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Contos de Hans Christian Andersen

A Sereiazinha

Lá longe, bem longe no mar, a água é tão azul como as folhas da centáurea
mais bonita e tão límpida como o vidro mais puro, mas é também muito
funda, mais funda do que uma âncora pode descer. Seria preciso colocar
muitas torres de igrejas umas sobre as outras para do fundo surgirem acima
da água. É aí que vivem os povos marinhos.

Mas não se deve pensar de modo algum que o fundo só tem areia branca e
mais nada. Não senhor, lá crescem árvores e plantas maravilhosas, de tão
delicados trocos e folhas que, com a mínima agitação da água, se mexem,
como se fossem vivas. Todos os peixes, pequenos e grandes, deslizam por
entre os ramos como voam aqui em cima os pássaros no ar.
No ponto mais fundo, está o palácio do rei do mar, cujas paredes são feitas
de corais e as janelas longas, em bico, de âmbar do mais claro. Mas o telhado
é de conchas, que se abrem ou fecham conforme a água se move. É um
espetáculo lindo de ver, pois em cada uma das conchas há pérolas brilhando.
Bastava só uma para vir a ser um grande luxo na coroa de uma rainha.

O rei do mar tinha enviuvado havia muitos anos, mas a velha mãe cuidava
da casa. Era uma sereia inteligente, orgulhosa, porém, da sua nobreza, por
isso andava com doze ostras na cauda: as outras sereias de distinção só
podiam ostentar seis. De resto, merecia ser louvada, especialmente pelo
muito que se ocupava com as princesas do mar, suas netinhas. As
princesinhas eram seis crianças lindas, mas a mais nova era a mais bonita
de todas. A pele era tão clara e suave como uma pétala de rosa, os olhos tão
azuis como um lago mais fundo, mas como todas as outras não tinha pés, o
corpo terminava em uma cauda de peixe.
Podiam todo dia brincar embaixo no palácio, nos salões onde flores vivas
cresciam nas paredes. Se as janelas grandes de âmbar ficavam abertas,
entravam os peixes, tal como muitas vezes andorinhas entram em nossas casas
quando abrimos as janelas. Mas os peixes nadavam direto para as princesinhas,
comiam nas suas mãos e deixavam que elas lhes fizessem festa.

Fora, diante do palácio, havia um jardim grande com árvores rubras de fogo
e azul escuras. Os frutos luziam como ouro e as flores pareciam um fogo
ardente, pois agitavam constantemente o tronco e as folhas. O próprio chão
era da areia da mais fina, mas azul como a chama do enxofre. Sobre tudo
isso, lá embaixo, refletia um clarão azul maravilhoso. Jugar-se-ia antes que
se estava no alto-mar, vendo apenas céu por cima e por baixo, e não no
fundo do mar. Com tempo calmo, podia-se observar o sol, parecendo uma flor
de púrpura do cálice irradiando toda luz.

Cada uma das princesinhas tinha o seu cantinho no jardim, onde podia
cavar e plantar como lhe aprouvesse. Uma deu ao seu canteiro a forma de
uma baleia, outra pareceu-lhe melhor que o seu se assemelhasse a uma
sereiazinha, mas a mais nova fez o dela completamente redondo como o sol e
só pôs aí flores vermelhas brilhando como ele. Era uma criança estranha,
calada e pensativa. Enquanto suas irmãs se enfeitavam com as coisas mais
extraordinárias que colhiam dos navios naufragados, ela apenas se
interessava, além de pelas flores cor-de-rosa que se assemelhavam ao sol lá
em cima, por uma bonita estátua de mármore de um belo jovem.
A estátua era esculpida em pedra branca e clara, tinha vindo para o fundo
do mar com outros destroços. Plantou junto à estátua um chorão cor-de-rosa,
que cresceu maravilhosamente, deixando pender os ramos frescos sobre
esta, para baixo, para o fundo de areia, onde as sombras se mostravam
violetas e com movimentos iguais aos dos ramos. Parecia que a copa e as
raízes estavam brincando, beijando-se umas às outras.

Nenhuma alegria era para ela maior do que ouvir falar do mundo dos
homens lá em cima. A velha avó tinha de contar tudo o que sabia dos navios
e das cidades, dos homens e dos animais. Parecia-lhes de modo especial e
estranhamente belo que lá em cima, na terra, as flores exalassem perfume, o
que não sucedia no fundo do mar. E que os bosques fossem verdes e que os
peixes, que lá se viam entre os ramos, pudessem cantar tão alto e tão
admiravelmente que dava gosto. Eram os passarinhos, aos quais a avó
chamava de peixes, pois de outro modo não a compreenderiam, nunca
haviam visto um pássaro.

− Quando fizerem quinze anos – disse a avó −, receberão autorização para


subir à superfície do mar, para sentar-se ao luar nas rochas e ver os grandes
navios navegando ao largo, e bosques e cidades hão de ver! No ano seguinte,
uma das irmãs faria quinze anos, mas as outras… Sim, cada uma era um
ano mais nova do que as outras... A mais nova tinha, portanto, de esperar
cinco anos, antes de poder subir do fundo do mar para ver como eram as
coisas na superfície. Mas cada uma prometeu contar às outras o que vira e
achara mais bonito no primeiro dia, pois a avó não lhes contara o suficiente.
E tanta coisa havia que precisavam saber!

Nenhuma estava tão ansiosa como a mais nova, precisamente aquela que
tinha de esperar mais tempo e que era tão calada e pensativa. Ficava muitas
noites com as janelas abertas, olhando a água azul-escura, onde os peixes
agitavam as barbatanas e as caudas. Conseguia ver a lua e as estrelas
brilhando, ao natural muito pálidas, mas vistas através da água pareciam
muito maiores do que aos nossos olhos. Se deslizava uma espécie de nuvem
negra por baixo, sabia, então, que era uma baleia que nadava por cima dela
ou um navio com muitos homens. Não imaginavam esses, certamente, que
uma linda sereiazinha estava lá embaixo estendendo as mãos brancas para
cima, na direção da quilha.
Então, a princesa mais velha fez quinze anos e pôde subir à superfície do mar.

Quando regressou, tinha centenas de coisas a contar, mas a mais bonita, disse
ela, foi deitar-se ao luar num bando de areia no mar calmo, vendo junto à costa
a cidade grande, onde brilhavam luzes, como centenas de estrelas, escutando a
música e o alarido e o rumor das carruagens e dos homens, vendo as muitas
torres de igrejas e as suas agulhas, e ouvindo os sinos tocarem.
Juntamente porque lá não podia ir, a princesa mais nova mais ansiava por
tudo aquilo.

Oh! Como a escutou a irmã mais nova! E quando, à noite, se pôs na janela
aberta a olhar através da água azul-escura, pensou na cidade grande com
alarido e rumor, parecendo-lhe que chegava ali embaixo, até ela, o som dos
sinos das igrejas a tocar.
No ano seguinte, recebeu a segunda irmã autorização para subir pela água e
nadar por onde quisesse. Emergiu exatamente quando o sol se punha e a
essa visão achou a coisa mais bonita. Todo céu parecia como de ouro, disse
ela, e as nuvens, sim, a beleza delas não conseguia descrever
superficialmente! Tinham flutuado ali, sobre ela, vermelhas e violetas, mas
mais rápido voou por sobre a água, onde estava o sol, como um longo véu
branco, um bando de cisnes brancos. Nadou na direção do sol, mas este
afundou e o clarão róseo sumiu sobre as águas e entre as nuvens.

Um ano depois veio a terceira irmã aqui em cima, era a mais audaciosa de
todas, portanto nadou por um longo rio que desaguava no mar. Viu belas
colinas verdes com vinhas, castelos e quintas espreitando por entre os
bosques magníficos. Ouviu como todos os pássaros cantavam e viu como o
sol brilhava tão quente que teve de mergulhar várias vezes para refrescar o
rosto ardente. Numa baiazinha encontrou um bando de pequenos seres
humanos. Completamente nus, corriam e chapinhavam na água. Quis
brincar com eles, mas correram assustados, fugindo-lhe, e veio, então, um
animalzinho negro. Era um cão, mas ela nunca vira um cão. Ladrou-lhe tão
terrivelmente que teve medo e afastou-se para o alto-mar. Não poderia
esquecer os bosques magníficos, as colinas verdes e as lindas crianças que
sabiam nadar, se bem que não tivessem cauda de peixe alguma.

A quarta irmã não foi tão audaciosa, ficou no meio do mar bravo e cantou
que foi isso precisamente o mais bonito. Viam-se muitas milhas longe ao
redor, e o céu por cima era como um grande copo em forma de sino. Navios,
tinha-os visto, mas bem longe; pareciam gaivotas. Os golfinhos divertidos
tinham dado cambalhotas e as baleis grandes, esguichando água das
narinas, assim parecendo centenas de repuxos ao redor.

Foi, então, a vez da quinta irmã. O seu aniversário foi precisamente no


inverno e viu, assim, o que as outras nunca haviam visto da primeira vez. O
mar tomou inteiramente uma cor verde e, em volta, flutuavam grandes
icebergs, cada um parecia como que uma pérola, disse ela. Eram, contudo,
muito maiores do que as torres das igrejas que os homens construíam.
Mostravam-se nas formas mais estranhas e brilhavam como diamantes.
Sentara-se num dos maiores e todos os veleiros se afastaram assustados,
para longe de onde se encontrava, com o longo cabelo a esvoaçar ao vento.
Mas, lá para a noite, o céu ficou coberto de nuvens, relampejou e trovejou,
enquanto o mar enegrecido levantava alto os grandes blocos de gelo, fazendo-os
cintilar sob a luz vermelha. Todos os navios arriaram as velas, havia ansiedade
e terror, mas ela continuava sentada calmamente no seu iceberg flutuante,
vendo os raios azuis tombarem em zigue-zague no mar luzente.

A primeira vez que cada uma das irmãs subiu à superfície das águas,
qualquer delas ficou fascinada pelo que de novo e belo havia visto, mas
agora que, como moças crescidas, já tinham autorização para subir quando
quisessem, isso lhes tornou indiferente. Ansiavam novamente pelo lar e,
após decorrido um mês, diziam que lá embaixo, em suas casas, era, sem
dúvida, o mais bonito de tudo e que lá se estava muito bem.

Muitas noites, as cinco irmãs davam os braços e subiam em fila à superfície


das águas. Belas vozes tinham elas, mais bonitas do que a de qualquer ser
humano e, quando se levantava uma tempestade, de modo a crer que os
navios iam naufragar, nadavam diante deles e cantavam lindas canções que
diziam como era bonito o fundo do mar e pediam aos marinheiros que não
tivessem medo de ir para lá, mas eles não entendiam as palavras, pensavam
que era a tempestade. Além disso, não achavam beleza alguma lá no fundo,
pois, quando o navio afundava, os homens se afogavam e só como mortos é
que chegavam ao palácio do rei do mar.

Quando as irmãs, à noite, de braços dado, subiam pelo mar, ficava a


irmãzinha completamente só a olhar para elas, e era como se chorasse, mas
sereias não têm lágrimas, por isso sofrem muito mais.

−Ai! Se já tivesse quinze anos! – disse ela. – Sei bem que virei a gostar do
mundo lá em cima e dos homens que constroem casas e lá vivem!
Por fim, fez quinze anos.
− Vê bem, agora vamos largar da tua mão! −disse a avó, a velha rainha
viúva. −Vem, deixa-me arrumar-te tal e qual as tuas irmãs! – e pôs-lhe uma
coroa de lírios brancos no cabelo, mas cada pétala da flor era metade de uma
pérola. E a velha mandou oito ostras grandes fixarem-se na cauda da
princesa para mostrar-lhe a sua alta condição.
− Dói tanto! – disse a sereiazinha.
− Sim, algo se tem de sofrer se se quer luxo! – disse a velha.

Oh! Como gostaria de sacudir de si todos aqueles enfeites e largar a coroa


pesada. As flores vermelhas do mar ficavam-lhe muito melhor, mas não
ousava mudar nada.
− Adeus! – disse ela, subindo tão leve e clara como uma bolha de ar através
da água.

O sol havia-se posto aquele instante, quando ergueu a cabeça na superfície


das águas, mas todas as nuvens ainda brilhavam como se fossem de rosas de
ouro, e no meio do céu vermelho pálido luzia a estrela da tarde, tão clara e
bela! O ar estava suave e fresco e o mar, completamente calmo. Encontrava-
se ali um grande navio com três mastros, só uma vela estava içada, pois
nenhum vento se agitava e por toda a parte no cordame e nas vergas
marinheiros estavam sentados. Havia música e cantos e, conforme a noite
foi-se tornando mais escura, acenderam-se centenas de lanternas de várias
cores. Parecia que todas as bandeiras das nações flutuavam no ar.

A sereiazinha nadou até junto da janela de um camarote e cada vez que a


água a levantava no ar podia ver lá dentro pelos vidros claros como
espelhos, quantos homens elegantes lá estavam, mas o mais bonito era o
jovem príncipe de grandes olhos negros. Não tinha certamente mais que
dezesseis anos, era o dia do seu aniversário de nascimento, por isso havia
toda aquela pompa. Os marinheiros dançavam no convés e, quando o
príncipe apareceu, subiram ao ar centenas de foguetes. Luziram como em
claro dia, de modo que a sereiazinha ficou muito assustada e mergulhou,
mas logo depois pôs a cabeça para fora e era como se todas as estrelas do céu
tombassem sobre ela. Nunca antes havia visto tais artes de fogo. Grandes
sóis rodopiavam, lindos peixes de fogo balançavam no céu azul e tudo
voltava a brilhar refletido no mar claro e calmo.

No próprio navio estava tudo tão iluminado que se podia ver a mais pequena
corda, para não falar dos homens. Oh! Como era verdadeiramente bonito o
jovem príncipe, que apertava a mão das pessoas, ria e sorria, enquanto a
música soava na noite bela!

Ficou tarde, mas a sereiazinha não conseguia tirar os olhos do navio e do


lindo príncipe. As lanternas de cores variadas se apagaram, os foguetes não
subiram mais no ar, não soaram também mais tiros de canhão, mas lá no
fundo o mar zumbia e zunia. Entretanto continuava sentada na água e
deixava-se balançar para cima e para baixo de modo a poder ver para dentro
do camarote. Mas o navio foi tomando maior impulso, uma após outra, as
velas enfunaram, as ondas tornaram-se mais fortes, levantaram-se grandes
nuvens, relampejou ao longe. Oh! Ia fazer um tempo horrível! Por isso os
marinheiros arriavam as velas.

O grande navio balançava em marcha veloz no mar bravo, a água elevava-se


como grandes montanhas negras que tentavam derrubar os mastros, mas o
navio mergulhava como um cisne, afundando entre as ondas altas ou
deixando-se outra vez elevar na água que subia. À sereiazinha parecia que
era uma viagem divertida, mas aos marinheiros não. O navio rangia e
estalava, as madeiras grossas dobravam-se com os embates fortes, o mar
invadiu o navio, o mastro se quebrou ao meio como se fosse uma cana e o
navio adernava enquanto fazia água. Então, a sereiazinha viu que estavam
em perigo, ela própria teve de tomar cuidado com as madeiras e destroços do
navio que estavam à deriva na água.

Por um momento, ficou escuro como breu, de tal modo que não se podia ver
nada, mas quando relampejou tudo ficou novamente tão claro que
reconheceu todos no navio. Cada um deixava-se tombar o melhor que podia.
Procurou ver o jovem príncipe e o viu quando o navio se desmantelou,
sumindo no mar profundo. Por um instante, ficou muito contente, porque
assim ele desceria para ela, mas então se lembrou de que os homens não
podem viver na água e que ele não podia descer ao palácio do pai a não ser
morto. Não, não devia morrer! Assim, nadou por entre tábuas e pranchas à
deriva no mar, esquecendo-se de que podiam esmagá-la. Mergulhou fundo e
subiu outra vez, alto entre as ondas, e alcançou por fim o jovem príncipe,
que quase não tinha mais forças para nadar no mar tormentoso.

Os braços e as pernas começavam a ficar exaustos, os belos olhos fechavam-


se. Teria morrido se a sereiazinha não o tivesse alcançado. Segurou-lhe a
cabeça por sobre a água e deixou que as ondas os levassem, a ele e a ela,
para onde quisessem.
De manhã, o mau tempo havia passado. Do navio não havia um único pedaço
à vista, o sol subia todo vermelho e brilhante por sobre as águas. As faces do
príncipe pareciam tomar vida, mas os olhos continuavam fechados. A sereia
beijou-lhe a bonita testa alta e puxou-lhe o cabelo molhado para trás.
Pareceu-lhe que se assemelhava à estátua de mármore lá embaixo no seu
jardinzinho, beijou-o outra vez e desejou que revivesse.

Então, viu diante de si terra firme, altas montanhas azuis, sobre cujos
cumes brilhava a neve branca, qual cisnes lá pousando. Embaixo, junto à
costa, havia lindos bosques verdes e diante estava uma igreja ou mosteiro,
não sabia bem, mas um edifício era. Limoeiros e laranjeiras cresciam no
pomar e diante do portão erguiam-se palmeiras altas. O mar fazia uma
pequena baía, calma mas muito funda, até bem perto das rochas, onde
banhava a branca areia fina. Para lá nadou com o bonito príncipe e o colocou
na areia, cuidando para que a cabeça ficasse mais alta, ao sol quente.

Os sinos tocaram no grande edifício branco e vieram muitas meninas para o


jardim. Então, a sereiazinha nadou para mais longe, para detrás de umas
pedras altas que saíam da água, pôs espuma do mar no cabelo e no peito a fim
de que não pudessem ver o rostinho e ficou atenta à espera de alguém que ali
viesse encontrar o pobre príncipe.
Não tardou muito para que uma menina chegasse. Pareceu ficar muito
assustada, mas só por um momento. Foi buscar várias pessoas e a sereia viu
que o príncipe retomava vida e que sorria a todos à volta dele, mas para ela
não sorria, não sabia de modo algum que ela o salvara. Sentiu-se muito
triste e, quando ele foi levado para dentro do grande edifício, mergulhou,
pesarosa, e regressou ao palácio do pai.

Fora sempre calada e pensativa, mas agora o era muito mais. As irmãs
perguntaram-lhe o que tinha visto lá em cima pela primeira vez, mas ela
não contou nada.
Muitas noites e manhãs subia até onde deixava o príncipe. Viu como os
frutos do pomar amadureceram e foram colhidos, viu como a neve se
derreteu nos altos montes, mas ao príncipe não via, e assim regressava
sempre mais triste para casa. Então o único consolo era sentar-se no seu
jardinzinho e cingir com os braços a bela estátua de mármore que se parecia
com o príncipe as das suas flores não cuidava, cresciam como um ermo, por
sobre os caminhos, entrançando os longos troncos e as folhas nos ramos das
árvores, de modo que tudo ficava sombrio.

Por fim, não pôde aguentar mais e contou o sucedido a uma das irmãs, e
assim logo as outras vieram saber, mas ninguém mais além delas e um par
de outras sereias, que nada contaram senão às amigas mais íntimas. Uma
delas sabia muito bem quem era o príncipe. Vira também a pomposa festa
no navio, sabia de onde era e onde ficava o reino dele.

− Vem, irmãzinha! – disseram as outras princesas, e com os braços sobre os


ombros umas das outras subiram numa longa fila pelo mar adiante, onde
sabiam que se encontrava o palácio do príncipe.

O palácio estava edificado numa espécie de pedra brilhante amarelo-claro,


com grandes escadarias de mármore, uma delas dando diretamente para
baixo, para o mar. Belas cúpulas douradas erguiam-se sobre o telhado e,
entre as colunas que circundavam todo o edifício, havia figuras que
pareciam vivas. Pelos vidros claros das altas janelas via-se o interior das
salas magníficas, onde cortinas preciosas de seda e tapeçarias estavam
suspensas e todas as paredes estavam decoradas com grandes pinturas.
Dava prazer vê-las. No meio da sala maior, jorrava uma grande fonte, os
repuxos subiam muito alto na direção da cúpula de vidro no teto, pela qual o
sol brilhava na água e nas belas plantas que cresciam na bacia ampla.

Sabia agora onde ele morava e pela água vinha muitas tardes e noites. Nadava
até muito mais perto da terra do que qualquer das outras ousara fazê-
lo. Sim, subia mesmo pelo canal estreito, sob o belo terraço de mármore, que
lançava extensa sombra sobre a água. Então, punha-se a olhar para o jovem
príncipe, que se cria completamente só ao claro luar.
Viu-o sair muitas noites com música na barca esplendorosa, as bandeiras
flutuando ao vento. Olhava-o de dentre os caniços verdes e, se o vento
pegava no seu véu comprido e prateado e alguém o via, devia pensar que era
um cisne que levantava as asas.

Muitas noites, quando os pescadores andavam com as tochas no mar, ouvia-


os falar muito bem do jovem príncipe e alegrava-se por saber que lhe salvara
a vida, quando, quase morto, fora levado pelas ondas. E pensava como
apoiara firmemente a cabeça dele no seu peito e como ternamente o beijara.
Ele nada sabia disso, não podia sequer sonhar com ela.

Mais e mais veio a gostar dos homens, mais e mais desejava poder subir até
eles. O mundo deles parecia-lhe muito maior do que o dela. Bem sabiam
fazer flutuar navios sobre o mar, subir altas montanhas, lá bem alto, acima
das nuvens, e as terras que possuíam estendiam-se com bosques e campos
mais longe do que era possível ver. Havia tanto que gostaria de saber, mas
as irmãs não eram capazes de dar-lhe resposta a tudo. Por isso perguntava à
velha avó, que conhecia bem o mundo superior, a que muito corretamente
chamava de as terras de sobre o mar.

− Quando os homens não se afogam – perguntou a sereiazinha −, podem


viver sempre, não morrem, como nós aqui embaixo no mar?
− Claro! – disse a velha. – Também têm de morrer e o seu tempo de vida é
muito mais curto que o nosso. Nós podemos durar trezentos anos, mas
quando deixamos de existir transformamo-nos apenas em espuma na água,
não temos uma campa aqui embaixo entre os entes queridos. Não temos
alma imortal, não temos mais vida, somos como os caniços verdes, que, uma
vez cortados, não podem reverdecer. Os homens, ao contrário, têm uma alma
que vive sempre, vive mesmo depois de o corpo tornar-se pó. Sobem através
do céu claro, até todas as estrelas brilhantes. Assim como emergimos do mar
e vemos as terras dos homens, assim sobem até belos lugares desconhecidos,
que nunca nos é permitido ver.

− Por que não temos uma alma imortal? – perguntou a sereiazinha, triste. –
Daria todos os meus trezentos anos que tenho a viver para ser apenas por
um dia um ser humano e depois participar do mundo celestial.
–Não deves pensar nisso! – disse a velha. – Somos muito mais felizes e
vivemos melhor que os homens lá em cima.
–Tenho, pois, de morrer e depois flutuar como espuma no mar, não ouvir a
música das ondas, ver as lindas flores e o sol vermelho! Nada posso fazer
para alcançar uma alma eterna?
– Não – disse a velha. – Só se um ser humano viesse a gostar tanto de ti que
fosses para ele mais do que pai ou mãe. Se ele, com todo o seu pensamento e
amor, se ligasse a ti e pedisse que um sacerdote pusesse-lhe a mão direita
na tua com a promessa de fidelidade aqui e em toda eternidade, então
passaria a própria alma para o teu corpo e tu participarias da felicidade dos
seres humanos. Dava-te a alma dele e conservava-a contigo. Mas isso não
pode acontecer! O que é mais bonito aqui no mar, a tua cauda de peixe,
acham-na feia lá em cima na terra. Não conseguem perceber isso, precisam
de dois apoios grosseiros, a que chamam pernas, para serem bonitos.
Então, a sereiazinha, olhando para a sua cauda de peixe, suspirou.
– Sejamos alegres! – disse a velha. – Saltemos e pulemos nos trezentos anos
que temos a viver! É, sem dúvida, tempo suficiente, e depois se pode
repousar ainda mais agradavelmente na sepultura. Esta noite vamos ter um
baile na corte!

Foi de uma pompa como nunca se vê na terra. As paredes e os tetos na


grande sala de baile eram de vidro espesso, mas claro. Várias de cochas
colossais, cor-de-rosa e verdes de erva, alinharam-se em filas de cada lado
com um fogo azul ardente, que iluminava toda a sala, e brilhava para o
exterior através das paredes, de modo que o mar lá fora estava
completamente iluminado. Podia-se ver todos os inumeráveis peixes que
nadavam perto das paredes de vidro: nuns brilhavam as escamas vermelhas
de púrpura, noutros pareciam de prata e de ouro. No meio, através da sala,
fluía uma larga torrente, na qual dançavam os cavalheiros marinhos e as
damas marinhas, ao som das suas próprias e belas canções.

Tão bonitas vozes não têm os seres humanos na terra! A sereiazinha foi quem
cantou melhor; bateram-lhe palmas e, por um momento, sentiu grande alegria
no coração por saber que possuía a voz bonita de todas na terra e no mar. Mas
logo voltou a pensar no mundo acima dela. Não podia esquecer o belo príncipe e
a mágoa de não possuir, como ele, uma alma imortal. Por isso saiu do palácio e,
enquanto lá dentro havia cantos e júbilo, foi sentar-se triste no jardinzinho.

Ouviu soar, então, uma trombeta embaixo, através da água, e pensou: “Agora,
vai de barco lá em cima, certamente, aquele de quem gosto mais do que de pai e
mãe, aquele a quem está preso o meu pensamento e em cujas mãos quero pôr a
felicidade da minha vida. Tudo quero arriscar para o ter e alcançar uma alma
imortal! Enquanto minhas irmãs dançam lá dentro no palácio de meu
pai, vou à bruxa do mar, de quem sempre tive tanto medo, mas que talvez
me possa aconselhar e ajudar”.
Então, a sereiazinha partiu do seu jardim em direção ao remoinho efervescente,
atrás do qual morava a bruxa. Tal caminho nunca havia feito antes. Lá não
cresciam flores, nenhuma alga, apenas o fundo de areia cinzento e nu se
estendia em direção aos remoinhos, onde a água, como rodas de moinhos
efervescentes, enrolava e rasgava tudo o que apanhava, levando-o consigo para
o fundo. Teria de ir por meio desses rodopios esmagadores para entrar no
distrito da bruxa do mar e ali, por um bom pedaço, não havia outro caminho
senão sobre o lamaçal bolhento e quente, a que a bruxa chamava de sua
turfeira. Por detrás ficava-lhe a casa, ao centro, num bosque estranho. Todas as
árvores e arbustos eram pólipos, metade animais metade plantas, pareciam
serpentes com centenas de cabeças que cresciam da terra.

Todos os ramos eram braços longos, viscosos, com dedos com vermes
flexíveis e, junta por junta, moviam-se da raiz à ponta mais extrema.
Enroscavam tudo o que podiam apanhar no mar e não o abandonavam mais.
A sereiazinha ficou aterrorizada e parou. O coração batia-lhe de medo,
esteve quase para regressar, mas pensou, então, no príncipe e na alma
humana e tomou coragem. Amarrou firmemente o cabelo longo e flutuante à
volta da cabeça para que os pólipos não o pudessem agarrar, juntou as mãos
no peito e lançou-se, como os peixes sabem cruzar a água, por entre os
horríveis pólipos, que estendiam os braços e dedos viscosos para ela.

Viu como cada um deles tinha alguma coisa que apanhara, centenas de
pequenos braços segurando como fortes ligaduras de ferro. Os homens que
haviam morrido no mar e tinham vindo ali para o fundo eram carcaças
brancas dos pólipos. Remos e caixas, seguravam-nos fortemente. Esqueletos
de animais terrestres e uma sereiazinha que tinham prendido e
estrangulado, o que foi para ela bem mais horroroso.

Chegou, enfim, a um grande lugar lamacento no bosque, onde cobras d’água


grandes e gordas rolavam, mostrando as feias barrigas amarelo-claras. No
meio desse lugar erguia-se uma casa feita com os ossos brancos dos homens
naufragados. Aí estava sentada a bruxa do mar, dando de comer a um sapo
na mão como os homens dão de comer açúcar a um pequeno canário. Às
cobras d’água horríveis e gordas chamava de os seus pintinhos e deixava-as
revirar-se no peito grande e esponjoso.
– Sei muito bem o que queres! – disse a bruxa do mar. – É uma idiotice! De
qualquer maneira, terás a tua vontade satisfeita, porque te trará infelicidade,
minha linda princesinha! Queres deitar fora a tua cauda de peixe e em vez dela
receber dois apoios para andar como os seres humanos, a fim de que o
jovem príncipe possa enamorar-se de ti e o possas ter e também uma alma
imortal – com isso a bruxa do mar riu tão alto e tão horrivelmente que o
sapo e as cobras caíram no chão e revolveram-se. – Vens na hora certa! –
disse a bruxa do mar.

– Amanhã, quando o sol nascer, já não poderei ajudar-te antes que se passe
um ano. Vou preparar-te uma bebida, mas terás de nadar, antes de o sol
nascer, para terra, sentar-te na praia e lá bebê-la. Então, perderás a tua
cauda e ganharás aquilo a que os homens chamam de umas lindas pernas.
Mas fazem doer, quero dizer-te, é como se uma espada afiada te
transpassasse. Todos os que te olharem dirão que és a mais bela criatura
que jamais viram. Manterás o teu andar ondulante, nenhuma dançarina
será capaz de andar como tu, mas cada passo que deres é como se pisasses
numa faca cortante, que te fizesse correr o sangue. Se queres sofrer tudo
isso, ajudo-te!

– Sim! – disse a sereiazinha com a voz trêmula, pensando no príncipe e em


alcançar uma alma imortal.

– Mas lembra-te – disse a bruxa – de que, quando receberes forma humana,


não poderás nunca mais voltar a ser sereia! Não mais poderás descer pela
água para tuas irmãs ou para o palácio do teu pai e, se não conseguires o
amor do príncipe, de maneira que ele por ti esqueça pai e mãe, fique preso a
ti com todo o pensamento, e que um Sacerdote junte as vossas mãos de
forma a tornarem-se marido e mulher, não receberás nenhuma alma
imortal! Na primeira manhã, depois de ele se ter casado com outra, quebrar-
se-á o teu coração e transformar-te-ás em espuma na água.
– Quero! – disse a sereiazinha, ficando pálida como morta.
– Mas a mim também tens de pagar! – disse a bruxa. – E não é pouco o que
exijo. Tens a voz mais bonita de todas aqui no fundo do mar, com ela crês
que podes vir a encantá-lo, mas essa voz tens de dá-la a mim. O que de
melhor possuis quero ter pela minha bebida preciosa!

Para que a bebida fique cortante como uma espada de dois gumes, tenho de
prepará-la com o meu próprio sangue!
– Mas se me tiras a voz – disse a sereiazinha –, que me resta?
– A tua bela figura – disse a bruxa – , o teu andar ondulante e os teus olhos
expressivos, com os quais podes bem seduzir o coração de um ser humano.
Então, perdeste a coragem? Estende a linguinha, que eu a corto como paga e
receberás a bebida eficaz!
– Assim seja! – disse a sereiazinha, e a bruxa foi buscar a caldeira para
cozinhar a bebida de feitiço. – A limpeza é uma boa coisa! – disse ela, e
esfregou a caldeira com as cobras que atou em nós, depois arranhou-se no
peito e deixou escorrer dentro o sangue negro. O vapor produzia as figuras
mais estranhas, de fazer tremer de medo. A cada momento, deitava a bruxa
novas coisas na caldeira e, quando estavam fervendo, era como se crocodilos
chorassem. Por fim a bebida ficou pronta, com o aspecto da água mais clara.
– Aqui a tens! – disse a bruxa, e cortou a língua à sereiazinha, que então
ficou muda, não podendo cantar nem falar.

– No caso de os pólipos te atacarem, quando regressar pelo meu bosque –


disse a bruxa– , lança-lhes apenas uma única gota desta bebida, rebentam-
lhes os braços e os dedos em mil pedaços.
Mas a sereiazinha não precisou disso, os pólipos recuavam aterrorizados
diante dela, quando viam a bebida brilhante que lhe luzia nas mãos como se
fosse uma estrela cintilante. Assim, atravessou rapidamente o bosque, o
lodaçal e os redemoinhos efervescentes.

Podia ver o palácio do pai. As luzes estavam apagadas no salão de baile.


Todos dormiam, certamente, mas não ousava procurá-los, agora era muda e
queria deixá-los para sempre. Era como se o coração se lhe despedaçasse de
mágoa. Então de mansinho no jardim, tomou uma flor de cada um dos
canteiros das irmãs, lançou com os dedos milhares de beijos na direção do
palácio e subiu pelo mar azul- escuro.
O sol ainda não havia saído quando viu o palácio do príncipe e subiu a
majestosa escadaria de mármore. A lua brilhava bela e clara. A sereiazinha
bebeu a bebida ardente e forte, e foi como se uma espada de dois gumes lhe
atravessasse o fino corpo. Então, perdeu os sentidos e ali ficou como morta.
Quando o sol brilhou por sobre o mar, acordou e sentiu uma dor aguda, mas na
sua frente estava o belo príncipe, fixando-a com os olhos negros de carvão, de
modo que baixou os seus e viu que a cauda de peixe havia desaparecido e que
possuía as mais bonitas pernas que uma garota poderia ter. Mas estava
completamente nua, por isso envolveu-se no seu longo cabelo negro.

O príncipe perguntou-lhe quem era e como tinha vindo parar ali e ela o
olhou docemente, contudo muito triste, com os seus olhos azul-escuros, pois
falar não podia. Então, ele a tomou pela mão e a conduziu ao palácio. Cada
passo que dava era, tal como a bruxa lhe dissera, como se pisasse em
agulhas pontiagudas e facas afiadas, mas tudo suportou de bom grado.
Apoiada pela mão do príncipe, subiu ligeira como uma bolha de ar e ele e
todos admiraram o seu andar gracioso e ondeante.
Foi presenteada com lindos vestidos de seda e de musselina. No palácio, era
a mais bonita de todas, mas era muda, não podia nem cantar nem falar.
Belas escravas vestidas de seda e ouro avançaram e cantaram para o
príncipe e para os seus régios pais. Uma cantou melhor do que todas as
outras e o príncipe bateu palmas e sorriu-lhe. A sereiazinha ficou triste, pois
sabia que ela própria cantaria muito melhor! Pensou:

“Oh! Ele devia saber que eu, para estar com ele, dei a minha voz de uma vez
para sempre!”.

Depois, lindas escravas dançaram, ondulando ao som da mais bela música.


Então, a sereiazinha levantou os lindos braços brancos, ergueu-se nas
pontas dos pés e deslizou sobre o chão, dançou como ninguém jamais havia
dançado. A cada movimento sua beleza tornou-se ainda mais visível e os
olhos falaram mais profundamente ao coração do que os cantos das escravas.

Todos ficaram encantados, especialmente o príncipe, que a chamou de sua


espozinha, e ela dançou mais e mais, se bem que cada vez que os pés
tocavam o chão era como se pisasse em facas afiadas. O príncipe disse-lhe
que devia ficar sempre com ele e recebeu permissão para dormir fora diante
da porta do seu quarto, numa almofada de veludo.

Mandou também fazer-lhe um traje de homem para que pudesse segui-lo a


cavalo. Cavalgaram pelos bosques perfumados, onde os ramos verdes lhe
batiam nos ombros e os passarinhos cantavam por detrás das folhas frescas.
Escalou com o príncipe as altas montanhas. Ainda que lhe sangrassem os
pés delicados, a ponto de outros o notarem, riu disso e seguiu-o até verem as
nuvens passar por baixo deles como se fossem um bando de aves voando
para terras estranhas.
Em casa, no palácio do príncipe, quando de noite os outros dormiam, ia até a
larga escadaria de mármore e lá refrescava os pés escaldantes, pondo-os na
água fria do mar, e pensava naqueles lá no fundo.

Uma noite, vieram as irmãs de braços dados, cantavam tristes enquanto


nadavam. Ela lhes acenou e elas a reconheceram e disseram-lhe como tinha
deixado todos tristes. Noites seguidas a visitaram depois, e certa noite viu
ao longe a velha avó, que havia muitos anos não subia à superfície do mar, e
o rei do mar, com a sua coroa na cabeça, estendendo as mãos para ela. Mas
não ousaram aproximar-se tanto da terra como as irmãs.
Dia a dia mais querida pelo príncipe, que gostava dela como se gosta de uma
criança boa e amável, mas ele não pensava em fazê-la sua rainha e ela tinha
de tornar-se sua mulher, caso contrário não obteria uma alma imortal. Na
manhã do noivado do príncipe com outra mulher, transformar-se-ia em
espuma do mar.
– Não gostas mais de mim do que de todas as outras? – pareciam dizer os
olhos da sereiazinha, quando ele a tomava nos braços e beijava-lhe a linda
testa.
– Sim, és para mim a mais querida – disse o príncipe – , pois tens o melhor
coração de todas, és a mais delicada e pareces-te com uma jovem que uma
vez vi, mas que certamente não mais encontrei. Eu estava num navio que
naufragou, as ondas me levaram para terra junto a um templo santo, onde
várias jovens prestavam serviços. A mais nova encontrou-me na baía e
salvou-me a vida. Só a vi duas vezes, era a única que podia amar neste
mundo, mas tu te pareces com ela, quase suplantas a imagem dela na minha
alma. Ela pertence ao templo santo e, portanto, a minha boa sorte levou-me
para ti, não vamos nunca nos separar!…

“Ai! Não sabe que lhe salvei a vida!”, pensou a sereiazinha. “trouxe-o sobre o
mar para o bosque, onde está o templo, pus-me por detrás da espuma da
água vendo se vinha algum ser humano. Vi a bela jovem de quem gosta mais
do que de mim!” E a sereia suspirou fundo, pois chorar não podia. “A donzela
pertence ao templo santo, disse ele, não virá nunca para o mundo, não se
encontrarão mais. Estou na casa dele, vejo-o todos os dias, quero cuidar dele,
amá-lo, oferecer-lhe a minha vida.”

Agora o príncipe iria casar-se com a bonita filha do rei vizinho, contava-se.
Por isso é que se aparelha tão lindamente um navio. O príncipe viaja para
ver as terras do rei vizinho, diz-se, mas é para ver a filha do rei vizinho, que
vai levar um grande séquito. A sereiazinha abanou a cabeça e sorriu.
Conhecia os pensamentos do príncipe muito melhor do que todos os outros.

− Tenho de partir em viagem! − disse o príncipe para ela. − Tenho de ver a


bela princesa, meus pais assim o querem. Mas não me obriguem a trazê-la
para casa como noiva, isso não! Não gosto dela! Não se assemelha à bonita
jovem no templo, como tu te assemelhas. Se alguma vez tiver de escolher
noiva, será a ti, minha espozinha muda de olhos falantes!

E beijou-lhe a boca rubra, brincou com o seu cabelo longo e pôs a cabeça
junto ao coração dela, que sonhava com a felicidade humana e com uma
alma imortal.
− Não tens medo do mar, minha mudinha? − disse ele quando já estavam no
navio magnífico que deveria conduzi-lo às terras do rei vizinho. E falou-lhe
de tormentas e calmarias, de peixes estranhos no fundo, e do que os
mergulhadores já haviam visto. E ela sorriu com as suas descrições,
conhecia melhor do que ninguém o fundo do mar.
Na noite clara de luar, quando todos dormiam, com exceção do timoneiro, que
estava ao leme, sentou-se na amurada do navio olhando para baixo, na água
clara, e pareceu-lhe ver o palácio do pai. Sobrepondo-se a tudo estava a
velha avó, com a coroa de prata na cabeça, que olhava através das correntes
fortes para a quilha do navio. Depois, vieram as irmãs, olharam tristemente
para ela e agitaram as mãos brancas. Acenou-lhes, e sorriu, e queria dizer-
lhes que tudo corria bem e que era feliz, mas um moço de bordo aproximou-
se e as irmãs mergulharam de tal modo que ele acreditou que o branco que
vira era espuma do mar.
No dia seguinte, o navio entrou no porto da bela cidade do rei vizinho. Todos os
sinos tocaram e das torres altas soaram trombetas, enquanto os soldados
formavam com bandeiras flutuando ao vento e baionetas cintilantes. Cada dia
havia uma festa. Bailes e reuniões de sociedade seguiam-se uns aos outros, mas
a princesa ainda não chegara; estava sendo educada longe dali, num templo
santo, disseram. Lá, aprendia todas as virtudes reais. Por fim, chegou.

A sereiazinha estava curiosa para ver-lhe a beleza e teve de reconhecer,


quando a viu, que era a figura mais bonita que jamais vira. A pele era fina e
macia e, por detrás das longas pestanas escuras, sorria um par de olhos azul
escuros, leais.
− És tu! − exclamou o príncipe. − Tu que me salvaste quando jazia como um
cadáver na costa! − e apertou a noiva, erubescida, nos braços. − Oh! Como sou
feliz! − disse ele para a sereiazinha. − O melhor, aquilo que nunca ousei
esperar, tornou-se realidade para mim. Vais alegrar-te com a minha felicidade,
pois gostas mais de mim do que todas as outras! − e a sereiazinha beijou-lhe a
mão e pareceu-lhe sentir o coração quebrar-se. A manhã do noivado do príncipe
trar-lhe-ia a morte e transformá-la-ia em espuma do mar.

Todos os sinos repicavam, os arautos percorriam as ruas a cavalo, anunciando o


noivado. Em todos os altares ardiam óleos aromáticos e preciosas lâmpadas de
prata. Os sacerdotes balançavam os turíbulos, e o noivo e a noiva deram um ao
outro as mãos e receberam a benção do bispo. A sereiazinha estava vestida de
seda e ouro, e segurava a cauda do vestido da noiva, mas os seus ouvidos não
ouviam a música festiva, os olhos não viam a cerimônia santa, pensava na noite
de sua morte, em tudo o que havia perdido neste mundo.

Ainda naquela noite foram noiva e noivo para bordo do navio, os canhões
soaram, todas as bandeiras flutuavam ao vento e no meio do navio estava
erguida uma preciosa tenda de ouro e púrpura com as mais bonitas
almofadas. Lá o casal de noivos dormiria na noite calma e fresca.

As velas enfunaram ao vento e o navio desligou ligeiro e sem grande


oscilação sobre o mar claro.
Quando escureceu, acenderam-se lâmpadas de cores diversas e os homens
do mar dançaram danças alegres na coberta. A sereiazinha lembrou-se da
primeira vez que veio à superfície, viu a mesma pompa e alegria e lançou-se
a rodopiar na dança, pairou como paira a andorinha quando é perseguida, e
todos manifestaram com jubilo a sua admiração, nunca dançara tão
maravilhosamente! Era como se facas afiadas lhe golpeassem os pés finos,
mas ela não sentia, feriam-na no coração mais dolorosamente. Sabia que era
a última noite que veria aquele por quem havia deixado a família e o lar, por
quem havia perdido a bonita voz e sofrido diariamente tormentos infindos,
sem vacilar.

Era a última noite, respirava o mesmo ar que ele, via o mar fundo e o céu
azul com estrelas. Uma noite eterna sem pensamentos e sonhos esperava
por ela, que não tinha nenhuma alma, nem podia alcançá-la. Tudo foi
alegria e satisfação no navio para além da meia-noite, enquanto ela dançava
com o pensamento da morte no coração. O príncipe beijou a linda noiva, ela
acariciou-lhe o cabelo negro, e de braços dados foram repousar na tenda
magnífica.

Fez-se silêncio e houve calma no navio, só o timoneiro ficou no leme. A


sereiazinha pôs os braços alvos na amurada e olhou para leste procurando
ver a aurora. O primeiro raio de sol, sabia ela, iria matá-la. Viu, então, as
irmãs subirem à superfície. Estavam pálidas como ela, seus cabelos longos e
bonitos não flutuavam mais ao vento, haviam sido cortados.

− Oferemo-los à bruxa para que nos ajudasse a impedir que morresses esta
noite. Deu-nos uma faca, está aqui. Vê como é afiada! Antes de o sol levantar-se,
tens de a espetar no coração do príncipe e, quando o sangue quente dele
derramar sobre teus pés, tranformar-se-ão numa cauda de peixe e tu voltarás a
ser sereia, poderás descer na água até nós e viver os teus trezentos anos antes
de vires a ser espuma morta e salgada. Rápido! Estás vendo a faixa vermelha
no céu? Em poucos minutos vai nascer o sol e morrerás! − lançaram um suspiro
estranho e profundo e mergulharam nas ondas.

A sereiazinha afastou o tapete de púrpura da tenda e viu a bela noiva


dormindo com a cabeça no peito do príncipe, a quem beijou a linda testa.
Olhou para o céu, onde a aurora luzia mais e mais, olhou para a faca afiada
e voltou a fitar os olhos no príncipe, que em sonhos pronunciava o nome da
noiva. Ela e somente ela é que estava nos pensamentos dele. A faca tremeu
na mão da sereia, que a lançou para longe, nas ondas, que brilharam
vermelhas onde caiu. Era como se borbulhassem gotas de sangue na
superfície do mar. Ainda uma vez olhou para o príncipe, com o olhar meio
enublado, depois se lançou do navio ao mar, onde seu corpo se desfez em
espuma.
Nasceu, então, o sol. Seus raios tombaram suaves e quentes sobre a espuma
do mar fria de morte e a sereiazinha não sentiu a morte, viu o sol luminoso e
por cima dela pairarem centenas de belas criaturas transparentes. Podia ver
através delas as velas brancas do navio e as nuvens vermelhas do céu. Suas
vozes eram melodiosas, mas tão espirituais que nenhum ouvido humano
podia ouvi-las, tal como nenhuns olhos terrestres podiam vê-las. Sem asas,
pairavam pela sua própria leveza no ar. A sereiazinha viu que tinha um
corpo como elas, que se elevava mais e mais da espuma.

− Para quem venho eu? − disse ela, e sua voz soou como a dos outros seres,
tão espiritual que nenhuma música terrestre pode transmiti-la.

− Para as Filhas do Ar! − responderam as outras. − As sereias não têm uma


alma imortal, não podem nunca alcançá-la, só se ganhassem o amor de um
ser humano. De um poder estranho depende a sua existência eterna. As
Filhas do Ar também não têm alma eterna, mas podem elas próprias, com
boas ações, obter uma. Voamos para as terras quentes, onde o ar pestilento e
abafado mata os homens. Lá produzimos frescor. Espalhamos perfume de
flores no ar e damos frescor e alívio. Se tivermos nos esforçado trezentos
anos por fazer o bem, podemos, então alcançar uma alma imortal e
participar na felicidade eterna dos seres humanos. Tu, pobre sereiazinha,
esforçastes-te com todo o coração pelo mesmo que nós, sofreste e suportaste
dores, elevaste-te para o mundo dos espíritos do ar e agora podes tu própria,
com as boas ações, conseguir uma alma imortal dentro de trezentos anos.

E a sereiazinha ergueu os braços claros para o sol de Deus e, pela primeira


vez, sentiu correrem-lhe lágrimas. No navio, havia outra vez alarido e vida,
viu o príncipe, com sua linda noiva, procurando por ela. Olhavam tristes
para a espuma borbulhante, como se soubessem que se lançara nas ondas.
Invisível, beijou a testa da noiva, sorriu para ele e subiu com as outras
Filhas do Ar na nuvem cor-de-rosa que flutuava no céu.
− Em trezentos anos ascendemos, assim, para o reino de Deus!
− Também podemos alcançá-lo mais cedo! −Murmurou uma.
Entramos invisíveis nas casas dos homens onde há crianças e por cada dia
que encontramos uma criança boa, que faz a alegria dos pais e merece o
amor deles, Deus encurta o nosso tempo de prova. A criança não sabe
quando voamos pela casa e, se sorrimos de alegria por ela, é-nos tirado um
ano dos trezentos. Mas, se virmos uma criança malcriada e má, então
choramos lágrimas de tristeza, e cada lágrima aumenta em um dia o nosso
tempo de prova!
O Firme Soldadinho de Chumbo

Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo. Eram todos irmãos, pois
tinham nascido de uma velha colher de chumbo. Traziam espingardas ao
ombro, olhar bem em frente. Vermelhos e azuis, que bonitos eram os
uniformes! O que primeiro de tudo ouviram neste mundo, quando foi tirada
a tampa da caixa em que se encontravam, foram as palavras: “Soldados de
chumbo!”. Gritou-as um rapazinho, batendo palmas. Recebera-os porque era
o seu aniversário e colocara-os em pé sobre a mesa. Cada soldado
assemelhava-se exatamente aos outros, só um era um pouco diferente.
Tinha apenas uma perna, pois fora o último a ser fundido e o chumbo não
fora suficiente. Contudo, estava de pé tão firmemente sobre uma perna como
os outros nas duas, e é precisamente este soldado que será notável.
Na mesa, onde foram postos de pé, estavam muitos outros brinquedos, mas o
que dava mais a vistas era o belo palácio de cartão. Através das janelinhas
podia-se ver diretamente as salas. Do lado de fora havia arvorezinhas em
volta de um espelhinho que devia parecer um lago. Cisnes de cera vogavam
lá, refletindo-se nas águas. Todo o conjunto era bonito, mas o mais bonito,
contudo, era uma menina que estava entre as portas abertas do palácio.
Também era recortada em cartão, mas tinha uma saia do mais claro linho e
uma estreita fitinha azul sobre os ombros como um xale. No meio deste
estava uma palheta brilhante, tão grande como o rosto dela. A menina
estendia ambos os braços, pois era uma bailarina, e levantava uma perna
tão alto no ar que o soldado de chumbo mal podia vê-la e julgou que tinha só
uma perna, como ele.

− Era uma mulher para mim! − pensou ele. − Mas é bastante distinta, mora
num palácio. Eu tenho apenas uma caixa e somos vinte e cinco, não é lugar
que lhe convenha! Contudo verei se travo conhecimento com ela! − e assim
colocou-se, na distância em que se encontrava, por detrás de uma caixa de
rapé que estava na mesa. Dali podia ver convenientemente a daminha, que
continuava de pé sobre uma perna, sem perder o equilíbrio.
Quando já era noite fechada, voltaram todos os outros soldados de chumbo para
a caixa e as pessoas da casa foram para a cama. Então, os brinquedos
começaram a brincar de visitar, de fazer guerras ou de ir a bailes. Os soldados
de chumbo agitaram-se fazendo barulho dentro da caixa, pois também queriam
participar nas brincadeiras, mas não conseguiram abrir a tampa. Os quebra-
nozes deram cambalhotas e as penas fizeram travessuras nas ardósias. Era um
espetáculo, de tal modo que o canário acordou e começou também a chilrear, e
em verso. Os únicos que não se mexeram dos seus lugares foram o soldado de
chumbo e a pequena bailarina. Ela continuava na ponta do pé e com ambos os
braços estendidos. Ele estava bem firme na sua única perna, os olhos não se
desviando nem um momento dela.

Soou meia-noite e taque!, saltou a tampa da caixa de rapé. Não havia tabaco
algum lá dentro, mas sim gnomozinho preto, pois era um truque.

− Soldado de chumbo! − disse o gnomo. − Não queres pôr os olhos em ti


mesmo!
Mas o soldado de chumbo riu, como se não o ouvisse.
− Está bem, espera por amanhã! − disse o gnomo.
Quando amanheceu e as crianças se levantaram, o soldado de chumbo foi
colocado junto à janela e, quer tenha sido o gnomo, quer um golpe de vento,
esta abriu-se de súbito e o soldado caiu, de cabeça para baixo, do terceiro
andar. Foi uma viagem terrível, a perna virou-se completamente para o ar e
ele ficou caído sobre o capacete, com a baioneta para baixo, entre as pedras
da calçada.

A criada e o rapazinho desceram imediatamente para buscá-lo, mas embora


quase o estivessem pisando, não conseguiram vê-lo. Se o soldado tivesse
gritado “estou aqui!”, bem o teriam encontrado, mas ele não achou
conveniente gritar, pois estava de uniforme.
Começou, então, a chover, cada gota mais espessa do que a outra. Tornou-se
um aguaceiro perfeito. Quando passou, vieram dois rapazes da rua.
− Olha! − disse um. − Ali está um soldado de chumbo! Vai partir de barco!

Assim, fizeram um barco de papel-jornal, puseram o soldado de chumbo lá


dentro, no meio, e ei-lo a navegar valeta abaixo. Ambos os rapazes corriam
ao lado, batendo palmas. Deus nos livre disso! Que ondas havia na valeta, e
que corrente! Tinha chovido torrencialmente. O barco de papel-jornal
balouçava para cima e para baixo, e nos intervalos virava com tanta rapidez
que o soldado de chumbo estremecia. Mas mantinha-se firme, não mexia um
músculo, olhava bem em frente e segurava a espingarda ao ombro.

De repente, o barco entrou numa longa sarjeta. Ficou tudo às escuras, como
se estivesse dentro da caixa.
− Para onde irei agora? − pensou. − Ah! Sim, sim, é coisa do gnomo! Aí!
Estivesse a jovem aqui no barco, bem podia fazer o dobro do escuro!
Neste momento apareceu um grande rato dos canos, que vivia por baixo da
sarjeta.
− Tens passaporte? − perguntou o rato. − Passa para cá o passaporte!
Mas o soldado de chumbo ficou calado e segurou a arma ainda mais firme. O
barco passou e o rato atrás dele. Ui! Como mostrava os dentes e gritava para
os pauzinhos e palhinhas:
− Façam-no parar! Façam-no parar! Não pagou a portagem! Não mostrou o
passaporte!
A corrente tornou-se cada vez mais forte. O soldado de chumbo já podia ver
a luz do dia na sua frente, onde terminava a sarjeta. Mas ouviu também um
rugido que bem podia assustar um homem corajoso. Vejam bem, a sarjeta
tombava a pique, onde terminava o cano, para fora, para um grande canal
que seria para ele tão perigoso como para nós descer de barco uma grande
queda d’água. Agora estava tão perto que não podia parar. O barco avançou,
o pobre soldado agarrou-se tão firme quanto pôde.
Ninguém lhe podia dizer que tivesse pestanejado. O barco rodopiou três,
quatro vezes e encheu-se água até a borda − ia afundar. O soldado de
chumbo estava com água até o pescoço e cada vez mais fundo o barco
afundava, e cada vez mais se dissolvia o papel. Agora a água já estava por
cima da cabeça do soldado… Então, pensou na pequenina e linda bailarina
que nunca mais iria ver, e soaram-lhe ao ouvido as palavras da canção:

Perigo, perigo, guerreiro!


A morte vai sofrer!
Depois, desfez-se o papel e o soldado de chumbo caiu por entre este… mas
foi no mesmo momento engolido por um grande peixe.

Oh! Como era escuro lá dentro! Ainda era pior do que na sarjeta, e tão
apertado! Mas o soldado de chumbo era firme e ficou onde estava, com a
arma no braço…

O peixe andou às voltas, fazia os mais terríveis movimentos. Por fim, ficou
completamente quieto e entrou como que um relâmpago por ele. A luz
brilhou bem clara e alguém gritou:
− O soldado de chumbo!

O peixe fora apanhado, levado para o mercado, vendido e levado para a


cozinha, onde a criada o abriu com uma grande faca. Pegou com dois dedos o
soldado pelo meio e o levou para a sala, onde todos queriam ver o homem tão
notável que viajara na barriga de um peixe. Mas o soldado de chumbo não
estava nada orgulhoso disso. Puseram-no em cima da mesa e aí… como
podem neste mundo acontecer coisas maravilhosas! O soldado de chumbo
estava no mesmo aposento em que estivera antes.

Viu as mesmas crianças e os brinquedos que estavam em cima da mesa. O


belo palácio com a linda e pequenina bailarina, que ainda se sustinha numa
perna, com a outra levantada no ar. Ela também era firme. Isso comoveu o
soldado de chumbo. Esteve quase a verter lágrimas de chumbo, mas não era
coisa que lhe ficasse bem. Olhou para ela e ela olhou para ele, mas não
disseram nada.

No mesmo momento, um dos rapazinhos pegou o soldado e o pôs dentro do


fogão, e não deu qualquer explicação. Com certeza foi o gnomo da caixa que
teve culpa.
O soldado de chumbo ficou iluminado e sentiu um grande calor. Era terrível,
mas se era realmente do fogo ou do amor, não sabia. Desapareceram-lhe as
cores, mas se foi da viagem ou da mágoa ninguém o podia dizer. Olhava para a
menina, ela olhava para ele, e sentiu que se derretia, mas ficou firme, com
a espingarda ao ombro. Abriu-se, então, uma porta, o vento apanhou a
bailarina, que voou como uma sílfide para dentro do fogão, para o soldado de
chumbo, ardeu em chamas, desapareceu. Assim, o soldado de chumbo se
derreteu num pedacinho de chumbo e, quando a criada tirou as cinzas no dia
seguinte, encontrou-o na forma de um coraçãozinho. Da bailarina, ao
contrário, restava apenas a palheta, e esta estava preta como carvão.
O Traje Novo do Imperador

Há muitos anos vivia um imperador que gostava tanto de trajes novos e


bonitos que gastava todo o seu dinheiro para vestir-se bem. Não se
preocupava com os seus soldados, nem com comédias, nem em passear de
carruagem no bosque, apenas em exibir trajes novos. Tinha uma casaca para
cada hora do dia e, tal como se costuma dizer de um rei que está em
conselho, dizia-se sempre nesse caso: “O imperador está no guarda-roupa”.
Na grande cidade em que vivia, a vida transcorria agradavelmente. Todos os
dias chegavam forasteiros. Um dia, chegaram dois vigaristas. Disseram-se
tecelões e afirmaram que sabiam tecer a mais bonita fazenda que se podia
imaginar. Não só as cores e o padrão eram algo invulgarmente bonitos, mas
também as vestimentas que fossem feitas com essa fazenda tinham a
maravilhosa propriedade de ficar invisíveis para qualquer pessoa que não
fosse boa no seu ofício ou, então, que fosse completamente estúpida.

“Seria um traje bem bonito para vestir”, pensou o imperador. “Poderia saber
que pessoas no meu império não prestam no ofício que exercem. Poderia
distinguir os espertos dos estúpidos! Sim, essa fazenda tem de ser tecida
imediatamente para mim!” E pôs nas mãos dos dois vigaristas muito
dinheiro para que começassem o trabalho.

Assim, montaram dois teares, fingiam estar trabalhando, mas não teciam
nada. Sem hesitação, pediram a seda mais fina e o ouro mais bonito.
Meteram-nos sacos e trabalharam com os teares vazios até tarde da noite.

“Queria saber agora como está a fazenda!”, pensou o imperador, mas no


fundo estava bastante incomodado por saber que todo aquele fosse estúpido
ou que não prestasse no ofício não conseguiria vê-la. Cria bem que não
precisava recear por si próprio. Em todo caso, mandaria alguém primeiro
para ver o que se passava. Todas as pessoas da cidade sabiam que poder
maravilhoso tinha o tecido e todos estavam desejosos de saber até que ponto
o vizinho não valia nada ou era estúpido.

“Vou mandar o meu velho e honrado ministro aos tecelões”, pensou o


imperador. “pode ver melhor como se apresenta o tecido, pois é inteligente e
ninguém é melhor no seu trabalho do que ele”.

Assim, o velho e honrado ministro se dirigiu à sala onde os dois vigaristas


estavam sentados trabalhando com seus teares vazios. “Deus nos valha”,
pensou o ministro arregalando os olhos. “Não consigo ver nada!” Mas nada
disse.
Ambos os vigaristas lhe pediram para ter a gentileza de aproximar-se e
perguntaram-lhe se não era bonito o padrão e lindas as cores. Apontaram para
os teares vazios e o pobre velho ministro arregalou os olhos, mas não via nada,
pois não havia nada para ver. “Meu Deus!”, pensou ele. “Serei estúpido? Nunca
tinha pensado nisso. Mas ninguém deve sabê-lo. Não presto para o meu
trabalho? Não, não pode ser, não vou dizer que não consigo ver o tecido”.

− Então, vossa Excelência não diz nada? − perguntou aquele que estava
tecendo.
− Oh! É lindo! Primoroso! − disse o ministro, olhando através dos óculos. −
Este padrão e estas cores! Sim, vou dizer ao imperador que me agrada
extraordinariamente!
− Oh! Muito nos alegra saber! − disseram ambos os tecelões, que indicaram
depois os nomes das cores e descreveram o padrão especial. O velho ministro
ouviu tudo muito bem para poder repetir, quando regressasse, ao imperador.
E assim o fez.

Então os vigaristas pediram mais dinheiro, mais seda e ouro, que seriam
necessários para confeccionar o tecido. Meteram tudo nos sacos. Para os
teares não veio nem um fio! Mas continuaram, como antes, tecendo no tear
vazio.
O imperador enviou pouco depois um outro honrado funcionário para ver como
ia a confecção do tecido e para saber se estaria pronto em breve. Passou-se o
mesmo que se tinha passado com o ministro. Olhou e voltou a olhar, mas como
não havia outra coisa a não ser teares vazios, nada conseguiu ver.

− Não é verdade que é uma bela peça? − perguntaram ambos os vigaristas,


exibindo-a e dando esclarecimentos sobre o belo padrão que, evidentemente,
não existia.

“Estúpido não sou!”, pensou o homem. “Será que não presto para o meu
trabalho? Que piada! Mas não vou dar o prazer de alguém perceber”. Desse
modo, louvou o tecido, que não via, e assegurou-lhes o gosto de ver as lindas
cores e o bonito padrão.
−Sim, é primoroso! − disse ele ao imperador.
Todas as pessoas da cidade falavam do lindo tecido.

Então, o imperador quis ele próprio ver o que fora feito nos teares. Com uma
comitiva de seletos senhores, entre os quais os dois velhos e honrados
funcionários, que antes já lá haviam estado, dirigiu-se para os dois astutos
vigaristas, que agora teciam com todas as forças, mas sem fio nem fibra.
− Não é “très magnifique”? − perguntaram ambos os honrados funcionários.
− Queira Vossa Majestade ver que padrão, que cores! − e apontaram para os
teares vazios, pois criam que os outros podiam certamente ver a fazenda.

“Que é isto?”, pensou o imperador. “Não vejo nada! Oh! É terrível! Serei
estúpido? Não presto para ser imperador? Seria a coisa mais horrível que
me poderia acontecer!”

− Oh! É muito bonito! − disse o imperador. − Tem a minha suprema


aprovação! − e acenou com a cabeça satisfeito, observando os teares vazios.
Não queria dizer que não conseguia ver nada.

Toda a comitiva que viera com ele olhou e tentou a olhar, mas não viu mais
do que todos os outros. Disseram, contudo, como o imperador:
− Oh! É muito bonito! − e aconselharam-no a vestir aquele novo e bonito
traje pela primeira vez na grande procissão que iria realizar-se.

− “Magnifique!” Lindo! Excelente! − andava de boca em boca, e todos se


sentiam intimamente contentes com isso. O imperador deu a cada um dos
vigaristas uma cruz de cavalheiro para pendurar na botoeira e o título de
cavalheiro de tear.

Toda a noite antes da manhã em que a procissão teria lugar estiveram os


vigaristas de pé, com mais de dezesseis velas acesas. O povo podia ver que
estavam ocupados em aprontar o novo traje do imperador. Fingiam que
tiravam a fazenda do tear, que a cortavam no ar com grandes tesouras, que
a cosiam com agulhas e linha. Por fim, disseram: − Vede, o traje está pronto!

O imperador, com os seus cavalheiros mais distintos, foi ele próprio ao


encontro dos vigaristas, que levantaram um braço no ar, como se
segurassem alguma coisa, e disseram:
− Aqui estão as calças! Eis a casaca! Aqui está o manto! − e assim por diante.
− É tão leve como teia de aranha! Crer-se-ia que não se tem nada sobre o
corpo, mas é precisamente a sua virtude!
−É claro! − disseram todos os cavalheiros, mas não conseguiam ver coisa
alguma, pois nada havia para ver.

−Se agora Vossa Majestade Imperial tivesse a bondade de comprazer-se em


tirar as roupas − disseram os vigaristas −, vestir-lhe-íamos o novo traje,
aqui diante do grande espelho.

O imperador despiu todas as roupas e os vigaristas fizeram como se lhe


entregassem peça por peça do novo traje, supostamente acabado. Pegaram-
lhe pela cintura e fingiram acertar algo que estava puxado e o imperador
virava-se e voltava-se diante do espelho.

−Deus! Como veste bem! Como assentam lindamente! − disseram todos


juntos. − Que padrão! Que cores! É um traje precioso!
− Lá fora já estão com o pálio sob o qual irá Vossa Majestade na procissão
−disse o mestre de cerimônias principal.
− Está bem, já estou pronto − disse o imperador. − Não assenta bem? −
virou-se ainda uma vez mais diante do espelho, pois devia parecer como se
estivesse a admirar verdadeiramente a sua elegância.
Os funcionários da corte que tinham de segurar a cauda do traje tatearam
com as mãos o chão, como se a levantassem. Saíram segurando-a no ar, pois
não deviam deixar transparecer que nada conseguiam ver.
Então, o imperador saiu em procissão sob o pálio, e todas as pessoas na rua
e nas janelas diziam:

− Meu Deus! Como é impecável o novo traje do imperador! Que bela cauda
tem na casaca! Como assenta tão bem!
Ninguém queria que notasse que nada via, pois desse modo seria
considerado mau no ofício ou muito estúpido. Nenhum outro traje do
imperador produzia tanta felicidade!
− Mas não está vestindo nada! Disse uma criancinha.
− Louvado seja Deus! Ouçam a voz da inocência! − disse o pai. E cada um
segredou ao outro o que dissera a criança.
− Não está vestindo nada! − gritou por fim todo o povo. E isso impressionou
o imperador, pois parecia-lhe que o povo tinha razão. Mas pensou: “Agora,
tenho de continuar com a procissão”. E continuou, ainda mais orgulhoso, e
os funcionários da corte atrás, segurando a cauda, cauda que não existia.
O Patinho Feio

Estava tão bonito lá fora no campo! Era verão, o trigo estava amarelo, a
aveia estava verde, o feno amontoado em medas nos prados verdes, e aí
andava a cegonha com as suas longas pernas vermelhas falando egípcio, pois
esta língua a aprendeu da mãe dela. Em redor dos campos e dos prados
havia bosques grandes e no meio deles, fundos lagos. Sim, estava
verdadeiramente bonito lá fora no campo! Ao centro, iluminado pelo sol, via-
se um velho solar com fundos canais à volta dos muros e para baixo, até a
água, cresciam grandes folhas de bardanas, tão altas que as crianças podiam
ficar de pé sob as maiores delas. Era tão emaranhado aí como no bosque
mais espesso e lá se encontrava uma pata no seu ninho.

Devia chocar os seus patinhos, mas estava muito cansada disso, pois
demorava muito tempo e raramente recebia visitas. As outras patas
gostavam mais de nadar à volta, nos canais, que de correr lá para cima e
sentarem-se sob uma folha de bardana para grasnar com ela.
Por fim, rebentou um ovo após outro.
−”Pi!Pi!” − diziam eles. Todas as gemas de ovo se tornaram criaturas vivas,
pondo a cabeça de fora.

− Vá! Vá! − disse ela, e eles se apressaram quanto podiam e olhavam para
todos os lados sob as folhas verdes. E a mãe deixava-os olhar tanto quanto
queriam, pois o verde é bom para os olhos.
− Como o mundo é tão grande! − disseram os filhotes. Pois, na verdade, tinham
agora bem mais espaço do que quando se encontravam dentro do ovo.

− Não julguem que isto é todo o mundo! − disse a mãe. − Estende-se para
muito além do outro lado da quinta, bem para dentro do campo do pastor!
Mas lá nunca estive! Estão todos aqui! −disse levantando-se, − Não, não
estão todos! O ovo maior ainda está ali! Quanto tempo vai demorar? Estou
começando a ficar cansada! − voltou a deitar-se.

− Então, como vai isso? − perguntou uma velha pata que vinha fazer-lhe
uma visita.

−Está tão demorado este ovo! − disse a pata que chocava. − Não há meio de
furá-lo! Mas vê os outros! São os patinhos mais bonitos que jamais vi!
Parecem-se todos com o pai, esse malvado que não vem visitar-me.
− Deixa-me ver o ovo que não quer rebentar! − disse a velha.− Podes crer que
é um ovo de peru! Assim também fui enganada uma vez e tive tantos
aborrecimentos com os filhotes, pois têm medo da água, devo dizer-te! Não
consegui levá-los até lá! Grasnei e dei-lhes bicadas, mas não serviu de nada!
Deixa-me ver o ovo! Sim, é um ovo de peru! Deixa-o ficar aí e ensina os
outros filhotes a nadar!

−Quero chocá-lo um pouco mais! − disse a pata. − Já que estive deitada


tanto tempo, posso também ficar o tempo do defeso!

− Como quiseres! − disse a velha pata, e foi-se


embora. Finalmente, o ovo grande rebentou.
− “Pi! Pi!” − disse o filhote, deixando-se tombar para fora. Era tão grande e
feio! A pata olhou para ele: − Mas é um patinho terrivelmente grande!
−exclamou. − Nenhum dos outros se parece assim! Não será, com certeza,
um peruzinho! Bem, em breve vamos saber! Para a água terá de ir, nem que
eu tenha de arrastá-lo as bicadas!

No dia seguinte, fazia um tempo maravilhoso. O sol brilhava sobre todas as


bardanas verdes. A mãe dos patinhos avançou com toda a família para
baixo, em direção ao canal. Chap! Saltou na água.

− Vá! Vá! − disse ela, e os patinhos deixaram-se cair um após outro. Ficaram
com a cabeça debaixo de água, mas vieram logo para cima e flutuaram
maravilhosamente. As pernas andavam por si próprias e todos lá estavam, o
próprio filhote feio e cinzento também nadava.
− Não, não é nenhum peru! − exclamou ela. − Como mexe tão bem as pernas,
como se mantém direito! É mesmo meu filho! No fundo, é bastante bonito,
quando se observa bem! Vá! Vá! Venham agora comigo, vou levá-los para o
mundo e apresentá-los no pátio dos patos, mas andem sempre ao pé de mim,
para ninguém lhes pise, e tenham cuidado com o gato!
Entraram, assim, no pátio dos patos. Fazia um barulho terrível lá dentro,
pois havia duas famílias que se batiam por uma cabeça de enguia, mas foi o
gato que a apanhou.
− Vejam, assim se passam as coisas no mundo! − disse a mãe dos patinhos,
lambendo o bico, pois também lhe apetecia a cabeça de enguia.

− Mexam as pernas agora! − disse ela. − Vejam se podem grasnar e fazer


uma cortesia com o pescoço diante daquela pata velha! É a mais distinta de
todas aqui. É de sangue espanhol, portanto é pesada, e vejam como tem um
trapo vermelho em volta da perna! É algo de extraordinariamente belo e a
maior distinção que uma pata pode receber. Significa muito, que não se quer
desembaraçar dela e que deve ser reconhecida por animais e homens.
Grasnem! Não com as pernas para dentro! Um patinho bem criado põe as
pernas bem afastadas uma da outra, como o pai e a mãe! Assim! Façam uma
cortesia com a cabeça e digam: “Quá!”.

E assim fizeram. Mas as outras patas ao redor olharam para eles e disseram
bem alto:

− Vejam! Vamos ter agora mais aquela ninhada! Como se já não fôssemos
muitos! Ai! Que aspecto tem aquele patinho! Não podemos tolerar isso!
E logo esvoaçaram, uma pata atrás da outra, para ir mordê-lo na nuca.
− Deixem-no! −disse a mãe. − Não fez mal algum a ninguém!

−Sim, mas é demasiado grande e demasiado estranho! − disse a pata que o


mordeu. −Por isso tem que apanhar!
− São bonitos os filhotes que a mãe tem! − disse a pata velha com o trapo na
perna. − Todos bonitos, exceto um, que não teve êxito! Desejaria que ela
pudesse refazê-lo!
− Não serve de nada, Vossa Mercê! − disse a mãe dos patinhos.
− Ele não é bonito, mas tem bom feitio e nada tão bem como qualquer dos
outros; sim, ouso mesmo dizer, um pouco melhor! Penso que vai tornar-se
bonito ou que com o tempo ficará menor! Ficou muito tempo no ovo, por isso
não recebeu a forma correta! − e passou-lhe o bico na nuca, alisando-lhe as
penas. − Além disso, é um pato − disse ela −, por isso não tem muita
importância! Confio que venha a ter boas forças, vai vencer de certeza!
− Os outros patinhos são engraçadinhos! − disse a velha. − Façam como se
estivessem em casa e, se encontrarem uma cabeça de enguia, podem trazê-la
para mim!
Assim, estavam como em casa.
Mas o pobre patinho, que saíra em último lugar do ovo e que tinha um
aspecto tão feio, foi mordido, apanhou, e dele escarneceram tanto as patas
como as galinhas.
− É demasiado grande! – diziam todos, e o peru, que nasceu com esporas e
que julgava por isso ser imperador, inchou todo como um barco de velas
enfunadas, foi na direção dele e gorgolejou-lhe, ficando todo vermelho na
cabeça. O pobre patinho não sabia onde devia enfiar-se, estava tão desolado
por ter um aspecto tão feio e servir de escárnio para todo o pátio dos patos.
Assim se passou no primeiro dia e depois ficou cada vez pior. O pobre
patinho era perseguido por todos, até mesmo os irmãos eram maus para ele
e diziam sempre:
− Se ao menos o gato te levasse, feia
criatura! E a mãe dizia:
− Quem me dera que fosse para longe! – e as patas o mordiam e as galinhas o
picavam e a garota que distribuía a comida aos animais dava-lhe pontapés.

Então, elevou-se voando para fora da sebe. Os passarinhos nos arbustos


fugiram espantados. “ É por que sou feio!”, pensou o patinho, e fechou os
olhos, mas continuou a correr, e chegou ao grande pântano, onde moravam
os patos bravos. Lá ficou toda a noite. Estava tão cansado e aflito!
De manhã, os patos bravos levantaram voo e olharam para o novo camarada.

− De que espécie és tu? – perguntaram eles, e o patinho voltou-se para todos


os lados e saudou, tão bem quanto podia.
− É extraordinariamente feio! – disseram os patos bravos. – Mas para nós dá
no mesmo, desde que não cases na nossa família!
Pobrezinho! Não pensava, certamente, em casar-se. Pudesse apenas ter
autorização para deitar-se nos juncos e beber um pouco de água do pântano!
Ali ficou dois dias. Então, vieram dois gansos bravos, dois machos. Havia
pouco tempo saíram de ovo, pois eram tão atrevidos.
− Ouve, camarada! – disseram eles. – Tu és tão feio que posso bem gostar de ti!
Queres vir conosco e ser ave de arribação? Ali, num outro pântano, há umas
patas bravas encantadoras, meninas que sabem dizer: “Quá!”. Estas em
condições de fazer a tua felicidade, tão feio és!

“Pum! Pum!?”, ouviu-se no mesmo momento por cima, e os dois gansos


bravos caíram mortos nos juncos, e a água tornou-se vermelha de sangue.
“Pum! Pum!”, voltou – se a ouvir, todo o bando de gansos bravos voou dos
juncos, e depois ainda estalou. Era uma grande caçada, os caçadores
estavam ao redor do pântano, sim, alguns até estavam sentados nos ramos
das árvores que se estendiam sobre os juncos. O fumo azul subia como
nuvens entre as árvores sombrias e ficava suspenso por sobre a água. Pelo
lodo vieram os cães de caça, “platch!, platch!”. Juncos e canas abanavam
para todos os lados. Era terrível para o pobre patinho, que virou a cabeça
para colocá-la debaixo da asa, e precisamente nesse momento apareceu
junto dele um cão terrivelmente grande, com a língua pendendo para o lado
e os olhos brilhando, horríveis. Pôs o focinho contra o patinho, mostrou os
dentes aguçados e ... “platch!, platch!”, lá se foi sem pegar nele.

− Deus seja louvado! – sussurrou o patinho. – Sou tão feio que nem mesmo o
cão quer morder-me!
Ficou completamente quieto, enquanto as chumbadas sibilavam nos juncos e
estouravam tiro após tiro.
Só mais para o fim do dia é que se fez silêncio, mas o pobre patinho ainda
não ousou levantar-se, esperou horas mais, olhou em torno e, então,
apressou-se a sair do pântano, do melhor modo possível. Havia vento forte,
por isso teve dificuldade em sair dali.

Perto da noite atingiu uma pobre casa de camponeses. Era tão miserável
que ela mesma não sabia para que lado havia de cair e, assim, ficava de pé.
O vento sibilava de tal modo à volta do patinho que este tinha de apoiar-se
na cauda para enfrentá-lo, e cada vez estava pior. Então, observou que a
porta tinha saído de um dos gonzos e estava suspensa tão de lado que ele
podia introduzir- se pela abertura, o que fez.

Lá morava uma velha com o gato e a galinha. O gato, que ela chamava
“Filhinho”, sabia corcovar a espinha e rosnar, e chegava mesmo a faiscar,
tanto que era preciso, então, passar-lhe a mão pelo pelo em sentido
contrário. A galinha tinha umas pernas pequenas muito baixas, por isso se
chamava “Franguinha Perna Curtinha”. Punha bons ovos e a mulher
gostava dela como se fosse sua filha.
De manhã, logo deu pelo estranho patinho, o gato começou a corcovar a
espinha e a galinha, a cacarejar.
− Que é isto?- −disse a velha, olhando à volta. Mas não via bem e assim julgou
que o patinho era uma pata gorda que se perdera. – É um achado! – disse ela.
– Agora posso ter ovos de pata, se não for um pato! Temos de ver isso!

E assim o patinho foi tomado à prova por três semanas. Mas não apareceu
nenhum ovo. O gato era o senhor da casa e a galinha, a senhora, e diziam
sempre:
− Nós e o mundo! – pois criam que eram metades deste, e as partes melhores.
Ao patinho parecia que não era bem assim, e isso a galinha não suportava.

− Sabes pôr ovos? – perguntou ela.


− Não.
− Então, cala o bico!
E o gato dizia:
− Sabes corcovar a espinha, rosnar e faiscar?
− Não.
− Então, não deves ter opiniões quando fala gente com razão!

O patinho sentava-se a um canto e ficava de mau humor. Então, sucedeu-se


pensar no ar livre e na luz do sol. Ficou com um tal anseio maravilhoso de
flutuar na água que por fim não podia aguentar, tinha de dizê-lo à galinha.

− Que se passa comigo? – perguntou ela. – Não tens nada a fazer, por isso te
vêm essas fantasias à cabeça! Põe ovos ou rosna, que assim passarão.

− Mas é tão belo flutuar na água! – disse o patinho. – Tão belo pôr a cabeça
debaixo dela e mergulhar no fundo!
− Sim, é um grande prazer! – disse a galinha. – ficaste bem maluco!
Pergunta ao gato – é o mais inteligente que conheço – se ele gosta de flutuar
na água ou mergulhar nela. Não quero falar de mim... Pergunta mesmo à
nossa dona, a velha, mais inteligente do que ela não há ninguém no mundo!
Crês que ela tem vontade de flutuar na água ou pôr a cabeça debaixo dela?
− Não me compreendem – disse o patinho.
− Bem, se não te compreendemos, quem te compreenderá? Não pretendes,
com certeza, ser mais inteligente que o gato e a mulher, para não falar de
mim! Não sejas presunçoso criança! E agradece ao Criador por tudo de bom
que se fez por ti! Não vieste para uma casa quente e não tens um ambiente
no qual podes aprender alguma coisa? Mas tu és um disparatado e não é
divertido falar contigo! Podes crer-me! É para teu bem que te digo coisas
desagradáveis e é nisso que se reconhecem os verdadeiros amigos! Vê
apenas se consegues pôr ovos e aprendes a rosnar ou a faiscar!
− Creio que me vou embora, por esse mundo fora! – disse o patinho.
− Pois vai! – retorquiu a galinha.

O patinho foi. Flutuou na água, mergulhou nela, mas por todos os animais
foi desdenhado por causa de sua fealdade.

Chegou o outono. As folhas nos bosques ficaram amarelas e castanhas, o


vento pegou nelas de tal modo que dançavam à roda e lá em cima no céu
parecia fazer frio. As nuvens suspendiam-se pesadas com granizo e geada, e
na sede estava o corvo que gritava “ai! ai!”, por causa do frio. Podia-se ficar
literalmente enregelado só de pensar nisso.
O pobre patinho, realmente, não passava bem.
Uma tarde, em que houve um lindo pôr do sol, das moitas veio todo um
bando de aves grandes e belas. O patinho nunca vira aves tão bonitas, eram
todas de um branco brilhante, com pescoços longos e flexíveis. Eram cisnes,
lançaram um som bastante estranho, abriram as asas largas e belas e
voaram para fora das regiões frias para terras mais quentes, para os lagos
abertos. Subiram alto, bem alto, e o patinho feio sentiu-se muito esquisito.
Pôs-se a andar à volta na água como uma roda, estendeu o pescoço grande
pra o ar na direção deles, lançou um grito tão alto e estranho que ele próprio
ficou com medo.

− Oh! Não podia esquecer as belas aves, as aves felizes, e logo que não as viu
mais mergulhou imediatamente no fundo e, quando voltou, estava como que
fora de si. Não sabia como se chamavam as aves, nem para onde voavam,
mas ficou gostando delas como nunca tinha gostado de ninguém. Não as
invejava de modo algum, pois como podia suceder-lhe desejar uma tal
beleza! Contentar-se-ia apenas com os patos o tolerarem entre eles! Pobre
animalzinho feio!
O inverno ficou tão frio, tão frio. O patinho tinha de nadar em círculo na
água para evitar que esta gelasse completamente. Mas cada noite o buraco
em que ele nadava tornava-se mais pequeno. Gelou de tal modo que estalava
na crosta de cima. O patinho tinha de estar sempre mexendo as pernas para
que a água não se fechasse. Finalmente, ficou extenuado, deitou-se
completamente abatido e ficou colado ao gelo.

De manhã cedo veio um camponês. Viu-o, foi direto a ele, bateu com o
tamanco no gelo, partindo- o em pedaços, e o levou para casa, para a mulher.
Voltou à vida.
As crianças queriam brincar com ele, mas o patinho julgou que queriam
fazer-lhe mal e correu, com medo, precisamente para dentro da tigela do
leite, de modo que o leite salpicou as paredes da casa. A mulher gritou e
agitou os braços no ar, e então voou para dentro da selha onde estava a
manteiga, depois para dentro do barril da farinha e depois veio para cima
outra vez. Ui! Como ele estava! A mulher gritava e corria atrás dele para
bater-lhe com a tenaz do fogão, e as crianças corriam atrás uma da outra,
atropelando-se, para apanhar o patinho, e riam e gritavam... foi bom que a
porta estivesse aberta! Correu para fora, por entre os arbustos, para a neve
recém-caída, e lá ficou, como que entorpecido.

Mas seria demasiado triste contar todas as necessidades e misérias por que
passou no inverno rigoroso... Estava no pântano, entre canas, quando o sol
começou a brilhar quente de novo. As calhandras cantavam. Era a bela
primavera.
Então, ergueu de uma vez as asas, que se agitaram mais fortemente do que
antes e o deslocaram com grande impulso. Antes que desse por isso,
encontrava-se num grande jardim, onde as macieiras floriam, onde os lilases
perfumavam o ar e se suspendiam nos longos ramos verdes, diretamente por
sobre os canais retorcidos. Oh! Ali era tão belo, de uma frescura tão
primaveril! E precisamente diante dele vinham das moitas três belos cisnes
brancos. Agitaram as penas e flutuavam tão levemente na água. O patinho
reconheceu os belos animais e foi tomado de estranha tristeza.

− Vou voar para eles, os animais reais! E picar-me-ão de morte porque eu,
que sou tão feio, ouso aproximar-me deles! Mas dá no mesmo! Melhor ser
morto por eles do que ser bicado pelas patas, espicaçando pelas galinhas,
levar pontapés da garota que trata do galinheiro e sofrer desgraças no
inverno! Voou para a água e nadou ao encontro dos belos cisnes. Este o
viram e dispararam agitando as penas para ele.

− Vá, matem-me! – disse o pobre animal, curvando a cabeça para a


superfície da água à espera da morte. Mas que viu na água clara? Viu por
baixo dele a própria imagem, não era mais uma ave pesada, cinza-escura,
feia e antipática: era um cisne.

Não tem importância nascer num pátio de patos, se se foi chocado num ovo
de cisne!

Sentiu-se muito alegre por todas as necessidades e dificuldades por que


passara. Agora apreciava a felicidade, toda a beleza que lhe sorria. Os cisnes
grandes nadavam-lhe à volta e acariciavam-no com o bico.
Ao jardim chegaram criancinhas que lançaram pão e milho na água, e a
mais pequena de todas gritou:
− Há um novo! − e as outras crianças alegraram-se com isso.
− Sim, chegou um novo! − Batiam palmas e dançavam à roda. Correram
para os pais, pão e bolo foram lançados à água, e todos disseram: − O novo é
o mais bonito de todos! Tão jovem e tão belo! Os cisnes velhos curvavam-se,
reverenciando-o.

Sentiu-se, então, muito envergonhado e escondeu a cabeça por detrás da


asa. Não sabia o que fazer! Sentia-se perfeitamente feliz, mas de modo
algum orgulhoso, pois um bom coração nunca fica orgulhoso! Pensava como
fora perseguido e ofendido e ouvia agora todos dizendo que era a mais bela
de todas as aves belas. E os lilases curvavam os ramos para a água em
direção a ele e o sol brilhava tão quente e tão agradável! Então, as penas
agitaram-se-lhe, o pescoço elegante elevou-se, e alegrou-se de todo o coração:
− Com tanta felicidade nunca sonhei, quando era o patinho feio!

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