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Copyright © 2020 Grazielle Ruzzante

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte


deste livro poderá ser reproduzida sem a au-
torização formal da autora

Revisão e Capa: Grazielle Ruzzante


Site: http://www.anteseudoquenos.com.br
Instagram: @anteseudoquenos
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Diagramação: Lucas Rafael Ferraz


Instagram: @ferraz_lucas

Esta edição é uma produção de


Grazielle Ruzzante - Antes eu do que nós
Prefácio
Eu estava perdendo a cabeça quando co-
mecei a escrever o “Querida Quarentena”.

Na minha concepção, eu só precisava de


um projeto diário, que me trouxesse de volta
ao prazer simples de escrever dia após dia.
Em meio a notícias que eu mal conseguia
acompanhar e livros em que eu mal conse-
guia me concentrar, resolvi criar um espaci-
nho seguro na minha mente, em que eu con-
seguia ter a liberdade de que eu tanto sentia
falta pra criar uma personagem nova e confli-
tos que ainda nem eram tão claros pra mim.
O projeto acabou se tornando muito mais
do que isso.

Através da Bia, passei a processar melhor


os meus próprios conflitos e entender a pro-
porção e a importância deles em relação ao
cenário da pandemia. Através do comprome-
timento diário de escrever, passei a acordar
com um propósito básico. Através das pala-
vras publicadas pro mundo, encontrei cami-
nhos dentro de mim – alguns meramente cria-
tivos, outros incrivelmente catárticos.

Desejo a você, leitor, essa mesma sensação


ao ler esse eBook, que agora materializa a
certeza de que o “Querida Quarentena” esta-
va longe de ser um projeto simples. Ele é um
presente, de mim para mim mesma e para vo-
cê, pra gente nunca se esquecer de que, por
mais tortuosos que alguns caminhos sejam,
sempre temos a escolha de caminhar com
mais leveza, empatia e compaixão – conosco
e com o mundo.

Grazi, Maio de 2020


Capítulo 1
Querida quarentena,

Eu só estava fazendo o que todos estavam:


nada do que minha vida era antes desse vírus
e tudo o que estava ao meu alcance para con-
tinuar produzindo algo que me lembrasse da
sensação de ser útil.

Exercício. Live do personal mais positivo


do mundo. Livro. Live do coach mais moti-
vado do mundo. Comida. Live da nutricionis-
ta mais saudável do mundo.

Até que um pensamento me atingiu como


um soco: como ele está no meio desse caos?
Assim como em todas as outras lutas da
minha vida, me mantive de pé como se nada
tivesse acontecido. Como se não me machu-
casse o fato de não ouvir nem uma palavra
dele há quase um ano. Como se eu não lem-
brasse de quantas colheres de açúcar ele gos-
tava na sua xícara preferida a cada manhã em
que passo meu café.

Mas não há pose que resista a um sonho.

Acordo num baque, de olhos bem abertos


e respiração de corredora, mas com a expres-
são indiferente do seu rosto presa na minha
retina e com o grito pelo seu nome preso na
minha garganta.

4:27, acusa o relógio.


Aguardo alguns minutos na esperança da
agitação da minha mente se dissolver na mo-
notonia do meu quarto, mas em vão. Aquilo
foi real. Pode ter acontecido só na realidade
do meu sono, mas foi real sim. Era ele e eu,
as mesmas pessoas desencontradas, o mesmo
sentimento desesperado. É como se ele esti-
vesse tendo o mesmo sonho nessa mesma
noite, tentando ignorar minha presença nos
cantos da sua mente, mas também sem suces-
so.

É muito tarde para mandar uma mensa-


gem?

Música: Lady Antebellum – Need You Now


Capítulo 2
Querida quarentena,

Dizem que o segredo para aprender a me-


ditar é perceber quando um pensamento ter-
mina e começa o outro e aprender a dar mais
espaço entre os dois.

Eu sou péssima para meditar.

E desde o sonho, só penso nele.

Sem espaço mental, sem terminar, sem pa-


rar.
Eu tento inserir aqui ou ali um pensamento
sobre a série nova que estreou hoje ou o livro
que acabou que acabou de ficar grátis online,
mas minha atenção só consegue se fixar no
botão "Enviar". Eu saberia o que dizer? Eu
sequer teria coragem de dizer algo?

"Você tá bem?", eu perguntaria. Que audá-


cia, como se eu tivesse direito de saber.

"Sinto sua falta", eu diria. Que egoísmo,


depois de toda a dor que causei para ele.

"Eu não sei o que falar, mas...", eu confes-


saria. Que estupidez, melhor ficar calada se
for para fazer papel de trouxa.
Eu nem tenho coragem de arrumar direito
minha estante de livros mesmo com todo o
tempo do mundo agora. Não sei por que
achei que teria estômago suficiente para enca-
rar uma conversa com ele.

Mas pera... Ele acabou de tuitar uma músi-


ca.

O que ele quer dizer com essa letra?

Música: Billie Eilish – When The Party’s


Over
Capítulo 3
Querida quarentena,

Tem aquele ditado que diz para não cuspir


pra cima, para não cair na própria testa. Seria
muito mais poético eu me lembrar de algo
menos nojento ou arranjar uma situação me-
nos ridícula para ficar pensando no que esse
ditado significa.

Porque eu sempre odiei sertanejo.

Quando estávamos juntos, eu não cansava


de tirar sarro quando ele cantava emocionado
enquanto dirigia aquele carro velho. Todas as
músicas dão um jeito de ter temáticas melo-
sas, frases clichês e rimas óbvias, todas dis-
farçadas de emoção. Era demais para o meu
coração gelado.

Mas agora eu sou um clichê meloso e ób-


vio que só sabe ouvir Jorge e Matheus.

É que a música que ele tuitou parece ter si-


do feita para nós. Falando de sentir saudade e
chorar, de mais difícil ainda é deixar de gos-
tar... Vai ver ele também sente minha falta.
Vai ver não tem como deixar de gostar de
ninguém assim tão rápido. Vai ver estamos do
mesmo jeito, mas orgulhosos demais para en-
trar em contato.

Eu cansei de ser orgulhosa.


"Mesmo que o sol se acabe, vem a lua te
trazer de volta aos sonhos meus", diz a músi-
ca.

Chega. Eu não vou deixar passar mil anos


até encarar de frente o que eu sinto.

"Oi. Você tá aí?"

Enviar.

Música: Jorge e Matheus – Mil Anos


Capítulo 4
Querida quarentena,

Parece que faz muito, muito tempo que vo-


cê chegou, restringiu nosso espaço e ampliou
nosso tempo. Na verdade, foram só 2 ou 3
semanas, mas já parece um passado distante
aquela época que a gente demorava um pou-
co mais para responder uma mensagem por-
que "tinha coisas mais importantes para fa-
zer". Quem sabe alguns realmente tinham,
enquanto outros se davam ao trabalho de fin-
gir que tinham uma vida interessante e ocupa-
da fora da internet.
Ninguém consegue mais fingir agora.

Nem eu.

Encaro a foto dele logo acima da minha


mensagem, esperando seu status ficar "onli-
ne" como uma criança esperando a pipoca es-
tourar. Mal consigo trocar de aplicativo para
me distrair, muito menos tirar os olhos da te-
la. Ainda assim, o sol da manhã invade meu
quarto sem cerimônia e inunda a íris ao redor
da minha pupila, me forçando a tapar o rosto
com a mão. Quando consigo me acostumar
com a luminosidade, contemplo a janela por
onde a luz continua a entrar.

Há tanto céu lá fora.


Esse azul infinito cobre o mundo todo de
possibilidades, embora elas pareçam muito
mais fatais e finitas agora, não importa quão
imenso seja esse teto azul que nos envolve.
Eu sei, a possibilidade de resposta ou não res-
posta do meu ex é muito pequena perto das
dúvidas de vida ou morte que algumas pesso-
as estão passando lá fora.

Mas ainda dói aqui dentro.

"Oi, tô aqui. Seus pais estão bem?"

Droga. Esse jeito fofo dele só faz doer


mais.

Música: Passenger – Let Her Go


Capítulo 5
Querida quarentena,

Você está trazendo à tona todos os nossos


altos e baixos. Eu já aprendi isso ao tomar o
mesmo café todos dias, mas percebendo que
ele tem um gosto a cada manhã. Ontem ele ti-
nha um toque de doçura com canela e cora-
gem; hoje ele tem notas de amargor com pu-
reza e incerteza.

Tem coisas que nem açúcar conseguiria


adoçar.

Nossa conversa é educada, porém, crua e


lenta. Meros conhecidos se cumprimentando
no elevador e tateando possíveis assuntos pa-
ra conversar. É, está difícil manter os mais
velhos em casa. Sim, é angustiante não saber
se a empresa vai demitir 57% ou 80% dos
funcionários. Claro, vamos sair mais fortes de
tudo isso. Blá. Blá. Blá.

"O que você quer?", ele finalmente envia.

Parece que o elevador chegou no meu an-


dar e as portas não vão abrir até eu expor mi-
nhas intenções de uma vez. Não tenho esca-
patória, sei disso. Eu mesma me coloquei
nessa posição, mas minha mente ainda procu-
ra a saída de emergência. Mesmo sem ne-
nhum contato visual, sinto que é a primeira
vez que alguém vai enxergar de verdade.
Respiro fundo.

Torço para o amargor do café ganhar algu-


ma doçura na sinceridade das minhas pala-
vras.

"Você se faz as perguntas erradas, Bia."

Música: The Script - Breakeven


Capítulo 6
Querida quarentena,

Embora estejamos em confinamento, o


mundo ainda dá voltas. As estações mudam.
Os primeiros dias frios do ano começam a
chegar. Tiro o cobertor do armário para es-
quentar meus pés, mãos e ombros, apesar de
não saber mais se é por conta da chegada dos
ventos gelados do outono.

Isolada e desolada.

As mensagens dele caminham na linha tê-


nue entre a educação e a frieza, e eu caminho
na corda bamba entre a esperança e a culpa.
Talvez nossa história mereça mais carinho e
atenção. Talvez minhas ações mereçam algu-
ma forma de punição.

"Eu não estou aqui pra julgar o que você


merece", ele rebate.

Pois bem que deveria. Que tipo de pessoa


puxaria altas brigas com o namorado na fren-
te da família? Que tipo de parceira teria ciú-
me até dos amigos dele? Que tipo de namora-
da terminaria o namoro na véspera do dia dos
namorados? Ah, verdade. Eu.

"Eu nem quero entrar no mérito. Só não te-


nho as respostas que você procura", ele en-
via.
Que se danem as perguntas, então. Só pre-
ciso de seus ombros largos para me abraçar,
suas piadas sem graça para me distrair e suas
mãos para me lembrar que eu não estou sozi-
nha, que eu ainda sou importante para al-
guém, que eu ainda existo.

"Não é de mim que você precisa, Bia."

Música: Lewis Capaldi – Bruises


Capítulo 7
Querida quarentena,

Lembro de quando eu ia assistir comédias


românticas e chorava no final, mas secava as
lágrimas e endurecia o coração de novo antes
de acenderem as luzes do cinema. Claro, eu
sei que a realidade não é assim. Nem sempre
eles ficam juntos e se beijam com uma câme-
ra girando. A mocinha nem sempre tem uma
conversa reveladora com o mocinho. Nem
sempre a mocinha se descobre uma mulher
independente e pronto.

Ok, a vida não é um filme.


Mas a realidade não precisava ser tão cru-
el.

A conversa com o ex morreu sem as per-


guntas certas nem as respostas erradas. A úni-
ca coisa que sei é que ele quer deixar tudo is-
so passar, enquanto toda a nossa história con-
tinua passando por mim. Porque o final das
histórias dos filmes não era assim. Porque
tem que ter um desfecho. Porque tem que ter
uma lição clara pros dois.

Mas eu não vejo nada disso.

Também não vejo mais nenhuma opção. A


única opção é aceitar essa realidade. Mesmo
sem sentir um fim, estamos acabados. É isso.
Vou encostar a cabeça no travesseiro e dar
um jeito de dormir mesmo depois de tomar
meu café, mesmo depois de saber que o nos-
so relacionamento não é mais real, nem em
sonhos, nem na realidade.

Mas meus sonhos não se calam.

Acordo com um sussurro nos ouvidos:

Preciso. Preciso. Preciso.

Música: James Arthur – Impossible


Capítulo 8
Querida quarentena,

É estranho esse senso de necessidade ou


obrigação que a gente adquire desde criança.
Você precisa comer, minha mãe dizia. Precisa
ir para a escola. Precisa passar na faculdade.
Precisa encontrar um marido.

Preciso dormir? Preciso acordar?

Agora, sem ninguém para me impor ne-


nhuma necessidade ou obrigação, voltei à es-
taca zero. Sou de novo uma criança livre,
mas presa nessa casa, nessa cama, nessa pes-
soa que sou hoje.
Sou prisioneira de mim.

Não importa se alguém lá fora disser que


preciso dormir, acordar ou comer; não consi-
go, não sinto necessidade. Para quê? Para tra-
balhar direito? Para alguém me ver? Para al-
guém me querer?

Nada disso faz sentido mais.

Abro e fecho os olhos, caindo no sono


mais uma vez sem perceber.

E os sonhos ainda não se calam:

Quero. Quero. Quero.

Música: Fresno – Sua Alegria Foi Cancela-


da
Capítulo 9
Querida quarentena,

Não sou muito boa com plantas. Não sei


ao certo quando precisam de sol ou de água.
Eu só deixo o vaso ali e espero as folhas se-
carem, quase gritando pra mim que precisam
de água.

Minhas folhas também secaram.

Busco o copo na cozinha e paraliso na dú-


vida entre tomar água gelada ou na tempera-
tura natural. Quero sentir o fio se espalhar pe-
la minha boca ou só a suavidade natural pas-
sando pelos meus lábios?
Uma dúvida tão pequena, um dilema tão
grande.

Acho que desde pequena preferi água na-


tural, nunca andar descalço pela casa e tomar
banho logo pela manhã. E até agora, com 20
e tantos anos, só coloquei todas essas vonta-
des e preferências no piloto automático e
nunca mais questionei de novo.

Mas o isolamento questiona tudo.

Preciso matar minha sede. Quero descobrir


como gosto da minha água.

Encho o copo com cubos de gelo até per-


der a conta e preencho com a água do filtro.
Espero alguns minutos, aproveitando para to-
mar coragem como se aquela fosse uma po-
ção mágica. Viro a água gelada na minha bo-
ca, que quase quebra meus dentes e dita um
inverno na minha garganta.

Meu cérebro congela, e meu riso explode


pela boca.

É a primeira vez em muito tempo que rio


sozinha.

Música: Florence + The Machine – Light of


Love
Capítulo 10
Querida quarentena,

Gente que acorda cedo sempre me deu nos


nervos. O que é que tem de tão bom que va-
lha a pena acordar antes das 10 da manhã?
Qualquer sono, mesmo o mais agitado, é me-
lhor que qualquer disposição matinal.

Despertei sem esforço e com vontade às


7h.

Justo hoje, domingo de Páscoa. E não im-


porta que digam que no isolamento todos os
dias são domingo; nunca serão. Domingo é
um estado de espírito, uma moleza específica,
uma tristeza justificada.

Ainda assim, abri a janela com um certo


contentamento.

Ok, eu estou mais sozinha do que nunca e


não faço ideia do que fazer com o meu cora-
ção, mas a brisa da manhã ainda entra e acari-
cia meu rosto e o azul do céu ainda é cons-
tante e contrastante em qualquer vista, em
qualquer cenário.

Algo ainda é constante no caos.

Alongo meus braços para cima e inspiro e


expiro essa certeza nos meus pulmões. Sinto
meus ombros mais leves, os braços mais lon-
gos, o peito mais aberto.

Eu também sou constante aqui.

Música: Gabrielle Aplin – Waking Up Slow


Capítulo 11
Querida quarentena,

Hoje eu quis sair de casa pela primeira vez


em semanas.

Tentei fazer um alongamento em casa para


me distrair dessa vontade. Tentei tomar um
chá para acalmar. Tentei visualizar um campo
aberto e florido na minha mente para sossegar
o facho dentro de casa. Tudo sem sucesso.

Eu preciso sair.

Sair da minha casa era a minha rotina de


todo fim de semana – parque, bar, balada ou
o que for que pudesse me tirar da previsibili-
dade da semana de trabalho. Sempre vi essa
quebra de rotina no fim de semana como uma
necessidade essencial minha vida, mas nem
se compara com a sensação de quase sobrevi-
vência que eu estou sentindo agora.

Aquilo era só vontade ou necessidade?

Desço as escadas do meu prédio com pres-


sa, como uma fugitiva da cela de um dos
apartamentos. Torço para ninguém me ver
aqui fora e me acusar de ser uma cidadã irres-
ponsável, mesmo com álcool em gel em mãos
e sem nenhuma alma viva à minha volta.

Eu precisava estar aqui.


Coloco os pés na grama, e meu peito ex-
pande com o ar puro nos pulmões. Fecho os
olhos e deixo a liberdade correr da ponta dos
meus pés até cabeça, esclarecendo todas as
dúvidas que eu tinha entre a vontade e a ne-
cessidade de sair. É disso que eu precisava.

Mas pera...

Era sobre isso que meu ex falou na mensa-


gem?

"Não é de mim que você precisa."

Será que eu confundi minhas vontades e


necessidades a vida toda?

Música: One Republic – Say (All I Need)


Capítulo 12
Querida Quarentena,

É estranho revisitar memórias que você


tem há anos e perceber as coisas de um jeito
diferente. É como abrir um álbum de fotos
querido e antigo, mas ir reparando em deta-
lhes de todas as fotos que fazem você repen-
sar se a cena toda era tão romântica ou feliz
quanto você achava.

Minhas fotos estão revelando algo diferen-


te para mim.

Foi difícil entrar na faculdade, mas mais di-


fícil ainda sair dela. Lembro de cair no choro
só de pensar na pressão exaustiva de equili-
brar namoro, trabalho e faculdade, no deses-
pero de me formar. No fim daquele ano, po-
sando para a foto com o canudo na mão no
palco da formatura, vi meu namorado me
aplaudindo e tive certeza de que não teria
conseguido chegar até ali sem ele.

Mas precisar dele também teve um preço.

Foram inúmeros os churrascos com amigos


em que ele insistiu que eu o acompanhasse,
mesmo sabendo que eu mal conseguia manter
os olhos abertos de tanto cansaço. "Eu não
mereço um pouco de atenção na sua rotina
maluca?", ele costumava perguntar. Também
foram várias as brigas na volta para casa, on-
de minha insegurança explodia, mesmo sa-
bendo que eu não tinha razão para ter tanto
ciúme daquela amiga dele.

Eu precisava mesmo dele para não desistir


do meu diploma?

Eu realmente precisava da segurança que


ele me passava para ter confiança em mim?

Eu precisava da força que ele me dava ou


da força que eu não enxergava em mim?

Música: Adele – Love in the Dark


Capítulo 13
Querida quarentena,

Parece mais fácil acordar, trabalhar e viver


quando a gente sabe o que quer. A gente tem
mais energia, suporta até as piores adversida-
des e encontra um cantinho na nossa mente
para servir de fuga dos problemas. Porque tu-
do tem um objetivo maior. O prazer fica mais
próximo. Os dias ganham propósito.

Era fácil assim quando estávamos juntos.

A resposta era quase automática: casamen-


to, filhos e dividir minha vida inteira com ele.
Então, eu não me importava de aguentar to-
dos os perrengues de começar minha carreira
profissional – era o dinheiro para o nosso so-
nho. Eu não via problema em engolir alguns
sapos no relacionamento – era pelos nossos
futuros filhos. E tudo bem se a nossa convi-
vência era complicada – nós teríamos a vida
inteira para melhorar.

Eu achava que sabia o que queria.

Percorro essas memórias à procura do mo-


mento exato em que eu mesma quis, escolhi e
decidi esse futuro. Mas, do mesmo jeito que
nunca questionei minhas vontades entre to-
mar água gelada ou natural e andar com mei-
as ou pés descalços pela casa, só aceitei um
destino claro que quase todos os relaciona-
mentos também pareciam ter e pronto. Mas e
se eu quisesse viajar o país inteiro antes de
pensar em casar? E se eu quisesse fazer um
mestrado em outro país? E se eu nem quises-
se casar?

Não importa mais.

Eu estou sem rumo agora.

Meus pés descalços no chão frio são a úni-


ca certeza que tenho do eu realmente quero.

Música: Adam Levine – Lost Stars


Capítulo 14
Querida Quarentena,

Do que eu realmente preciso?

O que eu quero de verdade?

Se antes eu só me fiz as perguntas erradas,


agora mal consigo respirar, imersa num mar
de perguntas certas. Não importa quantas res-
postas eu cogite, nunca consigo chegar à su-
perfície. Não sei por mais quanto tempo con-
sigo segurar meu fôlego. Não sei se toda essa
busca vai valer a pena.
Vou enlouquecer aqui se não conseguir
respirar.

Saio de casa pela segunda vez em quase


30 dias, mas abandono a culpa de sentir que
estou fazendo algo errado no meu quarto. Eu
quero achar as respostas, mas preciso de uma
pausa de mim mesma. Ponto final. E dane-se
o que os outros pensarem quando me virem
estirada no gramado, de pijama, contemplan-
do o céu amanhecido.

A Lua me contempla de volta.

Ela mantém seu espaço no céu, mesmo


que esse não seja seu momento de brilhar.
Sol ou chuva, agora ou há 10 mil anos, ela
sempre esteve ali, como um pontinho no
meio do nada, nos observando em silêncio.
Em comparação a todas as transformações
que ela testemunhou a Terra passar, a pande-
mia é apenas mais um pequeno ponto da vira-
da na história do planeta.

Ainda assim, o caos ainda é real.

Tudo é uma questão de perspectiva.

Em comparação a todas as transformações


que esse caos está causando, minha busca in-
terna também é pequena, mas nem por isso
deixa de ser real nem dolorosa. O maior não
anula o menor. O absoluto não é mais impor-
tante que o relativo. O macro é tão essencial
quanto o micro.
Mas todos eles precisam de tempo, me diz
a Lua.

Eu sorrio para a Lua.

E a Lua sorri para mim.

Música: Ed Sheeran – What Do I Know?


Capítulo 15
Querida quarentena,

Coisas que eu posso fazer enquanto espero


o tempo passar e a vida fazer sentido:

1. Organizar meu armário (e lembrar


que não é legal doar calcinhas, muito
menos se tiverem mais de 8 anos de uso)
2. Conferir a papelada acumulada na es-
crivaninha (e dez mil embalagens de
bom-bom)
3. Assistir programas de serial killers
(ufa, tem gente mais louca que eu)
4. Descobrir como limpar rejunte do
azulejo do banheiro (eu coloco toda a
força da minha vida naquele esfregão, e
nada aconteceee)
5. Ler um livro clássico (Bentinho, para
de invocar com a Capitu, homem de
Deus!!)
6. Tomar sol na grama (e lembrar de le-
var uma toalha para sentar e não virar
comida para as formigas)
7. Me exercitar logo pela manhã (de pre-
ferência, sem ficar com raiva do desper-
tador)
8. Sentir mais, pensar menos (será que
eu penso demais? Pensar no quê? Como
assim? Aaaa)
9. Fazer uma meditação guiada antes de
dormir (só de ouvir a voz da monja já
me dá uma paz... ou seria sono?)
10. Sorrir para mim mesma no espelho
(mesmo me sentindo meio boba)

Eu também incluiria "usar menos o celu-


lar", mas não tem como ignorar algumas
mensagens.

"Biaaaa, mulher! Você tá bem?"

Música: Tiago Iorc – Um Dia Após o Outro


Capítulo 16
Querida quarentena,

Você me conheceu numa situação atípica.


O isolamento fez tudo sair das sombras e sen-
sações aflorarem como nunca antes. Esse ne-
gócio de sentimento é novidade até para mim
mesma.

Mas nada é surpresa para quem realmente


te conhece.

"Já tava na hora, Bia."

"Hora do quê? De superar ele?"


"Não, miga. De sentir."

A Jé me acompanhou em todas as minhas


fases desde o colégio. Às vezes mais distante,
às vezes mais próxima, mas sempre melhor
amiga. Em todo "oi" ou "adeus", ela olhava
fundo nos meus olhos até enxergar tudo que
eu estava passando.

Mas eu mesma me recusava a enxergar.

Ainda assim, nosso abraço sempre conso-


lou as minhas dores mais adormecidas. Mes-
mo que eu não tivesse coragem de admitir
nem falar sobre isso, ela sempre esteve ali pra
mim.
"É, a minha fase baladeira pós-término du-
rou um pouco mais do que devia, eu sei, Jé."

"Muito antes disso, mulher... Eu não via


você sentindo a si mesma desde quando
aconteceu aquilo tudo com os teus pais."

E eu aqui achando que não tinha mais na-


da pra sentir dentro de mim.

Música: Bruno Mars – Count On Me


Capítulo 17
Querida quarentena,

Quando eu finalmente consigo encontrar


alguma paz no passar dos dias, mesmo sem
chegar de fato a uma solução para os proble-
mas dentro de mim, outra pergunta surge do
nada para me tirar o sono de novo.

"Meus pais não tem nada a ver com isso,


Jé."

"Ah, não? A relação deles que você viu


não tem nada a ver com o que você buscou
em quase todos os teus relacionamentos?"
Ela só pode estar brincando.

Eu sempre tentei ser carinhosa e compa-


nheira – todos os dias, 24h por dia. Eu me
dedicava por inteiro, até mais do que no meu
trabalho. Só esperava que a outra pessoa tam-
bém fosse um pouco assim.

Só queria algo recíproco.

Nunca foi assim com meu ex. Doei toda a


energia que eu tinha para fazer o relaciona-
mento dar certo, mas nunca parecia o sufici-
ente. Algo sempre dava errado. Algum mal-
entendido sempre acontecia. E o pior é que
ele reclamava da mesma coisa.
Nossas formas de amor nunca se corres-
pondiam.

"Agora eu sou culpada por procurar um


amor recíproco nos meus namoros, é isso?"

"Bia, você procurava bem mais do que is-


so... Você procurava a certeza."

Música: Paramore – The Only Exception


Capítulo 18
Querida quarentena,

Ser honesta consigo mesma dá trabalho –


principalmente quando você tem uma amiga
como a Jé, que leva todas as conversas na
maior tranquilidade, mas sem nunca largar o
osso.

"Você tava tensa no namoro todo, amiga.


Sempre querendo garantir que vocês tivessem
um futuro, que ele se tornasse o cara que vo-
cê queria como pai dos seus filhos e que ele
amasse como você..."

Isso é uma mensagem ou um julgamento?


Minha mente quer protestar cada exemplo
que leio como se fosse uma acusação de tri-
bunal, mas meu coração revive memórias an-
tes que eu possa pensar em filtrá-las: a co-
brança nele e em mim para acumular todo o
dinheiro para começar nossa vida juntos, o ci-
úme que nunca sossegava, a certeza que cres-
cia a cada ano juntos.

E eu acreditei que seria para sempre.

A cada aniversário de namoro, eu não pos-


tava uma foto no Instagram só para comemo-
rar. Eu postava para concretizar essa certeza
interna, como se as chances do namoro termi-
nar fossem menores à medida que nosso tem-
po juntos aumenta. Eu tinha orgulho de sentir
e exibir que nosso relacionamento ficava ca-
da vez mais invencível.

Até que eu me dei por vencida e terminei.

"Mas relacionamentos não deveriam dar


uma certeza pra gente, miga? Uma seguran-
ça, alguma estabilidade?"

"Talvez, Bia. Mas não mais segurança do


que você tem em si mesma."

Música: Taylor Swift – Forever and Always


Capítulo 19
Querida quarentena,

Nem todos os dias são bons.

"Preciso de um tempo, Jé."

Enviar.

Música: Sam Smith – No Peace


Capítulo 20
Querida quarentena,

Surtar dia sim, dia não, já é uma vitória no


isolamento. Ainda assim, estou longe de me
sentir vitoriosa em todos os sentidos.

Agora consigo ver quem eu sou.

E dói.

Dói porque é fácil focar em outra pessoa,


num relacionamento, num ciúme ou até num
sonho a dois, para me distrair de mim mesma.
Porque é triste esperar que o mundo me dê al-
go tão básico quanto o amor, quando eu não
sou capaz de dá-lo a mim mesma. Porque
amar a mim mesma é um caminho longo, e
eu vivi procurando atalhos e, de fato, avan-
çando muito pouco.

"Foram anos demais assim, Jé..."

"Ai, miga, mas todo dia é uma chance pra


mudar, sabe? E todo aquele blá-blá-blá coa-
ch/motivacional/budista e tal."

"Talvez... Mas não sinto que sou forte o


bastante pra mudar."

"Bia, você não é as suas falhas. Isso é só


uma parte de você."

Na minha opinião, é uma parte bem grande


– grande o bastante para enfraquecer qual-
quer outra qualidade que eu tenha. Não res-
pondo isso pra Jé para não soar como uma
pobre coitada pessimista, mas parece que ela
sente meus pensamentos não importa a dis-
tância que esteja entre nós.

Mesmo sem nenhuma resposta minha, ela


continua:

"Você só tá vendo metade da história, mi-


ga. Pra mim, você também foi uma guerreira.
E tenho certeza de que a tua mãe concordaria
comigo."

Pera, o que minha mãe tem a ver com isso?

Música: Passenger – Why Can’t I Change


Capítulo 21
Querida quarentena,

Hoje foi o primeiro dia que pensei em falar


com a minha mãe. Mais de 20 dias em casa, e
nem cogitei ligar ou dar assunto às mensa-
gens dela nesse tempo todo.

Será que eu ainda sou uma boa filha?

Eu me fiz essa pergunta muitas vezes na


minha vida. Por isso, sempre tirava notas bo-
as, sempre voltava para casa no horário com-
binado e nunca, nunca gastava mais dinheiro
do que a família podia.
Talvez eu até tenha me preocupado demais
com isso.

Depois da separação dos meus pais, a últi-


ma coisa que minha mãe precisava era mais
um peso. Ela já tinha dois empregos para tra-
balhar e um coração partido para remendar.
Então, sim, talvez eu tenha assumido mais
contas da casa do que uma adolescente co-
mum. Talvez eu tenha cuidado da minha ir-
mãzinha mais como uma mãe do que irmã.
Talvez eu tenha sido boa filha demais.

Mas eu não tive escolha.

Ela precisava de mim.

Será que isso é ser guerreira?


Será que minha mãe também me vê assim,
que nem a Jé disse?

Faço um chimarrão como minha mãe fazia


antigamente e mato minha sede de coragem.

"Oi, mãe. Tá ocupada?"

Música: Shawn Mendez – In My Blood


Capítulo 22
Querida quarentena,

Como você chega para a sua mãe e per-


gunta se você é uma boa filha? Ou informa
que boa parte dos seus relacionamentos foi
definida por conta do que você passou depois
da separação dos seus pais?

"Oi filha!! Você viu o pronunciamento do


presidente?"

Opa, errei. Na verdade, a questão era co-


mo conseguir falar de qualquer outra coisa
que não seja o quadro político do Brasil. Co-
mo se o país precisasse de mais uma crise.
Como se a minha crise interna conseguisse li-
dar com mais uma externa.

"Mas, filha, o circo tá pegando fogo, você


tem que acompanhar!!"

Tenho mesmo? Eu ligo a TV, e é só des-


graça. Eu abro o Twitter, e é só deboche.
Abro o Facebook, e é só passar raiva. Ok, es-
tá tudo desmoronando lá fora. Mas isso quer
dizer que preciso me envolver a ponto de me
destruir ainda mais aqui dentro?

"É que é o nosso país, filha!"

Sim, é o meu país. Mas também é o meu


bem-estar em jogo. Eu não consigo dar tanta
atenção assim para o mundo E para mim
mesma. Essa balança está desequilibrada há
muito tempo. Eu preciso me equilibrar mais
nesses pesos.

"Eu sei, mãe, mas meu coração também


precisa de um espaço nessa balbúrdia toda."

"Meu Deus, o que houve, Bia?"

Música: Ed Sheeran – Save Myself


Capítulo 23
Querida quarentena,

Nunca senti que minha família era muito


normal. Vai ver todo mundo ache isso. Vai
ver não exista "normal" quando se trata de fa-
mília. E vai ver isso mesmo torne cada famí-
lia especial, cada uma do seu jeito.

Mas chego a ter inveja de outras famílias.

Não lembro de ver minha mãe só como


minha mãe. Nós éramos parceiras – nas con-
tas, nas brigas, na arrumação da casa e na co-
mida da mesa.
Nós éramos melhores amigas.

Era uma parceria incrível, mas que também


me privou de ter aquela mãe que minhas ami-
gas tinham. Aquela mãe que resolve tudo pa-
ra você e que te elogia sempre, não importa
se você tirou o primeiro ou o último lugar no
campeonato de matemática.

Ao mesmo tempo, foi a sinceridade pura


dela que me salvou.

Ela me deu a real em todos os tropeços da


minha vida, mesmo que eu não quisesse ou-
vir. "Não gosto desse cara". "Esse trabalho
vai ter sugar a alma". "Você precisa enxergar
seu valor". E, uma hora ou outra, eu entendia
o que ela queria dizer.
Mas eu preciso entender mais agora.

Preciso de mais luz no quarto.

Quero um conselho de amiga, mas preciso


mais de colo de mãe.

"Mãe, você acha que eu sou guerreira?"

Música: Jamie Cullum – The Age of Anxiety


Capítulo 24
Querida quarentena,

Agora no isolamento, a gente para pra pen-


sar em coisas que nunca pensaria normalmen-
te. Tipo, "por que eu nunca aprendi a fazer
bolo de cenoura?", "por que eu reclamava
tanto de praia cheia de gente?" ou, no caso da
minha mãe, "por que a gente gosta tanto de
chamar mulher de guerreira?".

"Não sei, filha, sempre me chamaram as-


sim, mas não consigo ver como um baita elo-
gio."
De fato, eu sempre li "guerreira" em várias
homenagens de dia das mães. Se bobear, até
em algumas que eu mesma fiz, fazendo refe-
rência a essa mulher forte, heroína e até in-
vencível em meio a todas as adversidades da
vida.

Mas achei que era um elogio.

"É que nem sempre a gente se sente forte


assim, mesmo vencendo a luta, filha."

Entendo bem isso. A Jé me diz que superei


os obstáculos da minha adolescência e me
tornei uma mulher independente, mas me sin-
to frágil, não importa quantas medalhas isso
pudesse me dar.
Ainda é pesado. Meu coração ainda pede
colo.

"Não te vejo como guerreira e nem quero


isso para você, Bia. Mas te vejo como uma
sobrevivente, que abraça o que tem de forte e
de vulnerável, sem medo de lutar nem de se
entregar ao amor."

Suas palavras aquecem meu braços, rela-


xam meus ombros e envolvem meu coração
como uma onda do mar invade a areia da
praia. Ainda assim...

"Não sei, mãe, acho que me entreguei mais


ao amor dos outros do que ao meu próprio."
"É um aprendizado delicado e frágil para
todas nós, filha. Mas nem por isso deixamos
de ser fortes."

Música: Sara Bareilles – Armor


Capítulo 25
Querida quarentena,

Alguns aprendizados demoram mais para


fazer sentido. É como uma equação de se-
gundo grau na sétima série: a gente percebe a
lógica, mas nem sempre consegue entender
como funcionaria na prática.

Os elogios da minha mãe também são as-


sim.

Talvez não seja só porque eu não costumo


enxergar em mim os elogios que as pessoas
me fazem. Talvez também seja porque essa é
a primeira vez que eu sinto nas palavras da
minha mãe um calorzinho maternal, aquele
que eu invejava das minhas amigas.

Algo a mais mudou, e não foi só eu.

Ela ainda fala de desgraça como fosse fo-


foca e é sincera demais sem mentir palavras,
mas agora também soube ser sincera e me
elogiar, querendo meu bem acima de tudo.

Eu sinto isso.

Além de amiga, essa mulher também é mi-


nha mãe.

Eu vejo isso.

Será que o isolamento também a mudou?


Ou será que eu não tinha capacidade pra en-
xergar isso antes?

"A gente ainda tem muito pra se descobrir


como mulher, filha."

Música: Kell Smith – Era Uma Vez


Capítulo 26
Querida quarentena,

Minha hiperatividade nunca soube a hora


de parar. E até agora, com mais de um mês
em isolamento em casa, ela insistia em não
ceder, como uma criança que resiste ao sono
depois de um dia agitado. Mas, assim como a
criança, ela também foi vencida pelo cansaço.

Comecei a gostar de yoga.

Provavelmente, eu faço todas as posturas


erradas ou bem mais desajeitadas do que de-
veria. Ao mesmo tempo, não tem ninguém
em volta para me dizer isso. Por isso, prefiro
focar em como me sinto ao fim de cada práti-
ca de yoga, assim como em todas as outras
práticas aqui em casa.

Eu me sinto bem, sem forçar, sem doer.

Normalmente, eu tentaria fazer as posturas


mais difíceis, provar que eu sou forte e todo
aquele papo de superação. Mas eu não quero
mais testar meus limites toda hora. Talvez em
outro momento, quando eu precisar ou quan-
do eu estiver pronta. Por ora, só quero conti-
nuar redescobrindo cada cantinho do meu
corpo, cada memória que tenho em mim, ca-
da mágoa que eu insisti em guardar.

E deixar passar.
Com calma.

Respirando.

Vai ver minha mãe está certa. Vai ver ainda


tenha muito espaço pra gente se redescobrir.

"Às vezes, só é preciso achar o caminho


de volta pra casa, filha. De volta pra gente
mesma."

Música: You + Me – Break The Cycle


Capítulo 27
Querida quarentena,

Dizem que a beleza está nos olhos de


quem vê. Mas acho que isso também vale pa-
ra a prisão que a gente vê no isolamento.

Estou livre aqui dentro.

Sem a pressão de me mostrar forte para os


outros, estou me permitindo enrolar na cama
e amanhecer junto com o dia. Consigo ouvir
do que meu corpo precisa e atender a essas
necessidades sem culpa.

Estou calma aqui dentro.


Sem me comparar com os outros, me aven-
turo na cozinha a fazer os pratos mais malu-
cos. Às vezes, acerto e comemoro. Às vezes,
peço um delivery e deixo passar.

Estou me perdoando aqui dentro.

Sem duvidar das minhas vontades, me ar-


risquei na yoga, no espanhol e até na dança.
Ah, a dança, que eu quase já tinha me esque-
cido do quanto amava há muito tempo, desde
antes da separação dos meus pais.

Estou dançando aqui dentro.

É uma liberdade que nunca senti lá fora,


nem com o ex, nem com ninguém.

Será que o lado de fora que virou prisão?


Será que eu só consigo ser livre aqui den-
tro?

Será que vou conseguir reaprender a dan-


çar lá fora?

Música: Amy Winehouse – Half Time


Capítulo 28
Querida quarentena,

Há mudanças que não têm volta. Não tem


como fechar os olhos de novo. Não tem co-
mo voltar atrás. Mas também há erros que a
gente insiste em repetir, como uma coreogra-
fia que precisa de várias repetições de um
movimento apenas.

Tenho medo de voltar atrás.

A porta do apartamento me encara o dia


todo, me lembrando que um mundo inteiro
me espera lá fora, com as mesmas pessoas e
problemas de antes.
Quem eu era também me espera lá fora?

Às vezes, tenho a impressão de que aquela


pessoa que eu era – desconectada de seus de-
sejos, necessidades, força e valor – está à es-
preita, logo na primeira curva do corredor,
aguardando seu momento de retornar e me ti-
rar do eixo.

Não quero mais ser aquela pessoa.

Não sei se as minhas mudanças já não têm


mais volta. Não sei quais erros ainda vou ter
que repetir para aprender.

Não quero, não quero, não quero.

Mas, quando a porta abrir, será que eu te-


nho escolha?
Música: James Bay – Let It Go
Capítulo 29
Querida quarentena,

Eu não sei o que responder quando me


perguntam como eu estou. Porque eu estou
bem, mas também não muito. Meu coração
dança, redescobrindo pequenos prazeres do
meu dia. Mas minha mente por vezes se per-
de no passado, insistindo na culpa.

"A gente não é uma coisa só. Tá tudo


bem."

A Jé poderia patentear essa frase dela: tá


tudo bem. Quase virou um mantra para ela
nos últimos tempos, mas, sinceramente, não
consigo acreditar de verdade. Porque "tudo"
é tudo mesmo.

Tudo é frágil demais para estar 100% bem.

"Não é absolutamente tudo, Bia, mas é o


que a gente consegue hoje. E já é suficiente."

Ah, é isso. Ela está inspirada hoje – quase


uma palestrante/poeta/coach de um daqueles
vídeos motivacionais que a gente recebe no
grupo da família. Mas eu não sei se estou
com paciência para isso.

"Mais fácil falar do que fazer, Jé."

"Na verdade, não é não, Bia. É só o que


aprendi com o meu terapeuta."
Terapeuta???

"Sim, tua mãe que me passou o contato de-


le..."

Minha mãe???

A Jé estava no fundo do poço desse jeito, a


ponto de procurar um terapeuta? E minha
mãe também, mesmo sendo a última pessoa
do mundo a acreditar em terapia?

Ninguém está bem.

Só eu que não vi da minha janela.

Música: Tiago Iorc – Scared


Capítulo 30
Querida quarentena,

Os altos e baixos não perdoam.

Tem dias que consigo me encontrar entre


danças, programas de TV e vídeochamadas
com amigos. Outros dias, me sinto perdida
em um labirinto de labirintos. Quando eu
acho a saída de um e consigo respirar tranqui-
la, logo surge outro e me confunde de novo
entre curvas e saídas muito parecidas entre si.

Alguém tem um mapa para atravessar?


A Jé e minha mãe tiveram coragem de pe-
dir ajuda. Se elas se sentiram perdidas como
eu me sinto agora, eu entendo essa sensação
de não ver saída dentro de si. Mas também
não sei se acredito que alguém realmente po-
deria me guiar no meio de tudo isso. Não sei
se eu tenho jeito. Não sei se tem como al-
guém me ajudar, por mais profissional ou
competente que seja.

Não vejo saída para mim.

Ao mesmo tempo, a vida vai além da mi-


nha janela. A Jé passou por coisas muito pe-
sadas para chegar até esse momento – algu-
mas que eu nem poderia comparar com a mi-
nha falta de amor próprio. Minha mãe tam-
bém conheceu de perto a dor – de formas que
ela nunca me contou, mas sinto em seu olhar
toda vez que ela fala da cidade em que nas-
ceu.

Eu não sou a única que sofre.

Talvez eu não seja a única que não tem sal-


vação.

"Olá! Meu nome é Bia, e eu gostaria de


marcar uma consulta."

Música: Mumford and Sons – Awake My


Soul
Capítulo 31
Querida Quarentena,

Já faz um tempo que você não me vê por


aqui, eu sei.

Ando ocupada demais.

Ando sentindo mais do que pensando.

Tirando quando estou em sessão com o


Jorge, meu terapeuta. Na nossa hora semanal,
tem muito pensar e repensar sentimentos.

No restante do tempo, estou me permitindo


sentir – algo que parece que não fiz muitos
nos últimos anos. E mesmo quando me per-
mitia, esses sentimentos vinham como uma
avalanche, me deixando sem tempo nem es-
paço para escolher o que me fazia bem.

Às vezes, ainda é difícil escolher.

Mas sentindo uma coisa de cada vez, entre


vontades e necessidades, ouvindo o que meu
corpo e coração querem me dizer a cada dia,
acabo encontrando o momento para deixar al-
guns sentimentos de lado e escolher outros
para ocupar meu tempo.

Todos os sentimentos valem a pena sentir.


Mas nem todos valem ocupar todo o meu
tempo.
Porque, no final, eu sei que eles passam.

Toda a dor, frustração e vergonha vão pas-


sar. E eu vou ficar.

Pode ser com alguns tropeços, mas hoje


vejo a força no meu coração, a dança no meu
corpo, a luz em todas as minhas janelas.

Eu estou aqui.

Viva.

Não quero mais fugir de mim.

Então deixa eu me cuidar bem.

E a gente se vê por aí, em isolamento ou


não, mas sempre pertinho dessa pessoa aqui
comigo, que eu estou amando aprender a
amar.

Música: Florence + The Machine – Shake It


Out

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