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BN Toler

What Lies Between


Série Where One Goes Series

Tradução Mecânica: Magali Dias


Tradução e Revisão: Simoni Lima
Leitura Final: Aline

Data: 01/2020
What Lies Between Copyright © 2019 B.N Toler
SINOPSE

No fundo, a vida é um teste, uma oportunidade para provar quem


somos; do que somos realmente feitos. Por mais curta que tenha sido, eu
gostaria de pensar que vivi minha vida bem, que quando as pessoas se
lembram de Ike McDermott, elas recordam que ele era um bom homem.
Quando olho para trás, tenho orgulho de quem eu fui.
Deixar para trás a mulher que amava foi a coisa mais difícil que eu
já fiz, e encontrar a paz sabendo que ela estava construindo uma vida
com meu irmão depois que eu parti exigiu uma força que eu não sabia
que tinha. Mas George e Charlotte ainda estavam vivos. Eu não estava.
Juntos, eles continuaram, e eu estava bem com isso porque sabia, que
um dia, Charlotte e eu nos encontraríamos.
Um dia ela seria minha.
Tudo o que eu tinha que fazer era esperar.
O tempo funciona de forma diferente na vida após a morte. Sem
laços com os vivos, não é tão lento, mas totalmente suspenso. Não há
nenhuma preocupação sobre o que está por vir, há apenas o que é. Eu
não sabia se quatro dias, ou cinquenta anos haviam se passado quando
encontrei Charlotte perto de nossa árvore no meu cantinho do outro lado.
Tudo o que sabia era que ela estava aqui, e eu nunca teria que deixá-la
ir. Finalmente recebi a minha recompensa pela vida que vivi.
Mas logo descobriria que o Destino tinha outros planos, e tudo o
que acreditava sobre quem eu era seria testado mais uma vez. Só que
desta vez, não tinha tanta certeza de que me manteria forte.
Desta vez, não tinha certeza se poderia ser um bom homem.
A SÉRIE
Where One Goes
B.N Toler
Prólogo

Dormir sempre foi minha fuga. Sempre que a vida parecia


esmagadora por causa do meu dom, quando minha mente se recusava a
focar e parecia que cada respiração roubava toda a minha energia,
sempre que eu precisava encontrar a paz, sabia que no sono poderia
deixar tudo para trás por um tempo e reiniciar. Eu não sonhava com
frequência e, quando o fazia, raramente me lembrava do que sonhava,
mas dessa vez foi diferente. Desta vez, enquanto dormia, meus sonhos
me trouxeram aqui. Eu estava no chão, debaixo de nossa árvore, a luz do
sol iluminando as folhas acima de mim, a variedade de cores brilhantes
do outono me confortando com uma nostalgia amarga e doce. Pequenas
corredeiras se precipitavam sobre as rochas e as folhas retorcidas se
eriçavam na brisa fresca do outono. Eu estava deitada, deixando todos
os músculos do meu corpo relaxarem, submergindo na melodia da
máquina de som da mãe natureza.
Este.
Este era um bom sonho.
Fechando os olhos, eu inalei profundamente, respirando a calma e
a beleza, até que meus pulmões pareciam que poderiam explodir.
— Charlotte? — A pergunta veio de uma voz que eu não ouvia há
muito tempo, mas conhecia muito bem. Eu congelei, prendendo a
respiração, mantendo meus olhos fechados, me perguntando se
realmente o ouvira, ou se estava apenas imaginando porque meus sonhos
tinham me trazido aqui - para o nosso lugar.
— Charlotte, — ele chamou de novo, o som de suas placas de
identificação tilintando sob sua camisa. — Abra seus olhos, menina.
Meu coração sentiu como se pudesse saltar do meu peito e correr
em direção a ele. Eu sabia que isso era apenas um sonho, meu
subconsciente estendendo minhas mãos desesperadas e esperançosas
para ele, mas era tão bom ouvir sua voz.
— Charlotte.
Todo o ar vazou dos meus pulmões em um longo whoosh.
Ike
Era o Ike.
— Charlotte... o que você está fazendo aqui?
Com os olhos ainda fechados, meus lábios dançaram na beira de
um sorriso. — Estou sonhando, — expliquei.
O som de folhas secas rangeu sob seus pés quando ele deu alguns
passos em minha direção, mas não abri meus olhos. Eu estava com
muito medo que se fizesse, ele não estaria lá. — Charlotte, — ele
repetiu. — O que você está fazendo aqui? — Seu tom continha
nervosismo.
Relaxando meu sorriso, mantive meus olhos apertados, confusão
sussurrando seus delicados dedos contra meus pensamentos. Por que
essa sensação parecia errada? Era um sonho... Porque Ike soava...
preocupado? — Estou sonhando, — reiterei, embora minha resposta
parecesse incerta, como se eu não tivesse certeza.
Algo agarrou meu pulso com força, fazendo meu estômago apertar,
e meus olhos se abrirem reflexivamente.
Aquele olhar escuro e perplexo encontrou o meu, o menor recuo
entre as sobrancelhas enquanto ele me observava.
Ike
Meu Ike.
Meu batimento cardíaco vibrou em meus ouvidos enquanto alegria
e tristeza bombeavam através de mim. Ele era tão maravilhoso quanto eu
me lembrava.
E ele estava me tocando.
Minha mente parou com esse pensamento.
Tirando meu olhar do dele para onde sua mão ainda segurava
firmemente meu pulso, a realidade finalmente me atingiu.
Ele. Estava. Me. Tocando.
Mas era um sonho. Talvez ele não fosse capaz de me tocar como
um espírito quando eu estava viva, mas nos meus sonhos... ele
poderia. Isso fazia sentido.
— Charlotte... você não está sonhando, menina.
Forçando meu olhar de volta para o dele, eu abri minha boca para
falar, para questioná-lo, mas as palavras permaneceram raquíticas,
pesadas e imóveis na ponta da minha língua. Nossos olhares estavam
trancados quando ele moveu a cabeça para cima e para baixo,
confirmando meus pensamentos.
— Charlotte... você está do outro lado.
Capítulo um
Charlotte

George me enfrentava enquanto dormia, com as mãos sob o


travesseiro e apoiando a cabeça um pouco para cima. Eu olhei para ele,
estudando o modo como à luz da lua que se infiltrava através das
persianas encontrava os ângulos agudos de seu rosto - ele era um homem
bonito. Esticando a mão, eu ia tirar o cabelo do rosto dele, mas parei de
repente, puxando-a de volta. Eu não queria arriscar acordá-lo. Eu estava
sofrendo de insônia por semanas e, abençoando seja meu marido, ele
sempre tentava ficar acordado comigo o máximo que podia. Ele nunca
durava tanto quanto eu, e fiquei feliz com isso. Ele precisava
descansar. Eu odiava não poder dormir. Além disso, manter George
acordado, era o meu momento e espaço para reiniciar.
Saindo da cama, andei na ponta dos pés calmamente para a
cozinha e abri a geladeira. Deixando a porta aberta para iluminar, me
servi um copo de suco de laranja e tomei alguns goles.
Furrrrrleese. Furrrrrleese.
Eu pressionei os dedos contra a minha testa enquanto a dor aguda
queimava minha cabeça, mal conseguindo colocar o copo que estava
segurando no balcão. A dor nunca durava muito, era rápida, ia e vinha,
como o toque de um botão, mas sempre era forte o suficiente para me
impedir de andar.
Furrrrrleese. Furrrrrleese.
Puxando uma respiração instável, tentei afastar o medo que
senti. — Deus, me ajude, — eu sussurrei em oração. — Ajude-me. — Eu
estava falhando. Eu sabia. Algo estava errado. Fazia meses, mas não
sabia como consertar. Parecia que algum tipo de força estava se
construindo, me empurrando para frente, mas para onde? Era como se
eu fosse um botão, pressionado, sendo mantido por um longo período de
tempo, e assim que fosse solto, explodiria.
Furrrrrleese.
A palavra distorcida roçou minha mente enquanto eu olhava para
o Tupperware contendo o bolo de carne na prateleira de cima. Nós
jantamos com os Mercer naquela noite e a Sra. Mercer sempre nos
mandava para casa com as sobras. George e eu jantávamos várias vezes
por mês com o amável casal que me acolhera tão bem quando cheguei a
Warm Springs anos antes. Talvez tenha sido a perda de sua filha Maggie,
combinada com a ausência dos meus próprios pais por tanto tempo, mas
nos ligamos, e eu era grata por eles. Nós nos tornamos uma espécie de
pequena pseudofamília.
Minha falta de sono me dava muito tempo para pensar... para
relembrar. Ainda me surpreendia quando eu pensava sobre o quanto
minha vida tinha mudado nos três anos desde aquela noite chuvosa que
eu estava na beira de uma ponte, pronta para acabar com tudo. Se não
fosse pela alma de uma estudante da UVA1 assassinada chamada Casey
Purcell me levando para o local onde seu corpo havia sido deixado por
seu agressor, eu não teria o mais ínfimo fragmento da vida que tenho
agora. Mas a vida tem um jeito de mudar tudo quando você menos
espera. Meu show, The In Between, era algo que eu tinha concordado em
fazer uma vez que meu dom se tornou de conhecimento público. Todos
os rendimentos iam para Casey's Ride, uma organização que criamos em
nome de Casey, que oferece transporte gratuito para os alunos. Ela foi
seguida de um bar para sua casa e sequestrada, estuprada e depois
assassinada. Seu agressor deixou seu corpo debaixo de uma ponte. Com
a orientação dela, consegui localizar o seu corpo, o que permitiu o
fechamento da família e ajudou-a a fazer a passagem e, ao fazê-lo, fui
levada ao Condado de Bath, onde conheci Ike e George.
Eu comecei a aceitar o meu dom de ver os mortos - era uma parte
de mim. Era uma habilidade que uma vez me atrapalhou tão
profundamente que quase tirei a minha vida por causa disso. Mas a vida
pode ser irônica. Eu queria morrer por causa dos mortos, mas foram os

1 Universidade da Virginia.
mortos que acabaram me salvando. Eu estava encharcada e cansada até
a alma quando o espírito do Ike McDermott me encontrou na ponte de
Anioch, a poucos momentos de me jogar no rio e deixar isso me arrastar
para longe desta vida.
Ouça, eu não a conheço ou o que você passou, mas sei que daria
qualquer coisa para ainda estar vivo agora, não importa o quê. Não
desperdice o que muitos de nós nunca tivemos a chance de ter.
Ike, um soldado que perdeu a vida na guerra, uma alma presa no
limbo, me trouxe de volta para a terra dos vivos com essas palavras. Ele
me levou para Warm Springs, me ajudou a encontrar um emprego e
conhecer as pessoas certas. Ike me deu esperança. Eu me apaixonei por
ele e seu irmão George. E ele amava tanto George e a mim, que quando
chegou a hora de ele atravessar, encontrou a paz sabendo que estávamos
juntos - que estaríamos bem.
Depois que Ike partiu, levando uma parte de nós dois com ele,
George e eu encontramos uma maneira de sermos inteiros novamente -
juntos, embora a vida nem sempre tivesse sido um conto de fadas. Entre
o vício em drogas do passado de George e minha capacidade de ver os
mortos... as coisas poderiam ficar complicadas, mas nós nos amávamos
e lutávamos um pelo outro. Eu sabia que não importava o que, George
sempre me apoiaria. E ele sabia que eu sempre o apoiaria também.
Então, quando o show começou a se tornar demais para mim, ele
apoiou minha decisão de não assinar uma terceira temporada. Além da
direção em que os produtores estavam indo, tentando me transformar em
algum tipo de Barbie caçadora de fantasmas, eu estava cansada. Eu
estava preparada para ajudar os mortos, mas o que não estava preparada
era para a tremenda tristeza. Parecia que quanto mais almas eu
encontrava, mais trágico o desaparecimento delas havia sido. Nem todas
as pessoas morrem velhas e quentes em suas camas. Alguns morrem de
maneiras hediondas e terríveis. Havia muito horror no mundo, e parecia
implacável. Quanto mais me aprofundava, mais parecia sentir. Estava
ficando cada vez mais difícil anular minhas emoções; não assumir o
desespero dos muitos casos que resolvi. Em última análise, eu me vi
questionando tudo, desde meu dom, meu propósito e até mesmo a
Deus. Eu queria saber o porquê. Por que ele me fez assim? Por que Ele
deixou tantas coisas terríveis acontecerem? A lista de perguntas
continuava, sem nenhuma resposta.
Eu tentei me concentrar em tudo pelo qual era grata, em vez do
que estava me corroendo, roubando meu sono. Fazia três meses desde
que eu tive uma boa noite de descanso. Três longos e cansativos meses
de insônia e dores de cabeça. É engraçado - na verdade não é, e nunca
entendi porque as pessoas usam essa expressão quando estão falando
sobre algo que não é engraçado - como você pode estar flutuando um dia,
perdida em um momento, acreditando ingenuamente que tem tudo sob
controle, apenas para um único evento mudar sua vida para sempre.
Furrrrrleese.
Imagens seguiram a palavra desta vez - olhos vazios escuros e
dedos frágeis batendo contra a parede. As imagens e sons jogando em um
loop na minha mente, mais e mais, me puxando de volta para a noite em
que tropeçamos na Casa do Inferno e descobrimos os horrores dentro de
suas paredes decadentes.
Nós havíamos encerrado a produção da segunda e última
temporada do show no começo do dia e acabávamos de sair de uma festa
de despedida com a equipe em um restaurante chique de Nova
York. Apesar de estarmos no meio de junho, o calor do verão ainda não
havia chegado completamente à cidade, e decidimos aproveitar a noite
agradavelmente quente e desfrutar nossa última noite na Big
Apple. George e eu andávamos devagar, de mãos dadas, nossos dedos
unidos, desfrutando a satisfação de um capítulo se fechando em nossas
vidas e ansiando pelo próximo. Sniper e Anna andavam seis metros atrás
de nós, seu braço maciço sobre os ombros dela, aproveitando seu próprio
passeio de amantes. Os dois finalmente haviam decidido se unir
oficialmente depois de anos de hediondos flertes e namoros. Eu nunca
tinha visto Anna mais feliz. Deixando a filha de Anna, River com sua mãe,
eles se juntaram ao nosso fim de semana prolongado pra comemorar.
— Você está animada para voltar para casa amanhã? — George
perguntou enquanto andávamos sem rumo pela calçada, sem prestar
atenção para onde estávamos indo.
Eu sorri para ele, a ideia de dormir em nossa própria cama envolveu
meu coração como um caloroso abraço. — Eu estou. Você está?
— Estou pronto há algum tempo… só você e eu. Eu estou pronto
para... talvez começar a pensar em fazer um mini você e eu.
Eu congelei no meu caminho fazendo-o parar e me encarar, os cantos
de sua boca levantando em um sorriso incerto. — Um bebê? — Eu
sussurrei, lançando meus olhos em direção a Sniper e Anna, esperando
que eles não ouvissem.
Seu sorriso caiu, suas feições ficando frouxas, quando ele percebeu
minha expressão de pânico. — Quero dizer... não imediatamente, mas eu
pensei que poderíamos começar a pensar sobre isso... talvez. — Suas
palavras vagando quando ele levou minhas mãos ao seu peito, me
puxando antes de pressionar um beijo no topo da minha cabeça.
Um bebê? Eu estava pronta para isso? Eu não tinha tanta
certeza. Que tipo de mãe eu seria enquanto via pessoas mortas? E se o
bebê os visse também? E se eu ferrasse seriamente nosso filho?
— Ela teria seus olhos, esses incríveis olhos cinzentos, — George
murmurou contra a minha testa, sua voz de alguma forma temperando o
pânico crescendo dentro de mim. Meu coração se derreteu um pouco. Ele
disse “ela”. Ele queria uma menina. Deus eu o amava por não ser o macho
estereotipado que queria um menino. Beverly McDermott havia criado seus
filhos corretamente. Um lampejo do que parecia ser um déjà vu brilhou em
minha mente, luminoso e repentino - uma lembrança de quando Ike havia
dito algo parecido. Os homens McDermott estavam sempre tornando minha
fé no gênero masculino um pouco mais forte. — Ela teria meu cabelo, — ele
continuou com naturalidade, como se fosse indiscutível. — Eu não gosto de
me gabar, mas tenho alguns cachos agradáveis, cara.
Sorri quando inclinei minha cabeça e encontrei seu olhar escuro. Seu
sorriso era largo em seu rosto fazendo uma vibração surgir na minha
barriga. Deus, ele era bonito - embora aparentemente simples, essa
palavra continha um peso que resumia perfeitamente as características de
George. Estendendo a mão, passei meus dedos gentilmente pelos cabelos
grossos dele. — Você tem algumas madeixas bonitas, Sr. McDermott.
Ele se moveu, puxando-me para o seu lado, o braço protetoramente
em volta do meu ombro e retomou nosso passeio. Depois de alguns
momentos tranquilos, ele acrescentou: — Eu a ensinaria como caçar e
pescar... — ele fez uma pausa significativa, virando a cabeça um pouco e
cortando os olhos para mim. —... como uma dama de verdade.
Eu ri, minhas preocupações persistentes se dissipando quando
fiquei extasiada no devaneio que meu marido estava tendo sobre nossa
hipotética futura filha. Quando George estava feliz, isso me dava imensa
alegria - e eu sabia pelo tom de sua voz, que apenas o pensamento de
termos um bebê o deixava em êxtase. Eu estendi a mão e entrelacei meus
dedos com a mão que pairava sobre o meu ombro, um sorriso triste nos
meus lábios.
— O quê? — Ele perguntou, notando minha expressão.
Meu sorriso ficou maior. Eu não pude deixar de provocá-lo um
pouco. — Você sabe, se você tiver uma filha...
— Terei que me preocupar com todos os paus, — ele terminou,
revirando os olhos. — Sim. Sim. Eu conheço o ditado.
Rindo, virei à cabeça e beijei sua mão. — Ela nem sequer foi
concebida ainda, e você já é um pai protetor.
— Eu não estou preocupado com os meninos, — argumentou ele. —
Entre mim, Sniper, e Cameron... pfft... — Ele deu de ombros indiferente.
— Eu ouvi meu nome? — Sniper perguntou, seu sexy sotaque escocês
flutuando em nossa direção. Ele e Anna nos alcançaram enquanto
estávamos parados.
— Apenas afirmando o fato de que com Cameron, você e eu, nenhum
cara chegaria perto de nenhuma filha minha, — explicou George.
— Deus ajude o rapaz que tentar, — concordou Sniper.
— Nós já começamos a ficar de olho em River, — George chamou por
cima do ombro.
— Vocês dois são ridículos, — Anna riu.
Torcendo minha boca, senti um pouco de pena da hipotética menina
McDermott. George estava certo, com os três ao redor, ela teria sorte se
beijasse um homem antes dos vinte e cinco anos.
Naquele momento feliz, quando todos estávamos rindo e envolvidos
em nossos devaneios, eu esqueci minha realidade por uma fração de
segundo; esqueci que os planos “normais” não eram um luxo para mim. Foi
quando senti isso. Meu estômago se apertou e eu me esforcei para
mascarar qualquer reação externa enquanto cautelosamente olhava ao
redor em busca da fonte. Minha pele formigou quando meu olhar pegou um
tremor à nossa frente. Alguém estava nos observando enquanto
caminhávamos em direção a ele. Eu olhei para George para ver se ele havia
notado, mas ele parecia perfeitamente alheio à mulher mais velha
empoleirada na varanda. George estava tagarelando sobre nomes -
Georgeanna, aparentemente, estava no topo de sua lista - quando a mulher
e eu fechamos os olhos pela primeira vez. Eu afastei meu olhar, esperando
que ela não estivesse morta - talvez George estivesse muito envolvido em
seu devaneio e não a tivesse notado, mas quando os cabelos dos meus
braços arrepiaram, eu soube.
— Droga, — eu murmurei, fazendo George congelar.
— Onde eles estão? — Ele perguntou, sua voz baixa, lançando seu
olhar em todas as direções. A culpa me espremeu por dentro. Eu odiava
isso. Apenas alguns segundos atrás meu marido parecia estar no topo do
mundo, e agora estava todo preocupado.
Olhando ao redor, percebi que de alguma forma tomamos um
caminho errado. — Onde estamos? — Perguntei-me
calmamente. Enquanto caminhamos, perdidos em nosso devaneio, nosso
grupo realmente se perdeu. A vizinhança que nos rodeava era
abandonada, as ruas ladeadas por moradias meio dilapidadas com
janelas quebradas. A maioria das casas tinha placas de construção
pendurados nelas, talvez estivessem prestes a derrubar tudo e
reconstruir. — Ela está nos degraus, — eu respondi enquanto olhava para
ela. Quando nossos olhos se encontraram dessa vez, ela se animou. Ela
sabia que eu a tinha visto. Como uma bala, ela se materializou na nossa
frente, fazendo-me recuar um pouco. Porra eu odiava quando eles faziam
isso. Não importa quantas vezes os mortos fizessem isso comigo, sempre
me assustava.
— Você me vê? — Ela questionou, seus olhos azuis pálidos
arregalados em descrença.
— Sim, eu vejo você.
— Ela já está falando com você, — George suspirou. Meu coração
afundou. Por mais que meu dom fosse pesado para mim, eu sabia que era
difícil para ele também. Ele estava constantemente preso me vendo falar
com pessoas que não podia ver ou ouvir.
— Como isso é possível? — Perguntou a mulher.
Passei alguns minutos explicando sobre quem eu era e o que
fazia. Quando terminei, ela juntou as mãos e implorou com desespero: —
Por favor, me ajude. Não posso partir até que alguém saiba a verdade.
— A verdade sobre o quê?
Sua boca fina apertou quando ela virou a cabeça e fixou seu olhar
no condomínio ao nosso lado. Quando olhei para o barraco de uma casa,
um arrepio percorreu minha espinha fazendo minha pele gelar com
calafrios. Alguma coisa parecia ruim, mas eu não tinha ideia do que. — O
que ele fez com eles, — ela murmurou sombriamente.
Estreitando os olhos nela, abri a boca para perguntar o que ela
queria dizer quando suas feições se suavizaram e ela falou de novo. —
Você é uma jovem muito bonita, — ela elogiou, sua voz suave. — Eu aposto
que seu cabelo ficaria adorável trançado. Eu era boa em trançar quando
estava viva.
Eu fechei minha boca e a observei por um momento. Essa mulher era
estranha. Seu comportamento havia mudado, seu olhar vazio saltando de
desesperado para ansioso em questão de segundos.
Ela se materializou nos degraus e olhou para mim. — Você deve
entrar, — ela me informou antes de se materializar na varanda.
Eu examinei a casa novamente, pavor e incerteza florescendo na
boca do meu estômago. A casa era motivo suficiente para me sentir
desconfortável, mas acrescente a mulher estranha, e meu instinto estava
gritando para que eu abortasse a missão.
— Entre, — ela persistiu, apontando a mão para a porta da
frente. Sua voz ainda era suave e convidativa, mas era a tensão em seu
rosto que a entregava. A bondade era a personalidade que ela estava
tentando, mas não era difícil dizer que era um ato. Na verdade, parecia
quase doloroso para ela ter que fingir.
Embora eu a achasse suspeita, e meu instinto dissesse para não
confiar nela, não podia negar algo sobre a casa estar me puxando.
— Ela quer que a gente entre na casa, — expliquei a George enquanto
me movia para subir os degraus. Agarrando meu braço, ele me parou.
— Nós não vamos lá, — ele zombou como se eu fosse louca. — Quem
sabe se é seguro entrar lá, o lugar está em ruínas.
Olhando para a casa, suspirei. Ele estava certo. Parecia um buraco
de merda total. Embora eu concordasse com ele, não podia negar que
estava curiosa. Algo inexplicável me atraía para a casa. — Bem, eu posso
pelo menos espiar e ver, — eu arrisquei. Isso parecia um acordo justo.
— Charlotte, menina, — Sniper interveio. — Não sabemos se tem
alguém lá. E se houver invasores ou drogados?
Ele tinha um bom ponto. O lugar parecia um esboço do
inferno. Também parecia um lugar perfeito para as pessoas se
esconderem.
— Não há ninguém aqui, — a senhora chamou, tendo escutado suas
preocupações.
Olhando para Sniper e depois para George, eu repassei o que a
mulher havia dito. — Ela diz que está vazio.
George sacudiu a cabeça, inseguro. — Por que temos que entrar? Por
que ela não pode simplesmente dizer o que precisa aqui?
Novamente. Um ponto válido. Minha curiosidade ainda não havia
superado meu bom senso. Embora uma parte de mim quisesse entrar na
casa, a parte mais inteligente ainda estava aberta à razão.
— Você pode simplesmente explicar tudo aqui, por favor? — Eu falei.
— Não estamos confortáveis em entrar na casa agora.
Espremendo os olhos, ela se arrepiou de frustração. Todo o esforço
que estava colocando em parecer gentil e paciente evaporou. — Eu tenho
que te contar na casa. Eu não posso te dizer aqui. Você precisa entrar.
Estreitando meus olhos para ela, eu a estudei. Suas feições estavam
tensas; desconforto gravado em seu rosto. Mas ela estava morta - seria
impossível para ela sentir dor física. Virando-me para a casa, examinei-a
de cima a baixo, sentindo o mesmo puxão. Mas por que a casa me
puxaria? O pensamento de simplesmente ir embora não caia bem em mim.
Foi quando a vi - uma menina pequena, de cabelos e olhos escuros,
olhando para fora de uma das janelas do segundo andar. Então,
imediatamente depois que nossos olhos se encontraram, outra menina com
características semelhantes apareceu ao lado dela. Meu estômago deu um
nó enquanto elas olhavam para mim. Elas eram crianças... só meninas. E
elas estavam mortas.
— Quem são as meninas? — Eu perguntei à mulher, fazendo com
que Anna, Sniper e George balançassem a cabeça na minha direção.
— Há garotinhas também? — George perguntou.
— Elas estão aqui? — A mulher ofegou. — Onde? — Ela virou a
cabeça como se elas pudessem estar de pé ao lado dela. Seu choque fazia
sentido. Ela não saberia que elas estavam presentes. Por alguma razão,
almas no limbo não podiam se ver.
— Você vê crianças? — Anna ofegou, sua voz já rachando de
emoção. Talvez fosse porque ela era mãe, e o pensamento de uma criança
sofrendo tocasse seu coração de uma certa maneira, ou talvez ela
simplesmente não tivesse a constituição para nada disso, lidar com os
mortos.
— Shh, — Sniper a silenciou, sabendo que eu precisava me
concentrar, e várias pessoas falando ao mesmo tempo não eram úteis.
Eu ignorei Anna e George, olhando para a mulher, desta vez minha
boca apertada em frustração. Minha mente estava correndo com todos os
tipos de pensamentos malucos. Elas não se parecem com ela. Nenhum
pouco. — Há duas delas.
Materializando-se de volta nos degraus, ela apertou as mãos na
frente dela. — Você tem que entrar. — Olhando para longe de mim, ela
levantou o queixo em indignação. Essa mulher estava me dando nos
nervos. Ela queria que eu a ajudasse, mas achava que ia dar todas as
ordens. Normalmente, eu a colocaria no lugar dela, mas... havia as
meninas. Eu tinha que saber o que havia acontecido com elas. Eu tinha
que ajudá-las. Então mordi minha língua, com medo de que se eu a
atacasse, ela pudesse esconder a informação que estava procurando.
Olhando para os meus pés, sabendo que o que estava prestes a dizer
iria perturbar George, falei baixinho: — Eu tenho que entrar. Desculpe-me,
mas eu tenho que ir.
Eu podia sentir a tensão de George quando ele inspirou
profundamente, enquanto Sniper e Anna trocavam olhares
preocupados. Eu sabia que George não estava com raiva de mim,
estávamos prontos para uma pausa. Nós queríamos ir para casa e
respirar, mas aqui estava eu prestes a assumir outra alma perdida, ou
melhor, várias almas perdidas.
Quando levantei meu olhar para as meninas, elas não se
mexeram. Suas almas estavam se fundindo, obscurecendo, juntas,
nenhuma delas sabendo que estavam uma sobre a outra. Meu peito doía
enquanto eu me perguntava quanto tempo elas estavam no limbo, ambas
se sentindo sozinhas mesmo quando estavam juntas.
— Eu vou entrar primeiro e verificar, — Sniper se ofereceu depois de
um momento, nos contornando. Isso era algo que eu amava nele. Ele não
recuava e hesitava sobre uma tarefa. Ele sempre se adiantava e
trabalhava com a situação em questão, não importava o quão horrível
fosse.
— Eu vou com você, — George disse, seguindo atrás dele. Quando
ele passou por mim, eu agarrei sua mão fazendo-o voltar e encontrar o meu
olhar.
— Obrigada, — eu murmurei enquanto olhava em seus olhos
escuros, esperando que ele pudesse ver que eu sabia o quanto isso era
ruim, e como era grata. Dando a minha mão um aperto rápido, deixando-
me saber que estava tudo bem, ele a soltou e continuou a seguir Sniper
pelos degraus até a varanda.
— Não tem ninguém aqui — insistiu a mulher, claramente agitada
enquanto se materializava na varanda em frente à porta, como se quisesse
impedi-los de entrar.
Eu não me incomodei em dizer aos caras o que ela falou. Enquanto
eles estavam ocupados inspecionando o lugar do lado de fora, eu reunia
qualquer informação que pudesse do espírito menos que encantador,
começando com o básico. — Qual é o seu nome?
Ela me olhou de cima. — Agnus.
Deixando isso rolar mentalmente, balancei a cabeça algumas
vezes. O nome se encaixava bem nela. — Agnus, — comecei, subindo os
degraus até que estava na frente dela. Sniper e George espiaram pelas
janelas sujas antes de se dirigirem para a porta da frente. — Nós vamos
verificar a casa para ter certeza de que é seguro. Então, se eu concordar
em entrar, você vai me explicar quem são essas garotas.
Seu olhar severo saiu do meu, mudando sua linha de visão para
além de mim, mas ela não abaixou a cabeça. Ela era uma mulher
orgulhosa e sabia como manter uma postura confiante - como se
acreditasse que parecendo abalada a faria parecer fraca e a colocaria em
desvantagem. Eu poderia dizer que ela não gostava que eu tomasse as
decisões, mas deve ter sabido, que em sua situação atual, me desafiar não
lhe faria nenhum favor, então permaneceu em silêncio.
A porta da frente estava trancada, e Sniper grunhiu quando ele
jogou o ombro contra ela, forçando-a a abrir. Agnus assustou-se com o som
e se afastou da porta quando Sniper a abriu e recuou. A porta rangeu
assustadoramente enquanto se abria lentamente, o som enviando um frio
estridente pela minha espinha. Meu olhar estava fixo na porta, quando
algo intenso e pesado me atingiu, tirando o ar dos meus
pulmões. Tropeçando para trás, quase caí, mas George agarrou meu braço,
me equilibrando.
— Você está bem? O que foi isso? — Ele perguntou quando encontrei
seu olhar preocupado.
Jogando meu olhar de volta para a casa, olhei para dentro e chupei
uma respiração irregular. Eu não tinha certeza. Fisicamente, nada me
tocou, mas parecia que eu havia sido revestida por uma onda de medo
imenso e desespero esmagador. Um caroço duro se formou na minha
garganta, aquela dor aguda que você tem quando quer chorar, mas está
lutando contra isso.
— Eu não sei, — eu resmunguei através da névoa em minha mente,
uma queimadura gelada de confusão e dor circulando em minhas
veias. Cortando meus olhos para Agnus, encontrei seu olhar nervoso fixo
em mim, confirmando que o que eu estava sentindo era preciso.
— É ruim. — Medo atou meu tom. — Algo muito, muito ruim.

— Ei você, — a voz profunda de George me assustou de meus


pensamentos. Há quanto tempo eu estava na cozinha com a porta da
geladeira aberta?
— Oi. — Eu balancei a cabeça, limpando-a. Pressionando meus
dedos no meu templo, esfreguei levemente quando outra dor aguda
diminuiu. — Eu não queria te acordar.
— Você não o fez, — ele contornou o balcão, vestindo nada além de
sua cueca boxer, me dando uma visão perfeita de seu corpo
esculpido. Malhar se tornou sua nova droga escolhida. Ele amava a
excitação que sentia depois de torturar seu corpo na academia, e isso
aparecia. Agarrando minha cintura, ele me levantou no balcão com
facilidade e se moveu entre as minhas pernas. Eu estava vestindo apenas
uma de suas camisetas de algodão e calcinha fio dental, então quando
suas mãos deslizaram pelas minhas coxas, não foi difícil ver a maneira
como meu corpo respondeu quando o tecido fino revelou meus mamilos
endurecidos.
— Eu não gosto de acordar e não encontrá-la ao meu lado, — ele
murmurou enquanto roçava os lábios contra o meu pescoço. — Você não
conseguiu dormir.
Não foi uma pergunta, mas senti a necessidade de responder de
qualquer maneira. — Não. Minha mente não para de correr. — Minhas
mãos agarraram seus ombros enquanto deixei minha cabeça cair para
trás, saboreando seu toque, um pequeno gemido escapando de mim.
Afastando-se, ele segurou meu queixo em sua mão e encontrou
meu olhar. — Eu vou levá-la de volta para a nossa cama e fazer amor
com você até que esteja em coma. — Minha respiração engatou quando
ele me puxou para frente, batendo-me contra ele, minha bunda mal
descansando no balcão enquanto uma deliciosa dor crescia no meu
núcleo. Meu marido me conhecia bem e sabia exatamente como me
distrair. Quando eu não conseguia dormir, quando minha mente corria
enlouquecida, ele sabia como acalmar o barulho arrancando cada grama
de energia do meu corpo. Agarrando o cabelo dele, eu o beijei
forte. Quebrando o beijo, ele pressionou sua testa na minha, gemendo
enquanto soltava um suspiro irregular, seu desejo tão forte quanto o
meu. — Você está pronta, Sra. McDermott?
Eu passei meus braços ao redor de seu pescoço, apertando minhas
pernas ao redor de sua cintura enquanto ele me levantava do balcão e
nos levava para o quarto. — Estou pronta, Sr. McDermott.
Capítulo dois
George

— Ainda esperando aquela torta para a mesa dez, — Charlotte


gritou. Eu estava cozinhando quando ela entrou na cozinha para encher
um copo de chá.
— Trabalhando nisso, — Sniper gritou de volta.
Charlotte esfregou a têmpora, as feições ligeiramente contorcidas,
claramente desconfortáveis. Ela teve outra dor de cabeça. Entre as dores
de cabeça e a insônia, fiquei surpreso que ela pudesse sair da cama. De
alguma forma ela conseguiu isso, e muito mais. Desde que voltamos para
Warm Springs, ela quis se lançar em nossas antigas rotinas, esperando
que a familiaridade disso a colocasse de volta nos trilhos. Isso me levou
a gerenciar, cozinhar, servir e trabalhar como barman, se
necessário. Charlotte também fazia tudo isso quando precisava, embora
preferisse servir. Eu não pude deixar de observá-la enquanto ela estava
na frente da jarra de chá. Não importava que estivéssemos sempre
juntos; Acordássemos um com o outro todas as manhãs, meus olhos
sempre a encontravam, e sempre iriam, não conseguia evitar. Charlotte
era o tipo de bela que a maioria dos homens não poderia deixar de notar
e olhar, embora eu achasse que ela não passava de uma dor na bunda
quando apareceu pela primeira vez na cidade há três anos; entretanto, se
você lhe perguntasse, ela provavelmente diria que sentiu o mesmo por
mim. Tinha começado como os instintos naturais de um homem sendo
atraído por uma mulher, mas sua presença era magnética e, apesar de
não ter certeza se eu gostava dela, não pude lutar contra essa atração. Ao
longo dos anos, essa atração não diminuiu. Eu ainda observava a linda
mulher, minha esposa, mas agora eu precisava vê-la; Eu precisava saber
que ela estava bem. Fazia meses desde que senti que ela estava, e isso
me comia vivo. Meu trabalho como marido era protegê-la, defendê-la,
dar-lhe paz e felicidade. Eu lutaria por ela, independente de quem,
quando ou onde. Mas como um homem luta contra os mortos? Como
poderia protegê-la de algo que eu não podia ver ou ouvir?
— Estou vendo você olhando para a bunda dela. Ainda um
pervertido por ela depois de todos esses anos. — Meu olhar
relutantemente se afastou dela quando ela saiu da cozinha e se deslocou
para encontrar Sniper me observando, um sorriso de merda no rosto.
Eu bufei. Ele saberia. Sniper era o rei dos pervertidos. — Eu não
estava olhando para a bunda dela.
— Bem, se isso é verdade, então me sinto triste por você, cara,
porque a bunda dela merece ser olhada.
Eu joguei a toalha de mão do meu ombro nele, acertando-o no peito
enquanto o encarava: — Não fique falando sobre a bunda da minha
esposa, seu idiota.
Pegando a toalha e jogando-a sobre o próprio ombro, ele riu: —
Bem, se você não está olhando para ela, alguém deveria. — Então ele
levantou as mãos em sinal de rendição e acrescentou: — Mas você está
certo. Eu não deveria estar falando sobre a bela bunda de sua esposa.
— Você está tentando me fazer chutar seu pau, ou o quê?
Ele riu antes de seu sorriso desaparecer enquanto apoiava o
quadril contra o balcão e cruzava os braços, continuando a me
observar. — Eu sei que você não estava olhando para a bunda dela, —
ele admitiu, o humor em seu tom diminuindo. — Eu só queria provocar
uma reação sua.
Eu desviei o olhar quando limpei a faca de corte no meu avental.
— Ela vai ficar bem, George, — ele me assegurou, antes de voltar
sua atenção para os pedidos que precisavam ser preparados. Depois de
colocar alguns pratos na janela e gritar em aviso, ele se virou para mim,
sua expressão hesitante. — Você sabe, eu vi um programa outro dia – em
um canal feminino que Anna assiste — ele murmurou, balançando a
cabeça como se estivesse envergonhado de admitir onde tinha visto. —
Uma moça de aparência selvagem que é psíquica e se comunica com os
mortos.
Vagamente escutando, perguntei: — Como Charlotte?
— Não. Ela afirma que pode falar com os mortos-mortos.
Eu franzi minha testa. — Mortos-mortos?
Ele gesticulou com a mão. — Tipo as almas que já atravessaram.
— Ela parece legítima?
Sniper encolheu os ombros. — Acho que sim. Alguém entrou e quis
saber se a pessoa amada estava em paz e queria se despedir, e ela se
conectou com ele. Disse-lhe coisas que só a pessoa amada saberia.
— Quem sabe. Há tantos charlatões por aí.
— Eu só quis dizer que ela parecia ter um bom controle sobre
isso. Talvez ela e Char pudessem se conectar. Talvez fosse bom Char falar
com alguém como ela, sabe?
— Isso é tudo que precisamos. Outra pessoa que vê os mortos. —
O comentário soou severo e eu estremeci. Eu não quis dizer isso dessa
maneira. — Isso foi uma coisa idiota para dizer.
Ele concordou com a cabeça. — Ela não pode evitar ser como é.
— Eu sei, — reconheci.
Eu balancei minha cabeça enquanto fatiava uma cebola, minha
frustração se manifestando em cortes duros e abrasivos enquanto
cortava. — Eu não a mudaria por nada. — Essa era a mais pura verdade
de Deus. Charlotte era especial e seu dom era parte dela.
— Sim, — Sniper concordou.
— Eu não sei, cara. Ela não está dormindo. Ela continua tendo
dores de cabeça. Ela está se mostrando forte, mas não está. Eu sinto isso.
— Fazia semanas desde que ela dormiu, realmente dormiu. Nós
passamos horas na cama na noite anterior, beijando, roçando, fodendo
tudo para deixá-la exausta, para lhe dar alívio. Só então ela dormiu, a
fadiga do corpo dominando a tenacidade de sua mente.
Sniper olhou para a porta que dava para o restaurante. — Eu sei
que você está preocupado, — ele puxou a toalha de seu ombro e começou
a limpar o balcão enquanto falava, — mas a mulher é dura. Ela vai
superar isso.
Eu cortei mais rápido, os eventos dos últimos meses rodando na
minha cabeça. O medo e a incerteza na voz de Charlotte no dia em que
entramos na Casa do Inferno, pouco antes de entrarmos, repassaram
uma e outra vez em minha mente. Aquele foi o momento. Assim que ouvi
seu medo, deveria tê-la tirado de lá e levado embora.

— Algo muito, muito ruim. — Era impossível perder o medo


envolvendo o tom de Charlotte enquanto ela olhava através da porta para
a casa abandonada.
Eu tentei manter a calma, mas as palavras de Charlotte deixaram
todos os nervos do meu corpo em alerta máximo. Além do fato de que algo
a assustou tanto que quase caiu de bunda, ela estava tremendo. — Não
vamos entrar, — informei a todos.
Ela fechou os olhos com força, como se estivesse limpando a cabeça
antes de voltar a olhar para a porta, sua expressão vazia enquanto tentava
esconder sua preocupação. Ela não queria que eu soubesse que estava
com medo. — Nós temos que.
Eu não ia deixá-la se safar tão fácil. — Charlotte, você está tremendo
como uma folha.
— Tem garotinhas aqui, George. Crianças. — Ela estremeceu antes
de acrescentar, — eu tenho que entrar.
Sniper e eu trocamos olhares incertos antes que ele me desse um
encolher de ombros. Ele sabia onde eu queria chegar, e não queria entrar
mais do que eu, mas entendia que precisávamos. Para minha esposa,
nunca era simples ir embora. Se saíssemos naquele exato momento e
voltássemos para o hotel, Agnus e possivelmente as menininhas a
seguiriam. Espíritos podem ser implacáveis. Eles não deixariam Charlotte
descansar até que descansassem. O que significava que Charlotte
precisava entrar. Nós não poderíamos lidar com os mortos por ela, mas
poderíamos fazer o nosso melhor para mantê-la segura em todas as outras
áreas.
— Ok, — eu finalmente concordei. — Mas Sniper e eu ainda
entraremos primeiro para verificar o lugar.
Ela assentiu com a cabeça, uma sugestão de nervosismo visível em
seus traços por um breve momento antes de se fortalecer. — Obrigada. —
Minha garota não gostava que ninguém a visse com medo.
Sniper virou um olhar severo para Anna, que estava esperando no
último degrau da varanda, com as mãos nos bolsos de trás do jeans
enquanto nos observava. — Você, — ele apontou um dedo firme para ela,
— espere bem aqui. Não entre.
Anna assentiu em reconhecimento, os olhos cheios de
preocupação. Era evidente que ela não tinha vontade de entrar na casa e
não tentou discutir sobre isso.
Sniper e eu fizemos uma rápida varredura no prédio de dois andares
antes de voltar para a varanda onde Charlotte parecia estar falando
sozinha, mas sabíamos que ela estava falando com Agnus.
— Este lugar é um buraco de merda, — Sniper anunciou
desnecessariamente quando saímos. — Não tem ninguém na casa, mas
parece que alguém anda se escondendo por aqui, então devemos fazer isso
rápido, caso eles voltem.
— Lidere o caminho, Agnus, — disse Charlotte, sua voz confiante
quando ela se afastou e gesticulou para a porta aberta. Um momento se
passou antes de Charlotte entrar na casa e congelar, respirando
profundamente, como se para se equilibrar.
— Você está bem? — Eu perguntei, gentilmente descansando minhas
mãos em seus ombros.
— Eu nunca senti... o que estou sentindo. — Ela tremeu sutilmente,
e eu agarrei seus ombros com mais força, esperando que isso a
firmasse. — É como uma onda de… desespero esmagador. Não sei como
explicar isso — ela murmurou, com a voz embargada de emoção. Meu
estômago revirou. Ao longo dos anos, ela conseguiu praticamente construir
um escudo, uma maneira de se proteger de ser muito afetada pelas coisas
que via. Ela usava bem seu escudo protetor, mas hoje parecia estar
vacilando. Vê-la abalada me preocupou. Isso significava que havia uma
brecha nesse escudo. E se algo realmente estivesse passando por sua
parede impenetrável... tinha que ser ruim.
— Eu estou bem aqui com você, — a lembrei, certificando-me de
manter minha voz forte e firme para que ela se sentisse segura. — Se a
coisa ficar muito intensa, ou você se sentir sobrecarregada, fale, e a jogarei
sobre o meu ombro e a tirarei daqui.
Recostando-se para pressionar contra mim, ela sussurrou: — Meu
herói. — Eu tive que admitir, que gostei de ouvir. Eu queria ser o seu
herói; seu protetor. Era bom saber que ela também acreditava nisso.
Quando nos movemos mais para dentro da casa, ela distraidamente
girou uma mecha de seu longo cabelo em volta do dedo, algo que fazia
quando estava pensando.
— Onde está Agnus? — Perguntei.
— No topo da escada.
Ela ainda estava encostada em mim quando senti suas costas
tensas enquanto inalava bruscamente. Ela estava se preparando. Então,
num piscar de olhos, ela subiu correndo os degraus. Momentaneamente
atordoado por seu movimento súbito, Sniper e eu levamos alguns instantes
para reagirmos antes de segui-la subindo as escadas para o segundo
andar, diminuindo a velocidade quando a alcançamos na porta aberta de
um dos quartos. Ela estava do lado de fora, encarando.
— Olá, — ela cumprimentou baixinho, sua voz hesitante ecoando na
sala vazia. — Não tenha medo. — Ela levantou a mão como se para
oferecer a garantia de que não causaria nenhum dano, mas a deixou
cair. — Meu nome é Charlotte e estou aqui para ajudá-la.
— Posso entrar... — Charlotte se moveu entrando no quarto, mas
congelou no meio do caminho. Ela olhou para o quarto vazio, sua expressão
cheia de preocupação. — Quem vai me machucar?
Sniper e eu olhamos um para o outro antes de examinarmos a área
ao nosso redor. Se tivéssemos perdido alguma coisa? Havia alguém na
casa?
— Que homem mau? — Charlotte sussurrou, seu rosto se
contorcendo de horror.
— George, — Charlotte chamou, tirando-me dos meus
pensamentos. — Minha torta, querido? — Círculos escuros pairavam sob
os olhos, e os ossos de sua bochecha estava mais proeminente, um sinal
de que ela estava perdendo peso. Ela escondia bem, mas à luz da cozinha
eu podia ver que suas feições estavam mais sombrias e vazias.
— Está saindo, moça, — Sniper respondeu por mim. Ela pegou
alguns guardanapos e correu para fora da cozinha.
O ambiente girou ao meu redor, as cores e sons borrando. Fechei
meus olhos, tentando me acalmar. Você deveria tê-la impedido de entrar.
Ao entrar na casa, Charlotte esperava encontrar as almas das duas
garotas que tinha visto na janela, mas não esperava encontrar uma
terceira. Duas almas atravessaram... uma permaneceu.
Nós voltamos a Nova York duas vezes desde aquele dia, mas mesmo
depois da segunda viagem até lá, Charlotte não tinha conseguido
interagir com a garota, e embora saíssemos de Nova York e da Casa do
Inferno, o espírito da menina presa no quarto escuro onde Charlotte a
encontrou, de certo modo sempre voltava para Warm Springs com a
gente. Charlotte não era assombrada pelo fantasma da menina; não, ela
era assombrada por seu fracasso em ajudar a criança.
Eu odiava aquela maldita casa, a Casa do Inferno. Eu odiava Agnus
e o que ela tinha feito, não apenas para as crianças, mas por tudo que
estava acontecendo agora com minha esposa. Desde o dia em que
entramos naquele buraco, minha esposa dormia cada vez menos e sofria
mais. Quanto mais eu pensava sobre isso, mais quente meu sangue
bombeava, e mais rápido eu cortava.
— George, — disse Sniper, preocupação em seu tom.
Eu fiquei tenso quando ele disse meu nome, perdendo o foco na
tarefa em mãos, e pressionei a lâmina na ponta do meu polegar. —
Merda, — eu assobiei quando puxei minha mão para trás e avaliei a
ferida. Sniper agarrou meu pulso e envolveu uma toalha em volta dele. O
Exército ensinara-lhe a agir rapidamente e raramente surgia uma
situação quando Sniper estava presente e não era imediatamente
abordada.
— Isso vai precisar de pontos, — disse ele sem rodeios.
— Eu só preciso de uma bandagem é tudo, — eu insisti, puxando
minha mão.
— O que aconteceu? — Minha cabeça se ergueu ao som da voz de
Charlotte.
— Só cortei meu polegar. Não é grande coisa. — Minha segurança
não a influenciou. Ela avançou e parou na minha frente, pegando minha
mão e levantando a toalha, estremecendo quando viu.
Seus olhos cheios de preocupação cortaram para os meus. — Você
precisa de pontos, querido.
— Eu te disse, — acrescentou Sniper.
— Está tudo bem, — eu tentei mais uma vez, tentando manter a
calma. Eu não estava chateado com nenhum deles, apenas comigo
mesmo.
— Vamos lá, eu vou levá-lo, — disse ela, ignorando a minha
tentativa de dissuadi-los da preocupação.
Balançando a cabeça, desamarrei meu avental com a mão ilesa. —
Você tem mesas.
— Anna pode lidar com isso. Vamos lá.
— Eu vou sozinho, — resmunguei quando puxei o avental e joguei
no chão. — Você limpa isso para mim, Sniper?
— Pode deixar, — ele disse agradavelmente.
— Eu vou levá-lo, — Charlotte expressou teimosamente quando a
contornei.
Eu segurei a parte de trás de sua cabeça com a mão não
ensanguentada e puxei-a para mim, pressionando um beijo em sua
testa. Eu apreciei sua preocupação, e sabia que ela só queria ajudar, mas
precisava de um tempo para relaxar. Minha prioridade número um era
ajudá-la, protegê-la do estresse; agora eu precisava protegê-la de mim
mesmo. — Você fica aqui, querida. Volto em breve. — Saí da cozinha e
passei pela porta dos fundos. Eu estava com um humor terrível e não
tinha nada a ver com o corte na minha mão. Tinha tudo a ver com o
sentimento de não ter controle, e isso porque não o tinha. O que eu não
queria admitir, porém, era que a única outra vez que me senti assim foi
depois da morte do meu irmão Ike. E não gostava de onde esses
sentimentos estavam me levando.
Capítulo três
Charlotte

Deixando meus ombros caírem, fiz uma careta quando George


desapareceu pela porta dos fundos. Por que ele não me deixou levá-
lo? Sniper soltou um suspiro e colocou as mãos nos quadris.
— Sou eu, não é? — Eu perguntei sem rodeios.
— Ele está preocupado com você, — ele disse simplesmente,
despejando a cebola ensanguentada no lixo e jogando a tábua na
pia. Sniper nunca mentia. Você fazia uma pergunta, ele dava uma
resposta honesta. Ele não só pregava, mas vivia o lema que a vida é curta
demais para mentir e adoçar as coisas.
Eu balancei a cabeça, olhando novamente para a porta dos
fundos. Isso era culpa minha, e não estava apenas me corroendo, mas a
George também. Meu fracasso estava derrubando nós dois.
As duas garotas que vi na janela eram Mary e Diana. Levou algum
tempo, mas consegui toda a informação que podia delas, e estávamos
prestes a ir até a delegacia de polícia para fazer um relatório quando ouvi
uma leve batida na parede de um quarto dos fundos. Eu não tinha
pensado em inspecionar a casa por mais espíritos, porque geralmente eles
vinham até mim. Ao som, eu parei e escutei, em seguida, lancei meu olhar
desconfiado entre Agnus e as meninas.
— O que houve? — Sniper perguntou quando percebeu minha
expressão. O questionamento de Sniper e George confirmou que eles não
ouviram a batida, o que significava apenas uma coisa.
Eu fixei meu olhar pesado em Agnus. — Havia mais meninas?
Seus pálidos olhos azuis se abriram brevemente quando ela virou a
face obstinada para mim. Se eu pudesse ter envolvido minhas mãos em
torno de sua garganta e a estrangulado naquele momento, eu teria. As
histórias de Mary e Diana foram o suficiente para me fazer querer
estrangular Agnus, mas ela me ignorar descaradamente quando fiz uma
pergunta e ainda assim esperar que a ajude me levou ao limite. Eu estava
com tanta raiva que a dor subiu pela minha espinha, enrijecendo meus
ombros. Virando, eu enfrentei Mary e Diana. Elas não tinham saído do
quarto porque estavam com muito medo que o homem mau as pegasse,
mesmo quando insisti que não havia nenhum sinal dele.
— Alguma de vocês sabe se havia outras garotas aqui? Mary, — eu
fixei minha atenção nela, — Você fala primeiro, por favor. — Eu tive que
especificar isso para elas porque era a mediadora, ou elas simplesmente
falariam uma sobre a outra.
Mary, de cabeça baixa, olhou para mim sob seus longos cílios
escuros. Sua voz tímida, ela explicou: — Eu ouvi uma outra garota, mas
nunca a vi. Ela gritava e gemia muito. Eu só a ouvi por dois dias antes que
ela se calasse. A última noite em que ouvi, ela estava chorando muito alto,
e o homem mau entrou em seu quarto. Ele gritou com ela. Ela estava
chorando, então ela simplesmente parou. Eu não a ouvi novamente depois
disso.
George e Sniper não se moveram quando andei em direção ao quarto
onde ouvi as batidas. Meu estômago estava cheio de fúria, esse sentimento
estranho de raiva e proteção me dominando por essas jovens
garotas. Nenhuma criança deveria suportar essas atrocidades. Nenhum
adulto, aliás, mas aqui estávamos nós. Eu estava envolvida em uma das
coisas mais feias e cruéis que uma criança poderia sofrer. Rasgou-me ouvir
pelo que as garotas passaram, mas saber que tinham ficado presas no
lugar do seu tormento desde que morreram foi quase demais.
A porta do quarto rangeu quando a abri, revelando uma menina
batendo ritmicamente contra a parede oposta, resmungando de maneira
ininteligível. A menina era bonita, assim como as outras, mas depois de
observá-la por um momento não foi difícil dizer que ela era diferente. Ela
não pareceu registrar minha presença, mesmo quando falei. Eu pulei e
gritei, mas ela continuou repetindo algo que não consegui decifrar, e
batendo com os dedos contra a parede. Ocasionalmente, ela se afastava
da parede e caminhava pelo quarto clicando a língua enquanto estalava
os dedos.
Eu praticamente fiquei com minhas mãos roxas batendo contra a
porta e paredes para chamar sua atenção, mas nas poucas vezes que o
fiz, foi apenas por um segundo antes que ela deslizasse de volta para seu
próprio mundo. George finalmente me parou depois de vinte minutos,
descansando a mão no meu ombro, onde eu estava agachada, minhas
mãos cerradas enquanto a observava. — Vamos dar um passo de cada
vez, Charlotte, — ele disse calmamente. — Talvez devamos ajudar as
outras duas garotas e Agnus primeiro. Então podemos nos concentrar aqui.
Eu estava frustrada e nervosa. Essa coisa toda era tão horrível e me
deixou tensa. Levantando, fiz meu caminho até as escadas onde Agnus
estava parada, o queixo erguido, os olhos longe de mim.
— Olhe para mim, — eu exigi ferozmente.
Sem mover a cabeça nem uma fração, ela olhou para mim. — Eu
quero saber tudo sobre aquela menina. — Eu apontei para o quarto onde
a menina estava.
— Eu não a escolhi para ele, claramente, — Agnus adicionou
arrogantemente. — Obviamente, algo estava errado com ela.
Mary e Diana tinham me contado sobre como Agnus havia lhes
prometido trançar seus cabelos e fazer biscoitos se elas a seguisse. As
meninas pegaram a mão dela e a seguiram de bom grado, sem saber que
estavam sendo levadas à tortura e à morte.
— O nome dela? — Eu perguntei com os dentes cerrados. Quando a
minha raiva me dominou, eu pisoteei, o salto do meu sapato batendo
ruidosamente contra o chão de madeira. Agnus estremeceu ao som. — De
onde ela é? — Eu gritei.
— Eu não sei, — disse Agnus desafiadoramente, seu peito arfando
quando ficou nervosa. — Eu não a trouxe para ele. Ele só, — ela se irritou
como se estivesse zangada com o pensamento, — apareceu com ela um
dia. Ele disse que o pai da menina a havia dado a ele. Eles não a
queriam. Ela era diferente. — Meus olhos ardiam de incredulidade. Ela foi
doada - para isso? Seu próprio pai a expulsou como se ela não fosse nada
só porque era diferente. Minha visão ficou turva quando um desejo
irresistível de chorar caiu sobre mim, mas me mantive forte. Eu não
deixaria Agnus ver essa parte de mim.
— Ela era barulhenta, — continuou Agnus. — Ela não parava de
fazer barulho. Eu tentei drogá-la para acalmá-la, mas isso só funcionou
por curtos períodos de tempo antes de ela começar de novo. Foi por isso
que ele... — ela parou de falar e olhou para longe de mim.
— A matou? — Eu rosnei.
Ela se recusou a olhar para mim ou responder, e soube que tinha a
resposta. Meu rosto aqueceu quando a raiva e a angústia que senti se
instalaram no meu peito. — Agnus, então me ajude, Deus, se você não me
ajudar com essas garotas, vou me certificar de que você nunca atravesse,
e fique neste buraco do inferno por toda a eternidade. — Ela virou a cabeça
para olhar para mim, olhos arregalados com óbvio terror. Bom. Eu a queria
com medo. Eu realmente não tinha controle sobre quando um espírito era
levado para o outro lado; realmente dependia deles. Para Agnus estar no
limbo, ela tinha que acreditar que algo estava inacabado. Mas dada à
participação dela no tormento e morte dessas meninas, eu não tinha
nenhum problema em mentir que poderia mantê-la lá, se quisesse.
— Charlotte, amor. — O uso do meu nome completo por Sniper me
puxou da lembrança enquanto ele descansava uma mão gentil no meu
braço, preocupação vincando sua testa. — Seus olhos parecem prestes a
vazar. Você está bem, moça?
George. Eu precisava me concentrar em George. Meu marido. Não na
casa do inferno.
Piscando algumas vezes e respirando fundo para limpar a minha
cabeça, eu encontrei seu olhar. — Estou preocupada com ele também. —
A coisa toda nos estressou. O estresse não é bom para ninguém, mas
particularmente para George. Ele era um viciado, recuperado, mas isso
não significava que não pudesse escorregar. Ele estava muito bem desde
a reabilitação, frequentando reuniões toda semana para se manter no
caminho certo. Me devastou saber que meus problemas poderiam
empurrá-lo de volta para velhos hábitos ou, pelo menos, causar-lhe
dificuldades. Meu olhar caiu para o chão, minha culpa me deixando
incapaz de olhar para Sniper enquanto eu murmurava: — Esse estresse
não é bom para ele.
— George está bem agora, Char, — Sniper tentou me assegurar. —
Ele está focado. Vocês precisam parar de se preocupar tanto um com o
outro.
— Isso é o que as pessoas casadas devem fazer, — eu disse
secamente. — Você sabe... todos aqueles votos de amor, honra e
proteção.
— Não, — ele discordou, sua boca curvando-se de um lado, uma
indicação de que estava prestes a dizer algo inapropriado. — As pessoas
casadas devem transar como loucas, depois discutir quanto dinheiro a
mulher gasta no Target. É isso. — Ele cortou a mão para o lado
finalizando.
Eu ri quando balancei minha cabeça. — Se você acha que é tudo o
que existe nisso, provavelmente deveria evitar ser amarrado tão cedo.
— Pfft, — ele murmurou com algo entre uma risada e um
gemido. — Vou me casar no dia em que o papa se inclinar e pressionar
seus santos lábios na minha bunda.
— Mmm hmm, — eu pensei. — Bem naquela tatuagem de
unicórnio, hein?
— Pode apostar sua doce bunda, — ele riu.
Revirando os olhos para a aversão estereotipada do sexo masculino
ao casamento, virei para avaliar a bagunça que George deixou depois de
cortar o polegar, mas minha visão pousou em Anna, desgosto em seus
olhos enquanto ficava congelada dentro da cozinha. Você acharia que
uma pessoa que via pessoas mortas não poderia ficar atordoada, mas lá
estava eu, de olhos arregalados e olhando para ela, sem saber o que fazer
ou dizer.
Sniper ainda estava rindo quando finalmente olhou para cima e
percebeu que Anna estava nos observando. A cozinha ficou em silêncio
enquanto ele absorvia o momento. Suas expressões faciais eram tão
transparentes em seus pensamentos que era quase como se uma bolha
de pensamento estivesse flutuando logo acima de sua cabeça.
Ela está chateada.
Por que ela está chateada?
Eu fiz alguma coisa?
Obviamente, fiz alguma coisa.
Mas o quê?
O que eu fiz?
Devo perguntar a ela o que há de errado?
Ele era um cara assim. O fato da mulher com quem ele estava
namorando há anos ter acabado de ouvi-lo, basicamente, dizer que o
inferno congelaria antes que ele se engatasse, de alguma forma, não
passou por sua cabeça.
Ele fixou seus olhos azuis em mim implorando, implorando que eu
lhe desse uma pista. Eu queria bater na sua cabeça para lhe trazer algum
sentido. Nossa. Ele era realmente tão burro? Pelo menos ele estava
sintonizado o suficiente para reconhecer que ela estava chateada com
alguma coisa. Alguns homens seriam muito indiferentes para notar isso.
Eu desviei meu olhar, fingindo não entender seu pedido de
ajuda. Nossa conversa não tinha sido francamente séria; apenas uma
brincadeira entre dois amigos, mas ficou claro pela reação de Anna que
não parecia uma piada. Eu queria lhe jogar uma tábua de salvação, mas
o que poderia fazer? Ele disse isso. Anna ouvira. Ele não queria que Anna
ouvisse, e agora teria que explicar seus sentimentos para ela.
Eu fiz uma careta por dentro, lamentando por ambos. Isso seria
divertido.
Mordi o lábio e lancei-lhe um olhar arrependido. Ele estava sozinho
nessa.
Anna pigarreou, piscou algumas vezes e engessou um sorriso. —
Eu ainda estou esperando aquele hambúrguer para a mesa cinco.
— Ok, amor, — Sniper respondeu, balançando a cabeça com muito
entusiasmo. — Estará pronto em dois minutos.
Anna apertou os lábios e deu um breve aceno de cabeça em
resposta, em seguida, virou-se, pegou minha torta para a mesa dez e saiu
correndo da cozinha.
Sniper olhou para mim de novo, suas sobrancelhas franzidas em
confusão, — Eu estraguei tudo, não foi?
— Eu acho que sim, — eu suspirei. — Eu não acho que a mulher
com quem você namora há anos ficou feliz em saber sobre sua aversão
ao casamento.
— Nós nunca falamos sobre isso. Eu também não achei que ela
quisesse.
Batendo em seu ombro em solidariedade, eu disse: — Bem, meu
amigo, eu acredito que você vai ter uma conversa sobre isso muito em
breve.
Esfregando a mão sobre a cabeça, ele soltou um longo suspiro. —
Eu quero chutar a minha bunda por falar sobre isso de qualquer
maneira. Ike sempre dizia que eu era o rei em falar sem pensar.
Mesmo depois de todo esse tempo, a menção ao Ike sempre me
deixava à beira de rir ou chorar. O pensamento de Ike Mcdermott me fez
sorrir, mas, ao mesmo tempo, a perda dele me deu um soco no
estômago. Deus, eu sentia sua falta. Isso nunca pareceu diminuir. Em
vez disso, instalara-se em meus ossos, como a dor que Vovó sempre
reclamava antes de uma tempestade. Exceto que essa dor estava
embutida em mim, constantemente ali. Eu podia sentir isso a cada
respiração que dava, mas com o tempo aprendi a viver com isso.
— Eu concordaria com ele, — eu finalmente disse, empurrando
meus pensamentos para longe. Havia um tempo e lugar para eu pensar
em Ike, e não era agora. — Você vai limpar isso, ou precisa que eu faça?
— Eu farei isso, — ele murmurou, ainda frustrado consigo
mesmo. Quando saí da cozinha para verificar minhas mesas, puxei meu
celular do bolso para mandar uma mensagem para George.
Por favor, deixe-me saber o que o médico diz.
Provavelmente não precisaria de mais do que alguns pontos, mas
não era o corte que estava realmente me preocupando. Eu estava
preocupada com ele. Eu precisava não sobrecarregá-lo com minha
própria ansiedade e encontrar uma maneira de ajudá-lo a relaxar. Mas
como? Ele estava tão sintonizado comigo, que às vezes parecia que ele
sabia meus pensamentos antes mesmo que eu os tivesse.
— Charlotte! — Sr. Mercer praticamente cantou do balcão da
recepção.
Eu não pude lutar contra o meu sorriso ao vê-lo. O velho tinha uma
aura contagiante e alegre. — Ei, bonitão. Você veio sozinho, ou trouxe
sua cara metade?
— Temo que seja apenas eu hoje, — ele respondeu, seu sorriso
sumindo. — Minha senhora não está se sentindo bem.
— Ah não. Ela está bem?
Ele acenou com a mão. — Eu acho que é um resfriado. Eu tentei
cuidá-la, mas ela é teimosa e insistiu que eu viesse almoçar com você.
Passando o braço pelo dele, levei-o para uma das minhas
cabines. Quando ele estava prestes a se sentar, uma dor passou pela
minha cabeça me fazendo silvar.
O Sr. Mercer segurou gentilmente meus ombros, firmando-me
enquanto eu pressionava a mão na minha cabeça. — Você está bem,
Charlotte, querida?
A dor era frustrante, só chegando em breves lampejos, mas quando
surgia, a intensidade era suficiente para me parar, exigindo ser
reconhecida.
— Sim, — eu assegurei a ele antes de limpar a garganta. — Me
desculpe por isso. Apenas uma dor de cabeça, mas já passou. — Eu dei
um tapinha no peito dele. — Por favor sente-se.
— Tem certeza? — Ele perguntou. — Eu não aguento minhas duas
garotas se sentindo mal.
Eu sorri quando ele finalmente se sentou. — Estou bem, realmente,
e fico triste ao ouvir que a Sra. Mercer não está se sentindo bem, mas
adoro uma visita sua. — Então, para distraí-lo, eu rapidamente
acrescentei: — Apenas relaxe, e buscarei um chá doce.
— Você é uma boneca, — ele disse, seus olhos sorrindo sob as
espessas sobrancelhas cinzentas.
— Eu volto já.
No caminho de volta para a cozinha, passei por Anna
vigorosamente limpando uma mesa, como se a tivesse machucado e ela
estivesse punindo-a.
Talvez porque Sniper tivesse acabado de mencioná-lo, ou talvez
porque estivesse me sentindo mal por George e Anna, em algum lugar no
fundo da minha mente ouvi a voz de Ike. Ela não está chateada, seu tom
sarcástico, não mesmo.
Eu sorri. Ele sempre foi bom em tornar os momentos pesados um
pouco mais leves com seu humor. Talvez fosse por isso que ouvia a voz
dele quando tudo parecia dar errado.
O peso retornou quando Anna derrubou um saleiro e ele
escorregou da mesa, estilhaçando-se no chão.
— Ugghhhh, — Anna gemeu quando jogou a toalha para baixo e
furiosamente começou a arrastar as cadeiras para longe da mesa
avaliando a bagunça. Sim, ela não estava feliz. Alguns clientes em mesas
próximas a observavam, e me movi entre eles e ela, fazendo o possível
para ajudar.
Não quebre o contato visual com ela, a voz de Ike disse. É assim que
percebem o medo.
Mais uma vez, empurrei meus pensamentos sobre Ike, para poder
me concentrar em Anna. — Ei, — eu tentei com cautela. — Você está...
— Eu não quero falar sobre isso, — ela interrompeu enquanto
pegava sua toalha e começava a juntar o vidro quebrado e o sal em uma
pilha.
— Eu vou pegar uma vassoura, — eu ofereci.
— Estou bem, Charlotte, — ela insistiu enquanto se levantava e
passava por mim.
— Ok, — eu disse para mim mesma, franzindo a testa enquanto ela
corria para longe. Ela nunca tinha sido arrogante comigo antes, então
este território era desconhecido. Ela estava com raiva de mim? Ou
apenas de Sniper? Maldito seja ele e suas tendências estúpidas de falar
sem pensar. Agora eu também estava na casa do cachorro. Eu decidi não
pressioná-la. Eu tentaria novamente quando ela estivesse mais calma. Às
vezes as pessoas só precisam de um tempo para esfriar.
Capítulo quatro
George

Três pontos e cento e cinquenta dólares depois, eu estava na


academia, com o suor escorrendo pelo meu rosto e pescoço enquanto
corria no escalador de escadas2. Meu polegar latejava e meus quadris
queimavam, mas continuei, determinado a expulsar meus sentimentos
de raiva. Por que eu estava tão bravo? Eu não estava com raiva da minha
esposa. Eu estava com raiva de mim. Mas o que eu poderia fazer? Eu só
queria ajudá-la, e estava ficando louco por não poder. Meus fones de
ouvido sem fio estavam ligados, Personal Jesus do Depeche
Mode tocando em meus ouvidos enquanto subia o mais rápido que podia.
Mais dez minutos e estava exausto, meu peito queimando enquanto
engolia ar. Depois de pausar a máquina, as escadas abrandaram, e usei
as barras para me segurar enquanto recuperava o fôlego. Inclinando-me,
fechei meus olhos. Quanto mais velho eu ficava, mais demorava em me
recuperar de um bom treino. — Você está ficando velho, George, — eu
chiei para mim mesmo.
— Ou talvez você apenas se exercite duro demais, — disse
Charlotte, fazendo-me balançar a cabeça em direção a ela.
— Ei, — eu disse, surpreso. — O que você está fazendo aqui? —
Ela nunca vinha à academia comigo; ela geralmente cobria o restaurante
enquanto eu estava aqui. Warm Springs não tinha uma academia
sofisticada como as grandes cidades, mas tinha a Ed's Sweat Shop, que
era na verdade apenas uma garagem de quatro salas. Ed Snider havia
jogado algumas máquinas de cardio e peso e cobrava das pessoas vinte
dólares por mês para usar.
Charlotte encolheu um ombro, sua expressão incerta. — Você não
respondeu ao meu texto. Eu estava preocupada.

2 IMAGEM
Eu imediatamente me senti como um idiota por não ter mandado
mensagem de texto para ela. Eu estava tão chateado depois do
consultório do médico que vim direto para a academia. — Eu sinto muito,
— eu suspirei, limpando meu rosto com a minha camisa antes de sair do
escalador. Eu estiquei minha mão enfaixada e acrescentei, — Três
pontos. Está tudo bem.
Charlotte olhou para a minha mão, depois para os pés dela por um
momento, antes de olhar de volta para mim. — Eu sei que não tenho
sido... eu mesma. Sinto muito.
Eu balancei a cabeça inflexivelmente. Sim, eu estava frustrado,
mas nunca com ela. Eu me senti terrível que ela pensasse isso. — Baby,
sinto muito também. Eu só quero ajudar, e sinto que estou falhando com
você.
Desta vez ela balançou a cabeça. — Você não tem ideia do quanto
me ajuda, George. Eu não poderia fazer isso sem você. Mas eu sei que
isso afeta nós dois.
Fechei os olhos, culpa ofuscando a frustração. Nenhum de nós
estava bem se preocupando constantemente com o outro, e, como não
havia nada que ela pudesse fazer para parar os espíritos, a última coisa
que precisava era que eu acrescentasse a isso meu aborrecimento por
não ser capaz de fazer mais. Qualquer raiva residual escoou de mim
quando encontrei seu olhar sincero e suspirei, — Eu quero que você
tenha paz, querida. Eu quero te dar isso.
Cuidadosamente tomando minha mão ferida na dela, certificando-
se de não tocar meu polegar enfaixado, ela apertou. — Acredite em mim,
você faz. — Ela hesitou brevemente quando encontrou meu olhar, seus
olhos suplicantes me dizendo que eu não ia gostar do que diria em
seguida. — Mas eu tenho que tirá-la de lá. Não posso deixá-la, George.
Meus ombros ficaram tensos instintivamente com o pensamento de
retornar a Nova York. Eu odiava o que ela estava dizendo, mas sabia que
não havia maneira de contornar isso. Para que encontrasse alguma paz,
Charlotte teria que voltar e ajudar a garotinha que nomeamos Click a
atravessar. Ela queria que eu lhe dissesse que entendia. Que a apoiaria.
Eu assenti. Eu entendia. Minha esposa tinha um coração do
tamanho do Texas, e não desistiria, deixando Charlotte sem
escolha. Talvez eu não pudesse protegê-la disso, mas poderia apoiá-la e
garantir que ela soubesse que estava com ela, sem importar o quê.
— Ok. — Eu apertei a mão dela de volta. — O que você precisar,
Charlotte. Estou aqui. Sempre. O bom, o mal...
—... o feio, — ela terminou. Seus olhos brilharam quando ela
estudou meu rosto antes de se atirar em mim, envolvendo os braços em
volta do meu pescoço.
Eu estava nojento e encharcado de suor, mas apertei-a contra mim,
inalando-a. — Eu te amo.
— Eu sei que ama, e isso significa tudo para mim, — ela murmurou
contra o meu pescoço. Quando ela se afastou, sorriu para mim.
— Te vejo em casa então?
— Isso aí, amor. Estou bem atrás de você.
Ela assentiu algumas vezes. — Vou começar o jantar.
Eu arqueei minha sobrancelha em diversão. — Macarrão e queijo?
— Charlotte não era a melhor cozinheira, mas tinha alguns pratos
exclusivos em que ela se especializou, como macarrão e pizza
congelada. Graças a Deus, éramos donos de um restaurante, e minha
mãe e a Sra. Mercer gostavam de cozinhar para nós, ou viveríamos
estritamente na dieta dos garotos da faculdade.
— Sim, — ela sorriu. — E a sobra do bolo de carne da Sra. Mercer
também. Minhas habilidades de reaquecimento são de nível
especializado.
Nós dois rimos, um pouco da tensão entre nós diminuindo antes
que ela descansasse as mãos no meu peito e ficasse na ponta dos pés
para me beijar. — Eu te amo.
Eu pressionei um beijo em sua testa. — Você nunca saberá,
Charlotte, o quanto isso significa para mim.
Eu a observei quando ela saiu. Porra eu era um homem de sorte. Um
pensamento rastejou em minha mente enquanto ela desaparecia na
esquina, e eu o mantive enquanto pegava meu telefone enviando um texto
para Sniper. Eu só poderia ser capaz de apoiá-la, mas talvez houvesse
alguém que pudesse fazer mais.
Qual é o nome da mulher que você viu na televisão que me contou
mais cedo?
Capítulo cinco
Charlotte

Uma semana depois, estávamos de volta à Nova York. Eu tentei


convencer George que poderia vir sozinha, esperando lhe dar uma
pequena folga da insanidade que é ser casado comigo, mas ele não quis
saber disso. Não havia como ele me deixar vir sozinha.
Ele esteve tenso o tempo todo, os nós dos dedos brancos de segurar
o volante com muita força, e eu sabia que dizer qualquer coisa pioraria,
mas depois de algumas horas, não aguentava mais. — Você está bem? —
Eu finalmente perguntei antes de entrarmos na cidade.
Ele me deu um rápido sorriso antes de se concentrar na estrada
novamente. — Estou bem, querida. Apenas frustrado com esse tráfego.
— Era verdade, o trânsito era horrível, mas eu sabia que era mais do que
o tráfego; ele nunca admitiria isso, no entanto. Enquanto eu estivesse
preocupada com a Click, ele estaria tenso. Nós tínhamos planejado ir até
a Casa do Inferno antes de nos registrarmos no hotel, e eu esperava que
pudéssemos planejar uma noite mais simples depois.
— Talvez pudéssemos nos aconchegar e assistir algum show de
DIY3, como um casal normal. Isso parece felicidade pura, — eu brinquei,
esperando fazê-lo sorrir. Nossa situação era uma droga, mas éramos
bons em rir sobre as coisas difíceis na maior parte do tempo. George
sorriu, mas eu poderia dizer que era mais para me agradar do que
genuíno.
Ele pegou minha mão e apertou-a. — Isso soa bem. Eu gostaria de
sair da Casa do Inferno antes de escurecer, — George relutantemente
concordou.

3 A DIY Network é uma rede americana de televisão paga pertencente à


Discovery Inc. A rede é um spin-off da HGTV ; Embora originalmente se concentrasse
na programação instrucional relacionada às atividades do tipo “faça você mesmo”, a DIY
Network se concentrou em séries de realidade baseadas em personalidade e estilo
documental relacionadas à reparação e renovação de residências.
— Definitivamente, — eu concordei.
Algumas horas depois, de mãos dadas, nos aproximamos da casa,
cada nervo do meu corpo formigando quando senti os olhos em mim
antes mesmo de pisarmos na propriedade.
Quando meus passos diminuíram, George soube. — Ela já está
vendo você, — disse ele, apertando minha mão protetoramente.
A cada visita, eu nunca entrava na casa sem Agnus me encarando
e reclamando da promessa de ajudá-la. Desta vez não foi
diferente. Quando ela surgiu diante de mim, eu parei. — Quando você vai
me ajudar? — Ela sibilou entres dentes cerrados, os músculos de seu
rosto e pescoço tensos.
Sinceramente, sabendo o que ela tinha feito, a última coisa no
mundo que eu queria fazer era ajudá-la, mas mais do que isso, eu não
sabia como ajudá-la. Com seus negócios inacabados não havia nada que
eu pudesse ajudá-la. Ela achou que a razão de estar presa no limbo era
o fato de precisar que alguém soubesse o que ela tinha feito com as
meninas, alegando precisar de absolvição, mas não era por não estar
arrependida. A única coisa que a mantinha no limbo era o medo. Ela
estava com medo do que viria a seguir, e essa era a âncora que a
amarrava aqui. A verdadeira razão pela qual Agnus não podia atravessar
era porque realmente não queria ir, o que significava que não havia nada
que eu pudesse fazer por ela. Claro, eu não ousei lhe dizer isso. Se ela
descobrisse que minha promessa de ajudá-la na travessia era besteira,
me atormentaria ao ponto de eu não conseguir entrar na casa, e eu não
poderia arriscar, enquanto Click ainda estivesse lá dentro. Inalando uma
respiração profunda, eu a ignorei, sem ao menos olhar quando passei por
ela e entrei na casa. Nós tivemos essa conversa várias vezes. Eu deixei
bem claro que só iria ajudá-la depois que todas as meninas tivessem
atravessado.
— Responda-me! — Ela gritou agressivamente enquanto eu subia
as escadas. Como alma, eu sabia que ela não podia me tocar, ou me
prejudicar fisicamente, mas sua hostilidade ainda me fazia sentir no
limite. Ninguém gosta de ser insultada. Mais uma vez, não
respondi; Recusei-me a conversar com ela e a reforçar seu mau
comportamento com uma reação. Assim como antes, ela me seguiu,
arremessando seus insultos o tempo todo, mas sempre parou antes de
entrar no quarto de Click. Por alguma razão ela nunca me seguiu, uma
pequena vitória pela qual era grata, eu não seria capaz de me concentrar
em Click com Agnus constantemente me repreendendo.
Click estava presa em um quarto sem janela, e mesmo com a porta
aberta, a luz das janelas do corredor pouco iluminava o quarto, não
importava a hora do dia. Ligando a lanterna solar que tínhamos trazido,
sentei-me no chão e observei a jovem. Ela não reconheceu minha
presença, ou mesmo que o quarto estava agora iluminado. — Sinto
muito, faz muito tempo desde estive aqui. Eu pensei em você todos os
dias, menina doce. — Quando ela não respondeu à minha saudação,
sentei-me em silêncio e observei-a. Eu olhei para ela, estudei seu rosto,
o vazio em seus olhos, e até contei seus passos, me perguntando se havia
alguma ligação ou razão para isso, mas nada veio à tona para mim. Ela
estava traumatizada? Talvez as coisas horríveis que aconteceram com ela
nesta casa tenham causado algum tipo de pressão psicológica e ela
entorpeceu. Eu tinha ouvido falar de tais coisas. Se esse fosse o caso, eu
era inútil para ela.
Soltando minha cabeça em minhas mãos, soltei um grunhido
frustrado. Como diabos você vai ajudá-la, Charlotte?
A mão de George segurou gentilmente meu ombro. — Você vai
descobrir, — ele me assegurou. — Ela está aqui há anos... se for preciso
mais um para descobrir como ajudá-la a atravessar, não acho que ela se
importe muito.
Eu balancei a cabeça, incapaz de criticar seu raciocínio, mas odiava
a ideia de levar um ano inteiro para ajudar a pobre garota. Eu queria
ajudá-la agora. Quando me levantei e encontrei seu olhar, o peso de
minha inépcia me dominou, e soltei: — Como Deus poderia deixar isso
acontecer? — Seu olhar caiu e eu soube que a minha pergunta o pegou
desprevenido. Eu nunca lutei com minhas crenças, se havia ou não
realmente um Deus, tanto quanto lutei desde que encontrei Click, e
simplesmente não conseguia tirar a questão da minha cabeça. Sentindo-
me tola, comecei a voltar para Click, mas ele me parou.
— Por que Ele deixaria algo de ruim acontecer? — Ele soltou um
suspiro irregular, seus olhos cheios de dor. — Charlotte, eu não fui criado
em torno da religião como você foi, mas meus pais nos criaram para
acreditar em Deus. Meu irmão morreu, meu irmão gêmeo, e eu jurei que
nunca perdoaria Deus por ter tirado meu melhor amigo de mim, e estava
disposto a cumprir essa promessa. Então você apareceu. E de repente eu
estava encarando uma razão para perdoá-lo. Havia um versículo de
Isaías no programa do memorial de Ike sobre Deus lhe concedendo beleza
em vez de cinzas, ou algo assim.
Eu balancei a cabeça, conhecendo o versículo. — Foi a promessa
de Deus de libertar seu povo de sua situação.
— Bem, eu não sei muito sobre isso, mas lembro dessa linha. Eu
pensei que era besteira, — George bufou. — Até você. Talvez Deus tenha
deixado Ike ser levado, mas Ele também me trouxe você.
Ficando nas pontas dos pés, passei meus braços em volta do seu
pescoço. Eu não tinha ideia do que esperava que ele dissesse quando fiz
uma pergunta tão profunda, mas ele lidou bem com isso e me deu algo
para segurar. Eu não tinha certeza de qual era a beleza em vez das cinzas
nessa situação com Click, mas George me lembrou de que no passado,
quando estávamos até o pescoço em cinzas, encontramos beleza diante
de nós.
Passei mais uma hora conversando com Click, esperando que
talvez, se eu criasse uma familiaridade com ela, em algum momento ela
clicasse e eu pudesse ajudá-la. Eventualmente, George insistiu que
voltássemos para o hotel. Tivemos um jantar tranquilo no bar do hotel e
decidimos nos acomodar no quarto durante a noite. Esconder-se havia
se tornado nossa coisa; Eu era menos propensa a ver espíritos se não
estivéssemos fora de casa.
— Parece que caberia três de você nessa coisa, — disse George
sobre o roupão do hotel que coloquei depois de me banhar da imundície
da Casa do Inferno. Ele riu enquanto eu tentava envolver a quantidade
ridícula de tecido ao meu redor.
— Você está falando com Char? — A voz de Cameron explodiu no
telefone de George.
— Oi, Cameron! — Eu gritei quando George virou seu telefone para
que eu pudesse ver a tela, revelando um Cameron sorridente na janela
do FaceTime.
— Char! Como está minha cunhada favorita?
— Eu sou sua única cunhada, — eu apontei.
— Detalhes, — ele brincou. — Como você está, irmãzinha? —
Revirei os olhos. O irmão mais novo de George adorava apontar o fato de
que era mais alto do que eu.
— Eu estou bem. Você está se comportando? — Eu perguntei no
meu tom mais maternal, colocando uma mão no meu quadril, indicando
que seria melhor que ele estivesse.
— Char, eu não posso evitar se as senhoras se jogam em mim aqui.
— Ele balançou a cabeça com tristeza e cortou o olhar para longe da
câmera, fingindo desânimo antes de acrescentar: — Eu estou quebrando
corações a torto e a direito.
— Você é tão cheio de merda, — eu ri.
Ele sorriu, seus perfeitos dentes brancos preenchendo seu
sorriso. — Mas você me ama mesmo assim.
— Sim, eu amo, — eu concordei. — Apenas tente não arruinar
muitas mulheres para o resto do sexo masculino, ok?
— Sim, senhora. E ei... George está certo, esse roupão poderia
caber umas três de você.
Eu puxei o clipe do meu cabelo, deixando-o cair pelas minhas
costas antes de passar meus dedos por ele. — Bem, quando ele parar de
falar com você, talvez eu veja se ele pode se encaixar comigo. — Eu
pisquei para George brincando. A cabeça de George se virou para mim
antes de ele imediatamente virar a tela do celular para ele.
— Tenho que ir, Cam. Use preservativos.
O que quer que Cameron tenha dito foi perdido, já que George não
pestanejou em encerrar a vídeo chamada e jogar o celular no criado-
mudo. Balançando as sobrancelhas para mim, ele deslizou comicamente
em torno da cama king-size na minha direção em um salto de predador
exagerado. — Então, o que você estava dizendo sobre... encaixar-me?
Eu ri tanto que ronquei, em seguida, cobri minha boca de
vergonha. É uma maravilha que consiga ter intimidade com um homem,
dada a minha idiotice.
George sorriu perversamente. — Agora... você vê... isso está
fazendo coisas comigo, — ele cantou.
— Não use insinuações sexuais extravagantes. Isso me faz
gargalhar, o que não é sexy, — eu gemi através da minha mão.
— Oh, — ele respondeu, aprofundando sua voz para um rosnado
abafado antes de continuar, — eu discordo totalmente. Por que, seu
ronco excitou todas as minhas... — ele fez uma pausa para o efeito — …
partes masculinas.
Desta vez, nem tentei reprimir o ronco enquanto ria de suas
travessuras. — Partes masculinas, — eu finalmente consegui dizer entre
risadinhas residuais. — Legal, querido.
Ainda rindo, peguei minha escova da cômoda e me movi para
sentar na beira da cama. Senti o colchão afundar quando comecei a
escovar o cabelo e fingi não ver George rastejando sedutoramente pela
cama em direção a mim no espelho, aproveitando esse raro momento
lúdico que estávamos compartilhando e não querendo que
terminasse. Eu tentei em vão abafar um gemido quando ele me alcançou
e acariciou a curva do meu pescoço, beijando-a suavemente. Adorava
quando ele me beijava ali.
— Deixe-me fazer isso, querida, — disse ele parando minha mão,
nossos olhos se encontrando no reflexo do espelho enquanto eu soltava
a escova. Reunindo meu cabelo em sua mão, ele começou a escovar
suavemente as pontas. Amava a maneira suave com a qual ele assumia
o controle; isso me fundamentava de uma maneira que eu nunca soube
que era possível. Enquanto ele se concentrava em sua tarefa, deixei meu
olhar vagar pelo seu reflexo. Sem camisa, a luz fraca dançava sobre seus
ombros perfeitos enquanto ele se movia, melhorando sua aparência já
digna de desmaio. O homem era um banquete para os olhos, mas o
verdadeiro tesouro era seu genuíno coração. Eu sabia que ele duvidava
disso, que lutava para perdoar a si mesmo por seu passado, mas ele tinha
uma alma verdadeiramente boa.
A simplicidade do momento pareceu tão natural, tão normal, que o
peso de minhas habilidades diminuiu e tive um vislumbre da vida sem
os mortos sempre à minha porta. Uma visão de George escovando o
cabelo de uma garotinha, olhos combinando com os meus e cabelos da
cor do dele, enquanto ela brincava com suas bonecas, flutuava em minha
mente, e foi tão lindo que quase me tirou o fôlego. Tinha sido dois longos
anos, e os últimos meses ainda mais longos, mas ele ficou ao meu lado e
nunca reclamou. Eu queria mais do que qualquer coisa ajudar Click, não
apenas porque ela precisava, mas para que eu pudesse dar ao meu
marido a vida e a família com a qual sonhamos naquela noite de verão
em Nova York, porque nesse momento finalmente percebi que queria isso
também. Quanta sorte eu tinha por esse homem querer construir uma
família comigo?
Seu olhar perfurou o meu quando se encontraram novamente
através do espelho, enviando uma onda de calor pela minha espinha. O
músculo em sua mandíbula pulsou enquanto ele me queimava com os
olhos, fazendo com que eu passasse a língua pelos meus lábios
repentinamente secos. Eu lentamente desamarrei a faixa do roupão,
enquanto mantinha meus olhos fixos nos dele, e tirei o roupão sobre os
meus ombros deixando-o se agrupar na minha cintura, deliciando-me
com o fogo em seus olhos. Movendo seus joelhos para sentar atrás de
mim, suas pernas em cada lado meu, ele largou a escova e passou a mão
livre ao longo do meu ombro enquanto gentilmente persuadiu minha
cabeça para o lado com a mão ainda em punhos no meu cabelo, dando-
lhe acesso ao pescoço. Ele se aproximou lentamente, observando-me
enquanto se movia, quebrando o contato visual apenas um pouco antes
de roçar a ponta do nariz ao longo da minha nuca, seu hálito quente
fazendo cócegas. Um gemido escapou enquanto eu me deleitava em seu
toque.
— Você já se preocupou comigo? — Ele sussurrou contra o meu
pescoço. Eu pisquei em confusão, presa em algum lugar entre luxúria e
preocupação quando encontrei seu olhar nublado no espelho. — Quero
dizer as drogas e tudo? Você já se preocupou que farei de novo?
De onde veio isso? Ele estava pensando em usar drogas de novo?
Ele sorriu enquanto me observava, aparentemente lendo minha
mente através da minha expressão, acrescentando: — Não, querida. Eu
não quero. Eu só quis dizer… existem diferentes tipos de euforias na vida.
— Ele beijou meu ombro, sua mão ainda segurando meu cabelo, a outra
serpenteando ao redor da minha cintura até que as pontas de seus dedos
roçaram a parte interna da minha coxa. Eu me inclinei contra ele, à
excitação de seu toque disparando uma dor deliciosa através de mim. —
Eu só quero dizer... você, querida. — Sua voz era rouca, cheia de
desejo. — Você é minha droga. Você é minha maior euforia. — Deslizando
a mão para cima, ele me acariciou suavemente, gemendo quando sentiu
quão animada seu toque me fez. Perdida nas sensações, joguei minha
cabeça para trás até que ele gentilmente ordenou: — Olhe para mim,
Charlotte.
Eu encontrei seu olhar no espelho, sua mão ainda se movendo
entre as minhas pernas. Eu estava ofegante enquanto ele me acariciava,
levando-me as alturas. — Isso é bom?
Eu choraminguei em resposta, minha respiração trêmula quando
meus quadris se moveram contra seu toque, ansiando por mais. Era
bom; ele sabia disso.
— Essa é a minha euforia, Charlotte. Fazer você feliz, fazer você se
sentir bem. É tudo para mim.
Algo em mim quebrou, algo que pareceu tão bom que doeu. Eu
gritei de dor e prazer, destruída da melhor maneira. Por que doía ser tão
amada? Isso me assustou, mas foi tudo para mim. George sacrificou
muito por mim, deu tanto. Levantando, tirei o roupão e o joguei quando
me virei para ele. Subindo em seu colo, segurei seu rosto em minhas
mãos enquanto olhava em seus olhos escuros. Esta noite seria para
ele. Eu o adoraria. Eu precisava, precisava amar esse homem como o
presente que ele era.
— Eu não poderia ficar sem você, George, — eu confessei, cada
grama de convicção que senti encorajando meu tom. — Eu estaria
perdida sem você. — Ele fechou os olhos e suspirou, suas feições
relaxando um pouco, como se minhas palavras tivessem acalmado uma
dor escondida dentro dele. Ele duvidava disso? Ele não podia ver, sentir
o quanto eu precisava dele? O pensamento esmagou meu
coração. Segurei seu rosto e acariciei suas bochechas suavemente com
meus polegares. — Se eu não digo, mostro o suficiente, me desculpe.
— Por favor, não chore, querida, — ele sussurrou enquanto limpava
uma lágrima da minha bochecha. Eu não tinha percebido que estava
chorando, mas fazia sentido. O amor é aterrorizante. Ele tem o poder de
infiltrar-se pelo seu corpo como a heroína, dando-lhe a mais requintada
euforia, ou incendiá-lo e transformá-lo em cinzas. Muitas pessoas o
perseguem, enquanto outras fogem. Somos viciados no prazer e na
dor. Eu entendi o que ele queria dizer sobre ser sua euforia, George
McDermott era minha droga escolhida. E isso me apavorou.
— Eu quero dizer isso, querido, — eu estremeci, lutando contra a
emoção me sufocando. — Quando este... dom, — eu hesitei, não gostando
dessa descrição. Chamar de dom sempre me pareceu errado. Eu sabia
que a maioria das pessoas achava isso; achavam que eu era muito
abençoada por poder ver os mortos, mas nunca pareceu uma bênção
para mim. George me observou atentamente, sua expressão paciente
enquanto esperava que eu encontrasse as palavras. — Sempre que fica
muito pesado, quando acho que o peso vai me esmagar, você está sempre
lá, tirando-o dos meus ombros e carregando-o para mim.
Seu olhar se afastou por um momento antes de voltar para o
meu. — Eu sempre sinto que estou falhando no papel de marido,
sabe? Quero protegê-la de tudo isso, mas sou impotente contra o que não
posso ver. Eu odeio isso.
Agarrando seu rosto mais forte, eu pressionei minha testa na dele,
meu coração martelando no meu peito. Eu precisava fazê-lo acreditar que
ele era meu herói, meu lugar seguro, minha rocha. Não, meu marido
nunca seria capaz de me proteger dos espíritos que eu via, mas ele nunca
parava de tentar. Ele estava sempre lá e isso significava tudo para mim.
Eu me aproximei dele, meus seios pressionando contra seu peito
duro quando ele passou os braços em volta de mim. — George
McDermott, — eu sussurrei. — Eu não suportaria essa vida sem
você. Você entende isso? Antes de vir para Warm Springs, antes de te
conhecer... tudo que eu queria era que acabasse. Você me faz querer
suportar, George. Você me dá forças para suportar.
Sua mão forte agarrou a parte de trás do meu pescoço e
pressionou. Nós fizemos amor naquela noite com uma ferocidade que não
tivemos antes. Foi lento e cru e lindo.
Capítulo seis
Charlotte

— Eu vou correr, — George disse na manhã seguinte e se inclinou


para beijar minha têmpora enquanto eu estava deitada na cama,
enrolada no lençol. — Quando eu voltar, podemos tomar um brunch
antes de irmos para a Casa do Inferno.
— Isso soa bem, — eu murmurei preguiçosamente.
Ele assentiu, inalando profundamente, como se aliviado. — Tente
dormir mais um pouco, baby.
Estranhando sua disposição, mas muito satisfeita para perguntar
sobre isso no momento, agarrei sua cabeça e puxei sua boca para a
minha novamente, passando minha língua de brincadeira entre seus
lábios. — Eu te amo, — eu murmurei contra sua boca. — Tenha uma boa
corrida.
Sua boca virou de um lado, um sorriso de conhecimento surgindo
em seus lábios. Ele satisfez totalmente sua mulher, e isso o fez se sentir
bem. — Eu também te amo, — ele sussurrou.
Depois que ele saiu, levando consigo a distração que sua boca e
seu corpo me ofereceram, a ansiedade que senti em relação à Click
lentamente retornou quando meus olhos traçaram uma rachadura ao
longo do teto.
Furrrrrleese.
Minha cabeça doeu quando a palavra rolou em minha mente. Foi a
única coisa que ela disse, e não consegui, pela minha vida, descobrir o
que isso significava. Mamãe iluminou na tela enquanto meu celular
tocava, e debati se deveria atender ou não. Desde que nos reunimos em
Warm Springs, meu relacionamento com meus pais tinha sido tenso,
para dizer o mínimo. Principalmente com meu pai, mas as coisas não
eram estelares com a minha mãe também.
No final, decidi que o que ela tinha a dizer seria uma distração bem-
vinda da palavra torturante e atendi ao telefone pouco antes de ir para o
correio de voz. — Ei, mãe, — eu cantarolei, minha voz mais alta do que o
habitual em uma tentativa de parecer feliz por ouvi-la. — Como você
está?
— Estou bem, — ela respondeu. — É bom ouvir sua voz, querida.
— Ela sempre soava como se nada tivesse acontecido, que ela não tivesse
deixado meu pai me mandar embora, e imediatamente me arrependi de
atender a ligação. Apesar dos meus esforços para perdoar e esquecer,
muitas vezes me lembrava de sua crueldade e abandono.
— Sim, você também, — eu disse, imitando seu tom
fácil. Felizmente, ela não tinha feito uma chamada de vídeo. Pelo menos
não teria que tentar fazer a minha expressão combinar com a minha voz.
— Então como você está?
Fechei meus olhos, tentando não suspirar. Uma parte minha
queria dizer a verdade, mas nada de bom viria disso. Minha vida estava
centrada na minha capacidade de ver e falar com os mortos, e como isso
foi exatamente o que levara meu pai a me mandar embora, não era
exatamente o tópico de conversação mais popular, o que me deixava
apenas uma opção. — Estou ótima, — eu menti.
Houve uma longa pausa seguida por seu próprio suspiro. —
Charlotte, sei que não temos sido próximas há muito tempo, e sim, isso
é em grande parte minha culpa, mas você poderia ao menos me dar uma
chance? Por favor? Você me deixaria voltar a sua vida um pouco?
A culpa me inundou, só para ser consumida pela raiva. Por que eu
deveria me sentir culpada? Talvez tenha sido a dor de cabeça me
segurando, ou a dor que eu ainda sentia por sua traição, mas disparei:
— Tudo bem, mamãe. Você quer voltar?
— Sim.
— Você realmente quer saber como está a minha vida agora?
— Mais do que tudo, Charlotte, — ela confirmou, o desespero
evidente em sua voz.
Eu deixei tudo escapar. — Eu encontrei as almas de três meninas
em uma casa em Nova York. Eu só consegui ajudar duas a cruzarem. A
terceira criança está presa em um quarto escuro e eu não consigo
convencê-la a se comunicar comigo. Nada que eu faça está
funcionando. Ajudá-la é tudo em que penso. Eu não consigo dormir
porque tudo que ouço é a voz dela dizendo a mesma palavra,
repetidamente. Meu pobre e doce marido está se torturando tentando me
ajudar, o que é quase impossível, porque a única coisa que causa todos
os meus problemas está morta, e ele não pode ver os mortos. Mas eu
posso, só que neste caso, meu dom tem sido menos do que inútil porque
não consigo descobrir como ajudar a Click.
Mamãe ficou quieta por muito tempo, eu estava prestes a me
certificar de que a ligação não havia caído quando ela finalmente falou:
— Click?
Eu gemi, não querendo explicar porque significava ter que entrar
em mais detalhes sobre a minha habilidade, e eu não podia lidar com o
seu julgamento incrédulo nesse momento. — Você não iria entender, —
eu resmunguei.
— Tente, — ela insistiu, seu tom firme.
Eu bufei, reconhecendo o tom da minha adolescência, quando ela
tentava abordar meus problemas apocalípticos adolescentes. A coisa
sobre esses anos, entretanto, era que ela era realmente muito boa em
colocar as coisas em perspectiva, mas me permiti esquecer por causa do
quanto ela e meu pai me machucaram. Suspirei e expliquei: — Click é a
garotinha. Ela morreu há mais de vinte anos e está presa em uma casa
abandonada em um quarto escuro, e não importa o que eu tente, não
consigo que ela me responda. E se eu não conseguir que ela responda,
não posso ajudá-la a atravessar.
Meu coração afundou a cada segundo que a linha permaneceu
quieta. Contar-lhe foi obviamente um erro; Eu sabia que ela não estava
pronta para a verdade. Ela ainda achava que eu era louca, assim como
meu pai.
— Como ela morreu? — Ela finalmente perguntou.
— Você não quer saber, mãe, — eu disse exasperada.
— Sim, eu quero, Charlotte.
Como ela poderia? Deixava-me enjoada pensar sobre tudo isso -
Agnus, seu marido, o que eles fizeram com aquelas pobres meninas
indefesas. Como alguém poderia querer saber sobre tais
atrocidades? Estava prestes a me recusar a lhe contar, mas parei. Eu não
podia ignorar o fato que ela perguntou. Essa era a última coisa que eu
esperava dela. Sentando-me, coloquei o travesseiro nas costas e encostei-
me à cabeceira da cama. — Havia um homem que aparentemente gostava
de garotinhas... — Eu fiz uma pausa, minha voz suavizando
reflexivamente, — Sua esposa ajudou a raptá-las, mas Click foi dada a
ele. Seu pai não podia lidar com ela, então a expulsou. Eu acho que
algumas pessoas acham mais fácil se livrar do seu filho quando eles não
agem do jeito que querem.
Ela não reconheceu a insinuação que fiz sobre o que eles fizeram
comigo. — Você quer dizer que a esposa sabia que ele iria...
— Sim, — eu a interrompi.
Deixei o silêncio se estender, sabendo que não havia mais nada que
eu pudesse dizer.
— Bendito seja o coração daquelas doces garotinhas, — ela
finalmente murmurou, a dor enchendo sua voz.
Minha guarda caiu outro patamar ao ouvir sua simpatia
genuína. — As coisas que elas suportaram, mãe... eu só... aquele homem
terrível e sua esposa... o que eles fizeram com elas.
— Bem, não é cristão amaldiçoar as pessoas ao inferno, mas acho
que o Senhor pode me dar um passe sobre isso.
Eu bufei. Eu não pude evitar. Só minha mãe podia dizer que
esperava que alguém apodrecesse no inferno de uma maneira que
parecesse quase educada.
— Eles as mataram? Na casa? — Ela continuou.
— Sim. Bem, ele fez. Então ele matou sua esposa antes de acabar
com sua própria vida.
— Oh, Charlotte, — ela suspirou. — Eu sinto muito por você ter
que ver tanta feiura, querida.
Suas palavras despedaçaram minhas defesas. Acreditei em suas
palavras, mas, mais do que isso, acreditei que ela finalmente acreditava
em mim - acreditava que eu não estava maluca e podia realmente ver os
mortos. Pela primeira vez em mais anos do que gostaria de contar, eu não
queria nada além dela me puxar em seus braços e me acalmar com seu
calor do jeito que fazia quando eu era uma garotinha; Quando o mundo
parecia tão grande e assustador, mas de alguma forma, simplesmente
sentar em seu colo com minha cabeça aninhada na curva de seu pescoço,
inalando seu perfume enquanto ela cantarolava uma melodia
reconfortante, eu sabia que tudo ficaria bem.
— A garota, Click. Ela não pode te ouvir? — Ela perguntou, me
puxando de volta da memória. — Se ela fosse surda em vida, seria surda
como um espírito?
Eu afastei o telefone da minha orelha e olhei para ele em total
descrença. Ela estava trocando ideias comigo?
— Oh não. Não é surda. Ela pode ouvir, — eu me atrapalhei,
completamente perdida na virada dos eventos. E se ela estivesse
debatendo comigo? Não é como se eu estivesse chegando a algum lugar
por conta própria, e eu tinha que ajudar Click. — Mãe, eu não sei o que
fazer. — Minha voz vacilou quando as lágrimas brotaram. — Estou com
medo de não conseguir ajudá-la. Eu não entendo porque recebi essa
habilidade se não posso ajudar todas as almas perdidas.
Ela ficou quieta por um longo momento, talvez chocada com a
minha honestidade. Havia uma porta trancada entre nós há anos; uma
onde ela estava batendo, implorando para entrar. De repente, eu abri a
porta, e ela não sabia se deveria entrar ou esperar que eu abrisse um
pouco mais.
— O que mais você pode me dizer sobre ela? — Ela perguntou, seu
tom gentil, mas determinado.
Eu pisquei algumas vezes enquanto ficava novamente meus
pensamentos. — É como se ela estivesse perdida ou algo assim. Ela
repete a mesma palavra, repetidamente, e bate os dedos contra a
parede. Às vezes ela bate os dedos e faz um estalido com a língua. — Eu
imitei o som para ela, então acrescentei suavemente: — É por isso que
eu a chamo de Click.
— Que palavra ela repete?
Inclinei a cabeça para trás, deixando-a bater na cabeceira da
cama. Eu estremeci, o movimento aumentando minha dor de
cabeça. Toda essa conversa era tão surreal. Por que acreditar em mim
agora? Por que não anos atrás, quando eu estava me afogando em
depressão por perder meu irmão e ao mesmo tempo sentindo que estava
enlouquecendo porque acordei vendo pessoas mortas.
— É distorcida, mas soa como furrrrrleese. — Eu imitei a palavra
exatamente como Click dizia e com o mesmo tom. Mamãe ficou em
silêncio e minhas esperanças de avanço se desintegraram em
frustração. Derrotada, suspirei: — Eu aprecio você tentando me ajud...
— Ela poderia estar dizendo Fur Elise? — Ela interrompeu. — A
composição de Beethoven?
Minha voz congelou quando sua pergunta percorreu minha mente.
— Eu já toquei isso para você antes, — ela continuou. — Você
nunca teve muito interesse em aprender. — Minha mãe professora
também dava aulas de piano e foi quem me ensinou a tocar. — Talvez
seus dedos estejam tocando as teclas da música?
Eu me senti como uma idiota. Como não pude ver isto? Mas a
suposição da minha mãe acertou em cheio. Click poderia ter tocado piano
quando estava viva e gostava daquela peça em particular. — Puta merda,
mãe, — eu soltei quando um choque de excitação passou por mim. — Eu
acho que você simplesmente descobriu.
— Ela parece ser autista, Charlotte. A falta de contato visual,
repetição de palavras e sons... isso poderia ser uma fixação... Sua
condição permaneceria com ela como um espírito? — Antes que eu
pudesse responder à sua pergunta, ela continuou: — As crianças autistas
muitas vezes ficam fixadas nas coisas. Às vezes é um brinquedo, um
assunto em particular ou até mesmo uma música. Ela deve ter tido
contato com o piano em algum momento de sua vida, ou pelo menos
alguém tocava música para ela. Agora que penso nisso, Click poderia ser
um metrônomo4; seu tique-taque rítmico poderia ser reconfortante para
ela. — Ela respirou então continuou, completamente no modo professora
agora, — Charlotte, você precisa entrar em seu mundo para chamar sua
atenção. Se ela é autista, é a única maneira de atraí-la. Talvez, se você
tocar Beethoven no seu telefone, consiga que ela preste atenção em você.
Eu estava especialmente feliz por ela não poder me ver naquele
momento, porque tenho certeza que tinha a expressão mais estupefata
no meu rosto. Minha mãe era uma professora de necessidades especiais
e conhecia bem os sinais do autismo. Embora eu não fosse bem versada
na deficiência, não podia acreditar que nunca tivesse me ocorrido. Eu
deveria saber. Eu a ouvi falar sobre seus alunos durante toda a minha
infância. Lançando as cobertas para trás, eu pulei da cama. Minha mãe
tinha acabado de me dar esperanças de que eu poderia chegar a Click.
— Mãe… obrigada. — Não havia como ela ter perdido o alívio na
minha voz. — Eu tenho que ir, mas te ligo mais tarde. Amo você. — Eu
desliguei sem esperar por sua resposta, não querendo perder mais tempo
para chegar a Click.

4 Um metrônomo, do grego antigo µέτρον (métron, "medida") e νέµω (némo, "eu


administro", "eu conduzo"), é um dispositivo que produz um clique audível ou outro som
em um intervalo regular que pode ser definido por o usuário, normalmente em batidas
por minuto (BPM). Os músicos usam o dispositivo para praticar tocando em um pulso
regular.
Capítulo sete
George

Bati meus dedos na bancada escura da recepção da Kern and


Dalton Agency enquanto uma recepcionista desconhecida informava o sr.
Kern da minha chegada. Enquanto esperava, repeti a interação com
Charlotte antes de sair do hotel. Eu estava totalmente preparado para
fazê-la prometer não ir ver Click sem mim, e fiquei aliviado por não ter
sido necessário depois que ela não mostrou nenhum sinal de sair da
cama antes de eu voltar. Uma vez que finalmente adormecemos, ela
realmente dormiu profundamente pela primeira vez, mas ainda não era
o suficiente. Eu silenciosamente rezei para que ela ainda estivesse
dormindo, e tivesse que acordá-la novamente, quando voltasse para o
hotel.
— Sr. Kern vai vê-lo agora, — a pequena loira disse, me trazendo
de volta ao momento. — Vire à direita no final do corredor, é a última
porta à esquerda. — Eu não me incomodei em dizer que tinha estado aqui
antes e sabia para onde ir. A ansiedade pelo que eu estava prestes a fazer
voltou quando segui o caminho familiar até o escritório de Martin Kern.
— George, — ele disse alegremente da porta do seu escritório
quando me aproximei. — Parece que você correu uma maratona. — O
sorriso excessivamente amigável que ele incluiu com o comentário
pareceu mais desagradável do que acolhedor.
Eu bufei ironicamente com o contraste gritante em nossas
aparências enquanto olhava entre seu traje feito sob encomenda, com a
gravata vermelha perfeita, e minhas roupas de corrida encharcadas de
suor. — Charlotte não é uma corredora e eu corro todos os dias. Fazia
mais sentido combinar as duas coisas para que eu pudesse fazer isso
sem ela, — expliquei.
— Bem, independentemente disso, é bom ver você, — disse ele com
uma risada quando estendeu a mão para mim.
— Você também, Martin. — Eu limpei minha mão suada no meu
short antes de apertar a dele, forçando-me a sorrir de volta. Martin não
era uma das minhas pessoas favoritas no mundo, mas ele estava me
fazendo um favor, e eu precisava ser legal. Ele recuou e fez sinal para eu
entrar em seu escritório. Eu tinha dado dois passos quando meus olhos
pousaram em algo ao longo da parede, parando-me abruptamente.
— Não é fantástico? — Ele exclamou, sua mão segurando meu
ombro ansiosamente, apontando para a foto promocional de Charlotte
pendurada na parede do seu escritório enquanto prosseguia. — Está
pronta para ser a imagem promocional da terceira temporada, mas... —
Sua sentença parou, decepção em seu tom. — Acho que não era para ser,
— concluiu. — Ela parece muito linda, hein?
As inúmeras razões pelas quais eu não gostava de Martin surgiram
em primeiro plano na minha mente enquanto olhava para a foto em
tamanho natural, o rosto da minha esposa enterrado sob toneladas de
maquiagem e obviamente editada; extensões adicionadas para deixar o
cabelo mais comprido e volumoso; sua clivagem saltando por cima de sua
camisa. Era Charlotte, mas não a verdadeira Charlotte -
não minha Charlotte. Havia muito mais em Charlotte do que essa versão
sexy dela.
— Não, não percebi isto, — eu murmurei, mal conseguindo
esconder o meu desdém por ele. Esse retrato dela foi uma das principais
razões pelas quais Charlotte abandonou o show. Martin e os produtores
estavam insistindo para que ela parecesse mais sexy e mais ousada. Seu
principal argumento, era a necessidade de manter os espectadores
interessados. Como se seu incrível dom de falar com os mortos não fosse
motivo suficiente para as pessoas assistirem ao show. Eu me afastei da
foto e estremeci, mais grato do que nunca por ela decidir que já era o
bastante.
— Sente-se, — disse ele, movendo-se para a área de estar e
apontando para um sofá de couro de frente para as janelas do chão ao
teto que apresentavam uma vista perfeita de Manhattan. Ele indicou um
laptop na mesa de café: — Estamos prontos para nos conectar com ela
em alguns minutos.
Eu balancei a cabeça e tirei o casaco, jogando-o no braço do sofá
antes de me sentar. — Eu realmente aprecio você configurando isso,
Martin. — Era verdade. Mesmo que uma parte de mim quisesse dar um
soco na garganta dele, eu ainda estava grato por ele ter tido tempo.
Martin sentou ao meu lado e brincou com o computador enquanto
eu tentava me assegurar, pela milionésima vez, que estava fazendo a
coisa certa. Eu não tinha ideia de como Charlotte reagiria a isso. — Ela
tinha ouvido falar de Charlotte antes de contatá-la? — Eu perguntei
enquanto esfregava meus quadris, minha ansiedade me deixando
impaciente.
— Não, — ele respondeu sem rodeios. — Ela não acompanha
exatamente a televisão além de seu próprio show.
— Então, como você conseguiu que ela concordasse?
— Acontece que seu agente quer se mudar para os Estados
Unidos. Disse-lhe que talvez estivéssemos procurando adicionar um novo
membro da equipe à agência. — Levantei minhas sobrancelhas, surpreso
por ele ter ido tão longe.
A tela do Skype apareceu e o som de um telefone tocando soou no
alto-falante. Martin me olhou por cima do ombro. — Charlotte realmente
não tem ideia de que você está fazendo isso? — Perguntou ele. Eu
balancei a cabeça quando uma mulher com olhos verdes redondos e um
piercing no nariz apareceu na tela. O cabelo dela era preto como o
azeviche, com franja curta, em camadas. — Bem, é tarde demais agora,
— disse ele como um ventríloquo antes de colar um sorriso brilhante.
— Marlena, — ele sorriu brilhantemente. — Muito obrigado por
concordar com este vídeo chat hoje.
— Olá? — Marlena disse com um forte sotaque britânico, apertando
os olhos como se isso a ajudasse a ouvir melhor.
Martin franziu a testa enquanto mexia no laptop. — Você pode me
ouvir?
— Eu não posso ouvir você, — ela declarou em voz alta e se
aproximou da tela.
— Marlena?
— Olá? Sr. Kern? — Inclinando-se para trás, ela bateu na lateral
do computador, sacudindo a imagem em nossa tela. Nossa, essa mulher
era um punhado.
— Ah, eu não acho que isso vai ajudar, — disse Martin quando ela
estremeceu.
— Oh inferno, — ela resmungou. Ela se virou e gritou para fora da
tela: — Nick! Você pode vir aqui e consertar essa maldita coisa? — Então
murmurou baixinho: — Eu odeio computadores.
Um homem rechonchudo de óculos e cavanhaque apareceu e
mexeu no computador. — Você estava com o volume do alto-falante no
mudo, — ele disse pacientemente enquanto endireitava o laptop. Marlena
riu enquanto acariciava o braço do homem. — Eu estaria perdida sem
você, Nick.
— Você pode me ouvir agora, Marlena? — Martin perguntou, e ela
virou o rosto para a tela.
— Ah, Sr. Kern. Desculpe-me por isso. Dificuldades técnicas ou
alguma bobagem sobre o volume.
— Bem, eu agradeço o seu tempo, e sei que o Sr. McDermott aqui
também o faz, — disse Martin quando virou o laptop para mim. Ela
acenou com a mão com desdém enquanto se inclinava para trás,
revelando mais da parte superior do seu corpo. A camiseta preta que
usava, uma imagem de Johnny Cash dando o dedo, não conseguiu
esconder o fato dela não estar usando sutiã.
Limpando minha garganta, me apresentei. — Olá, — eu disse sem
jeito, me forçando a olhar para a câmera e não para a tela. — Obrigado
por concordar em falar comigo hoje. Disseram-me que se alguém pode
nos ajudar, ou melhor, ajudar minha esposa, seria você.
Ela sentou-se um pouco para frente, seus olhos verdes mudando
cada vez mais sutilmente enquanto examinava meu rosto. Ela mastigou
uma das unhas por um breve momento antes de dizer: — Quarenta e
dois.
Martin olhou para mim e depois de volta para ela. — Perdão?
Ela o ignorou e manteve seu olhar fixo em mim. — O que o número
quarenta e dois significa para você?
Eu congelei um pouco chocado. Disseram-me que ela tinha
habilidades psíquicas, mas não estava preparado para que
aparecesse. Eu olhei desconfortavelmente para Martin. Quarenta e dois
era o número exato de meses em que estive limpo, mas realmente não
queria que Martin soubesse disso sobre mim. Antes que eu pudesse dar
uma resposta, ela curvou a boca e disse: — Outra hora, amor, — então,
para meu alívio, mudou de assunto: — Meu agente diz que sua esposa
pode falar com os mortos?
— Bem, sim. Almas presas no limbo, — esclareci.
Mais uma vez, ela olhou através da tela para mim, avaliando-me. —
Ela não sabe que você me contatou. — Não era uma pergunta, e ela disse
mais como se estivesse falando para si mesma do que para mim. Eu não
poderia dizer pelo seu tom se ela achava que era um erro tê-la contatado
sem falar com Charlotte antes.
— Não. — Eu limpei minha garganta novamente, a dúvida se
formando sobre a minha decisão de procurar Marlena. Talvez eu devesse
ter contado Charlotte antes. Merda. Esta foi uma má ideia.
— Um dom assim, muito legal, — ela continuou, ou inconsciente
da minha hesitação, ou mais do que provável, optando por ignorá-la.
Eu fiz uma careta, sem saber como responder. Era e não era, mas
isso era uma conversa para outra hora. Em vez disso, expliquei
melhor. — Ela tenta ajudá-los a resolver seus negócios inacabados para
que possam atravessar. — Tenho explicado o talento de Charlotte para
os céticos por tanto tempo, que parecia estranho não obter a reação usual
de Marlena. Na verdade, foi bom ignorar a explicação completa por uma
vez.
— Bem, Sr. McDermott...
— Por favor, — eu interrompi, — me chame de George.
— Tudo bem, George. O que você acha que eu posso fazer para
ajudar sua esposa?
Inalando uma respiração profunda, eu cocei a cabeça, procurando
por onde começar.
Capítulo oito
Charlotte

O taxista olhou para a casa com preocupação quando parou em


frente a ela, então olhou por cima do ombro para mim. — Tem certeza de
que este é o lugar? — Ele perguntou.
— É aqui. Obrigada! — Joguei-lhe algum dinheiro e saí. Eu decidi
que seria mais rápido, para não falar em seguro, pegar um táxi até a Casa
do Inferno, em vez de tentar dirigir o nosso carro pela cidade de Nova
York. Eu gemi quando Agnus apareceu na varanda, me olhando de nariz
empinado, mas rapidamente me livrei do medo iminente; hoje seria um
bom dia. Hoje eu ajudaria Click a encontrar a paz eterna, e então George
e eu poderíamos seguir em frente e começar um novo capítulo em nossas
vidas. Levantando meu queixo, espelhando Agnus, subi os degraus da
varanda, marchei direto por ela e entrei na casa.
Ela grunhiu, claramente irritada por eu não ter reconhecido sua
presença. — Você prometeu que ia me ajudar, — ela choramingou atrás.
— Deixe-me em paz, Agnus. Estou falando sério, — eu avisei. Ela
grunhiu em protesto e me seguiu no quarto de Click, como sempre
fazia. Click não reconheceu minha presença, apenas continuou andando,
batendo os dedos contra as teclas invisíveis do piano enquanto marcava
o tempo com o clique da língua.
— Oi, menina linda, — eu a cumprimentei, mesmo sabendo que ela
não responderia. — Piano, — eu disse, segurando minhas mãos e
movendo meus dedos como se estivesse tocando um. Desta vez, ela olhou
para mim por um momento, mas não parou de andar. Era um começo.
— Fur Elise, — eu disse, enunciando com cuidado.
Ela parou e me olhou bem nos olhos. Eu estava tão desesperada
para chegar até ela que, quando finalmente consegui, fiquei tão chocada
que congelei. Havia uma profundidade em seu olhar escuro que eu não
tinha visto antes. Ela estava presente. Pela primeira vez desde que a
encontrei, seu olhar não estava vazio.
— Furrr Elissse, — ela repetiu, mais claramente desta vez.
Eu sorri, exultante. Ela estava interagindo comigo. Nós estávamos
conversando. Meu coração se agitou, animado com as possibilidades.
— Aí está você, doce menina. — Eu falei baixinho, então apontei
para mim mesma: — Eu sou Charlotte.
Ela piscou algumas vezes, depois repetiu com mais insistência: —
Furrr Elissse.
Eu balancei a cabeça e sorri enquanto me atrapalhava com o meu
celular, quase deixando cair na minha pressa em não perdê-la
novamente. Eu rapidamente abri o YouTube e procurei por uma
gravação, amaldiçoando-me por não tê-la pronta antes de chegar
aqui. Felizmente, não faltavam opções, e eu falei baixinho enquanto
rolava para encontrar uma versão com visão clara do piano, na esperança
de manter a conexão. — Fur Elise, — eu disse novamente. — Você tem
muito bom gosto. Beethoven era um compositor incrível. — Ajoelhei-me
e sentei-me nos calcanhares, ficando ao nível dela para que ela pudesse
ver a tela.
Ela desviou o olhar e começou a andar de novo.
Porra, estou perdendo-a.
Finalmente encontrando uma com as mãos de alguém nas teclas
do piano, eu rapidamente apertei o play e a melodia requintada soou dos
alto-falantes do meu celular. Click correu para mim e tentou, sem
sucesso, várias vezes pegar o telefone, claramente sem entender que seu
estado atual não permitia.
Eu pausei e ela começou a gritar em protesto. — Só ouça, doce
menina. Não toque. — Eu apertei o play de novo, e quando a música
voltou, ela parou de chorar. Enquanto a música continuava, sua boca se
transformou em um sorriso, e seus olhos brilhavam com pura
alegria. Um caroço surgiu em minha garganta quando desejei poder
experimentar algo assim como ela, apenas por um momento. Era apenas
uma música bonita para mim, mas para Click, era algo completamente
diferente. Seu olhar se moveu enquanto sorria, e ela até deu uma
risadinha, como se estivesse olhando para algo que só ela podia ver. Eu
fiz isso. Eu cheguei até ela. Toda a sua aura havia mudado, sua alma
elevada. Era isso, eu simplesmente sabia disso. Click tinha que estar
vendo o outro lado. Agora ela poderia atravessar.
Eu esperei, achando que ela desapareceria a qualquer segundo,
mas ela não o fez. A música terminou, e ela gritou — Fur Elise — várias
vezes, as palavras mais claras do que já haviam sido. Toquei para ela
novamente, e novamente, vendo-a brilhar de alegria a cada vez, mas ela
ainda assim não atravessou.
— Você sabe o que é o céu? — Eu perguntei a ela, parando a música
e baixando meu telefone.
Ela gritou pela música, pegando meu telefone de novo, e eu sabia
no meu coração que isso não ia funcionar. Como ela poderia atravessar
se não soubesse para onde ir? Se não soubesse que havia um lugar para
onde ir? Como eu poderia lhe explicar isso? O lampejo de esperança que
tive quando entrei na casa lentamente diminuiu enquanto eu tocava a
música mais dez vezes.
Tocar a música.
Click está feliz.
A música termina.
Click grita.
Repetir.
Eu estava exultante quando entrei na Casa do Inferno. Eu estava
certa de que tinha a resposta, mas agora sabia que não havia
resposta. Isso não fazia o menor sentido. Por que eu não podia ajudá-
la? Eu fiquei de pé, lágrimas devastando meus olhos enquanto a raiva
bombeava através de mim, e todas as minhas dúvidas sobre Deus e o
Céu me atingiram.
Que diabos era isso? Por que Deus deixaria isso acontecer? Ele
realmente deixaria essa criança que foi torturada e assassinada passar a
eternidade em um quarto escuro? Onde ele estava? Onde estavam seus
anjos misericordiosos? Levantei-me e fugi do quarto, o desespero demais
para suportar. Click enfureceu. Ela gritou e chorou quando um novo
horror me inundou.
O que eu fiz?
Pelo menos antes ela estava calma em seu mundo sombrio; agora,
eu tinha lhe dado um gosto de algo que ela amava tanto, só para tirar
isso dela.
Deus por quê? Lágrimas escorriam pelo meu rosto quando uma dor
aguda atravessou minha cabeça, quase me deixando de joelhos. Eu
agarrei minha cabeça, desejando que a dor parasse. — Por que você está
deixando isso acontecer? — Eu gritei para Deus - para ninguém. — Por
que você não faz alguma coisa? Ajude-me a ajudá-la! — Eu gritei quando
comecei a descer o corredor até as escadas. — Por favor, ajude-me, — eu
soluçava.
— Pare de reclamar, — Agnus surgiu atrás de mim.
Eu me virei e olhei para ela, a pulsação na minha cabeça se
intensificando com o movimento repentino.
A alma de Agnus parecia estar piscando, piscando, quase como
uma luz estroboscópica. Eu não tinha certeza se era algo que ela estava
fazendo ou se era a pulsação na minha cabeça. — Você disse que me
ajudaria. Eu fiz o que você disse, agora mantenha sua palavra, — ela
exigiu.
Minha pressão sanguínea subiu. — Eu disse que tentaria, mas
só depois que ajudasse aquelas meninas.
— Eu te ajudei!
— Como? — Eu gritei. — Você não fez nada além de resmungar e
gemer sobre o que você quer. Eu ajudei aquelas meninas, não você. A
única coisa que você fez foi atrair aquelas pobres garotas para longe de
suas famílias, tudo para que pudesse de bom grado dá-las ao seu marido
para ser seu brinquedo para abusar e matar! — Meus punhos estavam
cerrados ao meu lado, minha voz rouca de gritos quando meses de
fracasso e impotência explodiram em mim. Então eu disse algo que
nunca disse a ninguém antes, vivo ou morto: — Eu espero que quando
você finalmente atravessar, apodreça no inferno. No entanto, isso pode
realmente ser melhor do que você merece.
Minhas palavras lhe atingiram, e ela recuou como se eu tivesse
batido nela. Eu não esperei para ouvir sua réplica, passando por ela e
correndo até as escadas. Click ainda estava gritando, e meu coração
estava dilacerado enquanto a culpa me consumia.
— Pare! — Agnus gritou, surgindo na minha frente. Meus passos
vacilaram quando a dor em minha cabeça aumentou e parecia que um
picador de gelo acertava o meu cérebro. Eu tropecei e segurei minha
cabeça, um braço no corrimão para não cair. Desafiando a minha dor,
Agnus aproveitou-se da minha fuga interrompida, colocando a boca perto
da minha orelha e sussurrando com ódio: — Se eu tivesse te encontrado
quando era uma garotinha, você teria vindo comigo também. Ele teria
ficado muito feliz por eu trazer para casa uma coisa tão linda.
Levantei a cabeça para gritar com ela, mas a dor na minha cabeça
se fragmentou, se ramificando, obscurecendo minha visão. A
queimadura parecia interminável, irradiando através de mim até que de
repente parou. A dor desapareceu pouco antes de minhas pernas
cederem, meus braços incapazes de me firmar quando comecei a cair.
Então… não havia nada.
Capítulo nove
George

Depois do meu encontro no escritório de Kern, peguei um táxi de


volta para o hotel e comprei baguetes e café da padaria do saguão, na
esperança de distrair Charlotte com comida e cafeína para que ela não
questionasse eu estar correndo há duas horas. Embora eu não achasse
que ela ficaria brava, queria esperar para lhe contar sobre Marlena, e que
ela concordara em vir de Londres para ajudar da maneira que pudesse,
após a visita de hoje com a Click. Eu sinceramente não tinha certeza de
como Marlena poderia ajudar, mas ela seria capaz de fazer mais do que
eu poderia, considerando todas as coisas; Eu só não queria que Charlotte
achasse que eu duvidava que ela pudesse ajudar Click sozinha.
— Seu rei voltou trazendo presentes para sua rainha, — eu
anunciei enquanto entrava alegremente no nosso quarto de hotel,
colocando a comida na mesa. Fiquei calado quando percebi que a cama
estava vazia, os lençóis e o edredom ainda retorcidos da nossa noite. Eu
bati na porta do banheiro fechada. — Baby... você está aí? — Perguntei
antes de cuidadosamente abrir a porta do banheiro vazio. Imaginando
que ela deveria ter saído em busca de café e comida, tomei um banho
rápido.
A preocupação agitou meu estômago quando ela não voltou quando
eu estava vestido, e só piorou quando liguei para o celular e ela não
atendeu. Algo não estava certo; ela não ignoraria minha ligação. Eu
procurei no quarto freneticamente por uma nota, rezando para que ela
não tivesse ido ver Click sem mim, mas depois de vários minutos de
busca, e outra tentativa sem resposta de ligar para ela, eu sabia que era
exatamente onde ela estava.
Droga! Eu sabia que deveria ter dito alguma coisa antes de ir ver
Kern.
Vinte minutos depois, saltei do táxi e corri para dentro da casa.
— Charlotte, — eu ofeguei, correndo até seu corpo imóvel na parte
inferior das escadas. Meu coração trovejou no meu peito enquanto eu
cuidadosamente senti seu pescoço pela pulsação, fazendo o máximo para
não movimentá-la muito. Um soluço grato explodiu de mim quando
finalmente senti um baque fraco contra os meus dedos. Ela está viva,
graças a Deus. Eu levei minha mão até o seu nariz e senti o ar quente
através dela, confirmando que ela estava respirando. Eu gentilmente
passei as mãos sobre ela, tentando determinar se havia algo quebrado,
mas não tinha ideia do que estava fazendo. Eu tirei meu telefone do bolso
e liguei para o 911.
— Charlotte, baby, acorde, — eu disse enquanto esperava
completar a ligação. Eu não vi nenhum sangue, o que parecia ser um
bom sinal, mas ela não estava se movendo.
— 911, qual é a sua emergência?
— Minha esposa caiu de uma escada e está inconsciente, — eu
disse rapidamente. Quando dei a nossa localização para o atendente,
movi a mão para o pescoço dela, mas desta vez não senti nada. Não, não,
não! — Merda! — Eu gritei, afastando o telefone do meu ouvido e
colocando-o no alto-falante antes de deixá-lo ao meu lado.
— Senhor, eu preciso que você me diga o que está acontecendo, —
disse o atendente com calma.
— Seu pulso se foi! — Eu gritei para o telefone enquanto rolava
Charlotte de costas para começar a RCP. — Depressa, por favor! — Eu
chorei, lágrimas escorrendo pelo meu rosto, lutando para manter minha
esposa viva.
— A ajuda está a caminho, senhor.
Eu vagamente registrei a voz vinda do telefone. — Vamos lá,
Charlotte! Fique comigo, caramba! — Eu implorei, meu mundo se
despedaçando com cada movimento.
Capítulo dez
Ike

Olhos em pânico encontraram os meus, a mistura de confusão,


felicidade e descrença ecoando as emoções que corriam através de mim
enquanto nós dois absorvíamos o que estava acontecendo.
Charlotte estava aqui.
Comigo.
O que só poderia significar uma coisa.
Ela estava morta.
Eu não tinha certeza se a alegria que sentia era apropriada, dado
ao fato, mas não pude evitar.
Ela piscou algumas vezes e balançou a cabeça em descrença antes
de seu olhar voltar para a minha mão ainda segurando seu pulso. De
repente, ela se levantou e se lançou em mim e colocou os braços em volta
do meu pescoço, me derrubando para trás com a força. Rolando-nos para
os nossos lados, segurei-a com força, minha mão segurando a parte de
trás do seu pescoço. Meus sentidos estavam sobrecarregados,
saboreando o aperto de seus braços a minha volta, seu aroma doce, e a
suavidade de seu cabelo contra a minha pele.
Enlouqueci? Isso era real? Eu estava segurando Charlotte
pela primeira vez. Quantas vezes desejei poder pegar essa mulher em
meus braços e agora, finalmente, estava acontecendo.
Ela estava realmente aqui.
— Eu estou sonhando, certo? — Ela fungou no meu pescoço, seus
dedos cavando nas minhas costas. — Isso não é real, é?
Fechei meus olhos e apertei-a com mais força. — Parece real. —
Afastando-a, eu segurei seu rosto com a mão mantendo-a imóvel para
que eu pudesse dar-lhe uma boa olhada. — Porra, eu senti sua falta,
mulher, — eu disse, minha voz rouca de emoção. Sua bochecha estava
quente contra a palma da minha mão, molhada de lágrimas, mas sua
pele era tão lisa, do jeito que eu sempre imaginei que seria.
Estendendo a mão, ela espalmou meu rosto e me puxou para ela,
beijando-me com força. Envolvendo meus braços ao redor dela, eu a
abracei com força, rendendo-me ao momento. Rolando-a de costas, enfiei
meus dedos em seus cabelos e diminuí o beijo, deixando a sensação dela
me absorver. Tomei meu tempo, observando a suavidade de seus lábios,
o jeito que ela provou, reconhecendo o significado de finalmente ter a
única coisa que desejei desde a travessia. Era tudo que sonhei que seria,
e não tinha intenções de deixar isso acabar.
Charlotte interrompeu abruptamente o beijo, pressionando a mão
contra o meu peito para criar uma distância entre nós enquanto cobria a
boca para abafar um soluço. Pânico e dor encheram seus olhos enquanto
ela lutava para sair debaixo de mim. Surpreso pela súbita mudança, me
afastei dela o mais rápido que pude. — O que houve? — Eu perguntei
quando ela fugiu para longe de mim e cambaleou.
Lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto ela engolia em seco,
sua respiração entrecortada enquanto lutava para falar. A dor atravessou
meu coração quando ela finalmente gaguejou, — G-G-George.
Capítulo onze
George

Aneurisma.
A palavra rolou na minha cabeça enquanto eu olhava
silenciosamente para a minha esposa. Minha cadeira estava tão perto da
cama do hospital quanto poderia, meus braços descansando no colchão
enquanto eu segurava sua mão frouxa, com cuidado para não perturbar
a linha intravenosa presa ao seu braço. Cílios negros macios repousavam
contra suas bochechas delicadas enquanto ela permanecia
imóvel. Adormecida. Na loucura e no medo que eu estava sentindo, era a
única coisa que me segurava, Charlotte não estava em coma, ela estava
apenas dormindo, mas no fundo, em um lugar escuro que me recusei a
reconhecer, eu sabia a verdade.
A porta do quarto se abriu e meu pai entrou, sua expressão
desolada enquanto o pai e a mãe de Charlotte o seguiram. Meu pai era o
tipo de homem que gostava de todos, mas não gostava particularmente
de Wayne Acres, nenhum de nós o fez. Não depois de ter jogado Charlotte
para o mundo, recusando-se a acreditar que ela pudesse ver os
mortos. Mas meu pai, sendo um homem melhor do que eu, deixara de
lado seu descontentamento e se ofereceu como um amigo para os Acres,
nesse momento de necessidade.
Olhando para a filha da porta, com lágrimas nos olhos
avermelhados, as mãos de Tracey Acres tremeram quando ela cobriu a
boca na tentativa de abafar o choro. Eu estremeci ao som de seu soluço
quebrado, sua reação a ver Charlotte neste estado tão angustiante
quanto se possa imaginar. Charlotte não se parecia nada com sua mãe,
que tinha a aparência da professora de escola de cidade pequena, com
seu cabelo castanho de estilo simples e roupas práticas. Não, Charlotte
parecia com seu pai com seus olhos cinzentos e cabelos escuros.
Obriguei-me a levantar, meu corpo pesado do pesadelo das últimas
vinte e quatro horas, e o desgaste por falta de sono. Eu contornei a cama,
mas parei, sem saber o que fazer. A maioria das pessoas com sogros se
abraçava, especialmente em uma situação como essa, mas os Acres e eu
nunca tínhamos criado esse tipo de relacionamento.
Se havia tensão ou uma fenda entre eu e meus sogros, eu tinha
uma participação nisso. Charlotte tentou ao máximo deixar o passado
para trás, mas eu não tinha certeza se o faria. Porém, alguém poderia
argumentar que, se eles não a expulsassem, eu nunca a
conheceria. Então onde eu estaria? Eu fiz uma careta com esse
pensamento. Drogado? Escondendo-me? Possivelmente morto? Eu olhei
de volta para Charlotte, meu peito doendo. Ela me salvou.
Não a leve, Deus. Por favor. Por favor, não a leve.
— Alguma atualização desde que conversamos esta manhã? —
Wayne perguntou em uma voz rouca.
Eu balancei a cabeça.
— Eu gostaria de falar com o médico, — ele resmungou.
— As rondas são a cada duas horas, — eu disse categoricamente.
— Eu quero falar com ele agora. — Seu tom era exigente.
Estreitando meus olhos para ele, inclinei a cabeça em
descrença. Ele achava que eu estava escondendo atualizações dele? —
Como eu disse, — encontrei seu olhar firme com igual determinação, —
eles voltarão em duas horas. — Meu tom de voz foi mordaz. Era
da minha esposa que estávamos falando. Será que ele achava que eu não
importunaria todo mundo para conseguir informações?
— Disseram que você a encontrou em uma casa de drogados, — ele
disse.
— É onde estava a garota que ela estava ajudando, — Tracey
interveio antes que eu pudesse responder.
— Oh, certo, — ele disse com um bufo de nojo. — Esse absurdo de
alma perdida no limbo. E suponho que você simplesmente a deixou
correr por uma cidade perigosa sozinha perseguindo essas ilusões? — Ele
cuspiu acusador para mim.
Eu andei em direção a ele. — Wayne, se você tem algo a me dizer...
— George, — meu pai disse baixinho, pisando entre nós e
colocando a mão no meu ombro para me manter no lugar. — Esta não é
a hora.
Eu balancei a cabeça, respirando fundo para me acalmar. Meu pai
estava certo, mas eu não deixaria Wayne bancar o importante e colocar
minha esposa em maior risco, vomitando suas opiniões sobre o bem-estar
mental de Charlotte. Eu girei para encontrar o olhar de Wayne sobre o
ombro do meu pai. — Não estou interessado em tentar convencê-lo do
dom de Charlotte; você já provou que seria um desperdício de energia que
eu não tenho. Mas se quer permanecer aqui e ver sua filha, você precisa
entender uma coisa.
— George... — meu pai começou insistentemente, mas eu o
interrompi.
— Não, papai. Isso precisa ser dito. — Eu dei-lhe um rápido olhar,
e ele assentiu e deu um passo ficando ao meu lado, enfrentando os pais
de Charlotte. Eu olhei de volta para Wayne e continuei: — Eu
não deixei Charlotte fazer nada. Você sabe melhor do que ninguém que
ela faz o que quer e não teria ido sozinha sem um bom motivo. Dito isto,
você está certo. Eu deveria estar lá com ela, e agradeci a Deus a cada
segundo das últimas vinte e quatro horas que a encontrei quando o
fiz. Eu sou aquele que está ao seu lado todos os dias nos últimos três
anos, e sou aquele que ainda estará ao lado dela quando ela acordar, e
todos os dias depois disso até eu morrer porque sou seu marido. Eu não
vou mantê-lo longe dela, mas com certeza não vou deixá-lo entrar aqui e
agir como se soubesse alguma coisa sobre o que é melhor para minha
esposa. Você perdeu o direito de exigir qualquer coisa em seu nome no
dia em que a expulsou de suas vidas.
Nesse momento, Tracey voou para o lado de Charlotte, pegando a
mão dela e beijando as costas dela. — Charlotte, querida, — ela
chorou. — Eu sinto muito. Estamos aqui agora. Estou aqui com você,
querida.
Eu queria revirar os olhos. Onde ela estava quando Charlotte
estava sozinha e prestes a se matar? Onde estava essa mãe de coração
sangrando na época?
— Wayne, agora não é a hora de começar uma briga, — disse Tracey
secamente. — Nossa filha está em perigo. — Lançando seu olhar cheio de
lágrimas para mim, ela prometeu: — Nós não vamos mais falar sobre seu
dom.
Voltei-me para Wayne, sua expressão relaxou enquanto observava
sua esposa chorar ao lado da cama de Charlotte. Depois de alguns longos
momentos, ele cortou seu olhar para o meu e relutantemente
assentiu. Ele não pressionaria mais, mas tampouco se desculparia.
Tudo bem, eu fiz o meu ponto; No entanto, parte de mim ainda
queria estrangular o homem. Meu pai deve ter visto minha expressão e
teve uma ideia do que eu estava pensando porque limpou a garganta,
chamando minha atenção. A raiva persistente desapareceu de mim
quando percebi que ele estava lutando para se manter tão bem quanto
eu. Charlotte fazia parte do clã McDermott agora. Ele a considerava uma
filha, e isso era tão difícil para ele quanto para qualquer pai.
— George, por que não lhes damos algum tempo com ela e pegamos
algo para você comer?
A cabeça de Wayne se animou quando ele olhou para mim, sem
dúvida, ansiosamente esperando que eu aceitasse a sugestão de meu pai.
Eu hesitei, sabendo que meu pai estava certo, mas não querendo
me afastar de Charlotte.
— Vamos lá, George, — meu pai insistiu com um aperto no meu
ombro. Eu não gostei disso, mas balancei a cabeça.
— Eu volto em uma hora. — Eu disse sem emoção quando passei
por Wayne.
No corredor, meu pai pousou a mão no meu ombro enquanto
caminhávamos em direção aos elevadores. — Eu sei que você não é seu
maior fã, mas eles são os pais dela.
— Só quando é conveniente para eles, — eu bufei, incapaz de me
conter.
Duas pessoas já estavam esperando quando nos aproximamos do
elevador, e meu pai entrou na minha frente, forçando-me a parar a
poucos metros de distância. — George, — ele começou em um tom severo
que eu conhecia bem. Era sua voz de amor bruto. Ele estava prestes a
me dizer algo que eu não gostaria de ouvir, mas precisava. Os pais têm
essa capacidade de ensiná-lo e repreendê-lo de uma só vez e você os
respeita por isso. Meu pai era um mestre nisso. — Charlotte é filha deles,
você não pode mudar isso, e filho, — sua voz falhou um pouco antes de
ele limpar a garganta, — se ela morrer, eles terão perdido dois filhos. Os
únicos filhos que eles têm. — O elevador apitou e nós entramos. Apertei
o botão do saguão quando as portas se fecharam, o peso de suas palavras
ameaçando me quebrar. Nessa única declaração, ele resumiu o impacto
que Charlotte teve sobre todos nós, e o que significaria se ela não
acordasse. Minha esposa, filha deles, poderia morrer.
— Eu sei que você está sofrendo, — ele continuou calmamente, —
e você é protetor sobre ela, mas vai ter que se colocar de lado aqui, filho,
e lembre-se que todos nós amamos Charlotte. Estamos todos com medo
e todos ficarão arrasados se alguma coisa acontecer com ela.
Suas palavras foram feitas para me endireitar, manter-me no
caminho certo e lembrar-me de não deixar minhas emoções levarem a
melhor sobre mim, mas parecia um soco no estômago toda vez que ele
dizia alguma coisa sobre Charlotte morrer. — Por favor, pare de dizer
isso. Pare de falar sobre ela estar morrendo — eu disse secamente,
recusando-me a deixar minha voz transmitir a agonia que senti ao pensar
em perdê-la. — Vou tentar, pai, — prometi. — Apenas não fale mais sobre
sua morte. OK?
Ele acenou com a cabeça quando as portas se abriram para o
saguão. Eu corri do elevador, sem esperar por meu pai enquanto ia direto
para o refeitório. Eu precisava de algo forte, mas não tinha certeza se café
seria suficiente.
Capítulo doze
Charlotte

Eu estava exultante. Os braços de Ike McDermott estavam a minha


volta. Eu o senti, senti seu calor. Eu sonhei com isso por tanto tempo e
finalmente aconteceu. O momento tinha me consumido, erradicando
qualquer pensamento racional enquanto segurava esse homem que eu
amava tão carinhosamente.
Obrigada, meu Deus, eu silenciosamente orei. Obrigada por me dar
isso, finalmente.
Então meu feliz momento flutuante diminuiu quando um peso
começou a se instalar ao meu redor. Sim, eu estava aqui com o Ike, mas
para que isso acontecesse, significava que eu estava morta, o que
significava... Não!
George estava sozinho. Eu perdi meu marido.
A realidade me cortou quando empurrei Ike de cima de mim e me
afastei. Fiquei com duas emoções avassaladoras, mas conflitantes, a
alegria de estar com um dos homens que amava e a dor de perder o
outro. Meu mundo girou. Como eu poderia celebrar essa reunião com
Ike, sabendo que estava deixando George sozinho e viúvo?
Enquanto eu soluçava, minha mão cobrindo minha boca e lágrimas
escorrendo pelo meu rosto, Ike me observou, a incerteza espessa em seu
olhar. Ele tinha que saber o que eu estava pensando, e não tinha dúvidas
de que ele se sentia tão em conflito quanto eu.
— Respire, Charlotte, — ele insistiu, sua voz calma e
baixa. Estendendo a mão com cautela, ele se aproximou de mim, como
se tivesse medo de que eu pudesse atacá-lo. Eu bati na mão dele, raiva
me dominando.
— Não faça isso, — eu grunhi quando funguei e limpei meu nariz
com as costas do meu braço.
— O quê? — Ele perguntou, choque beirando sua voz enquanto
esfregava a mão.
— Não me trate como se estivesse com medo de mim.
Ele recuou um pouco, então rapidamente se recompôs. — Bem, —
ele recuou desajeitadamente para longe de mim, — eu estou, um pouco.
— Ele piscou quando o canto de sua boca se levantou em um sorriso
provocante.
Eu olhei para ele e avisei: — Ike...
— Bem, você acabou de bater na minha mão, — ele apontou,
levantando uma sobrancelha. — Você está ameaçando me machucar
desde o dia em que nos conhecemos. — Ele rolou os ombros para trás,
então cruzou os braços, inclinando a cabeça para cima e para o lado,
como se estivesse tentando lembrar-se de algo. — Você jogou a escova em
mim... depois um travesseiro. — Ele franziu a testa antes de encontrar o
meu olhar novamente. — E ameaçou chutar minhas bolas, pelo menos
setecentas vezes.
Antes que percebesse, eu estava rindo através das minhas
lágrimas. Não é engraçado o que nossas mentes podem fazer? Eu estava
sofrendo e chorando, ainda rindo e sentindo alegria de uma só vez - o que
provavelmente significava apenas que eu era louca, em vez de ser um
prodígio. Ike sabia como agir comigo, no entanto. Ele parecia saber fazer
isso com a maioria das pessoas. E talvez esse fosse o dom dele. Eu podia
ver os mortos... ele podia fazer as pessoas encontrarem algo para rir no
pior dos tempos. Eu não podia negar que o seu dom era muito melhor.
— Só porque você entrou para me ver nua enquanto eu estava no
chuveiro, — eu o lembrei quando ri e limpei meu nariz com as costas da
minha mão trêmula.
— E porque eu vi seus peitos, — ele me corrigiu. — Como se
fosse minha culpa você se expor ou algo assim.
— Você me acordou de um sono profundo, gritando comigo!
Ele arregalou os olhos como se não acreditasse. — Você
praticamente me obrigou a olhar para eles, Charlotte, — ele disse. — Eu
sou só uma vítima aqui.
Meu sorriso cresceu um pouco quando estreitei meus olhos para
ele. — É isso mesmo?
— É um fato. — Então ele revirou os olhos e agitou suas pálpebras
fingindo prazer. — Mas devo dizer, Deus, eles eram lindos.
— Ike McDermott! — Eu zombei, sorrindo. — Não esqueça que eu
posso te tocar agora. Eu posso muito bem cumprir algumas dessas
ameaças.
Ele ergueu as mãos fingindo uma rendição. — Quero dizer, sinto
muito, — ele balançou a cabeça, — Maaas... eu não sinto. Nem um pouco.
— Seu sorriso se espalhou por seu rosto, o que sempre me derreteu e
jogou sua corda invisível laçando-me anos atrás. Bom Deus, ele era lindo.
Eu revirei meus olhos. — Eu meio que quero lhe dar um soco só
por isso.
Nós rimos profundamente e nos sentimos bem. Por fim, o riso
desapareceu, e lá estávamos nós, apenas sorrisos fracos em nossos
rostos enquanto nos encarávamos.
— Então... — eu disse. — Eu acho que isso significa que estou
morta.
Ele ergueu as sobrancelhas e começou a responder, mas uma nova
voz o interrompeu: — Char?
Eu me aproximei para encontrar a fonte, e quando o fiz meu
coração sentiu como se pudesse explodir no meu peito.
Cabelos desgrenhados.
Covinhas.
Olhos que espelhavam os meus.
— Axel? — Eu ofeguei, descrença ameaçando cair de joelhos.
Um sorriso radiante capturou as feições do meu irmão. Ele estava
exatamente como eu me lembrava. Demorou alguns segundos, quase
como se nossas mentes estivessem tão ocupadas processando o fato de
nos vermos que esqueceram de mandar a mensagem para nossos corpos
se mexerem, mas então tudo encaixou e nós fechamos a distância e
batemos um no outro. No momento em que fizemos contato, um milhão
de lembranças se espalhou pela minha mente: Axel puxando minhas
tranças para me fazer guinchar; as vezes que eu tinha um pesadelo e
entrava em seu quarto para dormir com ele porque estava com medo de
ficar sozinha; o jeito que ele me provocava implacavelmente, mas nunca
deixava ninguém dizer uma palavra indelicada para, ou sobre mim. Uma
bela lembrança após a outra se prolongou até que tudo parou
abruptamente e congelou em minha última lembrança dele, a última vez
que o vi e nem sequer me despedi porque não tinha percebido que ele
estava morto. Eu o abracei com força, o mais forte que pude. — Eu sinto
muito por não ter te dito adeus. Eu não sabia, Axel. Eu não sabia que
você tinha partido.
Sua mão encontrou a parte de trás da minha cabeça e embalou-
a. — Shh, Char. A única coisa que importava para mim era que você
estava bem. Se você tivesse morrido porque a levei naquela motocicleta
idiota...
— O acidente não foi sua culpa
— Papai me disse para não pegá-la. Eles estavam tão bravos
comigo, e estavam certos. — Sua voz falhou quando seus braços se
apertaram ao meu redor. — Eu sinto muito.
— Não faça isso, — eu funguei. — Você não fez nada de errado.
— Eu não posso acreditar que é você, — disse ele, suas palavras
abafadas pelo meu cabelo em seu rosto.
Um soluço soltou-se do meu peito e Axel manteve sua pressão forte
sobre mim. — Eu também senti sua falta, irmãzinha.
Havia tantas coisas que eu queria dizer-lhe; contar-lhe. As
palavras simplesmente não sairiam coerentes, então eu apenas segurei-
o no meu aperto vicioso e chorei em seu ombro.
— Vamos, agora, — ele acalmou depois de alguns minutos,
tentando me afastar. — Deixe-me dar uma boa olhada em você.
Eventualmente, eu me forcei a liberá-lo e dar um passo para trás,
mas segurei seus braços, com medo que ele desaparecesse se eu não
estivesse tocando-o.
Ele sorriu, — Você ainda parece uma idiota. — Eu franzi meus
lábios em um falso aborrecimento com sua provocação. — Deus, é bom
ver você, — ele continuou antes que eu pudesse retaliar com um insulto
amoroso. Eu sorri e bati contra ele novamente, envolvendo meus braços
em volta do seu pescoço.
— Quem é o cara olhando para nós? — Ele murmurou perto do
meu ouvido. Eu balancei a cabeça em descrença, percebendo que tinha
esquecido tudo sobre Ike quando vi meu irmão. Agarrei a mão de Axel e
levei-o para apresentá-los.
— Ike. — Meu rosto doeu por sorrir tão largo. Eu estava com o
Ike e meu irmão. Isso era simplesmente incrível demais... demais. — Este
é meu irmão, Axel. Axel, este é Ike McDermott.
Ike deu seu sorriso amigável e os dois apertaram as mãos. Não
pude deixar de pensar, as pessoas realmente apertam as mãos do outro
lado?
— Eu ouvi muito sobre você, — Ike disse a ele. — Prazer em
conhecê-lo.
— Igualmente, — respondeu Axel. Virando-se para mim,
perguntou: — Há quanto tempo você está aqui?
— Literalmente acabei de chegar aqui.
Axel inclinou a cabeça, movendo o olhar entre Ike e eu. — Então
você acabou de morrer?
Eu balancei a cabeça, tentando entender isso. Eu estava morta. Eu
tinha que estar. De que outra forma eu poderia estar aqui com eles se
não estivesse morta?
— Vocês dois morreram juntos? — Axel perguntou, a incerteza em
seu tom. Agora ele estava de olho em Ike, a ideia lhe ocorrendo de que
Ike e eu poderíamos ser um casal. Isso fez meu coração sorrir um
pouco. Algumas coisas nunca mudam, mesmo na morte. Axel sempre
seria meu irmão mais velho protetor.
— Não... — Eu hesitei desajeitadamente quando me ocorreu que
Axel tinha morrido antes de eu receber meu dom. — Ike faleceu antes de
mim, — eu finalmente disse. — Eu tenho muito para te contar, Axel. Eu
nem sei por onde começar.
— Por que você não começa com a forma como morreu?
Sua sugestão me fez parar enquanto vasculhava minha memória
procurando a resposta. A mesma sensação de cócegas que eu senti
quando Ike veio pela primeira vez até mim voltou. A lembrança do que
quer que tenha acontecido estava em algum lugar, mas por alguma razão
não surgia.
Como eu morri?
Capítulo treze
George

O amor da minha vida estava em coma há dois dias. Quarenta e


oito horas observando minha esposa imóvel em uma cama presa a
máquinas. 2880 minutos de médicos me dizendo que Charlotte não
acordaria. E ignorei esse prognóstico por 172.800 segundos. Eles
estavam errados. Ela sairia disso. Ela tinha que sair.
Martin Kern tinha aparecido pouco depois do meu confronto com o
pai de Charlotte no dia anterior, oferecendo ajuda de qualquer maneira
que pudesse, e me senti mal por achá-lo um idiota, especialmente depois
que ele hospedou nossas famílias em um dos apartamentos mobiliados
da agência perto do hospital. Os pais de Charlotte e o meu estavam
hospedados lá, e Sniper havia fechado o restaurante por alguns dias e
chegaria esta tarde.
Eu estava sozinho com Charlotte e o quarto parecia estranhamente
calmo, apesar do zumbido e dos bipes das máquinas mantendo-a
viva. Tracey e Wayne tinham saído alguns minutos antes, depois de
ficarem com Charlotte, enquanto eu saía para correr. Eu não queria me
afastar de Charlotte, mas estava tenso e precisava de algo... qualquer
coisa... para aliviar o estresse. Eu tinha acabado de voltar depois da
minha corrida de doze quilômetros, e minha camiseta encharcada de
suor grudava na minha pele enquanto eu olhava para ela, meus braços
cruzados, frustração fazendo meus músculos enrijecerem. Ela não
morreria. Isso não poderia acontecer.
Puxei o celular do bolso e cliquei no aplicativo que ela havia aberto
antes de desmaiar. Eu encontrei o telefone embaixo dela enquanto os
paramédicos a colocavam na maca. No caos da ambulância até o hospital
e sala de emergência, eu tinha esquecido enquanto lidava com a papelada
necessária e contatava nossos pais. Não foi até que estava sentado
sozinho na sala de espera, tentando não enlouquecer, que me lembrei
disso e tirei do meu bolso, na esperança de encontrar uma pista sobre
por que ela foi visitar Click sem mim. Quando abri a tela, o aplicativo do
YouTube estava aberto em um vídeo de alguém tocando Fur Elise no
piano, e isso vinha me incomodando desde então. Charlotte tocava piano
quando coagida, mas não me lembrava de ela escutar composições.
Eu iniciei o vídeo, inclinando o alto-falante em direção à cabeceira
da cama e estudei Charlotte por qualquer indicação de que ela estava
ouvindo. Eu sabia que era um tiro no escuro, mas fiquei desanimado
quando acabou e não houve nenhuma mudança nela. Eu coloquei o
celular de volta no bolso antes de esfregar o rosto com as duas
mãos. Todos tinham opiniões diferentes sobre o que, se alguma coisa,
Charlotte poderia ouvir em sua condição, até mesmo os médicos e
enfermeiros; Tudo o que sabia era que não doeria, e se houvesse uma
chance de trazê-la de volta para mim, eu tentaria qualquer coisa.
— Eu me lembro da primeira vez que te vi, Charlotte, — eu lembrei
em voz alta, minha voz soando estranha na sala vazia. — Você tinha todo
aquele cabelo longo e seus olhos, baby... ufa... — Eu estremeci,
esfregando a mão livre contra o meu peito em uma tentativa de aliviar a
dor constante que tinha se instalado desde que ela havia se ferido. —
Foram eles que me atraíram. — Senti um sorriso quando me lembrei dela
sentada no banco junto ao bar, com a boca aberta, me encarando.
— O jeito que você me olhou naquela primeira vez, achei que tivesse
se apaixonado pela minha boa aparência, — eu ri. Se ela estivesse
acordada, levantaria uma sobrancelha e franziria os lábios para mim em
resposta e sorri com o pensamento. Nós sempre tivemos as melhores
brincadeiras. Eu amava irritá-la. Claro, ela tinha conseguido seu próprio
tiro no meu ego quando eu soube que a sua reação era simplesmente
porque ela não sabia que o irmão que concordara em ajudar era o gêmeo
idêntico de Ike. Essa lembrança fez meu sorriso se
alargar; Definitivamente era algo que meu irmão faria. Ele provavelmente
deu boas risadas sobre isso. Meu sorriso não durou, porém, e a tristeza
retornou com o bipe de uma máquina e retomou sua tarefa de desmontar-
me, lembrando-me que não havia como irritá-la porque ela estava em
coma.
— Eu estava tão bagunçado naquele dia, mas quando dobrei a
esquina e vi você... foi como se a neblina se abrisse um pouco e então...
lá estava você. — Eu sorri. — Todos lá também viram.
Pensei em uma pessoa em particular, me encolhendo com o olhar
que eu sabia que Charlotte me daria se dissesse o nome
dela. Misty. Suspirei com a lembrança da minha derradeira estupidez. Na
maioria dos dias, parecia que isso tinha acontecido há uma vida, mas
agora, com tudo o que aconteceu, parecia que nunca me libertara; que
os últimos três anos foram apenas uma alucinação para escapar do
pesadelo.
— Eu pensei que você fosse louca, — eu admiti, passando a mão
pelo meu cabelo. — Quero dizer... você era... um pouco maluca.
Mais uma vez, eu poderia só imaginar o seu olhar, o jeito que seus
olhos se estreitariam e a boca se contorceria. Deus, eu daria qualquer
coisa para vê-la olhar para mim com seu jeito atrevido. Uma das coisas
que eu mais amava em Charlotte, sobre nós, era como sempre
encontramos uma maneira de rir da merda difícil. Ambos tínhamos nossa
própria vergonha e segredos obscuros, mas não escondíamos um do
outro. Nós os enfrentamos juntos, e até conseguimos rir dos erros que
sempre estariam conosco, em vez de deixar que eles nos definissem.
— Com todo o drama e besteira, você nunca desistiu de mim. Nem
uma vez. — Eu respirei fundo, antes de declarar: — Você não me deixou
sozinho no escuro. Eu não vou deixar você também, querida. Eu preciso
que você acorde, Charlotte. Por favor.
— Não pense que é tão simples assim, amor. — Eu saltei com a
interrupção, virando a cabeça para a porta e para a fonte da voz
inesperada. Uma mulher alta e esbelta de cabelos negros, usando calça
jeans preta e camiseta branca apertada, estava encostada no batente da
porta.
Marlena DuBois.
Eu limpei minha garganta, um pouco envergonhado por ela ter me
ouvido implorar a minha esposa em coma para acordar. — Marlena, eu
deveria ter ligado para você. Sinto muito, é que tem sido um pouco, — eu
olhei para a cama do hospital, — agitado aqui.
— Kern me explicou, — ela balançou a cabeça com simpatia, em
seguida, curvou a boca em um meio sorriso e encolheu os ombros: — Eu
decidi que deveria vir de qualquer maneira.
Estreitando os olhos, examinei seu rosto numa tentativa de ler os
pensamentos da médium psíquica. Ela viu alguma coisa?
— Não, — ela afirmou com firmeza. — Eu não vi nada.
Puta merda. Ela simplesmente...
— Não, — ela me cortou com um sorriso triste, conhecedor. — Seu
rosto disse tudo. — Empurrando-se fora da moldura da porta, ela
caminhou para o outro lado da cama, sua expressão irritantemente
neutra enquanto ela olhava para Charlotte por vários momentos. —
Conte-me sobre como isso aconteceu, — ela finalmente disse.
— Você não consegue ver isso? — Perguntei sem rodeios. A
pergunta saiu mais dura do que eu pretendia, mas imaginei que ela já
soubesse, considerando seus dons.
Ela cortou seus olhos verdes para mim e explicou com paciência:
— Eu vejo muitas coisas, George, mas nem tudo de imediato, e sempre
há mais para ser visto.
— Desculpe, eu não quis ofendê-la, Marlena. — Passei a mão pelo
meu cabelo enquanto me repreendia. Ela estava aqui para ajudar, e eu
precisava de toda a ajuda que pudesse conseguir. Eu soltei um suspiro e
encontrei seu olhar sobre a cama, — Eu a encontrei inconsciente na parte
inferior dos degraus. Eles acham que o aneurisma a fez desmaiar, e foi
por isso que ela caiu da escada. Felizmente sem ossos quebrados.
Ela ficou quieta por um longo momento, sua expressão, não traindo
nada enquanto estudava Charlotte. O simples vazio me lembrou dos
guardas em frente ao Palácio de Buckingham, e me perguntei se era uma
coisa britânica, ou se era por anos de prática não reagindo ao ver pessoas
mortas.
Alguns momentos depois, ela recuou e se acomodou na cadeira que
o pai de Charlotte aproximou da cama para ficar perto de sua esposa. —
Me conte sobre a garota que você mencionou quando conversamos pelo
Skype, George. Qualquer coisa que você saiba.
Eu pisquei em confusão. — A garota não importa agora. Minha
esposa está em coma.
— Estou ciente.
— Minha esposa precisa de ajuda. Click pode esperar.
— Você me pediu para vir aqui ajudar sua esposa com a garota. É
o que vou fazer.
— Sim, mas ela está em coma, — eu disse, me sentindo como um
disco arranhado.
— O que significa que não há absolutamente nada que ela possa
fazer para ajudar a garota agora, — Marlena fixou-me com o olhar, —
mas eu posso, e por sua vez, ajudar Charlotte.
— Como ajudar Click com qualquer coisa ajudará, ou mudará o
fato de Charlotte estar em coma?
— Tudo está conectado, George. Não apenas Click e sua esposa,
mas tudo, — ela varreu a mão pelo quarto, — você, eu, as pessoas na rua
abaixo de nós, estamos todos conectados, parte de um cenário muito
maior, e tudo acontece por uma razão. Na verdade, não sei como; Eu só
sei que vai. — Ela se inclinou e pegou minha mão, colocando-a na dela,
forçando-me a encontrar seu olhar sincero. — Para esclarecer como, eu
preciso que você me conte tudo o que aconteceu, desde o início, mas não
apenas em palavras. — Ela fez uma breve pausa, seus olhos dilatando
enquanto continuava: — Eu preciso que você reviva isso.
Eu me encolho com o pensamento do que ela está me pedindo para
fazer. Inferno, eu nem tinha certeza se entendia o que ela quis dizer, mas
meu instinto me dizia para confiar nessa mulher que cruzou um oceano
inteiro só para ajudar minha esposa. Respirando profundamente,
comecei a fazer o possível para conjurar todos os detalhes.
Charlotte estava agachada na porta do quarto onde Mary e Diana
residiam, sua expressão vazia. Algo estava errado. Eu queria perguntar o
que estava acontecendo, mas me contive. Ela estava concentrada, e eu
falar só a distrairia. Em vez disso, me preparei para qualquer coisa. Depois
de um momento, Charlotte ficou de pé, com a mão no estômago. Merda. Ela
estava doente?
— O que é Charlotte? — Eu perguntei, incapaz de esconder a
preocupação na minha voz.
Ela apertou meu braço me tranquilizando, segurando o meu olhar
por alguns momentos antes de virar para enfrentar um espaço vazio no
corredor. — Você as atraiu até aqui para ele? — Charlotte perguntou ao
espaço vazio com raiva mal contida.
Marlena puxou sua mão da minha, me afastando da memória. —
Eu fiz alguma coisa errada? — Eu perguntei, incerto se estava revivendo
isso como ela pediu. Eu sabia que estava descrevendo, mas realmente
não havia palavras capazes de transmitir as emoções que eu sentia.
Ela segurou seu estômago como se estivesse se sentindo mal, mas
sacudiu a cabeça enquanto olhava para Charlotte. — Não. Você está indo
bem, George. Eu só preciso de um momento para organizar tudo o que
estou vendo.
— Você está bem?
Ela inalou profundamente. — Náusea, — ela explicou com uma
risada sem humor. — Um divertido pequeno efeito colateral dos meus
dons.
Eu fiz uma careta. Isso parecia uma porcaria.
— Você está vendo alguma coisa? — Eu engoli o nó de derrota se
formando na minha garganta.
— Estou vendo uma situação extremamente complicada, — disse
ela com cuidado. Voltando-se para mim, ela estendeu a mão, palma para
cima, convidando-me a colocar a minha novamente. — Vamos
continuar... se você puder.
Eu detestava pensar no dia em que entramos naquele buraco, mas
se ajudasse Marlena a descobrir como ajudar minha esposa, reviveria
mil vezes. Colocando minha mão na dela, fechei os olhos e continuei
“revivendo” o dia em que entramos na Casa do Inferno.
Capítulo quatorze
Charlotte

Nós três caminhamos, Ike e Axel cada um de um lado


meu. Movemo-nos ao longo de um campo de grama verde que era macio
sob meus pés descalços. Eu não entendia por que era a única que não
usava sapatos, mas dificilmente parecia valer a pena perguntar quando
havia tantas outras coisas para discutir. A meu pedido, andamos em
silêncio um pouco para que eu pudesse reunir meus pensamentos. Eu
não sabia por onde começar. Minha história era complexa, e ainda havia
a questão de como eu morri. Por que não me lembro? Tudo o que eu
realmente sabia naquele momento era que queria caminhar e ver
tudo. Afinal, eu estava do outro lado.
Quantas vezes imaginei como seria aqui? Com quantas almas
havia discutido sobre isso enquanto tentava ajudá-las a entrar no
além? Surpreendentemente, isso me lembrou de quadros que vi
retratando o paraíso prometido do céu. Havia cores por toda parte -
vastas e exuberantes, mas suaves também. Uma mistura brilhante de
rosa, laranja e dourado parecia flutuar no ar, encantando tudo. Era
hipnotizante.
Quando finalmente me recompus e coloquei meus pensamentos em
ordem, comecei a contar a Axel minha história, começando com o
acidente que lhe tirou a vida e me deixou capaz de ver os mortos. Contei
a Axel sobre minha recuperação após o acidente, o dom com o qual
acordei e o que aconteceu nos anos que se seguiram. Ike ajudou a
explicar como nos conhecemos e a dinâmica envolvendo George, nenhum
deles pareceu notar quando comecei a engasgar com a menção de
George. Deixei de fora a parte sobre eu quase pulando de uma ponte para
acabar com a minha vida. Eu tinha vergonha disso e não queria que Axel
soubesse. Felizmente, Ike também não mencionou. Eu não tinha certeza
de como poderia me sentir tão feliz em me reunir com esses dois homens
que eu amava muito, mas tão triste ao perceber que deixei George, e as
pessoas com quem eu me importava, para trás. Minhas emoções estavam
oscilando tão rapidamente que eu mal conseguia acompanhá-las.
— Então... você é casada com o irmão dele? — Axel perguntou
intrigado, sua boca curvada em um lado mostrando sua covinha. Havia
um traço de humor em seu tom que só eu podia detectar. Ele era meu
irmão. Eu conhecia sua risada, o jeito que ele soava quando estava sendo
sarcástico, como piscava rapidamente quando estava bravo com alguma
coisa. Para crédito de Axel, ele estava lidando com isso muito bem,
melhor do que eu esperava dada a insanidade de tudo.
— George, — lembrei a ele, meu próprio tom avisando-o para não
rir de mim, mesmo que toda a paixão por irmãos gêmeos, um dos quais
estava morto, soasse ridículo. Meu peito apertou quando disse o nome de
George. Parecia que tinha se passado apenas algumas horas desde que
nós dois estávamos emaranhados na cama juntos. As pessoas sempre
dizem que você nunca sabe quando será seu último dia, e é a verdade. Eu
nunca teria imaginado quando George se despediu com um beijo, que
seria a última vez que o veria. Se um coração realmente pudesse produzir
um som de tristeza e agonia, o meu estaria uivando enquanto mergulhava
nesse pensamento. Essa foi a última vez que ele me viu viva.
Por favor, deixe-o ficar bem.
Enquanto eu silenciosamente lamentava, um pequeno zumbido
passou por mim, me fazendo parar. Ike e Axel pararam comigo, ambos se
voltando para mim.
Música.
Eu ouvi música.
— Vocês ouviram isso? — Eu perguntei a eles. Eles olharam ao
redor um para o outro, balançando a cabeça. — Vocês não estão ouvindo
isso? A música?
— Eu não ouço nenhuma música, — disse Ike.
— Piano. — Eu pisquei, um peso pressionou tão profundamente
meu coração que parecia como se estivesse me empurrando para o chão
e me esmagando abaixo dele. Por que me sinto com o coração partido? A
composição era familiar... — Beethoven, — murmurei, depois
acrescentei: — Vocês realmente não estão ouvindo isso? — Ambos
balançaram a cabeça novamente.
Por que eu era o único a ouvir isso? Mais importante, por que isso
me deixava tão triste?
— Você está bem? — Axel perguntou, sua testa enrugada com
preocupação.
Eu balancei a cabeça, incapaz de responder. Minha mente captou
o cheiro de alguma coisa e agora estava com o nariz no chão, determinada
a encontrar a trilha. Havia algo importante sobre isso, mas o que era?
— Charlotte? — Ike tentou quando não respondi a Axel.
Eu também não consegui lhe responder. Uma sensação passou por
mim, enganchando meu corpo, me segurando, tentando me puxar para
trás. Meus membros estavam pesados e minha cabeça girou com
tontura. Eu tropecei tentando me equilibrar, lutando contra o enjoo no
meu estomago. Ike e Axel me flanqueavam, ambos segurando um lado
meu, mantendo-me em pé. — Vocês estão sentido isso? — Eu lancei
meus olhos em todas as direções, esperando identificar o que estava me
fazendo sentir isso, mas tudo que eu vi foi Ike, Axel e beleza. — Algo
está... me puxando.
Ike e Axel se entreolharam antes de voltar seus olhares perplexos
para mim. — Eu não sinto nada, — respondeu Ike. Depois de um
momento, os sentimentos estranhos diminuíram e eu pisquei algumas
vezes, confusa.
— Passou, — eu disse, ainda perplexa com o que acabara de
experimentar. Foi minha dor ao pensar em George? Minha mente correu
em direção a essa conclusão. — Eu estou bem, — assegurei-lhes
enquanto me afastava deles para me orientar.
— Você parece um pouco triste, mana. Eu acho que você pode
precisar se animar. — Havia uma nota estranha na voz de Axel e quando
olhei para ele, sua cabeça estava levemente inclinada, sua testa franzida
em concentração.
As imagens à nossa volta mudaram lentamente, mas de alguma
forma rapidamente também. Axel levantou a cabeça e começou a andar
para frente e, sem perceber, o segui. Antes que eu percebesse, estávamos
nos aproximando do que parecia ser uma fazenda com colinas e fardos
de feno espalhados pelas saliências da terra. Isso lembrava um pouco de
Warm Springs. A visão por si só era tão bonita que reforçava que este era
o céu que minha mãe falava em suas lições da Escola Dominical.
— Onde estamos? — Ike perguntou em voz baixa.
Eu não pude lhe responder; Este lugar não me era familiar. Afastei
meu olhar de todo o esplendor para perguntar a meu irmão por que ele
nos trouxe aqui, mas algo na expressão de seu rosto impediu que as
palavras se formassem. Suas mãos ainda estavam nos bolsos e ele sorria
suavemente enquanto olhava para frente. Suas feições se iluminaram, o
contentamento pacífico irradiava dele. Curiosa, segui sua linha de visão,
e quando vi o que ele estava olhando, minha boca se abriu.
Dor e alegria rolaram através de mim, me congelando no lugar. Axel
passou um braço em volta dos meus ombros e me apertou contra ele, sua
voz quase inaudível quando falou: — Antes de morrer, quando
questionava se havia realmente mais; se realmente existiam anjos, ou até
mesmo um deus, acreditei por causa dela. Ela foi a pessoa mais altruísta
e amorosa que já conheci, e eu sabia que tinha que haver um paraíso
porque ela merecia isso. Alguém tão bom não poderia simplesmente
deixar de existir.
Eu balancei a cabeça enquanto engolia o nó gigante de emoção na
minha garganta e soltei um longo suspiro.
— Ela ficará tão feliz em vê-la, Char.
Vovó.
Minha Vó.
Ela estava aqui e eu estava prestes a vê-la novamente.
Sua casa pitoresca, a que ela viveu com meu avô até o dia em que
nos deixou, ficava no topo da bela paisagem.
— Aqui foi onde ela escolheu viver a vida após a morte?
Axel soltou uma risada baixa. — Ela manteve sua pequena casa e
coisas antigas, mas mudou a paisagem. — Isso soava como Vovó. Ela
nunca foi materialista. Você não pode levar nada com você, ela sempre
disse. Quando pensei em vê-la novamente, alguma coisa correu através
de mim, quase como um pico de adrenalina, mas sem a sensação de
excitação. Era como se todas as preocupações que eu estava carregando
desde que acordei deste lado estavam subitamente me deixando,
espiralando pelo meu corpo e saindo de mim. Meus avós estavam
aqui. Eu estava aqui. Eu ia ver e abraçar minha pessoa favorita no
mundo.
— Vá em frente, mana, — Axel pediu, dando-me um empurrão
suave. — Acho que sinto cheiro de pão caseiro. Ela provavelmente
acabou de retirar do forno. Aposto que ela vai te dar uma fatia. — Eu não
estava com fome, mas a menção do pão infame da Vovó fez minha boca
se encher de água. Eu não queria comer naquele momento, mas ansiava
pela familiaridade, a nostalgia. As avós sempre faziam com que você se
sentisse amado sem palavras. Era no conforto de coisas como uma
refeição quente, um copo gelado de chá e a porcelana verde ultrapassada
que ela sempre usava. Essas coisas eram apreciadas porque eram
consistentes, faziam parte de um fluxo constante de amor com o qual eu
sempre podia contar. Era como estar em casa. Vovó era como estar em
casa.
Eu não tinha certeza se meu irmão tinha feito isso acontecer, ou se
minha memória criou, mas eu jurei que o aroma de pão fresco flutuava
no ar. — Eu sinto o cheiro, — eu disse maravilhada.
— Vá, Char, — Axel persuadiu. — O que você está esperando?
Eu saí, me movendo rapidamente, meus pés mal tocando o chão
até sentir a madeira dura e envelhecida de sua varanda sob eles,
exatamente como lembrava quando criança, quando corríamos descalços
nos dias de verão brincando lá fora enquanto meus avós tomavam chá
gelado e nos observaram do balanço da varanda.
Eu tinha acabado de chegar à varanda quando a porta da frente se
abriu. Uma mulher com cabelo castanho preso e lábios pintados de
vermelho me encarou. Ela usava um vestido floral diretamente dos anos
cinquenta, completo com colarinho contrastante e saia rodada. Quem
diabos era essa senhora?
Sua boca subiu, seus olhos se iluminaram com alegria. —
Charlotte Anne? — Ela ofegou através de seu sorriso.
Eu estreitei meu olhar para ela, examinando seu rosto. Esta não
poderia ser minha avó. Mas ela me chamava de Charlotte Anne, assim
como Vovó. Examinando seu rosto, procurei um traço de algo que eu
pudesse reconhecer, mas no momento em que encontrei seu olhar, eu
soube. — É realmente você, — eu respirei quando voei em seus braços.
— Sim, doce. Sou eu, — ela sussurrou no meu cabelo enquanto me
segurava perto. Depois de alguns momentos, ela recuou, suas mãos
descansando suavemente em meus ombros enquanto observava minha
expressão. — Você parece chateada, criança, — disse ela em seu sotaque
do sul perfeito, sua boca se curvando em um sorriso.
— Você... isso, — eu acenei minha mão para ela, — não é o que eu
esperava é tudo, — eu expliquei.
Ela tocou primorosamente o cabelo dela. — Você pode entender por
que eu não queria passar toda a eternidade como uma velhinha enrugada
agora, não pode, doce? — Ela perguntou, seu tom atado com humor.
Examinando seu rosto de novo, percebi o que ela estava
dizendo. Esta era Vovó quando estava em seu auge - o jeito que ela queria
existir na eternidade. Eu sorri, incapaz de discutir o assunto, apesar de
sua aparência ser diferente do que esperava. Ela era estonteante, sem
dúvida, mesmo quando ela era uma “velha vovó enrugada”. Eu achava
sua versão experiente linda, e era essa versão dela que esperava ver.
— Vovó, você está uma gata, — eu sorri.
— Charlotte Anne, — ela sorriu de volta, puxando-me de volta em
seus braços para outro abraço. Eu me agarrei a ela, deixando meu corpo
relaxar contra o dela. A sensação era diferente, mas o amor e o calor que
ela sempre irradiava eram exatamente os mesmos. Era exatamente o que
eu precisava.
Capítulo quinze
Ike

Fiquei em segundo plano enquanto Charlotte conversava com seu


irmão e sua avó, mas nunca tirei meus olhos dela. O sorriso no seu rosto
era o seu próprio pedaço do céu para mim. Ver o sorriso dela foi tudo que
eu sempre quis.
Vovó nos alimentou com pão fresco e biscoitos caseiros, e
relembrou o avô de Charlotte, que ainda estava vivo. Uma parte minha
sentiu que deveria sair, mas então outra parte disse não para isso. Eu
acabei de encontrá-la. Não iria deixá-la fora da minha vista.
— Você se lembra de eu me despedindo de você, Vovó? — Charlotte
perguntou. — Você não abriu os olhos, mas juro que apertou minha mão.
— Eu ouvi você, doce. Cada palavra. Eu estava tão doente e tão
cansada que não conseguia abrir os olhos.
Charlotte lamentou. — Eu sempre me perguntei sobre isso.
Vovó forçou um sorriso, os olhos dela brilhando. — E quando eu
finalmente morri e meu espírito deixou meu corpo, vi todos vocês. — Ela
olhou para trás e para frente entre Charlotte e Axel. — Eu vi minha
família em pé em volta da minha cama e orei. Isso me deu tanta paz.
— Você foi capaz de se ver... e a nós... logo depois de morrer? —
Charlotte perguntou, parecendo confusa.
Vovó assentiu. — Sim, brevemente.
— Huh, — Charlotte bufou. — Eu sei que Axel esteve no limbo por
um curto período de tempo, mas ele tinha negócios inacabados. Assim
que ele soubesse que eu ficaria bem, ele atravessou.
Vovó franziu a testa não entendendo onde ela queria chegar. —
Qual é o problema, Charlotte Anne?
— Eu não vi meu corpo. Eu não consigo nem lembrar como eu
morri, — ela disse, desnorteada.
— Sua memória vai voltar para você, — eu ofereci, na esperança de
tranquilizá-la.
Charlotte olhou para mim. — Você se viu, seu corpo, depois de
morrer?
Imagens passaram pela minha cabeça em um flash, mas não do
meu corpo depois da minha morte. Eram lembranças da devastação que
minha morte causou à minha família, quando fiquei impotente e
vigiando. — Eu não vi meu corpo. Apenas todo o resto.
— Então vocês estiveram todos no limbo, pelo menos por um breve
tempo, — ela confirmou, olhando para cada um de nós.
Ela estava obviamente perturbada com isso, mas eu não conseguia
entender o por que. — Tenho certeza que você vai se lembrar em breve,
— eu reiterei quando ninguém mais falou.
Charlotte assentiu algumas vezes antes de tomar um gole do chá
gelado. Suas feições estavam tensas, fazendo pouco para esconder a
confusão que ela estava sentindo. Vovó, assim como Axel e eu, sentimos
que Charlotte estava preocupada, e como Charlotte não estava
articulando exatamente por que estava chateada, decidimos redirecionar
a conversa.
— Bem, Charlotte amor, — Vovó suspirou. — Por que você e seu
jovem aqui não vão passear. — Ela lançou um olhar consciente na minha
direção. Acho que era óbvio que eu estava ansioso para ter Charlotte para
mim mesmo por um tempo. Charlotte olhou para mim, os cantos de sua
boca subindo quando nossos olhos se encontraram.
— Eu acho que eu gostaria disso Vovó, — Charlotte concordou. —
Ike... você gostaria de me mostrar por aí?
— Eu vou levá-la onde você quiser, — eu disse a ela, o entusiasmo
na minha voz difícil de perder.
— Bem, eu vou indo também, — anunciou Axel enquanto esfregava
seu estômago. — Talvez possamos passar um tempo juntos depois, —
não tão sutilmente sugeriu, seu olhar encontrou o meu antes de mudá-
lo para Charlotte. Ele definitivamente queria estar com Charlotte
sozinha, sem mim. Mensagem recebida, alta e clara.
Charlotte o abraçou e beijou sua bochecha. — Estou tão feliz em
vê-lo.
Vovó me abraçou calorosamente e apertei a mão de Axel, depois
Charlotte e eu saímos. Quando descemos o último degrau da varanda, a
casa desapareceu. Parando, ela se virou e olhou de volta para a área
vazia, um sorriso flutuando em seus lábios. — Você fez isso?
— Não, — eu ri. — É assim que as coisas são aqui. Quando você
quer ir a algum lugar... você está lá, e quando você sai... some. — Eu
balancei a cabeça. — Isso provavelmente não faz qualquer sentido.
Ela suspirou: — Isso é surreal.
— Você estar aqui é surreal.
Seu olhar suave fixou em mim antes que ela deslizasse sua mão
delicada na minha e unisse nossos dedos. Eu olhei para as nossas mãos,
felicidade surgindo através de mim. — Eu ainda não consigo...
— Eu sei, — ela interrompeu. — Eu ainda estou cambaleando um
pouco.
Assentindo, apertei a mão dela gentilmente e começamos a andar.
— Me leve a algum lugar lindo. Algum lugar que você gosta.
— Há tantos lugares que eu amo aqui, mas você sabe que meu
lugar favorito sempre será nosso lugar, Charlotte. Aquele último dia que
passamos juntos lá… foi tudo.
Ela abaixou a cabeça como se estivesse pensando. — E aquilo foi
apenas nós sonhando acordado, — ela meditou. Eu detectei o brilho de
humor em seu tom. Ela estava flertando... sutilmente. Eu duvidava que
ela percebesse que estava fazendo isso. No último dia em que estivemos
juntos, passamos horas na água, fantasiando sobre a vida que teríamos
compartilhado se pudéssemos... se eu ainda estivesse vivo quando nos
conhecemos.
— Você esculpiu nossas iniciais na árvore.
Ela virou a cabeça para olhar para mim, uma expressão de
surpresa feliz no rosto. — Você viu aquilo?
— Pouco antes de partir… antes de vir para cá. Você não tem ideia
do que aquilo significou para mim.
Seus olhos se enchem de lágrimas. — Eu não tinha certeza se iria
sobreviver, Ike, — ela admitiu. — Você partindo. Aquilo foi...
— Eu sei, menina. Eu sei.
Olhando para frente novamente, seus passos diminuíram quando
sua boca se abriu ligeiramente. — Onde estamos?
O brilho do sol poente refletia em seus olhos enquanto ela olhava
as montanhas. — Everest, — eu disse a ela.
Ela inalou uma respiração instável, o lábio inferior tremendo. — É
lindo. — Ela soltou um soluço estrangulado antes de cobrir a boca com
a mão. Seus olhos cheios de lágrimas encontraram os meus. — É difícil
absorver tudo. Há muita beleza para absorver.
Eu me senti da mesma maneira quando cheguei. Eu tinha visto
muitos lugares inspiradores em minha vida, mas nenhum deles chegava
aos pés desse aqui, nesta parte; tudo era mais claro e mais nítido, as
cores eram mais vibrantes. Todos os seus sentidos eram levados ao
extremo. Você não estava apenas vendo montanhas, você estava
experimentando-as. A magnitude de tudo era incrivelmente
impressionante, mas de um jeito bom.
Enquanto Charlotte observava a paisagem, eu olhava para ela. Seu
cabelo escuro estava ondulado, cobrindo os ombros e as costas, a luz do
sol atingindo-o, tornando-o brilhante enquanto a leve brisa suavemente
o afastava de seu rosto. Houve momentos em que estive preso no limbo,
que questionei as coisas. Perguntei-me por que isso estava acontecendo
comigo; perguntava-me se eu estava sendo punido por ter feito algo tão
terrível que merecia ver minha família sofrer e não poder fazer nada para
ajudá-los. Então Charlotte apareceu e eu senti a esperança; só para ter
as perguntas voltarem quando me apaixonei por ela.
Mas agora, observando-a, sentindo sua mão na minha... nada
disso importava. Eu finalmente alcancei. O Céu. Nós estávamos
juntos. Todo o sofrimento que passei era apenas um nevoeiro nas minhas
memórias.
— Vamos subir naquela rocha e sentar, — eu apontei. — Teremos
uma visão melhor de lá.
Eu subi primeiro, em seguida, abaixei-me para ajudá-la a subir,
mas assim que ela levantou a mão para pegar a minha, ela parou e
tropeçou para trás, fechando os olhos com força.
— Você está bem? — Eu perguntei, inclinando-me para pular e
ajudá-la.
Balançando a cabeça, ela levantou a mão para me impedir. —
Estou bem. Algo pareceu esquisito por um segundo. Aquela mesma
sensação que tive mais cedo. Como se algo estivesse me puxando.
— Tem certeza de que você está bem?
Ela respirou fundo e forçou um sorriso enquanto subia a rocha. —
Sim, eu estou bem, — ela me assegurou. Quando nos sentamos, ela se
aproximou e apoiou a cabeça no meu ombro. — Eu me sinto feliz.
Eu sorri fracamente. — Estou feliz, — eu disse a ela, descansando
minha bochecha contra a cabeça dela.
— Mas também me sinto triste.
Meu coração apertou com suas palavras. Eu sabia que ela estava
triste e eu sabia o porquê. George. Meu irmão. Marido dela. — Eu sei,
menina, — eu murmurei.
— Eu me pergunto se ele está bem... — começou apreensiva, como
se ela se sentisse mal por mencioná-lo.
— Não há problema em falar sobre ele, — eu disse enquanto as
lembranças do meu irmão vieram à tona. — Ele está se portando bem,
no entanto? Parece que quando penso nele... Eu sinto serenidade.
— Ele está bem, firme em sua recuperação. Eu não sei como... —
ela parou, depois riu amargamente, — Deus sabe que ser casado comigo,
com toda a minha loucura, levaria alguém a maus vícios. Mas ele tem
sido forte... por nós dois. Eu não sei como teria continuado sem ele, —
ela terminou trêmula, tristeza entrelaçando sua voz. Por mais que me
doesse ouvir, eu entendia sua tristeza.
Deixando escapar um suspiro, eu disse: — Sinto muito,
Charlotte. Parece que você nunca fica sem situações complicadas em se
tratando de nós, homens McDermott. — Quando ela não respondeu, eu
continuei, — Você teve que lidar com tanta coisa, Charlotte. Eu mal posso
imaginar... — Foi a minha vez de parar quando o peso de tudo girou em
torno de nós.
Ela se mexeu, se aproximando de mim, aninhando a cabeça na
curva do meu pescoço. Eu coloquei meu braço em volta dela, mas de
repente não conseguia levantar meu braço. O que…? Meu corpo caiu para
o lado enquanto inutilmente lutava para levantar. Merda. O que estava
acontecendo comigo? Minha visão borrou quando uma onda de tontura
me atingiu. Parecia que eu estava prestes a desmaiar. Mas isso era
impossível - isso não acontecia deste lado.
— Ike? — A voz de Charlotte estava distante, embora eu ainda
pudesse senti-la ao meu lado. Um momento depois, a minha força cedeu
e meu corpo fez um som alto quando bateu no chão.
— Ike! — Charlotte engasgou. — O que está acontecendo?
Mesmo que eu fosse capaz de falar, não teria uma resposta. A
tristeza caiu sobre mim, me puxando para a escuridão. Segundos depois,
a voz de Charlotte desapareceu. Meu coração batia no meu peito, pânico
que eu não sentia há muito tempo passando por mim. Porra, eu não
sentia falta dessa sensação. Eu não estava inconsciente. Na verdade, eu
estava muito acordado, ciente de que estava à deriva em câmera lenta,
indefeso contra o que quer que estivesse me sugando em uma escuridão
sombria. Eu não tinha escolha a não ser me deixar levar. A bile subiu
pela minha garganta quando a náusea me consumiu.
Depois de um momento interminável, uma pontinha de luz
começou a aparecer, a claridade repentina me fazendo apertar os
olhos. Então bati em um chão, grunhindo com o impacto. Movendo-me
desajeitadamente para me apoiar em meus cotovelos, meu corpo
desprovido de força, me concentrei em respirar uniformemente enquanto
esperava minha visão clarear. Minhas mãos foram as primeiras a se
tornar reconhecíveis, depois um piso de madeira suja abaixo delas. Eu
virei de lado, lutando para me sentar quando outra onda de náusea me
atingiu. Eu vou vomitar. Que diabos? Eu estava morto. Eu não deveria
estar me sentindo enjoado ou fraco, ou ter desmaiado.
— Eu posso ver vocês duas.
Eu reflexivamente chicoteei minha cabeça na direção da voz que
ouvi, percebendo o erro tarde demais quando a náusea se
intensificou. Eu pisquei rapidamente, puxando o ar pelo nariz enquanto
lutava pelo controle. Essa tinha sido a voz de Charlotte?
Com algum esforço, consegui distinguir a silhueta de uma mulher
ajoelhada. Concentrei toda a minha energia em ver quem era e estava
certo. — Charlotte, — eu murmurei, estendendo a mão trêmula para ela.
Ela não vacilou. Sua atenção permaneceu focada em quem ela
estava falando. Ela estava ajoelhada em um corredor em frente a uma
porta, e de pé atrás dela estavam George e Sniper. Apesar do imenso
desconforto, sorri.
— George. Sniper — gaguejei em direção a eles o melhor que pude,
mas nenhum deles parecia me ouvir ou me ver.
— Sim, vocês duas, — disse Charlotte. — Há duas de vocês aqui.
Meu olhar disparou para Charlotte novamente, depois de volta para
George e Sniper, um pavor doentio subindo pela minha espinha. Eles não
sabiam que eu estava aqui.
Suor escorria na minha testa. — George! — Eu rugi novamente,
mais alto, mas ele não vacilou. Eu bati meu punho no chão. —
Sniper! Charlotte! Olhe para mim, droga! — Nada. Meu peito se
apertou. Eles estavam bem ali na minha frente, como eles não poderiam
me ouvir? Era como quando eu estava no limbo
— Simplesmente acalme-se, Ike, — eu disse em voz alta, sem me
preocupar em manter os pensamentos na minha cabeça, já que
claramente ninguém estava por perto para me ouvir falar comigo
mesmo. Se fosse o limbo e eu tivesse sido puxado de volta, Charlotte seria
capaz de me ver ou ouvir, então tinha que ser outra coisa. — Pense, Ike,
— eu rosnei quando bloqueei a náusea e consegui me aproximar. —
Talvez se você puder tocá-los... — Eu ponderei em voz alta para mim
mesmo.
Quando me aproximei dos três, o quarto em que Charlotte estava
ajoelhada apareceu e vi duas jovens de pé praticamente em cima uma da
outra. Os seres vivos não podiam fazer isso, então eu sabia que elas
tinham que ser espíritos.
Algo se moveu no canto de trás do corredor, chamando minha
atenção para longe das imagens diante de mim. Havia uma mulher que
eu nunca tinha visto antes me observando. Nenhum dos outros parecia
notar sua presença. Ela era uma mulher atraente, apesar de seu
delineador pesado, vestimenta estranha e estrutura esbelta.
— Você pode me ver? — Eu perguntei a ela.
Sua franja entrecortada deslizou para o lado quando ela inclinou a
cabeça para olhar para mim com seus olhos de esmeralda.
Ah sim, ela definitivamente me vê.
Abri a boca para perguntar quem ela era, mas, ao contrário de
como fui puxado para esse momento, de repente fui arrancado dele em
alta velocidade.
— Ike? — Forcei meus olhos a abrir com a voz familiar. Vovó olhava
para mim, preocupada vincando sua testa. Levei um momento para
perceber que estava no sofá dela.
— Ele está acordado, — ela chamou por cima do ombro. Voltando
sua atenção para mim, ela sorriu fracamente. — Você nos deu um susto,
— ela confessou. — Pobre Charlotte estava fora de si.
— Cara, — Axel bufou quando ele apareceu, afastando seu cabelo
desgrenhado do rosto com um toque de sua mão, só para que caísse cair
de volta para onde estava antes. — Onde você foi, cara?
Eu não sabia como responder a essa pergunta.
— Você me assustou, — disse Charlotte quando se sentou ao meu
lado, soltando um suspiro pesado.
Eu limpei a rouquidão da minha voz o suficiente para me controlar,
— sinto muito. — Eu me movi para sentar, mas Vovó apertou meus
ombros.
— Você deveria descansar, criança.
Náuseas agitaram meu estomago, mas eu não conseguia ficar
parado. — Eu preciso me sentar, — eu insisti. — Eu preciso pensar.
Quando me movi para ficar em pé, Charlotte se levantou e pegou
minhas mãos, me ajudando, segurando meus antebraços enquanto eu
cambaleava um pouco. — Talvez você devesse deitar, Ike.
— Eu nunca vi ninguém aqui fazer isso, — observou Axel.
— Fazer o quê? — Charlotte perguntou.
— Desmaiar. Você já viu? — Perguntou ele a Vovó. Vovó olhou para
mim e depois para baixo. Isso foi um não, mas ela não queria dizer isso
e me alarmar, ou mais importante, a Charlotte.
Charlotte franziu a testa com um pequeno vinco se formando entre
as sobrancelhas. — O que isso significa?
Querendo aliviar suas preocupações, eu a puxei contra mim,
guiando sua cabeça para descansar no meu ombro. — Eu não sei,
menina, — eu admiti. — Tudo o que importa é que acabou.
— Você tem certeza que está bem? — Ela murmurou contra o meu
ombro.
— Charlotte... acho que tive um sonho com você, — confessei. Onde
quer que eu tenha ido, sabia que Charlotte estava lá, mas os detalhes
eram confusos. — Foi estranho. Você e George estavam lá. Sniper estava
lá também, — eu vasculhei minha mente por mais, — e duas garotinhas
que tenho certeza estavam mortas.
Charlotte se afastou de repente, seu olhar distante e desfocado
enquanto a cor drenava de seu rosto. Eu apertei seus braços, com medo
que ela desmaiasse. — Charlotte, o que há de errado?
— Você estava na Casa do Inferno, — ela disse distraidamente
antes de cobrir a boca e sair do meu alcance.
— O quê? — Axel perguntou.
— Eu não estava lá, exatamente, — eu esclareci e acrescentei, —
era mais como se eu estivesse assistindo, mas de dentro. — Frustrado,
eu cocei a cabeça procurando uma maneira melhor de explicar, sabendo
que não estava fazendo sentido algum. — Nenhum de vocês podia me ver.
— Como você pode ter sonhado com isso? — Ela perguntou, mais
para si mesma do que para mim.
Eu respondi de qualquer maneira. — Eu não sei.
— O que é a Casa do Inferno? — Axel perguntou novamente, mais
enfaticamente desta vez.
Charlotte se virou para nos encarar, sua expressão subitamente
horrorizada. Seu corpo pareceu desabar sob ela, mas eu a peguei e a movi
para sentar no sofá. O jeito que ela apertava meu braço era tão forte que
os nós dos seus dedos ficaram brancos. Claramente abalada, ela
finalmente encontrou cada um dos nossos olhares. — Eu lembro o que
eu estava fazendo, — disse ela com cautela. — Eu me lembro do que
estava fazendo quando morri.
Capítulo dezesseis
George

Eu tracei o espaço vazio no dedo anelar de Charlotte com o meu


polegar, uma dor fresca se formando em meu coração quando me lembrei
do olhar no rosto da minha mãe quando lhe dei os anéis de Charlotte
para guardar. Eu odiei fazer isso, mas a política do hospital determinava
que os pacientes da UTI não usassem joias, algo sobre precauções,
apenas no caso. Os olhos da mãe estavam sombrios quando ela os
pegou. Ela não conseguia esconder que no fundo já estava de luto pela
minha esposa. Ela acreditava que não os devolveria a Charlotte. Pedi a
Sniper que passasse em nossa casa e pegasse as etiquetas de Ike da caixa
de joias de Charlotte, para que eu pudesse acrescentá-las ao colar com o
crucifixo que havia sido um presente de Axel e Charlotte havia me dado
pouco antes de eu ir para a reabilitação. Não sei por que pensei nas
etiquetas de Ike, além de querer o conforto do meu irmão. Talvez fosse
improvável, mas eu gostava de acreditar que nossos irmãos estavam
cuidando dela. Eu acreditava que onde quer que esta estrada esteja
levando Charlotte, se eles pudessem ajudá-la, eles iriam.
— Como está a nossa garota esta tarde?
Eu saltei ao som da voz de Marlena atrás de mim. Ela tinha uma
maneira estranha de se esgueirar sobre as pessoas; embora fosse mais
provável que eu estivesse preocupado com a falta de melhora de Charlotte
nos últimos três dias. — Quieta, — eu finalmente murmurei enquanto
ela contornava a cama e ficava na minha frente.
Ela olhou para a foto emoldurada que minha mãe colocou na mesa
de cabeceira, depois de ter notado que meu olhar parou nela quando me
virei na cadeira para vê-la melhor. Foi uma que meu pai tinha tirado no
dia em que eu propus. Marlena a pegou e estudou antes de virar para
mim. — Conte-me sobre isso.
Eu vacilei quando Sniper riu do seu lugar no canto, fingindo estar
interessado em uma revista. Ele estava tão quieto desde que chegou a
pouco, que eu tinha esquecido que ele estava lá.
— Esta é a melhor história, — Sniper disse enquanto eu balancei a
cabeça, tentando limpar o nevoeiro sempre presente.
Marlena sorriu conscientemente para ele: — Você é o cara que
contou a ele sobre mim, certo?
Sniper levantou-se e assentiu, estendendo a mão enquanto dizia:
— Eu sou. Meus amigos me chamam...
— Sniper, — ela interrompeu, — mas seu nome verdadeiro é
Francis.
O sorriso de merda habitual de Sniper desapareceu, fazendo-me
sorrir. Ele detestava seu nome, o que só tornava todo o “macho alfa com
nome de garota” muito mais engraçado.
— Cuidado, Marlena, — eu avisei, humor entrelaçando meu tom. —
O velho Franny é um pouco sensível sobre o nome dele.
— Idiota, — Sniper murmurou. Ansioso para desviar sua
humilhação para mim, ele rapidamente acrescentou: — Conte a ela como
você propôs, George. É uma ótima história.
Eu gemi e revirei os olhos. — Talvez outra hora, — eu disse, de
repente sentindo minha exaustão. Embora a leviandade do momento,
ainda que breve, tivesse sido boa, havia minado o meu último fragmento
de energia. O sono ininterrupto era impossível com as enfermeiras
verificando Charlotte em intervalos regulares durante a noite, mas me
recusei a ficar longe dela por um longo período, para o desânimo de meus
pais.
Marlena contornou a cama e apertou meu ombro. — O que me diz
de darmos uma volta, pegar um pouco de ar.
— Eu acho que devo...
— Eu fico com ela, George, — Sniper interrompeu meu protesto,
assumindo que eu não queria deixar Charlotte sozinha, mas a verdade
era que eu não queria deixá-la. Com movimentos deliberados, ele moveu
sua cadeira do canto para o lado da cama e sentou-se, encontrando meu
olhar através da cama. — Sim, vá em frente, garoto. Vai te fazer bem
esticar as pernas. Eu e essa senhora ficaremos bem, não vamos, jovem
— disse ele, batendo na mão de Charlotte. Suspirei relutantemente e me
levantei, inclinando-me para beijar a testa de Charlotte. Eu aprendi
muito rapidamente que não havia como discutir quando o homem agia
todo escocês.
Marlena caminhou em direção a porta e eu a segui para fora do
quarto. Os uniformes das enfermeiras, cobertos com filhotes usando
tiaras brilhantes e vários personagens de desenhos animados, eram a
única cor no abismo monótono, contrastando quase violentamente com
as sombrias paredes cinzentas e os suaves assoalhos de ladrilhos
brancos. Os hospitais tinham que parecer tão deprimentes?
— Não foi exatamente como planejado, não é? — Marlena
perguntou enquanto andávamos até o elevador.
— O que não foi? — Eu perguntei, não seguindo sua linha de
raciocínio.
— A proposta, — ela riu.
— Ohhh, sim, — sorri fracamente quando encontrei seu olhar. O
brilho nos olhos dela me dizia que ela estava vendo pedaços do desastre
elaboradamente planejado.
— Não, não foi, — eu finalmente admiti. — Mas foi uma ótima
história.

— Certifique-se de que está bem amarrado lá, filho. Não quero


perder isso agora. Sua mãe enlouqueceria, — meu pai avisou enquanto
me observava fazendo meu sexto nó.
Eu sei que ele estava apenas cuidando de mim, então não
comentei, mas eu não era um idiota. Eu sabia o quanto estava na linha
- literal e figurativamente falando.
— George! — Mamãe gritou do topo da colina. — Sniper acabou de
ligar. Charlotte está a caminho! — Eu havia deixado Charlotte no
restaurante, dizendo que ia pescar com meu pai. O plano era Sniper dizer
que a mãe ligou para o restaurante em pânico dizendo que eu escorreguei
e machuquei minhas costas, e precisava que Charlotte viesse me
buscar. Fingir uma lesão não era a coisa mais gentil a se fazer com a
minha então namorada, mas foi tudo que eu consegui pensar. E como
meus pais amavam Charlotte e queriam que eu me acomodasse, eles
estavam mais do que dispostos e ansiosos a participar do meu plano,
mesmo que envolvesse uma pequena mentira de suas partes.
Meu estômago apertou quando encontrei o olhar reconfortante do
meu pai. Era isso. Estava na hora. Batendo firme a mão no meu ombro,
ele gritou de volta para minha mãe: — Tudo bem, Beverly! Estamos todos
prontos aqui!
Mamãe bateu palmas e se moveu animada. — Boa sorte,
George! Não estrague tudo!
Eu estreitei meu olhar. De todos os dias, minha mãe escolheu este
para me provocar. — Nossa, obrigada, mãe! — Respondi secamente.
— Você vai ficar bem, filho, — meu pai me assegurou. — Tudo o
que realmente importa é que ela diga sim, e não estou preocupado com
isso. O dia em que sua mãe concordou em se casar comigo foi o melhor
dia da minha vida. Deus sabe o que eu teria feito se ela tivesse dito
não. Você é um bom homem, George, e eu assisti você e Charlotte. Ela
ama você. Contanto que vocês nunca parem de lutar um pelo outro, serão
tão feliz quanto sua mãe e eu temos sido todos esses anos.
Eu balancei a cabeça, incapaz de encontrar uma resposta
adequada. A bênção de meu pai significava o mundo para mim e seu
louvor significava ainda mais. Se Charlotte, por algum milagre,
concordasse em se casar comigo, passaria todos os dias tentando lhe dar
o tipo de amor e casamento que meus pais compartilhavam.
Charlotte desceu correndo a colina quinze minutos depois. Como
planejado, papai estava “descansando” em sua cadeira perto da margem
do rio, com suas botas no chão ao lado dele enquanto eu estava
totalmente preparado e deitado na água.
Erguendo a mão na cabeça para bloquear o sol dos olhos, ela
gritou: — Sua mãe disse que você machucou suas costas. O que você
está fazendo na água?
— Oh, foi apenas um espasmo, — eu gritei sobre as ondas da
pequena corredeira, virando-me para encontrar seu olhar para
tranquilizá-la, satisfeito em ver sua expressão confusa. Por enquanto,
tudo bem. — Estou muito melhor agora, — acrescentei para efeito,
esperando que minha voz não soasse tão falsa quanto parecia. Eu quase
pirei quando ela colocou as mãos nos quadris, um sinal de que estava se
preparando para me dar um sermão.
— Eu simplesmente corri até... — Charlotte parou quando olhou
para o meu pai e chiou em frustração. Eu balancei minha cabeça em
diversão. A mulher parecia um anjo, mas tinha a boca de um marinheiro
e, embora seu vocabulário incluísse uma longa lista de palavras
interessantes, ela se esforçava ao máximo para evitar usá-las em torno
dos meus pais e de muitos outros. Ela foi ensinada a respeitar os mais
velhos.
Meu olhar seguiu o dela até meu pai e me encolhi com sua pobre
tentativa de parecer casual. Ela inclinou a cabeça, estreitando os olhos,
desconfiada, enquanto dava uma boa olhada no meu pai, depois lançou
os olhos para mim, sua expressão preocupada, silenciosamente
perguntando: Ele está bem? Merda. Meu pai nunca teria dado certo em
Hollywood. Ele não poderia parecer relaxado para salvar sua vida. Ele
estava sentado em sua cadeira, uma perna cruzada sobre a outra, seu
corpo completamente virado de costas para Charlotte. Ele
definitivamente parecia desligado. Eu apertei minha boca enquanto
olhava para o papai. Em sua tentativa de despistar, ele estava
praticamente entregando tudo.
Ele está bem, eu murmurei com um encolher de ombros, tentando
acelerar as coisas antes que sua preocupação explodisse tudo. — Droga!
— Eu gritei irritado. — Minha linha está presa em alguma coisa! — Eu
estremeci com quão robótico e antinatural eu soava. Aparentemente,
herdei minhas habilidades de atuação, ou falta dela, do meu pai. Eu fingi
puxar minha linha para libertá-la, rezando para que ela não se soltasse
do lugar onde a amarrara propositalmente.
— Parece que você precisa de ajuda, filho, — meu pai soltou
desajeitadamente na hora, seu corpo praticamente pulando da cadeira e
a derrubando. O homem não se movia tão rápido em anos.
Eu respirei fundo e passei a mão pelo meu rosto. Apesar de não
termos estragado tudo, isso definitivamente não estava correndo do jeito
que eu imaginava. A única graça salvadora foi que Charlotte não pareceu
notar que estávamos agindo como dois malucos.
— Sim, eu acho que preciso que alguém desenganche, — eu
continuei, determinado a completar o meu plano.
— Eee-eu ajudo você, filho, — papai gaguejou, antes de se inclinar
um pouco. Momentos antes de ele sair de sua cadeira como se alguém o
houvesse cutucado no traseiro com um ferro em brasa, e agora ele estava
se movendo como se fosse um decrépito homem de quinhentos anos de
idade. Ele até colocou uma das mãos atrás dele, segurando a parte
inferior das costas enquanto se movia em direção às botas, fingindo que
o estereotipado homem velho novamente, o rosto contorcido em uma
careta.
Eu olhei para o céu, incapaz de vê-lo e sussurrei: — Senhor, por
favor, não nos deixe estragar isso. — No momento em que dei mais uma
olhada no horrendo desempenho que meu pai estava dando, Charlotte
tinha uma mão em seu ombro, insistindo que ele se sentasse de novo.
— Você não consegue desenganchar? — Ela gritou, depois que
papai voltou para a cadeira.
— Não, — eu menti, cuidadosamente dando à linha outro puxão
como confirmação. — Está realmente preso.
Ela suspirou, claramente exasperada pelos dois idiotas que de
repente não conseguiam fazer nada sem ela. Quando ela se virou para
pegar as botas, meu pai abandonou a fachada e se animou, lançando o
olhar para mim, levantando o punho em sinal de vitória.
Jesus Cristo!
Eu arregalei meus olhos, lhe implorando para ficar calmo antes que
ela o pegasse. Ele acenou com entusiasmo e deu um rápido sinal de
positivo, em seguida, recostou-se e retomou seu ato de homem
velho. Alívio correu através de mim quando Charlotte finalmente colocou
as botas e entrou na água, pronta para salvar o dia.
Pelo menos o plano estava funcionando, por mais terrível que
estivéssemos executando. As botas ficavam enormes em sua pequena
estrutura, e ela levou algum tempo andando em torno das rochas até
onde eu indiquei que minha linha estava presa. Meu coração disparou
enquanto o momento crucial se aproximava. Meu pai estava certo, tudo
que levava a isso era ruído de fundo comparado ao significado do
momento. Eu estava apaixonado por essa mulher. Ela me salvou. Ela era
uma parte de mim. Eu precisava dela. Eu sabia que ela me amava, mas
não podia lutar contra o medo no meu coração que ela poderia dizer
não. Até este ponto, eu tinha sido capaz de manter os pensamentos
negativos à distância, mas enquanto a observava se mover através da
água para o local onde amarrei todo o meu futuro em uma linha de pesca
e coloquei entre duas pedras, minha temperatura subiu e minha testa
umedeceu de suor. Eu passei meu antebraço por cima para limpá-
la, respirando fundo para me acalmar. Era isso. Isso estava acontecendo.
Quando Charlotte chegou ao fim da linha, ela a inspecionou antes
de se inclinar, tentando soltá-la. Quando ela deu um forte puxão na
linha, meu coração pulou para a minha garganta. — Talvez não deva
puxar com tanta força, — sugeri, trabalhando duro para esconder o
pânico que estava sentindo. — Eu realmente gostaria de manter a isca.
— Só vale talvez um dólar, George, — ela bufou. — Eu posso
desperdiçar um dólar. — Porra ela podia ser atrevida às vezes. Ela estava
certa, a isca era barata.
— Apenas tente soltá-la sem perdê-la; É difícil encontrar em
estoque.
— Está enrolada em torno de um pedaço de pau, — disse ela depois
de alguns minutos. — Eu acho que vou precisar cortá-la, — ela decidiu,
colocando a mão no bolso do peito para pegar o canivete que ela sabia
que estaria lá.
— NÃO!!! — Eu gritei abruptamente, o grito de pânico ecoando
sobre a água enquanto assistia meu plano completamente ir para o
inferno. Se ela cortasse a linha, o anel de noivado da minha bisavó
provavelmente desapareceria para sempre no rio Jackson.
Abandonando a encenação, eu avancei pela água o mais rápido que
pude, lutando contra a corrente por cada passo lento. A água espirrava
ao meu redor enquanto eu gritava incoerentemente para ela que me
olhava de olhos arregalados como se eu tivesse enlouquecido
completamente.
Foi quando aconteceu.
Foi quando toda a esperança de salvar um pouco da minha
dignidade restante teve uma morte aquosa quando minha bota encravou
entre duas pedras e eu caí de cara na água.
Uma vez caído, pude rapidamente encontrar uma pedra para me
apoiar, momentaneamente agradecido por meu rosto ter só boiado de
encontro à água, em vez de bater contra uma pedra. Ainda assim, com
todos os aspectos positivos a parte, entrou água no meu nariz e consegui
desesperadamente limpá-lo enquanto avaliava minha situação. Ficar de
pé estava fora de questão agora que minhas botas estavam cheias de
água, então patinei até manobrar em algo parecido com ajoelhado.
— George McDermott! — Charlotte gritou. — O que no mundo deu
em você?
Tossindo, eu afastei o cabelo emaranhado da minha testa com um
golpe rápido, conseguindo apenas um pouco disso. Olhando para o meu
pai na margem do rio, eu o vi, com a câmera na mão, tirando fotos minhas
e do momento épico de Charlotte, assim como havíamos planejado. As
fotos deveriam ser lembranças, algo que poderíamos relembrar nos
próximos anos. Eu de joelhos, encharcado como um cachorro molhado
não era exatamente o que eu tinha em mente. Eu resmunguei, deixando
meus ombros caírem em derrota. Papai fez um gesto com a mão,
incentivando-me a continuar. Então ele levantou a câmera e tirou outra
foto minha. Quando voltei meu foco para Charlotte, a preocupação estava
escrita em todo o seu rosto.
— Não, — eu disse, levantando a mão para impedi-la quando ela
deu um passo em minha direção. Então, meu plano explodiu. Isso
acontece na vida. Mas eu tinha começado isso e terminaria.
Através dos fios de cabelo em volta do meu rosto, encontrei seu
olhar, lutando para ver além da água em um dos meus olhos. — Você
sabe que eu te amo, não é?
Suas feições suavizaram quando seu olhar relaxou. — Claro.
Apoiando-me em algumas pedras próximas, me aproximei dela até
ficarmos a centímetros de distância, permanecendo em um joelho,
embora um pouco desequilibrado. — E você sabe que eu faria qualquer
coisa por você, certo?
Ela inalou profundamente, confusão retornando a sua testa. —
Sim eu sei.
Eu soltei um suspiro e gesticulei ao meu redor com a mão. — Não
foi assim que planejei isso...
— O que não foi? — Ela perguntou, sem entender o que eu estava
dizendo.
Meu plano estava em frangalhos e praticamente se afogando em
sessenta centímetros de água, então tudo que eu podia fazer naquele
momento era colocar meu coração aos seus pés.
— Case comigo, Charlotte.
Seus olhos se arregalaram quando continuei: — Eu sei que não
mereço você. Eu sei que cometi erros...
Ela colocou a mão sobre a minha boca. — Pare com isso. Você é
um bom homem, George McDermott e você...
Eu puxei a mão dela, entrelaçando meus dedos com os dela, e parei
seu protesto com uma sacudida de minha cabeça. Eu não estava
procurando por sua confiança, só mencionei o passado para apontar que
sabia quão sortudo era por tê-la. — Você é minha melhor amiga. Você me
faz... — eu parei, procurando as palavras certas. — Você me faz querer
ser um homem melhor. Deixa-me animado para acordar todos os dias
porque sei que estou acordando com você.
Seus olhos brilhavam enquanto seu lábio tremia.
— Eu estive em um lugar escuro por um longo tempo, — eu
admiti. — Estava perdido e vivendo a vida de um jeito muito errado. E
você me salvou. Você me trouxe de volta, Charlotte, e eu quero mais do
que qualquer coisa estar com você por tantos dias quanto for abençoado.
Seu olhar se afastou do meu, mas não antes de eu ver a incerteza
em seus olhos.
— Você sabe que eu também te amo, George. Mas você entende o
no que está entrando aqui? Você entende... — ela jogou as mãos para
cima antes de deixá-las cair de volta para os lados. — Que eu vejo os
mortos e provavelmente sempre verei?
Eu assenti. Eu entendia. Eu sabia que nem sempre seria fácil; não
para ela, e nem sempre seria fácil para mim. — Olhe para mim, querida,
— eu disse, dando a sua mão um puxão suave. — Eu sei que vai ser difícil
às vezes, mas vamos descobrir. Juntos. Você não está sozinha nisso,
Charlotte. — Seus olhos escuros finalmente encontraram os meus
novamente quando uma lágrima escorreu pela sua delicada bochecha. —
O bom, o mau e o feio, eu quero tudo.
Enquanto Charlotte fungava e enxugava o rosto, eu
cuidadosamente peguei o anel, fazendo uma rápida oração de
agradecimento por ele ainda estar lá. Virando-me para encará-la, eu
segurei o anel para ela ver, a linha de pesca ainda presa e pendurada
nele.
— Case comigo, Charlotte, — eu disse novamente.
Um soluço quebrado escapou dela quando ela se lançou contra
mim, sua mão cobrindo o anel quando seus lábios encontraram os
meus. — Sim, — ela murmurou contra a minha boca. — Nada me faria
mais feliz, — ela acrescentou quando a puxei contra mim e a beijei com
tudo que eu tinha.

Foi lá, de joelhos no rio, encharcado e humilhado depois de


tropeçar e cair na água, que Charlotte me prometeu sua mão. E foi aí que
meu pai capturou sua foto favorita, a foto emoldurada na mesa de
cabeceira do hospital.
— O único peixe no mar? — Marlena perguntou antes de soprar em
sua xícara de chá.
Eu sorri. — Parece brega agora, mas na época achei muito
inteligente. — Estávamos no canto em uma pequena mesa e longe de
todos os outros. Eu olhei para a xícara de café ainda fumegante na minha
frente, sem saber realmente como ou quando chegamos aqui.
— É uma história adorável, George, — disse ela, recostando-se na
cadeira.
Dei de ombros distraidamente quando os efeitos de contar um dos
melhores dias da minha vida se desvaneceram e a realidade voltou à
mostrar sua cara feia. Não importava qual o assunto ou com quem era,
sempre voltava a mesma verdade: Charlotte poderia morrer. Balançando
a cabeça, desesperadamente querendo ficar tão longe desse pensamento
insustentável, tentei mudar de assunto. — E você? Tem alguém
esperando que você volte para casa do outro lado do oceano?
Sua voz combinava com o sorriso no rosto. — Eu tenho, de fato. Na
verdade, — ela se sentou e tirou o celular do bolso da jaqueta e checou a
hora, — se você não se importa, vou lhe dar um alô antes que fique muito
tarde para ele.
Eu assenti. Uma parte minha queria voltar para Charlotte, mas
decidi que seria bom ficar sozinho por um tempo. Charlotte estava em
boas mãos e Sniper sabia onde me encontrar se alguma coisa
mudasse. — Acho que vou ficar aqui um pouco. Terminar meu café.
— Acho que é uma boa ideia, — reconheceu Marlena. — Te
encontro lá em cima daqui a pouco. Eu gostaria de discutir como ajudar
a menina.
Eu pisquei algumas vezes, momentaneamente confuso antes de
perceber que ela estava falando sobre Click. — Sim, ok.
Sem outra palavra, ela saiu e eu olhei para o meu café, me odiando
por me ressentir com Click. Se não fosse por ela, Charlotte não teria razão
para voltar para a Casa do Inferno. Eu imediatamente me arrependi do
pensamento. Click não causou o aneurisma de Charlotte, ela era apenas
uma garotinha presa em uma situação terrível. Ainda assim, minha
esposa estava lutando por sua vida e tudo o que Marlena parecia se
importar era com Click. Suspirei, sabendo que se houvesse uma chance
de Marlena descobrir uma maneira de ajudar a garota, Charlotte iria
querer que eu ajudasse Click, não importa o quê. Então era isso que eu
faria, por Charlotte; antes de qualquer coisa terminar o que ela pode ter
dado a sua vida tentando fazer.
Capítulo dezessete
Ike

Charlotte olhou aturdida à frente, a sala carregada enquanto o peso


de sua explicação deixava cada um de nós sem palavras. Eu observei Axel
enquanto ele a observava atentamente, os braços cruzados sobre o peito,
o rosto tenso enquanto processava sua história, sabendo que ele se sentia
tão impotente quanto eu.
— É tudo o que você lembra? — Perguntou finalmente Vovó.
Os olhos de Charlotte se encheram de lágrimas quando ela soltou
um suspiro trêmulo. Ela conseguiu manter-se controlada na maior parte,
mas agora que ela finalmente se lembrou dos detalhes do que aconteceu
antes de sua morte e expurgou sua história, ela estava se desfazendo. —
Oh Deus, — sua mão voou para sua boca em agonia, — George deve ter
me encontrado... — Ela parou, sufocada em um soluço quando caiu
contra Vovó.
Fechei meus olhos quando a dor de suas palavras me atingiu. De
todas as coisas horrendas que ela contou, sua culpa pelo que George deve
ter sentido me fez vacilar. Se apenas a ideia de encontrar Charlotte assim
era o suficiente para me destruir, sabia que meu irmão estava em agonia
por tê-lo realmente feito. Esfreguei meu rosto com as mãos, ansiedade se
instalando quando uma impotência há muito esquecida se ancorou na
boca do meu estômago.
O lábio de Charlotte tremeu quando ela soltou um gemido. —
Click. Click ainda está lá, presa. — Ela se levantou, o rosto contorcido de
raiva enquanto as lágrimas corriam por ele. — Três meses da minha vida,
deixei meu marido infeliz porque tinha que salvar Click, e agora ela está
presa lá para sempre. Eu falhei com ela. Eu falhei com ele. Eu falhei com
todos! — Ela gemeu. Seu corpo convulsionou quando sua respiração
ficou presa em soluços. Eu me movi para levá-la em meus braços, mas
Axel se adiantou e a abraçou. Eu tinha visto Charlotte emocional antes,
mas isso era outra coisa. Isso era devastação misturada com auto
aversão. Isso era um caos. De repente, ela pareceu esvaziar e, segurando
seu peso, Axel gentilmente ajoelhou-se, abaixando-a para o chão e tentou
acalmá-la enquanto chorava.
Ela resistiu ao seu conforto, afastando-se com raiva dele, o rosto
vermelho e riscado de lágrimas, fios de cabelo grudados em suas
bochechas. Ela agarrou a camisa dele. — Ele me encontrou lá! Morta! —
Ela chorou. — Eu sabia que ele não queria que eu fosse sozinha, mas
simplesmente não podia esperar. Só sabia que poderia fazer isso sozinha,
e então terminaria, e ele não teria que lidar mais com minhas besteiras,
e poderíamos seguir em frente com nossas vidas, mas não... eu não
resolvi nada, eu o deixei. A última coisa que ele vai lembrar de mim é que
eu o deixei. — Ela desabou sobre ele e soluçou.
— Char, está tudo bem. — Ele pegou o rosto dela em suas mãos. —
Eu sei que dói pensar sobre isso, mas você não pode fazer isso a si
mesma. Não é sua culpa.
— Isso é minha culpa, — argumentou. — Eu estraguei tudo.
Eu não podia mais ficar afastado. Axel pode ser seu irmão, mas
essa mulher era tudo para mim, e sua dor também era a minha quando
se tratava do meu irmão, George. Eu a puxei de Axel e a levantei,
segurando-a pelos braços. — Pare com isso! — Eu pedi, olhando firme
em seus olhos.
Cada pessoa se desvenda em algum momento, o tecido de todos se
rasga e o enchimento começa a sair, e se não formos capazes de nos
recompor, guardar nossas lágrimas e conter a mágoa, outra pessoa tem
que intervir. É isso que o amor é. Não é sempre uma mão para segurar
ou um ombro para se apoiar; às vezes é um chute na bunda. Este não
era um momento de “abrace-me estou triste” para Charlotte. Era um
momento de “estou caindo aos pedaços”.
Seus olhos escuros encontraram os meus, ainda vidrados com
lágrimas não derramadas, enquanto a sala ficava em silêncio. Eu tinha
certeza de que Vovó e Axel estavam alarmados com meu movimento e
tom drásticos, mas não me importei. Eu só me importava com Charlotte
e em impedir que ela se derretesse em auto ódio e culpa. — George se
lembrará de que a mulher mais incrível do mundo o amava. Ele sabe que
você foi lá porque seu coração é bom, Charlotte. Ele sabe que você não
fez isso para machucá-lo. — Eu movi meu rosto para mais perto dela. —
Eu conheço meu irmão, menina. Ele vai te perdoar, eu juro; ele
provavelmente já perdoou.
Seu choro diminuiu brevemente antes que ela desabasse em
mim. Eu segurei sua cabeça no meu ombro enquanto ela tentava se
acalmar. — E se ele... e se ele usar de novo?
Meu coração apertou com preocupação, mas no fundo eu sabia que
ele não faria; Eu tinha fé no meu irmão. As pessoas podem tropeçar às
vezes; inferno, até cair e ficar amortecidas por um tempo às vezes. As
pessoas acham que a medida da força é determinada por aqueles que
nunca desistem, mas isso não poderia estar mais longe da verdade. A
verdadeira força é medida por aqueles que atingem o fundo do poço e, em
vez de perder a esperança e afundar em sua miséria, lutam. De alguma
forma, eles se contorcem em suas barrigas até se ajoelharem e se
levantarem. De alguma forma, mesmo quando pesados com o passado de
vergonha e arrependimento, eles suportam esse peso e avançam com
passos atrofiados até encontrarem seu caminho. É aí que reside a força
real. George fez isso. George é o homem mais forte que conheço.
— Ele não vai, — eu disse com firmeza. Eu a afastei e segurei sua
cabeça em minhas mãos. — Você sabe disso, no fundo. Aqui. — Eu toquei
seu peito. — Ele não vai. — Eu segurei seu olhar até que vi que ela
acreditava nisso também, então a puxei contra mim novamente. Eu rezei
para que ele não me tornasse um mentiroso porque sabia que se alguma
coisa poderia derrubá-lo, seria a perda de Charlotte.
Capítulo dezoito
Charlotte

Depois de me esvaído como um macarrão mole, Vovó me levou para


o seu quarto de hóspedes, o mesmo em que eu dormia quando criança,
quando ficava com ela, e me colocou na cama. Vovó explicou que, embora
não precisássemos dormir do outro lado, ela acreditava que — fechar os
olhos para uma pausa — me faria bem. Eu realmente não me importava
se precisasse dormir... Eu queria, especialmente depois do meu
colapso. Mesmo na vida, dormir era o meu momento tranquilo, um lugar
na calma e escuridão onde eu poderia reiniciar. Era o meu refúgio das
almas que sempre me roubaram a paz. Nos últimos meses da minha vida,
não fui capaz de encontrar a solidão, na verdade, e ansiava por isso, mas
mesmo do outro lado da vida, ainda me escapava.
Assim que fechei os olhos, ouvi um tique-taque. Uma marcação...
talvez um relógio? O tique-taque ficou mais alto enquanto eu seguia o
som até encontrar a fonte. Caído aberto no chão havia um antigo relógio
de bolso de ouro arranhado. Curvando-me, peguei e vi o ponteiro dos
segundos se mover ao mesmo ritmo do som. Fechei-o enquanto me
levantava e o tique-taque parou.
— O que... — eu murmurei em confusão e abri novamente. O tique-
taque voltou. Fechei e o tique-taque parou. Repeti o ciclo várias vezes
com os mesmos resultados. Finalmente deixei-o fechado, escolhendo o
silêncio sobre o tique-taque.
Tanto para um sono tranquilo.
Um grito soou à distância, fazendo-me balançar a cabeça em busca
de aonde vinha o som terrível. Meu estômago deu um nó quando percebi
que era Click, mesmo que não pudesse vê-la. Ela estava gritando,
lamentos terríveis como tinha feito quando levei sua amada música
embora. Lágrimas queimavam meus olhos e cobri meus ouvidos,
esperando bloquear o som. Quando ficou quieto novamente, eu deixei
cair minhas mãos enquanto os cabelos na parte de trás do meu pescoço
arrepiavam.
Eu não estava sozinha.
Eu congelei, prendendo a respiração, abrindo-me para que eu
pudesse descobrir onde estava sentindo essa pessoa.
— Charlotte.
Escondida em meio ao recesso escuro do meu subconsciente, uma
voz feminina me chamou. Onde ela estava? Eu não me movi nem uma
fração de centímetro, com medo de que ela me encontrasse se fizesse
algum som.
— Charlotte, — ela chamou novamente. Sua voz ecoou, as
reverberações pingando em minha mente a cada vez, aumentando minha
ansiedade. Quem era essa? Ela tinha um sotaque britânico. Eu não
conhecia nenhum britânico. Nesse momento, percebi que nunca
realmente ajudara uma alma britânica também. Isso era
estranho. Embora eu não tivesse certeza, minha curiosidade levou a
melhor sobre mim. Algo em mim a alcançou, como quando alguém fica
na ponta dos pés, na esperança de ver melhor sem sucesso. Eu
instantaneamente me arrependi no momento em que me movi e algo me
fisgou. Meu corpo tremeu e perdi o equilíbrio. Incapaz de me equilibrar,
me lancei na direção oposta e usei todas as minhas forças para rastejar,
agarrando o chão, lutando contra o que estava tentando me levar.
— Charlotte, — ela chamou de novo, quando o que quer que tenha
me fisgado puxou mais forte.
Eu grunhi e me movi mais rápido, mas não estava ajudando. Eu
estava perdendo terreno, apesar de todo o meu esforço. Só quando achei
que ia ser puxada para o desconhecido, algo agarrou meu braço e fui
liberada, meu corpo caindo para frente, meu rosto queimando de esfregar
contra o tapete.
— Charlotte! — Vovó gritou. Eu estremeci, meu cabelo uma
bagunça emaranhada no meu rosto, o pânico correndo em minhas
veias. Vovó estava acima de mim, sua expressão preocupada e insegura
enquanto olhava para mim. Eu engoli em seco, ainda exausta do cabo de
guerra que tinha acabado de jogar sobre o meu corpo com algum
oponente desconhecido. Eu estava de volta ao quarto de hóspedes de
Vovó, no chão. Eu devo ter caído da cama quando fui libertada no meu
sonho.
Eu lambi meus lábios e afastei o cabelo do meu rosto. Eu não tinha
ideia do que tinha acabado de acontecer ou de como explicar isso. Talvez
tenha sido apenas um sonho, um incrivelmente vívido, mas parecia
horrivelmente real. — Desculpe, Vovó, — eu disse asperamente. — Eu caí
da cama.
— Eu vi isso, — ela respondeu quando se abaixou e ajudou a ajeitar
meu cabelo bagunçado. — Eu não queria te assustar, mas você estava se
debatendo. Você estava sonhando? — O tom de voz dela parecia perplexo,
como se a ideia fosse surpreendente para ela. Eu sabia que o sono não
era necessário aqui neste lado, mas quando alguém dormia, não era
comum sonhar?
Sem saber como responder, usei a cama para me levantar.
— De onde veio isso? — Ela disse, perplexa.
Eu me joguei na cama e puxei as cobertas sobre mim antes de olhar
para o que ela estava segurando. Era o relógio de bolso, o do meu
sonho. — É seu? — Eu perguntei, completamente confusa.
— Não, mas parece com o do seu avô. Pertencia ao avô dele. Ele
amava.
Tirando isso dela, eu abri. Não estava funcionando. Lembrei-me de
vê-lo algumas vezes quando criança.
— Você está bem, querida? — Perguntou Vovó, seu olhar
preocupado combinando com o cenho franzido no rosto.
Eu pisquei algumas vezes. Eu estava? Eu estava inteira, e já estava
morta, então o que de pior poderia haver? — Acho que sim.
— Você soou como se estivesse lutando.
— Sim, eu acho que estava sonhando, — respondi
distraidamente. — Só tenho muita coisa na cabeça.
— Você gostaria de falar sobre isso? — Ela perguntou gentilmente.
— Eu deixei… algo inacabado. Click, — eu disse como um
lembrete. Ela assentiu em compreensão e eu continuei: — Ela estava no
meu sonho... chorando.
— Você fez o possível para ajudá-la, Charlotte. Você tem que
encontrar alguma paz nisso.
Eu olhei para longe dela. Eu sabia que ela estava certa, mas não
conseguia me livrar da culpa que sentia. Click estava sozinha. Eu sabia
o que era estar sozinha. Click estava presa em um quarto escuro... Eu
estive presa em um tipo diferente de escuridão. Quais eram as chances
de mais alguém como eu aparecer e ajudá-la a atravessar?
— Tem certeza que você está bem?
— Eu espero que esteja, — eu lhe disse honestamente.
Ela examinou meu rosto, sua boca tensa. Ela não sabia o que dizer,
eu podia ver em seus olhos, mas depois de alguns segundos ela afastou
e respirou fundo.
— Bem, devemos seguir em frente. — Ela deu um tapinha na minha
perna. — É hora de levantar e brilhar, — ela disse enquanto abria as
cortinas do quarto e inundava a sala com uma quantidade profana de luz
brilhante. Eu assobiei, parcialmente cega quando puxei o cobertor sobre
a minha cabeça.
— Vovó, — eu gemi dramaticamente.
O cobertor foi puxado de volta quando Vovó sentou na cama,
olhando para mim. Eu olhei para ela através dos olhos apertados. — Você
não pode dormir sua eternidade, Charlotte Anne.
Tomando a mão dela, puxei contra mim e segurei como se fosse um
ursinho de pelúcia. — Estou tão feliz em ver você, vovó.
— Eu também, docinho. — Ela puxou a mão e acariciou minha
cabeça, escovando meu cabelo para trás, algo que ela fazia quando eu
era criança. Fechei os olhos e me deliciei com a nostalgia disso. Eu senti
falta de seu calor todos os dias desde que ela partiu, mesmo que ela
continuasse a existir em minha mente e coração. Sua voz estava sempre
sussurrando para mim, guiando-me. — Eu não posso negar que estou
triste pela sua vida e a de seu irmão ter acabado tão cedo, mas é bom ter
vocês aqui, — ela continuou.
— Vovó, por que você escolheu esta casa para morar neste
lado? Quero dizer, você poderia ter qualquer tipo de casa, algo maior com
todos os móveis novos. Por que quis morar aqui?
Seus olhos suavizaram enquanto ela examinava o quarto. — Eu
vivi uma vida maravilhosa, Charlotte. Seu avô e eu construímos nossa
linda família nesta casa. Não é grande ou chique, mas sempre me senti
segura, e sempre havia muito amor. Eu não quero ter coisas boas, tanto
quanto quero sentir coisas legais.
Eu a adorava. — Você é um tipo raro, sabe disso, vovó?
— Eu sei, — ela riu. — De quem você acha que herdou sua boa
aparência e personalidade incrível?
Eu ri. — Disso eu sei.
— Agora é hora de levantar. Tem alguém que eu quero que você
conheça.
Eu estreitei meu olhar para ela. — Você tem? — Eu não sei por que,
mas minha mente imediatamente pousou na ideia de que esse alguém de
Vovó poderia ser uma pessoa especial. O vovô provavelmente não ficaria
muito empolgado com isso.
— Sim, então se levante. — Ela se levantou, e com um rápido
estalar dos dedos eu estava de pé, vestindo shorts e uma camiseta branca
macia. Eu ri, impressionada por ela ter escolhido uma roupa que eu
realmente gostaria de usar, Vovó me conhecia bem. Enfiei o relógio no
bolso para poder examiná-lo mais tarde, não pronta para ignorar o
significado de sua aparição logo depois do meu sonho. Um momento
depois, o familiar quarto de hóspedes desapareceu e nós estávamos em
sua varanda dos fundos. Eu gostei que podíamos apenas estalar nossos
dedos e mudar tudo. Definitivamente tornava as coisas
convenientes. Axel estava sentado à mesa de vime do pátio, uma
montanha de waffles no prato. Aparentemente, seu apetite não havia
mudado desse lado; ele sempre comeu como um cavalo quando era
vivo. Ele estava tomando um gole de suco de laranja quando aparecemos
e murmurou com a boca cheia de comida: — Ei aí.
— Bom dia, — eu murmurei, minha voz ainda rouca de
sono. Olhando para o céu, eu torci minha boca em pensamento. — É de
manhã?
Axel encolheu os ombros. — É o que você quer que seja. — Era
difícil abandonar o conceito de tempo. Na vida tudo girava em torno do
tempo, quando dormir, quando comer; quando trabalhar, quando
brincar, mas nada disso importava aqui. Eu balancei a cabeça com a
dicotomia dos dois lados, ainda completamente confusa com tudo isso.
— Tome um café, — encorajou Vovó, puxando uma cadeira da mesa
para mim. Eu sentei, o aroma familiar de seu café da cafeteira francesa
se infiltrando em meus sentidos. Eu mal toquei na almofada quando ouvi
grasnidos.
— Oh, Rudy, — Vovó bufou enquanto corria na varanda em direção
a um galinheiro, onde um galo andava em volta e aborrecia um bando de
galinhas. O galinheiro não ficava em seu quintal quando ela estava viva,
então não o reconheci. No entanto, lembrei-me do nome Rudy.
Meus olhos se arregalaram quando apontei e soltei uma risada. —
Esse é Rudy? — Eu perguntei a Axel.
Axel olhou furioso para o enorme galo enquanto Vovô abanava suas
mãos, enxotando-o para longe das galinhas. — A pior ave de sempre.
— O que há com as galinhas? — Eu pulei ao som da voz de
Ike. Quando girei na minha cadeira para olhar para ele, as mãos dele
estavam nos bolsos, e ele usava uma camiseta preta justa que mostrava
seu corpo musculoso. Mesmo que estivesse a alguns metros de mim, eu
ainda podia sentir o cheiro dele. Sabonete de marfim e hortelã - ele
cheirava absolutamente delicioso. Levou tudo em mim para não levantar
e abraçá-lo.
— Oi, — eu chilrei, antes de limpar a garganta, minhas bochechas
aquecendo de vergonha no tom natural da minha voz.
— Oi, — ele sorriu, minhas bochechas aquecendo ainda mais
quando nossos olhares se encontraram.
— Oh, isso não é precioso, — Axel zombou, e eu revirei os olhos.
— Vovó gosta de ovos frescos ou algo assim? — perguntou Ike,
encobrindo a observação de Axel para não encorajá-lo.
— Ela morava em uma fazenda quando criança, — expliquei,
seguindo o exemplo de Ike. — Eles tinham muitas galinhas. Aquele galo
bem ali — eu apontei — é Rudy. Ele era o favorito dela.
Axel e eu não havíamos conhecido Rudy, mas Vovó nos contara
muitas histórias sobre ele. — Vovó encontrou-o ferido quando ele era
apenas um frango. Ela o levou para casa e cuidou de sua saúde. Depois
disso, Rudy e Vovó eram parceiros no crime, — eu disse, enfatizando a
frase do jeito que Vovó sempre fazia quando nos contava sobre ele. —
Seus irmãos, garotos entediados de fazenda, sem nada para fazer,
perceberam que Rudy era o favorito dela e fizeram de sua missão torturar
o galo para irritar sua irmã, o que resultou em Rudy desenvolver um
pequeno problema de atitude. Vovó disse que ela era a única que ele
deixava se aproximar. Qualquer outra pessoa enfrentava sua ira.
— O maldito acabou paralisado depois que um dos irmãos dela o
atropelou com sua bicicleta. Vovó se recusou a deixar seu pai matá-lo,
então ela alimentava o pobre bastardo com a mão e o colocava debaixo
de uma árvore frondosa todos os dias, movendo-o quando a sombra da
árvore se movia — explicou Axel, continuando a história. — Ela ficou
presa na igreja um domingo e se atrasou para chegar em casa, e ele
acabou morrendo de insolação.
Eu não sei por que, mas sempre que Vovó nos contava histórias
sobre sua infância, eu era cativada. Parecia como se conhecesse Rudy, o
mais mesquinho bastardo galo que existiu, só porque Vovó contava
muitas histórias sobre ele. Tomando a mão de Ike, eu o puxei para fora
da varanda comigo. — Vamos vê-lo.
Vovó tinha conseguido acalmar as galinhas cacarejando e Rudy
estava a seus pés como um cão de guarda. Assim que me inclinei e
estendi minha mão, Rudy se lançou contra mim, fazendo-me recuar e
cair de bunda. Ike entrou na minha frente para bloquear a ave enquanto
eu me levantava. Eu não sei o que esperava, mas parte de mim tinha
honestamente achado que Rudy gostaria de mim, se não por outra razão
porque eu compartilhava o mesmo DNA de Vovó.
Não.
— Eu te disse, — Axel gritou da varanda com a boca cheia de
waffle. — Ele é um idiota.
— Axel! — Vovó repreendeu, ouvindo mesmo que estivesse a uma
boa distância.
— Desculpe, vovó, — meu irmão franziu a testa. — Eu quis
dizer galo. Rudy é um galo.
O rosto de Ike ficou vermelho lutando para não rir, enquanto Vovó
lançava um olhar de advertência para Axel, muito consciente do jogo de
palavras inteligente de Axel e nem um pouco feliz com isso. Meu coração
ainda estava batendo um pouco do ataque súbito de Rudy. Concordei de
todo coração com meu irmão: Rudy era, na verdade, um idiota
gigantesco. Eu só tinha cabeça suficiente para guardar para mim
mesma. As histórias de Vovó sobre ele pareciam tão fofas e divertidas
quando eu era criança, mas de perto, Rudy era um babaca.
— Ei, amigo, — disse Ike quando se inclinou na frente do galo. Ele
não estendeu a mão ou fez movimentos bruscos; apenas esperou que
Rudy desse o próximo passo. Depois de alguns instantes, Rudy inclinou
a cabeça para o lado como se estivesse examinando Ike, depois deu
alguns passos relutantes em direção a ele.
— Bem, eu vou ser... — Não faltou o choque na voz de Vovó. — Eu
acho que ele gosta de você, Ike.
Eu fiz beicinho, desapontada que o infame Rudy do qual cresci
ouvindo tantas histórias gostava de Ike, mas não de mim. Enquanto Vovó
e Ike estavam olhando para Rudy, juro que a ave me lançou um olhar. Eu
mostrei minha língua para ele.
— Eu vou tomar um café, — murmurei em derrota. Vovó e Ike
seguiram atrás de mim, Vovó falando sobre como estava maravilhada
com Rudy aceitando Ike. Peguei a cafeteira e comecei a encher as canecas
enquanto eles se sentavam antes de distribuir waffles, frutas e bacon em
seus pratos.
— Charlotte, — disse Ike, um sorriso divertido no rosto. — Você
não tem que nos servir.
Eu bufei uma risada. Eu nem percebi que estava fazendo isso. —
Eu acho que estou simplesmente acostumada a servir no
restaurante. Velhos hábitos custam a morrer, — dei de ombros e sentei-
me, tentando não deixar minha expressão revelar que de repente estava
me perguntando quem estava cuidando do restaurante. Meu coração se
apertou ao pensar em George tentando continuar ao mesmo tempo em
que estava de luto por mim. Por favor, deixe-o ficar bem. Por favor. Por
favor. Por favor. Sniper faria o melhor que pudesse para manter George
vivo, da mesma maneira que fez depois que Ike morreu. Eu sabia que
todos estariam lá para o meu marido, sem dúvida seus pais estariam em
cima dele, mas em algum momento, George precisaria de um bom chute
na bunda, e Sniper era o único que faria isso. Meu coração apertou
novamente. Droga, eu sentiria falta daquele pervertido escocês idiota. Eu
sentiria falta dele e Anna. A última vez que vi ou falei com Anna, nós
brigamos. Ou melhor, ela brigou porque estava chateada comigo. Eu
odiava que essa fosse sua última lembrança de mim. Debaixo da mesa,
fechei minha mão com força, cravando minhas unhas na palma da mão,
esperando que o desconforto me distraísse do desespero me
sufocando. Eu não queria chorar ou ficar emocionada, ou chatear todo
mundo, especialmente depois do meu colapso na noite anterior.
Ike bateu palmas e esfregou-as de tal maneira que tive certeza de
que não consegui esconder meus pensamentos tão bem quanto
pensava. — Isso parece incrível, — disse ele ansiosamente a Vovó. Ele
olhou para mim antes de começar a comer seus waffles. — Como está o
restaurante, Charlotte? O Sniper ainda está trabalhando lá?
— Sniper? — Vovó questionou.
Ike sorriu, mostrando suas covinhas. — Sniper era meu melhor
amigo. Nós nos conhecemos quando eu estava no exército, e nos demos
bem. Ele é um ursinho de pelúcia gigantesco com anéis de mamilo que
diz palavrões e fala de forma inadequada com as mulheres.
Eu soltei uma risada, mal conseguindo não engasgar, com a
descrição muito exata de Ike. O olhar de Ike encontrou o meu, os cantos
de sua boca se ergueram enquanto ele ria também.
— Bem, ele parece... interessante, — disse Vovó, sua expressão
cética.
— Essa é uma maneira de colocar isso, — Ike riu antes de enfiar
um garfo cheio de waffle em sua boca.
Capítulo dezenove
George

Os pisos de madeira quebrados rangeram enquanto Marlena


percorria o quarto onde Click morava. Ela me pediu para trazê-la até a
Casa do Inferno para que pudesse ver Click por si mesma. Quando
chegamos, e mostrei-lhe o quarto de Click, ela fez exatamente como
Charlotte quando encontrou a alma da jovem e tentou falar com ela. Ela
gritou, pisoteou, berrou.
— Isso não vai funcionar, — eu finalmente disse a ela. Eu assisti
minha esposa praticamente fazer acrobacias olímpicas para chamar a
atenção de Click até que eu a puxasse para longe.
Marlena, implacável, começou a bater os dedos contra a parede
exatamente como Charlotte enquanto tentava me explicar o que Click
estava fazendo. Eu cruzei meus braços com impaciência, lamentando
concordar em deixar Charlotte só para assistir Marlena fazer exatamente
as mesmas coisas que Charlotte fez com os mesmos resultados. Eu sabia
que ajudar Click era o que Charlotte iria querer, mas também queria
voltar para o hospital. A única razão pela qual ainda não tinha saído era
porque os pais de Charlotte estavam com ela, e sabia que eles queriam
um momento com ela sem eu por perto. Sniper tinha concordado em vir
conosco, caso encontrássemos quaisquer habitantes inesperados ou
ocupantes ilegais, e agora ele estava me dando apoio emocional enquanto
me dava um tapinha nas costas, sua maneira de me dizer para ser
paciente.
— Charlotte achou que tinha descoberto como ajudá-la, — explicou
Marlena.
Minha cabeça levantou. — Você viu alguma coisa?
Marlena assentiu. — Charlotte descobriu que ela gostava de
piano. Beethoven. Ela tocou para o Click.
— Estava no telefone dela, — eu disse, grato por finalmente
entender por que o vídeo estava em seu telefone. Ela deve ter tocado para
a garota pouco antes de cair inconsciente.
Marlena ficou olhando, colocando as mãos nos bolsos traseiros do
jeans. — Ela estava perto, mas… a criança não entendeu. Ela não sabe
como atravessar. Charlotte estava chateada. — Marlena piscou algumas
vezes e lentamente pisou no chão, como se estivesse refazendo os passos
de Charlotte. Ela estremeceu, colocando a mão na cabeça.
— Você está bem? — Sniper perguntou.
— Sua cabeça doeu muito antes de chegar aos degraus. Ela estava
no meio da escada quando perdeu a consciência.
Minha garganta estava apertada enquanto eu lutava contra a
emoção girando dentro de mim. Minha esposa tinha chorado em seus
últimos momentos conscientes. Ela estava com dor e estava sozinha. Eu
esfreguei meu rosto com as duas mãos.
— Você acha que pode ajudá-la? — Sniper perguntou.
— Eu não sei, — Marlena respondeu honestamente.
— Talvez pudéssemos tocar a música para a menina, — sugeriu
Sniper.
— Não, — disse Marlena com autoridade. — Isso só vai aborrecê-la
quando pararmos de tocar.
Virando, caminhei até a janela, olhando para a rua suja e as casas
decadentes. Imaginei o rosto de Charlotte, olhando de volta para mim, do
jeito que ela fez no dia em que conhecemos Agnus, pouco antes de
entrarmos na Casa do Inferno. Claro, ela tinha visto os rostos de duas
jovens garotas na janela, não eu. A parte egoísta de mim continuou
desejando ter pegado a mão de Charlotte e corrido. Então não estaríamos
aqui e ela estaria acordada. Mas no fundo eu sabia que era horrível, e me
odiava por sentir isso. As meninas precisavam ser libertadas para
encontrar a paz. Por que fazer a coisa certa sempre tem que ser tão difícil?
— Você sabe, — Marlena disse ao meu lado. Sem que eu soubesse,
ela se moveu e estava olhando pela janela também. — Todos nós temos o
nosso propósito. Charlotte tem esse lindo dom, é único e por causa disso
é mais óbvio, mas você também tem um dom, George.
Eu bufei, sem me incomodar em olhar para ela. Eu definitivamente
não tinha um dom.
— Você tem, — respondeu Marlena, como se tivesse lido minha
mente. — Você lhe dá força, George. Você não espera nada dela,
unicamente ser sua espada e escudo.
Eu deixo meu olhar cair. — Eu não sei sobre isso. Eu nunca fui
muito capaz de ajudá-la. Como poderia quando não posso ouvir ou ver a
mesma coisa que lhe causou tanto estresse?
Tomando minha mão, ela entrelaçou nossos dedos. Surpreso com
o movimento, tentei me afastar, mas ela aumentou seu aperto, me
parando.
— Eu conheço esse estresse que ela sentiu, — explicou Marlena. —
Você o sente em todos os músculos do seu corpo. É pesado — sua voz
era suave com empatia — muito pesado. Alguns dias você se pergunta
como pode dar outro passo para carregá-lo. É onde você entra, George.
Minha cabeça parecia zonza e fechei meus olhos em um esforço
para limpá-la. Meu corpo enrijeceu, os músculos das minhas costas e
pescoço endureceram quando um desconforto se instalou na boca do
meu estômago. Eu levantei minha mão livre e agarrei a moldura da janela
para me equilibrar.
— Eu não me sinto bem, — eu expliquei, envergonhado em parecer
como se estivesse prestes a desmaiar.
— Você sente isso, George? Você pode sentir o peso?
Levei um momento antes de perceber que, de alguma
forma, Marlena estava me fazendo sentir isso. — Como... — Eu não
consegui terminar a minha pergunta. Foi assim que Charlotte se
sentiu? Ela carregava esse peso todos os dias?
— Você sentiu isso... sabia quando ela estava lutando, e fez o que
tinha que fazer para energizá-la. — Marlena continuou. — Você a
confortou.
Pressão em volta da minha cabeça, como mãos pressionando meu
cérebro. Através da dor, eu vi Charlotte... eu nos vi. Memórias de
momentos que compartilhamos, simples mas bonitos. Eu escovando o
cabelo dela. Ela rindo enquanto nos balançamos com a música tocando
na jukebox do restaurante. Imagens da minha linda esposa, nua debaixo
de mim, dançaram em minha mente. Ela gritando quando gozou e o mal-
estar desapareceu de dentro de mim, meu corpo relaxando
novamente. Quando terminamos, ela deitou a cabeça no meu peito, uma
perna jogada sobre a minha e seu corpo irradiando.
Eu estava presente em todos os momentos que visualizava, mas
estava me lembrando de uma forma diferente do que tinha
experimentado. Eu estava vendo e sentindo as lembranças através dos
olhos de Charlotte. Eu estava sentindo o que ela sentiu. Como isso é
possível? — O que... o que é isso? — Eu perguntei. — Como... como você
está fazendo isso?
— O que há de errado, George, — Sniper perguntou, preocupação
em seu tom.
— Ele está bem, — Marlena disse a ele. — Apenas respire,
George. Estou te mostrando seu dom. Você sente isso?
Eu podia sentir as emoções durante cada momento que passava,
mas era mais do que apenas sentir - eu podia vê-las enquanto
rodopiavam, cada uma com uma cor diferente que eu era de alguma
forma capaz de sentir. Nada disso fazia sentido, mas ao mesmo tempo eu
sabia que era uma manifestação visual das emoções que irrompiam em
minha mente e corpo. O que quer que fossem, eram boas, leves e
fáceis. Em cada momento havia segurança e calor, como se nada mais no
mundo importasse.
O corpo nu de Charlotte estava derretido contra o meu, ambos
descobertos. Seus olhos estavam fechados e, com a mão livre, acariciava
seu braço. Eu te amo, eu sussurrei para ela. A imagem explodiu com mais
cor, cegando e envolvendo cada um dos meus sentidos, ao ponto de
parecer que estavam vibrando dentro de mim.
— É ela? — Eu disse asperamente. — Foi assim que ela se sentiu?
— Você lhe dá paz e calor, George, — Marlena disse quando apertou
minha mão novamente. — Você consegue ver isso? Esse é o lugar seguro
dela e irradia de dentro de você. Você nunca saberá o que isso significa
para alguém como nós.
Emoção me sufocou e eu engoli em seco, empurrando-a para
baixo. Abri os olhos e virei à cabeça, ofegante e oprimido. Sempre duvidei
do meu lugar na vida de Charlotte, se alguma vez tivesse tornado algo
melhor, e agora sabia com certeza que o fizera. Talvez não fosse da
maneira que achei que deveria, mas eu lhe dei paz. Eu a fiz sentir
amada. Eu dei a ela algo que ela precisava.
Marlena olhou para mim.
— Você tem um dom incrível, — eu respondi com voz rouca,
completamente em reverência.
Ela baixou o olhar - tão extravagante quanto era sua aparência,
havia também uma humildade nela. — Todos nós temos o nosso
propósito. O de Charlotte é ajudar almas como Click... como seu irmão. O
seu é reabastecê-la quando o propósito dela a drenar. Mantê-la aquecida
quando toda a tristeza que ela vê a deixa gelada. Seu propósito não é
reconhecido por aqueles que ela ajuda, mas isso não significa que seja
menos especial, menos importante.
Eu movi meu olhar de volta para a janela, desejando que as
lágrimas que consegui impedir de cair secassem. Depois de alguns
momentos, limpei a garganta e voltei a encarar o quarto de Click. —
Então, como ajudaremos Click? — Perguntei, desesperado para desviar o
foco de cima de mim. Enquanto Marlena tinha sido gentil em
compartilhar os sentimentos de Charlotte comigo, eu precisava seguir em
frente. Minha esposa queria ajudar Click, e como ela não podia fazer isso
no momento, eu precisava ser forte e ajudá-la a terminar o que tinha
começado. No entanto, estava começando a me perguntar se isso seria
possível.
Capítulo vinte
Ike

Eu levei Charlotte a todos os lugares, ansioso para que ela visse e


experimentasse toda a beleza que esse lado oferecia. Era um dia quente,
mas a brisa suave tornava-o perfeito. Ela estava deitada de bruços,
apoiada nos cotovelos me observando e rindo. Eu estava fazendo o meu
melhor para fazê-la rir, dizendo qualquer coisa que achasse que pudesse
até parecer remotamente engraçado. Às vezes eu podia dizer que a risada
dela era genuína, outras vezes parecia um pouco forçada, como se sua
mente estivesse em outro lugar, e ela sorria apenas para não ferir meus
sentimentos.
Eu estava prestes a pegar sua mão e perguntar se ela estava bem,
mas ela ergueu a cabeça, me impedindo. Algo chamou sua
atenção. Seguindo sua linha de visão, vi o grande grupo de crianças com
alguns adultos à distância. Cada criança tinha uma rede de borboletas
na mão, parecendo não saber o que fazer com elas.
Eu sorri, animado para explicar a Charlotte quem eles eram. — Os
adultos, — eu apontei, — são os guias turísticos.
Ajoelhando-se para que pudesse ver melhor, ela perguntou: — O
que você quer dizer?
— Às vezes crianças e até alguns adultos chegam sem saber o que
está acontecendo; talvez eles não tenham sido ensinados. Seja qual for o
motivo, eles morrem e aqui estão eles. Eles não sabem o que fazer, e às
vezes nem sabem quem são, nem quem procurar. Os guias turísticos os
acolhem e lhes mostram tudo. Eles os ajudam a se sentirem confortáveis
.
— Como um orfanato na vida após a morte?
Dei de ombros. — O objetivo é ajudá-los a encontrar sua família...
se as famílias estiverem aqui.
— Se elas estiverem aqui?
Não querendo entrar em toda a coisa do céu e do inferno, eu
expliquei o mais simples que pude: — Talvez eles cheguem antes dos
pais. Além disso, nem todo mundo tem permissão para vir aqui,
Charlotte. Eu me levantei e a coloquei de pé. — Vamos dizer oi.
Estávamos a poucos metros do grupo quando Charlotte perguntou:
— Por que eles têm redes quando não há borboletas? — Assim que as
palavras saíram de sua boca, houve uma explosão de agitação suave e o
campo foi coberto por uma série de borboletas. As crianças gritaram e
correram tentando pegá-las enquanto Charlotte soltava uma risada
virando lentamente, absorvendo toda a cor.
— Isto é incrível.
— Eu sei, — concordei, incapaz de tirar os olhos dela. Quando ela
olhou para baixo, inclinou a cabeça para um menino ao lado dela com a
mão estendida, uma borboleta amarela brilhante empoleirada em seu
dedo. Ela se abaixou, sua boca subiu suavemente.
— Essa é linda, — ela disse a ele.
A criança olhou fixamente para ela. — Qual é o seu nome? —
Charlotte perguntou.
Ele franziu a testa, depois se virou e saiu correndo.
Quando ela se levantou, ela disse: — Ele era fofo. Espero que eles
encontrem sua família.
— Você sabe, talvez quando estiver pronta... nós poderíamos fazer
isso.
— Ajudar a receber as crianças? — Ela perguntou.
Seu tom soou incerto. Eu não tinha certeza de como ela se sentiria
sobre a ideia, mas sugeri mesmo assim. Ela ainda estava se adaptando a
esse lado e lutando por ter deixado Click para trás. Eu me perguntava se
envolver-se e ajudar os outros deste lado lhe ofereceria alguma paz.
Ela olhou para o campo, sua expressão sombria. —
Sim. Talvez. Quando eu estiver pronta.
Capítulo vinte e um
Charlotte

Não tinha ideia de quanto tempo havia passado desde que eu tinha
morrido. De certa forma, parecia que tinha acabado de chegar do outro
lado, e de outras formas parecia que estava aqui há anos. As palavras me
faltavam sempre que eu tentava resumir o outro lado, da maneira como
éramos capazes de nos mover de um lugar para outro num piscar de
olhos, a beleza inacreditável de tudo isso; estar com Ike, rir com meu
irmão e sentir minha avó me abraçar, tudo estava além de qualquer coisa
que eu já imaginara. E mesmo que não tivesse aceitado completamente
estar aqui, a paz de não esbarrar constantemente em almas precisando
de ajuda era uma felicidade não adulterada.
Até que deixou de ser.
No meio de toda a paz e felicidade, o desespero e a culpa ainda iam
e vinham. Não importa o que, a tristeza estava sempre lá fazendo o
possível para me derrubar, certificando-se que eu nunca esquecesse o
que deixei para trás. George. Como ele estava? Ele estava tomando conta
de si mesmo? Eu sentia falta dos meus sogros. Eu sentia falta de Sniper
e Anna. Eles fizeram as pazes e resolveram tudo? Inevitavelmente,
quando a tristeza surgia, meus pensamentos sempre voltavam para a
doce alma presa em um quarto escuro. Click.
Ver os “guias turísticos” ajudando crianças perdidas me deu
esperança, mas ao mesmo tempo me deixou com raiva. Click deveria
estar nesse grupo. Por que essas crianças conseguiram atravessar e ela
não? Como era justo que eu estivesse aqui e ela estivesse lá? Não era. E
muito parecido com uma bola de neve rolando colina abaixo, a raiva
aumentava. Como poderia alguma versão do céu existir para alguns e
não para outros? Eu não merecia estar aqui quando ela não estava.
Estávamos todos descascando maçãs enquanto os pensamentos
continuavam a guerrear na minha cabeça. Nós tínhamos acabado de ir a
um pomar e as colhemos para que Vovó pudesse fazer sua famosa torta
de maçã. Pareceu-me estranhamente engraçado o quanto eu estava
gostando agora, quando detestava a tarefa quando era pequena; quando
estava viva.
— Sua pilha está parecendo muito pequena, Ike, — brincou Axel.
Os dois estavam no meio de uma disputa emocionante para ver
quem conseguia descascar mais maçãs. Ambos estavam rindo e
conversando enquanto Vovó e eu assistíamos.
Recostando na minha cadeira, eu mordi uma maçã, meus olhos
revirando enquanto me deixava gemer. Era absurdo como era
delicioso. — Por que tudo tem um gosto tão bom aqui? — Eu perguntei
em voz alta para ninguém em particular, não que tivesse uma resposta
deles de qualquer maneira. Axel colocou uma maçã na mesa,
acrescentando à sua pilha, e os olhos de Ike se estreitaram quando ele
acelerou seus esforços.
— Homens, — Vovó murmurou baixinho, onde só eu podia ouvir.
— Eu acho que estou perdendo o ponto em tudo isso, — eu
anunciei apontando minha mão para eles e suas pilhas de maçãs
nuas. — Se você vencer, o que você ganha?
— A primeira torta que sair do forno, — declarou Axel.
— E se gabar, — Ike acrescentou.
— Ei, você. — Axel apontou seu descascador para mim. — É melhor
você parar de comer e voltar ao trabalho, ou não vai
ganhar nenhuma torta, — ele avisou. — O que acha disso? — Ele
terminou com uma sobrancelha arqueada.
Eu bufei com sua piada brega antes de bater a mão na minha
boca. Eu era um idiota sem esperança. Ike sorriu para mim, suas
covinhas aparecendo em suas bochechas. — Agradável.
Ignorando-o, fingi jogar legal e disse: — Isso foi uma piada terrível.
— Retire o que disse, Charlotte, ou você vai se arrepender, —
alertou Axel, fingindo mais ofensa do que ele realmente sentia. Eu apertei
os olhos enquanto nos encarávamos silenciosamente. Eu conhecia muito
bem o tom de aviso do meu irmão. Embora ele não tenha dito isso com
tantas palavras, estava ameaçando me punir por minha negligência,
dizendo que a retribuição poderia ser qualquer coisa, desde me prender
em uma chave de braço, e me dar um cascudo, ou algum outro método
que me envergonharia imensamente.
Os olhos de Ike encontraram os meus, sua boca se elevou em um
sorriso, claramente entretido por nossas brincadeiras de irmãos.
— Eu não vou retirar, — eu disse desafiadoramente, levantando
minha própria sobrancelha em desafio. — Não estou com medo, —
acrescentei com malícia. Nós estávamos do outro lado... que danos ele
realmente poderia causar?
A boca de Axel subiu ligeiramente. A julgar pela alegria em seus
olhos, minha reação foi exatamente o que ele esperava. Eu
imediatamente me arrependi da minha declaração anterior. Talvez eu
estivesse com medo. Por que os irmãos gostam tanto de cutucar um ao
outro? Com um profundo suspiro, ele se recostou na cadeira e
perguntou: — Ike. No seu breve período com Charlotte, ela já
compartilhou com você a história de seu primeiro dia do nono ano?
Pooooooorra. Com os olhos arregalados, sentei-me na cadeira,
praticamente engasgada com o pedaço da maçã que acabara de comer. —
Não se atreva, Axel, — eu tossi enquanto batia no meu peito, tentando
engolir.
Axel flexionou as sobrancelhas, um sorriso travesso tomando suas
feições.
— Eu acho que ela não me contou isso, — Ike respondeu, a
curiosidade óbvia em seu tom quando ele disparou seu olhar entre mim
e Axel. Ele sabia pela minha reação que Axel estava prestes a lhe contar
algo muito suculento.
— Aham, — Axel limpou sua garganta com arrogância.
Eu deixei cair meu rosto em minhas mãos. Isso ia ser ruim.
— Desculpe, eu preciso ter certeza de que a minha voz esteja clara
para isto, — ele explicou antes de mover a boca desajeitadamente, como
se a preparasse.
— Axel, — eu avisei, olhando para ele. — Não.
— Ou o quê? — Ele riu, um rubor cor-de-rosa tingindo suas
bochechas. Ele era meu irmão e, como é tradição entre os irmãos mais
velhos, ele adorava incitar sua irmã mais nova. Juro que em algum lugar
há um livro de leis para irmãos que afirma que eles devem encontrar
imenso prazer em provocar e torturar um ao outro.
— Eu acho que preciso ouvir isto, — Ike encorajou enquanto se
acomodava em seu assento, abandonando sua missão de ganhar no
descascamento de maçã. Aparentemente, qualquer coisa que me
envergonhasse valeria mais do que se gabar.
— Não deve ser tão ruim assim, — Vovó interveio.
Fechei meus olhos e coloquei minha cabeça em meus braços sobre
a mesa. Em retrospectiva, depois dos muitos anos que tive para me
recuperar da mortificação de tudo, e vendo como, neste exato momento,
eu estava morta, não, não era tão ruim. No entanto, como recém-formada
caloura no ensino médio, foi humilhante; como se minha vida tivesse
terminado, não havia sentido em continuar.
— Então, Char tinha uma queda por esse garoto... qual era o nome
dele? — Ele estalou os dedos como se o som fosse lembrá-lo. — Bobby?
— Billy, — eu gemi. Se ele ia contar, achei melhor ele pelo menos
dar os detalhes certos.
— Sim, está certo, — ele riu. — Billy. — Eu levantei minha cabeça
a tempo de ver Axel bater no braço de Ike. — Aquele garoto era um idiota,
mas Char achava que ele era a nata da colheita.
Eu revirei meus olhos. — Ele era o cara mais popular da oitava
série, — defendi.
— Era por isso que você gostava dele? — Perguntou Ike. — Porque
ele era popular?
— Não, — eu neguei muito rapidamente, sabendo que era
parcialmente verdade, se fosse totalmente honesta comigo mesma. — Ele
não era um idiota. Axel não está dizendo isso com precisão.
— Charlotte, — disse Axel, irritado com a minha negação. — Ele
tinha uma boca cheia de metal e usava o mesmo suéter vermelho vivo
todos os dias. Ele era um idiota, e você também era por gostar dele.
— Eu tinha catorze anos! — Me defendi em voz alta.
Axel riu. — Olhe para ela, — ele apontou, — ela está ficando tão
exaltada, e eu nem cheguei à parte boa.
Cruzando os braços, sentei-me e bufei infantilmente: —
Você não é mais meu irmão favorito.
— De qualquer forma, — ele continuou, sem se deter em minha
declaração, — Char queria se arrumar para o primeiro dia de aula.
— O primeiro dia é um grande negócio, — Vovó
interrompeu. Percebi, acrescentando ainda mais à minha mortificação,
que Vovó abandonara sua tarefa de descascar para dar toda a atenção à
história de Axel. — Eu acho legal ela querer se arrumar. — Deus abençoe
a mulher por me defender e tentar me fazer sentir melhor.
— Vovó, ela não se arrumou porque era o primeiro dia, foi porque
ela não tinha visto o velho Bobby-boy...
— Billy, — Ike interrompeu, corrigindo-o e ganhando uma carranca
de mim.
— Desculpe, Billy, — Axel se corrigiu. — Ela não tinha visto Billy
durante todo o verão, e queria parecer, — ele bateu os cílios e deslizou
em seu assento, — sexy.
Ike riu e minhas bochechas arderam enquanto eu olhava para
Axel. — Na lista de pessoas que eu gosto agora, há Vovó e Ike, todos os
meus amigos e familiares, todos os outros no universo vivo ou
morto, depois você. Você está no final, — eu disse a ele.
— Anotado, — respondeu ele secamente, em seguida, continuou. —
Mamãe e papai já tinham saído para o trabalho no momento em que
saímos para a escola, então Charlotte foi capaz de sair usando um
vestidinho e um sapato de saltos que eles nunca a deixariam sair de casa.
Eu franzi o rosto em frustração. — Não era tão sexy assim. Você faz
parecer que eu estava prestes a me prostituir.
— Charlotte! — Minha avó gritou.
— Desculpe, vovó, — eu me desculpei com um estremecimento, —
mas ele está exagerando.
— E você beija sua avó com essa boca, — Axel zombou em um
sotaque ridículo do Bronx.
— Isso foi realmente muito leve para Charlotte, — Ike entrou na
conversa. — Eu nunca ouvi tantas palavras sujas saírem de uma boca
tão bonita.
— Ike! — Foi a minha vez de gritar, lançando lhe um olhar de olhos
arregalados. Vovó não precisava saber sobre meu vocabulário colorido e
com que frequência eu o usava.
Desta vez ele estremeceu e mordeu o lábio inferior, dando-me um
olhar de desculpas. Vovó torceu a boca sem jeito, claramente tentando
não parecer divertida.
— O que é isso? O dia de conspirar contra Charlotte? — Eu gemi
quando joguei minha maçã meio comida em Axel, o acertando no peito.
Vovó apertou os lábios e cortou os olhos para mim, fingindo
desapontamento.
— Ok, ok. — Axel levantou as mãos em sinal de rendição. — Eu
vou dizer isto: o vestido em uma mulher adulta poderia ter ficado bom,
mas no peito plano, mal-saído-da-puberdade de Charlotte,
parecia muito maduro.
— Ugghhh, — eu gemi enquanto cobria meu rosto. — Por quê? Por
que você está fazendo isso comigo?
— Quantos anos se passaram desde que faleci? — Ele perguntou
retoricamente. — Estou só compensando o tempo perdido.
— Charlotte, realmente me dói ver você envergonhada, mas
eu tenho que ouvir isso, — disse Ike, desculpando-se, o que teria sido
bom se ele tivesse tido o menor remorso por encorajar minha humilhação.
— Imagine, — Axel estendeu as mãos na frente deles como se
estivesse enquadrando uma cena para um filme. — Charlotte, apenas
quarenta e três quilos mergulhada em botas, usando um pequeno vestido
justo que caía sobre ela como um cobertor molhado, revelando nada além
de braços e pernas finas...
— Ele entendeu, Axel, — eu gemi.
— Então, ela chega na escola e vai para a cafeteria, pronta para se
exibir e chamar a atenção de seu cobiçado Billy. Ela abre as portas
duplas e tira o casaco enquanto se aproxima. — Axel fez uma pausa e
encontrou meu olhar prolongando o momento para o efeito máximo. Ele
sempre fora, e aparentemente sempre seria, um mestre contador de
histórias. Finalmente, quando teve certeza de que minha humilhação
estava perfeitamente preparada, ele continuou: — Ela atravessou a
lanchonete em direção à mesa onde as amigas sentavam-se, confusas
com as risadas que pareciam estar enchendo o recinto.
— Oh, Charlotte, — Vovó apertou meu braço simpaticamente, todo
o divertimento foi embora. — Eles estavam rindo do seu vestido?
— Nem um pouco, — Axel riu com prazer. — Quase todo o corpo
estudantil estava rindo dela porque quando se vestiu naquela manhã, ela
não percebeu que tinha enfiado a parte de trás do vestido na sua
calcinha.
Cobri meu rosto com as mãos enquanto Axel continuava a rir.
— Bem, eu imagino que isso foi um pouco embaraçoso, mas não
parece tão ruim. — Oh, como eu amava a Vovó. Sempre tentando me
fazer sentir melhor ou encontrar um lado bom.
— Não, foi muito ruim, — eu expliquei. — Eu estava usando uma
tanga.
Eu me encolhi quando me lembrei da humilhação que senti
naquele dia. Foi um daqueles momentos em que crescemos, um
momento frágil entre a época em que a menina ainda é uma criança, mas
busca a feminilidade, quando eu queria ser algo que realmente não
entendia, como ser sexy. Minha mente correu em direção à meta, mas
meu corpo e bom senso não a alcançaram.
A boca de Ike arredondou de um “O” quando a compreensão surgiu.
As feições de Axel se contorceram. — Não podemos discutir você
usando uma tanga.
— Oh, me desculpe, Axel. Você está desconfortável com os
detalhes da história que está contando? — Eu apontei. — Me desculpe.
Virando o meu foco de volta para Ike, desesperada para acabar com
a humilhação, eu soltei, — Então eu mostrei a bunda para todo o corpo
discente no meu primeiro dia de escola. — Eu levantei um punho no ar,
fingindo uma falsa vitória. — Porque eu sou incrível.
Ike riu, mas pelo menos teve a decência de parecer se sentir mal
com isso. Axel não demonstrou nenhum remorso quando se inclinou
para o lado, rindo muito duro.
Quando o riso diminuiu, ele tirou o chapéu e passou a mão pelo
cabelo antes de colocá-lo de volta. — A escola ligou para mamãe e papai,
e rapaz papai ficou chateado. — Ele balançou a cabeça.
— Ele agiu como se eu quisesse mostrar minha bunda para todo
mundo, — eu resmunguei.
— Vocês dois precisam maneirar a linguagem, — Vovó gritou de
brincadeira, sem se preocupar em olhar para cima de sua tarefa de
descascar a maçã. Agora que a história havia terminado, ela estava
pronta para voltar ao trabalho.
— Desculpe, — nós dois pedimos desculpas em uníssono.
— Axel, essa não foi uma boa história para contar, — ela
continuou. — Você não deve envergonhar sua irmã desse jeito.
— Vovó, esse é o tipo de história que não se pode guardar para si
por toda a eternidade. Eu tinha que compartilhá-la.
— Quão pesado o fardo de manter isso para si mesmo deve ter sido,
— eu disse em simpatia simulada.
Sem perder o ritmo, Axel disse: — Bem, agora está fora do caminho
e todos podemos seguir em frente. Sinto-me melhor agora que me aliviei.
De pé, Vovó começou a recolher as maçãs. — Eu acho que tenho o
suficiente aqui. Ike, você me ajuda a levá-las para dentro? Eu posso
precisar de uma mão na cozinha, se você estiver disposto. — Eu queria
abraçá-la apertado por mudar de assunto.
Ike se levantou, preparando-se para ajudá-la em seus esforços. —
Não sou um bom cozinheiro, mas sou soldado. Eu sei como seguir
ordens, senhora.
— Por que vocês dois não passam algum tempo juntos, — sugeriu
Vovó para mim e Axel. — Volte daqui a pouco para o jantar.
— Parece bom, Vovó. Eu a ajudarei a limpar antes de irmos.
Axel ajudou a recolher as maçãs enquanto fui até Ike e agarrei seu
pulso. — Você está bem com isso? — Vovó era a melhor, mas isso não
significava que eu esperasse que ele gastasse seu tempo livre com ela.
— Sim, vá com o seu irmão, — ele insistiu. — Vai ser bom para
vocês dois terem algum tempo juntos.
Olhei de relance para o meu irmão mais velho, que estava
explicando a Vovó o sorvete de baunilha apropriado para a proporção de
torta de maçã, e olhei para ele. Como eu poderia amar tanto alguém que
tivesse o poder de me envergonhar como ele acabara de fazer?
Como se tivesse lido minha mente, Ike sorriu e deu de ombros: —
Isso é o que os irmãos fazem, constranger um ao outro
impiedosamente. Ele é muito engraçado. Eu posso ver porque ele era seu
melhor amigo.
— Engraçado às minhas custas, — eu murmurei.
— Na verdade, foi uma ótima história. Deu-me muita visão.
Eu levantei uma sobrancelha questionadora.
— Se eu não te conhecesse melhor, menina, acharia que você era
um pouco exibicionista.
Eu zombei. — O que isso significa?
— Bem… você mostrou a bunda na escola secundária. E você me
mostrou isso uma vez.
— Não. Eu não, — eu discordei calmamente, recusando-me a
deixá-lo me instigar uma reação.
— Então houve todo o calvário com o corte na sua bunda. Baixou
a calça na frente de dois homens — ele zombou.
Eu dei um soco no braço dele e bufei: — Não foi assim que
aconteceu.
Fingindo dor, ele esfregou o braço. — Umm... foi exatamente assim
que aconteceu.
Eu olhei para ele com os olhos apertados, não querendo admitir,
mesmo que ele estivesse tecnicamente correto. Finalmente, desisti e
aceitei a derrota da maneira mais madura que pude. — Você e Axel não
prestam, — declarei e bati meu pé.
Ike estava usando meu sorriso favorito e seus olhos estavam
iluminados com uma alegria suave.
— Pare de rir de mim, — eu exigi.
— Eu não estou rindo, — ele se defendeu, seus olhos brilhando.
— Sim você está. Com seus olhos. Você está praticamente de
joelhos no chão rindo de mim com os olhos.
— Você está imaginando coisas, Charlotte, — ele riu enquanto
balançou a cabeça com meu argumento.
— Esse brilho, — eu apontei. — Aí.
Estendendo a mão, ele roçou as costas dos seus dedos suavemente
contra a minha bochecha. — Eu não estou rindo de você, menina. Estou
te observando.
— Me observando?
— Você sabia que você enruga o nariz quando está frustrada? —
Eu não respondi. Eu sabia, mais ou menos, mas nunca percebi que ele
havia notado. — Você é deslumbrante, Charlotte.
Meu corpo zumbiu em resposta à felicidade que irradiava dele e ao
conhecimento que eu era responsável por isso. Seja por causa das
minhas histórias humilhantes, ou pelo jeito que meu nariz enrugava,
deixei Ike McDermott feliz. Algo sobre isso fez meu coração apertar. Como
eu amava esse homem. Eu sempre amei, e sempre amaria. Toda mulher
deveria ter isso, um homem olhando para elas do jeito que Ike estava
olhando para mim nesse momento, como se eu fosse a coisa mais
preciosa e bonita que ele já tinha visto.
Quando ele se inclinou para me beijar, meu coração disparou, meu
corpo inclinando em direção a ele, acolhendo seu toque. Nossos lábios
estavam a um sopro de distância quando o momento foi arruinado.
— Vocês podem fazer isso mais tarde. Jesus, — Axel disse com um
sobressalto.
Nós dois nos afastamos, surpresos pela interrupção. Ike fechou os
olhos e suspirou frustrado enquanto eu lançava um olhar mortal para o
meu irmão.
— Realmente, Axel? — Eu grunhi.
— Beijem-se em algum outro momento. Vou roubar minha irmã
um pouco. — O tom de Axel não dava espaço para discussões, não que
qualquer um de nós tivesse tentado.
— Até mais tarde, — Ike piscou para mim antes de desaparecer.
Eu olhei para o lugar onde ele estava, sorrindo como uma tonta.
— Bom Deus, Charlotte, — Axel reclamou.
Cortando meu olhar para ele, perguntei: — O quê? Você não
namora ou algo assim aqui?
Axel revirou os olhos e soltou um suspiro. — Não funciona assim
aqui.
— O que você quer dizer?
— Apesar de como isso pode parecer no momento, há um pouco de
finalidade quando você morre. Não, você não vai para um grande vazio,
mas também não continua simplesmente de onde parou só que em um
novo local. E definitivamente não há nenhum “Clube de Solteiros
Mortos”, — ele me cutucou de brincadeira, — acredite em mim, eu
procurei.
— Você é terrível, — eu disse, balançando a cabeça.
Ele piscou, depois ficou sério e continuou: — A coisa deste lado,
Char, é que é interminável e diferente para todos. Lembra-se daquela vez
que mamãe e papai nos levaram para o Smithsonian e havia tantas
pessoas na nossa frente enquanto esperávamos para entrar? — Eu
balancei a cabeça enquanto ele continuava. — Mas uma vez que
entramos, era como se fôssemos os únicos lá, e somente de vez em
quando veríamos outras pessoas. É assim que é deste lado e, como as
pinturas que olhamos, todo mundo vê esse lugar de maneira
diferente. Mesmo você e eu não vemos exatamente o mesmo. — Ele fez
uma pausa e olhou através das colinas ao redor da casa de Vovó.
Eu esperei que ele continuasse, mas depois de alguns minutos eu
perguntei baixinho: — Então, o que, você tem que fazer isso sozinho? —
Meu coração se partiu por ele com o pensamento.
— Honestamente, eu não sei se estarei sozinho, só porque não
encontrei aquela antes de morrer. Mas essa é a coisa engraçada do para
sempre, mana. Não há pressa quando você tem uma eternidade para
descobrir.
Fazia muito sentido, mas se o que ele dizia era verdade, por que eu
ainda sentia que o tempo estava passando? Minha mão encontrou o
caminho para o relógio de bolso que ainda estava no bolso da minha
bermuda, e eu poderia jurar que senti pulsar ao ritmo do ponteiro do
segundo.
— Ok, já chega de coisas pesadas, — ele reclamou e rapidamente
mudou de assunto, o que me fez pensar se ele realmente estava sozinho
e não gostava de pensar nisso. — Aonde você quer ir? — Axel
perguntou. — Leve-nos até lá.
Eu parei e olhei ao redor. — Eu não sei como... — Eu acenei com a
minha mão em torno de. —... simplesmente ir a algum lugar. — Eu só
tinha me transportado, ou qualquer outra coisa, uma vez quando Ike
desmaiou e levei ambos para a casa da Vovó, e eu não tinha ideia de como
tinha feito isso.
— Ok, eu vou te ensinar. — Ele jogou um braço por cima do meu
ombro, me apertou de lado e beijou minha têmpora. Ele então se afastou
e se virou para mim. — Feche seus olhos.
Eu fiz como ele instruiu. — E agora?
— Agora pense no lugar que você mais quer, neste exato segundo.
Engolindo, deixei minha mente vagar, surpresa por onde ela
pousou. Axel não gostaria, mas por alguma razão, era onde eu queria
estar.
— Agora gire duas vezes e bata os calcanhares três vezes, — ele
instruiu.
Eu abri meus olhos para que ele pudesse ver-me revirando-os com
desagrado. Ele estava brincando comigo tratando-me como se eu fosse
Dorothy do Mágico de Oz. Sua cabeça caiu para trás quando ele riu de
mim. — Desculpe, eu tive que fazer, — ele se desculpou enquanto seu
corpo convulsionava. Seu sorriso sumiu abruptamente quando ele
percebeu onde eu havia nos trazido. Suas feições se contorceram: — Por
que você quis vir aqui, Char?
— Este foi o último lugar em que estivemos vivos juntos, —
expliquei, engolindo um caroço enquanto o observava estudar a rua
deserta, calçadas vazias e passagens arborizadas que levavam às
entradas dos prédios de tijolos do nosso campus universitário. — Este foi
o último lugar que eu envolvi meus braços em torno de você.
Axel não respondeu, seu olhar fixo em alguma coisa. Olhando por
cima do meu ombro, segui sua linha de visão até o lugar exato em que
fomos atingidos na noite em que ele morreu. Voltando-me para ele,
perguntei: — Você sabe que não foi sua culpa, certo?
Arranhando a nuca, ele balançou a cabeça em negação. — Se eu
não tivesse a moto, não estaríamos nela. Eu deveria ter escutado meu
pai.
— Pfft, — eu bufei. — Ele não sabe tudo, Axel.
Puxando-me para ele mais uma vez, ele nos levou a um banco a
cerca de nove metros de onde havíamos caído.
— Você vai ter que perdoá-lo, sabe?
— Eu o perdoei, — me defendi, um pouco alto demais. — É
apenas... dor.
Quando chegamos ao banco, Axel se inclinou para trás e abriu os
braços ao longo do comprimento do banco, enquanto me sentei.
— Ele não era perfeito. — Axel admitiu. — Se você me perguntasse
o que eu achava do nosso pai na manhã antes de eu morrer, eu teria lhe
enchido os ouvidos sobre todas as suas deficiências.
Eu assenti. Axel e nosso pai estiveram se estranhando por meses.
— Ele estava sempre na minha cola. Isso me deixava louco. Eu
senti que nunca teria qualquer noção do que ele pensava sobre mim...
como se não importasse o que eu fizesse, ou o quanto eu tentasse, nunca
seria bom o suficiente para ele.
Olhando de volta para ele, inclinei a cabeça. Eu sabia que eles
tinham desentendimentos, mas nunca percebi o alcance disso. — Eu não
sabia que você se sentia assim, Axe. Você nunca me disse.
Sua boca se levantou de um lado quando ele cortou seus olhos para
mim. — Você era a favorita dele, Charlotte. Todo mundo sabia disso.
Eu recuei, uma risada de choque escapando de mim. — O
quê? Isso não é verdade.
— Cem por cento verdade. Você sempre conseguia o que queria. A
menina do papai, — ele zombou quando me cutucou no lado.
Eu bati na mão dele. — Tanto faz. Eu não lembro dessa maneira.
Ficamos em silêncio por um momento antes de Axel falar
novamente. — Ele só queria que eu fosse melhor do que ele. Ele queria
que eu tivesse mais do que ele.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer... eu não entendia quando estava vivo, e sim, talvez
se eu tivesse chegado a sua idade, ou até mesmo me tornado um pai, eu
teria entendido, mas depois que fui afastado tudo, pude ver.
— Ver o quê?
— Por que ele era do jeito que era. Papai gostava de se sentir no
controle. Ele gostava que as coisas fossem de certa maneira. Era aí que
ele encontrava a paz. Claro, eu sempre fui o único a ir contra a
corrente. Isso o deixava louco porque ele não podia me manter na
linha. Eu só achei que ele era controlador e um narcisista, mas ele não
era. Eu estava errado.
Eu olhei para ele em descrença. Axel admitindo que estava errado
era monumental, ainda mais em relação ao meu pai.
— Amor e medo andam de mãos dadas às vezes. Ele nos amava
tanto que o assustava, e quanto mais medo ele tinha, mais me empurrou
para entrar na linha.
— Você está o defendendo? — Eu perguntei surpresa.
— Não... bem, sim, — ele admitiu. — Eu não estou dizendo que ele
era perfeito ou qualquer coisa... Eu só quero dizer que posso ver que ele
era um homem que tinha realmente medo de amar. Eu o assustava.
Uma lágrima escorreu pela minha bochecha. — Acho que eu
também.
Axel apertou meu ombro. — Eu era uma adolescente selvagem e
então você… você acordou com esse dom que ele não entendia. Nós
estávamos fora de seu controle; fora de seu escopo de controle. Ele não
podia nos proteger do que não conseguia controlar. Ele não sabia o que
fazer.
Ao absorver suas palavras, pude ver seu ponto. Talvez meu pai
estivesse com medo do que ele não podia controlar. Talvez isso o
amedrontasse tanto que era mais fácil me deixar ir, contra me manter
perto e sentir o peso disso todos os dias. Eu não podia desculpá-lo, mas
de certa forma, eu podia entender. A vida comigo e meu dom não era
fácil. Minha mente foi para o George. Ele nunca desistiu; nunca se
afastou de mim. Ele seguiu pelo caminho que me foi colocado, grato
apenas por estar ao meu lado mesmo quando era difícil. Meu peito
apertou quando um agradecimento me consumiu. Meu marido era meu
herói.
— Nada na vida está no controle. Para nenhum de nós. Papai virou
as costas para nós, Axe — eu o lembrei. — Ter medo não é uma desculpa.
— Você tem que perdoá-lo, Char. É quando você encontrará paz.
— Eu o perdoei, — argumentei. — Eu simplesmente não consigo
esquecer. — Eu gemi frustrada comigo mesma e com o meu
pensamento. — Você não entende.
Ele cruzou os braços sobre o peito e olhou para mim pensativo. —
Hey… eu tenho uma eternidade de tempo. Faça-me entender.
Eu bufei. Como eu poderia fazê-lo entender? Algo tinha morrido,
mas não realmente. Não no sentido convencional. A definição da morte é
o fim permanente da vida de um organismo biológico. Processamos isso
como humanos ou animais, qualquer coisa com batimentos cardíacos ou
respiração. Eu me considerava uma professora quando se tratava da
morte, afinal, eu podia ver os mortos, como poderia não ser bem versada
nessa área? A coisa é que, porém, muitas outras coisas perecem, e elas
não se encaixam nesse contexto.
Segurei o banco com ambas às mãos e me inclinei para frente,
deixando meu olhar fixar-se em uma minúscula flor amarela que
conseguiu crescer através de uma rachadura no concreto perto do meu
pé. — Ele era o maior homem que eu conhecia, — eu finalmente
comecei. — As pessoas brincam em torno da frase “ele está morto para
mim”, mas embora possa ser verdade até certo ponto, não é realmente
preciso explicar o que elas realmente significam; o que significaria se eu
dissesse sobre o papai.
Axel ficou quieto por um longo momento antes de perguntar: —
O que você quer dizer?
Lambi meus lábios secos e escaneei o campus vazio enquanto
procurava as palavras. — Quero dizer à conexão que tinha com ele como
filha está morta. Morreu no dia em que ele desistiu de mim e me mandou
embora. Ele cortou pela garganta com o golpe de uma caneta. E com essa
conexão foi todo o respeito, confiança, fé que eu tinha nele como pai e,
em grande medida, como um ser humano decente. Que homem honrado
joga fora sua filha, sua única criança sobrevivente? Tudo o que restou foi
um vazio onde fui forçada a viver pelo resto da minha vida.
Olhei para Axel e encontrei-o me observando. — Teria sido melhor
se ele tivesse morrido, — eu admiti sem rodeios. — Eu preferiria ter visto
o seu caixão sendo abaixado ao chão, do que perder o jeito que eu o via
e o jeito que ele se sentia sobre mim. — Inclinando minha cabeça para
cima, eu olhei para o céu sem nuvens enquanto lutava pelas palavras
certas para me explicar. — Ver alguém assim, mantendo-os em tão alta
consideração... — Eu parei quando minha voz tremeu de emoção. Eu
mudei meu olhar de volta para a flor e dobrei na rachadura com o meu
sapato. — Todos nós precisamos ter alguém para vermos dessa
maneira. Alguém que nos inspira... nos ensina. — Um sorriso triste
capturou meus lábios. — Não existem funerais para quando você perde
o respeito por alguém. Só tem que viver o resto de seus dias sabendo que
essa pessoa não era quem você achava que era.
Axel cobriu minha mão, ainda segurando o banco, com a dele e
apertou. — Eu sei que ele te machucou, mas você está se machucando
mais por não deixar ir. Perdão é uma escolha, Char. Está na hora de se
curar.
Eu empurrei um pouco de cabelo atrás da minha orelha e
suspirei. — Eu só achei que deste lado… não sentiria nada. Eu
simplesmente me sinto... eufórica. Imaginei que flutuaria em uma nuvem
com pequenos querubins me alimentando com uvas.
Axel riu. Ele sabia que eu estava brincando. — Bem, talvez não
haja querubins nos alimentando com uvas, mas ainda assim é muito
chique aqui. Este lado, céu... chame do que você quiser, mana, o ponto é
que é o que fazemos. Você não encontrará paz a menos que realmente
deixe tudo ir. Mais ou menos como Ike quando você o conheceu. Ele não
poderia encontrar o seu céu até que você o soltasse.
— Axel, como poderia estar aqui se não tivesse soltado? Se algo
fosse deixado inacabado, eu estaria no limbo.
Ele encolheu os ombros. — Eu não sei, Char. De certa forma, não
parece que você está realmente aqui.
Os cantos da minha boca caíram. — O que isso significa?
Ele deu de ombros novamente. — Eu só sei que sinto algo em você.
Eu balancei a cabeça, frustrada. Ele estava certo. Alguma coisa
estava errada. Eu tinha negócios inacabados, Click. Mas não havia como
eu ajudá-la, agora que estava aqui. No que dizia respeito ao meu pai, eu
tinha deixado ir. Quero dizer, sim, eu ainda estava machucada, mas
perdoei meu pai. Certo? Claro que sim. Eu disse a ele que o fiz.
— Ei, — ele acariciou minhas costas, — eu não estou tentando
incomodá-la.
— Podemos conversar sobre outra coisa? — A pergunta saiu sem
rodeios, com a minha frustração evidente no meu tom.
Axel me observou por um momento, sua boca pressionada como se
estivesse debatendo se deveria dizer alguma coisa ou não, mas depois de
um momento ele saltou. — Tenho uma ideia melhor. Vamos dar uma
volta.
Erguendo o braço, ele deliberadamente gesticulou para algo do
outro lado da rua. Segui o movimento com o meu olhar, ofegando sobre
o que ele queria que eu visse. A quinze metros de distância de nós estava
uma motocicleta. Era a motocicleta exata em que caímos na noite em que
ele morreu, até a cor. Meus olhos se arregalaram quando olhei para
ele. — Você não pode estar falando sério, — eu disse, surpresa.
— Não tenha medo, mana, — ele encorajou. — Eu não vou, — ele
moveu a cabeça roboticamente, — te matar.
— Isso foi uma piada terrível, — eu o repreendi.
Ele olhou para mim como se eu fosse ridícula quando me agarrou
pelos pulsos, levantando-me e me puxando com ele em direção à moto. —
Foi um pouco engraçado e você sabe disso.
Realmente não foi, mas não me incomodei em discutir.
— Não há nada a temer, Char, — disse ele quando passou a perna
longa sobre a moto e a endireitou para que eu pudesse subir. — Que
lugar melhor para realmente viver do que aqui na vida após a morte? —
Um flash de ansiedade me atingiu, fazendo-me parar. Desde o acidente,
até mesmo ver uma motocicleta me enviava a um ataque de
pânico. George até vendeu sua moto depois que decidimos ficar juntos,
sacrificando seu amor pelo passeio pelo meu bem-estar mental. Mesmo
que eu não fosse montá-la, apenas me preocupar com ele montando
desencadearia um ataque.
— Vamos lá, Char, — Axel insistiu novamente, batendo no assento
atrás dele. — É hora de deixar tudo ir.
Eu sabia que estava morta e não iríamos nos destruir desta vez. Eu
sabia, mas ainda tive que engolir o medo que sentia. Ele estava certo, no
entanto; Eu precisava deixar a memória trágica do nosso acidente ir
embora. Tudo isso aconteceu no passado e estávamos juntos
novamente. Subindo, eu me aproximei e passei meus braços ao redor
dele.
Quando decolamos, algo caiu, um peso que eu não registrava há
muito tempo. Talvez tenha sido a conversa sobre o nosso pai, expurgando
os pensamentos e sentimentos que eu estava abrigando, mas não tinha
dito a ninguém. Talvez fosse subir na traseira da moto e deixar de lado o
medo que havia me acorrentado por tanto tempo. Talvez os dois. Algo
parecia diferente. Meu irmão estava certo. Paz poderia ser encontrada em
deixar ir, mas eu não tinha certeza se estava pronta para deixar ir tudo.
Capítulo vinte e dois
Ike

Eu nunca fui um daqueles que acreditam em finais de contos de


fadas. A maioria dos caras não são viciados em romance como as
mulheres podem ser. Mas… eu tinha que admitir… senti que talvez
estivesse vivendo em um conto de fadas. Eu tinha a mulher que amava
ao meu lado, e nem sempre era perfeito, mas quanto mais ficávamos
juntos, sozinhos ou com os outros, mais leve ela ficava, e os momentos
de desespero estavam acontecendo com menos frequência. A tristeza
nunca vai embora, mas eventualmente todos nós encontramos a paz no
absoluto, uma coisa é ter fé que você verá seus entes queridos novamente
quando for a sua hora, mas é algo completamente diferente de saber
que você vai, sem sombra de dúvida, porque você é o único a espera que
eles cheguem.
Nós estávamos caminhando ao longo de um penhasco com vista
para o oceano quando Charlotte pegou minha mão e entrelaçou nossos
dedos. Estava quente com uma brisa leve que fazia as mechas de seus
cabelos flutuarem. A vista era espetacular. Ela certamente pegou o jeito
de criar seu ambiente e raramente hesitava; entretanto, ela não mudou
muito sua maneira de vestir, preferindo ficar com o que ela gostava
quando estava viva. Eu não tinha reclamações sobre isso. Eu gostava
dela de bermuda jeans e blusa de flanela, desabotoada apenas o
suficiente para revelar a quantidade perfeita de clivagem sem ser
obscena.
— Ike. — Sua voz tinha um tom de reprovação nela.
Eu empurrei meu olhar de seu decote para encontrar seus olhos. —
Sim? — Eu perguntei inocentemente.
Ela sorriu e balançou a cabeça. — Aqui estamos, — ela estendeu o
braço diante de nós, — na frente desta bela vista do oceano que só
poderia existir aqui, e o que você está olhando? — Ela me deu um olhar
aguçado. — Meus peitos.
— Ei, essa é a sua visão do céu, — eu fiz sinal para o oceano
enquanto voltava meu olhar para o peito dela, — e essa é a minha.
Ela riu e revirou os olhos. — Você sempre foi um pervertido, Ike
McDermott.
— Só por você, menina. — Ela abriu a boca para dizer algo, mas
parou, seus olhos se movendo de mim para algo atrás de mim. — O que
é isso? — Quando me virei para seguir sua linha de visão, havia um
garotinho de pé a seis metros de nós. Era o garoto que havia se
aproximado dela no campo com a borboleta amarela. Ele era um
garotinho bonito com cabelos e olhos escuros, e nos observava enquanto
olhávamos para ele, mas não se moveu nem um centímetro. De onde
diabos ele veio? — Isso é estranho, — eu disse.
Charlotte olhou em volta. — Ele está sozinho. Onde estão as outras
crianças? Ou os guias?
— Talvez ele tenha se afastado.
Charlotte estreitou o olhar enquanto estudava o rapazinho. Dando
alguns passos em direção a ele, ela gritou: — Ei, pequeno homem. —
Quando ela estava na metade do caminho, ele desapareceu. Ela se virou
para me encarar. — Você acha que ele está bem. Talvez ele esteja perdido
ou com medo?
Dei de ombros. — Eles vão encontrá-lo. Não se preocupe. Não é
inédito que almas aleatórias apareçam do nada.
— Mesmo?
— Acontece.
Ela balançou a cabeça. — Este lugar é... confuso.
— Aww, não se preocupe, pequenina, — eu disse com uma voz
profunda de narrador, — vou continuar a mostrar-lhe os caminhos deste
lugar exótico. Eu serei seu guia e mentor.
Ela ergueu as sobrancelhas em questão. — É assim mesmo?
— Por uma pequena, minúscula, realmente nada no final do dia,
taxa, — acrescentei rapidamente.
Inclinando a cabeça, ela estreitou o olhar para mim, sua boca
erguida em um meio sorriso. — E que taxa é essa?
— Bem, Charlotte, — eu comecei quando coloquei minhas mãos
nas minhas costas e andei em direção a ela, meus ombros para trás para
refletir uma postura real. — Dinheiro não significa nada aqui, e eu
realmente tenho tudo que preciso.
— Então, como devo compensá-lo pelo seu mais cobiçado
aconselhamento e orientação, bom senhor? — Ela perguntou, brincando.
Balancei a cabeça em desagrado: — Essa é uma pergunta muito
boa, minha querida. Bem, como temos história um com o outro, farei um
acordo.
Ela arqueou uma sobrancelha, esperando.
— Eu vou fornecer esses serviços com uma taxa baixa de… — fiz
uma pausa antes de continuar, — é realmente quase nada o que estou
pedindo, se você pensar nos serviços prestados…
— Ike... — ela avisou.
— Deixe-me olhar para seus peitos, o quanto eu quiser. — Eu
soltei.
Ela riu quando bateu no meu braço. — Você é impossível. — Ela
era tão bonita quando ria.
Agarrei seus antebraços gentilmente, esperando que sua risada
diminuísse antes de falar com sinceridade: — Este lugar que você criou
aqui é nada menos que incrível, mas você, Charlotte. Você é o paraíso
para mim. — Ela olhou para mim, seu peito subindo enquanto ela
passava a língua pelos lábios. Segurando seu rosto em minhas mãos, eu
continuei: — As pontas dos meus dedos em seu cabelo, sua pele macia
contra as palmas das minhas mãos, o jeito que você está olhando para
mim agora... o céu.
— Ike, — ela respirou sonhadora, com os olhos cobertos de desejo.
Eu escovei meus lábios contra os dela, cada nervo do meu corpo
disparando, gritando por mais. Afastando minha cabeça da dela, estudei
seu rosto, procurando a resposta para a pergunta que rolava pela minha
mente. Devo parar? Tomando meu rosto em suas mãos, ela me puxou
para ela novamente.
— Por favor, Ike, — ela sussurrou contra a minha boca. — Mais.
Gemendo, eu pressionei minha testa na dela, respirando fundo. Eu
estava dividido. Por muito tempo eu a quis em todos os sentidos, um
homem pode ter a mulher que ele ama, mas as circunstâncias não
permitiram, até agora. Eu pegava o que queria, ou deveria parar?
— Você tem certeza, Charlotte? — Desde que ela chegou, nós só
nos beijamos uma vez. Nosso outro contato físico tinha sido limitado a
abraçar e segurar as mãos. Nossa situação sempre foi complicada, e eu
sabia que ela me amava e me queria tanto quanto eu a queria, mas eu
precisava ter certeza de que ela não iria se arrepender. Que não era cedo
demais para ela.
— Eu não sei mais o que é certo ou errado, — ela admitiu, sua voz
falhando um pouco. — Eu estaria mentindo se dissesse a você que uma
parte minha não se sente culpada por causa de George, mas eu também
jurei que se eu tivesse a chance de estar com você, Ike McDermott, eu
aceitaria. — Seu lábio tremeu. — Talvez isso me faça uma pessoa terrível,
mas eu não quero mais lutar contra isso.
Ela começou a desabotoar sua camisa, seu olhar escuro fixo em
mim. A luxúria correu por mim quando ela tirou a camisa sobre os
ombros e deixou cair. O sol por trás dela iluminou sua figura e a brisa
sussurrou através de seu cabelo. Ela era angelical. Eu fiquei quieto
enquanto deixava meus olhos se banquetearem em cada centímetro
dela. Uma mecha de seu cabelo estava sobre o peito e eu estendi a mão,
saboreando a sensação entre meus dedos antes de afastá-lo. Eu
levemente tracei sua clavícula com as pontas dos meus dedos,
percebendo novamente como era surreal estar tocando esta mulher. Sua
mão encontrou a minha e ela pressionou minha palma contra o peito
sobre o coração.
Calor passou por mim em seu gesto. Nós tínhamos andado na
montanha-russa do luto tantas vezes desde que ela chegou, e agora,
finalmente, estávamos nos movendo para a próxima. Uma que oferecia
apenas as emoções do que poderia ser, e nenhuma das dores do que tinha
sido. E eu esperei uma pequena porção de eternidade para tê-la, por este
momento. Para descobrir tudo o que havia para saber sobre minha
Charlotte.
Apertando minha mão em seu cabelo, eu gentilmente guiei sua
cabeça para trás para me fornecer acesso amplo enquanto pressionava
minha boca na dela. Ela se apoiou contra mim, envolvendo seus braços
a minha volta e enfiando seus dedos nas minhas costas enquanto
explorávamos a boca um do outro. Seus lábios eram tão macios que eu
mal conseguia aguentar. Ela tinha gosto de hortelã e cheirava a linho
limpo que havia sido secado pelo sol. Meu coração batia no meu peito
enquanto sua boca se movia contra a minha, os minúsculos gemidos
escapando dela apenas adicionando ao meu desejo crescente por
ela. Senti o sol mergulhar abaixo do horizonte quando a noite caiu e
nossos arredores mudaram, mas eu me recusei a parar de beijá-la para
notar onde acabamos. Soltando seu cabelo, eu a levantei do chão,
apoiando seu peso enquanto ela envolvia suas pernas em volta da minha
cintura.
— Por favor, — ela implorou entre beijos, seu desejo combinando
com o meu.
Cegamente, me movi para a cama que não via, mas sabia que
estaria lá. Eu subi, um joelho de cada vez, antes de deitá-la
suavemente. Equilibrando-me nos meus antebraços, eu me afastei dela,
precisando finalmente vê-la debaixo de mim assim, para confirmar que
era melhor do que eu imaginava. E como era. Seu cabelo escuro estava
espalhado ao redor de sua cabeça, e seus olhos cinzentos brilhavam
enquanto olhavam para mim. Minhas tags caíram livres e descansaram
perfeitamente sobre as curvas dos seus seios. Quando sua mão as
encontrou, ela as pressionou contra ela e meu coração quase explodiu.
— Aqui, para sempre, — eu sussurrei para ela.
— Aqui, para sempre, — ela sussurrou enquanto pegava meu rosto
em suas mãos, me puxando para ela, e juntos... encontramos um pouco
do nosso céu.
Capítulo vinte e três
Ike

Eu olhei para ela enquanto dormia, sua boca curvada em um


sussurro de um sorriso. Eu disse a mim mesmo que ela estava sorrindo
de qualquer maneira, e o pilar de modéstia e humildade que eu era, disse
a mim mesmo que tinha colocado aquele sorriso ali. O lençol branco
estava agrupado ao redor dela, uma de suas pernas magras e suaves
aparecendo. Eu queria traçar meu dedo ao longo do contorno do músculo
descendo pela sua coxa, mas me contive, não querendo acordá-
la. Sentando-me, me alonguei antes de vestir minha camiseta e
boxer. Ainda estávamos perto do penhasco que Charlotte havia criado, o
céu noturno brilhando com estrelas refletindo na água agitada abaixo. A
magnitude do momento encheu meu coração com uma alegria que nunca
pensei ser possível, e me vi oferecendo a mais honesta e humilde oração
de agradecimento que tinha para dar.
Obrigado Deus. Obrigado por finalmente me dar a minha paz.
A gratidão me consumiu. Eu senti como se tivesse esperado muito
tempo por isso. Eu gostava de acreditar que era um bom homem. Na vida,
graças a meu pai e a seu exemplo, fiz o melhor que pude para colocar os
outros antes de mim. Esse estado de espírito foi uma das principais
razões pelas quais me juntei ao Exército. Eu queria dar, e quando servir
meu país tirou minha vida, não fiquei ressentido. Senti que havia morrido
honradamente e de uma maneira que, embora dolorosa para meus entes
queridos, os deixaram orgulhosos. Minha vida não foi tomada ou
desperdiçada. Foi dada. Eu não podia negar que deixar Charlotte para
atravessar me testou de maneiras que eu nunca tinha experimentado
antes, mas permaneci forte e lutei contra isso. Eu perseverei contra os
maus pensamentos e sentimentos que ameaçavam corroer meu caráter e
minha alma. E agora... eu acreditava que estava sendo recompensado.
Eventualmente, levantei minha cabeça, surpreso com o quanto de
esforço foi necessário. Quando finalmente avistei o céu estrelado, ele
pareceu rachar como um painel de vidro. Eu instintivamente pisquei em
um esforço para limpar minha visão, mas isso serviu para tornar ainda
pior.
— Merda, — eu murmurei sobre a minha língua flácida. Estava
acontecendo de novo, algo estava me derrubando. Desajeitadamente, eu
girei e tentei voltar para a cama antes de desmaiar, mas a cada passo
instável, meu corpo começou a desligar e minhas pernas ficaram mais
fracas até que desabaram sob mim. A escuridão me puxou quando caí de
joelhos. Pouco antes de tudo ficar preto, eu tombei, batendo forte no
chão.
Eu estava flutuando na escuridão, meus membros pesados com
fadiga. Eu estava impotente para lutar contra qualquer força que
estivesse me puxando. Estava acontecendo da mesma maneira que na
primeira vez. Finalmente, senti o chão debaixo de mim, a superfície fria
enviando um arrepio em todo o meu corpo quando fez contato com a
minha pele nua. Eu estava ciente o suficiente para ser grato por ter tido
a presença de espírito de pelo menos colocar minha boxer e camiseta
novamente.
Bip. Bip. Bip. O que diabos é isso?
Minha visão lentamente começou a voltar, e percebi o que estava
ao meu redor. Um teto branco foi a primeira coisa a entrar em foco, o que
não era muito revelador. Ainda incapaz de levantar a cabeça, deixei-a
rolar para o lado e encontrei um par de Chucks pretos.
— Calma, amor. Não se apresse em se mexer, — disse um forte
sotaque britânico. O pânico deslizou sobre mim quando meu corpo ficou
tenso em resposta a falarem comigo, além de ser arrastado contra a
minha vontade para lugares desconhecidos. Meu olhar mudou em
direção a fonte, e pude apenas distinguir uma silhueta feminina, mas
nenhuma das características da mulher. Eu estava praticamente cego e
certamente não gostava que alguém estivesse em pé sobre mim enquanto
estava fisicamente incapacitado. O que era isso? Quem era ela?
— Não entre em pânico, Ike. Eu sou amiga da família. Meu nome é
Marlena DuBois.
— Eu te conheço? — Eu perguntei, piscando rapidamente,
esperando que isso me ajudasse a enxergar melhor.
Ela se aproximou e se ajoelhou na minha frente, permitindo-me
distinguir melhor seu rosto. Seus olhos verdes eram familiares... era a
mulher que eu tinha visto em pé no canto da casa onde Charlotte tinha
encontrado Click. — Você não conhece, não. Mas eu sei muito sobre você.
Com uma mão pesada, esfreguei minha cabeça, fechando os olhos
com força, me perguntando se eu estava imaginando tudo isso. Um sonho
ruim, talvez? Tinha que ser. Eu não estava apenas enrolado com
Charlotte momentos antes?
— Onde estamos?
Ela respirou fundo através dos dentes, então disse evasivamente:
— Agora, aí está uma pergunta carregada.
— Estou sonhando?
— Não, Ike, eu convoquei você. Eu te trouxe aqui do outro lado.
— Então você está viva?
Ela assentiu: — Estou.
Se eu não estava do outro lado e essa mulher não estava morta,
isso significava apenas uma coisa. Eu estava no limbo novamente. Meu
estômago deu um nó. Não. Eu não poderia estar no limbo
novamente. Isso foi um inferno que eu nunca quis voltar. — Por quê? —
Eu grunhi enquanto usava toda a minha força para me empurrar em uma
posição sentada. — Por que você me chamou?
Os cantos de sua boca levantaram em um sorriso simpático. — Eu
explico tudo, mas primeiro você precisa deixar o pânico ir. Eu não vou te
machucar; você está seguro, eu prometo. Quanto mais cedo você se
acalmar, mais à vontade vai se sentir.
— Como eu deveria me sentir à vontade quando você me trouxe de
volta ao limbo? Não tenho ideia de quem você é ou onde estou.
Ela riu baixinho, — Agora isso não é exatamente verdade, Ike,
é? Eu acabei de lhe dizer meu nome, e que sou uma amiga da família,
então não sou uma completa estranha. — Ela olhou ao redor da sala
brevemente e então disse: — Quanto a onde você está… bem, no
momento, Você está no chão de um quarto de hospital. — Ela
desembrulhou um pirulito verde e o colocou na boca, depois se levantou
e saiu da minha linha de visão, sem oferecer mais explicações.
Examinei a sala em busca de alguma clareza, mas quanto mais eu
via, mais confuso ficava. Eu estava encostado no pé da cama e, por cima
do ombro, posicionado perto da cabeça, pude ver alguns equipamentos
médicos óbvios, um dos quais parecia ser a fonte do sinal sonoro
incessante. Da minha posição no chão, era impossível ver quem estava
na cama, então me ajoelhei e agarrei a grade da cama, puxando-me para
cima. Eu não estava pronto para ficar de pé sem ajuda, mas pelo menos
estava me movendo. Isso era progresso. Uma vez marginalmente ereto,
examinei a forma deitada na cama, notando a cor pálida da mão delicada
que estava imóvel ao lado do paciente. Quando meu olhar alcançou o
rosto do paciente, recuei reflexivamente para longe da cama, mal
conseguindo evitar perder meu equilíbrio precário.
Isso não é possível…
— Como... — Eu parei enquanto meu cérebro lutava para decifrar
o que eu estava vendo. Quem eu estava vendo? — Charlotte? — Eu
resmunguei. Minha boca estava seca. Eu estava com muita sede. Eu não
conseguia lembrar a última vez que senti sede. Cautelosamente
contornando a cama, peguei sua mão, mas a minha passou pela
dela. Meu coração deu um pulo no meu peito.
Eu não podia tocá-la.
Isso significava que eu estava morto e ela… não estava.
Meu intestino se retorceu.
— Ela está viva. — Eu disse, mais para mim mesmo do que
Marlena.
— Sim, — confirmou Marlena.
Eu fiz uma careta, olhando para Charlotte, pálida e fraca. Isso não
parecia nada com ela. Charlotte era vibrante e cheia de cor, mas aqui,
deitada em uma cama de hospital, parecia perdida em cinza. Eu olhei de
volta para Marlena por uma explicação, mas ela apenas olhou para mim
através de seus cílios escuros e franja preta grossa.
— Eu não entendo, — eu murmurei, minha garganta queimou
quando engoli.
— Charlotte está com você, certo? Do outro lado? — Eu balancei a
cabeça, e ela continuou: — Como você sabe, Charlotte é única. Ela não é
como todo mundo.
— Sim.
— Sua habilidade pode permitir que ela seja mais… — ela
gesticulou como se estivesse procurando por suas próximas palavras. —
... aberta a outras coisas.
— Outras coisas?
A boca de Marlena franziu antes que ela tentasse explicar. —
Charlotte não está morta e, embora tenha tentado consideravelmente,
não consigo chamá-la de volta por consequência. Acredito que, em
resposta ao trauma sofrido pelo seu cérebro, suas habilidades permitiram
que ela fosse até você do outro lado, mesmo que não esteja realmente
morta.
— Talvez ela esteja morta, — retruquei defensivamente, incapaz de
esconder minha raiva crescente ao absurdo que esta mulher estava
vomitando. Nada disso fazia sentido. — Talvez isto, — eu acenei para as
máquinas ligadas e ao redor de Charlotte, — seja apenas para mantê-la
viva fisicamente, mas ela realmente atravessou. — Eu olhei
desafiadoramente para Marlena, disposto a aceitar as implicações do que
ela estava afirmando. Não havia como eu aceitar placidamente qualquer
coisa que pudesse tirar Charlotte de mim, não quando eu acabara de tê-
la.
Marlena puxou o pirulito da boca com um estalo molhado enquanto
deixava seu olhar vagar por Charlotte, sua voz calma e prosaica quando
ela finalmente falou: — Se ela estivesse realmente morta, Ike, eu teria
podido convocá-la.
Girando para encará-la de frente, eu cruzei meus braços. — Você
mesmo disse, ela é diferente. Talvez seja por isso que você não pode
convocar.
Seus olhos verdes me perfuraram quando ela levantou uma
sobrancelha, balançando a cabeça enquanto considerava minha
declaração. — Ela é especial, — Marlena concordou casualmente,
claramente não acreditando na minha teoria. Depois de um momento,
ela continuou: — Olha, eu não estou dizendo que o que você sugere não
seja possível; apesar do que a maioria pensa sobre pessoas como eu, eu
não sei tudo, não há nenhum livro de guias de habilidades ou dons
especiais que eu conheça, então qualquer coisa pode ser possível. Mas
esta tem sido minha vida muito mais do que não tem, e embora eu saiba
que não tenho todas as respostas, quando você vê tanto quanto eu,
desenvolve um senso de como as coisas funcionam. E no caso de
Charlotte, esse sentimento está me dizendo que não é a hora dela.
O que diabos ela quer dizer? Que Charlotte poderia acordar?
Virando para Charlotte, lutei contra outra onda de raiva. Nós só
provamos a beleza da nossa eternidade juntos, e agora essa mulher
estava me dizendo que não era a sua hora. Nossa hora. — O que
aconteceu com ela? — Eu finalmente perguntei.
— Aneurisma. A última coisa que ela estava fazendo era tentando
ajudar uma menina presa em uma casa que eles chamam de Casa do
Inferno. Eles chamam a menina Click.
— Ela a mencionou, — eu disse categoricamente quando me
lembrei de Charlotte explicando o que aconteceu com Click. As
sobrancelhas de Marlena se levantaram em surpresa. — Então ela ainda
está lá. A garota? — Eu perguntei.
— Ela está sim. Eu posso não ser capaz de ajudar Charlotte
diretamente, mas talvez eu possa ajudar Click.
Meu olhar caiu no rosto de Charlotte. — Há quanto tempo ela está
assim?
— Alguns dias
Ela disse dias? Parecia que Charlotte estava do outro lado comigo
há meses.
— Me disseram que o tempo funciona de forma um pouco diferente,
— ela disse, tendo aparentemente lido meu choque com a divulgação
dela.
Vários longos momentos passaram em silêncio. — Sinto muito, —
eu finalmente disse e fiz um movimento circular com a mão. — Estou
apenas processando.
— Compreensível, mas me desculpe, Ike, não temos muito
tempo. Eu só posso te segurar aqui por algum tempo e George estará de
volta em breve.
Minha cabeça disparou ao nome do meu irmão. George. — Como...
como ele está?
— Bem, ele está aguentando, mas sofrendo muito, — ela respondeu
sem rodeios. — Foi ele quem a encontrou.
Fechei os olhos ao ouvir a confirmação do medo de Charlotte e
soltei um suspiro pesado, imaginando mais uma vez quão terrível tinha
sido para ele, e o inferno que ele deve estar passando agora. Ele devia
querer que Charlotte acordasse, tanto quanto eu queria que ela ficasse
do outro lado.
— Então você é como Charlotte?
— Eu achei com certeza que seria muito popular do outro lado, mas
claramente você nunca ouviu falar de mim, — disse ela com falso
desânimo.
— Eu nunca ouvi falar de alguém sendo convocado do outro lado.
Ela limpou a garganta. — Acredito. — Tornando-se séria, ela disse:
— Bem, obviamente eu não sou como Charlotte, exceto que tenho minha
própria série na TV em casa, mas sim, eu tenho habilidades na mesma
linha que ela. Eu posso me comunicar com espíritos do outro lado e,
como você pode atestar, posso até trazê-los de volta para este lado, se eu
quiser. Eu também tenho a capacidade de ver as coisas, principalmente
o passado, mas, dado os parâmetros e circunstâncias certas, às vezes
vislumbro possíveis resultados futuros.
— Possíveis resultados?
— Sim, essa é a dificuldade. Veja, o futuro está sempre
mudando. Uma decisão tomada hoje pode mudar o curso de um feito
ontem que alterou um feito no dia anterior, e assim por diante. Se eu
realmente vejo alguma coisa, o que não é tão frequente quanto os meus
produtores gostariam, — ela sorriu desdenhosamente, — não há garantia
de que isso não mudará trinta segundos depois.
— Então, em algum momento você viu que Charlotte viveu, e é por
isso que não acha que ela está morta?
— Não, — ela balançou a cabeça enfaticamente, — eu não vi nada,
e não espero ver, para ser bem sincera. Todos ao seu redor estão
concentrados demais no que aconteceu com ela no passado ou acreditam
que ela já se foi. Não, o que me faz dizer que não é a hora dela é a
sensação de que ainda há mais para ela fazer aqui primeiro.
— Por que você não me disse quem era quando me trouxe para a
Casa do Inferno? — Perguntei, não querendo mais discutir o destino de
Charlotte, por assim dizer.
Ela riu. — Aquilo, — ela riu, — era algo completamente
diferente. Nenhum de nós estava realmente lá.
Eu estreitei meus olhos para ela em confusão. — Como assim? —
Eu perguntei.
— Eu não posso simplesmente trazer espíritos de volta
aleatoriamente; Eu preciso de um ponto de referência para trabalhar,
uma migalha de pão para seguir. Ontem, eu estava tentando usar a
memória de George para construir um canal entre Charlotte, então eu
poderia trazê-la aqui do jeito que te trouxe. Em vez disso, criei um para
você.
— Isso só aconteceu ontem? — Eu perguntei incrédulo antes de
acenar. — Não importa, isso é demais para entender. Como é que você
veio parar no meio disso tudo? — Perguntei mudando de assunto.
— George entrou em contato comigo antes do acidente para ajudar
Charlotte com a Click. Na verdade, pensando nisso, estávamos tendo
uma reunião via Skype quando aconteceu. Quando o agente de Charlotte
me disse que ela estava no hospital, voei imediatamente para ajudar de
qualquer maneira que pudesse.
— Mas por quê?
Marlena sentou-se na cama de Charlotte e olhou para ela. — Ela
estava tendo problemas com isso. George sabia que estava cortando-a
por dentro.
— Ainda está, — eu admiti. — Ela não pôde ajudar a garota a
atravessar. Tem sido difícil para ela.
Olhando de volta para mim, ela suspirou. — Não foi só isso. Seus
problemas para ajudar Click foi apenas um ponto de inflexão para
Charlotte. Ela já estava duvidando de sua fé; seu propósito. Ela estava
ficando com raiva. Ela estava doente da alma, Ike. E isso é pior do que
qualquer doença física para pessoas como nós. Você está bem ciente de
que isso não é algo que podemos simplesmente desligar quando
precisamos de um descanso, ou quando estamos cansadas disso
tudo. Não há como fugir, e isso nos desgasta de maneira que nem os
mortos do outro lado podem entender.
Eu exalei, esgotando completamente meus pulmões. Estava
dolorosamente claro que eu não tinha ideia do que a vida de Charlotte
tinha sido desde que atravessei, especialmente logo antes dela aparecer
do outro lado. Pela maneira como Marlena fez soar, Charlotte estava em
espiral há tanto tempo, que eu nem queria pensar. Eu nunca quis que
ela fosse como era quando a encontrei no dia em que nos conhecemos.
— Eu sei que você tem mais perguntas, Ike, mas agora não é a
hora. Eu segurei você aqui o máximo que pude, e preciso mandá-lo de
volta. George está a caminho, e não quero que ele saiba que entrei em
contato com você. Ainda não, pelo menos.
Eu lancei a cabeça em direção à porta. — Posso vê-lo? Por
favor? Não é como se ele pudesse me ver, ou qualquer coisa.
Senti a fraqueza começar a tomar conta de mim enquanto ela
balançava a cabeça, sua expressão dolorosa quando falou em um
sussurro. — Sinto muito, não desta vez. Fale com Charlotte. Se ela
entender o que está acontecendo, talvez seja o suficiente para eu chegar
até ela, mas, mesmo que não seja, preciso de ajuda com Click.
Eu balancei quando tudo mudou ao meu redor em câmera lenta, a
voz de Marlena ficando mais distante quando a escuridão me levou. A
viagem de volta foi definitivamente mais fácil do que a minha
chegada. Uma fração de segundo depois, abri os olhos e voltei ao
precipício. A desorientação melhorou mais rápido, mas a fraqueza
também era ruim nessa direção. Eu grunhi enquanto me erguia,
percebendo que Charlotte estava exatamente como a deixei, enrolada no
lençol e dormindo pacificamente.
Vê-la deitada ali enviou uma onda de derrota através de
mim. Charlotte. Não. Estava. Morta. Eu sabia que não deveria estar com
raiva, mas estava; pior, mal poderia me importar que ela pudesse
realmente ter uma chance de viver uma vida longa e feliz com George. Eu
finalmente a tinha. Aqui. Comigo. Então Marlena veio e me arrancou da
minha felicidade eterna e, em um instante, conseguiu me matar de
novo. Desesperado para sentir Charlotte novamente, me levantei e me
arrastei até a cama deslizando para o lado dela.
Ela instintivamente rolou na minha direção, moldando seu corpo
ao meu e descansando a cabeça no meu ombro. — Você está feliz? — Ela
murmurou sonolenta.
Pressionando minha boca em sua testa em um beijo duro, eu a
apertei contra mim. — Você não tem ideia, menina, — eu sussurrei, e
esse era o problema. Eu estava feliz. Eu estava tão feliz pra caralho.
Ela se aproximou e voltou a dormir enquanto eu olhava para o céu,
lutando contra o desespero e a auto piedade. Se não era a hora dela, eu
não tinha escolha a não ser deixá-la ir. De alguma forma, eu teria que
encontrar paz nisso. A coisa era, o que eu odiava admitir, era que desta
vez... eu não tinha certeza se podia.
Capítulo vinte e quatro
George

Sniper estava parado nas proximidades quando saí do elevador, a


cabeça dele pendurada enquanto falava no celular. Quando ele me viu,
levantou a cabeça e rapidamente encerrou a ligação.
— Tudo bem? — Eu perguntei quando o encontrei.
Seu olhar se afastou de mim. — Era Anna. Eu tenho más notícias.
Parei na frente dele e esperei que ele me desse às más notícias.
— Sra. Mercer — disse ele. — Ela faleceu esta manhã.
Minha boca caiu aberta. — Merda. Você está falando sério?
Sniper passou a mão pelo rosto como se quisesse limpar a
tristeza. — Eu realmente gostava daquela velhota.
Fechei os olhos e fiz uma oração silenciosa. A Sra. Mercer era a
melhor das melhores. Charlotte ficaria arrasada quando descobrisse. Os
Mercer significavam o mundo para ela. Minha mente foi para o Sr.
Mercer. Sua esposa era tudo que ele tinha, e eu sabia que ele deveria
estar esmagado. Ele ligou todos os dias com exceção de ontem. Eu sabia
que ele entenderia, mas ainda me sentia mal por não estarmos lá para
ele.
— Ele não mencionou que ela estava tão doente.
— Provavelmente imaginou que você já tinha o suficiente no seu
prato e não queria acrescentar nada a ele. Lamento ter te dado essa má
notícia, George.
Eu apertei meus punhos quando a raiva aumentou. Eu estava
impotente contra tudo o que acontecia ao meu redor, e isso era irritante.
— Anna tinha mais alguma coisa a dizer? — Eu perguntei,
determinado a empurrar através da ansiedade que estava sentindo.
— Ela queria uma atualização sobre Charlotte, é claro.
Enquanto caminhávamos em direção ao quarto de Charlotte,
ocorreu-me que não lhe perguntara como estavam as coisas entre ele e
Anna. Antes de Charlotte e eu partirmos para Nova York, ela me contou
uma conversa entre ela e Sniper que Anna ouvira. De acordo com minha
esposa, Sniper estava na casa de cachorro.
— Como está tudo? — Eu perguntei hesitante.
Ele soltou um suspiro alto como se exasperado e encolheu os
ombros, sabendo o que eu estava realmente perguntando. — Nada
bem. Eu não sei o que fazer. Eu gostaria de nunca ter dito nada, — ele
reclamou. — O assunto do casamento nunca tinha surgido antes, então
Anna ouve uma coisa estúpida que eu digo sobre isso, e agora ela está
me dando um ultimato.
Paramos em frente ao quarto de Charlotte e espiei pela pequena
janela retangular. Marlena estava de costas para nós, a poucos metros
da cama de Charlotte. Algo parecia estranho sobre o jeito que ela estava
parada, mas não parecia estar fazendo nada, então fiquei novamente em
Sniper. — Anna cairá em si, — eu disse a ele, dando-lhe um tapinha nas
costas. — Mas se você sabe que ela não é a única, como seu amigo, lhe
digo, se você se importa com ela, precisa deixá-la ir. Ela merece mais do
que ser enrolada.
Ele cruzou os braços e olhou para o quarto de Charlotte. — Eu acho
que ela é a única, — ele suspirou. — Eu não entendo porque o casamento
é a prova definitiva disso? Um pedaço de papel não vai me deixar mais
ou menos comprometido.
Dei de ombros. — Para você, talvez, mas obviamente ela pensa
diferente. Não é apenas um pedaço de papel para ela.
Ele assentiu fracamente. — Eu só não sei o que fazer, George.
Eu era o último que deveria dar conselhos de relacionamento,
enquanto minha esposa estava lutando pela sua vida do outro lado desta
porta, e daria qualquer coisa para estar no lugar de Sniper nesse
momento, mas quando se tratava de Charlotte a questão nunca foi se eu
queria casar com ela; Sempre tinha sido se ela concordaria em se
casar comigo. Por alguma razão, pensei no Sr. Mercer e no que ele deveria
estar passando nesse momento.
— Você sabe, o Sr. Mercer se casou com sua esposa um dia depois
que ela completou dezoito anos. — Eu ri um pouco, lembrando o brilho
nos olhos do velho quando ele contou a Charlotte e a mim sua história
durante o jantar uma noite. — Eles fugiram para duas cidades daqui
porque o pai dela não aprovava, mas estavam determinados. — Olhei de
relance para Sniper e acrescentei: — Ele trabalhou em três empregos até
economizar dinheiro suficiente para comprar a casa deles. Ele disse que
faria isso de novo se fosse preciso para passar o resto de sua vida com
ela.
— Eu não sabia disso, — admitiu Sniper.
— Imagine a vida sem Anna, — eu disse a ele. — Imagine uma vida
em que ela pertence à outra pessoa; ama outra pessoa. Se você pode
imaginar até mesmo um dia em que ela não seja sua, e ainda se ver feliz...
— Eu virei da janela para encontrar seus olhos. —... então deixe-a
ir. Porque se ela realmente é a única, não há como você ser capaz de
imaginar uma vida sem ela. — Abri a porta e entrei no quarto de
Charlotte, percebendo que ele não se mexeu para me seguir. Eu deixei a
porta se fechar enquanto ele permanecia onde estava, braços cruzados,
sua expressão estoica.
Capítulo vinte e cinco
Charlotte

Eu estava empoleirada em uma pedra, meus pés balançando nas


corredeiras frias enquanto observava Axel sacudir sua vara de pesca,
assassinando a arte do amado esporte. Fale sobre um peixe fora d'água,
a pesca com vara certamente não era seu forte. Ike, abençoe sua alma,
estava fazendo o melhor para guiar meu irmão tonto, sem sucesso. Não
havia uma maneira delicada de dizer, Axel era uma droga, mas como eu
era a autoproclamada irmã madura entre nós dois, mantive minhas
opiniões para mim mesma. Era, no entanto, extremamente divertido de
assistir.
— Está tudo no pulso, — disse Ike, apontando a mão para
demonstrar. Enquanto ele entrava em mais detalhes, deixei meus olhos
vagarem enquanto absorvia nossos arredores, minha mente se agitando
através de um Rolodex5 de pensamentos. Ike nos trouxe aqui, ele criou
para nós. Era o quintal da casa dos McDermott. Para Ike, a terra de sua
família era o paraíso. Suponho que, se encontrarmos um lugar assim
enquanto estivermos vivos, teremos muita sorte. Enquanto eu olhava
para o brilho da superfície da água, uma imagem de olhos escuros e um
rosto coberto com cabelo molhado olhou para mim. George, o dia em que
ele propôs. Os cantos da minha boca se levantaram quando me lembrei
daquele dia, um dos momentos mais engraçados, porém mais românticos
da minha vida. Eu tive tanta sorte de ser amada assim. Eu estremeci, a
lembrança feliz me trazendo dor.
— Você parece uma sereia sentada aí assim, — Ike falou, me
distraindo dos meus pensamentos. Eu pisquei algumas vezes para deter
as lágrimas que queimavam meus olhos e reboquei um sorriso,

5Um Rolodex é um dispositivo de arquivo rotativo usado para armazenar


informações de contato comercial. Seu nome é uma junção das palavras rolling e index.
esperando que nenhum dos dois percebesse que eu estava prestes a
chorar.
Axel lançou seu olhar entre nós enquanto sorria. — Ele está
falando sério? — Ele perguntou. — Você parece mais uma lontra molhada
para mim.
Eu chutei minha perna para fora, conseguindo jogar água nele.
— Eu acho que esta vara está torta ou algo assim, — Axel reclamou,
puxando sua vara.
— Sim, é a vara, — eu disse secamente.
— Você está indo muito bem para a primeira vez, — Ike garantiu a
ele antes de começar a explicar o que Axel precisava fazer pelo menos
pela vigésima vez. O dia estava perfeito e a companhia estava ainda
melhor, mas, por mais que tentasse, eu me sentia mal. Senti o impulso
de me mover, de me manter ocupada, acreditando que talvez isso fizesse
a inquietação que se agitava na boca do meu estômago desaparecer. Para
me distrair, tirei o relógio de bolso que mantinha comigo desde o meu
sonho. Começou a bater no momento em que abri, assim como no meu
sonho. Eu ainda não conseguia entender, não que realmente tivesse
tentado. Eu o deixei descansar em um canto da minha mente enquanto
me concentrava em tudo o mais acontecendo, mas de vez em quando
topava com isso. Quando acontecia, eu puxava o relógio e via se alguma
coisa magicamente se revelava.
Os caras pareciam estar contentes na água, então decidi visitar
Vovó por um tempo. Eu estava prestes a deixá-los saber que sairia
quando notei o menino que tínhamos visto no penhasco e no campo em
pé na costa, silenciosamente nos observando. Eu não tinha exatamente
dominado todo esse lance de metamorfose e aterrissei com um pé em
uma pedra quando tentei me transportar até ele, perdendo o equilíbrio e
caindo de joelhos.
— Merda, — eu murmurei, quando meu joelho bateu no chão.
Eu olhei para o garoto, que estava olhando para mim. — Merda, —
eu disse novamente, percebendo que tinha simplesmente amaldiçoado na
frente de uma criança.
Fechei meus olhos com força e balancei a cabeça. — Desculpe...
não diga merda. É ruim. — Eu arregalei meus olhos. Oh, pelo amor de
tudo que é sagrado, Char! Quantas vezes vou amaldiçoar na frente de
uma criança? Isso tinha que ser um recorde ou algo assim. Eu arrisquei
outro olhar para o menino, mas sua expressão ainda estava vazia
enquanto me observava.
Empurrando meu erro épico tão para trás quanto podia, me
acomodei mais confortavelmente em meus joelhos, pensando que quanto
mais perto eu estava de seu nível, mais provável seria que ele me
respondesse. Esta era a terceira vez que ele aparecia... isso não poderia
ser apenas uma coincidência. Será que ele queria que eu fosse seu guia
turístico? Eu não tinha certeza se poderia fazer isso, dado que ainda
estava aprendendo sobre esse lado.
— Olá.
Ele piscou para mim.
— Você tem um nome? — Eu tentei novamente.
Silêncio.
Embora ele não falasse e não manifestasse expressão, ele era um
garoto fofo. Eu não entendia muito bem a roupa de algodão bege que ele
usava, mas a roupa combinava com seu comportamento: distante. —
Você é um garotinho bonito, — eu tentei, mas nem sequer consegui um
rubor. Inclinando a cabeça, considerei as razões pelas quais ele não
falava comigo. Talvez ele não soubesse como? Eu lentamente tentei tocar
seu ombro, esperando dar um aperto reconfortante, mas ele recuou. Eu
vasculhei meu cérebro por algo que pudesse fazer para que ele confiasse
em mim; no entanto, não tinha certeza do por que me sentia tão
preocupada com ele, além de ter algo a ver com meus sentimentos mal
resolvidos em relação a Click. Seu olhar caiu para o relógio de bolso que
eu ainda estava segurando na minha mão e apontou para ele.
— Você gosta disso? — Eu perguntei, excitada por despertar seu
interesse por algo. Dada a sua relutância em me deixar tocá-lo, eu tinha
certeza de que ele não tiraria isso da minha mão, então o coloquei no
chão entre nós e disse: — Você pode tê-lo se quiser.
Ele o pegou, olhando fixamente para ele por um momento antes de
encontrar meu olhar novamente. — Você gosta? — Perguntei. — Meu avô
tinha um assim.
Ele desapareceu.
Eu franzi a testa, perplexa com a coisa toda. Os guias turísticos o
perderam? Ele não parecia chateado, ou desorientado. Fiz uma anotação
mental para pedir a Ike que me ajudasse a encontrar os guias para que
pudéssemos ter certeza de que alguém o estava ajudando. Eu odiava
pensar nele perdido e sozinho.
Capítulo vinte e seis
Ike

— Quem é o garoto? — Perguntou Axel, projetando o queixo na


direção da margem. Charlotte estava ajoelhada na frente do garotinho
que tínhamos visto perto do penhasco. Novamente? Por que esse garoto
continuava aparecendo? Eles estavam longe demais para que
pudéssemos ouvi-los, mas ele parecia estar interagindo com ela um
pouco mais do que nas vezes anteriores. Tão abruptamente quanto antes,
a troca terminou quando ele desapareceu. Ela olhou para o lugar onde
ele tinha acabado de estar de pé, as sobrancelhas estreitas em confusão.
— Você não o reconhece de qualquer lugar? — Perguntei a Axel sem
tirar os olhos de Charlotte.
— Nunca o vi, — respondeu Axel.
— Nós o vimos com os guias turísticos e depois ele apareceu para
nós em outro momento. É estranho que ele continue aparecendo.
— O garoto provavelmente aprendeu a se transportar antes que os
guias explicassem tudo a ele. Talvez ele esteja apenas confuso sobre para
onde deveria ir.
Eu balancei a cabeça em concordância, sem teorias
melhores. Nenhuma outra razão fazia sentido.
Eventualmente, Charlotte se levantou e se virou para nós,
levantando as mãos e encolhendo os ombros quando percebeu que a
estávamos observando. — Eu vou verificar Vovó, — ela gritou e acenou.
— Nós estaremos lá em breve! — Axel gritou de volta.
Ela se transportou, e achei que ela tinha ido embora, mas um
segundo depois ela apareceu na nossa frente, de olhos arregalados e
braços erguidos, gritando: — Boo!
Completamente surpreso, Axel perdeu o equilíbrio e caiu de bunda
no rio. — Filha da puta! — Ele grunhiu enquanto esguichava água
tentando recuperar o equilíbrio.
Eu fiz o melhor para não rir muito, embora fosse difícil, enquanto
Charlotte rugia sem pedir desculpas. — Eu sinto muito, mas tive que
fazer, — ela engasgou sem fôlego quando estendeu a mão para ajudá-lo.
Axel aceitou, mas em vez de permitir que ela o puxasse, ele puxou
seu braço, levando-a para a água e completamente sob a superfície. Ela
emergiu, o cabelo cobrindo o rosto, tossindo e cuspindo, mas soltou
um “idiota” fraco entre os ataques. Ele bateu forte nas costas dela. —
Ponha pra fora, mulher, — ele zombou.
Charlotte sentou, ainda tossindo enquanto afastava o cabelo do
rosto e olhou mortalmente para seu irmão.
— Você começou isso, — Axel lembrou, sua voz sem qualquer
resquício de remorso enquanto continuava a acariciar suas costas.
— Eu só queria assustá-lo, — argumentou Charlotte calmamente,
sua voz ainda rouca da tosse. — Você simplesmente tentou me afogar. —
Seus olhos se encontraram e eles começaram a rir, brincando de bater
um no outro, fingindo lutar.
Finalmente, Axel suspirou dramaticamente e se levantou. — Agora
eu tenho que ir me trocar, — ele reclamou antes de desaparecer.
Sua dinâmica de irmãos era incrivelmente divertida. Eles estavam
constantemente mexendo um com o outro, mas sempre com carinho e
amor. Vendo isso me fez sentir falta dos meus irmãos mais do que
nunca. — Vocês dois são loucos, — eu ri.
— Eu sei, — ela concordou. — Você nunca teve travessuras entre
irmãos com George e Cameron?
— Sim, eu acho. Nós na maioria das vezes apenas pegávamos no
pé um ao outro e nos socávamos.
Ela torceu a boca. — Eu posso ver totalmente vocês três fazendo
isso. — Estendendo a mão, ela perguntou em um falso sotaque do sul, —
Você seria um cavalheiro e ajudaria uma pobre donzela, gentil senhor?
— Seu sotaque sulista é terrível, Charlotte, — eu lhe informei.
Ela bateu os cílios e fingiu mascar um chiclete. — Então, ah, você
poderia, ajudar uma dama, pois não... — ela disse, fingindo o que poderia
ser um sotaque do Brooklyn ou Jersey, mas era tão horrível que não tinha
certeza.
— Por favor, pare antes de se machucar, — eu ri.
— Você está com inveja das minhas habilidades de imitação
excepcionais.
— Sim, é isso, — eu respondi secamente quando a levantei. Meus
olhos focados nela quando ela alisou o cabelo de seu rosto novamente. A
água permanecia em sua pele, refletindo a luz do sol nas gotas enquanto
brilhava em sua pele. O tecido de sua camisa se agarrava a ela,
acentuando cada curva perfeita de seu corpo. Ela parecia ter acabado de
sair de uma das revistas da Playboy que eu mantinha escondida no meu
quarto quando era adolescente. Minha mente voltou para a nossa noite
juntos, a quantidade imensurável de tempo que passamos explorando
um ao outro, enquanto eu traçava cada curva dela com minhas mãos,
minha boca e meu próprio corpo.
Com um grande sorriso, ela encontrou meu olhar, seus olhos
brilhando de alegria, e não tentei esconder meu desejo. Porra, ela era
linda. Ainda mais quando o tom suave de rosa cobria suas bochechas
quando ela viu o calor em meus olhos.
Enquanto ela segurava meu olhar, a necessidade de uma repetição
da nossa noite no penhasco aumentou. A sensação de seus dedos
delicados subindo pelo meu peito, sua boca perfeita subitamente curvada
em um sorriso travesso. A curva suave de seu quadril enquanto minha
mão acariciava. A pele macia no interior de suas coxas. Seu cabelo
cobrindo seus ombros, cortinando seus seios. Ela era como arte; uma
escultura viva, respirando, em movimento, que acariciava todos os meus
sentidos.
— Oh, amor jovem, — Axel zombou em uma voz cantada,
reaparecendo, interrompendo o nosso momento.
— Bem, vocês dois se divirtam, — disse Charlotte, ignorando-o. —
Eu os verei daqui a pouco. — Com um último olhar e um sorriso de
conhecimento, ela desapareceu.
Axel congelou no lugar, preparando-se para outro ataque
surpresa. Eu ri: — Acho que ela realmente foi embora dessa vez.
Relaxando, ele deu alguns passos até estar ao meu lado. — Então
você realmente faz isso por diversão? — Ele perguntou, seu tom
provocante enquanto apontava para o equipamento de pesca ao nosso
redor.
Eu ajustei minha vara e sorri. — Alguns dos melhores momentos
da minha vida foram em um rio com meu pai e irmão. Eu aprendi muito
na água.
— Oh sim? Tipo o quê?
— Bem, há o óbvio, — comecei. — Aquela história “dê um peixe a
um homem e ele come por um dia; ensine um homem a pescar, e ele
comerá todos os seus dias” era uma das frases favoritas do meu pai. Eu
devo tê-lo ouvido nos dizer isso mil vezes.
Axel assentiu. — Eu gosto disso.
— Ele era o melhor homem que eu conhecia. Ele se orgulhava de
seu trabalho e família, e superficialmente não parecia ser muito mais do
que isso, mas na água com uma vara em suas mãos, George e eu
conseguimos ver um lado dele que ele mantinha escondido da vista da
minha mãe, ou de qualquer outra pessoa, na verdade. Tomei minha
primeira cerveja enquanto pescava com meu velho. — Eu dobrei meu
pulso e observei a linha dançar sobre a água antes de puxá-la de volta. —
Ele nos contava histórias sobre perseguir mulheres antes de conhecer
minha mãe, e como depois que a conheceu, nenhuma outra mulher
serviria.
— Ele te deu a conversa sobre sexo aqui também?
Eu me virei para olhar para Axel, contorcendo meu rosto em uma
das expressões clássicas do meu pai, e na minha melhor imitação de sua
voz disse: — Rapazes, sexo é uma coisa linda. Ter filhos é uma coisa
linda. Mas se você for pego no calor do momento com uma garota, e
pensar que uma vez sem camisinha não vai te deixar em apuros, lembre-
se disso: sexo leva a bebês, e bebês levam a menos sexo. Protejam-se
sempre, ouviram?
Axel engasgou com uma risada. — Parece que ele era um cara
muito legal.
Eu balancei a cabeça e olhei para o rio. Lembrar meu pai me fez
sentir falta dele, mas eu sabia que o veria de novo algum dia. Até então,
as lembranças e o amor que ele me deu, me mantinha contente. Eu tive
sorte por ter tido um pai como ele.
Quando voltei, Axel estava segurando duas cervejas. — Eu posso
não ser bom neste show de pesca, mas cerveja... bem, eu era um mestre
em bebê-la. — Ele me entregou uma garrafa e disse: — Ao seu pai.
Peguei a cerveja oferecida, tilintando em um brinde antes de tomar
alguns goles. Quando terminamos, Axel olhou para sua bebida, sua boca
apertada. Não era difícil dizer que ele tinha algo em mente e estava
tentando decidir se queria falar sobre isso comigo. Eu não tinha dúvida
que tinha a ver com Charlotte. Voltei meu olhar para a água, contente
em deixar o silêncio continuar até que ele estivesse pronto.
Depois de vários momentos, ele finalmente falou: — Ela sempre foi
um pouco diferente, sabe?
— Ela era?
Ele bebeu sua cerveja. — Bonita. Agradável. Gostava de todos, mas
de alguma forma nunca pareceu se encaixar.
Eu inclinei minha cabeça. — O que você quer dizer?
— Como se ela soubesse como se encaixar, mas ela simplesmente
não conseguisse. Na verdade não.
Bebi minha própria cerveja enquanto trabalhava para entender o
que ele estava fazendo.
— Pelo que ela diz, ela descobriu isso na sua cidade, por sua
causa. Ela encontrou um lugar para se encaixar.
— Gostaria de pensar que foi tudo eu que fiz, mas minha cidade…
as pessoas lá são simplesmente boas pessoas. A maioria de qualquer
maneira, — acrescentei. A população de Warm Springs era pequena, mas
o que faltava em números compensava em coração, e a maioria era de
pessoas honestas perante Deus. — Honestamente, foi Charlotte. Há algo
sobre ela que atrai as pessoas. Ela foi quem as conquistou. Tudo o que
eu realmente fiz foi impedir uma garota de pular de uma ponte e apontá-
la na direção certa.
Ele ergueu o queixo, piscando os olhos interrogativamente. — Pular
de uma ponte?
Eu mentalmente me repreendi por esquecer que Charlotte tinha
deixado de fora essa parte quando explicou como nos conhecemos,
porque tinha vergonha e não queria que seu irmão a achasse fraca. Era
uma parte do passado dela, da vida dela, que compreensivelmente não
queria lembrar.
Suspirei, sabendo que não poderia colocar o proverbial gato de
volta no saco. — Ela ia se matar. Foi por mero acaso que apareci na ponte
naquela noite.
Ele passou a mão pelo rosto e suspirou: — Ela estava tão ruim
assim, hein?
Imagens de Charlotte, encharcada e vestindo uma jaqueta enorme
que estava emplastrada em seu corpo, cabelos molhados e lábios azuis
trêmulos, passaram pela minha cabeça. — Ela estava no seu limite, —
eu admiti. — Eu não gosto de lembrar o jeito que a encontrei naquela
noite.
— Ela... parece bem para você? Agora, eu quero dizer. — Axel
abordou.
Eu torci minha boca em pensamento. Antes da minha visita a
Marlena, eu teria dito sim, mas agora, sabendo o que sabia, os momentos
que achei que ela só estivesse perdida em pensamentos, agora pareciam
ser um efeito colateral de ela estar deste lado enquanto ainda estava
tecnicamente viva. E embora ela mesma não soubesse disso, talvez, de
algum modo, em um nível subconsciente, soubesse que algo não estava
certo.
— Eu acho que sim, — eu finalmente respondi, internamente me
encolhendo por quão facilmente a mentira havia saído. — Por quê?
— Eu não sei. Estamos todos tristes logo que chegamos, mas
eventualmente… nos acomodamos. Você vem a entender que as pessoas
que sente falta estarão aqui com você em algum momento. Mas Charlotte
parece... ansiosa. Ela não encontrou essa calma ainda.
Eu mascarei minha crescente ansiedade em Axel dançando tão
perto da verdade. Eu não podia deixá-lo pensar que sabia alguma
coisa. Eu não estava pronto para arriscar perdê-la, contando a verdade a
alguém. — Eu não sei, Axel. Charlotte é diferente. Talvez para alguns de
nós demore um pouco mais.
— Talvez, — ele supôs e deixou morrer o assunto, passando a
planejar um peixe assado com qualquer coisa que pegássemos. Eu fiz os
comentários esperados enquanto ele planejava, mas minha mente estava
agitada indefinidamente sobre o que fazer, quando contar a ela. Marlena
poderia me puxar de volta a qualquer momento, esperando ter respostas
sobre como ajudar Click, e embora eu soubesse que deveria estar mais
preocupado com isso, não conseguiria fazê-lo. Pela primeira vez na minha
vida, meu lado egoísta estava no controle, e eu não tinha nenhuma
intenção imediata de colocar em movimento qualquer coisa que pudesse
tirar Charlotte de mim.
Capítulo vinte e sete
Charlotte

Ike e Axel acabaram voltando para Vovó falando sobre um peixe


assado. Vovó e Axel não pareciam notar, mas as interações de Ike me
pareciam estranhas. Ele estava mais quieto do que de costume enquanto
tentava ensinar meu irmão como limpar e cortar a truta em filés.
— Você está destruindo essa truta, — informei Axel enquanto o
observava.
— Quem te ensinou a fazer isso? — Ele atirou de volta
defensivamente.
— George, — Ike respondeu antes que eu pudesse. Nossos olhos se
encontraram e ele deu um sorriso fraco. Eu não sabia dizer se ele estava
com ciúmes, ou se pensar em seu irmão só o deixava triste.
— Bem, ele tentou, pelo menos, — eu bufei. — Eu não era muito
melhor do que meu querido irmão mais velho aqui, então ele revogou
meus privilégios de cortar os filés, — lembrei. — Disse que ele não podia
me ver desperdiçar uma boa refeição. — Minha boca se levantou em um
sorriso com a memória.
— Bem, parece que você pegou o jeito agora, — observou Axel antes
de se levantar. Ike e eu colocamos nossos peixes na bandeja antes de Axel
pegá-la. — Vou levar isso para Vovó para que ela possa temperá-lo.
Minhas mãos estavam cobertas de tripas de peixe, um leve odor de
peixe no ar. Ike acenou com a mão e os restos desapareceram com o
cheiro, deixando minhas mãos intocadas. — Eu tenho que dizer, isso é
muito legal.
De pé, ele olhou para baixo e estudou meu rosto, mas não
respondeu. Algo apertou no meu peito quando vi a preocupação em seus
olhos. — Você está bem?
Quando ele estendeu a mão, eu peguei e permiti que ele me
ajudasse a ficar de pé. Ele apertou minha mão em sua bochecha e
segurou lá, seus olhos ainda fixos em mim. — Você está feliz aqui?
Sua pergunta me surpreendeu. Eu pareci infeliz?
— Eu estou, — eu disse com sinceridade. Eu estava com Vovó e
meu irmão, e mais importante, eu estava com Ike. Como não estaria?
— Existe alguma coisa que você quer falar, — ele fez uma pausa
desconfortável, — sobre a nossa noite no penhasco? — Meu estômago
caiu um pouco quando entendi. Antes que eu pudesse responder, ele se
apressou: — Eu não quis te pressionar. Eu nunca iria querer que você
fizesse algo comigo que se arrependesse.
— Pare, — eu disse a ele, levantando e segurando seu rosto em
minhas mãos. — Eu não me arrependo de nada. — Ele assentiu, mas sua
hesitação permaneceu. — O que houve, Ike? O que está preso na sua
cabeça?
Delicadamente, ele deslizou a mão atrás do meu pescoço e segurou-
a suavemente. — Na outra noite... — Ele roçou minha mandíbula com o
polegar enquanto olhava profundamente em meus olhos. — Foi muito
mais do que eu jamais imaginei. — A luxúria enrouquecendo sua voz fez
minha barriga agitar. Foi inacreditável.
Sorrindo, fiquei na ponta dos pés e pressionei minha boca na
dele. A combinação de seu peito pressionado contra o meu e o gosto de
sua língua quando ela disparou suavemente entre meus lábios fez uma
sensação de facilidade e excitação me atravessar, fazendo minhas
pálpebras tremerem. Ele despertou todos os meus sentidos, preparando-
os para entrar em ação. — Eu sinto exatamente o mesmo, Ike McDermott.
— Seus ombros começaram a relaxar. Eu não tinha percebido o quanto
ele estava tenso até que o senti relaxar.
Tomando minha mão na dele, nós caminhamos em direção à casa
da minha avó. Ele não tinha me dito o que se passava naquela cabeça,
mas decidi não pressionar. O que quer que fosse, no entanto, ele parecia
o seu antigo eu novamente.
Pelo menos achei que ele era.
Nós tínhamos dado apenas alguns passos quando ele diminuiu a
velocidade. Quando eu olhei para trás para ver por que, ele estava
oscilando pesadamente para um lado antes de desmoronar
completamente. — Ike! — Eu gritei, correndo na sua direção quando ele
bateu no chão.
Ajoelhando-me ao lado dele, sacudi seus ombros, tentando
despertá-lo. — Acorde, Ike, — eu rosnei. Mas ele já tinha partido, tudo o
que restou dele foi uma pilha mole. Meu coração se agitou em
pânico. Isso não deveria acontecer. Eu poderia ser nova nos costumes
deste lado, mas até eu sabia disso. Então, o que era isso? O que estava
acontecendo com Ike?
Capítulo vinte e oito
Ike

Eventualmente meu corpo mole encontrou o chão e minha visão


começou a clarear. Respirei fundo, concentrando-me em diminuir a
náusea antes de tentar me mexer. Uma vez que me estabilizei, eu
cuidadosamente olhei ao redor. Eu estava de costas, olhando para o teto
manchado de água, escurecido pelo tempo.
A cabeça de Marlena apareceu, uma protuberância reveladora em
sua bochecha e uma pequena vara branca enfiada no canto da boca. —
Eu te daria um se pudesse, — ela disse se desculpando antes de
resmungar — maldita náusea.
Deixei minha cabeça cair para o lado e gemi quando outra onda me
atingiu. — Por que isso me faz sentir uma merda?
— Porque não é natural.
Mantendo minha cabeça imóvel, peguei o que pude do meu
entorno. Quando eu estava prestes a perguntar para onde ela havia me
trazido dessa vez, ouvi estalos rítmicos. Eu cautelosamente rolei minha
cabeça para encarar Marlena e disse: — Você me trouxe para a Casa do
Inferno.
— Sim. A garota ainda está aqui.
Rolando como um cão gordo, me esforcei para ficar de joelhos. —
Mas por que me trazer?
— Eu estava esperando alcançar Charlotte dessa vez, e podermos
resolver essa bagunça com Click, — explicou ela. — Você contou a ela
sobre mim?
Eu abaixei minha cabeça, não querendo responder.
— Eu tomarei isso como um não. Então ela não sabe que está viva?
Eu ainda não respondi.
— Certo então. — Eu não tive que olhar para saber que ela estava
muito irritada comigo.
— Eu não estou pronto ainda, — tentei explicar.
— A náusea irá diminuir em um minuto.
Eu sentei em meus calcanhares e balancei a cabeça em sua
suposição. — Não... para deixá-la ir ainda.
A boca de Marlena apertou brevemente antes de levantar as mãos
e dizer: — Que diabo, Ike! Eu preciso da ajuda dela.
— Eu sei, droga! — Eu gritei e fiquei de pé. Marlena não se
esquivou; ela apenas me olhou vagamente como se eu fosse uma
criança. Lembrando a mim mesmo, pedi desculpas: — Sinto muito.
— Eu entendo que isso é difícil para você, Ike. Realmente, entendo,
mas...
— Oh, você entende, hein? — Eu atirei de volta, cortando-a. —
Você realmente sabe o quão difícil é?
Ela bufou ironicamente, em seguida, avançou parando na minha
frente. — Eu realmente esperava que não chegasse a isso, — ela
suspirou. Puxando o pirulito de sua boca, ela abaixou a cabeça.
Antes que eu pudesse perguntar o que ela queria dizer, de repente,
fui empurrado para longe e bati no chão. O impacto tirou o ar dos meus
pulmões, mas antes que eu pudesse me recuperar, uma mão cobriu meu
nariz e boca, obscurecendo minha visão e tornando quase impossível
respirar. Quem quer que tenha me atacado era forte, seu peso me
prendendo e respondendo facilmente às minhas tentativas de me
libertar. Tinha que ser um homem, baseado na diferença de tamanho
entre nós, mas isso não explicava porque eu não podia dominá-lo. Eu fui
treinado para lutar contra adversários maiores, mas nenhuma dessas
táticas estava funcionando.
De repente, eu estava ciente de sua mão livre, puxando minha
cueca antes de torcê-la entre as minhas pernas. Eu joguei toda a força
que tinha contra ele quando senti seus dedos se esfregarem contra a
minha carne. Eu estava desesperado por ar e aterrorizado pra
caralho. Enquanto lutava, imagens brilhavam, o rosto barbado de um
homem, o pescoço arranhado, a camisa branca suja, a gola manchada de
suor. Minha mente se esforçou para entender o que estava acontecendo
enquanto meu pânico aumentava. — Pare de lutar comigo! — Ele rugiu
pouco antes de algo contundente estar preso dentro de mim, a força
fazendo minha cabeça latejar enquanto a dor rasgava meu corpo.
Um grito estridente perfurou meus ouvidos no exato momento em
que minha visão ficou turva e lágrimas começaram a escorrer pelo meu
rosto. Um nível inteiramente novo de terror tomou conta de mim quando
percebi que tinha sido o único a fazer o som horrível, mas não tinha sido
minha voz. O caos do ataque clareou por um breve momento e finalmente
entendi o que estava acontecendo.
Eu era uma garotinha.
— Fique parada, droga! — O homem rosnou antes de me socar no
estômago. Meu corpo tentou encolher-se protetoramente, mas seu peso
o impediu. Em meu próprio corpo eu poderia ter lutado contra ele; Eu
poderia ter me defendido, mas neste corpo, eu estava impotente. Eu
queria gritar com ele, dizer-lhe para parar, mas não sabia que palavras
usar, não sabia como dizer o que queria dizer. A única coisa que pude
fazer foi gritar. Um golpe no lado da minha cabeça fez minha visão
diminuir quando a dor passou por mim, sugando meu grito. Ele me bateu
de novo e de novo... até que só havia escuridão.
Tão repentinamente quanto havia começado, acabou e meus
pulmões se soltaram, permitindo-me finalmente respirar enquanto eu
olhava para Marlena, a cabeça ainda curvada e sua postura
inalterada. Eu estava em pé na frente dela onde estava antes do ataque,
também indiferente. Ainda ofegando por ar, virei, procurando a porra do
doente, minhas mãos fechadas em punhos e prontas para atacar. Pronto
para matar.
Não havia mais ninguém lá.
— Que porra é essa? — Eu gemi com raiva enquanto as emoções
continuavam pulsando através de mim. Minha garganta queimava como
se eu tivesse gritado e lágrimas ainda escorriam pelo meu rosto. Senti-
me violado e não conseguia parar de chorar. Eu nunca senti nada tão
horrível em toda a minha existência.
Marlena ignorou minha pergunta, aparentemente não afetada pelo
meu estado atual. — Como eu disse, Ike, entendo que isso pode parecer
difícil para você, mas isso não é sobre você. Trata-se de uma jovem que
foi estuprada e assassinada e, em vez da sua morte libertar sua preciosa
alma daquele horror, deixou-a presa, sozinha no mesmo lugar em que foi
torturada, por mais de duas décadas.
Eu me curvei, me apoiando em meus joelhos enquanto absorvia
suas palavras como um golpe no intestino. — E isso foi você me
mostrando o que aconteceu com ela? — Eu perguntei em uma respiração
irregular, precisando de confirmação do que meu cérebro estava lutando
para processar.
A expressão estoica de Marlena diminuiu um pouco quando ela
encontrou meu olhar e tive um vislumbre do arrependimento que sentiu
por me fazer passar por isso, antes de assentir brevemente.
Todos os músculos do meu corpo ficaram tensos enquanto eu
repetia o que tinha visto e sentido, e a raiva aumentava. — Pooooorra! —
Eu rugi quando a raiva absoluta me prendeu com o conhecimento de que
não pude envolver minha mão ao redor da garganta do idiota que fez isso
com uma garotinha.
— Eu preciso da ajuda dela. Click precisa da ajuda de Charlotte.
E assim, senti meu peito se abrir, liberando toda a raiva e negação
que estava segurando por dentro desde que descobri que Charlotte não
estava realmente morta. Por mais que eu quisesse argumentar, Marlena
estava certa, o que eu queria, ou egoistamente achava merecer, não tinha
relação com o que precisava acontecer. — Ela está nesta casa?
Marlena empurrou a porta ao lado, deixando a luz da janela do
corredor entrar no quarto escuro, revelando uma menina andando de um
lado para o outro. Ela não parecia consciente de mim ou Marlena, ela
simplesmente olhava para frente, movendo os dedos enquanto batia
contra a parede oposta.
— Como posso vê-la? Eu nunca fui capaz de ver os outros espíritos
quando estava no limbo.
— Você não está no limbo, Ike. Não realmente... você é mais como
um visitante.
— Você sabe o nome verdadeiro dela, ou de onde ela veio?
— Não, — murmurou Marlena enquanto estudava a garotinha, —
essa foi a única lembrança que pude ter dela. — Alguns momentos se
passaram antes que ela lambesse os lábios e respirasse fundo, depois se
virou para mim e disse: — Eu gostaria que você tentasse tocá-la.
Eu arregalei meus olhos. — O quê? — Ela achava isso uma boa
ideia? A última lembrança viva que essa pobre garota tinha era de um
homem a machucando brutalmente. Eu coloquei minhas mãos na minha
frente e dei um passo para trás, não querendo adicionar ao trauma de
Click.
— Olha, nem sei se vai funcionar, mas se acontecer, talvez você
consiga puxá-la com você quando eu soltá-lo.
Marlena tinha razão, mas não gostei do pensamento de perturbar
Click. Senti seus olhos me perfurando enquanto ruminava seu pedido.
— Ike, por favor. Não saberemos se você não tentar, pelo menos —
implorou ela.
Eu esfreguei minhas mãos sobre a minha cabeça. Eu não queria
fazer isso, mas… e se funcionasse? E se eu pudesse tocá-la e levá-la de
volta? Não só ajudaria esta pobre criança, mas talvez de alguma forma
libertasse Charlotte também.
Antes que eu pudesse pensar demais, caminhei até Click e estendi
a mão para ela.
— Droga, — Marlena sussurrou quando minha mão atravessou o
ombro de Click.
— Bem, era um tiro no escuro, — eu supus. — E agora?
Marlena se afastou da porta do quarto de Click e fez sinal para eu
me juntar a ela no corredor. — Olha, eu sei sobre você e Charlotte e
George, — ela começou, — triângulo amoroso clássico... embora não tão
clássico com você estar morto e tudo. Eu entendo que esta situação é
difícil para você
— Eu duvido que você possa entender, — argumentei.
— Até onde vai o seu amor? O que você sacrificaria por amor? —
Seus olhos verdes encontraram os meus.
A imagem de Charlotte entrou em cascata pela minha mente. —
Por ela... não há limite, — eu respondi honestamente.
A boca de Marlena se transformou em um sorriso triste e suave. —
Conte-me a história de amor do Sol e da Lua, onde o Sol morre todos os
dias para deixar a Lua florescer.
Eu olhei para ela com ironia. Ela estava me citando poesia?
Ela sorriu quando percebeu minha expressão. — Eu sei que seu
amor por Charlotte é profundo. É real. Eu vejo isso. Eu sei que não é
justo como isso aconteceu, mas você sabe, no fundo, ela nunca
encontrará paz até que ajude essa criança. Charlotte tem um
propósito. Todos nós fazemos. Com muita frequência, chega um
momento em que somos solicitados a sacrificar o que queremos, ou
achamos que merecemos, para ajudar aquele que amamos. E nós
fazemos isso. De boa vontade. Porque é isso que significa amar
verdadeiramente alguém. O amor não é ser feliz para sempre, Ike. O amor
é estar disposto a sacrificar o seu próprio felizes para sempre, para que
quem você ama encontre o dela.
— Eu vou dizer a ela, — eu insisti. — Eu só... eu só preciso de um
pouco mais de tempo.
— Você não tem mais tempo, Ike. Charlotte não está morta, o que
significa que o tempo não parou para ela, ainda não, mas se ela não
souber a verdade em breve, pode não haver mais nada para ajudar
Click. Ela é a única que merece um feliz para sempre, Ike. Ela já não
esperou o suficiente? — Ela se virou para Click e colocou o pirulito de
volta em sua boca.
Eu balancei a cabeça, apesar dela estar de costas para mim. Eu
sabia que ela estava certa, e ainda assim me vi pensando que deveria
haver outro jeito, um no qual não corria o risco de Charlotte me deixar.
Como eu poderia dar adeus a Charlotte novamente?
Capítulo vinte e nove
Charlotte

Eu tinha conseguido empurrar Ike para suas costas, e estava de


joelhos ao lado dele quando seus olhos se abriram com um lampejo de
confusão que rapidamente desapareceu quando ele viu meu rosto. Ele
não esteve fora muito tempo, mas meu coração parecia que estava prestes
a sair do meu peito com pânico.
— Você está acordado! — Eu engasguei, pegando seu rosto em
minhas mãos. — Você está bem?
Ele soltou um grunhido quando se levantou.
— Você deveria descansar, — eu disse a ele. Ele fez uma careta,
claramente desconfortável, mas acenou com a mão desdenhosamente
para mim. — Ike? — Ele piscou algumas vezes antes de virar a cabeça
para mim e deu a minha perna um tapinha suave, nunca encontrando o
meu olhar. — O que acabou de acontecer?
— Eu preciso de algum tempo para digerir as coisas, — disse ele,
sua voz estranhamente rouca. — Por que você não vai até Axel e
Vovó? Vejo vocês daqui a pouco. — Ele pegou minha mão e beijou as
costas dela.
— Mas... — Ike desapareceu, efetivamente cortando meu
argumento e me deixando completamente perdida. Um sentimento
inquieto se instalou em meu estômago quando me levantei e virei na
direção da casa de Vovó.
Capítulo trinta
Ike

Axel me encontrou no rio fazendo a única coisa que eu sabia fazer


quando nada mais fazia sentido, pescar. Eu nunca entendi como isso
acontecia, mas a água sempre me acalmou, e no momento eu precisava
de toda a ajuda que pudesse conseguir. Ele se arrastou até mim e me
entregou uma cerveja.
— Charlotte te mandou procurar por mim?
— Você sabe disso, — ele respondeu antes de tomar um gole da
garrafa marrom. — Ouvi dizer que você desmaiou novamente.
— Sim, eu desmaiei, — eu disse com um aceno de cabeça, divertido
com o quão direto ele era.
Entramos em um silêncio desconfortável, ambos esperando que o
outro continuasse. Eventualmente, ele cedeu e finalmente perguntou: —
Então... o que aconteceu? Você sonhou de novo?
Eu sacudi minha vara enquanto os músculos do meu pescoço e
ombros ficavam tensos. Os sentimentos da experiência de Click que
Marlena tinha forçado a mim me deixaram com raiva de uma forma que
eu só poderia igualar a algum nível de PTSD6, e isso nem tinha acontecido
comigo. Mais do que tudo, porém, eu estava com raiva de mim mesmo
por me sentir culpado por querer que Charlotte ficasse comigo. Pela
primeira vez na minha vida eu não queria ser o bom rapaz, aquele que
sempre fez a coisa certa, e isso só piorou, especialmente quando não
havia como saber o que aconteceria quando eu lhe contasse.
Tomei um longo gole da minha cerveja e abaixei a cabeça. Eu
estava perplexo e, pela primeira vez, o rio não estava me ajudando a
encontrar as respostas que estava procurando. Talvez porque eu estava

6 O transtorno de estresse pós-traumático ( TEPT ) é uma condição de saúde


mental que é desencadeada por um evento aterrorizante - seja experimentando ou
testemunhando. Os sintomas podem incluir flashbacks, pesadelos e ansiedade severa,
além de pensamentos incontroláveis sobre o evento.
procurando as erradas. Depois de um longo momento, levantei a cabeça
e encontrei o olhar de Axel. — Charlotte não está morta.
Capítulo trinta e um
George

Meu coração saltou no meu peito quando o médico pediu que os


pais de Charlotte e eu o seguíssemos. Trocamos olhares preocupados,
mas um por um saímos do quarto de hospital de Charlotte e seguimos
seu neurologista até uma pequena sala no final do corredor.
Dez minutos depois, Tracey estava soluçando e Wayne sentado
imóvel ao lado dela, com a cabeça pendurada enquanto apertava a ponte
do nariz em uma tentativa de não chorar. Fiquei parado no meio da sala,
igualmente congelado pela notícia inesperada.
Meu mundo tinha oficialmente saído do seu eixo.
Apesar da minha determinação em acreditar no contrário, achei
que tinha me preparado ao longo dos últimos três dias para o que os
médicos poderiam nos dizer sobre Charlotte e sua condição.
Eu nunca estive mais enganado sobre algo em toda a minha vida.
Capítulo trinta e dois
Ike

Não é nenhum segredo que a morte é o mestre final. Quando


alguém próximo a nós morre, aprendemos o que realmente significa
viver. Nós aprendemos que a vida é frágil e preciosa, mas acima de tudo,
aprendemos que a vida é finita. A maioria de nós que foi tocado pela
fragilidade da vida se encontra vivendo uma vida mais plena e honesta
para apreciar melhor cada dia que temos.
No entanto, quando o nosso tempo acaba, até os melhores de nós
são frequentemente confrontados com palavras não ditas e coisas
deixadas por fazer. Para alguns, o inacabado se torna um
arrependimento quando eles percebem que não aproveitaram todas as
oportunidades. Para outros, como eu, o tempo terminou
prematuramente, deixando-nos sem a oportunidade de viver uma vida
plena sem arrependimentos.
O tempo não deveria importar aqui, e ainda assim acontece. Na
mais cruel virada do destino, o tempo importava mais para mim agora do
que quando estava vivo. Axel relutantemente concordou em me deixar ser
o único a contar a ela, mas eu sabia que não tinha muito tempo antes
que ele fizesse isso por mim. No final, eu sabia que não poderia roubar a
chance de ajudar Click, nem poderia tirar sua chance de viver sua vida
com George. O tempo era essencial. Eu não queria perder minha chance
e com tanta incerteza se, Charlotte ficaria ou partiria, parecia que era
agora ou nunca.
Ela estava sentada nos degraus da varanda dos fundos quando
cheguei, tomando um copo de chá gelado e fazendo uma careta para Rudy
enquanto ele bicava o chão. O enorme um galo notou-me antes de
Charlotte e ele veio na minha direção, balançando a cabeça como se
quisesse dizer olá. Eu poderia jurar que foi deliberado, como se ele
estivesse dizendo a Charlotte, eu não gosto de você, mas esse cara, ele é
legal. Quando Charlotte me notou, ela franziu a boca.
— O que há, Rudy? — Eu sorri. Ele inclinou a cabeça, atirando-me
um olhar antes de se afastar.
— Por que ele gosta de você e não de mim? — Charlotte
choramingou.
Eu ri. Eu não sabia por que a ave parecia gostar de mim, mas era
engraçado o quanto incomodava Charlotte. — Você está realmente
chateada com isso?
— Não, — ela bufou, em seguida, murmurou algo que soou como
um “idiota estúpido” sob sua respiração. Eu peguei suas mãos e a
coloquei de pé. Ela estava descalça e usando jeans rasgado com uma
blusa preta. Seu cabelo estava amarrado em um nó bagunçado em sua
cabeça. Estava longe dos vestidos brancos esvoaçantes que as pessoas
imaginavam que os anjos usavam no céu, mas mesmo sem o cetim e a
seda, ela parecia etérea para mim. Sua beleza era sem esforço. Ela nem
precisava tentar.
— Bem, se é algum consolo, eu gosto de você, — eu provoquei.
Ela sorriu e bateu no meu ombro de brincadeira. — Ele virá ao
redor. Todo mundo acaba gostando de mim.
— Olha quem está sendo arrogante agora, — eu zombei, em
seguida, fechei um olho fazendo o meu melhor rosto do Popeye. — Guk,
guk, guk. — Eu a cutuquei com meu cotovelo.
Sua boca se levantou de um lado enquanto tentava não rir de
mim. — A claudicação do meu irmão está passando para você?
— Rudy não acha que eu sou idiota. — Eu enfiei o polegar por cima
do ombro na direção do galo. — Ele acha que eu sou o BMOOS7
As feições de Charlotte se contorceram em confusão. — Grande
homem…
. —... do outro lado, — terminei orgulhosamente.

7 Big Man of Other Side – Grande homem do outro lado.


Ela revirou os olhos. — Sim, bem, Rudy é um galo, e você sabe o
que eles dizem.
— O que?
Ela encolheu os ombros indiferente, — Aves de uma pena, e tudo
mais.
— Oh, e eu sou o idiota, hein? — Eu ri.
— Sim, — ela confirmou. — E todo mundo acaba gostando de
mim. Eu sou incrível.
— É assim mesmo? Humm... — eu bati meu dedo contra a minha
bochecha como se estivesse pensando. — E quanto a Misty?
No instante em que o sorriso de Charlotte caiu eu soube que tinha
estragado tudo.
Ela piscou algumas vezes, aparentemente confusa pelo choque de
quem acabei de mencionar. — Não, eu acho que ela nunca gostou de
mim, huh.
Eu mentalmente me chutei por dizer algo que a deixou triste. —
Quem se importa com o que ela pensa, — eu disse enquanto procurava
desesperadamente em minha mente algo para mudar de assunto sem
tornar estranho ou perceptível.
— Você não acha... — ela fez uma pausa. — George não sairia com
ela novamente, sairia? — Antes que eu pudesse responder, ela balançou
a cabeça. — Deixa pra lá. Não responda isso. Eu sei que ele não
faria. Esse foi um pensamento idiota. Eu só estou sendo... — Ela parou
novamente.
— Ciumenta? — Eu me aventurei.
Suas bochechas coraram quando ela baixou o olhar para as mãos
entre nós. — Você sabe que nunca gostei dela.
— Ninguém gostava dela. O que aconteceu com ela de qualquer
maneira?
— Ela saiu da cidade por um tempo, mas voltou. Ela e Roger
resolveram as coisas.
— Sério? — Eu perguntei em descrença. — Ele a aceitou de volta?
— De todos os homens do mundo, Roger era o último que eu via como o
tipo que perdoava, muito menos sua namorada por traí-lo.
— Sim, foi o que ouvi. Ela nunca voltou para o
restaurante. Passamos uma pela outra na cidade algumas vezes, mas
assim que ela me vê, muda a direção. — Ela revirou os olhos, e eu sabia
que ela não podia evitar o ciúme que sentia. — Eu não desejo nada de
mal para ela, sabe. Nos anos desde que tudo aconteceu, percebi que
talvez Misty tivesse sua própria história trágica... assim como todos
temos. Não a culpo pelo que George se permitiu envolver. Nós nunca
seríamos amigas ou qualquer coisa, mas no fim da minha vida eu não
era sua inimiga. Eu só não gosto de pensar em George com ela... — Ela
balançou a cabeça, irritada com a vulnerabilidade que estava
mostrando. Ela não gostava de sentir ciúmes.
Eu gentilmente levantei seu queixo para encontrar o meu olhar: —
Ciúme é normal. Você acha que não senti isso? — Suas sobrancelhas se
levantaram em surpresa com a minha declaração. Eu balancei a cabeça:
— Você não tem ideia.
— Eu me sinto como a pessoa mais egoísta do mundo, — disse ela,
pegando meu rosto em suas mãos enquanto olhava nos meus olhos. Eu
podia ver a dor e a culpa que ela sentia. Ela odiava saber que tinha uma
parte em me fazer sentir desse jeito. — Eu não acho que poderia suportar
o pensamento de qualquer um de vocês com outra mulher.
Eu me afastei e olhei para baixo, incapaz de segurar seu olhar, seu
sentimento batendo mais perto do alvo do que eu gostaria de admitir.
— Ei, — ela disse, me puxando de volta. Encontrei seu olhar
enquanto ela estudava meu rosto. — O que há de errado, Ike?
Você não está realmente morta.
Você pode ter que voltar e me deixar.
Tudo.
Eu olhei de volta para o amor da minha vida; seus olhos cinzentos,
sua boca pequena. Eu sabia que ela nunca foi realmente minha, não
exclusivamente. Havia George, é claro, mas ainda maior do que os
gêmeos McDermott, havia todas as almas que precisavam da ajuda dela
para atravessar. Uma pontada atravessou-me quando tudo o que
Marlena dissera entrou em foco. Levou tudo em mim para não tropeçar
de verdade sob o peso disso enquanto minha resolução ameaçava vacilar.
Eu empurrei a dúvida, o medo e a culpa de volta para a caixa que
criei na minha cabeça. Eu precisava fazer isso primeiro, aproveitar a
última oportunidade na minha frente antes de deixar tudo descansar nas
mãos do destino e do tempo.
Cobri a mão dela com a minha e a pressionei na minha
bochecha. — Lembra-se daquele primeiro encontro que falamos?
Ela riu, um suave sorriso nostálgico tomando seus lábios. — Eu
lembro. Eu queria tanto isso.
— Bem, aqui estamos nós, menina. Estou pronto, se você estiver.
Seus olhos se iluminaram. — Você está me convidando para sair,
Ike McDermott?
— Encontro por emboscada, lembra? Feche seus olhos.
Sua boca se levantou em um sorriso curioso enquanto endurecia
sua espinha, inalava profundamente e fechava os olhos. — É melhor
Rudy não ser convidado para isso, — ela murmurou.
Sufoquei uma risada quando Rudy levantou a cabeça quando
ouviu seu nome. — Desculpe Rudster, você não entrou na lista. — Com
um aceno da minha mão, mudei o nosso entorno.
Capítulo trinta e três
Charlotte

— Ok, você pode olhar agora.


Quando abri os olhos, me virei, surpresa com a nossa
localização. De todos os lugares que ele poderia ter me levado, Ike me
trouxe para o quarto de motel em que fiquei quando nos conhecemos
enquanto ele estava no limbo.
Nenhum de nós falou enquanto ele me deixava absorver o
ambiente. Eu não pude deixar de sorrir apesar da pontada de tristeza que
senti quando passei a mão pelo edredom gasto. O quarto estava cheio de
algumas das melhores e piores lembranças da minha vida. Eu passei
minhas noites aqui com Ike, rindo e conspirando, então ele me observava
enquanto eu dormia. Isso me deu uma sensação de segurança, saber que
ele estava me observando, uma que eu não sentia há muito tempo, mas
mais do que qualquer coisa, me fez sentir amada pela primeira vez desde
que meu irmão morreu. Meus olhos se encheram de lágrimas com a
lembrança da última vez que tive meus olhos em Ike antes que ele
atravessasse. Nós tínhamos estado nesta cama, ambos feridos pela dor
do inevitável adeus, incapazes de nos tocar. Eu adormeci e quando
acordei... ele havia partido.
Quando meu olhar magoado o encontrou, ele estava sentado na
cadeira de couro verde onde sentou tantas noites esperando que eu
acordasse. O letreiro néon do motel do lado de fora iluminava o quarto
em vermelho, lançando um ambiente sedutor. Metade do rosto e do corpo
de Ike estava nas sombras, oferecendo apenas uma silhueta, a outra
metade era banhada pela luz quente, intensificando a luxúria acumulada
em seu olhar. Ele estava vestido com calças cinza e uma camisa preta
que mostrava seus ombros largos. Eu nunca o tinha visto vestido, exceto
pelas fotos que sua mãe tinha me mostrado dele em seu uniforme militar
azul e fotos da formatura. Algo sobre o traje deu-lhe um olhar mais
áspero e mais ousado. Ele parecia diferente... como um homem. Ele
parecia um homem antes, em seu uniforme de exército, mas vestido
assim, parecia mais velho. Longe estava o jovem ideal americano, aquele
que sempre dizia sim senhora e ajudava velhinhas a levar suas compras
para casa. Diante de mim estava um produto acabado - o homem que ele
teria se tornado se tivesse vivido.
Olhando para baixo, descobri que minha calça jeans rasgada e a
camiseta foram substituídas por um vestido preto que abraçava minhas
curvas. — Vejo que você escolheu a minha roupa também. — Eu não
precisava me ver em um espelho para saber que o vestido parecia incrível
em mim; Eu me senti linda no vestido. Meu cabelo estava frouxamente
trançado para o lado, torcido por cima do meu ombro.
De pé, ele caminhou até um pequeno carrinho de bar no canto e
serviu duas bebidas. — Eu imaginei que fornecer seu guarda-roupa era
o mínimo que poderia fazer, desde que te embosquei para esse encontro.
Eu limpei a emoção da minha garganta. — Isso não era o que eu
esperava, — admiti.
Quando ele se virou, um copo cheio de uísque em cada mão, os
cantos de sua boca levantaram em um sorriso compreensivo. — Eu acho
que estou apenas nostálgico. Aqui foi onde eu vi você nua pela primeira
vez, — disse ele, conseguindo manter uma cara séria enquanto estendia
um copo para mim.
Eu sorri. Ele nunca me deixaria esquecer isso. Seus olhos nunca
deixaram os meus quando ele levantou o copo em um brinde antes de
tomar um gole. Espelhando-o, mantive meu olhar fixo nele enquanto
tomava minha bebida de um só gole. O uísque era encorpado, o mais
suave que eu já provei, enchendo meu paladar. O calor bateu na minha
barriga, instantaneamente corando minhas bochechas com o calor.
Olhando para o meu copo, eu admiti: — Esse foi o melhor uísque
que já tomei.
Ele não respondeu quando inclinou o copo para trás, terminando
sua própria bebida. Pegando meu copo, ele voltou até o carrinho e os
largou.
Meu pulso acelerou quanto mais tempo ficávamos no quarto do
motel. Eu não podia negar, essa versão do Ike me animava, mas também
me deixava nervosa. Eu não tinha visto esse lado dele e não tinha ideia
do que ele faria em seguida.
O silêncio entre nós pareceu longo e meus nervos me incitaram a
falar. — Foi por isso que você me trouxe aqui? — Eu perguntei, uma nota
de humor no meu tom. — Para relembrar a primeira vez que você viu
meus seios?
Seu sorriso caiu quando ele olhou ao redor do quarto. — Não. Eu
te trouxe aqui por uma razão diferente.
— Que razão é essa?
Ele engoliu em seco, seu pomo de adão balançando. — Você se
lembra da noite em que Anna te pegou daqui para ir ao baile?
Se eu me lembrava disso? Estava queimado na minha memória. —
Eu lembro.
— Aquela foi a noite em que percebi que estava apaixonado por
você. — Meu coração acelerou - eu nunca me cansaria de ouvi-lo dizer
que me amava. Meus dedos coçaram, doendo para tocá-lo. Eu ansiava o
sentimento de suas mãos em mim. Eu estava desesperada para explorar
essa parte desconhecida de Ike. Eu andei em direção a ele, mas ele
levantou uma mão, me impedindo. — Você me fez uma pergunta naquela
noite, antes de sair. Você se lembra do que me perguntou?
As lágrimas que eu consegui afastar ressurgiram. — Eu perguntei
se você pudesse... você dançaria comigo?
— O que eu lhe disse?
Uma lágrima quente deslizou pela minha bochecha enquanto eu
repetia suas palavras, — Cada música do caralho.
Porra, eu queria esse homem. Aquela noite tinha sido
excruciante. Eu disse a mim mesma várias vezes para não me apegar a
Ike, eu sabia que ele estava indo embora, mas não adiantava, eu não
podia lutar contra isso. Não importa o quanto eu tenha tentado, não
podia deixar de amar Ike McDermott.
Sua mandíbula assinalou a minha resposta enquanto o calor
queimava em seus olhos. Quando eu conheci Ike quando estava viva, ele
tinha sido gentil comigo, a maneira como falava, como lidava com minha
personalidade animada. Desde que cheguei deste lado, ele não tinha sido
diferente, deixando-me ter o espaço para escolher o que aconteceria ou
não entre nós.
Este momento era algo completamente diferente.
Algo nele havia se transformado. Seu olhar não tinha nenhuma
hesitação, apenas desejo desenfreado, e eu sabia que hoje à noite não
seria nada como o amor lento e brincalhão que foi a nossa noite no
penhasco.
O ar entre nós crepitava da maneira como energiza quando o raio
está prestes a cair e você poderia sentir a correnteza ao longo de sua
pele. Uma força invisível, como uma mão firme encontrando a parte
inferior das minhas costas, me impeliu para frente, fazendo com que meu
corpo se curvasse em direção a ele, buscando a metade que faltava no
todo. Não havia dúvida: Ike McDermott era minha alma gêmea.
Ele se moveu até a cômoda sobre onde estava um toca-
discos. Colocando a agulha no vinil, o disco estalou e crepitou.
— Feche seus olhos, Charlotte.
Eu não queria.
Eu nunca quis parar de ver o jeito que Ike estava olhando para mim
nesse momento. O calor de seu olhar despertou meus sentidos, e eu
estava com medo de que se afastasse, desapareceria.
— Charlotte, — ele disse novamente, sua voz se aprofundando. —
Feche seus olhos.
Meu corpo parecia explodir com a necessidade enquanto eu
obedecia.
Ike se moveu atrás de mim quando os sons de I Love Loving You
Too Long de Otis Redding encheu a sala. Moldando seu corpo no meu,
suas mãos nos meus quadris, ele me moveu junto com ele. A música era
lenta e intensa, as palavras de um homem confessando seu amor eterno
tecendo seu caminho em meu coração, vibrando dentro de mim. O calor
da bochecha de Ike quando tocou meu rosto provocou arrepios em todos
os nervos do meu corpo. Eu relaxei contra ele, dando-lhe o meu peso, o
qual ele tomou sem perder uma batida. Uma mão foi envolvida em torno
de mim, segurando-me contra ele, a outra foi pressionada firmemente
contra mim enquanto passava sobre minhas curvas. Gentilmente, ele me
cutucou para frente e abriu o zíper da parte de trás do meu vestido,
deixando sua junta roçar minha espinha enquanto o tecido se
separava. Virando-me para encará-lo, ele recuou e enfiou as mãos nos
bolsos. Seus olhos foram para o meu corpo, depois de volta para mim. O
olhar dizia, tire. Agora. Calor lavou meu rosto. Eu nunca tinha visto esse
lado de Ike e isso definitivamente estava me afetando. Encolhendo meus
ombros, as alças do vestido deslizaram e a peça deslizou pelo meu
corpo. Eu estava usando um sutiã preto sem alças e calcinha de renda
combinando - nada mais. Nem sapatos. Ike começou a desabotoar sua
camisa, mas eu segurei suas mãos, incapaz de me conter. Eu queria
despir esse homem lindo; desembrulhá-lo como o presente que ele
era. Assumindo, desfiz cada botão antes de deslizar minhas mãos dentro
de sua camisa para empurrá-la.
A voz áspera de Otis atravessou a sala, a melodia lenta, mas de
alguma forma intensa, incitando-me a fazer mais, a sentir mais o homem
à minha frente. Ike pegou meus braços e os envolveu em volta do seu
pescoço, então puxou meu corpo para o dele. Nós começamos a balançar
novamente quando ele pressionou sua testa na minha.
— O que você está pensando agora? — Eu perguntei a ele.
Sua voz era quase melancólica quando ele respondeu: — Sobre
como o sol morre todas as noites para que a lua possa florescer.
Eu me afastei para encontrar seu olhar, procurando por algo que
pudesse me ajudar a entender o que estava acontecendo dentro dele.
— Você sabe que eu faria qualquer coisa por você, não é? — Ele
perguntou, antes que eu pudesse responder.
Eu balancei a cabeça, de repente me sentindo triste. — Eu sei, —
respondi. — Ike, é...
— Shh, — ele me calou quando me segurou mais perto. — Isso era
tudo que eu queria, — ele sussurrou.
Lentamente, os restos de roupas que usávamos desapareceram. A
música parou e nós dois estávamos nus.
Sem música.
Nós continuamos dançando.
Quando ele me beijou, nossa dança mudou, o ritmo ganhou uma
nova batida. Nós estávamos fazendo nossa própria música.
Ike foi moderado comigo, ele foi devagar, mas também
possessivo. No penhasco, tudo tinha sido doce e um pouco desajeitado
enquanto aprendíamos a geografia um do outro. Desta vez, não havia
nada de doce na maneira como ele se movia contra mim, como se tivesse
me reivindicado e marcando minha alma para todos verem.
Nada nunca pareceu tão requintado. Ele estava em cima de mim,
sua mão segurando a parte de trás da minha cabeça, meu cabelo
emaranhado em seus dedos enquanto seu corpo se esticava acima de
mim. Eu segurei-o, o abracei contra mim, minhas pernas enroladas ao
redor de sua cintura enquanto minhas lágrimas molhavam seu ombro.
— Charlotte, — ele gemeu profundamente antes de parar. Depois
de um momento, ele me apertou com força. Então se levantou e
encontrou meu olhar. Sua expressão estava em algum lugar entre prazer
e tortura. — Você está chorando? — Ele perguntou perplexo.
Eu soltei uma risada rouca. — São boas lágrimas, — prometi.
Um brilho estranho apareceu em seu olhar quando ele abriu a
boca, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa, mas se
conteve. Então, ele rolou para o lado, puxando-me com ele para que
ficássemos de frente um para o outro.
— Obrigado por isso, Charlotte. Você não tem ideia do que isso
significa para mim — ele disse, sua voz profunda. Então ele fechou os
olhos.
Havia algo lá, logo abaixo da superfície, à espreita em sua mente,
mas ele estava guardando para si mesmo. Ele adormeceu e, depois de
algumas horas, decidi dar uma volta e deixar que Ike tivesse seu tempo
de silêncio. Talvez eu fosse checar Vovó e voltasse com o café da manhã,
lembrando-me de lhe dar uma bronca por não ter sequer me comprado o
jantar antes de me levar para a cama. Eu sabia que ele riria
disso. Imaginei uma roupa e me vesti, deixando escapar um longo
suspiro enquanto saía do quarto do motel. Foi uma noite incrível. Talvez
eu finalmente estivesse encontrando paz neste lado.
Eu não podia mudar a maneira como as coisas aconteceram
comigo. Eu morri, simples assim; era hora de deixar ir. Eu tinha que
parar de me preocupar com coisas que estavam fora do meu controle. Eu
tinha que ter fé que George ficaria bem, e talvez ele encontrasse uma
maneira de ajudar Click. Eu duvidava disso, mas sabia que ele pelo
menos tentaria. Em última análise, eu precisava encontrar conforto em
saber que, não importa o que, iria vê-lo novamente. Ele se juntaria a nós
aqui neste lado um dia, e até então eu estaria com meu irmão e
vovó. Enquanto caminhava, comecei a me sentir mais leve, o peso da
minha morte que eu carregava caindo a cada passo.
Senti uma presença à minha esquerda e, quando me virei para ver
quem era, encontrei o garotinho olhando para mim. Inclinei a cabeça
enquanto o estudava; talvez ele fosse como Click de alguma forma, ele
descobriu como atravessar, só que agora que estava aqui, não sabia o
que fazer. Ele continuava aparecendo para mim porque queria minha
ajuda? Minha mente correu em todas as direções. E se minha capacidade
de ajudar almas a atravessar tivesse evoluído quando morri, e agora eu
deveria ajudar as almas perdidas deste lado? Poderia ser isso? Não
importa quão perto da paz eu me encontrasse, a imensa culpa que
carregava por não ser capaz de libertar Click sempre estaria comigo até
certo ponto. Ela foi a única alma que deixei de ajudar.
Nos meus piores dias, quando o fardo de ajudar os mortos havia
esmagado minha alma, a única coisa que me mantinha em movimento
era saber que um dia eu estaria em paz; que, uma vez que tivesse
atravessado, teria acabado de ajudar os mortos. Mas agora que eu estava
aqui, comecei a entender que a visão era míope. Talvez minha habilidade
não fosse realmente sobre os mortos; em vez disso, era mais sobre
simplesmente ajudar aqueles que estão perdidos. O pensamento não me
emocionou exatamente, mas se não pude ajudar, Click... talvez possa
ajudar essa criança.
— Meu nome é Charlotte, — eu disse.
Ele olhou fixamente para mim como sempre fazia.
— Você gosta de panquecas? — Eu perguntei. — Eu estava prestes
a ir para a casa da minha avó e comer um pouco.
Ele coçou a cabeça distraidamente, sem dar nenhuma indicação de
que entendia o que eu estava dizendo. Então ele enfiou a pequena mão
no bolso e tirou o relógio que eu tinha lhe dado.
Eu sorri: — Você ainda tem isso.
Sua pequena testa franziu enquanto o sacudia, então ele estendeu
a mão e o deu para mim. Tirando dele, eu abri e percebi que não estava
funcionando.
— Só precisa dar corda, — eu disse a ele enquanto girava o pequeno
botão. Quando começou a bater de novo, entreguei de volta para ele. Ele
inspecionou antes de sorrir para mim.
Eu fiquei chocada. Foi a primeira vez que o vi sorrir ou mostrar
qualquer emoção. — Você tem um sorriso muito bonito, — eu disse a ele,
de alguma forma cativada. Seu rostinho me fazia feliz por algum
motivo. Eu timidamente estendi minha mão para ele pegar, esperando
não assustá-lo, mas ele desapareceu. O que no mundo estava
acontecendo com esse garoto? Eu decidi que da próxima vez que o visse
eu faria sorvete aparecer. Se meus próprios amuletos não podiam
conquistá-lo, eu o subornaria. Ele tinha que gostar de sorvete. Eu
balancei a cabeça, frustrada. Olhando para o céu, perguntei: — Uma
garota não pode descansar em paz?
Eu tinha começado a imaginar a casa de Vovó, quando alguém de
repente se transformou na minha frente.
— Filho da p... — eu fechei minha boca, cortando a maldição
quando reconheci quem era. Meus olhos quase saltaram da minha
cabeça em choque. — Sra. Mercer? — Eu ofeguei.
Sua pequena boca se levantou em um sorriso. — Charlotte? — Ela
perguntou surpresa, então sorriu. Antes que eu percebesse, estávamos
nos abraçando. Dei boas vindas à familiaridade de seu abraço, mas foi
um pouco estranho da minha parte. Minha mente não tinha percebido o
que meus olhos estavam vendo.
— Você está morta? — Eu perguntei em descrença, então
imediatamente me senti estúpida pela pergunta. Obviamente ela estava,
ou não estaria do outro lado. Eu adorava essa mulher que se tornou uma
mãe substituta para mim, mas vê-la era agridoce.
— Pneumonia, — ela confirmou. — Eu não sofri, querida, —
acrescentou rapidamente, acariciando minha mão com tranquilidade
quando notou minha careta.
Lágrimas brotaram dos meus olhos e eu rapidamente as afastei. —
Seria estranho se eu dissesse que estou triste por você ter morrido, mas
é tão bom ver seu rosto?
Ela pegou minhas mãos e as segurou, seus olhos marejando
também. — Não, não seria, querida. No entanto, eu esperava que você
sobrevivesse. Fred queria fazer a viagem para te ver, mas eu estava muito
doente. — Seus olhos se afastaram. — Eu sei que ele deve ter ficado
arrasado ao saber que você não conseguiu.
Eu franzi minha testa. — Conseguir? Sobreviver? — Do que ela
estava falando?
— Bem, eu estava um pouco fora de mim nos últimos dias, mas
você estava no suporte vitalício pelo que ouvi. Eles fizeram cirurgia. Eu
me sinto mal por não podermos ter ido te ver.
Eu pisquei algumas vezes, suas palavras girando no meu
cérebro. — Eu estava em coma?
Ela assentiu. — Você estava querida. Fred disse que você não
parecia bem a última vez que te viu no restaurante.
— Mas quando você morreu, eu ainda estava no suporte de vida?
— Eu acredito que sim, querida.
A Sra. Mercer me contou sobre seus últimos dias, mas eu mal
registrei suas palavras. Minha mente estava se recuperando do que ela
disse. Nesse momento, a porta do motel se abriu e Ike saiu correndo. Ele
parou quando me viu em pé com a Sra. Mercer. Seus olhos se
arregalaram e sua boca se abriu sem palavras. Ele parecia tão atordoado
quanto eu me sentia.
Eu engoli seco enquanto as ramificações completas do que acabei
de descobrir me atingiram. Eu ainda posso estar viva. Como eu poderia
dizer a Ike que teríamos que nos separar de novo?
Capítulo trinta e quatro
Ike

Charlotte andava pela sala de estar de Vovó, mastigando a unha


do polegar, enquanto nós três assistíamos do sofá. Eu enrolei tempo
suficiente para levá-la até Vovó e seu irmão antes que confessar que sabia
a verdade e lhe contasse tudo. Agora estávamos congelados esperando
enquanto ela processava a notícia.
— Fale conosco, mana, — Axel finalmente disse, quebrando o
silêncio tenso.
Charlotte parou e olhou para ele. — Eu a senti... Marlena, — ela
esclareceu. — Eu a senti tentando me alcançar.
— Você sentiu? — Eu perguntei.
— Eu não sabia que era ela, quero dizer, como poderia, mas... sim...
— ela disse, parando. — Ela me chamou em sonhos, e algumas vezes
senti algo me puxando. Eu achei que estava tudo na minha cabeça.
Vovó limpou a garganta. — Charlotte? Você está bem?
Os ombros de Charlotte caíram antes de suspirar. — Confusa. —
Ela cortou seu olhar para Vovó. — Por que isso está acontecendo?
Vovó suspirou e apertou a boca em uma linha fina e plana. Ela não
tinha uma resposta; nenhum de nós tinha.
— Ela vai tentar falar com você de novo, Charlotte, — expliquei. —
Em breve. Ela acha que se você abrir sua mente para isso, ela será capaz
de se comunicar com você.
Charlotte bufou. — Ótimo.
Eu me levantei, caminhando na direção dela com a intenção de
confortá-la, mas ela levantou a mão para me impedir antes de dar um
passo. — Eu preciso de algum espaço.
Eu esperava que houvesse consequências por esconder a verdade
dela, mas isso doeu amargamente, e precisei de um momento para me
recuperar do golpe antes de voltar para o meu lugar no sofá. Vovó deu à
minha perna um tapinha simpático.
O olhar conflituoso de Charlotte encontrou o meu e eu me preparei
para a palestra que merecia, mas nada veio. — O que ela quis dizer com
abrir minha mente? Apenas acreditar que estou viva?
— Eu não sei, — eu respondi honestamente. Marlena não havia
dado nenhuma dica; embora, para ser honesto, eu não estivesse
exatamente de bom humor para escutá-la. Charlotte agarrou seus
cabelos como se estivesse oprimida por tudo isso. Cristo, eu sou um
idiota. Tudo pelo sol morrendo pela lua...
— Basta abrir minha mente, — ela murmurou.
No segundo em que levantei a cabeça para olhar para ela, ela
desapareceu. Todos na sala congelaram, nossos olhos se movendo ao
redor para ver se ela reapareceria.
Depois de alguns momentos, Axel disse: — Você tenta primeiro. —
Ele aparentemente teve o mesmo pensamento que eu, e ambos tentamos,
sem sucesso, nos transportarmos até ela. — Talvez não possamos ir com
ela ao mesmo tempo, — acrescentou.
Eu me imaginei ao lado dela como sempre fazia, mas nada
aconteceu. Eu balancei a cabeça, o pânico aumentando depois que Axel
tentou e também falhou. Não, não assim! Meu estômago revirou com a
possibilidade de que tínhamos acabado de ver Charlotte deixar a vida
após a morte.
Eu enterrei minha cabeça em minhas mãos, com medo de ser
consumido enquanto meu maior medo parecia estar se desenrolando na
minha frente. Eu nem sequer consegui me despedir dela. A última coisa
que ela lembrava era que escondi um enorme segredo dela.
— Talvez Marlena tenha a convocado, — sugeriu Axel, esperançoso.
Vovó sacudiu a cabeça lentamente: — Ike nunca desapareceu
quando ela o convocou; ele ainda estava fisicamente aqui.
O silêncio atordoado se prolongou quando cada um de nós absorvia
nossa nova realidade. Charlotte. Foi embora.
— Vovó? — Axel perguntou baixinho, sua voz carregando um eco
de esperança de que estávamos errados.
— Não há como saber, — disse ela. — Tudo o que podemos fazer é
rezar para que ela esteja bem. Isso é tudo que importa.
— Mas ela iria? — Ele perguntou. — Nos deixaria?
Eu levantei a cabeça de minhas mãos com sua pergunta,
procurando por qualquer sinal de esperança em sua expressão, mas tudo
que eu vi foi um pedido de desculpas. Sua voz estava cheia de simpatia
quando ela encontrou meu olhar e disse suavemente: — Se ela puder, ela
deveria.
Meu coração se despedaçou quando bateu no chão.
— Ike, querido, — disse Vovós quando se moveu na minha frente e
pegou minhas mãos nas suas, apertando suavemente para que eu
encontrasse seu olhar. — Eu estive esperando a minha alma gêmea se
juntar a mim por muito tempo, então mal posso imaginar como seria
finalmente tê-lo aqui, só para perdê-lo novamente, mas eu sei que nunca
iria querer mantê-lo aqui se não fosse a hora dele. Nós realmente não
sabemos se esta é a hora de Charlotte, mas se não for, você realmente
quer roubá-la da vida que ela deveria viver? — Ela apertou minhas mãos
antes de continuar. — Charlotte é especial, e seu dom obviamente tem
um impacto, então pode não haver nenhuma escolha nisto para ela fazer,
mas por mais que a desejemos conosco, se ela for abençoada com a
oportunidade de voltar à vida e envelhecer, ela deve aceitar.
Vovó estava certa, mas, em meu egoísmo, tudo o que conseguia
pensar era o quanto isso era injusto. Foi por isso que tive medo de lhe
contar, eu sabia que havia uma chance de ela simplesmente sumir, e
nem sequer poderíamos nos despedir.
— Uísque, — disse Vovó abruptamente enquanto alisava a saia de
seu vestido. Axel e eu olhamos fixamente para ela, estupefatos. Ela
assentiu categoricamente, como se estivesse resolvendo uma polemica
desconhecida, depois pegou nossas mãos e puxou Axel e eu atrás dela.
— Uísque, — ela disse novamente em um longo suspiro. — Muito
uísque.
Capítulo trinta e cinco
Charlotte

Eu limpei as mãos úmidas na minha calça e engoli o nó seco na


minha garganta. Por que eu estava com tanta sede? Lentamente, me virei,
reparando na sala. Não importava que eu soubesse para onde estava indo
- ou melhor, para onde estava tentando ir - o choque de ver meu próprio
corpo deitado imóvel em uma cama de hospital me atingiu como um balde
de água gelada. Eu tinha ouvido falar de experiências fora do corpo, mas
nada poderia realmente preparar uma pessoa para um momento como
este.
Meu olhar percorreu a sala, descrença picando meus sentidos. Meu
pai estava de frente para a janela com os braços cruzados. Pelo seu
reflexo no vidro, pude ver que seus olhos estavam fechados e seus lábios
se moviam, e percebi que ele estava rezando. Eu me esforcei para ouvir o
que ele estava dizendo.
Perdoe-me. Por favor, não a leve. Ela é a única criança que me
resta. Tenha piedade.
Ele estava sofrendo. Estavam estampados em seu rosto, vincos de
preocupação e medo afilados nos cantos de seus olhos. Meu coração
amoleceu e um pouco da dor que eu ainda sentia escoou. Mesmo com
nossas diferenças, eu nunca lhe desejaria sofrimento. Minha mãe estava
sentada em uma cadeira ao lado da minha cama, segurando minha mão,
limpando o nariz com um lenço de papel que já havia caducado cerca de
sete mil expirações antes.
Então eu vi George, meu lindo marido. Ele estava caído contra a
parede, como uma triste pintura descartada, fora do caminho, mas ainda
lançando seu desespero sobre a sala, aumentando o ambiente
incrivelmente triste.
— Os resultados do seu último EEG nesta manhã não mostram
nenhuma mudança em relação ao seu anterior. Enquanto isso é uma
indicação de que ela está estável, também não há indicação de que vai
sair do coma. — A declaração veio de um médico que eu não tinha visto
em pé no canto da sala. Ele parecia igualmente exausto, os círculos
escuros sob seus olhos claramente visíveis atrás dos grossos óculos de
armação preta empoleirados em seu nariz estreito.
— Faz apenas alguns dias, — meu pai resmungou.
— George, — disse o médico, ignorando meu pai. — Você se lembra
de que discutimos a importância de ver melhorias durante as primeiras
setenta e duas horas após a cirurgia. O fato de termos conseguido reparar
o aneurisma antes que ele rompesse, e os exames subsequentes sem
indicação de sangramento, lhe deram algum tempo, mas não temos como
saber os efeitos cumulativos do aneurisma que pressiona seu cérebro. No
cenário improvável em que ela acorde, ela terá deficiências cognitivas e
mentais, algumas das quais podem ser permanentes. Mesmo na melhor
das hipóteses, ela exigirá ampla reabilitação e cuidados paliativos. Na
pior das hipóteses, ela será totalmente dependente de assistência médica
com pouca ou nenhuma qualidade de vida.
— Nós cuidaríamos dela, — minha mãe choramingou.
— Sim, nós o faríamos, — meu pai confirmou.
Meu peito se contraiu e a raiva me deu um soco. Eles estavam
falando sério? A filha deles vendo espíritos era muito assustadora para
eles, tanto que me mandaram embora, mas estavam todos afirmando que
me cuidariam quando eu literalmente não seria capaz de cuidar de mim
mesma? Eu não podia acreditar que eles me deixariam acordar e viver
como um vegetal. Que tipo de vida seria essa? Eu sabia que era a única
filha que lhes restava, e eles não queriam me perder, mas era ridículo.
Olhando de volta para George, eu esperava poder ver onde estava
sua mente. — George! — Eu chamei por ele. Claro que ele não podia me
ouvir, mas isso não me impediu. — Não deixe que isso aconteça comigo,
George, — eu implorei. Ele deixou a cabeça cair para frente ficando
frouxa. A dor o tinha despojado. Ele ainda se parecia com George, olhos
castanhos e cabelos desgrenhados, mas essa provação cobrou seu preço
e ele parecia mais com o homem que conheci anos antes, quando estava
de luto pela perda do irmão, do que o homem que ficou ao meu lado
pronto para conquistar o mundo há pouco tempo atrás.
Depois de um momento, o médico suspirou e se virou para
George. — Olha, não estou dizendo que você tem que decidir neste
minuto. No entanto, pela minha experiência, já cruzamos a linha e as
chances estão agora contra nós, e ela vai começar a se deteriorar. O corpo
não foi construído para resistir à intervenção médica prolongada, e você
precisará decidir se deseja ou não continuar o suporte de vida muito em
breve.
Minha mãe soltou um soluço quebrado antes de fugir do quarto e
meu pai saiu correndo atrás dela.
— Tire algum tempo para digerir tudo isso; Eu sei que há muito a
considerar. Eu mandarei o assistente social que é especializado em
ajudar as famílias a tomar essa decisão ainda hoje com mais informações.
— Ele deu um tapinha no ombro de George e saiu da sala.
Agora que estava sozinho, George pareceu esvaziar, o último
pedaço de esperança que o segurava escapando dele. Seu rosto estava
coberto de pelos que ele não barbeava há dias e seu cabelo estava
desgrenhado. Ele contornou a cama, desabando na cadeira da qual
minha mãe havia fugido e deitou a cabeça ao meu lado na cama. Ele
puxou minha mão ao meu lado e posicionou-a em sua cabeça, do jeito
que eu fazia quando ele se deitava no sofá e colocou a cabeça no meu
colo. Ele ficou imóvel por alguns minutos, então seu corpo começou a
convulsionar quando os soluços foram arrancados de dentro dele.
Agonia atravessou-me ao ver sua dor. Correndo até a cama, eu me
lancei em direção a ele sobre meu corpo sem vida e gritei: — Eu te amo,
George McDermott. — Sua cabeça levantou abruptamente, e ele olhou
diretamente para mim, seus olhos inchados e vermelhos. Eu congelei,
atordoada. Ele tinha me ouvido?
Alguns segundos se passaram e seu olhar caiu. Ele puxou minha
mão para os lábios e beijou meus dedos. — Eu não sei como fazer isso,
Charlotte, — ele disse antes de engolir em seco.
Mais do que tudo, eu queria abraçá-lo, consolá-lo. — Você não pode
se inscrever para uma vida cuidando de mim, querido. Você tem muito
para dar, George. — Eu sabia que ele não podia me ouvir, mas tinha que
lhe dizer essas coisas. Em algum lugar no fundo da minha mente, vi a
imagem que tive em nosso hotel dele escovando o cabelo de uma
garotinha... o cabelo da nossa menina. A gentileza que ele tinha com ela,
o amor e a adoração em seu sorriso... era lindo. — Sinto muito, não poder
lhe dar ela, George. — As lágrimas caíram, escorrendo pelo meu rosto. —
Uma garotinha com meus olhos e seu cabelo. Você merecia isso. Eu sinto
muito por ter saído sem você naquele dia. Eu nunca deveria ter te
deixado. Por favor, — eu solucei. — Por favor, me perdoe, George.
A porta do meu quarto de hospital se abriu e uma mulher magra
de olhos verdes entrou, graciosa e calma. Quando seus olhos
encontraram os meus, seu passo vacilou, mas ela rapidamente se
recuperou e continuou se movendo. Se eu não tivesse passado tantos
anos fazendo a mesma coisa sempre que via um espírito, não teria
notado, mas sabia que ela tinha me visto. Com base no que Ike me disse,
essa tinha que ser Marlena.
— Eu preciso falar com você, — eu disse a ela sem preâmbulo. Suas
características faciais enrijeceram por uma fração de segundo, mas essa
foi toda a resposta que recebi.
— George, amor, — ela disse, seu sotaque forte que eu tinha ouvido
no meu sonho. — Eu vou sair um pouco, dar a você e sua família algum
espaço. Existe alguma coisa que eu possa te trazer enquanto estiver fora?
George balançou a cabeça enquanto lançava um olhar
apreciativo. — Não. Mas obrigado.
Marlena assentiu e saiu do quarto. Olhei ansiosamente para
George, desejando poder consolá-lo. Eu odiava deixá-lo nesse estado.
Eu amava Ike e George igualmente, mas sabia que não era
suficiente. Mesmo que a minha vida, e a existência em geral, nunca
tivesse realmente cabido em uma caixa de regras, de alguma forma não
achei que me deixaria ter duas almas gêmeas na vida após a morte.
Eu revirei meus olhos para mim mesma. Como isso funcionaria?
Comecei a sacudir esse pensamento, mas parei. Como teria
funcionado se Ike não estivesse morto quando o conheci? Eu teria me
apaixonado pelos dois homens? Minha alma estava ligada a Ike, eu sabia
disso sem sombra de dúvida. Estar com Ike não era uma opção enquanto
eu estava viva, mas foi essa a única razão pela qual me apaixonei por
George?
Olhei para baixo e vi que George devolveu minha mão ao seu
cabelo, e isso desencadeou todas as lembranças da nossa vida juntos, e
eu sabia que estava tão ligada a George quanto a Ike. Talvez não fosse
sobre almas gêmeas quando se trata de com quem você está depois de
morrer, não de verdade. Talvez seja mais sobre amar alguém com todo o
seu coração, e apreciar cada momento que tem, quando os tem, porque
não há garantia de quantos mais momentos você terá em sua vida.
— Você, George McDermott, é o amor da minha vida, e sempre será.
— Sussurrei para ele. — Não importa o que aconteça. Eu te amo.
Decidida a não ser dominada pelo desespero que sentia, fugi do
quarto e segui Marlena, pronta para enchê-la de perguntas assim que
estivéssemos no corredor. Parei abruptamente ao ver mais das minhas
pessoas favoritas paradas do lado de fora do meu quarto. Meus sogros
estavam sentados de mãos dadas em um banco, suas cabeças
unidas. Cameron estava no final perto deles, olhos fechados com a
cabeça contra a parede. Sniper apoiado à parede, mexendo no celular. E
o doce Sr. Mercer sentado em frente aos McDermotts, olhando fixamente
para frente. Ele tinha acabado de perder a esposa e ainda viajou até Nova
York para me ver. Meu estômago se apertou. Ike havia descrito quão
terrível era estar no limbo e ver sua família chorar, e agora eu sabia como
se sentia. Isso era insuportável.
Uma mistura de desespero e derrota revestia todas as suas faces.
— Eu vou sair um pouco, posso trazer algum café ou comida para
vocês, ou algo assim? — Marlena perguntou ao grupo. Todos
agradeceram, mas recusaram. Marlena olhou rapidamente para mim
antes de se dirigir aos elevadores. Eu entendia como era frustrante ter
uma alma falando com você quando não podia revelar aos outros que a
estava vendo, então esperei até que as portas do elevador fechassem
antes de falar de novo.
— Olá, Marlena, — eu disse simplesmente, esperando ignorar a
usual ladainha e chegar ao assunto.
— Acho que você descobriu tudo, não é? Eu estava preocupada que
Ike não lhe contasse — ela disse quando apertou o botão para nos levar
ao saguão.
— Tecnicamente, ele não contou. Eu acho que iria, mas alguém
chegou antes.
Ela bufou. — Bem, você apareceu no momento perfeito. Eu acho
que você estava lá para o pequeno “puxar o plugue”?
Eu recuei levemente, surpresa com sua franqueza. — Ike
mencionou que você era psíquica também. Acho que isso significa que
pouca coisa é um choque para você.
Ela balançou a mão de um lado para o outro. — Ainda posso me
surpreender. Quando vejo eventos futuros, geralmente são apenas
vislumbres do que poderia acontecer, desde que nada aconteça para
mudar alguma coisa, algo que normalmente acontece. Acabei fazendo
isso por tempo suficiente para reconhecer os padrões — ela acrescentou
com um sorriso irônico, e eu sabia exatamente o que ela queria dizer. Ela
cruzou os braços como se estivesse com frio e disse: — Bem, vamos em
frente?
— Com o quê?
— A garota.
— Eu tentei, — eu bufei em derrota, percebendo que ela queria
dizer Click. — Eu achei que tinha descoberto. Senti a mudança nela e vi
em seus olhos, mas ela não entende. Não acho que ela saiba atravessar.
Saímos do elevador e do hospital. Marlena parou em um carrinho
de rua, comprou um café e sentou-se em um banco.
— Nós não deveríamos ir? E se você perder sua conexão comigo?
— Impossível, — ela murmurou antes de retirar a tampa do copo e
soprar o líquido. — Eu não tenho conexão com você.
Eu estreitei meu olhar para ela. — Então, como estou aqui?
Ela estremeceu quando tomou um pequeno gole, o café ainda
estava quente demais para beber. — Você se trouxe aqui. Por que diabos
eu iria convocá-la e colocá-la em um quarto no qual eu nem estava? —
Ela zombou como se eu fosse simplória.
Minhas sobrancelhas levantaram em surpresa. Eu atravessei
sozinha? No momento, só pensei em abrir a mente e ir para o hospital,
mas percebi que fora o alcance de Marlena que realmente me puxou para
lá. Sabendo que eu tinha feito isso sozinha, e sem perceber que tinha
feito, na verdade me assustou um pouco.
— Diga-me o que você fez... com a menina, — disse Marlena.
Sentei-me ao lado dela no banco e suspirei: — Eu acho que ela é
autista. E ela gosta de piano... é por isso que ela mexe os dedos. — Eu
levantei minha mão e imitei Click. — Fur Elise é sua música favorita. Eu
toquei para ela no meu celular e ela adorou. Esse foi o dia em que tive a
coisa na cabeça.
— Eu sei. Eu vi. George continuou tocando aquela composição de
piano horrível para você no seu quarto de hospital.
Eu estreitei meu olhar para ela. — Ele fez isso?
— Encontrei no seu celular e achei que você gostasse… porque você
tocava piano. Eu ainda não tinha visto porque estava no seu telefone até
eu ir até a Casa do Inferno.
Eu mudei meu olhar para frente, meus olhos borrados de
lágrimas. Eu ouvi a música. Eu o ouvi tocar para mim do outro lado. Ele
estava comigo o tempo todo. A culpa deslizou através de mim. Como não
percebi?
Marlena abaixou a cabeça. — Seu último dia viva... foi terrível.
— Você viu isso? As outras duas garotas que encontrei lá... —
minha garganta ficou seca. — Elas descreveram algumas coisas terríveis.
— Ela precisa da nossa ajuda.
Lágrimas transbordaram e correram pelo meu rosto quando pensei
em Click. Eu não queria entender nada pior do que já tinha imaginado
por conta. — É tão injusto. Como isso aconteceu? Como Deus deixou isso
acontecer, e então a deixou sozinha e no escuro?
Marlena inclinou a cabeça. — Ou talvez Deus a tenha enviado para
ajudá-la.
Eu limpei meu rosto, minhas feições se contorcendo em
desacordo. — Exceto que não a ajudei.
Marlena sorriu enquanto se levantava e eu a segui quando ela
começou a andar. — Ao contrário de você, meus dons me chegaram
cedo. Eu realmente não sei se nasci com eles, ou se algo que aconteceu
comigo desencadeou isso.
— Aconteceu algo com você?
— Minha mãe sofria de esquizofrenia. Eu era muito jovem para
entender o que estava acontecendo e ela absolutamente me aterrorizava.
— Eu fiz uma careta, entendendo como ela se sentia. — Ela tentou me
afogar na banheira quando eu tinha quatro anos, porque as vozes lhe
disseram isso.
Eu me encolhi. Minha situação parental não parecia tão ruim
comparada à de Marlena.
— Minha mãe era britânica, meu pai é americano. Minha mãe se
matou depois que ele me levou para longe dela.
— Isso é horrível, Marlena. Eu sinto muito.
— Tente ver o espírito de sua mãe, aquela que acabou de tentar
afogá-la, e não entender o que diabos estava acontecendo. Eu sabia que
ela estava morta antes mesmo deles encontrarem o corpo dela. —
Marlena se afastou para o lado para deixar um casal com um carrinho
de bebê passar por ela na calçada. — Isso exigiu um pouco de terapia, —
brincou ela.
— E seu pai... como eram as coisas com ele? — Fiquei um pouco
impressionada com o quão ansiosa estava para saber se ele negara a
possibilidade do dom de Marlena como meu pai tinha feito?
O sorriso no rosto dela era nostálgico, e eu poderia dizer que seu
pai era muito querido antes dela confirmar. — Oh… ele foi
maravilhoso. Ainda é. Ele mora na minha rua.
Desviei o olhar para que ela não visse o ciúme que eu sentia.
— Nós vivemos na América por um tempo. O verão em que fiz 13
anos foi um ano ruim para mim. Eu era tão diferente, não tinha
amigos. As crianças são horríveis. Ninguém me entendia, e isso os
deixava com medo de mim. — Marlena levantou o olhar e vi uma dor
familiar através do brilho em seus olhos. Se pudesse tocá-la, eu teria. Eu
senti tudo o que ela estava descrevendo. Como uma pessoa deve se sentir
especial, ou apreciar uma habilidade ou um dom único, quando o mundo
o exclui e rejeita você?
— Eu decidi que ia acabar com a minha vida. Conto trágico de tal
mãe, tal filha. — Ela cortou os olhos para mim e de repente a calçada, a
rua e as pessoas que passavam desapareceram, e eu estava em um posto
de gasolina confusa e desorientada. — Eu acho que meu pai sentiu que
algo estava errado. Acho que ele sabia que eu estava realmente lutando.
— Eu pulei quando percebi que Marlena estava ao meu lado no posto de
gasolina.
— O que é isso? — Eu perguntei. — O que está acontecendo?
— Aquela sou eu, ali mesmo, — ela apontou. Eu segui seu dedo até
uma jovem garota com longos cabelos negros, trançado nas costas. Ela
usava um suéter amarelo com tênis ultra brilhantes. — Meu estilo
obviamente mudou bastante.
Eu balancei a cabeça em concordância. Não havia como negar isso.
— Naquele verão ele me levou para a Carolina do Norte. Dirigindo
de Jersey e paramos neste posto de gasolina. — Ela olhou ao redor, um
sorriso suave em seus lábios enquanto esticava o pescoço ao redor da loja
enquanto falava: — Foi na fronteira Virginia / Carolina do Norte, — ela
pareceu encontrar o que estava procurando e se virou naquela direção. —
Havia uma grande linha vermelha que passava pelo posto de gasolina, e
se você colocasse um pé de cada lado, estaria em ambos os estados ao
mesmo tempo.
Paramos ao lado da gigantesca linha vermelha e observamos a
jovem Marlena e seu pai. Eles estavam rindo enquanto pulavam de um
lado para o outro.
— Continuamos pulando de um lado para o outro até que ele me
parou e se ajoelhou, me olhando nos olhos.
— Coloque os dois pés na linha, Marlena, — disse papai.
Ela seguiu suas instruções, sua expressão insegura do que ele
estava fazendo.
— Agora olhe para a sua esquerda.
Ela olhou.
Ele apontou para o lado esquerdo da linha. — Aquelas pessoas
estão deste lado. Agora, olhe para a direita. — Marlena obedeceu, com um
sorriso envergonhado no rosto ao notar outras crianças da sua idade os
observando. Seu pai apontou para o lado direito da linha: — Aquelas
pessoas estão do outro lado. Agora olhe para baixo, — ele disse.
Marlena olhou para baixo.
— Agora olhe para mim, Marlena. — Ela levantou o rosto e encontrou
seu olhar. — Você não é um dos lados. Você é o que está no meio.
— Eu não quero estar no meio.
Marlena pareceu congelar a memória antes de explicar: — Eu
imediatamente me fechei porque ele estava apontando que eu era
diferente e eu odiava isso. Eu odiava Deus ter me feito diferente, que
Ele me fez de um jeito que significava que eu nunca me encaixaria. — A
lembrança recomeçou.
— Marlena... você é especial. — Um sorriso amoroso capturou as
feições de seu pai enquanto ele olhava para sua jovem filha. — Você não
entende... que de todas as pessoas do mundo, você é uma das poucas
escolhidas para ajudar.
— Como eu ajudo? — Ela perguntou irritada.
— Porque cada vez que você se comunica com uma alma para
alguém, está lhes dando paz. Você está lhes mostrando que há mais nessa
vida, que todos continuamos. Isso é uma coisa linda, Marlena. Você é um
belo presente.
Tomando-a pelos ombros com um aperto firme, ele deu-lhe uma
pequena sacudida. Sua expressão mudou quando ele olhou para ela, o
medo atado em suas feições. — Nunca duvide disso. Nem por um
segundo. Mesmo quando for difícil e você estiver sozinha, nunca se
esqueça de como é especial. Não desista nunca.
Num piscar de olhos, estávamos de novo na rua em Nova York,
como se não tivéssemos estado em algum outro lugar e horário. Eu parei
em estado de choque. — Como você faz isso? — Eu perguntei,
completamente desnorteada. — Como me fez ver isso?
Marlena não parou e eu corri atrás dela para alcançá-la. Quando
me aproximei dela, ela deu de ombros: — Quando a mente está aberta à
possibilidade de algo mais, está disposta a ver mais.
Eu realmente não entendi como ter uma mente aberta poderia me
fazer reviver sua própria memória, mas estava admirada. Parecia que eu
estava realmente lá, vendo aquilo. A experiência de sonho de Ike na Casa
do Inferno fazia mais sentido agora. Balançando a cabeça, voltei ao
assunto principal: — Às vezes parece uma maldição.
— Tudo acontece por um motivo, Charlotte. Eu acredito que não
há acidentes. Deus pode permitir que coisas ruins aconteçam, mas
também nos prepara para as coisas boas.
Nós estávamos em pé na frente da Casa do Inferno agora, olhando
para a casa misteriosa. Não faz muito tempo que vi os rostos de duas
menininhas olhando por trás das janelas manchadas de sujeira. Uma
ladainha familiar rolou pela minha cabeça sem ser convidada: Diana e
Mary tinham atravessado. Eles estavam em paz. Por que Click não ia
também? Por que Deus me deixou ajudá-las, mas não a ela?
Marlena subiu os degraus até a varanda, parando na frente da
porta, de costas para mim. — Você já pensou em como acabou
aqui? Como você aleatoriamente andou nessa direção e acabou aqui, em
frente a esta casa, onde três garotinhas esperando para serem soltas?
Eu me juntei a ela na varanda. — Não, acho que não. — E, claro,
agora que havia sido tão descaradamente apontado, as chances de que
isso tivesse acontecido por puro acaso eram risíveis. Éramos quatro
turistas andando por uma cidade desconhecida, um dos quais era ex-
militar com uma consciência situacional assustadora, então como
nenhum de nós percebeu que estávamos indo na direção errada?
— Você estava destinada a encontrar este lugar para que pudesse
ajudar Mary e Diana. — Ela entrou na casa e se virou para esperar por
mim.
Eu apreciei sua dedução, mas isso ainda não respondia por que fui
capaz de ajudar duas garotas e não Click. Eu me preparei para o ataque
de Agnus e segui Marlena para dentro.
— Não se preocupe, ela não pode ver você, — explicou ela quando
olhei para o canto onde Angus estava, olhando para Marlena.
— Por que ela não avança em você? — Eu perguntei. — Ela nunca
me deixou entrar sem praticamente destilar seu veneno em mim.
— Eu lhe mostrei para onde ela vai se atravessar, — Marlena
respondeu claramente, olhando para Agnus. — Ela prefere ficar
aqui. Esta casa não é nada comparada ao que a aguarda.
— Inferno? Você viu isso?
Marlena olhou para mim, seu olhar direto e frio. — Mostrei a ela
sua própria visão do inferno. O lugar que ela mais teme.
Enquanto subíamos a escada e seguíamos para o quarto de Click,
olhei novamente para Agnus. O ar altivo e poderoso que ela carregava
todas as outras vezes que estive aqui tinha desaparecido, e agora tudo o
que restava era uma criatura petrificada deixada para sofrer sozinha. Eu
não senti nada por ela. Permanecer aqui nesta casa era mais do que ela
merecia. Quando Marlena e eu chegamos ao quarto de Click, nenhuma
de nós ficou surpresa ao encontrá-la andando, movendo os dedos e
repetindo sua palavra favorita.
— Ela não foi esquecida, Char. Ela tem um lugar na vida após a
morte.
— Então me diga como? Você é quem vê o futuro. — Eu estava
frustrada. Ela fazia soar tão simples.
Imperturbável, Marlena puxou seu celular e tocou na tela, virando-
a para me mostrar o vídeo de Beethoven que reproduzi para Click antes
de dizer: — Talvez ela não saiba como ir… alguém tem que levá-la. —
Encontrei seu olhar, uma compreensão pesada me cobrindo enquanto
ela continuava, — Você se trouxe aqui, Char. Não eu, lembra? Você está
aqui para que possa levá-la de volta com você para o outro lado.
Uma imagem apareceu diante de mim. Eu estava chorando,
segurando minha cabeça com dor.
— Por que você deixaria isso acontecer? — Eu gritei para Deus - para
ninguém. — Por que você não faz alguma coisa? Ajude-me a ajudá-la! —
Eu gritei quando comecei a descer o corredor até as escadas. — Por favor,
ajude, — eu soluçava.
A imagem clareou e olhei fixamente para Marlena, os pedaços do
que ela estava dizendo finalmente se juntando.
Como se sentisse minha hesitação, Marlena se virou para mim,
entrando na minha linha de visão. — Estou aqui há três dias, e a única
coisa que ouvi de sua família e amigos, repetidas vezes, é por quê? Bem
amor. Eis o porquê.
— Então você acha que tudo isso aconteceu, — eu apontei para a
minha cabeça, — unicamente para eu salvar Click?
— Peça e receberá — disse Marlena, olhando de relance para o
telefone.
A gravidade do que ela estava dizendo me atingiu no peito. — Você
está dizendo que Deus me deu um aneurisma, e me colocou em coma,
para que eu pudesse ajudá-la?
— A garota não pode ir sozinha. Alguém tem que levá-la. Você e eu
não estamos realmente destinadas a ficar apenas de um lado,
Charlotte. Para todos os outros, é preto e branco, mas para você e eu...
pessoas como nós... existimos no cinza. Você foi colocada aqui, neste
exato momento, por ela. Você está de pé na linha vermelha.
— O que está no meio, — eu murmurei.
— Exatamente. Eu tentei que Ike a levasse, mas não funcionou
porque a alma dele está entre os pretos e brancos, e ele já está totalmente
do outro lado. Mas sua alma é uma das cinzas, e no momento você não
está viva ou morta.
Parecia improvável e místico, mas não podia negar que fazia
sentido. A enormidade disso tudo me atingiu. Nada disso foi uma
coincidência... tinha sido o destino.
— O que vai acontecer, Marlena? Como isso acaba?
— Isso termina com a paz, — disse ela se movendo para ficar ao
meu lado e enfrentou Click, o polegar pairando sobre o botão play. Ela
respirou fundo e olhou para mim: — Você está pronta?
Eu balancei a cabeça e Marlena apertou o botão. A melodia
dramática encheu a sala, e instantaneamente Click correu para Marlena,
tentando pegar o telefone. Quando ela o fez, eu vi sua aura se transformar
em um halo brilhante ao redor dela.
— Agora Charlotte, — Marlena disse calmamente. — Agarre-a e
leve-a.
Eu balancei minha cabeça, meu coração batendo em meus
ouvidos. — Eu nem sei como vim parar aqui para começar.
— Envolva seus braços ao redor dela e imagine um lugar que acha
que ela vai gostar. O resto se resolverá quando você estiver lá. Esta é a
única parte assustadora.
Eu engoli em seco. E se não funcionasse? E se Click surtasse
comigo por tocá-la? Um milhão de possíveis cenários fracassados jogou
na minha cabeça, mas eu sabia que Marlena estava certa. Aos olhos
ansiosos dessa preciosa menininha, vi o que Marlena estava tentando me
dizer. Era por isso que eu estava aqui.
Eu não me dei mais tempo para pensar sobre isso, apenas me
movi. Eu pisei atrás de Click e passei meus braços ao redor dela,
levantando-a do chão. Ela imediatamente começou a gritar e chutar seus
pés. — Está tudo bem doce menina, — eu sussurrei em seu ouvido. —
Eu estou te levando para um lugar seguro. — Apertei-a com mais força,
fechei os olhos e imaginei o único lugar em que conseguia pensar do outro
lado que ela amaria.
Capítulo trinta e seis
Ike

Estávamos na varanda dos fundos da Vovó, tomando uísque e


observando Rudy assediar as galinhas. Vovó colocou seu álbum favorito
de Billie Holiday's, I'll Be Seeing You. Nenhum de nós havia falado muito
desde o pedido de Vovó por muito uísque, e um fluxo constante de
orações fluía pela minha mente enquanto eu implorava e suplicava para
que Charlotte voltasse. Eu precisava me desculpar pelo que fiz, mas mais
do que isso, se ela deveria ir, eu precisava beijá-la uma última vez e me
despedir. Sua partida repentina me fez perceber que sua partida não era
o pior cenário que eu imaginava; em vez disso, era ela partindo sem que
eu tivesse a chance de dizer que a amava. Eu sei que ela sabia que eu a
amava, mas precisava lhe dizer isso. Axel abriu a garrafa e serviu a cada
um de nós outra rodada. Eu consegui um fraco sorriso de agradecimento,
mas sinceramente, o uísque não estava ajudando a entorpecer a dor, nem
um pouco, mas pelo menos eu não estava sozinho. Todos nós perdemos
Charlotte. Vovó e Axel pareciam estar tão perdidos quanto eu.
Vovó levantou a bebida e inclinou a cabeça ligeiramente. — Um
brinde a nossa Charlotte.
Axel e eu levantamos os nossos e tomamos um gole.
Nós três encostamo-nos em nossas cadeiras e olhamos para o
espaço, perdidos em pensamentos até que as galinhas começaram a
cacarejar alto, chamando nossa atenção. No meio das aves se
dispersando em várias direções, levantando poeira, simplesmente voando
por toda parte, Charlotte apareceu, com os olhos arregalados e
frenéticos. Assim que ela nos viu, um sorriso gigantesco iluminou seu
rosto.
— Sigam-me! — Charlotte gritou sobre a cacofonia, antes de
desaparecer novamente.
Nós três nos levantamos, trocando olhares por confirmação de que
havíamos acabado de ver Charlotte. Eu me transportei primeiro e
encontrei Charlotte no campo onde fizemos nosso piquenique. Axel e
Vovós apareceram logo depois de mim.
Um piano de cauda estava no centro do campo com uma pequena
garota sentada no banco, seu foco intenso enquanto suas mãos se
moviam pelas teclas. Alívio inundou-me quando percebi que era
Click. Charlotte de alguma forma a trouxe para o outro lado.
Charlotte olhou para nós, emoção em seus olhos, um sorriso
capturando suas feições. — Ela está aqui.
Orgulho encheu meu coração, e achei que meu peito fosse
explodir. Eu estava indescritivelmente orgulhoso dessa mulher que
amava; do que ela tinha feito. Ela trouxe Click para casa.
Nós três nos reunimos a ela, abraçando-a.
— Nós achamos que você tinha partido, — disse Axel com alívio. —
Merda, isso me assustou.
— Você não pode se livrar de mim tão fácil, — Charlotte grunhiu
com um sorriso provocante.
— O que aconteceu? — Perguntei.
— Eu encontrei Marlena, e fomos ajudar Click. — Sua boca se
levantou em um sorriso triste. — Eu a trouxe aqui, — ela encontrou meu
olhar, — eu terminei o que comecei.
Eu peguei a mão de Charlotte e a segurei, enquanto nós quatro
assistíamos Click tocar a mesma música, repetidamente.
— Beethoven, — murmurou Charlotte.
Axel assentiu. — Eu nunca fui fã de clássicos… Eu queria tocar
como Jerry Lee Lewis. Ele era o cara. Talvez possamos ensinar-lhe
algumas outras músicas.
— Você sabe tocar? — Eu perguntei, surpresa por algum motivo.
— Pfft. Eu sou um mestre no piano.
— Medíocre na melhor das hipóteses, — brincou Charlotte.
Os olhos de Axel se arregalaram e ele abriu a boca fingindo ofensa,
antes de se recompor rapidamente. — Isso é apenas o ciúme falando.
Charlotte soltou uma gargalhada como se ele fosse a pessoa mais
absurda que ela já conheceu. — Você está certo. Eu estou verde de inveja
de suas habilidades medíocres de pianista.
— Vocês dois eram bons, — Vovó interveio.
— Acho que devemos tentar fazer com que ela toque outra coisa, —
disse Charlotte.
— Como o quê? — Axel perguntou.
O piano desapareceu quando ela andou em direção a Click. Depois
de um momento de confusão, Click começou a chorar. Tudo o que ela
queria era a sua música e não entendia por que tinha ido embora.
— Talvez a deixe tocar por mais tempo, — ofereceu Vovó, enquanto
todos nós nos encolhemos com os gritos agudos.
— Eu só quero tentar algo. — Charlotte fechou os olhos e o prado
iluminou com milhares de borboletas. Click tinha se jogado no chão em
plena birra, por isso levou alguns instantes para registrar a
mudança. Seus gritos pararam e ela ficou em silêncio. Uma borboleta
flutuou em sua direção e ela recuou, mas não gritou. Ela estava
igualmente assustada e curiosa.
— Está tudo bem, menina doce, — assegurou Charlotte enquanto
levantava a mão, permitindo que uma pousasse em seu dedo. Click se
levantou e inspecionou, movendo-se para que pudesse ver em todos os
ângulos. — Bor-bo-le-ta, — disse Charlotte. — Você pode dizer bor-bo-le-
ta?
— Bor-bo-le-ta, — Click tentou, ganhando um sorriso gigantesco
de Charlotte.
— Muito bom. Você é uma garota esperta. — Ela moveu sua mão
em direção a Click, oferecendo para ela segurar a delicada criatura, mas
Click recuou.
Querendo ajudar, fui até elas e fechei os olhos. Quando os abri,
estava coberto de borboletas em todas as cores que se podia imaginar. Eu
me sentei no chão, às pernas cruzadas, na frente de Click. Demorou
algum tempo, mas eventualmente ela se aproximou e permitiu que uma
pousasse em seu próprio dedo.
— Bor-bo-le-ta, — disse ela, em seguida, gritou de alegria. Todos
nós rimos. Depois disso, seu medo se evaporou, Click se entreteve
tentando tocar cada borboleta que podia.
Eu ainda estava sentada no chão quando Charlotte se sentou ao
meu lado e descansou a cabeça no meu ombro. Axel e Vovó nos deixaram
e concordamos em nos encontrar mais tarde. Click estava correndo,
ocupada, então tivemos alguns minutos para conversar.
— Sinto muito, — eu disparei. — Me desculpe por não ter contado
assim que soube. Eu ia, eu juro. Eu só queria mais tempo com você. Isso
foi estúpido e egoísta.
— Então... aquilo era você... se despedindo de mim? — Ela
perguntou.
Eu soltei um longo suspiro, incapaz de olhar para ela. — Eu acho
que foi... apenas no caso. Eu achei que uma vez que descobrisse, havia
uma chance de você... desaparecer.
Ela passou o braço pelo meu e se aproximou. — Eu entendo porque
você não me contou imediatamente.
— Você me perdoa?
— Claro que sim, Ike. Eu sei que foi por amor. Eu sei que você não
fez isso para me machucar. — Inalando profundamente, ela soltou a
respiração lentamente.
— Você está bem?
— Eu vi meu corpo. No hospital.
Eu descansei minha bochecha contra sua cabeça. — Isso não deve
ter sido fácil para você. Não foi nem um pouco fácil para mim.
— Surreal, para dizer o mínimo. Foi mais difícil ver todo mundo
sofrendo. Meus pais, seus pais e até o Sr. Mercer estavam lá.
Eu sabia como ela se sentia. Assistir a todos os membros da minha
família sofrer enquanto me lamentavam tinha sido um inferno.
— Eu vi George.
Eu não disse nada. Eu não tinha nem ideia do que dizer. Eu odiava
a dor pela qual meu irmão estava passando. Eu odiava não poder conter
meus próprios sentimentos e colocar os dele em primeiro. Nada disso era
justo.
— Eles vão me tirar do suporte de vida em breve, — ela continuou
quando não falei nada. — O médico disse que mesmo que eu acorde,
minha qualidade de vida seria... nenhuma. Ele disse que eu
provavelmente precisaria de cuidados constantes. Basicamente, eu não
seria eu.
Eu passei um braço em volta dela e a abracei contra mim. — Sinto
muito, Charlotte. — Eu soei como um disco quebrado. — Então o que
tudo isso significa? Todo mundo apenas espera e vê o que acontece
quando eles puxarem a tomada?
Ela puxou o lábio inferior entre os dentes, a incerteza nublando
suas feições. — Eu não quero viver desse jeito. Eu não posso. Eu sei que
a vida é preciosa, mas como eu poderia voltar e ser esse tipo de peso para
todos? Que tipo de vida George teria cuidando de mim pelo resto da vida?
Eu esfreguei meu rosto com a mão livre. Nunca poderia ser
simples; Era sempre complexidade empilhada em cima de uma pilha de
complicações. Eu queria que ela ficasse. Eu era egoísta por isso, mas
queria. Mas mesmo que eu deixasse meus sentimentos de lado, pude ver
o que ela estava dizendo. Ela não teria qualidade de vida. Ela teria que
ser cuidada o tempo todo. Eu sabia que meu irmão gostaria que ela
vivesse, a qualquer custo, e ficaria feliz em cuidá-la, independentemente
de quais fossem suas necessidades, mas que tipo de vida seria para
qualquer um?
Eu soltei um longo suspiro. — A coisa é Charlotte, estou finalmente
entendendo que não depende de você ou de nós… é isso? Se você está
destinada a voltar, irá.
— E se eu acordar? E se estiver paralisada e ainda ver espíritos?
Eu não tinha pensado nisso. — Eu não sei, menina. — Eu odiava
não poder lhe dar nenhuma resposta.
— O médico não acha que vou acordar. Mas mesmo que seja
possível, talvez eu tenha uma escolha. Se eu sentir aquele puxão quando
eles desligarem as máquinas, talvez lute contra isso. — Ela balançou a
cabeça enfaticamente. — Eu não vou voltar para ficar presa no meu
próprio corpo.
Ficamos quietos, nós dois assistindo Click. Eu senti que deveria
dizer alguma coisa, que deveria encorajá-la a voltar, mas estava
profundamente ciente de que não seria o único a lhe dar conselhos, eu
estava muito envolvido emocionalmente.
— Você sabe, nós poderíamos cuidar dela, — disse Charlotte antes
que eu pudesse expressar meus pensamentos para ela. Eu olhei para ela
e a encontrei me observando, um sorriso suave em seus lábios. —
Click. Ela não tem ninguém. Ela poderia ser nossa.
O bem dessa mulher me dominou. Eu a puxei para mim e beijei o
topo de sua cabeça. — Eu acho que gostaria disso. — Uma paz
inesperada tomou conta de mim, e percebi no momento em que disse às
palavras que Click estava indissoluvelmente ligada a mim. Era como se
meu coração se esticasse e se ligasse a ela sem eu perceber. Eu tomaria
Click como minha filha. Depois de alguns momentos, eu disse: — Temos
que lhe dar um novo nome. Algo bonito, como ela.
Charlotte se moveu para que ela pudesse olhar para mim, amor e
adoração em seu olhar. — O que você acha de Meadow?
Capítulo trinta e sete
Charlotte

Ike e eu levamos Meadow a todos os lugares. Nós passamos uma


tarde na praia construindo castelos de areia só para que ela pudesse
pisar neles e rir com prazer. Descobrimos que ela amava waffles com
xarope e que detestava a escuridão. Não foi difícil entender o último. Ela
esteve no escuro por um longo tempo. Ficamos surpresos que ela
dormia. Nunca era por muito tempo, e toda vez que ela acordava, gritava
em pânico. Ike estava sempre lá, esperando para confortá-la. No começo,
ela não deixava que ele a tocasse. Eventualmente, porém, ela deixou-o
pegá-la e abraçá-la até que entendeu que tudo estava bem. Momento a
momento, testemunhei seu vínculo com Ike fortalecer; Eu assisti quando
uma garotinha assustada, que tinha dificuldade em entender o mundo
ao seu redor, começou a descobrir a confiança. Eu senti imenso conforto
e paz nisso.
Eu não sabia quando, mas sabia que, em algum momento, Marlena
me procuraria, ou eu sentiria algo mudar quando me tirassem do suporte
de vida. Esperei, mantendo minha mente aberta para que, quando
acontecesse, estivesse pronta, e então saberia que o último capítulo da
minha vida chegara ao fim e eu poderia ficar tranquila.
Eu não voltei novamente para ver George e minha família. Embora
tenha tentado ignorá-lo, algo dentro de mim continuou me incomodando,
dizendo que eu precisava reconsiderar, mas sempre que surgia eu
rapidamente empurrava de volta.
Ike e eu estávamos rindo enquanto assistíamos Meadow perseguir
Rudy pelo quintal da casa de Vovó quando o momento finalmente
chegou; Só que não fui eu que Marlena convocou, mas Ike.
— Eu acho que ele não é um grande galo depois de tudo, — brinquei
com Ike. O galo tinha um fraquinho pela garota e não se importava de
brincar com ela. Parecia que Rudy nunca seria meu fã, mas eu estava
bem com isso porque ele era bom para Meadow.
Meadow cantou — Co-co-ri-có, — e Ike a imitou, mas depois a
risada dele diminuiu e ele caiu de lado.
— Você está bem? — Eu perguntei enquanto agarrava seu ombro
em um esforço para mantê-lo na posição vertical.
— Marlena está me convocando, — disse ele, pouco antes de
desabar, caindo de lado.
— Filho da puta, — eu murmurei sob a minha respiração.
— Filho-da-puta, — repetiu Meadow em voz alta. Eu revirei meus
olhos e bati na minha testa. Eu realmente precisava fechar minha boca.
— Não diga isso, — eu disse a ela. Endireitei Ike o melhor que pude
enquanto Meadow observava, a testa franzida em ceticismo e
preocupação. Ela não tinha certeza se eu o estava ajudando ou
machucando. — Ele vai ficar bem, — eu prometi. Eu precisava ir e ver o
que Marlena queria, mas não podia simplesmente deixar Meadow. Eu
sabia que ela não seria machucada aqui, mas não queria que ela ficasse
assustada e se perguntasse por que a deixamos sozinha.
— Vovó! — Eu chamei, esperando que ela estivesse na casa. Alguns
segundos depois, ela apareceu. — Marlena convocou Ike. Eu preciso ir
ver como ele está. Você pode cuidar de Meadow?
— Claro que sim, querida. Espero que esteja tudo bem.
Um momento de incerteza me atingiu. Eu não sabia por que
Marlena convocaria Ike e não a mim, mas ia descobrir. — Eu voltarei. Ela
está gostando muito de brincar com o Rudy.
Ajoelhando-se para que pudesse fazer contato visual com ela, eu
disse a Meadow: — Eu já volto.
Concentrei-me em Ike e o encontrei no meu quarto de hospital com
Marlena. A sala estava em silêncio, exceto pelo bipe das máquinas que
mantinham meu corpo vivo. Marlena olhava pela grande janela para o dia
triste, os braços cruzados. Ike estava ao lado da cama, olhando para o
meu corpo. Quando ele olhou para mim, a incerteza estava espessa em
seus olhos.
— Sr. Mercer acabou de sair. Ele se despediu de você.
Meu rosto parecia entorpecido. — Ele estava bem?
As características de Ike se contorceram e eu sabia que não devia
ser bonito. — Ele está lutando. Perder sua esposa e você... é muito. — Eu
balancei a cabeça, odiando que o Sr. Mercer estivesse sofrendo e eu não
estava lá para consolá-lo. Essa coisa toda era tão difícil que eu não
suportava. Não importa o que eu fizesse, alguém seria ferido. Eu poderia
dizer que Marlena sabia da minha decisão e estava desapontada com
isso, mas realmente não me importei. Eu não estava interessada em fazer
parte de seu clube exclusivo; não ao preço de estar presa em uma concha
de mim mesma. Ela achou que eu estava tomando o caminho mais fácil
e, se eu fosse brutalmente honesta comigo mesma, eu estava, o outro
lado me oferecia a paz que eu não sentia há anos. Mas não era tão
simples assim. O pensamento de deixar George para trás machucava
como o inferno, mas acorrentá-lo a uma vida que faria dele um escravo
para me cuidar era algo que eu nunca faria com ele.
— Marlena, — eu disse, precisando explicar, mas ela não se
mexeu. Eu odiava o quão tímida minha voz estava. Essa era a minha
vida. Essa era a minha decisão. Ela tinha sido uma grande ajuda para
mim e eu era grata a ela por isso. Eu não poderia ter atravessado Click
para o outro lado sem ela, mas isso não lhe dava o direito de me julgar.
— Marlena, — eu disse novamente, desta vez minha voz estava
forte, mas ela ainda não respondeu. Que porra é essa? — Então você
simplesmente vai fingir que não me ouve?
Houve um rápido clarão, então Axel e Vovó apareceram na sala,
ambos usando expressões de desconforto enquanto seguravam seus
estômagos.
Axel piscou algumas vezes e olhou em volta. — Puta merda, ela
acabou de nos trazer aqui?
— A náusea vai passar, — Ike disse-lhes quando Vovó pressionou
a mão na testa como se fosse desmaiar. — Respire fundo algumas
vezes. Onde está Meadow?
— Ela estava brincando com Rudy.
— Eu preciso voltar, Marlena, — Ike disse para ela. — Eu não quero
que ela perceba que está sozinha, ou pode ficar com medo.
— Tudo bem... todo mundo está aqui, — eu disse, não me
incomodando em esconder o meu aborrecimento. — E agora?
— Oh, Charlotte, — Vovó fungou enquanto cobria a boca olhando
para o meu corpo.
— Está tudo bem, Vovó, — eu assegurei. — Por favor, não chore.
— Axel puxou-a para ele e abraçou-a com um braço enquanto eles
olhavam para o meu corpo.
Marlena finalmente se virou e recostou-se na janela. Sua boca se
ajustou em uma linha apertada enquanto seus olhos permaneciam fixos
no chão por um momento mais longo. Quando seu olhar se elevou ao
meu, vi o esforço que estava fazendo para manter tantas almas deste lado
e minha raiva se dissipou.
Finalmente ela começou, sua voz medida, — Eu só vou seguir com
isso. — Ela varreu seu olhar ao redor da sala, parando brevemente em
cada um dos outros enquanto continuava. — Eu trouxe vocês aqui
porque são os mais próximos de Charlotte e têm a vantagem de ver no
âmbito maior, e Charlotte precisa ver o âmbito maior, agora mais do que
nunca.
— Eu sou uma menina grande, — eu disse levianamente. — Eu
posso tomar minhas próprias decisões.
— Marlena? — Minha avó disse seu nome, gentileza e compreensão
em seu tom. — Esse é o seu nome, certo?
Marlena assentiu.
— Querida, Charlotte nos contou tudo. Ela nos contou que ajuda
você foi para ela, e lhe sou grata por isso. Eu sei que você quer que ela
volte, e tenho que admitir tão maravilhoso quanto tem sido tê-la conosco,
eu também quero isso. Eu quero que ela tenha uma vida completa e
bonita...
— Mas... — Marlena ajudou.
— Mas as chances dela se recuperar e ter uma vida de qualidade
são improváveis.
Marlena olhou para mim e inclinou a cabeça. — Você acha que eu
te trouxe aqui para convencê-la a voltar para este lado... — Sua voz sumiu
enquanto ela me estudava. — Você acha que eu te trouxe aqui para
ajudá-la a escolher o que fazer? Você acha que estou tentando fazê-la
escolher a vida?
— Sim, — eu respondi, de repente insegura. — Não é isso que você
está fazendo?
— Não, amor, — disse ela, sacudindo a cabeça enquanto suas
feições suavizavam ligeiramente. — Você fez a sua escolha muito antes
de atravessar a doce menina para o outro lado, você simplesmente não
percebeu quando o fez.
Raiva me dominou. Por que ela estava sendo tão enigmática? — O
que você está dizendo, Marlena?
— Estou dizendo que já vi como tudo isso se desenrola.
Eu estreitei meus olhos. — Como, se eu vou viver ou morrer?
Ela assentiu. Meu coração trovejou no meu peito.
— O que você viu? — Ike perguntou, sua voz rouca. Eu não gostei
do medo que ouvi em sua voz. Nós repassamos tudo tantas vezes. Nós
tínhamos feito um plano, e esse plano envolvia eu ficar e cuidar de
Meadow com Ike. Agora Marlena possivelmente estava prestes a jogar
uma torção nisso.
— Não importa, — eu respondi, esperando aliviar sua
preocupação. — Ela disse que nem sempre está certa.
Marlena franziu a testa e balançou a cabeça: — Não, eu disse que
o que vejo geralmente muda, mas isso é irrelevante.
— Eu quero saber o que você viu, — Ike rosnou, me chocando. Ele
estava com raiva?
— Ike...
— Eu quero saber também, — acrescentou Vovó me
interrompendo.
Axel olhou para mim, quase se desculpando, porque ele também
queria saber e sentiu como se estivesse me traindo.
Virando a cabeça, desviei o olhar de Marlena.
— Você precisa ver algo primeiro. — Quando Ike abriu a boca para
objetar, ela levantou a mão para detê-lo. — Eu prometo que não estou
arrastando isso apenas por diversão. Isso não é algo que eu
possa lhe dizer, é algo que você tem que ver para entender. — Ela fez
sinal para nos juntarmos a ela na janela.
Lentamente, Ike, Vovó e Axel se moveram ao lado dela e olharam
pela janela. Eles ficaram em silêncio um momento antes de Axel
perguntar: — Quem são eles?
— São todas as pessoas que Charlotte ajudou a atravessar, — Ike
explicou, sua voz tranquila.
Vovó virou-se para mim, os olhos cheios de lágrimas. — Charlotte,
querida. Venha ver isso.
Ótimo. Agora Marlena tinha feito minha avó chorar. Nossa, ela era
uma idiota. Axel e Ike abriram espaço quando parei na janela. No
estacionamento abaixo, centenas de rostos olhavam para mim. Havia
tantos, mas reconheci cada um deles.
— Você ajudou todas essas pessoas, Charlotte, — ela sussurrou
através de suas lágrimas enquanto segurava meu braço, e eu ouvi o
orgulho e o amor em sua voz.
E enquanto eu olhava para baixo, não podia negar que sentia
algum orgulho também. Marlena era uma mestra manipuladora. Nível
especialista de fato.
— Cada um deles ainda estaria preso se não fosse por você,
Charlotte. Se sua vida tivesse acabado, quem os teria ajudado? —
Perguntou Marlena.
— Eu ainda estaria preso se não fosse por você, Charlotte, — Ike
observou. Eu encontrei seu olhar, implorando para ele não deixar
Marlena mudá-lo. Recusei-me a acreditar que ela sabia definitivamente
que isso aconteceria. Nem mesmo ela poderia saber como eu acordaria,
se eu conseguisse.
Ike endireitou os ombros e virou-se para Marlena. — As almas que
ela ajudou são seu passado, estamos falando de seu futuro. Você disse
que ela já tinha tomado sua decisão no momento em que atravessou
Click. Como ela poderia? Ela nem sabia que ainda estava viva antes
disso.
Marlena assentiu e encontrou meu olhar. — Lembra-se do relógio
de bolso?
Eu fiz uma careta: — Claro, eu dei para um garotinho perdido. Por
que, o que isso tem a ver com alguma coisa?
Ela virou as costas para a janela e desviou o olhar para a cama. Ao
lado do meu corpo estava o mesmo garotinho, e em sua pequena mão
estava o relógio de bolso que eu lhe dera.
— Você o trouxe aqui? — Ike perguntou a Marlena antes que eu
tivesse a chance de pensar em como ele veio parar aqui.
Ela balançou a cabeça. — Ele veio sozinho. Ele seguiu Charlotte.
Ele seguiu?
— Você sabe quem ele é? — Perguntei a Marlena, desesperada por
uma resposta. — Ele não fala comigo. Eu continuo perguntando o nome
dele, mas ele não responde.
Ela puxou um pirulito do bolso e desembrulhou. — Ele não sabe o
nome dele. Ele não recebeu um.
— Então... quem é ele? — Axel perguntou ansiosamente.
Ela rolou o pirulito em sua boca algumas vezes antes de tirá-lo. —
Sinto muito, ter todos vocês aqui ao mesmo tempo está me drenando. —
Respirando fundo, ela se endireitou, então respondeu à pergunta de Axel.
— Ele é seu sobrinho.
A sala ficou em silêncio enquanto todos demoravam um pouco para
processar o que ela estava dizendo. Eu era a única irmã de Axel, o que
significava que o menino teria de ser meu filho. Congelada no lugar, olhei
para ele, incapaz de processar e absorver o que Marlena estava dizendo.
— Ele tem seus olhos, Charlotte, — murmurou Vovó quando ela
levou a mão à boca.
Com as mãos ao meu lado, balancei a cabeça. — Ele estava do
outro lado, o que significa que ele está morto. Eu não tive um filho. Ele
não é meu.
Marlena riu, o som cheio de insulto. — Você realmente não é tão
estúpida, é, Charlotte?
Chicoteando minha cabeça para ela, eu arregalei meus olhos e abri
minha boca para responder quando Ike entrou na conversa. — Bem, já
que este é seu show secundário, por que você não explica? — Seu tom
era hostil. — Quero dizer, sim, estamos mortos e temos a eternidade, mas
essa merda está ficando chata. Diga! Diga o que você sabe.
A expressão de Marlena se suavizou. — Eu sabia que isso seria
mais difícil para você, Ike. E eu sinto muito. Está tudo aqui na sua frente,
a resposta para tudo isso. Não é tão difícil colocá-lo junto.
Ike piscou algumas vezes, seus olhos se encobrindo enquanto a dor
o preenchia. Balançando a cabeça, ele insistiu: — Não.
— Esse é o seu sobrinho também, Ike.
Olhando para Axel, eu o encontrei com os olhos fechados, como se
estivesse sofrendo por Ike, talvez até por mim. Em seguida, eu encontrei
o olhar de Vovó. Ela tinha o sorriso mais triste que já vi quando ela pegou
meu rosto em suas mãos. — Um bebê, Charlotte. Você está grávida.
Eu mantive meu olhar fixo no dela, prendendo a respiração, a
realidade em torno de mim. Meu lábio tremeu quando uma lágrima
deslizou pelo meu rosto. Eu não conseguia fazer minha boca funcionar
para falar.
— Me mande de volta, — Ike pediu, seu tom severo.
Tirando as mãos de Vovó das minhas bochechas, girei para encará-
lo, pegando sua mão. Imediatamente ele se afastou. — Ike, — eu
murmurei, emoção grossa na minha garganta. Eu não tinha nem ideia
do que dizer. Implorar-lhe que não fosse era egoísta, mas deixá-lo sair
também parecia errado.
— Agora! — Ele explodiu, sua voz embargada quando lágrimas
caíram por suas bochechas. Eu olhei para ele, engasgando por quão
horrível eu me sentia. Eu podia sentir sua dor no meu peito. Olhando de
volta para Marlena, eu acenei dizendo-lhe para fazer isso. Quando voltei
a encará-lo, a última coisa que vi foi ele segurando as mãos no rosto antes
de desaparecer.
— Mande-me de volta. Deixe-me verificá-lo — insistiu
Axel. Marlena não hesitou.
Assim que ele se foi, caí de joelhos e solucei. O olhar no rosto de
Ike, a angústia em seus olhos. — Shh, Charlotte, — Vovó murmurou. —
Nós não podemos desmoronar agora. Haverá um momento para deixar
sair, mas não é agora. — Ajudando-me a levantar, ela me abraçou. —
Fique firme... um pouco mais, ok?
Marlena encarou a janela novamente, enquanto Vovó e eu
olhávamos... meu filho. Parecia estranho pensar isso. Meu filho. Ele era
uma coisinha bonita, e agora que estava realmente analisando seu rosto,
ele tinha meus olhos. Ele tinha o nariz e o queixo de George e sim, até
mesmo o cabelo dele. Mesmo que meu coração estivesse quebrando, eu
não pude deixar de sorrir através das minhas lágrimas. Meu olhar
finalmente caiu no relógio de bolso novamente, que agora estava aberto
em sua pequena mão, e eu ouvi o tique-taque.
— Foi quando você fez sua escolha, Charlotte, — disse Marlena ao
meu lado.
Eu balancei a cabeça, sem entender. — Como? Eu apenas dei
corda depois que ele parou de funcionar.
— E, ao fazer isso, você deu a si mesmo, há ambos mais tempo
para viver.
— Mas ele é um garotinho... não é um bebê. Como...
— Ele se adaptou. Provavelmente viu outras crianças e as copiou,
— explicou Marlena.
Enxugando meu rosto, eu gemi. — Eu sempre escolhendo entre os
homens McDermott, — eu meio que brinquei, embora nada sobre isso
fosse engraçado.
Vovó saiu do meu lado e foi até o menino, caindo de joelhos e
tomando o rosto dele nas mãos. — Seu nome vai ser Jennings em
homenagem ao seu avô, — ela disse a ele.
Minhas sobrancelhas se levantaram enquanto eu bufava. — É
assim, Vovó?
— Bem, porque não? É um bom nome, forte. — Ela continuou a
mexer nele enquanto eu olhava.
— Eu não entendo, — eu murmurei para Marlena. — Você sabia o
tempo todo?
— Só desde a noite passada, — disse ela. Ela puxou o pirulito da
boca e respirou fundo, em seguida, encontrou o meu olhar. De repente,
o quarto do hospital desapareceu, e nós estávamos no quarto principal
da casa que eu compartilhava com George, só que algo parecia diferente.
— Você está feliz, Charlotte?
O som da voz de George atraiu meus olhos para a cama onde ele
estava ajoelhado sobre mim, esfregando minha barriga extremamente
grávida enquanto conversávamos sobre o bebê que teríamos. Eu vacilei
com a visão do que era obviamente do futuro e me virei para Marlena. —
Isso foi o que você viu?
— Lembra-se de eu dizendo que algo geralmente vem e muda o que
vejo? — Quando eu acenei com a cabeça, ela continuou: — Bem, funciona
o contrário, também. Às vezes, algo acontece para eliminar todas as
outras possibilidades.
Meu quarto desapareceu e estávamos de volta ao quarto do
hospital, onde Vovó ainda se agitava sobre seu bisneto, como se o tempo
não tivesse passado. Eu caí na cadeira ao lado da cama, lutando para
processar o que Marlena tinha me mostrado.
— E se eu não tivesse dado corda no relógio... — Eu parei, incapaz
de terminar o pensamento, quando encontrei o olhar firme de Marlena.
— Então teria sido diferente.
Olhei de volta para o meu corpo deitado na cama e deixei a cena
que eu acabara de ver repetir na minha mente. Eu não estava apenas
viva. Eu era eu. Esse pensamento me trouxe de volta para o garotinho,
eu ainda não tinha compreendido totalmente que ele era meu filho. —
Com a minha condição, a cirurgia e as drogas... como ele pode sobreviver
a isso?
— Milagres, amor. Eles acontecem todos os dias. — Antes desse
momento eu teria zombado da resposta dela, mas ela estava certa.
— Ele vai ficar bem? — Eu projetei meu queixo na direção do
menino.
— Isso, receio, não é algo que eu possa dizer com certeza. No
momento, vocês dois estão saudáveis, mas...
. —... mas isso pode mudar se eu não acordar logo. — Eu terminei,
lembrando o que o médico tinha dito sobre o meu corpo se
deteriorando. Meus olhos ficaram borrados com lágrimas frescas. Eu ia
ter que deixar minha família. Eu ia ter que deixar o Ike.
Ela assentiu, tomando fôlego antes de acrescentar: — É hora de
acordar, Charlotte.
Eu balancei a cabeça, ouvindo as palavras dela, mas não as
absorvendo. — Obrigada, Marlena. — Caminhando até o meu filho, eu
peguei a mão dele. — Fique comigo, — eu lhe disse e então nos levei de
volta para o outro lado.
Capítulo trinta e oito
Ike

Eu estava no chão, arfando em posição fetal, quando Axel apareceu


ao meu lado, segurando seu estomago. A travessia foi uma merda.
— Eu quero ficar sozinho, — eu resmunguei através da bile na
minha garganta e as lágrimas nos meus olhos. — Vá! — Eu exigi.
Axel resmungou quando ficou de joelhos, sua condição semelhante
à minha. Seu rosto estava vermelho e uma veia grossa se projetava na
testa enquanto se esforçava contra a náusea. — Que pena, — ele
grunhiu. — Somos uma família agora. Eu não vou te deixar sozinho.
— Família? — Eu rosnei quando me sentei nos meus
calcanhares. — Você quer dizer por que nossos irmãos são casados e
estão tendo um bebê?
Axel se forçou a levantar e encontrou meu olhar morto. — Isso, e
porque minha irmã te ama. De qualquer forma que você cortar essa torta
de merda e servi-la, somos da família.
— Eu estou com tanta raiva, — eu gritei, apertando meus olhos e
me levantando. — Por quê? — Eu gritei. — Por que isso comigo de
novo? O que eu fiz? — A mágoa me invadiu dominando qualquer
pensamento racional. Eu queria bater em algo ou alguém, com força.
Algo me empurrou e fui para frente. Depois que consegui me
equilibrar, me virei e encontrei Axel com os punhos para cima, pulando
de um pé para o outro, animado. — Você precisa bater em algo, — disse
ele enquanto projetava o queixo para mim. — Venha para mim, irmão.
— Eu não vou bater em você, — eu murmurei.
Quando me virei para sair, ele me empurrou novamente. — Por que
não? Você está com medo?
— Pare de tentar me enganar, Axel. Eu não vou bater em você. —
Ele me empurrou novamente, só que desta vez fez isso enquanto eu
estava olhando diretamente para ele. Incapaz de me conter, eu o
empurrei de volta.
— Pare com isso, Axel. Sério.
Ele disparou um soco que consegui desviar. Foi puramente reflexo
que me fez socar de volta, acertando-o na mandíbula. A cabeça dele
recuou e ele tropeçou rindo. — É tudo o que você tem? Charlotte poderia
bater mais do que isso. — Não foi o insulto que eu batia como uma garota
que me levou ao limite. Foi a menção do nome de Charlotte. Eu lancei
meus punhos atingindo Axel no rosto, peito e braços. Ele bloqueou sua
cabeça o melhor que pôde, mas nunca tentou me bater de volta. Ele se
ofereceu como um saco de pancada em sacrifício e em algum lugar na
parte de trás da minha mente consumida pela raiva eu sabia que não
deveria bater nele, mas não conseguia parar. Depois de alguns minutos,
meus braços se esgotaram e Axel me abraçou. Lutei para escapar do seu
controle, mas eu estava fraco demais, e em vez disso, quando não pude
mais lutar, caí no chão, cada expiração saindo como um gemido quando
enterrei meus dedos no chão.
Ajoelhando-se diante de mim, Axel colocou a mão no meu ombro
enquanto eu ofegava por ar. — Você já ouviu a história bíblica do filho
pródigo?
Deixando minha cabeça cair, soltei um longo suspiro. — Claro, eu
ouvi; o filho perdido volta.
— Certo, bem, há mais do que isso, — Axel disse quando se sentou
no chão e descansou os braços sobre os joelhos. — Depois de desperdiçar
a herança pela qual implorara ao pai, o filho mais novo, com muita
vergonha, decidiu voltar para casa e pedir perdão ao pai. Ele não
acreditava que seria bem recebido de volta, mas tinha que tentar. Mas o
pai o recebeu de braços abertos e decidiu fazer uma festa para comemorar
seu retorno. O filho mais velho estava zangado porque o pai não apenas
recebeu o irmão de volta, mas também matou uma de suas melhores
cabras para a festa. Ele ficou e cuidou de suas terras e rebanhos, e seu
pai nunca havia matado uma cabra para ele.
Eu esfreguei meu rosto. — Cara, eu sei que você está tentando me
ajudar aqui, mas estou cem por cento perdido para onde você está indo
com isso.
Axel balançou a cabeça pacientemente e continuou: — O pai disse
ao filho mais velho que ele deveria estar feliz que seu irmão estivesse em
casa, que basicamente, ele havia morrido e agora revivido. O filho mais
velho se recusou a participar da celebração. A questão foi... que a
celebração continuou sem ele. Sua aversão a tudo isso não impediu o que
estava acontecendo. No final, ele só puniu a si mesmo e perdeu a festa.
Era um exagero dizer que o mesmo estava acontecendo com
Charlotte, mas entendi o ponto de Axel. Não importava o quão ruim eu
me sentia, ou como estava com raiva… Charlotte estava partindo. Eu
poderia escolher ficar chateado e tornar a coisa toda mais difícil, ou
poderia abraçá-la e deixá-la partir em paz.
— Espero que você saiba que não estou bravo com ela. Eu estou
apenas... com raiva.
Ele me deu um tapinha nas costas. — Você esquece, Ike, que
ela voltará. Eu não estou feliz que ela esteja partindo também, mas estou
feliz que ela vai ter as coisas na vida que merece. Coisas que não
conseguimos ter.
Nós nos sentamos em silêncio por um tempo. Eu sabia que tudo o
que ele dizia era verdade, mas isso não facilitou nada, e não me fez sentir
melhor. — Você pode encontrar Meadow por favor? Eu só preciso me
recompor.
— Sim cara, eu cuido dela. Para que serve a família? — Quando ele
desapareceu fechei os olhos e disse a mim mesmo: Deixe-a ir em paz, Ike.
Capítulo trinta e nove
Charlotte

Não sei por que, mas nos trouxe ao quintal da Vovó. Achei que
talvez meu filho gostasse das galinhas como Meadow, mas quando ele
olhou para mim com uma expressão perplexa eu não tinha tanta certeza.
— São galinhas. — Fazendo uma careta para ele eu cacarejei
algumas vezes na minha melhor imitação de galinha. Ele olhou
vagamente para mim. — Claramente, você tem o senso de humor de seu
pai, — eu lhe disse; no entanto, eu estava apenas brincando. George
tinha um grande senso de humor. É claro que nosso filho não-nascido
não saberia nada disso. — Vá em frente, — eu disse a ele, acenando para
ele ir em frente. — Vá explorar um pouco.
Com um pouco de receio, ele saiu da varanda e se aproximou das
galinhas cacarejantes. Quanto mais ele se afastava, mais fraca eu me
sentia. O desespero que senti ressoou dentro de mim, vibrando e
ameaçando me abrir por dentro e sangrar. Estava custando cada
pedacinho da minha força para não colapsar em um monte de soluços. A
expressão no rosto de Ike quando ele descobriu que eu estava grávida
queimava em minha mente. Ver tanta dor nos olhos de alguém que você
tanto ama parecia o equivalente a ser esfaqueada no peito.
Uma mão pegou a minha, entrelaçando meus dedos com os
seus. Eu não tive que olhar, eu sabia que era Vovó. Marlena deve tê-la
mandado de volta logo depois que eu saí.
— Eu sei que não parece, mas tudo ficará bem, Charlotte Anne. Eu
prometo.
Olhei para o meu filho a tempo de vê-lo recuar quando uma galinha
clamou alto em sua direção. Vovó riu. Eu sabia que as coisas ficariam
bem... ou eu acreditava que iriam... para mim de qualquer maneira. Eu
voltaria à vida e, com sorte, me recuperaria totalmente. Eu acordaria com
George e minha família e, eventualmente, me tornaria mãe. Eu teria uma
vida linda. Mas só depois que fizesse a coisa mais difícil que já tive que
fazer, me despedir de Ike McDermott. Novamente. Antes que eu pudesse
voltar à vida, teria que primeiro destruir não apenas meu coração, mas
também o de Ike.
— Eu... — Eu parei, empurrando a emoção subindo pela minha
garganta. Não chore, Charlotte. Não se atreva a chorar. — Eu não sei o
que dizer a ele. Como faço para deixar tudo bem? Como me despeço de
você e de Axel? Como me despeço de Ike... novamente?
— Ele encontrará paz novamente, amor. Pode levar algum tempo,
mas ele vai. E não é um adeus, Charlotte. Certamente você deve saber
isso mais que tudo. Você vai vê-lo novamente. Você vai nos
ver novamente.
Virei-me para olhar para ela e as paredes que eu estava
trabalhando para segurar se desintegraram. O rosto meigo de minha doce
avó me encarou, mas não como a jovem mulher vivaz que parecera
quando cheguei, mas como a avó redonda e grisalha de que me lembrava,
com a evidência da idade gravada em seu rosto. Vovó tinha mudado a si
mesma por mim. Algo sobre a familiaridade disso me destruiu e parei de
lutar. A dor que eu estava segurando irrompeu de dentro, e um soluço
estridente me escapou, seguido por outro e outro. Ainda segurando
minha mão, ela me levou para um banco e sentou-se, fazendo-me colocar
minha cabeça em seu colo. Eu chorei mais do que nunca na minha
vida. A felicidade, a dor, o medo, a dúvida, o amor derramaram de mim
enquanto ela acariciava minha cabeça e falava suavemente comigo.
— Deixe tudo sair, Charlotte Anne. Purgue tudo.
Não sei quanto tempo chorei, mas quando o pior passou, e tudo o
que restou foi uma mulher de rosto encharcado, soluçando com a cabeça
repousando no colo de sua avó, Vovós disse: — Você vai ser uma
excelente mãe, Charlotte.
Eu gostaria de sentir tanta fé em mim mesma quanto ela. Através
dos olhos embaçados, olhei para o meu filho. Ele estava imóvel como uma
estátua no centro do caos de galinhas ao seu redor. Ele estava perdido
aqui. Ele não sabia como agir como um garotinho porque nunca teve a
chance de ser um.
— Este George... ele ficará feliz? — Perguntou Vovó.
Minha boca subiu, calor se infiltrando em meu coração. — Sim. Ele
ficará emocionado. Ele será um pai incrível.
Sentando-me, limpei meu rosto e nariz. Vovó ainda era a versão do
seu eu experiente. Eu olhei para o rosto dela, memorizando. — Obrigada
por isso, Vovó, — eu lhe disse.
Ela sorriu. — Você deveria ir e procurar Ike e Axel antes de ficarmos
sem tempo.
Meu peito se apertou. Eu não tinha ideia de como fazer isso. Eu
senti que não era mesmo possível me obrigar a fazê-lo. Era sempre uma
situação impossível quando se tratava de Ike e George. Nunca haveria
qualquer vitória. E agora, não havia outra escolha. Meu filho. Outro
homem McDermott.
Vovó deve ter tido uma noção do que eu estava pensando com o
olhar no meu rosto, porque ela disse: — Você deve fazer isso. Não há
muito tempo.
Eu balancei a cabeça e limpei meus olhos com meus dedos.
— Eu vou assistir meu bisneto, — ofereceu-se Vovó. — Vá em frente
agora. Seja forte.
Abracei-a com força mais uma vez e depois desapareci.
Capítulo quarenta
Ike

— Novamente? — Eu gemi do chão enquanto Marlena olhava para


mim. — Você acabou de me mandar de volta. — Eu não tinha tido a
chance de recuperar o fôlego depois que Axel saiu, e aqui estava eu, de
volta. Ela já tinha um pirulito em sua boca, uma indicação do pedágio
que isso estava causando nela. Quantos espíritos ela convocou nesse
dia? Círculos escuros pendiam de seus olhos, acentuados por um rosto
já pálido.
Antes que ela pudesse responder, ouvi a voz de Sniper. — Eu
acabei de perceber, observando George passar por isso... Eu te amo,
Anna. — Ele estava em seu celular, apoiando o ombro contra a parede,
de costas para nós. — Eu não sei por que o casamento me assusta...
meus pais não eram exatamente os melhores exemplos de marido e
mulher, — continuou ele. — Eu só sei que meu melhor amigo está
perdendo sua esposa, e continuo pensando sobre o que eu faria se
perdesse você.
Eu lancei meu olhar para Marlena. — Você não lhes disse que viu
Charlotte voltando?
Ela soltou um longo suspiro. — Eu aprendi há muito tempo,
quando se trata de eventos futuros, que é melhor não compartilhar o que
vejo com os envolvidos diretamente, mesmo que o resultado seja uma
certeza.
— Você não quer estar errada, — eu disse sem rodeios.
— Não, amor. Estar errada não tem nada a ver com isso. Eu não
quero dar falsas esperanças.
— Por favor, não chore, Anna, — Sniper pediu chamando minha
atenção de volta para ele.
— Eles vão se casar, — Marlena sussurrou, em seguida, piscou
quando eu cortei meus olhos para ela. — Você não está diretamente
envolvido.
Eu sorri com o pensamento. Sniper, casado. Será que as
maravilhas nunca deixariam de existir?
— George quer falar com você, — disse ela, mostrando preocupação
zero por eu ainda estar no chão, segurando meu estômago e lutando
contra a náusea.
Meus olhos se estreitaram. — Ele pediu para você me chamar?
— Não, — disse ela, sua boca levantada em um sorriso parcial.
— Ele não sabe que eu estou aqui... que você me trouxe?
Ela encolheu os ombros. — Você deveria entrar, Ike. Ele tem
algumas coisas que quer dizer a você.
Depois que consegui ficar de pé, atravessei a porta e fui para o
outro lado da cama para encarar George, enquanto Marlena se levantava
e olhava pela janela. George segurou a mão de Charlotte entre as dele. Ele
parecia um inferno. Eu odiava tudo sobre a situação em que estávamos,
mas mesmo com tudo isso em mente, a única coisa que conseguia pensar
quando o via era o quanto eu desejava poder abraçá-lo. Ele era meu
irmão, meu irmão gêmeo. Deste lado ou daquele, nós sempre seríamos
duas metades da mesma pessoa, e nada na existência poderia mudar
esse vínculo... nem mesmo por amarmos a mesma mulher.
— Eu não sei como fazer isso, Ike, — disse ele. Fiquei
momentaneamente perplexo imaginando se ele havia me sentido na sala,
mas logo percebi que era apenas coincidência. Seus olhos estavam fixos
em Charlotte.
Mesmo sabendo que ele não podia me ouvir, eu disse: — Estou
aqui, George. Estou ouvindo.
— Eu quero que ela volte, — ele continuou. — Eu não quero deixá-
la ir. Eu sei que é muito ruim não me importar com os cuidados que ela
precisaria, só não quero existir neste mundo sem ela. — Levantando sua
mão flácida, ele beijou sua junta e segurou-a contra sua boca. — A
verdade é que não sei como. Eu sinto que meu propósito era cuidar dela...
como se fosse o que eu deveria fazer.
Eu esfreguei a mão no meu rosto. Foi então que percebi o que ele
estava usando. Era o colar de cruz que Axel deu para Charlotte e ele
adicionou minhas tags na corrente.
— A coisa é, não importa o que eu quero. O médico diz que a chance
de ela acordar é pequena. Eu sei, você a deu para mim uma vez. Talvez
você realmente não tenha tido uma escolha sobre isso; talvez se tivesse,
não teria dado, mas eu sei que você a confiou a mim. — Ele cerrou os
olhos. — Então agora eu a devolvo para você, Ike. Cuide dela. Cuide da
nossa criança. — Sua voz rachou de emoção fazendo meu coração apertar
no meu peito. Ele sabia sobre o bebê. — O médico nos disse a alguns dias
que ela está grávida. Ele disse que foi um milagre a gravidez ter
sobrevivido a tudo o que ela passou, — ele bufou. — Eu acho que é o
sangue McDermott.
— Nossa família é teimosa como o inferno, — eu concordei,
lágrimas ardendo nos meus olhos.
— Não sei se é menino ou menina, mas ensine-os a pescar. E
ensine-os sobre boa música.
Eu estremeci, a dor do meu irmão ofuscando a minha. Eu sabia
que tudo ficaria bem para ele, que ele conheceria seu filho, mas ele não
sabia. As palavras de Axel de antes ressoaram em algum lugar no fundo
da minha mente. George e eu estávamos experimentando a mesma dor,
principalmente. A diferença era que George estava sendo bondoso.
— Você vai ser um pai incrível, George, — eu disse a ele, uma
mistura requintada de dor e alegria em mim. Eu imaginava os anos à
frente dele, o jeito que ele envelheceria e se pareceria cada vez mais com
nosso pai a cada dia que passasse. Eu vi um garoto de cabelos escuros
com olhos cinzentos de pé ao lado dele no rio, a luz do sol refletindo na
superfície, linhas de pesca dançando sobre a água enquanto George lhe
contava sobre os segredos da vida, assim como nosso pai tinha feito
conosco. Eu vi a felicidade que essa vida traria para muitas das pessoas
que eu amava, e percebi que isso era muito mais do que um triângulo
amoroso; muito mais do que eu, Charlotte ou George. — Eu te amo,
irmão. Tudo será como deveria ser. Cuide dela por mim.
Voltando para a porta, o olhar de Marlena encontrou o meu. Eu
balancei a cabeça em agradecimento. Eu finalmente entendi. Os cantos
de sua boca se levantaram e ela deu um pequeno aceno, então me
mandou de volta.
Capítulo quarenta e um
Charlotte

Eu encontrei Axel primeiro. Ele estava com Meadow, observando-a


enquanto ela perseguia borboletas. Ela estava rindo e o som era mais
bonito do que qualquer coisa que eu já tinha ouvido. Era pura alegria não
adulterada.
— Porque uma vez você foi escuridão, mas agora você é luz no
Senhor. Andai como filhos da luz. — Eu falei baixinho.
— Ficando bíblica em mim, hein? — Axel perguntou.
— Passei tantos domingos na igreja quanto você. Alguns versos
ficaram comigo.
— Sua mãe, a professora da escola dominical ficaria orgulhosa, —
brincou ele.
Eu dei um sorriso fraco, meu olhar ainda fixo em Meadow. — Se
você pudesse ter visto onde ela estava... era horrível.
Ele assentiu em compreensão. — Espero que ela não se lembre
disso. Espero que tudo que ela lembre seja o que tem aqui.
— Eu também.
— Ela gosta de rir. É como se sentíssemos a mesma paz, estamos
todos no céu, mas ela recebe algum tipo de versão 3-D, onde tudo é maior
e mais brilhante.
Sorri ao modo como ele descreveu, lembrando-me de algo que
nossa mãe dissera sobre crianças como Meadow, que elas viam o mundo
de uma maneira que a pessoa comum não podia. Eu estava feliz por ela
ter mantido isso nela. Não havia dúvida de que Meadow via tudo de
maneira diferente, e o que quer que visse a deixava ainda mais feliz.
— Você fez bem, mana. — Ele assentiu enquanto observávamos
Meadow estender os braços e ficar completamente imóvel, permitindo que
uma horda de borboletas pousasse sobre ela. — Eu sei que existem
muitas camadas para toda essa provação, mas o que você faz, Char… é
especial. Veja o que você deu a ela. Você. Você a trouxe aqui.
Meus olhos lacrimejaram. Eu me senti envergonhada de alguma
forma. Houve tantas vezes que eu me ressenti do meu dom. Tantas vezes
questionei a Deus e seu raciocínio. Eu não tinha certeza se merecia
alguma notoriedade ou elogio. Meadow balançou os braços para cima e a
massa de borboletas cor de arco-íris levantou voo. Ela soltou um grito
enquanto corria atrás delas. Algo vibrou no meu estômago,
orgulho. Apesar da culpa que sentia, eu estava orgulhosa. Eu tinha
desempenhado um papel trazendo esta garota solitária, abusada e
esquecida para sua eternidade. Quando pensei sobre o que ela
suportou; em quão horrível sua vida tinha terminado para agora vê-la
aqui, eu estava agradecida. Eu ajudei muitas almas, mas nunca soube
para onde as estava enviando. Eu estava agradecida por ter conseguido
ver sua jornada por todo o caminho. Eu sabia que ela estava bem e que
essa garota preciosa estava em paz.
Limpando a garganta, perguntei-lhe: — Você faria algo por mim,
Axel?
Ele se virou para mim e sem hesitação disse: — Qualquer coisa.
Meu coração se aqueceu. Ele era um irmão incrível. Não importava
o que eu ia pedir, ele faria isso. — Ike e eu decidimos adotá-la, ou melhor,
cuidar dela. Não tenho certeza se você pode adotar alguém aqui. De
qualquer forma... isso foi antes... — meu olhar caiu. — Antes de tudo que
aconteceu. Você ajudaria Ike a cuidar dela? Por favor? — Eu levantei
minha cabeça e encontrei seu olhar.
— Claro que vou. Não se preocupe, irmãzinha. Eu cuidarei dela.
Meus olhos lacrimejaram. — Eu vou sentir muito a sua falta, Axel,
— eu choraminguei quando meu lábio tremeu.
Seus olhos marejaram, mas nenhuma lágrima foi derramada. Ele
não se deixou chorar. — Sim, eu vou sentir sua falta também, garota. —
Ele estava tentando parecer brincalhão. Eu sabia que era o seu jeito de
lutar contra a tristeza que ele estava sentindo.
— Você foi o melhor... — Eu parei e tentei novamente: — Você é o
melhor irmão que uma garota poderia ter tido. Espero que você saiba o
que significa para mim. — Lágrimas rolaram pelas minhas bochechas,
mas não me incomodei em limpá-las. Mais seguiriam.
Axel me puxou e me abraçou. Eu me agarrei a ele e chorei, enfiando
meu rosto em seu ombro. — Você sabe, irmãzinha, — ele murmurou, —
a única coisa que eu sempre quis para você foi tudo. Você merece tudo,
Charlotte. Prometa-me que viverá todos os dias ao máximo. Prometa-me
que não desejará que o tempo passe.
Eu lamentei. — Eu prometo.
Ele me apertou com mais força até que meu choro se acalmou um
pouco antes que ele me arrancasse dele. Seus olhos estavam inchados e
vermelhos. — Vá ver o Ike. Meadow e eu nos encontraremos com você na
casa de Vovó. — Eu não tinha certeza se ele queria que eu fosse, para
que pudesse ter um momento para se recuperar, ou se realmente queria
ter certeza de que eu me despedisse de Ike. De qualquer maneira, em um
lugar onde o tempo não existia, era a hora.
— Te vejo daqui a pouco, — eu disse a ele, então me afastei.
Capítulo quarenta e dois
Ike

Eu sabia que em algum momento Charlotte me encontraria, então


esperei no lugar mais óbvio.
Nosso lugar.
Deitado sob a sombra da nossa árvore, fechei os olhos e escutei. As
corredeiras e o vento me acalmaram.
— Ike, — a voz de Charlotte me chamou quando senti algo
suavemente acariciando meu rosto. Não abri os olhos, não sabia se
estava sonhando ou não.
— Ike, — ela sussurrou novamente. Então ela levantou meu braço
e deitou ao meu lado, descansando a cabeça no meu peito. — Houve
tantas vezes que me deitei debaixo desta árvore depois que você partiu e
apenas olhei para cima. Sempre amei a maneira como o sol espiava por
entre as folhas no outono.
— Você falou comigo, — eu disse.
Ela se acalmou. — Você me ouviu?
— Eu achei que estava imaginando isso. — Abrindo os olhos,
inclinei a cabeça para olhar para ela. — Sinto muito… sobre o jeito que
fiquei no hospital. Eu não me orgulho disso.
Debruçando-se, ela segurou minha bochecha com a mão e olhou
nos meus olhos. — Você nunca deve se desculpar. Lamento você
descobrir assim. Eu sei que foi difícil para você.
Nós nos olhamos um momento antes de eu perguntar: — Então é
isso, hein? Parece um pequeno déjà vu.
Um sorriso triste capturou sua boca. — Sim.
Rolando-a de costas, olhei para ela. Seu cabelo escuro estava
espalhado sobre uma variedade de folhas coloridas. Passei o dedo pelo
nariz dela até o lábio inferior e depois até o peito. — Eu sei que você está
preocupada comigo... ou se sente mal por mim. Mas não faça isso.
Seus olhos se encheram de lágrimas. — Eu sinto que tudo que faço
é te machucar. Nunca intencionalmente, mas minha existência está
sempre lhe trazendo dor.
— Você sabe que isso não é verdade. Você sabe disso. — Com o
polegar, peguei uma lágrima descendo pelo rosto dela. — Sabe quando
houve momentos que você sentiu que seu dom fosse mais uma
maldição? Dias em que desejou que não o tivesse?
Ela assentiu.
— Se você pudesse escolher… você teria? Você desejaria não tê-lo
para não sentir a dor de tudo isso?
Ela deixou seu olhar cair. — Às vezes... antes que eu realmente
soubesse o que estava fazendo… talvez. Mas não. Eu odiei isso de muitas
maneiras, mas não acho que poderia desistir disso.
— E por que isto?
— Porque para cada parte horrível… existem as boas. Eu ajudei
muitas pessoas. Como Meadow. Se eu não tivesse o meu dom... não teria
sido capaz de ajudá-la.
— Então você escolheria suportar as partes duras, o sofrimento
pelo bem maior?
Sua voz falhou quando ela respondeu: — Eu faria.
— E é assim que me sinto sobre amar você. Não há escolha
nisso. Eu só amo. Mas mesmo se de alguma forma eu pudesse apagar
você da minha mente, tirar a mágoa e decepção que sinto por ter que
deixá-la ir novamente... ter que te dar ao meu irmão... de novo... eu não
faria. Para todo o mal… há muito bem.
Ela soluçou e cobriu o rosto. — Eu sinto muito, Ike. Eu sinto
muito. Eu não posso suportar machucar você.
Puxando as mãos dela, sentei-a. — Não chore mais, Charlotte. Não
temos muito tempo. — Ela engoliu em seco e enxugou o rosto. — Eu
quero dizer as palavras certas para você. Quero te dar conforto e te enviar
em paz. — Respirei fundo, me equilibrando. — Eu gostaria de poder dizer
que estou em paz com isso, que estou bem. Mas eu não posso. Eu não
estou bem com isso. Eu não estou bem em ter que deixá-la ir de
novo. Mas... estou bem em não estar bem com isso. — Eu ri tristemente
para mim mesmo. Eu não achei que qualquer coisa que estivesse dizendo
fizesse sentido. Tudo o que Charlotte provavelmente ouviu foi
bobagem. — Eu tenho perguntado por quê? Por que tenho que dizer
adeus novamente? Estou sendo punido? Mas percebi que talvez não haja
o feliz para sempre aqui, pelo menos não da maneira que imaginei. Nada
disso entre você, eu e George será simples ou um conto de fadas. Eu
tenho esperado e almejado esse tipo de paz. Era assim que achei que
deveria ser.
— Eu também achei isso, — ela choramingou, seu lábio tremendo.
Eu balancei a cabeça. — Acho que uma parte de você e de mim
sempre lutou contra o que é porque não poderíamos deixar passar o que
poderia ser. Nossa paz não está apenas um no outro.
Ela estreitou os olhos em confusão. Eu não era o melhor em
explicar meus sentimentos, e fechei meus olhos e conversei comigo
mesmo em silencio. Faça-a entender, Ike.
— Quero dizer… acho que somos parte de algo maior. Nós sempre
soubemos que você era. Quero dizer... seu dom, mas onde George e eu
nos encaixamos? Qual o significado ou propósito de nos apaixonarmos
pela mesma mulher? — Eu bufei uma risada. — Eu estava morto. Quais
eram as chances disso... de tudo isso?
Ela piscou algumas vezes. — O que você está dizendo, Ike?
Eu a peguei pelos braços e apertei. — Estou dizendo que você
deveria ajudar as almas. Eu rezei por algo que acordasse George e o
salvasse... então você apareceu. Eu estava destinado a te salvar quando
você estava prestes a se matar. Você estava destinada a salvar George e
se apaixonar por ele e ter seu filho. Meus pais perderam um filho e agora
terão um neto. Seus pais perderam o único filho deles e agora terão seu
filho. Meadow estava trancada em um quarto escuro depois de morrer de
uma maneira horrível, e eu deveria estar aqui... por ela. Você estava
destinada a trazê-la para mim. Continuamos olhando para essa dinâmica
de três pontos; as complicações entre você, eu e George, mas somos
apenas três pontos em um plano de ponto ilimitado.
— Você soa como Marlena, — ela murmurou.
— Ela está certa, no entanto. O amor é... maior que nós. Nós não
podemos fazer escolhas sobre isso. A única escolha que temos é como
nos movemos sobre isso. A única coisa que posso fazer é dar-lhe a minha
bênção. Aconteça o que acontecer, onde quer que você esteja, meu
coração é seu. Sempre.
Fluxos de lágrimas correram pelas suas bochechas. Tomando seu
rosto em minhas mãos eu fechei meu olhar com o dela. — Eu te amo,
Charlotte. Eu vou te amar para sempre. É o que eu devo fazer.
Ela me abraçou, me apertando com força. Quando ela se afastou,
seus olhos encontraram os meus e ela me beijou.
Então, nos despedimos sem palavras.
Capítulo quarenta e três
Charlotte

Ike e eu nos deitamos debaixo de nossa árvore, lado a lado, de mãos


dadas. Despedimo-nos da nossa maneira, um adeus lento e suave. Nós
tínhamos aproveitado ao máximo nossos últimos minutos juntos. Agora
estávamos quietos, absorvendo o inevitável.
— Obrigado, Charlotte.
Virando a cabeça, olhei para ele, mas ele tinha o olhar fixo nos
galhos das árvores acima de nós. O sol vazava entre as folhas brilhantes,
traços de sombra e luz dançando em seu rosto. Ele era tão bonito, e
lembrei meu coração de nunca esquecer como ele parecia neste
momento. — Pelo quê?
— Pelo meu sobrinho. Ele vai trazer muita felicidade para tantas
pessoas. Saber disso é provavelmente uma das poucas razões pelas quais
estou bem agora. Todas as pessoas que amo; que amamos; seus
corações encontrarão muita paz com sua existência.
Seu olhar ainda estava fixo nos galhos acima. — Você vê isso,
Charlotte?
Movendo meu olhar para cima, na luz e cor, eu vi um doce senhor
com sobrancelhas grossas entregando a um menino uma casquinha de
sorvete enquanto se sentava em um banquinho atrás do balcão no posto
de gasolina do Mercer. Na imagem seguinte, George e o pai estavam de
pé de cada lado do mesmo menino, os três lançando linhas sobre a
água. Outro com minha sogra Beverly balançando-o para dormir mesmo
que ele fosse grande demais para sentar em seu colo, mas ela o seguraria
o máximo que pudesse. O sorriso largo do tio Cameron enquanto
perseguia uma criancinha gordinha rindo ao redor, fingindo que ser um
dinossauro prestes a comê-lo. Meu pai e minha mãe na multidão em um
desfile, seu neto sentado nos ombros do meu pai enquanto ele agitava
uma pequena bandeira americana. Por fim, havia George, dormindo no
sofá, seu filho recém-nascido descansando pacificamente em seu peito.
— Tanto amor, Charlotte. Olhe o que você dá.
Eu não queria chorar. Não mais. Não nos meus últimos momentos
deste lado, com Ike. Eu não respondi, temendo que, se falasse, perdesse
a frágil contensão que tinha em controlar isso.
— E por Meadow, — Ike continuou quando não respondi. —
Obrigado por Meadow. Eu acho que preciso dela tanto quanto ela precisa
de mim. — Ele riu baixinho pelo nariz. — É engraçado como as coisas
funcionam. — Embora seu tom tivesse um toque de humor, ele soou mais
humilde. — Eu sempre quis uma filha e você me deu uma.
— Ela é a garota mais sortuda que existe por tê-lo como pai, Ike. —
Ele ainda não estava olhando para mim, mas eu não conseguia tirar
meus olhos dele. Eu sabia que nunca conheceria alguém tão bom quanto
Ike McDermott. Ele era o melhor de nós. Deus quebrou o molde deste
homem.
Nesse momento, um sentimento veio sobre mim, forte e puxando.
Meu coração apertou entendendo completamente o que estava
acontecendo.
Eu estava acordando.
Era hora de voltar.
Nós já tínhamos concordado que eu deixaria Ike aqui, este seria o
último lugar que veríamos um ao outro até que a morte me devolvesse. Eu
abraçaria meu irmão, minha avó e a Sra. Mercer. Então encontraria
Meadow e lhe diria o quanto ela era especial para mim antes de pegar a
mão do meu filho e partir.
— É hora, Ike, — eu consegui dizer, minha garganta apertada
enquanto lutava como o inferno para conter os soluços tentando escapar
de mim.
Ele balançou a cabeça, antes de se virar para olhar para mim. Seus
olhos estavam escuros, aprofundados pelos sentimentos que eu sabia
que ele estava tentando manter à distância. Nossas mãos ainda estavam
unidas quando ele as levantou e beijou meus dedos. — Eu estarei aqui,
esperando por você.
Erguendo-me, rolei para o meu lado para que minha cabeça
estivesse acima dele. Nossos olhares se trancaram. — Feche seus olhos,
Ike. — Eu não queria que ele me visse desaparecer.
Ele engoliu em seco, estendendo a mão para capturar uma mecha
do meu cabelo entre os dedos. Ele entendeu o que eu estava pedindo e
por que eu estava pedindo. — Vá ser a lua e florescer, Charlotte.
Seus olhos escanearam meu rosto e ele me deu um último olhar de
saudade. Sem outra palavra, suas pálpebras se fecharam lentamente e
ele deixou as mãos descansarem no peito.
Aproximando-me, minha boca apenas uma respiração longe da
dele, sussurrei: — Aqui, lá, para sempre. Sempre, Ike. Sempre. —
Escovando meus lábios contra os dele, eu fechei meus olhos e me forcei
a deixar minha alma gêmea.
Capítulo quarenta e quatro
George

Depois de meses de terapia e reabilitação brutais, minha esposa


estava finalmente voltando ao seu antigo eu. Embora agora estivéssemos
lidando com um tipo diferente de desconforto.
Eu já estava na cama quando Charlotte saiu do banheiro de banho
tomado, com a boca torcida.
— O que há de errado? — Eu perguntei.
— Eu sou uma baleia, — ela suspirou. — Nem minhas roupas de
maternidade servem mais.
Ela estava usando um sutiã e uma calcinha atrevida, e quando se
sentou na cama e esfregou sua barriga inchada, eu lhe disse: — Eu nunca
te vi mais bonita, Charlotte.
Torcendo seu pescoço, ela olhou para mim, seus olhos
suaves. Alcançando a mesa de cabeceira, ela pegou sua garrafa de óleo
de amêndoas e entregou a mim antes de recuar, descansando contra seus
travesseiros. — Você vai esfregar loção na minha barriga grande e bonita,
— ela sorriu.
Ficando de joelhos, esguichei um pouco na minha mão e esfreguei
nas palmas para aquecê-la antes de cobrir sua barriga.
— Você está feliz, George? — Perguntou ela. Meu olhar foi para o
dela, e parei de esfregar.
— Eu sou grato. — Olhando para as minhas mãos, sabendo que
meu filho estava crescendo dentro dela e estaria aqui em possivelmente
algumas semanas, meu coração estava sobrecarregado de
gratidão. Minha esposa, o amor da minha vida, não só sobreviveu a um
terrível acidente, mas voltou para mim com nosso filho. Eu era
abençoado.
Voltei a esfregar a loção enquanto prosseguia: — Você está feliz,
Charlotte?
Seus olhos escuros brilharam com lágrimas enquanto seu corpo
estremecia de emoção.
— O quê? — Eu perguntei em pânico, meu corpo
enrijecendo. Havia algo errado com o bebê? Ela estava com dor?
— É difícil de explicar, — ela murmurou antes de limpar sob seus
olhos com os dedos. Quando ela voltou seu olhar para o meu, ela disse:
— Eu não sabia que podia sentir tanta felicidade. Ele nem está aqui
ainda, e eu já o amo muito. E continuo imaginando você com ele porque
eu sei que você vai ser, sem dúvida, o pai mais incrível do mundo.
Relaxando, inclinei-me e beijei sua barriga. — É incrível que
tenhamos feito isso... nosso amor fez isso, — eu disse a ela.
Descendo a mão, ela enfiou os dedos no meu cabelo. — Você está
com medo? — Ela perguntou baixinho.
Rastejando sobre ela, usando meus braços para apoiar meu peso,
eu a beijei.
Olhando profundamente nos olhos dela, eu respondi: — De jeito
nenhum. Nós vamos ter uma vida incrível, Charlotte. Nosso filho vai ter
a vida mais incrível. Eu prometo.
Eu a beijei novamente antes de fazer amor com ela, e quando ela
adormeceu, exausta e satisfeita, antes de me afastar, fiz questão de orar
e agradecer.
Epílogo

Eu nunca percebi o quão surpreendente um bebê recém-nascido


podia cheirar. Jennings Ike McDermott estava dormindo no meu peito,
sua cabecinha fofa logo abaixo do meu queixo. George estava dormindo
na cadeira ao nosso lado.
— Seu pai está muito cansado, — eu sussurrei para Jennings. —
Ele mal dormiu nas últimas semanas, ele estava tão animado para
conhecê-lo. — Era verdade. George, como diria Vovó, apto para ser
amarrado, ele estava tão empolgado. Desde o dia em que acordei e
durante toda a gravidez, ele foi meu pilar de força.
A porta do meu quarto se abriu e minha mãe entrou. — Vamos
para o hotel, — ela me disse baixinho. Meus pais estiveram no hospital
durante o parto, não no quarto, mas nas proximidades. Nós estávamos
trabalhando em consertar nosso relacionamento e eles tinham sido uma
grande ajuda na minha recuperação. Mesmo que eu só tenha ficado em
coma por cinco dias, tive que aprender a andar de novo, e demorou
alguns meses até que minha memória retornasse completamente. Eu fui
um milagre médico.
Marlena fazia questão de me lembrar disso todas as vezes que
conversávamos pelo Skype.
— Eu me esqueci de dar isso a você mais cedo. — Ela puxou uma
pequena caixa de sua bolsa, embrulhada em papel de Natal. — Seu avô
o embrulhou. Papel de embrulho de Natal era tudo o que ele tinha.
Eu sorri quando mudei Jennings no meu peito e libertei minhas
mãos. — Isso foi doce da parte dele.
— Ele lamenta não poder estar aqui para conhecer Jennings, mas
ficou incrivelmente tocado por você nomeá-lo em homenagem a ele.
Minha mente foi para Vovó. — É como se já tivessem decidido por
mim, — pensei. Desembrulhando a caixa, abri-a e meu coração se
apertou em meu peito. Era o relógio de bolso do meu avô. Lágrimas
brotaram nos meus olhos.
— Ele limpou e tudo.
— É perfeito, — eu murmurei através da minha emoção.
— Oh, querida, — minha mãe arrulhou. — Você está bem? Os
hormônios enlouquecem depois de dar à luz.
Eu assenti enquanto girava o botão dar corda no relógio. Quando
começou a funcionar, sorri. — É incrível. Mesmo.
Inclinando-se ela beijou minha testa, em seguida, beijou a cabeça
de Jennings gentilmente. — Eu vou te ver de manhã.
Ela saiu tão silenciosamente quanto entrou. Eu segurei o relógio
na minha mão e olhei para o ponteiro dos segundos. Senti o cheiro da
cabeça do meu filho novamente, respirando sua vida e a gratidão que
sentia. E eu pensei em Ike. Toda essa alegria… que Ike me deu.
Por causa de Ike e seu amor, eu vivi. Ike não apenas salvou minha
vida, ele me deu uma vida. Ike levou-me a Warm Springs, a amigos, a
família. Eu encontrei com ele e George, um amor que não podia ser
explicado porque, por mais clichê que parecesse, era como nenhum
outro. Esses homens eram meu coração, e tão árduo como tinha sido, era
tão tragicamente lindo.
As pessoas passam a vida inteira em busca do amor de suas
vidas; sua alma gêmea. Muitos passam para a próxima vida sem nunca
conhecer a felicidade desse tipo de amor. Depois, havia eu: Charlotte
McDermott, uma mulher que vê almas mortas e perdidas, com um amor
na minha vida e uma alma gêmea. Talvez não fosse justo que eu tivesse
um de cada um, mas se aprendi alguma coisa com meu tempo do outro
lado, foi que enquanto a vida pode não ser justa, sempre é exatamente o
que deveria ser.
No final... tudo se resume a uma conclusão definitiva e constante...
Amor.

Fim

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