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Celephaïs

Celephaïs

HP Lovecraft
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Ú ltima atualizaçã o quarta-feira, 17 de dezembro de 2014 à s 14h18.

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Universidade de Adelaide
Sul da Austrá lia 5005

Celephaïs
Em um sonho, Kuranes viu a cidade no vale, e o litoral além, e o pico nevado com vista para
o mar, e as galés pintadas de cores alegres que partem do porto em direçã o a regiõ es
distantes onde o mar encontra o céu. Também foi em sonho que ele recebeu o nome de
Kuranes, pois quando acordado era chamado por outro nome.
Talvez fosse natural para ele sonhar com um novo nome; pois ele era o ú ltimo de sua
família, e sozinho entre os milhõ es indiferentes de Londres, entã o nã o havia muitos para
falar com ele e lembrá -lo de quem ele havia sido. Seu dinheiro e suas terras se foram, e ele
nã o se importava com os costumes das pessoas ao seu redor, mas preferia sonhar e
escrever sobre seus sonhos. O que ele escreveu foi ridicularizado por aqueles a quem ele
mostrou, de modo que depois de um tempo ele guardou seus escritos para si mesmo e
finalmente parou de escrever.
Quanto mais ele se afastava do mundo ao seu redor, mais maravilhosos se tornavam seus
sonhos; e teria sido inú til tentar descrevê-los no papel. Kuranes nã o era moderno e nã o
pensava como outros que escreviam. Enquanto eles se esforçavam para despojar a vida de
suas vestes bordadas de mito e mostrar em feiú ra nua a coisa suja que é a realidade,
Kuranes buscava apenas a beleza. Quando a verdade e a experiência falharam em revelá -la,
ele a procurou na fantasia e na ilusã o, e a encontrou bem à sua porta, em meio à s memó rias
nebulosas de contos e sonhos da infâ ncia.
Nã o há muitas pessoas que saibam que maravilhas se abrem para elas nas histó rias e visõ es
de sua juventude; pois quando, como crianças, ouvimos e sonhamos, pensamos apenas em
pensamentos incompletos, e quando, como homens, tentamos lembrar, ficamos
entorpecidos e prosaicos com o veneno da vida. Mas alguns de nó s acordamos à noite com
estranhos fantasmas de colinas e jardins encantados, de fontes que cantam ao sol, de
penhascos dourados pendendo sobre mares murmurantes, de planícies que se estendem
até cidades adormecidas de bronze e pedra e de companhias sombrias de heró is que
montam cavalos brancos adornados ao longo das bordas de florestas densas; e entã o
sabemos que olhamos para trá s através dos portõ es de marfim para aquele mundo de
maravilhas que era nosso antes de sermos sá bios e infelizes.
Kuranes veio repentinamente ao seu velho mundo de infâ ncia. Estivera sonhando com a
casa onde nascera; a grande casa de pedra coberta de hera, onde treze geraçõ es de seus
ancestrais viveram e onde ele esperava morrer. Era luar, e ele havia saído para a fragrante
noite de verã o, pelos jardins, pelos terraços, pelos grandes carvalhos do parque e ao longo
da longa estrada branca até a aldeia. A aldeia parecia muito velha, corroída nas bordas
como a lua que começava a minguar, e Kuranes se perguntou se os telhados pontiagudos
das pequenas casas escondiam o sono ou a morte. Nas ruas havia hastes de grama alta e as
vidraças de ambos os lados quebradas ou semicerradas. Kuranes nã o se demorou, mas
avançou como se fosse convocado para algum objetivo. Ele nã o ousou desobedecer à
convocaçã o por medo de que pudesse ser uma ilusã o como os impulsos e aspiraçõ es da
vida desperta, que nã o levam a nenhum objetivo. Entã o ele foi arrastado por um caminho
que partia da rua da vila em direçã o aos penhascos do canal, e chegou ao fim das coisas, ao
precipício e ao abismo onde toda a vila e todo o mundo caíram abruptamente no vazio sem
eco do infinito. , e onde até mesmo o céu à frente estava vazio e sem iluminaçã o pela lua
que se desfazia e pelas estrelas que espreitavam. A fé o incitou a seguir em frente, sobre o
precipício e para o abismo, onde ele flutuou para baixo, para baixo, para baixo; passando
por sonhos escuros, disformes e nã o sonhados, esferas fracamente brilhantes que podem
ter sido sonhos parcialmente sonhados e coisas aladas risonhas que pareciam zombar dos
sonhadores de todos os mundos. Entã o uma fenda pareceu se abrir na escuridã o diante
dele, e ele viu a cidade do vale, brilhando radiante lá longe, lá embaixo, com um fundo de
mar e céu, e uma montanha coberta de neve perto da costa.
Kuranes acordou no exato momento em que viu a cidade, mas ele sabia por seu breve olhar
que nã o era outro senã o Celephais, no vale de Ooth-Nargai além das colinas de Tanarian,
onde seu espírito residira por toda a eternidade de uma hora em um verã o. tarde há muito
tempo atrá s, quando ele escapou de sua ama e deixou a brisa quente do mar embalá -lo para
dormir enquanto observava as nuvens do penhasco perto da aldeia. Ele protestou entã o,
quando o encontraram, o acordaram e o carregaram para casa, pois assim que foi
despertado, ele estava prestes a navegar em uma galera dourada para aquelas regiõ es
sedutoras onde o mar encontra o céu. E agora ele estava igualmente ressentido por ter
acordado, pois havia encontrado sua cidade fabulosa depois de quarenta anos cansativos.
Mas três noites depois Kuranes voltou para Celephais. Como antes, sonhou primeiro com a
aldeia adormecida ou morta, e com o abismo no qual se deve flutuar silenciosamente; entã o
a fenda apareceu novamente, e ele contemplou os minaretes brilhantes da cidade, e viu as
graciosas galeras ancoradas no porto azul, e observou as á rvores gingko do Monte Aran
balançando na brisa do mar. Mas desta vez ele nã o foi arrebatado e, como um ser alado,
pousou gradualmente sobre uma encosta gramada até que finalmente seus pés pousaram
suavemente na grama. Ele realmente voltou ao Vale de Ooth-Nargai e à esplêndida cidade
de Celephais.
Descendo a colina em meio a ervas perfumadas e flores brilhantes caminhava Kuranes,
sobre o Naraxa borbulhante na pequena ponte de madeira onde ele havia esculpido seu
nome tantos anos atrá s, e através do bosque sussurrante até a grande ponte de pedra perto
do portã o da cidade. Tudo estava como antigamente, nem as paredes de má rmore estavam
descoloridas, nem as está tuas de bronze polido sobre elas manchadas. E Kuranes viu que
nã o precisava temer que as coisas que conhecia desaparecessem; pois até as sentinelas nas
muralhas eram as mesmas, e ainda tã o jovens quanto ele se lembrava delas. Quando ele
entrou na cidade, passando pelos portõ es de bronze e pelas calçadas de ô nix, os
mercadores e cameleiros o saudaram como se ele nunca tivesse saído; e foi o mesmo no
templo turquesa de Nath-Horthath, onde os sacerdotes com coroas de orquídeas disseram
a ele que nã o há tempo em Ooth-Nargai, mas apenas juventude perpétua. Entã o Kuranes
caminhou pela Rua dos Pilares até a muralha voltada para o mar, onde se reuniam os
mercadores e marinheiros e homens estranhos das regiõ es onde o mar encontra o céu. Lá
ele ficou muito tempo, olhando para o porto brilhante onde as ondulaçõ es brilhavam sob
um sol desconhecido e onde cavalgavam levemente as galeras de lugares distantes sobre a
á gua. E ele também contemplou o Monte Aran erguendo-se majestosamente da costa, suas
encostas mais baixas verdes com á rvores balançando e seu cume branco tocando o céu.
Mais do que nunca, Kuranes desejava navegar em uma galera para os lugares distantes de
que ouvira tantas histó rias estranhas, e procurou novamente o capitã o que concordara em
carregá -lo tanto tempo atrá s. Ele encontrou o homem, Athib, sentado no mesmo baú de
especiarias que ele havia sentado antes, e Athib parecia nã o perceber que o tempo havia
passado. Entã o os dois remaram até uma galera no porto e, dando ordens aos remadores,
começaram a navegar para o agitado Mar Cerená rio que leva ao céu. Por vá rios dias eles
deslizaram ondulantes sobre a á gua, até que finalmente chegaram ao horizonte, onde o mar
encontra o céu. Aqui a galera nã o parou, mas flutuou facilmente no azul do céu entre
nuvens lanosas tingidas de rosa. E muito abaixo da quilha, Kuranes podia ver terras
estranhas, rios e cidades de beleza incompará vel, espalhadas indolentemente sob a luz do
sol que parecia nunca diminuir ou desaparecer. Por fim, Athib disse a ele que sua jornada
estava pró xima do fim e que logo entrariam no porto de Serannian, a cidade de má rmore
rosa das nuvens, construída naquela costa etérea onde o vento oeste flui para o céu; mas
quando a mais alta das torres esculpidas da cidade apareceu, ouviu-se um som em algum
lugar no espaço, e Kuranes acordou em seu só tã o londrino.
Por muitos meses depois disso, Kuranes procurou em vã o a maravilhosa cidade de
Celephais e suas galeras rumo ao céu; e embora seus sonhos o levassem a muitos lugares
lindos e desconhecidos, ninguém que ele conhecesse poderia lhe dizer como encontrar
Ooth-Nargai além das colinas de Tanarian. Uma noite ele voou sobre montanhas escuras
onde havia fogueiras fracas e solitá rias a grandes distâ ncias umas das outras, e rebanhos
estranhos e peludos com sinos tilintando nos líderes, e na parte mais selvagem deste país
montanhoso, tã o remoto que poucos homens jamais poderiam ter ao vê-lo, ele encontrou
uma parede horrivelmente antiga ou calçada de pedra ziguezagueando ao longo dos cumes
e vales; gigantesco demais para ter sido erguido por mã os humanas, e de tal comprimento
que nenhuma de suas extremidades podia ser vista. Além daquela parede no amanhecer
cinzento, ele chegou a uma terra de jardins pitorescos e cerejeiras, e quando o sol nasceu
ele contemplou a beleza de flores vermelhas e brancas, folhagem e gramados verdes,
caminhos brancos, riachos de diamante, lagos azuis, pontes esculpidas. , e pagodes de
telhado vermelho, que por um momento esqueceu Celephais em puro deleite. Mas ele se
lembrou disso novamente quando caminhou por um caminho branco em direçã o a um
pagode de telhado vermelho, e teria questionado as pessoas desta terra sobre isso, se nã o
tivesse descoberto que nã o havia pessoas ali, mas apenas pá ssaros, abelhas e borboletas.
Em outra noite, Kuranes subiu uma escada em espiral de pedra ú mida sem parar e chegou a
uma janela de torre com vista para uma poderosa planície e rio iluminado pela lua cheia; e
na cidade silenciosa que se estendia para longe da margem do rio, ele pensou ter visto
alguma característica ou arranjo que já conhecia antes. Ele teria descido e perguntado o
caminho para Ooth-Nargai se uma terrível aurora nã o tivesse surgido de algum lugar
remoto além do horizonte, mostrando a ruína e a antiguidade da cidade, a estagnaçã o do
rio de juncos e a morte que pairava sobre ele. terra, como estava desde que o rei
Kynaratholis voltou para casa de suas conquistas para encontrar a vingança dos deuses.
Entã o Kuranes procurou inutilmente a maravilhosa cidade de Celephais e suas galeras que
navegam para Serannian no céu, enquanto via muitas maravilhas e uma vez escapou por
pouco do sumo sacerdote indescritível, que usa uma má scara de seda amarela sobre o rosto
e mora sozinho em um mosteiro de pedra pré-histó rico no planalto do deserto frio de Leng.
Com o tempo, ele ficou tã o impaciente com os intervalos sombrios do dia que começou a
comprar drogas para aumentar seus períodos de sono. Hasheesh ajudou muito e uma vez o
enviou para uma parte do espaço onde a forma nã o existe, mas onde gases brilhantes
estudam os segredos da existência. E um gá s de cor violeta disse a ele que essa parte do
espaço estava fora do que ele chamava de infinito. O gá s nunca tinha ouvido falar de
planetas e organismos antes, mas identificou Kuranes apenas como um do infinito onde
existem matéria, energia e gravitaçã o. Kuranes estava agora muito ansioso para retornar a
Celephais repleta de minaretes e aumentou suas doses de drogas; mas eventualmente ele
nã o tinha mais dinheiro sobrando e nã o podia comprar drogas. Entã o, num dia de verã o, ele
foi expulso de seu só tã o e vagou sem rumo pelas ruas, passando por uma ponte até um
lugar onde as casas ficavam cada vez mais estreitas. E foi aí que veio a realizaçã o, e ele
encontrou o cortejo de cavaleiros vindo de Celephais para levá -lo para lá para sempre.
Belos cavaleiros eles eram, montados em cavalos ruã o e vestidos com armaduras brilhantes
com tabardos de pano de ouro curiosamente estampados. Tã o numerosos eram eles que
Kuranes quase os confundiu com um exército, mas foram enviados em sua homenagem; já
que foi ele quem criou Ooth-Nargai em seus sonhos, e por isso ele seria agora nomeado seu
deus principal para sempre. Entã o eles deram a Kuranes um cavalo e o colocaram à frente
da cavalgada, e todos cavalgaram majestosamente pelas colinas de Surrey e adiante em
direçã o à regiã o onde Kuranes e seus ancestrais nasceram. Era muito estranho, mas à
medida que os cavaleiros avançavam, pareciam galopar de volta no tempo; pois sempre
que passavam por uma aldeia no crepú sculo, viam apenas casas e aldeõ es como Chaucer ou
homens antes dele poderiam ter visto, e à s vezes viam cavaleiros a cavalo com pequenas
companhias de lacaios. Quando escureceu, eles viajaram mais rapidamente, até que logo
estavam voando estranhamente como se estivessem no ar. No crepú sculo da aurora
chegaram à aldeia que Kuranes vira vivo em sua infâ ncia e adormecido ou morto em seus
sonhos. Ele estava vivo agora, e os primeiros aldeõ es faziam mesuras enquanto os
cavaleiros desciam a rua ruidosamente e entravam na viela que terminava no abismo dos
sonhos. Kuranes já havia entrado naquele abismo apenas à noite e se perguntou como seria
durante o dia; entã o ele observou ansiosamente enquanto a coluna se aproximava de sua
borda. No momento em que galopavam pelo terreno elevado até o precipício, um clarã o
dourado veio de algum lugar do oeste e ocultou toda a paisagem em refulgentes cortinas. O
abismo era um caos fervilhante de esplendor ró seo e cerú leo, e vozes invisíveis cantavam
exultantemente enquanto a comitiva cavalheiresca mergulhava na borda e flutuava
graciosamente passando por nuvens brilhantes e reluzentes prateadas. Os cavaleiros
flutuavam infinitamente abaixo, seus cavalos de batalha arranhando o éter como se
estivessem galopando sobre areias douradas; e entã o os vapores luminosos se espalharam
para revelar um brilho maior, o brilho da cidade de Celephais, e a costa do mar além, e o
pico nevado com vista para o mar, e as galés pintadas de cores alegres que partem do porto
em direçã o a regiõ es distantes onde o mar encontra o céu.
E Kuranes reinou posteriormente sobre Ooth-Nargai e todas as regiõ es vizinhas do sonho, e
manteve sua corte alternadamente em Celephais e na serannian formada por nuvens. Ele
ainda reina lá e reinará feliz para sempre, embora abaixo dos penhascos de Innsmouth as
marés do canal brincassem zombeteiramente com o corpo de um vagabundo que tropeçou
pela vila meio deserta ao amanhecer; jogado zombeteiramente, e lançado sobre as rochas
por Trevor Towers coberto de hera, onde um cervejeiro milioná rio notavelmente gordo e
especialmente ofensivo desfruta da atmosfera comprada de nobreza extinta.
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