sobre os calcanhares e nos
levando em direção ao elevador. — Irina foi atendida por nós com urgência
assim que Klaus a trouxe e agora está sob os cuidados de uma enfermeira.
— Então, ela está bem? — Perguntei.
— Está, por enquanto. Como a ferida era muito profunda e extensa,
tivemos que costurá-la antes mesmo que a transfusão fizesse efeito. —
Mikhail deixou que entrássemos primeiro no elevador e depois nos seguiu.
Ele nos encarou com uma expressão duvidosa. — Ela sofreu uma perfuração
no intestino, por isso a recuperação não será tão rápida. Irinacontinuará
recebendo transfusão por mais algumas horas, mas precisamos aguardar que
o sangue faça o restante do trabalho.
Eu esperava que ele dissesse que tudo não passara de um susto e que
minha mãe estava ótima. O que ele falou não era exatamente o que eu queria
ouvir, mas não achei que adiantava discutir. Ainda me sentia um pouco frágil
perante ele, depois da nossa última conversa, que foi interrompida por Rurik.
Não sabia se conseguiria superar rapidamente o fim do nosso relacionamento,
até porque, mal tivemos tempo para conversar sobre o assunto.
O Mestre tinha sido meu primeiro namorado e eu não possuía experiência
com términos. Era difícil demais tê-lo por perto e saber que entre nós não
havia mais nada. Se não fossem os problemas pelos quais passávamos
naquele momento, eu estaria chorando pelos cantos. Por um lado, ter que
lutar para sobreviver um dia após o outro evitava que eu ficasse remoendo o
que aconteceu.
— É melhor eu levá-los primeiro para cuidarem de suas feridas — o
Mestre comentou, meio que nos impondo uma ordem.
Meu pai deu um passo à frente para sair do alcance dele.
— Cuide dos meus filhos — pediu. — Eu estou bem, só quero ver minha
esposa.
Antes que meu cérebro parasse de pensar em Mikhail e compreendesse a
situação, Victor se rebelou e também se juntou ao meu pai.
— Eu também quero ver minha mãe!
— De jeito nenhum. Vocês dois estão feridos —papai apontou para
Mikhail —, e o Mestre cuidarádisso.
— Não mesmo! — Reclamei. — Também não irei a lugar algum antes de
ver minha mãe.
— Estou com a Sasha. — Victor estufou o peito. — Nossos machucados
são superficiais.
Pela expressão do Mestre, achei que insistiria para que sua ordem fosse
acatada, mas me surpreendi quando ele não argumentou. Talvez não estivesse
com disposição para aquele tipo de discussão. Ou talvez, quisesse apenas se
livrar logo de mim.
Mikhail apenas encarou meu pai, como se deixasse a decisão nas mãos
dele. O pobre homem, com os ombros caídos, finalmente aceitou que
fôssemos todos juntos.
Mikhail andou a passos largos por um corredor bem movimentado assim
que saímos do elevador e nós o acompanhamos em silêncio. Alguns
quartostinham as portas abertas e dava para ver que estavam sendo usados
como uma espécie de enfermaria. Avistei algumas pessoasdeitadas em camas
estreitas, recebendotransfusões de sangue e controlei minha vontade de
perguntar se era de vampiro ou humano. Como será que estava o estoque da
Fortaleza? Devíamos nos preocupar?
— Irina está aqui. — Mikhail declarou, parando de frente para a última
porta do corredor.
Encontramos minha mãe deitada e adormecida. Era a única paciente
naquele quarto. Então, entramos sem cerimônia e Victor foi o primeiro a
correr até ela.
“Nós dois precisamos conversar” — Mikhail me avisou, enquanto meu
pai entrava no quarto e nos deixava para trás. — “Depois, é claro. Passe um
tempo com sua mãe e...”
O Mestre interrompeu o que dizia quando começou a me avaliar mais uma
vez dos pés à cabeça. Eu me sentia desconfortável à medida que os olhos
azuis me escrutinavam. Sabia que minha aparência estava um caos: suja,
rasgada e ensanguentada. Mikhail, com certeza, passara a imortalidade se
relacionando com mulheres muito mais atraentes do que eu.
— Você já observou o seu pé? — Ele perguntou.
Antes que eu pudesse responder, o vampiro se agachou e segurou meu pé
com ambas as mãos. Precisei me apoiar na parede para não me desequilibrar
e olhei em volta, abismada com o comportamento indiscreto. Será que o
Mestre se esquecera de que estávamos em público?
— Não está doendo — avisei, sem graça.
Ele levantou os olhos para me olhar e arqueou uma sobrancelha em
resposta. Depois, passou o polegar pelo canino afiado, rasgando a pele e
esfregando seu sangue sobre minha ferida. Tudo era desconcertante naquela
cena: o Mestre ajoelhado, minha posição esquisita, o olhar dele cravado em
mim, nossa vulnerabilidade naquele corredor onde qualquer um poderia
passar.
— O fato de você nem se dar conta de uma ferida feia como essa — disse
ele, balançando a cabeça e soltando meu pé —, é mais um motivo para
termos uma conversa. Quero que vá ao meu quarto daqui a meia hora.
— Eu não sei em qual andar fica o seu quarto — resmunguei, mais para
mim, como se aquele fosse o único problema.
— Dezoito andares acima desse.
Dezoito! Resfoleguei, sem acreditar naquilo. Ele queria mesmo que eu
subisse dezoito andares de escada?Porque, obviamente, eu não tinha poderes
para fazer o elevador funcionar com minha mente. Estremeci só em relembrar
o sofrimento que foi quando Blake e eu tivemos que encarar a escadaria da
parte interna da muralha.
O Mestre pareceu entender minha relutância, mas não facilitou as coisas
para mim. Ele se levantou, ajeitou o manto preto e recuou um pouco para que
eu pudesse entrar no quarto.
— Peça para a enfermeira cuidar da sua cabeça — ordenou, fitando minha
testa.
“E não me deixe esperando.”
Revirei meus olhos assim que ele virou de costas, mas permaneci calada.
Não queria discutir com ele, pois tinha mais o que fazer no momento, como
dar atenção para minha mãe. Ela estava dormindo e a enfermeira avisou que
havia sido sedada porque se mostrara relutante em receber o sangue dos
Mestres. Um comportamento típicode Irina Baker, logicamente. Nem mesmo
à beira da morte ela relaxava.
CAPÍTULO 3

Tinha me aconchegado numa poltrona ao lado da cama de mamãe e estava


quase cochilando quando Kurt apareceu na porta do quarto. Meu pai e Victor
dormiam num sofá de canto, perto da porta do banheiro e eu me levantei com
cuidado para não acordá-los.
Puxei Kurt para fora do quarto e fechei a porta, bocejando e desejando
saber que horas eram. Como as janelas do prédio estavam seladas, eu não
conseguia ter noção exata do horário, só sabia que havia um sol lá fora.
— Como ela está? — Kurt perguntou.
Antes de responder, eu o abracei. Com vontade mesmo, passando meus
braços ao redor do corpo dele e apertando com força. Desde que acordei num
quarto vazio e fui levada para o colégio, tudo acontecera de forma tão intensa
que não tive chance de falar direito com meu amigo. Kurt retribuiu o abraço,
alisando minhas costas com uma das mãos.
— Ela está melhorando rápido — respondi, soltando-o para poder olhá-lo
melhor. — Você tem notícias daquela menina que se acidentou no banheiro?
— Sinto muito, Sashita. — Kurt baixou os olhos. — Ela não sobreviveu.
Tive vontade de chorar. Eu não a conhecia, mas me senti como se tivesse
alguma obrigação em mantê-la viva. Fechei os olhos, lutando contra o peso
em meu peito. Será que os pais da menina estavam vivos? Será que já sabiam
o que aconteceu com a filha?
— Eu consegui trazê-la para cá, mas... — as palavras se perderam na boca
de Kurt.
— Você tentou e é isso que importa.
Ele suspirou e se encostou à parede, enfiando as mãos nos bolsos da farda.
De repente, percebi que aquela era a primeira vez que eu verdadeiramente
olhava para o que ele estava vestindo. Até a notícia da morte da menina se
perdeu em meio aos meus mais recentes pensamentos.
Kurt era um vampiro, isso não era mais novidade. Mas a roupa preta que
ele vestia não era a mesma usada pelos soldados da Fortaleza.
— Você não é um soldado normal. — Engoli em seco, sem
conseguirimaginar meu amigo duelando com aqueles monstros mitológicos.
— Kurt, você se transformou nesses... novos vampiros superdotados?
— O termo certo é Guardião.
O brilho nos olhos e a pose altiva demonstravam o quanto ele se sentia
orgulhoso daquela conquista. Eu teria algumas coisas a dizer sobre sua nova
condição, mas me lembrei de como ele havia se mostrado útildepois da
explosão no colégio. Kurt teria chances reais de salvar vidas.
— Você está feliz? — Perguntei, cutucando a farda negra com meu dedo
indicador. Dei uma piscadinha para provocá-lo. — Sabemos que você ficou
ainda mais gato do que já era. E forte.
— Virei um vampiro há apenas dois dias, então ainda é cedo para
responder. — Ele encolheu os ombros. — Tenho mais contato com Klaus
agora. Tenho mais força, mais agilidade e não sou um alvo em potencial. São
algumas vantagens.
— Dois dias? — Franzi a testa. — Por quanto tempo eu estive
desacordada?
Não pude calcular o quanto eu havia perdido durante esse tempo. O que
aconteceu durante aquele período? E o que, afinal, aconteceu comigo para
que eu dormisse por dois dias? Eu já sabia que não tinha sido transformada,
mas que tratamento havia recebido para que não me lembrasse de nada?
Olhei para a queimadura em minha mão, uma consequência do meu último
ato irresponsável antes de perder a consciência. Ou, talvez, não fosse tão
irresponsável assim, considerando que Klaus estava vivo e Kurt também.
O novo Guardião parecia ter se distanciado da nossa conversa, pois ele
olhava na direção do início do corredor. Quando inclinou um pouco a cabeça,
imaginei que estivesse recebendo ordens superioresmentalmente. Eu sabia
que os Mestres se comunicavam daquela forma com os soldados e, agora,
seria assim também com meu amigo.
— Preciso ir, Sashita. — Ele se aprumou.
— Ir?
— Treinar — respondeu, sorrindo. — Não se aprende a matar mitológicos
da noite para o dia.
— Eu devo estar sonhando. Você treinando... — ri. — Lembro que
quando apresentei minha ideia sobre receber treinamento, você ficou com
medo de quebrar as unhas.
Ele piscou e se empertigou, estufando o peito e alisando o uniforme.
— Antes eu não era um Guardião.
O filho da mãe estava deslumbrante! Os cabelos escuros, sempre muito
bem tratados, ganharam um brilho incomum. O contorno do rosto parecia ter
sido lapidado, pois as linhas estavam mais duras, mais marcadas. As
sobrancelhas pareciam mais grossas e os lábios ganharam o mesmo tom de
rosa escuro que os Mestres ostentavam. O conjunto todo contrastava muito
bem com a pele pálida.
— Por que você está me olhando com essa cara de idiota? — Perguntou
ele, desconfiado.
— Só estou admirando sua beleza. Nada demais. — Dei de ombros. —
Acho que você irá arrasar corações pelo mundo afora.
Kurt me abraçou e quase quebrou meus ossos por não ter muito controle
da própria força.
— Preciso ir. Depois eu passo aqui para ver como vocês estão.
— Me faz um favor? — Pedi, sorrindo. — Pode me dar uma carona até o
andar de Mikhail?
Ele arregalou os olhos como se eu tivesse enlouquecido e me adiantei em
explicar.
— Mais cedo, ele pediu que eu fosse encontrá-lo no quarto. — Dei de
ombros. — Só estou obedecendo.
— No quarto dele? — Kurt franziu a testa e eu quis lhe dar um tapa por
duvidar de mim. — Eu nem sequersei qual andar é o dele. Você sabia que há
toda uma questão territorial muito séria a respeito disso?
— Sim, eu sei. — Revirei os olhos, sem paciência para discutir
territorialismo de vampiros. — É o décimo oitavo andar a partir desse onde
estamos. Vai me levar ou precisarei usar minhas próprias pernas?

Bati na porta do quarto depois que Kurt me largou no final da escada. Ela
foi aberta de imediato, mas não havia nenhum Mikhail atrás dela.
Quando entrei, a porta se fechou atrás de mim e ouvi o clique indicando
que estava sendo trancada.
— Você está aqui? — Perguntei.
— Os momentos escolhidos por você nunca são os mais oportunos — o
Mestre surgiu na porta do banheiro, nu em pelo, com o corpo ainda molhado
do banho.
Opa!Aquela era uma situação constrangedora. Eu sabia que não era
educado ficar encarando uma pessoa pelada. Pior ainda era direcionar o olhar
para determinada parte do corpo da pessoa em questão. Só que a culpa não
era minha. Mikhail tinha aquela mania irritante de não usar toalhas para se
secar e aí ficava bem difícil não encarar aquele corpo nu que eu desejava
colar ao meu.
Tentei imaginar um monte de centauros horripilantes à nossa volta para
poder ocupar a mente com outra coisa e me livrar daquele martírio. Respirei
fundo e me sentei na poltrona próxima à escrivaninha que datava alguns
séculos. Forcei meus olhos a focarem em minhas unhas e não no monumento
desfilando diante de mim.
— Se quiser, posso voltar depois — falei, pigarreando.
— Não há nada aqui que você não tenha visto. — Curto e grosso, ele
passou por mim e abriu as portas do grande armário. Que, pelo visto, não era
a única coisa grande naquele quarto.
Preciso olhar, preciso olhar, preciso olhar. Argh!
Não consegui me controlar e acabei virando a cabeça. Mikhail olhava
fixamente para as roupas, como se estivesse em dúvida sobre o que vestir. Eu
estava em dúvida se devia ou não me aproximar para tocar aquelas nádegas
durinhas. Mas, como uma pessoa forte que eu era, ajeitei-me na poltrona e
fechei os olhos.
— Quer tomar um banho? — Perguntou.
Eu nem sequer havia pensado em banho, mas não podia recusar a
oportunidade de me livrar da roupa suja e jogar uma água no corpo. Sentia
meu cabelo duro e seco com o tanto de sangue e poeira impregnados nos fios.
Aceitei a oferta e Mikhail me entregou uma camisa e uma toalha cheirosa
e felpuda. Ele podia não usar, mas pelo menos tinha entendido que eu gostava
daquele tipo de mimo moderno.
Quando fechei a porta do banheiro e deixei a roupa cair aos meus pés,
quase me assustei com o meu reflexo no espelho. Havia alguns hematomas
espalhados por meu corpo, provavelmente consequência da explosão e meu
rosto estava pálido como uma folha de papel. As cicatrizes estavam ali
também, para serem vistas, e eu teria que lidar com elas para sempre. Não ia
chorar, nem me fazer de vítima ou sentir pena de mim mesma, decidi.
Não demorei muito no banho, apenas o suficiente para me limpar. Não
podia e nem queria abusar da hospitalidade de Mikhail. Além do mais, saber
que ele estava apenas alguns metros de distância e que há pouco tempo nós
dois usávamos aquela cama, me fazia sentir um vazio no peito. Fisicamente,
ele estava próximo, mas eu começava a achar que nossa distância emocional
era enorme.
Cuidei das minhas necessidades mais básicas e quando saí do banheiro, ele
estava calçando botas pretas. Parou para me observar, lançando um olhar
indiscreto para minhas pernas nuas. A camisa que me emprestara, apesar de
comprida, deixava meus joelhos expostos.
— Até o pôr-do-sol, todos vocês receberão roupas limpas.
— Isso será ótimo.
Tentei sorrir, em vão. Começava a me sentir exausta e ter que parecer
forte diante de Mikhail não estava fazendo bem ao meu coração. Queria tanto
poder tocá-lo como antes...
Levantei os olhos e o encarei demoradamente. O semblante do Mestre
também demonstravam um esgotamento que, talvez, somente alguém com
mais de dois mil anos de existência poderia sentir. Meus braços quiseram
envolver o pescoço dele, mas forcei meus pés a permanecerem firmes no
lugar. Só que para o meu espanto, não foi preciso me conter. O próprio
Mikhail mexeu o dedo indicador e fez meu corpo levitar até ele.
Seus braços fortes envolveram minha cintura e meus músculos relaxaram
quando ele me abraçou apertado. Fechei os olhos e aproveitei a quietude
daquele momento, encostada à presença sólida e protetora de Misha.
Minha nossa! Eu seria capaz de ficar naquela posição para o resto da vida.
— Como está se sentindo? — O Mestre levantou meu queixo com um
dedo e interrompeu o silêncio, me trazendo de volta à realidade ao ter que
olhar para ele.
— Um pouco confusa — respondi. — Pode me explicar o que aconteceu?
Ele me observou em silêncio e imaginei que estivesse pensando por onde
devia começar a falar. Fechei meus olhos quando senti seus dedos deslizarem
pelos meus cabelos úmidos. Ficamos assim, degustando da presença um do
outro, até que ele me soltou devagar e indicou a poltrona para que eu me
sentasse. Mikhail tomou seu lugar na beira da cama e apoiou os cotovelos nos
joelhos.
— Contarei tudo, mas antes... — ele olhou para meu pé descalço. — Estou
um pouco preocupado.
— Com meu pé?
— Com a quantidade de sangue que você tem em seu organismo. Sangue
de Mestres, eu quero dizer — ele completou quando franzi a testa. — Não é
normal você não sentir dor. Sei que nosso sangue lhe deixa enérgica e,
certamente, mais resistente à dor. Só que não deveria ser tanto a ponto de
extinguí-la.
Eu não tinha pensado muito naquilo porque não parecia tão importante.
Mas a preocupação real de Mikhail me deixou tensa.
Afinal, que problema havia em não me sentir mal?
— Não acho que seja algo ruim — apontei. — O sangue de vocês, até
agora, só me fez bem, apesar de ser nojento.
— Sasha, você sequer parecia notar seus ferimentos. Se fosse algo fatal,
poderia morrer, pois não perceberia a urgência.
Exagerado, não? Quis revirar meus olhos, mas sabia que ele enxergaria a
ação como um ato de rebeldia.
— Vamos apenas agradecer por não ter sido nada demais — forcei um
sorriso.
Misha alisou o queixo, pensativo.
— Deixarei um aviso na enfermaria paraque não façam em você mais
nenhuma transfusão com nosso sangue. Não há outro caso como o seu para
nos basearmos, portanto, não sabemos o que pode acontecer com um humano
que receba uma quantidade tão grande de nosso sangue.
Suspirei, chateada com a conversa. Eu não pretendia receber mais
nenhuma transfusão, visto que não estava em meus planosme aproximar
novamente da morte. Tinha achado, erroneamente, que Mikhail me chamara
ali para discutirmos nossa relação. Não esperava ter que ficar recebendo
sermão dele sobre meus machucados.
Entediada, não consegui conter um bocejo. Parecia que todo o sangue que
eu havia recebidofinalmente começava a perder o efeito, pois eu me
sentirepentinamente esgotada.
— Sei que você deseja saber o que aconteceu. — Mikhail se levantou e
abriu a porta. Eu me surpreendi com a vampira que estava parada ali,
segurando duas bolsas de sangueque o Mestre tratou de pegar antes de
fechara porta novamente. — Por onde eu começo?
CAPÍTULO 4

MIKHAIL
Com a Fortaleza do jeito que estava, algumas regras foram deixadas de
lado, desde que demos início às transformações dos Guardiões. As coisas
pioraram de forma exponencial e não conseguíamos mais manter nossa rotina
alimentar em ordem. Apóso Centro de Doação ter sido sabotado e explodido,
o sangue estava sendo todo coletado dentro da Morada e a Guarda do Sangue
nos fornecia quando era necessário. Devido a escassez, estávamos
controlandoao máximo o consumo e bebendo somente quando sentíamos nos
aproximar do limite.
Senti Sasha me observar enquanto eu despejava o líquido dentro de uma
taça.
— Com tantas mortes humanas, como estão as doações de sangue?
— Precárias — respondi, tomando um gole do sangue fresco. — A
situação se tornou insustentável a partir do momento em que sentimos a
necessidade de usar nosso próprio sangue para curar os moradores, que por
sinal, são também nossos doadores.
— O estoque não está sendo suficiente?
— O estoque ficava no prédio do Centro de Doação, que explodiu há
algumas horas.
Observei o choque passar pelos olhos de Sasha. Era mesmo preocupante
todo o sangue guardado ter ido pelos ares. Eram muitas bocas para alimentar
e os humanos não estavam ansiosos para verem como os vampiros ficam
quando sedentos. Sabíamos que, além de nós, os soldados e os Guardiões se
controlavam com mais facilidade, mas os civis não possuíam treinamento
para suportar a fome por muito tempo.
Eu me sentei na cama e a encarei. Apesar de cansada, seus olhos estavam
fixos nos meus e mostravam um amadurecimento que eu não notei chegar.
Sasha estava diferente, tinha um olhar duro e decidido. Tão nova e já havia
suportado tantas dificuldades. Parecia muito distante daquela garota a quem
eu precisava proteger e carregar no colo a todo instante.
Ela cruzou as mãos sobre o colo e segui o movimento, observando as
cicatrizes em seus dedos. Minha memória retornou ao fatídico dia em que se
queimou e comecei a narrar o que aconteceu após o desmaio dela.
A cena era absurda e apavorante. Sasha no chão, com queimaduras
espalhadas pelo corpo, além do braço direito que apresentava um quadro
gravíssimo. Kurt tinha em torno de setenta por cento do corpo queimado e
alguns ossos das pontas dos seus dedos estavam expostos. A respiração do
garoto falhava e o organismo dele beirava um colapso.
O corpo de Klaus apresentava um aspecto carbonizado, a um passo de
virar pó, quando conseguimos livrá-lo das chamas. O que o salvou foi a força
que possuía e eu achava que qualquer outro no lugar dele jamais teria
sobrevivido, assim como Rurik não sobreviveu.
— Doadores! — Niko gritou, enquanto humanos corriam para nos ajudar.
O irmão de Sasha foi um dos que se aproximou e eu pensei o quanto era
inapropriado deixar que o garoto doasse sangue. Todavia, a situação era
urgente demais para nos preocuparmos com quem era ou não era menor de
idade. Victor tinha queimado um pouco as próprias mãos ao tentar apagar as
labaredas que consumiam a irmã; não era nada grave e ele poderia ser curado
depois que resolvêssemos os problemas mais urgentes.
Dei ordens para que dois funcionários se ocupassem das cinzas de Rurik e,
com cuidado, envolvi Sasha em meu manto. Nossas lesões eram superficiais,
mas as de Sasha e Kurt eram catastróficas. Passei uma das mãos pelo pescoço
do rapaz, tomando cuidado ao arrancar pedaços de roupa que ficaram
grudados na pele dele. Por sorte, perdera a consciência e não sofreria tanto.
— Ele não vai resistir — avisei. — Se não o transformarmos agora...
“Salvem os dois! Quero que ambos se tornem Guardiões.”
Klaus ainda não tinha forças para falar, mas conseguiu nos passar a
mensagem. Porém, para que um humano pudesse ser transformado em
vampiro, era preciso interromper o funcionamento do coração daquela
pessoa. Manualmente. Se a causa da morte fosse natural, nenhum esforço
seria suficiente para ativar a transformação. Sendo assim, antes que fosse
tarde demais, enfiei minha mão no peito de Kurt e parei os movimentos do
órgãoque já batia lentamente.
Pela minha visão periférica, vi quando Nikolai se aproximou de Sasha,
pronto para fazer o mesmo com ela.
— Não a toque! — Ordenei, sem olhar para ele. — Aleksandra não será
transformada. Esse não é o desejo dela.
Senti os olhares sobre mim, mas ninguém ousou julgar minha decisão.
Rapidamente, deium pouco do meu sangue a Kurt e deixei que meus
irmãosterminassem o trabalho. Peguei Sasha nos braço e me levantei,
disposto a levá-la para onde pudesse cuidar dela com mais atenção.
— Victor! Avise seus pais — pedi. — Conte o que aconteceu e peça que
eles venham para cá.
“Niko, preciso de sua ajuda! Da sua também Klaus, assim que se
recuperar!”
Corri para meu quarto sem esperar pela aprovação deles, pois para uma
cura perfeita, qualquer segundo era fundamental.
Deitei Sasha em minha cama e a livrei do casaco e da camiseta para poder
enxergar melhor as queimaduras. Felizmente, da cintura para baixo ela não
havia se ferido.
Parei, por um instante, para avaliar melhor a situação. Bolhas e mais
bolhas se formavam, e um dos braços exibia feridas profundas. De todos os
problemas nos quais Sasha se enfiou, aquele era, de longe, o pior. Eu não
sabia quanto sangue seria necessário para reverter a gravidade do quadro e
evitar que os nervos da mão dela fossem danificados.
Tirei minha camisa e subi na cama, me posicionando sobre suas coxas.
Com as unhas, rasguei meus antebraços de ponta a ponta e estiquei os braços
para cobrir uma região bem grande do corpo dela. Daquela forma, meu
sangue escorria diretosobre as queimaduras.
— Não irei transformá-la, mas acho bom você se recuperar — sussurrei.
Fechei os olhos quando percebi que estava falando sozinho e me
concentrei em avisar à Guarda do Sangue para que levassem doadores até
meu quarto o mais rápido possível. Eu precisaria repor o que estava
perdendo.
Enquanto a ajuda dos meus irmãos não chegava, rasguei um pedaço
grande do lençol, cobri os seios de Sasha e voltei a me concentrarno trabalho.
“Mikhail?”
Nikolai me chamou alguns minutos depois, quando eu já começava a me
sentir enfraquecido. Senti sua mão em meu ombro e não argumentei quando
ele me afastou da cama. Já estava sedento e não podia continuar ajudando
enquanto não me alimentasse.
Eu me joguei no chão perto da porta do banheiro, sem nem mesmo
conseguir fechar os cortes em meus braços. Observei, enquanto Niko
sangrava sobre Sasha, desejando que ele conseguisse se manter ali por mais
tempo que eu.
— Minha nossa, Mikhail! Você precisava transformar sua cama numa
piscina de sangue? — Meu irmão perguntou, alternando os olhares entre
Sasha e eu.
Responder só me faria gastar mais energia, então continuei calado. Deixei
minha cabeça encostar na parede e fechei os olhos. Sentia-me esgotado.
— E Klaus? — Balbuciei. — Como está?
Nikolai não precisou se dar ao trabalho de me responder, pois nosso irmão
mais velho protagonizou uma entrada triunfal, escancarando a porta e
trazendo a Guarda do Sangue logo atrás. Com a chegada de alguns doadores,
aquele lugar, que antes era meu santuário, tornou-se um caos.
— Eu estou ótimo! — Klaus abriu os braços para confirmar o que dizia.
— Não foi dessa vez que vocês se livraram de mim.
Pelo visto, sua personalidade irritante não havia sofrido nenhum abalo.
“Klaus, ajude-a” — pedi, mal conseguindo manter minhas costas eretas.
Agradeci quando um doador se agachou ao meu lado e dele pude me
alimentar. A urgência da sede era tanta que puxei o doador pelo colarinho da
camisa, esquecendo-me das boas maneiras.
— Diga-me, Mikhail. Você pretendia afogar Aleksandra no seu sangue?
— Klaus perguntou, e quando o olhei, estava com uma expressão de nojo. —
Eu vou ajudá-la, obviamente, mas através de uma transfusão. Deixarei que
você e Nikolai se ocupem desse outro método... bagunçado.
— Não acho que Mikhail teve tempo de se preocupar com aparências,
Klaus — ouvi Nikolai falar. — A situação pedia urgência e ele tomou a
decisão certa. De qualquer forma, acho que ela ficarácom algumas cicatrizes.
O primeiro doador levantoue se afastou cambaleando, pois eu tinha
sugado além do permitido. Pedi desculpas mentalmente e encarei o próximo
da fila. Era um homem parrudo de uns cento e vinte quilos, que trabalhava
como vigia durante o dia. Daquele ali, com certeza, eu poderia me alimentar
fartamente. Sorri para ele e o trouxe para perto com o pouco poder que me
restava.
CAPÍTULO 5

Conforme Mikhail narrava os acontecimentos, a impressão que eu tinha


era de que tudo aquilo acontecera com outra pessoa e não comigo. Era tão
surreal! Eu não possuía lembranças daqueles momentos e, pela forma como
ele se referia ao meu estado físico, talvez ficar inconsciente tenha sido uma
vantagem.
— Você... — pigarreei, surpresa demais para manter um tom de voz
normal. — Você impediu a minha transformação?
— Sim.
Ele respondeu de forma simples e não parecia querer dizer nada além do
que disse. Não havia segundas ou terceiras intenções naquela afirmação. Eu
me remexi na cadeira, procurando uma posição mais confortável. A vontade
de me aproximar de Mikhail novamente e pular em seu colo era grande
demais, eu mal conseguia me concentrar.
— Um dos motivos das nossas discussões era justamente esse — frisei. —
Você sempre mostrou interesse em me ver transformada.
— Sim, Sasha. Eu gostaria que se tornasse uma de nós, mas que fosse por
sua escolha e não por falta de opção. — Mikhail ficou de pé e pegou um
manto limpo que estava dobrado sobre a cama. — Se você acordasse e
descobrisse que a transformamos, passaria a eternidade infernizando a minha
vida. Estou errado?
— Bem, não... — desviei os olhos dos dele. — Você está certo. Eu ficaria
mesmo chateada.
Como se não tivesse supervelocidade, ele vestiu o manto sem pressa
alguma, ajeitando a gola por trás da nuca. Observei cada centímetro daquele
rosto, da expressão dura e distante que o moldava.
Ter o conhecimento de que Mikhail intercedeu por mim num momento tão
crucial me fez querer abraçá-lo e pedir desculpas por todos os problemas que
eu sempre causava. Dei um passo a frente, justamente no segundo em que ele
virou de costas e saiu do quarto.
— Obrigada — disse, apenas, sentindo que o momento havia passado.
Saí atrás do Mestre, que não parecia preocupado com minha dificuldade
em acompanhar seus passos. Só o alcancei quando ele parou à espera do
elevador e me olhou por cima do ombro como se tivesse se dado conta da
minha presença. Eu me esforcei para não parecer ofegante.
— Preciso que você incentive seu pai — ele fitou os próprios pés —, a
voltar o quanto antes ao trabalho. Sabemos que o estado da sua mãe ainda é
crítico, mas precisamos de armas e munição.
— Ele não vai querer sair do lado da minha mãe enquanto não tiver
certeza de que ela ficará bem.
A porta do elevador se abriu diante de nós, mas Mikhail estendeu um
braço à minha frente, impedindo que eu entrasse. Quando aproximou o rosto
do meu, notei o pesar em seus olhos. Como se não concordasse com as
próprias palavras, mesmo sendo necessário falar.
— Klaus não vai pedir da forma como eu estou pedindo. Você sabe disso.
Eu sabia, mas com a proximidade momentânea do Mestre, eu não estava
me importando tanto. Podia sentir o hálito dele tocar meu rosto. Sentia falta
da força de seus músculos quando me abraçava e dos calafrios que corriam
pelo meu corpo quando seus lábios tocavam os meus.
Suspirei, mas recuei ao notar que ele me encarava com uma sobrancelha
arqueada.
— Sim — pigarreei. — Falarei com meu pai.
Satisfeito por obter a resposta que esperava, ele deixou que eu entrasse no
elevador e, em seguida, se juntou a mim. Fizemos uma descida rápida e
saímos no andar onde minha mãe estava acomodada.
Enquanto seguia Mikhail, podia notar como era bizarra a ligação que ele
tinha com os Guardiões. Quando um Mestre passava por algum vampiro civil
ou soldado, eles apenas continuavam a fazer o que estavam fazendo. Só
reverenciavam ou batiam continência se o Mestre se dirigisse
especificamente a eles.
No entanto, enquanto Mikhail caminhava pelos corredores com o manto
preto arrastando no chão, os Guardiões que estavam no local viravam na
direção dele automaticamente, em posição de sentido, como se o Mestre fosse
um imã ambulante. A imagem era bem impressionante.
— Por que os Guardiões estão hipnotizados por você? — Perguntei.
Ele me encarou como se não soubesse a que eu me referia e, depois de
franzir a testa até criar um vinco profundo, o Mestre compreendeu minha
pergunta. Ele abafou uma risada.
— Eu não os hipnotizei, é apenas um reflexo. Nosso vínculo é forte
demais.
Quando chegamos ao quarto onde deixei minha família, ele passou direto
e continuou caminhando adiante. Então, me avisou que mamãe tinha sido
transferida para um quarto maior que pudesse acomodartodos nós.
Naquele momento, éramos os únicos andando pelo corredor e o Mestre
parecia mais relaxado. Decidi aproveitar a oportunidade para puxar assunto.
Eu ainda não sabia como seria nossa relação dali em diante.
— Obrigada por... — engoli em seco e encolhi os ombros. — Pelo
tratamento e todas as outras coisas. Mestre.
Ele parou de costas para mim e se voltou para trás lentamente. Os olhos
estreitos formavam uma linha fina e ameaçadora.
— Agora você resolveu me chamar da forma que lhe é apropriada?
— Antes tarde do que nunca, não é? — Dei de ombros, tentando sorrir. —
Como não há mais nada entre nós, acho justo tratá-lo como todos o tratam.
O Mestre me encarou por tanto tempo que cheguei a me sentir
desconfortável. No entanto, sustentei o olhar, sem conseguir desviar das duas
pedras azuis tão brilhantes.
— Seus pais devem estar ansiosos — ele apontou para a porta bem atrás
de mim. — É melhor entrar.
Respirei fundo, tentando me desvencilhar da sensação inebriante que era
encará-lo. Engoli em seco e me virei para entrar no quarto, pensando em
como passaria o recado de Klaus para meu pai. Precisava fazer aquilo antes
que o Mestre em pessoa aparecesse para buscá-lo.
— Sasha — Mikhail segurou minha mão no instante em que toquei a
maçaneta da porta.
Seus dedos alisaram minha pele com cicatrizes e eu resisti à vontade de
puxar a mão de volta. Então, elediminuiu a distância entre nós e me virou de
frente, passando um braço pela minha cintura. Meus pés saíram do chão e
pensei que ele fosse me beijar, mas fui envolvida num abraço, tão forte que
quase quebrou meus ossos.
Aproveitando o momento raro, passei meus braços pelo pescoço dele e
respirei profundamente, a fim de gravar em minha memória o cheiro
amadeirado característico daquele homem.
— Nunca mais me assuste desse jeito. — Os lábios dele, ao roçarem em
minha orelha, me fizeram estremecer. — Se preza pela sua mortalidade,
então, cuide dela.
Pensei em algo inteligente para responder, mas perdi minha concentração
quando a porta às minhas costas foi aberta. Por estar presa nos braços do
Mestre, apenas virei a cabeça, o suficiente para ver meus pais boquiabertos.
— Eu posso explicar — comecei, tentando me desvencilhar de Mikhail,
que não me soltou.
— Não, não pode! — Meu pai estava histérico e praticamente pulou em
cima de nós. — Sasha! Por que não consegue ficar uns dias sem arrumar mais
confusão? — Ele baçançou a cabeça com um olhar envergonhado. — Peço
desculpas pela minha filha, Mestre.
Papai segurou meu braço e tentou me desgrudar de Mikhail, achando que
eu estivesse assediando o vampiro. Como se eu possuísse forças para fazer
algo contra a vontade de um Mestre.
Sinceramente, meus pais eram mesmo tão cegos?
— Isso não irá acontecer novamente — o chefe da família Baker me deu
mais um puxão, mas Mikhail apertou ainda mais os seus braços ao redor do
meu corpo. — Sasha... Solte-o!
— Você é quem deve soltá-la, Johnathan — o Mestre cuspiu as palavras
sem desviar os olhos dos meus. Meu pai pareceu ter ficado confuso, mas não
me soltou, apesar da ordem. Então, ao perceber que ele ainda segurava meu
braço, Mikhail virou a cabeça lentamente até encará-lo com um olhar
assassino. — Preciso repetir?
Papai recuou com as mãos para o alto quando um rosnado reverberou pelo
peito do vampiro. Mamãe, que estava deitada na cama num ângulo em que
pudesse ver o que acontecia, parecia começar a chorar.
Discretamente, puxei alguns fios de cabelo do Mestre, para tentar
controlá-lo e evitar que machucasse meu pai.
“Acha que puxar meu cabelo vai me segurar?” — Ele sorriu para mim. —
“Que gesto ameaçador!”
Eu não consegui responder, de tão confusa que estava com a situação.
Mikhail tinha um talento nato para embaralhar minha mente sempre que
estávamos perto um do outro. Naquele momento, eu não tinha certeza se ele
me amava ou odiava. Seus gestos não condiziam com nossa última conversa
franca, antes do ataque de Rurik. Por que estava tão possessivo?
Eu estava pronta para dar um soco naquele nariz milenar caso ele ousasse
encostar um dedo em meu pai. Felizmente, não precisei mostrar o quão
patético seria tentar bater em um Mestre. Mikhailpercebeu meu receio e
meneou a cabeça com tanta discrição que somente eu reparei. Ele me olhou
nos olhos e ignorou nossa plateia.
— Qualquer problema, você sabe onde me achar.
Tocou levemente os meus lábios com os dele, arrancando um suspiro
chocado de meu pai e, depois, me colocou de volta ao chão. Como se nada
tivesse acontecido e aquela fosse uma conversa comum, elecumprimentou
meus pais e pediu para que cuidassem bem de mim. Sumiu num piscar de
olhos, usando sua supervelocidade habitual.
Cruzei as mãos na frente do corpo e, sem graça, encarei meus pais. Algo
me levava a crer que Mikhail não se dera ao trabalho de apagar as memórias
dos dois e eu teria muito trabalho para me explicar.
Se estivesse em casa poderia fugir para meu quarto e ficar de porta
trancada até que meus pais esquecessem aquela cena. Mas, espremidos do
jeito que estávamos num quarto pequeno, que mal comportava nossas camas,
ficava um pouco difícil evitar o confronto.
Primeiro, foi o silêncio. Ambos ficaram longos minutos calados, numa
troca de olhares irritante. Ainda bem que Victor não estava ali e não
presenciara todo o espetáculo.
Mais de dez minutos se passaram e eu já achava que eles não comentariam
nada. Havia sentado numa das camas de solteiro, com minhas costas apoiadas
na parede atrás de mim e mantinha meus olhos fechados. Não conseguia
deixar de pensar no relato de Mikhail sobre minha cura, a transformação de
Kurt e a recuperação de Klaus. Talvez, eu ainda precisasse digerir melhor
aquela informação, porque a verdade era que me sentia estranha. E, mesmo
ali na segurança do quarto, as imagens embaralhadas daquele dia ainda
dançavam em minha memória.
— Olhem o que eu trouxe! — Meu irmão quebrou o silêncio ao entrar no
quarto. — Quem está ansioso para se livrar desses farrapos?
Victor equilibrava uma pilha de roupas nos braços e quase não era
possível enxergar seu rosto. Quando largou tudo sobre uma das camas, nos
olhou com um sorriso bobo.
— Pelo visto a Sasha já se virou sozinha — debochou, notando que eu
estava de roupa limpa e seca. — Mas talvez seja melhor você vestir uma
calça, irmãzinha. Eles estavam distribuindo lá no saguão e...
— Victor! — Papai o interrompeu, com as mãos nos quadris. —
Precisamos conversar a sós com sua irmã.
O Adotado olhou em volta e pareceu se dar conta das expressões furiosas
dos nossos pais. Minha mãe me lançava um olhar tão feio que parecia que eu
tinha assassinado alguém. Francamente, ela não deveria poupar energia e se
concentrar na própria recuperação?
— A sós? — Victor franziu o nariz. — Mas eu acabei de chegar! E onde
vocês querem que eu fique enquanto isso?
— Por que não vai ver seus amigos? — Papai deu a ideia.
— Meus amigos estão todos mortos! Não que vocês pareçam se preocupar
com isso. — Victor repudiou e bateu a porta com força ao sair do quarto.
Suspirei, chateada por ver meu irmão daquele jeito. Assim como ele, eu
conhecia muito bem a sensação de perder um amigo. O peso e a dor de tudo
pelo qual eu tinha passado ainda estavam presentes em meu coração e não
desejava que Victor sentisse o mesmo.
O que mais me chateou foi o fato dos meus pais não se incomodarem com
a tristeza que se abateu sobre o próprio filho. Estavam mais concentrados em
resolver os problemas que achavam que eu tinha. Parecia inacreditável que,
de todos os problemas do mundo, eles achassem mais importante falar sobre
minha relação com Mikhail. Uma relação que nem existia mais.
— Caramba, isso aqui está parecendo um velório — murmurei.
Eu me sentei mais na beira da cama e apoiei as mãos no colo como uma
pessoa educada e elegante. Queria parecer o mais decente possível.
— Poderia ser o velório do seu namorado, se ele já não estivesse morto há
mais de dois mil anos — o chefe da família respondeu ao parar de pé e cruzar
os braços na minha frente. — Afinal, qual a nomenclatura que vocês usam
para se referir a essa relação? Necrofilia?
Suspirei e desviei meus olhos. Queria poder dar uns tapas no Mestre por
ter me colocado naquela situação. Eu nem conseguia entender o motivo que o
levara a agir de um jeito tão descuidado, visto que sempre prezou pela
discrição.
Encarei meu pai, pensando se devia ou não contar que os Mestres não
estavam realmente mortos. Todos pensavam que sim, já que era regra a
pessoa ter que morrer para se tornar um vampiro. No entanto, talvez eu fosse
a única humana na Fortaleza a conhecer a verdadeira história dos Mestres. E
eu não contaria a mais ninguém.
— A culpa é minha — mamãe falou, com muito esforço, mal se
aguentando com ela mesma. — Eu nem sabia que você gostava de homens
mais velhos...
Ela parecia prestes a chorar quando cruzou as mãos sobre a barriga e
soltou um suspiro profundo. Se começasse a passar mal eu ainda seria
apontada como culpada.
— Sasha, comece a falar — meu pai pediu. — Isso entre vocês dois já
vem acontecendo há algum tempo, não é? Foi por isso que o Mestre
compareceu ao seu aniversário.
— Vocês estão loucos! — Respondi, forçando o histerismo. Eu não podia
confirmar as suspeitas deles porque o estúpido do Mikhail não me dera
nenhuma instrução quanto ao que fazer. — Não sei onde vocês estão
enxergando uma... relação. Uma relação com um Mestre! Percebem como soa
ridículo?
— Ele não costuma me abraçar ou me beijar daquela maneira. — Papai
dobrou os joelhos e aproximou o rosto do meu. — E acredite, querida, eu
passo bastante tempo com todos eles.
—Ele é um Mestre! — Minha mãe falou o óbvio e eu resisti à vontade de
revirar os olhos. —Imagine só quanta crueldade ele já deve ter cometido
durante esse anos...
Comecei a ficar nervosa por ver meu pai andar de um lado para o outro
naquele cômodo pequeno. Nem quis pensar no que ele faria se soubesse que
eu também já tinha beijado o traidor da Fortaleza. Com certeza, não ficaria
feliz pelo meu histórico tão brilhante.
— Os Mestres podem ser crueis, inescrupulosos, assassinos... — papai
começou a enumerar as “qualidades”deles. — E nem quero pensar em como
são libidinosos! Ele pode seduzir você por muito pouco.
Mordi meu lábio para prender o sorriso que quis dominar minha
expressão. Realmente, Mikhail era muito, muito libidinoso. Relembrei alguns
momentos em que ele me deixou constatar aquele fato e suspirei.
Enquanto meus pais discursavam sobre o vasto e equivocado
conhecimento deles a respeito dos Mestres, eu resolvi me levantar. O sermão
não daria em nada.
— Olhem, eu entendo que estão com medo, mas vou repetir: não há
relação nenhuma entre Mikhail e eu — insisti, confiante de que estava
passando credibilidade. Ele havia terminado comigo, não é mesmo?
— Você nem o chama de Mestre! — Papai bufou e jogou as mãos para o
alto. — Como pode esperar que sua mãe e eu acreditemos nisso?
— Eu não chamo nenhum deles de Mestre! Raramente lembro de agir
conforme as regras.— Para extravasar minha raiva, comecei a mexer na pilha
de roupas que Victor trouxera e espalhei pela cama as peças que não me
serviam. — O mundo está uma loucura, pessoas estão morrendo destroçadas
por mitológicos. E vocês estão preocupados com quem eu beijo ou deixo de
beijar?
Os dois se calaram, mas não por muito tempo. Mamãe murmurou que todo
mundo tinha problemas e cada família precisava resolvê-los por conta
própria. Falou que não adiantava pensar só no fim do mundo e esquecer de
outras coisas importantes.
Meu pai foi mais rígido. Ele parou de andar ensandecido de um lado para
o outroe se colocou diante de mim, segurando em meus ombros.
— Você pode beijar quem quiser, desde que não seja a droga de um
vampiro!
Tive medo de responder algo que pudesse me comprometer ou ao próprio
Mikhail. Queria dizer umas verdades aos meus pais e mostrar como ambos
estavam sendo exagerados. Mas eu me calei.
Encareio rosto vermelho de papai. Ele parecia à beira de um colapso de
nervos e eu não estava com disposição para ficar discutindo aquele assunto.
Além do mais, para poder explicar o que acontecia de verdade entre o Mestre
e eu, primeiro precisava saber por qual motivo Mikhail havia optado em não
apagar as memórias dos dois.
— Quer saber? — Coloquei as mãos na cintura e fiz minha melhor cara de
entediada. — Vocês cismaram com isso e não vão mesmo acreditar em mim.
Então, façam como preferirem. Por que não vão tirar satisfação com o próprio
Mestre? Perguntem diretamente para ele. Mas antes disso, pai, acho melhor o
senhor voltar ao trabalho. Essa é uma ordem que Mestre Klaus pediu para
repassar.
Meu pai me soltou e esfregou o rosto ao recuar. Recado dado, eu só podia
torcer para que ele não fosse tolo o suficiente de esperar que viessem buscá-
lo à força. Mas, de qualquer forma, não queria ficar ali para descobrir o que
ele decidiria. Estava magoada e com um nó na garganta, prestes a me
desfazer em lágrimas.
— É lamentável que depois de tudo o que aconteceu, quando mais
precisamos nos unir, vocês decidam me tratar como se eu tivesse cometido
um crime — repreendi os dois.
Peguei a única calça jeans feminina da pilha de roupas e a vesti ali mesmo.
Logo constatei que ela era um número menor do que o meu, mas consegui
abotoá-la. Teria que esquecer o fato de que ela apertava tanto a minha cintura
que algumas gordurinhas estavam pulando para fora da calça. Maldição! Por
sorte, a camisa de Mikhail era grande e larga o suficiente para esconder os
meus pneus.
— Onde você está indo? — Mamãe perguntou quando marchei rumo à
porta.
— Não esperem que eu fique por aqui para ouvir sermão.
Saí do quarto antes que meu pai pudesse me impedir — ou que minha
própria mãe levantasse da cama e me acorrentasse aos pés dela. Atrás da
porta, ainda ouvi meu pai sussurrar algo sobre ir embora da Fortaleza. Ele
não podia ser tão paranóico. Podia?
Levei as mãos aos olhos e enxuguei as lágrimas que se acumulavam.
Sentia meu coração apertado e uma vontade enorme de chorar até ficar com o
rosto todo inchado. Não havia um motivo específico para me sentir tão triste.
Era apenas o acúmulo de um conjunto de fatores, e a rejeição dos meus pais
tinha sido a gota d’água.
Andei sem destino pelo corredor comprido, querendo encontrar algo que
me distraísse. Quando virei no corredor seguinte, encontrei Victor sentado no
chão, recostado à parede. Eu me sentei ao lado dele e suspirei. Pelo menos,
alguém naquela família ainda não tinha brigado comigo.
— Sobre o que era a conversa, afinal? — Ele perguntou, sem olhar para
mim.
— Mikhail e eu fomos flagrados num momento íntimo...
Meu irmão assobiou e deu uma risadinha.
— Você voltou com o Mestre?
Eu lembrava da noite em que Mikhail terminara comigo e da forma como
meu irmão me encontrou. Com o rosto molhado de lágrimas, chorando minha
dor de cotovelo, encostada à porta de casa. Não havia motivo para continuar
escondendo nossa relação dele. A situação já tinha se tornado catastrófica de
qualquer forma.
—Sei lá... — sacudi a cabeça. — Ele me beijou.
— Irado! — O garoto estranho bateu as mãos nos joelhos e sorriu. — É
muito insano ter um Mestre como cunhado. Você sabia que ele curou as
queimaduras das minhas mãos?
Victor era louco, não era nenhuma novidade. Masagora ele parecia ainda
pior; talvez o fogo tenha queimado alguns dos seus neurônios.
—Eu não voltei com Mikhail! E não é “irado”. Papai e mamãe estão a
ponto de me deserdar.
O mundo estava acabando e todos à minha volta pareciam muito mais
interessados pela minha vida amorosa. Tenha dó! Lancei a Victor um olhar
irritado e ele levantou as mãos em sinal de rendição.
Após cinco minutos de um silêncio enervante, meu irmão suspirou e virou
o corpo de frente para mim.
— Eu vi o Kurt ser transformado. — O brilho em seus olhos deixava claro
que ele se divertira com aquela experiência. — Depois que vocês dois
recuperaram o churrasquinho do Mestre Klaus, tudo aconteceu muito rápido.
O Mestre Mikhail te carregou para não sei onde, enquanto os outros
terminavam de curar o Kurt.
— E, pelo visto, você ficou para observar tudo.
— Foi a coisa mais incrível e medonha que já presenciei. — Ele
estremeceu. — É muito interessante assistir a transformação de um Guardião,
mas terei eternos pesadelos por ter visto o seu namorado enfiar a mão dentro
do peito do Kurt.
Evitei interromper o relato dele porque estava muito curiosa, mas quis dar
uns tapas em meu irmão por usar a palavra namorado.
— O Mestre Klaus se curou muito mais rápido do que eu achava ser
possível. Mas também, ele bebeu o sangue de umas trinta pessoas ou mais.
Só que, infelizmente, eu não pude ver o final da transformação do Kurt. O
Mestre Mikhail mandou que eu fosse chamar o papai e a mamãe. E mesmo
assim, a gente precisou esperar algumas horas para poder vê-la.
“Mamãe não parava de chorar. Ela surtou quando te viu. Depois ela surtou
mais ainda quando soube que Kurt tinha virado vampiro. E aí, as horas se
passaram, parecia que tudo ia ficar bem. Estava quieto demais. Então, as
coisas explodiram.”
Abracei meus joelhos ao lembrar da sensação de explosão no colégio. Por
pouco não morri e não perdi pessoas queridas. Apesar disso, de saber que eu
e todos que amava estavam bem, lamentava por aqueles que não tiveram a
mesma sorte. Quantas pessoas teriam morrido?
— Sasha?
— Sim? — Olhei para meu irmão.
— Estou com medo — ele sussurrou. — Me sinto como no dia do ônibus,
quando ficou claro que a gente ia morrer.
Ergui meu queixo, tentando passar mais confiança a ele.
— Nós não vamos morrer, Victor.
Levantei os olhos quando um grupo de Guardiões passou por nós,
marchando com foco e determinação. Nem pareciam notar nossa presença ou
não se importavam com isso. Em seus uniformes negros e postura de
guerreiros, quase se assemelhavam aos Mestres.
— Mas as coisas estão piorando a cada dia. Quem sabe o que irá acontecer
amanhã? — Sussurrou Victor. — Ou até mesmo hoje?
Desviei minha atenção do grupo para ele, que exibia um olhar inseguro.
— Independente do que nos espera, eu não vou deixar que nada aconteça a
vocês — prometi, batendo meu ombro no dele e tentando amenizar a tensão.
Victor balançou a cabeça.
— Reconheço os seus esforços, mas você é apenas uma garota.
Franzi meus lábios, sem ter mais o que responder. Eu era só uma garota,
mas sentia um desejo enorme de vingança.
Apoiei minha cabeça no ombro de Victor e fechei um pouco os olhos.
CAPÍTULO 6

“Aleksandra!”
Acordei num sobressalto com a voz de Klaus ecoando dentro da minha
cabeça. Ainda estava sentada no corredor com Victor, que cochilava ao meu
lado. O cansaço parecia ter me vencido e me fizera pegar no sono no lugar
mais improvável de todos.
“Não tenho o dia todo. Pegue o elevador e venha ao meu encontro.”
— Eu estava dormindo. Dá um tempo! — Reclamei, me levantando e
ajeitando a calça apertada na cintura. — Que momento mais inoportuno.
Devo ter praguejado mais alto do que pretendia, pois Victor acabou
acordando e me encarou, confuso.
— Levante e vá dormir no quarto — pedi. — Com tudo que tem
acontecido, não foi muito inteligente de nossa parte pegar no sono bem no
meio do corredor.
— Aonde você vai?
Pensei um pouco, tentando encontrar palavras que definissem exatamente
o significado de ter uma conversa com Klaus.
— Sofrer — respondi e caminhei na direção contrária, rumo ao elevador.
Não esperei que Victor pedisse para me acompanhar. Apressei meus
passos e, ao parar diante do elevador, descobri que ele já estava à minha
espera. A eficiência de Klaus era inegável.
Esperei até que a máquina começasse a se mover e me levasse para o
andar de destino. Em silêncio, aproveitei o tempo ali dentro para conferir meu
reflexo no espelho. Meus olhos quase saltaram das órbitas ao ver aquela coisa
horrenda na qual eu tinha me transformado. Estava tão feia e maltratada que
uma arrumadinha no cabelo não ajudaria em nada.
A porta do elevador se abriu no instante em que desisti do espelho. Meus
pés tocaram o mármore negro e frio do salão de apresentações e eu me
arrependi de não ter calçado sapatos. Segui sem pressa, observando de longe
a figura parada mais adiante. Klaus estava de costas, na presença de alguns
soldados que foram dispensados quando me aproximei com o coração
disparado.
— Aqui estou — avisei, sabendo que era desnecessário.
Sem explosões ocorrendo à nossa volta e o caos gerado pelas pessoas em
pânico, eu pude observá-lo melhor. Até então, não havia parado para digerir a
sobrevivência do Mestre. Klaus realmente estava vivo. Com um pouco de
minha ajuda, era verdade, mas o crédito maior era do meu amigo.
Suas roupas escondiam sua pele, mas eu duvidava que possuísse alguma
cicatriz parecida com a minha. O Mestre exibia sua elegância de sempre e
nem parecia que dias atrás virara uma bola de fogo incandescente.
Ele diminuiu a distância entre nós e, por um momento, me preparei para
sofrer alguma agressão típica do Mestre. Pensei que seria lançada contra o
teto, no mínimo. Mas, para minha surpresa, ele apenas me encarou com um
sorriso zombeteiro.
— Fico feliz em saber que Kurt conseguiu salvá-lo... — disse, orgulhosa
do meu amigo.
— Vocês— ele frisou —, conseguiram.
Cruzei os braços quando ele desviou os olhos paraas cicatrizes em minha
mão e me senti desconfortável. A situação ficou ainda mais estranha quando
Klaus sorriu novamente. Não o tipo de sorriso diabólico que eu esperaria
receber dele, mas um sorriso sincero e tranquilo. O que me levava a crer que
eu só podia estar sofrendo alucinações.
— Chamei você aqui porque não tive oportunidade de lhe falar durante
nosso breve reencontro no colégio. Mas... sou justo. De todos os problemas
que imaginei você causando, nunca cogitei nada remotamente parecido com o
que fez. — Klaus segurou minha mão queimada e a levou até os lábios. Ele
depositou um beijo casto sobre a minha pele. Se ele não tivesse tornado o
gesto algo tão sério eu teria caído na gargalhada. — Estarei eternamente em
dívida com você.
Klaus? Grato? Eram palavras que não faziam sentido quando
aplicadasnuma mesma frase. Tudo parecia fazer parte de uma encenação e
tive que resistir à vontade de procurar por câmeras à nossa volta. Estreitei os
olhos enquanto o encarava, tentando descobrir o que havia de errado com ele.
— Eu estou sendo testada?
— Aleksandra! — Klaus rosnou e tentei puxar minha mão, mas ele a
segurou com força. — Estou tentando agradecê-la. Não me irrite.
Quando ele percebeu que podia esmagar meus dedos, me soltou. Voltou a
sorrir e depois me deu as costas, caminhando de forma despreocupada até
uma das poltronas com pés dourados. O segui em silêncio, digerindo aquele
momento surreal.
— O que eu estava tentando dizer, antes de você minar minha paciência,é
que entendo o que vocês dois fizeram por mim e agradeço pela coragem que
demonstraram ter.
Eu quase tropecei em Klaus quando ele parou bruscamente e se virou para
me olhar.
— Obrigado — falou.
Ofeguei, olhando nos olhos dele e encontrando ali toda a sinceridade que
empregou em suas palavras.
Caramba, ele estava mesmo falando sério!
— E Rurik? — Perguntei, querendo ouvir de sua própria boca a
confirmação tão esperada.
— Rurik está morto. — Klaus sorriu novamente e a expressão natural e
maligna,à qual eu já me acostumara, retornou ao semblante dele. — Como
era de se esperar. A intenção era essa, eu só não imaginava que não morreria
junto com ele.
Apesar de Klaus ser a pessoa mais fria que eu conhecia, era bizarro ver em
seus olhos o orgulho pela missão completada com êxito. Eu não tinha uma
relação perfeita com Victor, mas nossos problemas nem podiam ser
comparados aos dos Mestres. Aquela era uma família fadada a brigas eternas.
Notando que eu não tinha muito a dizer, Klaus estalou a língua e balançou
a mão diante do meu rosto.
— Como forma de agradecimento — o Mestre tocou meus dois ombros e
se curvou, aproximando o rosto do meu. Pelo menos seus olhos não me
encaravam mais com a hostilidade que sempre reservou a mim. —, você terá
suas aulas de combate, Aleksandra.
— Sério? — Meu queixo caiu. Pelo visto, a experiência de chegar tão
perto da morte fizera muito bem a Klaus.
— É claro. — Ele meneou a cabeça. — Você demonstrou que leva jeito
para isso.
Senti meus olhos se arregalarem de surpresa. Uau! Eu finalmente estava
recebendo um elogio! Meu peito se encheu de alegria com o discurso do
Mestre e eu abri um sorriso.
— Você sabe se proteger. De forma fraca, desajeitada e um tanto
equivocada. — Klaus continuou com o discurso e destruiuminha felicidade.
— Mas que sempre acaba funcionando.
— Caramba! Estou profundamente tocada — debochei.
Ciente da minha ironia, Klaus me olhou como se eu estivesse fazendo
pouco caso do elogio dele. Em seguida, adotou uma expressão entediada e se
sentou na poltrona da ponta, cravando o olhar em algo atrás de mim.
— Está dispensada.
Ele estava me descartando, mas eu não me importava em sair dali e
encerrar aquela conversa absurda. Fiz uma reverência exagerada e bati meus
cílios para o Mestre. Depois, me aproximei um pouco mais e estendi minhas
mãos. Ele arqueou as sobrancelhas.
— Ganho direito a um abraço? — perguntei, chocada comigo mesma. A
pergunta saíra de minha boca sem que eu pudesse impedir e não entendia de
onde tinha surgido aquela vontade. Eu estava mesmo sentindo uma vontade
louca de abraçar Klaus, pelo menos uma vez na vida. Talvez eu tenha batido
muito forte com a cabeça na hora da explosão no colégio.
Ele franziu a testa, provavelmente estranhando meu pedido incomum.
— Não teste minha tolerância, Aleksandra. Saia antes que eu me
arrependa de ter sobrevivido.
Sorri para Klaus. Aquele sim era o Mestre que eu conhecia: amargo,
arrogante e impaciente. Talvez eu até estivesse começando a gostar da
personalidade azeda do filho da mãe. Um dia, quem sabe, nos tornaríamos
grandes amigos.
Enquanto ria diante da hipótese, tropecei nos meus próprios pés a caminho
do elevador e consegui apoiar uma das mãos no chão antes de bater com meu
rosto no piso frio de mármore. Levantei e me ajeitei sem olhar para trás, pois
não gostaria de ver o olhar de Klaus e a certeza dele de que eu era um caso
perdido.
“Eu realmente não sei como você sobreviveu até hoje.” — O Mestre falou
em minha mente.
Suspirei e entrei no elevador quando este chegou ao andar. Talvez,
grandes amigos sejam palavras fortes demais para nós dois.

Quando voltei ao andar onde minha família estava alocada, quase esbarrei
no grupo de vampiras caminhando por ali. Os semblantes já não eram mais
desconhecidos para mim. Mesmo que fossem, eu as reconheceria devido aos
trajes nada conservadores. Cada uma carregava uma valise prateada, de onde
eu já tinha visto, algumas vezes, saírem bolsas de sangue fresco.
— Vocês estão coletando? — Elas já tinham passado por mim, mas eu
perguntei e corri atrás delas.
A Guarda do Sangue parou abruptamente euma das vampiras se virou. Ela
tinha cabelos castanhos com mechas loiras nas pontas e um olhar gentil que
devia enganar muita gente.
— Você quer doar sangue? — Perguntou, me olhando dos pés à cabeça.
— Se estiverem precisando, eu posso doar — respondi.
— Acho que já tivemos muitos problemas com as doações de sangue de
Aleksandra. — As mãos giraram meu corpo e os olhos azuis de Nikolai me
encararam. Apesar de não usar as palavras exatas, sua expressão dizia o que
ele pensava daquela ideia.
— Foi só uma vez — respondi, deixando em segredo as vezes que Mikhail
se alimentou diretamente de mim.
— Dispensadas — declarou o Mestre para a Guarda do Sangue.
Sem titubear, o grupo se retirou e nos deixou a sós. Nikolai ainda me
encarava como se esperasse alguma explicação, mas eu não tinha nada a
dizer. Estava me sentindo como se tivesse dez anos e levasse um puxão de
orelha. E não tinha feito nada demais! Pelo contrário, a culpa era toda do
idiota do Vladimir.
— Eu só queria ajudar e não acho que vocês estão podendo escolher o
sangue que bebem.
O Mestre era o mais alto dos Mestres, portanto, precisei jogar um pouco a
cabeça para trás a fim de olhá-lo nos olhos. Ele esboçou um sorriso simpático
e eu pensei no estrago que ele seria capaz de fazer se resolvesse sorrir mais
vezes.
Nikolai era muito bonito, tinha uma beleza diferente dos irmãos. Ele era
elegante demais e não parecia se esforçar para ser assim. Quando sorria,
parecia um lorde inglês saído de algum romance de época. Uma risada
escapou de minha boca quando pensei que ele já tinha sido de época. De
várias, aliás.
— Acha isso engraçado? — O sorriso deu lugar a uma expressão azeda e
eu me arrependi de ter começado essa nossa conversa com o pé esquerdo.
— Desculpe — sorri. — Estava pensando que você devia sorrir mais
vezes.
O Mestre estreitou os olhos na minha direção e o cantinho do seu lábio
estremeceu, me mostrando a ponta do canino afiado. Talvez minhas palavras
tenham soado com a impressão errada.
— Isso não foi uma cantada! — Eu me defendi, estendendo as mãos. —
Você sabe muito bem de quem eu gosto de verdade. Não sabe?
Eu me segurei para não dar uma piscadinha camarada para ele e agradeci
por ter conseguido me comportar. Mas Nikolai já tinha perdido o vestígio de
felicidade há muito tempo e deu um passo à frente, cravando os olhos em
mim e fazendo minha cabeça doer.
— Por que você ainda está falando? — Perguntou, sem se curvar, pois era
muito elegante. Tudo bem, estava na hora de parar de pensar nisso. Fiquei
calada, ciente de que não adiantava discutir. As pupilas do vampiro se
dilataram e voltaram ao normal em segundos. — Vá.
Dei um sorriso meio murcho e girei sobre os calcanhares para ir até o
quarto da minha família. Eu já tinha me afastado alguns metros quando sua
voz me fez parar.
— Entendo que quer ajudar. Gostaria de fazer isso de outra forma?
Voltei a encará-lo e senti que meus olhos até podiam estar brilhando de
empolgação. Eu queria mesmo ser útil em alguma coisa.
— Claro que sim! Posso ajudar no que for preciso, quero contribuir.
Nikolai encarou os próprios pés por um instante, como se estivesse
ponderando. Quando voltou a atenção para mim, parecia decidido e eu fiquei
mais que feliz por ser incluída em alguma tarefa.
— Neste exato momento, todos os humanos estão alojados aqui na
Morada e nós não temos a estrutura necessária para deixá-los mais
confortáveis. Assim que cair a noite, um contigente irá providenciar tudo de
que vocês precisam, mas não podemos esperar muitas horas para
conseguirmos as coisas mais urgentes. Precisamos de roupas básicas para os
feridos e remédios humanos. Não podemos dispor de nosso sangue para uma
cura rápida, pois não temos estoque para nos alimentarmos depois disso. —
Nikolai passou a mão pela cabeça, mostrando pela primeira vez um lado mais
humano e inseguro com tudo que acontecia. — Claro que também
precisamos de comida e produtos de higiente, mas isso pode esperar até de
noite.
Eu estava vestindo roupas limpinhas que foram distribuídas por eles e
lembrava de ter comido algumas frutas logo depois de chegarmos à Morada,
quando minha mãe ainda estava recebendo os primeiros cuidados.
— De onde saíram essas roupas que estou vestindo?
Ele lançou um olhar rápido para meu corpo e torceu os lábios.
— O que tínhamos de prontidão era muito pouco e não deu para atender
um terço das pessoas. A família Bakerrecebe um tratamento diferenciado. —
Ele arqueou uma sobrancelha. — Seu pai é o humano mais valioso do
mundo. Neste momento.
Neste momento? Pensei no que aquilo podia significar. Depois que
elesmatassem a Zênite meu pai seria demitido ou, pior, expulso da Fortaleza?
Que tipo de serviço ele poderia prestar aos vampiros depois que a guerra com
os mitológicos chegasse ao fim e seus conhecimentos biológicos não
tivessem mais utilidade?
Decidi empurrar todas as perguntas para um canto afastado da minha
mente e esquecê-las ali por enquanto. Eu já estava me sentindo mal o bastante
por saber que muita gente estava vestindo roupas rasgadas ou queimadas ao
mesmo tempo em que eu estava confortavelmente vestida. Com exceção da
cintura apertada da calça, que fazia meus pneus da barriga pularem para fora.
— O que eu devo fazer? — Perguntei, decidida a ajudar no que fosse
preciso.
Apesar de saber que minha existência desagradava os Mestres, eu me senti
grata por Nikolai confiar em meu potencial a ponto de pedir minha ajuda. E
eu não iria decepcioná-lo.
—Selecionamos algumas pessoas que se mostraram dispostas a nos ajudar
e estamos formando grupos de quatro, pois não queremos ninguém andando
sozinho pelas ruas. — O Mestre olhou para o corredor atrás de nós e indicou
o caminho com a cabeça. — Avise seus pais. Se decidir se juntar aos outros,
esteja no salão de apresentações em quinze minutos.
— Eu sou maior de idade — lembrei a ele. — Não preciso da autorização
dos meus pais.
O Mestreperdeu alguns segundos me encarando, com uma expressão que
me contradizia totalmente. Como não pretendia atrasar ninguém, o melhor a
fazer era falar logo com meus pais e voltar.
Suspirei e marchei relutante até o quarto onde minha família estava. Eu os
conhecia muito bem e já previaa discussão que se iniciaria assim que eu
contasse sobre minha nova aventura. Arrisco dizer que minha enferma mãe
seria capaz de correr atrás de mim e me arrastar pelos cabelos para debaixo
da asa dela.
Por coincidência, uma porta se abriu às minhas costas e ouvi um pigarro
atrás de mim. Quando me virei, Lara me olhava de braços cruzados.
— Será possível que não vamos conseguir colocar a conversa em dia? —
Perguntou em tom de acusação.
— Lara! — Eu a abracei e fechei os olhos por alguns segundos, sentindo
uma sensação de paz por sua presença.
Lembranças vieram à minha mente, de dias em que nossa única
preocupação era escolher vestidos para os bailes da Fortaleza. Parecia que
tudo tinha acontecido há anos, tantos eram os problemas que nos
distanciavam daquela época.
Respirei fundo e apertei meus braços em volta do corpo dela, que retribuiu
com a mesma força. Queria ter tempo para conversarmos, mas já tinha
assumido um compromisso que era importante para todos nós.
— Como você está? — Lara perguntou ao me soltar e me lançou um olhar
desconfiado. — Por favor, me diga que não está arrumando nenhuma
confusão.
— Ao contrário — sorri. — Vou ajudar a trazer mantimentos para a
Morada.
Meus olhos cravaram no elástico de cabelo ao redor do pulso dela e na
mesma hora pensei que ele seria muito útil. Meus cabelos estavam uma
tragédia e deixá-los presos seria bem mais prático na hora de sair.
— Posso pegar emprestado? — perguntei, apontando para seu pulso fino.
Ela sorriu e me entregou o elástico, balançando a cabeça.
— Meu pai também se voluntariou para ir nessa expedição. — Os olhos de
Lara brilharam por um instante, mas depois ela encolheu os ombros. —
Queria ir, mas ele não deixou. Seus pais deixaram?
Não exatamente. Pensei na minha mãe gritando comigo e no meu pai
tentanto me acorrentar aos pés de uma cama. Então, tive uma ideia bem
melhor e sorri para minha amiga.
— Eles ainda não sabem de nada, mas conto com você para avisá-los, ok?
— Dei um beijo no rosto dela e saí apressada na direção contrária ao quarto
da minha família. — Quando eu voltar a gente coloca o papo em dia!
— Sasha! — Lara deu um gritinho. — Não acredito que você vai jogar
essa responsabilidade em cima de mim!
Já quase no final do corredor, dei uma corridinha para alcançar a escada
antes que ela viesse atrás de mim e tentasse me fazer mudar de ideia.
Desci alguns andares com uma energia nova, mas fiquei perdida e tive que
parar. Eu não sabia em qual andar estava, muito menos onde ficava o salão de
apresentações. Estava muito mal acostumada em pegar sempre o elevador e
esperar que ele me levasse para onde tinha que ir. Por sorte, um vampiro que
passava por mim se dispôs a me indicar a localização do salão, que ficava
cinco andares abaixo.
Quando entrei, avistei dez pessoas amontoadas ao lado de uma pilastra. Eu
não estava impressionada como achei que fosse ficar. Todos os voluntários
falavam ao mesmo tempo e ninguem estava se entendendo. A tal da
expedição parecia um fiasco antes mesmo de começar. Que maravilha!
Não havia nenhum Mestre ali, então eu achava que tinha algum tempo
para me preparar. Revirei meus olhos para os tagarelas que não notaram
minha existência e fui até banheiro que ficavanuma das saídas laterais do
salão.
Aquela era a primeira vez que eu sentia vontade de urinar desde que saí do
coma ou sei lá como se chamava aquilo. Quando me dei conta disso, imaginei
que podia estar sofrendo de alguma desidratação.
Depois de dar descarga, parei diante do espelho para lavar as mãos e jogar
uma água no rosto. Passei a língua pelos dentes e senti a necessidade de ter
uma escovaem mãos, mas aquilo não era mais grave que pessoas feridas sem
remédios e teria que esperar.
Peguei o elástico da Lara e puxei meu cabelo todo para trás num rabo de
cavalo. Enquanto ajeitava os fios rebeldes e mais curtos da minha nuca, notei
um brilho estranho entre uma mecha e outra, e aproximei meu rosto do
espelho para enxergar melhor.
— Mas que droga é essa? — Enfiei os dedos por dentro do penteado e
puxei a mecha que destoava de todo o cabelo.
Eu podia muito bem ter morrido naquele exato instante, pois senti meu
coração parar de bater por alguns segundos. Meu choque era tanto que nem
consegui piscar. O que eu via no reflexo do espelho era inexplicável. Pois ali,
de um ponto atrás da minha orelha, saía uma mecha de cabelos
branquíssimos. Não seria tão espantoso, caso eu fosse uma pessoa com
tendência a ter cabelos brancos. Mas eu não era! Nunca tive um só fio
daquela cor! Meu pai já tinha alguns cabelos brancos misturados aos fios
castanhos, mas o branco dele não era do mesmo tom que o meu. Nenhum
cabelo branco humano era igual aquele que eu segurava entre os dedos. E eu
só conhecia cinco pessoas no mundo que possuíam o mesmo tom de branco
brilhante.
Larguei a mecha, horrorizada. Meu estômago parecia dar cambalhota e
meu coração queria sair correndo pela boca. Que droga era aquela? Como era
possível uma mecha de dois dedos de largura ter ficado inteiramente branca
de repente? Isso se tiver sido de repente. Eu nem mesmo fazia ideia de quanto
tempo aquilo estava na minha cabeça.
Minhas mãos estavam trêmulas e eu queria vomitar. Desisti de prender os
cabelos, ia deixá-los soltos paraesconder a mecha e não ter que explicar
minha nova característica para ninguém, muito menos para os Mestres.
Primeiro, precisava saber o que estava acontecendo comigo.
Saí do banheiro com o coração disparado e tentei me acalmar para não
chamar atenção. O grupo de voluntários ainda estava mantendo discussões
acaloradas e eu me aproximei com cautela. Além de mim, só havia uma
mulher, alta e esguia, na faixa dos trinta anos. Depois das explosões no
colégio, eu a tinha visto carregando uma criança com o braço ferido e fiquei
com vontade de perguntar se ela estava melhor.
— Vocês acham que é perigoso ir lá fora? — Um homem baixinho e com
um tique nervoso que o fazia piscar excessivamente, perguntou.
— Claro que não! Por que seria? — A mulher falou, cruzando os braços.
— E mesmo se fosse, quem se importa? Eu vou porque minha filha precisa
de remédio para dor.
“Sasha!”
Virei para trás ao ouvir a voz de Mikhail em minha mente. Ele me
encarava, parado há alguns metros de onde nós estávamos.
Deixei que os outros iniciassem uma nova discussão sobre o que nos
esperava do lado de fora da Morada e caminhei até o Mestre carrancudo.
Resisti à vontade de soltar uma piada sobre a expressão dele, pois lembrei
que as coisas entre nós não eram mais as mesmas. Uma das coisas que eu
mais desejava era que ele parasse de me enxergar como uma adolescente
imatura.
— Oi — cumprimentei.
— Posso saber o que você está fazendo?
Olhei em volta, sem entendero motivo daquela pergunta. Não estava
óbvio?
— Vou participar da expedição — respondi, encolhendo os ombros. —
Mestre Nikolai me convidou.
Uma das sobrancelhas dele arqueou e percebi que Mikhail se esforçou
para manter uma expressão indiferente no rosto. Por fim, levou as mãos aos
quadris, afastando um pouco o manto e expondo adagas presas em sua calça.
— Não faço ideia do motivo pelo qual o asno do Nikolai te contou sobre
isso. Só selecionamos adultos para a tarefa.
— Eu tenho dezoito anos.
— Exatamente. — Mikhail olhou para um ponto atrás de mim, onde os
outros humanos estavam. Ele se inclinou na minha direção e abriu a boca
para falar mais alguma coisa, mas desistiu e endireitou o corpo.
“Não sabemos se é seguro vocês saírem. Estamos no meio da manhã, não
poderemos socorrer ninguém, caso aconteça alguma coisa.”
Não dava para ter certeza, mas o olhar dele demonstrava que Mikhail
falava no plural só para manter as aparências.
— Olha só ele! — Pulei de susto com Klaus, que apareceu atrás de mim
sem aviso prévio. Ele tinha entrado flutuando por acaso? — Todo
preocupado com a integridade física do brinquedinho.
Mikhail respirou fundo e olhou para o teto como se procurasse manter a
paciência, enquanto o Mestre mais velho parou ao meu lado e me lançou um
olhar inquisidor. Por um instante, tive medo que ele estivesse procurando
pela minha mecha de cabelos brancos. Passei a mão na cabeça para conferir
se estava tudo no lugar e respirei aliviada.
— Acho que Aleksandra é capaz de se defender lá fora. Provavelmente, o
maior desafio dela será o de não se deixar contaminar por essas pessoas
entediantes— ele olhou para o grupo a alguns metros de nós.
— Não sabemos se ainda há explosivos esperando para serem detonados,
Klaus.
— Considerando a sorte da sua namorada, ela pode morrer tropeçando nos
próprios pés e caindo de cabeça no asfalto.
Olhei para meus pés, querendo dizer que aquilo não era verdade. Eu não
me considerava desastrada, apenas azarada. Mas não era uma pessoa que
ficava tropeçando pelos cantos. Encarei Klaus, procurando por algum
vestígio da pessoa que tinha me tratado tão cordialmente há pouco tempo.
— Ela pode ir no segundo turno. — Mikhail ainda insistiu, mas Klaus
lançou a ele um olhar que me deu calafrios e o Mestre se calou.
O primogênito tocou meu ombro e nos deixou a sós enquanto se dirigia
aos outros humanos. Misha parecia conter uma fúria imensa, tinha um olhar
assassino direcionado ao irmão e quando me encarou, eu recuei.
— Você acha que eu sou frágil, mas fique sabendo que aprendi a me
cuidar.
— Vamos ao banheiro — pediu ele, me indicando o caminho que eu já
conhecia.
Suspirei e fui na frente antes que ele resolvesse fazer uma cena em
público, pois sabia que ele estava preparando algum sermão. Notei que
algumas pessoas, principalmente a mulher, nos observava com curiosidade.
Devia pensar que eu estava sendo retirada da expedição por conta da minha
idade. Mas, se Mikhail tinha em mente me enrolar para que eu não fosse, ele
ia ter trabalho para me prender ali.
CAPÍTULO 7

MIKHAIL
Tranquei a porta por dentro e, enquanto Sasha andava de um lado ao outro
no banheiro, fiz um pequeno corte em meu pulso e ofereci a ela.
— Beba — pedi.
Ela parou de andar e me encarou, com as mãos na cintura.
— Por quê?
Sasha franziu a testa e se afastou de mim como se eu tivesse ordenado que
ingerisse ácido. No dia em que a recuperamos das mãos dos mitológicos e
retornamos à Fortaleza para encontrá-la invadida por aquelas bestas, Sasha
não recusou meu sangue. Pelo contrário, ela mesma fizera o pedido a mim,
admitindo que nosso sangue lhe dava algumas regalias, como maior
disposição, força e resistência momentâneas. Eu não entendia o motivo para
recusá-lo agora.
— Prefiro que você estejabem disposta já que não posso impedí-la de ir.
— Corri os olhos pelo corpo dela e tentei não me demorar encarando as
queimaduras. Sabia que ela ficaria desconfortável. — Ou sei lá o que você
sente quando bebe sangue.
Quanto mais ela recuava em direção à pia, mais eu avançava. Não sabia
aonde Sasha pretendia chegar com aquele teatro e aquele era o tipo de
fresucra que me fazia perder a paciência com ela. Fechei o corte com minha
saliva para evitar desperdiçar mais que algumas gotas.
— Vocês estão precisando de sangue mais do que nunca e não vou ficar
tomando o seu — respondeu ela, com um olhar petulante. — Obrigada, mas
não!
— A quantidade que você iria ingerir não faria falta.
Seria muito errado de minha parte fazê-la beber à força. Eu tinha cogitado
a ideia, mas descartei quando percebi que por trás daquela birra havia um
nervosismo incomum, como se Sasha escondesse alguma coisa.
— O que está acontecendo? — Perguntei, tocando seus ombros com
delicadeza. — Você não parece bem.
Os olhos verdes de Sasha brilharam, arregalados num pavor latente. Ela
parecia relutante em abrir a boca, como se ponderasse se devia me contar ou
não. Com uma das mãos, toquei seu rosto delicado e deslizei meu polegar por
sua pele.
— Sei que tem alguma coisa acontecendo e você não quer contar, mas
pode confiar em mim. Seja qual for o problema, eu ajudarei a resolver.
Sasha fechou os olhos e deixou a cabeça pender um pouco em minha mão.
— Não quero contar porque nem euconsigo entender. — Segui o caminho
que sua língua fez ao umedecer os lábios ressecados. Quando ela voltou a me
olhar, vi que estava mergulhada em pensamenos confusos. — Tem uma coisa
estranha acontecendo comigo...
Lancei mão de todo meu autocontrole, que já não era muito, para evitar
sacudí-la até que falasse de uma vez. Não foi preciso me conter muito, visto
que alguns segundos depois, ela puxou os cabelos para o alto. O movimento
fez com que uma mecha brancaescorregasse para fora do alcance de suas
mãos e caísse, as pontas tocando o ombro de Sasha.
Um choque silencioso abalou todo meu corpo e me deixou num estado de
torpor por um tempo. Eu conseguia enxergar o que havia diante de mim, mas
não podia ou não queria digerir a informação. Podia parecer uma brincadeira
de mau gosto, se a pessoa ali no banheiro não fosse Sasha. Não era do feitio
dela pregar peças em ninguém. Não daquela magnitude. Cada célula em meu
corpo se acendeu quando toquei a mecha de fios brancos e lisos.
— Há quanto tempo seu cabelo está assim? — Perguntei, sentindo a
textura macia em meus dedos, como a dos meus próprios cabelos.
— Sendo muito sincera, eu não faço a menor ideia. Só descobri a
existência disso há alguns minutos. — Ela encolheu os ombros. — Por favor,
diga que você sabe que droga é essa e por quê está acontecendo comigo.
Ouvi as batidas aceleradas do coração de Sasha e sabia o quanto ela
desejava uma explicação, mas eu não seria aquele que aplacaria sua aflição.
Estava tão surpreso quanto ela. Talvez, Klaus pudesse chegar a alguma teoria.
Ou Niko, que nunca se alterava muito e conseguia pensar com mais clareza.
No entanto, eu arriscava dizer que nenhum de nós encontraria uma explicação
para aquela anomalia.
Os ombros de Sasha pareciam suportar muitos quilos a mais quando seu
peito subiu e desceu bruscamente, expelindo ar pelo nariz.
— Mais um problema para adicionar à minha vida. — Sashabaixou as
mãos e deixou que os cabelos caíssem em cascata ao redor do rosto. A mecha
branca voltou a ficar oculta entre os fios alaranjados. — Como se já não
bastasse ter que explicar para os meus pais a nossa situação, agora também
terei que inventar uma desculpa para essa aberração.
— Nossa situação?— Perguntei, sem conseguir conter meu sorriso, o que
só a deixou mais irritada, com uma expressão ameaçadora.
— Caso não se lembre —ela protestou, cutucando meu peito com o dedo
indicador —, da última vez que estivemos juntos você me colocou numa
situação muito comprometedora diante dos meus pais. Tem alguma noção das
baboseiras que eu precisei ouvir por sua causa?
— Tem certeza que eu não apaguei a memória deles? — Fingi
preocupação. —São tantos problemas para resolver que peço desculpas por
ter esquecido.
Óbvio que eu não esquecera. Tive mesmo a intenção de que os pais dela
descobrissem sobre nós dois, pois estava na hora de Sasha arcar um pouco
com as consequências do nosso envolvimento. Era bom que ela sentisse na
própria pele um pouco da pressão à qual fui submetido durante todo o tempo
em que estivemos juntos. Não ia mais deixar que as coisas fossem tão
simples para ela, se não eram para mim.
Porém, por mais que a vingança fosse um prato apetitoso, eu não gostava
de vê-la transtornada. Ao notar que seus lábios tremiam, decidi mudar de
assunto e focar em algo que exigisse a concentração dela. Não era o momento
ideal para falar sobre nossa relação que nem eu mesmo sabia em que ponto se
encontrava.
— Você tem certeza de que deseja se juntar ao grupo da expedição? —
Perguntei, analisando sua reação.
Sasha era uma pessoa decidida e difícil de fazer mudar de opinião.
Quando colocava uma coisa na cabeça, ia até o fim e não havia quem a
fizesse desviar do caminho. Por mais que essa atitude fosse responsável por
colocá-la nas mais diversas enrascadas, eu não podia negar que sua
personalidade era uma das coisas mais irresistíveis que eu conhecia.
— Sim — declarou, concisa. — E se o próprio Nikolai fez o convite, creio
que ele me considere apta para tal atividade. Não adianta tentar me fazer
mudar de ideia porque eu vou lá fora, você querendo ou não. Se ficar mais
algumas horas trancada nessa torre, corro o risco de enlouquecer.
— Não vou impedi-la — respondi com um breve sorriso e segurei firme
em seus ombros. — Mas preste atenção, Sasha. Mantenha os ouvidos
apurados e desconfie de qualquer coisa que você considere anormal. Não
tivemos tempo de vasculhar toda a Fortaleza antes do alvorecer, então não
sabemos se há mais explosivos à espera da detonação. Também estamos
lidando com traidores.
— Eu sei e prometo que vou tomar cuidado. Mas, antes de ir, acho que
vou precisar de sapatos.
Acompanhei o olhar de Sasha, que sorria quando baixou a cabeça e
encarou os próprios pés. Apesar de ter tomado banho em meu quarto, os pés
já estavam imundos. A Morada sempre foi um ambiente imaculado, mas com
a atual situação que vivíamos, ficava difícil manter tudo sempre tão limpo.
Aquele tempo todo com ela ali no banheiro e eu sequer havia notado que
estava descalça. Fiz uma solicitação mental para que lhe trouxessem um par
de sapatos o mais depressa possível.
— Não esqueça dos mitológicos — avisei. — Eles não gostam, mas
podem se locomover durante o dia.
— Eu sei disso melhor do que ninguém — disse ela, num tom amargo. —
Lembre-se que fui arrastada por aquele bando, com um sol brilhando sobre
nossas cabeças. Eu só quero ajudar e sei que consigo fazer isso.
— Você sempre quer ajudar — sorri. — Esse é o problema.
Ela cruzou os braços e me lançou um olhar furioso. Encarei o biquinho
que seus lábios formaram e lembrei do gosto deles, sendo soterrado por uma
enxurrada de sensações que diziam respeito a outras partes do corpo dela.
Recuei um passo para evitar agarrar Sasha ali mesmo e possui-la em cima da
bancada.
— Não tenho culpa do meu azar me colocar sempre na hora e no lugar
errado! — Contestou, fervorosa e eu podia sentir sua raiva latente. — Se pelo
menos eu tivesse recebido o treinamento que tanto implorei a Klaus...
Ela não precisariade nada daquilo se me deixasse transformá-la. Contudo,
eu não estava disposto a iniciar uma discussão acalorada sobre esse assunto,
pois nós sempre brigávamos quando se tratava de imortalidade. Também era
hora de voltarmos para o salão e nos reunirmos com os outros humanos do
grupo. Aquele não era o momento para ficar divagando sobre nosso
relacionamento.
Olhei em volta, reparando pela primeira vez que estava dentro de um
banheiro feminino.
— Se está decidida, é melhor voltarmos lá para fora — avisei e e me virei
para sair, mas Sasha se jogou em cima de mim, segurando-me pelo braço.
Tudo aconteceu muito rápido e fui pego de surpresa quando ela apoiou a
cabeça em meu peito e passou os braços ao redor da minha cintura. Ela
permaneceu em silêncio e eu podia ouvir o som de sua respiração em
harmonia com as batidas de um coração acelerado.
Sem a menor vontade de me afastar, retribuí o abraço e passei meus dedos
pelos cabelos dela.
— Desculpe por isso! — Sasha quebrou o silêncio ao me soltar e recuar
dois passos. —Sinto falta de tocar em você.
Havia uma tristeza profunda nos olhos verdes que me encararam. Eu já
tinha me acostumado a ver atrevimento irradiar por aquelas íris e quando
Sasha demonstrava qualquer outro sentimento contrário, era o tipo de coisa
que me tocava. Por fim, ela respirou fundo e desviou o olhar.
— Acho que estou com meus nervos à flor da pele e os últimos
acontecimentos não estão ajudando a me acalmar.
— Vai melhorar — tentei tranquilizá-la, dando o primeiro passo em
direção à porta. — Se tudo correr como esperamos, em breve exterminaremos
os mitológicos e os humanos serão novamente livres para ir e vir. Pode ser
até que você consiga voltar para seu país. — Forcei um sorriso. — Seria bom,
não?
Sasha meteu a mão na porta que eu abria e a fechou de forma brusca. Seus
olhos estavam arregalados e as bochechas coradas.
— Não! Eu não quero voltar! — Ela me lançou um olharperturbador. —
Como você pode dizer isso?
— É um fato. Quando não houver mais a ameaça dos mitológicos, vocês
humanos não precisarão viver sob nossas asas.
Sasha assentiu e abriu ela mesma a porta, pela qual passou sem olhar para
trás. Tive a sensação de ter feito algo errado, sem saber exatamente o que
tinha sido.
CAPÍTULO 8

Mikhail era inacreditável! Inacreditável! Eu não conseguia acreditar que


ele tinha dito aquelas palavras tão frias. Como ele podia achar que eu queria
voltar para os Estados Unidos e ficar tão absurdamente longe dele? Qual era
o problema dos homens? Ou melhor, qual era o problema desse homem em
questão?
Tive que sair do banheiro com pressa para evitar dar uns bons tapas na
cara dele. Mas, como eu estava em público, precisei me controlar, pois o
grupo de dez pessoas tinha crescido e se tornado um grupo de mais de vinte
rostos desconhecidos. Outros Mestres também estavam reunidos com eles e
logo Mikhail se juntou ao bando.
—Vocês se dividirão em quatro grupos de quatro pessoas e um de cinco.
— Klaus discursou, me olhando de um jeito estranho, quase incomodado.
Quando Mikhail o encarou, ele finalmente desviou o olhar. — Quando
retornarem à Morada, serão substituídos por outros grupos. Não fiquem na
rua por mais de três horas, não entrem em casas ou edifícios que sofreram
explosões e não peguem mais do que podem carregar.
— Como não fazemos estoque de materiais supérfluos para vampiros aqui
na Morada, a primeira missão de vocês é buscar por malas, bolsas, mochilas,
qualquer coisa que possa ser usada para tal fim. — Mikhail avisou e eu levei
aquilo em consideração. Precisávamos ter onde colocar nossas aquisições.
Eles nos deram armas, embora a maioria ali olhasse para o objeto que
tinham em mãos como se fosse uma cobra venenosa. Também recebi um par
de tênis encardido e um pouco apertado, mas tive que me contentar com o
que tinha. O que seriam algumas bolhas quando eu já estava tão ferrada?
Enquanto procurava um lugar para guardar a adaga que recebi, Misha se
aproximou de mim trazendo na mão um tecido preto meio indecifrável, mas
que logo reparei se tratar de uma espécie de cinto. Ele estendeu sua mão e eu
entreguei minha adaga.
— Você já se feriu uma vez com um objeto bem parecido com esse...
— Eu lembro. Lembro também que ela era sua e eu perdi, mas matei um
mitológico e é isso que importa, não é? — Perguntei e ele me lançou um
olhar avisando que não estava brincando.
Suspirei, cansada daqueles olhares de quem sempre queria estar certo. De
repente, Mikhail se ajoelhou diante de mim e eu permaneci imóvel. O que ele
estava fazendo em público? Corri os olhos pelo salão e vi quealgumas
pessoas da expediçãoque ainda estavam por ali, pareciam tão chocadas
quanto eu.
— O que está fazendo? Levanta... — pedi aos sussurros.
Eu cambaleei quando ele passou o negócio parecido com um cinto ao
redor da minha coxa direita e, ao apertar uma trava, o tecido se ajustou à
minha perna sem deixar nenhuma folga. Então, encaixou a minha adaga no
local específico para isso e se levantou.
— Tome cuidado — falou, simplesmente, como se ter ajoelhado na minha
frente não fosse nada demais. Mikhail era um ser que devia ser estudado, de
tão bipolar que era.
— Eu ganho algo como um último beijo antes de ir para a batalha? —
Perguntei, esperançosa. Talvez o medo de me perder o tenha mudado.
Mas o Mestre me decepcionou ao arquear uma sobrancelha e me encarar
como se eu fosse prepotente demais por sequer ter pensado que ele seria
capaz de um gesto tão comprometedor. Bem, eu devia ser uma idiota, isso
sim.
Quando Mikhail se inclinou, eu já não achava que ele fosse me dar um
maravilhoso beijo de língua, mas também não pensei que seria tão inútil. Ele
apenas segurou minha mão e depositou um beijo castoem meus dedos.
— Que legal! Klaus também me beijou na mão hoje. — Eu revirei os
olhos e puxei a mão de volta.—Estou com tanta sorte!
“Cuidado! Ele pode ficar com ciúmes!”
O deboche de Klaus me alcançou, mas acho que também foi direcionado
ao Mestre diante de mim, pois o semblante de Mikhail mudou imediatante e
ficou carregado de tensão.
— Tchau — falei.
Eu me sentia triste por causa da despedida ridícula de Mikhail. Eu era uma
otária, apenas isso. Gostava de sofrer. Sabia que não podia esperar muita
coisa do Mestre, afinal, foi ele quem deu um basta na nossa relação. E depois
do que me disse dentro do banheiro, ficou bem claroque não iríamos nos
acertar e viver felizes para sempre. Não sei por quê eu ainda perdia tempo
tentando apelar para aquele coração de pedra.
— Qual seu nome? — A mulher do meu grupo me perguntou ao se
aproximar, falando um russo duro e carregado com um sotaque que parecia
alemão.
— Aleksandra — fui seca, pois estava desanimada até mesmo para dizer
meu apelido.
— Sou Grizzel — ela esticou a mão. — Prazer!
Como a mulher não tinha culpa dos meus problemas, decidi ser mais
simpática e a cumprimentei, mesmo sem muita vontade de conversar.
Enquanto descíamos, observei as pessoas do nosso grupo e imaginei que os
homens não fossem muito mais velhos que Grizzel. Eu era, sem dúvida, a
pirralha entre eles.
— ... tratou você. Estou errada? — A mulher me encarava, esperando que
eu respondesse alguma pergunta que ela fez e eu não escutei.
O que será que ela estava falando?
Fiquei sem graça de admitir que não tinha prestado atenção e tampouco
queria responder positivamente e me encrencar de alguma forma. Portanto,
tudo que fiz foi balançar a cabeça e encolher os ombros.
— Está errada — respondi.
Ela me olhou desconfiada, mas não comentou mais nada. Foi até bom,
pois me deixou em paz e eu pude voltar a digerir minha dor de cotovelo. Nós
finalmente chegamos ao saguão — os tênis já começavam a me machucar —,
e os grupos foram se dispersando. O meu seria o último a sair da Morada e
antes de alcançar a porta, senti um frio na barriga.
O que nos esperava do lado de fora, longe da segurança dos Mestres?
“Sasha!” — Ouvi Misha chamar.
Olhei para trás e vi que ele descia os últimos degraus como se flutuasse
pela escada. O Mestre caminhava na minha direção, mas as grandes portas da
Morada estavam abertas para dar passagem aos grupos e os raios de sol
invadiam o saguão da torre. O capuz do manto cobria a cabeça de Mikhail,
mas não impediria que ele se queimasse caso se aproximasse muito. Não era
o bastante para matá-lo, mas o machucaria de qualquer forma.
— Mi... — notei que meu grupo ainda estava no saguão, então não poderia
chamá-lo pelo nome. — Mestre?
— Volte aqui — ordenou.
Como o doido continuava se aproximando da claridade, corri na direção
dele e o empurrei pelo peito. Ele cambaleou para trás e eu sabia que o tirara
do lugar apenas porque baixou suas forças para que eu conseguisse tal feito.
— Você ficou louco? — Murmurei, evitando olhar para trás e encontrar os
olhares curiosos da pequena plateia.
Paramos a uma distância segura da iluminação natural e Mikhail me
envolveu num abraço caloroso e apertado. Senti seu hálito tocar meu rosto
quando ele se inclinou e encostou a boca na minha orelha.
— Não se machuque. Ouviu bem? — Sussurrou e depois beijou o topo da
minha cabeça. Ele ainda me segurou por mais alguns segundos, até que o
senti inspirar profundamente. — Não tente dar uma de heroína.
— Você vai me beijar agora? — Perguntei, roçando meus lábios no manto
dele.
Senti o peito do Mestre vibrar, uma reação que só quem o conhecia muito
intimamente conseguia entender. Era como o ronronar de um gato, mas de
um jeito sensual. Ele me apertou um pouco mais. Mikhail conseguia me
deixar tão nas nuvens de uma hora para outra, e de repente, puxava meu
tapete com seu orgulho de macho alfa.
— Não vou beijá-la para não gerar falsas esperanças, ruiva.
Ruiva? Eu levantei meu rosto e o olhei com desdém. Meu coração ficou
pequeno, apertado, e senti meus olhos arderem.
— Nós dois queremos coisas muito diferentes. — Mikhail continuou, me
olhando nos olhos. — Eu não vou ceder. Quero você, mas só se forpor
completo e de uma forma que você entenda o que é passar a eternidade ao
lado de uma única pessoa. Enquanto isso não acontece, não vou deixar de me
importar com você.
Meus lábios se entreabriram, mas eu não soube o que dizer naquele
momento. Eu não era tão boa em montar frases impactantes quanto ele. E
então, num piscar de olhos, o momento havia passado e Mikhail tinha me
soltado.
Ainda olhei para trás antes de passar pelas portas duplas, mas o Mestre já
não estava mais no saguão.
— E você disse que ele não sente nada por você? — Grizzel me olhou
com as sobrancelhas arqueadas. — Caramba, garota!
Diante da cena protagonizada por Misha, eu realmente não tinha nenhuma
desculpa esfarrapada para dar.

Foi como levar um soco na boca do estômago. Era um choque. A


Fortaleza estava em estado de calamidade pública.
Quando a explosão fez o colégio ir pelos ares, todos nós fomos retirados
de lá às pressas. Estávamos tão aturdidos que ninguém deve ter reparado no
caos de sangue, pó e pedras em que havia se transformado a Fortaleza. Mas
agora, à luz do dia, não tinha como não reparar na destruição à nossa volta.
Mesmo que vencêssemos essa guerra contra os mitológicos, os Mestres
teriam muito trabalho para deixar aquele lugar como antes. Era muito triste
ver prédios tão bonitos transformados em meros escombros.
Reconheci logo a farmácia que vendia minhas tintas de cabelo, mesmo que
não houvesse mais o letreiro luminoso e a vitrine estivesse sem um único
pedaço de vidro no lugar. Avisei para as outras pessoas do grupo e me dirigi
até lá, pois remédio, com certeza, era um item indispensável.
Antes de entrarmos, concordamos que um de nós ficaria do lado de fora
para observar qualquer movimento suspeito. Elegemos Mark, o mais forte do
grupo, para ser o porteiro. O restante de nós se ocuparia em encher as sacolas
com o que fosse necessário.
Precisei pular pedaços de concreto que obstruíam a entrada da loja e
quando cheguei lá dentro, o fedor me atingiu em cheio. Não importava onde,
mas havia um cadáver ali. Talvez fosse a vendedora simpática e justamente
por conhecê-la, eu não quis conferir. Deixei a tarefa para Harold, um homem
careca que devia ser um pouco mais novo do que meu pai.
Enquanto ele vomitava atrás do balcão, eu e Grizzel nos dividimos pelos
corredores da farmácia.
— Achei uma bolsa! — Ela gritou no terceiro corredor. — Opa! Achei
três bolsas.
Eu corri para pegar uma com ela e deixei os ombros caírem quando vi que
se tratava de uma necessaire. Devia caber umas cinco caixas de remédios ali,
não mais que isso. Fui pegar alguns antibióticos, pois era o mais importante
dos medicamentos.
— Hã, gente... — Harold gaguejou. — Tem a bolsa... da moça. Será que...
— Claro que sim! — Grizzel nem esperou ele terminar a pergunta e quase
se jogou sobre o balcão. — Não podemos nos abalar, Harold.
Eu sabia que ela estava coberta de razão, mas o homem quase vomitou
novamente, só com a ideia de roubar a bolsa de uma pessoa morta. Senti uma
vontade enorme de dar uns tapas na cara dele para ver se começava a se
controlar. Afinal, a gente precisava de quem pudesse somar, não atrasar nossa
vida.
Grizzel encheu a bolsa com absorventes, pastas e escovas de dentes. Achei
inteligente ela ter pensado em absorventes, porque eu duvidava muito que a
Morada dos Mestres possuísse algo do tipo em seu inventário.
Depois de vasculhar mais três lojas, decidimos ir direto para a área
residencial. Não havia bolsas e coisas do tipo nas lojas da Fortaleza. O
melhor lugar para encontrarmos isso seria dentro das casas. Todos os
moradores tinham malas e mochilas por causa das mudanças. Devíamos,
inclusive, ter começado por lá.
— Não quero ir até minha casa. — Mark avisou, enquanto caminhávamos
pela primeira rua. — Não posso...
— O que houve? — Perguntei, colocando a mão no ombro dele para
confortá-lo.
Minha família estava completa. Por mais que minha mãe tivesse sido
ferida na explosão, eu sabia que ela estava recebendo os cuidados necessários
e ficaria bem. Minha família estava mesmo completa. E a certeza disso, às
vezes, me fazia esquecer que tantas outras pessoas tiveram familiares
destroçados. Eles tinham muitos cacos para juntar e meus problemas deviam
ser ridículos perto dos deles.
Mark não respondeu de imediato. Levantou a cabeça para observar o
cenário à nossa volta e enfiou as mãos nos bolsos do casaco. Quando
estávamos prestes a entrar numa casa, enfim, ele falou.
— Foi o meu irmão. Estávamos correndo para sair de casa o quanto antes
e eu consegui chegar no gramado. Mas ele... A casa... foi pelos ares.
— Sinto muito — murmurei, chocada. Não conseguia imaginar uma perda
como aquela.
— Você é a garota do ônibus, não é? — Harold me matou de susto,
aparecendo repentinamente ao meu lado.
— Sim, sou eu.
— Ainda bem que estamos no mesmo grupo — disse ele, com um alívio
visível. — Se aparecer um mitológico, você saberá o que fazer.
Eu saberei?Baixei a cabeça para não deixar que vissem a confusão em
meus olhos. Harold estava muito enganado a meu respeito. Mal sabia ele que
aquele episódio fora apenas uma simples questão de sorte. Assim como todos
os outros. Eu tinha coragem, não habilidade. Eram coisas muito diferentes.
Grizzel me olhou de soslaio e eu já começava a me incomodar com ela me
observando a todo momento. Tudo por causa de Mikhail.
A primeira casa na qual entramos estava em ordem. Ou os moradores
conseguiram fugir a tempo ou já estavam mortos antes mesmo das explosões
— talvez durante o grande ataque à Fortaleza. Não tinha como saber e nem
perdemos tempo pensando nisso.
Grizzel quis aproveitar que estávamos naquela rua e ir até casa dela, que
ficava bem no final. Estava tudo intacto como ela havia deixado e tinha
bastante coisa que nos servia. Enquanto eu enchia uma mala rosa pequena
que ela me entregou, a mulher me contou um pouco de sua história. A família
dela foi uma das primeiras a se mudar para a Fortaleza. O marido era
cirurgião e morreu durante o último ataque mitológico. Grizzel e a filha de 5
anos conseguiram sobreviver porque ele as escondeu debaixo da cama de
casal e desceu as escadas para servir de isca.
Foi impossível conter o choro enquanto ela narrava os momentos de terror
que viveu. Ela precisou tapar a boca da filha com força para impedir que a
menina chorasse, enquanto as duas ouviam os gritos do pai. Sentei na cama,
enxugando minhas lágrimas.
A mulher colocou uma foto da família dentro de uma das malas e a
fechou. Devia ser terrível perder a pessoa que você escolheu para passar a
vida toda ao lado. Pensei em Mikhail, no quanto eu o amava e como me
sentiria se ele morresse. Senti mais vontade ainda de chorar, mas me
controlei.
“Quero você, mas só se for por completo”, as palavras dele ecoavam o
tempo todo em minha mente. Repetitivas, insistentes. Ele me queria como
vampira, já tinha deixado isso muito claro.
— Vamos? — Grizzel me chamou para fora do quarto e eu voltei à
realidade.
Quando passávamos pelo corredor, ouvimos um barulho estrondoso no
andar de baixo e descemos correndo, esquecendo as malas no andar de cima.
— Harold! Mark! — Gritei e entrei na cozinha, com Grizzel logo atrás de
mim.
O cômodo era pura confusão, cacos de vidro espalhados pelo chão. Mark
praguejando enquanto enchia uma bolsa com comida e Harold exibindo uma
expressão de culpa enquanto olhava a bagunça que fez.
— Desculpe, gente! Deixei alguns pratos escorregarem.
Resisti à vontade de voar no pescoço dele e dei meia volta para pegar a
mala que deixei lá em cima. Grizzel veio logo atrás de mim, xingando o
idiota do Harold por ser tão descuidado.
— Se houvesse algum mitológico escondido por aí isso teria sido um belo
chamariz para ele — comentei.
— Nem mesmo um sinalizador chamaria tanta atenção quanto esse
homem — ela riu. — Para que ele se voluntariou se é tão...
— Errado — completei.
Nós duas trocamos sorrisos confidentes, mas ficamos imóveis quando
ouvimos, lá na sala, uma respiração ruidosa demais. Grizzel segurou minha
mão e levou um dedo à boca, mas ela não precisava me avisar. Eu sabia
muito bem o que era.
O som de cascos contra o piso foi abafado pela conversa acalorada dos
homens na cozinha. Eu recuei lentamente, com medo de fazer algum barulho
que nos denunciasse e Grizzel me indicou a porta do quarto dela. Quando
entramos e nos trancamos, começamos a ouvir os gritos apavorados no andar
de baixo. Não havia mais nada que pudéssemos fazer para salvar Mark e
Harold.
— Rápido! Minha filha adora a cama elástica dela, sabia? — A mulher
abriu a janela com rapidez e me chamou. — Felizmente, montamos a cama
bem debaixo da nossa janela.
— Nós vamos pular? — Perguntei, apavorada.
— Você tem outra ideia?
O grito horripilante que escutamos foi o bastante para me fazer decidir.
Droga! Passei pela janela, colocando as pernas para o lado de fora e olhei
para baixo. Se eu errasse e caísse uns cinquenta centímetros para o lado,
Grizzel teria que catar meus ossos do chão.
Respirei fundo, mirei, fechei os olhos e pulei. Minhas costas se chocaram
contra o material sintético do brinquedo e meu corpo quicou duas vezes antes
que eu conseguisse me equilibrar e rolar para fora da cama elástica. Grizzel
mal esperou que eu saísse e pulou em seguida, levantando-se com muito mais
agilidade do que eu.
— Não pense. Apenas corra para a Morada — sussurrei e comecei a
correr.
Um segundo depois, eu já achava que ela estivesse atrás de mim, mas
Grizzel parou para pegar um ursinho de pelúcia caído aos pés do brinquedo.
Cerrei os punhos, imóvel no meio da rua. Eu me controlei para não chamá-la
de maluca e gesticulei para que se apressasse, mas, naquele instante, o
mitológico apareceu na porta da casa dela.
Ele talvez tenha demorado um ou dois segundos para se dar conta do que
estava acontecendo. Era um centauro, portanto, tinha neurônios suficientes
para entender que suas presas estavam tentando fugir. Tudo aconteceu num
piscar de olhos e, antes que Grizzel saísse do lugar, ele a encarou.
— Corre! — Gritou ela.
O bicho detestável urrou com fúria, mas decidi que não ficaria ali para ver.
Ignorei a dor que os tênis apertados me causavam e coloquei toda a minha
força de vontade focada numa única missão: correr o máximo que
conseguisse. Eu não fazia a menor ideia de como conseguiria chegar viva na
Morada, considerando o quão longe estava de lá. Tinha que sair da área
residencial, passar pelo centro comercial e tudo isso, com um centauro
gigantesco atrás de mim. De nós!
Lembrei de Grizzel e olhei para trás. Ela me acompanhava, mas não tão de
perto. Talvez pela idade, ela estava sem fôlego, como se estivesse correndo
há mais de meia hora. E o pior é que eu não podia ajudá-la, pois não tinha
como aguentar o peso dela. Talvez eu devesse. Sim, era o certo a se fazer.
Voltar alguns metros e passar o braço dela por cima dos meus ombros, mas
quando pensei em diminuir minha velocidade, os rostos das três pessoas da
minha família explodiram em minha mente. Se eu voltasse, não só a Grizzel
morreria. Eu morreria. Eu não podia voltar. Olhei para frente, entoando
aquele mantra para poder acreditar que era o certo a se fazer.
O suor que escorria pelo meu rosto fazia meus olhos arderem. Esfreguei a
manga do casaco sobre eles para secar um pouco, mas não diminuí a
velocidade. Sentia meu coração disparado no peito e achava que a qualquer
momento eu poderia sofrer uma parada cardíaca.
— Aleksandra! — Grizzel gritou. — Ivetta! Minha filha!
Olhei novamente para ela, que arremessou o ursinho de pelúcia na minha
direção. Ele caiu a menos de dois metros de mim e a mulher se jogou no
chão, esgotada. Maldito coração mole! Eu me vi encurtando a distância para
alcançá-la, mas o centauro chegou antes de mim. Meus pés derraparam no
asfalto quando parei bruscamente e dei meia volta. Correr! Passei pelo urso
no chão e o peguei antes de retomar a corrida, sem me dar ao luxo de sentir
pena de Grizzel. Eu pensaria nela quando estivesse a salvo.
Quando ouvi o grito da mulher e olhei de relance para trás, o centauro me
encarou com satisfação e, em seguida, apontou um dedo para mim. Algo me
levava a crer que o mitológico tinha me reconhecido. Parei de pensar e me
concentrei apenas em correr. Podia ouvir os cascos batendo contra o asfalto
durante a perseguição e parecia que a cada segundo ele estava mais perto de
mim.
Puxei a adaga acoplada no cinto em minha coxa e respirei fundo, me
preparando para atirá-la. Não acreditava que conseguiria acertá-lo, mas não
custava tentar. Não parei de correr, apenas girei um pouco o tronco e lancei a
arma na direção do mitológico, mas o objeto não passou nem perto dele.
Droga! Estava saindo da área residencial e notei uma coisa muito, muito
estranha. Eu não estava nem um pouco cansada. Meus pés doíam por causa
dos tênis, meu coração estava quase saindo pela boca, mas minhas pernas não
reclamavam e meu fôlego permanecia intacto. E, não que eu conseguisse
prestar muita atenção, mas parecia que a paisagem ao meu redor estava
passando numa velocidade acima do normal.
Mantive meu foco à frente, tomando o cuidado de desviar de escombros e
carros abandonados. Minhas unhas cravavam no ursinho de pelúcia e o suor
fazia meus cabelos grudarem no pescoço.
Só mais um pouco...
— Ahhhhh! — Gritei, desesperada. Maldito Harold! Meus lábios tremiam
diante da imagem que meu cérebro criava, o centauro quebrando meu corpo
no meio.
Pensei em Mikhail. Era melhor do que imaginar minha morte.
Logo avistei uma rua do centro comercial que possuía um beco muito
estreito e poderia ser útil. Uma pessoa do tamanho de Misha, por exemplo,
teria dificuldades em passar ali. Um centauro não conseguiria passar de jeito
nenhum. E eu conhecia a Fortaleza muito melhor que ele, poderia ganhar
tempo e cortar caminho pelo beco, enquanto ele teria que dar uma volta maior
e me procurar.
Ele urrou bem atrás de mim quando percebeu para qual direção eu me
dirigia. Pulei o capô de um carro com uma desenvoltura que não era minha e
me lancei dentro do beco. Entrei com tanta pressa que bati o ombro esquerdo
na parede, mas o casaco grosso não deixou que eu me ferisse.
Parei para olhar para trás e vi o centauro me fulminando com o olhar. Ele
mal estava sujo de sangue, havia matado Grizzel apenas por prazer. Mostrei o
dedo do meio para ele, sorri e aproveitei para colocar a mente em ordem.
Precisava estipular meu caminho e ainda tinha muito o que correr. Quando o
animal começou a se distanciar, já procurando uma forma de me interceptar,
eu voltei a disparar na direção da Morada.
Saí do beco e entrei pela rua que contornava a Morada dos Mestres por
trás, sempre conferindo para ver se estava sendo seguida. Já tinha dado por
vencida aquela disputa, mas quando virei a esquina para ter acesso à
escadaria da torre, o centauro despontou do outro lado, a menos de cem
metros de mim.
Entre eu e as portas duplas, considerando aquela escadaria enorme, havia
pelo menos uns duzentos metros.
— Abre! Abre! Abre! — Gritei com toda a força em meus pulmões,
enquanto escalava os degraus que agora pareciam infinitos.— Socorro!
Abram a porta!
O desespero me consumia sem saber quem estava ganhando e se era eu a
perdedora. Seeu tentasse olhar para trás, poderia tropeçar e tudo acabaria ali
mesmo. Então, finalmente, uma banda da porta foi escancarada e o
mitológico urrou atrás de mim. Eu conseguia ver alguns humanos do lado de
dentro da porta, gesticulando e gritando para que eu corresse mais. Cinco
degraus, três degraus...
Eu mergulhei porta adentro como se aquele piso polido fosse a água de
uma piscina. Ignorei a dor em meus cotovelos e rolei para ficar de costas e
poder olhar para meu perseguidor. Ele teria coragem de entrar no reduto dos
Mestres? O centauro estava a menos de dez metros de mim, mas, de repente,
um buraco se abriu no meio de sua testa e ele parou de se mover, para em
seguida desabar nos degraus à minha frente.
Joguei minha cabeça para trás e a bati sem querer no chão quando soltei
todo meu corpo, respirando aliviada. Ao olhar para cima, Mikhail estava em
pé atrás de mim, com uma Exterminator na mão e a pele toda chamuscada.
Num piscar de olhos, a porta se fechou e a Morada ficou novamente
isolada dos raios solares. Em menos de meio segundo eu fui cercada por
todos os Mestres, enquanto Mikhail me ajudava a levantar.
— Você está bem? — Ele perguntou.
Meu corpo inteiro tremia, não sei se por nervoso, medo ou tristeza por ter
perdido todo meu grupo. Pressionei meus lábios um contra o outro para evitar
chorar e balancei a cabeça positivamente. Misha se afastou de mim, jogou o
manto queimado no chão e agitou os braços chamuscados. Vi quando uma
funcionária da recepção, uma humana de rosto lindo e cabeça raspada, deu a
volta pelo balcão de vidro e ofereceu seu pulso ao Mestre. Senti uma pontada
de ciúmes por ele sequer ter cogitado pedir meu sangue, mas Mikhail se
alimentou tão rápido que nem deu tempo de contestar a cena.
— Cancelem os próximos grupos. — Klaus ordenou, aproximando-se de
mim sem realmente me olhar. — Ninguém mais vai sair desse prédio.
Cruzei meus braços para controlar os tremores e olhei em volta. Eu tinha
conseguido chegar até ali. Grizzel não teve tanta sorte e, ao pensar na mulher,
algo se partiu dentro de mim e meu corpo convulsionou com um choro
descontrolado. Um homem que eu não conhecia me amparou quando meus
joelhos fracassaram e se dobraram, e não me importei com aplateia que
presenciava o show.
Quando Klaus parou na minha frente, o homem me soltou e se afastou de
nós. Seria ótimo um abraço naquele momento e eu achei mesmo que o
Mestre fosse me estender os braços. Mas, de repente, ele franziu a testa e
parou a centímetros de mim. Deve ter se dado conta da estupidez que estava
prestes a cometer, abraçar alguém tão inútil para ele.
“Precisamos conversar”
Klaus avisou e se virou, saindo em direção às escadas.
Enquanto os outros Mestres seguiram Klaus, Mikhail continuou por perto,
esperando eu me recompor. Devia poder ouvir meu coração batendo numa
frequência enlouquecida.
Eu segurava o bichinho de pelúcia apertado contra o peito, ciente de que
precisava entregá-lo para Ivetta. Não mandaria por outra pessoa, queria eu
mesma poder conhecer a menina e dizer que a mãe dela a amava. Deixei que
Misha me guiasse pelo caminho. Ele tinha se recuperado das queimaduras
superficiais e a pele voltara a ficar intacta.
Sem conseguir controlar meu corpo, estendi a mão para tocar a dele. O
Mestre apertou minha palma contra a sua, mas se afastou assim que entramos
no elevador. Entendi o motivo quando vi que todos os outros Mestres
estavam lá dentro, à nossa espera. Inspirei profundamente, sentindo-me
oprimida pela presença dos cinco naquele espaço apertado.
Todos me encaravam como se, de repente, tivessem surgido mais uns três
olhos no meu rosto. Transferi o peso do corpo de uma perna para a outra,
desconfortável, e enxuguei meus olhos com a manga do casaco. Com o
movimento que fiz, soltei um grito agudo ao sentir a dor no braço.
Puxei o agasalho pela cabeça e fiquei só de camiseta para poder olhar o
estrago. Enrolei a manga para cima, mordendo o lábio para evitar gemer e me
olhei no espelho.
— Cacete! — Havia um hematoma horrível no meu ombro. — Eu juro
que não estava sentindo absolutamente nada.
Misha tocou em mim, apalpando a região para sentir a gravidade do meu
ferimento, que agora, latejava demais.
— Você deslocou o ombro.
Puta merda! Como podia meu ombro estar fora do lugar e eu não ter
sentido antes? Talvez tenha sido culpa da adrenalina no momento da fuga.
Engoli em seco, pensando em como resolver o problema. A dor estava forte
demais.
— O que eu... Ahhhh!!! — Eu me curvei e lágrimas saltaram dos meus
olhos quando meu ombro foi pressionado de volta ao lugar.
Virei de lado e encarei Klaus, que meneou a cabeça para mim e manteve
seu ar sério.
— De nada — disse ele.
Fechei os olhos e contei mentalmente até dez para me acalmar. A vontade
que eu tinha era de xingar toda a geração de homens que sacrificavam
crianças e faziam pactos com deuses eslavos. O maldito Ondrej era o culpado
por colocar aquela criatura maligna no mundo!
— Não seja chorona, você já está melhor. — Nadia criticou minha reação,
pois não era ela que sentia a dor. — Klaus deveria ter deixado que sofresse
mais um pouco.
Decidi que o mais inteligente era ignorar a provocação dela. A dor tinha
mesmo diminuído, mas eu não ia admitir para nenhum deles.
— O que houve com o seu grupo? Estão...? — Nikolai deixou a pergunta
no ar, mas eu entendi a que ele se referia.
Balancei a cabeça, desolada.
— Mortos — murmurei.
— O que aconteceu exatamente? — Vladimir perguntou.
Fechei os olhos para me acalmar um pouco. Devagar, tentei montar em
minha mente um quebra-cabeça com os últimos acontecimentos. Aconteceu
tão rápido...
— Nós fomos até a casa da Grizzel e enquanto estávamos lá, o Harold
deixou alguns pratos caírem no chão — relembrei, com um nó na garganta.
— O barulho... Deve ter sido isso que atraiu o centauro.
— Ele estava de tocaia. — Mikhail comentou e encarou Klaus. — Dentro
da Fortaleza. Nunca foram tão estúpidos.
— Uma tática perspicaz, precisamos admitir. — Klaus concluiu.
O elevador percorria lentamente os andares, como se ninguém ali dentro
tivesse pressa para sair. Fechei os olhos, grata por estar em segurança e
cercada por tantos vampiros poderosos, mesmo sabendo que eles me
detestavam e não se importariam com a minha morte. Apesar disso, eu sabia
que pelo menos uma pessoa naquele elevador se preocupava comigo.
Meu coração se acalmou um pouco quando senti o corpo de Mikhail atrás
de mim. Ele se posicionou discretamente de uma forma que eu pudesse me
encostar nele. A mão dele tocou em meu quadril.
— Ninguém aqui vai fazer a pergunta mais importante de todas? — Abri
só o olho esquerdo quando a voz esganiçada de Nadia ecoou pelo elevador.
Todos a encararam e vadia revirou os olhos.
— Como foi que ela — apontou para mim —, conseguiu correr e escapar
de um centauro? Se fosse um minotauro, com muita boa vontade, eu até
poderia entender, considerando o quanto eles são pesados e desajeitados. Mas
um humanocorrer mais rápido que um centauro? Isso é novidade.
— Eles ficam mais lentos durante o dia. — Mikhail, atrás de mim,
declarou.
— Mesmo assim. É humanamente impossível!Isso sem considerar que a
perna deles é do tamanho dela. — Nadia bufou e jogou os braços para o alto.
— Não é possível que vocês não enxerguem a estranheza da situação.
Eu, sinceramente, não tinha parado para pensar nos argumentos que ela
levantava. Não gostava nem um pouco de Nadia, mas tinha que admitir que
tudo que ela dissera fazia sentido. Eu mesma tinha sido a primeira a pensar
que não sobreviveria àquela corrida. No entanto, a sensação que senti
enquanto estava correndo era de que meu corpo não parecia fazer esforço
nenhum. Minhas pernas trabalhavam como se fosse tudo muito natural para
mim. Masnão era. Não devia ser.
“Acho que tenho algumas teorias, mas você precisa ficar calada”
Mikhail alertou em minha mente.
— Você correu da casa da Sra. Schneider até aqui? E o centauro te
perseguiu o tempo todo? — Nikolai perguntou, com uma sobrancelha
arqueada.
Pensei no alerta de Misha. Coisas estranhas vinham mesmo acontecendo
comigo, desde que eu acordara do pequeno coma. Sendo assim, até que ponto
eu deveria continuar contando toda a verdade? Não sabia o motivo que o
levava a pedir meu silêncio, mas resolvi mudar um pouco a história. Pelo
menos, por enquanto.
Encolhi meus ombros ao olhar para Nikolai.
— Não fiquei olhando para trás. Eu corri, mas não sabia se estava mesmo
me perseguindo. — Eu balancei o ursinho em minha mão, ansiosa para
mudar de assunto. — Preciso entregar isso para a filha de Grizzel.
O elevador me deixou no andar onde algumas famílias estavam abrigada.
Atrás de uma daquelas portas, havia uma menininha órfã que choraria a noite
toda agarrada ao bichinho de pelúcia. O último presente que ela ganharia da
mãe.
CAPÍTULO 9

MIKHAIL
Se eu não podia tê-la do jeito que gostaria, precisava tirar Sasha da minha
cabeça o mais depressa possível, antes que ela acabasse com a minha
sanidade mental. Estava claro que eu não conseguia pensar direito quando
tinha consciência de que ela corria perigo.
Nunca me preocupei com ninguém, de verdade. Não conseguia
compreender muito bem a dor que Klaus sentiu quando sua amada Fhatima
morreu. A reação dele era tão desconhecida para mim que, às vezes, eu tinha
certeza que era um exagero.
Agora, sentia na pele o que era ter alguém com quem se preocupar. Não
saber se aquela pessoa voltaria com vida para meus braços me deixava com
uma sensação de impotência. E Sasha já tinha enganado a morte tantas vezes,
que era um absurdo sua capacidade de permanecer viva.
Então, eu tinha deixado que ela fosse na expedição. E estava me
alimentando de um doador, no vigésimo andar da Morada, quando ouvi seus
gritos inconfundíveis. Nem lembro se cheguei a fechar a mordida do doador.
Nunca desci aquelas escadas com tanta pressa. Por sorte, nós já possuíamos
um arsenal de Exterminators na Morada e achei melhor ir preparado.
Klaus e Nadia foram os primeiros a chegar ao saguão, mas eles ficaram
recuados onde a claridade não pudesse tocá-los. Eu escancarei um lado da
porta com o poder da mente e, de onde estava, pude ver quando os cabelos de
fogo apareceram. Sasha se jogou no chão com força total e, naquele instante,
entendi o que estava acontecendo. Um centauro macho se aproximava com
ódio e estava a cinco metros dela.
Empunhei a Exterminator, com a certeza de que se eu demorasse mais que
o necessário, a perderia. Mirei e atirei, confiando que minha mira continuava
intacta. Quando corri até Sasha, vi o mitológico cair morto. Tirei-a dali o
mais rápido possível para poder fechar a porta e evitar me queimar ainda
mais.
Precisei lançar mão de meu autocontrole imediatamente, pois minha
vontade era pegá-la nos braços e conferir se estava inteira. Porém, muitas
pessoas estavam no saguão e testemunharam tudo que aconteceu. Eu não
podia agarrar Sasha, de forma alguma.
No elevador, quando ela exibiu o ombro deslocado e contou que não tinha
se dado conta antes, lembrei da mecha de cabelos brancos. Não tive tempo de
conversar sobre a descoberta com Klaus, mas não podia mais adiar o assunto.
Assim que Sasha saiu do elevador e todos nós dispersamos, marchei atrás
de meu irmão mais velho. Ele se encaminhava ao seu andar, mas o interceptei
na escada.
“Klaus, preciso falar com você. Urgente”.
Ele se virou, com uma sobrancelha arqueada. Meu irmão sabia que eu não
costumava usar de urgência em nossas conversas. O segui até uma das salas
que ele fazia de escritório e puxei uma das cadeiras, enquanto ele foi preparar
uma bebida.
— Temos que torcer para que os outros grupos cheguem a salvo e,
principalmente, consigam trazer alguma coisa. — Ele me olhou de esguelha.
— Sua namorada podia ter corrido com uma mochila nas costas.
Ignorei o último comentaário. Ele encheu dois pequenos copos com vodca
e me entregou um antes de se sentar diante de mim. Quando bebeu, fechou os
olhos e fez uma cara de satisfação que só o alcool podia trazer.
— Se eu fosse humano, definitivamente, não ia querer andar com
Aleksandra do meu lado. Todo mundo morre, menos ela. Não que eu esteja
contando, mas aposto que sua namorada já gastou umas sete vidas.
— O que eu tenho para falar é mais sério que suas piadinhas —o encarei
depois de virar a vodca toda.
— Sim, tudo bem — ele suspirou e se recostou à cadeira, apoiando o copo
na perna. — O que foi?
“Estou preocupado e, no mínimo, curioso em relação a uma coisa que
vem acontecendo com Sasha.”
“Por que estamos falando assim?” — Seus olhos se estreitaram.
“Por enquanto, não quero que mais ninguém saiba dessa conversa.” —
avisei.
Dito isso, Klaus se mostrou mais interessado e me lançou um olhar
avaliador. Ele estava cada dia mais irônico, com seu jeito infame de alfinetar
a todos nós. Mas, nem mesmo o mais poderoso do universo resistia a um
segredo, não é mesmo?
Ele nada falou e eu sabia que esperava que eu continuasse.
“Um pouco antes de sair para a expedição, Sasha me mostrou uma mecha
de cabelos brancos na região da nuca. Branco como o nosso. A mesma
textura.”
O copo não mão dele se estilhaçou em centenas de pequenos pedaços e o
líquido que ainda restava, molhou o veludo da cadeira. Klaus balançou a mão
para que os cacos de vidro que ainda segurava caíssem no chão. Um líquido
rosado, da mistura do sangue com a vodca, manchou a cadeira bege e ele
olhava irritado para aquilo.
“Veja bem. Ela conseguiu correr mais que um centauro esequer sentiuo
ombro deslocado.” — Pensei em Sasha gritando no elevador e consertei
minha afirmação. — “Ou melhor, só sentiu quando tudo se acalmou.”
Klaus me encarou de um jeito irritante e ficou muito tempo em silêncio.
Mais do que eu conseguia suportar.
“O que você acha disso?” — Perguntei.
“Que ela é irritante?” — Klaus suspirou, alisando o braço manchado da
poltrona, muito concentrado no gesto. — Quero vê-la. Estudá-la.”
Considerei sua vontade, com dúvida quanto ao tipo de estudo que ele
pretendia fazer em Sasha. Tratando-se de Klaus, tudo era possível. Supus que
ele estivesse pensando em deitá-la numa mesa e dissecá-la ainda viva.
Estremeci com a imagem grotesca que eu nunca gostaria de presenciar e
examinei o semblante inexpressivo de meu irmão. Como se pudesse ler meus
pensamentos, ele sorriu.
“Não vou estudá-la do jeito que você está pensando” — declarou. —
“Seria mais esclarecedor, sem dúvida, mas não farei nada que coloque em
risco a vida da garota.”
“Não estou brincando, Klaus.”
“Eu pareço alguém que possui tempo para brincadeiras? Saber que a
tonta da sua namorada está ganhando superpoderes não me deixa feliz.”
Olhei para meu copo vazio e me levantei para ir embora. Precisava
conversar com Sasha com calma e descobrir o que sentia, caso sentisse algo
de diferente. Também queria prepará-la para o interrogatório de Klaus, que,
provavelmente, não seria tranquilo como o meu.
Devolvi o copo ao carrinho de bebida e avisei a ele que a traria mais tarde.
Antes de sair do quarto, porém, parei quando Klaus me chamou.
“Ela não está se transformando em Mestre, isso é fato. Não acredito que
haja essa possibilidade. Mas, em todo caso, é melhor que ela suspenda a
ingestão do nosso sangue até que possamos entender melhor essa situação.”
Bati a porta ao sair e fiquei pensando nas palavras de Klaus. Sasha era
totalmente contra a ideia de ser transformada em vampira, mas será que havia
a possibilidade disso acontecer naturalmente?
CAPÍTULO 10

KURT
O Guardião diante de mim tentou desviar do golpe, mas meu punho
fechado acertou a garganta dele antes que conseguisse me atacar. Com a
surpresa do choque, aproveitei a distração e cravei minhas unhas em seus
ombros musculosos, me atirando com ele até o outro lado da sala. O som das
costas do vampiro batendo contra a parede de aço foi música para meus
ouvidos.
— Uau! — Pigarreei. Aquela não era a coisa mais ameaçadora para se
falar. Eu era um Guardião, devia dizer algo mais intimidador. Certo? Fiz uma
cara de mau ao encará-lo. — Quero dizer... morra, minotauro filho da mãe!
O Guardião se mostrou confuso e eu nem podia culpá-lo. Sabia que em
momentos de desespero como aquele, os Mestres tinham aceitado qualquer
um para transformarem em soldados. Não importava qual o QI da pessoa,
desde que ela estivesse disposta a morrer na guerra.
— Estou fingindo que você é um minotauro — pisquei. — Entendeu?
O homem continuou impassível e me distraiu. Quando percebi, ele já
estava me jogando de cara no chão. Deslizei pelo piso liso até parar diante de
um par de sapatos negros e polidos. E pela forma como fiquei tenso ao sentir
algo invisível repuxar meus nervos, nem precisei levantar a cabeça para ver
de quem eram aqueles pés.
— Eu estava ganhando dele até segundos atrás — saí em minha defesa,
enquanto me levantava e Klaus me olhava com uma sobrancelha arqueada.
Eu sabia que ele não gozava do melhor dos humores naquele dia. Dos
grupos de humanos que saíram em busca de mantimentos, um não tinha
voltado por completo. A única sobrevivente era minha amiga poderosa e
destruidora.
Tinha acontecido logo no início da manhã e não se falou de outra coisa
durante as horas seguintes. Os Mestres ficaram bem tensos à espera dos
outros grupos, que, felizmente, retornaram à salvo. De qualquer forma, a
saída dos próximos grupos ficou suspensa até que os próprios vampiros
pudessem vasculhar cada centímetro da Fortaleza.
Klaus continuava me encarando com cara de poucos amigos. Tantas
oportunidades para mostrar meu poder e força ao Mestre, e ele entrava na sala
justamente na hora em que um Guardião recalcado me fazia beijar o chão.
Francamente!
Mantive a seriedade, sustentando o olhar dele enquanto me observava
minuciosamente. Minha nossa senhora protetora dos Guardiões apaixonados,
me salve! Se aquele homem continuasse a me olhar daquele jeito, eu o
atacaria.
Por sorte, ele parou com a tortura e passou por mim ao se aproximar do
nosso treinador, o Mestre Nikolai. Os dois conversaram mentalmente para
não escutarmos, mas enquanto lançavam olhares ao redor da sala, era de se
imaginar que o assunto fôssemos nós.
Alguns segundos depois, Klaus retornou pelo mesmo caminho, pronto
para sair da sala e levar consigo alguns Guardiões que o seguiam fielmente.
O que estava acontecendo? Por que o Guardião que estava lutando comigo
foi requisitado por ele e eu não?
— Mestre! — Chamei ao interceptá-lo e me postei ao lado dele. — Para
onde vocês vão? Posso ir também?
“Continue seu treinamento, Holtz. Você ainda não está pronto.”
— Pronto para o quê exatamente? — Ele me deixou falando sozinho e
saiu pela porta, mas eu não desistiria tão fácil. — E só para constar, eu estava
alguns pontos na frente daquele cara ali.
Klaus parou a caminhada, mas a fila de Guardiões continuou a marchar até
sumir escada abaixo. Olhei para os lados, percebendo que tínhamos o
corredor inteiro para nós dois e fiquei tenso. O que aquela criatura divina
fazia comigo era inexplicável! Qual seria a penalidade por agarrar o Mestre
maior?
— Se eu digo que você não está pronto, quero dizer exatamente isso. —
Klaus abriu o manto e deixou que ele deslizasse por seus ombros até o tecido
preto cair no chão. Depois abriu os braços e me chamou, mexendo os dedos
das duas mãos. — Me ataque.
Meus olhos se arregalaram de surpresa e choque. Ele estava mesmo
pedindo que eu o atacasse? Eu não podia fazer uma coisa dessas! Podia?
Além do mais, eu não teria a menor chance com um Mestre, mesmo o mais
fraco deles.
A perfeição de homem diante de mim deu um sorriso que me fez tremer da
cabeça aos pés. Ele devia saber tudo que causava em mim, pois não havia
outra explicação para me provocar daquele jeito insano.
— Não posso... atacá-lo — gaguejei, para meu desgosto. — Você é meu
Mestre.
— Você não recebeu meu sangue durante a transformação, portanto, não
há vínculo entre nós. É perfeitamente possível me atacar.
— Mas eu não quero fazer isso! — Recuei porque eu não conseguia me
imaginar agredindo o homem que ocupava meus sonhos.
O Mestre, no entanto, não parecia se importar com minha integridade
física. Eu soube disso quando ele apertou meu pescoço com o dedo indicador
e o polegar, e me ergueu do chão. Eu me senti impotente com meus pés
chutando apenas o ar, sem conseguir me livrar do ataque.
Meu corpo foi arremessado para trás e bati a cabeça na parede ao cair. Não
senti nenhuma dor quando estava treinando com o Guardião, mas a força de
um Mestre era incomparável e acabei vendo estrelas ao abrir os olhos.
Mal me situei e Klaus já estava na minha frente, sem dar tempo que eu me
levantasse. Ele me ergueu pelo peito, puxando o tecido da minha farda e me
lançou para o lado. Rolei pelo chão até desabar pelos degraus e me estatelar
no andar debaixo. Tive que me levantar o mais rápido que pude, pois ele já
aterrissava perto de mim.
— Sua hesitação é suficiente para matá-lo lá fora, Holtz! — O Mestre
exibia uma expressão assassina. Ele aproximou tanto o rosto do meu que
nossos narizes quase se tocaram. — Você é muito passional. Não. Está.
Pronto.
— Eu não sou passional — ajeitei minha roupa, que Klaus fizera o favor
de sujar e amarrotar. — Só não quero machucá-lo. Se eu quisesse isso,
deixaria o fogo consumi-lo por inteiro...
— Jura? — O Mestre levou a mão ao peito e inclinou a cabeça,
debochado. — Que lindo! Obrigado por tudo.
Eu sorri, sentindo que finalmente aquela briga teria fim. Não havia a
menor lógica ficar lutando com Klaus no meio de um corredor. Até porque,
eu lutaria com mitológicos, não vampiros.
Mas o Mestre não sorria nem parecia feliz. Ele me deu as costas e subiu a
escada de volta.
— Quando você virar homem, estará preparado para a guerra — declarou.
O que foi que ele disse? Klaus duvidava de mim?
Respirei fundo, mesmo sabendo que não precisava mais de oxigênio para
sobreviver. Sentia algo crescendo dentro de mim, uma vontade enorme de
fazê-lo sentir dor, como se precisasse provar o quanto sua declaração estava
equivocada.
Aproveitando que ele tinha me dado as costas, reuní toda a força que eu
ganhara com a transformação. Eu podia sentir cada músculo do meu corpo
tensionado e preparado para a colisão que estava por vir. E então, ataquei.
Bati minhas mãos nas costas de Klaus e com o impacto da corrida, ele caiu
para a frente. O Mestre rolou de lado num piscar de olhos e deslizou de
costas pelo piso de mármore. Eu vi quando os joelhos dele dobraram na hora
de se levantar, mas colidi com seu corpo um segundo depois e consegui jogá-
lo de volta ao chão.
— É só isso que você tem para mostrar? — Klaus sorriu.
A beleza do sorriso dele não foi o bastante para me distrair. Eu estava
possesso! Quando ele ergueu a mão, tive tempo de pensar antes que fizesse o
que pretendia. Ele tentou me jogar para longe utilizando seu poder, mas me
agarrei à sua camisa antes que saísse voando pela escada mais uma vez.
Meus dedos enroscaram no algodão preto e ele revirou os olhos. Klaus se
lançou comigo até o teto e foram as minhas costas que ele esmagou contra a
alvenaria. Então, nos fez cair um pouco e antes de tocarmos o chão, nos
chocamos de novo contra o teto. Ele repetiu a ação várias vezes até que eu
finalmente larguei a camisa dele e me afastei.
Rosnei, espalmando minhas mãos no chão e dando impulso para me
levantar. Virei para trás e encontrei Klaus tirando uma poeira invisível da
roupa, como se quisesse apenas me provocar.
Passei a mão pela minha boca, que eu havia cortado em algum momento, e
olhei para o sangue que se acumulara no local.
— Você é corajoso, Holtz — Klaus se aproximou de mim e pegou o
manto que havia deixado no caminho. — É forte, rápido e possui um belo
físico, mas ainda precisa de mais treinamento. Os Guardiões que vim buscar
foram enviados apenas para um reconhecimento de território, nada além
disso. Treine mais um pouco hoje e amanhã, então libero sua saída na
próxima noite.
Não havia nada que eu pudesse fazer além de concordar. Fingi plenitude
enquanto Klaus falava comigo, mantendo seu porte altivo e autoritário de
sempre. Mas, na verdade, minha atenção estava focada nos movimentos que
ele fazia com a boca.
Quando encerrou o sermão, eu sabia que meu dever devia ser bater em
retirada e procurar com o que me ocupar. Mas, caramba! Eu até podia ter me
tornado um Guardião, só que não era de ferro. Aquela vontade louca me
consumia de um jeito que se tornava cada vez mais difícil suportar em
silêncio.
Decidi que era hora de chutar o balde de uma vez por todas. Eu podia e
devia me arriscar um pouco. Então, aproveitando a proximidade do Mestre e,
sem pensar duas vezes, puxei-o pela camisa e tasquei um beijo em sua boca.
Klaus moveu apenas o rosto para trás e eu o soltei depois que tentei usar a
língua e tive a passagem negada. Talvez não tenha sido a melhor das ideias
nem o momento ideal, pois ele não parecia ter entrado no clima. Alisei o
pedaço da camisa que eu amarrotei e sorri.
— Eu só não arranco a sua cabeça neste exato segundo porque você
salvou minha vida. — Ele estreitou os olhos e deixou os caninos à mostra.
Engoli em seco e baixei o rosto, sem saber o que dizer.
Mentira! Eu sabia! Queria cantar e contar para todo mundo o que tinha
feito, mas na frente dele precisava fingir arrependimento. Por uma questão de
sobrevivência.
— Desculpe, Mestre! Não acontecerá de novo.
Ou eu estava sofrendo alucinações ou tinha visto Klaus deglutir com
dificuldade enquanto travava o maxilar.
— Saia da minha frente, Guardião — ordenou.
Não era como se o lugar em que estávamos fosse muito estreito e eu
ocupasse todo o espaço. Klaus podia passar sem nenhuma dificuldade, mas,
fiz o que ele pediu e dei alguns passos para o lado, mantendo meus olhos
grudados no chão.
Senti quando o Mestre se afastou e me virei para trás bem a tempo de vê-
lo descer lentamente a escada.
Por que a calma? Estaria ele atordoado?
— Não achei que você tivesse sabor de pasta de dente de menta —
murmurei, sabendo que ele ainda podia ouvir.
Mais uma vez, meu corpo se chocou contra o teto e desabou no chão antes
que eu conseguisse me defender.
OH MEU KLAUS! Ser tratado com grosseria nunca foi tão bom!
CAPÍTULO 11

KLAUS
Fechei a porta e parei no meio do meu quarto. Olhei em volta, me dando
conta de que finalmente estava sozinho. Me aproximei com calma das janelas
e tomei um pouco de tempo para observar as nuvens formadas pela
tempestade que meu mal humor havia causado. A chuva caía em gotas
pesadas e, pelo menos, se houvesse ainda algum mitológico pela Fortaleza,
isso o irritaria.
O orgulho preencheu meu peito ao ver que o céu negro se estendia para
além do horizonte, onde meus olhos eram incapazes de enxergar.
Normalmente, eu conseguia estender meu poder até, no máximo, uns três
quilômetros além da Fortaleza. Meu alcance estava diferente, havia mudado
de alguma forma que eu ainda não entendia.
Dentro do quarto vazio, não podia compartilhar meu sentimento de
orgulho com mais ninguém. Muito tempo havia se passado, desde a última
vez em que meus poderes foram contemplados por outra pessoa além de mim
ou meus irmãos.
Lancei um vento gélidona direção da janela e deixei que o nome dela se
formasse no vidro. Quando foi a última vez que alguém se importara comigo?
Já não conseguia mais lembrar. E, confesso, não sentia faltadaquele tipo de
sentimento. Eu me satisfazia quando queria, apenas por prazeres carnais, mas
nunca voltaria a ser um tolo apaixonado.
Deixei minha roupa no chão do quarto e entrei no banho, parando debaixo
do chuveiro, sem vontade de me mover. Senti a água fria escorrer pelo meu
rosto, pela minha boca. Lambi meu lábio inferior e me lembrei do Guardião
idiota. Recordei o episódio grotesco com Holtz e seu ataque insano. Qual era
o problema dele? Eu já tinha muitas complicações para resolver para ter que
me preocupar com sua obsessão por mim.
Mas talvez, minha raiva maior se dava pela minha compreensão de que eu
sentia prazer em deixá-lo nervoso e não conseguia sentir raiva dele. Isso já
deixava uma clara impressão do quão mais idiota que o Guardião eu era.
“Klaus! Estou com fome! Precisamos coordenar melhor as doações!”
Nadia gritou em minha mente e eu adicionei, numa lista mental, mais um
item a favor da morte de minha irmã insuportável.
Bati a cabeça na parede, espalmando as mãos à minha frente. Fechei os
olhos e controlei mentalmente o chuveiro, aumentando a potência até sentir o
peso da água que tocava minha pele. Era relaxante em dias como aquele,
carregados de tensão.
“Klaus, infelizmente, a comida humana que os grupos trouxeram não
vaiser suficiente para dois dias.” — Nikolai avisou. — “Temos que
organizar o quanto antes alguns soldados para fazerem esse trabalho.”
Inspirei e expirei com serenidade. Ninguém era capaz de resolver nada
sozinho. Para tudo recorriam a mim, às vezes, com as questões mais fúteis de
todas. Era exaustivo.
Fechei o chuveiro devagar, sem pressa alguma para falar com meus
irmãos. Todos aqueles séculos vividos serviram para que eu aprendesse que
não precisava atender às suas necessidades de imediato. Eles tinham poder e
inteligência suficientes para sobreviver e tomar decisões por conta própria.
“Ficar me ignorando não vai ajudar, Klaus.” — Nadia resmungou. — “O
que você está fazendo? Espero que não esteja se alimentando!”
“Que horas você pretende falar com a Sasha?” — perguntou Mikhail.
“Mestre Klaus, as doações não estão dando conta. Será preciso buscar
sangue fora da Fortaleza.” — Francielle, da Guarda do Sangue, enviou o
alerta enquanto eu me vestia.
Deixei o capuz do manto pender em minhas costas. Àquela altura, não
havia muito mistério a manter para com os moradores da Fortaleza. Devido
aos últimos acontecimentos e com todos indo e vindo pela Morada, eles já
estavam cansados de olhar para meu rosto.
“Reúna a Guarda” — avisei para Francielle. — “Descerei em alguns
minutos.”
“Só eu notei que Mikhail e Aleksandra ainda possuem algum tipo de
relacionamento?” — De todos os problemas, era com isso que Vladimir se
preocupava. Até eu já passara dessa fase.
Quando saí do meu quarto e me dirigi para encontrar a Guarda do Sangue,
um dos soldados responsáveis pela troca de guarda do muro me interceptou.
Ele me entregou um papel com a relação dos homens que entrariam no
próximo turno, para que eu conferisse e assinasse. Desde que descobrimos as
traições dentro da Fortaleza, eu dobrara o monitoramento da guarda e fazia
questão de conferir nome por nome.
— Tudo em ordem? — Perguntei, ao deixar uma gota de sangue do meu
dedo pingar no papel.
— Até o momento sim, Mestre.
O soldado bateu em retirada e eu desci ao andar designado à Guarda do
Sangue. Estavam de pé, aguardando minha chegada, e se adiantaram nas
explicações antes mesmo que eu pedisse. Se havia soldados eficientes
naquele lugar, com certeza, elas eram uma parte disso.
— Mesmo se coletarmos sangue duas vezes por dia de cada humano que
restou aqui, ainda assim não será suficiente para alimentar nem sessenta por
cento dos vampiros. O grande número de Guardiões complicou muito essa
contagem, Mestre.
— Não podemos coletar duas vezes por dia, isso é óbvio — ressaltei,
consciente que elas concordavam.
“Mestre, precisamos fazer a divisão de alimentos e outros bens entre os
moradores e... — algum soldado falou, mas não me dei ao trabalho de
verificar quem era. O interrompi antes disso.
“Peça para Nikolai ou Mikhail assumirem.” — ordenei.
— O que vocês têm em mente? Querem coletar sangue pelas redondezas?
É preciso levar em consideração que as pessoas que já doam com frequência
estão abastecendo os vampiros locais.
— E é por isso que um Mestre precisa ir — disse Glaucy. — Não vamos
coletar das pessoas que doam e sim das que ainda não fazem isso.
— Persuasão — entendi onde elas queriam chegar.
A Guarda permaneceu em silêncio e me encarou, esperando que eu
tomasse uma decisão naquele instante. Coisa que eu não faria sem pensar.
Obrigar os humanos a doarem sangue, mesmo com toda a situação
catastrófica que vivíamos, era um passo muito sério a dar. Eles já estavam
vivendo no limiteda sobrevivência e não aceitariam sofrer mais esse tipo de
pressão.
— Pensarei na ideia e avisarei a vocês — concluí, sem esperar que
respondessem.
Saí da sala com a cabeça a mil, precisava usar de sabedoria para decidir o
melhor para ambas as espécies. Quando pisei no primeiro degrau para voltar
a subir, Kurt Holtz apareceu em meu caminho. Ele vinha descendo as escadas
e me encarava com um sorrisinho no rosto.
— Tenha postura de Guardião — rosnei —, e não a de um adolescente
deslumbrado.
O vampiroendireitou a postura e mudou o semblante ao passar por mim.
Muito bem.
CAPÍTULO 12

Ouvi alguém bater na porta do nosso quarto e não acreditei que precisaria
levantar. Quanto tempo eu tinha dormido? Parecia que só tinha fechado os
olhos por quinze minutos e olhe lá. Felizmente, meu pai querido e amado foi
abrir a porta, e eu ouvi uns murmúrios trocados entre ele e a pessoa que tinha
batido.
Puxei a coberta sobre minha cabeça e me virei para o outro lado, com
intenção de dormir mais um pouco. No entanto, papai não permitiu. Ele
puxou minha coberta e a de Victor, nos obrigando a levantar.
— Vieram avisar que o café da manhã será servido no salão de bailes. A
ordem é que ninguém pule essa refeição, pois a comida está escassa e não se
sabe quando comeremos novamente.
De acordo com meus pais, eu estava de castigo e sob constante vigilância.
Os dois estavam surtados quando entrei no quarto no dia anterior e
expliqueisobre a expedição e minha nova aventura envolvendo um
mitológico. Pelo menos, eles afrouxariam a coleira para que eu pudesse sair
para comer, então calcei os tênis com pressa e me postei ao lado da porta.
Minha mãe já se sentia muito melhor e insistiu para nos acompanhar, mas
papai preferiu que ela ficasse descansando no quarto e prometeu que levaria
comida para ela.
— Tenha modos — o chefe da família Baker ordenou assim que nós
entramos no elevador.
Ao chegarmos, fomos atingidos pelo burburinho causado pela
aglomeração de tantas pessoas conversando ao mesmo tempo. O lugar tinha
mesas compridas dispostas lado a lado para nos sentarmos, mas nada onde
pudéssemos nos servir.
Meu pai nos levou até uma mesa com espaço para nós três sentarmos
juntos e ficamos esperando alguns minutos. Quando o salão lotou e algumas
pessoas tiveram que ficar em pé por falta de lugar, os garçons apareceram
para nos servir.
A comida era a mesma para todos. Um pedaço de pão com queijo, uma
fruta que variava de pessoa para pessoa, uma porção de kasha — prato típico
do café da manhã russo — e ovo frito. De bebida, podíamos optar por suco
ou café. Não era o pior café da manhã da minha vida, mas sem dúvida, estava
longe de ser o mais completo. Não dava para reclamar, é claro. Todos ali
estávamos cientes da escassez de provisões.
Deixei a porção de kasha de lado, pois não gostava muito da comida.
Enquanto Victor e eu terminávamos de comer, meu pai já tinha ido
providenciar a refeição da minha mãe. Estava distraída e quase derrubei o
suco no colo quando meu irmão me cutucou com o cotovelo.
— Sem querer ser chato, mas seu cabelo está... ahn... aparecendo —
comentou.
— E daí?
— Estou falando da parte branca. — Victor sussurrou, colocando o último
pedaço do pão na boca.
Fiquei imediatamente alerta e mexi nos meus cabelos de modo que
escondesse a mecha maldita. Olhei em volta para me certificar de que
ninguém tinha reparado e, felizmente, estavam muito entretidos com a
comida para sequer me notarem.
— Você está virando uma... — tapei a boca de Victor com minha mão e
arregalei meus olhos.
— Não termine a frase. Não sei. — Puxei minha mão de volta e encolhi os
ombros. Eu me sentia às cegas. — Se você contar para nossos pais, eu
arranco os seus cabelos.
— Você promete que um dia me transformará? — Victor sorriu, tentando
barganhar.
— Não.

Havia uma fila grande para pegar o elevador e pensei que, se os Mestres
imaginassem que um dia o movimento de humanos dentro da Morada seria
tão grande, eles teriam se dado ao trabalho de colocar mais elevadores ali.
Nós estávamos no final da fila quando Mikhail apareceu. Justamente ele! O
momento era o mais inoportuno possível, mas o Mestre vinha na nossa
direção, alheio aos sentimentos assassinos do meu pai.
Fiz um sinal para ele, tentando avisar parapassar direto por nós, mas
parece que Misha não entendeu. Ou não se incomodou. Ele parou do meu
lado e tocou meu braço com delicadeza, sem olhar para as outras pessoas.
— Precisa vir comigo — avisou.
Eu baixei os olhos, sabendo que meu pai estava louco para pular no
pescoço do Mestre. Lógico que Mikhail não estava me chamando para
participar de uma orgia, mas, para meu pai, era mais ou menos daquela forma
que o comando deveria soar.
— Aonde exatamente minha filha precisa ir, Mestre? — O chefe da
família perguntou.
— O assunto é confidencial.
— Não para mim. Caso não se lembre, sou o pai dela.
A fila andou e meu pai segurou minha mão, me puxando para frente.
Mikhail arqueou uma sobrancelha, parecendo surpreso por um humano falar
com ele daquela forma. Era bem feito, se alguém gostaria de saber minha
opinião. Afinal, o Mestre tinha cavado a própria cova quando decidiu não
deletarda memória dos meus pais o momento em que nós dois estávamos
agarrados um ao outro.
Misha me olhou de esguelha e depois tocou o ombro do meu pai,
inclinando-se na direção dele.
— É confidencial, Johnathan. Isso é o máximo que eu posso dizer.
O vampiro que fazia meu coração bater mais forte apoiou a mão nas
minhas costas e me indicou o caminho. Eu cheguei a sair da fila para
acompanhá-lo, mas mal demos cinco passos e meu pai já estava atrás de nós.
Victor o seguia de perto, mas não compartilhava dos mesmos sentimentos
que ele. Acho que para meu irmão, qualquer coisa que os Mestres fizessem
seria demais. Ele só faltava aplaudir.
— Você não vai levá-la — papai contestou, apressando os passos. —
Mestre Mikhail, exijo que minha vontade seja respeitada!
— Sua filha é maior de idade — o outro declarou. — Que tal perguntar
qual a vontade dela?
Misha parou de andar e virou-se para meu pai, me rodando junto com ele.
Àquela altura, algumas pessoas já observavam a cena. Não estávamos mais
exatamente dentro do salão, mas parados no meio do corredor que nos levaria
à escada, onde alguns transeuntes se tornaram nossa plateia. E todos, naquele
momento, olhavam para mim. Inclusive meu pai e Mikhail.
Ah, mas que maravilha! Tinha mesmo que me colocar no meio do fogo
cruzado. O Mestre estava me saindo um bom filho da mãe.
— Quero ajudar no que for preciso — respondi, visto que esperavam por
isso.
Meu pai não ficou nem um pouco satisfeito com minha decisão e eu tinha
certeza que ela seria motivo para mais sermão quando retornasse ao nosso
quarto.
— Você pode ir, querida — ele se aproximou de mim. — Mas só se eu for
junto.
Ouvi a respiração ruidosa e proposital de Misha, e sabia que ele estava
prestes a perder a paciência. Ninguém discordava de um Mestre, muito
menos em público. Era um milagre que a cabeça de meu pai ainda estivesse
no lugar e o coração dele ainda batesse.
— Minha filha tem passado por situações extremamente perigosas desde
que chegamos aqui. — Ele encarou o Mestre de uma forma desafiadora. — E
também há outras coisas que me deixam muito desconfortável em relação a
proximidade dela com vocês.
Pensei que estava tudo bem, que Mikhail controlaria o ímpeto de esmagar
os ossos do meu pai, mas o patriarca Baker abaixou a cabeça e gemeu
enquanto a segurava entre as mãos. Os pés dele desgrudaram do chão e seu
corpo foi lentamente empurrado até tocar a parede. O Mestre se aproximou
dele e eu corri para interceder, com medo que algo de grave acontecesse.
— Johnathan, acho que você ainda não entendeu. — Misha falou,
inclinando a cabeça para o lado. — Eu não pedi sua autorização.
— Pare com isso — pedi, me enfiando no pequeno espaço que sobrara
entre os dois homens. Primeio olhei para Mikhail e depois me virei para
encarar meu pai. — Isso está ridículo. Parem!
Papai não conseguia levantar o rosto para encarar o vampiro e eu sabia o
que causava sua impassividade. Conhecia muito bem a sensação esmagadora
dentro da cabeça, como se uma mão invisível pressionasse nosso cérebro de
tal forma que nos fazia querer morrer.
— Chega — pedi, empurrando o peito de Mikhail. — Deixe meu pai em
paz. Pare de atacá-lo!
— Você tem algum problema pessoal para resolver comigo, Johnathan?
— O Mestre perguntou, sem se dar ao trabalho de me olhar.
Quase comecei a chorar, mas finalmente ele cessou o ataque.
Com lágrimas nos olhos, meu pai levantou o rosto devagar e encarou o
vampiro. Seus ombros estavam caídos e meu coração apertou ao imaginá-lo
sentindo-se impotente.
— Vou levar sua filha e a devolverei quando ela terminar de fazer o que
precisa ser feito. — Misha declarou, olhando firme para meu pai. — No
momento, acho que sua esposa requer mais da sua atenção do que
Aleksandra.
Dito isso, Mikhail meneou a cabeça para que eu andasse na sua frente. Eu
não sabia muito bem para onde ele me levaria, mas segui na direção da
escada esperando que viesse atrás. Quando ele me alcançou, nós deixamos
meu pai e Victor sozinhos, os dois com emoções muito distintas.
— Bom dia — ele falou casualmente, como se não tivesse acabado de dar
uma surra mental em meu pai.
— Só se for para você — resmunguei, deslizando a mão pelo corrimão. —
Quando eu voltar para o quarto, vou ouvir sermões por toda a minha vida.
— Até onde eu sei, você é maior de idade. Deixa seus pais ditarem sua
vida porque quer.
— Eu moro com eles! — Gemi, querendo pisar no pé dele. — Pode ser
diferente entre vampiros, mas nós humanos temos que acatar algumas regras
enquanto moramos sob o mesmo teto que nossos pais.
Ele virou o rosto e me olhou com uma expressão debochada. Eu suspirei,
pensando em quantos andares teria que subir com Mikhail ao meu lado, me
irritando daquele jeito. Meu sangue fervia porque, apesar de ter problemas
com meus pais, eu os defenderia até a morte. Aquilo não era jeito de tratar
alguém da minha família.
— Atualmente você está morando sob o nosso teto, para ser mais exato.
— Que seja. — Dei de ombros. — Você podia esclarecer para eles que
nós dois não estamos juntos. Eu já fiz isso, mas não acreditaram em mim.
Talvez, se ouvissem isso da sua própria boca...
— Eu não tenho que dar satisfações para os seus pais, Sasha.
— Eu sei, mas podia fazer isso para facilitar a minha vida — murmurei e
cruzei os braços, chateada.
— É ruim, não é? — Misha perguntou.
— O quê?
— Quando outra pessoa ignora o nosso pedido.
O que ele queria dizer com aquela afirmação? Estava se vingando de todas
as vezes em que o desobedeci? Ele não podia ser tão infantil a esse ponto.
Podia?
Decidi ficar calada para não brigar com ele, porque algumas palavras
imploravam para escorregar para fora da minha boca e serem atiradas sobre o
vampiro. Só que, quando se tratava de Mikhail, eu era uma confusão de
sentimentos. Uma hora ficava louca de raiva e no minuto seguinte, queria
beijá-lo. Nunca entenderia o que aquele homem causava em mim.
Ele continuava me guiando pela escadaria e minha mente começava a
pregar peças, como sempre. Sonhei que estávamos indo para o quarto dele e,
mesmo com toda a tensão pela qual estava passando, sentia que alguns
amassos seriam muito bem-vindos.
— Por aqui — avisou ele ao entrarmos num corredor sem um pingo de
decoração. Minha ideia de pegação foi por água abaixo.
Paramos diante de uma porta de aço e, com um toque, ela se escancarou.
Entrei logo atrás de Mikhail e encontrei Klaus parado no centro do salão. Ele
estava descalço, sem o manto, vestindo apenas uma camisa preta de algodão
e uma calça de malha. Vê-lo despido de todo o seu jogo de poder e
ostentação era uma coisa surpreendente.
— Olá, raio de sol! — Com os braços para trás do corpo, ele sorriu para
mim e depois olhou para Mikhail. — Deixe-nos.
Klaus sorrindo e me chamando de raio de solsó podia significar que eu
estava prestes a apanhar. E muito. Encarei meu ex-namorado, arregalando
bastante meus olhos e quase implorando para que ele não me deixasse ali
sozinha. Poxa, eu tinha acabado de comer! Não queria levar uns socos e
vomitar toda a comida.
“Ele não vai matá-la” — limitou-se a avisar, mas nem mesmo Milhail
tinha como garantir aquilo.
Quando ele saiu e fechou a porta, suspirei resignada. Olhei em volta,
absorvendo os detalhes do lugar. Era um salão amplo, sem decoração e
móveis que dessem alguma identidade a ele. O piso de cimento polido e as
paredes revestidas com placas de metal conferiam uma aparência muito crua
a tudo. Estava claro que não houvera a menor intenção de deixar aquele
ambiente com um aspecto confortável e aconchegante. Era tudo, menos isso.
— Eu não fiz nada! — Comecei dizendo. — Estive dormindo desde que
cheguei da expedição maldita e só saí do quarto para tomar café da manhã.
Também não foi culpa minha se o mitológico nos achou naquela casa. Minha
conduta foi exemplar.
— Mostre-me os cabelos brancos. — Klaus diminuiu a distância entre nós
antes que eu conseguisse piscar.
Então, aquele era o motivo para eu ter sido chamada ali?
Imaginei Klaus segurando a mecha branca e arrancando tudo com força
junto com meu couro cabeludo e, por instinto, levei as mãos à cabeça.
Encarei os próprios cabelos brancos do Mestre e desejei que algo tão bizarro
não estivesse acontecendo comigo. Desde o início, soube que me traria mais
problemas do que vantagens.
Puxei meus cabelos para o alto num rabo de cavalo e deixei que o próprio
Klaus procurasse pela mecha. Não seria difícil encontrá-la. Vi quando os
olhos azuis na minha frente brilharam ao encarar um ponto exato da minha
cabeça e suspirei.
— Interessante — declarou, esticando a mão para tocar a mecha.
— Queria poder dizer o mesmo.
O Mestre estava hipnotizado, como se nunca tivesse visto cabelos daquela
cor. Ele até chegou a me assustar quando se aproximou e se inclinou para
cheirar meu cabelo. Cheirar! A que ponto nós tínhamos chegado, não é?
— Você também pretende provar? — Perguntei e recebi um olhar afiado
de volta.
Do nada, sem me responder ou dar qualquer aviso, Klaus se retirou do
salão. Permaneci parada no mesmo lugar, com os cabelos para o alto, sem
saber o que fazer. Mas ele retornou num piscar de olhos, sem me dar tempo
para notar o que carregava em uma das mãos. Então, com agilidade, passou
por mim e a velocidade elevada fez com que meus cabelos balançassem.
Quando menos percebi, Klaus estava do outro lado com um pedaço de três
dedos da mecha branca nas mãos.
— Você cortou o meu cabelo? Por que você fez isso? — Reclamei,
passando a mão pela mecha, agora curtinha.
— Para avaliação posterior — ele respondeu e, com um gesto rápido,
amarrou as pontas dos cabelos e enfiou a mecha no bolso da calça. — Agora,
vamos começar.
— Que avaliação? — Franzi a testa. — Não pense que pode fazer o que
quiser comigo sem me dar explicações. Eu achei que tivesse sido chamada
para conversar e entender melhor tudo o que está acontecendo comigo.
— O que você acha que eu sou, Aleksandra? Um oráculo? — Klaus
revirou os olhos e abanou a mão na minha direção. — Não me faça perder
tempo. Quero testá-la de algumas formas para saber qual a dimensão dos seus
poderes de mentirinha.
— Eu não tenho poderes! — Queixei-me, ficando irritadíssima.
A forma como Klaus me encarou, como se soubesse de algo que eu ainda
não sabia, me fez baixar os braços e olhar para meu próprio corpo.
— Eu tenho poderes? — Questionei, observando minhas mãos que ainda
eram as mesmas. — Se você se refere ao fato isolado de eu ter corrido mais
que o centauro, é bom esclarecermos tudo. Deve ter algo a ver com o sangue
que vocês me deram depois que eu virei churrasquinho.
Com toda a sua desenvoltura de vilão, Klaus abanou a mão e lançou-me
contra a parede. Sufoquei um grito com o choque inesperado e senti uma
pontada irradiar pelo meu cóccix. Sem parar para pensar em mais nada, me
levantei com rapidez, pois sabia que ele não daria tempo para eu me
recuperar.
— Mas que droga, Klaus! — Gritei, vendo gotículas de cuspe saltarem
pela minha boca. Estava muito puta. — Você podia avisar antes!
— Do que você me chamou? — Ele arqueou uma sobrancelha.
Ah, que saco! Eu o chamei pelo nome e mesmo sabendo que a
formalidade já eram águas passadas entre nós, eu tinha certeza de que ele me
repreenderia com mais porrada. O Mestre fez um movimento de giro com o
pulso e eu levitei, meu corpo girando em todas as direções como se eu
estivesse dentro de um tornado. Quando ele me deixou cair de cara no chão
duro de cimento, bati o queixo e trinquei os dentes. Colocaria fogo naquela
Fortaleza se eu perdesse um dente.
Já podia sentir o gosto metálico do sangue em minha boca e não consegui
levantar de imediato. Meu psicólogo estava abalado e eu não esperava passar
por aquela tortura. Sem pressa, apoiei os joelhos no chão, mas Klaus se
agachou diante de mim antes que eu me levantasse.
— Posso fazer isso o dia todo se você não começar a se defender — ele
ameaçou e eu acreditei, pois sabia do que era capaz.
— Não posso me defender dos seus ataques! — Berrei com ele e algumas
gotas de saliva com sangue espirraram em seu rosto perfeito. — Não tenho
poderes! Você está alucinando!
— Não seja tola — o Mestre se levantou, enxugando o rosto com a barra
da camisa e expondo o abdômen sarado. Não pude deixar de notar que
Mikhail tinha muito mais músculos que Klaus. — Você nunca sobreviveria
àquele centauro se não tivesse algum poder incubado nesse seu corpo
humano ridículo.
— Nem você nem seu sangue cheiram como nós, mas com a quantidade
que já consumiu, alguma coisa está acontecendo em seu corpo. E precisamos
saber como controlar isso antes que cometa algumas idiotices.
Eu me levantei, limpando o sangue da boca e encarando o Mestre à minha
frente. Ele queria que eu controlasse algo que eu nem sabia o que era. Recuei
alguns passos, me preparando para o próximo ataque. Por algum motivo, eu
já tinha antecipado a dor e o medo do que viria a seguir. Era basicamente o
que eu ganhava nos últimos tempos. Não um carinho, um afago, uma palavra
de amor. Minha vida estava repleta de desgraça.
Enxuguei uma lágrima insistente que escorreu pelo meu rosto e Klaus
franziu a testa.
— Desculpe — disse o Mestre. — Acho que exagerei. Venha cá.
Ele abriu os braços e eu, na ânsia de tocá-lo uma vez na vida, aceitei o
gesto de bom grado. Caminhei até Klaus e quando achei que fosse ser
envolvida num abraço, ele fechou os dedos em volta do meu pescoço e meus
pés saíram do chão.
— Onde se escondeu a garota destemida que esteve me importunando esse
tempo todo? — Desdenhou ele, me deixando sem ar. — Recomponha-se,
Aleksandra!
Eu o chutei, mas ele nem se mexeu. Tentei afastar a mão que pressionava
meu pescoço, arranhei sua pele com minhas unhas, mas me senti à beira do
desmaio, o pânico crescendo conforme eu ficava sem ar. Era a segunda vez
que Klaus me atacava daquele jeito.
Por fim, consegui acertar um chute no abdômen do Mestre. Ele
cambaleou, surpreendido pelo meu ataque e acabou me soltando. Eu me
equilibrei rapidamente e corri para a outra extremidade do salão, na esperança
de colocar o máximo de distância entre nós.
— Isso — ele apontou para mim, com um sorrisinho no rosto —, não me
pareceu um chute humano.
Apoiei-me contra a parede e levei a mão ao coração. Eu sentia os
batimentos tão acelerados como no dia anterior. Não era igual ao que eu
sentia quando corria ou me cansava demais. A sensação era anormal e eu
achava que a qualquer momento cairia dura no chão.
— O que está sentindo?
— Meu coração... — respondi, tomando fôlego. — Está muito, muito
acelerado. Que nem ontem.
— Parece que você está desenvolvendo alguns poderes, mas seu corpo é
frágil. Ao usá-los, deve estar sobrecarregando o coração.
É claro. Por que eu era a pessoa mais azarada da face da Terra. Tinha
mesmo que ser caso de estudo. A cobaia de Klaus. E ele devia estar adorando
a situação. O Mestre se aproximou de mim a passos lentos e, de repente,
comecei a sentir a conhecida pressão em minha cabeça. Klaus estava
lançando um ataque a mim, com uma dose extremamente forte, que fez meu
corpo se dobrar ao meio.
— Pare! — Agarrei minha cabeça com as mãos.
— Você conseguiu se defender quando estava sob pressão, ao se
sentirencurralada. — Vi os pés de Klaus pararem diante de mim. —
Concentre-se e busque o sentimento responsável por acionar esse gatilho.
Eu consegui me erguer, mas não bloquear o ataque dele. Dei um soco no
ombro do Mestre, depois mais outro. Tentava entender como ativar a droga
do sensor que me desse os poderes insanos, se é que eu os tinha mesmo.
Descontei toda a minha frustração em cima de Klaus, que aparava um soco
atrás do outro, com as palmas das mãos estendidas à frente do corpo. Eu dava
tudo de mim e ele parecia entediado.
Senti um tremor percorrer lentamente os meus músculos e me consumir.
Aos poucos, senti que meus socos aumentaram de força e velocidade, até eu
mal conseguir enxergar meus punhos fechados.
— Chega! — Klaus segurou minhas duas mãos e bloqueou meus
movimentos. — Respire. Desmonte-se.
O Mestre recuou alguns passos e se virou novamente para mim.
— Sua dor passou? — Perguntou ele.
Só então me dei conta de que não estava mais sentindo a testa latejar.
Mexi meus olhos, balancei a cabeça e não senti absolutamente nada. Relaxei
os ombros ao encará-lo e dei um sorriso vitorioso.
— Muito bem.
— Você ainda está fazendo aquela coisa horrível na minha cabeça?
— Que vocabulário tenebroso. — Klaus revirou os olhos. — Estou
enviando ondas que aumentam sua pressão intracraniana.
Prendi meus cabelos no alto, pois ali eu não precisava mais escondê-los.
Klaus arqueou uma sobrancelha e balançou a cabeça, estalando a língua.
Depois, apontou em direção à minha cabeça.
— A mecha já cresceu — avisou.
Não podia ser! Chocada, passei a mão pelos cabelos, à procura da mecha
que ele tinha cortado e deixado tão curtinha. Ela já estava do mesmo tamanho
de antes do nosso encontro. Ou seja, eu nunca mais conseguiria mudar o corte
de cabelo. Era sério mesmo?

Joguei-me no chão, esgotada. Durante os últimos vinte minutos, Klaus me


fez correr em círculos pelo salão, até que eu conseguisse interceptá-lo. Cada
vez que eu o alcançava, agarrando a manga da camisa dele, o Mestre
aumentava sua velocidade e se desvencilhava de mim.
Por fim, quando ele parou e eu desacelerei, quase fui de cara no chão.
Meus pulmões pareciam ter dificuldade de se expandir direito e, por isso,
minha respiração estava precária. A falta de ar era tanta que não consegui me
manter de pé.
— Então... Qual o... veredicto? — Perguntei, enxugando o suor da testa.
— Não acho que você vá se transformar em vampira. Mas, se não parar
com o consumo de sangue, os poderes podem aumentar. As consequências
podem ser negativas para um corpo humano, portanto, se você não quer ser a
nova mutante da Fortaleza, é melhor que não receba mais o nosso sangue.
Klaus falava como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ele arrancou a
camisa preta toda rasgada — presente das minhas unhas, toda vez que eu o
segurava enquanto corria — e a jogou num canto.
Eu foquei na palavra mutante, querendo dirigir alguns palavrões a ele, mas
preferi economizar oxigênio até me sentir melhor. Enquanto isso, fiquei
encarando o abdômen do Mestre.
— Não seria nada mal se além dos poderes eu ganhasse um belo físico
também.
— Não seja tola. Nosso sangue não faz milagres — ele comentou, me
lançando um olhar cheio de desdém.
Ignorei o sarcasmo e encarei minhas mãos. Passei o dedo indicador pela
cicatriz mais feia de todas, que subia até meu cotovelo.
— Se, pelo menos, essa coisa horrorosa sumisse...
Klaus olhou em volta, contrariado, como se preferisse estar em qualquer
outro lugar do que ali, ouvindo minhas lamentações. Ele se virou para mim e
observou o chão ao meu redor. Soltando um ar de resignação, agachou-se e
deslizou as costas pela parede.
Sentado ao meu lado, com as pernas esticadas para a frente, Klaus não
aparentava ser a pessoa arrogante que era.
— Se tivesse se tornado uma Guardiã, suas cicatrizes não existiriam. —
Ele encostou a cabeça na parede e fechou os olhos. — Eu mandei que a
transformassem, mas Mikhail nos impediu. Um tolo, como sempre.
— Ele não é tolo — retruquei. — Mikhail sabe que não desejo ser
transformada.
— Estou ciente de sua aversão àmais remota possibilidade de se tornar
uma de nós.
Virei o rosto para encará-lo, mas Klaus continuava de olhos fechados. Ele
balançou a cabeça algumas vezes e eu fiquei em dúvida se estava
conversando apenas comigo ou se mantinha comunicação mental com mais
alguém.
— Não é aversão — expliquei, dobrando as pernas que nem buda e
enfiando as mãos debaixo das minhas coxas. — Só não sei se estou pronta
para me privar do sol, de andar durante o dia, de sentir o gosto bom das
comidas... Tudo isso por uma pessoa que eu nem sei o que sente por mim.
— Aleksandra, não sentei aqui para trocarmos confidências. — Klaus,
ainda de olhos fechados, bateu um dedo no meio de sua testa. — Só queria
um momento de tranquilidade para poder resolver pendências.
Eu me imaginei enfiando meus dedos naqueles olhos azuis ou arrancando
os cabelos brancos do Mestre. Respirei fundo e desencostei da parede para
me levantar. Ele já tinha declarado que nosso treino havia acabado, então eu
devia estar liberada para ir embora.
— Mikhail desafiou a todos nós por sua causa — disse ele, apesar de ter
declarado não querer conversar. — Em dois mil anos, apenas um de nós
sentiu algo parecido com o que ele demonstra sentir por você. E isso foi há
muito tempo.
— Conheço sua história — falei sem pensar e vi Klaus abrir os olhos pela
primeira vez desde que se sentou. — Ou melhor, conheço um pequeno
pedaço dela.
Ele me encarou com uma expressão azeda. Mas, eu já tinha ido até ali,
decidi arriscar um pouco mais para ver se arrancava mais alguma história do
Mestre.
— Você acha que estariam juntos até hoje? — Perguntei.
O olhar de Klaus ficou perdido num ponto à sua frente e um silêncio
incômodo reinou no salão.
— Vá — ordenou.
Perfeito. Tinha tocado num ponto sensível demais. Senti o arrependimento
me consumir no mesmo instante e praguejei mentalmente por ser tão idiota e
ter uma boca tão grande. Justo quando estava conseguindo que Klaus soasse
mais como alguém um pouco normal...
— Eu juro que não queria me meter — falei. — Desculpe, Mestre!
— Você está liberada — ele sussurrou, a voz um pouco lânguida.
Coloquei uma expressão de arrependimento no rosto — e sim, era um
sentimento verdadeiro — e ajoelhei ao lado de Klaus. Sabia que ele já tinha
deixado claro que me queria fora dali, mas algo em mim, uma sensação
estranha e desconhecida, me fazia querer vê-lo bem. O coma, pelo visto, tinha
me deixado louca.
— Tudo bem, eu já vou. Mas antes, gostaria que soubesse que por mais
aterrorizante que você seja, todos sabemos que faz um ótimo trabalho. — Dei
de ombros. — O melhor que pode. E, por isso, quando não está tentando me
matar, eu o respeito e o admiro bastante.
Sorri e, num impulso para me levantar, me desequilibreie precisei apoiar
ambas as mãos no braço do Mestre. Eu o tocara algumas vezes durante o
treinamento estranho, mas fora aquele momento, eu não achava que tinha
autorização para encostar nele.
Afastei minhas mãos devagar, achando que ele arrancaria minha cabeça.
Os olhos azuis se moveram, assassinos, e eu esperei a retaliação. Klaus
ergueu os lábios e expôs os caninos brancos, brilhantes e afiados.
— Preciso de sangue — falou.
Não esperava essa reação, mas eu preferia doar um pouco de sangue do
que ser jogada contra uma parede. Portanto, puxei meus cabelos para o lado
e, receosa, ofereci meu pescoço a Klaus. Eu não era idiota de dizer não a ele.
Conhecia muito bem a ira do Mestre e sabia que ele não tinha tomado à força
apenas por educação. Quando o rosto dele se aproximou do meu pescoço,
torci para que Klaus não drenasse todo o meu sangue e fechei os olhos.
CAPÍTULO 13

MIKHAIL
Sabia que Klaus não faria nada que realmente colocasse a vida de Sasha
em perigo. Porém, eu não era ingênuo. Tinha plena consciência de que ela
sofreria um pouco até que meu irmão conseguisse arrancar dela o que
desejava.
Eles já estavam trancados naquele salão há quase duas horas e eu
começava a me preocupar. Todos estávamos irritadiços por causa da escassez
de sangue e a fome nos deixava no limite. Sem o banco de doações à
disposição e com tantos vampiros para alimentar, nós cinco tivemos que nos
privar um pouco, de forma que sobrasse mais para os outros. Não queríamos
uma rebelião se formando num momento tão inoportuno.
Fui até o salão com a intenção de verificar se estava tudo bem e, qual não
foi minha surpresa, quando vi Sasha parcialmente deitada no colo de Klaus,
enquanto ele bebia do pescoço dela. Seminu.
Ele estava entretido com o sangue fresco quando sentiu minha presença
eergueu o rosto sem um pingo de remorso.
— Ainda bem que você não deixou que a transformassem, meu querido
irmão.
— Estou atrapalhando? — Perguntei, me encostando na porta. — Posso
voltar num momento mais apropriado para os dois.
Klaus soltou Sasha e ajudou ela a se levantar. A ruiva cambaleou um
pouco e estava pálida, o que indicava que ele tinha sugado mais sangue do
que o aconselhável. O mais curioso de tudo era que, enquanto ele a segurava
pelo braço e a trazia para mim, Sasha se apoiava com uma das mãosem seu
ombro. Klaus estava permitindo que ela o tocasse. Uma das coisas mais
inacreditáveis que eu já tinha visto Sasha fazer.
— Pronto. Entregue nas mais perfeitas condições — disse e depois
inclinou a cabeça de lado. — Mais ou menos. Dê um tempo para que ela se
recupere.
Meu instinto protetor e possessivo me fez arrancá-la do toque dele e passar
meu braço pela sua cintura. Lancei a Klaus um olhar de descontentamento
para que soubesse que eu não tinha gostado nada do que vi. Tudo bem se ele
precisava se alimentar e ela ofereceu o próprio sangue. Nós não estávamos
mais juntos e eu não podia dizer a Sasha o que fazer ou deixar de fazer com o
seu corpo. Mas meu irmão exagerou na dose e a enfraqueceu, o que era muito
impróprio com qualquer que fosse o doador.
Parei no meio da escada com ela nos braços, tentando decidir para onde
levá-la. Como Johnathan estava de implicância comigo, ver a filha daquele
jeito aumentaria ainda mais a raiva dele. Decidi, portanto, levá-la para meu
quarto e esperar que se recuperasse antes de entregá-la aos pais.
— Você está com raiva? — Ela perguntou, esticando a mão para tocar
meu cabelo. — Por eu ter deixado que Klaus se alimentasse?
— Não.
— Essa resposta não foi muito convincente...
Entrei em meu quarto e a coloquei na cama. Sasha estava pálida, mas a
fraquezanão a impedia de fazer perguntas. Ela me encarou com um olhar
preguiçoso, enquanto se aconchegou em meus lençóis.
Fiz uma solicitação para que trouxessem um copo de suco e algumas
frutas para repor as energias e me sentei na beira da cama. Passei meus dedos
entre os cabelos dela, afastando os fios que caíam sobre seu rosto delicado. A
cor laranja estava desbotando e a raiz mais escura tinha crescido alguns
centímetros. Ali, eu vi que o que estava acontecendo com Sasha não ia parar.
Em minha mão havia uma mecha de cabelos brancos. Não a que eu tinha
visto anteriormente. Era uma mecha nova, que não estava lá quando a deixei
sozinha com Klaus.
— O que você e Klaus fizeram? — Perguntei, curioso.
— Uma orgia! — Debochou, virando o rosto e sorrindo para mim. —
Teria sido mais interessante se você tivesse participado.
Peguei uma taça de cristal em cima do móvel, enchi com vodca até a
metade e bebi num único gole. Apertei meus dedos em volta da peça toda
trabalhada e a lanceina direção da parede;o cristal se estilhaçou. Pela visão
periférica, vi o corpo de Sasha se sobressaltar com minha explosão.
— Você pode falar sério uma vez na vida? — Gritei.
— Isso é a sua versão sem estar com raiva? Uau! — Perguntou,
encolhendo os ombros. — Não fizemos nada demais. Ele me forçou a trazer à
tona os meus poderes.
Só o fato de falar tão naturalmente, como se estar no colo de Klaus não
fosse nada demais, já me fazia querer esganar meu irmão. Eu sequer sabia se
Sasha tinha alguma noção de quão envolvida com Klaus ela parecia estar
naquele momento. Era pior do que na época em que eu precisava ver o traidor
do Blake se jogando para cima dela. Klaus era Klaus. Se ele, um dia,
resolvesse desejá-la, nada nem ninguém ficaria em seu caminho. E eu
morreria tentando protegê-la dele.
Eu me afastei da cama o máximo possível para não descontar minha fúria
nela. Virei de costas e olhei para a janela selada. Nem havia nada para onde
olhar.
— Isso é tão estranho — ela continuou murmurando, alheia ao que
acontecia comigo. — Meus poderes.
— Acho que você não deve mais usá-los, se não quiser ficar com o cabelo
todo branco — avisei. — Você ganhou uma nova mecha.
— Mentira!
Ela correu até o banheiro para se olhar no espelho e ouvi alguns
xingamentos sussurrados.
— Não tem como esconder essa — choramingou. — Só se eu fizer um
coque e colocar um chapéu na cabeça. O que seria mais estranho do que
desfilar de cabelo branco por aí.
Levantei-me para receber o funcionário da cozinha que já terminava de
subir a escada até meu andar. Do jeito que minha raiva ainda borbulhava, se
ele se aproximasse muito do meu quarto, ficaria sem cabeça. Deixei Sasha
formulando mil e uma teorias de como poderia esconder a mecha, mesmo ela
sabendo que seria impossível. Andar com um chapéu para cima e para baixo
chamaria ainda mais atenção.
Quando voltei ao quarto, coloquei a bandeja com o copo e as frutas na
cama. Ela avançou nas frutas com uma voracidade incrível. Ou a cota de
comida do café da manhã tinha sido muito pouca ou Klaus havia exigido
bastante dela.
Puxei uma poltrona e me sentei de frente para a cama, erguendo meus pés
e apoiando-os no colchão. Sasha parecia alheia ao que acontecia à sua volta,
só queria saber de devorar a comida.
— Você e Klaus estão bem íntimos.
Ela levantou os olhos e parou de mastigar. Depois, bebeu um gole do suco
e comeu o que restou da fruta.
— Sério que você está com ciúmes? — Perguntou, sorrindo.
— Só estou curioso. Você tocando nele... Ele seminu... Foi uma cena
interessante de se ver.
O fato de ela ter perguntado se eu estava com ciúmes me deixou intrigado
em relação aos meus sentimentos. Eu havia encerrado a nossa relação. Teria
direito a sentir algo do tipo?
— Seminu é um pouco de exagero da sua parte — ela franziu o nariz
arrebitado. — Vocês, Mestres, é que são muito rígidos. No meu país, era uma
coisa muito normal ver homens sem camisa. Isso não tem nada a ver com o
que você está pensando.
— Não estou pensando nada. Eu apenassugeri que vocês pareciam
íntimos.
Sasha deu de ombros.
— Acho que Klaus está começando a ser legal comigo. Quando não está
me agredindo — ela arqueou uma sobrancelha e exibiu um olhar orgulhoso.
— Acredita que nós conversamos sobre o passado dele? Quero dizer, mais ou
menos... Mas, o importante é que ele falou sobre sentimentos.
Essa informação era novidade para mim. Klaus não tinha costume de
conversar, muito menos com humanos. Menos ainda com Sasha. Parecia que,
durante minha viagem pela Europa em busca dos mitológicos, eles dois
haviam desenvolvido uma relação estranha e atípica demais para minha
cabeça.
— Sentimentos? — Encarei a ruiva, sem acreditar.
— Sim — ela estreitou os olhos na minha direção. — Você sabe o que são
sentimentos, certo?
Respondi com um olhar de aviso.
CAPÍTULO 14

Não sabia por quanto tempo tinha dormido, mas acordei bem mais
disposta e renovada. Quando me virei para o outro lado, dei de cara com
Mikhail. Ele também estava deitado, tão perto de mim que eu nem precisava
me esticar para tocá-lo. Os dedos do Mestre roçaram em meu braço e meu
corpo se retesou quando ele deslizou a mão pelas cicatrizes.
— Você falou sobre sentimentos — disse ele.
Respirei fundo, me preparando para uma nova discussão. Se ele tocasse no
nome de Klaus novamente, eu quebraria aquela janela só para vê-lo queimar.
— Sentimentos só trazem dor de cabeça e eu nunca fiz questão de me
preocupar com eles. Mas isso foi antes de você.
Tudo bem, não estava esperando por aquelas palavras. Meus olhos
começaram a se arregalar, mas controlei minha reação afobada com medo de
que Mikhail retirasse as palavras. O que, exatamente, ele tinha acabado de me
dizer?
— Eu te... entendo... — gaguejei, nervosa. — Entendo.
— Entende? — Perguntou com uma expressão divertida. — Você também
ignorou seus sentimentos por mais de dois mil anos?
— Ah, bem. Não — pigarreei. — Não exatamente. Não foi por tanto
tempo. Mas agora tenho que voltar a ignorar...
Será que ele recuaria se eu o beijasse? Eu não gostava de me atirar em
cima de ninguém, mas desde que colocara os olhos em Mikhail, me vi
fazendo várias coisas que não costumava fazer em minha antiga vida.
Para minha sorte, não foi preciso digerir muito a ideia. O próprio Mestre
tomou a iniciativa e enfiou a mão por baixo da minha camisa. Lembrei que
minha calça estava tão apertada na cintura que algumas dobrinhas da barriga
pulavam para fora, mas ele não pareceu se importar.
Misha alisou a pele ao redor do meu umbigo, sem desfazer nosso contato
visual.
— Talvez você devesse ignorar mesmo. É o que uma pessoa em sã
consciência faria... — disse ele, com a mão parada.
— E se eu não quiser ignorar?
O silêncio caiu entre nós enquanto consumíamos um ao outro com os
olhos. Minha nossa senhora protetora das mutantes apaixonadas por
vampiros! Algo me dizia que ia rolar sexo.
Fechei os olhos, torcendo para que nenhum mitológico invadisse a
Fortaleza naquele momento. Mikhail se ajoelhou sobre mim e apoiou as mãos
ao meu redor. Meus lábios ansiavam por sua boca tanto quanto eu e se
entreabriram para receber o beijo quando o Mestre se inclinou na minha
direção.
Nos unimos num beijo intenso e eu gemi de satisfação quando a língua
dele me invadiu. Esperei tanto por aquele contato novamente que quase
chorei de emoção. Eu ainda me sentia um pouco fraca por causa da doação
para Klaus, mas não me importei com nada mais.
Passei minhas mãos pelos braços fortes, apertando os músculos perfeitos e
deslizando meus dedos até seus ombros. Estava prestes a pedir para que
Misha arrancasse logo a minha roupa, quando ele levantou a cabeça e rosnou
com os olhos cravados na porta do quarto.
— O que foi? — Perguntei, ofegante.
— Fique aqui. — Ele se levantou bruscamente e saiu batendo a porta com
força.
Fala sério! Era só o que me faltava! Meu azar era mesmo de um nível
astronômico. Bufei, contrariada e me sentei na cama.
Quem podia ser tão incompetente e inconveniente para nos atrapalhar
justo num momento tão esperado por mim? Eu não sabia quem era, nem do
que se tratava. Só tinha a certeza de que não estava acontecendo nenhum
ataque à Fortaleza, pois Mikhail não me deixaria sozinha sem me amarrar aos
pés da cama para que eu não me jogasse no meio da batalha.
Enquanto esperava o retorno dele, tive a melhor ideia de todas. Faria uma
surpresinha e pouparia o trabalho para quando tivéssemos que recomeçar os
amassos. Ajoelhei na cama e desabotoeiminha calça, puxando o jeans
apertado pelas pernas e jogando no chão. Também tirei a blusa e fiquei
apenas de calcinha e sutiã à espera de Misha.
Quando finalmente a porta se abriu, apertei meus braços contra meus seios
para deixá-los mais estufados e sensuais.
— Veja com seus próprios olhos — disse ele, antes que eu pudesse
entender.
E então Mikhail entrou no quarto. ENikolai entrou em seguida.
Minha nossa senhora que sacaneia as mulheres necessitadas! Tenha dó!
Gritei e cruzei os braços para esconder meu sutiã, o que não adiantou
muito já que eu estava de calcinha. Quando os dois cravaram os olhos em
mim, Misha rosnou e empurrou Nikolai para fora do quarto com uma força
que eu desconhecia. Ouvi uma risada alta do lado de fora, provavelmente do
outro Mestre.
— Então, era por isso que você estava com essa cara azeda? — Ouvi a voz
de Nikolai. — Porque interrompi seu coito?
— Aguarde por outra oportunidade para ver as malditas mechas. —
Mikhail rosnou. — Dê o fora, Niko!
— Sim, sim... — o outro respondeu, com uma animação exagerada. — O
que importa é que, com ou sem mechas, Aleksandra parece muito bem
disposta e saudável.
Se eu não estivesse apenas de lingerie, teria saído do quarto para enforcar
Nikolai com minhas próprias mãos. Humilhada, me levantei para catar minha
roupa no chão e tentar vesti-la antes que Mikhail voltasse.
Estava com uma perna dentro da calça quando ele abriu a porta e a fechou,
me olhando muito sério. Fez meus pelos se arrepiarem.
— Não posso deixá-la sozinha nem por um minuto! — O vampiro
vociferou. — O que você estava pensando?
Revirei os olhos, mantendo a cabeça baixa para que ele não pudesse ver.
Sabia que só o irritaria ainda mais.
— Eu pensei que a gente ia... hum... se divertir um pouco... — murmurei,
sem conseguir encará-lo. A vergonha fazia meu rosto queimar. — Você me
beijou.
Consegui enfiar as duas pernas na calça e comecei a dar pulinhos para que
ela subisse e se moldasse ao meu corpo. Aquilo, talvez, fosse mais
humilhante do que ser flagrada por Nikolai.
Virei de costas para pegar minha blusa jogada aos pés da cama e, quando
ergui o corpo, Mikhail caminhava na minha direção. Ele se despiu do manto e
começou a desabotoar a camisa.
— Tire a calça — ordenou.
— O quê?
— Agora — mandou, novamente, ao ficar seminu.
Aquilo estava mesmo acontecendo? Fiquei tão atônita que ao recuar um
passo acabei tropeçando no meu tênis. O Mestre me alcançou quando
terminava de tirar o cinto. Eu salivei, com meu coração acelerado — do jeito
bom, não do jeito bizarro.
— Nós vamos brincar? — Perguntei, fazendo cara de safada.
— Eu não brinco.
Quem seria eu para retrucar. Temia que qualquer coisa que eu dissesse
pudesse estragar o momento. Pensando nisso, achei que deveria logo me
adiantar e evitar que ele tivesse chance de mudar de ideia.
Tirei a calça jeans o mais rápido que consegui e pulei no colo dele. O
Mestre passou um braço pela minha cintura e eu o envolvi com as pernas,
usando minha precária força humana para apertá-lo.
Senti as mãos pesadas em meus cabelos e ele inclinou minha cabeça de
lado, me consumindo com um beijo urgente. Com a mão livre, abriu meu
sutiã e me livrou da peça.
— Por favor, sem incorporar o homem das cavernas — pedi, temendo que
ele quisesse voar até o teto novamente.
Misha andou comigo pelo quarto, beijando meu pescoço e me
presenteando com calafrios. Sentia outras coisas também, como, por
exemplo, a constatação do seu grau de excitação.
Para meu alívio, ele me levou em direção à cama, mas ao invés de me
colocar delicadamente sobre o colchão, meu corpo quicousobre o lençol.
Assim que vi o Mestre se livrar da calça e da cueca, parado diante de mim,
me senti muito perto do paraíso. Ele subiu na cama com toda sua
exuberância, afundando o colchão nos lugares onde apoiava as mãos e os
joelhos. Devagar, foi abrindo minhas pernas e se colocando entre elas.
Misha se concentrou em beijar meus seios e eu estava tão hipnotizadacom
a cena que, quando ele me penetrou, cravei minhas unhas em seus braços.
Ofeguei com a sensação de invasão ao mesmo tempo que encarava,
boquiaberta, o sangue escorrer pelas feridas feitas por minhas unhas. Nem
Mikhail parecia acreditar que eu tinha conseguido ferí-lo, mas, em todo caso,
continuou o que estava fazendo.
— Vai usar a agressão? — Ele estreitou os olhos em ameaça, mas pelo seu
tom de voz eu sabia que estava se divertindo. — Gostaria de ver do que é
capaz.
Naquele momento, com as coisas que o corpo dele me fazia sentir, eu não
era capaz de absolutamente nada além de controlar meus gemidos. Fechei os
olhos quando nossos corpos se uniram por completo. Precisei enroscar
minhas pernas em volta do quadril dele para encontrar um ponto de apoio,
pois me sentia tonta de prazer.
Mikhail puxou um dos travesseiros e ergueu meu corpo, colocando-o sob
meu quadril. Quando voltou a me invadir, se aprofundou mais, como se ainda
houvesse algum limite a ser alcançado. Eu estremeci dos pés à cabeça e
agarrei seus cabelos quando ele encaixou o rosto na curva do meu pescoço.
— Sasha... — sussurrou, arranhando minha orelha com os dentes.
Com os movimentos bruscos do Mestre, nossos corpos já tinham deslizado
para cima no colchão e minha cabeça batia na cabeceira insistentemente. Não
estava me machucando, mas era muito desconfortável. Portanto, resolvi
mudar a posição e empurrei Mikhail para montá-lo.
Nós dois nos surpreendemos com a força empregada por mim, mas ele
decidiu aproveitar o momento e segurouforte em minha cintura.
— Concentre-se e use sua supervelocidade — sorriu. — Você não vai se
arrepender.
Apesar de me sentir insegura naquela posição, com ele me observando e
avaliando meu desempenho, eu fiz o que pediu. Fechei os olhos e busquei
pelo gatilho, do jeito que Klaus havia me ensinado. Apoiei minhas mãos no
peito de Misha e comecei a subir e descer, esperando que desse certo.
Comecei devagar, completamente consciente do Mestre que apertava
meus seios e me olhava com luxúria. Aos poucos, fui notando que o rosto
dele começava a ficar borrado, até que eu não consegui mais identificar suas
feições. Minha nossa senhora do sexo selvagem! Eu estava em alta
velocidade e Mikhail proferia palavrões em alguma língua muito antiga,
enquanto se juntava a mim nos movimentos, segurando minhas coxas.
Eu não queria fazer barulho, mas aproveitei que ele estava gemendo
enlouquecidamente e me juntei a ele, num tom um pouco mais baixo. Quando
os espasmos chegaram, Mikhail me envolveu nos braços e me puxou,
grudando-me mais ao corpo dele. Meus movimentos ficaram limitados, mas
ele tomou o controle em estocadas longas e profundas. Perdi as forças
enquanto Misha terminava de se satisfazer e notei que estava mais suada do
que nunca.
— Puta merda! — Ele praguejou, alisando minhas costas. Eu nunca o vi
falar de uma forma tão humana e senti vontade de rir.
Como tudo que é bom dura pouco, me sentei na cama, na ânsia por
conseguir respirar melhor. Meu coração queria sair pela boca e meus pulmões
não conseguiam se expandir com facilidade.
O Mestre passou os braços em volta da minha cintura e me recostei ao
corpo dele, que beijou meu ombro, tomando o cuidado de não me apertar
muito. Imaginei que estivesse ouvindo meus batimentos cardíacos, pois
deslizou a mão até a altura do meu coração e massageou delicadamente a
região.
— Seus batimentos estão muito irregulares. Até sabermos mais, não quero
que faça uso de poder algum. Não temos mais um hospital para que você
possa fazer um exame de imagem.
— Vou... — falei, respirando fundo — ficar bem...
— É claro que vai — respondeu ele, beijando meu rosto.
Não sei por quanto tempo permanecemos na mesma posição, mas Mikhail
esperou até que eu me sentisse melhor para me deitar novamente na cama.
Demos início a mais uma sessão de sexo gostoso, mas sem lançar mão de
nenhum poder, nem mesmo os dele. Éramos apenas dois amantes
aproveitando o corpo um do outro, sem nenhuma pressa.
Não senti a hora passar. Minha cabeça estava apoiada no braço de Misha
quando o material escuro que selava as janelas recuou para cima e um céu
estrelado apareceu para nós. Eu me aconcheguei nos braços dele, ciente de
que era a primeira vez que passávamos tanto tempo juntos numa cama, sem
nenhuma interrupção. Quando percebi que ele começava a se mover para
levantar, joguei uma perna por cima dos seus quadris para tentar chantageá-
lo.
— Sabe, eu acho que aguentaria mais alguns orgasmos pelo resto da noite.
— Bati meus cílios, tentando seduzir o vampiro de dois mil anos. — Caso
você esteja interessado...
O vampirão abriu um sorriso largo, lindo, que aqueceu meu coração. Vê-lo
sorrir era um feito tão raro que, quando acontecia, eu me derretia como
manteiga.
— Terei isso em mente quando Zênite morrer — respondeu, brincando
com meus dedos apoiados em seu peito. — Pode ficar aqui, se quiser. Vou
gostar de voltar e encontrá-la nua na minha cama.
Revirei meus olhos e estalei a língua.
— Vamos ser sinceros? Você sabe que não vou ficar muito tempo parada
num único lugar. — Ele estreitou os olhos e eu sorri. — Além disso, meu pai
viraria a Morada de cabeça para baixo se eu não aparecesse para dormir.
Ele me olhou com cara de quem não tinha gostado da informação e
levantou da cama. Enquanto se vestia, eu o observava e me deleitava com a
imagem diante de mim. Era um belíssimo exemplar do sexo masculino. Os
ombros largos, as costas musculosas, o abdômen trincado, as pernas longas e
saradas.
Eu me sentei na cama e passei as mãos pelos cabelos, tentando deixá-los
um pouco mais apresentáveis. Por mais que Mikhailtivesse interesse em mim,
não me sentia tão confiante para permanecer ao lado dele com um aspecto de
zumbi de filme de quinta categoria.
— Quer resolver o problema com seus pais de uma vez por todas? — ele
perguntou, vestindo um manto limpo. — Eu vou até lá com você e esclareço
a situação.
— Ficou louco? — Arregalei os olhos, chocada. Eu sabia que quando
Misha perdesse a paciência, não pensaria duas vezes antes de esclarecer tudo.
Parado ao lado da cama, ele se inclinou para beijar minha boca, segurando
meu rosto entre as mãos.
— Sasha, não tenho tempo para dramas familiares. Não pretendo mais
fingir que nada está acontecendo só porque você tem medo dos seus pais.
— Não é medo — respondi e levei as mãos ao rosto, me sentindo indecisa
demais. — Eu só não quero ficar brigando com eles num momento tão
sensível. Com tudo de horrível que vem acontecendo, acho que o assunto
“estou dormindo com um Mestre” não vai soar muito bem aos ouvidos deles.
Mikhail me soltou e ajeitou o manto. Antes de passar pela porta do quarto,
ele gesticulou para o ambiente ao nosso redor.
— Fique à vontade o tempo que quiser ou vá embora. A escolha é sua.
Eu me enrolei no lençol macio e levantei da cama. Dei uma corridinha
para beijá-lo antes que saísse e fiquei na ponta dos pés quando ele passou um
braço por minhas costas. Fechei os olhos, inspirando fundo para gravar o
cheiro dele na memória.
“Como eu queria amarrá-lo no pé dessa cama...” pensei, um pouco triste
por ter que ficar sem Mikhail por algumas horas.
O Mestre me soltou de forma brusca, como se tivesse levado um choque.
Eu cambaleei e ele recuou um passo com as sobrancelhas arqueadas, me
encarando como se chifres tivessem surgido em minha testa.
— O que foi isso? — Perguntou.
— Isso o quê?
— Sasha! Você falou dentro da minha mente! — Ele baixou a cabeça,
pensativo. — Algo sobre me amarrar na cama.
Tapei minha boca, mesmo sabendo que eu não a usara para proferir
aquelas palavras. Eu apenas pensei nelas. Certo? Que absurdo era aquele?
Não tive tempo de pensar numa teoria, pois o instinto territorialista de
Mikhail aflorou, enquanto ele rosnava na direção da porta. Num piscar de
olhos, um Klaus muito aflito passou por ela ao escancará-la. Meu Mestre
começou a se mover na direção do irmão, provavelmente para evitar que ele
chegasse perto de mim. O primogênito esticou o braço na direção de Misha e
o arremessou contra a parede mais distante da cama.
Segurei com força o lençol que me cobria e recuei. Temia que Klaus me
arrastasse pelos cabelos e me deixasse pelada bem no meio do saguão da
Morada.
— Ela não falou apenas na sua mente, Mikhail. — Klaus me fuzilou com
olhos assassinos. — Ela falou para todos nós.
— O quê? — Perguntei, atônita. — Eu não fiz nada disso.
Pela forma como Mikhail girou a cabeça na direção da porta, eu imaginei
que mais Mestres estivessem chegando para se juntar ao circo. Tudo por
causa de uma droga de conversinha mental que eu nem sequer fiz de
próposito.
— Não quero mais ninguém nesse quarto, Klaus! — Meu Mestre rosnou.
— Impeça-os ou me solte!
Eu não havia percebido que Klaus ainda mantinha Mikhail preso no
mesmo lugar. Com um gesto de cabeça, ele fez a porta do quarto se fechar
com força e agradeci em silêncio por não deixar que mais gente me visse
enrolada no lençol de Mikhail. A situação já tinha saído do controle, mas não
precisava piorar.
— Afastem-se! — Klaus ordenou para ninguém em especial. — Sua
opinião não me interessa, Nadia. Eu cuido disso.
“Ele vai cuidar do quê? Que droga isso signif...” — Pensei e me
arrependi na mesma hora, quando Mikhail estalou a língua e Klaus encostou
a ponta do nariz no meu de um jeito muito ameaçador.
— Desculpa! Desculpa! — Pedi, querendo chorar de frustração. — Não
sei o que fazer...
Então, o vampiro poderoso notou a nova mecha em meus cabelos e
encarou Mikhail.
— Ela bebeu seu sangue de novo? — Vociferou com um semblante muito
fechado.
— Não seja idiota! — Meu Mestre respondeu, enraivecido pelo bloqueio
do irmão. — Estou ciente dos efeitos que uma nova ingestão de sangue pode
causar. Isso, meu querido irmão, é resultado da sua brincadeirinha com ela.
—Tente falar comigo, Aleksandra. — Ele ignorou Mikhail. — Do mesmo
jeito que você fez agora pouco.
Franzi meus lábios, sentindo a irritação se instalar em meu corpo.
— Por mais que eu aprecie a sua companhia, se você não se importar, eu
gostaria de me vestir.
Klaus estava tão vidrado que, só quando terminei de falar, ele realmente
olhou para mim. Ao compreender que eu estava nua debaixo daquele lençol
fino, o Mestre olhou na direção da cama. A bagunça de lençóis e travesseiros
não deixava dúvidas no ar.
“Os pombinhos, finalmente, fizeram as pazes, não é? Que dia glorioso!”
Misha estava cada vez mais inflamado de raiva e já rosnava, exibindo os
caninos para o irmão. Eu esperava que ele não fosse idiota a ponto de se
engalfinhar com Klaus na minha frente.
— Você ultrapassou muitos limites, Klaus — ele rosnou. — Saia do meu
quarto.
O Mestre mais velho não parecia nem um pouco preocupado com as
ameaças do irmão. Ele manteve seus olhos frios em mim e eu não recuei ou
desviei o olhar. Klaus me analisava de uma forma que eu não conseguia
explicar em palavras, mas lá no fundo, eu entendi sua apreensão. Algo mais
estalou dentro de mim, porém, não soube identificar o que era.
— Você irá me procurar mais tarde para discutirmos sua situação — não
foi um pedido. Ele estreitou os olhos e suas palavras saíram transbordando
ameaça. — Se você não aparecer, eu virei buscá-la nem que seja dentro do
banheiro.
Não ousei discordar. Não tinha intenção de ser surpreendida por um Klaus
mais irritado que nunca.
Esperei ele sair do quarto para me sentar na cama e respirar com alívio.
Apoiei minhas mãos no colo e tentei compreender como eu tinha acionado o
estranho poder de falar dentro da mente dos Mestres.
Ao se ver livre do bloqueio de Klaus, Mikhail se aproximou e agachou-se
na minha frente, tocando em meus joelhos.
— Isso é muito sério. Acho que não preciso explicar que apenas nós,
Mestres, conseguimos fazer o que fez.
— Não tenho culpa do que aconteceu, Misha. Eu não... — inspirei, de
olhos fechados. — Não fiz de propósito. Nem sabia que conseguia fazer uma
coisa tão poderosa.
Ele segurou minha mão e a beijou.
— Sabemos que não é proposital, mas se eu posso dar um conselho, tente
ao máximo não deixar que seus sentimentos interfiram em suas ações. Pelo
pouco que eu percebi, seus poderes estão sendo ativados em situações
extremas.
Balancei a cabeça, chateada demais para conversar. Ele se despediu e
disse para que eu ficasse com a porta trancada enquanto permanecesse no
quarto. E foi o que eu fiz assim que Mikhail saiu.
CAPÍTULO 15

KURT
Uma das coisas da qual eu mais sentia falta na nova vida de vampiro-
Guardião-poderoso era não ter vontade de dormir. Eu até podia fazer isso; se
deitasse na cama e fechasse os olhos, podia pegar no sono se quisesse. Mas
esta não era a questão. O verdadeiro problema era a incapacidade de sentir
sono, ou a satisfação em dormir. Se eu ficasse sentado ou deitado de olhos
fechados, a sensação seria a mesma. Talvez, com o passar dos anos, eu me
acostumasse com isso. Mas, por enquanto, era um saco.
Estava no quarto que eu compartilhava com outros três Guardiões. Não era
nada luxuoso nem muito confortável, mas tinha espaço. Como todos
estávamos abrigados na Morada e precisávamos dividir espaço com os
humanos, aquela acomodação era o melhor que poderíamos receber.
Obviamente, não se comparava com o conforto do quarto de Klaus.
Suspirei, enquanto encarava minhas unhas. Sempre fui muito cuidadoso
com elas, mas depois que fui transformado elas tinham crescido um pouco e
me deixavam nervoso. Era estranho pensar que estavam tão afiadas que eu
conseguiria cortar um bife com elas.
Nós, Guardiões, tínhamos sido divididos em grupos e, cada grupo ganhara
um capitão ao qual responder. Quando não houvesse nenhum Mestre
presente, sempre responderíamos ao nosso respectivo capitão. O homem
parou, olhando com atenção para cada um de nós, antes de falar.
— Nossa unidade será enviada para o campo. Arrumem-se e estejam lá
fora em dez minutos.
Uma missão. Fiquei tenso, sabendo que, se ainda fosse humano, meu
coração estaria martelando dentro do peito. Klaus não mentira quando
prometeu que me enviaria numa próxima oportunidade. Eu não sabia se devia
ficar feliz por ele acreditar em meu potencial ou se chorava de pavor. Nossa
senhora protetora dos Guardiões medrosos, me proteja!
Não havia muito o que fazer em questão de arrumação. Pelo menos, não
da minha parte, pois eu já nasci arrumado e pronto para a vida. Ou, no caso,
agora seria para a morte? Pensei enquanto descia as escadas que pareciam
infinitas. Tudo bem que, com meu novo corpo sobrenatural, eu não me
cansava. Podia subir e descer aquela desgraça o dia inteiro. Mas desgastava
as solas dos sapatos. E eu usava sapatos caros demais! Os Mestres deviam
pensar em colocar mais elevadores naquele prédio.
— Primeira vez que vamos enfrentar mitológicos — falei para o Guardião
que marchava ao meu lado. — Dá um frio na barriga, não é?
Ele me olhou de soslaio e voltou a encarar o caminho à nossa frente. Que
sorte eu dei, ficar ao lado de uma pessoa pouco comunicativa. Tanta sorte,
que eu nem havia recebido uma Exterminator. Ainda não tínhamos muitas
unidades disponíveis e as que existiam foram distribuídas entre os Guardiões
que treinaram com elas.
Os imensos portões, que tinham sido colocados no lugar devido a um
trabalho intenso, foram abertos para nos dar passagem. Tive acesso ao visual
do lado de fora da Fortaleza e como eu estava numa das fileiras da frente,
pude notar o brilho dos cabelos que eu tanto amava. Klaus estava lá. Klaus!
Ah, meu Klaus!
Olhei para os lados e vi que muitos Guardiões nos separavam. Sem me
importar, apressei meus passos e saí de formação para me aproximar dele.
Parei quando consegui me manter a menos de cinco metros dele. Klaus
andava ao lado de Vladimir, que se separou do irmão e tomou um rumo
diferente na direção leste.
— As cinco últimas fileiras deverão seguir com Vladimir — anunciou
meu lindo ao se virar para trás. — O restante, permanecerá comigo.
Sorri por ter dado a sorte de não pegar as últimas fileiras. Finalmente, algo
positivo estava acontecendo comigo! O Mestre, no entanto, lançou um olhar
gélido na minha direção e virou-se novamente para a frente.
“Pelo visto, esta é a sua unidade.” — disse ele, em minha mente.
Já que ele estava falando comigo, eu precisaria responder. E como não
tinha poderes mágicos para falar dentro daquela cabeça brilhante, tive que me
aproximar um pouco mais. O céu ainda não estava tão escuro e o brilho da
noite não era nada comparado à beleza estonteante daquele homem, que virou
o rosto para me olhar.
— Volte para a formação — ordenou.
— Sim, Mestre, eu voltarei. — Fiz uma reverência. — Mas só queria dizer
que é uma honra tê-lo junto de nós. Falo em nome de todos.
Eu tinha certeza que era uma honra para todos os Guardiões, mas Klaus
não estava feliz. Mantive meu olhar focado à frente, observando os picos das
montanhas que pareciam tão distantes. Então, num piscar de olhos, Klaus
sumiu. Num segundo ele estava ao meu lado, no outro já estava muito além.
Olhei para trás e vi que todos os Guardiões tinham se surpreendido. Nosso
capitão mandou que avançássemos também. Quando usei minha
supervelocidade, pela primeira vez num espaço como aquele, me senti livre
como nunca antes.
Em meia hora, adentramos a vasta cadeia montanhosa que se espalhava até
perder de vista. Não imaginei que um dia pisaria num lugar como aquele, que
eu só via em filmes. Os cumes, que para um humano pareceriam tão
inacessíveis, para mim seriam fáceis de alcançar. E, ao olhar para o alto de
uma das montanhas, vi que Klaus a escalava.
Grande parte do contigente estava ocupado explorando o local e imaginei
que ninguém notaria minha ausência. Portanto, caminhei discretamente até o
início de uma passagem que fazia o papel de estrada na montanha. Com a
neve cobrindo cada centímetro do pico à base, a travessia se tornou um pouco
escorregadia. Torci para não cair daquele penhasco. Não morreria, mas
passaria uma vergonha que duraria toda a eternidade.
Ao visualizar as costas de Klaus, parado muito na beira e olhando o
horizonte, eu soube que qualquer vergonha valeria à pena.
— Minha nossa senhora! — Levei a mão ao peito. Se eu ainda fosse
humano, teria ficado totalmente sem ar diante daquela paisagem assombrosa.
— É lindo demais aqui em cima!
Dei alguns passos à frente e me posicionei bem na ponta do penhasco, ao
lado de Klaus. Ele levou os dedos até a testa enquanto olhava para baixo.
Parecia procurar alguma coisa.
— O que faz aqui, Holtz?
— Quis ver como era o mundo olhando tão do alto — respondi, mesmo
não sendo totalmente verdade. — E pedir perdão por ter agido de forma tão
impulsiva no outro dia.
Fiz uma reverência para mostrar o quanto o respeitava. No entanto, eu não
me sentia nem um pouco arrependido por ter beijado o Mestre. Ele mereceu
totalmente por ser tão desejável e sensual. Quem poderia resistir àqueles
olhos, boca, nariz, maxilar, mãos, peito e tudo mais?
— Deixe de ser ridículo e pare de se dobrar tanto! — Vociferou. —
Guardiões não reverenciam.
— Sério? Não me explicaram esse detalhe.
Klaus, todo poderoso e suculento, me encarava e eu sentia calafrios. Ele
parecia um Deus do Olimpo — se é que um dia eles tenham existido.
Emoldurado pelo brilho da lua e das estrelas, a visão me tirava o fôlego.
Borboletas dançaram balé nas minhas entranhas, enquanto eu sustentava o
olhar daquele homem grosso, arrogante, orgulhoso e ingrato.
Minha nossa, como ele era perfeito!
— Está perdendo seu tempo, Holtz. Não tenho nada a oferecer.
Oh meu Klaus! Como ele era inocente! Nada a oferecer?
Meus olhos, sem que eu conseguisse impedí-los, desceram até a cintura do
homem e continuaram o caminho para baixo. Eu tinha certeza que havia
muita, muita coisa ali, escondida sob as roupas. Controlei o sorriso que queria
surgir em meu rosto e desviei o olhar.
O vampirão diminuiu o espaço entre nossos corpos e me encarou como se
aquele fosse meu último suspiro. Fiquei de costas para o penhasco e temi que
Klaus me empurrasse dali de cima.
Tirei o sorriso do rosto quando ele ficou muito sério e concentrado. O
Mestre abriu a boca e esperei por algum sermão, mas algo chamou a atenção
dele e o fez virar a cabeça para o outro lado. Vi um sorriso brotar em seu
rosto, enquanto ele olhava na direção oeste daquela cadeia montanhosa.
Muito ao longe, onde havia algo que parecia uma concentração de pinheiros e
cedros, era o ponto que Klaus encarava.
— Mitológicos acampando a alguns quilômetros a oeste — disse, num
tom de voz que era perfeitamente capaz de ser ouvido por todos os Guardiões
lá embaixo. — Marchem!
Meus olhos quase pularam para fora das órbitas, mas me controlei para
não passar uma impressão errada ao Mestre. Ele se posicionou atrás de mim,
bem próximo ao meu corpo, e apoiou as mãos em meus ombros. Aquilo
estava mesmo acontecendo? Engoli em seco. Era muita coisa para assimilar.
— Consegue sentir? — Perguntou.
Klaus precisaria ser um pouquinho mais específico. Eu sentia várias coisas
com ele tocando em mim. Mas, não parecia ser aquele o assunto em questão.
Então, me concentrei. O que eu deveria sentir, afinal?
— Hum... — tentei ganhar tempo. — Sim. Claro que sim.
Ele girou meu corpo e me encarou. Soube que minha resposta não o
convencera. Eu me senti tenso dos pés à cabeça porque, sinceramente, aquele
jogo estava se tornando muito perigoso. Ele devia me jogar logo dentro de
alguma daquelas cavernas e me chamar de floco de neve.
— O que está sentindo, Guardião? — Meu desejo não foi atendido e Klaus
me lançou um olhar desafiador.
— Apenas um cheiro ruim — admiti, envergonhado. — Nada muito
promissor. Sinto muito, Mestre.
Ele ergueu uma sobrancelha de forma linda e dramática.
— Fedor de mitológicos, Holtz. — Klaus estalou a língua.
Pressionei meus lábios, surpreso. Sério que aquele cheiro terrível vinha
dos mitológicos? Nunca tinha sentido nada parecido, mas só estive na
presença dessas pragas quando ainda era humano. Agora, eu conseguia notar
perfeitamente o odor pútrido que era trazido pelo vento. Falta de banho ou
maldição mesmo?
— Vamos! — Klaus me chamou e começou a descida da montanha.
Eu o segui, de repente, sentindo a adrenalina crescer dentro de mim.
Agora que partia ao encontro daquelas bestas, a vontade de acabar com todos
eles era maior do que qualquer outra coisa. E eu finalmente teria
oportunidade de vingar a morte dos meus pais.

Guardiões não conseguiam levitar como os Mestres faziam. Mas, ao


contrário dos vampiros civis e dos soldados, nós tínhamos uma incrível
facilidade em correr com a leveza de uma pluma. Isso era um poder muito,
muito legal. Sendo assim, nossa unidade conseguiu se aproximar o bastante
sem que os inimigos suspeitassem de nada.
Com a noite que recém caíra e a forte nevasca, só o que podíamos ver de
Klaus correndo muito à frente era o esvoaçar do manto negro contra a
planície branca. A neve, que era espalhada pelos nossos movimentos, irritava
um pouco, mas seu frescor nos deixava mais alertas e enérgicos.
Eu não consegui alcançar o Todo Poderoso durante a corrida, mas estive o
tempo todo duas fileiras atrás dele. O cheiro se tornou insuportável quando
entramos na floresta onde o acampamento estava montado. Antes mesmo que
eu chegasse lá, ouvi os sons de batalha. Temi sentir medo no instante em que
partisse para o ataque, mas quando alcancei a clareira, meu instinto falou
mais alto e deixei qualquer receio de lado.
O que eu compreendi assim que olhei em volta foi que filmes de guerra
não servem para nada. Não tem como entender uma batalha sem nunca ter
pisado em uma. É louco, sangrento, assustador. Num piscar de olhos tudo
pode acontecer e se você não estiver realmente atento, pode acabar matando
alguém do seu próprio exército.
Muitas coisas aconteciam ao mesmo tempo. O primeiro mitológico que
matei veio correndo para tentar me derrubar pelo lado. Eu o vi pelo canto do
olho e me virei de frente para esperar o ataque. Naquele mesmo instante, um
Guardião corria na minha direção e só tive tempo de curvar meu corpo ao
máximo para que nós dois não nos chocássemos. Ele pulou, raspando os pés
em minhas costas, e continuou a trajetória. Eu me ergui novamente e dei
impulso com os pés, saltando para frente e me chocando contra o minotauro.
Caí com o impacto e o maldito, apesar de ter cambaleado um pouco,
conseguiu se manter de pé como se nada tivesse acontecido. Rapidamente,
me levantei antes que ele me tocasse e desembainhei a adaga que trazia nas
costas. Não havia treinado muito com ela, mas teria que servir.
Nós dois nos rodeamos, um esperando que o outro atacasse primeiro, até
que o minotauro se lançou sobre mim. Eu girei meu corpo e saí do caminho
dele, atingindo-o de lado. Cravei a lâmina da adaga na altura das costelas e o
rasguei até as ancas. Era um bom ataque, mas eu sabia que precisava atingir o
coração do bicho.
O mitológico virou o rosto e urrou na minha cara, com tanta força que, se
meus cabelos fossem longos, teriam balançado com o ar que saiu dos seus
pulmões. Então, ele enfiou a mão cheia de garras em meu estômago.
Baixei os olhos, chocado com o que via. Saber que dentro de mim se
mexia a mão de um mitológico e, pior, eu não sentia dor alguma, era demais
para minha cabeça. Não tinha me preparado para algo assim. Quando voltei a
encarar o minotauro, ele urrou mais uma vez e puxou a mão de volta sem
fazer a mínima questão de ser cuidadoso. Ok, não era doloroso, mas
incomodava como o inferno!
Eu me curvei por reflexo, com medo que minhas tripas caíssem pelo
buraco, mas nem tive tempo de pensar muito. A besta já estava levantando
novamente o braço, decidida a me matar. Passei a adaga de uma das mãos
para a outra e ergui meu corpo.
Coloquei toda minha força em minhas pernas e pulei alto, cravando a
ponta da adaga no coração do infeliz. Para me certificar de que ele não
continuaria vivo, mexi a adaga lá dentro e empurrei mais, até sobrar apenas
uns cinco centímetros do cabo. Ele tentou puxá-la de volta, mas desabou aos
meus pés antes disso.
— Isso é pelos meus pais — disse, cutucando o corpo no chão com a
ponta do pé.
Olhei em volta e vi que não tinha sobrado nenhum mitológico para que eu
treinasse mais um pouco. Na verdade, o grupo que acampava era pequeno
demais para a quantidade de Guardiões que atacaram.
Sabendo que tudo estava sob controle, decidi me afastar um pouco e sair
da clareira. Num declive onde a floresta era mais densa, escolhi uma árvore e
me encostei nela, tirando a camisa. A curiosidade era grande demais e eu
precisava saber qual era o tamanho do buraco. Era horroroso! Caberia um
punho fechado dentro da lesão, de onde escorria sangue
— Você vai sobreviver. — Klaus falou perto de mim.
Dei um pulo, surpreso por ter sido seguido. Não queria que o Mestre me
achasse mais fraco e frágil do que já achava, então, não gostei da invasão de
privacidade. Vesti novamente a camisa e me apressei em sair daquele lugar,
antes que ele dissesse alguma coisa.
Quando ia passar por Klaus, ele espalmou a mão no meu peito, me
fazendo parar.
O Mestre olhou em volta e depois levou o pulso até a própria boca. Ele
cortou a pele com os caninos e me ofereceu.
— Um gole — disse, me olhando nos olhos. — Não abuse.
Eu salivei, ao mesmo tempo em que me senti completamente excitado
com sua oferta. Sabia que ninguém, absolutamente ninguém, bebia o sangue
de Klaus direto da fonte.
CAPÍTULO 16

KLAUS
Amaldiçoei aqueles que me amaldiçoaram antes mesmo do meu
nascimento. Fizeram tantas previsões, colocaram tantas impossibilidades na
minha vida, mas foram inúteis em algo muito importante.
Devíamos ter sido proibidos de nos preocuparmos com qualquer outra
pessoa.
Kurt Holtz segurou meu braço com as duas mãos e grudou a boca em meu
pulso, sugando meu sangue. Contei até dez e recuei, puxando o braço e o
afastando de mim. Só permiti que bebesse o suficiente para fechar a ferida
antes de partirmos. Por algum motivo descabido, não achei certo que ele
andasse daquele jeito até a Fortaleza.
— Obrigado, Mestre! — Ele disse e quando ia reverenciar, pareceu se
lembrar do meu sermão e desistiu.
Suspirei, sabendo que estava me enganando. O infeliz me salvara e agora
eu estava sempre preocupado com seu bem-estar.
Antes tivesse me deixado queimar até a morte!
— Retorne à formação. Já estamos de partida.
Ele meneou a cabeça, concordando e antes de se retirar, rosnou e se
colocou em posição de ataque. O jovem Guardião, provavelmente, estava
reagindo daquele jeito devido ao centauro que se aproximava silenciosamente
por trás de mim.
— Afaste-se, Klaus! — Ele continuou rosnando.
— Eu lhe dei uma ordem, Holtz — avisei. — Por que ainda está aqui?
Sem me dar ao trabalho de olhar o infeliz, lancei meu braço para trás no
instante em que soube que o mitológico estava no ponto ideal. Minhas unhas
dilaceraram seu peito quando minha mão o rasgou. Então, quebrei suas
costelas e puxei seu coração para fora.
Quando ouvi o baque do corpo caindo de encontro ao chão, saí do lugar e
joguei o coração do animal na direção do Guardião. Kurt o segurou de forma
desajeitada, devia ser a primeira vez que via um coração. Ainda estava quente
e pegajoso e ele quase o derrubou.
— Da próxima vez que eu mandá-lo sair, obedeça. — Dei dois tapinhas no
rosto dele. — E não atrapalhe meus planos.
Olhei para o chão e decidi levitar até a Fortaleza. Não queria molhar ainda
mais os meus sapatos.
CAPÍTULO 17

Eram quase duas horas da manhã quando decidi voltar para meu quarto e
enfrentar meus pais. Sabia que uma hora teria que acontecer. Ajeitei meus
cabelos da melhor forma que pude, escondendo, pelo menos, a mecha que
saía da nuca. Com a outra não havia muito o que ser feito.
Achei que estivessem todos dormindo, mas quando sentei na minha cama
para descalçar o tênis, Victor assobiou baixinho.
— Caramba, hein! Achei que não fosse mais voltar para o mundo dos
mortais.
A cama dele ficava do lado da minha e só alguns centímetros nos
separavam. Sendo assim, eu me estiquei e dei um tapa no pé dele.
— Cala a boca! — Sussurrei, num tom ameaçador. — Ou te entrego numa
bandeja para Nadia.
O quarto estava escuro, mas consegui notar o contorno do sorriso enorme
no rosto do meu irmão. Eu devia ter ameaçado entregá-lo para Klaus, não
para a vampira estonteante.
Estiquei meu corpo na cama — nada parecida com a de Misha — e me
cobri. No mesmo instante, ouvi um barulho vindo do outro lado do quarto e
notei uma sombra se movendo. Fechei os olhos por reflexo quando a luz se
acendeu.
— Isso são horas?
Quando voltei a abrir os olhos, meu pai me encarava de braços cruzados.
Vi quando o queixo dele caiu lentamente e o deixou boquiaberto, enquanto
esbugalhava os olhos em direção aos meus cabelos.
— O que você fez no cabelo, Sasha? — Perguntou.
— Eu... hã... — Sentei na cama e passei a mão pelos meus fios. — Olha,
vocês terão que conversar com os Mestres.
— Querido? — Mamãe tinha acordado.
Que ótimo! Seria interrogatório duplo.
— O que isso quer dizer? — Papai perguntou, se aproximando. — Não
tenho que falar com os Mestres, minha filha é você.
— O que houve?
— Problemas, Irina. Problemas...
Suspirei e prendi meus cabelos com o elástico de Lara que ainda estava
em meu pulso. A situação não ia melhorar mesmo, então eu não me
importava mais em esconder a mecha branca mais antiga. Quando meu pai a
notou, parou aos pés da minha cama e colocou as mãos nos quadris.
— Comece a falar, Aleksandra.
— Eu não sei como explicar! — Fiquei de pé porque já estava ficando
com raiva. Por isso não queria voltar para o quarto, pois sabia o que me
aguardava. — Tomei muito sangue dos Mestres e fiquei assim.
— Assim como? Alguém pode me explicar o que está acontecendo? —
mamãe reclamou, sentando-se com dificuldade na cama e finalmente olhando
para mim. — Isso é... Você está com... Isso são cabelos brancos?
Eu a entendia. Também havia ficado confusa quando vi pela primeira vez.
E ainda precisava dar um desconto por ela ter acabado de acordar. Dona Irina
Baker esfregou os olhos como se quisesse acreditar que o que via era fruto de
um sonho. Ou pesadelo.
— Como assim você tomou muito sangue? — Papai esbravejou. — Eles
deviam terusado sangue humano todas as vezes que fizeram transfusão em
você.
Ele se virou na direção da porta, com o rosto de um vermelho vivo que
demonstrava o quanto estava irritado. Ficar na Morada, definitivamente, não
estava fazendo bem para o homem. Meu pai sempre fora uma pessoa calma,
tranquila, daquelas que pagavam para não se estressar. Claro, não era todo dia
que um pai via a filha beijando um Mestre.
— Eu sei que você se mete em muita confusão e sei que recebeu
transfusão de sangue duas ou três vezes. Mas se usaram o próprio sangue em
você, nós deveríamos ter sido consultados primeiro. Os Mestres terão que
explicar essa história direito — bradou ele, calçando os sapatos. — E vai ser
agora!
— Pai, isso não é hora. — Levantei e o interceptei, me colocando entre ele
e a porta. Ele até podia ter conhecimento de algumas transfusões, mas não
todas. Muito menos das vezes em que eu tomei, por vontade própria, o
sangue dos Mestres. — Eu vou pedir para que Mestre Mikhail o procure para
explicar melhor o que está acontecendo. Mas, por enquanto, vamos dormir,
ok?
— VOCÊ NÃO VAI PEDIR NADA PARA MESTRE NENHUM! — Ele
gritou na minha cara. — Quero você com a bunda grudada nessa cama, sem
sair desse quarto! Está me entendendo?
— Johnathan! — Mamãe tapou a boca. Até ela estava horrorizada com a
explosão dele.
Coitada, não sabia de nada. Explosão de verdade foi o que aconteceu logo
em seguida. A porta do nosso quarto foi escancarada e bateu forte contra a
parede. Estremeci quando vi a rachadura que se formou no local onde a
maçaneta bateu. Mikhail estava de pé na minha frente, furioso.
Não, não, não! Eu não queria que os dois homens se enfrentassem de
novo. Sabia que papai levaria a pior. E, bem, apesar de tudo, ele era meu pai
e eu o amava.
— Johnathan. — Misha segurou a gola da camisa do meu pai e o tirou do
chão. — Desde que você entrou nesse prédio, eu o vejo tratar sua filha com
grosseria. Fui paciente, sabendo que vocês estão passando por um momento
delicado e esperei que as coisas melhorassem. Mas agora chega.
Meu pai abriu a boca para falar alguma coisa, mas Mikhail fez um gesto
com a mão e ele se calou. Foi silenciado, muito provavelmente.
— Seu trabalho aqui na Fortaleza é valioso, não posso negar isso. Você
não pode morrer — o Mestre inclinou a cabeça para o lado —, mas pode se
machucar. E é isso que vai acontecer, caso eu descubra que levantou
novamente a voz com Sasha.
Então, se alguém ainda tinha alguma dúvida sobre minha relação com
Mikhail, parecia que tudo tinha se esclarecido. Discretamente, olhei para
minha mãe e a vi ainda com a mão na boca. Meu pai tinha os olhos
arregalados, mas eu não sabia se o que sentia era medo ou raiva. Ele se
manteve calado quando o Mestre o colocou de volta no chão.
— Estamos tentando entender o que aconteceu para a Sasha ficar desse
jeito e eu garanto que nenhum de vocês pode nos ajudar. Sua filha agora tem
poderes e você não gostaria de vê-la irritada.
Ele podia ter mantido em segredo o detalhe sobre os poderes. Victor
tropeçou ao se levantar da cama e se postou ao meu lado, com os olhos
brilhando. Eu sabia que, na primeira oportunidade que ele tivesse, me
encheria de perguntas.
Meu pai, sem se dar conta de que não estava em posição de fazer
exigências, deu dois passos à frente e ficou cara a cara com o Mestre. Ou,
pelo menos, teria ficado, se fosse uns vinte centímetros mais alto.
— Mestre Mikhail, eu respeito muito todos vocês. Mas, o que você ainda
não entendeu é que a filha é minha. E ninguém, absolutamente ninguém, vai
me dizer como criar Aleksandra. — Ele apontou para mim. — Ela sabe que
sempre fui um pai muito tranquilo e a dei muita liberdade. Mas não farei mais
isso. Todas essas situações já passaram do limite!
Eu me sentia uma pateta, olhando de um macho alfa para o outro enquanto
se encaravam. Com as mãos na cintura, tentava adivinhar quem ganharia
aquela discussão. E, claro, estava preparada para intervir e acudir meu pai,
caso Mikhail partisse para a agressão.
O Mestre virou o rosto para me olhar e arqueou uma sobrancelha. Então,
apoiou as mãos nos ombros do meu pai e se curvou até aproximar o rosto do
dele.
— Eu sei que ela é sua filha. Entendo isso muito bem — ele deu um
pequeno sorriso. — Quem precisa entender alguma coisa aqui é você,
Johnathan. Sasha está comigo agora. E eu sou o que vocês costumam chamar
de... Como dizem? — O maldito fez de propósito, claro. Ele franziu a testa
como se estivesse pensando e, em seguida, sorriu. — Genro. Não é isso?
— Acho que vou desmaiar — mamãe murmurou, deitando-se de novo na
cama. — É o fim dos tempos.
Era quase o fim dos tempos, de verdade. Eu me encostei à parede atrás de
mim, agradecendo pela presença sólida dela. Estava sem reação, pois não
esperava que Mikhail assumisse nosso envolvimento. Ele tinha terminado
tudo comigo não havia muito tempo. E eu sei que fizemos amor no quarto
dele horas atrás, mas não sabia o que essa recaída implicava.
Misha virou a palma da mão para cima e a estendeu para mim. Gostaria de
conseguir acionar o poder de falar mentalmente, para perguntar em que droga
ele estava pensando.
— A partir de agora, Sasha ficará comigo. Ela é minha e estou assumindo
a responsabilidade por ela.
Eu era dele? Tive vontade de enfiar meus dedos em seus olhos azuis para
deixar de ser tão possessivo. Eu não era um objeto!
Sem poder gritar e dar um sermão na frente dos meus pais, eu o encarei
confusa. Ele, no entanto, parecia muito tranquilo, com os olhos grudados em
meu pai. Acho que esperava que o homem falasse algo.
Então, Misha virou o rosto e me encarou, ainda com a mão esticada para
mim.
— Vamos?
Fui ingênua ao achar, mais cedo, que estava numa situação desconfortável.
Mikhail acabara de elevar a complicação ao cubo. Eu amava meus pais e não
queria me afastar deles. Pelo contrário, muito do que vinha passando pela
minha cabeça nas últimas horas era justamente com a intenção de protegê-los.
Eu também amava Mikhail. Não queria mais que meus pais ficassem no
nosso caminho. Queria aproveitar que ele me dera mais uma chance, apesar
de não termos conversado sobre o que havia exatamente entre nós.
Respirando fundo, segurei a mão dele e olhei para meu pai. Sua expressão
falava por si. Ele se sentia traído.
— Isso não muda nada, pai. Ainda sou a mesma pessoa — falei e com a
outra mão, toquei o braço dele. — Quando você estiver mais calmo, podemos
conversar melhor, ok?
Agora que eu havia tomado a decisão de ir com Mikhail, começava a
sentir um frio intenso na espinha. Estava nervosa e ansiosa, sem saber quais
consequências minha escolha traria.
Meu pai nos deu as costas e voltou para a cama que ficava ao lado da
minha mãe. Ele deixou claro que não queria mais papo, então, Misha me
puxou para irmos embora.
Antes de sair do quarto, fiz um gesto para que Victor nos seguisse. Ele
obedeceu, prontamente.
— Não estou me mudando para outro país nem nada do tipo, só vou subir
mais alguns andares. Sei que papai está magoado e não vai falar comigo, mas
preciso que você me procure caso aconteça alguma coisa ou mamãe piore,
ok? — Pedi, no corredor, do lado de fora do quarto.
— Que poderes você tem? — Ele perguntou, admirado.
As prioridades do meu irmão eram bem diferentes das minhas.
— Victor, você escutou alguma coisa que eu falei?
— Sim — balançou a cabeça —, mas estou interessado nos seus poderes.
— Este assunto é confidencial, Victor. — Parei quando Mikhail olhou
para meu irmão. — Preciso avisar que você não deve comentar isso com
ninguém?
O Adotado balançou a cabeça, confirmando que tinha entendido o recado.
E antes que eu pudesse mandá-lo voltar para o quarto, o Mestre me rebocou
pelo corredor. Nós pegamos o elevador, não a escada. Do lado de dentro, ele
soltou minha mão.
— Tudo bem? — Perguntou.
— Tirando o fato de que meus pais me odeiam?Sim, tudo bem.
Senti meu corpo trêmulo. Ainda não conseguia acreditar no que estava
acontecendo. Tinha escolhido Mikhail. Conhecia muito bem os meus pais e
sabia que demorariam para aceitar a mudança na vida de todos nós. Não era
nada com o qual eles se acostumariam da noite para o dia. Nem eu.
— Eles não te odeiam. — Mikhail me olhou, complacente. — É apenas
uma coisa de momento, Sasha. Eles vão superar.
A porta do elevador abriu no andar de Misha e ele esperou que eu saísse
primeiro. Suas mãos tocaram minhas costas, me guiando em direção ao
quarto dele, mas quando paramos diante da porta, me virei para olhá-lo.
— Eu vou, então, tipo... ficar no seu quarto? — Perguntei. — Nós não
chegamos a conversar sobre nossa relação. Se ela voltou a existir...
— Há outros quartos neste andar, caso prefira ficar sozinha — disse ele,
com os olhos fixos nos meus.
Ele esperava que eu respondesse e os olhos estreitos numa linha reta e
fina, me desafiavam. Por um instante, pensei em complicar a situação para
ele, pois até o momento estava tudo muito fácil. Mas eu sabia que queria ficar
ali e já tinha dado passos muito grandes para voltar atrás.
Minha resposta foi colocar a mão na maçaneta e abrir a porta, entrando no
quarto antes dele. Senti a presença imponente atrás de mim e me virei,
ficando na ponta dos pés. Ele me ergueu e eu passei os braços pelo seu
pescoço ao mesmo tempo em que nos beijamos.
Quando me colocou deitada na cama e se afastou para tirar a roupa, eu o
admirei. Sabia que devia dizer o que estava pensando, desde meu banho
horas atrás. As palavras brincavam na ponta da minha língua, mas resolvi
esperar.
— O que foi? — Perguntou, ajoelhando-se na cama, sem camisa.
— Nada.
— Você está distante. — As sobrancelhas grossas se ergueram. —
Arrependida de sair do quarto dos seus pais?
Ainda estava chocadíssima com os últimos acontecimentos,
principalmente pelo discurso do Mestre. Mas arrependida? De jeito nenhum!
E para confirmar minha decisão, atirei minhas pernas em volta das coxas de
Misha e o puxei para mim.
Sem a ajuda dos meus novos poderes, não consegui tirar o vampiro do
lugar. Ele entendeu minha intenção e se aproximou, beijando meu pescoço.
Deixou uma trilha arrepiante pela minha pele e levantou minha camisa
lentamente.
— Acho que você vai gostar de saber — sussurrou em minha orelha —
que tenho um tempo livre até o amanhecer.
Minha risada soou como um grito quando Misha rasgou meu jeans e
deslizou o corpo pelo meu, até afastar minhas pernas com as mãos e enfiar a
cabeça no meio delas.

Estava naquele estado sonolento em que nos encontramos acordados, mas


não temos nem energia para abrir os olhos. Tinha plena consciência do braço
de Mikhail se afastando da minha cintura e quis reclamar. Depois de me
cansar como nunca, o Mestre finalmente me deixou pegar no sono e encaixou
o corpo atrás do meu. Não fazia ideia de quanto tempo eu havia dormido,
mas pela escuridão no quarto, sabia que era dia e que as janelas estavam
seladas.
Quando o senti levantar da cama, não me mexi. Queria voltar a dormir
novamente, mas esperaria que ele saísse do quarto. Mikhail já tinha me
avisado que se reuniria com Klaus pela manhã, para saber detalhes da busca
fora da Fortaleza. Ele também me prometeu que encontraria Kurt e pediria
que me procurasse.
— Está dormindo? — Perguntou, sussurrando.
O homem era incansável e eu tive medo que, se me visse acordada,
tentasse começar algo que eu não conseguiria acabar. Eu não era imortal e
estava esgotada de verdade. Então, continuei de olhos fechados, fingindo
dormir tranquilamente.
O colchão afundou atrás de mim e os lábios de Misha tocaram minha
cabeça. Ele ajeitou melhor o cobertor sobre meu corpo e seus lábios roçaram
em minha orelha. Tive que usar todo meu autocontrole para não virar o rosto
e beijá-lo.
— Eu te amo, ruiva.
E lá se foi o autocontrole pelo ralo.
Não cheguei a pular da cama, mas me virei de supetão e ele recuou,
surpreso. Seus olhos me fuzilaram e eu abri um sorriso enorme.
— Ops!Estava acordada — falei, sentindo meu coração disparar dentro do
peito. — Agora, você pode repetir o que disse?
Enquanto ele me encarava com uma cara de quem queria me arremessar
pela janela, eu dei uma piscadinha, sentindo meus olhos umedecerem. Os
dedos do Mestre se enroscaram em meus cabelos e fechei os olhos ao sentir
seu toque.
— Demorei a entender o que sentia, mas aprendi — ele admitiu.
Voltei a encará-lo, explodindo de felicidade. Eu me sentei na cama e alisei
o peito dele, sentindo os músculos rijos por baixo dos meus dedos. Sabia que
o bonitão não diria aquelas palavras novamente com tanta facilidade, mas eu
não me importava. Tinha escutado da primeira vez.
— Te amo — falei, meu coração a mil por hora.
Grudei minha boca na de Misha e mordi o seu lábio inferior.
“Quando vocês acabarem com as estúpidas declarações de amor, eu
gostaria de conversar com Mikhail. Não tenham pressa. Quase não temos
problemas para resolver.”
Misha suspirou e me encarou. Ele sabia que o aviso de Klaus não fora
entregue somente para a mente dele. Quando se levantou, eu estava prestes a
me ajeitar para dormir mais um pouquinho, mas Klaus invadiu novamente a
nossa mente.
“Aproveite que ela está acordada e traga Aleksandra com você.”
Afundei o rosto no travesseiro, muito arrependida de ter ajudado Kurt a
salvar o Mestre. Não havianenhum outro momento mais propício para Klaus
me encher a paciência? Ele podia pelo menos esperar que eu tomasse café da
manhã — considerando que teríamos o que comer.
Mikhail esperou em pé na porta, enquanto eu me arrastei com preguiça
pelo quarto. A contragosto, peguei minha calça jeans do chão e a joguei em
cima dele.
— Você rasgou a minha única calça. Estava apertada, mas pelo menos me
servia. — Cruzei os braços e me sentei na poltrona que ele adorava. —
Preciso de algo para vestir. Se vira.
O Mestre observou o trapo em suas mãos e colocou a calça sobre a
cômoda perto da porta. Depois, abriu a segunda gaveta do móvel e puxou
algumas peças de roupa feminina. Jogou a pilha sobre a cama e eu corri para
verificar o tesouro guardado.
— Fizemos uma varredura pela Fortaleza essa noite e achei que você fosse
mesmo precisar de roupas.
— Parecem ser do meu tamanho — constatei, surpresa. — Como você
acertou?
— Eu sou bom. Agora se vista, antes que Klaus apareça por aqui.
Ele me esperou do lado de fora do quarto, deixando claro que eu o
atrasava. Não demorei mais que dez minutos para escovar os dentes e me
vestir, mas Mikhail me olhou como se horas tivessem se passado.
Pelos corredores, me senti estranha, mas feliz por andar ao lado dele e
sentir que nos notavam. Ele nem estava tocando em mim e nada em nossa
postura denunciava nosso relacionamento, mas por causa da mecha branca, as
pessoas me olhavam de uma forma diferente. Ninguém tinha ideia do que
significava.
Nós descemos alguns lances de escada e reconheci a porta da sala para a
qual caminhávamos. Era a mesma onde recebi as primeiras — e ridículas —
aulas de combate. Parecia um tempo muito distante, quando Mikhail estava
em expedição pela Europa, atrás de Zênite.
Logo que entramos, observei a grande mesa redonda e os mapas que
cobriam a parede atrás dela. O Mestre mais velho estava sentado numa das
cadeiras, de olhos fechados. Quando entramos, levantou a mão como se
pedisse que esperássemos.
Já tinha aprendido a ler seus gestos e soube que ele estava resolvendo
problemas internos. Era como se algo dentro de mim pudesse compreender o
Mestre, uma sensação nova que eu não podia explicar.
Mikhail puxou uma das cadeiras para se sentar e eu fiz o mesmo.
— Como está a nossa querida aberração? — Perguntou Klaus ao abrir os
olhos. — Alguma novidade?
Resisti ao impulso de mostrar meu dedo do meio a ele e apenas dei de
ombros. Que tipo de novidade ele esperava ouvir?
— Ela está bem. — Misha respondeu. — Como foi do lado de fora?
Klaus curvou-se para frente e apoiou as mãos sobre a mesa de madeira,
entrelaçando os dedos. Ele me olhou fixamente por alguns segundos, até
voltar a atenção para o outro Mestre.
Eu ainda não entendia o motivo para ter sido chamada. Muito dificilmente
Klaus dividiria estratégias de guerra comigo.
— Encontramos um grupo, nada demais — ele tamborilou os dedos na
mesa. — O motivo pelo qual te chamei aqui é outro. Estive pensando que
talvez seja uma boa ideia levá-la à Oymyakon.
Como é que é?
Quase engasguei. Oymyakon era a cidade natal dos Mestres, o lugar onde
tudo começou. Eu não tinha vontade alguma de colocar meus lindos pés
numa terra amaldiçoada por deuses antigos.
Meu corpo se remexeu inquieto na cadeira, enquanto eu esperava que
Mikhail falasse alguma coisa. Quando virei o rosto e o encarei, vi que ele
parecia considerar a ideia de Klaus. Os dois ficaram malucos.
— Caso eu possa dar minha opinião, já que estamos falando de mim — eu
me debrucei na mesa —, o que tenho a dizer é que não gostaria de visitar esse
lugar.
— Sua opinião não será considerada — determinou o Mestre primogênito.
— Mas, já que você é a parte central disso tudo, vou fingir levar seu
comentário em consideração.
— Pode fingir — dei de ombros. — Eu não vou, só se for amarrada e
arrastada.
Mikhail apoiou uma das mãos em cima da minha e me olhou de forma
determinada. Fechei a boca, apesar de me sentir revoltada por ele e Klaus
quererem discutir meu destino sem que a minha opinião fosse levada em
conta.
— O que, exatamente, você acha que acontecerá se ela for até Oymyakon?
— Meu Mestre perguntou.
— Eu não sei, Mikhail! Mas está claro que Aleksandra está desenvolvendo
os nossos poderes. — Klaus debruçou na mesa. — Até onde isso vai? Ela vai
se transformar naturalmente? Vai morrer? Eu gostaria de descobrir.
— Não dá para só fechar os olhos e tentar uma conexão com... — franzi os
lábios, me sentindo estúpida. — Sei lá... com os deuses que jogaram a praga
em vocês?
Klaus estreitou os olhos.
— Claro! — Ele jogou as mãos para o alto e, por um milésimo de
segundo, eu realmente achei que estivesse falando sério. — Por que eu não
pensei nisso antes? Vou usar minha linha direta com eles.
Desviei os olhos e suspirei. Sabia que era uma pergunta um pouco idiota,
mas não custava nada tentar. Minha disposição para sair da Fortaleza era
nula, principalmente quando se tratava de uma viagem na companhia de
Mestres. Aturá-los dentro dos limites da Fortaleza já era o bastante.
Levantei da cadeira e dei a volta pela mesa até parar diante dos mapas
presos na parede. Corri o dedo pelo território russo, tentando encontrar o
lugar para onde Klaus queria me enviar.
— Onde fica Oymyakon, exatamente?
Mikhail se colocou ao meu lado e segurou meu dedo, posicionando-o num
ponto mais ao norte de onde estávamos.
— De carro, seria uma viagem de aproximadamente quatro dias — disse
ele. — Temos que considerar as paradas durante o dia.
Mas era um absurdo!
Eu achei que ele fosse dizer que ficava a umas cinco ou seis horas de
distância. Quatro dias? Meus pais infartariam diante da ideia. Nem eu
pensava em ficar tanto tempo assim fora da Fortaleza. Não sabia o que
encontraríamos pelo caminho.
— Temos outra questão para tratar. — Klaus levantou e se dirigiu ao
irmão. — Esta noite estarei enviando alguns soldados para colherem sangue
nos bunkers das cidades mais próximas. A situação está bem complicada,
Mikhail.
— Eu sei, mas acho que teremos problemas com essa nova estratégia.
Eu olhava de um para o outro, sem ter a menor ideia de como ajudar na
questão do sangue. Sabia que era um problema a ser resolvido o mais
depressa possível.
— Estou contando com a viagem até Oymyakon para que possamos visitar
alguns lugares e colocar ordem, se for preciso.
Meus olhos grudaram em Klaus. O que foi que ele disse?
— Você está pretendendo ir? — Misha perguntou, tirando as palavras da
minha boca. Ele virou-se bruscamente para encarar Klaus, com uma
expressão desconfiada. — Acha uma boa ideia se ausentar por tanto tempo da
Fortaleza?
— Confio em Nikolai.
— Que bonito. Vocês estão brincando de passear pela Europa enquanto os
mitológicos invadem a Fortaleza e matam o que sobrou dos humanos —
disse, cruzando os braços, chocada demais com a hipótese de ter mesmo que
viajar ao lado de Klaus.
— Está dispensada, Aleksandra.
— Obrigada, Mestre! — Fiz uma reverência dramática e me retirei da sala,
já que nada que eu dissesse seria levado em conta.
Estava perdida, é claro. Não sabia para onde devia ir se quisesse voltar ao
quarto de Mikhail. Eu não fazia ideia de qual era o andar exato dos seus
aposentos. Também estava com fome, além de sentir muita vontade de ver
meus amigos. Portanto, decidi descer alguns andares, procurando por Kurt.
Estava morta de saudades dele e queria muito saber como andava sua nova
vida.
Num dos andares, descobri que ali era onde estavam mantendo as crianças
órfãs. Meu coração apertou quando me lembrei de Grizzel e de tudo que
aconteceu durante a expedição. Procurei por Ivetta, pois lembrava da
fisionomia da menina por causa da foto que a mãe dela me mostrara. Eu a
encontrei num quarto com mais quatro crianças e uma mulher que parecia
mais interessada em falar no celular do que tomar conta das meninas.
— Ivetta? — Chamei, me aproximando da cama dela.
A criança levantou a cabeça e me encarou com a testa franzida. Segurava
o ursinho de pelúcia que Grizzel me fizera salvar. Percebi, também, que
estava com olheiras e uma expressão desolada. Ela tinha cinco anos, de forma
alguma seu rostinho deveria exibir uma expressão tão triste.
— Oi Ivetta! — Eu me agachei na frente dela e sorri. — Qual o nome do
seu urso?
— É um cachorrinho, não um urso.
Bem, era óbvio que era um cachorro. Urso era só modo de dizer, mas eu
me senti meio idiota por ela me chamar atenção para algo tão óbvio.
— É um cachorro muito bonito! Ele tem nome?
— Tuti — respondeu, agarrando o bicho como se eu fosse roubá-lo. —
Minha mamãe me deu.
Baixei os olhos, pois senti que lágrimas estavam prestes a escorrer e eu
não queria que a criança me visse chorar.
Passei pouco mais de uma hora fazendo companhia para Ivetta e tentando
animá-la um pouco. Não tive oportunidade de conhecer melhor a mãe dela,
mas senti, em seus últimos minutos, como o amor por sua filha era imenso.
Só fui embora daquele quarto depois de ter certeza de ter visto alguns sorrisos
no rosto da menina.
CAPÍTULO 18

Não foi muito fácil encontrar Kurt. Não tinha nada para fazer, então entrei
em cada andar daquela Morada até achar meu amigo. Em determinado
momento, um grupo de cinco Guardiões me cercou, bloqueando meu
caminho. Eu encarei um por um, sem entender o motivo para ser interceptada
e suspirei.
— Este andar não é de livre acesso a humanos — a única mulher do grupo
falou, me olhando de forma superior.
— Você está perdida? — Um homem de quase dois metros de altura
perguntou.
— Estou procurando meu amigo — respondi, trabalhando minha
paciência. — Ele se chama Kurt. Vocês o conhecem?
— É um Guardião? — Outro perguntou, cruzando os braços.
— Sim — respondi.
Os cinco se entreolharam e aquela palhaçada estava começando a me
irritar. Nos últimos dias, paciência não podia ser considerada uma virtude
minha.
— Se é um Guardião, não é mais seu amigo — disse a mulher, exibindo
um sorriso pretensioso. — Ele tem uma nova vida agora.
— Certo — dei de ombros e lancei um olhar para o corredor comprido
atrás deles. Kurt poderia estar em qualquer um daqueles quartos. — Que tal
vocês deixarem que ele decida isso?
Os cinco não concordavam com minha linha de raciocínio. Para deixarem
claro que eu não era bem-vinda entre eles, a mulher e o grandalhão seguraram
meus braços e me puxaram de volta na direção da escada. Vi meu corpo ser
arrastado, enquanto meus pés deslizavam pelo chão.
— Você não pode ficar aqui. Volte para perto dos seus.
Com minha raiva alcançando níveis extremos, sacudi meus braços para me
livrar dos dois. O que aconteceu, em seguida, chamou um pouco mais de
atenção do que eu pretendia.
O movimento que fiz com os braços acabou lançando os dois Guardiões
contra uma parede. Eu me surpreendi e fiquei sem reação, pois não sabia que
era capaz de tamanha agressão. Modéstia à parte, eu tinha adorado.
Ambos ajeitaram a postura rapidamente e me encararamcom uma
expressão que me fez estremecer. Não pareciam contentes e eu não tinha ido
até lá com intenção de arranjar briga com Guardiões. Fala sério!
— Só quero procurar meu amigo.
— O que você é? — Um deles perguntou, dando um passo na minha
direção.
Grudei meus braços ao lado do corpo, com medo de que meus poderes me
levassem a cometer mais alguma besteira. Não daria conta de todos aqueles
Guardiões, caso eles decidissem que eu era uma ameaça. Onde estava a droga
do Kurt, afinal? Aquele seria um bom momento para ele aparecer.
Recuei alguns passos enquanto vinham para cima de mim, pensando numa
rota de fuga imediata.
— Eu juro que não queria ter feito aquilo — falei, levantando as mãos. —
Não queria machucar nenhum de vocês.
— Você acha que nos machucou? — A mulher me olhava com desprezo.
— Sério?
— Quem corre o risco de se machucar é você.
Não consegui ver de quem veio aquela ameaça, mas eu sabia que havia
muita verdade em suas palavras. Eu me vi encurralada. Apoiei minhas mãos
na cintura e pensei em como sair daquela enrascada, fuzilando a mulher com
o olhar. Imediatamente, ela parou de se mover e arregalou os olhos.
Tinha funcionado! Consegui bloquear os movimentos dela. Teria eu algum
poder ainda desconhecido que era ativado através dos olhos? Porque,
conforme eu olhava para os demais Guardiões, percebia que eles também
ficavam imóveis. Todos tinham ajeitado a postura e se tornaram estátuas,
enquanto eu lançava um olhar mortal para cada um. Incrível!
— Você, venha comigo —atrás de mim, aquela voz inconfundível fez os
pelinhos da minha nuca se arrepiarem.
Já sabendo de quem se tratava, me virei para encarar o Mestre. Klaus
estava parado a menos de vinte centímetros de mim e eu nem sequer havia
notado a sua chegada. Na minha grande ingenuidade, achei que os Guardiões
tinham sido afetados por algum dos meus poderes quando, na verdade,
apenas enfiaram o rabo entre as pernas na presença do Todo Poderoso.
Ele se virou e eu o segui, olhando de vez em quando para trás, temendo
que alguém pulasse em minhas costas. Quando entramos no elevador, Klaus
fez com que a máquina parasse entre um andar e outro. Me senti
claustrofóbica, sem ter para onde fugir.
— Você, a partir desse segundo, vai colar seus pés no chão do seu quarto e
só vai sair de lá quando eu permitir — vociferou, o rosto inclinado para me
olhar nos olhos. — Preciso ser mais claro?
— Não — respondi, encarando meus pés. Eu sabia que, se ele não tivesse
aparecido naquele momento, eu teria me encrencado bastante. — Mas eu,
hum, estou ficando no quarto do Mikhail.
— Não me importa onde vai ficar, desde que não saia de lá.
O Mestre se manteve em silêncio quando o elevador voltou a se
movimentar e, por um instante, achei que estivesse me ignorando. Depois, ele
se virou de frente e se curvou, apoiando as mãos na parede espelhada atrás de
mim.
— Mikhail é contra essa ideia, mas você não tem muitas opções a não ser
ir até Oymyakon. Está me entendendo? O que está acontecendo com você é
muito mais sério do que qualquer outra idiotice que já cometeu.
Nós estávamos nos encarando e algo dentro daqueles olhos azuis me fez
perder a noção do tempo, do momento, de tudo. Pisquei, me sentindo
letárgica. Era como se houvesse alguma coisa me atraindo, algo que eu
poderia esticar a mão e puxar. Um fio...
Klaus foi o primeiro a desviar o olhar. Pela forma como se comportou,
piscando várias vezes enquanto encarava o chão, soube que também tinha
sentido o mesmo que eu.
— Não é exatamente culpa minha... — pigarreei. — Por estar assim.
Ele recuperou a compostura e se virou de costas novamente, ajeitando o
manto e passando a mão pelos cabelos arrepiados.
— Sei que não é — comentou. — A culpa é minha por não tê-la matado
na primeira vez que senti vontade.
Eu não tinha como concordar com aquele pensamento, nem daria a ele o
gostinho de discutir a questão. Fiquei quieta e, quando a porta do elevador se
abriu, vi que estávamos no andar de Mikhail.
Saí do elevador e me virei para olhá-lo. Antes que a porta se fechasse,
coloquei um braço na frente para fazê-la recuar.
— Você viu o que eu fiz com aqueles Guardiões? Eu os lancei contra a
parede — pressionei meus lábios, horrorizada comigo mesma. — Como é
possível eu ter mais força que um Guardião?
Ele não respondeu a pergunta porque Mikhail subia as escadas e já nos
olhava com uma cara azeda. Quando caminhei na direção dele, ouvi Klaus
resmungar alguma coisa, mas não consegui entender o que ele tinha dito.
Misha tinha cruzado os braços e se encostado à porta do quarto. Parei de
frente para ele e encolhi os ombros. Por que eles sempre achavam que a culpa
de tudo que acontecia era minha?
— Só estava procurando por Kurt... — eu me desculpei. — Não queria
fazer uma cena.
— Você complicou muito as coisas, Sasha. Metade dos Guardiões quer
saber quem você é. E, lógico, o que você é.
Ele abriu a porta do quarto e me deixou passar. Será que eu ia mesmo ficar
trancada? Não sobreviveria muito tempo ali, não conseguiria ficar sem nada
para fazer. Sentei na beira da cama, olhando para minhas mãos. Precisava
encontrar uma forma de evitar que os poderes viessem à tona.
— Klaus acha que eu devo mesmo ir até o lugar assombrado...
— Assombrado? — Misha franziu a testa e me olhou com uma expressão
divertida. — Você acha que vai encontrar o que por lá? Fantasmas?
— Não precisa ter fantasma para ser assombrado. Podem ser outras... —
mordi o lábio. — Entidades.
Eu me joguei de costas na cama macia e fechei os olhos. Se fosse para ter
uma resposta sobre o que estava acontecendo comigo, então, talvez fosse
melhor mesmo que eu viajasse até o tal lugar. Afinal, não iria sozinha. Ao
lado de Mikhail e Klaus, o que de tão ruim poderia acontecer?
— Vou pedir para trazerem comida — o Mestre avisou ao passar pela
porta. — Não vou deixá-la trancada, mas se eu souber que você saiu desse
quarto...
— Pode me dar uma surra — sorri. — Não vou sair. Mas posso pedir um
imenso favor?
Olhei para ele com uma expressão que, acreditava eu, poderia derreter até
o mais duro dos corações. Mikhail suspirou e apoiou uma das mãos na
maçaneta, enquanto esperava que eu fizesse o pedido.
— Me traga o Kurt! Preciso do meu amigo!
— Você sabe que seu amigo, agora, tem outras responsabilidades, certo?
— Perguntou o Mestre. — Os dois não ficarão mais trocando fofocas como
faziam antes.
— Ele ainda pode conversar ou vocês cortaram a língua dele?
Mikhail estreitou os olhos e, antes de sair e fechar a porta, avisou que
mandaria Kurt me procurar. Ele apenas me fez prometer que, em hipótese
alguma, eu permitiria que outro macho sentasse na cama dele. Mesmo eu
retrucando e dizendo que Kurt era gay, tive que prometer.

— Você pode me explicar o que te fez virar o assunto preferido dos


Guardiões? — Kurt me perguntou assim que eu abri a porta do quarto para
ele.
— A fofoca jáchegou a esse nível?
Eu queria me encolher. Não sabia que o assunto correria tão rápido. Klaus
tinha muitos motivos para querer me espancar, agora eu conseguia entender.
— Quando começaram a falar que uma garota de cabelos de fogo era mais
forte que eles, eu fiquei pensando se havia alguma Guardiã ruiva. — Ele
revirou os olhos. — Mas aí, lembrei da senhorita. Por que não me
surpreende?
Kurt me deu um abraço maravilhoso, daquele tipo amigo urso que te
aperta e te faz sentir segura e confortável. Foi tão bom constatar que meu
amigo ainda era meu amigo! Que o fato de ser um Guardião não mudara a
personalidade dele e que ele em nada parecia com os arrogantes que eu vi
minutos antes.
— Quando você vai me contar o que está acontecendo, Sashita?
Ele me soltou e se preparou para se sentar na cama. Eu gritei, agarrando os
braços dele e o puxando na direção contrária.
— Ficou louca, mulher? — Perguntou, franzindo a testa. — Mas que
escândalo é esse? Falta de sexo?
— Mikhail o proibiu de sentar na cama.
Kurt olhou em volta do quarto, absorvendo a informação. Depois, focou
no móvel sagrado.
— Ele nunca vai saber... — sussurrou.
— Vai sim. E depois vai te procurar para tirar satisfação.
Ele parou, com cara de quem cogitava que aquilo pudesse mesmo
acontecer.
— Deixa para lá —sorriu. — A poltrona ali no cantinho parece muito mais
confortável.
Eu me sentei na cama e abracei um travesseiro, enquanto deixava meu
amigo a par de tudo que aconteceu comigo desde as explosões no colégio.
Primeiro, ele tinha achado tudo o máximo, desde a cor nova das mechas até o
fato de que eu conseguia me defender de vampiros tão poderosos quanto os
Guardiões.
Quando contei sobre meus testes com Klaus e a forma como lidei com ele,
Kurt pirou. Não acreditava que um humano tivesse capacidade de se defender
do Mestre que ele amava. Prometi mostrar algumas coisas que eu podia fazer,
assim que descobrisse até onde os efeitos colaterais me levariam.
— E se você virar, sei lá... — Kurt encolheu os ombros. — Hum...
Mestre?
Então eu contei sobre como me sentia quando usava algum poder que
exigia mais esforço. Kurt ficou preocupado e concordou que a hipótese da
minha morte era muito mais assustadora do que a possibilidade de, um dia, eu
me tornar algo tipo um Mestre. E eu tinha certeza de que não queria que
nenhuma das duas coisas acontecesse.
— Pense pelo lado bom, você nunca mais precisaria acatar determinadas
ordens — ele piscou. — E Klaus seria obrigado a aceitá-la, de uma vez por
todas.
— Eu acho que ele já me aceitou — sorri. — Você acredita nisso? Klaus
tem me tratado melhor desde que o salvamos.
— Por falar no Mestre... — ele suspirou.
Kurt se espalhou pela poltrona larga e tirou os sapatos para poder sentar
sobre as pernas. Qualquer um dos Mestres teria um ataque fulminante se
visse um Guardião numa pose como aquela. Eu ri internamente, feliz por
Kurt ser sempre Kurt. Ele era o máximo!
— Tenho alguns babados para te contar — ele arregalou os olhos. — As
coisas que aconteceram nos últimos dias são dignas de serem compartilhadas.
Só acho que a Lara também devia estar presente.
— Estou com saudades dela. Mas seria pedir demais ao Mikhail, que
deixasse eu fazer uma reunião no quarto dele — franzi os lábios, pensativa.
— Já basta a sua presença.
— Mestre Mikhail sabe que eu não ofereço perigo algum para ele! Meu
interesse é outro...
Ele me lançou um olhar bem safado e revirou os olhos. Então, ajeitou-se
na poltrona, como se fosse uma criança prestes a dividir um segredo.
— As coisas entre Mestre Klaus e eu estão... quentes!
— Kurt, acho melhor deixar para outra ocasião — avisei. — A Morada
tem ouvidos por todos os lados.
Meu amigo pulou da poltrona e andou pelo quarto de Misha, procurando
alguma coisa. Ele pegou uma caneta sobre a escrivaninha e uma folha de
papel. Esperei que escrevesse o que tinha em mente, mas ele ficou
balançando a caneta para cima e para baixo.
— Que droga é essa? — Perguntou.
— Acho que ela só funciona se você mergulhar na tinta.
— E quem usa isso hoje em dia? — Ele revirou os olhos e enfiou a ponta
da caneta num potinho redondo que ficava ao lado do bloco de papel.
Quando Kurt virou a folha para mim, ele tinha escrito em letras gigantes
que não deixavam nenhuma dúvida no ar. Senti meus olhos se arregalarem,
sem conseguir acreditar no que estava lendo.
BEIJEI O GOSTOSO DO KLAUS

O que mais eu havia perdido da vida dele? Li e reli, e depois me joguei de


costas na cama, gargalhando.
Minha vontade era encher Kurt de mil perguntas, mas sabia que só
complicaria a situação. Ele, obviamente, não se importava mais em esconder
nada de Klaus, mas não significava que outros Mestres podiam saber do
acontecido.
Resisti à vontade de matar minha curiosidade e deixei o assunto morrer.
Conversamos sobre amenidades, sobre os últimos ataques à Fortaleza e sobre
minha possível viagem para Oymyakon.
— Vou ficar com um pouquinho de inveja caso você viaje em determinada
companhia... — murmurou ele. — Se precisarem de um Guardião... Sashita,
me indique!
— Por que um Guardião seria necessário na presença de dois Mestres? —
Eu ri. — Acho que você não tem chance, amigo.
— Tudo é possível.
Peguei um dos travesseiros e o coloquei na ponta da cama, me deitando de
bruços para poder olhar melhor para Kurt. Queria ele deitado ali comigo,
como costumávamos fazer durante as tardes que passávamos em nossos
quartos, fofocando e falando besteira. Queria muita coisa de volta.
— Preciso tanto desabafar contigo... — choraminguei. — Mas aqui não
dá. Não quando tantas pessoas podem ouvir.
Principalmente Mikhail, eu quis dizer, mas me controlei. Kurt levantou
uma sobrancelha e jogou o papel e a caneta em cima de mim.
Não era o tipo de assunto simples para escrever num papel, mas tentei ser
o mais objetiva possível e rabisquei uma frase curta. Meu amigo arregalou os
olhos, mas não deixou de sorrir.
— Jura? — Perguntou Kurt. — Isso é uma surpresa para mim, Sashita!
— Estou cogitando... — Mordi o lábio, cheia de dúvida. — Você se sente
bem?
— Nunca me senti melhor!
Kurt se colocou de pé de forma brusca e calçou os sapatos. Franzi a testa,
sem entender a mudança no comportamento dele. Quando levantou a cabeça
para me olhar, estalou os dedos como se meu raciocínio fosse muito mais
lento que o dele.
— Mestre Klaus está requisitando sua presença.
— Ah, de novo não! — Murmurei, cansada da minha cota de Mestre
naquele dia.
— Agora, Sashita! — Kurt avisou, com a sobrancelha arqueada. — Ou,
nas palavras dele, virá buscá-la.
Rolei na cama, muito a contragosto, e dei um soco de leve num dos
travesseiros. Eu pretendia passar o resto do dia tranquilamente, sem muitos
estresses na cabeça. Mas, pelo visto, não seria possível. Já podia imaginar
Klaus me tacando de um lado para o outro de algum salão misterioso,
enquanto tentava descobrir mais sobre meus poderes.
Kurt passou um braço pelos meus ombros e nós deixamos o quarto de
Misha para trás. Descemos pelas escadas, abraçados, enquanto ele
cochichava idiotices no meu ouvido.
Ele me contava umas safadezas que havia presenciado em suas rondas
como Guardião e eu ria quando a porta do salão de armas se escancarou
diante de nós e Klaus nos observou com impaciência. Os braços cruzados e
os olhos numa linha fina e reta indicavam que ele estava com seu mau humor
de sempre. Nenhuma novidade para mim.
O Mestre voltou para dentro da sala e se sentou numa das cadeiras
dispostas em volta da mesa redonda. Eu fiz o mesmo, escolhendo uma
cadeira mais afastada dele. Kurt se sentou ao meu lado e isso gerou um olhar
curioso da parte de Klaus.
— O que pensa que está fazendo, Holtz? — Perguntou.
— Nada — ele respondeu, com uma cara de cínico. — Você me chamou,
Mestre.
— Eu mandei que trouxesse Aleksandra até aqui. Isso não significa que
pode permanecer nesta sala.
Os dois se encararam e, de repente, senti que eu estava sobrando. Olhei em
volta, tentando não me concentrar muito nos olhares dos dois. Por que eles se
encaravam daquele jeito. Ou melhor, por que Klaus aceitava que Kurt o
olhasse de uma forma tão... esfomeada. Eu tinha quase certeza que se fosse
qualquer outra pessoa olhando o Mestre daquele jeito, já teria perdido a
cabeça. Literalmente.
A confissão que Kurt me fez mais cedo não me saía da cabeça.
“Beijei o gostoso do Klaus” — ri ao lembrar da frase que meu amigo me
confidencioue imaginar a cena.
O Mestre, do outro lado, franziu a testa. A cadeira caiu para trás quando
ele se levantou de supetão. Pela raiva em seu rosto, pode ser que eu tenha
repetido aquela frase dentro da mente dele. Sem querer.
— Caiu de cabeça, Aleksandra? — Rosnou ele. — Que absurdo é esse?
Fechei os olhos, deixando que o Mestre me fuzilasse com os dele. Eu
precisava aprender a controlar esse poder.
Enquanto tentava pensar numa resposta coerente sem entregar meu amigo,
Mikhail entrou devagar na sala. Senti uma pontada no coração ao vê-lo,
porque a expressão dele deixava claro que também tinha ouvido a mesma
frase estúpida. E, tudo bem, falando daquele jeito, ficava mesmo parecendo
que eu tinha beijado Klaus.
Misha encarava diretamente o irmão, que deu um sorrisinho ao vê-lo
irritado.
— Eu posso explicar — avisei, me movendo na direção de Mikhail. — Foi
uma confusão.
Vi, pelo canto do olho, Klaus encarando Kurt. O Mestre deve ter
entendido rapidamente o que havia acontecido.
— O que você chama de confusão? — Misha perguntou, sem deixar de
encarar o irmão. — O seu beijo em Klaus ou você o chamando de gostoso?
— Não beijei Aleksandra — confessou ele. — Isso devia ser óbvio para
você, meu irmão idiota. Algumas pessoas possuem intolerância à lactose,
enquanto eu possuo intolerância à sua namorada.
— E que idiotice é essa de beijo?
— Ah! — Klaus abanou a mão, revirando os olhos. — Foi o Guardião que
me atacou quando eu menos esperava.
— Ele se chama Kurt — frisei. — E você sabe disso.
Por que ele estava me olhando com aquele sorrisinho ridículo na cara?
Estreitei meus olhos, avaliando o semblante do Mestre.
— O que você está olhando? — Perguntei, erguendo o queixo.
Klaus se dirigiu à mesa e sentou numa das cadeiras, apontando outra para
Mikhail. Ele não me deu a opção de escolher se eu me sentava ou não.
Simplesmente, puxou meu corpo com o poder da mente e colou minha bunda
numa cadeira entre ele e seu irmão.
— Cale a boca e escute. Nós sairemos amanhã à noite rumo à Oymyakon
— esclareceu Klaus. — Mikhail já me informou sobre os problemas com
seus pais, então eu, pessoalmente, avisarei a eles sobre nossa viagem.
Eu me preparei para responder, mas minha língua grudou no céu da boca
sem que eu pudesse controlar.
— Eu disse para escutar.
— Klaus nos acompanhará e faremos uma parte da viagem num avião
fretado — contou Mikhail, apesar de não parecer tão feliz com a ideia quanto
seu irmão. — Pousaremos em Yakutsk e faremos o restante do percurso de
carro.
Cruzei os braços, insatisfeita com a decisão tomada por eles. Estava
incomodada com minha língua presa, com medo de que a saliva começasse a
escorrer, quando Klaus me livrou daquela tortura.
Pretendia dizer alguma coisa, contar que era contra a viagem, mas sabia
que não ajudaria em nada. Minha opinião não seria considerada. Sendo
assim, apenas concordei, meneando a cabeça.
— Estou dispensada? — Perguntei, olhando para uma formiga que
passeava pela mesa.
— À vontade — declarou o Mestre.
Eu me levantei, sem olhar para nenhum dos dois. Mikhail veio logo atrás
de mim e tocou meu braço, querendo me indicar o caminho que eu já
conhecia muito bem. Agora ele me tocava? Onde estava o Mestre atencioso
minutos atrás, quando acreditava que eu tinha beijado seu irmão?
— Obrigada por confiar em mim — falei.
— Eu ouvi aquela frase e pensei... — ele sacudiu a cabeça. — Desculpe,
mas pela forma como você colocou, pareceu muito real. Fique em meu
quarto, mais tarde nós poderemos conversar melhor.
Subi os degraus sem economizar na força ao bater meus pés sobre eles.
Mikhail subia atrás de mim e eu queria ter coragem de me virar e empurrá-lo
escada abaixo.
— Não vamos conversar. Nem vamos dormir no mesmo quarto. Quero
ficar sozinha.
Entrei no corredor do andar dele, mas passei direto pelo quarto do Mestre.
Mikhail tinha dito que havia vários outros quartos à disposição, então abri a
porta seguinte. Estava vazio, logicamente, mas seria prontamente ocupado
por mim.
Ele parou diante da porta, olhando para dentro, pensando se entrava ou
não. Eu segurei a maçaneta e me coloquei no caminho, bloqueando a
passagem. O Mestre sorriu, presunçoso.
— Eu deixo você passar a noite aqui, se prefere desse jeito.
— Você deixa? — Perguntei. — Obrigada! Também vou pensar se
deixarei você me tocar novamente.
Tentei fechar a porta, mas ele colocou a mão no espaço que sobrou e a
empurrou novamente. Deu um passo à frente, invadindo meu espaço e
aproximando o rosto do meu.
— Não me desafie, ruiva.
— Você precisa me pedir desculpas — falei, cruzando os braços. — É
ultrajante você achar que eu possa querer, em sã consciência, ter qualquer
contato mais íntimo com seu irmão. Se eu tivesse feito isso, seria a mais
baixa das traições.
— Então, você não estava tão consciente enquanto ele tomava seu sangue
e a segurava nos braços?
— Mikhail, aquilo que você viu não teve nada a ver. — Eu sabia que
podia parecer algo completamente errado, mas não tinha sido. — Não
consigo explicar para que você entenda o que aconteceu naquele momento. E
se você tem problemas para acreditar em mim, eu lamento muito.
Ele encostou a cabeça no batente da porta e suspirou, impaciente.
— Peço que me desculpe. Não acho que você faria algo do tipo, mas sei
que Klaus é perfeitamente capaz de tal ato. De qualquer forma, é
compreensível que eu aja assim. Faz parte do meu instinto. Ou você se
acostuma com isso ou voltamos à estaca zero.
Enquanto eu pensava em minha resposta, ele foi embora, me deixando
com a porta ainda aberta e um monte de xingamentos para jogar sobre aquela
cabeça de cabelos brancos.
Por que, dentre tantas pessoas, meu coração tinha que escolher a droga de
um Mestre irritante, arrogante, grosso e, agora, ciumento?
Bati a porta com força e depois bati minha cabeça contra ela.
CAPÍTULO 19

KURT
Aproveitei a noite para sair um pouco da Morada e respirar ar puro. Eu
estava totalmente iludido com toda a atenção que Klaus vinha me
dispensando nos últimos dias. Ele devia apenas estar agradecido pelos meus
esforços para salvá-lo, enquanto eu imaginava que estivesse interessado em
alguma outra coisa.
Tenha dó, Kurt!
Parei quando vi para onde estava me digirindo. As primeiras casas da área
residencial já estavam diante dos meus olhos e uma atração me puxava
naquela direção. Sentia falta da minha casa... e dos meus pais.
Quando coloquei os pés na porta, tive medo de não poder entrar por causa
de toda aquela coisa do convite, mas depois lembrei que eu também era dono
da casa. Fechei a porta atrás de mim e observei a sala. Minha casa não tinha
sido explodida, mas precisava. Apesar de não haver mais nenhum corpoali, o
lugar estava um caos.
Subi até meu antigo quarto e me sentei na cama. As lembranças invadiram
minha mente, principalmente as que envolviam meus pais. Tinha uma
imagem fixa da minha mãe entrando em meu quarto e puxando as cobertas
para que eu acordasse.
— Espero que não esteja decepcionando vocês... — murmurei, tentando
imaginar o que os dois achariam de mim como Guardião.
Sorri, deitando de costas na cama e fechando os olhos por um momento.
Colo de mamãe fazia uma falta danada. Como eu gostaria de sentir as
mãos dela passeando pelos meus cabelos e de ouvir meu pai reclamando que
eu gastava mais com produtos de beleza do que a única mulher da casa.
Eu tinha a imortalidade pela frente e, provavelmente, nunca deixaria de
sentir uma falta imensa deles.
Sentei de novo na cama, assim que senti a presença de mais alguém dentro
da casa. Klaus estava parado na porta do meu quarto, de braços cruzados. O
capuz do manto cobria o rosto, mas eu sabia que era ele.
Minha nossa senhora protetora dos vampiros com dor de cotovelo! O que
ele estava fazendo ali?
— Mestre... — sussurrei. — Precisa de alguma coisa?
Ele baixou o capuz e me encarou, fazendo com que eu me sentisse uma
formiga.
— Não foi muito inteligente de sua parte contar o que aconteceu para
Aleksandra.
Entendi que o Mestre só estava ali para me dar um sermão. Suspirei e dei
de ombros, sem muita vontade de conversar.
— Não vai acontecer novamente — prometi ao me levantar. Resisti à
vontade de reverenciar, pois sabia que Klaus se irritava com o gesto vindo de
um Guardião.
Para minha surpresa, o Mestre entrou no meu quarto. Eu esperava que ele
se virasse e saísse tão silenciosamente como entrou, mas Klaus parecia mais
disposto a explorar a decoração da minha humilde residência. Não era nada
tão opulento quanto a Morada.
Fiquei tenso quando ele parou de frente para um porta-retrato em mosaico
e observou várias fotos minhas em diversos momentos da minha vida. Em
uma delas, eu estava vestindo apenas cueca, consequência de um dia em que
senti vontade de tirar fotos sensuais.
Podia ter parado por ali, mas ele continuou a explorar o ambiente e pegou
um caderno de cima da escrivaninha. Minha nossa! Que um raio caia agora
sobre o telhado dessa casa e impeça o acidente!
Ao ver que ele estava folheando as páginas, corri, pulando a cama como se
fosse um terrível obstáculo. Pretendia interceptá-lo e arrancar o objeto das
mãos do Mestre, mas não fui rápido o suficiente. Klaus já estava na página
em que eu desenhara um coração vermelho enorme e escrevera as nossas
iniciais dentro:

K&K
O desenho chamou sua atenção, mas ele não se demorou naquela página e
virou logo a próxima. Estiquei minha mão e puxei o caderno, arremessando-o
do outro lado do quarto.
— Deseja mais alguma coisa, Mestre? — Perguntei, polido. Precisava
manter um pedacinho do meu orgulho intacto.
Klaus olhou pela minha janela por um momento e, em seguida, deslizou o
dedo pelo mecanismo que fazia a persiana se fechar. Ele se virou de frente
para mim, a uns três metros de distância, e tirou o manto negro.
Fiquei dividido entre perguntar o que estava acontecendo e esperar até que
ele revelasse o que tinha em mente.
Klaus jogou o manto sobre minha cama e deu dois passos na minha
direção.
— O que você quer, Holtz? — Perguntou, a voz baixa e rouca.
— Eu?
Estava atônito. Não tinha certeza a que o Mestre se referia. Eu queria
tantas coisas que nem sabia por onde começar. Mas, Klaus não respondeu.
Manteve a expressão sombria, caminhando lentamente.
— O que você quer? — Repetiu a pergunta, os olhos azuis cravados em
mim.
Eraum olhar muito desafiador e extremamente excitante. Se eu
respondesse algo muito fora de contexto, poderia ser destroçado. Respirei
fundo, pensando se deveria arriscar a resposta que tinha em mente.
Quando ele parou a poucos centímetros de mim, quase não deixando
espaço para uma moeda passar entre nossos corpos, soltei o ar devagar.
— O quevocê quer? — Insistiu.
— Você — declarei, aflito. Se era para chutar o balde, então eu chutaria
com força.
Klaus segurou meu rosto com aquelas mãos enormes e os dedos longos
tocaram minha nuca. Ele puxou minha cabeça e me beijou devagar, enquanto
me empurrava para trás.
Aquilo.
Não.
Estava.
Acontecendo.
Era um sonho, só podia ser!
A boca do Mestre se encaixou na minha e, com os lábios, ele puxou o meu
inferior para baixo. Felizmente, apareceu uma parede bem atrás de mim, ou
então eu desabaria. Tateei a parede com as mãos, procurando onde me apoiar,
enquanto Klaus investia mais e mais.
Ele me pressionou e apoiou uma das mãosna parede, acima da minha
cabeça. A outra ele usou para pegar minha própria mão e a colocou sobre seu
peito. Estava me dando autorização para tocá-lo!
Estremeci quando uma de suas pernas abriu caminho entre as minhas,
acabando com qualquer espaço que ainda restava entre nós. O contato mais
próximo me possibilitou sentir o que havia entre aquelas pernas, com a
certeza de que já estava preparado para o que viesse a seguir. Pensei que
estava pegando fogo e tive medo de acabar numa combustão instantânea.
Desci minha mão pelo peito daquele vampiro exuberante e maravilhoso,
indo em direção ao maior troféu de todos. Senti os músculos rijos sob meu
toque e queria poder passar a língua em cada um deles, mas ainda não era o
momento. Uma etapa de cada vez, Kurt!
Revirei os olhos quando senti a língua do Mestre percorrer meu pescoço e
sua boca sugar minha pele.
— Me chicoteia — sussurrei, deixando a cabeça cair de lado. — Estou
morrendo!
Sem querer perder tempo, enfiei minhas duas mãos por baixo da camisa de
Klaus e toquei em sua pele. Passei meus dedos pela lateral do corpo dele e os
deslizei mais para baixo até sentir o jeans mais justo na região daquela bunda
insana.
E então, num piscar de olhos, todo aquele monumento em forma de
homem se afastou de mim. Não consegui me mexer, me faltava ação.
Permaneci imóvel, segurando a parede atrás de mim e tentando decifrar o que
acabara de acontecer.
— Recomponha-se, Holtz — ele ordenou, vestindo o manto novamente.
— Temos trabalho a fazer.
Eu iniciava diversas perguntas mentalmente, mas não conseguia terminar
nenhuma delas. Meu cérebro, definitivamente, não estava funcionando
direito.
Klaus parou diante de mim, com aparência e expressão de que nada havia
acontecido. Ele arqueou uma sobrancelha ao me encarar.
— O que está esperando?
Não havia uma forma correta para dizer o que estava acontecendo, sem
que eu fizesse papel de idiota. Mas o homem esperava pela resposta, então fui
o mais sincero possível.
— Não consigo... — pigarreei, derretido. — Não consigo me mexer.
A sobrancelha, antes arqueada, aumentou ainda mais o ângulo.
— Acho que minhas pernas estão bambas.
— Guardiões não ficam de pernas bambas — ironizou, olhando para baixo
e eu sabia que tinha visto o volume em minha calça. Ele não era cego.—
Honre esse título e pare de ser fraco.
Klaus não me deu tempo para pensar ou responder. Saiu do meu quarto e
eu tive que me forçar a ir atrás. Por mais que sua boca tenha tocado a minha,
o vampiro gostoso ainda era meu Mestre.
Caminhei pelo corredor do segundo andar com uma certa relutância,
sentindo meu corpo anestesiado. Desci as escadas e saí da casa, tomando o
cuidado de fechar a porta, apesar de ninguém mais morar ali.
O Mestre já estava bem mais à frente, caminhando lentamente no meio da
rua. Corri para alcançá-lo e andei ao lado dele, sem saber como iniciar uma
conversa. Não tinha nem certeza se ele queria conversar. Diga-se de
passagem, eu também preferia me ocupar com outras coisas que não fosse
jogar palavras ao vento.
— Sabe... — arrisquei, aumentando o tom de voz. — Eu falei o que
queria, mas não recebi nem um por cento do que pedi.
— Cuidado com o que deseja, Holtz.
— Sou um Guardião — respondi, usando o status que ele sempre jogava
contra mim. — Há poucas coisas, atualmente, com as quais preciso tomar
cuidado.
E explodir de prazer, querido Klaus, definitivamente não era uma delas!
Pensei, enquanto assobiava.
Será que Klaus era romântico e gostava de ir devagar? Fazer as coisas
lentamente, criando um clima?
Olhei para o Mestre, que parecia concentrado. Ele não tinha cara de quem
gostava de romantismo, mas as pessoas sempre podem nos surpreender.

CAPÍTULO 20

Que maldição! Tinha ido dormir cedo demais com raiva de Mikhail e
acabei acordando antes do esperado. As janelas ainda não estavam seladas e o
céu possuía aquele tom de um azul não muito escuro, avisando que em breve
amanheceria. Tentei pegar novamente no sono, mas só fiquei rolando de um
lado para o outro da cama.
Por fim, quando já estava de saco cheio de ficar sozinha no quarto, me
sentei na cama. Tapei o rosto com as mãos, praguejando contra meu coração.
Ele me fazia querer estar perto de Misha o tempo todo, mesmo quando eu não
devia. E ainda estava muito chateada com ele para dar o braço a torcer e ir
procurá-lo.
Sem conseguir ficar mais tempo parada, abri a porta do quarto e coloquei a
cabeça para fora. O silêncio pairava no ar e me fazia pensar se o Mestre
estava por ali.
Bati minha porta e caminhei até o quarto dele, já me sentindo estúpida de
não resistir por muito mais tempo. Coloquei a mão na maçaneta e testei para
ver se dava para abri-la. Ela não impôs nenhuma resistência, então a girei.
Dei uma espiadinha dentro do quarto e vi Misha deitado na cama, de costas
para mim. Ele vestia apenas uma calça cinza.
Caminhei devagar e silenciosamente, e engatinhei sobre os lençóis macios
com todos os fios de seda que se podia ter. Pensei apenas em me deitar ali ao
lado dele e continuar em silêncio, mas acabei me virando para beijar seu
rosto.
Eu não esperava pela reação dele quando meus lábios tocaram a pele da
sua bochecha. O vampiro voou em cima de mim, colando meu corpo no
colchão e fechando os dedos em volta do meu pescoço. O ar me faltou
quando tentei gritar e notei os olhos de Misha inteiramente negros, como eu
já vira outras vezes.
Eu me debati sob o corpo dele, tentando usar algum poder para me livrar
do ataque, mas meu nervosismo não deixou que nada funcionasse.
Senti as lágrimas tomarem meus olhos e meus pulmões arderem, quando,
finalmente, os olhos do Mestre voltaram ao seu habitual tom de azul.
Ele abriu a mão no instante em que pareceu me enxergar pela primeira vez
desde o ataque. Um barulho horroroso escapou pela minha garganta
conforme eu tentava inspirar e consumir todo o oxigênio que me era possível.
— Você ficou louca? — Rosnou, se levantando com pressa, como se
quisesse colocar uma boa distância entre nós.
Não me preocupei em responder. Enquanto me esforçava para continuar
respirando, sentei na cama e observei Misha andar de um lado para o outro.
Não demorou para que alguém batesse à porta do quarto e o entregasse uma
garrafa com água junto com um copo.
Aceitei a água que ele me ofereceu, usando o tempo que me ocupava
ingerindo-a para pensar no meu quase assassinato. Ainda estava tão trêmula
que tinha medo de deixar o copo cair.
— Nunca mais faça isso! — Mikhail falou, sentando-se ao meu lado e
deslizando os dedos pelo meu pescoço. — Eu podia matá-la facilmente.
— Por... que... — engoli a saliva, sentindo a garganta dolorida. — fez...
isso?
Ele franziu a testa diante da minha dificuldade para falar e segurou minha
mão, beijando as costas dela.
— Não dormimos como vocês, mas quando nos damos a oportunidade de
relaxar, entramos numa espécie de transe. Ataquei quando senti algo em meu
rosto, mas não recobrei a consciência tão rápido.— Misha estalou a língua e
se inclinou para beijar o lugar que estava machucado. Passei a mão pelos
cabelos dele quando me fez deitar de costas. —Dá para ver as marcas dos
meus dedos e vai ficar um hematoma, pois não posso te dar um pouco de
sangue para curá-la.
Ele ajeitou os travesseiros sob minha cabeça e se deitou ao meu lado.
Fechei os olhos, tentando ignorar a dor que irradiava por todo o meu pescoço.
Abri apenas um olho para ver Mikhail sair com pressa do quarto e não
senti vontade de perguntar para onde ia. Passei algum tempo sozinha,
colocando meus pensamentos em ordem, até sentir que ele tinha voltado.
— Consegui alguns comprimidos para dor — explicou, a cartela de
remédio em sua mão, e me entregou duas cápsulas.
Ele se deitou ao meu lado e passou um braço pela minha cintura para me
puxar junto ao seu corpo.
— Você tem alguma noção de como eu me sentiria se tivesse quebrado
seu pescoço? — Perguntou, o tom de pesar predominando na voz.
Choraminguei, arrependida pela minha ideia de fazer um charminho para
um vampiro adormecido. Da próxima vez, eu fecharia a porta do quarto com
bastante força para anunciar minha chegada.
— Onde foi parar toda aquela decisão de dormir sozinha? — Ele
perguntou, deixando escapar uma risada.
— Perdi... o sono...
— Entendo.
A verdade, que ele nunca ficaria sabendo, é que eu não conseguia resistir a
ele, ciente de que estava tão perto de mim, no quarto ao lado.
Eu me aconcheguei contra o corpo forte e descansei a cabeça no braço de
Misha. Estava prestes a adormecer, sentia seus dedos num carinho delicado
em meus cabelos, quando ele começou a se afastar de mim.
— O que... foi? — Perguntei, abrindo os olhos com preguiça.
— Klaus está me chamando.
— Jura? — Trinquei meus dentes. Claro que ele estava atrapalhando.
Klaus era como uma pedra no meu sapato.
— A mim e a Nikolai. — Mikhail sorriu, passando a mão pelo cabelo.
— Nós vamos mesmo fazer a tal viagem alucinante? — Perguntei antes de
Misha sair.
— Vamos. Pode ser que Klaus tenha razão e encontremos uma explicação
plausível para o que vem acontecendo com você.
Ele talvez tenha percebido, pela minha expressão, que eu não levava muita
fé na viagem. Mikhail arqueou uma sobrancelha e se encostou na porta, me
olhando.
— É possível que seja perda de tempo, admito. Mas, como você tem
horror à ideia de se tornar vampira, acho melhor torcer para que possamos
esclarecer toda essa confusão.
Ele saiu do quarto e me deixou com a sensação de ter algo entalado na
garganta. Precisava ter uma conversa mais séria com Mikhail e dizer algumas
coisas que andavam habitando minha mente, mas nunca encontrava uma
oportunidade. E não era o tipo da coisa que eu queria contar rapidamente,
num momento turbulento ou estressante.
Deitei e puxei o travesseiro que ele tinha usado. A fronha preta estava
impregnada com o cheiro inebriante do Mestre e eu grudei meu rosto ali, para
me sentir próxima de Misha.
CAPÍTULO 21

MIKHAIL
Niko e eu perdemos um tempo precioso ouvindo as teorias de Klaus sobre
nossa viagem. Depois, ele se ocupou em dar ordens do que Nikolai deveria
ou não fazer enquanto nós estivéssemos fora da Fortaleza.
Designou também funções para Nadia e Vladimir quando eles se juntaram
a nós na reunião. Ambos estavam insatisfeitos com a nossa viagem porque
isso significava alguma responsabilidade nas costas deles.
Eu costumava achar que nossos irmãos mais novos tinham mesmo que ser
mais ativos, mas Klaus, por não querer lidar com eles ou não se importar,
acabava deixando que vivessem à toa, sem maiores preocupações.
— O que vocês esperam que aconteça em Oymyakon? — Nadia
perguntou, cruzando as pernas com sua atitude arrogante de sempre. — Por
que algum dos antigos deuses perderia tempo com a humana detestável?
— Se esses mesmos deuses perderam tempo com você, podem fazer isso
com qualquer outra pessoa — respondi. — A pior parte já passou.
— É uma viagem inútil! — Esbravejou, se levantando. — Por que vocês
se importam tanto com ela? Não lembro de dispensarem a mesma atenção ao
Rurik.
Era absurdo que Nadia estivesse comparando meu falecido irmão traidor a
minha namorada humana. Havia um motivo para tal comparação? Eram casos
e pessoas completamente diferentes, com motivações diferentes e históricos
distintos.
Olhei para Klaus, que demonstrava ter perdido a paciência com nossa irmã
e estava pronto para encerrar a reunião. Nadia, no entanto, parecia querer
estendê-la.
— Por que nunca tocamos no assunto Rurik? Vocês parecem não lembrar
que nosso irmão está morto!
Klaus, que estava do outro lado da mesa, passou por cima dela e derrubou
a cadeira de Nadia para trás. Ele apertou os dedos em volta da garganta dela,
fazendo com que gotas de sangue escorressem pelos locais onde suas unhas
tocavam.
— Eu lembro da morte dele, querida — sorriu. — E o mataria de novo. E
mais uma vez. O mataria quantas vezes fosse possível. E ia adorar repetir
isso.
Eu também me levantei, mas não me juntei a eles. Avisei que estaria
cuidando de coisas mais importantes e saí da sala na companhia de Nikolai.
Passamos o restante da manhã trabalhando a respeito dos retratos dos
traficantes. Era de máxima importância que aquele caso permanecesse em
sigilo e, diante de tantos vazamentos de informações recentes, só podíamos
confiar nos Guardiões.
Por volta da hora do almoço dos humanos, voltei para meu quarto.
Estaquei ao encontrar Sasha numa posição bem estranha. De onde eu estava,
só conseguia ver o tronco e as pernas dela estendidas sobre a cama e a cabeça
para fora, pendurada para baixo. Parecia morta. Dei a volta o mais rápido que
pude e a encontrei de olhos abertos.
— Oi!
— O que, exatamente, você está fazendo? — Perguntei.
— Você sabe como é difícil não ter nada para fazer? — Ela se sentou na
cama, ajeitando os cabelos bagunçados. — Estava curtindo um tédio.
Dei uma rápida olhada à minha volta. Havia um livro no chão, virado de
cabeça para baixo e uma toalha molhada pendurada sobre o encosto da minha
estimada poltrona. Notei duas ou três camisas minhas amarrotadas em cima
da cama e pressionei os lábios para evitar cravar os caninos naquele
pescocinho fino. Sasha era como um furacão em meio a minha organização
milenar.
Meus olhos abandonaram o cenário e focaram nela. Vestia apenas uma das
minhas camisase as coxas brancas estavam expostas. Os cabelos úmidos
indicavam o banho recente e pensar no corpo dela molhado me fez ter uma
ideia muito interessante.
— Vamos até a piscina — falei, esticando a mão para ela.
— Sério? — Sabia que gostaria da proposta e seus olhos brilharam. — Eu
adoraria nadar, mas não tenho as melhores recordações daquele lugar.
O comentário chegou afiado aos meus ouvidos e me lembrei do que
aconteceu da primeira vez em que a levei até a piscina. A ira me fez querer
torcer o pescoço de Aleksandra ao ouvi-la trocar meu nome pelo de Vladimir.
Precisei me controlar muito para não matá-la, mas não foi possível resistir à
vontade de agredí-la. Lembro que a feri naquele dia, física e emocionalmente.
Eu a observei enquanto andava de um lado ao outro do quarto, cheia de
energia. O desentendimento parecia ter sido há tanto tempo. Eu havia me
transformado num ser incapaz de fazer qualquer mal àquela criatura.
— Não tenho biquíni. — Ela se sentou com os ombros caídos quando
chegou àquela conclusão. — Mas que droga! Lógico que não tenho um, não
é? Não estou aqui de férias.
— Você não precisa de nenhum traje de banho.
—Não posso nadar pelada! Ficou louco? — Ela me olhou como se minha
sugestão fosse a coisa mais degradante do mundo.
— Ninguém usa aquela piscina, Sasha. Você não será flagrada sem
roupas.
— Você é muito ingênuo por pensar assim. Eu sou naturalmente azarada.
— Ela cruzou os braços. — É claro que vai aparecer alguém.
— Você quer ou não quer ir?
Ela franziu os lábios até que eles formaram um bico. Por fim, estiquei
minha mão para encerrar o assunto de vez. Ou ela segurava em mim e me
deixava levá-la até lá ou eu não insistiria mais.
Sasha suspirou e colocou a mão sobre a minha. Sorripor não ver a hora de
tê-la dentro d’água, nua em meus braços.

O salão silencioso parecia diferente de tudo mais que havia no mundo.


Eusequer lembrava qual fora a última vez que estive ali antes da chegada de
Sasha à Fortaleza. Podia dizer o mesmo dos meus irmãos e, agora,
observando a calmaria e a placidez da água cristalina, percebia como éramos
tolos por não usarmos o local com mais frequência.
Sasha caminhou devagar pela borda da piscina e descalçou os sapatos.
Observei um de seus pés tocarem a água e ela sorrir, satisfeita com a
temperatura. Depois, virou o rosto e me encarou com inocência.
— Está uma delícia!
— Você ou a piscina? — Perguntei ao me aproximar. — Porque para que
eu possa concordar, primeiro preciso provar um pouco de cada.
O ritmo cardíaco de Sasha aumentou bruscamente com minha sugestão e
ela mordeu o lábio inferior. Eu me despi para incentivá-la a fazer o mesmo e
mergulhei de cabeça. Era sempre uma sensação estranha demais. Humanos
estavam acostumados a terem seus movimentos mais pesados quando
submersos na água. Para nós, era um pouco desagradável não sentir nossa
leveza e rapidez naturais.
Joguei um pouco de água no rosto e olhei para cima, na direção de Sasha.
Ela ainda estava desconfortável com a situação e olhava atentamente em
volta, como se de repente alguém fosse aparecer.
— Vou precisar trazê-la à força até aqui? — Perguntei. — Você sabe que
posso fazer isso sem sair do lugar.
Ela começou a se despir. Reprimi um sorriso ao testemunhar seus
movimentos apressados e desajeitados, e nadei até chegar mais perto.
— Só não quero estar pelada caso algum mitológico invada a Fortaleza...
— Nenhum mitológico vai invadir novamente — eu a tranquilizei. — O
jogo virou. Eles agora são a caça e estão fugindo de nós.
— É mesmo? — Ela cruzou os braços para esconder os seios fartos que já
estavam me animando. — Que animal era aquele que correu atrás de mim da
última vez em que pisei lá na rua?
Eu apenas sorri, pois não queria começar a falar sobre os malditos
mitológicos. Minha mente só conseguia processar uma informação naquele
momento: possuir a ruiva diante de mim.
— Sério, vocês são muito inocentes se acham que eles não estão
preparando mais nenhum ataque — ela continuou.
Sasha teve que descruzar os braços para poder tirar a calcinha e ela sabia
que era inútil tentar tapar alguma coisa. Completamente nua, a ruiva deu três
passos à frente e pulou de barriga na piscina, espalhando água e fazendo
ondas para todos os lados. Nada elegante.
Esperei que ela viesse até mim e quando se aproximou, a enlacei com
meus braços. Senti seus mamilos rijos tocarem minha pele e meu desejo se
tornou ainda mais forte. Não houve nenhum obstáculo que me impedisse de
penetrá-la naquele instante, arrancando seus suspiros.
Sasha jogou a cabeça para trás, apertando os braços em volta do meu
pescoço e deixando que gemidos excitantes escapassem de seus lábios. Eu a
penetrei mais fundo, puxando seu quadril com força contra o meu. Senti os
dedos finos e delicados passearem pelo meu couro cabeludo e agarrarem
meus cabelos, enquanto eu investia rapidamente.
— Você é tão perfeita para mim... — sussurrei no ouvido dela ao encostá-
la contra a parede da piscina e esticar minhas mãos sobre a borda de pedra.
Ela agarrou meu rosto e me beijou, passando a língua quente pelos meus
lábios. Depois a levou para mais longe, descendo pelo meu maxilar e
deixando uma trilha de chupões em meu pescoço. Não ficaria nenhuma
marca, mas era interessante vê-la se esforçar.
Quando levantou a cabeça, seus olhos brilhavam e a imagem que eu tinha
era de puro tesão. Os lábios levemente afastados, as maçãs do rosto coradas.
— Eu te amo — ela disse, ofegante. — Te amo, te amo, te amo. Seu
maldito.
Diminuí o ritmo, deixando que Sasha se deleitasse um pouco com meu
corpo, rebolando com as pernas enroscadas em minha cintura. De olhos
fechados, pude sentir as pequenas mãos passearam pelos meus ombros e
alisarem minhas costas. Por cada centímetro de pele onde passava, ela roçava
as unhas de leve, me enlouquecendo de prazer.
Quando não aguentei mais aquela tortura, recuperei meu ritmo e fiz as
costas da ruiva chocarem-se contra os azulejos da piscina. Ela gemeu uma,
duas, três vezes antes de estremecer sob minhas investidas e aos poucos
relaxou em meus braços.

CAPÍTULO 22

Sabia que estava dentro d’água, mas sentia como se estivesse suando. De
uma coisa eu tinha certeza: com as atividades às quais Mikhail me submetia
eu nunca mais engordaria. Era obrigada a queimar muitas calorias para
acompanhar o ritmo do homem das cavernas.
— Cansou? — Ele perguntou quando me afastei para nadar.
— Pode parecer, mas não sou vampira. Como poderia não cansar?
Deixei meu corpo boiar rente à superfície d’água e senti que Misha me
rodeava, prestando atenção a tudo que eu fazia. Sobre nossas cabeças, o teto
de vidro possibilitaria que a luz da lua iluminasse a piscina, mas como
estávamos no meio da tarde, o ambiente estava selado como todos os outros
do prédio.
Vi o Mestre se movimentando ao meu lado e observei quando ele apoiou a
cabeça na borda da piscina, voltando os olhos para o teto. Mergulhei e nadei
por baixo d’água na direção dele, me deliciando com Mikhail totalmente nu,
em toda sua glória. Quando toquei seus tornozelos, fui subindo devagar,
esfregando meu corpo no dele até emergir e encará-lo.
— Gosta do que vê? — Ele perguntou, com um olhar presunçoso.
Estalei a língua, fingindo não me abalar com seu corpo.
— Poderia ser melhor.
Mordi meu lábio com força ao alisar o abdômenmusculoso, deslizando
minha mão mais para baixo até alcançar o que eu queria. Mikhail sorriu,
muito confiante. Mas eu logo o soltei, porque ainda não queria começar uma
nova transa. Precisava conversar com ele sobre um assunto que vinha
adiando há uns dias, pois nunca encontrava um momento apropriado.
— Preciso te dizer uma coisa... — comecei, escolhendo minhas palavras.
— Diga.
— É algo que venho pensando e ainda estou um pouco receosa, mas você
precisa saber.
Mikhail era sempre direto e não gostava de conversas que davam muitas
voltas, portanto, esperou que eu continuasse, me encarando de forma
tranquila. Eu, no entanto, estava mais nervosa do que nunca e sabia que ele
podia ouvir meus batimentos cardíacos.
— Quero ser transformada — declarei, olhando-o nos olhos. — Não nesse
exato instante, mas decidi que é isso o que euquero.
Numa fração de segundo notei a surpresa estampar o rosto dele, mas
Misha tinha muito autocontrole para expor suas emoções. Toda a reação que
me mostrou foi um arquear de sobrancelha, enquanto encarava meu pescoço.
— Está mesmo decidida?
— Sim, estou — passei a língua pelos lábios e toquei o peito dele. —
Você sabe que eu não tomaria essa decisão de uma hora para outra. Estou
pensando muito sobre isso desde que acordei do meu pequeno coma.
Vi um sorriso discreto se formar aos poucos nos lábios de Mikhail e me
senti mais decidida do que nunca. Ele segurou minha mão trêmula e tocou
minha cintura, grudando-me em seu corpo ao me envolver com os braços.
— Você será feliz como vampira e me fará feliz também. — Ele beijou
minha boca. Em seguida, afastou o rosto para me olhar nos olhos e pousou a
mão em meu peito. — Sei que você é forte demais aqui dentro para seu corpo
frágil e tão humano. Acredite em mim, será libertador para você.
— Você está ciente que, se terminar comigo, eu serei uma ex-namorada
imortal, não é?
— Isso não acontecerá.
— Terminar comigo ou eu ser imortal? — Perguntei, me divertindo. —
Porque se eu me transformar, serei imortal.
Ele inclinou a cabeça para o lado.
— Vampiros também morrem. — Mikhail respondeu, sombrio. — A
maioria, nas nossas mãos.
Eu revirei os olhos.
— Ah, então você está dizendo que se nós dois terminarmos, você vai me
matar?
— Talvez — ele deslizou a mão pelo meu pescoço, com um ar ameaçador,
mas eu sabia que estava brincando. — Melhor não tentar descobrir.
Abafei uma risada e Misha enfiou os dedos em meus cabelos,
aproximando o rosto do meu. Ele abaixou os olhos quando nossas testas se
tocaram e suspirou.
— Você não vai ouvir isso muitas vezes de mim, então ouça com atenção
— ele fez uma pausa e me encarou. — Eu te amo, Aleksandra!
Eu te amo. Eu. Te. Amo.
As palavras me arrebataram e se eu não estivesse grudada ao corpo dele,
teria desfalecido na piscina. Meu coração quase parou de bater.
Oficialmente, era a primeira vez que ele me dizia aquela frase. E eu não
esperava ouví-la tão cedo, visto que havíamos acabado de passar por alguns
problemas. Não consegui evitar que lágrimas escorressem pelo meu rosto,
mas como eu já estava toda molhada, Mikhail pode não ter percebido.
Sabia que devia ter sido difícil para ele, todo avesso à romance e frases
melosas, proferir aquelas palavras. Eu o abracei e sussurrei o mesmo de volta,
sentindo meu corpo inebriado de felicidade. Não queria soltá-lo, pois tudo
parecia tão mágico, tão certo, que eu tinha medo que acabasse de uma hora
para outra.
Quando Misha se movimentou pela piscina, ainda abraçado a mim,
aproveitei para enlaçar a cintura dele com minhas pernas. Ele não se livraria
tão facilmente.
— Quando essa maldita guerra acabar e você se sentir preparada,
poderemos dar início à sua transformação — disse ele.
— E se não der certo? Por causa desse meu... — apontei para os cabelos
— probleminha?
— Não será um empecilho, mas de qualquer forma, vamos viajar
justamente para tentar descobrir algo sobre essa situação.
— E eu posso ser Guardiã?
Ele estreitou os olhos e franziu o nariz, deixando claro que a possibilidade
não o agradava.
— Você acha que vou transformá-la para se tornar um soldado? De jeito
nenhum.
— Quero ser mais útil que a Nadia. Afinal, o que ela faz com os dias
infinitos dela?
O fato do Mestre ter realmente parado para pensar e demorar tanto para
responder, já dizia tudo. Ele franziu os lábios e desviou os olhos.
— Digamos que Nadia não seja muito útil.
— Imaginei — ri.
— Por que o nome da minha irmã chegou a essa conversa enquanto
estamos nós dois aqui, completamente nus? — Ele estalou a língua e me
lançou um olhar reprovador.
Mikhail jogou a cabeça para trás e rosnou, para depois me beijar de forma
urgente. Senti os dedos enroscarem em meus cabelos e puxarem minha
cabeça para o lado. Percebi que estava prestes a ser mais uma vez invadida
por ele quando a porta do salão foi escancarada de forma estrondosa.
Apertei meus braços ao redor do pescoço do Mestre quando olhamos para
o lado. Klaus se aproximava da piscina e eu tentei imaginar se a transparência
da água revelaria muita coisa. Esperava que não.
— O mundo acabando e vocês dois fornicando, como sempre! — Ele
bateu palmas.
— Se você também fizesse isso mais vezes, se tornaria uma pessoa mais
agradável — rebati.
Tudo bem, eu não devia ter provocado, admito. Minha língua ficava cada
vez mais afiada quando Klaus estava presente e rebater as provocações dele
tinha se tornado uma ótima interação.
Senti os braços de Misha me apertarem com muita força quando meu
corpo parecia querer levitar para fora da piscina. O meu Mestre rosnou com
fúria para o irmão.
— Pare de puxá-la, Klaus! — Ordenou Mikhail.
— Ela merece ficar girando nua no ar só para deixar de ser petulante.
Era grande a força que Klaus exercia para me tirar da piscina. Por sorte,
Misha não me soltou e o irmão desistiu da ideia tenebrosa. Achei que um
pedido de desculpas seria útil, visto que nós passaríamos alguns dias juntos
na bendita viagem e eu não queria um clima chato entre nós. Ele seria meu
cunhado.
— Tudo bem, sinto muito pelo que falei — pigarreei. — Não tenho nada a
ver com sua vida amorosa.
— Vista-se e venha comigo, Aleksandra.
— Eu não fiz nada de errado!
— O que quer com ela, Klaus?
O Mestre nos encarou por mais alguns segundos e nos deu as costas sem
responder a pergunta de Mikhail. Ele me soltou e eu nadei até a borda da
piscina, ainda curiosa para saber o que Klaus queria comigo.
A dúvida foi sanada antes que ele passasse pela porta. Klaus parou com a
mão na maçaneta e virou-se para trás. Seus olhos cruzaram com os meus e
notei que brilhavam.
— É melhor vir, se quiser evitar que eu mate seu pai.
Quando ele saiu, não pensei duas vezes e corri para me vestir. Klaus se
esforçando para não matar meu pai não podia ser uma boa coisa. Calcei meus
sapatos com pressa e saí aos pulos atrás dele, enquanto Mikhail andava ao
meu lado com os cabelos ensopados. Os meus não estavam em situação
diferente, mas eu os amarrei mesmo assim, num rabo de cavalo bagunçado.
Nós seguimos Klaus até o salão de apresentações, mas quando nos
aproximamos, ele tocou o peito de Mikhail e o impediu de entrar.
— Eu não chamei você. Quero poupar ceninhas de ciúmes entre pai e
namorado porque não tenho tempo para algo tão banal.
— Detesto dizer isso, mas ele tem razão — falei, olhando para Mikhail. —
Menos uma coisa para meu pai implicar.
“Não gosto da ideia de deixá-los a sós com Klaus, mas ficarei em meu
quarto. Use seu poder e tente me chamar, caso meu irmão perca a cabeça.”
Era exagero de Mikhail, mas não comentei isso com ele. Quando me
deixou a sós com Klaus, o Mestre mais velho se virou para mim e cruzou os
braços.
— Fiquei encarregado de contar ao seu pai sobre a viagem, mas ele não
acreditou em mim — ele riu com escárnio. — Johnathan acha que nós a
matamos e estamos usando a viagem como desculpa.
— Ele pensa que estou morta? — Tapei a boca, chocada. — O que você
disse para ele pensar assim?
— Absolutamente nada. Apenas falei o que eu penso sobre você.
Nós nos encaramos pelo que se pareceu um século, enquanto eu decidia se
respondia ou não. Por fim, tomei a frente de Klaus e entrei no salão para
encontrar meu pai. O pobre homem estava de costas para mim e diante das
cadeiras que os Mestres usavam.
— Pai — chamei e ele se virou, andando com pressa na minha direção.
Pela forma como meu pai me abraçou, devia mesmo ter pensado que eu
estava morta. Era o tipo de abraço que a gente dá numa pessoa que a gente
achou que não veria nunca mais. Atrás de nós, o Mestre pigarreou.
— Como pode constatar, Johnathan, sua filha está viva e gozando de
muita saúde.
Meu pai me soltou e olhou para Klaus, que parou ao nosso lado e o
encarou de forma ameaçadora.
— Creio que seja melhor para sua família que você se acalme e se
recomponha.
— Eu ainda não concordei com a tal viagem absurda, Mestre — disse meu
pai. — Não quero minha filha lá fora.
Klaus era mais alto que meu pai e se curvou na direção dele. Os rostos dos
dois ficaram tão próximos que, se o vampiro abrisse a boca, meu pai sentiria
o hálito dele. Eu engoli em seco, sabendo que aquele Mestre não era tão
benevolente quanto Mikhail.
“Seu pai está cruzando os limites, Aleksandra...” — O Mestre me alertou
em pensamento. — “Isso não acabará bem.”
— Informar a situação a você foi apenas um gesto de cortesia de minha
parte, mas a sua opinião não será levada em conta, Johnathan. — A voz de
Klaus ganhou um tom mais grave. — O assunto está encerrado e, você,
dispensado. Volte para sua família.
Klaus tocou meu pulso, indicando que eu devia acompanhá-lo para
deixarmos o salão, mas antes que eu pudesse dar dois passos, meu pai reagiu.
Ele fechou os dedos no local onde o Mestre me tocava. Isso significava que
estava tocando o próprio Klaus. Era quase o mesmo que assinar uma sentença
de morte.
— Não! — Gritei, já adivinhando o que aconteceria.
Não fui rápida o bastante, pois antes de conseguir proteger meu pai da
fúria do Mestre, o corpo dele foi arremessado para o alto. Ele bateu com as
costas no teto e se estatelou no chão, cuspindo sangue pela boca.
Corri para ajudá-lo a se levantar, mas Klaus impediu que eu me
aproximasse, arrastando meu pai para o outro lado do salão.
— Pare com isso! — Pedi, correndo. — Não toque nele, Klaus!
Era inútil pedir. Enquanto eu ainda corria até lá, o Mestre já estava sobre
meu pai, que tentava se levantar sem sucesso. Klaus o agarrou pelos cabelos,
erguendo o corpo dele até tirá-lo totalmente do chão.
— Acho que você esqueceu com quem está lidando, Johnathan.
— Sinto... muito... — meu pai sussurrou.
Klaus, no entanto, não queria saber de desculpas. Ele expôs as presas
afiadas, cravando os caninos no pescoço do meu pai. Corri mais rápido, me
lançando sobre as costas do Mestre e puxando o manto dele.
— Solte-o!
Era inútil tentar apelar para alguma lucidez de Klaus, visto que ele não
possuía nenhuma. O que pretendia? Matar meu pai?
Respirei fundo e me concentrei em meu poder, partindo para o ataque.
Pulei novamente em suas costase enfiei minhas unhas na pele exposta do seu
pescoço. Fiz com que sangrasse e puxei o vampiro com toda a força que
sentia correr pelo meu corpo. Eu mal consegui fazer com que o Mestre se
mexesse.
Sem saber mais o que fazer e vendo meu pai perder cada vez mais sangue,
apelei para a coisa mais absurda que passou pela minha cabeça. Puxei o
manto o máximo que pude e mordi o ombro de Klaus. Obviamente, eu não
tinha caninos afiados como os vampiros, mas a força que empreguei na ação
foi suficiente para rasgar a pele dele.
O Mestre urrou e soltou meu pai, que desabou no chão sem conseguir
reagir. Eu não tive como ajudá-lo, pois Klaus jogou o braço para trás e me
puxou pelos cabelos.
— Acha que seus poderes a impedirão de morrer, Aleksandra? — Rosnou.
— Não — cuspi saliva com o sangue dele —, mas estão me ajudando a te
ferir.
Ele sorriu e fechou uma das mãos em meu pescoço, apertando sem
piedade. Eu ainda não conhecia alguma forma de utilizar meu poder para
poder respirar melhor, então logo fiquei sem ar. Parecia que a qualquer
instante Klaus esmagaria minha traqueia, mas não me abati. Chutei na altura
do estômago dele, que cambaleou, mas não me soltou. A cada chute que eu
acertava, ele fechava ainda mais os dedos.
— Sasha... — ouvi a voz do meu pai, mas não conseguia enxergá-lo.
— Tenho que admitir que é excitante ter alguém com quem brincar. —
Klaus sorriu. — Meus irmãos são muito entediantes. A única que me dá
motivos para diversão é Nadia, mas ela não aguenta muito tempo.
O brilho nos olhos de Klaus acusava que ele parecia mesmo dizer a
verdade. O Mestre era tão arrogante que toda a nossa briga não devia passar
de diversão para ele. Uma distração em meio a tantos assuntos chatos para
resolver.
Com a mão livre, Klaus tocou a mordida do ombro e olhou para o próprio
sangue. Ele me encarou, sem se importar com os arranhões que eu deixava
em seu braço.
— Nadia, definitivamente, nunca me mordeu. Você é uma pequena
selvagem, Aleksandra!
Então, como num passe de mágica, Klaus me soltou. Quando meus pés
tocaram o chão, curvei meu corpo, tentando inspirar o mais profundamente
possível. Precisava urgente de todo o ar do mundo.
— Para sua sorte, assim como sou incapaz de matar Nadia, também não
consigo fazer isso com você. Vai ser bom ter uma vampira entre nós com o
seu temperamento para agitar as coisas.
Apoiei as mãos nos joelhos e contei até dez, implorando para recuperar
minhas forças.
— Não me compare... — balbuciei, tentando aumentar o tom de voz — à
sua estúpida irmã. — Finalmente consegui ficar ereta sem sentir meus
pulmões arderem como se estivessem em chamas. Levantei o rosto e olhei
para Klaus. — Sou muito melhor que Nadia.
— É mesmo? — A voz irritante da mulher indicava que ela estava bem
atrás de mim.
Antes de me virar, a expressão de Klaus mudou. Ele exibiu um sorriso e
recuou dois passos, cruzando os braços. Girei sobre os calcanhares e encarei
a vampira a menos de um metro de mim.
Meus olhos também captaram a imagem do meu pai ainda caído no chão,
tentando se recuperar. O ferimento no pescoço dele sangrava e precisava ser
tratado o quanto antes, pois ele continuava perdendo sangue.
— Klaus pode ser incapaz de matá-la, mas eu garanto que não sou. —
Nadia avisou.
Não tive tempo de pensar muito. Ela se lançou na minha direção, com a
boca aberta e os caninos expostos, prontos para o ataque. Sem saber o que
fazer, empurrei meu braço contra ela, mais ou menos como fiz com os
Guardiões.
Nadia se chocou contra a parede oposta e ouvi a risada de Klaus atrás de
mim. Ela ficou surpresa, olhando em volta, sem acreditar que tinha sido obra
minha. E, quando correu de novo na minha direção, estiquei minhas duas
mãos à frente do corpo. Ela foi lançada de volta para o mesmo lugar e,
enquanto me aproximava, grudei o corpo dela na parede.
— O que você estava dizendo? — A desafiei. — Algo sobre me matar?
— Solte-a, Sasha!
Senti as mãos pesadas de Mikhail sobre meus ombros. Queria poder
manter Nadia mais alguns minutos presa ali, mas sabia que só iria piorar a
situação entre nós duas. Eu mostrei o que podia fazer, isso já devia ser o
bastante para que me deixasse em paz.
Eu soltei a vampira, que tentou avançar em mim no instante em que baixei
os braços. Klaus, no entanto, segurou a irmã e a retirou do salão. Antes de
sair, ele me olhou com um sorriso no rosto e eu mantive minha expressão
séria. Ainda não tinha esquecido que ele quase matara meu pai.
— Por que não me chamou? — Mikhail interrogou. — Você é louca?
— Eu consegui encarar Klaus. Sozinha.
— Sim, conseguiu. E agora está com o cabelo quase todo branco.
Parabéns!
Não havia nenhum espelho no qual pudesse me ver, mas o piso negroe
polido do chão era tão brilhante que podia ver o meu reflexo nele. Para meu
horror, Mikhail estava coberto de razão; o branco cobriu quase que oitenta
por cento dos meus cabelos. Parecia que eu tinha pintado tudo de branco e
feito poucase finas mechas laranjas. Seria impossível continuar escondendo.
Sem querer pensar nas consequências, corri até meu pai e pressionei a
ferida dele. Seus olhos indicavam que estava acordado, mas não muito
consciente do que acontecia à sua volta.
— Misha! — Chamei.
Eu não precisava explicar, ele sabia o que precisava fazer e logo se
agachou para fechar a ferida no pescoço de meu pai.
— Você vai começar com esse negócio de me chamar pelo apelido? —
Perguntou ele, olhando para mim.
— Você me chama pelo apelido. Acho Mikhail muito sério.
O Mestre levantou, passando a mão pelos cabelos e olhando em volta. Eu
ajudei meu pai a se sentar, mas percebi que ele não tinha condições de
caminhar até o quarto. Ele piscou de forma demorada e suspirou. Quando
abriu os olhos, segurei em suas mãos e aproximei meu rosto do dele.
— Pai, eu sei que você daria a vida para me proteger, mas precisa deixar
que eu trilhe meu próprio caminho. — Beijei sua mão. — Eu estou bem e em
boas companhias.
— Essa viagem... — ele falou, mas começou a tossir.
— É arriscada, mas eu tenho que ir. Só assim terei alguma chance de
descobrir o que está acontecendo comigo. Olhe meus cabelos — eu ri sem
vontade. — Todos nós sabemos que o que está acontecendo não pode ser
uma coisa normal.
— Você... lutou com dois Mestres...
Eu não sabia se meu pai estava chocado ou orgulhoso, mas foi difícil
conter o sorriso que se formou em meus lábios.
Eu tinha mesmo lutado com dois Mestres! Tinha consciência de que Klaus
não me matou porque não quis. Ele não usou nem metade da força que tinha
quando apertou meu pescoço. Porém, ele me deixou tentar e eu realmente
tive alguns resultados.
No entanto, com Nadia havia sido diferente. Enquanto a atacava eu
conseguia sentir meu poder. Senti que a minha força se sobrepôs à dela. Se eu
parasse mesmo para pensar naquilo, acabaria surtando.
Levantei, ajeitando os cabelos e me sentindo poderosa. Não é que esse
negócio de poderes sobrenaturais combinava mesmo comigo?
Abracei papai e dei um beijo no rosto dele.
— Diga para mamãe e Victor que eu precisei viajar, mas voltarei em
breve, ok? — Pedi. — Não vou me despedir deles para não causar mais
confusão.
Papai me encarou de ombros caídos, com uma expressão derrotada. Então,
ele levantou os olhos para olhar o Mestre e estufou o peito.
— Que Deus te proteja — com as pontas dos dedos indicador e médio, ele
tocou a cabeça, depois o peito e, por fim, os ombros. Um gesto que eu
desconhecia.
Ao meu lado, ouvi uma risada sarcástica deixar os lábios de Misha,
mesmo que ele não demonstrasse achar graça. Pegou meu pai com
brutalidade pelo braço e saiu com pressa do salão, me deixando para trás.
CAPÍTULO 23

KURT
Eu me sentia vivo, leve, brilhante, repleto de energia. Essa era a sensação
que um terno italiano causava numa pessoa com bom gosto para roupas. Já
estava de saco cheio de ter que vestir aquele uniforme preto sem nenhum
atrativo. O tecido não tinha um bom caimento e não favorecia meu corpo. Eu
me sentia perdido, sem vontade de viver, por não saber quando eu poderia
vestir novamente uma roupa de alta costura.
Então, tive a ideia de fazer uma busca pela Fortaleza. Muitas lojas ainda
estavam inteiras e, obviamente, não havia saqueadores ali dentro. Na noite
anterior, andei pelas ruas desertas até uma de minhas lojas favoritas. O
interior estava um caos, mas por sorte, o estoque permaneceu intacto.
— Olá, belezinha! — Cumprimentei um terno grafite da Armani, com
corte impecável.
Quase tive um orgasmo quando o vesti e conferi que cabia perfeitamente
em mim. Nós dois seríamos grandes amigos.
Como eu não tinha dinheiro ali, peguei um pedaço de papel, escrevi meu
nome e cargo dentro da Fortaleza e coloquei embaixo da caixa registradora.
No futuro, o dono da loja poderia me cobrar que eu o pagaria pela roupa.
Caminhando pelos corredores da Morada, voltei a me sentir muito bem.
As pessoas me olhavam com atenção, deslumbradas com minha beleza e
elegância. Até que dei de cara com o homem dos meus sonhos e ele me fez
parar.
— O que você está fazendo, Holtz? — Klaus perguntou.
— Vivendo! Sendo feliz!
— Onde está seu uniforme?
— Dobrado, em cima da minha cama — sorri. — Se não se importar,
prefiro me vestir adequadamente quando não estiver trabalhando.
Senti sensações deliciosas nas minhas partes baixas quando notei que
Klaus observava cada centímetro do meu terno. Ou seria do meu corpo?
Ah, eu não sabia dizer ao certo. O que importava era que ele estava com
os olhos azuis grudadinhos em mim.
— Ser Guardião não é um trabalho, é uma nova vida — disse ele,
cruzando os braços. — Você deve estar sempre preparado.
— Bem, se eu tiver que ir para a guerra... — suspirei, alisando minha
gravata de um lindo tom magenta —, que eu vá de Armani. A propósito, você
ficaria um arraso com um terno desse, Mestre.
Ele jogou a cabeça para trás e se virou, me dando as costas e subindo a
escada. Eu o segui, por não querer que nossa conversa terminasse. Klaus, no
entanto, virou o rosto para trás ao perceber que eu o acompanhava.
— Tenho mais o que fazer, Holtz. Não me siga.
— Precisa de ajuda para alguma coisa?
— Não — respondeu, curto e grosso. — Preciso organizar tudo antes da
viagem.
A porcaria da viagem! Eu até tinha esquecido dela, mas assim que o
Mestre me lembrou, voltei a me animar. Queria muito ir, poder passar um
tempo a mais ao lado de Klaus, sem muita gente para nos incomodar.
— Eu vou, não é?
— Não.
— Por favor, Mestre. Sasha é minha amiga.
— Isso não faz a menor diferença para mim. — Caminhamos pelo
corredor de um andar que eu reconheci como sendo o do quarto dele.
— Eu me importo com as pessoas que vão nessa viagem... — disse,
evitando dizer com todas as letras que me importava com ele.
Klaus parou diante da porta do quarto e se virou. Seus olhos azuis
brilharam e ele me encarou do seu jeito sério. Ele me tocou com as mãos
pesadas, apoiando-as em meus ombros e aproximando o rosto do meu.
— Eu garanto que sua amiga estará muito bem protegida.
— Eu não estava falando apenas da Sasha — respondi, sem desviar meus
olhos dos dele. — Talvez eu me preocupe com mais alguém...
A porta atrás de Klaus abriu lentamente, sem que ele se mexesse.
Enquanto isso, seus olhos continuaram grudados nos meus e me encaravam
com ar desafiador. Eu não fazia a menor ideia do que o Mestre esperava que
eu fizesse. Ou talvez nem esperasse nada e só estivesse me analisando.
Pensei em alguma coisa para falar e quebrar aquele silêncio incômodo,
mas ele não me deu chance. Sem pestanejar, o vampiro delicioso segurou em
minha gravata e me puxou para dentro do quarto com mobília clássica.
— Tentei ser paciente com você, Holtz!
Ele rosnou, mas não me machucou. Klaus puxou meus cabelos com tanta
força que meus pés saíram do chão. Então, enfiou a língua dentro da minha
boca, quase me enforcando com a outra mão que apertava minha gravata.
Não que eu quisesse reclamar. Nunca! Ao reagir, tudo o que fiz foi usar
meus dedos para percorrer cada centímetro daquele corpo firme e definido,
sentindo os músculos debaixo da camisa de tecido fino.
Oh, meu Klaus!
Precisei morder a língua para evitar gritar e pedir que ele me possuísse
naquele momento. O Mestre me soltou para poder arrancar minhas roupas, o
que fez com muita desenvoltura. Quando me rodeou e parou atrás de mim,
senti a força de sua ereção e tive certeza de que o vampiro queria a mesma
coisa que eu.
Gemi quando suas mãos alisaram meu peito nu e me puxaram para mais
perto, colando meu corpo ao dele. Por sorte, eu já estava morto, ou corria o
risco de sofrer uma parada cardíaca.
Klaus agarrou meus cabelos e empurrou minha cabeça para frente,
passando a língua quente por toda a extensão da minha nuca.
— Tire a calça — ordenou ele, sussurrando contra minha pele.
Não precisei de mais que cinco segundos para me livrar dos sapatos, do
cinto, da calça e da cueca. Porque eu tinha certeza que a hora havia chegado
para valer. E o rosnado baixo que parecia preso dentro do peito do Mestre
deixava claro que eu estava certo.
Klaus curvou-se contra mim, fazendo meu corpo dobrar-se ao meio e me
tirou a sanidade ao levar uma das mãos até meus testículos. Não sabia que
droga maravilhosa era aquela que ele estava fazendo, mas meus joelhos se
dobraram e ele apertou o outro braço ao meu redor para me apoiar.
Eu realmente nunca pensei que um dia estaria me agarrando com Klaus.
Nunca. Na minha. Vida.
Se eu soubesse, teria me preparado mais. Não era virgem, mas só tive um
parceiro sexual e, definitivamente, ele não era como o Mestre.
O MESTRE.
Klaus me fez virar de frente e meteu a mão no meu peito. Meu corpo foi
lançado até a cama e caí de costas sobre o colchão fabuloso daquele homem
milenar, que me encarava enquanto se despia devagar.
Só podia ser um sonho. Um sonho torturante, isso sim. Klaus parecia tirar
a roupa em câmera lenta. Primeiro o manto, que ele dobrou meticulosamente
e colocou sobre o braço de uma poltrona. Depois a camisa de seda. Na hora
de desabotoar a calça, ele se aproximou dos pés da cama e olhou para baixo,
como se admirasse o próprio monumento.
E quem era eu para discutir! Quando o homem ficou completamente nu,
entendi que ele devia mesmo se admirar, glorificar aquele membro
magnífico. Eu não esperava que fosse tão maior do que já imaginava. Masera.
Senti um fio de saliva escorrer pelo canto da minha boca conforme Klaus
subia na cama.
— Eu... — molhei os lábios — Hum... — Fechei a boca, perdido demais
em meus pensamentos insanos.
— Espero que tenha se preparado, Holtz.
— Eu nasci pronto, querido — respondi, meus olhos cada vez mais
arregalados com aquele corpo crescendo diante de mim.
Klaus deslizou pelo meu corpo e sentou sobre meu peito, praticamente me
calando com o membro milenar. Minha nossa! Era tanta pele e músculo que
eu não sabia direito como lidar com tanta informação, mas não fiz feio. Eu
sabia muito bem como dar prazer a alguém e levei o Mestre à loucura,
fazendo-o fechar os olhos e curvar-se para frente, agarrando o travesseiro sob
minha cabeça com os joelhos afundados no colchão.
— Mais rápido... — ordenou, porque ele não pedia. — Com mais força!
Era a primeira vez que eu fazia algo do tipo depois de ter sido
transformado, portanto, tive até medo de sugá-lo mais forte e arrancar o
monumento glorioso antes que pudesse sentí-lo dentro de mim. Não precisei
pensar muito nisso, pois o próprio Klaus se ocupou de ditar a velocidade e fez
um sexo selvagem com a minha boca.
Enquanto ainda me sentia hipnotizado por toda a loucura que estava
acontecendo, o Mestre se afastou para gozar e me sujou bastante. Antes que
eu pudesse reagir, ele saiu de cima de mim e me virou de lado, deitando-se
atrás de mim.
Joguei minha mão para trás, alisando o abdômen perfeito e descendo até
encontrar o membro duro e pronto para a ação. Ele nem sequer precisava de
um tempinho para se aprontar mais uma vez? Quem era aquele homem?
Virei o rosto para olhar Klaus, que me encarava de olhos semicerrados e
passava a mão pelo meu peito, me puxando para trás. Ele afastou minhas
pernas enquanto lambia minha nuca, me deixando arrepiado dos pés à cabeça.
Nunca imaginei que ele pudesse me deixar ainda mais enlouquecido.
Fechei os olhos e gemi quando percebi que nada no mundo poderia ter me
preparado para a penetração de Klaus, que exigia demais de mim.
— Porra! — Gritei, cravando minhas unhas no quadril dele.
Meus olhos ardiam, enquanto meu corpo era maltratado por aquele Mestre
gostoso dos infernos. O filho da mãe era insaciável e eu me sentia como se
estivesse sendo moído num triturador de carne. Quanto mais ele me dava,
mais eu queria.
Em determinado momento, quando Klaus já tinha feito com que eu
mudasse de posição, não resisti e acabei gemendo de um jeito insano até
mesmo para mim. Ele tapou minha boca, enquanto aumentava o ritmo das
estocadas e manuseava o meu equipamento com seus dedos longos. O clímax
me atingiu em cheio e cada célula do meu corpo pareceu sentir o orgasmo
alucinante.

Eu gostaria muito de dormir, mas não sentia vontade alguma. Não sentiria
nunca mais. Mas, naquele momento, eu queria poder fechar os olhos e me
desligar por uns minutos. A outra opção era levantar a cabeça e encarar o
Mestre que acabara de sair do banho.
Estava há uns quinze minutos de bruços sobre a cama de Klaus,
completamente nu e destruído. Não conseguia encontrar coragem para
levantar e convesar com ele, pois tinha quase certeza que o Mestre me
expulsaria do quarto no instante em que me visse de pé.
— Não tenho o dia todo, Holtz — ouvi a voz poderosa atrás de mim. —
Até quando vai ficar ocupandominha cama?
— Estou me recuperando — respondi, sabendo que minha voz saía
abafada por causa do travesseiro em meu rosto.
— Você é um Guardião — ouvi um estalar de língua. — Pare de ser tão
fraco!
— Eu não sou... — suspirei. — Os outros com quem você já transou
continuam vivos até hoje, Mestre?
Como não obtive resposta, me vi obrigado a levantar da cama. Klaus nem
estava prestando atenção em mim, pois encarava o guarda-roupas com uma
expressão muito pensativa. Catei meu terno italiano do chão e olhei para o
enorme banheiro do Mestre. Será que ele deixaria que eu tomasse um banho
ali?
Como se pudesse adivinhar os meus pensamentos, ele virou o rosto e
estreitou os olhos.
— Limpe-se em seu próprio banheiro.
— Hum... claro... — Bati continência por algum motivo estúpido que nem
eu sabia qual era e tratei de vestir minha roupa.
Klaus voltou sua atenção ao armário e, por pouco, não perguntei se ele
gostaria de ajuda para fazer a mala para a viagem. Imaginava que era por isso
que estava tão concentrado enquanto observava peças de roupas quase
idênticas.
— O que aconteceu entre nós... — comecei, tentando continuar a
pergunta.
— Foi apenas sexo — ele se virou e deu alguns passos para se aproximar
de mim. — Não sou Mikhail e você não é Aleksandra. Não nos confunda.
E Sashita achava que o Mestre dela era um brutamontes estúpido. Como
estava enganada! Suspirei, sem vontade de responder e me controlando para
não dar na cara do filho da mãe. Como ele podia brincar daquele jeito com o
meu coração?
— Eu não vou mesmo na viagem, não é?
— Não — respondeu ele, enquanto eu abotoava minha camisa. — Mas
você pode ser útil e ficar de olho na família da sua amiga. Dar o tal de apoio
moral que os humanos tanto prezam.
— Espero que corra tudo bem — falei, sendo sincero, pois me preocupava
demais com Sasha —, e que vocês retornem inteiros.
Klaus sorriu de um jeito sombrio e segurou meu pescoço ao exibir os
caninos. Já prevendo o que ia acontecer, inclinei minha cabeça para o lado e
esperei que ele me mordesse. Foi diferente das mordidas anteriores. Desta
vez, o Mestre perfurou minha pele apenas para deixar o sangue fluir, mas
usou a boca para me chupar. Senti a língua deslizar pelo meu maxilar até
nossas bocas se encontrarem.
Sem nada atrás de mim para me apoiar, agarrei a gola da camisa que ele
tinha acabado de vestir e não possuía sequer um centímetro amarrotado.
Infelizmente, quando eu achava que Klaus me jogaria mais uma vez na cama,
ele me soltou e abriu a porta do quarto com a mente.
— Eu sei me cuidar, Holtz. Voltaremos todos inteiros.
— Kurt.
— O quê? — Perguntou ele, franzindo a testa.
— Não me chame mais de Holtz... — pedi, passando a gravata pelo
pescoço. — Eu detesto ser chamado desse jeito.
— Certo. Kurt. — Os olhos azuis brilharam. — Mas eu exijo ser chamado
de Mestre.
Sorri, relembrando os últimos acontecimentos. Os lençóis bagunçados
denunciavam a atividade intensa que tinha acontecido naquela cama.
— Eu o chamaria do que você quisesse — respondi ao sair do quarto e
fechar a porta atrás de mim.
CAPÍTULO 24

Não queria contar para ninguém, mas não estava me sentindo muito bem
desde o episódio no salão de apresentações. Forcei demais os meus poderes e
agora me sentia esgotada. Sabia que em poucas horas nós viajaríamos, mas
queria muito poder deitar e cochilar por uns minutos.
Estava saindo do banho quando Mikhail entrou no quarto e já foi tirando a
roupa. Por um instante, achei que ele me jogaria na cama, mas passou direto
por mim e foi para o chuveiro. Fiquei parada na porta do banheiro, só me
dando conta de que estava parecendo uma tarada quando ele desligou a ducha
e saiu do box.
— Perdeu alguma coisa aqui, mocinha? — Perguntou, arqueando as
sobrancelhas.
— Minha dignidade — respondi, descruzando os braços e me afastando da
porta. — Eu a perdi no instante em que nos beijamos pela primeira vez.
Ele riu, o que era uma vitória para mim. Sempre que eu conseguia tirar a
expressão séria do rosto de Misha, me sentia mais leve e feliz. Por fim, sentei
na cama enquanto acompanhava o ritual dele para se vestir.
— Onde eu consigo uma mochila? — Perguntei, bocejando.
— Para que você quer uma?
— Não posso levar as coisas na cabeça, não é? — Retruquei.
Ainda enrolada na toalha, deslizei pela cama até encontrar o travesseiro e
me deitei um pouco. Misha me encarou, com a testa franzida e uma camisa na
mão.
— Que coisas, Sasha? Não sei do que você está falando.
— As coisas da viagem! O que mais poderia ser?
Vi quando ele olhou em volta e depois se sentou na beira da cama.
— Você não vai levar nada para a viagem — disse, balançando a cabeça.
— Não vamos passear, Sasha.
— Como assim? Você quer que eu ande com a mesma roupa todos os
dias? Fora a escova de dente, o pente, shampoo, essas coisas...
Tive que interromper o que dizia porque me deu um acesso de tosse
terrível. Precisei sentar na cama para me ver livre daquela sensação de
engasgo que não passava; quanto mais eu tossia, mais vontade sentia de
continuar.
Misha segurou meu braço, preocupado, e pude sentir o tremor em seu
corpo quando expeli sangue pela boca.
— Que droga — resmunguei, aceitando o pano que ele me entregou.
— Parece que você não entende que seus poderes estão te cobrando um
preço alto. E, ainda assim, quis enfrentar Klaus e Nadia de uma vez só.
— Era eu ou meu pai.
— Podia ter me chamado. Eu deixei isso bem claro.
— E teria que usar meus poderes para te chamar — bufei. — Daria no
mesmo.
Mikhail me olhou de esguelha em tom de desaprovação.
— Não dá para comparar o desgaste de uma luta com Klaus com o simples
ato de enviar um pensamento para mim.
Sem saco para ouvir sermão, me joguei de volta na cama e puxei o lençol
até cobrir a cabeça. Senti Mikhail deitar ao meu lado e apoiar a mão na minha
barriga. Ele aproximou o rosto do meu, beijando minha bochecha por cima
do lençol.
— Você está com taquicardia — falou, descobrindo minha cabeça. —
Tente descansar um pouco, partiremos só daqui a três horas.
Ele ainda sussurrou mais algumas palavras, mas meus olhos estavam
pesados e o cansaço não deixou que eu terminasse de ouvir o que dizia.

Meu peito estava apertado quando os portões da Fortaleza se abriram para


nos dar passagem. Sentia um misto de nervosismo, com ansiedade e, acima
de tudo, muita curiosidade. Estava sentada numa limousine preta que veio
nos buscar no horário marcado. Klaus sentara-se de frente para Mikhail e eu,
nos encarando de um jeito desconfortável.
Quando acordei do meu cochilo no quarto de Mikhail, ele avisou que não
levaríamos absolutamente nada. Mestres não viajavam com bagagem e toda a
roupa que eu pretendia usar teria que ir em meu corpo. Ou seja, eu estava
vestindo um jeans confortável, duas camisas, uma jaqueta impermeável que
Klaus obrigou Nadia a me emprestar e uma parca feita com a pele de algum
pobre animal que eu desconhecia.
A parca, cujas mangas eu precisei dobrar várias vezes para encontrar
minhas mãos, era de Mikhail e batia nas minhas canelas. Por baixo disso
tudo, eu vestia calça e camisa térmicas. Mal conseguia andar com total
mobilidade, pois bastou colocar também as luvas, o cachecol e o gorro, para
que eu me sentisse um marshmallow gigante.
— Juro que se eu ver um sorriso, por menor que seja, brotar nesse seu
rosto, pulo desse carro em movimento — avisei para o Mestre mais velho,
que não tirava os olhos de mim.
— Espero que não esteja com frio. — Klaus sorriu.
— Não enche! — Apoiei a cabeça no encosto do banco e olhei pela janela.
A paisagem passava rapidamente diante dos meus olhos. O clima não era
dos piores, pois não nevava aquele dia. Mas o frio era intenso e eles tinham
me avisado que em Oymyakon poderíamos encontrar uma temperatura que
eu não conseguiria suportar. Portanto, eu precisaria usar todas aquelas roupas
durante a viagem. Não gostava nem de pensar no cheiro que elas adquiririam
com o passar dos dias, pois ao contrário dos Mestres, eu era humana e
transpirava. Teria que jogá-las no lixo quando retornasse à Fortaleza.
O carro, em alta velocidade, logo alcançou o centro da cidade e eu pude
me distrair um pouco com o movimento. As pessoas que andavam pela rua
num horário daquele eram, com certeza, seres da noite. Nenhum humano se
arriscaria assim.
— Como está se sentindo? — Mikhail perguntou, roçando os dedos nos
meus, discretamente.
— Um pouco melhor.
Estava mesmo me sentindo bem, mas o Mestre não acreditava em mim.
Ele ficava o tempo todo me analisando, como se a qualquer momento um
chifre fosse surgir no meio da minha testa. Eu me remexi no assento,
ajeitando a parca ao meu redor e suspirei.
— Pare de me olhar, Mikhail — pedi. — Eu estou bem. E você também!
— Olhei para Klaus. — Dá para não ficar me encarando?
— Não estou encarando você e sim o seu cabelo. Ficou muito melhor com
essa cor. Mais agradável aos olhos — respondeu ele, irônico. — Fora toda a
curiosidade que me consome, é claro.
Puxei o gorro mais para baixo até cobrir meus olhos com o tecido grosso e
escorreguei o corpo pelo banco de couro, imaginando que seria melhor se eu
cochilasse um pouco. No entanto, quando consegui relaxar, senti o carro
diminuir a velocidade.
Descobri os olhos e vi que já estávamos no aeroporto e nos dirigíamos
para a pista de pouso.
Klaus foi o primeiro a sair da limousine e depois Mikhail estendeu a mão
para me ajudar. Tudo acontecia muito rápido, pois tínhamos que desembarcar
e nos abrigarmos no bunker da cidade mais próxima antes do amanhecer.
Nosso voo teria duração de três horas e, depois disso, todo o percurso seria
feito por terra.
No avião, que na verdade, era um jatinho particular, meu sono
desapareceu. Queria muito poder fechar os olhos e só acordar quando
fôssemos pousar, mas tudo que eu consegui foi apenas me remexer na
poltrona.
Eu tinha escolhido um assento longe dos Mestres, que se sentaram mais ao
fundo e conversavam sobre a guerra. Mas, quando percebi que não
conseguiria dormir, levantei e fui até eles.
— Ainda bem que estou com dois Mestres aqui, não é? Se o piloto morrer
ou der alguma pane no avião, vocês saberão o que fazer. Certo?
“Você perdeu a noção da forma como fala com Klaus ou é impressão
minha?”
Misha me lançava um olhar penetrante quando ouvi sua voz em minha
mente. Mas dei de ombros, sem me importar. Tanta coisa já tinha acontecido
que eu não conseguia mais sentir medo do outro Mestre. Sabia sim do que ele
era capaz e o respeitava pelo que era, mas não ia deixar de falar o que
pensava por causa dele.
Eu me sentei na poltrona de frente para os dois vampiros e puxei as pernas
para cima, dobrando-as sob meu corpo. Mikhail franziu a testa e Klaus
tamborilou com os dedos na mesa de mogno acoplada à sua poltrona.
— Como somos imortais, não vejo problema em deixar o avião cair —
disse o Mestre mais velho.
Estreitei meus olhos e controlei a vontade de chutar as canelas dele.
Ignorei também o sorrisinho idiota que surgiu no rosto de Mikhail, visto que
não havia graça alguma no que Klaus falou.
— O avião não vai cair — ele tentou me tranquilizar.
— Espero mesmo que não, considerando que eu ainda não sou imortal.
— Ainda? — Klaus arqueou uma sobrancelha ao me encarar.
— Decidi ser transformada — falei, olhando pela janela. — Achei que já
soubesse, pois as paredes da Morada parecem ter ouvidos.
Ele ia falar alguma coisa, mas fomos interrompidos por uma comissária de
bordo que se aproximou com uma bandeja na mão. Sobre o objeto de prata,
havia uma garrafa de vodca e três copos.
A humana serviu os dois Mestres e, por último, me ofereceu a bebida. Ela
deixou a bandeja sobre a mesinha ao lado de Klaus e se retirou. Eu nunca
tinha tomado vodca pura e tinha quase certeza que devia ser horrível. Mas,
imaginei que aquilo pudesse me ajudar a relaxar um pouco durante o voo.
— Não precisa tomar. — Mikhail avisou, me olhando de forma
desconfiada. — É bem forte.
— Só uma dose — respondi, tentando exibir uma expressão confiante.
Estava prestes a entornar o líquido de uma só vez na boca quando Klaus e
Mikhail ergueram os copos para um brinde. Eu juntei o meu ao deles e os
dois murmuraram uma frase em idioma desconhecido para mim.
— O que significa?
— Honra ao sangue. — Misha respondeu.
Claro. Se eu tivesse que criar uma frase de efeito para um brinde, seria
algo como “honra ao chocolate” ou “honra ao refrigerante”. De qualquer
forma, quando eles beberam, eu também bebi. E quase caí dura para frente
quando senti o líquido queimar minha garganta.
Tossi como se minha vida dependesse daquilo e sentia que em algum
momento as labaredas saíriam pela minha boca. Os dois pareciam se divertir
com meu sofrimento, tanto que, eu nem tinha terminado de enxugar as
lágrimas em meus olhos quando Klaus esticou a garrafa na direção do meu
copo.
— Que mulher elegante você escolheu, Mikhail — zombou ele.
Puxei meu copo, impedindo que o Mestre despejasse mais vodca dentro
dele. Uma dose estava de bom tamanho e eu já me arrependia de ter bebido.
Onde estava a comissária quando eu mais precisava dela? Gostaria muito
de pedir um copo d’água ou qualquer outra coisa que não tivesse alcool.
— Quer dizer então que a selvagem que me mordeu há algumas horas não
aguenta um pouco de vodca?
— Isso é ótimo! — Misha se curvou para frente e tirou o copo da minha
mão. — Não estou ansioso para vê-la bêbada.
— É uma pena. — Klaus estalou a língua. — Garanto que ela não se
preocuparia tanto com o avião.
Os dois estavam me irritando profundamente, conversando como se eu
não estivesse bem ali na frente deles. Eu me encolhi na poltrona e apoiei a
cabeça na janela, tentando esquecer o gosto ruim que ficou na minha boca.
— Eu nem estou mais preocupada com o voo. Parece que...
Não terminei de falar porque o avião se transformou numa britadeira e
sacolejou como se fosse feito de papel. Agarrei os braços da poltrona e fechei
os olhos, esperando que a turbulência passasse.
Ouvi a voz do comandante pedindo que não levantássemos de nossos
lugares e que mantivéssemos os cintos atados. Pensei se ele, por acaso, sabia
quem eram aquelas pessoas que estava carregando dentro da aeronave. Dois
de seus passageiros não precisavam seguir nenhuma dessas recomendações.
Eu, só por segurança, verifiquei meu cinto duas vezes.
Quando levantei os olhos, Mikhail estava com a testa franzida e Klaus me
observava sorrindo. Arranquei a garrafa da mão dele e tomei um longo gole
direto do gargalo. A vodca já estava pela metade e, se aquela turbulência não
passasse logo, eu acabaria tomando a metade que restara.
— Pare com isso, Klaus. — Misha pediu.
Eu olhei de um para o outro, assustada com o sorriso de Klaus, que
aumentava cada vez mais. Era horripilante ver aquela criatura sorrir, pois eu
sabia que sempre havia um motivo sombrio por trás daquela falsa alegria.
Misha virou o rosto para encarar o irmão e o olhar dele estava severo.
Fiquei curiosa para saber o que estava acontecendo, mas preferi tomar mais
um gole de vodca do que tentar entender os Mestres.
— Pare de beber, Sasha! — Misha pediu. — Klaus está causando a
turbulência para que você se embebede.
Ele está o quê? Lancei um olhar furioso para Klaus, que franziu os lábios e
apoiou as mãos sobre os próprios joelhos. A turbulência parou logo em
seguida e eu resisti à vontade de pular no pescoço dele e arrancar sua cabeça.
— Foi divertido — disse ele.
— Como você pode brincar desse jeito com a vida dos outros? —
Perguntei, consciente da minha histeria. — Porque não estamos falando
apenas da minha vida, mas da tripulação também.
— Aleksandra, não dramatize. Você acha que sou idiota a ponto de deixar
esse avião cair?
— Olha, não sei. — Soltei a garrafa de vodca sobre a mesa e cruzei meus
braços, sem querer olhar para ele. — Para me provocar, você seria capaz de
muitas coisas.
— De fato.
E ele ainda admitia!
Respirei fundo e comecei a imaginar como seria o meu futuro tendo Klaus
como cunhado. Será que, um dia, ele passaria a me tratar melhor ou
viveríamos alfinetando um ao outro por toda a eternidade?

Quase beijei o asfalto quando desci as escadas do avião e senti meus pés
em terra firme. Tinha sido uma tortura psicológica ficar presa por horas
dentro da aeronave, com Klaus brincando com os meus nervos.
Quando sentei minha bunda no carro que estava à nossa espera, consegui
finalmente relaxar. Não era uma limousine, mas era espaçoso o suficiente
para que nós três dividíssemos o banco traseiro com conforto.
Mikhail ficara no meio, me separando de seu irmão maligno. Encostei
minha cabeça no ombro de Misha e fechei meus olhos, me deliciando com
seu perfume.
— Quando chegarmos ao bunker, você precisará, pelo menos, manter as
aparências. — Klaus avisou e eu deduzi que estivesse se dirigindo a mim.
— Sei que é insolente e tem problemas em seguir regras, mas exijo que
controle sua língua afiada quando estiver na frente de estranhos.
— Certo.
— Eu estou falando muito sério, Aleksandra. — Abri meus olhos e fitei o
teto do carro, esperando pelo resto do sermão. — Se você ousar nos chamar
pelos nossos nomes, vou fazer com que implore para morrer.
— Eu já entendi — respondi.
Foi a vez de Mikhail virar o rosto para mim, com uma sobrancelha
arqueada. Ele também não parecia acreditar em minha palavra, mas, naquele
momento, a única coisa que eu podia fazer era prometer. E pretendia cumprir,
obviamente.
Parei de me preocupar com aquilo e resolvi prestar atenção nos lugares por
onde passávamos. O horário já era avançado demais, até mesmo para os
vampiros transitarem pelas ruas. As cores do céu mostravam o início da
transição da noite para o dia e nenhum ser das trevas gostava de se expor
durante esse período. Eu percebia até mesmo o desconforto de Klaus e
Mikhail ao meu lado, mexendo-se sem parar no banco do carro e sempre
procurando observar o céu.
Quando o carro parou, demorei a entender o que era aquilo na minha
frente. O tal bunker nada mais era que uma construção quadrada de cimento,
mais ou menos do tamanho do meu quarto na Fortaleza.
Passamos por uma porta de aço e fomos recebidos por um vampiro muito
baixo, porém forte. Ele precisava levantar a cabeça até mesmo para olhar para
mim e era impossível não pensar nele como um anão.
— É uma honra tê-los aqui conosco, Mestres! — O baixinho se curvou. —
Estou responsável por acomodá-los e cuidar para que sintam-se em casa. Por
favor, me acompanhem.
Klaus disparou na frente e Misha esperou que eu passasse para vir logo
atrás de mim. Seguimos o pequeno vampiro escada abaixo e eu fui me
surpreendendo ao notar o quão abaixo do solo nós estávamos. Por fora o
bunker parecia não ser muito maior que um dos cômodos da minha casa, mas
ao final da escadaria, dei de cara com um amplo salão.
Ele caminhou a passos apressados por um dos vários corredores que
bifurcavam na outra extremidade do salão. Era interessante andar pelo local,
pois ao contrário do subsolo da Fortaleza, com aparência cavernosa, o bunker
tinha as paredes pintadas, sinalizadas e todos os corredores eram muito bem
iluminados. Imaginava que, por ser um local bastante utilizado também por
humanos, o bunker de cada região precisava se adequar melhor aos costumes
de seus usuários.
O lugar estava movimentado, mas as pessoas perdiam o ritmo quando
percebiam exatamente quem estava caminhando por aqueles corredores,
dividindo o espaço com elas. Todos reverenciavam conforme passávamos,
apesar dos Mestres nunca se darem ao trabalho de retribuir o olhar.
— Quando soubemos que estavam vindo, fizemos questão de arrumar
tudo da melhor forma possível. — O homem falou ao abrir uma porta de aço
e nos deixar entrar. — Sou o general Sigmund e estarei...
Klaus fez com que a porta se fechasse na cara do vampiro e ficamos os
três a sós no quarto.
— Quanta grosseria — murmurei, enquanto me despia da parca e do
agasalho seguinte.
Ele me ignorou completamente, mas não me importei. Estava ocupada
observando os poucos metros quadrados aos quais eu ficaria confinada por
várias horas na companhia dos dois Mestres. Era uma espécie de quarto
mobiliado de forma bem simplória, com duas camas beliches dispostas em
paredes opostas. Havia um tapete gasto no meio do quarto e um armário de
metal ao lado da porta. Não era nem de longe uma acomodação luxuosa ou
aconchegante.
Eu me sentei numa das camas e fiquei aliviada por sentir o cheiro da roupa
de cama limpa.
— Precisa usar o banheiro? — Mikhail perguntou, sentando ao meu lado.
Eu não sabia muito bem o que responder. Lancei um olhar na direção do
banheiro, um cubículo que não possuía porta. Não me sentia empolgada em
fazer uso dele com Klaus me observando.
— Não sabemos em que momento deixaremos a civilização para trás —
ele falou de forma preguiçosa. — Não espere encontrar muitos banheiros
pelo caminho.
Como eu não estava apertada naquele momento, coloquei a ida ao
banheiro de lado e preferi usar o tempo para esticar meu corpo na horizontal.
A parte de baixo do colchão acima de meu estava suja e rabiscada, o que me
levava a crer que aquele quarto era usado por humanos. Vampiros não se
davam ao trabalho de perder tempo com coisas triviais.
CAPÍTULO 25

Apesar de ser o ideal, eu não consegui dormir. O silêncio no quarto era


muito incômodo. Ao levantar a cabeça, notei que Klaus e Mikhail tinham se
sentado lado a lado numa das camas. Nenhum dos dois emitia sons, pareciam
estar naquela espécie de transe de vampiros, com olhos fechados e uma
expressão plácida. Pelo visto, eu era a única que não conseguia ficar muito
tempo parada.
— Então, como nós podemos passar o tempo? — Perguntei, cruzando
minhas pernas. — Não sei fazer a parada da meditação que vocês fazem,
preciso me distrair.
— Nós não meditamos. — Klaus me olhou com sua cara azeda.
— Durma — ordenou Misha.
— Não estou com sono — respondi, estreitando meus olhos na direção
dele. — Sinto decepcioná-los.
Antes que eu conseguisse me defender, Klaus saiu de onde estava e parou
de frente para mim, apertando meu pescoço e sussurrando alguma coisa. Não
consegui ouvir o que era, pois perdi os sentidos antes que ele completasse a
frase.

Eu tinha toda a razão de não querer falar com eles, mas Mikhail não
parecia concordar comigo. Estava um pouco irritada e muito magoada por ter
sido colocada para dormir à força. Quando recobrei os sentidos, encontrei
Misha sentado ao meu lado, me observando com uma expressão que
transbordava culpa.
Acabei usando o banheiro o mais rápido que pude e aproveitei para jogar
um pouco de água morna no rosto. Retirei o gorro da cabeça e olhei para
meus cabelos. Depois do último episódio com Klaus lá na Fortaleza, minha
cabeça estava quase toda branca. Será que eu teria que me acostumar com
aquela cor? Com certeza me deixava ainda mais pálida do que eu já era, mas
precisava admitir que destacava bastante os meus olhos verdes. Uma
vantagem, pelo menos.
Respirei fundo e enfiei o gorro de volta na cabeça, saindo do banheiro e
me sentando na cama. Trancados naquele quarto, eu não sabia se os Mestres
tinham alguma noção de horário e de quanto tempo havia se passado. Só me
restava esperar, pois estava claro que eu não teria outra forma de passar o
tempo.
— Sinto muito pela atitude de Klaus. — Mikhail murmurou, tocando
minha mão. — Pelo menos, você dormiu um pouco.
— Sério? — Eu virei o rosto e o encarei. — Você está mesmo arrumando
justificativas para o que o troglodita fez?
— Você quer que eu faça de novo, Aleksandra? — Klaus perguntou do
outro lado do quarto. — Porque posso fazer isso o dia todo.
Suspirei, sem vontade de rebater a ameaça. Não queria discutir com ele e
algo me dizia que isso aconteceria muito durante a estúpida viagem.
Então, me virei para Mikhail.
— Que tal me contar alguma história sobre vocês? — Pedi. — Ajudaria a
passar o tempo.
— Eu já contei várias.
— Não vai doer se contar mais uma — respondi, impaciente.
Mikhail pareceu pensar, mas fomos interrompidos por uma batida na
porta.
"Vista a parca e tome o máximo de cuidado para esconder o cabelo" —
Mikhail avisou em minha mente.
Klaus esperou que eu me arrumasse e então fez com que a porta se abrisse
sozinha, revelando o general Sigmund acompanhado de duas mulheres. Elas
pareciam nervosas, ansiosas, mas os olhos brilharam de desejo ao observarem
os Mestres.
— Espero não estar atrapalhando — ele disse, fazendo uma rápida
reverência. — Imagino que queiram se alimentar, então trouxe sangue fresco.
Eu preferia uns pães com geléia e suco de frutas, mas com certeza aquelas
duas iam saciar a fome dos vampiros.
— Deixe-as — ordenou Klaus. — E arranje comida para a humana.
Ignorei o descaso que usou para se referir a mim e sorri para o general,
que me olhou com pena. É claro, eu estava muito abaixo dele na cadeia
alimentar.
Quando o homem saiu, as mulheres se aproximaram a passos lentos dos
dois Mestres. Precisei controlar o impulso de me colocar na frente de Mikhail
e impedir que ele se alimentasse de alguém que, obviamente, arrancaria a
roupa com prazer se ele pedisse.
Misha deu a volta e parou atrás da mulher, puxando os cabelos dela para o
lado e expondo o pescoço moreno. Sem qualquer ato de intimidade, ele
cravou os caninos e perfurou a pele dela, ao que o corpo reagiu com um
espasmo de dor.
Desviei os olhos da cena e preferi observar Klaus, que agia de forma
muito parecida. A mulher que o alimentava era muito mais bonita que a de
Mikhail e parecia também mais acostumada com a doação. Ela sorria
enquanto o Mestre sugava-lhe o sangue e seu quadril se mexia de encontro ao
de Klaus. O que deve ter surtido algum efeito nele, pois ouvi um rosnado
baixo e, em seguida, ele a carregou para o banheiro.
O banheiro sem porta!
Eu me virei de costas, pois não tinha a menor vontade de testemunhar o
que aconteceria lá dentro, mas sabia que não conseguiria deixar de ouvir.
Mikhail pareceu tão incomodado quanto, ao ouvir o primeiro gemido
feminino. Ele terminou de se alimentar e dispensou a mulher. Antes de sair
do quarto, ela ainda o encarou com expectativa. Provavelmente devia querer
o mesmo encerramento que a outra estava recebendo.
— Agradeço pela doação — ele fechou a porta em seguida, voltando-se
para perto de mim.
Eu estava sentada, mas Mikhail andava em círculos na minha frente. Não
se mostrava muito satisfeito com o que acontecia no banheiro e sua expressão
era de quem tinha engolido algo estragado. A mulher no banheiro gritou mais
uma vez. Ou gemeu.
— Klaus não entende muito sobre respeito.
— Pelos sons, parece que ele entende muito sobre diversas outras coisas
— alfinetei. — Como ele não tem vergonha?
Antes que Misha pudesse responder, o clímax lá dentro foi alcançado.
Pelo menos, era o que parecia. Eu devia estar vermelha, pois sentia meu rosto
quente de vergonha por ter que testemunhar quase que um filme pornô. O
pior de tudo é que eu me sentia uma tarada, embalada pelos sons cheios de
luxúria, com vontade de me jogar em cima de Mikhail.
Depois de alguns minutos, ouvi os risinhos da mulher e me virei a tempo
de vê-la sair do quarto. Klaus também voltara, ajeitando a camisa que agora
estava amarrotada. O manto negro jazia sobre o colchão.
— Poupe-me desses olhares, Mikhail — ele comentou, arrogante. —
Tenho certeza que Aleksandra não é nem um pouco pura, visto que está com
você.
Ele se sentou na cama novamente e cruzou as pernas, nos encarando com
um olhar irônico.
— Aliás, se eu não me engano, acho que já ouvi sua namorada gemer
algumas vezes. É sempre desagradável ser a parte que escuta, não a que faz.
— Klaus sorriu e se deitou de costas, esticando as pernas e levando as mãos
para debaixo da cabeça. — E já que estamos conversando sobre nossas
intimidades, por que não aproveitam para me contar sobre a primeira vez que
resolveram jogar nossas regras mais importantes no lixo? Como foi que
surgiu essa magia entre vocês?
De repente, eu perdi a vontade de conversar. Klaus tinha o poder de acabar
com qualquer clima, principalmente quando fazia questão de transbordar
ironia. Diante de mim, Mikhail suspirou e se sentou ao meu lado, tão ansioso
quanto eu para contar nosso romance para o irmão.
Klaus, do outro lado do cubículo, deitado com o rosto virado para cima,
parecia satisfeito com nosso silêncio.
Achei que iria vencer e manter a placidez, mas minha língua insistia em
coçar dentro da boca. Por fim, não aguentei e me levantei, sentindo Misha vir
logo atrás de mim.
— Tudo bem, nós infringimos algumas regras idiotas. Mas o que você
acabou de fazer não foi a mesma coisa? Que eu saiba, aquela mulher é tão
humana quanto eu!
Parei de pé, perto da beliche onde Klaus continuava deitado com uma
expressão tranquila.
— São situações muito distintas, Aleksandra.
— Sasha! — Mikhail se colocou na minha frente e me lançou um olhar
furioso. — Volte para o outro lado do quarto.
O cuidado extremo que ele me dispensava sempre que Klaus estava por
perto já tinha passado dos limites e estava me incomodando. Cruzei os braços
e o encarei, decidida.
— Você está muito enganado se acha que vou passar a droga da
eternidade com medo de me dirigir ao seu irmão. Acho que já está muito
claro para todos que ele não irá me matar.
— De fato. — Klaus sentou de supetão, nos pegando de surpresa. Até
Mikhail deu um passo para o lado, mas não saiu de perto de mim. — Você
está se tornando mais insuportável que ela, Mikhail.
— Não pode me culpar por não confiar muito em você — Misha
respondeu ao irmão, o olhar ameaçador combinando com o tom de voz.
O som da batida na porta aliviou um pouco a tensão no ambiente e nós três
nos viramos ao mesmo tempo para olhar. Quando ela se abriu, um homem de
meia idade entrou carregando uma bandeja com minha comida. Ou o que
quer que fosse aquilo, que não tinha o melhor dos cheiros.
Klaus e Mikhail franziram o nariz, concordando comigo, pelo menos. O
homem colocou a bandeja sobre a cama onde eu tinha me deitado e pediu
licença ao se retirar.
— A comida de vocês fede. — Klaus declarou, com asco.
— Não todas — respondi, de cenho franzido. — Mas essa, com certeza.
Andei até a cama e olhei para o prato fundo com uma espécie de sopa.
Mexi a colher no caldo espesso e vi uns pedaços de carne boiando lá dentro.
A questão principal era que eu não fazia ideia de que tipo de animal tinha
vindo aquela carne. Não parecia com nada que eu já tinha comido.
— Acho que não estou com apetite.
— Recomendo comer mesmo assim. — Mikhail avisou, se aproximando.
Eu sabia que era necessário. Apesar de ser um pouco teimosa, não era
burra. Não daria para estimar quando teria novamente chances de me
alimentar e não estava nos meus planos me sentir fraca na frente dos dois
Mestres.
Muito a contragosto, sentei com a bandeja no colo e encarei o prato de
sopa. Evitei respirar pelo nariz para que o cheiro não me afetasse tanto e
peguei um pouco da gororoba com a colher.
O gosto do caldo não era tão ruim, pelo contrário, dava para tomar
normalmente. Mas a carne era quase esponjosa, o que embrulhou um pouco o
meu estômago. Sem coragem de enfrentar aquilo, decidi tomar só o caldo,
apesar dos olhares contrariados de Mikhail.

Caí no sono, afinal. Depois de encher a barriga de caldo e não ter com
quem conversar, o cansaço falou mais alto. Acordei com Mikhail me
sacudindo e avisando que era hora de partirmos.
Mal tive tempo de calçar meus sapatos antes que Klaus saísse com pressa
do quarto, provavelmente tão ansioso quanto eu para deixar aquele cubículo
claustrofóbico para trás. Corri para usar o banheiro mais uma vez e depois me
encontrei com Misha no corredor.
A despedida por parte dos Mestres foi tão fria quanto a recepção, afinal,
aqueles dois não eram mesmo pessoas amigáveis. Eu precisei controlar minha
vontade de dar adeus para todo mundo e fui logo empurrada na direção do
carro que nos aguardava.
Não era o mesmo no qual havíamos chegado. Era um SUV preto e muito
alto, com rodas que quase batiam na minha cintura. E, para minha surpresa,
não tinha nenhum motorista nos esperando. Quem se sentou ao volante foi
Mikhail e Klaus foi no banco do carona, ordenando que eu me sentasse atrás.
Não imaginava que um dia veria um Mestre dirigindo, muito menos que
fosse um carro tão moderno e arrojado, ao contrário deles, que ainda
pareciam viver em outro século. Mikhail nem sequer usava toalhas!
Pensei em fazer alguma piada, mas achei melhor me conter e preferi um
assunto mais pertinente.
— Qual o nosso destino agora?
Misha parecia muito à vontadeao volante.
— Atravessaremos Krasnoyarsk, indo em direção a Yakutsk. Iremos de
carro até onde der.
— Perdoem minha ignorância, mas por que não podemos ir a pé? —
Perguntei, me inclinando sobre os encostos dos bancos de couro. — Não é
mais simples vocês me carregarem na sua supervelocidade?
— O trajeto é longo e muito frio. — Klaus me interrompeu, sem se virar.
— Com a nossa velocidade, você não suportaria a baixa temperatura que o
deslocamento de ar causaria. Por mais que eu fosse me divertir com isso,
Mikhail não gostou muito da ideia.
Não tinha pensado daquela forma e acabei me lembrando de diversos
momentos em que Mikhail me carregara no colo. A lembrança mais vívida
era de quando fui sequestrada e encontrada por ele. Na volta para a Fortaleza,
senti muito frio com o vento que açoitava meu corpo conforme Misha corria.
Suspirei e recostei novamente no banco, me sentindo um peso morto para
eles dois. Se não fosse minha presença, Mikhail e Klaus fariam a viagem na
metade do tempo ou até menos que isso.
Passei boa parte do percurso observando a paisagem pela janela com
insufilm, já que os dois Mestres tinham caído em silêncio — ou conversavam
mentalmente e me excluíam de propósito. Cochilei e despertei diversas vezes.
De vez em quando, me pegava pensando em como estariam as coisas na
Fortaleza. Tinha muito medo que houvesse um novo ataque mitológico e
meus pais ficassem desprotegidos. Sabia que Nikolai era responsável e um
ótimo Mestre, mas ele não era Klaus. E o próprio Klaus mal tinha dado conta
sozinho do último ataque.
— Ficaremos em qual bunker dessa vez? — Perguntei, quebrando o
silêncio fúnebre.
Misha bateu os dedos no volante.
— Não ficaremos em um bunker.
— Isso será interessante — Klaus parecia ansioso, de uma forma positiva,
o que me deixou desconfiada.
CAPÍTULO 26

Krasnoyarsk era bela. Após fazermos a travessia por uma ponte


monumental e bastante deserta, devido ao horário, chegamos a uma
metrópole com aspecto de preservada. Os edifícios opulentos e conservados
me diziam que ataques mitológicos ainda não eram tão comuns na região.
Uma grossa camada de neve cobria praticamente todas as superfícies e a
temperatura no veículo caiu bastante, fazendo com que Mikhail ligasse o
aquecedor por minha causa.
Esfregando as mãos, grudei o rosto na janela para observar melhor. A
cidade era linda e as luzes acesas só a embelezavam ainda mais. Senti falta do
meu lar nos Estados Unidos, de uma cidade com cara de cidade mesmo, sem
muros imensos e portões reforçados.
Quando nosso carro parou de frente para um prédio de arquitetura barroca,
levantei os olhos para admirar a grandiosidade dele.
— Vamos passar o dia aqui? Isso é um hotel?
Eu me animei ao sair do carro e nem pensei tanto no frio, só de imaginar
que poderia tomar um banho quente e comer algo realmente saboroso.
Klaus e Mikhail subiram os degraus ao meu lado e antes que
alcançássemos as grandes portas do prédio, alguns vampiros saíram para nos
receber. Ou nos bloquear, não sabia dizer.
Eles pareciam hostis, como cães de guarda que protegiam o local. No
entanto, abriram passagem para nós, pois deviam saber quem eram aqueles
dois vampiros.
O interior fazia com que eu me sentisse visitando um museu por causa dos
móveis antigos e tão bem conservados. De frente para a entrada, havia uma
escada sinuosa e com corrimão em bronze, que se dividia para dois lados do
segundo andar. Eu teria terminado de observar o lugar, se não fosse por uma
mulher — vampira, sem dúvida alguma — de quase um metro e oitenta de
altura, com brilhantes cabelos negros caindo em cascatas sobre os ombros,
usando um vestido longo vermelho que grudava em cada curva do seu corpo
e exibia um decote vertiginoso até o umbigo.
Eu queria odiá-la. Qualquer humana poderia odiar aquela vampira com
muita facilidade, porque ninguém conseguiria ser tão bonita e andar de forma
tão elegante e sensual, com passos de alguém que possuia eternidade para ser
admirada. Para piorar, o olhar dela era lascivo e, se eu não tivesse certeza de
minhas convicções e gosto pelo sexo masculino, arrisco dizer que me atiraria
aos seus pés.
— Kateryna! — Klaus sorriu e esticou a mão quando ela chegou ao último
degrau.
Klaus sorriu! Inacreditável! Não era aquele sorriso macabro que ele
costumava direcionar a qualquer outra pessoa. Era um sorriso sincero e
saudoso. Ele beijou a mão da vampira e ela piscou os longos cílios.
— Encantadora, como sempre.
— Galanteador, como sempre — ela sorriu.
Klaus era galanteador? Em que universo paralelo eu havia entrado?
— Apenas para você.
Eu sentia um misto de emoções. Ao mesmo tempo em que queria vomitar
por ver Klaus tão diferente, achava ótimo testemunhar o Mestre, dono de um
coração de gelo, mostrar interesse por alguém que não fosse ele próprio.
Estava claro que houvera algo entre eles no passado.
Só que eu não podia estar mais enganada. Porque enquanto ela foi muito
comedida com Klaus, com Mikhail o tratamento foi outro. Kateryna se jogou
nos braços do meu namorado e o beijou muito perto da boca, passando a mão
pela nuca de Misha enquanto sussurrava algo em seu ouvido. Era um toque
íntimo, de quem já havia feito aquilo diversas vezes.
Meu peito se apertou, mas mantive a compostura e aguentei em silêncio.
— Quantos anos... — a vampira ronronou, muito perto da boca do meu
Mestre.
— Sim.
O sorriso dela se alargou.
— O que o traz até mim? — Kateryna passou as mãos pelo peitoral dele.
Do outro lado, vi quando Klaus me olhou com atenção. Devia estar se
perguntando em que momento eu arrancaria os cabelos dela. E era isso
mesmo que minhas mãos estavam coçando para fazer. Mas, por não querer
causar confusão, apenas pigarreei para ser notada de uma vez por todas.
— Olá! — Eu me apresentei. — Sou Aleksandra. Muito prazer!
Pela primeira vez desde que chegamos ali, ela pareceu ter se dado conta da
minha presença. Kateryna me olhou dos pés à cabeça com um ar entediado,
depois voltou a encarar Mikhail.
— Você me trouxe um presente, Misha?
MISHA!
Eu podia aguentar a beleza divina ou os toques insistentes em Mikhail, até
mesmo o pouco caso dele comigo. Mas a breve citação daquela palavra,
aquele apelido que ele detestava que eu usasse por se tratar de algo tão íntimo
e bobo, me quebrou. E ele nem sequer se mostrou incomodado com a forma
como ela o chamou.
Eu não precisava me olhar num espelho para saber que minhas narinas
estavam dilatadas. Só percebi que tinha soltado um sonoro e irritado suspiro
quando os três me olharam. Fechei a boca, pegando meu queixo caído aos
meus pés e desviei o olhar. Era isso ou pular em cima daquela vadia.
— Ela não é um presente, querida. — Klaus intercedeu. — Ela é a nam...
— Uma humana da Fortaleza. — Mikhail o interrompeu com pressa, de
forma muito surpreendente, até mesmo para Klaus que ergueu uma
sobrancelha para ele.
UMA HUMANA DA FORTALEZA?
O filho da mãe não ousava me encarar, pois sabia que eu podia cuspir fogo
sobre ele a qualquer momento.
A vampira estalou a línguacom um semblante triste, como se houvesse
perdidoo seu aperitivo da noite. Minha raiva por ela até passou, tamanha o
ódio que eu passei a nutrir por Mikhail.
— Não posso brincar um pouco com ela e depois devolver?
— Ela não é um brinquedo. Precisamos de quartos, Kateryna. — Klaus se
adiantou, tocando o braço dela e tirando o foco de mim. — Passaremos o dia
aqui e, então, partiremos para resolver questões pessoais. Sem conversas,
brincadeiras ou distrações.
— Sempre gostei de você assim, autoritário — ela sorriu, passando um
dedo pelo ombro dele. — É excitante!
Aquele Klaus do início, simpático e galanteador deu lugar ao que eu
conhecia muito bem. Grosso, antipático, frio e calculista. Ele seguiu o
caminho que o dedo dela trilhava e depois a encarou com os olhos sombrios.
Kateryna recolheu a mão.
Muito bem, Klaus! Coloque-a no lugar dela!
Por pouco eu não dei um tapinha encorajador no ombro dele.
— Não pedirei novamente.
A vampira suspirou e estalou os dedos com o braço erguido. Dois
vampiros se aproximaram e ouviram com atenção as ordens dadas pela
mulher. Ela não devia ser pouca coisa na cidade, visto que possuía tantos
vampiros à disposição.
— Dê a eles três quartos e o que mais precisarem — falou para o vampiro
mais alto e depois se virou para um outro, de cabelos na cintura. — Arranje
sangue fresco para os Mestres. Comida de humano para a humana.
— Dois quartos serão suficientes. — Klaus avisou e meneou a cabeça na
minha direção. — Ela não pode ficar sozinha.
Tentei não me ressentir por ser tratada como uma prisioneira. Talvez fosse
mesmo um bom negócio não ficar sozinha num quarto, já que a vampira
vadia poderia aparecer por lá para sugar meu sangue — ou fazer algo pior.
O vampiro mais alto nos levou escadaria acima. Enquanto nos
distanciávamos, pude ouvir a fêmea ronronar para Mikhail e avisar que
esperaria por uma visita dele em seus aposentos. Fiz menção de me virar,
pronta para voar em cima de Kateryna, mas Klaus estava andando quase
grudado em mim e agarrou meu pulso. Meu instinto agiu mais rápido do que
eu conseguia controlar e minhas unhas se enterraram na carne do antebraço
dele. Vi as gotículas de sangue que se formaram ali, enquanto eu inspirava
profundamente.
— Você tem outras preocupações no momento. — Os olhos azuis
encaravam os meus. — Ignore.
— Sasha — ouvi a voz de Mikhail atrás da gente.
Eu me soltei de Klaus e me distanciei deles dois, seguindo o vampiro que
nos levava ao terceiro andar da mansão. No final do corredor, ele apontou
para duas portas lado a lado.
Mikhail abriu a primeira e gesticulou para que eu entrasse no quarto. Mas,
ao contrário do que ele esperava, segui atrás de Klaus e entrei no outro quarto
junto como Mestre mais velho.
— O que pensa que está fazendo, Sasha? — Mikhail rosnou atrás de nós.
Klaus, que só então se deu conta de que eu o segui, se virou para nos
encarar, confuso. Ele dispensou o nosso guia e fez com que a porta do quarto
batesse com força. Nós três nos encaramos dentro do mesmo quarto.
— O que está havendo? — Perguntou Klaus.
— Como eu sou apenas uma humana da Fortaleza, o certo é ficar com o
líder. — Cruzei os braços. — Para evitar que você se confunda com a
hierarquia, Mikhail, eu alerto que estou me referindo a Klaus. O mais velho,
o mais poderoso, experiente, e, com certeza, o dono daquilo tudo.
Ignorei o sorriso arrogante no rosto de Klaus. Mikhail estreitou os olhos,
me lançando uma expressão que ele devia achar que me amedrontaria. Mas
não surtiu efeito. Eu estava com tanta raiva que poderia furar seus olhos com
meus próprios dedos.
— Agradeço por reconhecer minha importância, mas não quero você em
meu quarto. — Klaus interveio, com preguiça. — Resolvam os seus
problemas em outro lugar.
— Eu não vou a lugar algum.
Para firmar minha decisão, sentei na cama enorme que havia no meio do
quarto. Mikhail tinha me magoado e não parecia disposto a se desculpar. Eu
não seria a primeira a ceder.
Ele se aproximou a passos largos, parecendo decidido a me arrastar dali
pelos cabelos. Mas parou diante de mim e exibiu uma carranca horrorosa.
— Você esperava o quê? — Ele sussurrou. Não queria que ouvidos
estranhos nos escutassem. — Que eu te arrastasse por aí e a apresentasse
como uma namorada? Você não está entre seus amigos!
— Eu sei muito bem que não! — Gritei, sussurrando, o que era estranho
demais. — Nenhum deles tem vergonha de mim! Se o próprio Klaus estava
prestes a me apresentar como sua namorada, eu só posso crer que você quis
me esconder da sua ex-amante.
— Não coloque meu irmão no meio disso.
— Por que não? — Cruzei meus braços e ergui o queixo quando Mikhail
deu dois passos na minha direção. — Você sempre usou Klaus como
desculpa para que nossa relação fosse mantida em segredo. Mas agora, que
obviamente ele já sabe de tudo e não se importa mais, você continua
querendo se esconder. E acho que Klaus nunca foi o problema, mas sim o
medo que você sente de ser julgado por outras pessoas.
Olhei de Mikhail para Klaus, ambos calados diante de mim. Tão diferentes
e parecidos ao mesmo tempo.
— Quem dera eu fosse apaixonada por Klaus! Pelo menos saberia o que
esperar dele, pois é sempre objetivo.
Os olhos de Mikhail escureceram como eu há muito tempo não via. Ele
rosnou para Klaus ao seu lado e os olhos do outro Mestre também ficaram
negros. Meu corpo foi empurrado para trás até que minhas costas tocaram a
parede, e o corpo de Misha se agigantou sobre o meu.
— Você acha que eu tenho medo de cara feia? — Perguntei, sem abaixar a
cabeça para ele.
Klaus se posicionou no pequeno espaço entre nós dois, de costas para
mim. Precisei me inclinar um pouco para o lado de forma que continuasse
vendo Mikhail. Ele e o irmão se encararam em silêncio por alguns segundos
até que Misha respirou fundo e seus olhos voltaram à cor original. Ele
apertou o nariz entre o polegar e o indicador.
— Não temos tempo para discutir relacionamento — murmurou.
— Ninguém está te prendendo aqui — falei. — Eu vou ficar e Klaus não
vai me expulsar. Provavelmente passaremos o dia trocando confidências e
falando mal de você.
— Por mais que ela seja um saco, eu gosto de vê-lo irritado — disse
Klaus.
A raiva de Mikhail não tinha ido embora, mas estava contida. O Mestre
me encarou por mais alguns segundos e depoismarchou para fora do quarto,
fazendo questão de bater a porta com muita força.
O prédio resistiu ao tempo, mas talvez não resistisse a nós três.

Quando saí do banheiro, com os olhos inchados de tanto chorar durante o


banho, Klaus estava sentado na beira da cama, terminando de se alimentar de
um humano, aproximadamente, da minha idade.
Depois que ele mandou o rapaz embora, me sentei à frente de uma mesa
posta apenas para mim. Havia frutas, queijo e leite, o que me deixou um
pouco menos triste. Comecei a comer, saboreando as frutas fresquinhas e
tentando deletar da memória a carne esponjosa daquela maldita sopa. Sentia
que Klaus me observava, mas eu não estava com vontade de conversar.
Reparei nos detalhes do quarto, tudo muito luxuoso e de bom gosto. A
única coisa chata era a ausência de janelas. Deduzi serem quartos
personalizados para os seres da noite e, portanto, janelas eram dispensáveis.
— Por que não vai até o quarto ao lado brigar mais um pouco ou fazer as
pazes? — Klaus perguntou, doido para se livrar de mim.
Mastiguei com calma um cubinho de queijo e bebi o que sobrara do leite.
Depois de me sentir satisfeita, levantei e fui me enroscar na poltrona que
ficava aos pés da cama. Apoiei a cabeça no encosto de veludo macio e fechei
os olhos, esperançosa de poder dormir um pouco e fazer o tempo passar logo.
Estava desanimada, sem querer continuar aquela viagem, mas não tinha
opção. Klaus e Mikhail não desistiriam facilmente e me arrastariam até a
cidade natal deles, se fosse preciso.
— Durma na cama, Aleksandra. Não vou usá-la.
Ao abrir os olhos, vi que Klaus se movia inquieto pelo quarto. Levantei e
fui me deitar na cama forrada com lençol de seda vermelho. Kateryna gostava
mesmo da cor.
— Eu decidi me transformar, especialmente por causa dele — suspirei —,
e ele faz pouco caso de mim na frente da ex-amante.
Klaus ocupou o meu lugar na poltrona e me avaliou, pensativo. Com a
cabeça recostada, dobrou a perna direita sobre o joelho esquerdo e moveu a
mão.
— Por que supõe isso dela?
— Por favor! — Afofei o travesseiro sob minha cabeça. — Até um cego
seria capaz de perceber. Primeiro, eu achei que a relação dela tivesse sido
com você, mas depois do “Misha”, ficou óbvio que eu errara no julgamento.
O Mestre continuou calado e eu também queria encerrar a conversa. Só
que a curiosidade me consumia e eu sabia que aquela era a ocasião perfeita
para arrancar algumas respostas de Klaus, já que tão cedo eu não pretendia
falar com Mikhail. Por isso, me sentei na cama e o encarei.
— O que aconteceu entre eles? Vocês a conhecem há quanto tempo?
Ele parecia ponderar se devia ou não responder minhas perguntas. Talvez
estivesse arrependido por ter deixado que eu ficasse no quarto. Mas, reparei
que o olhar de Klaus estava perdido em algum ponto invisível na parede atrás
de mim. Estava pensativo.
— Conhecemos Kateryna no século dezenove, na época em que
frequentávamos muito o Bataclan, em Paris. Ela sempre assistia as
apresentações acompanhada de homens mais velhos e ricos. Muito jovem,
sempre bem vestida, bonita demais para as companhias com as quais era
vista.
“Alguns anos depois de termos parado de frequentar a casa, eu a encontrei
num ambiente bem diferente do que ela costumava frequentar. Estava
trabalhando em um bordel ao qual tínhamos acesso e acabei indo para a cama
com ela.”
“Kateryna é dona de uma beleza estonteante, como você deve ter notado.
E todos os meus irmãos também notaram. Ou seja, com exceção de Nadia,
todos nós já fizemos sexo com ela. Eu a transformei, imaginava que daquela
forma fosse tê-la sempre que sentisse vontade, mas ela acabou mesmo se
apaixonando por Mikhail.”
Eu me dei conta de que estava até evitando piscar, de tão surpresa por
Klaus me contar aquela história. Acho que ter chegado tão perto da morte o
fez mudar um pouco. Ou ele apenas estava com tanta pena de mim,
humilhada pelo irmão dele, que se esforçava para me distrair.
Estava enjoada por saber que a vampira tinha passado pela mão de todos
os Mestres. Não me surpreenderia se Klaus não tivesse excluído Nadia do
relato.
— Então não foi um caso passageiro? Eles tiveram...
— Mikhail nunca se apegou a mulher alguma. — Klaus gesticulou com
desdém. — Eles apenas transavam quando ele queria.
Senti uma pontada no peito. Seria pedir muito que Klaus fosse mais sutil.
— E você? — Perguntei. — Se apegou a ela?
Notei que seus olhos se estreitaram na minha direção, deixando claro que
eu estava perguntando além do necessário.
— Kateryna era um objeto para o meu prazer. — Seus dedos tamborilaram
no braço da poltrona. — Não vale muita coisa, mas é uma criação minha e
possui meu sangue.
— Se eu quiser arrancar a cabeça dela do pescoço, você vai se importar?
Ele suspirou.
— Provavelmente. Seria trabalhoso desgrudar a sua pele do tapete.
Eu não precisava ouvir mais nada sobre Kateryna. A raiva ainda corria
pelo meu corpo e eu precisava me acalmar. Se ficasse assim por muito tempo
ia acabar batendo na porta do quarto ao lado para tirar satisfações com
Mikhail, só que não queria dar esse gostinho a ele.
Voltei a me deitar e puxei o lençol para me cobrir até o pescoço, pois
achava incômodo ter Klaus me observando.

Conforme dirigíamos para o leste da Sibéria, mais o carro parecia


congelado por dentro. A calefação começava a não dar conta do recado. Para
piorar, o clima também estava desconfortável por causa da presença
indesejada ali dentro. Ao lado de Mikhail, Kateryna ocupava o banco do
carona e tinha se tornado um acréscimo à nossa viagem idiota.
Quando o sol se pôs no horizonte naquele dia, nós saímos dos quartos e
encontrei um Mikhail transbordando mau humor. Como se a situação entre
nós já não estivesse péssima, a vampira vadia se ofereceu para nos
acompanhar até Yakutsk.
Eu tentei protestar, mas fui logo calada. Kateryna tinha bastante poder
naquela região, porque comandava, desde o início do século vinte, toda a rede
de prostituição da Sibéria. Uma bela mulher ela era!
Assim, ela aproveitaria e faria o percurso conosco paraselecionar doadores
que lhe deviam favores, dando ordens para que partissem rumo à Fortaleza.
Em troca, eu era obrigada a aturar a presença dela bem ali, sentada ao lado de
Mikhail, que não estava se importando muito com o fato de que ela, a todo
momento, o olhava com sede de sexo.
Era claro que ela podia muito bem ter partido a pé, na supervelocidade,
chegando muito mais rápido que chegaria de carro. Usou apenas a situação
como um pretexto para passar mais tempo ao lado do meu vampiro.
— Falta muito para chegarmos à Yakutsk? — Perguntei.
Klaus suspirou ao meu lado. Ele também não estava satisfeito, mas seu
motivo era outro: ter que andar no banco de trás. Não que alguém tivesse
dado ordens a ele, mas o Mestre entendeu por conta própria que colocar a ex
e a atual de Mikhail sentadas lado a lado poderia resultar na morte de uma
das duas.
— Falta um pouco menos do que faltava quando você perguntou há vinte
minutos — respondeu sarcástico. — O que, é claro, não fará a menor
diferença numa viagem de quase nove horas.
— Como faremos algumas paradas pelo caminho, nós só chegaremos em
Yakutsk amanhã à noite. — Kateryna falou, ao virar-se para trás e sorrir para
mim. Um sorriso que não alcançava os seus olhos.
Mordi meu lábio, querendo dar um tapa nela, mas respirei fundo e olhei
pela janela. Levei um susto, em seguida, com os dedos de Klaus tocando meu
rosto. Ele ajeitava o capuz da parca de forma que não deixasse meus fios
brancos aparecerem. Kateryna não sabia de nada sobre o assunto e
pretendíamos manter assim.
Eu não enxergava nada que estava ao meu lado se não virasse a cabeça
toda para olhar, porque a cada suspiro meu, Klaus puxava mais o capuz e
cobria meu rosto.
“Você devia ter prendido os cabelos!”
Ele gritou na minha mente e eu revirei os olhos, sem que ele pudesse ver.
Eu estava com os cabelos presos e por dentro do gorro. Só que, mesmo assim,
como meu corte era repicado, algumas mechas teimavam em escapar.
Mas, dos males o menor. Eu comecei a reparar que toda vez que Klaus
tocava em meu rosto, Mikhail lançava um olhar capaz de soltar fogo em cima
de nós dois. E não podia dizer que era ruim vê-lo incomodado e com um
pouco de ciúmes. O que me fez dar um sorriso discreto e me aconchegar mais
perto de Klaus.
— Como é lá, afinal? Na Fortaleza — a vampira perguntou, abrindo um
sorriso enorme para Mikhail. — Tirando esse problema com os mitológicos,
vocês gostam de morar lá?
— É lógico — Misha respondeu.
— Não sentem falta da liberdade de antigamente? — Ela se virou no
banco para ficar de frente para ele. — Nossas festas...
Mikhail mantinha o olhar concentrado na estrada, onde vários carros
apareciam abandonados pelo acostamento. De vez em quando,
encontrávamos alguns no meio da rua, bloqueando nossa passagem, mas logo
eles eram afastados ou atirados para longe. Klaus ou Misha trabalhavam em
sintonia para desobstruir nossa passagem.
— Não posso responder por Klaus e pelos outros. Mas eu não sinto falta.
— Nem de mim...? — Eu tremi quando a vampira esticou a mão na
direção do ventre de Mikhail.
Felizmente, ela não terminou nem a frase nem o gesto, pois seu corpo deu
um solavanco e grudou-se ao banco. Kateryna resmungou e proferiu alguns
palavrões em um idioma que parecia ser ucraniano.
— Minha nossa!Vocês estão insuportáveis! Um me empurra para longe e
o outro grita na minha cabeça. — Ela virou o rosto para trás. — Não senti
falta disso, querido Klaus.
Klaus se mexeu ao meu lado e inclinou um pouco o corpo para frente,
aproximando o rosto do dela. Sua voz saiu num tom grave e baixo, daquele
tipo de quando ele fazia uma ameaça velada a alguém.
— Kateryna, você veio com apenas uma função. Vai espalhar a notícia,
convocar reforços de doadores e não seguirá conosco amanhã. Não é uma
discussão.
Ela o encarou por mais algum tempo, doida para abrir a boca e retrucar,
mas devia conhecer Klaus muito bem para saber que ele sempre dava a
última palavra. Ou haveria retaliação.
Foi bom, pelo menos, ter aproveitado um pouco o silêncio, já que ela se
calou de vez e permaneceu imóvel no banco. Saía do carro, sempre que
parávamos em algum lugar importante, para convocar os doadores e voltava
no mais profundo silêncio.
Quando, por fim, estacionamos na porta de um bunker, ela abriu a boca
para avisar que aquele era o último ponto com civilização que encontraríamos
em nossa viagem.
Eu sentia todos os meus ossos doerem quando saí do carro e estiquei o
corpo pela primeira vez em horas. Mikhail andou ao meu lado enquanto
entrávamos no bunker, mas não me dirigiu a palavra e nem eu a ele.
Por sorte, Klaus ordenou que Kateryna ficasse sozinha em um quarto.
Quando entramos no nosso, ele inventou uma desculpa de que tinha coisas
para resolver com os encarregados do lugar e nos deixou a sós. Ambos
sabíamos que Klaus apenas não queria ter que aguentar nosso mau humor por
muito tempo, mas não falamos nada.
O cubículo era semelhante ao primeiro onde ficamos, com a diferença de
que o banheiro deste possuía uma porta. A primeira coisa que fiz foi me
trancar lá dentro para ter um minuto sozinha.
CAPÍTULO 27

MIKHAIL
Sabia que era arriscado fazer a parada na propriedade de Kateryna, mas
era o melhor ponto do local para passarmos a noite.
Tinha pensado em dar a Sasha um pouco mais de conforto do que os
quartos dos bunkers. Imaginei que elafosse sentir ciúmes, assim que
percebesse que havia um passado entre Kateryna e eu. Só não achava que
conseguiria ser tão estúpido ao escolher minhas palavras.
Quando notei que Klaus estava prestes a explicar meu relacionamento com
Aleksandra, minha língua cumpriu sua função quase contra minha vontade.
Aquele típico momento em que falamos sem pensar e nos arrependemos
depois.
Encarei a porta do banheiro, esperando pelo momento em que ela sairia de
lá e eu começaria a me explicar. Começava a me sentir impaciente, conforme
os minutos se passavam e a torneira continuava aberta.
Até que tive um mal pressentimento sobre a situação e me levantei. Colei
o ouvido na porta e bati duas vezes. Então, senti o cheiro do sangue dela.
— Sasha?
Dei mais duas chances para que ela respondesse e, na terceira batida,
puxei a maçaneta e arrebentei a fechadura. Encontrei Sasha desmaiada, com
os cabelos escapando pelo capuz da parca e muito sangue escorrendo pelo
nariz.
Sua pulsação estava fraca quando a carreguei para fora do banheiro e
chamei por Klaus. Ele chegou quando eu já a colocava na cama, com o
tronco apoiado no meu colo.
— Não dê sangue a ela — ele avisou, trancando a porta. — Não sabemos
o que pode acontecer.
— Ela está fraca, Klaus.
— Mas não está morrendo — ele pousou uma das mãos no meu ombro. —
Dê um tempo a ela. A viagem pode ser cansativa para uma pessoa que não
está gozando de saúde.
Ou seja, na opinião de Klaus, eu deveria simplesmente esperar que Sasha
acordasse. O que me exigia muito autocontrole, pois era doloroso vê-la
daquele jeito.
Sem ter certeza de que era a melhor alternativa, aceitei esperar um pouco.
Deitei-a na cama e limpei o sangue em seu rosto com uma toalha úmida.
O tempo passou mais devagar que o habitual, enquanto eu esperava que
Sasha recobrasse a consciência. Fiquei sentado ao lado dela, paciente,
tentando não me desesperar. Klaus se mostrava alheio ao que acontecia,
deitado e de olhos fechados. Não me surpreenderia se estivesse torcendo para
que ela morresse logo de uma vez.
“Você sabia que é incômodo sentir seu olhar em cima de mim?” — Ele
perguntou. — “Ela não vai morrer, Mikhail.”
“Como se você realmente se importasse com isso.”
“Eu não estaria aqui se não me importasse.”
O estudei com atenção. Desde quando Klaus se importava com Sasha?
Eu me remexi com um certo incômodo pairando no ar. Sasha e Klaus
estavam há dias apresentando um comportamento diferente. Parecia que os
dois tinham se unido para me colocar ciúmes. Quando eu quase perdi a
cabeça na residência de Kateryna, Klaus a defendeu, entrando na frente dela
como um escudo. Ele nunca havia feito nada parecido por Nadia.
Olhei para ela, o rosto numa expressão tranquila como se estivesse apenas
dormindo. Afastei uma mecha branca caída sobre seu olho e senti sua pele
recuperar, aos poucos, a temperatura habitual.
“Já entendi seu desespero. Está com medo que Aleksandra morra antes
que você consiga se desculpar por ser um idiota. Estou certo?”
Voltei minha atenção novamente para Sasha quando captei um movimento
minúsculo com minha visão periférica. Ela tinha mexido a cabeça para o
lado, mas continuava apagada. No entanto, qualquer reação era melhor que
nenhuma. Isso me deixava um pouco mais calmo.
— Você conferiu se Kateryna foi acomodada? — Perguntei para Klaus.
Ele abriu os olhos e virou a cabeça para me olhar. Notei que tinha a testa
franzida e uma expressão debochada.
— Quer mesmo se preocupar com a mulher errada, meu irmão?
— Não é preocupação, Klaus.
— Sei. Já que você está com tudo sob controle, vou procurar informações
sobre nosso itinerário e a situação ao redor de Yakutsk. — Ele se levantou.
— Não acho que encontraremos mitológicos pelo caminho, mas sempre é
bom se informar.
Klaus saiu do quarto. Provavelmente, ia importunar algum pobre coitado e
fazer o que mais amava na vida: dar ordens.
Aproveitei para tirar os sapatos de Sasha e deixá-la o mais confortável
possível. Joguei uma manta sobre o corpo dela e esperei pacientemente que
se recuperasse.
CAPÍTULO 28

Eu me senti fraca ao abrir os olhos, como se tivesse perdido toda a minha


força. Lembrei imediatamente de desmaiar dentro do banheiro e levei logo
uma mão à cabeça para descobrir se eu tinha quebrado o crânio. Tudo no
lugar.
— Como se sente? — O rosto de Mikhail entrou em meu campo de visão
e tudo indicava que ele estava bem preocupado.
Tudo indicava também que eu continuava com raiva dele.
— Péssima — minha voz saiu arranhando a garganta e eu pigarreei. —
Por quanto tempo fiquei apagada?
Antes de me responder, ele sumiu e voltou com um prato de comida, que
colocou na beira do colchão. Suas mãos pesadas me ajudaram a sentar e um
braço dele rodeou minha cintura.
— Uma ou duas horas, não muito. — O Mestre estava analisando meu
rosto por mais tempo do que eu gostaria. — Achei que você fosse demorar
mais tempo para acordar.
Do jeito que eu me sentia cansada, não seria má ideia ter permanecido
desmaiada por mais algumas horas. A vontade de voltar a fechar os olhos era
enorme, mas Mikhail parecia discordar de mim. Ele segurou o prato perto do
meu rosto e me entregou o garfo.
Não estava com fome e, apesar daquela comida ter um cheiro muito
melhor que a do outro bunker, eu recusei, empurrando a mão dele.
— Sasha, você perdeu sangue. Não vamos entrar numa discussão sobre a
necessidade de se alimentar.
— Fico feliz que tenha lembrado meu nome.
O maxilar dele se retesou e Mikhail colocou o prato de volta sobre o
colchão. Ele levantou da cama e passou as mãos por dentro do manto,
apoiando-as nos quadris. Ficou de frente para mim e me encarou com
impaciência.
— Não acho que você esteja em condições de brigar, mas se é isso que
quer, vamos lá. — Ele abanou uma das mãos para mim. — Brigue!
Era inacreditável o tamanho da cara de pau daquele homem. Eu estava ali,
esperando por algum pedido de desculpas, súplicas e lamentos. No entanto,
Mikhail não descia do pedestal e ainda me olhava como se eu fosse a errada
da história.
Como ele estava esperando que eu discutisse e me descontrolasse, fiz
exatamente o contrário. Decidi que comeria um pouco do frango que estava
no prato e comecei a cortar em pedaços pequenos, muito lentamente, para
irritá-lo bastante.
Sem levantar os olhos, podia sentir o Mestre daquele tamanho todo, em pé
diante de mim, bufando por causa do meu silêncio.
E então, ele agachou na minha frente e pousou as mãos nos meus joelhos.
Eu o fitei com muita calma. Minha dor de cabeça nem me deixava fazer
movimentos bruscos.
— Eu sei que não devia ter me referido a você daquela forma — disse ele,
com uma tremenda dificuldade de admitir aquilo. — Mas nunca me preparei
para admitir que me relaciono com humanas.
— Humanas?
Ele balançou a cabeça, impaciente.
— Humana. Apenas uma. Você sabe que é a única atualmente.
— Desculpe se não me sinto tão confiante em ouvir isso... — sussurrei,
cansada. — Só me esclareça uma coisa. Apenas as mulheres com quem você
dormiu antes de mim podem te chamar de Misha?
Ele fechou os olhos e permaneceu assim por alguns segundos.
— Não estou tentando minimizar o que fiz, mas você precisa entender que
minha vida se divide em duas fases. A de antes, quando todos nós fazíamos o
que queríamos e não nos importávamos com nenhuma opinião. Éramos
livres, não seguíamos nenhuma regra de etiqueta, não ligávamos para os seus
costumes. — Mikhail tirou o prato e os talheres da minha mão e os colocou
na cama, em seguida entrelaçou os dedos nos meus. — E a fase atual, onde
governamos o mundo. Para que isso desse certo, precisávamos ser temidos e
respeitados, de forma que criássemos uma imagem sóbria. Estabelecemos
novas leis e tivemos que criar uma forma de governar ambas as espécies,
mantendo o equilíbrio entre elas. — Misha balançou a cabeça, pensativo.
Aquele discurso ainda não tinha amenizado minha raiva. — Só que, para
querer que algo dê certo, precisamos dar o exemplo. A catástrofe seria de
altas proporções se a lei que proíbe relacionamentos físicos entre humanos e
vampiros fosse tão desrespeitada por nós mesmos.
— Isso quer dizer que você só deixará de ter vergonha de mim depois que
eu me transformar, certo?
— Eu não tenho vergonha de você — respondeu, sorrindo. — Só reagi
racionalmente na hora. Não é fácil mudar meus costumes assim tão rápido,
Sasha. Se eu quisesse te esconder, não estaríamos tendo essa conversa aqui,
onde, com certeza, muitos estão ouvindo.
— O problema não foi só omitir nossa relação, seu idiota! — Gritei,
soltando minhas mãos das garras dele. — Foi ficar aceitando que a mulher
mais gostosa que eu e você já vimos na vida, e que, por acaso, já dormiu
contigo várias vezes, ficasse dando em cima de você na minha frente!
Tudo bem, eu queria ter me controlado mais um pouco, mas acabei me
alterando. Quando vi, já estava de pé, cutucando o peito de Mikhail com o
dedo indicador.
— E adivinha? Você também não se importou em saber o quanto eu
estava odiando assistir aquilo! Fala sério! Klaus tem sido mais gentil do que
você nas últimas horas — eu o empurrei. — Isso já diz muito da situação, não
acha?
— Você precisa parar de trazer o nome de Klaus para nossas discussões.
— Mikhail fechou os olhos e apertou o nariz. — Não sei o que está
acontecendo entre vocês e isso não me deixa feliz.
A porta se escancarou e a maçaneta bateu contra a parede, arrancando
cimento, tinta e deixando um buraco no local. Klaus nos encarou com uma
sobrancelha arqueada. Não era o melhor momento para a sua chegada. Nem
eu sabia o que estava acontecendo comigo, mas a verdade era que eu não
parava de pensar em Klaus. Não de um jeito romântico, mas... ele estava
sempre lá, em meus pensamentos.
A expressão do Mestre mais velho indicava que, talvez, nossa conversa
tenha ido longe demais.
“Vocês estão loucos?” — Gritou na minha, e provavelmente, na mente de
Mikhail. — “Todos estão ouvindo essa briga patética!”
Mikhail me lançou um olhar de acusação e eu joguei minhas mãos para o
alto.
“Ah, claro!Agora a culpa é só minha, por acaso?” — Gritei.
Os dois Mestres me encararam e só então percebi que tinha falado
mentalmente. Não pretendia usar os estranhos poderes, mas saiu sem querer.
“Eu falei na mente de todos os vampiros do local?” — Perguntei para
Klaus, quase chorando pela burrada que havia feito.
“Felizmente, não.” — Ele me encarou com uma fúria que fez meu corpo
estremecer. — “Sente-se, Aleksandra!”
— Por quê? Eu não fiz nada de errado!
— SENTE-SE! — O grito dele fez meu corpo ser lançado para trás, direto
na cama.
Meu coração martelava no peito e minha cabeça parecia que ia explodir.
Não queria dizer que estava me sentindo mal para não pensarem que eu
estava fazendo drama. Cruzei os braços, como se o gesto pudesse esconder
meus batimentos cardíacos.
— Você não está bem para se alterar desse jeito. — Misha falou, prestes a
se sentar ao meu lado.
Klaus, no entanto, impediu, jogando-o para o outro lado do quarto e
tirando o Mestre do caminho. Num piscar de olhos, ele estava curvado diante
do meu rosto, com as mãos nos joelhos.
“Não se meta!” — Ergueu um dedo para Mikhail, que já se aproximava
novamente. Os olhos continuaram grudados nos meus e quando se dirigiu a
mim, mesmo na mente, a voz tinha um tom ameaçador. — “Eu não tenho
estrutura psicológica para aturar os problemas amorosos de vocês dois. Se
ouvir mais um grito seu aqui dentro desse bunker, arrancarei sua língua.
Mikhail agiu como um asno, mas você não pode criar toda essa confusão em
público. Nós resolvemos nossos problemas na nossa casa.”
Ergui meu queixo e não desviei o olhar primeiro. Eu já tinha entendido e
voltara a me controlar. Não pretendia continuar a discussão, mas sabia que
prender toda aquela mágoa só me faria mal. O perdão não viria tão
facilmente.

Ao me olhar mais uma vez no espelho do banheiro, vi como estava cada


dia mais pálida. A cor da minha pele já quase se igualava a dos Mestres e eu
nem vampira era. Acho que não havia mais nenhuma opção a não ser aquela
que nos obrigava a descobrir o que vinha acontecendo comigo.
Klaus e Mikhail esperavam por mim do lado de fora do bunker porque
tinham pressa. Saí apreensiva do quarto e estava distraída, pensando que meu
tempo para resolver os problemas ficava cada vez mais curto, quando fui
pega de surpresa pela voz atrás de mim.
— Você sabe que o que tem com Mikhail não vai durar para sempre, não
é?
Eu parei e me virei devagar para encarar Kateryna. Ela também estava de
saída, mas conforme as ordens de Klaus, a vampira não seguiria viagem
conosco. Ela iria para outras regiões, continuar com a convocação de
doadores.
A mulher estava encostada à parede de forma casual, como se quisesse
jogar um pouco de conversa fora.
— É mesmo? — Resolvi dar corda porque estava doida por uma briga.
— Ele com certeza se interessou por você ser humana. — Ela me olhou
com desdém. — Essa coisa toda de ser diferente, uma aventura.
Para ser sincera, eu já tinha pensado naquilo algumas vezes desde que a
ideia da transformação começou a habitar minha mente. E, nos últimos dias,
Mikhail não vinha me dando motivos para deixar a preocupação de lado. No
entanto, eu nunca daria a Kateryna o gostinho de achar que suas palavras me
afetariam.
— Meu amor, eu sei que ele enjoou de você — falei, num tom de lástima,
unindo minhas mãos —, mas isso não acontecerá comigo.
O semblante dela se alterou imediatamente e a vampira ficou furiosa.
Orgulho ferido era um ponto fraco para a maioria das mulheres. Mas, o que
ela não sabia é que eu já tinha me acostumado com aquele tipo de cara feia.
Portanto, quando Kateryna avançou pra cima de mim com a mão estendida e
as unhas dispostas a rasgar minha pele, recuei com agilidade.
Devido ao movimento brusco, ela quase bateu de cara na parede.
Como uma forma de ajudá-la a terminar o serviço, segurei-a pela nuca e
empurrei o rosto dela contra o cimento frio.
— Ops! — Olhei em volta quando o barulho ecoou pelo corredor. —
Ainda tenho que aprender a dosar minha força.
Ela se debateu e se soltou de mim, mas não chegou a me tocar porque
Klaus e Mikhail apareceram para acalmar os ânimos. Mas eu já estava bem
mais calma.
Klaus a puxou para longe de mim e eu sorri quando ela inclinou o rosto
para poder me enxergar. Estava despenteada e com o batom vermelho todo
borrado.
— Eu vou arrancar o coração dela pela boca! — Gritou.
“Vamos sair, Sasha.” — Misha pediu, tocando de leve em meu braço. —
“Agora.”
Por já ter liberado minha raiva, deixei que ele me guiasse para fora do
bunker e ignorei os xingamentos que Kateryna me dirigia com toda a força
que possuía nos pulmões. Ficaria marcado eternamente em sua memória a
forma como apanhou de uma humana. Eu me sentia muito bem. Muito
melhor do que se tivesse batido em Mikhail. Ele não ficaria tão alterado
quanto a vadia.
“Eu tenho que concordar com Klaus. Você não consegue ficar uma hora
sozinha sem cometer alguma idiotice.”
— O que você chama de idiotice eu chamo de vingança.
“Ela podia te matar em segundos.”
Eu não quis falar, pois ninguém podia saber dos meus poderes, mas fiz
questão de lançar um olhar ao Mestre de forma que ele entendesse o que eu
estava pensando.
“Ter poderes não apaga o fato de ser humana. Por mais rápida que você
consiga ser, se eu for um milésimo de segundo mais rápido, posso enfiar a
mão no seu peito e esmagar seu coração. Posso cortar sua garganta com
minha unha.” — Ele estalou a língua. — “Há infinitas formas de matar um
humano antes mesmo que ele pisque.”
Chegamos do lado de fora do bunker e o frio congelou meu nariz
imediatamente. Levantei a cabeça para olhar Mikhail após seu discurso
eestreitei meus olhos por causa da luz forte do poste atrás dele.
— Eu sei de tudo isso. Mesmo assim, valeu muito, muito à pena.
O que eu omiti foi que estava me sentindo muito mal. Desde que colocara
os pés na rua, minha cabeça começou a rodar e a sensação de desmaio estava
se aproximando. Os dois Mestres, com certeza, diriam que aquilo era uma
consequência do meu recente esforço. Eu sabia que devia ser mesmo, mas
não queria que eles soubessem.
Nosso carro estava parado a cinco passos de distância e a ideia de deitar
um pouco tinha se tornado muito sedutora.
— Vou esperar por vocês dentro do carro — avisei, andando apressada e
me jogando no banco de trás, que felizmente voltaria a ser só meu.
Não vi quando Klaus entrou nem quando o carro começou a se mover.
Acordei sentindo um filete de baba escorrer pelo meu queixo e abri os olhos
pesados. De onde eu estava, com a cabeça atrás do banco do motorista, só
conseguia ver Klaus no carona, com o rosto virado na direção da janela.
O silêncio era reconfortante e a escuridão dentro do carro queria me levar
de volta para o mundo dos sonhos. Respirei fundo, juntando forças para me
sentar, mas meus músculos pareciam feitos de gelatina. Para piorar, a dor de
cabeça tinha voltado com força total e parecia que tinha alguém serrando
minha cabeça ao meio.
— Talvez seja melhor me transformar... — sussurrei, sem ânimo. — Antes
que eu morra.
— Como está se sentindo? — Mikhail perguntou.
— Tão mal que nem me importaria se Klaus resolvesse raspar minha
cabeça.
Passei a língua pelos lábios rachados e doloridos, como se a pele estivesse
em carne viva. Sentia minha garganta seca, a pouca saliva que eu produzia
não era suficiente para aliviar a mucosa.
— Preciso de água... — pedi, tentando não pensar que podia estar
morrendo.
O carro fez uma curva tão fechada que foi preciso me agarrar ao cinto de
segurança que estava pendurado, para não cair no chão entre os bancos. Quis
chorar pela dor que o gesto me causou, mas me contive. Senti o solavanco
quando o carro subiu uma calçada e vi Mikhail sair com pressa.
Klaus me observava com atenção. Devia estar pensando quanto tempo de
vida eu ainda tinha. Dei um sorriso para ele ao mesmo tempo em que ouvi
um barulho de vidro sendo espatifado do lado de fora.
O que Mikhail estava fazendo?
— Se eu morrer... — falei, com dificuldade. — Meu pai ficará furioso.
Vai pensar que foi por causa da viagem e vai descontar em vocês.
Fui interrompida por um acesso de tosse e acabei expelindo um pouco de
sangue. O fato não passou despercebido por Klaus, mas ele continuou calado.
— Prometa que não matará meu pai num acesso de raiva ou impaciência
— pedi.
— Você não vai morrer, Aleksandra.
Levei um susto com a porta traseira que foi aberta de supetão. Mikhail
colocou metade do corpo para dentro e jogou cinco garrafas de dois litros de
água no chão do carro. Acho que ele não tinha muita noção de quanta água
um ser humano era capaz de ingerir num único dia, mas eu não tinha
disposição para comentar aquilo.
Ele abriu uma das garrafas e deu a volta, escancarando a porta atrás da
minha cabeça e erguendo meu corpo para se sentar no banco.
— Você dirige, Klaus — avisou, batendo a porta com força.
O Mestre reclamou, mas as palavras ditas por ele faziam parte de um
idioma que eu não conhecia. Devia estar me xingando e falando que aquilo
tudo era um enorme desperdício de tempo.
Enquanto isso, Mikhail me ajudava a ficar inclinada para beber um pouco
de água. Não consegui dar mais que três goles e, por mais que eu não
quisesse a piedade dele naquele momento, não reclamei quando deitou minha
cabeça em suas pernas.
Senti seus dedos me livrarem do capuz e do gorro. Quando passearam pela
minha cabeça, o alívio foi enorme. Fechei os olhos, me desligando de tudo e
sentindo apenas o deslocamento do automóvel. Nem mesmo o cheiro de
carne em decomposição dentro do carro me incomodava.
CAPÍTULO 29

KLAUS
Eu sabia que Aleksandra não ia morrer tão rápido, apesar de sua
frequência cardíaca um pouco fraca. Mas Mikhail já estava envolvido demais
em seus sentimentos e não conseguia pensar racionalmente. Ele suspirava
com tanta intensidade que a impressão que eu tinha era de que estava
chorando. O que me fez olhar mais uma vez para trás.
“Você não vai chorar, vai?” — Perguntei, receoso. — “Suas expressões
faciais estão me confundindo.”
“Eu não me recordo de ter feito alguma piada quando sua amada
morreu.”
Olhei para frente, para os pontos da estrada que eram iluminados pelos
farois do carro.
“Nunca fui afetado por sentimentos humanos, Mikhail.”
— É claro que não.
Pisei até o final do acelerador, tentando fazer com que aquela máquina
imprestável funcionasse melhor. Era inacreditável que o automóvel fosse
considerado uma das melhores invenções da humanidade. Mesmo os mais
velozes ainda eram lentos demais para nós. Fazia com que eu me sentisse
preso. Carros eram tão inúteis quanto telefones.
— Estava pensando nas últimas horas e tive uma ideia. É bem ridícula,
mas você provavelmente vai gostar — meu irmão conversava com
Aleksandra e pelo tom de voz, parecia sorrir. — Já que você faz tanta questão
que eu assuma nosso relacionamento, podemos dar uma festa.
Eu o olhei por cima do ombro, achando que Mikhail tivesse enlouquecido.
Uma festa? Com tudo que estava acontecendo na Fortaleza? Qual seria o
cardápio? Membros humanos assados ao sangue de centauro?
— Não quero dizer para fazermos uma festa agora. Pensei para depois que
todos os problemas forem resolvidos e essa guerra terminar — ele falou para
mim.
— Acho uma ótima ideia! — Comemorei. — Podemos aproveitar a
ocasião e nomear um novo Papa. A gente constrói uma igreja na Fortaleza e o
convida para abençoar a união do casal, não é? Como era a frase que diziam?
Até que a velhice os separe. Ou a morte. Nunca prestei muita atenção, mas
acho que ambas as coisas andam juntas.
Não era exatamente a reação que eu queria causar, mas a gargalhada de
Aleksandra foi estrondosa. Ela riu tanto, que ouvi Mikhail rir junto. O que era
triste, diga-se de passagem.
— Não sei direito o que é um Papa, mas parece divertido casar numa
igreja — disse ela, entre uma tosse e outra.
— É uma cerimônia linda — respondi, enquanto afastava dois veículos
que estavam incinerados no meio da estrada para o acostamento. — Lembro
da última vez em que estive numa igreja.
— Klaus — ouvi a advertência na voz de Mikhail.
— O sangue do padre combinou bastante com a decoração do lugar.
— Era gostoso? — A humana perguntou.
— O quê?
— O sangue dele. — Aleksandra respondeu.
Aquela era uma pergunta inesperada. Olhei para trás, cruzando meu olhar
com o do meu irmão. Aleksandra estava bem mais pálida que há algumas
horas e com olheiras profundas. Havia um pouco de sangue seco nos cantos
de sua boca, mas os olhos estavam bem abertos e ela parecia prestar atenção a
tudo.
— Não tomamos sangue de padres ou qualquer outro ícone religioso —
respondi.
“Talvez seja melhor dar um pouco de sangue a ela agora. Bem pouco,
Mikhail, apenas para mantê-la viva.”
Ele fez um corte rápido no pulso e o encostou nos lábios da garota. Voltei
minha atenção para a estrada à nossa frente, percebendo que a cada
quilômetro as coisas pareciam piorar. Yakutsk não devia estar tão bem segura
quanto Krasnoyarsk.
Aleksandra precisava melhorar um pouco, pois em breve teríamos que
deixar o carro para trás. A neve começava a ficar mais densa e o caminho que
pegaríamos para Oymyakon possuía o relevo muito acidentado.
“Se ela tiver uma pequena melhora, podemos abandonar o carro aqui e ir
logo do nosso jeito.”
“Ela vai congelar, Klaus.”
“Ela está bem agasalhada e ainda temos nossos mantos para aquecê-la.”
Mikhail não respondeu e eu sabia que estava decidindo se era ou não uma
boa opção. Eu tinha dado a ideia, mas deixaria que ele resolvesse.
“Poderíamos chegar em Oymyakon antes do amanhecer.” — Avisei.
— Eu sei que vocês estão dialogando mentalmente. — Aleksandra
reclamou. — Será que dá para me incluir na conversa?
— Está se sentindo melhor? — Mikhail perguntou, a voz de uma melação
pura.
— Um pouco, mas esse cheiro de podre é terrível! Ele vem e vai... —
disse ela, com asco. — Quem vocês mataram e guardaram no porta-malas?
CAPÍTULO 30

Primeiro Mikhail me olhou como se eu estivesse senil. Franziu a testa, me


encarando por alguns segundos e depois levantou a cabeça. Klaus, lá na
frente, estalou a língua e deu uma sonora risada.
— O cheiro que você está sentindo está vindo lá de fora. — O Mestre mais
velho gesticulou na direção da janela. — Estamos passando por estradas
rodeadas por campos, plantações e muitos animais apodrecidos.
— Eca! — Senti ânsia de vômito. — Ainda bem que estou deitada e não
consigo ver os pobres bichinhos pelo acostamento.
Os dedos de Misha deslizaram pelos meus cabelos, num carinho
agradável. Sorri para ele, mas logo lembrei que estávamos brigados e fechei a
cara.
— Não há nenhum animal morto no acostamento, Sasha — disse ele,
compreensívo. — Os mais próximos estão há muitos quilômetros de distância
da estrada.
— Credo! E por que estou sentindo esse cheiro?
Levei a mão ao nariz para tentar sentir algo que não fosse o terrível cheiro
de carne em decomposição. Enquanto eu pensava que até mesmo o cheiro
metálico do sangue era melhor que aquele, percebi o aviso nos olhos de
Mikhail e entendi tudo.
Fechei os olhos e me concentrei. Logo, não foi apenas o cheiro de podre
que me alcançou. O odor característico da terra impregnou minhas narinas,
assim como o do comsbutível que usávamos. Até mesmo Klaus e Mikhail
tinham cheiros que eu nunca havia sentido. Meu olfato estava afiadíssimo, de
um jeito que não era comum a nenhum humano.
Eu não estava morta, não tinha virado vampira. Disso eu tinha certeza,
pois ainda sentia meu coração bater no peito. Sentir meus batimentos me
tranquilizava, mas também me aterrorizava. O que estava acontecendo
comigo? Como era possível parecer uma vampira sem realmente ser uma?
— Imagino que vocês não tenham uma explicação plausível para isso —
disse, bastante abalada. — Sou uma aberração.
— Com seus cabelos cor de laranja, muito me admira você nunca ter se
sentido dessa forma.
Eu dei um soco na parte de trás do banco de Klaus, para deixar claro que
estava ouvindo muito bem. Virei os olhos para Mikhail, que não escondia a
preocupação comigo. Ele deu um sorriso forçado e colocou o gorro sobre
minha cabeça.
— Vamos largar o carro agora e apressar nossa viagem. — Senti a
velocidade do automóvel diminuir e aceitei a ajuda de Mikhail para levantar.
— Você vai sentir um frio como nunca sentiu. Por isso mesmo, tentaremos
correr o mais rápido possível.
— Resumindo: eu vou sofrer, mas será rápido — completei a lógica dele.
— Exato.
Concordei, mas me arrependi no instante em que coloquei os pés para fora
do carro. Ali, sem o aquecedor do veículo, estava mais frio do que eu
imaginava. Tremi enquanto Misha ajeitava o capuz da parca. Em seguida, ele
tirou o próprio manto e me envolveu com ele, fazendo o mesmo com o manto
de Klaus.
Quando me pegou no colo, Misha virou meu rosto contra seu peito e
sussurrou para avisar a Klaus que estávamos prontos. Fechei os olhos e
envolvi meus dedos na camisa dele, sentindo o deslocamento de ar me
engolir. Os mantos eram grossos demais. Eu ficaria bem.

Não ficou tudo bem. No início foi tudo uma maravilha. Eu me sentia
quentinha, enrolada em tantos agasalhos, mas com o passar dos minutos, o
frio conseguiu atravessar o tecido grosso do manto de Klaus. Depois foi a vez
do manto de Mikhail. Aos poucos, ele se embrenhou pelas minhas roupas e se
enraizou em minha pele.
Eu não ousava sequer mexer a cabeça ou ficaria sem a ponta do nariz, que
eu já não sentia mais. Não podia sequer falar, pois meus dentes batiam com
tanta força que, se eu abrisse a boca, poderia quebrá-los. Os Mestres não
estavam brincando quando disseram que eu iria congelar.
Era irônico. Eu possuía alguns poderes, sentia cheiros a uma distância que
humanos não podiam sentir e, por mais nojento que parecesse, começava a
delirar com um sangue quente escorrendo pela minha garganta. Mas, ali
estava eu, quase morrendo com uma bela hipotermia.
Parei de pensar, era um esforço muito grande e estava consumindo
energia. Tal energia eu deveria guardar para que meu corpo usasse a fim de
me manter viva. O frio doía, mas eu nem conseguia chorar.
— Vamos parar, ok? — Misha sussurrou contra meus cabelos. — Talvez
seja melhor se pararmos em algum lugar com calefação.
— Náo vamos parar, Mikhail.
— Ela está sofrendo, Klaus!
Nós paramos de correr. Ou melhor, eles pararam, mas apenas para que
Klaus se aproximasse e puxasse meu rosto para o lado. Os olhos dele
apareceram diante dos meus e eu podia jurar que todo aquele frio os
deixavam ainda mais azuis.
— Sei que você aguenta. — Seu rosto estava muito sério e senti inveja em
saber que o frio não o atingia nem um pouquinho. — Você é forte. Estou
certo?
Se a parada significasse que nós demoraríamos mais um dia para chegar
em Oymyakon, então eu, com certeza, preferia continuar. Já não conseguia
sentir com tanta propriedade algumas partes do meu corpo, mas parar agora
para continuar amanhã não faria diferença. O sofrimento seria o mesmo.
Não tinha coragem de abrir a boca, mas usei minha pouca energia para
balançar a cabeça e confirmar a pergunta de Klaus. Ele sorriu lindamente —
eu só podia estar delirando — e estendeu a mão para baixar um pouco mais o
capuz do manto sobre meu rosto.
— Vamos continuar — declarou.
Não achei que fosse possível, mas os dois Mestres pareciam correr ainda
mais rápido do que antes. Mikhail me apertou de tal forma entre os braços
que, por pouco, meu corpo não se fundiu ao dele. Eu não me incomodei
porque já tinha chegado a um nível em que sentia estar perdendo a
consciência e nada podia fazer para evitar. Meus olhos ardiam e as pálpebras
pesavam trinta quilos.
Eu queria dormir. Queria esquecer o frio. Eu queria...
— Sasha! — A voz que me chamava soava como se estivesse muito
distante.
Conforme meu corpo era sacudido, a dor me dilacerava, mas eu nem tinha
forças para reclamar.
— Sasha, acorde! — Mikhail falava mais grosso. — Acorde, já chegamos!
Abri os olhos com dificuldade. Eles estavam tão secos, como se tivessem
sido arrastados pela areia. Fechei-os novamente e suspirei ao sentir o toque
delicado de Misha. Ele alisou minha bochecha e beijou minha testa antes de
baixar meu corpo.
Definitivamente, eu não estava numa cama. Era algo duro como o chão e
tive que abrir os olhos mais uma vez para compreender aquele lugar. No
entanto, a única coisa que consegui visualizar na escuridão foram os cabelos
brancos de Mikhail. Ele estava sentado do meu lado e quando me encarou,
envolveu meu corpo com os braços e grudou minhas costas em seu peito.
Eu poderia dormir para sempre naquele abraço.
— Klaus foi providenciar algumas coisas — disse, os lábios fazendo
cócegas na minha orelha. — Daqui a pouco o frio vai diminuir.
— Se eu morrer — sussurrei, prestes a perder a consciência —, quero que
saiba que não estou mais com raiva... te amo...
Fechei os olhos e imagens de nós dois, abraçados e sorridentes, dançaram
em minha mente.

Chamas estalavam diante dos meus olhos. E do meu lado. Dos dois lados.
Ou melhor, por toda a extensão da caverna.
Caverna?
Pisquei, prestando atenção no ambiente e sim, nós estávamos dentro de
uma maldita caverna. Quando Mikhail me contou que viajaríamos até sua
cidade natal, eu não imaginava que ficaríamos abrigados numa caverna.
Aquilo era tão coisa de mitológicos! E eu não possuía boas recordações da
última vez em que estive num lugar como aquele.
— Como se sente? — A voz rouca sussurrou em meu ouvido.
Deixando as acomodações de lado, decidi averiguar como eu me sentia de
verdade. A cabeça ainda doía, o corpo também. Os olhos ainda estavam secos
e eu morria de sede, mas não era tola. Entendia que não me saciaria apenas
com água. Se eu estava mesmo me tornando uma vampira, em breve teria que
começar a ingerir sangue. E não seria mais em doses homeopáticas.
Também havia o frio, mas não era mais um problema tão grande. Eu ainda
o sentia, só que não a ponto de congelar os neurônios.
Podia contar seis fogueiras espalhadas pelo comprimento da caverna. O
lugar era um retângulo muito espaçoso. Seu teto era baixo e os Mestres, por
pouco, não precisariam andar curvados. As paredes côncavas, como se o teto
se fechasse à nossa volta num formato de concha, deixaria uma pessoa
claustrofóbica bastante incomodada. Havia neve, muita neve, acumulada
pelos cantos e todo o chão parecia úmido. Exceto minha roupa.
Olhei para baixo e quase tive um ataque de nervos. Eu e Mikhail
estávamos sentados sobre diversas peles de animais. Elas tinham sido
arrancadas recentemente, pois estavam quentes e sujas de sangue fresco.
Procurei ignorar a forma como tinha acontecido. Aquelas peles deviam fazer
parte do pacote de hospedagem, assim como as fogueiras.
Procurando por Klaus, o encontrei agachado diante do fogo, segurando um
graveto com alguns pedaços de carne.
— Acha que consegue comer? — Ele perguntou sem se virar para me
olhar.
Mesmo que meu organismo gritasse avisando que queria sangue, meu
estômago necessitava ser preenchido por algo com sustância. Era nojento ter
que comer um animal que acabara de morrer por minha causa, mas eu
precisava me alimentar. Muito a contragosto, aceitei a comida que estava
sendo oferecida.
Klaus entregou o graveto para Mikhail, que arrancou um pedaço de carne
e o passou para mim. Então, fechando os olhos, coloquei a carne na boca e
me obriguei a mastigar. Ainda dava para sentir o gosto do sangue do bicho.
Quatro olhos pairaram sobre mim, enquanto os Mestres me observavam
comer. Eu devia mesmo estar com um pé na cova para Klaus se preocupar
tanto comigo. Saber que ele se ocupara caçando e preparando a carne
chegava a parecer uma ilusão.
Comi até achar que não suportaria mais nada. Já me sentia mais aquecida,
pois Mikhail encostou-se à parede e me colocou entre as pernas dele,
mantendo sempre os braços ao meu redor. Klaus sentou-se do nosso lado e
colou o corpo nos nossos, de forma que também pudesse me passar um pouco
de calor. Com as pernas esticadas à frente, ele parecia brincar com as chamas
das fogueiras, que crepitavam como se dançassem balé.
— Então, nós chegamos — falei. — E agora? Qual o próximo passo?
Eles se entreolharam.
— Não viemos com um plano elaborado. — Klaus se curvou para limpar a
neve dos sapatos. — Não sabemos com o que exatamente estamos lidando. A
única certeza é que tem a ver com nossa maldição.
— Lembra da história que eu contei? — Mikhail me perguntou. Todo
aquele papo de deuses e sacrifícios, na época me pareceu tão surreal.
— Claro.
Não quis comentar o que pensava, pois sabia que eles acreditavam em
tudo. Quem era eu para desconfiar de uma história tão mirabolante. Mas me
senti um pouco insegura por não termos nenhum plano para seguirmos.
Tivemos todo aquele trabalho, chegamos até ali para que a ideia dos Mestres
consistisse basicamente em... esperar?E o que nós estaríamos esperando?
Uma carta? Um telefonema? Uma pedra com instruções?
A situação era, no mínimo, bizarra.
— Nós estamos no lugar onde vocês nasceram?
— Exatamente no mesmo lugar onde ficava a aldeia. — Mikhail
respondeu, o hálito tocando meu rosto que estava virado para o lado. —
Quando sairmos da caverna amanhã, você terá chance de ver.
— Por que não estamos numa das casas da aldeia?
Klaus me olhou boquiaberto como se eu tivesse perguntado a maior
asneira do século. Tive vontade de revirar meus olhos, mas me contive. Eu
estava mesmo me esforçando para ser uma pessoa melhor.
— Você sabe que nascemos há mais de dois mil anos e não no século
passado, certo?
A ideia de ser alguém melhor com Klaus por perto nem sempre dava
muito certo. Sem conseguir resistir por mais tempo, acabei revirando os
olhos.
— A aldeia não tinha estrutura para resistir ao tempo — ele sorriu com
deboche. — Acho que você já percebeu que o clima aqui não é dos melhores.
Eu mesmo precisei andar muitos quilômetros até encontrar algum animal
ainda vivo.
Ou seja, estávamos no meio do nada.
Suspirei e me aconcheguei melhor em Mikhail. Era terrível ter que abrir
mão do orgulho e ficar daquele jeito com ele. Eu lembrava de ter dito algo
sobre perdoá-lo, mas achava que estava à beira da morte. Ainda estava
magoada e o Mestre, com certeza, se aproveitou da situação para fingir que
tínhamos feito as pazes.
Naquele momento, no entanto, eu não podia me dar ao luxo de desprezar o
abraço tão confortável. Mas ia fazer bom uso do fato de estarmos presos
dentro de uma caverna. Tudo levava a crer que estávamos a milhares de
quilômetros da civilização mais próxima. Ninguém escutaria nossas brigas.
— Sabe, eu pensei naquela nossa conversa lá no bunker. Se você tem
alguma dúvida em relação a nós, é melhor que fale o quanto antes — pedi,
puxando uma mecha de cabelo para frente e analisando os fios brancos.
— Que momento mais oportuno para discutir relacionamento! — Klaus
zombou. — Justo quando eu não posso fugir de vocês.
— Não iremos discutir. Eu já me expliquei, Sasha.
— E eu não acreditei muito na sua explicação — rebati com firmeza.
Eu me soltei dos braços de Mikhail e me virei de lado para poder olhá-lo
enquanto conversávamos. Klaus tinha fechado os olhos e estava com uma
expressão azeda.
— Se você não acreditou é porque não confia em mim. — Mikhail, que
não era uma pessoa de grandes gestos, inclinou a cabeça. — Eu fui sincero.
Nunca escondi de você o que eu pensava sobre nossas diferenças e as regras
que eu estava quebrando. Você sabe como sou, conhece minha aversão a
relacionamentos e rótulos.
Meus olhos arderam por causa das lágrimas que cismaram em aparecer,
mas tentei não chorar. Ele pegou minha mão e deslizou os lábios por meus
dedos.
— Você não conseguiria calcular o que eu já vivi — disse, num tom mais
baixo, quase um sussurro. — Não é tão simples mudar. Mas estou tentando
modificar algumas coisas, só preciso que tenha paciência. Por você, estou
disposto a mudar e aprender com o tempo.
— Se minha opinião vale para alguma coisa, o idiota do meu irmão é
realmente louco por você. — Klaus voltara a nos olhar e cruzara os braços.
Tinha torcido a boca e balançava a cabeça com desprezo. — Até hoje não
consigo entender o que ele viu em você.
— Eu estou sentada bem aqui, queridinho... — gemi em protesto.
Ele diminuiu o espaço entre nós, com uma ameaça velada no olhar.
Nossos narizes estavam separados por uns dois centímetros.
— Eu sou “Mestre” para você.
Abri um sorriso, provavelmente exibindo todos os meus dentes.
— Já passamos dessa fase há muito tempo. Klaus.
Em outros tempos, ele tentaria me estrangular ou drenar todo meu sangue,
mas eu sabia que aquele coração de pedra havia amolecido comigo. Claro que
o Mestre ainda tentava manter as aparências, mas parecia incapaz de me fazer
mal. O que era estranho, de verdade. Eu mesma me sentia diferente perto de
Klaus. Além de não ter mais o medo que era comum a qualquer outra pessoa,
eu sentia uma vontade incontrolável de me aproximar cada vez mais dele.
Klaus tinha seus problemas, mas era uma pessoa boa e era sempre tão
maravilhoso em tudo que fazia.
— Vocês não podem me culpar quando penso que algo anda acontecendo
entre os dois.— Misha rosnou.
Ele tinha razão. Klaus e eu estávamos nos encarando há alguns segundos,
sem piscar. Eu sabia que precisava desviar o olhar, mas estava sendo sugada
mais e mais para dentro daquele azul infinito. Soava como loucura, mas tive a
sensação de que, se esticasse a mão, poderia me unir ao Mestre. Não da
forma como acontecia entre Mikhail e eu, mas sim algo puro e único. E eu
ansiava por aquilo.
— Ei! — As mãos de Mikhail me sacudiram e Klaus foi o primeiro a
desviar o olhar. Devagar, virei meu rosto para Misha, ainda me sentindo em
transe. Ele olhou para o irmão, mostrando os caninos para Klaus. — Vai me
explicar o que foi isso?
O Mestre mais velho esfregou as mãos no rosto. Se o que acontecera
comigo também tivesse acontecido com ele, então Klaus estava tonto, sem
entender nada do que havia se passado.
Uma espécie de embriaguez me invadiu e precisei me encostar novamente
no peito de Mikhail.
— Klaus! — Ele rosnou, exigindo uma explicação que não teria.
— Shhh... — o som saiu pelos meus lábios, enquanto eu fechava um
pouco os olhos.
Ficamos todos no mais completo silêncio. Apesar de poder ouvir as
bufadas raivosas de Mikhail, ele ficou quieto. Eu estava quase cochilando e
quanto mais pensava no que acabara de acontecer, menos entendia.
Algo me puxou para longe do sonho que estava tendo e me fez ficar alerta.
— Sasha...
Olhei primeiro para Klaus, mas ele nunca me chamava daquele jeito.
Continuava de olhos fechados e não dava indícios de ter ouvido. Inclinei meu
corpo para o lado e virei a cabeça para ver se tinha sido Mikhail, mas ele
estava quieto, também de olhos fechados. Talvez o chamado tenha vindo do
meu próprio sonho e eu me confundi.
Achoncheguei-me novamente entre os dois Mestres e fechei os olhos.
— Sasha... — o som da voz chegou junto com o vento que entrou pela
abertura da caverna. — Venha...
Voltei a olhar para Klaus e Mikhail, que permaneciam de olhos fechados.
— Isso é alguma brincadeirinha de um de vocês? — Perguntei com raiva.
— Porque se for, aviso que não tem a menor graça!
Como nenhum dos dois me respondeu, cutuquei a perna de Klaus com a
ponta do pé. Ele não abriu os olhos. Dei-lhe um chute e nada aconteceu.
Acotovelei Mikhail e o Mestre não esboçou nenhuma reação.
— Isso é ridículo! Merda! — Praguejei, levantando com pressa e olhando
para os dois Mestres. — Eu gostaria de avisar que vou me jogar do
precipício! Mas antes, colocarei fogo na caverna.
Era a chance de um dos dois me olhar com raiva e me dar algum sermão.
— Sasha... — a voz me chamou novamente.
Klaus e Mikhail permaneciam imóveis, como mortos.
Não podia ser, não é? Talvez tenham apenas cochilado e eu conseguisse
acordá-los com mais ação. Aproximei-me de Mikhail e alonguei meus dedos,
para, em seguida, dar o tapa mais forte da minha vida.
O estalo escoou pela caverna e a palma da minha mão quase pegou fogo.
— Porra! — Dei as costas para eles, querendo urrar de dor. — Se isso for
uma brincadeira sem noção de vocês, juro que quebro a Fortaleza toda
quando voltarmos.
— Sasha...
— Vá à merda, sua voz maldita! — Gritei ao me virar na direção da
entrada da caverna.
Não havia nada ali, mas eu podia jurar que a voz era feminina e estava
próxima. Eu já tinha assistido muito filme de terror para saber que não se
deve seguir vozes do além.
Que ótimo! Minha ficha finalmente caiu. A mensagem que a gente
esperava receber sobre minha situação não chegaria por uma pedra incrustada
nas entranhas da caverna. Eles mandaram um fantasma como mensageiro.
— Seu tempo está acabando... — ela sussurrou, o vento dançando ao meu
redor e açoitando meus cabelos. — Klaus e Mikhail não poderão ajudá-la...
Então, a alma penada sabia os nomes deles. O que indicava que ela talvez
não fosse um fantasma e sim um dos deuses que os amaldiçoaram. Se é que
existiam mesmo.
Quanto mais eu pensava naquilo, mais temerosa ficava. Os Mestres foram
amaldiçoados, o que significava que deuses não eram necessariamente bons.
Por mais que Ondrej tivesse agido de forma muito errada, seus filhos não
mereciamser castigados.
Eu observava os dois Mestres quando reparei que a voz havia parado de
me chamar. E eu não sabia dizer se era pior ser chamada ou ser esquecida.
Caso ela estivesse dizendo a verdade sobre o meu curto tempo, então eu
poderia cair morta a qualquer instante.
Tomando a decisão que podia ser a mais errada de todas, dei alguns passos
apreensivos na direção da entrada. Quanto mais eu me aproximava, melhor
podia ver a claridade do lado de fora. A pouca luz que entrava pela caverna e
cobria o chão era como garras que o sol estendia na esperança de alcançar seu
interior.
Foi preciso tapar os olhos no momento em que saí. O sol estava forte
demais, de um jeito que chegava a ser absurdo. Uma claridade tão brilhante
que, quando abri os olhos e eles se adaptaram, só vi o branco. Aquela cor
para todos os lados, se estendendo pelo tapete de neve numa vastidão sem
fim.
Atrás de mim, uma montanha se agigantava e exibia árvores com as copas
cristalizadas. Virando a cabeça para leste, enxerguei uma superfície brilhante,
que refletia a luz do sol e incomodava meus olhos. Acabei me aproximando
para entender melhor o que era aquilo que cortava a planície de tapete branco.
Era um lago, completamente congelado. Eu só tinha visto aquilo em um
ou dois filmes, já que a maioria das produções eram filmadas dentro de
estúdios. Mas já assistira alguns muito antigos que tinham paisagens como a
que eu via agora. Eu me senti no Pólo Norte. E o mais estranho, não estava
tremendo de frio.
— É realmente um lugar muito bonito. — Eu me virei e quase infartei ao
ver uma imagem atrás de mim, absolutamente assombrosa. Era muito bonita,
mas o mal que exalava pelos seus olhos me deixou tonta.
— Certo — levei minhas mãos à cintura e a encarei. Eu era corajosa, já
tinha enfrentado a droga da rainha dos mitológicos. — Como vai ser? Vamos
duelar? Você vai lançar um feitiço em mim? Eu não pedi por esses poderes,
sabe?
Ela sorriu, mas de forma muito comedida. Foi apenas um esboço.
— Olá, Aleksandra! A cada minuto que aprendo sobre você, mais tenho
certeza de que tomamos uma ótima decisão.
— Que decisão? — Perguntei.
A mulher encarou o lago, pensativa. Quando voltou a prestar atenção em
mim, o sorriso tinha sumido e seus olhos, antes azuis, estavam negros. Senti
um calafrio percorrer minha espinha e meu corpo amoleceu. Eu não cheguei a
cair, mas era como se estivesse sem equilíbrio, flutuando com os pés no chão.
— Como eu disse, seu tempo está chegando ao fim. Você está preparada
para a morte?
Que pergunta, não é? Tão delicada!
— O quê? — Quis enforcá-la. — Quer saber de uma coisa? Vou voltar
para a caverna e esquecer essa loucura toda.
Ela sorriu mais uma vez e eu lhe dei as costas, pronta para voltar. Mas
meu corpo não obedeceu aos comandos do meu cérebro. Eu não conseguia
me mover, mesmo fazendo toda a força do mundo. Naquele instante, senti o
medo me consumir. O que eu havia feito? Não devia ter deixado a caverna.
Não devia ter deixado a maldita caverna! As únicas pessoas que podiam me
proteger estavam lá dentro e não sairiam no sol.
Meu corpo deslizou para cima da camada de gelo que cobria o lago e eu
não podia lutar contra aquilo. A única coisa que ainda parecia me pertencer
era minha mente, pois nem falar eu conseguia mais. Meu peito se comprimiu
quando começou a me faltar ar e minha pele queimava em brasa.
— Lamento que seja dessa forma, mas você precisa passar por isso —
ouvi a voz em algum lugar, mas não conseguia identificar onde. — E para
sobreviver... — o vento parecia entrar pelos meus ouvidos. Ele estava dentro
de mim, sussurrando. — Você precisa querer viver.
Então, eu comecei a queimar. Sem fogo, apenas de dentro para fora. Foi
quando recuperei meus movimentos e a primeira coisa que fiz, além de gritar
de um jeito enlouquecido que até me soava estranho, foi arrancar as roupas.
Todas. Todas elas, que me queimavam.
A cada peça que eu jogava sobre o gelo, sentia a queimação aliviar. Mas
ainda não era o bastante. Eu iria derreter, me tornaria uma bola de fogo
incandescente ou explodiria, não sabia ao certo. Mas precisava...
Minha boca se escancarou quando minha cabeça caiu para trás e meu
corpo foi içado para o alto, como se uma pinça no céu me puxasse. Algo
dentro de mim estava partindo, quebrando, fragmentando. Meus braços
penderam no ar e eu sabia que estava voando, ou flutuando. Ou sonhando,
talvez. Meu pior pesadelo.
Ouvi as vozes de Klaus e Mikhail e achei que estavam vindo me salvar.
Mas depois, ouvi todos os Mestres. Ouvi as vozes dos meus pais. De Victor,
Lara e Kurt. Ouvi Helena cantar para mim. Reconheci as vozes de várias
pessoas que passaram pela minha vida e ouvi vozes estranhas, em idiomas
estranhos e muito, muito antigos. Ouvi vozes de crianças. A voz de uma
única criança, dividindo algo importante comigo. Ouvi a voz de uma mãe.
Que não era a minha. E tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 31

KLAUS
Abri os olhos sem conseguir lembrar de quando os fechara. Mais
intrigante ainda era que eu me sentia como se tivesse caído no sono, coisa
que não acontecia desde que nasci, praticamente. Esfreguei o rosto para
afastar a estranha nuvem letárgica que pairava sobre mim e olhei para o lado.
Mikhail sofrera o mesmo entorpecimento que eu e continuava apagado.
Porém, o que me deixou em pânico foi ver que Aleksandra não estava mais
em seus braços. Ela não estava em lugar nenhum da caverna.
— Acorde! — Empurrei meu irmão, mas ele continuou inconsciente.
Corri até a entrada, mas parei a alguns metros de distância. O sol brilhava
do outro lado e alguns raios se estendiam poucos centímetros para o interior
da caverna, quase alcançando meus pés.
“Aleksandra! Acho bom você ter um ótimo motivo para ter saído sozinha”
— ameacei, sem conseguir sentir a presença dela por perto. — “Use seus
poderes e fale comigo. Agora!”
Esperei pela resposta por longos minutos e ela nunca chegou. Minha ira
era tanta que gostaria muito de sair debaixo daquele sol e trazer a rebelde de
volta pelos cabelos. Ela tinha prazer em arranjar problemas e ainda nos
estressava com eles.
— Mikhail, é bom você acordar logo — rosnei. — Ou eu mato sua
namorada assim que ela aparecer.
— Seu irmão amaldiçoado não irá acordar — eu me virei ao ouvir aquela
voz sobrenatural que fazia com que minhas entranhas se revirassem. — Não
por enquanto.
Ela estava de pé, com os pés dentro de uma das fogueiras que eu tinha
acendido há algumas horas. Os cabelos negros como a noite balançavam na
altura da cintura e eram adornados por uma tiara de metal com pontas afiadas
no alto da testa. Vestindo um manto branco, com orelhas pontiagudas e olhos
azuis, era difícil não reconhecer aquela presença.
— Morana — cumprimentei, com um amargor na ponta da língua.
Ela era a deusa do inverno, da morte e da bruxaria e, para nossa maldição,
tinha designado que vivêssemos envoltos em frio e neve. Eu a odiava com
muita sinceridade.
— Então, eu estava certo e o que está acontecendo com Aleksandra tem o
dedo de vocês no meio.
— Não foi difícil descobrir, foi? — Ela sorriu.
Apesar de haver pouco mais de três metros entre nós, eu sabia que avançar
sobre ela e quebrar-lhe o pescoço era inútil. Aquele corpo não existia, ela era
apenas um espectro. Nada que fizéssemos poderia destruir um deles.
— Fico surpreso que Svarog não tenha vindo dar a notícia pessoalmente
— comentei, enquanto ganhava tempo para entender a situação. — Foi ideia
dele?
O sorriso de Morana se escancarou e ela jogou a cabeça para trás ao
gargalhar.
— Não, meu querido. Svarog não agiu sozinho. Hoje, sou apenas a
mensageira — ela indicava estar se divertindo.— Mas, acho melhor pararmos
com os gracejos. — Morana andou até mim, passando com o corpo próximo
ao meu e sussurrando em meu ouvido. — O tempo de Aleksandra está
acabando.
Quando esticou a mão para tocar meu peito, senti minha pele queimar sob
a camisa. Ela sorriu, satisfeita.
— Onde está Aleksandra? — perguntei.
— Você matou seu irmão e não esperávamos que isso acontecesse, Klaus.
— Os olhos azuis escureceram e a pele pálida ganhou sulcos que marcavam
as maçãs do rosto. Sua verdadeira aparência. — Como forma de manter o
equilíbrio da maldição que vocês são obrigados a carregar pela eternidade,
era preciso que um novo Mestre renascesse.
O rumo inicial da conversa não estava me agradando. Pior era saber que
Mikhail continuava inconsciente, alheio ao que acontecia. Voltei a encarar
Morana, que tinha seguido o meu olhar até ele.
— É tudo culpa dele também, tão tolo em lidar com humanos. Se a garota
está nessa situação, foi porque Mikhail a arrastou para dentro da vida de
vocês.
Sobre essa parte eu concordava com a maldita deusa. Mikhail agiu como
um idiota ao se apaixonar por uma humana e deixar que ela se intrometesse
no meio de nós.
— Muito bem, querido Klaus. Vamos ao que interessa. Quando você
tomou a brilhante decisão de matar seu próprio irmão, nós transferimos todo
o poder de Rurik para a pessoa mais próxima dele no momento de sua morte.
Não foi uma escolha difícil, você sabia? — Ela suspirou, pensativa. — O
receptáculo consumiu tanto sangue nos últimos meses que já estava
preparado.
— O poder de Rurik? — Era difícil de acreditar, mas estava acontecendo
diante de mim, meu maior pesadelo. — Você está querendo dizer que
Aleksandra Baker recebeu os poderes de Rurik?
— Mestre Aleksandra — o sorriso de Morana foi diabólico. — Mas,
querido, não se trata apenas disso. Você não entendeu. Ela não apenas
recebeu alguns poderes. A jovem Aleksandra terá com você a mesma ligação
fraternal que o seu gêmeo tinha.— Ela arqueou uma maldita sobrancelha. —
Pense um pouco e perceberá que essa ligação deu-se início há alguns dias.
Vocês estão em sintonia. Estou enganada?
Tudo que eu mais desejava na vida, naquele momento único, era partir o
corpo de Morana ao meio e jogar dentro do lago. Como não era possível, me
contive.
— Onde ela está? — perguntei, ameaçador.
Morana andou até a entrada da caverna, banhando-se no sol e se virando
para me olhar. Esticou o braço, apontando um dedo para o leste, onde eu
sabia que havia um lago congelado que corria na direção sul.
— Aleksandra está lá, esperando por você. — Ela sorriu. — Mas o tempo
dela, como eu disse, está acabando.
— Não sei se você notou, mas fui privado do direito de pegar um pouco de
sol — rosnei, impaciente.
— Exatamente, Klaus. O que você fará?
Eu estava sendo testado pelos malditos deuses. Achava que àquela altura
da vida, já não precisaria mais ser importunado por eles, visto que não via
ninguém há mais de um milênio. Mas ali estava Morana.
Foi a minha vez de rir. O semblante da Deusa endureceu quando estalei a
língua e cruzei os braços.
— Sinto informar, mas não adianta tentar buscá-la se eu mesmo morrerei
no meio do caminho.
— E seu eu disser que esse sol não irá matá-lo? — Ela lançou a pergunta
no ar, conseguindo minha total atenção. — É o suficiente para machucar, mas
não para matar.
— Ou seja, estou passando por um teste de confiança. — Apontei meu
dedo para ela. — Devo confiar em você!
— Tic, tac, Klaus. — Morana estalou os dedos duas vezes. — O que será?
Em toda a minha existência nunca ouvira nada semelhante. Um sol que
não pode me matar? Havia alguma armadilha no ar e eu não estava
conseguindo captá-la. A Deusa fazia questão de deixar claro que Aleksandra
se aproximava da morte a cada segundo que perdíamos conversando, embora
eu não entendesse o sentido daquilo.
— Muito bem, desperte Mikhail — ordenei.
— Não posso despertar Mikhail. Se eu fizer isso, ele não pensará duas
vezes e irá ao encontro dela. — Morana encurtou a distância entre nós,
retornando para o interior da caverna. Seu dedo indicador balançou próximo
ao meu rosto. — Essa tarefa foi designada a você. Será que o poderoso Klaus
salvará a pessoa que ajudou a salvá-lo? Tic. Tac.
— E se eu não tivesse vindo na viagem?
— Arranjaríamos outra forma de completar o ciclo.
Mesmo sem querer, Aleksandra me arranjava problemas. Suspirei, me
preparando para o pior. Eu iria lá fora e queimaria até não restar mais nada,
para divertimento dos malditos deuses. Ou nada aconteceria, se Morana
estivesse falando a verdade.
Fechei os olhos e caminhei na direção da entrada. Comecei a sentir o
corpo esquentar com os raios solares que tocavam minha pele, mas fui
adiante. Então, senti que estava completamente sob a luz do dia, do lado de
fora da caverna.
Abri os olhos e tive dificuldade para enxergar com toda aquela claridade.
Quando minha visão conseguiu se adaptar, olhei para meus braços expostos
por causa das mangas curtas da camisa. Minha pele estava avermelhada, mas
continuava intacta.
— Eu disse que não o mataria. — Morana apareceu ao meu lado. — Mas
não prometi nada em relação a ela.
Segui a direção para onde seu dedo apontava e fiquei sem reação.
Aleksandra estava na horizontal flutuando a uns dez metros de altura, nua, os
cabelos totalmente brancos. Parecia sem vida ou inconsciente, o que era mais
provável. Decidi que bastava pegá-la o mais depressa possível e retornar para
a caverna.
Antes que eu me mexesse, seu corpo despencou de encontro ao gelo,
rachando a camada que eu acreditava ser bem grossa e afundando na mesma
hora.
— Maldita! — vociferei para a Deusa e corri até o lago.
Notei que algo estava errado, pois eu corria na velocidade humana, não na
minha. Abismado, olhei para meus pés, que cismavam em ser lentos demais.
Ouvi a risada atrás de mim, mas não me virei para Morana; continuei em
frente.
— Assim como o sol não te reduz ao pó, seus poderes também não estão
funcionando.
O que antes me parecia tão perto, se tornou uma eternidade para alcançar.
Era como se eu estivesse a centenas de quilômetros do lago porque aquela
simples corrida já começava a exigir muito de mim.
Meus pés derraparam sobre o gelo e precisei ter cuidado para não quebrá-
lo. Procurei pelo buraco por onde Aleksandra caíra, mas tudo estava intacto,
o gelo se fechara novamente. Eu me ajoelhei, afastando a camada de neve
com as mãos, procurando por algum vislumbre dos cabelos brancos.
— Onde ela está? — gritei, o nervosismo me consumindo. Não sabia
quanto tempo Aleksandra aguentaria. — Morana!
Eu me levantei, olhando para trás. O lago seguia curso para o sul, então
ela devia ser levada para lá. Caminhei com cuidado sobre o gelo, sentindo
dificuldade para me equilibrar como um mero mortal. Era escorregadio
demais.
Acabei caindo de joelhos, mas tive um vislumbre da perna de Aleksandra.
Limpei a neve com pressa e lá estava ela, boiando, o gelo espesso nos
separando.
Dei o primeiro soco, esperando que tudo se partisse, mas nada aconteceu.
Eu não tinha minha força habitual. Maldição! Soquei o gelo uma vez, duas,
três, até perder as contas e deixar meu sangue espalhado por todo o local.
Aleksandra estava de olhos fechados, o rosto próximo de onde eu
disparava meus socos. Os lábios roxos e a pele quase azulada indicavam que
o tempo a que Morana se referia estava quase no fim.
— Qual a pegadinha aqui? — gritei. — Vocês vão matá-la?
Levantei, num ímpeto, um desejo voraz de esmagar a imagem diante de
mim. Avancei contra Morana, que recuou alguns metros num passe de
mágica.
— Se ela morrer, a culpa é apenas sua, Klaus. Você quer salvá-la?
— Estou tentando!
— Está mesmo? — ela perguntou, me fazendo cerrar os punhos. — Nós
sabemos que você não gosta de ser contrariado. Ter Aleksandra como Mestre
te causaria tanto incômodo. Mas você pode parar de tentar, sabe? Mikhail
nunca descobrirá como tudo aconteceu.
Despejei toda a ira contida em meu olhar sobre Morana, mas eu sabia que
era inútil discutir. Ajoelhei novamente sobre aquela criatura rebelde, de
língua afiada e imã para confusão. Aleksandra Baker não iria morrer, se
dependesse unicamente de mim.
Comecei a socar o gelo de forma intermitente, sem parar para respirar.
Sentia todo o meu corpo começar a arder demais e a pele dos braços, antes
avermelhada, já apresentava alguns pontos chamuscados.
— Vamos! — urrei. — Vamos, Sasha!
Sentia dor em cada nervo dos meus dedos que estavam sendo dilacerados.
O sangue que eu perdia começava a impedir que eu visse totalmente o rosto
de Aleksandra. O rosto dono de expressões petulantes que me faziam querer
matá-la! Mas nunca tive realmente a intenção. Não era sempre que aparecia
alguém para me desafiar e aquela idiota insistia em não ter medo de mim.
— Sinto muito, Klaus! — Morana estalou a língua em algum lugar. Não
me preocupei em procurá-la. — Seu tempo acabou.
O corpo começava a afundar diante dos meus olhos e o rosto de
Aleksandra parecia mais turvo do que antes.
— Não acabou.
Continuei, incansável, deixando de enxergar o corpo dela. Um trinco se
formou no gelo, mas não o suficiente para quebrá-lo. A voz de Morana estava
encoberta pelos meus gritos, minha raiva que eu só podia descontar naquele
gelo e não no pescoço dela.
— Klaus. — Senti sua mão sobre meu ombro. — Ela se foi.
— Cale-se!
De repente, comecei a sufocar. Cuspi a água que estava enchendo meus
pulmões e caí de costas. Podia ouvir o chiado agudo que eu mesmo emitia
enquanto respirava com dificuldade. Arranhei minhas unhas no gelo,
tentando me levantar, enquanto era invadido por flashs que dançavam em
minha mente. O que estava acontecendo?
Meus irmãos, inclusive Rurik, apareceram para mim. Alguns moradores
da Fortaleza e milhares de pessoas que já passaram pelo meu caminho
durante os séculos. Os rostos dos meus pais. Flashs do meu nascimento. Não.
Não era o meu, pois não nasci num hospital. Era Aleksandra, pois Irina e
Johnathan estavam lá. Depois, flashs meus engatinhando, rindo enquanto
brincava com um cachorro. Não eu. Sasha... Aleksandra. Nadando, correndo,
assoprando velas sobre bolos de aniversário, chorando. Era eu, vivendo como
ela. Chegando na Fortaleza e vendo Mikhail pela primeira vez. Eu sorrindo
para mim mesmo. Flashs meus apanhando de mim mesmo. Sorrindo,
encarando. Queimando.
Gritei pela dor alucinante que me cortava por inteiro. Era a dor dela. E eu
sabia que ela não estava morta. Ainda não. Em completo desespero, ela se
agarrava a mim, avisando que ainda estava por ali. Implorando para não
deixá-la. E se ela ainda lutava, eu não podia desistir.
Continuava arranhando o gelo, tentando encontrar um apoio para me
levantar. Meus olhos ardiam e as lágrimas ensopavam meu rosto.
Rolei o corpo para o lado e fiquei de bruços, forçando os joelhos.
Enquanto me ajoelhava, tossia para libertar meus pulmões da água, mas
acabei cuspindo sangue e manchando ainda mais a neve.
— Desista. — Morana, com seu tom de pesar, me consolou. — Você não
conseguiu. Mas já era esperado. Você destrói tudo à sua volta.
Sem lhe dar atenção, forcei-me a ficar de pé. Meu corpo reclamou quando
estiquei as costas e me movimentei, tentando correr para ganhar uma boa
distância. Escorreguei algumas vezes, mas levantei em todas elas. Então, me
virei para trás, para o ponto onde estava antes, agora a uns dez metros de
distância.
Corri com cuidado naquela direção, sugando toda a força precária que eu
adquirira, sentindo meus pés baterem firmes no gelo abaixo de mim. Quando
estava próximo do local ensanguentado, mirei o ponto onde o trinco tinha se
formado e mergulhei de cabeça, com os punhos esticados à frente.
O gelo cortou meu couro cabeludo, mãos e pulsos e a água congelante
envolveu meu corpo. Nadei com pressa em direção ao fundo do lago e avistei
o corpo sem vida de Aleksandra. Passei um único braço ao redor dela e
imediatamente tudo mudou. Eu voltei a ser eu mesmo, como sempre fui.
Minha força foi reestabelecida, assim como minha velocidade.
Subi sem qualquer dificuldade e pulei de volta à superfície. Aterrissei no
gelo com Aleksandra, sentando e envolvendo o corpo sem vida em meus
braços, de forma que pudesse protegê-la de Morana, que batia palmas atrás
de mim.
— Apesar dos poderes, ela terá um mês para ser devidamente
transformada, ou morrerá. E que fique claro que, se vocês deixarem que ela
morra, outra pessoa será escolhida para tomar o lugar de Rurik. Eu aconselho
que fiquem com ela. Aleksandra tem um coração puro, diferente de seu
falecido irmão.
Segurei o rosto azulado entre minhas mãos. Ela não estava respirando. E
pela sua temperatura corporal, parecia mais morta do que eu.
— Klaus? — Levantei o olhar para Morana, que parou diante de mim. —
Eu espero não vê-lo nunca mais.
E virou-se de costas, caminhando sobre o lago congelado, que não possuía
nenhum vestígio do meu mergulho.
Voltei minha atenção para Aleksandra, a cabeça pendendo sem vida em
meus braços. Nunca tinha feito nada como aquilo na vida e não fazia ideia se
era o jeito certo, mas tapei o nariz dela com dois dedos e abri sua boca.
Aproximei meu rosto do dela e soprei um pouco de ar para dentro dos seus
pulmões. Uma, duas, três vezes.
Finalmente, olhos azuis me encararam. Não verdes, como eram antes.
Aleksandra franziu a testa e baixou os olhos pelo corpo. Quando voltou a me
encarar, levantou o braço e me deu um soco no rosto. Voei alguns metros
para trás e, antes que caísse, me equilibrei de pé.
— Eu estou pelada e você está me beijando? — ouvi seu grito histérico.
— Que tipo de pervertido você é?
Empurrei meu maxilar de volta para o lugar e olhei para a criatura de
costas para mim, que caminhava tranquilamente na direção da caverna. Nua e
com os cabelos brancos balançando contra o vento. Eu já sentia falta de
Rurik.
CAPÍTULO 32

Mikhail estava ensandecido quando entrei na caverna. Andava de um lado


para o outro e dava socos nas paredes. Ao me notar ali, seus olhos se
arregalaram.
— Muito bonito! — Cruzei meus braços. — Eu estava lá fora, sendo
beijada por Klaus e você aqui, lapidando as pedras do lugar.
— Não me faça jogá-la de volta no lago. — O depravado passou por mim,
carregando minhas roupas nos braços e jogando-as sobre as peles de animais.
Misha alternava olhares entre nós dois, como se não conseguisse entender
o que estava acontecendo. Então, pareceu se dar conta do meu estado e
colocou o próprio manto sobre meus ombros.
— Obrigada! — agradeci, puxando a vestimenta e escondendo meu corpo.
— Por que Klaus estava te beijando? — O Mestre parou diante de Klaus e
de costas para mim.
— Eu estava fazendo respiração boca-a-boca — o outro explicou,
sentando-se e encarando os dedos das mãos. — Mas já estou arrependido de
ter saído dessa caverna.
Enquanto eu pegava minhas roupas e tratava de me vestir, Klaus começou
a narrar tudo que havia acontecido na última hora.
Eu lembrava da maioria das coisas e, conforme ele esclarecia tudo, os
detalhes que faltavam iam se encaixando no quebra-cabeça que minha mente
havia se tornado. Era uma confusão, lembranças minhas misturadas às de
Klaus e eu não sabia onde começava uma coisa e terminava outra.
Quando ele chegou na parte em que Morana contava sobre os poderes de
Rurik, Mikhail me olhou estarrecido.
— E eu, inocente, pensando em me tornar uma Guardiã — gargalhei para
esconder meu nervosismo porque, por dentro, eu estava pirando. — Esse
pacote parece ser bem mais completo.
— Que sorte a nossa — Klaus desdenhou.
Mas Mikhail ainda digeria a informação. Eu já tinha terminado de vestir
calça e blusa quando ele se aproximou de mim e segurou meu rosto entre as
mãos. Seus olhos examinavam os meus. Acho que ele tentava descobrir se
Rurik tinha me possuído ou algo do tipo.
— Você tem os poderes dele?
— Acredite, ela tem. — Klaus derreteu um pouco de neve e usou a água
para limpar as mãos sujas de sangue. — A louca tirou meu maxilar do lugar.
— Você estava me beijando!
— E vocês agora possuem uma conexão de gêmeos? — O pobre Misha
estava confuso e eu não podia culpá-lo.
Klaus suspirou, com pesar, mas agora eu sabia que muito do que ele exibia
de si mesmo era um exagero. Uma máscara pesada que ele vestia. Ter que ser
o mais velho, aquele a carregar toda a responsabilidade nas costas, os poderes
mais intensos. Mediar o relacionamento dos irmãos, comandar a humanidade,
cuidar dos ataques. Manter sempre uma imagem impecável e implacável. Ele
era o monstro que pediam para ser. Mas já tinha sido um garoto com sonhos e
esperanças.
Eu me ajoelhei na frente dele, que me olhou desconfiado. Cenho franzido
e olhos estreitos, com o entendimento de que eu sabia seu segredo.
— Obrigada — falei.
E, sem que ele esperasse, atirei o peso do meu corpo sobre o dele e
envolvi seu pescoço com meus braços. Claro que ele não me devolveu o
abraço, seria esperar muito de Klaus em tão pouco tempo. Somente o fato de
não ter me lançado para bem longe já era um enorme avanço.
“Me ensine o que Rurik não quis aprender” — pedi.
“Que tal começar aprendendo que eu não gosto de ser tocado?”
Eu o soltei, mas antes de me afastar, abri um sorriso provocante. Sabia que
ele estava me xingando mentalmente.
“Bem, é melhor mudar isso. Teremos uma eternidade cheia de abraços!”
Ao nosso lado, Mikhail pigarreou tão alto que só podia ter sido um
exagero mesmo. Ele estava incomodado, visivelmente enciumado com a
reviravolta em nossas vidas. Deixei Klaus em paz e me sentei ao lado de
Misha, dobrando minhas pernas sob o corpo e apoiando as costas na parede.
— Está se sentindo bem? — perguntou.
— Tirando a fome, nunca me senti tão bem em toda minha vida.
— Fome ou sede?
Era uma boa pergunta. Precisei pensar e estudar o que estava sentindo.
Aquela sensação de vazio no estômago quando precisava comer, não existia
mais. Todavia, minha garganta estava sedenta. E isso antecipava a sensação
que ansiava pela saciedade. Sim, eu tinha sede. De sangue.
Acho que meu silêncio respondeu a pergunta, pois Misha cortou o pulso
com a ponta da unha e o estendeu para mim.
— Nosso sangue não é o mais saboroso — disse. — Sempre vamos
preferir o sangue humano, mas serve para suprir necessidades mais urgentes.
Encarei o pulso dele, o sangue vermelho escuro escorrendo pela pele
pálida e me fazendo salivar. Tive receio, no início, de aceitar e deixá-lo fraco.
No entanto, a sede falou mais alto. Só precisei piscar uma vez para que
minhas mãos agarrassem a dele e eu tocasse a ferida com minha boca.
O líquido, que antes era nojento, grosso demais e quase intragável, me
pareceu fresco e deslizou suavemente pela minha língua. Engoli algumas
vezes, sentindo que o sangue aquecia o caminho por onde passava. Essa
sensação me fez querer mais e meus dedos se apertaram em volta do pulso de
Misha. Até que ele se moveu, fazendo força para puxar o braço de volta. Eu o
soltei a contragosto e voltei a me recostar à parede.
— Sei que deseja mais, só que preciso do meu estoque até a próxima
refeição — ele sorriu. — Se a sede aumentar, Klaus também pode
compartilhar um pouco do dele.
— Você não acha que já estou compartilhando muita coisa? — O Mestre
rosnou, impaciente. — Ela que use os caninos e vá caçar.
— Não tenho caninos — avisei, passando a língua pelos meus dentes, à
procura daqueles mais afiados. — Como isso é possível?
Foi Mikhail que se intrometeu e puxou meu rosto, abrindo minha boca e
examinando a arcada dentária. Ele franziu a testa, o que não me ajudou
muito. Que tipo de vampira eu era se não tinha um maldito canino? Como
poderia assustar as crianças na rua?
Ao pensar nas crianças, me lembrei de Victor. Meu irmão surtaria quando
descobrisse o que eu tinha me tornado. E, de repente, me vi ansiosa para
mostrar a ele e receosa pela reação dos meus pais. Eles não ficariam alegres.
— Talvez, os caninos só apareçam depois da transformação. — Klaus
comentou, com o olhar perdido. — Eles deram um mês a ela, então pode ser
que, por enquanto, só tenha recebido os poderes.
— Para me tornar Mestre efetivamente, preciso passar pela transformação.
Klaus e Mikhail me encararam como se eu fosse uma assombração. Acho
que, até então, eles ainda não haviam parado para digerir o significado do que
acabara de acontecer. Eu me tornaria Mestre. Igual a eles. Um título que
nunca imaginaram compartilhar com um humano.
— Como explicaremos para os outros? — Mikhail murmurou com o olhar
perdido, absorto nos próprios pensamentos. — A confusão vai ser grande.
— Não contem para Nadia — pedi, sorrindo. — Por favor, reservem esse
prazer a mim.
Respirei fundo, sentindo o ar preencher meus pulmões. Ainda era tudo
muito surreal e eu tinha receio de dormir e acordar algumas horas depois para
descobrir que fora apenas um sonho maluco.
Aos poucos, minha ficha caía. Cada detalhe do que eu vivi do lado de fora
daquela caverna voltava a me consumir. Foi doloroso e, por um tempo,
cheguei a desejar a morte só para que o sofrimento terminasse. Não vi a
chegada de Klaus, mas de alguma forma, eu consegui sentí-lo. Ele estava
tentando me salvar, tentando quebrar o gelo. Ele quase desistira, porque a
Deusa maldita instigava sua derrota.
— Você está bem? — Os dedos de Misha envolveram os meus. — Sei que
tudo está acontecendo rápido demais.
Olhei para nossas mãos entrelaçadas e senti um alívio em tê-lo por perto.
Eu não estava tão bem. Fisicamente, sim. Psicologicamente, não tanto.
Afinal, Mestre não era um título que eu algum dia sonhara alcançar.
Nunca havia passado pela minha cabeça me tornar uma vampira até pouco
tempo. Mas, tudo bem, porque os últimos acontecimentos me fizeram ter uma
visão diferente das coisas e eu começava a aceitar a ideia. Seria uma vampira.
Transformada da forma mais simples possível. Cheguei a cogitar me tornar
uma Guardiã, mas sabia que Mikhail não concordaria. Tampouco fazia
questão de ser forte como os Guardiões e ter os poderes deles. O que nunca
fez parte dos meus planos era me tornar Mestre.
— Em casa nós conversaremos melhor sobre o que fazer ou não fazer. —
Mikhail sorriu de forma complacente.— Você não tem noção do que
significa ser Mestre e, por um tempo, não poderá agir como bem entender.
— Está fazendo pouco caso de mim? — perguntei, me levantando. — Eu
não sou idiota, entendo muito bem a dimensão disso tudo.
Misha também levantou e estendeu as mãos, tentando apaziguar os
ânimos. Mas aquela viagem só tinha servido para acumular brigas e mais
brigas entre nós. O Mestre não estava acertando muitos pontos comigo.
— Lógico que não é pouco caso, Sasha! — ele disse, exasperado.
Aproximou-se de mim e tocou meus ombros. — Até porque, de acordo com o
que foi narrado por Klaus, você será igual a mim.
Eu sorri.
— Se eu sou como uma gêmea do Klaus, então hierarquicamente, você
está um pouquinho abaixo de mim — comuniquei, erguendo meus dedos
indicador e polegar, e colocando um espaço pequeno entre eles como
demonstração. Depois, segurei o rosto dele com uma das mãos e dei um beijo
rápido em sua boca. — Fica tranquilo que não deixarei minha magnificência
atrapalhar nosso relacionamento.
Seria o momento perfeito para uma saída triunfal, mas eu estava dentro de
uma droga de caverna e o sol reinava lindamente do lado de fora. Lancei um
olhar triste naquela direção, pensando que eu nunca mais sentiria o calor da
estrela maior aquecer minha pele.
— Eu estou derrotado — disse Klaus às minhas costas, para o irmão. —
Mas você, Mikhail, está na sarjeta. Ela agora é superior a você.
— Não estou preocupado com isso. — Misha sorriu para mim. — Será
interessante.
Pela forma como me olhou, entendi exatamente a que Mikhail estava se
referindo. A parte do sexo seria interessante. E, desde que eu quase morri
naquele lago, essa era a primeira vez que me deixava pensar em como seriam
as coisas entre nós. Antes, eu era uma humana frágil que não podia conhecer
o verdadeiro Mikhail em ação. Agora, poderia aguentar todas as investidas
selvagens dele. Um calafrio percorreu minha espinha e eu salivei.
O que logo me fez arregalar os olhos, ao pensar nas consequências
daqueles meu poderes. Klaus sentiu o que eu sentia, pois me olhou de forma
curiosa.
— Se eu ocupei o lugar de Rurik e ele era irmão de todos vocês... —
Recuei alguns passos, horrorizada, encarando Mikhail. — Eu sou sua irmã?!
Meu histerismo deve ter sido ouvido há quilômetros de distância. Klaus, é
claro, parecia se divertir às minhas custas e Mikhail, pobre Mikhail... Ele me
encarava atônito. Acho que aquela teoria ainda não havia passado pela cabeça
dele.
Mikhail olhou para Klaus, como se o outro Mestre fosse ter alguma sábia
resposta. Klaus estava tão perdido quanto nós dois no que dizia respeito a
substituição de Mestres. Sai um entra outro, compre dois pelo preço de um e
eu poderia continuar fazendo piadinhas horas a fio.
— Não sejam ridículos! — O mais velho finalmente falou, revirando os
olhos. — Muito me admira que você seja ingênuo a esse ponto, Mikhail. A
maldição só transferiu os poderes de Rurik para ela. Poderes esses que foram
divididos comigo no útero da nossa mãe, o que explica a nossa ligação.
O Mestre parou o discurso e se pôs a pensar, o olhar perdido. Em seguida,
gargalhou.
— Mesmo que fosse verdade e vocês tivessem virado irmãos, Mikhail já
tem experiência nesse quesito.
Eu lancei um olhar assassino para Misha, que se mostrou incomodado com
a acusação. Mas, onde havia fumaça, sempre havia fogo.
Os dois trocaram ameaças veladas e eu parei diante de Mikhail, esperando
por uma explicação. Gostaria muito que ele negasse a afirmação de Klaus.
— Você é ridículo em ainda insistir nesse assunto — disse ele para o
irmão. — Esqueça isso!
— Esquecer exatamente o quê? — perguntei, apoiando as mãos nos
quadris. — Do que Klaus está falando?
— Nadia depois te conta — o mais velho respondeu, num assobio, o que
me deixou chocada demais para xingá-lo.
Eu olhei para Mikhail, querendo arrancar os olhos dele com meus dentes.
Como seria agressivo demais, apenas o lancei contra a parede mais próxima.
— Nadia? Isso é sério?
— Foi uma festa.
— Uma orgia. — Klaus consertou.
— Uma festa que saiu do nosso controle — continuou Misha. — E quando
vi, Nadia e Rurik também estavam participando.
Como eu queria poder vomitar!
A ânsia me consumia, mas não havia nada que eu pudesse fazer para
libertá-la. Tapei a boca, enjoada com as palavras de Mikhail. Até o último
segundo eu tive esperanças que ele desmentisse Klaus, mas não. O infeliz
confirmou.
— Não foi assim como você está pensando — disse ele, com um olhar
tranquilo. — Eu não toquei em Nadia.
— Só dividiram a mesma cama.
— Klaus! — ele vociferou e se lançou contra o irmão, que também ficou
de pé para encará-lo. — Você não está ajudando.
— Sinto muito! — Klaus inclinou a cabeça. — Estou magoando os seus
sentimentos?
Eles se enfrentaram, Mikhail parando a milímetros do outro, olhos
assassinos se fitando. Então, era disso aí que eu participaria pelo resto da
minha eterna vida? Passei tanto tempo reclamando de um irmão como Victor
e teria que aturar cinco cães agressivos que passavam mais tempo mijando
para marcar território do que fazendo algo realmente útil.
Mikhail foi o primeiro a desviar o olhar e se voltou para mim, estendendo
as mãos em sinal de rendição. Ele balançou a cabeça para os lados conforme
caminhava na minha direção.
— Nós quase nos beijamos, foi um erro de julgamento pelo qual me
arrependo todos os dias. Mas não houve consumação do ato em si.
— Isso não ameniza o nojo que estou sentindo nesse momento — falei,
franzindo meus lábios. — De Nadia eu esperava qualquer coisa. Quem me
surpreendeu negativamente, foi você.
Por mais que eu quisesse bater portas e deixá-lo sozinho, não havia para
onde ir. Por isso, minha única opção era me sentar e calar a boca. Diziam que
a melhor resposta era o silêncio, então decidi praticá-lo.
Mikhail tentou argumentar, deu algumas desculpas e se fingiu de inocente,
mas não dei confiança. Fiz que nem eles costumavam fazer e fechei meus
olhos para esperar o tempo passar. Se eu não o olhasse, talvez esquecesse da
presença dele ali.
“Você faz ideia de quanto tempo já se passou desde que isso aconteceu?
O seu antepassado mais velho ainda nem havia nascido” — ele falou na
minha mente, me importunando.
Eu não respondi e continuei imóvel, sem me deixar afetar como ele
pretendia. Não importava há quanto tempo tinha acontecido. Aconteceu, era
nojento e ponto final!
“Vai deixar que um erro tão antigo fique entre nós?”
Como não recebeu resposta, ele se calou. E ficamos os três ali, contando
lentamente os minutos se passarem e as horas se arrastarem por nós. Era
difícil, para mim, não conversar, não arranjar uma forma de passar o tempo.
Mas eu estava tão, mas tão puta da vida com Mikhail e a omissão daquele
segredinho sórdido, que preferi ignorá-lo.

Tudo bem que aquele local não devia ser afetado pela poluição da vida
moderna. Considerando que não havia indícios de civilização a quilômetros
de onde estávamos, era de se esperar que o céu fosse tão limpo. A olho nu,
até meu irmão enxergaria o dobro de estrelas em comparação ao que
costumávamos ver na Fortaleza ou até mesmo nos Estados Unidos.
No entanto, nada me preparou para o que eu, agora com olhos de um
Mestre, estava enxergando. Havia constelações inteiras que eu desconhecia.
— Talvez você não consiga acompanhar nosso ritmo em uma primeira vez
— Klaus avisou, enquanto caminhava pela entrada da caverna, esperando que
Mikhail saísse. — Faremos paradas curtas.
— Certo.
— Não seja orgulhosa. Se sentir que precisa parar, avise.
— Já entendi.
Para ser sincera, eu não me sentia muito corajosa naquela hora. Faríamos a
viagem de volta para a Fortaleza e eu teria que enfrentar meus pais. Ou
melhor, todo mundo. A notícia de que eu me tornara Mestre não soaria bem à
maioria dos ouvidos. Arriscava apostar, inclusive, que somente meu irmão e
meus amigos ficariam felizes por mim.
Além disso, a ideia de correr centenas de quilômetros pelo mundo não
estava me deixando muito confiante. Eu conseguiria correr do jeito que eles
corriam? E se me atrapalhasse, quebrasse uma perna e passasse vergonha? E
se eu não tivesse recebido todos os poderes?
Um barulho atrás de mim me fez virar e vi Mikhail se aproximando. Antes
eu não teria antecipado a chegada dele, mas, pelo visto, meus ouvidos
estavam mais aguçados.
O Mestre estava calado, muito mais que o de costume, e não me olhou nos
olhos quando passou por mim.
Sem dar nenhum aviso, Klaus saiu em disparada, puxando Mikhail logo
atrás. Eu olhei para os lados, perdida, sem perceber que a corrida já tinha
começado. Inúteis! Custava muito me avisar?
— Homens! — Praguejei e comecei a correr.
Nos primeiros segundos, apenas corri, como sempre fazia. Só fui notando
que a velocidade estava maior que o normal quando a paisagem ao meu redor
começou a se tornar um mero borrão. E, enquanto antes eu não conseguia
enxergar os Mestres velozes, agora podia vê-los normalmente, como se
ambos estivessem comigo dentro de uma bolha e lá fora, o mundo se
desmanchasse.
Os dois Mestres estavam sempre à minha frente e, por mais que eu
tentasse, não conseguia alcançá-los. Eu não conhecia o caminho com tanta
maestria quanto eles e ter que desviar repentinamente de alguns obstáculos
fazia com que me atrasasse. Como no momento em que precisei pular uma
cratera gigante no chão. Eu não sabia que ela estava lá ou teria tomado o
cuidado de contorná-la. Klaus e Mikhail saltaram lindamente, mas eu não dei
impulso suficiente para cobrir o enorme buraco de uns vinte metros de
diâmetro.
Senti os meus pés se agitarem no ar, desesperados por não encontrar o
apoio do chão. Em menos de um piscar de olhos, me vi caindo na
profundidade da cratera. Gritei, mas era tarde demais. Meu corpo se chocou
contra a terra misturada ao asfalto triturado, junto com água suja que parecia
ser de esgoto.
Dentro da cratera havia um carro na vertical, com a parte da frente presa
entre pedaços de pedras enormes. Com raiva por ser tão descuidada, escalei a
lataria do carro e fiquei de pé sobre uma das lanternas traseiras. Olhei para
cima e vi Klaus e Mikhail me observando como se eu os estivesse atrasando.
— Uma mãozinha aqui! — gritei.
A cratera era funda. Eu estava a pelo menos uns dez metros da superfície e
não havia onde me apoiar para subir. A terra estava molhada e se soltaria nas
minhas mãos.
— Salte! — ordenou Klaus. — Ou está esperando que a gente vá buscar a
princesinha?
“Você quer ajuda?” — Mikhail perguntou.
Bem, o que eu não queria era dar o braço a torcer e aceitar a ajuda dele. Se
Klaus estava mandando saltar, então eu devia ser capaz de saltar. Certo?
Cerrei meus punhos e mirei um ponto entre os dois homens. Contraí meus
joelhos e respirei fundo quando saltei. E perdi um pouco a noção da força e
velocidade, pois passei por cima dos Mestres e fui aterrissar metros adiante.
Essa parte não foi fácil, meus pés não suportaram a parada brusca e quase
beijei o chão. Por sorte, consegui apoiar as mãos antes de cair e me ajeitei
rapidamente.
Tudo bem que eu não esperava que eles dessem tapinhas na minha cabeça
ou me aplaudissem, mas também não precisavam passar por mim como se
nada tivesse acontecido. Bufei de raiva e estreitei meus olhos, observando os
pontos pretos em movimento na minha frente.
Minha eternidade tinha começado de uma péssima maneira. Primeiro,
quase morri congelada no fundo daquele lago que devia ser cenário de filme
de terror. Depois, abri os olhos e dei de cara com Klaus e aquela boca que
pertencia a Kurt. Daí em diante a coisa só rolou ladeira abaixo. Descobri que
passaria a eternidade ligada a Klaus e que Mikhail e Nadia — NADIA —, já
tinham participado — juntos — de um bacanal.
Odiava ficar brigada com o homem por quem era apaixonada, mas
Mikhail não facilitava a minha vida. Eu mal tinha superado o problema
Kateryna e me deparava com o problema Nadia. Essa sim, seria uma eterna
pedra no meu sapato.
Para extravasar toda minha frustração, eu corri. Ergui o queixo e
aproveitei o vento que batia contra meu rosto e agitava meus cabelos. Meus
cabelos brancos! Tinha que começar a digerir aquela ideia.
Passei a prestar mais atenção no caminho, tomando o cuidado de me
adiantar a algum obstáculo, pois já tinha sujado a roupa o suficiente por um
dia.
Em algum momento, sem querer, passei a frente de Misha. Não foi
proposital nem nada. Só me dei conta do feito quando ele me encarou
enquanto eu passava ao seu lado. Sorri e joguei um beijo antes de acelerar e
tomar sua dianteira. Klaus estava um pouco mais adiante, o manto se
agitando com fúria no ar, mas não fiz questão de alcançá-lo.
Eu não sabia precisar por quanto tempo nós corremos, mas quando
fizemos a primera parada, notei uma coisa bem curiosa. O cheiro do ar havia
mudado. Muito. Apurei meus sentidos e olhei em volta, farejando. Estávamos
numa praça com um chafariz desativado e caminhávamos na direção de um
bunker.
Ao atravessarmos a rua de paralelepípedos, o cheiro continuou me
seguindo. Não era igual ao que eu sentira dentro do carro, o odor de carne
pútrida. Era diferente, até agradável, mas eu nunca havia sentido nada
parecido antes.
— Que cara é essa? — Klaus perguntou, parado na porta do bunker,
acompanhando meus olhares. — O que está procurando?
— A origem desse cheiro. — Olhei para ele e depois para Mikhail. — Não
estão sentindo?
Eles não me responderam, pois a porta se abriu e um vampiro lindo sorriu
para os Mestres. Quando ele colocou os olhos em mim, no entanto, sua
expressão se tornou hilária. Parecia que estava diante de uma assombração.
“Nós esquecemos de esconder os meus cabelos.” — avisei, tarde demais.
“Não esquecemos.” — Klaus respondeu. — “Não há mais necessidade
em manter segredo.”
Para ser sincera, eu achava que Klaus tentaria me esconder o máximo
possível.
O vampiro, que se apresentou como Hanz, não fez nenhum comentário.
Eles nos recebeu com toda cordialidade que a presença de Mestres solicitava.
Não vimos mais ninguém enquanto caminhávamos pelos corredores e Hanz
explicou que estava sozinho naquela noite. Ele informouque alguns vampiros
estavam sumidos e os humanos que trabalhavam naquele posto tinham sido
levados até a Fortaleza.
Quando descíamos para o subsolo, ouvimos rugidos. O som era
inconfundível e me colocou alerta. O efeito nos outros Mestres foi o mesmo,
tanto que Klaus e Mikhail subiram as escadas com pressa.
Eu os segui, apesar de não ter sido chamada. Hanz correu atrás de mim,
mas assim que saí do bunker, bati a porta com força e o tranquei do lado de
dentro. Já tinha visto o estrago que mitológicos faziam em vampiros comuns.
— O cheiro que você está sentindo — Klaus falou, virando a cabeça para
trás e me olhando —, é o cheiro do alvorecer. Quente e excessivamente doce.
Eu assenti. Era exatamenteo o cheiro que estava impregnado em meu
nariz. O que significava que o sol estava perto de nascer. Pela forma como
Klaus me olhou, entendi que não tínhamos muito tempo para resolver o
problema com os mitológicos.
Agora já podíamos ouvir o barulho que eles faziam, crescendo pouco a
pouco. Não estavam visíveis ainda, mas se aproximavam de nós. Para
infelicidade deles.
— Sasha, espere lá dentro. — Misha ficou de frente para mim e colocou as
mãos nos meus ombros. — Eu sei que você está animada, mas é tudo muito
recente.
— Não, eu quero...
— Vá para dentro.
— Deixe-a, Mikhail! — Klaus, de costas para nós dois, ergueu a mão.
— Você não pode estar falando sério! — Mikhail esbravejou. — Ela ainda
nem foi transformada e você quer que enfrente mitológicos?
Klaus não respondeu, apenas virou lentamente a cabeça para o lado e
sustentou o olhar em Mikhail. Os dois levaram menos de um segundo para
chegar a um consenso e Misha se afastou, bufando e xingando o irmão mais
velho.
— Eu tomarei cuidado — avisei, me aproximando de Klaus.
— Vamos.
Ele correu e nós corremos atrás, serpenteando por ruas estreitas, seguindo
o fedor que eles deixavam no ar. Eu me lembrei do sangue nojento deles e
senti ânsia de vômito. Não tinha vontade alguma de ficar novamente coberta
por aquele fluído pegajoso e nojento.
Entramos num beco que era dividido com uma grade de arame farpado e
tivemos que pular para o outro lado. Tive medo de não medir o impulso certo
e acabar me cortando, mas consegui passar raspando, literalmente. Um
pedaço da minha calça ficou preso no arame, mas pelo menos não havia
rasgado na região da bunda. Lutar de bunda de fora não estava nos meus
planos.
“Pelo barulho que estão fazendo, deve ser um grupo misto, de centauros e
minotauros.” — Klaus avisou. — “Você precisa ter em mente que os
centauros são mais ardilosos num embate. Ou seja, deixe-os para nós.”
Nem consegui responder, pois ao dobrarmos uma esquina, encontramos o
grupo. Eram cinco minotauros e três centauros que não esperavam por uma
visita tão assustadora. De verdade, eles pareceram surpresos com a nossa
chegada. Os centauros, eu quero dizer. Os minotauros não eram inteligentes a
ponto de nos identificar como a sua morte iminente. Éramos apenas comida
fresca.
Dois dos centauros, que arrastavam duas mulheres pela rua, urraram
quando começamos a nos aproximar. Eles soltaram as vítimas fatais e
marcharam na nossa direção. Os minotauros seguiram aquela dinâmica, mas
o terceiro centauro estava mais ocupado prestando atenção em mim.
Klaus e Mikhail não deviam ter notado, pois já se atracavam com os
mitológicos. Eu notei, no entanto, já que o interesse dele em meus cabelos
parecia maior do que na minha carne. E quando pensei que ele podia mesmo
estar me reconhecendo, fosse lá a forma que eles usassem para se comunicar
entre si, o bicho correu. Na direção oposta.
“Acho que aquele centauro me reconheceu!” — gritei para os Mestres,
sem saber o que fazer. Queria ser superior e madura para obedecer uma
ordem deles uma vez na vida.
Mikhail estava desferindo socos num minotauro e se esquivando do ataque
de um dos centauros. Ele apenas conseguiu um único segundo de folga para
olhar na direção que o mitológico correu.
Klaus, que tinha acabado de dividir ao meio a cabeça de um minotauro,
olhou para mim.
“Não o deixe escapar.”
Ah, bom! Se ele estava mandando... eu ficaria feliz em obedecer. Senti a
adrenalina aquecer meu corpo e uma energia absurda colocar minhas pernas
em movimento. Corri, provavelmente tão rápido quanto Klaus corria, até que
interceptei o centauro no meio de uma ponte.
— Ei, cavalinho! — cantarolei e parei de correr quando ele parou de
trotar.
O animal me olhou com ódio e, poxa, eles precisavam superar a morte do
príncipe de uma vez por todas. Aquilo já estava ficando repetitivo.
— Sabe quem eu sou, não é mesmo? — Sorri, subindo na ponte. — Bem,
eu não sei como vocês fazem para compartilhar as histórias por aí, mas não
posso deixar que essa nova Sasha seja descoberta. Eu gosto de surpresas!
Puta merda! Ele era um pouco maior de perto. Maior que aquele que
correu atrás de mim na Fortaleza. Era um macho alfa. Ou poderia ser, se
fosse um lobisomem.
Balancei a cabeça para espantar meus devaneios porque aquele não era o
momento ideal para pensar em lobos.
— Eu quero pedir desculpas antecipadamente, caso essa luta se estenda
demais. Sou nova nisso, então pode ser que eu demore um pouco para te
matar.
Ele me mostrou os dentes e senti inveja por não ter caninos para mostrar.
Mas, deixando esses detalhes de lado, sorri e avancei pra cima dele.
O choque contra o corpo duro e peludo foi grande. O centauro também
sentiu, pois cambaleou, mas fincou as patas no chão. E devo dizer que era
injusto demais ele ter quatro patas e dois braços, pois usou as mãos para
agarrar meus cabelos.
O que o centauro não sabia era que eu gostava demais dos meus fios.
Nenhuma mulher que se preze gosta que seus cabelos sejam agredidos de tal
forma. Eu, pelo menos, não gostava e isso me fez fincar meus dedos no peito
dele.
Eu não tinha unhas grandes, mas elas foram suficientes para que eu
arrancasse pedaços de pelo e pele. Minha ira foi direcionada para o centro do
peito dele, pois quanto mais ele me puxava pelos cabelos e me levantava no
ar, melhor ficava minha posição.
Ergui uma perna e pus toda minha força num chute no pescoço do animal.
Ele urrou e me soltou, parecendo ter ficado sem ar. Usei a deixa para escalar
pela lateral do seu corpo e pular sobre seu dorso. Literalmente montada no
centauro, foi a minha vez de puxar-lhe os cabelos.
Ele se sacudiu, tentando me derrubar e eu apertei minhas pernas ao seu
redor. Conforme se empinava nas duas patas traseiras, nos aproximamos
muito da grade da ponte. Antes que eu me desse conta, estava caindo junto
com ele em direção à água.
Acabei me soltando e fugindo da parte que era cheia de pedras. Mergulhei
no rio e abri os olhos sem dificuldade, procurando pelo mitológico. Ele, que
não era tão ágil na água — os Mestres já haviam me ensinado isso —, ainda
tentava se colocar de pé e fugir da correnteza.
Nadei até o centauro e o interceptei antes que alcançasse a margem. Ele
agitou as patas e distribuiu coices na minha direção. Uma das mãos enormes
envolveu meu pescoço e me puxou para perto. Era difícil me equiparar a ele
por causa do seu tamanho avantajado.
— Sasha! — Ouvi a voz de Mikhail em algum lugar, mas não procurei por
ele.
“Acalme-se, respire fundo.” — Klaus apareceu em minha mente. —
“Pare de se agitar e o encare. Ele vai te ferir, mas não vai matá-la. Olhe
para ele.”
Eu achava que morreria sufocada e o instinto de sobrevivência falava mais
alto, mas tentei fazer o que Klaus pedia. Deixei meus braços penderem ao
lado do corpo e não gritei quando as unhas do centauro se enterraram em meu
ombro direito.
“Ele está preocupado em causar estragos em você. Ele não se protege,
você pode atingí-lo em qualquer lugar.”
Eu não sabia se era possível, mas minha traqueia parecia ter sido
esmagada. Se Klaus não se apressasse em seus ensinamentos, ele teria que
catar meus pedaços no fundo do rio.
“Mire mais ou menos um palmo acima do início da pata, você consegue
fazer isso de frente mesmo. Apenas mire e crave seus dedos no coração
dele.”
“VOCÊ ACHA ISSO FÁCIL?”
“Faça agora!”
Ah, maldição! Tinha coisa mais nojenta do que ter que enfiar minha mão
dentro daquele mitológico? Mirei e, fechando um olho, empurrei meu braço
com força e rapidez no peito do bicho.
“Abra e estenda os dedos!”
Eu os abri um milésimo de segundo antes de tocar a pele do centauro.
Pensei que com o impacto eu quebraria todos os meus dedos, mas o que
aconteceu foi diferente. As pontas das minhas unhas facilitaram para que a
pele do animal se rasgasse ao meu toque. Senti a carne e os músculos
envolverem minha mão, enquanto alguns ossos iam sendo dilacerados pelo
caminho.
O centauro largou meu pescoço e abriu a boca sem emitir som. Meu corpo
caiu na água, mas não sem que antes eu cravasse meus dedos num órgao
escorregadio e palpitante. O coração veio para fora conforme meu corpo
desabava no rio.
Os olhos do mitológico ficaram turvos e, em seguida, ele caiu sem vida.
Senti meu corpo levitar de volta para a ponte até que o piso de madeira
estivesse sob meus pés. Os rostos dos Mestres entraram em meu campo de
visão.
— Acho que não gosto desse negócio de meter a mão dentro das pessoas
— falei, balançando meus dedos asquerosos.
— Centauros não são pessoas.
— Pior ainda! — Encarei Mikhail, que tentava cutucar as feridas do meu
rosto. — A propósito, obrigada pela ajuda.
— Klaus me impediu — ele pareceu frustrado. — Dá para ficar quieta e
me deixar examiná-la?
O mais velho, que não parecia incomodado com minha integridade física,
começou a tomar o caminho de volta. Quando passou do meu lado, enfiou as
mãos nos bolsos da calça.
— Parabéns por matar seu primeiro mitológico.
— Não foi meu primeiro — contestei, apertando o passo para andar ao
lado dele. — Eu matei o príncipe deles!
Ele me olhou de canto de olho e tenho certeza que vi o esboço ínfimo de
um sorriso.
— Eu matei o rei — ele rebateu.
Nós dois viramos nossas cabeças para trás e olhamos para Mikhail.
— O que foi? — Ele franziu a testa, irritado. — Preciso matar algum
membro da realeza para fazer parte do grupinho de vocês?
CAPÍTULO 33

Em matéria de alimentação, eu havia começado com o pé esquerdo nessa


nova vida. Porque como Hanz estava sozinho no bunker, tivemos que esperar
o dia amanhecer para que funcionários humanos chegassem e doassem
sangue.
Então, eu que já estava com fome antes, me sentia muito pior depois da
luta com o centauro. As feridas que ele me causara me fizeram perder mais
sangue. Meu rosto estava cheio de cortes e o meu reflexo no espelho do
banheiro não era bonito. Mas, eu não podia reclamar. Mikhail tinha dito que
enquanto eu não me transformasse manteria meu reflexo. Uma vez Mestre
por completo, eu perderia esse benefício.
— Já notei que os cortes estão se regenerando — disse, curvada sobre a
pia para me olhar mais de perto, enquanto tocava meu rosto —, mas muito
lentamente.
— É normal quando seu organismo está sedento por sangue. — Misha
parou na porta do banheiro e cruzou os braços. Ele me olhava de um jeito
protetor. — Se estivesse bem alimentada, já estaria cem por cento.
Coloquei meus cabelos para trás das orelhas e abri a torneira. Juntei
minhas mãos em concha e joguei um pouco de água no rosto para limpar o
sangue. Queria poder fazer o mesmo com a roupa, mas como eu só tinha
aquela, teria que deixar para lavá-la quando chegasse na Fortaleza.
Ele abriu espaço para que eu saísse do banheiro e, ao passar pelo enorme
corpo ali parado na porta, fechei os olhos. Queria poder jogar meus braços ao
redor dele e ficar abraçada por algumas horas, mas a situação entre nósnão
era das melhores.
O quarto era só nosso, pelo menos. Como o bunker estava vazio, Klaus fez
questão de ser alojado em um quarto bem distante daquele. Eu não me
importei em permanecer ali com Mikhail, mas confesso que não me sentia à
vontade para puxar uma conversa.
Escolhi uma cama perto da porta e me sentei, puxando as pernas para
cima. Misha manteve distância, sentando-se na beliche oposta. Ele apoiou os
cotovelos nos joelhos e fitou o chão. Não exibia uma aparência tão acabada
quanto a minha, mas alguns fios do cabelo branco estavam sujos com sangue
de mitológico e o manto possuía um rasgo comprido no braço esquerdo.
— Você acha que os outros Mestres vão me odiar muito ou pouco quando
souberem? — Perguntei.
— É uma notícia inesperada. — Ele me olhou, com uma sobrancelha
arqueada. — Não poderemos culpá-los se reagirem mal. Nem eu consegui
digerir tudo isso.
Eu soltei uma risada amarga.
— Eu sei que você não gostou, não precisa frisar ainda mais a sua opinião.
— Sasha...
Ele se levantou e quando vi, já estava sentado do meu lado, com uma das
mãos tocando meu rosto.
— Eu, mais do que ninguém, queria vê-la como vampira. Você sabe disso.
Mas as coisas estão muito diferentes. Eu nunca pensei que um dia surgiria um
novo Mestre entre nós. — Ele estreitou os olhos. — Vou me acostumar,
como todos os outros. Mas, por enquanto, ainda é estranho.
— Se você tivesse o poder da decisão, me faria Mestre?
Não era nenhuma pegadinha. Eu simplesmente queria saber o que ele
faria. Minha posição tinha sido jogada sobre a cabeça de todos eles e eu sabia
que não era tão querida por alguns Mestres. Mas, se houvesse escolha, o que
Misha faria?
A expressão dele tornou-se pensativa e seus olhos analisaram meu rosto.
Quando falou, tinha um sorriso torto nos lábios.
— Meu instinto protetor e possessivo não a faria Mestre, pois o título vem
com muitas responsabilidades. — Ele balançou a cabeça, pesaroso. — Sua
vida vai mudar muito mais do que você pensa.
— Me dê exemplos... — pedi, chegando mais para trás na cama de forma
que ficasse de frente para ele.
— Para começar, você vai ter contato diário com todos os outros Mestres
— ele arqueou as sobrancelhas e tudo bem, eu entendi que isso era uma
enorme desvantagem. — Como uma vampira civil e minha... namorada —
não passou despercebido o esforço que ele precisou fazer para dizer aquela
palavra, mas até que foi fofo —, você teria contato com eles, obviamente,
mas não seria algo recorrente.
— Eu sobreviverei a isso — disse. — Aturei Victor por todos esses anos.
— Todos os dezesseis anos dele? — Mikhail sorriu. — Estamos falando
de séculos. Milênios, se o planeta durar mais tanto tempo assim.
Engoli em seco. Pensando com aquelas devidas proporções, era tempo
demais. Senti calafrios ao imaginar que o mundo todo passaria por diversas
mudanças e eu estaria viva. Como era incrível pesar a paciência dos Mestres
para terem suportado viver por tantos e tantos anos.
— Além disso, você substituir Rurik na hierarquia trará consequências em
nosso governo. Rurik não esteve ao nosso lado desde que construímos a
Fortaleza. Ele não foi participativo. — Olhei na direção da mão dele, que se
mexia e se aproximava da minha perna. Ele tocou meu joelho e me lançou
um olhar caloroso. — Já você, nós sabemos que vai querer opinar em tudo, se
meter em tudo. Precisará amadurecer muito rápido para poder ser levada a
sério. São dezoito anos contra todos os nossos.
A mão, do joelho passou para a minha coxa e quando vi, Mikhail já estava
empurrando meu corpo para trás. O Mestre se agigantou sobre mim quando
minhas costas tocaram o colchão e senti meu corpo esquentar.
— Também há a questão dos embates, somos sempre os primeiros a
formar uma linha de frente contra o inimigo. — Comecei a ver os lábios dele
se mexerem, mas já não estava dando muita atenção para o assunto.
Eu queria que ele me agarrasse de uma vez e me tomasse por inteiro. E
queria jogá-lo contra a parede e mandar que ficasse bem longe de mim. De
olhos fechados, sentia cada ponto do meu corpo reagir, conforme ele
deslizava a mão da minha coxa em direção ao quadril e depois subia...
— Misha... — sussurrei a única coisa que me veio na mente.
— Já passamos tempo demais com raiva um do outro — ele sussurrou
contra a pele do meu pescoço e depositou um beijo ali.
— Não... — retruquei, tentando colocar a mente em ordem. Coisa que era
difícil com a boca de Mikhail deslizando pelo meu corpo. — Nós
precisamos...
Ele puxou a gola da minha camisa, quase arrebentando a costura e expôs
minha clavícula. Estremeci com o chupão e joguei minha cabeça para o lado,
dando mais acesso a ele.
Mikhail deitou o corpo sobre o meu e, ao contrário de antes, não senti
aquela sensação de sufocamento. Ele era leve e se encaixava perfeitamente
em mim, conforme eu abria as pernas para abraçá-lo com elas.
Os dedos de Misha trilhavam um caminho entre os nossos corpos e iam de
encontro ao meu umbigo. Eles acharam o botão da minha calça e começaram
a trabalhar naquela peça. Eu o ajudei, remexendo o quadril para que a roupa
saísse com mais facilidade. Não via a hora de tê-lo novamente e sentir como
seria o primeiro sexo com poderes.
Ele me olhava de um jeito raivoso. Com uma ira transbordando pelos
olhos sombrios. Mas não podia ser, pois Misha estava me olhando com
desejo. Ele queria me estrangular. Eu pisquei, observando o Mestre em cima
de mim. Então, fechei novamente os olhos e vi o outro Mestre.
Ah, não!
— Klaus! — rosnei, confusa. — Saia daqui.
— O quê? — Mikhail, que estava beijando minha barriga, levantou a
cabeça e me olhou, mais confuso do que eu.
Quando ele se tocou do nome que eu tinha dito, ficou furioso e se ajoelhou
na cama, puxando os cabelos para trás e expondo os caninos.
— Você me chamou de Klaus? KLAUS?!
Homens! Sempre com a droga da questão territorial. Bastava apenas ouvir
o nome de outro homem e pronto, o mundo estava acabado.
Revirei os olhos e o empurrei para que me deixasse levantar.
— Não, seu idiota! Eu quis dizer que Klaus está me observando. — Franzi
a testa. — Ou sou eu que estou observando o que ele está fazendo. Não sei.
Misha olhou em volta do quarto, sem entender o que eu tentava explicar.
A camisa que usava estava toda amarrotada e a calça desabotoada.
— Não estou vendo meu irmão aqui e, pelo que eu saiba, ele não pode ver
através dos seus olhos. — O Mestre deu um tapinha no colchão. — Volte
para cá.
Eu me aproximei dele, mas só o suficiente para poder sussurrar bem baixo.
— Estou falando sério. Eu tenho essa... percepção. Sinto que Klaus está
com raiva por ter que sentir o que estou sentindo. — Misha estreitou os olhos
e eu levantei as mãos em rendição. — Eu sei que parece loucura, mas não
consigo explicar de outra forma.
— Que seja verdade. — O Mestre levantou e eu virei de costas para
escapar, mas ele passou os braços ao redor do meu corpo e me puxou. —
Klaus e Rurik nunca tiveram problemas com isso. Ele já deve estar
acostumado.
Misha jogou minha cabeça para frente e afastou meus cabelos, beijando,
lambendo e chupando minha nuca. Eu quase virei manteiga nos braços dele,
mas me contive.
— Os dois eram homens — reclamei, mais gemendo do que impondo
algum tipo de postura. — Não quero compartilhar minhas intimidades com
Klaus.
Mikhail deu risinhos abafados contra minha pele e esfregou a ereção em
mim.
— Ele sente o que você sente?
— Não exatamente — respondi. — Não sei. Ele sabe o que estou
sentindo.
— Então, ele sofrerá muito hoje. Vai ter o trabalho de ver eu te dar prazer
uma, duas, três, quatro...
— Acho que já entendi... — gemi.
Conforme Mikhail deslizava a mão pela minha cintura e baixava minha
calça, eu sentia uma vontade incontrolável de tê-lo dentro de mim. Ao
mesmo tempo, sentia o nojo que Klaus estava sentindo. Era como se o
maldito estivesse bem do meu lado.
— Pare — pedi com desgosto por vivenciar aquela bizarrice. — Misha,
pare...
— Esqueça ele.
E Mikhail tentou mesmo fazer com que eu esquecesse, quando afastou
minha calcinha e me invadiu com um dedo. Soltei um palavrão indecifrável e
me contorci de prazer. Mas Klaus não deixou que eu esquecesse de sua
presença invisível e me lançou ondas de irritação que congelaram minha
espinha. Eu girei nos braços de Mikhail e me soltei.
— Hoje não — recuei alguns passos quando senti que meu corpo pedia
por ele. O desejo era latente. — Primeiro, preciso me acostumar com essa
situação.
Ele tentou me puxar mais uma vez, mas eu bati minha mão em seu peito.
Sem medir minha força, o corpo dele foi lançado para trás contra a parede.
Corri ao seu encontro, chocada pelo que eu acabara de fazer sem querer.
Fiquei na ponta dos pés e o beijei rapidamente na boca, depois sorri sem
graça.
— Desculpa! Não fiz de propósito.
A expressão dele se aliviou, felizmente, e eu senti quando relaxou a
postura de ataque. Passei meus braços em volta do pescoço dele e enfiei meu
rosto no vão de seu pescoço.
Para minha surpresa, Misha não brigou, rosnou ou me xingou, como achei
que fosse fazer. Senti seus dedos tocarem minha cintura e os braços me
apertaram. Meus pés descolaram do chão quando ele me ergueu um pouco e
apoiou o queixo em meu ombro.
Alguns segundos depois, ele me colocou de novo no chão e se afastou.
Vestiu o manto e abriu a porta.
— Vou dar uma volta.
— Estamos no meio do dia! — gritei quando a porta se fechou. — Não vá
se suicidar por falta de sexo!

Sem nada para fazer e com muita energia para gastar, decidi que seria
proveitoso se treinasse um pouco os meus poderes. Depois do salto que dei
para sair daquela cratera, ficou claro que eu teria que aprender a controlar
minha força.
Sem o grande corpo de Mikhail para ocupar espaço, afastei uma das
beliches para o lado e deixei um corredor livre no meio do pequeno quarto.
No entanto, logo percebi que correr naquele espaço seria inútil, pois num
piscar de olhos eu alcançaria a outra parede.
Sentei na cama e olhei em volta. Será que eu conseguiria levantar a
beliche apenas com o poder da mente? Tinha visto Klaus e Mikhail moverem
veículos grandes nas estradas para retirá-los do nosso caminho.
O que era uma cama de ferro em comparação a um automóvel?
Encarei a beliche à minha frente e tentei compreender o que seria preciso
para fazê-la se mover. Será que era preciso imaginar a cama saindo do lugar?
Rolar os olhos na direção em que eu queria mandá-la? Tentei das duas
maneiras e nada aconteceu.
Quando Mikhail voltou, estava aparentemente mais tranquilo. Para minha
sorte, não precisei conversar sobre o assunto da ligação porque Hanz
apareceu com um doador de sangue para mim.
O homem parecia ter uns trinta anos e me olhou de forma simpática
quando ficou a sós com nós dois.
— Oi! — cumprimentei. — Tudo bem? Sou Sasha.
“Sasha, não devemos conversar com os doadores.” — Mikhail me olhou
de cara feia. — “Quer fazer o favor de manter a boca fechada?”
Ignorei a grosseria, mas achei que não faria mal ficar quieta. Se os Mestres
passaram tantos séculos sendo antipáticos e sempre deu certo para eles, quem
eu era para mudar a história, não é?
O homem deu alguns passos na minha direção e eu sorri. O olhar dele se
alternou entre Mikhail e eu, talvez tentando descobrir para qual dos dois seu
sangue seria doado. E, modéstia à parte, ele parecia muito mais interessado
em mim do que no grandalhão às minhas costas.
— Sente-se! — Misha ordenou. — Você é muito alto para ela.
O doador não pensou nem duas vezes antes de obedecer. Quando me
aproximei, lembrei que me faltava um pequeno detalhe para drenar o sangue
dele: meus caninos. Olhei para Mikhail, de repente apavorada, mas ele
pareceu compreender minha aflição. O Mestre se aproximou do doador e se
inclinou, cravando os dentes no pescoço do homem.
Misha se afastou em seguida, deixando que o sangue escorresse pelas duas
pequenas feridas na pele. Eu corri para não deixar que nenhuma gota fosse
desperdiçada e me sentei ao lado dele.
Tudo aconteceu muito rápido. Levei uma das mãos à cabeça do doador e
com a outra, segurei em seu braço. Antes de colocar a boca no pescoço dele,
cheguei a pensar se gostaria mesmo de fazer aquilo. Sempre me pareceu tão
nojento... Mas bastou inspirar profundamente para que o cheiro do sangue
entrasse pelas minhas narinas e enlouquecesse meus sentidos.
Antes que a baba escorresse pelos meus lábios, achei de bom tom beber
logo o sangue. E, no instante em que o líquido viscoso tocou minha língua, eu
senti arrepios percorrerem meu corpo. Era uma sensação um pouco parecida
com a que sentimos quando ficávamos muito tempo sem comer algo doce e
então, comíamos. Um choque que nos deixa momentaneamente paralisados.
Não contei os segundos. Parecia que eu mal tocara no homem e Mikhail já
estava me afastando do doador. Passei as costas da mão pela boca, limpando
o que estivesse sujo e sentindo vontade de chutar o Mestre.
— Já bebeu o suficiente — disse ele e, em seguida, olhou por cima do
meu ombro. — Está dispensado. Obrigado pela doação!
Quando o homem levantou, Mikhail foi até ele para fechar a ferida e me
interceptou no meio do caminho. Eu queria abrir a ferida novamente.
— Não! — Gemi, tentando me soltar. Os dedos de Misha envolviam meu
pulso com força. — Eu quase não bebi...
O doador nos deixou a sós e senti meus ombros caírem. Justamente
quando eu começava a aproveitar, tinha sido arrancada de perto daquele
elixir.
— Você tomou o suficiente, Sasha.
— Bem — funguei —, parecia que eu mal tinha começado.
No entanto, enquanto eu pensava ter aproveitado muito pouco, meu corpo
reagia de forma completamente diferente. Eu sentia minha energia renovada,
como se fosse capaz de qualquer coisa, até de enfrentar um exército de
mitológicos sem reclamar.
Pensei em como os Mestres eram controlados. Devem ter passado anos e
anos tentando aprimorar seus instintos para evitarem sugar os doadores até a
última gota de sangue. Eles não precisavam se fartar, ingeriam apenas o que o
organismo necessitava.
Meus lábios formaram um sorriso ao imaginar que seria muito mais fácil
manter o controle do peso. Eu não me entupiria mais com pães, refrigerante,
leite condensado e outras coisas que acumulavam gordura e celulite.
— Estava pensando, tenho um prazo de trinta dias para ser transformada.
— Coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e ajeitei minha roupa. —
Você acha que até lá eu consigo emagrecer um pouquinho? Para estar mais
magra quando for transformada e manter o corpinho mais enxuto?
Os olhos de Misha varreram meu corpo dos pés à cabeça e me senti
completamente nua. Os círculos azuis se transformaram numa linha fina e
reta quando ele se aproximou de mim. Suas mãos pesadas tocaram meus
ombros e deslizaram pelos meus braços.
— Eu não quero que emagreça — ele usou um tom ameaçador.
— Querido, você não tem que querer nada — respondi, encaixando o rosto
dele na palma da minha mão.
— Não achei que tivesse problemas com seu corpo. — Ele balançou a
cabeça, com um desgosto visível e foi descendo as mãos até minha cintura.
— Adoro essas curvas. Você não tem ideia do quanto é gostosa.
— Nunca fui do tipo que faz dieta o tempo todo ou está sempre insatisfeita
com o corpo que tem — dei de ombros e sorri. — Só pensei que, como irei
passar a eternidade presa à mesma imagem, seria legal dar uma afinadinha.
Revirei os olhos quando aquelas mãos enormes desceram pelas minhas
costas e apertaram minha bunda. Mikhail puxou meu corpo para grudá-lo ao
dele e baixou o rosto. Deixei a cabeça cair para o lado quando senti seus
dentes mordiscarem a ponta da minha orelha. O Mestre queria me
enlouquecer.
— O corpo é seu e você faz o que quiser com ele — sussurrou, o hálito
tocando minha pele —, mas eu sou totalmente contra.
Bem, claro que ele era! Para quem tinha um corpo perfeito como o de um
Mestre, eu entendia que era muito difícil se colocar no lugar de alguém que
não tem perfil para capa de revista.
Não era o assunto ideal para discutir com Mikhail. Preferi ocupar minha
língua murmurando sons incompreensíveis, enquanto sentia os arrepios que
os beijos dele em meu pescoço me proporcionavam.
Eu estava decidida a não ir muito além dos beijos por causa da importuna
conexão que tinha com Klaus, mas me vi mergulhada num torpor
maravilhoso quando a boca de Misha se afastou da minha pele e os olhos dele
encararam os meus.
— Por que você parou? — choraminguei, sentindo meus joelhos bambos.
— Por qual motivo eu iria mais além se você vai voltar com aquele papo
de voyerismo do Klaus? — Mikhail levantou uma sobrancelha. — Não estou
disposto a passar vontade mais uma vez.
Respirei fundo. Eu precisava conversar com Klaus o quanto antes e
mandá-lo sair de dentro da minha cabeça. Se é que havia uma forma disso
acontecer.
Com o comichão entre as pernas, sentei na cama mais próxima para dar
um apoio ao meu corpo, já que Mikhail o transformara em gelatina. Ainda
podia sentir os arrepios que os beijos dele deixaram em minha pele.
— Você ainda é humana, Sasha. Tente dormir um pouco.
— Aonde você vai? — perguntei quando ele estava prestes a sair do
quarto.
— Conversar um pouco com Hanz e ver como anda a situação da região.
— Ele ia fechar a porta, mas voltou a olhar para trás e cruzou os braços. —
Sei que você não gosta de ficar parada, mas utilize esse tempo a sós para
treinar um pouco sua paciência. A eternidade é inimiga de pessoas
impacientes.
Ele piscou para mim e fechou a porta com mais delicadeza do que de
costume. Tentei levar em consideração suas palavras e me estiquei sobre o
colchão, deitando a cabeça no travesseiro e cruzando as mãos sobre a barriga.
Não estava com sono, era a verdade. Até me sentia cansada quando cheguei,
mas depois de ter me alimentado, a energia parecia correr por minhas veias.
Poderia fechar os olhos apenas para dizer que havia tentado, e fechei.
Então, as lembranças vividas naquele lago retornaram numa enxurradade
imagens e sons, abafando tudo à minha volta e me fazendo sentir presa à
cama. O ar me faltou e eu parecia me afogar, enquanto via o rosto de Klaus,
que socava o gelo sem sucesso.
Gritei, mas nenhum som saiu pela minha boca quando me sentei na cama e
tentei colocar para fora toda a água que havia engolido. Nada saiu, eu estava
seca. Olhei em volta, me dando conta de que ainda estava no quarto, dentro
do bunker.
Se aquilo tinha sido um sonho, eu estava pronta para nunca mais ter que
dormir.
CAPÍTULO 34

MIKHAIL
Ela estava a pouco mais de trezentos metros à minha frente e eu podia ver
seus cabelos brancos esvoaçantes. Tinham crescido alguns centímetros desde
que Sasha chegara à Fortaleza, meses antes, quando eu sequer imaginava que
ela fosse colocar minha vida de cabeça para baixo.
Sua empolgação com os últimos acontecimentos parecia alegria de criança
quando ganha um brinquedo novo. O que era estranho, diga-se de passagem.
Sasha sempre tratou com repulsa a ideia de se tornar uma vampira, fato que,
inclusive, fez com que eu questionasse nosso relacionamento.
Diante disso, era surpreendente vê-la lidar tão bem com a recém-
descoberta. Ela precisaria ser forte para enfrentar os olhares dos outros
quando descobrissem a novidade. Seria complicada a existência de mais um
Mestre entre nós, alguém que não possui o nosso sangue, uma pessoa
estranha aos séculos em que vivemos juntos. Desde que saímos de
Oymyakon eu vinha me preparando psicologicamente para protegê-la dos
meus irmãos.
Não que eu achasse que ela fosse precisar de alguma proteção. Lá estava,
correndo quase ao lado de Klaus, possivelmente tão forte quanto ele. A ruiva
não sabia controlar tão bem suas habilidades, mas aprenderia. E quando fosse
transformada... Sorri quando ela virou o rosto para me olhar. Eu não
imaginava o quão poderosa Aleksandra Baker poderia se tornar.
— Precisa que eu desacelere para te esperar? — ela gritou, com um
sorrisinho debochado no rosto.
“Quando eu te pegar, quero ver se vai continuar com toda essa energia”
— respondi.
Como eu havia dito, ela ainda não sabia controlar as próprias habilidades.
Conseguia usar a supervelocidade, mas não tinha tanta perspicácia quanto nós
na hora de desviar de obstáculos. E foi por isso que, dois segundos depois,
Sasha se chocou contra um carro abandonado numa curva. Klaus saltou
agilmente sobre o veículo, ela deu de cara com ele. Em alta velocidade, o
baque foi intenso.
Parei para segurá-la quando cambaleou, atônita, olhando em volta. Tudo
aconteceu tão depressa que Sasha não parecia saber exatamente o que a
atingiu. A porta do carro tinha ficado retorcida.
— Se machucou? — perguntei, segurando-a pelos ombros.
— Hum... — ela piscou, olhando para o próprio corpo. — Acho que sim.
— Onde?
Ela levantou os olhos para me encarar, com uma expressão que revelava
muita dor.
— No corpo todo, talvez.
Por causa disso, ela acabou se segurando um pouco mais na hora de
retomar a corrida e passou a manter-se sempre ao meu lado. Tinha redobrado
a atenção para as coisas ao nosso redor e desviava com cuidado dos novos
obstáculos.
“Como você acha que as pessoas irão reagir pelo que aconteceu
comigo?” — perguntou.
“Que pessoas? Vampiros ou humanos?”
“Os humanos, principalmente.” — Sasha me olhou, mordendo o lábio e
voltou o rosto para a frente. — “Acho que vão custar a acreditar que eu
simplesmente me tornei Mestre. Não acha? Se pelo menos eles soubessem a
verdadeira história de vocês...”
Ela estampou um sorriso atrevido no rosto, que logo se desmanchou
quando notou minha expressão de aviso para manter a língua quieta dentro da
boca.
“Não temos a menor intenção de compartilhar tais detalhes com a
humanidade.”
Sasha revirou os olhos com seu jeito dramático e apressou o passo, me
deixando para trás e seguindo Klaus de perto.
Fazer o caminho de volta sem precisar usar carros havia sido muito
melhor. Fizemos o percurso na metade do tempo da ida e, ao longe, eu já
podia ver a muralha da Fortaleza e a nossa magnífica Morada.
Klaus fez com que parássemos alguns quilômetros antes, para que Sasha
vestisse o meu manto. Com o capuz escondendo os cabelos brancos,
estávamos prontos para entrar na Fortaleza.
— Estou nervosa — ela comentou, parada ao meu lado, olhando na
direção da muralha. — Muito nervosa.
— Você não estará sozinha — respondi, procurando sua mão. Os dedos
finos estavam gelados e trêmulos. — Não a jogaremos aos lobos.
— Aleksandra! — Klaus se aproximou, os olhos cravados nos dela. Ele a
puxou e segurou firme em seus ombros. — Sei que é pedir demais que você
se contenha, mas até que possamos anunciar sua nova posição, deve manter
as aparências. — Ele estreitou os olhos, avaliando-a. — Você precisa fingir
ser a humana fraca e patética que sempre foi. Entendido?
Sasha me lançou um olhar suplicante.
“Eu prefiro os lobos a ele.”
CAPÍTULO 35

Calafrios percorriam minha espinha e quando paramos diante dos portões,


não tinha coragem de desgrudar os olhos do chão. Fui preenchida pelo medo
de que vissem meus cabelos brancos. Que eu deixasse escapar algum fio de
dentro do capuz ou que algum gesto meu denunciasse minha nova condição.
Enquanto os portões se abriam para nos dar passagem, a única coisa que
eu conseguia fazer racionalmente era inspirar e expirar. Uma vez após a
outra, sem pensar muito.
Ouvi as vozes dos guardas e dos soldados ao nosso redor, conversando
com Klaus e Mikhail. Eles davam relatórios sobre os dias que se passaram,
enquanto caminhávamos para a Morada. Sentia a mão de Misha sempre
grudada em minhas costas, como uma forma de demonstrar que me amparava
moralmente.
Eu só tive coragem de levantar os olhos quando pisei no primeiro degrau
da escadaria que levava à entrada da Morada dos Mestres. Olhei lá para o
alto, para as imensas e pesadas portas que eu agora conseguiria abrir
facilmente. Kurt esperava ansioso pela nossa aproximação, assim como
Nikolai.
Tudo bem! Eu só precisava chegar até lá, agarrar Kurt e correr para meu
quarto. Não... Meus ombros caíram com desapontamento. Não podia ir para
meu quarto, onde estavam Victor e meus pais.
Felizmente, Mikhail sempre pensava mais à frente e quando tocou minha
mão, nossos olhares se cruzaram rapidamente.
“Vá para meu quarto e me espere lá.”
“Preciso de Kurt.”
“Não precisa não. Seu amigo não sabe guardar segredos.”
“EU PRECISO SIM.” — Eu não sabia como mudar a entonação da voz
em pensamento, então acho que acabei gritando com Mikhail, pois ele me
lançou um olhar enviesado e encerrou o assunto.
Eu podia deixar para me explicar e desculpar mais tarde. Naquele instante,
tinha outras preocupações. Por exemplo, passar por mal educada e ignorar
Nikolai quando este me cumprimentou e perguntou como tinha sido a
viagem.
Seguindo as ordens de Klaus e Mikhail, entrei direto na Morada, sem olhar
ou falar com ninguém. Mas, antes de entrar no elevador, enviei mais uma
mensagem telepática.
“Preciso que venha comigo” — avisei para Kurt, que surgiu rapidamente
diante de mim.
— Eu estou sofrendo alucinações ou você acab...
“Não termine a frase, Kurt!”
— Minha Nossa Senhora Protetora do Guardiões Gays! — Ele me olhava
com os olhos arregalados.
Quando a porta do elevador se abriu, eu entrei e puxei Kurt para dentro.
Esperamos que a máquina se movesse até o andar de Misha. Só então, me dei
a liberdade de agir naturalmente e levantei o rosto para observar meu amigo.
Ele parecia em choque, tentando me decifrar.
“Eu espero que você esteja preparado para o que tenho para contar.”
— Mais surpresas? — Kurt começava a beirar o histerismo e eu o puxei
pela manga do casaco quando o elevador chegou ao nosso destino.
A porta do quarto de Mikhail já estava destrancada para mim, mas ao
entrar, fiz questão de girar a chave na fechadura. Não queria receber nenhuma
visita inesperada.
Só quando já estava protegida de olhares de terceiros, tive coragem de
tirar o manto que vestia. E minha ação forçou uma reação exagerada de Kurt,
que proferiu um palavrão que qualquer vampiro na Morada poderia ouvir.
— Tome cuidado com as palavras que vai usar — pedi.
“Ninguém pode saber disso, Kurt.”
Ele se sentou na beira da cama, encarando minha cabeça sem piscar. Eu
dobrei o manto cuidadosamente e o coloquei sobre a poltrona de couro.
Sentei num dos braços dela, de frente para meu amigo, sem saber direito por
onde começar.
— O que aconteceu? — Ele perguntou.
“Fomos até Oymyakon e conseguimos a resposta que procurávamos.”
— Bem, isso eu já percebi. Conseguiram mesmo alguma coisa. — Ele
franziu a testa. — Isso, definitivamente, é alguma coisa.
“Kurt, você tem que prometer que não vai contar nada para ninguém.”
Ele me olhou impaciente e bateu as mãos nos joelhos.
— Não acredito que você não confia em mim!
Eu não estava disposta a iniciar uma discussão e era claro que confiava
nele. Só não podia correr o risco de Kurt deixar escapar um segredo tão
importante. Apenas o encarei e aquilo deve ter bastado para meu amigo. Ele
suspirou e veio se ajoelhar aos meus pés.
— Sashita, minha amada — ele pegou minhas mãos entre as suas —, eu
prometo que não abrirei a boca nem sob tortura.
“Isso é muito importante...”
— Eu sei.
Kurt sorriu para me encorajar e, sem saber muito bem por onde começar,
decidi despejar a bomba de uma vez só.
“Caso ainda não tenha ficado claro, eu me tornei Mestre.”
O silêncio no quarto era tão grande que eu conseguia ouvir o
funcionamento do ponteiro do relógio na estante de Mikhail. Era um tic-tac
hipnotizante. E parecia ser o único som no ambiente que ocupávamos.
Kurt me olhava de uma forma muito serena. Muito mesmo, considerando
a notícia que eu acabara de soltar. Então, quase que imperceptivelmente, a
pálpebra dele pulou num tique nervoso. E de novo. E de novo. Acompanhei
seus olhos se arregalarem lentamente, ao mesmo tempo em que um vinco se
formava no meio de sua testa. Era uma expressão terrível.
— Eu estou...
— Chocado? — Perguntei. — Abismado? Surpreso? Pasmo?
— Puta merda! — Kurt gritou e levantou, pulando pelo quarto com as
mãos na cabeça. Eu não conseguia distinguir muito bem aquela reação. —
Sashita! Isso é... — Ele finalmente parou por um instante e olhou para mim.
Então, seu sorriso se alargou. — Isso é incrível!
A empolgação de Kurt era tanta que até me contagiou um pouco e eu me
peguei rindo por causa da risada absurda dele.
Meu amigo me puxou pelos braços e me fez levantar, para me avaliar
minuciosamente. Como se, de repente, pudesse ter nascido algum braço a
mais em mim ou um chifre no meio da testa.
— Isso é verdade mesmo? — Perguntou, levantando meu lábio superior
para conferir se eu tinha caninos. — Ou você resolveu brincar comigo?
— É verdade, Kurt — dei um tapa na mão dele quando começou a cutucar
minha cabeça, procurando por algo entre meus cabelos. — Pare de me
inspecionar!
Ele parou e se afastou, voltando a se sentar na cama e cruzando as pernas.
Tinha um brilho divertido nos olhos, como se degustasse alguma piada. Eu
sabia que ele queria esfregar na minha cara, em alto e bom som, que eu tinha
me tornado aquilo que tanto evitei.
— Você pretende me contar como tudo aconteceu ou vai ficar aí parada?
— Kurt jogou um travesseiro na minha direção. — Vamos lá! Eu sou um
Guardião, não tenho o dia todo!
Eu sabia que, uma vez que começasse a falar, Kurt não deixaria que eu
omitisse nenhum detalhe de toda a história. Acabei contando tudo o que
aconteceu, tomando sempre o cuidado de usarmensagens mentais nas partes
importantes.
Os olhos do meu amigo Guardião brilhavam a cada novo detalhe narrado.
Ele parecia uma criança que ouvia um conto de fadas, apesar do meu caso ser
tudo, menos isso. Eu estava, de verdade, presa à imortalidade.
— Você parece que nasceu com essa bunda branca virada para a lua num
dia de eclipse. — Kurt se jogou de costas na cama, assobiando. — A Lara vai
surtar demais quando souber disso!
— A Lara não pode saber de nada por enquanto, Kurt — avisei, temerosa.
— Por favor, você prometeu ficar quieto.
— Eu sei! — Ele levantou a cabeça para me olhar. — Não estou dizendo
que vou correr até lá e contar para ela. Estou falando que, quando ela souber,
vai enlouquecer.
Sorri, mas sem muita vontade. Não só a Lara, mas muita gente ia
enlouquecer quando soubesse. Meus pais, principalmente. Eu seria
deserdada.

Eu precisava começar a trabalhar melhor a minha paciência. Sabia que não


devia sair daquele quarto, pois tinha que deixar que Klaus e Mikhail
resolvessem as coisas antes. Mas era insuportável não ter nada para fazer.
Kurt tinha ido embora horas antes porque, afinal, ele era um Guardião e
tinha suas responsabilidades. Eu sentia falta do tempo em que nossa única
obrigação era frequentar o colégio. Parecia ter sido há anos, mas só tinham se
passado algumas semanas desde que tive a última aula.
Agora eu estava me tornando Mestre, meu amigo estava órfão e tinha
virado um supervampiro e o colégio, bem... não havia mais colégio. O prédio
ainda estava lá, mas muito decadente depois da explosão. Se fosse pensar
também na quantidade de alunos, eu podia jurar que o número tinha reduzido
bastante.
Tanta gente morta... Eu mesma quase tinha morrido, várias vezes. Ainda
teria que morrer e me transformar. E duvidava muito que fosse frequentar o
colégio novamente. Para ser sincera, eu não tinha a menor ideia de como
seria a minha vida dali em diante.
Quando a porta do quarto abriu e Misha passou por ela, ele parou e se
agachou diante de mim. Eu estava sentada no chão, com as costas na parede e
a janela acima da minha cabeça. Não sabia dizer há quanto tempo estava
naquela posição.
— Por que está chorando?
Passei a mão pelo rosto e me surpreendi com as lágrimas. Estava tão
concentrada em minha própria reflexão que não me dei conta daquilo.
Encarei os olhos azuis que me fitavam e senti a preocupação que deles
emanava. Suspirei e coloquei um sorriso no rosto.
— Porque minha vida está uma bagunça.
Mikhail ajoelhou e me abraçou. Senti suas mãos me envolverem e enterrei
minha cabeça em seu peito acolhedor. Aquele era o cheiro que eu reconhecia
tão bem e o melhor abraço do mundo. O único que me fazia sentir
verdadeiramente protegida, por mais que houvesse desentendimentos entre
nós.
— Tudo vai se ajeitar. Eu prometo — disse ele, tocando meus cabelos. —
Esse não é o momento para se deixar abalar.
— É, eu sei... — suspirei. — É que tenho medo de não conseguir lidar
com a nova Sasha. Como voltar a fazer o que eu fazia antes. E meus pais,
eu...
— Sasha. — Mikhail segurou meu rosto entre as mãos e afastou nossos
corpos para me olhar nos olhos. — Seus pais sempre serão seus pais. Se eles
não a aceitarem em sua nova vida, quem estará perdendo serão eles.
— Você viveu a vida toda assim, não consegue medir a gravidade da
situação, Misha. Não é como se eu tivesse feito uma tatuagem ou raspado a
cabeça.
Esperei que ele soltasse algum palavrão pelo uso do apelido, mas passou
despercebido ou ele não se importou.
— Não é mesmo — ele sorriu, presunçoso. — Virar Mestre? Você
consegue imaginar algo mais poderoso que isso?
— Certo. — Não consegui esconder minha careta. — Não acho que meus
pais se importem tanto assim com essa questão de poder. Acredito que eles
continuariam preferindo uma filha humana.
— Seu irmão vai adorar a novidade.
Eu ri, não pude evitar. Porque eu tinha certeza que Victor ia mesmo amar
aquele circo todo. Quando eu contasse que estava me tornando Mestre, o
pentelho provavelmente ia querer ser transformado também. E meus pais o
colocariam de castigo pelo resto de sua vida.
Eu me levantei, puxando Mikhail e me dando conta de que as janelas já
tinham sido seladas.
Enquanto observava o vampiro tirar a roupa e caminhar até o banheiro,
fiquei pensando que eu merecia relaxar um pouco. Um banho seria muito
bem-vindo, roupas limpas e secas me fariam até chorar mais uma vez.
— Então, vocês já conversaram sobre o curioso caso de Aleksandra
Baker? — Perguntei, entrando de fininho atrás dele no banheiro.
Mikhail estava de costas para mim, os músculos das omoplatas aparentes e
muito bem definidos, como se implorassem pelo toque das minhas mãos.
Desci os olhos pelos quadris dele, até aquelas duas nádegas firmes e
maravilhosas, com duas covinhas emoldurando o desenho.
Momentos como aquele me faziam sentir melhor a respeito do meu novo
status. Saber que eu não precisava ter pressa para me deliciar com o vampiro
era relaxante. Eu poderia olhar para aquela bunda por toda a eternidade e ela
nunca ficaria caída.
— Ainda não. Vamos nos reunir daqui a pouco — disse ele, abrindo a
porta do box e olhando para mim dos pés à cabeça. — Quer vir?
— Ah, não sei. É melhor que vocês conversem primeiro entre si...
— Estou me referindo ao banho, Sasha.
O Mestre ligou o chuveiro e eu não pensei duas vezes antes de arrancar
minha roupa e correr até ele. Grudei meu corpo ao seu e deixei que nossas
bocas se encontrassem pelo caminho.
Senti os arrepios que os dedos de Mikhail proporcionavam ao meu corpo,
enquanto a água quente do chuveiro aquecia minha pele. O vampiro me
pegou no colo e grudou minhas costas contra a parede, pressionando-me com
seus músculos e sua ereção. Os gemidos abafados saíram pela minha boca a
cada novo tremor que ele me fazia sentir. Seus dedos brincavam com um dos
meus mamilos, enquanto a boca se ocupava de outro.
Em algum lugar do meu subconsciente, achava que não devia deixar
aquilo continuar por causa da ligação com Klaus. Conseguia sentí-lo
incomodado com o que estava acontecendo, mas, ao mesmo tempo, Mikhail
não me dava muito tempo para pensar no assunto. E eu o queria tanto!
— Misha... — sussurrei, envoldida pelo prazer. Os dentes roçavam
propositalmente nos meus mamilos intumescidos e me deixavam louca.
Enfiei meus dedos por dentro dos cabelos brancos do Mestre e puxei o
rosto dele para cima. Ele me encarou com um brilho nos olhos que deixava
claro o que iria acontecer em pouco tempo. No bunker, Mikhail aceitou
recuar, mas eu duvidava que naquele momento ele fizesse o mesmo. Estava
entorpecido.
Desisti de falar qualquer coisa e fechei os olhos, procurando uma forma de
bloquear Klaus. O Mestre mais velho parecia estar dentro do banheiro com a
gente, de tão intensa que era a sensação que eu tinha de sua presença.
— Entregue-se — ordenou Misha, alisando minhas coxas abertas em volta
da cintura dele. — Pare de pensar...
Arranhei seus ombros e cravei minhas unhas em sua pele quando o grande
membro me penetrou. Naquele instante, eu esqueci de tudo. Mal sabia quem
eu era. Deixei-me levar e vivi o momento, me apertando mais e mais contra o
corpo do Mestre, me abrindo cada vez que ele tentava fundir-se a mim.
O amargor de Klaus e todos os problemas que envolviam minha
transformação foram deletados da minha mente.
Apertei meus braços em volta do pescoço de Mikhail e afastei minhas
costas da parede, movendo-me junto com ele e incentivando investidas mais
fortes, mais urgentes. O orgasmo chegou para nós dois e continuamos em
frente, com a necessidade de conseguir mais e mais um do outro, até que
fôssemos tomados novamente pelas ondas de prazer.
Eu me sentia fora de órbita quando deslizei pelo corpo do vampiro e
toquei o chão com meus pés. Uma sensação maravilhosa de torpor tomava
cada pedacinho meu e me vi verdadeiramente feliz, pela primeira vez
naquelas últimas semanas.
— Percebe agora, como nosso estilo de vida pode trazer muitas
vantagens? — Perguntou Mikhail, me lançando um sorrisinho sacana.
Eu me sentia tão leve que nem perdi tempo respondendo. Dei apenas uma
risada e levantei o rosto, fechando os olhos e deixando a água quente escorrer
por minha pele.
CAPÍTULO 36

KLAUS
Enquanto caminhava pelo corredor a caminho da reunião, sentia o manto
pesando em meus ombros. Sabia, logicamente, que o problema não era a
vestimenta em si. A sensação estava me incomodando demais e, naquele
momento, minha vontade de arrebentar a porta do quarto de Mikhail e puxar
Aleksandra pelos cabelos era grande.
Balancei as mãos na tentativa de que o gesto fosse afastar minha raiva e
tirar aquele peso de cima de mim, mas foi em vão.
Aleksandra sabia que nossa ligação estava tão intensa que era quase
palpável, mesmo assim se entregou a Mikhail e me sobrecarregou de
sentimentos, sensações e todo o inferno de ter que dividir prazeres carnais
com o infeliz do meu irmão.
— Mestre.
Lancei um olhar mortal para um soldado que passou por mim e ousou me
cumprimentar. Para o bem de todos, era melhor que não dirigissem a palavra
a mim.
Uma coisa era ouvir as indiscrições dos meus irmãos, o que já era um
costume para todos nós, inclusive. Outra bem diferente era praticamente
participar da consumação do ato. Eu estava enojado.
Nada daquilo acontecia quando Rurik era vivo porque, ao longo dos
séculos, nós amadurecemos e aprendemos a controlar nossas mentes, de
forma que bloqueássemos o acesso um do outro. Já Aleksandra, era como um
livro aberto.
— Então — do outro lado do corredor vinha Vladimir, que me interceptou
na metade do caminho e parou diante da porta —, sobre o que é essa reunião?
— Quando ela começar, você saberá.
Esperei que ele entrasse na sala e liberasse a passagem. Sabia que não
faltava mais ninguém para chegar e poderíamos começar o quanto antes.
— Cordial, como sempre — retrucou o idiota. — Mal posso esperar para
passar um tempo com toda a família!
— Você precisa de uma ordem expressa ou sairá da minha frente por
vontade própria? — Perguntei.
— A reunião nem começou e vocês já estão exaltados? — Nikolai
balançou a cabeça quando entramos e bati a porta atrás de mim. — Achei que
fôssemos matar a saudade.
Olhei rapidamente para cada um dos meus irmãos inúteis e dei a volta pela
mesa. Ao passar por Mikhail, senti o cheiro de shampoo em seus cabelos
úmidos, misturado ao cheiro de Aleksandra. Ele, por sinal, parecia saber
perfeitamente que eu estava por um triz de matar o casal.
— Sentem-se — ordenei, puxando minha cadeira e esperando que todos
acatassem.
Pretendia que a reunião se fizesse o mais breve possível, pois, apesar de
todo o problema que envolvia o surgimento de um novo Mestre, não podia
esquecer que ainda estávamos em guerra. A ideia de arrancar a cabeça de
Zênite rondava diariamente minha mente e me fazia traçar formas
mirabolantes de exterminar sua raça.
Havia também o fato de que eu precisava extravasar minha ira e energia
acumulada. Necessitava de algumas horas no quarto e já tinha pensado em
mandar um aviso para Holtz. Não que a presença dele fosse imprescindível,
mas eu sabia que ele me atenderia num estalar de dedos.
— Imagino que essa reunião seja para nos contar como foi a viagem. —
Nikolai falou, os dedos batucando sobre a madeira da mesa de forma
irritante. — Você chegou calado, Mikhail também não abriu a boca e
Aleksandra está trancada no quarto.
— Eu ficaria satisfeita se ela não tivesse voltado. — Nadia bufou. —
Francamente, Klaus! Eu esperava muito mais de você. Teve a chance de se
livrar dela a quilômetros de distância e nada fez.
— Tive chances de me livrar de você por séculos e mais séculos —
respondi, cruzando a perna. — Mesmo assim, sou complacente com seres
inferiores a mim.
Sustentei o olhar ferino dela, que foi a primeira a desviar e encarar as
mãos. Quando ninguém mais parecia ter o que falar, resolvi colocar tudo na
mesa.
— Fomos até Oymyakon como o combinado e nos abrigamos numa das
cavernas da antiga vila. Esperávamos poder explorar o local no dia seguinte e
tentar descobrir alguma coisa, mas fomos enganados.
— Por quem? — Perguntou Vladimir.
— Por Morana. Mikhail e eu fomos colocados numa espécie de coma,
enquanto Aleksandra foi atraída até o lago. Era uma armadilha para o trio. —
Olhei para Mikhail, duas cadeiras a minha direita, prestando atenção nas
reações dos outros. — Na verdade, a armadilha era para Aleksandra e eu. Foi
uma forma de acelerar a transformação dela e colocar minhas próprias
convicções à prova.
— Ela se transformou?
— Não exatamente, Nadia. — Sorri, desgostoso. — Os Deuses não
aceitaram a morte de Rurik e, para manter nossa maldição original, eles
encontraram uma forma de suprir a presença do meu gêmeo e usar outra
pessoa no lugar dele. Escolheram quem estava mais próximo de Rurik no
momento da morte. Ajudou muito o fato do nosso sangue correr em uma
quantidade significativa pelas veias dela.
— Você não está querendo dizer o que eu estou pensando, não é? —
Nikolai perguntou, com a expressão carregada de tensão e os olhos quase
fechados.
— Aleksandra está se tornando Mestre como nós — soltei a notícia,
observando a mudança no comportamento de cada um deles. — Não como
qualquer um de vocês, mas igual a mim, igual a Rurik. Divido com ela agora,
a mesma ligação que sempre dividi com Rurik.
Como todos tinham caído em silêncio, considerei que a conversa
aconteceu melhor do que eu esperava. Achei que aquela sala ficaria pequena
demais para a revelação que eu tinha para fazer. Imaginei logo que Nadia
arrancaria os próprios olhos e que Vladimir tivesse alguma reação imatura.
Eu os havia subestimado, no entanto. Estavam todos muito sérios e
pensativos.
Mikhail parecia tão surpreso quanto eu. Nós nos encaramos por um
segundo e acho que notei um esboço de sorriso surgindo no rosto dele.
“Eles estão aceitando bem ou é impressão minha?” — Perguntou ele.
Como tudo que é bom costuma ser breve, a cadeira onde Nadia estava
sentada se chocou contra a parede oposta e o barulho me fez segui-la com os
olhos. Minha irmã tinha os caninos expostos e um olhar colérico que já
adiantava suas intenções.
— Sente-se — ordenei.
Ela rosnou e se inclinou sobre a mesa, cravando as unhas na madeira e me
encarando.
— Se vocês pensam que eu aceitarei isso...
— Aleksandra Baker está hierarquicamente acima de você — comuniquei,
sem alterar meu tom de voz. — Você aceitará, querendo ou não.
— Ela nunca estará acima de mim! — Vladimir resolveu se juntar à irmã e
também levantou. Ele virou o rosto para Mikhail, que até então estava muito
calado. — Você deve estar amando essa palhaçada, não é? Uma humana
estúpida se tornando uma de nós!
Um calafrio tomou conta do meu corpo à simples menção da palavra
“estúpida”. Uma coisa era eu implicar com ela, outra completamente
diferente, era qualquer um desses idiotas ousarem atacá-la pelas costas.
Eu me levantei, sentindo que minha paciência se aproximava do limite
tolerável. Olhei para Vladimir e Nadia e os joguei contra a parede. Caminhei
até me aproximar dos infelizes e parei.
— A pessoa a quem você se refere, agora divide laços comigo que
nenhum de vocês jamais entenderá o significado. Se eu souber que qualquer
um desses dedos — apontei para as mãos deles — tocou em Aleksandra,
vocês responderão a mim. Ou melhor — sorri, tendo outra ideia —, deixarei
que ela resolva diretamente com vocês. Creio ter comentado que Aleksandra
adquiriu os poderes de Rurik, certo?
— Você matou Rurik! — Nadia esbravejou e cuspiu no chão. — Não finja
que se importa com qualquer um de nós!
Voei sobre Nadia e estapeei o rosto dela, deixando marcas de dedos que
levariam alguns minutos para sumir.
— Klaus... — Nikolai se aproximou por trás de mim, mas eu o bloqueei.
— Eu matei meu gêmeo para salvar vocês. — Apertei o queixo dela entre
meus dedos, me controlando para não esmigalhar aqueles ossos. — Eu estive
à beira da morte para dar fim a alguém que queria a nossa decadência a
qualquer custo. Eu senti o que ele sentiu, em dobro, por mim e por ele. E ele
era meu gêmeo. Apesar de todos os defeitos que tinha, era a única pessoa no
mundo que me compreendia. Então, não pense que eu terei pena de arrancar a
sualíngua, cortá-la em pedaços miúdos e fazê-la engolir um por um, sem
mastigar.
“Klaus, você já se fez entender.” — Mikhail parou ao meu lado. — “Não
acho que será à base de ameaças que a inserção de Sasha se tornará mais
fácil. Só vai acentuar ainda mais a hostilidade deles.”
Eu ainda encarei Nadia por algum tempo e depois os libertei. Eram uma
dupla infalível na hora de me atormentar a paciência. Vladimir, pelo menos,
não se mostrava tão irritado quanto nossa irmã. Ela sim era o problema
maior.
— O que faremos? — Nikolai perguntou, atraindo minha atenção. —
Teremos que aceitar a nova situação, mas é um baque para todos nós.
— Precisaremos treiná-la, obviamente — respondi. — Ela ganhou os
poderes, mas não sabe fazer bom uso deles. Além disso, ainda precisa ser
transformada dentro de um prazo que me foi dado.
— Sasha precisa fazer uma imersão no que seria a vida de um Mestre,
para que depois, possamos anunciar publicamente. — Mikhail refletiu,
voltando a se sentar, agora que a iminente destruição dos irmãos mais novos
foi interrompida.
— Nós vamos anunciar? — Vladimir chiou, de braços cruzados. — Como
vocês pretendem explicar essa bizarrice?
— Eu não lembro de alguma vez ter me sentido obrigado a explicar
alguma coisa aos humanos — virei-me para ele, confrontando-o. — Vamos
comunicar, mas não entraremos em detalhes. Quando vencermos a guerra,
extinguirmos os mitológicos e transformarmos Aleksandra, daremos uma
festa e faremos a apresentação. Humanos adoram festas.
— Eu não acho que eles estejam com muita disposição para uma festa.
— Tudo irá melhorar, Nikolai. — Bati no ombro de meu irmão. — Confie
em mim.
Pelos meus cálculos, o prazo de trinta dias seria o suficiente para que as
coisas se ajeitassem e tudo voltasse ao normal. Só era preciso que os idiotas
dos meus irmãos não atrapalhassem tanto minha vida e eu conseguisse
colocar um plano mirabolante em prática.
Um plano que, infelizmente, dependeria boa parte de Aleksandra. O que
significava que ele era um pouco instável.
CAPÍTULO 37

Quando eu falei para Mikhail que precisava sair daquele quarto, o que eu
queria dizer era que precisava me movimentar, me ocupar, ver e falar com
outras pessoas. Ele entendeu errado.
— Por que exatamente eu preciso de um outro quarto? — Choraminguei,
enquanto o seguia escada acima. — Não posso ficar com você?
Baixei os olhos quando dois soldados passaram por nós. Eu vestia um
agasalho com capuz que Misha tinha me dado minutos antes e meus cabelos
brancos estavam presos num coque firme. As mechas rebeldes que insistiam
em fugir do elástico foram domadas por presilhas.
Nós já tínhamos subido alguns lances de escada e o Mestre estava um
pouco mais à frente, a barra do manto oscilando ao seu redor. Pensei se eu,
um dia, ganharia um manto como aquele.
Enfim, chegamos a um andar em que Mikhail achou adequado parar. Ele
tocou meu braço e começou a caminhar comigo pelo corredor luxuoso.
— Você pode ir para meu quarto sempre que quiser, mas de hoje em
diante, terá o seu próprio andar assim como nós temos os nossos. — Com o
canto do olho, vi quando ele balançou a cabeça. — O andar de cima é o de
Klaus. Você terá que aprender sobre nossas regras territoriais e...
— Calma aí! — Eu parei, pulando na frente de Misha e espalmando minha
mão em seu peito. — Você está dizendo que este andar é todo meu?
— Você não achou que um dia fosse voltar para casa, não é? — Ele
arqueou as duas sobrancelhas. — Sua vida agora é ao nosso lado.
— Claro que não pensei isso. É só que... Tudo está acontecendo muito
rápido. Eu nem pude ver meus pais ainda...
Mikhail retomou a caminhada e eu voltei a segui-lo, sem deixar de
observar o ambiente ao meu redor. Provavelmente, eu teria direito a mexer
em uma coisa ou outra da decoração, mas sabia que não era o momento de
pensar naquilo.
Paramos diante da quarta porta à direita e ele deixou que eu a abrisse. O
quarto era mais ou menos do tamanho do de Mikhail, mobiliado com uma
grande cama com dossel, um guarda-roupas simples de mogno e uma
escrivaninha da mesma madeira. Uma porta na parede oposta indicava um
banheiro e eu desejei fortemente que lá dentro houvesse uma banheira de
hidromassagem. Só minha!
— Pelas próximas horas, algumas roupas mais adequadas serão
providenciadas para você. E Sasha — ele se virou, segurando meus ombros
—, você vai ver seus pais ainda hoje.
— Tudo bem.
Fechei os olhos quando seus dedos tocaram a lateral do meu rosto. Nossa
relação era tão conturbada, sempre foi, desde o meu primeiro dia naquele
lugar. Será que agora, com minha transformação, as coisas entre nós
melhorariam um pouco? Eu teria dias de paz ao lado de Mikhail?
— Você gostaria de passar a manhã em meu quarto? — Perguntou,
cauteloso.
Eu abri meus olhos só para ver a expressão no rosto dele. Havia uma
mistura de ansiedade e dúvida que me fez dar um sorriso. Não tínhamos
tantas oportunidades de passar muito tempo juntos no mesmo quarto. Mas,
pelo visto, as mudanças estavam começando.
— Está me chamando para dormir com você? — Brinquei, levantando as
sobrancelhas.
— Preciso lembrá-la que eu não durmo?
— Não — respondi, ficando na ponta dos pés e segurando o rosto dele
entre minhas mãos —, mas não me importo se você quiser me lembrar de
outras coisas... Tipo, posições sexuais.
Mikhail deu uma gargalhada e me lançou um olhar sacana, como se
quisesse avisar que cumpriria meu pedido. Ele ainda gastou um tempo me
contando, muito por alto, como havia sido a reunião dos Mestres e as reações
de cada um deles.
Senti, bem lá no fundo, um prazer por saber que Nadia não tinha recebido
a notícia muito bem. Eu estaria preparada para nosso próximo encontro e,
daquela vez, mostraria mais dos poderes que adquiri.
Misha precisava ir embora e resolver outros problemas. O caos deixado
pela batalha e também pelas explosões ainda reinava na Fortaleza. Levariam
dias para que colocassem tudo em ordem e os humanos pudessem voltar para
suas casas, pelo menos para aquelas que ainda estavam em pé.
— Quando poderei sair do quarto e transitar em liberdade? — Perguntei,
segurando o braço dele antes que passasse pela porta. — Você sabe que não
vou aguentar ficar presa por muito tempo.
— Ainda hoje, Sasha. Só nos dê um tempo para ajeitarmos tudo.
Era uma resposta muito ampla, não dizia nada específico, o que me deixou
mais ansiosa. Eu entendia que era tudo novo para os Mestres, que precisavam
preparar o terreno para mim. Entendia também que algumas horas ou dias
não eram nada para criaturas que viviam por toda a eternidade. Só que, para
mim, tudo estava acontecendo rápido demais. E eu já começava a me
incomodar por ter que ficar isolada num canto. Queria ver minha família.
Deixei que Mikhail fosse embora, não adiantava segurá-lo ali comigo
quando tinha tanta coisa para ajeitar. Para passar o tempo, me ocupei em
arrumar as roupas que trouxeram e que nada tinham a ver comigo. De onde
aquelas peças de couro tinham saído? Do guarda-roupas de alguma das
vampiras da Guarda do Sangue?

Já era início da noite e as janelas não estavam mais seladas. Em pé, de


frente para elas, eu observava o movimento que acontecia do lado de fora.
Estava num andar bem alto, quase no topo da Fortaleza e, por isso, não
conseguia visualizar todos os detalhes. Precisava exercitar minha visão
poderosa de Mestre.
“Aleksandra.”
Por reflexo, virei o rosto achando que havia alguém dentro do meu quarto.
Logo me dei conta de que a voz irritante de Klaus estava dentro da minha
cabeça.
“Estou diante da porta do seu quarto.”
Confusa pelo motivo que levaria Klaus até ali, abri minha porta e dei de
cara com o Mestre. Ele manteve uma distância de alguns centímetros, com os
braços atrás das costas.
— Você desaprendeu a bater ou... — encarei, provocando — girar a
maçaneta? Porque é surpreendente que não tenha invadido o quarto como
sempre faz com tanta facilidade.
Eu estava mesmo surpresa, pois Klaus não só não esmagou minha traqueia
como também se limitou a inclinar a cabeça para o lado.
— Gostaria de ver sua família ou prefere gastar saliva tentando me irritar?
Opa! Ele não precisaria perguntar duas vezes. Antes mesmo de responder,
eu corri até o armário e peguei o boné que tinha recebido horas antes. Não me
incomodei em vestir nada melhor. Estava usando uma das calças de couro
que me entregaram e uma camisa de Mikhail que cobria os meus joelhos.
— Vamos agora? — Perguntei, colocando meus cabelos para dentro do
boné e batendo a porta do quarto atrás de mim.
Klaus me olhou de um jeito entediado, enquanto eu explodia de
empolgação. Talvez ele nunca conseguisse entender o que era o amor que eu
sentia pela minha família.
— Por enquanto, sua condição será revelada apenas para seus pais e seu
irmão — avisou. — Soube que contou para seu amigo Holtz e precisei me
controlar muito para não vir arrancar sua língua com minhas próprias mãos.
— Não sei se você entende o significado da palavra amizade, então não
estranho sua atitude.
Klaus suspirou, alguns passos à minha frente, enquanto descíamos mais de
dez andares.
— Você é uma criança quando se trata tanto de mortalidade quanto de
imortalidade.
— Bem, é um alívio não ser tão velha quanto você — rebati. — Se eu
tivesse vivido tanto, gostaria de ser uma pessoa mais evoluída. Coisa que
você, com certeza, não é.
Por sorte, não havia ninguém transitando pelas escadas naquele momento,
pois Klaus fez meu corpo ser lançado pelos degraus e rolei até o próximo
andar. Caí de mal jeito e ao levantar, senti meu pé doer um pouco, mas sabia
que logo a dor passaria.
Minha vontade foi enfiar as unhas naquele rosto arrogante quando o
Mestre passou por mim, como se nada tivesse acontecido. Eu só não ataquei
porque sabia que ele esperava que eu revidasse. Preferia pegar Klaus em
algum momento em que estivesse desprevenido. Se é que isso acontecia em
alguma hora.
Encerrei a conversa e fiz o restante do caminho calada, acompanhando os
passos que nos levaram até o andar em que minha família estava instalada.
Klaus bateu na porta e esperou, até que ela foi aberta pelo meu pai. Ele
cravou os olhos em mim e logo transbordou em lágrimas. Eu também não
pude evitar a emoção, principalmente porque, ao partir na viagem, não sabia
se voltaria a vê-lo.
— Você demorou, querida — ele falou com a voz embargada pelo choro e
me puxou para um abraço.
Eu me senti em casa quando fui envolvida com força e meus pés saíram do
chão. Sabia que Klaus não dava a mínima para aquela troca de afeto, mas se
ele tentasse nos atrapalhar eu seria capaz de estrangulá-lo.
— Eu estou bem — senti meus olhos arderem com as lágrimas e tomei um
tempo para me recompor, com meu rosto grudado na camisa velha daquele
homem que eu amava. — Estou muito bem e todos ficaremos bem.
— É a minha filha? — Ouvi a voz histérica de minha mãe e me soltei do
abraço.
Quando parti com Klaus e Mikhail, ela ainda se recuperava do ferimento
que sofrera durante a explosão no colégio. Agora, dona Irina Baker parecia
melhor. Estava sentada na beira da cama, com a mão no peito. Seu semblante
mostrava que a recuperação fora ótima. Estava bem corada e sem as olheiras
profundas de antes.
— Sim, sou eu! — Sorri, entrando no quarto e indo até a cama dela. —
Sentiu saudade de brigar comigo?
Mamãe levantou quando me aproximei e me deu um abraço tão apertado
quanto o de meu pai. Nós duas nos desequilibramos quando Victor se juntou
ao aconchego, em silêncio. Como era bom sentir novamente o toque deles e
saber que estavam bem. Uma das coisas que mais me deixou apavorada
quando estava me afogando no lago, foi imaginá-los recebendo a notícia da
minha morte.
— Aleksandra tem algo para contar a vocês. — Klaus, em algum lugar
logo atrás de mim, interrompeu nosso momento com sua voz áspera. — É
melhor que ouçam com atenção.
Ele sabia mesmo como estragar a felicidade alheia. O abraço em trio se
desfez e minha mãe me encarou com olhos apreensivos. Victor se sentou
junto com ela na cama e meu pai veio ficar ao meu lado, de braços cruzados.
Ele intercalava o olhar entre mim e Klaus.
— Qual o assunto, filha? — Perguntou.
— Bem, não é nada demais — tentei acalmá-los antes de jogar a bomba,
mas não sabia como começar a falar sobre algo tão... perturbador. — A
viagem foi esclarecedora.
Havia quatro pares de olhos sobre mim e a pressão não estava ajudando
em nada. Eu virei o rosto para Klaus, que se colocara aos pés da cama de
minha mãe, parado daquele jeito único dele, imponente e amedrontador.
“Uma ajudinha aqui seria muito bem-vinda.”
Pela forma como ele me olhou, percebi que se deliciava com minha saia
justa. Aqueles eram os minutos cruciais em que tudo mudaria. O chão sob os
pés da minha família desabaria quando soubessem o que eu estava me
tornando.
“Comece tirando o boné e dando tempo de digerirem a informação.”
Eu toquei minha cabeça, alisando o tecido macio do boné, tomando
coragem para fazer a revelação. Então, como se arrancasse o band-aid de uma
ferida, puxei ele rápido e deixei meus cabelos caírem em cascatas até meus
ombros. Estavam cheios e compridos, pois eu não os cortava desde o dia que
chegara na Fortaleza.
— Cacete! — Victor exclamou de olhos arregalados e um sorriso no rosto.
A expressão dos meus pais, diferente da de meu irmão, era de total pavor.
Minha mãe levou a mão à boca, talvez para evitar chorar. Ou me xingar. Eu
pigarreei, tentando começar a explicação.
— Isso que vocês estão vendo é...
— Sua filha agora é Mestre Aleksandra. — Klaus me interrompeu e eu
cerrei os punhos para não dar um tapa nele. Eu estava tomando tanto cuidado
para não jogar a notícia assim e ele estragou tudo.
— O quê? — Papai, passando a mão na testa, deu dois passos na minha
direção. — O que o Mestre disse?
— Há uma maldição, que não contamos aos humanos, sobre nossa
existência. — Klaus começou. — Quando Aleksandra se juntou a Kurt Holtz
para me salvar, no momento em que eu e Rurik queimávamos sob o sol, ela
foi afetada pela nossa maldição. Éramos seis Mestres e, com a morte de
Rurik, os poderes dele foram transferidos para Sasha. Aleksandra.
Klaus me chamou de Sasha? Meu rosto virou para ele com rapidez e eu
sabia que meus olhos estavam esbugalhados de surpresa. Ele nunca, nunca
me chamava assim. Sorri e ele me fuzilou com os olhos ao notar minha
reação.
“Admita que você me ama, irmãozinho.”
Ele virou o rosto, fingindo que não tinha me escutado.
— O que isso significa? — Mamãe levantou da cama e me agarrou pelos
braços, apalpando cada centímetro do meu corpo. — Ela ainda é humana, não
é?

Pensando de uma forma bem racional, Klaus explicou perfeitamente bem.


Eu, com certeza, não teria conseguido ser tão objetiva. Levaria algumas horas
para contar sobre toda a maldição e a nossa experiência naquele lugar
horripilante que era Oymyakon.
Claro que, apesar do talento dele para se fazer entender, nada impediu o
choque em meus pais.
— No que foi que você se meteu, Sasha? — Papai me olhou
decepcionado.
— Eu não tenho culpa de nada, ok? — Respondi, dando um passo para
trás e saindo do alcance da minha mãe. — Ia acontecer de qualquer forma,
com ou sem a viagem. Além disso, independente da maldição, eu não
continuaria humana por muito tempo.
Meu pai franziu a testa, confuso.
— Há alguns dias, tomei a decisão de me transformar porque amo Mikhail
e quero viver ao lado dele — senti um nó na garganta e engoli em seco,
olhando de relance para Klaus. Nunca havia usado aquelas palavras tão
diretas na frente dele. — Eu me tornaria uma vampira assim que as coisas
aqui se acalmassem.
— Eu também quero me transformar! — Victor só faltou pular em cima
do Mestre e a animação dele piorava muito a situação para o meu lado.
— Isso é inaceitável! — Papai se queixou, olhando para Klaus com uma
cara de poucos amigos. — Não iremos permitir nada disso.
O Mestre, que eu precisava reconhecer estava calmo demais, deu o seu
melhor sorriso diabólico para meus pais e se aproximou de mim. Fiquei tensa
quando ele apoiou uma das mãos em meu ombro.
— Acho que minhas palavras não foram compreendidas. Aleksandra se
tornará uma de nós, independente de vossa vontade. — Ele virou o rosto e me
olhou. — Passe o tempo que quiser com eles, mas não preciso lembrá-la de
manter segredo, por enquanto. O boné deve ficar na cabeça quando sair
daqui.
Sem perder tempo com despedidas, Klaus saiu do quarto e nos deixou a
sós. Eu ainda não estava pronta para enfrentar o interrogatório que tinha
certeza que se iniciaria, mas sorri para meus pais.
“Aleksandra, um conselho:eles sempre serão seus pais, mas você precisa
começar a se impor.”
Muito fácil, para ele, falar aquilo. Klaus nunca precisou lidar com pais na
adolescência ou em qualquer outro momento inoportuno.
Eu me sentei na cama que usava antes de partir para a viagem e dobrei
minhas pernas. O quarto havia caído num silêncio desconfortável e eu sentia
os olhares dos meus pais como fogo sobre mim
Victor veio se sentar ao meu lado, com um sorriso bobo no rosto e uma
expressão ansiosa. Revirei meus olhos, consciente de que ele estava adorando
todo aquele circo.
— Eu sei que você quer dizer alguma coisa — falei. — Desembucha,
garoto.
— Por onde devo começar? — Questionou, pensativo, olhando para o teto.
— Como aconteceu? Doeu? Sentiu alguma coisa?
Eu tinha certeza que Victor se tornaria um vampiro na primeira
oportunidade que aparecesse. E, no fundo, isso passou a soar como um alívio
para mim. Não podia esperar que meus pais viessem a se transformar um dia
e teria que lidar com a perda deles. Victor, no entanto, poderia viver para
sempre comigo. Eu teria sorte em possuir meu irmão ao meu lado. E sabia
que ele tinha essa vontade.
Dei um peteleco no braço dele e enxuguei os cantinhos dos meus olhos.
Família sempre seria meu bem mais precioso onde eu estivesse.
— Eu não passei por nenhuma transformação, ainda — completei. — Foi
tudo muito confuso, muito sinistro, estamos todos tentando entender. Recebi
os poderes e... — olhei na direção dos meus pais, que estavam calados mas
prestavam atenção em mim — tenho um prazo para ser transformada ou
morrerei.
— Mestre! — Victor balançou a cabeça, sorrindo. — Uau! Isso é surreal!
Terei uma irmã Mestre.
— Esse quadro não é reversível? Deve ter algo que possamos fazer —
meu pai insistiu, enquanto alisava as costas da minha mãe, que chorava
baixinho. — E outra coisa, se você estava com Kurt, por que foi você a
amaldiçoada e não ele?
Eu me levantei e fui me sentar no chão, de frente para eles dois. Queria
pedir para que minha mãe parasse de chorar, mas sabia que ela levaria algum
tempo para aceitar.
— Bem — respondi, colocando meus cabelos para trás das orelhas e
atraindo olhares dos meus pais —, eu fui a escolhida porque entre Kurt e eu,
sou a que mais possui sangue de outros Mestres correndo nas veias.
— Sangue de Mestre... — mamãe balbuciou e chorou ainda mais.
Não era mesmo a melhor resposta para dar, mas era a verdade.
— Eu ainda sou a mesma pessoa — sorri. — A única mudança é que não
faremos mais refeições juntose... precisarei me mudar.
— Se mudar? — Meu pai aumentou a voz em alguns decibéis.
— Sim, eu meio que vou precisar morar aqui com eles — pigarreei. — Na
Morada.
— Nós podemos vir morar aqui? — Victor perguntou, já se animando com
a possibilidade.
— Se eu não me engano, nós já estamos morando aqui, não é? Claro,
estou falando dos que sobreviveram. Todas as outras pessoas mortas não
tiveram a mesma oportunidade. — Minha mãe começava a se alterar. Ela
virou para meu pai, que ainda a tocava, e apontou um dedo para ele. — Nós
temos que ir embora desse lugar, Johnathan. Digo, dessa Fortaleza. Assim
que eu me sentir completamente recuperada, nós...
— Não iremos a lugar algum! — Gritei, me levantando do chão. Cruzei os
braços, nervosa por levantar a voz com eles. — Acho que nenhum dos dois
entendeu o que está acontecendo comigo. Eu serei Mestre, assim como eles.
Posso não me dar bem com os outros, mas me importo demais com Mikhail e
com Klaus, não ficarei longe deles. Meu lugar agora é ao lado dos outros
Mestres, quer vocês queiram ou não. Não sou mais a criança indefesa que
vocês precisam proteger.
Nenhum dos dois disse nada e fiquei satisfeita por ter passado minha
mensagem. Eu realmente queria que eles entendessem que a realidade da
minha vida tinha mudado. De forma alguma eu deixaria que fossem embora
da Fortaleza. Por mais que tragédias tenham acontecido, ela ainda era mais
segura do que qualquer outro lugar.
— Eu amo vocês e, nesse momento, o que mais preciso é saber que irão
me apoiar. Não sei como vai ser meu futuro, mas com certeza será mais fácil
se tiver minha família ao meu lado. — Senti meus olhos arderem com as
novas lágrimas. — Eu não pedi para que isso acontecesse comigo.
— Se depender de mim, você terá todo o apoio que precisa! — Victor
tinha se aproximado e aproveitou para me dar um tapinha de incentivo nas
costas. — Por que não mostra um pouco dos seus poderes para a gente?
“Não acho que nossos pais precisem disso agora.”
Mandei o recado diretamente para a mente dele. Eu podia responder em
voz alta, mas fiz a brincadeirinha só para satisfazer um pouco de sua
curiosidade. Victor quase saiu pulando pelo quarto, mas se conteve. E me
encarou com os olhos brilhantes por ter testemunhado um dos meus poderes.

Não consegui ficar no mesmo quarto que meus pais por muito tempo.
Passei alguns minutos conversando baixinho com Victor, mas o clima estava
carregado demais. Preferi voltar para meus aposentos e avisei ao meu irmão
que ele poderia bater em minha porta sempre que quisesse.
Eu me sentia triste por não conseguir a aceitação imediata dos meus pais,
mas já imaginava que não seria fácil. Era uma questão de tempo até que se
acostumassem com a situação. Talvez, em alguns meses, eles consigam
superar tudo e nós quatro iremos rir dessa história maluca.
Estava lendo um livro de ficção que achei perdido no fundo do armário
quando ouvi batidas na porta. Pensei que fosse Mikhail, aparecendo para
alegrar meu dia, mas era Kurt. Meu amigo sorriu, mas ao correr os olhos pelo
meu corpo, fez uma careta.
— Antes de levá-la, preciso dar um jeito na sua aparência. — Kurt entrou
em meu quarto e puxou minha mão. — Não posso deixar que fique andando
por aí desse jeito tão... maltrapilho.
Suspirei, sentando-me na cama.
— Vai me levar aonde?
— Shhh! Quieta! — Ele franziu os lábios ao me avaliar dos pés à cabeça.
— Francamente, Sasha!Você já andou mais bem vestida.
— Não sei se você sabe, mas minha casa foi afetada em uma das
explosões. Estou usando roupas emprestadas.
Ele me encarou de forma entediada e se voltou para o meu guarda-roupas
simplório. Abriu todas as portas e estalou a língua.
— Não me ofenda. Eu sei muito bem que Klaus nunca deixaria um Mestre
andar por aí com essas roupas esfarrapadas. — Ele sorriu para mim. — E
veja só que milagre! Estou olhando para várias peças bonitas.
— Não combinam comigo.
— Poderiam não combinar com uma adolescente humana e sem nenhum
senso de moda, é verdade. — Ele puxou um dos cabides para fora,
balançando um macacão de couro. — Creio que façam mais o estilo de uma
vampira fodona. Opa, vejam só! Você, por acaso, é exatamente isso.
Ok!Aquilo era ridículo.
Eu me levantei, tirei o cabide da mão dele e o guardei de novo no armário.
— Não sou vampira ainda. Nem caninos eu tenho.
— São detalhes, minha querida criaturinha da noite. — Kurt apertou
minha bochecha. — Agora, deixarei que você escolha um look aceitável para
a reunião que está prestes a acontecer.
— Que reunião?
— Eu não sei dos detalhes. — Ele abanou a mão, já de costas para mim,
jogando-se na minha cama e afofando os travesseiros. — Só sei que fui
informado que deveria levá-la até o Arsenal para participar de uma reunião
com os Mestres.
— Arsenal? Que lugar é esse?
Kurt sorriu.
— Esqueci que você não está por dentro dos termos. Ainda. É aquele lugar
onde recebeu os treinamentos de Klaus.
— E você não sabe do que se trata a reunião?
— Sou apenas um Guardião, Sashita. Seja lá o que for, é assunto entre
vocês.
Engoli em seco. Pensei que teria mais tempo para me acostumar com
aquela loucura, mas tudo estava acontecendo bem mais rápido do que eu
imaginei.
CAPÍTULO 38

Enquanto seguia Kurt pelas escadas, tinha que ajeitar a saia de couro que
ele me obrigou a vestir. Ela era curta e insistia em subir a cada passo que eu
dava. Eu também estava vestindo uma camiseta tão justa quanto a saia e, para
piorar, ela possuía um decote vertiginoso nas costas. Era o tipo de roupa que
uma mulher fatal usaria com muita atitude e elegância. E eu não era assim.
— Pare de se cutucar o tempo todo. — Kurt reclamou. — Está parecendo
uma galinha ciscando.
Não tive vontade de responder à agressão verbal. Estava mesmo
incomodada com a roupa e me sentindo ridícula, principalmente por causa do
boné que não combinava em nada com o resto do look. Eu me sentia brega.
Quando paramos diante da porta do Arsenal, meu amigo se colocou em
posição de sentido e acenou para que eu continuasse.
— Eu fico por aqui — avisou.
Já estivera outras vezes naquele lugar. O nome do salão era bem óbvio,
considerando que ali havia um inestimável arsenal formado pelas mais
variadas espadas, lanças e adagas. Num dos cômodos, onde as paredes eram
cobertas por mapas antigos, ficava disposta uma grande mesa redonda de dez
lugares. Nas primeiras vezes em que estive ali, até conseguia imaginar os
cinco Mestres sentados em volta dela, tendo as reuniões mais escabrosas
possíveis.
Distraída com meus pensamentos, levei um susto quando a porta se
escancarou.
“Entre” — recebi a ordem de Klaus.
Deixei Kurt do lado de fora e fui me juntar aos Mestres. Vi logo Klaus,
posicionado de pé ao lado de uma das cadeiras da mesa, como se estivesse
apenas aguardando minha chegada.
— Sente-se, Aleksandra — ele pediu.
Mikhail, aproximando-se pelas minhas costas, puxou uma cadeira ao lado
da de Klaus e ofereceu a mim. Por um instante, achei que estava tudo bem e
que a reunião seria tranquila, apenas com nós três. Minhas esperanças foram
ladeira abaixo quando Nadia, Nikolai e Vladimir entraram ao mesmo tempo
na sala. Os três lançaram olhares estranhos para a cadeira na qual eu tinha
acabado de me sentar e se reposicionaram. Algo me dizia que eu estava no
lugar de alguém.
Olhei novamente para Klaus, que permanecia com a postura inabalada.
— Hoje é um marco na história da minha vida — arrisquei comentar para
quebrar o clima tenso. — Quando eu poderia imaginar que, um dia, sentaria
ao redor dessa mesa com vocês?
— É uma mancha na nossa história. — Nadia bufou, lançando um olhar
assassino na minha direção.
— Cale-se! — Ordenou Klaus, sem especificar a quem se dirigia.
Virei o rosto para Mikhail, que me olhava enviesado, mas mantinha-se
calado. Como deviam ser divertidas as reuniões daquela família!
— Acho que todos já tiveram tempo suficiente de aceitar a nova hierarquia
e seguir em frente — o mais velho falou, mirando cada um dos outros
Mestres com um olhar incisivo. — De agora em diante, Aleksandra fará parte
das nossas reuniões e qualquer outra atividade da nossa rotina.
Ninguém ousou discordar e eu sorri internamente por testemunhar a defesa
dele.
— No entanto, não os reuni aqui hoje para darmos as boas-vindas a ela. —
Ele agora tinha a atenção voltada para mim e me encarava de um jeito que
fazia estremecer a espinha. — O motivo da reunião é revelar a primeira
missão de Aleksandra como uma de nós.
Como é que é? Eu me remexi na cadeira, um pouco tensa com a última
parte do discurso. Mikhail pareceu tão incomodado quanto eu e a julgar pela
expressão dele, não tinha conhecimento do que se passava na cabeça do
irmão.
— Ela nem foi transformada ainda e você já arranjou uma missão? —
Misha indagou.
O Mestre mais velho ignorou os murmúrios de Nadia e Vladimir, que
aparentemente não gostaram de saber que eu seria incluída tão rápido no
mundinho deles. Sem interromper o contato visual comigo, Klaus cruzou as
mãos, esticando os braços sobre o tampo de madeira da mesa.
— Não é novidade que estamos com dificuldade de encontrar Zênite. Ela
tem enviado tropas na nossa direção diariamente, mas continua escondida.
Podemos revidar todos os ataques, mas isso não vai resultar em nada. O que
precisamos, de fato, étirá-la do buraco onde se enfiou. — Klaus ajeitou a
postura, se recostando à cadeira, depois cruzou os braços. — Queremos atraí-
la para uma armadilha.
— Acho que entendi onde você quer chegar. — Nadia sorriu. — Vamos
usar a humana como petisco.
Ignorei a implicância da vampira e achei que a parte com a qual deveria
me preocupar era sobre ser usada como isca. Não era uma proposta muito
sedutora.
— Saia — ordenou o primogênito.
Olhei para os lados, sem entender por que estava sendo expulsa. Dos
males o menor. Não fazia mesmo questão de continuar aquela conversa e
nem me sentia confortável diante dos outros Mestres. Mas, ao menor sinal de
movimento meu, Klaus segurou meu pulso e me impediu de levantar.
“Não estou falando com você” — avisou.
Só então percebi que ele e Nadia se encaravam em silêncio. Alguma coisa
acontecia dentro daquelas mentes, pois era nítido que a mulher estava
perdendo a batalha invisível. A perseverança dela oscilou quando piscou
algumas vezes e, por fim, fechou os olhos.
— Estou sendo trocada por uma... — ouvi um rosnado baixo sair de sua
garganta. — Humana idiota!
Eu me sobressaltei com a rapidez com que ela lançou longe a cadeira ao se
levantar.
— Pode se retirar também — Klaus olhou para Vladimir —, caso esteja
incomodado como Nadia.
Eu encarei o Mestre mais novo, esperando que ele deixasse a sala, mas
Vladimir permaneceu sentado, sem olhar para mim.
— O que você quer de mim? — Perguntei, não conseguindo mais me
manter calada.
— Pensei em algumas coisas que podem dar certo — respondeu ele,
agindo como se nada demais tivesse acontecido.
— Quer mesmo usar Aleksandra numa armadilha para Zênite? — Era a
primeira vez que ouvia a voz de Nikolai desde que entrara no Arsenal.— Não
acha que isso é demais?
— Não estamos conseguindo encontrar a maldita mitológica. A não ser
que ela venha bater em nossa porta, não iremos matá-la. — Klaus concluiu.
— A única certeza que eu tenho é que Zênite odeia Aleksandra.
— Essa é a mais pura verdade — murmurei.
— Temos uma arma nas mãos, no melhor estilo cavalo de tróia. — Klaus
bateu os dedos na mesa, sorrindo. — Se Aleksandra se afastar de nossos
muros o suficiente para ser abordada por mitológicos...
— Eles me levarão até ela — interrompi Klaus, entendendo aonde ele
queria chegar.
Misha me olhou como se eu estivesse louca, apesar da ideia toda ter sido
formulada pelo irmão dele. Eu era apenas um peão naquele tabuleiro de
xadrez. E isso me fez estremecer. Eu queria mesmo me fazer de isca para a
rainha dos mitológicos?
— Você enlouqueceu? — Mikhail perguntou, com a voz baixa, como se
fizesse um esforço enorme para se conter. — Quer que Sasha seja capturada?
Quem garante que não a matarão no instante em que a encontrarem?
— Rurik não me matou — falei, me remexendo na cadeira e sentindo uma
adrenalina correr pelas veias. — E nenhum outro vai me matar porque sabem
que Zênite vai querer fazer isso pessoalmente.
Eu só podia ser louca, dando corda para a ideia absurda de Klaus.
— É arriscado — Nikolai interferiu, balançando a cabeça. — Não temos
como saber disso.
— Aleksandra sabe — Klaus afirmou, sem nenhuma dúvida. Ele apenas
me olhou e eu acenei discretamente, concordando. — E, se por alguma razão
inesperada tentarem matá-la antes de encontrarem com Zênite, ela saberá se
defender.
Meu peito se encheu de orgulho ao ver que Klaus acreditava em meu
potencial. Ou isso ou ele simplesmente não se importava com minha
integridade física. Preferi acreditar na primeira hipótese.
— Se isso for uma votação, então tudo bem, eu concordo que ela vá —
disse Vladimir, é claro, que iria adorar se eu não voltasse nunca mais.
Klaus lançou um sorriso irônico.
— Não está em votação. A única pessoa que precisa concordar, é a própria
Aleksandra.
E foi nesse momento que todos ao redor da mesa pararam para me olhar.
Não era uma posição confortável, ter aqueles quatro Mestres esperando pelas
próximas palavras que sairiam da minha boca.
Respirei fundo, tentando colocar os pensamentos em ordem. Tinha
entendido o raciocínio de Klaus e achava que ele tinha razão. Se qualquer
mitológico me encontrasse perdida no meio do nada, eu seria capturada e
levada até Zênite, para sofrer uma morte bem penosa. Ou nós dois
poderíamos estar enganados e o mitológico me mataria no instante em que
me visse.
Eu podia negar. Podia dizer que não me sentia confiante para uma missão
como aquela, sendo que nem havia aprendido a controlar totalmente os meus
poderes. Mikhail defenderia minha posição e acredito que Nikolai também.
Klaus não poderia me obrigar a nada e eu duvidava que a opinião de
Vladimir fosse levada em consideração. Sim, eu poderia recusar a ideia.
Mas, no fundo, eu queria Zênite morta tanto quanto todos os Mestres
naquela sala. Precisávamos colocar um fim naquelas criaturas bestiais para
que a humanidade pudesse sobreviver.
— Tudo bem — as palavras escorregaram da minha boca e os olhos de
Mikhail se estreitaram. — Eu aceito fazer isso.
— Você ficou louca? — Misha rosnou. — Não deixarei que saia por
aqueles portões.
— Hierarquicamente, você não manda em mim.
Ah, droga! Eu sabia que agir daquele jeito com ele, na frente dos outros,
me traria muitos problemas. Bastou ver o semblante dele carregado de raiva
para imaginar a briga que teríamos quando ficássemos a sós.
— Eu tenho que concordar com Mikhail — disse Nikolai, virando-se um
pouco de lado para me olhar. Ele tocou em meu braço e sua voz saiu quase
num sussurro. — Acho que é uma péssima ideia. Você não sabe lutar.
— Ela matou um centauro.
— Sim, Klaus. — Mikhail se debruçou sobre a mesa, olhando de cara feia
para o irmão. — Apenas um centauro e mesmo assim, teve dificuldade.
Como ela irá lidar com vários? E qual é o plano, afinal? Sasha se deixará ser
capturada e então, o quê?
— A luz do dia ainda não afeta você? — Nikolai me perguntou, curioso,
correndo os olhos pelas partes em que minha pele estava descoberta.
Aquela era uma pergunta interessante. Eu não sabia responder, pois ainda
não fizera nenhum teste. Conseguia lembrar que, durante o episódio do meu
afogamento, o sol brilhava forte no céu. Mas não sabia até onde eu tinha
alucinado, já que Klaus tinha sido exposto ao mesmo sol e nada sofrera.
— Acho que vamos ter que descobrir juntos — estalei a língua. — Posso
dar um pulinho ali fora para testar.
— E depois? — Misha perguntou, como se me desafiasse. — Você sai,
durante o dia. Como vamos encontrá-la?
— Eu entendo que é um plano interessante se considerarmos que levarão
Aleksandra até Zênite. — Nikolai, debruçado sobre a mesa, encarou a mim
como se eu fosse um objeto a ser estudado. — Mas por que não colocá-lo em
prática após a transformação dela? É mais seguro e possui mais chances de
dar certo.
Dessa vez, olhei para Klaus e esperei que ele revelasse aquela parte do
plano, pois eu também não fazia ideia de como os Mestres fariam para nos
encontrar. Nenhum deles tinha a menor pista do lugar onde Zênite estava se
escondendo. Também fiquei curiosa sobre o motivo pelo qual eu não podia
ser transformada no dia seguinte.
— Como vocês são idiotas... — meu gêmeo suspirou e recostou-se à
cadeira. — Não sabemos quanto tempo levará do momento em que ela for
encontrada por um mitológico até chegar ao esconderijo deles. Ela seria
transformada, sairia daqui à noite, o caminho se tornaria longo e então, o que
aconteceria? Viraria cinzas na frente do mitológico?
Ele se empolgou tanto com o discurso que preferiu se levantar. Caminhou
em volta da mesa, por trás de nossas cadeiras, enquanto se explicava.
— Aleksandra vai demorar a percorrer o caminho todo pois precisará
manter o ritmo do mitológico. Além disso, eles precisam sentir o cheiro dela.
Se for transformada, não sentirão mais. E Aleksandra conta com um
diferencial. Possui poderes e está mais resistente, mas ainda encontra-se presa
num corpo humano, que sofrerá as mazelas da carne.
A parte de sofrer alguma coisa não me soou agradável aos ouvidos, mas
fiquei quieta. Misha ainda permanecia irredutível, balançando a cabeça de
forma negativa a cada palavra dita por Klaus.
— Zênite não sabe que Aleksandra tem poderes. Para ela, trata-se de uma
humana como qualquer outra. — Klaus sorriu, satisfeito por ser tão
inteligente. — A ideia é que levem-na diretamente para a rainha. O que eles
não terão como saber é que Aleksandra se comunicará comigo durante todo o
trajeto.
— Ela não vai conseguir se comunicar conosco de tão longe, Klaus. Nem
sabemos para onde será levada.
— Eu não disse que ela se comunicará com todos nós, Nikolai. Eu disse
que se comunicará comigo. De qualquer distância.
Nikolai ergueu uma sobrancelha e olhou de mim para Klaus.
— E se não funcionar?
— Irá funcionar. — Os pés de madeira fizeram um barulho estridente
quando Klaus puxou sua cadeira e apoiou as mãos no encosto alto. Ele
parecia estar dando o assunto por encerrado. — Não há limites entre nossas
mentes, ela tomou o lugar de Rurik e eu a encontrarei onde for.
“Eu acho bom mesmo você me achar” — avisei e ele me olhou de soslaio.
Os outros Mestres se levantaram e eu fiz o mesmo, tomando o cuidado de
ajeitar a saia idiota que tinha subido bastante quando me sentei. Não passou
despercebido o olhar ciumento de Mikhail em cima de mim.
— Eu odeio ter que atrapalhar um plano tão bem elaborado, mas posso
saber como pretendem esconder a nova aparência dela? — Vladimir
perguntou, olhando fixamente para o meu boné.
Pela falta de resposta, imaginei que Klaus não tinha parado para pensar no
assunto. Assim como os irmãos, ele também fitava minha cabeça como se
houvesse um animal morto sobre ela. Era um grande empecilho em nosso
caminho.
— Posso pintar! — Foi a primeira coisa que passou pela minha mente e
assim que falei, achei a ideia idiota demais. — Ou não...
— Eu aconselharia raspar a cabeça — disse Klaus —, mas pintar pode ser
a melhor solução.
Olhei furiosa para ele, deixando claro que estava proibido de tocar nos
meus cabelos ou dar qualquer palpite absurdo como aquele. Eu aceitaria a
maluquice de ir me encontrar com Zênite, mas nunca deixaria que cortassem
um único fio de cabelo meu. Eu tinha traumas com cortes e não gostava de
entregar minha cabeleira nas mãos de qualquer um. Principalmente agora.
Não queria passar a eternidade com um corte de cabelo horrível.
— Se conseguirem a tinta da cor que uso ou até alguma num tom
parecido, será o suficiente.
— Se cair uma gota de chuva enquanto você estiver ao ar livre, a tinta
sairá. — Mikhail alertou, talvez achando que só por causa de um pequeno
empecilho eu desistiria do plano. — Nossos cabelos possuem as cutículas
seladas, a tinta não penetrará nos fios, só vai pegar como se fosse uma
maquiagem.
— Existe alguma dança da chuva que você saiba fazer e tenha efeito
contrário? — Perguntei para Klaus.
Nikolai deixou escapar uma risada atrás de mim e o Mestre primogênito
lançou um olhar mortal para ele.
— Não exagere. — Klaus concluiu e, num piscar de olhos, já tinha se
retirado do Arsenal.
Nikolai, Mikhail e Vladimir pareciam acostumados com os modos do
outro Mestre e não demonstraram irritação. Eu, no entanto, sentia vontade de
dar na cara dele para deixar de ser tão mal educado.
De forma quase automática, segui Misha pelo corredor e subi as escadas
com ele, enquanto os outros dois Mestres desceram. Sabia que o bonitão
estava de mal humor porque ainda não tinha se dirigido a mim desde que o
cortei na reunião.
Quando chegamos ao andar dele, Mikhail se virou e esticou a mão, me
fazendo parar.
— Quero ficar sozinho — avisou, o olhar cheio de fúria.
— Não acredito que você vai ficar com raiva de mim. Não cansa de
brigar?
— Não canso de me aborrecer com você, Sasha — ele bufou, desviando
os olhos e fitando o corrimão da escada. — Você está sempre tomando as
decisões erradas.
— É errado querer que Zênite morra? — Perguntei, doida para gritar com
ele, mas evitando protagonizar uma cena em público. — A ideia não partiu de
mim, você sabe disso. Klaus montou um bom plano e eu sei que posso
executá-lo.
Misha esfregou o rosto e me deu as costas, andando corredor adentro.
Pisei firme e fui atrás dele, inconformada por me deixar falando sozinha e
sem resposta.
— Misha!
Ele se virou, furioso.
— Você ainda não foi transformada! Pode morrer lá fora!
Agarrei o tecido do manto preto e colei meu corpo ao dele, impedindo que
se afastasse novamente.
— Bem, então cabe a vocês me treinarem o suficiente para manter-me
viva — deslizei a mão pelo peito másculo até subir pelo ombro e alcançar sua
nuca. Na ponta dos pés, eu me aproximei e depositei um beijo nos lábios dele
antes de sorrir. — Você, mais do que ninguém, sabe como já sofri nas mãos
dos mitológicos. Preciso dessa chance de me vingar. Por mim, por Helena,
por Blake, pelos pais de Kurt, por cada pessoa que perdeu um ente querido
nos últimos ataques. Nós podemos ser mais fracos que vocês e os
mitológicos. Mas, se eu aprendi alguma coisa com os livros de História, é que
nenhuma outra espécie possui mais força de vontade e desejo de viver que a
humana. Nós sempre lutamos por liberdade e creio que morreremos lutando.
Vocês nos castraram quando assumiram o poder e as responsabilidades, mas
não pense que perdemos nosso instinto de sobrevivência. O meu está aflorado
e eu quero fazer isso. Quero ser a última visão de Zênite quando Klaus e eu
arrancarmos a cabeça dela.
— Você e Klaus? — Meu discurso amoleceu um pouco o Mestre, que
abriu um sorriso achando graça de minhas intenções.
— Se você tivesse a menor noção do poder que Klaus possui... — passei a
língua pelos meus lábios, saboreando a sensação que eu vinha sentindo. — Se
você conseguisse medir isso, entenderia o tamanho do poder que meu corpo
quer libertar.
Misha suspirou e passou os dedos pelo meu rosto, depois me envolveu
num abraço. Percebi que ele não levou a sério o que eu disse ou
simplesmente não se importava com meus poderes. Não quis insistir no
assunto porque ele tinha relaxado um pouco e eu não queria inicar uma nova
discussão. Além disso, nem eu mesma conseguia entender o que vinha
sentindo. A cada dia parecia se tornar mais forte, mais intensa a sensação. E
ficava ainda mais estranho quando Klaus estava muito próximo a mim.
— Depois de tudo pelo que passamos, não posso perdê-la por causa de um
plano mirabolante — disse Mikhail, alisando minhas costas.
— Você não vai me perder — sorri. — Acredite, ainda brigaremos por
muitos séculos.
Ele sacudiu a cabeça, achando graça no que eu havia dito. Mas era a mais
pura verdade e eu pretendia levar a sério minha promessa.
— Então — abri meu melhor sorriso —, devo ir para seu quarto ou, sei lá,
você tem algo importante para fazer?
— Vai amanhecer daqui a pouco — respondeu, olhando dentro dos meus
olhos. — Pretendia tomar um banho e passar algumas horas no quarto.
— Podemos passar essas horas juntos — pisquei para ele, tentando ser
sensual. — A não ser que você queira ficar sozinho.
Mikhail estreitou os olhos ao me encarar com uma expressão predatória.
Soltei um gritinho estridente quando ele passou um braço por trás das minhas
pernas e me jogou sobre o ombro como se fosse um homem das cavernas.
Antes que eu pudesse reclamar e pedir para que me colocasse de volta no
chão, eu já estava sendo colocada sobre a cama dele.
CAPÍTULO 39

KLAUS
Idealizar o plano de enviar Aleksandra até Zênite tinha sido fácil. Agora,
precisava traçar os pontos mais importantes de toda a operação, assim como
passar um treinamento básico para a nossa isca.
Sentia um certo prazer em pensar em Aleksandra daquele jeito e não
consegui evitar sorrir. Ela era um verdadeiro transtorno na minha vida e era
bom que pudesse ser mesmo útil para alguma coisa.
Eu nunca admitiria, mas começava a perceber que a garota era mais
corajosa do que muitos vampiros que já conheci durante meus séculos
vividos.
Saí da Morada, aproveitando que ainda faltava quase uma hora para o sol
nascer e caminhei na direção da área residencial. Todos estavam trabalhando
incansavelmente para que a situação de moradia fosse restabelecida e os
humanos pudessem voltar para seus lares.
Como muitas casas tinham sido explodidas ou destruídas propositalmente
pelos mitológicos, era preciso deixar habitáveis aquelas que ainda estavam de
pé. Construiríamos novas residências para os que perderam tudo, mas não
seria rápido. Durante o dia, alguns humanos estavam ajudando como podiam,
mas a maioria era limitada para o trabalho de construção.
— Mestre — o soldado responsável pela recuperação das casas se
reportou a mim. Ele comandava e organizava os grupos de voluntários que
passavam boa parte de suas horas naquela missão. — Precisa de alguma
coisa?
— Não — respondi, sendo acompanhado por ele enquanto andava pela rua
da área residencial e observava as casas que pareciam em boas condições. —
Apenas vim conferir como está a evolução disso aqui. Gostaria de uma
estimativa sua. Quero que as pessoas retornem aos seus lares o quanto antes.
— Sim, é claro. Acredito que em dois dias elas já possam retornar — ele
pigarreou. — Só precisaremos remanejar as famílias que tiveram as casas
destruídas para as residências que não possuem mais proprietários.
— Estou ciente disso — respondi secamente. — Continue com o trabalho.
Dispensei o soldado e me afastei, continuando o caminho até um certo
ponto. Não iria até a próxima rua, pois queria voltar logo para a Morada, mas
quando passava na frente da casa de Kurt, notei as luzes acesas.
Alguns passos até a porta foram suficientes para que o cheiro dele
alcançasse minhas narinas. Ao entrar, encontrei o Guardião sentado no sofá,
com os olhos vidrados em nenhum ponto específico.
Fechei a porta atrás de mim e me aproximei dele.
— Você vem aqui todas as noites? Porque essa é a segunda vez que nos
encontramos aqui dentro. Sua casa precisa ser preparada para receber novos
moradores.
— Não deixei que ninguém entrasse aqui — respondeu ele, saindo do
transe ao me encarar.
Mostrava-se abatido e sem o brilho nos olhos característico de sua
personalidade irreverente e, por vezes, até mesmo cansativa.
— Vamos voltar à Morada — ordenei, permancendo em pé diante dele. —
Está prestes a amanhecer.
— Eu irei daqui a pouco.
Talvez ele tenha se esquecido com quem estava falando, então, para
refrescar sua memória, desgrudei seu corpo do sofá e o encostei na parede
com o poder da mente. Dei alguns passos em sua direção e o encarei com
meu semblante fechado.
— Com que frequência você vem até aqui e fica sentando se lamentando?
— Perguntei, mas ele desviou o olhar. — Ficar se arriscando, esperando o sol
nascer, não trará sua família de volta.
— Infelizmente, eu sei — ele se queixou, murmurando.
— Não parece que sabe. Você agora é um...
— Guardião. — Holtz me cortou e levantou os olhos, encontrando os
meus. — É, também sei disso. Sou um vampiro, Guardião, devo ser forte e
destemido. Nada disso diminui o fato de que sinto falta dos meus pais e
gostaria que estivessem vivos.
Eu já sentia o cheiro característico do alvorecer e precisava voltar para a
Morada. Custava a acreditar que Holtz me obrigaria a carregá-lo à força pelo
meio da rua. Ele me pagaria caro por ter que fazer aquilo.
— Tudo bem, não espero que entenda o que eu sinto — sussurrou,
esfregando o rosto. — Você nunca poderia entender.
— Por quê? — Perguntei, me irritando. — Porque sou um Mestre e não
foi nada demais ter crescido sem um pai ou uma mãe?
O olhar dele mudou e notei que tinha se arrependido das palavras usadas.
Eu me aproximei mais, apoiando a mão na parede atrás da cabeça dele.
— Acha que as primeiras décadas de nossa existência foram vividas sem
contratempos? — O encarei com fúria e ele baixou os olhos. — Tem alguma
ideia de como eram as coisas há dois milênios?
— Eu não quis dizer que não sofreram — murmurou.
— Foi preciso superarmos a nós mesmos, dia após dia. Então, não pense
que apenas os humanos entendem o que é sofrimento.
Holtz desistiu de retrucar e suspirou, relaxando os ombros. O semblante
dele indicava o peso que parecia carregar há dias e me indaguei há quanto
tempo ele estava daquele jeito. Pelo visto, durante o tempo que permanecia
em serviço dentro da Morada ele vestia uma máscara e escondia o que
realmente estava acontecendo.
Apoiei a mão no ombro dele.
— Seu luto não vai passar, mas com o tempo tende a ficar mais fácil.
Inspirei profundamente e recuei alguns passos, andando um pouco pela
sala pequena. Holtz, ainda parado no mesmo lugar, me observava com
atenção.
— Se ficarmos aqui por mais alguns minutos, todo o seu esforço para me
salvar terá sido em vão — avisei. — Precisarei arrastá-lo pelas ruas da
Fortaleza?
O Guardião saiu do estado catatônico em que tinha se enfiado e olhou em
volta. Acho que, pela primeira vez desde que eu entrara na casa, ele
realmente se deu conta de onde estávamos.
A julgar pelo olhar ansioso que direcionou às janelas da casa, entendeu
porque eu estava com pressa de sair dali.
— É melhor irmos embora — disse ele, como se estivesse solucionando o
problema.
— Não diga!
Passei pela porta sem me dar ao trabalho de olhar para trás. Sabia que a
conversa tinha sido suficiente para fazer Holtz voltar ao normal. Entramos na
Morada quase ao mesmo tempo, quando as janelas iniciavam o processo de
selagem e o prédio se preparava para nos proteger da luz do sol.
Tomei o caminho para meu andar, pois pretendia trocar de roupa e depois
chamar Aleksandra para iniciarmos um treinamento com os poderes dela.
Mas, quando eu já me aproximava do meu quarto, percebi a presença do
Guardião atrás de mim.
— O que você quer, Holtz? — Perguntei, diminuindo o passo. — Estou
ocupado.
Antes de ouvir o que ele tinha a dizer, senti um arrepio percorrer meu
corpo e imagens de Mikhail transando com Aleksandra inundaram a minha
mente. O desejo que ela sentia e todas as outras sensações inebriantes me
varreram por completo e eu quis matar os dois.
— Eu só queria agradecer — a voz atrás de mim falou, mas meus sentidos
estavam em outro lugar — pelas palavras de consolo.
Minha agora gêmea maldita gemeu, erguendo o corpo e desgrudando as
costas do colchão. Apoiei a mão na parede perto de mim e baixei a cabeça,
tentando recuperar o controle da minha mente e expulsar Aleksandra dali.
“Desculpe, não consigo evitar. Mikhail tem um apetite voraz!” — Ela
disse para mim, com um sorriso triunfante.
— Está tudo bem?
Eu me virei quando ouvi novamente a voz de Holtz, que me encarava sem
entender. E, talvez por Aleksandra ter me contaminado com o tesão que
sentia, o Guardiãose tornou um petisco aos meus olhos.
Trinquei a mandíbula, querendo não tomar aquela decisão. Kurt Holtz não
sabia separar as coisas e deixava os sentimentos muito aflorados. Não
pretendia ter outro momento íntimo com ele, mas... Passei a mão pela gola da
camiseta dele e envolvi o tecido nos dedos, puxando seu corpo para mais
perto. O Guardião estremeceu quando nossos rostos quase se tocaram e vi
quando os cílios volumosos esconderam seus olhos.
Kurt Holtz era muito bonito, precisava admitir. Seus traços eram perfeitos
e a beleza impecável tornava difícil não me deixar levar pela atração.
— Você não cansa de correr atrás de mim? — Perguntei, deslizando uma
unha pelo contorno do pescoço dele. Queria muito que ele saísse correndo e
não voltasse.
O rapaz abriu um sorriso perturbador demais para a pergunta tão direta
que eu acabara de fazer. Ele inclinou a cabeça um pouco de lado e tocou
minha mão.
— O sacrifício vale à pena — respondeu, olhando-me nos olhos. — Tenho
toda a eternidade para fazê-lo se apaixonar por mim.
Pisquei, completamente surpreso pela declaração. Não esperava que Holtz
pudesse ser tão direto daquela forma, tampouco imaginava que ele tivesse tal
pretensão. Esperar que eu desenvolvesse um sentimento mais forte era querer
demais. Puxei minha mão de volta e cogitei entrar sozinho em meu quarto,
mas ele piscou aqueles cílios mais uma vez e me encarou.
Abri minha porta com a mente e empurrei Holtz para dentro. Ele não
esperou que eu desse alguma ordem para avançar sobre mim, tentando
arrancar minha roupa com um certo desespero.
Crianças. Não sabiam lidar com todo o tempo que tínhamos para viver.
CAPÍTULO 40

A nova vida como vampira ia muito bem. Eu nem tinha sido transformada
ainda, mas estava lidando de forma positiva com todas as vantagens que
minha nova situação englobava. Como, por exemplo, fazer sexo com Mikhail
sem me sentir exausta e com dificuldade para andar.
Nós dois tínhamos acabado de desfrutar de orgamos astronômicos e eu
estava deitada com a cabeça sobre o peito dele. Sentia os dedos de Misha
moverem-se em meus cabelos e o melhor de tudo era que eu nem sentia
vontade de dormir. Se dependesse de mim, faríamos tudo novamente dentro
de alguns segundos.
— Tenho que confessar uma coisa — a voz dele estava preguiçosa.
— O quê? — Levantei a cabeça e apoiei meu queixo em seu peito.
— Você ficou ainda mais linda com os cabelos dessa cor. Não posso negar
que estou feliz com essa transformação.
Revirei os olhos só para dar uma de difícil e não deixar transparecer que
tinha gostado tanto do elogio. A verdade era que eu começava a me aceitar
com os cabelos brancos e sabia que, em algum momento, passaria a gostar
deles.
— Vocês já conversaram sobre a minha transformação? Quando e como
vai acontecer?
— Não. — Misha alisou meu rosto e deitei a cabeça na mão dele. — Não
falamos ainda sobre isso. Agora que Klaus tem outros planos para você, a
transformação terá que ser adiada.
— Adiada? — Eu me sentei na cama e abracei o travesseiro para ficar de
frente para o Mestre. — Mas vai acontecer dentro do prazo de um mês que
me deram, não é?
O vampiro abriu um sorriso e deslizou os dedos pelo meu joelho. Senti um
arrepio tomar conta de mim e mordi o lábio, esperando que me derrubasse de
costas e me amasse mais uma vez. Ele, no entanto, se curvou um pouco para
frente e beijou minha perna de uma forma carinhosa.
— Eu não sou maluco a ponto de ignorar um prazo dados pelos deuses.
Você será transformada no momento certo.
— Tudo bem, porque eu definitivamente estou... — parei de falar quando
uma imagem me atingiu em cheio. Minha mente foi invadida pela visão de
Klaus e Kurt se agarrando. — Minha nossa!
Eu me remexi na cama, nervosa com a situação. Desde que nossa ligação
se intensificara, era como se eu estivesse no mesmo quarto que eles dois. E,
definitivamente, não estava preparada para vê-los em ação, por mais feliz que
eu pudesse ficar por Kurt.
E ele, com certeza, parecia feliz. Eu podia ver, pela forma como Klaus o
dominava, que aquele quarto estava pegando fogo.
— Sasha? — Mikhail estalou os dedos diante do meu rosto. — O que foi?
Por que está com essa cara?
— Shhhh! — Gesticulei para que ele calasse a boca. — Estou prestando
atenção em outras coisas aqui. — Bati com o dedo na cabeça. — Ai droga!
Ai! Ai! Ai! Eca! Klaus e Kurt estão pelados!
Eu me joguei de bruços na cama e enfiei o rosto no travesseiro para desver
o que tinha visto. Tentei pensar em unicórnios galopando sob um arco-íris,
pensei em bichinhos de pelúcia e até em cachorrinhos fofos. Mas eles se
misturavam na cama com os dois homens. Não era legal.
— Acho que prefiro não saber o que está acontecendo — meu namorado
avisou, deitando-se novamente de costas e dobrando os braços sob a cabeça.
— Eu estou sendo obrigada a presenciar o sexo selvagem do seu irmão!
— Seu irmão também, creio eu.
Xinguei Klaus mentalmente e eu sabia que ele estava se divertindo.
Irritada por ser obrigada a testemunhar aquele filme pornô de quinta
categoria, levantei a cabeça e vi que Mikhail estava tranquilo, de olhos
fechados. Pulei em cima dele e devorei sua boca com urgência. Se eu não
podia encontrar uma maneira de bloquear aquelas imagens, pelo menos faria
algo para me distrair.
— Está com fogo? — Ele perguntou, alisando minhas costas até agarrar
minha bunda. — Para alguma coisa boa essa ligação estúpida entre vocês está
servindo.

Sentada no chão do Arsenal, de frente para uma das paredes onde havia
um enorme espelho, eu fazia caras e bocas para meu reflexo, aproveitando
enquanto ainda possuía um. Sabia que, no instante em que me tornasse
totalmente Mestre, nunca mais poderia me admirar. Ficava me perguntando
toda hora, como Nadia conseguiu ter vivido por tantos séculos sem saber
como estava a sua aparência. Ela era mulher, devia possuir um pouquinho de
vaidade como todas as outras.
— O que está fazendo? — Fui surpreendida por Klaus parado atrás de
mim, me olhando como se eu fosse louca. Bem, eu parecia mesmo uma,
encarando o espelho com olhos esbugalhados e lábios franzidos.
— Estou tentando enxergar alguma ruga — respondi, virando de novo
para o espelho e sorrindo para aquela outra Sasha. — Também quero
memorizar a minha aparência para não esquecer dela no futuro.
Mesmo de costas para ele, nossa ligação me avisou que Klaus continuava
me encarando como se eu não estivesse bem da cabeça. Suspirei e me
levantei facilmente, sem precisar dar impulso com as mãos no chão. Isso era
algo que não costumava acontecer comigo antes de ganhar os poderes
mágicos.
Bati as mãos na calça e respirei fundo antes de me virar para Klaus. Ainda
estavam frescas em minha memória as imagens dele na cama com Kurt.
Quando o encarei, vi que exibia um vinco no centro da testa.
— Não entendeu o que quero dizer? — perguntei, estalando os dedos. —
Reflexo. Sei que você não entende muito disso, mas é legal ter um, sabe?
Não, tudo bem. Você não tem como saber.
Era mais fácil fazer piadinhas para descontrair do que ter que encará-lo de
verdade. E eu não sabia onde colocar meus olhos. Nunca mais conseguiria
esquecer o que aconteceu, o que só tornava tudo pior, pois aconteceria muitas
outras vezes.
Ah, droga! Sentia meu rosto começar a esquentar.
— Há uma maneira de ver seu reflexo mesmo após se transformar.
A julgar pela forma como se portava e falava, Klaus não parecia sofrer do
mesmo mal que eu. Agia como se nada demais tivesse acontecido ou talvez
fosse muito evoluído para se importar com isso.
Sobre o reflexo, foi difícil acreditar em suas palavras. Olhei mais uma vez
para o espelho ao nosso lado e só conseguia enxergar a mim mesma. Onde
deveria estar Klaus, não havia nada. Virei o rosto para ele, decidindo encarar
o Mestre.
— Não é o que parece.
— Quando você dominar o funcionamento da nossa ligação, poderá se ver
através dos meus próprios olhos. Digamos que seja uma exclusividade de
gêmeos.
— Acho que já estou vendo muita coisa através de você. Não é necessário
acrescentarmos mais um item à lista. — Olhei em volta, pensando no motivo
para Klaus ter pedido que eu o encontrasse ali. — E então? O que você quer?
O Mestre se aproximou de um móvel no canto da sala e deixou ali o seu
manto preto. Observei sua roupa simples, uma calça larga de malha e
camiseta preta. Calafrios dançaram pela minha espinha ao entender do que se
tratava. Ele estava ali para me treinar.
— Por enquanto, não há utilidade alguma em te ensinar a lutar — falou, de
costas para mim. Ele inclinou a cabeça para um lado, depois para o outro,
fazendo ossos estalarem. Se antes eu não estava com medo, agora me sentia
tensa. — Antes de mais nada, você precisa conhecer e aprender a usar seus
poderes.
— Mikhail pode fazer isso. Sei que você é muito ocupado.
Klaus se virou, levando as mãos para trás das costas.
— Ele não exigiria o suficiente de você. — Se aproximou, os passos
lentos apenas para dramatizar um pouco mais. — Mikhail não poderia fazer o
que eu estou preparado para fazer.
Quando Klaus parou a menos de dez centímetros de mim, uma coisa
estranha aconteceu. A sensação que eu andava sentindo ultimamente sempre
que ele se aproximava, me consumiu de um jeito novo e desesperador.
Enquanto os olhos do Mestre sustentavam os meus, uma descarga de energia
eletrizou meu corpo e me fez querer sair voando por aí.
— Vamos liberar a fera que há dentro de você, Aleksandra — ele deu um
sorriso tão angelical quanto medonho. — Feche os olhos.
Sendo a pessoa que eu costumava ser, poderia facilmente contestar aquela
ordem. Fazia parte da minha personalidade não obedecer todas as regras.
Mas, quando Klaus deu o comando e eu cerrei minhas pálpebras, foi como se
nossas mentes se fundissem numa só.
O mundo parecia girar ao meu redor ou eu girava ao redor do mundo. Não
conseguia ter uma noção exata. Meu corpo era como plumas, parecia flutuar.
Cada célula estava energizada.
Agora eu podia sentir Klaus por completo e todo o poder que dele
emanava, numa percepção minimalista. A sensação era como se ele fizesse
parte do meu ser e nós dois fôssemos bilhões de partículas incapazes de
serem contidas.
“Incrível! Só senti algo parecido com isso quando Rurik e eu ainda
éramos crianças” — ouvi a voz dele dentro de mim. Não, não era voz. Era
como se eu mesma pensasse naquelas palavras. Ou era Klaus. Nós dois
éramos um só. — “Crianças são ingênuas e muito entregues, assim como
você é neste momento. Conforme Rurik e eu crescíamos, o vínculo foi
diminuindo pelos nossos respectivos bloqueios. Eu não me lembrava...” —
Meu peito se expandiu. Eu parecia roubar todo o oxigênio da sala. — “Não
imaginava que esse elo podia ser tão poderoso.”
“Klaus, eu consigo sentir tudo...” — engoli em seco —, “tudo o que você
está sentindo ou pensando. Mas não de um jeito superficial como antes.”
“Porque eu me abri. Deixei que você entrasse para entender melhor o que
estamos compartilhando. E não podemos deixar que isso se perca.”
Meus ouvidos zuniam, meu coração batia mais acelerado que o de
costume, meu peito ardia como nunca. Eu queria explodir e liberar toda a
força que estava sendo contida, mas não sabia como. Queria mais, me sentir
maior, mais potente, mais completa. Mas minha cabeça explodiu. Ou quase.
Não consegui me conter quando milhares de explosões brilhantes pipocaram
atrás dos meus olhos.
Perdi as forças e meus joelhos cederam. No entanto, não caí no chão.
Braços, que pareciam os meus, me ampararam e envolveram meu corpo,
como se eu me abraçasse, mas era Klaus. Com o rosto colado ao peito dele,
ouvi seu coração. Eu sabia que não batia, mas o meu sim. Eram ecos dos
meus batimentos.
Meu rosto estava úmido e passei a mão pelas lágrimas, me surpreendendo.
As minhas eram transparentes, mas, quando levantei o rosto para Klaus, vi
que chorava lágrimas de sangue. Estiquei minha mão e limpei o rosto dele.
— Eu sinto sua dor — disse, com minha voz embargada. — E sua solidão.
Mas você não está mais sozinho.
Antes mesmo que ele abrisse a boca, fomos interrompidos.
— Isso é romântico. Vocês agora são um casal? Devo alertar Mikhail?
Sentimos a presença de Vladimir no vão da porta e, não sei bem o que
aconteceu, nem como aconteceu, mas eu e Klaus viramos nossas cabeças ao
mesmo tempo e encaramos o outro Mestre.
A vontade que senti, unida ao rancor que guardava dele, fez com que eu
visualizasse uma vingança em minha mente. Apenas em minha mente. Era o
que eu achava. No entanto, os dois braços de Vladimir se partiram na altura
dos ombros e o sangue espirrou para todos os lados quando os membros
caíram no chão. Exatamente como eu tinha imaginado.
Ele urrou em resposta, furioso e chocado ao mesmo tempo. Foi o
suficiente para algo dentro de mim se partir e me fazer perceber que minha
ligação com Klaus havia sido cortada.
O Mestre se afastou de mim quando Nikolai, Mikhail e Nadia surgiram,
atraídos pela ira de Vladimir. Mesmo sem os braços, o vampiro partiu para
cima de nós, mas Klaus o parou no ar, com a mão erguida.
— Fique com ela — ele ordenou a Misha, que se colocou imediatamente
entre os outros Mestres e eu. — Traga os braços, Nikolai!
Klaus saiu do Arsenal com pressa, dando ordens e discutindo com os
irmãos que o seguiram.
Eu me sentia em queda livre e aceitei de bom grado quando Mikhail
passou um braço pela minha cintura e caminhou comigo até a sala de reunião.
Sentei numa cadeira, procurando colocar os pensamentos em ordem, sentindo
a presença do Mestre na cadeira ao meu lado.
— O que aconteceu aqui? — Ele questionou, mantendo o contato físico,
sem soltar minhas mãos. — Sasha!?
Pisquei, confusa, me esforçando para que o rosto de Mikhail entrasse em
foco diante de mim. Ele parecia preocupado e eu não podia discordar.
— Eu... não sei — admiti, balançando a cabeça. — Não sabia que era
possível fazermos aquilo.
— O quê? Desmembrar um outro Mestre? Klaus já fez isso outras vezes.
— Com o poder da mente? — Perguntei.
Mikhail balançou a cabeça e me olhou desacreditado.
— Não é algo possível. Klaus é muito mais forte que todos nós juntos,
mas nem mesmo ele tem poder para arrancar um membro apenas com a
mente.
Acontece que Mikhail não estava entendendo o que tinha acontecido. Eu
levantei os olhos e o encarei.
— Passa a ser possível quando meus poderes e os dele se unificam.
Notei uma sombra dançar pelos olhos de Mikhail. Ele endireitou a postura
e liberou uma de suas mãos para apoiá-la na perna.
— Do que você está falando? O que isso tem a ver com você?
— Lembra que contei sobre como vinha me sentindo quando ficava muito
próxima de Klaus? — Perguntei, ainda nervosa. Não sabia como Mikhail
lidaria com a revelação e também não queria entrar em muitos detalhes do
que aconteceu no salão ao lado. — Eu não estava errada. Há algo que me liga
a ele de um jeito incrível.
— Incrível? — Ele parecia duvidar que eu pudesse usar essa palavra a
respeito de Klaus.
Sorri, porque era mesmo o que sentia. Mas precisava encontrar uma forma
de explicar para que ele entendesse.
— Sim. É como se uma sensação de vazio, que até então eu não sabia que
existia, me preenchesse e estimulasse cada fibra do meu corpo. Um pouco
antes de Vladimir aparecer, Klaus e eu nos unimos mentalmente e, por mais
estranho que pareça, acho que espiritualmente. Eu me senti como se fosse ele.
— Isso não é mais novidade.
— Não, é diferente do que eu sentia antes — insisti e me curvei para
frente, segurando os braços do Mestre. — Dessa vez foi como se eu estivesse
mesmo no corpo dele, eu pude viver experiências que ele já viveu.
Sentimentos e sensações antigas.— Suspirei, baixando os olhos.
Mikhail absorvia minhas palavras com incredulidade e eu sabia que era
difícil de entender quando se estava fora da situação. Eu não o culpava por
me lançar um olhar tão desconcertante. Se um dia alguém me dissesse que eu
teria uma afeição monstruosa por Klaus e seria capaz de qualquer coisa para
protegê-lo, acabaria gargalhando e chamando a pessoa de louca. Era surreal
até mesmo para mim.
— Eu não sei se estou conseguindo entender — o vampiro sorriu,
balançando a cabeça e se mostrando cético —, mas se o que diz é verdade,
Klaus deve estar bem irritado.
— Por quê?
— Ele não gosta de se mostrar tão vulnerável perto de qualquer outra
pessoa.
Foi a minha vez de sorrir porque percebi que Misha realmente não tinha
entendido nada. Ele não podia estar mais equivocado.
— Tudo que vivenciei foi recíproco e é... difícil explicar de outro jeito.
Klaus é solitário e nenhum de vocês se esforça para compreender o que se
passa com ele.
Mikhail revirou os olhos e eu decidi que não me estenderia mais no
assunto.
— O que isso tudo tem a ver com Vladimir? Como vocês fizeram aquilo?
— Não sei. Nós dois estávamos abraçados, mergulhados no fundo de
nossas mentes — fechei os olhos, relembrando o momento. — Sentimos a
presença de Vladimir antes mesmo de vê-lo. Quando soltou uma piada idiota
sobre nós dois, eu só me lembro de sentir muita raiva pelo que ele me fez
passar meses atrás. E, naquele instante, imaginei como seria a sensação de
arrancar os braços dele. Foi um pensamento banal, a gente sempre fica
pensando um monte de besteira, não é? Tipo, puxar o cabelo de alguém,
colocar o pé na frente para a pessoa tropeçar... Coisas assim.
— O que você imaginou simplesmente aconteceu? — Perguntou,
arqueando uma sobrancelha.
O barulho da porta batendo quebrou o silêncio que pairou no ar, após a
pergunta de Mikhail. Eu não sabia o que dizer porque não tinha certeza do
que acontecera.
— Já acabou com o interrogatório? — Klaus se aproximou com as mãos
sujas de sangue.
— Só estou tentando entender o que aconteceu aqui. — Misha respondeu,
se levantando e encarando o irmão. — Você, pelo menos, sabe?
Klaus não estava de bom humor e se irritou com a atitude do outro, que
parecia querer enfrentá-lo. Não era o mais inteligente a fazer. Eu me levantei
também e dei a volta por trás da cadeira, me colocando no meio dos dois
Mestres.
— Acho que isso é novidade para todos nós — falei, tocando Mikhail no
peito e o encarando com firmeza. — Quando acabarmos aqui, eu irei até
você.
Ele achava que deveria me proteger de alguma coisa, mas eu me sentia
muito despreocupada. Todavia, tinha medo que a questão da territorialidade
dos Mestres aflorasse entre eles, visto que meu namorado não entendia com
exatidão o que estava acontecendo comigo.
— Não acha que por hoje já foi o bastante? — Ele fez a pergunta olhando
para Klaus por cima da minha cabeça.
— Acho que nós nem começamos.
Os dois se encararam por tanto tempo que precisei apertar com força a
mão de Mikhail e lançar a ele um olhar determinado.
“Não crie confusão por causa disso, Misha. Nos deixe a sós” — pedi.
Por fim, ele saiu do transe em que se encontrava e abriu mão da batalha
silenciosa. Sorri quando me beijou rapidamente na boca e prometi, mais uma
vez, que iria até ele quando acabasse o treinamento com Klaus.
Esperei que meu delicioso vampiro saísse da sala e batesse a porta — com
mais força que o necessário —, para virar de frente para Klaus.
“O que foi aquilo que aconteceu com Vladimir?” — perguntei.
Klaus meneou com a cabeça e foi em direção ao salão em que
treinaríamos. Esperei que ele iniciasse algum discurso sobre os últimos
acontecimentos anormais e tudo o que ele fez foi me encarar, com um meio
sorriso debochado.
— Somos muito fortes juntos. É só o que sei.
— O quê? — Coloquei as mãos na cintura, transtornada. — Você não tem
nenhum discurso profético para fazer?
— Quando Rurik e eu éramos crianças, houve momentos em que senti
algo parecido, mas nunca fomos muito unidos, não tentamos entender o que
era ou usamos esse elo a nosso favor.
— Mikhail disse que é impossível causar um estrago daquele só com o
poder da mente — refleti em voz alta. — Isso não é preocupante?
Klaus suspirou, levando os braços para trás das costas e caminhando de
forma contemplativa pelo salão. Ouvi um estalar de língua e uma risada de
escárnio.
— Deixe-me pensar. Será que devo me preocupar com um poder novo,
potente, que nos torne completamente invencíveis e que tenha surgido
justamente quando há uma guerra em andamento?
Revirei os olhos.
— Falando assim, minha pergunta parece mesmo idiota. Mas minha
preocupação é sincera.
— Vamos nos sentar — pediu, usando nada mais que o próprio chão, algo
que o deixava meio deslocado.
Sem acreditar que estava vendo Klaus com sua bunda milenar grudada no
chão, em roupas tão comuns, eu me sentei de frente e o encarei. Minha pele
já começava a receber o efeito da ligação e meus pelinhos se arrepiavam à
medida que nossos olhares se fundiam.
“Não pense em nada, quero tentar alcançar seu poder.”
Muito difícil evitar pensar quando todo o meu corpo era tomado por uma
urgência desconhecida. Senti Klaus entrar em minha mente, toda a força dele
se sobrepondo a minha. Fechei os olhos e, mesmo sentada, eu estava me
desequilibrando.
Apoiei minhas mãos no chão ao lado das pernas e procurei não mentalizar
nada específico. Vi a Morada como se estivesse do lado de fora, mas sabia
que aquele pensamento era de Klaus. E, de repente, o chão começou a tremer.
Abri os olhos e vi o Mestre encarar um ponto fixo acima da minha cabeça,
como se estivesse em transe.
A vibração passou, mas logo nós dois estávamos do lado de fora dos
portões voltados para o oeste e a terra debaixo de nossos pés começou a
tremer como num terremoto. Eu recuei um passo quando uma fissura se abriu
no solo e se estendeu por alguns metros.
“Não faça isso, Klaus!”
Corri para acompanhar a dimensão da fissura e me certificar do estrago
que causava. Voltei meu rosto para Klaus, que havia ficado para trás e,
mentalmente, me lancei contra ele. Nós dois desabamos no chão de terra, mas
o terremoto parou.
Abri os olhos, sentindo meu coração acelerado. Klaus continuava sentado
na minha frente e, em momento algum, havíamos saído do Arsenal. Ele me
encarou e sorriu, satisfeito.
— Você precisa ser lapidada, mas seu poder é puro e legítimo.
— Isso foi um teste? — Franzi a testa, enraivecida. — Sério? Você quase
abriu uma cratera lá fora para me testar?
— Não — ele inclinou a cabeça para o lado. — O meu poder unido ao seu
me possibilitou abrir uma cratera sem precedentes, mas você conseguiu me
impedir.
Tentei queimá-lo com o olhar, mas respirei fundo para controlar minha
fúria. Ele era inacreditável! Podia ter me avisado antes, pois assim eu não
teria demorado tanto para tomar uma atitude. Não teria deixado a fissura
evoluir para quase um quilômetro.
— Não faça birra, Aleksandra. Essa ligação precisa funcionar a nosso
favor e, para tal, nós teremos que aprender a viver em sincronia.
— Seria mais fácil se você não fosse o gêmeo do mal — murmurei. — E
pervertido...
Ele estreitou os olhos com cara de quem comeu e não gostou.
— Você quer falar sobre esse assunto? Tem certeza?
— Ainda não superei.
Ele me ignorou e se posicionou há alguns metros de distância. Ergueu uma
mesa no canto da sala e colocou o móvel bem no meio do salão.
— Vamos começar com o básico. Manipulação do ar para mover objetos.
Tente tirar a mesa do lugar.
Aquilo devia pesar uns trinta quilos. Eu não sabia mover uma caneta e ele
queria que eu começasse com uma mesa enorme. Inacreditável!
CAPÍTULO 41

Praguejei contra todos os deuses que inventaram aquela maldição


estúpida. Uma coisa era nascer com os poderes e crescer ao mesmo tempo em
que aprendia a usá-los. Outra bem diferente era cair como uma intrusa no
meio do olho desse furacão e ter que aprender tudo do zero. Eu não possuía
os instintos com os quais os outros Mestres nasceram. Tudo para mim era
mais difícil.
— De novo! — Klaus gritou, impaciente.
Lancei um olhar carregado de fúria sobre ele, que me devolveu uma
expressão de quem estava pouco se importando com meus tormentos.
— Estou cansada! — Gritei de volta. — Quero relaxar um pouco.
— Vamos lá embaixo contar para todos os humanos que perderam pessoas
queridas nas últimas semanas, o quão cansadinha você está — zombou. —
Tenho certeza que irão se compadecer da pobre Aleksandra.
— Vai se ferrar, Klaus! — Com meu poder da mente, lancei o corpo dele
contra a parede.
Ultimamente, tudo que eu fazia era descontar minhas frustrações sobre ele,
atirando-o para um lado e para o outro.
Uma semana havia se passado desde que voltamos de Oymyakon e demos
início ao treinamento intensivo. Uma semana de intermináveis brigas com o
Mestre.
Desde então, aprendi a controlar muito bem os elementos como ar, o fogo
e terra. Tinha aprendido a controlar minha força física, apesar de ainda não
me sentir excelente no que fazia. Aprendi muito, passando longas horas com
Klaus, às vezes dentro do Arsenal, às vezes na rua.
Fomos incansáveis, era a verdade. Com exceção de três ou quatro horas
por dia que eu tirava para cuidar de alguns hábitos pessoais e até me
alimentar, o restante do meu tempo era dedicado ao treino.
O que estava se tornando um grande problema era a minha falta de aptidão
em manipular a água. Klaus, até então, era o único Mestre que conseguia
fazê-lo. Nem Rurik tinha sido capaz quando ainda era vivo. Mas, o
primogênito insistia que eu tinha essa capacidade. Não sabia de onde ele
tirava tanta certeza, visto que eu nunca dei indícios de que conseguia sequer
formar ondas na piscina.
Ele não dirigiu o pensamento a mim, mas pude enxergar as diversas
formas de me matar que havia passado por aquela mente diabólica. No
entanto, não o temia mais. Sabia que ele agora nutria apenas uma implicância
por mim, comum a quase todos os irmãos.
— Por que me deram um brinquedo inútil? — Resmungou, se
posicionando atrás de mim e apoiando as mãos em meus ombros. — Vamos
lá...
— Primeiramente — rosnei, levantando um dedo —, não sou seu
brinquedo. E eu não pedi por essa ligação que mais parece com uma tortura
eterna.
Ele não respondeu. Através de nossa ligação, eu o sentia olhar fixamente
para a piscina à nossa frente e para a água parada que eu tentara, inutilmente,
movimentar. Agora, com a proximidade de Klaus, eu começava a relaxar e
deixar que nossos poderes se unissem. Fechei os olhos, sentindo a vibração
entorpecente me tomar por inteiro e os abri novamente.
— Observe — com o olhar fixo na água, vi quando uma pequena
ondulação deu início, próximo a uma das bordas da piscina. Sabia que o
comando era de Klaus, mas por estarmos tão próximos, sentia como se fosse
meu.
— Você consegue, mas eu não — suspirei, frustrada. — É pesado, Klaus.
— Se é pesado, use mais força.
Ele empurrou o poder dele contra mim ao mesmo tempo em que senti suas
mãos apertarem meus ombros. Fui obrigada a trabalhar meu autocontrole
para recebê-lo e minha cabeça não explodir. Desviei a energia para a piscina
e cravei minhas unhas nas palmas das mãos. A ondulação, antes minúscula,
aumentou um pouco de tamanho. Enquanto a pequena onda se formava, eu
sentia que o mérito de Klaus era maior que o meu. E então, ele me deixou,
me empurrou sozinha contra a onda.
Intensifiquei meu controle, sugando o poder que ele tinha me passado. A
onda não aumentou, mas não a deixei morrer.
— Empurre — ele incentivou.
Forcei meu pensamento naquela direção e coloquei tanta força em cada
fibra do meu ser que, se eu ainda fosse totalmente humana, acabaria
desenvolvendo um aneurisma. Mas a minha vontade de obter o resultado era
tão grande, que quase me joguei de cabeça dentro da piscina.
Busquei forças que eu nem sabia que tinha e Mikhail passou pela porta no
exato instante em que puxei a onda para o alto e além. Ela se quebrou sobre
ele e o deixou ensopado da cabeça aos pés.
— Bravo! — Klaus comemorou, batendo palmas. — Sabia que você não
me decepcionaria!
Diante daquela cena, minha vontade de gargalhar era imensa, mas tive que
me controlar. A expressão zangada de Mikhail e o olhar que ele lançava para
nós, quase poderia nos queimar vivos. Contornei a piscina correndo até ele,
que ainda estava imóvel, olhando para a roupa molhada.
— Desculpe! — Pedi, tentando dar um sorrisinho arrependido.
— Não se desculpe, Aleksandra! — Klaus reclamou ao longe. — Você se
esforçou para conseguir o feito. Ninguém tem culpa da péssima pontualidade
de Mikhail.
— Então, deu certo? — Meu Mestre lindo perguntou, com uma
tranquilidade anormal, enquanto tirava o manto e me dava para segurar,
tirava a camisa molhada e vestia novamente o manto. — Pode finalmente
manipular a água?
— Hum... — desviei o olhar dele e olhei de soslaio para a piscina. — Não
tenho muita certeza...
— Sim, ela pode. — Klaus declarou, surgindo ao meu lado e passando um
braço sobre meus ombros. — Só precisa treinar mais.
Franzi os lábios, incomodada com a força de Klaus. Ele esquecia, quase
sempre, que eu ainda usava um corpo humano e sentia dores quando não
media sua força comigo. O Mestre me apertava no melhor estilo camarada e
quase quebrava meus ossos, enquanto explicava para Misha o que estávamos
fazendo.
Há alguns dias ele vinha apresentando um comportamento estranho
demais. Apesar de nossas brigas, tornou-se evidente para todos os outros
Mestres que Klaus e eu nos tornávamos mais próximos e íntimos. Era
inevitável e eu já começava a me acostumar, mas isso não deixava os seus
irmãos muito contentes. Nadia e Vladimir principalmente, pareciam morrer
de ciúmes.
— Klaus está exagerando — avisei. — Quem moveu a água foi ele, eu
apenas a peguei em movimento.
— Eu já falei que tudo...
— É uma questão de treino — interrompi e completei a frase dele, fugindo
de seu braço e me afastando. — Eu sei! Mas estou cansada, ok?
Caminhei até a parede que era toda de vidro e olhei para a noite que cobria
a cidade. Começava a sentir falta da minha vidinha sem muita
responsabilidade e da rotina de uma garota normal.
Quem diria? Justo eu, que adorava fortes emoções.
Quando me virei, encontrei os dois Mestres no lugar onde os deixei, me
observando.
— Quero um tempo para mim antes de ser torturada pela rainha dos
mitológicos! Estou exausta, Klaus — murmurei.
Os dois se entreolharam e percebi que discutiam mentalmente, o que me
deixou mais incomodada ainda. Cansada e sem vontade de ficar ali enquanto
conversavam sobre mim, passei por eles e saí do salão antes que pudessem
dizer algo que me fizesse mudar de ideia.
Eu só queria um momento a sós, passar algumas horas sem compromisso
nenhum, relaxar um pouco e conversar com meus amigos. Enquanto descia as
escadas, enviei mensagens mentais para Kurt e Lara, sabendo que ambos
estavam em algum lugar da Morada.
Assim que entrei no meu quarto, me despi da calça justa de couro e do top
que tinha sido confeccionado pela metade, visto que deixava um pedaço da
minha barriga à mostra. Abri o guarda-roupas e tirei lá de dentro uma das
camisas de Misha que batia em meus joelhos e eu usava para dormir.
Ouvi Lara e Kurt conversando, enquanto subiam os últimos degraus da
escada que levava ao meu andar. Abri a porta para esperar por eles e me
deitei de bruços na cama, abraçando os travesseiros.
Tinha contado a novidade para Lara no dia seguinte em que voltamos de
viagem. Ela, logicamente, reagiu de forma histérica, mais animada do que eu.
E, mesmo que já tenham se passado alguns dias, minha amiga ainda não tinha
se acostumado com a mudança.
— Olá, Majestade! — Ela zombou assim que passou pela porta, fazendo
uma reverência muito exagerada.
— Eu não me tornei uma rainha, Lara.
Ela deu uma voltinha, olhando ao redor do quarto e Kurt se jogou quase
em cima de mim, puxando um dos meus travesseiros para ele.
— Impressão minha ou você mudou algumas coisas desde a última vez em
que estive aqui?
— Um pouco — respondi, olhando para a luminária de luz negra sobre a
cômoda sem graça. — Durante minhas andanças de madrugada com Klaus,
fico tentando garimpar coisas diferentes para decorar o quarto.
Lara levantou uma sobrancelha e sentou na poltrona de camurça vermelha
que eu tinha trazido clandestinamente, enquanto Klaus achava que eu estava
tomando banho. Aquela tinha dado trabalho, precisei pedir ajuda a Kurt para
vigiar o caminho, enquanto eu arrastava o móvel pelas escadas.
— Garimpado quer dizer roubado? — A loira perguntou, prendendo o
riso.
— Bem, não — respondi. Eu esperava mesmo que não.
Kurt riu e rolou na cama, virando de barriga para cima e balançando os
pés no alto. Ali, em silêncio, parecíamos os mesmos de antes. Se fechasse os
olhos, ainda poderia nos imaginar em uma de nossas casas, combinando de
irmos ao Buraco. Senti uma dor no peito ao lembrar que o lugar tinha sido
destruído.
— Quem se importa se ela roubou ou não? — Disse meu amigo Guardião.
— Sashita pode pagar pelo que quiser agora. Quando tudo voltar ao normal,
você vai descobrir como ficou rica, sua vaca!
— Por falar em voltar ao normal, tem alguma ideia de quando poderemos
retornar às casas? — Lara me perguntou, mordendo o lábio. — Não aguento
mais ter que morar num quarto com meus pais. Vamos acabar nos matando.
Kurt baixou as pernas e suspirou. Lara se deu conta do que havia dito e
pareceu arrependida. O Guardião ao meu lado, com certeza, ia preferir dividir
um quarto com os pais durante anos do que não ter mais nenhum dos dois
vivos.
— Ai gente, me desculpem! Isso soou como se eu fizesse pouco caso dos
meus pais — ela sussurrou, de cabeça baixa. — É que seria muito bom poder
voltar para casa.
Lara tinha dado sorte pois a casa dela escapou dos ataques com
explosivos, ao contrário da minha. Eu sabia que meus pais teriam que ser
realocados em outra casa e começar do zero em alguns quesitos. Como
roupas, já que perdemos praticamente todo o andar superior da residência.
Claro que, se dependesse de mim, eu os deixaria morando eternamente na
Morada. Possuía um andar inteiro e me doía saber que, muito em breve, teria
que deixá-los ir. Não teríamos mais os cafés da manhã em família, nem os
jantares. Nunca pensei que fosse me separar deles tão cedo.
— Nada pode ser pior do que ter sua mãe olhando para você como se visse
um monstro de três cabeças e não a filha que ela criou — comentei, a fim de
quebrar um pouco o clima triste que se abateu sobre nós. — Toda vez que
apareço lá, mamãe começa a chorar. Acho que ela pensa que eu morri e outra
pessoa ocupou meu corpo.
— Se meus pais estivessem vivos, já teriam me deserdado.
— Kurt, seus pais pareciam ser bem mais compreensívos que os meus —
ressaltei.
— Por que acha isso? — Ele riu e se sentou na cama, cruzando as pernas.
— Só porque eles aceitavam um filho homossexual não significa que
aceitariam um vampiro.
Eu não sabia muito bem qual reação seria a mais adequada, mas Kurt
mostrou o caminho quando desatou a rir. Lara e eu o seguimos e começamos
a imaginar o que algumas pessoas que a gente conhecia fariam quando
descobrissem o que eu havia me tornado.
Passamos duas horas no meu quarto, conversando besteiras e fingindo que
éramos jovens normais que não viviam sob o jugo dos vampiros nem sabiam
da existência de mitológicos. Com aquele pensamento em mente, me dei
conta de que sequer conseguia visualizar uma vida sem as duas espécies. Um
mundo sem vampiros, centauros ou minotauros. Talvez fosse uma bênção
não ter vivido numa época anterior a aparição deles, pois não era possível
sentirmos tanta falta de algo que nunca conhecemos.
Quando eles foram embora, eu os acompanhei para aproveitar o passeio e
dar um pulo no quarto de Mikhail. Estava descendo os degraus ao lado de
Lara quando Nadia cruzou nosso caminho, subindo.
Ela parou de frente para mim, com um sorriso diabólico no rosto. Eu não
me importava mais com os seus olhares de ódio em minha direção. O que não
gostei, no entanto, foi como ela encarou Lara.
— Amiguinha sua? — Perguntou com desdém. — Vai continuar se
relacionando com os humanos?
— Com certeza — respondi sem titubear, apoiando a mão no corrimão. —
Qualquer humano é melhor que você.
Kurt, que já tinha passado pela vampira e estava um patamar abaixo de
nós, subiu novamente. Ele arregalou os olhos, provavelmente antecipando
que Nadia aprontaria alguma gracinha.
Eu dei a mão livre para Lara e entrelacei meus dedos aos dela, puxando-a
de forma que passasse no espaço entre Nadia e eu para continuarmos nosso
caminho. Mas a vampira segurou o braço da minha amiga e a fez estremecer.
Suas unhas afiadas cravaram-se na delicada pele de Lara.
— Solte-a — pedi, encarando a Mestre. — Seu problema é comigo.
“Sashita, eu não consigo atacá-la. Você sabe... ligações de Guardiões.”
Lancei um olhar para Kurt, deixando claro que não queria a intervenção
dele. Nadia precisava começar a me respeitar e isso não aconteceria se eu
sempre tivesse alguém me protegendo dela ou se metendo entre nós.
Contei cinco segundos mentalmente, esperando que ela soltasse o braço de
Lara. Mas o que ela fez em seguida, foi muito pior. Empurrou minha amiga
contra o corrimão e cheguei a prender o fôlego ao imaginá-la jogando Lara lá
de cima.
Usei um momento de distração quando ela olhou para Kurt e enfiei meus
dedos em sua garganta. Apertei sem dó, sentindo a pele afundar, os músculos
se retesarem e os ossos da traquéia tão delicados sob meus dedos. Ela soltou
minha amiga no mesmo instante e, de olhos arregalados de susto, tentou
segurar minha mão.
— Nunca mais... — rosnei, sem saber que eu conseguia rosnar daquele
jeito — toque em amigos meus ou em minha família!
“Eu vou matá-la!” — Ela gritou mentalmente e eu sorri. Foi minha vez de
mostrar que podia ser diabólica.
Levantei o braço e os pés de Nadia saíram do chão, enquanto eu descia a
escada carregando ela. A vampira me chutou e me arranhou o máximo que
pôde, mas não a soltei. O sangue escorria pelos meus dedos, mas eu não me
abalei.
Contei cada andar que descíamos, com Kurt dizendo que era mais sensato
soltá-la e Lara apavorada atrás de nós. Contei até ter certeza de que
estávamos no andar dela.
— Eu vou deixá-la voltar para seu quarto. Seu dever de casa vai ser
refletir que não pode ser essa vadia insuportável que sempre foi comigo.
Sem conseguir falar, ela xingou todos os palavrões possíveis em minha
mente. Quando a soltei, Nadia virou uma fera indomável. Ela avançou no
instante em que a coloquei no chão, mas eu a bloqueei com o poder da mente
e impedi que se movesse.
— Vou decorar um pouco essa parede monocromática — cantarolei.
— Aleksandra! — Ouvi a voz de Nikolai e senti que ele se aproximava
por trás. — Acho que já chega dessa briga entre vocês duas!
Ergui uma das mãos na direção dele e consegui imobilizá-lo antes que me
alcançasse. Eu não sabia por quanto tempo conseguiria manter os dois
Mestres presos apenas com o poder da mente. Sentia que eles tentavam se
libertar e precisava me esforçar para segurá-los.
— Eu não estou brigando, Nikolai. Só preciso cuidar de mais um detalhe...
— falei, usando a mão suja de sangue para tocar a parede.
Por cima do papel decorativo, usei o vermelho do sangue de Nadia para
escrever meu nome e, ao lado, desenhei um coração. Sabia que nenhum
produto de limpeza capaz de remover o sangue manteria a integridade do
papel. Ela precisaria trocá-lo por inteiro.
Senti quando Klaus, Mikhail e Vladimir se juntaram a nós. Antes que um
deles pudesse me deter, terminei minha arte. Soltei Nikolai e, por fim, libertei
Nadia. Dei alguns passos na direção dela e fiquei a poucos centímetros de
distância, esperando para ver se ela revidaria.
As narinas da criatura se dilatavam conforme ela bufava, cheia de ira, mas
não me tocou.
— Se encostar a mão num único fio de cabelo de alguém que eu ame, o
próximo sangue que usarei para pintar a parede será o do seu fígado —
avisei, sendo muito sincera.
Quando me voltei para as escadas, Nikolai, Mikhail e Vladimir me
olhavam em desaprovação, como se eu estivesse errada.
Era fácil julgar sem saber o que Nadia havia feito com Lara. Eu não estava
com a menor vontade de me explicar ou me defender de alguma acusação,
então ergui o queixo e passei diretamente por eles.
— Klaus, você está criando um monstro? — Ouvi Vladimir perguntar às
minhas costas.
Pensei em responder que o monstro era a irmã dele, mas deixei pra lá. Ao
passar por Klaus, levantei o rosto, temendo que ele estivesse pronto para
dizer alguma coisa. Ele apenas sorriu para mim.
— Enfim, alguém que me deixe orgulhoso nessa família.
Desci a escada e fui seguida por Kurt e Lara, ambos em silêncio. Preferi
levar minha amiga em segurança até o quarto que dividia com os pais, do que
deixá-la andando por ali com uma Nadia enlouquecida. Não achei que ela
pudesse tentar se vingar. Pelo menos, não naquele momento. Mas, diante de
todo o azar que eu tinha, não custava nada acompanhar Lara.
Quando nos afastamos bastante dos Mestres, senti a mão dela em meu
ombro e vi um sorrisão quando virei meu rosto.
— O que foi aquilo? — Perguntou, extasiada. — Sasha! Uau! Você é
foda!
— Eu ainda não estou acreditando que você imobilizou dois Mestres. —
Kurt murmurou, balançando a cabeça. — Dois Mestres!
— Bem, acho que Klaus poderia fazer isso com todos nós. E, se eu tenho
os poderes que ele tem, provavelmente também posso. — Dei de ombros. —
Talvez seja só uma questão de treino.
Acabei revirando os olhos por ter usado a mesma frase que Klaus vinha
usando comigo nos últimos dias.
Acho que, no final das contas, eu estava mesmo me tornando parecida
com ele em alguns aspectos. E quanto mais eu pensava isso, mais pena sentia
de Zênite e de todos os mitológicos que andavam sobre a Terra.
CAPÍTULO 42

A adrenalina ainda percorria minhas veias quando voltei para meu quarto.
Estava distraída, então, só senti a presença de alguém em meu andar quando
terminei de subir a escada e pisei no corredor. Fiquei imediatamente alerta e
dei passos mais lentos em direção ao quarto. Podia ser Nadia, Vladimir ou
qualquer outra pessoa.
Só quando toquei na maçaneta da porta, identifiquei a presença
inconfundível dentro do meu quarto.
— Aquele lance de não invadir o território de outro Mestre não funciona
quando o invasor é você? — perguntei, fechando a porta atrás de mim.
Klaus estava sentado de forma muito confortável na minha poltrona
garimpada. Com as pernas cruzadas elegantemente, ele virou o rosto para me
olhar.
— Que tal se você aproveitasse que ainda possui reflexo e se olhasse no
espelho antes de passear pela Morada?
Eu estava decente! Tudo bem que a camiseta de Mikhail não era o look da
moda e a combinação dos chinelos com o boné me fazia parecer uma
mendiga, mas era muito mais confortável do que todas aquelas roupas de
couro que eu tinha no armário.
— Que tal se você me desse roupas que eu realmente goste de vestir? —
Parei, com as mãos cruzadas na frente do corpo e o olhar inocente. — Sei que
a maioria foi tirada do quarto de Nadia e, bem, o que posso dizer? O estilo
vadia gótica não é dos meus preferidos.
Esperei que ele rebatesse, mas não o fez. Os olhos do Mestre varreram
meu quarto e passaram pela luminária emprestada. Ele alisou os braços de
suede da poltrona e suspirou.
— Usar o sangue dela para escrever na parede. Isso foi cruel.
Chutei meus chinelos ao lado da cama e subi nela, me sentando abraçada a
um travesseiro. Se vinha algum sermão por aí, eu queria estar confortável.
Até então, parecia que Klaus tinha ido ao meu quarto apenas para me encher
a paciência.
— Nadia machucou a minha amiga para me provocar — contei. —
Sempre aturei o tratamento hostil que ela dispensa a mim, mas não vou
deixar que machuce pessoas de quem eu gosto.
— Como pensou nisso? — Seus olhos brilharam quando se inclinou para
frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Nunca passou pela minha
cabeça...
— Vejo muitos filmes de terror — eu o cortei. — Tenho uma mente
criativa.
Ele sorriu, satisfeito.
— Estou de castigo, serei expulsa da Fortaleza ou o quê? — Perguntei. —
Qual será a penitência por atacá-la?
— Por fazer o que fez? — Klaus jogou a cabeça para trás e gargalhou. —
Eu já fiz coisa muito pior. Nadia me odeia porque Rurik era o ídolo dela e,
consequentemente, ela vai te odiar ainda mais por tomar o lugar dele. Acho
bom que você mostre do que é capaz, para que ela a respeite o mínimo
possível.
— Por causa do que aconteceu com Rurik e pelas brigas que vocês dois
vivem tendo, talvez ela pense que pode ser a próxima...
— A morrer? — O Mestre completou minha frase, coisa que vinha
acontecendo com frequência entre nós. Ele franziu a testa. — Ela sabe que
não. Os motivos que me levaram a matar Rurik eram muito mais sérios do
que uma simples implicância de irmãos. Ela é um saco, mas é minha irmã e
eu...
Abri um sorriso enorme e bati meus cílios para ele.
— Você a ama.
O semblante dele se fechou e Klaus desviou o olhar, porque nunca, em
toda a eternidade, ele seria capaz de dizer tais palavras. Mas, como eu já
estava acostumada a ser chamada de irritante, me levantei da cama e
caminhei até a poltrona.
— Não dói admitir uma coisa dessas, sabia? — falei, sorrindo. — Eu acho
meu irmão Victor insuportável e o amo mais que tudo. Você pode amar
Nadia, não há vergonha nisso.
Klaus suspirou pesadamente e eu sentia que não queria ouvir o que eu
tinha a dizer. Ele se recostou à poltrona e me encarou com fúria.
— Eu entendo que ser a criatura mais poderosa que habita esse mundo é
um grande fardo. Sei que você, muitas vezes, precisa manter essa aparência
de durão, insuportável e arrogante. — Olhei para as pernas dele, esticadas
para frente e me sentei de lado em seu colo. — Mas eu também sei que você
tem sentimentos, por mais que tente escondê-los de mim. Não tem problema
amar seus irmãos, Klaus.
Prendi o riso quando notei que os olhos do Mestre estavam quase saltando
para fora das órbitas e as unhas dele tinham se cravado no coitado do tecido
da poltrona. Sentindo o que se passava dentro dele, entendi que sua vontade
maior era de me lançar contra os vidros da janela e deixar que eu me
quebrasse toda lá embaixo.
— Acredita que eu sempre quis ter um irmão mais velho? — comentei,
passando a mão por seus cabelos arrepiados. — Aquele lance de ter um irmão
que toma conta da gente e tal... Mas olha, você só não pode ter ciúmes de
quem eu namoro. Porque, no caso, ele também é seu irmão. — Klaus me
encarava com um olhar assassino, que me faria sair correndo um tempo atrás.
Mas não agora. — Caramba! Tudo isso é muito bizarro. Nadia e Rurik se
pegavam, você gosta de... hm, meninos, eu sou sua gêmea e namoro seu
irmão e você assassinou Rurik. Essa família quebra todas as estruturas das
famílias tradicionais. Não acha?
“Aleksandra, eu não gosto de...”
“Gosta sim!” — eu o cortei. — “E tudo bem, não tem problema porque
Kurt é incrível e insamente louco por você.”
“Não faço distinções.”
Dei de ombros.
“Não há problema algum nisso” — sorri. — “Vamos combinar que é
difícil resistir ao meu amigo. Kurt é tão lindo que no dia em que o conheci e
achei que estivesse dando em cima de mim, eu quase caí para trás.”
“Quantos ele já teve?”
— Quantos o quê? — Arregalei meus olhos ao entender a pergunta.
“Ah! Bem, antes de você, só um namorado que morreu num ataque de
mitológicos. Kurt sofreu bastante e agora os pais dele também estão
mortos...”
Lembrar daquele dia e da dor que senti pelo meu amigo ainda me deixava
mal. Enxuguei algumas lágrimas com a gola da camisa e encarei Klaus.
“Se realmente não sente nada por ele, seja direto. Não o faça sofrer.”
Permanecemos os dois em silêncio e com olhares perdidos para a parede
ao nosso lado.
— Já percebeu que estamos passando um pouco da nossa personalidade
um para o outro? — Perguntei, cutucando o peito dele com o indicador. —
Eu acho que estou ficando um pouco intolerante e agressiva. E você está
amolecendo seu coração.
Sem que eu esperasse, Klaus sacudiu as pernas e eu me desequelibrei,
caindo de bunda no chão. Sem me deixar abater, levantei com a classe que
me restava e sorri para ele, controlando a vontade de apertar aquele pescoço.
— Deixei uns presentes para você no seu banheiro — comunicou ao se
levantar da poltrona.
— Jura? — Meus olhos provavelmente brilharam de emoção e corri até lá.
— Eu senti, desde o princípio, que nos tornaríamos bons amigos, mas não
providenciei nenhum presente para você e...
Franzi os lábios ao ver, sobre a pia, umas dez caixas de tinta de cabelo. Eu
nem tinha me aproximado o suficiente e mesmo assim já sabia que não eram
todas da mesma numeração. Respirando fundo e contando até dez, abri
algumas embalagens, separando as que se aproximavam do meu tom
daquelas que eram pretas e loiras.
— Sabe, não dá para considerar presente uma coisa que você já teria que
me entregar por obrigação. — Eu me virei e encontrei Klaus parado na porta
do banheiro, de braços cruzados. — E você pode, por acaso, me dizer para
que me servem todos esses tubos? Vou precisar pintar a pele também?
— Não entendo de tinta. Peguei o que encontrei.
— Percebe-se! — Peguei um tubo de tinta castanho escuro e balancei
diante do rosto dele. — Mas você enxerga as cores, não é? Isso se parece com
laranja?
Ele me lançou um olhar de puro tédio, como se eu estivesse reclamando
sem necessidade. Respirando fundo, Klaus deu meia volta e se dirigiu à porta
do quarto, me deixando falar sozinha. Senti vontade de jogar o tubo na
cabeça dele, mas me controlei.
— Pinte seu cabelo — falou ao sair do quarto, sem olhar para trás. —
Precisamos fazer um teste antes de colocarmos o plano em prática.

Finalmente, eu me sentia como eu mesma. Estava vestindo roupas que


Kurt, muito a contragosto, mas praticamente obrigado por mim, trouxe depois
de uma excursão pelo centro comercial da Fortaleza. Pedi para que ele
pegasse coisas que eu usaria e não a versão drag queen dele.
Parei mais uma vez na frente do espelho e admirei meus fios pintados e
cheios de brilho. Não tinha alcançado o tom que costumava usar, pois como
Klaus não se preocupou em pegar a cor certa, eu precisei misturar dois tons
diferentes. Meus cabelos estavam mais avermelhados do que alaranjados,
quase como fogo. A cor combinava com meu pulôver de xadrez branco e
preto e a legging preta.
Balancei os cabelos, pois estavam mais leves e macios como nunca, e saí
do quarto. Tinha um encontro com Klaus e Mikhail no saguão da Morada.
Seria a primeira vez, desde a viagem, que eu sairia em público sem precisar
me esconder dentro de um boné.
Quando pisei no saguão, a diversão acabou instantaneamente. Estavam
todos os Mestres reunidos e me senti como se fosse ser sacrificada. Até Nadia
estava com eles!
— Ah... oi — cumprimentei.
Além dos Mestres, havia alguns Guardiões e soldados transitando pelo
local, mas não prestavam atenção em mim.
— Nós vamos dar uma volta. — Klaus avisou, saindo na frente e descendo
a escadaria da Morada.
Sim, claro. Um passeio em família. Nada como um passeio ao luar com
uma família tão unida e amorosa não é mesmo?
Mikhail e eu ficamos mais para trás do grupo, sem muita vontade de nos
juntarmos aos irmãos dele.
Naquele horário havia poucos humanos na rua e geralmente, eram pessoas
que estavam ajudando na reorganização da Fortaleza. Mesmo depois que os
portões foram recolocados no lugar a maioria dos humanos ainda tinha medo
de andar à noite. Não que houvesse muito o que ser feito para se distrair. O
Buraco, melhor point do lugar, não existia mais.
“Para onde estamos indo?” — Perguntei a Mikhail.
“Eu só sei que vamos levar você para treinar. Foi tudo que Klaus nos
disse.”
Passamos pelas ruas do centro comercial e meu peito se apertou quando vi
a fachada destruída do Buraco. As horas que passei ali dentro foram insanas,
mas deixariam saudade. Não era o momento, mas eu gostaria muito que o
local fosse reconstruído. As pessoas precisariam voltar a se divertir quando o
luto terminasse.
— Acho que não estaríamos juntos se não fosse o Buraco — sussurrei
para Misha.
— Tenho certeza que você daria um jeito de se intrometer no meu
caminho — ele estalou a língua e passou um braço ao redor do meu corpo.
— Ou você não resistiria ao meu agradável cheiro e me procuraria de uma
forma ou de outra.
Ele abafou uma risadinha e se curvou para beijar minha cabeça. Temi que
seus lábios ficassem marcados de tinta e olhei para seu rosto no mesmo
instante, mas felizmente, estavam limpos.
“Sei que ando um pouco ciumento por toda essa aproximação sua e de
Klaus...” — disse ele, apertando o braço à minha volta enquanto
caminhávamos. — “Mas é difícil vê-los tão ligados e desenvolvendo uma
intimidade que não posso ter com você.”
“Não é o tipo de intimidade que tenho com você” — retruquei.
“Não estou te acusando de nada.” — Ele me olhou e sorriu. — “Sei que o
que existe entre vocês é diferente e não me preocupo mais com isso. De
qualquer forma, eu sou muito mais bonito.”
“Claro que é!” — Mordi meu lábio e pisquei para ele.
Começamos a nos aproximar da área residencial e senti meus olhos
arderem com as lembranças. Eu não voltava naquele lugar desde a expedição
que não deu muito certo. Agora eu sabia que só tinha escapado do mitológico
porque já estava ligada à maldição dos Mestres e começava a desenvolver
meus poderes.
Adentramos o bosque e os quatro Mestres mais à nossa frente pararam
num local espaçoso e cercado por árvores que nos esconderiam de olhares
curiosos.
Klaus se aproximou de mim e o vento pareceu se concentrar onde
estávamos. Com um rápido olhar para o céu, algo me dizia que aquela
mudança brusca no tempo era obra dele.
— O que vamos fazer? — Perguntei, afastando os cabelos que voavam na
frente do meu rosto.
— Não sairemos daqui enquanto você não conseguir dominar todos eles.
— Klaus meneou a cabeça na direção dos irmãos.
— O quê? — Tentei controlar meu histerismo, sem muito sucesso. Klaus
estava louco! — Eu não consigo! Mal consegui bloquear Nadia e Nikolai lá
na Morada.
— Eu sei e é justamente por isso que estamos aqui — ele cruzou os
braços, paciente. — Você pode escolher começar o quanto antes ou ficar
olhando para a nossa cara.
Nadia e Vladimir não pareciam satisfeitos com a tarefa. Ele tinha o olhar
perdido ao longe e ela me encarava com ódio no coração. Só mesmo Klaus
para fazê-la se movimentar em prol do meu benefício.
Olhei para Nikolai, que sorriu para mim. Ele era tão polido e educado que
não parecia ser da mesma família. E Misha, ao lado dele, tinha o olhar fixo
em Klaus. Mesmo que ele tentasse evitar, o ciúme estava sempre presente.
— Tenho que dominá-los? E a você também?
Ele sorriu com um certo deboche e cutucou a ponta do meu nariz.
— A mim, nem se você tentasse muito. Por enquanto, começaremos com
pessoas inferiores a nós dois.
— Estamos todos ouvindo, Klaus. — Nikolai avisou, controlado. —
Quaisquer detalhe que nos insulte vocês podem deixar para conversar
mentalmente.
“Por que não fazemos isso dentro da Morada?” — Perguntei.
“Porque a ideia não é facilitar sua vida.” — Klaus respondeu,
intensificando a ventania.
“Ah, obrigada! Você é mesmo...”
— Avance, Vlad! — Klaus me interrompeu com um grito que mais
parecia um comando.
Antes que eu conseguisse entender, Vladimir se chocou contra mim e nós
dois voamos até um tronco de árvore. Minhas costelas doeram com o impacto
e não tive tempo de raciocinar, pois ele agarrou meu pulôver com os dedos e
me lançou no ar.
— Quando partirmos daqui para a batalha — em algum lugar, ouvi a voz
de Klaus —, você terá dois, quatro, dez mitológicos em cima de você!
Desabei sobre um banco de madeira e rolei de lado para o chão. Antes de
me levantar, preparei a mente para identificar de onde viria o próximo ataque.
Vladimir se aproximava pelo meu lado direito e eu lancei uma onda de
energia sobre ele, que parou onde estava.
Então, me coloquei de pé e cuspi o sangue que se acumulara em minha
boca.
— Próximo! — Chamei, incorporando a megera que Klaus estava
atiçando.
Nadia parecia ansiosa para me atacar e mal esperou que eu chamasse. A
vampira deslocou-se na minha direção e Nikolai resolveu se juntar a ela. Eu
prestei atenção neles e me preparei para me defender dos dois juntos, mas
não percebi que Vladimir estava escapando do meu alcance. Ele se libertou
do meu bloqueio e começou a me rodear como se eu fosse um bezerro para
abate.
— Você não tem que lutar com eles, Aleksandra! — O chato do meu
gêmeo gritou em algum canto. — Queremos que você treine seus bloqueios.
Lancei um olhar cruel para Nadia e consegui bloqueá-la a menos de um
metro de mim. Era notório o desejo que ela possuía de arrancar um dos meus
olhos e dar aos pássaros, ou me entregar por inteira nas mãos dos
mitológicos. Era com a vampira que eu precisava ser mais cuidadosa, pois
caso conseguisse se aproximar o bastante de mim, usaria a desculpa do treino
para se vingar.
Enquanto eu me ocupava com ela, um braço envolveu meu pescoço e me
puxou para trás, quase me enforcando. Mantive a concentração em Nadia e
agarrei o braço com meus dedos. Eu não podia contar com minha força física
porque meu corpo humano não se equiparava ao dos Mestres.
Entrei na mente de Klaus e me conectei a ele para descobrir, por outro
ângulo, quem era meu agressor. Vi meu corpo e o de Nikolai grudados um ao
outro e me senti um pouco mais tranquila por não ser Vladimir. Eu nunca
confiaria naquele Mestre.
Agrupei as ondas de energia que corriam pelo meu corpo e soltei tudo de
uma vez, como se liberasse uma pequena explosão de ar. Nikolai foi lançado
para longe, enquanto Vladimir saltava sobre mim.
Com um gesto de cabeça, eu o atirei sobre uma árvore e o mantive preso
ali. Encarei Mikhail, ainda no mesmo lugar e sem a menor vontade de entrar
na briga. Senti uma gota de suor escorrer pela minha testa, enquanto eu tirava
forças não sei de onde para segurar três Mestres.
Nadia e Vladimir eram mais fracos e não me exigiam muito esforço.
Nikolai, no entanto, era extremamente forte e tentava se rebelar. Meu corpo
todo estremecia com a batalha interna dele. Baixei a cabeça, inspirando
profundamente.
— Mikhail! — Klaus o chamou. — Mexa-se!
Quando Misha avançasse sobre mim, eu com certeza fracassaria. Estava
no meu limite, não conseguiria segurar os quatro ao mesmo tempo. Para
piorar, a ventania criada por Klaus era tão forte que meu corpo se
desequilibrava cada vez que uma corrente de ar rodopiava à minha volta. Eu
já sentia a barreira ao redor de Nikolai começar a se despedaçar, quando um
relâmpago atravessou o céu.
Tive vontade de xingar Klaus, mas até mesmo a comunicação mental
exigiria muito de mim naquele momento. E Misha, pobre Misha... Ele
avançou sem muita vontade. Talvez ele tenha pensado o óbvio, que eu
conseguiria bloqueá-lo como fiz com os outros e ficaria tudo bem. Mas não
foi o que aconteceu.
Eu não queria soltar Nadia nem Vladimir e sabia que perder Nikolai era
apenas uma questão de segundos. Então, não me preocupei em parar Mikhail.
Ele veio com os punhos cerrados e esticados à frente do corpo, com
velocidade total.
“Não se preocupe comigo, pode me parar quando quiser” — avisou.
Não fui rápida o suficiente para responder. Senti o choque do soco dele em
meu peito no instante em que a chuva desabou sobre nossas cabeças. Fechei
os olhos, concentrando a força que ainda me restava para manter Nadia presa.
Meu corpo voou por alguns metros e Nikolai se libertou quando caí aos seus
pés. Beijei a terra e ralei minhas mãos ao deslizar pelo chão.
— Sasha! — Ouvi o pavor na voz de Mikhail.
Nem consegui me recuperar direito antes de sentir meu namorado em cima
de mim, ajudando-me a levantar. Seu semblante arrependido me doeu o
coração, mas se eu aceitasse seus cuidados e mostrasse fraqueza ele se
culparia ainda mais. Decidi, então, fingir que não tinha acontecido nada
demais e o empurrei de leve com meu poder.
“Por que não me parou?” — Ele perguntou com a testa franzida.
Escondi o rasgo em meu pulôver na altura do cotovelo, pois minha pele
estava em carne viva. A dor era alucinante, mas me contive.
“Não consegui...” — respondi, apoiando as mãos nos joelhos e
procurando por um pouco mais de ar. Meus pulmões ardiam.
Vladimir e Nikolai estavam se reposicionando e eu desejei que os dois
viessem juntos para cima de mim, pois seria mais fácil bloqueá-los de uma
vez só.
A chuva que caía deixava minhas roupas pesadas e isso me prejudicaria
um pouco. Além disso, a água que escorria pelos meus cabelos manchava
minha pele com a tinta vermelha. Virei o rosto para Klaus, que já tinha
percebido o mesmo que eu: eu fracassara no teste da chuva e não poderia
correr o risco de me molhar quando fosse capturada pelos mitológicos.
Fechei os olhos por alguns milésimos de segundo e inspirei. Ergui meu
rosto, deixando as gotas pesadas deslizarem pela minha pele e uma ideia
surgiu em seguida. Conectada ao meu gêmeo poderoso, esperei que os dois
Mestres se aproximassem um pouco mais. Mesmo de olhos fechados, eu
sabia exatamente onde eles estavam.
Os raios formados pela tempestade de Klaus dançavam sobre nossas
cabeças e, quando voltei a abrir meus olhos, vi a beleza de uma tela de
pintura com as cores que enfeitavam o céu.
Tomada pela união dos nossos poderes, mentalizei uma daquelas
descargas elétricas caindo bem aos pés de Nikolai e Vladimir. Eles corriam
na minha direção e quando seus pés passaram por cima uma enorme poça
d’água, os Mestres foram imediatamente atingidos pelo raio. Seus corpos
eletrificados caíram para o lado e eu parei de respirar. Será que tinha me
excedido? A cena foi mais feia do que eu esperava.
Klaus, tão chocado quanto Misha e Nadia, se aproximou de mim com as
sobrancelhas arqueadas. Nikolai e Vladimir se levantaram, atônitos, e eu sorri
um pedido de desculpas.
— Nunca pensei em atingir ninguém com raios. — Klaus confessou,
olhando para o céu.
— Eu disse que vejo muitos filmes...
Não quis demonstrar felicidade por ter conseguido algo completamente
novo, mas sorri internamente quando vi Mikhail me observar com olhos
cheios de orgulho. Eu treinaria até a exaustão, se fosse preciso, para impor
meu lugar entre eles e ganhar o respeito que me era devido.
O manto de Mikhail que eu tinha vestido, arrastava no chão ao redor dos
meus pés, enquanto eu subia os degraus até a entrada da Morada dos Mestres.
Nosso momento em família havia chegado ao fim e meus cabelos estavam
manchados em vários lugares onde a tinta não saíra por completo.
Meu corpo doía em lugares diferentes, apesar de não ter encontrado
nenhum osso fora do lugar. Mesmo assim, eu me sentia exausta e
maravilhada ao mesmo tempo.
Depois que Klaus se deu por satisfeito ao ver que eu conseguia me manter
fora do alcance dos Mestres, mesmo se ficasse impossibilitada de bloquear os
quatro ao mesmo tempo, ele decidiu que era hora de encerrarmos a
brincadeira.
Claro que nada daquilo ajudou em minha relação com Nadia, pelo
contrário. Nossos laços estavam cada vez mais frágeis e ela verdadeiramente
me odiava.
Mikhail passou todo o trajeto do bosque até a Morada em silêncio,
segurando minha mão e acariciando meus dedos. Por mais que eu dissesse
que estava bem e que ele não tinha me machucado, sabia que ficaria se
culpando por ter me acertado com tanta força.
— Se você concordar, podemos colocar o plano em ação no final da
semana. — Klaus comentou, quando paramos no andar de Mikhail.
Eu concordei, principalmente porque quanto antes eu fosse, mais rápido
voltaria e passaria pela transformação. Queria passar logo por aquela fase,
pois cada vez mais os meus poderes aumentavam e faziam eu me sentir
travada dentro do meu próprio corpo. Se era para abraçar minha nova vida,
então que fosse logo.
Antecipando a nossa iminente separação, por mais breve que fosse, Misha
e eu aproveitamos algumas horas de descanso a sós no quarto dele, provando
que o sexo entre nós nunca deixaria de ser maravilhoso.
CAPÍTULO 43

MIKHAIL
Sasha dormia tranquilamente quando levantei da cama. Por mais disposta
que ela dissesse estar, seu corpo a obrigava a tirar um tempo para se
recuperar e repor as energias. Há três dias Klaus vinha exigindo muito dela,
levando-nos para o bosque a fim de treinar sua força mental.
Ela ainda não conseguia bloquear todos nós ao mesmo tempo, mas evoluía
aos poucos, sempre encontrando uma forma ou outra de se manter a salvo de
nossos ataques.
Eu não estava feliz, devo admitir. Ficava orgulhoso em vê-la superar cada
adversidade que era colocada à sua frente, mas me preocupava em ter que
deixá-la ir de encontro à morte. Ninguém levava isso em consideração, nem
mesmo a própria Aleksandra. Klaus insistia em se manter otimista, mas era
muito difícil não pensar nela sofrendo as mais terríveis torturas.
Tirei uma camisa limpa do armário e me vesti, preparando meu
psicológico para aquelas últimas horas antes de Sasha partir. Assim que ela
acordasse, não teríamos muito tempo a sós antes que começasse a se
preparar.
Ajoelhei-me sobre o colchão e afastei uma mecha de cabelos brancos que
tapava seu olho. Tão frágil e tão corajosa. Ela não me daria a chance de
trancá-la no quarto e só libertá-la quando a guerra terminasse. Sendo a Sasha
que eu conhecia, ela tacaria fogo no quarto.
— Oi gatinho — minha amada ronronou, se espreguiçando na cama. —
Estava me olhando dormir? De novo?
— Estava prestando atenção em você — sorri.
— Admita que ficou me encarando daquele jeito perturbador de serial-
killer.
Sasha me lançou um olhar engraçado ao se sentar e puxar o lençol para
cobrir o corpo nu. Tinha até medo só de imaginar quais pedaços daquele
corpo ficariam gravemente feridos durante a execução do plano absurdo.
Eu me sentei ao lado dela e afundei o rosto no vão do pescoço fino e
cheiroso. Depositei um beijo no local, sentindo-a estremecer.
— Esse é um ótimo jeito de ser acordada — ela falou, encolhendo os
ombros com cócegas.
— Se desistir dessa ideia maluca, podemos ficar os próximos dias
trancados neste quarto. Cada dia irei acordá-la de uma forma diferente.
Ela riu baixinho e virou o rosto para me olhar, mordendo o lábio. O brilho
nos olhos deixava claro que minha proposta era tentadora, mas impossível de
aceitar.
— Pare de inventar motivos para que eu fique.
— Você sabe que não precisa provar nada para nenhum de nós, não é? —
Perguntei, encerrando a brincadeira e falando sério. — Você já mostrou que é
forte, corajosa, e que sabe controlar seus poderes...
— Misha.
— Uma hora nós iremos encontrar Zênite. Essa guerra é nossa, vem se
estendendo há séculos. Não tem nada a ver com você.
— Pare — ela pediu, apoiando a mão pequena no meu rosto. — Sério,
pare. Eu não vou mudar de ideia e você me conhece muito bem para saber
disso.
Fechei os olhos, sentindo um mal estar como nunca senti. Sasha sempre
cometeu algumas loucuras e suas ações eram sempre baseadas na estupidez,
mas nada poderia se comparar ao que estava prestes a fazer. E ela faria de
bom grado.
— Se você e Klaus, por acaso, perderem a conexão por um instante
sequer... — tentei fazer com que ela levasse aquilo em consideração. — Se
isso acontecer, tudo dará errado.
— Se acontecer, o que eu acho muito dificil, mas se acontecer — ela
sorriu —, então você precisa estar preparado para me encontrar pelo cheiro. E
eu sei que você é capaz de me achar até no inferno.
Ela não podia colocar tanta esperança assim no que eu conseguiria fazer
ou não. Levantei da cama, precisando de espaço, sem conseguir encarar a
pessoa que confiava tanto em mim. Era doloroso demais.
CAPÍTULO 44

O Mestre ainda não tinha aceitado muito bem a minha partida. Nós
passamos as últimas horas juntos, como uma tentativa de aproveitar o
máximo possível um do outro, mas nada melhorava o humor de Mikhail.
E agora, enquanto ele me dava as costas e apoiava as mãos sobre a
escrivaninha, percebi o quanto estava triste. Meu peito ficou pesado e me
levantei para ir até ele. Passei meus braços em volta da sua cintura e encostei
meu rosto em suas costas.
— Eu te amo — falei.
Os ombros de Misha estremeceram e ele se moveu alguns centímetros
para abrir uma gaveta da escrivaninha. Puxou algo lá de dentro e se virou
para mim, com uma caixa de ouro nas mãos. Sorri, feliz por ganhar algum
presente e estendi a mão para pegar, mas ele não deixou.
Mikhail quis abrir a caixa com os próprios dedos e, quando levantou a
tampa pesada, eu engasguei. Brilhando para mim havia um anel de corpo
prata muito fino que ostentava uma pedra de um azul claríssimo, maior que o
meu polegar.
— Isso é... — meu coração estava acelerado.
— Um diamante azul, uma das mais raras pedras do mundo. — Misha
completou, enquanto puxava o anel de dentro de sua alcova acolchoada. Dava
para cegar uma pessoa com o brilho da pedra. — Eu já tinha pensado em
procurar algo do tipo para você, mas não estamos com tempo para sair pelo
mundo em busca de pedras preciosas.
Meu corpo inteiro tremia quando o Mestre segurou minha mão na sua e
acariciou meus dedos.
— Este anel pertenceu a muitos reis num tempo muito distante, até que
chegou às mãos de Klaus. Era a intenção dele que Fathima carregasse a pedra
no dedo, mas ele nunca teve oportunidade de pedí-la. — Levantei meus olhos
para encarar Mikhail. O pomo de adão dele subia e descia enquanto tentava
continuar o discurso. — Eu nem imaginava que ele ainda possuía a jóia, até
que contei sobre minha intenção de procurar um anel para você. Klaus me
entregou isso hoje.
Misha levantou meu dedo anelar e encaixou nele o aro de metal. Seus
olhos encontraram os meus e ele abriu um pequeno e tímido sorriso.
— É pesado para você, mas quando se tornar vampira, terá o peso de uma
pluma.
E, realmente, quando ele soltou minha mão, ela desabou sem que eu
pudesse controlar. Eu não fazia ideia de quantos quilates havia naquela pedra,
mas devia pesar mais que um saco de arroz. Levantei a mão para olhar o
diamante de perto e senti meu rosto esquentar conforme as lágrimas
escapavam dos meus olhos.
— Klaus o entregou de bom grado?
— Bem, ele me fez prometer que não a deixaria ir à guerra com o anel. —
Havia diversão na voz de Misha e eu revirei meus olhos ao imaginar Klaus
sofrendo um ataque cardíaco por ver um centauro engolindo seu precioso
anel. — Mas o anel agora é seu. Ele me deu de presente.
A mão pesada do Mestre tocou minha nuca e acariciou meus cabelos,
enquanto me puxava para perto. Nossos olhos se encontraram e nossas bocas
estavam tão próximas, que eu podia sentir seu hálito roçar meus lábios.
— Acho que tanto Klaus quanto eu concordamos que não há melhor lugar
para esse diamante. Eu te amo, Aleksandra.
Grudei minha boca na de Misha e desejei, enquanto sentia os braços dele
me tirarem do chão, que pudéssemos viver muitos e muitos séculos juntos.
Eu faria de tudo para que nosso plano desse certo e me esforçaria em dobro
para voltar para meu Mestre.
Perdi a noção de quanto tempo ficamos ali, abraçados, curtindo nosso
momento. Quando Mikhail me soltou, eu quis muito me jogar de novo nos
braços dele. O vampiro segurou meu rosto entre as mãos e beijou minha testa.
— Você precisa se arrumar — declarou, com tristeza no olhar. — Vou
pedir à Guarda que providencie sangue para você.
Ele saiu imediatamente do quarto, como se ficar mais tempo na minha
presença o machucasse demais. Não me importei, pois sabia que eu estaria
tão mal quanto ele se a situação fosse ao contrário.
Depois de guardar o anel de volta na caixa, caminhei até o banheiro e
comecei a operação de pintar o cabelo. Precisava ensopar os fios de tinta,
pois quando fizesse o enxágue, já desbotaria quase cinquenta por cento da
cor.
Duas horas depois, comecei a me vestir. Os próprios Mestres decidiram a
roupa que eu usaria, de forma que eu estivesse em boas condições para a
viagem. A calça de couro não era daquelas justas de tirar o fôlego, mas sim
folgada nos pontos ideais para me dar mobilidade. O cinto fino serviria para o
caso de precisar estancar sangramentos profundos, ele seria ótimo para um
torniquete. Vesti três blusas de diferentes tecidos, cada uma para um tipo de
situação diferente e, por cima, coloquei o casaco de moletom com capuz. Ele
seria útil, caso chovesse e eu precisasse proteger os cabelos.
Abri a porta do quarto com a mente quando senti a aproximação de Victor
e Kurt. Tinha pedido que meu amigo trouxesse meu irmão para passar-lhe
algumas informações. O Adotado entrou e parou próximo ao pé da cama,
sentindo-se um pouco deslocado.
— Como estão os nossos pais? — Perguntei, de costas para ele, enquanto
calçava as botas.
— Estão bem, eu acho. Mamãe não fica mais chorando o dia todo. Você
vai sair?
Ao puxar a última fivela de couro do cano da bota, eu me virei para ele e
coloquei um sorriso no rosto. Parei diante do meu irmão e descansei minhas
mãos em seus ombros, tentando passar um pouco de tranquilidade e otimismo
a ele.
— Vou precisar sair da Fortaleza por algumas horas, talvez um ou dois
dias — contei, esperando que ele não atirasse dezenas de perguntas em cima
de mim. — Você não deve contar para nossos pais, ouviu? Estou te
confidenciando isso apenas para que possa distraí-los caso procurem por
mim.
— Para onde você vai? — Ele perguntou, franzindo a testa. — Mestre
Mikhail vai contigo?
De jeito nenhum eu admitiria que nenhum Mestre iria comigo. Victor
ficaria apavorado e, quando sentimos medo, costumamos falar mais do que o
necessário. Continuei sorrindo.
— Não posso contar mais do que isso, mas é uma saída de rotina para os
Mestres. — Revirei os olhos de forma bem exagerada. — Agora sou uma
deles, né? Preciso ser incluída na rotina.
— Mas você ainda não foi transformada — ele disse o óbvio.
— Eu sei, mas não é nada demais. Posso contar com você, Victor? —
Olhei firme para o garoto. — Não vai dar com a língua nos dentes, vai? Se
fizer isso, mamãe voltará a chorar.
— Claro que não direi nada!
Puxei meu irmão para um abraço e desejei que aquela não fosse a última
vez em que nos tocaríamos. Chamei por Kurt, que estava esperando no
corredor para levá-lo de volta e nos despedimos.
Um sentimento de nostalgia se abateu sobre mim quando fiquei sozinha no
meu quarto. Era bom demais viver com todo aquele conforto, mas eu teria
que sofrer um pouquinho nas próximas horas para poder continuar
desfrutando de tudo aquilo. E, principalmente, para dar uma vida melhor à
raça humana.
Misha voltou, trazendo com ele não um doador, mas uma bandeja com
uma jarra de cristal cheia de sangue. Meu apetite aumentou quando vi o
líquido que antes eu achava nojento. Ele depositou a bandeja sobre a cômoda
que eu ainda pretendia substituir por algo mais bonito.
— Klaus não deixou que você bebesse outro sangue além do dele.
— Esse sangue é do Klaus? — Estiquei a mão para a taça, mas desisti da
ideia e peguei logo a jarra para beber direto do gargalo. — Ele não acha que
mandou coisa demais?
Com uma sobrancelha arqueada, Mikhail me encarava enquanto eu bebia
tudo. Não estava nem um pouco preocupada com regras de etiqueta.
Praticamente não respirei até que terminasse de tomar todo o sangue e
devolvesse a jarra à bandeja.
— Parece que ele considera o suficiente para mantê-la com os poderes em
perfeito funcionamento.
Sorri, limpando os cantos da boca e dando uma última olhada pelo quarto.
Esperava retornar em breve, não mais do que um ou dois dias.
— Estou pronta — avisei, segurando a mão de Misha. — As janelas serão
seladas em breve, certo?
Ele balançou a cabeça, confirmando. Seu semblante estava tão pesado que
meu peito ficou apertado de tristeza. Não queria que ele se abatesse tanto com
minha saída.
— Está na hora. — Mikhail concluiu, deixando que eu passasse primeiro
pela porta.

Tínhamos combinado que eu deixaria a Morada logo após os primeiros


raios de sol cortarem o céu. Um carro, como todos os outros da Fortaleza,
estaria esperando por mim diante dos portões. O problema, claro, era que eu
não sabia dirigir. Nikolai dissera que não havia muito o que aprender, já que
a estrada que eu pegaria era deserta e em linha reta. Bastaria apenas guiar o
carro para a frente. Se meus pais soubessem daquilo, tentariam matar o
Mestre que dera a ideia.
Depois de sair com o carro, eu dirigiria por alguns quilômetros e pararia,
fingindo que tinha acontecido algum problema com o motor. Daquele
momento em diante, começaria a torcer para que algum mitológico me
encontrasse. E o plano todo se desenrolaria.
Era tudo muito simples, pensei, enquanto caminhava pelo corredor do meu
andar ao lado de Mikhail. Klaus estava esperando lá no final e quanto mais eu
me aproximava dele, mais estranha me sentia. Uma inquietação muito
desconcertante.
— Tudo bem? — Mikhail perguntou, me observando mexer as mãos.
— Sim.
Quando paramos diante de Klaus, ele encarou Mikhail. Meu namorado
suspirou, beijou minha mão e desceu, nos deixando para trás.
Encarei meu gêmeo e juro que tentei me conter, mas pensei que, se havia
um momento certo para fazer o que eu desejava, seria naquele instante.
Então, joguei meus braços ao redor do pescoço dele e o abracei.
“Obrigada pelo anel! Significa muito para mim, ganhar algo que era para
ser de uma pessoa tão querida e importante na sua vida.”
Ele permaneceu imóvel pelos primeiros quinze segundos, mas quando um
de seus braços envolveu minha cintura e meus pés se afastaram do chão, eu
sorri, apoiando meu queixo no ombro dele.
“Se você um dia perder esse anel, eu farei outro com suas tripas.”
Sempre carinhoso, ele me soltou e eu sorri ao encará-lo.
— Então, em breve faremos contato. Espero que você se tranque no quarto
e passe as próximas horas muito concentrado em mim. — Dei um tapa no
braço dele. — Não ouse me perder de vista. Se eu morrer, a próxima pessoa a
tomar o lugar de Rurik pode não ser tão bonita e simpática.
“Acho que não vai dar certo” — disse o Mestre, desmotivado.
“O quê?” — Eu me espantei. — “Como assim? Ficou maluco? Nós
passamos os últimos dias bolando cada detalhe do plano.”
Klaus cruzou os braços e desviou o olhar para a janela mais próxima a
nós.
“Sendo racional, estou me dando conta de que é uma ilusão achar que vai
aparecer algum mitológico. Será perda de tempo.”
“Eu ficarei sentada na droga da estrada até aparecer algum. Ou... posso
sair correndo e gritando o nome de Zênite.” — Pisquei, me sentindo
estrategista. — “Uma hora ela irá me ouvir.”
O Mestre negou, sacudindo a cabeça e eu tive vontade de dar um chute no
meio das pernas dele. Não tinha momento pior para ele decidir que o plano
não era bom o bastante? Fechei os olhos e contei até dez, dando tempo para
que minhas carnes parassem de tremer. Klaus era um idiota!
“O melhor a fazer é cancelar tudo.” — Ele segurou meu braço com força
e começou a me rebocar de volta pelo corredor. — “Mesmo que você seja
encontrada por algum mitológico, dará um jeito de estragar tudo.”
— Me solta, seu louco! — Esperneei, esquecendo de manter aquela
discussão em segredo. — Klaus, pare de me puxar!
Eu era extremamente forte diante dos outros Mestres, mas não conseguia
domar meu gêmeo do mal. Tinha consciência que, em todas as vezes em que
o atingia, só conseguia porque ele deixava. Claro, nossos poderes eram
semelhantes e eu conseguia me defender dele. Mas era impossível lutar
quando ele se esforçava para me superar.
— Klaus!
Eu o chutei, irritada por ele sequer falar comigo. Não satisfeito, o idiota
me jogou sobre os ombros que nem Mikhail gostava de fazer.
— Eu estou cansada de ser carregada desse jeito — gritei. — Estamos no
século vinte e um!
— Cale a boca! — Ele tinha acabado de dar um tapa na minha bunda?
Quem ele achava que era para bater em mim como se eu fosse uma criança?
— Alguém pode explicar o que está acontecendo? — Alguém perguntou.
De cabeça para baixo, vi primeiro as pernas e depois o rosto de Nikolai,
que tinha se enfiado na frente de Klaus e o impedia de me jogar dentro do
quarto.
— Klaus enlouqueceu! — Respondi, me debatendo para descer.
Misha também nos alcançou e me arrancou das garras do Mestre maluco.
Quando fui colocada novamente no chão, esfreguei o local onde ele tinha
apertado meu braço.
Nikolai, com as mãos na cintura, o encarou. Assim como Mikhail e eu.
— Decidi cancelar o plano — ele declarou, simplesmente.
— Por qual motivo? — Nikolai perguntou, olhando de mim para ele.
— Ele agora resolveu achar que é perda de tempo. — Joguei minhas mãos
para o alto, irritada. — Ficou louco, não tem outra explicação!
Procurando por nossa ligação, tentei acessar a mente de Klaus para
entender um pouco o que se passava dentro daquela cabeça. Ele, mais do que
todos nós, confiava plenamente no plano. Passamos dias e horas trabalhando
para aquele dia em questão. Não fazia o menor sentido ele mudar de ideia em
cima da hora.
Então, me dei conta de que a sensação estranha que eu senti ao sair do
quarto estava vindo de Klaus. Era confuso, não sabia muito bem o que
encontrar por ali. Ele estava furioso e muito impaciente. E todo o foco da ira
pairava sobre mim.
Tentei lembrar de algo que eu pudesse ter feito de errado, mas não
conseguia. Eu tinha cumprido todas as exigências feitas por eles.
— Klaus, não há nada de errado com o plano. — Nikolai argumentou,
com razão. — O que aconteceu? Você descobriu algo importante?
— Ele pode ter sentido que não daria certo. — Mikhail resolveu participar
da conversa e, claro, devia estar adorando aquele circo todo. Ele não queria
mesmo que eu fosse. — Klaus e Sasha agora possuem uma ligação que nós
não podemos entender. Ele, com certeza, previu que ela fará alguma besteira
e colocará tudo a perder.
— Ei! — Dei um tapa no braço dele. — Estou bem aqui!
— Mikhail tem toda a razão. — Klaus finalmente se pronunciou e meu
queixo caiu, pois era bem difícil ver os dois concordando em alguma coisa.
Nikolai, coitado, pareceu tão surpreso quanto eu. Ele me olhou e eu
encolhi os ombros, sem saber o que dizer. A frustração tomava conta de mim
e tinha vontade de me trancar no quarto e não falar com nenhum deles pelos
próximos dois séculos.
— Portanto — Misha continuou —, suspenderemos o plano.
— Sim — Klaus concordou.
— Isso não é uma votação — uma voz histérica surgiu no corredor.
Nós quatro olhamos para trás e vimos Nadia e Vladimir se aproximando.
Os dois cruzaram os braços ao encarar Klaus de perto.
— Lembro perfeitamente de você dizer que a ida de Aleksandra não
estava em votação. Dependia apenas da aceitação dela. — Vladimir sorriu
para mim. — E, pelo que percebo, ela discorda de você, Klaus.
Se eu não detestasse tanto aquele vampiro, pularia nos braços dele e o
abraçaria, agradecida pela intervenção. Vladimir estava coberto de razão.
Klaus usara aquelas palavras no momento em que ele explicou o plano que
tinha em mente.
O Mestre primogênito, no entanto, não ficou feliz com a intromissão. Ele
olhou para Vladimir com um brilho ensandecido nos olhos e Nikolai se
colocou entre os dois para evitar um confronto.
— Não estava em votação para vocês! A palavra final é minha!
De repente, um novo sentimento escapou de Klaus e impregnou todos os
meus sentidos. Era algo que eu não havia identificado antes por causa do
turbilhão de sensações descontroladas que emanavam dele. Lá no fundo,
camuflado, encontrei o medo que ele estava sentindo. Um pavor latente.
Enquanto ele encarava Vladimir, passei a observá-lo com atenção. Um
leve tremor percorria seu maxilar, tão discreto que se a pessoa não
procurasse, não encontraria. Os punhos estavam cerrados, o que pareceria
mesmo algo normal devido a raiva que ele expressava. E seus olhos estavam
quase arregalados.
O Mestre virou o rosto e me olhou, provavelmente percebendo que eu
tinha descoberto seu grande segredo. Ele estava com medo por mim.
— Que tal se todos vocês nos deixassem a sós? — perguntei, impondo um
tom de comando na voz. — Agora.
Com o canto do olho, vi quando Nadia abriu a boca para falar alguma
coisa, mas olhei rapidamente para ela. Seca e direta. A vampira fechou a boca
e voltou pelo corredor, puxando Vladimir pelo manto e o levando junto.
— Vocês dois também — avisei para Nikolai e Mikhail, que permaneciam
como cães de guarda. — O plano irá continuar como o esperado. Nós já os
alcançaremos.
O Mestre, imediatamente abaixo de mim na hierarquia, obedeceu e
começou a se movimentar, mas Misha continuava como uma estátua ao meu
lado.
— Klaus e eu decidimos...
— Não decidiram nada — cortei o discurso do meu namorado e encarei
meu gêmeo.
— Vá, Mikhail! — Klaus ordenou, se dando por vencido.
Eu sabia que aquela reviravolta causaria mais brigas entre Misha e eu, mas
também seria motivo de reconciliação. E nada era melhor do que sexo de
reconciliação, coisa na qual estávamos nos tornando experts.
Ele se empertigou todo e passou por nós sem conseguir conter a fúria.
Chegou a esbarrar em Nikolai, que elegante como sempre, caminhava com
tranquilidade até a escada.
Quando, por fim, ficamos novamente a sós, eu me virei de frente para
Klaus.
“Eu vou ficar bem.”
“É uma péssima ideia, você só é teimosa demais para enxergar.” — Ele
entrou em meu quarto e parou de frente para as janelas, observando o céu que
anunciava a proximidade da aurora. — “Precisa levar em consideração que
não poderá lutar, nem mostrar seus poderes. Quando se machucar, deverá
permanecer assim e não deixar que seu corpo se regenere, mesmo que
lentamente.”
“Eu sei de tudo isso, Klaus.”
Ele se virou e voltou a me encarar, deixando os braços soltos ao lado do
corpo.
“Por isso mesmo não vai dar certo. Você é fraca, inexperiente e
impetuosa.”
“Eu não sou fraca.” — Levei minhas mãos à cintura. — “Nós treinamos
incansavelmente para esse momento.”
“Você estará em sofrimento e não vai conseguir manter nosso elo.” — Ele
imitou minha pose. — “Não serei capaz de encontrá-la.”
“Disso, eu duvido muito.”
Engoli em seco e me aproximei dele. Precisei ficar na ponta dos pés para
segurar seu rosto com minhas mãos.
“Não conheço ninguém nesse mundo que seja mais poderoso do que você.
Eu amo Mikhail e confio minha vida a ele, por causa dos sentimentos que
nutro por aquele cabeça dura. Mas a você, eu confio a vida de todos que
amo, incluindo a do próprio Misha. Porque Klaus, eu sei que você será o
único a permanecer de pé, mesmo quando todos os outros tiverem caído.”
Ele franziu o lábio, não querendo dar o braço a torcer.
“Eu sempre gostei de irritá-lo. Temos nossos problemas, mas eu o
idolatro porque sempre o enxerguei como o grande líder que é. E você me
ensinou mais coisas nesses últimos dias do que eu aprenderia em toda a
minha vida.”
Eu o soltei porque sentia que se acalmava aos poucos e aquele medo
escondido no fundo de sua consciência começava a se dissipar. Klaus, por
sua vez, puxou as duas pontas do meu casaco e subiu o zíper até meu
pescoço. Depois, enfiou o capuz sobre minha cabeça.
“Não perca nossa ligação” — pediu.
“Isso não acontecerá.”
“Caso aconteça, deixe seu sangue pelo caminho.”
Eu concordei, sabendo que era inútil discutir aquilo. Estávamos perdendo
minutos preciosos do dia que nasceria em breve. As janelas começaram o
processo de selagem.
“Se as coisas saírem do seu controle e Zênite descobrir nosso plano...” —
ele olhou para o teto e suspirou. — “Lute.”
— Eu já entendi, irmãozinho — zombei, revirando os olhos. — Não
morrer e não perder a ligação.
Klaus me encarou com uma carranca, mas me puxou pelo agasalho e
depositou um beijo no meio da minha testa. Quando me soltou, passei por ele
em direção à escada. Nada agora seria capaz de me parar.
“Estou me sentindo importante hoje. Ganhei beijos na testa de dois dos
homens da minha vida!”
Saltitei pelos degraus para encontrar os outros Mestres no saguão,
esperando por mim. Como o dia estava amanhecendo e eles se reuniram ali,
as enormes portas da Morada estavam seguramente fechadas. Os soldados
humanos aguardavam as ordens para abri-las e me dar passagem.
Ao pisar no último degrau, uma sombra voou em cima de mim e me
abraçou. Envolvi meus braços ao redor de Kurt, que fungava em meu
pescoço.
— Acho bom você trazer essa sua bunda branca de volta para nós —
falou, melodramático. — Não quero ter que sair te caçando por aí!
— Combinado — respondi, gargalhando. — Quando eu voltar vou
precisar de ajuda para roubar mais alguns móveis. Os do meu quarto são
velhos demais, como tudo nesse lugar — falei bem alto para todos os
vampiros com cheiro de naftalina ouvirem.
Nós nos despedimos e Kurt se posicionou mais atrás, numa fileira formada
por Guardiões. Eu parei ao lado de Mikhail, que me olhou de esguelha, com o
rosto contraído.
“Não acredito que você vai mesmo dar continuidado ao plano.”
“Sim, eu vou” — suspirei, cansada de bater na mesma tecla. — “Mas eu
volto para ser transformada e você deixar de ter vergonha de mim.”
Sem esperar que mais ninguém tentasse se despedir, caminhei na direção
das portas duplas. Os soldados abriram somente um dos lados o suficiente
para que eu passasse por elas. Eu me virei para trás e observei a fileira
impecável de Guardiões apenas um passo atrás do pequeno grupo de Mestres.
Ventava muito naquele dia e o espaço aberto da porta era suficiente para que
os mantos esvoaçassem ao redor deles.
Então, é isso. Eles estavam prontos para colocarem o nosso plano em
prática, faltava apenas eu dar o primeiro passo e cumprir minha parte.
Esfreguei o bico da minha bota no chão, procurando por uma desculpa para
estender ao máximo aquele momento.
Prestes a me virar para descer os degraus e começar a jornada, vi Mikhail
sair de formação e se lançar ao meu encontro. Meu coração respondeu àquela
ação com várias batidas descompassadas. A expressão no rosto do Mestre
mostrava um Mikhail que eu conhecia bem. Passional.
A menos de um metro de mim, percebi que os olhos dele estavam fixos
em minha boca. Ele não ia fazer o que eu estava pensando, né? Não com
todas aquelas pessoas ali!
— O que você está fazendo? — sussurrei para ele. — Nós já nos
despedimos...
Sem me deixar completar a frase, Misha apertou minha cintura e me
puxou, grudando sua boca à minha e sugando minha língua num beijo que
não deixava dúvidas em ninguém. Meus pés saíram do chão e meus braços
envolveram o pescoço do Mestre.
Podia retribuir o beijo durante longos minutos, se não fosse a lembrança
de que a claridade estava em cima de nós. Abri os olhos e vi Mikhail com a
pele chamuscada e pulei de volta para o chão. Empurrei o corpo dele com
força, lançando-o aos pés dos outros Mestres e desci a escadaria com pressa.
“Eu te amo” — ouvi suas palavras em minha mente. — “Não ouse
morrer!”
“Eu amo você também, seu boboca.” — Pressionei meus olhos que
ardiam. — “Klaus, eu também amo você. Não me perca!”
Caí em prantos quando coloquei distância suficiente entre nós para que
eles não ouvissem meu choro. Eu estava otimista e sabia que conseguiríamos
matar Zênite, mas, ao mesmo tempo, tinha certeza de que até isso acontecer,
sofreria um pouco.
CAPÍTULO 45

Se alguém visse como eu estava dirigindo, pensaria que era uma pessoa
bêbada guiando o carro. Tinham me dito que bastava eu pisar no acelerador e,
depois, no freio, quando fosse preciso. Mas o carro dava solavancos pela
estrada porque eu não sabia muito bem quando era preciso pisar no freio.
Dirigi sempre em frente até que o hodômetro indicasse que eu já havia
percorrido sete quilômetros, como foi combinado. Então, desliguei o motor,
saí do automóvel e olhei em volta. Nenhuma pessoa ou criatura por perto.
Nem mesmo minha visão mais apurada identificou algum ser vivo — ou
monstro mitológico. Eu precisaria ser paciente e esperar.
Subi no capô do carro e me sentei, tentando pensar positivamente que tudo
estava correndo como era esperado. Sair da Fortaleza não significava,
necessariamente, tropeçar num mitológico a meio metro de distância.
— É Sasha... — balancei meus pés, batendo com os calcanhares no pneu
dianteiro. — Você não imaginou que talvez tenha que esperar um bom
tempo. Sem companhia. Sem ninguém para conversar.
Olhei para o céu e o sol incomodou um pouco meus olhos. Felizmente,
minha pele ainda não era sensível como a dos vampiros.
— Isso pode ficar chato... — pensei em voz alta. — Ter que passar o
tempo sem nada para fazer...
Tudo bem, achei melhor descer de cima do capô. Sentada daquele jeito eu
não parecia uma adolescente vulnerável e desesperada por ter enguiçado no
meio de um campo aberto. Precisava manter as aparências, então comecei a
chutar a roda do carro e xingar todos os palavrões que conhecia. Eu não sabia
se os mitológicos tinham superaudição como os vampiros.

Baixei o capuz do casaco e enxuguei as gotas de suor que já se


concentravam no meio da minha testa. Não sabia quanto tempo já tinha
passado, mas, provavelmente, eu devia estar ali há mais de duas horas. Nada
tinha acontecido e eu havia cantado todo meu repertório musical.
Irritada, coloquei uma ideia em prática. Mordi com força o meu polegar
até que saísse umas gotinhas de sangue. O cheio podia chamar a atenção de
algum mitológico pelas redondezas.
Comecei a caminhar pelo meio da estrada e deixei o carro para trás. Não
me servia para mais nada. Andei por meia hora, de cabeça baixa e passos
lentos, deixando que o destino se cumprisse por si só. E, então, aconteceu.
Primeiro, ouvi os galopes que se aproximavam de algum lugar mais atrás
de mim. Parei e olhei em volta, precisando proteger os olhos com a mão. Se
eu fosse completamente humana, não enxergaria absolutamente nada, mas
minha nova visão me possibilitou ver dois centauros e um minotauro
avançando na minha direção.
Calcular distâncias não era minha especialidade, mas naquele ritmo eu
achei que levariam menos de dez minutos para me alcançar. Portanto, usei
aquele tempo para acalmar meus nervos e controlar a respiração. Eu
precisava deixar minha ansiedade de lado e demonstrar desespero.
Fechei os olhos e procurei por Klaus. A mente dele me envolveu e senti
que tentava me tranquilizar. Ele já sabia o que estava acontecendo e se
preparava para me acompanhar, sem interrupções dali em diante.
Nós não conseguiríamos falar um com outro, mas com nossa ligação,
palavras não seriam necessárias.
— Tudo bem, aí vem eles — falei, agitando meus braços e me preparando.
— Incorpore uma donzela em perigo.
Caminhei um pouco mais, lentamente, deixando que eles tirassem
vantagem da minha lerdeza. Quando senti que estavam bem próximos e
qualquer ser humano normal conseguiria ver e ouví-los, me virei naquela
direção.
Os monstros urraram e eu podia jurar que o minotauro estava babando.
Não devia ter se alimentado recentemente e eu esperava que continuasse em
jejum até chegarmos ao esconderijo de Zênite.
— Ai! Estou perdida! — Pulei e gritei ao mesmo tempo, fazendo um
escândalo. — Estou vendo mitológicos! Vou morrer!
Corri como uma idiota indefesa correria, meio que tropeçando, meio que
fazendo um zigue-zague no meio da estrada. Levei a mão ao peito e caí de
joelhos. Não sabia se estava passando muita credibilidade com minha
atuação. A única vez em que fiz um teste para a peça de teatro do colégio, fui
reprovada.
Quando dedos grossos e asquerosos puxaram meus cabelos e me ergueram
do chão, eu realmente gritei. Aquilo machucava meu orgulho porque eu
pretendia manter meus cabelos inteiros na cabeça.
— Não me mate! — implorei, fechando os olhos quando o centauro
aproximou o rosto do meu e mostrou os dentes. Eu precisava ser convincente
e jogar a isca. — Não me leve para a rainha de vocês! Eu imploro por perdão!
Sinto muito por matar seu príncipe tão fracote!
Ele me jogou no chão e pisou na minha barriga, sem colocar força
suficiente para me esmagar. O infeliz mordera a isca. Gritei quando ele
fungou em cima de mim, sentindo meu cheiro de humana.
O minotauro, que até então observava babando, descontrolou-se e partiu
para cima de mim. O animal chegou a cravar duas garras na minha calça e
conseguiu me arrastar pelo asfalto, mas o outro centauro observador berrou e
bateu os cascos no chão.
Ele parou para encarar os dois superiores e balançou a cabeça, furioso.
Enquanto isso, eu tremia, chorava, implorava para que me soltassem. E, cá
entre nós, já estava de saco cheio. Seria uma tortura ter que manter a
encenação por muitas horas. Torci para que o esconderijo da rainha não
estivesse tão distante.
— Nunca mais verei minha família! — Fechei os olhos, forçando mais
lágrimas. — O que vão fazer comigo? Não me levem para Zênite!
A briga entre os três mitológicos cessou e o minotauro me largou,
afastando-se para evitar a tentação. Os dois centauros me encaravam e
dialogavam naqueles sons estranhos que eles faziam. Não estava me
agradando. Pareciam muito inseguros sobre o que deveriam fazer comigo.
Achei que deveria incentivá-los mais um pouco, então, me levantei.
Não contei nem mesmo para Mikhail, mas havia levado um trunfo
escondido no bolso da calça. Sabia que haveria uma grande possibilidade de
ser encontrada por mitológicos burros que não pensariam em me levar à
Zênite. Então, tive uma ideia e coloquei em prática. Preferia não ter que usá-
la, pois desenhava muito mal e sentia vergonha da minha falta de talento,
mas, era preciso.
— Vocês devem se lembrar disso — cantarolei para eles e puxei o pedaço
de papel de dentro do bolso.
Na folha branca eu tinha desenhado um centauro com uma adaga enfiada
no pescoço. Em cima dele, uma figura de cabelos vermelhos e um sorriso
enorme no rosto. Para não deixar dúvidas, eu sorri para eles.
— Está meio torto, mas valeu a intenção — admiti e corri um dedo pelo
papel. — Essa sou eu e esse... é o príncipe que matei!
Não vi o soco chegar, mas ele chegou com força. Um punho cerrado se
chocou contra meu rosto e eu voei para trás, aterrisando de costas no chão há
vários metros dos centauros. O minotauro urrou e se preparou para me usar
como alimento, mas os outros dialogaram com ele, que se calou.
Imediatamente, tateei todo o meu rosto. Precisava saber em quais pontos
eu estava sangrando, para manter tais feridas sempre abertas. Não podia me
dar ao luxo de deixar a pele cicatrizar como uma vampira.
Identifiquei um pequeno corte no supercílio esquerdo e outro no canto do
lábio inferior. Passei a língua pelos dentes para conferir se não tinha perdido
nenhum. Não queria passar a eternidade banguela.
Fiz tudo isso numa rapidez incrível, sem deixar que eles notassem o que
estava acontecendo. Em seguida, comecei a chorar e gritar de dor. Fechei os
olhos fingindo medo quando um deles agarrou meus cabelos e começou a me
arrastar, sem se dar ao trabalho de me tirar do chão. Muito bem, aquilo não
fazia parte dos meus planos. Minhas roupas e minha pele não suportariam o
atrito por uma distância muito grande. Eu chegaria quase morta ao meu
destino.
Pensei, pensei, pensei. Sentia o couro da calça sendo forçado contra o
asfalto e me perguntei se o material era bom mesmo para aguentar um pouco
mais. Eu só precisava bolar um plano para sair daquela situação.
O sol brilhava sobre nossas cabeças e eu sabia que os mitológicos ficavam
mais lentos e sensíveis durante o dia. Comecei a fazer força na direção do
chão, deixando meu corpo pesar mais que o normal. Para incrementar,
estiquei meu braço para trás e cravei meus dedos na mão que segurava meus
cabelos. Apertei o bastante para minhas unhas rasgarem a pele do bicho e ele
me soltou.
Ainda rolei um pouco no chão e ele galopou na minha direção. Minhas
pernas estavam realmente doloridas por ter sido arrastada por mais de um
quilômetro. O segundo centauro fechou a mão em volta do meu pescoço. Ele
me ergueu no ar e me sacudiu antes de me jogar para o minotauro.
Eu me senti uma boneca de pano sendo jogada de um lado para o outro.
Quando voei pelo ar, agitei braços e pernas me preparando para a queda, mas
o minotauro rabugento cravou as garras nas minhas costas. Ele me jogou por
cima do ombro como se eu fosse um pedaço de pano.
Senti dor e me contorci um pouco para tentar me ajeitar. Tinha me iludido
ao pensar que viajaria sobre o lombo de um dos centauros, como tinha
acontecido da outra vez em que fui capturada. Esse tratamento era um pouco
mais hostil.
Mantive os olhos abertos e precisei fazer contorcionismo para sempre
observar os lugares por onde passávamos. Meu pescoço já reclamava e eu
sentia que podia desmaiar a qualquer instante, mas não podia deixar de
mostrar a Klaus o caminho que ele teria que fazer.

O sol começava a descer na direção da linha do horizonte e meu olho


esquerdo ardia de um modo absurdo por causa do sangue que escorreu
quando abri o supercílio. Ao lembrar da ferida, procurei por ela com minha
mão e vi que já não sangrava mais. Esfreguei a unha sobre a pele quase
cicatrizada para abrí-la novamente, trincando os dentes com a dor horrível
que me atingiu. Precisei fazer o mesmo procedimento com o corte em meu
lábio e me dei conta de que causar ferimentos no próprio corpo era ainda pior
do que apanhar.
Nunca fiquei tão feliz ao ver tantos mitológicos juntos. O lugar, eu não
reconhecia, mas estávamos cercados de montanhas. Meus sequestradores
diminuíram a corrida e caminharam sem pressa por um vale que acomodava
todo um acampamento. Conforme passávamos e os outros percebiam a minha
presença pendurada como um trapo nos ombros do minotauro, eles urravam
em resposta.
Sentia Klaus ansioso, insaciável, esperando pelo momento dele. Eu tinha
feito todo o trajeto sem me distrair um segundo para que ele pudesse capturar
todos os detalhes. Agora, torcia para que desse certo e ele conseguisse
mesmo refazer o caminho.
— Infeliz! — Gritei ao ser jogada no chão lamacento.
O minotauro me cutucou com a pata, algo mais parecido com um chute,
visto que ele era um pouco troglodita. Eu me encolhi, protegendo o rosto e
tomando o cuidado de olhar sempre em volta para mostrar tudo a Klaus.
Onde estava Zênite, afinal? Era a pergunta sem resposta, pelo menos, até o
momento. Estava cercada de mitológicos, centauros misturados aos
minotauros e espalhados pelo vale. Mas, se eu não estivesse com problemas
de visão, era óbvio que ali não havia um contigente grande o suficiente para
ser chamado de exército. Os Mestres tinham quase certeza que a rainha
estava concentrando o máximo que podia de suas tropas para uma nova
retaliação. Então, onde estavam todos?
— Que droga, seria bem mais simples se vocês falassem nossa língua... —
murmurei para ninguém em especial e recebi um jato de baba quando outro
minotauro se jogou sobre mim, mostrando todos os dentes bem diante do meu
nariz. — É um prazer também. Sou Sasha!
Eles, definitivamente, não gostavam de ouvir minha voz. Ficavam
irritadiços apesar de não entenderem minhas piadas. Parecia que quanto mais
uma presa falasse, mais viva ela estava, não?
Suspirei, desconfortável com a baba espessa que ficou grudada no meu
queixo. Quando o animal se afastou, eu me limpei e resolvi ficar quieta até
pensar no meu próximo passo. Não podia simplesmente ficar ali esperando
uma eternidade, pois em breve anoiteceria e os Mestres não podiam vir à toa.
O sucesso do nosso plano dependia da aparição de Zênite.
Meus sequestradores sumiram e mesmo que voltassem em algum
momento, seria difícil reconhecê-los porque eram quase todos iguais. Eu
permaneci no mesmo lugar por alguns minutos e quanto mais o tempo
passava, mais minotauros se juntavam ao meu redor. Sabia que a minha
presença ali, cheirosa e apetitosa, era uma tentação para todos eles.
Se o meu desenho não tivesse caído no momento em que recebi o soco do
centauro, eu o usaria mais uma vez para tentar atiçá-los. Precisava encontrar a
rainha maldita!
Eu precisava fugir. Ou melhor, fingir que queria fugir. Não mostraria
meus poderes, mas usaria só um pouco de força e agilidade para me
desvencilhar de alguns mitológicos e criar uma confusão no acampamento.
Meu sobrenome era confusão.
Procurei por Klaus em minha mente e senti que ele estava em conflito com
suas emoções. Achava a ideia péssima, porém eficaz. Então, ele me lançou
uma onda de incentivo através de nossa ligação, mas tomou o cuidado de
retirar seus poderes do meu alcance para que não potencializasse os meus.
— Preparada para apanhar mais um pouco? — Falei comigo mesma e
suspirei.
Contei até cinco e impulsionei meu corpo para ficar de pé. Todos à minha
volta se levantaram e se lançaram para cima de mim, mas antes que me
alcançassem meus pés já corriam em ritmo frenético pelo vale. Comecei a
escalar uma montanha e ouvi os berros atrás de mim, enlouquecidos.
Uma coisa era certa: eu precisava praticar mais exercícios. O aclive me
tirou um pouco o fôlego, apesar das pernas obedecerem prontamente. Corri o
máximo que uma garota muito boa de corrida poderia correr, até ser
finalmente capturada. Afinal, eu precisava deixar que me pegassem, não
podia exagerar na dose.
Já estava na hora de me dar por vencida, até porque, lá no alto da
montanha, uma linha formada por centauros descia na minha direção. O que
me alcançou primeiro me chutou no meio do estômago com suas patas
dianteiras e eu rolei montanha abaixo. Não consegui me agarrar em nada pelo
caminho e acabei me machucando em algumas pedras.
Antes que eu chegasse ao pé da montanha, alguém agarrou meus cabelos e
me ergueu no ar. Cuspi um pouco de saliva com sangue, sentindo vontade de
vomitar. A dor em meu abdômen era dilacerante e eu não conseguia bloqueá-
la. Minha roupa já estava ensopada de tanto rolar na neve e de ser
arremessada de um lado para o outro. Por sorte, meus poderes me protegiam
um pouco da baixa temperatura.
Eu me debati, gritei e chorei enquanto subiam a montanha comigo. A raiz
do meu cabelo realmente doía, porque, afinal, estava sustentando todos os
meus sessenta e poucos quilos. Por onde passávamos, meu corpo deixava um
rastro ensanguentado na neve. E eu nem estava reclamando, já que se tornava
um ótimo chamariz para os Mestres.
Em algum momento, pegamos uma trilha que contornava a montanha e
parecíamos prestes a despencar lá do alto. Vez ou outra, minhas pernas saíam
da trilha e ficavam penduradas no desfiladeiro e eu só podia torcer para que o
idiota que me carregava não me deixasse cair.
— Me segura direito, seu infeliz! — Cuspi, com raiva, olhando de queixo
erguido para os que subiam atrás de nós. — Estou doida para ver suas
cabeças rolarem pela montanha quando os Mestres chegarem.
Eu calei minha boca quando contornamos mais da metade da montanha e
começamos a descida para o outro lado. Então, era ali que Zênite andava
escondendo todos os seus queridos mitológicos. Meu coração se aqueceu
diante da percepção de que os havia encontrado. O plano daria certo, afinal.
Lá embaixo, ao final do desfiladeiro, centenas e centenas de mitológicos
acampavam, espalhados por um raio de mais de um quilômetro. Na altura em
que estávamos a névoa os cobria parcialmente, mas minha supervisão me
possibilitava enxergá-los completamente.
Eu imaginei que fôssemos descer até eles, mas nossa caminhada parou
mais ou menos na metade da descida. De uma abertura bem na beira do
penhasco saía uma luz muito precária. Quando me puxaram para dentro, senti
um cheiro horrível de podre. O local, apesar da iluminação de uma fogueira,
estava escuro. Quase não consegui distinguir os contornos de carcaças de
outros animais — eu esperava que não fossem humanos —, jogadas pelos
cantos das paredes.
Avançamos mais e mais para o interior da caverna e naquele momento, eu
comecei a me concentrar para o que viria a seguir. Sabia que enquanto os
Mestres não chegassem, eu passaria por situações bastante indelicadas.
Fui jogada no chão escorregadio, de costas, meu corpo deslizando um
pouco mais além. Quando parei, espalmei minhas mãos naquela coisa
lamacenta para me levantar. Eu estava curvada quando um pé em minhas
costas me forçou de volta ao chão. Trinquei os dentes, com o rosto prensado
contra a aspereza das pedras e a coluna prestes a ser esmagada. Não sabia até
que ponto minha regeneração serviria caso eles quebrassem algumas
vértebras minhas. E eu não estava interessada em passar a eternidade numa
cadeira de rodas.
Senti meus pulmões sendo comprimidos e a falta de ar me deixou com
uma vontade incontrolável de explodir aquele lugar. Quando o pé se afastou
de mim, pensei que fosse respirar com um pouco de alívio, mas um chute em
minhas costelas — e dessa vez alguns ossos se quebraram — fez meu grito
ecoar pela caverna.
Rolei para o lado e caí de costas, buscando meu agressor com os olhos.
Quando o mesmo pé pisou sobre minha garganta, os longos cabelos entraram
em foco e o rosto de Zênite apareceu acima do meu. Bingo!
Eu a cumprimentaria, se conseguisse falar. Estava feliz, mas adoraria que
acabássemos logo com aquilo. Pensei no quanto Klaus ficaria irritado se eu
matasse logo a maldita rainha. Zênite rosnou, os olhos carregados num ódio
profundo e o som gutural que saiu de dentro dela fez a caverna tremer.
Algumas estalactites caíram à nossa volta, mas infelizmente, nenhuma partiu
a cabeça dela ao meio.
Ela pressionou mais o pé em minha garganta e raspei minhas mãos no
chão, extravasando a raiva em qualquer outra coisa para evitar matá-la.
Fechei os olhos, temendo que ela quebrasse meu pescoço, e percebi que
precisava revidar. Um pouco que fosse, mas não podia deixar que me
matasse.
Agarrei o pé de Zênite com a mão direita e a surpreendi com um puxão
forte. A rainha se desequilibrou para trás, me dando o tempo necessário para
levantar. Eu não daria uma nova oportunidade para me jogarem no chão.
Os mitológicos que estavam na caverna me cercaram, enquanto a fêmea
me encarou, se aproximando até que sua respiração balançasse alguns dos
meus fios de cabelo. Limpei o sangue em meus olhos com a mãe e respirei
fundo. Não foi uma boa ideia, pois a costela quebrada me fez lembrar que eu
estava toda dolorida.
— O que você tem para mim, vadia? — Perguntei.
Zênite sacudiu as patas com fúria e vários centauros me agarraram,
abrindo meus braços e puxando-os para trás. Agindo como uma mulher
normal, a rainha me esbofeteou com tanta força que suas unhas cortaram meu
rosto. Minha pele ardeu com as novas feridas e ela sorriu, passando um dedo
pelo meu sangue e levando-o até a boca. Tive medo que o gosto estivesse
diferente e ela notasse algo, mas pareceu que tinha adorado meu sabor.
Sorri em resposta e ela levantou a outra mão, dando o tapa do outro lado
do meu rosto. E novamente. Depois, de novo. Mais uma vez. Outra. Mais
uma. Acabei perdendo as contas de quantas vezes minha cabeça balançou de
um lado para o outro. Meus lábios incharam, o sangue se misturou à saliva. A
cada nova esbofeteada, a própria Zênite se sujava com meu sangue que
respingava em seus cabelos.
Por fim, ela segurou meu queixo com força e me fez olhá-la de frente.
Passei minha língua pelos dentes e sorri.
— Você bate como uma mulherzinha mesmo.
Sabia que eles não entendiam nossa língua, mas, com certeza, percebiam a
ironia nos gestos e sons. O punho da rainha alcançou meu rosto num soco que
quebrou meu nariz. Deixei a cabeça pender sobre o pescoço, pois não me
encontrava em condições de mantê-la ereta.
CAPÍTULO 46

Abri um olho com muita dificuldade. Do lugar onde eu estava, conseguia


ver que o sol já se despedia de nós. Finalmente. Torci para que os Mestres
usassem de toda sua velocidade para me alcançar, pois Zênite não parecia
disposta a alongar minha estadia em sua caverna.
Eu tinha sido arrastada para um canto perto de uma das paredes e tive
pernas e braços amarrados atrás do corpo. Podia arrebentar facilmente aquele
material usado por eles, mas faltava muito pouco para colocar tudo a perder.
Eu conseguiria aguentar mais algumas horas.
A situação se agravou quando ela desapareceu caverna adentro e voltou
minutos depois, manipulando um objeto metálico. Não demorei para
descobrir do que se tratava. Era a adaga de Mikhail, aquela que usei para ferir
o príncipe.
Com um dos olhos ardendo muito e parcialmente inchado, tive que fazer
um esforço extra para acompanhar os movimentos da rainha. Ela se ajoelhou
nas quatro patas e mostrou a mão que empunhava a adaga. Devia estar
pensando em como valeu à pena esperar pelo dia em que se vingaria. Eu
suspirei, me preparando para o que aconteceria em seguida.
Num gesto rápido e eficaz, ela deslizou a lâmina afiada em minha
garganta, abrindo um corte de uma ponta à outra. Eu me assustei, pois pensei
que fosse me matar, mas Zênite fizera um corte superficial o suficiente para
que eu apenas sangrasse.
Deitada de lado, senti o sangue escorrer pela minha clavícula e ombro, até
gotejar no chão. Imaginei que fosse um ótimo momento para revidar, mas
antes que eu agisse, ela notou que eu tentava me soltar.
Zênite me virou de costas de forma agressiva e segurou meus pulsos. Ela
arrebentou a corda que me prendia e puxou meus antebraços numa posição
que não era natural, quebrando os dois na mesma hora.
Como não taparam minha boca, gritei para ser ouvida em outros
continentes. A dor era absurda e eu não sabia mais o que fazer. Meus braços
não respondiam aos comandos.
Senti as lágrimas escorrerem sem que eu pudesse controlá-las e,
mentalmente, tentei buscar a presença de Klaus. Nossa ligação tinha
enfraquecido porque meu estado emocional estava em frangalhos. O elo entre
nós oscilava, ora eu o sentia, ora não.
Zênite me cortou superficialmente em vários pontos do corpo e eu não
conseguia reagir por causa da dor. Ela, provavelmente, pretendia me deixar
morrer de tanto sangrar, imaginando que eu era uma humana qualquer.
Eu precisava ganhar tempo ou tinha grandes chances de morrer antes que
me resgatassem. Minha ligação com Klaus podia estar fraca, mas eu ainda era
dona dos meus poderes. Não precisava expor nada para os mitológicos,
bastava que eu fizesse parecer algo natural. Como uma avalanche que
deixasse Zênite muito ocupada.
Fechei os olhos e me concentrei, tentando, mesmo que parecesse
impossível, ignorar a lâmina cortando minha pele. Em algum lugar daquela
vastidão de montanhas e vales brancos, sabia que figuras cobertas de roupas
negras estariam marchando em meu encontro. Eu só precisava... aguentar.
A montanha começou a tremer. Primeiro, bem de leve, quase de forma
imperceptível. Aumentei a potência, sentindo a natureza ao meu redor.
Busquei por um sopro mínimo de vento do lado de fora e o usei em meu
auxílio. A ventania começou a se concentrar sobre o pico da montanha,
espalhando neve pelo ar. A avalanche aconteceu, pequena, apenas para dar
trabalho e desconcentrar os mitológicos.
Exatamente como eu esperava, Zênite me deixou aos cuidados de dois
centauros e correu para fora da caverna, falando a língua estranha deles e, ao
que parecia, dando ordens.
Usei aquela folga para observar os cortes pelo corpo e ver se tinha algum
que fosse muito grave. A princípio, o que mais incomodava mesmo eram
meus braços que doíam de forma alucinante a cada movimento.
Arrastei meu corpo para trás até encontrar a parede e me sentar, apoiando-
me nela. Os mitológicos apenas me observavam, cientes de que o brinquedo
pertencia à Zênite. Procurei acalmar meus ânimos e respirar melhor, quando
o medo me atingiu. No local onde eu estava deitada, manchas de um
vermelho meio alaranjado sujavam o chão molhado. A tinta estava saindo e
podia colocar tudo a perder.
Balancei a cabeça. Era tarde demais para me importar com aquilo. Não
conseguiria mover meus braços de forma que pudesse puxar o capuz do
casaco para cobrir os cabelos. Só me restava ganhar tempo e manter a rainha
ocupada. Continuei causando pequenas avalanches em intervalos de três a
cinco minutos.

Quando Zênite retornou à caverna, quase uma hora depois, eu estava


esgotada. Com a perda de sangue, não consegui manter as avalanches por
muito tempo. Eu estava, literalmente, à mercê da pontualidade dos Mestres.
Se eles demorassem muito mais, então eu não sabia até onde aguentaria.
A rainha me observou e pareceu apreciar meu estado lastimável,
personalizado exclusivamente por ela. Ao se aproximar novamente de mim,
com a adaga em punho, imaginei que tudo terminaria naquele instante. Ela
não alongaria a situação por mais tempo. Tinha outras coisas com as quais se
ocupar.
Zênite fechou a mão em volta do meu pescoço e me levantou do chão,
colando o rosto ao meu. Cuspi na cara dela, sem conseguir me controlar.
Minha saliva, cheia de sangue, escorreu pelo seu nariz afilado e ela rosnou,
erguendo a adaga por trás da minha cabeça. Só que, algo do lado de fora
chamou sua atenção.
Furiosa, Zênite virou o rosto na direção da entrada da caverna e me jogou
de volta no chão. Eu caí, agradecida pela interrupção. Mesmo com a ligação
muito enfraquecida, conseguia sentir a presença de Klaus e sabia que ele
estava por perto.
Os mitológicos que estavam na caverna correram para o lado de fora, após
os comandos da rainha. Ela estava prestes a fazer o mesmo, mas antes, me
encarou mais uma vez. Seus dedos se fecharam ao redor do cabo da adaga e
ela cravou a lâmina em minha coxa até atingir meu osso.
Zênite sorriu de um jeito maligno e saiu da caverna aos galopes,
provavelmente achando que terminaria o serviço quando retornasse mais
tarde.
Eu sentia que meu corpo estava em choque e nem gritar conseguia. Tentei,
em desespero, agarrar o cabo para puxar a adaga, mas meus braços quebrados
doíam demais.
“Estamos aqui!”— Klaus entrou em minha mente. — “Aguente um pouco
mais.”
Quis perguntar o quanto era aquele pouco mais a que ele se referia, mas
nem tinha disposição para tal ato. Eu me dei por vencida e resolvi esperar que
viessem em meu socorro antes de algum mitológico voltar.
Os tremores de terra, que se espalharam por toda a montanha, me levavam
a crer que os Mestres estavam em ação. A caverna começava a parecer frágil
demais e as estalactites caíam por todos os lados. Uma delas se desprendeu
do teto e caiu sobre meu peito, cortando minha pele e ficando cravada dentro
de mim. Que maravilha.
Diante de tudo que acontecia, comecei a achar que morreria naquele lugar,
soterrada por pelas pedras. Pareceu uma ilusão de ótica o vislumbre de
cabelos brancos que entrava com pressa na caverna.
Era Klaus. Ele tinha vindo. Fechei os olhos por um segundo, torcendo para
que aquilo não fosse um sonho.

— Você está horrível.


A voz me tirou do transe e eu abri os olhos. Ele ainda estava diante de
mim. Senti meus olhos arderem com as lágrimas.
Klaus se ajoelhou e puxou, sem cerimônia ou aviso prévio, a estalactite em
meu peito. Doeu bastante, mas não se comparou à dor que senti quando ele
desencravou a adaga que Zênite deixara em minha coxa.
Gritei, pensando que perderia as forças, vendo meu sangue jorrar pela
ferida profunda. Eu só não arranquei os cabelos do Mestre com minha ira
porque meus braços estavam quebrados e não queria me desgastar
mentalmente.
— Rápido! — Klaus bradou para o espaço vazio ao lado dele, onde, num
piscar de olhos, Mikhail apareceu.
Meu amor rasgou o próprio pulso e colou-o em meus lábios para me
alimentar. Não recusei, pelo contrário, suguei com a força que eu ainda tinha,
sentindo tudo dentro de mim ganhar um novo sentido.
— Ela não pode lutar — Misha falou. — Alguém precisa levá-la embora.
— Não — contestei, afastando com o rosto do braço dele. — Não façam
isso.
Com a ingestão do sangue, eu sentia algumas feridas mais superficiais se
curarem aos poucos, como o corte no pescoço e os desenhos que Zênite fez
em mim com a adaga.
Klaus passou um braço por trás dos meus joelhos e o outro pelas minhas
costas. Ele me levantou com cuidado e Misha ajeitou meus braços para que
eu não me machucasse ainda mais. Quando saímos da caverna, meu gêmeo
olhou para o irmão.
— Vá lutar, Mikhail. Se Aleksandra pode fazer isso, você também pode.
Os dois Mestres dispararam montanha abaixo, espalhando neve ao nosso
redor e praticamente se atirando no centro da batalha. Eu não fazia ideia de
onde Klaus iria me deixar, visto que ele precisaria me soltar para lutar.
Para todos os lados que eu olhasse, o que via era um cenário magnífico.
Os Guardiões, rápidos e mortais, quase engoliam as bestas mitológicas.
Tinham ainda mais sucesso aqueles que portavam uma Exterminator nas
mãos. O barulho de várias armas funcionando ao mesmo tempo era como
música para meus ouvidos. Gostaria que meu pai pudesse estar aqui para
presenciar tal façanha. Pensei em Blake, lembrando de agradecê-lo, onde
quer que estivesse.
Pouco antes de alcançarmos o solo, mitológicos nos interceptaram. Por
estar muito próxima a Klaus, nem precisei fazer esforço para que nossas
mentes se conectassem. O poder dele me preencheu como se fogo dançasse
pelas minhas veias e, bastava um de nós olhar em determinada direção, para
partir o animal em pedaços.
Aqueles que deixávamos de atacar com nosso poder, encontravam o ódio
de Mikhail e sua força letal. Meu Mestre tomava banhos de sangue, conforme
arrancava cabeças e corações por onde passava.
Por fim, alcançamos o centro da batalha. Guardiões se espalhavam para
todos os lados e os mitológicos mais inteligentes tentavam escapar do alcance
deles. Até então, aquela teoria toda que envolvia os Guardiões era muito
lendária e eu nunca tive chance de vê-los em ação. Conforme dizimavam o
inimigo com facilidade, eu me dava conta de que nenhum outro exército teria
chance com eles por perto. Os Mestres eram brilhantes!
“Espero que Kurt não esteja aqui” — comentei, nervosa.
“Ele não está. Mas para que aceitasse não vir, tive que nomeá-lo protetor
da Fortaleza durante nossa ausência.” — Klaus contou, arrancando uma
risada interna minha.
“Esse título existe?”
“Existe a partir de hoje, mas ele não sabe disso.” — Eu olhei para cima e
encarei o Mestre que ainda me carregava, sem acreditar que ele pudesse ter
sido tão cara de pau. — “É um título importante e ele se sentiu importante.”
Eu não ia reclamar. Saber que meu amigo não estava no meio daquela
guerra e não corria perigo era um alívio a mais na minha vida. Menos um
problema para me preocupar. Até porque, naquele momento eu havia perdido
Mikhail de vista. Podia enxergar Vladimir e Nadia lutando lado a lado.
Também não sabia onde estava Nikolai, mas tinha certeza que o Mestre faria
um bom estrago onde quer que fosse.
— Cadê a Zênite? — Perguntei, olhando em volta. — Klaus, não podemos
perdê-la de vista.
— Não deixarei que isso aconteça.
Ele me colocou sentada no chão e parou ao meu lado, olhando em volta
com muita concentração. Ao meu redor, cabeças de centauros e minotauros
estavam espalhadas, sujando a neve com seu sangue nojento. Vi também
alguns corpos de Guardiões, mas parecia um número muito pequeno em
comparação ao lado inimigo.
Enquanto Klaus procurava pela rainha, percebi que, aos poucos, os
mitológicos nos cercavam. Eles começaram a fechar o cerco e, volta e meia,
um ou outro se separava do grupo para atacar um Guardião mais próximo.
Nikolai apareceu a alguns metros de distância, montado no dorso de um
centauro indomável. Ele dilacerou o pescoço do animal com ambas as mãos,
enquanto puxava a cabeça para trás até arrancá-la. Dali, pulou no chão e
correu até se chocar de frente com um minotauro.
— Klaus? — Chamei por ele.
“Prepare-se” — avisou, sem me explicar nada mais.
— Para quê? — Gritei.
“Quero arrancar seus corações.”
— Ao mesmo tempo? — Girei a cabeça para ambos os lados, tentando
contabilizar os mitológicos que estreitavam o cerco a nós dois.
“Agora!” — Gritou.
Algo dentro da minha cabeça quase explodiu e a intenção de Klaus dançou
atrás dos meus olhos, pedindo para que eu o acompanhasse. Senti uma
necessidade incontrolável de me expandir, de gritar, de atingir cada um que
estava por perto.
Algo como um campo de força surgiu dentro de mim e vi Klaus com os
braços esticados ao lado do corpo, abrindo as mãos. Ele soltou um rosnado
aterrorizante e senti que empurrava o campo invisível. Eu o ajudei, me
concentrando num ponto à nossa frente. De repente, algo pelo qual nenhum
de nós esperava, aconteceu.
Um minotauro me alcançou por trás e me atacou com seu chifre. Meu
corpo foi içado no ar e pude olhar para a ponta do chifre que entrou pelas
minhas costas e saiu em meu peito, bem na altura do coração. Talvez, se ele
tivesse mirado alguns centímetros mais para o lado, eu já estivesse morta.
Senti minha boca se encher com meu sangue, enquanto minhas pernas
balançavam soltas no ar. Klaus, se dando conta do que tinha acontecido,
lançou-se sobre o minotauro.
Dali em diante, eu não consegui acompanhar muito bem tudo que se
desenrolou à minha volta. Vi Nikolai e Mikhail correndo na nossa direção. O
minotauro havia me soltado e vi o chão coberto de neve se aproximar do meu
rosto. Meu namorado se atracou com o mitológico e os braços de Klaus
surgiram ao meu redor. Ele estava ajoelhado comigo nos braços e senti
minhas mãos tocaram a neve.
O Mestre rosnou, jogando a cabeça para trás e olhando em volta. Tentei
falar, mas uma golfada sangrenta foi tudo que saiu pela minha boca. Algo em
nossa ligação, ainda ativa, criou uma explosão à nossa volta. Todos os
mitológicos, dezenas deles, foram lançados para trás e, onde Klaus e eu
estávamos, a neve se abriu formando um círculo.
Tremores tomavam conta de mim quando Klaus me entregou para
Mikhail, que beijou minha boca e correu os olhos pelo meu corpo.
— Precisamos transformá-la — avisou, com súplica no olhar.
Em seu colo, pude olhar em volta e vi pontos vermelhos espalhados pelo
tapete branco da neve, indicando que a explosão de Klaus arrancou-lhes os
corações. Jaziam sem vida e outros começavam a chegar, sem se importarem
com os que estavam mortos. Eram puramente bestas letais.
Enquanto observava, notei que Klaus lançou-se adiante, saindo dos limites
daquele círculo. Entendi que ele só podia estar indo atrás de Zênite e eu
precisava me juntar ao Mestre.
“Vá atrás dele, Misha!” — Pedi. — “Zênite é minha!”
Guiei a mente dele para a direção em que eu olhava e o vi se eriçar todo.
Achei que fosse retrucar ou dizer que eu não estava em condições de me
importar com ela, mas saiu em disparada atrás de Klaus.
A menos de dez metros, vi quando meu gêmeo avançou sobre o grupo de
mais ou menos dez mitológicos que cercava a rainha. Sabia que os elementos
da natureza manipulados por nossos poderes individuais não os atingiam.
Mas, nenhum de nós havia testado isso depois do surgimento dessa ligação.
Eu me uni a Klaus, deixando que minhas intenções se revelassem a ele.
O Mestre ergueu o rosto em direção ao céu e um caos de nuvens, raios e
trovões se formou acima de nossas cabeças. Em sincronia, desviamos o
primeiro raio até o grupo mais próximo, atingindo dois centauros ao mesmo
tempo, que desabaram numa confusão de patas.
Klaus se lançou sobre a rainha, puxando-a pelos cabelos com uma das
mãos e segurando seu ombro com a outra. Ele cravou os dentes no pescoço
de Zênite, que urrou e se contorceu para escapar. Os dois se embolaram no
chão e o Mestre a imobilizou, socando seu rosto diversas vezes seguidas.
Enquanto isso, eu me mantive bastante ocupada com os raios, tentando
atingir o maior número possível de mitológicos, visto que não poderia lutar
fisicamente com eles.
— Sasha, pare de usar seus poderes! — Mikhail rosnou para mim. —
Você vai morrer desse jeito!
Klaus se aproximou de onde estávamos, arrastando Zênite pelas patas.
Estava ferida em vários lugares e deixava um rastro de sangue para trás. Meu
gêmeo jogou a rainha aos nossos pés e quando ela tentou se levantar, levou
um chute de Mikhail.
— Deixe que Aleksandra termine — Klaus ordenou.
— Do jeito que ela está? — Mikhail estalou a língua e me apertou entre os
braços. — Termine de matar Zênite e vamos embora! O terreno está quase
limpo.
Com terreno limpo, eu entendi que ele se referia aos mitológicos sendo
dizimados. Lembrei da cena que vi quando descíamos a montanha, como se
os Guardiões fossem uma massa negra que passasse por cima dos animais e
os esmagassem.
“Eu posso fazer isso, Misha” — avisei, encostando meu rosto no peito
dele. — “E eu mereço esse presente.”
A contragosto, ele me colocou de pé e Klaus passou um braço pela minha
cintura. Eu queria ter uma das mãos funcionando perfeitamente para poder
levá-la ao peito e pressionar o buraco, que devia ter, pelo menos, uns cinco
centímetros de diâmetro. Eu aguentaria mais um pouco. Já tinha sofrido
muito para morrer por causa de uma droga de chifre.
“Precisa ser rápida, pois temos que transformá-la o quanto antes” —
avisou ele, ajudando a me aproximar de Zênite.
Gostaria de estar carregando a maldita adaga para matá-la com a mesma
arma que matou o filho dela. Mas, daria um jeito de usar o que tinha.
“Segure-a”— pedi para Klaus e me soltei.
Com a perna ruim, eu praticamente caí em cima do corpo volumoso.
Montei sobre Zênite, que relinchava com fúria, esfregando a cabeça na neve
como se fosse ajudar em alguma coisa. Completamente imobilizada, ela não
teve outra opção a não ser olhar para mim.
Abri um sorriso, deixando que a rainha pudesse enxergar toda a satisfação
que eu sentia em estar ali. Em seguida, cuspi o sangue que se acumulava em
minha boca para, finalmente, poder falar com ela.
— Como é saber que serei... — tossi, engasgando um pouco — a última
coisa que seus olhos enxergarão?
Olhei para trás e observei Mikhail, com o semblante muito preocupado.
Ao lado dele, Nikolai segurava uma adaga do mesmo tipo que a usada por
Zênite. Eu a arranquei de sua mão com o poder da mente e fiz com que a
arma levitasse a centímetros do rosto da rainha. Ela se apavorou quando se
deu conta do que eu era capaz de fazer e voltou a se sacudir.
Deixei que a ponta da adaga riscasse a pele dela, fazendo-a sangrar aos
poucos. Zênite berrou, mas não parei. Lancei a adaga para o alto e a fiz girar
no ar só para causar um pouco de drama. Por fim, mirei no meio de sua testa
e desci a arma até aquele ponto. A lâmina girava com velocidade quando
entrou na carne mitológica e abriu um buraco considerável.
Eu me levantei com dificuldade e fui amparada por Misha, que me pegou
de novo no colo. Sabia que era preciso muito mais que aquilo para matá-la,
mas deixei para que Klaus finalizasse. Eu já tinha usado até a última gota de
minha energia.
Enquanto meu Mestre me levava para longe dali, acompanhei tudo pela
mente do primogênito. Cada membro do corpo de Zênite foi arrancado e, por
fim, Klaus enfiou a mão no peito dela, trazendo seu coração entre os dedos.
CAPÍTULO 47

Meu fraco corpo humano avisava que ia parar de trabalhar a qualquer


instante, mas ao mesmo tempo, por mais estranho que fosse, os poderes
recebidos pela maldição não me deixavam desligar por completo. Era como
se eu estivesse, literalmente, por um fio. Só que esse fio tinha origem
sobrenatural. Eu sentia minhas forças se esvaírem aos poucos, mas minha
consciência estava apta para acompanhar o acontecia à minha volta.
O chão ao nosso redor, antes branco, agora exibia corpos espalhados para
todos os lados. Pude sentir o clima fúnebre no ar, o fim de uma era que havia
sido o grande terror da humanidade. O silêncio, no entanto, durou apenas
alguns segundos. Os Mestres logo começaram a se cumprimentar e
especulavam sobre os próximos passos.
Depois de uma reunião que durou menos de dois minutos, foi decidido que
Klaus e Mikhail encontrariam uma caverna adequada para passarmos o dia e
os outros retornariam com os Guardiões à Fortaleza. Eles acharam que seria
muito arriscado fazer a viagem de volta comigo naquelas condições precárias.
Eu podia morrer no meio do caminho.
Os dois Mestres não quiseram permanecer naquele local com os
mitológicos mortos, portanto, avançamos um pouco até uma outra cadeia
montanhosa que pudesse nos abrigar. Fui levada nos braços de Misha para
onde a escuridão predominava. Sem confiar totalmente na caverna, Klaus
manipulou um terremoto de baixa escala para que grandes pedras tapassem a
entrada, trancando-nos do lado de dentro e nos protegendo da luz do sol.
— Ela está com calafrios. — Misha comentou, alisando minha testa com a
mão e afastando meus cabelos.
Ele se sentou no chão e me amparou nos braços, segurando-me, enquanto
eu começava a tremer. Era palpável a tensão que dele emanava e eu desejava
ter o poder de tranquilizá-lo. Não havia mais volta. Eu, muito em breve, me
tornaria uma vampira. Mestre, para ser mais específica.
Klaus se ajoelhou perto de nós e vi em seus olhos que a minha hora tinha
chegado.
“Quando você acordar, estará pronta para me encher a paciência por
toda a eternidade” — ele falou, o rosto com uma expressão debochada.
“Estou ansiosa!”
Era como se a tal linha sobrenatural que ainda me segurava ali tivesse sido
cortada naquele instante, porque não pude mais manter os olhos abertos e
acompanhar minha transformação. Senti apenas uma dor profunda e
dilacerante, mergulhando com minha alma num mar de escuridão.
CAPÍTULO 48

Um vazio me encarava onde devia estar meu reflexo no espelho do quarto.


Ainda era surreal não poder me enxergar e a todo instante eu parava diante do
espelho.
Ao que tudo indicava e os comentários dos meus amigos informavam,
meus olhos agora eram de um azul tão brilhante que pareciam pedras
preciosas falsas. O que era engraçado, visto que os olhos dos outros Mestres
eram da mesma cor e eu já devia ter me acostumado.
Abri a porta do meu quarto e coloquei a cabeça para fora, com vontade de
vomitar de tão nervosa que estava. Não havia ninguém no corredor, mas
sabia que Mikhail viria em breve. Aquele, como ele fez questão de frisar
durante as últimas quarenta e oito horas, era o meu dia.
Todos os Mestres achavam que eu já devia ter me acostumado com a nova
vida. Hoje completava duas semanas desde que matamos Zênite e
exterminamos os mitológicos do continente europeu. Aos poucos, os
Guardiões se espalhavam pelos demais territórios do mundo e terminavam o
trabalho incansável. Era questão de dias até que aquelas pragas fossem
exterminadas por completo.
Duas semanas. Passei a mão pelos cabelos brancos e sedosos. O tempo
passou rápido demais para que eu conseguisse digerir minha nova situação.
Eu tinha sido, enfim, transformada. Dentro de uma caverna, no frio, num
local sem nenhuma estrutura. Não que eu fosse precisar. Estava me tornando
Mestre, afinal. Tudo ocorreu sem maiores problemas e na noite seguinte já
estávamos de volta à Fortaleza.
Por ter recebido os poderes antes mesmo de virar vampira, demorei menos
de um dia para me acostumar com o novo corpo. Foi necessário apenas me
ajustar aos sentidos ainda mais apurados do que anteriormente. Eu me sentia
nova, viva, transbordando energia.
Ainda treinava diariamente o uso dos poderes e minha ligação com Klaus,
quebrando cada vez mais novas barreiras. Passava muito tempo com Mikhail,
amando-o cada dia mais e também me dei a chance de conhecer melhor
Nikolai, um dos meus Mestres favoritos.
Descobri que ele não era aquele homem elegante e educado só quando
estava na presença de estranhos. Convivendo de perto, fui me deixando
encantar por toda a sensatez do Mestre. E Niko, como passei a chamá-lo, era
extremamente cordial comigo. Sempre.
Nadia e Vladimir ainda se sentiam desconfortáveis com minha presença e
faziam o possível para demonstrar o desagrado. Não que eu me importasse, já
tinha aprendido a abstrair tudo que dizia respeito a eles.
“Está pronta?” — Ouvi a pergunta que Mikhail fez no instante em que
ele terminou de subir a escada até meu andar.
“Não” — respondi, saindo em sua direção. — “Podemos adiar?”
Ele sorriu, coisa que vinha fazendo com frequência desde que fui
transformada.
“Podemos tentar, mas algo me diz que Klaus a levará à força.”
Franzi os lábios, sabendo que Misha tinha razão. Meu gêmeo, de forma
alguma iria desmarcar o evento que ele chamava de apresentação da nova
hierarquia dos Mestres. Eu tinha dito que era um nome grande demais e que
as pessoas perderiam o interesse logo na segunda palavra. Disse que não
precisava ser apresentada oficialmente para ninguém. Bastava que os Mestres
soubessem da minha existência.
Como as coisas na Fortaleza estavam se ajeitando e voltando ao normal,
Klaus quis levar a ideia adiante. Agora que todos os humanos tinham voltado
para suas casas — apenas os órfãos permaneceriam na Morada, enquanto o
orfanato era construído —, ele queria que algumas formalidades fossem
novamente introduzidas à rotina.
Meus pais receberam uma casa ao lado da família de Lara, uma grande
coincidência ajeitada em segredo por mim. Nossa relação não voltara ao
normal, mas eu sentia que ficava mais confortável a cada dia.
“Você está linda!” — Misha segurou e apertou minha mão, enquanto me
rebocava pelo corredor. — “Não há motivos para ficar nervosa.”
Eu nem sequer tinha como saber se ele dizia a verdade! Como comprovar
se estava mesmo linda? Eu tinha separado uma roupa muito bonitinha para
usar, mas Klaus, num momento de invasão de privacidade, viu a meia-calça
preta, a saia roxa e uma blusa com estampa de abóboras jogadas sobre minha
cama. Ele gritou mentalmente comigo avisando que se eu aparecesse com
aquela roupa absurda, tacaria fogo em mim.
Com muita raiva e desejando cortar a nossa ligação para sempre, joguei as
peças de roupa dentro do armário e puxei do cabide um tubinho preto sem
graça. Podia estar linda aos olhos do meu Mestre, mas me sentia triste por
não usar a roupa que queria.
“E se eu tropeçar na frente de todo mundo? Não seria adequado...”
Mikhail sorriu, mas não respondeu. Ou ele havia cansado de discutir o
assunto ou acreditava que eu podia mesmo tropeçar e estava concordando em
silêncio.
Esfreguei as palmas das mãos uma na outra, aflita. Conforme descíamos a
escada, conseguia ouvir o burburinho cada vez maior. Os moradores da
Fortaleza tinham sido convidados ao salão de apresentações e aguardavam a
entrada triunfal dos Mestres.
Alguns ainda não tinham superado os ataques e as terríveis perdas. Nem
eu ainda superara completamente. Mas a grande maioria parecia ter renascido
com a notícia da vitória dos Mestres e a extinção dos mitológicos. O mundo
estava prestes a mudar novamente, dessa vez para melhor. E com meu novo
status, estava pronta para garantir que a humanidade pudesse voltar a ter mais
liberdade. A não sobreviver e sim, viver.
Pegamos um caminho interno, aquele que nos levaria pela parte dos
fundos do salão até a porta lateral, por onde tantas vezes eu observei a
entrada triunfal dos cinco Mestres.
Todos esperavam em pé diante da porta. Klaus deu um sorriso azedo,
satisfeito por eu ter acatado sua escolha de vestimenta. Eu revirei os olhos
para ele e cruzei os braços.
— Nós entraremos primeiro — avisou, ansioso para começar o espetáculo.
— Espere ser chamada.
— Ok.
— Ok? — Ele estreitou os olhos e estalou a língua. — Isso não é
vocabulário de um Mestre, Aleksandra.
Revirei os olhos, de novo, trocando o peso do corpo de um pé para o
outro.
— Sim, senhor, caríssimo companheiro fraterno. Aproveitarei minha vasta
eternidade e utilizarei longas horas na biblioteca para apreciar o máximo
possível de páginas empoeiradas do século passado, até aprender um dialeto
mais formal.
— Vocês dois são hilários juntos. — Niko baixou a cabeça rindo, com as
mãos na cintura. — Podemos terminar logo com isso?
Klaus e eu continuamos nos encarando de mau humor até que a porta atrás
dele se abriu. Meu gêmeo precisou encerrar a disputa de olhares e me deu as
costas para ser o primeiro a entrar no salão. Nikolai foi logo atrás dele,
seguido de Mikhail, Nadia e Vladimir.
A porta voltou a se fechar e eu precisaria acompanhar todo o discurso de
onde estava.
CAPÍTULO 49

MIKHAIL
O salão ficou em silêncio quando passamos pela porta e nos dirigimos aos
nossos lugares de sempre. Ou, talvez, não tão de sempre. Havia mais uma
cadeira enfileirada junto às outras que afetava a hierarquia já conhecida por
todos.
Paramos de pé na frente de nossos respectivos assentos e levamos os
braços para trás do corpo. Em sintonia, começamos nosso discurso que tinha
sido reescrito mais de dez vezes.
— Humanos e vampiros. Civis, soldados, Guardiões. Vocês viveram dias
inglórios pelos quais nós cinco já passamos diversas vezes durante esses
séculos. Pedimos que confiassem e superassem junto conosco e foi difícil.
Sabemos disso. Nosso objetivo sempre foi proporcionar uma vivência
equilibrada entre as duas espécies, de forma que cada uma pudesse contribuir
de algum jeito para que coexistissem.
“No início, vocês resistiram. Nós podíamos ter recuado, porque com ou
sem a dominação, viveremos eternamente. Mas não abrimos mão de vocês,
humanos. Sabemos que muitos não enxergam, mas erradicamos grandes
problemas da humanidade. Uma espécie estranha, que não vê nada de mal em
aniquilar seus iguais por poder e dinheiro.”
“Infelizmente, não tivemos muito tempo para amadurecer a confiança de
vocês em nosso diferente estilo de vida. Os mitológicos levaram a
humanidade à beira da extinção, por mais que tentássemos lutar contra isso.
Ainda somos poucos e temos nossas limitações, assim como vocês.”
“Os últimos meses foram tristes e sabemos que muitos de seus entes
queridos já não estão mais aqui. Mas, como nunca desistimos, hoje temos um
grande orgulho em dizer-lhes, pessoalmente, que mais de setenta por cento da
espécie mitológica foi varrida desse planeta. Nossos Guardiões, em conjunto
com as armas fabricadas exclusivamente com esse intuito, estão
desempenhando um ótimo trabalho.”
“Pedimos que vocês abracem o tempo como seu melhor amigo nos
próximos dias, semanas e meses. Tudo irá se ajeitar. Não podemos dizer que
voltará a ser normal, mas garantimos que será o mais próximo disso. Quando
tivermos a confirmação de que mais nenhum mitológico anda sobre essa
terra, o ser humano não precisará mais se esconder. O propósito que foi dado
à Fortaleza Negra com o passar do tempo, como uma cidade a salvo dessas
criaturas, será perdido. No entanto, é nosso desejo que aqueles que já estão
aqui, permaneçam, se assim quiserem.”
“Antes de terminarmos, gostaríamos de dar a notícia que muitos de vocês
devem estar curiosos para ouvir. Durante os últimos meses, uma humana se
destacou a ponto de começar a desenvolver poderes como os nossos. Depois
de muita pesquisa, descobrimos que mais um Mestre estava surgindo entre
nós. Não é algo natural e nunca devia ter acontecido, mas não tivemos
controle sobre tal acontecimento. Um dia, talvez, possamos explicar com
mais exatidão o processo que tornou isso possível. Mas não é o momento.
Por enquanto, queremos apresentá-la como uma de nós e pedir que seja
devidamente aceita e respeitada por todos.”
Observei atentamente as expressões de todos que estavam presentes no
salão. Alguns pareciam espantados, outros felizes. Pessoas, mais atrás na
multidão, se esticavam na ponta dos pés para terem uma visão melhor do que
acontecia à frente.
Klaus, por fim, se destacou da formação e pegou o manto preto que estava
dobrado sobre a cadeira que Sasha ocuparia. Era idêntica a todas as outras,
mas tinha sido confeccionado sob medida para ela, a mais baixinha entre nós.
— Recebam Aleksandra — ele aumentou o tom de voz e se colocou no
centro do palanque à espera dela.
A mulher linda, com cabelos brancos que caíam até os ombros e olhos
azuis marcantes, passou pela porta lateral e caminhou em nossa direção. Eu
sabia que ela estava nervosa. Não olhava para os lados, apenas em frente, de
queixo erguido. Desfilou como uma gata manhosa que escondia a
personalidade de uma leoa.
Ela parou diante de Klaus e se virou de costas, deixando que vestisse o
manto sobre seus ombros. O tecido ondulou-se em volta do corpo dela e a
barra tocou levemente o chão, como devia ser. Assim como todos nós
estávamos com o rosto escondido sob o capuz, Klaus tomou o cuidado de
fazer o mesmo com ela. Gesticulou, então, para que se colocasse à frente de
sua poltrona e também voltou para seu lugar.
Atraindo a maioria dos olhares no salão, Sasha olhou discretamente para
mim e sorriu, no momento em que toda a plateia se inclinava para que ela
recebesse sua primeira reverência.
EPÍLOGO

Um ano depois...
A música do salão chegava aos meus ouvidos e me fazia querer sair
dançando pelo quarto. Eu até tentei, mas minha mobilidade não estava das
melhores. Era mais fácil balançar só a cabeça, seguindo o ritmo da música e...
— Fique quieta, Sasha! — Kurt reclamou, dando um puxão nos meus
cabelos. — Como posso terminar o penteado se não parar de se mexer?
Suspirei, já me arrependendo de tê-lo chamado para me ajudar. Devia ter
insistido pela presença de Lara, que se negou a se arrumar comigo porque
estava mais preocupada com o Guardião que vinha beijando há uns meses. A
animação da loira era tanta que um dia, confidenciou a mim e ao Kurt a
vontade de se tornar vampira. Nós dois a proibimos de tomar aquela decisão
porque precisávamos que um de nós se mantivesse humano por um bom
tempo, de forma que pudéssemos matar a saudade daquela antiga vida através
da pessoa. Éramos egoístas, que se dane.
Por culpa de Lara, eu estava ali com Kurt há quarenta minutos fazendo e
desfazendo penteados porque ele não conseguia se decidir qual ficava melhor
em mim.
— Seria interessante se eu chegasse na festa enquanto ela ainda está
acontecendo — ironizei.
Ele me deixou sem resposta. Típico.
Coloquei as mãos na cintura, sentindo a textura macia da roupa. Onde eu
estava com a cabeça em ter decidido me vestir daquele jeito? Era fácil para os
outros Mestres, estavam acostumados porque vivenciaram aquela época. Para
mim, era tudo novidade. Mas a culpa, admito, era totalmente minha e só
minha.
Quando Mikhail colocou, oficialmente, o diamante gigante em meu dedo e
me pediu para passar a eternidade como sua mulher, avisei que precisaria de
uma festa de casamento. Os outros foram contra a ideia, pois não acreditavam
nessa tola tradição humana — palavras deles, não minha. Eu insisti até que
eles enjoassem da minha voz e ficou combinado que daríamos a festa, mas
não iríamos comunicar aos humanos o motivo verdadeiro da comemoração.
Anunciamos que o evento era para comemorarmos a marca de um ano desde
a extinção dos mitológicos. Enquanto isso, eu ganharia a minha festa e
poderia até mesmo escolher o tema.
Depois de pensar por dias, decidi por uma festa à fantasia e Klaus falou
que de jeito nenhum ele aturaria a breguice humana de se fantasiar com
roupas ridículas. Então, escolhi o tema medieval. Minha ideia foi acatada
com uma condição: roupas apropriadas seriam confeccionadas para o restante
dos moradores, de forma que retratassem as mais diversas castas da época. O
luxo seria exclusivo dos Mestres.
O meu vestido tinha dado um trabalho enorme para fazer. Levou muito
tempo e muita paciência, principalmente de minha parte, que senti vontade de
jogar as costureiras pela janela do quarto. Perdi a conta de quantas vezes fui
espetada pelas agulhas e podia jurar que, mesmo depois do trabalho pronto,
elas ainda arranjaram um jeito de me infernizar, pois aquela droga de anágua
pinicava como o inferno.
— Acho que está perfeito! — Kurt apertou meus ombros e sorriu.
— Obrigada! — Eu o abracei, mesmo que nossos corpos não estivessem
realmente encostando um no outro. As diversas camadas da saia do meu
vestido impossibilitavam um contato muito próximo.
— Você tem que me agradecer muito porque, sinceramente Sashita, nem
sinto vontade de participar dessa festa.
Eu revirei os olhos, sabendo que entraríamos de novo nos lamentos sem
fim do meu amigo. Ele tinha odiado a roupa que recebeu, pois os Guardiões
que permaneceram na Fortaleza se vestiriam todos iguais, como cavaleiros
medievais. Todo o problema estava no elmo que cobriria a cabeça de Kurt.
— Eu já falei que você não precisa ficar com isso o tempo todo. — Olhei
para a peça metálica sobre minha cama. — Use apenas no início. Sério, Kurt,
ficou tão bonito...
— Quem diz isso é aquela que está vestida como uma rainha! — Ele jogou
os braços para o alto, pegou o elmo prateado e saiu do meu quarto. — Nos
vemos daqui a pouco!
Suspirei e alisei a saia volumosa. Antes de fazer a entrada triunfal na festa,
eu precisava ver como estava. Saí pelo corredor e, suspendendo as laterais do
vestido com as duas mãos, subi as escadas para bater na porta do quarto de
Klaus. Ela se abriu sozinha e o encontrei de costas para mim, abotoando a
manga de sua túnica.
— Preciso dos seus olhos — avisei, entrando no quarto e fechando a porta.
— Estou terminando de me arrumar — ele respondeu com aspereza.
— Sim, estou vendo.
Olhei em volta e pensei em me sentar para esperar até que terminasse, mas
perdi a vontade quando me dei conta de todas as camadas de tecido sobre
meu corpo. Sendo assim, continuei parada no mesmo lugar, como uma
estátua.
Klaus se virou de frente para mim, passando as mãos pelo interior da gola
pesada da túnica. Caramba, ele estava lindo! Meu gêmeo era lindo, afinal. Eu
havia custado a admitir que morria de ciúmes dele, mas um ano foi o
suficiente para que eu entendesse que meu gêmeo era o segundo homem mais
maravilhoso do mundo — o primeiro sempre seria Misha.
Klaus vestia uma calça preta muito justa. Usava uma camisa de linho da
mesma cor por baixo de um colete, que logo descobri ser chamado de gibão
pelos que viveram naquele período. A tal peça era linda, como se fosse um
casaco muito justo e abotoado na frente, ajustando-se aos quadris. A seda,
num lindo tom de vinho, misturava-se aos bordados em fios de ouro e o
visual era complementado pela túnica de veludo preto que ia até os joelhos,
toda trabalhada com os mesmos fios de ouro.
Se todos eles se vestiam dessa forma impecável naquela época, deve ter
sido muito difícil as mulheres resistirem ao ímpeto de se atirar ao seus pés.
Eu ainda não tinha visto a roupa de Mikhail, mas já me sentia muito ansiosa
para encontrá-lo.
— O que está olhando? — Perguntou Klaus, todo grosso.
— Você está um gatinho — sorri. — Alguém vai se dar bem essa noite...
Não sabia que era possível, mas a carranca dele piorou. Quase podia ver
uma nuvem preta pairando sobre sua cabeça. Não me afetava, pelo contrário,
eu só ficava com mais vontade de provocá-lo. Mas, para não nos atrasarmos,
dei uma voltinha, fazendo minha saia esvoaçar ao meu redor e parei de novo
de frente para ele.
— Como eu estou?
Com as mãos cruzadas para trás do corpo, Klaus ficou me encarando
muito sério. Eu sabia que ele não era de ficar trocando elogios, mas não
custava nada retribuir um pouco da minha cortesia. Mesmo assim, depois de
dez segundos em silêncio, suspirei e relaxei os braços.
— Quero ver minha aparência — pedi.
Klaus se abriu imediatamente para nossa ligação e eu fechei meus olhos.
Pude conectar minha consciência a dele, de um jeito que era possível ver
qualquer coisa ao meu redor através dos olhos do meu gêmeo. O Mestre
sempre conseguira ver através de mim pela nossa ligação, mas eu só dominei
aquele poder após uns três meses de treino.
Então, eu me vi, parada diante dele. Estava de olhos fechados e um sorriso
bobo no rosto. Minha maquiagem era leve, de cores claras e meus olhos se
destacavam pelo delineador e o rímel. Tudo contrastava muito bem com
meus cabelos brancos. Kurt havia puxado uma mecha de cada lado da minha
cabeça para trás e prendido ambas com grampos que se escondiam por dentro
dos meus cabelos, deixando o resto dos fios soltos. E, tudo bem, o vestido
podia ser muito desconfortável, mas era fabuloso.
Eu casaria comigo se fosse possível!
Apesar dos protestos de todos os Mestres, inclusive de Mikhail, eu quis
um vestido branco. Ninguém além de nós sabia o real motivo da festa, mas eu
queria me sentir como se estivesse mesmo comemorando meu casamento.
O vestido em camadas foi desenhado em formato de tunica, com mangas
justas até os cotovelos e enfeitadas com duas tiras douradas que davam a
ideia de prender o tecido. As mangas se abriam na altura dos meus pulsos e
caíam em cascatas até meus joelhos. Meus seios estavam destacados pelo
decote quadrado que pressionava toda a minha carne excessiva da região
através de um corset costurado ao início da saia e com finos cordões
dourados transpassados na altura do umbigo. O veludo branco, bordado com
fios de ouro, abria-se numa saia larga e drapeada, com cauda.
O conjunto todo estava deslumbrante. Com o coração muito mais leve, saí
da mente de Klaus e voltei a abrir meus olhos. O Mestre me encarava de
forma contemplativa e era meio estranho, mas ele parecia verdadeiramente
emocionado.
— Acho que estou legal — sorri, satisfeita.
— Falta alguma coisa.
Estreitei meus olhos, querendo cuspir fogo sobre Klaus. Não faltava
absolutamente nada! Eu o havia elogiado, como ele tinha a cara de pau de
reclamar do meu visual?
Pressionei meus lábios e quando ele caminhou até sua escrivaninha, eu
marchei atrás, meus punhos cerrados para dar um soco naquele nariz. Mas ele
se virou com uma tiara maravilhosa nas mãos e me encarou.
— Pelo que pesquisei, as noivas da atualidade usam algo assim sobre a
cabeça. — Ele segurava a tiara como se o objeto fosse mordê-lo a qualquer
momento.
— A qual século esses diamantes pertencem? — Perguntei. — As noivas
da minha antiga cidade compravam tiaras de strass. Não creio que seja a
mesma coisa.
Mas eu não estava reclamando. Para deixar claro que eu gostaria de exibí-
la por aí, cheguei mais perto e sorri para ele. Klaus ajeitou a jóia
delicadamente em meus cabelos e eu me transferi para a mente dele,
observando seus gestos. Se estragasse meu penteado, Kurt teria um treco.
— Odiei que os deuses tenham pregado essa nova peça sobre nossas vidas.
Odiei, principalmente, que tenha sido você a escolhida. — Seus olhos azuis
encontraram os meus, enquanto seus dedos prendiam a tiara. — Mas não
precisei de muito tempo para entender que não havia ninguém melhor para
dividir esse elo comigo. Você é forte, é destemida e corajosa. Ama
intensamente e, talvez, isso seja um grave defeito. Mas é o que te faz tão
diferente de nós. Você é boa, Aleksandra. E tem sido como a luz para a
minha escuridão. Eu não lembrava como era me sentir livre, até você me
mostrar. — Klaus segurou meu rosto entre as mãos e se curvou para frente
até encostar a testa na minha. — Acho que ainda aprenderemos muito um
com o outro e tentaremos nos matar incontáveis vezes. Mas você é
merecedora de tudo que se tornou. Sempre farei o que estiver ao meu alcance
para que você e Mikhail sejam felizes juntos. E a propósito, você está linda.
Ele abriu os braços e eu me joguei dentro deles. Precisei arregalar os olhos
para não chorar, pois minhas lágrimas agora eram de sangue e fariam um
belo estrago na minha maquiagem. Levantei o rosto e o encarei, em silêncio,
com um nó na garganta.
— Você é um idiota! — Dei um tapa no braço dele. — Tantos momentos
para me fazer chorar e quer testar isso justo agora, quando estou vestida de
branco da cabeça aos pés? Ora, sinceramente, Klaus! Você não consegue...
Ele agarrou meu braço, de cara fechada, e me puxou para fora do quarto,
batendo a porta com um estrondo. Fui arrastada pelo corredor e rosnei para
que ele parasse de me tratar daquela forma.
“Meu momento de instabilidade psicológica já acabou” — avisou. —
“Agora, coloque esses pés para andarem rápido antes que eu te faça rolar
pela escada!”
Ele me soltou e caminhou à minha frente, descendo os degraus sem nem
mesmo esperar por mim. Minha intolerância, no entanto, se dissipou quando
cheguei ao andar de Mikhail. Meu marido — toda vez que pensava na
palavra eu sentia vontade de gargalhar — estava me aguardando, vestido para
matar.
A mim, no caso. Porque se eu ainda fosse humana, teria infartado no
mesmo instante. Ele brigou comigo por querer vestir branco, assim como os
outros Mestres. Dissera que a cor nada tinha a ver com eles e que eu ficaria
destoando muito dos seus trajes.
Acontece que ele me fez uma grande surpresa. Estava ricamente vestido,
assim como Klaus, mas sua roupa era toda em tons de branco e bege com
bordados dourados, combinando com a minha. Apertei os lábios e parei
diante dele, passando minhas mãos pelos braços da túnica.
— Você... — engasguei. — UAU! Que gostoso! Te pago um cálice de
sangue se ficar a noite toda me comendo com os olhos.
— Se eu não acompanhá-la em seus desejos, não faz sentido passarmos a
eternidade juntos — Ele falou, segurando minha mão e roçando os lábios na
minha pele.
Nos beijamos, mesmo que minha roupa dificultasse nossa aproximação.
Mas, quando ele me soltou e me deu o braço, como os cavaleiros faziam, eu
dei um sorriso sacana.
“Gostaria que você soubesse que, apesar das camadas absurdas por
baixo desse vestido, eu não estou usando calcinha.”
Imaginei que ele fosse tropeçar nos degraus de tanta emoção, pois tinha
certeza que um humano normal faria isso. Mikhail me surpreendeu e apenas
soltou uma risada bem mais controlada do que eu esperava.
Ele estalou a língua e me olhou de soslaio.
“Eu sei, querida. Estou acostumado com os costumes e vestimentas da
época. Por que acha que concordei com o tema?”
Foi minha vez de rir e chamá-lo de safado e tarado. Meu momento de
distração começava a dar lugar ao nervosismo. Esperei por mais de dois
meses por aquela festa e pretendia aproveitá-la ao máximo.
Assim que chegamos à porta dos fundos do salão, encontramos minha
família. Eu tinha autorizado que eles tivessem acesso àquela ala da Morada,
pois gostaria que tivéssemos um momento especial antes da festa.
Os outros Mestres se afastaram de nós quando os abracei ao mesmo
tempo. Senti a mão do meu pai alisar com delicadeza os meus cabelos e
mamãe me beijou no rosto. O tempo realmente havia curado as mais diversas
feridas, inclusive aquela. Eu não morava mais com eles e não os via todos os
dias. Mas aprendi que amor de pai e mãe nunca deixa de existir, por maiores
que sejam os obstáculos. Eles não podiam dizer que adoravam ter uma filha
entre os Mestres, mas aprenderam a superar e viver com minha nova
condição.
— Até que você não está tão feioso como sempre, adotado — sorri,
olhando para Victor ao meu lado, vestido como um rapaz da corte e com o
peito estufado de orgulho. — Acho até que pode conseguir uns beijos de
alguma vampira...
Minha mãe me lançou um olhar bem feio e cruzou os braços. Acho que ela
só não me deu um tapa na cabeça por estar no meio de tantos Mestres.
— Retiro o que disse — avisei. — Nada de se relacionar com sugadores
de sangue.
E foi a vez de receber olhares irritados dos Mestres. Ah, que seja! Era
sempre muito difícil agradar a todos.
Dei novamente meu braço à Mikhail e esperei que as portas se abrissem
para que passássemos. Ao entrar no salão e ser arrebatada pela linda
decoração, logo avistei Kurt e Lara juntos. Ele deu um beijo no rosto dela e
se aproximou de Klaus.
Sorri ao ver a mão do Mestre tocar as costas do meu amigo, conforme eles
caminhavam pela multidão e conversavam alguma coisa que só os dois
sabiam. Kurt abriu um sorriso do tamanho do mundo e Klaus retribuiu, um
pouco mais contido. Há alguns meses, o Mestre havia assumido apenas para
nós o seu caso tórrido de amor com meu amigo. Eles não eram exatamente
um casal, mas eu sabia que não demoraria para que isso acontecesse.
— Do que está rindo? — Misha perguntou, passando um braço pela minha
cintura.
— Só estou feliz por estar em casa.
Com o salão decorado fielmente com o tema da festa, deixei-me ser
contagiada pela magia do lugar e acreditar que, dali em diante, eu teria muitas
vidas para viver, em muitas épocas e, principalmente, ao lado de pessoas que
eu amava.
O para sempre, de repente, não me pareceu tão longo e entediante.

Fim!
AGRADECIMENTOS

Terminar Ruínas de Gelo foi quase um ato de bravura, porque aconteceu


num período um pouco conturbado de minha vida. Precisei passar um tempo
longe desses personagens maravilhosos, mas bastou abrir o Word
novamentee eles me encontraram com sua vitalidade de sempre.
Colocar um ponto final numa história é sempre triste. Ainda sinto falta das
loucuras de Sasha, do mau humor eterno de Klaus, da paixão de Kurt e, claro,
da pegada insana de Mikhail. Sasha é uma sortuda!
Eu me despeço deles, por ora, mas os entrego para vocês, queridos
leitores, com a esperança que se apaixonem, riam e chorem como eu fiz
durante todo o processo.
Agradeço imensamente a algumas pessoas mais que especiais, que fizeram
parte de cada dia de escrita. Podem ser chamadas de leitoras ou de betas,
porém, acima de tudo, são amigas. Obrigada por tudo, tudo mesmo! Desde o
primeiro comentário, lá no Orkut, até hoje. Pelo apoio incondicional, que eu
sei muito bem que não termina com este livro. Aleta, Aline, Ana, Crislei,
Carol, Deisi, Flávia, Fran, Gabi, Glaucy, Gleici, Hayesha, Indira, Jéssica,
Joara, Josi’s (Cardoso e Vidal), Katia, Kese, Lhay, Liv, Luiza, Mandy,
Marina, Mayara, Meny, Nayara, Paulinha, Paloma, Pri, Raissa, Renata, Rol,
Sam, Thata, Van. Fico feliz em encerrar esse capítulo da minha vida e ainda
tê-las comigo nessa jornada.
Ler Editorial e minha querida Catia, vocês foram pedras preciosas em meu
caminho! Minha trilogia encontrou um ótimo lugar para ser finalizada e serei
sempre grata por todo o acolhimento.
Ao papai do céu e a minha família: obrigada!
TRILOGIA FORTALEZA NEGRA

Fortaleza Negra – A chegada da nova era


Livro 1

Tempestades de Sangue – A vingança dos mitológicos


Livro 2

Ruínas de Gelo – O confronto final


Livro 3

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