Você está na página 1de 356

DADOS DE ODINRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e


seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer
conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da
obra, com o fim exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a


venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente
conteúdo.

Sobre nós:

O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de


dominio publico e propriedade intelectual de forma
totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e
a educação devem ser acessíveis e livres a toda e
qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em
nosso site: eLivros.

Como posso contribuir?

Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras,


enviando livros para gente postar Envie um livro ;)

Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo


de servidores e obras que compramos para postar, faça
uma doação aqui :)

"Quando o mundo estiver unido na busca do


conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir
a um novo nível."

eLivros .love

Converted by convertEPub
© Robert Hollingworth

CATRIONA WARD nasceu em Washington, DC, e cresceu entre os EUA,

Quénia, Madagáscar, Iémen e Marrocos. Foi leitora de Inglês na Universidade

de Oxford e trabalhou vários anos em Nova Iorque como atriz. Quanto

regressou a Londres, concluiu o seu primeiro romance, enquanto escrevia para

uma fundação dedicada aos direitos humanos, e concluiu um mestrado em

Escrita Criativa pela Universidade de East Anglia. O seu primeiro romance,

Rawblood, foi publicado em 2015, tendo sido selecionado para o WHSmith

Fresh Talent. A autora ganhou ainda o prémio August Derleth Award para o

Melhor Romance de Terror em 2016, no âmbito dos British Fantasy Awards,

com Rawblood, e novamente em 2018 por Little Eve, tornando-se a primeira

mulher a bisar o prémio. Little Eve conquistou ainda o prestigiante Prémio

Shirley Jackson Award de melhor romance e foi eleito Melhor Livro de 2018

pelo The Guardian.


A última casa em Needless Street

Catriona Ward

Publicado por:

Porto Editora

Divisão Editorial Literária – Porto

Email: delporto@portoeditora.pt

Título original:

The last house on Needless Street

© 2021, Catriona Ward

Publicado originalmente no Reino Unido em 2021 por VIPER,

secção de Serpent's Tail, uma chancela da Profile Books Ltd.

Tradução: Miguel Marques da Silva

Design da capa: © blacksheep-uk.com

1.ª edição em papel: setembro de 2021

Rua da Restauração, 365

4099­-023 Porto

Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-67305-3
Para o meu sobrinho River Emanuel Ward Enoch,

nascido a 14 de agosto de 2020


Ted Bannerman

Hoje é o aniversário da Menina do Chupa-Chupa. Aconteceu junto

ao lago, há 11 anos… ela estava lá e depois já não estava. Por isso, já

estava a ser um dia mau quando descubro que há um Assassino entre

nós.

Olivia pousa pesadamente na minha barriga logo pela manhã,

soltando sons agudos e ritmados como um relógio. Se existe algo melhor

do que um gato na cama, não sei o que é. Encho-a de mimos porque ela

vai desaparecer quando Lauren chegar. A minha filha e a minha gata não

ficam na mesma divisão.

– Já me levantei! – digo. – É a tua vez de fazer o pequeno-almoço.

Ela olha para mim com os seus olhos amarelo-esverdeados e afasta-

se. Então, encontra um disco de sol, salta para o chão e pisca os olhos na

minha direção. Os gatos não entendem piadas.

Vou buscar o jornal ao degrau da entrada. Gosto do jornal local

porque tem um alerta de aves raras; podemos escrever para o jornal

quando avistamos algo especial, como um pica-pau-mosqueado ou uma

ferreirinha-siberiana. Mesmo tão cedo, o ar parado está quente como

sopa. A rua parece ainda mais calma do que o normal. Silenciosa, como

se estivesse a recordar-se.

Quando vejo a primeira página, sinto um nó na barriga. Lá está ela.

Esqueci-me que era hoje. O tempo não é o meu forte.

Usam sempre a mesma imagem. Os olhos grandes à sombra da aba

do chapéu, os dedos a segurar com força o pau do chupa-chupa, como se

achasse que alguém lho ia tirar. O cabelo molhado e brilhante está

colado ao crânio, curto como o de um rapaz. Esteve a nadar, mas não


está ninguém a envolvê-la com uma toalha fofa para a secar. Não gosto

disso. Ela pode apanhar frio. Não publicam a outra foto, a minha.

Meteram-se em sarilhos dos grandes por causa dessa foto – mas não foi

suficiente, na minha opinião.

Ela tinha 6 anos. Toda a gente ficou perturbada. Temos um problema

com coisas dessas por estes lados, especialmente perto do lago, e

aconteceu tudo muito depressa. A polícia revistou as casas de todas as

pessoas do condado que pudessem fazer mal a crianças.

Não me deixaram esperar dentro de casa enquanto faziam a busca,

por isso fiquei parado nos degraus. Era verão, luminoso e quente como a

superfície de uma estrela. A minha pele escaldava lentamente enquanto

a tarde ia passando. Ouvi-os a puxarem o feio tapete azul da sala de

estar para o lado, a levantarem as tábuas do soalho e a abrirem um

buraco na parede atrás do meu guarda-fatos porque lhes pareceu que

soava a oco. Os cães percorreram o meu quintal, o meu quarto, tudo. Sei

bem que tipo de cães eram. Tinham as árvores brancas da morte no

olhar. Um homem magro com uma máquina fotográfica veio ter comigo

e começou a tirar fotos. Não me lembrei de o impedir.

– Sem foto, não há história – disse-me ao ir embora.

Não percebi o que queria dizer, mas ele acenou-me alegremente e eu

retribuí.

– O que foi, Sr. Bannerman?

A detetive parecia um gambá. Muito cansada.

– Nada.

Eu estava a tremer. Não digas nada, Pequeno Teddy. Os meus dentes

tiritavam como se estivesse cheio de frio, mas estava a morrer de calor.

– Estava a gritar o meu nome. E creio ter ouvido a palavra «verde».


– Devia estar a pensar numa história que inventei quando era

pequeno, sobre os rapazes perdidos que se transformavam em coisas

verdes, junto ao lago.

Ela lançou-me um olhar. Conheço bem esse olhar. Estou sempre a

vê-lo. Segurei-me com força ao tronco do carvalho pequeno no jardim

da frente. A árvore deu-me força. Devia dizer algo mais? Fosse o que

fosse, pairava para lá dos meus pensamentos.

– Sr. Bannerman, esta é a sua única residência? Não tem mais

propriedades por aqui? Uma cabana de caça, algo assim?

A detetive limpou o suor do lábio superior. A preocupação pesava-

lhe nos ombros, como uma bigorna.

– Não – respondi. – Não, não, não.

Ela não entenderia o sítio dos fins de semana.

A polícia acabou por ir embora. Tiveram de ir, porque eu estive a

tarde toda na loja de conveniência e toda a gente diz o mesmo. A câmara

de vigilância diz o mesmo. O que eu costumava fazer lá era sentar-me

no passeio ao lado das portas automáticas. Quando as portas se abriam

com um murmúrio e deixavam sair as pessoas numa rajada de ar frio, eu

pedia guloseimas. Às vezes davam-me, se tinham doces com elas, e às

vezes até mos compravam de propósito. A Mamã teria vergonha se

soubesse, mas eu gostava tanto de doces. Não estive perto do lago nem

da Menina do Chupa-Chupa.

Quando finalmente terminaram e me deixaram entrar em casa,

conseguia sentir-lhes o cheiro por todo o lado. Vestígios de

desodorizante, suor, solas de borracha e produtos químicos. Fiquei

perturbado por terem visto as minhas coisas preciosas, como a fotografia

da Mamã e do Papá. Já na altura, a fotografia começava a esbater-se, as

feições deles cada vez mais pálidas. Estavam a deixar-me, a desaparecer

na branquidão. E havia também a caixa de música avariada em cima da


lareira, a Mamã trouxe-a da sua terra longínqua. A caixa de música não

tocava. Eu estraguei-a no mesmo dia em que parti as bonecas russas, no

dia da cena com o ratinho. A pequena bailarina estava partida na base,

tombada sem vida. Acho que era dela que tinha mais pena. (Chamo-lhe

Eloise. Não sei porquê, tem cara de Eloise.) Ouvi a voz melódica da

minha mãe ao meu ouvido. Tu tiras-me tudo, Theodore. Tiras, tiras,

tiras.

Aquelas pessoas tinham visto todas as minhas coisas com os seus

olhos e os seus pensamentos, e a casa já não parecia minha.

Fechei os olhos e respirei fundo para me acalmar. Quando os voltei a

abrir, a boneca russa olhava para mim com o seu sorriso gordo. Ao lado,

estava a caixa de música. A bailarina Eloise erguia-se orgulhosamente,

com os braços numa pose perfeita acima da cabeça. A Mamã e o Papá

sorriam na fotografia. O meu lindo tapete cor de laranja era fofo como

um borboto sob os meus pés.

Senti-me logo melhor. Estava tudo bem. Estava em casa.

Olivia bateu com a cabeça na minha mão. Ri-me e peguei nela. Isso

fez-me sentir ainda melhor. Mas lá em cima, no sótão, ouvi os rapazes

verdes a mexerem-se.

No dia seguinte, apareci no jornal. O título era BUSCAS EM CASA DE

SUSPEITO. E lá estava eu, parado diante da casa. Também fizeram buscas

noutras casas, mas o artigo dava a entender que só fora na minha, e julgo

que as outras pessoas tiveram a inteligência de tapar a cara. Sem foto,

não há história. Puseram a minha fotografia mesmo ao lado da

fotografia da Menina do Chupa-Chupa, o que, só por si, já era uma

história.

A foto não mostrava o nome da rua, mas as pessoas devem tê-la

reconhecido. Entravam-me pedras e tijolos. Tantas pedras. Assim que


substituía um vidro, era atirada outra pedra. Estava a dar em doido.

Aconteceu tantas vezes que desisti e preguei pranchas de contraplacado

por cima das janelas. Isso fê-los abrandar. Atirar pedras não tem tanta

piada quando não há nada para partir. Também deixei de sair durante o

dia. Foram tempos maus.

Ponho a Menina do Chupa-Chupa (o jornal com a foto dela, quero

dizer) no armário por baixo das escadas. Baixo-me para pousar o jornal

no fundo da pilha. É então que o vejo na prateleira, meio escondido atrás

da torre de jornais… o gravador de cassetes.

Reconheço-o imediatamente. É da Mamã. Tiro o aparelho da

prateleira. Tocar nele faz-me sentir estranho, como se alguém estivesse a

sussurrar por perto, mesmo abaixo do nível da audição.

Está uma cassete dentro do gravador, parcialmente usada… cerca de

metade de um dos lados foi gravada. É antiga, com uma etiqueta às

riscas amarelas e pretas. A letra formal dela, esbatida. Notas.

Não ouço a cassete. Sei o que lá está. Ela ditava sempre as notas em

voz alta. A voz fazia uma pausa ligeira nas consoantes, não se conseguia

livrar do sotaque. Dava para ouvir o mar na sua voz. Nasceu numa terra

longínqua, a Mamã, sob uma estrela sinistra.

Penso: É melhor deixá-lo aí, esquecer que o vi.

Comi um pickle e sinto-me muito melhor. Afinal, tudo aquilo

aconteceu há muito tempo. A luz fica mais intensa e vai ser um dia

bonito. Os pássaros vão chegar. Todas as manhãs, saem da floresta e

pousam no meu quintal. Mariquitas, estrelinhas, escrevedeiras, cruza-

bicos, pardais, melros, pombos. É animado e bonito. Adoro observá-los.

Fiz um buraco de vigia do tamanho certo, mesmo no sítio certo, no

contraplacado – consigo ver o quintal todo. Garanto sempre que os


comedouros estão cheios e que há água nos bebedouros. Os pássaros

sofrem muito neste tempo quente.

Preparo-me para olhar lá para fora, como faço todos os dias, quando

sinto um aperto no estômago. Às vezes, o meu corpo sabe das coisas

antes da cabeça. Algo não está bem. A manhã está demasiado silenciosa.

Digo a mim mesmo para não ser estranho, respiro fundo e encosto o

olho ao buraco.

Vejo o gaio primeiro. Está estendido mesmo no meio do quintal. O

emaranhado brilhante de penas cintila como uma mancha de óleo. A

estremecer. Uma asa comprida bate no ar, numa tentativa desesperada de

voar. Ficam estranhos quando estão no chão, os pássaros. Não foram

feitos para ficarem parados por tanto tempo.

As minhas mãos tremem quando rodo as chaves nas três fechaduras

grandes da porta de trás. Tum, tum, tum. Mesmo assim, perco um

momento para trancar a porta depois de sair. Os pássaros estão

estendidos por todo o quintal, espalhados pela erva seca. Estremecem,

indefesos, presos no que parecem ser pedaços de papel castanho. Muitos

estão mortos, talvez uns 20. Alguns não estão. Conto sete corações ainda

a bater. Os pássaros ofegam, com as línguas pretas e finas rígidas de dor.

Os meus pensamentos dispersam-se como formigas em todas as

direções. O meu coração bate três vezes até entender o que estou a ver.

Durante a noite, alguém foi até cada um dos comedouros e pôs

armadilhas viscosas, enrolou-as à volta das gaiolas, prendeu-as às bolas

penduradas de fios. Quando os pássaros vieram comer de madrugada,

ficaram com as patas e os biscos presos na cola.

Só consigo pensar Assassinos, assassinos, assassinos… Quem faria

isto aos pássaros? Então penso: Tenho de limpar tudo. Não posso deixar

que a Lauren veja isto.


A gata vadia está empoleirada em cima da hera na vedação de

arame, com os olhos amarelos bem atentos.

– Vai-te embora! – grito.

Atiro a coisa mais à mão, que é uma lata de cerveja vazia. A lata

falha por muito e bate num poste da vedação com um som oco. A gata

afasta-se lentamente, no seu coxear sem garras, como se fosse ideia dela.

Apanho os pássaros vivos. Ficam colados uns aos outros nas minhas

mãos, presos numa massa trémula. Parecem um monstro saído dos meus

pesadelos, com pernas e olhos por todo o lado, bicos a tentarem beber o

ar. Quando tento separá-los, as penas soltam-se da carne. Os pássaros

não fazem barulho. Talvez seja essa a pior parte. Os pássaros não são

como as pessoas. A dor torna-os calados.

Levo-os para dentro e tento tudo o que me ocorre para dissolver a

cola, mas bastam algumas tentativas com o solvente para ver que só

estou a fazer pior. Os pássaros fecham os olhos e inalam os vapores. Já

não sei o que fazer. Este tipo de cola não descola. Os pássaros não

conseguem viver, mas não estão mortos. Penso em afogá-los e depois em

bater-lhes na cabeça com um martelo. Cada nova ideia me faz sentir

mais estranho. Penso em destrancar o armário do portátil. Talvez a

Internet tenha uma alternativa. Mas não consigo pensar em nenhum sítio

para os pousar. Eles colam-se a tudo o que tocam.

Então lembro-me de uma coisa que vi na televisão. Vale a pena

tentar e temos vinagre em casa. Só com uma mão, corto um pedaço de

mangueira. A seguir, tiro de baixo da banca um tupperware grande,

bicarbonato de sódio e vinagre branco. Pouso os pássaros no tupperware

com cuidado, fecho-o e passo a mangueira pelo buraco que fiz na tampa

de plástico. Misturo o bicarbonato e o vinagre num saco e prendo-o à

mangueira com um elástico. Agora é uma câmara de gás. O ar dentro do

tupperware começa a mudar e as penas estremecem mais devagar.


Assisto a tudo, porque a morte merece uma testemunha. Até um pássaro

deve ter isso. Não demora muito. Eles já tinham desistido, por causa do

calor e do medo. Um pombo é o último a morrer, o subir e descer do seu

peito roliço fica mais fraco e acaba por parar.

O Assassino fez de mim um assassino também.

Ponho os cadáveres no lixo nas traseiras – corpos quentes e flácidos,

ainda moles. Alguém liga um cortador de relva na vizinhança. O cheiro

a relva cortada espalha-se pelo ar. As pessoas começam a acordar.

– Tudo bem, Ted?

É o homem com cabelo da cor do sumo de laranja. Todos os dias

leva o seu cão grande até à floresta.

– Oh, claro, tudo bem.

O homem está a olhar para os meus pés. Percebo que não estou a

usar meias nem sapatos. Os meus pés são pálidos e peludos. Tapo um pé

com o outro, mas isso não me faz sentir melhor. O cão arfa e sorri para

mim. Regra geral, os animais de estimação são melhores do que os

donos. Sinto pena de todos esses cães e gatos e coelhos e ratos. Têm de

viver com pessoas e, pior ainda, têm de as amar. Bom, Olivia não é um

animal de estimação. É muito mais do que isso. (Julgo que toda a gente

pensa isso do seu gato.)

Quando penso no Assassino a esgueirar-se pela minha casa na

escuridão fria, a pôr armadilhas no meu quintal… talvez até a espreitar

pelas vigias, a espiar-me a mim, a Lauren e a Olivia com os seus olhos

mortiços de besouro… sinto um aperto no coração.

Estou de volta. A senhora do chihuahua está parada mesmo ao meu

lado. A mão dela está no meu ombro. Estranho. Regra geral, as pessoas

não gostam de me tocar. O cão que tem debaixo do braço está a tremer e

fita-me com olhos esbugalhados.


Estou parado diante da casa da senhora do chihuahua, que é amarela

com uma cimalha verde. Sinto que acabei de me esquecer de algo – ou

que estou prestes a descobrir algo. Atina, digo a mim mesmo. Não sejas

estranho. As pessoas reparam no que é estranho. As pessoas lembram-

se.

– … o teu pobre pé – diz a mulher. – Onde estão os teus sapatos?

Conheço aquele tom de voz. As mulheres pequenas querem tomar

conta de homens grandes. É um mistério.

– Tens de cuidar de ti, Ted. A tua mãe ia morrer de preocupação

contigo.

Vejo que o meu pé está a verter… um fio vermelho-escuro no

cimento. Devo ter pisado alguma coisa.

– Ando atrás daquela gata vadia – digo. – Quero dizer, andava atrás.

Não quero que ela apanhe os pássaros no meu quintal.

(Nem sempre acerto nos tempos verbais. Tudo parece estar a

acontecer agora e às vezes esqueço-me de que, na verdade, aconteceu

antes.)

– É uma pena, essa gata – diz ela. Os olhos iluminam-se-lhe com

interesse. Dei-lhe outra coisa para sentir. – Essa criatura é uma peste. A

câmara devia tratar dos gatos vadios como faz com as outras pragas.

– Oh, concordo – respondo. – Claro.

(Não me lembro de nomes, mas tenho maneiras de julgar e recordar

pessoas. A primeira é: seriam gentis para a minha gata? Eu não deixava

esta mulher chegar perto de Olivia.)

– Bem, obrigado – digo. – Já me sinto melhor.

– De nada. Vem cá amanhã beber um chá gelado. Eu faço biscoitos.

– Amanhã não posso.

– Bom, quando quiseres. Somos vizinhos. Temos de nos ajudar uns

aos outros.
– É o que eu digo sempre.

Estou a ser educado.

– Tens um sorriso bonito, Ted, sabias? Devias sorrir mais vezes.

Aceno, sorrio e coxeio pelo passeio, fingindo uma dor que não sinto,

poupando o pé a sangrar até ter a certeza de que ela virou a esquina.

A senhora do chihuahua não deu pela minha ausência, o que é bom.

Perdi algum tempo, mas não muito, acho eu. O passeio está quente, mas

não a escaldar. O cortador de relva continua a roncar algures na

vizinhança, o cheiro a erva cortada paira, espesso e verde, no ar. Talvez

alguns minutos. Mas não devia ter acontecido na rua. E devia ter-me

calçado antes de sair de casa. Foi um erro.

Limpo o pé com desinfetante de uma garrafa de plástico verde. Acho

que foi feito para limpar chãos ou balcões, não pele humana. O pé

parece muito pior a seguir; a pele está vermelha e irritada. Tem ar de

doer a sério, se eu pudesse sentir dor, mas pelo menos o corte está

limpo. Enrolo o pé com gaze. Tenho muita gaze e ligaduras pela casa.

Acontecem alguns acidentes na nossa casa.

As minhas mãos continuam peganhentas, como se tivessem algo

agarrado, como chiclete, ou morte. Lembro-me de ler em algum lado

que os pássaros têm piolhos. Ou talvez sejam os peixes. Limpo as mãos

com o produto para o chão. Estou a tremer. Tomo o comprimido que

devia ter tomado há horas.

Neste dia, há 11 anos, a Menina do Chupa-Chupa desapareceu. Hoje

de manhã, alguém matou os meus pássaros. Talvez as duas coisas não

tenham nada que ver uma com a outra – o mundo está cheio de coisas

que não fazem sentido –, mas talvez estejam relacionadas. Como é que o

Assassino sabia que vinham tantos pássaros comer ao meu quintal de


madrugada? Será que conhece a vizinhança? Estes pensamentos não me

fazem sentir bem.

Faço uma lista. Escrevo no topo: O Assassino. Não é uma lista muito

longa.

Homem do cabelo cor de sumo de laranja

Senhora do chihuahua

Um estranho

Chupo a ponta do lápis. O problema é que não conheço os vizinhos

assim tão bem. A Mamã conhecia. Era a cena dela, encantar pessoas.

Mas as pessoas vão noutra direção quando me veem a aproximar na rua.

Já vi algumas a darem meia-volta e apressarem-se para longe. Por isso, o

Assassino pode estar ali fora neste preciso momento, algumas casas

mais abaixo, a comer piza ou algo assim e a rir-se de mim. Acrescento à

lista:

O senhor Lontra ou a mulher ou os filhos

Homens que vivem juntos na casa azul

Senhora que cheira a dónutes

Isso é quase toda a gente na rua.

Não acredito que algum deles seja o Assassino. Alguns, como a

família lontra, estão de férias neste momento.

A nossa rua tem um nome estranho. Às vezes, as pessoas param para

tirar fotografias da placa amolgada na rua. A seguir, vão embora, porque

aqui não há mais nada a não ser a floresta atrás das casas.

Lentamente, acrescento outro nome à lista. Ted Bannerman. Uma

pessoa nunca sabe.


Destranco o armário onde guardo os materiais de desenho e escondo

a lista cuidadosamente por baixo de uma velha caixa de giz que Lauren

nunca usa.

Eu julgo as pessoas de duas maneiras: pela maneira como tratam os

animais e pelo que gostam de comer. Se a comida preferida delas é

algum tipo de salada, só podem ser más pessoas. Se tiver queijo, é boa

gente.

Ainda não são dez da manhã, consigo ver pela maneira como o Sol

brilha pelas vigias furadas no contraplacado, lançando moedas de luz

pelo chão, e já está a ser um dia mesmo mau. Por isso, decido preparar

um almoço adiantado. É o meu almoço preferido, o melhor do mundo.

OK, devia ir buscar o gravador para isto.

Tenho andado a pensar… porque não usar o gravador de cassetes

para as minhas receitas? (A Mamã não iria gostar, eu sei. Tenho aquela

sensação de calor na nuca que me diz que vou ser o que ela costumava

chamar um empecilho.)

Abro uma embalagem de cassetes. Cheiram bem. Ponho uma cassete

nova no aparelho. Queria sempre brincar com ele quando era pequeno. O

gravador tem um grande botão vermelho, como uma tecla de piano, que

solta um clique forte quando lhe carrego. Agora não sei o que fazer com

a cassete velha da Mamã e isso incomoda-me. Não posso deitá-la fora

ou destruí-la, está fora de questão, mas não a quero guardar ao lado das

minhas lindas cassetes novas. Por isso, volto a pô-la no armário por

baixo das escadas, enfio-a por baixo dos jornais, por baixo da Menina do

Chupa-Chupa. OK, pronto!

Receita de Sanduíche de Queijo e Mel, por Ted Bannerman. Aqueça

óleo numa frigideira até fumegar. Barre manteiga em duas fatias de


pão, dos dois lados. Pegue em queijo cheddar, prefiro o fatiado, mas

pode usar o que gostar mais – o almoço é seu. Pegue em mel e espalhe

sobre as duas fatias de pão, só de um lado. Ponha o cheddar em cima do

mel. Ponha rodelas de banana em cima do cheddar. Agora, junte as

duas fatias de pão e frite na frigideira até a sanduíche ficar dourada dos

dois lados. Quando estiver pronta, salpique com sal, pimenta e molho

picante. Corte ao meio. Veja o queijo e o mel a verterem do corte.

Quase dá pena comer a sanduíche. Ah, ah… quase.

A minha voz é horrível! Como a de uma criança estranha com um

sapo na barriga. Bom, vou gravar as receitas, mas decididamente só as

vou ouvir se tiver de ser.

Gravar coisas é ideia do senhor bicho. Disse-me para fazer um

«diário de sentimentos». Essas palavras fazem-me sentir alarmado. Ele

fez tudo soar tão simples. Fale do que lhe acontece e de como isso o

afeta. Bom, isso está fora de questão. Mas é bom guardar as receitas, no

caso de um dia desaparecer e não restar ninguém que se lembre delas.

Amanhã vou gravar a sanduíche de vinagre e morangos.

A Mamã tinha as suas opiniões em relação à comida, mas eu adoro.

Já pensei que podia ser chefe de cozinha, quem sabe, ter um restaurante.

Ted’s… imagine-se! Ou escrever livros de receitas. Não posso fazer

nada disso por causa de Lauren e de Olivia. Elas não podem ficar

sozinhas.

Seria bom falar destas coisas com alguém. (Não com o senhor bicho,

é claro. É muito importante que eu não mostre ao senhor bicho quem

sou.) Gostava de partilhar as minhas receitas com um amigo, mas não

tenho nenhum.

Sento-me no sofá com a minha sanduíche e vejo corridas de

camiões. Os camiões de corrida são fantásticos. Fazem barulho e


passam por cima de coisas e através de coisas. Nada os detém. Queijo e

camiões. Devia estar contente. Mas os meus pensamentos estão cheios

de penas e bicos. E se eu ficar preso numa armadilha viscosa? E se eu

desaparecer? Não há ninguém para ser minha testemunha.

Sinto um toque suave ao meu lado. Olivia empurra a minha mão com

a cabeça e sobe para o meu colo com as patinhas pesadas e macias.

Vira-se e revira-se antes de se deitar no meu joelho. Ela sabe sempre

quando estou perturbado. O ronronar dela faz tremer o sofá.

– Anda, gatinha. Está na hora de ires para o teu caixote. A Lauren

vem aí.

Os olhos dela fecham-se e o corpo fica mole de relaxamento. Quase

escorrega das minhas mãos quando a levo, a ronronar, até à cozinha.

Levanto a tampa da velha arca frigorífica avariada. Devia tê-la deitado

fora há anos, mas Olivia adora esta coisa, sabe Deus porquê. Como

sempre, verifico que está desligada na ficha, mesmo sabendo que não

funciona há anos. Na semana passada, fiz mais alguns furos na tampa,

tenho medo de que ela não tenha ar suficiente. Matar coisas é difícil, é

verdade, mas mantê-las sãs e salvas é muito mais difícil. Eu que o diga.

Eu e Lauren estamos a jogar o jogo preferido dela. Tem montes de

regras e envolve andar na bicicleta cor-de-rosa a todo o gás enquanto

gritamos nomes de capitais. Lauren toca a campainha duas vezes para

respostas certas e quatro vezes para respostas erradas. É um jogo

barulhento, mas também é educativo, por isso alinho. Quando ouço

bater à porta, ponho a mão em cima da campainha.

– Pouco barulho enquanto vou ver quem é – digo. – Silêncio. Nem

um pio.

Lauren assente.
É a senhora do chihuahua. A cabeça do cão espreita nervosamente

da bolsa dela, os olhos são brilhantes e desvairados.

– Parece que alguém está a brincar a sério – diz ela. – As crianças

devem fazer barulho, sempre disse isso.

– A minha filha está de visita. Agora não é boa altura.

– Ouvi dizer que tinhas tido uma filha há uns anos – diz a senhora do

chihuahua. – Quem foi que me disse? Bom, agora não me lembro. Mas

lembro-me de ouvir que tinhas uma filha. Adorava conhecê-la. Os

vizinhos devem ser amigos. Trouxe-te uvas. São saudáveis, mas são

doces, por isso toda a gente gosta. Até as crianças gostam de uvas. São

as guloseimas da natureza.

– Obrigado. Agora tenho mesmo de ir. Eu e ela não passamos muito

tempo juntos. E sabe como é, a casa está uma pocilga.

– Como tens andado, Ted? – pergunta. – A sério, como tens andado?

– Estou bem.

– Como anda a tua mãe? Gostava tanto que ela escrevesse.

– Também está bem.

– OK – diz ela passado um minuto. – Vemo-nos por aí.

– Ei, Papá! – grita Lauren quando a senhora do chihuahua foi

embora e a porta está bem fechada. – Chile!

– Santiago!

Lauren grita e afasta-se a pedalar, desviando-se da mobília. Canta

alto enquanto pedala, uma canção que inventou sobre bichos-de-conta, e

se eu não fosse pai, nunca teria acreditado que uma canção sobre um

bicho-de-conta me pudesse dar tanta alegria. Mas é isso que o amor faz,

acerta-nos em cheio.

Ela para subitamente, com as rodas a chiar no soalho.

– Para de me seguir, Ted – diz ela.

– Mas estamos a jogar a um jogo.


Sinto o coração a cair-me aos pés. Cá vamos nós.

– Não quero jogar mais. Vai-te embora, estás a irritar-me.

– Desculpa, gatinha – digo eu. – Não posso. Podes precisar de mim.

– Não preciso de ti. E quero andar de bicicleta sozinha.

A voz dela sobe de tom.

– Quero viver sozinha numa casa, e comer sozinha, e ver televisão

sozinha, e nunca mais ver ninguém! Quero ir para Santiago do Chile!

– Eu sei. Mas as crianças não podem fazer tudo isso sozinhas. Tem

de haver um adulto para tomar conta delas.

– Um dia vou viver sozinha.

– Então, gatinha… – digo eu, o mais gentilmente que consigo. –

Sabes bem que isso nunca vai acontecer.

Tento ser tão honesto com ela quanto possível.

– Odeio-te, Ted.

As palavras causam sempre a mesma sensação, não importa quantas

vezes as diz: é como ser atingido com força, depressa, por trás.

– É Papá, não é Ted. E não estás a falar a sério.

– Estou, sim – diz ela, numa voz fininha como uma aranha. – Odeio-

te.

– Vamos comer mais gelado?

A minha voz soa culpada até aos meus ouvidos.

– Quem me dera nunca ter nascido – diz ela, a pedalar para longe,

passando por cima do desenho que tinha feito, de um gato preto com

olhos verdes como joias. Olivia.

Não estava a mentir, a casa está mesmo uma pocilga. Lauren

entornou gelatina na cozinha e passou com a bicicleta por cima,

deixando um rasto pegajoso pela casa. Há lápis de cor partidos em cima

do sofá e pratos sujos por todo o lado. Um dos jogos preferidos de

Lauren é tirar todos os pratos do armário, um por um, e lambê-los. A


seguir, grita, Papá, os pratos estão todos sujos. Agora, desce da bicicleta

e começa a arrastar-se pelo chão, a fingir que é um trator.

– Desde que seja feliz – murmuro para mim mesmo.

Ser pai é isto.

Estou a tomar o comprimido do meio-dia com um copo de água

quando Lauren choca contra mim. A água verte do copo para o tapete

azul e o comprimido cai-me dos dedos, saltita no chão, um pontinho

amarelo pelo ar, e desaparece. Ajoelho-me e espreito para baixo do sofá.

Não consigo vê-lo em lado nenhum. E já não tenho muitos.

– Que diabo – digo eu, sem pensar. – Diabos o carreguem!

Lauren começa a gritar. A voz torna-se uma sirene, sempre a subir

até a minha cabeça estar quase a explodir.

– Estás a praguejar – lamenta-se. – Não praguejes, seu gordo

horroroso!

E eu perco a cabeça. Não quero, mas perco. Gostava de dizer que

não foi a parte do gordo horroroso que me irritou, mas não posso.

– Acabou! Estás de castigo, imediatamente!

– Não.

Ela arranha-me a cara, à procura dos meus olhos com as unhas

afiadas.

– Não podes brincar aqui se não te portares bem.

Consigo segurá-la e ela acaba por parar de se debater.

– Acho que precisas de dormir, gatinha .

Pouso-a no chão e ponho o disco a tocar. O sussurro do gira-discos é

relaxante. A voz bonita da mulher emana pelo ar. É uma noite de

inverno e ninguém tem uma cama a mais, ninguém tem guloseimas…

Agora não me lembro do nome da cantora. Os olhos dela estão cheios de

compaixão. É como uma mãe, mas uma mãe de quem não é preciso ter

medo.
Pego nos lápis de cor e nos marcadores e conto-os. Estão todos aqui,

ótimo.

Habituei Lauren a dormir com esta música. Foi uma criança birrenta

e está a tornar-se uma adolescente difícil. Uma pré-adolescente. Em

alguns dias, como hoje, parece muito pequena e só quer andar na

bicicleta cor-de-rosa. O que aconteceu hoje preocupa-me. Há muita

coisa que me preocupa.

Primeiro, e este é o maior problema: tenho andado a ausentar-me

com mais frequência. Acontece quando estou sob stress. E se um dia me

ausento e nunca mais volto? Lauren e Olivia ficavam sozinhas. Preciso

de comprimidos mais fortes. Vou falar com o senhor bicho. A cerveja

está fria na palma da minha mão e sibila como uma serpente quando

abro a lata. Tiro três pickles de funcho do frasco, corto-os ao meio e

barro-os com manteiga de amendoim. Crocante. É o melhor dos petiscos

e combina mesmo bem com cerveja, mas não o consigo apreciar.

Segundo problema: barulho. A nossa casa fica num beco sem saída;

para lá dela existe apenas a floresta. A casa do lado esquerdo está vazia

desde sempre; os jornais colados do lado de dentro das janelas estão

amarelados e encarquilhados. Por isso, baixei a guarda ao longo dos

anos. Deixei Lauren gritar e cantar. Tenho de pensar melhor nisso. A

senhora do chihuahua ouviu-a.

Depois, há as caganitas pretas por baixo da mesa da cozinha. O rato

voltou. Lauren ainda está a chorar baixinho, mas está a acalmar, o que é

bom. A música está a fazer efeito. Com sorte, dorme um bom bocado e

posso acordá-la para almoçar. Vou fazer o prato preferido dela,

cachorro-quente com esparguete.

Terceiro problema: durante quanto tempo vai ela gostar de cachorro-

quente com esparguete? Durante quanto tempo consigo protegê-la? Ela

precisa de ser vigiada a tempo inteiro. As crianças são como uma


corrente à volta do nosso coração, ou do nosso pescoço, e puxam-nos

em todas as direções. Ela está a crescer demasiado depressa. Sei que

todos os pais dizem isto, mas é verdade.

Acalma-te, digo a mim mesmo. Afinal, Olivia acabou por aprender a

ser feliz com esta situação. Quando era uma gatinha, corria para a porta

sempre que eu a abria. Nunca conseguiria sobreviver lá fora, mas corria

na mesma. Agora entende melhor. O que queremos nem sempre é o

melhor para nós. Se a gata conseguiu aprender isso, Lauren também vai

aprender. Espero eu.

O dia acaba e depois de jantar está na hora de Lauren ir embora.

– Adeus, gatinha.

– Adeus, Papá.

– Até daqui a uma semana.

– Sim.

Brinca com a alça da mochila. Ela parece não se importar, mas eu

detesto esta parte. Decidi nunca lhe mostrar como fico perturbado. Volto

a pôr o disco a tocar. A voz da mulher vagueia pelo crepúsculo quente.

Quando tenho um dia mau, agora e depois tornam-se fugidios. Ouço

as vozes da Mamã e do Papá em certos sítios da casa. Às vezes, estão a

discutir sobre quem vai às compras. Às vezes, é o tinido e o ranger do

velho telefone fixo na entrada, e a Mamã a ligar para a escola, a dizer

que estou doente outra vez. Às vezes, acordo com ela a chamar-me para

tomar o pequeno-almoço. Ouço nitidamente. A seguir, cai o silêncio e

lembro-me que partiram os dois. Só os deuses sabem para onde.

Os deuses estão mais perto do que as pessoas pensam. Vivem no

meio das árvores, atrás de um véu tão fino que dá para rasgar com uma

unha.
Olivia

Estava ocupada com a língua, a tratar da comichão na pata, quando

Ted chamou por mim. Que diabo, agora não é boa altura, pensei. Mas

ouvi aquela nota na sua voz e parei para ir à procura dele. Só tinha de

seguir o cordão, que hoje irradiava uma bela luz dourada.

Estava de pé na sala de estar. Os olhos dele não estavam lá.

«Gatinha», dizia sem parar. As memórias moviam-se dentro dele como

vermes por baixo da pele. O ar era agitado por trovões. Este era dos

maus.

Encostei o flanco à perna dele. Pegou em mim com mãos trémulas. A

sua respiração abanava-me o pelo. Ronronei contra a cara dele. O ar

começou a acalmar, a eletricidade dissipou. A respiração de Ted

abrandou. Esfreguei o meu focinho na cara dele. Os seus sentimentos

inundaram-me. Era doloroso, mas eu aguentava. Os gatos não se

agarram ao passado.

– Obrigado, gatinha – sussurrou.

Estão a ver? Eu estava ocupada quando me chamou, mas fui ter com

ele na mesma. O SENHOR deu-me este propósito e eu cumpro-o de bom

grado. Uma relação é um assunto muito delicado. Requer um esforço

diário.

A senhora ted está a cantar, lamentosa. Sei todas as canções de cor,

as pequenas hesitações na sua voz, a nota ligeiramente desafinada na

canção sobre pradarias. As canções dela tocam sem parar, dia e noite,

quando Lauren não está cá. Ted parece precisar da companhia. Pelos

vistos, acha que um gato não conta. Se estivesse para aí virada, podia

ficar ofendida. Mas os teds são todos carentes, não podemos levar isso

a peito. Estou a falar em termos gerais. Não conheço outros teds além

de Ted. E de Lauren, suponho.


Vou contar tudo desde o começo. Como ele me encontrou durante a

tempestade, no dia em que o cordão nos uniu um ao outro.

Lembro-me de nascer. Não estava lá e depois estava, sem mais nem

menos. Empurrada do calor para o frio, esperneando com patas fracas,

emaranhada em fiapos de membrana pegajosa. Senti o ar no meu pelo

pela primeira vez, a minha boca abriu-se pela primeira vez para soltar

um lamento. Ela debruçou-se sobre mim, grande como o céu. Língua

quente, boca quente no meu pescoço. Vem, bichaninha, aqui não

estamos a salvo. A Mamã-Gata. Deixámos os outros na lama. Não

tinham sobrevivido à passagem. As formas macias com quem partilhara

a escuridão durante aqueles meses todos, agora quietas e fustigadas

pela chuva. Anda. Ela estava assustada. Consegui perceber, mesmo

sendo tão pequena.

A tempestade deve ter durado dias. Não sei quantos. Andámos de

lugar em lugar à procura de calor, de abrigo. Os meus olhos ainda

estavam fechados, as memórias são de olfato e de tato: o sítio de terra

macia onde dormimos, o cheiro azedo a rato. O pelo dela no meu

focinho quando se enrolava à minha volta, o aroma fugidio das folhas

de azevinho.

Quando os meus olhos começaram a abrir, via com pouca nitidez. A

chuva caía como facas reluzentes. O mundo retumbava e estremecia.

Como nunca vira nada diferente, pensava que estava sempre

tempestade.

Aprendi a levantar-me e depois a andar, devagarinho. Comecei a

perceber que algo não estava bem com a Mamã-Gata, com o corpo

dela. Os seus movimentos tornavam-se mais lentos. Tinha menos leite.

Uma noite, abrigámo-nos numa ravina. Acima, o silvado agitava-se

violentamente com o vento forte. Ela aqueceu-me e deu-me de comer.


Ronronou. O som ficou mais fraco, o calor menos quente. Então, parou

de se mexer. O frio começou a tomar conta de mim.

Ouviu-se um ruído tonitruante e fui encandeada por um feixe de luz,

não a luz trémula do céu, mas um círculo amarelo. Uma coisa como

uma aranha de carne, a brilhar à chuva. Na altura, não tinha nenhuma

palavra para mão. A coisa envolveu-me e ergueu-me para longe da

mamã.

– O que é isto?

Ele emanava um cheiro forte a terra molhada. Os punhos da

camisola estavam cobertos de lama. Uma fera murmurava ali perto.

Levou-me para dentro da fera. A chuva batia no telhado de metal como

pequenas pedras. Agasalhou-me, bem quente. A manta era amarela,

com um padrão de borboletas azuis. Continha o cheiro de alguém que

eu conhecia, ou queria conhecer. Como podia ser? Eu ainda não

conhecia ninguém.

– Pobre gatinha – disse ele. – Eu também estou sozinho.

Lambi-lhe o polegar.

Foi então que aconteceu. Um suave brilho branco emanou do peito

dele, do sítio onde deve estar o coração. O brilho tornou-se num

cordão, estendendo-se pelo ar. O cordão aproximou-se de mim. Eu

protestei e debati-me. Mas estava bem segura. Senti a luz a rodear-me o

pescoço, a ligar-se ao meu coração. Não doeu. Ligou-nos um ao outro.

Não sei se ele também sentiu… gosto de pensar que sim.

Então, trouxe-me para casa, para esta bela casa quente, onde me

fazem festas e posso dormir o tempo todo. Se não quiser, nem sequer

tenho de olhar para o mundo exterior! As janelas estão tapadas. Ted fez

de mim uma gata de interior e, desde então, nunca mais tive de me

preocupar com nada. Esta é a nossa casa, só para nós, e mais ninguém
pode entrar. Tirando o Noturno, claro, e os meninos verdes e Lauren.

Para ser franca, dispensava alguns deles.

Suponho que devia descrever-nos. É como fazem nas histórias. É

difícil. Nunca consigo distinguir os teds na televisão. Não sei que

detalhes são relevantes. Por exemplo, o meu Ted é meio cor de areia? E

tem fiapos de pelo vermelho na cara e pelo mais espesso na cabeça, que

é um pouco mais escuro, como madeira envernizada.

Quanto a mim, Ted trata-me sempre por «tu» ou «gatinha». Mas o

meu nome é Olivia. Tenho uma risca fina de pelo branco no peito, que

faz contraste com o meu pelo preto como carvão. A minha cauda é longa

e estreita como uma varinha. As minhas orelhas são grandes, com uma

base larga e uma ponta delicada. São muito sensíveis. Os meus olhos

são em forma de amêndoa, verdes como duas azeitonas. Acho que posso

dizer que sou bonita.

Às vezes, somos uma boa equipa, outras vezes, discutimos. É mesmo

assim. A televisão diz que temos de aceitar toda a gente, teds e gatos,

por quem são. Mas também temos de definir limites. Os limites são

importantes.

Por agora, chega. Os sentimentos são cansativos.

Acordo do meu sono em sobressalto, ao som de sinos distantes, ou

de uma voz aguda a chamar.

Abano a cabeça para me livrar do sonho, mas o ruído continua. Será

alguém a cantar baixinho em algum lado? Não me agrada. IiiiiiIIIIiiiii.

O tapete cor de laranja é agradável nas minhas patas, é como andar

em bolinhas de borboto. É da cor do Sol a pôr-se no mar. A luz dos

buracos no contraplacado marmoreia as paredes. As paredes aqui são de

um relaxante vermelho-escuro. Eu e Ted achamos que é uma cor muito

bonita. Nós concordamos em algumas coisas! Ali está o cadeirão de Ted,


com o couro gasto e luzidio na zona da cabeça e dos braços. A fita-cola

prateada tapa o buraco onde ele espetou uma faca durante uma corrida

de motocross. Gosto de tudo nesta sala, exceto duas coisas que estão em

cima da lareira, ao lado da caixa de música.

A primeira coisa que detesto chama-se uma boneca russa. Tem

dentro uma versão mais pequena dela, e outra dentro dela, e outra e

outra. É horrível. São prisioneiras. Imagino-as todas a gritar no escuro,

incapazes de falar ou de se mexerem. A cara da boneca é larga e tem um

sorriso inexpressivo. Parece tão feliz por manter as filhas prisioneiras.

A segunda coisa que detesto é a fotografia por cima da lareira. Os

Pais, a olhar por detrás do vidro. Detesto tudo nessa foto. A moldura é

grande e feita de prata, com um padrão de uvas, e flores, e esquilos. É

nojento. As caras dos esquilos parecem derretidas e queimadas. É como

se alguém tivesse vertido prata derretida por cima de seres vivos e

deixado arrefecer. Mas a foto na moldura é a pior parte. Ao fundo, um

lago, como um espelho escuro. Duas pessoas de pé na praia arenosa. Os

seus rostos são apenas buracos para o vazio. Os Pais não eram

simpáticos para Ted. Sempre que chego perto da foto, sinto a atração

vazia das suas almas.

Mas gosto da caixa de música. A mulher pequenina ergue-se tão

direita, como se estivesse a tentar tocar no céu.

IiiiIIiii. O tinido agudo não vem dos Pais. Viro-lhes costas, levanto a

cauda e mostro-lhes o rabo.

A bicicleta cor-de-rosa está tombada no chão da sala, com as

rodinhas a girar de modo quase impercetível. Lauren. É o ted pequeno

de Ted. Ou será que ela pertence a outro ted e ele só tome conta dela?

Não me lembro. O odor dela paira no tapete, no braço do cadeirão, mas

está tudo calmo. Já deve ter ido embora. Ótimo. Mas ela nunca arruma o
diabo da bicicleta. Oh, credo. Eu bem que tento dizer «diabo» e não…

hum-hum. Não gosto de praguejar.

Quando Lauren vem visitar, vou para o meu caixote. Lá dentro há

espaço para os meus pensamentos. É sempre escuro e agradável. Tenho a

certeza de que o SENHOR não aprovaria o que vou dizer, mas… os teds

pequenos são horríveis. Nunca sabemos o que vão fazer. E Lauren tem

alguma espécie de problema psicológico. Não sei bem os detalhes, mas

parece que implica ser malcriada e barulhenta. Os gatos são sensíveis ao

ruído. Nós vemos com as orelhas e o nariz. Bom, com os olhos também,

é claro.

Na cozinha, o meu caixote está encostado à parede. Encosto a orelha

ao lado frio do caixote, mas não me parece que o barulho venha de lá.

Ted voltou a empilhar pesos em cima do caixote, por isso não posso

entrar. Que irritante. Lauren rabiscou palavras e desenhos no quadro

branco ao lado do frigorífico. Blá blá blá, escreveu ela. O Ted é o Ted. A

Olivia é um gato. Que observações INCRÍVEIS! Ela vai longe. O

frigorífico solta um resmungo, cai uma gota de água da torneira, mas o

tinido nos meus ouvidos continua e não é igual a nenhum destes sons.

Na sala dos murmúrios, tudo está como deve estar. Os armários

estão todos fechados. Consigo ouvir as máquinas a ronronar baixinho

atrás de portas trancadas. Telemóvel, portátil, impressora. Parecem estar

vivas e estou sempre à espera de que comecem a falar comigo, mas

nunca falam.

E continua, o som agudo como um sino ou uma voz fininha. Não são

as máquinas que estão a fazer o ruído.

Subo as escadas. Gosto de subir as escadas. Parece sempre uma

espécie de progresso. Também gosto de dormir no degrau exatamente a

meio das escadas. Faz-me sentir como se estivesse a flutuar. O tapete é


preto e eu confundo-me bem com ele. Às vezes, Ted tropeça em mim.

Ele bebe de mais.

O som não fica nem mais alto nem mais baixo quando vou de quarto

em quarto, o que é estranho. Passo a correr pela porta do sótão,

mantendo a distância. Mau lugar. Ergo-me nas patas traseiras para rodar

o puxador da porta do quarto. A porta solta um clique forte e abre-se.

(Adoro portas. Simplesmente adoro.) Na cama de Ted estão cinco ou

seis rolos de fita-cola. Ele compra fita-cola às carradas. Não sei para que

raio usa ele tanto daquilo. Lambo a fita-cola. Tem um sabor forte e

pegajoso. O iiiuuuuiii continua a soar baixinho nos meus ouvidos. Solto

um miado impaciente. Estarei a imaginar ou o som é ligeiramente

metálico e oco, como se viesse de dentro de um tubo?

Na casa de banho, dou um salto para testar as torneiras. Não vem

nenhum som delas exceto o eco interno do ar. Lambo o metal e cheiro a

sujidade entranhada no lavatório. Ted não é um ted muito limpo. A casa

de banho dele não se parece com as casas de banho da televisão.

A porta do armário da casa de banho está aberta. Os frascos formam

longas filas âmbar nas prateleiras. Toco-lhes com a ponta da cauda e

dou-lhes um pequeno empurrão. Os frascos chocalham para o lavatório,

cuspindo comprimidos das suas bocas. Cor-de-rosa, brancos, azuis. Ele

nunca os fecha bem porque são tampas de segurança e não as consegue

abrir quando está bêbedo. Os comprimidos estão todos espalhados pela

tijoleira suja. Alguns caíram numa poça de água, ali desde o duche

matinal. Já estão a tingir a água de cor-de-rosa. Atiro uma cápsula verde

e branca pelo chão.

IIIuuuuuiiii. O som agudo. É uma mensagem, eu sei, e parece que é

só para mim. Mas não tenho mais tempo para perceber o que é porque

está na hora dela.


Estou unida a Ted por um cordão e ele está ao meu cuidado, como o

SENHOR decretou. Mas tenho uma vida própria para lá dele, sabem?

Tenho outros interesses. Bom, outro. Está na hora dela e isso é muito

excitante.

Desço as escadas a correr e vou até à janela, tomando o caminho por

trás do sofá, para evitar a bicicleta cor-de-rosa, deixando pegadas no pó.

Não consigo conter o receio de estar atrasada, apesar de saber que não

estou. Mas os círculos de luz nas paredes estão exatamente no ângulo

certo. Salto para cima da mesa de macramé verde. Se me erguer nas

patas traseiras e me esticar um pouco, consigo olhar pelo buraco que dá

para a rua, junto ao carvalho pequeno. O cordão paira no ar atrás de

mim, com um brilho prateado.

Os outros buracos estão à altura dos teds e não lhes consigo chegar.

Este é o meu único vislumbre do exterior. É um buraco pequeno, talvez

do tamanho de uma moeda. Não consigo ver grande coisa: uma parte do

tronco tortuoso do carvalho, alguns ramos sem folhas, para lá deles

alguns metros de passeio. Enquanto observo, começa a cair neve do céu

cinzento, levemente e em silêncio. Aos poucos, o passeio desaparece

debaixo de um manto branco e cada ramo fica carregado com uma fina

linha de neve.

Isto é tudo o que conheço, esta pequena moeda do mundo. Se me

importo? Se sinto falta de ir lá fora? Nem um pouco. Lá fora é perigoso.

Isto basta-me, desde que a possa ver.

Espero que Ted não mude a mesa de macramé de sítio. Era mesmo o

tipo de coisa que ele faria. Aí, teria de me zangar a sério, e detesto

zangar-me.

Se ela não vier, eu espero. O amor é isso mesmo, claro. Paciência e

resiliência. O SENHOR ensinou-me.


O odor dela precede-a, cai pelo ar como mel a pingar numa torrada.

Ela vira a esquina com o seu andar gracioso. Como a posso descrever?

Tem riscas como um pequeno tigre pardo. Os seus olhos amarelos são

da cor da casca de uma maçã dourada – ou do mijo. São lindos, é o que

quero dizer. Ela é linda. Ela para e espreguiça-se, para a frente e para

trás, e estende as garras compridas e pretas. Pisca os olhos quando os

flocos de neve lhe pousam no focinho. Tem algo prateado a pender-lhe

da boca, talvez uma cauda. Um peixe pequeno, como uma sardinha ou

uma anchova. Sempre me interroguei a que saberá o peixe verdadeiro.

Eu como queijo derretido e nuggets de frango, ou carne que esteja em

promoção no supermercado. Quando tenho mesmo muita fome, tenho

de pedir ao Noturno para caçar para mim. (Abomino todo o tipo de

violência, mas não fui eu quem fez o mundo, e quando é preciso, é

preciso.)

Espero que o teu peixe seja delicioso, digo em silêncio à gata. Faço

festas no contraplacado com uma pata. Amo-te. O vento assobia, o ar

está carregado de neve revolta e ela desaparece num rasgo de preto e

dourado. Acabou o espetáculo. O SENHOR dá e o SENHOR tira.

Normalmente, depois de a ver, gosto de ficar sentada a pensar por

um pouco. Mas o tinido está de volta, agora mais alto. Coço a orelha

com a pata até ficar dorida. Não adianta nada. De onde vem o ruído?

UUuuuiiiiiiuuuuii, continua, sem parar. Como posso fazer seja o que for

com este estrondo no ouvido? É como um relógio pequeno. Pior, porque

quase parece que está dentro de mim e não vai parar. Essa ideia deixa-

me inquieta. Porque estará a tocar o relógio pequeno? Chegou a hora de

quê? Preciso de orientação.

Vou até à minha Bíblia. Bom, agora é minha. Acho que pertencia à

mãe de Ted, mas ela foi embora e, até ela voltar, não tenho problemas

em usá-la. As páginas são finas e sussurrantes, como pétalas secas. Tem


ouro na capa, que chama a atenção do olhar como um segredo. Ted tem-

na numa mesa alta na sala. Não lhe serve de nada, francamente; nunca a

abre. O livro começa a ficar um pouco gasto, mas a verdade é que tenho

de fazer as minhas devoções.

Salto para o lado do livro. Esta parte é divertida porque sinto sempre

que estou quase a cair. Estremeço perigosamente no espaço. Então,

empurro o livro com uma pata, para fora da mesa.

O livro cai ao chão com estrondo e fica aberto. Eu espero, porque

ainda não acabou. Momentos depois, a casa estremece e da Terra sobe

um tremor. Da primeira vez que aconteceu, soltei um miado de medo e

escondi-me debaixo do sofá. Mas acabei por perceber que são apenas

sinais Dele de que estou a fazer a coisa certa.

Salto para o chão, pouso elegantemente com as quatro patas e o

SENHOR conduz o meu olhar para o versículo que quer que eu leia.

Amados, amemo-nos uns aos outros;

porque o amor é de Deus,

e qualquer um que ama

é nascido de Deus e conhece a Deus.

Tremo com a retidão do versículo. Eu amo o meu Ted, a minha gata,

a minha casa, a minha vida. Sou uma gata sortuda.

Quando encontro um versículo que me agrada, tento lembrar-me

dele… como este que acabei de ler. Mas não é fácil conservar frases

inteiras na cabeça. É como virar um copo de berlindes num chão duro.

Rolam às escuras em todas as direções.

Na verdade, o livro é apenas um guia. Acho que o SENHOR é diferente

para os gatos. Ele prefere falar-nos diretamente. Não vemos as coisas da

mesma maneira que os teds.


Sento-me no sofá num disco de luz do sol. Viro as costas à Bíblia

deliberadamente, para Ted saber que não tive nada que ver com isso. O

tinido baixou um pouco.

Porque é que ainda tenho um mau pressentimento? O que pode estar

errado? O versículo da Bíblia não podia ser mais positivo. Além disso, o

segredo da vida é: se não gostas do que tens, dorme, que passa.


Ted

Tenho andado a pensar que devia gravar algumas memórias da

Mamã. Assim, elas não desaparecem, mesmo que eu desapareça. Não

quero que ela seja esquecida, mas é mesmo difícil escolher uma. A

maioria das minhas memórias tem segredos e não é adequada.

Tenho uma ideia genial. E aquele dia junto ao lago? Não há nada a

esconder nessa história. Ao início, não consigo encontrar o gravador;

tenho a certeza de que o deixei na cozinha. Por fim, depois de uma busca

intensiva, encontro-o atrás do sofá na sala. Que estranho. Mas o meu

cérebro é mesmo assim.

Muito bem. Foi assim que ganhei o meu amor por pássaros. Era

verão e fizemos uma viagem até ao lago. Eu tinha 6 anos, não me

lembro de muita coisa nessa idade, mas lembro-me de como me senti.

Nesse dia, a Mamã trazia o vestido azul, o seu preferido. O vestido

drapejava com o vento quente que entrava pelo vidro entreaberto. Tinha

o cabelo amarrado, mas algumas madeixas tinham conseguido soltar-

se. Batiam-lhe no pescoço, que era comprido e branco. O Papá

conduzia e o seu chapéu era uma cordilheira negra contra a luz. Eu

estava no banco de trás a dar pontapés no ar e a ver o céu a passar.

– Posso ter uma gatinha? – perguntei, como fazia de vez em quando.

Talvez achasse que a poderia surpreender e conseguir uma resposta

diferente.

– Não quero animais em casa, Teddy. Sabes o que penso sobre os

animais de estimação. É cruel manter seres vivos em cativeiro.

Dava para ver que ela não era daqui. A sua voz ainda tinha um

ligeiro vestígio do país do pai dela. Um som duro nos erres. Mas era

mais pela postura dela, como se esperasse ser atingida pelas costas.
– Papá – disse eu.

– Ouviste a tua mãe.

Fiz uma cara lamentosa ao ouvir aquilo, mas só para mim. Não

queria ser um empecilho. Fiz festas no ar e fingi que conseguia sentir

pelo sedoso debaixo dos meus dedos, uma cabeça sólida com orelhas

curiosas. Sempre quis ter uma gata. A Mamã dizia sempre que não.

(Agora não consigo deixar de pensar se ela saberia algo que eu não

sabia, se veria o futuro, como uma faixa vermelha no horizonte.)

Quando chegámos perto do lago, o ar tomou um aroma a água

profunda.

Chegámos cedo, mas as margens já estavam cobertas de famílias, as

toalhas estendidas na areia branca como quadrados num tabuleiro de

xadrez. Os efémeros pairavam como nuvens acima da superfície

brilhante. O sol da manhã batia forte, deixava-me a pele a arder como

vinagre.

– Não tires a camisola, Teddy – disse a Mamã.

Estava calor, mas eu sabia que era melhor não reclamar.

Brinquei com o Papá na água. A Mamã ficou sentada na sua

cadeira, segurando a sombrinha de seda azul. A franja ondulava com a

brisa. Não estava a ler. Olhava através da floresta, da terra e da água,

para algo que nenhum de nós conseguia ver. Parecia que estava a

sonhar, ou atenta a um inimigo. Em retrospetiva, provavelmente estava

a fazer as duas coisas.

A loja de recordações tinha pequenos porta-chaves talhados em

pinho da floresta local. Eram maravilhosos, em forma de cães e peixes e

cavalos. Baloiçavam gentilmente, fitando-me com os seus olhos de

madeira, a luz a brilhar nas argolas prateadas. Remexi-os com dedos

encorrilhados da água. No fundo da prateleira, encontrei-a, uma


gatinha perfeita, sentada de costas direitas, patas juntas. A cauda era

um ponto de interrogação, as orelhas eram delicadas. O talhador

aproveitara a textura da madeira para lhe dar um ar de pelo macio.

Queria tanto tê-la. Senti que tínhamos sido feitos um para o outro.

A mão da Mamã pousou no meu ombro.

– Põe isso no sítio, Teddy.

– Mas não é um animal a sério. É de madeira. Podia tê-la em casa.

– Está na hora do almoço. Anda.

Ela atou um guardanapo ao meu pescoço e deu-me dois frascos

pequenos com etiquetas azuis e brancas, um de papa de maçã, outro de

cenoura, e uma colher. Imaginei que toda a gente olhava para nós,

apesar de provavelmente ninguém estar a olhar. À nossa volta, as

crianças comiam cachorros-quentes e sanduíches. A Mamã viu-me a

olhar.

– Aquelas coisas estão repletas de gordura e conservantes – disse. –

O nosso almoço é nutricionalmente completo. Todas as vitaminas de

que precisas estão nesses frascos. E é barato.

Estava a falar com a sua voz de enfermeira, que era um pouco mais

grave do que a voz normal, com as consoantes mais duras. A Mamã

tratava de crianças doentes no hospital. Sabia do que estava a falar.

Por isso, uma pessoa não discutia com a voz de enfermeira. O Papá

estava entre empregos. Como se fosse uma vala escura onde caíra e de

onde agora não conseguia sair. Comeu as ameixas e o pudim de arroz

sem dizer palavra. Os frascos pareciam minúsculos nas suas grandes

mãos castanhas. Foi buscar o seu Thermos com café.

Perto de nós, uma mulher impaciente com um escaldão dava de

comer a um bebé. A etiqueta era azul e branca. Com uma pontada fria
de horror, vi que o bebé estava a comer a mesma papa de arroz que o

meu pai.

– Guarda isso – disse eu para o Papá. – As pessoas vão ver!

A Mamã olhou para mim, mas não disse nada.

– Acaba o teu almoço – disse-lhe ela calmamente.

Quando acabámos, a Mamã voltou a guardar os frascos na geleira.

– Sabes de onde venho, Teddy – disse ela.

– Locronan – respondi –, que fica na Bretanha. Que fica em França.

Era tudo o que eu sabia. A Mamã nunca falava desse sítio.

– Havia um rapaz pobre na minha aldeia. – Ela fitava a outra

margem do lago e parecia já não estar a falar comigo. – Os pais dele

tinham morrido na grande epidemia. A gripe atravessou Locronan como

uma faca corta manteiga. Todos lhe dávamos o que podíamos, mas

também não tínhamos muito. Ele dormia no nosso celeiro, com o

jumento e as ovelhas. Não me recordo do nome dele. Na aldeia,

chamavam-lhe Pemoc’h, porque dormia no sítio dos porcos. Todas as

manhãs, o Pemoc’h vinha à porta da nossa cozinha. Eu dava-lhe um

copo de leite e meio pão. Às vezes, dava-lhe molho do assado de

domingo. Todas as noites ele regressava. Eu dava-lhe os restos do

jantar. Nabiças, ovos rachados… Agradecia-me sempre três vezes.

Trugarez, trugarez, trugarez. Nunca me esqueço disso. Às vezes, tinha

tanta fome que as mãos lhe tremiam quando aceitava a comida. Por

aquela réstia de comida, trabalhava o dia inteiro nos campos para o

meu pai. Fez isso durante anos e os seus agradecimentos nunca

deixaram de ser sinceros. Era um rapazinho agradecido. Sabia a sorte

que tinha.

Levantou-se.

– Vou fazer os meus 30 minutos – disse ela.


O Papá assentiu. Ela afastou-se, com o vestido azul contra o céu

azul. A Mamã nunca tinha calor.

Apesar do café, o Papá adormeceu profundamente com o chapéu

sobre a cara. Agora dormia muito. Parecia que cada momento que

passava acordado o deixava exausto. A mulher escaldada olhava para

nós. Devia ter reparado em nós a almoçar comida de bebé. Tentei

imaginar que ela tinha a pele vermelha porque fora mortalmente

queimada e morreria dentro de pouco tempo. Desejei-lhe a morte com

todas as minhas forças, mas a tarde prosseguiu. Pequenos patos

azulados brincavam na outra margem do lago, onde as árvores

chegavam junto da água. O Papá ressonava. Não era suposto dormir

quando estava a tomar conta de mim.

Pouco antes, tinha desaparecido, junto a este lago, um rapazinho. Às

vezes, traziam cá as crianças do lar ao fim de semana. Talvez ainda o

façam. Esse rapaz não voltou para o autocarro ao fim do dia. Às vezes,

sentia uns calafrios agradáveis de imaginar o que lhe teria acontecido.

Talvez tivesse ido atrás de um lindo pássaro vermelho, ou de um veado,

até ficar fora de vista das multidões, nos recantos profundos do lago.

Quando tropeçou e caiu num buraco frio, não havia ninguém por perto

para ouvir os seus gritos. Ou então vagueou sob a vasta copa verde da

floresta, até a sua mente ficar verde e ele desaparecer na luz

marmoreada e se tornar em algo diferente, algo que não um rapaz. Mas

o mais provável era ter apanhado uma boleia para a cidade. Ele metia-

se em encrencas, todos diziam isso.

– Toma, Teddy.

O toque da Mamã na minha cabeça foi suave, mas exclamei e

sobressaltei-me como se me tivesse batido. Pôs algo na minha mão.

Após um momento para habituar os olhos à luz do sol, vi o que era. A


gata pequena parecia arquear o dorso com prazer contra a palma da

minha mão.

A sensação de alegria foi tão intensa que mais parecia dor. Fiz-lhe

festas com o dedo.

– Oh! Gatinha, gatinha!

– Gostas?

Conseguia ouvir o sorriso na voz da Mamã.

– Adoro. Vou tomar bem conta dela.

Então, o meu deleite foi atravessado por uma preocupação.

– Foi caro?

Eu sabia que éramos pobres, e sabia que não era suposto saber.

– Está tudo bem – disse ela. – Não te preocupes com isso, por amor

de Deus. Vais dar-lhe um nome?

– Chama-se Olivia.

Para mim, o nome tinha classe e mistério, perfeito para uma gata de

madeira.

Esta pequena extravagância pareceu animar toda a gente. Eu

brincava com a Olivia e já não queria saber o que as outras pessoas

pensavam de nós. A Mamã trauteava e até o Papá sorria e fazia o seu

andar engraçado, fingindo tropeçar nos atacadores e cair na areia.

A regra da Mamã era tirar sempre o máximo proveito de uma

viagem. Por isso, ficámos no lago até quase toda a gente ter ido embora.

As sombras alongavam-se e as colinas começavam a comer o Sol.

Quando partimos, os morcegos esvoaçavam pelo crepúsculo. O carro

estava um forno, concentrando todo o calor do dia. O Papá teve de

tapar os estofos escaldantes com uma toalha para eu me poder sentar

no banco de trás. Pus a Olivia no bolso com cuidado.


– Eu conduzo – disse a Mamã gentilmente para o Papá. – Tu

conduziste para cá. O que é justo é justo.

O Papá tocou-lhe na cara.

– És uma rainha entre as mulheres.

Ela sorriu. Ainda tinha aquele olhar distante. Só anos mais tarde é

que reparei que ela nunca deixava o Papá conduzir depois do meio-dia,

depois de ele começar a beber café do Thermos e a andar de forma

engraçada.

O carro roncava no anoitecer e eu sentia-me feliz. Tudo era gentil,

dentro e fora de mim. Só as crianças conseguem sentir esse tipo de

segurança; agora sei isso. Devo ter adormecido, porque acordar foi

como uma bofetada na cara, chocante e súbito.

– Já chegámos a casa? – perguntei.

– Não – disse a Mamã.

Ergui a cabeça, sonolento, e olhei lá para fora. Pelo feixe dos faróis,

vi que tínhamos parado na berma de uma estrada de terra. Não havia

pessoas ou passeio ou outros carros. Fetos grandes como penas de

avestruzes roçavam nos vidros. Para lá dos fetos, vinham os sons e os

odores das árvores a falar, insetos noturnos a fazer sons como tique,

tique, tique.

– O carro avariou? – perguntei.

A Mamã virou-se para trás e olhou para mim.

– Sai do carro, Teddy.

– O que estás a fazer?

O tom na voz do Papá era de medo, apesar de eu não ter

consciência disso, na altura. Só sabia que me fazia ter vergonha dele.

– Dorme, dorme. – E a mim disse –: Teddy. Agora, por favor.

Fora do carro, o ar parecia sólido, como algodão molhado na minha

cara. Sentia-me pequeno na escuridão densa, mas outra parte de mim


achava excitante estar na floresta à noite com a Mamã. Ela nunca fazia

as coisas como as outras pessoas faziam. Pegou-me pela mão e levou-

me para longe do carro, para longe da luz, para o meio das árvores. O

vestido claro dela parecia suspenso na escuridão. Era como uma

criatura marinha a flutuar acima do fundo do oceano.

Na floresta, até as coisas familiares pareciam estranhas. O

tamborilar molhado da noite tornou-se o pingar sinistro de uma

masmorra. O ranger dos ramos das árvores eram os movimentos de

braços gigantescos e escamosos. O puxão breve de um galho era uma

mão ossuda a agarrar a minha manga… os dedos, talvez, de alguém que

já foi uma criança, que se aventurou pela luz verde e nunca regressou.

Comecei a ter medo. Apertei a mão da Mamã. Ela apertou a minha

mão.

– Vou mostrar-te algo importante, Teddy.

Ela soava normal, como se estivesse a dizer-me o que tinha a minha

sanduíche nesse dia, e senti-me melhor. Quando os meus olhos se

habituaram à falta de luz, tudo parecia brilhar na penumbra, como se o

próprio ar tivesse luz.

Parámos debaixo de um abeto imponente.

– Pode ser aqui – disse ela.

Ao longe, através dos ramos retorcidos, ainda conseguia ver a luz

fraca dos faróis.

– Hoje comprei-te aquele gato – disse a Mamã. Eu assenti. – Gostas

dele?

– Sim.

– Gostas como?

– Gosto mais do que… de gelado.

Não consigo pensar numa maneira de explicar os meus sentimentos

pela pequena gata de madeira.


– Gostas mais dele do que gostavas que o Papá arranjasse um

emprego? Diz a verdade.

Pensei um pouco.

– Sim – sussurrei. – Gosto.

– Sabes a menina que estou a tratar no hospital, que tem cancro?

Gostas mais do gato do que gostavas que ela ficasse boa?

– Não.

Não podia, pois não? Isso faria de mim um menino muito mau.

Ela pôs uma mão fria no meu ombro.

– Diz a verdade.

Senti-me como se tivesse a garganta cheia de facas. Assenti uma vez

só.

– Gosto mais da minha gata.

– Muito bem. És uma criança honesta. Agora, tira o gato do bolso.

Pousa-o aqui no chão.

Pousei-a gentilmente num pedaço de musgo ao pé da árvore. Mal

conseguia largá-la, nem que fosse por um momento. A Mamã estendeu-

me a mão.

– Agora vamos para o carro. Vamos para casa.

Eu baixei-me para apanhar a Olivia, mas os dedos da Mamã

pareciam umas algemas no meu pulso.

– Não. Isso fica aqui.

– Porquê? – sussurrei.

Pensei em como ela se sentiria sozinha e com frio, aqui no escuro,

como a chuva a molharia e apodreceria, como os esquilos roeriam a

sua linda cabeça.

– É um treino – disse a Mamã. – Vais acabar por me agradecer.

Tudo na vida é um ensaio para a perda. Só as pessoas inteligentes

sabem isso.
Puxou-me pela floresta na direção do carro. O mundo parecia uma

névoa escura. Estava a chorar tanto que parecia que o coração me ia

rebentar no peito.

– Quero que sintas o poder do sentimento. De virares costas a algo

que amas. Não te faz sentir mais forte?

As estrelas bicudas dos faróis ficaram mais perto e ouvi a porta do

carro a bater com força. O meu pai cheirava ao que me pareceu ser

pudim de ameixa e suor. Abraçou-me com força.

– Onde foram? – perguntou ele à Mamã. – O que se passa? Ele está

a chorar.

O Papá virava a minha cara para um lado e para o outro, para ver

se eu estava magoado.

– Não é preciso ficar assim – disse a Mamã, com um toque da voz de

enfermeira. – Fomos ver se encontrávamos uma coruja. Elas fazem

ninho por aqui. Entretanto, ele deixou cair o porta-chaves do gato e não

o conseguimos encontrar no escuro. Daí a choradeira.

– Oh, miúdo – disse o meu pai. – Não é nada de mais, pois não?

Os braços dele não me deram conforto.

Nunca mais voltei a pedir uma gata. Disse a mim mesmo que já não

queria nenhuma. Se gostasse dela, podia ser forçado a abandoná-la na

floresta – ou um dia morreria, o que é quase a mesma coisa.

Por isso, foi muitos anos antes do acontecimento que a Mamã

começou a preparar-me para a partida dela. Agora entendo-a melhor.

Agora que sou pai, sei como temos medo pelos nossos filhos. Às vezes,

quando penso em Lauren, sinto-me frágil como um vidrinho.

Quando chegámos a casa, a Mamã pôs-me no banho e verificou

delicadamente todo o meu corpo. Encontrou um arranhão na minha

perna por onde vertia um líquido vermelho; juntou a carne dos dois
lados com dois pontos do seu estojo de suturas. Partia-me e reparava-

me, vezes e vezes sem conta… era assim a minha mãe.

No dia seguinte, a Mamã montou as mesas dos pássaros no quintal.

Pôs seis comedouros de arame para atrair os pássaros mais pequenos.

Pendurou-os de postes altos, para os esquilos não roubarem a comida.

Pôs queijo para os pássaros que comiam no chão, casinhas de madeira

cheias de grão, tubos de plástico com sementes de girassol, bolas de

gordura penduradas num fio, um bloco de sal-gema.

– Os pássaros são descendentes de gigantes – disse a Mamã. –

Outrora dominaram a Terra. Quando as coisas ficaram más, fizeram-se

pequenos e ágeis e aprenderam a viver na copa das árvores. Os

pássaros são uma lição de resistência. São animais selvagens a sério,

Teddy… melhores do que um porta-chaves.

No começo, tinha medo de os alimentar ou olhar para eles.

– Vais-mos tirar? – perguntei-lhe.

Ela pareceu surpreendida.

– Como poderia tirar-tos? Eles não te pertencem.

Vi que estava a mostrar-me algo que era seguro amar.

Tudo isto foi antes do incidente do ratinho, é claro… antes de a

Mamã começar a ter medo de mim. Agora o Assassino tirou-me os

pássaros, apesar de a Mamã ter dito que isso não era possível.

Tive de parar porque estou a ficar perturbado.

Tudo isso aconteceu 15 anos antes de a Menina do Chupa-Chupa

desaparecer na mesma praia no lago. O lago, a Menina do Chupa-

Chupa, o Assassino de Pássaros. Não gosto de pensar que todas estas

coisas estão relacionadas, mas os acontecimentos têm uma maneira de


ecoar entre si. Afinal, talvez esta história tenha segredos. Não volto a

gravar memórias. Não gostei.


Dee

Aconteceu no segundo dia de férias. O pai virou no sítio errado na

viagem desde Portland, mas quando sentiram o cheiro a água no ar,

souberam que estavam de volta ao caminho certo.

Dee lembra-se melhor dos pormenores: o chupa-chupa na mão de

Lulu a verter um líquido verde e viscoso para os dedos dela, o toque do

pau de madeira na sua própria língua roxa. Tinha areia nos sapatos e nos

calções, o que não lhe agradava. Na toalha ao lado, estava outra rapariga

mais ou menos da idade dela e olharam uma para a outra. A outra

rapariga revirou os olhos e enfiou um dedo pela garganta, como se fosse

vomitar. Dee soltou uma risada. As famílias eram tão embaraçosas.

Lulu veio ter com Dee. As tiras dos seus chinelos de praia brancos

estavam torcidas.

– Ajuda, Dee Dee, por favor.

As irmãs tinham os olhos da mãe, castanhos com raios verdes,

grandes e com pestanas pretas. Dee sentiu o reconhecimento familiar e

inevitável ao olhar para os olhos de Lulu. Sabia que era a versão inferior.

– Está bem – disse Dee. – Sua bebé.

Lulu soltou um guincho e bateu-lhe na cabeça, mas Dee endireitou

as tiras e calçou-lhe os chinelos na mesma. Fez-lhe uma careta e já eram

amigas outra vez. Dee levou-a até à fonte para beberem, mas Lulu não

gostou porque a água sabia a lápis.

– Vamos ler pensamentos – propôs Lulu.

Era a sua nova mania nesse verão; no ano anterior, fora póneis.

– Está bem – assentiu Dee.

Lulu afastou-se dez passos, longe o suficiente para não se ouvir um

sussurro. Mantendo os olhos fixos em Dee, Lulu tapou a boca com as

mãos e murmurou algo fervorosamente.


– O que foi que eu disse? – perguntou. – Ouviste alguma coisa?

Dee pensou um pouco.

– Acho que sim – disse lentamente.

– O quê, Dee Dee?

Lulu quase vibrava de antecipação.

– Foi tão estranho. Estava aqui parada, a meter-me na minha vida, e

então ouvi a tua voz a dizer-me ao ouvido: «Eu sou uma chata e a minha

irmã Dee é a maior».

– Não! Eu nunca disse isso!

– Estranho. Foi o que eu ouvi.

– Não foi nada disso! – Lulu estava à beira das lágrimas. – Tens de

fazer como deve ser, Dee Dee.

Dee abraçou-a. Sentiu a forma da irmã, os ossos pequenos, a pele

macia aquecida pelo Sol. A nuca exposta, o cabelo escuro curto como o

de um rapaz. Lulu detestava sentir calor na cabeça. Nesse verão, quisera

rapá-lo. A mãe ganhara essa batalha por pouco.

Dee arrependeu-se de a ter arreliado.

– Estava a ser pateta – desculpou-se. – Vamos tentar outra vez.

Dee tapou a boca com as mãos. Sentiu o hálito quente a encher-lhe a

palma das mãos.

– Gosto das jardineiras novas que comprei nos saldos – sussurrou. –

Mas só as posso usar no outono, porque está muito calor para andar de

jardineiras.

Dee imaginou as palavras a deslocarem-se até ao ouvido da irmã.

Tentou fazê-lo como deve ser.

– Estás a pensar na escola de dança – disse Lulu. – Sonhas com a

escola e achas que a mamã e o papá são maus.

Dee baixou as mãos.

– Não acho nada – disse baixinho.


– Eu li a tua mente – insistiu Lulu. – Sussurra outra coisa, Dee Dee.

Dee baixou a boca até à cavidade quente das mãos.

– Estás a pensar no Greg, da tua turma – disse Lulu. – Queres dar-lhe

um linguado.

– Eu sabia! – bradou Dee, furiosa. – Andas a ler o meu diário! Sua

bisbilhoteira!

Se Lulu falasse de Greg aos pais, eles ficariam zangados. Até podiam

reconsiderar a ida dela para o conservatório. Dee começava as aulas na

Universidade Pacific em setembro, mas tinha de mostrar que sabia

comportar-se. Isso queria dizer nada de rapazes, boas notas, chegar a

horas e tomar conta da irmãzinha.

– Não, Dee Dee – choramingou Lulu. – Não devias gritar comigo.

A voz dela subiu uma oitava e fazia-a soar muito mais pequena.

Sabia que fora longe de mais.

– Acabou. Vamos ter com os papás. Não sei porque perco tempo

contigo…

– Não quero voltar já! Ainda tenho sede e quero fazer festas ao

gatinho.

– Acabaste de beber água e não há aqui gato nenhum! – ralhou Dee.

Mas por um momento pensou ter visto uma cauda preta, como um

ponto de interrogação, a desaparecer atrás de uma lata do lixo.

Supostamente, os gatos pretos dão azar. Ou seria sorte?

Lulu fitou a irmã com os olhos arregalados.

– Não sejas má – implorou baixinho.

Caminharam de volta em silêncio. Lulu pôs a mão na mão da irmã e

Dee agarrou-a porque estavam muitas pessoas ali, mas segurou-a o mais

levemente que pôde e não devolveu o aperto. O rosto de Lulu contorcia-

se de arrependimento. A mágoa dela fez Dee sentir-se bem. Dee tinha o

coração aos saltos. Pensou no diário, no esconderijo na ventilação junto


ao chão. Ela voltava a apertar a grelha da ventilação sempre que punha o

diário no sítio. Lulu devia ter passado muito tempo à procura. Devia ter

tirado uma chave de fendas da caixa de ferramentas do pai para tirar a

grelha, ler o diário e voltar a aparafusar a grelha… Só de pensar nisso,

Dee tinha vontade de esbofetear a irmã, de a ver chorar. Se quisesse,

Lulu podia arruinar-lhe a vida.

Dee queria ir para o Conservatório da Pacific desde os 5 anos de

idade. Foram necessários 11 anos a implorar para os pais aceitarem. Era

uma escola mista, de rapazes e raparigas. Dee viveria numa residência

na universidade. A ansiedade dos pais era visível sempre que se falava

do assunto. Dee conseguia ver que quase desejavam que algo

acontecesse para impedir a sua ida. O comportamento dela tinha de ser

perfeito.

– Eu não digo nada, Dee Dee – disse Lulu. – Prometo. E não volto a

ler o teu diário.

Mas Dee abanou a cabeça. É claro que Lulu diria alguma coisa, mais

cedo ou mais tarde. Podia não ser de propósito, mas diria. Ela era assim.

Dee teria de enterrar o diário num caixote do lixo qualquer e dizer que

Lulu estava a inventar coisas. Só esperava que isso fosse suficiente.

Lulu sentou-se à sombra do guarda-sol aos pés da mãe. A mãe estava

a dormir com uma revista encostada ao peito. O pai estava sentado na

cadeira de pano às riscas a ler um livro e a esfregar os olhos. Também

estava cansado e cabeceava.

Lulu começou a cavar com a pá e o balde, de lábios cerrados.

– Encontrei uma pedra bonita – anunciou. – Queres ficar com ela,

Dee Dee?

Lulu estendeu a pedra na mão aberta, com um olhar ansioso.

Dee ignorou-a.

– Posso ir nadar? – perguntou ao pai.


– Meia hora – disse ele. – Se demorares mais, chamo a polícia.

– Está bem – disse Dee.

Quando lhe virou costas, revirou os olhos, por uma questão de

princípio, mas estava espantada. Ele devia estar exausto. Normalmente

não a deixaria afastar-se sozinha.

– Alto aí, Delilah! – ouviu a mãe a chamar. – Leva a tua irmã

contigo.

Dee estava a uma distância plausível e continuou a andar, fingindo

não ter ouvido. Vagueou pelo labirinto colorido de toalhas, guarda-sóis e

para-ventos. Não sabia do que estava à procura, ou de quem, apenas que

era importante ficar sozinha para as coisas poderem acontecer.

Tentou atravessar a multidão como se fosse uma dança. Punha uma

razão de ser por trás de cada passo que dava. Dee tivera o papel da

lagarta em Alice no País das Maravilhas no final do semestre na aula de

ballet. Ainda se lembrava dos passos, dos chaînés, dos arabescos e dos

développés a tornarem-se algo diferente assim que se sentiu como uma

lagarta. Agora, cada passo que dava era uma dança em direção a um

grande romance. Imaginou as pessoas (os rapazes) a verem-na passar,

apesar de não ver ninguém a olhar para ela. Imaginou os seus

pensamentos. Como o seu cabelo era longo e brilhante, como era

diferente das outras raparigas, como era misteriosa, como se tivesse um

segredo. Puxou pela imaginação, para não dar espaço aos outros

pensamentos – como o seu rabo era grande de mais e o queixo tinha

uma forma estranha.

Abriu caminho até ao lago e sentou-se na areia molhada, na linha de

água. Na parte menos funda, estava uma frota de bebés com braçadeiras.

Mais longe, perto das boias, o lago estava parado, mostrando a linha das

árvores e o horizonte num reflexo escuro de cabeça para baixo. Dee

conseguia imaginar monstros lá longe, à espreita por baixo da superfície


esverdeada. O ar cheirava a hambúrgueres grelhados e Dee fez uma cara

de nojo. A cena dela naquele momento era desdenhar da comida. Parecia

importante manter-se no papel, mesmo que fosse só para si mesma. As

bailarinas não comem hambúrgueres.

– Olá.

Alguém se erguia acima dela, lançando uma sombra comprida, até

que se sentou na areia e assumiu um tamanho humano. Era um rapaz.

Era magro e loiro. Dee conseguia ver vestígios de protetor solar na pele

pálida.

– Olá – respondeu Dee.

Ele devia ter pelo menos 19 anos. Dee reparou subitamente que tinha

as palmas das mãos a suar e o coração a bater nervosamente. De que

poderiam falar?

– Chamo-me Trevor – apresentou-se o rapaz, estendendo a mão para

a cumprimentar, o que era um pouco parolo e a fez sorrir.

Ao mesmo tempo, também se sentiu aliviada, porque isso tornava-o

familiar – o que a mãe dela chamaria «bem-educado».

Dee ergueu um sobrolho, algo que aprendera a fazer recentemente.

– Tudo bem? – cumprimentou, sem lhe apertar a mão.

Trevor corou.

– Tudo – respondeu, limpando a mão aos calções, como se essa

sempre tivesse sido a sua intenção. – Estás aqui com a tua família?

Dee encolheu os ombros.

– Consegui livrar-me deles.

Ele sorriu, como se gostasse da piada.

– Onde estão?

– Lá em cima, junto ao nadador-salvador – apontou Dee. – Estavam

a dormir e eu estava aborrecida.

– Os teus pais?
– E uma irmã mais nova.

– Que idade tem ela?

– Seis anos – disse Dee. Não queria continuar a falar da família. –

Em que escola andas?

– Universidade de Washington.

– Fixe. – Então ele andava na universidade. – Eu ando na Pacific.

Era quase verdade.

– Fixe – respondeu, e Dee viu o interesse a crescer nos olhos dele.

Dee descobrira que os rapazes gostavam de bailarinas. Eram

femininas e misteriosas.

– Queres comer um gelado? – sugeriu Trevor.

Dee pensou, encolheu os ombros, levantou-se e sacudiu a areia do

corpo.

– Hã, tens aí uma coisa – disse Trevor ao levantar-se. – Na parte de

trás dos calções.

Dee torceu a cabeça para a olhar. Tinha uma mancha escura nos

calções de ganga branca.

– Oh, devo ter-me sentado em cima de alguma coisa – disse Dee,

tirando a T-shirt e atando-a à cintura. – Vai andando. Eu vou lá ter.

Dee apressou-se até à casa de banho das mulheres, onde havia uma

fila. As pessoas levavam crianças pequenas com elas para os cubículos,

às vezes três de uma só vez, e todas precisavam de usar a sanita. Estava a

demorar mesmo muito. Dee conseguia sentir tudo a piorar enquanto

esperava. Sentia um fio de sangue a escorrer-lhe por dentro da coxa.

Pegando numa mão-cheia de toalhas de papel, tentou limpar a perna. Por

fim, dirigiu-se à mulher encorpada e suada à sua frente na fila.

– Hã… por acaso não tem um penso higiénico?

A mulher olhou para ela fixamente.

– Há uma máquina. Ali na parede.


Dee saiu da fila e foi até à máquina. Só aceitava moedas de 25

cêntimos. Dee tinha um dólar e algumas moedas pequenas.

– Alguém me pode trocar um dólar?

– Onde está a tua mãe? Devia estar a ajudar-te – disse uma mulher

com um bebé vermelhusco ao colo.

– Alguém tem trocos, por favor?

Dee assumiu um tom sarcástico e um pouco zangado, para que

ninguém visse como estava literalmente à beira das lágrimas.

Uma senhora com cabelo loiro curto deu-lhe quatro moedas de 25

cêntimos, mas a máquina estava avariada e as moedas caíam para a

gaveta dos trocos uma vez, e outra, e outra. Contendo as lágrimas, Dee

devolveu as moedas à senhora.

Limpou-se o melhor que conseguiu. As mulheres assistiam enquanto

ela lavava os calções no lavatório. Credo, estava apenas de fato de banho,

como toda a gente. Manteve a T-shirt atada à cintura. Escondia tudo, por

isso não havia problema. Dee voltou para a fila e esperou.

Quando chegou ao sítio dos gelados, Trevor não estava lá. Dee

esperou uns minutos, mas sabia que ele já não vinha. Talvez tivesse

demorado demasiado na casa de banho e ele tivesse desistido, mas o

mais provável era não querer pagar um gelado a uma miúda que nem

sequer sabia quando lhe vinha o período.

Dee deixou a T-shirt na areia e entrou para o lago, para lá dos bebés

de braçadeiras, com água pelos joelhos, depois pelas coxas, depois pela

cintura. Sentiu-se logo segura… escondida. Naquele dia quente, a água

fria do lago era uma espécie de mergulho súbito, um choque que lhe

mandava calafrios pela espinha. Dee percorreu com a ponta dos dedos o

espelho ondulado da superfície, a pele da água. O lago movia-se

lentamente à sua volta como um animal. Dee avançou mais, até a água

lhe dar pelo queixo e a ondulação suave ameaçar erguer-lhe os pés do


fundo pedregoso. As cãibras eram quase agradáveis, agora, com a água

fria, e o sol, e o tumulto distante da multidão de verão na margem, o

som alcançando-a tetricamente sobre a água. De repente, não importava

que o rapaz não tivesse voltado. O corpo dela era companhia suficiente.

Ultimamente, sentia-se fascinada pelos humores do corpo. Comportava-

se de formas novas e surpreendentes, como um amigo que ainda não

conhecia bem. A dor e o prazer tinham rostos novos. Ela era uma

história contada a cada minuto. Dee fechou os olhos, entregue às

carícias frias do lago. Tudo acontecia agora.

Algo macio lhe tocou na cara. Uma e outra vez, como um empurrão

divertido. Dee abriu os olhos. As escamas cinzentas e pretas encheram-

lhe a visão. Susteve a respiração. O corpo da cobra estava ligeiramente

abaixo da superfície, mas a cabeça erguia-se um pouco acima da água,

como um cisne. A cobra circundou-a lenta e curiosamente. Tocou-lhe no

braço ao nadar. Provavelmente fora atraída pelo calor corporal. De que

tipo era? Dee forçou o seu cérebro agitado a pensar. Parecia uma víbora,

mas não achava que elas existissem por aqueles lados. Outra ideia

tentava esgueirar-se pelos seus pensamentos, e Dee teve de fazer um

esforço para a manter afastada. Cascavel. Foi então que percebeu que

mais duas cabeças se erguiam da água à sua esquerda, e depois três ou

quatro. Era um grupo, talvez uma família. Vários miúdos, jovens adultos

e um adulto crescido com um largo sorriso sem lábios na cabeça

ancestral. Dee não conseguia dizer quantas eram, o coração parara-lhe

de bater. Uma cabeça larga deslizou suavemente para a cara dela. Dee

fechou os olhos e pensou, É agora, é o fim. Esperou pelas presas afiadas,

pelo veneno, pela boca a fechar-se sobre ela. Pensou sentir o beijo leve

de uma língua no seu queixo. A vida troava-lhe nos ouvidos. Tentou

manter-se muito quieta na ondulação, como se não estivesse viva, como

se fosse pedra. Algo lhe tocou no ombro numa longa carícia.


Dee não sabia há quanto tempo estava ali, o tempo expandia-se e

contraía-se. Quando finalmente abriu os olhos, a água estava lisa e vazia.

Talvez tivessem ido embora. Ou talvez estivessem a contorcer-se à sua

volta fora da vista, debaixo de água. Começou a tremer

descontroladamente, com a cabeça quente por causa do sol. Perdeu força

nas pernas e afundou a cabeça, voltando à tona com um sabor metálico

na boca. Virou-se e caminhou para a margem, detida pela água que a

abrandava a um passo inacreditavelmente lento. Ainda as conseguia

sentir a enroscarem-se-lhe nos braços e nas pernas.

Dee chegou à margem. Saiu da água e sentiu o peso do corpo a

regressar. Tropeçou e caiu. A areia dava-lhe uma sensação agradável.

Enroscou-se e começou a chorar, sem ninguém ver, no meio da correria

das crianças suburbanas.

Regressou lentamente pelo meio das toalhas e dos guarda-sóis. O ar

estava quente e a areia prendia-lhe os pés. Não trazia relógio, mas sabia

que demorara mais de meia hora. Só queria o refúgio da família. A mãe

estremeceria, aos gritos, e acolheria Dee nos seus braços. Lulu poria um

ar assustado e excitado e faria montes de perguntas, Quantas cobras

eram? De que tipo? E o pai ficaria furioso, perguntaria que diabo

andavam a fazer os nadadores-salvadores, e Dee aconchegar-se-ia no

calor da sua raiva, sabendo que gostavam dela. Tornar-se-ia uma história

que todos cochichariam de vez em quando. Lembram-se daquela vez que

a Dee Dee foi atacada por cobras? E então a história viveria fora dela e

não no âmago do seu ser.

Até ao longe, Dee conseguia ver que os pais estavam a passar-se. A

mãe estava a chorar e o pai estava aos gritos. Estavam lá dois nadadores-

salvadores e outros homens que falavam para os seus rádios. Dee

estremeceu. Que vergonha. Só estava um bocadinho atrasada, por amor

de Deus.
Quando se aproximou, ouviu o pai a falar.

– Eu adormeci por um minuto. Um minuto.

Dee caminhou até à toalha e sentou-se à sombra.

– Mamã? Desculpa…

– Cala-te, Dee, por favor. O teu pai está a ver se esta gente faz

alguma coisa.

A boca da mãe tremia. A maquilhagem escorria-lhe pela cara como

sangue preto.

– Lulu! – gritou a mãe, levantando-se subitamente.

As pessoas em redor olharam.

– Lulu! – voltou a gritar a mãe.

– Ela tem cabelo curto – repetia o pai. – As pessoas costumam

pensar que ela é um rapaz. Ela não o deixa crescer.

Dee percebeu duas coisas: primeiro, os pais não tinham reparado

quanto tempo ela estivera ausente; e segundo, Lulu não estava ali. Com

um suspiro, prendeu o cabelo atrás da orelha. As cãibras estavam piores.

Sentia-se agitada. Lulu estava a ser dramática outra vez. Agora ninguém

a reconfortaria, ninguém lhe tiraria a história das cobras.

Com o decorrer da tarde longa e quente, chegaram mais pessoas, e

polícias a sério.

– Laura Walters, diminutivo Lulu – diziam todos para os rádios.

Depois, repetiam-no para todas as pessoas na praia, através do

altifalante grande no poste da banca de cachorros-quentes.

«Laura Walters, 6 anos de idade, cabelo castanho, olhos castanhos.

Veste fato de banho, calções de ganga e top vermelho.»

Foi só ao anoitecer, quando o parque de estacionamento começou a

esvaziar, que Dee percebeu que não iam encontrar Lulu nesse dia.

Demorou ainda mais tempo a perceber que não a encontrariam nunca.

Ela partira sabe-se lá para onde, sabe-se lá com quem, e não regressara.
Algumas semanas mais tarde, a quilómetros de distância, uma

família de Connecticut encontrou um chinelo branco entre as suas coisas

de praia. Ninguém sabia dizer como lá chegara ou sequer que era de

Lulu. Fora para a máquina de lavar com o resto das roupas.

Lulu teria 17 anos hoje. Tem, corrigiu-se Dee. Lulu tem 17 anos.

A última coisa que Lulu disse a Dee foi: Encontrei uma pedra

bonita. Havia dias em que Dee só conseguia pensar nessa pedra. Que

aspeto teria? Seria lisa ou áspera, cinzenta ou preta? Seria angular e

bicuda ou encaixaria na curva redonda da palma da mão de Lulu? Dee

nunca saberia, porque se levantara e afastara-se sem olhar.

A família Walters ficou em Washington por mais um mês, à espera

de notícias. Mas não havia nada que pudessem fazer e o patrão do pai

começava a perder a paciência. Por isso, regressaram a Portland. A casa

era estranha sem Lulu. Dee nunca se lembrava de pôr três lugares à

mesa, e não quatro, o que fazia sempre a mãe chorar.

A mãe partiu pouco depois. Dee sabia que a mãe não conseguia

olhar para ela, a cópia imperfeita da filha desaparecida. A mãe tirou o

dinheiro todo do banco e foi embora. Dee não a censurava, mas o pai era

de outra opinião. Então aconteceu a outra coisa.

Na noite anterior, a neve caiu como cinza do céu silencioso. O pai

estava a montar um modelo de avião na sala de estar. Dee conseguia

cheirar a cola no andar de cima. Ele ficava sentado durante horas, até

ficar com os olhos vermelhos por causa dos vapores. Não se deitava até

a noite estar quase a acabar. Amanhã falo com ele, pensou Dee. Tem de

ser.
Estava um período atrasada para o conservatório, mas podia

recuperar. Não tinham muito dinheiro, mas ela podia arranjar um

emprego, não podia? Afinal, o pai não precisava dela para montar

modelos de aviões e fitar a escuridão. Dee respirou fundo para afastar a

culpa que a atormentava. O ar estava pesado com os odores misturados

de cola e desespero. Ela pensou, Isto não pode ser a minha vida. Isto é

uma vida fantasma. As lágrimas traçavam-lhe linhas escaldantes pela

cara.

De manhã, Dee fez o café especial para levar ao pai na cama. O café

especial era feito na cafeteira fina de vidro que tinham trazido de São

Francisco e demorava muito tempo a pingar. Era amargo e grumoso

como a lama do rio, e o pai adorava. Talvez ele depositasse todo o seu

amor na cafeteira porque as coisas maiores eram demasiado dolorosas.

Dee detestava a cafeteira porque lhe lembrava de quando estavam todos

juntos. Verteu a água a ferver sobre os grãos de café. O aroma castanho-

escuro encheu a cozinha. Nessa manhã ia falar com ele; ia mesmo.

Dee arregaçou a manga e deixou cair um pouco de água a ferver

sobre o pulso, arquejando brevemente. Observou a pulseira de bolhas

vermelhas a formar-se na pele. Isso ajudava. Esticou a manga para tapar

a queimadura e acabou de preparar o pequeno-almoço. Ia dizer-lhe hoje.

Ele ia ficar zangado, ia ficar magoado. Mas ela não podia ficar calada

por muito mais. Pedra bonita.

Entrou no quarto do pai e pousou o tabuleiro na mesa. Pensou que o

poria de bom humor se o acordasse com o aroma do café. Abriu as

cortinas que davam para o mundo branco. Casas, caixas de correio,

carros… tudo estava coberto de neve branca. Ela virou-se para dizer:

Olha só como nevou durante a noite! E então viu-o. O corpo estava hirto

na cama, quieto à luz refletida da neve. O rosto tinha uma expressão que
ela não identificou imediatamente. Então, reconheceu o ar de boas-

vindas.

Foi uma trombose, disseram-lhe. Não disseram que foi causada pelo

desaparecimento de Lulu e pela fuga da mãe. Não era preciso. Por isso, a

pessoa que levou Lulu também lhe levou a mãe e depois o pai. Dee

também foi levada, pois quanto dela restou, depois de tudo aquilo?

Sente-se como um quarto enorme, vazio e às escuras.

Não foi para a escola de ballet porque não tinha dinheiro. Também

não acabou o ensino secundário. Arranjou um emprego numa drogaria,

mas o seu verdadeiro trabalho era encontrar a pessoa que levara a irmã.

Todos os homens que tinham estado no lago nesse dia, todos os olhares,

a lista de suspeitos. Agora eram eles o seu trabalho.

Ligava a Karen, a cansada todas as semanas, às vezes mais. Karen, a

cansada era a detetive encarregada do caso de Lulu e parecia sempre

exausta e frenética. Tinha um rosto expressivo, que mostrava toda a dor

que testemunhara, todas as palmadas de conforto que dera, todos os

lenços de papel que oferecera, todos os rostos que tinham chorado

contra o dela.

Ela e Dee foram amigas durante algum tempo. A detetive tinha pena

de Dee, uma rapariga jovem sem ninguém. Trata-me por Karen. Contava

coisas a Dee quando ela lhe ligava. Agora só dizia «Estamos a trabalhar

no caso».
Ted

Nem sempre consigo prever, mas desta vez tenho quase a certeza de

que me preparo para fazer algo importante. Vou arranjar uma amiga.

Ultimamente tenho-me ausentado cada vez mais. Quem vai tomar conta

de Lauren e de Olivia se um dia eu não voltar? Sou só uma pessoa e isso

não chega.

A Mamã levou-me à floresta três vezes. Da última vez, mandou-me

voltar para casa sozinho. Sim, ainda a sinto debaixo das folhas da copa

escura. Ela está nas manchas de luz que cobrem o solo da floresta. E

sim, às vezes está no armário por baixo da banca, mas, na verdade, estou

sozinho desde esse dia.

Digo a mim mesmo que é por causa de Lauren e de Olivia, e é

verdade. Mas também é porque não quero continuar sozinho.

Escolho uma altura em que Lauren não está por cá. Se ela soubesse o

que estou a fazer… bem, não seria bom. Abro o cadeado do armário na

sala de estar onde guardo o portátil. O ecrã é um quadrado de luz

fantasmagórica na sala escura, como uma porta para os mortos.

Encontrar uma página é fácil. Há centenas. Mas o que vem a seguir?

Percorro a página. As caras passam depressa, olhos e nomes e idades,

pequenos vislumbres de existência. Penso bem no que preciso, no que é

melhor para Lauren. Dizem que as mulheres são mais carinhosas do que

os homens. Por isso, é melhor ser uma mulher. Mas tem de ser uma

mulher muito especial, que entenda a nossa situação. Algumas parecem

simpáticas. Esta aqui, 38 anos, gosta de surf. Os olhos dela são pedras

azuis, tão azuis como a água atrás de si, e bondosos. Tem a pele um

pouco gasta pelo sol e pelo mar. O cabelo é da cor da manteiga, os

dentes são brancos e direitos. Tem um sorriso feliz. Parece alguém que
se preocupa com os outros. A seguinte é de todas as cores da floresta.

Castanho, verde, preto. As roupas são bonitas e colam-se ao corpo.

Trabalha em relações-públicas. O batom dela parece uma mancha de

óleo vermelho.

Tirei os espelhos da casa há alguns anos porque deixam Lauren

perturbada. Mas não preciso de um espelho para saber o meu aspeto. As

palavras dela ainda me ferem. Gordo horroroso. A minha barriga é um

saco de borracha. Descai do meu corpo como se estivesse presa por

correias. Estou a ficar cada vez maior. Nem tenho noção. Deito coisas ao

chão, choco contra as portas, não estou habituado ao espaço que ocupo

no mundo. Como não saio muito, tenho a pele pálida. Agora, Lauren

tem o hábito de me arrancar o cabelo às mãos-cheias e veem-se pedaços

reluzentes de couro cabeludo no meio do castanho. Não tenho lâminas

nem tesouras em casa e a barba cai-me para o peito. Por algum motivo, é

de uma cor diferente do cabelo, ruiva e espessa. Parece uma barba falsa,

como algo que um ator usaria para fazer de pirata. As minhas mãos e a

minha cara estão cobertas de arranhões e tenho as unhas roídas até ao

sabugo. Não tenho coragem de olhar para as unhas dos pés há algum

tempo. O resto de mim… bom, tento nem sequer pensar nisso.

Ultimamente, tenho um odor terroso, a cogumelos. O meu corpo está a

virar-se contra mim.

Continuo a descer pela página. Algures aqui deve haver uma amiga.

As mulheres olham do ecrã, com peles luzidias e olhos brilhantes. Têm

interesses divertidos e piadas atrevidas nos perfis. Tento pensar numa

maneira de me descrever. Pai solteiro, escrevo. Adora o ar livre.

Obedece aos deuses das árvores brancas… Não. Quem é que quero

enganar?

Na semana passada, fui à loja de conveniência comprar cerveja.

Senti-me tonto e sentei-me no degrau diante da loja, só por um segundo.


Talvez fosse o velho hábito, mas também estava cansado. Estou sempre

cansado. Quando abri os olhos, um tipo estava a pôr moedas aos meus

pés. Eu rugi como um urso e ele deu um salto de susto e fugiu. Fiquei

com as moedas. Não me consigo imaginar na mesma divisão que estas

mulheres.

Estou quase a desligar o portátil quando ouço algo a mexer. Os

cabelos na minha nuca eriçam-se devagar. Não desligo o computador

porque não quero ficar sozinho no escuro. Tenho a sensação de olhares a

percorrerem-me o crânio. A mobília fica quieta nas sombras nada

familiares, à ténue luz azul do ecrã. Não consigo livrar-me da sensação

de que me estão a observar.

Sinto um nó na barriga. Onde estou eu exatamente? Levanto-me em

silêncio para ver. O tapete azul e feio está ali, certo. Em cima da lareira,

a bailarina está tombada, como morta, nas ruínas da caixa de música. Já

sei onde estou. Mas quem mais está aqui?

– Lauren? – A minha voz é um sussurro. – És tu?

Segue-se o silêncio. Estúpido, sei bem que ela não está cá.

– Olivia?

Mas não, não pode ser.

A mão da Mamã é fria no meu pescoço, a voz dela no meu ouvido.

Tens de os mudar de sítio, diz ela. Não deixes ninguém descobrir o que

és.

– Não quero – digo-lhe. Até aos meus ouvidos soo lamuriento como

Lauren. – Eles deixam-me triste e assustado. Não me obrigues.

O vestido da Mamã sussurra, o perfume dela dissipa-se. Mas não foi

embora… isso nunca. Talvez esteja a passar tempo numa das memórias

que jazem pela casa, em mantos profundos como neve. Talvez esteja

aninhada no armário por baixo da banca, onde guardamos um garrafão


grande de vinagre. Detesto quando a encontro lá, a sorrir na escuridão,

com tecido azul a pairar à sua volta.

A lata fresca está tão fria que quase se cola à palma da minha mão.

O assobio e o estalo que faz ao abrir soam alto, reconfortante na casa

silenciosa. Continuo a percorrer a página, a olhar para caras de

mulheres, mas a voz da Mamã está a cantar na minha cabeça, não

adianta. Vou procurar a pá. Está na hora de ir à clareira.

Estou de volta. A gravar isto, no caso de me esquecer de como

magoei o braço. Às vezes não me lembro de certas coisas e fico

assustado.

Acordei a ouvir um zumbido. Algo caminhava nos meus lábios. A

manhã estava cheia de nuvens de moscas, acabadas de eclodir. Parecia

um sonho, mas estava acordado. O sol do começo de verão brilhava nas

teias estendidas entre as árvores. Fez-me pensar naquele poema. «Vem

até à minha teia», disse a aranha para a mosca. Julgo que devemos sentir

pena da mosca, mas, na verdade, ninguém gosta de moscas.

O meu braço estava torcido num ângulo estranho. Acho que caí.

Tinha um sabor a ferro na língua. Devo ter mordido com força

enquanto estava desmaiado. Cuspi o sangue ao pé da sorveira. Uma

oferta aos pássaros, que cantavam nos ramos acima. Sangue por

sangue. Não voltaram ao quintal desde a matança. Os pássaros contam

estas coisas uns aos outros.

Consegui voltar para casa. Foi tão bom ouvir as fechaduras a

trancar. São e salvo.

A minha memória voltou lentamente. Estava a tentar mudar os

deuses. Já estão no mesmo local de repouso há mais de um ano. Não

deviam ficar no mesmo sítio mais do que uns meses… depois disso,

começam a atrair pessoas. Por isso, ia a caminho para os desenterrar.


Mas a floresta tem os seus próprios desígnios, especialmente à noite.

Devia ter-me lembrado disso. O solo estremeceu, as raízes remexeram-

se sob os meus pés. Ou talvez eu estivesse demasiado bêbedo. Seja como

for, caí. A última coisa de que me lembro é do estalido que o meu ombro

fez quando bati na terra.

A minha cara está arranhada e o meu braço tem flores negras a todo

o comprimento. Não fica direito. Fiz uma ligadura com uma T-shirt

velha. Não me parece partido. Quando me magoo, o corpo e o cérebro

ficam estranhos, mesmo quando não sinto a dor. Os meus pensamentos

espalham-se por todo o lado.

Quando desci as escadas hoje, Olivia não me deixava em paz. Devia

estar curiosa. Lambeu-me a cara. Aquela gata gosta mesmo do sabor do

sangue.
Olivia

– Vem cá, gatinha.

Ted está encostado à porta, escuro contra a luz. Há algo errado na

postura dele. Quase cai para dentro da casa e vira-se para fechar a porta,

com as mãos a tremer. Precisa de algumas tentativas para trancar todas

as fechaduras.

– Voltei a ter um daqueles, gatinha – diz.

O braço dele está dobrado num ângulo estranho. Tosse e um fio de

sangue dança pelo ar, pousa no tapete cor de laranja e fica lá, uma gota

escura.

– Preciso de dormir – diz, subindo as escadas.

Lambo a mancha escura no tapete, sentindo o gosto ténue a sangue.

Uuuuuiiiiiiiii, uuuuuuiii. O guincho voltou.

Hoje, quando salto para o meu ponto de vigia, a gata riscada já lá

está, sentada na relva por cortar junto ao passeio. Vê-la faz arder o meu

coração. Ronrono e bato no vidro com uma pata. O pelo dela está todo

enfunado por causa do frio. Parece ter o dobro do tamanho. Ela não me

liga, cheira delicadamente o solo à volta do carvalho no jardim da

frente, um pedaço de gelo no passeio. E então, por fim, olha para mim.

Os nossos olhares encontram-se. É glorioso, podia afogar-me nos seus

olhos. Acho que ela está à espera de que eu quebre o silêncio. É claro

que agora não me ocorre uma única coisa para dizer. Por isso, vira-me

costas e é uma agonia, mas ainda fica pior. O gato branco vem a andar

pelo passeio. Aquele grande, com o guizo na coleira. Fala com ela e

tenta esfregar focinhos com ela. Estou a bufar tanto que mais pareço

uma chaleira.
Ele está a tentar deixar o cheiro dele nela, mas a minha gata não é

parva. Arqueia as costas e recua delicadamente para longe da vista.

Quase choro de alívio, que rapidamente se torna tristeza porque ela foi

embora. De cada vez, a dor é cortante e incandescente.

Deixem-me dizer algumas coisas sobre gatos brancos. São

manhosos, são maus e são pouco espertos. Tenho noção de que não

devo dizer coisas destas, que não é POLITICAMENTE CORRETO, mas é o

raio da verdade e toda a gente sabe isso.

Lembro-me de nascer, é claro, já disse isso. Mas o meu verdadeiro

nascimento aconteceu depois. Querem conhecer O SENHOR? Ele quer

conhecer-vos. Ah, ah, estou a brincar, Ele não deve querer conhecer-

vos. Na verdade, O SENHOR é bastante exigente. Não se mostra a

qualquer um. Quando Ele nos escolhe, uau, não há como enganar.

Foi no dia em que aprendi o meu propósito. Todos os gatos têm um,

tal como todos os gatos podem ficar invisíveis e ler mentes (somos

especialmente bons a ler mentes).

Nem sempre me senti agradecida a Ted por me salvar. Durante

algum tempo, não queria mesmo ser uma gata de interior. Quando Ted

me trouxe para casa, sentia-me sozinha e chorava muito. Tinha

saudades dos meus irmãos gatinhos que tinham morrido ao meu lado

na chuva. Tinha saudades da Mamã-Gata, do seu ronronar alto e do

corpo quente. Mal tivemos tempo de nos conhecermos. Entendia que

estavam mortos porque assisti à morte deles e isso deixou-me uma

tristeza pesada como um rochedo. Ao mesmo tempo, sabia que não

estavam mortos. Estava convencida de que, se conseguisse ir lá para

fora, conseguiria encontrá-los.

Procurei e procurei maneira de escapar, mas não havia nenhuma.

Houve vezes em que tentei correr para a porta quando ela se abria. Não
sou boa a fazer planos. Ted agarrava-me de uma forma acolhedora.

Então, íamos para o sofá e ele fazia-me festas ou brincávamos com um

fio de lã, até eu parar de miar e chorar.

– Há pessoas más lá fora que te fariam mal ou tentariam levar-te

para longe de mim – dizia ele. – Não queres ficar aqui comigo, gatinha?

E eu queria. Por isso, esquecia o assunto durante algum tempo. Mas

a felicidade acabava por passar e depois ficava zangada comigo por

ceder à vontade de Ted, e a tristeza voltava a consumir-me.

Por isso, decidi que esse era o dia, a sério. Planeei tudo, mas o

timing tinha de ser perfeito. Tudo dependia de todos os teds se

comportarem como sempre se tinham comportado. Já reparara que

normalmente era assim.

A questão é que eu sei muito do que se passa no exterior, mesmo que

não aconteça diante do meu posto de vigia. Posso não ver, mas consigo

ouvir e cheirar. Por isso, sei que, a certa hora do dia, o ted que cheira a

couro e pele limpa passeia pela rua com o seu grande bruaá. Costuma

parar para lhe fazer festas diante da nossa casa. Não sei o aspeto dele

porque nunca o vi com os meus olhos, mas, a julgar pelo cheiro, é muito

feio. O pivete dele é como uma meia velha cheia de caca. Ouço sempre

o bruaá a torcer-se e a ganir, o chocalhar da coleira quando abana o

rabo. As almas dos gatos vivem nas suas caudas e os teds guardam o

seu ser atrás dos olhos grandes e húmidos. Mas os bruaás guardam os

seus sentimentos mais profundos no rabo.

O ted fala com ele como se ele o entendesse.

– Ei, Campeão. És muito lindo? Sim, pois és, pois és, sim, seu

bronco do caraças.

Mas a maioria das vezes não diz «caraças». Ouço o bruaá a babar-

se, cheiro o amor que lhe emana da pele. Isso só prova o que diz o ted.

Os bruaás são mesmo uns broncos do… hum, hum. O Campeão só


gostava de me matar. A velha sabedoria disse-me isso, o tipo de

sabedoria que está nos nossos corpos. Os teds não têm muita dessa

sabedoria, mas os gatos têm toneladas.

Esperei até saber o timing de cor. Ted gosta de comprar doces e

cerveja a uma certa hora do dia. Quando vem a subir os degraus, o

bruaá e o ted costumam passar diante da casa. Às vezes, o ted diz olá e

Ted resmunga uma resposta.

Hoje era o dia e o meu coração vibrava como um beija-flor, mas

sabia que ia funcionar, tinha a certeza.

Nessa altura, eu não era muito grande. Ainda conseguia caminhar

por baixo do sofá e a ponta das minhas orelhas nem sequer tocava no

fundo. Por isso, escondi-me no bengaleiro na entrada. Que coisa mais

inútil! Quantas bengalas pensa Ted que tem? Mas é um bom

esconderijo.

Ouço os passos de Ted, os estalidos de pequenos pedaços do mundo

a quebrarem debaixo da bota dele. Começara cedo, dava para ver. Isso

também era bom. Ted ficaria mais lento. (Os passos dele têm um ritmo

arrastado quando bebe. É quase como uma dança muito simples…

talvez uma quadrilha.) Estou agachada, a minha cauda abanava com

força. O cordão estendia-se pelo ar atrás de mim. Nesse dia, era de um

laranja-escuro e crepitava quando me movia, como fogo numa lareira.

Preparei-me para o salto. Ted cantou algo entre dentes e as chaves

rodaram nas várias fechaduras. Conseguia cheirar o exterior, o seu

brilho terroso. Conseguia cheirar o bruaá, o hálito a ovos rachados.

Uma linha de luz quebrou a escuridão da entrada quando a porta

começou a abrir. Corri o mais depressa que as minhas patas pequenas

me permitiam. O meu plano era ir direita para o carvalho no jardim da

frente e, depois disso… bom… seria livre.


Parei a derrapar na porta, afogada no branco ofuscante. Não

conseguia ver nada. O mundo era uma faixa estreita de luz agonizante.

Percebi que vivera a maior parte da minha vida na penumbra da casa e

os meus olhos não aguentavam a luz. Soltei um miado e fechei os olhos.

Sentia um estranho ar gelado a tocar-me no focinho. Será que conseguia

fazer aquilo se fechasse os olhos?

A porta abriu-se mais. O ar deve ter levado o meu cheiro para o

mundo, o bruaá grande explodiu em latidos. Cheirei a excitação que

vinha dele, a antecipação da morte. Ouvi o tilintar maníaco da coleira.

Calculei que o bruaá estava a esticar a trela e saltar para os degraus.

Tudo abrandou, quase ao ponto da imobilidade. Do meio do ofuscante

fogo branco, senti a morte a aproximar-se.

Percebi que o meu plano era horrível. Nunca alcançaria a árvore.

Nem sequer conseguia abrir os olhos para ver a árvore. O bruaá estava

perto, conseguia cheirar-lhe a boca, aberta como uma caverna suja e

comprida, os dentes podres. Senti um círculo de fogo a envolver-me o

pescoço. Era o cordão, a crepitar de calor. O cordão queimava e

puxava-me para a segurança das sombras da casa, rápido como uma

chicotada. Ouvi Ted a fechar a porta com força.

Abri os olhos. Estava de novo dentro de casa… a salvo. Lá fora, Ted

estava aos gritos. O bruaá gania e ladrava, encostando a cara ao fundo

da porta. O pivete dele passava por baixo, estava por todo o lado.

Fiquei horrorizada comigo mesma. Como é que me passou pela cabeça

que aquilo era boa ideia? Senti como era pequena, cada osso fino do

meu corpo, a delicadeza das minhas veias e do meu pelo, a beleza dos

meus olhos. Como pude pensar em arriscar tudo isso num mundo onde

um bruaá podia comer-me numa dentada só?

– Ei – gritou Ted. – Controle o seu cão.


Ele estava zangado. É melhor não se meterem com Ted quando está

zangado.

Os latidos e o pivete recuaram ligeiramente. O ted deve ter puxado o

bruaá para longe.

– A minha filha está lá dentro – disse Ted. – Ficou muito assustada.

Devia ter mais cuidado.

– Desculpe – disse o ted. – Ele gosta de brincar.

– Segure-o com a trela.

O cheiro do bruaá afastou-se, misturou-se com o cheiro distante da

floresta. Então, desapareceu. Ted entrou depressa. As fechaduras

fizeram tum, tum, tum. Fiquei tão feliz por as ouvir.

– Pobre gatinha. Apanhaste um susto.

Subi para as mãos de Ted. Senti o cordão de fogo a expandir para

nos envolver num útero de luz flamejante.

– É por isso que tens de ficar dentro de casa. Lá fora é perigoso.

Desculpa, disse eu a Ted. Eu não sabia.

Ele não me conseguia entender, é claro, mas achei importante dizê-

lo na mesma. O calor rodeava-nos. Éramos uma bola de fogo amarelo e

quente.

Foi então que O vi. Havia uma terceira pessoa connosco, no coração

da chama. Não Se parecia com nada que eu já tivesse visto. Parecia-Se

com tudo. O Seu rosto mudava a cada momento. Parecia um falcão de

bico amarelo, e depois uma folha vermelha, depois um mosquito. Soube

imediatamente que a minha imagem também estava ali, algures na

multiplicidade. Não a queria ver. Percebi que isso seria a última coisa

que veria. Quando der o último suspiro, Ele vai revelar-Se, e o rosto que

Ele vai usar vai ser o meu.

O teu lugar é aqui, disse O SENHOR para mim. Salvei-te para um

propósito especial. Têm de se ajudar um ao outro, tu e ele.


Eu percebo, disse eu. Fazia todo o sentido. Ted precisa de muita

ajuda. Ele está uma lástima.

Desde então, temos sido uma boa equipa. Mantemo-nos um ao outro

em segurança. Agora estou com fome, vou parar.


Dee

Os olhos do homem rico são de um azul profundo.

– Delilah – diz ele. – Que bom conhecê-la, finalmente.

O cabelo dele é de um branco deslumbrante, preso num rabo de

cavalo; a camisa e as calças largas são de linho. A varanda ergue-se

acima da copa das árvores, rodeando a casa elegante, feita de cedro

vermelho e vidro. É o tipo de casa onde Dee gostaria de viver. O ar

cheira a sol na vegetação verde, misturado com o aroma limpo da

limonada na jarra ao lado deles. Boiam folhas de hortelã na superfície.

Os cubos de gelo soltam belos tinidos agudos. Quando se sentaram, a

governanta trouxe a limonada sem dizer palavra.

O envelope amarelo está pousado na mesa ao lado da limonada. Uma

gota de condensação desceu pelo lado frio do jarro, o canto do envelope

está escuro de humidade. Dee não consegue tirar os olhos do envelope,

não consegue pensar em mais nada. E se o conteúdo ficar danificado?

– Tanto quanto sei, é a única cópia – diz ele calmamente, seguindo o

olhar dela. – O homem que a tirou morreu de ataque cardíaco há uns

anos. O jornal é pequeno, local, não tem arquivo. Pode bem ser a única

cópia existente.

Ele não afasta o envelope da água e Dee faz um esforço para não

pegar nele.

– Só quero dar uma olhadela e depois vou embora – diz ela. – Já

tomei muito do seu tempo.

Ele abana a cabeça.

– Pode ficar com ela. Leve-a. Vai querer um momento em privado.

– Obrigada – diz ela, espantada. – A sério… obrigada.

– Espero que não vá repetir o incidente de Oregon – diz ele. – Aí foi

um pouco longe de mais. Teve sorte em não ter ido parar à cadeia.
Dee estremece. Claro, é o tipo de coisa que ele saberia. O homem de

Oregon, que estivera no lago naquele dia. Sem querer, Karen, a cansada

revelara a Dee alguns pormenores, a localização da cabana de caça.

Dee sabia as estatísticas de cor. O tipo de pessoa que levou Lulu tem,

em média, 27 anos e é solteiro. Está desempregado ou tem um emprego

sem grandes qualificações. Mantém-se à margem da sociedade.

Provavelmente, tem cadastro de crimes violentos. A principal motivação

para um estranho raptar uma criança é… Dee não se permite ter esse

pensamento. Com o passar dos anos, adquiriu a arte de esvaziar

completamente o cérebro a seu bel-prazer.

Em todos os aspetos, o homem do Oregon correspondia na perfeição

ao perfil. Dee não tinha como saber que ele estava a trocar um pneu

furado a quilómetros de distância, em Hoquiam, quando Lulu

desapareceu. Havia nove testemunhas. O homem não apresentou queixa,

mas Karen afastou-se depois disso.

– Quanto quer? – pergunta Dee, fitando os olhos azuis do homem

rico.

O homem observa-a a observá-lo. Lentamente, enche um copo de

limonada com uma mão trémula. A sua fragilidade é uma farsa. Os

braços dele são musculados.

– Não quero dinheiro – diz ele. – Quero outra coisa.

Dee sente um calafrio de horror.

– Não, não. – Sorri, indulgente. – É muito simples. Conhece o meu

hobby. Coleciono todo o tipo de curiosidades, mas o núcleo da minha

coleção, a alma, está aqui, nesta casa. Quero que a veja. Que percorra a

galeria, só uma vez.

– Eu posso pagar – diz Dee. – Em dinheiro.

– Não o suficiente – diz ele gentilmente. – Seja razoável.


Olha para a vista sobre a copa das árvores, para as roupas

imaculadas dele, vê a sua confiança, construída com dinheiro, e sabe que

ele tem razão. Ela não se questiona porque deveria confiar nele, ou como

pode ter a certeza de que o envelope contém o que contém. Essas

considerações ficaram há muito para trás.

Assente porque sabe que não tem escolha.

Ele condu-la até ao centro da casa. Ao fundo das escadas, destranca

uma porta feita de algo que parece, mas não pode ser, granito. Dee

estremece. Talvez ele tranque a porta e a deixe lá dentro.

Um longo corredor estende-se a todo o comprimento da casa. Não há

janelas. O ar é fresco, controlado a uma fração de grau. As paredes estão

decoradas com vitrinas e fotografias emolduradas, cada uma iluminada

por um único foco de luz. Aquela é a coleção dele; o museu, como ele

lhe chama. Dee já ouviu falar. É bem conhecido, para quem se interessa

por aquele tipo de coisa. O homem obtém coisas a que a maioria das

pessoas não tem acesso. Coisas que ninguém devia ver. Coleciona os

artefactos da morte. Fotografias, frascos de sangue roubados de salas de

provas, cartas escritas na angulosa caligrafia vitoriana, pedaços de

mortos que ninguém reclamou, os pedaços que o assassino não teve

tempo de comer antes de ser apanhado.

A sala é uma galeria dos pesadelos de Dee. Cada objeto é uma

relíquia de algo terrível que pode ter sido feito a Lulu. Dee olha de

relance para a imagem a preto e branco na parede à sua esquerda e

desvia rapidamente o olhar.

– Tem de olhar – diz ele. – O acordo é esse.

Ele sabe precisamente como ela se sente. Consegue ouvi-lo na sua

voz.
Dee percorre a galeria. Olha para cada objeto durante exatamente

três segundos antes de seguir em frente. A sua mente está cheia de ruído

estático. Ele caminha ao seu lado, intimamente perto. A pele dele emana

um odor ténue a estanho; parece nem sequer respirar.

Quando chegam ao fim do corredor mal iluminado, Dee vira-se para

ele e estende a mão. Por um momento, ele fica quieto e o seu olhar azul

percorre-a lentamente da cabeça aos pés. Ela entende que ele está a

colecioná-la, e àquele momento. Nem todas as recordações podem ser

guardadas numa vitrina. Pensa, Vai acontecer agora. Vou vomitar. Então

ele assente levemente e põe o envelope na mão dela.

A luz e o ar são ofuscantes. Dee quer chorar de gratidão só de ver as

árvores, mas recusa-se a dar-lhe mais alguma coisa.

– Conduza com cuidado – diz ele, e regressa ao seu palácio de

madeira.

Tirou dela o que queria e agora ela já não lhe interessa. Dee caminha

lentamente até ao carro e pousa o envelope ao acaso no lugar do

passageiro. Força-se a conduzir a um ritmo tranquilo pelo meio das

árvores. Ele podia ainda estar a olhar. O pé de Dee treme no acelerador,

a sua respiração é rápida.

Quando sai, por fim, do longo caminho florestal para a estrada,

carrega no acelerador. O motor ronca com força.

Dee deixa-se levar pela faixa escura da estrada, até a floresta dar

lugar a prados, e cavalos, e celeiros, e estes darem lugar a centros

comerciais. O cheiro a gasolina paira, denso, no ar. Quando finalmente

pôs quilómetros e quilómetros entre ela e aqueles gélidos olhos azuis,

para numa estação de serviço. Pousa a cabeça no guiador e respira

ofegante. Os camiões pesados rugem, abanando o carro pequeno ao

passarem por ela. Fica-lhes grata por encobrirem os sons que ela faz.
Por fim, a sua respiração acalma um pouco. Dee encosta-se para trás.

Está na altura de descobrir o que comprou. Suprime uma onda de

náusea, abre o envelope e tira a fotografia.

Lá está ela, a imagem familiar, só lhe falta o título: BUSCA A CASA DE

SUSPEITO. E lá está ele, o suspeito, a proteger os olhos do sol. Dee

conhece aquela fotografia. Falou dela a Karen mais do que uma vez.

Esse homem tinha um álibi, disse-lhe Karen, a cansada, e a busca à

casa dele não revelara nada. Tiveram de prosseguir para outras linhas de

inquirição.

– Mas as pessoas que o viram em frente à loja de conveniência

podiam ter-se enganado – disse Dee. – Estavam habituadas a vê-lo ali,

contavam com isso. Sabes como é, podem ter preenchido o espaço vazio

no passeio com uma imagem familiar, mesmo que ele não estivesse lá.

Dee entende isso melhor do que ninguém

– Há a cassete de segurança – disse Karen.

– O tempo todo? – perguntou Dee. – Karen, a tarde toda?

Karen não respondeu, mas não precisava. Dee conseguia ver o não

no encolher dos ombros dela. Isso foi quando Karen ainda lhe dava

informação, antes do incidente com o homem de Oregon.

Karen ficaria preocupada se soubesse o que Dee tem nas mãos. A

fotografia não está cortada, como quando a publicaram no jornal. Talvez

seja a impressão original do fotógrafo.

Na imagem vê-se mais do fundo, mostrando os contornos escondidos

da cena. Dee sente o coração aos saltos. Força-se a não ter pressa, a

olhar para todas as coisas, uma de cada vez; a vê-la, conhecê-la,

compreendê-la.

Há árvores ao fundo, atrás da casa. Floresta densa do Noroeste

Pacífico, com as árvores a crescerem umas em cima das outras. Há uma

mulher de chapéu, de costas voltadas, a caminhar pelo passeio com um


terrier peludo pela trela. Numa casa mais distante, veem-se rostos

pálidos, pequenos e curiosos. Crianças.

Dee vê a coisa mais importante no fim, como se a sua mente se

recusasse a absorver um sucesso depois de tantos anos de fracasso

retumbante. A placa na esquina vê-se perfeitamente e é fácil de ler:

Needless Street.

Pela primeira vez, percebe porque desmaiam as pessoas e como

acontece; como uma luz branca a desencadear-se no cérebro, um clarão,

seguido de um choque escuro. Agora sabe onde vivia o suspeito, talvez

até onde ainda viva. Dee respira depressa. Só isso já seria suficiente,

mas há mais.

– Nós estivemos lá nesse dia – sussurra Dee. – O papá virou no sítio

errado.

A sua boca enche-se com o sabor de memórias e chiclete. Deve ter

mastigado umas 30 naquela viagem, há tanto tempo. O pai estava a

conduzir até ao lago, mas falhou uma saída e acabaram a vaguear,

perdidos, pelos subúrbios cinzentos sem fim que orlavam a floresta.

Então, as filas de casas de um andar começaram a rarear e deram lugar a

velhas casas vitorianas, e o cheiro intenso da floresta ficou mais forte.

Eram ruas que não davam para lado nenhum. Dee lembra-se de passar

por aquela placa e pensar, Sim, realmente este pardieiro é totalmente

desnecessário. A rua era um beco sem saída, lembra-se bem. O pai

limpou a testa e praguejou entre dentes, antes de dar meia-volta e

regressar por onde tinham vindo.

Encontraram a Autoestrada 101 pouco depois e o nome da rua caiu

para as profundezas da mente de Dee, para ser arquivada ao lado do

resto da informação inútil: a cor do uniforme do empregado no sítio

onde pararam para meter gasolina, quem gostava mais dela na escola,

quem tocava baixo naquela banda…


Por um momento, Dee pensou se aquilo não seria coincidência, mas

rejeitou a ideia com um forte abanão mental. Tem de estar relacionado

de alguma maneira. Tem de estar.

Será que o suspeito os viu a passar naquele lento circuito perdido?

Será que avistou o rosto aborrecido de Lulu à janela e os seguiu até ao

lago? Será que o pai falou com ele? Talvez tenha parado para pedir

indicações ao suspeito. Então, o suspeito não teria precisado de os

seguir. Saberia qual o seu destino, podia ter ido diretamente para o lago.

Dee tenta lembrar-se de onde é que o pai parou. Mas tal como certas

partes daquele dia estavam gravadas na sua mente, queimadas na sua

carne, outras eram vagas e desfocadas. Parecia um beco sem saída igual

a muitos outros. Ela e Lulu eram crianças; entediadas e com calor. Não

sabiam que aqueles eram os seus últimos momentos de paz antes de um

relâmpago destruir o mundo e tudo mudar para sempre.

A razão dita que Dee devia contar à polícia. Devia ligar a Karen, a

cansada, que ainda é responsável pelo caso. Lulu é uma pessoa

desaparecida. O corpo nunca foi encontrado. (Houve uma altura em que

Dee achava que desaparecida era melhor do que morta, mas o passar dos

anos ensinara-lhe o contrário.)

– Isto não devia acontecer – disse Karen uma vez. – A maioria dos

polícias passa a carreira sem ter de lidar com o rapto de uma criança. É

desgastante, de formas difíceis de prever. Às vezes penso: porquê aqui?

Porquê comigo?

– Tenho uma pergunta – disse Dee. – Porque não faz o seu trabalho?

Karen corou.

– A Lulu não foi a primeira a desaparecer – disse Dee. – Eu

investiguei. Vocês têm um problema a sério neste lago.

Talvez tenha sido então que as coisas azedaram entre elas. Com ou

sem azedume, Dee devia ligar-lhe imediatamente.


Mas não vai ligar. Aquilo é um presente particular, só para ela. E

Dee sente a raiva a borbulhar no fundo da alma. Se a polícia não lhe

tivesse ocultado a informação importante, talvez se tivesse lembrado do

nome da rua e feito a ligação há anos – tempo completamente

desperdiçado.

A fotografia ainda tem mais um segredo para revelar. Dee olha com

atenção para a camisola do suspeito. Ao perto, fica com muito grão e os

seus olhos protestam, mas Dee consegue ver letras, bordadas no bolso

do peito. Devem ter desfocado isso na foto do jornal. Dee consegue

distinguir um nome. Ed ou talvez Ted, Banner qualquer coisa.

É como desferir o último golpe numa luta muito, muito longa. Tem

um nome, ou parte dele, e uma rua. Dee repara que está a chorar, o que

não faz sentido, pois está absolutamente convicta. Apenas por um

momento, durante uma batida do coração, Dee sente Lulu ao seu lado. O

carro enche-se com o odor de pele quente e protetor solar. Uma

bochecha gorducha e macia roça na cara dela. Dee sente o cheiro limpo

do cabelo da irmã e o hálito açucarado.

– Vou já – diz Dee para a irmã.


Ted

É o dia certo, por isso vou ver o senhor bicho de manhã. Encontrei-o

num anúncio na Internet. Não custa tanto como os outros, posso pagar

uma sessão de 15 em 15 dias. A minha consulta é sempre muito cedo,

quando ninguém ainda está a pé… quando mais ninguém quer ir,

suponho. Gosto das minhas visitas. Falo-lhe de Olivia, e de como gosto

dela, e dos programas que vi na televisão, e dos doces que comi, e dos

pássaros que vêm de madrugada. Às vezes, até falo da Mamã e do Papá.

Não muito. Não falo da situação com Lauren ou dos deuses, é claro.

Misturo sempre perguntas a sério no meio das parvoíces. Estou a

avançar lentamente até à grande pergunta. Vou fazê-la não tarda muito.

As coisas com Lauren estão a piorar.

Às vezes, falar com ele ajuda. Além disso, receita-me os

comprimidos, e esses ajudam mesmo.

É uma caminhada de 40 minutos, que eu faço bem. Não está

propriamente a chover, mas uma neblina quente e pesada paira no ar. Os

faróis dos carros lançam um brilho húmido na estrada molhada e as

minhocas contorcem-se no passeio, rosadas e luzidias.

O consultório do senhor bicho fica num edifício que parece um

monte de blocos de brincar, empilhados à toa. A sala de espera está

vazia e eu sento-me alegremente numa cadeira. Gosto deste tipo de sítio,

onde estamos entre uma coisa e outra. Entradas, salas de espera, átrios e

afins, salas onde ninguém espera que algo aconteça. Alivia muito a

pressão e permite-me pensar.

O ar tem um cheiro forte a produtos de limpeza, uma imitação

química de um prado florido. A dada altura no futuro, creio eu, quase

ninguém vai saber a que cheira um prado verdadeiro. Talvez já não haja

mais prados verdadeiros e vão ter de fazer flores em laboratórios. É claro


que as vão alterar para cheirarem como os produtos de limpeza, porque

vão achar que é mesmo assim, e o círculo fecha-se. São pensamentos

interessantes como este que tenho quando estou em salas de espera e

passadeiras ou na fila do supermercado.

O senhor bicho aparece e diz-me para entrar, ajeitando a gravata.

Acho que o deixo nervoso. É o meu tamanho. Ele disfarça bem, na maior

parte do tempo. Tem uma barriga que parece uma pequena almofada

decorativa, daquelas de que a Mamã gostava tanto. O cabelo é ralo e

loiro. Atrás dos óculos, os olhos são azuis e quase perfeitamente

redondos.

É claro que não me lembro do nome dele. Parece um percevejo

simpático, ou um besouro, daí chamar-lhe senhor bicho.

O consultório é claro, num tom pastel, com muitas mais cadeiras do

que seriam necessárias. São todas de tamanhos, formas e cores

diferentes. Deixam-me sempre numa agonia de indecisão. Pergunto-me

se serão uma maneira de o senhor bicho avaliar o meu estado de espírito.

Às vezes, tento pensar como Lauren e adivinhar que cadeira escolheria

ela. Provavelmente, atirava-as de um lado para o outro.

Escolho uma cadeira desdobrável de metal, ligeiramente amolgada.

Espero que esta escolha austera lhe mostre que levo a sério o meu

progresso.

– Perdeu mais algum cabelo – diz o senhor bicho calmamente.

– Acho que a minha gata mo arranca durante a noite.

– E o seu braço esquerdo parece muito magoado. O que se passou?

Devia ter usado mangas compridas, não pensei nisso.

– Foi durante um encontro. Ela fechou a porta do carro no meu braço

por acidente.

Ainda não fui a nenhum encontro, mas parece-me mais provável que

aconteça se disser as palavras em voz alta, como um feitiço para me


obrigar a fazê-lo.

– Que azar – diz ele. – Tirando isso, acha que o encontro correu

bem?

– Oh, sim. Diverti-me muito. Sabe, ando a ver uma série de televisão

nova. É sobre um homem que mata pessoas, mas só pessoas que

merecem. Por outras palavras, pessoas más.

– Porque acha que gosta dessa série?

– Eu não gosto da série. Acho que é um disparate. Não dá para saber

como as pessoas são só pelo que fazem. Alguém pode fazer uma coisa

má sem ser má pessoa. As pessoas más podem fazer coisas boas por

acidente. Não dá para saber, é o que quero dizer.

Consigo vê-lo a respirar fundo para fazer uma pergunta e continuo a

falar.

– E vi outra série em que um homem matou uma data de pessoas,

mas depois magoou a cabeça num acidente e quando acordou achava

que era dez anos antes. Não se lembrava de ter matado aquelas pessoas,

nem dos novos tipos de telemóvel, nem da própria mulher. Era uma

pessoa diferente do homem que tinha matado todas aquelas mulheres.

Então, seria na mesma culpa dele, mesmo quando era algo que não

podia controlar?

– Acha que as suas ações por vezes estão fora do seu controlo?

Cuidado, penso eu.

– E depois há outra série – digo eu – sobre um cão que fala. De certa

forma, parece-me muito mais realista do que ser capaz de distinguir as

pessoas boas das más. A minha gata não fala, admito. Mas sei sempre o

que ela quer. É tão bom como falar.

– A sua gata é muito importante para si – diz o senhor bicho.

– É a minha melhor amiga – digo eu, o que pode bem ser a primeira

coisa verdadeira que lhe disse desde que comecei a cá vir, há seis meses.
Cai um silêncio na sala, nada desconfortável. Ele escreve no bloco de

notas, mas deve estar a fazer uma lista de compras ou algo assim, porque

não lhe estou a dar nada, a sério.

– Mas estou preocupado com ela.

Ele ergue o olhar.

– Acho que ela… – Hesito ligeiramente. – Acho que a minha gata

é… como posso dizer isto? Homossexual. Gay. Acho que a minha gata

se sente atraída por gatas.

– Porque diz isso?

– Há outra gata que ela costuma observar, pela janela. Está sempre a

olhar para ela. Adora-a, dá para ver. A minha mãe ficaria muito

perturbada se soubesse que tenho uma gata homossexual. Ela tinha

opiniões muito fortes sobre o assunto.

O cheiro a vinagre enche o ar por um momento e acho que vou

vomitar. Não tencionava dizer nada daquilo.

– Acha que a sua gata…

– Não posso falar mais disso.

– Bom…

– Não – digo eu. – Não, não, não, não, NÃO.

– Muito bem. Como está a sua filha?

Estremeço. Mencionei Lauren uma vez, de passagem, por acidente.

Foi um grande erro, porque ele nunca mais se esqueceu.

– Tem passado muito tempo na escola. Não a tenho visto muito.

– Sabe, Ted, esta sessão é para si. É privada. Aqui pode dizer o que

quiser. Algumas pessoas sentem que é o único sítio onde se podem

expressar verdadeiramente. Na nossa vida quotidiana, pode ser difícil

dizer o que pensamos ou sentimos às pessoas que nos são próximas. É

uma experiência muito isoladora. Pode ser solitário… guardar segredos.


É por isso que é tão importante ter um sítio seguro, como este. Pode-me

dizer o que quiser.

– Bom – digo eu –, há partes da minha vida que gostava de partilhar

com alguém, um dia. Não consigo, mas com alguém.

Ele ergue um sobrolho.

– Ontem à noite, estava a ver uma corrida de camiões na televisão e

pensei, Os camiões de corrida são espetaculares. São grandes e

barulhentos e divertidos. Seria tão bom se conhecesse alguém que

também adora camiões, um dia.

– É um objetivo.

Os olhos dele começam a desfocar. Parecem dois berlindes azuis.

Durante semanas, armazeno os meus pensamentos mais aborrecidos

para contar ao senhor bicho. Às vezes, dá trabalho pensar em coisas

suficientes para encher uma hora, mas esta última saiu-me

espontaneamente.

– No meu livro – diz ele –, falo de como, na verdade, a dissociação

nos pode proteger…

Agora é seguro desligar e faço isso mesmo. O senhor bicho gosta de

falar sobre o seu livro. Ainda não foi publicado nem nada. Acho que

nem sequer está acabado. Está a escrevê-lo desde que o conheço. Todos

temos algo de que gostamos mais do que de tudo o resto, acho eu. Para

mim, é Lauren e Olivia. Para o senhor bicho, é o seu livro interminável.

Quando a hora acaba, dá-me um saco de papel castanho, parecido

com os sacos onde os miúdos levam o almoço para a escola. Sei que tem

lá dentro quatro caixas de comprimidos e isso faz-me sentir muito

melhor.

O que estou a fazer com o senhor bicho é muito inteligente, tenho de

admitir. Tive a ideia há algum tempo, pouco depois da Menina do


Chupa-Chupa.

Lauren tinha febre baixa há já alguns dias. Eu queria comprar-lhe

antibióticos, mas não sabia como. Um médico nunca entenderia a nossa

situação. Esperei que melhorasse sozinha, mas os dias passavam e ela

não ficava melhor. Aliás, ficava pior. Procurei na Internet e encontrei

uma clínica gratuita do outro lado da cidade.

– Como te sentes? – perguntei a Lauren. – Descreve com pormenor.

– Estou quente. Tenho bichos a correr-me pela pele. Não consigo

pensar. Só quero dormir. Até falar contigo me deixa cansada.

Estava um bocadinho rouca. Ouvi com atenção tudo o que ela disse,

anotei e pus o papel no bolso.

Depois de anoitecer, caminhei até à clínica do outro lado da cidade.

Demoraram umas horas a atender-me, mas não me importei. A sala

de espera estava vazia e cheirava ligeiramente a urina. Mas estava calma.

Preparei-me para passar algum tempo com os meus pensamentos. Como

já comentei, tenho alguns dos meus melhores pensamentos em salas de

espera.

Quando a senhora zangada chamou o meu nome, tirei o papel do

bolso. Li-o três vezes. Esperava lembrar-me de tudo. Então, fui até um

cubículo onde estava um médico cansado, que me perguntou os meus

sintomas. Eu fingi uma voz rouca e falei lentamente.

– Estou quente. Tenho bichos a correr-me pela pele. Não consigo

pensar. Só quero dormir. Até falar consigo me deixa cansado.

Repeti o que Lauren me tinha dito, palavra por palavra. E funcionou!

Ele receitou-me antibióticos e repouso. Fui até à farmácia pequena ali ao

lado e aviei a receita. Estava tão aliviado que quase dancei nos

corredores. No caminho de regresso, mantive a cabeça baixa e permiti-

me observar o mundo em meu redor. Vi um sinal luminoso bonito com

uma flor, uma banca a vender fruta em forma de estrela. Vi uma mulher
com um cãozinho preto numa grande bolsa vermelha. Segurava bem o

saco de papel com os antibióticos.

Quando cheguei à minha rua, estava muito cansado. Tinha

caminhado 15 quilómetros, ou mais, até à clínica e de volta a casa. Dei

os antibióticos a Lauren, escondendo-lhos na comida. Ela melhorou

num instante. O meu plano funcionou!

Quando as coisas ficaram piores com Lauren, sabia que precisava de

algumas respostas. Não sobre o corpo dela, mas sobre a sua mente. Foi

assim que tive a ideia de marcar consulta com o senhor bicho e fingir

que falava de mim, enquanto, na verdade, estava a fazer perguntas sobre

Lauren. É como quando arranjei os antibióticos, mas desta vez o

medicamento é informação.

Estou de volta. Estou na minha rua. A casa à minha frente é amarela

com uma cimalha verde. Estou de novo diante da casa da senhora do

chihuahua, e tenho a mesma sensação, como se quase soubesse algo. É

como ter formigas no cérebro, a marchar com as suas patas pequenas.

Vejo que algo está agrafado ao poste telefónico. Vou ver, porque

normalmente é um gato desaparecido. Os gatos podem parecer muito

capazes e independentes, mas precisam mesmo da nossa ajuda.

Desta vez não é um gato. A cara numa fotografia desfocada é

repetida poste atrás de poste até perder de vista. Demoro um momento a

ter a certeza. Parece muito mais nova, certo, e não tem nenhum cão com

ela, mas é a senhora do chihuahua. Na fotografia, está encostada a uma

parede num sítio ensolarado, a sorrir. Parece feliz.

Da última vez que afixaram cartazes nos postes telefónicos, foi por

causa da Menina do Chupa-Chupa.

Quando entro, Lauren está à minha espera.


– Onde foste?

Está a respirar demasiado depressa.

– Calma, gatinha, ainda desmaias.

Já aconteceu.

– Andas a encontrar-te com uma senhora! – gritou ela. – Vais

abandonar-me!

Agarra a minha mão com os dentes afiados e morde.

Por fim, consigo adormecê-la. Tento ver corridas de camiões, mas o

dia deixou-me exausto. Os sentimentos não são fáceis.

Acordo a meio da noite, subitamente e sem fôlego. Sinto a escuridão

a tocar-me na pele. O gira-discos devia estar a tocar em repetição, mas é

um aparelho velho, ou eu fiz algo errado. No silêncio, consigo ouvir

Lauren a rastejar pelo chão. Os seus dentes afiados batem uns nos

outros.

– Seu homem mau – sussurra. – Fora, fora, fora.

Tento acalmá-la e adormecê-la outra vez. Ela grita e volta a morder-

me a mão, desta vez faz sangue. Chora e luta comigo a noite toda.

– Mesmo que estivesse a sair com alguém, continuaria a amar-te

mais.

Percebo imediatamente que não devia ter dito aquilo.

– Andas mesmo! Andas mesmo!

Lauren arranha-me e luta comigo até a luz cinzenta da manhã entrar

pelo quarto.

Começo o dia cansado e magoado. Lauren dorme até tarde.

Aproveito o tempo para atualizar o diário. É um hábito que a Mamã

instilou em mim.

Uma vez por semana, ela examinava a casa de alto a baixo. A

inspeção tinha de ser feita duas vezes – deixava isso bem claro, por
causa do erro humano. Nada lhe escapava. Cada grão de pó, cada

aranha, cada azulejo rachado. Anotava tudo no livrinho. Depois, dava o

livro ao Papá para ele arranjar tudo durante a semana. Chamava-lhe o

seu diário de estragos. O inglês dela era quase perfeito, era sempre uma

surpresa quando não percebia bem o significado de uma palavra. Eu e o

Papá nunca a corrigíamos.

Por isso, todos os sábados de madrugada, dou uma volta pela casa

com o livro. Volto a fazê-lo ao fim do dia, antes de anoitecer. Faço uma

ronda pelo limite da propriedade, para ter a certeza de que a vedação

está em ordem, e depois faço uma ronda mais rigorosa, para ver se há

estragos na casa: pregos soltos, tocas de ratos e serpentes, sinais de

térmites, esse tipo de coisa. Não é complicado, mas, como disse, é

importante.

As três fechaduras da porta de trás rodam ruidosamente. Tum, tum,

tum. Espero um pouco. Nunca sei o que vai acordar Lauren. Mas ela

continua a dormir. O dia está ofuscante, a terra seca e dura sob os meus

pés, estalada como pele envelhecida. Os comedouros continuam vazios.

Nem uma brisa agita as árvores, as folhas estão paradas e silenciosas no

calor doentio. É como se a morte tivesse posto o dedo na rua e premido

com força. Volto a trancar a porta depois de sair e vou até à arrecadação

ao lado da casa.

Está fresco e escuro dentro do anexo, com um cheiro a ferrugem e

óleo. É o cheiro de todas as arrecadações em todo o lado. Tenho de ter

cuidado… o cheiro é uma autoestrada para a memória. Tarde de mais.

Num canto sombrio do anexo, está o Papá, parado e calado. Estende a

mão para uma caixa de parafusos, para a garrafa castanha atrás da caixa.

O Pequeno Teddy puxa-lhe a mão. Quer entrar no carro, mas o Papá tem

de tratar da Mamã primeiro.


Pego rapidamente nas ferramentas e saio, a piscar os olhos de alívio

sob o sol escaldante. Tranco a arrecadação. Fica aí dentro, Papá. Tu

também, Pequeno Teddy. Não há espaço para vocês aqui fora.

Escrevo tudo no livro com muita clareza. Não é o mesmo livro, é

claro. Eu mantenho o meu diário de estragos num velho livro escolar de

Lauren. Escrevo em cima dos mapas.

Rato voltou à cozinha, escrevo cuidadosamente no mar azul-claro ao

largo da Papua-Nova Guiné. Lavatório da casa de banho, torneira

pinga. Bíblia caiu da mesa outra vez?!?!? Porquê? Pernas da mesa

desniveladas!?!?!

E por aí fora. As dobradiças da porta da casa de banho estão a

ranger, precisam de óleo. Uma tábua numa das janelas da sala está solta

e precisa de ser pregada. Algumas telhas caíram do telhado. São

guaxinins, terríveis para o telhado – mas gosto das suas mãozinhas

pretas e espertas.

Arranjo o que posso agora e o resto fica para fazer durante a semana.

Tenho de ser Mamã e Papá para Lauren. Gosto de reparar a casa, de

tapar buracos, como se estivesse a torná-la hermética. Nada entra ou sai

sem minha permissão.

As panquecas de chocolate estão prontas quando Lauren acorda.

Pessoalmente, acho as panquecas um desperdício de tempo, como comer

pedaços de pano quente, mas ela adora.

– Lavar as mãos primeiro – digo. – Estive a trabalhar lá fora e tu

andaste a pedalar a bicicleta com as mãos.

Ela é tão esperta. Estende-se de barriga no selim e os braços

pedalam velozmente. Lauren não deixa que nada se atravesse no seu

caminho.

– É mais fácil com as mãos – diz.


Dou-lhe um beijo.

– Eu sei. E ultimamente andas tão depressa.

Lavamos as mãos na banca da cozinha, esfregando debaixo das

unhas com a escova.

Lauren fica calada enquanto come. Ontem foi mau, ela cansou-se

com a sua fúria. Vai embora amanhã e a perspetiva da sua ausência

deixa-nos abatidos aos dois.

– Hoje podemos fazer o que quiseres – digo, sem pensar.

Ela fica logo atenta.

– Quero ir acampar.

Sinto-me esmagado pela impotência. Não podemos ir acampar.

Lauren sabe isso. Porque tem ela de esticar a corda? Sempre a puxar e a

protestar, como um daqueles cães pequenos aos pés de um touro. Não

admira que eu perca a paciência.

Mas também sinto tristeza. É tão injusto. Tantas crianças podem ir

até à floresta, fazer fogueiras, acampar e tudo isso. Para elas, nem sequer

é especial. Talvez a história do Assassino me tenha deixado triste, talvez

seja porque também estou cansado da casa, mas dou por mim a

concordar.

– Claro. Vamos acampar. Saímos ao anoitecer.

– A sério? Vamos mesmo, Papá?

– Claro. Eu disse «o que quiseres», não foi?

Ela irradia felicidade.

Ponho alguns mantimentos numa mochila. Lanterna, cobertor, lona,

barras energéticas, garrafas de água, papel higiénico. Atrás de mim,

ouço o som seco de saias a roçar no chão. Oh, não. Fecho os olhos com

força.
A mão dela é uma espécie de barro frio no meu pescoço. Não deixes

ninguém ver quem tu és, diz a Mamã.

– Não deixo – respondo. – Só quero fazer algo especial para a

Lauren. É só desta vez, prometo. Vou garantir que ela nunca mais quer ir

acampar.

Tens de os mudar de sítio.

O Sol desce lentamente para a linha das árvores. Observo pela vigia

ocidental que dá para a floresta. Quando a luz quase desapareceu, ponho

a mochila às costas e apago as luzes.

– Está na hora de ir – digo. – Marcadores e lápis de cor, por favor.

Ela conta-os na minha mão, um por um, e eu guardo-os. Estão todos

aqui.

– Precisas de beber água antes de sairmos? Casa de banho? Última

oportunidade.

Lauren abana a cabeça. Quase consigo ver a excitação a sair dela

como uma série de pequenas explosões.

– Tens de deixar que te carregue.

A bicicleta cor-de-rosa seria inútil no solo da floresta.

– Está bem.

Saímos pela porta das traseiras, que tranco depois de sairmos.

Verifico a rua com cuidado antes de abandonarmos a sombra da casa. A

rua está vazia. Os mosquitos dançam à volta dos candeeiros de rua

amarelos. A casa ao lado fita-nos com os seus olhos de radar. Mais

abaixo na rua, é outra história. Há janelas abertas, a verter barulho e luz

quente. Apanho o som distante de um piano, o cheiro ténue a costeletas

de porco.

– Podíamos ir bater a uma porta – diz Lauren. – Dizer olá. Talvez

nos convidem para jantar.


– Não disseste que querias ir acampar? Vamos, gatinha.

Viramos para o outro lado, para onde a silhueta das árvores se

recorta contra o céu púrpura. Passamos por baixo do portão de madeira

e cá estamos nós, no meio delas. A lanterna lança um feixe largo e

pálido sobre o trilho.

Todos os sinais da cidade ficam imediatamente para trás. Estamos

rodeados pela floresta. Está a acordar. O ar enche-se de apupos, estalidos

e assobios. Sapos, cigarras, morcegos. Lauren estremece e sinto como

está maravilhada. Adoro tê-la tão perto de mim. Não me lembro da

última vez que me deixou carregá-la assim sem se debater. Ela detesta

sentir-se impotente.

– O que fazes se aparecer alguém? – volto a perguntar.

– Fico calada e deixo-te falar – responde ela. – Que pivete é este?

– Doninha-fedorenta.

O animal caminha ao nosso lado pelo trilho por algum tempo, talvez

curioso. Então, desaparece na escuridão da floresta e o cheiro dissipa-se.

Não andamos muito, talvez um quilómetro e pouco. A alguns metros

do trilho, há uma clareira. Está escondida por rochedos e vegetação alta,

é preciso saber que está ali para a encontrar. Eu conheço bem o

caminho. É onde vivem os deuses.

O odor a cedro e tomilho selvagem paira no ar, forte como vinho.

Mas as árvores que rodeiam a clareira não são cedros nem abetos. São

fantasmas pálidos e finos.

– Papá – sussurra Lauren –, porque é que as árvores são brancas?

– São bétulas. Ou vidoeiros. Vê só.

Tiro uma faixa de casca da árvore e mostro-lhe. Ela toca na

superfície sussurrante. Não lhe digo o nome verdadeiro, que é árvore-

de-osso.
Encontro o sítio que quero no canto noroeste, onde estendo a lona

sobre a terra, ainda a irradiar o calor do dia. Sentamo-nos. Faço-a beber

alguma água, comer uma barra energética. Acima, os ramos deixam ver

as estrelas. Lauren está calada. Sei que ela os sente. Os deuses.

– Isto é agradável – digo eu. – Nós os dois juntos. Lembra-me de

quando eras pequena. Foram tempos maravilhosos.

– Não é assim que eu me lembro.

Sinto uma onda de frustração. Está sempre a provocar-me, mas

mantenho a calma.

– Amo-te mais do que qualquer outra coisa no mundo – digo-lhe.

E estou a falar a sério. Lauren é especial. Nunca mostrei a clareira a

nenhum dos outros.

– Só quero manter-te a salvo.

– Papá, não posso continuar a viver assim. Às vezes, nem sequer

quero viver.

Quando consigo voltar a respirar, respondo-lhe no tom mais normal

que consigo.

– Vou contar-te um segredo, gatinha. Toda a gente se sente assim de

vez em quando. Às vezes, as coisas ficam más e não consegues ver um

futuro. Fica tudo nublado, como o céu num dia de chuva. Mas a vida

muda muito depressa. As coisas nunca ficam iguais para sempre, nem

mesmo as coisas más. As nuvens escuras vão dissipar-se. Dissipam-se

sempre, juro.

– Mas eu não sou como toda a gente – diz Lauren, numa voz tão

contundente que podia cortar-me. – A maioria das pessoas podia ter

caminhado até cá sozinha. Eu não posso. Isso não vai mudar ou dissipar-

se. Isso vai ficar igual para sempre. Não vai, Ted?

Estremeço. Não tenho resposta para isto. Detesto quando me chama

Ted.
– Vamos só observar as estrelas, gatinha.

– Tens de me deixar fazer coisas, Papá. Tens de me deixar crescer.

– Lauren – começo a irritar-me –, isso não é justo. Sei que pensas

que já és muito crescida, mas ainda precisas que tomem conta de ti.

Lembras-te do que aconteceu no centro comercial?

– Isso foi há anos. Agora é diferente. Olha só, estamos fora de casa e

estou a portar-me bem.

Ela sente a primeira picada pouco depois.

– Fui mordida por alguma coisa.

A sua voz regista apenas surpresa. Medo, não, por enquanto.

Também estou a ser picado, na perna, duas vezes, uma atrás da

outra. Não sinto nada, é claro, mas vejo a pele a empolar, vermelha.

Agora estão por todo o lado. Lauren começa a gritar.

– Que bichos são estes? Oh, meu Deus, Papá, o que se passa?

– São formigas-de-fogo. Devemos estar sentados em cima de um

formigueiro.

– Tira-as de cima de mim! Dói, tira-as de cima de mim!

Pego na mochila e carrego-a a correr através das árvores. Raízes e

espinheiros prendem-me os pés. Quando chegamos ao trilho, paro e

sacudo-nos vigorosamente. A seguir, verto água na pele exposta.

– Entrou alguma para dentro da tua roupa? – pergunto.

– Não – responde, à beira das lágrimas. – Acho que não. Podemos ir

para casa, Papá?

– É claro, minha gatinha.

Abraço-a com força durante todo o caminho de regresso. Reparo que

não voltou a chamar-me Ted.

– Acampar foi uma ideia parva. Obrigada por nos tirares dali.

– É o meu trabalho – respondo.


Cansada depois de tudo aquilo, adormece antes de chegarmos a casa.

Ponho pomada nas nossas picadelas, tocando com cuidado na pele

adormecida dela. Uma fila de borbulhas vermelhas sobe-lhe pela barriga

da perna até ao joelho, mas é só. Conseguimos fugir antes que as

formigas fizessem danos a sério. Os jovens sentem a dor com

intensidade, julgo eu, porque ainda não sabem como a dor pode ser

profunda.

De manhã, está na hora de nos despedirmos. Lauren agarra-se a

mim.

– Amo-te, Papá. – Sinto o hálito dela, húmido, na minha barba. –

Não quero ir embora.

– Eu sei. – Consigo sentir o sabor das suas lágrimas nos meus lábios.

Os sentimentos elevam-se em mim como ondas no oceano. É tão intenso

que tenho de fechar os olhos. – Vemo-nos outra vez daqui a uma

semana. Não te preocupes, gatinha. Porta-te bem. Isso vai fazer o tempo

voar depressa e, mal dês por ela, vais estar de volta.

De cada vez que ela solta um soluço de choro, parece que me

acertaram com uma chave-inglesa.

Sento-me no sofá a ouvir a música e a sentir-me miserável. Passado

algum tempo, sinto um ligeiro toque de bigodes contra as costas da

minha mão. Uma cabeça sedosa empurra-me a palma da mão.

Olivia saiu do esconderijo e sabe que preciso dela.

Saio para a floresta com um bidão de piretrina. A floresta é diferente

durante o dia. As manchas de luz espalham-se pelo chão como punhados

de grão atirados à toa. Um cervo espreita no meio da folhagem, os olhos

escuros arregalados, e foge. Logo vejo porquê, ao passar pelo homem

com cabelo da cor do sumo de laranja a passear com o cão. O cão sorri
para mim, como sempre. Lembra-se daquela vez quando Olivia tentou

sair de casa. A seguir, sou ultrapassado por uma família a caminhar com

casacos vermelhos a condizer. Acho que estão a discutir. Os rostos das

crianças são pequenos e sérios, o pai parece cansado. A mãe caminha à

frente, como se estivesse sozinha.

Continuo a andar para lá do sítio onde normalmente saio do trilho

para a clareira e sento-me num tronco cortado, à espera. A família passa

em silêncio. O pai acena-me um cumprimento. Estão mesmo a discutir.

As famílias são complicadas.

Quando os casacos vermelhos desapareceram no meio das árvores

iluminadas pelo sol, dou a volta até à clareira. A lona ainda lá está. Está

encorrilhada em cima das folhas secas como a pele de um monstro

morto. As formigas caminham apressadamente por cima da lona. Não

pode ficar aqui. Pode chamar a atenção para este sítio. Pego num pau

comprido e enrolo-a num monte. A seguir, pendura-a no pau e ponho-a

no saco do lixo que trouxe comigo.

Sigo o trilho de formigas a marchar até às entradas principais do

formigueiro. São quase translúcidas à luz do sol, parecem umas

coisinhas tão inofensivas. Ninguém diria que podem causar tanta dor.

– Desculpem – digo.

Verto a piretrina para dentro do formigueiro, pelos buracos no chão,

e para dentro do saco com a lona.

Não sabia se o formigueiro ainda estaria ali, no canto noroeste, mas

pareceu-me provável. São criaturas territoriais. Foi difícil para mim

ouvir os gritos de Lauren, ouvir a dor dela ao ser picada. Mas era

necessário… ela tem de aprender.

Tenho de admitir que Lauren está muito melhor hoje em dia. Não

houve repetições do incidente no centro comercial.


Fico parado no centro da clareira, que é também o centro do padrão.

Aqui cai uma coluna de luz do sol. Saúdo os deuses e sinto o seu poder.

Eles estendem-se para mim dos seus sítios por baixo do solo de floresta.

É como ser puxado em direções diferentes por fios ténues. A Mamã tem

razão. Mal o meu braço fique bom, tenho de lhes encontrar uma casa

nova. As pessoas começam a senti-los. Aquela família chegou perto de

mais.

Ao subir os degraus diante da casa, noto que estão limpos. O vento

deve ter soprado as folhas secas. Assim não pode ser. Quando as pessoas

se aproximam da casa, preciso de ouvir. O que faço é: esmago uns

enfeites natalícios e espalho-os por cima dos degraus. Isto produz um

ruído agudo que me avisa da chegada de visitantes. Não é perigoso. As

pessoas usam sapatos. Isto é, eu sei que saí descalço no outro dia, mas a

maioria das pessoas não faz isso. É um facto.

Enquanto espalho os pedaços partidos de fibra de vidro, capto

movimento pelo canto do olho. Viro-me para ver, esperando estar

enganado. Mas não estou. Os jornais desapareceram de uma das janelas

no andar de baixo da casa abandonada ao lado da minha. Enquanto

observo, uma mão pálida arranca mais jornais amarelados, deixando a

janela destapada como um olho escuro e fundo. A janela abre-se e uma

mão atarefada atira fora um pazada de pó. A seguir, vem o som de

alguém a varrer vigorosamente.

Entro em casa e tranco a porta. Encosto o olho ao buraco de vigia

virado para leste, para a casa vazia. Talos altos de rabo-de-gato batem

contra o vidro, mas ainda consigo ver bem. Vejo um camião branco a

parar. No lado, tem escrito em letras cor de laranja o nome da uma

empresa de mudanças. Uma mulher sai pela porta da frente, desce os

degraus com passos ágeis e abre a porta traseira do camião. Tem uma
expressão fixa à volta da boca. Fá-la parecer mais velha do que

provavelmente é. Parece não dormir muito. Um homem de uniforme

castanho sai do lado do condutor do camião. Juntos, começam a

descarregar. Caixas, candeeiros, uma torradeira. Um cadeirão. Não é

muita coisa.

A mulher olha na minha direção, para onde estou escondido à

espreita. Os seus olhos parecem atravessar a cortina de ervas altas até à

sala escura onde estou sentado. Baixo-me, mesmo sabendo que ela não

me consegue ver. Isto é muito mau. As pessoas têm olhos para ver e

ouvidos para ouvir, e as mulheres veem e ouvem com mais cuidado do

que os homens.

Fico tão perturbado que tenho de ir à cozinha preparar um bullshot.

Lamento dizer que não inventei a bebida. Devem conseguir encontrar a

receita, mas fiz-lhe algumas pequenas modificações, por isso vou gravar.

Após uma longa busca, encontro o gravador por baixo da cama.

Devo tê-lo empurrado com o pé sem querer.

Receita do bullshot Bannerman. Ferva um pouco de caldo de carne e

tempere com pimenta e Tabasco. Pode juntar uma colher de mostarda.

Também gosto de acrescentar sal de aipo. A seguir, junte um copo

pequeno de bourbon. Ou talvez dois. É suposto adicionar sumo de

limão, mas as pessoas que gostam de sumo de limão são as mesmas

pessoas que adoram salada. Isso não entra em minha casa.

Bebo três antes de começar a sentir-me melhor. A seguir, tomo o

meu comprimido e, quando dou por ela, estou agradavelmente

sonolento. É como a Mamã costumava dizer: se tens dores, tomas

medicamentos. Se tens um corte, levas pontos. Toda a gente sabe isso.


A Mamã costumava contar-me a história do ankou, o deus de muitas

caras que vivia nos cemitérios da terra dela. É tão assustador… ter mais

do que uma cara. Como podemos saber quem realmente somos? Quando

era pequeno, às vezes pensava que via o ankou no meu quarto à noite, a

pairar no escuro. Um homem velho com uma faca comprida, o reflexo da

lâmina nos olhos. A seguir, era um veado, com as hastes compridas

untadas de sangue. A seguir, uma coruja de olhos abertos, estática como

pedra. Era o meu monstro. Nem sequer me lembro exatamente do que a

Mamã me contou sobre ele… ou que partes foram acrescentadas à noite

pela minha mente. Pensar nele ainda me faz tremer. Mas agora tenho

Olivia. Quando faço festas no pelo dela ou a ouço, simplesmente, a

andar pela casa, lembro-me de que estou seguro e que o ankou está

muito longe.

Enquanto adormeço, as palavras do senhor bicho dão voltas na

minha cabeça, como um carrossel. Pode ser solitário guardar segredos.

É estranho, porque, por um lado, sou muito solitário; por outro, tenho

mais companhia do que consigo aguentar.

Estou quase a adormecer quando a campainha rasga o ar como um

martelo pneumático.
Olivia

O diabo da campainha está a tocar e Ted não se levanta. Dorme

sempre até tarde quando esteve na floresta. Consigo ouvi-lo a ressonar

como um tambor de fanfarra. Lá vai outra vez. BRRRRRRRRRR. Não,

não é como um tambor. É mais parecido com uma serra ou um martelo

elétrico na cabeça. Vamos lá, o ted com polegares oponíveis tem de

acordar e ir à porta. Eu não posso, pois não? Sou um gato. A sério, que

diabo.

Corro escadas acima e caminho em cima da cara dele até ele acordar.

Ele geme com o esforço de vestir roupa sobre o corpo. Percorro o

contorno do corpo quente nos lençóis, enquanto os passos dele se

afastam como trovões escadas abaixo. Lá vão as fechaduras, tum, tum,

tum. Ele abre a porta. Outra voz faz uma espécie de pedido. Acho que é

uma ted fêmea. Espero confiantemente. Ted vai dizer a este outro ted

para onde pode ir! Ele detesta pessoas que tocam à campainha. Afinal,

os outros teds são perigosos. Já me disse isso vezes suficientes.

Mas, em vez disso, para meu horror, ELE DEIXA ENTRAR O OUTRO TED.

A porta fecha-se e ouço o trovão. A casa inteira treme. O tapete desliza

por baixo de mim. Estou a miar e a tentar segurar-me com as garras. As

traves do telhado rangem e gemem, as paredes estremecem. O tecido de

toda a realidade ameaça desfazer-se.

Lentamente, o mundo volta ao sítio. Mas não consigo mexer-me do

meu sítio por baixo da cama. Estou paralisada de horror, com o coração

aos saltos. O cheiro novo dela enche a casa, enche-me as narinas. Parece

pimenta-preta a arder. Esta ted está a fazer-me sentir demasiado…

Quem é ela? Ou o quê…

Lá em baixo, os teds estão a falar como se nada se passasse. Acho

que estão na cozinha. Não os quero ouvir, é claro que não quero, mas é
difícil não o fazer. A senhora ted vai viver na casa ao lado. Então ela diz

qualquer coisa sobre pôr um gato numa máquina de lavar. NOSSO

SENHOR nos acuda! É um diabo de uma psicopata, como na televisão.

A voz de Ted assume um tom estranho. Será… interesse? Felicidade?

Seja o que for, é horrível. E se ele a convidar a voltar? E se isto começa a

acontecer o tempo todo? A conversa parece não ter fim e eu penso, Uau,

só faltava convidá-la para vir morar connosco, pela maneira como está

a falar. Por fim, as vozes deles voltam para a entrada da casa. Ele leva-a

até à porta.

– Se precisares de ajuda com alguma coisa – diz a senhora ted ao

sair, mais alguma coisa sobre um braço partido que não entendo bem.

Finalmente, ela sai e ele fecha a porta.

Uau. Isto não está certo. É mau, mau, mau. O guincho atinge um tom

que me faz sentir como se a cabeça me fosse explodir. Aquilo foi uma

violação da confiança entre nós… e que temos nós se não tivermos

CONFIANÇA? E se a senhora ted for uma assassina? E se ela decide

voltar? INACEITÁVEL.

Ted sobe as escadas e a cama range amigavelmente acima da minha

cabeça. Vai voltar a dormir, claro. Ele chama por mim, mas estou

completamente abalada e saio a correr do quarto. Dá para ver que ele

NÃO tem sentimentos, porque minutos depois está a ressonar de novo.

Ando de um lado para o outro na sala. Os buracos de vigia fitam-me

como olhos tresloucados. Nada parece seguro. Estico as unhas no tapete

bom, mas nem isso me dá o conforto habitual. Estou tão PERTURBADA

que nem os meus olhos funcionam como deve ser. Tudo parece da cor

errada, as paredes parecem verdes, o tapete, azul.

Ele tem de aprender uma lição. Desta vez, partir coisas não chega.

Dou um salto louco de cima do balcão para a porta do frigorífico.

Por fim, seguro o puxador com uma pata e a porta abre-se. Solto um
pequeno prrr de satisfação. O frio liberta-se como nuvens. Neste tempo

quente, não vai demorar muito a derreter tudo. A cerveja vai ficar

quente. O leite e a carne vão estragar-se. Ótimo. Olhem para a minha

taça! Vazia! Ele que veja se gosta.

Sinto-me melhor depois disso. Quando volto para a sala, fico aliviada

ao ver que os meus olhos voltaram ao normal. Consigo enroscar-me no

tapete cor de laranja e dormir uma sestinha, que, para ser honesta, bem

mereço, diabo, depois de tudo o que sofri.


Dee

Algo cede sob os seus pés com um estalido. Pequenos cacos

brilhantes no meio das folhas e da terra que cobrem os degraus. Como

se uma caixa cheia de decorações natalícias se tivesse estilhaçado por

todo o lado. Dá um toque febril de irrealidade à cena.

Dee interroga-se se vai saber, imediatamente, assim que o vir.

Certamente a verdade vai emanar do corpo dele, como um odor.

Toca à campainha umas 30 ou 40 vezes. Vê movimento pela janela,

mas ninguém abre a porta e Dee interroga-se se devia ir-se embora.

Parte dela suspira de alívio, mas não se acha capaz de passar por tudo

aquilo outra vez. Mãos à obra, Dee Dee – a voz do pai a ecoar-lhe na

cabeça. O lema austero de pai e filha durante aqueles longos seis meses,

quando eram só eles os dois. Respira fundo e mãos à obra, por muito

desagradável que fosse, por muito que o coração batesse à noite, viessem

os sonhos que viessem. Mãos à obra. Dee endireita um pouco as costas.

Nesse momento, ouve um som arrastado dentro da casa. Um barulhinho

agudo… seria um gato? A seguir, sons mais pesados, um corpo grande a

fazer peso sobre degraus, tábuas, soalho.

Ouvem-se três fechaduras diferentes e a porta abre uma frincha. Um

olho castanho e cansado aparece, emoldurado por um rosto pálido com

tufos de cabelo. A barba é ruiva, de um tom muito mais vivo do que as

madeixas baças de cabelo castanho que lhe caem sobre a testa… é uma

cor atraente, dá-lhe um ar de pirata, quase jovial.

– Olá – diz ela.

– O que foi?

A voz é mais aguda do que ela contava.


– Sou a nova vizinha. Dee. Queria dizer… bom, queria dizer olá, e

trouxe uma tarte.

Dee estremece e contém a vontade de comentar que é poeta e nem

sabia. Em vez disso, estende a caixa com a tarte de abóbora fora de

época que comprou na mercearia – e repara que a caixa tem uma

camada de pó.

– Tarte – diz ele.

Uma mão pálida estica-se pela porta e agarra a caixa. Por um

momento, Dee quase espera que a pele dele comece a fervilhar com a

luz do sol. Ela não larga a caixa de cartão húmido e por um momento

ficam presos num jogo indeciso de força.

– Desculpa incomodar-te – diz ela –, mas só me vêm ligar a água

hoje à tarde. Posso usar a tua casa de banho? Foi uma viagem demorada.

Ele pisca os olhos.

– Agora não é muito conveniente.

– Eu sei – sorri Dee. – A vizinha acabou de chegar e já está a ser

uma chata. Desculpa. Já tentei noutras casas da rua, mas acho que estão

todos a trabalhar.

A porta abre-se.

– Pode ser, se for rápido – diz, de forma áspera.

Dee entra para um submundo; uma caverna profunda onde o

ocasional feixe de luz cai sobre taludes estranhos, coisas quebradas com

arestas agrestes. Todas as janelas estão tapadas com contraplacado, com

furos redondos para deixar entrar luz.

Ela olha para a esquerda, para a sala de estar. Quando os olhos se

habituam à penumbra, consegue ver pilhas de livros e tapetes velhos a

atulhar o soalho. Há marcas claras nas paredes amareladas, onde antes

deviam estar quadros pendurados. As paredes são de um verde intenso,

como uma floresta. Dee vê um cadeirão coçado, uma televisão. No chão,


está um tapete azul, sujo, que parece feito de pequenas bolas de borboto.

A casa cheira a morte; não a putrefação ou sangue, mas a osso seco e pó;

como um túmulo antigo, há muito esquecido. Tudo está a desfazer-se.

Até o trinco da uma das janelas nas traseiras está completamente

enferrujado. Lascas vermelho-escuras sujam o peitoril. A voz da detetive

cansada soa na cabeça de Dee. Ambiente doméstico caótico. Solteiro. À

margem da sociedade.

A porta da frente fecha-se atrás de si. Dee ouve as três fechaduras a

serem trancadas. Cada cabelo na sua nuca se eriça lentamente, um por

um.

– Miúdos? – pergunta, apontando para a bicicleta cor-de-rosa,

deitada no chão.

– Lauren – responde ele. – Não a vejo tantas vezes como gostaria.

– Isso é difícil.

Ele é mais novo do que ela pensou inicialmente, 30 e poucos, talvez.

Há 11 anos, teria 20 e poucos.

– A casa de banho fica ao fundo do corredor. Por aqui.

– Boa música – diz ela, ao segui-lo.

A música a tocar algures na casa é outra surpresa, música country

sentimental, cantada por uma voz encantadora. Dee repara que Ted tem

falhas de cabelo, como se mãos pequenas lhe tivessem arrancado

punhados de cabelo. Por algum motivo, isso invoca o toque leve e suave

do terror.

Na casa de banho, Dee abre as duas torneiras. Consegue ouvi-lo à

sua espera do outro lado da porta. A perturbação dele, a respiração

animal. Dee fica consciente, em grande detalhe, do seu próprio corpo; a

sua pele, tão forte em alguns lados, como nos calcanhares ou nos dedos

calejados, tão fina noutros, como nas pálpebras. Sente a pelugem

delicada que se ergue nos seus braços, os globos moles dos seus olhos; a
língua comprida e a garganta, os órgãos roxos e o coração musculoso

que bombeia sangue através dela. Agora está a bombear com força.

Todas estas coisas vulneráveis podem ser partidas ou perfuradas: o

sangue pode verter-se; o osso pode tornar-se uma aresta branca

fraturada; os olhos podem rebentar com a pressão de dois polegares. Dee

procura um espelho, para se reassegurar de que ainda está inteira, sã e

salva. Mas não há espelho acima do lavatório ou em ponto algum da

casa de banho sombria e suja.

Dee puxa o autoclismo, lava as mãos e abre a porta.

– Posso beber um copo de água? – pergunta. – Estou a morrer de

sede. Está sempre tanto calor por aqui? Pensava que este sítio era

conhecido pela chuva!

Ele vira-se sem dizer palavra e caminha pesadamente para a cozinha.

Ela olha em redor enquanto bebe.

– Caças? Pescas?

– Não.

Passado um momento, ele pergunta:

– Porquê?

– Deves congelar montes de coisas – diz ela –, para precisares de

duas arcas congeladoras.

Só a pequena combinação frigorífico-congelador parece estar a ser

usada. A outra, uma velha arca congeladora industrial, está vazia e

aberta, com a tampa encostada à parede.

Ele põe um ar embaraçado.

– A Olivia gosta de dormir lá dentro – explica. – A minha gata.

Devia ter-me livrado da arca quando avariou, mas esta coisa fá-la feliz,

sabes? Ela farta-se de ronronar. Por isso, fiquei com ela. Suponho que é

uma burrice.
Dee olha para dentro da arca. O interior está forrado com coisas

macias, cobertores e almofadas. Numa das almofadas, vê um cabelo…

castanho ou castanho-avermelhado. Não parece um pelo de gato.

– A Olivia sai à rua?

Não vê taças de comida ou água em lado nenhum da cozinha.

– Não – responde ele, indignado. – É claro que não, isso seria

perigoso. É uma gata de interior.

– Gosto de gatos – sorriu Dee. – Mas conseguem ser uns sacaninhas.

Principalmente quando ficam velhos.

Ele ri-se, uma gargalhada surpresa.

– Acho que ela está a ficar velhota. Já a tenho há muito tempo.

Quando era miúdo, sempre quis ter uma gata.

– A nossa gata costumava dormir na máquina de secar. O meu pai

até tinha pesadelos. Tinha tanto medo de a confundir com uma camisola

e…

Dee imita uma máquina a rodar, faz a cara de um gato horrorizado a

olhar pelo vidro.

Ele solta outro risinho e ela fez uma pequena dança, imitando o gato

a nadar na roupa suja a rodar.

– És engraçada. O sorriso dele parece torto, empenado, como se não

fosse usado há algum tempo. – Tinha sempre medo de que a Olivia

ficasse fechada lá dentro. Pelo menos, agora não pode sufocar.

Mostra a Dee os buracos que furou na tampa.

– Que bonito – diz ela, passando um dedo por um dos cobertores.

É amarelo, com um padrão de borboletas azuis, e é macio como as

penas de um pintainho.

Ele fecha a tampa da arca lentamente, mas com determinação,

obrigando-a a tirar a mão. Então ela repara na nódoa negra no braço

dele, na mão inchada.


– Ei, magoaste-te. Como é que isso aconteceu?

– A porta do carro trilhou-me o braço – diz ele. – Quero dizer,

fechou-se. Estava parado numa encosta. Pelo menos, não está partido,

acho eu.

Ela faz uma careta.

– Aposto que ainda deve doer. Eu parti o braço uma vez. Era tão

complicado, sabes, abrir frascos e coisas assim. És destro? Se precisares

de ajuda, é só dizeres.

– Ah – diz ele.

Ela deixa prolongar-se o silêncio que se segue.

– Em que trabalhas? – perguntou ele, por fim.

– Quando era pequena, queria ser bailarina – responde Dee. – Agora

não faço nada.

É estranho que aquela seja a primeira vez que ela se permite admitir

aquilo em voz alta.

Ele assente.

– Eu queria ser cozinheiro. É a vida.

– É a vida – diz ela.

À porta, ela aperta-lhe a mão.

– Adeus, Ted.

– Eu disse-te o meu nome? Não me lembro de dizer.

– Está na tua camisa.

– Trabalhei numa oficina – explicou. – Acho que me habituei à

camisa.

Trabalho manual ou desempregado.

– Bom, obrigada – disse Dee. – Foste muito simpático. Não te volto

a incomodar, prometo.

– Estás à vontade.
Então, ele fica alarmado e tranca a porta rapidamente.

Tum, tum, tum.

Ela caminha devagar através do quintal seco. Ele está a observá-la,

claro. Ela sente o peso do seu olhar nas costas. Precisa de toda a força de

vontade para não começar a correr. O encontro abalou-a mais do que

estava à espera. Tivera a certeza de que ele não a deixaria entrar.

Dee fecha a porta de casa com mãos trémulas e senta-se no chão

poeirento com as costas contra a porta fechada. Tenta respirar fundo,

para se acalmar, mas parece que entregou o corpo a outra pessoa. As

mãos abrem-se e fecham-se. Os acessos de calor percorrem-lhe o crânio.

Da garganta, sai-lhe uma respiração ofegante. O coração bate-lhe nos

ouvidos. Um ataque de pânico, pensa ela vagamente. Tenho de me

controlar. Mas é como enterrar-se cada vez mais numa duna de areia;

não consegue escapar.

O pânico acaba por desaparecer. Dee tosse e respira. Apercebe-se de

um cheiro acre na casa, uma mistura de erva seca e pimenteira, acácias e

percevejos. O exterior está a entrar para onde não pertence. Levanta-se,

fraca como um passarinho, e segue o cheiro até à sua origem. Na sala de

estar poeirenta, falta um vidro na janela. Sobre o soalho riscado, rolaram

folhas secas. Algo andou a dormir ali. Não uma doninha-fedorenta, não

lhe parece, mas algum animal. Um gambá ou um guaxinim.

– Não – segreda para a sala vazia. – Este hotel fechou portas.

Dee empurra uma estante pequena para diante do vidro partido,

tapando-o. Provavelmente vai ter de arranjar ela o vidro. O senhorio não

lhe pareceu do tipo que se dá ao trabalho. Não se importa; quanto mais

ele a deixar em paz, melhor.

Em jeito de experiência, olha em redor para a sala, as paredes

acastanhadas por anos de fumo de cigarro e os cantos cheios de pó, e


pensa, Este é o meu lar. Isso fá-la rir um pouco. Não se lembra do

último sítio que lhe pareceu um lar. Quando era jovem, talvez, e Lulu

ainda dormia no quarto ao lado, com o polegar firme nos lábios,

emitindo um ressonar leve e penetrante.

Dee fica surpreendida ao descobrir que o gás está ligado. Prepara um

bife com feijão-verde e batata cozida no ruidoso fogão branco na

cozinha. Come depressa e sem gosto. Não liga à comida, mas tem de

tomar conta de si mesma. Aprendeu a importância disso da pior

maneira. O fogão continua a sibilar, mesmo depois de ela o desligar, e a

cozinha cheira um pouco a gás. Outra coisa que precisa de ser arranjada.

Trata disso amanhã… ou talvez morra durante a noite. Deixa a decisão

nas mãos do destino.

Ao cair da noite, senta-se de pernas cruzadas no chão da sala. A

noite entra pelas janelas, alaga os cantos e espalha-se pelo chão como

uma maré. Dee olha para a escuridão e a escuridão olha para ela. Os

pequenos círculos nas janelas de Ted iluminam-se. Num deles,

estremecem cor e movimento… a televisão, calcula ela. Mais tarde, os

círculos ficam escuros no andar de baixo e, durante alguns minutos, duas

luas brilham no andar de cima. Apagam-se às dez. Deita-se cedo,

então… nada de televisão nem livro na cama. Fica à espreita por mais

uns momentos. A casa está às escuras, mas não consegue afastar a

sensação de que não está em repouso. Há algo de maníaco na sua

inatividade. Mas Dee continua a observar e não acontece nada. Fica com

cãibras de exaustão nos membros; a escuridão gira em torno dela.

Também devia dormir. Tem uma longa estrada pela frente.

A casa de banho está revestida de velhos azulejos brancos,

atravessados por rachadelas. O zumbido de uma luz fluorescente paira

acima, cheia de cadáveres de traças e moscas. Dee põe cobertores e


almofadas na banheira. O sítio mais seguro em caso de terramoto,

costumava dizer o pai. Além disso, não tem nenhuma cama. Dee pousa

o martelo ao lado, na tijoleira fria. Fecha os olhos e treina-se a agarrá-lo,

reforçando a memória muscular, imaginando-se a acordar do sono,

imaginando um vulto escuro erguendo-se sobre ela.

Imagina a cara de Lulu, a maneira como as expressões lhe

atravessavam o rosto, nuvens diante do sol.

Lê O Monte dos Vendavais. Está a poucas páginas do fim. Quando

acaba, abre o livro numa página à sorte e continua a ler. Dee só lê aquele

livro. Gosta de ler, mas uma pessoa nunca sabe o que um livro nos vai

fazer – e não se pode dar ao luxo de ser apanhada de surpresa. Pelo

menos, as personagens de O Monte dos Vendavais entendem que a vida

é uma escolha terrível, que temos de fazer todos os dias. Deixa-me

entrar, implora Catherine. Deixa-me entrar.

Quando apaga a luz, a escuridão é intensa e absoluta. A casa respira

à sua volta como uma pessoa, com tábuas a ranger, a soltar o calor

acumulado do dia. As estrelas espreitam pela janela. Na verdade, a casa

não faz parte da cidade… está quase na floresta. Dee está tão perto de

onde tudo aconteceu… O ar retém a memória do episódio, de alguma

forma. As partículas do acontecimento são levadas pelo vento, jazem na

terra, nas árvores antigas e no musgo molhado.

Os sonhos dela estão cheios com um sol abrasador e o medo da

perda. Os pais caminham pelo deserto, de mão dada, sob um céu repleto

de estrelas. Dee observa o máximo de tempo que consegue, mas os

pássaros vermelhos levantam voo, e o céu fica branco, e o som das suas

asas é um leve roçagar plumoso. Dee senta-se na escuridão, com o

coração aos saltos. Escorre-lhe suor pelas costas e pelo meio dos seios.

O som seguiu-a para fora do sonho. Do andar de baixo, vem o barulho


outra vez. Dee percebe que não são asas, mas algo a arranhar, como uma

unha comprida sobre madeira.

Com a palma da mão escorregadia, segura o cabo de borracha do

martelo. Desce devagar. Cada tábua range como um tiro sob os seus pés.

O arranhar continua, unhas ou garras afiadas a raspar na madeira.

Percebe que aconteceu um deslize crítico entre mundos. Deixa-me

entrar… deixa-me entrar. Uma ténue luz prateada jorra pelas janelas

sem cortinas da sala. O arranhar é mais rápido, mais insistente. Dee

pensa ouvir outro som atrás do arranhar… agudo e quebrado. Talvez um

choro. A estante treme, como se a criatura atrás de si estivesse a crescer

em fúria e força.

– Eu deixo-te entrar – sussurra Dee.

E puxa a estante para o lado. A estante move-se com um guincho

arrastado. Dee vê o que está agachado do outro lado da janela, a olhar

para dentro. O martelo cai ao chão. Dee ajoelha-se e fica frente a frente

com a criatura, a criança, com a carne prateada marmoreada pelo luar, a

boca uma cereja negra, olhos a luzir como lanternas, cheios da luz da

morte, a cabeça estriada e ferida, onde os pássaros lhe arrancaram o

cabelo do crânio.

– Entra – sussurra Dee, entendendo a mão.

A criança sibila para ela, um som de outro mundo, e Dee arqueja. O

medo inunda-a completamente, tão frio que pensa que lhe vai parar o

coração. A boca da criança abre-se, a mão avança para agarrar o braço

de Dee, para a puxar para fora deste mundo, para o que a espera do outro

lado. Dee vê dentes brancos encastoados como pérolas nas mandíbulas

poderosas. Vê os dedos rombos e mutilados. O pequeno rosto pálido

parece ondular na luz incerta, como se estivesse debaixo de água.

Dee grita e o som quebra o sonho, ou seja lá o que aquilo for. Vê que

não está uma menina morta à janela. É um gato, a bufar de boca aberta,
o pelo malhado descorado pelo luar. O gato ataca Dee e ela consegue ver

que não tem garras nas patas mutiladas. Dee recua, fazendo um som

reconfortante. O gato vira-se para fugir, mas olha para Dee por um

momento, um rosto afilado na penumbra. Então desaparece, agilmente

engolido pelo jardim escuro.

Dee senta-se sobre os calcanhares, a tremer.

– Era só um gato vadio – diz. – Não leias livros assustadores antes de

dormir, sim, Dee Dee? Nada de mais. Não há problema.

Isto é um velho hábito dela… dizer em voz alta o que o pai teria

querido ouvir, enquanto mantém escondidos os seus sentimentos

verdadeiros. Não é altura para perder a cabeça. Volta a pensar em Lulu e

isso funciona. Ter um propósito acalma-a. O coração de Dee abranda

para um ritmo incerto.

Dee olha para o emaranhado de vegetação que infesta o seu quintal.

É selvagem, impenetrável, fragoso à noite. Qualquer coisa pode estar ali,

escondida. Pode avançar sorrateiramente até à casa, até às janelas. E

então, estendendo um dedo comprido… Alguns dos vizinhos cortaram a

vegetação dos quintais até ao solo, observa. Presumivelmente, para

evitar que cobras e outras pragas façam ninho. Dee estremece. O quintal

de Ted é caótico como o dela. Observa a vegetação que cresce

descontrolada no quintal dele. Ao luar, parece mover-se, contorcer-se

lentamente. Abana a cabeça, nauseada. Aquele dia no lago tirou quase

tudo a Dee, mas também lhe deixou algo. Chamam-lhe ofidiofobia, um

medo irracional de cobras. Dee vê-as por todo o lado, enroladas na

sombra. O terror abranda-lhe a mente e o coração a um ritmo glacial.

Lentamente, junta as mãos e leva-as aos lábios, tapando a boca como

uma máscara. Sussurra para a palma das mãos, um nome e uma

pergunta, vezes e vezes sem conta. As nuvens passam diante da Lua,


atirando luz e sombra sobre o rosto dela, reluzindo no rasto molhado das

lágrimas.

Na manhã seguinte, Dee retoma o seu posto à janela da sala. Mantém

sempre as cortinas corridas e não acende as luzes depois de anoitecer.

Sabe como uma janela iluminada brilha como um farol na noite. Pelos

vistos, Ted também sabe. As janelas entaipadas dão a impressão de que

a casa dele lhe virou costas deliberadamente, para encarar a floresta.

Dee começa a conhecer os hábitos dele. Às vezes, vai até à floresta e

não volta durante uma noite, ou mais. Outras vezes, vai à cidade, e essas

visitas costumam ser mais curtas, às vezes apenas horas, ou uma noite.

Às vezes, regressa muito bêbedo. Uma manhã, apenas fica parado no

jardim da frente a comer o que parece ser um pickle com manteiga de

amendoim. Olha em frente, sem expressão, e os maxilares movem-se

mecanicamente. No quintal, há comedouros e bebedouros, mas os

pássaros nunca vêm. O que sabem os pássaros?

Ela descobre tudo o que pode na Internet. Às vezes, Ted envia os

seus avistamentos para a coluna de aves raras no jornal local. A mãe

dele é enfermeira. É muito bonita, num jeito antiquado que parece

dissociado de coisas como o corpo ou comida. Na fotografia com grão,

segura um certificado com dedos delicados – Enfermeira do Ano do

Condado. Dee interroga-se o que fará a uma pessoa ter um filho como

Ted. Será que ainda o ama? Onde está ela?

Da primeira vez que Dee tenta seguir Ted até à floresta, ele para na

entrada do trilho e fica à espera no escuro. Ela ouve-o a respirar e fica

paralisada. Tem a certeza de que ele consegue ouvir o coração dela.

Passado algum tempo, ele solta um som como um animal pesado e

embrenha-se na floresta. Ela sabe que não o pode seguir, não dessa vez.

Ele sentiu-a ali.


Apesar de tudo, fica aliviada. A floresta escura parece cheia com a

passagem deslizante de cobras. Dee volta para casa e vomita.

Depois disso, prefere vigiar a casa. Afinal, não veio para ali por

causa dele. Espera, paciente. O Monte dos Vendavais jaz, aberto, no seu

colo, mas ela não olha para o livro. Observa a casa sem parar, memoriza

cada lasca de tinta que se descasca da madeira velha, cada prego

ferrugento, cada talo de cavalinha e dente-de-leão que bate contra as

paredes.

Dois dias mais tarde, quase desistiu. Então, por entre o canto das

cigarras, e as abelhas, e as moscas, e o chilreio dos pardais, e o ronco

distante dos cortadores de relva, ouve algo que parece o tinido de vidro a

partir. Todas as fibras do seu ser tentam ouvir o som. Veio de casa de

Ted? Tem quase a certeza que sim – quase a certeza absoluta.

Dee levanta-se do chão, dorida depois da longa vigília. Decide que

vai até lá. Julgou ter ouvido uma janela a partir, pensou em ladrões, está

apenas a ser uma boa vizinha… É um gesto natural.

Enquanto se levanta, vê Ted a caminhar pela rua. A sua passada é

deliberadamente cuidadosa, como a de alguém que está bêbedo ou

ferido. Carrega um saco plástico pelas asas.

Dee volta a sentar-se, rapidamente. Ao avistá-lo, a visão dela

escurece na periferia, as palmas das mãos ficam suadas. As reações do

corpo ao medo são semelhantes às do amor.

Ted abre a porta, movendo-se com aquele cuidado sinistro.

Momentos depois, ouvem-se risos. Talvez a televisão. No meio do ruído,

Dee ouve uma voz aguda a dizer «Eu não quero estudar álgebra».

Segue-se o murmúrio grave de uma voz masculina. Pode ser Ted.

Dee esforça-se por ouvir. A cabeça dói-lhe com o esforço. A extensão de

ar estival entre as duas casas parece densa e impenetrável como melaço.


Uma menina pequena a cantar uma canção sobre bichos-de-conta. Em

todos os seus dias de vigia, Dee nunca viu ninguém entrar ou sair a não

ser Ted.

Dee sente-se inundada de alívio e horror, tão intensamente que

consegue sentir-lhes o sabor na boca, como lama e água. O seu maior

receio e a sua maior esperança são confirmados. Naquela casa há uma

criança que nunca sai. É tudo o que sabes por enquanto, diz

severamente a si mesma. Um passo de cada vez, Dee Dee. Mas não se

consegue conter. Lauren, pensa ela. Lulu. O nome dela é Laura. Lulu,

Laura, Lauren. Nomes tão próximos, quase decalcados.

Aos ouvidos de Dee, naquele momento, o som da menina a cantar

soa exatamente como a sua irmã. O timbre, o ritmo da voz.


Ted

– Não quero estudar álgebra.

Lauren está a amuar, com aquele trejeito do lábio que me tira do

sério.

– Azar – digo eu. – E nada de lamúrias, estás a ouvir? Hoje é dia de

álgebra e geografia, acabou-se a cantoria, é isso que vamos fazer. Mesa

da cozinha, livros… já, por favor.

Saiu-me mais ríspido do que tencionava. Estou cansado e não

suporto quando ela fala neste tom. Escolheu mesmo bem o dia. Tenho

muito menos comprimidos do que pensava.

– Dói-me a cabeça – diz ela.

– Pois, tens de parar de puxar o cabelo.

Ela pega numa madeixa fina de cabelo castanho e rói a ponta. A

seguir, puxa-a com força. Já tem pedaços ralos de cabelo por toda a

cabeça. A coisa de que mais gosta é de arrancar cabelo. Meu, dela… não

importa.

– Queres que te mande embora mais cedo? Comporta-te, por amor

de Deus.

– Desculpa, Papá.

Ela debruça a cabeça sobre a página. Provavelmente, não vai estudar

álgebra, mas pelo menos tem o bom senso de fingir. Ficamos calados por

algum tempo.

– Papá?

– Sim?

– Hoje faço eu o jantar. Pareces cansado.

– Obrigado, Lauren.

Tenho de limpar uma lágrima antes que ela veja. Sinto-me mal por

andar tão rabugento. E não consigo evitar ter esperanças de que ela
comece a interessar-se por comida.

Deixa tudo desarrumado, é claro. Usa todas as panelas da cozinha e

um cheiro acre enche a casa quando ela deixa queimar o fundo.

– Para de olhar para mim, Papá. Eu consigo.

Levanto as mãos e afasto-me.

A massa está meio crua e o molho fica aguado e sem sabor. Tem

pedacinhos de carne fria no meio. Como tudo o que ela me serve.

– O melhor jantar que já comi – digo-lhe. – Obrigado, gatinha.

Usaste a carne fresca que comprámos hoje?

Ela assente.

– Mmmmm – digo eu. – Não estás a comer muito.

– Não tenho fome.

– A Mamã costumava dizer: «O cozinheiro nunca tem fome». A tua

avó. Ela dizia isso muitas vezes. Além de, «Nunca chames louca a uma

mulher».

– Ela não era minha avó – diz Lauren baixinho.

Deixo passar porque ela se esforçou tanto hoje.

A seguir, limpo a cozinha, o que ainda demora algum tempo, e

preparamo-nos para uma noite calma. Lauren está sentada no chão da

cozinha. A noite parece estar a ficar mais quente e não mais fresca.

Estamos cobertos de suor.

– Posso abrir uma janela, Papá?

– Sabes bem que não podemos.

Mas gostava que pudéssemos. O ar é calor em estado sólido.

Solta um grunhido de desagrado e tira a blusa. A camisola interior

dela está suja, precisamos de fazer uma carga de lavandaria. O som seco

do marcador no papel é relaxante. Quando o som para, ergo o olhar para


ela. À sua volta, está um mar de lápis de cor, um mar de marcadores,

todos destampados.

– Lauren! Põe as tampas nos marcadores, por favor. Os marcadores

não crescem nas árvores.

Mas ela fita o infinito, com um olhar vidrado.

– Estás bem, gatinha?

Ela não responde, mas solta um queixume fraco que quase me para o

coração. Quando lhe ponho a mão na testa, está fria e húmida, como a

parte de baixo de uma pedra.

– Ei – digo eu. – Vamos para cima, vou pôr-te na cama…

Ela começa a responder, mas, em vez disso, sai-lhe um jorro quente

de vómito da boca. Lauren nem sequer tenta evitar a porcaria, limita-se

a ficar deitada onde está. Quando tento movê-la, saem coisas que não

deviam sair. Limpo tudo o melhor que posso, arrefeço-a com água, tento

dar-lhe aspirina e ibuprofeno para controlar a febre, mas ela vomita tudo.

– Anda, gatinha.

Mas algo estranho acontece. A minha voz começa a soar muito

distante. Uma lança incandescente atravessa-me a barriga. Algo começa

a ferver e a queimar lá em baixo. Ó meu Deus. O preto e o vermelho

descem sobre nós. Ficamos estendidos no chão da cozinha, a gemer

enquanto as nossas tripas se contorcem.

Eu e Lauren ficamos doentes durante um dia e uma noite. Trememos

e suamos. O tempo abranda, para e recomeça, arrasta-se como uma

minhoca.

Quando começa a passar, dou-lhe água e uma bebida energética que

encontrei num armário. Mais tarde, nessa noite, barro manteiga em

bolachas de água e sal e dou-lhas, uma de cada vez. Abraçamo-nos.

– Está quase na hora de ires – digo-lhe.


O seu rosto já tem alguma cor.

– Tenho mesmo de ir? – segreda ela.

– Porta-te bem. Vemo-nos daqui a uma semana.

Ela fica quieta nos meus braços. Então, começa a gritar. Arranha-me

e debate-se. Ela sabe que estou a mentir.

Eu seguro-a com força.

– É melhor assim. Por favor, gatinha, não resistas.

Mas ela resiste e eu perco a paciência.

– Estás de castigo até eu dizer. Estavas a pedi-las.

Sinto a cabeça a andar à roda, os intestinos derretidos, mas tenho de

saber. Olho para o lixo, para onde atirei a carne que se estragou quando

deixei a porta do congelador aberta. As larvas brancas contorcem-se na

massa castanha. Há bastante menos no saco do que havia hoje de manhã.

Algo quente sobe-me à boca, mas consigo conter-me.

Vou deitar o lixo fora, algo que devia ter feito imediatamente. O

mundo cambaleia, o ar parece sólido. Nunca me senti tão doente.

Há anos que Lauren não tentava nada assim. Sinto-me um idiota,

porque pensava que éramos amigos. Não me devia ter descuidado tanto.

O disco arranha o silêncio. A voz da mulher enche o ar. Não gosto

desta música. Tem demasiada pandeireta, mas deixo tocar.

Verifico tudo com cuidado. A faca está no armário alto, no lugar

dela. O cadeado do portátil está trancado. Mas o metal parece… baço,

talvez, como se tivesse sido muito manuseado por mãos suadas, como se

alguém tivesse andado a experimentar combinações. Amo a minha filha,

mas tenho a certeza de que ela tentou envenenar-nos aos dois.

Quando conto os marcadores e os lápis de cor, falta um marcador

cor-de-rosa. Pior ainda, quando vou guardá-los no armário, vejo a minha


lista de suspeitos de Assassinato em cima das caixas de lápis de cor. Não

a pus lá. Quando pego na lista, vejo que outro nome foi acrescentado

num cor-de-rosa doentio.

Lauren, lê-se na letra trémula dela. Este, é claro, sempre foi o meu

receio.

Enrolo-me no sofá como um bicho-de-conta; a negridão invade-me

os limites da visão. Sinto o estômago a contrair-se. De certeza que já

saiu tudo, de certeza que já acabou. Ó meu Deus.


Olivia

Sei que não está na hora dela, mas estou a espreitar pela minha

vigia na mesma. Amor também é esperança. Céu cinzento, tufos de

relva, um triângulo de gelo no passeio. Parece estar bastante frio lá

fora. Num dia assim, não é muito mau ser uma gata de interior.

Atrás de mim, a televisão está ligada. Algo acerca de ruas na

madrugada e caminhar. Às vezes, Ted deixa-a ligada para me fazer

companhia. Às vezes, a televisão liga-se sozinha. É bastante antiga.

Pode-se aprender muito na televisão. Também gosto que esteja ligada

porque abafa o zumbido agudo que agora é o meu companheiro

constante. Iiiiiii, iiiii.

Devo ter adormecido, porque acordo sobressaltada quando uma voz

fala para mim. No início, penso que é o SENHOR e levanto-me depressa.

Sim?

– Temos de investigar o trauma – diz a voz. – Ir às raízes. Revisitá-

lo, para o podermos purgar.

Bocejo. Às vezes, este ted aparece na televisão e é muito aborrecido.

Não gosto dos olhos dele. Redondos, como duas vigias azuis. Sinto

sempre que o consigo cheirar quando aparece na televisão, o que me dá

calafrios na cauda. Tresanda a pó e leite estragado. Mas como? Não dá

para cheirar os teds na televisão!

A televisão é tão má durante o dia. Acho que é um canal público ou

algo assim. Quem me dera conseguir mudar de canal.

Acho que devia ter o meu próprio programa de televisão, seria

mesmo divertido. Podia chamar-se GATOnomia com a Olivia, e eu

descreveria tudo o que tinha comido nesse dia. Falaria do meu amor,

dos seus olhos de tigresa e da sua passada suave. Também investigaria

os tipos e qualidades de sestas que existem, porque há tantos tipos


diferentes. Curtas e profundas… a essas chamo «o poço dos desejos».

As sestas muito leves, só com um olho fechado, que podem durar

horas… a que chamo «pranchas de skate». As que dormimos diante da

televisão quando está a dar um programa bom (este NÃO) e uma pessoa

consegue seguir o enredo, mesmo estando a dormir… chamo a essas

«sussurrantes». Ou quando nos fazem festas até adormecermos e o

murmúrio do nosso ronronar se mistura com a voz profunda da terra…

ainda não tenho um nome para essas, mas são tão boas…

Seja como for, acho que seria bom partilhar a minha experiência e

todos os meus preciosos pensamentos. Um pouco como estou a fazer

agora, mas num meio visual, porque sou muito fotogénica.


Ted

Sinto tanto a falta de Lauren. Agora que passou o choque inicial, sei

que ela não pode ser o Assassino. Não que ela não o fizesse, mas não

tinha como. Ela não consegue sair de casa. Onde é que arranjava as

armadilhas? E como as punha no quintal sem eu dar por ela? Não, não

pode ser Lauren. Escreveu o nome dela na lista para me perturbar. Ela

gosta disso.

Por enquanto, tem de ficar afastada, até eu perceber o que fazer com

ela.

Quando o dia do senhor bicho chega de novo, já perdi quilos e

quilos. Estou fraco, mas consigo andar pela rua sem cambalear. Isso é

bom. Tenho perguntas para ele.

Começo a falar antes mesmo de ele fechar a porta.

– Comecei a ver uma série nova – digo. – É mesmo boa.

O senhor bicho aclara a garganta e empurra os óculos para cima. São

quadrados com aro grosso, provavelmente caros. Pergunto-me como será

a vida dele, se alguma vez se farta de ouvir pessoas a falarem delas

próprias o dia todo.

– Como já lhe disse, se quer passar o nosso tempo a falar do que viu

na televisão… a sessão é sua. Mas…

– A série é sobre uma menina, uma adolescente, que tem… bom,

certas tendências. O que quero dizer é que ela é violenta. Gosta de

magoar pessoas e animais. A mãe ama-a muito e está sempre a tentar

protegê-la e impedi-la de matar. Um dia, a mãe magoa-a e ela já não

consegue andar. É um acidente, a mãe não a queria magoar, mas a

menina odeia-a por causa disso. Pensa que a mãe fez de propósito, o que
é muito injusto, na minha opinião. Ora bem, a menina tem de ficar em

casa por causa da deficiência. E está sempre a tentar matar a mãe. A mãe

passa a vida a encobrir a violência da filha e a protegê-la enquanto

esconde a verdadeira natureza dela.

– Parece complicado – diz o senhor bicho.

– Fiquei a pensar… se isso acontecesse na vida real, a mãe podia

fazer alguma coisa para educar melhor a filha, para ela deixar de ser

violenta? E isso é hereditário? Quero dizer, foi a mãe que deixou a filha

tão furiosa? Ou foi algo que veio de dentro?

– Inato ou adquirido? Isso são grandes questões. Acho que precisava

de saber mais sobre a situação – diz o senhor bicho.

Agora está a observar-me atentamente, com os seus olhos redondos

de grilo. Quase consigo ver as antenas a abanar acima da cabeça.

– Bom, não sei mais nada. A série só começou agora, OK?

– Eu entendo. Acha que ajudava falar da sua filha nesta altura?

– Não!

Ele olha para mim. Agora os olhos parecem achatados, como duas

moedas falsas.

– Há um monstro dentro de cada um de nós – diz ele. – Se deixar o

seu sair, Ted, pode ser que ele não o devore.

De repente, parece uma pessoa completamente diferente. Um

escaravelho venenoso, não um bichinho inofensivo. Não consigo respirar

direito. Como é que ele sabe? Tenho tido tanto cuidado.

– Não sou tão estúpido como pensa que sou – diz ele calmamente. –

O Ted despersonaliza a sua filha.

– O que quer isso dizer?

– Pensar nela como uma pessoa é avassalador, por isso lida com os

sentimentos dela atribuindo-os ao gato.

– Se não me consegue ajudar, diga já.


Percebo que estou a gritar. Respiro fundo. O senhor bicho está a

olhar para mim fixamente, com a cabeça inclinada.

– Desculpe – digo. – Isto foi muito grosseiro. Não estou muito bem-

disposto. A estúpida da série deixou-me perturbado.

– Aqui é um local seguro, onde pode exprimir a sua raiva. Vamos

continuar.

Parece pequeno e inofensivo, como sempre. Devo ter imaginado a

outra coisa. É apenas o senhor bicho.

O senhor bicho continua a falar de trauma e memória, os assuntos

habituais, mas não estou a ouvir. Estou sempre a tentar dizer-lhe que não

tenho trauma nenhum, mas ele não me ouve. Aprendi a ignorá-lo nestas

alturas.

Gostava de não lhe ter mostrado o meu mau feitio. Distraí-me e não

consegui as respostas de que precisava. Lauren deixou-me de rastos. É

difícil viver com alguém que está a tentar matar-nos.

Os cartazes estão rasgados nos postes telefónicos, manchados pelo

tempo. O rosto da senhora do chihuahua está a ficar fantasmagórico.

Passo pela casa dela sem olhar. Tenho medo de que possa olhar para

mim. Seguro com força o saco de papel castanho que o senhor bicho me

deu.
Olivia

As janelas estão completamente escuras, sem estrelas nem Lua. Ted

ainda não voltou. Há quanto tempo saiu? Dois dias? Três? Acho um

pouco irresponsável da parte dele.

Na cozinha, arrastam-se coisas vivas lentamente na minha taça.

Bom, não posso comer isso. Lambo um pouco de água da torneira a

pingar. Algo rasteja pelas paredes. Tenho tanta fome.

Há algo que posso fazer, é claro, para arranjar comida… Suspiro.

Não gosto de o deixar entrar, a não ser que tenha mesmo de ser. Sou

uma gata pacífica. Gosto do calor do sol e de festas, às vezes, e da

sensação agradável de afiar as unhas nos corrimãos. Sou a gatinha de

Ted e tento fazê-lo feliz porque foi o que o SENHOR me disse, e é isso que

uma pessoa faz numa relação, não é? Não gosto de matar. Mas tenho

tanta fome.

Fecho os olhos e sinto-o imediatamente. Está sempre à espera,

enrolado num monte escuro como o breu no fundo da minha mente.

Agora é a minha hora?, pergunta ele.

Sim, digo com relutância. É a tua hora.

Sou a gatinha de Ted, mas tenho uma outra natureza. Posso deixar

esse lado tomar controlo, por algum tempo. Talvez todos tenhamos um

lado selvagem e secreto. O meu chama-se Noturno.

Ele levanta-se num movimento fluido. É preto, como eu, mas sem a

risca branca no peito. É difícil dizer, porque ele faz parte de mim, mas

acho que também é maior do que eu. Do tamanho de um lince pequeno,

talvez. Faz sentido. Ele é a memória do que nós fomos outrora. É um

matador.

Agora digo-lhe: Caça.


Uma língua cor-de-rosa lambe os dentes brancos e afiados do

Noturno. Ele sai da escuridão com a sua passada elegante.

Volto a mim a vomitar. Estou na casa de banho, não sei porquê. A

porta está aberta e consigo ver a claraboia na patamar das escadas.

Ainda está noite cerrada lá fora, ainda não se vê cor a nascente.

Na tijoleira à minha frente, está um monte de ossos ensanguentados.

Foram limpos de toda a carne. Estou cheia de carne noturna. Pergunto-

me que tipo de animal seria. Talvez aquele rato que estava sempre a

cantar nas paredes da cozinha. Ou podia ser um esquilo. Há um ninho no

sótão. Às vezes, ouço-os a chilrear e a correr pelas traves. Acho que são

esquilos, mas também podem ser fantasmas. Eu não vou ao sótão. Lá em

cima não há janelas e só gosto de salas com janelas. O Noturno não liga

a coisas dessas.

Pensar em fantasmas deixa-me perturbada e faz-me sentir esquisita.

A porcaria à minha frente já não se parece com os restos mortais de um

rato; parece mais os ossos de uma mão humana pequena.

Algo corre no teto acima. Soa demasiado pesado para ser um

esquilo. Corro para o andar de baixo o mais depressa que posso e

escondo-me dentro do meu caixote quentinho.

Ted não sabe nada sobre o Noturno… quero dizer, ele não nos

consegue distinguir. É óbvio que não lhe consigo explicar, há a barreira

da linguagem. E que diria eu? O Noturno faz parte de mim; somos duas

naturezas que partilham o mesmo corpo. Acho que é uma cena de gatos.

A noite estende-se diante de mim e ainda tenho fome.

É a minha hora outra vez?

É a tua hora.

O Noturno avança de novo, com alegria na passada.


Ted

A mulher loira disse que sim. Estou surpreendido. Diria que ela seria

mais cuidadosa, mas acho que as pessoas são confiantes. Escrevemos um

ao outro a noite toda. É tão bom conhecer alguém que tenha a mesma

paixão pelo mar que eu, escreve ela. Posso não ter sido completamente

honesto quanto a isso, mas explico depois, quando nos encontrarmos.

Mas quando e onde nos encontramos? Que roupa levo? Será que ela

aparece mesmo? Estas questões surgem e subitamente tudo é terrível.

Olho para a minha roupa. A minha camisa é mesmo velha. É da oficina

onde trabalhava. A cor de vinho desbotou, é quase cor-de-rosa, e em

alguns sítios o algodão é fino e macio como papel. E é claro, tem o meu

nome no bolso. É prático no caso de me esquecer, ah, ah. Mas não me

parece que uma mulher fosse gostar. As minhas calças de ganga são

cinzentas de tão velhas que são, exceto onde têm manchas escuras de

alguma coisa – acho que é ketchup. Estão rotas nos dois joelhos, mas

não de uma maneira fixe. É tudo tão desbotado. Quero ser colorido,

como o meu lindo tapete cor de laranja.

A mulher está a fazer-me sentir terrível, com os seus olhos azuis e

cabelo loiro. Como pode fazer-me passar por isto? Porque me escolheu

ela a mim para falar, para conhecer? Já consigo imaginar a expressão

dela quando me vir. Provavelmente, vai dar meia-volta e sair.

A Mamã e o Papá assistem do interior da moldura de prata. É prata

de lei maciça. Tenho andado a adiar, mas acho que está na hora. Tiro a

fotografia da Mamã e do Papá com cuidado. Dou-lhe um beijo e depois

enrolo-a e guardo-a bem nas profundezas da caixa de música. A

pequena bailarina jaz, partida e morta, no seu caixão musical.


Aprendi a penhorar coisas depois de a Mamã partir. Colheres de

prata, o relógio de bolso do Papá, que ele recebeu do papá dele. Já foi

tudo embora. Há marcas nas paredes, espaços vazios por toda a casa. A

moldura é a última coisa.

A loja é escura, numa rua quente e poeirenta. O homem da loja dá-

me dinheiro pela moldura. É muito menos do que preciso, mas vai ter de

servir. Gosto de sítios onde as pessoas não fazem perguntas. Gosto da

sensação das notas na minha mão. Tento não pensar no rosto esbatido da

Mamã, a fitar a escuridão da caixa de música.

Caminho para oeste, até ver uma loja com roupas na montra, e entro.

Tem montes de coisas. Canas de pesca, moscas, caixas de isco, galochas,

armas, balas, lanternas, fogões de campismo, tendas, purificadores de

água, calças amarelas, calças verdes, calças vermelhas, camisas azuis,

camisas aos quadrados, T-shirts, casacos refletores, sapatos grandes,

sapatos pequenos, botas castanhas, botas pretas… Só dei uma olhadela

rápida. O meu coração está a bater rápido de mais. Tem demasiadas

coisas. Não consigo escolher.

O homem atrás do balcão usa uma camisa castanha aos quadrados

com calças castanhas e uma espécie de casaco verde, mas sem mangas.

Tem barba como eu, talvez até se pareça um pouco comigo, o que me dá

a ideia.

– Posso comprar essas roupas?

E aponto.

– Quê?

Como sou uma pessoa paciente, repito a pergunta.

– As roupas que estou a usar? É o seu dia de sorte, temos tudo em

stock. Pelos vistos ficam-me bem, hã?

Não gosto especialmente das roupas, mas desde que não tenha de ir a

um encontro com o meu nome na camisa como uma criança do jardim-


escola, tudo bem.

– Levo as que está a usar agora – digo eu. – Se não se importar de as

despir.

O pescoço dele fica mais grosso e as pupilas mais pequenas. Os

mamíferos têm todos o mesmo aspeto quando se zangam.

– Ouça lá, amigo…

– Estava a brincar – digo eu rapidamente. – Enganei-o bem, amigo.

Hã, vendem vestidos? Assim de umas cores diferentes… azul?

– Nós vendemos equipamento para o ar livre – diz ele, lançando-me

um olhar demorado e severo.

Parece que fiz asneira da grossa. Ele vai buscar a roupa aos cabides

em silêncio. Não espero para as experimentar, atiro os dólares para cima

do balcão e saio.

Chego mais cedo ao local do encontro e sento-me ao balcão. Ao meu

lado, estão tipos grandes que conduzem camiões para ganhar a vida,

com bonés de camionista ou com roupas de couro. Com as minhas

roupas novas, pareço um deles, foi por isso que escolhi este sítio. É mais

fácil passar despercebido.

O bar fica junto à autoestrada, com bancos corridos nas traseiras.

Fazem churrascos. Pensei que seria bom, pois ultimamente tem estado

muito calor. Eles põem luzes nas árvores e fica bonito. As mulheres

gostam desse tipo de coisa, mas vejo logo que é o sítio errado para me

encontrar com ela. Hoje está a chover… uma tempestade quente e

desagradável. Toda a gente foi forçada a vir para dentro. Sem os bancos,

a noite quente e as luzes nas árvores, o sítio fica muito diferente. Não se

ouve barulho, tirando um ocasional arroto. Não há música, as luzes

fluorescentes no teto são dolorosamente brilhantes, refletidas nas mesas

de alumínio atulhadas com copos vazios e latas de cerveja. O chão de


linóleo está escorregadio com as marcas de botas lamacentas. Pensei que

tivesse, sabem… ambiente, mas agora vejo que não é agradável.

Peço um boilermaker. Há um espelho atrás do bar, outra das razões

para ter escolhido este sítio e este assento específico. Consigo ver a porta

perfeitamente.

Ela entra, a fugir da chuva. Reconheço-a imediatamente. Parece-se

com a fotografia. Cabelo cor de manteiga, olhos azuis e bondosos. Olha

em redor e, pelos seus olhos, vejo o sítio ainda com mais clareza. É a

única mulher. Também se nota um cheiro, ainda não tinha reparado. Um

pouco como a gaiola de um hámster que precisa de ser mudada… ou a

gaiola de um rato, talvez. (Não. Não penses nisso.)

Ela caminha até uma das mesas de alumínio e senta-se. É otimista,

ou quiçá desesperada. Interroguei-me se sairia logo, assim que visse que

o tipo com o sorriso branco da foto de arquivo não estava à espera dela.

(Não uso a minha foto, aprendi depressa essa lição. Encontrei a minha

na página de uma empresa de contabilidade. O homem está a fingir que

assina um documento, mas também está a olhar para a câmara, a sorrir

com uns grandes dentes brancos.) Ela pede algo à empregada de mesa

cansada. Um refrigerante. Otimista, mas com bom senso. O cabelo cai-

lhe sobre a cara, escondida atrás de ondas cremosas de cabelo loiro. E

traz um vestido azul. Às vezes, vêm de calças de ganga ou camisas aos

quadrados, que não é o que eu quero. Mas esta mulher fez a coisa certa.

O vestido não esvoaça propriamente, o tecido não é organza, mas algo

mais grosso, como bombazine ou ganga, e traz botas e não sandálias,

mas não está mal.

Preparei tudo cuidadosamente enquanto trocávamos mensagens.

Falei do álbum daquela mulher, aquela cantora… chama-se Blue. Era o

meu álbum preferido, disse-lhe eu. E adorava a cor, porque era a cor dos

olhos da minha filha. Quando a conversa ficou mais íntima, disse-lhe


que também era porque era a cor dos olhos dela. Como um mar calmo e

bondoso, escrevi. Só estava a dizer a verdade, ela tem olhos bonitos. Ela

gostou, claro.

«Porque não vamos os dois vestidos de azul quando nos

encontrarmos?», escrevi então. «Assim conseguimos reconhecer-nos.»

Ela achou que era boa ideia.

A minha camisa de flanela é castanha e amarela. Tenho um boné

verde. Até as minhas calças são castanhas. As minhas roupas novas dão

comichão, mas pelo menos não têm o meu nome escrito! Não suportaria

a ideia de ela fazer o que a primeira fez… entrar, olhar para mim e sair.

Por isso, estou a fazer batota. Sinto-me mal por isso, mas explico-lhe

tudo quando for ter com ela, daqui a um segundo. Como também vou

explicar que o que eu preciso mesmo é de uma amiga, não de uma

namorada. Vou pedir desculpa e vamos rir do assunto. Ou talvez não. O

stress dá-me uma dor de cabeça.

Ela olha para o telemóvel. Pensa que eu não venho. Ou antes, que o

homem dos dentes brancos não vem. Mas espera, porque ainda não

passaram 20 minutos, e damos sempre 20 minutos de tolerância a

alguém que se atrase, é universal – e porque a esperança é sempre a

última a morrer. Ou talvez esteja apenas a aquecer-se antes de sair para a

chuva torrencial. Bebe o refrigerante com uma careta. Não é a bebida

habitual dela. Peço outro boilermaker. Está quase na hora de ir lá, digo

a mim mesmo. Só preciso de mais uma bebida, para ganhar coragem.

Passados exatamente 35 minutos, levanta-se. Os seus olhos parecem

encolhidos com a desilusão. Sinto-me horrível por a ter deixado tão

triste. Quero levantar-me e impedi-la de sair, mas isso não acontece.

Observo pelo espelho enquanto ela enrola um tecido sedoso azul à volta

do pescoço. É demasiado estreito para ser um cachecol, parece mais

uma fita ou uma gravata. Pousa uma nota de cinco dólares na mesa e
vai-se embora. Os seus movimentos são determinados e caminha

depressa. Dirige-se às lanças verticais de chuva.

Assim que a porta se fecha atrás dela, é como se eu fosse libertado.

Acabo a minha bebida num gole, visto o casaco e sigo-a. Lamento muito

tê-la deixado assim sozinha, ter-me deixado dominar pelo nervosismo.

Quero compensá-la. Apresso-me, enquanto escorrego no linóleo

molhado. Não a posso deixar escapar. Posso explicar tudo e ela vai

compreender, tenho a certeza que sim. Os olhos dela eram tão bondosos,

tão azuis. Imagino a comida que vou cozinhar para ela. Vou fazer-lhe o

meu caril de frango e chocolate. Nem toda a gente aprecia, mas aposto

que ela vai gostar.

Corro para a tempestade.

Ainda é fim de tarde, mas as nuvens lançam sombras sobre tudo e

parece que está a anoitecer. A chuva acerta nas poças como balas. O

estacionamento está cheio de camiões e carrinhas, não a vejo em lado

nenhum. Então avisto-a, ao fundo do estacionamento, sentada na bolha

de calor e luz do seu carro pequeno. Tem o rosto molhado de chuva, ou

talvez esteja a chorar. Ainda tem a porta do lado do condutor aberta,

como se ainda não se tivesse decidido a partir. Ajeita a coisa azul ao

pescoço, vasculha a carteira e encontra lenços de papel. A seguir, limpa

a cara e assoa o nariz. Estou muito emocionado pela postura e pela

coragem dela. Correu um risco ao vir aqui ter comigo… o risco não

compensou, é claro, porque eu não apareci… mas olhem para ela. Está a

secar a cara, pronta para voltar à luta. É o tipo de pessoa com quem

Olivia ou Lauren podem contar. São essas as qualidades que procuro

numa amiga. Alguém que esteja lá para elas, se eu desaparecer.

Baixo a cabeça por causa da chuva e sigo ao longo da fila de carros

estacionados, na direção dela.


Dee

– Disseste que ajudavas – diz Ted.

– Quê?

É cedo numa manhã de domingo e Ted está à porta de Dee. O

coração dela começa a bater descontroladamente. Nesse momento, está

convencida de que ele sabe quem ela é e porque está ali. Controla-te,

Dee Dee, diz a si mesma. Ninguém é assassinado numa manhã cinzenta

de domingo. Mas é claro que isso não é verdade. Dee boceja para

disfarçar o medo, esfrega os olhos sonolentos.

Ted muda o peso de um pé para o outro. A barba dele parece ainda

mais grossa e mais ruiva do que o habitual, a pele mais pálida, os olhos

mais pequenos e remelosos.

– Disseste que, se houvesse algo que não conseguisse fazer, hã… por

causa do meu braço, ajudavas. Se calhar, não estavas a falar a sério.

– Claro que estava. O que se passa?

– É este frasco. Não consigo abri-lo.

– Dá cá.

Dee faz força na tampa do frasco, que abre logo. Dentro do frasco

está um recado. Lê-se, em letras bem desenhadas, VAMOS BEBER UM

COPO.

– Giro.

Ela mantém o rosto sereno enquanto a mente corre a todo o gás.

– Apenas como amigos – diz ele rapidamente. – Hoje à noite?

– Hã – diz ela.

– É que eu costumo estar fora.

– Oh – diz Dee.

– Posso começar a passar mais tempo no meu sítio de fim de

semana, não tarda muito.


– Uma cabana?

– Mais ou menos.

– Junto ao lago, imagino. – O coração dela não para de saltar. – É um

sítio maravilhoso.

– Não. De certeza que não conheces.

– Bom, então é melhor tomarmos a tal bebida antes de

desapareceres.

– Encontramo-nos no bar junto da 101 – diz ele. – Sete da tarde?

– Parece-me bem. Vemo-nos lá.

– Fixe. Fantástico. Sayonara!

Ele tropeça um pouco ao afastar-se e quase cai, mas recupera a

tempo.

– Bom – diz ela ao entrar para a sala. – Tenho um encontro.

A gata de olhos amarelos levanta a cabeça. Ela e Dee entendem-se

bem. Nenhuma delas gosta de ser tocada.

– Tem de ser hoje, antes que ele arranje a janela – diz Dee.

Pergunta-se a quem estará a tentar convencer. Mãos à obra.

Às seis e meia, no crepúsculo prateado, Dee está acocorada na sala,

atrás dos estores, a vigiar a casa de Ted. Sob aquela luz, tudo tem um ar

aveludado. O mundo parece mítico e interessante. Dee espera, com

cãibras nas pernas, até ouvir três fechaduras a rodar na casa ao lado. A

porta das traseiras de Ted abre-se e fecha-se. As fechaduras voltaram a

rodar. Os passos de Ted afastam-se e Dee ouve a carrinha dele a

arrancar. Espera cinco minutos e levanta-se, apoiada na parede, com os

músculos a tremer. Sai silenciosamente pela porta de trás e vai até à

vedação que dá para o quintal de Ted. Está parcialmente escondida da

rua pelos talos altos de rabo-de-gato e capim-das-pampas, mas tem de se

apressar. Vai até à janela de trás da sala de Ted e tira o martelo do bolso
do macacão. Arranca os pregos das tábuas que tapam a janela. Os pregos

saem com pequenos guinchos relutantes, mas, por fim, a prancha de

contraplacado solta-se e Dee tira-a da janela. O trinco dessa janela está

completamente enferrujado. Reparou nisso quando esteve dentro da

casa. Ele deve ter-se esquecido disso, depois de entaipar as janelas. Dee

empurra a janela para cima. As lascas de tinta caem como neve – ou

cinza.

Deixa-me entrar… deixa-me entrar. Mas agora Dee é o fantasma à

janela. Passa as pernas por cima do peitoril. Dentro de casa, é

imediatamente assaltada pela sensação de estar a ser observada. Está

parada na sala de estar verde, inalando o pó, e deixa os olhos

habituarem-se ao escuro. A casa de Ted tem um cheiro intenso a sopa de

legumes e ar velho e usado. Se a mágoa tivesse um odor, pensa ela, seria

assim.

– Bichaninha, bichaninha – chama Dee baixinho. – Onde estás, gata?

Nada se move. Devia levar a gata de Ted quando se fosse embora,

pensa ela. Aquilo não é vida para um pobre animal. Por um momento,

avista um par de olhos a brilhar, a fitá-la de um canto da sala, mas é só a

luz da rua refletida numa caixa prateada e amolgada. É a única coisa em

cima da lareira. Há um espaço vazio no pó, como se uma moldura ou

algo parecido ali tivesse estado recentemente.

Dee move-se depressa, não tem muito tempo. Atravessa a sala até à

cozinha. A arca congeladora está aberta, porta encostada à parede. Que

ela veja, a casa não tem cave. Levanta os tapetes para ver por baixo, pisa

com cuidado nas tábuas do soalho, à procura de um alçapão.

Segue para o andar de cima. A carpete para no patamar, que consiste

em tábuas poeirentas. Dee vira-se para deslizar pelo guarda-fatos

volumoso, que ocupa quase todo o pequeno corredor. Está trancado e ela

não vê nenhuma chave. A casa não tem sótão.


No quarto, há sacos de compras a todo o comprimento das paredes.

Transbordam roupas dos sacos. Há um guarda-fatos com uma cruzeta

partida, nem uma peça de roupa. É como se Ted tivesse acabado de se

mudar, tirando a confusão ter um ar de permanência intemporal. Sempre

foi assim e sempre será.

A cama está por fazer, os lençóis ainda retêm o momento em que os

pés os afastaram. Uma mão-cheia de moedas pequenas está espalhada

em cima dos lençóis. Quando Dee se aproxima, vê que não são moedas,

mas gotas escuras de algo. Força-se a cheirar. Ferro seco. Sangue.

A casa de banho é como ela se lembra, pouco mobilada, um pedaço

rachado de sabão, uma máquina de barbear, vários medicamentos em

frascos âmbar. O espaço vazio acima do lavatório onde o espelho

costumava estar. Ela devia tirar fotografias, pensou, mas não trouxe o

telemóvel ou uma máquina fotográfica. Tenta lembrar-se do máximo que

consegue. A pulsação bate atroadoramente.

Há um segundo quarto com uma cadeira de escritório e uma

secretária. O sofá tem mantas cor-de-rosa em cima e há desenhos de

unicórnios nas paredes, com vários níveis de habilidade. Os armários

também estão trancados, com cadeados com código. Dee começa a

examiná-los. Toca na combinação de um deles, ao de leve.

Uma tábua suspira no andar de baixo e uma mão agarra com força o

coração de Dee. Algo passa a correr dentro da parede e ela grita. Sai

mais como uma exclamação. Os passos de ratos continuam a soar. Na

verdade, parecem maiores do que um rato. Talvez uma ratazana. Dee

encosta-se à parede, pensando com a clareza que a pulsação tonitruante

lhe permite. Quanto tempo vai Ted ficar no bar, sozinho? Ela imagina-o

a regressar a casa, parado no escuro, a observá-la. Pensa nos seus olhos

inexpressivos, nos pulsos fortes. Devia ir-se embora.


Dee desce as escadas em bicos de pés, esperando a cada momento

ouvir as chaves nas fechaduras. A respiração dela é abalada por

pequenos soluços. Sente que pode desmaiar, mas também está

assombrada com a estranheza de tudo aquilo. Avista o mais breve dos

vislumbres de uma forma estreita e escura, a olhar para ela do canto da

sala, e o seu coração para por um momento.

– Bichaninha, bichaninha – sussurra, para quebrar o silêncio pesado

da sala. – Viste uma menina pequena?

Mas não há nada no canto a não ser sombras e pó. Ou a gata fugiu

ou nunca lá esteve. Dee vai até à janela, soltando um grito rouco quando

o feio tapete azul escorrega por baixo dos seus pés. Trepa lá para fora,

pragueja ao bater com a cabeça na madeira e baixa a janela com alívio,

fechando a casa atrás de si. O ar da noite parece doce e macio, o céu

escuro é maravilhoso.

Dee ergue a prancha de contraplacado com mãos trémulas. Os

pregos velhos estão tortos, ferrugentos e inúteis. Dee retira-os com

cuidado e prega o contraplacado no sítio com pregos que tira do bolso.

São prateados e aguçados, acabados de sair da loja de ferragens. O som

fá-la pensar em caixões, e estremece. Não tem tempo para se

desconcentrar. Tem de ser precisa a pregar os pregos novos nos furos

velhos. Tem de ser rápida, e acabar enquanto não está ninguém na rua

para ouvir as marteladas ou vê-la a sair da vegetação ao cair da noite.

Quando regressa à sua casa, descobre que está a tremer da cabeça

aos pés, como se tivesse febre. E por acaso, sente algum frio. Dee

acende o fogão a lenha e agacha-se ao lado dele, atacada por cãibras e

arrepios. Costumava pensar que estava doente quando aquilo lhe

acontecia. Com o passar do tempo, ficou a conhecer as maneiras como o

seu corpo se libertava do stress.


Lulu não está na casa. Dee percebe que estivera a pensar na irmã

como estando muito próxima. A imaginá-la a respirar perto dela. Foi

reduzida a desejar que a irmã fosse prisioneira ali ao lado. Parece tão

injusto… ser levada a esse ponto. Os sentimentos apertam-lhe a

garganta. Tenta ordenar os pensamentos. Se Lulu não está ali, tem de

estar noutro lugar.

– O sítio de fim de semana – murmura.

É essa a resposta, tem de ser.

Dee aperta as mãos diante da boca e sussurra para dentro das mãos,

vendo a calor a erguer-se, vermelho, atrás do vidro, a chama a pegar.

Estou a caminho, promete.


Olivia

Estava à janela, à espera da gata riscada, quando o som começou

outra vez. É como varejeiras, mas mais agudo, como uma agulha

pequena na minha cabeça. Corri a casa toda. A voz pequenina gemia e

cortava. Abri à dentada uma almofada do sofá e rasguei com as unhas

uma almofada do quarto. Onde diabo está ela?

Acabei de tocar esta parte. Consigo ouvir o guincho perfeitamente na

cassete. Por isso, não está só na minha cabeça. É real. É um certo alívio

e, ao mesmo tempo, não é, de todo. Vou chegar ao fundo disto. Acho que

teria dado uma boa detetive, sabem? Como os da televisão, porque sou

muito observadora e…

A coisa mais horrível acabou de acontecer.

Então, estava eu aqui sentada, a arranhar a cabeça e a tentar coçar

o guincho para fora dos ouvidos, quando ouvi o clique repetido de uma

chave a golpear a fechadura. Precisou de várias tentativas antes de

acertar. Tum. As fechaduras da porta da frente abriram uma por uma.

Tum, tum. Credo, pensei eu, hoje está mesmo entornado.

– Olá, Lauren – chamou ele.

Eu ronronei e fui ter com ele. Ele fez-me festas na cabeça e cócegas

na orelha.

– Desculpa, gatinha. Esqueci-me. Olivia.

Uau, o hálito dele.

Espero que não chegues perto de nenhuma chama, disse-lhe eu. Digo

sempre o que penso a Ted. A honestidade é importante, mesmo quando

ele não percebe um diabo de uma palavra que eu digo.


Cambaleou para dentro, beijou os Pais no seu observatório atrás do

vidro e foi sentar-se no sofá. Os olhos dele estavam meio fechados.

– Ela não veio – disse ele. – Esperei uma hora. Toda a gente a olhar

para mim. Um falhado à espera num bar. Num bar – repetiu, como se

isso fosse o pior. – És a única que gosta de mim.

Fez-me festas na cabeça com uma mão suada.

– Adoro-te, gatinha. Somos nós os dois contra o mundo. Deixar-me

pendurado. Que raio de cena é essa?

Soltou um suspiro. A pergunta pareceu deixá-lo exausto. Fechou os

olhos. A mão tombou ao lado dele, palma para cima e dedos

ligeiramente curvados, como se estivesse a fazer um pedido. A

respiração tornou-se lenta e pesada, para dentro e para fora dos

pulmões. Parece mais novo quando dorme.

Atrás de mim, na entrada, a porta da frente baloiçava levemente

com a brisa da noite. Ele não a fechou.

Saltei para o chão. O cordão estava fino hoje, de um roxo elegante.

Caminhei até à porta, sentindo-o a apertar à volta do meu pescoço.

Quando cheguei à porta, ainda conseguia respirar, mas por pouco. A

porta aberta ardia com luz branca. Uma mão pesada caiu em cima da

minha cabeça. Ted fez-me festas nas orelhas com força. Não estava

mesmo a dormir.

– Ei – disse ele. – Queres ir lá fora, gatinha? Sabes que é perigoso.

É mau lá fora e devias ficar a salvo. Mas se queres mesmo…

Eu não ia sair, disse eu. O SENHOR disse-me para não sair, e não saio.

Ele riu-se.

– Primeiro temos de te pôr bonita. Dar-te uma mudança de visual.

Comecei a afastar-me dele, conheço bem este humor, mas ele

agarrou-me com as mãos fortes, apertou-me contra ele como um torno.

Trancou a porta, tum, tum, tum, e levou-me para a cozinha, o mundo a


baloiçar descontroladamente quando ele cambaleava. Estendeu a mão

para um armário e tirou uma coisa. A faca era larga e brilhante.

Consegui ouvir o assobio quando a lâmina cortou o ar. Agora eu lutava

com força, tentando apanhá-lo com garras e dentes.

Ele apertou o pelo no meu cachaço e puxou-o. A faca fez um som

bonito e suave enquanto cortava. O ar estava cheio de fiapos pretos do

meu pelo sedoso. Ele espirrou, mas continuou a cortar tufos de pelo do

meu pescoço, das minhas costas, da minha cauda. Não sei bem como,

mas conseguia segurar-me, usar a faca e agarrar tufos de pelo, tudo ao

mesmo tempo. Fica concentrado quando está bêbedo.

Então, tudo parou. O braço que me prendia ficou rígido. O rosto de

Ted congelou e os seus olhos desapareceram. Eu escapei das mãos dele,

evitando com cuidado a faca que pairava centímetros acima da minha

coluna. Deixei-o parado na cozinha como uma estátua, com a faca no

punho cerrado. No ar, pairavam tufos macios de pelo.

Esgueirei-me para longe dele. O cordão seguia-me, agora de um

amarelo-sujo e fino como um atacador velho.

O ar é frio nos pedaços cortados de pelo. Posso perdoar os ataques

dele à minha dignidade, aos meus sentimentos. O SENHOR quereria que o

fizesse, mas há limites. Não devia ter mexido com a minha beleza. Estou

a ferver, a fumegar de raiva. Perdoa-me, SENHOR, mas ele não passa de

um egoísta de «eme é erre dê á». Ted precisa de aprender que os atos

têm consequências.

Vou até à sala e salto para cima da estante. Atiro abaixo a garrafa de

bourbon. Esmigalha-se no chão em milhares de cacos lindos. O cheiro é

forte como gás. Os meus olhos lacrimejam. Por um momento, lembra-

me desconfortavelmente de algo, talvez de um sonho que tive, sobre

estar trancada num sítio escuro e um assassino verter ácido por cima de
mim… A minha cauda abana… fosse um sonho ou um programa de

televisão, a memória faz-me sentir mal.

Salto para cima da lareira e atiro ao chão a boneca gorda e feia, que

cai com estrondo, soltando as filhas pelo ar ao cair. Partem-se todas em

estilhaços no chão. É um massacre. Também tento deitar abaixo a

fotografia dos Pais. Sei que não vai funcionar, mas não resisto. Sou uma

otimista. Não sei o que ele fez para fixar tão bem a moldura… colou-a à

lareira com supercola? Os esquilos na moldura parecem mais

esqueléticos do que nunca. Aquela coisa é de prata, espanta-me que Ted

não a tenha vendido. Talvez ele também não a consiga soltar!

Não importa, tenho outras ideias. Vou em silêncio até ao quarto dele

e salto para dentro do guarda-fatos, onde faço chichi num sapato de cada

par.

Sei que o SENHOR não vai gostar, mas a justiça tem de ser feita.

Ted está a chamar por mim, mas não vou ter com ele, apesar de a voz

dele estar repleta de espinhos negros.


Ted

Estou de volta, com a força de um soco… sem fôlego, como se me

tivessem dado um murro na barriga. Num punho fechado, seguro uma

faca. É a faca grande que mantenho escondida no armário alto na

cozinha. Ninguém sabe da sua existência além de mim. A lâmina é

larga, polida como um espelho. A luz cinzenta do dia dança a todo o

comprimento da lâmina e o gume brilha cruelmente. Foi afiada

recentemente.

– Atenção, Pequeno Teddy – sussurro.

Vamos começar pelo básico. Onde e quando estou? Onde é fácil.

Olho para a sala de estar. Tapete cor de laranja, colorido e alegre. A

bailarina de pé, orgulhosa, no palco da caixa de música. Os furos no

contraplacado são círculos cinzentos, cheios de chuva. OK, muito bem.

Estou em casa, no andar de baixo.

Quando é um pouco mais difícil. No frigorífico, está meio garrafão

de leite, amarelo e azedo. Um frasco de pickles. Tirando isso, é um

espaço branco e vazio. No lixo, estão 16 latas vazias. Por isso, comi e

bebi tudo enquanto estive fora. Mas fui surpreendentemente arrumado.

A cozinha está limpa. Até me cheira a lixívia.

– Gatinha – chamo.

Olivia não vem. Só me ocorrem más ideias. Estará doente… ou

morta? O último pensamento traz-me um pânico horrível. Forço-me a

respirar lentamente. Relaxa. Deve estar escondida.

Desta vez, perdi dias. Julgo que foram três. Verifico a televisão. Sim,

quase meio-dia. Por isso, três dias, mais ou menos.

Faço a ronda pela casa, verificando os cadeados dos armários e da

arca, verificando tudo. Fiz alguns estragos enquanto estive ausente.

Arranhei o tapete laranja, parti em pedacinhos as bonecas russas da


Mamã. Quando verifico o guarda-fatos, alguns dos meus sapatos estão

molhados. Será que choveu? Atravessei um rio ou algo assim? Ou um

lago, sussurra a minha mente. Calo esse pensamento muito rapidamente.

Vou beber um copo, mas pelos vistos também parti a garrada de

bourbon. Não importa. Vou buscar uma garrafa nova e um pickle.

Enquanto estou a comer, deixo cair o pickle. Quando me baixo para o

apanhar, vejo algo branco. Está alguma coisa por baixo do frigorífico. Eu

sei o que é. Não devia estar ali.

No sótão, ouço alguém a chorar. São os meninos verdes. Têm

andado calmos ultimamente, mas agora estão a fazer um chinfrim.

– Calados! – grito. – Calados! Não tenho medo de vocês.

Mas tenho. Tenho pesadelos que, um dia, vou acordar no sótão,

rodeado pelos meninos verdes com os seus dedos compridos, e que vou

desaparecer lentamente, fundir-me com o verde. Puxo o chinelo de praia

de baixo do frigorífico e atiro-o para o lixo. Está coberto de más

memórias, como se fossem bolor.

Não volto a pôr a faca no armário alto. Em vez disso, enterro-a no

quintal a coberto da escuridão. Não é uma expressão maravilhosa? Faz

a noite soar como um cobertor quente, crivado de estrelas. Encontro um

sítio bom por baixo de um arbusto de sabugueiro.

Como ainda estou bastante perturbado, como outro pickle diante da

televisão e acalmo-me lentamente. Agora não posso parar. Aquelas

mulheres não eram as amigas certas para mim, acho eu, mas não sou de

desistir.
Olivia

Ted desapareceu outra vez. Honestamente, anda um vadio nestes

últimos dias.

O barulho está muito mau. Iiiiiiiiiiiiii. A minha cabeça é uma

caverna de som. Preciso desesperadamente de orientação. Derrubo a

Bíblia com uma pata, que cai com um baque no soalho. Espero, de olhos

fechados. Quando o estrondo vem, é tão alto que os meus ouvidos

querem rebentar. A casa parece tremer até às fundações. Ouvem-se

estalidos fortes, como se o mundo ou o céu estivessem a rachar. O ruído

continua a subir e a subir, até se tornar um grito, e eu penso, Será isto o

fim de tudo? Horrível! Assustador!

Quando por fim começa a diminuir, sinto-me tão aliviada. Juro,

sinto-me como um saleiro que acabou de ser usado com demasiada

força. Tenho de me sentar por um momento para deixar a barriga

acalmar.

Debruço-me. O versículo que me chama a atenção é:

Então Eúde estendeu a sua mão esquerda,

lançou mão da espada na sua coxa direita e

cravou-lha no ventre. E o punho da espada entrou

após a folha, e a gordura encerrou a folha, pois

Eúde não tirou a espada do ventre; e saiu o

excremento.

Bom, se o SENHOR comunicasse sempre de forma perfeitamente

clara, a fé não seria necessária, pois não? O gemido continua e continua.

Soa quase como uma pequena abelha, a gritar por ajuda. Hoje, há algo
na casa que parece errado, como se durante a noite alguém tivesse

movido tudo uns centímetros para o lado, como uma partida.

Alguém começa a falar na sala, acho que Ted deixou a televisão

ligada para mim.

– Devíamos revisitar o trauma – diz a voz. – Sabe o que dizem. Às

vezes, a única forma de sair do deserto é atravessá-lo. O abuso infantil

deve ser escavado e trazido para a luz.

Talvez o zumbido venha da televisão. Já verifiquei a televisão, oh,

umas centenas de vezes, mas tenho de fazer alguma coisa. A boneca

russa enorme olha para mim de cima da lareira com o seu rosto

inexpressivo, o seu corpo redondo. Parece mais feliz do que nunca por

manter prisioneiras as suas amiguinhas. Os Pais observam da sua

moldura horrível por cima da lareira. Vão-se embora, sussurro para eles,

mas eles nunca vão.

Quando vejo quem está no ecrã, paro com as orelhas achatadas

contra a cabeça. É ele outra vez. Os olhos azuis e redondos olham para

mim. Ele assente com interesse a uma pergunta inaudível. A sala está

saturada com aquele odor… leite estragado e pó. Sei que é só uma

imagem num ecrã, mas parece que está aqui, não sei como. Sento-me e

lambo uma pata. Isso faz-me sempre sentir melhor. Eu conseguia fazer

este programa tão melhor do que tu, digo-lhe eu. Não tens um pingo de

carisma.

Ele sorri, como se estivesse a responder-me. Depois disso, não sinto

vontade de continuar a falar com ele. Não sei porquê… não é como se a

televisão me pudesse ouvir. Ou pode? Mas o cheiro é tão forte. Não é um

cheiro de ted, é mais como algo deixado fora do frigorífico durante

tempo de mais.

E então, vindo da entrada, ouço… os sons ténues de alguém parado

diante da porta da frente. Vou até à porta em silêncio. Consigo sentir


alguém do outro lado. Um ted macho. Não está a bater à porta, não está

a tocar à campainha. Então, o que está a fazer? E o fedor está por todo o

lado, entrando por baixo da porta, atacando o meu nariz sensível. É o

mesmo cheiro que vem da televisão. Não sei como, mas o ted da

televisão também está diante da minha casa. O programa deve ter sido

gravado antes.

O ted respira para o espaço entre a porta e o batente. Inalações

longas e delicadas. Deve ter a cara mesmo encostada à fenda. Como se

estivesse a cheirar a porta da frente. Será que me consegue cheirar? Ted

avisou-me vezes sem conta como é perigoso lá fora. Acho que era a isto

que se referia. Isto parece perigoso. Da sala, da televisão, as pequenas

moedas azuis do ted olham fixamente.

– Todos têm um monstro dentro de si – diz ele.

Preciso de estar escondida. Em algum sítio escuro. Subo as escadas a

correr e atravesso o patamar. Acima, um dos fantasmas do sótão raspa

uma unha comprida ao longo de todo o comprimento do chão e agora

estou a correr.

Galopo para o quarto de Ted e escondo-me debaixo da cama. Ainda

consigo ouvir o ted famoso lá em baixo na televisão, a tagarelar, a falar

sobre as coisas más que as pessoas fazem aos teds pequenos, pregando

para a sala vazia. Ou estará a falar através da porta?

Quando fico preocupada, faço uma de duas coisas. Consulto a

Bíblia, parto algo de Ted ou vou dormir. Está bem, três coisas. Bom, não

me chego perto da Bíblia outra vez. Aquilo foi assustador. E já parti a

boneca russa uma vez esta semana e a caixa de música duas vezes.

Sinto-me um pouco mal por causa disso.

Por isso, vou precisar de uma longa, longa sesta. Acho que também

tenho de perdoar Ted. Não tenho falado com ele estas últimas semanas,
mas hoje foi um dia assustador e a minha cauda está esquisita. Preciso

que me façam festas.

Não consigo dormir. Dou voltas e voltas, e ronrono, e fecho os olhos,

mas tudo me parece errado e a minha cauda a tremer não me deixa

descansar.
Ted

Olivia e eu estamos sentados no sofá a ver camiões de corrida

quando eles chegam. Estou um pouco preocupada com Olivia. Parece

nervosa, não é nada dela. Deixa-me pouco à vontade. Olivia está sempre

bem. É a cena dos gatos, não é? Eles não se agarram ao passado.

Talvez esteja a imaginar coisas porque sinto mesmo falta de Lauren

hoje. Sei que ela está melhor onde está, mas é muito difícil para um pai

estar separado da sua cria. Tento falar com ela, mas ela está a castigar-

me e não me responde. Isso dói. Pior do que isso, é como um torno a

abrir-me à força o coração.

Ainda estou muito perturbado com a vizinha. Não quero dizer que

estava à espera de que ficássemos logo amigos, mas achei que pelo

menos podíamos tentar. Interroguei-me como ficaria ela de vestido. Algo

leve que esvoaçasse à volta dos seus tornozelos enquanto andava. Talvez

azul. Mas fiquei ali sentado no bar e esperei, e ela não veio. Fiz figura de

parvo. A procura de uma amiga não está a correr muito bem.

Olivia ouve primeiro e desaparece para baixo do sofá. Demoro um

momento mais a entender. O som não vem da televisão… enche o ar.

Vêm aí motores potentes. Escavadoras, talvez, ou tratores? Alto de mais,

perto de mais. O que estão a fazer aqui? Nesta parte da rua, só há duas

casas e depois a floresta. Mas continuam a vir, cada vez mais perto. Vou

até uma das vigias para os ver a passar ruidosamente, amarelos como a

morte, mandíbulas enormes sujas de terra. Eles não param. Passam pela

casa na direção da floresta. Um homem salta de um dos veículos e tira as

correntes dos portões. Há algo de ominoso, algo de oficial naquele gesto.

Abre os portões para as máquinas passarem. A seguir, a escavadora e o

bulldozer rugem e bufam pelo caminho da floresta.


Saio a correr pela porta da frente e estou tão perturbado que quase

me esqueço de trancar as três fechaduras (mas acabo por me lembrar). A

vizinha e outras pessoas das redondezas estão paradas no passeio, a ver

as duas escavadoras a desaparecerem pelo meio das árvores com o seu

rugido terrível.

– O que se passa? – pergunto-lhe. Estou tão preocupado que esqueço

por um momento como ela é rude. – Não podem ir para ali. É uma

reserva natural. É protegida.

– Estão a fazer paragens novas nos trilhos – diz ela. – Uma área de

piqueniques. Sabes, para virem mais caminhantes, mais turistas. Ei,

voltei a receber correio teu por engano hoje de manhã. Queres que to

leve depois?

Ignoro-a. Corro para a floresta, seguindo o ronco dos motores.

Quando os avisto, sigo-os de longe. Depois de um quilómetro ou dois,

eles saem do caminho e começam a esmagar a vegetação. Os rebentos

novos estalam e cedem. É como ouvir crianças a gritar. Estão a revolver

a terra a menos de 100 metros da clareira. Não chegam lá hoje, mas

amanhã podem chegar. Um homem de casaco cor de laranja vira-se e

olha para mim. Ergo a mão num cumprimento, viro-me e afasto-me,

tentando parecer uma pessoa normal. O som segue-me ao longo do

caminho, muito depois de estar fora de vista. Mandíbulas… a comer a

floresta.

Estou capaz de me esbofetear. Eu sabia… deixei os deuses

enterrados na clareira tempo de mais. As pessoas sentem-nos lá, quer

saibam quer não. São atraídas para eles como se estivessem presas por

um fio. Não sei dizer se o meu braço já está bom. Está melhor, acho eu.

As nódoas negras quase desapareceram. Seja como for, não tenho mais

tempo. Tenho de os mudar hoje à noite.


A tarde é tão longa, mais parecem anos até o Sol começar a baixar.

Mas acaba por se pôr, deixando rastos carmesim a rasgar o céu.

Mesmo na escuridão acolhedora, a floresta já não parece minha.

Consigo sentir o cheiro das escavadoras e das obras muito antes de lá

chegar… a terra preta revolvida, a seiva das árvores assassinadas. As

máquinas estão paradas no meio das ruínas como enormes larvas

amarelas. Quero magoá-las. Pensei nisso. Água oxigenada no depósito

fazia um belo serviço. Mas também magoaria a floresta, e não quero

isso.

Na clareira, olho em redor para as árvores brancas. Sinto-me tão

triste. Este foi um bom lar para os deuses. Mas, se ficarem aqui, mais

cedo ou mais tarde vão ser descobertos. Posso não ser esperto para

muitas coisas, mas sei isto… ninguém entenderia os deuses.

Tiro a pá do ombro, desenrolo a bolsa com as ferramentas e começo

a cavar. Enterrei-os numa formação sagrada, em 15 sítios diferentes. A

localização de cada um está gravada na minha mente como o padrão das

estrelas. Nunca esqueceria.

Limpo gentilmente a terra da superfície redonda do primeiro deus. A

terra de onde o tiro é preta e rica. Os deuses alimentam a terra. Encosto

o ouvido e escuto. O deus sussurra segredos numa voz como chuva.

– Mantenho-te no meu coração – murmuro.

Ponho-o delicadamente num saco do lixo e depois dentro da

mochila. Vou para a estação seguinte. Fica para leste, perto da pedra em

forma de dedo. Este é frágil. Ponho a pá de lado e cavo cuidadosamente

com as mãos. Não está muito fundo. Gosto de desenterrar este de vez em

quando para o ver. Desembrulho o plástico. O vestido jaz nos meus

braços, de um cinzento-escuro à luz fraca do luar. Gostava de o voltar a

ver à luz do sol, a sua cor real, o azul profundo do oceano nas

fotografias. Mas é claro que nunca poderia fazer isto durante o dia.
Limpo as mãos às calças e acaricio o tecido. O vestido diz-me coisas

pela ponta dos meus dedos. Cada deus guarda memórias diferentes e

tem a sua própria sensação. Sinto os olhos a arder e a brilhar. Este deixa-

me sempre triste – mas também nervoso e um pouco excitado.

– Mantenho-te no meu coração – segredo, mas soa tão alto.

A seguir, vem a mala pequena, perto do centro da clareira, à

esquerda. Trato desta o mais depressa possível. Tem coisas brilhantes e

afiadas no interior e uma voz como urtigas ou vinagre.

Continuo a cavar, e, um por um, cada deus enche o ar com a sua voz.

– Mantenho-te no meu coração – sussurro outra e outra vez.

De cada vez, é como se estivesse a viver tudo de novo: o momento

da deificação, a mágoa.

Por fim, a clareira fica vazia. Estou a tremer. Agora estão todos no

meu coração e o saco está pesado. Esta parte faz-me sempre sentir que

vou explodir. Encho os buracos e espalho folhas pelo chão, até parecer

que estiveram ali marmotas, ou talvez coelhos. Nada a não ser a natureza

a seguir o seu curso. Pego no saco gentilmente.

Adentramo-nos pelo bosque. As árvores acabam no lago para oeste,

por isso tomo uma direção diferente. Mesmo agora, passados tantos

anos, não quero aproximar-me do lago.

Tenho de encontrar o sítio certo. Os deuses não podem viver em

qualquer lado. O feixe da minha lanterna dança por cima das heras e da

vegetação seca. A noite está tão quente, a floresta parece estar a libertar

calor. O calor sobe em espiral dos troncos dos cedros, ergue-se das

folhas no chão. Tiro a camisola. Moscas e mosquitos esvoaçam em

nuvens cinzentas sobre a pele exposta nos braços e no pescoço, mas não

pousam. Os morcegos voam à nossa volta, passando tão perto que os

corpos macios me tocam na cara. Os ramos das árvores afastam-se ao

meu toque, abrindo uma passagem para nós. Quando paro por um
momento para recuperar o fôlego, uma cobra castanha desliza

afetuosamente por cima da biqueira da minha bota. Hoje faço parte da

floresta. Ela mantém-me no seu coração.

Ouço a nascente muito antes de a ver, o murmúrio cristalino de água

sobre pedra. Não consigo dizer em que direção, o som parece vir de

todos os lados, como costuma fazer, no coração da floresta. Desligo a

lanterna e fico parado no escuro. A mochila mexe-se, desconfortável

contra as minhas costas. Algo aguçado faz força contra a minha coluna.

Os deuses estão ansiosos. Querem um lar. Vou para onde eles me dizem,

através de arbustos e espinheiros. A meia-lua brilha com força, as

nuvens dissiparam-se no céu acima. Sem a lanterna, consigo ver a

floresta nas suas cores noturnas, linhas delicadas retocadas a prateado.

Vislumbro árvores brancas adiante. Aqui crescem vidoeiros, as

árvores-de-osso. Era este o sinal de que estava à espera – encontrei o

lugar.

A nascente salta da pedra preta e molhada, corre depressa e

estridente pelo canal estreito, coberto por fetos frondosos. Acima, na

parede de pedra, há fissuras escuras. Cada buraco tem a forma e o

tamanho certo para guardar um deus. Um por um, faço-os deslizar para

os seus novos lares. Tremo um pouco enquanto o faço… é difícil segurar

tanto poder nas mãos.

A aurora tinge o céu de cor-de-rosa a leste, quando acabo, por fim.

Dou um passo atrás e observo o meu trabalho. Atrás da parede de pedra,

consigo sentir os deuses a murmurar, estendendo os seus fios de poder.

Os vidoeiros erguem-se alto, em grupos pequenos, vigiando. Estou tão

cansado. De cada vez que faço isto, fico de rastos. Mas é o meu dever.

Tenho de tomar conta deles. A Mamã deixou isso bem claro.

A floresta começa a acordar. É uma longa caminhada no novo dia, de

regresso a casa e ao dia a dia. Sou levado pela alegria furiosa do canto
dos pássaros.

– Tenho saudades vossas – digo para os pássaros.

Mas pelo menos aqui estão a salvo do Assassino. Passo pelas

máquinas amarelas sem pensar nelas. Eles que rasguem a terra. Os

deuses estão a salvo no seu novo lar.

Encontrei o gravador no frigorífico. Eu não… népia, nem sequer vou

tentar entender esta.

Hoje não há receita. Só achei que devia dizer, no caso de me

esquecer… mudei-os de sítio.

Talvez só faça isto porque quero falar com alguém. Estar com os

deuses faz-me sentir mais sozinho do que estar sozinho. Sem Lauren

aqui, preciso de coisas que me lembrem de quem eu sou. Tenho tanto

medo de desaparecer e nunca mais voltar.

Isto não me está a fazer sentir melhor. Sinto-me estúpido, vou parar.
Dee

Todas as casas da rua receberam um panfleto pela porta. Mesmo

assim, quando as escavadoras amarelas descem a estrada como leões,

Dee sustém a respiração. As suas enormes bocas de metal ainda estão

manchadas com a terra de matanças anteriores.

Dee sai de casa para ver. Parece mais seguro, de certa maneira, do

que ficar dentro de casa. Mais dois ou três vizinhos estão parados por

ali, de boca aberta e olhos arregalados.

Um homem de cabelo cor de laranja atravessa-se na frente de uma

das escavadoras e grita para o condutor. O seu cão grande gane e puxa

pela trela; ele segura-o pela coleira.

– Espero que não usem aquela tinta fluorescente para marcar as

árvores – grita o homem para o condutor, apontando para umas latas no

camião. – É tóxica.

O condutor encolhe os ombros e ajeita o capacete.

– Sou guarda-florestal – diz o homem. Pela trela, o cão treme de

ansiedade. – É terrível para o ecossistema.

– Temos de marcá-las de alguma maneira – diz o condutor

confortavelmente. – A tinta fluorescente dá nas vistas de dia e de noite.

O condutor acena e os motores começam a roncar. A escavadora

avança como um dinossauro.

Uma exalação roça no pescoço de Dee, fazendo-lhe eriçar os cabelos

na nuca. Está tão perto que, quando ela se vira, excitada, a barba dele

quase lhe raspa a cara. Consegue farejar a perturbação dele, como

urtigas esmagadas na pele. Ted cambaleia. Ela percebe que ele está

muito embriagado.

– Não – diz ele. – Eles não podem, não podem fazer isto.
Ele diz mais algumas coisas e Dee responde, não se lembra bem o

quê. Mal consegue ouvir, com o zumbido na cabeça. Ela conhece aquele

olhar, de um segredo quase revelado. É o olhar nos olhos de Ted.

Quando ele corre pelo caminho atrás das escavadoras, ela sustém a

respiração. Tem a certeza de que ele está a correr para algo. Algo

escondido na floresta. Dee sabe que não pode seguir Ted. Ele ia vê-la e

era o fim. Só pode esperar desesperadamente que, seja o que for que está

escondido, não possa ser acedido durante o dia.

Ela volta para dentro de casa e senta-se no seu posto, mordendo o

lábio inferior até sangrar. Talvez tenha sido um erro não o seguir. Talvez

tenha perdido a oportunidade e ele esteja, neste momento, a mudar Lulu

de sítio, a levá-la para a natureza selvagem… Dee observa a floresta com

os olhos vermelhos.

Meia hora depois, Ted aparece de novo nas sombras do caminho. O

coração de Dee dá um salto. Cada movimento dele revela inquietação.

Ele abana a cabeça, como se estivesse numa discussão acalorada consigo

mesmo. Seja o que for que precisa de ser feito, ainda está por fazer. Ela

não perdeu a oportunidade. Vai acontecer alguma coisa nessa noite.

Dee calça botas de montanhismo e prepara camisolas e um casaco

escuro, põe água e nozes no bolso. A seguir, senta-se como uma pedra e

vigia a casa de Ted. As nuvens atravessam o céu e o Sol põe-se atrás das

árvores. O crepúsculo cobre tudo.

Quando ouve o som inconfundível das três fechaduras, o ranger da

porta das traseiras, está pronta. Mais do que o ver, pressente-o a sair de

casa na escuridão. Quando ele passa por baixo do candeeiro de rua, ela

vê a mochila. Está cheia com algo que forma curvas e ângulos estranhos.

Ferramentas, uma picareta, uma pá? Ele movimenta-se ao longo da


estrada, para dentro das sombras. Agora já não há mais luzes, apenas a

noite e a Lua no céu, a brilhar como uma moeda partida ao meio.

Ela segue-o à distância, a lanterna dele guia-a como uma estrela.

Quando ele para à entrada da floresta e olha em redor, ela para também,

escondida atrás do tronco de uma árvore. Ele espera algum tempo, mas

ela deixa a noite falar, deixa que lhe diga que está sozinho. Quando ele

se embrenha na floresta, ela segue-o.

Quando passam o sítio das obras, Dee ouve Ted a parar mais à

frente. Há menos árvores, talvez seja uma clareira. Ela baixa-se no meio

das escavadoras. Adiante, para leste, ouve o som de uma pá a cortar a

terra. Ouve sussurros. Dee estremece. Deve ser Ted, mas a voz dele soa

estranha, como folhas a restolhar ou o ranger da madeira viva. Ela fica

com cãibras nas pernas, mas não se atreve a mexer-se. Se consegue ouvir

Ted, ele também a consegue ouvir. A Lua ergue-se e a noite parece ficar

mais quente. Tempo perfeito para cobras. Cala-te, cérebro, diz Dee

friamente. O que pode estar Ted a fazer? Ela pensa em esgueirar-se para

mais perto, mas cada movimento dela soa alto como um tiro de

caçadeira. Dee senta-se e ouve. O tempo passa, ela não sabe quanto,

pode ser uma hora ou mais. Os sussurros dele e os golpes ritmados da pá

misturam-se com os sons noturnos da floresta.

Por fim, chega-lhe o som de botas a aproximarem-se e Dee salta de

susto. Estava mesmo no limite do sono. Com as pernas dormentes,

rasteja rapidamente para baixo de uma escavadora. A Lua está escondida

por um véu fino de nuvens, mas ela consegue ver o suficiente. Ted

carrega algo pesado às costas. A pá na mão dele está empapada de terra.

Desenterrou alguma coisa. Ela esforça-se por se levantar o mais

silenciosamente que consegue.

Ao cimo da subida para oeste, a Lua brilha na água parada. O lago, a

pouco mais de um quilómetro de distância. Uma hora a pé entre a casa


de Ted e o sítio onde Lulu desapareceu, pensa Dee, ardendo por dentro.

Agora mesmo, Ted provou que é capaz de percorrer rapidamente uma

distância considerável com um fardo pesado. Mas a polícia deixou-o ir

em liberdade. Não importa o que ela lhes disser, provavelmente vão

voltar a deixá-lo ir em liberdade. Não querem saber… Preguiçosos,

esgotados, incompetentes… Dee percebe que está a tremer. Estende um

braço às cegas e agarra um ramo fino para se apoiar. A floresta parece

repleta de sussurros sibilantes. O raspar seco de uma barriga comprida a

deslizar sobre as folhas. Ofidiofobia, diz ela para si mesma. É só isso,

Dee Dee. Mas agora até a palavra lhe parece uma serpente. Enrola-se na

sua boca.

Tenta dar o passo seguinte. Tenta não pensar no que estará à espera

no chão diante dela. Não há cobras aqui, repete com firmeza para si

mesma. Todas as cobras estão a dormir debaixo de terra. Têm mais

medo de ti do que tu delas. Mas está a respirar depressa. Tem os pés

colados ao chão. Tem medo da floresta, de se perder no meio das

árvores, de ficar a sós no escuro com um assassino. Acima de tudo, tem

medo das raízes das árvores, que parecem contorcer-se, olhando para ela

com pupilas verticais à luz do luar.

Não sejas estúpida. Andem, ordena ela às pernas. Não são cobras,

raios. Mas continua paralisada, estática como uma pedra. Algo restolha

nas folhas caídas ali perto. Quase consegue sentir o corpo comprido a

aproximar-se. Anda, pensa, com toda a sua força de vontade.

Adiante, a luz dançante de Ted pisca e depois desaparece no meio

das árvores. Dee está sozinha com seja o que for que vem aí no escuro.

O som macio e constante de um corpo muscular a deslizar.

Dee abre a boca mais e mais, até o maxilar não poder mais e soltar

um estalido. Grita em silêncio. Então, vira-se e corre para casa. O som

sussurrante segue-a, deslizando depressa, quase em cima dela.


Tranca as portas e as janelas. Pega no martelo e senta-se no seu

posto. A sua respiração soa rouca na sala vazia. Olha para as embalagens

de comida e copos de iogurte vazios espalhados pelo chão. Entram e

saem formigas dos recipientes. Estou a ficar como ele, pensa,

desgostosa, e estremece. E sou tão covarde como ele.

Ted regressa a casa de madrugada. Destranca a porta das traseiras.

Quando entra, ela ouve-o a chamar, «gatinha». A voz dele está relaxada

e amigável. Dee faz uma lista de coisas que tem de arranjar. Vai ser

difícil, a sua mente vai resistir, mas da próxima vez que Ted for à

floresta, ela não vai falhar.


Olivia

Lauren não tem andado por cá nas últimas semanas. Será que está

de férias com a mamã ted ou algo assim? Não sei, costumo desligar

quando ele fala dela. Nada de bicicleta cor-de-rosa tombada na sala de

estar como uma vaca morta, nada de recados no quadro branco, nada

de gritos, nada de desarrumação. A calma, a paz… pelos meus

santinhos! Tem sido fantástico.

É bom que Lauren não esteja por cá, porque Ted tem saído bastante.

Lauren detesta quando ele tem encontros. Grita com ele. Credo, ela é

um pequeno ted muito desagradável.

Também não tem havido sinal nem odor do ted da televisão com

olhos como moedas azuis sem vida. Acho que aí me deixei levar pela

imaginação. Tenho uma imaginação tão rica e maravilhosa, não é de

surpreender que tenha ido um pouco longe de mais.

Tudo seria perfeito, se o guincho me saísse da cabeça. É como se

tivesse um objeto alojado no cérebro, como um pionés ou uma faca.

IIIIuuuiiiii.

Acho que me sinto suficientemente calma para voltar a consultar a

Bíblia. Estou um pouco nervosa, depois da última vez… a casa abanou

tanto. Foi tão assustador que nunca mais me atrevi desde então. Mas

não posso continuar a adiar. O SENHOR não gostaria disso. Tenho de ser

valente! Deseja-me sorte, máquina das cassetes!

Empurro o livro com os olhos bem fechados, preparada para o

impacto. Mas o estrondo e os tremores, quando chegam, são distantes e

fundos na terra. Quando a página abre, leio:

Mas se o sal perder as suas qualidades,


poderá novamente salgar?

Já não presta para nada,

senão para se deitar fora

e ser pisado por quem passa.

Consigo cheirar sal e gordura. Corro escadas acima ao encontro de

Ted. Certo e sabido, ele está na cama, a comer batatas fritas com uma

mão. Salto com leveza e pouso com as quatro patas na barriga dele. O

SENHOR nunca me desilude.

– Assustaste-me, gatinha!

Ele larga a coisa com que estava a brincar com a outra mão. Uma

coisa azul, demasiado fina para ser um cachecol – mais uma gravata de

seda ou algo assim. Deito-me na barriga dele e ronrono. Eu e Ted somos

muito felizes nos dias que correm. Sim, acho que está tudo a voltar ao

normal.
Ted

Hoje o passado está próximo. A membrana do tempo dilata-se e

estica-se. Ouço a Mamã na cozinha, a falar com a senhora do

chihuahua. A Mamã está a contar-lhe a história com o ratinho. Foi aí

que tudo começou. Tapo os ouvidos e aumento o som da televisão, mas

ainda consigo ouvir a voz dela. Lembro-me de tudo sobre a história com

o ratinho, o que é invulgar. Normalmente, a minha memória é um queijo

suíço.

Cada sala de aula tinha um animal de estimação. Era uma espécie de

mascote. Uma sala tinha uma cobra de ar espantado, o que era fixe, e

obviamente melhor do que um ratinho branco com olhos vermelhos.

O miúdo dos sinais devia ter levado o ratinho para casa nesse fim de

semana, mas não tinha vindo às aulas na sexta-feira. A mãe dele disse

que ele estava constipado, mas toda a gente sabia que estava a fazer uma

operação para tirar os sinais da cara. A questão era que ele não podia

levar o ratinho para casa e o seguinte no alfabeto era eu. Bola-de-Neve,

era assim que se chamava. O ratinho, não o rapaz.

Levei o Bola-de-Neve para casa. Tive de o trazer para dentro de casa

às escondidas. A Mamã nunca teria permitido um animal dentro de casa.

Os animais domesticados eram uma forma de escravatura. Então

aconteceu a cena e na segunda-feira não o levei de volta para a escola.

Não me meti em sarilhos. Não havia nada que ninguém pudesse

fazer ou dizer. Afinal, fora um acidente… a porta da gaiola soltara-se.

Fiquei muito perturbado com toda a cena, mas também havia outros

sentimentos, que eram mais agradáveis. Tinha descoberto uma parte

nova de mim. Lembro-me da expressão no olhar do professor nessa

segunda-feira. Tinha uma nova cautela. Ele viu o que eu era. Viu que eu

era perigoso.
A nossa sala arranjou um hámster para substituir o Bola-de-Neve. O

professor mudou o sistema de levar o hámster para casa ao fim de

semana… agora era por sorteio, tirado de um boné de beisebol. O meu

nome nunca saiu do boné. No fim, tornou-se diretor da escola, esse

professor. Foi anos mais tarde, quando dei um murro a alguém no

corredor junto ao meu cacifo, que teve a oportunidade dele. Nem sequer

me lembro a quem dei o murro. Foi um murro ou um pontapé? Mas foi a

minha terceira infração, a questão é essa, e fui expulso da escola. Eu

sabia que aquele professor estava à espera da oportunidade para me

mandar embora, desde a cena com o ratinho.

Olho para as cassetes. Estão bem alinhadas na estante. Penso na

cassete que escondi no armário do corredor. Se fosse mais corajoso,

talvez a ouvisse. As últimas palavras dela.

Os pensamentos são uma porta por onde entram os mortos. Sinto-a

agora, dedos frios a percorrerem-me o pescoço. Mamã, por favor, deixa-

me em paz.

Tenho de me concentrar. Sacudo as mãos e viro as palmas para cima.

Olho para a minha mão… cada dedo, a base carnuda do polegar, a

palma seca como couro. Respiro fundo por cada parte da mão. Isto foi

uma coisa que o senhor bicho sugeriu que eu tentasse.

Surpreendentemente, funciona.

Destranco o armário do portátil e ligo o computador. A fotografia do

homem atrás da secretária aparece, a sorrir. Não se parece, de todo, com

uma fotografia verdadeira. Mas quando as pessoas se sentem mesmo

solitárias, não querem saber o que é real e o que não é. Mais uma vez,

sinto-me mal por usar uma imagem falsa, mas ninguém quereria

encontrar-se comigo se usasse a minha foto verdadeira.

Olho para as filas e filas de mulheres. São tantas. A procura não tem

corrido bem, mas é importante não desistir.


Talvez esteja a fazer isto mal. Tenho-me focado em cabelo cor de

manteiga e olhos azuis e por aí fora, quando, na verdade, o que eu

preciso é de alguém com quem tenha mais em comum. Uma mãe

solteira. Mudo os termos da busca e os rostos desaparecem, substituídos

por rostos novos. São rostos mais velhos, na maioria. Tento algumas,

mas parecem mais cautelosas do que as mulheres sem filhos, menos

recetivas.

Por fim, encontro uma. Está disposta a encontrar-se hoje. Responde

depressa, num espaço de três segundos, que até eu consigo ver que é um

erro. Demasiado ansiosa. Vai encontrar-se comigo num café perto do

emprego. Por acaso, até é bonita. Tem um rosto macio com uma linha do

queixo gorducha. A pintura do cabelo já tem algum tempo, com cinzento

nas raízes a interromper o preto apagado. É tarde, mas ela vai ver se a

irmã pode vir tomar conta da filha. Tem uma menina de 12 anos.

Também tenho uma filha, digo eu. A Lauren. Como se chama a tua?

Ela diz-me e eu escrevo: Que nome bonito. É tão bom falar com

outro pai solteiro. Às vezes, pode ser solitário.

Eu sei!, responde ela. Há dias em que só quero chorar.

Se a tua irmã não puder, podes trazer a tua filha, digo eu à mulher.

Adorava conhecê-la. Também posso levar a Lauren. (É claro que não

posso levar Lauren, mas posso sempre dizer que ela está a sentir-se

adoentada.)

Uau, isso é tão compreensivo, diz ela. Dá para ver que és boa

pessoa.

Vou levar uma camisa azul, escrevo eu. Talvez pudesses vestir-te de

azul, para eu te reconhecer.

Claro, parece divertido.

Talvez não calças de ganga, porque isso toda a gente vai estar a

usar.
OK…

Tens um vestido azul?

Não tomo banho há algum tempo, por isso faço isso mesmo,

cantando em harmonia a melodia que a mulher está a cantar. Também

tomo mais uns comprimidos. Não quero fazer asneira desta vez.

Bebo uma cerveja num instante antes de sair. Bebo-a de golada, de

pé, diante da porta aberta do frigorífico. Há rastos de caganitas pretas

nos balcões da cozinha. O problema com os ratos está a ficar pior. Os

ratos não me incomodam se os gatos tratarem deles, mas não aqui. Às

vezes, com alguns problemas, não fazemos nada e eles desaparecem.

Outras vezes, é o contrário. Devia ir buscar o diário e tomar nota, mas

não tenho tempo!

A rua está escura e calma quando saio da casa, trancando as três

fechaduras ao sair. A casa da senhora do chihuahua continua vazia.

Atrai-me quando passo em frente, um puxão estranho, como se a casa

quisesse que eu entrasse, como um deus a enviar ramos de poder.


Olivia

Ted voltou a desaparecer. Já passou um dia e uma noite. Quero

tanto ir para o meu caixote escuro, mas ele empilhou pesos em cima.

Que insensível. Já lambi tanto a minha taça que a língua me sabe a

metal. Oh, e claro, claro, o zumbido continua cá, a encher-me o cérebro.

Sobe e desce, mas ultimamente nunca vai embora. Às vezes quase

consigo imaginar que ouço palavras no zumbido. Neste momento, é

suportável. A fome é pior. Faz-me doer a barriga.

A televisão está ligada, uma cena sinistra com um assassino a

perseguir uma rapariga num parque de estacionamento. Está escuro e

chove. A atriz que faz o papel da rapariga é muito boa. Parece mesmo

assustada. Como não gosto desse tipo de coisa, saio da sala, mas ainda

consigo ouvir os passos rápidos, os gritos. Espero que ela escape.

Francamente, quem vê este lixo? Este mundo tem pessoas muito doentes,

deixem que vos diga. Dou graças ao SENHOR por o meu Ted não ser

nada assim.

Tanta fome.

Vasculho a casa. O cordão paira atrás de mim. Hoje é cinzento e

arrasta-se pelo chão, o que parece apropriado. Não dá para comer. Eu

tentei. Já comi tudo o que há para comer neste sítio. Até deitei ao chão a

tampa do caixote do lixo, mas só tinha lenços de papel usados. Desde o

Jantar Mau, Ted deita fora o lixo duas vezes ao dia. Eu comi os lenços

de papel na mesma.

Patrulho a casa, à procura do cheiro a sangue. Até desço à oficina na

cave, um sítio que me agrada pouco porque não tem janelas. O motor,

qual cintilante criatura marinha, está pousado na bancada, debaixo do

foco de luz. Há caixas empilhadas contra as paredes. Trepo para dentro


delas. Estão quase todas vazias, ou cheias de peças velhas. Mesmo neste

meu estado ansioso, o cartão faz-me ronronar um pouco. Tenho de fazer

um esforço enorme para não me aconchegar para uma sesta confortável.

Rastejo para baixo do sofá e espreito atrás dos aquecedores. Vou para

baixo da cama de Ted, onde latas de cerveja vazias rolam no meio do

cotão. Abro as gavetas e procuro no meio das meias e dos boxers e das

camisolas interiores. Vasculho o fundo do guarda-fatos. Não encontro

nada. Nada de sangue nem o mais pequeno rasto de Lauren.

Paro diante da porta do sótão, com a cauda esticada e assustada. Não

se ouve som nenhum. Forço-me a chegar mais perto. Encosto o meu

nariz delicado à frincha por baixo da porta e inalo. Pó, pó e mais nada.

Fico à escuta, mas está tudo calmo. Imagino o ar parado, as traves

grossas a suspirar, objetos abandonados a tombar de caixas. Estremeço.

Há algo de horrível na ideia de uma sala vazia, às escuras. UUuuuiiiiiiii,

continua a cantilena no meu cérebro. Se o SENHOR tem um propósito

para este barulho quase constante, só desejo que Ele o revele

depressinha.

Ocorre-me que não fui ver por baixo do frigorífico. Certo e sabido,

depois de algumas tentativas, consigo apanhar uma bolacha velha com

uma garra. Ui. Mole.

Estou a mastigar quando avisto algo na penumbra escura. Deslizo

gentilmente a pata, estendo delicadamente as garras até à extensão

máxima e tateio entre as tampas de garrafa e o cotão cinzento e fofo.

Cravo uma garra numa coisa. É uma superfície mole, a garra atravessa-a

de um lado ao outro. Um corpo pequeno, é o meu primeiro pensamento.

Um rato? Oh… Mas não é carne, é algo mais fino e poroso. Puxo o

objeto para a luz. É um chinelo branco de criança. Deve ser de Lauren.

Lauren não consegue andar, mas às vezes gosta de usar sapatos na

mesma.
Bolas, não é nada de mais, digo a mim mesma, é só um chinelo de

praia. O odor rico em ferro que me enche as narinas conta outra

história. Relutantemente, cheiro-o de ponta a ponta. A sola está dura,

empapada com uma substância seca, castanho-escura. Por isso, penso,

Talvez seja geleia ou molho de tomate, algo assim, talvez não seja

sangue. Mas a minha boca está a encher-se com o odor. Quero comê-lo.

O guincho aumenta de tom e volume.

Largo o chinelo entre as patas da frente e olho para ele, como se

estivesse ali escrita uma resposta. Provavelmente não tem nada que ver

comigo. Lauren deve ter-se magoado. Ela não sente os pés, é bruta com

eles. Mas não consigo deixar de pensar em ossos pequenos e no sabor

que o Noturno me deixa no fundo da garganta. Em como ele tem

tomado as rédeas cada vez mais ultimamente… em como o tenho

deixado tomar o controlo. A minha cauda eriça-se num escovilhão de

receio. Normalmente, é exatamente o tipo de situação em que procuro a

orientação do SENHOR. Mas não desta vez. Não sei dizer porquê, mas

neste momento não quero a atenção Dele sobre mim.

Não há sangue em mais lado nenhum da cozinha. Tenho a certeza.

Na verdade, está invulgarmente limpa. Consigo sentir o cheiro da lixívia.

Isso é mesmo muito estranho, pois Ted nunca limpa.

Estás aí?, pergunto.

Os olhos verdes brilham na escuridão. É a minha hora?

Não.

Talvez seja. Ele chega-se à frente, um pouco brincalhão, tentando

tomar controlo. Eu resisto… mas, francamente, é mais difícil do que me

lembro. Ele está a ficar mais forte?

Tu… Faço uma pausa e lambo os lábios. A minha língua parece seca

e rígida. Nós magoámos a Lauren?


Não, diz ele, e segue-se a onda negra que percorre o meu corpo

quando o Noturno se ri. É claro que não.

Ufa. Mas o meu alívio é de curta duração. Então, pergunto ao

Noturno, o que estava a fazer um chinelo com sangue debaixo do

frigorífico?

Ele encolhe os ombros e todo o interior da minha mente sobe e

desce como uma onda no mar. Ela magoou-se?, sugere ele. Crianças.

Talvez, digo eu. Mas porque não tem vindo cá ultimamente?

O meu trabalho não é explicar-te coisas, diz ele. Pergunta a outra

pessoa. E vira-se para regressar à escuridão.

Bom, que ajuda do diabo me saíste tu!, grito-lhe. A quem raios é que

vou perguntar?

Não me sinto tranquilizada. Muito pelo contrário. O Noturno estava

tão forte. Os pelos eriçam-se-me no cachaço.

Ted cambaleia para dentro da cozinha. As luzes acendem-se. Não me

apercebi de que ficou escuro.

– O que foi que encontraste?

Tira-me o chinelo de praia ensanguentado e fica parado a olhar para

ele.

– Pensava que tinha deitado isto fora. Porque é que isto não

desaparece? Não quero isto aqui. Não te quero a olhar para isto.

Põe o chinelo no bolso e pega em mim. O hálito dele é um bafo

quente no meu pelo. Contorço-me e mio em protesto, mas não adianta.

Ele põe-me no caixote. A tampa desce. Ouço a empilhar coisas em

cima. Ele NUNCA faz isso quando eu estou cá dentro. Eu mio

educadamente, porque isto só pode ser algum tipo de engano. Não vou

conseguir sair. Mas ele continua, Ted está a prender-me! Porque faria

isso?
Eu mio e mio, mas a única resposta é o silêncio. Ted foi-se embora.

Deixou-me trancada no escuro. Tento não entrar em pânico. Isto passa-

lhe e ele deixa-me sair. Além disso, adoro o meu caixote, não adoro?

Não consigo dormir. De quando a quando, acordo sobressaltada,

convencida de que está aqui alguém comigo. Consigo sentir alguém ao

meu lado, a mexer-se no escuro.


Ted

Não sei dizer ao certo que idade tinha quando percebi que a Mamã

era linda. Acho que não tinha mais de 5 anos. Percebi-o, não olhando

para ela, mas pelas expressões das outras crianças e dos pais delas.

Quando vinha buscar-me à escola, o parque de estacionamento estava

sempre cheio e todos olhavam para ela.

Isso causava-me sentimentos complexos. Era óbvio que as outras

mamãs não eram como ela. A minha mamã tinha pele lisa e olhos

grandes que pareciam não ver mais ninguém quando nos fitavam. Não

vestia calças de ganga ou sweaters. Usava um vestido azul com uma saia

que rodopiava à volta das pernas como o mar, ou às vezes blusas finas,

que mostravam vislumbres das cavernas quentes e sombrias do seu ser.

Falava numa voz baixa e gentil, nunca gritava como as outras mães. As

consoantes marcadas e as vogais longas eram exóticas. Sentia orgulho

quando olhavam para ela. Mas os olhares também faziam arder um

pequeno sítio quente na minha barriga. Eu queria e não queria que

olhassem para ela. Ficou melhor quando comecei a apanhar o autocarro.

Sentia-me muito protetor dela na escola, mas ficava sempre com

mais ciúmes quando a Mamã voltava do trabalho. Tinha medo de que

todas as outras crianças que ela tratava no hospital a usassem até ao fim

e que não sobrasse nada para mim.

De certa forma, foi o que aconteceu. Ela ficou destroçada quando a

despediram. Estavam a fazer cortes em todo o lado, toda a gente sabia

disso. Havia pouco dinheiro. O Papá disse-me para não incomodar a

Mamã. Ela precisava de algum espaço, disse ele. E ela parecia

diminuída, de alguma forma. O seu brilho fácil estava mais esbatido. Na

altura, eu devia ter uns 14 anos.


A senhora do chihuahua e a Mamã eram boas amigas. Todas as

manhãs, quando não tinham turno, a Mamã ia até casa dela. Bebiam

café, fumavam Virginia Slims e falavam. Quando o dia estava bonito,

sentavam-se no alpendre. Quando estava nublado ou frio, como

costumava estar, sentavam-se à mesa de jantar até o ar ficar tão denso

com fumo e segredos que dava para cortar à faca. Eu sabia tudo isso

porque às vezes, aos fins de semana, elas perdiam a noção do tempo e eu

tinha de ir chamar a Mamã para fazer o almoço. Talvez fosse apenas

abrir frascos de comida para bebé, mas continuava a ser um trabalho de

mulher, dizia o Papá. Nessa altura, ele bebia muito.

Depois de despedirem a Mamã, a senhora do chihuahua ficou

ultrajada, muito mais zangada do que a Mamã. A senhora do chihuahua

tentou convencê-la a impugnar a decisão.

– Tu és a melhor – disse ela. – Tens tanto jeito com as crianças. São

loucos por te mandarem embora. É um crime.

Os olhos grandes e castanhos dela eram duas lagoas de fé. A senhora

do chihuahua vibrava sempre com energia.

– Podes escrever à direção do hospital – disse ela à Mamã. – Anda

lá. Não podes aceitar isto sem dar luta. Tu és uma mais-valia.

Eu e o Papá concordávamos com ela.

– Tu és a melhor, Mamã – disse eu. – Eles não sabem a sorte que têm

por te terem.

– É assim que as coisas são – disse a Mamã, na sua voz gentil. –

Temos de aceitar os contratempos com elegância.

Os meus problemas na escola já tinham começado, mas os meus pais

ainda não os levavam a sério. Acho que era tão bem-comportado em

casa que eles julgaram que devia haver algum engano. Eu era prestável e

educado, ou pelo menos tentava ser.


– O Teddy parece ter saltado a adolescência – dizia a Mamã,

acariciando-me a cara. – Temos tanta sorte.

Certa manhã, a senhora do chihuahua veio a nossa casa antes de eu

sair para a escola. Eu estava a comer cereais no balcão da cozinha. A

Mamã estava a usar o vestido azul diáfano que esvoaçava quando ela se

mexia. A senhora do chihuahua sentou-se num banco e deitou três

saquetas de adoçante no café. O vapor contorcia-se à volta da sua

cabeça. Gostava do café a ferver tanto e tão doce que dava para matar.

Tirou o cão da bolsa e pousou-o em cima do balcão. O cão tinha um

focinho pequeno e escuro, com um ar inteligente. Ele cheirou

delicadamente as chávenas de café e piscou os olhos com o fumo azul

dos cigarros.

– Como consegues? – perguntou a Mamã. – Como consegues manter

essa pobre criatura em cativeiro? Não vês como sofre dos olhos? Criar e

manter animais selvagens é monstruoso.

– Tens um coração de ouro – disse a senhora do chihuahua. (É claro,

percebo agora, isto foi antes do chihuahua. Na altura ela era a senhora

do dachshund, por isso vou chamar-lhe isso.)

A senhora do dachshund lançou-lhe um olhar.

– Vamos para a outra sala – disse a Mamã. – Teddy, acaba o trabalho

de casa de matemática.

Elas foram para a sala de estar e fecharam a porta da cozinha.

– Oh, esse cão, não suporto olhar para ele – ouvi-a dizer. – E não o

deixes subir para as minhas cadeiras estofadas! É pouco higiénico.

Fui buscar o trabalho de casa de matemática. Doía-me a cabeça. A

dor já durava há alguns dias, como um sapo sentado no meu crânio.

Olhei para a página, que pulsava e rodopiava. Era difícil concentrar-me

com o cérebro a latejar daquela maneira. Parecia que tinha tentado

resolver alguns dos problemas de matemática na noite anterior, mas


também dava para ver que tinha resolvido quase todos mal. Suspirei e

fui buscar a borracha. A voz da senhora do dachshund ia e vinha. A

porta da cozinha era feita de tábuas finas de pinho.

– Há algo que não me cheira – disse ela. – Tem havido reuniões toda

a semana e ontem veio a polícia. Estão a interrogar-nos a todas, uma por

uma, na sala das enfermeiras. Não é muito conveniente. Significa que

temos de ir buscar café à cafetaria. São três andares para baixo no

elevador e três andares para cima no regresso. Gasta-me a pausa toda.

– Credo – disse a Mamã. – Que diabo se passa?

– Não sei. Ainda não chegou a minha vez, estão a avançar por ordem

alfabética. As outras não dizem. Todas parecem perturbadas quando

saem.

– Não me surpreende, sabes?

– Não?

Quase consigo ouvir a senhora do dachshund a debruçar-se para a

frente, em antecipação.

– Pensa bem. Toda aquela história do dinheiro… Só gostava de saber

para onde vai o dinheiro. Estamos a fazer o serviço que sempre fizemos,

com o mesmo orçamento de sempre. Como é que de repente há tão

pouco dinheiro?

– Uau – diz a senhora do dachshund, inalando com força. – Achas

que há algum tipo de… fraude ou algum esquema no hospital?

– Não sei dizer – diz a Mamã, na sua voz mais gentil. – Apenas me

interrogo, mais nada.

Ouvi a senhora do dachshund a estalar a língua.

– Nunca fez sentido para mim que te tivessem despedido. Não me

canso de dizer isso. O que dizes explicava algumas coisas.

A Mamã não respondeu e imaginei-a a abanar a cabeça com o seu

sorriso gentil e misterioso.


Comecei a ficar incomodado, sem saber porquê. Por isso, enrosquei-

me dentro da velha arca congeladora. Baixei a tampa e senti-me logo

melhor.

Perdi algum tempo depois disso. Quando regressei, ainda estava

dentro da arca, ou mais provavelmente estava lá outra vez. Ouvia a voz

da senhora do dachshund e o odor do fumo dos cigarros filtrava-se para

a cozinha pela porta da sala. A cozinha estava um pouco diferente. As

túlipas no peitoril da janela tinham desaparecido. As paredes pareciam

mais sujas.

– É um escândalo! – A voz da Mamã. – A atirar pedras! Partiram

todos os candeeiros desta rua. Eu culpo os pais. As crianças precisam de

disciplina.

Abri a porta da cozinha. As duas mulheres olharam para mim com

um ar de surpresa. A Mamã estava a usar uma blusa verde e calças

largas. Do outro lado da janela, o dia estava frio, emoldurado por ramos

sem folhas. O terrier peludo sentado ao lado da senhora do dachshund

não era um dachshund. O cão ergueu a cabeça castanha e branca,

piscando os olhos por causa do fumo. Agora era a senhora do terrier.

– Vai lá, Teddy – disse a Mamã, gentilmente. – Não tens de te

preocupar. Acaba a tua proposta de emprego.

Fechei a porta e voltei para a cozinha, onde a proposta de emprego

da oficina na cidade estava em cima do balcão, meio preenchida.

Não era o mesmo dia e eu já não andava na escola. Tinha sido

expulso por dar um murro num rapaz junto aos cacifos. A Mamã achou

que até era melhor se eu ficasse em casa. Ajudava-a nas lides

domésticas. Nunca tinha perdido tanto tempo só de uma vez. Tentei

reunir os breves vislumbres de memória que encontrei na minha mente.

Devia ter 20 ou 21 anos, a Mamã agora trabalhava num infantário e não


no hospital, mas, na verdade, já não trabalhava lá, porque tinha sido

despedida outra vez, porque as pessoas são más.

Senti a diferença no meu corpo. Eu era maior. Tipo, muito maior. Os

meus braços e pernas eram pesados. Tinha pelos vermelhos na cara. E

tinha mais cicatrizes. Conseguia senti-las nas costas, a fazerem

comichão por baixo da T-shirt.

– Méjicoooo – diz a senhora do terrier do outro lado da porta. – Vou

beber um cocktail ao pequeno-almoço todos os dias. Daqueles com

chapeuzinhos de sol.

Anseia por estas férias há semanas.

– O Henry vem comigo. Aquele rapaz simpático que põe as compras

nos sacos no Stop and Go. Tem 25 anos, que tal?

– És terrível – diz a Mamã.

Soa como um elogio e uma crítica. Penso em como será ter 25 anos e

que idade terá a senhora do terrier. Que nojo. Ela deve ter quase 40.

– A Sylvia pensa o mesmo – diz a senhora do terrier, subitamente

triste. – Nunca pensei que a minha filha se tornasse tão preconceituosa.

Era uma bebé tão querida.

– Eu tenho muita sorte com o Teddy – diz a minha mãe, e sinto-me

inundado de amor por ela. – Ele é sempre respeitoso.

Pergunto-me onde estará o Papá e depois lembro-me. O Papá partiu

porque lhe dei um murro na cabeça. Lembro-me do som do osso contra

os nós dos meus dedos e do aspeto das nódoas negras na minha mão. É

uma das muitas vezes em que dei graças por não sentir dor. Ele sentiu.

Eu sei que o Papá mereceu, mas tenho de procurar a razão. As memórias

voltam-me em clarões. Tive de lhe bater porque ele estava a gritar com a

Mamã. A chamar-lhe nomes, a dizer que ela era louca.

– Tsss – diz a Mamã, interrompendo os meus pensamentos. Olho

para ela, grato por ela estar ali. – Cortaste-te nessa faca, Teddy.
Com um sobressalto, volto a pôr a faca na gaveta. Não me lembrava

de a ter tirado.

– Está tudo bem, Mamã.

– Não brinques com a tua saúde – diz ela. – Precisa de ser

desinfetado e levar alguns pontos. Vou buscar o meu estojo.

Não, isso não aconteceu nessa altura. Agora estou na memória

errada. Nunca chames louca a uma mulher. A sensação das mãos frescas

da Mamã no meu rosto e o aroma verde a seiva da floresta na primavera.

Não, isso também não está certo. Tento encontrar o fio à meada desse

dia. Estou quase a ofegar de frustração. Havia algo de importante nesse

dia. Mas fugiu-me.

A segunda vez que a Mamã me levou à floresta foi por causa do

Bola-de-Neve, do ratinho. Eu estava na sala, a chorar por cima da gaiola.

O que restava dele estava a brilhar num canto. O serrim estava

manchado de castanho e formava grumos. Tanto sangue para uma coisa

tão pequena. Lembro-me do sabor a ranho e medo. Apertei a minha

manta amarela contra a cara e estava encharcada; as borboletas azuis

cintilavam de tristeza.

Ergo o olhar e lá está ela, à porta, a observar-me em silêncio. Está a

usar o vestido azul, o vestido flutuante a que chama o seu vestido casual.

Não sabia o que fazer. Como poderia explicar aquilo?

– Não olhes para mim – disse eu. – Eu não fiz isto.

– Fizeste, sim.

Dei um grito e agarrei na boneca russa em cima da lareira. Atirei-a à

Mamã. Voaram bonecas pequenas em todas as direções. Todas falharam

a cabeça dela – partiram-se na parede que estava atrás. Voltei a gritar e

agarrei na caixa de música, mas fiquei assustado com os maus


sentimentos a contorcerem-se dentro de mim. Deixei cair a caixa ao

chão. A caixa partiu com um acorde grave.

– Olha o que fizeste. – Ela estava calma. – Tu tiras-me tudo,

Theodore. Tiras, tiras, tiras. Já acabaste?

Assenti.

– Vai buscar uma caixa de sapatos ao meu quarto. Primeiro, tira os

sapatos. A seguir, despeja tudo o que está na gaiola para dentro da caixa.

Ainda bem que ela deu instruções exatas. Precisava delas, não

conseguia pensar. O meu cérebro estava animado por sentimentos de

culpa e excitação. Pobre Bola-de-Neve. Mas eu tinha descoberto algo

profundo e secreto.

Carreguei a caixa de sapatos com cuidado numa mão. A Mamã

segurava-me a outra. Ela puxava-me pela mão, não sem algum carinho.

– Vamos, depressa – disse ela.

Saímos pela porta da frente e descemos a rua.

– Não trancaste a porta – disse eu. – E se alguém entra na nossa

casa? E se roubam coisas?

– Que roubem. Só eu e tu importamos.

E o Papá?, pensei, mas não disse.

Quando chegámos ao portão da floresta, puxei para trás.

– Não quero entrar aí. – Comecei a chorar outra vez. – Tenho medo

das árvores.

Lembrei-me do que aconteceu à gatinha de madeira. O que me seria

pedido que abandonasse hoje? Talvez a Mamã tivesse de ficar e eu seria

forçado a regressar sozinho. Esse era o pior pensamento de todos.

– Não precisas de ter medo, Teddy. Tu és mais assustador do que

qualquer criatura que viva nesta floresta. Além disso, vais sentir-te

melhor fora do sol quente.


Apertou a minha mão. Na outra mão, trazia uma pá de jardinagem, a

do cabo cor-de-rosa.

Seguimos o caminho, que parecia uma pele de leopardo de luz e

sombra. Ela tinha razão, sentia-me melhor ali, à sombra das árvores

frescas. Ainda estava arrependido. O ratinho era tão pequeno, e sabia

que devíamos ser gentis para criaturas pequenas. Por isso, voltei a

chorar.

Chegámos a uma clareira com penedos e árvores prateadas como

colunas de água ou de luz. Soube, assim que entrei naquele círculo, que

algo aconteceria ali. Era um sítio de transformação, onde a parede entre

mundos era fina. Conseguia senti-lo.

A Mamã cavou um buraco com a pá cor-de-rosa numa zona

iluminada pelo sol e enterrámos o que restava do rato. Os ossos estavam

limpos de carne; reluziam quase translúcidos no meio da erva nova.

Quando a terra rica começou a cair em cima da caixa de sapatos, a tapá-

la, algo aconteceu. Vi que o que antes fora apenas um ratinho estava

mudado. Os restos mortais tornaram-se preciosos e poderosos. Agora

faziam parte da morte e da terra. Tornaram-se um deus.

Ela sentou-se e deu uma palmada na terra ao seu lado. Lembro-me

do aroma a seiva e das mãos dela a segurarem-me a cara. Devia ser

primavera.

– Achas que sou muito dura contigo. Não gostas que eu tenha regras

e te recorde da realidade das coisas. Que eu trate da tua saúde e não te

deixe ter animais de estimação ou comer cachorros-quentes como as

outras crianças americanas, que não tenhamos dinheiro para pagar a

médicos e tenha de ser eu a dar pontos nos teus cortes. E eu faço tudo

isso na mesma, apesar das tuas queixas. Tomo conta da tua saúde porque

é o meu dever. Tal como tomo conta do teu corpo, também devo tomar

conta da tua mente. Descobrimos hoje que tens aí uma doença.


Provavelmente estás a prometer a ti mesmo que nunca mais voltas a

fazer uma coisa destas. Estás a pensar que cedeste só desta vez… E

talvez isso venha a ser verdade, mas não me parece. A tua doença é

antiga, está na nossa família há muito tempo. O meu pai, o teu avô,

também a tinha. Tinha esperança que tivesse morrido com ele. Talvez

pensasse que podia expiar os pecados dele. Um mundo novo, uma vida

nova. Tornei-me enfermeira porque queria salvar vidas.

– O que é? A doença.

Olhou para mim e o feixe da atenção dela era como um mar cálido.

– Faz-te querer magoar coisas vivas. Eu vi isso, na noite em que

segui o Pai até ao sítio antigo, os túmulos por baixo da iliz. Vi o que ele

guardava lá…

A Mamã tapou a boca com a mão. Respirou com força para a palma

da mão.

– O que é a iliz? – perguntei.

Soava maléfico, como o nome de um demónio.

– Quer dizer «igreja» – disse ela. – Iliz – repetiu baixinho, como se a

língua estivesse a recordar-se.

Nunca a tinha ouvido falar outra língua que não o inglês. Percebi que

havia uma outra versão sombria dela, feita de passado… como um

fantasma e uma pessoa viva, ligados um ao outro.

– Gostas de viver aqui? – perguntei. – Tens saudades?

Ela abanou a cabeça, impaciente.

– «Gostar» e «saudade»… isso são palavras mansas. Sítios como

aquele apenas existem. Não importa o que sentimos em relação a eles.

Neste país, todas as pessoas têm medo da morte. Mas a morte é o que

somos. Está no centro das coisas. Era assim em Locronan. Na iliz, o

ankou estava esculpido no altar. Deixávamos leite nas campas para ele

beber, com um dos seus muitos rostos. O cemitério era o coração da


aldeia. Era lá que nos reuníamos para falar, julgar ou discutir. Não havia

parques infantis. Em vez disso, brincávamos às escondidas no meio dos

túmulos. A vida era vivida no meio da morte, lado a lado. Mas essas

duas coisas podem conviver demasiado perto. A linha que as separa

pode apagar-se. Por isso, quando as pessoas ouviam sons vindos da iliz

durante a noite, não diziam nada, porque as coisas eram mesmo assim.

Quando os cães desapareciam, diziam «As coisas são mesmo assim».

Morte em vida, vida em morte. Mas eu não aceitava isso.

Fez uma pausa.

– Certa manhã, o rapaz que dormia com os animais, o Pemoc’h, não

apareceu à nossa porta para pedir a caneca de leite e as côdeas de pão.

Fui procurá-lo. Não estava no estábulo. Havia sangue na palha. Procurei

o rasto dele todo o dia. Ninguém se importava com o que lhe acontecia,

além de mim. Procurei nas valetas, no caso de ter sido atirado para lá

por um carro de passagem, e no galinheiro, no caso de ter adormecido

no meio dos corpos quentes… e, oh, em tantos outros sítios. Não o

encontrei. O meu pai deu por mim ao fim da tarde dentro do silo do grão

e deu-me um tabefe na cabeça. «Tens comida para cozinhar e roupa para

lavar. Não devias andar a vadiar.» «Estou à procura do Pemoc’h», disse

eu. «Receio que algo lhe tenha acontecido.» «Vai para a cozinha», disse

o meu pai. «Estás a negligenciar o teu dever. Dás-me vergonha.» O meu

pai olhou para mim. Vi que atrás dos olhos dele ardia uma vela

pequenina. Quando ele saiu nessa noite, segui-o pelos campos, até à

aldeia, até ao cemitério, até ao sítio por baixo da igreja. E aí vi a sua

verdadeira natureza.

– O que viste na igreja? – sussurrei eu. – O quê, Mamã?

Ela não olhou para mim.

– Vi-os dentro de gaiolas. Os animais de estimação do Pai. Vi o que

tinha acontecido ao Pemoc’h.


– No domingo, denunciei-o na igreja. Ergui-me perante a

congregação e disse-lhes o que ele tinha feito. Disse-lhes para irem ver,

se não acreditavam em mim. Eles não foram ver. Então, percebi que já

sabiam.

Fez uma nova pausa.

– Preferiam fechar os olhos, perder um cão vadio, perder até uma

criança vadia, de vez em quando. Sempre fora assim. Era assim que as

coisas eram. Pessoas que vivem juntas há várias gerações partilham um

tipo especial de loucura. Mas quando disse a verdade em voz alta, foram

forçados a agir, finalmente. Nessa noite, acordei com as chamas. Eram

cinco, com lenços sobre a cara e tochas na mão. Tiraram-me da cama,

arrastaram-me lá para fora. Ao meu pai, ataram-no à cama. Então,

deitaram fogo à casa. Nessa noite, o ankou usou a cara do meu pai. Caí

de joelhos e agradeci-lhes. Mas então o mundo ficou escuro. Acho que

me bateram na cabeça. Quando dei por mim, sabia que estávamos a

chocalhar estrada fora na carrinha do meu pai. Conduziram a noite toda.

De manhã, chegámos a uma cidade. «Tu és louca», disseram eles.

«Conta as tuas histórias à lama e às pedras da calçada. Nós, homens

bons, não temos tempo para elas.» E deixaram-me ali, nas ruas de uma

cidade desconhecida. Sem dinheiro, sem amigos. Nem sequer falava a

língua local, apenas a língua antiga.

– Porque fizeram isso? – Só queria magoá-los. – Isso não foi justo!

– Justo! – sorriu ela. – Eu tinha quebrado o silêncio de Locronan.

Entendi as ações deles.

– O que te aconteceu? O que comeste e onde dormiste?

– Usei o que tinha. A minha cara, a minha saúde, a minha mente, a

minha vontade. Tinha algum talento para ajudar os doentes e suturava

bem. Por isso, não me safei assim tão mal. Mas qualquer um pode bater

num cão vadio na rua, e era isso que eu era, até o teu pai passar pela
cidade. Ainda estaria naquele sítio, se não fosse ele. Ele trouxe-me para

cá. Senti o ankou a seguir-me através do oceano, através do país, até esta

costa distante. Assim que nos via, não nos deixava partir. Sabíamos

essas coisas em Locronan. Este mundo novo esqueceu-as. No dia em que

ele vier ter comigo de braços abertos, a usar a minha cara, vou estar

preparada.

Não fiquei perturbado com o que ela me estava a dizer, pois sabia

perfeitamente que a Mamã nunca podia morrer. Os meus receios eram

por mim mesmo. Olhei para a terra revolvida, debaixo da qual jazia o

pequeno deus, que um dia fora o Bola-de-Neve.

– O que me vai acontecer? – sussurrei.

– Um dia, talvez dentro de pouco tempo, ou talvez quando já fores

um homem crescido, vais querer fazer isto outra vez. Podes resistir, mas

no final vais ceder ao desejo, uma e outra vez. Com o passar do tempo,

vais querer presas maiores do que um ratinho. Talvez sejam cães, e

depois gado, e por fim pessoas. É assim que se sucede… já o vi. Seja

qual for o progresso, vai-se tornar tudo o que és, e vais ficar descuidado.

Isso vai ser a tua perdição. Um dia, quando já tiveres ultrapassado todos

os limites do razoável, vão apanhar-te. A polícia, os tribunais, as prisões.

Não és suficientemente esperto para os iludir. Vão descobrir a tua

natureza e vão magoar-te e vão prender-te. Sei que não sobreviverias.

Por isso, tens de ter cuidado. Não podes mostrar nunca quem realmente

és.

Foi um alívio, de certa maneira, ouvi-la dizer estas coisas. Sempre

tinha sentido que havia algo de errado comigo. Era como um dos

decalques que eu fazia com papel vegetal, um decalque mal feito,

quando a banda desenhada por baixo se mexia; as linhas descaíam ao

longo da folha e a imagem tornava-se uma versão monstruosa de si

mesma.
– Entendes? – perguntou ela, com os dedos na minha cara, leves e

frescos. – Não podes falar disto a ninguém. Nem aos teus amigos na

escola nem ao teu pai. Tem de ser um segredo só entre nós.

Assenti.

– Não chores – disse a Mamã. – Vem comigo.

Levantou-me com um braço forte.

– Onde vamos?

– Não vamos a lado nenhum. Vamos passear – disse ela. – Quando

os sentimentos forem fortes de mais para aguentares, tens de vir passear

para a floresta. – O tom de enfermeira insinuou-se na sua voz. – O

exercício é bom para a mente e para o corpo. O recomendado é 30

minutos por dia. Vai-te ajudar a ter autocontrolo.

Caminhámos em silêncio pelo trilho durante algum tempo. O vestido

azul da Mamã esvoaçava atrás dela com a brisa. Parecia saída de um

mito, ali no meio das árvores.

– Se descobrirem o que és, vão chamar-te «louco». Essa palavra…

detesto-a. Promete que nunca vais chamar louca a uma mulher,

Theodore.

– Prometo. Podemos ir para casa?

Pensei nos olhos e nas patinhas cor-de-rosa do Bola-de-Neve. As

lágrimas voltaram-me aos olhos. Ainda havia muito sentimento dentro

de mim.

– Ainda não – disse a Mamã. – Vamos continuar a passear até te

passar a vontade de chorar. Vais dizer-me quando isso acontecer.

Agarrei a saia dela com as duas mãos enquanto caminhávamos. As

minhas mãos ainda estavam sujas de cavarmos a sepultura. Deixaram

dedadas no tecido azul.

– Obrigada por não ficares zangada comigo.

Estava a falar do vestido, do ratinho, de tudo.


– Zangada… – disse ela, pensativa. – Não, não estou zangada.

Durante muito tempo, temi que isto existisse em ti. Agora que está

confirmado, até é um alívio. Já não preciso de continuar a pensar em ti

como meu filho. Já não preciso de procurar no meu coração um amor

que não posso sentir.

Comecei a chorar e lágrimas quentes rolaram-me dos olhos.

– Não estás a falar a sério. Por favor, não digas isso.

– Mas é a verdade. – Baixou o olhar para mim. O olhar dela era

distante e sério. – Tu és um monstro. Contudo, és a minha

responsabilidade. Vou continuar a fazer o que puder por ti, porque é o

meu dever e nunca tive medo do meu dever. Não vou permitir que te

chamem «louco». Neste país em especial, adoram atirar essa palavra

como se fosse uma bola.

Esperou pacientemente enquanto eu chorava. Quando as lágrimas

abrandaram, estendeu-me um lenço de papel e a sua mão.

– Anda. Vamos caminhar.

Só fomos para casa quando já me doíam os pés.

Tentei consertar as bonecas russas e até a caixa de música, com cola

e um livro sobre relógios. Ambas estavam irremediavelmente estragadas.

A Mamã guardou a caixa de música, mas deitou as bonecas ao lixo, que

desapareceram para sempre; outra parte dela que nunca poderei

recuperar, outra coisa que parti e não pode ser consertada.

Estou sempre a pensar em gravar a minha receita da sanduíche de

morango e vinagre, mas agora não tenho vontade.


Olivia

Luz, finalmente. As mãos de Ted a segurarem-me, a erguerem-me da

escuridão. O hálito dele tresanda a bourbon.

– Olá, gatinha – bafeja para o meu pelo. – Vais portar-te bem?

Espero que sim. Tive tantas saudades tuas. Vem ver televisão comigo.

Fazemos assim, eu faço-te festas e tu ronronas; não te parece boa ideia?

Torço-me nas mãos dele e arranho-lhe a cara com as unhas.

Arranho-lhe os braços e o peito, sinto as garras a rasgar algodão e carne,

sinto o sangue a sair. A seguir, corro e escondo-me debaixo do sofá.

Ele chama por mim.

– Por favor. Sai daí, gatinha.

Vai buscar um prato com duas tiras de frango e pousa-o no centro da

sala, ao lado do cadeirão. Estala os lábios e chama por mim.

– Gatinha, gatinha…

As tiras de frango cheiram mesmo bem. Estou cheia de fome e de

sede, mas a minha raiva é mais forte.

É como se já não te conhecesse, digo eu, mas é claro que ele apenas

me ouve a bufar. Por fim, ele desiste, o que é típico. Nunca assume

responsabilidade por nada.

Ao ir-se embora, algo lhe cai da dobra das calças. É pequeno e

branco, mas não consigo perceber o que é. A coisa ressalta no chão e a

minha cauda começa a estremecer. Quero persegui-la. Ted não repara.

Na cozinha, ouço o estalido oco de uma cerveja a ser aberta, a

garganta dele a engolir e os passos pesados quando ele sobe as escadas.

O gira-discos começa a tocar aos berros. A mulher triste começa a

cantar em longas vogais alongadas sobre dançar. Agora vai deitar-se na

cama, com a música a tocar baixo, a beber até não ter mais nada para

beber.
Agora estou escondida debaixo do sofá, apesar de o cotão me fazer

umas cócegas terríveis no nariz. Tenho de gravar isto.

Ora bem, é óbvio que fui buscar a coisa que caiu da dobra das

calças de Ted. Era irresistível. Aquela coisa dos gatos e da curiosidade,

sabem?

Esgueirei-me na direção da coisa branca, barriga colada ao chão. O

odor vinha da coisa em ondas. Era o odor que eu lambia das minhas

patas e dos meus lábios depois de o Noturno estar comigo. Era o odor

que vinha do pequeno chinelo branco. Foi então que soube que aquilo

era mau, muito mau.

Agarrei a coisa com a boca. Era um pedaço de papel, dobrado

tantas vezes que parecia uma pedrinha branca. Pensei: Porque andaria o

Ted com isto na dobra das calças? Que estranho.

Regressei sã e salva para baixo do sofá e desenrolei o recado com

uma garra. Na verdade, não era papel, mas um pedaço de casca de

árvore branca, fina e maravilhosa. Mas fora usada como um papel. Vi

que havia uma palavra, escrita com marcador cor-de-rosa na superfície

macia. Fiquei paralisada porque conhecia aquela escrita desajeitada.

Vi-a vezes que cheguem no quadro branco na cozinha.

É a letra de Lauren. Acima da palavra a marcador cor-de-rosa,

como ilhas remotas, estão três marcas castanhas e irregulares. O meu

nariz diz-me o que são. Gotas de sangue.

Empurrei várias vezes a nota para longe e tentei fingir que não

existia. Então, ia buscá-la outra vez e voltava a lê-la, esperando sempre

que dissesse algo diferente. Mas não dizia. Lá estava ela, uma única

palavra.

Socorro.
Ted

Estou a beber bourbon da garrafa, não tenho tempo para copos ou

gelo. A bebida escorre-me pela cara, os olhos ardem-me por causa dos

vapores. Desastre, desastre, desastre. Tenho de parar tudo. Estou a ser

vigiado – invadido, até. Podia não ter reparado, se a Mamã não me

tivesse treinado tão bem. Não dei conta de manhã, na primeira ronda

com o diário, o que só prova que ela tinha razão. Tudo parecia em

ordem. As janelas estavam tapadas, o contraplacado bem pregado sobre

elas, os buracos de vigia desimpedidos. Estava mesmo bem-disposto.

Estava com pressa durante a vistoria da noite. Tinha dónutes e uma

garrafa nova de bourbon à minha espera e às seis dava uma corrida

grande de camiões na televisão. Por isso, mal podia esperar pelo fim do

dia e fiz a inspeção à pressa. Quem me poderia censurar? Estava a voltar

para dentro quando vi algo pelo canto do olho.

Talvez não tivesse reparado em nada se o Sol não tivesse saído de

trás de uma nuvem nesse preciso momento, nesse preciso ângulo. Mas o

Sol saiu e eu reparei. Lá estava, um brilho prateado. Uma alfinetada de

luz, uma pequena gota de brilho no meio do contraplacado manchado

pelo tempo que tapa a janela da sala de estar.

Avancei pelo emaranhado de ervas e arbustos que cresce junto à

casa. Segurei o diário contra o corpo, tentando protegê-lo. Haverá

alguma coisa no planeta que não queira arranhar-me? Mas atravessar o

matagal não foi tão difícil como estava à espera. Alguns ramos verdes

estavam partidos e pendiam tristemente, como se alguém tivesse forçado

a passagem recentemente. Outros jaziam no chão, como se os tivessem

calcado. Fiquei mais inquieto.

Quando cheguei à janela, puxei pelo contraplacado, mas estava bem

preso, pregado à moldura da janela. Recuei um passo e observei com


atenção. Algo estava errado, mas o quê? Então, o Sol voltou a aparecer.

Cintilou nas cabeças dos pregos. Que brilhavam, novos em folha.

Então soube… alguém esteve ali. Alguém se esgueirou até à casa,

pelo meio de espinhos e urtigas. Retirou com cuidado os pregos do

contraplacado e tirou-o da janela. A seguir, só posso presumir que abriu

a janela e entrou na casa. Mais tarde, saiu e voltou a pôr o contraplacado

no sítio. Fez um bom trabalho. Eu podia nunca ter descoberto. Mas não

se lembraram de reutilizar os pregos velhos. Em vez disso, usaram

pregos novos em folha. É impossível saber quando. Estes pensamentos

eram como levar murros no pescoço, uns atrás dos outros.

Estariam a observar-me agora mesmo? Olhei em redor, mas tudo

estava parado. Um cortador de relva roncava em algum sítio.

Saí da vegetação e fui até à porta de trás. Sentia o peso de olhos

invisíveis. Não corri… apesar de querer, todos os músculos queriam, a

minha pele ardia com a vontade de correr. Assim que entrei em casa,

fechei a porta devagar e tranquei as fechaduras. Tum, tum, tum. Mas o

som já não significava segurança. Fui até à janela da sala de estar. Os

meus dedos procuraram o trinco. Estava solto na minha mão. Quando o

rodei, o trinco saiu numa chuva de pó castanho. A dada altura, ao longo

dos anos, o trinco de metal enferrujou completamente. Qualquer pessoa

podia ter entrado.

Eu nunca abro as janelas, claro. Até me esqueci que elas abriam. Isso

foi um erro. Ouvi um som arquejante e percebi que vinha de mim.

Caminhei para a frente e para trás na sala, dando pontapés no tapete azul

e fofo. Sempre temi que este dia chegasse. A Mamã disse-me que

chegaria, na floresta, depois da história com o ratinho – no dia em que

percebeu a minha verdadeira natureza. Eles vão apanhar-te, Teddy. Quis

tanto que ela estivesse errada.


O que terá visto o intruso? Será que me viu a mim? Enquanto fazia a

minha salada de frango e uvas, ou via televisão, ou dormia? A única

questão importante é: será que viu Lauren ou Olivia? Não pode. Eu já

saberia. Teria havido consequências.

A Mamã diria para procurar a variável. Os meus vizinhos, a

polícia… não me incomodam há anos. Então, o que mudou?

A vizinha da casa ao lado. É nova. Ela é a variável. Ela não quis ser

minha amiga. Deixou-me plantado no bar. Fito a casa dela e penso.

Estava a pensar em desenterrar Lauren e deixá-la vir a casa este fim

de semana… mas agora já não pode ser, claro. E também não pode haver

mais encontros, por enquanto. Não é seguro.

– A Lauren não pode vir brincar – canto ao ritmo da música.

Então, percebo que isso é um pouco cruel e paro. Tenho sido muito

estúpido, mas vou ter cuidado daqui para a frente.

Trata de um problema de cada vez. Primeiro a Lauren, depois logo

se vê o intruso. Talvez seja a vizinha, talvez não.

Julgo ouvir um chihuahua a ladrar na rua e vou até um buraco de

vigia para ver. Talvez ela tenha voltado! Isso seria menos uma

preocupação. O latido volta a soar… é mais grave e mais forte do que

um chihuahua. O homem com cabelo da cor do sumo de laranja aparece,

a caminhar com o cão na direção da floresta. Olha para a minha casa e,

por um segundo, os nossos olhares encontram-se, como se ele me

conseguisse ver. Mas não me consegue ver através do furo, digo a mim

mesmo. Então penso, se ele não mora na nossa rua, porque é que está

sempre aqui? Será o Assassino de Pássaros, ou o intruso, ou ambos?

Sento-me de costas contra a parede, com o coração aos saltos. Os meus

nervos retinem como um sino repicado.

Bourbon, só para me acalmar. Bebo-o de pé no quintal, observando a

casa da senhora vizinha. Ela que me veja.


Dee

Não voltou a ter o sonho desde que se mudou para Needless Street.

Hoje começa imediatamente, como se estivesse a reagir a um estímulo

há muito aguardado.

Dee está a caminhar junto ao lago. As árvores debruçam-se sobre a

água, lançando reflexos escuros e vítreos. As libelinhas beijam a

superfície da água, difundindo círculos brilhantes. O céu acima é um

vazio doloroso. A areia sob os seus pés é aguçada, um milhão de

pequenos estilhaços de vidro. Ela sangra, mas não sente dor. Ou talvez

tenha tanta dor dentro dela que nem sequer repara nos cortes. Continua a

andar. Dee daria tudo para parar, para se virar, para acordar, mas tem de

chegar às árvores, e aos pássaros, e aos ninhos, é assim que funciona.

Ela tem de ver.

A linha das árvores aproxima-se, o ar estremece com a força de tudo.

Vê os pássaros, pequenos e bonitos, rasgos de cor no meio das árvores.

Os pássaros não cantam. São silenciosos como peixes num tanque. O

lago fica para trás e ela está no sítio sombrio por baixo das árvores. O

solo da floresta está coberto com agulhas de pinheiro. É macio sob os

seus pés, macio como a terra de uma sepultura, acabada de cavar.

Acima, os pássaros planam e voam. Dee entra para a clareira sob o céu

terrível e lá está ela, a árvore branca. É um vidoeiro, esbelto e

encantador. Ela lembra-se que às vezes lhes chamam árvores de papel.

Estranho, os pensamentos que nos ocorrem nos sonhos. Há um ninho

intrincado construído na junção de dois ramos. Um pássaro carmesim

com olhos dourados e bico dourado pousa no ninho. Tece com cuidado o

feixe de erva seca que trouxe no bico no interior macio do ninho, onde

vai pôr ovos.


Dee começa a gemer. Tenta acordar, porque a parte seguinte é a pior,

mas não consegue. Contra a sua vontade, é atraída para cada vez mais

perto da árvore, do ninho, do pássaro. Cobre a boca de sonho com a mão

de sonho. Mesmo num sonho, pelos vistos, a barriga pode ficar enjoada

de morte.

Tenta virar-se, tenta fugir. Mas para onde quer que se vire, lá estão

os pássaros carmesins a voar no meio das árvores brancas como osso,

trazendo no bico feixes de erva que não são erva, forrando os seus

ninhos com o cabelo da sua irmã morta.

Dee acorda com pancadinhas suaves na cara, na testa, no nariz.

Quando abre os olhos, só consegue ver pelos e bigodes. A gata malhada

está muito perto; o focinho quase lhe toca no nariz. A gata volta a tocar

no nariz de Dee com a pata aveludada, para ter a certeza de que Dee

parou mesmo de gritar.

– Desculpa, gata – diz, acrescentando com um sobressalto: – O que

estás a fazer aqui?

A gata senta-se sobre as patas traseiras e olha fixamente para ela.

Está magra e maltratada, com as orelhas feridas de andar à luta. Os

olhos são de um castanho suave. Dee não diria que é uma gata bonita,

mas é uma sobrevivente.

A gata inclina a cabeça para o lado e solta uma interrogação:

pprrrrr?

– A sério? – pergunta Dee, incrédula.

Mas a gata continua a fitá-la fixamente e toda a gente sabe o que isso

quer dizer, vindo de um gato.

Dee encontra uma lata de atum num armário da cozinha e despeja o

conteúdo para um pires. A gata come delicadamente, abanando a cauda

no ar.
– Tens nome? – pergunta Dee.

A gata ignora-a. Lambe os lábios com uma pequena língua rosada e

caminha até à sala. Dee lava o pires antes de a seguir. Demora pouco,

mas, quando chega à sala, não vê a gata em lado nenhum. Foi-se

embora.

Dee sabe que a irmã não reencarnou numa gata vadia. É claro que

não. Isso seria uma loucura. Mas não consegue afastar a ideia de que a

gata a tirou do sonho. De que está a ajudá-la, de alguma forma.

Dee vai para o seu posto à janela. O mundo é iluminado por uma luz

difusa e secreta. Não sabe ao certo se é a aurora ou o crepúsculo. Há

algum tempo que não tem horas certas para dormir. Solta uma

exclamação, o coração aos saltos com o choque.

Ted está parado no jardim da frente. Pinga-lhe bourbon da barba.

Ergue a mão lentamente, a apontar um dedo. Os seus olhos parecem

atravessar as sombras. Dee estremece, como se o olhar dele lhe pudesse

tocar.

Sabe que ele não consegue ver através do vidro, para dentro da casa

às escuras, mas sente o toque leve do medo, como asas vermelhas.

Dentro dela surge um impulso de desafio. Vou apanhar-te, diz ela para

Ted em silêncio. Tu também o sentes.

Dee solta um grito e salta de susto quando o telemóvel toca. Fica

surpreendida por o telemóvel estar carregado e ligado. Não o usa há

tanto tempo. Olha para o número, faz uma careta e atende.

– Estou.

– Delilah. – Karen soa mais cansada do que o costume. – Como

estás?

– Oh, sabes como é – responde Dee.

Não diz mais nada. Obriga Karen a esforçar-se mais.


– Onde vives agora?

– Estou sempre a mudar-me. Se ficar parada muito tempo, começo a

pensar.

Surgem-lhe lágrimas nos olhos quando diz isso. Não era a sua

intenção. Dee esfrega furiosamente os olhos doridos. A verdade é como

o azeite. Parece conseguir sempre vir ao de cima. Vê se te controlas,

Dee Dee. Mãos à obra.

– Agora estou no Colorado.

O Colorado parece-lhe prudentemente distante dali.

– Se precisares de alguma coisa, fala comigo.

As palavras amontoam-se, a arder-lhe na garganta, mas Dee contém-

nas. Karen falhou vezes sem conta em dar a Dee a única coisa de que

precisava realmente: Lulu.

– Como estás? – pergunta, em vez disso.

– Estamos a ter uma onda de calor aqui em Washington – diz Karen.

– Não estava tanto calor há anos. – Desde o ano em que Lulu

desaparecera, mas nenhuma das duas diz isso. – Mas sei que esta altura

do ano é difícil para ti. Achei que podia ver como estavas.

– Ver como eu estou ou o que ando a fazer? – questiona Dee.

Ela sabe que Karen está a pensar no homem de Oregon.

– Quê?

– Nada. Obrigada, Karen.

– Tenho pensado em ti. Podia jurar que te vi numa loja da cidade um

destes dias. A mente prega-nos partidas, não é?

– É mesmo – diz Dee, com o coração aos saltos. – Não há nada para

mim nessa parte do mundo, Karen. Não voltava aí nunca.

– Entendo – suspira Karen. – Prometes que me ligas se precisares de

ajuda, Dee?

– Prometo.
– Fica bem.

A chamada cai.

Dee estremece e amaldiçoa a sua sorte. Será que Karen consegue

rastrear-lhe o telemóvel? Talvez, mas porque o faria? Dee não faz nada

errado.

Tem de ter mais cuidado. Tudo ficaria mais complicado se Karen

descobrisse que ela estava ali. Não podia voltar a sair durante o dia.

Apanharia o autocarro para a cidade para fazer compras. Dee pragueja

entre dentes. Quando volta a olhar pela janela, Ted desapareceu.


Ted

Será o intruso o Assassino? Dou voltas e mais voltas à cabeça, mas

não consigo perceber.

Não sinto tanto medo desde aquela vez no centro comercial. Isso foi

a última vez que estive quase a ser descoberto… a ser visto por quem

sou.

Lauren gritou e mostrou-me os buracos nas meias. Estava grande de

mais para a roupa dela e detestava tudo o que eu lhe tinha escolhido.

Que pai pode recusar-se a comprar roupa para a filha? Por isso, apesar

de saber que era um erro, disse que sim.

Escolhi um centro comercial mais antigo, mais fora da cidade, e

fomos numa tarde de segunda-feira, na esperança de não ter tanta gente.

Lauren estava tão excitada antes de sairmos que pensei que ia fazer

chichi nas cuecas. Ela queria usar montes de maluqueiras cor-de-rosa no

cabelo, mas eu achei que devia haver limites.

– Eu não poderia ser vista ao seu lado – disse-lhe eu, imitando uma

senhora muito refinada.

Ela riu-se, o que mostrava como estava bem-disposta, porque nunca

se ri das minhas piadas. Eu levava um boné, óculos escuros e roupas

normais em cores neutras. Sabia que aquela ida às compras era um risco

e queria chamar o mínimo possível de atenção.

Lauren portou-se bem na viagem para lá, olhando pela janela e

cantando sozinha, a canção dos bichos-de-conta. Nada dos disparates

que tentara no passado, como tentar agarrar o volante e fazer-nos guinar

para uma valeta ou contra um muro. Permiti-me a esperança de que tudo

correria bem.
Quando chegámos ao centro comercial, ao início nem o

conseguíamos ver, pois o parque de estacionamento era enorme e

tínhamos escolhido um lugar longe da entrada. Como Lauren estava

impaciente e não queria voltar para dentro do carro, fomos a pé. Deviam

ser quase 500 metros e a manhã estava abafada. A grande caixa

quadrada do edifício ficou maior e maior ao aproximarmo-nos. Tinha

letras rebuscadas em cima, enormes, como a assinatura de um gigante.

Lauren puxou por mim.

– Mais depressa. Anda lá, Papá.

Eu estava encharcado em suor quando chegámos às portas. O ar frio

e o chão de mármore foram um alívio. Tinha escolhido um sítio bom;

quase não tinha gente. Algumas mulheres zangadas com crianças

pequenas. Homens de ar abatido que pareciam não ter nada melhor para

fazer.

Havia um grande painel de plástico com um mapa e fiquei parado

diante do painel tentando perceber a planta do centro comercial. Mas

estava demasiado nervoso e tudo se dissolvia em linhas e cores (isto foi

antes de eu encontrar o senhor bicho e os comprimidos). Lauren não foi

grande ajuda, estava completamente dispersa, olhando para um lado e

para o outro, tentando ver tudo ao mesmo tempo.

Fui ter com uma senhora de uniforme castanho, com um emblema

no peito.

– Desculpe, onde fica a Contempo Casuals? – perguntei-lhe.

A mulher abanou a cabeça.

– Essa loja fechou. Há anos, se bem me lembro. Porque queria ir lá?

– A minha filha tem 13 anos – disse eu. – Quer comprar roupa.

– E pediu para ir à Contempo Casuals? Ela esteve em coma?

A mulher estava a ser muito desagradável e virei-lhe costas.

– Não têm cá essa loja – disse eu a Lauren.


– Não importa. Não é de mais, Papá?

Ela falou alto e vi uma das mães cansadas a olhar para nós.

– Para isto funcionar, tens de ser esperta – disse-lhe eu. – Não podes

falar. Fica por perto, nada de birras, faz tudo o que eu disser. De acordo?

Ela sorriu, assentiu e não disse uma palavra. Lauren tem os seus

defeitos, mas não é de compreensão lenta.

Caminhámos diante das montras, olhando para os vários produtos.

Havia muito para ver, podíamos ter passado o dia inteiro lá. Dos pilares

brancos, saía música de piano que ecoava no chão de mármore. Uma

fonte murmurava ali perto. Conseguia ver que Lauren estava a adorar e,

para ser franco, eu também. Era fantástico podermos andar juntos em

público, como pai e filha. Comprei um sumo de laranja para nós na

praça da alimentação vazia. Os odores do açúcar queimado e do molho

de soja lutavam entre si no ar. As mesas estavam sujas e desarrumadas,

como se as pessoas tivessem acabado de sair, com embalagens de

hambúrguer, garfos de plástico e migalhas por todo o lado. Mas não se

via mais ninguém.

Fomos até um armazém comercial vazio e escolhemos algumas

meias e camisolas interiores. Branco monótono para mim, cor-de-rosa e

amarelo para Lauren. As camisolas interiores tinham unicórnios.

Para a entreter, comecei a inventar nomes e histórias para os

empregados aborrecidos atrás dos balcões. A rapariga dentuda chamava-

se Mabel Worthington e estava a fazer horas extra para ajudar o irmão

mais novo a realizar o seu desejo de se tornar patinador no gelo. O tipo

com dois sinais grandes chamava-se Monty Miles e tinha acabado de

chegar, diretamente de uma pequena aldeia de pescadores no Canadá.

– As duas raparigas loiras são irmãs – disse eu. – Foram

encaminhadas para casas de acolhimento diferentes e acabaram de se

encontrar.
– Não gosto dessa – sussurrou Lauren, infeliz. – Não é simpático,

Papá. Muda-a.

– Hoje estás uma gatinha caprichosa, não estás?

Estava a tentar pensar numa história boa para aquelas duas quando

Lauren me puxou a mão. Virei-me e vi um par de leggings pendurado

num cabide próximo. Eram azuis com relâmpagos dourados. Lauren

susteve a respiração ao olhar para elas.

– Acho que podes experimentá-las – disse eu. – Mas tenho de ir

contigo para o provador.

Todas as leggings no cabide eram pequenas. Olhei em redor, em vão.

As duas empregadas vieram ter connosco. Ao perto, não eram muito

parecidas. Eram as duas loiras, mas era só.

– Posso ajudar? – perguntou a mais alta.

– Isto é tudo o que têm em stock? – perguntei.

– Julgo que sim – disse ela.

– Tem a certeza? – Conseguia ver como Lauren adorava as leggings e

como ficaria desiludida se não as pudesse ter. – Não tem mais no

armazém?

Brindei-a com o meu melhor sorriso e disse-lhe o tamanho de que

Lauren precisava. A mais baixa mal conteve uma risada.

– Eu disse algo engraçado? – perguntei.

Naquele momento, desejei que a espertinha tivesse mesmo crescido

numa casa de acolhimento, separada da família. Felizmente, a atenção

de Lauren voltara às leggings e ela não reparou.

A mulher mais alta ignorou a amiga.

– Posso verificar – disse, num tom profissional.

Reparei que tinha um trejeito na pálpebra esquerda, uma espécie de

tique. Talvez viver com aquilo toda a vida tivesse feito dela melhor

pessoa. Passado algum tempo, regressou com mais pares de leggings no


braço, como um guardanapo branco no braço de um empregado de mesa

num restaurante fino.

– Estas talvez sirvam.

O corredor dos provadores era longo e calmo, com cortinas brancas.

– Vai-te embora, Papá – disse Lauren quando entrámos para um dos

provadores.

– Sabes bem que não posso, gatinha.

– Pelo menos… não olhes. POR FAVOR.

Então, fechei os olhos. Ouvi o roçagar de roupas e depois silêncio.

– Não servem – disse, com tristeza.

– Lamento muito, gatinha – disse eu. E lamentava mesmo. –

Arranjamos-te outra coisa.

– Não. Estou cansada. Vamos para casa.

Deixámos as leggings onde estavam no chão, uma pilha triste de céu

azul e relâmpagos. Seguimos os sinais verdes da saída através do que

pareceram quilómetros de corredores vazios: artigos em couro, roupa

interior, acessórios para a casa.

Quando estávamos a chegar à saída da loja, ouvi pés a correr.

– Pare! – alguém gritou.

Quando me virei, a rapariga loira e alta vinha a correr para nós

através da sala de estar em exposição.

– Desculpe – disse ela. – Isto é alguma piada?

A voz dela tremia. A pálpebra piscava furiosamente.

– Há algum problema? – perguntei.

Ela estendeu um punhado de tecido azul e dourado.

– Isto – disse ela, virando as leggings do avesso.

As leggings eram forradas com um tecido branco e elástico. Lauren

tinha usado o forro como se fosse um papel em branco. E escrevera, com

o seu marcador cor-de-rosa preferido:


Socoro. O Ted é um rapetor. Ele xama-me Lauren, mas o meu nome

não é ese.

Por baixo, desenhou um mapa até à nossa casa. Estava bastante bom.

Ela devia ter prestado muita atenção durante a viagem.

– Esta merda não tem graça – disse a mulher. – Acha que as crianças

desaparecidas são uma piada?

Conseguia sentir Lauren a ficar agitada com os gritos e o praguejar.

– Peço imensa desculpa – disse eu. – Não sei como isso aconteceu. É

claro que pago.

Pus uma nota de 20 e uma nota de 10 dólares na mão da empregada

loira, que era muito mais do que as leggings custavam, e tirei-lhas da

mão.

Ela olhou para nós a abanar a cabeça, a sua boca uma linha fina e

severa.

Caminhámos de volta pelo deserto do estacionamento. O Sol

brilhava alto no céu e o calor abrasador erguia-se do asfalto.

– Entra, por favor, e aperta o cinto – disse eu quando chegámos ao

carro.

Lauren obedeceu em silêncio.

Liguei o ar condicionado. O ar frio começou a secar o suor da minha

testa e deixei que me acalmasse. Por fim, senti que podia confiar em

mim para falar.

– Devias estar a planear isto há muito tempo. Dá cá o marcador.

– Deixei-o na loja – disse Lauren.

– Não – respondi. – Não deixaste.

Ela tirou o marcador da meia e deu-mo. A seguir, começou a chorar

em silêncio. Isso doeu, era como um espeto no meu coração.

– Tens de aprender que as tuas ações têm consequências.


As costas de Lauren abanavam com soluços fortes. As lágrimas

corriam-lhe pela cara como um rio.

– Por favor – implorou. – Não me mandes embora.

Respirei fundo.

– Seis meses – disse eu. – Não podes vir lá para casa durante seis

meses.

Lauren soltou um gemido. Foi um som terrível que trouxe lágrimas

aos meus olhos.

– É para o teu bem – disse-lhe. – É tão difícil para mim como para ti.

Tentei educar-te bem, mas falhei. Agora percebo isso. Vandalizar bens e

mentir descaradamente. Tens de aprender que não podes fazer coisas

destas. E se aquela mulher tivesse acreditado em ti?

A separação que se seguiu foi tão dolorosa que tentei apagá-la da

memória. Não falamos disso. Durante aqueles meses, os pássaros de

madrugada tornaram-se um conforto ainda maior. Precisava de algo para

amar.

Quando esse período negro acabou e Lauren regressou, preparei

algumas precauções. Agora as portas têm três fechaduras e o portátil

está fechado a cadeado. Conto sempre os marcadores antes de os

guardar. Não é fácil, mas mantenho-a a salvo.

Lauren pareceu mudada depois disso. Ainda fazia muito barulho,

mas soava oco, as birras de uma criança muito mais nova. A minha filha

aprendera a lição, pensei eu.

Hoje à noite estou muito perturbado, por isso vou fazer chocolate

quente com menta.


Receita de Chocolate Quente com Menta, por Ted Bannerman.

Aqueça o leite. Parta pedaços de chocolate para dentro do leite e

derreta-os. Adicione xarope de menta, a quantidade que quiser.

Também pode adicionar bourbon. É de noite, já não vai a lado nenhum!

O resultado deve ser uma papa macia. Também pode juntar hortelã

fresca picada, se quiser. Sirva num copo alto de vidro com asa. Se não

tiver nenhum, uma caneca serve. (Eu não tenho.) A seguir, termine com

chantilly e pepitas de chocolate ou pedaços de bolacha. Precisa de uma

colher para comer isto.

Gosto de fazer isto lentamente, a pensar em coisas enquanto mexo o

chocolate, que é o que estou a fazer quando ponho a mão no bolso.

Costumo fazer isso para pensar, e os meus dedos tocam num pedaço de

papel. Tiro o papel do bolso, a tremer. O Assassino. É a lista de

suspeitos que fiz quando os pássaros foram mortos. Deixei-a por baixo

do giz de Lauren, fechada no armário. Como veio parar ao meu bolso?

Foi acrescentado um nome à lista, abaixo do nome de Lauren. Não

reconheço a letra.

Mamã

Bom, é uma piada muito cruel e assustadora. Se há alguém que não

pode ter matado os pássaros, é a Mamã. Ela foi-se.

Rasgo a lista e atiro-a para o lixo. Agora nem o chocolate quente

com menta ajuda.


Lauren

Por favor, venham prender o Ted por homicídio, e outras coisas.

Este Estado tem a pena de morte, sei disso. Ele obriga-me a fazer os

trabalhos de casa de estudos sociais. Quando acabar, vou atirar esta

cassete pela caixa do correio. Espero que alguém a encontre.

O Ted leva sempre a faca quando vai à floresta. Talvez eu o mate a

ele, talvez ele me mate a mim. Mas vai acabar na floresta, onde ele pôs

os outros. Vamos apagar-nos como uma vela fraca, não deixando nada

a não ser a escuridão pacífica. De certa maneira, mal posso esperar.

Fui feita com dor, de dor, para a dor. Não tenho outro propósito, a não

ser morrer.

Ele acha que não o consigo ouvir quando estou aqui em baixo, mas

consigo. Ou talvez ele se esqueça de que eu existo quando fecha a porta.

É tão palerma, ele e as receitas dele. Ele não inventou a sanduíche de

morango e vinagre. Até eu sei isso, do canal de culinária. Ouvi-o a falar

para a gata sobre fazer um… um quê?… um diário de sentimentos. Que

PALERMA. Mas foi assim que tive esta ideia, por isso acho que foi uma

sorte. Não sou propriamente inteligente, mas consigo fazer planos.

Encontrei o gravador de cassetes no armário da entrada. É o único

armário que ele não deixa trancado. Acho que é por não ter nada lá

dentro, só montes de jornais velhos. Mas então encontrei o aparelho,

com a cassete lá dentro, e pensei, Aqui está a minha oportunidade.

Agora estou aqui sentada no escuro, por isso posso pôr tudo de volta

onde encontrei, se ele vier. A cassete é mesmo antiga, com uma etiqueta

amarela e preta. Tem algo escrito. Notas. Não ouvi a cassete, sei o que

lá está. Sinto um calor na barriga. Sinto-me bem por gravar por cima

dela. Mas também tenho medo.


Pergunto-me como será ser uma pessoa normal… não ter medo o

tempo todo. Talvez toda a gente tenha medo o temp… Ó meu Deus, ele

vem a…
Olivia

Estou sempre a tentar gravar os meus pensamentos, mas o guincho é

tão alto. Tornou-se um grito. A minha cabeça parece que vai rachar.

Não consigo, não consigo mesmo.

Uuuiiiiiuuu, metal a arranhar metal, tortura para o meu pobre

cérebro, para os meus ouvidos sensíveis, para os meus ossos delicados…

É uma martelada de barulho no meu crânio. Por isso, quando a voz

começa a falar, mais baixo do que o guincho, ao início não a ouço.

– Olivia – chama a voz. – Olivia.

Não é mais forte do que o bater de asas de uma borboleta.

Uuuuuiiiiiuuu.

Olá… Saio lentamente de baixo do sofá. Onde estás?, pergunto, o

que é tão útil como falar para a televisão, acho eu, porque é

decididamente um ted a chamar o meu nome e eles não me entendem.

– Olivia, aqui.

O meu coração começa a bater com força. Estou no limiar de algo.

Se fizer isto, nunca poderei devolver esse conhecimento. Parte de mim

quer voltar para baixo do sofá e esquecer tudo. Mas não posso. Não

estaria certo.

Reconheço a voz e de onde vem. Nunca quis tanto estar errada.

Vou até ao meu caixote, na cozinha. Não é um caixote, é claro, eu é

que lhe chamo assim. É uma velha arca congeladora. Gosto de dormir

dentro dela… no escuro, no silêncio, mas, às vezes, Ted empilha coisas

em cima. Pesos. Como agora.

Encosto a orelha. O guincho é como uma senhora a cantar ópera,

mas ainda consigo ouvir a voz, abafada pelo guincho.

– Olá… – diz a voz, chorosa, um mero sussurro. – Olivia?


As palavras são ténues, ela soa fraca e triste, mas não há como

enganar. Imagino-a enrolada no escuro, ali dentro. Consigo ver a sua

respiração húmida.

– Ele está zangado comigo porque fiz um jantar fraco – diz Lauren, a

voz sinistra através dos furos. – Tão zangado. A última vez que me

lembro de ele ficar assim zangado foi daquela vez no centro comercial…

Ela faz aquele pequeno arquejo involuntário que as pessoas fazem

quando estão cansadas de chorar.

A minha mente não funciona direito, corre como o rato que vive na

parede. O meu pelo eriça-se todo.

Tem calma, Olivia, digo para mim mesma. Ela conseguiu fechar-se

dentro da arca, sabe-se lá como. Criança descuidada…

– Eu não me fechei aqui dentro – diz Lauren.

Dou um pequeno salto no ar. Consegues ouvir-me?, pergunto.

Consegues entender gatês? Ó meu SENHOR!

– Escuta. O Ted fechou-me…

Que acidente pateta, digo, aliviada. Aposto que ele se vai sentir

terrível quando descobrir… OK. Calma! Vou acordar o Ted e ele tira-te

daí.

– Não, por favor, não o acordes.

A voz dela é como um grito, se um grito puder ser um sussurro. É

horrível. É um grito com chinelos brancos, sujos de sangue, e bilhetes a

dizer socorro. Sinto um calafrio a subir-me pela cauda, a percorrer-me a

coluna. Lauren arqueja baixinho, como se estivesse a tentar controlar-se.

Não podes ficar aí para sempre, Lauren, digo eu, num tom razoável.

Isso é o meu sítio. Na verdade, é um pouco egoísta da tua parte. Seja

como for, a tua mãe deve andar à tua procura, ou a escola… Tu vais à

escola? Desculpa, eu esqueço-me dessas coisas.

– Não, Olivia – sussurra ela. – Pensa. Por favor.


Olho para a arca frigorífica, para o seu tamanho. Olho para os furos

que Ted fez na tampa para mim. Foram mesmo para mim? Sinto a

resposta a emanar da pesada porta de metal, do vedante de borracha. O

conhecimento contorce-se pelos meus órgãos, pela minha carne e pelos

meus ossos.

Tu não vais para lado nenhum quando vais embora, digo eu. Ficas

aqui.

– Quando não podes entrar, quer dizer que estou cá dentro. Acho que

vamos alternando.

Penso nisso: Lauren deitada no escuro, à escuta, enquanto eu e Ted

vivemos as nossas vidas. Já não te vejo há mais de um mês, digo eu.

– Passou assim tanto tempo? O tempo foge aqui no escuro, é difícil

dizer se estamos vivos ou mortos. Ainda pensei nisso, mas depois ouvi-

te do outro lado da parede e pensei, não, ainda não…

Oh, digo eu. Oh, oh.

– Tenho estado a tentar falar contigo. Tive de esperar por uma altura

em que ele não me tivesse amordaçado com força, quando estivesse a

dormir e a música não estivesse muito alta. Escrevi recados. Enfiei-os

nos bolsos dele, na dobra das calças, em qualquer sítio a que chegasse…

Acho que não os encontraste, mas ele também não, o que é bom.

Felizmente, ele anda sempre com os copos.

Eu mio inutilmente e ando em círculos. Desculpa, desculpa…

Ela suspira e ouço-lhe a voz embargada.

– Tu desculpas tudo – diz ela, soando mais como de costume. – Estás

sempre a tentar fazê-lo sentir-se melhor.

Oh, como foi capaz?, digo eu. Trancar assim a própria filha…

Ela solta uma risada cansada.

– Cresce, Olivia. Não sou filha dele.

Mas chamas-lhe Papá.


– Ele chama-me gatinha quando me porto bem… isso quer dizer que

sou uma gata?

Estremeço e abano o rabo. Ele chama-me gatinha, digo eu.

– Eu sei. Tem havido muitas gatinhas ao longo dos anos.

Recordo a noite em que Ted me encontrou, uma gatinha na floresta,

na noite em que o cordão nos uniu. Os punhos da camisa sujos de lama.

O odor vago no banco de trás do carro, como se o lugar estivesse

ocupado até pouco antes. Um tecido macio, amarelo com borboletas

azuis. Ele enrolou-me numa manta de criança. Acho que devia ter-me

interrogado o que andava ele a fazer à noite na floresta, com lama nas

mangas e uma manta de criança.

Há quanto tempo estás aqui?, pergunto.

– Não sei. Desde pequena.

Este tempo todo, digo eu. É como olhar para um espelho e descobrir

que afinal é uma porta. Estou capaz de magoar Ted, estou mesmo. Ó

meu SENHOR, sussurro, que horror.

– Ainda não sabes o que é horror. – Lauren respira fundo. – Vou

contar isto uma vez e nunca mais.

– Há muito tempo, eu vivia com a minha família. Não me lembro

bem deles. Foi há muito tempo e eu era pequena. Não me lembro bem

do dia em que ele me levou, exceto que estava calor suficiente para

estrelar um ovo no cimento do passeio. Acho que a minha mãe

costumava dizer isso, mas não tenho a certeza. O meu nome não é

Lauren. Também não me lembro do meu nome.

» Mas lembro-me de quando ele me trouxe para cá. Gostei da casa,

era poeirenta e suja e a minha mãe nunca me deixava brincar na terra.

Gostei dos buracos no contraplacado; pensei que eram como as

escotilhas de um navio. Eu disse-lhe isso e ele respondeu-me que eu era


muito esperta. Disse-me que se chamava Ted e que ia tomar conta de

mim enquanto os meus pais estavam para fora. Não achei que nada

estivesse errado. Porque acharia? Já tinha acontecido antes, ser deixada

com outras pessoas, vizinhos e pessoas assim. Os meus pais iam a

muitas festas. A minha mãe vinha sempre ao meu quarto dar-me um

beijo de boa noite, antes de sair. Lembro-me do perfume dela. Gerânios.

Eu costumava chamar-lhes «germânios». Meu Deus, era tão burra

quando era pequena. Acho que foi por isso que vim parar aqui. De que

estava eu a falar?

Estavas a contar-me do dia em que o Ted… te… levou…, disse eu.

Cada palavra é como uma pedra áspera na minha língua.

– Pois – disse Lauren. – Estava tanto calor, nesse dia, o meu fato de

banho, ou cuecas, ou lá o que era, fazia-me comichão. Queixei-me ao

Ted, disse que estava a ferver. Talvez tenha sido isso que lhe deu a ideia.

Disse-me que havia gelado dentro da arca na cozinha e que eu podia ir

buscar. A cozinha estava uma confusão, uma pilha de pratos sujos na

banca, caixas de comida empilhadas nos balcões. Gostei, parecia que ele

não era um adulto normal.

» Estava num canto, uma grande arca congeladora com um cadeado.

Já tinha visto arcas em garagens e caves, mas nunca numa cozinha. O

cadeado estava aberto e levantei a tampa. Estava à espera de uma lufada

de ar frio, mas não veio nada. Então, vi que a arca estava desligada na

ficha. Senti mãos debaixo dos meus braços e estava a voar para cima e

para dentro da arca, para os cobertores macios. Também tinha comigo a

minha manta. Ele deixou-me ficar com isso. Era amarela com borboletas

azuis. Macia. As borboletas já desbotaram. Ainda não tinha medo,

apesar de lá dentro cheirar a frango cru. Mas então a tampa fechou-se e

fiquei sozinha. As estrelas brilhavam no escuro, como facadas no céu.


Eram os furos que ele tinha feito na tampa. Gritei para o homem me

deixar sair.

» – Agora estás a salvo – disse ele. – É para o teu bem.

» Lembrava-me do nome dele e sabia que os nomes eram muito

importantes para os adultos, por isso tentei dizer, «Por favor, Ted, deixa-

me sair». Mas na altura não conseguia dizer bem os dês. Por isso, saiu-

me «Teb». E quando ele não me deixou sair, pensei que fosse por isso…

porque tinha dito mal o nome dele e ele tinha ficado zangado. Demorei

algum tempo a perceber que ele nunca me deixaria sair, por muito bem

que eu dissesse o nome.

» Durante muito tempo, vivi dentro da caixa. Ele vertia água pelos

furos e eu abria a boca e bebia. Dava-me rebuçados da mesma maneira.

Às vezes, bolachas e tiras de frango. Ele tocava música muito alto, dia e

noite. A mulher triste que canta. Pensei que estava no Inferno de que nos

falavam na catequese. Mas o Inferno devia estar cheio de fogo, e ali era

muito molhado e frio, onde eu estava, frio até aos ossos. Passado algum

tempo, deixei de reparar… até no cheiro. O tempo deixou de ser uma

linha e parou.

» Tive de aprender uma linguagem nova, para o corpo e para a

mente. A linguagem da caixa. Queria dizer que, em vez de caminhar,

apenas mexia os pés um centímetro ou dois. Era toda uma viagem. Em

vez de saltar ou dançar, que antes gostava de fazer, abria e fechava os

punhos. Às vezes, mordia a parte de dentro da bochecha, para sentir o

sabor do sangue. Fingia que era comida.

» Se fizesse barulho ou batesse nos lados da caixa, entrava água a

ferver pelos furos. Não conseguia ver, mas sabia que as queimaduras

eram más, porque a pele se soltou. Como a pele de uma cobra. Cheirava

mal e doía tanto que queria morrer.


» Um dia, a música parou. Acima de mim, houve uma explosão de

luz. Tive de manter os olhos fechados, era demasiado brilhante e tinha

passado demasiado tempo no escuro. Ouvi-o dizer: «Vamos limpar-te.»

» Tirou-me da caixa. Eu gritei porque pensava que vinha lá mais

água a ferver, mas era água fria, da torneira. Acho que me lavou de pé

na banca. Depois disso, pôs algo nas queimaduras que diminuiu a dor e

cobriu-as com ligaduras.

» – Pus tábuas nas janelas para ti – disse ele. – Aqui está escuro.

Podes abrir os olhos.

» Eu abri… ao princípio, só um bocadinho, mantive-os quase

cerrados. A casa era escura e grande. Tudo tremia e abanava. Os meus

olhos tinham-se esquecido de como avaliar distâncias, de tanto tempo

que tinha passado dentro da caixa.

» Ele deu-me uma sanduíche… fiambre, queijo e tomate. Era o

primeiro vegetal que comia há semanas e o meu corpo iluminou-se com

o sabor. Antes, na minha antiga vida, costumava deixar o tomate no

prato. Agora isso dá-me vontade rir. Enquanto comia, ele limpou a caixa

e pôs cobertores novos lá dentro. Estremeci ao ver isso… queria gritar.

Isso queria dizer que ia voltar lá para dentro. Assim que acabei de comer

a sanduíche, ele pôs a música a tocar. Aquela mulher. Como a odeio.

» – Entra –, disse ele. Eu abanei a cabeça. – Pu-la bem confortável

para ti. Entra. – Quando recusei, ele verteu algo de um garrafão para o

fundo da caixa. Tinha um cheiro amargo e dava-me comichão na

garganta. – Agora os cobertores estão todos molhados – disse ele. – Que

desperdício do meu tempo. – Então, pegou em mim, pôs-me dentro da

caixa e fechou a tampa. Nunca me vou esquecer do som do cadeado a

fechar, mesmo ao lado do meu ouvido. Clique, como uma lâmina a

cortar uma maçã.


» O fundo da arca estava cheio de vinagre. Ardia como fogo na

minha pele queimada. Os vapores irritavam-me a garganta e traziam-me

lágrimas aos olhos. Ele verteu mais água quente pelos furos. Era mesmo

mau, parecia que o ar se transformava em ácido.

» – Quando a música toca, tu vais para a caixa e ficas aí dentro,

calada – disse ele. – Nada de fitas. Nada de discussões. Enquanto estiver

a tocar, tu ficas na caixa, calada e bem-comportada.

» Não sei quantas vezes passámos por isto. Acho que era lenta a

aprender. No final, não fui eu que cedi. Foi mais o meu corpo que

começou a obedecer-lhe. Agora não consigo sair desta caixa quando a

música está a tocar, por muito que queira. Mesmo que a casa estivesse a

arder, não conseguiria.

» Eu aguento mais do que os outros, foi por isso que durei mais do

que o normal – diz Lauren. Por um momento, a voz dela tem uma nota

de orgulho. – O Ted diz que é por causa dos meus problemas

psicológicos, mas sobreviver não chega. Quero viver. Vou sair daqui, e

tu vais ajudar-me.

O meu cérebro rodopia com tudo o que me está a contar. Tento

concentrar-me. É claro que vou ajudar-te, digo eu. Vamos tirar-te daí.

– Bom, temos de tentar – diz ela.

Soa tão adulta e cansada. Isso torna tudo mais real. Sinto-o na minha

cauda, o horror.

Lá em cima, no quarto, Ted resmunga. Deve ter uma bela dor de

cabeça. A cama range quando ele se vira. Os pés dele pousam no chão

com um baque. Ouço-o a arrastar os pés descalços na tijoleira. O duche

começa a correr.

– Olivia – chama ele, voz embargada. – Gatinha.

A música toca mais alto.

– Tens de ir ter com ele – diz Lauren. – Tens de agir normalmente.


Ouço um som muito baixo que só pode ser um soluço de choro. Ela

esforça-se a sério por não o deixar sair.

Subo até ao andar de cima e entro na casa de banho. O vapor

contorce-se no ar, a água bate na tijoleira. Alguns gatos não gostam de

água, eu sei, mas eu sempre adorei estar aqui dentro. Os aromas

interessantes, o vapor que envolve o ar em fiapos delicados, o sabor das

gotas quentes na torneira.

Ted está debaixo da água a correr, cabelo achatado e a brilhar como

uma foca. A água bate-lhe no corpo como dardos de metal. Está de

cuecas e camisola interior, como sempre. O tecido molhado amontoa-se

em pregas translúcidas por cima dele, como uma segunda pele larga de

mais. O corpo dele nunca vê luz. As cicatrizes veem-se através das

pregas. A embriaguez emana dele em ondas, quase a consigo ver,

misturada com o vapor.

Procuro e torno a procurar um sinal, alguma indicação da grande

mudança que aconteceu entre nós. Mas ele parece normal, com o ar com

que fica quando regressa ao passado e não consegue voltar.

– O Teddy foi ao lago com a Mamã e o Papá – diz, encostando a

testa à parede. A voz soa fraca e distante. – A Coca-Cola estava fria e

borbulhante no copo. O gelo fazia música contra o vidro. E o Papá disse,

«Bebe tudo, Teddy, faz-te bem.»

Desliga o chuveiro com um gemido, como se isso lhe causasse dor.

Vai para o quarto. Eu sigo-o, observando-o tão atentamente como se não

o conhecesse. Talvez não conheça. Ele deixa tombar a cabeça e as costas

abanam. Acho que está a chorar.

Agora o meu trabalho é ronronar, enroscar-me à sua volta e dar-lhe

cabeçadas até ele se rir. Mas as paredes parecem vibrar e ceder.

Rastejam coisas más pela minha mente e por todo o lado. O ódio por

mim mesma percorre-me com tanta força que sinto o corpo a arquear e o
pelo a eriçar-se. O meu desejo é que o cordão me tivesse ligado a

qualquer outra pessoa que não ele.

Porque estás a fazer isto à Lauren?, pergunto, interrogando-me se

ele vai responder. Não há uma boa resposta e não suporto pensar nas

respostas más.

Mas tenho de ser normal. Tenho de tentar. Ronrono e dou-lhe

cabeçadas na mão. Cada sítio onde os nossos corpos tocam está frio. Ele

aumenta o volume da música.

Então foi por isso que o SENHOR me pediu para ficar aqui, naquele

dia em que quase escapei. Pensava que era para ajudar Ted, mas foi por

causa de Lauren.
Ted

Hoje estou meio louco. Os meninos verdes estavam a fazer muito

barulho no sótão ontem à noite. Por isso, não é grande surpresa que hoje

de manhã me tenha ausentado por um pouco. Stress.

Quando voltei, soube onde estava antes mesmo de abrir os olhos.

Conseguia sentir o cheiro da rua e da floresta, o asfalto, o cheiro podre

do lixo nos caixotes. Dia de recolha. Soube o que ia ver quando abrisse

os olhos. E lá estava eu, como sabia que estaria, diante da casa amarela

com a cimalha verde, as persianas corridas, o vazio da casa parecendo

ecoar pela rua – e pelo mundo inteiro.

Talvez a senhora do chihuahua esteja morta. Talvez seja o fantasma

dela que está sempre a chamar-me para aquela casa. Agora estou a

imaginar. Os meus olhos vazios, a mão cinzenta e transparente dela a

segurar a minha, levando-me até àquele sítio no passeio diante da casa

dela, fazendo-me voltar ali uma e outra vez até eu perceber… o quê?

A única maneira de pôr fim ao stress é remediar as coisas com

Lauren. Por isso, tenho de fazer a pergunta ao senhor bicho. Tenho

andado a tentar conduzir as consultas até à pergunta, mas as coisas estão

a fugir de controlo. Tenho de perceber o que Lauren é. O que elas são,

acho eu.

Entretanto, tomei uma decisão: não posso continuar a adiar a minha

vida por causa da minha filha e da minha gata. Tenho de fazer alguma

coisa por mim de vez em quando, ou serei infeliz – e um pai infeliz não

é um bom pai.

Por isso, amanhã tenho um encontro. Algo para aguardar com

expectativa!
Olivia

Tenho de esperar alguns dias até poder voltar a falar com ela. Ted

parece estar sempre por perto, a beber e a cantar com as músicas tristes.

Quando mio através da tampa da arca, ela não responde.

Três noites depois, ele sai de casa. Está a assobiar e leva uma camisa

lavada. A porta fecha-se e as três fechaduras rodam no trinco. Onde vai

ele?

Conto até 100, para lhe dar tempo de se afastar, ou de voltar para vir

buscar a carteira ou algo assim. A senhora do gira-discos geme baixinho

sobre a sua cidade natal. Corro até à cozinha e arranho a arca.

Estás bem? Estou a miar de preocupação. Estás aí?

– Estou aqui. – A voz dela mal se ouve com a música do disco. – Ele

saiu mesmo?

Sim, digo eu. Levava uma camisa lavada. Normalmente isso quer

dizer que tem um encontro.

– Foi caçar – diz Lauren.

Ela detesta quando ele tem encontros. Agora sei porquê.

Então, digo eu, andando de um lado para o outro, vamos rever as

nossas opções. Consegues gritar por ajuda?

– Eu grito – diz Lauren. – Ou costumava gritar. Mas nunca veio

ninguém. As paredes são muito grossas. Acho que o som não passa. Tu

tens ouvidos de gato, lembras-te? Comecei a temer que nem tu me fosses

ouvir.

Mmm, digo eu, tens razão. Podemos riscar isso da lista.

– Qual é a opção seguinte?

Agora sinto-me horrível porque, na verdade, só tinha uma opção. A

lista chegou ao fim.


– A culpa não é tua. – Lauren está a tentar reconfortar-me, e isso é o

que mais me faz doer a cauda. – Às vezes, não é assim tão mau – diz ela.

– Gosto da bicicleta cor-de-rosa e posso andar pela casa. Tenho a

televisão. Ele dá-me de comer, quando não está zangado. – Lauren solta

uma risadinha. – Às vezes, até me deixa ir à Internet. Com

«supervisão».

A sensação na minha garganta e na minha cauda é pior do que uma

bola de pelo. O que posso fazer? Solto um miado desgostoso. Estava

sempre tão feliz por ser um gato, mas agora já não tenho a certeza. Se eu

tivesse mãos, podia soltar-te, digo.

– Se eu ainda tivesse pés, podia sair sozinha – diz Lauren. – Mas tu

podes ajudar, Olivia. Só tens de fazer uma coisa.

Qualquer coisa.

– Fá-lo baixar a música – sussurra Lauren. – Só tens de fazer isso.

Não consigo fazer nada com a música a tocar. Ele encarregou-se disso,

há muito tempo. Estás a ouvir? A música tem de estar desligada, ou tão

baixo que eu mal a oiça.

OK! O que acontece a seguir?

Montes de pesos e contrapesos de chumbo estão empilhados em

cima da arca, como castelos abandonados numa terra desolada.

– Tu consegues soltar-me, Olivia. Só tens de fazer o que fazes com a

Bíblia.

Seria bom gravar tudo isto, no caso de algo me acontecer, mas não

me atrevo.

Ted está a ver carros a roncar numa pista de terra na televisão e o

nível da garrafa de bourbon desce a olhos vistos. Ele deixa o gira-discos

a tocar enquanto vê televisão. Abafados pelo ruído dos motores, um


banjo toca e uma mulher canta sobre bares e amor. Ele está a afastar-se.

O bourbon e o cansaço abraçam-no, sugando-o.

Eu ronrono e vou ter com ele. Mas então paro e fico com a cauda

eriçada. Arqueio as costas. Quando o banjo toca um acorde, solto um

miado.

– O que se passa?

Ele estende-me a mão.

As cordas do banjo vibram e eu corro para baixo do sofá.

– És tão tolinha.

Ele muda a canção: torna-se uma música lamentosa cantada por uma

voz bonita. Eu gemo ao ritmo da música, o mais alto que consigo.

– Gatinha burra.

O banjo soa um acorde e eu mio uma nota longa.

– Meu, a sério?

Ele baixa o volume do gira-discos, o piano e a mulher tornam-se

fantasmas de si mesmos, sussurrando para o ar.

Eu mio e não saio de baixo do sofá.

– Ei, Olivia – diz ele, irritado –, agora sou o teu mordomo?

Mas baixa ainda mais o volume. Acho que não vou conseguir

melhor.

Saio de baixo do sofá.

– Oh – diz ele calorosamente. – Cá estás tu. Decidiste honrar-nos

com a tua presença?

Começo lentamente a fazer as coisas todas, da maneira que sei que

ele gosta. Ando à volta dos tornozelos dele, aos oitos, a ronronar. Ele

baixa-se para me fazer festas nas orelhas. Levanto-me e encosto a cabeça

à cara dele. Por um momento, pergunto-me se será um truque. Talvez ele

agarre a minha cabeça e a torça, até o meu pescoço partir.

– Ei – diz ele. – Gatinha.


A ternura na sua voz deixa-me um sentimento destroçado na espinha

e pela minha cauda. Ele é tão familiar para mim como o meu pelo, ou o

Noturno. Pensava que ele me tinha salvado. Pensava que éramos parte

um do outro, quase. O pensamento faz-me tossir e pigarrear.

– O que se passa? Tens um osso entalado ou algo assim? Deixa-me

ver.

Ele levanta-me com cuidado e abre-me as mandíbulas.

– Não. Está tudo bem, gatinha.

Ronrono e dou-lhe cabeçadas e ele passa-me a mão suavemente

pelas costas.

– Estive fora tempo de mais – diz ele. – Passámos demasiado tempo

separados. Vou passar mais tempo em casa, prometo. A partir de agora.

Eu mio furiosamente e ronrono.

– Queres que desligue a televisão?

Ronrono mais alto. Vamos fugir de ti, começo a dizer, e depois mudo

de ideias. E se ele for como Lauren e entender gatês? Um pensamento

horrível… ele a ouvir-me este tempo todo.

– Tenho de pôr a música alto outra vez – diz ele, sonolento, mas eu

toco-lhe no queixo com a cauda.

Sei exatamente o que fazer para o relaxar, sempre soube, e os olhos

dele fecham-se, como eu sabia que fechariam. A respiração torna-se

lenta e regular e o queixo pousa-lhe no peito. Espero um momento,

procurando uma forma de sentir. Calculo que algo ou alguém o fez

assim, mas isso não importa agora.

Parece muito mais novo quando está a dormir.

Consegui, disse eu a Lauren. Ele está a dormir.

– Está mesmo apagado? – pergunta Lauren. – É mesmo seguro?


Fico à escuta. A respiração de Ted no outro quarto é pesada e

regular. Acho que é agora ou nunca. UUuuuiiiiuuu. O guincho na minha

cabeça voltou, uma vespa enlouquecida nos meus ouvidos.

Sim, digo-lhe. Espero ter razão. Abano a cabeça e coço as orelhas.

– Estás a ver onde a arca encosta ao balcão da cozinha? – pergunta

ela.

Sim.

– Derruba o peso do cimo da pilha. Vai fazer algum barulho, mas

não demasiado. Não o deixes cair ao chão. A seguir, empurra-o da arca

para o balcão. Entendeste?

Assinto, esquecendo que ela não me consegue ver. Entendi, digo.

O primeiro peso cai da pilha com um estrondo. É pequeno e quer

rolar. Bato-lhe com uma pata para o segurar e empurro-o para o balcão.

Depois, o seguinte. O peso a seguir a esse é mais pesado. Empurro-o

com força e ele desliza da arca para o chão, com um baque denso que

parece abanar o mundo. Ficamos as duas caladas como mortos. Fico à

escuta. É difícil perceber, por causa do guincho nos meus ouvidos. A

respiração de Lauren estremece para dentro e para fora. No quarto ao

lado, Ted ressona. Ele ainda está a dormir, digo eu, a desfalecer de

alívio.

– Não os deixes cair, OK, Olivia? – diz Lauren passado um

momento.

Não, sussurro. Não deixo. Depois disso, tenho muito, muito cuidado.

O último peso, o do fundo da pilha, é tão pesado que me doem as patas

quando o empurro. Cada centímetro é uma luta miserável. Mas acaba

por deslizar para o balcão, chocando contra os outros.

Já saíram todos, digo.

– Está bem. Vou sair.


Fecho os olhos com força e um solto um miado triste. Não sei

porquê, mas tenho medo. Como será ela?

Sabes, Lauren, digo eu, com os olhos ainda fechados, acho que

nunca te vi na vida real. Não é estranho? Acho que sempre nos

alternámos cá fora!

Ninguém responde.

Ouço a arca a abrir-se lentamente, com esforço, como se a mão que

levanta a tampa fosse trémula e frágil. Ouço a tampa a bater contra a

parede. Segue-se um som húmido, um suspiro. O fedor da miséria e do

terror chega em ondas. Penso em mãos brancas e finas como garras e

numa pele coberta de cicatrizes. Faz-me querer miar e enrolar-me num

novelo.

Anda lá, gata, digo a mim mesma severamente. Não tornes as coisas

piores para a pobre criança.

Abro os olhos. A arca está aberta, uma sepultura escura. Levanto-me

nas patas traseiras e espreito para as profundezas.

Está vazia.

Uuuuuuuiiiii, continua o guincho.

Onde estás?, sussurro. Algo está muito errado. O guincho na minha

cabeça torna-se um grito e eu mio e arranho a cabeça. Quero correr de

cabeça contra uma parede, só para fazer parar o barulho.

– Ei, gata – diz Lauren, junto ao meu ouvido.

O guincho fica mais forte. Para lá do guincho, consigo ouvir a minha

respiração, o meu coração a bater como um machado num toro.

– Olivia – diz ela –, não te passes.

Que diabo, digo eu. Estou a ficar louca… Porque não estás dentro

da arca?

– Eu nunca estive lá dentro.


Consigo senti-la, não sei como, o contorno quente dela, ou talvez o

cheiro. Ou talvez não tenha sido inventada a palavra para o sentido que

estou a usar. Estou mesmo no limite de perder o juízo.

Lauren?, digo eu. Onde estás? O que diabo se passa? Porque não te

consigo ver? Parece… e sei que isto não pode ser verdade, mas é o que

parece… parece que estás dentro de mim.

– É ao contrário, Olivia – diz ela. – Tu estás dentro de mim.

E agora acontece uma coisa horrível. O meu corpo parece estremecer

e retorcer-se. Em vez da minha linda cauda e das minhas patas, sinto por

um momento que tenho umas estrelas-do-mar cor-de-rosa na

extremidade dos membros. O meu pelo sedoso desapareceu, os meus

olhos são pequenos e fracos…

O que, digo eu, o que… Larga-me. Nada disto está a acontecer.

Deixa-me voltar para o meu caixote confortável…

– Olha bem – diz ela – para a coisa a que chamas caixote. A verdade

está mesmo aí. Só tens de escolher vê-la.

Olho para a arca congeladora, para a tampa aberta encostada à

parede, para os furos na tampa para deixar entrar ar.

– Eu deixei-te um recado – diz Lauren. – Mas que espécie de gato

sabe ler? Que espécie de gato sabe falar?

O guincho volta a ficar mais forte. UUuuuuiiiuu.

Estou a imaginar isto, mio eu. Se ao menos aquele barulho parasse,

eu conseguia pensar…

– Um de nós é imaginário. Não sou eu.

Vai-te embora! Para! Para com esse barulho!

– Olivia – diz ela –, olha para o que estás a fazer.

A minha pata está estendida, com as garras de fora. Está a arranhar o

lado da arca congeladora, soltando um grito como um sofrimento


terrível. Iiiiiiiuuuuuiiiii, fazem as minhas garras, a arranhar o metal. O

barulho era eu, o tempo todo. Mas como pode isso ser?

– Ando a tentar chamar-te a atenção há tanto tempo – diz Lauren.

O barulho das garras no metal sobe de tom. O mundo parece tremer.

Em vez da minha pata, está uma mão com unhas longas e sujas, a

arranhar, a arranhar… iiiiiiiiiiuuuiiii. Garras em metal. Unhas em metal,

sussurra uma voz, e eu mio e grito, mas nem isso se faz ouvir no meio

do guincho, que sobe e sobe até se tornar algo físico, uma parede dentro

de mim que estala com um estrondo terrível.

Recupero os sentidos com Lauren a fazer-me festas. Mas mais uma

vez, ela está a fazê-lo de dentro. Começo a chorar, miados patéticos

como um gatinho.

– Chiu – diz ela. – Chora baixinho, se puderes.

Deixa-me em paz, respondo.

Enrolo-me num novelo, mas parece que é ela que está enrolada à

minha volta.

– Não posso fazer isso – diz ela. – Não percebes mesmo, pois não?

Volta a fazer-me festas.

– Da primeira vez que tentei fugir – diz ela –, ele tirou-me os pés.

Partiu-mos entre duas tábuas com um martelo. Da segunda vez que

tentei, tu saíste da minha mente.

– Estava a meio caminho da porta quando ele me agarrou pelo

cabelo. Eu sabia que preferia morrer a voltar para dentro da arca, e

decidi fazer isso mesmo. Mas, em vez disso, aconteceu outra coisa. Eu

desapareci. Não sei como. Era como se a minha mente fosse uma grande

caverna e eu tivesse sido puxada para o fundo. Tu saíste do vazio e

chegaste-te à frente. Eu conseguia ver-te, conseguia sentir o que estavas

a fazer. Ainda conseguia ouvir o que ele estava a dizer. Mas era como
ver televisão. Eu não estava no nosso corpo. Estavas tu. Ronronavas e

sentavas-te ao colo dele e acalmava-lo. Tu foste feita das trevas, para me

salvar.

Não, digo eu. Eu lembro-me de nascer. Não foi assim.

– Eu conheço a história – diz Lauren. – Consigo ver as tuas

memórias. Ou o que tu pensas que são as tuas memórias. Estavas numa

valeta com a tua Mamã-Gata…

Sim, digo eu, aliviada por ouvir algo que reconhecia.

– Nunca aconteceu – diz Lauren. – A mente é inteligente. Sabe como

dizer algo que conseguimos aceitar quando a vida fica demasiado dura.

Se um homem que te chama gatinha te mantém prisioneira… pois bem,

a mente diz-te que tu és uma gatinha. Pode ter inventado uma história

sobre uma noite de tempestade e como ele te salvou, mas tu não nasceste

na floresta. Tu nasceste dentro de mim.

Mas foi real, digo eu. Teve de ser. As minhas irmãs gatinhas mortas,

a chuva…

– É real, de certa maneira – diz ela, com tristeza. – Há mesmo

gatinhos mortos enterrados na floresta. O Ted levou-os para lá.

Penso na terra que vem nas botas de Ted, nas noites em que ele vem

da floresta. O cheiro a osso nele. Não consigo respirar, mesmo quando

escancaro a boca. A verdade tem peso. Deixa pegadas na mente. Lauren

faz-me festas e murmura até o sangue parar de latejar nos meus ouvidos.

Porque fingiste estar dentro da arca?

– Sabia que não ias acreditar em mim. Tive de encontrar uma

maneira de te mostrar que éramos uma pessoa só.

Oh, digo eu com desalento. Eu sou o teu problema psicológico.

– Não te sintas mal. – As coisas ficaram melhor depois de chegares.

Ele começou a deixar-te sair com regularidade, a dar-te de comer. Tu

acalma-lo. És o animal de estimação dele. Tu gostas da arca


congeladora. Sentes-te segura lá dentro. E quanto mais o fazes feliz,

mais bondoso ele é para nós as duas. Acabou-se a água quente e o

vinagre. Ele manda-me dormir e tu apareces.

Eu ajudo a manter-nos aqui, digo. Eu tomo conta dele, deixo que ele

nos faça festas…

– Tu garantiste que sobrevivíamos – diz Lauren. O calor espalha-se

pela minha mente. – Estou a abraçar-te. Consegues sentir?

Sim, digo eu. A sensação é como ser envolvido em braços ternos.

Ficamos sentadas por algum tempo, abraçadas uma à outra.

Na sala de estar, Ted resmunga.

– Ele vem aí – diz ela. – Tenho de ir. Volto assim que puder.

Ela toca-me gentilmente, reconfortantemente.

– Tu abriste a porta entre nós, Olivia. Agora vai ser diferente.

E depois desaparece.

Costumava passar todo o meu tempo a desejar que Ted viesse para

casa. Agora, tudo o que quero é que fique longe.

Sinto-me estranha, pois, apesar de ser uma situação tão horrível,

adoro ter Lauren por perto. É divertido falar com ela. Falamos,

brincamos ou ficamos simplesmente sentadas ao lado uma da outra. É

mesmo bom, como ter uma das gatinhas da minha ninhada comigo de

novo. Suponho que é isso que Lauren é. Ela consegue fazer-me sentir

que está a fazer-me festas ou a abraçar-me, apesar de ser tudo na nossa

mente. A música impede-a de usar o nosso corpo. É como estar

amarrada, mas não amordaçada, diz ela, e eu estremeço com o tom

casual dela, porque soa tão nova e ninguém devia saber qual a sensação

dessas coisas.
Esta noite estamos as duas aconchegadas no sofá na casa escura. Lá

fora, as árvores estendem dedos contra o luar. O cordão é de um negro

macio, invisível contra a noite. Ted está desmaiado, tipo morto para o

mundo, no andar de cima. Sussurramos uma para a outra.

– Se eu ainda tivesse os meus pés, podíamos fugir daqui – diz

Lauren. – Saíamos a correr.

Consegues ver-me?, pergunto. Eu não consigo ver-te. Gostava de

conseguir ver-te. Quero saber como és.

Ted garantiu que não há superfícies refletoras na casa.

– Fico contente por não me conseguires ver – diz ela. – Foram feitas

demasiadas coisas ao nosso corpo. Mas eu sinto-te. És quente… é

agradável, como ter alguém sentado ao meu lado.

Tento não pensar no corpo, o corpo de Lauren, onde ela diz que

vivemos as duas. Ainda não sei se acredito nela. Eu sinto o meu pelo, os

meus bigodes, a minha cauda. Como é que isso não é real?

Sabes, existe outro, digo eu. Somos três. Chama-se Noturno.

– Acho que somos mais do que três – diz ela. – Às vezes ouço-os,

quando estou bem lá no fundo. Tento não os ouvir. Não gosto quando os

pequeninos choram.

Bem lá no fundo?

– Há outros níveis. Tenho de te mostrar tudo isso.

Sinto o toque do medo, uma pluma negra. Ronrono ansiosamente

para fazer parar a sensação.

– Não achas, Olivia – e consigo ouvir a angústia na voz dela –, que

seria melhor se nenhuma de nós tivesse nascido?

Não, digo eu. Acho que temos sorte por termos nascido. E temos

mais sorte ainda por estarmos vivas. Mas já não sei o que significa ter

nascido ou estar viva. O que sou eu? Parece que tudo o que sei está
errado. Uma vez, pensei ter visto o SENHOR. Ele falou comigo. Isso

aconteceu?

– Os deuses não existem, tirando os deuses do Ted – diz ela. – Os

deuses que ele faz na floresta.

A pluma fria continua a tocar-me, pela minha cauda, pela minha

espinha.

Não vamos deixar que isso aconteça, digo. Vamos sair daqui.

– Estás sempre a dizer isso – ralha ela. Por um momento, parece a

velha Lauren, esganiçada e antipática. Então, volta a relaxar. – O que

vais fazer quando estivermos livres? Eu vou vestir uma saia e pôr

travessões cor-de-rosa no cabelo. Ele nunca me deixa.

Eu quero comer peixe a sério. (Em privado, só para mim, penso, Vou

encontrar a minha gatinha.) E a tua família?, pergunto a Lauren. Talvez

possas ir à procura deles.

Ela faz uma pausa.

– Não quero que eles me vejam assim – diz por fim. – Prefiro que

continuem a pensar que morri.

Mas onde vais viver?

– Aqui, acho eu. – A voz dela dá a entender que não é importante. –

Consigo safar-me sem o Ted. Quero ficar sozinha.

Todos precisamos de alguém, Lauren, digo eu num tom severo. Até

eu sei isso. Alguém para nos fazer festas, e nos dizer coisas simpáticas,

e às vezes ficar irritado connosco.

– Tenho-te a ti.

Isso é verdade, digo, surpreendida. Não pensei nisso. Faço-lhe

cócegas com a cauda e ela ri-se. Felizmente, sou uma otimista e acho

que vamos precisar disso.

Lauren suspira, como faz quando se prepara para dizer algo de que

não vou gostar.


– Tens de ser tu – diz ela. – Quando chegar a hora. Sabes isso, não

sabes, Olivia? Tens de o fazer. Eu não consigo usar o corpo.

Fazer o quê? Mas eu sei.

Ela não responde.

Não vou, digo eu. Não posso.

– Tens de fazer – diz ela, tristemente. – Ou o Ted vai pôr-nos debaixo

de terra como às outras gatinhas.

Penso em todas essas meninas. Também devem ter cantado canções,

e usado travessões cor-de-rosa, e jogado jogos. Devem ter tido famílias,

e animais de estimação, e ideias, e talvez gostassem de nadar, talvez não;

talvez tivessem medo do escuro; talvez tivessem chorado quando caíram

da bicicleta. Talvez tivessem jeito para matemática ou artes. Teriam

crescido para fazerem outras coisas… terem empregos, e não gostarem

de maçãs, e ficarem fartas dos seus filhos, e fazerem longas viagens de

carro, e lerem livros, e pintarem quadros. Mais tarde, teriam morrido em

acidentes de automóvel, ou em casa com as suas famílias, ou numa

guerra num deserto distante. Mas nada disso vai acontecer. Nem sequer

são histórias com um final, essas meninas. Estão apenas abandonadas

debaixo da terra.

Digo: Eu sei onde ele guarda a faca grande. Ele pensa que ninguém

sabe, mas eu sei.

Ela abraça-me com força.

– Obrigada – segreda, e sinto o seu hálito no meu pelo.

Subitamente, não consigo esperar mais. Vou fazê-lo agora, hoje, digo

eu. Basta.

Salto para cima do balcão e ergo-me nas patas traseiras. Abro o

armário. De início, não consigo crer nos meus sentidos. Não está aqui,

digo eu. Mas tem de estar. Vasculho e procuro no interior poeirento. Mas

a faca desapareceu.
– Oh. – Ouço a ferida profunda da desilusão na voz dela e faria

qualquer coisa para a fazer sentir-se melhor. – Não te preocupes, Olivia.

Vou encontrá-la, digo-lhe. Juro, vou encontrá-la…

Ela solta um som baixinho e consigo perceber que está a tentar não

chorar, mas sinto as lágrimas quentes a escorrerem pela pelagem do meu

focinho.

O que posso fazer para te sentires melhor?, segredo-lhe. Faço

qualquer coisa.

Ela funga.

– Acho que não podes fazer nada. Terias de usar as mãos.

Vou tentar, segredo-lhe, apesar de me sentir nauseada só de pensar

nisso.

O armário debaixo das escadas é poeirento e cheira agradavelmente a

óleo de motor. Há tapetes poeirentos amontoados num canto, uma pilha

de jornais velhos, parte de um aspirador, caixas de pregos, um guarda-

sol… As minhas orelhas estão levantadas e alerta, a minha cauda

esticada com expectativa. Isto é precisamente o tipo de sítio que adoro.

Cheiro o fio delicioso de óleo preto que escorre pelo chão.

– Concentra-te, Olivia – diz Lauren. – Escondi-a debaixo desses

jornais.

Enfio o nariz nos jornais e cheiro algo que não é papel. Mais neutro,

mais macio. Plástico.

– É uma cassete – diz Lauren. – Pega nela. Não, assim não dá, usa as

mãos. Tu não tens patas. – A frustração dela começa a aumentar. – Tu

vives no meu corpo. És uma menina. Não uma gata. Só tens de perceber

isso.

Tento sentir as minhas mãos. Mas não consigo. Conheço a minha

forma. Caminho delicadamente sobre quatro patas aveludadas. A minha


cauda é um chicote ou um ponto de interrogação, dependendo da minha

disposição. Tenho olhos verdes como azeitonas e sou linda…

– Não temos tempo para isso, Olivia – diz Lauren. – Pega na cassete

com a boca. Consegues fazer isso, não consegues?

Sim! Apanho a cassete delicadamente com os dentes.

– Vamos até à ranhura do correio, OK?

Ao passar pela sala, vejo algo que me faz parar por um segundo.

– Alguma coisa errada, Olivia? – pergunta.

Sim, digo eu. Quero dizer… não.

– Então despacha-te.

Empurro a portinhola do correio com o focinho. O metal é pesado e

frio no meu delicado focinho aveludado. O mundo exterior cheira a

geada matinal. A luz branca bate-me nos olhos.

– Atira a cassete para a rua – diz Lauren. – O mais longe que

conseguires.

Abano a cabeça e atiro a cassete. Não consigo ver nada, mas ouço-a

a saltar.

– Foi para os arbustos – sussurra Lauren.

Consigo ouvir o desânimo na sua voz.

Desculpa, digo eu. Desculpa.

– Devia ter caído no passeio, para alguém encontrar – diz Lauren, e

começa a chorar. – Como é que alguém a vai encontrar ali?

Desperdiçaste a nossa oportunidade.

Lamento muito, Lauren, digo eu. A sério!

– Não estás a tentar. Não queres que saiamos daqui. Tu gostas de

viver aqui, de ser prisioneira dele.

Não!, digo, angustiada. Não, eu quero ajudar! Foi um acidente!

– Tens de levar isto a sério. As nossas vidas dependem disso, Olivia.

Não podes continuar a fingir que não tens mãos. Tens de as usar…
Eu sei, digo eu. Para usar a faca. Vou treinar. Não volto a falhar.

Toco-lhe com o focinho e encosto a cabeça contra ela, onde a sinto na

minha mente. Agora descansa, digo-lhe eu. Eu fico de vigia. Enroscamo-

nos no tapete cor de laranja cheio de borboto e eu ronrono. Sinto-a ao

meu lado, dentro de mim. Ela solta um suspiro fundo e sinto-a a cair

docemente na escuridão tranquila. A minha cauda está repleta de

preocupação. Lauren nunca gosta de falar do depois, quando formos

livres. Tenho a má sensação de que ela não quer saber da liberdade.

Pior… de que não quer viver. Mas vou ajudá-la. Vou manter-nos a salvo.

Ela já tem problemas que cheguem, por isso não disse nada, mas

aconteceu uma coisa estranhíssima. Agora mesmo, quando caminhava

para a porta da frente, com a cassete na boca, olhei para a sala. E juro

que, por um momento, este tapete tinha mudado de cor de laranja para

azul.
Dee

Dee está sentada à janela a olhar para a escuridão. Faz festas à gata

sem unhas com gestos doces e deseja não ter deixado de fumar.

– Pedra bonita – murmura para si mesma.

A gata olha para ela subitamente. É tarde, as janelas de Ted estão

todas às escuras. Mas Dee tem medo de adormecer. Os pássaros

vermelhos virão a voar para dentro da sua cabeça, com «sabe-se lá o

quê» nos bicos. Ou vai ser o outro sonho, onde vê a mãe e o pai a

caminharem de mão dada num deserto sob uma manta de estrelas, ainda

à procura, ainda a chamarem pelo nome da filha mais nova. As

memórias não podem ser mantidas ao largo. Estão escondidas umas nas

outras. Como uma daquelas bonecas russas, pensa.

Está a ficar cada vez mais difícil, a longa espera, a vigília sem fim.

Às vezes, quer gritar. Às vezes, quer pegar num pé-de-cabra, ir até lá,

arrombar a porta… e acabar com tudo. Outras vezes, como agora, só

quer meter-se no carro e conduzir. Porque recai sobre ela aquela tarefa

terrível? Mas é mesmo assim. Dee deve-o a Lulu, e a todos os outros.

Ela viu os artigos de jornal, colunas desfocadas à luz baça do

microfilme. Crianças que vão até ao lago e não voltam. Sete ou oito,

pelo menos, ao longo dos anos. Crianças sem família ou quem sinta a

falta delas. Foi por isso que ninguém deu conta. Ultimamente, não tem

havido mais desaparecimentos. Na verdade, desde Lulu … e pode haver

uma razão para isso. Talvez ele tenha aprendido que é melhor manter

uma criança, em vez de arriscar raptá-las uma vez atrás da outra.

O Sol está a nascer no meio de nuvens leitosas para lá das árvores. O

cor-de-rosa toca no céu a oriente, como um dedo.

Algo se move pelo ar diante da casa de Ted. Um objeto retangular sai

a voar da caixa de correio e atravessa o ar. Ressalta nos dois degraus


com um estalo oco e cai silenciosamente nos rododendros que crescem à

volta dos degraus, verdes e frondosos. A caixa do correio abre-se de

novo com um rangido fraco.

Todos os sentidos de Dee estão alerta. Sai a correr para a porta. O

coração bate-lhe com tanta força que não consegue ouvir mais nada.

Força-se a respirar fundo. Tem a mão no puxador da porta e está a rodá-

lo quando ouve o familiar tum, tum, tum das fechaduras.

Dee fica paralisada por um momento. Então, volta para a janela. Ted

sai para os degraus da frente. Parece um pouco mais arranjado do que o

costume. Parece ter penteado a barba.

Ao descer os degraus, Ted olha para a esquerda, para e baixa-se para

apanhar algo do meio das folhas verdes. Tudo fica parado dentro de Dee.

Tarde de mais. Fosse o que fosse, ele encontrou.

Ted levanta-se. Tem uma pinha pequena na mão. Vira-a para um lado

e para o outro, observando-a atentamente à luz da manhã.

Passados uns 20 minutos da partida de Ted, Dee vai até casa dele.

Segue cuidadosamente o seu plano. Toca à campainha. Quando ninguém

atende, levanta a portinhola do correio.

– Olá? – chama ela para as entranhas da casa.

O feitio da casa roça-lhe na cara. Poeira e desespero antigo.

– Olá – volta a chamar. – É a vizinha, venho ajudar!

Demorou algum tempo a escolher as palavras certas. Algo que uma

menina pequena entendesse, mas que soasse inócuo a alguém que

pudesse ouvir. A casa respira sobre ela. Mas não se ouve mais nenhum

som. Então Dee encosta os lábios à ranhura e sussurra:

– Lulu?

Espera um minuto e depois dois. Mas o silêncio da casa apenas se

adensa.
O dia fica mais luminoso. Um tipo qualquer passa a passear o cão.

Dee não pode forçar a entrada. Não tarda, alguém vai começar a

estranhar que esteja parada à porta de Ted.

Dee pega na sua lanterna, põe-se de gatas e rasteja rapidamente no

meio dos rododendros. Agarram-se-lhe teias de aranha à cara como

mãos pequeninas. A adrenalina faz-lhe bater o coração. Fá-la sentir-se

bem, sentir-se viva.

A cassete está meio enterrada em folhas secas. Um besouro está

parado em cima dela, a abanar antenas curiosas. Dee afasta o besouro e

põe a cassete no sutiã. Recua lentamente para fora do arbusto. A emoção

começa a passar e sente frio. À sua direita, algo se move através das

folhas secas numa linha comprida e fina. Ela arqueja e recua para fora da

vegetação, batendo dolorosamente com a canela na aresta de um degrau.

Sacode a cabeça freneticamente com as mãos, sentindo o peso fantasma

de um corpo escamoso a enrolar-se no seu cabelo. Corre, ofegante, para

a porta de sua casa.


Ted

O dia do senhor bicho chegou finalmente. Tenho de fazer isto direito.

Tenho de fazer isto por Lauren. Mas não devia ter gritado com ele da

última vez. Vi o alarme disparar no olhar dele.

A caminhada é agradável. Não está demasiado calor. Toco na pinha

pequena no meu bolso. Encontrei-a à entrada de casa. Adoro pinhas.

Têm personalidades muito próprias.

Paro com a mão no puxador. O senhor bicho está a falar no seu

consultório. É a primeira vez que vejo ou ouço outro paciente aqui!

– Raios partam as mentes tacanhas – ouço dizer o senhor bicho. –

Cidades pequenas.

Isto faz-me sentir esquisito. Bato à porta para ele saber que estou

aqui. Tenho muito respeito pela privacidade. Ele para de murmurar.

– Entre!

Os olhos redondos do senhor bicho estão calmos por trás dos óculos.

Não está mais ninguém no consultório.

– Muito gosto em vê-lo, Ted. Pensei que não fosse aparecer. Vejo que

tem mais arranhões nas mãos e na cara.

– É a minha gata. Está a passar uma fase difícil. (Unhas na minha

cara, os gritos quando a ponho no caixote.)

– Então. Como vai isso?

– Tudo bem – respondo. – Os comprimidos funcionam, mas acabam

muito depressa. Estava a pensar que talvez me pudesse passar uma

receita que eu pudesse aviar, em vez de os vir buscar aqui.

– Podemos falar em aumentar a dose. Mas preferia que continuasse a

receber os comprimidos de mim. E teria de pagar para aviar uma receita.

Não quer isso, pois não?


– Acho que não.

– Tem escrito no diário de sentimentos?

– Claro – digo, educadamente. – Isso é tudo muito bom. As suas

sugestões foram muito úteis.

– O diário ajudou-o a identificar algum estímulo?

– Bom – digo eu –, estou muito preocupado com a minha gata.

– A sua gata lésbica?

– Sim. Ela está sempre a abanar a cabeça e a coçar as orelhas, como

se tivesse algo lá dentro. Nada parece ajudar.

– Então – diz o senhor bicho –, isso fá-lo sentir-se impotente?

– Sim. Não quero que ela sofra.

– Há algo que possa fazer? Levá-la ao veterinário, por exemplo?

– Oh – digo eu. – Não. Acho que não a iam entender no veterinário.

De todo. É um tipo muito especial de gato.

– Bom, não vai saber se não tentar, não é?

– Na verdade, tenho andado a pensar noutra coisa.

– Sim?

Lança-me um olhar expectante. Quase me sinto mal. Ele está à

espera há tanto tempo que lhe dê alguma coisa.

– Lembra-se da série de que lhe falei… aquela com a mãe e a filha?

Ele assente. A caneta dele fica quieta. Os seus olhos são círculos

azuis, fixos em mim.

– Ainda estou a vê-la. O enredo está a ficar mais complicado. A

menina zangada, sabe, a que está a tentar matar a mãe… bom, parece

que ela tem outra… natureza, ou algo assim?

O senhor bicho não se mexe. Os seus olhos estão fixos em mim.

– Isso pode acontecer – diz ele lentamente. – É raro… e não

funciona como nos filmes.

– Este filme não é como os outros filmes.


– Pensava que tinha dito que era uma série.

– Era o que eu queria dizer, uma série. Nesta série, às vezes a filha é

uma menina… mas outras vezes é completamente… diferente.

– Como se outra personalidade assumisse o controlo?

– Sim. Como se vivessem duas pessoas dentro dela.

Duas espécies, na verdade, mas acho que já lhe disse o suficiente.

– Acho que está a falar de perturbação dissociativa de identidade, ou

PDI – diz o senhor bicho.

Perturbação dissociativa de identidade. Parece a descrição de uma

televisão ou de um rádio que não sintonizam direito. Não soa nada com

o que Lauren pode ter.

O senhor bicho está a observar-me atentamente e percebo que estou

a murmurar sozinho. A ser estranho. Fito-o com um olhar firme.

– Isso é muito interessante.

– Costumava ser conhecido como perturbação de personalidades

múltiplas – diz ele. – PDI é um termo novo… mas continuamos a não

compreender o que é. Falo disso extensamente no meu livro. Na verdade,

pode-se dizer que é a tese…

– Mas então, o que se compreende já? – digo eu, para o manter no

tema.

Sei por experiência que, se não o fizer, ele vai falar sem parar do

livro dele.

– A menina da série deve ter sido sujeita a abusos sistemáticos,

físicos ou emocionais – diz ele. – Por isso, a mente dela fragmentou-se.

Formou uma nova personalidade para lidar com o trauma. É muito

bonito. A solução elegante de uma criança inteligente para lidar com o

sofrimento.

Ele debruça-se para a frente. Os seus olhos brilham atrás dos óculos.

– Foi isso que viu na série? Abusos?


– Não sei. Posso ter perdido essa parte quando fui buscar pipocas.

Seja como for, a mãe não sabe o que fazer. O que devia ela fazer? Na sua

opinião profissional.

– Há duas escolas de pensamento neste assunto – diz ele. – A

primeira tem como objetivo um estado conhecido como co-consciência.

Ele repara na minha expressão.

– Um terapeuta tentaria ajudar as personalidades alternativas, os

alter egos, a encontrarem uma maneira de viverem harmoniosamente

uns com os outros – explica.

Quase solto uma risada. Lauren nunca conseguiria viver

harmoniosamente com ninguém.

– Isso não ia funcionar – digo eu. – Na série, as duas pessoas não

sabem que são a mesma pessoa.

– A imaginação dela pode ser levada a trabalhar para ela – diz o

senhor bicho. – Ela não tem de ficar à mercê da imaginação. Podia

construir um sítio dentro dela. Uma estrutura real. Muitas crianças usam

castelos ou mansões. Mas pode ser qualquer coisa. Uma sala, um celeiro.

Grande, com espaço para todos. Então, pode convidar as diferentes

partes de si a congregarem-se ali em segurança. Podem ficar a conhecer-

se umas às outras.

– Elas não gostam mesmo uma da outra.

– Posso recomendar algum material de leitura. Isso podia ajudar a

compreender melhor esta abordagem.

– Qual é a outra escola de pensamento?

– Integração. Os alter egos são absorvidos pela personalidade

principal. Para todos os efeitos, desaparecem.

– Como se morressem.

Como se fossem assassinados.

Ele lança-me um olhar cauteloso por cima dos óculos.


– De certa maneira – diz ele –, é um processo terapêutico demorado,

que pode levar anos. Alguns profissionais acham que é a melhor solução.

Eu não sei. Fundir completamente personalidades desenvolvidas pode

ser difícil… pouco aconselhável. Alguns profissionais consideram que

essas personalidades, esses alter egos, são pessoas de direito. Têm vidas,

pensamentos. À falta de melhor palavra, têm alma. Seria como tentar

fundir a minha personalidade com a sua.

– Mas pode ser feito – digo eu.

– Ted – diz ele. – Se conhece… alguém… com este problema, essa

pessoa vai precisar de ajuda. De muita ajuda. Eu posso guiá-la…

A mão esquerda dele está pousada no colo. A mão direita está de

palma para baixo na mesinha ao lado, a centímetros do telemóvel. Pego

numa caneta de cima da mesa e começo a brincar com ela, observando a

mão direita dele, a mão perto do telemóvel, com muita atenção. Espero

que ele faça a conexão lógica. Espero que ele pegue no telemóvel.

Preferia que não o fizesse. Estranhamente, fiquei a gostar dele.

– Que puzzle tão rico – diz ele, distante, e consigo ver que já não está

a falar de mim. – É uma questão que levanto no meu livro. Em que

consiste o ego? Sabe, há um argumento filosófico que defende que a PDI

pode conter o segredo da existência. Teoriza que cada ser vivo e cada

objeto, cada pedra e cada folha de erva, tem uma alma, e que todas essas

almas juntas formam uma só consciência. Cada coisa individual é um

componente orgânico de um universo vivo e senciente… Nesse sentido,

somos todos alter egos… de Deus, essencialmente. Não é fascinante?

– Fixe. Podia dar-me os nomes desses livros, por favor? – Estou a ser

o mais educado possível. – Sobre a cena da integração.

– Oh… claro.

Ele rasga uma página do bloco de notas e começa a escrevinhar.


– Mas pense nisso, Ted – diz ele, de olhos na página. – Acho que

podia ser muito útil se eu pudesse falar com ela.

Os olhos dele estão repletos de abstrações seguras. Está animado

com a emoção do tema. Mantenho a caneta escondida no meu punho,

como se fosse um punhal.

Se ele soubesse. Penso nas noites difíceis com Lauren, nas mãos

húmidas dela, nos dentes e nas unhas afiadas, que deixam marcas e

arranhões na minha pele. Penso na Mamã.

Regresso daquele sítio. Ouço o som de ratos a correrem nas paredes.

A ponta da caneta está cravada na palma da minha mão. O som não é

causado por patas de ratos, mas por sangue, a pingar para o tapete. O

senhor bicho olha fixamente. A cara dele está inexpressiva e branca.

Vejo-a a assumir uma expressão de horror. A minha cara não está a fazer

as expressões corretas de sofrimento e agora é tarde de mais para fingir

que sinto a dor. O senhor bicho viu finalmente um vislumbre de quem

realmente sou. Puxo a caneta gentilmente para fora da minha mão. A

caneta sai com um ténue som viscoso, como um chupa-chupa entre

lábios firmes. Tapo a ferida com lenços de papel da secretária dele.

– Obrigado – digo eu, tirando o pedaço de papel dos dedos dele.

Ele tenta controlar-se, mas afasta-se de mim. Sei bem como é: esse

recuo, como se a carne da mão dele estivesse a tentar rastejar para longe

da minha. Era assim que a minha mãe me tocava.

Tropeço ao sair do gabinete, bato com a porta e caio na sala de

espera artificial, com o cheiro intenso a flores sintéticas. Isto não correu

bem. Pelo menos, agora tenho um nome. Paro o tempo suficiente para

apontar. Perturbação dissociativa de identidade. Ouço a porta do

consultório a abrir-se atrás de mim e corro outra vez, tropeçando em

cadeiras de plástico azul, sem ninguém. Porque nunca está ninguém na

sala de espera? Agora não importa: não vou voltar cá.


Olivia

Começo a pensar se Ted não terá atirado a faca para o lixo. Ou talvez

a tenha sempre consigo, para onde vai naquelas noites longas, quando

regressa a cheirar a terra e ossos velhos.

Considerámos outras abordagens, mas tem de ser a faca, porque é

afiada e rápida. O corpo de Lauren não é forte. Não há nada para comer

em casa, venenoso ou não. Ted aprendeu essa lição.

Não quero dizer isso a Lauren, mas acho que Ted anda a tramar

alguma. Hoje trouxe para casa uns livros novos. Os títulos dão-me dores

nos bigodes, mas acho que são sobre nós. Tento disfarçar estes

pensamentos, mantê-los longe dela. Ela não os consegue ouvir se eu os

enterrar bem fundo. Mais uma vez, agradeço ao SENHOR por me manter

aqui. Lauren precisa de mim.

– Talvez eu consiga fazer uma faca – diz Lauren, pouco convencida.

– Como fazem na televisão, nas prisões. Gostava que houvesse alguma

coisa para comer. Ajudava-me a pensar.

Consigo sentir a sua fome. Apenas aumenta a dor profunda no meu

estômago. O Noturno rosna e sacode-se nas profundezas escuras do

nosso ser, como o bater de asas negras. Forço-o para trás outra vez. Ele

tem fome, tal como nós.

Não é a tua hora, digo-lhe.

Ele volta a rosnar, mas ainda está demasiado fundo para eu o

entender direito. Ou está a dizer É agora, é agora ou Vou embora, vou

embora. Não consigo perceber.

Vasculhamos gavetas e armários. Só encontramos pó. Para nos

manter entretidas, Lauren inventa canções. A melhor é sobre um bicho-

de-conta. É mesmo, mesmo boa.


Estamos exaustas. Enrosco-me no chão por baixo do sofá. O cordão

jaz num monte ao meu lado. Hoje é amarelo-pálido e delicado.

Mesmo que encontrássemos a faca, não a conseguia usar em Ted.

Tirando um breve vislumbre, quando Lauren derrubou a parede entre

nós, não tenho conseguido controlar as mãos, a cabeça, os braços como

um ted. Sinto-me como um gato. E também há outra coisa: gostava que

fosse diferente, mas ainda sinto a velha emoção quando penso em Ted. O

amor não morre facilmente. Dá luta.

– Tens de continuar a treinar, Olivia – diz Lauren.

Estou cansada, digo eu. Na minha cabeça, penso, Detesto treinar, é

horrível.

– Eu ouvi isso. Como achas que vamos sair daqui se não consegues

usar o corpo, gata estúpida?

Às vezes és muito desagradável.

– Pelo menos não quebro as minhas promessas, Olivia. Tu disseste

que ias tentar.

Solto um miado infeliz, porque sei que ela tem razão.

– Vamos começar de novo – suspira ela. – Vai até ao fundo das

escadas. O que consegues ver?

Vejo as escadas, digo, a medo. (Sinto sempre que as minhas

respostas estão erradas.) Vejo a carpete. O corrimão, a subir. No cimo,

consigo ver o patamar. E se me virar, consigo ver a porta da frente, o

bengaleiro, a porta para a cozinha, um pouco da sala…

– OK. Já chega. Então, vamos chamar a isto «Noturno». Ele

consegue ver o que está aqui em baixo, mas mais nada. Pensa nisso.

Imagina-o aqui ao fundo das escadas. Agora vamos subir.

No último degrau antes do patamar, ela manda-me parar.

– O que vês?
Consigo ver a porta da casa de banho, digo eu, e o quarto do Ted e o

teu quarto e a claraboia…

– Coisas do andar de cima, certo?

Sim.

– Mas consegues ver alguma coisa do andar de baixo? A entrada? A

porta da frente, o bengaleiro…

Não.

– Então vamos chamar a isto «Lauren». É o que eu consigo ver.

Entendeste?

Nem por isso, respondo, mas ela não está a ouvir.

– Volta a descer.

Quando estou exatamente a meio das escadas, Lauren manda-me

parar. Estou no degrau onde gosto de dormir. Há sete degraus abaixo de

mim e sete acima.

– E agora, o que vês?

Consigo ver o corrimão. Ainda consigo ver as escadas e a carpete no

patamar. Se olhar para baixo, consigo ver o chão da entrada e, se me

baixar, consigo ver um bocadinho da porta da frente. E se olhar para

cima, para o cimo das escadas, consigo ver a janela, a porta da casa de

banho e a claraboia no patamar.

– Então consegues ver um pouco do que está acima e um pouco do

que está abaixo. Isso és tu, Olivia. O Noturno em baixo, eu no andar de

cima e tu no meio, a unir-nos. Tu és o ponto de ligação. A única pessoa

que nos pode salvar. Tu.

Fico cheia de orgulho e o cordão emite um brilho rosa-dourado.

– Só precisas de subir – diz Lauren. – Tenta.

Mas…

– Não quero dizer subir as escadas literalmente – diz ela, impaciente.

– Tipo, nada disto é real.


Ó MEU DEUS, O QUE QUERES DIZ…

– Esquece isso agora. Tenta outra vez.

Estremeço. Sinto a carpete velha, áspera debaixo das minhas patas

macias. Gosto das minhas patas. Não quero ser um ted. Quero ser eu.

Tenho medo, digo eu. Não me consigo mexer, Lauren.

– Conta a ti mesma uma história – diz Lauren. Consigo perceber pela

sua voz que ela sabe o que é estar paralisada de medo. – Finge que está

lá em cima algo que tu queres mesmo e vai buscar.

Penso no SENHOR e nos Seus inúmeros rostos e em como Ele é bom.

Tento imaginá-Lo no patamar acima de mim. O meu coração enche-se

de amor. Quase O consigo ver, com o Seu corpo riscado e a Sua cauda

de tigre. Os Seus olhos são dourados.

Subo um degrau. Por um momento, as paredes tremem à minha

volta. Sinto-me completamente nauseada, como se estivesse a cair de

uma grande altura.

– Muito bom – diz Lauren, com excitação na voz. – Fantástico,

Olivia.

Olho para o SENHOR. Ele sorri. Então vejo que Ele está a usar o rosto

de Ted. Porque está Ele a usar o rosto de Ted?

Dou meia-volta e corro escadas abaixo, a miar em pânico. Lauren

está a gritar na nossa cabeça.

Não consigo, digo para Lauren. Por favor, não me obrigues. É

horrível.

– Tu não me amas – diz Lauren, triste. – Se me amasses, tentavas a

sério.

Eu amo-te, a sério que te amo!, digo eu com um miado fraco. Não

queria perturbar-te.

– Já fizeste isto antes, Olivia, sei que sim. Tu derrubas a barreira e

vens cá acima. Acontece sempre que deitas a Bíblia abaixo da mesa.


Ouve-se um trovão, certo? E a casa abana… Tu fazes isto quando fazes

as tuas gravações. Lembras-te de quando abriste a porta do frigorífico?

A carne ficou mesmo estragada! Só tens de aprender a fazer isso de

propósito.

Eu lembro-me, mas não entendo. É claro que a carne se estragou…

eu deixei o frigorífico aberto.

– De que cor era o tapete nesse dia, Olivia?

Não é de espantar, depois de tudo o que sofreu… Lauren perdeu o

juízo.

– Se calhar perdi mesmo – diz Lauren –, mas podes tentar na

mesma?

É esquisito haver alguém que ouve os nossos pensamentos. Ainda

não me habituei.

– Por favor.

Soa tão triste que tenho vergonha de mim mesma.

Está bem, digo eu. Vou tentar!

Tento uma e outra vez, mas, por muito que me esforce, só consigo

sentir o meu sedoso pelo preto e as minhas quatro patas.

– Para – diz Lauren, passado o que pareceu uma eternidade.

Sento-me nas escadas com algum alívio e começo a limpar-me.

– Tu não me queres ajudar.

A voz de Lauren está embargada com lágrimas.

Quero sim, digo eu. Oh, Lauren, eu quero ajudar mais do que tudo.

É só que… não consigo.

– Não – diz ela baixinho. – Tu não queres.

Sinto a cauda esquisita. Parece quente. Abano-a para sentir o ar

fresco ao longo dela, mas a sensação de calor continua a aumentar.

Torna-se muito quente.


– Posso fazer-te festas – diz Lauren. – Mas também posso fazer-te

isto.

A dor brilha ao rubro em todas as minhas vértebras. Irrompe em

chamas. A minha cauda fica incandescente. Estou a gritar de dor.

Por favor, Lauren, para com isso!

– Não importa o que faço a um gato imaginário – diz Lauren.

Por favor! Dói muito! A dor percorre-me o cérebro, o pelo, os ossos.

– Tu pensas que és bonita – diz Lauren na mesma voz distante. – Ele

tirou todos os espelhos… não podes ver como realmente és… por isso

vou dizer-te. És pequena, torta, mirrada. Tens metade do tamanho que

devias ter. As tuas costelas parecem uns canivetes. Já não tens muitos

dentes. O teu cabelo cresce em tufos desgrenhados nessa cabeça careca.

Quando as queimaduras na cara e nas mãos sararam, uma e outra e outra

vez, o tecido cicatricial ficou tão espesso que te distorceu a cara. Puxou-

te o nariz para o lado e cresceu para cima dos teus olhos, um deles está

quase tapado por cicatrizes. Pensas que andas pela casa em quatro patas

elegantes. Não é isso que acontece. Tu rastejas com as mãos e os joelhos,

arrastando os pés partidos atrás de ti, como um peixe feio. Não admira

que não queiras viver neste corpo. Tu ajudaste-o a fazê-lo assim e depois

saltaste para o colo dele e começaste a ronronar. És patética.

Ela para e depois fala numa voz diferente.

– Oh, Olivia, desculpa.

Estou a correr e a miar de horror. O choque da dor ainda percorre o

meu corpo. As palavras dela magoam mais.

– Por favor – chama ela. – Desculpa. Às vezes fico tão zangada.

Também sei como a magoar. Sei o sítio que ela teme mais do que

qualquer coisa.

Salto para a arca congeladora e agarro a tampa com as garras,

puxando-a para cima de nós com um estrondo. A escuridão fecha-se à


nossa volta, oportuna, e eu faço ouvidos de mercador aos gritos de

Lauren. Deixo-me levar pelo doce nada. Desapareço nas profundezas.

Quantas vezes pode uma pessoa vergar antes de quebrar para

sempre? É preciso ter cuidado quando se lida com coisas partidas; às

vezes, elas cedem e partem outras coisas.


Ted

Volto ao bar com as luzes nas árvores onde me encontrei com a

mulher de cabelo cor de manteiga e olhos azuis. Como está calor, sento-

me numa mesa comprida no pátio das traseiras, inalo o cheiro do

churrasco e penso nela por um pouco. Está a tocar música country em

algum lado e é agradável. Este é o encontro que devíamos ter tido. O

verdadeiro não correu bem. Não penses nisso.

À minha volta, andam homens de um lado para o outro. Estão

concentrados, irradiam energia, mas ninguém fala muito. Mais uma vez,

não há mulheres. Gostava de conseguir desligar essa parte do meu

cérebro, para ser franco. Sinto-me mal pelo que aconteceu com a mulher

do cabelo cor de manteiga. O dia está quente e a calma começa a

inundar-me, como se estivesse numa sala de espera. Bebo seis ou sete

boilermakers. Nem os conto. Vou voltar para casa a pé. «Não vim de

carro. Isso seria irresponsável!» Percebo que estou a falar em voz alta e

há pessoas a olhar. Afundo a cara na cerveja e fico calado depois disso.

E, lembro-me agora, vendi a carrinha há algum tempo.

Com o cair da noite, chegam mais homens. Devem ter acabado o

turno. Há muito movimento, mas as pessoas deixam-me em paz.

Começo a perceber porque não há mulheres aqui… não é um sítio para

mulheres. O que diria a Mamã se me visse num sítio destes? A boca dela

num esgar de desdém. É contra a ciência. Estremeço. Mas a Mamã não

te pode ver, lembro-me a mim mesmo. Ela foi-se.

Não percebo como estou bêbedo até me levantar do banco. As luzes

nas árvores ardem como cometas. A escuridão murmura e o tempo para

de correr, ou talvez se mova tão depressa que já não o sinto. É por isso

que bebo, digo a mim mesmo, para controlar o tempo e o espaço.


Parece o pensamento mais verdadeiro que alguma vez tive. As caras

inclinam-se, desfocadas.

Vagueio pelas poças de luz e escuridão, através do pátio, para lá da

árvore. Estou a olhar para algo cujo nome não me ocorre. Vejo um

casebre baixo contra o luar, uma porta iluminada. Passo pela porta e dou

por mim numa sala com um cheiro mineral, com paredes feitas de

tábuas e filas de urinóis. Está cheia de tipos a rir. Estão a passar uma

coisa pequena de mão em mão e a contar uma história sobre um amigo

que tem um cavalo. Ou é um cavalo. Ou manda cavalo. Mas eles vão

embora e eu fico sozinho com o pingar pacífico e a lâmpada nua a

baloiçar no ar. Vou até ao cubículo e fecho a porta para me poder sentar

em paz, sem ninguém a olhar. A culpa é da mulher do cabelo cor de

manteiga; vir aqui lembrou-me dela e é por isso que estou tão

perturbado… normalmente tenho cuidado, só bebo assim em casa.

Tenho de sair daqui, tenho de voltar para casa, mas, neste preciso

momento, não consigo perceber como fazer isso. As paredes vibram.

Duas pessoas entram na casa de banho. Os seus movimentos e

palavras estão mal focados, estão muito bêbedos… até para mim é

óbvio.

– Pertenciam ao meu tio – diz uma voz. – E antes disso eram do meu

avô. E do pai dele. E o pai dele usou-os na Guerra de Agressão do

Norte. Por isso, devolve-os, meu. Os botões de manga, quero dizer, os

botões de punho. Não consigo substituí-los. E eram vermelhos e

prateados, as minhas cores preferidas.

– Eu não te tirei nada – diz outra voz. Soa familiar. O tom faz

disparar as minhas sinapses atordoadas. Tenho uma ideia no cérebro,

mas não consigo fixá-la. – E sabes bem que não tirei. Queres sacar-me

dinheiro. Topei-te logo.


– Estavas sentado ao meu lado no bar – diz o tipo dos botões de

punho. – Tirei-os só por um segundo. E depois desapareceram. É um

facto.

– És instável – diz a voz familiar, compreensiva. – Eu entendo que

não queres admitir que perdeste os botões de punho. Queres culpar

alguém. Eu entendo. Mas bem lá no fundo, sabes que não sou eu o

responsável.

O outro homem começa a chorar.

– Por favor – diz ele. – Sabes que não foi assim.

– Por favor, para de me incomodar com os teus devaneios. Vai

chatear outro.

Ouve-se um soco e um baque. Alguém acabou de cair ao chão.

Agora estou curioso e esse sentimento corta a bebedeira. Além disso,

tenho quase a certeza de que sei a quem pertence a segunda voz.

Abro a porta do cubículo e os dois homens olham para mim,

espantados. Um deles tem o punho puxado atrás, pronto para bater no

outro, que está estendido no chão. Parecem a capa de um livro de

detetives ou o cartaz de um filme antigo. Não consigo conter o riso.

O senhor bicho pisca os olhos para mim. Tem uma mancha de lama

sobre o nariz. Pelo menos, espero que seja lama.

– Olá, Ted – diz ele.

– Olá.

Estendo-lhe a mão. O tipo que perdeu os botões de punho e lhe deu

um murro já saiu porta fora. Às vezes, muito ocasionalmente, o meu

tamanho funciona a meu favor.

Ajudo o senhor bicho a levantar-se. As costas da camisa dele estão

molhadas e castanhas.

– Oh – diz ele, resignado. – Acho que devíamos ir embora. Ele pode

voltar, talvez com amigos. Parece ter disso, inexplicavelmente.


– Claro. Vamos embora.

A estrada é um túnel de luz amarelada. Não me lembro para que lado

fica a minha casa e não parece ser muito importante.

– O que vamos fazer? – pergunto.

– Quero beber mais – diz o senhor bicho.

Caminhamos na direção de um sinal luminoso ao longe. Parece

avançar e recuar enquanto nos aproximamos, mas conseguimos lá

chegar… é uma bomba de gasolina, que vende cerveja, por isso

compramos alguma ao homem sonolento que toma conta da loja. A

seguir, sentamo-nos à mesa junto à estrada, ao lado das bombas. Está

tudo calmo. Apenas passa um carro ou outro.

Dou um guardanapo de papel ao senhor bicho.

– Tem algo na cara – digo eu.

Ele limpa-se sem fazer comentários.

– Estamos a beber cerveja juntos – digo eu. – É tão estranho!

– Acho que tem razão. Este tipo de coisa não deve acontecer entre

terapeuta e paciente, é óbvio. Vai continuar a ter consultas comigo, Ted?

– Sim – digo eu. É claro que não.

– Ótimo. Ia falar disso na nossa próxima sessão, mas devia dar-me a

sua morada verdadeira, sabe? Para os nossos ficheiros. Eu verifiquei e a

morada que me deu nem sequer é uma casa. É uma loja de conveniência.

– Enganei-me. Às vezes troco os números.

Ele agita a mão como se não tivesse importância.

– Onde é que vive? – pergunto eu.

– Não é assim que funciona – diz ele num tom seco.

– Porque é que aquele tipo pensou que tinha os botões de punho

dele?

– Não sei bem. Consegue imaginar-me a roubar?


– Não – respondo, porque não consigo mesmo. – Como é que

escolheu a sua profissão? Não é aborrecido ouvir outras pessoas a falar

durante horas e horas?

– Às vezes – diz ele. – Mas tenho esperança de que as coisas fiquem

bem mais interessantes.

Bebemos juntos por algum tempo, não sei quanto. Dizemos coisas,

mas dissipam-se imediatamente. Ocasionalmente, as luzes de um carro

iluminam as nossas caras. Sinto-me muito próximo dele.

Ele debruça-se para mim.

– Montes de pessoas viram-nos a sair juntos do bar. O tipo da bomba

de gasolina está a olhar para nós. Ele vai lembrar-se de si. É fácil de

lembrar.

– Claro.

– Então vamos falar com franqueza. Para variar. Porque parou de vir

às consultas?

– Curou-me – digo eu, com uma risadinha.

– Foi um belo truque, empalar-se com aquela caneta.

– Acho que tenho tolerância elevada à dor.

Ele solta um soluço baixinho.

– Ficou bastante abalado. Saiu à pressa. Nem reparou que o segui.

Gosta de manter a sua casa privada, não gosta? Mas o som é mais difícil

de disfarçar. As vozes das crianças são tão penetrantes.

A escuridão é atravessada por um vermelho caótico. O senhor bicho

já não parece tão bêbedo como antes. Um sentimento terrível nasce em

mim.

– Ela não é mesmo sua filha, pois não? – pergunta ele. – Tal como a

sua gata não é mesmo uma gata. Pensava que era muito subtil, a

conduzir-me até à perturbação dissociativa de identidade. Mas a minha

profissão é ler pessoas, Ted. Não me enganou. A PDI é causada por


trauma. Abusos. Diga-me, Ted, qual é o verdadeiro motivo para a

Lauren… ou Olivia, se preferir… não sair de casa?

Forço-me a rir. Faço-me soar bêbedo e amigável.

– É tão esperto – digo eu. – Hoje seguiu-me até ao bar?

– Foi mesmo azar que aquele tipo tenha entrado na casa de banho –

lamenta-se o senhor bicho. – De outra maneira, não teria dado por mim.

Ando a observá-lo há algum tempo.

Fui descuidado e cego. Deixei que ele visse quem eu era.

– Invadiu a minha casa – digo eu. – Não foi a vizinha, como pensei.

Mas cometeu um erro: usou pregos diferentes.

– Agora não faço ideia do que está a falar – diz ele, soando ofendido.

Se não soubesse, teria acreditado nele. – Ted, isto é uma oportunidade.

Podemos sair os dois a ganhar.

– Como? Não lhe posso pagar mais.

– Pode haver dinheiro para nós os dois! Sabe – ele chega-se mais

perto –, eu estou destinado a coisas maiores do que um consultório da

treta, a ouvir donas de casa de meia-idade a falarem de como perderam a

autoestima. Eu fui o melhor aluno do meu ano, sabia? Tive aquele

percalço, é verdade, mas recuperei a licença, não foi? Mereço mais do

que isto. Qual é a diferença entre mim e todos aqueles tipos na lista dos

mais vendidos? Oportunidade, mais nada.

– Quando o conheci, soube que tinha encontrado algo especial… o

meu caso de estudo. Andava a publicar aqueles anúncios de terapia

barata há meses. O meu pai costumava dizer: «se esperares o suficiente,

o mal acaba por aparecer». Acho que pode dar-me o que mereço. É o

cerne do meu livro, Ted. Não se preocupe, ninguém vai saber que é o

Ted. Vou mudar o seu nome… Ed Flagman ou algo assim. Só preciso

que seja honesto comigo… mesmo honesto.

– O que quer que eu diga?


Só queria que ele parasse de falar. Vou ter de fazer algo que não me

agrada.

– Vamos começar pelo início. A miúda, Lauren, ou Olivia, como lhe

quiser chamar, é a primeira?

– A primeira quê?

– A primeira das suas «filhas» – diz ele. Consigo ouvir as aspas à

volta da palavra. – É essa a palavra certa? Filhas? Esposas? Ou talvez só

lhes chame gatinhas…

– É tão burro! – digo eu, furioso. – E eu a pensar que era eu o burro!

Mas ele é esperto que chegue para ser perigoso.

– Porque vai àquele bar, Ted? – pergunta ele, semicerrando os olhos

injetados de sangue. – Por causa da sua gata?

Prendo-o nos meus braços.

– Não tente dizer-me o que sou – segredo-lhe ao ouvido.

Ele solta um arroto aterrorizado. Eu abraço-o com mais força,

arfando e apertando mais e mais, até lhe sentir as costelas a estalar e o

senhor bicho a transformar-se em água. Ele abre as mãos. Dois objetos

pequenos caem para cima da mesa e refletem a luz. É um par de botões

de punho, prateados, com uma pedra encastoada, vermelha como

sangue, a brilhar à luz do néon. Olho para eles por um momento.

– Não passa de um ladrão – digo-lhe ao ouvido, sempre a apertar. –

Rouba tudo… até pensamentos. Nem sequer consegue escrever o livro.

Ele solta um gemido.

Ouço um grito atrás de mim e alguém sai da loja, o homem

sonolento que nos vendeu a cerveja.

Largo o senhor bicho e ele cai para cima da mesa. Atravesso a

estrada a correr, para os braços acolhedores da floresta. Batem-me

ramos na cara, tropeço, com folhas moles pelos tornozelos. Caio mais do

que uma vez, mas não paro, levanto-me do chão escorregadio da floresta
e corro e corro para casa. O rugido cresce, a concentrar-se na minha

garganta, mas não o deixo sair, ainda não.

A porta da frente fecha-se atrás de mim. Tranco-a com as mãos a

tremer. A seguir, cerro os punhos e grito e grito até me doer a garganta e

ficar rouco. A seguir, respiro fundo. Ponho dois comprimidos amarelos

dentro da boca e engulo-os a seco. Ficam colados na minha garganta, a

bater um no outro como dois seixos. Forço-os a descer. Acho que o

senhor bicho não estava morto. Rezo para que não esteja. Não tenho

tempo para sentimentos e não tenho tempo para preparativos

cuidadosos. Temos de ir.

Preparo a mochila à pressa. Saco-cama, tenda, isqueiro. Pastilhas

purificadoras de água, um rolo de arame. Reúno toda a comida enlatada

da casa. Não é muita. Pêssegos, feijão-preto, sopa. Depois de a fitar por

um momento, pego na garrafa de bourbon e junto-a ao resto. Quando a

mochila fica cheia, visto dois casacos, um por cima do outro, e calço

dois pares de meias. Vou ter muito calor, mas tenho de vestir tudo o que

não couber na mochila. Ponho ao bolso todos os meus comprimidos, a

chocalhar nos frascos âmbar. Se houve altura para manter a calma, é

agora.

Então, saio para o quintal e cavo para ir buscar a faca. Sacudo a terra

da faca e penduro-a no cinto.


Olivia

A voz de Lauren penetra no meu sonho. Tem a aresta cortante do

pânico.

– Socorro – sussurra. – Olivia, ele está a levar-nos embora.

Abano uma orelha. A escuridão envolve-me em silêncio. Estava a

sonhar com natas deliciosas e era muito agradável. Talvez não esteja

especialmente recetiva.

Quê?

– O Ted – diz ela. – Está a levar-nos para fora, para a floresta. Tens

de ajudar.

Oh, digo eu friamente. Receio ser só uma gata estúpida. Não posso

ajudar.

– Por favor – diz ela. – Por favor, tens de ajudar. Tenho medo.

A voz dela soa como vidro riscado.

– Por favor, Olivia. Está a acontecer agora. Ele vai fazer de nós

deuses. É a nossa última oportunidade.

Eu digo: Eu não existo. Isso parece-me um problema teu.

Ela começa a chorar, em soluços aflitos.

– Não entendes que, se ele me matar, tu também morres? Eu não

quero morrer.

Ela funga. Apesar de tudo, sinto alguma pena dela. É uma criança

traumatizada. Não queria dizer o que disse.

Vou tentar, digo lentamente. Mas não prometo nada. Agora deixa-

me em paz. Preciso de me concentrar.

Como sempre, tudo depende do diabo da gata. Francamente, os teds

são uns inúteis do diabo.


Agacho-me no escuro. Espero que ajude. O caixote foi uma espécie

de porta entre mim e Lauren. Talvez possa ser aberto de novo. Escuto os

sons da casa… a torneira a pingar, as tábuas a ranger, uma mosca presa

entre o vidro e o contraplacado. Cheiro o linóleo da cozinha e o

ambientador que Ted usa quando se lembra. Saco e recolho as unhas.

Elas curvam até às pontas deliciosamente afiadas. Não quero usar o

corpo horrível de ted e ter mãos. Horrível. Tem de ser.

Certo, murmuro. Está na hora.

Olho para o patamar e tento pensar em algo que amo. Tento pensar

no SENHOR, e depois tento pensar nas natas cremosas que cobriam a

minha língua de uma delícia branca e espessa no sonho. Mas não me

consigo concentrar. A minha cauda abana e os meus bigodes tremem. Os

meus pensamentos estão completamente dispersos.

Vamos lá, sussurro, fechando os olhos.

Só consigo pensar em Lauren. Não no aspeto dela, porque nunca a

vi. Penso em como é esperta, por ter feito este plano para nos salvar, e

irritante, especialmente quando me chama gata estúpida.

Não acontece nada. Não adianta. Dei o meu melhor! Devia mesmo

voltar à minha sesta. Estão a acontecer coisas más e parece-me melhor

dormir até tudo passar.

Mas a cada vez que fecho os olhos e tento afundar-me num sono

confortável, sou acordada por pontadas de dúvida.

Eu tentei tudo, digo em voz alta. Não posso fazer mais nada! Apenas

o silêncio me responde. Mas consigo sentir a Sua opinião. Solto um

miado infeliz porque sei que o SENHOR não aprova a desonestidade.

Empurro com a cabeça e a tampa da arca levanta-se uns centímetros.

Um fio de luz cai sobre mim, ofuscante.

Assim que saio da arca, ouço Lauren a gritar. A sua voz enche as

paredes, percorre o tapete debaixo dos meus pés. O medo dela entra
pelos furos no contraplacado e consigo ouvi-lo a verter das torneiras na

cozinha. Tenho de a ajudar.

A ideia de me enfiar dentro do corpo de Lauren é verdadeiramente

horrível. A minha cauda estica-se com aversão. Que nojo! Aquela pele

lisa e cor-de-rosa de porquinho em vez do meu lindo pelo. Aquelas

coisas arrepiantes em vez de patas! Bufo, horrorizada com a intimidade

violenta de tudo isto. Mas ela está a contar comigo. Pensa, gata.

Vou até à Bíblia. Empurro-a abaixo da mesa. Quando ela cai ao chão

com estrondo, sinto a casa a abanar. É como um eco, mas mais forte.

Peçam e há de dar-se-vos;

procurem e hão de encontrar;

batam à porta e há de abrir-se-vos.

Pois aquele que pede recebe;

aquele que procura encontra;

e a quem bate, a porta se abrirá.

Diabo. Às vezes, é irritante ter razão. Há algum tempo que uma ideia

está a formar-se na minha mente. Posso ser uma gata de interior, mas vi

as muitas faces do SENHOR e sei que há coisas estranhas neste mundo.

Lauren pensa que sabe tudo, mas não sabe. Nós não somos nenhuma

escada. Nós somos como aquela boneca horrível em cima da lareira. Eu

e Lauren encaixamos uma dentro da outra. Quando se bate numa,

reverbera por todas elas.

Pensa, pensa!

Quando abri a porta do frigorífico, estava zangada. Talvez mais

zangada do que alguma vez estive. Não sentia o cordão a ligar-me a Ted.

Era eu mesma, sozinha.


Por isso, faço-me ficar zangada. Não é difícil. Penso em Ted e no que

ele fez a Lauren. É muito doloroso pensar nisso. Ela tinha razão numa

coisa: sou mesmo uma gata estúpida. Acreditei nas mentiras dele, não

quis saber a verdade. Só queria dormir e que me fizessem festas. Fui

uma covarde. Mas não quero continuar a ser uma covarde. Vou salvá-la.

A minha cauda eriça-se, torna-se um espigão de raiva. O fogo

começa na ponta, espalha-se pela minha cauda agitada, sobe para mim.

Não é como o calor quando Lauren me magoou. Eu criei este

sentimento. É o meu fogo.

As paredes começam a tremer. O trovão começa longe e depois está

à minha volta. A entrada vibra como uma televisão com mau sinal. O

chão é um mar revolto.

Vou até à porta da frente, a escorregar e a miar. Lá porque decidi ser

corajosa, não quer dizer que não tenha medo. Tenho tanto medo. O que

vejo pelo buraco de vigia não é o exterior. Agora percebo isso. Agora,

vejo com um calafrio que as três fechaduras não estão fechadas. A porta

está destrancada, claro. Não tenho de subir, tenho de sair. E toda a gente

sabe como se entra e sai de uma casa. Solto um pequeno miado. Não

queria nada ter razão. Ergo-me nas patas traseiras e rodo o puxador com

as patas da frente. A porta abre-se completamente. A chama branca

acolhe-me. Estou cega; é como estar dentro de uma estrela. O cordão é

uma linha de fogo, a queimar o meu pescoço. O que vai acontecer? Vou

arder? Parte de mim espera que sim. Não sei o que está lá fora.

Saio da casa. O cordão arde como uma fornalha. O mundo dá voltas

e piruetas. Estrelas incandescentes puxam-me para o nada. Sinto uma

onda de náusea e engasgo-me. Todo o ar é forçado para fora dos meus

pulmões.
A luz ofuscante regride, as estrelas tornam-se furos pequenos na

escuridão quente, através dos quais vejo vislumbres de movimento, cor,

luz pálida. Luar, acho eu. Então é este o aspeto do luar.

O mundo baloiça como um barco num mar bravo. O odor familiar de

Ted enche-me as narinas. Estamos a ser carregadas às costas dele, num

saco, acho eu… tem furos pequenos, julgo que para deixar entrar ar. Sou

grande de mais. A minha pele está exposta e não tem pelos, como uma

espécie de verme. As minhas patas tornaram-se longas aranhas de carne.

O meu nariz não é um botãozinho adorável, mas uma coisa bicuda e

horrível. Pior de tudo, onde devia estar a minha cauda está um nada

vazio.

Ó meu Deus! Contorço-me, mas não me consigo mexer. Acho que

estamos presas, talvez atadas. A toda a volta ouve-se som. Folhas,

corujas, rãs. Outras coisas cujo nome desconheço. Tem tudo uma clareza

que nunca ouvi. O ar também é diferente. Consigo sentir isso, mesmo

através do saco. É mais frio, mais agreste… e está a mexer-se.

Lauren chora e sinto o seu choro a subir pelo peito pouco familiar,

pelas minhas costelas cavernosas. Sinto as lágrimas a sair dos meus

olhos fracos. É tão horrível como eu achava que ia ser.

Consegui, digo-lhe em silêncio. Estou no corpo.

– Obrigada, Olivia.

Ela abraça-me com força e eu devolvo-lhe o abraço.

Lauren, porque se move o ar, como se estivesse vivo?

– É o vento – segreda ela. – Isso é o vento, Olivia. Estamos fora de

casa.

Ó meu Deus. Ó meu Deus. Por um momento, estou demasiado

estarrecida para pensar. Então pergunto: Onde estamos?

– Estamos na floresta. Não sentes o cheiro?


Quando diz isto, o cheiro também me atinge. É incrível. Minerais, e

besouros, e água doce, e terra quente, e árvores… meu Deus, o cheiro

das árvores. Ao perto, é como uma sinfonia. Nunca teria imaginado.

– Ele tem a faca – diz Lauren. – Acreditas que ele a enterrou?

Talvez ele esteja a levar-nos num passeio, digo eu, esperançosa.

Talvez tenha trazido a faca porque tem medo de ursos.

– As gatinhas não regressam da floresta – diz ela.

Depois disso, ficamos caladas. Mais do que tudo, quero voltar para

dentro. Mas não posso deixar Lauren sozinha. Tenho de ser valente.

Ele caminha durante uma hora por terreno acidentado. Escala

penedos íngremes e atravessa ribeiros, passa vales e colinas. Em menos

de nada, estamos na natureza selvagem.

Ele para num sítio que cheira a pedra, onde as árvores falam umas

com as outras à noite, com o som de água a correr ao fundo. Pelo que

consigo ver pela abertura pequena do saco, estamos num vale baixo com

uma cascata ao fundo. Ted prepara o acampamento com muito barulho e

resmungos. A luz tremelica através do tecido escuro que nos envolve.

Fogo. Acima, consigo ouvir o vento a bater nas folhas.

Não consigo ver muito, mas consigo sentir a vastidão do ar. O vento

bate contra as nuvens. Gostava de nunca ter descoberto a verdade, digo

a Lauren. O exterior é aterrador. Não há paredes. Não tem fim. Até onde

vai, o mundo?

– É redondo – diz ela. – Por isso, acho que se estende até voltar ao

ponto de partida.

Isso é terrível, digo eu. Acho que é a pior coisa que já ouvi. Ó meu

SENHOR, protege-me…

– Concentra-te, Olivia.
Ele vai deixar-nos sair deste saco?, pergunto. Para fazer chichi ou

isso?

– Não. Acho que não.

Consigo ouvir a mente dela a rodar furiosamente.

– É uma mudança de plano – segreda. – É só isso. Nós mudamos de

abordagem. Adaptamo-nos. Ele tem a faca. Senti-a encostada à anca

dele. Por isso, tens de lha tirar, mais nada, e matá-lo. O plano é o

mesmo. É ainda melhor, porque estamos no meio do nada e ninguém

virá ajudar. Podemos fazer este plano funcionar a nosso favor, vês?

Pergunto-me se ela terá ido ao bourbon de Ted, porque soa

exatamente como ele quando está bêbedo. Acho que o medo, tal como a

bebida, nos pode fazer arrastar as palavras.

Penso no corpo, no nosso corpo fraco e magro, contra o volume de

Ted, contra a sua força. O vento toca no meu pelo com dedos frios. Inalo

o vento. É simultaneamente antigo e novo. Pergunto-me se será a última

coisa que sentirei.

O vento é delicioso, digo. Fico contente por tê-lo sentido. Mas

gostava de ter provado peixe a sério.

– Também gostava disso.

Não sou capaz, Lauren. Pensava que era, mas não sou.

– Não é só por nós, Olivia – diz Lauren. – É por ele. Achas que ele

quer ser assim? Achas que ele é feliz sendo um monstro? Ele também é

um prisioneiro. Tens de o ajudar, gata. Ajuda-o uma última vez.

Oh, digo eu, valha-me Deus…

– Vamos lá – diz Lauren, numa voz baixa e resignada. – Talvez não

seja assim tão mau.

Penso no mundo redondo, onde, se viajarmos o suficiente, voltamos

ao mesmo sítio.
Sê uma gata valente, sussurro para mim mesma. Foi para isto que o

SENHOR te pôs aqui. Respiro fundo. Vou fazê-lo. Vou tirar-lhe a faca e

vou matá-lo.

– Gata esperta – diz ela, a respirar depressa. – Tens de ser rápida. Só

vais ter uma oportunidade.

Eu sei.

Mais abaixo, no escuro, o Noturno rosna. Sinto os flancos fortes dele

a tremerem enquanto tenta soltar-se.

Qual é o teu problema?, pergunto-lhe num tom seco. Estou

ocupada. Agora não tenho tempo para ti.

A resposta dele é um rugido que vibra nas minhas orelhas, que me

manda choques pela coluna. É a minha hora, a minha hora, a minha

hora, ruge ele. Mas tenho-o bem preso, não se vai soltar.

Ted está inquieto. Mantém-nos bem próximas, atadas às costas. O

fogo arde com força, lançando pontas incandescentes de luz através do

saco. Sinto o tremor da voz dele quando fala baixinho para si mesmo.

– Mamã, ainda estás aqui?

Ao nascer da aurora, ele cai num sono inquieto. Sinto a sua

respiração profunda. Está relaxado. Acima, o céu retém a respiração.

Consegues ver alguma coisa?, pergunto.

– Está na mão esquerda dele – murmura ela.

Estendo a nossa mão. É asqueroso, usar a mão… como usar uma

luva de carne podre. Tiro a faca da mão aberta dele. É mais leve do que

estava à espera.

Estendo o braço e cravo a faca na barriga dele. A ponta fura a pele

com um som breve, como uma dentada numa maçã. Pensava que a carne

seria mole, mas dentro de Ted é uma confusão de objetos e texturas.

Sinto resistência; é difícil enterrar a lâmina. É ainda mais horrível do


que podia ter imaginado. Quase não me ouço a chorar, por causa dos

gritos de Ted. O som faz um pássaro levantar voo de um arbusto

próximo e erguer-se para o céu. Quem me dera poder ir com ele.

A primeira coisa que sinto é a dor. Os nervos do nosso corpo

iluminam-se com a dor. O pano escuro cai da nossa cara. Eu e Lauren

caímos de cara no solo duro da floresta. O nosso rosto bate com força

numa confusão de folhas molhadas e galhos; estamos meio dentro e

meio fora do riacho; corre água fria por cima das nossas pernas. O nosso

coração bate irregularmente, como um motor quase a falhar.

Lauren? Porque estamos a sangrar? Porque não nos conseguimos

levantar?
Dee

Dee pousa o leitor de cassetes em cima da mesa. Não foi fácil de

encontrar. Não se encontram nas lojas de produtos eletrónicos. Por fim,

pagou uma fortuna numa loja de discos de vinil no centro da cidade.

Põe a cassete e carrega play com um dedo trémulo.

– Por favor, venham prender o Ted por homicídio – diz uma vozinha

ansiosa. – E outras coisas. Este Estado tem a pena de morte, sei isso…

É uma gravação curta, talvez dure um minuto. Dee ouve sem

respirar. Então, rebobina a cassete e ouve outra vez. A seguir, ouve mais

para a frente, no caso de haver mais alguma gravação. Mas só tem as

notas de uma estudante de medicina. Uma mulher com um sotaque

ligeiro que Dee não consegue identificar e uma voz límpida como um

sino.

Senta-se para trás. É Lulu. Mais velha, sim. Mas Dee não pode

deixar de reconhecer os tons da irmã. Agora que chegou o momento e

Dee tem provas, não sabe o que fazer. Põe a mão no coração, que bate

com força. Parece inchado, a ponto de explodir.

Devia contar isto a Karen, a cansada, levar-lhe a cassete. Vai fazer

isso, assim que conseguir levantar a cabeça das mãos.

Então chega-lhe um som familiar do exterior. Tum, tum, tum.

O corpo de Dee fica elétrico. Vai até à janela às escuras. Ted está a

sair para o quintal. Fica parado por um momento, à escuta. Olha em

redor. Dee fica quieta como uma estátua. Espera que a Lua refletida nos

vidros disfarce a sua silhueta. Parece que sim, pois Ted assente para si

mesmo e vai até ao arbusto de sabugueiro que cresce no canto leste do

quintal. E começa a cavar com as mãos.

Ted tira algo do solo. Sacode a terra e retira brevemente a bainha.

Uma faca de caça. A lâmina reflete o luar. Ted põe a faca no cinto e
volta para dentro de casa.

Quando volta a sair, minutos depois, traz um saco às costas.

Atravessa lentamente o quintal, na direção da floresta. Enquanto Dee

assiste a tudo, o saco parece mexer-se. Ela tem a certeza de que está a

contorcer-se à luz da Lua.

A mente de Dee fica límpida. Tudo se torna frio e duro. Não há

tempo para falar com Karen. Lulu tem de ser salva… e é preciso lidar

com um monstro. Mãos à obra, Dee Dee, pensa ela.

Corre até ao armário e pega na lata de tinta fluorescente, no martelo

e nas botas grossas à prova de serpentes que comprou para aquele

momento. Veste uma camisola com carapuço, um casaco, ata os

atacadores com as mãos trémulas. Sai de casa e fecha a porta sem fazer

barulho, a tempo de ver Ted a desaparecer no meio das árvores. A

lanterna dele dança no ar da noite.

Dee agacha-se junto ao chão e corre atrás dele com passos

silenciosos. Desta vez, nada a vai travar.

Uns 20 metros dentro da floresta, onde a luz dos candeeiros ainda

pode ser avistada pelo meio dos ramos, Dee para e marca o tronco de

uma faia com a tinta amarela. Os ramos tocam-lhe na cara e prendem-

lhe as pernas. A floresta à noite é escorregadia, tolhe-lhe os

movimentos. Dee tenta acalmar a respiração.

As palavras que ouviu na cassete não param de repetir na sua mente.

Nada a não ser a escuridão pacífica. Lulu.

Ted sai do trilho. Acima, a luz é tapada pelos ramos. Dee marca um

tronco a cada 20 metros. Não perde de vista a lanterna de Ted,

concentrando-se tanto nela que a luz fica desfocada. Passado algum

tempo, Dee sente a floresta a mudar. Já não está na parte onde as


famílias passeiam. Está na natureza selvagem, onde os ursos vagueiam e

os ossos dos caminhantes perdidos nunca são encontrados.

O sussurro de uma folha começa a soar como a cauda sinuosa de

uma cascavel. Cala-TE, pensa ela, exausta. Não existe nenhuma

MALDITA cascavel. Há quanto tempo é prisioneira do medo?, interroga-

se. Anos e anos. Está na altura de se libertar.

O pé de Dee escorrega num ramo lamacento. O ramo desliza por

baixo do pé num movimento muscular. Ao mesmo tempo, a luz da

lanterna capta-a, mesmo diante do pé direito, no solo da floresta. O

padrão em losangos é bem familiar. O chocalhar curto, como arroz seco

dentro de um saco. A cobra ergue-se lentamente com a elegância de um

pesadelo, prepara-se para atacar, com reflexos verdes nos olhos. Tem

pouco mais de um metro de comprimento, é jovem. A lanterna de Dee

dança loucamente sobre o monte de pedras atrás da cobra,

provavelmente a sua toca.

O medo espalha-se pelas suas veias como tinta. Dee grita, mas o

grito soa mais como um assobio fraco. A cobra balança. Talvez esteja

letárgica por ter acabado de acordar, talvez esteja ofuscada pela lanterna,

mas isso dá a Dee o momento de que precisa.

Mantendo firme o feixe de luz, avança um passo e ataca. Sabe que,

se falhar, está morta.

O martelo atinge a cabeça larga da cobra com força. Ao segundo

golpe, a cobra cai sem vida no solo da floresta. Dee debruça-se por cima

dela, ofegante.

– Toma lá – sussurra.

Dee toca no corpo comprido com um dedo. É frio ao toque, agora

inerte e impotente. Pega na cobra morta. Quer lembrar-se disto para

sempre.

– Vou fazer um cinto com a tua pele.


A alegria percorre-lhe o corpo. Sente-se transformada.

Quando levanta a cobra morta, com a intenção de a guardar no

bolso, a cabeça estremece e vira-se. Dee vê tudo a acontecer em câmara

lenta… a cabeça da cobra a atacar, a cravar os dentes no seu braço.

Sente a boca a abrir-se num grito silencioso. Abana o braço, tentando

soltar-se. O corpo longo e inerte abana também, contorcendo-se numa

imitação da vida. Algumas coisas sobrevivem à morte. A dor da

mordidela é intensa. Mas não é nada comparada com o horror de ter

aquilo preso ao corpo, como se fosse uma parte monstruosa dela.

Por fim, Dee prende as orelhas do martelo na mandíbula morta e

abre-a à força. Os dentes são pálidos e translúcidos à luz da lanterna.

Dee atira o corpo mutilado para a floresta, para o mais longe que

consegue.

Algo borbulha dentro dela. Não grites, diz a si mesma. Mas é riso. O

seu corpo sacode-se de riso, mal consegue respirar. As lágrimas correm-

lhe pela cara. Afinal havia uma cobra.

Ela não quer olhar, mas tem de ser. A carne à volta da mordidela já

está inchada e escurecida, como uma nódoa negra com uma semana.

Mãos à obra, Dee Dee. Ainda a rir-se, rasga a manga pelo ombro

para aliviar a pressão sobre a carne inchada. Está a uma boa hora da

ajuda mais próxima. A única coisa a fazer é seguir em frente e acabar o

que a trouxe ali. Adiante, a luz de Ted afasta-se a dançar pelo meio das

árvores. Inacreditavelmente, o encontro com a cascavel durou menos de

um minuto. Dee cambaleia atrás da luz.

Dee começa a sentir-se mal. Também acontecem outras coisas.

Parece-lhe que as árvores estão a ficar mais brancas e que há pássaros

vermelhos a voar pelo meio dos troncos. Dee solta uma exclamação e

tenta afastar a imagem. Isto não é um sonho. Não há nenhum ninho de

cabelo humano. O braço dela lateja, como se tivesse o seu próprio


coração. Ela sabe que uma pessoa mordida por uma cobra não deve

mexer-se. Isso espalha o veneno. Tarde de mais, pensa. O veneno

apanhou-me há muito tempo.

Segue Ted para oeste. Desliga a lanterna. O luar dá luz suficiente.

Ted mantém a sua lanterna ligada. Deve ser difícil… manter o equilíbrio

com tanto peso às costas. Talvez o peso esteja a mexer-se, a dar luta.

Com a mão boa, agarra o martelo no bolso. Está pegajoso com

sangue seco de cobra. Dee está a arder, a sua raiva ferve e queima-a por

dentro. Ted vai pagar. A cada 20 metros, marca mais uma árvore com a

tinta refletora. Tem de acreditar que vai regressar por este caminho, com

a irmã.

Dee segue-o tão perto quanto se atreve. Mesmo assim, acaba por o

perder. A luz dele dança para fora de vista e desaparece. O solo começa

a descer abruptamente e Dee tropeça, entra em pânico. Mas então a

lógica retoma controlo da situação. Consegue ouvir água a correr algures

abaixo. É provável que ele pare perto da água. Falta pouco para a aurora,

consegue cheirá-la no ar. Dee encosta-se a um tronco escorregadio e

respira. Só precisa de ser paciente por mais um pouco. Não pode

arriscar uma queda no escuro. Precisa da aurora. Sabe que não vai

demorar muito.

O nascer do Sol débil pinta o mundo de cinza. Dee desce

erraticamente uma escarpa rochosa na direção do som da água. Chega

ao cimo de uma garganta profunda. No fundo, um riacho corre rápido e

prateado sobre as rochas. Junto à água veloz está um saco-cama, aberto

como uma boca frouxa. As brasas de uma fogueira lançam fios de fumo

para o ar cinzento da madrugada.

Então é aqui o sítio do fim de semana. Agora que o momento chega,

Dee sente-se solene. Quase parece um momento sagrado, o fim de tantas


coisas.

Dee procura um caminho para baixo, hesitante. Os braços parecem-

lhe pesados como pedra, letárgicos por causa do veneno. As rochas junto

ao ribeiro estão manchadas com gotas escuras. Sangue. Algo aconteceu

ali.

Ela segue o rasto de sangue até um maciço de vidoeiros. É verdade,

pensa ela. Os animais escondem-se para morrer. Mas qual deles, Ted ou

Lulu? É familiar, a luz marmoreada das árvores. A conversa silenciosa,

de folha para folha. Isto já aconteceu antes. Dee foi para o meio das

árvores e, quando saiu, alguém estava morto. O momento presente

sobrepõe-se a outro, como um desenho em papel vegetal. Mas, é claro,

da outra vez era uma tarde de verão, junto ao lago. E eram pinheiros, não

vidoeiros. Dee apaga esses pensamentos com estática.

Ela não o vê logo, o corpo. Então avista uma bota de montanhismo,

meio descalçada de um pé, a sair de um espinheiro. Ele está caído de

lado, de cara para baixo. Um líquido escuro verte-lhe da boca. Ela pensa,

Oh, ela conseguiu fugir e ele está morto, e uma onda de alegria

percorre-lhe o corpo. Então pensa, Mas queria ser eu a matá-lo.

Ted geme e vira-se, lento como uma revolução do planeta. Terra e

folhas secas colam-se à pele dele como uma tatuagem escura. A faca

ainda está cravada na barriga dele. O sangue borbulha à volta da faca,

escorre como um riacho escuro. Ele vê-a e a sua expressão de surpresa é

quase cómica. Ele não faz ideia de como ela o conhece bem, como ela o

observou de perto, como os seus destinos estão interligados.

– Ajuda-me – diz ele. – Também estás ferida.

Ele está a olhar para o braço dela.

– Cascavel – diz Dee, distante.

Ela olha para ele, fascinada. Agora sabe como se sente a cobra ao

aproximar-se do rato.
– No meu saco, junto ao riacho, cola cirúrgica. Também tem um kit

para mordidelas de cobra. Não sei se funciona.

Ela acha fantástico que, naquele momento, ele esteja preocupado

com o bem-estar dela. É claro, ele pensa que ela vai ajudá-lo… precisa

dela.

– Vou ficar a ver-te morrer – diz ela.

Vê a incredulidade a tomar conta do rosto dele.

– Porquê? – sussurra ele.

O sangue escorre-lhe do canto da boca.

– É o que mereces – diz Dee. – Não, é apenas uma amostra do que

mereces, depois do que fizeste.

Ela olha em redor para a penumbra. Nada se move no meio das

árvores.

– Onde está ela? – pergunta Dee. – Diz-me onde ela está e dou-te

uma morte rápida. Ajudo-te a acabar com tudo.

Ela pensa em Lulu, sozinha e assustada, sob o céu vasto e

indiferente. Abana um dedo diante do rosto dele, de um lado para o

outro. Ele segue o dedo com o olhar.

– O teu tempo está a acabar – diz ela. – Tique-taque.

Ted arqueja e formam-se bolhas vermelhas nos seus lábios. Solta um

som. Um soluço de choro.

– Tanta pena de ti mesmo – diz Dee, furiosa. – Não foste

minimamente piedoso com ela.

Ela levanta-se. O mundo balança e esvanece-se na periferia do olhar,

mas ela consegue recuperar o equilíbrio.

– Vou encontrá-la.

Lulu vai viver com ela. Dee vai ter paciência para os anos de cura de

que Lulu vai precisar. Vão curar-se uma à outra.


– Morre, monstro – diz ela, e vira-lhe costas, na direção do som da

cascata, na direção do dia, onde a luz dourada do Sol nascente irrompe

de uma nuvem.

Atrás dele, ouve uma voz de menina a sussurrar.

– Não lhe chames isso.

Dee vira-se, arrepiada. Não está ali ninguém além dela e do

moribundo.

– Ele não é um monstro – diz a voz de menina, fraca e áspera nos

lábios azuis de Ted. É a mesma voz que gravou a cassete. – Eu tive de o

matar… mas isso é entre mim e o Papá. Não te metas.

– Quem és tu? – pergunta Dee. O bater de asas vermelhas enche-lhe

os ouvidos.

– Lauren – responde a menina pelos lábios do homem grande.

– Não tentes enganar-me – diz Dee com firmeza. Deve ser uma

alucinação, um efeito secundário do veneno. – Ele raptou a Lulu. Ele

rapta meninas pequenas.

Isso tem de ser verdade, ou tudo cai por terra.

– Ele nunca fez isso – diz a menina. – Fazemos parte um do outro,

eu e ele.

O mundo balança e Dee cambaleia na direção do corpo de Ted.

– Chiu – diz ela. – Cala-te. Tu não és real.

Ela aperta a mão sobre o nariz e a boca dele. Ele contorce-se e

debate-se, levantando folhas e terra com os calcanhares. Ela segura a

mão com força até ele parar de se mexer. É difícil de dizer naquela

confusão, mas parece-lhe que ele parou de respirar. Põe-se de pé, mais

cansada do que a morte. O mundo começa a desfocar nos limites. O

braço dela está brilhante, escurecido e inchado.

Ela tropeça na mochila de Ted, através de fiapos de nuvens brancas.

Encontra uma bolsa amarela. A cobra na etiqueta ergue-se para ela e ela
estremece com um grito abafado. As instruções baloiçam diante dos

seus olhos. Dee aplica o torniquete e coloca a ventosa na zona da

mordidela. A carne está mole e escura. Dói. Ela começa a bombear e a

câmara enche-se de sangue. Talvez esteja apenas a ser esperançosa, mas

já se sente melhor, mais firme, mais alerta. Bombeia mais um pouco e

depois levanta-se. Vai ter de chegar.

Vê a cola cirúrgica num bolso do saco de viagem e atira-a para o

riacho veloz.

– Pelo seguro – murmura.

Afinal, as cascavéis mortas ainda mordem.

Pensa na mão dela a tapar o nariz e a boca de Ted enquanto ele se

esforça por respirar. Está tudo bem, porque ele merece. Tudo vai ficar

bem. Quanto ao momento em que o homem falou com uma voz de

menina, isso foi só confusão causada pelo veneno. Fica com a visão

desfocada, mas procura pacientemente, até avistar uma mancha amarela

no tronco de uma árvore distante, a marcar o caminho para fora do vale.

Cambaleia na direção da árvore. Dee vai encontrar Lulu e dar-lhe um

lugar para viver, e vão ser tão felizes, as duas a apanharem pedras

bonitas. Mas não num lago. Nunca num lago.

– Lulu – sussurra Dee. – Estou a caminho.

Cambaleia pela floresta, entre pilares de luz e sombra. Atrás dela,

ouve um cão a ladrar. Dee apressa o passo.


Olivia

Não é o teu corpo, Lauren. Agora estou a chorar. É dele. Nós

vivemos dentro do Ted.

– Sim – diz ela com um suspiro. – Mas não por muito mais tempo.

Graças a Deus.

Porquê, porquê? Estou a miar como uma gatinha. Fizeste-me matar-

nos. A todos nós.

– Precisava da tua ajuda para acabar com tudo. Não conseguia

sozinha.

Eu pensava que era tão esperta… mas Lauren conduziu-me sem

problemas para este caminho, para este momento, para a nossa morte.

Mentiste-me, digo eu. Tudo o que disseste, sobre o vinagre e a arca

congeladora…

– Tudo isso foi verdade – diz ela. – Mas aconteceu com ele e comigo.

Não sabes o quanto sofremos. A vida é um túnel comprido, Olivia. A luz

só aparece no fim.

Agora consigo vê-la na minha mente. Lauren é magra com grandes

olhos castanhos. Tudo o que ela disse sobre o corpo dela é verdade.

Assassina, digo-lhe.

Algures, Ted está a ofegar. Há um som mesmo mau na respiração

dele, um assobio vermelho e húmido. Ele ergue a nossa mão, a que

estava a apertar a ferida na barriga. Todos observamos o nosso sangue a

escorrer pela palma da nossa mão, quente e horrivelmente fluido. O

sangue pinga para o solo e a terra bebe-o. O corpo de Ted, o nosso

corpo, está a morrer.

Oh, Ted, digo eu, tentando alcançá-lo. Desculpa, desculpa. Por

favor, perdoa-me, não te queria magoar…


– Não o podes magoar – diz Lauren, num sussurro que também é um

grito. – Nós ficamos com a dor dele. Tu ficas com a dor do coração dele,

eu fico com a dor do corpo.

Cala-te, digo eu. Já falaste que chegue. Ted, chamo. Ted? Como

posso resolver isto?

Ele está a sangrar da boca, um fino fio vermelho. As palavras soam

arrastadas, mas conheço-o bem o suficiente para o entender.

– Escuta-os – diz ele.

A toda a volta, na madrugada, os pássaros cantam nas árvores.

O cordão é branco e macio, brilhante. Liga-nos aos três, coração com

coração. Então a luz branca fica mais forte, espalha-se pela terra, e vejo

por fim que, na verdade, o cordão passa, não só por nós, mas também

pelas árvores, pelos pássaros, pela erva e por tudo o que existe em todo o

mundo. Algures, um cão grande ladra.

O Sol nasceu. O ar fica quente e dourado. O SENHOR está aqui, diante

de mim, uma chama ardente. Ele tem quatro patas delicadas. A voz Dele

é suave. Gata, diz Ele. Devias ter protegida. Não consigo olhar o

SENHOR na cara. Sei que hoje o rosto Dele será o meu.


Ted

Vagamente, acima de mim, alguém está a pressionar as mãos sobre o

buraco na minha barriga. A respiração quente de alguém está junto à

minha orelha. Carrega com mais e mais força, mas o sangue continua a

esvair-se, escorregadio. Ele pragueja. Está a tentar trazer-me de volta da

escuridão, para a manhã ensolarada.

Podíamos ter-lhe dito que não valia a pena. Estamos a morrer, a

nossa carne está a arrefecer como barro. Sentimo-lo a acontecer, cada

um de nós. O nosso sangue sai em borbotões, vertendo todas as nossas

cores e pensamentos pelo solo da floresta; cada respiração é mais difícil,

mais lenta, deixa-nos mais frios. O bater seguro do nosso coração está

perturbado; agora bate como um gatinho a brincar ou um mau tambor:

cada vez mais fraco, cada vez mais irregular.

Não há tempo para despedidas, apenas há a imobilidade fria que

avança pelos nossos dedos e pelas nossas mãos, pelos nossos pés e

tornozelos. Arrastando-se pelas nossas pernas, centímetro a centímetro.

Os pequeninos estão a chorar, no fundo do poço. Nunca fizeram mal a

ninguém, os pequeninos. Nunca tiveram oportunidade. O mundo

brilhante afunda-se na escuridão.

O Sol jaz em longas tiras pelo solo ensanguentado da floresta. Nas

redondezas, ao longe, um cão solta um ganido.

E agora, nada.
Olivia

Estou de novo dentro da casa, não sei como e não importa. Não

tenho tempo para sentir alívio por ter de volta as minhas lindas orelhas e

a minha cauda. Aqui não é seguro, de todo.

As paredes estão a ceder como pulmões a colapsar. Caem pedaços de

estuque do teto. As janelas explodem para dentro num temporal de

farpas geladas. Corro a esconder-me debaixo do sofá, mas o sofá

desapareceu; no lugar dele, está uma grande boca húmida cheia de

dentes partidos. Pelos furos de vigia caem relâmpagos. Erguem-se mãos

negras do chão. O cordão aperta-se à volta do meu pescoço. Agora está

transparente, da cor da morte. Não sinto nenhum odor e talvez seja isso

que me faz perceber que vou morrer.

Penso em peixe e em como nunca vou saber a que sabe, e penso na

minha linda gata riscada e em como nunca a voltarei a ver. Então, penso

em Ted e no que lhe fiz e agora estou mesmo a chorar. Eu sei, como sei

onde está a minha cauda, que os outros já desapareceram. Pela primeira

vez, estou sozinha. E não tarda muito, também vou partir.

Agora consigo senti-lo todo, o corpo. O coração, os ossos, as nuvens

delicadas de terminações nervosas, as unhas. Que coisa maravilhosa é

uma unha. Vejo que não importa que forma o corpo tem, se não tem

pelo ou uma cauda. Continua a pertencer-nos.

Está na hora de deixar de ser uma gatinha, digo para mim mesma.

Vamos, gata. Se eu ajudar o corpo, talvez os outros voltem.

Mas quando olho, uma massa fervilhante de lâminas reluzentes

ocupa o sítio onde devia estar a porta. As lâminas rodopiam e cortam o

ar. Não dá para sair daqui.

Então vou tentar subir. Ao cimo das escadas, o patamar, e o quarto, e

o teto desapareceram. A casa está aberta ao céu furioso, à tempestade


que troveja e rodopia acima. É feita de alcatrão e relâmpagos. Ouço

bruaás com mandíbulas enormes, a ladrar. Eles correm e tropeçam pelas

nuvens, olhos como pontos de fogo.

O meu pelo está todo em pé, o coração salta-me no peito. Cada fibra

do meu ser quer dar meia-volta, fugir e procurar um esconderijo calmo

para esperar pela morte, mas, se fizer isso, acabou tudo.

Tem coragem, gata. Ponho as patas no primeiro degrau e depois no

segundo. Talvez isto corra bem!

A escada desmorona com estrondo. Os escombros caem à minha

volta e o ar fica espesso com pó e os fios de alcatrão preto e pegajoso

queimam-me e cegam-me. Quando a poeira assenta, só consigo ver

entulho, tijolos. As paredes ruíram e bloquearam as escadas. Tudo está

calmo. Estou aprisionada.

Não, sussurro, batendo com a cauda. Não, não, não! Mas estou

presa, a casa derruída é o meu túmulo. Estou acabada, estamos todos

acabados.

Chamo o SENHOR. Ele não responde.

Algo se move algures e fico em sobressalto, com o pelo eriçado. No

canto mais escuro da sala de estar, o Noturno rosna. Levanta a cabeça.

Tem as orelhas feridas e cortes profundos nos flancos, como se feitos

por uma faca. A morrer, sim. Mas não morto. Ainda não.

Penso furiosamente. Não posso subir nem sair, mas talvez ainda

tenha um sítio para onde ir, afinal.

Dói, diz ele, num rosnar profundo.

Eu sei, digo eu. Desculpa. Mas preciso da tua ajuda. Precisamos

todos. Consegues levar-me para baixo, para o teu sítio?

Ele bufa, um som tão profundo como um gêiser. Não o censuro. Ele

tentou avisar-me sobre Lauren.

Por favor, digo eu. Agora, mais do que nunca… é a tua hora.
O Noturno avança, agora sem elegância, a coxear e dolorosamente

lento. Ergue-se acima de mim e ouço a sua respiração a arrastar-se para

dentro e para fora. Abre a boca enorme e penso, É agora, ele vai dar

cabo de mim. Parte de mim está contente. Mas, em vez disso, ele fecha a

boca sobre o meu cachaço e pega em mim, gentil como uma mamã-gato.

É a minha hora, diz ele, e a casa desaparece. Caímos para baixo,

para baixo através da escuridão. Algo me acerta um golpe terrível e

agora estamos num sítio completamente diferente.

O sítio do Noturno é pior do que podia ter imaginado. Não há nada a

não ser trevas antigas, muito antigas. Grandes planícies e vales de

escuridão vazia. Percebo que aqui não existem distâncias… tudo se

estende até ao infinito. Este mundo não é redondo e nunca voltamos ao

ponto de partida.

Aqui, diz ele, pousando-me.

Eu arquejo, os meus pulmões quase esmagados pela solidão. Ou

talvez sejam as últimas réstias de vida a fugirem de nós.

Não, digo eu. Temos de ir ainda mais fundo.

Ele não diz nada, mas sinto o medo dele. Existem sítios profundos

onde nem o Noturno pode ir.

Vamos, digo.

Ele rosna e morde-me, com força, na garganta. O sangue jorra e

congela num esguicho pétreo no ar frio e morto. Os corpos não

funcionam da mesma maneira aqui em baixo.

Eu rosno e mordo-o também, os meus dentes pequenos furam-lhe a

bochecha. Ele dá um salto de surpresa. Podemos morrer se descermos

mais, diz ele.

Temos de descer mais, digo eu. Ou vamos morrer de certeza.


Ele abana a cabeça, agarra-me pelo cachaço e afundamo-nos pela

terra escura.

É como afundar nas profundezas de um oceano sombrio. A pressão

torna-se insuportável. O Noturno leva-nos para mais fundo no chão

escuro, arfando de esforço ao meu lado. Estamos tão apertados um

contra o outro que os nossos corpos e os nossos ossos começam a partir

e os nossos olhos explodem. O nosso sangue congela e irrompe das

nossas veias. Somos esmagados, os corpos mutilados com farpas afiadas

de osso. O peso de tudo oblitera-nos. Somos esmagados até não sermos

mais do que partículas, pó. Já não há mais Olivia, já não há mais

Noturno. Por favor, penso eu, tem de acabar agora. A agonia não pode

continuar. Temos de estar mortos. Já não o consigo sentir. Mas continuo

aqui, não sei como.

Um vislumbre de luz adiante, como a primeira estrela da noite.

Arrastamo-nos para a luz, a gemer e a arfar. Algures, o Noturno ergue a

cabeça e ruge. Para meu espanto, sinto o rugido a vibrar no meu peito.

Sou poderosa e esbelta, os meus flancos fortes movem-se. Onde

estás?, pergunto. Onde estou?

Em lado nenhum, diz ele, e aqui.

Ainda és o Noturno?

Não.

Também já não sou a Olivia, digo com certeza.

Rujo e corro para a luz. Rasgo as trevas com as minhas patas fortes,

arranho o ponto de luz até ele se romper e ficar maior. Luto com toda a

minha força até irromper da escuridão, para a luz do outro lado. Não me

consigo mexer, estou presa no cadáver frio e ensanguentado no solo da

floresta, com a mão do homem de cabelo vermelho a pressionar com

força a minha ferida. O sangue abrandou, quase não escorre.


Respiro fundo e estendo-me para todo o corpo, correndo pela carne e

pelas veias e pelos ossos frios. Volta. Acorda.

O nosso coração bate tenuemente.

A primeira batida é como um trovão, ecoando pelo corpo silencioso.

Depois outra, e mais outra, e o rugido recomeça, o sangue a correr pelas

artérias. Arquejamos, inalamos com um longo e fundo suspiro. O corpo

ilumina-se, célula a célula, reanimado. Começa a cantar com vida.


Dee

Dee corre pela madrugada. A mordidela no braço é um buraco

irregular, as margens castanhas com terra. Ela sabe que precisa de um

hospital. A bomba parece ter tirado o veneno, mas a mordidela pode

estar infetada. Tenta não pensar nisso. Tudo o que importa é encontrar

Lulu.

Tropeça pela floresta, vendo rostos nos padrões de luz e sombra.

Grita o nome da irmã. Às vezes, a sua voz soa alto, às vezes é um

sussurro seco. Adiante, ouve um som fraco. Pode ser um melro ou o

lamento de uma criança. Dee apressa-se, mais depressa. Lulu deve estar

assustada.

Assassina. A palavra soa como um sino, a retinir na sua cabeça. É

isso que ela é? Dee sabe que não pode regressar a Needless Street.

Deixou um rasto de vestígios ensanguentados pela floresta, por cima do

corpo dele. Se uma coisa vier a lume, outras se seguirão. São assim, os

segredos, voam em bandos como pássaros.

Continua a correr pela floresta. Torna-se difícil ver o caminho

adiante; o passado está por todo o lado, sobrepondo-se ao mundo

iluminado pela aurora. Vêm imagens, e vozes. Ela vê um rabo de cavalo

a voar entre duas árvores, ouve o nome dela sussurrado numa voz

assustada. O rosto da detetive cansada paira diante dela, da última vez

que falaram cara a cara.

– Tens a certeza de que me disseste tudo sobre aquele dia, Delilah?

Eras só uma criança, sabes? As pessoas iam entender.

Os olhos de Karen eram bondosos. Dee quase lhe contou ali mesmo

o que fizera. Nunca estivera tão perto de confessar.

Foi o chinelo branco de Lulu que deixou Karen desconfiada, claro. A

mulher da casa de banho tinha a certeza de que não pegara nele por
engano e o guardara no saco. Tinha a certeza de que alguém o pusera lá.

Dee estava furiosa consigo mesma por causa disso. Quem diria que a

mulher seria tão observadora?

– Não podes provar nada – acusou Dee.

Os olhos cansados de Karen caíram sobre ela, as rugas mais

vincadas nos cantos, como terra vulcânica.

– Vai-te roer por dentro até não sobrar nada – disse ela por fim. –

Acredita em mim, é melhor contares tudo.

Foi aí que a relação azedou, é claro.

Dee para e vomita. Põe-se de cócoras e a mente dela evoca cores e

memórias. A respiração vem-lhe rápida de mais. Tenta invocar a

estática, para abafar os pensamentos que tentam entrar, mas não adianta.

O ar cheira a água fria, a protetor solar sobre pele quente.

Dee caminha pela margem do lago, para longe da família, navegando

pelo xadrez labiríntico de toalhas de praia.

– Olá – diz o rapaz de cabelo loiro.

Vê vestígios de protetor solar na pele pálida dele. Quando ele sorri,

os dois dentes da frente estão ligeiramente sobrepostos. Dá-lhe um ar

selvagem e intrigante.

– Olá – diz Dee.

Ele deve ter pelo menos uns 18 anos, deve andar na universidade. Ela

olha para ele a olhar para ela e percebe, pela primeira vez, que ele a vê

como predadora e como presa. É complicado e excitante. Por isso,

quando Trevor estende a mão para a cumprimentar, ela ri-se. Vê um

vislumbre de raiva, de mágoa. A pele pálida dele cora.

– Estás aqui com a tua família?

Isto é retaliação. O que ele quer dizer é: És uma bebé que vem para o

lago com a família.


Dee encolhe os ombros.

– Consegui livrar-me deles – diz ela. – Exceto desta.

Ele ri-se, como quem acha piada.

– Onde estão os teus pais?

– Ali ao fundo, ao pé do nadador-salvador – diz ela, a apontar. –

Estavam a dormir e eu estava aborrecida.

– É a tua irmãzinha?

– Ela correu atrás de mim – diz Dee. – Não a consegui impedir.

Lulu balança-se, aborrecida, pendurada na mão de Dee. Diz

qualquer coisa entre dentes. Pisca os olhos para o sol, com uma

expressão séria e distante. Numa mão suada, agarra o chapéu de palha

com uma fita cor-de-rosa.

– Que idade tem?

– Seis anos – responde Dee. – Põe o chapéu ou apanhas um escaldão

– diz para Lulu.

– Não.

Lulu adora o seu chapéu, mas é um objeto para ser acarinhado, não

usado.

Dee sente uma pontada de aversão, leve como uma pena. Porque tem

ela uma família tão irritante? Tira o chapéu da mão da irmã e enfia-lho

na cabeça com força. Lulu faz uma careta amuada.

Trevor baixa-se para falar com Lulu.

– Queres vir comprar um gelado?

Lulu assente umas 20 ou 30 vezes.

Dee pensa na proposta e encolhe os ombros. Põem-se os três na fila.

Trevor e Dee não compram gelado. Lulu pede um gelado de chocolate;

Dee sabe que vai espalhar-se pela cara e pelas roupas dela e depois a

mãe vai ralhar com as duas. Mas, naquele momento, descobre que não

quer saber. A mão de Trevor paira a um milímetro da dela, depois toca-


lhe, dedo com dedo. Algo vem aí, paira no ar como uma neblina, como

uma trovoada.

Dee não protesta quando Trevor as leva para longe da banca de

gelados, para longe da multidão colorida com cheiro a hambúrgueres, na

direção das árvores. Dee pensa no que diriam os pais, mas a rebeldia

vence. Por uma vez na vida, pensa ela, quero fazer algo só por mim.

À sombra estriada dos pinheiros, movem-se os três como tigres.

Depressa a praia movimentada fica para trás, perde-se na tapeçaria de

agulhas secas. Em menos de nada, só se ouve o som da água escura a

beijar as pedras. Eles seguem a margem pedregosa, trepando rochas,

ramos tombados, maciços de espinheiros. Até Lulu está calada, excitada,

possuída por um sentimento de transgressão. Os seus chinelos de praia

são demasiado finos para o terreno irregular. Mas ela não se queixa

quando os pés e os tornozelos se enchem de picadas e arranhões. O

rapaz de cabelo loiro levanta Lulu quando ela não consegue passar.

Dee fica impaciente. Apressa o passo, puxando-o pela mão. Chegam

a um sítio onde as árvores se afastam um pouco, onde as agulhas de

pinheiro parecem macias e onde não há tantos espinheiros. Uma rocha

em forma de canoa entra pela água. Dee e o rapaz olham um para o

outro. Chegou a hora do que vem aí.

– Quero ir para casa – diz Lulu, esfregando um olho com uma mão

fechada.

Tem a cara rosada, escaldada pelo sol. Algures à sombra dos

pinheiros, perdeu o chapéu.

– Não podes – diz Dee para a irmã. – Vieste atrás de mim, agora tens

de esperar. E se contares alguma coisa, digo que estás a mentir. Agora

vai brincar junto do lago.

Lulu morde o lábio e parece que vai chorar. Mas não chora. Sabe que

Dee ainda está zangada com ela e faz o que lhe dizem.
Dee vira-se para o rapaz. Como é que ele se chama? O coração salta-

lhe no peito. Sabe que está a arriscar tudo. Lulu é uma queixinhas. Não

importa, diz a si mesma. Isto é real, está a acontecer. Há de arranjar

uma maneira de silenciar a irmã.

O rapaz aproxima-se dela. Agora já não tem um rosto, mas uma série

de traços, gigantes e individuais. Os lábios são húmidos e trémulos. Dee

pensa É isto um linguado? Há momentos, vislumbres de excitação que

dão a impressão de que a coisa vai ficar boa, mas depois perdem ambos

o momento e tudo continua, bocas encostadas uma à outra, molhadas e

soltas. Ele sabe vagamente a cachorro-quente. Dee pensa que talvez

aquilo não fique bom até fazerem o resto e põe a mão dele dentro da

camisola dela. O fato de banho dela ainda está húmido e a mão dele é

quente. É agradável, ela considera isso um sucesso. A seguir, a mão dele

consegue entrar no espaço apertado dos calções de ganga dela. É

demasiado apertado, a mão dele fica presa, por isso ela desaperta-os e

deixa-os cair. Ficam os dois parados por um momento, conscientes de

estarem a avançar depressa para território desconhecido. Ela ri-se

porque é mesmo estranho estar de fato de banho numa floresta com um

rapaz a olhar para ela.

Dee ouve um som. É como uma colher a bater num ovo, só uma vez.

Puxa os calções para cima.

– Lulu? – chama.

Não obtém resposta. Dee corre para a margem. O rapaz segue-a, a

tropeçar nas calças de ganga.

Lulu está deitada meio dentro e meio fora das ondas suaves, com

água até à cintura, como se estivesse a tentar mergulhar para terra. Há

sangue a tingir que se espalha na água. Dee não dá conta de saltar, mas

está dentro do lago, com água pela cintura, ao lado da forma pequena da

irmã. O som que fez foi fraco, mas o crânio dela deve ter batido na rocha
com muita força. Está amolgado, como se lhe tivessem dado um murro.

Dee tenta não olhar para essa parte.

Aperta os lábios contra os lábios de Lulu e respira, numa impressão

meio esquecida das aulas de primeiros socorros na escola. Mas acha que

é tarde de mais. A pele de Lulu está a mudar diante dos olhos de Dee. O

rosto fica pálido e ceroso. Escorrem-lhe fios de sangue do cabelo.

Parecem pássaros vermelhos a voar, da maneira como as crianças

desenham pássaros, linhas contra o céu branco.

O rapaz de cabelo loiro cujo nome Dee ainda não se lembra começa

a respirar depressa, como uma mulher em trabalho de parto. Foge delas,

tropeçando para longe pelo meio da floresta.

Dee toca na mão de Lulu, onde jaz na areia grossa. Na mão de Lulu

está uma pedra verde, atravessada por veios brancos. É oval e polida pela

água e pelo tempo. Pedra bonita. Dee solta um gemido. Fios de sangue

fresco escorrem da cabeça de Lulu para a água. Formam nuvens

carmesim.

As pernas e os braços de Dee estão escorregadios com a água do

lago, com sangue. Volta a debruçar-se e respira para dentro da boca de

Lulu. Um som vem do peito de Lulu. É como o som de um ramo a

estalar.

Debaixo do corpo de Lulu sai uma coisa a contorcer-se, uma linha de

escuridão. A cobra enrosca-se em Lulu e roça na coxa de Dee. Parece

uma víbora, mas ali não há víboras. É seguida por sombras pequenas.

Crias jovens. Agora Dee vê os furos nos tornozelos inchados de Lulu.

Foi por isso que ela caiu.

Dee é uma pedra dentro de água. Sente os corpos a roçarem

levemente nas suas coxas. As cobras parecem considerá-la parte do lago

ou da terra. Então, sai a correr do lago, levantando grandes ondas de

água. Escala freneticamente a rocha quente. Uma cobra muito pequena


está enrolada a 15 centímetros da mão dela. A cobra abre uma boca

branca e depois desliza para longe, para dentro de uma fissura na rocha.

Dee grita e corre às cegas, deixando Lulu onde jaz, meio dentro e meio

fora da água.

Dee não consegue ver; há algo diante dos olhos dela, como uma

nuvem de moscas ou um furacão. Tenta piscar os olhos, mas não adianta

e tem de parar. Continuam a escorrer-lhe fios frios de água

ensanguentada pelas pernas e está ofegante. Acha que pode desmaiar e

para por um momento. Encosta-se a um tronco de árvore, prateado e há

muito morto. Só consegue ver cobras aos seus pés. Para. Aqui não há

cobras. Tem de pensar.

Uma voz fala baixinho na mente dela. Pelo menos, a Lulu já não

pode fazer queixinhas à Mamã e ao Papá. Dee chora. Como pode

pensar algo tão horrível?

Os mosquitos pousam vorazmente no sangue na pele dela. Tenta

limpá-lo, mas está a tremer e o sangue manchou-lhe os calções. Em vez

disso, ata a camisola à cintura para tapar o melhor que pode. Sangue,

sangue. Os pensamentos de Dee estão envoltos em nevoeiro. Fios de

sangue fresco. O pensamento seguinte brilha como facas a cortarem-na

depressa e com força. Lulu ainda estava a sangrar. Dee viu televisão

suficiente para saber o que isso quer dizer. Não está morta.

Dá meia-volta e corre depressa, de volta para Lulu. Os pulmões dela

estão a rebentar com o esforço e o ar escaldante. Como pôde deixá-la

assim sozinha? Mas Dee vai corrigir isso, promete. Vai ficar ao lado de

Lulu e gritar até vir alguém. Não é tarde de mais. Os acontecimentos

ainda não são definitivos, mas tem de ser rápida.

Dee sente-se como se tivesse passado toda a vida a correr e trepar e

tropeçar na direção da irmã. Por fim, a vegetação fica menos densa e


avista a rocha em forma de canoa. Dee corre ainda mais depressa, dando

saltos de lebre por cima dos escolhos da margem. Cai mais do que uma

vez, esfolando mãos e joelhos e cotovelos. Nem repara, levanta-se e

continua a correr. Quando chega junto da rocha, para por um momento,

demasiado assustada para trepar a rocha.

– Vamos lá, Dee Dee – murmura. – Sua bebé.

Trepa para a rocha em forma de canoa.

À sombra da rocha, onde Lulu devia estar, não há nada. A água bate

suavemente no granito. Os mosquitos voam acima da água, sinais de

pontuação cinzentos. Nada de Lulu, nem viva nem morta.

Talvez não seja o sítio certo, diz Dee para si mesma. Mas é. Na

rocha, consegue ver um fio fino de sangue seco. Na água boia um

chinelo de praia branco. Então, Dee vê uma pegada na margem

lamacenta. O calcanhar já está a encher-se de água do lago. A pegada é

grande, demasiado grande para ser de Lulu ou de Dee. Podia ser do

rapaz, talvez. Mas Dee sabe que não é.

Ali perto, chega-lhe um som familiar, banal… Dee demora um

momento a identificá-lo naquele pesadelo. Um motor arranca e fica em

ponto-morto. A porta de um carro fecha-se.

Dee atravessa a correr a clareira onde, há o que parece uma vida

inteira, esteve aos beijos com um rapaz. Atravessa uns arbustos e cai

para uma estrada de terra. A poeira rodopia e dança no ar, como se

tivesse sido levantada recentemente por pneus. Dee julga avistar o para-

choques de um carro a desaparecer pela estrada. O rugido nos ouvidos

de Dee quase abafa o barulho do motor, os seus gritos roucos para o

condutor parar, para parar e lhe devolver a sua irmã. Mas o carro

desapareceu. Aos pés de Dee, na poeira, jaz uma pedra verde,

perfeitamente oval com veios brancos.


A pouca distância através dos arbustos, o Sol brilha em filas de metal

e vidro. Dee quer desatar à gargalhada. Pensavam que estavam longe de

tudo, mas estavam junto do parque de estacionamento.

Na casa de banho, as mulheres deitam-lhe olhares reprovadores. Ela

encosta-se à parede de azulejo branco. No meio do rugido dos secadores

de mãos, tenta perceber o que aconteceu. É impossível. Vomita um

pouco para um lavatório e recebe ainda mais olhares reprovadores da fila

de mulheres. Tenho de dizer a alguém, pensa ela, e o pensamento é frio e

atordoante.

Imagina a expressão no rosto da mãe quando contar aos pais. Tenta

imaginar o tom de voz do pai enquanto ele tenta perdoá-la.

A voz fininha diz: Se contares, não vai haver escola de bailado.

Mesmo com todo o seu receio por Lulu, Dee sente uma raiva

incandescente a subir. Eles sempre gostaram mais de Lulu, desde que ela

nasceu. Dee sempre o soube. É tão injusto. Ela não fez nada de errado,

nada. Isto é a vida real, não um daqueles livros antigos em que uma

rapariga dá uns beijos com um rapaz e então alguém tem de morrer para

expiar o pecado. Ela sabe, bem lá no fundo, que beijar o rapaz não é foi

que ela fez de errado.

Afinal, o que pode ela dizer-lhes? Dee não tem nenhuma informação

útil. Nem sequer viu bem o carro no meio da poeira. Havia mesmo um

carro? Agora já não tem a certeza. Talvez o corpo de Lulu tenha flutuado

para o meio do lago. Ou talvez tenha sido levado por um animal. Como

um urso. Talvez Lulu tenha acordado e regressado para junto da mãe e

do pai. Sim, pensa Dee, sentindo uma onda de alívio. É isso. Dee vai

regressar para junto da família e Lulu vai estar sentada na toalha a

brincar com pedras. Vai cumprimentar Dee com um ar indignado,

porque Dee a deixou sozinha para fazer coisas chatas de meninas


grandes. Mas Dee vai fazer-lhe cócegas e Lulu vai acabar por lhe

perdoar. Por isso, não vale a pena contar.

Um novo fio de água ensanguentada escorre dos calções de Dee e

pela perna dela.

– Alguém tem um penso higiénico?

Dee tenta soar irritada e não assustada, como realmente está. Despe

os calções na casa de banho, diante das mulheres todas, e lava-os no

lavatório. Ela faz estardalhaço, para mais tarde se lembrarem dela. Dee

estava aqui e em mais lado nenhum. Não se interroga para que serve

isso, se Lulu está à espera junto dos pais. A palavra álibi passa-lhe pela

mente. Ela bane-a com firmeza.

O período, diz a si mesma vezes e vezes sem conta. É aqui que o

sangue entra. É como ensaiar uma dança… como pôr uma história em

passos. Será que consegue fazer-se acreditar? Constrói com cuidado na

sua mente um dia em que o rapaz de cabelo loiro a deixou plantada na

banca de gelados, em que Lulu nunca a seguiu para a floresta.

Uma vez tomada a decisão, tudo se torna simples. Uma mulher de ar

cansado lava as mãos no lavatório ao lado, com três crianças aos saltos a

puxarem-lhe as mangas. Aos pés da mulher está um saco de palha, do

qual transbordam lenços de papel, barras de cereais, baldes, pás,

brinquedos e protetor solar. Dee tira do bolso o chinelo branco e põe-no

no saco da mulher, onde desaparece no meio do caos. Vai regressar para

casa com a bagagem da mulher, que vai presumir que pegou nele por

engano junto com as coisas dos filhos. Nunca será ligado ao caso de

Lulu. Dee sabe que, se o chinelo for encontrado junto da rocha em forma

de canoa, a polícia vai fazer cenas de polícia, como análises forenses, e

vai descobrir que Dee esteve lá.

Ao regressar para junto dos pais, atira a pedra verde para os arbustos

densos que orlam a praia.


Dee limpa a boca com as costas da mão e levanta-se. Agora parece

estar numa parte diferente da floresta. É mais escura, mais densa. Há

cardos e heras a dar-lhe pelo joelho. Tem de se lembrar de continuar a

marcar as árvores. Um feto gigante roça-lhe na cara. Ela afasta-o,

impaciente. Porque será que tudo naquela parte do mundo tem de ser

selvagem e assustador?

Consegue ouvir passos adiante, assustados, irregulares. Uma criança

a correr.

– Lulu – chama. – Para!

Lulu ri-se. Dee sorri. É bom que ela esteja a divertir-se. Dee não se

importa de brincar à apanhada por mais um pouco.

Mais tarde, quando Dee teve tempo para pensar, o horror do que não

contou assenta nela como uma doença. Agora é tarde de mais para

contar, diz a voz pequena. Mandavam-te para a prisão. Depois de a

mãe partir e o pai morrer, não havia razão para Dee confessar, pois já

não havia ninguém para a perdoar.

Dee percebeu o que tinha de fazer. Tinha de encontrar a pessoa que

levara Lulu. Se conseguisse fazer isso, tinha uma hipótese de voltar a ser

uma boa pessoa. Era uma réstia de esperança. Mas Karen, a cansada

continuava a ilibar pessoas do desaparecimento de Lulu. Com o passar

dos anos, as possibilidades, a lista de suspeitos, não paravam de

diminuir. Dee ficava cada vez mais desesperada.

Quase desistira, até descobrir Ted.

Karen dissera que Ted tinha um álibi. Dee não acreditou.

Desconfiava que Karen estava a tentar despistá-la, para a impedir de

repetir o incidente de Oregon. Dee sabia que tinha de ter cuidado. Ia

vigiá-lo. Ia obter provas antes de avançar. Contudo, precipitou-se. Bem

que pode admitir isso.


Foi o aniversário que a fez perder a calma. Dia 10 de julho, todos os

anos, o dia em que Lulu desapareceu; esse dia é sempre um buraco

negro para Dee. Precisa de todas as suas forças para não ser sugada para

as trevas. Às vezes, não tem forças para resistir. Foi o que aconteceu em

Oregon. A dor tinha Dee nas suas garras e alguém tinha de pagar.

Andava a vigiar Ted há alguns dias antes de avançar com o seu

plano. Via os olhos dele no buraco no contraplacado, todas as manhãs ao

nascer do sol, observando os pássaros a pousar. Viu o cuidado que ele

tinha com os comedouros, com a água. Dee não sabe muita coisa, mas

sabe o aspeto do amor. Assim, soube o que fazer.

Precisava que Ted sentisse uma amostra da sua dor cruel. Foi por

isso que ela matou os pássaros. Não gostou de o fazer. Vomitou ao

preparar as armadilhas, mas não podia parar. Estava sempre a pensar,

Faz hoje 11 anos, 11 anos que a Lulu nunca teve.

Mais tarde, viu Ted a chorar por causa dos pássaros. As costas

dobradas, as mãos a taparem o rosto. Sentiu a mágoa nas profundezas do

seu ser. Era horrível o que fora forçada a fazer.

Agora, Dee tropeça atrás de Lulu. Agarra os ramos finos e verdes,

puxando-se para diante.

– Para – chama ela. – Anda lá, Lulu. Não precisas de ter medo. Sou

eu, a Dee Dee.

O céu torna-se vermelho e o Sol torna-se uma bola de fogo, a

afundar-se no horizonte. Dee respira depressa e agarra o ramo com os

dedos inchados. Pisca os olhos para afastar da visão o véu negro.

Vamos, Dee Dee.

Vomita, mas não tem tempo para parar. Em vez disso, começa a

correr de novo, mais depressa dessa vez, balançando-se elegantemente

pelo meio das árvores, correndo tão suavemente sobre o solo irregular,
sobre os ramos tombados, que os seus pés nem tocam na terra. Voa

rápida e veloz, atravessando o ar como uma flecha. Só consegue ouvir o

vento e a tapeçaria de sons da floresta: cigarras, rolas, folhas. Como é

que não sabia que podia voar?, pensou. Vou ensinar à Lulu e vamos

voar por todo o lado, sem nunca pousar. Vamos ficar juntas e não me

vão apanhar. Vou ter tempo para lhe explicar porque fiz o que fiz.

Dee vê Lulu no cimo da subida seguinte, recortada contra o sol

poente. O vulto pequeno, o chapéu de palha. Dee consegue ver os

chinelos brancos nos pés dela. Dispara pelo ar atrás da irmã e pousa

levemente na erva da encosta.

Lulu vira-se e Dee vê que ela não tem cara. Os pássaros vermelhos

explodem da cabeça dela como uma nuvem. Dee grita e tapa os olhos

com uma mão.

Quando finalmente se atreve a olhar, está sozinha na floresta. A noite

voltou a cair. Dee olha em redor, aterrorizada. Onde está? Durante

quanto tempo andou? Cai de joelhos no solo. Para que foi tudo aquilo?

Onde está Lulu? Onde estão as respostas que merecia? Dee grita o seu

horror e a sua mágoa. Mas os seus gritos não soam mais alto do que

sussurros no meio do tamborilar da chuva. A cara dela está fria. Está

deitada no solo da floresta, molhada pela chuva. Tem um braço inchado,

escuro e pesado como uma pedra. Estou a morrer, pensa. Só queria que

houvesse algum tipo de justiça no mundo.

Quando a visão começa a escurecer e o coração a abrandar, julga

sentir o mais leve dos toques na cabeça. Parece sentir o cheiro de

protetor solar, cabelo quente, açúcar. «Lulu», tenta dizer, «desculpa»,

mas o coração para de bater e Dee deixa de ser.

A coisa que outrora foi Dee jaz longe de qualquer trilho. A lata de

spray amarelo ainda está segura no que foi a mão dela, inchada e preta
por causa do veneno.

Vêm os pássaros e as raposas, os coiotes, os ursos e os ratos. O que

foi Dee alimenta a terra. Os ossos espalhados afundam-se no húmus

rico. Nenhum fantasma caminha sob os ramos das árvores. O que está

feito, feito está.


Ted

Consigo perceber que não estou morto porque está um fio de

esparguete no chão de tijoleira verde. O que acontece depois da morte

pode ser bom ou mau, mas não vai ter esparguete virado no chão. A

cama branca de hospital é dura, as paredes têm um ar gasto e tudo cheira

a almoço. O homem está a olhar para mim. A luz brilha no cabelo da cor

do sumo de laranja.

– Olá – diz ele.

– Onde está a mulher? – pergunto. – A vizinha… ela estava a dizer o

nome da menina. Estava doente.

O braço dela parecia ter uma mordidela de cobra. Acho que usou o

kit do meu saco, mas toda a gente sabe que esses kits não fazem nada.

Não sei porque o trago. As memórias são muito confusas, mas havia

algo errado com a vizinha… por dentro e por fora.

– Estavas sozinho quando te encontrei.

Olha para mim e eu olho para ele. O que podemos dizer à pessoa que

nos salvou a vida?

– Como é que me encontraste?

– Alguém andava a pintar as árvores novas com tinta fluorescente.

Sou guarda-florestal em King County, não gosto disso. É tóxico. Segui o

trilho, para lhes dizer para pararem. O cão sentiu o cheiro a sangue. Eras

tu.

O médico entra e o homem do cabelo laranja sai para o corredor,

onde não consegue ouvir. O médico é novo e tem um ar cansado.

– Está com melhor aspeto. Deixe-me ver. – Ele faz tudo gentilmente.

– Quero perguntar-lhe sobre os comprimidos que trazia consigo.


– Oh – digo eu, sentindo a ansiedade a cobrir-me como um manto. –

Preciso deles. Mantêm-me calmo.

– Bom, não sei se é bem assim. Foi-lhe receitado por um médico?

– Sim. Ele dá-mos no consultório dele.

– Não sei onde esse médico os arranjou… mas eu parava de os

tomar, se fosse a si. Estes comprimidos deixaram de ser produzidos há

dez anos. Têm efeitos secundários intensos. Alucinações, perda de

memória. Algumas pessoas ganham peso rapidamente. Terei muito gosto

em recomendar-lhe alternativas.

– Oh – digo eu. – Não tenho dinheiro para isso.

Ele suspira e senta-se na cama, o que sei que um médico não deve

fazer. A Mamã ficaria muito incomodada. Mas ele parece exausto, por

isso não digo nada.

– É difícil. Os apoios e o financiamento não são suficientes. Mas vou

trazer-lhe os formulários. Pode ter direito a ajuda.

Ele hesita.

– Não é só a medicação que me preocupa. Tem áreas extensas de

queimaduras cicatrizadas nas costas, nos braços e nas pernas. Também

tem muitas cicatrizes de incisões suturadas. Isso normalmente indiciaria

muitas hospitalizações na infância. Mas os seus registos médicos não

apontam nesse sentido. Não indicam um único procedimento médico. –

Ele olha para mim. – Alguém devia ter detetado isso. Alguém devia ter

parado o que lhe estava a ser feito.

Nunca me tinha ocorrido que a Mamã pudesse ter sido parada. Fico

a pensar.

– Não creio que fosse possível – respondo.

Mas é simpático que ele se importe.

– Posso dar-lhe o nome de alguém para rever detalhadamente o seu

historial médico, alguém com quem pode falar sobre… o que aconteceu.
Nunca é tarde.

Ele soa pouco seguro e compreendo porquê. Às vezes, é tarde de

mais. Acho que finalmente entendo a diferença entre agora e antes.

– Talvez noutra altura – digo eu. – Agora estou um bocado farto de

terapia.

Ele parece querer dizer mais alguma coisa, mas não diz, e fico-lhe

tão agradecido por isso que começo a chorar.

O homem do cabelo laranja traz-me uma escova de dentes da loja do

hospital, calças de fato de treino, uma T-shirt e roupa interior. É um

bocado embaraçoso que ele me tenha comprado roupa interior, mas eu

preciso. Toda a minha roupa ficou suja de sangue.

Os médicos entram e dão-me cenas que fazem o mundo ficar

debaixo de água. Também mantêm calados os outros cá dentro. Pela

primeira vez em muitos anos, tenho silêncio. Mas sei que eles estão lá.

Movemo-nos suavemente para dentro e para fora do tempo.

Pela janela, consigo ver edifícios altos, a brilhar ao sol. Sinto como

estou longe da floresta. Peço para abrirem a janela, mas a enfermeira diz

que não, que a vaga de calor já passou. Esta parte do mundo está a voltar

ao seu estado verde e frio. Sinto-me de regresso a casa vindo da guerra.

As enfermeiras são simpáticas para mim, divertidas. Sou só mais um

tipo desastrado que escorregou e caiu sobre a faca de caça, numa

madrugada na floresta.

O homem do cabelo laranja ainda está aqui quando volto a acordar.

Devia ser esquisito ter um desconhecido no quarto. Mas não é. Ele é

uma pessoa calma.

– Como te sentes?

– Melhor – digo eu. E é verdade.


– Tenho de perguntar – diz ele. – Caíste mesmo por cima da faca, ou

não? Havia algo no teu olhar quando estava a tentar parar a hemorragia.

Parecia que não tinhas pena de estares… tu sabes… a morrer.

– É complicado.

– Sei bem que é complicado. – Ele tira o boné e esfrega a cabeça,

fazendo levantar o cabelo em espigões vermelhos. Parece exausto. –

Sabes o que se costuma dizer: quando salvas a vida de uma pessoa, és

responsável por ela.

Se lhe digo a verdade, acho que nunca mais o vejo. Mas estou tão

cansado de esconder quem sou. O meu cérebro, e o meu coração, e os

meus ossos estão exaustos. As regras da Mamã não me fizeram bem

nenhum. Que tenho a perder?

Lauren levanta-se, atenta.

– Queres começar? – pergunto-lhe.


Lauren

Foi assim que aconteceu, a história do ratinho… de como Ted

encontrou o sítio interior.

As noites eram as alturas mais especiais para o Pequeno Teddy.

Adorava dormir junto da forma quente vestida de branco da mãe. Mas

antes disso, ela tratava dos ferimentos dele. Talvez fosse uma vez por

mês, mas ultimamente Teddy magoava-se tanto e tantas vezes que a

Mamã tinha de passar a noite a suturar-lhe os cortes. Não pareciam

muito maus a Ted, alguns quase nem eram arranhões. E alguns cortes

eram invisíveis, ele não os conseguia ver nem sentir. A Mamã disse-lhe

que esses eram os ferimentos mais perigosos. Ela voltava a abri-los,

limpava-os e depois suturava-os.

Teddy sabia que a Mamã tinha de fazer aquilo, que a culpa era dele

por ser tão desastrado. Mas receava o momento em que ela ligava a luz

da mesinha de cabeceira e a punha naquele preciso ângulo. Então,

preparava o tabuleiro. Tudo brilhava, a tesoura e o bisturi. Bolas de

algodão, a garrafa que cheirava como a bebida do Papá. A Mamã calçava

luvas que pareciam uma pele branca e punha mãos à obra.

Acho que Ted não gostava muito de mim, principalmente no início.

Ted é um rapaz calmo e educado. Eu falo alto. Fico muita zangada. A

raiva invade-me o corpo em ondas, mas a minha função não é fazê-lo

gostar de mim. A minha função é protegê-lo da dor. Eu ficava com parte

da dor dele… vinha para a frente para partilharmos a dor. Não a

conseguia fazer desaparecer completamente. Às vezes, a dor nem sequer

era a pior parte… eram os sons. O barulho baixinho que a carne faz ao

separar-se. Ele não gostava nada disso.

Nessa noite, quando a ponta do bisturi lhe tocou nas costas, eu vim

para diante, como de costume, para partilhar a dor.


– Fica quieto, Theodore, por favor – disse a Mamã. – Estás a tornar

isto muito difícil.

Então ela prosseguiu com o seu ditado, premindo com um clique o

botão vermelho como uma tecla de piano.

– A terceira incisão – disse ela – é superficial, apenas na derme

externa.

A mão dela seguia as palavras.

Ted sabia que a Mamã tinha razão… isto só ficava pior se ele se

debatesse. Sabia que, se não se portasse bem, a Mamã o punha na velha

arca congeladora, no banho desinfetante de vinagre e água quente. Por

isso, Ted tentava deixar que aquilo acontecesse. Tentava ser um bom

rapaz. Mas a dor e os barulhos estavam a ficar tão maus que Ted temia

não ser capaz de se impedir de fazer um som… mesmo sabendo o que

aconteceria se o fizesse.

Estávamos deitados ao lado um do outro e eu sentia-lhe todos os

pensamentos e medos. Era difícil de suportar, com tudo o que estava a

acontecer ao corpo.

E então Ted fê-lo, soltou um pequeno ah agudo, quase nem foi um

som, a sério. Mas caiu no silêncio como uma pedra num charco.

Sustivemos ambos a respiração. A Mamã parou o que estava a fazer.

– Estás a tornar isto muito difícil para nós os dois – disse ela, e foi

preparar o banho de vinagre.

Quando nos pôs dentro da arca, Ted começou a chorar a sério. Ele

não era tão forte como eu.

A escuridão fechou-se sobre nós. A nossa pele estava envolta em

chamas. Ted estava a respirar depressa de mais e a tossir. Sabia que tinha

de o proteger. Ele não aguentava muito mais.

– Sai daqui, Ted – disse eu. – Sai.

– Para onde?
– Faz o que eu faço. Sai. Deixa de ser.

– Não consigo! – A voz dele soava mesmo estridente.

Empurrei-o.

– Sai daqui, seu bebé!

– Não consigo!

– Bom, talvez a Mamã vá longe de mais desta vez – disse eu –, talvez

nós morramos.

Essa solução simples nunca me tinha ocorrido.

– Ted! Tive uma ideia!

Mas Teddy tinha-se ido embora. Tinha encontrado a sua porta.


Ted

O ar pareceu mudar à minha volta. Estava diante da porta da frente

da nossa casa. Mas não havia rua, nem floresta, nem carvalho. Em vez

disso, tudo era branco como o interior de uma nuvem. Não era

assustador. Parecia seguro. Abri a porta e entrei para a casa, que estava

envolta numa calma quente e difusa. Tranquei a porta atrás de mim,

depressa. Tum, tum, tum. Sabia que a Mamã não conseguia entrar ali.

O ar encheu-se subitamente com o som de um ronronar. Uma cauda

macia roçou-me a perna. Olhei para baixo e sustive a respiração. Não

podia acreditar. Estava a olhar para um lindo par de olhos verdes, do

tamanho e da forma de duas azeitonas. Ela olhava para mim, as orelhas

delicadas, em alerta e curiosas. Baixei-me e estendi-lhe a mão, quase

esperando que ela se desvanecesse. O pelo era macio e preto como

carvão. Fiz-lhe festas, passei o dedo pela risca branca no peito.

– Olá, gatinha – disse eu, e ela ronronou. – Olá, Olivia.

Ela fez oito à volta das minhas pernas. Fui até à sala de estar, onde a

luz era de um amarelo quente e o sofá era macio, e pousei-a no meu

colo. A casa parecia quase exatamente como a casa lá em cima… era

apenas ligeiramente diferente. O tapete azul e frio que sempre detestei

aqui era laranja, uma linda cor intensa, como o sol a pôr-se numa

autoestrada no inverno.

Foi quando estava sentado a fazer festas a Olivia que o ouvi. A

respiração lenta e regular, os flancos a subir e a descer. Não tive medo.

Espreitei para as sombras e vi-o, deitado num grande monte, a fitar-me

com olhos como lanternas. Estendi-lhe a mão e o Noturno saiu a

caminhar da escuridão.

No fim, acabei por ter a minha gatinha. Na verdade, foi ainda melhor

do que tinha esperado, porque tive dois gatos.


E foi assim que encontrei o sítio interior. Consigo ir para lá quando

quero, mas é mais fácil se usar a arca congeladora como porta. Acho que

podia ter escolhido um castelo ou uma mansão para o meu sítio interior.

Mas como é que eu saberia onde estava tudo num castelo ou numa

mansão?

Agora sou o Ted Grande, mas o Pequeno Teddy ainda cá está.

Quando me ausento, é porque ele se chega à frente. Não usa a cara da

mesma maneira que os adultos usam as caras. Por isso, pode parecer

assustador. Mas ele nunca magoaria ninguém. Foi o Pequeno Teddy que

apanhou o lenço azul e tentou devolvê-lo à senhora a chorar dentro do

carro, no parque de estacionamento do bar. Ela gritou quando viu o

Pequeno Teddy. Ele correu atrás dela, mas ela afastou-se depressa de

carro pelo meio da chuva.


Lauren

Ted foi-se embora e toda a dor que tínhamos partilhado entre nós me

inundou de rajada. Não sabia que um corpo era capaz de suportar tanto.

Tentei segui-lo para baixo, para o interior, mas ele tinha trancado a porta

para não me deixar entrar. Interrogo-me se ele me ouvia a gritar, lá em

baixo. Acho que sim.

A Mamã pôs-nos de volta na nossa cama quando acabou. A gaze

dava comichão por cima dos pontos, mas sabia que não devia coçar. O

quarto estava cheio de sombras em movimento e os olhos cor-de-rosa do

ratinho cintilavam como se estivesse a vigiar-me da sua jaula.

Tenho medo, tentei dizer a Teddy. Ele não me respondeu. Estava

fechado num sítio bom cheio de caudas pretas e olhos verdes e pelos

macios. Tentei não chorar, mas não consegui.

Senti Ted a aproximar-se suavemente.

– Agora podes dormir, Lauren. Outra pessoa fica de vigia.

Ouvi os passos de patas grandes quando o Noturno subiu. Afundei-

me nas trevas macias.

Fui acordada de manhã pelo choro dele. Ted tinha encontrado os

ossos sangrentos do Bola-de-Neve dentro da gaiola. Tinha tanta pena

dele.

– Pobre Bola-de-Neve – sussurrava ele vezes sem conta. – Não é

justo.

Chorou mais por causa daquele ratinho do que pela nova linha férrea

de suturas pretas que corria pelas nossas costas. Acho que foi por ele

não estar lá quando as suturas foram feitas. Não as sentiu. Eu senti, cada

uma delas.
Ted sabia que o Noturno não tinha culpa. O Noturno apenas tinha

obedecido à sua natureza. Ted disse à Mamã que o ratinho tinha saído da

gaiola e um gato vadio o tinha apanhado. Era verdade, de certo modo. É

claro que a Mamã não acreditou. Ela levou Teddy para a floresta e disse-

lhe para esconder o que era. Ela pensava que ele tinha uma fome dentro

de si. Ted tinha medo de que ela encontrasse maneira de lhe tirar Olivia

e o Noturno. (E então ficaríamos só ele e eu. Ele não queria isso.) Por

isso, ele deixou que ela pensasse que era a velha doença, a que também

tinha o seu pai, o que mantinha os seus animais de estimação na cripta

por baixo da iliz.

Comecei a perceber do que Ted não era capaz… o que Ted não se

permitia saber. Sempre que o pensamento emergia, ele empurrava-o para

baixo com mais força, sempre com mais força. Ele voltava a aparecer,

como uma rolha ou um cadáver a boiar. A doença realmente tinha sido

passada na família, mas não para Ted. Questiono-me sobre o que diriam

as pessoas de Locronan se lhes perguntassem porque tinham expulsado

a Mamã. Talvez contassem uma história diferente da dela. Talvez não

fosse o pai dela quem tinha a doença.

Na escola, todos pressentiram que algo tinha mudado em Ted. Ele

era como uma máscara sem ninguém atrás. Todos deixaram de falar com

ele. Ele não se importava. Agora podia ir para dentro, com os gatinhos.

Pela primeira vez desde que se lembrava, disse-me ele, não se sentia

sozinho.

A mim, que estive ao lado dele durante todos os tratamentos da

Mamã. Disse-me isso a mim.

Teddy começou a chamar à casa interior o sítio do fim de semana,

porque lá não havia escola nem trabalho. Logo descobriu que conseguia

ampliá-la. Quando não conseguiu manter o emprego na oficina em


Auburn, fez uma cave onde podia trabalhar em motores. Ele gostava de

motores. Era uma boa oficina, cheia de ferramentas em caixas brilhantes

e o cheiro a óleo. Guardava meias brancas nas gavetas, do tipo que a

Mamã nunca o deixava usar, porque dizia que eram para meninas. Pôs

uma claraboia no patamar das escadas, para poder ver o céu à noite, se

quisesse, sem que ninguém o pudesse ver, à exceção da Lua. Arranjou a

caixa de música e voltou a pôr as bonecas russas em cima da lareira.

Aqui em baixo, consegue arranjar tudo o que parte. A fotografia da

Mamã e do Papá nunca pode ser tirada da parede. Olivia passeava no

meio de tudo aquilo, com a cauda levantada de curiosidade. Ele garantiu

que ela tinha um furo de vigia só para ela. Para ela, no exterior era

sempre inverno: a estação preferida de Ted.

Ted garantiu que o Noturno só caçava na casa de baixo, depois da

história com o Bola-de-Neve. Pôs montes de ratos no sítio do fim de

semana para manter o Noturno feliz. Ted não queria mais sofrimento.

Acrescentou um sótão, que mantinha sempre trancado. Podia pôr

memórias e pensamentos lá em cima e fechar a porta. Não gostava de

alguns dos habitantes da casa. As coisas verdes com dedos longos que já

tinham sido meninos. Ele receava que os meninos verdes fossem os

meninos que tinham desaparecido no lago. Mas não havia problema,

porque ele também os punha no sótão. Às vezes, dava para os ouvir à

noite, a arranhar as tábuas com finos dedos ossudos e a chorar.

Quanto mais tempo Teddy passava dentro da casa, mais clara e

detalhada ela ficava. Logo descobriu que podia ir para lá sempre que

quisesse. Começou a perder tempo lá dentro. A televisão podia passar o

que ele quisesse. Até podia ver o que estava a acontecer na casa de cima.

Quando via que algo bom estava a acontecer, como quando a Mamã

trazia gelado, abria a porta da frente e voltava a subir. Normalmente,

dava por si deitado na arca, na escuridão ácida, com buracos a brilhar


acima como estrelas. Com o passar dos anos, começou a subir cada vez

menos.

Deixava-me cada vez mais sozinha com a Mamã. Quando ela punha

a luz da mesinha de cabeceira naquele ângulo, ele descia para o sítio do

fim de semana e fazia festas à gatinha.

Acabei por odiar aquela gata convencida. Ted sabia. Às vezes,

quando eu tentava descer, ele mantinha-me suspensa entre os dois sítios,

na arca escura a cheirar a vinagre, porque a gata estava lá em baixo.

Então, quando ela ia embora, era a minha vez. E descobriu que, quando

eu fazia alguma coisa de que ele não gostava, me podia manter dentro da

arca escura o tempo todo.

Não consigo assumir controlo total quando estamos fora de casa, a

não ser que Ted deixe. Consigo fazer coisas pequenas… como escrever

uma mensagem, por exemplo, no forro de umas leggings, ou fazê-lo

perder a concentração por alguns segundos. E é claro que têm de ser

coisas que não requeiram o uso das pernas. Não sei porque a mente

traumatizada de Ted me fez assim, mas fez. Ele tem de me carregar pelo

mundo, mutilada e impotente. Acho que é por isso que às vezes ele se

esquece que foi a minha força que nos manteve vivos.

Ted não fazia mal a uma mosca, ou era o que eu pensava. Logo

descobri como estava errada.

Um dia, estávamos à procura de pastilhas de menta nas gavetas da

Mamã. Ela não gostava de guloseimas, mas gostava de ter hálito fresco e

costumava pôr uma na boca por alguns momentos e depois cuspi-la para

um lenço. Estava sempre a mudar o esconderijo das pastilhas, mas nós

encontrávamo-las sempre. Sabíamos que só podíamos comer uma, por


muita vontade que tivéssemos. A Mamã contava-as, mas uma pastilha

era uma margem de erro plausível.

A Mamã guardava coisas interessantes nas gavetas. Um velho livro

de canções com ursos na capa, um chinelo branco de criança. Ted estava

a ser descuidado. Estava a remexer nas meias dela com as mãos

húmidas.

– Ela vai reparar, Teddy – disse eu. – Caramba! Vais rasgá-las!

Ele ergueu a cabeça e avistei o nosso reflexo no espelho do toucador.

E vi, no rosto dele. Ele já não queria saber. A Mamã ia castigar-nos e

fazer o corpo chorar. Ia pôr-nos na caixa grande com vinagre. Mas Ted

ia estar lá em baixo. Ia ser eu a sentir a dor.

– Ted – disse eu. – Não faças…

Ele encolheu os ombros e tirou a caixa de pastilhas do esconderijo

dentro de uma camisa de noite impecavelmente dobrada. Lentamente,

como num sonho, abriu a caixa e levou-a aos lábios. Inclinou a caixa

para fazer as pastilhas caírem-lhe para a boca. Algumas bateram-lhe nos

lábios e caíram para o chão.

– Ted – sussurrei. – Para! Perdeste o juízo? Ela vai magoar o corpo

por causa disso.

Ele sacudiu as últimas pastilhas para dentro da boca, que já estava

cheia de formas brancas e redondas. Mesmo em pânico, eu conseguia

sentir-lhes o sabor, a minha boca cheia de doçura… Sacudi-me de alto a

baixo. Tinha de o parar.

– Vou gritar – disse eu. – Vou chamá-la.

– E depois? – disse ele, com a boca cheia de pastilhas duras. –

Chama-a. És tu que vais sentir o castigo, não eu.

– Há outras maneiras de magoar além do corpo – disse eu. – Vou

contar-lhe do sítio do fim de semana e dos gatos. Ela vai encontrar uma

maneira de se livrar disso. Não sei como vai ser, mas sabes que tenho
razão. A Mamã conhece maneiras de forçar os cérebros e não só os

corpos.

Ele resmungou e abanou a cabeça para mim no espelho. De repente,

eu não tinha nada na boca. O sabor doce desapareceu. Ele tinha-me

cortado dos nossos sentidos. Parecia tão surpreendido como eu. Não

sabíamos que isso era possível.

– Podes impedir-me de comer pastilhas de menta, mas não me podes

impedir de falar – disse eu.

Ted tirou uma agulha de uma almofada em cima do toucador e

cravou-a lentamente na carne do polegar.

Uma linha vermelha de fogo atravessou-me e eu gritei e chorei.

Ted estava parado diante do espelho. O rosto dele tinha a expressão

de interesse clínico da Mamã. Ele cravou a agulha outra vez e outra vez.

– Paro quando prometeres – disse ele.

Eu prometi.

Eu entendo algo sobre a vida que Ted nunca entendeu: é demasiado

dolorosa. Ninguém suporta tanta infelicidade. Tentei explicar-lhe isso. É

mau, Teddy. A Mamã é maluca, sabes isso. Ela perdeu o juízo. Um dia,

vai longe de mais e mata-nos. Mais vale escolhermos nós o nosso fim.

Não vamos ter de nos sentir mal o tempo todo. Pega na faca, dá um nó

na corda. Vai esconder-te no lago. Caminha pela floresta até tudo ficar

verde. A bondade do fim. Teddy tentava tapar os ouvidos, mas é claro

que não me conseguia silenciar completamente. Somos duas partes do

mesmo todo. Ou devíamos ser.

Pouco depois, tentei matar-nos pela primeira vez. Não foi uma

tentativa muito boa, mas mostrou a Teddy que ele não queria morrer.

Encontrou uma maneira de me silenciar. Começou a tocar a música da

Mamã quando me causava dor. Causou-me tanta dor que a música se


tornou a dor, a pairar no ar. A agonia só parava quando eu descia para o

meio caminho, para a arca escura, deixando o corpo vazio. Aprendi

depressa a desaparecer mal ouvia a primeira nota dedilhada na guitarra.

Ted não sabe tudo. Ainda lhe resisto. E sou mais forte do que ele

pensa. Às vezes, quando ele se ausenta, não é o Pequeno Teddy que se

chega à frente. Sou eu. Quando ele volta a si com uma faca na mão…

dessas vezes sou eu, a tentar fazer o que tem de ser feito.

Mas não tive força suficiente. Ted tem-me bem controlada. Tive de

levar a gata a fazê-lo. E foi assim que chegámos aonde estamos.


Ted

Ela deve ter suspeitado que tudo lhe ia rebentar em cima. A polícia

tinha ido ao hospital, ao antigo emprego da Mamã, para fazer perguntas.

As crianças no infantário onde ela trabalhava tinham ficado tão

desastradas. Antes, Teddy era o mais desastrado e ela reservava para ele

as coisas grandes, as que deixavam marca. Mas ultimamente Teddy já

não era suficiente. Havia demasiadas crianças com suturas que não

tinham caído.

Na noite anterior, a Mamã tinha demorado muito tempo a tratar de

mim. Ainda estava a tremer do choque. Entrei na cozinha para ir buscar

um copo de água. A Mamã estava em bicos de pés em cima de uma

cadeira. Tinha a corda da roupa nas mãos. Em dias chuvosos como

aquele, a Mamã estendia a corda da roupa na cozinha, para secar as

meias altas. Não meias-calças, ela nunca usaria isso.

– Teddy – disse ela. – Tu és alto. Ajuda-me a pendurar isto. O diabo

da corda não passa por cima da trave.

Era engraçado ouvi-la a praguejar no seu sotaque elegante. Subi para

cima da cadeira e atirei a corda por cima da trave.

– Obrigada – disse ela, formal. – Agora vai à loja comprar gelado.

Olhei para ela, espantado. Só comíamos gelado uma vez por ano, no

aniversário dela.

– Mas vai apodrecer os nossos dentes.

– Por favor, não discutas comigo, Theodore. Quando voltares, vais

ter algumas tarefas para fazer. Consegues lembrar-te de tudo o que vou

dizer? Não podes escrever. E eu vou-me embora já de seguida, não vou

poder repetir isto.

– Acho que me consigo lembrar.


– Há uma coisa que preciso que deites fora. Vou deixá-la aqui na

cozinha. Tens de a levar para a floresta. Vais ter de esperar pela noite

para a tirar de casa, porque é proibido enterrar coisas na floresta.

– Sim, Mamã.

Deu-me 10 dólares, demasiado para comprar gelado.

Ao fechar a porta da frente, ouvi-a a falar em voz baixa.

– Ya, ma ankou.

Estava tudo a ficar cada vez mais estranho.

Comprei gelado de baunilha. Era o único sabor de que ela gostava.

Ainda consigo sentir os dedos dormentes onde derretiam a embalagem

fria, ver o sedimento delicado de gelo que cobria a tampa.

Entro na cozinha e vejo-a. De certa forma, não tenho visto mais nada

desde então. A imagem está dentro das minhas pálpebras. A minha mãe

está a pairar no ar, balançando suavemente. Como um pêndulo terrível.

A corda da roupa range a cada movimento dela. Os dentes mordem-lhe o

lábio inferior azulado, como se tivesse ficado captada num último

momento de dúvida.

Os seus pertences favoritos estavam empilhadas ordeiramente junto

aos pés a baloiçar. A mala pequena, com o delicado vestido azul, a

camisa de noite, o perfume. A carteira de camurça macia, da cor da

barriga de um cervo. Em cima da mala, está pousado um recado, escrito

com a sua caligrafia formal francesa. Para levar para a floresta, dizia.

Tive de esperar até ao cair da noite. Foi o que ela disse. Mas não a

quis deixar ali pendurada. Receava que alguém batesse à porta e

insistisse em entrar. Então poderiam vê-la. Não tinha medo de me meter

em sarilhos, mas ela parecia tão exposta ali em cima, com a cara azul e

distorcida. Não queria que outros olhos a vissem.


Por isso, baixei-a da corda. Foi difícil tocar-lhe. Ainda estava quente.

Dobrei-a bem dobrada e pu-la no armário por baixo da banca.

– Desculpa – disse-lhe eu, uma e outra vez.

Limpei o chão, que estava sujo por baixo do sítio onde ela tinha

estado pendurada.

Queria mandar todas as roupas dela com ela, mas não consegui

encontrar a mala grande. Fiz o melhor que pude para acrescentar mais

algumas coisas à mala pequena… coisas quotidianas de que ela ia

precisar na floresta. Pus o estojo de suturas. Juntei a cópia das Fábulas

de Esopo pousada ao lado da cama dela. Não conseguia adormecer sem

um livro e fiquei preocupado com ela, deitada sem sono na floresta fria.

A noite caiu como uma manta. Pus a Mamã e as coisas dela às costas

e levei-as para o meio das árvores. Agora estava rígida e fria. Escorriam

coisas dela. Ela devia ter odiado isso. Sabia que precisava de a levar para

a floresta. Quando ficámos finalmente rodeados de árvores, senti-me

melhor.

Ela parecia ficar mais pesada à medida que nos embrenhávamos na

floresta escura. Eu ofegava e tropeçava. A minha coluna parecia estar a

ser esmagada, os meus joelhos tremiam. Eu agradecia essas coisas.

Estava certo de que seria uma viagem difícil.

Enterrei-a no centro da clareira, perto do ratinho Bola-de-Neve.

Enterrei o vestido azul no canto sul, a carteira preferida a oeste, o

perfume a leste. Quando a terra aceitava cada um, tornava-os deuses.

Quando a pousei no buraco, senti a terra a acolhê-la nos seus braços.

– Mantenho-te no meu coração – sussurrei.

Ela começou a transformar-se. As árvores brancas assistiam com

uma centena de olhos.

– Entra para o buraco – segredou Lauren ao meu ouvido. – Podemos

deitar-nos ao lado dela.


Por um momento, pensei nisso. Mas então lembrei-me que, se eu

morresse, Olivia também morria, e Lauren e o Noturno, e os

pequeninos. E concluí que não queria isso.

Quando todos os deuses estavam bem guardados nos seus lares,

comecei a tapá-los com terra. Mesmo depois de enterrados, ainda os

sentia a irradiar energia. Brilhavam sem luz por baixo da terra.

A Mamã tinha agido mesmo a tempo. A polícia apareceu dois dias

depois. Eu fiquei parado no jardim, debaixo do sol como uma estrela

ardente. Tornei-me uma imagem para o homem do jornal. Quando

revistaram a casa, não encontraram nada, é claro. Faltava uma mala e

algumas roupas.

Para onde foi ela?, perguntaram-me. Abanei a cabeça, porque não

sabia mesmo.

Antes de partir, a Mamã enviou uma carta para a senhora do

chihuahua-dachshund-terrier. A mulher estava de férias no México,

mas leu a carta quando voltou. A carta dizia que a Mamã se ia ausentar

por motivos de saúde. Era uma mulher muito reservada, a minha mãe.

Metódica. Não queria que se soubesse, mesmo depois de morta. Talvez

seja a única coisa que percebi verdadeiramente nela.

Por isso, a Mamã partiu e nunca mais foi vista. A menina também

partiu, mas não me parece que estejam no mesmo sítio, não sei porquê.

Lauren tinha 6 anos quando veio ter comigo pela primeira vez e ficou

dessa idade por muito tempo. Nunca tinha pensado nisso, mas é a idade

da Menina do Chupa-Chupa quando desapareceu.

Por fim, Lauren acabou por crescer. Crescia mais devagar do que eu,

mas crescia. A raiva crescia com ela. Era mau.


«Não tenho nenhum sítio onde pôr todos os sentimentos», estava

sempre a dizer.

E eu sentia-me mal, porque era a dor que recebia de mim. Amava-a

por isso, fizesse ela o que fizesse. Ela odeia o corpo. É grande de mais e

peludo de mais e estranho de mais para ela. Nem sequer pode usar as

roupas que gosta, leggings com estrelas, sapatinhos cor-de-rosa. Nunca

servem. Não se fazem essas coisas nos tamanhos certos. Creio que

aquela vez no centro comercial foi a pior. Tive tanta pena dela. Sinto

vontade de a proteger, como um pai. Prometi que tentaria ser isso para

ela. Sei que estou a falhar. Tenho demasiados problemas para ajudar seja

quem for.

Eu ia para a casa interior quando precisava de conforto. Olivia, com

os seus pezinhos fofos e a cauda curiosa, estava sempre à espera. Olivia

não sabia nada do mundo exterior. Eu gostava disso. Quando estava com

ela, também não precisava de saber.

Nada é perfeito, claro. Nem mesmo o sítio do fim de semana. Às

vezes, aparecem coisas de que não estava à espera. Chinelos de praia

brancos, meninos há muito perdidos a chorar do outro lado da porta do

sótão.

Fico calado. Parece que chegámos ao fim. Lauren foi-se embora.

Estou tão cansado que me sinto capaz de evaporar como água.

– Acho que devia ter adivinhado – diz ele. – O Campeão sabia.

– O que queres dizer?

– Ele gosta de ti. Mas naquele dia ele ficou louco, a ladrar para ti na

rua. Pensei ver algo nos teus olhos, só por um segundo. Como se

estivesse ali outra pessoa. Pensei ter imaginado.

– Isso era a Olivia, a minha gata – digo eu. – Ela estava a tentar sair.

Não importa. Falamos disso noutra altura.


O homem levanta-se para sair, como eu sabia que faria.

– Quem está a tomar conta do teu cão?

Acho que o quero manter aqui por mais um momento, porque nunca

mais o vou ver.

– Quê?

– O teu cão – digo eu. – Passaste aqui uma noite e um dia. Não

devias deixar um cão sozinho tanto tempo. Não está certo.

– Nunca faria isso – diz ele. – A Linda Moreno está a tomar conta do

Campeão.

Ele vê o meu olhar de incompreensão.

– A senhora do chihuahua.

– Pensava que ela tinha desaparecido. Vi cartazes nos postes da rua.

Tinham a cara dela.

– Ela foi num cruzeiro atlântico – diz ele. – Com um homem mais

novo. Não queria que a filha soubesse. A filha ficou preocupada. Mas

agora já voltou. Com um belo bronzeado.

– Que bom.

Senti um pico de felicidade. Estava preocupado com a senhora do

chihuahua. Era bom saber que ela estava bem.

– Até amanhã – diz ele.

Mas sei que não vou voltar a vê-lo. Vai-se embora. Parece nunca usar

palavras desnecessárias.

A escuridão chega, ou o mais parecido com escuridão que se vê na

cidade. Não ligo a luz da mesinha de cabeceira. Vejo as luzes do

estacionamento formar quadrados amarelos no teto. Quando a

enfermeira entra, acorda-me bruscamente com um clarão de néon

branco. Dá-me água e o nome do hospital está impresso no copo plástico

que ela encosta aos meus lábios. Não sou muito bom com nomes e estou

atordoado com sono e analgésicos, por isso demoro um momento a


perceber… este é o hospital dela. A Mamã trabalhava aqui, foi

despedida daqui por causa das coisas que fazia às crianças. É um

daqueles círculos estranhos no tempo. Mas não consigo dizer se estou no

princípio ou no fim. A enfermeira sai, deixando-me de novo no escuro.

Apercebo-me, talvez pela primeira vez, que a minha mãe está mesmo

morta.

– Pelos vistos, não me podes matar – digo para Lauren. – E eu não te

posso matar. Por isso, temos de encontrar outra maneira de fazer as

coisas.

Tento senti-la, pegar-lhe na mão. Mas ela não está ali. Está a dormir,

ou a manter-me afastado, ou apenas calada. Não tenho maneira de saber

se ela me ouve ou não.

Penso na senhora do chihuahua. Espero que ela tenha tido umas

boas férias com o namorado novo. Espero que esteja a relaxar na sua

linda casa amarela com a cimalha verde.

Viro o copo na mão. O nome do hospital roda. O sítio da Mamã.

Mas ela não está aqui. Está em casa, à minha espera, no armário por

baixo da banca.

Algo me chama a atenção, puxando-me pelo cérebro. Algo sobre a

senhora do chihuahua e a viagem ao México. Abano a cabeça. Isso não

está certo. A senhora do chihuahua foi num cruzeiro, não foi ao México.

Ela foi ao México da primeira vez. O puxão familiar na minha mente, de

me ter esquecido de algo. Mas foi-se.

O homem do cabelo laranja aparece quando estou a receber alta.

Tenho de olhar duas vezes para ter a certeza, mas sim, é ele. Estou muito

surpreendido e estranhamente tímido. Dissemos-lhe tanto, na outra

noite. Sinto-me um pouco despido.

– Pensei que podias precisar de uma boleia.


Cheiro a floresta quando chegamos perto. É um alívio tão grande ver

a minha rua, a placa amolgada, as árvores no horizonte.

Mas não quero que o homem veja a minha casa triste, o

contraplacado sobre as janelas, as salas escuras e poeirentas onde vivo

sozinho com todos os meus outros. Quero que se vá embora. Em vez

disso, ele ajuda-me a sair do carro e a entrar em casa. Fá-lo rápida e

eficientemente, sem me pedir permissão ou reconhecimento.

Quando estamos no interior, ele fica parado na entrada, parecendo

não reparar nas teias de aranha e no desmazelo de tudo em redor. Agora

tenho de lhe oferecer alguma coisa. O frigorífico contém o fedor amargo

de leite estragado. Sinto uma pontada de desespero.

– Cerveja – sugere ele, olhando para o conteúdo.

– Claro – digo eu, sentindo-me logo mais animado. Vejo dentro dos

armários. – Aposto que nunca comeste um picle com manteiga de

amendoim.

– Ganhavas essa aposta.

Sentamo-nos nas cadeiras de jardim estragadas nas traseiras. Está

um dia bonito. Os dentes-de-leão felpudos dançam no sol baixo. As

árvores sussurram na brisa suave. Viro a cara para o sol. Por um

momento, sinto-me quase normal… sentado no meu quintal no calor do

fim de verão, como qualquer pessoa faria, a beber uma cerveja com um

amigo.

– Hospitais – diz ele. – Deves ter tido saudades de estar ao ar livre.

Tu gostas da floresta.

– Sim – digo eu.

– Ei – diz ele, mas não para mim. A gata riscada sai do meio da

vegetação. Parece mais magra do que o normal. – O que se passa?


Ela roça-se nas pernas ferrugentas da cadeira. Ele põe manteiga de

amendoim no chão e ela lambe, a ronronar.

– Coitadinha – diz ele. – Ela pertencia a alguém. Tiraram-lhe as

garras e depois abandonaram-na. Gente.

A gata deita-se aos seus pés. O sol ilumina o pó no pelo dela.

Tento pensar numa pergunta que uma pessoa normal faria.

– Como é ser guarda-florestal?

– É bom. Sempre quis trabalhar ao ar livre, desde miúdo. Cresci na

cidade.

Não consigo imaginá-lo no meio de edifícios altos, em passeios

movimentados. Ele parece feito para grandes distâncias e solidão.

– Nós já falámos – diz ele. – Às vezes cumprimentamo-nos no bar.

– Oh.

Tenho demasiada vergonha para lhe dizer que não me lembro muito

do que acontece no bar. Acho que, para o fim, o Pequeno Teddy toma

conta de nós. Ele não é muito bom a falar com adultos. Ou talvez

estivesse bêbedo.

– Escolhi aquele bar para me encontrar com mulheres – digo eu. – É

preciso ser burro, não achas?

Conto-lhe sobre o meu encontro com a mulher de azul.

– Mas continuaste a ir lá, sozinho. Mesmo depois de perceberes o

tipo de sítio que era.

– Oh – digo eu. – Sim, para beber.

Algo está a acontecer ao ar entre nós, aqui sentados. O tempo parece

esticar-se. Não consigo parar de olhar para o braço dele, pousado na

cadeira ferrugenta. Pele pálida, coberta de pelos finos que brilham ao sol

como arame incandescente.

Uma onda de medo percorre-me o corpo.


– Não sou uma pessoa normal – digo eu. – É difícil ser eu. E estar

perto de mim pode ser mais difícil.

– O que é uma pessoa normal? – diz ele. – Fazemos o que podemos.

Penso nos lábios apertados da Mamã em desaprovação. Penso no

senhor bicho, que quer escrever um livro sobre os meus problemas.

– Neste momento – digo eu –, a única coisa que podes fazer é ir

embora.

Alcanço o carro, a coxear, quando ele está a prender o cinto de

segurança.

– Não estava a falar a sério – digo eu. – Desculpa. Tive um péssimo

mês. Ano. Vida.

Ele ergue uma sobrancelha.

– Por favor, volta. Bebe outra cerveja – digo eu. – Agora vamos falar

de ti.

– Acabaste de sair do hospital. Deves precisar de descansar.

– Não me obrigues a ir atrás do carro pela rua – digo eu. – Acabei de

sair do hospital.

Ele fica a pensar e depois desliga o motor.

– OK – diz ele. – Também tenho umas histórias estranhas.

O nome dele é Rob e tem um irmão gémeo. Ao crescer, faziam as

coisas habituais que os gémeos fazem. Confundiam a mãe e fingiam ser

o outro, às vezes até iam às aulas um do outro na escola. Rob era melhor

a ciências e Eddie era melhor em cenas artísticas, como literatura e isso.

Por isso, tiravam os dois boas notas. Mas pararam de confundir os pais

quando ficaram mais velhos e nunca fizeram isso com namoradas.

Concordaram que era um truque cruel, que não deviam fazer às pessoas

que amavam. Então, Rob deixou de ter namoradas. Não contou a Eddie,
mesmo quando conheceu um homem que trabalhava num restaurante da

cidade que lhe fazia o coração bater mais depressa. Começaram a sair.

Certa noite, o homem do restaurante viu Rob do outro lado da rua.

Repleto de amor, atravessou a rua e abraçou Rob. Assim que lhe tocou,

percebeu que não era Rob. Mas era tarde de mais. Eddie espancou-o até

não conseguir ver de nenhum dos olhos.

O homem do restaurante mudou-se para outra cidade. O irmão não

fala com Rob e Rob diz que também não quer falar com ele.

– Mesmo assim – diz ele –, é como se me faltasse uma perna. Tive

de aprender a caminhar sem ele. Parei de sair com pessoas durante

algum tempo. Só queria o meu cão e a floresta. Gosto especialmente das

madrugadas, quando não há ninguém por perto.

Penso na história dele por algum tempo.

– Se tudo isso não te tivesse acontecido, eu estaria morto – digo eu.

– A sério – diz ele, surpreendido. – Acho que tens razão.

Olhamos um para o outro por um breve momento. Depois, ficamos

sentados em silêncio.

Ele vai para casa quando a noite começa a cair. O sol desce para o

horizonte, sombras púrpura envolvem todas as coisas, em preparação

para a noite. Enquanto apanho as latas de cerveja, avisto uma mancha

amarela acima, na minha faia. A canção de um pintassilgo enche o

crepúsculo. Os pássaros estão a voltar.


Olivia Noturna

Olá a todos. Bem-vindos ao primeiro episódio de GATOnomia, com

a Olivia Noturna. Hoje temos um programa fantástico. Vamos falar de

luz… tipos de luz do sol, tipos de escuridão… qual é melhor para fazer

sestas, qual ilumina os olhos como luzes sobrenaturais no crepúsculo, e

por aí fora, e ainda: que sombras funcionam melhor para nos

escondermos quando caçamos uma presa como um raio negro da morte

a meio da noite.

Mas, primeiro, vamos falar do elefante no meio da sala. Precisamos

de falar do mundo de cima, o chamado mundo real. Acho que todos

concordamos que não é tão bom como o mundo interior. É cinzento e

tudo cheira mal. Não gosto da cor do tapete, que cá em cima não é de

um lindo cor de laranja gritante, mas da cor de teds mortos. Mesmo

assim, de vez em quando venho cá cima, apesar das minhas reservas,

porque uma pessoa deve sempre saber com o que está a lidar. Às vezes,

até vou lá fora. Já não sou uma gata de interior. Vejo e sinto o mundo,

quando antes apenas o cheirava e ouvia, do fundo das escadas no sítio

interior. Agora, se quiser, posso subir e fazer companhia ao Ted

enquanto ele caminha pelo meio das folhas outonais, sentir o frio

cortante das primeiras geadas quando os dias ficam mais curtos.

Mas sim, o exterior é uma desilusão. Não é nada de mais, na minha

opinião. Lá em cima, há uma gata riscada, mas não é a gata que eu

amo. Quando a vi pela primeira vez, pensei, Coitadinha. Os olhos dela

são de um castanho-pardo… quando olho para eles, só vejo um animal

faminto. É pequena e magra, não tem garras e caminha a coxear. Ela

não brilha. O ted de cabelo laranja insiste em dar-lhe de comer. Esse

ted parece um lenhador, mas na verdade é muito sentimental. Também

cheira muito como o seu bruaá enorme, o que é nojento. Ted está
sempre a dizer-me que o bruaá sentiu o cheiro do sangue e que nos

encontrou na floresta, mas recuso-me a acreditar que foi assim que fui

salva. Seja como for, andava a perguntar-me como estaria Ted a

aguentar-se sem Olivia. Parece estar bem.

Adoro descer ao sítio do fim de semana para ver a outra gata, a

bonita, através da janela, enquanto ela se lava e se arranja. Ela fita-me

como uma cobra com olhos amarelos como maçãs. Ela é uma de nós,

claro. Outra parte de nós. Devia ter percebido isso mais cedo. Ela opta

por não falar. Mas espero que um dia fale comigo. Entretanto, continuo

a adorá-la e a esperar. Vou fazer isso para sempre, se for preciso. Posso

sempre ver o que se passa cá em cima através da televisão.

Às vezes, o SENHOR entra a caminhar pela parede da cozinha ou a

flutuar escadas acima até à claraboia no patamar das escadas. Ele vira-

Se para olhar para mim com olhos redondos de peixe ou com os olhos

facetados de uma mosca. Ele é um produto da imaginação de Ted. A

Mamã falou-lhe tantas vezes do ankou que o ankou veio. O deus da

Mamã encontrou o caminho desde a aldeia dela na Bretanha distante,

através de Ted, até ao mundo de Olivia. É assim que os deuses viajam,

através das mentes.

O SENHOR nunca obrigou Olivia a ajudar Ted ou Lauren. Ela só

queria ser bondosa. Ela era uma gata bondosa. Eu sou bondosa, mas

também sou outras coisas.

Agora já não há cordão nenhum a ligar-me a Ted. Acho que sinto

falta dele, agora que desapareceu. Eu e ele estávamos ligados um ao

outro e o cordão era um reflexo dessa ligação. Era honesto e mostrava

como as coisas realmente são. Agora, vejo que o mundo superior tem

muito poucos desses sinais úteis. É um sítio frio e austero. O nosso

corpo grande e carnudo arrasta-se pelo mundo, com nós lá dentro como

um conjunto mal feito de bonecas russas. Nojento, na minha opinião.


Contudo, agora podemos estar todos juntos cá em cima… Ted,

Lauren e eu, e mais alguns cujos nomes ainda não sei. Só estão agora a

começar a sair para a luz. Podemos falar ou discutir ou fazer o que

quisermos como se estivéssemos lá em baixo no meu sítio. Às vezes,

esqueço-me de descer durante dias a fio. Por isso, acho que o mundo de

cima agora também é o meu lar.


Ted

O caminho serpenteia pelo dia de outono. O ar tem um toque a

cogumelos e folhas vermelhas. As árvores lançam dedos finos para o

céu. Sinto o calor de Rob ao meu lado, tufos de cabelo a fugirem-lhe do

chapéu como labaredas. Passaram três meses desde aquela manhã na

floresta, mas podia ter passado uma vida inteira.

As histórias cabem todas umas dentro das outras. Ecoam umas pelas

outras. Começou com ela, a Menina do Chupa-Chupa. E ela merece uma

testemunha, é por isso que estamos aqui.

São só uns 500 metros do parque de estacionamento até à água, mas

demoramos algum tempo. Eu arrasto-me mais do que caminho, com

cuidado por causa da ferida a sarar. Uma pessoa pode magoar-se a sério

quando não sente dor.

– Põe o cachecol – digo a Rob.

Eu queria um amigo para tomar conta de nós. O curioso é que, agora

que tenho um, só quero tomar conta dele.

As árvores afastam-se e estamos junto à água. Hoje está fresco; a

areia parece suja sob o céu cinzento. Veem-se alguns caminhantes,

alguns cães. Não muitos. O lago brilha, como vidro preto. A água está

demasiado parada, como uma pintura ou um truque. É mais pequeno do

que me lembro, mas é claro que fui eu que mudei.

– Não sei o que fazer – digo a Rob.

O que podem os vivos dizer aos mortos? A Menina do Chupa-Chupa

partiu e não sabemos para onde. A Mamã não está mesmo debaixo da

banca e o Papá não está na arrecadação.

– Podemos não fazer nada – diz ele.

Então, tento focar-me com muita intensidade na menina e lembrar-

me que ela esteve aqui no passado e já não está. A mão de Rob está nas
minhas costas. Envio-lhe os meus sentimentos pela água e pelo céu e

pelas folhas secas de outono e pela areia e pelos seixos debaixo de nós.

Mantenho-te no meu coração, penso para a Menina do Chupa-Chupa,

porque me parece que alguém o devia fazer.

Tiro os sapatos, apesar de estar a chover. Rob faz o mesmo.

Enterramos os pés na areia húmida. Observamos o lago, onde as gotas

formam círculos na superfície preta e brilhante da água, que crescem,

afastam-se e desaparecem no infinito.

– Está mesmo frio – diz Rob por fim.

Ele é uma pessoa muita prática.

Eu abano a cabeça. Não sei de que estava à espera. Não há nada

aqui.

Caminhamos de volta para o carro em silêncio. O caminho

serpenteia encosta abaixo, na direção do parque de estacionamento.

Avisto uma coisa brilhante no trilho salpicado pela chuva. Baixo-me

para a apanhar. Uma forma longa e oval, lisa e macia ao toque. É verde

como musgo, atravessada por veios brancos.

– Olha – digo eu –, que pedra bonita.

Viro-me para mostrar a Rob. Nesse instante, o solo cede subitamente

sob o meu pé com um deslizar gracioso. Pedras e terra solta resvalam

para longe do meu pé e o mundo fica de cabeça para baixo. Eu caio e

bato no solo com força.

Algo se rasga dentro de mim. É como morrer outra vez. Mas, desta

vez, eu sinto a onda de choque, profunda, e roxa, e preta. As notas

agudas acertam-me em cheio. A sensação percorre-me o corpo, enche

cada célula viva em mim.

Rob debruça-se sobre mim, com um esgar preocupado. Está a dizer

qualquer coisa sobre o hospital.


– Dá-me um minuto – digo eu. – Deixa-me senti-la.

Eu ria-me, mas dói demasiado.

Acho que é a dor que o deixa passar. As barreiras entre nós estão a

ruir.

Eu pu-lo no nosso bolso, diz ele para mim, numa voz límpida e

jovem.

Pequeno Teddy?

No nosso bolso, mas tu deitaste-o ao lixo.

Ponho a mão no bolso das calças. Há sangue a sair de algum lado.

Deu cabo desta T-shirt.

– O que estás a fazer? – diz Rob. Fios cinzentos e frios de medo

entrelaçam-se na voz dele. – Estás a sangrar.

Ele pega no telemóvel.

– Para. – Estou quase a gritar com ele e isso dói muito. – Espera!

Os meus dedos encontram um papel. Tiro-o para fora. O Assassino.

A minha lista foi reparada com fita-cola. O último nome olha-me

fixamente. Mamã.

O Pequeno Teddy não se refere ao assassino dos pássaros.

Provavelmente nem sabe nada disso. Ele está a falar de outro homicídio.

Tenho tentado dizer-te, diz o Pequeno Teddy. Mas tu não querias

ouvir.

A memória jorra para dentro de mim, carregada pela dor. Uma

torrente de sensação, cor, terra molhada, luar em ruas vazias. É como

ver um filme com tato e olfato.


Pequeno Teddy

Nós partilhamos entre nós… o tempo e a dor. O Ted Grande levou a

Mamã para a floresta para ela poder tornar-se um deus, mas eu vi o que

aconteceu na noite ANTES.

Estou na sala de estar. O Papá foi-se embora há anos. A Menina do

Chupa-Chupa desapareceu do lago no outro dia. Toda a gente está MUITO

perturbada.

Há um papel na mesa à minha frente. É uma candidatura de

emprego. Faço um desenho de mim mesmo a lápis amarelo, a cantarolar.

O cheiro a fumo de cigarro e café queimado passa por baixo da porta da

cozinha. A senhora do terrier está a falar.

– Meia lata de manhã, ração seca à noite – está ela a dizer à Mamã. –

Mas só depois de passear. Credo, quase me esquecia. Os fetos nos vasos

precisam de ser regados três vezes por semana. Nem mais nem menos.

Algumas pessoas dizem que é demasiado, mas eu acho que, com fetos, a

terra deve estar sempre ligeiramente húmida.

– Podes contar comigo – diz a Mamã gentilmente.

– Sei que posso – diz a senhora do terrier. Ouço chaves a tilintar. –

A chave da fita verde é da porta da frente, esta é da porta nas traseiras,

que desce para a cave. Normalmente não a abro. Ui, Méjicooo. Vou

beber um cocktail todos os dias ao pequeno-almoço. Daqueles com uma

sombrinha. Vou nadar e deitar-me ao sol e não vou pensar em trabalho

uma única vez. Nada.

– Tu mereces – diz a Mamã calorosamente. – Estás sob tanto stress.

– Podes crer.

Segue-se um silêncio e o roçagar de roupa, o som de uma cara a ser

beijada. A senhora do terrier está a abraçar a Mamã. Encosto a orelha à


porta. Estou cheio de ciúmes, AZEDO como vinagre.

Estou a olhar pela janela quando a Mamã sai de casa depois de

escurecer. Ela leva uma mala grande e tenho medo de que vá ter com a

senhora do terrier ao Méjicooo. Não quero que me deixem para trás.

Mas a mala está vazia, ela baloiça-a no braço enquanto caminha. Fico a

olhar porque NUNCA a vi assim. A Mamã não é divertida. Sei que ela não

quereria que eu ou qualquer outra pessoa visse aquilo. Hoje os

candeeiros da rua estão apagados. Que sorte da Mamã que aqueles

miúdos os partiram a todos com pedras.

A Mamã vai até à floresta. Demora muito tempo e quase começo a

chorar, porque desta vez ela PARTIU mesmo.

Eu espero e espero.

Parece que passaram muitas horas, mas provavelmente foi só uma

hora ou duas. A Mamã sai da floresta. Caminha pelas sombras

compridas e escuras dos ramos que se estendem por cima do passeio.

Quando passa por uma aberta de luar prateado, vejo que agora a mala

está pesada. Ela puxa-a lentamente pelo passeio sobre as rodinhas

pequenas. Passa diante da nossa casa sem olhar nem parar! Onde é que

ela VAI?

A cimalha verde da casa da senhora do terrier parece cinzenta ao

luar. A Mamã vai até às traseiras da casa. Eu salto para a cama e

escondo-me por baixo dos cobertores, mas NÃO durmo. Ela sai em

silêncio, um bom bocado depois. Ouço água a correr na casa de banho, o

som dela a lavar os dentes. Então vem outro som baixinho. A Mamã está

a trautear.

De manhã, está como sempre. Dá-me um frasco pequeno de papa de

maçã para o pequeno-almoço e uma fatia de pão. As suas mãos cheiram

a terra húmida. Não voltei a ver a mala grande, acho que a deve ter
mandado para o Méjicoo sem ela. Ouço-a a pedir ao Ted Grande que vá

à loja comprar gelado.

Estou sempre a TENTAR dizer ao Ted Grande. Levo-o até à casa

amarela com a cimalha verde uma e outra vez, mas ele não entende.

Acho que sempre soube, bem lá no fundo, que tinha sido a Mamã. Mas

tinha tanta esperança que não tivesse sido. Agora não pode continuar a

evitar a verdade. Zás, PÁS, como levar um murro.

Consigo ouvir o Ted Grande a chorar.


Ted

– Não te mexas. Só vais fazer pior.

A cara de Rob paira no céu acima de mim. Está ainda mais pálida do

que o normal.

– Temos de dizer a alguém. – A minha barba está molhada de

lágrimas. – Eu sei onde ela está. Por favor, por favor, temos de ir agora.

Outra coisa boa de Rob é que não perde tempo com perguntas.

Tudo acontece ao mesmo tempo depressa e devagar. Cambaleamos

até ao carro e Rob leva-me até uma esquadra da polícia. Temos de ficar à

espera por muito tempo. Ainda estou a sangrar um pouco, mas não deixo

Rob levar-me ao hospital. Não, digo eu, não, não, não, não, NÃO. À

medida que os nãos ficam mais fortes, Rob recua, alarmado. Por fim, um

homem cansado com papos debaixo dos olhos vem falar connosco. Eu

conto-lhe o que o Pequeno Teddy viu. Ele faz algumas chamadas

telefónicas.

Esperamos pela chegada de outra pessoa. É o dia de folga dela. Ela

entra à pressa, ainda com galochas de pesca. Estava no barco dela. A

detetive tem um ar cansado e parece-se um pouco com um gambá.

Reconheço-a de quando revistaram a minha casa, há 11 anos. Isso deixa-

me contente. Hoje o cérebro está a portar-se mesmo bem! Mas a detetive

gambá parece cada vez menos cansada ao ouvir-me falar.

Espero noutra cadeira de plástico. Ainda na esquadra? Não, aqui está

cheio de pessoas magoadas. Hospital. Por fim, chega a minha vez e eles

agrafam-me, o que é estranho. Eu recuso a anestesia. Quero sentir a dor.

É tão curta, esta vida.

Quando Rob me leva a casa, já é madrugada. Quando viramos para a

minha rua, vejo uma carrinha parada diante da casa dela. Carros com

lindas luzes vermelhas e azuis que brincam na cimalha verde e as tábuas


amarelas. A senhora está a chorar e abraça o chihuahua, para se

reconfortar. O cão lambe-lhe o nariz. Tenho pena dela. Foi sempre

simpática. A Mamã nunca magoou o corpo da senhora do chihuahua,

mas magoou-a na mesma.

Eles erguem painéis brancos à volta da casa da senhora do

chihuahua, para ninguém poder ver nada. Eu fico à janela da sala de

estar, a observar, apesar de não haver nada para ver. Demora algumas

horas. Acho que têm de cavar fundo. A Mamã era metódica. Ficamos

todos ali, acordados e alerta dentro do corpo, a olhar para os painéis

brancos. O Pequeno Teddy chora em silêncio.

Sabemos quando a trazem para fora, a Menina do Chupa-Chupa.

Sentimo-la quando ela passa. Ela paira no ar, como o cheiro da chuva.

A vizinha da casa ao lado não voltou. Estava a chamar o nome da

menina quando se afastou de mim a correr pela floresta. Isso fez-me

pensar. Falei dela à detetive gambá. Quando revistaram a casa e as coisas

dela, tive pena dela… mesmo depois de tudo o que fez. Era a vez dela de

ter todos aqueles olhos em cima das suas coisas. Então descobriram que

era a irmã da Menina do Chupa-Chupa. Quando ouvi isso, pensei, Agora

estão as duas mortas. Tive a certeza. Não sei porquê.

Encontraram a cassete amarela da Mamã na casa da irmã. Tinha as

notas dela sobre a Menina do Chupa-Chupa. A detetive gambá diz que

parece que a menina já estava morta quando a Mamã a apanhou. Mesmo

assim, não consigo pensar nisso.

Tenho a certeza de que a Mamã confundiu a Menina do Chupa-

Chupa com um rapaz. A Mamã nunca se metia com raparigas. Por isso,

a Mamã apanhou-a por causa de uma série de coincidências. Um corte

de cabelo, uma viagem ao lago, uma curva errada. Faz o meu coração
doer e acho que essa sensação nunca irá embora. Como um corte que

nunca sara.

Eu e a detetive gambá estamos a beber refrigerantes no meu quintal.

Doem-nos os dedos depois de arrancarmos tantos pregos. O

contraplacado jaz em pedaços à nossa volta. A casa fica tão estranha

com as janelas destapadas. Estou sempre à espera de que ela pestaneje.

Ainda está quente ao sol, mas à sombra está frio. As folhas formam um

manto espesso no solo, vermelho e laranja e castanho, todas as cores do

cabelo de Rob. Não tarda muito, vai ser inverno. Adoro o inverno.

Gosto da detetive gambá, mas ainda não estou pronto para a deixar

entrar em casa. Outras pessoas fazem da casa um sítio que não

reconheço. Ela parece entender isso.

– Sabes onde está a tua mãe?

A detetive gambá faz a pergunta subitamente, a meio de outra

conversa sobre lontras (ela sabe muito sobre lontras). Eu sorrio porque

consigo ver que ela está a gostar da conversa sobre lontras, mas também

a está a usar para fazer o seu trabalho de detetive, a tentar surpreender-

me para eu lhe dizer a verdade. Gosto disso, que ela seja tão boa no seu

trabalho.

– Devo continuar à procura dela? – pergunta. – Tens de me dizer,

Ted.

Penso no que devo dizer. Ela espera, a olhar para mim.

Não sei muito sobre o mundo, mas sei o que aconteceria se

encontrassem os ossos. As escavações, as imagens no jornal, na

televisão. A Mamã, ressuscitada. Iriam crianças à cascata à noite, para

se assustarem umas às outras, a contar histórias da enfermeira assassina.

A Mamã permaneceria um deus.


Não. Desta vez, ela tem mesmo de morrer. E isso significa ser

esquecida.

– Ela partiu – digo eu. – Está morta. Juro. É tudo.

A detetive gambá olha para mim por muito tempo.

– Muito bem – diz ela. – Nós nunca tivemos esta conversa.

Acompanho a detetive gambá até ao carro. Quando estou a voltar

para casa, reparo que a última letra do nome da rua está a ficar gasta. Se

estreitarmos os olhos, é como se não estivesse lá. Needles Street.

Estremeço e entro rapidamente em casa.

O senhor bicho desapareceu. O consultório dele está vazio. Eu fui

ver. Agora falo com a senhora bicho. O médico jovem do hospital

marcou-me uma consulta com ela. A senhora bicho vem a minha casa

algumas vezes e algumas vezes vou eu ao consultório dela, que é como o

interior de um icebergue, frio e branco. Contém um número normal de

cadeiras. Ela é muito simpática e não se parece nada com um bicho, mas

ainda tenho problemas com nomes. E tanta coisa mudou. Talvez eu

precise de uma pequena coisa que fique na mesma.

Ela sugeriu que eu ouvisse as minhas gravações para ver o que tinha

esquecido. Fico espantado ao descobrir que gravei 12 cassetes. Não

achava que gravasse assim tanto, mas é por isso que preciso das cassetes,

não é? Porque a minha memória é mesmo má.

As cassetes estão numeradas, por isso começo pelo número 1. Os

primeiros 20 minutos são o que eu esperava. Tem algumas receitas e

umas cenas acerca da clareira, do lago. Então há uma pausa. Acho que

deve ter acabado e preparo-me para trocar a cassete quando alguém

começa a respirar no silêncio da cassete. Para dentro e para fora. Sinto

um calafrio nos braços e nas pernas. Aquela não é a minha respiração.

Então uma voz hesitante e afetada começa a falar.


Estava ocupada com a língua, diz ela, a tratar da comichão na pata,

quando Ted chamou por mim. Diabo, agora não é boa altura.

O coração salta-me no peito. Não pode ser… oh, mas é. Olivia, a

minha linda gatinha perdida. Não sabia que ela sabia falar. Não admira

que nunca conseguisse encontrar o gravador de cassetes. Ela soa doce e

preocupada, como uma professora. Ouvi-la é maravilhoso e triste, como

ver uma fotografia de quando éramos bebés. Quem me dera ter podido

falado com ela. Agora é tarde de mais. Escuto e escuto. Não sei porque

estou a chorar.

Chama-se integração, diz-me a senhora bicha. Acontece às vezes, em

situações como a nossa. Integração soa a algo que acontece numa

fábrica. Acho que eles só queriam ficar juntos, Olivia e o outro gato.

Seja como for, Olivia partiu e não vai voltar.

A senhora bicho diz sempre para eu deixar entrar os sentimentos,

para não os trancar fora de mim, e é o que tento fazer. Dói.

Há outras vozes no meio das gravações de Olivia… vozes que não

conheço. Alguns não usam linguagem, apenas grunhidos e longas pausas

e estalidos e assobios. Esses são os que se movem por mim a gemer

como pequenos fantasmas frios. No passado, tentei fechá-los no sótão.

Agora dedico tempo a ouvi-los. Passei demasiado tempo a tapar os

ouvidos.

Hoje em dia, acordo com a aurora. Ergo-me lentamente de um sonho

cheio de penas vermelhas e amarelas. A minha mente ecoa com sons

verdes e pensamentos que não são meus. Consigo sentir o sabor do

sangue na boca. Nunca sei de quem são os sonhos que vou ter à noite.

Mas o corpo descansa a sério, hoje em dia, em vez de ser usado por um

dos outros enquanto durmo. Por isso, vale a pena.


Outras coisas também estão diferentes. Três vezes por semana,

trabalho na cozinha de um restaurante do outro lado da cidade. Gosto da

caminhada, de ver a cidade a crescer lentamente à minha volta. Por

enquanto, só lavo pratos, mas dizem-me que dentro de pouco tempo

poderei começar a ajudar nas fritadeiras. Hoje não há trabalho… o dia é

só para nós.

Sem contraplacado nas janelas, a casa parece feita de luz. Levanto-

me da cama, com cuidado para não romper os agrafos no meu torso. O

nosso corpo é uma paisagem, tanto de cicatrizes como de feridas novas.

Levanto-me e por um momento dá-se uma luta nas nossas profundezas.

O corpo balança perigosamente e todos nos sentimos enjoados.

Amuada, Lauren deixa-me tomar controlo. Equilibro-nos com uma mão

na parede e respiro fundo. O dia está cheio destas lutas sísmicas e

nauseantes. Estamos a aprender. Não é fácil manter a todos no coração

ao mesmo tempo.

Mais tarde, talvez fique Lauren com o corpo. Ela vai andar de

bicicleta e desenhar, ou podemos ir até à floresta. Mas não à clareira, ou

à cascata. Não vamos aí. O vestido azul, a mala pequena, os ossos… têm

de ser deixados em paz até pararem de ser deuses e voltarem a ser

apenas coisas velhas.

Vamos caminhar debaixo das árvores e ouvir os sons da floresta no

outono.

A detetive gambá e a polícia andam a fazer buscas na floresta perto

do lago. Querem encontrar os meninos que a Mamã raptou. Eles acham

que podem ter sido seis, ao longo dos anos. É difícil dizer porque há

crianças que fogem mesmo. Eram quase todos rapazes de famílias tristes

ou sem família. A Mamã escolheria aqueles de quem ninguém sentiria

falta. A Menina do Chupa-Chupa foi notícia porque tinha pais.


Talvez um dia os meninos sejam encontrados. Até lá, espero que

estejam em paz debaixo da floresta verde, nos braços da terra bondosa.

Ao fim da tarde, eu e a Olivia Noturna vamos dormitar no sofá, a ver

corridas de camiões. Quando cair a noite, eles vão caçar. Um momento

de inquietação percorre-me o corpo, como o toque de uma folha

molhada no pescoço. A Olivia Noturna é grande e forte.

Bom, está um dia bonito e é hora do pequeno-almoço. Ao passar

pela sala, espreito para admirar o meu tapete novo. É da cor de tudo…

amarelo, verde, ocre, magenta, cor-de-rosa. Adoro-o. Acho que podia ter

deitado fora o velho tapete azul em qualquer altura depois da partida da

Mamã. É estranho como só me ocorreu depois de tudo o que aconteceu.

Vamos até à cozinha. Até agora, só descobrimos uma coisa que todos

gostamos de comer. Às vezes, comemos todos juntos de manhã.

Descrevo sempre o que estou a fazer, para todos nos lembrarmos. Já não

preciso de gravar as minhas receitas.

– Vamos fazer assim – digo eu. – Tiramos morangos frescos do

frigorífico. Lavamo-los em água fria a correr. Pomo-los numa taça. –

Observamo-los a brilhar à luz do sol matinal. – Podemos secá-los com

um pano ou podemos esperar que o sol faça o seu trabalho. Como

quisermos.

Costumava cortar os morangos em quatro com uma faca romba,

porque não havia nada afiado na casa. Mas agora tenho um conjunto de

facas de cozinha num suporte no balcão.

– Isto chama-se confiança – digo eu enquanto corto. – Alguns de nós

têm muito a aprender sobre o assunto. É uma faca de dois gumes.

Acho que é a isto que Lauren chama piadas de pai.

A lâmina reflete a polpa vermelha da fruta ao cortar. O cheiro é doce

e terroso. Sinto alguns deles a torcerem-se de prazer cá dentro.

– Estão a cheirar isto?


Tenho de ter cuidado com a faca perto dos dedos. Agora já não dou

dor aos outros.

– Então, cortamos os morangos o mais fino que pudermos e

vertemos vinagre balsâmico. Deve ser daquele velho e espesso como

xarope. Agora, pegamos em três folhas do manjericão que cresce no

vaso no peitoril da janela. Cortamos as folhas em tiras finas e inalamos o

aroma. Juntamos o manjericão aos morangos com vinagre balsâmico.

É uma receita, mas às vezes soa como um feitiço.

Deixamos os morangos ficar por uns minutos, para os sabores

poderem misturar-se. Usamos esse tempo para pensar, ou observar o

céu, ou sermos nós próprios.

– Estou a pôr a mistura de morangos, manjericão e vinagre

balsâmico numa fatia de pão – digo eu, quando me sinto pronto. O pão

tem um cheiro castanho a nozes. – Trituro pimenta-preta por cima. Está

na hora de ir lá para fora.

O céu e as árvores estão repletos de pássaros. As canções avançam e

recuam à nossa volta, pelo ar. Lauren solta um pequeno suspiro quando

o sol aquece a nossa pele.

– Agora – digo eu. – Vamos comer.


Posfácio

Se ainda não acabou A Última Casa de Needless Street, não continue

a ler… o que se segue é um grande spoiler.

Foi assim que acabei por escrever um livro sobre sobrevivência,

disfarçado de livro de terror. No verão de 2018, estava a escrever sobre

um gato e não conseguia perceber porquê. Sempre me sentira fascinada

pela aparente facilidade com que aqueles que não sentem empatia

formam ligações fortes e apaixonadas com os seus animais de estimação.

Bleep, o cão do assassino em série Dennis Nilsen, era a única criatura

com quem o assassino mantinha o que poderia ser descrito como uma

relação funcional. Ele adorava Bleep e o destino do cão foi a sua única

preocupação quando foi preso. Por isso, pensei, Talvez essa seja a

história certa, a história que devia estar a escrever. A gata Olivia, que

vive com Ted e lhe dá conforto, apesar de ele ter raptado uma menina

pequena chamada Lauren e a manter prisioneira. Mas não estava a

funcionar. Ted não parecia um assassino ou um raptor. Deparava-me

sempre com surtos de compaixão por ele. A história dele parecia ser

uma história de sofrimento e sobrevivência, não a história de um

criminoso abusivo. E Olivia não se comportava bem como um gato.

Tinha algumas qualidades de gato, mas a voz dela não parecia humana

nem felina, mas algo diferente. Ela parecia parte dele. E Lauren também,

a menina que supostamente era prisioneira de Ted.

Estava a investigar os efeitos dos abusos na infância quando me

deparei com um vídeo online de uma mulher jovem chamada Encina,

que sofre de perturbação dissociativa de identidade, a falar da sua

condição. Falava com grande franqueza e compaixão do seu alter ego

mais novo. Tratava-a como se fosse sua filha, adotando uma atitude
maternal, tomando conta dela, garantindo que ela não se assustava ou se

deparava com atividades que não era capaz de fazer, como conduzir. O

alter ego mais novo apareceu por algum tempo e falou. Falou de como

se sentia sozinha, porque as outras crianças não queriam brincar com

ela, por ela estar num corpo grande e elas não entenderem. Senti a

minha visão da vida a mudar enquanto as via a falar. O vídeo consta na

bibliografia (What It’s Like To Live With Dissociative Identity Disorder

(DID)). Percebi que o livro que estava a escrever nunca fora sobre uma

gata chamada Olivia, uma menina chamada Lauren e um homem

chamado Ted. Era sobre alguém que tinha todas essas personalidades

dentro de si. Não era sobre terror, mas sobre sobrevivência e esperança,

e como a mente lida com o medo e o sofrimento.

Já ouvira falar de PDI. É o centro de muitas histórias de terror. Mas

ao ouvir o sistema de Encina descrever como a sua personalidade

divergiu para lidar com abusos, senti que uma parte do mundo que

nunca compreendera bem finalmente fazia sentido. Agora, o mundo

parecia mais estranho, mas também mais real. Era uma espécie de

milagre, mas também fazia todo o sentido, que a mente pudesse fazer

isto.

Telefonei a uma amiga que é psicoterapeuta. Ela trabalhou, entre

outros, com sobreviventes de tráfico humano e tortura.

– Isto é real? – perguntei-lhe. – Isto é uma coisa a sério?

Não fui muito eloquente.

– Na minha experiência, é absolutamente real – respondeu ela.

Durante um ano, desci pelas catacumbas, lendo tudo o que podia

sobre PDI. Percebi de repente sobre o que era o livro e em que direção

tinha de ir.

Há pessoas na comunidade terapêutica e no mundo em geral que

acreditam firmemente que esta perturbação não existe. A PDI parece


ameaçar a visão do mundo de muitas pessoas. Talvez porque interfere

com o nosso conceito de alma, a ideia de que pode haver mais do que

uma pessoa dentro do mesmo corpo é aterradora. É certo que perturba

as bases de muitas religiões.

As histórias que acompanham esta perturbação são, sem exceção,

horríveis. É o último recurso da mente, quando confrontada com dor e

medo insuportáveis. Estou especialmente grata ao First Person Plural,

um dos maiores grupos de apoio a pessoas com perturbação dissociativa

de identidade no Reino Unido, por me ajudarem a perceber melhor esta

condição complexa. A página e os recursos online do grupo são listados

no fim do livro.

Falei com alguém que sofre de perturbação dissociativa de

identidade e que trabalha com outros com a mesma condição, ao longo

de uma longa tarde. Pediram-me para não serem identificados.

Conhecemo-nos numa estação de comboios e fomos até um café

próximo para falar. No início, estávamos ambos embaraçados e tímidos.

É um assunto íntimo para discutir com desconhecidos. Mas eles

expuseram o seu passado, e a sua vida, com uma honestidade sem

reservas.

Falaram de como a PDI não é uma perturbação quando surge pela

primeira vez. Salva a mente da criança de uma agressão insuportável;

desempenha uma função salvadora. É apenas na vida adulta, quando já

não é necessária, que se torna uma perturbação. Falaram de um dos seus

alter egos, «Pernas», que não fala. A única função de Pernas fora levá-

los de volta para a cama após o abuso. Descreveram como, enquanto o

abuso tinha lugar, mandavam embora as diferentes partes do corpo.

Ficavam apenas com o dedo grande do pé, que usavam para voltar a

juntar o corpo a seguir. Contaram-me como alguns dos alter egos

costumavam desprezar as partes que sofriam o abuso. Alguns não


compreendem porque estão num corpo que não reflete quem são em

termos de idade, género ou aparência. Isso deixa-os zangados. Alguns

tentaram magoar o corpo. Outros alter egos tentam manter a distância,

«selados a vácuo», isolados do resto do sistema. Querem viver uma vida

separada, em paralelo. O propósito dos diferentes alter egos está bem

definido. O alter ego que vai trabalhar trata com frieza membros da

família ou um parceiro que telefonem ou venham ter com eles durante o

dia. O alter ego do trabalho faz o trabalho, mais nada.

Descreveram como a memória funciona de forma diferente para eles.

Cada alter ego retém certas experiências. A memória não é linear, está

repartida por uma série de compartimentos.

– Nunca vou conhecer a sensação de me recordar das coisas como a

senhora – disseram-me.

Isso pode tornar difícil as tarefas mais simples. Quando seguem uma

receita, por exemplo, não se conseguem lembrar de mais do que quatro

ingredientes de cada vez. Reter demasiada informação é perigoso,

porque significa que podem ter de se lembrar de outras coisas. Às vezes,

deixam um espaço vazio entre trocas, deixando o corpo vago por um

momento, para que os alter egos não tenham de partilhar conhecimento.

Descreveram como era difícil fazer a mala para umas férias; tinham de

se lembrar de pôr na mala as várias coisas de cada um, roupas para

todos os alter egos de idades diferentes. Descreveram os seus mundos

interiores, onde os alter egos se podem reunir: uma quinta numa

encruzilhada, onde inimigos a aproximarem-se podem ser vistos de

qualquer direção; um recreio guardado por exércitos; uma praia.

Disseram que estavam a ficar melhor. O alter ego que costumava

rasgar fotografias, numa tentativa de destruir o passado, parou de o fazer.

Após anos de terapia e uma família sua, estavam a aprender a viver

juntos como um só.


– O que gostavam que as pessoas soubessem sobre a perturbação que

achem que não é bem compreendido? – perguntei, para rematar a

conversa.

– Gostávamos que as pessoas soubessem que estamos sempre a

tentar fazer o bem – responderam. – Estamos sempre a proteger a

criança.

Podia demorar uma vida inteira a compreender esta perturbação

complexa. Parece haver muita variação entre casos e uma multitude de

formas diferentes para a perturbação dissociativa de identidade se

manifestar. Ted não se baseia em nenhum caso específico. É

completamente imaginário e todos os erros são da minha autoria. Mas

tentei fazer justiça neste livro às pessoas cujas vidas são tocadas pela

PDI… manter-me fiel ao que me disseram nessa tarde, sobre duas

chávenas de café a arrefecer. A perturbação dissociativa de identidade

pode ser usada como um elemento de terror em ficção, mas, na minha

breve experiência, é exatamente o contrário. Aqueles que sobrevivem, e

vivem com ela, estão sempre a tentar fazer o bem.


Agradecimentos

À minha maravilhosa agente, Jenny Savill, cuja fé em Ted, Olivia e

Lauren me fez seguir em frente e que lutou por eles até ao fim, só posso

dizer obrigada. Os astros deviam estar alinhados no dia em que nos

conhecemos. Robin Straus, a minha maravilhosa agente americana, e a

sua colega Katelyn Hales trabalharam incansavelmente para levar este

livro para os Estados Unidos. Fico-lhes eternamente grata.

A incansável e imparável Miranda Jewess editou este livro com

firmeza e gentileza até à sua forma final. Deve ter sido como conduzir

uma junta de polvos por Piccadilly. Fico repleta de admiração por ela,

Niamh Murray, Drew Jerrison e toda a equipa da Viper, por todo o

trabalho esforçado que fizeram para apoiar este livro. A Última Casa de

Needless Street encontrou a editora perfeita para os Estados Unidos em

Kelly Lonesome O’Connor e o melhor lar americano na Tor Nightfire. É

tão gratificante trabalhar com estes editores maravilhosos.

Amor e gratidão, como sempre, para a minha mãe, Isabelle, e o meu

pai, Christopher, por toda a ajuda que me deram desde o primeiro passo.

O apoio deles sustenta-me, bem como o da minha irmã Antonia e da sua

família, Sam, Wolf e River.

Aos meus magníficos, bondosos e impressionantes amigos, obrigada.

Estou tão grata a Emily Cavendish, Kate Burdette, Oriana Elia, Dea

Vanagan e Belinda Stewart-Wilson, pela sua disponibilidade para me

ouvirem, por um sítio onde pousar a cabeça nos tempos difíceis, pelas

muitas palavras de conforto, bem como observações mais cáusticas,

vinho e muita sabedoria. Natasha Pulley tem a minha mais profunda

gratidão pelas nossas longas conversas, pelas ideias excelentes e pelo

humor sem fim. O apoio e a amizade de Gillian Redfearn foram uma

linha salva-vidas. Os meus primeiros leitores foram Nina Allan, Kate


Burdette, Emily Cavendish e Matt Hill, o encorajamento deles motivou-

me a continuar. A alegria, criatividade e amizade de Eugene Noone

inspiraram-me durante tantos anos e a sua memória continuará a fazê-lo.

Deixa muitas saudades, em mim e em muitos outros.

Sinto-me profundamente agradecida ao meu infinitamente talentoso

e maravilhoso parceiro Ed McDonald, pelo apoio, pela generosidade e

pelo olho de lince editorial. Também me sinto muito abençoada. Mal

posso esperar por mais aventuras juntos.

A instituição de caridade First Person Plural providenciou-me

recursos inestimáveis sobre a PDI e ajudou-me a compreender como é

viver com este transtorno complexo. Ajudaram a dar vida à perturbação

dissociativa de identidade na minha mente; espero ter-lhes feito justiça.


Bibliografia

American Psychiatric Association, 2013. Diagnostic and Statistical

Manual of Mental Disorders: DSM-5, Arlington, VA: American

Psychiatric Association.

Anónimo, sem data. «About Dissociative Jess», Dissociative Jess

[blogue]. https://dissociativejess.wordpress.com/about/ [acedido em

setembro de 2018]

Barlow, M. R., 2005. Memory and Fragmentation in Dissociative

Identity Disorder [tese de doutoramento], Universidade de Oregon.

https://dynamic.uoregon.edu/jjf/theses/Barlow05.pdf [acedido a 2 de

novembro de 2018]

Boon, S., Steele, K., and van der Hart, O., 2011. Coping with

Trauma-related Dissociation: Skills Training for Patients and

Therapists, Londres: WW Norton and Co.

Chase, Truddi, 1990 (1987). When Rabbit Howls, Nova Iorque: Jove.

Dee, Ruth, 2009. Fractured, Londres: Hodder & Stoughton.

DID Research, 2017. «Cooperation, Integration and Fusion».

http://did-research.org/treatment/integration.html [acedido a 9 de agosto

de 2018]

DID Research, 2015. «Internal Worlds». http://did-

research.org/did/alters/internal_worlds.html [acedido a 5 de julho de

2017]

DissociaDID, 2018. InnerWorlds (Debunking DID, ep. 8) [vídeo].

https://www.youtube.com/watch?v=CB41C7D7QrI [acedido a 5 de

janeiro de 2019].

DissociaDID, 2018. Making Our Inner World! – Sims 4 [vídeo].

https://www.youtube.com/watch?v=gXLhEWSCIc4 [acedido a 5 de

janeiro de 2019]
DissociaDID, 2018. Why We Won’t Talk About Our Littles (Switch

On Camera) [vídeo]. https://www.youtube.com/watch?v=ZdmPlIjIrBI

[acedido a 11 de novembro de 2018]

Hargis, B., 2018. «About Alter Switching in Dissociative Identity

Disorder», HealthyPlace [blogue], 14 de junho.

https://www.healthyplace.com/blogs/dissociativeliving/2018/6/about-

alter-switching-in-dissociative-identity-disorder [acedido a 11 de março

de 2019]

Jamieson, Alice, 2009. Today I’m Alice, Londres: Pan Macmillan.

Johnson, R., 2009. «The Intrapersonal Civil War», The Psychologist

Journal, abril de 2009, vol. 22 (pp. 300-3).

Karjala, Lynn Mary, 2007. Understanding Trauma and Dissociation,

Atlanta: Thomas Max Publishing.

Kastrup, B., Crabtree, A., Kelly, E. F., 2018. «Could Multiple

Personality Disorder Explain Life, the Universe and Everything?»

Scientific American [blogue], 18 de junho.

https://blogs.scientificamerican.com/observations/could-multiple-

personality-disorder-explain-life-the-universe-and-everything/ [acedido

a 13 de março de 2019]

Matulewicz, C., 2016. «What Alters in Dissociative Identity

Disorder Feel Like», HealthyPlace [blogue], 25 de maio.

https://www.healthyplace.com/blogs/dissociativeliving/2016/05/the-

experience-of-alters-in-dissociative-identity-disorder [acedido a 12 de

março de 2019]

MedCircle, 2018. «What It’s Like To Live With Dissociative Identity

Disorder (DID)» [vídeo]. https://www.youtube.com/watch?

v=A0kLjsY4JlU [acedido a 3 de agosto de 2018]

Mitchison, A., 2011. «Kim Noble: The woman with 100

personalities», Guardian.
https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2011/sep/30/kim-noble-

woman-with-100-personalities [acedido a 3 de junho de 2017]

MultiplicityandMe, 2018. «Dissociative Identity Disorder

Documentary: The Lives I Lead» [vídeo], BBC Radio 1.

https://www.youtube.com/watch?v=exLDxo9_ta8 [acedido a 11 de

dezembro de 2018]

Noble, Kim, 2011. All of Me, Londres: Hachette Digital.

Nurses Learning Network, sem data. «Understanding Multiple

Personality Disorders».

https://www.nurseslearning.com/courses/nrp/NRP-

1618/Section%205/index.htm [acedido a 3 de dezembro de 2019]

Paulsen, Sandra, 2009. Looking Through the Eyes of Trauma and

Dissociation: An Illustrated Guide for EMDR Therapists and Clients,

Charleston: Booksurge Publishing

Peisley, Tanya, 2017. «Busting the Myths about Dissociative Identity

Disorder», SANE [blogue]. https://www.sane.org/information-

stories/the-sane-blog/mythbusters/busting-the-myths-about-dissociative-

identity-disorder [acedido em Junho de 2018]

Psychology Today, 2019. «Dissociative Identity Disorder (Multiple

Personality Disorder)».

https://www.psychologytoday.com/gb/conditions/dissociative-identity-

disorder-multiple-personality-disorder [acedido a 7 de setembro de

2019]

Steinberg, Maxine, Schall, Marlene, 2010. The Stranger in the

Mirror: Dissociation, the Hidden Epidemic, Londres: HarperCollins

ebooks.

Truly Docs, 2004. «The Woman with Seven Personalities» [vídeo].

https://www.youtube.com/watch?v=s715UTuO0Y4&feature=youtu.be

[acedido em novembro de 2019]


Van de Kolk, Bessel, 2015. The Body Keeps the Score, Nova Iorque:

Penguin Random House.

West, Cameron, 2013 (1999). First Person Plural: My Life as a

Multiple, Londres: Hachette Digital.

Bibliotecas de recursos online

https://www.aninfinitemind.com/

http://didiva.com/

http://did-research.org/index.html

https://www.firstpersonplural.org.uk/resources/training-films/

https://www.isst-d.org/

http://www.manyvoicespress.org/

https://www.sidran.org/essential-readings-in-trauma/

https://www.sidran.org/recommended-titles/

Você também pode gostar