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ICTIOLOGIA

PIRACEMA
por que os peixes migram?
Migração é um fenômeno biologicamente complexo. Esses movimentos ocorrem
sazonalmente e são, normalmente, modulados por fatores ambientais, entre eles,
a temperatura e o regime de chuvas

Por Alexandre W. S. Hilsdorf e Renata Guimarães Moreira

T
odos os anos as águas de rios brasileiros são ca de 2.100). As restantes são de outros grupos taxo-
CONCEITOS-CHAVE tomadas por uma agitação frenética. Milhares nômicos. Os Ostariophysi incluem peixes das ordens
■ A piracema pode ser traduzida de peixes rumam rio acima, em um movimen- dos Characiformes, Cypriniformes, Siluriformes,
pelo movimento de subida de to sincronizado que os leva a completar seu ciclo de Gonorhychiformes e Gymnotiformes. Na ordem
várias espécies de peixes, rio vida para, assim, garantir a continuidade das espé- dos Characiformes estão peixes conhecidos de pes-
acima, para completar seu ciclo
cies. A migração é uma velha conhecida das popula- cadores, como dourado, pacu, tambaqui, matrinchã,
reprodutivo.
ções indígenas que a batizaram de piracema. A pala- piracanjuba, piraputanga, curimbatá e lambari entre
■ A interrupção desse movimento vra piracema tem origem na língua tupi e quer dizer outros. Já os Siluriformes reúnem, de maneira geral,
por obstáculos como barragens “subida do rio” (pira=peixe; cema=subida). É um o bagre, pintado, surubim, jundiá, jaú etc. Entre os
afeta diretamente o sistema fenômeno anual em que peixes migram em direção Gymnotiformes estão as tuviras e sarapós que têm
fisiológico que permite a
à cabeceira dos rios à procura de locais propícios como principal característica a presença de órgãos
reprodução dos peixes de
para desova e alimentação de suas crias. A importân- elétricos, ou seja, estruturas que produzem um cam-
piracema.
cia desse movimento é evidente, pois a reprodução é po elétrico. O poraquê ou peixe-elétrico da Amazô-
■ O desenvolvimento econômico uma fase importante na vida dos peixes. nia é um representante típico dessa ordem.
gera demandas para a produção Os rios da região neotropical, que inclui os rios A migração dos peixes é um fenômeno biologica-
de energia elétrica e
das bacias hidrográficas brasileiras, abrigam uma mente complexo. Existem diferentes estratégias de
abastecimento de água que
enorme diversidade de espécies de peixes. Os migração, desde as longas migrações de diferentes
advêm principalmente da
levantamentos mais recentes estimam que haja espécies anádromas de salmão (que migram do mar
construção de barragens.
cerca de 6 mil espécies de diferentes grupos, des- para as nascentes dos rios) e chegam a nadar mais de
■ Os recursos pesqueiros ainda critos taxonomicamente, e cerca de 1.500 ainda 1 mil km até as áreas de desova na cabeceira dos rios.
são fonte de alimento e renda
consideradas espécies não descritas. Para se ter Há também os chamados peixes potamódromos,
© DANIEL J COX /STONE/GETTY IMAGES

para diferentes populações


uma idéia da dimensão desse valor, essa diversida- que vivem exclusivamente em rios, e migram rumo
humanas, e o impacto
de corresponde a 36% do total de espécies descri- às nascentes para desencadear os processos biológi-
provocado pelas modificações
ambientais pode comprometer tas de água doce no mundo. cos que levam à reprodução.
diretamente a sobrevivência a No Brasil registra-se a ocorrência de cerca de A migração do salmão nas costas do oceano
longo prazo desses recursos. 2.600 espécies válidas, isto é, taxonomicamente des- Atlântico e do Pacífico é bem conhecida e permitiu
critas e em fase de descrição. Dessas espécies, a maio- descrever o ciclo de movimentação dessas espécies,
– Os editores
ria está concentrada no grupo dos Ostariophysi (cer- identificando até mesmo os que migram uma única

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SALMÃO NO ALASCA permitiu
determinar movimentação de
espécies que migram uma única vez
e morrem ao chegar ao destino.
vez na vida, e em seguida morrem, como é o caso
clássico do salmão do Pacífico. Mas a migração de
espécies neotropicais de peixes de água doce ainda é
pouco conhecida, sendo difícil entender as rotas
migratórias da maioria das espécies.
Estudos do grupo de Alexandre Godinho, da
Universidade Federal de Minas Gerais, sobre migra-
ção de espécies de peixes em rios brasileiros possibi-
litaram a elaboração de um modelo complexo de
migração. Ele evidencia que peixes migratórios
movimentam-se praticamente em todas as fases da
vida, migrando ou dispersando-se rio acima ou abai-
xo à procura de áreas de alimentação e/ou refúgio.
A curiosidade humana sobre como e por que os
peixes migram tem uma longa história. A primeira
experiência sobre migração de peixes de que se tem
registro remonta a 1654, quando as primeiras mar-
cações em salmão foram realizadas. Essas identifica-
ções, ainda em uso, consistem em capturar os peixes,
marcá-los e então libertá-los nos rios. Ao ser recap- ESPÉCIES MIGRATÓRIAS necessitam de No Brasil as primeiras observações científicas
turados os animais marcados revelam características ambientes distintos numa bacia sobre a piracema foram realizadas entre 1927 e
de sua migração, como distâncias, velocidade diária, hidrográfica: área de desova, 1929 no rio Mogi Guaçu, por Rodolpho von Ihe-
locais de reprodução e alimentação, além de efeitos crescimento e alimentação. ring, que as registrou na obra Da vida dos Peixes –
da pesca sobre os cardumes. Ensaios e scenas de Pescarias. Na década de 50,
dois outros ictiólogos, Manuel Pereira de Godoy e
MODELO DOS PADRÕES DE MIGRAÇÕES DE PEIXES DE PIRACEMA Otto Schubart, realizaram as primeiras marcações
em grande escala em espécies de peixes no rio Mogi
Guaçu, caso do curimbatá (Prochilodus scrofa),
dourado (Salminus brasilienses), piavas e piaparas
(Leporinus sp.) entre outras.
Atualmente, novas metodologias têm sido utili-
zadas para seguir o fluxo migratório de peixes. A
radiotelemetria, isto é, sistema de detecção por um
radiotransmissor implantado no peixe e que permi-
te o rastreio por equipamento apropriado, é uma
dessas metodologias.

Estratégias de Reprodução
Por que algumas espécies de peixes como dourados,
pacus, curimbatás, tambaquis, tabaranas, dentre
outras, precisam migrar para se reproduzir? E espé-
cies como traíras, pirarucus, tucunarés, carás e tilá-
pias se reproduzem em águas paradas – os chamados
ambientes lênticos?
© ALEXANDRE HISDORF (FOTO); INFOGRAFIA ERIKA ONODERA

Essa diferença no comportamento reprodutivo


classifica os peixes em dois tipos – espécies sedentá-
rias e migradoras, ainda que algumas espécies pos-
sam apresentar padrão intermediário. As espécies
consideradas sedentárias podem fechar todo o ciclo
de vida, incluindo os eventos reprodutivos, em uma
mesma área da bacia hidrográfica em que vivem.
Mas espécies migradoras necessitam basicamente de
três tipos de ambiente dentro da bacia hidrográfica,
para completar seu ciclo de vida: área de desova, de
FONTE: ÁGUAS, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais, Godinho e Pompeu, 2003 crescimento e de alimentação.

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a migração reprodutiva, rio acima, ocorre para per-
mitir a dispersão dos ovos e larvas dos peixes. Com-
binados a uma disposição genética, os principais
fatores abióticos que influenciam a migração são
luminosidade, temperatura, hidrologia e qualidade
da água. O conjunto desses estímulos desencadeia
uma corrida por locais mais aptos aos processos
reprodutivos, defensivos ou alimentares.
O movimento migratório pode ser considerado
um comportamento imprescindível para modular
a fisiologia reprodutiva das espécies migradoras.
As chamadas “dicas ambientais” podem ser con-
ESCADAS SÃO UMA SOLUÇÃO para
sideradas como gatilhos que desencadeiam os pro-
viabilizar a migração em rios que cessos de vitelogênese, ou seja, incorporação de
têm curso alterado pela vitelo nos óvulos das fêmeas, assim como o pro-
construção de barragens: cesso de maturação final e ovulação. Intrinseca-
ambiente lóticos abruptamente mente, a reprodução é controlada pelo eixo hipo-
transformados em lênticos. tálamo–hipófise–gônadas, um sistema em cascata
de liberação de hormônios e neuro-hormônios
As chamadas áreas de desova correspondem nor- que traduzem as condições ambientais para a
malmente às áreas de cabeceira dos rios e é nessa fisiologia dos animais, definindo assim o sucesso
direção que ocorre o movimento migratório no perí- reprodutivo dos indivíduos.
odo reprodutivo. Em uma seqüência temporal, os Nesse eixo endócrino, os neurônios hipotalâmi-
ovos, as larvas e os animais adultos que já liberaram cos sintetizam e liberam o GnRH (hormônio libera-
seus gametas, descem os rios e direcionam-se princi- dor de gonadotropinas) que estimula a hipófise a
palmente às regiões mais inundadas da bacia. liberar as gonadotropinas (glicoproteínas), FSH
Esses movimentos migratórios ocorrem sazonal- (hormônio folículo estimulante) e LH (hormônio
mente e são, normalmente, modulados por fatores luteinizante). Esses hormônios hipofisários agem
ambientais, dentre eles, a temperatura e o regime de sobre as gônadas (ovários e testículos) estimulando
chuvas, definindo dessa forma a reprodução em a síntese dos chamados esteróides gonadais – estra-
espécies migradoras tropicais e subtropicais em perío- diol, progesterona e testosterona – dependendo do
dos que variam entre setembro e março, época que sexo e do momento do ciclo considerado. Acima do
coincide com temperaturas mais elevadas e regime hipotálamo, sabe-se ainda que a glândula pineal, que
hídrico mais intenso. Existem ainda diferenças pro- [OS AUTORES] sintetiza o hormônio melatonina, modula o sincro-
nunciadas em relação à distância de migração e nismo desse eixo, de acordo com o fotoperíodo
podemos considerar que o trecho mínimo necessá- (número de horas de luz/escuro ao longo do dia).
rio para uma espécie migrar e completar o seu ciclo
reprodutivo varia entre espécies e a bacia considera- Influência das Barragens
da. Ou seja, para uma mesma espécie, as distâncias A construção de usinas hidrelétricas tem sido, ao
percorridas podem variar, como é o caso clássico do longo dos anos, a principal fonte de energia elétrica
curimbatá, que cobre um trecho de cerca de 450 km no Brasil. Mas, a construção de barragens inter-
para se reproduzir no rio Paraná e até cerca de 1 mil rompe os cursos de água dos rios, transformando
km no rio Mogi Guaçu. Essa espécie é considerada ambientes lóticos (de água corrente – rios) em lên-
migradora de longas distâncias (acima de 100 km), Alexandre Hilsdorf, zootecnista, é ticos (de água parada – reservatórios). Essa drásti-
como também é o caso dos dourados, piramutabas, mestre em aqüicultura pela University ca modificação nos cursos dos rios provoca uma
mandis e pintados. Já para outras espécies, como a of Stirling (Escócia) e doutor pela série de impactos sobre a vida aquática, sobretudo
Unicamp. Atualmente é responsável
maioria das tropicais, distâncias consideradas curtas em se tratando das comunidades de peixes, pois
pelo Laboratório de Genética de
(até 100 km) são suficientes para a desova. É o que Organismos Aquáticos e Aqüicultura da interrompe a realização da piracema, reduzindo a
ocorre com lambaris, alguns cascudos (algumas Universidade de Mogi das Cruzes. atividade reprodutiva das espécies migradoras. A
espécies não são migradoras) e recentemente sugeri- Renata Moreira, bióloga, é mestre e interrupção das rotas migratórias de algumas espé-
© MAMARAMA/ISTOCKPHOTO

do para as tabaranas na bacia do Alto Tietê. doutora em fisiologia pela Universidade cies, com fragmentação dos ambientes naturais, é
de São Paulo. É responsável pelo
Mas qual seria o significado biológico da migra- em grande parte responsável pelo desaparecimento
Laboratório de Metabolismo e
ção? A migração é necessária para o desenvolvimen- Reprodução de Organismos Aquáticos de espécies de peixes migradores.
to das gônadas (ovários e testículos), maturação dos do Instituto de Biociências da Sabe-se que o funcionamento adequado do eixo
gametas e posterior desova. Além disso sabe-se que Universidade de São Paulo. biológico só é possível com a realização da piracema.

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AÇÃO DOS HORMÔNIOS QUE
DESENCADEIAM A REPRODUÇÃO
EM PEIXES DE PIRACEMA

ESPÉCIES MIGRANTES

Fenômeno complexo, do ponto de vista biológico, migração ocorre sazonalmente e quase sempre
modulada por fatores ambientais como temperatura e regime de chuvas.
➥PARA
CONHECER MAIS
Da vida dos peixes – Ensaios e
Caso essas espécies sejam impedidas de migrar pela ma, conciliar as demandas para o desenvolvimento cenas de pescaria. R. von Ihering,
construção de uma barragem, o eixo é interrompido econômico e conseqüente geração de emprego e ren- Companhia Melhoramento de São
em um ponto ainda não localizado. da com a conservação do meio ambiente tem sido Paulo; 1929.
A construção de barragens em rios brasileiros um dos desafios da sociedade. No Brasil esse dilema Dez anos de observações sobre
tem sido fiscalizada por uma série de leis que ten- torna-se cada vez mais crítico, pois desenvolvimento periodicidade migratória de peixes
tam mitigar os efeitos desses empreendimentos econômico implica geração de energia elétrica, cuja do rio Mogi Guassu. M. P. Godoy, em
sobre a sobrevivência de diferentes espécies, muitas principal fonte está na barragem de rios. Revista Brasileira de Biologia, vol. 27,
delas importantes para a atividade pesqueira de Kareiva & Marvier (ver Scientific American págs. 1-12; 1967.
comunidades ribeirinhas. A legislação federal – Lei Brasil, no 66, págs. 66-73, 2007) abordam a ques- Migratory fishes of South
no 4.630, de 1998 e no 884, de 1999 – “torna obri- tão da conservação dos ecossistemas de um ponto America: biology, fisheries, and
gatória a implantação, nas barragens de cursos de de vista novo: “Observadores casuais nem sempre conservation status. Editado por
água para quaisquer fins, de sistemas de transposi- enxergam os elos entre o bem-estar dos seres Joachim Carolsfield, Brian Harvey,
ção que possibilitem a migração dos peixes”. humanos e a ajuda a espécies ameaçadas, mas Carmen Ross, e Anton Baer; 2003.
Outros estados da federação também dispõem de essas ligações são abundantes em muitas situações A importância dos ribeirões para os
leis próprias tornando obrigatória a implantação que envolvem conservacionistas... o modo antigo peixes de piracema. Em Águas,
de métodos de transposição de peixes. Esses meca- de priorizar as atividades de conservação deve ser peixes e pescadores do São
nismos de transposição de peixes são passagens de trocado por uma abordagem que enfatize o salva- Francisco das Minas Gerais. Hugo P.
água construídas através ou por volta da barragem mento dos ecossistemas que tenham valor para as Godinho; Alexandre L. Godinho, (Orgs.),
Belo Horizonte, PUC Minas, págs. 361-
de forma a facilitar a migração dos peixes de jusan- pessoas. Nosso plano deve salvar muitas espécies, 372; 2003.
te (abaixo) a montante (acima) do obstáculo. Den- protegendo ao mesmo tempo a saúde e a subsis-
tre esses mecanismos de transposição incluem-se: tência dos humanos”. Catálogos das espécies de peixes
escadas, eclusas e elevadores. Assim, as medidas de mitigação, de certa forma, de água doce do Brasil. P. A. Buckup,
A produção de peixes em cativeiro para reintro- amenizam os impactos provocados pela ação huma- N. A. Menezes, M. S. Ghazzi (eds.).
Museu Nacional, série 23; 2007.
© INFOGRAFIA ERIKA ONODERA

dução no ambiente e a construção de métodos de na. Em relação aos peixes devemos entender que eles
transposição de barragens, como escadas de peixes, compõem uma frágil cadeia. Ao afetarmos espécies Fish-passage facilities as
têm sido os métodos de mitigação dos impactos pro- de menor importância econômica aparente, podere- ecological traps in large
vocados pela interrupção das migrações devido à mos no futuro comprometer a viabilidade de outras neotropical rivers. F. M. Pelicice e A.
construção de barragens. Os dois métodos têm sido que estão na base econômica e do sustento de popu- A. Agostinho, em Conservation biology,
vol. 22, no 1, págs. 180-188; 2008.
questionados quanto à efetividade. De qualquer for- lações humanas inteiras. ■

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