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[eu jeremias]

eu jeremias
criador dos céus e infernos, do vale e do
prado e do delta além,
da sagrada loucura, da verdade e da história
também,
aqui sou.

bem aventurado seja o meu nome,


o azul do mediterrâneo e o crepúsculo da riviera,

bem aventurados sejam os dias de cólera,


o homem do mar, o guerreiro maia e os adoradores
de alá.

venha a mim o reino destruído,


o vento do moleiro e a montanha onde nasci,
o porto de camariñas e camarillo
e tudo o que não quis
e tudo o que não vi,

venha a mim madalena e judas e caim


e a flor e a planície sem fim,
venha a mim o fogo, a nuvem, a tempestade
e o amor daquele
que morreu depois;
seja feita a minha vontade,

que esta mão febril os devore a todos,

aos heróis do século,


aos amantes da grande cidade,
aos que sorriem ao poema e aos que sujam o poema,
aos que cospem a noite de veracruz e
tamaulipas e cantam o sena,

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ao notável ministro e ao padre obscuro,

a todos os que não poderão amar-me nunca.

e que a pedra minha de cada dia que vos atiro hoje


role sempre para todo o sempre
assim como as vossas inúteis cabeças, queridos irmãos.

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Memória

é de ti que eu falo
hoje
quando todos os pássaros emigram do outono
para os beirais destruídos
quando os olhos cegos de conhecerem as margens
se fecham devagar
é de ti que eu falo.

lembras-te?

era janeiro e eu vinha como quem desce.


a casa tinha janelas azuis e à volta
um tempo de febre e canções longínquas.

estávamos sós.

lembras-te?

então o pai atravessava o cais.


aí paravam os estios da ilha
os ventos do atlântico queimavam os lábios
e ele dizia:

cresce filho corre filho!


para onde irei para onde?

e ele dizia:
perdidos foram os teus lugares,
os caminhos íngremes e os contos de
terror,
as pedras húmidas onde te sentaste a
falar para o mar.

lembras-te?

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Hoje Vi os Barcos

hoje vi os barcos.
eram brancos brancos abandonados
com o teu nome por dentro.

para onde vão estes barcos brancos brancos?

perguntei aos jovens marinheiros.


mas na sua divagação só existiam
fabulosas mulheres
portos portos vento vento.

não vi lisboa.
disseram-me é um rio —

vai e queima o seu fado


vai e devasta as suas feiras
vai e rasga as suas tardes.

hoje sentei-me no tejo.


era um livro desordenado e sombrio,
sombrio no meio —

é o rosto da tua pátria


disseram os jovens marinheiros.
e era um rosto vermelho vermelho doente
com vastas guitarras ao alto.

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Há Uma Cidade

Há uma cidade para o crime.


Cidades onde os punhais exercem a sua arte,
sabiamente, sem perdão.

Derrubai arcadas, colunas, os estranhos poderes de uma


arquitectura:
fés ilícitas, tráficos, moedas cujo ouro se esvai na face
de um rei.

Ele desejaria uma vastidão de sangue.


A garganta aberta pelo furor das lâminas,
um esplendor de gumes vivos, a sua luz cortante.

Não poderei amar-vos:


conheço o túmulo, as datas, as lágrimas que se desvanecem
sobre o mármore, os pálidos amigos sem alegria.

Enredai-vos nos dias, com o temor dos pátios devastados.


Descuidai esse talento de enfeitiçar os lares,
de acudir aos filhos,
de compor os crisântemos de uma jarra.

Nada vos salvará.


Esta espada ordena a perdição das tribos,
este verso incita ao crime,
esta voz canta o assassínio das amantes.

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[enfim o sossego.]

enfim o sossego.

nos conventos de são francisco ainda se ouvem


os sinos ao amanhecer,
e a voz imperceptível de quem canta
entre os altos muros,
cobertos de musgo, heras
e, de longe em longe, uma flor vermelha,
uma flor amarela,
intocáveis.

também aí estive, de inverno a inverno,


noite adiante nas celas de martírio e oração,
inclinado sobre os textos antigos,
compondo as odes futuras,
exercícios de sofrimento,
cânticos à destruição do mundo!

posso imaginar quem canta agora,


ao amanhecer,
imóvel sobre os degraus de pedras
gastas,
junto à muralha e sob as oliveiras,
ou no pátio interior onde o brilho de judas
jamais se apagará;
enfim o sossego.

tocam sempre os sinos,


os meus irmãos loucos recitam os salmos de terror e
devoram o sangue nos altares
enquanto frementes e belas
as virgens aguardam,
abençoadas pelo sinal dos meus dedos
pelo leve movimento dos meus lábios
pelo olhar impenetrável de jeremias, o criador.

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Faial

esta é a região dos maiores silêncios


os campos verdes de uma infância doente
quando todos se foram embora, loucos de tantas
madrugadas de terror.

aqui voltei, treze invernos mais tarde


no sombrio mês que antecede as chuvas.

a casa morre.
as ervas altas crescem desordenadamente, à volta
e nas paredes.
as janelas apodrecidas e as portas ainda fechadas
dão para o sul
onde em acentuado declive estão as vinhas, dispostas
ao acaso
e mais abaixo
a ribeira que vai perder-se no mar;

ao alto a rocha imensa, penha d’águia


com os caminhos sinistros e a luz das fogueiras na
estação dos grandes
frios;

foi aqui que numa primavera tardia, em pleno


crepúsculo,
vi despenhar-se
o último sobrevivente de uma geração passada.

é do norte que vos escrevo.

quando regressei a este lugar de desespero


eu sabia que tudo acabava para um povo melancólico,
perdido no vale do absoluto sossego
atento apenas ao respirar de uma terra selvagem e aos

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presságios das marés violentas, em noites de temporal.

é ainda daqui que o poema surge para, em sobressalto,


retomar o destino de uma solidão primitiva.

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Oração

Senhora nossa,
Senhora deste reino e deste assombro,
guardai
no vosso alto regaço de luminosas rosas
aquele
cuja fé e cujo alento a vida destroçou.

Livrai-nos, Senhora nossa,


da hiena e do tigre e das nêsperas que
trazem a morte aos quintais,
debaixo da janela onde o corvo pousa e
volta sempre,
como um sinal de pranto ou uma maldição.

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Palavras

Diz-me,
diz-me que me ouves,
que aí, no silêncio dos astros que não
têm nome,
as minhas palavras chegam como um
cântico,
como um eco de outras idades,
diz-me sem medo
que me vês mais perto dos candelabros,
nos salões de incenso aonde regressei
para ver-te,
para dizer-te como isto dói,
como os anjos me abandonam sempre
que chega o outono.

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[eu jeremias que desprezei o mundo e os]

eu jeremias que desprezei o mundo e os


tesouros do mundo,

eu que me cobri de ouro em Golden Park e de lama


em Lisbon by Night
e vi os grandes incêndios correndo as serras,
descendo para o vale,
arrasando o templo, a praça e a feira, o
celeiro e a sabedoria dos animais impassíveis,

eu jeremias sou quem chega e levemente


bate à porta da estalagem.

***
jeremias:

decidi escrever-te, daqui, da pequena aldeia


deste litoral, com os telhados vermelhos à
altura dos olhos e, mais abaixo, um mediterrâneo
de longas tardes e profundos navios.

***
escrevo,
esmagado pelo denso nevoeiro da manhã de
dezembro em bremen,
esquecido de mim
quase só
quase louco como o pastor que enlouquece em
évora,

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inebriado pelo sangue que me saciou na primeira
vida.

entretanto o último barco vai deixar a terra,


e a ave persegue-o, silenciosa e alta,
e eu vejo tudo isto!

ela, a rainha triste das ilhas,


ela também vai deixar-me,
a caminho da Grande Alegria,
pela Tarde do Oeste,
entoando tão baixo o meu nome

jeremias jeremias jeremias

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Insularidade

Uma ilha mente.


Uma ilha é um obscuro ventre de inacessível
ouro derramado,
incandescente.
Os nervos estremecem ao fundo das crateras,
o sangue corre pelas ribeiras onde enlouqueci,
na fermentação das canas,
alheio às conspirações.
Os filhos esquecem a minha arte sem doçura,
recusando o fruto.
As vinhas apodrecem e nem o sonho as
devolve.
Há uma amarga planta que mergulha na
exactidão da lava,
corolas silenciosas, por florir.
É sempre tarde quando amanhece deste
lado da vida.

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Fim

faz-se tarde
e eu deixei de esperar-te.

todos os portos se fecham sobre mim


e a floresta adensa-se —

nenhuma clareira se abre à passagem dos animais


e do homem antigo.

são 4 horas na manhã de todos os relógios.

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Fim

Venceste-me, vida,
com os teus ardis de mulher sábia, murmurando
no vento,
com a sedução do teu rosto belo onde arderam
os lírios.
O teu sol cegou-me.
As tuas candeias empurraram-me para a noite.
Ao compasso dos relógios fui deixando o amor
e a bondade.
Acabei.

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