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Não preciso dizer que houve gritos e mais gritos quando tudo
aconteceu. Além de toda a comoção que eu causei, tive que me
desculpar dizendo que me assustei porque pensei ter visto um rato
debaixo da mesa. O que eu queria mesmo dizer era que o rato
estava bem ali, à vista de todos, à mesa, se fazendo de
desentendido e tentando apaziguar a situação.
Queria mesmo era ter derrubado o chá quente em suas pernas.
Yvanna fez com que eu limpasse o chão sem usar nada além de
um pano e esse é o motivo de eu estar enfaixando minha mão direita
com bandagens. Acabei me distraindo e me machucando em um
pedaço enorme de porcelana escondida dentro do pano. Foi assim
que ganhei um corte de uns quatro centímetros na minha palma, que
sangrou por todo o percurso da sala até a cozinha.
Tenho algum sossego durante toda a tarde. Yvanna, as filhas e os
convidados foram à cidade comprar roupas novas para o baile desta
noite e o tempo trabalha a meu favor, demorando bastante para
passar.
O céu está nublado e torço para que não chova. Se chover, talvez
todos tenham que ficar em casa e possuo planos para essa noite.
Decidi que vou ao palácio, no baile do príncipe, pelo menos por uma
noite. Se esses são meus últimos dias antes que tudo termine de
desabar, quero vivê-los da melhor maneira possível. Tenho um
cavalo, tenho o vestido velho da minha mãe e, principalmente, não
tenho mais medo. O quão pior pode ficar, afinal?
Prefiro não ficar para ver Robin ir embora. Dou as costas assim
que ela puxa as rédeas do cavalo e faço a pesarosa caminhada para
dentro da casa, com passos leves feito plumas. Como esperado, não
há ninguém de pé. Alcanço o sótão tão rápido quanto consigo, sem
fazer nenhum barulho.
Chego no quarto e os filetes de luz que escorregam para dentro da
janela fechada são a única fonte de iluminação. Corro para abri-las
porque o escuro só me traz mais sono, dá pra ouvir a cama e os
lençóis gritarem meu nome, me deitar é tudo que mais quero. Todo o
conhecimento que tenho do meu próprio corpo me diz para eu mudar
de roupa, pentear os cabelos e descer para preparar o café. Mas me
sento na cama antes e encaro a janela para ver as nuvens indo
embora e revelarem um tímido, porém radiante sol. Sinto falta de
Noir por aqui a esta hora.
Consigo deslizar o vestido para fora do meu corpo, e o ato me leva
de volta para Robin e seus braços quentes impedindo que eu sinta
frio. Ela não está aqui agora, então jogo o vestido dentro do armário,
me visto de volta com certa pressa e volto a me sentar para calçar as
sapatilhas, mas por mais que eu tente, minha mente não consegue
focar em mais nada além da princesa e seus toques provocando a
minha pele. Fecho os olhos e de repente seus lábios estão no meu
pescoço outra vez e suas mãos desenham a minha cintura.
Não percebo quando adormeço sentindo o cheiro de Robin como
numa alucinação.
●
Eu estou no meu quarto, onde adormeci. É aquele sonho de novo,
aquele que sempre tenho. E, mais uma vez, quero
desesperadamente sair. Me alegro por um instante, sei que meu pai
logo aparecerá com a chave para me libertar e poderei vê-lo outra
vez. Mas não acontece. Chego perto da janela para olhar para baixo,
porém não há nada além de uma névoa densa e intrespassável. A
névoa avança para dentro do quarto e o preenche por inteiro. É
quando a porta se abre e eu corro para fora, apenas para despencar
de um longo penhasco e me chocar contra as águas escuras do
oceano.
●
Desperto antes de afundar, com uma mão bruta que agarra meus
cabelos e me arrasta para fora da cama. A colisão com o chão
machuca meus punhos, que falharam em resistir à queda. Não
consigo enxergar direito seu rosto ou decifrar o que dizem seus
gritos, mas sei que Yvanna está furiosa. E, apesar da minha
expressão congelada, meu coração bate tão forte que consigo ouvir
o zumbido pulsátil do sangue nos meus ouvidos.
Eu dormi. Merda. Por que eu tinha que dormir?
— Vamos, garota, me diga! — É a primeira frase que consigo
compreender e não faço a menor ideia do que ela quer que eu
responda. Nossos rostos estão próximos, o que não a impede de
gritar enquanto chacoalha minha cabeça. Meu silêncio a deixa ainda
mais irada. — Você deve pensar que essa casa é um bordel, não é?
— Não, Yvanna — respondo, com a voz mais controlada que
consigo externar.
Quando o pânico dos primeiros minutos vai embora, uma raiva
crescente é deixada para trás por ele, ela consome em chamas cada
nervo do meu corpo. Quero gritar de volta, cravar minhas unhas na
pele dela para ferir e para que me solte. Há muito tempo não me
permito ser tomada por um sentimento feito esse e é necessário tudo
de mim para mantê-lo do lado de dentro, onde é seguro.
Ainda não, penso.
Ela me solta finalmente e dá alguns passos para trás. É quando
agradeço por ter ao menos guardado o vestido dentro do armário
antes de pegar no sono.
— Então por que acordei esta manhã e o café da minha família
não estava servido?
Uso as mãos para me colocar de pé e me afasto dela o quanto as
paredes estreitas do quarto me permitem.
— Me desculpe. — Meu estômago revira. Não quero me
desculpar, quero mandá-la para o inferno. — Eu dormi um pouco
além da conta.
— Dormiu um pouco além da conta... — Há escárnio em cada
sílaba. — Acho que você se esqueceu de quem está no controle por
aqui, não foi?
— Não esqueci. Você não me deixaria — interrompo, rebatendo.
Em questão de segundos sua mão segura minha mandíbula com
força, enterrando as unhas longas em minha pele, me forçando a
olhá-la.
— Não volte a falar comigo nesse tom — ela cospe as palavras
dela e eu engulo as minhas. — Pelo que vejo, alguém aqui está com
tempo de sobra para começar a ter ideias estúpidas, mas isso vai
mudar. Hoje você limpa a tapeçaria, as calhas, as janelas e junta as
folhas do jardim. Além de todo o resto da casa, é claro.
Meus olhos estão ardendo quando Yvanna se afasta, ao passo
que as palavras de Robin se reverberam centenas de vezes em
minha mente, é como se, depois das nossas conversas, ficasse mais
claro a cada segundo sobre que decisão eu deveria tomar.
— Sim, Yvanna.
Crie um pássaro dentro de uma gaiola e o veja crescer
acostumado com as grades. Não fará muita diferença se ele morrer
no confinamento, pois a prisão é tudo que ele conhece, mas se você
deixá-lo sair uma vez e o bicho perceber até onde pode ir com as
próprias asas, é bastante improvável que ele queira voltar. Não tenho
mais tanta certeza de que essa gaiola é onde quero estar, nem por
mais um dia que seja.
●
Minha mente e o corpo inteiro estavam implorando por descanso,
por isso apaguei depois que Tine preparou a cama para que eu me
deitasse. Acho que nunca dormi por tantas horas seguidas. Me
assusto quando desperto e vejo num relógio que já passa de uma da
tarde.
Estou no antigo quarto de Sophie, usando uma camisola que
certamente também era dela. Há uma bandeja na mesinha de
cabeceira com frutas, pão e água fresca. O gesto me arranca um
sorriso e em seguida como tudo que consigo, enquanto os
acontecimentos da noite passada voltam para mim sem nenhuma
sutileza.
À luz do dia e da sanidade, nada do que aconteceu parece real.
Tenho a sensação de que se voltar para a casa, a encontrarei
intacta, esperando por mim como sempre foi. Mas a faixa encardida
de fumaça em minha mão direita testifica que foi tudo bem real.
Não sei quanto tempo vou demorar para colocar os pensamentos
em ordem, já que acabo de assistir minha vida inteira colapsar diante
dos meus olhos. Não tenho mais uma casa, não tenho roupas, não
tenho nada além de um anel de ouro velho e um retrato tão velho
quanto.
Quando termino de comer, levanto-me da cama para procurar
Madame Tine. Ela estava aflita ontem e não consegui dizer nem uma
palavra. Pensei que fosse chorar até dormir, mas meu corpo desligou
no instante em que minha cabeça encostou no travesseiro.
Caminho até a cozinha, porque escuto vozes vindas de lá. Estou
descalça e despenteada, mas há coisas mais importantes com as
quais me preocupo. Dizer à Clementine que estou bem é uma delas.
Ela e o marido estão sentados à mesa quando chego. Ernest Gaillard
está trabalhando em uma de suas esculturas de madeira, porém me
cumprimenta com um aceno e um sorriso parco. Ele sempre foi muito
educado comigo das vezes que nos vimos, mas imagino que minha
visita inesperada talvez seja um incômodo para ele que leva uma
vida tão sossegada, por isso, não tento iniciar uma conversa nem
forçar proximidade. Ele sente que eu e a esposa precisamos
conversar a sós e se retira sem dizer muito.
— Soubemos do incêndio esta manhã — Madame Tine diz,
enquanto se serve de uma xícara de chá. Ela me olha com
compaixão, se aproxima para me puxar pelo punho e fazer com que
me sente. — O que aconteceu, Flora? Por acaso estão colocando a
culpa em você ou...
— Não — esclareço logo, mas não sei como fazer para contar a
verdade sem lhe causar um choque. — Foi Yvanna. Ela me trancou
no sótão e começou o incêndio, depois foi com as filhas para o baile,
mas acho que Juliet e Delphine não sabem de nada.
Ela cobre a boca com as mãos, tão estarrecida quanto o esperado.
— Por Deus, Flora, isso não pode ser verdade — diz,
completamente desatinada. — Aquela mulher é mais louca do que
eu pensei.
— Eu não quis acreditar também. Mas foi o que aconteceu, e
agora não posso mais voltar.
— É claro que não. Não pode e não vai. Você vai ficar comigo e
não aceito ‘não’ como resposta. — Ela me envolve num abraço cheio
de carinho e preocupação. Me lembro que preciso contar sobre
Robin, mas ela faz outra pergunta antes: — Não consigo entender.
Por que ela faria uma coisa dessas?
Preciso respirar fundo antes de começar toda a história do
começo. Conto sobre a chegada dos LaTellier e sobre como Louis é
um homem nojento, que tentou me beijar à força e jurou que eu
aceitaria me casar com ele. Também conto sobre o ciúmes doentio
de Yvanna e as coisas que ela disse antes de tentar me matar.
Quando estou prestes a contar que estou decidida a me juntar às
Filhas de Margery, sobre mim e Robin, a princesa bate à porta da
casa, gritando por Madame Tine com a voz chorosa.
XVI
Com amor,
Florence – agora, a garota da ilha.
Sua,
Robin.
Sobre a Autora
(Foto por Iris Arruda | @photo.iriss)