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Copyright © 2021 by Victoria Mendes

Capa Victoria Mendes


Ilustrações Victoria Mendes
Diagramação Victoria Mendes
Revisão Lívia Ferreira
Fotografia Iris Arruda (@photo.iriss)

Os personagens e acontecimentos narrados neste livro são


inteiramente fictícios. Qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência e não intencional por parte da autora

Todos os direitos desta edição são reservados à autora. Fica


terminantemente proibida a reprodução total ou parcial, através de
quaisquer meios.
À todas as Cinderelas
que nunca quiseram um príncipe
Prefácio
Querida leitora,
Você já se perguntou o que aconteceria se, ao invés de encontrar
um príncipe, Cinderella encontrasse uma princesa?
Essa é a proposta do livro que você tem em mãos. A autora
conseguiu reinventar perfeitamente a história que já conhecemos e
trazer uma visão mais crítica para a trama, tocando em assuntos
como assédio e abuso familiar sem perder a sensibilidade da obra
original.
Além disso, você vai encontrar um romance de deixar o coração
quentinho.
Espero que goste da aventura,

- Garota da ilha Best-Seller


I

Há meses, li num livro de poesias que os sonhos são presságios


ou frutos de nossos maiores desejos e medos. Esses sentimentos
disfarçam-se de metáforas e é como um quebra-cabeça, mas a parte
interessante é que quase sempre dá para traduzir o que cada sonho
quer nos dizer.
Alguns sonhos são mais fáceis de interpretar, já outros são
impossíveis, mas com um pouco de autoconhecimento, a coisa toda
fica óbvia demais.
Ultimamente, há um sonho em particular que tenho tido quase
todas as noites.
Eu estou trancada no meu quarto – um eufemismo para o antigo
sótão no alto da casa – e, por algum motivo, quero
desesperadamente sair. O que, por si só, já é um indício de que não
estou acordada, porque só eu sei o que eu daria nos últimos anos
para poder me trancar lá dentro e não precisar sair tão cedo. O fato é
que quero sair e procuro um jeito, mas não há chaves em nenhum
lugar. E então, inesperadamente, Joseph Clermont – meu pai – surge
da pequena janela. Quando o vejo, desisto de sair. Ele me abraça
forte, passa a mão pelos meus cabelos e abre um sorriso largo. Sinto
seu calor, as mãos ásperas arranhando minha pele. Fecho os olhos
e imploro para essas sensações não irem embora nunca. No sonho,
sei que ele faleceu há cinco anos e não faço nenhum esforço mental
para tentar entender como ou por qual razão ele voltou.
Quero me sentar com meu pai e contar tudo que ele perdeu, tudo
que foi deixado para trás. Quero falar sobre mim, pois sei que iria
querer muito me ouvir, mas percebo que o sonho está no fim quando
ele tira de seu pescoço uma corrente dourada que carrega um
objeto. É a chave do quarto, me é entregue e ele pede que eu use.
Já estive lá dezenas de vezes para compreender que, no instante em
que eu abrir a porta, Joseph sumirá assim como as velhas escadas
que levam até os primeiros andares da nossa casa. Do outro lado da
porta não haverá nada além de areia da praia, um mar de ondas
calmas e uma brisa gentil. Sei que meu pai não estará mais lá e que
ele não voltará, por isso, quero ir até à beira para sentir a água
tocando meus pés, porém sempre acordo antes.
Entendo que não deveria levar ao pé da letra o que diz um poeta,
talvez a explicação concreta para os meus sonhos insistentes esteja
em um livro de algum físico ou estudioso por aí afora, contudo, não
posso ignorar essa constatação que, para mim, faz tanto sentido.
Nunca consegui descobrir o que cada um dos elementos desse
meu sonho significa. Não compreendo por que quero tanto deixar o
quarto ou por qual razão é meu pai, dentre todas as pessoas que
conheço, quem surge e me encoraja a ir para longe dele.

Todos os dias acordo um pouco antes do sol nascer. Sei que


funciona como um mecanismo de defesa para que eu não me atrase
para as primeiras tarefas da manhã, mas tento ser otimista e dizer a
mim mesma que poder ver o sol nascer daqui de cima é um privilégio
que poucos têm. Mesmo depois de tanto tempo, as cores quentes e
o calor brando dos primeiros raios que invadem a pequena janela
conseguem me erguer da cama. Não resisto a abrir os vidros para
respirar um pouco do ar gélido.
O inverno deve chegar em pouco tempo, isso significa que
chegarão também as chuvas frias e a neve. Tenho que aproveitar
meus últimos dias de sol pela manhã e me preparar para mudar
minhas coisas para o porão, que é bem mais quente durante essa
época do ano.
Minha casa fica bastante longe do palácio, porém, este reino é
pequeno o suficiente para que, da janela, eu consiga enxergar as
torres imponentes, as flâmulas verdes dançantes e alguma parte da
cidade que não é encoberta pelas árvores da floresta.
— Bom dia — Noir, o corvo, diz. Dou um pulinho de susto por não
ter notado sua presença.
— Bom dia — repito com um sorriso.
Ele me olha por uns segundos, ajeita as penas negras com o bico
e crocita baixinho. É só o que vou ganhar dele hoje, ao menos antes
do café da manhã.
Corvos não falam. Não é como os humanos, que se comunicam
pela fala, mas eles conseguem reproduzir os sons que escutam. Não
consigo recuperar na memória o dia exato em que me senti tão
solitária a ponto de dar bom dia à ave do mau presságio que dorme
sob a minha janela, no entanto, aconteceu, e agora ao menos sinto
que não falo sozinha o tempo inteiro.
Ajeito a cama e tudo ao redor antes de deixar o quarto, também
tranco a janela para que Noir não espalhe suas penas negras pelo
cômodo. Não somos tão íntimos assim.
O meu banho é rápido e frio, tomado às pressas no banheiro dos
fundos da casa. Se quiser água quente preciso acordar alguns
minutos mais cedo.
Preciso acabar de comer antes das seis para terminar de preparar
o café de Yvanna e suas filhas antes das seis e meia. São cinco e
cinquenta e dois, então o leite e o pão que separo para comer são
engolidos sem que eu sinta qualquer traço de sabor.
Quando o relógio aponta seis e vinte nove, a mesa do café já está
posta, consigo ouvir portas abrindo no segundo andar. Portas não, só
uma porta: a do quarto dela.
Yvanna entrou na minha vida antes que eu aprendesse a soletrar
“madrasta”. Sei que não é comum para a filha de um mercador saber
ler ou escrever por aqui, mas fui ensinada por meu pai desde que
comecei a balbuciar as primeiras palavras. Ler era uma de suas
maiores paixões e a prova remanescente disso são os baús repletos
de livros guardados no porão. Sou eu quem não os deixa empoeirar
porque, das quatro mulheres da casa, sou a única que consegue lê-
los. Isso me entristece, talvez a leitura pudesse tornar as outras um
pouco mais sensíveis.
Meu pai era um homem compassivo, jovem e bastante saudável
antes de se entregar ao álcool e adoecer. Foi traumático e doloroso
assisti-lo definhar sobre uma cama, depois decorar seu túmulo com
um arranjo de lírios-azuis. Eram os lírios que ele havia plantado no
jardim de casa, porque dizia que eram da mesma cor dos meus
olhos, entretanto, Yvanna acabou com todo o canteiro dias depois do
funeral.
Ela nunca se importou em demonstrar algum apreço por mim, nem
mesmo antes da morte do meu pai, mas, a coisa ficou bem mais
drástica quando ele se foi. De repente, já não tínhamos mais nenhum
dinheiro para manter os empregados que trabalhavam na casa. Com
isso, por mais que suas filhas tivessem quase a mesma idade e
disposição física que eu, todo o trabalho ficou nas minhas mãos, pois
é claro que Yvanna não permitiria que as duas estragassem as
unhas lavando louça, ela tampouco.
O otimismo que ainda resta em mim, diz que a minha eu de cinco
atrás ao menos tinha algo para se distrair da dor do luto. O tempo
passa surpreendentemente rápido quando você sabe que precisa
deixar tudo muito limpo caso queira comer no jantar. Os castigos
foram ficando piores conforme Yvanna notava que eu era incapaz de
revidar, mas aprendi sobre como evitá-los. Não me lembro
exatamente do dia em que deixei que ela me transformasse nessa
criatura resignada e silenciosa. Talvez tenha sido toda a manipulação
e os discursos sobre como eu tinha sorte de tê-la para me acolher,
afinal, poderia ter acabado num orfanato ou em lugares piores da
província.
Às vezes penso em meu pai e sobre como ele não ia querer essa
vida para mim, mas também não gostaria que eu desistisse. O seu
último pedido foi igual ao da minha mãe para ele no dia em que
nasci. Ela soube que já não tinha mais tanto tempo entre nós, então
o pediu que tivesse coragem para enfrentar os dias difíceis e não
perdesse a gentileza com as outras pessoas. Não a conheci, mas ao
admirar o pequeno retrato dos dois guardado comigo, consigo ouvir
sua voz. Alguns dias são mais difíceis do que os outros. Mentiria se
dissesse que nunca pensei em simplesmente desistir, me atirar
contra as rochas sob os penhascos da costa e deixar que o oceano
abrace o que restar do meu corpo. No entanto, quando esses
pensamentos vêm, me lembro do amor que meu pai tinha por mim e
pela nossa casa, de um sorriso que só ver meu rosto podia evocar.
— Florence. — Yvanna me chama antes que eu consiga dar as
costas e voltar para a cozinha como pretendia. — Preciso que vá à
cidade.
Evito encarar seu rosto devido à uma vontade incontrolável de
revirar os olhos, mas, se a olhasse, veria uma mulher que está mais
perto dos cinquenta anos do que dos quarenta, de longos cabelos
castanhos, pele pálida e olhos cor de oliva profundamente hostis.
— À cidade? Mas não faz nem três dias que eu...
— Não tem “mas”. Vamos receber visitas esta noite e o vinho
acabou. Preciso que vá e ponto.
É em momentos como esse que preciso prender a respiração e
contar até dez antes de responder algo como “Nós ainda teríamos
vinho se você não acabasse com uma garrafa por noite para se
embebedar”. Porém, sei que se deixar as palavras escaparem, ela
faria com que eu desejasse ter ficado calada. Por isso, a única coisa
que digo é:
— Quantas garrafas?
— Três. Seco. Nada de vinho branco, você sabe qual eu gosto.
Eu assinto e levo minhas mãos para trás do corpo antes de me
retirar. Qualquer um que chegasse perto o suficiente notaria o rubor
em meu rosto e a expressão contrariada. Ela faz com que eu me
sinta acuada, impotente. Esses sentimentos despertam o pior em
mim, quase não me reconheço. Não há morte pior e mais lenta do
que perceber-se extirpada da própria essência.
II

O caminho de casa até a cidade é longo e cansativo demais


para se fazer andando. Há muito o que subir. Costumávamos ter um
cavalo até pouco tempo atrás. Tínhamos muitos deles antes de
precisarmos vender, um a um, para quitar as dívidas. Yvanna e as
filhas quase nunca vão à cidade, quando vão, sempre sigo na frente
para chamar uma carruagem. Então, para elas, não é
necessariamente um problema que não tenhamos mais nenhum
meio de chegar aos lugares sem precisar percorrer longas distâncias
a pé.
Além de ser um percurso demorado, as estradas que ligam as
casas mais afastadas à cidade também podem ser perigosas. Tento
não pensar nas histórias de pessoas desaparecidas floresta adentro
e nos ladrões que espreitam por detrás das árvores enquanto me
aproximo cada vez mais do meio do caminho, onde a mata é mais
densa. O segredo é apressar o passo e não olhar demais para os
lados, se tudo correr bem, poucas casas começam a despontar
alguns metros depois da colina íngreme.
Me pergunto o que aconteceria se eu decidisse desacelerar os pés
e me permitisse ouvir os sons da floresta. Dizem ser algo meio
místico, com sons demais para a audição humana decodificar. É feito
uma ópera escrita pela natureza. Mas não sei se conseguiria me
concentrar por tempo demais. É assombroso como os sons do lado
de fora se tornam ruídos abafados quando há barulho em excesso
dentro das nossas mentes, e a minha nunca está em silêncio. É uma
desvantagem, pois nesse momento, ouço o trotar de um cavalo
próximo demais. Como de costume, não olho para trás e caminho
ligeiramente mais rápido. Torço para que o cavaleiro seja como eu,
alguém que só quer chegar à cidade sem maiores contratempos.
Mas eis que o bicho anda mais devagar ao me alcançar, isso
poderia ser um sinal de problemas se eu não tivesse ouvido uma voz
conhecida falar comigo logo depois. Ou melhor, me provocar:
— Ora, se não é a garota que fala com os pássaros. — A voz de
Robin me tranquiliza ao passo que também me deixa irritada. —
Seus amigos de penas nunca te disseram que é perigoso para uma
jovem andar desacompanhada por essas estradas?
Reviro os olhos, sem me preocupar em encará-la de volta. Robin e
eu temos uma amiga em comum que mora nessas redondezas:
Clementine Gaillard – ou Madame Tine, como todos a chamam, uma
senhorinha adorável de quase sessenta anos que vive numa
pequena propriedade a um quilômetro da minha casa. Robin a visita
com certa frequência e está sempre passando por perto. Certa vez
ela me viu da janela quando eu estava tentando ensinar palavras
novas para Noir, o corvo. Desde então, não perde a oportunidade de
falar sobre isso sempre que nos vemos.
— Não, mas em compensação eles me alertaram sobre falar com
estranhos.
— Bem, não sou eu quem conversa com corvos aqui, então acho
que o adjetivo representa melhor você do que a mim.
— Você sabe que não é desse tipo de “estranho” que estou
falando. Além do mais — ergo os olhos para encarar seu rosto pela
primeira vez — se eu fosse um corvo, também não conversaria com
você.
— Ei! — Ela leva uma das mãos ao peito com uma expressão
teatral de indignação sob o capuz que está usando. — Que rude.
— Você começou. — Dou de ombros e reprimo um sorriso
enquanto continuo caminhando. Ela se mantém ao meu lado. —
Estava fazendo uma visita à Madame Tine?
Robin e eu nos conhecemos graças a ela e conhecidas é tudo o
que somos, não há muito o que dizer sobre sua pessoa. Tudo que
sei é que ela era a cunhada de Sophie, filha de Madame Tine com o
marido Ernest, falecida há mais ou menos dois anos. As três eram
bem próximas quando Sophie era viva, após sua morte, Clementine
e Robin se apoiaram durante o luto.
— Eu fui até a fazenda, mas o Ernest me disse que ela foi para a
cidade mais cedo, então quero tentar encontrá-la, nem que seja no
meio do caminho.
— Ah. Boa sorte.
Às vezes sinto que a garota tenta se aproximar com conversas ou
fingindo familiaridade comigo, mas nunca deixo. Não consigo. Talvez
seja o ciúme infantil por ela ser amiga da única pessoa no mundo
que eu também posso chamar de amiga. Não dá para dizer, porém
não a desgosto nem nada do tipo, só... não é como se a minha vida
tivesse espaço para outras pessoas.
— E você? O que vai fazer tão cedo na cidade? — Robin
pergunta.
Em resposta, ergo o saco que estou carregando comigo desde que
saí de casa. Há três cantis de vinho vazios dentro dele. É pesado,
mas ainda assim não se compara ao peso que estará quando eles
estiverem cheios.
Sem dizer mais nada, Robin puxa as rédeas do cavalo e ele para
de súbito. Também paro de andar quase no automático para
entender o que está acontecendo. Ela desmonta tão rápido que
quase perco o momento em que se aproxima e toma o saco da
minha mão. O seu capuz acaba caindo sob os ombros com a
descida brusca e revela seus cabelos presos numa trança bem
frouxa, eles são negros como as penas de Noir.
— Você sabe montar num cavalo, não sabe? — pergunta.
— É claro que sei, por quê? — Ainda estou tentando descobrir
qual é sua intenção e minha pergunta soa estúpida no segundo
seguinte depois de ter sido feita.
— Então sobe. Eu vou andando a partir daqui, já estamos na
metade do caminho.
Robin está perto demais. Consigo enxergar melhor seus olhos
meio-verdes, meio-azuis e seus traços faciais detalhadamente
desenhados. É admirável como mesmo depois de muito tempo
cavalgando, ainda sinto seu perfume cítrico misturado com o suor.
Ela olha nos meus olhos e em seguida desvia os seus para o cavalo,
pedindo para que eu monte.
Penso em recusar, só que o jeito com o qual ela me encara diz que
seria em vão. Me aproximo do cavalo, pronta para subir na sela, mas
meu vestido é pequeno e está apertado demais, o que faz com que
eu não consiga abrir as pernas o suficiente. Cavalgar não será o
problema, pois como alguém que está sempre realizando tarefas
complicadas em casa, uso calças por baixo quase o tempo inteiro. O
problema é conseguir chegar em cima.
— Será que você me ajuda? — peço, indicando minha roupa.
— Mas é claro! Me desculpa, eu não tinha percebido. — Ela ri, se
aproxima de mim novamente e estende o braço em minha direção
para que me apoie. — Se segura e eu empurro você para cima, tudo
bem?
Balanço a cabeça em resposta. Não consigo dizer mais nada
porque, no segundo seguinte, ela segura meus quadris com uma
firmeza impressionante e impulsiona meu corpo para cima. Quando
me ajeito no dorso do equino, ela dá um empurrãozinho em minhas
pernas para que eu as posicione do jeito certo.
— Confortável? — pergunta, me encarando lá de baixo.
— Bastante, eu... Obrigada. De verdade. Minhas pernas estavam
cansadas. — Me enrolo com as palavras. Estou mesmo muito grata
pela gentileza e não faço ideia de como expressar isso do jeito certo.
— Não posso te trazer de volta, mas talvez você consiga voltar
com a Madame Tine. Você não deveria carregar tanto peso.
— Já me acostumei. — Dou de ombros ao passo que voltamos a
nos movimentar. — Além do mais, não é como se eu tivesse muita
opção.
Robin fica em silêncio por vários segundos. Consigo deduzir que
ela está pensando no que dizer pelo modo com o qual morde os
lábios. Sei que Madame Tine deve ter contado sobre minha família e
como é viver na minha casa. E o que conto para Tine são sempre as
coisas menos graves.
— Sinto muito — ela diz.
— É, eu também. — Suspiro. Não quero falar disso.
— Olha... Se um dia eu puder...
— Obrigada mais uma vez.
Minha interrupção à sua fala soa um pouco rude, sei disso porque
foi brusca e automática. Engulo a seco e busco o olhar dela para
constatar que não a chateei, mas tudo que encontro é uma face
conformada e complacente. É algo que faço quando sinto que vão
me dizer algo do tipo “se um dia eu puder ajudar” ou “se houver algo
que eu possa fazer”. Não quero ouvir porque sei que, por mais
verdadeira e bonita que seja a intenção, não há nada que ninguém
possa fazer. E não é justo esperar que outras pessoas resolvam os
meus problemas por mim.
Robin dispersa do assunto e começa a me fazer perguntas sobre
meu tipo de vinho favorito – não tenho um – e minha amizade com
Madame Tine. Me agrada que tenha captado o meu claro
desconforto tão bem. Ela está fazendo o que eu falei antes, tentando
se aproximar e me conhecer melhor, a deixo chegar um pouco mais
perto dessa vez, não só porque estou sobre seu cavalo, mas
também por gostar do seu jeito de conversar, como se, naquele
momento, as coisas que digo fossem o que há de mais interessante
para ela no mundo. Me faz lembrar do meu pai, me sentia
exatamente assim durante as nossas longas conversas: importante.
III

Nos aproximamos dos muros da cidade e, como de costume, o


lugar é um caos antes do meio-dia. Há gente por todos os lados,
ocupando as ruas estreitas com seus cavalos, suas tendas,
carregando e descarregando toda a sorte de coisas. O mercado tem
cheiro de peixe; esse é o preço que se paga por viver numa cidade
costeira onde a pesca é o jeito mais rápido de se ganhar algum
dinheiro.
Robin olha bastante para todos os lados o tempo inteiro,
possivelmente na tentativa de avistar Madame Tine e eu também o
faço. Não é difícil encontrá-la. Ela sempre usa os chapéus mais
coloridos e extravagantes que se pode comprar, mesmo que seja
apenas uma quinta-feira comum. É preciso somente uma breve
parada nos lugares em que ela mais gosta de fazer suas compras
para avistarmos uma senhora bastante elegante, com penas e flores
brancas arranjadas num tecido cor salmão em sua cabeça, a
propósito, da mesma cor de seu vestido.
— Ali está ela — Robin diz, ajeitando seu capuz.
Ela para de caminhar e se põe ao lado do cavalo, estendendo os
braços para me ajudar a descer. Quando meus pés tocam o chão,
me entrega o saco com os cantis vazios e abro um sorriso.
— Obrigada, de novo.
— Disponha, garota dos corvos.
Ela me encara com um sorriso patife. Quero ficar irritada, mas não
consigo, então enceno uma revirada de olhos. Ela ri e ajeita o capuz
na cabeça mais uma vez. É quando, pela primeira vez, noto um anel
dourado bastante simples em seu dedo anelar esquerdo. Me
pergunto se significa que ela tem um marido.
— O que as duas fazem aqui tão cedo? E desde quando vêm a
cidade juntas? — Madame Tine nos interroga ao se aproximar e não
faz nenhuma cerimônia, como dá para notar.
— Nos encontramos no caminho. Fui até a fazenda, mas o Ernest
disse que você veio para cá — Robin responde rapidamente.
Concordei, balançando a cabeça. — Queria ver como a senhora
estava.
— Você é muito gentil, Rob. Estou bem, obrigada. Mas por que a
preocupação?
— Você sabe, é que hoje faz...
— Ah. Claro! Como pude esquecer? — Madame Tine se aproxima
de Robin e toca seu rosto. — Não se preocupe comigo, meu bem,
Ernie e eu fizemos as pazes com essa data há algum tempo.
Pelo tom da conversa, sei que elas estão falando do aniversário de
dois anos da morte de Sophie. Não faço ideia do que dizer, mas fico
comovida com essa história toda. Não a conheci, ela já morava com
o marido quando Tine e eu ficamos próximas, mas há um retrato dela
com a família na sala de estar dos Gaillard. Era uma moça muito
bela, de cabelos alaranjados, pele bronzeada como Madame Tine e
olhos castanhos expressivos. Acho que teríamos gostado uma da
outra.
— Se está tudo bem com a senhora, então vou lhe deixar em
companhia da nossa garota dos corvos, tenho que voltar para a casa
— Robin diz e Tine ri.
— Eu tenho um nome, sabia? — Levo as mãos a cintura, a
encarando de cima a baixo.
— Provavelmente, mas aposto que não é tão bom quanto! —
Quando menos espero, ela já está sobre o cavalo mais uma vez. —
Nos vemos por aí.
Ela e Madame Tine trocam acenos, já eu, ganho uma piscadinha
marota que faz meu rosto esquentar.
— Você se acostuma com ela — Tine diz, tomando meu braço
para caminharmos juntas, torço o nariz para a ideia. — Ainda não me
disse o que veio fazer aqui tão cedo.
— Vinho. — Mostro-lhe o saco que estou levando. — Yvanna terá
convidados para o jantar.
— Não me diga que ela fez você andar por todo aquele caminho
sozinha?! — exclama. A indignação em sua voz é notável.
— Você sabe que sim. E sabe que já fiz outras vezes. Não é nada
demais. — Dou de ombros.
— Flora, meu bem, já disse que você pode ficar com um dos meus
cavalos quando quiser.
— Sei que sim. Mas não é certo. Se acontecer alguma coisa com o
bicho, não tenho como te pagar.
— Não me importo com dinheiro, me importo com a sua
segurança. E se alguma coisa acontece com você? Eu não
suportaria perder outra filha, além do mais, prometi para o seu pai
que cuidaria de você como eu pudesse.
— Sabe que isso é chantagem, não sabe?
— Sei e não me arrependo. Você fica com um cavalo e fim de
papo. Vamos até a fazenda buscá-lo na volta.
Estou prestes a agradecê-la quando uma trombeta soa em meio à
multidão. É um sinal de que o rei quer mandar uma mensagem ao
povo e não demora para que haja uma aglomeração ao centro onde
a música soou. Há três guardas portando lanças e cercando um
mensageiro, que ergue elegantemente um pergaminho decorado e
selado diante de si. Eles trajam verde-esmeralda, a cor da flâmula
real.
— Venho, a mando de Sua Majestade Rei Henrich Jacques Aubert
VI, comunicar a todos presentes que a Sua Alteza, o príncipe
Nathaniel Phillip Aubert I regressará de sua expedição ao sul e sua
chegada será comemorada durante três noites. Durante ditas noites,
que começarão amanhã mesmo, os portões do palácio estarão
abertos ao público. — Há uma grande comoção quando ele diz isso.
Pessoas comemoram, algumas até mesmo gritam de alegria. A
trombeta soa novamente, exigindo silêncio. Assim que todos se
acalmam, o mensageiro pigarreia e prossegue com a leitura do
documento. — Devo anunciar também que, durante as
comemorações, o príncipe escolherá uma noiva dentre as jovens
presentes.
A mensagem termina assim. As pessoas ficam eufóricas mais uma
vez, não à toa, afinal, é um grande anúncio. O príncipe pretende se
casar e não há nada que dê mais vida a um reino feito esse como
um casamento real. Nunca vi um acontecer, mas meu pai dizia que é
sempre um evento grandioso e já li sobre em alguns livros da história
da província.
— O príncipe, hein? — Madame Tine diz enquanto retomamos
nossa caminhada. — Você já pensou em se tornar uma princesa?
— Não mesmo. E a senhora?
Ela dá uma gargalhada sonora, tomba a cabeça para trás e me
olha em seguida.
— Claro que sim! Tinha a sua idade quando o rei se casou. Na
época também foi dada uma festa para que ele escolhesse sua
esposa. Eu e as minhas amigas ficamos eufóricas. Todas queríamos
uma chance para conquistar o futuro rei e dentre elas, fui a única que
consegui uma dança com ele. Mas a verdade, meu bem, é que no
fim, nenhuma de nós tínhamos uma chance. Por mais que nossas
famílias tivessem dinheiro, eles não aceitariam uma moça sem um
título como rainha.
— E a princesa Diane?
— O que tem ela?
— Eles são gêmeos, não são? Ela devia ter direito ao trono.
— Não é bem assim. A prioridade é do filho homem. Eles devem
casá-la com algum nobre de outro reino, um barão ou algo acima
disso. Se algo acontece com o príncipe antes de ele ter filhos, ela
poderia governar. Só assim.
— Não é justo.
— Nem um pouco. Mas é como as coisas são. — Ela dá um
suspiro resignado. — Enfim... Chega desse assunto deprimente.
Você tem roupas para as festas?
— Para ser sincera, não sei se quero ir.
É uma mentira das boas. É claro que quero ir. Há anos eu acordo
e a primeira visão que tenho é daquele castelo enorme e majestoso
diante da minha janela. Há anos me pergunto como seria estar do
lado de dentro e se poderia conhecê-lo por além dos muros algum
dia. Mas agora que isso é uma possibilidade, preciso ser realista:
não há a mínima chance de Yvanna permitir que eu vá.
— Bobagem! São três noites de muita dança, bebida e comida à
vontade. É claro que você quer ir.
— Não gosto muito de festas, sabe?
Dessa vez não foi tão mentira assim. Nunca fui a festas o
suficiente para decidir se gosto delas ou não.
— Mas essa não é uma festa comum. É uma festa no palácio e
você precisa se distrair um pouco. Vá pelo menos em uma noite, um
evento como esses não acontece todo dia.
— Talvez eu vá — digo, pretendendo encerrar o assunto.
Se disser a verdade, ela vai começar a falar sobre como eu não
deveria deixar que Yvanna me controlasse como ela faz. E já sei de
todo o discurso. Convenhamos, se eu soubesse como ou pudesse,
minha vida seria inteiramente diferente. Então prefiro fingir que não ir
ao palácio é uma decisão minha.
Madame Tine sabe que estou fingindo, ela não é ingênua e me
conhece bem. Optamos por ir em busca do que viemos fazer na
cidade enquanto ela me conta sobre os seus últimos sonhos como
sempre faz e presto atenção como se lesse o último jornal da
semana.
— Tenho sonhado com raposas — diz, enquanto escolhe entre
abóboras enormes da feira e alterna o olhar entre elas e eu. —
Raposas grandes e que têm dentes afiados, mas só as vejo quando
estão de saída, deixando para trás o rastro de sangue das minhas
galinhas. É terrível, sempre acordo com o coração na mão e vou ao
galinheiro ver se estão todas bem como deixei.
Não é difícil desvendar esse. Digo a ela que as raposas
representam perigo e as galinhas são algo precioso e que ela estima.
Acho que Clementine teme que alguém faça mal àqueles que ela
ama sem que possa intervir, mas, de qualquer forma, recomendo que
passe arame farpado nas falhas do cercado.

No caminho de volta, Madame Tine me leva até sua fazenda na


carroça dela e faço o caminho para a casa montada em Valentin, um
cavalo acinzentado com uma longa mancha negra em forma de
coração no dorso, ele é bastante manso para um animal daquele
tamanho. Ou talvez só esteja familiarizado comigo, como o resto dos
bichos da propriedade. Ao chegar, vou direto para o estábulo, no
fundo da propriedade, para limpar e acomodá-lo ali. Faz mais ou
menos sete meses que vendemos o último cavalo, então há muita
poeira e teias de aranha. Não é fácil deixar o lugar habitável de novo,
mas quero que Valentin fique o mais confortável possível.
Quando termino e o equino já está devidamente acomodado,
lembro-me que já deve estar na hora do almoço. Limpar o estábulo
tomou bastante do meu tempo, então penso no que há de mais
prático para preparar, de forma que não atrase tanto.
Consigo deixar tudo pronto bem rápido. Delphine e Juliet surgem
na sala no instante em que acabo de servir a mesa. Elas estão
brigando mais uma vez, por um motivo que não faço a mínima
questão de saber. As duas são como cão e gato durante a maior
parte do dia. Os únicos momentos em que entram em consenso,
geralmente, são os que envolvem me atormentar. Sabendo disso,
meu primeiro instinto é sair dali o mais rápido que consigo.
Infelizmente, elas são mais rápidas que eu.
— Florence, venha cá — Juliet, a mais nova delas, diz. Sua voz é
estridente demais, tão aguda quanto os ângulos que compõem sua
face miúda. — Não vai nos contar a quem pertence aquele cavalo no
qual você chegou montada hoje mais cedo? Estamos curiosas.
— Eu aposto que ela está vendo algum homem! Quando minha
mãe souber... — Delphine provoca.
— Não tem homem nenhum. Ele é de uma amiga — respondo,
direta e num tom bastante seco. Não quero ter essa conversa.
— E desde quando você tem amigos, Flora? — Juliet é quem diz,
usando meu apelido de um jeito sarcástico.
— Ela deve estar falando daquela velha que mora por perto.
O jeito com o qual Delphine se refere à Madame Tine me faz
querer estapeá-la, mas sei que se eu demonstrar incômodo ela só
vai fazer pior. Então balanço a cabeça e digo:
— Sim, é ela. — Antes que elas possam dizer qualquer outra
coisa, descubro a maneira perfeita de fazer com que me esqueçam.
— Ei, vocês ficaram sabendo que haverá três noites de baile no
palácio? O príncipe vai escolher uma noiva e os portões estarão
abertos para todo mundo.
É infalível. Em menos de cinco segundos as duas já estão
eufóricas na mesa, gritando pela mãe para que ela possa lhes
comprar vestidos caros e pagar uma carruagem de luxo. De uma só
vez, garanti meu sossego pelas próximas horas e tirei o de Yvanna
por bem mais tempo do que isso. Se isso não é uma vitória, não sei
mais o que é.
IV
Aviso de gatilho: assédio.

Não há nada nesse mundo que minha madrasta queira mais do


que arranjar bons casamentos para as filhas, então, quando dei a
notícia de que haveria três noites de baile no palácio, as três
passaram o dia inteiro especulando e se planejando para o evento.
Isso fez com que elas me esquecessem e eu pudesse terminar as
minhas tarefas, assim como ter tempo de ler um pouco no quarto
antes da hora do jantar.
No meio da minha leitura, ouço um bater de asas vindo da janela.
É Noir, naturalmente. Ergo os olhos do meu livro para encontrá-lo
bicando a madeira do batente. Ele quer um pedaço do pão que está
no prato sobre a escrivaninha.
— Bom dia — ele “diz”.
Dou uma risada baixa, visto que é quase noite.
— Boa noite, Noir.
— Bom dia.
Rio mais uma vez e balanço a cabeça enquanto me levanto. Não
adianta, ele sempre faz o que quer, não importa o quanto eu tente.
Parto um pedaço de pão com as mãos e estendo na direção dele,
que não hesita em pegar com o bico, tão ávido que quase machuca
minha palma. O pássaro engole tudo de uma vez e aproveito seu
bom humor para acariciar suas penas com os dedos.
— Estava bom? — pergunto. Como esperado, não me responde.
— Sei que você provavelmente já sabe disso porque é um corvo
esperto, mas haverá um baile amanhã e nos dois dias posteriores
também. — Ele olha para o pão mais uma vez, depois para mim e
entorta a cabeça para o lado sem entender coisa alguma. — Eu
queria muito ir.
Nos segundos seguintes, me sinto estúpida por fazer minhas
confissões a um corvo, mas só precisava que alguém ouvisse. No
momento, Noir é a coisa mais próxima que tenho de um ouvinte.
— Madrasta.
Para a minha surpresa, essa é a “resposta” que me dá. É a
primeira vez que ele diz essa palavra e não foi uma das que ensinei.
Ao menos não propositalmente, porém, com toda a certeza é algo
que ele me ouviu falar.
— Ela nunca vai me deixar...
Sinto meu estômago revirar e meus olhos se encherem de
lágrimas. Quero afastar esses pensamentos para não sofrer por algo
que não tem solução, mas é quase impossível. Chego mais perto da
janela para admirar o palácio e suas torres mais uma vez. Ele fica
ainda mais bonito ao entardecer, tocado pela luz dourada do
crepúsculo.
Preciso me conformar. Assim, de longe, é só como vou vê-lo.

O dia de hoje é diferente de todos os outros. Isso porque, quando


termino de cozinhar o jantar, não o ponho à mesa imediatamente e
não posso subir para o quarto. Temos visitas e preciso estar por
perto para servi-los. Sei que devem ser pessoas importantes e com
bastante dinheiro, uma vez que Yvanna me fez tirar dos armários e
lavar a porcelana mais cara que restou na casa. Ela e as filhas estão
perfumadas e bem-vestidas como há muito não as vejo.
Sou encarregada de abrir a porta quando os convidados chegam,
por volta das sete e meia. Eles estão em dois: um homem bastante
alto e corpulento, cujos fios loiros estão bem perto de se tornarem
inteiramente grisalhos e uma mulher bem mais velha do que a
Madame Tine, miúda, com os cabelos tomados pelo branco e olhar
petrificante. Eles aparentam ter bastante dinheiro mesmo, como eu
havia imaginado. Dá para notar, apenas reparando nas roupas de
costura sofisticada e pelo cheiro forte de perfume caro, que mesmo
de longe invade meu olfato e enevoa minha cabeça.
— Boa noite. É esta a casa da senhora Yvanna Clermont? —
pergunta o homem, cortês como um lorde, mas esquadrinhando meu
corpo de cima a baixo e me deixando desconfortável.
— É sim. Ela está esperando pelos senhores — digo, abrindo a
porta um pouco mais e lhes dando passagem.
Eles entram e não demora para que minha madrasta apareça das
escadas e os cumprimente com a voz esganiçada, beijos e abraços.
— Louis, Bertha! Que prazer revê-los! — exclama. — Espero que
tenham feito uma boa viagem.
— Nós gostaríamos de ter chegado mais cedo, mas, por Deus,
como é longe! — a senhora diz. Em seguida, ela abre os braços e
fica estática. — O que a garota está esperando? Vamos, meu bem,
acorde.
Um breve silêncio se instaura e me assusto ao notar que ela se
refere a mim. Ela quer que eu vá até ela, tire seu casaco e o
pendure. Quase não levo a sério. Quase. Porque sei que se não fizer
o que ela quer imediatamente, terei problemas. Portanto, com toda
calma que ainda me resta, faço o que me é comandado. Yvanna
parece satisfeita, mas, vejo também que os comentários em tom
ácido da mulher a tiram um pouco do sério.
— Vocês me acompanham até a mesa? Vamos tomar um vinho
antes do jantar ser servido — minha madrasta sugere.
— Me soa ótimo. Vamos, mamãe — o homem diz, tomando a mãe
pelo braço.
O alívio que sinto por eles não estarem mais por perto dura pouco,
me lembro que preciso servir o vinho e depois a comida. Algo me diz
que a noite será longa.
E bem mais que isso.
Não é preciso ser muito esperta para saber o que essa visita
representa. Quando Yvanna apresenta o homem às filhas com um
“Este é o senhor Louis LaTellier, de quem lhes falei. O conheci na
minha última viagem ao norte, estão lembradas?”, entendo que ela
pretende se casar com ele.
Então meu corpo inteiro entra em pânico por não ter a mínima
ideia do que isso pode significar para mim. As possibilidades são
muitas e em poucas – quase nenhuma – delas a situação é, de
alguma forma, boa para mim. Quando meu pai faleceu, Yvanna se
tornou minha responsável de acordo com as leis até que eu me case,
mas, se ela tornar a se casar, o marido dela se torna responsável por
mim.
O mínimo pensamento de que isso pode mesmo acontecer faz
com que as minhas pernas percam a força, preciso respirar fundo e
tentar me acalmar muitas vezes antes de entrar na sala de jantar
para servir a comida. Um homem que não conheço ganha direitos
sobre mim e sobre a casa da minha família, pois, aparentemente,
mulheres são incapazes de lidar com questões estatais ou do direito
da propriedade privada, não sabem declarar impostos e não podem
pagá-los. O mais cômodo disso tudo é que todos esses impeditivos
foram colocados por homens. Não dá pra dizer que não é uma
estratégia de controle infalível.
Nem que quisesse muito, conseguiria prestar atenção em qualquer
coisa que eles conversam quando entro. Faço tudo de um jeito
engessado, tomando cuidado para não acabar derrubando nada.
Tudo que vejo na minha frente são pratos, copos, talheres e meu
destino ainda mais arruinado.
— Florence. — A voz de Yvanna me traz de volta para o mundo
real.
— Sim? — respondo, após muitos segundos.
— Prepare o quarto de visitas. O senhor LaTellier e sua mãe
passarão a noite conosco.
Sinto que tudo que me resta é aquiescer para, mais tarde, desabar
na minha cama e chorar até dormir. Será que nunca ficará melhor?
Por que as coisas simplesmente desmoronam sobre a minha cabeça
sem que consiga prever?
Não quero mais pensar. Pelo meu próprio bem que me forço a
desligar minha mente por minutos a fio até conseguir forças para
destrancar o quarto de visitas e deixá-lo pronto para receber os
convidados de Yvanna. Este quarto é onde dormiam Delphine e
Juliet antes do meu pai morrer. Os outros três eram dele e de minha
madrasta, o meu e o de hóspedes. Após sua morte, não levou um
mês para que eu fosse enxotada para o sótão e as duas ocupassem
os outros quartos. Esse ficou vazio, afinal, uma casa precisa de um
quarto de visitas. Mesmo uma que nunca recebe nenhuma visita há
anos, como é o caso dessa.
O jantar já terminou quando desço. Estão todos na sala
conversando e rindo alto por causa do vinho. A terceira garrafa está
chegando ao fim.
Não sou tão rápida quanto gostaria ao passar para a sala de jantar
e tirar os pratos. É quase o dobro da louça com que estou
acostumada, dessa maneira, fico tanto tempo na cozinha para
conseguir lavar tudo que, ao terminar, o ambiente está em silêncio
mais uma vez. Me sinto aliviada por não precisar ver mais ninguém.
Minha cama não é nada confortável e é frio no sótão à noite, mas
hoje, me deitar lá em cima é tudo o que mais quero.
Tento subir os degraus a passos leves, sem fazer muito barulho.
Apago as velas das luminárias no caminho e a casa vai sendo
coberta de baixo a cima por uma penumbra traiçoeira. Do meio da
escada, posso ver que o segundo andar é iluminado por menos luzes
do que de costume. As portas devem estar fechadas.
Antes que eu termine de subir, minha passagem é bloqueada por
uma figura que, mesmo quase no breu, consigo identificar com
facilidade porque é inconfundível. Louis LaTellier está parado diante
de mim, por algum motivo. Não consigo ver sua expressão e sinto
minha garganta fechar, ele está de costas para a pouca luz.
Instintivamente, dou um passo para trás e meus sapatos gastos
fazem com que eu escorregue. Sinto sua mão segurar meu braço e
me erguer ligeiramente, estremeço quando olho para seu rosto e não
enxergo suas feições.
— Você é a filha do falecido, não é? — pergunta quase num
sussurro.
Respondo com um balançar afirmativo de cabeça. Não gosto do
seu tom. A escuridão aos poucos me torna alerta para todos os meus
sentidos e me pego prendendo a respiração.
— Você é uma coisinha muito bonitinha. — A ponta dos seus
dedos alcança a pele do meu rosto e esquivo. É a primeira vez que
sou tocada desse jeito e sinto náusea. — O que foi? Eu só quero te
conhecer melhor agora que seremos uma família.
Abro a minha boca algumas vezes, só que não sai nenhum som.
Sinto vontade de gritar. Gritar para que qualquer pessoa apareça ou
para que qualquer coisa aconteça e me tire daquela situação, mas
não consigo. E então tudo acontece lentamente. Ele leva uma das
mãos até minha cintura, me empurra contra a parede e sua boca se
choca contra o meu rosto. Ele falha em atingir meus lábios e meus
olhos se comprimem, ao mesmo tempo em que nada além das
minhas súplicas mentais para que me solte é registrado dentro da
minha cabeça. Mas ele não solta, logo sua outra mão está subindo
pelas minhas coxas, tentando levantar meu vestido.
Talvez dessa vez eu tenha pedido com vontade o suficiente, pois o
barulho de uma porta abrindo faz LaTellier se desvencilhar
rapidamente de mim e sumir, virando o corredor.
Fico por pelo menos um minuto inteiro sem conseguir me mover.
Meu coração nunca bateu tão rápido, nunca senti tanto medo.
Demoro a abrir os olhos e entender que não há mais ninguém ali,
que posso subir correndo para o meu quarto e me trancar pelo resto
da noite. Quando consigo me mover pela primeira vez, sou guiada
pelas minhas pernas como se elas fossem as únicas partes
funcionais do meu corpo. E quem me dera fossem, porque, nesse
momento, tudo o que resta em mim deseja poder não existir.
V

Não consigo me lembrar do momento em que adormeci. Minha


última memória é de quando tranquei a porta e me aninhei nos
lençóis como uma criança que tem medo do escuro. Estava exausta
demais até mesmo para chorar, fechar os olhos deve ter bastado.
Tenho quase certeza de que meu cérebro providenciou um apagão
para que eu conseguisse ter algum descanso e acordasse na hora
certa no dia seguinte, não lembro nem mesmo dos sonhos que
costumo ter.
Quando acordo, meu corpo parece ter sido pregado na cama. As
tentativas de levantar me machucam os músculos e minha cabeça.
Aos poucos, os acontecimentos da noite passada chegam e perco
ainda mais as forças. Ainda sinto a mão pesada daquele homem
segurando meu braço, a barba rala arranhando meu rosto, o cheiro
terrível de vinho e saliva que ficou impregnado em mim. Por isso, me
permito demorar um pouco mais no banho, quero esfregar da minha
pele qualquer traço de si que ele possa ter deixado.
Uma das piores partes é ter que passar mais uma vez pelas
escadas. Temo que ele possa estar ali, espreitando, esperando que
eu me descuide. Mas é cedo demais para qualquer um estar fora da
cama. Faço o caminho até a cozinha com os passos mais leves que
consigo dar e só me sinto segura quando passo pela porta e a
tranco.
Saio pela porta dos fundos para chegar até o estábulo e alimentar
Valentin. Ele parece ter passado bem sua primeira noite. Sinto
vontade de me sentar ao seu lado na palha e passar o resto do dia
ali. Não quero entrar em casa, não quero ter que olhar no rosto
daquelas pessoas e sobretudo não quero servi-las. Só que isso não
é uma escolha.
Tento manter a mente o mais longe possível dos meus
pensamentos perturbadores e caóticos, mas não consigo por muito
tempo.
Se Yvanna se casar com aquele homem, será o fim. O meu fim. Se
aquela bendita porta não tivesse sido aberta ontem, não sei até onde
ele teria chegado.
Tento encarar as coisas de outra maneira, mas meu lado racional
sabe exatamente o que está em jogo. Todos os cenários possíveis
dessa tragédia anunciada correm pela minha mente como pequenos
demônios. É tão apavorante e convulsivo que faz minha cabeça
latejar.
Eu não posso ter vivido o inferno por cinco anos para ser forçada a
desistir agora. É injusto, cruel, não pode ser assim que acaba.
Quando percebo, estou molhando minhas roupas com as lágrimas
que caem em torrente, já são seis e vinte e não há quase nada
pronto.
Ouço vozes vindo da mesa no momento em que saio da cozinha.
Mais uma vez minhas pernas bambeiam. Não quero vê-lo. Sei que
não deveria, mas me sinto envergonhada pelo que aconteceu.
Deveria ter gritado. Yvanna é uma pessoa desprezível na maior parte
das vezes, porém, quero acreditar que ela não deixaria que ele
fizesse nada comigo. Preciso acreditar, porque se acontecer de
novo, talvez eu não tenha tanta sorte.
— Por que a demora, Florence? — A voz de Yvanna me tira do
meu transe.
Tenho que me mover, então preciso barganhar com as minhas
pernas para que elas se mexam.
Quando entro no cômodo, todos estão lá. Minha madrasta, as
filhas, Louis e Bertha LaTellier. Não quero fazer contato visual e
correr o risco de cruzar meu olhar com aquele homem nojento, então
sirvo à mesa o mais rápido que posso, encarando somente a louça e
a comida à minha frente.
Quanto mais me aproximo dele, mais sinto seus olhos sobre mim,
sua aura carregada sugando toda a minha energia. Sua figura me dá
medo, nojo e muita, muita raiva. Quero ignorá-lo, mas por uma
questão de sobrevivência, minha visão periférica capta todos os seus
movimentos. Quando estou perto e vejo uma de suas mãos vir na
minha direção, recuo num sobressalto e o bule de chá que eu
segurava vai ao chão, se estilhaçando em mil pedaços e molhando a
barra do vestido de Bertha LaTellier. Demorou uns segundos para eu
entender que ele não pretendia me tocar, mas sim alcançar o açúcar
do outro lado da mesa. Uma pena que o estrago já havia sido feito.

Não preciso dizer que houve gritos e mais gritos quando tudo
aconteceu. Além de toda a comoção que eu causei, tive que me
desculpar dizendo que me assustei porque pensei ter visto um rato
debaixo da mesa. O que eu queria mesmo dizer era que o rato
estava bem ali, à vista de todos, à mesa, se fazendo de
desentendido e tentando apaziguar a situação.
Queria mesmo era ter derrubado o chá quente em suas pernas.
Yvanna fez com que eu limpasse o chão sem usar nada além de
um pano e esse é o motivo de eu estar enfaixando minha mão direita
com bandagens. Acabei me distraindo e me machucando em um
pedaço enorme de porcelana escondida dentro do pano. Foi assim
que ganhei um corte de uns quatro centímetros na minha palma, que
sangrou por todo o percurso da sala até a cozinha.
Tenho algum sossego durante toda a tarde. Yvanna, as filhas e os
convidados foram à cidade comprar roupas novas para o baile desta
noite e o tempo trabalha a meu favor, demorando bastante para
passar.
O céu está nublado e torço para que não chova. Se chover, talvez
todos tenham que ficar em casa e possuo planos para essa noite.
Decidi que vou ao palácio, no baile do príncipe, pelo menos por uma
noite. Se esses são meus últimos dias antes que tudo termine de
desabar, quero vivê-los da melhor maneira possível. Tenho um
cavalo, tenho o vestido velho da minha mãe e, principalmente, não
tenho mais medo. O quão pior pode ficar, afinal?

O dia está terminando e lavo a louça do café da tarde quando a


porta se abre e eu desperto. Não acredito que esqueci de trancar. A
figura que passa por ela me faz dar um pulo para o outro lado do
cômodo e agarrar a primeira coisa pontiaguda que vejo na minha
frente.
— Fica longe de mim. Se você se aproximar eu vou gritar tão alto
que vão me ouvir em Paris — reajo, erguendo um enorme garfo de
duas pontas na direção de Louis LaTellier.
Então ele ergue as mãos e se vira para fechar a porta. Ainda com
as mãos na altura dos ombros, arrisca um passo à frente.
— Se acalme, só vim conversar — diz. Quero poder arrancar
aquele sorrisinho cretino de seu rosto com as minhas unhas.
— Não temos nada para conversar. Vai embora antes que eu
perca a paciência.
As palavras saltam dos meus lábios e soam de um jeito que até eu
mesma acredito nelas. Quando, na verdade, estou tremendo por
dentro e quase vomitando, tamanho o meu pânico.
— Nós começamos do jeito errado. Eu estava bêbado demais,
peço que me perdoe. — Ele enterra as mãos nos bolsos de suas
calças e se mantém no lugar. — Me comportei terrivelmente.
Engulo em seco, nem um pouco disposta a comprar aquela
conversa dissimulada, mas, se isso for o que o fará me deixar em
paz, comprarei quantas vezes ele quiser.
— Está perdoado. E que não aconteça de novo. Agora, por favor,
saia.
— Eu vejo você — começa a desconversar, me arrependo de não
ter gritado no exato momento em que ele entrou. — Seu pai se
casou com uma megera gananciosa e te deixou aqui à própria sorte,
para ser o alvo de todas as frustrações dela e de suas filhas. Isso é...
comovente, sabe? E agora, quais escolhas você tem? Os planos
dela para depois do casamento envolvem vendermos essa
propriedade e nos mudarmos para o norte.
— Ela não pode. Essa casa é do meu pai e vai ser minha
quando...
— Deixa eu adivinhar: quando você se casar?
— Sim, e...
— Nesse caso, espero que já tenha um noivo, você está um pouco
em cima da hora, não acha?
— Aonde você quer chegar? Por que está me dizendo essas
coisas?
— Venho te propor um acordo. Um acordo que será bom para nós
dois e espero que o considere com muito carinho, pois pode ser sua
única chance de se dar bem na vida. Então, ouça com atenção:
quero que se case comigo.
Quase engasgo com a minha própria saliva.
— Você ainda está bêbado? — questiono retoricamente, sem
hesitar. — Nunca.
— Eu ainda não terminei. Se você se casar comigo, eu garanto
que terá todos os direitos sob este lugar. Sou um homem de muitos
negócios, você viveria aqui com todo o luxo que o dinheiro pode
pagar. É bem capaz daquelas três precisarem implorar para que as
deixe trabalhar para você, já que não terão mais nada.
A coisa toda soa mais insensata à medida que ele fala. Não pode
ser sério.
— E por que você faria isso? O que você ganha em troca?
— Não é óbvio, meu bem? Eu ganho você.
É quando ele diz isso que sinto tudo que comi no café da manhã
subir pela minha garganta.
— Nem morta.
— A decisão é sua. Vou te dar uns dias para pensar, mas lembre-
se do que está em jogo. Você não tem para onde ir, é só uma
questão de tempo.
Essas são suas últimas palavras antes que ele saia pela porta e a
feche, me deixando sozinha com todo aquele monte de absurdos e
informações novas que foram despejadas sobre mim. Ainda tenho
vontade de gritar, só que por motivos inteiramente diferentes.
VI

Por mais que eu tente – e tento bastante –, não consigo fazer


minha mente se distanciar das palavras que foram ditas por Louis
LaTellier mais cedo.
Mesmo que ele seja sórdido e mau-caráter, não duvido nem por
um segundo que as intenções de Yvanna sejam mesmo reais. Me
sinto estúpida por não ter previsto isso. A verdade é que, no fundo,
eu temia esse dia. O dia em que ela encontraria um outro homem
para realizar sua fantasia de viver entre a alta sociedade outra vez.
Cinco anos se passaram e não vi acontecer. Ela fez tudo
sorrateiramente para que eu não tivesse tempo de reagir. De
qualquer forma, com toda franqueza do mundo, não sei se há muito
que eu pudesse ter feito. Se quisesse ter direitos sobre a casa da
minha família algum dia, teria que me casar. Casamentos por aqui
são arranjados pela família, o que me leva de volta à Yvanna e seu
poderio sobre a minha vida. Penso que não seja tão insensato
considerar a proposta de LaTellier quando reflito nos possíveis
desfechos reservados para mim depois que a casa for vendida.
É horrível.
Repugnante.
Eu sei melhor do que ninguém, mas quais são as outras
possibilidades? Mesmo que vá junto com eles para outra cidade, não
é como se aquele homem fosse se tornar mais tragável, não é como
se ele fosse desistir do que quer. E se eu for deixada aqui, bem,
todos sabem o que acontece com garotas que são abandonadas
pela família. Não é nada bonito. Por incrível que pareça, há homens
piores do que Louis LaTellier pela cidade.
Preciso balançar a cabeça para afastar os pensamentos, se
pensar mais um pouco é capaz de eu entrar em combustão. Minha
cabeça dói e as náuseas estão de volta. Meu corpo sempre reagiu
mal aos maus presságios.
São quase sete da noite e estou no meu quarto, diante da
penteadeira, encarando meu reflexo no espelho parcialmente
quebrado. Há uma coloração escura sob os meus olhos, como
grandes manchas na minha pele clara. Meus cabelos estão tão
opacos que parecem cinzentos sob aquela luz parca, não loiros
como realmente são. Minha aparência me desagrada há tanto
tempo, que me esqueci sobre precisar me sentir e estar ao menos
um pouco bonita para ir a um baile no palácio. Tudo que tenho é um
vestido antigo, sapatilhas gastas e meus atributos físicos
decepcionantes.
Quando entro no vestido, percebo que há um longo rasgo na
costura lateral, expondo toda a minha cintura. Deveria ter tido o bom
senso de me preocupar com esses detalhes, mas os últimos
acontecimentos conseguiram me deixar desnorteada a ponto de me
fazerem esquecer que um vestido não usado há quase duas
décadas, certamente, não estaria magicamente bem conservado no
fundo de um baú tão velho quanto.
Se esse é um sinal do destino para que eu fique em casa e não
acabe arranjando problemas, preciso lamentar. Segui as regras por
tempo demais para saber que a vida não é menos dura com você por
ser alguém fácil de domar. Posso não saber ainda qual é o menos
ruim dentre os caminhos, porém, tenho uma certeza: a de que quero
ir ao baile e conhecer o palácio, mais do que as raras coisas que me
permiti querer.
E sei exatamente a pessoa que pode fazer isso possível.
Preciso esperar que todos saiam da casa antes de ir ao estábulo
e buscar Valentin para um pequeno passeio até a casa de Madame
Tine. É difícil controlar as rédeas com a mão direita machucada, por
isso demoro um pouco mais do que gostaria. Ela me disse que não
iria ao baile na primeira noite, então ao menos eu podia contar que
estaria em casa para me ajudar.
Quando alcanço os portões da fazenda, Tine está na varanda da
casa, sentada confortavelmente em sua cadeira de balanço à luz de
uma lanterna. Sem entender coisa alguma, ela levanta assim que me
vê e caminha até mim, me encontrando no meio do caminho.
— Aconteceu alguma coisa, querida? — Pergunta, visivelmente
surpresa. — O que você faz aqui a essa hora?
— Alguma coisa definitivamente aconteceu, Madame Tine —
respondo ao desmontar do cavalo. — E acho que só a senhora pode
me ajudar.
— Pois então diga logo, filha, eu sou velha demais para aguentar
minha ansiedade.
Dou um riso baixo e puxo o vestido arruinado da pequena bolsa
atada à cela de Valentin.
— É só o que tenho para ir ao baile hoje. Será que dá para
consertar?
Ela faz uma expressão de puro alívio e toma minha mão que não
está machucada para me levar para dentro da casa.
— Não acredito que aquela mulher finalmente adquiriu um pouco
de bom senso e deixou você ir — Tine diz no caminho entre a sala
de estar e as escadas para o seu quarto. — Pensei que eu fosse
morrer antes de ver isso acontecer.
— Sobre isso... — Não sei como continuar e mordo meu lábio. Não
faço a mínima ideia de como explicar que estou indo sozinha e sem
permissão.
Há tanto que eu gostaria de poder dizer...
— Ela não sabe, não é? — Pergunta, virando-se para me olhar.
Balanço a cabeça negativamente em resposta. Não conseguiria
mentir para ela. — Você é uma garota muito corajosa, Flora, mas
não quero te ver em problemas, então me prometa que não vai
deixar que ela te veja.
Madame Tine olha diretamente nos meus olhos. Sei que não
posso prometer que não serei pega, mas posso prometer que vou
tentar.
— Yvanna vai estar ocupada demais tentando encontrar um conde
ou um marquês para casar as filhas, além do mais, o príncipe e a
princesa estarão lá. Ninguém vai nem notar a minha presença.
Ela ri e balança a cabeça. Não sei se meu argumento serviu para
tranquilizá-la, mas não tocamos mais no assunto.
Entramos para o quarto e Madame Tine dá uma boa olhada no
rasgo do meu vestido. Ela passa uns segundos o revirando e
analisando a costura, para enfim me olhar e dizer:
— Eu posso dar um jeito. — Suspiro, aliviada. — Mas levaria uma
noite inteira. Não temos todo esse tempo.
Estava muito bom para ser verdade.
— Tudo bem... Talvez eu possa ir amanhã. — Dou de ombros,
praticamente conformada.
— De jeito nenhum. Sophie era tão magra quanto você, só não era
tão alta. Talvez algo sirva.
Ela sai do quarto sem sequer esperar que eu responda. Demora
poucos minutos para que volte com amontoado de tecido azul em
mãos.
— Acho que encontrei o modelo perfeito. — Ela segura o vestido
pelo topo e o ergue diante de mim. É a coisa mais linda que já vi.
Não possui mangas e nem alças, é apenas o corpete e a saia
combinados num tecido liso de cetim azul como o céu num dia
ensolarado. — É simples, mas era o favorito da minha Sophie.
— Ele é maravilhoso, Tine. Obrigada mesmo, mas... Eu não posso
aceitar. É uma lembrança dela para você. Não quero que estrague
ou coisa assim.
— Bobagem. As lembranças dela estão todas aqui dentro. — Ela
toca a cabeça com a ponta do dedo indicador. — Minha filha não vai
mais usá-lo, mas você pode. E aposto que vai ficar uma graça.
Não resisto a caminhar até Madame Tine e envolvê-la num abraço
apertado e longo. Sinto que estou prestes a chorar, contudo,
definitivamente aquele não é o momento.
— Como podem existir pessoas tão boas feito a senhora num
mundo tão terrível? — Pergunto, mais para mim mesma do que para
ela.
— O mundo não é terrível, meu bem. A vida é uma jornada
maravilhosa, você só precisa encontrar os acompanhantes certos. E
não perder a fé.

O vestido dado por Madame Tine serve quase perfeitamente. Fica


levemente apertado no busto e na cintura, mas molda meu corpo
muito bem e é confortável. O que mais importa no fim das contas é
que consigo montar em Valentin e seguir o caminho até o palácio.
Madame Tine me ajudou a prender meu cabelo num lindo coque
trançado e trocou as bandagens da minha mão machucada por
outras mais novas e mais limpas. Ela também pintou meus lábios de
vermelho-escuro e deixou meu rosto menos pálido com maquiagem.
Antes de sair, me olhei no espelho e acreditei piamente que aquela
mulher tinha feito alguma mágica para me deixar mais bonita, não
consegui me reconhecer no reflexo.
Ao chegar nos portões do palácio, procuro o estábulo real mais
afastado possível para deixar Valentin. Não quero correr o risco de
que minha família o reconheça. E depois, quando busco a entrada do
palácio, tiro um momento para admirar de perto a construção
magnânima diante de mim. É o mais próximo que já cheguei desse
lugar em toda a minha vida e quero absorver cada detalhe.
A primeira coisa em meu caminho é uma extensa ponte que
atravessa um lago enorme ao redor dos muros. E, logo depois dela,
tem um jardim de rosas brancas iluminado por tochas e lanternas em
pêndulos. O jardim antecede a escadaria para a entrada principal,
também inteiramente iluminada. Colunas claras se erguem e
adornam as paredes externas, que ostentam janelas enormes de
vitral em forma de arco. É tudo de tirar o fôlego, mas acredito que a
parte mais bela de todas está nas pessoas que ocupam o lugar. Sei
que a maioria deve estar do lado de dentro, mas ainda assim, ver um
lugar como esse repleto de gente traz o toque de vida que lhe falta.
Meu coração aumenta o ritmo de batidas à medida que me
aproximo das portas. Preciso me cuidar para não ser vista e minha
estratégia é usar as outras pessoas de camuflagem. Sempre que
tenho a oportunidade de me misturar em algum grupo, eu o faço, e é
assim que consigo alcançar o grande salão. A primeira coisa que me
chama a atenção lá dentro é o teto inteiro tomado por um afresco. É
colorido, mas predominantemente azul, repleto de pequenos anjos
brincando entre nuvens brancas, flores e ornamentos dourados, uma
representação do céu tão intocável quanto.
Por mais que eu queira permanecer por horas captando cada
pequeno detalhe da pintura, não posso me permitir ficar distraída por
tempo demais. Há uma mesa repleta de bebidas e frutos do mar logo
à minha esquerda e muita gente em volta dela. É lá que vou me
esconder. Meu coração nunca se acalma, ainda não consigo crer que
estou mesmo ali, do lado de dentro do palácio, ouvindo música como
uma pessoa comum.
Ou algo perto disso.
— Eu mal posso esperar para vê-lo! — Uma garota diz para a
outra que a acompanha. As duas estão bem ao meu lado. — Como
será que ele é, Aly?
— Espero que ele seja bonito! — a outra responde.
— Ele é o príncipe. Não me importa se ele for feio.
As duas riem e adoraria ter ficado para ouvir o restante da
conversa, mas avisto um vestido de cor púrpura no meio da multidão,
parecido demais com o que Juliet saiu de casa esta noite, e sou
obrigada a me afastar.
A família real é sempre muito resguardada no que diz respeito a
seus membros. Costumamos ver o rei e a rainha vez ou outra em
dias festivos no ano, mas o príncipe e a princesa não são vistos em
público desde crianças. E eu também era uma criança quando
aconteceu, então a imagem de seus rostos infantis não é exatamente
vívida na minha cabeça.
Graças à distância que me encontro da escadaria principal e toda
comoção que acontece quando anunciam a chegada do príncipe
Nathaniel, não consigo vê-lo. Eles não anunciam a princesa Diane, o
que me deixa um tanto desapontada, dado que minha curiosidade
sobre sua aparência sempre foi bem maior do que sobre a do
príncipe. Talvez não queiram que ela divida os olhares com aquele
que é o grande protagonista, afinal, tenho certeza de que ela é bem
mais bonita.
Só quando estou do alto da galeria principal é que meus olhos têm
um vislumbre de Sua Alteza Real deslizando pelo salão com alguma
moça saltitante num vestido dourado. O local é bastante vazio, vejo
praticamente tudo daqui e posso afirmar que, assim de longe, a
beleza do príncipe não me impressiona. Seus cabelos escuros estão
partidos num topete e aquelas calças devem estar apertadas demais,
a julgar por seus movimentos nada fluidos. Mas é gostoso assistir
enquanto ele muda de parceira a cada música. Aos poucos outros
casais se juntam à dança. Parte de mim deseja estar entre eles,
rodopiando enquanto sou gentilmente guiada por alguém de acordo
com o ritmo suave da melodia. Mas sou grata a mim mesma – e a
Madame Tine, é claro – por ter conseguido estar onde estou, por
pouco que seja. É que por um momento esqueço da vida que me
espera do lado de fora.
No entanto, meu momento dura bem menos do que o esperado
porque quando paro para olhar à minha volta, vejo Yvanna e os
LaTellier a apenas alguns metros de mim. Os três estão de costas,
mas um movimento errado seria o suficiente para que notassem
minha presença.
É difícil pensar rápido com o coração tão acelerado, por isso, meu
impulso é o de correr para a primeira saída que encontro. Há uma
passagem bem aos fundos da galeria e é por ela que passo,
encontrando lances e mais lances de escadas. A última coisa que
quero é estar sozinha passando por degraus escuros mais uma vez
e em um lugar desconhecido, mas não tenho nenhuma outra opção.
Desço com certa pressa, passando por algumas portas no caminho
que levam à mais e mais escadas. Por fim, quando abro a última
porta, ela me leva para o lado de fora do palácio. Sei que não estou
na parte da frente porque não encontro o mesmo jardim que vi ao
chegar, mas sim um labirinto de arbustos que ladeia o terreno e o
lago que costura sob o muro enorme e denso.
É um lugar vazio e silencioso, por isso me assusto quando vejo
uma figura encapuzada caminhando em direção ao labirinto.
— Ei! — Tento chamar a atenção de quem quer que seja. — Você
sabe para que lado fica o portão principal?
Depois de passar tão perto de estragar tudo, sinto que está na
hora de voltar para a realidade e ir para casa.
A pessoa a quem fiz a pergunta para no mesmo lugar e ao invés
de me responder, ela vira e tira o capuz. Eu pisco algumas vezes
para entender se enxerguei direito e, quando me aproximo, vejo que
é mesmo Robin ali, no último lugar onde esperava vê-la. Sendo
franca, nunca espero vê-la em nenhum lugar, mas ali estava ela,
usando suas habituais roupas de montaria, uma blusa branca de
mangas longas e calça justa. A única diferença dela para a garota
que costumo encontrar pela cidade é que seus cabelos estão presos
num rabo de cavalo baixo e marcados como se tivesse acabado de
desfazer um penteado muito elaborado.
— Florence? — ela indaga, tão surpresa quanto eu. Seus olhos
pairam sobre mim por alguns instantes, mas não é como quando
LaTellier o faz. Ela está me olhando com certa curiosidade. — O que
você faz aqui?
— No momento, estou tentando encontrar meu cavalo para voltar
para a casa e, olha só, quem diria que você sabe dizer o meu nome!
— brinco. Ela revira os olhos e dou uma risadinha. — E você? Não
gosta de bailes?
— Digamos que eu tenha lugares melhores para se estar no
momento. — Ela dá de ombros.
— Fala sério. — Rolo os olhos, descrente. O que pode ser melhor
que um baile no palácio? — Tipo onde?
Ela pondera.
— Tipo uma pequena festa entre amigos.
— Ah, é mesmo? E você pode levar uma convidada? — brinco
mais uma vez, meu tom é claramente desconfiado.
— Não é o ambiente mais adequado para alguém como você,
garota dos corvos — provoca.
Eu cruzo os braços, me sentindo particularmente desafiada.
— Como assim alguém como eu?
— Fácil de impressionar — ela retruca com uma agilidade irritante.
Sei que não deveria dizer o que estou prestes a dizer. Eu deveria ir
para casa me deitar e acordar no dia seguinte para viver mais um
dos meus dias repetitivos que, para o bem ou para o mal, em breve
chegarão ao fim. Mas a noite mal começou. Eu vi todas aquelas
pessoas ao meu redor dançando, rindo, se divertindo e tudo que fiz
foi me esgueirar pelos corredores, me cuidando para não ser pega.
Preciso de mais um tempo, nem que dure pouco, preciso ver mais do
mundo aqui do lado de fora.
— Me leva com você.
— Está blefando.
— Não estou.
— O lugar fica dentro da floresta.
— Eu não me importo.
Pela primeira vez desde que nos conhecemos, Robin não faz ideia
do que dizer ou como agir.
— Não é nenhuma brincadeira, loira. Se quer mesmo ir fique à
vontade, mas não vou voltar se você se arrepender no meio do
caminho.
— Eu vou buscar meu cavalo. Pra que lado é o portão?
— Vamos no meu. Como eu disse, o lugar é dentro da floresta, é
complicado de chegar e você não conseguiria me acompanhar.
— Eu não posso simplesmente deixá-lo aqui, Robin.
— Os estábulos são seguros. Eu deixo você em casa, é o meio do
caminho para o lugar aonde vamos.
— Não sei...
— É pegar ou largar.
Preciso parar e pensar um pouco, mas sei que vou acabar
desistindo se fizer isso. Então minha decisão é deixar que a eu do
futuro arque com a minha inconsequência.
— Vamos logo então, antes que eu me arrependa.
VII

Quando o cavalo de Robin dá o quinto ou sexto solavanco para


alcançar um ponto mais alto da floresta, percebo que talvez devesse
ter considerado melhor a minha decisão de segui-la. Nesse exato
momento, meus braços estão em volta de sua cintura e a seguro
com tanta firmeza que nossos corpos estão colados um no outro. É
estranho porque, um dia atrás, ela era algo bem próximo de uma
estranha para mim. Bem, ainda é, mas a situação toda faz com que
eu sinta algo que não estava ali antes, uma proximidade que vai um
pouco além do quão próximas estamos, fisicamente falando.
— Se me apertar com um pouco mais de força, vai acabar me
asfixiando — ela diz quando o caminho começa a ficar menos
íngreme.
— Eu não precisaria me agarrar em você desse jeito se você fosse
mais devagar — resmungo. Minha boca está próxima de sua orelha,
a cabeça está quase encaixada em seu ombro, então falo baixo.
— Eu avisei que era no meio da floresta, não avisei? Você veio por
livre e espontânea vontade! Vê se relaxa um pouco, não vou te
deixar cair.
— Como vou saber se está falando a verdade?
— Se não confia em mim, então não deveria ter subido no meu
cavalo para atravessar a floresta, para começar.
Sua resposta me deixa muda, de fato, ela tem um ponto, mas
como em toda boa decisão impulsiva, não parei para pensar direito
em todos os detalhes, eu só fiz. E só não foi um desastre completo
porque Robin me inspira segurança. Toda situação ainda é
desconfortável, especialmente porque minhas experiências com
contatos físicos me fazem querer evitá-los a todo custo, mas se
Madame Tine gosta da garota e confia nela, sinto que talvez possa
confiar também.
Tento colocar essa confiança em prática, afrouxando um pouco o
aperto em volta de sua cintura. Parece que não há muito mais o que
subir, já estamos próximas da praia e sei disso porque consigo
escutar as ondas se chocando violentamente contra as rochas na
maré alta.
— Então... — Ela pigarreia. — Por que você estava saindo do
palácio tão cedo?
Mordo os lábios quando sou lembrada do assunto que menos
quero pensar no momento. Não vejo por que inventar nenhuma
desculpa, mas a questão é que não quero falar sobre.
— Minha família não sabia que eu estava lá. Acabei ficando com
medo de que me vissem. — Mesmo contrariada, prefiro ser sincera.
— E eles não vão notar que você saiu?
— Não se eu voltar depois que todos já tiverem ido dormir. Meu
quarto é... afastado do resto da casa. — A vantagem de viver no
sótão é que ninguém se dá o trabalho de subir tantas escadas para
saber se você está lá ou não. — Mas estou curiosa sobre você.
Deixou sua família no baile para ir a outro lugar? Eles não se
importam?
Lembrei-me do anel que havia visto em sua mão esquerda ontem,
porém não quero deixá-la desconfortável por perguntar demais.
— Bem, a minha família... — Hesita. — Digamos que eu não seja
tão próxima deles. Às vezes eu só faço o que quero e a gente se
resolve depois.
Para mim, é extraordinário ouvir uma garota da minha idade dizer
essas coisas. Sinto uma pontada de inveja quase incontrolável.
— Parece que eu e você somos de realidades diferentes. — A
frase escapa dos meus lábios. — Deve ser bom ter esse tipo de
liberdade.
— Ela vem com um preço.
— E vale a pena?
Ela hesita mais uma vez.
— Nem sempre. — Há alguns minutos de silêncio antes que ela
volte a fazer perguntas. — Você ao menos conseguiu dançar com o
príncipe?
— O quê? — Estou genuinamente surpresa com a pergunta. —
Não!
— Você deve ter ficado desapontada.
— Eu não fui até lá para conhecer o príncipe. Eu queria conhecer
o palácio e ouvir um pouco de música. Apenas. Além do mais, ele
nem é tão bonito. — Dou de ombros. — Mas confesso que gostaria
de ter visto a princesa.
— Bem, eles são gêmeos. Viu o príncipe, viu a princesa.
Eu rio.
— Você provavelmente tem razão.
Ela para o cavalo de súbito e eu estive tão entretida na conversa
que mal notei quando nos aproximamos de uma espécie de chalé. A
construção fica escondida atrás de um penhasco entre as árvores e
é perto da praia. Parece uma mistura de taverna com hospedaria e
apesar de o lado de fora estar completamente desértico, é possível
ouvir música e conversas altíssimas vindas do lado de dentro.
— Chegamos — Robin diz.
Só percebo que ainda estou com meus braços em sua volta
quando ela faz menção em descer do cavalo.
— Que lugar é esse? — questiono enquanto ela desce e em
seguida estende a mão para que eu desça também. — E onde está a
parte que me impressiono?
Minha voz tem um tom proposital de desafio.
— Espere e verá.
Quando estou com os pés no chão, noto o olhar de Robin sobre
mim mais uma vez, como quando nos encontramos no palácio. A
diferença é que agora sinto meu rosto esquentar.
— O que foi? — A minha pergunta é quase involuntária.
— Nada, é só... Esse vestido...
— Madame Tine deu ele para mim. Era...
— Da Sophie. Eu sei. — Seus olhos se encontram com os meus,
por um momento, tenho medo do que ela está prestes a dizer. — Até
que ficou bem em você.
Meu suspiro de alívio é quase audível e o traduzo com um sorriso.
Sei que as duas eram próximas, não quero que pareça como se eu
estivesse tentando me apropriar de um lugar que nunca será meu na
vida de Tine. Fico feliz pelas palavras dela não terem soado nada
parecido com o que imaginei.
Seus olhos ainda estão em mim quando pergunto:
— Nós vamos entrar?
Ela se move como se, de repente, tivesse sido lembrada de onde
estávamos. Tenho quase certeza de que era o caso, mas não digo
nada porque não entendi muito bem o que aconteceu.
Nos aproximamos da entrada, ela dá duas batidas demoradas,
intercaladas com quatro batidas rápidas na porta. A pessoa que
aparece para nos receber se mantém do lado de dentro, protegida
por um trinco que só abre o suficiente para que seja possível
identificar quem está do lado de fora.
— Olha só quem apareceu! — A voz feminina exclama, tornando a
fechar a porta para destravá-la. — Pensamos que você não fosse vir
hoje.
A porta é aberta e a mulher cumprimenta Robin com um abraço. É
uma moça bastante baixa, com cabelos escuros cacheados que vão
um pouco abaixo dos ombros e um rosto marcante, mesmo que os
traços sejam tão finos. Ela não nota minha presença até que eu dê
alguns passos à frente, na intenção de ser vista.
— Pela Deusa, Rob, quem é essa garota? — pergunta num tom
nada afável, me encarando de cima a baixo.
— Se acalma, Milla, a Florence é... uma amiga — Robin responde
calmamente.
— Sabe que não gostamos de estranhos por aqui. — É a resposta
da outra.
— Ela não é uma estranha. Ela conhecia a Sophie.
Quase abro minha boca para dizer que não, não conheci Sophie,
apesar de ela ser filha de Madame Tine. Então me ocorre que ela
provavelmente sabe disso e só conta a mentira para fazer com que a
garota simpatize comigo de alguma forma. Isso me faz criar mais
algumas dezenas de questionamentos sobre Robin e este lugar.
— Fica na sua conta. As outras não vão gostar nada disso.
— Eu converso com elas, não esquenta — Robin diz.
A tal Milla se afasta da porta para que possamos entrar e depois
de uma recepção calorosa feito essa, hesito. Quando minha
acompanhante se vira para mim e faz um gesto com o braço me
chamando para entrar, minha expressão carrega um grande “Tem
certeza?” estampado. Não me sinto à vontade para entrar num lugar
onde as pessoas podem não me querer por perto.
— A Camilla é melodramática — murmura. — Vamos. Eu prometo
que você vai gostar.
— Eu não tenho certeza...
— Podemos ir embora se você quiser — sugere, se aproximando e
tomando a minha mão que não está machucada.
Estou com medo, mas sua fala me conforta quando percebo que
Robin se importa o suficiente com meus sentimentos para se dispor
a voltar todo aquele caminho comigo. É aí que amaldiçoo minha
inclinação incorrigível para confiar nas pessoas. Dou um passo à
frente, deixo que ela me guie para dentro e feche a porta atrás de
nós.
VIII

O lugar em que entramos se parece muito com uma hospedaria


comum. O primeiro cômodo é uma recepção vazia e descubro que a
música está vindo, na verdade, da parte externa que fica nos fundos.
A decoração é bastante modesta, composta por móveis escuros e
uma tapeçaria sem vida. Meus olhos percebem tudo com
curiosidade, não conseguiria disfarçar que estou ansiosa nem
mesmo se tentasse.
Logo em seguida há um corredor estreito que nos leva a uma porta
aberta para a parte de trás, onde há muitas outras pessoas. Ou
melhor: muitas outras mulheres porque, reparando bem, não vejo
nenhum homem. Elas estão em, no mínimo, uma quinzena, divididas
entre as três que estão tocando instrumentos que não consigo
reconhecer – mas seus sons compõem uma música tão animada que
faz a do palácio parecer fúnebre –, as que dançam e as que
simplesmente estão apreciando a companhia umas das outras e a
aura alegre do ambiente. Há algo caracteristicamente marcante no
jeito que elas se vestem, é algo meio cigano. As roupas são leves,
feitas com poucos panos, não restringem os movimentos, parecem
muito confortáveis. Algumas das moças usam flores claras como
acessórios nos cabelos e joias simples de ouro ou prata. Poucas
delas usam maquiagem, os tons parecem ser unanimemente
escuros.
A propriedade fica quase à beira-mar, o muro que a cerca é mais
baixo nos fundos e consigo ver um pedacinho do oceano lá atrás. O
gramado está decorado com guirlandas floridas, gentilmente tocadas
pela luz quente e dançante das tochas improvisadas.
Estou tão curiosa sobre o lugar que mal percebo que já estamos
praticamente no centro dele, atraindo olhares de todos os lados.
Minha expressão, a postura, o andar e meu vestido, praticamente
gritam “Intrusa!”.
— Quem é viva sempre aparece, não é mesmo?! — diz uma delas,
interrompendo sua dança e se aproximando de nós, acompanhada
da outra moça com quem dançava. — E, olha só, você trouxe
companhia dessa vez.
A ruiva de quase dois metros de altura olha diretamente para mim
quando fala e não consigo não me encolher um pouco. Sem destoar
das outras, ela usa uma tiara de flores em volta da cabeça raspada
do lado esquerdo, onde o cabelo está começando a crescer de novo.
— Elle, você consegue ser bastante indelicada às vezes — A outra
intervém enquanto se posiciona ao lado da ruiva. — Robin, estamos
esperando você apresentar sua amiga para a gente.
Ao que parece, minha presença acabou gerando uma grande
alvoroço, pois a música para em instantes. Um pequeno círculo se
forma em torno de mim e de Robin. Sinto que vou desmaiar, não
estou acostumada com tanta atenção e não saber se é um tipo de
atenção boa ou ruim só faz com que meu nervosismo fique ainda
pior. Queria conseguir olhar para os rostos delas e tentar decifrar o
que estão pensando, mas a única pessoa que meu olhar busca é
Robin. Ela sabe que estou desconfortável com a situação e aperta
minha mão.
— Eu pretendia apresentá-la a cada uma do jeito certo antes de
vocês nos cercarem feito um bando de gaivotas! — Robin diz num
tom bem-humorado. Algumas das moças riem. — Meninas, essa é a
Florence. Ela é uma amiga e, antes que perguntem, sim, ela é da
minha confiança.
Não sei dizer se ela diz a verdade ou só quer acalmar os ânimos.
Se for verdade, nem passa pela minha cabeça quando ela decidiu
que sou confiável, mas fico feliz em saber que também lhe inspiro
confiança.
— Se é você quem diz, então nós acreditamos — uma delas fala,
sua voz é potente e bastante grave. É uma mulher mais velha do que
a maioria, cujo rosto eu ainda não havia reparado. Ela é alta como a
ruiva, mas sua pele é negra, seus cabelos cacheados estão presos
no alto e caem em abundância sobre seus ombros. — Seja bem-
vinda, Florence. Meu nome é Isis.
Ela estende a mão em minha direção e instintivamente acabo lhe
dando a minha mão que está enfaixada. Fico com receio de trocar e
ela toca somente em meus dedos não cobertos pela bandagem, com
bastante gentileza.
— Obrigada — digo com a voz meio falha. Ao menos consigo olhá-
la nos olhos.
Robin não me diz nada, mas sinto que Isis é uma espécie de líder
do lugar, porque assim que ela se mostra cordial com a minha
presença, as outras se dividem entre as que voltam a se divertir e as
que vêm até mim, me cumprimentar e dar as boas-vindas. A música
volta a tocar e ainda não entendi muito bem a que tipo de lugar estou
sendo recepcionada, mas todas elas são muito amáveis e me sinto
verdadeiramente confortável pela primeira vez desde que pisei ali.
— Viu? Eu disse que ia dar tudo certo — Robin se vangloria
quando somos deixadas sozinhas pela primeira vez.
— Você só se esqueceu de dizer que antes daria tudo errado. —
Suspiro longamente. — Eu quase vomitei de nervoso quando
cercaram a gente daquele jeito.
— Já passou, loirinha, vamos aproveitar a festa — ela diz, me
guiando em direção a uma mesa repleta de barris de bebida. — Está
com sede?
Eu balanço a cabeça.
— Estou mais curiosa para saber que lugar é esse. E quem são
essas pessoas.
— Eu te disse. São minhas amigas — responde, estendendo em
minha direção uma taça metálica cheia de vinho branco até o topo.
Pego, mas não bebo. — O que mais há para saber?
— Bem, vejamos... De onde vocês todas se conhecem? E como
conhecem a Sophie? Por que é tudo tão secreto?
Robin não parece se incomodar com meus questionamentos. A
verdade é que ela está interessada demais em seu copo de cerveja
para se importar com qualquer outra coisa.
— Essas mulheres fazem parte de uma comunidade feminina e
esse lugar é um dos acampamentos. Sophie fazia parte disso antes
de... Enfim. E é secreto, porque, bom, não acho que o reino lidaria
bem com um bando de mulheres vivendo juntas e ajudando umas as
outras. Mas é só um palpite. — Ela me encara com aquele sorrisinho
patife de sempre e reviro os olhos.
— Ainda não estou satisfeita, mas vou deixar para fazer mais
perguntas mais tarde, suas amigas estão chegando.
Num movimento rápido com a cabeça, indico as duas garotas que
falaram conosco mais cedo. A ruiva – Elle – e sua amiga se
aproximam aos poucos, a mais baixa delas toca o ombro de Robin.
— Ei, Rob, a chefia quer falar com você — ela diz. Sei que se
refere à mulher que me deu boas-vindas primeiro, em nome de
todas.
— Comigo? Eu estou com problemas? — pergunta, num tom
descontraído.
— Pra mim ela não disse nada. — Dá de ombros.
— Está certo. Será que vocês cuidariam da Flora por mim? —
Robin passa um dos braços em torno do meu ombro. — Prometo
que ela não morde, mas fiquem atentas porque eu já a vi
conversando com um corvo uma vez, então talvez ela seja uma
bruxa. — Meu rosto esquenta e reviro os olhos enquanto as duas
riem sem entender coisa alguma. — Eu já volto.
Ela espera que eu concorde com a ideia antes de sair, o que faço
com um aceno de cabeça. É óbvio que não quero estar sozinha com
duas desconhecidas, mas não é como se eu preferisse estar
sozinha, sozinha.
— Ainda não nos apresentamos — a garota mais baixa diz. — Eu
sou a Nellyne e esta é a Danielle. — Ela indica a ruiva. — Mais
conhecidas como Nelly e Elle.
Nellyne é uma criatura adorável de rosto redondo, cabelo trançado
e a pele tão escura quanto a de Isis. As duas têm os mesmos olhos
dourados, o que me faz pensar que elas podem ter algum
parentesco.
— Eu sou a Florence. Mas vocês já sabem disso.
— É um nome bem incomum — Danielle diz. Seu tom é bastante
plácido, o que me deixa mais à vontade. — O que significa?
— A palavra é algo como “florescer”, mas meu pai escolheu esse
nome por causa da cidade italiana de Florença. Ele a conheceu
numa de suas viagens e me dizia que era a cidade mais linda de
toda Europa.
— Que bonito! — Nelly exclama. — Minha mãe me deu esse nome
por causa da minha avó. — Ela balança os ombros. — Mas enfim...
Conta pra gente de onde você e a Rob se conhecem.
Por um momento eu me esqueço do que tenho que responder.
— Nós nos conhecemos através de uma amiga — digo. Não é
nenhuma mentira, afinal.
— E vocês estavam juntas no baile? — Elle indica minha roupa.
— Não exatamente. Eu estava indo embora quando nos
encontramos e foi meio de última hora que decidi vir. — Também não
é mentira.
— Eu jurei que ela não ia conseguir. Fala sério? Como ela faz para
sair daquela fortaleza sem ser notada todas as vezes? E como
podem não dar falta dela? — Nelly questiona e Elle concorda. — A
garota é um fantasma.
Eu ainda estou um pouco perdida, mas, para todos os efeitos, eu e
Robin somos amigas de confiança, então movo a cabeça em
concordância.
— Talvez ela tenha aproveitado que todos os olhos estavam no
irmão para que ela pudesse escapar — Elle diz. Eu sequer sabia que
Robin tinha um irmão.
— Talvez. Vocês acham que ela se sente mal pelo irmão ganhar
tanta atenção? — Nelly pergunta a nós duas.
— Não mesmo. Ela não suportaria ser tão paparicada como
aquele príncipe! — a ruiva afirma e se antes eu não estava
entendendo nada, minha cabeça acaba de dar um nó.
— Do que vocês estão falando? — pergunto. É inevitável soar
confusa. — O que tem o irmão da Robin?
— Bem, ele é o príncipe. O primeiro na linha de sucessão ao trono.
Acho que isso diz muita coisa — Nelly responde.
Sinto minha mente girando, me fazendo tontear. A Robin não pode
ser a irmã do príncipe porque isso faria dela...
— Estou de volta. — A garota se materializa diante de mim
enquanto ainda estou tentando processar o que me foi dito. — Está
tudo bem por aqui, garota dos corvos?
— Tudo ótimo. — Eu tomo um longo gole de vinho pela primeira
vez e deixo a taça sobre a mesa mais próxima. — Mas ficaria ainda
melhor se você dançasse comigo essa música, Robin. Eu adoro
músicas lentas.
A expressão de surpresa dela seria uma graça se eu não estivesse
tão inconformada por ter escondido algo tão drástico de mim.
— Eu seria uma pessoa horrível se dissesse não — responde,
largando a sua cerveja na mesa também.
Caminhamos até o lugar onde há outras moças dançando umas
com as outras e é assim que estamos bem no meio de todas.
Estremeço quando ela segura minha cintura com tanta firmeza
enquanto meus braços ficam sobre seus ombros, a deixo me guiar
de acordo com o ritmo. É como estar no baile, só que no meio da
floresta e com uma impostora.
— Eu te coloquei em problemas? — Dou início a conversa,
despretensiosamente.
— O quê? — Ela franze o cenho. — Não! Não... Isis e eu tínhamos
outros assuntos para colocar em dia. Eu deveria ter falado antes.
— Não tem problema. — Tento reunir coragem dentro de mim para
dizer o que pretendo dizer, o que realmente quero dizer. E para isso
preciso desviar o olhar, não consigo encarar os olhos dela. —
Quando você pretendia me contar que é a princesa?
Meu tom não é agressivo, é só indistinto. Um misto de curiosidade
e um pouco de mágoa. Minha pergunta a pega de surpresa e ela
morde os lábios, como faz quando não sabe o que dizer ou como vai
dizer.
— E faz alguma diferença? — A pergunta soa muitíssimo delicada,
mas não me satisfaz.
— Essa não é a minha resposta.
— Eu ia te contar. Quis fazer isso enquanto conversávamos no
caminho para cá, mas não consegui. Você é sempre tão sincera e
verdadeira comigo. Não faz ideia do quão raro isso é na minha vida.
— Então é isso? Você me trouxe para um lugar desconhecido e
disse para todo mundo que nós somos amigas de confiança, mas
não pensou que, talvez, mas só talvez, uma amiga deveria saber
desse pequeno detalhe sobre a sua vida? — Meu tom escala para
algo perto da indignação, mas mantenho o volume bem baixo para
que não acabem me escutando. — E fez isso por ter pensado que eu
fosse te tratar diferente?
— Não tenho como me desculpar por isso. Não achei que o
assunto surgiria e você tem todo o direito de se chatear comigo. Eu
só... Quis deixar as coisas como estavam. Foi estúpido.
— Foi muito estúpido. — Balanço a cabeça, ainda irritada. Porém,
confesso que seu olhar arrependido me derrete um pouco. — Você
mentiu até mesmo sobre o seu nome!
— Eu não menti. Diane Robin Aubert é o meu nome completo.
— É um nome bonito. Vossa Farsante Real tem mais algum
segredo sórdido?
A provocação é inevitável.
— Tenho muitos deles, mas, se você me chamar assim mais uma
vez, talvez você nunca descubra.
Ela me faz rir e fico muito decepcionada comigo mesma por não
conseguir permanecer magoada. Por mais que eu tenha problemas
com mentiras e manipulação, sei bem determinar quando uma
mentira é maliciosa e quando não é. Consigo melhor do que ninguém
reconhecer a maldade nas pessoas quando vejo, porque convivo
com ela desde sempre. Robin está sendo sincera comigo, está
escrito em seus olhos. Por enquanto, é o suficiente para que eu
consiga deixar o assunto de lado e aproveitar o momento. Afinal, não
é sempre que se tem a chance de dançar com uma princesa.
IX

É quando o ritmo da música começa a acelerar que me dou


conta do óbvio: não sei dançar. Eu devia ter pensado nisso assim
que me ofereci para dançar com Robin. Tudo bem que minha
intenção não era mesmo essa, mas quando terminei de dizer tudo
que queria, nós duas ficamos por ali, naquele mesmo lugar. Estava
fácil demais quando tudo que eu precisava fazer era ir com meus pés
desajeitados para um lado e para o outro, sem me preocupar com o
que fazer com o resto do corpo.
Por esse motivo, quando percebo que os movimentos ficam
complicados demais, dou a desculpa de que preciso tomar mais um
pouco de vinho e me retiro da pista de dança improvisada.
Não é nenhum absurdo que alguém não saiba como fazer algo
que nunca fez antes. O mais próximo que cheguei de uma dança foi
há anos atrás, quando era pequena e leve o suficiente para pisar
sobre os sapatos do meu pai e assim ele saísse ensaiando passos
desconexos pela casa enquanto eu tinha crises de riso.
Ao me afastar de Robin e ficar a sós por alguns instantes, percebo
que minha cabeça esteve longe dos clássicos assuntos que me
assombram durante a maior parte das horas do dia. Faz algum
tempo que não me torturo mentalmente ao pensar sobre Yvanna, seu
futuro noivo e meu destino que se mantém sob a jurisdição dos dois,
como um acusado que aguarda julgamento. Ou melhor dizendo: um
condenado que aguarda seu carrasco porque, no meu caso, a
sentença de morte já foi decretada.
Não há saída.
Bebo o segundo gole de vinho da noite. Nunca bebo, ao menos
não ao ponto de me embriagar. Os motivos são vários e um deles é
saber que para isso, eu precisaria beber mais vinho do que o
permitido para mim em casa. Então tenho quase certeza de que não
sei como é beber tanto ao ponto de sofrer alterações de consciência.
E, falando em consciência, a minha me alerta que pode não ser
uma boa ideia colocar isso em prática quando estou num lugar
desconhecido, cercada por pessoas tão desconhecidas quanto. Esse
pensamento me faz abaixar a taça e voltar a focar Robin no meu
olhar, neste momento ela se aproxima de onde estou, acompanhada
por Nellyne e Danielle.
Um alívio forasteiro ameaça tomar conta de mim enquanto assisto
Robin chegar mais perto. É um pouco contraditório pensar que sua
presença, o simples fato de ela existir perto de mim, consegue tirar
minha mente dos eixos. Há tanta coisa que quero perguntar, tanto
que eu quero entender. De modo que esses questionamentos
invadem, sem deixar espaço para mais nada que não sejam as
inúmeras dúvidas.
Como ela encontrou esse lugar e essas mulheres? Onde e como
conheceu Sophie? O quão próximas elas realmente eram? Será que
Madame Tine sabe quem ela realmente é?
Certo, essa última é uma pergunta estúpida. É claro que Madame
Tine sabe.
— Você parece pensativa, loirinha — Robin diz, parando bem ao
meu lado.
— O que você tem contra o meu nome? — pergunto, virando o
rosto para enxergá-la melhor.
— Gosto de apelidos.
— E o que aconteceu com “garota dos corvos”?
— Esse já estava ficando repetitivo. — Ela balança os ombros.
— Vocês precisam contar para gente essa história dos corvos —
Nellyne pede, soando empolgada.
— Aquilo era de verdade? Achei que a Rob estivesse brincando —
Danielle diz.
— É loucura, não é? Mas é inteiramente verdade. — Robin se
empolga. — Você quer contar? Porque confesso que nunca entendi
muito bem.
Estou prestes a dar uma resposta atrevida quando percebo que
não há mal nenhum em tentar esclarecer essa história pela primeira
vez.
— Não tem muito o que contar — pondero. — Tem esse corvo que
fica na janela do meu quarto de vez em quando e eu sempre o ouvia,
bem... fazendo barulhos de corvo. Mas um belo dia, acordei com o
som do que parecia um lobo uivando, bem na minha janela. Foi
quando eu descobri que os corvos conseguem imitar sons e, bem, a
fala humana é um tipo de som. Eu ensinava palavras novas para ele
quando alguém decidiu passar por perto e espiar a minha janela.
— Pela Deusa, Florence. — Nelly parece genuinamente
estarrecida com a informação. — Isso é loucura! Se fosse comigo, eu
provavelmente acharia que o corvo estava enfeitiçado ou coisa do
tipo.
— Bom, foi o que achei também. Mas para a minha sorte, meu pai
tinha um livro sobre corvos em casa. Acho que ele deve ter se
interessado pelos bichos enquanto morava lá... Enfim. Essa é a
história.
— Espera, você sabe ler? — Robin pergunta. Eu assinto. — Você
é sempre cheia de surpresas, não é?
Estava prestes a responder que sim, eu poderia surpreendê-la de
várias maneiras, mas antes que pudesse dizer qualquer outra coisa,
a garota que estava na porta mais cedo – Camilla – surge de
maneira repentina. Ela envolve Danielle pela cintura e a ruiva se
inclina para alcançar os lábios da outra num gesto um tanto natural.
As duas se beijam. Bem ali. Na minha frente, na frente de todo
mundo.
Não sei muito sobre beijos. Não mais do que eu já vi em pinturas
ou li em livros. E, bem, houve o acontecido traumático com Louis
LaTellier, mas aquilo não foi um beijo, estava mais para violência.
Então, não consigo disfarçar minha perplexidade com a cena que
aconteceu diante de mim.
Olho para as duas com alguma expressão bem próxima de
fascínio. Elas são duas garotas e se beijam de um jeito que num
lapso desfez tudo que eu fantasiei sobre como pode ser beijar
alguém. Na minha mente, a outra pessoa que fantasio beijar é
sempre um homem, mas, parando para pensar, acho que jamais
beijaria um homem com tanto desejo quanto como eu vi as duas
demonstrarem uma pela outra, e isso me confunde. É algo sobre o
que nunca pensei. Nunca passou pela minha cabeça que duas
mulheres também podem se beijar como homens e mulheres se
beijam, ainda que, vendo acontecer, faça todo sentido do mundo
para mim.
— Arranjem um quarto! — Robin diz.
— Então, o que eu perdi? — Camilla pergunta, aos risos, olhando
para todas assim que seus lábios desgrudam dos de Danielle, cujas
bochechas estão mais do que vermelhas.
Ainda estou um pouco atordoada.
— Robin apresentou a amiga dela para gente, Florence, de quem
já gosto bastante por sinal — Nelly diz. Eu acabo sorrindo com o
comentário, em agradecimento. — Ela lê e ensina corvos a falar.
— Uau — Milla exclama. — Se eu fosse uma cidadã comum,
estaria agora mesmo com um forcado na mão te acusando de
bruxaria. — As garotas riem e acabo rindo também. — Garotas,
acabei de trocar meu turno de vigia da porta, então, se me permitem,
vou beber tudo que eu tiver direito e depois vou dançar. Sintam-se à
vontade para me acompanhar.
— Eu não perderia isso por nada — Elle responde, entrelaçando
os dedos com os de Milla carinhosamente.
— Já que insistem... — Nelly diz com a voz animada. — Vocês
vêm?
A pergunta é para mim e para Robin, mas, sendo franca, não sinto
a mínima vontade de beber mais do que bebi e tampouco de dançar.
Acho que minha expressão traduz o que sinto, pois a princesa me
olha e responde em seguida:
— Mais tarde a gente alcança vocês.
Nellyne balança os ombros conformada e as três se afastam de
uma vez. Quero agradecer a Robin pela sensibilidade, mas minha
mente ainda está no beijo compartilhado por Danielle e Camilla
instantes atrás. Por isso, quando elas se afastam, não consigo
segurar minha curiosidade incurável por muito mais tempo.
— Posso perguntar uma coisa que talvez soe completamente sem
noção? — sugiro, mordiscando o lábio por dentro.
— Talvez eu me arrependa, mas, claro, vá em frente — responde,
dando alguns passos à frente para se sentar num banco por perto.
Eu faço o mesmo.
Hesito, na tentativa de elaborar melhor minha pergunta, mas
desisto ao perceber que não existe um jeito discreto de falar sobre o
que quero saber.
— As garotas, Danielle e Milla... Quando elas se beijaram daquele
jeito fiquei... Não sei dizer. Acho que eu não estava esperando,
sabe? — Eu mal termino de falar e meu rosto já está queimando de
vergonha. — O que eu queria perguntar é: isso é comum entre
vocês?
As sobrancelhas de Robin estão arqueadas e ela me olha como se
eu fosse de um mundo diferente. E, verdade seja dita: possivelmente
sou, porém, minha curiosidade é inofensiva.
— Você ficou incomodada? — pergunta. Vejo-a desviar o olhar por
um breve momento.
— Não. Eu fiquei curiosa.
É a mais pura verdade.
— A Elle e a Milla são um casal. Elas se beijam sempre que têm
vontade. E, bem, elas meio que vivem num lugar onde só mulheres
são permitidas, então, respondendo sua pergunta: é comum ver duas
mulheres se beijando por aqui de vez em quando, sim.
— Então, se a Sophie vivia com elas, isso quer dizer que ela
nunca foi...
— Casada? — Ela termina a frase por mim. Balanço a cabeça em
concordância. — Bem... Depende. — Robin ergue a mão esquerda,
exibindo o anel dourado em seu anelar. — Eu e ela éramos algo
próximo disso. Estávamos juntas sempre que podíamos, fazíamos
planos para um futuro em que me juntaria a ela e a comunidade
oficialmente. Ela me deu esse anel quase um mês antes de morrer.
Não era um casamento, mas era um compromisso, sabe?
A dor nas palavras dela é quase palpável. Por um instante, quero
envolver Robin com meus braços e confortá-la. Só que não temos
esse tipo de relação e não sou a melhor pessoa para consolar
alguém, dessa forma, a ideia se apaga na minha mente feito a
chama minguante de uma vela, se esvaindo em fumaça.
— Você nunca está sem ele. O anel.
— Tem razão, mas existem mais motivos para isso que
simplesmente servir de lembrança. Esse anel é um passe livre para
certas coisas. Gosto de andar pela cidade às vezes, você sabe. É
impressionante como os homens te respeitam se usar um desses.
Eles não vão deixar de te tocar mesmo que você diga que não
queira, mas se pensarem que existe um homem em algum lugar que
não quer que você toque na esposa dele, costumam ser bastante
respeitosos.
A fala dela me leva diretamente para a noite passada e volto a
sentir náuseas. A mão de Louis está mais uma vez apertando meu
braço e estou sem ar.
— É assustador.
Balanço a cabeça discretamente e respiro bem fundo. Em seguida,
sinto um toque familiar no dorso da minha mão que está enfaixada. É
claro que é Robin. Ela a segura pelo punho, analisando as
bandagens e a girando.
— O que aconteceu? — pergunta.
— Eu me cortei.
— Espero que tenha sido um acidente — diz, cerrando a
mandíbula.
— Foi. Porcelana.
— Sua vez. Pode perguntar o que quiser.
Ela se aproxima mais de mim, quase encerrando a distância entre
nossas peles. Seu cotovelo está sobre a mesa atrás de nós, de
modo que apoia a cabeça numa das mãos enquanto me olha com o
rosto ligeiramente tombado. Rob é uma mulher bonita até demais
para estar assim tão perto e o beijo de Danielle e Camilla vêm a
minha mente com uma naturalidade espantosa. Lembro-me de cada
detalhe como se estivesse acontecendo mais uma vez, ali na minha
frente, me pergunto se poderia beijar Robin daquele jeito caso ela
quisesse e eu soubesse como fazer.
— Com o que você costuma sonhar? — pergunto a primeira coisa
que passa pela minha cabeça quando percebo que meus olhos estão
perdidos por tempo demais nos lábios dela.
Espero que ela não tenha percebido o rubor nas minhas
bochechas.
— Isso é sério? — Eu assinto com um riso baixo. — Não sei...
Sempre sonho com coisas diferentes, mas o sonho que tenho com
frequência é um em que estou fazendo coisas que exigem esforço,
tipo pintando um quadro trabalhoso e cheio de detalhes. Mas nunca
consigo terminar qualquer coisa que esteja fazendo no sonho.
Quando me distraio, por um segundo que seja, a tela fica em branco
e tenho que começar de novo.
Depois de certo tempo analisando os meus sonhos e buscando a
interpretação deles nas minhas emoções, entendi que para
conhecermos alguém de verdade, basta perguntar o que acontece
dentro da cabeça deles depois que adormecem.
Talvez seja indelicado da minha parte fazer essa pergunta apenas
com o objetivo de analisar cada detalhe do sonho e tentar conhecer
um pouco mais de Robin, só que não consigo evitar. Além do mais,
isso tudo pode ser só coisa da minha cabeça até onde sei, mas acho
que as coisas trabalhosas que ela faz nesses sonhos representam
partes da vida que exigem esforço, como as relações que
construímos com lugares e pessoas. Me apegando ao que ela diz e
somente a isso, acredito que Robin é alguém que tem medo de
recomeços.
X

Minha noite termina aproximadamente às três da manhã quando


me despeço de todas as garotas e subo no cavalo de Robin para que
me deixe em casa, não consigo me lembrar da última vez em que me
senti tão leve quanto agora. O caminho de volta é menos turbulento,
meus olhos estão cansados e sinto sono. Já passou muito do meu
horário de dormir e prevejo problemas para ficar de pé no dia
seguinte, mas não consigo dizer que me arrependo.
A conversa daquela hora entre mim e Robin prosseguiu por
bastante tempo, até que as amigas dela aparecessem novamente e
começassem a falar sobre como a festa do dia seguinte – para a
qual fui convidada – será ainda melhor.
Recebi o convite, mas não pude dizer com certeza se estaria lá.
Tudo depende da minha habilidade de fingir que não passei a noite
fora e conseguir terminar as tarefas de casa a tempo.
— Então... — Robin começa. Sinto ela virar a cabeça na tentativa
de me enxergar aqui atrás. — De um a dez, quão impressionada
você está?
— Onze — respondo com um pequeno sorriso e a voz lânguida. —
Ponto extra por eu ter descoberto que a nossa princesa frequenta
festas clandestinas no meio da floresta. E que ela e a filha da minha
amiga eram um casal.
Ela dá uma risada bem baixa.
— Falando na Madame Tine, mal posso esperar para contar para
ela tudo que aconteceu esta noite. Ela não vai acreditar.
— Prometa que não vai fazer isso sem que eu esteja perto para
ver a reação dela.
— Não posso prometer uma coisa dessas. Acho que não
conseguiria ficar calada se nos encontrarmos antes.
— Você não seria tão egoísta assim! — exclamo e a vejo balançar
os ombros.
— Me perdoa, é mais forte do que eu.
Sei que ela não vê, mas reviro os olhos mesmo assim.
— De qualquer forma — começo, no meu tom mais ameno. —
Obrigada por hoje.
Robin girou a cabeça mais uma vez, tentando encontrar meu olhar.
Talvez para garantir que estou sendo sincera.
— Disponha. Agradeço a companhia. Eu... — Hesita. — Você é
uma garota muito legal, Flora. Devia deixar mais pessoas
descobrirem isso.
Eu sorrio e dou de ombros.
— Talvez um dia.
Ou talvez nunca.
Percebo que estamos perto de casa quando a estrada começa a
ficar mais regular e vou reconhecendo o caminho aos poucos. É
quando sei que é a hora de voltar para a realidade e me bate uma
tristeza súbita, mas não inexplicável ou inesperada. Desejo que o
tempo congele para não precisar retornar. Ali mesmo, com Robin
naquela estrada sem pavimento, dentre a noite escura e silenciosa
onde eu facilmente acreditaria que só eu e ela existimos no mundo
inteiro.
Mas não dá. Não estou num conto de fadas.
É doloroso me despedir de Robin. Primeiro: sinto que gosto dela
mais do que deveria. Depois: preciso encarar a realidade e voltar a
viver como se a noite anterior não tivesse passado de um sonho
bom.
Quando criança, me lembro de encontrar um livro grande e
colorido sobre moda e costura nas coisas que restaram da minha
mãe, e que meu pai mantinha no sótão. Eu devia ter nove ou dez
anos. Havia desenhos e mais desenhos sobre vestidos nas páginas
do livro, passava horas folheando e admirando. Meu pai dizia a todos
que eu queria ser modista, com certo orgulho na voz. A verdade é
que nunca foi sobre os vestidos, eles eram só uma boa desculpa
para que pudesse ficar olhando para as mulheres que os vestiam. Os
cabelos, os rostos delicados, as curvas que cada corpo fazia
dependendo da pose e do modelo, tudo isso me fascinava de um
jeito que nunca compreendi muito bem. É claro que eram apenas
ilustrações simples e sem nenhuma profundidade, além de serem
representações – e só fui descobrir isso anos mais tarde –
completamente irrealistas do corpo feminino, quem desenhou
aquelas figuras com toda certeza nunca viu uma mulher sem roupas.
Mas agora, olhando para trás, depois de ter conhecido melhor Robin,
aprendido sobre Sophie e as amigas dela, não consigo não
questionar meus sentimentos no que diz respeito às outras garotas.
Será que sempre esteve ali e não vi? Por que a possibilidade de
gostar de uma menina romanticamente nunca me foi apresentada?
Ou será que só estou impressionada e confusa? É difícil dizer
quando as únicas pessoas da sua idade com quem convivi a vida
inteira são minhas irmãs postiças, pelas quais o único sentimento
que eu poderia nutrir é a mais pura aversão. Bem, o livro
desapareceu logo após meu pai falecer, junto de grande parte das
coisas de minha mãe. Yvanna só não jogou fora o que tive tempo de
salvar, que foi o vestido e o anel de casamento dela. Este último
preciso guardar num fundo falso da gaveta da mesa de cabeceira,
porque ela trataria de vendê-lo se o encontrasse.
Percebo que estou divagando em meus pensamentos quando uma
taça escorrega das minhas mãos ensaboadas e bate contra o fundo
da pia, me despertando com o tilintar estridente. É desnecessário
dizer que ter dormido por apenas três horas após uma noite agitada
deixou minha mente entorpecida. Estou bocejando enquanto lavo a
louça do café e preparo o almoço, há olheiras escuras e profundas
sob os meus olhos, mas eu faria tudo de novo, mil e uma vezes se
pudesse.
— Menina, você ficou surda? — A voz de Bertha LaTellier surge da
porta da cozinha. Sua carranca, ainda que franzina, demonstra sua
insatisfação. — Há quase meia-hora que estou te chamando para
buscar minha roupa suja no quarto.
Preciso me segurar para não revirar os olhos e dar uma má
resposta, do tipo: “Será que você não vê que tenho coisas mais
importantes para tomar conta? Tire você sua roupa suja”.
— Perdão, Madame Bertha, deve ter sido o barulho da água —
respondo, enxaguando as mãos no meu velho avental encardido, a
faixa que envolve uma delas continua ensopada e grudenta.
Antes de segui-la até o quarto, certifiquei-me de que a comida que
eu preparava não queimaria durante a minha ausência.
Quase caí no deslumbre de esquecer que aquela mulher e o filho
estavam hospedados na casa. Em algum lugar obscuro e
desesperado da minha mente, venho pensando sobre a proposta de
Louis e quero vomitar todas as vezes que o pensamento salta para
uma camada mais consciente de mim. A verdade é que não sei o
que fazer. Sei que o que me prende às palavras dele é o amor que
tenho pela casa da minha família, pela recusa em permitir que
Yvanna destrua nossas últimas lembranças. Mas, no fim, é como ter
que escolher entre o inferno e a mais pura incerteza, quando a
incerteza pode ser o purgatório, o inferno ou pior.
— A criadagem por aqui é sempre assim? — Bertha ralha no
instante em que me abaixo para recolher o cesto com suas roupas.
— Incompetente?
Não sei exatamente o que ela espera que eu responda, a única
resposta na ponta da minha língua é um bom e sonoro: “Vai pro
inferno”.
— Mamãe, não seja rabugenta com a moça — Louis diz, da porta
do quarto. Sinto meus músculos retesarem e minhas pernas
perderem a força. Ele não tentaria nada comigo com a mãe por
perto, tentaria? — Ela não é nenhum serviçal qualquer. Florence é
parte da família.
— E não é ainda pior? Só comprova que estou com a razão
quando digo que se envolver com gente dessa classe é uma ideia
horrenda.
Estar no meio dessa cena faz meu estômago dar cambalhotas.
Quero correr dali, mas a tensão é tão palpável que sinto que poderia
me chocar contra ela caso tentasse. Então ergo do chão lentamente,
torcendo para não ser notada.
— Por que toda essa preocupação? Se eu tiver sorte, você estará
morta daqui a dois ou três anos — Louis responde num tom que
beira o sadismo.
— Pode esperar sentado, meu querido Louis, Deus em pessoa
teria que descer dos céus para me levar com ele! — Bertha grita,
injuriada.
Já estou na metade do caminho de volta para a cozinha quando
escuto o barulho alto de uma porta batendo forte. Meu coração se
esforça bravamente para retomar o ritmo das batidas, e demora um
pouco até que me acalme. Não consigo explicar meu nervosismo,
mesmo que, em tese, os gritos não fossem direcionados a mim.
Havia algo sobre a presença daqueles dois, especialmente de Louis,
que fazia meu corpo inteiro entrar em alerta. De repente estou
superconsciente do espaço que ocupo e tudo que eu quero é
evaporar.

O momento que tenho para descansar é após servir o almoço.


Não posso subir para o quarto, pois sei que acabaria não resistindo à
minha cama e dormiria pelo resto do dia, então o que faço é me
sentar sob a pouca sombra do salgueiro que temos no jardim e releio
um dos meus livros de romance. Agora no fim do outono, as folhas
estão douradas e quebradiças, terminando de cair. Há um tapete de
folhas mortas que farfalha com a minha presença e que é
estranhamente confortável de estar sobre. Os únicos sons que
escuto daqui é o do vento dançando com os galhos das árvores e
meus próprios pensamentos. É o lugar para onde venho quando as
paredes do sótão se tornam confinantes demais e tentam me
sufocar.
O romance que estou lendo é sobre um homem que se apaixona
por uma mulher comprometida. Ela também gosta dele, mas não
pode abandonar o marido e por isso eles se encontram às
escondidas. No fim, o marido descobre sobre os dois e eles são
condenados à morte pela igreja. Ela por adultério e ele por ferir o
nono mandamento. Mesmo terminando de um jeito trágico, é um dos
meus favoritos. Algo sobre a maneira com qual o escritor descreve a
intensidade do amor que eles sentem um pelo outro, de forma que
nem mesmo a morte iminente consegue superar, faz com que me
pergunte se algo assim realmente existe no mundo real.
Sei que o amor existe, o via nos olhos do meu pai quando ele
estava comigo ou me contava histórias sobre a minha mãe. Mas não
era como se esse amor pudesse custar a vida dele.
Acho que um amor assim só sobrevive na ficção.
Após me distrair nos meus próprios pensamentos, sou impedida
de retomar a leitura pelo trotar de cavalos se aproximando dos
portões da casa. Abro um sorriso involuntário quando a figura
encapuzada e inconfundível de Robin surge da estrada,
acompanhada por seu cavalo e Valentin preso a uma corda. Toda a
confusão de mais cedo me fez esquecer que ela tinha prometido
pedir que alguém o trouxesse para mim e eu não precisasse
caminhar até a cidade, só não esperava que Rob viesse em pessoa.
Me levanto e caminho até ela depois que sacudo as folhas secas
que ficaram grudadas no meu vestido. Olho para todas as janelas
antes para me certificar que ninguém nos vê. Yvanna com toda
certeza me encheria de perguntas que eu preferia não ter que
responder.
— Você parece surpresa em me ver — diz a morena, assim que
seus pés alcançam o chão.
— Você não ficaria se a princesa aparecesse na porta da sua casa
para devolver o seu cavalo? — pergunto com um tom de
provocação.
— Já vi que vou me arrepender de ter te contado isso.
Eu cruzo os braços.
— Você não me contou, eu descobri.
— Justo. — Ela fecha um dos olhos com uma expressão divertida
e se aproxima para me entregar a corda que prendia Valentin ao
cavalo dela. — De qualquer forma, está entregue.
— Obrigada mais uma vez, você salvou minha vida. — Sorrio. —
Você não me responderia se eu perguntasse como faz para entrar e
sair do palácio sem ser notada ou seguida, responderia?
Mordo meu lábio inferior, formigando de curiosidade.
— A vantagem de ser a irmã do herdeiro do trono é que ninguém
presta atenção em você de verdade, então não é difícil ser invisível.
Eu finjo que estou com um mal-estar, eles fingem que acreditam e
saio pelos fundos. O palácio não é tão seguro quanto parece.
— Você não fica com ciúmes? — pergunto enquanto corro as
mãos pela crina cinzenta de Valentin. — Do seu irmão?
— Quando eu era mais nova talvez, mas hoje sou grata por isso.
Todas as vezes que as pessoas prestam atenção demais em uma
mulher por aqui, nunca é algo positivo. É sempre para nos controlar,
para julgar. Quanto mais eles se ocuparem com outras coisas, mais
posso estar livre.
Balanço a cabeça em concordância.
— Tem razão. Às vezes eu bem queria ser invisível também.
— Já que não dá, você bem que podia arranjar outras formas de
escapar da realidade — sugere, aproximando-se mais um pouco e
olhando dentro dos meus olhos. Os orbes azul-esverdeados buscam
pela minha consciência e a deixo levar. — Vem comigo de novo esta
noite.
Robin está perto demais outra vez. Perto o suficiente para que eu
sinta seu perfume cítrico e sua respiração soprando os cabelos sobre
a minha testa. Ela devia saber que é injusto com meus sentidos que
me faça pedidos difíceis enquanto estou distraída demais
contornando cada pequena curva dos seus lábios com os meus
olhos.
— Não sei, Rob. Tenho medo de me meter em problemas. Eu
passei o dia inteiro dormindo em pé pela casa. Não quero que
desconfiem de nada.
— Vai ser só mais essa vez. As meninas vão embora do reino em
breve e não sei quando poderei vê-las outra vez. Só mais uma noite,
Flora. Que mal pode fazer?
Eu respiro fundo e balanço a cabeça levemente. Não consigo dizer
não para ela.
— Só mais essa vez, então.
XI

No instante em que Yvanna e os outros tomam a carruagem


rumo ao palácio para a segunda noite de baile, resgato o vestido
emprestado que escondi no fundo do meu pequeno armário e me
preparo para esperar por Robin. Dessa vez, não há Madame Tine
para arrumar meu cabelo ou pintar meu rosto, então me viro com as
coisas que tenho para deixá-lo menos pálido e minhas madeixas
menos bagunçadas. No fim, não fico nada parecida com o que eu
estava na noite passada, mas consigo me achar bonita com meus
lábios pintados de coral, as bochechas rosadas e um pouco do meu
cabelo preso atrás da orelha esquerda com uma presilha azul antiga.
Tranco a porta do meu quarto antes de sair e apresso o passo
para descer todas aquelas escadas. Quando alcanço os portões,
consigo ver a silhueta de Robin na estrada, vindo para me buscar.
Meu sorriso aumenta à medida que ela chega mais perto e ela sorri
também quando me vê, fazendo meu coração errar algumas batidas.
Logo estou sobre o dorso do cavalo dela e percorremos aquele
mesmo caminho de antes, com menos turbulência dessa vez. Ou
talvez eu só tenha criado confiança o suficiente para me segurar nela
com mais firmeza e menos força.
— Olha só quem decidiu vir — Nellyne diz. É ela quem está
guardando a porta hoje. — A garota dos corvos! — Eu sorrio,
fazendo que sim. — Entrem logo, as meninas estão em volta da
fogueira.
Somos recebidas por sorrisos e algumas das garotas se levantam
para nos abraçar. Elas cheiram às flores que estão por toda parte e
em seus cabelos. Há também cheiro de amoras e pão fresco no ar
além de, claro, madeira sendo queimada.
Na roda em torno da grande fogueira, reconheço alguns dos rostos
mais marcantes, como Danielle, Camilla e Isis, a líder que me
cumprimenta distante com um sorriso. Elas estão bebendo alguma
coisa – provavelmente vinho ou cerveja. Não há música, somente o
crepitar do fogo e o som das conversas.
Robin é a primeira a se sentar no gramado e me convida a fazer o
mesmo. Ninguém está olhando quando ela estende a mão e puxa a
minha esquerda em sua direção com alguma agilidade, de modo que
desequilibro e quase caio sobre as pernas dela antes de me sentar.
— Quer beber alguma coisa? — Rob pergunta. — Eu devia ter
perguntado antes de me sentar.
Eu dou uma risada baixa e faço que sim.
— Vou beber o que você for beber.
Ela faz uma breve continência com um sorrisinho nos lábios, se
põe de pé com ajuda das mãos e vai atrás da mesa com os grandes
barris de vinho.
— Ei. Florence, não é? — Isis é quem pergunta. Não faço a
mínima ideia de quando ela se levantou e como chegou tão rápido
ao meu lado. — Podemos conversar um minutinho lá dentro?
— Claro — respondo de prontidão.
Quase lhe perguntei: “Eu? Tem certeza?”, mas seria estupidez, se
ela disse meu nome está falando diretamente comigo. Então busco
Robin com o meu olhar antes e levanto para segui-la até o interior da
casa, torcendo para que eu não tenha feito nada de errado sem
querer. Não entendo por que, mas no fundo desejo que Isis goste de
mim, sua postura é imponente o suficiente para que eu busque
alguma aprovação em seu olhar.
Quando estamos do lado de dentro, ela se senta num dos sofás da
sala, em frente a uma lareira acesa e indica para que eu faça o
mesmo. Meu nervosismo só faz aumentar.
— Robin e Nellyne me falaram um pouco sobre você ontem — ela
começa, mas pausa para dar um gole na bebida em sua taça, só
agora eu percebi que ela estava em suas mãos. — Não costumamos
receber visitas, então quis saber quem você era.
— Espero que elas tenham dito coisas boas. — Forço um sorriso
sem mostrar os dentes, ainda tensa.
— E disseram. Por isso te chamei aqui. Imagino que Robin tenha
contado o que pôde sobre nós, sim? — Eu balanço a cabeça em
concordância. — Muito bem. Então você sabe o que fazemos?
— Mais ou menos. Confesso que não pensei muito sobre, mas
queria saber mais.
— Nós somos parte de uma comunidade só de mulheres. Essa
comunidade existe há mais de um século e dizem que começou com
um grupo de camponesas do sul que se revoltaram contra os
casamentos forçados, as torturas e penas de morte para mulheres
que eram acusadas de bruxaria. Nos chamamos de Filhas de
Margery.
— Margery? — pondero brevemente, em voz alta, sem a intenção
de interromper seu raciocínio, mas acabo o fazendo.
— É o nome da mulher que liderou os primeiros grupos, há
décadas. Foi um tributo a ela após sua morte — ela explica e
balanço a cabeça. — Hoje nós somos mais de oitenta mulheres
vivendo na Ilha da Deusa, abaixo do Golfo de Leão e depois do Atol
dos Corais. Cultivamos nossa própria comida, fazemos nossas
próprias roupas e nossas casas. Só vimos aqui a cada seis meses
para buscar alguns suprimentos, recursos em falta por lá, para fazer
visitas e também procurar por outras mulheres que queiram se juntar
a nós. As que não podem ir para a ilha com a gente por algum
motivo, tentamos ajudar com alimento e dinheiro.
Parece incrível. Quanto mais ela fala, mais me sinto maravilhada.
Não fazia ideia de que algo assim poderia existir.
— É um refúgio, um lugar de acolhimento. Mas também é perigoso
e exige sacrifícios. Temos que ser discretas nas nossas viagens,
evitar embarcações e pessoas da guarda real principalmente. — Ela
dá uma pausa mais uma vez e respira fundo. — Sabe, Florence, se
uma mulher da minha cor for pega na hora e no lugar errado, isso
pode custar a vida dela. Mulheres pretas nesse continente ou são
forçadas a trabalhar ou mandadas para as colônias para serem
forçadas a trabalhar.
Senti um amargor na boca com as palavras de Isis. Não é comum
vermos pessoas negras pela cidade. Das poucas que existem, a
minoria delas são livres e recebem pelo trabalho que fazem. Eu
jamais saberia disso se não fossem pelas histórias que Madame Tine
me conta, ela e Robin são as duas únicas pessoas com quem
converso além dos comerciantes. Não há nada muito específico
sobre pessoas negras nos livros que leio.
— Escolhemos a dedo quem pode vir nessas viagens. Danielle,
por exemplo, é boa navegante. Camilla é ágil e discreta, temos as
garotas que cozinham, as que têm força para guiar o barco, içar as
velas, dar nós nas cordas e sabem interpretar mapas, como Nellyne.
E eu lidero todas elas. — Ela abre um sorriso pequeno e orgulhoso.
— Ao menos enquanto estamos aqui, porque há outras líderes na
ilha. Cuidamos umas das outras. Essa é a nossa prioridade.
— Isso é lindo. Obrigada por confiar em mim.
— Eu não confio em você, mas Robin confia e ela me disse que
sua família é... Bem, não é das melhores.
Isis estava amenizando.
— Ela disse?
— Uhum. E pensei que talvez você tivesse interesse em voltar
conosco. Para a Ilha da Deusa.
Eu não estava esperando por isso e não sei como responder.
Deixo que a ideia ganhe algum espaço dentro da minha cabeça, mas
ela soa cada vez mais disforme. Como eu poderia deixar tudo para
trás e ir para um lugar onde não conheço ninguém? Como poderia
deixar a minha casa por livre e espontânea vontade? Parece
insanidade.
— Eu? Mas por quê?
— Você estaria se libertando e encontrando uma nova família
entre nós. Uma família que te receberia de braços abertos. E você
sabe ler, não sabe? — Balanço a cabeça em positivo, ainda
atordoada. — Além de mim, só outras quatro leem. Estamos
tentando ensinar as outras mulheres e as crianças da ilha. Seria
muito útil que mais alguém nos ajudasse.
— Isis... Posso te chamar assim? — Ela consente. — Eu agradeço
a proposta e por confiar esse segredo a mim...
— Mas?
— Eu preciso de tempo para responder. Nunca pensei muito sobre
deixar a minha casa, ao menos não voluntariamente.
— Sabe que só voltaremos daqui a seis meses, não sabe? Não sei
de quanto tempo você precisa.
— Seis meses me parece bom.
— Certo. Você é quem decide, mas saiba que independente da
sua escolha, pode contar com a gente quando precisar — ela diz e
depois se coloca de pé.
Eu me levanto e ela me surpreende com um abraço breve, mas
quente e sincero. No caminho de volta para a área externa, me
pergunto o que Robin representa para essas mulheres que as faz a
estimar tanto. Ela é uma pessoa maravilhosa e disso eu sei, mas é
evidente que é algo a mais. Talvez eu consiga perguntar depois. Há
muito o que quero saber, afinal.
Falando sobre ela, assim que ponho os pés de volta no gramado,
Rob vem em minha direção com a bebida que pedi em mãos,
ansiosa.
— Você sumiu! — exclamou, me entregando a taça e se colocando
ao meu lado. — O que vocês faziam lá dentro?
Pouso uma de minhas mãos na cintura e cerro os olhos para ela.
— Você vai mesmo fingir que não sabe? — dissimulo que estou
brava, mas sem nenhuma credibilidade, o sorriso contido nos meus
lábios me denuncia.
Robin ergue as mãos em sinal de rendição enquanto se aproxima
mais um pouco. Ela falha miseravelmente em conter o sorriso
descarado, mesmo mordendo o lábio inferior, o que meio que a deixa
uma graça e faz com que eu me desestabilize por inteira.
— Minhas intenções foram as melhores, juro. — A morena estende
o copo com vinho para mim e me olha com ansiedade. — O que a
Isis te disse?
— Ela me contou sobre as Filhas de Margery e a ilha. E me
chamou para voltar com elas.
Rob ergue as duas sobrancelhas, mas não parece surpresa.
— E o que você disse?
— Disse que precisava pensar. Não sei se teria coragem.
Ela franze o cenho dessa vez e pisca os olhos repetidamente.
— Como assim pensar? — Ela quase se engasga. — Jurava que
você ia aceitar na mesma hora.
Nego com a cabeça.
— Eu não sei se poderia. Não poderia deixar a casa da minha
família assim, deixar Madame Tine. E tudo para ir a um lugar
desconhecido?
— Flora, Madame Tine ficaria mais do que contente se você fosse,
justamente por não precisar mais estar naquela casa onde te tratam
tão mal. Aliás, tratar mal é pouco tendo em vista o que te fazem
passar.
Ela olha diretamente para a minha mão enfaixada e
instintivamente a escondo atrás do corpo. Robin tem razão e não sei
por qual motivo suas palavras me deixam tão irritada, mas quando
percebo, meu rosto já está queimando.
— Não é simples assim, Robin. — Fecho os olhos por um instante.
— Eu tenho muitos sentimentos por aquele lugar. Nunca quis deixá-
lo.
— Pois deveria pensar no assunto. E rápido, antes que alguma
coisa pior aconteça.
Quando ela termina de falar, minha cabeça vai até os LaTellier,
àquele homem nojento que me tocou a força e tentou literalmente me
comprar no dia seguinte. Foi quando ele chegou que vi que tinha
perdido a guerra. Por que estou relutando tanto para aceitar?
— Eu sei lidar com os meus problemas — Minto descaradamente.
Ela balança os ombros e desvia o olhar, meu tom passivo-
agressivo não a incomoda.
— Dá para ver. Espero que não leve à mal, só estava tentando
ajudar. — Pelo tom de voz, percebo que ela está se segurando para
não soar desapontada demais. — Mas vamos aproveitar o resto da
festa, sim? Quero que dance comigo. De verdade dessa vez.
Eu concordo e finalmente consigo perceber que há música
tocando. Lembro mais uma vez que não sei dançar, mas prefiro fingir
que sei e acabar pisando no pé dela a impedir que ela me puxe para
o meio das outras meninas e correr o risco de voltarmos àquela
conversa.
A noite voa enquanto me distraio dos meus pensamentos. Não
consegui manter minha farsa de boa dançarina por muito tempo,
então Robin e Camilla se juntaram numa tentativa de me ensinar
alguns passos. Nellyne apareceu quando trocou o turno, as garotas
voltaram a sentar em volta da lareira para contar lendas antigas da
ilha e comer pão com a geleia das amoras, as donas do cheiro que
senti quando chegamos.
Bebemos mais um pouco e sinto que passei um pouco da conta,
de modo que, quando Robin me ajuda a subir em seu cavalo para
partirmos, tenho a impressão de que cairei lá de cima. Ou talvez
sejam só as poucas horas de sono que tive durante o dia.
O clima entre nós duas ainda não voltou ao normal. Não consigo
olhar em seus olhos por muito tempo e vice-versa. Quando ela
monta no cavalo – cujo nome descobrir ser Toulouse –, agradeço por
ela estar de costas para mim para que nenhum contato visual se faça
necessário.
Sem nenhuma pressa, nos embrenhamos na floresta outra vez,
seguindo o mesmo percurso para retornar. Temos que ir devagar, o
céu está escuro demais esta noite. Em algum lugar próximo, uma
cigarra está cantando enquanto o vento balança as folhas e corujas
sobrevoam os galhos das árvores.
— Ficou chateada por eu ter falado com a Isis sobre você? —
Robin pergunta, antes do primeiro terço do caminho.
Eu suspiro antes de responder. Primeiro porque tenho evitado
pensar sobre o assunto antes de dormir direito e segundo porque
estou exausta. Tudo que eu quero é poder deitar na minha cama.
— Não. Eu não poderia. Sei que você tinha intenções boas.
— Então por que...
Ela para de falar de repente e não entendo o motivo até escutar
um chiado vindo de detrás das árvores. O volume aumenta à medida
que se aproxima e, quando menos espero, somos atingidas por
pingos grossos de uma chuva torrencial.
XII

No que pareceram milésimos, a terra sob nós se transforma


numa lama escura e pegajosa. Se antes já estava escuro, agora não
há mais nenhuma visibilidade. O cavalo de Robin está arredio e
desnorteado por conta dos sons estrondosos dos trovões. É só
durante os milissegundos de clarão dos raios que consigo ver para
onde estamos indo. Ou melhor: onde estamos tentando chegar.
Robin não diz nada. Estou com os braços envoltos em seu peito e
sinto como seu coração bate forte. Só não bate mais forte que o
meu.
Um rochedo alto e largo entre as árvores é a coisa mais próxima
que encontramos de um abrigo. Uma falha no meio dele forma uma
pequena e rasa caverna, aonde a chuva não chega. É grande o
suficiente para acomodar os três, mas não grande o suficiente para
que eu consiga evitar Robin e seu olhar sobre mim, me perguntando
coisas que eu jamais saberia responder satisfatoriamente.
Ela está sentada, recostada nas paredes irregulares daquele
buraco, enquanto olho para o lado de fora, abraçando meu corpo por
conta do frio, torcendo para aquele temporal ir embora logo. Já é
tarde e preciso voltar se quiser dormir ao menos algumas horas
antes de precisar levantar para começar o dia outra vez.
Mas os ventos uivantes sopram cada vez mais fortes e os trovões
ecoam cada vez mais altos.
— Flora — Robin chama. Eu viro somente o rosto, olhando-a pelo
canto dos olhos. — Senta aqui, a gente tem que se aquecer.
Reluto um pouco, mas meu corpo fala mais alto e me leva até ela
a passos lentos como os de um cachorro acanhado. Rob está mais
pálida do que o normal, os lábios e as unhas estão arroxeados como
os meus também devem estar. Nossas roupas estão úmidas e
geladas, tal como toda a extensão de nossas peles. Mas ainda
assim, quando me sento ao seu lado, consigo sentir algum calor
timidamente irradiar de nós.
— O que você queria me perguntar? — questiono com a voz
baixa, virando o rosto para encará-la. — Aquela hora na floresta,
antes de começar a chover.
Ouço sua respiração alterar a frequência, então ela finalmente olha
para mim de volta. Estamos próximas demais para o bem da minha
sanidade. Meus olhos enxergam com detalhes cada pequeno detalhe
do seu rosto perfeito e marcante, seu hálito cheirando a vinho tinto
inunda meus sentidos.
— Você ficou esquisita comigo, depois da conversa que tivemos.
Achei que eu tivesse passado dos limites.
— Não é isso — respondo, após um longo suspiro. — É só que...
esse é um assunto sensível para mim. Não gosto de falar sobre. Nos
raros momentos que estou fora de casa, prefiro guardar tudo para
mim e fingir que meus dias ruins são só pesadelos. Envolver outras
pessoas só torna as coisas mais reais.
— E, ainda assim, por algum motivo você hesita quando tem a
oportunidade de ficar livre. Eu não entendo.
Fecho meus olhos por um instante, absorvendo aquelas palavras.
É claro que ela não entende. Não entenderia nem em um milhão de
anos.
— Não posso deixar aquela casa. Eu prometi para o meu pai que
cuidaria do lugar da nossa família.
— É só um monte de madeira e tijolos, Flora. Não deveria custar
sua vida.
Desvio o olhar, indisposta a ter essa conversa. Não menciono o
possível casamento de Yvanna para que ela não me ache ainda mais
estúpida. Algo dentro de mim ainda espera por um milagre.
— É tudo que tenho dele. Nossas memórias estão todas lá. Da
porta de entrada, onde eu me sentava todas as tardes para esperar
ele chegar, ao sótão, em que íamos para ele me apresentar às
coisas antigas da família e me contar histórias. Se for embora,
deixarei tudo isso para trás.
— Seu pai parece ter sido um homem bom. — Eu faço que sim. —
Ele devia amar muito você.
— Então você me entende?
— Não. Porque tenho certeza de que ele não te faria escolher
entre uma casa e sua liberdade.
— É fácil para você dizer essas coisas. Você tem um título, um
palácio te esperando de portas abertas para voltar caso as coisas
fujam do seu controle. Eu não tenho nada disso.
— Não é bem assim, Florence. — Sua voz soa ríspida dessa vez.
— Eu sou só a princesa. Estão todos olhando para mim com
expectativas de que eu não faça nada para manchar o nome da
realeza. Eles me criaram para ser uma esposa, uma posse, nunca a
dona de nada, então não, não tenho um título, é o meu título que me
tem.
— Se é tão ruim assim, por que você não vai com elas? O que
está esperando?
— Porque por enquanto sou mais útil aqui. Estou dentro do
palácio, tenho informações importantes e posso ajudar com dinheiro.
Minha família quer que meu irmão se case primeiro e assim que isso
acontecer, serei a próxima. É quando pretendo ir embora, quando
não puder mais ajudar daqui — ela diz, seu olhar sobre mim é tão
intenso que eu prendo a respiração por um instante, os barulhos do
lado de fora se tornam ruídos distantes. — Já teria ido há muito
tempo se dependesse só de mim. Sophie estava lá. Nos víamos a
cada seis meses somente e há dias em que tudo que eu queria é ter
podido estar com ela... No fim.
Robin tenta disfarçar a voz embargada ao falar mais baixo, mas
qualquer um perceberia, e por pior que me sinta, não consigo
expressar porque estou furiosa por dentro. Furiosa por saber que ela
tem razão, por não saber como explicar que no fundo sou
incorrigivelmente covarde e não consigo mudar nem quando a minha
vida depende disso.
— Sinto muito por isso. De verdade — digo, por fim, num tom
firme. — Mas as coisas são muito diferentes pra mim. Se der tudo
errado, se eu não me adaptar àquele lugar e àquelas pessoas, o que
vou fazer?
— Se prefere ficar e deixar aquela família te tratar como se você
não fosse nada, se prefere viver desse jeito, não vou insistir mais. A
escolha é sua — ela responde, levantando a voz e sendo incisiva.
Seu olhar escapa para o outro lado da pequena caverna.
— Não entendo por que se importa tanto — retruco, igualmente
irritada e no mesmo timbre. — Por que está tão chateada se isso não
muda absolutamente nada para você?
No mesmo instante, Robin me direciona um olhar tão intenso que
me faz prender a respiração.
— Tem razão. Não muda nada mesmo. — Ela bufa e revira os
olhos. — Eu não deveria me importar.
— Que bom que concordamos, então.
Cruzo os braços, numa tentativa de me proteger e me aquecer,
mas não funciona. Tento ajeitar minhas costas contra a parede fria e
áspera, porém nada me faz ficar confortável.
— Achei que tivesse sentido alguma coisa... — Robin começa,
buscando meu olhar. — Entre nós. Nestas últimas noites. Mas acho
que fui só eu.
Mordo o lábio, tomando suas palavras como tomo uma bebida
quente, soprando antes para não me queimar. Quero dizer a
verdade, e a verdade é que não, não foi só ela. Também senti e
ainda sinto algo dentro de mim que me faz acreditar fortemente que
posso ter me enredado demais nos encantos da princesa. Todavia,
dizer isso requer admitir para mim mesma todo esse sentimento e,
francamente, não sei se estou pronta.
— O que você sentiu? — arrisco, mesmo sabendo que a resposta
pode ser minha derrocada.
Ela segura meu rosto entre as mãos para me fazer olhá-la e se
perde nos meus olhos por um tempo antes de falar, assim como me
perco nos dela. Estremeço por dentro e acho que um pouco por fora
também.
— Droga, vamos lá... Eu gosto de você, Flora. Eu gosto mesmo.
Desde que Madame Tine me falou sobre você, senti que gostaríamos
uma da outra. Você é uma garota inteligente, sensível e muito mais
forte do que imagina. — Cada palavra que ela diz ecoa dentro da
minha mente em um frenesi e finalmente entendo o que querem
dizer com a expressão “borboletas no estômago” que sempre leio em
romances. É bom, mas também é apavorante. — Durante todos
esses meses, mesmo tendo nos visto e conversado tão pouco,
ontem eu finalmente senti que era mais que só amizade e... Tudo
bem se você não sentir o mesmo porque...
Antes que Rob termine de falar, seguro o rosto dela como ela
segura o meu e o puxo em minha direção até que nossos lábios
estejam selados. Eu não fazia ideia que o coração de alguém podia
bater tão rápido sem sair do lugar. Fecho os olhos enquanto a boca
de Robin me esquenta de dentro para fora e é diferente de tudo que
já senti. Percebo que não tenho a mínima ideia do que estou fazendo
quando nossos dentes se batem por conta da minha falta de jeito.
Meu rosto queima feito brasa, mas pelo visto, Robin acha isso a
coisa mais engraçada do mundo.
Ela muda de lugar, se posicionando entre as minhas pernas sem
encerrar o beijo. Eu arfo quando uma de suas mãos segura com
firmeza a minha cintura para levar meu corpo para mais perto. A
princesa segura meu lábio inferior entre os dentes, em seguida me
beija outra vez com uma intensidade que beira a urgência, mas
também há calma para que eu consiga acompanhar o ritmo. Jogo os
braços sobre os ombros dela, tímida e todo meu corpo age como se
tivesse vida própria, reagindo a cada toque e provocação dos seus
lábios. Quando os beijos escorregam para a minha mandíbula, me
obrigam a prender os sons involuntários que minha garganta insiste
em querer vocalizar.
Fica mais difícil manter o silêncio quando a boca dela alcança meu
pescoço, sua respiração quente contra minha pele gelada alastra
arrepios por todas as partes de mim e ela mordisca com pouca força.
Todo o meu interior queima, especialmente a região do meu baixo-
ventre e é quando sei que é assim que se deve tocar alguém. É bom.
É intoxicante. A mão que não está em minha cintura aperta minha
coxa sobre o vestido e me retraio, estou mortificada de vergonha,
mas quero que ela continue. Meus olhos ainda estão fechados
quando sinto meus lábios serem tomados pelos seus outra vez, mas
agora sei melhor o que fazer e dou passagem para que nossas
línguas se encontrem. Estou inebriada demais pelas sensações, de
forma que só percebo uma de suas mãos sob a saia do meu vestido
quando ele sobe, não posso dizer com certeza se foi o vento gelado
ou seu toque lascivo na parte de dentro da minha coxa que me faz
estremecer, e esse é o momento em que um gemido baixo e tímido
escapa sem a minha permissão. O som me assusta, porque é tão
involuntário quanto respirar.
Meu corpo se movimenta de um jeito peculiar. Não sei onde meu
medo termina e meu desejo começa, a ponte entre um e outro é uma
linha tênue e cada vez menos tenaz. Alguns de seus dedos
passeiam sobre a minha pele descoberta e outros buscam os laços
do corpete do vestido que são desfeitos em segundos quando
encontrados. Não há nada sob o tecido além da minha pele nua, o
caminho até meu torso é feito por Robin com seus lábios e sua
língua sem nenhuma castidade.
Quanto mais perto sua mão chega da região quente entre as
minhas pernas, o impulso da pouca racionalidade que ainda me resta
é de me retrair por inteira e impedi-la no meio do caminho, pois sinto
que não estou pronta para o seu toque. Não estou pronta para provar
dessa sensação, por mais que no momento seja o que meu corpo
clama. E Rob percebe, porque ela não insiste, só mantém o ritmo da
sua boca no meu colo e quando chega nos meus seios os gemidos
saem do controle. Eu até murmuro seu nome sob o efeito
entorpecente do toque daqueles lábios.
Saber que ela se importa com meu consentimento, mesmo que já
tenhamos chegado tão longe, faz com que eu me sinta segura do
que fazemos e de que estou fazendo com a pessoa certa. É Robin e
apenas ela. Não poderia ser outra pessoa.
Não é nada simples admitir que estou cada vez mais próxima de
ceder aos desejos do meu corpo, é impossível me segurar quando
tudo que consigo pensar é como a quero. Quero mais beijos, mais do
seu toque, mais de cada uma daquelas sensações novas e
arrebatadoras. Desajeitada, alcanço uma de suas mãos e a levo até
minhas pernas descobertas outra vez. Quando deixo a resistência ir
embora, Robin não tem a menor pressa para retomar o caminho. Ela
desliza os dedos sob o meu vestido lentamente, espalhando chamas
por seu trajeto tortuoso.
Quando a sinto alcançar a região entre as minhas pernas, arqueio
o meu dorso e os ecos de um trovão próximo abafam meu grito. Seu
polegar faz movimentos circulares sob o tecido úmido e é inevitável
que meu quadril se mova de acordo com seu ritmo, buscando mais
contato.
Ela tenta calar meus gemidos com um beijo doce, mas isso se
torna cada vez mais complicado de realizar, especialmente quando
seu indicador afasta o tecido da roupa íntima e desliza para dentro
de mim, enquanto mantém o polegar circulando, descendo e
subindo, sem nada entre ele e aquele ponto febril e pulsante.
Seus movimentos são ordenados num ritmo, por vezes lento, por
vezes frenético, e que alternam todas as vezes que me sinto capaz
de implodir.
Seu nome é a última coisa que escapa da minha boca antes que
eu estremeça por inteira contra seu toque e vá às estrelas. É uma
sensação inexplicável de êxtase e completude, inunda minha mente
e faz com que eu sinta tudo ao meu redor esmaecer até a
inexistência, de modo que só existimos eu, meu pulso acelerado e
Robin me beijando outra vez.
— Robin... — Seu nome é também a primeira coisa que digo
quando sinto minha consciência voltando à normalidade.
— Shh... — Ela cobre meus lábios com o indicador. — Não me diz
nada agora. Podemos conversar depois.
Faço que sim. Eu faria qualquer coisa que esta mulher me
pedisse, essa constatação transforma minha tranquilidade num
pânico sutil e crescente.
Robin descansa com a cabeça no meu colo enquanto corro os
dedos por seus fios longos e negros. Estou exausta, mas há algo
sobre a presença da princesa que me desperta. O frio praticamente
não nos incomoda mais, especialmente porque as memórias dos
momentos anteriores, acesas na minha mente, de certa forma
também me aquecem.
É como estar nas nuvens e eu me pergunto como diabos nunca
havia sentido nada nem perto disso antes.
Uma pena que eu tenha olhado para o lado de fora e visto que já
está claro e que a chuva passou. É hora de irmos embora.
XIII

É diferente voltar para casa com Robin depois do que aconteceu


entre nós. Depois do que fizemos. Quando enlaço sua cintura para
me segurar no dorso do cavalo, o ato se parece mais com um abraço
e me lembro de ter gostado da sensação desde o primeiro dia, mas
agora o contato entre as nossas peles é algo a mais, é efervescente.
Minha cabeça descansa nos ombros dela e meus olhos estão
fechados, não quero olhar para o lado de fora e ter que pensar sobre
o quão perto estou de casa ou sobre as próximas horas do meu dia.
Só quero sentir as sensações boas, o calor, o apego e a segurança.
— Flora? — Robin me chama baixo. — Está dormindo?
Ainda de olhos fechados, balanço a cabeça preguiçosamente, feito
um gato se esfregando nas pernas do dono.
— Não posso — respondo. Minha voz é sonolenta e meu corpo
envia um bocejo como se participasse da conversa. — Se eu dormir
agora, só acordo amanhã de manhã.
Ela ri baixo pelo nariz.
— Eu te levaria comigo se pudesse. Para o palácio... — suspira. —
Queria que tivéssemos mais tempo.
Abro os olhos pela primeira vez e a claridade pálida da manhã
nublada me machuca um pouco.
— Eu também. — Ela gira o pescoço e me encontra com o olhar
sereno. — Sobre aquela conversa... Robin, espero mesmo que você
tenha me entendido.
— Não vou dizer que sim, mas acho que exagerei. A verdade é
que aquele lugar sempre foi o meu sonho. É natural que você tenha
dúvidas, principalmente porque sinto que você é muito mais racional
do que eu sou.
— Às vezes bem que eu queria pensar menos sobre tudo —
confesso sob um murmúrio.
— Você não pensou tanto quando me beijou — ela brinca e dou
um sorriso para tentar esconder o quão desconcertada estou.
— Eu pensei sim. Por muito mais tempo do que você imagina.
Ela é quem sorri dessa vez.
— Por quanto tempo exatamente você esteve considerando o
assunto? Só... por curiosidade.
— Não vou dizer — nego, balançando a cabeça. — Já me expus
demais por um mês inteiro.
— Que sem graça — resmunga, contrariada.
Minha casa desponta da curva adiante e aperto Robin com um
pouco mais de força, numa tentativa inconsciente de não precisar
deixá-la. Deve ser quase seis da manhã e não há a mínima chance
de que eu consiga algum descanso antes do café. Eu teria sorte se
conseguisse ao menos comer alguma coisa.
— Quando vou te ver de novo? — Robin pergunta a mesma coisa
que eu queria perguntar quando chegamos no portão.
— Estou sempre aqui. Você pode chegar pelos fundos quando
quiser.
Ela ri baixo.
— Que tentador. Você vai ter que impor limites se não quer que eu
apareça aqui todos os dias.
— Estou vendo que vou me meter em problemas, mas... acho que
não poderia me importar menos.
Antes de descer, ergo meu corpo para que minha boca alcance
sua bochecha, mas ela se vira antes e nossos lábios se encontram.
Outra vez, algo queima dentro de mim, só que é efêmero feito uma
fagulha, pois precisamos nos afastar e tomar caminhos diferentes.
— Estou gostando bastante dessa sua nova versão — ela diz, me
olhando do alto agora que estou no chão. — Mas, para ser justa, eu
provavelmente gostaria de você de qualquer jeito.
As palavras dela me abraçam de um jeito tão doce que quase me
desprendo da realidade. Não me importo em esconder meu sorriso e
o rosto vermelho. Estendo a mão para sentir nossas peles se
tocando uma última vez, nossos dedos se entrelaçam no meio do
caminho enquanto trocamos um olhar cúmplice e sentimental.
— Tchau, Rob.
— Até logo, Flora.

Prefiro não ficar para ver Robin ir embora. Dou as costas assim
que ela puxa as rédeas do cavalo e faço a pesarosa caminhada para
dentro da casa, com passos leves feito plumas. Como esperado, não
há ninguém de pé. Alcanço o sótão tão rápido quanto consigo, sem
fazer nenhum barulho.
Chego no quarto e os filetes de luz que escorregam para dentro da
janela fechada são a única fonte de iluminação. Corro para abri-las
porque o escuro só me traz mais sono, dá pra ouvir a cama e os
lençóis gritarem meu nome, me deitar é tudo que mais quero. Todo o
conhecimento que tenho do meu próprio corpo me diz para eu mudar
de roupa, pentear os cabelos e descer para preparar o café. Mas me
sento na cama antes e encaro a janela para ver as nuvens indo
embora e revelarem um tímido, porém radiante sol. Sinto falta de
Noir por aqui a esta hora.
Consigo deslizar o vestido para fora do meu corpo, e o ato me leva
de volta para Robin e seus braços quentes impedindo que eu sinta
frio. Ela não está aqui agora, então jogo o vestido dentro do armário,
me visto de volta com certa pressa e volto a me sentar para calçar as
sapatilhas, mas por mais que eu tente, minha mente não consegue
focar em mais nada além da princesa e seus toques provocando a
minha pele. Fecho os olhos e de repente seus lábios estão no meu
pescoço outra vez e suas mãos desenham a minha cintura.
Não percebo quando adormeço sentindo o cheiro de Robin como
numa alucinação.


Eu estou no meu quarto, onde adormeci. É aquele sonho de novo,
aquele que sempre tenho. E, mais uma vez, quero
desesperadamente sair. Me alegro por um instante, sei que meu pai
logo aparecerá com a chave para me libertar e poderei vê-lo outra
vez. Mas não acontece. Chego perto da janela para olhar para baixo,
porém não há nada além de uma névoa densa e intrespassável. A
névoa avança para dentro do quarto e o preenche por inteiro. É
quando a porta se abre e eu corro para fora, apenas para despencar
de um longo penhasco e me chocar contra as águas escuras do
oceano.


Desperto antes de afundar, com uma mão bruta que agarra meus
cabelos e me arrasta para fora da cama. A colisão com o chão
machuca meus punhos, que falharam em resistir à queda. Não
consigo enxergar direito seu rosto ou decifrar o que dizem seus
gritos, mas sei que Yvanna está furiosa. E, apesar da minha
expressão congelada, meu coração bate tão forte que consigo ouvir
o zumbido pulsátil do sangue nos meus ouvidos.
Eu dormi. Merda. Por que eu tinha que dormir?
— Vamos, garota, me diga! — É a primeira frase que consigo
compreender e não faço a menor ideia do que ela quer que eu
responda. Nossos rostos estão próximos, o que não a impede de
gritar enquanto chacoalha minha cabeça. Meu silêncio a deixa ainda
mais irada. — Você deve pensar que essa casa é um bordel, não é?
— Não, Yvanna — respondo, com a voz mais controlada que
consigo externar.
Quando o pânico dos primeiros minutos vai embora, uma raiva
crescente é deixada para trás por ele, ela consome em chamas cada
nervo do meu corpo. Quero gritar de volta, cravar minhas unhas na
pele dela para ferir e para que me solte. Há muito tempo não me
permito ser tomada por um sentimento feito esse e é necessário tudo
de mim para mantê-lo do lado de dentro, onde é seguro.
Ainda não, penso.
Ela me solta finalmente e dá alguns passos para trás. É quando
agradeço por ter ao menos guardado o vestido dentro do armário
antes de pegar no sono.
— Então por que acordei esta manhã e o café da minha família
não estava servido?
Uso as mãos para me colocar de pé e me afasto dela o quanto as
paredes estreitas do quarto me permitem.
— Me desculpe. — Meu estômago revira. Não quero me
desculpar, quero mandá-la para o inferno. — Eu dormi um pouco
além da conta.
— Dormiu um pouco além da conta... — Há escárnio em cada
sílaba. — Acho que você se esqueceu de quem está no controle por
aqui, não foi?
— Não esqueci. Você não me deixaria — interrompo, rebatendo.
Em questão de segundos sua mão segura minha mandíbula com
força, enterrando as unhas longas em minha pele, me forçando a
olhá-la.
— Não volte a falar comigo nesse tom — ela cospe as palavras
dela e eu engulo as minhas. — Pelo que vejo, alguém aqui está com
tempo de sobra para começar a ter ideias estúpidas, mas isso vai
mudar. Hoje você limpa a tapeçaria, as calhas, as janelas e junta as
folhas do jardim. Além de todo o resto da casa, é claro.
Meus olhos estão ardendo quando Yvanna se afasta, ao passo
que as palavras de Robin se reverberam centenas de vezes em
minha mente, é como se, depois das nossas conversas, ficasse mais
claro a cada segundo sobre que decisão eu deveria tomar.
— Sim, Yvanna.
Crie um pássaro dentro de uma gaiola e o veja crescer
acostumado com as grades. Não fará muita diferença se ele morrer
no confinamento, pois a prisão é tudo que ele conhece, mas se você
deixá-lo sair uma vez e o bicho perceber até onde pode ir com as
próprias asas, é bastante improvável que ele queira voltar. Não tenho
mais tanta certeza de que essa gaiola é onde quero estar, nem por
mais um dia que seja.

É enquanto limpo a casa, mesmo embriagada de sono, que tento


clarear meus pensamentos. Começo pelo lado de fora, arranhando o
rastelo contra a terra úmida, juntando todas aquelas folhas em
pilhas. Cada mínimo canto e detalhes deste lugar conseguem me
deixar terrivelmente sentimental e mais do que nunca entendo minha
relutância em deixá-lo para trás.
Sob a tinta branca e encardida de uma das barras de madeira da
cerca está meu nome e de meu pai em letras garrafais. Aos 7,
quando já sabia escrever, tracei nossos nomes na tábua usando um
canivete. Depois disso, pintamos a cerca muitas outras vezes, mas
os escritos nunca sumiram porque o entalhe foi fundo e ainda dá pra
ler se chegar perto o suficiente.
Até mesmo as malditas calhas que sempre entopem durante as
chuvas de outono me fazem lembrar dele. Meu pai jurou que
consertaria o problema numa primavera próxima, mas nunca viu a
primavera daquele ano.
Há um lugar da sala onde os tacos do piso estão mais arranhados
e desgastados, é o lugar onde costumava ficar o piano velho da
família. Meu pai tocava lindamente, só que nunca tentou me ensinar,
o que sempre me revoltou, pois eu tinha os meus cinco anos e não
podia me importar menos com livros quando havia um móvel gigante
que fazia sons na minha sala. Que bom que ele não cedeu aos meus
desejos, os livros foram por muito tempo as minhas únicas
companhias e o piano foi vendido por Yvanna.
É porque penso seriamente em partir que tudo se torna um
chafariz de lembranças agridoces. Se eu for embora, quando terei
acesso a essas memórias outra vez? O que, do lado de fora, me fará
lembrar?
— Você parece pensativa. — Estou nos tanques da lavanderia
externa, esfregando manchas de molho de tomate para fora das
roupas de Delphine, quando Louis LaTellier surge diante de mim.
Sua figura bloqueia a luz do sol, assim como qualquer pensamento
bom. — Espero que esteja pensando na minha proposta.
Meu corpo recua instintivamente ao menor sinal de proximidade.
— Eu já te dei a minha resposta — digo, tão sucinta e incisiva que
meu tom me surpreende.
Não quero dizer mais nada, detestaria prolongar o assunto. Tudo
que quero é que ele suma.
— Não seja estúpida, garota. Eu sou sua melhor opção e você
sabe bem disso.
Meu riso é escancaradamente cínico.
— Você não seria a minha melhor opção nem que eu precisasse
escolher entre você e a morte.
O comentário não o faz contorcer nem mesmo um mínimo músculo
da face.
— Eu ouvi os gritos hoje mais cedo. — Sua voz adota um tom
passivo-agressivo enquanto ele inclina os ombros em minha direção.
— Essa não pode ser a vida que você quer. Aposto que mataria para
vê-la em seu lugar, nem que por um dia que seja.
— Tem razão... — pondero. — Eu mataria para que ela e as filhas
provassem um pouco do que fazem comigo, mas não me casaria
com você para isso.
Por mais que ele tente se mostrar impassível, a vermelhidão em
sua face alva é mais do que nítida e meu sorriso de satisfação
também é incontrolável.
— Por um momento, pensei que fosse uma garota inteligente —
ele diz e se distancia alguns passos. — É uma pena, Florence.
Poderíamos ter feito tudo da maneira civilizada. No fim das contas,
terei você de um jeito ou de outro.
São as últimas palavras dele antes de sumir da minha vista.
Minhas mãos estão trêmulas e minhas pernas perderam a rigidez há
muito tempo. Minha cabeça dá voltas, ecoando os mesmos
pensamentos e incitando os mesmos medos. A verdade é que é
tarde para mim. Pensei que pudesse ter ao menos mais um pouco
de tempo, mas não tenho. Yvanna definitivamente se casará com
aquele homem e é quando tudo vai terminar de desabar sobre os
meus ombros.
Há uma escolha dura a se fazer e há a renúncia. A proposta de
Isis é optar pela minha liberdade e pelo desconhecido. A renúncia é
deixar que outros detenham o controle sobre mim e determinem o
curso da minha vida. Quando as enxergo com mais clareza e coloco
em perspectiva, a decisão me parece mais do que óbvia. Óbvia, mas
jamais fácil.
XIV

O entardecer se arrasta, como se as horas estivessem se


prolongando a cada volta do relógio para me punir pelo que fiz
durante a madrugada. Meus ombros e minhas pálpebras pesam uma
tonelada cada um, meus movimentos são débeis e mal calculados.
Preciso tomar o dobro do cuidado para não quebrar nada enquanto
acabo de secar a porcelana. Não haverá jantar outra vez, estarão
todos no palácio para o último baile do príncipe.
Me pergunto se Robin estará lá e sinto um aperto no peito de
vontade de vê-la. Ela ficaria feliz em saber que demorei tão pouco
tempo para decidir sobre a proposta de Isis e ficarei ainda mais feliz
quando puder reencontrá-la para contar. A verdade é que essa
minha decisão não aconteceu tão rápido assim, do dia para a noite.
Ela vem assombrando a minha cabeça como um fantasma, desde o
dia em que pisei os pés nesta casa após voltar do funeral do meu
pai. Só que antes eu não tinha para onde ir. Madame Tine ofereceu
diversas vezes que eu morasse com ela na fazenda, mas não
poderia aceitar, pois quando ela partisse como meu pai partiu, talvez
eu não tivesse mais um lugar para voltar.
Eu precisaria de algum tempo, é claro, para colocar a cabeça no
lugar e me despedir da minha casa. Tudo vai depender do quão
rápido Yvanna pretende se casar. Se acontecer antes de seis meses,
quem sabe eu não fuja para a casa de Tine e fique lá até as garotas
da ilha retornarem ao reino?
Preciso vê-la, penso enquanto guardo o último prato seco no
armário de louças. Há tanto que quero contar e é a primeira coisa
que farei amanhã quando estiver livre, após uma boa noite de sono.
Não há mais nenhum rastro de luz vindo da janela d cozinha e sei
que já passa das sete da noite. Minha madrasta, as filhas e os
LaTellier devem estar nos quartos se aprontando para tomarem a
carruagem em direção ao palácio, portanto é o momento perfeito
para que eu suba para meu quarto sem ser notada e durma até o dia
seguinte.
Meus pés estão inchados e minha panturrilha lateja, meus
músculos imploram para que eu os relaxe sobre o desconforto do
meu colchão. Francamente, não faço a mínima ideia de como estou
de pé depois de tudo que fiz hoje.
Quando alcanço o quarto, tranco a porta e caminho até a janela
para fechá-la. Noir decidiu aparecer esta noite e se aninha sob o
parapeito, sem se importar com a minha chegada. Sentirei mais falta
dele do que de qualquer outra criatura viva desta casa. Antes de me
deitar, tiro um momento para admirar as luzes do palácio. É a única
estrutura iluminada a centenas de metros de mim, é onde Robin
provavelmente está agora e me pergunto se ela olha de lá, na
direção oposta, e pensa em mim também.

Não consigo me lembrar do momento exato em que me deitei na


cama e apaguei, mas quando sou acordada com batidas impacientes
em minha porta, sei que pouco tempo se passou desde que
adormeci, por isso ainda estou terrivelmente cansada. A voz de
Yvanna me chama do outro lado e é tudo tão caótico dentro da
minha mente esgotada que me levanto para atendê-la sem pensar
demais no que estou fazendo.
Destranco a porta entre um longo bocejo e sou confrontada com
uma expressão que é tudo, menos amigável. Em poucos passos ela
já está dentro do meu quarto, o vestido aprumado e a maquiagem
intacta me dizem que ela e os outros ainda não saíram de casa para
o baile e ainda é, no máximo, oito da noite.
— Dormindo tão cedo, Florence? — Ela quebra o silêncio,
indicando os lençóis bagunçados com um movimento da cabeça.
— Eu trabalhei muito hoje. — E você sabe disso melhor do que
ninguém, completo em pensamento ao passo que sinto uma raiva
crescente. — Você nunca vem aqui. Aconteceu alguma coisa?
Vou logo direto ao ponto para que a nossa interação se encerre o
mais rápido possível e eu consiga voltar a dormir. Mas ela não diz
nada, ao invés disso, caminha até o outro lado do cômodo a passos
vagarosos e despreocupados. Quando reparo em sua trajetória,
percebo que ela está indo na direção exata do meu armário, onde o
vestido que me foi dado por Madame Tine está escondido. É quando
sinto meu corpo gelar por inteiro e travo no mesmo lugar.
— Sabe, Florence, não gosto que me subestimem — começa
outra vez e seu tom feral me perturba um pouco. Ela se vira para
poder me olhar, o que me alivia, significa que ela pode não ter vindo
aqui pelo motivo que achei que ela veio. — Eu tinha a sua idade
quando me casei. Sabemos que não é comum, a maior parte das
garotas já possuem um marido aos dezesseis. Mas meus pais
cometeram a estupidez de me deixar escolher um noivo. Nossa
família tinha muitas posses, dinheiro nunca foi o problema. Fiquei
noiva daquele que eu pensava ser o amor da minha vida, um
qualquer, sem ambição, que em menos de três anos torrou todo o
dinheiro da minha família e sumiu com uma prostituta qualquer, me
deixando com duas filhas e nem um centavo.
— Você sempre disse que era viúva — interrompo, ao perceber
aquele pequeno furo na história.
A razão de ela estar aqui me contando todas essas coisas ainda
me intriga, mas decido pagar para ver até onde ela quer chegar.
— É claro que disse, querida. Quem ia querer uma mulher
abandonada com duas filhas? Se conto a todos que ele me deixou,
iam pensar que podia haver algo de errado comigo, porque afinal, a
culpa é sempre da mulher, não é? — Não digo nada, não saio do
lugar, apenas faço que sim para que ela continue. Não dá para
discordar. — Inventei uma mentira sobre ele ter saído para caçar e
depois de meses de procura, ele foi dado como morto. Então eu
conheci seu pai. Joseph era mesmo um homem bom, não era? Ele
havia perdido a esposa tão novo e tinha uma filha que precisava dos
cuidados de uma mãe.
— Não há nada que eu conheça tão bem feito essa história. —
torno a interromper. — Você vai me dizer por que está aqui?
— Chegarei lá — rebate. — Eu amo as minhas filhas e tudo que
faço é por elas, mas... A verdade é que você sempre foi a mais
bonita, mais inteligente, mais dócil. Eu vivi dez anos à sombra de
uma garotinha e de sua mãe morta, Joseph jamais me amaria do
jeito que amou vocês e, sendo justa, o sentimento era recíproco.
Ela vomita todas aquelas palavras sobre mim num tom ácido e
magoado e quero vomitar o pouco que comi no almoço.
— Juliet e Delphine são garotas bonitas. Não sou mais inteligente
que elas e talvez, mas só talvez, eu só seja mais dócil porque tive
alguém para me ensinar a ser boa com as pessoas sem esperar
nada em troca. Você diz que as ama, mas olha como fala das
próprias filhas.
Minha cabeça dói e sinto que vai implodir caso ela continue com a
ladainha e não chegue logo ao ponto.
— Sempre tão condescendente, não é, Flora? Mas me deixe
terminar, porque tenho coisas a fazer. Quando seu pai faleceu, eu
precisava encontrar um jeito de compensar o quão menosprezada fui
durante todos aqueles anos e quero que saiba que é por isso que as
coisas são assim para você. Também é por isso que estou aqui hoje.
— Ainda não entendi — replico, áspera.
— Mais uma vez, quando finalmente acho que a minha vida vai
mudar, há uma pedra no meu sapato.
Seu olhar sobre mim é mordaz. Ela encurta a distância entre nós,
caminhando outra vez para perto sem tirar os olhos da minha face
conturbada.
— Não sei do que você está falando.
— Sabe sim. Sabe muito bem. A única coisa que você não sabe é
mentir, ou se colocar no seu lugar.
Eu gelo outra vez e um turbilhão de pensamentos me consomem
em revoadas, mas ela não me dá nenhum tempo para formular
teorias.
— Bertha LaTellier me contou tudo. Ela viu você se atirando sobre
o filho dela como uma meretriz desesperada por atenção e ouviu
quando ele propôs que se casassem pelas minhas costas.
Não consigo me decidir entre me indignar com aqueles absurdos
ou sentir o mais puro alívio por ela não ter descoberto nada sobre o
que andei fazendo nas últimas duas noites. De qualquer maneira,
estou furiosa.
— Eu não me atirei sobre aquele cretino. Ele tentou me beijar. À
força.
— É mesmo? — Sua entonação cínica faz meu peito queimar de
ódio ainda mais. — E por que você não gritou?
— Por pavor. Medo de que ele me machucasse ou que eu não
fosse acreditada, porque, como você mesma acabou de dizer, a
culpa é sempre da mulher, não é?
Meus olhos ardem porque quero chorar e os fecho por alguns
instantes, na tentativa vã de afastar aquela lembrança. Quando os
abro outra vez, algumas lágrimas finalmente escorrem e Yvanna
ainda está me encarando, sem nem um pingo de compaixão.
— Além do mais, se Bertha ouviu mesmo a conversa, ela sabe que
a minha resposta foi ‘não’. Por mais que eu fosse adorar ter esse
triunfo sobre você, Yvanna, por mais que eu fosse adorar poder
presenciar sua ira quando acontecesse — um riso curto e amargo
emerge das lágrimas e do fundo da minha garganta —, não me
casaria com aquele homem por nada nesse mundo.
Sua expressão remanesce impassível, como se as minhas
palavras tivessem se desfeito em pó antes de alcançarem sua
audição. Ao menos ela não diz mais nada e começa a caminhar em
direção a porta em silêncio.
— Pouco me importa o que você diz — ela fala quando alcança o
batente, girando o pescoço para me olhar. — Eu não vou deixar você
arruinar a minha vida outra vez.
São as últimas palavras ditas antes que – num movimento que eu
jamais poderia prever – ela arranque a minha chave da fechadura e
bata a porta atrás de si. Acontece tão rápido que quando percebo, já
estou trancada de fora para dentro. Meu primeiro impulso é o de
correr em direção a porta e tentar girar a maçaneta, mas é claro que
não funciona, ela já girou a chave.
— Yvanna! — grito, num acesso de pânico que invade os meus
sentidos violentamente. — Yvanna, o que você está fazendo?
Não há resposta, apenas o som aterrador de passos descendo os
degraus e o eco das minhas batidas incessantes contra a porta.
Num instante, estou hiperventilando e minhas mãos estão
vermelhas de esmurrar a madeira. Corro para abrir a janela e quando
olho lá para baixo, vejo a figura de Yvanna saindo pelos portões sem
se importar em olhar para trás. Não torno a gritar seu nome, porque
é bem claro que ela não vai voltar.
Um vento frio entra pela janela e estremeço.
“Eu não vou deixar você arruinar a minha vida outra vez.”
As palavras da minha madrasta reverberam em alto e bom som
dentro da minha cabeça e sinto medo do que pode me acontecer.
Meu pulso está acelerado, minhas mãos tremem e perco o controle
da minha respiração outra vez. Parece um sonho ruim e repetitivo.
Vivo saindo de um pesadelo a outro, entre intervalos curtos de
esperança.
Tento me acalmar. Sento-me sobre a cama, abraço meus joelhos e
digo a mim mesma que Yvanna não pode me manter trancada no
quarto para sempre e, assim que aquela porta for destrancada,
correrei para longe, com tudo que puder, e ela nunca mais me dirá o
que fazer.
Deixo meu corpo recostar contra a cabeceira e tento apaziguar
meus pensamentos, sufocar minha vontade de gritar. Ninguém me
ouviria daqui. O sono e o cansaço ainda estão aqui, já que não pude
descansar ainda, mas não consigo voltar a dormir porque estou
agitada.
Mexo os pés sem nenhum controle da minha ansiedade, deito-me
na cama e tento fechar os olhos, mas eles só se manteriam fechados
se eu usasse cola de sapato para unir minhas pálpebras. A sensação
de estar presa e querer desesperadamente se libertar me remete aos
sonhos que tenho com o meu pai. A diferença é que não estou
sonhando e ele não surgirá na janela com as chaves para que eu
consiga sair.
Minutos passam e a única coisa que aparece é o cheiro
inconfundível de madeira sendo queimada, fumaça e os estalos
audíveis de um fogo que consome o que há pela frente.
O primeiro andar da casa está em chamas.
XV

Demora até que minha cabeça consiga processar o que de fato


está acontecendo. Há um incêndio sob os meus pés e parte de mim
não quer de jeito nenhum acreditar que minha madrasta me trancou
no quarto de uma casa pegando fogo, mas a outra parte não é
ingênua o suficiente para achar que se trata de uma coincidência.
No começo eu sinto pânico. Meus nervos travam uma batalha uns
contra os outros e não entram num consenso sobre paralisarem-se
completamente, ou cederem de uma só vez, de modo que meu corpo
vá ao chão. É angustiante e me causa uma dor física e mental
insuportável.
Depois, eu sinto a mais pura indignação. Yvanna me quer fora do
seu caminho. Morta, para que eu não seja um empecilho em seu
plano de colocar as mãos na fortuna de Louis LaTellier. Incendiar a
casa e fingir que foi um acidente é um bom pretexto para que ele se
compadeça, a leve para o norte e se case com ela o mais rápido
possível. Sei melhor do que ninguém o quão cruel e ambiciosa é
minha madrasta, mas jamais me ocorreu que ela poderia ir tão longe
por dinheiro e por ressentimento.
Por fim, sinto dormência. Para mim, no momento não há nada
além das quatro possibilidades que me levarão à morte e ainda estou
lúcida o suficiente para analisar cada uma:
Não tenho certeza, mas acho que a pior delas seria ter que
esperar até que as chamas me alcancem e eu seja carbonizada. A
dor deve ser excruciante.
Com um pouco mais de sorte, serei sufocada pela fumaça e
desmaiarei antes de morrer. Funcionaria melhor e seria mais rápido
se eu fechasse a janela.
Também posso ser soterrada, conheço esta casa de cabo a rabo e
sei que ela está alicerçada por longas vigas de madeira que
queimarão feito lenha seca quando o fogo as atingir. A estrutura
pode ceder a qualquer momento, antes mesmo de terminar de
queimar.
A outra possibilidade – e para essa eu precisaria de alguma
coragem – é a de me atirar lá embaixo através da janela. A queda
me mataria instantaneamente ou quebraria meus ossos, eu
agonizaria de dor e desejaria a morte, porque ninguém viria me
socorrer.
Não pode ser assim que acaba, justo no momento em que eu,
depois de todo esse tempo, consegui reencontrar-me com as coisas
que a morte do meu pai tirou de mim.
Quero gritar, mas sei que não teria fôlego. Quero jogar as coisas
no chão e destruir o pouco que me resta antes que o fogo o faça.
Minha angústia é tamanha que começo a me debater contra a porta,
tentando romper o aço da fechadura usando apenas o peso do meu
próprio corpo. Mas não dura muito, mal comi o dia todo e a fumaça
começa a me tontear. Quando dou conta, o quarto está tomado por
resíduos acinzentados flutuantes que deixam minha vista opaca e
me causam uma sensação terrível de claustrofobia.
Deixo minhas costas deslizarem contra a tábua da porta, dando-
me finalmente por vencida. Já pensei em tudo que poderia me tirar
dali, mas nada é o suficiente. Os grampos que tenho no quarto não
são resistentes para girar a fechadura sem quebrar. Não tenho
lençóis ou roupas o suficiente para amarrar e usar de corda. Por fim,
permito que as lágrimas que estive segurando desçam em torrente.
Penso em Madame Tine e em como ela ficará inconsolável. É
assim que me sinto por passar pela minha cabeça a ideia de jamais
poder vê-la outra vez. Não poderei nem contar como eu e Robin
estamos apaixonadas uma pela outra. E Robin, céus, quando ela
souber... Espero que ela não me culpe por fazê-la perder alguém
outra vez.
Me coloco de joelhos, arrasto-me até o baú de coisas perto da
minha cama e tiro o pequeno retrato dos meus pais de lá. Recosto
meu rosto no móvel enquanto encaro os rostos dos dois e tento
controlar meu choro, assim como a quantidade de fumaça que estou
aspirando. Eles iam querer que, num momento como esse, eu me
lembrasse do quanto fui amada pelos dois e como queriam poder
estar comigo. É incrível como sinto que agora, estando à beira da
morte certa, tudo que mais desejo é poder viver. Viver por eles, por
Madame Tine, por Robin e, acima de tudo, viver por mim.
Dizem que o corvo é a ave do mau presságio, mas sinto que estou
recebendo um sinal quando Noir pousa no parapeito da janela e “diz”
meu nome pela primeira vez. Não sei o que ele quer aqui, mas me
levanto do chão e o pássaro negro bate voo para a calha do telhado
sobre mim quando me aproximo. Olhar para a calha faz com que me
lembre que limpei todas elas hoje, isso significa que, por ter me
esquecido de guardá-la no lugar, há uma escada que cobre todos os
andares abaixo de mim em algum lado da casa. Se eu ao menos
pudesse chegar até o telhado e me equilibrar para que eu alcance a
escada, conseguiria descer.
O fogo já tomou conta do primeiro andar inteiro e ilumina o exterior
da casa de um jeito macabro. Tento não pensar em tudo que está
sendo destruído, todas as memórias boas que tenho se desfazendo
em chamas, pois preciso achar um jeito de escapar por esta janela
sem acabar me chocando contra o chão. Ao menos sei que, mesmo
que isso aconteça, estou satisfeita o suficiente por saber que
morrerei tentando me salvar, não resignada esperando a morte.
A torre do sótão é projetada ligeiramente para fora do resto da
construção, o que me deixa sem nenhum pedaço de telhado para me
apoiar ou para amortecer minha queda. Só há o solo, distante,
abaixo de mim. A porção de telha mais próxima está à esquerda,
para alcançá-la tenho que escalar alguns tijolos e rezar para que as
telhas do beiral não cedam quando eu pisar nelas. Não sei se
aguentarão o meu peso.
Meu último ato do lado de dentro é enfiar o retrato dos meus pais
entre meu peito e o elástico da minha roupa, e buscar pelo o anel de
casamento da minha mãe para encaixá-lo em meu polegar, é o único
dedo meu em que ele não fica frouxo demais.
Não olho para trás, sei que aquele lugar nunca me acolheu. O
sótão nunca foi meu quarto de verdade e sim só mais um jeito que
Yvanna encontrou para me punir.
Quando meu pé alcança o primeiro tijolo do lado de fora, prendo a
respiração e procuro segurar com firmeza no batente da janela para
tatear os outros tijolos com outro pé. Bate um vento frio que sobe
pelas minhas pernas, por debaixo da saia do vestido e arrepia meu
corpo inteiro.
Não é hora de começar a tremer, Florence.
Pouco a pouco vou me afastando da janela, de modo que chega
um momento em que não há mais nenhuma parte dela para me
segurar, o mísero vão entre o telhado e a parede externa é o que me
impede de cair. O corte cicatrizando na palma da minha mão torna a
se abrir, arde e sangra um tanto.
Congelo quando meu pé toca a borda da calha e ela cede um
pouco. Preciso me aproximar mais e só quando sinto firmeza que
pulo para o telhado, impulsionando meu corpo com toda a
intensidade que consigo para cair o mais longe possível da beirada.
Algumas telhas se quebram, mas estou segura – segura, é claro,
para alguém que está no topo de um telhado, tentando se salvar de
um incêndio. Agora tudo o que tenho que fazer é avistar a escada e
descer.
Não me sai da cabeça o quão irônico pode ser que Yvanna, na
tentativa de me punir me mandando limpar as calhas, tenha me
salvado da morte que ela mesma tentou provocar.
A escada está nos fundos da casa, apoiada nas fáscias do
telhado. Poucos segundos e estou em terra firme outra vez, é daqui
que consigo ver pela primeira vez o fogo enegrecendo tudo,
estilhaçando os vidros e consumindo o interior do lugar onde um dia
vivi e fui imensamente feliz. A fumaça e as lágrimas fazem meus
olhos arderem. Me permito chorar por alguns instantes, mas seco o
rosto mais que depressa para depois ir buscar Valentin.
Não acredito que consegui. Estou aqui embaixo, viva e sem nem
um arranhão. Mas preciso partir, porque se eu ficar por mais tempo,
sou capaz de tentar apagar as chamas usando um balde d’água e
minhas mãos.

É mais de meia-noite quando chego à propriedade dos Gaillard.


Me sinto terrível por acordar Madame Tine, mas preciso de um lugar
para dormir e um colo para chorar.
Ela abre a porta segurando uma lamparina e de camisola, confusa
e preocupada porque além de ser madrugada, meu rosto, vestido e
sapatos estão cobertos de fuligem.
— Flora! — Espanta-se, dando um gritinho. — O que foi que te
aconteceu, filha?
— Eu vou contar — arquejo, ofegante. — Prometo. Mas será que a
senhora me deixaria tomar um banho e me deitar um pouco antes?

Desta vez, estou no oceano. Não há mais nenhum quarto, a porta


trancada ou meu pai. Só eu, debatendo os braços e as pernas para
não afundar enquanto correntes me levam para o que parece ser o
começo de uma intensa tempestade relampejante. A água agitada
impede que eu lute contra, mas me recuso a deixar que meu corpo
afunde.


Minha mente e o corpo inteiro estavam implorando por descanso,
por isso apaguei depois que Tine preparou a cama para que eu me
deitasse. Acho que nunca dormi por tantas horas seguidas. Me
assusto quando desperto e vejo num relógio que já passa de uma da
tarde.
Estou no antigo quarto de Sophie, usando uma camisola que
certamente também era dela. Há uma bandeja na mesinha de
cabeceira com frutas, pão e água fresca. O gesto me arranca um
sorriso e em seguida como tudo que consigo, enquanto os
acontecimentos da noite passada voltam para mim sem nenhuma
sutileza.
À luz do dia e da sanidade, nada do que aconteceu parece real.
Tenho a sensação de que se voltar para a casa, a encontrarei
intacta, esperando por mim como sempre foi. Mas a faixa encardida
de fumaça em minha mão direita testifica que foi tudo bem real.
Não sei quanto tempo vou demorar para colocar os pensamentos
em ordem, já que acabo de assistir minha vida inteira colapsar diante
dos meus olhos. Não tenho mais uma casa, não tenho roupas, não
tenho nada além de um anel de ouro velho e um retrato tão velho
quanto.
Quando termino de comer, levanto-me da cama para procurar
Madame Tine. Ela estava aflita ontem e não consegui dizer nem uma
palavra. Pensei que fosse chorar até dormir, mas meu corpo desligou
no instante em que minha cabeça encostou no travesseiro.
Caminho até a cozinha, porque escuto vozes vindas de lá. Estou
descalça e despenteada, mas há coisas mais importantes com as
quais me preocupo. Dizer à Clementine que estou bem é uma delas.
Ela e o marido estão sentados à mesa quando chego. Ernest Gaillard
está trabalhando em uma de suas esculturas de madeira, porém me
cumprimenta com um aceno e um sorriso parco. Ele sempre foi muito
educado comigo das vezes que nos vimos, mas imagino que minha
visita inesperada talvez seja um incômodo para ele que leva uma
vida tão sossegada, por isso, não tento iniciar uma conversa nem
forçar proximidade. Ele sente que eu e a esposa precisamos
conversar a sós e se retira sem dizer muito.
— Soubemos do incêndio esta manhã — Madame Tine diz,
enquanto se serve de uma xícara de chá. Ela me olha com
compaixão, se aproxima para me puxar pelo punho e fazer com que
me sente. — O que aconteceu, Flora? Por acaso estão colocando a
culpa em você ou...
— Não — esclareço logo, mas não sei como fazer para contar a
verdade sem lhe causar um choque. — Foi Yvanna. Ela me trancou
no sótão e começou o incêndio, depois foi com as filhas para o baile,
mas acho que Juliet e Delphine não sabem de nada.
Ela cobre a boca com as mãos, tão estarrecida quanto o esperado.
— Por Deus, Flora, isso não pode ser verdade — diz,
completamente desatinada. — Aquela mulher é mais louca do que
eu pensei.
— Eu não quis acreditar também. Mas foi o que aconteceu, e
agora não posso mais voltar.
— É claro que não. Não pode e não vai. Você vai ficar comigo e
não aceito ‘não’ como resposta. — Ela me envolve num abraço cheio
de carinho e preocupação. Me lembro que preciso contar sobre
Robin, mas ela faz outra pergunta antes: — Não consigo entender.
Por que ela faria uma coisa dessas?
Preciso respirar fundo antes de começar toda a história do
começo. Conto sobre a chegada dos LaTellier e sobre como Louis é
um homem nojento, que tentou me beijar à força e jurou que eu
aceitaria me casar com ele. Também conto sobre o ciúmes doentio
de Yvanna e as coisas que ela disse antes de tentar me matar.
Quando estou prestes a contar que estou decidida a me juntar às
Filhas de Margery, sobre mim e Robin, a princesa bate à porta da
casa, gritando por Madame Tine com a voz chorosa.
XVI

Meu coração dispara instintivamente ao ouvir Robin chamar


Madame Tine com tanta urgência e desespero. A mais velha corre
até a porta para atender a princesa e vou atrás, apavorada porque a
dor que ela está sentindo se faz audível e me angustia.
Quando Tine abre a porta, a primeira coisa que Robin faz é
abraçá-la, encaixando o queixo no ombro dela de olhos fechados.
Ela não me vê aqui. Está soluçando e seu rosto está vermelho e
molhado por lágrimas.
— Madame Tine, a Flora, ela... Eu passei em frente à casa e... —
tenta se explicar, entre soluços.
Sinto um aperto terrível no peito quando me dou conta de que ela
está nesse estado por minha causa. Ela viu a casa e eu não estava
lá, então achou que alguma coisa tinha me acontecido.
— Estou aqui, Rob — digo, forçando-me a sorrir. — Eu estou bem.
Não penso nem uma vez antes de me aproximar e tocar seu rosto
com cuidado. Ela abre os olhos pela primeira vez e é como se não
acreditasse no que eles estão lhe dizendo, pois demora alguns
segundos para soltar Madame Tine e envolver-me num abraço
apertado e demorado.
— Flora, eu... — Ela suspira, sem se desvencilhar. — Por tudo de
sagrado no mundo, achei que tinha te perdido. Quando vi aquela
casa... Tinha muita gente lá, todas elas diziam que você não tinha
sido encontrada.
Nossos corpos estão colados e consigo sentir sua respiração
desacelerando contra o meu peito. Ela corre uma das mão por meus
cabelos e me aperta com um pouco mais de força, demonstrando
toda a sua sinceridade e carinho por mim a cada mínimo gesto.
— Estou aqui, não estou? — Desfaço parcialmente o abraço e
seguro seu rosto entre as mãos, os olhos azuis-esverdeados ainda
estão meio nublados. — Você não vai se livrar de mim assim tão
fácil.
Ela dá uma risada e revira os olhos com o mais puro alívio,
enquanto enxugo seu rosto com a manga da camisola e abro um
sorriso.
— Mas o que aconteceu naquele lugar, afinal de contas? — Robin
pergunta. — Aquela casa... era tão importante para você. Sinto
muito, Flora.
Ela toca meu rosto e tombo a cabeça de leve para buscar mais do
contato.
— Eu vou te contar tudo, mas antes...
— Será que alguém pode me explicar o que está acontecendo? —
A voz de Madame Tine se faz presente, de súbito, me lembro que ela
também está ali. — O foi que eu perdi?
Rob e eu rimos em uníssono e damos as mãos antes de encará-la.
Ela intervém na hora exata e suspiro aliviada, não sei se estou
pronta para contar os eventos da noite passada para Robin e como
eles realmente aconteceram.
Tine está com as mãos na cintura, vestindo a melhor expressão de
indignação que ela consegue encenar para disfarçar sua euforia.
Não tive tempo de contar sobre como Robin e eu nos aproximamos
ou sobre o todo o resto, mas agora que estávamos ali, juntas,
parecia o momento perfeito. Eu só não sabia como começar.
— Acho melhor a gente se sentar antes — digo, indicando os
sofás da sala de estar. — Quer contar para ela, Rob?
— Honestamente — começa, se esticando sobre o sofá e me
puxando pelo punho para que me junte a ela e Madame Tine que se
senta também. — Eu ainda estou em pânico, mas, é, acho que
consigo contar à Madame sobre como você tentou me matar
asfixiada numa noite e na outra me beijou.
Abro a boca para protestar, mas estou tão ruborizada que não sai
nenhum som. Uso umas das mãos para cobrir a boca de Robin
enquanto ela e Tine riem às minhas custas.
— Não foi bem assim. Você não contou a parte de ter literalmente
se declarado para mim no meio de uma discussão.
— Vocês duas! — Madame Tine exclama em seu melhor tom de
entusiasmo. — Eu não acredito que não vi isso acontecer!
— Acho que nenhuma de nós viu, sabe? Nos encontramos por
acaso, deixando o palácio na primeira noite de baile e levei a Flora
para conhecer as Filhas. A gente se aproximou e...
— Mas, para que fique claro, você disse que já gostava de mim
bem antes disso.
— Eu disse? — Ela morde os lábios e pousa a mão sobre a minha
coxa, me apertando e acariciando com o polegar. — Bom, eu disse a
verdade.
Seu olhar sobre mim provoca um tipo irresistível de transe e a
combinação dele com seu toque em minha pele sobre o tecido me
faz ter certeza de que meu coração erra algumas batidas. Talvez eu
esteja me apaixonando. Talvez já esteja apaixonada.
— Isso me faz muito feliz. Eu demorei a entender quando descobri
que minha filha gostava de outras mulheres. Ernest também não
aceitou e vivemos um ano insuportável, brigando, nos machucando.
Até que ela foi embora para a Ilha da Deusa e foi tudo tão dolorido
para nós. — Os olhos de Madame Tine estão inundados por lágrimas
e encaram o belo retrato de Sophie que paira diante de nós do outro
lado do cômodo. Tine dá um suspiro magoado. De repente estamos
cercadas por uma aura de tensão que eu jamais havia sentido entre
Robin e ela. — Tivemos que perdê-la para compreender que o nosso
amor por Sophie não podia ser condicional. Minha filha era mais
importante do que qualquer coisa e quando ela se foi para outro
plano, tudo que quis foi recuperar aquele um ano perdido. Ao menos
conseguimos nos reconciliar antes que acontecesse.
As coisas que ela diz me deixam subitamente triste e acordo para
a realidade por um instante. Não consigo não me perguntar como
meus pais lidariam com a minha sexualidade caso chegassem a
descobrir um dia. Me pergunto também se eu e Robin teríamos nos
encontrado. Seria tudo tão diferente que talvez Madame Tine e eu
sequer fôssemos próximas.
— Sophie tinha muita sorte de ter você, Clementine — diz a
princesa. — As histórias que ouvimos de outras moças... Esse é um
mundo cruel para mulheres, e sobretudo para mulheres que amam
outras mulheres.
— Eu gostaria de ter entendido mais cedo — diz a mais velha. —
Mas é bobagem desperdiçar o presente nutrindo desejos pelo o
passado.
— A senhora tem razão — digo, tomando uma de suas mãos e
apertando gentilmente. — Já que estamos falando sobre não
desperdiçar o presente, acho que gostaria de saber que recebi uma
proposta de Isis para me juntar às Filhas de Margery.
— É mesmo, filha? — Tine arqueia as sobrancelhas. — E você
aceitou? Acho que seria muito feliz por lá. Sophie sempre me
contava maravilhas.
Busco o olhar de Robin porque sei exatamente o que ela está
pensando. Agora que não tenho mais a casa da minha família, não
há por que não ir, mas quero que ela saiba que eu tomei essa
decisão bem antes de tudo acontecer.
— Eu vou — respondo, sem desviar o olhar de Rob justamente
para vislumbrar o sorriso que seus lábios esboçam. — Pretendia
esperar mais um tempo, não contava que... — Eu ia dizer “Não
contava que a minha casa fosse pegar fogo”, mas me lembrei que a
casa não pegou fogo, ela foi incendiada com o propósito de que eu
queimasse junto com ela. — Bem, que as coisas aconteceriam como
aconteceram.
Meu olhar cai sobre Madame Tine, que compreende
imediatamente que preciso de um momento a sós com Robin para
dizer a ela tudo que não aguento mais guardar.
— Poxa, pensei que ficaria comigo por mais tempo, Flora — ela
diz, colocando-se de pé. — Mas estou muito feliz por você, meu
bem. Enfim, vou deixar as duas conversando, acho que já falei
demais. O mais importante vocês já sabem, estou aqui para o que
precisarem.
Ela se retira da sala a passos ligeiros depois que a agradecemos
profundamente por todo o carinho. Rob então me olha e entendo que
ela quer que eu me aproxime, mas eu não o faço, porque preciso
manter alguma distância física entre nós se quiser manter meus
pensamentos em ordem.
— Não quero que pense que de alguma forma estou feliz pelo que
aconteceu, Flora — começa, receosa em encontrar as palavras
certas. — Mas estou mesmo feliz que você decidiu ir com as outras
para a ilha.
Balanço a cabeça para dizer que compreendo.
— Não pensei que estivesse — esclareço primeiro, para só depois
dizer o que pretendo. — Antes de Madame Tine nos interromper,
você tinha me perguntado sobre o que aconteceu e não pude
responder...
— Sim. O incêndio, é claro. Sabem o que causou o fogo? E por
que sua família não sabe que você está aqui? Todos acham que
você morreu.
— Yvanna causou o fogo.
— Ela o quê? — Robin mal me espera terminar.
— Yvanna arranjou um noivo rico. Eu não te contei, mas ele e a
mãe dele estavam hospedados conosco há uns três dias. Minha
madrasta queria encontrar um jeito de se livrar de mim para poder se
casar e ir embora para o norte com o marido.
Mordo o lábio por dentro. Não estou contando a história como
realmente aconteceu, mas não consigo dizer à Robin que o que
impulsionou a loucura de Yvanna foi o fato do noivo dela ter
desenvolvido um tipo doentio de obsessão por mim. E não me
arrependo porque, mesmo com essa parte tendo sido oculta, o rosto
dela está avermelhado, ardendo em revolta.
— Ela vai responder por isso. Vamos acionar a Coroa, o Tribunal,
a Igreja ou o diabo que seja! — exclama, irada. Seu tom é
preocupantemente ameaçador.
— Rob, ei, me escuta — peço com a voz leniente e branda, uso as
minhas duas mãos para segurar seu rosto e fazer com que ela olhe
apenas para mim. — Eu sou a pessoa que melhor entende a raiva
que você está sentindo agora. Também a senti, acho que umas cem
vezes pior. Mas Yvanna pensa que estou morta, ela vai sumir deste
lugar assim que tiver a oportunidade, nunca mais vou vê-la e isso é
tudo que eu poderia querer. Se ela souber que estou viva, há
chances de querer vir atrás de mim.
Não tenho medo de que Yvanna venha atrás de mim, mas sim que
Louis LaTellier o faça depois que eles se casarem e ele se torne meu
guardião pela lei, por isso a ideia de Robin me apavora.
— Eu protegeria você, Flora. Eu daria um jeito.
— Não quero ser protegida, quero ser livre. Vou para a ilha com as
garotas, não é isso que você queria?
— É, mas...
Levo meu indicador até seus lábios e faço um “shhh” baixinho.
— Quando elas vão partir?
— Esta noite, depois do pôr do sol — responde, resignada.
— Então isso significa que temos só até o pôr do sol para ficarmos
juntas.
Sua face suaviza, mas sei que não a convenci inteiramente, ela só
não é capaz de me contrariar. Não num momento feito esse, quando
minha mão está deslizando por sua coxa e inclino o corpo em sua
direção para que nossos lábios demorem menos a se encontrar.
Robin me quer tanto quanto eu a quero e sei disso quando sua boca
toma a minha com urgência, roubando o ar dos meus pulmões e me
afastando dos meus sentimentos negativos.
XVII

Não temos tanto tempo quanto eu gostaria, porque preciso


partir. É triste me despedir de Madame Tine, especialmente porque
não sei quando tornarei a vê-la, mas Robin promete que dará
notícias sempre que possível. Isso, é claro, não faz com que eu
chore menos.
Clementine me abraça com a força que sua idade permite, ela
tenta enxugar as lágrimas antes que eu possa vê-las, porém, não há
como não perceber os olhos e o nariz avermelhados.
— Sentirei saudades, minha filha — lamenta, despedindo-se. —
Você tem uma casa aqui enquanto eu viver.
Mexo com a cabeça para expressar que entendi, alcanço as mãos
pequenas e enrugadas de Madame Tine para beijar cada uma delas
e depois finalmente a olho nos olhos.
— Obrigada por tudo. Eu não estaria aqui hoje se não fosse pela
senhora. Prometo voltar para vê-la assim que puder.
Tornamos a nos abraçar. Um abraço mais demorado dessa vez,
uma vez que será o nosso último por um longo tempo.
— Flora — Robin chama. — Desculpe. Temos mesmo que ir.
Ela indica o horizonte e o sol bem perto de se esconder atrás da
linha que divide o dia e a noite. Desfaço o abraço com um longo
suspiro, para apanhar a pequena mala de roupas que Tine me cedeu
enquanto não arranjo novas. Na mala, também está o retrato dos
meus pais, o anel e o vestido da minha mãe que deixei com Madame
naquela primeira noite do baile, agora ele está costurado e limpo
como novo.
Robin me ajuda a subir no dorso de Toulouse, porque os vestidos
de Sophie sempre ficam pequenos demais em mim e restringem
minhas pernas. De cima do cavalo, tenho um vislumbre da fazenda
de Madame Tine e da própria, com um olhar melancólico de
despedida. Nos despedimos da mais velha com acenos e não
demoramos a tomar o rumo da floresta outra vez.
É aquele mesmo caminho, mas feito ao entardecer desta vez e
com meus olhos captando cada detalhe da paisagem na tentativa de
não me esquecer. Sei que é impossível que não me esqueça, afinal,
estou há apenas algumas horas longe da minha casa e alguns
detalhes já me escapam da memória, tento me agarrar a eles como
se fossem capazes de me manter viva. Não gosto de pensar em
como as coisas ficaram por lá após o fogo ter consumido tudo. A
mera imagem faz minha cabeça latejar.
— Queria que pudéssemos ter tido mais tempo.
A voz de Robin ecoa do lado de fora dos meus pensamentos.
Sinto um arrepio que começa na minha espinha e termina no meu
estômago. É quando ela diz isso que finalmente me dou conta que
não é somente a minha casa, Noir e Madame Tine que estou
deixando para trás. Robin não irá para a ilha comigo. Ela tinha me
contado os motivos e os compreendo, ao passo que também
entendo o quão torturante será a noção de que estará tão distante de
mim em algumas horas, com seus lábios tão longe da minha pele.
Justo agora que eu aprendi a adorá-la tanto.
— Acha que vai demorar até que você possa ir? — pergunto.
Meu queixo descansa sobre seu ombro esquerdo enquanto meus
braços a envolvem pela cintura. O calor que emana de sua pele tem
o mesmo efeito que chá de camomila para os meus sentidos, ainda
que o tema da conversa faça com que eu fique incomodada.
— Meu irmão escolheu uma noiva, ele vai se casar com uma
princesa sudestina no início da primavera. Não acho que vai demorar
mais que seis meses para que me arranjem um casamento também.
— Mas, se demorar...?
— Não sei. Não estou contando com isso nos meus planos.
Ela dá uma risada baixa e eu a aperto de leve, revoltosa.
— Não brinque comigo, Diane Robin, sou capaz de te colocar
dentro de um baú e te jogar no porão do navio.
Rob ri outra vez.
— A ilha troca cartas com o continente a cada dois meses, elas
vêm e vão em uma embarcação menor e mais discreta. Vou te deixar
sabendo de tudo.
— Promete? — Minha voz soa quase chorosa.
— Isso tudo já é você com medo de sentir minha falta? — provoca,
fazendo meu rosto enrubescer.
— Não estou com medo, sei que vou sentir sua falta.
Minha resposta imediata a pega de surpresa, o jeito com o qual ela
perde o rumo por alguns instantes é adorável e me tira um sorriso.
— Não vai durar muito. Vamos nos ver de novo e você mal vai ter
tempo de sentir saudades.
Acredito em suas palavras porque confio em Robin, mas não me
permito ficar muito esperançosa, pois sei bem que nenhum outro
autor arruína planos como o destino.
Quero dizer a ela que já estou com saudades. Meu medo aumenta
cada vez que nos percebo mais próximas do acampamento das
Filhas de Margery. Dois dias. Levou dois dias para que eu me
impulsionasse a tomar a decisão que vinha postergando há cinco
anos. É claro que dá pra dizer que fui forçada a fazê-lo por uma
questão de sobrevivência, mas ainda é surreal. Se pudesse me
reencontrar com a Florence do passado, não lhe diria absolutamente
nada, apenas admiraria aquela criatura resignada de longe e
pensaria: Quem diria que você tem alguma coragem?

As garotas estão transportando coisas para longos botes na praia


quando chegamos. Malas, sacos, alimentos e barris com bebida e
toda a sorte de outros suprimentos são retirados em peso da
pseudo-hospedaria. Estão tão compenetradas com o trabalho que
mal percebem nossa presença, ainda que o patear de Toulouse seja
bastante audível.
Nellyne é a primeira a nos enxergar dentre o caos. O jeito com o
qual seu rosto se ilumina quando ela enxerga a mala atada à sela do
cavalo e entende a razão da minha presença, enche meu coração
com a esperança boba de que talvez eu consiga me sentir em casa
naquela ilha mais cedo do que penso. Sorrio de volta e ela vem em
nossa direção dando saltinhos.
— Então você vem mesmo com a gente? — Nelly pergunta,
estendendo a mão para que eu apoie e desça do dorso de Toulouse.
— Minha mãe precisa saber disso agora mesmo!
Meus pés mal tocam o chão e a garota já me toma pelo punho
para me levar para dentro da casa, onde num dos cômodos está Isis,
organizando o que parecem ser objetos pessoais numa mala bem
menor que a minha. Ela se ergue do chão quando me vê e sua
expressão é bastante parecida com a de Nellyne – e não somente
por elas serem mãe e filha –, mas um tanto mais sóbria.
— Não esperava voltar a vê-la tão cedo, Florence — Isis diz.
— Eu também não esperava ver vocês — confesso. — Mas a vida
tinha outros planos e, se o convite ainda estiver de pé, estou pronta
para ir.
É mentira. Não estou pronta. Creio fortemente que não há nada
nesse mundo que poderia ter me preparado para tudo que aconteceu
comigo nos últimos dias. Não estou pronta, mas estou disposta a
aprender tudo na prática.
— Sempre haverá lugar a bordo para mais uma de nós, mas... se
me permite a indiscrição, o que a fez se decidir tão cedo?
— Tudo bem se eu te contar no caminho? Quero usar esses
últimos minutos para ficar com a Robin e me despedir.
— Certamente. O andar de cima já está vazio se quiserem alguma
privacidade.
Ela me lança um sorrisinho de canto, daqueles repletos de
ambiguidade e eu coro.
— Obrigada, Iz. — A voz de Robin surge por detrás de mim e não
me lembro de tê-la percebido chegar. — Obrigada mesmo.
Ela me enlaça pela cintura firmemente com um dos braços e me
guia pelas escadas. É a primeira vez que venho ao segundo andar
da construção e não há nada além de um extenso corredor com
portas e mais portas. Robin abre uma delas e do lado de dentro está
um quarto comum, com uma cama grande, mesas de cabeceira e um
armário pequeno, tudo isso coberto por panos para não empoeirar
muito enquanto o lugar fica vazio.
Rob remove o lençol que cobre a cama, se senta sobre a colcha e
por mais que eu tente fazer charminho caminhando até ela a passos
lentos, ela me alcança pelo punho e me puxa, fazendo com que eu
caia espalmando as mãos em seus ombros e leve suas costas ao
encontro do colchão. Nós rimos, mas não dura muito. A ponta do
meu nariz toca a dela e aquele perfume inunda os meus sentidos de
modo que fecho os olhos e deixo minha mente desenhar cada traço
de seu rosto, colorir detalhe por detalhe.
Afogo um suspiro quando nossos lábios se encontram e ela estala
meia dúzia de beijos na minha boca antes de tomá-la. O beijo é
doce, mas ávido e devotado. Ainda estou tentando gravar cada
pequena sensação na mente quando ela se desvencilha por um
momento e me empurra para que eu deite ao seu lado.
Abro os olhos pela primeira vez desde que os fechei e a primeira
visão que tenho é a do rosto de Robin, banhado pela luz dourada de
fim de tarde que transpassa o vidro poeirento da janela. Ela mordisca
o lábio avermelhado e me olha como quem escolhe a dedo as
palavras que quer usar para se expressar.
— Eu fui injusta com você, sabe... no dia em que Isis conversou
com você sobre a ilha — diz como numa confissão.
Uso a ponta dos meus dedos para afastar uma mecha de cabelo
que atravessa sua bochecha, depois deslizo a mão até seu queixo
para segurá-lo.
— Já conversamos sobre isso e compreendi o porquê de você ter
se chateado.
— Aí é que está. Eu não tinha o direito de ter ficado chateada.
Julguei você por não tomar uma iniciativa sobre as coisas que
aconteciam ao seu redor quando tinha a oportunidade, mas olha só
onde estamos agora. — Ela fecha os olhos por alguns segundos
antes de prosseguir. — Poucos que conheço teriam essa coragem.
— Honestamente — rio, nervosa — não é como se eu tivesse
tantas opções.
— Não importa. Ainda é preciso coragem para retomar as coisas
do zero e é isso que você está fazendo. O que me leva a pensar em
nós...
— Nós?
— Eu disse isso antes quando estávamos na caverna, mas já faz
algum tempo que tenho esses sentimentos por você, Flora. Eu podia
ter tentado me aproximar mais cedo, ter te apresentado às meninas
antes e te dado mais tempo para pensar e se despedir da casa da
sua família, mas tive medo também. Entrei em pânico quando vi que
você estava trazendo de volta para mim os sentimentos que me
foram tomados com a morte de Sophie.
Percebo-a piscar para dispersar algumas lágrimas. Uma escapa e
a afasto com o polegar da mão que ainda está em seu queixo. Meu
peito se enche de ternura e as palavras dela me remetem àquele
sonho que descreveu para mim, me provando que eu estava certa ao
arriscar em pensamento sobre Robin e seu medo de recomeços.
— Nada disso importa agora. — Levo meus lábios até sua testa e
planto um beijo suave. — Em breve nós duas estaremos onde
nenhum passado conseguirá nos alcançar.

Enquanto os botes que nos levarão até o navio ancorado se


afastam da costa, é como me enxergar outra vez dentro dos meus
sonhos, mas ao invés de estar dentro do sótão entre o mar e o
batente da porta, flutuo sobre as águas, assistindo a terra firme
esvanecer. O último beijo que Robin me deu ainda entorpece meus
lábios, Camilla e Danielle estão murmurando palavras bem ao meu
lado, mas sou incapaz de compreender uma só palavra do que
dizem. É porque meus olhos estão na areia e quase consigo ver a
imagem de meu pai, acenando para mim de lá.
Agora posso dizer que entendo. A chave entregue a mim, era o
jeito que minha mente encontrou para dizer que tudo que eu sempre
quis era saber que meu pai me concedia a liberdade. Que tudo bem
me livrar do fardo que me prendia a uma vida tão pequena, afinal, a
praia depois daquela porta só desaparecia porque só acordada eu
alcançaria o oceano.
As Cartas
Querida Robin,
Tenho ensaiado para escrever esta carta desde a primeira semana
em que cheguei. Tentei organizar meus pensamentos, fiz dezenas de
rascunhos, para que não acabasse ficando grande demais, li e reli
todas as versões que escrevi para chegar em algo que me
agradasse. Agora, dois meses se passaram e ainda não consegui
chegar a lugar nenhum, mas preciso me apressar porque o barco
com as correspondências sai esta madrugada e sei que você se
chatearia se apenas Madame Tine recebesse notícias minhas.
Antes de começar, devo dizer que gostaria mesmo de ter sido
avisada que a viagem de navio do continente até a ilha dura longas
vinte e uma horas. Nunca achei que sentiria tanta falta de ter terra
firme sob os meus pés, ou teria vertigens por encarar nada além de
uma infindável imensidão azul. Acho que vi uma família de baleias
em algum momento, porém pode muito bem ter sido uma alucinação
da minha cabeça cansada e da minha visão turva pelo balançar da
embarcação. Ainda consigo sentir náuseas da maresia se buscar na
memória.
Não vou me prolongar demais em descrições da ilha, sei que você
sabe de tudo que há por aqui, mas não posso deixar de te contar o
quão estou encantada por cada partezinha desse lugar. Jamais me
ocorreu que uma ilha pudesse ser tão grande. Quase não dá pra
notar a diferença entre o continente quando estamos longe da praia,
pois é como uma pequena província. Há campos de plantio, casas,
animais, oficinas de todos os tipos, um templo e a floresta que nos
rodeia feito um escudo de proteção.
Nellyne está tentando me ensinar sobre a história e a religião das
mulheres daqui. Preciso admitir que você tinha toda razão quando
me acusou de ser facilmente impressionável, já que me deslumbro
mais com cada detalhe que descubro. Fiz amizades novas – além de
Nelly, claro –, particularmente com as moças que trabalham comigo
na cozinha e as que se dispuseram a ajudar Isis e eu com o projeto
de ensinar outras a ler. Ah, sinto que Elle e Milla estão começando a
gostar um pouco mais de mim a cada dia.
Isis está sendo superprotetora comigo e meio que estou tentando
controlar minhas questões com afeto materno, a última coisa que
quero é que ela se sinta responsável por mim de alguma forma,
quando já tem tanto em suas mãos para se preocupar. Ela quer que
eu comece a trabalhar na alfabetização com as crianças da ilha. Por
mais que eu não saiba nada sobre esses pequenos seres humanos,
não consigo dizer não, detestaria falhar com as expectativas dela.
Estaria mentindo se dissesse que não há partes ruins também.
Elas são poucas, mas existem. Sei que é porque sou a garota nova
aqui e é compreensível que me sinta deslocada às vezes, como se
todas conversassem numa linguagem diferente da minha. É nesses
momentos que sinto ainda mais saudades do que um dia foi minha
casa, de Madame Tine e dos bichos. E de você. Por Deus, Robin,
como eu sinto saudades de você! Em cada pequena coisa que vivo
aqui, tudo me lembra você e a gratidão imensa que sinto por ter
virado meu coração de cabeça para baixo em tão pouco tempo e me
impulsionado à maior e melhor aventura da minha vida até agora.
Quero você aqui, acordando cedo todas as manhãs ao meu lado,
passeando à beira do mar cristalino, tomando banho de cachoeira,
sentando comigo para se aquecer perto da fogueira nas noites frias e
me permitindo sentir minha pele contra a sua outra vez. Não pense
que estou te apressando. Não. Demore o tempo que precisar, mas,
por favor, demore menos tempo possível, porque não quero ter que
passar nem um dia que seja longe de você sem que seja necessário.

Com amor,
Florence – agora, a garota da ilha.

PS.: Você tem passado em frente à casa da minha família?


Poderia me dizer se viu o corvo por lá?
Minha amada Flora,
Queria ter tido dois meses para poder pensar numa resposta
decente à sua carta. É claro que venho, durante todo esse tempo,
martelando na minha cabeça sobre as coisas que tenho a dizer.
Aliás, todo esse tempo não, porque preciso dividi-lo entre as horas
com momentos em que simplesmente estou pensando em você. Na
sua voz suave, nos seus olhos oceânicos, nos cabelos dourados que
contornam seu rosto desenhado por anjos. Ah, e no jeito que você
estremece quando te toco nos lugares certos.
Adiantando a sua pergunta sobre o corvo, pois creio que é algo
que você queira saber logo: sim, tenho passado em frente à casa da
sua família sempre que visito Madame Tine e, sim, na verdade, uma
família inteira de corvos tomou conta da construção em ruínas. Ela
está à venda, mas temo que Yvanna e as filhas não conseguiram
muita coisa com o tal noivo do norte, já que vi as três em vestidos
simples e poucas bagagens sendo enxotadas de uma pensão barata
há duas semanas. Me sinto uma pessoa terrível por ter achado
pouco e bom.
Terá que me desculpar por ter deixado passar esses pequenos
pormenores da viagem. Me esqueci que você nunca tinha estado
num barco antes e não deve ter sido nada fácil para uma primeira
experiência. O segredo é tomar um suco de limão sem açúcar para
aquietar o estômago.
Lendo tudo o que disse sobre a ilha, não consigo sentir outra coisa
que não a mais pura inveja. Há anos ouço falar desse lugar e parece
que a minha vez de conhecê-lo nunca chega. Já vi gravuras e li
poemas, mas nada se comparado ao dia em que eu afundar os pés
na areia da praia e respirar os ares daí. Você é mesmo uma garota
de sorte (e não estou falando apenas sobre ter essa princesa
perdidamente apaixonada por você).
Sobre as garotas, quando lhe apresentei-as soube que elas fariam
de tudo para que você se sentisse em casa e eu estava certa. E
francamente, eu estranharia se em nenhum momento você se
sentisse fora do lugar. Mudanças – e em especial as de dentro para
fora – acontecem aos poucos, tentar apressá-las é como soprar um
barco esperando que ele se mova mais rápido. Saiba que vejo em
você mais do que é preciso para tirar isso de letra.
Ah, Isis é uma mulher excepcional. Se ela está te dando abertura,
é porque vê o mesmo que vejo: um grande potencial para coisas que
nem mesmo você imagina. Tenho certeza de que você já enfrentou
feras piores do que garotinhas.
Flora, desde que nos aproximamos, todos os meus dias longe de
você parecem terrivelmente esticados e sem nenhum sentido. Se
está com saudades daí, rodeada por todas essas mulheres e este
lugar tão incrível, imagine eu, que passo meus dias dentro do
palácio, indo para lá e pra cá, experimentando vestidos para o
casamento do meu irmão e participando de longos ensaios de
cerimônia e de dança? Meus pés latejam só de escrever tudo isso no
papel. O casamento acontecerá daqui a um mês e alguns dias. A
parte boa é que ouvi meu pai e o grão-duque repassarem uma lista
de pretendentes para mim, o que significa que em breve não terei
mais serventia aqui no continente e enfim poderei partir com a
consciência de dever cumprido.
É esquisito que eu esteja ansiosa para ser apresentada ao meu
futuro noivo que será abandonado?
Acho que não, já que isso significa que estarei mais perto de te
encontrar finalmente. Não há um só dia que eu não sonhe com seus
beijos e com todo o resto que quero e pretendo fazer com você
quando estivermos juntas outra vez.
Só mais alguns meses, meu amor, e então teremos a eternidade.

Sua,
Robin.
Sobre a Autora
(Foto por Iris Arruda | @photo.iriss)

Victoria Mendes nasceu em 2000, cursa Direito na Universidade


Federal de Minas Gerais e lê e inventa histórias desde que se
entende por gente. A escrita surgiu pra ela em 2013 como um
hobby, mas seu sonho é um dia poder transformá-lo em profissão.
Ama cachorros, os jogos da Riot Games, a Taylor Swift, um bom
thriller, o Twitter e histórias de crimes reais. É também autora do
romance “Sob o Céu de Vagalumes”, disponível na Amazon.
Instagram: @vicmendesverso
(https://www.instagram.com/vicmendesverso/)
Twitter: @victsmendes
(https://twitter.com/victsmendes/)

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