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A Sereiazinha
Lá longe, bem longe no mar, a água é tão azul como as folhas da centáurea
mais bonita e tão límpida como o vidro mais puro, mas é também muito
funda, mais funda do que uma âncora pode descer. Seria preciso colocar
muitas torres de igrejas umas sobre as outras para do fundo surgirem acima
da água. É aí que vivem os povos marinhos.
Mas não se deve pensar de modo algum que o fundo só tem areia branca e
mais nada. Não senhor, lá crescem árvores e plantas maravilhosas, de tão
delicados trocos e folhas que, com a mínima agitação da água, se mexem,
como se fossem vivas. Todos os peixes, pequenos e grandes, deslizam por
entre os ramos como voam aqui em cima os pássaros no ar.
No ponto mais fundo, está o palácio do rei do mar, cujas paredes são feitas
de corais e as janelas longas, em bico, de âmbar do mais claro. Mas o telhado
é de conchas, que se abrem ou fecham conforme a água se move. É um
espetáculo lindo de ver, pois em cada uma das conchas há pérolas brilhando.
Bastava só uma para vir a ser um grande luxo na coroa de uma rainha.
O rei do mar tinha enviuvado havia muitos anos, mas a velha mãe cuidava
da casa. Era uma sereia inteligente, orgulhosa, porém, da sua nobreza, por
isso andava com doze ostras na cauda: as outras sereias de distinção só
podiam ostentar seis. De resto, merecia ser louvada, especialmente pelo
muito que se ocupava com as princesas do mar, suas netinhas. As
princesinhas eram seis crianças lindas, mas a mais nova era a mais bonita
de todas. A pele era tão clara e suave como uma pétala de rosa, os olhos tão
azuis como um lago mais fundo, mas como todas as outras não tinha pés, o
corpo terminava em uma cauda de peixe.
Podiam todo dia brincar embaixo no palácio, nos salões onde flores vivas
cresciam nas paredes. Se as janelas grandes de âmbar ficavam abertas,
entravam os peixes, tal como muitas vezes andorinhas entram em nossas casas
quando abrimos as janelas. Mas os peixes nadavam direto para as princesinhas,
comiam nas suas mãos e deixavam que elas lhes fizessem festa.
Fora, diante do palácio, havia um jardim grande com árvores rubras de fogo
e azul escuras. Os frutos luziam como ouro e as flores pareciam um fogo
ardente, pois agitavam constantemente o tronco e as folhas. O próprio chão
era da areia da mais fina, mas azul como a chama do enxofre. Sobre tudo
isso, lá embaixo, refletia um clarão azul maravilhoso. Jugar-se-ia antes que
se estava no alto-mar, vendo apenas céu por cima e por baixo, e não no
fundo do mar. Com tempo calmo, podia-se observar o sol, parecendo uma flor
de púrpura do cálice irradiando toda luz.
Cada uma das princesinhas tinha o seu cantinho no jardim, onde podia
cavar e plantar como lhe aprouvesse. Uma deu ao seu canteiro a forma de
uma baleia, outra pareceu-lhe melhor que o seu se assemelhasse a uma
sereiazinha, mas a mais nova fez o dela completamente redondo como o sol e
só pôs aí flores vermelhas brilhando como ele. Era uma criança estranha,
calada e pensativa. Enquanto suas irmãs se enfeitavam com as coisas mais
extraordinárias que colhiam dos navios naufragados, ela apenas se
interessava, além de pelas flores cor-de-rosa que se assemelhavam ao sol lá
em cima, por uma bonita estátua de mármore de um belo jovem.
A estátua era esculpida em pedra branca e clara, tinha vindo para o fundo
do mar com outros destroços. Plantou junto à estátua um chorão cor-de-rosa,
que cresceu maravilhosamente, deixando pender os ramos frescos sobre
esta, para baixo, para o fundo de areia, onde as sombras se mostravam
violetas e com movimentos iguais aos dos ramos. Parecia que a copa e as
raízes estavam brincando, beijando-se umas às outras.
Nenhuma alegria era para ela maior do que ouvir falar do mundo dos
homens lá em cima. A velha avó tinha de contar tudo o que sabia dos navios
e das cidades, dos homens e dos animais. Parecia-lhes de modo especial e
estranhamente belo que lá em cima, na terra, as flores exalassem perfume, o
que não sucedia no fundo do mar. E que os bosques fossem verdes e que os
peixes, que lá se viam entre os ramos, pudessem cantar tão alto e tão
admiravelmente que dava gosto. Eram os passarinhos, aos quais a avó
chamava de peixes, pois de outro modo não a compreenderiam, nunca
haviam visto um pássaro.
Nenhuma estava tão ansiosa como a mais nova, precisamente aquela que
tinha de esperar mais tempo e que era tão calada e pensativa. Ficava muitas
noites com as janelas abertas, olhando a água azul-escura, onde os peixes
agitavam as barbatanas e as caudas. Conseguia ver a lua e as estrelas
brilhando, ao natural muito pálidas, mas vistas através da água pareciam
muito maiores do que aos nossos olhos. Se deslizava uma espécie de nuvem
negra por baixo, sabia, então, que era uma baleia que nadava por cima dela
ou um navio com muitos homens. Não imaginavam esses, certamente, que
uma linda sereiazinha estava lá embaixo estendendo as mãos brancas para
cima, na direção da quilha.
Então, a princesa mais velha fez quinze anos e pôde subir à superfície do mar.
Quando regressou, tinha centenas de coisas a contar, mas a mais bonita, disse
ela, foi deitar-se ao luar num bando de areia no mar calmo, vendo junto à costa
a cidade grande, onde brilhavam luzes, como centenas de estrelas, escutando a
música e o alarido e o rumor das carruagens e dos homens, vendo as muitas
torres de igrejas e as suas agulhas, e ouvindo os sinos tocarem.
Juntamente porque lá não podia ir, a princesa mais nova mais ansiava por
tudo aquilo.
Oh! Como a escutou a irmã mais nova! E quando, à noite, se pôs na janela
aberta a olhar através da água azul-escura, pensou na cidade grande com
alarido e rumor, parecendo-lhe que chegava ali embaixo, até ela, o som dos
sinos das igrejas a tocar.
No ano seguinte, recebeu a segunda irmã autorização para subir pela água e
nadar por onde quisesse. Emergiu exatamente quando o sol se punha e a
essa visão achou a coisa mais bonita. Todo céu parecia como de ouro, disse
ela, e as nuvens, sim, a beleza delas não conseguia descrever
superficialmente! Tinham flutuado ali, sobre ela, vermelhas e violetas, mas
mais rápido voou por sobre a água, onde estava o sol, como um longo véu
branco, um bando de cisnes brancos. Nadou na direção do sol, mas este
afundou e o clarão róseo sumiu sobre as águas e entre as nuvens.
Um ano depois veio a terceira irmã aqui em cima, era a mais audaciosa de
todas, portanto nadou por um longo rio que desaguava no mar. Viu belas
colinas verdes com vinhas, castelos e quintas espreitando por entre os
bosques magníficos. Ouviu como todos os pássaros cantavam e viu como o
sol brilhava tão quente que teve de mergulhar várias vezes para refrescar o
rosto ardente. Numa baiazinha encontrou um bando de pequenos seres
humanos. Completamente nus, corriam e chapinhavam na água. Quis
brincar com eles, mas correram assustados, fugindo-lhe, e veio, então, um
animalzinho negro. Era um cão, mas ela nunca vira um cão. Ladrou-lhe tão
terrivelmente que teve medo e afastou-se para o alto-mar. Não poderia
esquecer os bosques magníficos, as colinas verdes e as lindas crianças que
sabiam nadar, se bem que não tivessem cauda de peixe alguma.
A quarta irmã não foi tão audaciosa, ficou no meio do mar bravo e cantou
que foi isso precisamente o mais bonito. Viam-se muitas milhas longe ao
redor, e o céu por cima era como um grande copo em forma de sino. Navios,
tinha-os visto, mas bem longe; pareciam gaivotas. Os golfinhos divertidos
tinham dado cambalhotas e as baleis grandes, esguichando água das
narinas, assim parecendo centenas de repuxos ao redor.
A primeira vez que cada uma das irmãs subiu à superfície das águas,
qualquer delas ficou fascinada pelo que de novo e belo havia visto, mas
agora que, como moças crescidas, já tinham autorização para subir quando
quisessem, isso lhes tornou indiferente. Ansiavam novamente pelo lar e,
após decorrido um mês, diziam que lá embaixo, em suas casas, era, sem
dúvida, o mais bonito de tudo e que lá se estava muito bem.
−Ai! Se já tivesse quinze anos! – disse ela. – Sei bem que virei a gostar do
mundo lá em cima e dos homens que constroem casas e lá vivem!
Por fim, fez quinze anos.
− Vê bem, agora vamos largar da tua mão! −disse a avó, a velha rainha
viúva. −Vem, deixa-me arrumar-te tal e qual as tuas irmãs! – e pôs-lhe uma
coroa de lírios brancos no cabelo, mas cada pétala da flor era metade de uma
pérola. E a velha mandou oito ostras grandes fixarem-se na cauda da
princesa para mostrar-lhe a sua alta condição.
− Dói tanto! – disse a sereiazinha.
− Sim, algo se tem de sofrer se se quer luxo! – disse a velha.
No próprio navio estava tudo tão iluminado que se podia ver a mais pequena
corda, para não falar dos homens. Oh! Como era verdadeiramente bonito o
jovem príncipe, que apertava a mão das pessoas, ria e sorria, enquanto a
música soava na noite bela!
Por um momento, ficou escuro como breu, de tal modo que não se podia ver
nada, mas quando relampejou tudo ficou novamente tão claro que
reconheceu todos no navio. Cada um deixava-se tombar o melhor que podia.
Procurou ver o jovem príncipe e o viu quando o navio se desmantelou,
sumindo no mar profundo. Por um instante, ficou muito contente, porque
assim ele desceria para ela, mas então se lembrou de que os homens não
podem viver na água e que ele não podia descer ao palácio do pai a não ser
morto. Não, não devia morrer! Assim, nadou por entre tábuas e pranchas à
deriva no mar, esquecendo-se de que podiam esmagá-la. Mergulhou fundo e
subiu outra vez, alto entre as ondas, e alcançou por fim o jovem príncipe,
que quase não tinha mais forças para nadar no mar tormentoso.
Então, viu diante de si terra firme, altas montanhas azuis, sobre cujos
cumes brilhava a neve branca, qual cisnes lá pousando. Embaixo, junto à
costa, havia lindos bosques verdes e diante estava uma igreja ou mosteiro,
não sabia bem, mas um edifício era. Limoeiros e laranjeiras cresciam no
pomar e diante do portão erguiam-se palmeiras altas. O mar fazia uma
pequena baía, calma mas muito funda, até bem perto das rochas, onde
banhava a branca areia fina. Para lá nadou com o bonito príncipe e o colocou
na areia, cuidando para que a cabeça ficasse mais alta, ao sol quente.
Fora sempre calada e pensativa, mas agora o era muito mais. As irmãs
perguntaram-lhe o que tinha visto lá em cima pela primeira vez, mas ela
não contou nada.
Muitas noites e manhãs subia até onde deixava o príncipe. Viu como os
frutos do pomar amadureceram e foram colhidos, viu como a neve se
derreteu nos altos montes, mas ao príncipe não via, e assim regressava
sempre mais triste para casa. Então o único consolo era sentar-se no seu
jardinzinho e cingir com os braços a bela estátua de mármore que se parecia
com o príncipe as das suas flores não cuidava, cresciam como um ermo, por
sobre os caminhos, entrançando os longos troncos e as folhas nos ramos das
árvores, de modo que tudo ficava sombrio.
Por fim, não pôde aguentar mais e contou o sucedido a uma das irmãs, e
assim logo as outras vieram saber, mas ninguém mais além delas e um par
de outras sereias, que nada contaram senão às amigas mais íntimas. Uma
delas sabia muito bem quem era o príncipe. Vira também a pomposa festa
no navio, sabia de onde era e onde ficava o reino dele.
Sabia agora onde ele morava e pela água vinha muitas tardes e noites. Nadava
até muito mais perto da terra do que qualquer das outras ousara fazê-
lo. Sim, subia mesmo pelo canal estreito, sob o belo terraço de mármore, que
lançava extensa sombra sobre a água. Então, punha-se a olhar para o jovem
príncipe, que se cria completamente só ao claro luar.
Viu-o sair muitas noites com música na barca esplendorosa, as bandeiras
flutuando ao vento. Olhava-o de dentre os caniços verdes e, se o vento
pegava no seu véu comprido e prateado e alguém o via, devia pensar que era
um cisne que levantava as asas.
Mais e mais veio a gostar dos homens, mais e mais desejava poder subir até
eles. O mundo deles parecia-lhe muito maior do que o dela. Bem sabiam
fazer flutuar navios sobre o mar, subir altas montanhas, lá bem alto, acima
das nuvens, e as terras que possuíam estendiam-se com bosques e campos
mais longe do que era possível ver. Havia tanto que gostaria de saber, mas
as irmãs não eram capazes de dar-lhe resposta a tudo. Por isso perguntava à
velha avó, que conhecia bem o mundo superior, a que muito corretamente
chamava de as terras de sobre o mar.
− Por que não temos uma alma imortal? – perguntou a sereiazinha, triste. –
Daria todos os meus trezentos anos que tenho a viver para ser apenas por
um dia um ser humano e depois participar do mundo celestial.
–Não deves pensar nisso! – disse a velha. – Somos muito mais felizes e
vivemos melhor que os homens lá em cima.
–Tenho, pois, de morrer e depois flutuar como espuma no mar, não ouvir a
música das ondas, ver as lindas flores e o sol vermelho! Nada posso fazer
para alcançar uma alma eterna?
– Não – disse a velha. – Só se um ser humano viesse a gostar tanto de ti que
fosses para ele mais do que pai ou mãe. Se ele, com todo o seu pensamento e
amor, se ligasse a ti e pedisse que um sacerdote pusesse-lhe a mão direita
na tua com a promessa de fidelidade aqui e em toda eternidade, então
passaria a própria alma para o teu corpo e tu participarias da felicidade dos
seres humanos. Dava-te a alma dele e conservava-a contigo. Mas isso não
pode acontecer! O que é mais bonito aqui no mar, a tua cauda de peixe,
acham-na feia lá em cima na terra. Não conseguem perceber isso, precisam
de dois apoios grosseiros, a que chamam pernas, para serem bonitos.
Então, a sereiazinha, olhando para a sua cauda de peixe, suspirou.
– Sejamos alegres! – disse a velha. – Saltemos e pulemos nos trezentos anos
que temos a viver! É, sem dúvida, tempo suficiente, e depois se pode
repousar ainda mais agradavelmente na sepultura. Esta noite vamos ter um
baile na corte!
Tão bonitas vozes não têm os seres humanos na terra! A sereiazinha foi quem
cantou melhor; bateram-lhe palmas e, por um momento, sentiu grande alegria
no coração por saber que possuía a voz bonita de todas na terra e no mar. Mas
logo voltou a pensar no mundo acima dela. Não podia esquecer o belo príncipe e
a mágoa de não possuir, como ele, uma alma imortal. Por isso saiu do palácio e,
enquanto lá dentro havia cantos e júbilo, foi sentar-se triste no jardinzinho.
Ouviu soar, então, uma trombeta embaixo, através da água, e pensou: “Agora,
vai de barco lá em cima, certamente, aquele de quem gosto mais do que de pai e
mãe, aquele a quem está preso o meu pensamento e em cujas mãos quero pôr a
felicidade da minha vida. Tudo quero arriscar para o ter e alcançar uma alma
imortal! Enquanto minhas irmãs dançam lá dentro no palácio de meu
pai, vou à bruxa do mar, de quem sempre tive tanto medo, mas que talvez
me possa aconselhar e ajudar”.
Então, a sereiazinha partiu do seu jardim em direção ao remoinho efervescente,
atrás do qual morava a bruxa. Tal caminho nunca havia feito antes. Lá não
cresciam flores, nenhuma alga, apenas o fundo de areia cinzento e nu se
estendia em direção aos remoinhos, onde a água, como rodas de moinhos
efervescentes, enrolava e rasgava tudo o que apanhava, levando-o consigo para
o fundo. Teria de ir por meio desses rodopios esmagadores para entrar no
distrito da bruxa do mar e ali, por um bom pedaço, não havia outro caminho
senão sobre o lamaçal bolhento e quente, a que a bruxa chamava de sua
turfeira. Por detrás ficava-lhe a casa, ao centro, num bosque estranho. Todas as
árvores e arbustos eram pólipos, metade animais metade plantas, pareciam
serpentes com centenas de cabeças que cresciam da terra.
Todos os ramos eram braços longos, viscosos, com dedos com vermes
flexíveis e, junta por junta, moviam-se da raiz à ponta mais extrema.
Enroscavam tudo o que podiam apanhar no mar e não o abandonavam mais.
A sereiazinha ficou aterrorizada e parou. O coração batia-lhe de medo,
esteve quase para regressar, mas pensou, então, no príncipe e na alma
humana e tomou coragem. Amarrou firmemente o cabelo longo e flutuante à
volta da cabeça para que os pólipos não o pudessem agarrar, juntou as mãos
no peito e lançou-se, como os peixes sabem cruzar a água, por entre os
horríveis pólipos, que estendiam os braços e dedos viscosos para ela.
Viu como cada um deles tinha alguma coisa que apanhara, centenas de
pequenos braços segurando como fortes ligaduras de ferro. Os homens que
haviam morrido no mar e tinham vindo ali para o fundo eram carcaças
brancas dos pólipos. Remos e caixas, seguravam-nos fortemente. Esqueletos
de animais terrestres e uma sereiazinha que tinham prendido e
estrangulado, o que foi para ela bem mais horroroso.
– Amanhã, quando o sol nascer, já não poderei ajudar-te antes que se passe
um ano. Vou preparar-te uma bebida, mas terás de nadar, antes de o sol
nascer, para terra, sentar-te na praia e lá bebê-la. Então, perderás a tua
cauda e ganharás aquilo a que os homens chamam de umas lindas pernas.
Mas fazem doer, quero dizer-te, é como se uma espada afiada te
transpassasse. Todos os que te olharem dirão que és a mais bela criatura
que jamais viram. Manterás o teu andar ondulante, nenhuma dançarina
será capaz de andar como tu, mas cada passo que deres é como se pisasses
numa faca cortante, que te fizesse correr o sangue. Se queres sofrer tudo
isso, ajudo-te!
Para que a bebida fique cortante como uma espada de dois gumes, tenho de
prepará-la com o meu próprio sangue!
– Mas se me tiras a voz – disse a sereiazinha –, que me resta?
– A tua bela figura – disse a bruxa – , o teu andar ondulante e os teus olhos
expressivos, com os quais podes bem seduzir o coração de um ser humano.
Então, perdeste a coragem? Estende a linguinha, que eu a corto como paga e
receberás a bebida eficaz!
– Assim seja! – disse a sereiazinha, e a bruxa foi buscar a caldeira para
cozinhar a bebida de feitiço. – A limpeza é uma boa coisa! – disse ela, e
esfregou a caldeira com as cobras que atou em nós, depois arranhou-se no
peito e deixou escorrer dentro o sangue negro. O vapor produzia as figuras
mais estranhas, de fazer tremer de medo. A cada momento, deitava a bruxa
novas coisas na caldeira e, quando estavam fervendo, era como se crocodilos
chorassem. Por fim a bebida ficou pronta, com o aspecto da água mais clara.
– Aqui a tens! – disse a bruxa, e cortou a língua à sereiazinha, que então
ficou muda, não podendo cantar nem falar.
O príncipe perguntou-lhe quem era e como tinha vindo parar ali e ela o
olhou docemente, contudo muito triste, com os seus olhos azul-escuros, pois
falar não podia. Então, ele a tomou pela mão e a conduziu ao palácio. Cada
passo que dava era, tal como a bruxa lhe dissera, como se pisasse em
agulhas pontiagudas e facas afiadas, mas tudo suportou de bom grado.
Apoiada pela mão do príncipe, subiu ligeira como uma bolha de ar e ele e
todos admiraram o seu andar gracioso e ondeante.
Foi presenteada com lindos vestidos de seda e de musselina. No palácio, era
a mais bonita de todas, mas era muda, não podia nem cantar nem falar.
Belas escravas vestidas de seda e ouro avançaram e cantaram para o
príncipe e para os seus régios pais. Uma cantou melhor do que todas as
outras e o príncipe bateu palmas e sorriu-lhe. A sereiazinha ficou triste, pois
sabia que ela própria cantaria muito melhor! Pensou:
“Oh! Ele devia saber que eu, para estar com ele, dei a minha voz de uma vez
para sempre!”.
“Ai! Não sabe que lhe salvei a vida!”, pensou a sereiazinha. “trouxe-o sobre o
mar para o bosque, onde está o templo, pus-me por detrás da espuma da
água vendo se vinha algum ser humano. Vi a bela jovem de quem gosta mais
do que de mim!” E a sereia suspirou fundo, pois chorar não podia. “A donzela
pertence ao templo santo, disse ele, não virá nunca para o mundo, não se
encontrarão mais. Estou na casa dele, vejo-o todos os dias, quero cuidar dele,
amá-lo, oferecer-lhe a minha vida.”
Agora o príncipe iria casar-se com a bonita filha do rei vizinho, contava-se.
Por isso é que se aparelha tão lindamente um navio. O príncipe viaja para
ver as terras do rei vizinho, diz-se, mas é para ver a filha do rei vizinho, que
vai levar um grande séquito. A sereiazinha abanou a cabeça e sorriu.
Conhecia os pensamentos do príncipe muito melhor do que todos os outros.
E beijou-lhe a boca rubra, brincou com o seu cabelo longo e pôs a cabeça
junto ao coração dela, que sonhava com a felicidade humana e com uma
alma imortal.
− Não tens medo do mar, minha mudinha? − disse ele quando já estavam no
navio magnífico que deveria conduzi-lo às terras do rei vizinho. E falou-lhe
de tormentas e calmarias, de peixes estranhos no fundo, e do que os
mergulhadores já haviam visto. E ela sorriu com as suas descrições,
conhecia melhor do que ninguém o fundo do mar.
Na noite clara de luar, quando todos dormiam, com exceção do timoneiro, que
estava ao leme, sentou-se na amurada do navio olhando para baixo, na água
clara, e pareceu-lhe ver o palácio do pai. Sobrepondo-se a tudo estava a
velha avó, com a coroa de prata na cabeça, que olhava através das correntes
fortes para a quilha do navio. Depois, vieram as irmãs, olharam tristemente
para ela e agitaram as mãos brancas. Acenou-lhes, e sorriu, e queria dizer-
lhes que tudo corria bem e que era feliz, mas um moço de bordo aproximou-
se e as irmãs mergulharam de tal modo que ele acreditou que o branco que
vira era espuma do mar.
No dia seguinte, o navio entrou no porto da bela cidade do rei vizinho. Todos os
sinos tocaram e das torres altas soaram trombetas, enquanto os soldados
formavam com bandeiras flutuando ao vento e baionetas cintilantes. Cada dia
havia uma festa. Bailes e reuniões de sociedade seguiam-se uns aos outros, mas
a princesa ainda não chegara; estava sendo educada longe dali, num templo
santo, disseram. Lá, aprendia todas as virtudes reais. Por fim, chegou.
Ainda naquela noite foram noiva e noivo para bordo do navio, os canhões
soaram, todas as bandeiras flutuavam ao vento e no meio do navio estava
erguida uma preciosa tenda de ouro e púrpura com as mais bonitas
almofadas. Lá o casal de noivos dormiria na noite calma e fresca.
Era a última noite, respirava o mesmo ar que ele, via o mar fundo e o céu
azul com estrelas. Uma noite eterna sem pensamentos e sonhos esperava
por ela, que não tinha nenhuma alma, nem podia alcançá-la. Tudo foi
alegria e satisfação no navio para além da meia-noite, enquanto ela dançava
com o pensamento da morte no coração. O príncipe beijou a linda noiva, ela
acariciou-lhe o cabelo negro, e de braços dados foram repousar na tenda
magnífica.
− Oferemo-los à bruxa para que nos ajudasse a impedir que morresses esta
noite. Deu-nos uma faca, está aqui. Vê como é afiada! Antes de o sol levantar-se,
tens de a espetar no coração do príncipe e, quando o sangue quente dele
derramar sobre teus pés, tranformar-se-ão numa cauda de peixe e tu voltarás a
ser sereia, poderás descer na água até nós e viver os teus trezentos anos antes
de vires a ser espuma morta e salgada. Rápido! Estás vendo a faixa vermelha
no céu? Em poucos minutos vai nascer o sol e morrerás! − lançaram um suspiro
estranho e profundo e mergulharam nas ondas.
− Para quem venho eu? − disse ela, e sua voz soou como a dos outros seres,
tão espiritual que nenhuma música terrestre pode transmiti-la.
Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo. Eram todos irmãos, pois
tinham nascido de uma velha colher de chumbo. Traziam espingardas ao
ombro, olhar bem em frente. Vermelhos e azuis, que bonitos eram os
uniformes! O que primeiro de tudo ouviram neste mundo, quando foi tirada
a tampa da caixa em que se encontravam, foram as palavras: “Soldados de
chumbo!”. Gritou-as um rapazinho, batendo palmas. Recebera-os porque era
o seu aniversário e colocara-os em pé sobre a mesa. Cada soldado
assemelhava-se exatamente aos outros, só um era um pouco diferente.
Tinha apenas uma perna, pois fora o último a ser fundido e o chumbo não
fora suficiente. Contudo, estava de pé tão firmemente sobre uma perna como
os outros nas duas, e é precisamente este soldado que será notável.
Na mesa, onde foram postos de pé, estavam muitos outros brinquedos, mas o
que dava mais a vistas era o belo palácio de cartão. Através das janelinhas
podia-se ver diretamente as salas. Do lado de fora havia arvorezinhas em
volta de um espelhinho que devia parecer um lago. Cisnes de cera vogavam
lá, refletindo-se nas águas. Todo o conjunto era bonito, mas o mais bonito,
contudo, era uma menina que estava entre as portas abertas do palácio.
Também era recortada em cartão, mas tinha uma saia do mais claro linho e
uma estreita fitinha azul sobre os ombros como um xale. No meio deste
estava uma palheta brilhante, tão grande como o rosto dela. A menina
estendia ambos os braços, pois era uma bailarina, e levantava uma perna
tão alto no ar que o soldado de chumbo mal podia vê-la e julgou que tinha só
uma perna, como ele.
− Era uma mulher para mim! − pensou ele. − Mas é bastante distinta, mora
num palácio. Eu tenho apenas uma caixa e somos vinte e cinco, não é lugar
que lhe convenha! Contudo verei se travo conhecimento com ela! − e assim
colocou-se, na distância em que se encontrava, por detrás de uma caixa de
rapé que estava na mesa. Dali podia ver convenientemente a daminha, que
continuava de pé sobre uma perna, sem perder o equilíbrio.
Quando já era noite fechada, voltaram todos os outros soldados de chumbo para
a caixa e as pessoas da casa foram para a cama. Então, os brinquedos
começaram a brincar de visitar, de fazer guerras ou de ir a bailes. Os soldados
de chumbo agitaram-se fazendo barulho dentro da caixa, pois também queriam
participar nas brincadeiras, mas não conseguiram abrir a tampa. Os quebra-
nozes deram cambalhotas e as penas fizeram travessuras nas ardósias. Era um
espetáculo, de tal modo que o canário acordou e começou também a chilrear, e
em verso. Os únicos que não se mexeram dos seus lugares foram o soldado de
chumbo e a pequena bailarina. Ela continuava na ponta do pé e com ambos os
braços estendidos. Ele estava bem firme na sua única perna, os olhos não se
desviando nem um momento dela.
Soou meia-noite e taque!, saltou a tampa da caixa de rapé. Não havia tabaco
algum lá dentro, mas sim gnomozinho preto, pois era um truque.
De repente, o barco entrou numa longa sarjeta. Ficou tudo às escuras, como
se estivesse dentro da caixa.
− Para onde irei agora? − pensou. − Ah! Sim, sim, é coisa do gnomo! Aí!
Estivesse a jovem aqui no barco, bem podia fazer o dobro do escuro!
Neste momento apareceu um grande rato dos canos, que vivia por baixo da
sarjeta.
− Tens passaporte? − perguntou o rato. − Passa para cá o passaporte!
Mas o soldado de chumbo ficou calado e segurou a arma ainda mais firme. O
barco passou e o rato atrás dele. Ui! Como mostrava os dentes e gritava para
os pauzinhos e palhinhas:
− Façam-no parar! Façam-no parar! Não pagou a portagem! Não mostrou o
passaporte!
A corrente tornou-se cada vez mais forte. O soldado de chumbo já podia ver
a luz do dia na sua frente, onde terminava a sarjeta. Mas ouviu também um
rugido que bem podia assustar um homem corajoso. Vejam bem, a sarjeta
tombava a pique, onde terminava o cano, para fora, para um grande canal
que seria para ele tão perigoso como para nós descer de barco uma grande
queda d’água. Agora estava tão perto que não podia parar. O barco avançou,
o pobre soldado agarrou-se tão firme quanto pôde.
Ninguém lhe podia dizer que tivesse pestanejado. O barco rodopiou três,
quatro vezes e encheu-se água até a borda − ia afundar. O soldado de
chumbo estava com água até o pescoço e cada vez mais fundo o barco
afundava, e cada vez mais se dissolvia o papel. Agora a água já estava por
cima da cabeça do soldado… Então, pensou na pequenina e linda bailarina
que nunca mais iria ver, e soaram-lhe ao ouvido as palavras da canção:
Oh! Como era escuro lá dentro! Ainda era pior do que na sarjeta, e tão
apertado! Mas o soldado de chumbo era firme e ficou onde estava, com a
arma no braço…
O peixe andou às voltas, fazia os mais terríveis movimentos. Por fim, ficou
completamente quieto e entrou como que um relâmpago por ele. A luz
brilhou bem clara e alguém gritou:
− O soldado de chumbo!
“Seria um traje bem bonito para vestir”, pensou o imperador. “Poderia saber
que pessoas no meu império não prestam no ofício que exercem. Poderia
distinguir os espertos dos estúpidos! Sim, essa fazenda tem de ser tecida
imediatamente para mim!” E pôs nas mãos dos dois vigaristas muito
dinheiro para que começassem o trabalho.
Assim, montaram dois teares, fingiam estar trabalhando, mas não teciam
nada. Sem hesitação, pediram a seda mais fina e o ouro mais bonito.
Meteram-nos sacos e trabalharam com os teares vazios até tarde da noite.
− Então, vossa Excelência não diz nada? − perguntou aquele que estava
tecendo.
− Oh! É lindo! Primoroso! − disse o ministro, olhando através dos óculos. −
Este padrão e estas cores! Sim, vou dizer ao imperador que me agrada
extraordinariamente!
− Oh! Muito nos alegra saber! − disseram ambos os tecelões, que indicaram
depois os nomes das cores e descreveram o padrão especial. O velho ministro
ouviu tudo muito bem para poder repetir, quando regressasse, ao imperador.
E assim o fez.
Então os vigaristas pediram mais dinheiro, mais seda e ouro, que seriam
necessários para confeccionar o tecido. Meteram tudo nos sacos. Para os
teares não veio nem um fio! Mas continuaram, como antes, tecendo no tear
vazio.
O imperador enviou pouco depois um outro honrado funcionário para ver como
ia a confecção do tecido e para saber se estaria pronto em breve. Passou-se o
mesmo que se tinha passado com o ministro. Olhou e voltou a olhar, mas como
não havia outra coisa a não ser teares vazios, nada conseguiu ver.
“Estúpido não sou!”, pensou o homem. “Será que não presto para o meu
trabalho? Que piada! Mas não vou dar o prazer de alguém perceber”. Desse
modo, louvou o tecido, que não via, e assegurou-lhes o gosto de ver as lindas
cores e o bonito padrão.
−Sim, é primoroso! − disse ele ao imperador.
Todas as pessoas da cidade falavam do lindo tecido.
Então, o imperador quis ele próprio ver o que fora feito nos teares. Com uma
comitiva de seletos senhores, entre os quais os dois velhos e honrados
funcionários, que antes já lá haviam estado, dirigiu-se para os dois astutos
vigaristas, que agora teciam com todas as forças, mas sem fio nem fibra.
− Não é “très magnifique”? − perguntaram ambos os honrados funcionários.
− Queira Vossa Majestade ver que padrão, que cores! − e apontaram para os
teares vazios, pois criam que os outros podiam certamente ver a fazenda.
“Que é isto?”, pensou o imperador. “Não vejo nada! Oh! É terrível! Serei
estúpido? Não presto para ser imperador? Seria a coisa mais horrível que
me poderia acontecer!”
Toda a comitiva que viera com ele olhou e tentou a olhar, mas não viu mais
do que todos os outros. Disseram, contudo, como o imperador:
− Oh! É muito bonito! − e aconselharam-no a vestir aquele novo e bonito
traje pela primeira vez na grande procissão que iria realizar-se.
− Meu Deus! Como é impecável o novo traje do imperador! Que bela cauda
tem na casaca! Como assenta tão bem!
Ninguém queria que notasse que nada via, pois desse modo seria
considerado mau no ofício ou muito estúpido. Nenhum outro traje do
imperador produzia tanta felicidade!
− Mas não está vestindo nada! Disse uma criancinha.
− Louvado seja Deus! Ouçam a voz da inocência! − disse o pai. E cada um
segredou ao outro o que dissera a criança.
− Não está vestindo nada! − gritou por fim todo o povo. E isso impressionou
o imperador, pois parecia-lhe que o povo tinha razão. Mas pensou: “Agora,
tenho de continuar com a procissão”. E continuou, ainda mais orgulhoso, e
os funcionários da corte atrás, segurando a cauda, cauda que não existia.
O Patinho Feio
Estava tão bonito lá fora no campo! Era verão, o trigo estava amarelo, a
aveia estava verde, o feno amontoado em medas nos prados verdes, e aí
andava a cegonha com as suas longas pernas vermelhas falando egípcio, pois
esta língua a aprendeu da mãe dela. Em redor dos campos e dos prados
havia bosques grandes e no meio deles, fundos lagos. Sim, estava
verdadeiramente bonito lá fora no campo! Ao centro, iluminado pelo sol, via-
se um velho solar com fundos canais à volta dos muros e para baixo, até a
água, cresciam grandes folhas de bardanas, tão altas que as crianças podiam
ficar de pé sob as maiores delas. Era tão emaranhado aí como no bosque
mais espesso e lá se encontrava uma pata no seu ninho.
Devia chocar os seus patinhos, mas estava muito cansada disso, pois
demorava muito tempo e raramente recebia visitas. As outras patas
gostavam mais de nadar à volta, nos canais, que de correr lá para cima e
sentarem-se sob uma folha de bardana para grasnar com ela.
Por fim, rebentou um ovo após outro.
−”Pi!Pi!” − diziam eles. Todas as gemas de ovo se tornaram criaturas vivas,
pondo a cabeça de fora.
− Vá! Vá! − disse ela, e eles se apressaram quanto podiam e olhavam para
todos os lados sob as folhas verdes. E a mãe deixava-os olhar tanto quanto
queriam, pois o verde é bom para os olhos.
− Como o mundo é tão grande! − disseram os filhotes. Pois, na verdade, tinham
agora bem mais espaço do que quando se encontravam dentro do ovo.
− Não julguem que isto é todo o mundo! − disse a mãe. − Estende-se para
muito além do outro lado da quinta, bem para dentro do campo do pastor!
Mas lá nunca estive! Estão todos aqui! −disse levantando-se, − Não, não
estão todos! O ovo maior ainda está ali! Quanto tempo vai demorar? Estou
começando a ficar cansada! − voltou a deitar-se.
− Então, como vai isso? − perguntou uma velha pata que vinha fazer-lhe
uma visita.
−Está tão demorado este ovo! − disse a pata que chocava. − Não há meio de
furá-lo! Mas vê os outros! São os patinhos mais bonitos que jamais vi!
Parecem-se todos com o pai, esse malvado que não vem visitar-me.
− Deixa-me ver o ovo que não quer rebentar! − disse a velha.− Podes crer que
é um ovo de peru! Assim também fui enganada uma vez e tive tantos
aborrecimentos com os filhotes, pois têm medo da água, devo dizer-te! Não
consegui levá-los até lá! Grasnei e dei-lhes bicadas, mas não serviu de nada!
Deixa-me ver o ovo! Sim, é um ovo de peru! Deixa-o ficar aí e ensina os
outros filhotes a nadar!
− Vá! Vá! − disse ela, e os patinhos deixaram-se cair um após outro. Ficaram
com a cabeça debaixo de água, mas vieram logo para cima e flutuaram
maravilhosamente. As pernas andavam por si próprias e todos lá estavam, o
próprio filhote feio e cinzento também nadava.
− Não, não é nenhum peru! − exclamou ela. − Como mexe tão bem as pernas,
como se mantém direito! É mesmo meu filho! No fundo, é bastante bonito,
quando se observa bem! Vá! Vá! Venham agora comigo, vou levá-los para o
mundo e apresentá-los no pátio dos patos, mas andem sempre ao pé de mim,
para ninguém lhes pise, e tenham cuidado com o gato!
Entraram, assim, no pátio dos patos. Fazia um barulho terrível lá dentro,
pois havia duas famílias que se batiam por uma cabeça de enguia, mas foi o
gato que a apanhou.
− Vejam, assim se passam as coisas no mundo! − disse a mãe dos patinhos,
lambendo o bico, pois também lhe apetecia a cabeça de enguia.
E assim fizeram. Mas as outras patas ao redor olharam para eles e disseram
bem alto:
− Vejam! Vamos ter agora mais aquela ninhada! Como se já não fôssemos
muitos! Ai! Que aspecto tem aquele patinho! Não podemos tolerar isso!
E logo esvoaçaram, uma pata atrás da outra, para ir mordê-lo na nuca.
− Deixem-no! −disse a mãe. − Não fez mal algum a ninguém!
− Deus seja louvado! – sussurrou o patinho. – Sou tão feio que nem mesmo o
cão quer morder-me!
Ficou completamente quieto, enquanto as chumbadas sibilavam nos juncos e
estouravam tiro após tiro.
Só mais para o fim do dia é que se fez silêncio, mas o pobre patinho ainda
não ousou levantar-se, esperou horas mais, olhou em torno e, então,
apressou-se a sair do pântano, do melhor modo possível. Havia vento forte,
por isso teve dificuldade em sair dali.
Perto da noite atingiu uma pobre casa de camponeses. Era tão miserável
que ela mesma não sabia para que lado havia de cair e, assim, ficava de pé.
O vento sibilava de tal modo à volta do patinho que este tinha de apoiar-se
na cauda para enfrentá-lo, e cada vez estava pior. Então, observou que a
porta tinha saído de um dos gonzos e estava suspensa tão de lado que ele
podia introduzir- se pela abertura, o que fez.
Lá morava uma velha com o gato e a galinha. O gato, que ela chamava
“Filhinho”, sabia corcovar a espinha e rosnar, e chegava mesmo a faiscar,
tanto que era preciso, então, passar-lhe a mão pelo pelo em sentido
contrário. A galinha tinha umas pernas pequenas muito baixas, por isso se
chamava “Franguinha Perna Curtinha”. Punha bons ovos e a mulher
gostava dela como se fosse sua filha.
De manhã, logo deu pelo estranho patinho, o gato começou a corcovar a
espinha e a galinha, a cacarejar.
− Que é isto?- −disse a velha, olhando à volta. Mas não via bem e assim julgou
que o patinho era uma pata gorda que se perdera. – É um achado! – disse ela.
– Agora posso ter ovos de pata, se não for um pato! Temos de ver isso!
E assim o patinho foi tomado à prova por três semanas. Mas não apareceu
nenhum ovo. O gato era o senhor da casa e a galinha, a senhora, e diziam
sempre:
− Nós e o mundo! – pois criam que eram metades deste, e as partes melhores.
Ao patinho parecia que não era bem assim, e isso a galinha não suportava.
− Que se passa comigo? – perguntou ela. – Não tens nada a fazer, por isso te
vêm essas fantasias à cabeça! Põe ovos ou rosna, que assim passarão.
− Mas é tão belo flutuar na água! – disse o patinho. – Tão belo pôr a cabeça
debaixo dela e mergulhar no fundo!
− Sim, é um grande prazer! – disse a galinha. – ficaste bem maluco!
Pergunta ao gato – é o mais inteligente que conheço – se ele gosta de flutuar
na água ou mergulhar nela. Não quero falar de mim... Pergunta mesmo à
nossa dona, a velha, mais inteligente do que ela não há ninguém no mundo!
Crês que ela tem vontade de flutuar na água ou pôr a cabeça debaixo dela?
− Não me compreendem – disse o patinho.
− Bem, se não te compreendemos, quem te compreenderá? Não pretendes,
com certeza, ser mais inteligente que o gato e a mulher, para não falar de
mim! Não sejas presunçoso criança! E agradece ao Criador por tudo de bom
que se fez por ti! Não vieste para uma casa quente e não tens um ambiente
no qual podes aprender alguma coisa? Mas tu és um disparatado e não é
divertido falar contigo! Podes crer-me! É para teu bem que te digo coisas
desagradáveis e é nisso que se reconhecem os verdadeiros amigos! Vê
apenas se consegues pôr ovos e aprendes a rosnar ou a faiscar!
− Creio que me vou embora, por esse mundo fora! – disse o patinho.
− Pois vai! – retorquiu a galinha.
O patinho foi. Flutuou na água, mergulhou nela, mas por todos os animais
foi desdenhado por causa de sua fealdade.
− Oh! Não podia esquecer as belas aves, as aves felizes, e logo que não as viu
mais mergulhou imediatamente no fundo e, quando voltou, estava como que
fora de si. Não sabia como se chamavam as aves, nem para onde voavam,
mas ficou gostando delas como nunca tinha gostado de ninguém. Não as
invejava de modo algum, pois como podia suceder-lhe desejar uma tal
beleza! Contentar-se-ia apenas com os patos o tolerarem entre eles! Pobre
animalzinho feio!
O inverno ficou tão frio, tão frio. O patinho tinha de nadar em círculo na
água para evitar que esta gelasse completamente. Mas cada noite o buraco
em que ele nadava tornava-se mais pequeno. Gelou de tal modo que estalava
na crosta de cima. O patinho tinha de estar sempre mexendo as pernas para
que a água não se fechasse. Finalmente, ficou extenuado, deitou-se
completamente abatido e ficou colado ao gelo.
De manhã cedo veio um camponês. Viu-o, foi direto a ele, bateu com o
tamanco no gelo, partindo- o em pedaços, e o levou para casa, para a mulher.
Voltou à vida.
As crianças queriam brincar com ele, mas o patinho julgou que queriam
fazer-lhe mal e correu, com medo, precisamente para dentro da tigela do
leite, de modo que o leite salpicou as paredes da casa. A mulher gritou e
agitou os braços no ar, e então voou para dentro da selha onde estava a
manteiga, depois para dentro do barril da farinha e depois veio para cima
outra vez. Ui! Como ele estava! A mulher gritava e corria atrás dele para
bater-lhe com a tenaz do fogão, e as crianças corriam atrás uma da outra,
atropelando-se, para apanhar o patinho, e riam e gritavam... foi bom que a
porta estivesse aberta! Correu para fora, por entre os arbustos, para a neve
recém-caída, e lá ficou, como que entorpecido.
Mas seria demasiado triste contar todas as necessidades e misérias por que
passou no inverno rigoroso... Estava no pântano, entre canas, quando o sol
começou a brilhar quente de novo. As calhandras cantavam. Era a bela
primavera.
Então, ergueu de uma vez as asas, que se agitaram mais fortemente do que
antes e o deslocaram com grande impulso. Antes que desse por isso,
encontrava-se num grande jardim, onde as macieiras floriam, onde os lilases
perfumavam o ar e se suspendiam nos longos ramos verdes, diretamente por
sobre os canais retorcidos. Oh! Ali era tão belo, de uma frescura tão
primaveril! E precisamente diante dele vinham das moitas três belos cisnes
brancos. Agitaram as penas e flutuavam tão levemente na água. O patinho
reconheceu os belos animais e foi tomado de estranha tristeza.
− Vou voar para eles, os animais reais! E picar-me-ão de morte porque eu,
que sou tão feio, ouso aproximar-me deles! Mas dá no mesmo! Melhor ser
morto por eles do que ser bicado pelas patas, espicaçando pelas galinhas,
levar pontapés da garota que trata do galinheiro e sofrer desgraças no
inverno! Voou para a água e nadou ao encontro dos belos cisnes. Este o
viram e dispararam agitando as penas para ele.
Não tem importância nascer num pátio de patos, se se foi chocado num ovo
de cisne!