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Agora eu moro em mim

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Nunes, Francyelle
Agora eu moro em mim [livro eletrônico] :
poemas sobre dor e libertação / Francyelle
Nunes. -- Goiânia, GO : Ed. da Autora, 2022.
PDF.

ISBN 978-65-00-47513-5

1. Dor 2. Libertação 3. Poesia brasileira


I. Título.

22-118152 CDD-B869.1
Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia : Literatura brasileira B869.1

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Sumário
Parte I - Confronto ..................................... 04
Parte II - Libertação .................................... 10

Parte III - Reconhecimento ......................... 17

Parte III - Reencontro ................................. 24


Agora eu moro em mim
Parte I 4

Confronto
5 Confronto

Débitos
Fim do mês
Sento-me para calcular as despesas
Entre contas e cadernetas, uma verdade se escancara
sobre a mesa
As dívidas mais caras, eu tenho comigo mesma

Eu x Eu
Do lado de dentro tento abrir a porta pra sair
Mas do lado de fora, eu seguro a maçaneta para me
impedir

Eu sei que é foda


Se conhecer pode causar espanto
A questão é: quem é você quando não está em bando?

Canalhinha
De olhos tapados, eu me enxergava como uma ótima
pessoa
Agora eu moro em mim
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Teto de vidro
Defeitos fáceis de apontar no outro
Espelhos de você

Difícil para mim assistir você se maltratar


Fácil demais repetir quando paro para me
autocriticar

Por que é tão complicado se amar?

De repente, eu olhei para o lado e nada daquilo fazia


mais sentido
Eu, o ambiente e as companhias só tínhamos como
semelhança estarmos em desarmonia
Eu não descobri quem eu era naquele dia,
mas descobri quem eu não queria mais me forçar a ser
7 Confronto

Um dia você sente falta


Um dia todo mundo sente
Muito ou pouco acaba sentindo
E o orgulho vai engolindo
A vida e as emoções

Não venha pagar de louco


Se foi teu o poder da escolha
É covardia culpar o outro

Quando percebi minha hipocrisia em incentivar o


autoamor cobrando servidão,
descobri que ninguém jamais deverá me dar
exatamente o que eu desejo receber
Agora eu moro em mim
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A morte te observa com um olhar de ironia
Pra quê tanto medo, se você só desperdiça a vida?

Humildade não é sobre como você lida com o outro,


isso é mera consequência
Humildade tem a ver com o reconhecer da fragilidade
de sua própria existência

Lidar com a opinião do outro, por vezes,


é doloroso
Mas confiar só no que você pensa sobre si,
é pior ainda

Enquanto as gotas caem sob o quintal,


reflito sobre meu novo eu
Penso no passado, encaro o presente
Sinto-me parte de algo maior que talvez eu venha a
ser no futuro
Mas por ora, só me resta a confusão e a incerteza de
quanto tempo
essa minha tempestade ainda vai durar.
9 Confronto

Para ressus(citar) em
frente ao espelho

Qual é, doidera?!
Levanta o corpo, num desanima
A coisa tá braba, mas segue essa rima
Bola pra frente, cabeça pra cima
Agora eu moro em mim
Parte II 10

Libertação
11 Libertação

Imperfeição materna
Faltou tempo, paciência e mediação das palavras.
Mas eu nunca a vi faltar um dia de trabalho,
nem quando estava com dores.
Faltou carinho, faltou o cultivo de um laço para
nos unir.
Mas nunca faltou comida na mesa, nem roupas
ou mimos.
Não seria ingratidão ter desafeto por essa mulher,
seria injustiça.

Eu bem quis culpar minha mãe por todas as desgraças


que ocorreram sentimentalmente em minha vida,
culpá-la por eu também ser, por vezes, tão fria e
violenta.
Contudo, a experiência tem me mostrado que todos
nós temos
feridas próprias para remediar.

Viver apontando para os culpados não é um


tratamento eficaz.
Agora eu moro em mim
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E todavia, o destino também me fez uma mulher
empática o suficiente para aceitar que se fosse eu
sendo mãe aos dezessete, na mesma situação que
ela, talvez não conseguisse garantir metade do que
sozinha ela garantirá para mim e meu irmão.

Minha mãe nunca soube me dar o amor que precisei


e esperava dela. Mas hoje eu consigo entender que
todos fomos vítimas.

Nosso contexto social nos prendeu aos problemas


ocultando as brechas que tínhamos para experimentar
diferentes nuances do que é amar.
13 Libertação

Uma carta para meu pai


Queria ter beijado seu rosto
Queria ter lhe dado mais abraços
Queria ter ouvido mais histórias
Queria que você tivesse me buscado mais vezes nas
férias
Queria conhecer o homem por trás do adjetivo “pai”
Mas o álcool diluiu os anos depressa
O vício roubou você de você
e também roubou você de mim
Eu tentei, mas nunca te esqueci
Eu era a criança tentando preservar o desamor pra me
proteger das mágoas
que você me fazia passar
Mas quando te vi naquele caixão, percebi que o meu
abandono não foi planejado
Era mais um resultado do seu constante autoabandono
Eu não tive culpa e você se afundou nas suas
A bebida que nos distanciou ainda cedo, foi te
matando aos poucos
E enquanto eu acariciava seu corpo imóvel e já frio,
só passava pela minha cabeça
o que eu desejava ter lhe confessado em vida: pai, eu
sempre amei você.
Agora eu moro em mim
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Meu grande amor insensível
Você me machucava de um jeito diferente
Sem xingamentos, sem gritos,
sem violência aparente
Na sua boca nunca faltava a palavra “desculpa”
Sempre depois de me fazer sofrer me dava carinho
prometendo mudar
Parecia loucura, mas mesmo sabendo que você
era o errado,
era eu que sempre sentia culpa

O futuro que planejamos foi virando agora


e o enredo se mantinha
Casa nova, negligência antiga
A cama que já estava gelada, foi ficando
ainda mais fria
E sem dinheiro para bancar minha partida, fui me
arrastando naquela mórbida rotina
Eu me espremia pro meu eu ainda caber em mim em
meio a tanta dor reprimida
15 Libertação

Por um bom tempo, seu amor foi um lar bonito


para eu morar,
até me fazer voltar pro cantinho escuro que eu
conheci lá na infância
De novo eu chorando nos cantos de um quarto me
sentindo sozinha, vazia

Lembro da minha pior crise e de você assistindo de


relance, sentado no seu pc
Ali, naquele instante humilhante em que eu e a dor
que você me causou
fomos invisibilizadas, eu entendi que você veio pra se
somar ao peso,
não para ser um ponto de alívio

Não quero que se sinta culpado se um dia ler isso, foi


coisa do destino
Seu amor era uma doença que por carência eu
enxerguei como antídoto
Agora eu moro em mim
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Cura universal
Todos merecem ser amados
Mesmo aqueles que machucam
Porque aqueles que machucam também foram um dia
machucados

O amor é a única maneira de encontrarmos salvação


para nossas almas perdidas

Perdoar é poder costurar


a ferida
que outro fez em você
Parte III
17

Reconhecimento
Agora eu moro em mim
18

Meu sorriso meio boca me entrega


Não tenho muita experiência em ser feliz

Histórico
Ai de mim, se não fosse as minhas dores
Ai de mim, se não tivesse as cicatrizes para lembrar
Ai de mim se não houvesse a memória do meu
sofrimento
Sem elas, eu sofreria muito mais.
19 Reconhecimento

Apontamento infeliz
Uma vez, lá pelo segundo ano de faculdade, chegou
aos meus ouvidos um comentário feito por uma colega
de classe. Na verdade, se tratava de um apontamento
sobre mim; “ela é desesperada por atenção
masculina”.
Lembro-me que, quando soube, fiquei
instantaneamente com raiva. Aquilo impregnou meus
pensamentos por dias me causando ódio e ira.

Hoje, depois de reconhecer o vazio, a insegurança


e a carência afetiva que o abandono paterno me
deixou, eu entendo porque senti tanta raiva daquela
afirmação. Era uma verdade que eu já tinha visto, mas
que eu não queria entender nem aceitar.

Ironia em meu instinto


Quanto mais me faço de forte,
mais frágil me sinto.
Agora eu moro em mim
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Reconhecimento
Não me sinto alguém boa ou má
Me sinto boa e má
Sou uma boa pessoa quando me motivo pelos meus
sonhos
Sou uma pessoa má quando me baseio nas memórias
O que fizeram comigo não dita o que sou,
mas com certeza mudou o que eu poderia ser.

Amante da imaginação
Sou ser que protagoniza a arte da observação
Contemplo o sublime e o belo
Gosto de investigar a natureza da sensação
Tenho fascínio pelo mundo do intangível
Daquilo que se constrói na interpretação.
21 Reconhecimento

SOU
Eu desisto, mas recomeço
Eu choro, mas limpo o rosto
Eu sangro, mas cicatrizo a alma
Eu desamo, mas redescubro o amor
Eu me forço a ficar, mas também me permito ir
Eu sofro, mas sonho
Eu tombo, mas levanto
Eu sou ímpar, mas posso ser par
Eu sou a sombra do sol e a luz do luar
Um ser simples complexo de se explicar
Eu sou parte de você e de tudo que no mundo há.

Sabote
Eu sei que posso o mundo,
mas as incertezas do dia a dia
me podam e eu afundo.

Tenho dentro de mim a mutabilidade do vento


Sou brisa leve
Mas também sou furacão
Agora eu moro em mim
22

Respostas nunca deram o caminho


Das dúvidas tiro o meu destino
23 Reconhecimento

Estranhice
Aos 23, eu definitivamente sei que sou uma pessoa
estranha.
Na adolescência, eu não me reconhecia como uma,
até forçava ser pra tentar ser cool. Talvez essa tenha
sido a primeira forma de tentar me camuflar já que
por baixo daquela peculiaridade forçada havia um ser
naturalmente estranho

A verdade é que eu sou uma vitamina de depressão


batida com esperança e com experiência, aos poucos,
estou adoçando meu sabor

Sou o prazer da companhia, mas também sou a


loucura e o bem-estar da solidão
Sou empática e hipócrita
Eu sou cuidado e egoísmo

Divago mais do que vivo no agora


Faço dos poemas um lembrete para estar aqui,
mas apago os rascunhos e volto a morar no passado.

Sou o fracasso não superado e o momento de sucesso


que não aproveitei.
Uma noite de insônia seguida por um bom cochilo da
tarde.
Sou de uma complexidade simples de entender

É que eu sou meio estranha, assim como você!


Agora eu moro em mim
Parte III 24

Reencontro
25 Reencontro

Adquirir confiança mudou minha vida


Queria compartilhar a receita com o mundo
Mas o modo de fazer requer ingredientes íntimos,
essencialmente profundos
que só podem ser comprados no armazém interno do
autoconhecer.

Um passarinho pediu pr’eu te cantar


Não espere momento perfeito para deixar-se
desabrochar
A vida é o agora, floresça em qualquer lugar.
Agora eu moro em mim
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Renascendo do ventre da minha
depressão
Pelo que me recordo, sempre fui de chorar rios
encolhida no canto do quarto. Juntando as peças da
memória, consigo enxergar uma menina pensativa,
calada, culposa e chorosa.
Muita solidão morando no coração de uma criança.
Me sentia rejeitada, um fardo para a família. Tão
grande que minha mãe sempre fazia questão de
ressaltar o quanto lhe saia caro, tão difícil de lidar que
meu pai nem me visitava.

Poucos foram os momentos de me sentir realmente


livre na infância, as observações me levavam a culpa.
Tentava pensar numa solução, mas só encontrava
silêncio e lágrimas.
Ainda bem que tive a presença de meu irmão para
me ajudar a desviar o foco dessas mágoas com
brincadeiras e brigas bobas. Ainda bem que ele estava
ali para ficar do meu lado no canto do quarto, para
concordar comigo, para me defender, para me ensinar
a tentar agir de modo mais racional. Mesmo sendo o
caçula, ele controlava melhor os sentimentos.
Meu irmão aplicava desde cedo um conceito que
eu só aprenderia décadas depois: o princípio do
“primeiro eu”.
27 Reencontro

Mas naquela época, e durante um bom tempo depois


dela, eu inconscientemente agia como uma serviçal
que tinha como demanda viver se auto sacrificando
em busca da recompensa de ser amada por alguém.
Não enxergava e nem pensava em me livrar dessas
amarras porque eu acreditava ser um fardo difícil de
lidar. Sendo assim, sem entregar serventia, jamais
mereceria o cuidado, o amor dos outros. Sem fazer
isso, eu seria apenas um peso morto. Sem me enterrar
dentro de mim, seria impossível receber o carinho que
eu desejava.

Já tinha até aceitado que eu devia ser para sempre


a melhor em tudo para ser vista, sempre a melhor
versão de mim para todos com quem eu fosse
conviver. Só que esses anos de entrega e de espera
me levaram a um cansaço extremo que sequestrou
minha alma. Eu percebi que o meu máximo não era o
bastante para que eles me dessem o mínimo. Vaguei
de dia no escuro da indiferença, sem identidade, sem
sonhos nem vontades.

Eu, que aceitei me negar para satisfazer os desejos de


familiares, amigos e namorados. Eu, que me forçava
Agora eu moro em mim
28
a esquecer meus sentimentos para exercer empatia
pelas pessoas, mesmo aquelas que escancaradamente
me tratavam como um mero animal, um bicho do
mato. Eu, que quase me matei distribuindo meu
estoque de energia vital, fui reanimada por quem
não tinha dívidas comigo, por quem eu nunca tinha
servido.
Descobri o verdadeiro significado do amor à vida
graças aos desconhecidos que cruzaram meu
caminho. Outros solitários que também já foram
despedaçados pelas expectativas e que se tornaram de
novo inteiros diante da realidade.

Receber abandono e descaso de quem eu esperava


colo, doeu muito, mas também me libertou. Sem
aquela dor, eu não descobriria que sou um ser capaz
de merecer carinho sem ter que me matar à serviço
dos sentimentos alheios ou de mendigar aos prantos
por migalhas de afeto. Aceitar que as pessoas que eu
mais me dediquei a amar na vida não sabiam lidar
com minha depressão, me tirou o peso de me ver
sempre obrigada a entender e cuidar de todos. Aquela
dor foi o início da minha salvação.

Nos males da doença, um aprendizado que quase


cura: o amor é acolhimento espontâneo, não
obrigação.
29 Reencontro

Existência irresoluta
Chamaram-me de sem futuro,
não discordei
Eu não tenho o futuro
O futuro é que me tem

Suficiência
Gira solidão em mim
Eu sou a flor e meu próprio jardim
Agora eu moro em mim
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TIC-TAC PING-PONG
O tempo me fez ir e voltar
Me fez ficar de frente pro orgulho, me obrigou a
desacelerar

O tempo me fez ir e voltar


Me levou até a beira do abismo, me deu um choque
pra recomeçar

O tempo me fez ir e voltar


Me ensinou a amar e desarmar o medo que eu tinha
de me entregar

O tempo me faz ir, mas me permite voltar


E não importa quantas vezes eu me perca pelos cantos
e barrancos desse mundo,
basta um pouco dele para que eu consiga enxergar
o caminho de volta pro meu eu, meu único e
verdadeiro lar
31 Reencontro

Borboleta rebelde
Minhas asas finalmente estão maduras
Sai do meu casulo
Ninguém me segura!

Ave
Renascer das cinzas me parecia um termo exagerado
para descrever um momento de superação
Até eu me dar conta de que nada traduz melhor os
processos que vivi

Há uma fênix dentro de mim

Emancipação
Minha solidão é uma criança que já sabe se virar
sozinha
Agora eu moro em mim
32

FIM
33

Sobre a autora

Francyelle Nunes
nasceu no interior de
Goiás e atualmente vive
em Goiânia.

Escreveu seu primeiro poema numa atividade literária


na 5° série e, a partir dali, descobriu um novo jeito
de brincar com sua imaginação e desabafar seus
sentimentos.

Em 2012, começou a produzir conteúdos


independentes no Blogspot. Motivada por sua paixão
pela escrita, graduou-se em Jornalismo para trabalhar
com produção textual.

Agora eu moro em mim é seu primeiro livro de


poemas publicado, a partir de alguns dos vários
rascunhos e textos criados ao longo dos 10 anos de
uma produção bastante íntima e pessoal.

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