Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
que um ser racional pode sentir. É uma emoção que nos vai acompanhando ao longo da
vida, tal qual como um amigo imaginário. Obviamente, como qualquer outra relação,
esta também vai ter os seus altos e baixos, porém, para o bem ou para o mal, o medo
Eu ainda me lembro da primeira vez que me dei caras com o meu fiel parceiro.
Eu ainda era uma criança, a tentar adaptar-se a uma nova realidade. Já estava a começar
ser um foco de atenção, resultado de ser uma filha única. Porém, quando o Sol, já
cansado, despedia-se e era trocado pela sua amante, a Lua, e trazia com ela a noite, a
noite era só fria, negra e solitária. Foi neste escuro profundo que eu o vi pela primeira
vez.
Era um monstro arrepiante. A primeira coisa que eu reparei foi o seu tamanho. O
corpo dele assemelhava-se a um corpo de um urso, enorme e peludo. O seu pelo parecia
áspero e maltratado. Ele tinha uns olhos amarelos que brilhavam no escuro, quase como
os olhos de uma cobra. O seu sorriso era quase como um de um palhaço, contudo os
seus dentes eram afiados e baba escorria pelo canto da sua boca. Tinha dois cornos
pontiagudos e longos, que quase tocavam no teto do meu quarto. Tinha seis braços
gordos e felpudos, cada um com quatro dedos e com unhas que nunca mais acabavam.
As suas pernas também eram gordas, porém eram pequenas. Ele também tinha uma
cauda longa que quase o enrolava, e era apenas semeada com um pouco de pelo.
Assim que o vi, no canto do meu quarto, a minha primeira reação foi enterrar-me
nos meus lençóis e fechar os meus olhos, rezando que não era comida durante a noite.
Isto foi acontecendo ao longo de algumas semanas. Ele aparecia, sempre no mesmo sítio
eu fui apercebendo, que sempre que acordava, este monstro nunca deixava qualquer
vestígio da sua visita. Eu nunca tinha nenhum arranhão e nem uma dentada, e o meu
quarto permanecia igual, sem nenhuma poça de baba e nem um pelo. Esta realização fez
com que eu começasse a ser cada ver mais corajosa durante a noite. Primeiro, eu
deixava a minha nuca de fora, depois a minha testa e assim em diante. A partir de uma
altura eu já era capaz de olhar para ele, da mesma forma que ele olhava para mim.
Havia noites em que eu até tinha coragem suficiente para falar com ele, porém ele nunca
respondia. Eu assumia que ele era mudo e que se calhar estava à procura de companhia,
pois como eu, também devia sentir uma solidão imensa durante a noite. A sua presença
fez com que eu já não sentisse tão mal durante a noite, e havia alturas em que eu até
ansiava a sua visita. Devido a isto, ele foi aparecendo cada vez menos, até um dia em
que nunca mais voltou. Esta foi a primeira vez que conheci o Medo.
tempo. Quando eu estava a começar a aprender a nadar, ele estava lá, sentado nas
estava ele num banco a olhar para mim. Quando tinha que fazer uma apresentação à
frente da minha turma, ele já estava ali sentado no meu lugar. Quando eu tinha que furar
uma multidão, eu já conseguia sentir a sua presença atrás de mim. Apesar destes
constantes encontros, alguns até aconteciam no mesmo dia, acontecia sempre algo
quantidade de vezes que eu já o vi. Tornava-me sempre naquela rapariga que estava
enterrada em camada de lençóis, a tremer e a fazer um esforço tremendo para não gritar
e chorar. Por mais que tentasse, não conseguia livrar-me daqueles arrepios que
passavam pelo meu corpo ou as fortes palpitações do meu coração que até parecia que
estava preso na minha garganta. Depois desse encontro inicial, eu ia ficando cada vez
Apesar disso, a nossa dinâmica foi alterando-se aos pouquinhos. Nos primeiros
anos, a sua presença fazia com que eu ficasse completamente atrofiada. Acobardava-me
num canto e derramava lágrimas pela minha face, com esperança que os meus pais
espantava com tanta facilidade. Aliás, começou a acontecer o contrário. Sempre que eu
via aquele monstro e sentia o meu coração a palpitar como se eu acabasse de correr uma
milha sem parar, eu já estava mais que pronta para enfrentar o obstáculo que estava há
minha frente. Quando dei por mim, eu já não era aquela criança que ficava
absolutamente imobilizada perante o Medo, mas sim uma mulher ousada e destemida.
Infelizmente, com esta nova dinâmica, a minha ousadia passou a ser arrogância e
presunção perante o meu amigo. Ele deve ter sentido que eu precisava de aprender uma
lição e foi isso que ele fez. O Medo apresentou-me com um fantasma que ainda me
meu. Ainda me lembro de o ver no canto do meu olho durante o funeral, mas não foi a
sua presença em si que me marcou, mas sim o seu sorriso sádico, pois ele sabia o que
contudo, a sua morte proporcionou uma espiral mental que me atormentou como nada
antes. Sempre me identifiquei como uma pessoa curiosa, sempre a tentar perceber como
o mundo funciona, sempre à procura de uma resposta para as minhas mil e umas
perguntas. Porém a morte não me consegue dar as respostas que eu tanto anseio. São
a minha ousadia a dissipar do meu corpo. Parecia que eu tinha viajado no tempo e que
O meu desespero perante a morte não foi suficiente para o meu companheiro,
pois ele sempre teve uma veia de crueldade. Ele apresentou-me a outra grande questão
da vida. O futuro.
A minha curiosidade vai ficando cada vez mais sôfrega, pois, mais uma vez, fica
sem qualquer vestígio de uma resposta. Tal como a morte, o futuro consiste-se a um
garantia. Sem nenhuma certeza, a minha cabeça anda mil à hora, com perguntas que só
me vão desanimando cada vez mais. Será que eu vou arranjar um trabalho? Será que eu
vou ter uma casa para viver? Será que eu vou me arrepender para o resto da minha vida
de decisões que eu tomo hoje? Será que eu vou encontrar alguém ou se eu irei morrer
sozinha? Será que eu alguma vez serei verdadeiramente feliz? Será que eu vou morrer
Estas perguntas assombram-me e não há dia que elas não me passam na cabeça.
descansar a minha mente. O meu primeiro obstáculo, aquele em que eu orgulhava tanto
de ser capaz de ultrapassar, quase como se estivesse a fazer uma participação especial
pois no fim do dia, somos apenas um ser que vive numa pedra, que está rodeado por
outras pedras e estrelas, que criam galáxias e que, por sua vez, constituem um universo
que está em constante expansão. Com isto tudo, é impossível dar importância às nossas
escolhas, o que vai causar com que a nossa vida não tem nenhum significado. Somos
apenas uma nota de rodapé na história do universo. Essa ideia é capaz de debilitar
Dentro desta crise existencial, sempre existiu algo que me conforta é algo que o
Medo não suspeitava, devido ao seu carácter narcisista. Eu não estou sozinha neste
sofrimento, porque eu não sou a única que se sente assim. Não sou a única que tem
medo da morte. Não sou a única que tem medo de nunca encontrar um propósito para a
minha vida. Não sou a única que tem medo de nunca ser feliz. Ao contrário da
pertença. Sempre que descubro que alguém passou por isto e que conseguiu dominar o
seu monstro, ganho um pouco de esperança. Faz-me acreditar que um dia eu serei capaz
de alcançar o mesmo.
Ainda sou nova e tenho plena consciência que ainda vou ter diversos encontros
com o meu Medo. Sei que eu e ele estaremos sempre ligados, que se a companhia é uma
das poucas garantias que a vida me proporciona. Não obstante, eu continuo positiva
perante esta situação. Estou otimista, pois sei que vai haver um dia, eu vou ser capaz de
transcender o meu verdadeiro inimigo. Não sei se será amanhã, se será daqui a dez anos
ou mesmo no leito da minha morte, mas sei que vai haver um dia que vou deixar de ter