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Sobre a obra:
Sobre nós:
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Converted by convertEPub
© Robert Hollingworth
Fresh Talent. A autora ganhou ainda o prémio August Derleth Award para o
Shirley Jackson Award de melhor romance e foi eleito Melhor Livro de 2018
Catriona Ward
Publicado por:
Porto Editora
Email: delporto@portoeditora.pt
Título original:
4099-023 Porto
Portugal
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67305-3
Para o meu sobrinho River Emanuel Ward Enoch,
nós.
do que um gato na cama, não sei o que é. Encho-a de mimos porque ela
vai desaparecer quando Lauren chegar. A minha filha e a minha gata não
se. Então, encontra um disco de sol, salta para o chão e pisca os olhos na
sopa. A rua parece ainda mais calma do que o normal. Silenciosa, como
se estivesse a recordar-se.
disso. Ela pode apanhar frio. Não publicam a outra foto, a minha.
Meteram-se em sarilhos dos grandes por causa dessa foto – mas não foi
por isso fiquei parado nos degraus. Era verão, luminoso e quente como a
soava a oco. Os cães percorreram o meu quintal, o meu quarto, tudo. Sei
olhar. Um homem magro com uma máquina fotográfica veio ter comigo
retribuí.
– Nada.
da frente. A árvore deu-me força. Devia dizer algo mais? Fosse o que
soubesse, mas eu gostava tanto de doces. Não estive perto do lago nem
da Menina do Chupa-Chupa.
tombada sem vida. Acho que era dela que tinha mais pena. (Chamo-lhe
Eloise. Não sei porquê, tem cara de Eloise.) Ouvi a voz melódica da
tiras.
abrir, a boneca russa olhava para mim com o seu sorriso gordo. Ao lado,
sorriam na fotografia. O meu lindo tapete cor de laranja era fofo como
Olivia bateu com a cabeça na minha mão. Ri-me e peguei nela. Isso
verdes a mexerem-se.
noutras casas, mas o artigo dava a entender que só fora na minha, e julgo
história.
por cima das janelas. Isso fê-los abrandar. Atirar pedras não tem tanta
piada quando não há nada para partir. Também deixei de sair durante o
dizer) no armário por baixo das escadas. Baixo-me para pousar o jornal
Não ouço a cassete. Sei o que lá está. Ela ditava sempre as notas em
voz alta. A voz fazia uma pausa ligeira nas consoantes, não se conseguia
livrar do sotaque. Dava para ouvir o mar na sua voz. Nasceu numa terra
aconteceu há muito tempo. A luz fica mais intensa e vai ser um dia
Preparo-me para olhar lá para fora, como faço todos os dias, quando
antes da cabeça. Algo não está bem. A manhã está demasiado silenciosa.
Digo a mim mesmo para não ser estranho, respiro fundo e encosto o
olho ao buraco.
estão mortos, talvez uns 20. Alguns não estão. Conto sete corações ainda
direções. O meu coração bate três vezes até entender o que estou a ver.
isto aos pássaros? Então penso: Tenho de limpar tudo. Não posso deixar
Atiro a coisa mais à mão, que é uma lata de cerveja vazia. A lata
falha por muito e bate num poste da vedação com um som oco. A gata
afasta-se lentamente, no seu coxear sem garras, como se fosse ideia dela.
Apanho os pássaros vivos. Ficam colados uns aos outros nas minhas
mãos, presos numa massa trémula. Parecem um monstro saído dos meus
pesadelos, com pernas e olhos por todo o lado, bicos a tentarem beber o
não fazem barulho. Talvez seja essa a pior parte. Os pássaros não são
cola, mas bastam algumas tentativas com o solvente para ver que só
não sei o que fazer. Este tipo de cola não descola. Os pássaros não
Internet tenha uma alternativa. Mas não consigo pensar em nenhum sítio
com cuidado, fecho-o e passo a mangueira pelo buraco que fiz na tampa
deve ter isso. Não demora muito. Eles já tinham desistido, por causa do
O homem está a olhar para os meus pés. Percebo que não estou a
usar meias nem sapatos. Os meus pés são pálidos e peludos. Tapo um pé
com o outro, mas isso não me faz sentir melhor. O cão arfa e sorri para
donos. Sinto pena de todos esses cães e gatos e coelhos e ratos. Têm de
viver com pessoas e, pior ainda, têm de as amar. Bom, Olivia não é um
animal de estimação. É muito mais do que isso. (Julgo que toda a gente
lado. A mão dela está no meu ombro. Estranho. Regra geral, as pessoas
não gostam de me tocar. O cão que tem debaixo do braço está a tremer e
que estou prestes a descobrir algo. Atina, digo a mim mesmo. Não sejas
se.
contigo.
– Ando atrás daquela gata vadia – digo. – Quero dizer, andava atrás.
antes.)
interesse. Dei-lhe outra coisa para sentir. – Essa criatura é uma peste. A
câmara devia tratar dos gatos vadios como faz com as outras pragas.
aos outros.
– É o que eu digo sempre.
Aceno, sorrio e coxeio pelo passeio, fingindo uma dor que não sinto,
Perdi algum tempo, mas não muito, acho eu. O passeio está quente, mas
alguns minutos. Mas não devia ter acontecido na rua. E devia ter-me
que foi feito para limpar chãos ou balcões, não pele humana. O pé
doer a sério, se eu pudesse sentir dor, mas pelo menos o corte está
limpo. Enrolo o pé com gaze. Tenho muita gaze e ligaduras pela casa.
tenham nada que ver uma com a outra – o mundo está cheio de coisas
que não fazem sentido –, mas talvez estejam relacionadas. Como é que o
Faço uma lista. Escrevo no topo: O Assassino. Não é uma lista muito
longa.
Senhora do chihuahua
Um estranho
assim tão bem. A Mamã conhecia. Era a cena dela, encantar pessoas.
Assassino pode estar ali fora neste preciso momento, algumas casas
lista:
aqui não há mais nada a não ser a floresta atrás das casas.
a lista cuidadosamente por baixo de uma velha caixa de giz que Lauren
nunca usa.
algum tipo de salada, só podem ser más pessoas. Se tiver queijo, é boa
gente.
Ainda não são dez da manhã, consigo ver pela maneira como o Sol
pelo chão, e já está a ser um dia mesmo mau. Por isso, decido preparar
para as minhas receitas? (A Mamã não iria gostar, eu sei. Tenho aquela
sensação de calor na nuca que me diz que vou ser o que ela costumava
chamar um empecilho.)
nova no aparelho. Queria sempre brincar com ele quando era pequeno. O
gravador tem um grande botão vermelho, como uma tecla de piano, que
solta um clique forte quando lhe carrego. Agora não sei o que fazer com
ou destruí-la, está fora de questão, mas não a quero guardar ao lado das
minhas lindas cassetes novas. Por isso, volto a pô-la no armário por
baixo das escadas, enfio-a por baixo dos jornais, por baixo da Menina do
pode usar o que gostar mais – o almoço é seu. Pegue em mel e espalhe
duas fatias de pão e frite na frigideira até a sanduíche ficar dourada dos
dois lados. Quando estiver pronta, salpique com sal, pimenta e molho
fez tudo soar tão simples. Fale do que lhe acontece e de como isso o
afeta. Bom, isso está fora de questão. Mas é bom guardar as receitas, no
Já pensei que podia ser chefe de cozinha, quem sabe, ter um restaurante.
nada disso por causa de Lauren e de Olivia. Elas não podem ficar
sozinhas.
Seria bom falar destas coisas com alguém. (Não com o senhor bicho,
tenho nenhum.
Sinto um toque suave ao meu lado. Olivia empurra a minha mão com
vem aí.
fora há anos, mas Olivia adora esta coisa, sabe Deus porquê. Como
sempre, verifico que está desligada na ficha, mesmo sabendo que não
tenho medo de que ela não tenha ar suficiente. Matar coisas é difícil, é
verdade, mas mantê-las sãs e salvas é muito mais difícil. Eu que o diga.
um pio.
Lauren assente.
É a senhora do chihuahua. A cabeça do cão espreita nervosamente
– Ouvi dizer que tinhas tido uma filha há uns anos – diz a senhora do
chihuahua. – Quem foi que me disse? Bom, agora não me lembro. Mas
vizinhos devem ser amigos. Trouxe-te uvas. São saudáveis, mas são
doces, por isso toda a gente gosta. Até as crianças gostam de uvas. São
as guloseimas da natureza.
– Estou bem.
– Santiago!
se eu não fosse pai, nunca teria acreditado que uma canção sobre um
bicho-de-conta me pudesse dar tanta alegria. Mas é isso que o amor faz,
acerta-nos em cheio.
– Eu sei. Mas as crianças não podem fazer tudo isso sozinhas. Tem
– Odeio-te, Ted.
vezes as diz: é como ser atingido com força, depressa, por trás.
– Estou, sim – diz ela, numa voz fininha como uma aranha. – Odeio-
te.
– Quem me dera nunca ter nascido – diz ela, a pedalar para longe,
passando por cima do desenho que tinha feito, de um gato preto com
quando Lauren choca contra mim. A água verte do copo para o tapete
horroroso!
não foi a parte do gordo horroroso que me irritou, mas não posso.
– Não.
afiadas.
compaixão. É como uma mãe, mas uma mãe de quem não é preciso ter
medo.
Pego nos lápis de cor e nos marcadores e conto-os. Estão todos aqui,
ótimo.
Habituei Lauren a dormir com esta música. Foi uma criança birrenta
está fria na palma da minha mão e sibila como uma serpente quando
Segundo problema: barulho. A nossa casa fica num beco sem saída;
para lá dela existe apenas a floresta. A casa do lado esquerdo está vazia
voltou. Lauren ainda está a chorar baixinho, mas está a acalmar, o que é
bom. A música está a fazer efeito. Com sorte, dorme um bom bocado e
ser feliz com esta situação. Quando era uma gatinha, corria para a porta
melhor para nós. Se a gata conseguiu aprender isso, Lauren também vai
– Adeus, gatinha.
– Adeus, Papá.
– Sim.
detesto esta parte. Decidi nunca lhe mostrar como fico perturbado. Volto
que estou doente outra vez. Às vezes, acordo com ela a chamar-me para
meio das árvores, atrás de um véu tão fino que dá para rasgar com uma
unha.
Olivia
Ted chamou por mim. Que diabo, agora não é boa altura, pensei. Mas
ouvi aquela nota na sua voz e parei para ir à procura dele. Só tinha de
vermes por baixo da pele. O ar era agitado por trovões. Este era dos
maus.
agarram ao passado.
Estão a ver? Eu estava ocupada quando me chamou, mas fui ter com
diário.
canção sobre pradarias. As canções dela tocam sem parar, dia e noite,
quando Lauren não está cá. Ted parece precisar da companhia. Pelos
vistos, acha que um gato não conta. Se estivesse para aí virada, podia
ficar ofendida. Mas os teds são todos carentes, não podemos levar isso
a peito. Estou a falar em termos gerais. Não conheço outros teds além
pela primeira vez, a minha boca abriu-se pela primeira vez para soltar
de azevinho.
tempestade.
perceber que algo não estava bem com a Mamã-Gata, com o corpo
não a luz trémula do céu, mas um círculo amarelo. Uma coisa como
mamã.
– O que é isto?
conhecia ninguém.
Lambi-lhe o polegar.
Então, trouxe-me para casa, para esta bela casa quente, onde me
fazem festas e posso dormir o tempo todo. Se não quiser, nem sequer
tenho de olhar para o mundo exterior! As janelas estão tapadas. Ted fez
preocupar com nada. Esta é a nossa casa, só para nós, e mais ninguém
pode entrar. Tirando o Noturno, claro, e os meninos verdes e Lauren.
detalhes são relevantes. Por exemplo, o meu Ted é meio cor de areia? E
tem fiapos de pelo vermelho na cara e pelo mais espesso na cabeça, que
meu nome é Olivia. Tenho uma risca fina de pelo branco no peito, que
faz contraste com o meu pelo preto como carvão. A minha cauda é longa
e estreita como uma varinha. As minhas orelhas são grandes, com uma
base larga e uma ponta delicada. São muito sensíveis. Os meus olhos
são em forma de amêndoa, verdes como duas azeitonas. Acho que posso
assim. A televisão diz que temos de aceitar toda a gente, teds e gatos,
por quem são. Mas também temos de definir limites. Os limites são
importantes.
prateada tapa o buraco onde ele espetou uma faca durante uma corrida
de motocross. Gosto de tudo nesta sala, exceto duas coisas que estão em
dentro uma versão mais pequena dela, e outra dentro dela, e outra e
Pais, a olhar por detrás do vidro. Detesto tudo nessa foto. A moldura é
seus rostos são apenas buracos para o vazio. Os Pais não eram
simpáticos para Ted. Sempre que chego perto da foto, sinto a atração
IiiiIIiii. O tinido agudo não vem dos Pais. Viro-lhes costas, levanto a
de Ted. Ou será que ela pertence a outro ted e ele só tome conta dela?
está tudo calmo. Já deve ter ido embora. Ótimo. Mas ela nunca arruma o
diabo da bicicleta. Oh, credo. Eu bem que tento dizer «diabo» e não…
certeza de que o SENHOR não aprovaria o que vou dizer, mas… os teds
pequenos são horríveis. Nunca sabemos o que vão fazer. E Lauren tem
ruído. Nós vemos com as orelhas e o nariz. Bom, com os olhos também,
é claro.
ao lado frio do caixote, mas não me parece que o barulho venha de lá.
Ted voltou a empilhar pesos em cima do caixote, por isso não posso
branco ao lado do frigorífico. Blá blá blá, escreveu ela. O Ted é o Ted. A
tinido nos meus ouvidos continua e não é igual a nenhum destes sons.
nunca falam.
E continua, o som agudo como um sino ou uma voz fininha. Não são
O som não fica nem mais alto nem mais baixo quando vou de quarto
mantendo a distância. Mau lugar. Ergo-me nas patas traseiras para rodar
seis rolos de fita-cola. Ele compra fita-cola às carradas. Não sei para que
raio usa ele tanto daquilo. Lambo a fita-cola. Tem um sabor forte e
nenhum som delas exceto o eco interno do ar. Lambo o metal e cheiro a
tijoleira suja. Alguns caíram numa poça de água, ali desde o duche
só para mim. Mas não tenho mais tempo para perceber o que é porque
SENHOR decretou. Mas tenho uma vida própria para lá dele, sabem?
Tenho outros interesses. Bom, outro. Está na hora dela e isso é muito
excitante.
Não consigo conter o receio de estar atrasada, apesar de saber que não
Os outros buracos estão à altura dos teds e não lhes consigo chegar.
do tamanho de uma moeda. Não consigo ver grande coisa: uma parte do
debaixo de um manto branco e cada ramo fica carregado com uma fina
linha de neve.
Espero que Ted não mude a mesa de macramé de sítio. Era mesmo o
tipo de coisa que ele faria. Aí, teria de me zangar a sério, e detesto
zangar-me.
Ela vira a esquina com o seu andar gracioso. Como a posso descrever?
Tem riscas como um pequeno tigre pardo. Os seus olhos amarelos são
quero dizer. Ela é linda. Ela para e espreguiça-se, para a frente e para
preciso.)
Espero que o teu peixe seja delicioso, digo em silêncio à gata. Faço
um pouco. Mas o tinido está de volta, agora mais alto. Coço a orelha
com a pata até ficar dorida. Não adianta nada. De onde vem o ruído?
UUuuuiiiiiiuuuuii, continua, sem parar. Como posso fazer seja o que for
quase parece que está dentro de mim e não vai parar. Essa ideia deixa-
Vou até à minha Bíblia. Bom, agora é minha. Acho que pertencia à
mãe de Ted, mas ela foi embora e, até ela voltar, não tenho problemas
na numa mesa alta na sala. Não lhe serve de nada, francamente; nunca a
abre. O livro começa a ficar um pouco gasto, mas a verdade é que tenho
Salto para o lado do livro. Esta parte é divertida porque sinto sempre
escondi-me debaixo do sofá. Mas acabei por perceber que são apenas
SENHOR conduz o meu olhar para o versículo que quer que eu leia.
dele… como este que acabei de ler. Mas não é fácil conservar frases
deliberadamente, para Ted saber que não tive nada que ver com isso. O
errado? O versículo da Bíblia não podia ser mais positivo. Além disso, o
quero que ela seja esquecida, mas é mesmo difícil escolher uma. A
Tenho uma ideia genial. E aquele dia junto ao lago? Não há nada a
tenho a certeza de que o deixei na cozinha. Por fim, depois de uma busca
Muito bem. Foi assim que ganhei o meu amor por pássaros. Era
drapejava com o vento quente que entrava pelo vidro entreaberto. Tinha
diferente.
Dava para ver que ela não era daqui. A sua voz ainda tinha um
ligeiro vestígio do país do pai dela. Um som duro nos erres. Mas era
mais pela postura dela, como se esperasse ser atingida pelas costas.
– Papá – disse eu.
Fiz uma cara lamentosa ao ouvir aquilo, mas só para mim. Não
pelo sedoso debaixo dos meus dedos, uma cabeça sólida com orelhas
curiosas. Sempre quis ter uma gata. A Mamã dizia sempre que não.
(Agora não consigo deixar de pensar se ela saberia algo que eu não
profunda.
vinagre.
para algo que nenhum de nós conseguia ver. Parecia que estava a
Queria tanto tê-la. Senti que tínhamos sido feitos um para o outro.
cenoura, e uma colher. Imaginei que toda a gente olhava para nós,
olhar.
Estava a falar com a sua voz de enfermeira, que era um pouco mais
Por isso, uma pessoa não discutia com a voz de enfermeira. O Papá
estava entre empregos. Como se fosse uma vala escura onde caíra e de
comer a um bebé. A etiqueta era azul e branca. Com uma pontada fria
de horror, vi que o bebé estava a comer a mesma papa de arroz que o
meu pai.
uma faca corta manteiga. Todos lhe dávamos o que podíamos, mas
tanta fome que as mãos lhe tremiam quando aceitava a comida. Por
que tinha.
Levantou-se.
sobre a cara. Agora dormia muito. Parecia que cada momento que
façam. Esse rapaz não voltou para o autocarro ao fim do dia. Às vezes,
até ficar fora de vista das multidões, nos recantos profundos do lago.
Quando tropeçou e caiu num buraco frio, não havia ninguém por perto
para ouvir os seus gritos. Ou então vagueou sob a vasta copa verde da
o mais provável era ter apanhado uma boleia para a cidade. Ele metia-
– Toma, Teddy.
minha mão.
A sensação de alegria foi tão intensa que mais parecia dor. Fiz-lhe
– Gostas?
– Foi caro?
Eu sabia que éramos pobres, e sabia que não era suposto saber.
– Está tudo bem – disse ela. – Não te preocupes com isso, por amor
– Chama-se Olivia.
Para mim, o nome tinha classe e mistério, perfeito para uma gata de
madeira.
viagem. Por isso, ficámos no lago até quase toda a gente ter ido embora.
Ela sorriu. Ainda tinha aquele olhar distante. Só anos mais tarde é
que reparei que ela nunca deixava o Papá conduzir depois do meio-dia,
engraçada.
segurança; agora sei isso. Devo ter adormecido, porque acordar foi
Ergui a cabeça, sonolento, e olhei lá para fora. Pelo feixe dos faróis,
odores das árvores a falar, insetos noturnos a fazer sons como tique,
tique, tique.
me para longe do carro, para longe da luz, para o meio das árvores. O
já foi uma criança, que se aventurou pela luz verde e nunca regressou.
mão.
dele?
– Sim.
– Gostas como?
Pensei um pouco.
– Não.
Não podia, pois não? Isso faria de mim um menino muito mau.
– Diz a verdade.
só.
me a mão.
– Porquê? – sussurrei.
sabem isso.
Puxou-me pela floresta na direção do carro. O mundo parecia uma
rebentar no peito.
carro a bater com força. O meu pai cheirava ao que me pareceu ser
a chorar.
O Papá virava a minha cara para um lado e para o outro, para ver
se eu estava magoado.
ninho por aqui. Entretanto, ele deixou cair o porta-chaves do gato e não
– Oh, miúdo – disse o meu pai. – Não é nada de mais, pois não?
Nunca mais voltei a pedir uma gata. Disse a mim mesmo que já não
Agora que sou pai, sei como temos medo pelos nossos filhos. Às vezes,
perna por onde vertia um líquido vermelho; juntou a carne dos dois
lados com dois pontos do seu estojo de suturas. Partia-me e reparava-
pássaros, apesar de a Mamã ter dito que isso não era possível.
pau de madeira na sua própria língua roxa. Tinha areia nos sapatos e nos
calções, o que não lhe agradava. Na toalha ao lado, estava outra rapariga
Lulu veio ter com Dee. As tiras dos seus chinelos de praia brancos
estavam torcidas.
inevitável ao olhar para os olhos de Lulu. Sabia que era a versão inferior.
amigas outra vez. Dee levou-a até à fonte para beberem, mas Lulu não
Era a sua nova mania nesse verão; no ano anterior, fora póneis.
então ouvi a tua voz a dizer-me ao ouvido: «Eu sou uma chata e a minha
– Não foi nada disso! – Lulu estava à beira das lágrimas. – Tens de
macia aquecida pelo Sol. A nuca exposta, o cabelo escuro curto como o
Mas só as posso usar no outono, porque está muito calor para andar de
jardineiras.
um linguado.
bisbilhoteira!
Se Lulu falasse de Greg aos pais, eles ficariam zangados. Até podiam
A voz dela subiu uma oitava e fazia-a soar muito mais pequena.
– Acabou. Vamos ter com os papás. Não sei porque perco tempo
contigo…
– Não quero voltar já! Ainda tenho sede e quero fazer festas ao
gatinho.
Mas por um momento pensou ter visto uma cauda preta, como um
Dee agarrou-a porque estavam muitas pessoas ali, mas segurou-a o mais
diário no sítio. Lulu devia ter passado muito tempo à procura. Devia ter
perfeito.
– Eu não digo nada, Dee Dee – disse Lulu. – Prometo. E não volto a
Mas Dee abanou a cabeça. É claro que Lulu diria alguma coisa, mais
cedo ou mais tarde. Podia não ser de propósito, mas diria. Ela era assim.
Dee teria de enterrar o diário num caixote do lixo qualquer e dizer que
Dee Dee?
Dee ignorou-a.
contigo.
razão de ser por trás de cada passo que dava. Dee tivera o papel da
ballet. Ainda se lembrava dos passos, dos chaînés, dos arabescos e dos
lagarta. Agora, cada passo que dava era uma dança em direção a um
segredo. Puxou pela imaginação, para não dar espaço aos outros
água. Na parte menos funda, estava uma frota de bebés com braçadeiras.
Mais longe, perto das boias, o lago estava parado, mostrando a linha das
– Olá.
Era magro e loiro. Dee conseguia ver vestígios de protetor solar na pele
pálida.
Ele devia ter pelo menos 19 anos. Dee reparou subitamente que tinha
poderiam falar?
Trevor corou.
sempre tivesse sido a sua intenção. – Estás aqui com a tua família?
– Onde estão?
– Os teus pais?
– E uma irmã mais nova.
– Universidade de Washington.
femininas e misteriosas.
corpo.
Dee torceu a cabeça para a olhar. Tinha uma mancha escura nos
Dee apressou-se até à casa de banho das mulheres, onde havia uma
– Onde está a tua mãe? Devia estar a ajudar-te – disse uma mulher
gaveta dos trocos uma vez, e outra, e outra. Contendo as lágrimas, Dee
como toda a gente. Manteve a T-shirt atada à cintura. Escondia tudo, por
Quando chegou ao sítio dos gelados, Trevor não estava lá. Dee
esperou uns minutos, mas sabia que ele já não vinha. Talvez tivesse
mais provável era não querer pagar um gelado a uma miúda que nem
Dee deixou a T-shirt na areia e entrou para o lago, para lá dos bebés
de braçadeiras, com água pelos joelhos, depois pelas coxas, depois pela
fria do lago era uma espécie de mergulho súbito, um choque que lhe
mandava calafrios pela espinha. Dee percorreu com a ponta dos dedos o
lentamente à sua volta como um animal. Dee avançou mais, até a água
que o rapaz não tivesse voltado. O corpo dela era companhia suficiente.
conhecia bem. A dor e o prazer tinham rostos novos. Ela era uma
Algo macio lhe tocou na cara. Uma e outra vez, como um empurrão
tipo era? Dee forçou o seu cérebro agitado a pensar. Parecia uma víbora,
mas não achava que elas existissem por aqueles lados. Outra ideia
esforço para a manter afastada. Cascavel. Foi então que percebeu que
quatro. Era um grupo, talvez uma família. Vários miúdos, jovens adultos
de bater. Uma cabeça larga deslizou suavemente para a cara dela. Dee
pelo veneno, pela boca a fechar-se sobre ela. Pensou sentir o beijo leve
estava quente e a areia prendia-lhe os pés. Não trazia relógio, mas sabia
estremeceria, aos gritos, e acolheria Dee nos seus braços. Lulu poria um
calor da sua raiva, sabendo que gostavam dela. Tornar-se-ia uma história
a Dee Dee foi atacada por cobras? E então a história viveria fora dela e
mãe estava a chorar e o pai estava aos gritos. Estavam lá dois nadadores-
de Deus.
Quando se aproximou, ouviu o pai a falar.
– Mamã? Desculpa…
– Cala-te, Dee, por favor. O teu pai está a ver se esta gente faz
alguma coisa.
sangue preto.
quanto tempo ela estivera ausente; e segundo, Lulu não estava ali. Com
Sentia-se agitada. Lulu estava a ser dramática outra vez. Agora ninguém
polícias a sério.
esvaziar, que Dee percebeu que não iam encontrar Lulu nesse dia.
Ela partira sabe-se lá para onde, sabe-se lá com quem, e não regressara.
Algumas semanas mais tarde, a quilómetros de distância, uma
Lulu teria 17 anos hoje. Tem, corrigiu-se Dee. Lulu tem 17 anos.
A última coisa que Lulu disse a Dee foi: Encontrei uma pedra
bonita. Havia dias em que Dee só conseguia pensar nessa pedra. Que
de notícias. Mas não havia nada que pudessem fazer e o patrão do pai
era estranha sem Lulu. Dee nunca se lembrava de pôr três lugares à
A mãe partiu pouco depois. Dee sabia que a mãe não conseguia
dinheiro todo do banco e foi embora. Dee não a censurava, mas o pai era
cheirar a cola no andar de cima. Ele ficava sentado durante horas, até
ficar com os olhos vermelhos por causa dos vapores. Não se deitava até
a noite estar quase a acabar. Amanhã falo com ele, pensou Dee. Tem de
ser.
Estava um período atrasada para o conservatório, mas podia
emprego, não podia? Afinal, o pai não precisava dela para montar
de cola e desespero. Ela pensou, Isto não pode ser a minha vida. Isto é
cara.
De manhã, Dee fez o café especial para levar ao pai na cama. O café
especial era feito na cafeteira fina de vidro que tinham trazido de São
como a lama do rio, e o pai adorava. Talvez ele depositasse todo o seu
Ele ia ficar zangado, ia ficar magoado. Mas ela não podia ficar calada
carros… tudo estava coberto de neve branca. Ela virou-se para dizer:
Olha só como nevou durante a noite! E então viu-o. O corpo estava hirto
na cama, quieto à luz refletida da neve. O rosto tinha uma expressão que
ela não identificou imediatamente. Então, reconheceu o ar de boas-
vindas.
Foi uma trombose, disseram-lhe. Não disseram que foi causada pelo
desaparecimento de Lulu e pela fuga da mãe. Não era preciso. Por isso, a
pessoa que levou Lulu também lhe levou a mãe e depois o pai. Dee
também foi levada, pois quanto dela restou, depois de tudo aquilo?
Não foi para a escola de ballet porque não tinha dinheiro. Também
mas o seu verdadeiro trabalho era encontrar a pessoa que levara a irmã.
Todos os homens que tinham estado no lago nesse dia, todos os olhares,
contra o dela.
Ela e Dee foram amigas durante algum tempo. A detetive tinha pena
de Dee, uma rapariga jovem sem ninguém. Trata-me por Karen. Contava
coisas a Dee quando ela lhe ligava. Agora só dizia «Estamos a trabalhar
no caso».
Ted
Nem sempre consigo prever, mas desta vez tenho quase a certeza de
que me preparo para fazer algo importante. Vou arranjar uma amiga.
Ultimamente tenho-me ausentado cada vez mais. Quem vai tomar conta
não chega.
voltar para casa sozinho. Sim, ainda a sinto debaixo das folhas da copa
escura. Ela está nas manchas de luz que cobrem o solo da floresta. E
sim, às vezes está no armário por baixo da banca, mas, na verdade, estou
Escolho uma altura em que Lauren não está por cá. Se ela soubesse o
que estou a fazer… bem, não seria bom. Abro o cadeado do armário na
melhor para Lauren. Dizem que as mulheres são mais carinhosas do que
os homens. Por isso, é melhor ser uma mulher. Mas tem de ser uma
simpáticas. Esta aqui, 38 anos, gosta de surf. Os olhos dela são pedras
azuis, tão azuis como a água atrás de si, e bondosos. Tem a pele um
dentes são brancos e direitos. Tem um sorriso feliz. Parece alguém que
se preocupa com os outros. A seguinte é de todas as cores da floresta.
óleo vermelho.
correias. Estou a ficar cada vez maior. Nem tenho noção. Deito coisas ao
chão, choco contra as portas, não estou habituado ao espaço que ocupo
no mundo. Como não saio muito, tenho a pele pálida. Agora, Lauren
nem tesouras em casa e a barba cai-me para o peito. Por algum motivo, é
de uma cor diferente do cabelo, ruiva e espessa. Parece uma barba falsa,
como algo que um ator usaria para fazer de pirata. As minhas mãos e a
sabugo. Não tenho coragem de olhar para as unhas dos pés há algum
Continuo a descer pela página. Algures aqui deve haver uma amiga.
Obedece aos deuses das árvores brancas… Não. Quem é que quero
enganar?
cansado. Quando abri os olhos, um tipo estava a pôr moedas aos meus
pés. Eu rugi como um urso e ele deu um salto de susto e fugiu. Fiquei
mulheres.
silêncio para ver. O tapete azul e feio está ali, certo. Em cima da lareira,
Segue-se o silêncio. Estúpido, sei bem que ela não está cá.
– Olivia?
Tens de os mudar de sítio, diz ela. Não deixes ninguém descobrir o que
és.
– Não quero – digo-lhe. Até aos meus ouvidos soo lamuriento como
embora… isso nunca. Talvez esteja a passar tempo numa das memórias
que jazem pela casa, em mantos profundos como neve. Talvez esteja
A lata fresca está tão fria que quase se cola à palma da minha mão.
assustado.
até à minha teia», disse a aranha para a mosca. Julgo que devemos sentir
O meu braço estava torcido num ângulo estranho. Acho que caí.
oferta aos pássaros, que cantavam nos ramos acima. Sangue por
deviam ficar no mesmo sítio mais do que uns meses… depois disso,
for, caí. A última coisa de que me lembro é do estalido que o meu ombro
A minha cara está arranhada e o meu braço tem flores negras a todo
o comprimento. Não fica direito. Fiz uma ligadura com uma T-shirt
sangue.
Olivia
postura dele. Quase cai para dentro da casa e vira-se para fechar a porta,
as fechaduras.
sangue dança pelo ar, pousa no tapete cor de laranja e fica lá, uma gota
escura.
está, sentada na relva por cortar junto ao passeio. Vê-la faz arder o meu
coração. Ronrono e bato no vidro com uma pata. O pelo dela está todo
enfunado por causa do frio. Parece ter o dobro do tamanho. Ela não me
frente, um pedaço de gelo no passeio. E então, por fim, olha para mim.
olhos. Acho que ela está à espera de que eu quebre o silêncio. É claro
que agora não me ocorre uma única coisa para dizer. Por isso, vira-me
costas e é uma agonia, mas ainda fica pior. O gato branco vem a andar
pelo passeio. Aquele grande, com o guizo na coleira. Fala com ela e
tenta esfregar focinhos com ela. Estou a bufar tanto que mais pareço
uma chaleira.
Ele está a tentar deixar o cheiro dele nela, mas a minha gata não é
Quase choro de alívio, que rapidamente se torna tristeza porque ela foi
manhosos, são maus e são pouco espertos. Tenho noção de que não
conhecer-vos. Ah, ah, estou a brincar, Ele não deve querer conhecer-
qualquer um. Quando Ele nos escolhe, uau, não há como enganar.
Foi no dia em que aprendi o meu propósito. Todos os gatos têm um,
tal como todos os gatos podem ficar invisíveis e ler mentes (somos
algum tempo, não queria mesmo ser uma gata de interior. Quando Ted
saudades dos meus irmãos gatinhos que tinham morrido ao meu lado
Houve vezes em que tentei correr para a porta quando ela se abria. Não
sou boa a fazer planos. Ted agarrava-me de uma forma acolhedora.
para longe de mim – dizia ele. – Não queres ficar aqui comigo, gatinha?
Por isso, decidi que esse era o dia, a sério. Planeei tudo, mas o
não aconteça diante do meu posto de vigia. Posso não ver, mas consigo
ouvir e cheirar. Por isso, sei que, a certa hora do dia, o ted que cheira a
couro e pele limpa passeia pela rua com o seu grande bruaá. Costuma
parar para lhe fazer festas diante da nossa casa. Não sei o aspeto dele
porque nunca o vi com os meus olhos, mas, a julgar pelo cheiro, é muito
feio. O pivete dele é como uma meia velha cheia de caca. Ouço sempre
rabo. As almas dos gatos vivem nas suas caudas e os teds guardam o
seu ser atrás dos olhos grandes e húmidos. Mas os bruaás guardam os
– Ei, Campeão. És muito lindo? Sim, pois és, pois és, sim, seu
bronco do caraças.
Mas a maioria das vezes não diz «caraças». Ouço o bruaá a babar-
se, cheiro o amor que lhe emana da pele. Isso só prova o que diz o ted.
sabedoria que está nos nossos corpos. Os teds não têm muita dessa
bruaá e o ted costumam passar diante da casa. Às vezes, o ted diz olá e
por baixo do sofá e a ponta das minhas orelhas nem sequer tocava no
esconderijo.
a quebrarem debaixo da bota dele. Começara cedo, dava para ver. Isso
também era bom. Ted ficaria mais lento. (Os passos dele têm um ritmo
conseguia ver nada. O mundo era uma faixa estreita de luz agonizante.
Nem sequer conseguia abrir os olhos para ver a árvore. O bruaá estava
da porta. O pivete dele passava por baixo, estava por todo o lado.
que aquilo era boa ideia? Senti como era pequena, cada osso fino do
meu corpo, a delicadeza das minhas veias e do meu pelo, a beleza dos
meus olhos. Como pude pensar em arriscar tudo isso num mundo onde
zangado.
quente.
Foi então que O vi. Havia uma terceira pessoa connosco, no coração
multiplicidade. Não a queria ver. Percebi que isso seria a última coisa
que veria. Quando der o último suspiro, Ele vai revelar-Se, e o rosto que
anos. O jornal é pequeno, local, não tem arquivo. Pode bem ser a única
cópia existente.
Ele não afasta o envelope da água e Dee faz um esforço para não
pegar nele.
um pouco longe de mais. Teve sorte em não ter ido parar à cadeia.
Dee estremece. Claro, é o tipo de coisa que ele saberia. O homem de
Oregon, que estivera no lago naquele dia. Sem querer, Karen, a cansada
Dee sabia as estatísticas de cor. O tipo de pessoa que levou Lulu tem,
para um estranho raptar uma criança é… Dee não se permite ter esse
ao perfil. Dee não tinha como saber que ele estava a trocar um pneu
rico.
coleção, a alma, está aqui, nesta casa. Quero que a veja. Que percorra a
ele tem razão. Ela não se questiona porque deveria confiar nele, ou como
uma porta feita de algo que parece, mas não pode ser, granito. Dee
por um único foco de luz. Aquela é a coleção dele; o museu, como ele
lhe chama. Dee já ouviu falar. É bem conhecido, para quem se interessa
por aquele tipo de coisa. O homem obtém coisas a que a maioria das
pessoas não tem acesso. Coisas que ninguém devia ver. Coleciona os
relíquia de algo terrível que pode ter sido feito a Lulu. Dee olha de
voz.
Dee percorre a galeria. Olha para cada objeto durante exatamente
três segundos antes de seguir em frente. A sua mente está cheia de ruído
estático. Ele caminha ao seu lado, intimamente perto. A pele dele emana
ele e estende a mão. Por um momento, ele fica quieto e o seu olhar azul
percorre-a lentamente da cabeça aos pés. Ela entende que ele está a
guardadas numa vitrina. Pensa, Vai acontecer agora. Vou vomitar. Então
madeira.
Tirou dela o que queria e agora ela já não lhe interessa. Dee caminha
Dee deixa-se levar pela faixa escura da estrada, até a floresta dar
passarem por ela. Fica-lhes grata por encobrirem os sons que ela faz.
Por fim, a sua respiração acalma um pouco. Dee encosta-se para trás.
conhece aquela fotografia. Falou dela a Karen mais do que uma vez.
casa dele não revelara nada. Tiveram de prosseguir para outras linhas de
inquirição.
contavam com isso. Sabes como é, podem ter preenchido o espaço vazio
no passeio com uma imagem familiar, mesmo que ele não estivesse lá.
Karen não respondeu, mas não precisava. Dee conseguia ver o não
no encolher dos ombros dela. Isso foi quando Karen ainda lhe dava
da cena. Dee sente o coração aos saltos. Força-se a não ter pressa, a
compreendê-la.
Needless Street.
até onde ainda viva. Dee respira depressa. Só isso já seria suficiente,
mas há mais.
errado.
Eram ruas que não davam para lado nenhum. Dee lembra-se de passar
onde pararam para meter gasolina, quem gostava mais dela na escola,
lago? Será que o pai falou com ele? Talvez tenha parado para pedir
seguir. Saberia qual o seu destino, podia ter ido diretamente para o lago.
Dee tenta lembrar-se de onde é que o pai parou. Mas tal como certas
carne, outras eram vagas e desfocadas. Parecia um beco sem saída igual
a muitos outros. Ela e Lulu eram crianças; entediadas e com calor. Não
A razão dita que Dee devia contar à polícia. Devia ligar a Karen, a
Dee achava que desaparecida era melhor do que morta, mas o passar dos
– Isto não devia acontecer – disse Karen uma vez. – A maioria dos
polícias passa a carreira sem ter de lidar com o rapto de uma criança. É
Porquê comigo?
– Tenho uma pergunta – disse Dee. – Porque não faz o seu trabalho?
Karen corou.
Talvez tenha sido então que as coisas azedaram entre elas. Com ou
desperdiçado.
A fotografia ainda tem mais um segredo para revelar. Dee olha com
seus olhos protestam, mas Dee consegue ver letras, bordadas no bolso
É como desferir o último golpe numa luta muito, muito longa. Tem
um nome, ou parte dele, e uma rua. Dee repara que está a chorar, o que
momento, durante uma batida do coração, Dee sente Lulu ao seu lado. O
bochecha gorducha e macia roça na cara dela. Dee sente o cheiro limpo
É o dia certo, por isso vou ver o senhor bicho de manhã. Encontrei-o
num anúncio na Internet. Não custa tanto como os outros, posso pagar
quando ninguém ainda está a pé… quando mais ninguém quer ir,
dela, e dos programas que vi na televisão, e dos doces que comi, e dos
Não muito. Não falo da situação com Lauren ou dos deuses, é claro.
avançar lentamente até à grande pergunta. Vou fazê-la não tarda muito.
onde estamos entre uma coisa e outra. Entradas, salas de espera, átrios e
afins, salas onde ninguém espera que algo aconteça. Alivia muito a
ninguém vai saber a que cheira um prado verdadeiro. Talvez já não haja
Acho que o deixo nervoso. É o meu tamanho. Ele disfarça bem, na maior
parte do tempo. Tem uma barriga que parece uma pequena almofada
redondos.
Espero que esta escolha austera lhe mostre que levo a sério o meu
progresso.
por acidente.
Ainda não fui a nenhum encontro, mas parece-me mais provável que
– Que azar – diz ele. – Tirando isso, acha que o encontro correu
bem?
– Oh, sim. Diverti-me muito. Sabe, ando a ver uma série de televisão
como as pessoas são só pelo que fazem. Alguém pode fazer uma coisa
má sem ser má pessoa. As pessoas más podem fazer coisas boas por
falar.
que era dez anos antes. Não se lembrava de ter matado aquelas pessoas,
nem dos novos tipos de telemóvel, nem da própria mulher. Era uma
Então, seria na mesma culpa dele, mesmo quando era algo que não
podia controlar?
– Acha que as suas ações por vezes estão fora do seu controlo?
pessoas boas das más. A minha gata não fala, admito. Mas sei sempre o
– É a minha melhor amiga – digo eu, o que pode bem ser a primeira
coisa verdadeira que lhe disse desde que comecei a cá vir, há seis meses.
Cai um silêncio na sala, nada desconfortável. Ele escreve no bloco de
notas, mas deve estar a fazer uma lista de compras ou algo assim, porque
é… como posso dizer isto? Homossexual. Gay. Acho que a minha gata
– Há outra gata que ela costuma observar, pela janela. Está sempre a
olhar para ela. Adora-a, dá para ver. A minha mãe ficaria muito
– Bom…
– Sabe, Ted, esta sessão é para si. É privada. Aqui pode dizer o que
– É um objetivo.
espontaneamente.
falar sobre o seu livro. Ainda não foi publicado nem nada. Acho que
nem sequer está acabado. Está a escrevê-lo desde que o conheço. Todos
temos algo de que gostamos mais do que de tudo o resto, acho eu. Para
com os sacos onde os miúdos levam o almoço para a escola. Sei que tem
melhor.
Estava um bocadinho rouca. Ouvi com atenção tudo o que ela disse,
espera.
bolso. Li-o três vezes. Esperava lembrar-me de tudo. Então, fui até um
lado e aviei a receita. Estava tão aliviado que quase dancei nos
uma flor, uma banca a vender fruta em forma de estrela. Vi uma mulher
com um cãozinho preto numa grande bolsa vermelha. Segurava bem o
algumas respostas. Não sobre o corpo dela, mas sobre a sua mente. Foi
assim que tive a ideia de marcar consulta com o senhor bicho e fingir
medicamento é informação.
Vejo que algo está agrafado ao poste telefónico. Vou ver, porque
ter a certeza. Parece muito mais nova, certo, e não tem nenhum cão com
Da última vez que afixaram cartazes nos postes telefónicos, foi por
Já aconteceu.
abandonar-me!
Lauren a rastejar pelo chão. Os seus dentes afiados batem uns nos
outros.
me a mão, desta vez faz sangue. Chora e luta comigo a noite toda.
mais.
pelo quarto.
instilou em mim.
inspeção tinha de ser feita duas vezes – deixava isso bem claro, por
causa do erro humano. Nada lhe escapava. Cada grão de pó, cada
seu diário de estragos. O inglês dela era quase perfeito, era sempre uma
Por isso, todos os sábados de madrugada, dou uma volta pela casa
com o livro. Volto a fazê-lo ao fim do dia, antes de anoitecer. Faço uma
está em ordem, e depois faço uma ronda mais rigorosa, para ver se há
importante.
tum. Espero um pouco. Nunca sei o que vai acordar Lauren. Mas ela
continua a dormir. O dia está ofuscante, a terra seca e dura sob os meus
com força. Volto a trancar a porta depois de sair e vou até à arrecadação
ao lado da casa.
mão para uma caixa de parafusos, para a garrafa castanha atrás da caixa.
O Pequeno Teddy puxa-lhe a mão. Quer entrar no carro, mas o Papá tem
desniveladas!?!?!
ranger, precisam de óleo. Uma tábua numa das janelas da sala está solta
pretas e espertas.
Arranjo o que posso agora e o resto fica para fazer durante a semana.
caminho.
Lauren fica calada enquanto come. Ontem foi mau, ela cansou-se
– Quero ir acampar.
Lauren sabe isso. Porque tem ela de esticar a corda? Sempre a puxar e a
até à floresta, fazer fogueiras, acampar e tudo isso. Para elas, nem sequer
seja porque também estou cansado da casa, mas dou por mim a
concordar.
ouço o som seco de saias a roçar no chão. Oh, não. Fecho os olhos com
força.
A mão dela é uma espécie de barro frio no meu pescoço. Não deixes
Lauren. É só desta vez, prometo. Vou garantir que ela nunca mais quer ir
acampar.
O Sol desce lentamente para a linha das árvores. Observo pela vigia
aqui.
oportunidade.
– Está bem.
de porco.
última vez que me deixou carregá-la assim sem se debater. Ela detesta
sentir-se impotente.
– Doninha-fedorenta.
O animal caminha ao nosso lado pelo trilho por algum tempo, talvez
Mas as árvores que rodeiam a clareira não são cedros nem abetos. São
de-osso.
Encontro o sítio que quero no canto noroeste, onde estendo a lona
alguma água, comer uma barra energética. Acima, os ramos deixam ver
mantenho a calma.
quero viver.
que consigo.
futuro. Fica tudo nublado, como o céu num dia de chuva. Mas a vida
muda muito depressa. As coisas nunca ficam iguais para sempre, nem
sempre, juro.
– Mas eu não sou como toda a gente – diz Lauren, numa voz tão
caminhado até cá sozinha. Eu não posso. Isso não vai mudar ou dissipar-
se. Isso vai ficar igual para sempre. Não vai, Ted?
Ted.
– Vamos só observar as estrelas, gatinha.
que já és muito crescida, mas ainda precisas que tomem conta de ti.
– Isso foi há anos. Agora é diferente. Olha só, estamos fora de casa e
outra. Não sinto nada, é claro, mas vejo a pele a empolar, vermelha.
– Que bichos são estes? Oh, meu Deus, Papá, o que se passa?
formigueiro.
– Acampar foi uma ideia parva. Obrigada por nos tirares dali.
intensidade, julgo eu, porque ainda não sabem como a dor pode ser
profunda.
mim.
– Eu sei. – Consigo sentir o sabor das suas lágrimas nos meus lábios.
semana. Não te preocupes, gatinha. Porta-te bem. Isso vai fazer o tempo
com cabelo da cor do sumo de laranja a passear com o cão. O cão sorri
para mim, como sempre. Lembra-se daquela vez quando Olivia tentou
sair de casa. A seguir, sou ultrapassado por uma família a caminhar com
iluminadas pelo sol, dou a volta até à clareira. A lona ainda lá está. Está
pode ficar aqui. Pode chamar a atenção para este sítio. Pego num pau
coisinhas tão inofensivas. Ninguém diria que podem causar tanta dor.
– Desculpem – digo.
ouvir os gritos de Lauren, ouvir a dor dela ao ser picada. Mas era
Tenho de admitir que Lauren está muito melhor hoje em dia. Não
Aqui cai uma coluna de luz do sol. Saúdo os deuses e sinto o seu poder.
Eles estendem-se para mim dos seus sítios por baixo do solo de floresta.
É como ser puxado em direções diferentes por fios ténues. A Mamã tem
razão. Mal o meu braço fique bom, tenho de lhes encontrar uma casa
mais.
deve ter soprado as folhas secas. Assim não pode ser. Quando as pessoas
pessoas usam sapatos. Isto é, eu sei que saí descalço no outro dia, mas a
virado para leste, para a casa vazia. Talos altos de rabo-de-gato batem
contra o vidro, mas ainda consigo ver bem. Vejo um camião branco a
degraus com passos ágeis e abre a porta traseira do camião. Tem uma
expressão fixa à volta da boca. Fá-la parecer mais velha do que
muita coisa.
sala escura onde estou sentado. Baixo-me, mesmo sabendo que ela não
me consegue ver. Isto é muito mau. As pessoas têm olhos para ver e
que os homens.
receita, mas fiz-lhe algumas pequenas modificações, por isso vou gravar.
caras que vivia nos cemitérios da terra dela. É tão assustador… ter mais
do que uma cara. Como podemos saber quem realmente somos? Quando
era pequeno, às vezes pensava que via o ankou no meu quarto à noite, a
pela minha mente. Pensar nele ainda me faz tremer. Mas agora tenho
andar pela casa, lembro-me de que estou seguro e que o ankou está
muito longe.
É estranho, porque, por um lado, sou muito solitário; por outro, tenho
martelo pneumático.
Olivia
acordar e ir à porta. Eu não posso, pois não? Sou um gato. A sério, que
diabo.
Corro escadas acima e caminho em cima da cara dele até ele acordar.
tum. Ele abre a porta. Outra voz faz uma espécie de pedido. Acho que é
uma ted fêmea. Espero confiantemente. Ted vai dizer a este outro ted
para onde pode ir! Ele detesta pessoas que tocam à campainha. Afinal,
Mas, em vez disso, para meu horror, ELE DEIXA ENTRAR O OUTRO TED.
meu sítio por baixo da cama. Estou paralisada de horror, com o coração
aos saltos. O cheiro novo dela enche a casa, enche-me as narinas. Parece
que estão na cozinha. Não os quero ouvir, é claro que não quero, mas é
difícil não o fazer. A senhora ted vai viver na casa ao lado. Então ela diz
acontecer o tempo todo? A conversa parece não ter fim e eu penso, Uau,
só faltava convidá-la para vir morar connosco, pela maneira como está
a falar. Por fim, as vozes deles voltam para a entrada da casa. Ele leva-a
até à porta.
sair, mais alguma coisa sobre um braço partido que não entendo bem.
Uau. Isto não está certo. É mau, mau, mau. O guincho atinge um tom
que me faz sentir como se a cabeça me fosse explodir. Aquilo foi uma
voltar? INACEITÁVEL.
cabeça. Vai voltar a dormir, claro. Ele chama por mim, mas estou
que nem os meus olhos funcionam como deve ser. Tudo parece da cor
Ele tem de aprender uma lição. Desta vez, partir coisas não chega.
Por fim, seguro o puxador com uma pata e a porta abre-se. Solto um
pequeno prrr de satisfação. O frio liberta-se como nuvens. Neste tempo
quente, não vai demorar muito a derreter tudo. A cerveja vai ficar
Sinto-me melhor depois disso. Quando volto para a sala, fico aliviada
tapete cor de laranja e dormir uma sestinha, que, para ser honesta, bem
Parte dela suspira de alívio, mas não se acha capaz de passar por tudo
aquilo outra vez. Mãos à obra, Dee Dee – a voz do pai a ecoar-lhe na
cabeça. O lema austero de pai e filha durante aqueles longos seis meses,
quando eram só eles os dois. Respira fundo e mãos à obra, por muito
desagradável que fosse, por muito que o coração batesse à noite, viessem
madeixas baças de cabelo castanho que lhe caem sobre a testa… é uma
– O que foi?
camada de pó.
momento, Dee quase espera que a pele dele comece a fervilhar com a
luz do sol. Ela não larga a caixa de cartão húmido e por um momento
hoje à tarde. Posso usar a tua casa de banho? Foi uma viagem demorada.
uma chata. Desculpa. Já tentei noutras casas da rua, mas acho que estão
todos a trabalhar.
A porta abre-se.
ocasional feixe de luz cai sobre taludes estranhos, coisas quebradas com
A casa cheira a morte; não a putrefação ou sangue, mas a osso seco e pó;
margem da sociedade.
um.
deitada no chão.
– Isso é difícil.
sentimental, cantada por uma voz encantadora. Dee repara que Ted tem
punhados de cabelo. Por algum motivo, isso invoca o toque leve e suave
do terror.
sua pele, tão forte em alguns lados, como nos calcanhares ou nos dedos
delicada que se ergue nos seus braços, os globos moles dos seus olhos; a
língua comprida e a garganta, os órgãos roxos e o coração musculoso
que bombeia sangue através dela. Agora está a bombear com força.
sede. Está sempre tanto calor por aqui? Pensava que este sítio era
– Caças? Pescas?
– Não.
– Porquê?
Devia ter-me livrado da arca quando avariou, mas esta coisa fá-la feliz,
sabes? Ela farta-se de ronronar. Por isso, fiquei com ela. Suponho que é
uma burrice.
Dee olha para dentro da arca. O interior está forrado com coisas
até tinha pesadelos. Tinha tanto medo de a confundir com uma camisola
e…
Ele solta outro risinho e ela fez uma pequena dança, imitando o gato
penas de um pintainho.
fechou-se. Estava parado numa encosta. Pelo menos, não está partido,
acho eu.
– Aposto que ainda deve doer. Eu parti o braço uma vez. Era tão
de ajuda, é só dizeres.
– Ah – diz ele.
É estranho que aquela seja a primeira vez que ela se permite admitir
Ele assente.
– Adeus, Ted.
camisa.
a incomodar, prometo.
– Estás à vontade.
Então, ele fica alarmado e tranca a porta rapidamente.
claro. Ela sente o peso do seu olhar nas costas. Precisa de toda a força de
controlar. Mas é como enterrar-se cada vez mais numa duna de areia;
folhas secas. Algo andou a dormir ali. Não uma doninha-fedorenta, não
último sítio que lhe pareceu um lar. Quando era jovem, talvez, e Lulu
cozinha. Come depressa e sem gosto. Não liga à comida, mas tem de
cozinha cheira um pouco a gás. Outra coisa que precisa de ser arranjada.
noite entra pelas janelas, alaga os cantos e espalha-se pelo chão como
uma maré. Dee olha para a escuridão e a escuridão olha para ela. Os
então… nada de televisão nem livro na cama. Fica à espreita por mais
inatividade. Mas Dee continua a observar e não acontece nada. Fica com
costumava dizer o pai. Além disso, não tem nenhuma cama. Dee pousa
acaba, abre o livro numa página à sorte e continua a ler. Dee só lê aquele
livro. Gosta de ler, mas uma pessoa nunca sabe o que um livro nos vai
à sua volta como uma pessoa, com tábuas a ranger, a soltar o calor
não faz parte da cidade… está quase na floresta. Dee está tão perto de
perda. Os pais caminham pelo deserto, de mão dada, sob um céu repleto
pássaros vermelhos levantam voo, e o céu fica branco, e o som das suas
coração aos saltos. Escorre-lhe suor pelas costas e pelo meio dos seios.
martelo. Desce devagar. Cada tábua range como um tiro sob os seus pés.
entrar… deixa-me entrar. Uma ténue luz prateada jorra pelas janelas
em fúria e força.
para dentro. O martelo cai ao chão. Dee ajoelha-se e fica frente a frente
boca uma cereja negra, olhos a luzir como lanternas, cheios da luz da
cabelo do crânio.
medo inunda-a completamente, tão frio que pensa que lhe vai parar o
de Dee, para a puxar para fora deste mundo, para o que a espera do outro
Dee grita e o som quebra o sonho, ou seja lá o que aquilo for. Vê que
não está uma menina morta à janela. É um gato, a bufar de boca aberta,
o pelo malhado descorado pelo luar. O gato ataca Dee e ela consegue ver
que não tem garras nas patas mutiladas. Dee recua, fazendo um som
reconfortante. O gato vira-se para fugir, mas olha para Dee por um
Isto é um velho hábito dela… dizer em voz alta o que o pai teria
evitar que cobras e outras pragas façam ninho. Dee estremece. O quintal
lágrimas.
Sabe como uma janela iluminada brilha como um farol na noite. Pelos
não volta durante uma noite, ou mais. Outras vezes, vai à cidade, e essas
visitas costumam ser mais curtas, às vezes apenas horas, ou uma noite.
Condado. Dee interroga-se o que fará a uma pessoa ter um filho como
Da primeira vez que Dee tenta seguir Ted até à floresta, ele para na
embrenha-se na floresta. Ela sabe que não o pode seguir, não dessa vez.
Depois disso, prefere vigiar a casa. Afinal, não veio para ali por
causa dele. Espera, paciente. O Monte dos Vendavais jaz, aberto, no seu
colo, mas ela não olha para o livro. Observa a casa sem parar, memoriza
paredes.
Dois dias mais tarde, quase desistiu. Então, por entre o canto das
distante dos cortadores de relva, ouve algo que parece o tinido de vidro a
partir. Todas as fibras do seu ser tentam ouvir o som. Veio de casa de
vai até lá. Julgou ter ouvido uma janela a partir, pensou em ladrões, está
Dee ouve uma voz aguda a dizer «Eu não quero estudar álgebra».
todos os seus dias de vigia, Dee nunca viu ninguém entrar ou sair a não
ser Ted.
criança que nunca sai. É tudo o que sabes por enquanto, diz
consegue conter. Lauren, pensa ela. Lulu. O nome dela é Laura. Lulu,
sério.
suporto quando ela fala neste tom. Escolheu mesmo bem o dia. Tenho
seguir, puxa-a com força. Já tem pedaços ralos de cabelo por toda a
cabeça. A coisa de que mais gosta é de arrancar cabelo. Meu, dela… não
importa.
de Deus.
– Desculpa, Papá.
álgebra, mas pelo menos tem o bom senso de fingir. Ficamos calados por
algum tempo.
– Papá?
– Sim?
– Obrigado, Lauren.
Tenho de limpar uma lágrima antes que ela veja. Sinto-me mal por
andar tão rabugento. E não consigo evitar ter esperanças de que ela
comece a interessar-se por comida.
A massa está meio crua e o molho fica aguado e sem sabor. Tem
Ela assente.
avó. Ela dizia isso muitas vezes. Além de, «Nunca chames louca a uma
mulher».
cozinha. A noite parece estar a ficar mais quente e não mais fresca.
dela está suja, precisamos de fazer uma carga de lavandaria. O som seco
todos destampados.
Ela não responde, mas solta um queixume fraco que quase me para o
coração. Quando lhe ponho a mão na testa, está fria e húmida, como a
a ficar deitada onde está. Quando tento movê-la, saem coisas que não
deviam sair. Limpo tudo o melhor que posso, arrefeço-a com água, tento
dar-lhe aspirina e ibuprofeno para controlar a febre, mas ela vomita tudo.
– Anda, gatinha.
minhoca.
Ela fica quieta nos meus braços. Então, começa a gritar. Arranha-me
saber. Olho para o lixo, para onde atirei a carne que se estragou quando
Vou deitar o lixo fora, algo que devia ter feito imediatamente. O
porque pensava que éramos amigos. Não me devia ter descuidado tanto.
talvez, como se tivesse sido muito manuseado por mãos suadas, como se
a pus lá. Quando pego na lista, vejo que outro nome foi acrescentado
Lauren, lê-se na letra trémula dela. Este, é claro, sempre foi o meu
receio.
Sei que não está na hora dela, mas estou a espreitar pela minha
fora. Num dia assim, não é muito mau ser uma gata de interior.
Sim?
Não gosto dos olhos dele. Redondos, como duas vigias azuis. Sinto
descreveria tudo o que tinha comido nesse dia. Falaria do meu amor,
televisão quando está a dar um programa bom (este NÃO) e uma pessoa
ainda não tenho um nome para essas, mas são tão boas…
Seja como for, acho que seria bom partilhar a minha experiência e
Sinto tanto a falta de Lauren. Agora que passou o choque inicial, sei
que ela não pode ser o Assassino. Não que ela não o fizesse, mas não
tinha como. Ela não consegue sair de casa. Onde é que arranjava as
armadilhas? E como as punha no quintal sem eu dar por ela? Não, não
pode ser Lauren. Escreveu o nome dela na lista para me perturbar. Ela
gosta disso.
Por enquanto, tem de ficar afastada, até eu perceber o que fazer com
ela.
quilos. Estou fraco, mas consigo andar pela rua sem cambalear. Isso é
– Como já lhe disse, se quer passar o nosso tempo a falar do que viu
menina odeia-a por causa disso. Pensa que a mãe fez de propósito, o que
é muito injusto, na minha opinião. Ora bem, a menina tem de ficar em
casa por causa da deficiência. E está sempre a tentar matar a mãe. A mãe
fazer alguma coisa para educar melhor a filha, para ela deixar de ser
violenta? E isso é hereditário? Quero dizer, foi a mãe que deixou a filha
– Não!
Ele olha para mim. Agora os olhos parecem achatados, como duas
moedas falsas.
– Não sou tão estúpido como pensa que sou – diz ele calmamente. –
– Pensar nela como uma pessoa é avassalador, por isso lida com os
– Desculpe – digo. – Isto foi muito grosseiro. Não estou muito bem-
continuar.
habituais, mas não estou a ouvir. Estou sempre a tentar dizer-lhe que não
tenho trauma nenhum, mas ele não me ouve. Aprendi a ignorá-lo nestas
alturas.
Gostava de não lhe ter mostrado o meu mau feitio. Distraí-me e não
Passo pela casa dela sem olhar. Tenho medo de que possa olhar para
mim. Seguro com força o saco de papel castanho que o senhor bicho me
deu.
Olivia
ainda não voltou. Há quanto tempo saiu? Dois dias? Três? Acho um
Não gosto de o deixar entrar, a não ser que tenha mesmo de ser. Sou
Ted e tento fazê-lo feliz porque foi o que o SENHOR me disse, e é isso que
uma pessoa faz numa relação, não é? Não gosto de matar. Mas tenho
tanta fome.
Sou a gatinha de Ted, mas tenho uma outra natureza. Posso deixar
esse lado tomar controlo, por algum tempo. Talvez todos tenhamos um
Ele levanta-se num movimento fluido. É preto, como eu, mas sem a
risca branca no peito. É difícil dizer, porque ele faz parte de mim, mas
matador.
me que tipo de animal seria. Talvez aquele rato que estava sempre a
sótão. Às vezes, ouço-os a chilrear e a correr pelas traves. Acho que são
cima não há janelas e só gosto de salas com janelas. O Noturno não liga
a coisas dessas.
Ted não sabe nada sobre o Noturno… quero dizer, ele não nos
da linguagem. E que diria eu? O Noturno faz parte de mim; somos duas
naturezas que partilham o mesmo corpo. Acho que é uma cena de gatos.
É a tua hora.
A mulher loira disse que sim. Estou surpreendido. Diria que ela seria
ao outro a noite toda. É tão bom conhecer alguém que tenha a mesma
paixão pelo mar que eu, escreve ela. Posso não ter sido completamente
Mas quando e onde nos encontramos? Que roupa levo? Será que ela
alguns sítios o algodão é fino e macio como papel. E é claro, tem o meu
parece que uma mulher fosse gostar. As minhas calças de ganga são
cinzentas de tão velhas que são, exceto onde têm manchas escuras de
alguma coisa – acho que é ketchup. Estão rotas nos dois joelhos, mas
não de uma maneira fixe. É tudo tão desbotado. Quero ser colorido,
cabelo loiro. Como pode fazer-me passar por isto? Porque me escolheu
de lei maciça. Tenho andado a adiar, mas acho que está na hora. Tiro a
prata, o relógio de bolso do Papá, que ele recebeu do papá dele. Já foi
tudo embora. Há marcas nas paredes, espaços vazios por toda a casa. A
me dinheiro pela moldura. É muito menos do que preciso, mas vai ter de
sensação das notas na minha mão. Tento não pensar no rosto esbatido da
Caminho para oeste, até ver uma loja com roupas na montra, e entro.
com calças castanhas e uma espécie de casaco verde, mas sem mangas.
Tem barba como eu, talvez até se pareça um pouco comigo, o que me dá
a ideia.
E aponto.
– Quê?
Não gosto especialmente das roupas, mas desde que não tenha de ir a
despir.
Parece que fiz asneira da grossa. Ele vai buscar a roupa aos cabides
do balcão e saio.
lado, estão tipos grandes que conduzem camiões para ganhar a vida,
roupas novas, pareço um deles, foi por isso que escolhi este sítio. É mais
Fazem churrascos. Pensei que seria bom, pois ultimamente tem estado
muito calor. Eles põem luzes nas árvores e fica bonito. As mulheres
gostam desse tipo de coisa, mas vejo logo que é o sítio errado para me
desagradável. Toda a gente foi forçada a vir para dentro. Sem os bancos,
a noite quente e as luzes nas árvores, o sítio fica muito diferente. Não se
para ter escolhido este sítio e este assento específico. Consigo ver a porta
perfeitamente.
em redor e, pelos seus olhos, vejo o sítio ainda com mais clareza. É a
o tipo com o sorriso branco da foto de arquivo não estava à espera dela.
(Não uso a minha foto, aprendi depressa essa lição. Encontrei a minha
com uns grandes dentes brancos.) Ela pede algo à empregada de mesa
quadrados, que não é o que eu quero. Mas esta mulher fez a coisa certa.
meu álbum preferido, disse-lhe eu. E adorava a cor, porque era a cor dos
bondoso, escrevi. Só estava a dizer a verdade, ela tem olhos bonitos. Ela
gostou, claro.
verde. Até as minhas calças são castanhas. As minhas roupas novas dão
comichão, mas pelo menos não têm o meu nome escrito! Não suportaria
a ideia de ela fazer o que a primeira fez… entrar, olhar para mim e sair.
Por isso, estou a fazer batota. Sinto-me mal por isso, mas explico-lhe
tudo quando for ter com ela, daqui a um segundo. Como também vou
Ela olha para o telemóvel. Pensa que eu não venho. Ou antes, que o
homem dos dentes brancos não vem. Mas espera, porque ainda não
habitual dela. Peço outro boilermaker. Está quase na hora de ir lá, digo
Observo pelo espelho enquanto ela enrola um tecido sedoso azul à volta
uma fita ou uma gravata. Pousa uma nota de cinco dólares na mesa e
vai-se embora. Os seus movimentos são determinados e caminha
Acabo a minha bebida num gole, visto o casaco e sigo-a. Lamento muito
molhado. Não a posso deixar escapar. Posso explicar tudo e ela vai
compreender, tenho a certeza que sim. Os olhos dela eram tão bondosos,
tão azuis. Imagino a comida que vou cozinhar para ela. Vou fazer-lhe o
meu caril de frango e chocolate. Nem toda a gente aprecia, mas aposto
parece que está a anoitecer. A chuva acerta nas poças como balas. O
coragem dela. Correu um risco ao vir aqui ter comigo… o risco não
compensou, é claro, porque eu não apareci… mas olhem para ela. Está a
secar a cara, pronta para voltar à luta. É o tipo de pessoa com quem
– Quê?
convencida de que ele sabe quem ela é e porque está ali. Controla-te,
de domingo. Mas é claro que isso não é verdade. Dee boceja para
mais grossa e mais ruiva do que o habitual, a pele mais pálida, os olhos
– Disseste que, se houvesse algo que não conseguisse fazer, hã… por
– Dá cá.
Dee faz força na tampa do frasco, que abre logo. Dentro do frasco
COPO.
– Giro.
– Hã – diz ela.
– Oh – diz Dee.
– Mais ou menos.
sítio maravilhoso.
desapareceres.
tempo.
– Tem de ser hoje, antes que ele arranje a janela – diz Dee.
atrás dos estores, a vigiar a casa de Ted. Sob aquela luz, tudo tem um ar
cãibras nas pernas, até ouvir três fechaduras a rodar na casa ao lado. A
apressar. Vai até à janela de trás da sala de Ted e tira o martelo do bolso
do macacão. Arranca os pregos das tábuas que tapam a janela. Os pregos
casa. Ele deve ter-se esquecido disso, depois de entaipar as janelas. Dee
cinza.
assim.
pensa ela. Aquilo não é vida para um pobre animal. Por um momento,
Dee move-se depressa, não tem muito tempo. Atravessa a sala até à
ela veja, a casa não tem cave. Levanta os tapetes para ver por baixo, pisa
volumoso, que ocupa quase todo o pequeno corredor. Está trancado e ela
em cima dos lençóis. Quando Dee se aproxima, vê que não são moedas,
costumava estar. Ela devia tirar fotografias, pensou, mas não trouxe o
Uma tábua suspira no andar de baixo e uma mão agarra com força o
coração de Dee. Algo passa a correr dentro da parede e ela grita. Sai
lhe permite. Quanto tempo vai Ted ficar no bar, sozinho? Ela imagina-o
Mas não há nada no canto a não ser sombras e pó. Ou a gata fugiu
ou nunca lá esteve. Dee vai até à janela, soltando um grito rouco quando
o feio tapete azul escorrega por baixo dos seus pés. Trepa lá para fora,
escuro é maravilhoso.
velhos. Tem de ser rápida, e acabar enquanto não está ninguém na rua
aos pés, como se tivesse febre. E por acaso, sente algum frio. Dee
reduzida a desejar que a irmã fosse prisioneira ali ao lado. Parece tão
Dee aperta as mãos diante da boca e sussurra para dentro das mãos,
outra vez. É como varejeiras, mas mais agudo, como uma agulha
cassete. Por isso, não está só na minha cabeça. É real. É um certo alívio
e, ao mesmo tempo, não é, de todo. Vou chegar ao fundo disto. Acho que
teria dado uma boa detetive, sabem? Como os da televisão, porque sou
muito observadora e…
o guincho para fora dos ouvidos, quando ouvi o clique repetido de uma
Eu ronronei e fui ter com ele. Ele fez-me festas na cabeça e cócegas
na orelha.
Espero que não chegues perto de nenhuma chama, disse-lhe eu. Digo
– Ela não veio – disse ele. – Esperei uma hora. Toda a gente a olhar
para mim. Um falhado à espera num bar. Num bar – repetiu, como se
porta aberta ardia com luz branca. Uma mão pesada caiu em cima da
minha cabeça. Ted fez-me festas nas orelhas com força. Não estava
mesmo a dormir.
Eu não ia sair, disse eu. O SENHOR disse-me para não sair, e não saio.
Ele riu-se.
meu pelo sedoso. Ele espirrou, mas continuou a cortar tufos de pelo do
meu pescoço, das minhas costas, da minha cauda. Não sei bem como,
fizesse, mas há limites. Não devia ter mexido com a minha beleza. Estou
têm consequências.
Vou até à sala e salto para cima da estante. Atiro abaixo a garrafa de
estar trancada num sítio escuro e um assassino verter ácido por cima de
mim… A minha cauda abana… fosse um sonho ou um programa de
Salto para cima da lareira e atiro ao chão a boneca gorda e feia, que
fotografia dos Pais. Sei que não vai funcionar, mas não resisto. Sou uma
otimista. Não sei o que ele fez para fixar tão bem a moldura… colou-a à
Não importa, tenho outras ideias. Vou em silêncio até ao quarto dele
e salto para dentro do guarda-fatos, onde faço chichi num sapato de cada
par.
Sei que o SENHOR não vai gostar, mas a justiça tem de ser feita.
Ted está a chamar por mim, mas não vou ter com ele, apesar de a voz
recentemente.
espaço branco e vazio. No lixo, estão 16 latas vazias. Por isso, comi e
– Gatinha – chamo.
Desta vez, perdi dias. Julgo que foram três. Verifico a televisão. Sim,
apanhar, vejo algo branco. Está alguma coisa por baixo do frigorífico. Eu
rodeado pelos meninos verdes com os seus dedos compridos, e que vou
mulheres não eram as amigas certas para mim, acho eu, mas não sou de
desistir.
Olivia
últimos dias.
Bíblia com uma pata, que cai com um baque no soalho. Espero, de olhos
acalmar.
excremento.
Soa quase como uma pequena abelha, a gritar por ajuda. Hoje, há algo
na casa que parece errado, como se durante a noite alguém tivesse
russa enorme olha para mim de cima da lareira com o seu rosto
inexpressivo, o seu corpo redondo. Parece mais feliz do que nunca por
moldura horrível por cima da lareira. Vão-se embora, sussurro para eles,
contra a cabeça. É ele outra vez. Os olhos azuis e redondos olham para
mim. Ele assente com interesse a uma pergunta inaudível. A sala está
saturada com aquele odor… leite estragado e pó. Sei que é só uma
imagem num ecrã, mas parece que está aqui, não sei como. Sento-me e
lambo uma pata. Isso faz-me sempre sentir melhor. Eu conseguia fazer
este programa tão melhor do que tu, digo-lhe eu. Não tens um pingo de
carisma.
vontade de continuar a falar com ele. Não sei porquê… não é como se a
tempo de mais.
a tocar à campainha. Então, o que está a fazer? E o fedor está por todo o
mesmo cheiro que vem da televisão. Não sei como, mas o ted da
televisão também está diante da minha casa. O programa deve ter sido
gravado antes.
avisou-me vezes sem conta como é perigoso lá fora. Acho que era a isto
estou a correr.
sobre as coisas más que as pessoas fazem aos teds pequenos, pregando
Bíblia, parto algo de Ted ou vou dormir. Está bem, três coisas. Bom, não
boneca russa uma vez esta semana e a caixa de música duas vezes.
Por isso, vou precisar de uma longa, longa sesta. Acho que também
tenho de perdoar Ted. Não tenho falado com ele estas últimas semanas,
mas hoje foi um dia assustador e a minha cauda está esquisita. Preciso
descansar.
Ted
nervosa, não é nada dela. Deixa-me pouco à vontade. Olivia está sempre
hoje. Sei que ela está melhor onde está, mas é muito difícil para um pai
estar separado da sua cria. Tento falar com ela, mas ela está a castigar-
Ainda estou muito perturbado com a vizinha. Não quero dizer que
estava à espera de que ficássemos logo amigos, mas achei que pelo
leve que esvoaçasse à volta dos seus tornozelos enquanto andava. Talvez
azul. Mas fiquei ali sentado no bar e esperei, e ela não veio. Fiz figura de
perto de mais. O que estão a fazer aqui? Nesta parte da rua, só há duas
casas e depois a floresta. Mas continuam a vir, cada vez mais perto. Vou
até uma das vigias para os ver a passar ruidosamente, amarelos como a
morte, mandíbulas enormes sujas de terra. Eles não param. Passam pela
rugido terrível.
por um momento como ela é rude. – Não podem ir para ali. É uma
– Estão a fazer paragens novas nos trilhos – diz ela. – Uma área de
voltei a receber correio teu por engano hoje de manhã. Queres que to
leve depois?
floresta.
saibam quer não. São atraídas para eles como se estivessem presas por
um fio. Não sei dizer se o meu braço já está bom. Está melhor, acho eu.
As nódoas negras quase desapareceram. Seja como for, não tenho mais
isso.
triste. Este foi um bom lar para os deuses. Mas, se ficarem aqui, mais
cedo ou mais tarde vão ser descobertos. Posso não ser esperto para
mochila. Vou para a estação seguinte. Fica para leste, perto da pedra em
com as mãos. Não está muito fundo. Gosto de desenterrar este de vez em
ver à luz do sol, a sua cor real, o azul profundo do oceano nas
fotografias. Mas é claro que nunca poderia fazer isto durante o dia.
Limpo as mãos às calças e acaricio o tecido. O vestido diz-me coisas
pela ponta dos meus dedos. Cada deus guarda memórias diferentes e
tem a sua própria sensação. Sinto os olhos a arder e a brilhar. Este deixa-
Continuo a cavar, e, um por um, cada deus enche o ar com a sua voz.
da deificação, a mágoa.
Por fim, a clareira fica vazia. Estou a tremer. Agora estão todos no
meu coração e o saco está pesado. Esta parte faz-me sempre sentir que
vou explodir. Encho os buracos e espalho folhas pelo chão, até parecer
que estiveram ali marmotas, ou talvez coelhos. Nada a não ser a natureza
por isso tomo uma direção diferente. Mesmo agora, passados tantos
qualquer lado. O feixe da minha lanterna dança por cima das heras e da
vegetação seca. A noite está tão quente, a floresta parece estar a libertar
calor. O calor sobe em espiral dos troncos dos cedros, ergue-se das
nuvens cinzentas sobre a pele exposta nos braços e no pescoço, mas não
meu toque, abrindo uma passagem para nós. Quando paro por um
momento para recuperar o fôlego, uma cobra castanha desliza
sobre pedra. Não consigo dizer em que direção, o som parece vir de
contra as minhas costas. Algo aguçado faz força contra a minha coluna.
Os deuses estão ansiosos. Querem um lar. Vou para onde eles me dizem,
lugar.
tamanho certo para guardar um deus. Um por um, faço-os deslizar para
cansado. De cada vez que faço isto, fico de rastos. Mas é o meu dever.
regresso a casa e ao dia a dia. Sou levado pela alegria furiosa do canto
dos pássaros.
Talvez só faça isto porque quero falar com alguém. Estar com os
deuses faz-me sentir mais sozinho do que estar sozinho. Sem Lauren
Isto não me está a fazer sentir melhor. Sinto-me estúpido, vou parar.
Dee
Dee sai de casa para ver. Parece mais seguro, de certa maneira, do
que ficar dentro de casa. Mais dois ou três vizinhos estão parados por
das escavadoras e grita para o condutor. O seu cão grande gane e puxa
camião. – É tóxica.
na nuca. Está tão perto que, quando ela se vira, excitada, a barba dele
urtigas esmagadas na pele. Ted cambaleia. Ela percebe que ele está
muito embriagado.
– Não – diz ele. – Eles não podem, não podem fazer isto.
Ele diz mais algumas coisas e Dee responde, não se lembra bem o
quê. Mal consegue ouvir, com o zumbido na cabeça. Ela conhece aquele
Quando ele corre pelo caminho atrás das escavadoras, ela sustém a
respiração. Tem a certeza de que ele está a correr para algo. Algo
escondido na floresta. Dee sabe que não pode seguir Ted. Ele ia vê-la e
era o fim. Só pode esperar desesperadamente que, seja o que for que está
lábio inferior até sangrar. Talvez tenha sido um erro não o seguir. Talvez
os olhos vermelhos.
mesmo. Seja o que for que precisa de ser feito, ainda está por fazer. Ela
escuro, põe água e nozes no bolso. A seguir, senta-se como uma pedra e
vigia a casa de Ted. As nuvens atravessam o céu e o Sol põe-se atrás das
porta das traseiras, está pronta. Mais do que o ver, pressente-o a sair de
casa na escuridão. Quando ele passa por baixo do candeeiro de rua, ela
vê a mochila. Está cheia com algo que forma curvas e ângulos estranhos.
Quando ele para à entrada da floresta e olha em redor, ela para também,
escondida atrás do tronco de uma árvore. Ele espera algum tempo, mas
ela deixa a noite falar, deixa que lhe diga que está sozinho. Quando ele
Quando passam o sítio das obras, Dee ouve Ted a parar mais à
frente. Há menos árvores, talvez seja uma clareira. Ela baixa-se no meio
terra. Ouve sussurros. Dee estremece. Deve ser Ted, mas a voz dele soa
com cãibras nas pernas, mas não se atreve a mexer-se. Se consegue ouvir
Ted, ele também a consegue ouvir. A Lua ergue-se e a noite parece ficar
mais quente. Tempo perfeito para cobras. Cala-te, cérebro, diz Dee
friamente. O que pode estar Ted a fazer? Ela pensa em esgueirar-se para
mais perto, mas cada movimento dela soa alto como um tiro de
caçadeira. Dee senta-se e ouve. O tempo passa, ela não sabe quanto,
por um véu fino de nuvens, mas ela consegue ver o suficiente. Ted
Dee Dee. Mas agora até a palavra lhe parece uma serpente. Enrola-se na
sua boca.
Tenta dar o passo seguinte. Tenta não pensar no que estará à espera
no chão diante dela. Não há cobras aqui, repete com firmeza para si
medo das raízes das árvores, que parecem contorcer-se, olhando para ela
Não sejas estúpida. Andem, ordena ela às pernas. Não são cobras,
raios. Mas continua paralisada, estática como uma pedra. Algo restolha
nas folhas caídas ali perto. Quase consegue sentir o corpo comprido a
das árvores. Dee está sozinha com seja o que for que vem aí no escuro.
Dee abre a boca mais e mais, até o maxilar não poder mais e soltar
posto. A sua respiração soa rouca na sala vazia. Olha para as embalagens
Quando entra, ela ouve-o a chamar, «gatinha». A voz dele está relaxada
e amigável. Dee faz uma lista de coisas que tem de arranjar. Vai ser
difícil, a sua mente vai resistir, mas da próxima vez que Ted for à
Lauren não tem andado por cá nas últimas semanas. Será que está
de férias com a mamã ted ou algo assim? Não sei, costumo desligar
estar como uma vaca morta, nada de recados no quadro branco, nada
É bom que Lauren não esteja por cá, porque Ted tem saído bastante.
Lauren detesta quando ele tem encontros. Grita com ele. Credo, ela é
Também não tem havido sinal nem odor do ted da televisão com
olhos como moedas azuis sem vida. Acho que aí me deixei levar pela
IIIIuuuiiiii.
tanto. Foi tão assustador que nunca mais me atrevi desde então. Mas
não posso continuar a adiar. O SENHOR não gostaria disso. Tenho de ser
Ted. Certo e sabido, ele está na cama, a comer batatas fritas com uma
mão. Salto com leveza e pouso com as quatro patas na barriga dele. O
– Assustaste-me, gatinha!
Ele larga a coisa com que estava a brincar com a outra mão. Uma
coisa azul, demasiado fina para ser um cachecol – mais uma gravata de
muito felizes nos dias que correm. Sim, acho que está tudo a voltar ao
normal.
Ted
ainda consigo ouvir a voz dela. Lembro-me de tudo sobre a história com
suíço.
mascote. Uma sala tinha uma cobra de ar espantado, o que era fixe, e
O miúdo dos sinais devia ter levado o ratinho para casa nesse fim de
semana, mas não tinha vindo às aulas na sexta-feira. A mãe dele disse
que ele estava constipado, mas toda a gente sabia que estava a fazer uma
operação para tirar os sinais da cara. A questão era que ele não podia
Fiquei muito perturbado com toda a cena, mas também havia outros
segunda-feira. Tinha uma nova cautela. Ele viu o que eu era. Viu que eu
era perigoso.
A nossa sala arranjou um hámster para substituir o Bola-de-Neve. O
corredor junto ao meu cacifo, que teve a oportunidade dele. Nem sequer
me em paz.
palma seca como couro. Respiro fundo por cada parte da mão. Isto foi
Surpreendentemente, funciona.
solitárias, não querem saber o que é real e o que não é. Mais uma vez,
sinto-me mal por usar uma imagem falsa, mas ninguém quereria
Olho para as filas e filas de mulheres. São tantas. A procura não tem
por rostos novos. São rostos mais velhos, na maioria. Tento algumas,
recetivas.
depressa, num espaço de três segundos, que até eu consigo ver que é um
emprego. Por acaso, até é bonita. Tem um rosto macio com uma linha do
nas raízes a interromper o preto apagado. É tarde, mas ela vai ver se a
irmã pode vir tomar conta da filha. Tem uma menina de 12 anos.
Também tenho uma filha, digo eu. A Lauren. Como se chama a tua?
Ela diz-me e eu escrevo: Que nome bonito. É tão bom falar com
Se a tua irmã não puder, podes trazer a tua filha, digo eu à mulher.
posso levar Lauren, mas posso sempre dizer que ela está a sentir-se
adoentada.)
Uau, isso é tão compreensivo, diz ela. Dá para ver que és boa
pessoa.
Vou levar uma camisa azul, escrevo eu. Talvez pudesses vestir-te de
Talvez não calças de ganga, porque isso toda a gente vai estar a
usar.
OK…
Não tomo banho há algum tempo, por isso faço isso mesmo,
tomo mais uns comprimidos. Não quero fazer asneira desta vez.
tanto ir para o meu caixote escuro, mas ele empilhou pesos em cima.
chove. A atriz que faz o papel da rapariga é muito boa. Parece mesmo
assustada. Como não gosto desse tipo de coisa, saio da sala, mas ainda
Francamente, quem vê este lixo? Este mundo tem pessoas muito doentes,
deixem que vos diga. Dou graças ao SENHOR por o meu Ted não ser
nada assim.
Tanta fome.
tentei. Já comi tudo o que há para comer neste sítio. Até deitei ao chão a
Jantar Mau, Ted deita fora o lixo duas vezes ao dia. Eu comi os lenços
de papel na mesma.
cave, um sítio que me agrada pouco porque não tem janelas. O motor,
Rastejo para baixo do sofá e espreito atrás dos aquecedores. Vou para
cotão. Abro as gavetas e procuro no meio das meias e dos boxers e das
nariz delicado à frincha por baixo da porta e inalo. Pó, pó e mais nada.
depressinha.
Ocorre-me que não fui ver por baixo do frigorífico. Certo e sabido,
Cravo uma garra numa coisa. É uma superfície mole, a garra atravessa-a
Um rato? Oh… Mas não é carne, é algo mais fino e poroso. Puxo o
mesma.
Bolas, não é nada de mais, digo a mim mesma, é só um chinelo de
Talvez seja geleia ou molho de tomate, algo assim, talvez não seja
sangue. Mas a minha boca está a encher-se com o odor. Quero comê-lo.
estivesse ali escrita uma resposta. Provavelmente não tem nada que ver
comigo. Lauren deve ter-se magoado. Ela não sente os pés, é bruta com
orientação do SENHOR. Mas não desta vez. Não sei dizer porquê, mas
Não.
Tu… Faço uma pausa e lambo os lábios. A minha língua parece seca
frigorífico?
desce como uma onda no mar. Ela magoou-se?, sugere ele. Crianças.
Bom, que ajuda do diabo me saíste tu!, grito-lhe. A quem raios é que
vou perguntar?
ele.
– Pensava que tinha deitado isto fora. Porque é que isto não
desaparece? Não quero isto aqui. Não te quero a olhar para isto.
educadamente, porque isto só pode ser algum tipo de engano. Não vou
conseguir sair. Mas ele continua, Ted está a prender-me! Porque faria
isso?
Eu mio e mio, mas a única resposta é o silêncio. Ted foi-se embora.
lhe e ele deixa-me sair. Além disso, adoro o meu caixote, não adoro?
Não sei dizer ao certo que idade tinha quando percebi que a Mamã
era linda. Acho que não tinha mais de 5 anos. Percebi-o, não olhando
para ela, mas pelas expressões das outras crianças e dos pais delas.
mamãs não eram como ela. A minha mamã tinha pele lisa e olhos
grandes que pareciam não ver mais ninguém quando nos fitavam. Não
vestia calças de ganga ou sweaters. Usava um vestido azul com uma saia
que rodopiava à volta das pernas como o mar, ou às vezes blusas finas,
Falava numa voz baixa e gentil, nunca gritava como as outras mães. As
todas as outras crianças que ela tratava no hospital a usassem até ao fim
manhãs, quando não tinham turno, a Mamã ia até casa dela. Bebiam
com fumo e segredos que dava para cortar à faca. Eu sabia tudo isso
lá. Não podes aceitar isto sem dar luta. Tu és uma mais-valia.
– Tu és a melhor, Mamã – disse eu. – Eles não sabem a sorte que têm
por te terem.
casa que eles julgaram que devia haver algum engano. Eu era prestável e
Mamã estava a usar o vestido azul diáfano que esvoaçava quando ela se
cabeça. Gostava do café a ferver tanto e tão doce que dava para matar.
dos cigarros.
essa pobre criatura em cativeiro? Não vês como sofre dos olhos? Criar e
percebo agora, isto foi antes do chihuahua. Na altura ela era a senhora
de casa de matemática.
– Oh, esse cão, não suporto olhar para ele – ouvi-a dizer. – E não o
– Há algo que não me cheira – disse ela. – Tem havido reuniões toda
– Não sei. Ainda não chegou a minha vez, estão a avançar por ordem
saem.
– Não?
frente, em antecipação.
para onde vai o dinheiro. Estamos a fazer o serviço que sempre fizemos,
pouco dinheiro?
– Não sei dizer – diz a Mamã, na sua voz mais gentil. – Apenas me
melhor.
mais sujas.
disciplina.
largas. Do outro lado da janela, o dia estava frio, emoldurado por ramos
expulso por dar um murro num rapaz junto aos cacifos. A Mamã achou
chapeuzinhos de sol.
Soa como um elogio e uma crítica. Penso em como será ter 25 anos e
que idade terá a senhora do terrier. Que nojo. Ela deve ter quase 40.
os nós dos meus dedos e do aspeto das nódoas negras na minha mão. É
uma das muitas vezes em que dei graças por não sentir dor. Ele sentiu.
voltam-me em clarões. Tive de lhe bater porque ele estava a gritar com a
para ela, grato por ela estar ali. – Cortaste-te nessa faca, Teddy.
Com um sobressalto, volto a pôr a faca na gaveta. Não me lembrava
de a ter tirado.
errada. Nunca chames louca a uma mulher. A sensação das mãos frescas
Não, isso também não está certo. Tento encontrar o fio à meada desse
cintilavam de tristeza.
usar o vestido azul, o vestido flutuante a que chama o seu vestido casual.
– Fizeste, sim.
Assenti.
sapatos. A seguir, despeja tudo o que está na gaiola para dentro da caixa.
Ainda bem que ela deu instruções exatas. Precisava delas, não
profundo e secreto.
segurava-me a outra. Ela puxava-me pela mão, não sem algum carinho.
– Não quero entrar aí. – Comecei a chorar outra vez. – Tenho medo
das árvores.
qualquer criatura que viva nesta floresta. Além disso, vais sentir-te
do cabo cor-de-rosa.
sombra. Ela tinha razão, sentia-me melhor ali, à sombra das árvores
que devíamos ser gentis para criaturas pequenas. Por isso, voltei a
chorar.
colunas de água ou de luz. Soube, assim que entrei naquele círculo, que
la, algo aconteceu. Vi que o que antes fora apenas um ratinho estava
primavera.
– Achas que sou muito dura contigo. Não gostas que eu tenha regras
médicos e tenha de ser eu a dar pontos nos teus cortes. E eu faço tudo
isso na mesma, apesar das tuas queixas. Tomo conta da tua saúde porque
é o meu dever. Tal como tomo conta do teu corpo, também devo tomar
fazer uma coisa destas. Estás a pensar que cedeste só desta vez… E
talvez isso venha a ser verdade, mas não me parece. A tua doença é
antiga, está na nossa família há muito tempo. O meu pai, o teu avô,
também a tinha. Tinha esperança que tivesse morrido com ele. Talvez
pensasse que podia expiar os pecados dele. Um mundo novo, uma vida
– O que é? A doença.
Olhou para mim e o feixe da atenção dela era como um mar cálido.
segui o Pai até ao sítio antigo, os túmulos por baixo da iliz. Vi o que ele
guardava lá…
A Mamã tapou a boca com a mão. Respirou com força para a palma
da mão.
Nunca a tinha ouvido falar outra língua que não o inglês. Percebi que
Neste país, todas as pessoas têm medo da morte. Mas a morte é o que
ankou estava esculpido no altar. Deixávamos leite nas campas para ele
túmulos. A vida era vivida no meio da morte, lado a lado. Mas essas
pode apagar-se. Por isso, quando as pessoas ouviam sons vindos da iliz
durante a noite, não diziam nada, porque as coisas eram mesmo assim.
o rasto dele todo o dia. Ninguém se importava com o que lhe acontecia,
além de mim. Procurei nas valetas, no caso de ter sido atirado para lá
encontrei. O meu pai deu por mim ao fim da tarde dentro do silo do grão
eu. «Receio que algo lhe tenha acontecido.» «Vai para a cozinha», disse
pai olhou para mim. Vi que atrás dos olhos dele ardia uma vela
pequenina. Quando ele saiu nessa noite, segui-o pelos campos, até à
verdadeira natureza.
congregação e disse-lhes o que ele tinha feito. Disse-lhes para irem ver,
se não acreditavam em mim. Eles não foram ver. Então, percebi que já
sabiam.
criança vadia, de vez em quando. Sempre fora assim. Era assim que as
tipo especial de loucura. Mas quando disse a verdade em voz alta, foram
deitaram fogo à casa. Nessa noite, o ankou usou a cara do meu pai. Caí
bons, não temos tempo para elas.» E deixaram-me ali, nas ruas de uma
bem. Por isso, não me safei assim tão mal. Mas qualquer um pode bater
num cão vadio na rua, e era isso que eu era, até o teu pai passar pela
cidade. Ainda estaria naquele sítio, se não fosse ele. Ele trouxe-me para
cá. Senti o ankou a seguir-me através do oceano, através do país, até esta
costa distante. Assim que nos via, não nos deixava partir. Sabíamos
ele vier ter comigo de braços abertos, a usar a minha cara, vou estar
preparada.
Não fiquei perturbado com o que ela me estava a dizer, pois sabia
por mim mesmo. Olhei para a terra revolvida, debaixo da qual jazia o
um homem crescido, vais querer fazer isto outra vez. Podes resistir, mas
no final vais ceder ao desejo, uma e outra vez. Com o passar do tempo,
depois gado, e por fim pessoas. É assim que se sucede… já o vi. Seja
qual for o progresso, vai-se tornar tudo o que és, e vais ficar descuidado.
Isso vai ser a tua perdição. Um dia, quando já tiveres ultrapassado todos
Por isso, tens de ter cuidado. Não podes mostrar nunca quem realmente
és.
tinha sentido que havia algo de errado comigo. Era como um dos
mesma.
– Entendes? – perguntou ela, com os dedos na minha cara, leves e
frescos. – Não podes falar disto a ninguém. Nem aos teus amigos na
Assenti.
– Onde vamos?
Theodore.
de mim.
Durante muito tempo, temi que isto existisse em ti. Agora que está
meu dever e nunca tive medo do meu dever. Não vou permitir que te
Espero que sim. Tive tantas saudades tuas. Vem ver televisão comigo.
– Gatinha, gatinha…
É como se já não te conhecesse, digo eu, mas é claro que ele apenas
me ouve a bufar. Por fim, ele desiste, o que é típico. Nunca assume
cama, com a música a tocar baixo, a beber até não ter mais nada para
beber.
Agora estou escondida debaixo do sofá, apesar de o cotão me fazer
Ora bem, é óbvio que fui buscar a coisa que caiu da dobra das
sabem?
odor vinha da coisa em ondas. Era o odor que eu lambia das minhas
patas e dos meus lábios depois de o Noturno estar comigo. Era o odor
que vinha do pequeno chinelo branco. Foi então que soube que aquilo
tantas vezes que parecia uma pedrinha branca. Pensei: Porque andaria o
Empurrei várias vezes a nota para longe e tentei fingir que não
que dissesse algo diferente. Mas não dizia. Lá estava ela, uma única
palavra.
Socorro.
Ted
gelo. A bebida escorre-me pela cara, os olhos ardem-me por causa dos
tivesse treinado tão bem. Não dei conta de manhã, na primeira ronda
com o diário, o que só prova que ela tinha razão. Tudo parecia em
grande de camiões na televisão. Por isso, mal podia esperar pelo fim do
trás de uma nuvem nesse preciso momento, nesse preciso ângulo. Mas o
matagal não foi tão difícil como estava à espera. Alguns ramos verdes
no sítio. Fez um bom trabalho. Eu podia nunca ter descoberto. Mas não
minha pele ardia com a vontade de correr. Assim que entrei em casa,
Eu nunca abro as janelas, claro. Até me esqueci que elas abriam. Isso
Caminhei para a frente e para trás na sala, dando pontapés no tapete azul
e fofo. Sempre temi que este dia chegasse. A Mamã disse-me que
A vizinha da casa ao lado. É nova. Ela é a variável. Ela não quis ser
de semana… mas agora já não pode ser, claro. E também não pode haver
Então, percebo que isso é um pouco cruel e paro. Tenho sido muito
vigia para ver. Talvez ela tenha voltado! Isso seria menos uma
conseguisse ver. Mas não me consegue ver através do furo, digo a mim
mesmo. Então penso, se ele não mora na nossa rua, porque é que está
Não voltou a ter o sonho desde que se mudou para Needless Street.
há muito aguardado.
pequenos estilhaços de vidro. Ela sangra, mas não sente dor. Ou talvez
tenha tanta dor dentro dela que nem sequer repara nos cortes. Continua a
andar. Dee daria tudo para parar, para se virar, para acordar, mas tem de
lago fica para trás e ela está no sítio sombrio por baixo das árvores. O
Acima, os pássaros planam e voam. Dee entra para a clareira sob o céu
com olhos dourados e bico dourado pousa no ninho. Tece com cuidado o
feixe de erva seca que trouxe no bico no interior macio do ninho, onde
mas não consegue. Contra a sua vontade, é atraída para cada vez mais
de sonho. Mesmo num sonho, pelos vistos, a barriga pode ficar enjoada
de morte.
Tenta virar-se, tenta fugir. Mas para onde quer que se vire, lá estão
trazendo no bico feixes de erva que não são erva, forrando os seus
está muito perto; o focinho quase lhe toca no nariz. A gata volta a tocar
no nariz de Dee com a pata aveludada, para ter a certeza de que Dee
olhos são de um castanho suave. Dee não diria que é uma gata bonita,
pprrrrr?
Mas a gata continua a fitá-la fixamente e toda a gente sabe o que isso
no ar.
– Tens nome? – pergunta Dee.
caminha até à sala. Dee lava o pires antes de a seguir. Demora pouco,
embora.
Dee sabe que a irmã não reencarnou numa gata vadia. É claro que
não. Isso seria uma loucura. Mas não consegue afastar a ideia de que a
Dee vai para o seu posto à janela. O mundo é iluminado por uma luz
algum tempo que não tem horas certas para dormir. Solta uma
tocar.
Sabe que ele não consegue ver através do vidro, para dentro da casa
Dentro dela surge um impulso de desafio. Vou apanhar-te, diz ela para
– Estou.
estás?
pensar.
Surgem-lhe lágrimas nos olhos quando diz isso. Não era a sua
nas. Karen falhou vezes sem conta em dar a Dee a única coisa de que
desaparecera, mas nenhuma das duas diz isso. – Mas sei que esta altura
do ano é difícil para ti. Achei que podia ver como estavas.
– Quê?
– É mesmo – diz Dee, com o coração aos saltos. – Não há nada para
ajuda, Dee?
– Prometo.
– Fica bem.
A chamada cai.
rastrear-lhe o telemóvel? Talvez, mas porque o faria? Dee não faz nada
errado.
descobrisse que ela estava ali. Não podia voltar a sair durante o dia.
Não sinto tanto medo desde aquela vez no centro comercial. Isso foi
a última vez que estive quase a ser descoberto… a ser visto por quem
sou.
mais para a roupa dela e detestava tudo o que eu lhe tinha escolhido.
Que pai pode recusar-se a comprar roupa para a filha? Por isso, apesar
Lauren estava tão excitada antes de sairmos que pensei que ia fazer
– Eu não poderia ser vista ao seu lado – disse-lhe eu, imitando uma
normais em cores neutras. Sabia que aquela ida às compras era um risco
correria bem.
Quando chegámos ao centro comercial, ao início nem o
impaciente e não queria voltar para dentro do carro, fomos a pé. Deviam
pequenas. Homens de ar abatido que pareciam não ter nada melhor para
fazer.
no peito.
Ela falou alto e vi uma das mães cansadas a olhar para nós.
– Para isto funcionar, tens de ser esperta – disse-lhe eu. – Não podes
falar. Fica por perto, nada de birras, faz tudo o que eu disser. De acordo?
Ela sorriu, assentiu e não disse uma palavra. Lauren tem os seus
Havia muito para ver, podíamos ter passado o dia inteiro lá. Dos pilares
fonte murmurava ali perto. Conseguia ver que Lauren estava a adorar e,
encontrar.
– Não gosto dessa – sussurrou Lauren, infeliz. – Não é simpático,
Papá. Muda-a.
Estava a tentar pensar numa história boa para aquelas duas quando
armazém?
tique. Talvez viver com aquilo toda a vida tivesse feito dela melhor
provadores.
não é ese.
Por baixo, desenhou um mapa até à nossa casa. Estava bastante bom.
– Esta merda não tem graça – disse a mulher. – Acha que as crianças
– Peço imensa desculpa – disse eu. – Não sei como isso aconteceu. É
mão.
Ela olhou para nós a abanar a cabeça, a sua boca uma linha fina e
severa.
carro.
testa e deixei que me acalmasse. Por fim, senti que podia confiar em
Respirei fundo.
– Seis meses – disse eu. – Não podes vir lá para casa durante seis
meses.
– É para o teu bem – disse-lhe. – É tão difícil para mim como para ti.
Tentei educar-te bem, mas falhei. Agora percebo isso. Vandalizar bens e
amar.
mas soava oco, as birras de uma criança muito mais nova. A minha filha
Hoje à noite estou muito perturbado, por isso vou fazer chocolate
O resultado deve ser uma papa macia. Também pode juntar hortelã
fresca picada, se quiser. Sirva num copo alto de vidro com asa. Se não
tiver nenhum, uma caneca serve. (Eu não tenho.) A seguir, termine com
Costumo fazer isso para pensar, e os meus dedos tocam num pedaço de
suspeitos que fiz quando os pássaros foram mortos. Deixei-a por baixo
reconheço a letra.
Mamã
Este Estado tem a pena de morte, sei disso. Ele obriga-me a fazer os
ele, talvez ele me mate a mim. Mas vai acabar na floresta, onde ele pôs
os outros. Vamos apagar-nos como uma vela fraca, não deixando nada
Fui feita com dor, de dor, para a dor. Não tenho outro propósito, a não
ser morrer.
Ele acha que não o consigo ouvir quando estou aqui em baixo, mas
PALERMA. Mas foi assim que tive esta ideia, por isso acho que foi uma
armário que ele não deixa trancado. Acho que é por não ter nada lá
Agora estou aqui sentada no escuro, por isso posso pôr tudo de volta
onde encontrei, se ele vier. A cassete é mesmo antiga, com uma etiqueta
amarela e preta. Tem algo escrito. Notas. Não ouvi a cassete, sei o que
lá está. Sinto um calor na barriga. Sinto-me bem por gravar por cima
tempo todo. Talvez toda a gente tenha medo o temp… Ó meu Deus, ele
vem a…
Olivia
tão alto. Tornou-se um grito. A minha cabeça parece que vai rachar.
Uuuuuiiiiiuuu.
que é tão útil como falar para a televisão, acho eu, porque é
– Olivia, aqui.
quer voltar para baixo do sofá e esquecer tudo. Mas não posso. Não
estaria certo.
que lhe chamo assim. É uma velha arca congeladora. Gosto de dormir
respiração húmida.
– Ele está zangado comigo porque fiz um jantar fraco – diz Lauren, a
voz sinistra através dos furos. – Tão zangado. A última vez que me
lembro de ele ficar assim zangado foi daquela vez no centro comercial…
A minha mente não funciona direito, corre como o rato que vive na
Tem calma, Olivia, digo para mim mesma. Ela conseguiu fechar-se
Que acidente pateta, digo, aliviada. Aposto que ele se vai sentir
terrível quando descobrir… OK. Calma! Vou acordar o Ted e ele tira-te
daí.
Não podes ficar aí para sempre, Lauren, digo eu, num tom razoável.
como for, a tua mãe deve andar à tua procura, ou a escola… Tu vais à
que Ted fez na tampa para mim. Foram mesmo para mim? Sinto a
meus ossos.
Tu não vais para lado nenhum quando vais embora, digo eu. Ficas
aqui.
– Quando não podes entrar, quer dizer que estou cá dentro. Acho que
vamos alternando.
dizer se estamos vivos ou mortos. Ainda pensei nisso, mas depois ouvi-
– Tenho estado a tentar falar contigo. Tive de esperar por uma altura
nos bolsos dele, na dobra das calças, em qualquer sítio a que chegasse…
Acho que não os encontraste, mas ele também não, o que é bom.
Oh, como foi capaz?, digo eu. Trancar assim a própria filha…
azuis. Ele enrolou-me numa manta de criança. Acho que devia ter-me
interrogado o que andava ele a fazer à noite na floresta, com lama nas
Este tempo todo, digo eu. É como olhar para um espelho e descobrir
que afinal é uma porta. Estou capaz de magoar Ted, estou mesmo. Ó
bem deles. Foi há muito tempo e eu era pequena. Não me lembro bem
do dia em que ele me levou, exceto que estava calor suficiente para
costumava dizer isso, mas não tenho a certeza. O meu nome não é
mim enquanto os meus pais estavam para fora. Não achei que nada
quando era pequena. Acho que foi por isso que vim parar aqui. De que
estava eu a falar?
– Pois – disse Lauren. – Estava tanto calor, nesse dia, o meu fato de
Ted, disse que estava a ferver. Talvez tenha sido isso que lhe deu a ideia.
banca, caixas de comida empilhadas nos balcões. Gostei, parecia que ele
de ar frio, mas não veio nada. Então, vi que a arca estava desligada na
ficha. Senti mãos debaixo dos meus braços e estava a voar para cima e
minha manta. Ele deixou-me ficar com isso. Era amarela com borboletas
deixar sair.
importantes para os adultos, por isso tentei dizer, «Por favor, Ted, deixa-
me sair». Mas na altura não conseguia dizer bem os dês. Por isso, saiu-
me «Teb». E quando ele não me deixou sair, pensei que fosse por isso…
porque tinha dito mal o nome dele e ele tinha ficado zangado. Demorei
algum tempo a perceber que ele nunca me deixaria sair, por muito bem
» Durante muito tempo, vivi dentro da caixa. Ele vertia água pelos
Às vezes, bolachas e tiras de frango. Ele tocava música muito alto, dia e
noite. A mulher triste que canta. Pensei que estava no Inferno de que nos
falavam na catequese. Mas o Inferno devia estar cheio de fogo, e ali era
muito molhado e frio, onde eu estava, frio até aos ossos. Passado algum
linha e parou.
ferver pelos furos. Não conseguia ver, mas sabia que as queimaduras
eram más, porque a pele se soltou. Como a pele de uma cobra. Cheirava
água a ferver, mas era água fria, da torneira. Acho que me lavou de pé
na banca. Depois disso, pôs algo nas queimaduras que diminuiu a dor e
» – Pus tábuas nas janelas para ti – disse ele. – Aqui está escuro.
prato. Agora isso dá-me vontade rir. Enquanto comia, ele limpou a caixa
Isso queria dizer que ia voltar lá para dentro. Assim que acabei de comer
para ti. Entra. – Quando recusei, ele verteu algo de um garrafão para o
lágrimas aos olhos. Ele verteu mais água quente pelos furos. Era mesmo
» Não sei quantas vezes passámos por isto. Acho que era lenta a
aprender. No final, não fui eu que cedi. Foi mais o meu corpo que
música está a tocar, por muito que queira. Mesmo que a casa estivesse a
» Eu aguento mais do que os outros, foi por isso que durei mais do
que o normal – diz Lauren. Por um momento, a voz dela tem uma nota
psicológicos, mas sobreviver não chega. Quero viver. Vou sair daqui, e
tu vais ajudar-me.
concentrar-me. É claro que vou ajudar-te, digo eu. Vamos tirar-te daí.
Soa tão adulta e cansada. Isso torna tudo mais real. Sinto-o na minha
cauda, o horror.
cabeça. A cama range quando ele se vira. Os pés dele pousam no chão
começa a correr.
em pregas translúcidas por cima dele, como uma segunda pele larga de
mudança que aconteceu entre nós. Mas ele parece normal, com o ar com
Rastejam coisas más pela minha mente e por todo o lado. O ódio por
mim mesma percorre-me com tanta força que sinto o corpo a arquear e o
pelo a eriçar-se. O meu desejo é que o cordão me tivesse ligado a
ele vai responder. Não há uma boa resposta e não suporto pensar nas
respostas más.
cabeçadas na mão. Cada sítio onde os nossos corpos tocam está frio. Ele
Então foi por isso que o SENHOR me pediu para ficar aqui, naquele
dia em que quase escapei. Pensava que era para ajudar Ted, mas foi por
causa de Lauren.
Ted
barulho no sótão ontem à noite. Por isso, não é grande surpresa que hoje
do lixo nos caixotes. Dia de recolha. Soube o que ia ver quando abrisse
os olhos. E lá estava eu, como sabia que estaria, diante da casa amarela
dela que está sempre a chamar-me para aquela casa. Agora estou a
dela, fazendo-me voltar ali uma e outra vez até eu perceber… o quê?
acho eu.
vida por causa da minha filha e da minha gata. Tenho de fazer alguma
coisa por mim de vez em quando, ou serei infeliz – e um pai infeliz não
é um bom pai.
expectativa!
Olivia
Tenho de esperar alguns dias até poder voltar a falar com ela. Ted
parece estar sempre por perto, a beber e a cantar com as músicas tristes.
Três noites depois, ele sai de casa. Está a assobiar e leva uma camisa
ele?
Conto até 100, para lhe dar tempo de se afastar, ou de voltar para vir
– Estou aqui. – A voz dela mal se ouve com a música do disco. – Ele
saiu mesmo?
Sim, digo eu. Levava uma camisa lavada. Normalmente isso quer
ninguém. As paredes são muito grossas. Acho que o som não passa. Tu
ouvir.
que mais me faz doer a cauda. – Às vezes, não é assim tão mau – diz ela.
televisão. Ele dá-me de comer, quando não está zangado. – Lauren solta
«supervisão».
sempre tão feliz por ser um gato, mas agora já não tenho a certeza. Se eu
Qualquer coisa.
Não consigo fazer nada com a música a tocar. Ele encarregou-se disso,
Bíblia.
Seria bom gravar tudo isto, no caso de algo me acontecer, mas não
me atrevo.
Eu ronrono e vou ter com ele. Mas então paro e fico com a cauda
miado.
– O que se passa?
– És tão tolinha.
Ele muda a canção: torna-se uma música lamentosa cantada por uma
– Gatinha burra.
– Meu, a sério?
Mas baixa ainda mais o volume. Acho que não vou conseguir
melhor.
ele gosta. Ando à volta dos tornozelos dele, aos oitos, a ronronar. Ele
e pela minha cauda. Ele é tão familiar para mim como o meu pelo, ou o
Noturno. Pensava que ele me tinha salvado. Pensava que éramos parte
ver.
pelas costas.
Ronrono mais alto. Vamos fugir de ti, começo a dizer, e depois mudo
– Tenho de pôr a música alto outra vez – diz ele, sonolento, mas eu
ela.
Sim.
rolar. Bato-lhe com uma pata para o segurar e empurro-o para o balcão.
com força e ele desliza da arca para o chão, com um baque denso que
lado, Ted ressona. Ele ainda está a dormir, digo eu, a desfalecer de
alívio.
momento.
Não, sussurro. Não deixo. Depois disso, tenho muito, muito cuidado.
Sabes, Lauren, digo eu, com os olhos ainda fechados, acho que
alternámos cá fora!
Ninguém responde.
novelo.
Anda lá, gata, digo a mim mesma severamente. Não tornes as coisas
Está vazia.
Que diabo, digo eu. Estou a ficar louca… Porque não estás dentro
da arca?
cheiro. Ou talvez não tenha sido inventada a palavra para o sentido que
Lauren?, digo eu. Onde estás? O que diabo se passa? Porque não te
consigo ver? Parece… e sei que isto não pode ser verdade, mas é o que
e retorcer-se. Em vez da minha linda cauda e das minhas patas, sinto por
– Olha bem – diz ela – para a coisa a que chamas caixote. A verdade
eu conseguia pensar…
barulho era eu, o tempo todo. Mas como pode isso ser?
Em vez da minha pata, está uma mão com unhas longas e sujas, a
sussurra uma voz, e eu mio e grito, mas nem isso se faz ouvir no meio
do guincho, que sobe e sobe até se tornar algo físico, uma parede dentro
como um gatinho.
Enrolo-me num novelo, mas parece que é ela que está enrolada à
minha volta.
– Não posso fazer isso – diz ela. – Não percebes mesmo, pois não?
– Da primeira vez que tentei fugir – diz ela –, ele tirou-me os pés.
decidi fazer isso mesmo. Mas, em vez disso, aconteceu outra coisa. Eu
desapareci. Não sei como. Era como se a minha mente fosse uma grande
a fazer. Ainda conseguia ouvir o que ele estava a dizer. Mas era como
ver televisão. Eu não estava no nosso corpo. Estavas tu. Ronronavas e
salvar.
dizer algo que conseguimos aceitar quando a vida fica demasiado dura.
a mente diz-te que tu és uma gatinha. Pode ter inventado uma história
sobre uma noite de tempestade e como ele te salvou, mas tu não nasceste
Mas foi real, digo eu. Teve de ser. As minhas irmãs gatinhas mortas,
a chuva…
Penso na terra que vem nas botas de Ted, nas noites em que ele vem
faz-me festas e murmura até o sangue parar de latejar nos meus ouvidos.
Eu ajudo a manter-nos aqui, digo. Eu tomo conta dele, deixo que ele
– Ele vem aí – diz ela. – Tenho de ir. Volto assim que puder.
E depois desaparece.
Costumava passar todo o meu tempo a desejar que Ted viesse para
adoro ter Lauren por perto. É divertido falar com ela. Falamos,
mesmo bom, como ter uma das gatinhas da minha ninhada comigo de
novo. Suponho que é isso que Lauren é. Ela consegue fazer-me sentir
casual dela, porque soa tão nova e ninguém devia saber qual a sensação
dessas coisas.
Esta noite estamos as duas aconchegadas no sofá na casa escura. Lá
macio, invisível contra a noite. Ted está desmaiado, tipo morto para o
– Fico contente por não me conseguires ver – diz ela. – Foram feitas
Tento não pensar no corpo, o corpo de Lauren, onde ela diz que
vivemos as duas. Ainda não sei se acredito nela. Eu sinto o meu pelo, os
– Acho que somos mais do que três – diz ela. – Às vezes ouço-os,
quando estou bem lá no fundo. Tento não os ouvir. Não gosto quando os
pequeninos choram.
Bem lá no fundo?
Não, digo eu. Acho que temos sorte por termos nascido. E temos
mais sorte ainda por estarmos vivas. Mas já não sei o que significa ter
nascido ou estar viva. O que sou eu? Parece que tudo o que sei está
errado. Uma vez, pensei ter visto o SENHOR. Ele falou comigo. Isso
aconteceu?
espinha.
Não vamos deixar que isso aconteça, digo. Vamos sair daqui.
vais fazer quando estivermos livres? Eu vou vestir uma saia e pôr
Eu quero comer peixe a sério. (Em privado, só para mim, penso, Vou
– Não quero que eles me vejam assim – diz por fim. – Prefiro que
eu sei isso. Alguém para nos fazer festas, e nos dizer coisas simpáticas,
– Tenho-te a ti.
cócegas com a cauda e ela ri-se. Felizmente, sou uma otimista e acho
Lauren suspira, como faz quando se prepara para dizer algo de que
guerra num deserto distante. Mas nada disso vai acontecer. Nem sequer
debaixo da terra.
Digo: Eu sei onde ele guarda a faca grande. Ele pensa que ninguém
Subitamente, não consigo esperar mais. Vou fazê-lo agora, hoje, digo
eu. Basta.
armário. De início, não consigo crer nos meus sentidos. Não está aqui,
digo eu. Mas tem de estar. Vasculho e procuro no interior poeirento. Mas
a faca desapareceu.
– Oh. – Ouço a ferida profunda da desilusão na voz dela e faria
Ela solta um som baixinho e consigo perceber que está a tentar não
focinho.
qualquer coisa.
Ela funga.
nisso.
jornais.
Enfio o nariz nos jornais e cheiro algo que não é papel. Mais neutro,
– É uma cassete – diz Lauren. – Pega nela. Não, assim não dá, usa as
vives no meu corpo. És uma menina. Não uma gata. Só tens de perceber
isso.
– Não temos tempo para isso, Olivia – diz Lauren. – Pega na cassete
Ao passar pela sala, vejo algo que me faz parar por um segundo.
– Então despacha-te.
conseguires.
Abano a cabeça e atiro a cassete. Não consigo ver nada, mas ouço-a
a saltar.
Não podes continuar a fingir que não tens mãos. Tens de as usar…
Eu sei, digo eu. Para usar a faca. Vou treinar. Não volto a falhar.
meu lado, dentro de mim. Ela solta um suspiro fundo e sinto-a a cair
Pior… de que não quer viver. Mas vou ajudá-la. Vou manter-nos a salvo.
Ela já tem problemas que cheguem, por isso não disse nada, mas
para a porta da frente, com a cassete na boca, olhei para a sala. E juro
que, por um momento, este tapete tinha mudado de cor de laranja para
azul.
Dee
Dee está sentada à janela a olhar para a escuridão. Faz festas à gata
sem unhas com gestos doces e deseja não ter deixado de fumar.
quê» nos bicos. Ou vai ser o outro sonho, onde vê a mãe e o pai a
caminharem de mão dada num deserto sob uma manta de estrelas, ainda
memórias não podem ser mantidas ao largo. Estão escondidas umas nas
Está a ficar cada vez mais difícil, a longa espera, a vigília sem fim.
Às vezes, quer gritar. Às vezes, quer pegar num pé-de-cabra, ir até lá,
quer meter-se no carro e conduzir. Porque recai sobre ela aquela tarefa
microfilme. Crianças que vão até ao lago e não voltam. Sete ou oito,
pelo menos, ao longo dos anos. Crianças sem família ou quem sinta a
falta delas. Foi por isso que ninguém deu conta. Ultimamente, não tem
uma razão para isso. Talvez ele tenha aprendido que é melhor manter
coração bate-lhe com tanta força que não consegue ouvir mais nada.
Dee fica paralisada por um momento. Então, volta para a janela. Ted
apanhar algo do meio das folhas verdes. Tudo fica parado dentro de Dee.
Ted levanta-se. Tem uma pinha pequena na mão. Vira-a para um lado
Passados uns 20 minutos da partida de Ted, Dee vai até casa dele.
pudesse ouvir. A casa respira sobre ela. Mas não se ouve mais nenhum
– Lulu?
adensa.
O dia fica mais luminoso. Um tipo qualquer passa a passear o cão.
Dee não pode forçar a entrada. Não tarda, alguém vai começar a
começa a passar e sente frio. À sua direita, algo se move através das
folhas secas numa linha comprida e fina. Ela arqueja e recua para fora da
Tenho de fazer isto por Lauren. Mas não devia ter gritado com ele da
Cidades pequenas.
Isto faz-me sentir esquisito. Bato à porta para ele saber que estou
– Entre!
Os olhos redondos do senhor bicho estão calmos por trás dos óculos.
– Muito gosto em vê-lo, Ted. Pensei que não fosse aparecer. Vejo que
– Sim?
Ele assente. A caneta dele fica quieta. Os seus olhos são círculos
menina zangada, sabe, a que está a tentar matar a mãe… bom, parece
– Era o que eu queria dizer, uma série. Nesta série, às vezes a filha é
televisão ou de um rádio que não sintonizam direito. Não soa nada com
tema.
Sei por experiência que, se não o fizer, ele vai falar sem parar do
livro dele.
sofrimento.
Ele debruça-se para a frente. Os seus olhos brilham atrás dos óculos.
Seja como for, a mãe não sabe o que fazer. O que devia ela fazer? Na sua
opinião profissional.
construir um sítio dentro dela. Uma estrutura real. Muitas crianças usam
castelos ou mansões. Mas pode ser qualquer coisa. Uma sala, um celeiro.
se umas às outras.
– Como se morressem.
que pode levar anos. Alguns profissionais acham que é a melhor solução.
essas personalidades, esses alter egos, são pessoas de direito. Têm vidas,
mão direita dele, a mão perto do telemóvel, com muita atenção. Espero
que ele faça a conexão lógica. Espero que ele pegue no telemóvel.
– Que puzzle tão rico – diz ele, distante, e consigo ver que já não está
pode conter o segredo da existência. Teoriza que cada ser vivo e cada
objeto, cada pedra e cada folha de erva, tem uma alma, e que todas essas
– Fixe. Podia dar-me os nomes desses livros, por favor? – Estou a ser
– Oh… claro.
Se ele soubesse. Penso nas noites difíceis com Lauren, nas mãos
húmidas dela, nos dentes e nas unhas afiadas, que deixam marcas e
causado por patas de ratos, mas por sangue, a pingar para o tapete. O
Vejo-a a assumir uma expressão de horror. A minha cara não está a fazer
Ele tenta controlar-se, mas afasta-se de mim. Sei bem como é: esse
recuo, como se a carne da mão dele estivesse a tentar rastejar para longe
espera artificial, com o cheiro intenso a flores sintéticas. Isto não correu
bem. Pelo menos, agora tenho um nome. Paro o tempo suficiente para
Começo a pensar se Ted não terá atirado a faca para o lixo. Ou talvez
a tenha sempre consigo, para onde vai naquelas noites longas, quando
afiada e rápida. O corpo de Lauren não é forte. Não há nada para comer
Não quero dizer isso a Lauren, mas acho que Ted anda a tramar
alguma. Hoje trouxe para casa uns livros novos. Os títulos dão-me dores
nos bigodes, mas acho que são sobre nós. Tento disfarçar estes
enterrar bem fundo. Mais uma vez, agradeço ao SENHOR por me manter
nosso ser, como o bater de asas negras. Forço-o para trás outra vez. Ele
fosse diferente, mas ainda sinto a velha emoção quando penso em Ted. O
horrível.
– Eu ouvi isso. Como achas que vamos sair daqui se não consegues
consegue ver o que está aqui em baixo, mas mais nada. Pensa nisso.
– O que vês?
Consigo ver a porta da casa de banho, digo eu, e o quarto do Ted e o
Sim.
Não.
Entendeste?
– Volta a descer.
cima, para o cimo das escadas, consigo ver a janela, a porta da casa de
Mas…
macias. Gosto das minhas patas. Não quero ser um ted. Quero ser eu.
sua voz que ela sabe o que é estar paralisada de medo. – Finge que está
de amor. Quase O consigo ver, com o Seu corpo riscado e a Sua cauda
Olivia.
Olho para o SENHOR. Ele sorri. Então vejo que Ele está a usar o rosto
horrível.
sério.
queria perturbar-te.
propósito.
juízo.
mesma?
não me habituei.
– Por favor.
Tento uma e outra vez, mas, por muito que me esforce, só consigo
Quero sim, digo eu. Oh, Lauren, eu quero ajudar mais do que tudo.
isto.
tirou todos os espelhos… não podes ver como realmente és… por isso
devias ter. As tuas costelas parecem uns canivetes. Já não tens muitos
vez, o tecido cicatricial ficou tão espesso que te distorceu a cara. Puxou-
te o nariz para o lado e cresceu para cima dos teus olhos, um deles está
quase tapado por cicatrizes. Pensas que andas pela casa em quatro patas
arrastando os pés partidos atrás de ti, como um peixe feio. Não admira
que não queiras viver neste corpo. Tu ajudaste-o a fazê-lo assim e depois
Também sei como a magoar. Sei o sítio que ela teme mais do que
qualquer coisa.
mulher de cabelo cor de manteiga e olhos azuis. Como está calor, sento-
concentrados, irradiam energia, mas ninguém fala muito. Mais uma vez,
cérebro, para ser franco. Sinto-me mal pelo que aconteceu com a mulher
boilermakers. Nem os conto. Vou voltar para casa a pé. «Não vim de
carro. Isso seria irresponsável!» Percebo que estou a falar em voz alta e
mulheres. O que diria a Mamã se me visse num sítio destes? A boca dela
de correr, ou talvez se mova tão depressa que já não o sinto. É por isso
inclinam-se, desfocadas.
árvore. Estou a olhar para algo cujo nome não me ocorre. Vejo um
casebre baixo contra o luar, uma porta iluminada. Passo pela porta e dou
por mim numa sala com um cheiro mineral, com paredes feitas de
tábuas e filas de urinóis. Está cheia de tipos a rir. Estão a passar uma
baloiçar no ar. Vou até ao cubículo e fecho a porta para me poder sentar
manteiga; vir aqui lembrou-me dela e é por isso que estou tão
Tenho de sair daqui, tenho de voltar para casa, mas, neste preciso
palavras estão mal focados, estão muito bêbedos… até para mim é
óbvio.
– Pertenciam ao meu tio – diz uma voz. – E antes disso eram do meu
– Eu não te tirei nada – diz outra voz. Soa familiar. O tom faz
mas não consigo fixá-la. – E sabes bem que não tirei. Queres sacar-me
facto.
responsável.
chatear outro.
O senhor bicho pisca os olhos para mim. Tem uma mancha de lama
– Olá.
molhadas e castanhas.
– Acho que tem razão. Este tipo de coisa não deve acontecer entre
morada que me deu nem sequer é uma casa. É uma loja de conveniência.
dele?
Bebemos juntos por algum tempo, não sei quanto. Dizemos coisas,
de gasolina está a olhar para nós. Ele vai lembrar-se de si. É fácil de
lembrar.
– Claro.
– Então vamos falar com franqueza. Para variar. Porque parou de vir
às consultas?
Gosta de manter a sua casa privada, não gosta? Mas o som é mais difícil
mim.
– Ela não é mesmo sua filha, pois não? – pergunta ele. – Tal como a
sua gata não é mesmo uma gata. Pensava que era muito subtil, a
– Foi mesmo azar que aquele tipo tenha entrado na casa de banho –
lamenta-se o senhor bicho. – De outra maneira, não teria dado por mim.
– Invadiu a minha casa – digo eu. – Não foi a vizinha, como pensei.
– Agora não faço ideia do que está a falar – diz ele, soando ofendido.
– Pode haver dinheiro para nós os dois! Sabe – ele chega-se mais
que isto. Qual é a diferença entre mim e todos aqueles tipos na lista dos
o mal acaba por aparecer». Acho que pode dar-me o que mereço. É o
cerne do meu livro, Ted. Não se preocupe, ninguém vai saber que é o
agrada.
– A primeira quê?
ramos na cara, tropeço, com folhas moles pelos tornozelos. Caio mais do
que uma vez, mas não paro, levanto-me do chão escorregadio da floresta
e corro e corro para casa. O rugido cresce, a concentrar-se na minha
senhor bicho não estava morto. Rezo para que não esteja. Não tenho
mochila fica cheia, visto dois casacos, um por cima do outro, e calço
dois pares de meias. Vou ter muito calor, mas tenho de vestir tudo o que
agora.
Então, saio para o quintal e cavo para ir buscar a faca. Sacudo a terra
pânico.
sonhar com natas deliciosas e era muito agradável. Talvez não esteja
especialmente recetiva.
Quê?
– O Ted – diz ela. – Está a levar-nos para fora, para a floresta. Tens
de ajudar.
Oh, digo eu friamente. Receio ser só uma gata estúpida. Não posso
ajudar.
– Por favor – diz ela. – Por favor, tens de ajudar. Tenho medo.
– Por favor, Olivia. Está a acontecer agora. Ele vai fazer de nós
quero morrer.
Ela funga. Apesar de tudo, sinto alguma pena dela. É uma criança
Vou tentar, digo lentamente. Mas não prometo nada. Agora deixa-
de porta entre mim e Lauren. Talvez possa ser aberto de novo. Escuto os
Olho para o patamar e tento pensar em algo que amo. Tento pensar
vi. Penso em como é esperta, por ter feito este plano para nos salvar, e
Não acontece nada. Não adianta. Dei o meu melhor! Devia mesmo
Mas a cada vez que fecho os olhos e tento afundar-me num sono
Eu tentei tudo, digo em voz alta. Não posso fazer mais nada! Apenas
Assim que saio da arca, ouço Lauren a gritar. A sua voz enche as
paredes, percorre o tapete debaixo dos meus pés. O medo dela entra
pelos furos no contraplacado e consigo ouvi-lo a verter das torneiras na
horrível. A minha cauda estica-se com aversão. Que nojo! Aquela pele
violenta de tudo isto. Mas ela está a contar comigo. Pensa, gata.
Vou até à Bíblia. Empurro-a abaixo da mesa. Quando ela cai ao chão
com estrondo, sinto a casa a abanar. É como um eco, mas mais forte.
Peçam e há de dar-se-vos;
Diabo. Às vezes, é irritante ter razão. Há algum tempo que uma ideia
está a formar-se na minha mente. Posso ser uma gata de interior, mas vi
Lauren pensa que sabe tudo, mas não sabe. Nós não somos nenhuma
Pensa, pensa!
zangada do que alguma vez estive. Não sentia o cordão a ligar-me a Ted.
ele fez a Lauren. É muito doloroso pensar nisso. Ela tinha razão numa
coisa: sou mesmo uma gata estúpida. Acreditei nas mentiras dele, não
uma covarde. Mas não quero continuar a ser uma covarde. Vou salvá-la.
começa na ponta, espalha-se pela minha cauda agitada, sobe para mim.
à minha volta. A entrada vibra como uma televisão com mau sinal. O
corajosa, não quer dizer que não tenha medo. Tenho tanto medo. O que
vejo pelo buraco de vigia não é o exterior. Agora percebo isso. Agora,
vejo com um calafrio que as três fechaduras não estão fechadas. A porta
está destrancada, claro. Não tenho de subir, tenho de sair. E toda a gente
sabe como se entra e sai de uma casa. Solto um pequeno miado. Não
queria nada ter razão. Ergo-me nas patas traseiras e rodo o puxador com
uma linha de fogo, a queimar o meu pescoço. O que vai acontecer? Vou
arder? Parte de mim espera que sim. Não sei o que está lá fora.
pulmões.
A luz ofuscante regride, as estrelas tornam-se furos pequenos na
saco, acho eu… tem furos pequenos, julgo que para deixar entrar ar. Sou
grande de mais. A minha pele está exposta e não tem pelos, como uma
horrível. Pior de tudo, onde devia estar a minha cauda está um nada
vazio.
corujas, rãs. Outras coisas cujo nome desconheço. Tem tudo uma clareza
Lauren chora e sinto o seu choro a subir pelo peito pouco familiar,
– Obrigada, Olivia.
casa.
Depois disso, ficamos caladas. Mais do que tudo, quero voltar para
dentro. Mas não posso deixar Lauren sozinha. Tenho de ser valente.
Ele para num sítio que cheira a pedra, onde as árvores falam umas
com as outras à noite, com o som de água a correr ao fundo. Pelo que
consigo ver pela abertura pequena do saco, estamos num vale baixo com
Não consigo ver muito, mas consigo sentir a vastidão do ar. O vento
a Lauren. O exterior é aterrador. Não há paredes. Não tem fim. Até onde
vai, o mundo?
– É redondo – diz ela. – Por isso, acho que se estende até voltar ao
ponto de partida.
Isso é terrível, digo eu. Acho que é a pior coisa que já ouvi. Ó meu
SENHOR, protege-me…
– Concentra-te, Olivia.
Ele vai deixar-nos sair deste saco?, pergunto. Para fazer chichi ou
isso?
dele. Por isso, tens de lha tirar, mais nada, e matá-lo. O plano é o
virá ajudar. Podemos fazer este plano funcionar a nosso favor, vês?
exatamente como ele quando está bêbedo. Acho que o medo, tal como a
Ted, contra a sua força. O vento toca no meu pelo com dedos frios. Inalo
Não sou capaz, Lauren. Pensava que era, mas não sou.
– Não é só por nós, Olivia – diz Lauren. – É por ele. Achas que ele
quer ser assim? Achas que ele é feliz sendo um monstro? Ele também é
ao mesmo sítio.
Sê uma gata valente, sussurro para mim mesma. Foi para isto que o
SENHOR te pôs aqui. Respiro fundo. Vou fazê-lo. Vou tirar-lhe a faca e
vou matá-lo.
Eu sei.
hora, ruge ele. Mas tenho-o bem preso, não se vai soltar.
saco. Sinto o tremor da voz dele quando fala baixinho para si mesmo.
luva de carne podre. Tiro a faca da mão aberta dele. É mais leve do que
estava à espera.
com um som breve, como uma dentada numa maçã. Pensava que a carne
caímos de cara no solo duro da floresta. O nosso rosto bate com força
meio fora do riacho; corre água fria por cima das nossas pernas. O nosso
levantar?
Dee
– Por favor, venham prender o Ted por homicídio – diz uma vozinha
ansiosa. – E outras coisas. Este Estado tem a pena de morte, sei isso…
respirar. Então, rebobina a cassete e ouve outra vez. A seguir, ouve mais
ligeiro que Dee não consegue identificar e uma voz límpida como um
sino.
Senta-se para trás. É Lulu. Mais velha, sim. Mas Dee não pode
Dee tem provas, não sabe o que fazer. Põe a mão no coração, que bate
O corpo de Dee fica elétrico. Vai até à janela às escuras. Ted está a
redor. Dee fica quieta como uma estátua. Espera que a Lua refletida nos
vidros disfarce a sua silhueta. Parece que sim, pois Ted assente para si
Uma faca de caça. A lâmina reflete o luar. Ted põe a faca no cinto e
volta para dentro de casa.
assiste a tudo, o saco parece mexer-se. Ela tem a certeza de que está a
tempo para falar com Karen. Lulu tem de ser salva… e é preciso lidar
atacadores com as mãos trémulas. Sai de casa e fecha a porta sem fazer
pode ser avistada pelo meio dos ramos, Dee para e marca o tronco de
Ted sai do trilho. Acima, a luz é tapada pelos ramos. Dee marca um
pesadelo, prepara-se para atacar, com reflexos verdes nos olhos. Tem
O medo espalha-se pelas suas veias como tinta. Dee grita, mas o
grito soa mais como um assobio fraco. A cobra balança. Talvez esteja
letárgica por ter acabado de acordar, talvez esteja ofuscada pela lanterna,
golpe, a cobra cai sem vida no solo da floresta. Dee debruça-se por cima
dela, ofegante.
– Toma lá – sussurra.
sempre.
Dee atira o corpo mutilado para a floresta, para o mais longe que
consegue.
Algo borbulha dentro dela. Não grites, diz a si mesma. Mas é riso. O
Ela não quer olhar, mas tem de ser. A carne à volta da mordidela já
está inchada e escurecida, como uma nódoa negra com uma semana.
Mãos à obra, Dee Dee. Ainda a rir-se, rasga a manga pelo ombro
para aliviar a pressão sobre a carne inchada. Está a uma boa hora da
que a trouxe ali. Adiante, a luz de Ted afasta-se a dançar pelo meio das
vermelhos a voar pelo meio dos troncos. Dee solta uma exclamação e
Ted mantém a sua lanterna ligada. Deve ser difícil… manter o equilíbrio
com tanto peso às costas. Talvez o peso esteja a mexer-se, a dar luta.
sangue seco de cobra. Dee está a arder, a sua raiva ferve e queima-a por
dentro. Ted vai pagar. A cada 20 metros, marca mais uma árvore com a
tinta refletora. Tem de acreditar que vai regressar por este caminho, com
a irmã.
Dee segue-o tão perto quanto se atreve. Mesmo assim, acaba por o
perder. A luz dele dança para fora de vista e desaparece. O solo começa
abaixo. É provável que ele pare perto da água. Falta pouco para a aurora,
arriscar uma queda no escuro. Precisa da aurora. Sabe que não vai
demorar muito.
como uma boca frouxa. As brasas de uma fogueira lançam fios de fumo
lhe pesados como pedra, letárgicos por causa do veneno. As rochas junto
ali.
pensa ela. Os animais escondem-se para morrer. Mas qual deles, Ted ou
de folha para folha. Isto já aconteceu antes. Dee foi para o meio das
da outra vez era uma tarde de verão, junto ao lago. E eram pinheiros, não
lado, de cara para baixo. Um líquido escuro verte-lhe da boca. Ela pensa,
Oh, ela conseguiu fugir e ele está morto, e uma onda de alegria
folhas secas colam-se à pele dele como uma tatuagem escura. A faca
quase cómica. Ele não faz ideia de como ela o conhece bem, como ela o
Ela olha para ele, fascinada. Agora sabe como se sente a cobra ao
aproximar-se do rato.
– No meu saco, junto ao riacho, cola cirúrgica. Também tem um kit
com o bem-estar dela. É claro, ele pensa que ela vai ajudá-lo… precisa
dela.
árvores.
– Onde está ela? – pergunta Dee. – Diz-me onde ela está e dou-te
– Vou encontrá-la.
Lulu vai viver com ela. Dee vai ter paciência para os anos de cura de
de uma nuvem.
moribundo.
os ouvidos.
– Não tentes enganar-me – diz Dee com firmeza. Deve ser uma
eu e ele.
mão com força até ele parar de se mexer. É difícil de dizer naquela
confusão, mas parece-lhe que ele parou de respirar. Põe-se de pé, mais
Encontra uma bolsa amarela. A cobra na etiqueta ergue-se para ela e ela
estremece com um grito abafado. As instruções baloiçam diante dos
riacho veloz.
esforça por respirar. Está tudo bem, porque ele merece. Tudo vai ficar
menina, isso foi só confusão causada pelo veneno. Fica com a visão
lugar para viver, e vão ser tão felizes, as duas a apanharem pedras
– Sim – diz ela com um suspiro. – Mas não por muito mais tempo.
Graças a Deus.
sozinha.
problemas para este caminho, para este momento, para a nossa morte.
congeladora…
– Tudo isso foi verdade – diz ela. – Mas aconteceu com ele e comigo.
só aparece no fim.
olhos castanhos. Tudo o que ela disse sobre o corpo dela é verdade.
Assassina, digo-lhe.
grito. – Nós ficamos com a dor dele. Tu ficas com a dor do coração dele,
Cala-te, digo eu. Já falaste que chegue. Ted, chamo. Ted? Como
coração. Então a luz branca fica mais forte, espalha-se pela terra, e vejo
por fim que, na verdade, o cordão passa, não só por nós, mas também
pelas árvores, pelos pássaros, pela erva e por tudo o que existe em todo o
de mim, uma chama ardente. Ele tem quatro patas delicadas. A voz Dele
é suave. Gata, diz Ele. Devias ter protegida. Não consigo olhar o
minha orelha. Carrega com mais e mais força, mas o sangue continua a
mais lenta, deixa-nos mais frios. O bater seguro do nosso coração está
avança pelos nossos dedos e pelas nossas mãos, pelos nossos pés e
E agora, nada.
Olivia
Estou de novo dentro da casa, não sei como e não importa. Não
tenho tempo para sentir alívio por ter de volta as minhas lindas orelhas e
transparente, da cor da morte. Não sinto nenhum odor e talvez seja isso
minha linda gata riscada e em como nunca a voltarei a ver. Então, penso
em Ted e no que lhe fiz e agora estou mesmo a chorar. Eu sei, como sei
uma unha. Vejo que não importa que forma o corpo tem, se não tem
Está na hora de deixar de ser uma gatinha, digo para mim mesma.
O meu pelo está todo em pé, o coração salta-me no peito. Cada fibra
Não, sussurro, batendo com a cauda. Não, não, não! Mas estou
acabados.
por uma faca. A morrer, sim. Mas não morto. Ainda não.
Penso furiosamente. Não posso subir nem sair, mas talvez ainda
Ele bufa, um som tão profundo como um gêiser. Não o censuro. Ele
Por favor, digo eu. Agora, mais do que nunca… é a tua hora.
O Noturno avança, agora sem elegância, a coxear e dolorosamente
dentro e para fora. Abre a boca enorme e penso, É agora, ele vai dar
cabo de mim. Parte de mim está contente. Mas, em vez disso, ele fecha a
boca sobre o meu cachaço e pega em mim, gentil como uma mamã-gato.
ponto de partida.
Ele não diz nada, mas sinto o medo dele. Existem sítios profundos
Vamos, digo.
terra escura.
Noturno. Por favor, penso eu, tem de acabar agora. A agonia não pode
cabeça e ruge. Para meu espanto, sinto o rugido a vibrar no meu peito.
Ainda és o Noturno?
Não.
Rujo e corro para a luz. Rasgo as trevas com as minhas patas fortes,
arranho o ponto de luz até ele se romper e ficar maior. Luto com toda a
minha força até irromper da escuridão, para a luz do outro lado. Não me
estar infetada. Tenta não pensar nisso. Tudo o que importa é encontrar
Lulu.
lamento de uma criança. Dee apressa-se, mais depressa. Lulu deve estar
assustada.
isso que ela é? Dee sabe que não pode regressar a Needless Street.
corpo dele. Se uma coisa vier a lume, outras se seguirão. São assim, os
a voar entre duas árvores, ouve o nome dela sussurrado numa voz
Os olhos de Karen eram bondosos. Dee quase lhe contou ali mesmo
mulher da casa de banho tinha a certeza de que não pegara nele por
engano e o guardara no saco. Tinha a certeza de que alguém o pusera lá.
Dee estava furiosa consigo mesma por causa disso. Quem diria que a
– Vai-te roer por dentro até não sobrar nada – disse ela por fim. –
estática, para abafar os pensamentos que tentam entrar, mas não adianta.
selvagem e intrigante.
Ele deve ter pelo menos uns 18 anos, deve andar na universidade. Ela
olha para ele a olhar para ela e percebe, pela primeira vez, que ele a vê
Isto é retaliação. O que ele quer dizer é: És uma bebé que vem para o
– É a tua irmãzinha?
qualquer coisa entre dentes. Pisca os olhos para o sol, com uma
– Não.
Lulu adora o seu chapéu, mas é um objeto para ser acarinhado, não
usado.
Dee sente uma pontada de aversão, leve como uma pena. Porque tem
ela uma família tão irritante? Tira o chapéu da mão da irmã e enfia-lho
Dee sabe que vai espalhar-se pela cara e pelas roupas dela e depois a
mãe vai ralhar com as duas. Mas, naquele momento, descobre que não
uma trovoada.
direção das árvores. Dee pensa no que diriam os pais, mas a rebeldia
vence. Por uma vez na vida, pensa ela, quero fazer algo só por mim.
são demasiado finos para o terreno irregular. Mas ela não se queixa
rapaz de cabelo loiro levanta Lulu quando ela não consegue passar.
– Quero ir para casa – diz Lulu, esfregando um olho com uma mão
fechada.
– Não podes – diz Dee para a irmã. – Vieste atrás de mim, agora tens
Lulu morde o lábio e parece que vai chorar. Mas não chora. Sabe que
Dee ainda está zangada com ela e faz o que lhe dizem.
Dee vira-se para o rapaz. Como é que ele se chama? O coração salta-
lhe no peito. Sabe que está a arriscar tudo. Lulu é uma queixinhas. Não
O rapaz aproxima-se dela. Agora já não tem um rosto, mas uma série
dão a impressão de que a coisa vai ficar boa, mas depois perdem ambos
aquilo não fique bom até fazerem o resto e põe a mão dele dentro da
camisola dela. O fato de banho dela ainda está húmido e a mão dele é
demasiado apertado, a mão dele fica presa, por isso ela desaperta-os e
Dee ouve um som. É como uma colher a bater num ovo, só uma vez.
– Lulu? – chama.
Lulu está deitada meio dentro e meio fora das ondas suaves, com
sangue a tingir que se espalha na água. Dee não dá conta de saltar, mas
está dentro do lago, com água pela cintura, ao lado da forma pequena da
irmã. O som que fez foi fraco, mas o crânio dela deve ter batido na rocha
com muita força. Está amolgado, como se lhe tivessem dado um murro.
meio esquecida das aulas de primeiros socorros na escola. Mas acha que
é tarde de mais. A pele de Lulu está a mudar diante dos olhos de Dee. O
O rapaz de cabelo loiro cujo nome Dee ainda não se lembra começa
Dee toca na mão de Lulu, onde jaz na areia grossa. Na mão de Lulu
está uma pedra verde, atravessada por veios brancos. É oval e polida pela
água e pelo tempo. Pedra bonita. Dee solta um gemido. Fios de sangue
carmesim.
estalar.
uma víbora, mas ali não há víboras. É seguida por sombras pequenas.
branca e depois desliza para longe, para dentro de uma fissura na rocha.
Dee grita e corre às cegas, deixando Lulu onde jaz, meio dentro e meio
fora da água.
Dee não consegue ver; há algo diante dos olhos dela, como uma
muito morto. Só consegue ver cobras aos seus pés. Para. Aqui não há
Uma voz fala baixinho na mente dela. Pelo menos, a Lulu já não
disso, ata a camisola à cintura para tapar o melhor que pode. Sangue,
depressa e com força. Lulu ainda estava a sangrar. Dee viu televisão
suficiente para saber o que isso quer dizer. Não está morta.
assim sozinha? Mas Dee vai corrigir isso, promete. Vai ficar ao lado de
saltos de lebre por cima dos escolhos da margem. Cai mais do que uma
À sombra da rocha, onde Lulu devia estar, não há nada. A água bate
Talvez não seja o sítio certo, diz Dee para si mesma. Mas é. Na
inteira, esteve aos beijos com um rapaz. Atravessa uns arbustos e cai
tivesse sido levantada recentemente por pneus. Dee julga avistar o para-
condutor parar, para parar e lhe devolver a sua irmã. Mas o carro
atordoante.
Mesmo com todo o seu receio por Lulu, Dee sente uma raiva
incandescente a subir. Eles sempre gostaram mais de Lulu, desde que ela
nasceu. Dee sempre o soube. É tão injusto. Ela não fez nada de errado,
nada. Isto é a vida real, não um daqueles livros antigos em que uma
rapariga dá uns beijos com um rapaz e então alguém tem de morrer para
expiar o pecado. Ela sabe, bem lá no fundo, que beijar o rapaz não é foi
Afinal, o que pode ela dizer-lhes? Dee não tem nenhuma informação
útil. Nem sequer viu bem o carro no meio da poeira. Havia mesmo um
carro? Agora já não tem a certeza. Talvez o corpo de Lulu tenha flutuado
para o meio do lago. Ou talvez tenha sido levado por um animal. Como
do pai. Sim, pensa Dee, sentindo uma onda de alívio. É isso. Dee vai
Dee tenta soar irritada e não assustada, como realmente está. Despe
lavatório. Ela faz estardalhaço, para mais tarde se lembrarem dela. Dee
estava aqui e em mais lado nenhum. Não se interroga para que serve
isso, se Lulu está à espera junto dos pais. A palavra álibi passa-lhe pela
sangue entra. É como ensaiar uma dança… como pôr uma história em
cansado lava as mãos no lavatório ao lado, com três crianças aos saltos a
casa com a bagagem da mulher, que vai presumir que pegou nele por
engano junto com as coisas dos filhos. Nunca será ligado ao caso de
Lulu. Dee sabe que, se o chinelo for encontrado junto da rocha em forma
Ao regressar para junto dos pais, atira a pedra verde para os arbustos
impaciente. Porque será que tudo naquela parte do mundo tem de ser
selvagem e assustador?
a correr.
Lulu ri-se. Dee sorri. É bom que ela esteja a divertir-se. Dee não se
Mais tarde, quando Dee teve tempo para pensar, o horror do que não
contou assenta nela como uma doença. Agora é tarde de mais para
mãe partir e o pai morrer, não havia razão para Dee confessar, pois já
levara Lulu. Se conseguisse fazer isso, tinha uma hipótese de voltar a ser
uma boa pessoa. Era uma réstia de esperança. Mas Karen, a cansada
negro para Dee. Precisa de todas as suas forças para não ser sugada para
as trevas. Às vezes, não tem forças para resistir. Foi o que aconteceu em
Oregon. A dor tinha Dee nas suas garras e alguém tinha de pagar.
tinha com os comedouros, com a água. Dee não sabe muita coisa, mas
Precisava que Ted sentisse uma amostra da sua dor cruel. Foi por
Mais tarde, viu Ted a chorar por causa dos pássaros. As costas
– Para – chama ela. – Anda lá, Lulu. Não precisas de ter medo. Sou
Vomita, mas não tem tempo para parar. Em vez disso, começa a
pelo meio das árvores, correndo tão suavemente sobre o solo irregular,
sobre os ramos tombados, que os seus pés nem tocam na terra. Voa
que não sabia que podia voar?, pensou. Vou ensinar à Lulu e vamos
voar por todo o lado, sem nunca pousar. Vamos ficar juntas e não me
vão apanhar. Vou ter tempo para lhe explicar porque fiz o que fiz.
chinelos brancos nos pés dela. Dispara pelo ar atrás da irmã e pousa
Lulu vira-se e Dee vê que ela não tem cara. Os pássaros vermelhos
explodem da cabeça dela como uma nuvem. Dee grita e tapa os olhos
quanto tempo andou? Cai de joelhos no solo. Para que foi tudo aquilo?
Onde está Lulu? Onde estão as respostas que merecia? Dee grita o seu
horror e a sua mágoa. Mas os seus gritos não soam mais alto do que
escuro e pesado como uma pedra. Estou a morrer, pensa. Só queria que
A coisa que outrora foi Dee jaz longe de qualquer trilho. A lata de
spray amarelo ainda está segura no que foi a mão dela, inchada e preta
por causa do veneno.
rico. Nenhum fantasma caminha sob os ramos das árvores. O que está
pode ser bom ou mau, mas não vai ter esparguete virado no chão. A
a almoço. O homem está a olhar para mim. A luz brilha no cabelo da cor
do sumo de laranja.
O braço dela parecia ter uma mordidela de cobra. Acho que usou o
kit do meu saco, mas toda a gente sabe que esses kits não fazem nada.
Não sei porque o trago. As memórias são muito confusas, mas havia
Olha para mim e eu olho para ele. O que podemos dizer à pessoa que
trilho, para lhes dizer para pararem. O cão sentiu o cheiro a sangue. Eras
tu.
– Está com melhor aspeto. Deixe-me ver. – Ele faz tudo gentilmente.
em recomendar-lhe alternativas.
Ele suspira e senta-se na cama, o que sei que um médico não deve
fazer. A Mamã ficaria muito incomodada. Mas ele parece exausto, por
Ele hesita.
Ele olha para mim. – Alguém devia ter detetado isso. Alguém devia ter
Nunca me tinha ocorrido que a Mamã pudesse ter sido parada. Fico
a pensar.
historial médico, alguém com quem pode falar sobre… o que aconteceu.
Nunca é tarde.
terapia.
Ele parece querer dizer mais alguma coisa, mas não diz, e fico-lhe
primeira vez em muitos anos, tenho silêncio. Mas sei que eles estão lá.
Pela janela, consigo ver edifícios altos, a brilhar ao sol. Sinto como
estou longe da floresta. Peço para abrirem a janela, mas a enfermeira diz
que não, que a vaga de calor já passou. Esta parte do mundo está a voltar
madrugada na floresta.
– Como te sentes?
não? Havia algo no teu olhar quando estava a tentar parar a hemorragia.
– É complicado.
Se lhe digo a verdade, acho que nunca mais o vejo. Mas estou tão
antes disso, ela tratava dos ferimentos dele. Talvez fosse uma vez por
muito maus a Ted, alguns quase nem eram arranhões. E alguns cortes
eram invisíveis, ele não os conseguia ver nem sentir. A Mamã disse-lhe
Teddy sabia que a Mamã tinha de fazer aquilo, que a culpa era dele
por ser tão desastrado. Mas receava o momento em que ela ligava a luz
era a pior parte… eram os sons. O barulho baixinho que a carne faz ao
Nessa noite, quando a ponta do bisturi lhe tocou nas costas, eu vim
externa.
Ted sabia que a Mamã tinha razão… isto só ficava pior se ele se
isso, Ted tentava deixar que aquilo acontecesse. Tentava ser um bom
rapaz. Mas a dor e os barulhos estavam a ficar tão maus que Ted temia
aconteceria se o fizesse.
acontecer ao corpo.
som, a sério. Mas caiu no silêncio como uma pedra num charco.
– Estás a tornar isto muito difícil para nós os dois – disse ela, e foi
Quando nos pôs dentro da arca, Ted começou a chorar a sério. Ele
chamas. Ted estava a respirar depressa de mais e a tossir. Sabia que tinha
– Para onde?
– Faz o que eu faço. Sai. Deixa de ser.
Empurrei-o.
– Não consigo!
nós morramos.
da nossa casa. Mas não havia rua, nem floresta, nem carvalho. Em vez
disso, tudo era branco como o interior de uma nuvem. Não era
assustador. Parecia seguro. Abri a porta e entrei para a casa, que estava
depressa. Tum, tum, tum. Sabia que a Mamã não conseguia entrar ali.
Ela fez oito à volta das minhas pernas. Fui até à sala de estar, onde a
aqui era laranja, uma linda cor intensa, como o sol a pôr-se numa
autoestrada no inverno.
caminhar da escuridão.
No fim, acabei por ter a minha gatinha. Na verdade, foi ainda melhor
quero, mas é mais fácil se usar a arca congeladora como porta. Acho que
podia ter escolhido um castelo ou uma mansão para o meu sítio interior.
Mas como é que eu saberia onde estava tudo num castelo ou numa
mansão?
mesma maneira que os adultos usam as caras. Por isso, pode parecer
assustador. Mas ele nunca magoaria ninguém. Foi o Pequeno Teddy que
Pequeno Teddy. Ele correu atrás dela, mas ela afastou-se depressa de
Ted foi-se embora e toda a dor que tínhamos partilhado entre nós me
inundou de rajada. Não sabia que um corpo era capaz de suportar tanto.
Tentei segui-lo para baixo, para o interior, mas ele tinha trancado a porta
dava comichão por cima dos pontos, mas sabia que não devia coçar. O
fechado num sítio bom cheio de caudas pretas e olhos verdes e pelos
dele.
justo.
Chorou mais por causa daquele ratinho do que pela nova linha férrea
de suturas pretas que corria pelas nossas costas. Acho que foi por ele
não estar lá quando as suturas foram feitas. Não as sentiu. Eu senti, cada
uma delas.
Ted sabia que o Noturno não tinha culpa. O Noturno apenas tinha
obedecido à sua natureza. Ted disse à Mamã que o ratinho tinha saído da
claro que a Mamã não acreditou. Ela levou Teddy para a floresta e disse-
lhe para esconder o que era. Ela pensava que ele tinha uma fome dentro
de si. Ted tinha medo de que ela encontrasse maneira de lhe tirar Olivia
e o Noturno. (E então ficaríamos só ele e eu. Ele não queria isso.) Por
isso, ele deixou que ela pensasse que era a velha doença, a que também
Comecei a perceber do que Ted não era capaz… o que Ted não se
baixo com mais força, sempre com mais força. Ele voltava a aparecer,
passada na família, mas não para Ted. Questiono-me sobre o que diriam
era como uma máscara sem ninguém atrás. Todos deixaram de falar com
ele. Ele não se importava. Agora podia ir para dentro, com os gatinhos.
Pela primeira vez desde que se lembrava, disse-me ele, não se sentia
sozinho.
porque lá não havia escola nem trabalho. Logo descobriu que conseguia
Mamã nunca o deixava usar, porque dizia que eram para meninas. Pôs
uma claraboia no patamar das escadas, para poder ver o céu à noite, se
que ela tinha um furo de vigia só para ela. Para ela, no exterior era
semana para manter o Noturno feliz. Ted não queria mais sofrimento.
alguns dos habitantes da casa. As coisas verdes com dedos longos que já
detalhada ela ficava. Logo descobriu que podia ir para lá sempre que
que ele quisesse. Até podia ver o que estava a acontecer na casa de cima.
Quando via que algo bom estava a acontecer, como quando a Mamã
menos.
Deixava-me cada vez mais sozinha com a Mamã. Quando ela punha
Então, quando ela ia embora, era a minha vez. E descobriu que, quando
eu fazia alguma coisa de que ele não gostava, me podia manter dentro da
não ser que Ted deixe. Consigo fazer coisas pequenas… como escrever
coisas que não requeiram o uso das pernas. Não sei porque a mente
traumatizada de Ted me fez assim, mas fez. Ele tem de me carregar pelo
mundo, mutilada e impotente. Acho que é por isso que às vezes ele se
Ted não fazia mal a uma mosca, ou era o que eu pensava. Logo
Mamã. Ela não gostava de guloseimas, mas gostava de ter hálito fresco e
costumava pôr uma na boca por alguns momentos e depois cuspi-la para
húmidas.
fazer o corpo chorar. Ia pôr-nos na caixa grande com vinagre. Mas Ted
como num sonho, abriu a caixa e levou-a aos lábios. Inclinou a caixa
contar-lhe do sítio do fim de semana e dos gatos. Ela vai encontrar uma
maneira de se livrar disso. Não sei como vai ser, mas sabes que tenho
razão. A Mamã conhece maneiras de forçar os cérebros e não só os
corpos.
cortado dos nossos sentidos. Parecia tão surpreendido como eu. Não
de interesse clínico da Mamã. Ele cravou a agulha outra vez e outra vez.
Eu prometi.
mau, Teddy. A Mamã é maluca, sabes isso. Ela perdeu o juízo. Um dia,
vai longe de mais e mata-nos. Mais vale escolhermos nós o nosso fim.
Não vamos ter de nos sentir mal o tempo todo. Pega na faca, dá um nó
na corda. Vai esconder-te no lago. Caminha pela floresta até tudo ficar
Pouco depois, tentei matar-nos pela primeira vez. Não foi uma
tentativa muito boa, mas mostrou a Teddy que ele não queria morrer.
Ted não sabe tudo. Ainda lhe resisto. E sou mais forte do que ele
chega à frente. Sou eu. Quando ele volta a si com uma faca na mão…
dessas vezes sou eu, a tentar fazer o que tem de ser feito.
Mas não tive força suficiente. Ted tem-me bem controlada. Tive de
Ela deve ter suspeitado que tudo lhe ia rebentar em cima. A polícia
desastradas. Antes, Teddy era o mais desastrado e ela reservava para ele
não era suficiente. Havia demasiadas crianças com suturas que não
tinham caído.
Olhei para ela, espantado. Só comíamos gelado uma vez por ano, no
aniversário dela.
ter algumas tarefas para fazer. Consegues lembrar-te de tudo o que vou
cozinha. Tens de a levar para a floresta. Vais ter de esperar pela noite
– Sim, Mamã.
– Ya, ma ankou.
Entro na cozinha e vejo-a. De certa forma, não tenho visto mais nada
desde então. A imagem está dentro das minhas pálpebras. A minha mãe
momento de dúvida.
com a sua caligrafia formal francesa. Para levar para a floresta, dizia.
Tive de esperar até ao cair da noite. Foi o que ela disse. Mas não a
em sarilhos, mas ela parecia tão exposta ali em cima, com a cara azul e
Limpei o chão, que estava sujo por baixo do sítio onde ela tinha
estado pendurada.
Queria mandar todas as roupas dela com ela, mas não consegui
encontrar a mala grande. Fiz o melhor que pude para acrescentar mais
um livro e fiquei preocupado com ela, deitada sem sono na floresta fria.
A noite caiu como uma manta. Pus a Mamã e as coisas dela às costas
e levei-as para o meio das árvores. Agora estava rígida e fria. Escorriam
coisas dela. Ela devia ter odiado isso. Sabia que precisava de a levar para
melhor.
algumas roupas.
sabia mesmo.
mas leu a carta quando voltou. A carta dizia que a Mamã se ia ausentar
por motivos de saúde. Era uma mulher muito reservada, a minha mãe.
Por isso, a Mamã partiu e nunca mais foi vista. A menina também
partiu, mas não me parece que estejam no mesmo sítio, não sei porquê.
Lauren tinha 6 anos quando veio ter comigo pela primeira vez e ficou
dessa idade por muito tempo. Nunca tinha pensado nisso, mas é a idade
Por fim, Lauren acabou por crescer. Crescia mais devagar do que eu,
sempre a dizer.
por isso, fizesse ela o que fizesse. Ela odeia o corpo. É grande de mais e
peludo de mais e estranho de mais para ela. Nem sequer pode usar as
servem. Não se fazem essas coisas nos tamanhos certos. Creio que
aquela vez no centro comercial foi a pior. Tive tanta pena dela. Sinto
vontade de a proteger, como um pai. Prometi que tentaria ser isso para
ela. Sei que estou a falhar. Tenho demasiados problemas para ajudar seja
quem for.
não sabia nada do mundo exterior. Eu gostava disso. Quando estava com
sótão.
– Ele gosta de ti. Mas naquele dia ele ficou louco, a ladrar para ti na
rua. Pensei ver algo nos teus olhos, só por um segundo. Como se
– Isso era a Olivia, a minha gata – digo eu. – Ela estava a tentar sair.
Acho que o quero manter aqui por mais um momento, porque nunca
– Quê?
– O teu cão – digo eu. – Passaste aqui uma noite e um dia. Não
– Nunca faria isso – diz ele. – A Linda Moreno está a tomar conta do
Campeão.
– A senhora do chihuahua.
– Ela foi num cruzeiro atlântico – diz ele. – Com um homem mais
novo. Não queria que a filha soubesse. A filha ficou preocupada. Mas
– Que bom.
Mas sei que não vou voltar a vê-lo. Vai-se embora. Parece nunca usar
palavras desnecessárias.
que ela encosta aos meus lábios. Não sou muito bom com nomes e estou
Apercebo-me, talvez pela primeira vez, que a minha mãe está mesmo
morta.
coisas.
Tento senti-la, pegar-lhe na mão. Mas ela não está ali. Está a dormir,
boas férias com o namorado novo. Espero que esteja a relaxar na sua
Mas ela não está aqui. Está em casa, à minha espera, no armário por
baixo da banca.
está certo. A senhora do chihuahua foi num cruzeiro, não foi ao México.
Tenho de olhar duas vezes para ter a certeza, mas sim, é ele. Estou muito
– Claro – digo eu, sentindo-me logo mais animado. Vejo dentro dos
amendoim.
fim de verão, como qualquer pessoa faria, a beber uma cerveja com um
amigo.
Tu gostas da floresta.
– Ei – diz ele, mas não para mim. A gata riscada sai do meio da
cidade.
– Oh.
Tenho demasiada vergonha para lhe dizer que não me lembro muito
do que acontece no bar. Acho que, para o fim, o Pequeno Teddy toma
conta de nós. Ele não é muito bom a falar com adultos. Ou talvez
estivesse bêbedo.
cadeira ferrugenta. Pele pálida, coberta de pelos finos que brilham ao sol
embora.
segurança.
– Por favor, volta. Bebe outra cerveja – digo eu. – Agora vamos falar
de ti.
sair do hospital.
o outro, às vezes até iam às aulas um do outro na escola. Rob era melhor
Por isso, tiravam os dois boas notas. Mas pararam de confundir os pais
Concordaram que era um truque cruel, que não deviam fazer às pessoas
que amavam. Então, Rob deixou de ter namoradas. Não contou a Eddie,
mesmo quando conheceu um homem que trabalhava num restaurante da
cidade que lhe fazia o coração bater mais depressa. Começaram a sair.
Repleto de amor, atravessou a rua e abraçou Rob. Assim que lhe tocou,
percebeu que não era Rob. Mas era tarde de mais. Eddie espancou-o até
fala com Rob e Rob diz que também não quer falar com ele.
sentados em silêncio.
Ele vai para casa quando a noite começa a cair. O sol desce para o
luz… tipos de luz do sol, tipos de escuridão… qual é melhor para fazer
a meio da noite.
tudo cheira mal. Não gosto da cor do tapete, que cá em cima não é de
porque uma pessoa deve sempre saber com o que está a lidar. Às vezes,
até vou lá fora. Já não sou uma gata de interior. Vejo e sinto o mundo,
enquanto ele caminha pelo meio das folhas outonais, sentir o frio
cheira muito como o seu bruaá enorme, o que é nojento. Ted está
sempre a dizer-me que o bruaá sentiu o cheiro do sangue e que nos
encontrou na floresta, mas recuso-me a acreditar que foi assim que fui
como uma cobra com olhos amarelos como maçãs. Ela é uma de nós,
claro. Outra parte de nós. Devia ter percebido isso mais cedo. Ela opta
por não falar. Mas espero que um dia fale comigo. Entretanto, continuo
a adorá-la e a esperar. Vou fazer isso para sempre, se for preciso. Posso
flutuar escadas acima até à claraboia no patamar das escadas. Ele vira-
Se para olhar para mim com olhos redondos de peixe ou com os olhos
queria ser bondosa. Ela era uma gata bondosa. Eu sou bondosa, mas
como as coisas realmente são. Agora, vejo que o mundo superior tem
corpo grande e carnudo arrasta-se pelo mundo, com nós lá dentro como
Lauren e eu, e mais alguns cujos nomes ainda não sei. Só estão agora a
esqueço-me de descer durante dias a fio. Por isso, acho que o mundo de
As histórias cabem todas umas dentro das outras. Ecoam umas pelas
cuidado por causa da ferida a sarar. Uma pessoa pode magoar-se a sério
alguns cães. Não muitos. O lago brilha, como vidro preto. A água está
partiu e não sabemos para onde. A Mamã não está mesmo debaixo da
me que ela esteve aqui no passado e já não está. A mão de Rob está nas
minhas costas. Envio-lhe os meus sentimentos pela água e pelo céu e
pelas folhas secas de outono e pela areia e pelos seixos debaixo de nós.
aqui.
para a apanhar. Uma forma longa e oval, lisa e macia ao toque. É verde
Algo se rasga dentro de mim. É como morrer outra vez. Mas, desta
Acho que é a dor que o deixa passar. As barreiras entre nós estão a
ruir.
Eu pu-lo no nosso bolso, diz ele para mim, numa voz límpida e
jovem.
Pequeno Teddy?
– Para. – Estou quase a gritar com ele e isso dói muito. – Espera!
fixamente. Mamã.
Provavelmente nem sabe nada disso. Ele está a falar de outro homicídio.
ouvir.
Mamã para a floresta para ela poder tornar-se um deus, mas eu vi o que
perturbada.
– Meia lata de manhã, ração seca à noite – está ela a dizer à Mamã. –
precisam de ser regados três vezes por semana. Nem mais nem menos.
Algumas pessoas dizem que é demasiado, mas eu acho que, com fetos, a
que desce para a cave. Normalmente não a abro. Ui, Méjicooo. Vou
– Podes crer.
escurecer. Ela leva uma mala grande e tenho medo de que vá ter com a
Mas a mala está vazia, ela baloiça-a no braço enquanto caminha. Fico a
olhar porque NUNCA a vi assim. A Mamã não é divertida. Sei que ela não
Eu espero e espero.
Quando passa por uma aberta de luar prateado, vejo que agora a mala
pequenas. Passa diante da nossa casa sem olhar nem parar! Onde é que
ela VAI?
escondo-me por baixo dos cobertores, mas NÃO durmo. Ela sai em
som dela a lavar os dentes. Então vem outro som baixinho. A Mamã está
a trautear.
a terra húmida. Não voltei a ver a mala grande, acho que a deve ter
mandado para o Méjicoo sem ela. Ouço-a a pedir ao Ted Grande que vá
amarela com a cimalha verde uma e outra vez, mas ele não entende.
Acho que sempre soube, bem lá no fundo, que tinha sido a Mamã. Mas
tinha tanta esperança que não tivesse sido. Agora não pode continuar a
A cara de Rob paira no céu acima de mim. Está ainda mais pálida do
que o normal.
lágrimas. – Eu sei onde ela está. Por favor, por favor, temos de ir agora.
Outra coisa boa de Rob é que não perde tempo com perguntas.
até ao carro e Rob leva-me até uma esquadra da polícia. Temos de ficar à
espera por muito tempo. Ainda estou a sangrar um pouco, mas não deixo
Rob levar-me ao hospital. Não, digo eu, não, não, não, não, NÃO. À
medida que os nãos ficam mais fortes, Rob recua, alarmado. Por fim, um
homem cansado com papos debaixo dos olhos vem falar connosco. Eu
telefónicas.
cheio de pessoas magoadas. Hospital. Por fim, chega a minha vez e eles
minha rua, vejo uma carrinha parada diante da casa dela. Carros com
estar, a observar, apesar de não haver nada para ver. Demora algumas
horas. Acho que têm de cavar fundo. A Mamã era metódica. Ficamos
Sentimo-la quando ela passa. Ela paira no ar, como o cheiro da chuva.
dela, tive pena dela… mesmo depois de tudo o que fez. Era a vez dela de
ter todos aqueles olhos em cima das suas coisas. Então descobriram que
Chupa com um rapaz. A Mamã nunca se metia com raparigas. Por isso,
de cabelo, uma viagem ao lago, uma curva errada. Faz o meu coração
doer e acho que essa sensação nunca irá embora. Como um corte que
nunca sara.
Ainda está quente ao sol, mas à sombra está frio. As folhas formam um
cabelo de Rob. Não tarda muito, vai ser inverno. Adoro o inverno.
Gosto da detetive gambá, mas ainda não estou pronto para a deixar
conversa sobre lontras (ela sabe muito sobre lontras). Eu sorrio porque
consigo ver que ela está a gostar da conversa sobre lontras, mas também
me para eu lhe dizer a verdade. Gosto disso, que ela seja tão boa no seu
trabalho.
Ted.
esquecida.
para casa, reparo que a última letra do nome da rua está a ficar gasta. Se
marcou-me uma consulta com ela. A senhora bicho vem a minha casa
cadeiras. Ela é muito simpática e não se parece nada com um bicho, mas
Ela sugeriu que eu ouvisse as minhas gravações para ver o que tinha
achava que gravasse assim tanto, mas é por isso que preciso das cassetes,
umas cenas acerca da clareira, do lago. Então há uma pausa. Acho que
quando Ted chamou por mim. Diabo, agora não é boa altura.
minha linda gatinha perdida. Não sabia que ela sabia falar. Não admira
ver uma fotografia de quando éramos bebés. Quem me dera ter podido
falado com ela. Agora é tarde de mais. Escuto e escuto. Não sei porque
estou a chorar.
fábrica. Acho que eles só queriam ficar juntos, Olivia e o outro gato.
ouvidos.
sangue na boca. Nunca sei de quem são os sonhos que vou ter à noite.
Mas o corpo descansa a sério, hoje em dia, em vez de ser usado por um
só para nós.
ao mesmo tempo.
Mais tarde, talvez fique Lauren com o corpo. Ela vai andar de
à cascata. Não vamos aí. O vestido azul, a mala pequena, os ossos… têm
outono.
que podem ter sido seis, ao longo dos anos. É difícil dizer porque há
crianças que fogem mesmo. Eram quase todos rapazes de famílias tristes
pela sala, espreito para admirar o meu tapete novo. É da cor de tudo…
amarelo, verde, ocre, magenta, cor-de-rosa. Adoro-o. Acho que podia ter
Vamos até à cozinha. Até agora, só descobrimos uma coisa que todos
Descrevo sempre o que estou a fazer, para todos nos lembrarmos. Já não
quisermos.
porque não havia nada afiado na casa. Mas agora tenho um conjunto de
balsâmico numa fatia de pão – digo eu, quando me sinto pronto. O pão
recuam à nossa volta, pelo ar. Lauren solta um pequeno suspiro quando
pela aparente facilidade com que aqueles que não sentem empatia
com quem o assassino mantinha o que poderia ser descrito como uma
relação funcional. Ele adorava Bleep e o destino do cão foi a sua única
preocupação quando foi preso. Por isso, pensei, Talvez essa seja a
história certa, a história que devia estar a escrever. A gata Olivia, que
vive com Ted e lhe dá conforto, apesar de ele ter raptado uma menina
sempre com surtos de compaixão por ele. A história dele parecia ser
Tinha algumas qualidades de gato, mas a voz dela não parecia humana
nem felina, mas algo diferente. Ela parecia parte dele. E Lauren também,
mais novo. Tratava-a como se fosse sua filha, adotando uma atitude
maternal, tomando conta dela, garantindo que ela não se assustava ou se
deparava com atividades que não era capaz de fazer, como conduzir. O
alter ego mais novo apareceu por algum tempo e falou. Falou de como
ela, por ela estar num corpo grande e elas não entenderem. Senti a
(DID)). Percebi que o livro que estava a escrever nunca fora sobre uma
chamado Ted. Era sobre alguém que tinha todas essas personalidades
dentro de si. Não era sobre terror, mas sobre sobrevivência e esperança,
divergiu para lidar com abusos, senti que uma parte do mundo que
parecia mais estranho, mas também mais real. Era uma espécie de
milagre, mas também fazia todo o sentido, que a mente pudesse fazer
isto.
sobre PDI. Percebi de repente sobre o que era o livro e em que direção
tinha de ir.
com o nosso conceito de alma, a ideia de que pode haver mais do que
no fim do livro.
reservas.
alter egos, «Pernas», que não fala. A única função de Pernas fora levá-
Ficavam apenas com o dedo grande do pé, que usavam para voltar a
definido. O alter ego que vai trabalhar trata com frieza membros da
Cada alter ego retém certas experiências. A memória não é linear, está
senhora – disseram-me.
Isso pode tornar difícil as tarefas mais simples. Quando seguem uma
Descreveram como era difícil fazer a mala para umas férias; tinham de
conversa.
criança.
tentei fazer justiça neste livro às pessoas cujas vidas são tocadas pela
Lauren me fez seguir em frente e que lutou por eles até ao fim, só posso
firmeza e gentileza até à sua forma final. Deve ter sido como conduzir
uma junta de polvos por Piccadilly. Fico repleta de admiração por ela,
trabalho esforçado que fizeram para apoiar este livro. A Última Casa de
pai, Christopher, por toda a ajuda que me deram desde o primeiro passo.
Estou tão grata a Emily Cavendish, Kate Burdette, Oriana Elia, Dea
ouvirem, por um sítio onde pousar a cabeça nos tempos difíceis, pelas
Psychiatric Association.
setembro de 2018]
https://dynamic.uoregon.edu/jjf/theses/Barlow05.pdf [acedido a 2 de
novembro de 2018]
Boon, S., Steele, K., and van der Hart, O., 2011. Coping with
Chase, Truddi, 1990 (1987). When Rabbit Howls, Nova Iorque: Jove.
de 2018]
2017]
https://www.youtube.com/watch?v=CB41C7D7QrI [acedido a 5 de
janeiro de 2019].
https://www.youtube.com/watch?v=gXLhEWSCIc4 [acedido a 5 de
janeiro de 2019]
DissociaDID, 2018. Why We Won’t Talk About Our Littles (Switch
https://www.healthyplace.com/blogs/dissociativeliving/2018/6/about-
de 2019]
https://blogs.scientificamerican.com/observations/could-multiple-
personality-disorder-explain-life-the-universe-and-everything/ [acedido
a 13 de março de 2019]
https://www.healthyplace.com/blogs/dissociativeliving/2016/05/the-
experience-of-alters-in-dissociative-identity-disorder [acedido a 12 de
março de 2019]
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https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2011/sep/30/kim-noble-
https://www.youtube.com/watch?v=exLDxo9_ta8 [acedido a 11 de
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https://www.nurseslearning.com/courses/nrp/NRP-
stories/the-sane-blog/mythbusters/busting-the-myths-about-dissociative-
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2019]
ebooks.
https://www.youtube.com/watch?v=s715UTuO0Y4&feature=youtu.be
https://www.aninfinitemind.com/
http://didiva.com/
http://did-research.org/index.html
https://www.firstpersonplural.org.uk/resources/training-films/
https://www.isst-d.org/
http://www.manyvoicespress.org/
https://www.sidran.org/essential-readings-in-trauma/
https://www.sidran.org/recommended-titles/