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A CONQUISTA DO CORSÁRIO

RANDALL
As Irmãs Wymond - 3

AMY CAMPBELL
SINOPSE
Lady Rose Wymond é o oposto do que se espera de uma jovem dama
nobre do século XIX. Desafiando os padrões estabelecidos da época com seu
atípico cabelo cor de fogo, sua língua ferina e postura afrontosa, a fama de
megera lhe sobreveio desde que frequentara seu primeiro baile. Decidida a
usufruir de sua liberdade recém-adquirida, ela embarca em uma inusitada
viagem, onde conhece o imponente e ultrajante Lennart Randall, um corsário
fora da lei que ganha a vida saqueando e trapaceando os infortunados que
acabam na mira de sua espada.
Rose acaba deparando-se com alguém tão petulante quanto ela. Contudo,
tamanho descaramento não é capaz de impedir seu coração traiçoeiro de
apaixonar-se.
Um homem de hábitos ilícitos e uma dama de atos ousados... Conseguirá
o amor ser maior que a presunção?
A CONQUISTA DO CORSÁRIO RANDALL
SINOPSE
NOTA DA AUTORA
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO CATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
CONHEÇA O PRÓXIMO LIVRO DA SÉRIE: AS IRMÃS WYMOND
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Copyright © Amy Campbell, 2019

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Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas,
factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Revisão: Hellen Caroline


Capa e diagramação: Amorim Design

A CONQUISTA DO CORSÁRIO RANDALL


© Todos os direitos reservados à Amy Campbell
NOTA DA AUTORA
Em um mundo farto de futilidades, as vezes não é tão fácil discernir a
ambição da ganância.
Certa dose de ambição é preciso para alcançar determinado objetivo, seja
ele uma grande pretensão ou uma doce aspiração.
Há uma linha tênue entre precisar e apenas querer, e o empenho que
realizamos para obter ambos é o que faz a diferença.
Só é possível distinguir os verdadeiros valores, quando há no coração a
sabedoria de buscá-los.
Quando em nosso íntimo reside princípios genuínos, não cairemos na
tolice de gastar esforços tentando alcançar o vento.
Arrisque-se pelos seus ideais, mas não perca de vista seus sonhos.
Busque um propósito, mas não abandone sua autenticidade no caminho.
Empenhe-se o quanto puder, mas não ameace sua estabilidade mental
permitindo-se ir até a exaustão. Há muitas coisas para se conquistar, mas tenha
em mente apenas as que tem real valor.
PRÓLOGO
"No tempo em que o sol refletia o tesouro no final do arco-íris e as fadas
deixavam os changelings em algum canto escuro de uma árvore qualquer, as
druidas dançavam ao redor da fogueira sagrada em sua típica sincronia
espiritual. O vento revolto balançava a veste branca e puída da jovem que
rodopiava ao som das antigas canções pagãs. Embora estivesse absorta nos
movimentos pelo qual conduzia seu corpo, e a alma estivesse distante o
suficiente para não retornar às trivialidades carnais, ainda assim, ela voltou-se
em direção aos salgueiros que permeavam a clareira como um reduto.
Se não fosse pelo ruído de um graveto quebradiço sendo estilhaçado,
jamais ela o teria visto.
Pôs ambas as mãos sobre o colo exposto, sentindo o frio pela primeira
vez naquela noite. O par de olhos negros parecia desnudá-la apenas com a
intensidade e persistência com que a observava. A jovem sentiu medo assim que
enxergou a ausência de inocência no olhar daquele homem.
Aliás, nada nele lhe transmitia inocência.
Mesmo que um lado de seu corpo fosse ocultado pelas sombras do pilar
coberto de hera, podia ver a postura intimidante diante da notoriedade de sua
aparência rústica.
Usava botas de couro gasto, calças absurdamente justas — tão justas
que pôde ver detalhes que não ousaria nem pensar —, uma camisa escura e um
colete cinza que contrastava com a combinação do casaco de veludo que o
envolvia até quase os joelhos. A gravata frouxa pendia do seu pescoço de modo
absurdamente convidativo. Os cabelos eram tão negros que furtavam o
esplendor da escuridão do anoitecer, caindo até quase os ombros, moldando um
rosto rígido de expressões fincadas. Os olhos igualmente negros, tanto quanto os
céus sem a luz do luar, não a abandonavam.
Pareciam devorá-la como uma presa fácil, deixada à mercê de seu bel
prazer.
Quis deter-se ao notar que caminhava lentamente na direção do
desconhecido que a estava enfeitiçando, no entanto, seus pés não retrocediam
conforme sua lúcida vontade.
À medida que se aproximava, um sorriso escapou dos lábios tentadores
do homem que invadia seus sentidos, fazendo-lhe experimentar reações tão
primitivas quanto o desejo.
Sim, ela o desejava.
Desejava tanto que não era capaz de deter as sensações libidinosas que
seu íntimo clamava enquanto não permitia-se desviar dos lábios que estavam
perto demais dos seus.
Perigosamente perto.
Impulsivamente, ergueu-se na ponta dos pés quando ele estava próximo
o suficiente tocá-la com a ponta da língua, e delicadamente pousou uma das
mãos em seu rosto de pedra, no mesmo instante em que ele a envolveu pela
cintura com um aperto longe de ser considerado sutil. O hálito quente soprava
em sua boca entreaberta enquanto encontrava abrigo nos braços que jamais a
deixaria partir.
Entregou-se em um momento de enlouquecedora luxúria quando ele..."

Dois anos antes...

— Rose!
A jovem donzela saltou da poltrona em que estava, quase derrubando os
papéis que trazia sobre o colo. Antes que a flagrassem, pôs as folhas amareladas
dentro de um livro que minutos antes fora rapidamente esquecido ao lado de sua
xícara de chá, que já encontrava-se fria.
— Rose! — A mãe chamava com sua típica postura afoita.
Sua mãe, a Condessa de Houghton, sempre gritava em alto e bom som
quando queria a atenção de alguém. Não importava a razão, mesmo que fosse
apenas informar-lhe que uma correspondência havia chegado, ainda assim, a
chamaria com o mesmo denodo que mostraria se precisasse anunciar que a
propriedade estava em chamas.
— Estou aqui, mãe, na biblioteca... — Revirou os olhos tentando não
bufar de forma enfadonha.
Isabel pôs as mãos na cintura após adentrar no cômodo que cheirava à
cera de vela queimada e páginas mofadas. Segundo ela, era uma perda de um
tempo valioso gastar todas as horas do dia enfurnada naquele antro de
antiguidade em que a filha passara a estar compenetrada nas últimas semanas.
— O que faz aqui novamente? — Seus olhos eram insondáveis,
certamente estava desconfiada.
— Resolvi estudar um pouco destas importantíssimas lições! — Ergueu a
capa do livro revelando seu título.
— Regras de etiqueta para damas respeitáveis? — indagou, soando um
tanto mais incrédula do que havia planejado.
Rose deu de ombros sem desviar os olhos do grosso volume que continha
as regras estúpidas que mais odiava na vida, olhou as páginas soltas da história
que estava escrevendo e pigarreou como se estivesse interessada em retornar à
suposta leitura.
— Está bem. — Isabel espiou mais uma vez o título do exemplar que a
jovem segurava com tanto zelo como se não pudesse crer naquilo. — Eu só
queria dar-lhe uma notícia... mas não sei se será tão cativante quanto às regras
que está aprendendo... — Observou-a de soslaio, ainda intrigada demais, entre as
páginas.
— Pois diga-me depressa, mãe. — Umedeceu um dedo entre os lábios e
virou uma das páginas, ainda fingindo um inegável interesse.
— Já tratei do assunto com seu pai, e decidimos realizar os preparativos
do seu baile de apresentação à sociedade. — Juntou as mãos sobre o colo,
esperando.
Mal pôde abafar o grito agudo que escapou de seus lábios quando ouviu
as palavras da mãe.
Seu primeiro baile!
Enfim estaria livre para conhecer tudo o que aquelas paredes lhe
impediam. Levantou-se de modo tão ligeiro que sobressaltou a Condessa, que
arfava à medida que a via dar pulinhos e perambular pelas estantes altas,
enquanto sorria tão amplamente que o som das gargalhadas ecoava, quebrando o
silêncio imperturbável do ambiente.
— Eu preciso de um vestido! — Parou abruptamente, dando-se conta
daquela imprescindível necessidade. — Um belo vestido de mangas bufantes e
que tenha um laço de cetim — decidiu.
— Teremos tempo de encomendá-lo ainda esta tarde se largar este livro
agora mesmo, e for se aprontar. — Ergueu uma das sobrancelhas.
— Terá de ser verde como a relva que cobre a mais densa colina! Não
seria um sonho ter um vestido de tal cor, mamãe? — Divagou com o olhar a
mirar algum lugar longínquo.
— Hãmn... Acho que sim.
Ponderou por alguns segundos, tentando lembrar-se do exato tom de
verde das relvas que cobriam as...
— Com um vestido assim eu obteria os olhares mais calorosos, não
acha? — perguntou para ninguém em especial e prosseguiu: — Oh! Seria tão
maravilhoso se eu pudesse encontrar o cavalheiro cujo a honra e coragem
despertassem em mim algum sentimento. Não seria estupendo? — Voltou-se
para a Condessa que certamente estava confusa demais com toda aquela
empolgação.
— Não acho que deva pensar em certas coisas assim desse jeito tão... —
Não pôde concluir a sentença, pois a filha acabara de segurar sua mão como se
fossem iniciar uma valsa.
— Certamente deixaremos todos encantados pela forma graciosa que nos
moveremos pelo salão! — Deu dois passos para a esquerda, ainda imersa em sua
imaginação tão aflorada. — Estaremos tão próximos que eu sentiria o hálito
doce e quente roçar em minhas bochechas... — Fechou os olhos, recobrando a
cena inacabada que estava escrevendo antes da mãe interrompê-la.
— Rose, pare agora mesmo com essas bobagens! — Isabel apartou-a
com certa brusquidão. — Não devia pensar nestas coisas tão impróprias. Aliás,
nada disso acontecerá. Eu estarei atenta para certificar-me que estará distante o
bastante para que não sinta nenhum hálito em suas bochechas! — Negou com a
cabeça repetidas vezes. — Imagine só! — Alisou as saias que já estavam
perfeitamente alinhadas.
— Não foi exatamente isso que eu quis dizer. — Abriu os olhos um tanto
desconcertada por ter dito aquilo em voz alta.
— Vá se aprontar, Rose — declarou categórica enquanto retirava-se do
cômodo com uma das mãos sobre a boca, ocultando o sorriso ao ver a filha tão
animada.
Mal podia conter a euforia em que estava. Sempre sonhara com o dia em
que poderia finalmente ser vista na sociedade. Afinal, Rose amava o bulício
londrino desde menina. Era uma tortura terrível ser a mais nova de suas irmãs,
pois fora obrigada a vê-las ganhar a liberdade que tanto desejava e ainda não
tinha idade o suficiente para usufruir.
No entanto, agora era sua vez.
Tinha a chance de sair por aqueles portões e decidir por qual rumo
enveredaria seu destino.
Constataria se realmente era verídico o que as amigas que já haviam
debutado costumavam cochichar em seus ouvidos.
Jane, Madeline e Eleonor lhe disseram que todas elas ganharam seu
primeiro beijo em um baile. Todas as três garantiam-lhe que era a melhor
oportunidade de vivenciar tal experiência.
Não que ela realmente desejasse ser beijada...
— Sua tola! — repreendeu-se.
Não poderia enganar a própria consciência. Sim, ela desejava
experimentar um beijo. Mas desejava ainda mais degustar dos licores de cores
vibrantes que vira as amigas bebericarem em suas taças tantas vezes. Para ser
franca, Rose queria explorar tantas coisas que apenas uma noite não lhe seria
tempo o bastante.
Ela queria abraçar o mundo.
Cingir cada pequena fresta de seu limitado universo com tudo que ainda
aprenderia.
Almejava conhecer os lugares mais inusitados e provar para si mesma
quão belo era o mundo em que vivia.
Saiu da biblioteca tomando cuidado para levar consigo os papéis que
logo guardaria debaixo de seu colchão. Aquele era o local perfeito para esconder
coisas. Se um dia precisasse esconder um pretendente em seu quarto, o faria
caber debaixo do colchão.
Riu consigo mesma sobre o pensamento nada adequado à uma dama de
sua estirpe. Definitivamente, deveria encontrar outro lugar para ocultar seus
segredos, pois ali já estava lotado o bastante com seus livros de romances que
eram estritamente proibidos para sua idade.
Talvez atrás da mobília fosse um ótimo lugar...
Observou o canto escuro entre os móveis e mordeu os lábios em uma
mania tão trivial que nem percebera. Teria tempo para pensar nisso depois.
Pegou a escova dourada na penteadeira e sentou-se em frente ao espelho,
mirando seu próprio reflexo distorcido entre as inúmeras colagens que pendiam
do objeto.
Um recorte de um periódico que continha informações valiosas dos vales
impressionantes de algumas das ilhas que sonhara em visitar, havia também uma
página antiga com uma das preces mais lindas que já vira na vida, e decorara
com grande estima, apenas para pronunciá-la dramaticamente todas as noites
antes de adormecer. E por último, algumas pinturas feitas por Allie, a única irmã
dotada de algum talento artístico, já que Lilian, a mais velha, era um verdadeiro
desastre com um pincel e uma paleta de aquarelas nas mãos.
Rose, por sua vez, apreciava pintar. Não era tão ruim, mas também
admitia que não era tão boa a ponto de levar a ideia adiante.
Entretanto, isso não lhe causava frustração, já que havia descoberto
recentemente uma outra paixão.
Histórias.
Adorava contá-las, encená-las ou criá-las.
A primeira vez que guiou sua pena ao papel, foi como se o mundo todo
coubesse entre o vão de seus dedos. Era mágico!
Magia... Outra coisa que lhe tirava da realidade. Não que acreditasse em
feitiços ou quisesse praticar bruxaria. Jamais. No entanto, via a magia em tudo
que seus olhos capturavam. Quer fossem as fases gradativas de uma pequena e
insignificante lagarta ao transformar-se em uma exuberante borboleta, ou nas
mais distintas lendas que resultavam em canções ou versos poéticos.
Prendeu os cachos esticados do fino cabelo ruivo com uma fita azul,
deixando apenas uns fios caírem em seu rosto, destacando os olhos azuis que
costumavam ver o que para os demais era invisível.
Respirou fundo, pôs o chapéu e segurou firmemente a pedra que pendia
de seu pescoço, cujo as tonalidades mudavam de acordo com a luz que a
irradiava. Olhou para o colar que estava com um brilho tão rubro quanto seus
cabelos e sorriu, desejando que sua vida fosse colorida com a mesma
intensidade.
— Preciso encontrar o vestido perfeito — disse em voz baixa, sentindo o
pulsar acelerado do ensandecido coração.
Saiu do cômodo como se o vestido perfeito fosse fugir de seu alcance
caso demorasse mais alguns segundos. Rose esperava uma noite mágica.
Uma noite que ficaria para sempre em suas recordações. Uma noite
propícia para tornar realidade todos os seus desejos ocultos.
Infelizmente, o que ela não esperava, era o quão decepcionada sairia
dela.
CAPÍTULO UM
"... Separou os lábios dela com a ponta do indicador e apreciou a
pequena abertura entre os dedos. Por Deus! Queria tanto beijá-la que podia
sentir tensionar os músculos do próprio corpo, que suplicavam por ela, sua
feiticeira branca."

Os últimos raios de sol daquele dia assemelhavam-se a finos cordões de


ouro derramando-se no horizonte.
A noite seria tão perfeita quanto poderia, pensou Rose ao atear os
cabelos ruivos para trás em um despenhadeiro acobreado sobre suas costas.
Achara o vestido perfeito, afinal. Tão verde quanto às gramas onduladas
das terras altas. Com botões de madrepérolas e esvoaçantes saias de cetim. O
tecido ajustava-se à cintura, ressaltando as tímidas curvas voluptuosas, e um laço
extremamente espalhafatoso pendia entre o movimento de seus quadris, fazendo-
a sorrir enquanto virava-se para inspecioná-lo pelo espelho.
Acabara de pôr as luvas imaculadamente brancas em ambas as mãos, o
tecido leve como a plumagem dos pássaros subia até quase os cotovelos,
cobrindo-os e fazendo-a aparentar grande decoro. Apenas aparentar, pois até
mesmo ela dava-se conta do espírito despudorado que habitava seu corpo.
Estava longe de ser a dama passiva e indefesa que todos esperavam que
fossem.
— Rose, desça logo, querida. Todos a aguardam no salão — Isabel
declarou após uma breve batida na porta.
— Estou indo, mãe. — Um sorriso amplo beirava os lábios fartos da
jovem de coração inocente.
Jamais esqueceria a sensação de suas mãos deslizando pelo aço frio da
escadaria da mansão. Se recordaria até mesmo da luz dos lustres que quase a
cegaram à medida que caminhava não tão lentamente quanto deveria. Sequer
apagaria da memória o sorriso orgulhoso de seu pai quando a apresentou aos
demais que estavam ali para prestigiá-la em sua primeira temporada.
O sabor da limonada impregnava-se em sua boca enquanto via as amigas
aproximando-se de onde ela estava sentada já havia algum tempo.
— Deixe-me ver o seu cartão agora mesmo! — Jane pegou o cartão
preenchido e o analisou. — Não acredito — indignou-se.
— O que tem de errado em meu cartão? — Rose indagou, beirando a
apreensão.
— Deixe-me vê-lo também. — Madeline tomou-o das mãos de Jane,
ambas ignorando a indagação da amiga. — Santo Deus! — exclamou ela.
— Ah, digam logo, antes que Rose atire a taça de limonada nas duas —
Eleonor caçoou, sarcástica.
— Simon Lawford é o primeiro nome da lista! — Jane e Madeline
disseram em uníssono.
— Simon? — Rose inquiriu, tentando recobrar o nome em sua falha
memória.
— O Duque de Havenwood. — Eleonor deu de ombros em um gesto
banal, embora a inclinação sutil da sobrancelha lhe fosse extremamente
sugestiva.
— Oh! — Arfou Rose, tornando-se inquieta repentinamente.
Pensou nos cabelos loiros do Duque, na forma em que lhe caíam sobre os
olhos azuis, no porte altivo e na elegante beleza de seus lábios.
Ou seria inquietante beleza? Ponderou ao constatar o ritmo errático de
seu coração ao entoá-lo como uma melodia em seus pensamentos.
Jamais havia trocado uma palavra sequer com ele, embora o visse
constantemente na própria residência ao tratar de assuntos comerciais com seu
pai. Entretanto, isso não a impediu de fazê-lo protagonista de seus devaneios
mais sonhadores. Por vezes, gostava de imaginar que ele era o cavalheiro que lhe
resgataria da vida monótona que a mantinha como cárcere. Constituía as cenas
em sua mente, como se apenas o querer bastasse. Ele sempre habitava suas
lúdicas cenas românticas e a fazia rir com um diálogo inteligente e afiado como
a lâmina de uma espada de dois gumes. Um dia imaginou-o tão próximo, que
fechou os olhos sentindo o...
— Rose? — Jane estalava os dedos sob seu nariz de maneira nada
discreta.
— Oh! Eu esqueci do meu leque. — Despertou do transe de sua
imaginação sentindo uma crescente apreensão ao esquecer-se de um objeto tão
necessário quanto seu leque de marfim.
Rose partiu rumo à saleta onde havia deixado o objeto.
— Por que vai buscá-lo com tanta pressa justo agora que a orquestra está
iniciando a melodia? — Eleonor indagou, contendo a vontade de revirar os olhos
diante dela.
— Preciso agitar meu leque constantemente para que o Duque de
Havenwood possa notar o quanto estou interessada. — Um sorriso que poderia
muito bem ser considerado malicioso pintou seus lábios de rubi.
As três jovens assentiram para ela com risinhos abafados sob as luvas
enquanto a viam se afastar rapidamente.
Entrou na saleta minúscula, iluminada apenas por candelabros dispersos
ao redor do cômodo, encontrou o leque e apanhou-o de modo bem ligeiro,
apressando-se em voltar ao salão.
A hora havia chegado.
Ia dançar pela primeira vez com um cavalheiro de verdade!
Não que seu pai não fosse um cavalheiro ao girá-la em cima de seus pés
nas noites em que permitiam-se dormir algumas horas mais avançadas. No
entanto, dessa vez era diferente.
Extremamente diferente.
Tão diferente que pensou perder o dom da fala ao vê-lo se aproximar em
toda sua notoriedade e galanteio.
Fora capaz apenas de esboçar uma vênia breve ao petrificar-se com o
toque firme das mãos masculinas conduzindo-a pelo recinto abarrotado de casais
rodopiando entre eles.
Pôde ver pelo canto dos olhos as três amigas cochicharem de modo
bastante displicente quando o Duque pôs a mão no alto de suas costas e amoldou
o corpo ao seu de maneira bem enfática.
Não precisou nem abanar o leque, pensou enquanto maravilhava-se das
emoções que carregavam sua alma para dentro do oceano infinito que eram os
olhos que a fitavam.
— Está muito bela, milady — ele sussurrou entredentes perto da curva de
seu pescoço, apoderando-se de seus lúdicos sentidos.
Sorriu da maneira doce e graciosa que uma dama deveria sorrir. Pôde
sentir as bochechas corando de modo constrangedor. O Duque levou uma das
mãos ao seu rosto e o tocou tão levemente que sentiu apenas o roçar de sua luva,
como se tivesse sido beijada pela brisa morna da noite.
Flanaram pelo salão como se não houvesse ninguém mais ali. Era uma
noite mágica e Rose queria experimentar aquela magia como se o Duque
guardasse tal encantamento em seu estonteante sorriso.
Não havia percebido que a melodia cessara até que o sentiu se afastar de
si, deixando-a com uma infeliz sensação de desemparo.
— Não quer acompanhar-me, milady? Gostaria de oferecer-lhe uma
bebida, se lhe aprouver. — Estendeu uma das mãos em um convite inegável.
Rose encaixou-se em seu braço e deixou-se conduzir pelo charme que ele
certamente esbanjava. Ao caminharem em suaves e lentas passadas, encontrou o
olhar atento da mãe, que lhe fazia um gesto encorajador em direção a
Havenwood. Quis cavar sua sepultura ali mesmo, com as próprias mãos, ao notar
as insinuações de Isabel.
Ocultou o rosto com uma cortina de cabelos acobreados e seguiu em
frente, ignorando os olhares um tanto ínvidos que as senhoritas lançavam-lhe.
Certamente seria a grande comoção das conversas entre as rodas das alcoviteiras
no dia seguinte.
No momento em que aceitou a proposta do Duque para estender a
companhia após a dança que compartilharam, soube que a atenção de todos os
presentes voltaria para si.
Seu primeiro baile e já havia conquistado um Duque! Sorriu amplamente
com o pensamento e empinou ainda mais o queixo em sua postura um tanto
presunçosa.
Chegaram até uma das mesas mais distantes do ambiente luxuosamente
ornamentado, Havenwood pegou duas taças da bandeja mais próxima e fez um
gesto para que ela chegasse ainda mais perto.
Rose ultrapassou o limite respeitável e ficou a apenas um palmo de
distância do homem que habilmente abria uma garrafa de licor.
— Não vamos beber limonada? — ela indagou com surpresa.
— Esta noite não, milady. Ouso pensar que a senhorita queira algo
mais... quente — disse ao derramar o líquido borbulhante em sua taça.
A moça olhou para os lados, sentindo-se como uma gatuna roubando algo
que não lhe pertencia. Aquilo era ilícito e não condizia à fama tão modesta do
Duque. Embora temesse ser descoberta, levou a taça aos lábios, que tremeram
com o contato frio do vidro. Entornou alguns goles de uma só vez, antes de
esboçar expressões nada deleitáveis e arrancar divertidas gargalhadas de
Heavenwood.
— Isso tem um gosto terrível! — exclamou, limpando a umidade da boca
com as costas da mão.
— Melhora nas próximas vezes. Pode estar convicta deste fato. —
Abandonou a taça já vazia em cima da mesa e delicadamente buscou uma das
mãos dela.
Nada poderia preparar-lhe para aquela intimidade. Jamais havia segurado
a mão de um homem daquela maneira tão particular. Assim como não existia
nada no mundo que pudesse alinhavar suas reações quando sentiu o hálito doce e
quente tocar sua face quando ele murmurou palavras tão impertinentes em seu
ouvido.
— Parece-me que precisa de um pouco de ar fresco, milady — sugeriu,
categórico.
— Creio precisar de... de ar — devolveu a resposta, titubeante.
Ao passo que se distanciavam dos demais, as ações de Heavenwood
enveredavam por caminhos aos quais Rose ansiava tomar. Ele tomou ambas as
mãos da jovem quando estavam longe o bastante e ocultos pela sombra que
abrigava-os ali debaixo da penumbra que os envolvia como uma manta de
imprudência.
Ele veio lentamente em sua direção. Tão lentamente que seu coração
parecia gritar para que a tomasse nos braços com mais atitude. Com suavidade,
reivindicou seu rosto corado com ambas as mãos, como que apreciando-a antes
de prová-la.
— Eu gostaria tanto de beijá-la, Rose — confessou com a voz rouca da
cobiça que sentia pela jovem.
— Beije-me — anunciou como um pedido suplicante. Não era mais
capaz de esperar.
— Vou beijá-la até fazê-la perder o ar, milady... — Traçou uma linha
vagarosamente torturante em suas bochechas, até tocar os lábios pedintes.
— Pois beije-me, Vossa Graça... — Fechou os olhos e entreabriu os
lábios, entregue.
Ele enrolou uma das mechas de seu cabelo nos dedos e passou a girá-la, a
observando, como se os fios se tornassem flamejantes.
— Diga meu nome, milady — ordenou de modo conquistador.
Ela abriu os olhos que ainda mantinha fechados, fitando-o enquanto
divagava entre a irritação e o desejo. Ele a beijaria logo ou faria uma lista de
petições antes?
— Simon... — ela sussurrou seu nome como uma prece.
— Isso. — Beijou o canto de sua boca tentadoramente. — Agora diga-
me o que quer, milady? — suplicou, extasiado, ao sentir o perfume intenso dela.
Era mesmo necessário tantos pedidos antes de um beijo? Estava quase o
dispensando quando sentiu os braços descerem por sua cintura, estreitando-a em
si.
— Quero que me beije... Simon. — Pronunciou o nome que por um
instante quase esquecera.
Por um tempo que pareceu-lhe longo demais, ele a fitou, derretendo tudo
que havia em seu interior. Tornou inexistente a pequena distância que ainda
havia entre ele e colou os lábios aos dela com detida cautela.
E Rose esperou.
Esperou a magia acontecer enquanto sentia os lábios rígidos
pressionarem os seus, até os abrirem de modo contido. Pensou que morreria
quando a língua de Heavenwood invadiu sua boca, explorando-a tão
ousadamente, de uma forma tão... molhada. Tentava acompanhá-lo movendo
igualmente os lábios, mas ele parecia a deter, como se apenas ele tivesse o
direito de beijá-la, e não o contrário.
Era como se seu mundo girasse rápido demais e não pudesse suportar a
vontade inusitada de...
A vontade de vomitar!
Afastou-o abruptamente, dando-se conta do estrago que ele havia feito.
Não era possível que aquilo fosse um beijo de verdade! Havia sido nojento.
Extremamente nojento. Por mais que tentasse ver de outra forma, falhara
miseravelmente. Indignou-se ao precisar limpar a boca, o queixo, até as
bochechas! O homem havia cuspido em seu rosto ou realmente havia a beijado?
Será que era tola demais para usufruir do ato?
— Está tudo bem, milady? — indagou gentilmente com a respiração
entrecortada.
— Oh, sim, está. — Ajeitou a saia do vestido e passou as mãos pelos
cabelos que começavam a desprender-se dos grampos. — Eu só preciso ir. —
Sorriu, ou pensou que havia sorrido, fazendo o seu melhor para soar o mais
natural possível. Mas, afinal, como uma pessoa deveria soar após ser beijada?
Claro que era tão inexperiente quanto uma porta, mas sabia que não era daquela
forma que deveria ter reagido. Não deveria querer fugir de Heavenwood como o
diabo foge da cruz, e sentiu-se tão constrangida quanto culpada por estar fazendo
exatamente isso.
Retrocedeu alguns passos um tanto relutante, afinal, não queria magoá-lo
com sua retirada tão precoce. Mas antes que pudesse girar os calcanhares para
deixá-lo para trás, o Duque a agarrou pelo braço de forma nada gentil ou
elegante. Ela olhou em volta, temendo que o gesto pudesse gerar algum
espalhafatoso burburinho, mas não havia ninguém para flagrá-la ou salvá-la das
mãos de Heavenwond.
— Solte-me, Vossa Graça — disse em tom de ameaça.
— Já disse-lhe para chamar-me de Simon. — Sua voz tornara-se
forçosamente afetuosa.
Negligenciando descaradamente a vontade da dama, ele agarrou-lhe pela
cintura, fazendo-a arfar, mas não de uma forma agradável. Rose debatia-se no
aperto forte e rude de seus braços enquanto notava com intenso desconforto que
ele tentava chegar até seus lábios uma vez mais.
— Se não me soltar agora mesmo... — Tentou empurrá-lo, mas sem
sucesso. — Eu vou gritar, Lorde Heavenwood! — declarou como um rosnado.
Ainda que estivesse determinada, sua bravata soou altamente
insignificante se comparada ao olhar hostil que o Duque lhe devolveu em
resposta. Foi nesse momento que Rose deu-se conta de que ele não iria parar.
Arrependeu-se amargamente por tê-lo acompanhado até ali. Embora aparentasse
ser um homem de grande honra e terna afeição, limitava-se apenas a um
desprezível e asqueroso homem, escondendo fins violentos por detrás dos
formidáveis olhos azuis.
Simon puxou-a pela nuca com brusquidão, enquanto a outra mão
alcançava o decote pouco revelador da dama, que contorcia-se em uma tentativa
vã de detê-lo.
Sentiu os dedos quentes adentrando em seu vestido, tocando a pele
exposta e vulnerável de seu colo ao mesmo tempo que a língua repugnante dele
encontrava o caminho de seus lábios.
Ele a forçou com tamanho ímpeto, que ela não fora capaz de manter os
lábios selados, dando-lhe a passagem que precisava para reivindicá-la.
Era tão repulsivo que não podia mais suportar.
Jamais saberia como pôde encontrar a coragem que a situação pedia, mas
Rose levantou uma das pernas, atrapalhando-se com anáguas, tules e babados, e
o chutou. O acertou com a ponta da sapatilha que usava, bem no meio das
pernas.
— Sua vadia louca! — ele gritou, levando ambas as mãos ao membro
que certamente doía com o ataque que sofrera.
— Eu o avisei! — resmungou ela, vitoriosa.
— Alertou-me de que ia gritar, não de que ia agredir-me com tanta
agressividade! — grunhiu ele com uma expressão contorcida pela dor.
— Como eu poderia gritar com sua boca agourenta salivando em cima de
mim? — retrucou com grande sinceridade.
— Eu não estava salivando, mulher maldita! — gritou, sentindo o
orgulho ferido.
Rose retirou uma das luvas da própria mão e a usou para limpar o caos de
saliva que estava em sua boca e metade do rosto, enquanto Heavenwood a
observava com uma ira crescente.
— Demônio de mulher! Eu deveria saber que uma menina idiota como
você não saberia reconhecer um beijo quando lhe é dado! — declarou ele com
demasiada antipatia.
Aquilo havia a desarmado de uma forma que não poderia prever. Será
mesmo que ela havia sido tola o suficiente para não deleitar-se do beijo?
Depositou uma das mãos sobre os lábios, ponderando em silêncio o desastre que
havia sido aquele acontecimento tão esperado anteriormente.
— Não está me ouvindo? — o Duque ralhou. — Demônia dos infernos!
— praguejou, ainda curvado com as mãos sobre sua intimidade.
Antes que Rose pudesse reagir, e antes até de Heavenwood ser capaz de
retomar à postura imponente que outrora exibia, notaram um pequeno rumorejo
próximo de onde estavam. Não demorou muito para que todo o bulício da alta e
influente sociedade estivesse ali.
Por um momento muito breve, Rose sentiu o alívio a invadir ao ver que
não estava mais sozinha à mercê daquele homem que não reconhecia limites. No
entanto, notara as damas encarando-a com um julgamento que não lhe daria
quaisquer chances de justificar-se perante elas. Não queriam se atentar ao fato de
que estava sendo violada pelo Duque. Afinal de contas, Heavenwood era um
Duque e isso lhe tornara intocável às críticas e instantaneamente dava-lhe o
privilégio de ser considerado inocente.
— Essa mulher atacou-me quando eu apenas tentava dissuadi-la a voltar
para a mansão! — Apontou para Rose sem qualquer piedade.
— Eu não...
Começou a formular uma sentença que pudesse convencê-los, mas ao ver
o desprezo com que a tratavam, simplesmente não pôde refrear as lágrimas que
sufocavam sua garganta a ponto de impedi-la de encontrar as palavras certas.
Já havia sido humilhada demais, não lhes proporcionaria o prazer de vê-
la chorar também. Por esta razão, Rose correu. Literalmente ergueu as saias do
vestido até os tornozelos estarem expostos indecorosamente, e correu em direção
ao pomar que serpenteava a propriedade. Ouviu os chamados angustiados da
mãe enquanto ignorava as ofensas que os demais murmuravam à medida que
afastava-se daquele antro de falsidade.
— Maldita megera! — Heavenwood gritou, e foi a última coisa que ela
ouvira antes de entregar-se ao pranto.
Tola.
Mil vezes tola.
Repreendia-se ao jogar-se sobre um dos carvalhos antigos ao lado das
macieiras fartas.
Sentia-se como uma criança ingênua cujo a maldade assolara.
Olhou para o céu escondido pela visão da copa das árvores, e uma
promessa nasceu em seu coração.
Jamais tentaria ser gentil novamente com um homem. Afinal, não deveria
ter usado de palavras suaves com Heavenwood, temendo magoá-lo com sua
rejeição. Em contrapartida, ele despedaçou-a sem pensar duas vezes. Sua
reputação estaria arruinada para sempre e ele não hesitou em empurrá-la para a
lama.
Arrancou um tufo de grama entre os dedos, tão irada que sentiu que
podia chutar Heavenwood mais algumas vezes antes de esvair toda aquela fúria.
Respirou descompassadamente, buscando controlar os sentimentos odiosos que a
consumiam.
Olhou mais uma vez para cima ao notar algumas gotas d'água deslizarem
pelos cabelos revoltos.
— Era o que me faltava! — reclamou para as nuvens que pareciam
caçoar dela.
Seu primeiro baile havia sido uma tragédia. A primeira dança mostrara
ser uma farsa. O primeiro beijo fora a experiência mais nojenta que havia
presenciado. E a primeira desilusão certamente fora a responsável por destruir
suas esperanças de desejar ser beijada novamente.
CAPÍTULO DOIS
"Pare! — a sacerdotisa sussurrou com os olhos em chamas, traindo seu
pedido.
— Você realmente não se lembra de mim? — Pôs um dedo em seu
queixo, impedindo-a de se afastar.
Seu olhar era imperscrutável. Embora soubesse que deveria recusá-lo e
sair de sua teia encantada, ela permaneceu. Enfeitiçada demais pela essência
daquele homem cujos olhos não lhe eram indiferentes. Em algum lugar de sua
alma, ela o reconheceu.
E em algum canto ainda mais sombrio de si, ela o amou."

Nos últimos dois anos, Rose passara a maior parte dos seus dias
dedicando-se aos seus escritos secretos. Por vezes, esteve convicta de que
conheceria o amor apenas desta forma, nas páginas dos livros que lia e nas
histórias proibidas que imaginava.
Obviamente sua mãe estava ardilosamente empenhada em reverter essa
situação, já que praticamente fizera uma lista dos mais influentes pretendentes
que a filha poderia estar inclinada a aceitar.
Isso dificultava em muito, as coisas, já que a grande maioria desses
cavalheiros queriam apenas levá-la para a cama, sem qualquer compromisso e a
minoria era desinteressante o bastante para ela sequer notar. Como previu, sua
reputação havia sido consideravelmente arruinada, embora não da maneira que
esperava. Apesar do escândalo com o Duque de Heavenwood, sua moral
permanecera relativamente intacta, no entanto, naquela noite, sua virtude tornou-
se um grande desafio para os cavalheiros de toda a Londres.
O homem que domasse a fera, eles diziam, conquistaria não só o tesouro
entre suas pernas, mas também ganharia o respeito vanglorioso por ter vencido a
aposta.
A tal aposta tinha sido anunciada pelos quatro cantos de Londres, e
francamente, Rose estava farta dela. Tão esgotada dos esforços contínuos e
beligerantes deles, que passara a odiá-los ainda mais, tratando-os com um
desdém afiado, reforçando assim sua popularidade de megera indomável.
Ouviu uma ligeira batida na porta de seu quarto, antes de a mãe entrar
com uma expressão indecifrável.
— Rose Wymond, escute-me e preste muita atenção ao que vou dizer-
lhe. — Sentou-se na beirada da cama com ar de seriedade. — Lorde Edward
Waters, o Marquês de Hallock, está lá embaixo com um buquê de narcisos
amarelos nas mãos, a aguardando. — Observou a jovem assentir lentamente,
com o típico olhar zombeteiro que lhe fervia os nervos. — Rose, se comporte
com ele ou garanto-lhe que tomarei severas providências — assegurou.
— Narcisos amarelos? — caçoou com um risinho.
— Pegue um chapéu e desça neste instante.
Dito isso, a matriarca bateu a porta atrás de si, com autoridade.
Mais um dia extremamente enfadonho, pensou enquanto escolhia o
chapéu azul com pequenas pedras entalhadas no cetim. Desceu as escadas o mais
devagar que pôde, antes de receber um incisivo olhar de reprimenda da mãe.
O Marquês não tinha uma aparência tão detestável, afinal. Era alto,
esbelto, a pele tão branca quanto um palmito em conserva, os lábios finos e sem
cor que sorriam-lhe de forma embasbacada, e olhos verdes que irritavam-na à
medida que fugiam para o volume de seu busto.
Aproximou-se dele com uma mesura altamente cordial, dando-lhe a mão
para que recebesse um beijo em forma de gracejo.
— Fico honrada com sua presença aqui, Lorde... hamn... — Fingiu
esquecer seu nome, deixando o homem visivelmente constrangido.
— Pode me chamar de Lorde Edward, milady. Edward Waters, ao seu
dispor. — Tocou seus dedos enluvados com afeto.
— Oh, sim, Barão de Hallock, não é mesmo? — Mais uma vez fingiu ter
uma corriqueira falha na memória, arrancando uma longa pigarreada da mãe e
deixando o homem da cor de uma cereja enrugada.
— Marquês, milady. — Sorriu, ainda amigável o bastante para tentar
flertar com ela.
— Ah, perdoe-me, milorde. Minha memória me trai a todo instante. —
Abafou um riso com as mãos.
Ele anuiu com um gesto insignificante e prosseguiu com o galanteio ao
pedir permissão para que dessem uma volta no jardim. Entregou-lhe os narcisos
com a esperança inútil de agradá-la, mas Rose adquiriu misteriosamente uma
grave alergia das pétalas e forçou tantos espirros para cima do Marquês, que ele
ofereceu-lhe de bom grado o lenço que trazia no bolso. A jovem tramava as mais
mirabolantes situações para rechaçá-lo, divertindo-se tanto com isso que por
vezes simulava um acesso de tosse para ocultar suas gargalhadas.
Caminhavam por entre as árvores altas quando ela avistou as lacunas
enegrecidas que costumavam ser compostas por dezenas de candelabros, antes
de serem quase todas destruídas pelas tempestades ao o passar dos anos. Ela
sabia que quase ninguém poderia andar por ali, antes de repararem os danos da
antiga construção, pois corriam o risco das trincas e rachaduras desmoronarem e
causarem alguns arranhões ou ossos quebrados.
Rose sabia muito bem disso.
Mas Edward Waters não fazia ideia.
— Veja! — Ela apontou para a lacuna mais próxima e apurou seus passos
com o cavalheiro em seu encalço. — Não seria esplêndida a vista dali de cima?
— sugeriu implicitamente.
— Decerto seria uma vista ampla da propriedade — concordou ele, ainda
tentando conquistá-la.
— Não é tão alto. — Rodeou o pilar, analisando-o friamente. —
Deveríamos subir nele — propôs.
— Eu não creio que seja uma boa ideia, milady... — Olhou para o alto,
um tanto relutante.
— Ora, vamos. Eu o seguirei — estimulou. — Afinal, diz o ditado que só
obtemos aquilo que desejamos, após uma árdua caminhada para nos deleitarmos
das recompensas de nossos esforços... — Não havia ditado algum, mas ela
improvisara um.
Ele a observou sorrir, um sorriso sugestivo, um erguer de lábios que
indicava suas verdadeiras intenções. Seus desejos, pensou ele, tomando coragem.
— Tem razão, milady, vou na frente. — Segurou em uma das pedras
rapidamente, ansiando obter a tal recompensa que ela provavelmente o daria.
Talvez um beijo ou algo além disso.
Pôs o pé direito em uma fenda funda o bastante para prender a ponta de
sua bota de montaria nela, impulsionou o corpo cada vez mais para cima,
erguendo-se com o apoio das pedras que percebeu estarem um tanto soltas
demais. Enquanto isso, Rose dizia palavras que o encorajavam a prosseguir sem
pensar em quaisquer infortúnios. Vez por outra ele olhava para baixo,
constatando que realmente havia subestimado a altura daquele pilar. Estava tão
alto que podia ver a copa de algumas das árvores medianas do jardim. Com certa
dificuldade, finalmente chegou ao topo, sentou-se com ambas as pernas
penduradas para a frente, e foi nesse momento, entre o alívio e a apreensão, que
uma pequena rachadura ruiu alto o bastante para que Edward tentasse descer
antes de tudo desmoronar, no entanto, indubitavelmente, a pressa e desespero
resultou em sua queda iminente, junto com muitas pedras que caíram ao redor e
em cima de sua cabeça.
Não podendo conter o ataque histérico do seu riso, Rose gargalhava sem
escrúpulo algum, enquanto o pobre homem tentava recobrar os sentidos. Ficou
claro para ele, que Rose havia planejado tudo, afinal, ela mesmo entregara-se,
fazendo-o de chacota.
— Você planejou isso! Mulher...
Ela o interrompera.
— Maldita? Ou talvez seria diaba? — sugeriu, sarcástica. — Já ouvi
todas essas ofensas antes, milorde. E sei quais são as suas intenções comigo. —
Seu semblante tornara-se severo.
— Sua vadia! — exclamou raivoso, tentando levantar-se.
— Não sou. Mas se fosse, também não iria consentir com suas
depravadas intenções.
— Bruxa dos infernos! — ralhou, sacudindo as vestes empoeiradas.
Enquanto Rose ria e o Marquês praguejava, a Condessa aproximara-se
em um silêncio sepulcral e com uma expressão tão fria que fizera ambos temê-la.
— Lorde Hallock — chamou sem esboçar qualquer simpatia.
— Senhora, eu apenas...
Ela o interrompeu.
— Eu ouvi o suficiente, não há razão para tentar justificar-se — afirmou.
— Agradeço-lhe, milady. Fico grato por compreend...
Ela o cortou novamente.
— Poupe-me de suas gratificações. Pegue o resto de sua dignidade, se
sobrou alguma, e vá embora. Antes que eu sugira enfaticamente que enfie suas
palavras em seu...
— Mamãe! — Rose pôs uma das mãos sobre a boca, espantada.
Isabel não terminara a frase, mas o Marquês foi sensato o bastante para ir
embora dali imediatamente e não voltar jamais. Cuspiu alguns resmungos
ininteligíveis enquanto dava-lhe as costas até sumir de vista.
Rose sorria. Finalmente a mãe havia tomado posição ao seu lado. A
jovem estava radiante, até notar o semblante decepcionado da mãe. Preferiria
que Isabel lhe xingasse ou gritasse pela casa, pois ver a decepção em seus olhos
causou-lhe dor. Rose baixou os olhos e passou a mirar o chão, permanecendo
cabisbaixa até que a Condessa encontrasse seu tom mais temível para repreendê-
la.
— Vou falar com seu pai agora mesmo, Rose — declarou apenas.
— Mamãe, mas a senhora viu a... — A seguiu, sendo estritamente
ignorada.
— Vá ao seu quarto. Agora, Rose! — ordenou.
A jovem não podia fazer nada senão obedecê-la. Já era ruim o suficiente
ter de receber as reprimendas da mãe, e ainda teria de suportar os discursos
moralistas também de seu pai. O Conde costumava intrometer-se apenas quando
a situação era trágica o suficiente para que Isabel abrisse mão dela.
Rose subiu até seu quarto e ficou lá o resto do dia. Não teve apetite nem
para tomar as devidas refeições. Observou o céu azul transformar-se em
alaranjado, à medida que a tarde dava início ao crepúsculo. Alguns vagalumes
brilhavam logo abaixo de sua janela, dando auxílio às poucas estrelas que já
apareciam acima deles.
Tudo estava tão pacífico que quase esquecera-se de que aguardava seu
castigo, mas os passos ansiosos subindo as escadas recobraram-lhe mais uma
vez, com uma onda gelada invadindo seu estômago.
Não houve nenhuma batida na porta.
Ao invés disso, apenas entraram com expressões nada calorosas. E ao
julgar pelo vinco que formava-se na testa de Edmund, ele não estava nada
satisfeito com seu comportamento.
— Papai... — murmurou com a voz doce, tentando derreter o gelo na
expressão impassível do Conde.
Ele ergueu um dedo, exigindo que se calasse. Rose observou a mãe, que
certamente consentiria com as palavras do Conde, por mais difícil que fosse
acatá-las.
— Rose, sua postura ultimamente nos tem entristecido demasiadamente.
— Ela abrira a boca para argumentar a seu favor, mas ele prosseguiu sem dar-lhe
qualquer espaço. — Sei que também está sendo difícil para você, minha filha. —
Olhou alternadamente dela para a esposa. — Tenho ouvido os boatos cujo seu
nome está envolvido. — Juntou as mãos, visivelmente incomodado. — Por esta
razão, sua mãe e eu tomamos uma decisão que não será revogada. Fui claro?
— Sim senhor. — Ela assentiu com um nó formando-se em sua garganta.
— Você vai ficar com sua tia Ingrid por alguns meses, até que toda essa
história seja esquecida — anunciou.
— Mas pai...
— É para o seu bem, Rose. Será proveitoso um tempo longe dos rumores
que a prejudicam e prejudicam o bom nome da família — acrescentou.
— Mamãe, eu posso rever meus modos daqui pra frente. Prometo-lhe
que... — Fungou, tentando esconder uma lágrima.
— Seu pai está certo, Rose. Não a queremos distante, mas será para o seu
próprio benefício, minha querida. — Aproximou-se de modo fraternal e sentou-
se ao lado da jovem.
— Não podem dar-me outro castigo? Um que não precise expulsar-me da
própria casa? — Levantou-se, irada.
— Não é um castigo, Rose. — Edmund tomou-a pelas mãos com a voz
afável. — Um tempo longe de toda essa confusão lhe fará muito bem. — Sorriu
timidamente. — Não está ansiosa para ver a relva verde, tão verde quanto...
— Verde como a relva que cobre a mais densa colina — completou
Isabel, compartilhando o sorriso contido.
Rose sorriu ao ver que lembravam-se das suas citações mais constantes.
Afinal, seria um tanto estranho que não a soubesse de cor, já que Rose vivia
dizendo aquilo.
— Pois bem... — Respirou fundo, reavivando os ânimos. — Talvez seja
interessante. — Pôs um dedo sobre o queixo, pensativa.
Realmente poderia ser um tanto proveitoso estar livre de todas as
etiquetas, do senso moralista e das futilidades com que obrigavam-na a se
habituar. Um pouco do ar fresco da Ilha de Man lhe traria algum vigor.
Um ambiente repleto de calmaria lhe traria conforto. As árvores lhe
fariam companhia enquanto tia Ingrid tricotava suas meias. Aquela ilha isolada e
longe o bastante da falsidade e da hipocrisia da Inglaterra... Muito distante.
E extremamente isolada.
O pensamento a fez cruzar os braços, empertigando-se com um beicinho
que partiu o coração da Condessa.
— Você ficará bem, minha querida — ela afirmou como se pudesse
prever o futuro de sua estadia naquelas terras.
Não tendo qualquer válvula de escape, Rose tratou com otimismo sua
viagem até Ramsey. Fora apenas uma vez na propriedade da tia viúva, lembrava-
se apenas da visão estonteante do mar que rodeava toda aquela vegetação, e de
sentir que morreria de tédio ao ficar todas as noites ao pé da lareira, ouvindo as
mesmas lendas repetitivas da tia.
— Partirá em uma semana, Rose. Será o necessário para que preparemos
tudo. — Edmund acenou com a cabeça para a filha, que sorriu tristemente.
Após o Conde retirar-se do cômodo, Isabel fez desaparecer a máscara
rígida que cobria suas feições amáveis e segurou a filha pelos ombros antes de
abraçá-la, deixando escapar um soluço aflito.
— Oh, Rose! Eu sentirei tanto a sua falta. — Apertou-a ainda mais em
seu abraço.
— Passará rápido, mãe. — Não sabia se consolava a mãe ou a si mesma.
— Pensarei em você todas as horas do dia, querida. — Seus olhos
turvaram-se pelas lágrimas não derramadas.
— Eu lhe escreverei diariamente — assegurou a jovem.
— Estou tão habituada a tê-la aqui. Será difícil deixá-la ir sabendo que
não poderia vigiá-la. — Afundou mais uma vez em tristeza.
Não poderá vigiar-me, pensou Rose com um indício de sorriso
salpicando sua pequena boca.
— Isso será maravilhoso — exaltou em um sussurro que não pôde calar.
— O que disse? — Isabel ergueu uma sobrancelha.
— Horroroso, mamãe. Será horroroso. — Ocultou com muito custo o
risinho abafado.

Alguns dias se passaram desde que Rose recebera a notícia de que


passaria uma temporada com a tia Ingrid. Usou o tempo que lhe restou em
Londres para comprar alguns vestidos e agasalhos, lançar olhares de extremo
ódio para os cavalheiros que a encaravam, e despedir-se das amigas mais
íntimas.
Encontrava-se em uma das lojas na companhia de Jane, Madeline e
Eleonor, quando a primeira quebrou o silêncio.
— Sentiremos tanto a sua falta, Rose. Os bailes serão muito mais
enfadonhos sem seus espirituosos comentários. — Seus olhos esbanjavam uma
preciosa sinceridade.
— Também me farão muita falta. Certamente escreverei com constância,
já que não há muitas atividades na casa da tia Ingrid. — Revirou os olhos.
— Você não está com medo, Rose? — Madeline inquiriu com
curiosidade.
— Não diga bobagens, Madeline. O que há para temer? — Eleonor
contrapôs, perplexa.
— Dizem que há muitas coisas... diferentes além do mar. — Sua voz
tornou-se um fio de insegurança.
— Tolice, Mad — afirmou Eleonor.
— Há piratas. Já ouvi muito sobre eles — emendou Jane.
— Não dê ouvidos para elas, Rose. — Eleonor encaixou o braço no dela
e tomaram a frente das outras duas. — Mas se for um pirata de belos olhos e
ombros largos... — insinuou.
— Eleonor! — Rose a repreendeu, empurrando-a divertidamente.
— Estou tão saturada dos cavalheiros pomposos e engomados deste
lugar, que um pirata não seria tão ruim — Eleonor afirmou, corando
graciosamente.
— Não devíamos falar sobre esses assuntos, dessa forma tão contundente
— disse Jane, um tanto reticente.
— Quais assuntos? Sobre os homens? — Parou abruptamente, a
encarando.
Jane assentiu de modo pouco convicto.
— Como acham que eles falam de nós, Jane? — Madeline intrometeu-se.
— Não passamos de meros objetos de decoração para eles exibirem —
afirmou Rose, um tanto mais amarga do que gostaria.
Ficaram em silêncio por algum tempo, até subirem na carruagem. Rose
contemplou as ruas abarrotadas pela última vez. Seu coração deu um salto no
peito ao lembrar-se de que partiria pela manhã. Afinal de contas, ela adorava
aquele caos de luzes e sensações da sociedade que aprendera a amar. Exceto os
homens.
Esses ela odiava com todas as suas forças.
Havia sido penoso dizer adeus às amigas, mais difícil ainda fora
despedir-se de sua família. A mãe organizara um singelo almoço para reunir
todos que amava, antes de a jovem seguir viagem.
As irmãs abraçaram-na com tanto carinho que deixou escapar uma
lágrima ao entregar a colcha de retalhos que ela mesmo havia feito para o bebê
que Allie ainda carregava em seu ventre. Quando Lilian a puxou para seus
braços uma segunda vez, ela viu o mesmo espírito aventureiro nos olhos da irmã
mais velha.
— Não faça nada que eu não teria coragem de fazer — instruiu Lilian
com um piscar de olhos sugestivo.
— Não ouça sua irmã. Afinal, ela casou-se comigo. — Richard, o Duque
de Rescot, a apertou contra o peito afetuosamente. — Se cuide, pequena Rose.
— Ela assentiu, retribuindo o afeto.
— Não enlouqueça a pobre tia Ingrid — disse Daryl, arrancando
gargalhadas dos demais.
— Não posso fazer promessas quanto a isso — respondeu sarcástica.
Algumas horas depois, em seu quarto, Rose passara a organizar as coisas
que levaria consigo na estadia. Pegou o amontoado de folhas de seu surrado
manuscrito e alguns livros de sua preferência. Enquanto empurrava todos os seus
itens extremamente relevantes dentro de uma pequena mala, uma folha
desprendeu-se em suas mãos. Apanhou o papel amarelado e deu-se conta de que
havia escrito ali uma antiga prece.
Aproximou a folha puída da luz bruxuleante das velas e leu com detida
atenção as palavras que tocaram profundamente seu íntimo.
"Que os teus pensamentos e os teus amores;
O teu viver e a tua passagem pela vida; sejam sempre abençoados por
aquele amor que ama sem nome.
Aquele amor que não se explica;
Só se sente.
Que esse amor seja o teu acalanto secreto;
Viajando eternamente no centro do teu ser.”
CAPÍTULO TRÊS
" — Como isso é possível? — ela indagou enquanto erguia lentamente
uma mão em sua direção.
Atreveu-se a tocá-lo como se pudesse recobrar as memórias com a ponta
dos dedos. O observou fechar os olhos, deleitando-se do roçar suave e contínuo
de seu toque.
— Lembro-me dos teus olhos. — Ela tocou as pálpebras seladas
enquanto o som da floresta os envolvia. Traçou uma linha imaginária até os
lábios que clamavam por intimidade. — Recordo-me da sua boca.
Ele abriu os olhos e sustentou a luxúria em seu olhar enquanto fechava a
mão em seu punho, impedindo-a.
— Não faça isso ou... — Inspirou profundamente o odor doce de
madressilva que a jovem emanava.
Maldita fosse por fazê-lo desejá-la tanto!
— Ou o quê? — inquiriu, encarando os olhos negros, como um
despenhadeiro pelo qual se lançaria.
Ele sabia que não podia levar aquilo adiante quando enxergou a
inocência nos olhos da jovem menina que esperava sua resposta. Embora
tentasse se conter, não pôde refrear-se ao perceber que ela retomava às
torturantes carícias, deslizando as mãos pela aspereza da barba por fazer.
— Ou eu vou beijá-la — declarou quase como uma ameaça. —
Maldição! — exclamou em seu sotaque carregado de intensidade. — E não me
importará que peça-me para parar novamente, pois eu não serei capaz de deixá-
la ir."

— Céus! — exclamou Rose, observando o horizonte limitado da janela


da carruagem, apressando-se para sair imediatamente daquele cubículo
sacolejante.
As horas passaram lentamente até chegarem ao porto, mas Rose
esquecera-se da viagem enfadonha assim que ergueu os olhos aos céus.
— É tão magnífico! — Deixou seu leque com as bagagens que o lacaio
retirava da carruagem. — É exuberante! — Voltou-se para Irene, a jovem dama
que lhe acompanharia durante sua estadia na Ilha de Man. — Olhe para as águas
alvejadas de sol, Irene. Não é sublime? — Pôs as mãos sobre o peito, em êxtase.
— Hamn... Creio que sim — concordou a jovem, pouco contagiada por
sua empolgação.
— Veja! — Rose apressou-se em ir até a beirada da estreita ponte de
madeira que levava ao tumultuoso cais.
Ela mirava os mais variados barcos de pequeno e grande porte que
atracavam ali. Havia tanto o que examinar, que seus olhos dardejavam sem saber
em qual direção se fixar.
Não tão longe dali, uma mulher falava um idioma que não reconhecera,
com um sotaque tão carregado que podia jurar que estava a praguejar para um
menino que estava claramente achando divertido aborrecê-la.
Mais adiante, uma jovem moça entregara-se ao pranto ao ver seu amado
partir em um dos barcos. Afoita, acenava para ele, como se o pequeno gesto
pudesse lançar-lhe boa sorte.
Rose desviou o olhar, preferindo não ser invasiva demais, apenas para
deslumbrar-se um pouco mais com a vista mais colorida que seus olhos já
deleitaram-se.
— Lady Wymond, volte para cá! — pediu a jovem Irene em um fiapo de
voz, enquanto Rose descaradamente fingia não tê-la ouvido.
Santo Deus! Pensou Rose enquanto encarava um sujeito alto que vinha
em sua direção. No entanto, não fora sua estatura que a tinha espantado,
tampouco seu ar galanteador ao passar as mãos pelos cabelos ondulados. Ela
olhava, totalmente absorta e com a boca deliberadamente aberta, as pernas do
distinto homem, que mais lhe parecia ter saído de uma das fábulas que
costumava ler.
Ele estava usando um kilt.
Um kilt!
Exibindo o tartã como se aquilo fosse absolutamente natural.
Entretanto, pensou ela, talvez lhe fosse natural. Devia esforçar-se em
lembrar que não estava mais em casa, onde os costumes ingleses reinavam com
arrogante superioridade.
Evidentemente, ela não era capaz de recordar de mais nada. Não naquele
momento em que via pela primeira vez as pernas desnudas de um homem.
— Isso é tão... — Não pôde concluir a frase, já que tropeçara
vergonhosamente em uma tábua meio solta que prendera a ponta de sua bota. —
Que diabos! — Tentara levantar o pé inutilmente, já que estava enroscado no
pequeno vão.
Enquanto travava uma árdua batalha com o sapato preso, o homem
continuava indo em sua direção com um meio sorriso entredentes. Aquele tipo
de riso cafajeste que claramente não se consegue disfarçar, mas que é sensato o
bastante para ao menos tentar ocultá-lo.
— Maldição! — exclamou Rose sem dar-se conta de tamanha
proximidade entre eles.
— O que disse, milady? — indagou o homem em um inglês arrastado e
quase indecifrável que a fizera se conter para não rir.
— Perdição. Eu disse perdição, milorde. — Ele segurou sua mão
lentamente enquanto a guiava até seus lábios em um beijo demasiadamente
demorado.
— Está perdida, milady? — questionou, notando seu esforço
incompreensível de erguer uma das pernas.
— Oh, não. Não quis dizer desta forma. — Puxou o pé mais uma vez e
nada. A tábua nem se movera. Precisaria de mais força.
— Suponho que não seja daqui... — Olhou ele para o vestido de alta
costura que obviamente indicaria sua procedência.
— Não, eu venho de Londres. — Podia sentir o rosto queimar em
constrangimento, sabendo que certamente parecia a dama mais atrapalhada de
toda a Inglaterra aos olhos daquele desconhecido.
— Eu notei assim que vi o espanto pelo qual me observava. — Ele sorriu
mais uma vez. Um pícaro sorriso que estava longe de ser despretensioso.
— Perdoe-me pelos meus modos. É que eu nunca... — Flagrou-se
nivelando o olhar mais uma vez para baixo...
— Nunca havia visto um homem de kilt — afirmou ele, divertindo-se às
custas dela.
Ela concordou com um gesto de cabeça, totalmente incapaz de dizê-lo
em voz alta. Tentou mais uma vez desprender a ponta de sua bota, em vão.
Precisava sair dali imediatamente. Já havia passado constrangimento equivalente
a um ano inteiro. No entanto, não seria naquele momento que a vida lhe sorriria.
Ambos não perceberam que a pequena multidão ao redor abria caminho,
com um espalhafatoso burburinho devido a um cavalheiro metido em confusão
até o pescoço, que ia na direção de onde estavam.
O homem corria a toda velocidade, gritando ofensas para aqueles que
intencionalmente obstruíam seu caminho.
— Saiam da frente! — ordenou ele com grosseria.
O cordial homem de kilt que emendava um diálogo caloroso com Rose,
logo percebeu que estavam bem no meio da pequena passagem que
desembocava no cais. Sobressaltou-se ao ver o maltrapilho sujeito aproximando-
se deles com ar desesperado.
— Venha, milady. — Puxou gentilmente a jovem pelo braço em prol de
tirá-la dali e protegê-la.
— Meu pé está preso! — confessou ela, dando-se conta do estardalhaço
que se aproximava.
Antes que ele pudesse ajudá-la, o improvável aconteceu. O sujeito que
fugia em disparada rumo ao cais, parou abruptamente e enlaçou Rose com uma
rude habilidade entre seus braços e prontamente pôs uma faca ladeando seu
esbelto pescoço.
— Leathcheann! — praguejou em uma língua que ela não reconhecera e
apertou a lâmina com mais firmeza na pele exposta.
Tudo acontecera de forma tão repentina que Rose não fora capaz de
assimilar o perigo que corria. Ouvia Irene clamando por ela e seu lacaio soltando
ameaças infundadas em prol de sua liberdade. As pessoas começaram a correr, e
outras tantas juntaram-se nas súplicas para que o troglodita deixasse a moça
inglesa em paz.
Alguns homens tão esfarrapados quanto o que lhe detia, o ameaçaram
com longas espadas, mas ele a estava usando de escudo para fugir, ela percebera,
em meio ao caos. Ele dava pequenos passos para trás, certamente planejando
furtar um dos barcos amarrados ali, constatou ela com astúcia.
— Fiquem longe ou eu arranco-lhe a cabeça! — esbravejou, fazendo-os
recuar.
Rose estava tão aflita que sentia o suor escorrer por onde a lâmina a
pressionava. Não conseguia mover-se, ele era extremamente grande e mantinha-
a presa com uma força agressiva. O homem de kilt, com quem conversara antes,
tentava em vão dissuadi-lo a soltá-la, enquanto Irene chorava imersa em agonia.
Não podia ficar ali parada à mercê daquele crápula, decidiu ela.
— Solte-me! — exigiu, tentando chutá-lo entre as pernas.
— Shhhh. — Ele pôs a lâmina fria sobre seus lábios. — Calada, gruaig
tine! — Deslizou a faca mais uma vez para a cavidade de sua clavícula.
— Tire as mãos de mim! — Ela sacudia-se tanto que começara a
atrapalhar os planos de fuga dele.
O pervertido desceu a lâmina por entre seu decote, na fenda de seus seios
expostos, e aproximou sorrateiramente os lábios em seu ouvido, causando-lhe
repugnância.
— Eu vou soltá-la, gruaig tine, confie em mim — sussurrou apenas para
ela ser capaz de ouvir. — Só fique quieta — instruiu, ainda de forma quase
inaudível.
Por um segundo demasiadamente efêmero, Rose cogitou a hipótese de
acatar aquelas palavras. Estava com medo demais para tentar qualquer coisa,
mas no mesmo segundo, decidiu que jamais poderia confiar na palavra de um
sujeito como aquele.
— Mas que diabos! Tem uma faca no meu pescoço! Como eu poderia
confi... — Ele tapou-lhe a boca bruscamente com a mão que antes atava-lhe os
ombros.
— Calada, cailín! — Sabia que não poderia mais continuar com aquele
disparate. Tinha de agir rapidamente se não quisesse morrer nas mãos daqueles
homens. — Prometo que vou soltá-la quando chegarmos lá embaixo. Está me
ouvindo, moça? — murmurou.
Não havia mais nada que pudesse fazer, então Rose apenas consentiu,
rezando para que ele fosse um homem que cumprisse suas promessas.
— Não vou machucá-la, gruaig tine. Eu nunca machucaria uma mulher
— ele falava baixinho em seu ouvido para que os demais não pudessem ver o
flerte de suas ações.
Tentou dar mais dois passos para trás, mas percebeu que em algum
momento a moça prendera o sapato em uma tábua solta, e não poderia sair dali
sem que antes alguém erguesse aquele pedaço de madeira idiota e puxasse seu pé
para fora daquela maldita fenda.
— Diabhal! — grunhiu, enraivecido, tentando puxá-la e falhando
miseravelmente.
Tirando vantagem daquele breve instante de frustração dele, Rose
decididamente esgueirou uma das mãos na bainha do sujeito, tirando de lá um
belo punhal que acertou em cheio a parte superior de seu peito. Sentiu a ponta da
lâmina cortando o tecido puído de suas vestes, antes de dilacerar a pele, fazendo
jorrar o líquido quente e pegajoso que grudava em seus cabelos, tingindo-os de
um vermelho ainda mais intenso.
— Cailleach damn! — vociferou, afrouxando os braços. — Bruxa
maldita! — repetiu em um inglês perfeito. — Eu prometi que ia soltá-la! — Sua
expressão se retorcia pela dor do ferimento.
Aturdida demais, Rose quase deixou o punhal cair. Toda a força e
coragem que usou para feri-lo, parecia haver sugado sua lucidez.
Certamente havia exterminado qualquer traço de sanidade a julgar pelo
que faria a seguir.
— Peguem-no! Vamos matar esse vigarista! — um dos homens furiosos
gritou aos demais.
Jamais saberia explicar a razão de suas ações naquele momento de inata
loucura. Entretanto, algo dentro de si — algo que deveria ser rigorosamente
obscuro e masoquista —, a fez acreditar naquele homem e em sua promessa.
Era como se não pudesse fugir daquela situação, deixando-o à mercê da
morte iminente.
Lentamente ela girou os calcanhares, conseguindo finalmente soltar seu
pé e encará-lo de frente, impetuosamente. De alguma forma, alguma maneira
insana, eles eram iguais.
Olhou no fundo daqueles olhos negros e sentiu sua alma ser tomada pelo
estupor que ele lhe causara.
Não podiam mais esperar.
— Corra! — ela sussurrou, convicta o bastante para deixá-lo tão confuso
que permanecera parado como uma estátua.
— O que está dizendo, gruaig tine? — Sua voz era inconstante e rouca
pela fraqueza que sentia à medida que o sangue continuava a esvair de seu
corpo.
Rose respirou profundamente.
Ele não conseguiria escapar. Não com o buraco que fizera em seu peito.
Estava começando a perder o equilíbrio e provavelmente estaria desmaiado no
chão em alguns minutos.
Por sua culpa, concluiu com pesar.
— Só posso ter perdido o juízo. — Levantou os olhos mais uma vez,
fitando-o. — Corra, seu idiota! — O empurrou e logo em seguida passou a
correr. — Rápido! Venha! — Ela jogou-se em um dos barcos que estavam na
costa e passou a desatrelar o nó da corda grossa que o prendia ao cais. — Ajude-
me, seu idiota! — ralhou.
Sem mais delongas, ele passou a auxiliá-la e em poucos segundos jogara
a corda ao mar.
— Rose? O que está fazendo? — Irene gritava a plenos pulmões ao ver a
jovem se afastar lentamente.
Ainda havia tempo de saltar.
Sem dúvidas, Rose conseguiria nadar aquele curto trajeto até pôr os pés
em terra firme novamente. Francamente, era o que ela deveria fazer. Era a coisa
certa a ser realizada.
Levantou as saias amassadas de seu vestido até os tornozelos e
equilibrou-se na beira do barco. Aquela era a sua última chance, e ela sabia
disso.
Amaldiçoou-se por ter olhado para trás naquele exato momento de
indecisão. Como poderia deixar o homem daquele jeito? Se pulasse naquele
momento, todo o esforço para tirá-lo dali, teria sido vão. Já que provavelmente
ele morreria se ela não estancasse todo aquele sangue de seu ferimento.
Fechou os olhos inspirando a brisa úmida que soprava os pensamentos
mais irracionais aos seus ouvidos.
— Depressa! Pule, cailín. — Sentiu a fala enrolada e a voz se arrastando,
bem como sua consciência que aos poucos lhe abandonaria.
Ela certamente iria contrariá-lo mais uma vez, pois retomou ao meio do
barco, onde estaria em segurança. Sem dizer nada, o arrastou com muita
dificuldade para onde julgara ser o mais confortável possível. Ele já estava
semiacordado quando ouviu o rasgar do tecido fino do corpete de seu vestido.
Debruçando-se perigosamente, ela umedeceu o pano para que pudesse aliviar
sua dor e o pressionou sobre o ferimento, arrancando-lhe com brusquidão da
letargia que o envolvia.
— Curse! — reclamou, tentando afastá-la. — Maldição! — Reiterou o
protesto em inglês para que ela pudesse entendê-lo.
— Não seja tolo! Estou tentando salvá-lo outra vez. — Abriu a camisa
para que pudesse ter acesso ao corte. — Idiota dos infernos! — Trabalhava
induzida pelo ódio.
— Me considera idiota, gruaig tine? — Encolheu-se quando ela apertou
ainda mais o tecido sobre a ruptura em sua carne.
— O maior idiota de todos, sem dúvidas. — Rasgou uma parte da bainha
de seu vestido, visto que o sangue não diminuía.
Ele riu.
Inacreditavelmente ele gargalhou. Uma risada fria e vulgar que a fez
estremecer levemente.
Ele estava perdendo os sentidos, e ela se empenhou ainda mais em
estancar seu ferimento, com ambas as mãos segurando com força em seu peito
que parecia ser indestrutível, mas mostrara-se tão vulnerável quanto um menino.
— Oh, santo Deus! — Ela apertou ainda mais quando o viu fechar os
olhos. — Fique comigo... — Pôs outro pano úmido em sua testa, que
encontrava-se tão fria quanto suas mãos.
— Qual é... — Engasgou com as próprias palavras, lutando para
prosseguir desperto... — seu nome, gruaig tine? — Ele respirou fundo, sentindo
como se mil agulhas o perfurassem impiedosamente.
— Me chamo Rose. — Ele sorriu em silêncio ao ouvir o som melodioso
de seu nome, parecendo estranhamente grato por ouvi-lo.
Depois de alguns minutos que pareceram os mais angustiantes de sua
vida, Rose pôde respirar aliviada ao ver que ele não corria mais risco. Enfim o
sangramento parara, e ele teria apenas uma bela cicatriz de guerra. Notou que ele
ainda a encarava, como se quisesse perguntar algo que não lhe fosse devido.
— Eu já disse-lhe meu nome. Creio que seja absurdamente irrelevante,
mas, gostaria de saber o seu. — Deu de ombros com indiferença.
— Pode me chamar de Randall, gruaig tine. — Sorriu com um pouco
mais de alegria ao sentir o peito parar de latejar gradativamente.
— Não gosto que me chame assim. — Resignou-se pela primeira vez,
pensando que talvez era algum nome pejorativo que ele estava usando para
ofendê-la descaradamente. — Saiba que eu também tenho uma língua afiada e
posso...
— Gruaig tine significa cabelos de fogo, Rose. — Surpreendeu-a com a
maneira afável que disse aquelas palavras.
— Milady. Não deve tratar-me com intimidade. — Empertigou-se.
Randall sorriu uma vez mais, antes de deixar-se conduzir pela calmaria
de um sono sem sonhos. Sua cabeça pendeu para o lado, apoiando-se em uma
das pernas de Rose, que estava sentada ao seu lado, ouvindo-o ressonar.
Sentiu-se satisfeita por ter a chance de observá-lo naquele momento.
Pôde notar que suas botas não estavam puídas como as roupas, na realidade elas
estavam novas e aparentemente quase sem uso.
Deve tê-las furtado, pensou amargamente, com as sobrancelhas vincadas.
Sua calça de montaria era tecida em tons escuros, bem como o casaco que cobria
até quase a altura dos joelhos. Trajava uma fina camisa branca, que certamente
teria de ser jogada fora, após tê-la arruinado para chegar até seu ferimento.
Usava também um inusitado chapéu que parecia ser de um marinheiro.
Esta peça inusual trazia-lhe um ar matreiro e rebelde que a fizera rir em deboche.
Jamais se veria trajes tão inadequados na Inglaterra. Balançou a cabeça
negativamente enquanto tirava uma mecha de cabelo que grudara na testa
bronzeada do rapaz.
Ele não devia ser tão mais velho que ela, notou ao reparar com detida
atenção os traços de sua dura expressão. No fim de sua análise altamente
criteriosa e sem fundamento, concluiu que ele tinha uma certa beleza rústica.
Talvez depois de imergir por algumas horas em uma banheira, com
perfumadas fragrâncias e óleos de flores, ele poderia até ser descrito como belo.
— Onde estou com a cabeça? — Afastou-se dele como se sua respiração
lhe transmitisse alguma doença infecciosa.
Nivelou os olhos à linha infinita do horizonte, onde o cobalto dos céus
misturava-se ao azul das águas do mar, fechando os olhos mais uma vez.
Pensou que seria apropriado recitar uma prece. Em suas condições atuais,
certamente era muito apropriado que começasse a rezar, como qualquer jovem
moça assustada e esperançosa faria se estivesse em seu lugar.
Tentou encontrar alguma palavra na mente, talvez algo que lhe
reconfortasse. Iria funcionar, só precisava manter a calma e se concentrar o
suficiente para que a prece...
Uma gota de chuva caíra em sua testa, seguida das demais gotículas
geladas que logo se transformariam em uma tempestade.
— Mas que diabos! — praguejou.
Havia esquecido mais uma vez dos modos convenientes a uma dama,
deixando-se levar pelo seu espírito afoito e destemido.

*leathcheann — idiota
*gruaig tine —cabelos de fogo
* cailín — moça
*cailleach damn — bruxa maldita
*curse — maldição
*diabhal —diabos
CAPÍTULO QUATRO
"Dríades observavam de seus carvalhos, altos e enegrecidos, enquanto ele
segurava o pequeno rosto com a concha das mãos e o trazia para si.
— Minha doce feiticeira — sussurrou entre a abertura apetitosa de seus
lábios enquanto ela fechava os olhos em
consentimento.”

O poente estendia-se sem qualquer parâmetro ou limite sob seu turvo


olhar, ao tentar inutilmente assimilar o que via.
Enquanto ele permanecera, sabe-se lá por quantas horas, desacordado na
praia, com areia nos pés e alguns insetos lhe fazendo companhia, Rose podia ser
avistada do outro lado do amontoado de árvores em alguma tarefa ridiculamente
atrapalhada, que se assemelhava muito à pescaria.
Randall levantou-se com dificuldade, sentindo uma fisgada de dor no
peito.
Removeu os tecidos embebidos de sangue e jogou-os ao lado da pedra
que curiosamente fora arrastada acima de sua cabeça.
Com alguma dificuldade, conseguiu se pôr de pé para perscrutar a pedra
que mais parecia uma lápide.
E ainda havia seu nome escrito na areia, logo acima da pedra branca,
bem como teria sido uma lápide.
Uma maldita lápide.
Não sabia que tipo de brincadeira agourenta era aquela, mas sabia quem
fora a responsável.
Caminhou pela areia a passos apressados e uma expressão nada
formidável, que não se atenuou ao notar as gargalhadas que vinham em sua
direção.
— Oh, você acordou finalmente — disse Rose, sem tirar os olhos das
águas.
Ela havia prendido seus fartos cabelos com uma fita que soltara-se do
laço de seu vestido. As mangas foram arregaçadas a fim de dar-lhe mais
agilidade com as mãos e as saias pesadas foram amarradas na altura de seus
tornozelos. Estava descalça e parecia não se importar em ter os pés afundados na
areia úmida e pegajosa. Ela havia pego sua adaga novamente, e sabe-se Deus
como havia feito aquilo, mas tinha conseguido atá-la na ponta fina de um
pequeno e comprido galho que usava como uma lança.
Ela o atirava quando avistava algum peixe perto o suficiente para ser
pego, mas até então, havia falhado em sua estranha caçada.
Randall a observava com curiosidade e estranhamente com certa
admiração.
Não conhecera muitas damas inglesas na vida, mas as poucas que lhe
interessaram, não chegavam aos pés da ousadia que tinha aquela ali.
— Não sabia que estava esperando por mim. A julgar pela lápide tão bem
preparada em minha memória. — Mantinha-se empertigado o suficiente para
fazê-la conter o riso que miseravelmente tentava ocultar.
— Eu apenas arrastei a pedra até lá para não perdê-lo de vista. — Ela deu
de ombros, ocupada com sua má pontaria.
— Precisava escrever meu nome também? — indagou ele, ainda metido
em mau humor.
— Oh, não. Mas estive entediada o bastante para fazê-lo. — Ela parou
por um breve segundo e lhe sorriu amplamente em deboche.
— Você não vai conseguir pegá-los assim. — Resolveu ignorar o lado
sarcástico da jovem e partir logo para a praticidade e experiência que a situação
exigia.
— Eu estava indo bem até agora, antes de você aparecer — teimou ela,
com um vinco formado entre suas sobrancelhas ruivas.
Só podia ser algum tipo de maldição ou praga que lhe lançaram, pensou
Randall antes de aproximar-se sem qualquer aviso ou menção, e tomar-lhe
bruscamente a lança improvisada, fazendo-a fincar ambas as mãos na cintura e
mirá-lo com uma indignação tão espontânea que ele quis sacudi-la para fazê-la
voltar ao seu juízo perfeito.
— Não sei o que pensa estar fantasiando, cailín. — Ele distanciou-se
dela de modo rude. — Primeiro você pula em um barco com um desconhecido e
decide bancar a santa curandeira. — Uma sombra toldou seus olhos, fazendo-os
ficar ainda mais sombrios. — Depois, brinca com o destino ao fazer aquela
maldita lápide para o mesmo homem que tentou atacá-la e ainda pode repetir tal
ataque. — Suas palavras continham ameaças veladas.
— Não pensei que ia levar tão a sério... — Rose tentou justificar-se ao
notar a verdade que ele lhe atirava.
— Pois levei! Você é louca, cailín álainn? — inquiriu retoricamente, não
lhe dando espaço para qualquer resposta quando a encarou. — Não é possível
que esta seja sua reação normal perante a situação. — Negou com a cabeça
enquanto tirava a adaga do galho.
— Como queria que eu reagisse? — Abandonou todo o receio que tinha
e peitou-o com toda a dignidade que lhe restava. — Queria que eu tivesse
terminado o serviço e o matado? Pensei nisso. Deus sabe como pensei! Mas não
pude deixar de compadecer-me do senhor. E eu precisaria da sua ajuda para
voltar para casa, então...
O término não dito de sua sentença permaneceu entre eles, até que Rose
deu-lhe as costas sem dizer mais nada.
Randall pôde ouvi-la bufando em escárnio ao deixá-lo para trás.
Ele tinha razão, pensou Rose enquanto voltava para debaixo da
segurança da sombra das árvores, onde estaria livre da presença repugnante de
Randall.
Mas tinha mesmo que ser tão grosseiro? Será que não podia ver que ela
tinha sacrificado sua segurança e conforto para salvá-lo? E até mesmo sua vida!
Já que o próprio tinha reiterado suas intenções violentas quanto a ela.
O aroma das urzes coloridas e das murtas ramalhudas e lustrosas que
entrincheiravam-se em pequenos arbustos lhe traziam certa calmaria. Não estava
negando ou tentando disfarçar a realidade, no entanto, sua visão era um dúbio
contraste em relação às suas intuições.
Quando chegou aos pés das altas árvores que cobriam toda a costa
íngreme, puxou duas folhas grandes o suficiente para acomodá-la ali. Usou uma
delas para forrar sobre a areia, e outra para protegê-la do vento gélido que o mar
soprava em sua direção.
Deitou-se e se cobriu, embolada como uma criança sem quaisquer
acalentos, tentando ignorar de maneira rompante a presença de Randall, que a
observava a poucos passos de onde estava.
Ainda podia ver o riso faceiro em seu rosto de duras expressões, portanto
virou-se para o outro lado, agarrada à folha enquanto sentia sua mandíbula
começar a tremer e os dentes começarem a ranger pelo frio que a assolava.
Não conseguira pregar os olhos nem por um segundo, mas permitiu-se
apreciar o horizonte com minucioso deleite. Sabia que não deveria, mas sentia-se
imersa em plenitude com aquela vista. Jamais vira algo tão belo. Nem mesmo
com todo seu escopo de imaginação seria capaz de reproduzir um cenário como
aquele. Tudo o que mais desejava naquele momento, era ter uma tela e um pincel
em mãos, para eternizar aquelas cores. Sem perceber, um sorriso ladino surgira
repentina e genuinamente em seus lábios, enquanto perdia-se nas tonalidades do
crepúsculo. Não percebeu quando Randall se aproximou com um peixe de porte
médio nas mãos e colocou-o ao seu lado como uma oferenda.
— Minha oferta de paz, gruaig tine. — Tentou esboçar um sorriso ou um
ar cordial, sem sucesso algum.
Ela o olhou com desdém e revirou os olhos em sua típica postura irônica.
— Oh, não veio atacar-me? Pensei que seu cérebro provinciano não fosse
capaz de uma boa ação — atalhou com uma ligeira indiferença forçada.
— Não vou atacá-la se puder parar de ser tão desprezível, cailín. —
Pegou alguns gravetos e sentou-se ao lado dela. — Já ascendeu uma fogueira
alguma vez? Talvez eu e meu pobre cérebro provinciano não consigamos realizar
tal tarefa tão complexa. — Sua voz era um arrulhar mesmo acentuada de sátira.
Com habilidade e movimentos ágeis, Randall rapidamente fez o fogo
aparecer entre os gravetos que consumia-os com a velocidade das asas de um
beija-flor. Apesar do vento que uivava acima da copa das árvores, as flamas
pareciam aumentar, bem como o aroma deliciosamente agradável do peixe que
assava ali.
Rose permaneceu o tempo todo com as mãos perto do fogo, tentando
aquecê-las. Ambos teciam um silêncio insondável, quebrado apenas pelo estalar
dos galhos ao serem curvados pelo fogo impiedoso.
Quando a refeição finalmente ficou pronta, ele pegou o peixe e o colocou
em uma folha de palmeira relativamente limpa, cortando-o em alguns pedaços
com sua afiada e intimidante adaga.
— Não se faça de tímida, béarla. Pegue. — Ofereceu-lhe um generoso
pedaço, que ela, por sua vez, aceitou de muito bom grado.
Jamais passara tantas horas sem uma refeição decente. Rose passou a
esmiuçar o pedaço com a ferocidade de um verdadeiro animal faminto. Randall a
fitou com um finório riso nos lábios constantemente selados e não pôde esconder
sua satisfação ao flagrá-la lambendo os dedos sem nenhum pudor.
Após tal ato indecoroso, ela os limpou na barra de sua veste e pôs uma
das mãos dentro do corpete apertado de seu vestido, fazendo Randall virar o
rosto na direção oposta, pouco a vontade com seus modos nada apropriados para
uma donzela de sua estirpe.
Afinal, certamente ela era uma donzela. No sentido íntegro da palavra,
apesar de seu temperamento, ela era apenas uma menina. Concluiu, mais uma
vez, ao fitá-la de soslaio.
— Precisamos ferver água. — Ela o tirou de seus devaneios ao mostrar-
lhe algumas folhas pequenas que tirara de seu corpete, onde guardara mais cedo.
— Misture-as com a água e beba. Aliviará suas dores. — Rose as depositou ao
lado do que restara da inusitada refeição.
Ele olhou para as folhas verdes que estavam meio amassadas e sentiu-se
agradecido. Mas jamais iria dar-lhe o prazer de dizer isso em voz alta. Então,
vestiu mais uma vez sua típica carranca e sorriu da maneira mais frívola que
pôde.
— Suponho que eu deva confiar na senhorita. Visto que teve a chance de
matar-me mais cedo, e não o fez. — Piscou para ela de um modo sugestivo que
lhe deixou claramente descomposta.
— Isso é folha de salgueiro. Não há razão para alarde — declarou ela
com animosidade.
Ela era tinhosa como uma mula empacada, mas Randall percebeu que
não havia apenas teimosia em seus modos inflexíveis. Ele a havia aborrecido.
Não estavam mais compartilhando as palavras ferinas e ofensas habituais. Ela
permanecera tão calada quanto uma porta e isso estava dando-lhe nos nervos
pelo simples fato de importar-se.
Rose certamente era uma menina mimada que não suportava que alguém
lhe contradissesse, pensou ele ao notar a pequena boca curvada em perversidade.
A realidade é que ela estava furiosa com ele. E este fato a tornava ainda
mais interessante aos seus olhos.
Ela deveria temê-lo. Deveria estar esperneando, implorando-lhe para que
a levasse embora.
Aliás, ela nem deveria estar ali.
Fitava-a, intrigado em suas próprias questões a seu respeito.
— Pare de encarar-me como se eu fosse uma aberração! — ralhou ela à
medida que voltava a sua cama de folhas que mais parecia um amontoado de
areia.
— Estava apenas curioso... Como uma dama como você, pôde escolher
vir até mim por livre e espontânea vontade? — Ele tirou o chapéu que
sombreava seu rosto, revelando os cabelos negros como o céu sem estrelas que
os encimava.
— Livre e espontânea vontade? — indagou, aturdida, com uma fúria que
o sobressaltou. — Você tinha uma lâmina em meu pescoço! — gritou com
afinco.
— E você havia me acertado com meu próprio punhal. Podia ter deixado-
me lá e seguido seu caminho sem grandes infortúnios — afirmou Randall
sabiamente.
— Você assegurou-me que não ia me ferir... — Sua voz tornou-se tão
baixa quanto o assovio do vento.
Ela sabia que estas haviam sido as palavras mais tolas que poderia ter
dito. Apesar disso, eram as mais verdadeiras. De forma descabida, sua
deferência a respeito daquele homem falou mais alto que sua lúcida consciência.
E sua insanidade a levara até ali.
— Não pretendo estender este diálogo irreverente. — Virou para o lado,
dando um fim a conversa. — Tenha uma boa noite e amanhã acorde-me ao
alvorecer para levar-me embora daqui. — Fechou os olhos forçosamente,
fingindo bocejar.
— Longe de mim atrapalhar seu sono, gruaig tine. Mas por que não
dormimos lá no barco? É muito mais seguro e confortável — questionou ele,
permanecendo de pé ao lado dela enquanto tentava convencê-la.
— Não vou dormir lá. Já passei horas demais naquele barco e
francamente, prefiro dormir em terra firme. — Deu dois tapinhas na areia como
que provando suas palavras.
— Você está tremendo de frio aí. Vai congelar até o amanhecer, cailín. —
Rose deu-lhe de ombros com impertinência e voltou a ignorá-lo.
Ela decididamente o irritava como ninguém nunca havia feito antes.
Randall foi caminhando lentamente para o barco, afastando-se da figura pequena
e vulnerável que tentava se aquecer inutilmente com aquelas folhas idiotas. Rose
preferia congelar até os ossos, ao invés de deixar-se dissuadir por ele.
Ele chegou até o barco e deitou-se na madeira úmida pela tempestade.
Não estava tão confortável quanto havia pensado, no entanto, era melhor do que
encher-se de areia até os olhos, como Rose certamente estaria.
Olhou para o céu um tanto inquieto demais. Não conseguia se concentrar
em nada que não fosse a jovem irredutível a alguns metros dali.
— Você não a conhece, leathcheann! — murmurou baixinho, cruzando
os braços. — Não há razão para importar-se — repetia mentalmente a mesma
frase, tentando controlar-se para não ir até lá uma vez mais.
Mesmo que não lhe importasse e que não fosse de sua conta, ainda assim
Randall estava em dívida com ela. Portanto, levantou-se ainda mais sisudo que
de costume, em prol de ajudá-la, se ela assim permitisse.
— Leathcheann damn! — reclamou para ninguém em especial enquanto
caminhava até onde a pequena menina tremia dos pés à cabeça.
Algo se aqueceu em seu peito quando a viu daquela maneira. A
pobrezinha não tinha mais que um metro e meio, mas tinha a coragem e
determinação de um gigante. E certamente tinha uma petulância endiabrada,
constatou, um pouco assombrado ao notar o leve sorriso em seus próprios lábios
enquanto a admirava em silêncio.
— Cailín? — chamou-a em voz baixa, temendo importuná-la outra vez.
— Moça, está acordada? — Ele tocou-a suavemente no ombro que mais parecia
uma pedra de gelo.
Ela nem sequer se movera. Randall não tinha certeza se ela adormecera
ou se estava apenas o ignorando como sempre fazia.
De qualquer modo, não era de seu feitio deixar uma mulher naquelas
circunstâncias. Mesmo que a mulher em questão fosse portadora de um espírito
tão terrível quanto o diabo.
Tirou seu fraque, sentindo o vento gelado bater em seus braços desnudos
como uma torturante afronta, e pôs o casaco pesado em cima dela, cobrindo-a
delicadamente.
Rose estava acordada, mas não sabia ao certo o que fazer, preferindo mil
vezes fingir estar adormecida. Ela sentia o cheiro almiscarado invadindo seus
sentidos, bem como o calor que emanava do tecido, que tinha bem em mente que
vinha do corpo de Randall.
Prendeu a respiração quando percebeu o que viria a seguir.
Randall deitou-se ao seu lado com tanta gentileza que desejou agradecê-
lo ao sentir o frio abandoná-la e o calor a preencher. O recebeu com tanta
solicitude que tinha vontade de abraçá-lo de tanto contentamento.
Ele estava às suas costas, encaixando-se entre seu corpo com uma
afabilidade que a surpreendeu, já que era um homem tão grande. Não esperava
que seus movimentos e atitudes fossem abastados de tanta ternura.
— Sei que está acordada, gruaig tine. Não pense que era de meu agrado
vir aqui... — Ela estava quieta, mas Randall sabia que se esforçava muito para
permanecer assim. — Eu só não conseguia dormir com o barulho de seus dentes
batendo uns nos outros. — Sorriu de maneira doce, como raramente fazia.
Rose soltou um sonoro “humpft” como forma de protesto. Não obstante,
apesar de saber que aquilo era um escândalo, tão indevido quanto ir até o palácio
real e chutar a rainha... Tão pecaminoso quanto lançar blasfêmias a Deus... Tão
devasso quanto...
Não pôde pensar em mais nada quando o sentiu aproximar-se ainda mais,
com a respiração quente e densa em seu pescoço.
— Durma bem, pequena cailín gruagach — sussurrou em seu ouvido
com um leve roçar em sua pele.
Só podia ter enlouquecido.
Randall sabia que aquilo era errado e teve a certeza do erro quando sentiu
o corpo reagir devido àquela proximidade tão íntima que compartilhavam.
Sentiu a pequena menina puxando seu braço, fazendo-o estreitá-la ainda mais em
si.
— Do que me chamou agora? — ela indagou com a voz tão baixa quanto
um rumorejo.
— Cailín gruagach — repetiu com o timbre rouco, temendo que ela
percebesse o quanto aquilo estava o afetando. — É moça atrevida em irlandês.
— Prefiro que me chame daquele outro jeito. — Ela acomodou-se ainda
mais naqueles braços que jamais pensou que estaria um dia.
— Gruaig tine? — indagou Randall, sentindo-se mais uma vez aquecer
internamente.
Ela assentiu com veemência, espalhando ainda mais os cabelos que
soltaram-se da fita.
— Durma bem, gruaig tine. — Randall apertou-a em si com um pouco
mais de firmeza, não deixando mais espaço algum entre eles.
Era inútil negar que sentia uma certa atração por ela. De fato, aquilo era
corriqueiro para qualquer homem com sangue nas veias. E Rose era uma moça
belíssima. Apesar da pouca idade, ela tinha curvas tão bem definidas que
qualquer homem pararia para apreciá-las. Ainda mais se estivessem tão
próximos.
Tinha que parar de pensar nela daquela maneira tão imprópria. Mesmo
que seu corpo estivesse em chamas, e apesar de querê-la para si de um modo tão
frascário... Tentava controlar-se de todas as formas possíveis, mesmo sabendo
que todas as tentativas seriam vãs.
Apesar de estar enfeitiçado pelo desejo devasso, o que mais o
surpreendeu foi o sentimento de tristeza que lhe acometeu naquele instante.
Um sentimento de extremo pesar, como se estivesse à beira de uma
relevante perda. Ele sabia que a responsável por tais emoções tão controversas
era ela, só não sabia como lidar com aquilo que sentia.
Ela não era dele e nunca seria.
Não se pode perder algo que nunca obteve.
Ele nem sequer a conhecia direito! Certamente, ela só estava agarrada ao
seu braço por pura sobrevivência.
No dia seguinte iria levá-la para casa e poria um termo naquela situação
ridícula.

*cailín — moça
*cailín álainn — moça inglesa
*gruaig tine — cabelos de fogo
*béarla — inglesa
*leathcheann — idiota
*leathcheann damn — maldito idiota
*cailín gruagach — moça atrevida
CAPÍTULO CINCO
"Seus lábios eram como flâmulas que esbraseavam seus sentidos, seu
toque era a labareda que causava-lhe ardente caos.
A jovem feiticeira desprendia-se da realidade enquanto era ludibriada
por sua própria cupidez.
Deixava-se moldar pelo desejo, suplicando para que o beijo jamais
findasse.
Este era o pedido do cerne de sua alma, pensou enquanto afastava-se de
seu amado para que pudesse olhá-lo nos olhos.
Seu coração ensandecido tentara traí-la uma vez mais.
O jovem de olhos negros a fitava de um modo doce.
Uma triste doçura.
Ela havia abandonado a quimera que os unia.
Não havia mais nenhuma fresta no véu que os apartava.
— Você não está aqui — declarou ela com amargura. — Você não é real.
— Sua voz falhara miseravelmente.
— Não. — Aproximou—se mais uma vez, intuindo que ela precisaria de
seu consolo novamente.”

Lennart Randall sempre fora um homem desprendido de formalidades ou


convenções sociais. Não nascera em berço de ouro, tampouco desfrutou de
riquezas ou benefícios. Aprendera a cuidar de si mesmo desde tenra idade. Ainda
muito jovem precisou fazer escolhas que não lhe eram devidas. As inflexíveis
circunstâncias
impostas corromperam seu caráter.
Jamais pensou que um dia teria de se render a atos ilícitos, no entanto,
não há muito em que ponderar quando seu estômago vazio dói mais que o peso
em sua consciência. Sabia que a vida que levava não estava certa sob nenhum
parâmetro moral, apesar disso, furtar, pilhar e saquear, eram seus únicos meios
de sobrevivência em sua desregrada existência.
Contudo, nem sempre fora um sujeito de índole questionável.
Certamente, seus tratos gentis eram cada vez mais escassos, entretanto, em raras
ocasiões lembrava-se de como agir feito um cordial cavalheiro.
Todavia, sua atual situação não lhe fazia recobrar os bons modos,
tampouco a cordialidade.
Estar preso em uma maldita ilha deserta com uma inglesa mesquinha,
não atiçava sua diligência.
Ao contrário disso, a jovem de cabelos rubros, que ainda dormia em seus
braços, fazia-o agir com mais hostilidade.
Lentamente, levantou a cabeça, observando pelo canto dos olhos que ela
ainda não tinha indícios de querer despertar. A realidade era que ela estava
confortavelmente aninhada nele, como se fosse sua função oferecer-se como um
capacho aos seus pés.
— Cailín damn millte — resmungou enquanto levantava-se ainda mais
devagar, na tentativa de sair dali o quanto antes. — Maldita mimada — repetiu,
sentindo-a perigosamente próxima de seu corpo.
Já bastava ter tido uma madrugada de tormentos, não queria ter de lidar
com as sensações físicas atordoantes também pela manhã. Mal havia pregado os
olhos, podia jurar que acordara ainda mais cansado do que estava no dia anterior.
Não costumava ter de ir dormir com seus desejos negligenciados. Além
disso, fazia meses que não apreciava uma mulher em sua cama, não podia dar-se
ao luxo de ser reconhecido em lugar algum, sendo assim, não tinha sequer uma
oportunidade para abusar de algumas horas de fúteis vontades.
Na maior parte do tempo, evitava pensar em coisas que lhe tirariam o
foco, ou lhe distraísse. Embora refutasse tal pensamento, sem dúvidas Rose era
uma bela e voluptuosa distração.
Não nutria qualquer empatia pela jovem, nem mesmo tinha qualquer
afinidade com a mesma. No entanto, não podia negar que ela o estava
enlouquecendo, mesmo sem saber que fizera da sua noite um verdadeiro inferno.
Como se quisesse tentá-lo, ela diminuiu a pouca distância que havia entre
eles, encaixando-se perfeitamente nele. Na mesma hora, sentiu o corpo reagir, a
respiração tornar-se pesada e descompassada.
Deveria sair dali imediatamente, ele sabia disso. Mesmo que estivesse
gostando muito da maneira que ela inconscientemente aconchegava-se nele, e
mesmo que o cheiro doce que emanava dela estivesse fazendo-lhe perder os
sentidos...
Ele iria levantar e fugir dali como o diabo foge da cruz, mas Rose parecia
querer testar seus limites quando puxou uma de suas mãos para seu colo. Randall
sabia que ela não fazia aquilo de modo proposital. A pobre estava apenas
tentando se aquecer, talvez sonhando que puxara um pesado cobertor de pele
para si. Amaldiçoou-se ainda mais por isso.
Sua mão estava terrivelmente perto de seu decote. Podia sentir as pontas
dos dedos roçarem na pele quente e macia do vale que formava ali.
— O mo dhia... — Um gemido saiu em um som entrecortado por seus
lábios.
— O quê? — Rose despertara gradativamente, piscando várias vezes, um
tanto aturdida, antes de notar o gesto furtivo da retirada da mão de Randall. — O
que disse? — indagou, alheia a expressão constrangida dele.
— Oh, nada. Absolutamente nada. — Distanciou-se dela e passou a
mostrar um grande interesse pelo punhado de areia que amontoava com uma das
mãos.
Rose deu de ombros, inacreditavelmente indiferente aos tormentos de
Randall, fazendo-o sentir-se ainda mais tímido e culpado por imaginá-la de
formas tão pouco apropriadas.
— Está tão quieto — constatou ela em voz alta, aprumando as saias do
vestido e tentando prender os cabelos para trás.
Foi a vez dele de dar de ombros, ainda evitando os olhos azuis que o
fuzilavam de maneira pouco comedida.
— Não havia necessidade alguma de... — Ela olhou para as folhas no
chão, lugar onde haviam dormiram abraçados. — Bem, você sabe. — Cruzou os
braços, tentando não parecer afetada pela intimidade que compartilharam.
— Eu não podia deixá-la morrer de frio. — Encarou-a no mesmo instante
em que um sorriso pintava os lábios pequeninos.
Ela assentiu, pondo um fim aquilo e mudando rapidamente o rumo da
conversa.
— Quando vamos partir? — Mirou o horizonte parecendo absorta demais
para prestar atenção na resposta que aguardava.
— Agora mesmo. — Randall levantou-se rapidamente. — Aliás, não
podemos demorar nem mais um minuto. — Sacudiu o casaco antes de colocá-lo
sobre os ombros. O tecido ainda tinha o perfume de Rose. — Tenho muitas
coisas a fazer. — Dito isso, deu-lhe as costas de modo ríspido e caminhou de
modo ligeiro em direção ao pequeno barco que desembocava na praia.
— Sei que não é de minha incumbência... — Ele segurou uma de suas
mãos, auxiliando-a a subir no barco pouco estável.
— Certamente não é... — Ele sorriu de modo matreiro, interrompendo-a.
— Sou obstinada o suficiente para prosseguir, apesar disso. — Ergueu
uma sobrancelha desafiadoramente. — Bem, quais coisas o esperam com
tamanha pressa? — Estava verdadeiramente curiosa.
Nunca conheceu um homem como Randall, e tinha a plena certeza de
que jamais conheceria um sujeito assim na Inglaterra. Todos os seus sentidos
racionais acusavam-lhe de estar sendo extremamente e inapropriadamente
evasiva, quando não deveria nem estar dirigindo sua palavra a um homem como
ele. No entanto, seu instinto tipicamente ousado, a instigava com perguntas ainda
mais impertinentes.
E não era de seu feitio permanecer calada.
— Não vai me dizer? — Ela sentou-se confortavelmente enquanto ele
pegava o remo, dando-lhe pouca atenção.
— Até poderia. Mas a senhorita não acreditaria. — Continuou remando,
muito ciente dos olhos da jovem tomando a direção de seu rosto com demasiada
insistência.
— Não pode afirmar isso. Não conhece nada a meu respeito para saber
em que acredito ou não. — Empinou o nariz com prepotência.
— A julgar pela sua descendência... — Olhou para ela sugestivamente e
com um risinho irônico que a fez fechar os pulsos, já que não tinha nada que
pudesse pegar para atirar-lhe na cabeça.
— Isso não é justo! O fato de eu ser inglesa não quer dizer que eu seja
uma descrente frívola. — Negava com a cabeça, absolutamente indignada.
— Suponho que uma vida ridiculamente regrada não lhe convença de
que há mais mistérios no mundo do que você possa contar — rechaçou ele com
um ar debochado.
— Não é tão regrada assim... — Abaixou a cabeça, sabendo que seu
olhar iria lhe dizer o contrário.
— Ah, não? — inquiriu sarcasticamente, vendo-a assentir com nítida
incerteza.
— Claro que não. Eu faço muitas coisas que não têm nada a ver com
tarefas de minha obrigação. — Soltou um “humpft” abafado como se tudo aquilo
fosse muito óbvio.
— E que coisas são essas, gruaig tine? — Encarou-a descaradamente.
— Oh, você não acreditaria — retorquiu com superioridade, fazendo-o
conter o riso.
— Está bem, está bem. — Ele ergueu ambas as mãos rapidamente para o
alto, dando-se por vencido. — Se me disser que coisas tão sigilosas são estas, de
minha parte, eu te contarei também — propôs divertidamente.
— Pois bem... — Pensou alguns segundos no que dizer, com uma
expressão tão concentrada que o fez estalar a língua em uma mania irritante em
prol de apressá-la. — Ah, já sei! Eu fiz uma colcha de retalhos um dia desses,
para minha sobrinha que está para nascer. — Ela juntou as mãos sobre o colo,
sinceramente animada pela conquista.
Randall lançou-lhe um olhar dramaticamente indignado.
— Foi muito desafiador para mim! — argumentou ela. — Se me
conhecesse bem, saberia disso. Não sou muito dada a prendas. — Sorriu
timidamente.
— Sim, sim. Um desafio e tanto! — ironizou. — Chega até mesmo a ser
imprudência de sua parte, cailín! — Olhou-a com uma falsa repreensão. — Um
verdadeiro atentado a sua vida! Correndo tantos riscos com uma afiada e
ameaçadora agulha em mãos. — Colocou uma das mãos sobre a boca
escancarada em escárnio.
Ela gargalhou de sua encenação pouco lisonjeira sobre si mesma. Logo
depois, empertigou-se com a expressão crispada com sua necessidade de refutá-
lo.
— Eu também faço pinturas. É emocionante, se quer saber. — Resignou-
se em sua segunda tentativa.
— Ah, claro. Certamente, vai em lugares esplendorosos, não é mesmo?
Talvez um penhasco, uma floresta isolada do resto do mundo... — sugeriu, ainda
caçoando de sua monotonia.
— Humm... Na verdade, não. Sempre fico em frente a janela dos meus
aposentos, ou no jardim de nossa propriedade. — Mordeu o lábio superior um
tanto apreensiva ao notar o quão desinteressante eram seus dias.
— Mais uma vez admiro sua coragem. Se aventurar pelos sombrios
jardins da propriedade... — Randall ria sem nenhum pudor enquanto ela
continha-se para não atirá-lo ao mar.
— Touché! — Fez um gesto de rendição que arrancou-lhe ainda mais
gargalhadas. — Pois bem, tem uma outra coisa... — Ficou cabisbaixa
subitamente.
— Diga-me. Não deve ser tão indevido quanto pensa que é. — Aguardou
sua confissão ainda mais interessado quando a viu corar graciosamente, como
um botão de rosa.
— Eu escrevo algumas coisas... — disse por fim, ainda receosa de
contar-lhe algo que considerava ser tão particular.
— Escreve, é? — Nivelou os olhos aos dela, que aquiesceu. — E escreve
sobre o quê? — Tentou parecer indiferente, mas o rubor que subia ao pescoço
dela não podia ser ignorado. — São realmente coisas indevidas? — indagou ele
sem conter a expressão sobressaltada.
— Oh, não. Bem... Não são tão indevidas assim. — Sorriu
cautelosamente. — Apenas inapropriadas para moças tolas.
— E certamente você não é uma delas — afirmou com uma inesperada
gentileza.
Não esperava que ele agisse com tanto afeto por seus interesses. Rose
habituara-se a sempre ser vista como um mero objeto aos olhos masculinos.
Nenhum deles procurava saber de seus afazeres, ou se estes lhe davam alguma
satisfação além dos deveres. Jamais um cavalheiro havia lhe questionado a
respeito do que gostava de fazer em seu tempo livre. Randall podia ser um
rústico desprezível, mas fora o único homem que demonstrara estar
genuinamente interessado com suas palavras e ainda elogiara seu intelecto, que
lhe era primordial.
— Presumo que agora seja a sua vez — disse ela com veemência.
Ele passou uma das mãos pelos cabelos negros que grudavam com o suor
que acumulava em sua testa.
— Você acredita em magia, gruaig tine? — Seus olhos perscrutavam os
dela.
— Acredito que há muitas coisas que foge do meu conhecimento. Coisas
que nem sei se verei um dia. — Fitou-o mais intensamente. — Mas veja. —
Apontou para a linha invisível do horizonte. — Isso é magia — declarou,
convicta.
Randall sorriu com sua franqueza. Jamais imaginaria que a dama a sua
frente seria tão aberta a tais conceitos. Mais uma razão para admirá-la. Além de
sua espontaneidade e coragem, ainda havia um brilho místico mesclando-se ao
cobalto de seus olhos.
Não queria admitir, mas isso o assombrou.
— Tem razão, cailín. São coisas que poucos podem enxergar. Uma
felizarda minoria. — Ela anuiu em silêncio enquanto ele prosseguia. — Já ouviu
falar do Sabá de Litha?
Inesperadamente, ela confirmou com um maneio ligeiro de cabeça.
— É o dia mais longo do ano. E o início do Verão — respondeu ela,
categórica.
— Exatamente. Para os povos antigos que cultuavam tais lendas, é o
momento em que o poder do sol chega ao seu ápice. A relva cresce lustrosa pelos
campos outrora áridos, as flores desabrocham e as ervas tornam-se
milagrosamente poderosas fontes de curas antes impossíveis. — Respirou
profundamente, dando-lhe alguns segundos para assimilar todas as suas
sentenças. — É neste dia também que estamos vulneráveis a tudo que não é
deste mundo. Como se o véu que nos protege do sobrenatural fosse descoberto
por apenas uma noite. Domhan fairy. — Seu sotaque carregado dava-lhe ainda
menos sobriedade.
— O mundo das fadas — Rose murmurou baixinho como se temesse ser
ouvida por alguém além de Randall.
— Sim. É o dia permitido para que andem livremente entre nós. Muitos
acabavam aderindo a proteção de amuletos ou talismãs. Já outros, buscavam
estes seres, por pendências ou petições. — Ele sondava discretamente suas
reações enquanto falava com o timbre ainda mais baixo. — Mas dizem também,
que na noite de Litha podemos ter nossos desejos mais íntimos atendidos. Como
se qualquer súplica pudesse ser ouvida e assim concretizada.
— O que você pediria? — absorta demais, ela indagou.
— Não preciso pedir coisa alguma, pois eu mesmo vou buscá-la. — Ele
parou abruptamente seu trabalho com os remos. — Já ouviu falar dos círculos de
pedra nessas regiões?
— Claro! Sei até mesmo uma canção sobre eles. — Sorriu de viés. — É
isso que vai buscar?
— Não exatamente. O que eu procuro é ainda mais difícil de ser
encontrado. — A sombra de seu engraçado chapéu de marinheiro toldou seus
olhos. — No mesmo instante em que a luz do sol reflete entre estes círculos,
alinhando-os, é também a única hora que avistarei a ilha Hy Brazil. E é lá que eu
quero chegar, cailín. — Seu olhar era determinado.
— Pretende ficar lá? — Estava tão imersa na conversa que nem deu-se
conta de que estavam próximos de um notório navio.
— Oh, não. Quero apenas o ouro que tem lá. — Piscou-lhe
maliciosamente, quebrando todo o encantamento. — Por isso devo apressar-me,
gruaig tine. Primeiro a deixarei de volta ao porto onde iniciamos toda essa
confusão. Depois seguirei meu caminho sem importuná-la mais. — Ergueu uma
das mãos solenemente.
— E vai sozinho? Não me parece muito sábio de sua parte — atalhou ela
com um sentimento incompreensível de abandono.
— Sem dúvidas seria tolice a minha se assim o fizesse. — Apontou para
o grande e imponente navio que se aproximava. — Está vendo aquele navio? —
Ela assentiu com fascínio assim que o enxergou. — Aquele é o meu navio. E
aquela é a minha tripulação. — Seu tom era um tanto soberbo.
— Estamos próximos do porto? — Rose olhou em volta tentando avistar
algo que indicasse isso.
— Mais algumas horas e chegaremos lá. Não se preocupe, logo estará de
volta. Sã e salva, para retornar a sua vida, milady — anunciou sem qualquer
emoção, mais com certa repulsa ao empregar a última palavra que devia soar
respeitosamente cortês.
Retornar à minha vida, pensou com certo pesar. Um pesar que não
deveria estar sentindo. Rose certamente estava apreensiva por sua família e tudo
o que mais queria desde que embarcara naquela loucura, era avisá-los de que
estava bem. Sentia muito por não estar ao seu alcance tranquilizá-los. Entretanto,
quando tentava encontrar outras razões para voltar, não as achava.
E isso a frustrava tanto quanto a assustava. Não era possível que fosse tão
louca quanto afirmavam. Tentava se convencer de que apenas se ressentia por
não poder mais ter aquela paisagem para apreciar, ou o vento gélido que as águas
do mar sopravam em seu rosto. Ou até mesmo, podia apelar à sua curiosidade.
Sem dúvida alguma, ela desejava saber se Randall chegaria até sua ilha
fantasma.
Estava desesperada.
Temia ficar ali à mercê de tudo que um dia lhe fora poupado. Mas temia
ainda mais sentir aquele vazio para sempre.
Ela tinha saudade das coisas que nunca havia conhecido, era como um
grande buraco em seu peito esperando para ser preenchido. Uma sede de
descobertas que a pacata sociedade londrina jamais entenderia.
Nem mesmo ela podia compreender.
Em um ímpeto de coragem, ela levantou-se, fazendo o pequeno barco
movimentar-se de um jeito nauseante.
Antes que Randall pensasse em adverti-la por estar fadada ao
desequilíbrio, ela o impediu que continuasse a remar, deixando que apenas a
lentidão das águas os conduzisse.
— Leve-me contigo. — Suas sílabas saíram tão atropeladas que não tinha
certeza se ele as entendera corretamente.
— O que está dizendo, gruaig tine? — Pensava seriamente que seus
sentidos auditivos foram traídos por sua imaginação.
— Por favor, não deixe-me para trás. Não posso voltar. Não agora. Não
antes de ver as coisas que me fez imaginar. A ilha, as pedras, os desejos
realizados... Não pode privar-me de tais coisas quando eu faço parte da minoria
que as vê. Não pode abandonar-me assim... — A cada tentativa de raciocinar
seus argumentos com ele, se convencia ainda mais de seu querer.
— Não estarei a abandonando, mo bheagán. — Ergueu uma das mãos na
intenção tola de tocá-la, mas desistiu no meio do caminho quando lembrou-se de
quem era. — Isso não é abandonar. É devolvê-la ao lugar de onde nunca deveria
ter saído. Olhe para você. — Ela olhou para baixo, para as vestes
indecentemente puídas. — Você não terá vestidos caros aqui, não há luxo,
conforto ou a fartura que está convenientemente habituada. Você não pode
escolher essa mediocridade. — Ela parecia estar prestes a desmanchar em
lágrimas.
— Você não pode escolher por mim. Se não quiser-me no seu navio, eu
procurarei outros meios, mas não vou voltar para casa agora. — Fincou as mãos
na cintura.
— Você perdeu o juízo. Vai voltar, sim. Nem que eu tenha que colocá-la
sobre meus ombros e arrastá-la até lá! — ameaçou.
— Pois tente — desafiou ela, duvidando que ele seria tão rude a este
ponto.
Quando estavam perto o bastante do navio de velas negras, Randall fez
sinal para que fossem mais adiante, ao próximo conjunto de pedras onde
poderiam se juntar a tripulação. Respirou fundo quando o pequeno barco bateu
nas primeiras rochas, guardou os remos e tirou uma mecha grossa de cabelo que
lhe caía sobre os olhos. Olhou para Rose metida em sua irritante petulância, e
agradeceu mentalmente por ela ser pequena e fácil de manusear, afinal, ele tinha
uma mulher teimosa para literalmente carregar dali pra frente.

*cailín damn millte — maldita menina mimada


*o mo dhia — oh meu Deus
*gruaig tine — cabelos de fogo
*cailín — moça
*domhan fairy — mundo das fadas
*mo bheagán — minha pequena
CAPÍTULO SEIS
"Lentamente ela se afastou da suposta aparição que tanto desejara ser
real.
Caminhou entre os galhos secos que pareciam garras tentando impedi-la
traiçoeiramente de fugir.
Queria desaparecer, bem como ele, por certo, desapareceria.
Aquele era um mundo de ilusões.
As ilusões mais sedutoras."

— Solte-me agora mesmo, seu crápula! — Rose gritava enquanto era


levantada do chão sem muita cerimônia, pudor ou sequer seu consentimento.
Ela tentava empurrá-lo, mas isso só pareceu facilitar para que ele a
pusesse debruçada de cabeça para baixo sobre seus ombros. Não importava o
quanto gritasse ou balançasse as pernas no ar tentando acertá-lo no meio dos
olhos.
— Idiota! — Prosseguia em sua vã tentativa de chutá-lo.
Rose gritava os mais despudorados xingamentos enquanto era carregada
até o navio a contragosto. Randall tinha a expressão crispada como se quisesse
atirá-la ao mar. Jamais conhecera uma senhorita tão impertinente e sem juízo
como Rose mostrara ser.
Ele caminhou a passos largos até deparar-se com toda sua tripulação
encarando aquele escarcéu. Que Deus o perdoasse pela falta de gentileza, mas
não pôde mostrar bons tratos quando sentiu os dentes da terrível moça cravarem
em uma de suas mãos quando tentou tirá-la dos ombros.
— Ifreann! — Atirou a pequena demônia no convés sem qualquer
delicadeza.
Deveras, Rose parecia mesmo possuída por algo maligno quando
levantou-se e foi novamente confrontá-lo.
— Vá para o diabo que lhe carregue! — cuspiu as maldições com um
ímpeto que lhe sobressaltou.
— Olhe aqui, cailín damn. Não ouse erguer a voz para mim novamente.
— Segurou seu braço com certa brutalidade.
— Maldito bárbaro! — Desvencilhou-se de seu aperto com um puxão e
afastou-se, um tanto desconcertada pelo tom ameaçador.
Randall se aproximou com uma altivez intimidante, encolerizado e com
um tom de enfado.
— Não sou nenhum bárbaro, cailín, mas não teste minha paciência outra
vez, ou farei jus a cada palavra que direcionou a minha índole. — Manteve o
olhar inamistoso ao sustentar o dela.
Um dos homens que assistia com curiosidade àquele disparate, observava
Rose com certa grosseria no olhar.
A pequena e terrível moça encarou-o de volta sem qualquer receio,
notando os cabelos castanhos hirsutos, a desalinhada barba por fazer, e as
ásperas feições do rosto rubicundo do sujeito.
— Vejo que trouxe boa mercadoria, Randall — ironizou ao tocar
indevidamente uma mecha dos cabelos rubros.
— Tire as mãos de mim, seu desregrado dos infernos! — ralhou ela sem
escrúpulos.
— Ela xinga como um marinheiro! — Admirou-se, achando divertimento
em caçoar da jovem. — Nunca vi mulher falando com tão baixo calão. Deixe-me
ensiná-la a ter bons modos. — Deu dois passos na direção de Rose, que
encolheu-se de pavor ao notar suas lascivas intenções.
— Cale a boca, Ronan! — Rugiu Randall, entrando em seu caminho com
seu gênio torvo. — O primeiro que lhe encostar em um fio de cabelo, será
lançado para fora do meu navio. — Olhou para todos os homens que
ligeiramente baixaram a cabeça.
— Acalme-te, homem! — Ronan gargalhou com escárnio. — Nunca o vi
tão enraivecido por um rabo de saias! — Arrancou um longo suspiro de Randall,
que logo deixou de empertigar-se por amenidades.
— Ah, Ronan... — Deixou-se render, lembrando-se de que aquele era um
amigo de longa data. — Essa aí é capaz de enlouquecer até o mais manso dos
homens. — Olhou para uma Rose indignada a lhe fitar.
— O certo é tomarmos uma boa bebida para acalmarmos os ânimos —
sugeriu ao sentar-se atabalhoadamente.
— Tem toda razão, Ronan! — Assentiu Randall com um largo sorriso,
dando ordens para um rapaz corpulento que levou rapidamente um grande barril
de rum.
À medida que se embriagavam e o forte cheiro do álcool lhe embrulhava
o estômago, Rose desistiu de tentar chamar a atenção de Randall com seus
suspiros entediados ou seus braços cruzados em desgosto. Eles riam em uníssono
e por vezes olhavam para ela, certamente usando-a de chacota para suas
insinuações. A maioria daqueles homens falavam em um inglês arrastado e
austero, as palavras deslizando quase com rudeza de seus lábios, fazendo-a
redobrar a atenção ao diálogo. Entretanto, quando observavam-na de esguelha,
reconhecia o sotaque irlandês e o tom grave do dialeto, mas não compreendia
nada além dos olhares inquisidores que lançavam-lhe.
O poente pronunciava-se brumoso com a névoa e a ventania, que eriçava
as enormes velas negras que os conduzia. Acerca das circunstâncias, Rose
decidiu que não podia permanecer ali por muito mais tempo. Francamente,
encontrava-se exausta e faminta. Só tinham feito uma refeição na noite anterior,
e Randall parecia não se incomodar ou se importar, já que estava bêbado o
bastante para isso.
Decidida, Rose levantou-se de onde estivera sentada e encolhida,
tentando se abrigar dos agitados ventos frios, e caminhou de modo furtivo até a
estreita passagem que desembocava nas cabines.
Estava escuro e o ambiente úmido carregava um cheiro pesado de peixe
com suor masculino nada agradável. Continuou andando com discrição, atenta a
qualquer movimento ao seu redor, tateando as paredes pegajosas dos cômodos
mal iluminados. Pôde ver que um deles, talvez o único, tinha uma cama
improvisada e parcialmente limpa, a julgar pelos lençóis bem estendidos.
Não queria deixar-se render, no entanto, estivera em posição de defesa o
dia inteiro, e tinha tanta fome que questionava se não ouviriam os resmungos de
seu estômago de onde estavam.
Tirou os sapatos sentindo os dedos rígidos e doloridos, desprendeu os
grampos que seguravam um penteado já arruinado e deitou-se, tentando cobrir os
pés gelados com a ponta do vestido.
Ouvia apenas seu próprio resfolegar exaurido e o início de uma
lamuriosa canção, entoada nas vozes animadas da tripulação...
Onde estás encantadora dos céus?
Que enlevou meu espírito ao devaneio
Envolta em sete véus
Pés descalços sobre o nevoeiro
Venha a mim, deslumbrante aparição
Beija-me com suas flamas amaldiçoadas
Ouça-me entoar-lhe canções
Vague por minhas terras desregradas
Assombra-me, estrige irresistível
Deixe-me desposá-la em seu altar
Teu pranto de clamor inaudível
Doces lamurios por mim irá clamar
Até que partas;
Para jamais retornar...
O horizonte deitava no chão, trazendo consigo a luz das estrelas,
enquanto Randall entornava o último gole de sua bebida.
Não notou quando o jovem Gael, um órfão recém-chegado a tripulação,
pigarreou do seu lado, tentando inutilmente deter sua atenção.
— Senhor Randall, eu queria... — Randall soltou um riso estridente, o
interrompendo.
— Senhor? — Continuou gargalhando miseravelmente, à medida que o
tímido rapaz ficava ainda mais encabulado. — Não sou nenhum senhor, menino.
— Cuspiu indecorosamente ao lado do jovem que desviou habilmente.
— Eu só queria dizer que a dona que trouxe consigo, está na minha
cabine e... — Mais uma vez Randall o interrompeu com um riso pouco contido.
— Dona? — debochou. — Aquela lá não é dona de nada aqui. — Sua
fala era arrastada e lenta devido à embriaguez.
— Pelos deuses, Lennart! Está bêbado feito um gambá. — Ronan
aproximou-se deles. — Gael, durma na minha cabine. Deixe a dona do nosso
capitão aqui dormir confortável por esta noite.
— Ela não é minha dona! Ambos estão ficando surdos? — atalhou
enquanto tentava levantar inutilmente.
— E por que a trouxe aqui? — Ronan indagou com um riso a escarnecê-
lo.
— Não é de sua conta, Ronan — respondeu amargamente por fim,
pondo-se em pé.
— Nunca nada é da conta do velho Ronan aqui — falou em voz baixa. —
A única coisa que sei, é que nunca havia trazido uma mulher pra cá. Nunca,
Lennart. — Seu tom tinha seriedade e certa apreensão ao chamá-lo pelo primeiro
nome.
— Ela não ficará aqui por muito mais tempo. — Debruçou-se sobre um
balde e jogou água em abundância no rosto, despejando o resto nos fartos
cabelos.
— Então é esta a razão do seu mal humor? A partida da jovem? —
questionou sem preâmbulos.
Randall caminhou sentindo a refrescância em sua pele despertando seus
sentidos.
— Você é a razão do meu mal humor agora, Ronan. — Revirou os olhos,
farto de suas suposições.
Ronan era tão supersticioso quanto qualquer matrona de noventa anos.
Estava deliberadamente aflito por terem uma mulher junto deles. Ali não era
lugar de mulher. Além de trazer mau agouro apenas por sua presença, a senhorita
ainda era tinhosa como o cão.
Antes que pudesse atazanar mais um pouco o juízo de Randall, levantou-
se e o deixou imerso em suas próprias intempéries.
Com um longo suspiro, Randall também entrou para sua cabine a fim de
descansar antes do amanhecer.
A passos trôpegos, tentou inutilmente não encarar a bela dama que
dormia tão tranquilamente que parecia nunca ter conhecido a maldade do
mundo. Tentou se convencer de que mudara seu rumo, apenas por tê-la
encontrado dormindo com a porta escancarada, para o deleite dos homens que
cruzaram por ali.
Entrou rapidamente em um silêncio sepulcral, notando seus cabelos
esparramando-se por seu colo, algumas mechas adentrando perigosamente na
fenda do vestido. As pálpebras fechadas pesadamente, em um sono sem
agitações.
Certamente estava tão cansada que não acordaria nem se um raio lhe
atingisse a cabeça.
Por um segundo muito breve, ele a olhou com favor. Quem a via dormir
de forma tão serena, jamais imaginaria que era dona de um espírito rebelde.
Sorriu enquanto a fitava com comiseração. Era apenas uma menina. Uma
menina ingênua, dona de uma alma que ansiava por liberdade.
Lentamente, puxou um dos lençóis, encobrindo a forma reveladora e
demasiadamente exposta de suas pernas.
Após certificar-se de seu bem estar, fechou a porta atrás de si, tomando a
detida cautela para não deixar nem a mínima fresta. Não queria ninguém
observando-a.
Ninguém além dele.

Rose acordou antes do nascer do sol. Não podia continuar a dormir com a
fome que lhe assolava impiedosamente.
Calçou os sapatos e tentou adornar os cabelos com os grampos que
retirara do penteado na noite anterior. Sempre fora vaidosa, mas nunca fora
prendada o bastante para ter aprendido a prender os cabelos de maneira formosa.
Desistiu assim que entortara o segundo grampo entre os dedos, tamanha era sua
impaciência e indisciplina com tais tarefas tão corriqueiras para as debutantes da
alta sociedade.
Bufou um tanto irritadiça ao lançar os grampos para longe de sua vista,
preferindo manter os cabelos revoltos e livres.
Dobrou as mangas longas de seu, agora maltrapilho vestido, até o alto
dos cotovelos, e caminhou com altivez para fora da malcheirosa cabine. Recebeu
a lufada de ar fresco com muito bom grado, já que tudo ali parecia cheirar a
peixe morto e marinheiro sujo.
Em seu caminho, encontrou um jovem franzino de aparência sofrida,
donos de olhos bondosos. Indagou-lhe sobre os mantimentos e onde era o local
que preparavam as refeições.
Ele a conduziu por um caminho ainda mais perturbador, a obrigando a
pôr ambas as mãos sobre a boca ao notar o que parecia ser um horrendo rato
perambulando pelos latões vazios e encardidos.
Aliás, todos os utensílios ali encontravam-se em um estado deplorável. À
medida que desviava dos restos espalhados pelo convés enegrecido, questionava-
se como tinham coragem de comer qualquer coisa que saísse daquela verdadeira
imundície.
Tomando fôlego e muita coragem, ela começou a pôr alguma ordem
naquele caos que chamavam de cozinha.
Pediu um esfregão para o menino que descobriu se chamar Gael, ao invés
disso, ele a levou uns retalhos de panos esfarrapados e um pouco de sabão em
um balde de água.
Teria de servir, pensou ela enquanto lavava cada pedaço daquele cômodo
de aparência terrível.
Precisava fazer isso se quisesse se alimentar de algo relativamente limpo
naquele navio. Não tinha outra escolha.
Passou algumas horas com os joelhos metidos no chão, à medida que
toda a pegajosa gordura ia se desgrudando da madeira, que por sua vez, mostrara
ser de um tom agradável de marrom. Jamais perceberia isso com todo aquele
mofo devastando cada perímetro empoeirado.
Gael mostrou ser uma companhia formidável ao auxiliá-la em suas
atividades. Qualquer objeto que ela lhe pedia, ele encontrava algo útil para
substitui-lo, já que não havia muitos utensílios domésticos por ali. Tinham de
improvisar.
Francamente, isso não a surpreendia, a julgar pelas fisionomias dos
homens que conhecera da tripulação. Eram todos tão desordeiros e desprovidos
de modos, que por vezes temeu que fossem uma verdadeira embarcação de
selvagens.
Exceto por Randall.
Ele ainda lhe despertava muita curiosidade por ter uma distinta
miscelânea de educado cavalheiro e indômito displicente. Ainda não entendia
como duas personalidades podiam caber em um só homem.
Passado algum tempo, Rose olhou para Gael, que estava igualmente
agachado tentando remover a fuligem de algumas panelas de ferro.
— Gael? — o chamou com o olhar especulativo.
— Sim, senhorita — respondeu, extremamente solícito.
Ela perscrutou ligeiramente as expressões amenas de menino,
observando as mãos impiedosamente tisnadas, prova de uma vida de labutas.
— Está com Randall há muito tempo? — inquiriu de modo trivial.
— Não, senhorita. Faz pouco mais de um mês — falou, categórico.
— E ele o trata bem? — Quis tocar a mão machucada do menino, era
apenas uma criança, e não estava certo uma criança estar fadada àquela vida de
miséria. — Os homens aqui são um tanto ríspidos demais — prosseguiu ao notar
que ele calara-se de repente. — O próprio Randall mostra-se demasiadamente
severo em alguns momentos.
Gael pareceu engolir em seco antes de pigarrear, parou com os
movimentos frenéticos ao esfregar as panelas e a fitou com uma intensidade que
a assombrou.
— Senhor Randall é a melhor pessoa que eu conheci. — Antes que Rose
pudesse refutar suas palavras, ele continuou. — Se não fosse por sua inestimável
bondade, talvez eu estaria morto em uma vala agora. — Escondeu os olhos
castanhos levemente marejados.
Francamente, “bondoso” jamais seria uma qualidade que ela atribuiria a
Randall. Apesar da divergência de seus pensamentos, ela assentiu, notando a
gratidão pintando o olhar cabisbaixo de Gael, que levantou-se rapidamente com
o término de seus serviços.
— Tem alguma dispensa aqui? Fermento, farinha... — sugeriu ela um
tanto temerosa ao julgar a escassez evidente que reinava ali.
Ele anuiu com um movimento ligeiro, levando úteis ingredientes poucos
minutos depois.
Gael ainda permanecera ali até que os deliciosos assados de Rose
estivessem quase no ponto.
Ela estava corada e ainda mais exausta do que no dia anterior, mas ao
menos teria um desjejum decente.
— A senhorita cozinha muito bem! — Gael elogiou enquanto mastigava
um pedaço macio e quente que ela lhe dera para experimentar.
— Não tão bem quanto gostaria. Mas aprendi algumas coisas com nossa
cozinheira enquanto mamãe estava longe o bastante para não flagrar-me. — Riu
consigo mesma ao recordar as traquinagens.
Deu-lhe mais alguns generosos pedaços, percebendo que a fome do
menino parecia ainda mais vigorosa.
—Agora ajude-me a levar esses caixotes lá para fora. — Ele prontamente
fez o que lhe fora pedido.
Quando saíram na luz do dia, o sol nascia esplendoroso, misturando os
tons do alvorecer ao azul intenso das águas do mar. Uma brisa reconfortante os
embalava ao balançar suave do navio. Após alguns minutos admirada com
aquela vista, Rose passou a montar o que parecia uma grande mesa, obviamente
improvisada, como era tudo ali.
Juntara todos os caixotes que levaram para fora, pôs alguns panos limpos
que lavara algumas horas antes e estavam quase totalmente secos. Para finalizar,
pegou alguns gravetos que estavam jogados por lá, bem como uma ressequida
folhagem de tomilho, que certamente seria um útil condimento se não estivesse
tão frágil.
— Por que Randall repõe a dispensa com tão pouca frequência? — Tinha
um olhar apurado ante sua simplória decoração.
— As vezes o lugar em que desembarcamos não é tão rico em
suprimentos. — Limitou-se ele a lançar-lhe um ligeiro olhar de esguelha, como
se temesse dar-lhe informações indevidas.
Ocupada como estava, Rose não deu muita importância ao relutar de
Gael, que logo voltou aos seus afazeres rotineiros.
Ela pegou um pedaço do bolo que ficara superficialmente queimado nas
beiradas e degustou do sabor adocicado, sentindo a satisfação logo invadir o
estômago outrora vazio.
Antes que pudesse limpar as mãos e tirar as migalhas que grudaram em
seus dedos, notou que Randall a observava secretamente da porta estreita que
dava às cabines. Ele tinha um esboço de sorriso nos lábios, e nitidamente estava
tão surpreso que suas expressões eram um tanto embasbacadas ao fitá-la junto de
seu minucioso trabalho.
— Pelos céus! — Ronan foi o primeiro a sentar-se desajeitado no convés
úmido. — Pegou um pedaço de pão e o apertou como que para testá-lo. —
Realmente parece-me bom. — Pôs um pequeno pedaço na boca, ainda
desconfiado. — A pequena tinhosa tem mãos de fada! — exclamou, servindo-se
novamente.
Os outros homens passavam por ela com um olhar diferente da maneira
que a encaravam no dia anterior. De certa forma, passaram a admirá-la por sua
atitude altruísta.
Muitos ali não comiam nada além de peixe mal assado há meses. Para
estes, o que Rose os proporcionara era um farto banquete.
Ela sorria incentivando os mais reservados a se servirem também.
Logo estavam todos postos à mesa improvisada, deleitando-se da comida
enquanto agradeciam-na mais vezes do que pudera contar.
Tão grato quanto os demais, Randall finalmente aproximou-se de onde
ela estava.
Ainda tinha o resquício do sorriso atenuando suas feições.
— Isso foi muito generoso de sua parte. — Ela assentiu com um sorriso
casto. — Creio que mereça ser recompensada. — Olhou para a tripulação
animada ainda se fartando. — Eles não comiam algo assim há muito tempo. —
Voltou a fitá-la. — Merece uma retribuição, gruaige tine.
— Não fiz isso para ter...
Ele ergueu uma das mãos em sua direção e tocou o canto de sua boca,
tirando algumas migalhas teimosas que ficaram ali.
No mesmo instante, Rose esquecera-se da conclusão de sua sentença.
Sentia apenas o calor dos dedos ásperos roçando no canto de seus lábios.
Indiferente as reações dela, Randall apenas lhe sorriu de modo matreiro antes de
se afastar.
— Pense um pouco. Deve haver algo que queira — sugeriu antes de se
juntar aos seus homens.
Ela permaneceu ali, sobressaltada demais para esboçar qualquer reação
ou cogitar qualquer interesse que pudesse ter.

*ifreann — inferno
*cailín damn — menina maldita
*cailín — moça
*gruaige tine — cabelos de fogo
CAPÍTULO SETE
"Eileen"
Seu nome reverberava ao som do vento que uivava entre as árvores.
A jovem corria sem olhar para trás.
Não podia permitir-se fraquejar.
Se cedesse, certamente retrocederia.
E retroceder significava entregar-se.
Tal entrega inegavelmente acabaria nos braços dele."

Rose estava tremelicando pelos cantos enquanto Randall a observava de


esguelha sobre a aba de seu chapéu.
Ainda custava-lhe crer na autenticidade daquela jovem inglesa.
Estava girando sua pequena bússola de bronze entre os dedos, quando
percebeu que ela se aproximava, e assumiu então sua expressão pétrea mais uma
vez.
— Randall? — chamou por ele com o timbre cadenciado.
Semelhante a uma fera que chega de mansinho antes de atacar sua presa,
pensou ele com ironia.
Voltou-se para ela com um olhar curioso e fez um ligeiro movimento
com a cabeça, incentivando-a a prosseguir.
— Estive pensando no que disse-me mais cedo. — Tamborilava os dedos
na madeira áspera do navio.
Ele queria sorrir e estava mortificado por não poder fazê-lo. Aquela era a
criatura mais teimosa que já conhecera, e vê-la ceder, nem que fosse por um
pouco, lhe era extremamente aprazível.
Trincou o maxilar, determinado a permanecer com sua habitual carranca.
— Pois bem. Gostaria de lhe pedir algo, já que me ofereceu
anteriormente... — Ela passou a torcer uma mecha do cabelo entre os longos
dedos esbranquiçados.
Sabia que ela iria lhe pedir algo em algum momento, apesar de bancar a
durona independente na maior parte do tempo.
Ele permaneceu em silêncio aguardando sua petição, remoendo-se
internamente para não rir de suas expressões mansas.
Era nítido que Rose representava um papel que não lhe era cabível. Seus
olhos revelavam a verdadeira essência indômita de sua personalidade. E
certamente estava fazendo um tremendo esforço para permanecer com aquele
sorriso suave e tímido nos lábios.
Um tanto intrigada com o silêncio, ela resolveu findar os preâmbulos.
— Eu quero um banho — disse, tentando inutilmente soar natural.
Aquilo era demais ao seu senso ridículo de humor. Randall riu
miseravelmente enquanto a via corar tanto quanto o tom de seu próprio cabelo.
— Do que está rindo? — indagou, tentando manter a postura pacífica.
— Um banho? Se quer um banho posso jogá-la ao mar, cailín. Deus sabe
o quanto desejei fazê-lo. — Seu riso era cruelmente verdadeiro.
— Não é possível que seja tão descarado! — atalhou ela, cruzando os
braços.
— Oh, sou. Talvez o pior dos descarados, senhorita. — Caçoava, ainda
rindo de seus infortúnios.
— Você é um maldito arrogante! — declarou enquanto dava-lhe as
costas.
Antes que pudesse detê-la, Rose já havia atravessado o convés e
continuava caminhando, decidida a mantê-lo o mais longe possível de seu
perímetro de visão.
Randall sentia-se o mais vil dos homens, mas simplesmente não
conseguia deixar de desafiá-la. Suas atitudes por certo davam-lhe nos nervos,
mas também divertiam-no como há muito tempo nada o fazia.
A pequena inglesa era irascível, concluiu enquanto seguia seus passos
numa tentativa inútil de aplacar sua ira.
Quando chegou até ela, Randall já havia controlado seu sorriso, não
querendo mais aborrecê-la, apesar de deleitar-se com sua impertinência.
— Aí está você. — Sobressaltou-a enquanto debruçava-se ainda mais no
beiril do navio, tentando ocultá-lo com uma cortina de cabelos. — Tem uma
banheira na minha cabine. — Arfou enquanto jogava-se na madeira enegrecida e
úmida, sentando-se desajeitadamente ao lado dela. — Pode usá-la, já que
necessita tanto... — Deu de ombros.
— Céus! E como necessito. — Suspirou ela com nítido alívio. — Vou lá
agora mesmo se puder indicar-me qual é a sua... — ele a interrompeu com uma
cautela que a deixou encabulada.
— Shhhh... — Pôs um dedo em riste sobre os próprios lábios. — Agora
não, gruaig tine. Perdeu o juízo de vez? — crispou, a expressão um tanto
irritadiça.
— Humpf — Soltou o ar pesada e dramaticamente. — Que mal há em
um banho? — Indignou-se, mas tomou o devido cuidado de falar em voz baixa,
notando a apreensão nos olhos de Randall.
— Que mal há? Ela diz... — repetiu suas palavras com escárnio evidente.
— Muitos. Asseguro-te, cailín — afirmou, categórico, fazendo um gesto com
uma das mãos para ela se aproximar, como se fosse lhe revelar um segredo
perturbador.
Com certo estardalhaço, Rose sentou-se ao seu lado, revirando os olhos
diante de sua cautela exagerada com um simples banho.
Randall olhou para ambas as direções, certificando-se de que ninguém
podia os ouvir. Chegou ainda mais perto de Rose, tão próximo que podia sentir
alguns fios de seus cabelos voarem ao seu rosto, conduzidos pelo vento.
Pôs uma das mãos em concha sobre a boca e sussurrou enrouquecido.
— Espere até a luz do dia findar. Ninguém, exceto Ronan, sabe que tenho
uma banheira em minha cabine — disse ele, metido em enleio.
Rose uniu as sobrancelhas, tentando encontrar alguma razão para que ele
mantivesse uma banheira em segredo. Aquilo era extremamente irrelevante aos
seus olhos.
— Não vejo razão para tanto alarme por uma banheir... — Ele pôs uma
mão na boca dela, tapando-a.
— Cale a boca, cailín — admoestou com ausência de polidez. — Você
não entende, não é? — Cruzou os braços, libertando-a ao desviar de seu olhar
indagador, tamanho era seu embaraço. — Banho é coisa de maricas. Não pode
ser feito tão constantemente — falou tão sério quanto poderia. — E eu não o
faria. Oh não, certamente não — anuiu categoricamente. — Mas há tantas pulgas
por aqui, que é insuportável não...
— Maricas? — Ela ria de suas apreensões. Riu tanto que suas bochechas
doíam com tamanho absurdo. — Isso é inacreditável! — Não era capaz de
manter-se indiferente diante de tamanho disparate. — Mas agora algo está
esclarecido. — Pôs as mãos sobre a barriga, quase rolando no convés de tanto
gargalhar.
— O que está esclarecido? — indagou a contragosto, sentindo o orgulho
perigosamente ferido.
— Não leve-me a mal pelo que vou dizer, mas seus homens são tão sujos
que parecem-me selvagens ou andarilhos, enquanto você, é um senhor bem-
apessoado. — Tocou-lhe o fraque que resvalava o pescoço. — Se tomasse mais
banhos, aposto que seria tão atraente... — Ele ergueu os olhos em sua direção,
admirando-se pelo elogio à sua aparência, entretanto, quando ela concluiu a
frase, sua admiração transformou-se em indignação — ... quanto qualquer inglês.
Por vezes Rose esquecia-se de refrear a própria língua. Só se deu conta
de que tinha o ofendido quando ele tirou sua mão de seu traje de modo brusco.
— Não quero parecer um maldito inglês. — Levantou-se com apenas um
ágil movimento.
— Não quis dizer desta forma...
— Não há outra forma de dizer-me que pareço um vândalo. — Sacudiu o
casaco como num ato inconsciente de tirar a poeira inexistente dali.
— Randall, eu... — Ele ergueu a mão, detendo-a.
— Encontre-me aqui após o pôr do sol. E não ouse dizer mais nada sobre
isso. Entendeu? — Ela assentiu, consternada demais para justificar-se.
Rapidamente Randall saiu dali a passos largos, pisando duro, enfurecido.
Rose continuou onde estava, pôs os cotovelos sobre os joelhos e debruçou-se ali,
com as mãos segurando o rosto lívido em ressentimento.
Randall era irlandês. Um irlandês convicto de sua nacionalidade e
patriotismo. Jamais aceitaria ser comparado a um inglês cor de palmito
mesquinho.
Aliás, não podiam haver comparações, já que eram tão distintos em seus
atributos. Ele era mais alto que a maioria dos ingleses que conhecera, e também
maior, em todos os aspectos. Randall tinha os ombros largos e
inacreditavelmente um porte elegante. Suas vestes sempre de cores escuras, o
faziam ter um ar quase perturbador, em união ao chapéu que sombreava os olhos
terrivelmente negros.
Seu rosto era pontilhado por algumas cicatrizes que contornavam sua
pele encantadoramente bronzeada.
Sim, era encantador seu bronzeado, divagou Rose enquanto lembrava-se
do quanto passara a odiar o branco esquálido da maioria de seus pretendentes.
Claro que havia beleza nos ingleses. Mas era uma beleza sempre tão
repetitiva que tais adornos passaram a não atrair mais sua atenção.
Não que sentia algum tipo de atração por Randall e sua pele de oliva...
— Jamais — disse em voz alta, dando-se conta do rumo inadequado de
seus pensamentos.

Os últimos feixes das cores alaranjadas do poente já pintavam os céus


quando Randall retornou até onde Rose estava, encolhida com Gael, deitado aos
seus pés. Feito um vadio insolente. Sabia que ele era apenas um menino, mas
não podia permitir uma postura tão desleixada perante os outros homens que
trabalhavam tão arduamente para manterem sua estadia ali.
Caminhou tentado a sobressaltá-los com rispidez, quando algo o deteve.
Uma voz de soprano, tão suave quanto a brisa do outono, contava-lhe
uma história.
E contava de uma maneira tão vívida que ele passou a prestar atenção,
escondendo-se atrás de um pilar.
— Por que, Eileen fugia? — Gael questionava com os olhos arregalados.
— Porque ele não era humano. Era algo que habita ao sobrenatural e
estava preso ao cordão da morte. — Ela tinha uma voz carregada de energia.
— Oh. — Gael arregalou ainda mais os olhos, com temor. — Continue,
senhorita — pediu, com a curiosidade se sobrepondo ao medo.
— Eileen continuou correndo até que ele a chamou mais uma vez. Sua
voz era uma súplica, entoada com tamanha aflição. "Volte para mim, minha
feiticeira." Ele implorava com os olhos ardentes em paixão. Eileen não queria
olhar para ele. Ainda tinha as pálpebras firmemente seladas para não fitá-lo...
— Por que ela não queria olhar para ele? — inquiriu Gael, começando a
ficar tão apreensivo quanto os personagens daquela história.
— Porque os olhos são portadores da alma, Gael. Eles não podem ocultar
as verdadeiras intenções e desejos do coração. — Pôs as mãos sobre o peito. —
Eileen sabia disso. E no momento que ele visse seu olhar, saberia que ela mentia.
— Ela mentia? — Gael levantou a cabeça, parecendo totalmente absorto
naquela cena que ela criara.
— Oh, sim. Ela mentia. Pois não queria fugir. Jamais queria ter se
afastado dos braços que outrora foram seu lar. Ela o amava, e ele veria esse amor
em sua alma, se ela ousasse abrir seus olhos e o deixasse consumi-la uma vez
mais. Eileen ansiava por aquilo. Oh, como ela desejava deixar-se consumir pela
flama que ardia nele... Mas era tão quente que tornava-se cáustico. Um amor
corrosivo.
— Como um amor pode ser assim? — perguntou baixinho, um tanto
constrangido.
— Há amores tão intensos quanto a morte. Que encontram poesia na
escuridão e deleitam-se na colisão de tal atração. Mas tudo que colide, quebra. E
acabam se consumindo. Dois extremos sem um equilíbrio. Acabam sucumbindo
ao caos.
Gael a observava com veneração, sendo conduzido por cada palavra que
construía aquela história. Enquanto isso, antes que pudesse ser pego em
flagrante, Randall pigarreou na escuridão do início da noite e fez a penumbra da
fantasia dissipar-se junto com a desinibição de Gael, que logo levantou-se e com
uma vênia ligeira, despediu-se de Rose, que prometeu-lhe contar o resto da
história no dia seguinte.
Ele percebeu que Rose mantivera-se cabisbaixa, recusando-se a sustentar
seu olhar.
— Está deixando-o malcriado dando-lhe tanta atenção — ele repreendeu
com firmeza, vendo-a ignorá-lo com desdenhoso enfado. — O que era aquilo
que estava contando a ele? — Não queria parecer afoito em sua curiosidade,
então tentou soar o mais indiferente e austero possível.
— Já disse-lhe que escrevo histórias. — Soou tão fria quanto a ventania
que os assolava.
— E aquela que estava a contar para Gael, era uma das suas histórias? —
A observou assentir um tanto relutante.
Notou que aquilo era de extrema importância e valor sentimental para
ela, e por falta de algo sensato a ser dito, ele desprendeu-se do assunto, fingindo
não ter sido afetado por suas intensas palavras. Limpou a garganta uma vez mais,
pigarreando enfaticamente antes de dar mais um passo em sua direção.
— Venha comigo, cailín. — Quase lhe estendeu uma mão, mas logo a
pôs no bolso. — Mostrarei minha cabine para que possa banhar-se
devidamente... — Ela se levantou lentamente, metida em um silêncio que
certamente o deixava inquieto.
Não gostava de quando Rose ficava calada. Preferia mil vezes ouvir os
maldizeres daquela maldita boca suja, do que vê-la quieta daquele jeito que
mostrara ser quase insuportável.
Revirou os olhos indisciplinadamente na escuridão, enquanto
caminhavam de maneira quase furtiva até a cabine de Randall.
Adentraram em um corredor malcheiroso que fez Rose torcer o nariz.
Sem dúvidas havia alguma coisa morta ali, pensou ao apurar os passos.
Desceram uma pequena e estreita escada de três degraus, até uma parte
relativamente mais limpa do navio.
Tinha ali alguns mantimentos e boas instalações, baldes com água limpa
e algumas frutas embaladas cuidadosamente com algum tipo de plástico.
Mais adiante, uma janela pequena trazia alguma ventilação ao ambiente,
que era certamente o mais silencioso dali.
Randall empurrou alguns caixotes que obstruíam sua passagem e revelou
uma porta igualmente estreita, como tudo era naquele navio.
Para a surpresa de Rose, sua cabine era inacreditavelmente agradável.
Tinha uma cama. Uma cama boa e apresentável, com algumas almofadas
em cima do cobertor de pele. Tinha também alguns caixotes maiores que
serviam-lhe como uma escrivaninha, com alguns mapas ali e um tinteiro
abastecido.
Olhou para o lado direito do aprumado cômodo e encontrou a banheira já
preparada para um banho com algumas ervas perfumadas boiando na superfície
e uma linha suave de espuma imaculadamente branca.
Tinha algumas velas colocadas em altos castiçais de bronze que
ladeavam a banheira, iluminando-a e desenhando pequenas figuras abstratas no
incolor da água.
— Tomei a liberdade de enchê-la e pôr algumas coisas perfumadas aí...
— Indicou o caminho enquanto sentava-se pacientemente na cama.
Rose sentia-se tão agradecida! Certamente ele quis agradá-la. Podia
apenas ter deixado a água usada de seu próprio banho, ao invés de preparar tudo
especialmente para seu deleite. Ele jamais admitiria isso, mas ela sabia, e isso
era o suficiente para arrancar-lhe um sorriso dos lábios.
Sorriso que não durou muito, ao perceber que ele ainda estava a
encarando com certa pressa no olhar despudorado.
— Não temos a noite toda, gruaig tine, devia se apressar. — Tirou o
chapéu e passou a mão pelos cabelos enquanto erguia as pernas sobre a cama,
repousando tranquilamente enquanto ela o encarava com perplexibilidade.
— Não vou tirar a roupa com você aí. — Fincou as mãos na cintura.
— Eu fecharei meus olhos, cailín. — Fechou os olhos, aguardando.
— Humpft! Que garantia tenho de que não irá abri-los? — refutou
hesitante, ao notar que realmente ele falava a sério.
— Não irei. Tem minha palavra. E sabe que cumpro com minha palavra.
— Ergueu uma das mãos solenemente.
— Está bem. — Rendeu-se, já que não tinha nenhuma outra alternativa.
— Se eu o ver de olhos abertos enquanto me dispo, juro que irei furá-los com
minhas próprias mãos — ameaçou enquanto ele assentia cabalmente, fechando
os olhos com uma encenação teatral.
Precisava certificar-se de que ele realmente não estava a espiando.
Pensou por alguns segundos antes de pôr a língua para fora num ato altamente
impróprio a uma dama. Depois disso, fez um gesto promíscuo com os dedos que
certamente o entregaria se ele estivesse vendo aquele comportamento. Mas ele
nem sequer movera-se. Então, teria de acreditar em sua palavra e confiar que ele
não a desonraria.
Passou a desatar os nós do vestido e lamentou seu estado quando o tecido
sujo e rasgado caiu aos seus pés. Puxou as fitas da anágua que moldava-se ao
corpo curvilíneo e libertou-se do tecido fino, sentindo o vento frio eriçar sua pele
exposta.
Olhou para Randall, que manteve sua palavra por fim, evitando observá-
la de maneira casta e admirável, se tratando de um homem como ele, concluiu
ela ao pular na banheira rapidamente.
Randall permanecia de olhos fechados e tinha até mesmo virado o rosto
na direção oposta. Vê-lo tão recatado devolveu-lhe o sorriso ao rosto.
Alguns minutos se passaram enquanto Rose aproveitava da água morna,
que fazia relaxar todos os músculos doloridos e mandava embora a sensação de
exaustão. Estava com os olhos fechados, sentindo a espuma escorregar por sua
pele, quando ouviu a voz de Randall soar quase inaudível pelo cômodo.
— Sobre a história que contava a Gael... — Ele suspirou, mantendo os
olhos selados. — Aquele amor corrosivo, já viveu algo assim? — Pôde ouvir o
barulho da água sob seus movimentos.
— Não — disse apenas. — Nem almejo ter algo assim um dia. Seria
devastador — concluiu com sinceridade.
— Acho que não é devastador quando se tem algo recíproco. Mesmo que
seja intenso como a morte. — A surpreendeu ao recordar suas palavras com tanta
precisão. — Não é uma colisão violenta quando os dois rumam para o mesmo
fim. Então não há rachaduras, nem nada que precise consertar. Se consumiriam
apenas com o sentimento abrasador, quente como o verdadeiro inferno, mas não
haveria danos.
Ele parou de falar abruptamente quando se deu conta dos absurdos que
estava dizendo para ela. Uma criança. Por mil demônios! Estava enlouquecendo
de vez. Agradeceu mentalmente por ela ter permanecido em silêncio, afinal, a
deixara em um estado que ponderava sobre os próprios conceitos.
Ninguém disse mais nada por um bom tempo. Tempo longo o bastante
para Rose findar seu banho e enrolar-se em uma das toalhas que ele deixara ao
seu alcance.
— Eu estou quase terminando, já vou me vestir — anunciou satisfeita,
enquanto erguia os cabelos, evitando molhá-los. Não teria tempo de penteá-los
devidamente.
— Espere, tenho que pegar uma coisa. Está coberta? — perguntou antes
de voltar-se em sua direção.
— Sim, estou — afirmou ela.
Ele abriu os olhos e levantou de onde estava de modo ligeiro, deu a volta,
indo em direção a um baú da cor de mogno e retirou de lá um vestido
caprichosamente engomado e passado, dando-o nas mãos dela logo em seguida.
— É belíssimo! — exaltou enquanto sentia o tecido encorpado nas mãos.
Era de um tom verde musgo que fez seus olhos brilharem em contentamento.
— Não podia permitir que usasse suas vestes arruinadas. — Voltou para
onde estava antes e com um gracejo pôs uma mão sobre os olhos, enquanto a
outra segurava um copo de licor que havia deixado sobre sua escrivaninha
improvisada.
Rose se vestiu com facilidade, já que era um modelo simples e sem muita
armação. Era um pouco longo demais para sua estatura, mas nada que uma dobra
não pudesse resolver.
— Onde arrumou esse vestido? Não há mulheres com vocês. — Dobrou
as mangas até os cotovelos.
— Isso importa? — Ele abriu os olhos, surpreendendo-a com um sorriso
matreiro.
— Para ser franca, não. — Deu de ombros, compartilhando de seu
sorriso. — Ajude-me com esse laço, por favor. — Virou-se de costas para ele e
ergueu-se na ponta dos pés.
Randall se aproximou um tanto contrariado pelo gesto que julgara ser
extremamente íntimo. Não era certo estar com uma menina em seus aposentos.
Certamente não era certo estar com os laços de seu vestido entre os dedos. E era
ainda mais impróprio que passasse a observá-la de uma forma tão indevida. Não
pôde deixar de notar o desenho da cintura fina, que o laço emoldurava ainda
mais.
Quis fechar os olhos outra vez, mas forçou-se a agir com rapidez,
fazendo-lhe um laço um tanto torto, mas eficaz.
— Tem mais uma coisa. — Ele retirou do bolso uma fita da mesma cor
que o vestido, e lhe ofereceu. — Estava junto da peça...
Ele tentava justificar cada gesto bondoso, como se agir daquela maneira
fosse um pecado. Rose notara que ele esforçava-se muito para parecer um turrão
sem boas maneiras, mas todo o esforço de aparentar uma falsa arrogância era
inútil quando seus lábios curvavam-se em um tímido sorriso ao vê-la colocar a
fita prendendo os cabelos.
— É linda! — Ela sorria enquanto via seu reflexo em um espelho
trincado que ele lhe mostrara.
— Certamente, linda — ele disse, um tanto assustado quando se deu
conta de que o elogio fora dirigido à Rose, não à fita.

*cailín — moça
*gruaig tine — cabelos de fogo
CAPÍTULO OITO

"Seu coração estava despedaçado.


Não encontrou paz na imensidão silenciosa, que outrora guardara uma
promessa esperançosa de quietude ao seu gênio assomadiço.
Suas súplicas não a demoviam.
Eileen fugira de seu alcance.
Não haveria descanso para ele enquanto não a arrastasse para o seu
sombrio paraíso.
Iria corrompê-la, levando-a para o outro lado do véu que os apartava.
Não tinha certeza se aquele era o preço certo a pagar por sua felicidade,
mas estava tão aflito que não via outra saída.
Amava-a tanto que nem a morte tragara tal sentimento.
Bastava saber se ela o queria da mesma maneira.
Se ela abriria mão de tudo que tinha por ele, bem como ele havia feito
outrora por Eileen."

Randall observava a pequena senhorita rodopiando pelo quarto com seu


novo vestido.
Se soubesse que uma simplória peça lhe traria aquele sorriso no rosto,
teria lhe oferecido antes. Rose não escondia-se sob nenhum baluarte de timidez,
e ele admirava sua ausente complacência.
— Oh, venha, dance comigo, milorde. — Ela prostrou-se diante dele com
uma cordial mesura.
— Não, eu não sei... — Negou com ambas as mãos, as agitando afoitas
no ar.
Rose metida em sua típica petulância, jamais aceitaria uma recusa. Não
perdia uma oportunidade de balançar-se ao som da melodia que só tocava em seu
coração, em dias alegres como aquele. Aproveitando-se de sua vulnerabilidade,
ela pegou uma das mãos de Randall e a pôs firmemente sobre o alto de suas
costas, enquanto aproximava-se ainda mais, encaixando-se em seus braços, um
tanto desajeitados com tamanha proximidade.
Ele respirava quase pausadamente à medida que sentia o corpo amoldar-
se ao dela, totalmente incontido. Rose era pequena comparada a sua própria
estatura. Sua cabeça batia abaixo de seus ombros, fazendo-a parecer
enganosamente indefesa. Apesar de saber que aquela ali era o próprio demônio
de saias, ainda assim, um desejo de proteção lhe sobreveio.
Quis abraçá-la.
Não só quis, como abraçou.
Lentamente puxou-a para si, a embalando como se pudesse apartá-la dos
pecados do resto do mundo.
Certamente ela não perceberia a afeição que brotara nele, pois pensou
que estavam apenas flanando ao som da canção que ela sussurrava.
Não queria arriscar, mas seus dedos frementes procuravam absorver o
calor que vinha de sua pele. Fazia tanto tempo que não tinha alguém tão
próximo, alguém que não lhe despertasse apenas desejos carnais... Francamente,
ele não a via dessa maneira. E isso era tão incomum que causava-lhe assombroso
espanto.
Sentiu a pequenina mão apertar o alto de seu ombro, segurando-se nele
como se fosse sua única salvação.
Era aterrorizante as sensações que descobria quando prendia-se aos seus
olhos que incitavam-lhe ternura.
— Creio que devêssemos nos conhecer melhor. — Rose encarou-o com
fulgor.
— Não vejo razão para isso. Você vai embora em breve, mo bheagán. —
Desviou os olhos fustigando os próprios pensamentos que castigavam-no com
certa relutância em deixá-la partir.
— Pensei que pudesse ter mudado de ideia. — Deu de ombros,
decepcionada.
— O que a fez cometer este equívoco? — Ele sorriu de modo comedido.
— Parece apreciar minha companhia. — Ela arqueou uma sobrancelha.
— Aprecio. — Seu tom era concludente.
Ela assentiu, sabendo que estavam compartilhando algo naquele instante,
mas soube também que não podia insistir naquilo, ou ele recuaria. Embora
Randall parecesse querer pôr um termo naquele envolvimento, suas atitudes
pareciam contraditoriamente dizer-lhe o oposto. Rose percebeu a respiração
masculina entrecortada quando ela desceu ambas as mãos por seu corpo,
aproximando-se com afeto.
Definitivamente ela abraçara-o. Acolhia-o com grande meiguice ao tocá-
lo suavemente e afundar o rosto em seu peito, deixando-o em pânico.
Seria melhor que ela tivesse uma lâmina em mãos tentando acertá-lo,
pensou com o coração pulsando absurdamente ensandecido.
Era loucura. Ela estava afeiçoando-se a ele sem pensar no que aquilo
desencadearia.
Engoliu em seco, reprimindo a vontade de tocar seu rosto.
— Por que pulou naquele barco comigo, Rose? — Sua voz era quase um
sopro inaudível e temeroso.
Ela ergueu a cabeça, sustentando seus olhos de obsidiana. Já havia
respondido àquela pergunta, mas nunca tinha sido sincera. Não em absoluto.
— Senti como se tivesse de segui-lo. Não importando o que o destino me
reservaria. — Suspirou profundamente antes de prosseguir. — Não havia nada
para mim em Londres, eu sei disso — afirmou, categórica.
Randall estalou a língua em negativa e a encarou com descrença e
escárnio.
— Você é da nobreza, milady — disse com pomposos gracejos. — Há
riqueza a aguardando em seu lar. Um futuro de oportunidades privilegiadas pela
sua posição. E certamente não lhe faltam pretendentes para um vantajoso
matrimônio de partes equivalentes — sugeriu com extremo enfado.
— Nunca vou casar-me! — declarou, obstinada e visivelmente
exasperada com aquele assunto. — Homens são criaturas frívolas que beiram à
crueldade quando são negligenciados. E ainda se acham no direito de... —
Calou-se de súbito. Não queria ofendê-lo injustamente. — Oh, minhas palavras
são apenas bagatelas, não vai querer ouvi-las, decerto. — Afastou-se dele e
caminhou até a beirada da cama, sentando-se com cautelosa postura.
— Nada que saia da sua boca é insignificante, gruaig tine. — Sentou ao
seu lado, detendo-se de tocá-la.
— Nem quando estou derramando tormentas de pragas sob você? —
Sorriu de viés, de maneira doce.
— Nem assim, sempre tem razões para isso. Eu sou um desarrazoado —
confessou, rendendo-se. — Mas diga-me, por que tanto rancor guardado aí
dentro? — Apontou para seu peito que subia e descia agitado.
— Faz um tempo. Uma pessoa enganou-me de um modo cruel e sujo.
Esse ultraje deu-me uma fama pouco aprazível. — Olhou de esguelha, um tanto
constrangida.
Randall emudeceu de um modo colérico. Seu olhar assumiu um rigoroso
vinco e sua expressão parecia possuída por malignidade.
— Este sujeito a desonrou? — questionou com os punhos fechando-se.
— Oh, não foi isso. Ele apenas...
— Diga-me e eu irei parti-lo em dois, dando-o aos tubarões sem
misericórdia — interrompeu Randall com uma voz imponente que a assustou. —
Se ele a deflorou eu vou arrancar seu membro com minha espada mais afiada e...
— Oh, pare! Não, ele não me deflorou. Céus! Acalme-te. — Ela elevou a
voz, sobressaltada com sua reação. — Ele apenas beijou-me e...
— Eu vou matá-lo! Não é certo beijar uma mulher sem seu
consentimento — esbravejou com suas próprias conclusões imprecisas do
acontecimento.
— Eu consenti! — ela gritou, impaciente, deixando-o nitidamente
desnorteado com a revelação.
— Oh, sim... Não pensei que já quisesse certas coisas. — Sua voz
continha uma velada repreensão.
Idiota! Randall amaldiçoava-se mentalmente por tê-la julgado uma
criança. Certamente já experimentara coisas que ele nem chegaria a imaginar.
Era deliberadamente um tolo por acreditar que ela era apenas uma menina
ingênua.
— Quisesse o que, Randall? — inquiriu com ar ofendido.
— Consentir com um homem beijando-a? Ao que acha que estou
referindo-me? — retorquiu impiedosamente com uma risada fria. — Uma
menina não devia oferecer tal consentimento. — Estava indignado.
Sabia que seria algo totalmente despudorado, mas Rose riu. Riu tanto que
suas faces ficaram tão coradas quantos os cachos ruivos que despencavam em
seu colo. Ela gargalhava sem conseguir dizer nenhuma palavra, enquanto
Randall empertigava-se com uma carranca rabugenta e os braços cruzados
rigidamente sobre o peito. Não era mais o homem de boa compleição, mas sim,
o corsário arredio e turrão que encarava-lhe sem esboçar qualquer satisfação ao
vê-la divertir-se com algo que lhe causava tanta irritação.
— Você é o único que me enxerga como uma menina. — Ela pôs uma
mão sobre a barriga, tentando controlar a risada. — Logo farei vinte anos. Já sou
considerada uma solteirona. Não devia se preocupar tanto com beijos inocentes
em uma noite de baile. — Ela ria sem nenhum pudor da cara de espanto dele
diante de tais palavras atrevidas.
— O que não deveria era ser tão aberta a tais encontros, cailín. —
Continuou com a expressão vincada.
— Oh! — Pôs uma mão sobre a boca, abafando graciosamente o som. —
Não foram encontros — enfatizou a última palavra, ainda achando ridiculamente
engraçada a maneira que ele reagia. — Foi apenas uma vez. E foi terrível. —
Fechou os olhos, apavorada com a lembrança.
— Como um beijo pode ser tão terrível? — indagou, cismado.
— Ele salivava como se fosse um cão com um pedaço de osso! —
Estremeceu ao recordar.
— E ele não tentou nada além disso? — Precisava se certificar deste
valioso detalhe.
Ela negou com a cabeça firmemente, enrubescendo com a pergunta tão
íntima. Randall suspirou aliviado. Não entendeu a razão daquilo atormentar-lhe
tanto, mas ficou possesso ao imaginar alguém tocando-a indevidamente. Rose
era especial demais para que qualquer palerma se deleitasse de seus tesouros.
Atenuou o olhar enraivecido ao fitá-la acuada à sua frente. Não queria ser
evasivo ao aproximar-se dela, mas não pôde refrear as próprias ações.
Quando deu por si, já havia se ajoelhado perante ela, que ainda estava
sentada em sua cama alinhada, a observá-lo com constrangimento.
Sua consciência gritava para que parasse naquele exato instante.
Tinha de parar.
Não saberia como lidar com aquela situação se prosseguisse em sua falta
de lucidez. Embora quisesse mantê-la a salvo de si mesmo, não pôde.
Segurou uma de suas mãos, notando o espanto da jovem ao mirar seus
olhos de modo confuso.
Ela parecia perdida, mas não frustrada ou temerosa. Estava mais para
petrificada.
Não saberia dizer se ela queria o mesmo que ele, ou sequer se já havia
cogitado aquilo em algum momento. Entretanto, era tarde demais para descobrir.
Com a mão livre, Randall pegou uma mecha de seu cabelo e roçou em
seus dedos, maravilhando-se com o toque acetinado. Pôs a mecha atrás de sua
orelha e fitou-a decisivamente.
Lentamente, ele tomou seu rosto com ambas as mãos em concha,
levando-a para si.
Não podia mais voltar atrás.
Perpassou os lábios levemente sobre sua bochecha, arrastando-se pela
pele alva e macia que tingia-se de escarlate à medida que a tocava.
Rose prendeu a respiração e fechou os olhos, dando-lhe o devido
consentimento quando entreabriu os lábios, esperando.
Apreciou-a naquele segundo, com as mãos afagando-lhe os cabelos que
emolduravam o rosto pequenino. Fechou os olhos, aproximando-se ternamente e
envolvendo a boca inexperiente entre seus lábios. Vagarosamente ele descobria
seus tesouros, como se tivesse navegado por muito tempo e ela fosse a baía de
seixos que lhe daria um rumo a seguir. Ela era sua bússola, indicando a direção.
Era uma feiticeira que cegava-o com seus enlevos.
Pensou que iria controlar-se, apenas para dar-lhe uma prova de que um
beijo certamente não era algo terrível, como ela bem descrevera, mas notou que
estava copiosamente enganado.
Ela o dominava de tal maneira que parecia incitá-lo. Estava literalmente
ajoelhado aos seus pés enquanto ela o atraía cada vez mais para perto de si.
Rose era quente como o próprio inferno, e suas flamas incendiavam-no a
ponto de deixá-lo desvairado por seus lábios abrasadores.
Era enlouquecedor o modo que permitia-se consumir em sua boca. Era
intenso e queimava-o por inteiro.
— Mo temptation milis — murmurou, tentando em vão recobrar o
fôlego, a sanidade, o juízo.
Desejou-a penosamente enquanto degustava do sabor mais doce que sua
língua havia tocado. Ela amoleceu em seus braços enquanto a invadia com
vivacidade. Beijava-a de um modo sôfrego, suas bocas apaixonando-se com
voracidade.
Sentiu uma das mãos de Rose tocarem seu rosto, conhecendo-o,
decifrando-o, como se pudesse ler todos os segredos com a palma da mão. Ele
entregava-se de modo ávido, rendia-se preso em sua boca como um cativo que
não desejava ser liberto.
Quando por fim se separaram, ela estava absorta demais para tentar falar
algo coerente. Ele havia lhe roubado o dom da fala, lhe tomando por inteira
como se quisesse marcá-la como sua.
E ela permitiu.
Permitiria qualquer coisa que lhe suplicasse.
Randall ergueu seu queixo levemente com a ponta dos dedos, não
deixando que ela se perdesse em mais nada que não fosse seus olhos.
— Isso é um beijo de verdade, mo daor. — Pôs os lábios sobre os dela
uma vez mais, de modo tentador.
Ela o inebriava com tanta intensidade que era difícil manter-se afastado,
após experimentá-la com tamanho deleite.
— Eu não apenas a beijei, gruaig tine. — Observou os lábios vermelhos
e inchados pelo contato. — Eu demonstrei como a admiro. — Tocou a maçã do
rosto de um modo afável. — Lhe beijei com devoção. — Pegou uma de suas
mãos e selou-a com um beijo casto e breve. — Beijei-a com meu desejo. —
Tocou seus lábios levemente com a ponta dos dedos. — Não permita que
nenhum homem lhe dê menos que isso, mo bheagán.
Rose permaneceu ali por alguns segundos, tentando compreender tudo
que acabara de acontecer.
Ela havia sido beijada.
Deus me ajude! Pensou enquanto ainda agia como uma verdadeira
estátua de mármore, sem esboçar qualquer reação.
Fora beijada.
Sua cabeça parecia leve, mas seus pensamentos não focavam em mais
nada que não fosse Randall.
Os lábios de Randall.
A maneira doce que ele lhe tratou. Dando-lhe um presente tão estimado.
Passou a ponta dos dedos sobre os lábios, que ainda sentiam o toque, o
ardor e a pressão de Randall sobre si.
Havia sido beijada e tinha sido uma experiência arrebatadora.
Estava devastada.
Como poderia viver com aquilo dali em diante?
Randall lhe disse para que não aceitasse nada inferior ao que ele dera a
ela naquela noite. Mas a questão era que jamais haveria algo maior, ou mais
deliciosamente deslumbrante.
Nada superaria aquilo, de modo algum. Ela tinha a plena convicção
daquele fato.
Dando-se conta disso, ela passou a desesperar-se. Onde estava com a
cabeça por permitir tal disparate?
Oh, Senhor, se sua mãe a visse naquele momento, certamente ficaria
arrasada com suas atitudes.
No entanto, como poderia tê-lo recusado quando Randall a fez conhecer
as mais intrigantes sensações? Estava perdida.
Desta vez, realmente havia se metido em uma enrascada, pois bastou
erguer os olhos para o homem que a observava em silêncio, para que o desejo de
repetir tal desatino lhe acarretasse de modo implacável.
Decididamente precisava sair dali.
Tudo naquele cômodo exalava a masculinidade atraente de Randall, e
apenas olhá-lo a estava fazendo enlouquecer.
Levantou-se da maneira mais digna que pôde, tropeçando umas duas
vezes antes de alcançar a maçaneta da porta, e deu-lhe as costas de modo pouco
cortês.
Precisava de água, de ar, de um pouco de juízo e autodomínio para não
voltar até ele e atirar-se em seus braços para ser beijada novamente.
Nada parecia aplacar a chama que fora acesa em seu interior. Nem a brisa
gélida da noite refrescou seus sentidos quando correu em busca de ar fresco.
Estava terminantemente arruinada.
Mais arruinada do que fora anteriormente. Embora houvesse cometido o
mesmo erro, dessa vez fora diferente, já que quando o Duque de Havenwood a
beijou da primeira vez, ele havia sido escandalosamente rude e nojento.
Com Randall, sentiu as borboletas voarem em seu estômago,
impulsionando seu próprio corpo a aproximar-se dele.
Jamais poderia descrever tudo o que sentira quando encontrou seus
lábios. Sabia apenas que seu único desejo era repetir tal experiência.
Desejo que nunca mais poderia ser realizado, para o seu próprio bem.
Enquanto Rose saía apressada para longe de todo aquele ardor, lembrou-
se de que definitivamente não tinha um lugar apropriado para dormir.
A cabine que ocupara na noite anterior tinha a porta encostada,
significando que o dono do cômodo abafado já estava ali.
Voltou então para o corredor que desembocava nos aposentos de Randall,
atendo-se ao fato de que aquele canto do navio era o mais organizado.
Havia algumas pilhas de caixotes dispersas na extremidade da ala sul do
navio, desviando do amontoado de inúmeros objetos, onde encontrou alguns
tecidos que lhe serviriam de algum conforto.
Deitou-se por ali mesmo, mas soube assim que ergueu a cabeça para o
teto apinhado, que o sono não lhe viria com facilidade.
De onde estava, pôde constatar também que Randall ainda estava a
perambular pelo quarto, já que dava para ouvir em alto e bom som seus passos
rangendo de um lado para o outro na madeira envernizada do navio.
Certamente ele encontrava-se agitado.
Não queria ser tola ao ponto de achar que ela era a razão para tal
inquietude. Como ele bem insinuara, já tivera milhares de outros beijos bons,
não seria ela a mulher que o faria experimentar algo novo.
Para Randall, aquilo tudo não passava de um breve momento de
intimidade com uma jovem inglesa, concluiu Rose antes de ser tomada aos
poucos pela inconsciência.
Mal sabia ela, que Randall jamais havia beijado alguém daquela forma
antes.
Ele a considerava uma menina.
Apesar de notar sua exuberante beleza, nunca pensou em usá-la daquela
forma.
No entanto, Randall estava tão obcecado por ela, que ao saber que já
havia sido beijada antes, mesmo que por um imbecil que não soube fazê-lo com
propriedade, ele quis marcá-la também. Embora quisesse pensar de tal maneira,
em seu íntimo sabia que fora ela quem havia o marcado.
Como se realmente tivesse roubado uma parte dele, tomando-a para si
sem permissão.
Randall não tinha certeza se saberia prosseguir com o que havia lhe
oferecido.
Ele teria de seguir em frente com a parte que lhe faltava.

*mo bheagán — minha pequena


*gruaig tine — cabelos de fogo
*cailín — moça
*mo temptation milis —minha doce tentação
*mo daor — minha querida
CAPÍTULO NOVE

"Não podia mais continuar com aquilo. Deveria parar de fugir, não
estava certo.
Eileen parou abruptamente de correr.
Estava arrasada.
Desestruturada.
Pôde ouvir a voz dele clamando por ela. Uma voz acariciadora que
afagava seus lamentos.
O ar embalsamado com o perfume das madressilvas, tornava sua lástima
uma doce poesia.
As lágrimas perolavam suas pálpebras, e seu vestido de cambraia não a
protegia do vento que eriçava sua pele.
— Assombra-me! — gritou entredentes enquanto mais lágrimas
banhavam o seu rosto. — Venha até mim mais uma vez somente. — Juntou as
mãos sobre o colo com uma expressão de derrota.
Eileen ajoelhou-se, sentindo as forças a abandonarem.
Nunca saberia dizer o que realmente a impeliu.
A única coisa de que estava convicta, era da loucura que acabara de
cometer."

Randall levantou-se antes mesmo do alvorecer, sobressaltando-se com


Rose adormecida entre aquela ninharia miserável de tecidos puídos. Era um
idiota por tê-la deixado dormir ali. Poderia ter dividido seu quarto com a
pequena demônia.
Tê-la no mesmo cômodo.
Na mesma cama.
Indefesa e vulnerável aos desejos que cresciam em sua mente...
Não.
Absolutamente, aquilo não era uma boa ideia. Era uma ideia estapafúrdia
demais para sequer voltar a cogitá-la.
Chacoalhou a cabeça como se com o simples gesto, pudesse afastar tais
pensamentos dali.
Não queria apenas afastar tais almejos. Queria expulsá-los de sua mente.
Aquilo era incabível e inaceitável. Não sabia no que estava pensando ao beijá-la
na noite anterior.
Apenas não soube lidar com a angústia que constringiu as feições
delicadas de Rose, quando revelou sua triste experiência com beijos. Ele não
planejou as próprias atitudes, sequer as controlou.
E se não fosse sensato o bastante dali em diante, poderia repetir tal erro.
Dirigiu-se até a cozinha que estava incrivelmente organizada — mais um
feito da pequena demônia —, pegou alguns pedaços do bolo que guardara da
manhã anterior, junto com uma fumegante xícara de chá que preparara, colocou
tudo em uma bandeja e equilibrou-se com demasiada cautela quando encontrou
um murcho raminho de azevinho, com dois brotos vermelhos e pequenos que
persistiam em sobreviver no arbusto. Recolheu o galho quase seco e pôs ao lado
da xícara, transformando uma miserável bandeja em algo mais agradável aos
olhos.
Rose certamente ia apreciar aquilo, pensou ele ao caminhar lentamente
de encontro a ela.
— Oh, isso não é bom, nada bom. — Ronan estava parado rente a porta,
obstruindo sua passagem.
— Não sei do que está falando. — Tentou passar pelo velho amigo, mas
este pôs um pé esticado em sua frente, impossibilitando sua fuga.
— Lennart, sabe que não falo por implicância. — Ele ergueu uma
sobrancelha diante da expressão desconfiada de Randall. — Na maioria das
vezes. — Deu de ombros. — Mas, só queria lembrá-lo, que nada de bom poderá
usufruir disso.
— Ronan, não há razão para pensar que está acontecendo algo de...
Fora interrompido.
— Está levando uma bandeja para ela. Uma bandeja com um raminho de
azevinho delicadamente a adornando. — Apontou para suas mãos. — Você mal
prepara o próprio desjejum, Lennart. Não venha me dizer que esse
comportamento é típico seu, pois eu sei tão bem quanto você, que jamais agira
de tal modo.
Randall revirou os olhos como um menino que recebe reprimendas por
alguma estripulia. Sabia que Ronan tinha um certo fundo de razão, apesar de
jamais admitir isso a ele.
— Ela é uma dama. Uma lady que faz parte de um mundo ao qual não
pertencemos, Lennart. Você não pertence ao mundo dela, não se encaixa. — O
observou ainda fingir uma forçosa indiferença. — Sei que é tentador, mas você
já renegou a aristocracia há tempo demais para querer retornar. — Pôs uma mão
em seu ombro.
— Não seja tolo, Ronan. Vejo que está ficando um tanto desajuizado com
a idade que lhe sobrevém — escarneceu.
— Só vai se machucar, Lennart — afirmou, ignorando os protestos de
Randall.
— E se for o contrário, Ronan? — Encarou-o um tanto ofendido. — E se
eu a machucar? Já pensou nessa hipótese? — replicou com brusquidão.
— Não a conheço, Lennart. Mas sei que quem se entrega, quem abre o
coração de modo descomedido e recebe de bom grado as flechas de sílex, é você.
Depois fica sangrando pelos cantos, à mercê da próxima a ferir-lhe o peito —
declarou com demasiada franqueza.
Ronan já o conhecia bem demais. Esteve ao seu lado desde antes daquela
vida. E infelizmente esteve presente quando Randall teve seu coração partido
pela primeira vez.
Helena era seu nome.
Uma paixão de verão que durou tempo suficiente para fazê-lo apaixonar-
se perdidamente. Ficaram juntos por algum tempo, até que um dia ela fugira,
deixando-lhe apenas um bilhete agradecendo por ter lhe servido como um bom
amante.
Levou a joia de sua mãe.
Um anel pelo qual tinha alta estima e valor emocional.
Nunca mais a vira, nem o anel.
Passou um longo período da sua vida lutando para esquecê-la, dormindo
com muitas mulheres para tirá-la de seu coração.
Até que por fim, não sentia mais saudade de Helena. Apenas ódio de si
mesmo por ter sido um verdadeiro parco.
Com o passar dos anos, Helena tornou-se apenas um nome que ecoava
sem qualquer afeto em sua memória, e podia dizer que havia superado sua
primeira paixão.
Até Daphne aparecer em sua vida e da mesma forma ludibriá-lo.
E depois dela veio Charlotte, Sophie e Penélope.
As mulheres revezavam em sua cama e sumiam com a mesma rapidez
que apareciam.
Então Randall se deu conta de que aquilo que pensara ser paixão, nunca
passou de desejo. Jamais amou nenhuma daquelas mulheres, nem mesmo
Helena, que fora a primeira.
Depois de tal descoberta, Randall admitiu que seu carinho pelas mulheres
que se relacionava era válido, mas não o suficiente.
Apegava-se com facilidade a quem quer que lhe desse atenção.
Como um menino carente de afeto.
Custou para aprender que uma noite com uma mulher era apenas aquilo.
Uma noite e nada mais.
Mas Ronan ainda temia por ele e demonstrava tal apreensão de maneira
um tanto impertinente.
— Ah, Ronan, pare de encher a cabeça com tolices e deixe-me passar. —
Dito isso, deu-lhe as costas com uma postura altiva e confiante.
Caminhou lentamente até onde Rose estava ainda adormecida.
Chamou-a algumas vezes antes de ser agraciado com a luz de seus olhos.
Ela recebeu o desjejum com certa relutância, evitando olhá-lo por mais
que alguns poucos segundos, como se temesse o que visse ali.
Randall notou a postura atípica da jovem, acanhada e calada demais.
— Tá tú uafásach! — atalhou ele, obrigando-a a encará-lo. — Você é
terrível, cailín. — Deus sabe o quanto era insuportável vê-la tão calada.
— O que quer que eu diga? — retrucou, empinando o nariz ao peitá-lo.
— Diga qualquer coisa. Sei que tem prazer em me importunar. Me
importune. — Deu de ombros.
Ela manteve o olhar decididamente a sustentar o dele. Estivera inquieta
todo o momento em que pensou no que experimentara na noite passada. E
encontrava-se ainda mais irrequieta naquele instante, com Randall próximo
demais de seus lábios.
— Maldito seja você por tirar-me a paz! — Ela levantou-se com
ferocidade, ignorando a bandeja que ele lhe ofereceu, e sua expressão confusa ao
não compreender sua reação.
Rose caminhou para longe, não querendo que ele visse a imensidão de
sentimentos que seus olhos retinham. Travava uma verdadeira guerra em seu
interior e não queria que ele flagrasse sua vergonhosa derrota.
Francamente, estava derrotada.
Nunca imaginou que um beijo a deixaria tão vulnerável, tampouco que
fosse tão tentador o desejo de repeti-lo.
A cada palavra que ele proferia, ela só conseguia apreciar o breve
movimento dos lábios fartos, recordando a pressão deles. Certamente estava
perdendo o juízo.
Homem algum havia lhe afetado tanto, no entanto, nenhum a tratara com
tamanha afeição.
— Não lhe tirei nada, cailín. — A seguiu segurando-lhe pelo braço de
maneira descomedida. — Eu apenas ensinei-lhe algo de estimado valor. E foi
apenas isso. — Suas palavras eram firmes, assim como o aperto no braço fino
que sua mão envolvia.
— Tirou-me a lucidez! Você é mesmo um demônio, Randall. Eu estava
indo bem, você arruinou tudo. — Empertigou-se, tentando em vão desvencilhar-
se de seu toque.
Aquilo era demais para ele. Ele lhe fizera um favor naquela noite, e ela
retribuía-lhe daquela forma. Era mesmo uma terrível e petulante senhorita. Não
sabia nada sobre ser arruinada, sobre ter seu coração em frangalhos, nem
tampouco saberia o que suas palavras causavam nele. Fitou-a, fazendo-a encará-
lo, a segurando pelos ombros com ambas as mãos. Queria dizer-lhe o quanto
estava sendo injusta, o quanto o desconcertava ter de ouvir as ásperas sentenças
que ela lhe dirigia. Contudo, as injúrias ainda estavam longe de findar.
Rose sentia uma onda de desejo inominável fluir de seu corpo, ao tê-lo
tão tentadoramente próximo. E isso a irritara tanto quanto o queria. Estava sendo
traída pelos próprios almejos, mas não cederia tão facilmente.
— Você estava errado. Não posso esperar receber novamente o que
provei de ti. — Seu coração ribombava no peito. — E saber disso causa-me ira.
Uma ira tão ardente quanto... — Ela baixou a cabeça, escondendo a fúria em
seus olhos. Uma fúria que mesclava-se a algo ainda mais quente, que a envolvia
com ainda mais ímpeto.
— Quanto o que, mo álainn? — Ergueu seu queixo com as pontas dos
dedos.
Mesmo sem saber do que ele a chamara, era como se aquelas palavras lhe
acariciassem, o timbre rouco e a voz firme juntamente com aqueles olhos negros
que enfeitiçavam-na a ponto de lentamente erguer-se na ponta dos pés,
esperando.
Ela havia esquecido tudo o que tentara lhe dizer, não estava mais em
condições de fazer-se entender de modo claro. Mas Randall insistia em obter sua
resposta, torturando-a com os lábios que pareciam volitar um sorriso matreiro.
— Uma ira tão ardente quanto o desejo que faz-me sentir de beijá-lo uma
vez mais — respondeu de modo ininterrupto, a respiração entrecortada, o calor
pontilhando cada partícula de seu ser e os pés erguidos tentando alcançá-lo.
Randall petrificou-se. Toda aquela cólera desaparecera de seu olhar,
restara ali apenas fogo. Um lampejo vívido, tal como o cobre de seus cabelos ou
o escarlate de seus lábios. Era tangível sua intensidade. Ela exalava toda aquela
calidez que brilhava em seus olhos de cobiça.
Ela o destruiria, por certo quebraria-o de uma forma incapaz de
consertar-se posteriormente.
Transformaria-o em laivos do homem que fora um dia. Estava dobrando-
o de tal forma que nada restaria, apenas um coração que insiste em pulsar por
quem jamais lhe pertenceria.
Ela fechou os olhos.
— Ifreann... — praguejou, amaldiçoando-se pela falta de censura.
Dessa vez não haveriam ressalvas. Aquilo não estava certo, e Ronan
tinha razão, não resultaria em nada proveitoso ou agradável. Tudo aquilo teria
um fim ainda mais longo e sôfrego, se teimasse em tê-la nos braços, bem como a
tinha naquele mesmo instante.
Não estava fazendo aquilo por ela, como bem mencionara da primeira
vez que a beijou. Dessa vez seria diferente. Se por ventura cedesse, sabia que
não seria capaz de recusá-la nunca mais. E isso era um verdadeiro desastre.
Aquela pequena diaba o teria nas mãos definitivamente, para dobrá-lo
como bem entendesse, para usá-lo como seus desejos ditassem, e também para
devastá-lo, como inevitavelmente faria.
— Se eu fizer isso, se eu tocá-la novamente, estaremos ambos
arruinados, mo milis Rose. — Proferiu seu nome como uma prece.
— Então termine o que começou. Arruína-me, Randall. — Suas palavras
eram um doce suplício.
Ele se afastou, deixando-a desnorteada por um breve instante, antes de
vê-lo fechar a porta atrás de si, isolando-os dos demais com um aviso claro de
que não desejavam ser interrompidos.
Randall caminhava lentamente, com uma calma que a estava tirando do
sério.
Rose permaneceu onde estava, sem mover um músculo quando o sentiu
às suas costas, soltando os cachos de seus cabelos que despencavam em suas
mãos e emolduravam seu rosto de forma indômita.
Ele a rodeava, como uma presa faz com a caça. Tinha os olhos de um
predador ao fitar seus lábios brevemente, quando manteve-se de frente para ela.
— Não sei o que quer de mim, mo bheagán, mas peça-me e eu lhe darei.
Prometo-lhe. — Perpassou uma carreira de beijos em seu rosto delicadamente,
memorizando cada traço de suas delicadas expressões da pele alva.
Notou algumas poucas sardas salpicadas logo abaixo de seus olhos, mais
algumas pequenas constelações quase invisíveis ao redor do nariz, e no alto das
maçãs de seu rosto. Ela era tão bela que era quase um atentado ao resto do
mundo.
Quase um pecado tê-la sob as pontas dos dedos, roçando sua pele
sensível. O contraste entre eles era tão cruel que quase desistira da promessa que
acabara de fazer.
Ele jamais a mereceria.
Embora quisesse prová-la o quanto aquilo seria deleitável, ainda assim
sabia que iria para o inferno por isso. Rose tinha de estar com alguém de sua
classe, com os mesmos atributos que ela, e as mesmas características.
— Não sei se devo prosseguir com isso, gruaige tine. Olhe para você. A
tez rosada e os olhos claros dos ingleses. — Afastou-se, sentindo um pesar lhe
tomar. — E agora olhe para mim. — Soltou o ar pesaroso.
E assim fez Rose. Olhou para ele. Fitou-o de forma intensa, absorvendo
aqueles traços rústicos que tanto admirava secretamente. Desde a estrutura óssea
que dava-lhe um ar de destemor e imponência, até os ombros largos e eretos, a
postura elegante e o porte requintado que tanto a intrigava, vindo de um homem
apartado da sociedade. Ergueu o olhar, mirando os lábios fartos e escuros,
portadores do pecado que a consumia. Notou os olhos negros que pareciam
querer furtar sua alma, levá-la para si sem nenhuma piedade.
Céus! Pensou ao dar-se conta de que naquele instante, se fosse este o seu
pedido, Randall não encontraria nenhuma resistência de sua parte.
Estava perdida. Irrevogavelmente perdida e enlouquecendo cada vez
mais a cada palavra que ele lhe ditava.
Ergueu uma das mãos, e lentamente a levou até seu rosto. Tocou a pele
de oliva queimada pelo excesso de sol, observando-o fechar os olhos, totalmente
entregue a ela.
— Eu vejo um homem forte e destemido. — Beijou seu rosto com
ternura enquanto amparava-o com ambas as mãos. — Dono de um gênio
perverso que tira-me do sério. — Ela riu, sentindo os lábios dele curvarem-se
igualmente em um sorriso. Tocava-o com a ponta do indicador, testando seu
controle. — Beije-me, Randall — ela pediu com um fio de voz.
Ele abriu os olhos, tentando decifrá-la. Ainda não compreendia como
haviam chegado até ali. Em um momento ela estava o xingando, rechaçando e
mandando o próprio diabo arrastá-lo para o inferno, no outro estavam entregues
naquele abraço que desejava que durasse para sempre.
Ele pôs as mãos em sua cintura, levando-a para si, apreciando a visão que
tinha diante dele. Rose estava absurdamente perto, cortejando o perigo, flertando
com o próprio demônio, levando-o ao ápice do devaneio quando o olhava
daquela forma tão crua, despida de julgamentos ou conceitos pré concebidos.
— Beije-me uma vez mais — sussurrou, pousando o olhar em seus
lábios. — Por favor.
— Não poderia negar-lhe mais nada, mo chailín. — Suas palavras eram
tão intensas quanto seu olhar. — Cativou-me assim que coloquei os olhos em ti.
Sei que ficarei à deriva, mas já rendi-me há muito tempo e aceito essa derrota —
murmurou nos lábios dela.
Não podiam mais esperar. A atração que nutriam um pelo outro os faziam
perecer naquela flama que os consumia.
Ela o estava beijando.
Tomando a iniciativa e conduzindo-o para seus recônditos mais ocultos.
Pôs outra mão nos cachos negros e emaranhados que eram os cabelos dele,
aproximando-o quase com ferocidade.
Ele devastara seus sentidos, suas boas maneiras e sua falsa postura
imaculada perante a aristocracia. Randall era tudo que ela ansiava ser. Ele não
era seu oposto, como mencionara erroneamente. Ambos eram feitos do mesmo
espírito liberto de amarras sociais, morais e até mesmo lúcidas. Ela não sabia do
que as almas eram feitas, mas á de Randall compunha a dela.
Faziam parte de algo quase lúdico.
Rose sempre vira a vida de um modo ambivalente, acreditava piamente
em suas fantasias particulares, e finalmente podia ter alguém com quem partilhá-
las dali pra frente.
Randall não era cativo da normalidade que estavam presos os demais. Ele
fazia seu próprio mundo, ilusório ou não. Não tinha importância.
A única coisa que realmente tinha alguma relevância, era o que sentiam.
E as sensações sempre foram tão verdadeiras quantos os sonhos são
mágicos.
Ela acreditava naquilo, se agarrava àquela realidade privada, assim como
Randall se agarrava nela sem nenhuma clemência.
Uma batida na porta os sobressaltou, levando-os de volta do delírio que
compartilhavam.
— Oh, mo daor... — balbuciou em sua boca que buscava-o
freneticamente. — Preciso ir. — Afagou o cabelo que vibrava ante a luz que
irradiava pelas pequenas janelas. — Ronan está aguardando. Faremos uma breve
parada em uma ilha próxima antes de seguirmos viagem, e preciso preparar
algumas coisas — declarou enquanto derretia-se com o beicinho que ela fazia ao
ter de se afastar.
— Tenho um pedido a fazer — disse, envolvendo-o pelo pescoço
carinhosamente.
— Sou seu humilde servo, milady. Diga-me e será concedido. — Curvou
a cabeça teatralmente com um riso nos lábios.
— Traga-me papel, tinteiro e uma pena. Nada me alegraria mais! —
Sorriu amplamente.
— Com uma condição. — Bebeu brevemente de seus lábios inchados
pelo contato. — Mostre-me o que escreve. Conte-me suas histórias. — Ergueu
uma sobrancelha acintosamente.
— Está feito! — concordou, corando graciosamente sob mais um beijo
lascivo.

*tá tú uafásach — você é terrível


*cailín — moça
*mo álainn — minha linda
*ireann — inferno
*mo milis — minha doce
*mo bheagán — minha pequena
*gruaige tine — cabelos de fogo
*mo chailín — minha menina
*mo daor — minha querida
CAPÍTULO DEZ

"Eileen continuava clamando, desfazendo-se em agonia e


desmanchando-se em loucura enquanto tentava em vão evocá-lo das
profundezas abissais de sua alma.
Deliberadamente, arremessou para longe o talismã que levava ao
pescoço.
Abriria mão da antiga proteção por um capricho de seu coração.
Suas expressões desanuviaram-se quando com ar reverente, murmurou
em tom solene o nome que a torturara por tanto tempo em sua mente.
Libertou-o de seus lábios e sorriu ao pronunciá-lo após tentar deixá-lo,
em vão, no esquecimento.
— Ryan — sussurrou baixinho, quase temendo repeti-lo.
Um sussurro atormentado. Um amor desmedido que não se curvaria
diante a morte."

Quando o navio atracou em algum lugar da Irlanda, Rose pôs-se na ponta


dos pés, tentando enxergar a terra que surgia diante de seus olhos.
Randall expressou-lhe ordens rigorosas de não abandonar o navio, ou a
jogaria aos tubarões quando retornasse. Ressaltou muitas vezes que haviam ali
muitas pessoas de índole questionável, que poderiam fazer-lhe algum mal.
Ela deu de ombros e disse-lhe desafiadoramente que sabia muito bem
como acertar um homem com um punhal. Esboçou um sorriso zombeteiro, e em
troca ele a beijara na testa antes de partir com o resto dos marujos, exceto pelo
jovem Gael, que aproximara-se para fazer-lhe companhia enquanto observavam
as docas.
— Acha que vão demorar muito? — indagou ela com um último
vislumbre do fraque longo de Randall, distanciando-se do seu perímetro de
visão.
— Geralmente, não. Voltam depressa devido às circunstâncias. — Sua
voz soou tímida, mas tal constrangimento não fora percebido pela jovem que
maravilhava-se com o tumulto mais adiante.
O céu de calêndula encimava a atabalhoada multidão que transitava
apressadamente. Muitos navios atracavam, enquanto outros zarpavam deixando
algumas mulheres jogando seus lenços umedecidos pelas lágrimas de despedida.
Estivadores carregavam enormes baús em seus ombros, comerciantes
negociavam em voz alta suas mercadorias, e marinheiros gracejavam para jovens
senhoritas vestidas com vulgaridade, enquanto entornavam a bebida em seus
copos.
— As mulheres aqui vestem-se de um modo um tanto sugestivo, não
acha? — Um vinco surgiu diante das sobrancelhas unidas.
Gael encarou-a quase com deboche, mas logo atenuou as expressões ao
notar que Rose realmente não fazia ideia de que aquelas eram prostitutas.
— São mulheres levianas, milady. Mulheres da vida... — Limitou-se a
ser direto.
— Oh! — Ela pôs uma das mãos sobre os lábios, abafando o som.
Fitou o menino franzino de modo cauteloso. Parecia tão jovem, e ainda
assim tão maduro. Por vezes parecia mais astuto que ela, em seu manto de
ignorância perante tais dissabores da vida.
— Gael, quantos anos você tem? — questionou, tentando parecer
indiferente.
— Não sei ao certo, milady, — Ele desviou os olhos dos dela por um
momento muito breve. — Randall acha que eu passaria por um menino de dez
anos, por minha aparência franzina. No entanto, diz que sou esperto demais para
ser tão jovem. — Sua postura curvou-se sutilmente, como se o assunto fosse
literalmente um peso sobre seus ombros.
— Você não se lembra de sua vida antes de embarcar com Randall? —
inquiriu com inocente preocupação.
O menino pareceu curvar ainda mais os ombros, e ficou cabisbaixo
enquanto respondia de modo quase inaudível.
— Pelo contrário, milady. Lembro-me, mas desejaria esquecer. — Sorriu
com brandura, como se tentasse consolar a si mesmo com aquele gesto que
pareceu-lhe tão sofrido.
Rose pensou por alguns minutos, não sabendo o que dizer. Na falta de
palavras, ela deu dois passos para o lado, aproximando-se ainda mais dele e
tocando sua mão, segurando-a e apertando levemente os dedos sujos de fuligem.
— Não tem que pensar mais nessas coisas, se não desejar. — Sorriu de
maneira encorajadora. — Agora está aqui, e sei que Randall sempre o protegerá.
— Ele assentiu sem muita convicção.
O semblante juvenil pareceu retornar as feições aflitas de Gael, trazendo-
lhe a virtude mais bela das crianças, a alegria.
— Randall diz que sou seu leprechaun. — Sorriu amplamente com certa
empolgação. — Diz que capturou-me para que eu o ajude a encontrar seu
estimado tesouro perdido. — Riu com desprendimento.
— Um duende? — indagou surpresa ao recordar das antigas lendas
irlandesas que lera em alguns manuscritos achados na biblioteca da família.
Gael anuiu com divertimento diante da revelação do apelido que Randall
lhe impusera carinhosamente. Vasculhou alguns bolsos das vestes maltrapilhas
até encontrar o objeto que procurava com tanto empenho.
Um brilho prateado surgiu entre os dedos alongados do menino.
— Ele ofereceu-me esta moeda de prata. Disse-me que quando
estivermos ricos, me dará uma vida tão luxuosa que nem lembrarei dos dias
anteriores a ela. — Entregou a moeda à Rose, que a avaliava intrigada. —
Enquanto este dia não chega, deu-me a moeda como um lembrete de tudo que
ainda terei. — Suspirou pesadamente.
Rose, por sua vez, atentou-se a contradição de Gael que parecia ocultar
uma grande insatisfação com tudo que dissera.
— Não me parece tão feliz com isso, Gael. Há algum problema? —
Virou-se para ele, sustentando o olhar do pobrezinho.
— Não quero riquezas, milady — confessou. — Nunca tive nada nessa
vida, não sei se me habituaria com coisas tão grandiosas.
— E o que você quer, Gael? — Sua voz era doce e maternal.
— A senhorita irá rir se eu lhe disser. — Juntou as mãos em um hábito
corriqueiro que denunciava sua apreensão.
Rose ergueu uma das mãos solenemente e endireitou a postura
rigorosamente. Pôs uma mão em riste na altura dos olhos antes de jurar que
jamais iria rir de seus desejos, por mais diferentes que pudessem ser.
Tal gesto arrancou algumas gargalhadas do menino que pareceu esquecer
de seus infortúnios naquele instante.
— Está bem, vou lhe contar. — Debruçou-se na beirada de madeira
enquanto seu olhar tomava um rumo longínquo. — Antes de estar com Randall,
eu tinha um amigo que acompanhava-me por todo canto — Sorriu amplamente
diante da terna recordação. — Dormíamos em qualquer lugar, e tê-lo ao meu
lado fazia tudo parecer um lar. Um lar aconchegante. — Pôs as mãos sobre o
peito. — Mas, não pude salvá-lo do último inverno. — Sua voz tornara-se
embargada pelas emoções que cobriam suas expressões. — Ele era um cachorro
tão dócil... Senti que tinha perdido toda minha família naquela madrugada. —
Limpou uma lágrima que teimava a rolar pelo rosto miúdo.
— Sinto muito pelo seu cãozinho, Gael —lamentou Rose com um aperto
suave nos ombros do menino.
— Foi neste dia que Randall encontrou-me. Eu estava tentando enterrá-lo
devidamente, mas estava com as mãos tão rígidas pela neve que quase não podia
fazê-lo. — Fitou o convés, visivelmente abatido. — Ele ajudou-me a enterrá-lo e
prometeu que eu ficaria bem, pois eu... Eu estava em prantos, milady — assumiu
com vergonha.
— Não há mal algum em chorar, Gael. Muitas vezes precisamos deixar a
tristeza ser levada pelas lágrimas — afirmou categoricamente.
— Desde aquele dia, tudo que eu posso querer desta vida é outro
cachorro. Um cãozinho para ter como amigo — revelou em voz baixa.
Rose não pôde prever a ternura que a envolveu naquele momento. Gael
não tinha nada, e nem esperava nada. Ainda assim era capaz de sorrir com
abandono e sonhar como qualquer outra criança de sua idade.
Não sabia como aquilo era possível, mas admirava-o com tanta
veneração que notou os próprios olhos marejados com a emoção contida.
Gael vivia em uma realidade tão diferente da sua, que mesmo que se
esforçasse, não poderia compreendê-lo em todos os âmbitos.
Queria poder oferecer o mundo aos pés pequeninos daquele garoto com
olhos de bondade. Desejou arrancar todo o sofrimento de seu forte coração, e
afugentá-lo de toda a maldade.
Consolou-o da única maneira que poderia naquela situação. Puxou-o para
si, o envolvendo em um abraço que prometia um futuro de exultações. Admirou-
se com o modo que ele retribuiu o gesto, agarrando-se a ela, escondendo o rosto
em suas vestes. Ele era tão pequeno que mal ultrapassava sua cintura.
Afagou-lhe os cabelos revoltos e o assegurou de que lhe presentearia
pessoalmente com um novo cãozinho.
— Por ora, pense em um nome bonito para ele. É uma tarefa de grande
responsabilidade. — Dito isso, viu as feições de Gael iluminar-se com a ideia.
Passaram-se alguns minutos enquanto Gael andava animado, de um lado
para o outro, pensando nas inúmeras opções de nomes para o futuro
animalzinho. Enquanto isso, Rose banhava-se da luz do sol, com os cabelos
jogados desordenadamente atrás das costas enquanto inclinava-se, sentindo a
brisa morna com cheiro da água do mar.
Quando abriu os olhos, notou que Randall aproximava-se, acompanhado
de Ronan e seus homens, que seguiam-no de modo quase sorrateiro, chamando a
atenção de Rose, que pôs as mãos sobre a testa, sombreando os olhos, tentando
apurar a visão.
Não demorou muito para que retornassem a bordo, com sorrisos
satisfeitos e palavras alegres ditas em um irlandês arrastado.
Colocaram alguns objetos que levavam debaixo das vestes compridas, no
convés, exibindo-os com tamanho deleite, cada um ostentando o que levara
consigo.
Randall deu ordens para içar as velas rapidamente, e ainda mais depressa
suas ordens foram atendidas com uma habilidade adquirida em anos de
navegações.
Apenas após afastarem-se das pranchas de embarque, Randall veio até
ela, com seu típico riso matreiro à guisa dos lábios.
Colocou uma colcha no convés, que servia improvisadamente como
algum tipo de mala, já que esta continha inúmeros pertences abarrotados em uma
mistura curiosa de cores.
— Trouxe algumas coisas para a senhorita, milady. — Fez uma breve e
teatral mesura, empenhando-se em pronunciar o título de forma desdenhosa,
como sempre fazia.
— Pedi-lhe apenas papel e uma pena, não queria importuná-lo. —
Cruzou os braços, esperando.
— Ora! Sempre quer me importunar, não negue isso, cailín. — Afagou
os cabelos ruivos, despenteando-os ainda mais.
Ela assentiu com demasiada satisfação enquanto ele pegava um tecido
nas mãos, com tanto cuidado que o gesto aqueceu-lhe o coração de imediato.
— Sei que está habituada com peças finas, então trouxe-lhe este vestido,
que a julgar pela pedraria, deve valer uma pequena fortuna. — Entregou-lhe
enquanto pegava a próxima peça.
Rose apreciou o que tinha em mãos. Um legítimo vestido de chiffon azul
turquesa, com mangas soltas que iam até a altura do cotovelo, e sutis pregas na
cintura, com pequenas pedras incrustradas, dando um ar extremamente elegante
ao tecido fino.
— Veja se esse não é um dos coletes mais luxuosos que já pôs os olhos!
— Randall erguia um pesado colete de pele, admirando-o entre os raios do sol.
— Aquilo ali são abotoaduras? — Rose apontou para um brilhante objeto
que pendia do colete que Randall ainda jactava-se, por ter obtido outra peça
valiosa.
— São. Também devem dar-me uma boa quantia — afirmou sem dar-lhe
tanta atenção.
— Pensei que viria a usá-las, talvez com um prendedor de gravata de rubi
combinando com elas — sugeriu, sorrindo docilmente.
— Eu não sou um cavalheiro, minha cara — declarou com orgulho das
próprias palavras.
Ela anuiu em silêncio, secretamente feliz com aquela sentença.
— Trouxemos também um bom vinho do porto, e vinho clarete! —
Apontou para a direção em que estavam algumas garrafas. — Já deve ter tido a
oportunidade de degustá-los, não? — indagou com os olhos alegremente
avaliando-a.
— Não costume fazer uso de bebida alcoólica. Devia saber que sou uma
moça virtuosa. — Empertigou-se ela falsamente, com um risinho no canto da
boca.
— Cailín tempting! Isso sim — murmurou em voz baixa sem querer ser
ouvido pelos demais.
Como sempre, Rose não fazia ideia do que aquelas duas palavras
significavam. Certamente precisaria de algumas aulas de irlandês se quisesse
entender tudo o que Randall lhe dizia, já que sempre a chamara com o sotaque
que embriagava-lhe os sentidos.
Apesar disso, sabia que aquelas palavras carregavam o calor que seus
olhos negros guardavam ao fitá-la com tamanha intensidade.
— Quase me esqueci! — Voltou-se novamente ao emaranhado de coisas
e apanhou um pequeno objeto. — Vire de costas para mim — pediu como uma
ordem.
Ela olhou suas mãos que ocultavam o objeto, tentou em vão adivinhar o
que seria, até que finalmente rendeu-se ao pedido e deu-lhe as costas com
curiosidade.
O sentiu puxar as mechas de seu cabelo para trás e ajeitar os fios
desgrenhados com os dedos, levando-os ao topo de sua cabeça e prendendo
ambas as mechas laterais, exibindo o rosto salpicado de translúcidas sardas.
— Está perfeita — disse, virando-a de frente para si com as mãos em
seus ombros.
Rose levou as mãos ao cabelo, sentindo as pedras lapidadas nas pontas
dos dedos, e sorriu com afetação pela singela delicadeza.
— Trouxe-lhe duas forquilhas para o cabelo. — Entregou-lhe a segunda.
Ela admirou a pequena joia prateada adornada por um brilhante e coberta
por um conjunto de pequeninas pedras azuis, que juntas, formavam uma
majestosa flor de pétalas cobaltas.
— Isso é tão lin... — Ele a interrompeu antes que pudesse agradecer-lhe
devidamente.
— Valioso. É extremamente valioso.
Enfatizou sem deixar de sorrir.
Ela o observou de esguelha, o porte elegante e altivo contendo um toque
sutil de uma soberba que antes ela não tinha descoberto.
— Não devia ter gasto tanto em presentes, Randall — disse de imediato.
— Estou tão agradecida que não sei como poderei lhe retribuir, mas não quero
dar-lhe gastos com tais...
— Acha que os comprei? — ele indagou, o riso dando vazão ao orgulho
ferido.
— Eu pensei que... — Engoliu em seco, ficando um tanto receosa com a
reação exacerbada dele. — Não me importo que sejam usados. Eram joias de
família? — Sorriu, tentando apaziguar o mal-entendido. Não pretendia ofendê-lo
de modo algum.
— Oh, sim — afirmou com uma gargalhada fria. — Da família de
alguém, certamente eram. — Prosseguiu com o tom possesso de ofensa, quando
viu que Rose finalmente compreendera as origens daqueles pertences.
Por um momento ela ficou perplexa, apenas para ficar desnorteada
alguns segundos depois. Encarava-o com incredulidade quando lhe ocorreu que
Randall realmente não passava de um salteador.
Ela queria esbravejar contra ele, sacudi-lo talvez, para fazê-lo enxergar o
quanto aquilo era incerto, imoral e injusto, acima de tudo.
Era inacreditavelmente injusto.
— Está me dizendo que...
— Eu roubei, milady — declarou sem um pingo de ressentimento. — É
isso o que todos nós fazemos aqui. Disse-lhe e repito: não sou um cavalheiro —
atalhou impaciente ao fitá-la tão indignada.
— Isso é desonroso! — Alterou a voz que soou estridente.
— Eu não tenho honra — replicou sem demonstrar qualquer tipo de
arrependimento por suas ações.
Rose respirava pausadamente, tentando não surtar. Suas bochechas
tornaram-se passionalmente vermelhas. Estava furiosa.
Óbvio que não esperava que Randall fosse um cavalheiro, tampouco que
agisse semelhante a tal. No entanto, nunca pensou que aquele homem seria um
fora da lei que vivia às custas de seus atos ilícitos.
Aquilo era inadmissível, concluiu ao encará-lo com ar de discordância.
Ele pareceu-lhe tão honesto em seus tratos, quase não podia crer naquelas
duras revelações de seu caráter.
Apesar de julgá-lo como um bárbaro, por sua falta de modos e
negligência às etiquetas e convenções sociais, ainda assim, não esperava
encontrar uma faceta de tão baixo calão.
Não conseguiu desviar os olhos dele à medida que ponderava tudo que
acabara de descobrir.
Fitava o sorriso arrogante e a pose presunçosa.
Como havia sido tola, por não notar toda aquela empáfia outrora.
— Isso é injusto, Randall. — As palavras saíram trêmulas, bem como
suas mãos que fechara em punhos cerrados.
— Ousa falar-me de injustiça? Uma dama mesquinha da alta sociedade,
que nasceu em berço de ouro? — Gargalhou de modo cruel. — Ora, venha até
aqui. — Pegou o punhal que trazia na cintura. — Fure apenas a ponta de um de
seus dedos, milady. O sangue deve jorrar tão azul quanto os céus — escarneceu
com brutalidade.
— Não posso acreditar que enganei-me tanto com você! — Àquela
altura, Rose gritava a todo pulmão, tamanha sua decepção.
— A princesa enganou-se com o quê? — vociferou ele. — Não tenho
nada a lhe oferecer. Nada que seja de fato meu, como herança. — Sua voz
tornara-se impiedosa. — Tenho que sobreviver e é deste modo que o faço.
Mesmo que custe minha dignidade, e a honra que a senhorita tanto preza —
cuspiu as palavras afiadas como lâminas.
— Mas há outras maneiras de viver, Randall — afirmou sugestivamente.
— Diga-me quais. Sendo que nunca lhe faltou nada. Nunca teve de
buscar nada. Tudo sempre lhe fora dado em uma bandeja de prata, não é mesmo?
— Olhou para os próprios pés antes de prosseguir. — Nunca foi dormir com o
estômago rugindo, vazio. Tendo de comer sobras no meio da sujeira. Não é
verdade? — Aproximou-se dela com agressividade. — A senhorita já implorou
comida para alguém? Diga-me! — grunhiu.
— Não — ela respondeu, sentindo a quentura das lágrimas que tentava
fazer recuar nos olhos.
— Já foi enxotada de algum lugar por ser tão miserável que não era
merecedora de estar ali? — Continuava aos berros sem aplacar a cólera que o
possuía.
Ela negou com a cabeça silenciosamente, com lágrimas a banhar a face
corada de desgosto.
— Responda em voz alta, cailín béarla! — ordenou, autoritário.
— Não. — A palavra não passara de um sussurro entre soluços.
Ele aproximou-se ainda mais, com um andar prepotente e cheio de
pompa, ergueu o rosto lívido de pesar com os dedos no queixo delicado da
jovem, e encarou-a com crueza.
— Diga-me apenas mais uma coisa. — Manteve os dedos a segurar o
rosto elevado, sustentando o olhar lacrimoso. — Alguma vez, milady, já foi
humilhada ou agredida fisicamente por andar por aí com farrapos? Já rastejou
diante de alguém como escória da sociedade? — indagou violentamente,
soltando-a com brusquidão.
Ela negou com um balbuciar baixo, perdido nos soluços pela maneira
hostil que fora humilhada aos olhos de toda a tripulação. Não era capaz de olhá-
lo nos olhos, talvez nunca mais seria.
— Então não venha tentar ensinar-me alguma lição de moral — falou
entredentes. — Nem falar-me de injustiças. — Apontou para o próprio navio
decadente que chamava de lar. — Isso também não é justo.
Rose não pôde mais suportar permanecer ali.
Saiu correndo diante dos maldizeres que ele entoava, como um
verdadeiro pagão.
Entregara-se ao pranto, com o rosto nas mãos, amaldiçoando-se por estar
metida naquele antro de incivilidade.

*cailín — moça
*cailín tempting —moça tentadora
*cailín béarla — moça inglesa
CAPÍTULO ONZE

"Estava hipnotizado, como se ouvisse a encantadora melodia do flautista


de Hamelin a inebriar-lhe os ouvidos.
Assim era a voz de Eileen.
O chamado dela fazia seu coração derreter no peito.
Podia estar preso dentre uma enseada de almas, e ainda assim, seguir
sua voz."

As nuvens começavam a cobrir os céus quando Randall entrou em sua


cabine, determinado a esquecer a discussão que tivera com Rose. O tempo tépido
era quase um espelho das suas próprias emoções aviltadas pelas palavras daquela
inglesa petulante.
Havia uma fúria redundante que assolava suas vãs tentativas de abrandar
aquela dor que insistia em atormentá-lo.
—Béarla diabhal!— resmungou ao fechar a porta da cabine com um
estrondo.
Derrubou a pilha de mapas em sua escrivaninha improvisada, ato que
resultou em muitos xingamentos desenfreados, devido sua demasiada
irritabilidade. Chutou o pé da cama sem qualquer cautela, antes de servir-se de
uma generosa dose de Whisky. Bebeu o líquido ardente em poucos goles, apenas
para entornar outra dose que aliviaria sua tensão.
Pôs as mãos nas têmporas, já sentindo o efeito do álcool atenuando as
tempestivas emoções.
De modo abrupto, sem bater, e sem nenhuma cerimônia,
Ronan abriu a porta destrancada e o encarou com perplexibilidade.
— Lennart, pare de se embebedar e vá pedir desculpas à menina —
ordenou com um lívido olhar de comiseração ante seu estado nitidamente
perturbado.
Randall sorriu de um modo desgarrado de sentimentos. Era um riso frio e
cruel que fez Ronan estreitar os olhos diante de tamanha arrogância.
— Ela que deveria pedir-me desculpas. Cailleach ifreann! — cuspiu as
palavras torpes de maneira a mostrar rancor.
Ronan aproximou-se, retirando deliberadamente o copo de suas mãos.
— Ela não entende o seu mundo, Lennart. — Observou o olhar soturno.
— Ela não entenderia nem se lhe disséssemos os mais irrelevantes pormenores.
— Notou que o jovem rapaz permanecia cabisbaixo, como um menino acuado.
— Eu o entendo, meu garoto. Sabe que entendo suas razões e principalmente,
conheço seu coração. E sei o quão bondoso ele é. — Sorriu, encorajando-o.
— Eu vou para o inferno, Ronan — falou amargamente com grande
pesar na voz. — Sou um maldito saqueador maltrapilho — admitiu, escondendo
os olhos que revelariam sua lástima.
— Você é a pessoa mais honesta que já conheci, Lennart. — Elevou a
voz com firmeza.
— Então deveria conhecer mais pessoas, Ronan. — Sorriu com
malignidade.
— Deus sabe que fazemos o que fazemos... para sobreviver. — O fitou
com intensidade antes de prosseguir. — O mais importante é que apesar disso,
tentamos manter a honestidade com o que nos é oferecido. — Apertou o ombro
do rapaz antes de dar-lhe as costas.
Randall passou boa parte do resto do dia trancado em sua cabine, ora
embebedando-se, ora mantendo-se lúcido o bastante para se dar conta de quão
doentio era aquele mundo.
As pessoas o marginalizavam por ele ser quem era, mas não erguiam um
dedo para ajudá-lo a sair daquele buraco.
Pensou que Rose seria diferente daquela sociedade regida pela hipocrisia.
Ela era uma mulher idealista, movida pelos próprios desejos.
Nunca fora seu intento ameaçar sua mácula ao tê-la nos braços. Jamais
quis corromper seus conceitos, sequer mudar suas opiniões moralistas. No
entanto, ouvir seu duro julgamento havia sido mais difícil que ser apunhalado
pelas mesmas mãos.
Ela estava enganada a seu próprio respeito, e ele a faria ver seu equívoco.
Que Deus a ajudasse, pois ele faria aquilo naquele mesmo instante.
— Rose! — gritou enquanto levantava-se com certa dificuldade após
tanta bebida ingerida. — Maldita Rose! — berrava enquanto dirigia-se para fora
do cômodo pouco iluminado.
Caminhou devagar, procurando-a feito um louco, tropeçando no que lhe
obstruísse o caminho e queixando-se à medida que os minutos corriam sem saber
do paradeiro da garota.
— Rose! — chamava com a voz embargada pelo álcool, sorrindo com o
nome doce em sua boca. — Venha cá, bean ifreann! — atalhou com
impaciência.
Antes que pudesse notar sua presença, pôde sentir o perfume no
ambiente. Um cheiro tão doce que quase o atordoou.
— O que você quer de mim? — indagou ela, saindo de trás de uma pilha
de tecidos e caixotes, seu olhar fervilhando de ódio.
Quando seus olhos pousaram aos dela, esquecera-se da razão de sua ira,
tamanho era o deleite ao vê-la.
Os cabelos agitando-se e brilhando com o pouco de luz que infiltrava ali,
eram de uma cor tão singular, como faíscas atiçando uma fogueira. A cor
predominantemente vermelha, mesclava-se ao dourado de algumas mechas,
dando-lhe um ar ainda mais místico. Rose era como ouro em brasa, derretendo
tudo de si, bem como os olhos doces que enlouqueciam-no.
Ela estava furiosa, e ainda mais arisca à medida que ele aproximava-se.
Enquanto Randall tentava alcançá-la com dois passos à frente, por sua
vez, Rose retrocedia três passos para longe dele, como se temesse aquela
proximidade.
Entretanto, levando em conta a determinação de Randall, Rose não teria
chances de fuga.
Ele segurou seu braço de modo bruto, fazendo-a queixar-se em alto e
bom som ao tentar em vão desvencilhar-se de suas mãos.
— Tire as mãos de mim, Randall! — avisou em tom de ameaça,
sacudindo-se do aperto vigoroso daqueles dedos.
— Não vou soltá-la até que me escute — disse entredentes como um
rangido.
— Já ouvi tudo o que precisava. Solte-me agora mesmo, seu bárbaro! —
gritou, tentando empurrá-lo.
Randall sorriu uma vez mais, o sorriso não chegando os olhos, tampouco
atenuou as expressões vincadas. Apertou-a com ambas as mãos em torno da
jovem e frágil menina que debatia-se tentando acertá-lo com agressividade.
— Quando não sabia dos meus pecados, usufruiu dos meus beijos, não é
mesmo? — acusou sem um pingo de ternura na voz.
— Você é um desgraçado! — Ainda tentava soltar-se, sem sucesso.
— Há poucas horas implorou-me para tocá-la. Implorou-me para beijá-
la. E agora foge de mim como se eu fosse o demônio e pretendesse arrastá-la
para o inferno! — Segurou o rosto pequenino nas mãos em concha. — As mãos
que acariciaram-na outrora, são as mesmas que roubam sem nenhum pudor. —
Apertou sua mandíbula sem muita gentileza. — Será que meu toque mudou após
saber disso, cailín?— questionou sem lhe permitir uma resposta.
— Eu juro que vou matá-lo se não tirar as mãos de mim! — ameaçou
violentamente.
Ignorando todos os protestos, Randall a beijou.
Um beijo arrancado à força, sem nenhum calor que pudesse aquecer seu
coração confrangido.
Ele sentia-se abandonado.
Sem abrigo ou segurança.
Era novamente o menino de olhos carentes procurando braços que
pudessem o proteger da maldade do mundo.
Mas Rose não sabia, não podia ter conhecimento da busca desesperada
de afeto que ele tentava encontrar em seus lábios. Não pôde refrear sua fúria,
quando ergueu uma das mãos, afrouxando seu toque de ferro, levando-a
brutalmente até seu rosto, fazendo estalar uma bofetada digna de uma lady
respeitável ao ser tratada daquela forma.
Por um momento, ele pareceu divertir-se com seu gesto. O tapa serviu
apenas para fazê-lo pressioná-la com ainda mais ímpeto, a ponto de não poder
mover sequer um músculo.
Estava presa em um abraço que rejeitava com todas as suas forças, mas
ele violava não apenas seus lábios, mas também suas percepções.
Não podia controlar o próprio corpo que dançava juntamente ao dele,
com uma sincronia que apenas aquela proximidade podia permitir.
Não sabia o que habitava em si mesma quando retribuiu o beijo com
ardor, mas podia afirmar que era o mesmo que o possuía quando seus olhos
negros derramavam-se aos dela.
Separou-se dela, ofegante em seu estado ainda colérico, provando-lhe
que ela trairia a própria razão em prol de seus desejos.
— Mesmo que negue, você não é capaz de rechaçar-me. — Sorriu ele em
seus lábios, com frieza.
— Você é um demônio, Randall! — O furor ainda pintava o azul de seus
olhos.
— E você é a mulher que domou o demônio — afirmou ao segurá-la com
ainda mais força, evitando de deixá-la fugir.
Segurou mais uma vez o rosto corado nas mãos, a obrigando a fitá-lo
com crueza.
— Não sei o que eu faria sem essa sua boca atrevida, gruaig tine. —
Você é a única que enfrenta-me desta maneira. É tão corajosa. — Beijou-lhe a
testa quase suavemente. — É a única que enlouquece-me em plena lucidez. —
Tocou as pálpebras com as pontas dos dedos delicadamente. — Você veio metida
em sua pompa inglesa, juntamente com a poesia que carregava em seu espírito.
— Sorriu brevemente, um riso quase atormentado. — Atraiu-me com seus
encantos, arrancando tal poesia dos meus próprios lábios — confessou em um
arrulhar quase inaudível. — Eu deixo meus versos decorados em seus lábios
quando a beijo. — Pousou a boca na dela, marinando os lábios com um pouso
gentil. — E mesmo assim... insiste em rejeitar-me. Manda-me embora. Mas
perde toda a compostura quando está em meus braços.
Rose tinha lágrimas no canto dos olhos. Randall incitava nela
sentimentos tão controversos que começara a crer que havia perdido o juízo.
Tudo o que queria era prendê-lo em seu próprio abraço, guiá-lo ao seu coração,
consertar o riso que pendia inseguro de seus lábios quando ele sorria.
Lutava contra seu orgulho, sua dignidade, e não sabia para qual lado de
sua formação iria pender.
Quando ele a soltou, pensou em sair correndo dali imediatamente.
Era o certo a fazer.
Mas...
O certo para quem? Pensou com uma infeliz confusão.
— Isso não está certo — ela murmurou com as lágrimas represadas nos
olhos de oceano.
— Muita coisa não está certa, milady. — Voltou a tratá-la como superior,
a julgar pelo título dito com demasiada ênfase.
Ela ergueu uma das mãos, envolvendo o rosto masculino com ternura,
sentindo a barba por fazer em seus dedos.
Ele estava quebrando alguma coisa em seu interior, quebrando seu
coração que já fora arruinado, fazendo-o em pedaços, deixando rastros em sua
pele e em seus ossos. Marcas que permaneceriam ali para sempre.
Mas por que a sensação era tão adorável?
Ele precisava de um abrigo, um lugar para se esconder, e Rose estava
oferecendo-se para ser seu lar. Apesar de tudo isso indicar que ela jogaria seu
próprio nome na lama.
Toda a sua boa reputação desfeita por um homem que sequer tinha
princípios.
Ela o empurrou com toda a força que tinha, visivelmente furiosa e
devastada, na mesma proporção.
Randall fora atirado na direção de um pequeno armário que continha
algumas panelas de ferro, e pratos de estanho, derrubando-os no chão, causando
um verdadeiro estrondo com o barulho das peças estilhaçando sobre seus pés.
Mas antes que pudesse reagir ante tamanha agressividade da pequena
diaba de saias, ela atirou-se contra ele, que abriu os braços para recebê-la, bem
como os lábios a explorá-la.
Eram uma mistura perturbadora de fúria e ardor, queimando nos braços
um do outro, e ao mesmo tempo curando-se mutuamente.
Estavam presos no fogo que os consumia, não sendo capazes de notar
que Ronan entrava pelo estreito corredor, com ar de poucos amigos.
— Por mil demônios! Calem a boca! Dá para ouvi-los do outro lado do
navio! — berrou ao flagrá-los aos beijos.
Randall o observou em confusão, ainda sob efeito do álcool, enquanto
Rose saía correndo, com o rosto tão escarlate quanto os cabelos que
emolduravam-no.
— Oh, Ronan, eu o odeio por isso. — Riu sem desprendimento, levando
os dedos aos lábios inchados.
— Está bêbado como um gambá, se atracando com aquela inglesa sem
nenhum pudor, Lennart! — repreendeu o outro com alteração na voz.
— Foi você quem disse para eu vir procurá-la. — Deu de ombros de uma
maneira atrapalhada.
— Para pedir-lhe desculpas, não para se engalfinharem daquela forma!
— Aproximou-se, notando a marca dos dedos da jovem na face vermelha de
Randall. — Estavam se beijando ou tentando se matar? — inquiriu, negando
com um movimento de cabeça.
— Suponho que ambos — respondeu Randall, levando a mão ao rosto,
sentindo pela primeira vez a ardência da bofetada.
— Eu não tenho mais idade para isso! — Ronan resmungou enquanto
conduzia Randall de volta à sua cabine.

Randall acordou na manhã seguinte sentindo uma dor lancinante nas


têmporas. Levantou-se com certa ausência de equilíbrio e jogou água em seu
rosto, sentindo leves fisgadas de dor onde as unhas de Rose haviam deixado
alguns arranhões.
A pequena inglesa sabia se defender, afinal, pensou Randall com um riso
à guisa dos lábios.
Lembrava-se de tudo com clareza e a noite anterior vinha-lhe à mente
com muita nitidez.
Não havia planejado nada do que acontecera, e sentia-se mortalmente
culpado por submetê-la àquela constrangedora situação.
O semblante rubro e as expressões envergonhadas surgiram em sua
mente. Ela havia fugido assim que Ronan os flagrara. Obviamente nunca tinha
sido pega numa situação ultrajante como aquela. Para uma dama da alta
sociedade, aquilo era humilhante.
Deveria ir procurá-la naquele mesmo instante.
Mas algo o deteve.
O que iria dizer-lhe?
Era fácil tomá-la nos braços e esquecer das formalidades sociais, dos
deveres morais e até mesmo da diferença de classes que os apartava.
Mas não poderiam continuar com aquilo por muito mais tempo.
Uma batida na porta interrompeu os pensamentos afoitos dele.
— Senhor Randall? — Gael apareceu na porta um tanto relutante.
— Diga, Gael. — Soou mais antipático do que gostaria.
— A senhorita Rose pediu-me para procurar os papéis e o tinteiro que o
senhor trouxe-lhe ontem... Ah, sim, e a pena — disse com entusiasmo infantil.
— Custou-me para achar. Tinha muitas coisas espalhadas que trouxeram ao
navio ontem...
— Gael, não fique dando voltas. Diga-me logo o que Rose lhe pediu. —
Continuava com as mãos na testa, prevendo que as dores de cabeça tendiam a
piorar.
— Oh, sim. Depois que entreguei a ela tudo que havia me pedido, ela
disse-me que escreveria durante toda a madrugada. — Ergueu as sobrancelhas.
— Perguntei-lhe se não ficaria exausta pela manhã. O senhor sabe como uma
noite mal dormida pode causar exaustão...
— Gael, sem preâmbulos. — Lembrou-lhe novamente.
— Claro, senhor. Então ela disse-me que o que estava escrevendo era de
suma importância. Por isso passaria a noite em claro. — Viu Randall anuir
ligeiramente, fazendo um movimento com as mãos para que prosseguisse. —
Então, agora pela manhã, ela veio até mim com as mãos manchadas de tintas e
entregou-me esses manuscritos. — Ofereceu os papéis amassados e amarelados
para Randall. — Pediu que eu os entregasse ao senhor, e somente ao senhor —
ressaltou.
— Agradeço, Gael. — Observou o menino que relutava em ir embora,
tamanha era sua curiosidade por ler aquelas palavras. — Pode ir, Gael. Já
entregou-me. — Levantou os papéis com um breve sorriso amistoso.
Gael caminhou lentamente, tão lentamente que Randall revirou os olhos
ao vê-lo contar os pequenos passinhos de modo plácido.
— Senhor? — chamou ele com um fio de voz.
Randall ergueu os olhos em sua direção, aguardando seja lá o que o
menino queria lhe dizer.
— A senhorita Rose disse-me que o que está escrito nesses papéis é a
continuação da história que ela está a criar. — Pôs as mãos nos bolsos da veste
puída. — E se o senhor não se importar, poderia contar-me se a história está
finalizada? Estou tão curioso que...
— Gael, permita-me ler e depois vejo se lhe conto ou não. Agora deixe-
me em paz. — Viu o garoto acatar suas instruções cabisbaixo. — Aproveite e
procure Ronan. Eu pedi para que ele guardasse uma coisa que peguei ontem para
você. — Sorriu ternamente olhando a alegria retornar aos olhos do menino.
— Para mim, senhor? — As expressões iluminaram-se com os olhos
arregalados dele.
— Sim, Gael, para você. Vá depressa antes que eu mude de ideia —
declarou de maneira enfadonha.
O garoto agradeceu no mínimo umas dez vezes, antes de dar alguma
privacidade a Randall, para que pudesse ler as palavras escritas de Rose.
Arrastou a velha poltrona que quase nunca era usada e a pôs em frente à
escrivaninha, empurrando alguns encadernados antigos e mofados, bem como os
mapas rasurados e despedaçados que mantinha ali.
Acendeu a vela que jazia em cima de um belo ornamento de prata, e
colocou os papéis pardos próximos a luz bruxuleante da chama.
Gael tinha razão. Aquela era a história que Rose estava a escrever.
Tinha uma pequena nota encimando as primeiras citações.
"Prometi lhe mostrar minha história. Espero que ao findar a leitura,
conte-me a sua."
Aquelas primeiras sentenças o desconcertaram.
Francamente, ele lhe contaria tudo, lhe daria o que pedisse e se entregaria
a ela em uma bandeja de ouro, se assim ela desejasse. No entanto, não podia
mais ludibriá-la da forma que vinha fazendo.
Ronan tinha razão desde o início.
Aquilo só traria mágoas, e tudo o que ele não queria, era machucá-la.
Rose não pertencia à sua realidade, nunca se adaptaria com a vida
modesta que ele levava.
Ela não poderia ser sua.
Não enquanto ele não possuísse o mundo para colocá-lo de escabelo aos
seus pés.
Decididamente, ele não era digno de tê-la, tampouco de lutar por ela.
Mas um dia seria.
E até que este dia chegasse, ele ia deixá-la ir.
Concluiu que aquele era o ato mais honroso a se realizar.
Ela merecia mais do que ele podia oferecer-lhe, sendo assim, ele se
empenharia para estar completo quando fosse buscá-la.
Mesmo que demorasse.
Aquela era a atitude mais altruísta que faria.
Randall leu todas as folhas, apreciando o formato das letras, os erros
rabiscados, a forma com que ela derramava seu coração nas palavras.
Após algumas horas, levantou-se empenhado em cumprir sua parte no
acordo.
Ele lhe contaria sua história.
E depois a deixaria partir.

*béarla diabhal —maldita inglesa


*cailleach ifreann —bruxa dos infernos
*bean ifreann —mulher dos infernos
*cailín —moça
*gruaig tine —cabelos de fogo
CAPÍTULO DOZE

" — Oh, volte para mim, Ryan. Atormenta-me, eu lhe imploro — suplicou
com desconsolo.
Eileen encontrava-se debruçada sobre um nodoso tronco de um
salgueiro antigo, que curvava-se perante ela, parecendo compartilhar de seu
desalento, os ramos prostrando-se ao chão, como que esmorecendo ante a
desesperança."

A falta de coragem era algo odiosamente terrível para Randall, que


caminhava de um lado para o outro, juntando forças para ir atrás de Rose.
Sabia exatamente onde ela estava, já que mandara Ronan encontrá-la
algumas horas antes, para questionar-lhe sutilmente sobre a localização da
propriedade de sua tia.
Descobriram que não estavam tão longe daquela ilha, e já havia ordenado
aos marujos que mudassem a direção, para que pudesse levá-la novamente à sua
família, de onde jamais deveria ter saído.
Caminhou lentamente ao sair de sua cabine, sentindo o cheiro do mar
trazido pela brisa gelada que agitava seus cabelos negros como a noite que
residia nos céus.
Antes de sair, pegou um antigo castiçal de prata e irrompeu pela
escuridão à procura de Rose, não demorando mais que alguns poucos minutos
para vê-la.
Ela estava deitada sobre uma toalha ou um cobertor encardido, mas
parecia não se importar por estar em condições tão miseráveis. Observava o céu
tão concentrada, como se estivesse a contar estrelas. Seus olhos prendiam-se na
imensidão de constelações, enquanto Randall aproximava-se com cautela para
não sobressaltá-la.
Quando Rose o viu, levantou-se rapidamente aprumando a saia amassada
de seu vestido, bem como ajeitava os cabelos que encontravam-se libertos,
dando-lhe uma aparência ainda mais jovial e selvagem.
Entretanto, antes que pudesse pensar em algo a lhe dizer, o viu
ajoelhando-se com demasiado galanteio e elegante postura à sua frente.
— Lennart Randall, ao seu dispor. — Segurou uma de suas mãos e
beijou-a com grande afeição, não deixando de sorrir ao vê-la tão confusa. —
Não podia começar a minha história sem apresentar-me corretamente, não é
mesmo? — Ergueu uma sobrancelha juntamente ao riso matreiro que não
deixava seus lábios.
— Oh, certamente. — Ela sorriu de modo afetado, aceitando o gesto
cordial quando ele lhe estendeu uma das mãos para ajudá-la a sentar-se
novamente.
— Lennart é um belo nome. — Fitou-o de esguelha brevemente, lutando
para manter a compostura. —Len —sussurrou o doce apelido que acabara de lhe
dar.
Ele assentiu um tanto sem jeito diante do elogio e passou a fitá-la com
intensidade ao passo que aproximava-se ainda mais. Admirava a pele de
alabastro, os lábios vermelhos que guardavam o sabor do pecado, os olhos que
davam morada ao espírito destemido, os cabelos que envolviam-na em uma
áurea flamejante, fazendo parecer que o queimaria apenas por observá-la.
Ainda levava consigo a delicada forquilha que ela atirou-lhe outrora com
tanto desprezo, a girou entre os dedos com o brilho das pedras iluminando-se à
luz do luar, fazendo a joia parecer ainda mais preciosa.
Prevendo suas intenções, Rose virou levemente a cabeça, segurando
as mechas desordeiras para que ele pudesse prendê-las com o adorno.
— Isso é seu. Não importa sua origem, apenas guarde-o, mo daor. — Sua
voz tinha um tom soturno de despedida que Rose não se deu conta naquele
instante.
Ela anuiu ligeiramente com um sorriso brando e agradecido brincando
nos lábios de rubi. Randall parecia prestes a desmoronar ao apreciá-la com
tamanho apreço, engolindo com dificuldade o nó que formava-se em sua
garganta antes de prosseguir.
— Eu lhe contarei o que quiser saber a meu respeito. Basta me perguntar
— desafiou, procurando a mão pequenina para segurar entre a sua.
— Não é assim que se conta uma história. — Negou com um gesto
metódico de cabeça. — A história é sua, só você pode descrevê-la a seu próprio
modo. Conte-me o que acha importante ser dito e não esconda-me o que achar
ser trivial, pois certamente não é — sugeriu com empolgação.
Aquilo seria mais difícil do que ele imaginara. Suas memórias, em sua
maioria, não faziam alusão a momentos formidáveis. Pelo contrário. Aquelas
reminiscências traziam à tona sentimentos perturbadores e sôfregos que tivera
sucesso em represar dentro de seu cerne até então. Contudo, aquela mulher
estava querendo tudo de si, e ele jamais lhe negaria nada.
Inspirou profundamente, e deitou-se sem qualquer cerimônia com os
braços cruzados apoiando a cabeça, e um olhar curioso nos olhos ao ver que
Rose igualmente deitava-se, aconchegando-se em seu peito, aninhada entre os
sentimentos que despertava nele.
— Como deve imaginar, não nasci em berço de ouro. Tive uma vida
desregrada desde meus tempos de menino em um orfanato. — Segurava-a nos
braços permitindo que as lembranças lhe tomassem. — Aquele lugar era
asqueroso. Não tínhamos camas, tampouco refeições decentes. Vivíamos com
tão pouco, que muitas das vezes pensava que não acordaria vivo no dia seguinte.
Nem sei se eu queria acordar, para ser franco. — Seus olhos foram invadidos por
uma tristeza pesada demais para que pudesse contê-la. — Após alguns anos
sobrevivendo naquela imundície que chamava de lar, um casal veio à procura de
um menino para adotar. Dentre todos os outros, fui escolhido e tive a plena
convicção de que a sorte sorria para mim daquele dia em diante, mas estava
extremamente equivocado. — Suas expressões tornaram-se frias, endurecidas
como pedra.
— Eles eram da nobreza, não eram? — O viu assentir com grande
repulsa.
Sempre desconfiou que Randall havia tido algum trato com a nobreza, a
julgar pelo porte elegante e bons modos, quando desejava colocá-los em prática.
— Não sei o que pensaram, mas era um erro. Queriam domar-me como
se eu fosse um animal. E mesmo que eu tentasse tanto quanto poderia, não
suportava aquela vida regida pelas aparências. — Pressionou-a ainda mais em
seu corpo, como que temendo que ela desaparecesse. — Apresentavam-me como
uma atração perante todos, que debochavam com risos, deixando claro que
estavam fazendo-me um favor com aquela humilhação. Que eu deveria ser grato
por tê-los. Deveria suportar calado.
— Eles o maltratavam? — Rose inquiriu, indignada e tristemente
abatida.
— Eram doentes. Faziam coisas tão repugnantes que eu jamais podia
mencioná-las em voz alta. — Sentia o coração bater ensandecido. Um coração
que conheceu o medo por tempo demais. — Então eu fugi daquela casa, daquela
vida. E passei a criar minha própria realidade em meio àquela balbúrdia. —
Sorriu com certo alívio.
Rose inclinou a cabeça tentando observá-lo com o canto dos olhos,
ergueu uma das mãos e perpassou os dedos pelos lábios, que tocavam aquele
sorriso com tanto carinho que ele segurou sua mão, levando-a para longe de si,
não podendo mais senti-la tão próxima, sabendo que logo ela se juntaria ao seu
punhado de recordações.
Se ela notara o gesto quase abrupto que ele usara ao afastá-la de si, não
demonstrara.
Ela estava absorta demais pensando no grande vazio que era sua própria
vida.
Sempre rodeada de ouro, requinte e frivolidade. Ela tinha tudo que
Randall sempre almejou, mas aquele império nunca lhe trouxe felicidade
duradoura. Contudo, era egoísta demais para um dia cogitar abrir mão de sua
vida de regalias.
Não era capaz de compreender como Randall ainda podia sorrir, tendo
passado por tantas adversidades, tendo visto tanta maldade e sendo atingido por
tantas calamidades.
Ele ainda sorria.
Fazia isso naquele instante, enquanto a fitava tentando não parecer tão
desconcertado com o que via no horizonte de seus olhos.
Ela olhou para cima, ao alto dos céus que pareciam guardar uma
tempestade, e pôde ver ainda uma única estrela que não fora oculta pelas nuvens
que dançavam ao balanço do vento.
— Faça um pedido. — Ela soprou as palavras em um sussurro quase
atormentado.
Randall olhou para o céu, para a única estrela que persistia na imensidão
negra e infinita, e pensou em um pedido que procedesse de seu coração.
E o que lhe veio à mente era deveras assustador.
Não pediria por riquezas, pois o ouro e a prata não podiam mais suprir os
desejos de seu coração que ardia pela primeira vez em muito tempo.
Fechou os olhos lentamente, rezando para que as palavras não saíssem de
sua boca. Não poderia lhe dizer.
Não poderia confidenciar o único pedido que queria que se tornasse
verdade.
Pois seria ela.
Queria tê-la para si, não apenas por uma noite, mas por todos os dias de
sua vida. E essa constatação era devastadora até para ele, que era habituado a
flertar com o caos que sempre o permeou.
— Diga-me o que pediu. — Ela o observou com curiosidade à guisa de
um sorriso gracioso.
Randall negou com a cabeça, arrancando-lhe um beicinho tão meigo que
quis beijá-la naquele mesmo instante. Custou-lhe todas as forças que ainda
guardava para que pudesse manter o controle e não puxá-la para si.
— Não pedi nada. — Seus olhos carregavam desalento nas íris. — Seria
injusto que meu pedido se realizasse, e eu não sou tão egoísta quanto pareço. —
Deu de ombros tentando se manter indiferente, enquanto escondia os destroços
dentro de si.
O luar despedaçava-se sob o mar, bem como a alma de Randall naquele
momento. Queria poder escapar da escolha que havia feito, mas não poderia.
Sentia como se estivesse sendo arrastado pelos braços do oceano, levado contra
a maré, contra sua vontade. Aquela sensação era tão assoladora quanto doce.
Ele a amava.
Se deu conta disso quando ainda conseguiu sorrir ao olhar para ela.
Um sorriso genuíno que quebrou algo dentro dela.
— Passou por coisas tão difíceis... Como pode ser capaz de levar consigo
um sorriso tão belo? — Ela sibilou enquanto sustentava seu olhar.
— Sou um sobrevivente, Rose. — Piscou de modo galante e estreitou-a
em um abraço.
Nada no mundo poderia exprimir o que Rose sentiu ao fitá-lo. A luz do
candelabro sombreava os olhos negros, e o luar ajudava a compor o rosto de
feições endurecidas e ao mesmo tempo tão joviais. Uma mecha de cabelo caía
sobre seus olhos, que pousavam aos dela com devoção.
Ela o admirava tanto que chegava a questionar seus princípios. Sabia que
Randall era um fora da lei, mas como alguém tão desonesto poderia ter olhos tão
gentis?
Era como se ele desafiasse os conceitos morais, e fizesse do inferno, o
paraíso.
Ele era seu paraíso em meio aquela imensidão azul.
Em nenhum momento sentiu-se perdida, apesar de estar longe de casa e
de todos que conhecia, e sabia que a sensação de segurança provinha de Randall.
Jamais saberia ao certo o instante em que depositara sua confiança
naquele homem, contudo, tinha a certeza de que enquanto ele estivesse a
acompanhando, nada de mau a atingiria.
— Como conseguiu esse navio? — inquiriu ela quebrando o silêncio,
como as ondas que quebravam ao chocarem-se no casco.
— Em uma aposta. — Ele sorriu amplamente ao vangloriar-se. — Sou
bom com cartas, nem precisei trapacear. — Deu de ombros de maneira
debochada.
— Quem apostaria seu próprio navio em um jogo idiota de cartas? — Ela
gargalhou com indignação.
— Homens são tolos quando seu orgulho é ferido, cailín. Fazem coisas
absurdas em prol da imaculada honra masculina — caçoou com um riso rouco.
— Você não parece-me tolo — ela disse com um sorriso que flertava com
os olhos negros dele.
— Oh, eu sou. Sou extremamente tolo, mo bheagán. — Tomou uma de
suas mãos e permaneceu segurando-a entre os dedos, enquanto levantava-se.
Era realmente um tolo irreparável, por deixar-se apaixonar tão
facilmente.
Randall jamais desejaria soltar a pequenina mão que carregava junto ao
peito, em um aperto sôfrego e esmagador.
Ele retirou com habilidade a adaga que levava consigo presa na cintura, a
lâmina brilhava tão prateada quanto o luar que despencava sob as águas turvas
do oceano.
Rose o observava mover-se lentamente, com certa letargia e amargura no
canto dos olhos.
Ambos sentaram-se, Rose ainda aninhada nos braços de Randall, que
buscavam algum conforto em seu toque. Ele pôs as mãos em seus ombros,
tocando levemente a clavícula exposta em uma carícia terna e agradável. Rose
fechou os olhos, deixando-se envolver pelo calor daquelas mãos ásperas que
afagavam-na suavemente.
Ela sabia que algo iria acontecer naquela noite. Era como se seu corpo e
sua mente estivessem em alerta de que algo significativo aconteceria. E quando
Randall a tocou daquela forma tão despida de pudor, ela soube que ansiava por
aquele momento, mesmo que não fizesse ideia do que fariam a seguir.
Ela só sabia que o queria.
O queria do modo mais cru que ele pudesse entregar-se, e ela o retribuiria
com o mesmo ardor. Ela precisava mais do que um abraço, mais que apenas um
beijo. Ela o queria de um modo que ainda lhe era desconhecido, apesar de
desejá-lo com tamanha intensidade.
Ela inclinou a cabeça em sua direção, buscando seus lábios sem qualquer
recato, beijando-o sem clemência e ansiando que ele não abrandasse o fogo que
a aquecia, mas sim, que a incendiasse sem complacência.
Randall acariciou seus lábios por algum tempo, cobrindo-os com a boca
ávida por mais daquela doçura. Temendo que não tivesse coragem o suficiente
para afastá-la se continuasse com aquilo. Ele afugentou suas vontades e
negligenciou os próprios desejos ao apartá-la de si com delicadeza.
Girou a adaga nas mãos, puxou uma mecha longa e fina dos cabelos cor de fogo
da mulher que enfeitiçava-o com apenas um olhar, e cortou o emaranhado ruivo,
arrancando um olhar de surpresa de Rose, que ainda tentava recobrar os sentidos
após tê-lo com tanta intimidade.
— O que está fazendo? — ela indagou ainda arfando, com as bochechas
rubras pintadas pela paixão que a consumia.
Ele não respondeu de imediato, apenas continuou com sua tarefa,
cortando uma fita do vestido verde que ela usava, e amarrando a mecha de ouro
derretido entre o tecido.
Pôs a mecha presa na fita em um dos bolsos de seu casaco escuro.
— Algo para me lembrar de que você foi real — disse com um riso
morrendo à beira dos lábios.
— Ora, não terá de lembrar-se, eu estou aqui — rebateu com um mau
presságio lhe deixando inquieta.
— Só por esta noite, mo milis Rose.— Roçou a ponta dos dedos pelo
rosto pequenino. — Amanhã pela manhã eu a levarei embora. Já estamos
retornando ao porto mais próximo, e de lá eu a levarei para a casa de sua tia. —
Tentou manter o tom polido e o ar cauteloso.
— Não pode fazer isso! Não agora... — Ela explodiu.
— Então quando? — replicou com sensatez. — Você nem deveria estar
aqui, gruaig tine. — Pôs uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.
— Eu não irei partir, eu... Eu não posso. — Seu corpo parecia
convalescer à medida que a realidade lhe acometia de modo tão violento.
Ele segurou seu rosto com ambas as mãos em concha, enquanto ela
levava as mãos em seu tórax, tocando-o como se quisesse arrancar seu coração
do peito, apenas para esmigalhá-lo com as próprias mãos. Ela o deixaria em
pedaços, Randall sabia disso, mas pela primeira vez não pensou em sua própria
dor.
Teria que ser forte para suportar viver sem seu coração, pois ela o levaria
consigo.
— Você jamais pertenceria ao meu mundo, Rose. — Apesar da triste
sentença, suas palavras derramavam doçura.
— Não pode decidir isso por mim! — atalhou ela, tentando segurar as
lágrimas que ameaçavam chegar.
Ela era impossível. A senhorita mais teimosa que já tivera o prazer de
conhecer, não se curvaria diante de nada. E ele a amava por isso.
— Então diga-me. Escolheria deixar tudo pra trás esta noite? — Seu
coração batia ensandecido, buscando segurar-se no último fio de esperança
quando encarou os olhos azuis.
Havia muito para pensar.
Sua cabeça girava com o balanço do mar, suas mãos tornaram-se gélidas
e pôde sentir a garganta fechar-se, como se aquela única pergunta pudesse lhe
sufocar até a morte.
Teria de decidir isso em algum momento, ela sempre soubera disso. No
entanto, não pensou que a pressão a paralisaria daquela forma.
Ela o escolheria.
Queria dizer isso em voz alta. Precisava que ele soubesse que não
conseguiria mais viver sem tê-lo em sua vida.
Mas, ela não tinha certeza das coisas que precisaria subordinar para tê-lo.
Não poderia renunciar a própria família que amava. Jamais poderia traí-los e
fugir com Randall para nunca mais retornar.
Teria de ser feito pelos meios convencionais, mas...
Casar-se?
Randall não pareceu inclinado a pedir sua mão em momento algum
daquela viagem.
Ela estava confusa. Tão confusa que não notou que seu silêncio durara
um tempo demasiadamente longo, enquanto Randall tirava suas próprias
conclusões de sua resposta não dita.
— Não é justo eu tentar dissuadi-la — ele proferiu com grande pesar
enquanto a levava para si.
Ela agarrou-se nele, com o corpo tremendo como se o frio assolasse seus
ossos. Ainda não dizia nada, não podia. Ela estava desesperada por fazê-lo
entender que não podia abrir mão do resto do mundo por ele.
Mas que ainda assim, ela o queria em sua vida.
Ela queria escolhê-lo, mas não abrir mão de sua antiga vida.
Fechou os olhos, tendo a certeza de que o paraíso acabara de ficar mais
sombrio. Abriu a boca tentando pronunciar as palavras que estavam presas em
sua mente, mas fora impedida pelas lágrimas que surgiam como uma furiosa
tempestade.
Randall não suportava vê-la daquela maneira, tão abalada.
Abraçou-a com firmeza, pressionando o corpo ao dela, acalentando-a de
alguma maneira com o que parecia ser um último abraço.
— Beije-me pela última vez, mo ghrá milis — implorou com a voz rouca
e o timbre desolado.
Ela ainda não conseguira reagir, mas sua boca recebeu a dele como que
saudando-o, os lábios concisos e precisos cobriram os seus, arrancando-lhes as
palavras que não fora capaz de pronunciar. Ele beijava-a com severidade, com
desespero. Era um beijo quase atormentado, mas que continha uma entrega tão
afetuosa que ele não pôde conter-se quando se separou dela ligeiramente,
provocando seus lábios.
— Is breá liom duit, mo chailín beag — sussurrou entre seus lábios em
um irlandês arrastado e provocante.
Ela não sabia o significado daquelas palavras, mas quando fitou seus
olhos, encontrou o destemor que precisava para dizer em voz alta com valentia,
o que seu coração bradava em seu íntimo.
— Sim — ela disse de modo abafado e com a respiração descompassada. — Eu
escolheria abrir mão de tudo esta noite, por você, Lennart.
*mo daor —minha querida
*cailín —moça
*mo bheagán — minha pequena
*mo milis —minha doce
*gruaig tine —cabelos de fogo
*mo ghrá milis —meu doce amor
*is breá liom duit , mo chailín beag —eu te amo, minha menina
CAPÍTULO TREZE

"A fogueira de Beltane queimava, fazendo estalar os gravetos de abetos e


carvalhos, com a fumaça soprando pelo bosque, sussurrando entre as árvores,
anunciando o alvorecer que logo derramaria suas cores pelo horizonte.
A noite chegara ao fim, e com o prenúncio dos primeiros raios de sol,
Eileen deu-se conta de que estava sozinha, e de que contemplaria a solidão
amarga daquele dia em diante.
Ele não voltaria, nem se ela pudesse trocar a eternidade para vê-lo uma
vez mais.
Estava arruinada para sempre."

— Tudo está dentro dos conformes, por fim. — A voz grave de Ronan
ressoava pelo cálido alvorecer, atingindo Randall que estava debruçado no
parapeito observando o sol beijar o oceano.
Ele assentiu com um maneio ligeiro de cabeça, tentando não se mostrar
tão empertigado quanto realmente estava, apesar de Ronan não colaborar com
seu bom humor.
Os acontecimentos da noite anterior pairavam em sua mente.
Pôs uma das mãos rente ao bolso externo de seu fraque de cor escura,
sabendo que a mecha de cabelos rubros estava ali, presa em uma fita verde de
cetim.
Haviam passado boa parte da noite entregues nos braços um do outro, até
que a primeira sentença estupidamente sincera saiu de seus lábios, quando Rose
insistiu em permanecer ali.
— É loucura. Não pode estar sendo franca — dissera com certa ausência
de polidez.
Ela ergueu o queixo da maneira mais aristocrata que já vira em sua vida,
e encarou-o como se desafiasse seus demônios a um duelo.
— Estou sendo verdadeiramente genuína em minhas palavras. — Tomou
uma de suas mãos, entrelaçando os dedos alongados e finos aos seus calejados e
grosseiros.
Aquela situação era tão absurda que sentiu que poderia rir naquele
mesmo instante, só não o fez para não magoá-la com tamanho escárnio, e
certamente se fizesse, seria por puro desespero ao ver a verdade daquelas
palavras esboçadas em seu olhar.
Um olhar que tiraria qualquer homem do fundo do poço, lugar cujo ele
mesmo estava naquele momento.
Nada que pudesse pensar poderia ser uma fuga sensata.
Não poderia simplesmente roubá-la para si. Ela não era uma mercadoria
que poderia ser surrupiada. Rose tinha uma família que ansiava por recebê-la de
volta, tinha um lar afortunado e um futuro ainda mais privilegiado. Mesmo que
tentasse se convencer de que poderiam construir algo juntos, seria em vão.
Sabia como ela seria rechaçada de seu meio social, apenas por aceitá-lo
ao seu lado. Ele sujaria sua reputação e macularia para sempre seu bom nome.
Jamais a sujeitaria a uma humilhação de dimensões tão cruéis.
Apertou os nós de seus dedos, pensando em como foi fácil se afeiçoar a
ela, mesmo sendo tão teimosa. Sorriu em silêncio ao observá-la sob o luar.
Nunca poderia imaginar que sentiria algo tão intenso por uma senhorita
tão distinta. Lembrou-se com nostalgia o momento em que a vira, e em como
tudo havia sido tão errado.
Um dia lhe perguntariam como se conheceram, e o que ela diria? Que ele
tentou raptá-la e ela revidou com uma adaga em suas entranhas!
— Eu gosto do seu sorriso — ela disse, tocando-lhe lábios levemente.
— Estava pensando em quando a vi pela primeira vez — declarou como
se tentasse se justificar. — Se um dia fosse descrever aquela cena em um de seus
manuscritos, como o faria? — inquiriu com curiosidade, mas temia sua resposta.
Ela pôs o indicador a tamborilar pelos lábios selados, pensativa.
Aquele era o momento de dizer-lhe a verdade, concluiu ela com um
presságio apertando o peito.
— Você acredita em magia, Lennart? — murmurou seu nome como que
degustando de cada som que o compunha.
Um sorriso pintou seus lábios imediatamente, quando deu-se conta de
que ela repetira a pergunta que ele lhe fizera outrora. Randall anuiu com grande
afinco esperando que ela prosseguisse.
Mas Rose não disse mais nada.
Apenas fitava-o em silêncio de uma forma que o assombraria até o fim
de seus dias. Ela não precisava de palavras ditas em voz alta para fazê-lo crer no
inacreditável. Afinal, era um maldito marujo que já vira coisas que o julgariam
louco se as revelasse.
Jamais saberia o motivo, mas tinha certeza de que seu destino fora
meticulosamente traçado com o dela por uma razão.
Uma razão tão desconhecida quanto o universo.
Rose aproximou-se lentamente reivindicando seus lábios, seu ardor, seu
espírito. Embora sua alma estivesse entregue àquela teimosa inglesa de cabelos
cor de fogo, não poderia ceder. Não podia permitir-se beijá-la outra vez, pois
sabia que não a soltaria jamais se assim o fizesse.
Ela pareceu notar sua relutância quando afastou-se devagar, sem desviar
de seus olhos.
— Você não quer beijar-me — ela disse amargamente, mas um riso cruel
e perturbado surgiu no canto de sua boca.
Ele não disse nada. Não poderia. Mas o aperto em sua mão era um gesto
desesperado de agarrar-se a ela. Ela tentou ocultar os olhos marejados, mas ele
apanhou uma de suas lágrimas nas pontas dos dedos. Rose fechou os olhos e
demorou-se com as pálpebras fechadas, como se temesse despertar de um
pesadelo.
— Você não sentiu nada quando tomou-me em seus braços? Todas as
vezes que beijou-me... — perguntou, tentando miseravelmente manter-se
composta.
— Ifreann! — praguejou, irritado consigo mesmo por não ser capaz de
fazê-la compreender o quão equivocada ela estava. — Eu senti tudo, mo
bheagán. Minha alma a sentiu. — Beijou delicadamente sua tez, até encontrar o
caminho derradeiro de seus lábios e refrear-se.
Em um ímpeto, ela tomou seu rosto com ambas as mãos, obrigando-o a
encará-la impiedosamente. Randall podia ver a fúria no mar dos seus olhos e
admirou-se ao notar que mesmo em sua ira, ainda era bela como uma verdadeira
fada que enfeitiça homens de corações vulneráveis.
— Então diga-me qual a razão para estar fugindo do meu toque agora?
— Sua voz era instável bem como a aparência conturbada.
Não podia perder o controle, não naquele instante. Mas parecia tão fácil
deixar-se engodar pelo desejo de trazê-la ao seu encontro e perder-se entre seus
lábios odiavelmente convidativos. Segurou-a quase de modo bruto ao pressionar-
se sobre ela, deixando-a sem fôlego com tal ato indômito. Ele fechou os olhos
enquanto sentia sua respiração úmida e descompassada. Deveria pôr um limite
aquele jogo arruinado de sedução.
Pousou os lábios sobre os dela de maneira suave, fazendo-a arfar apenas
com o prelúdio do que ela esperava que viria a seguir. Entreabriu os lábios,
recebendo-o de modo lento e gradual, mas antes que pudesse alcançá-lo da
maneira que desejara, ele afastou-se outra vez com uma tristeza invadindo as
sombras de seu olhar.
— Eu preciso de mais — sussurrou ela com ambas as mãos ao redor de
seu pescoço.
Aquelas palavras que pareciam tão inofensivas, atingiram algum ponto
ferido de seu orgulho quando Randall subitamente abandonou seu abraço.
Ela precisava de mais, mas não era mais de seus beijos. Estava decidido a
dar-lhe a oportunidade de ter tudo o que merecia, e Rose merecia ganhar o
mundo. Mas não seria ele quem o daria.
— Não posso, mo milis Rose. — Suspirou pesadamente antes de
prosseguir. — Nada que eu pudesse lhe dar seria o suficiente.
— Você está...
— Shh... — Pôs um dedo sobre seus lábios, exigindo que ela se calasse.
— Você nunca se habituaria ao meu modo de viver, e eu jamais
permitiria que se rebaixasse tentando. — Ainda tinha os dedos pressionados em
sua pequenina boca. — Eu não posso lhe oferecer o que você deve receber. E
enquanto eu não puder, não sou digno, mo bheagán.— Ela tentou protestar
novamente, mas ele a interrompeu com um imponente erguer de voz. — Quando
eu estiver em posição de tê-la, eu a perseguirei por toda a Irlanda e Inglaterra, se
for preciso. — Sorriu tristemente. — Mas não me espere, milady. Isso não é uma
promessa, talvez esse dia nunca chegue. — Manteve-se firme temendo iniciar o
incêndio que via em seus olhos.
Ela queria dizer o quão errado ele estava, e que suas conclusões
precipitadas a seu respeito subestimavam seus sentimentos. Mas antes que
pudesse sequer tentar persuadi-lo, ele a impediu.
— Randall, eu te...
— Não. — Negava com a cabeça com as expressões sôfregas e olhos apertados
que temiam fitá-la. — Não diga, gruaig tine.
— Por quê? — Seus olhos tormentuosos perscrutavam-no.
— Porque não seria o bastante. — Levantou-se de maneira brusca,
deixando-a tão transtornada que não fora capaz de reiterar nenhum de seus
protestos em voz alta. — Não é o bastante.
Dito isso ele deu-lhe as costas, ainda ouvindo o eco dos xingamentos que
não tardaram a aparecer. Rose estava deveras tão furiosa quanto decepcionada e
faria questão de mostrar-lhe o quão insatisfeita estava.
Não é o bastante.
Aquelas palavras destruíram qualquer migalha de esperança que ainda
pudesse existir dentro dela, e ele jamais saberia o quanto a havia machucado.
— Finalmente chegamos — Ronan anunciou enquanto atracavam no cais
de alvenaria apinhado de passageiros ansiosos por chegarem aos seus destinos.
— Não demore muito, Lennart, temos pouco tempo até a noite de Litha.
— A tia dela mora nesta ilha. Não será difícil encontrar sua propriedade
— declarou com a testa vincada.
Ouviu um barulho tumultuoso vindo do porto, tentou apurar a visão com
uma mão sombreando os olhos, mas antes que pudesse prestar atenção ao
desenrolar da balbúrdia, Rose surgiu diante dele com uma carranca tão
empertigada que assustaria até o Barba-Azul.
Ela cruzou os braços, e permaneceu tão calada que ele decidiu tentar
atenuar seu estado de espírito.
— Não é tão ruim, Rose...
— Vá para o inferno, Randall! — exaltou-se sem qualquer polimento ou
censura.
Certamente ela era o diabo de saias! Pensou ele enquanto sorria
tristemente, pensando no quanto ela lhe faria falta, apesar do estado de humor
constantemente irritadiço. Decidiu não retrucá-la, afinal, deveria estar insatisfeita
por ser contrariada e estar indo embora contra a própria vontade.
Ele sabia o quanto ela o afetava. Contudo, jamais se atreveria a pensar
que ela lhe retribuiria da mesma forma.
Não estavam vivendo uma história de amor. Apesar de guardar em seu
íntimo a certeza de seus sentimentos, sabia que não poderiam levar aquele
disparate adiante.
Para ser franco, ele estava negligenciando o que sentia. Tentava enganar
o próprio coração que clamava por ela. Mas Randall era um homem feito que
não choraria por uma mulher. Ainda mais uma inglesa deslumbrada por seus
beijos.
Era duro admitir, mas ela era apenas uma jovem senhorita em busca de
aventuras e um pouco de lasciva. Não soube ao certo quando passou a ter
conceitos tão contraditórios, no entanto, não podia fraquejar naquele momento.
Pôs as mãos sobre as têmporas, confuso demais para tentar compreender
o que estava acontecendo.
— Do mhíle deamhain! — praguejou em voz alta lembrando-se das juras
de amor que havia lhe dito na noite anterior.
Era mesmo um idiota por afeiçoar-se a ela de modo tão descomedido.
Fora imprudente. Um irlandês imprudente e tolo.
— Dê-me isto. — Ela havia se aproximado e quase sorrateiramente
pegara de modo furtivo a adaga que ele trazia na cintura.
Era ridícula a facilidade que ela tinha de peitá-lo daquela forma, concluiu
ele voltando-se para a jovem tinhosa e determinada que tinha diante de si.
— Já que vou embora, deixe-me seguir meu próprio caminho daqui em
diante. — Virou-se para Ronan, que observava-os, divertindo-se com a cena. —
Onde está o jovem Gael? Preciso despedir-me.
Deixou que ela fizesse a despedida ao seu próprio modo, não querendo
importuná-la quando viu uma lágrima escapar dos olhos azuis ao abraçar o
jovem franzino que chorava compulsivamente em seus braços. Eles trocaram
algumas poucas palavras antes de ela o soltar relutante, e fazer menção de deixar
o navio a passos decididos.
Randall a alcançou rapidamente e a deteve, segurando rudemente seu
braço.
— Não pense que vai sozinha, cailín.— Eu a levarei em segurança. —
Não afrouxou os nós dos dedos em seu braço que tentava desvencilhar de seu
domínio.
— Solte-me, Randall! — ela gritou em alto e bom som. — Eu não o
quero perto de mim! Saia daqui! — Ela debatia-se cada vez mais em seu aperto
de mãos de ferro.
— Fique calada ou eu a levarei em meus ombros como da última vez! —
avisou em tom ameaçador.
Aquilo era torturante demais para qualquer um suportar, pensou Rose
com um nó formando-se em sua garganta. Ela sempre fora forte, e desejava
manter a reputação intacta, mas não podia continuar usando aquela máscara por
muito mais tempo. Randall a havia desestruturado desde a primeira vez que o
vira. Não podia mais fingir que aquela situação não estava partindo-lhe de dentro
para fora. Embora quisesse tentar convencê-lo do quão errado ele estava, não
queria humilhar-se ainda mais, dando novos motivos para ele rir de seus
sentimentos posteriormente. Sabia em seu âmago que ele nutria algo intenso por
ela. Tinha essa confirmação quando ele a desnudava com os olhos inundados de
cobiça e ardor. Era visceral. Mas não o suficiente, como ele bem mencionara.
Rose tinha a respiração laboriosa e encarava-o de modo dolente, os olhos
aquosos entregavam-na, apesar de manter com muito custo a postura altiva e o ar
melindroso. Suas bravatas vazias só demonstravam o quão afetada ela estava por
deixá-lo.
Randall tomou sua lassitude como ofensa à medida que ela desviava os
olhos dos dele. Soltou o braço de pele alva, e arrefeceu ao enxergar o rosto
afogueado que guardaria em suas reminiscências. Observou o nariz fino
cinzelado que dava-lhe uma elegância incomparável, os lábios pequenos e
escarlates que deixaram laivos de fogo sob os seus, as maçãs enrubescidas e
pronunciadas, os olhos azuis mais cinicamente aristocráticos que ele já vira, tão
belos e tempestuosos que levariam qualquer homem à loucura.
Queria memorizar cada traço dela, desde a voz cadenciada até o fio de
cabelo mais ruivo que mesclava-se entre o dourado ouro. Ela estaria
inextricavelmente gravada nele.
Lentamente ele se aproximou, tentado a tocá-la uma vez mais, tomá-la
em seus braços e senti-la.
Ela o havia feito sentir da forma mais cruel que poderia. Tocou-o da
maneira mais devastadora e o cativou com o mais intenso dos encantamentos.
— Fique longe de mim, Randall — ela pediu com a voz falhada do modo
mais diplomático que pôde, entre uma lágrima e outra, que já não era mais capaz
de esconder.
Tudo estava acabado, concluiu ele ao afastar-se abruptamente. Conteve o
desejo de confortá-la e fez um gesto breve e rudimentar para que ela tomasse a
frente e deixasse o navio.
Ela assentiu ligeiramente, ainda limpando o rosto absurdamente
desfigurado em lástima, enquanto tentava se convencer de que ficaria bem.
Repetia para si mesma que Randall era apenas outro homem idiota e egoísta que
infelizmente cruzara seu caminho. Certamente logo o superaria e o expulsaria
dos recônditos de sua mente traiçoeira.
Ninguém seria capaz de derrubá-la, afinal, era Rose, a megera, não era?
Questionou-se em silêncio enquanto reestabelecia sua dignidade ferida. Contudo,
apesar das contingências ela sabia que de modo desbragado, Randall havia
domado a megera que carregava dentro de si, mas aquela era a última vez que
admitiria isso.
Ela balançou a cabeça em negativa, respirando fundo e terminantemente
decidida a ser sensata dali em diante.
Sabia que Randall estava ao seu encalço, ele a acompanharia até a
propriedade de sua tia, mas ao menos usou de bom senso para manter-se a alguns
passos de distância, permitindo-lhe sofrer e irritar-se em paz.
Caminharam por algum tempo entre a multidão barulhenta e apinhada
que encontrava-se ali. O sol derramava-se no horizonte, a brisa morna soprava
embevecida pelo calor e o cheiro pungente do mar ainda os alcançava. De onde
estavam, dava pra ver a encosta íngreme das falésias irlandesas, mas nem toda
aquela magnífica paisagem podia animá-la naquele momento.
Estavam demasiadamente imersos em suas próprias divagações quando
um grupo de homens aproximou-se, aumentando a pilhéria entre marinheiros
carregando caixilhos e mulheres lamentando com seus lenços sendo levados
pelos ares. Randall não percebeu suas expressões rudes e agressivos, e quando
deu-se conta de suas intenções já era tarde demais para agir.
Um deles havia capturado Rose, que gritava e clamava por ajuda,
enquanto outro segurava-o, desferindo-lhe socos e pontapés.
— Finalmente o pegamos, demon! Você vai pagar por ter nos roubado,
bastardo.
Um deles cuspiu no chão enquanto falava ruidosamente.
— Leathcheann de ifreann!— Randall tentava desvencilhar-se em vão.
— Randall! Randall! — Rose chamava por ele desesperadamente
enquanto o sujeito a detinha sem qualquer cortesia.
— Soltem-na! Vocês querem a mim, estou aqui! — falava com
dificuldade, um filete de sangue escorria pelo canto de sua boca devido ao soco
furtivo que o pegara desprevenido.
O homem alto de feições sujas e violentas olhou para ele com escárnio ao
soltar uma deplorável gargalhada.
— Você nos dará seu navio por tudo que nos deve — rugiu com grosseria
e deu ordens para que alguns de seus homens seguissem adiante para tomar a
tripulação desavisada de Randall.
Ele se aproximou de Rose, que tremia e olhava para Randall em sua
agonia, tocou-lhe o rosto com rudeza como que avaliando-a e pressionou seus
lábios com os dedos escuros de fuligem.
— Ela ficará conosco. Como uma recompensa adicional. — Dito isso, o
sujeito a arrastou junto de si, ignorando os protestos da jovem e as ameaças de
Randall.
Com ímpeto e vigor renovado, Randall empurrou o sujeito grandalhão
que o segurava e o acertou com um golpe no estômago, deixando-o para trás.
Correu o mais rápido que seus pés podiam suportar, ainda conseguindo
ouvir a voz de Rose sobrepondo-se aos risos cruéis dos homens que arrastavam-
na ao outro lado do porto, onde um barco de pequeno porte os aguardava.
Ele não iria alcançá-la a tempo, concluiu desolado.
Naquele instante, deu-se conta de que não podia abandonar sua
tripulação, seus amigos de longa data. Não podia traí-los.
Mudou a direção rapidamente rumo ao seu próprio navio, traçando um
plano enquanto os gritos de Rose atormentavam-no com assombro.

*ifreann —inferno
*mo bheagán —minha pequena
*mo milis —minhas doce
*gruaig tine —cabelos de fogo
*do mhíle deamhain —por mil demônios
*cailín —moça
*demon —demônio
*leathcheann de ifreann —idiota dos infernos
CAPÍTULO CATORZE

"O dia mais longo estava chegando ao fim, bem como as esperanças de
Eileen.
Aproximou-se das velhas rochas donas das mais antigas lendas, e
prostrou-se diante do altar de pedras cinzentas cobertas de musgo.
Queria fechar os olhos, permitir-se um pouco de paz antes de juntar-se
aos ancestrais nativos que dançavam ao redor do fogo que olhos comuns não
podiam enxergar.
Aquele lugar era manchado pelo sangue dos sacrifícios que
equilibravam os dois mundos.
E finalmente aquele solo receberia sua penitência."

— Não se atreva a encostar suas mãos imundas em mim! — Rose


ameaçou, enquanto examinava o lugar em que fora lançada sem qualquer
gentileza.
Era uma cabine abarrotada de objetos e quinquilharia, espalhados por
toda a parte, tudo estava uma bagunça. Se antes pensara que o navio de Randall
cheirava a peixe morto, aquele certamente fedia a coisa muito pior. As colunas
de madeira estavam apodrecidas, bem como o convés que rangia com o mínimo
dos movimentos. Observou por cima dos ombros do sujeito grandalhão que
obstruía a porta, procurando por qualquer saída que a tirasse daquele cativeiro.
Antes que pudesse pensar em alguma rota de fuga, o homem agarrou seu
pulso com brusquidão enquanto a fitava com maledicência nos olhos
sombreados de crueldade.
— Solte-me! — atalhou com as pernas erguidas, tentando acertar seu
captor.
Em um golpe de sorte, Rose conseguiu desvencilhar-se das mãos do
sujeito, pegou a adaga que havia furtado de Randall e a manuseou de modo
atabalhoado, segurando a lança o mais firme que pôde e esboçando sua
expressão mais destemida.
— O que acha que vai fazer, moça? — Ele riu de maneira fria, os lábios
repuxando-se de forma repulsiva.
— Vá para o inferno! — gritou ela, ainda empunhando a adaga sem
muita destreza.
Antes que o sujeito pudesse voltar seu ataque contra ela, algumas batidas
na porta somado a uma voz autoritária, impediram-no de levar suas más
intenções adiante.
— Ken, abra essa porta! — A voz masculina o sobressaltou. — Kennedy!
É uma ordem. — Soou baixo e cauteloso, mas tão imponente que Rose sentiu
um tremor invadir seu corpo.
O sujeito grandalhão, que descobriu atender pelo nome de Kennedy,
cedeu ante à ordem do homem que aguardava atrás da porta. Destravou as duas
trancas que os apartavam do resto do navio e abaixou a cabeça respeitosamente.
Rose observou o segundo sujeito adentrar a cabine. Ainda ressabiada e
com a adaga em punho, ela manteve-se tão distante quanto pôde à medida que o
avaliava.
Era um homem quase tão alto quanto Randall, constatou ela ao espreitá-
lo se aproximar lentamente. Rose não conseguiu reparar em nada que não fosse
os olhos azuis que fitavam-na com uma curiosa admiração.
Ele passou uma das mãos sobre os olhos, retirando alguns fios loiros dali.
Caminhou em direção a Rose, que encontrava-se encurralada perante ele
e a lacuna de madeira úmida que respaldava suas costas.
Quando pensou que finalmente usaria sua lâmina para dilacerar o
homem, ele pôs uma mão diante de si, oferecendo-a em um cumprimento um
tanto cordial demais para a situação.
— Henry Phillips Wannell. Capitão Henry a seu dispor, milady. — Suas
palavras eram gentis e dotadas de comiseração.
A jovem ruiva de olhar assombrado não baixaria suas defesas assim tão
rápido. Certamente ele estava dando-lhe uma falsa apresentação de cordialidade,
para depois manipulá-la, pensou Rose sem permitir-se intimidar. Seus olhos
caíram sob a mão estendida, um convite que temia aceitar. Voltou a ater-se
firmemente em suas próprias forças para sobreviver, e o rejeitou de modo
ofensivo.
— Não chegue perto de mim, seu desgraçado! — Apertou ainda mais o
cabo da adaga nas mãos.
— Suponho que seja a dama de linguajar mais ultrajante que eu já vi. —
Seu timbre era acusador, mas seus olhos brilhavam de excitação ao ver a jovem
singular que tinha diante de si.
— Então permaneça onde está, ou minha adaga será ainda mais ultrajante
que minhas palavras — ameaçou entredentes, suas feições vincadas e seu olhar
atento como uma águia.
— Há um fogo em seus olhos, sassenach. Não duvido de suas sentenças.
— Pôs ambas as mãos formalmente atrás das costas, antes de prosseguir. —
Contudo, não terá de as pôr em prática. Não tenho o intento de fazer-lhe mal,
pelo contrário, vou levá-la para casa — declarou, esboçando um breve sorriso de
satisfação.
— O que está dizendo? — A frase saiu arrastada e anunciava o desespero
que tanto tentara ocultar.
— Lady Rose Wymond, não é? — questionou ele, vendo-a assentir. —
Seu nome está por toda parte, milady. Sua família está oferecendo seu peso em
ouro para quem resgatá-la — anunciou com um sorriso ainda mais amplo.
— Vai me levar de volta? — ela inquiriu com uma sobrancelha arqueada
em sinal de dúvida.
— Se me permitir, sassenach... — Estendeu a mão novamente.
Havia uma possibilidade. Apenas uma. E ela deveria aceitá-la de bom
grado, mesmo que...
Pôs a mão trêmula sobre a dele, e o viu a levar de encontro aos lábios de
forma lisonjeira.
Mesmo que seu coração ainda esperasse por Randall, sabia que não
poderia negligenciar a nova chance que a vida lhe dera.
Ele sorriu após soltá-la e Rose tentou retribuir o caloroso gesto com um
sorriso que não aqueceu seus olhos de anil.
— Deve estar exausta — Henry disse enquanto fazia um gesto para que
ela o seguisse. — Estava com o salafrário do Randall há quanto tempo? — Sua
voz guardava um antigo rancor ao mencionar o nome do corsário.
— Há algumas semanas. — Tentou não evocar o homem de olhos negros
e beijos abrasadores em sua memória.
— Aqueles malditos selvagens! — protestou ele com a fúria inflamando
sua voz imperiosa. — Tem sorte de sair ilesa das mãos dele. Randall é um mau
caráter miserável.
— Ele não me fez mal. De modo algum faria algo para me machucar —
retrucou ela com mais ímpeto do que gostaria.
— Ingenuidade não lhe cai bem, milady. — Diminuiu os passos até que
parou e voltou-se para ela com uma onda renovada de polidez em seus tratos.
Rose não teve tempo o bastante para replicá-lo como bem desejara,
contudo, esquecera-se das palavras torpes quando o viu tirar uma pequena
folhagem verde do bolso de seu colete de pedraria.
— Shamrock. — Levou uma das mãos até o cabelo de Rose, que não
tentou o deter, apesar do olhar receoso que lançou sobre ele. — Você teve sorte
de chegar até mim sem mais infortúnios. E este símbolo... — Apontou as três
pétalas do trevo. — Ele representa essa sorte. — Piscou para ela antes de pôr o
trevo atrás de sua orelha.
Ela sorriu, mas não de modo genuíno. Não do modo que Randall a fizera
sorrir outrora. Contudo, teria de bastar.
Estava decepcionada o suficiente para conformar-se. Não poderia dar-se
ao luxo de esperar que seu altruísta cavalheiro fosse lhe resgatar. Afinal, Lennart
Randall não era um cavalheiro.

— Você está terrível, Lennart. — Ronan olhou para ele em seu estado
lastimável.
Randall tinha um corte profundo do lado esquerdo do rosto, mais
algumas escoriações que seguiam a linha de seu pescoço até o antebraço, onde a
roupa havia sido deixada em retalhos, revelando as fendas profundas dos
ferimentos feitos à espada.
— Nossa sorte foi que o jovem Gael os avistou antes que chegassem até
nós. — Ronan limpou um filete de sangue que escorria por sua testa.
Apesar da vantagem que tiveram por não terem sido pegos
desprevenidos, ainda assim o embate para que pudessem proteger a tripulação, e
o comando do próprio navio, havia sido violento. Randall olhou para o
horizonte, o alívio fazendo-se presente em seu olhar ao ter sido capaz de chegar
a tempo. Estavam todos relativamente bem, apesar dos resmungos de Ronan e
alguns outros marinheiros que tiveram algumas partes de suas peles rasgadas.
Um casal de melros voava graciosamente pelos céus. Randall os
observava atentamente, seu semblante era inóspito e suas expressões estavam
crispadas como se pudesse prever um augúrio que não lhe traria nenhum póstero
favorável ou promissor.
Precedeu-lhe uma sensação de perda, antes mesmo que pudesse dar-se
conta da guinada que seus planos concomitantemente sofreram.
A luz infiltrou-se pelos postigos do navio, o sol anunciando o dia mais
longo do ano que certamente chegaria ao seu fim, sem que Randall atingisse seus
objetivos.
— Faeries. — Ronan se aproximou com a voz tornando-se um arrulhar.
— Espero que não nos tragam má sorte hoje! — Sorriu calorosamente com ar
magnânimo.
Laconicamente, Randall sustentou seu olhar, mas não seu sorriso. Ronan
notou o assomo de apreensão no rosto de expressões severas do amigo.
Supersticioso como era, levou uma das mãos ao pescoço e tocou freneticamente
o colar de contas que jurava trazer-lhe boa sorte.
— Eu não posso, Ronan. — Seus lábios eram uma linha rígida de tensão.
O senhor mais velho andou de um lado para o outro, com as contas de
pérolas pressionadas entre os dedos e uma silenciosa prece para que os ouvidos o
estivessem traindo.
Não podia crer que Lennart estava abandonando tudo o que doravante
conquistara, por uma mulher. Uma inglesa que não sabia nada a respeito dele ou
da vida que levava.
— Lennart, não temos tempo. Você sabe que não podemos mudar nosso
destino esta noite. — Suas palavras eram piores que qualquer lança que já havia
o ferido.
— Eu não posso deixá-la, Ronan — declarou, ainda elevando os olhos
aos dele.
Sabia que aos ouvidos do amigo seus argumentos e suas razões seriam
improfícuas. Contudo, apesar de não ser compreendido, não podia negar seu
truísmo, sua verdade incontestável.
— Você não terá outra chance, Lennart. Depois que o sol se pôr será
tarde. — Seu tom era uma represália afiada que atingia-o de modo cruel.
Ele também sabia disso. Não poderia retroceder, nem atrasar o tempo. A
ilha ficava a algumas horas de onde estavam. Velejaram por semanas com um
mapa puído, uma bússola trincada e uma fé inabalável de que encontrariam o
inimaginável.
— O que está fazendo não é algo valoroso. Lennart. — Arrefeceu o
timbre outrora ruidoso demais.
Definitivamente ele estava equivocado, concerniu Randall ao medir tais
valores na balança pouco justa de seu coração.
— Vocês podem seguir o destino que havíamos traçado. — Soou
estritamente formal. — Eu vou partir, Ronan. Não tomarei parte de nada. Não há
ouro suficiente para fazer-me trair meus próprios conceitos — anunciou
peremptório.
— Conceitos? — rechaçou o velho à guisa de um riso escarnecedor. —
Você nunca foi um homem de conceitos tolos, Lennart. — Não iria ceder as
declarações infundadas dele.
— Presumo que tornei-me um desses. — Deu de ombros e virou-se com
a sensação de que um peso lhe saíra das costas.
Ronan suspirou longamente, mostrando-se exausto de tentar convencê-lo
em vão. Podia ver a determinação iluminar os olhos negros de Randall.
Condescendendo à sua maneira pouco afável, retirou as pérolas que levava
consigo ao pescoço e colocou-as ao redor da cabeça de Randall, depositando
toda a sua credulidade irrestrita naquele conjunto de contas.
— Que lhe dê a proteção que necessita em sua jornada. — Suas
sentenças eram como um derramar de bênçãos.
Não precisou dizer nada para mostrar o quão grato e emocionado ficara,
contudo, ao deixar a embarcação, Randall o abraçou como nunca antes havia
feito. E fora recebido com o mesmo formidável sentimento do apreço que
nutriam um pelo outro.
Quando deixou os braços do velho amigo que tinha como um pai, não
olhou para trás. Não podia mensurar o quão insano e irresponsável eram suas
atitudes, no entanto, algo em seu cerne pulsava como um vívido sinal de que
seguia na direção certa.

O crepúsculo deitava-se lentamente no horizonte marfim, enquanto Rose


estava sentada em uma pequena poltrona com um punhado de sálvia sobre uma
das mãos, que havia arranhado em suas tentativas frustradas de fuga.
— Faisão, tomato galette, azeite, um pouco de balsâmico... — Henry se
aproximara com um apetitoso prato de estanho nas mãos, oferecendo-lhe.
Rose sentiu o aroma convidativo do alecrim que perfumava a refeição e
sorriu satisfeita por poder apreciar aqueles sabores. O capitão salpicou uma
pequena quantia de sal de guérande e fez um gesto amistoso para que ela
provasse a iguaria.
Ela observou o punhado de açafrões dourados ao lado do prato,
adornando-o com meticulosa graciosidade. Levou a colher à boca com certa
relutância, mas quase não pôde agir como uma dama ao degustar de uma
refeição tão saborosa.
— Presumo que tenha lhe sido aprazível a refeição que preparei. — Ele
sorriu, um gesto que estava tornando-se mais constante do que gostaria.
— Oh! — Ela pôs uma das mãos sobre os lábios. — Certamente é a
melhor coisa que já comi! — Continuou levando colheradas à boca antes de
prosseguir. — Foi mesmo você que preparou isso tudo? — Uniu as sobrancelhas
com uma nítida expressão de dúvida a respeito dos dotes culinários daquele
homem que em nada se assemelhava a um cozinheiro.
— Longe de mim jactar-me, milady. — Retirou um lenço absurdamente
branco do bolso posterior de seu fraque, e deu-lhe para que pudesse limpar os
dedos sujos do ensopado. — No entanto, estando a maior parte do tempo com
marinheiros que mal sabem a diferença de cada talher... bem, tive que aprender a
fazer certas coisas. E cozinhar foi uma delas. — Deu de ombros de forma trivial.
— Afinal, era isso ou morreríamos de fome. — Riu divertidamente.
— Sinto-me no dever de agradecê-lo e elogiá-lo na mesma proporção.
Realmente ficou esplêndido! — Afastou o prato e limpou as mãos polidamente.
— Foi um prazer, sassenach. — Com extremo requinte ele fez uma
cordial reverência.
— Você não é apenas um marinheiro... — Esboçou em voz alta o
pensamento inquietante e especulativo.
— Definitivamente, não. — Ele se aproximou de modo cauteloso, com o
sorriso contínuo brincando nos lábios de um intenso vermelho.
Ela pôs o lenço brilhante de seda em uma pequena mesa que tinha diante
de si, nivelou os olhos aos dele, encontrando uma intrigante mescla em tons
azuis.
— Não pude deixar de notar a maneira que pronuncia as palavras. Apesar
de algumas expressões escocesas, fala muito bem o inglês. — Fitou-o com
curiosidade.
— Fui criado na Inglaterra para ser um lorde. Fiz parte da aristocracia
por algum tempo, até que... — Olhou para longe, como se precisasse de uma
pausa antes de prosseguir. — Decidi ir embora — declarou de modo suave,
juntamente com um sorriso no canto dos lábios, como se tudo aquilo não
passasse de amenidades.
— Você fugiu? — ela inquiriu sem nenhum pudor, com um timbre
acusador.
Como se nada pudesse lhe ofender ou furtar sua paz, Henry negou com
um ligeiro, mas decidido, maneio de cabeça.
— Fugir seria covardia. — Levantou-se rapidamente e percorreu pelo
cômodo em busca de uma taça de licor. — Eu apenas estava exausto das boas
maneiras. — Piscou para ela, quase maliciosamente enquanto pegava uma
garrafa de bebida e retornava para o lado dela.
— Mas... — Ela queria lhe indagar sobre tantas coisas que mal podia
refrear-se. — E sua família? A descendência, sua propriedade, bens e todo o
escândalo! — Antes que pudesse continuar lançando as palavras de modo afoito,
ele pôs um dedo levemente sobre seus lábios, silenciando-a.
— Escândalo seria abrir mão da própria vida por meras conveniências
tolas. — Suas sentenças eram como uma canção de liberdade aos ouvidos dela,
que maravilhava-se ao observá-lo. — Não será capaz de compreender-me, no
entanto...
Foi a vez dela de interrompê-lo. E fez exatamente isso. Os lábios à guisa
de um sorriso.
— O compreendo! Perfeitamente! — anunciou com tamanha eloquência.
— Sou portadora de uma alma tão livre quanto a sua — afirmou convicta.
Ele bebeu alguns goles do licor cor de âmbar que girava no recipiente de
vidro em suas mãos.
— Ouvi falar de suas imprudências, Lady Rose. — Seus lábios traziam
um sorriso que conotava sua aprovação diante do incontestável ultraje que a
dama à sua frente cometera.
— Não é imprudência, sequer insanidade. É poesia. — Ela mirou os céus
como se pudesse dialogar com a lua que os observava. — Há espíritos que
emanam poesia, e há almas que são a poesia. Tais almas não podem ser
condenadas à mesmice. — Ela carregava o peso das palavras nos olhos da cor do
céu.
— Você é uma dessas almas? — ele indagou com uma renovada onda de
admiração por aquela curiosa criatura dona de um vasto vocabulário.
Ela anuiu silenciosamente, ainda fitando o infinito e sua profusão de
cores.
— Creio que seja preciso uma corja de senhores para obrigá-la e
condená-la a uma vida que não queira viver... A julgar pela forma que empunha
corajosamente essa adaga. — Sorriu amistosamente, quebrando o silêncio que os
envolvia.
— Não vamos falar do meu temperamento. Não quando sou raptada e
arrastada para um navio cheio de homens truculentos — atalhou, um tanto ácida
demais.
— Eu não sou um desses homens, ou sou? — inquiriu com
desprendimento.
Ela não disse nada, apenas negou com a cabeça e tentou ocultar um
sorriso que não passou despercebido por ele.
Era uma doce menina, pensou Henry ao encarar a vivacidade daquele
olhar da cor do oceano.
Uma vez mais o silêncio reinou sobre eles, e o capitão levantou-se,
oferecendo-lhe o braço para conduzi-la.
— Voltaremos para o porto ainda esta noite. E de lá seguiremos para a
propriedade da sua tia. — Ele pareceu sério e um tanto desconcertado quando
tentava sustentar o olhar ressabiado dela.
— Sabe onde mora minha tia? — Aquilo parecia tão ilógico que não
pôde deixar de indagar.
— Sim. Eu e toda a Irlanda. Talvez parte da Escócia também. — Riu ao
notar a expressão indignada dela. — Soube que seus pais estão na propriedade
de sua tia, empenhados por encontrá-la. — A seriedade cobriu seu timbre
descontraído novamente.
— Meus pais? Oh! — Abafou um suspiro com uma das mãos.
— Fique tranquila, sassenach. Logo estará com eles. Eu mesmo a levarei
pessoalmente, é uma promessa — falou solenemente.
Ela assentiu sem saber o que sentia naquele momento.
Voltaria para casa, deveria estar feliz. Contudo, seu coração não guardava
a calmaria e o aconchego que deveria ao saber que logo retornaria ao lar.
Resolveu ignorar o aperto que sufocava-lhe a cada respiração, e
decididamente faria o que lhe era devido dali pra frente... Se fosse capaz de fazê-
lo.

*sassenach —inglesa
*shamrock —trevo
*faeries —fadas
CAPÍTULO QUINZE

"As preces escapavam de seus lábios, enquanto as mãos iam de encontro


ao punhal que trazia na bainha.
— Tudo que for desejado, deveras tornar-se-á realidade. — Sua voz era
apenas um murmúrio esquecido ao som do vento.
Quando sentiu a lâmina fria beijar a pele nua e vulnerável, um tremor
percorreu-lhe o corpo, ao mesmo tempo que as chamas tornavam-se ainda mais
flamejantes.
Não iria retroceder.
Não se permitiria fraquejar.
— Ryan...
Pronunciou o nome cujo atendia ao desejo mais íntimo de seu cerne."

Algumas horas mais tarde, Randall retornava novamente ao porto. Teria


de conseguir um barco pequeno, mas de rápido alcance, para que pudesse ir atrás
de Rose.
Muitos navios atracavam nas pranchas de embarque, enquanto vários
outros zarpavam em seus destinos incertos.
Uma jiga irlandesa ressoava pelas docas apinhadas de pessoas, que
caminhavam apressadas ou aguardavam ansiosas algum caloroso reencontro.
Aquilo seria mais difícil do que pensara, concluiu Randall vasculhando o
lugar mais propício para que pudesse surrupiar alguma embarcação. Contudo,
ainda assim teria uma longa jornada pela frente, já que não sabia nem mesmo
para qual direção eles a tinham levado.
— Um navio de velas altas. — Tentava obter alguma informação com um
velho senhor que carregava um caixote de bebidas sobre os ombros.
O velho olhou em volta indicando o óbvio. Haviam vários navios ali. Ele
deu de ombros e ajeitou a carga em seus braços de maneira descuidada.
— Levavam uma moça ruiva... — emendou Randall, fornecendo-lhe
mais informações. — Cailín dearg — repetiu em seu irlandês arrastado.
O homem grisalho coçou a cabeça parcialmente calva, e olhou em volta
antes de negar brevemente com um gesto brusco.
Randall agradeceu-lhe cordialmente e passou a caminhar sem rumo,
pensando por onde começaria sua busca, sem perceber que a alguns passos dali
uma jovem de cabelos ruivos tagarelava animadamente como se nada no mundo
pudesse lhe deter.
— Ainda não acredito que o senhor fez aquilo! Descer pela margem
daquela forma, apenas para apanhar conchas! — Ela sorria enquanto admirava o
pequeno punhado que tinha nas mãos.
— Uma moça não pode vir de tão longe e ir embora sem nunca ter visto
uma concha de perto. — Ele deu de ombros, arrancando-lhe mais um riso dos
lábios.
— Você é um homem muito gentil, capitão — disse de modo afável.
Definitivamente ela era uma garota de sorte, pensou Rose enquanto
caminhavam lentamente tentando desviar do fluxo de pessoas que vinham na
mesma direção. Rose havia sido afortunada por encontrar dois homens bons em
seu caminho. Primeiro Randall, que ofereceu-lhe muito mais que hospitalidade.
E então Henry, que mostrava ser um homem honrado e terno em seus tratos.
— Henry — ele disse, a observando atentamente. — Me chame de
Henry, milady. — Mais um sorriso carismático brincou em seus lábios ao vê-la
aquiescer silenciosamente.
Henry descobriu que a forma que ela corava quando sorria timidamente
era adorável, e Randall, por sua vez, percebeu que tê-la esboçando sorrisos e
risos afetados para outro homem era terrível o bastante para fazê-lo querer bater
em alguma coisa, e se aquele maldito capitão não saísse de seu caminho, ele
seria seu alvo.
Não demorou muito para que Randall vislumbrasse o cabelo ruivo
brilhando na multidão. Apesar de ter muitas ruivas na Irlanda, nenhuma tinha o
dourado ouro beijando as chamas acobreadas como os cabelos de Rose. Pensou
em abordá-los em um sobressalto, mas seria tolo se assim o fizesse, já que ela
estava perto demais para servir-lhe facilmente como refém. Assim que botou os
olhos sobre eles, a fúria o invadiu na mesma medida que a confusão, ao vê-los
entretidos em uma animada conversa enquanto caminhavam lado a lado.
Rose não tinha cordas prendendo-lhe os pulsos, nem uma mordaça sobre
a boca, tampouco parecia incomodada ou desconfortável.
Aquilo era extremamente estranho. Certamente havia algo errado,
concluiu ele à medida que esgueirava-se cautelosamente, mantendo-os presos
sob seu olhar atento, aguardando irrequieto um momento propício para detê-los.
— Meus olhos jamais irão habituar-se a esta visão. — Rose fitava com
formidável deleite o horizonte.
As docas aos poucos davam lugar à requintadas propriedades. Não
tinham o luxo das mansões londrinas, contudo, isso não diminuía em nada a
elegância das construções que graciosamente eram rodeadas pela Mãe Natureza.
Esse era o diferencial daquele lugar. Por mais que tivesse intervenções no
ambiente natural, ainda assim, era preservada a sua essência.
O ar era tão fresco que parecia que o orvalho beijava-lhe a face, e a brisa
era tão morna que parecia aconchegar-lhe de alguma forma. As pessoas sorriam
umas para as outras sem tantas formalidades, e as crianças corriam livremente
sem temer qualquer reprimenda.
— Deveria esperar para conhecer a Escócia. Temos as mais calorosas
recepções! — falou em tom divertido.
— Você fala como se fosse de fato um escocês, e não um inglês. — Deu
de ombros, indiferente, mas seu olhar pousava curioso sobre ele.
— No auge dos meus 30 anos posso dizer que passei mais tempo na
Escócia que na Inglaterra. — Piscou para ela com um sorriso emoldurando os
lábios. — Um homem se acostuma com o lugar em que reside — declarou,
convicto.
— Eu poderia me acostumar com isso tudo... — Ela girou nos
calcanhares, maravilhada com a tranquilidade que aquele povoado mantinha
naquele precioso recinto. — Uma mulher também deveria poder ter a chance de
se habituar ao lugar que quiser.
— Tenho certeza de que você se adaptaria facilmente a esta vida. Já
disseram que há fogo em seus olhos, caileag?
Por um momento Rose pensou que tal fogo havia percorrido por todo seu
rosto, já que sentia as bochechas arderem em constrangimento, devido ao que
imaginou ser um elogio.
— Um inglês que pensa ser escocês, já me disse isso antes. — Ela riu
com desprendimento, da forma que costumava fazer quando sentia-se livre para
ser quem era.
Aquilo era demais para que Randall pudesse suportar. Ela estava rindo de
modo afetado, com a mão sobre a boca abafando o som delicado que ressoava
através deles, indo de encontro ao seu coração como uma punhalada.
Caminhava logo atrás deles de modo sorrateiro, afinal, era um ladrão
experiente que raramente cometia algum erro para ser apanhado ou flagrado.
Passou boa parte da vida saqueando e pilhando os restos dos
desafortunados que cruzavam seu destino, ganhou algumas moedas em troca de
favores ainda mais ilícitos, não seria difícil seguir uma jovem que não segurava a
língua dentro da boca, e seu companheiro que miseravelmente flertava com ela
munido de sorrisos e cortesias tolas.
Não era difícil, mas o ódio que aquela cena acendia em Randall tornava-
o quase um abestalhado parco. Topou com um galho baixo que ameaçou deixar
marcas e arranhões em sua testa, aproveitando a sombra de uma grandiosa
nogueira para ocultar-se da vista de Rose e o capitão idiota.
—Mallach! — atalhou em voz alta ao ver que estavam se afastando.
Passou o dorso da mão rispidamente pela testa, limpando um risco de
sangue que resultara de sua imprudência e ira incontrolável. Praguejou um pouco
mais, chutou uma pedra para longe e prosseguiu em sua missão antes que fosse
traído por sua própria falta de sensatez.
— Veja! — Henry ergueu a voz e o olhar para o alto, seguindo um
pássaro que passava acima de sua cabeça. — Um colibri — anunciou ao
observar atentamente a ave em seu voo.
Como se soubesse que estava sendo observado e realmente quisesse se
exibir, o colibri de plumagem escura pousou no topo de uma árvore, dando
tempo o bastante para que Henry pusesse uma das mãos sobre os ombros de
Rose, e a conduzisse para mirar o pássaro que ostentava seu brilho ao sol.
— É esplêndido! — Ela sorria, desejando mais uma vez ter um pincel e
uma tela para eternizá-lo em sua miscelânea de cores.
— É lindo, sassenach. — Ele fitava seus lábios que sorriam doce e
ingenuamente.
Henry não queria admitir, mas a jovem era portadora de uma beleza que
levaria qualquer homem a cair em seu laço de tentação.
Mas, não era desta forma que ele a enxergava. Ela tinha um brilho jovial
no olhar que atiçava o fogo existente neles, e que também o lembrava que ela era
apenas uma menina.
Infelizmente ela lembrava-lhe uma irmã caçula, e isso era odioso, pois
ele tinha ciência de que já estava na idade de criar raízes e encontrar uma boa
mulher para ser sua esposa.
Deus sabe como um homem precisa de uma mulher para acompanhar-lhe
no derradeiro incerto que é a vida, pensou com angústia no peito.
Afinal, Rose seria perfeita.
Ela tinha tudo o que ele procurava em uma esposa, e ainda ia além de
suas expectativas. Era corajosa, demonstrava valentia e ainda tinha doçura no
olhar ardente.
Um homem certamente precisava de tal doçura em sua vida. Entretanto,
ele não havia sentido nada mais que genuíno afeto.
Respirou profundamente levando uma prece silenciosa aos céus, para que
um dia encontrasse a mulher que fizesse seu coração se aquecer no peito.
Antes que pudesse dizer a ela que deviam se apressar, ou não chegariam
à propriedade da tia antes do próximo alvorecer, sentiu uma lâmina fria na base
vulnerável do pescoço que o fez engolir em seco todas as palavras que não fora
capaz de verbalizar.
— Fique parado, seu idiota dos infernos, ou eu juro que enfiarei essa
lâmina por sua garganta! — Randall ameaçou, com o braço agarrando
severamente o capitão que permanecia em silêncio sem sequer mover-se.
— Oh! Randall! — Rose voltou a atenção a ambos os homens,
assombrada com o que viu.
— Vá para trás, Rose. Eu não vou deixar que ele lhe faça mal. Este
bastardo não encostará um dedo em você novamente! — Sua voz era fria como o
ferro afiado que tinha nas mãos.
— Não, Randall! Solte-o! — Não sabia como explicar-lhe que o capitão
não era ruim como pensavam outrora, mas tinha de impedir aquele disparate.
Ela olhou Henry que estava vermelho como uma pimenta, e Randall que
parecia que iria sofrer de um feroz ataque apoplético, tamanho era seu
desequilíbrio.
Se aproximou lentamente e tentou tocar a mão de Randall, mas ele deu
um passo para trás e a encarou como se quisesse chacoalhá-la pelos ombros.
— Você está louca, cailín? — Pressionou a lâmina ainda mais forte no
pescoço de Henry.
— Ele não me fez mal algum! Estava ajudando-me a...
Ele a interrompeu de modo brusco, como um irlandês bronco e selvagem.
Um riso zombeteiro saiu cruelmente de seus lábios, e ele a observou com
incredulidade no olhar frio.
— A senhorita perdeu o juízo de vez? — indagou, ríspido. — Você foi
arrastada e levada contra a sua vontade para o navio deste... — Cuspiu no chão
quase teatralmente, não encontrando um xingamento ruim o suficiente para
defini-lo.
— Randall, ouça-me, por favor! — ela pediu, aproximando-se uma vez
mais, ainda mais devagar. — Quando levaram-me ao navio, ele viu que havia
cometido um equívoco, e então gentilmente Henry ofereceu-se para...
— Henry? — O nome soou como a mais vil das blasfêmias em sua boca.
— Tratam-se pelo primeiro nome agora? — Estava tão cego pela cólera que não
notou que havia afrouxado as mãos que ameaçava com a lâmina em punho.
— Mas que diabos, Randall! Você não está se atendo aos fatos
importantes. Eu disse que ele não me fez mal algum...
Não pôde concluir sua sentença, pois no segundo seguinte Henry havia
derrubado Randall no chão e os dois rolavam de um lado para o outro sem
qualquer civilidade ou mesmo dignidade.
— Mas que inferno! Vocês são ridículos! — Ela tentou apartá-los, mas
não conseguiu sequer se aproximar. — Parem com isso! — gritou, aturdida
demais para manter a calma que a situação pedia.
Continuavam brigando como dois animais. Randall já tinha levado um
soco que tinha deixado um gosto amargo do sangue que escorria do canto de sua
boca, e Henry tinha um corte relativamente profundo no ombro direito, que o
deixava um tanto desnorteado. Não sabendo mais o que fazer para impedi-los,
Rose andou de um lado para o outro querendo que o chão se abrisse e a tragasse
de uma vez por todas.
Irritada, ela caminhou a passos duros tentando encontrar ajuda, mas
descobriu que apesar de seus apelos e súplicas, ninguém se metia no que
chamavam equivocadamente de "acerto de contas de homens". Percebeu que
alguns senhores juntavam-se ao redor deles, e algumas apostas levianas já
estavam sendo feitas.
Revirou os olhos e sentiu-se ainda mais inútil por não pensar em nada
eficaz para pôr um termo naquela confusão.
Até que em sua postura atabalhoada tropeçou em um balde de pescaria,
que por sinal estava cheio, com os peixes ainda lutando em vão pela vida, com
os olhos esbugalhados e as escamas infladas. Apesar de relutar por alguns breves
segundos, Rose não deu-se ao luxo de pensar muito no que faria a seguir. Sendo
assim, de modo atrapalhado ela pôs ambas as mãos no balde e puxou um dos
peixes para fora, atirando-o nos homens que se engalfinhavam violentamente.
— Estúpidos! — Ela atirou um peixe médio, atingindo a cabeça de
Henry, que pareceu sequer notar o impacto.
Pegou outro peixe relativamente grande nas mãos, deu dois passos para
mais perto e atingiu Randall nas costas, mas sua ação surtiu o mesmo efeito.
Nenhum.
Ela estava tão irritada que parecia que realmente havia se transformado
na megera que a tomavam. Ergueu o balde com certa dificuldade, encharcou
todo o vestido com os respingos da água fétida que carregava, e jogou-o sem
piedade nos dois, que separaram-se no mesmo instante, e passaram a encará-la
com indignação.
— Eu disse para pararem! Vocês são dois idiotas indisciplinados! —
Vendo que havia tido êxito em apartá-los, ela deixou-se cair no chão, sentando-
se exausta no meio da bagunça que havia feito.
Um jovem de cabelos espetados aproximou-se com alarde em seu olhar,
apontando para ela com um dedo acusador.
— Meus peixes! Você os jogou fora! — Foi na direção da jovem que
tentava se justificar, sem qualquer sucesso.
Randall levantou-se tão rápido quanto um homem pode se levantar, e
logo seus braços rodearam-na quase possessivamente.
— Temos que sair daqui. — Sua voz era um farfalhar, um ruído baixo,
quase um silvo através dela.
Ela assentiu com um gesto ligeiro e deixou-se conduzir por seu braço que
a mantinha tão próxima dele, que ela pensou que ele iria colocá-la nos ombros e
carregá-la dali.
Com passos trôpegos, Henry rapidamente materializou-se na frente deles,
obstruindo a passagem.
— Não vou deixá-lo raptá-la novamente, seu demônio! — falou com
demasiada determinação.
Rose não podia permitir que uma nova onda de golpes e maldizeres se
iniciasse por sua causa novamente. Ela livrou-se do aperto de Randall, e ficou de
frente para ambos os homens que odiavam-se o suficiente para retomar a briga.
Tentou usar de seu tom mais severo e esboçar o olhar mais intimidante.
— Ouçam-me agora, ou eu juro que começo a gritar e digo que ambos
estão tentando me raptar! — ela ameaçou com tanta seriedade que os deteve. —
Nenhum de vocês obrigou-me a nada. Nenhum de vocês me machucou ou me
fez algum mal. — Eles se entreolharam, a dúvida pairando acima deles. —
Ambos tentavam me levar sã e salva para a casa de minha tia. — Ela ficou
satisfeita ao ver um indício de compreensão. — Peço-lhes que, por favor, deixem
sua rixa de lado enquanto eu estiver entre vocês. — Seus olhos azuis eram um
convincente convite para a calmaria.
Randall quis socar a própria face enquanto fazia suposições sobre o que
estava acontecendo entre eles.
— Como pude ser tão patético? — Ele mirou o chão e cerrou os punhos,
a mandíbula trincada e os vincos da sobrancelha aprofundando-se.
— O que está dizendo? — Rose tentou tocá-lo ternamente, mas ele
afastou-se com mágoa no olhar.
— Você prefere ele a mim. Está claro como o dia — anuiu enfaticamente
e distanciou-se, com ela em seu encalço. — Eu não tenho mais nada a fazer aqui.
— Deu-lhe as costas.
— Céus! Você é mais tolo do que eu pensava, Randall. — Ela uniu as
mãos, apertando os dedos e quis sorrir ao notar que ele a estimava tanto, a ponto
de estar com ciúmes de Henry. — Eu jamais o trocaria por nenhum outro
homem, mesmo sendo um irlandês imbecil e truculento. — O sorriso escapou de
sua boca e a doçura de seu olhar o atingiu.
Henry não podia crer naquele ultraje. Ficou diante deles, ainda
embasbacado com as palavras da jovem inglesa, mas antes que pudesse dizer
qualquer coisa, ou se retirar para dar-lhes alguma privacidade, ele desatou a rir.
— Temos um romance aqui — ele ironizou, ainda gargalhando
descontroladamente. — A dama inglesa e o corsário bárbaro! Por mil demônios,
o mundo está perdido — declarou com um ar zombeteiro. — Eu deveria chamar
o reverendo para uni-los no sagrado matrimônio? — rechaçou, divertindo-se.
Randall estava prestes a rechaçá-lo dali, quando Rose interveio.
— Tenho assuntos inacabados com Randall que precisam de minha
atenção. — Ela encarou o capitão que logo cessou o riso.
— Não vou deixá-la sozinha com este ladrão. — Ele deu um passo à
frente.
— Saia de meu caminho, Henry, ou eu vou matá-lo e ainda ficar com seu
navio! — advertiu Randall, impassível.
— Calem-se! — exaltou-se Rose. — Eu vou com Randall. Se quiser,
pode nos acompanhar, Henry — decidiu. — Será assim, ou eu juro que grito a
todo pulmão que ambos estão levando-me à força. — Sua bravata era tão
insolente que conseguiu convencê-los e os fez concordar, mesmo que a
contragosto.
Caminharam como se estivessem em um cortejo fúnebre e Rose pensou
que podia ouvir o trincar dos dentes de Randall e o bufar de Henry, tamanha era
a antipatia entre eles.
Ao menos não estavam tentando se matar outra vez, pensou, otimista,
enquanto sentia o fedor de peixe morto que vinha deles e de seu vestido
arruinado.
— Não posso levá-la para sua tia neste estado deplorável. — Randall
olhou o vestido verde que ele havia lhe dado certa vez, e lamentou por tê-lo
encontrado aos trapos.
— Posso comprar-lhe trajes novos — ofereceu Henry, tipicamente
solícito.
— Poupe seu bolso. Eu farei isso. — Randall devolveu-lhe um olhar
inclemente.
— Claro que fará. Com o ouro que roubou de mim? — Ergueu a voz,
desafiando-o.
Rose soltou o ar, exausta por ter que aturá-los.
— Eu vou atirar este vestido ao mar e ficarei nua se isso for o que
precisam para permanecerem calados — os censurou, desprovida de pudor.
Eles seguiram o resto do caminho sem dizer mais nenhuma palavra, mas
quando Randall avistou a primeira loja de trajes, ela sabia que a escolha do
vestido, e a decisão de quem pagaria por ele, seria longa e desgastante demais
para seu pobre espírito pouco paciente.

*cailín dearg —moça ruiva


*caileag —moça
*mallacht —maldição
*sassenach —inglesa
*cailín —moça
CAPÍTULO DEZESSEIS

"Uma fina garoa começou a cair quando Ryan encontrou o corpo de


Eileen, que jazia inerte ao chão. Pôs as mãos em ambos os lados de sua face,
observou as pálpebras fechadas como quem apenas adormece, seu semblante
era sereno.
Era tarde demais.
O céu chorava junto de Ryan e levava suas lágrimas, enquanto ele
beijava os lábios sem vida de sua amada.
Sussurrou palavras de tormento unidas as declarações que ela jamais
ouviria."

Silêncio.
Tudo estava silencioso demais, notou Rose enquanto observava de
soslaio ambos os homens que acompanhavam-na.
Após muita discussão e uma troca de palavras genuinamente vulgares,
decidiram dar-lhe alguma trégua, afinal.
Estavam todos encarando a modista que cuidadosamente embalava seu
vestido comprado por Randall.
Ele fizera questão de presentear-lhe com a peça, e ela secretamente
admirou o gesto, apesar de ter de aturar o semblante fechado de Henry, que não
admitia sua afeição pelo corsário.
Passado alguns minutos, sua encomenda já estava adornada por um
bonito pacote em suas mãos. Agradeceu a gentil senhora de sorriso caloroso e
dirigiu-se à porta, sentindo-se extremamente animada por ter um novo traje, já
que o que vestia estava deliberadamente parecendo trapos. Estava ansiosa por
finalmente poder usar algo limpo depois de tanto tempo.
— Logo vai anoitecer. — Henry olhou para o horizonte em tons pastéis.
— Deveríamos encontrar uma estalagem por aqui e seguimos amanhã. — Olhou
para Rose, que anuiu brevemente. — Sua tia iria ficar assustada ao nos ver tão
tarde da noite, já que ainda temos algumas horas até chegar a sua propriedade, e
não queremos alarmá-la em uma hora tão inconveniente — concluiu ao vê-la
assentir em silêncio.
Não demoraram muito para encontrar um local apropriado. Havia uma
estalagem logo à direita das docas. Era um lugar com muito movimento, mas
também parecia ser um estabelecimento decente. O capitão foi na frente, munido
de seu bom nome e ar de superioridade. Pôde obter dois dos melhores aposentos
que ofereciam. Quando o estalajadeiro entregou-lhe as chaves de ambos os
quartos, Henry dirigiu o olhar para Randall, que permanecia os observando um
tanto acuado, tentando evitá-los.
— Você não vai pagar por um quarto? Vamos pernoitar aqui. — Henry
levava consigo um riso de escárnio à guisa dos lábios.
— Pernoitarei em outro lugar — Randall limitou-se a dizer, cabisbaixo.
Rose havia percebido seu desconforto e sabia que certamente ele havia
gasto seus últimos recursos com o vestido que lhe dera. Só não sabia o que fazer
para Henry parar de provocá-lo daquela maneira. Era humilhante. E ela estava
farta de vê-lo se rebaixar ante o capitão. Apesar de compreender Henry e todo
seu ódio pelo homem que o havia furtado, ainda assim, este homem era Randall,
que havia lhe tratado tão bem, que nunca lhe fizera mal algum, e que talvez —
apenas talvez —, havia tocado uma grande parte de seu coração.
Ela não iria deixá-lo nas mãos de Henry.
Voltando-se para eles, ela aproximou-se de Randall a passos ligeiros e
logo empurrou o grande pacote do vestido em sua direção.
— Oh! — Arfou quase teatralmente, passando as mãos pela testa,
limpando um suposto suor, pelo esforço falso que encenava. — Isso está
realmente pesado. Ajude-me a levá-lo ao meu quarto primeiro. — Randall a
olhava desconfiado, sabendo o quão leve estava o embrulho em suas mãos.
— Deixe-me levá-lo para você. — Henry se interpôs entre eles quase de
modo brusco.
— Não será necessário. Randall pode levá-lo para mim. — Ela já estava
dando-lhes as costas, mas antes, olhou por cima dos ombros, certificando-se de
que o homem certo a seguiria.
Henry era um homem deveras maravilhoso. Era gentil, inteligente, belo e
portador de um espírito aventureiro que poucos sabiam apreciar.
Ele seria perfeito, pensou ela enquanto o via com o semblante um tanto
decepcionado. Henry só tinha um problema. Ele tinha apenas um defeito que
infelizmente ofuscava todas as suas cordiais qualidades.
Ele não era Randall.
Ele era extremamente agradável aos olhos e qualquer mulher se
encantaria por seus atributos. Mas ela sempre procuraria compará-lo com
Randall.
Sua pele alva não tinha o bronzeado deslumbrante que tinha a pele de
Randall. Seu cabelo loiro e seus olhos claros jamais causariam nela o efeito que
os cabelos e olhos negros de Randall causavam-lhe.
Ele poderia ter a beleza mais deleitável, mas não arrancava-lhe o fôlego...
como Randall fazia.
Aquilo era terrível, concluiu ela ao destrancar a fechadura.
Randall entrou no cômodo, admirando o requinte do lugar. Apesar de não
ser tão luxuoso, tinha móveis de madeira talhada em pequenos ornamentos, uma
cama de dossel com um véu rendado que chegava até o chão, papéis de parede
floridos delicadamente bordados, e uma pequena banheira redonda ficava dois
degraus acima, em um suporte com alguns itens de fragrâncias perfumadas.
Ele pôs o embrulho nos pés da cama e estava dirigindo-se de volta à
porta quando viu que Rose a havia trancado e posto a chave muito bem guardada
no decote do vestido maltrapilho.
— Se quisesse falar comigo era só dizer, não precisava ter me trancado
em um quarto e escondido a chave. — Ele se aproximou dela, mas não ousou
ficar perto o suficiente para sentir seu cheiro adocicado.
— Se eu dissesse, você teria ficado para ouvir-me? — ela indagou, já
sabendo o que ele responderia.
Randall pôs as mãos nos bolsos de seu fraque desgastado e fez um gesto
negativo com a cabeça.
— Pois então. Não me deu outra alternativa a não ser obrigá-lo a ficar. —
Ela o encarou, altiva e decididamente determinada.
— Eu não sei o que você tem a dizer, cailín, mas não devia continuar
fazendo isso. — Sua voz carregava um ar de derrota.
— Fazendo o quê? — Seu timbre era apenas um fiapo de voz
entrecortado.
— Enlouquecendo-me desta maneira. — Ele acabou com a distância que
os apartava. — Pare de vir até mim com palavras mansas, de cativar-me com
seus sorrisos e enfeitiçar-me com seus olhos de ternura. — Ele pôs uma das
mãos em seu rosto e percorreu um caminho tentador até tocar os lábios
entreabertos. — Isso é um tormento, mo temptation. — Ele a observou fechar os
olhos enquanto acariciava lentamente seus lábios com a ponta dos dedos.
Ela viu a tristeza pintar a escuridão de seu olhar, e contraditoriamente
ofereceu-lhe mais um de seus sorrisos.
— Posso te atormentar apenas um pouco mais esta noite? — disse quase
timidamente.
Aquilo era um convite declarado. Um convite que Randall não poderia
ter aceito, mas aceitou. Ele simplesmente via-se incapaz de afastá-la. Apesar de
saber que estava apenas adiando sua partida, seu coração teimava em mantê-la
por perto enquanto ainda podia. Quando ele assentiu e compartilhou de seu
sorriso, Rose caminhou lentamente pelo cômodo e subiu os dois degraus até a
banheira, despejando alguns sais na água ainda morna.
— Já que presenteou-me com um belo traje, nada mais justo do que eu
vesti-lo agora mesmo para que possa apreciá-lo em mim. — Ela deu de ombros
com graciosidade. — Suponho que você ficará feliz. — Tentou esconder o riso,
mas falhou miseravelmente.
— Ficarei um pouco mais que apenas feliz. — Passou uma das mãos
pelos cabelos negros que caíam-lhe quase sobre os ombros. — Mas, presumo
que eu deva sair para que possa banhar-se com devida privacidade, milady. —
Fez uma mesura teatral e sarcástica antes de voltar-se para ela novamente.
— Já fizemos isso antes, e apesar da sua má reputação o preceder, você
não me espiou. — Ela deixou o laço de cetim escorregar por sua cintura.
— Uma dama não devia confiar em um corsário. — Não desviou os
olhos dela enquanto seus dedos abriam cada botão perolado.
Ela se libertou do tecido pesado e ficou coberta apenas pelas anáguas que
desenhavam seu corpo. Ignorou o último comentário de Randall, não precisando
fazer-se ouvir em voz alta. Suas ações falavam por si.
Soltou os cabelos desgrenhados que despencaram em largas ondulações
até o meio das costas. Certificou-se de que Randall não a estava observando,
com um misto de decepção e genuíno agradecimento quando descobriu que,
assim como fora da primeira vez, ele tinha os olhos fechados.
Ele podia ser um fora da lei, mas pelo menos era um fora da lei com certa
honradez, concluiu ela, demorando-se ao sentir a água morna de encontro ao seu
corpo quando mergulhou na banheira.
Deus sabia como ele queria observá-la naquele momento.
Apreciá-la.
Venerá-la com tudo que tinha.
Mas sentiria-se o mais vil dos homens se cedesse aos seus indômitos
desejos.
Não pôde refrear sua mente ao imaginá-la naquele instante. Contudo,
Rose era pura demais para alguém como ele, devia se lembrar disso, e era isso
que o fazia permanecer de olhos fechados.
Passado algum tempo, ela o chamou e pediu que a auxiliasse com o fecho
do vestido. O fechou o mais rápido que seus dedos permitiram, não querendo
abusar de seu autocontrole em tomá-la para si. Ela jogou os cabelos para trás e
pôs as mãos na cintura, um sorriso largo iluminando suas feições.
Randall tinha a respiração presa na garganta ao vê-la tão bela. O vestido
tinha um corpete da cor da terra, descia sobre sua silhueta e era majestosamente
apertado no busto farto e na cintura fina. As mangas vinham justas até a altura
dos cotovelos e abriam em um conjunto de rendas suaves e imaculadamente
brancas, que iam até suas mãos. O decote quadrado dava-lhe um ar elegante
unido às rendas acima da costura que emolduravam seu colo. Quando ela deu um
passo à frente, pôde se ater à calda de tecidos que arrastava sobre os pés
desnudos, que eram de uma tonalidade quente, e tinha listras largas em verde
musgo e dourado.
Rose deu dois pulinhos, ansiosa, aguardando que ele lhe dissesse algo,
mas Randall parecia um tanto embasbacado à procura de ar fresco.
Antes que ele pudesse pensar em algo coerente a lhe dizer, ouviram uma
batida constante na porta.
— Precisa de ajuda, Lady Rose? — A voz de Henry conotava sua
solicitude genuína.
Lady Rose. Já fazia tanto tempo que alguém a tratava pelo título, que por
um segundo esquecera-se das suas responsabilidades como a lady que era, ou
deveria ser.
Rapidamente, ela olhou para Randall com um dedo em riste sobre os
lábios exigindo silêncio.
— Não, eu estou bem. Agradeço a preocupação. — Tentou soar o mais
gentil que pôde. — Presumo que seja melhor eu dormir por algumas horas, estou
exausta — declarou após um falso bocejo.
— Claro. Mas Randall ainda está aí com você? — Não pôde disfarçar a
severidade de seu tom.
— Não. — Olhou para Randall que negava com a cabeça em uma
forçada indignação. — Ele saiu há alguns minutos — anunciou sem parecer
afetada com a mentira.
— Ele deve ter ido achar algum canto para dormir, já que não podia
pagar por um quarto. O bastardo deve aparecer pela manhã. — Ele desejou uma
boa-noite e retirou-se a passos ligeiros pelo estreito corredor.
Ela respirou fundo após ter a certeza de que Henry estava longe o
bastante para não ouvir o receio em sua voz.
— Este sujeito é odiável — resmungou Randall com os punhos cerrados.
— Shh... — Rose se aproximou da porta novamente e a destrancou. — Vamos
sair daqui. Ele deve estar longe, mas tenho certeza de que retornará, e irá
estranhar se encontrar a porta trancada outra vez.

Randall não pôde responder, já que ela havia levantado as saias do


vestido inapropriadamente até os tornozelos, e estava caminhando descalça com
as pontas dos pés, indo em direção à saída. Ele apenas a seguiu, já que nada
poderia pará-la quando estava determinada daquela forma.
Ela correu quando chegou ao lado de fora da estalagem e ele permaneceu
em seu encalço até que chegaram à beira do mar que contornava o porto.
Ela parecia maravilhada ao sentir a areia entre os dedos dos pés enquanto
caminhava lentamente até que as ondas que quebravam na praia alcançaram-na.
Ela era apenas uma menina que colecionava sonhos, rasgava o véu de
uma sociedade de mesmice e aprendera a sorrir com desprendimento.
O céu púrpura era o retrato perfeito de uma noite como aquela, uma noite
mágica. Randall não era um pagão, mas acreditava no que não se pode ver. Por
esta razão, começou a juntar alguns gravetos secos deixados ali, e com duas
pedras e muita prática, logo uma fogueira queimava entre eles.
Rose estava sentada ao seu lado, ambos partilhavam um silêncio
reconfortante.
— Fogueira de Beltane. — Jogou mais um graveto que logo fora
engolido pelas chamas.
Rose sabia exatamente do que se tratava a fogueira. A tradição ditava que
deviam pular as chamas para se manterem libertos de infortúnios e qualquer
negatividade. Era acesa com gravetos de abeto e carvalho, duas das árvores
consideradas mágicas pelos neopagãos. Era uma noite em que criaturas podiam
vagar livremente entre os dois mundos, segundo a cultura celta. Uma época em
que as colheitas de ervas tornam-se poderosas curas medicinais. A fertilidade é
abundante e a energia é exibida pela natureza indomável.
Era lindo, pensou Rose ao fitá-lo mirando as chamas escarlates que
pareciam dançar no ritmo das estrelas que os espreitava lá de cima.
— É esta noite? — ela indagou em um sussurro baixo, temendo que as
palavras pudessem apagar a magia que os permeava.
Ele assentiu ligeiramente, sem deixar de olhar as chamas que tomavam a
escuridão e as transformava em luz e calor.
Naquele momento, nada precisou ser dito nem esclarecido, pois ela se
lembrava de suas palavras quando o conheceu. A ilha que ele procurava, o
tesouro que o tiraria da miséria, e tudo seria possível apenas por uma noite.
Aquela noite.
Posteriormente tudo que tentara conquistar seria inalcançável, e ele sabia
disso.
E apesar de tudo, de todos os planos e sonhos, ele estava ali com ela.
— Por que você não foi até a ilha? Não há tempo, você não...
Ele a interrompeu com um gesto terno em seu ombro, não querendo que
ela o lembrasse de tudo que havia deixado se esvair por suas próprias mãos.
— Eu tinha que ir resgatá-la, gruaige tine — murmurou quase
carinhosamente. — Mesmo que você não tenha precisado de um resgate... — Ele
sorriu, admirando sua bravura diante de tudo que passara. — Apesar disso, eu
não podia deixá-la sem ter a certeza de que estava a salvo.
Ela não sabia o que dizer, sequer como agir ante aquela declaração. Ele
abandonara tudo que acreditara ser real, tudo que poderia conquistar, para ir atrás
dela. Permaneceu em silêncio enquanto ele se aproximava lentamente.
Randall segurou ternamente as mechas de seu cabelo, que estavam soltas
e selvagens ao vento, e colocou-as ao lado, para que pudesse passar o cordão
pelo pescoço delgado da jovem.
Ela levou uma das mãos ao colo e sentiu entre os dedos uma pequena
pedra irregular presa por um fino material curvado por toda a sua extensão, que
pendia livremente sobre sua pele.
— Um quartzo azul. É um amuleto simples, mas acredita-se ser capaz de
afastar as energias prejudiciais. — Ele tocou a pedra e a observou corar em um
tom gracioso de rubor.
— Randall, eu não posso aceitar algo tão especial... — Seus olhos tinham
lágrimas represadas.
— Eu não podia aceitar metade das coisas que você me ofereceu, mas eu
as aceitei, cailín — Ela sorriu. Um sorriso quente que o aqueceu até a alma.
Uma lágrima cristalina desceu por seu rosto e Randall a apanhou com o
dorso da mão delicadamente, desejando em seu íntimo ser capaz de apanhar cada
uma das suas tristezas.
Ela segurou a pequena pedra com força entre os dedos, rezando para que
se aquele amuleto realmente trouxesse alguma proteção, que resguardasse seu
coração.
— Tudo o que desejar, tornar-se-á real por uma noite... — murmurou ela
em um sussurro.
Seus olhos não abandonaram os dele enquanto ela levava uma das mãos
até seu rosto, e o tocava com ternura.
Randall fechou os olhos por alguns segundos, um ínfimo instante em que
permitiu-se fingir que aquilo que tinham poderia ser eterno.
Ele deixou-se moldar em suas mãos, como se seu toque fosse a promessa
de que ele estava a salvo se buscasse abrigo em seus braços.
Rose se aproximou suave como a brisa do vento e ele ainda tinha os
olhos fechados quando sentiu os lábios doces de sua tentadora feiticeira cobrindo
os seus, tomando-o como se quisesse possuir seus sentidos, marcá-lo, desnorteá-
lo.
— Mo chailín milis — Ele abriu os olhos apenas para apreciar as chamas
no olhar da mulher que certamente o faria perder o juízo.
— Esta noite eu quero ser sua, Lennart. — As palavras saíram entre seus
lábios calidamente. Pronunciou categoricamente, fazendo-se soar tão clara como
a luz da lua que os cobria com seu manto prateado.
Nada no mundo podia tê-lo preparado para ouvir aquilo dela. Uma dama,
uma lady, uma mulher que se não fosse a intromissão do destino, seria-lhe
intocável. Tomou seu rosto com ambas as mãos, ladeando a delicada face, e
perdeu-se no oceano abrasador de seus olhos.
Teria de explicar-lhe, fazê-la de fato compreender o que um pedido como
aquele significava. Precisava que ela soubesse que aquilo era um caminho sem
volta, e que, indubitavelmente, ela se arrependeria se o trilhasse até o fim.
Contudo, ela não lhe deu chance de fazê-lo. E quando pousou os lábios
sobre os dele uma vez mais, ele questionou seu próprio senso de moral ao
cogitar tomá-la para si naquela noite.
Era apenas uma noite.
Uma noite propícia para ter desejos atendidos.
E quanto mais ela se aproximava, seu coração tomava as rédeas de sua
sanidade, desestruturando-o.
Pôs uma das mãos em sua nuca, prendendo os dedos nos cachos ruivos
que brilhavam como as chamas do fogo, levando-a para si, retribuindo o beijo
com sofreguidão e implorando para que Deus o perdoasse pelo pecado que
estava prestes a cometer.
Ela jamais poderia saber disso. Contudo, Randall genuinamente
suspeitava que se tivesse de fazer um pedido naquela noite, dentre qualquer
coisa que ele poderia obter, ele pediria que fosse digno de recebê-la.

*cailín —moça
*mo temptation —minha tentação
*gruaig tine —cabelos de fogo
*mo chailín milis —minha doce menina
CAPÍTULO DEZESSETE

"Um espírito atormentado, uma prece saída de um coração que arde em


aflição, um homem em busca de rendição.
Ryan vagou pelo bosque sentindo a culpa como um açoite em suas
costas, quase derrubando-o, desnorteando-o, levando-o à loucura.
Ele não poderia sequer acompanhá-la no sono imperturbável da morte.
Estaria cativo em seu próprio castigo, destinado a vagar por toda a eternidade
em busca de sua amada Eileen, sem jamais poder alcançá-la."

O céu era um magnifico pálio espesso das mais brilhantes estrelas, a lua
derramava no mar sua luz opaca, pálida. Não havia nenhum som além das ondas
quebrando na areia, das aves de rapina que mergulhavam no céu e da respiração
entrecortada de Rose, quando Randall estendeu gentilmente a mão, oferecendo-
lhe uma dança.
Ela tocou seus dedos rígidos, sentindo os calos em sua mão de encontro a
suavidade de sua pele, segurando firmemente em seu ombro enquanto ele a
tocava sutilmente no alto das costas para conduzi-la. Pensou que morreria
quando ele lentamente amoldou seu corpo ao dela. Rose sentiu o coração pular
no peito ensandecido, tendo a certeza de que ele poderia a ouvir arfando em um
gemido baixo. Giraram em compassos ritmados em um silêncio que fazia tudo
parecer ainda mais mágico.
Rose tentava em vão fazer os pensamentos pararem de girar em sua
mente, mas era incapaz de manter-se tranquila quando o calor do corpo daquele
homem a invadia daquela maneira. Pensou que nem se tivesse sido jogada na
fogueira de chamas ígneas, não arderia tanto quanto naquele instante em que ele
buscou sua boca. Seus lábios firmes eram exigentes, ela temia que não pudesse
oferecer-lhe tudo que seu beijo buscava, afinal, ela não sabia como aquela noite
terminaria. Quando propôs que ele aceitasse sua entrega, despejou seu coração
aos pés de Randall, para que ele escolhesse juntá-lo do chão ou deixá-la
desvanecer com um desejo não atendido. Apesar de o querer de uma forma
devastadora, ela não sabia ao certo o que deveria fazer ou como tinha de agir se
ele seguisse em frente.
Sabia que tudo se iniciava com um beijo, ou vários beijos, no entanto,
cada contato parecia inflamar ainda mais o calor que existia entre eles e ela
sinceramente não sabia o que tinha de fazer para abrandá-lo.
Ela não queria admitir, mas estava em pânico.
Randall estava decidido a não ouvir sua própria consciência naquela
noite. Ele queria poupá-la de todas as consequências que poderia resultar
daquele ato que cometeriam. Tinha medo de machucá-la, mas quando olhou em
seus olhos suplicantes, soube que iria feri-la ainda mais se a rejeitasse.
Senhor, como ela a queria. Não podia negar que seu corpo e sua alma
clamavam por ela, deveras encontrava-se sedento por tudo que ela queria lhe dar.
Abandonou seus lábios por apenas alguns segundos e sussurrou
delicadamente, vendo-a com os olhos fechados, divagando.
— Você é doce, mo bheagán. Tão doce...
Ela tinha de saber o quão bela era, o quanto o enlouquecia apenas com
um toque e o quanto ela o fazia sentir.
Porque ele sentiu.
Randall sentiu o coração inflar e transbordar dentro de si quando a viu
entregue. Beijou seus lábios, sua bochecha, o alto da testa e a ponta de seu nariz,
contou as pequeninas e quase invisíveis sardas que davam cor à porcelana de sua
tez.
Enrolou os dedos entre os cabelos ruivos, sem temer que seu fogo o
pusesse em chamas. Não se importaria que ela o incendiasse, o enfeitiçasse e o
possuísse. Ao seu modo, entregou-se a ela da mesma forma que ela havia agido
anteriormente. Queria dizer-lhe que tudo de que era composto, tudo o que lhe
pertencia, mesmo que não fosse muito, ele o daria. Randall ansiava mostrar a ela
o quanto estava agradecido, o quanto a queria e admirava. Queria que ela
entendesse algo que nem ele mesmo compreendia.
As chamas faziam a fogueira crepitar. A brisa ricocheteava em seu rosto
quando Rose atreveu-se a abrir os olhos, sentindo os rastros dos beijos de
Randall em sua própria pele. Ele parecia querer tomá-la, fundir-se a ela, em seu
espírito e alma, enquanto seus lábios a veneravam.
Ele a observava como se quisesse confessar algo, era quase perturbador
vê-lo em sua agonia enquanto as mãos trabalhavam nas pérolas de seu vestido.
Ela sentiu o vento mordiscar sua pele exposta quando o tecido caiu de
seus ombros. Puxou o cabelo para frente, de encontro ao colo, mas Randall a
impediu, parecendo absorto com sua beleza.
Os cabelos emolduravam seu rosto e desciam até a cintura; os olhos azuis
continham um certo acanhamento, mas havia fogo neles quando ele cobriu seu
corpo com seu amor.
Ela sentia a areia escorregando em suas costas, o calor das chamas da
fogueira que ardia, e Randall.
Ele estava em todo lugar.
Ele fazia parte dela de uma maneira que ela nunca pensou que poderia.
Quis fechar os olhos, quis gritar seu nome, mas tudo que ela pôde fazer
era observá-lo enquanto uma lágrima escapava e rolava pelo rosto dele.
Por um breve segundo, pensou ter feito algo errado, algo que o
desagradou, talvez, mas logo notou um esquiço de sorriso nos lábios dele,
enquanto seu cheiro almiscarado misturava-se ao odor puro dela. Ele sorriu tão
amavelmente que ela não pôde deixar de fazê-lo também.
Mais uma vez ele pareceu atormentado com algo a lhe dizer.
Buscou sua boca de forma lenta, ignorando o que quer que fosse que estava
tentando lhe falar. Beijou-a de modo sôfrego, iniciando o fogo que parecia
nascer de seus lábios, até a extremidade mais sensível de seu coração.
— Você deve ser apreciada lentamente, mo candy Rose. — Ele pousou os
lábios sobre os seus. — Você merece ser venerada. — Ele a pressionou contra si
novamente. — Uma mulher como você deve ser amada. — A frase saiu entre
sussurros de aquiescência quando ela o sentiu ainda mais perto. — Eu a amo,
gruaige tine. — Fechou os olhos com a declaração invadindo suas emoções.
Ela queria dizer que também o amava, mas as lágrimas caíam de seus
olhos e um nó formou-se em sua garganta quando ela tentou fazer-se ouvir em
voz alta.
Então ela teria que demonstrar o quanto sentia-se da mesma forma, que
compartilhava do mesmo sentimento intenso. Ela tocou seus ombros e seguiu um
rastro quente em sua pele beijada pelo sol, da mesma forma que ele lhe fizera
entender que merecia cada beijo, cada carícia e cada gota de paixão. Assim ela
fez com ele quando o tomou para si, buscando marcar cada traço que seus dedos
percorriam, cada sabor que sua boca provava e cada palavra não dita que suas
reações revelavam.
Ela desnudava sua alma com seu toque, a fazia sorrir com seus beijos, e o
despia de todos os medos quando o afugentava em seus braços.
Permaneceu aninhada em seu colo até quase o nascer do sol.
Randall não conseguira dormir. Não depois de possuí-la com tanto ardor
em seu fascínio flamejante. Não depois de render-se sob seu toque e deixar-se
moldar sob suas mãos daquela maneira quase obscena que ela o tinha cobiçado.
Não depois de amá-la ao seu modo profano de amar.
Sempre soube que não era digno de uma mulher como Rose. O contraste
entre eles não estava apenas atribuído à aparência ou boas condições de vida,
mas também se refletia ao modo que ambos viam o mundo.
Ele era um bastardo fora da lei.
E ela uma dama, uma senhorita respeitável, uma lady... Por Deus! Ela era
pura como um anjo vindo dos céus quando se deitou com ele.
Certamente ele imaginava que seria o primeiro a transformá-la de menina
à mulher, contudo, não ocorreu-lhe que se sentiria tão afetado ao roubar-lhe a
castidade.
Observava-a ressonar dentro do seu abraço, tão serena que parecia não
ter sido tocada por suas mãos tão vis. Ela estava deitada sobre seu peito nu, a
respiração morna acariciando sua pele, os lábios inchados de terem sido
maravilhosamente apreciados por ele durante quase toda a noite. Os cabelos
espalhados entre os dois, em um divino emaranhado que parecia ser tecido com
fios de ouro flamejante.
Ela era quente como a cor vermelha de seus cabelos, e pura como o
índigo perfeito de seus olhos.
Ele não queria tê-la amado. Não planejou se apaixonar, pois sabia que
teria que conviver com os destroços que ela deixaria seu coração.
Aquilo era ridículo, mas ela o tentou.
Senhor, como ela o tentou. A cada resposta irreverente seguida de um
sorriso malicioso, cada impropério vindo de um gesto corajoso de peitá-lo
quando ninguém mais o faria, e sua ternura demonstrada desde quando botou os
olhos nele.
Ela era inacreditável e havia tido sua gloriosa conquista ao fazê-lo ceder
aquela noite. Inferno, pensou ele enquanto sentiu que a queria uma vez mais,
com a certeza de que a desejaria por todos os dias de sua vida. E aquilo seria sua
maldição por ter provado do fruto proibido. Jamais a teria novamente, apesar de
cobiçá-la pelo resto de seus dias.
— No que está pensando? — A voz suave e baixa o despertara de suas
impiedosas divagações.
— Em você. — Ele beijou seus lábios brevemente antes de puxá-la ainda
mais apertada sobre seu peito. — E em como acorda tão bela. — Moldou uma
das mãos sobre a dela, entrelaçando os dedos miúdos aos seus.
— Acho que estavam certos quando diziam que corsários são mentirosos.
— Seu riso o dominou, fazendo sorrir também.
— Para ser franco, estavam sim. Presumo que seja mais sensato que
corra dos meus braços enquanto ainda pode, antes que eu a leve para mim, e a
faça repetir tudo o que fizemos. — Aproximou os lábios de sua orelha ao
prosseguir em um sussurro. — Por todas as noites.
— Todas? — Ela arregalou os olhos quase pulando de seu abraço,
tamanho era seu espanto. — Então quer dizer que...
— Quero dizer que foi a melhor noite que já tive ou terei, mo chailín
milis.— Perpassou os dedos pelo seu rosto, guardando cada traço de seu
semblante entre as primícias de suas memórias.
— Poderíamos fugir! — Ela levantou-se e equilibrou o peso em um
cotovelo na areia, enquanto os dedos passeavam pelo peito de Randall,
enroscando-se na macia pelugem negra e rala que cobria sua pele. — Você
poderia me levar para algum lugar, onde ficaríamos só nós dois e...
— Pare com isso, cailín — Ele segurou a mão que descia por um
caminho tentador, e a trouxe para os lábios. — Deve seguir seu caminho com o
capitão. Apesar de eu não gostar dele, e a antipatia ser recíproca, ele é um bom
homem e a manterá em segurança — admitiu a contragosto.
— Mas... — Ela pôde sentir toda a magia da noite dissipando-se com a
neblina fria da manhã. — Você o odeia! Não pode deixar-me ir com ele assim...
— Eu não o odeio. Não verdadeiramente. Não tenho razões para odiá-lo.
— Deu de ombros de forma banal. — Eu o roubei indiscriminadamente. Apesar
de não agir corretamente, não sou tão hipócrita para não admitir que ele está
certo em nutrir repulsa por um saqueador. — Ele tocou a ponta de seu nariz. —
É o que eu sou, Rose. Eu não sou honesto, não sou um bom sujeito — declarou
com um fiapo de voz.
— Praticar coisas ruins não o torna uma pessoa ruim, Randall. — Ela
sustentou seu olhar, determinada a fazê-lo compreender aquela verdade. — As
circunstâncias cruéis obrigaram-no... é diferente. — Ela engoliu em seco,
sabendo que o diálogo estava beirando a um passado delicado e sofrido que nem
mesmo ela entendia. — Há bondade em você.
Ele segurou-a mais uma vez contra seu corpo.
Reconfortava-o o fato dela vê-lo de uma maneira tão bela, apesar da
realidade se mostrar ser tão deturpada.
Lentamente afagou seus cabelos e afundou o nariz na cavidade
convidativa de seu pescoço, permanecendo ali, agarrando-se àquela cujo era
capaz de enxergar além dos demônios que o compunha.
Ela o rodeou com ambos os braços e gentilmente acariciava seus cabelos,
enquanto ele silenciosamente despedia-se.
— Rose? — pronunciou o nome cujo o levava quase ao caminho da
rendição.
— O quê? — Uma lágrima trilhava um caminho salgado até seus lábios.
— A história que leu para mim e o jovem Gael... Outras pessoas
deveriam ler. Você tem o dom de tocar corações. Não deixe que tirem isso de
você. — Ela assentiu em silêncio, segurando um soluço doloroso na garganta. —
Você promete? — Ele tentou esboçar um sorriso, mesmo o coração estando
esmigalhado no peito.
— Por que ei de lhe fazer promessas se você não me fará nenhuma? —
Ela chorava lágrimas condoídas de uma saudade que posteriormente a sufocaria.
Ele segurou sua mão e beijou cada um de seus dedos até pousar os olhos
de ébano no oceano anil que vertia tristeza.
— Se um dia eu for abençoado com algo que puder lhe oferecer... — Pôs
as mãos nos ombros frágeis que tremiam à medida que ela se entregava ao
pranto. — Eu prometo que vou buscá-la, mo ghrá milis. — Ela assentiu, mas
parecia que ia desmoronar em seus braços.
Ela estava destruída, queria implorar para que ele não a deixasse ali,
queria tentar convencê-lo a ficar apesar de saber que já tinha conquistado muito
ao fazê-lo lhe dar uma promessa tão valiosa.
Contudo, não seria o suficiente.
E apesar de ser destemida e corajosa, ela não era tão ingênua a ponto de
achar que ele seria abraçado pela sociedade se ficasse ao seu lado.
Certamente o olhariam com desprezo. Um desprezo que ele não merecia.
Ela precisava achar um jeito de poder recebê-lo sem tantos julgamentos, e ela
pensaria em algo. Mas não seria naquele momento. E apesar de nutrir
esperanças, a despedida era tão dolorosa que pensou que poderia morrer com a
dor que cravava em seu âmago.
— Você tem de voltar. O dia já amanheceu — disse apenas, sem afrouxar
os braços que a protegiam da solidão.
— Para onde você vai? — Ela fungou duas vezes antes de conseguir
endireitar sua postura.
— Encontrarei minha tripulação. Tenho um longo caminho pela frente
até ser um sujeito abastado. — Esboçou um falso e triste sorriso que jamais
iluminaria seus olhos.
— No caminho da estalagem, estão vendendo filhotes de cachorros. Leve
um para o jovem Gael antes de partir. — Tentava pensar em qualquer outra coisa
que não fosse aquele triste adeus.
Ele anuiu brevemente, um tanto sem jeito, tentando inutilmente não
parecer um pobre menino em busca de consolo.
— Verei o que posso fazer quanto a isso. — Pôs uma das mãos em seu
queixo, erguendo seu rosto, guardando a lembrança por uma última vez.
— Por favor, não me olhe assim. Não é uma despedida. — As lágrimas
represadas ameaçavam retornar.
Poderia de fato não ser. Mas as probabilidades eram grandes. A sorte
nunca esteve a seu favor, por que naquele momento estaria? Ele faria tudo que
estivesse ao seu alcance para um dia ir ao seu encontro, mas naquele instante, as
chances lhe pareciam quase impossíveis.
Depois de se vestirem devidamente e guardarem as doces lembranças da
noite nos recônditos da mente, ele a abraçou pela última vez.
Segurou sua mão pela última vez.
Atreveu-se a provar de seus lábios uma última vez, sorvendo lentamente
seu gosto salgado devido as lágrimas que banhavam o beijo com desalento.
Não era preciso dizer mais nada.
Ele partiu.
Sem olhar para trás.
Não se permitiu vê-la cair em desolação, pois certamente se assim o
fizesse, faria jus a sua má reputação e a levaria consigo para jamais deixá-la ir.
Ela ficou ali, pensando em tudo que havia feito, sem conseguir se
arrepender de nada.
O observou se afastar rapidamente a passos largos, deixando rastros na
areia que o vento logo apagaria. Admirou mais uma vez os cabelos negros como
uma noite sem estrelas, a postura altiva e o modo elegante de caminhar, as mãos
largas que pendiam ao lado do corpo que tocaram-na até alcançar sua alma.
Ela fechou os olhos por alguns segundos tentando se recompor.
Rose juntou seus pedaços do chão, ergueu a cabeça com uma valentia
que jamais saberia de onde conseguiu, e caminhou de volta à estalagem.
Ela precisava voltar.
Voltar para casa.
Para sua antiga vida.
Segurou a pedra que pendia de seu pescoço — a única parte de Randall
que levaria consigo além do amor que ele lhe dera —, girou-a entre os dedos e
seguiu com determinação.
Afinal, ela levava duas promessas junto de seu coração.

*mo bheagán —minha pequena


*mo candy —minha doce
*gruaig tine —cabelos de fogo
*mo chailín milis —minha doce menina
*cailín—moça
*mo ghrá milis —meu doce amor
CAPÍTULO DEZOITO

"O sol era apenas uma luz opaca e laranja no limiar do horizonte. Os
ventos derramavam um clamor lânguido sobre as rochas que formavam um
círculo perfeito na clareira.
Quem passava por aquela parte silenciosa do bosque, podia jurar que a
brisa morna que soprava lá, assemelhava-se ao gemido de alguém que lamenta
um amor perdido.
O corpo de Eileen não estava mais ali.
Muitos diziam que nunca esteve.
Mas o sangue que demarcava aquela área jamais poderia ser apagado
ou esquecido.
E é por isso que as pedras cantavam aquela canção.
A canção que falava sobre um amor que sobreviveu à morte, mas que
pagara com a vida."

Rose retornara à estalagem em poucos minutos tentando recobrar os


sentidos, após uma noite inesquecível como a que tivera com Randall.
Randall.
Deveria parar de pensar nele, e começar a formular o que diria ao Conde
e a Condessa de Houghton, mais especificamente, seus pais.
Não mãe, eu não planejei isso quando cheguei ao porto naquela manhã.
Tudo aconteceu de forma muito abrupta. E ele tinha olhos tão gentis... Pensou
em como contaria o ultraje que cometera. Para alguém que amava contar
histórias, esta parecia um pouco difícil demais de ser explicada. Afinal, nada
justificaria suas ações de ter pulado naquele barco com um fora da lei, por Deus!
Ela estava à beira de um colapso quando o capitão Henry anunciou que
estavam muito próximos da propriedade de sua tia, que devia estar surtando com
tudo o que acontecera. Tia Ingrid era uma mulher de meia idade tão severa
quanto o carvalho mais antigo da Irlanda, era o tipo de mulher rigorosa em seus
tratos, que certamente estaria ansiosa por encontrá-la a e dar uma boa
reprimenda na sobrinha.
Para ser franca, não sabia qual dos membros da família seria pior ter de
enfrentar, mas em breve descobriria.
— Chegamos milady, tenho certeza de que está aliviada por estar de
volta. — Henry esboçou um de seus sorrisos mais preciosos, que deveria tê-la
feito sorrir também, mas ele notou que a jovem parecia prestes a ter um ataque
apoplético.
— Não tão aliviada assim... — Juntou as mãos sobre o colo, sentindo o
galopar dos cavalos diminuir lentamente, anunciando sua chegada.
Ele queria confortá-la.
Lady Rose parecia-lhe uma irmã mais nova, a qual deveria proteger.
Apesar de não estar de acordo com as atitudes da jovem senhorita, podia tentar
entende-la. A pequena havia se apaixonado. Era notável tal amor em seus olhos.
Henry jamais havia se apaixonado, não daquela forma tão devastadora. E
ao auge de seus trinta anos, não estava mais tão esperançoso de vivenciar uma
experiência tão rara.
Ainda assim, pôde compreendê-la quando observou lágrimas ameaçando
inundar o mar de seu olhar.
— Não tem o que temer pequena sassenach. — Levou uma das mãos até
sua bochecha, impedindo uma lágrima de deslizar por seu rosto tão abatido em
tristeza.
— Está enganado capitão, minha vida só tende a ser ainda mais assolada
pelo caos. — Ela tentou sorrir, mas o sorriso sumiu entre o semblante
consternado.
Aquilo era uma verdade que ele não era capaz de rebater com nenhum
argumento. Henry não era tão tolo quanto ela julgara ser. Ele sabia que ela não
tinha passado a noite anterior entre as paredes do quarto que alugara naquela
estalagem.
Havia visto de sua janela quando ela passou correndo como uma
tempestade, segurando as mãos de Randall. Testemunhou também os rastros que
deixaram na areia, quando foram a procura de um lugar isolado. Henry viu
quando o beijo aconteceu, bem como os toques, e olhares tão quentes que
pareciam parte do fogo que crepitava na fogueira que os ladeava.
Ele não queria tê-los flagrado, mas parou de observá-los quando
percebeu que a noite não findaria com apenas um beijo.
Teria ido atrás dela, impedindo que jogasse o nome de sua família na
lama, e fora exatamente isso que ele pensou em fazer naquele instante.
Até que...
Até que ele a viu sorrir, da forma que uma mulher deve sorrir quando
sabe que é amada.
E então ele entendeu que era um momento que ela levaria para sempre
em seu coração, e não seria certo arruinar memórias tão doces.
Henry segurou uma de suas mãos geladas, e envolveu-as entre as suas.
Seu olhar segurou o dela por alguns segundos, um olhar de pura e genuína
admiração.
— Você é uma mulher forte. Se existe alguém que pode lidar com o caos,
é você Lady Rose. — Ele sorriu, um sorriso que chegou até os olhos azuis da
pequena senhorita, que pôde ter o coração aquecido com tais palavras. — Agora
vá, seus pais estarão tão felizes em recebê-la que não se aterão as suas escolhas...
digamos, questionáveis. — Piscou para ela, que retribuiu o gesto carinhoso com
um aperto gentil em sua mão.
Eles caminharam até o grande portão da propriedade, onde foram
acompanhados pelo lacaio que anunciou a entrada com grande euforia ao saber
que a jovem lady havia sido encontrada.
— Rose? — A Condessa deixou cair o pires de porcelana que trazia nas
mãos, ao ver a filha na soleira da porta.
Correu em seu encontro e a tomou nos braços de uma forma quase
angustiada, tamanha era sua apreensão. Rose percebeu que lágrimas vertiam dos
olhos da mãe, que tinha agora ambas as mãos pelo seu rosto, certificando-se de
que ela estava bem.
— Oh minha filha, minha pequena! Eu estava tão desesperada, eu
estava... Oh — Ela passou os braços novamente ao seu redor, de um modo que
apenas as mães sabem aconchegar um filho.
— Eu estou aqui agora mãe, está tudo bem. — Ela repetia como um
mantra, tentando acalmar as batidas do próprio coração.
Antes que pudesse pensar na falta que sentira de Isabel, Rose avistou o
Duque de Rescot se aproximar com um grande sorriso. O cunhado era casado
com sua irmã mais velha, estava há tempo suficiente na família para vir em sua
direção e dar-lhe um caloroso abraço.
— Rick você também está aqui! Eu não esperava... — Ela olhou para ele,
quase nas pontas dos pés, notando o quão familiar era aquele cálido olhar de
oceano.
— Eu não podia deixar de vir, estávamos todos tão aflitos... — Ele
suspirou longa e demoradamente.
— Lily também está aqui? — Pensou que seria maravilhoso rever a irmã.
— Infelizmente não. Com as crianças em casa, achamos que seria
exaustivo se ela viesse e os trouxesse. — Ele olhou para a porta que batia
próxima de onde estavam. — Mas creio que gostará de saber que Daryl está
aqui, com Lizzie, sua irmã. Ele veio nos auxiliar com a busca e Lizzie sempre
quis conhecer a Irlanda, então...
— Eu estava muito apreensiva Lady Rose. — A jovem de cabelos
pálidos se aproximou, oferecendo-lhe um abraço genuinamente terno. —
Contudo, eu sabia que a encontraríamos. — Sorriu amavelmente.
Rose vira Lizzie poucas vezes devido a sua rotina tão atarefada, mas
estas, foram o bastante para aproximá-las e uni-las em uma formidável amizade,
apesar de serem o oposto uma da outra.
Lizzie era uma sonhadora. Sempre munida de palavras cordiais e,
fraternos gestos de gentileza. Era a garota mais doce que já conhecera.
Com seus cabelos loiros e olhos tão claros quanto o céu do alvorecer, ela
encantava todos ao seu redor.
Fazia algum tempo que Rose não a via, notou que a jovem parecia mais
madura.
Definitivamente era uma bela mulher.
— Senti tanto a sua falta. — Rose falou baixinho, quase como um
segredo a ser confidenciado.
— Sobrou algum abraço pra mim? — Daryl aparecera com um sorriso
tão amplo que a contagiou.
Nunca havia pensado que sentiria tanto a falta daquelas pessoas, da sua
família, do seu lar. Abraçaram-se demoradamente por alguns minutos, até que o
Conde de Houghton tomou a atenção de todos que compartilhavam aquele
momento.
Seu pai sempre fora tão próximo dela, tão presente e amoroso, que Rose
não pôde conter as lágrimas ao jogar-se vigorosamente em seus braços.
Sentiu o cheiro da fragrância amadeirada que só encontrava ao receber o
conforto do pai, e finalmente sentiu que havia retornado à sua vida.
— Senhor! Eu achei que nunca mais a veria novamente minha filha. —
Ele beijou o alto de sua testa, ela mantinha os olhos fechados, temendo que
aquele instante pudesse findar. — Você está bem? — Ela apenas assentiu com
veemência, enquanto ele soltava o ar, nitidamente tendo um peso tirado dos
ombros.
— O que aconteceu Rose? Por onde esteve? — Isabel tinha um lenço
junto das pálpebras que pareciam um mar de lágrimas.
Todos entreolharam-se de uma forma quase constrangedora. Ela abriu a
boca para tentar dizer o que seria o início de uma catástrofe, quando Henry, que
até então mal havia sido notado, deu um passo a frente detendo toda a atenção do
ambiente.
Ele reverenciou de modo cortês o Conde e a Condessa, bem como o
Duque e os demais presentes ali.
— Eu a encontrei próxima daqui, estava perdida e parecia confusa. Deve
ter passado maus bocados nesse meio tempo. Acho que a jovem deveria
descansar e ter alguns cuidados necessários. — Ela o fitou agradecendo
silenciosamente por ele ter interrompido a seu favor. — Foi uma longa viagem.
Henry sorriu, e todos ficaram aliviados por algum tempo. Rose ouviu que
ele ficaria na casa da tia durante aquela noite, então teria tempo de agradecê-lo
devidamente depois. Estava sendo conduzida por uma criada até os cômodos do
segundo andar.
Uma longa escada percorria todo o grande salão, e portas apresentavam-
se enquanto caminhavam rapidamente.
Pôde ver Lizzie apressando-se em alcançá-las, e Rose pediu para a criada
lhe desse alguns minutos de privacidade.
— Você está realmente bem Rose? — Lizzie fechou a porta atrás de si,
temendo que alguém pudesse ouvi-las.
— Estou bem Lizzie, não há com que se preocupar. — Olhou em volta,
encontrando a banheira com água fumegante exibir uma delicada e perfumada
espuma na superfície.
— Oh, sim há. — Disse com palavras atropeladas, tamanha era a sua
pressa.
— Por que diz isso Liz? — Perguntou com a apreensão tomando conta de
cada músculo de seu corpo.
— Irene. Ela contou uma história um tanto... estranha. — Ela juntou as
mãos contorcendo os dedos parecendo aflita.
Irene, como ela havia se esquecido da própria dama de companhia? A
jovem de cabelos negros e olhos sagazes deveras havia presenciado aquele dia.
Irene tinha gritado por ela, para que retornasse à carruagem, para que não fizesse
nenhuma loucura, mas o que a jovem não esperava, ela vê-la pular naquele
pequeno barco com o homem que supostamente a atacara.
— Estou perdida Liz. — Ela sentou na beirada da cama, precisava
desabafar, parecia que ia desmoronar, mas a amiga veio em suporte, oferecendo-
lhe uma das mãos, segurando seus dedos de um modo terno e consolador, que
apenas Lizzie sabia oferecer.
— Eu não sei o que aconteceu Rose, mas se isso for verdade, terá de dar
alguma explicação, sabe disso. Sua mãe certamente virá interrogá-la em breve.
— Ela assentiu, metida em desespero.
E como se a Condessa tivesse adivinhado o teor daquela conversa, ela
adentrou ao cômodo após uma breve batida na porta de madeira maciça. Lizzie
fitou Rose com olhos de comiseração quando pediu licença e retirou-se do
quarto.
Rose nunca desejou tanto que abrisse uma fenda grande o bastante no
chão, e a engolisse.
Isabel fez um gesto com a mão na colcha sobre a cama, para que a filha
pudesse se aproximar, e assim ela fez. Mesmo temendo as consequências, Rose
tinha que lembrar que era sua mãe que estava ali, a mulher que sempre cuidava e
zelava por ela, mas que também era o rigor em pessoa quando alguma das filhas
não respeitava as diretrizes sociais.
— Rose, querida... — Começou ela, após um minuto de um pesado
silêncio. — Irene nos contou uma história um tanto mirabolante, a respeito do
dia em que foi sequestrada.
— Eu não fui sequestrada, mãe. — Se tinha mesmo de fazer aquilo,
começaria entregando-lhe o lado mais cru da verdade.
— Tenho certeza de que pode pensar que a culpa foi sua, mas...
Ela ergueu uma mão, interrompendo o que seria uma porção de rodeios
que não a levariam à lugar algum.
Precisava ser franca, e contar rapidamente tudo o que precisava ser dito,
antes que a coragem lhe faltasse.
— Mãe, peço que ouça-me por favor, eu não fui levada contra a minha
vontade, eu...
— Irene nos disse que o crápula pôs uma lâmina em seu pescoço! —
Declarou quase colérica ao relembrar as palavras sendo contadas por um jovem
dama de companhia que não conseguia parar de chorar.
— Sim, mas ele não tinha o intento de me ferir. — A história era mais
difícil de se fazer entender a cada novo detalhe que ela dizia.
— Como podia saber disso? — Inquiriu a mãe.
— Pois ele me disse, ora eu...
— Você perdeu o juízo? Oh céus, não é possível que foi tão tola ao ponto
de acreditar na palavra de um profano sem civilidade! — Cuspiu a sentença de
modo frio.
— Não fale assim dele! — Ela quase gritou, havia segurado tão
firmemente as lágrimas, apenas para soltá-las naquele instante.
Não queria chorar ou mostrar-se vulnerável. Mas seu coração estava em
frangalhos por deixar o homem que aprendera a amar, e ouvir palavras tão duras
a seu respeito, era mais do que podia suportar.
Havia pensado que poderia explicar tudo o que acontecera de forma
branda e polida. Contudo, estava mortalmente equivocada.
O relato fora contado entre lágrimas, suspiros e soluços quando fora
chegando ao fim.
Contou-lhe tudo.
O modo como o conhecera, a maneira que ele a protegeu, mesmo à seu
modo bruto na maioria das vezes. Contou do jovem Gael, e na admiração que o
menino tinha por Randall. Fez menção do beijo que ele lhe dera pela primeira
vez, quando encontrou-a desolada entre antigas decepções. Disse-lhe o quão
respeitoso ele era, o quão honroso eram seus tratos e o quanto de bondade ela
vira em seus olhos.
Por fim, confessou que se apaixonara.
— Por Deus Rose! Eu vou perder o resto de cabelo que ainda há em
minha cabeça. — Atalhou ela, tentando digerir tudo o que chegara ao seu
conhecimento.
— Eu não escolhi isso! Não escolhi me afeiçoar a ele, mas ele era tão
gentil, tão honesto comigo e...
— Honesto? Ele é um ladrão Rose! Um saqueador que nunca mais porá
as mãos em você! — Repreendeu com convicção.
Ela pensou em negar.
Em contar as promessas que ele lhe fizera outrora. Mas, aquelas
promessas pareceriam distantes demais aos olhos da mãe. Sendo assim, decidiu
guardá-las apenas para si, seria um alento em dias difíceis.
— Seu relato vergonhoso já chegou ao fim? — Seus olhos esboçavam a
severidade que suas palavras diziam.
Ela negou com a cabeça lentamente. O estrago já havia sido feito, não
podia esconder mais nada que posteriormente viesse a ser descoberto.
— Em uma noite, ele... nós... — Sentiu o choro preso na garganta,
ameaçando impiedosamente ruir toda a sua estrutura já falida.
Isabel pôs as mãos sobre o peito. Aquilo era desgraça demais para seu
aflito coração materno.
Olhou para a filha, a filha que embalara nos braços ao longo dos anos, a
pequenina menina que fazia travessuras com um riso de abandono, a jovem
senhorita que debutara há algum tempo, apresentando-se mulher diante da
sociedade.
De fato ela tinha crescido. E aceitar isso, era doloroso.
— Não precisa dizer mais nada. — Sua voz era branda, banhada de
decepção.
Certamente Rose preferiria ter sido tratada com gritos, ao invés de
receber o olhar de desapontamento que a mãe lhe dera.
— Você vai me perdoar algum dia? — Precisava daquilo. Tinha a
necessidade de ter o apoio da mãe de uma maneira que não podia compreender
naquele momento.
Isabel estava dividida entre ser uma mulher adepta à moral e aos bons
princípios, e ser a mãe que a filha precisava.
No seu íntimo, buscava entender suas razões, pôr-se em seu lugar e tentar
encontrar uma justificativa para seus atos indecorosos. Mas ela sabia que não ia
encontrar tal coisa. Pois não havia justificativas para o coração de uma mulher
apaixonada.
E ela via isso, em seu olhar quando falava do homem que roubou-lhe o
coração.
As mulheres da família Wymond sempre tiveram personalidades
impulsivas. À começar por ela mesma, que nunca deixou-se moldar totalmente
pelos padrões regidos daquela época.
— Eu não tenho nada a perdoar Rose. — Tomou suas mãos e acarinhou-
as. — Eu só não queria que sofresse, entende? — Viu-a anuir bruscamente,
limpando uma lágrima que repousara em sua bochecha. — Nenhuma mãe quer
um caminho difícil para sua filha. Pelo contrário, você foi criada para não ter
dificuldades nessa vida Rose. Seu pai construiu um império para a proteger.
Porque não queríamos vê-la sofrer. Foi tudo para você e suas irmãs. — Sorriu
amavelmente, um sorriso que iluminou seus olhos. — Mas vocês três
escolheram um caminho diferente, e nós não podemos salvá-las das
consequências minha querida. — Ela concordou com um meneio de cabeça. —
Você vai precisar ser forte, de uma maneira que nunca foi preciso antes. —
Advertiu. — Você pode fazer isso?
— A senhora estará comigo? — Mais uma vez buscara encontrar
conforto em seus braços.
— Sempre minha menina, sempre. — Sua voz saiu em um sussurro,
como um bálsamo que trazia-lhe alívio para a dor em seu coração, atenuando seu
espírito desconsolado, dando-lhe esperança de que tudo ficaria bem dali em
diante.
Elas se abraçaram de um modo que mães e filhas fazem, quando ambas
descobrem que o coração de uma mulher pode ser tão singular, mas também tão
semelhante.
Isabel beijou sua bochecha com ternura, limpou suas lágrimas
derramando uma generosa porção de amor em cada toque.
Rose era a sua última filha a encontrar seu destino naquele vasto mundo
de experiências, as vezes dolorosas. A última filha que faltava encontrar seu
lugar no coração de outro alguém.
E independente de quem fosse este alguém, se fosse a escolha genuína de
sua alma, ela o receberia de braços abertos como um filho.
A única certeza que ambas poderiam ter naquele momento, era de que
estariam juntas para enfrentar as consequências que inadvertidamente viriam.

*sassenach —inglesa
CAPÍTULO DEZENOVE

"A melodia só podia ser ouvida por aqueles que tinham pendências com
o destino.
Soava baixo, ritmado, suave... Um farfalhar que aquecia o espírito de
uma forma a embalá-lo com a canção. Até tornar-se parte do som, de uma
forma a não ouvir nada além das vozes que clamavam. Vozes que pareciam
enfeitiçar, vozes que lembravam dois amantes desventurados que há muito
tempo estiveram ali."

A viagem de volta a Londres fora exaustiva e tão enfadonha, que Rose


agradeceu aos céus em voz alta quando pôs os pés em casa.
Por insistência da mãe, que sabia de toda a situação, não ficaram por
muito mais tempo na casa da tia Ingrid, pois especulações poderiam tornar-se
burburinhos tão rapidamente que não poderiam contê-los. Sendo assim,
retornaram ao bulício da Inglaterra, e estavam finalmente em casa.
A propriedade dos Wymonds dava-lhes às boas vindas com os lírios
vestidos de um branco imaculado, o céu de um límpido azul e a sensação de
conforto que todo o requinte proporcionava.
Rose desceu da carruagem com o auxílio de Henry, que decidiu retornar
com eles, já que havia deixado assuntos pendentes em Londres que requeriam
sua imediata atenção. Todos concordaram com sua companhia, já que ele fora o
responsável por resgatar a filha mais nova do Conde de Houghton. Havia por
certo caído nas graças de seu pai, pensou Rose ao olhá-lo de esguelha. Aliás, ele
não aceitara a generosa recompensa que estava sendo oferecida pelo seu resgate.
Mesmo sendo persuadido a pegar sua parte, ele negara veementemente.
Mostrando ser um homem ainda mais valoroso do que haviam concluído.
Rose notou que seus atributos não foram apreciados apenas por seu pai,
mas também por Lizzie, que conduzira uma conversa animada com o capitão
durante quase todo o longo trajeto que percorreram.
A jovem de longos cabelos da cor do sol segurou uma das mãos de Henry
quando também foi amparada para fora da carruagem, de uma forma mais gentil
do que apenas mera cortesia. Ele afagou seus dedos enluvados, capturando seu
olhar cobalto quando ela inclinou levemente o queixo em sua direção.
Se Rose não tivesse tão esgotada, teria sorrido quando a viu fazer
exatamente isso e corar de uma maneira divinamente graciosa.
Rose despediu-se do capitão, agradecendo toda a sua cordialidade e
bondade demonstradas a ela, após um breve momento de comoção. Ela os
deixou a sós, como que intuindo que algo além da corriqueira amizade havia
surgido entre eles.
Finalmente Lady Rose havia retornado ao lar.
Devia estar feliz, pensara no primeiro dia em que desfrutou de um longo
banho em sua imensa banheira e suas próprias essências perfumadas. Pensara
nisso outra vez, quando degustara de um farto banquete que a mãe mandara
preparar em sua homenagem, celebrando seu retorno. Novamente tinha o mesmo
pensamento pertinente semanas depois, quando nada parecia satisfazê-la, apesar
de ter tudo que pudesse almejar, ao alcance de suas mãos.
A primeira semana de volta à velha rotina havia sido apreciada com certo
gosto de nostalgia. Ela verdadeiramente entregara-se aos velhos hábitos tão
meticulosamente regrados. Quase podia dizer que sentira saudade daquela vida,
afinal, era deveras uma boa vida.
No entanto, após o primeiro mês, os fartos jantares não lhe pareciam
mais um merecido banquete, mas sim, um ultrajante desperdício. Não
precisavam de tudo aquilo, tampouco tinham necessidade de toda aquela
formalidade. Até mesmo os banhos e todas aquelas fragrâncias francesas já não
pareciam lhe agradar. Sentia falta da simplicidade do aroma do sabão de lixívia
que usara quando estava no navio de Randall. O único sabão que tinham o luxo
de ter.
Sentia falta de coisas que jamais pensou que sentiria, e queria coisas que
nunca lhe pareceram tão essenciais.
Tudo à sua volta parecia rir zombeteiramente de seu estado deplorável de
confusão. Tudo parecia errado de alguma forma inquietante.
— Rose, posso entrar, querida? — Isabel batera três vezes na porta de
mogno antes de adentrar ao cômodo, com o consentimento vigoroso da filha.
A Condessa trazia nas mãos alguns pincéis longos e de cerdas macias,
provavelmente importados de algum lugar, certamente custando uma quantia
relevante. Rose nunca tinha se interessado em saber o valor das coisas. Tudo o
que sempre soube, era que a família recebia uma quantidade absurda de libras
anualmente, que poderia manter o alto padrão dos Wymonds até as próximas
gerações. E saber disso sempre bastou, até aquele momento.
Depois de viver tanto tempo entre a simplicidade, aprende-se a
contemplar os reais valores do que não se pode comprar.
No entanto, jamais iria mostrar qualquer ingratidão pelo ato gentil da
mãe, que entregara-lhe o material, quando ela se aproximou da tela alta que
ficava sempre no mesmo lugar, próximo à janela, onde podia ver um pedacinho
do céu para que pudesse sonhar.
— Achei que gostaria de pincéis novos para voltar a pintar. Sempre teve
talento com a tela. — Ela sorriu e sentou-se no estreito sofá de linho aos pés da
cama de dossel.
Ela anuiu silenciosamente e esboçou um sorriso morno que derramou-se
pelo ambiente, tornando tudo mais belo aos seus olhos atentos. Pegou o pincel
entre os dedos afilados, mergulhou na cor azul e passou a traçar o céu em sua
infinita expansão. Estava tão absorta na paisagem que Isabel simulou uma
abafada tosse para chamar-lhe atenção antes de seguir um frívolo dialogo como
se a vida não passasse de amenidades.
Contudo, Rose sabia a razão de a mãe estar ali observando-a com certa
expectativa aflita no olhar, e não demorou muito para Isabel expor suas
apreensões em voz alta.
— Rose, eu queria lhe fazer uma pergunta. Visto que passaram-se
semanas desde que retornou, completou um mês e...
— Não, mãe. Minhas regras ainda não vieram — disse apenas, com um
frio percorrendo seu estômago de um modo quase enjoativo.
— Oh... — A Condessa abafou um longo suspiro com uma mão sobre a
boca, tentando inutilmente parecer despreocupada. — Entendo.
Após obter sua resposta, a Condessa caminhou até o tripé da tela em que
a filha pintava, mencionando um breve elogio às cores que ela escolhera e, por
fim, mas não menos constrangedor, retirando-se de seus aposentos com uma
desculpa tão fútil que a fez parecer ainda mais afoita.
Rose mergulhou o pincel mais uma vez e tentou retratar o que estava em
sua mente.
Claro como o dia, os olhos de Randall saquearam os seus pensamentos.
Ele tinha esse poder a seu despeito. Invadia tudo e qualquer coisa que a
compunha. Ele estava em todo lugar. E seus olhos negros a observavam com o
fogo que seus lábios demonstraram em todas as vezes que a beijara.
Olhou para a tela. Os traços ora fortes, e ao mesmo tempo suaves, como
ele, que podia ser duro em um minuto e gentil no seguinte, deixando-a ainda
mais suscetível ao seu modo ímpar de mostrar que sua alma era feita de
bondade.
Ela tinha a testa plissada e os olhos apurados na pintura, quando se deu
conta de que suas mãos não estavam mais dançando sobre a tela, mas sim,
depositadas delicadamente sobre seu ventre.
Ela ainda não estava certa, mas percebeu que desejava que aquela noite
não tivesse findado ao alvorecer.
Desejava que aquela noite pudesse ter lhe dado algo ainda mais precioso
do que tudo que já recebera.
Ela queria estar carregando o filho de Randall. Jamais confessaria isso,
nem mesmo para a mãe, que tanto a apoiara. Mas em seu íntimo, ela queria uma
criança dele.
Queria um lindo bebê de cabelos negros como o do homem que amara.
Um menino que herdaria os olhos do pai, que guardaria a intensidade daquele
olhar que a perseguiria até o fim de seus dias.
Ela queria um filho, mesmo sabendo que a criança estaria fadada às
consequências de sua concepção fora do matrimônio.
Ainda assim, ela desejava estar grávida com um fervor que a
assombrava.
Outra batida na porta a sobressaltou, tirando-a bruscamente de seu
devaneio.
— Entre — autorizou ao ver Lizzie espreitá-la.
— Sua mãe disse-me que eu poderia subir. Espero não tê-la atrapalhado
ou sido inconveniente. — Rose a puxou pela mão de modo tão ligeiro que mal a
deixou concluir sua sentença.
— Jamais seria inconveniente, Liz. — Ainda segurando sua mão, fez um
gesto para que ela lhe fizesse companhia no sofá.
— Não quero parecer conivente com sua mãe, mas ela pediu-me um
favor. — Tentou conter um risinho divertido ao vê-la revirar os olhos diante de
sua declaração.
Rose pôs as mãos sobre os ouvidos dramaticamente, opondo-se a ouvi-la,
enquanto ambas rendiam-se às gargalhadas.
— Não faça isso, Rose, não é tão ruim. É apenas um baile. — Queria
animá-la a todo custo.
— Bailes tornaram-se hediondos para mim, Liz. Descobri que são apenas
um amontoado de nobres abastados e jovens senhoritas tentando fisgá-los. Isso
se tiver sorte e não encontrar nenhum cavalheiro mesquinho que se acha no
direito de exigir atenção indevida!
Relembrou as antigas experiências que lhe deram uma fama um tanto
quanto maquiavélica.
— Eu sei que devem haver pessoas más intencionadas, mas terá música,
risos, e coisas lindas para se apreciar. — Ela sorriu inocentemente.
Lizzie jamais fora a um baile.
Tinha dezenove anos e nunca frequentara uma das noites da nobreza,
afinal, ela não era uma lady. Sua família apenas conseguiu um bom nome e uma
boa herança devido à fama de seu irmão quando fora do exército. Ele havia
conseguido tirá-los da miséria em um tempo que não tinham nada além de más
recordações. Daryl era um irmão cujo o coração era voltado a ela, por razões que
apenas um cruel passado em comum podia uni-los.
Rose sabia que ela guardava um segredo. Um segredo que a fazia manter-
se distante das pessoas, da agitação dos bailes, e dos homens que por vezes
tentaram cortejá-la. Ela os afastava de um modo impassível, nunca os deixando
ter qualquer tipo de contato com ela, sequer uma conversa. Mas Rose nunca
soubera o que ela mantinha escondido sobre seu passado, e não queria invadir
suas defesas ao questioná-la.
Por essa razão a aproximação da amiga com o capitão Henry havia
chamado tanto sua atenção. Aquilo não era algo corriqueiro.
Rose se aproximou dela com um amplo sorriso.
— Venha comigo! — anunciou alegremente, como se aquilo fosse uma
solução para todos os seus problemas.
Lizzie olhou para ela parecendo não ter certeza se tinha compreendido o
que ela dissera. Aquilo era inconcebível por tantos motivos que se ela fosse
numerá-los em uma lista em ordem prioritária, ficariam ali noite adentro, e boa
parte do dia seguinte.
— Não. Definitivamente, não — rebateu, convicta.
— Liz, por favor, você mesmo disse. Há tanto para ver, coisas belas para
apreciar, pessoas para conhecer melhor... — disse sugestivamente com outro
risinho matreiro à guisa dos lábios.
— O que está insinuando? — Lizzie cruzou os braços sobre o colo,
parecendo demasiadamente intrigada.
— Ora, não precisa de muito empenho para perceber a afeição
instantânea de Henry por você. — Deu de ombros tentando não rir novamente.
— Não há nenhuma afeição, Rose, e mesmo se houvesse... — Respirou
pausadamente antes de prosseguir, um devastador pesar tomando conta de suas
doces feições — jamais seria bem-sucedido.
Rose precisou de alguns segundos para pensar no que dizer. Nunca vira
Lizzie falar daquela maneira. Ela parecia tão triste, tão solitária. Tomou uma de
suas mãos e tentou sorrir, um sorriso terno que dizia tudo o que seu coração
desejava.
— Por favor, então vá apenas para fazer-me companhia. — Seus olhos
eram tão suplicantes quanto às palavras pedintes.
— Está bem.
Lizzie viu-se concordando e quase não acreditou que havia dito aquilo.
Mas ela sorriu com a expectativa de ver as coisas bonitas que o irmão
sempre fizera questão de lhe descrever com riqueza de detalhes. Ela sorriu
porque há muito tempo havia descoberto que chorar não adiantaria em nada, não
mudaria nada. As lágrimas apenas serviram para externar suas dores, sua
lástima. No entanto, ninguém pode lamentar para sempre. Por esta razão ela
sorria. Mesmo que o medo estivesse a vigiando em algum lugar escuro dos
recônditos da sua mente, como um demônio que tentava se alimentar de toda a
sua esperança.
— Vai ser ótimo! — Rose bateu palmas, empolgada demais para tentar se
conter.
Talvez sair lhe fizesse bem, afinal. Talvez pudesse de alguma forma lhe
trazer algum alento, já que nada do que tinha ali havia ajudado. Seus
pensamentos voltavam para Randall, causando-lhe um sentimento angustiante
por estar tão longe de seu alcance. Longe de seu toque, seu olhar, seus beijos... A
dor era quase visceral quando pensava em tudo que os apartava. Embora fosse
difícil suportar tudo aquilo sem ter vontade de abandonar todas as coisas e voltar
para a Irlanda, ela apegava-se piamente à promessa que ele lhe havia feito, e isso
dava-lhe a força necessária para seguir sua vida enquanto estava à sua espera.
— Oh, céus, temos um problema! — Lizzie anunciou com grande
melancolia. — Eu não tenho trajes apropriados, nunca deixei que me
comprassem vestidos elegantes como estes que vocês usam. — Apontou para um
canto do cômodo onde havia muitos vestidos pendurados cuidadosamente. —
Para ser franca, jamais quis um desses. Parecem tão desconfortáveis. — Sua voz
era um fiapo constrangido de som.
— Arranjaremos algo para você — afirmou Rose, indo na direção dos
trajes e da penteadeira que tinha um grande espelho talhado de rosas em suas
laterais bem polidas.
— Eu não posso aceitar, Rose. Eu...
— Deixe-me transformá-la em uma lady esta noite! — Ela parecia
saltitante.
Deveras, Rose sempre fora apaixonada pela moda e tudo que ela podia
lhe proporcionar. Todo o luxo e o requinte charmoso de cada peça, cada corte,
cada drapeado e até o mínimo detalhe, lhe encantava de uma forma inexplicável.
Com um sorriso capaz de acender cada faísca de alegria adormecida em Lizzie,
ela a conduziu até uma cadeira de espaldar estofado, de frente para o espelho,
que as encarava com promessas de diversão entre rendas, bordados e tafetás.
— Você é minha Cinderela por esta noite, milady. — Reverenciou-a de
modo teatral e exagerado, arrancando-lhe uma gargalhada contagiante.
— Não esquece que o feitiço só dura até a meia-noite, minha fada
madrinha. — Abafou um gritinho com ambas as mãos quando Rose girou-a na
cadeira.
— Lembre-se também que antes da meia-noite a Cinderela encontra o
príncipe. — Piscou para ela quase maliciosamente.
Lizzie negou com a cabeça, pensando que precisava manter os pés no
chão. Lembrando-se constantemente de não criar expectativas que jamais
poderia tornar real. Mesmo que algumas vezes isso fosse realmente uma árdua
tarefa, já que ela passava a maior parte de seus dias, perdida em seu próprio
mundo fantasioso, onde não havia maldade, sequer sofrimento.
Apenas paz.
Ela tinha ciência de que estava rumando para um caminho perigoso, mas
a curiosidade de explorar falou mais alto dentro dela, e por uma única vez, por
uma única noite, ela seria a Cinderela. Atrever-se-ia a crer que era tão nobre
quanto uma princesa de contos de fadas, apenas por uma noite.
Rose passou boa parte da tarde trabalhando no penteado de Lizzie, que
resultou em uma bela cascata dourada que descia ondulada pelos seus ombros,
enquanto uma trança pendia como um arco em sua cabeça. Suas maçãs estavam
coradas e seus lábios foram pintados levemente com um tom rosado dando-lhe
cor ao semblante miúdo.
Ela usava um vestido azul que Rose lhe emprestara, o tecido reluzia sob
as luzes dos candelabros e realçava lindamente a cor de seus olhos.
— Está pronta — anunciou Rose com um sorriso, maravilhada ao
observá-la em seu esplendor.
— Eu... eu estou... — Lizzie mirava seu reflexo no espelho, quase não
podendo acreditar que a bela jovem que a olhava de volta era ela.
— Está linda — completou Rose, satisfeita.
Realmente estava tão bela quanto qualquer jovem dama de alta estirpe da
sociedade, pensou Lizzie. Notou que o vestido moldava-se ao seu corpo,
desenhando nitidamente seu quadril estreito e a curva de sua cintura. Por Deus!
Ainda havia um decote! Era em formato de coração, tão justo que colava-se ao
seu corpo como se fosse uma segunda pele.
Aquilo viria a ser um problema? Questionou-se mentalmente. Não queria
obter uma atenção demasiada, não queria olhares voltados em sua direção. Ela
temia que alguém pudesse equivocadamente considerar aquilo como um convite.
Um convite que ela jamais aceitaria.
Estava com medo. Tanto medo que sentiu as mãos frias e o punho
fechado em torno do tecido que caía sobre suas pernas.
— Não posso ir assim, Rose. — Ela admirou-se mais uma vez no
espelho, guardando a imagem de si mesma. Uma imagem que às vezes refletia
apenas pavor da exposição.
Rose notou o desconforto dela ao ter o colo exposto daquela forma.
Apesar de não ser um decote tão revelador, ainda assim notara seu
descontentamento. Ela foi novamente ao armário que guardava seus trajes mais
elegantes, e encontrou o chale perfeito para cobrir seus ombros, dando-lhe um
pouco mais de conforto.
Lizzie analisou-se mais uma vez, e finalmente sentia-se um pouco mais
segura, como se aquela camada de tecido pudesse lhe dar algum tipo de
proteção. Ela assentiu ligeiramente, um sorriso receoso surgindo em sua boca
rosada.
— Falta uma coisa — Rose disse após disparar até uma prateleira no
canto do quarto.
Pegou um pequeno sapato com algumas pedras brilhantes cravadas neles
e fez um gesto para Lizzie vesti-los. Ela obedientemente enfiou os pequeninos
pés no confortável sapatinho que lhe serviu tão bem.
— Está pronta, minha Cinderela — Rose anunciou com grande
contentamento.
— Céus! É perfeito! Nunca tive algo tão belo. — Teve de manter-se
firme para não derramar as lágrimas que pendiam de seus cílios translúcidos.
A noite parecia ser propícia a realizar sonhos, e Lizzie quase pensara que
estava sonhando acordada quando algumas horas depois, dirigiam-se a mansão
dos Campbells, com a carruagem que levava o brasão dos Wymonds.
Fizera Rose prometer que não a deixaria só, nem um minuto sequer, e
mesmo assim seu coração parecia querer explodir no peito.
Rose planejara uma noite tranquila para que pudesse ter alguma
distração, no entanto, jamais poderia imaginar que tranquilidade era a última
coisa que teria.
CAPÍTULO VINTE

"E muitas histórias tornaram-se lendárias após o trágico romance da


jovem sacerdotisa e do espírito que lhe assombrava.
Muitos diziam ter ouvido as juras de amor eterno sussurradas através
das rochas, declarações que eternizaram-se naquela noite sagrada em que a
morte sobrepujara-se à vida em nome do amor."

— Oh, céus, segure minhas mãos, Rose. — Lizzie tinha a expressão


aparvalhada diante de tanta magnificência a ser apreciada. — Não sei se posso
fazer isso. — Relutou no hall de entrada da esplendorosa mansão.
— Ande logo, Liz. Não me faça arrastá-la até Lady Campbell. —
Prosseguiu determinada sua ligeira caminhada enquanto seus nomes eram
anunciados em voz alta.
Rose sabia que Lady Campbell tinha a fama de ser uma atípica senhora
que não era capaz de segurar a língua dentro da boca. Era conhecida por seus
comentários ácidos e sua postura irreverente. Por estas e outras razões, Rose
sempre quisera conhecê-la, só não sabia que ia se encantar por ela na primeira
vez que a visse.
Uma mulher de esbelta silhueta, postura altiva e andar elegante caminhou
em sua direção. Ela não trazia soberba em seu sorriso, como a maioria dos
nobres ali, mas sim, havia perspicácia no modo gentil em que sorria.
— Você deve ser Lady Rose Wymond! — Ela não lhe estendeu a mão,
tampouco fez algum gesto cortês como ditava a etiqueta das damas.
Contraditoriamente, a mulher puxou-lhe em um abraço apertado e
curiosamente familiar. E foi naquele momento que Rose teve a certeza de que
aquela era a admirável Lady Campbell, afinal, ninguém mais seria tão
espontânea quanto ela.
— Sim, sou eu. É um prazer conhecê-la pessoalmente, milady. — Ela
sorriu amplamente. — Minhas irmãs têm muito apreço pela senhora.
— Aquelas meninas são joias raras. Sua mãe deve ter orgulho por criar
mulheres inteligentes e corajosas! — Fez um gesto para que pudesse se
aproximar e falou baixinho em seu ouvido: — Cá entre nós, não são muitas as
mulheres que pensam em algo além de vestidos nos tempos em que vivemos. —
Abafou um risinho malicioso.
— Tem toda razão. Inteligência não é uma das aptidões femininas a
serem desenvolvidas aos olhos equivocados da nossa tola sociedade — falou de
maneira lastimosa.
— É por isso que existem senhoritas espertas como você e suas irmãs,
para mostrar que eles estão miseravelmente errados. — Riu alto sem qualquer
preocupação em ser discreta.
— Tenho certeza que pensamos do mesmo modo, Lady Campbell —
afirmou com grande veemência.
— Espíritos livres sempre carregam conceitos semelhantes, minha cara.
— Apertou-lhe uma das mãos com grande amabilidade. — E quem é esta jovem
de beleza estonteante que a acompanha? — Seu olhar atento jamais deixaria a
pequena Lizzie passar despercebida.
— Está é a senhorita Lizzie, irmã do meu cunhado, Lorde Williams.
Rose apresentou-a com o coração agradecido por Lady Campbell não
mostrar diferença entre a nobreza e a plebe.
— Que menina graciosa! — Tomou-a entre os braços assim como tinha
feito com Rose. — Seja muito bem-vinda. Espero que esta seja uma noite
mágica. — Piscou para Lizzie que pareceu flutuar com a escolha de palavras da
elegante senhora.
— E a senhora acredita em magia, milady? — Jamais saberia de onde
havia tirado coragem para cumprimentar a anfitriã da festa, tampouco de indagá-
la daquela forma tão evasiva.
— É tolo quem não crê, pequena Lizzie — murmurou como se estivesse
lhe confidenciando o mais secreto segredo.
— Oh, eu gosto tanto da senhora, Lady Campbell! — Lizzie segurou sua
mão firmemente.
Rose a observou orgulhosa.
Lizzie sempre fora tímida e acabrunhada, mas quando encontrava alguém
com quem pudesse dividir seus sonhos, nem que fosse um pedacinho deles, ela
abria um sorriso capaz de aquecer qualquer coração, munida de palavras mornas
e grande sensibilidade. Ela tinha o dom de fazer até um cético acreditar na magia
que afirmava existir.
Ela não tinha bondade, ela era bondade. A seu modo sereno e pacífico,
podia transformar o caos em brandura com apenas algumas palavras e seu olhar
de ternura. Lizzie era uma daquelas almas altruístas que tem a necessidade de
dar afeto, e ela mostrava todo o seu carinho a Lady Campbell, que era outra alma
feita de quimeras.
— Tenho que dizer que me encantei pela senhorita também, Lizzie.
Aliás, as duas conquistaram meu apreço. — Sorriu para Rose, que retribuiu
genuinamente. — Agora vão e aproveitem a noite. Se tiverem qualquer
infortúnio, não hesitem em procurar-me. — Segurou o olhar de Rose por alguns
segundos antes deixá-la ir.
Ambas caminharam a passos curtos em direção ao recinto abarrotado de
cavalheiros sorridentes que não desviavam a atenção dos decotes das moças, que
por sua vez, gastavam todos os seus esforços tentando fisgar algum nobre rico o
bastante para levá-las ao matrimônio. Era um show de banalidades, pensou Rose
com nítido desânimo.
Havia gostado dos bailes. Para ser franca, havia amado aqueles eventos.
Mas parecia ter sido em um passado tão distante que era quase impossível
recordar das sensações. Fora numa época de inocência, quando ela acreditava
que encontraria o amor em um daqueles braços de homens altos, loiros e brancos
como palmitos cozidos. Riu consigo mesma do rumo que conduzia os próprios
pensamentos.
E como se pensamentos ruins atraíssem pessoas ruins, avistou naquele
mesmo instante o Duque de Havenwood, responsável por metade de sua fama de
megera, e também por seu desastroso primeiro beijo.
Se é que podia chamar tal experiência nojenta de beijo. Revirou os olhos
e seguiu rumo à mesa, oferecendo um copo gelado de limonada para Lizzie, que
estava afoita com tudo que seus olhos capturavam, enquanto levava o copo aos
lábios afirmando-lhe repetidas vezes que aquela era a bebida mais saborosa que
já experimentara.
Lizzie certamente sabia usufruir dos pequenos prazeres da vida.
— Rose! Oh, senhor, é ela mesmo! — Uma voz estridente seguida de um
grito histérico a sobressaltou, quase fazendo-a derrubar a limonada que tinha nas
mãos.
— Eleonor! — Abraçou a amiga com grande entusiasmo. — Como é
bom revê-la. — Apertou-a de forma calorosa e animada, com um sorriso que só
aumentava conforme reencontrava outras duas de suas mais íntimas confidentes.
— Madeline! Jane! Venham aqui também. — Estreitou-as em um aperto
saudoso.
— Sentimos tanto a sua falta! — Jane declarou, limpando uma lágrima
sincera de seus olhos.
— E estávamos tão preocupadas! Quando soubemos que havia sido
sequestrada, ficamos tão aflitas. — Madeline permaneceu segurando uma de
suas mãos com tanta força que os nós de seus dedos estavam esbranquiçados.
— Eu não fui sequestrada — admitiu com grande sinceridade,
arrancando suspiros de surpresa e indignação das três amigas.
— Conte-nos tudo! — Eleonor exclamou como quem ordena, e
obedientemente Rose iniciou a sua história.
Seria uma longa história, pensou Lizzie enquanto bebericava da
limonada após servir-se de um pouco mais da bebida que estava doce como ela
tanto gostava. Mas ainda assim, discretamente pôs mais um pequeno cubo de
açúcar, e segurou um risinho nos lábios, como uma criança que faz alguma
travessura e não é pega.
— Lady Lizzie! — Uma voz soou atrás de si, fazendo com que o cubo de
açúcar, o copo e a limonada dentro dele fossem parar no chão desastrosamente.
— Oh, céus, perdoe-me, perdoe-me... Eu não quis... — Enquanto tentava
desculpar-se, debruçou-se de modo a pôr um joelho no chão, limpando
inutilmente a bagunça que havia feito.
Não percebeu que tinha se cortado, até sentir mãos gentis interrompendo
sua fracassada tentativa de juntar os cacos da porcelana estilhaçada.
— Perdoe-me, milorde, eu sou tão atrapalhada. Não deveria estar aqui,
não deveria ter vindo. — Ela olhou em volta tentando encontrar Rose, encontrar
alguma saída pela qual pudesse escapar.
Mas tudo o que ela encontrou foi um par de preocupados olhos azuis
observando-a com afetuosidade, certamente perguntando-se sobre a razão de ela
surtar daquela maneira tão exagerada, sendo que fora apenas um acidente
corriqueiro.
— Deixe-me cuidar disso para você. — Ele segurava suas mãos junto de
si, de uma forma tão íntima que a espantava.
Por um segundo ela pensou em correr. Quis correr e gritar para que Rose
pudesse resgatá-la daquela situação, para que alguém fosse ao seu auxílio,
alguém que ela não temesse.
Apesar de ter reconhecido o capitão Henry quando ele a levantou do
chão, ela estava em um estado de choque em que o temor falava mais alto que a
razão em sua mente, e tudo o que ela queria era sair dali imediatamente, para
longe dele, para que ele não pudesse testemunhar a sua vergonha.
— Sei me cuidar sozinha. — Ela puxou as mãos de modo quase brusco
demais. — Perdoe-me por tomar seu tempo e por submetê-lo a tais
circunstâncias. — Dito isso, ela deu-lhe as costas e caminhou um tanto
cambaleante de volta à mesa de limonada.
No entanto, quando ela notou o tanto de sangue que pingava de uma de
suas mãos, paralisou de tal maneira que não era capaz de esboçar nenhuma
reação.
Todo aquele sangue em suas mãos.
Sangue, como o dia em que perdera tudo. Naquele dia também havia
muito sangue, misturado às lágrimas.
As lembranças eram devastadoras demais para que ela pudesse carregá-
las sozinha, e como se pudesse intuir suas necessidades, Henry ignorou suas
últimas palavras e fora ao seu encontro.
Ela definitivamente não sabia se cuidar sozinha, concluiu ele quando
segurou-a pela cintura e a amparou, a levando para a varanda mais próxima dali.
Certamente ar fresco lhe faria bem.
Ele já tinha visto outras mulheres serem afetadas daquela forma ao se
depararem com algum ferimento. Muitas delas choravam por apenas alguns
arranhões.
— Mulheres... — murmurou ele ao conduzi-la até um pequeno banco de
ferro e ajudá-la a sentar-se de modo confortável.
Ela ainda não falara uma palavra sequer. Sendo assim, de modo
cavalheiresco, ele tomou as rédeas da situação.
Rasgou um pedaço de pano de seu traje, em uma tira fina o suficiente
para que pudesse ser amarrada ao redor da mão franzina da pobre donzela,
estancando a maior parte do sangramento. Com a manga de sua camisa de linho
ele limpou o resto de sangue seco que havia percorrido seu pulso.
Notou como ela estava pálida e fria como uma pedra de gelo. Ainda sem
falar e sequer mover-se, ela o fitava com olhos vazios, como quem está longe
demais para retornar à superfície.
Pensou que poderia ver agonia naquele olhar. Uma agonia tão pesada
naquelas águas turvas de seus olhos, que quase o arrastou para dentro daquela
escuridão.
Ele quis mergulhar, quis adentrar naquele mar revolto para levar-lhe
novamente à calmaria, quis perscrutar a sua alma e descobrir seus tesouros.
Ela tinha uma pequena pulseira atrelada ao pulso, onde um pequeno
pingente soltara-se em suas mãos. Era uma pedra. Uma pedra brilhante e
cuidadosamente polida que ele não soube reconhecer à luz do luar.
E foi naquele momento que tudo aconteceu depressa demais.
Enquanto tinha as mãos dela junto de si, ela despertou do transe ao qual
fora acometida, e vendo-o tão próximo, tão inapropriadamente perto, e tocando
suas mãos daquela forma tão assustadora, ela correu para longe dele, antes
mesmo que ele pudesse reagir, deixando-o apenas com a pequenina pedrinha
brilhante nas mãos, e confusão em seu olhar.
— Oh, senhor, preciso encontrar a Rose.
Ela dizia aquela frase como um mantra que de alguma forma pudesse
ajudá-la.
Rose tinha acabado de findar o longo resumo que fizera de sua história
com Randall. As três jovens estavam de queixo caído, com expressões de
incredulidade.
— Por mil demônios, Rose! — Eleonor fora a primeira a esboçar uma
reação seguida de um impropério.
— Não posso crer! Conheceu mesmo um pirata! — Madeline levou as
mãos à boca, abafando um risinho sugestivo.
— Não era um pirata propriamente dito. — Rose deu de ombros,
tentando soar indiferente.
— É bom ter algumas aventuras como esta, mas você não pretende levar
isso adiante, não é mesmo? — Jane, a mais cautelosa entre elas, soou temerosa.
— O que quer dizer com levar adiante? — Rose indagou, claramente
ofendida com o questionamento.
— Ora, Rose, apesar de eu concordar que tudo foi extremamente
empolgante, você tem uma vida aqui. Padrões estabelecidos e um futuro que não
inclui piratas. — Jane estava preocupada. Não tencionou magoá-la, mas já o
havia feito.
— Que vá para o inferno esses padrões! — atalhou Rose com severidade.
— Eu não quis deixá-la constrangida, Rose. Apenas pense na sua família
— Jane prosseguiu.
— Creio que não é de nossa incumbência opinar, Jane — Madeline
interrompeu antes que Rose a mandasse para o inferno também. — Aliás, o amor
está onde menos esperamos que ele esteja. — Ela sorriu com comiseração.
— Mad está certa, Jane — anuiu Eleonor, compartilhando do sentimento
de compreensão de Madeline. — E eu aposto que ele é lindo como o pecado! —
falou entredentes com um risinho abafado.
— Oh, ele é! — Rose afirmou categoricamente, com os ânimos
renovados.
Aos poucos, a recatada Jane fora se habituando aos modos desregrados
das amigas, e logo estava vibrando com as descrições que Rose fazia a respeito
da pele bronzeada do misterioso pirata.
Estavam todas entretidas demais para notar qualquer presença se
aproximando, e antes que pudessem se dar conta de que não estavam mais
sozinhas naquela conversa, um pigarrear ácido e alto as sobressaltou.
— Ora, ora... Lady Rose Wymond de volta aos bailes da aristocracia. —
O Duque de Havenwood lentamente pôs-se ao lado dela.
— Simon Lawford — pronunciou seu nome com um gosto amargo na
língua.
— Não é aprazível que uma dama me trate pelo nome de batismo, mas
vou fazer vista grossa já que não somos dois estranhos. — Pegou uma mecha de
seu cabelo e alisou-a entre os dedos. — Aliás, digo até que somos mais íntimos
que a maioria aqui. — Ele sorria de modo malicioso, obsceno, sujo.
— Deixe-me em paz, Simon. Eu já o chutei entre as pernas uma vez e
sou perfeitamente capaz de repetir o golpe — ameaçou com o olhar feroz que
guardava um antigo rancor.
— Se eu a quisesse mesmo, a teria aqui e agora, e nada nem ninguém
impedir-me-ia — ele cuspiu as palavras cruéis que um homem rejeitado e sem
caráter têm dentro de si. — Mas eu não irei rebaixar-me. Não quero uma mulher
que já foi usada por outro homem, ou como dizem os boatos, outros. — Ele riu
maldosamente.
Ela não pôde refrear suas ações. Nem mesmo ao saber que estavam
rodeados pela multidão de nobres garbosos, no meio de um salão apinhado e
bem no centro da pista de dança onde vários casais estavam reunidos.
— Ninguém a quer, Rose. Nunca irá se casar. Devia aceitar a oferta que
vim oferecer-te. — Pôs um dedo em seus lábios. — Seja minha amante. Não a
quero como esposa, mas é suficientemente capaz de satisfazer-me em outros
âmbitos. — Passou a língua pelos lábios de maneira repulsiva.
Ela não pôde se conter e o acertou bem no meio do rosto perfeito que ele
tanto se envaidecia.
— Pegue sua oferta vulgar e vá ao diabo que lhe carregue, Simon! — ela
gritou, gritou e o acertou com uma sequência de tapas e chutes descontrolados.
Ele levou uma mão ao rosto danificado, aturdido demais para tentar
desviar dos golpes que ainda o atingiam.
— Você quebrou meu nariz! — berrou como um menino que perde em
algum jogo estúpido.
Lizzie finalmente encontrou Rose. Uma Rose descontrolada que gritava
palavras torpes para quem quisesse ouvir. Já havia mandado cinco pessoas para o
inferno, e naquele instante estava gritando para uma mulher que seria melhor
que ela enfiasse seus argumentos em um lugar que Lizzie não se atrevia a repetir
nem em pensamento.
Ela tentou acalmá-la, levá-la dali com o auxílio das três amigas que
tentava convencê-la a sair daquele antro de hipocrisia, ao mesmo tempo em que
as três rebatiam os demais com xingamentos igualmente indecorosos.
Estavam perdidas.
Todas elas estavam perdidas.
E quando Lizzie pensou que aquele disparate não poderia piorar, ela viu
que o capitão Henry aproximava-se com ira no olhar. Ele havia testemunhado os
absurdos vulgares que o Duque havia proferido a respeito da dama em sua
companhia, e isso era algo que ele jamais toleraria.
Não deu-lhe tempo de tentar se proteger, apenas arremeteu-se contra ele e
o segurou apertado pela gravata, quase arrancando-lhe o ar.
— Peça perdão à dama. Agora — ordenou sem dar-lhe qualquer
alternativa.
— Per... doe-me. — Seus lábios diziam sem emitir som, tamanho era seu
desespero.
Henry o soltou de modo bruto e foi de encontro a Rose que ainda parecia
transtornada. Ela olhava ao redor, as pessoas que sussurravam baixinho o que
seria a mais nova fofoca a ser repetida pelos meses posteriores. Ela tinha
lágrimas presa aos olhos. Lágrimas que ele soube que ela não queria soltar ali,
no meio de toda aquela gente que a julgava em silêncio.
— Venha comigo, milady. — Ele a conduziu pelos corredores largos da
mansão sem saber ao certo aonde ir, até que por sorte encontrou a biblioteca.
Ali teriam um pouco de paz.
— Eu sou uma idiota. Uma tola que não consegue controlar a própria ira.
— Ela deixou as lágrimas brotarem e lavarem todo o seu arrependimento. — É
um mundo tão cruel. Tão cruel, Henry. — Ela aceitou um lenço que ele
oferecera-lhe.
— É um império de mentiras sassenach. Eles não vivem de acordo com
os conceitos que pregam. É uma farsa. Não devia condenar-se pelos olhos de
pessoas tão frívolas. — Segurou uma de suas mãos trêmulas.
— Mas é o mundo em que vivemos, não é mesmo? — Ela sorriu
ironicamente, amargamente. — Ele tinha razão, estou arruinada. Você sabe o que
aconteceu naquela noite, sei que sabe, pelo modo como tentou consolar-me —
confidenciou.
— Sei — ele admitiu. — Mas não a julgo. Nem Randall. Apesar de ele
ser um maldito bastardo, havia amor quando olhava para você. — Assegurou-
lhe, quase carinhosamente.
— Ele não está aqui — ela disse entre soluços e lágrimas.
— Não, mas eu estou, milady, e seria uma honra assegurar sua proteção
por meio de um matrimônio. — Ela o encarou com evidente surpresa. — Eu
jamais a deixaria desamparada. É para isso que servem os amigos. — Ele piscou
e sorriu com tanta bondade que aqueceu-lhe até o espírito confrangido.
Ele abriria mão de seus próprios planos, por alguém que praticamente
acabara de conhecer. Apesar de a amizade ter vindo fácil, honesta e
despretensiosa, ainda assim, era muito para abdicar, e ela sabia disso. Mas estava
tão desesperada que a hipótese não lhe pareceu ser tão absurda quanto deveria.
Ele sabia que ela tinha outro homem arraigado em seu coração.
E ela sabia que ele tinha outra jovem em seus pensamentos.
Mas talvez ela carregasse algo mais que a dor de um amor distante.
Talvez ela carregasse o fruto dessa união, e era por ele que ela deveria tomar as
decisões dali em diante.

*sassenach —inglesa
CAPÍTULO VINTE E UM

Rose olhou para Henry tentada a aceitar o que ele oferecia-lhe.


Mas quando pensou em ceder ao medo, levou uma das mãos ao colar que
pendia de seu pescoço e recordou-se das duas promessas que carregava consigo.
Randall voltaria. Tinha que confiar nisso.
E ela jamais poderia deixar que as pessoas tirassem dela tudo o que lhe
era precioso, ela não ia permitir. Havia prometido aquilo a Randall e iria
cumprir.
Decidida ela levantou a cabeça, limpou as lágrimas que desciam por sua
face, e segurou uma das mãos do capitão.
— Você é um homem inestimável e merece uma mulher inteira, que
possa te amar de todo o coração. E você não pode aceitar menos que isso. —
Relembrou as palavras que ouvira de Randall há tanto tempo.
Ele levou as mãos de Rose até seus lábios e beijou delicadamente cada
um de seus dedos antes de envolvê-la em um abraço que aqueceu sua alma.
Selou um beijo casto no alto de sua testa, como um irmão beija sua irmã mais
jovem, e sorriu, dando-lhe a coragem que ela precisava para fazer o que tinha de
ser feito.
— Eu sempre soube que você era forte, sassenach. — Ela assentiu
ligeiramente e sorriu timidamente.
— Obrigada, Henry. — Rose ergueu-se na ponta dos pés para alcançá-lo,
depositando um beijo demorado em seu rosto, com o coração agradecido.
Ela saiu da biblioteca, encontrando uma Lizzie desesperada e três amigas
que pareciam se preparar para enfrentar um batalhão, a julgar pela maneira que
encaravam todos que se atreviam a observá-la indiscriminadamente. Não
demorou muito para que Lady Campbell se unisse a elas, indo ao encontro de
Rose para aconchegá-la em seus calorosos braços.
— Ora, o que estão olhando? — Lady Campbell a envolvia num abraço
reconfortante e a conduzia lentamente para fora da mansão, após a jovem
convencê-la de que estava bem e de que precisava voltar para casa.
Algumas pessoas murmuravam baixinho, enquanto outras faziam questão
de serem ouvidas, e ainda outras observavam toda a cena com uma condenação
impiedosa no olhar. Lady Campbell não era uma mulher dada a confusões, mas
não saía de uma em que precisasse defender seus próprios conceitos, o que
acontecia com mais constância do que ela esperava.
Enquanto deixava Rose aos cuidados de Lizzie e das amigas, ela retornou
ao salão para certificar-se de que tudo ficaria bem em sua ausência, já que
acompanharia a jovem até a sua propriedade. Contudo, o que encontrou ao
adentrar aquele recinto foi apenas ódio, julgamentos pré-concebidos e hipocrisia.
Ela não toleraria aquilo em sua própria casa.
— Ouçam-me! — gritou, chamando a atenção de todos os presentes. —
Aquela jovem foi brutalmente exposta esta noite. E sabem por quê? —
Continuaram encarando-a em silêncio. — Por causa de um palerma que se diz
homem, se intitula cavalheiro, quando age como um verdadeiro bárbaro. Um
homem que por possuir títulos e posses, não recebe sequer uma crítica, por ter
proposto algo indecente a uma jovem moça. — O Duque tentou argumentar, mas
logo sentiu-se intimidado demais para prosseguir. — Um covarde, que aproveita
de sua posição para ser um crápula, sabendo que ninguém o julgará por isso.
Este é o verdadeiro culpado que merece nosso olhar de desprezo. — Ela apontou
para ele, que revirava os olhos á medida que o rubor tomava seu rosto sangrento.
Logo a multidão passou a dirigir ao Duque breves palavras de
indignação, algumas senhoras começaram a rechaçá-lo com a crueldade que ele
merecia, e em seguida alguns cavalheiros arrastaram-no para fora do salão, com
aplausos da maioria dos convidados que tomaram o partido de sua anfitriã.
Lady Campbell agradeceu a compreensão de todos e sentiu um pingo de
esperança cair no mar de decepções de seu coração. Apesar de ver algumas
jovens e solteiras senhoritas aproveitarem o estado vulnerável do Duque, e
gastarem seus esforços tentando agradá-lo, mesmo após tudo o que
testemunharam, ainda assim, Lady Campbell acreditava que a humanidade podia
mudar.
Um dia as mulheres teriam voz naquela sociedade. Um dia, alguma
mulher teria um cargo mais elevado que um homem. Um dia, a mulher seria
vista como uma igual.
E enquanto aquele dia não chegava, ela lutaria por todas as mulheres que
pudesse ajudar.
E naquele momento, esta mulher era a pequena Rose Wymond.
Rose despediu-se das amigas e aceitou a ajuda de Henry para subir na
carruagem, agradecendo-o uma vez mais antes de se afastaram lentamente de
todo o caos que fora o baile.
Lady Campbell segurara sua mão por quase todo o trajeto até a casa dos
Wymonds, e quando finalmente chegaram ela pediu para que Lizzie lhes desse
um minuto a sós.
A pequena menina de cabelos opacos desceu da carruagem, deixando-as
ter um pouco da privacidade que a conversa pedia.
— Rose, querida, eu sinto muito por tudo que lhe aconteceu esta noite.
— Olhou em seus olhos, parecendo examinar seu coração.
— Seria eufemismo dizer que está tudo bem — disse ela, de modo
brando. — Mas eu sei que ficará. Sempre fica. — Ofereceu-lhe um sorriso tão
genuíno que a senhora não pôde deixar de fazer o mesmo.
— O mundo é difícil, Rose. Ainda mais para nós mulheres. Eles acham
que estão acima de nós, mas estão enganados. — A viu anuir em silêncio. —
Você ainda irá enfrentar muitas coisas, mas tenho a plena convicção de que sairá
dessa batalha com a vitória nas mãos. — Beijou-lhe a bochecha rosada.
— A senhora é muito generosa em ajudar-me desta forma. Eu vi o que
fez antes de partirmos. Ouvi o que falou para aquelas pessoas. — Sentia-se ainda
mais agradecida.
— Eu faria tudo outra vez. — Sorriu ternamente. — Aliás, não é a
primeira vez que ajudo uma senhorita Wymond. — Deu de ombros
divertidamente.
Elas abraçaram-se como se tivessem estado uma ao lado da outra durante
toda a vida. Era o tipo de conexão que existe quando duas almas feitas da mesma
matéria se encontram.
E aquele encontro fora tudo o que Rose precisava para seguir em frente.
Erguer a cabeça e ouvir a voz de sua consciência que dizia que ela estava
do lado da razão.
Entrou em casa e após acalmar Lizzie, pediu que ela contasse o ocorrido
à Condessa, que cedo ou tarde tomaria conhecimento do caos que o baile dos
Campbells tornara-se. Rapidamente ela subiu aos seus aposentos, fechou a porta
atrás de si e tirou a chave da fechadura.
Não queria se interrompida.
Ela tirou o pesado vestido verde que apertava-lhe os seios e a cintura, o
jogou ao chão e vestiu apenas suas roupas íntimas. Uma camisola de seda suave.
Tirou também o laço que segurava os cachos ruivos em um penteado elaborado,
libertando as ondas acobreadas que desciam até o meio de suas costas.
Abriu uma das altas persianas e lançou-se à noite.
Com os olhos fechados ela respirava lentamente, tentando recobrar a
brandura ao seu espírito agitado.
Ela sabia que não havia como fugir das consequências de seus atos, mas
isso não significava que não tinha uma saída.
Seu escape eram as histórias, as palavras bonitas que nasciam em seu
coração e tomavam forma quando as escrevia.
O mundo mágico das fantasias, que tanto amara desde tenra idade.
Aquela paixão lhe daria forças. Aquilo era o que ela tinha a oferecer ao
mundo. Aquela era sua voz. E uma das promessas que havia feito.
Era seu dom.
E ela não ia permitir que levassem os sonhos para longe de sua alma
aventureira.
Rose arrastou o pequeno sofá de respaldo estofado para próximo da
janela aberta, onde a brisa gélida podia sussurrar-lhe palavras de sabedoria.
Pegou também uma pena e um tinteiro, espalhando muitos papéis ao seu redor.
Ela começou a escrever.
Durante toda aquela noite, sua mente enchia-se com imagens da velha
Escócia.

Em uma realidade distante, uma jovem sacerdotisa de cabelos longos


encontrava-se com seu antigo amor. Um amor ceifado por mãos cruéis.
Fazendo-o ser um espírito desfigurado que assombrava-lhe os pensamentos. Ela
o desejava, mesmo que a vida não residisse mais em seus olhos de noite sem lua.
Era um amor proibido pelas forças da natureza, do universo, da
mortalidade. E ainda assim, ainda assim...

Rose olhou para fora, temendo ver olhos de noite sem lua assombrando-
lhe também.

Ainda assim, a jovem deixara-se cair em seus braços, rendendo-se aos


seus olhos de escuridão e perdendo-se nos beijos com gosto de pecado.
Mas só tinham uma noite.
Uma única noite.
Uma última noite.
E isso a desolava. A destruía. Matava tudo o que um dia quisera ser.
Ela não podia mais esperar, não podia perder tempo.
Na noite em que a lua era um cálido lampião nos céus, e que a noite
parecia não findar, ela subiu até as rochas que diziam guardar a eternidade,
atender os pedidos de um coração que clamava por ser ouvido.
Ela ouviu a melodia, a canção que retumbava cada vez mais alta em seus
ouvidos, até que tudo chegara ao fim.
O sangue tingia a pele alva de seu pescoço, a vivacidade esvaía de seu
corpo com o último fôlego que tomara.
Aquilo doía. Mas também era libertador.
Ela podia ter seu amado para sempre. Ryan não iria mais ser um espírito
que vagava pelo desconhecido. Seria parte dela.
E então ela partiu, para nunca mais retornar.
E quando as noites pareciam infinitas, quando a lua salpicava o mar
com seu brilho pálido, quando o silêncio caía no bosque na noite em que todos
os desejos seriam atendidos...
Ao longe podia-se ouvir o ecoar de risos e sussurros, o estalar de beijos
e uma doce canção.
Alguns diziam ter flagrado uma jovem sacerdotisa de vestido de
cambraia, junto de um homem alto de vestes negras e olhos de escuridão.
A luz e as trevas dançando junto ao som daquela canção.

Fim

Rose tinha os olhos úmidos da emoção que não pôde conter ao findar sua
história.
Ela havia cumprido a sua promessa, e todos que a lessem saberiam que
ela acreditava no amor, na magia e na perseverança.
A manhã já dava-lhe boas vindas, a luz pintando cada canto daquele
cômodo, cada recôndito de sua mente.
Ela se vestiu, não de maneira simples, mas elegante. Um vestido bem
asseado desenhava modestamente suas curvas, e um chapéu de cascata deixava
metade do seu rosto oculto por uma fina camada de renda. Pôs as luvas
imaculadamente brancas, e juntou as folhas que tinha organizado em sua
escrivaninha.
Ela iria mostrar a sua história ao mundo.
Mas antes precisava que alguém a publicasse, e isso seria uma tarefa não
muito simples.
Encontrou a primeira livraria, também conhecida como a gráfica do
Senhor Thomas Evans, um famoso crítico que era responsável por muitos nomes
que levavam seus periódicos e breves contos ao público. Ela sabia que o que
tinha em mãos era muito diferente das tramas cotidianas que a maioria dos
escritores desenvolviam em seus textos. Contudo, precisava tentar.
— Bom dia, Senhor Evans! — Um sino soou alto assim que abriu a porta
de vidro emperrada da livraria.
— Bom dia, milady, em que posso ajudá-la? — Ele a observou
atentamente através de seus óculos redondos que repousavam acima de seu
nariz.
— Eu... trouxe algo. Algo escrito por mim. — Ela esperou ver algum
traço de expectativa em seus olhos perspicazes, ou algum esboço de ferrenha
curiosidade.
No entanto, nenhuma dessas reações tomou conta do semblante de
Thomas Evans.
Ele pegou o original de suas mãos, estreitando os olhos ao ver as
primeiras palavras de letra rebuscada. Pediu para que a jovem se sentasse, sem
tirar os olhos do papel pardo em suas mãos. Senhor Evans parecia absorto na
narrativa de Rose e não desviava os olhos da história nem por um minuto sequer.
Estava tão silencioso em alguns momentos e tão agitado no seguinte. A
respiração irregular e os olhos arregalados em alguns instantes de sobressalto.
Ela queria tocá-lo de alguma forma com as suas palavras.
Randall havia dito que ela tinha este dom. E ela acreditou nele.
Mesmo que parecesse loucura, já que ele fora o primeiro a ler seu texto
na íntegra.
E ela depositara sua confiança em uma única pessoa, mas descobriu que
essa pessoa não era Randall, mas sim, ela mesma.
Ele apenas a havia ensinado a confiar em si mesma e em sua obra. Ele a
havia feito prometer para que pudesse ter a coragem que por certo lhe faltaria em
momentos desafiadores.
Ela só não podia deixar de acreditar. Mas para ser franca, sua confiança
estava sendo testada a cada vez que o senhor Evans pigarreava em alto e bom
som, parecendo ter dificuldades em compreender seu manuscrito.
Ela sabia que era uma história atípica. Sabia que as menções místicas
talvez não fossem bem recebidas pela crítica piamente conservadora, mas era
aquela mesma história que havia pairado por sua mente durante todos aqueles
meses, e isso não podia ser em vão.
Certamente havia uma razão, um propósito.
— Hamn... Lady Wymond? — Ele ergueu os olhos do papel por alguns
instantes.
— Sim, senhor Evans. — Ela olhou para ele. Um olhar pedinte, um olhar
que suplicava para obter sua aprovação.
— A jovem Eileen... Ela tem um fim trágico — declarou com um espanto
evidente em sua voz.
— Oh... sim e não. — Ela deu de ombros tentando disfarçar o fato de que
seu coração parecia querer pular para fora.
— Pode me explicar o que quis dizer, milady? — Ele abaixou os papéis e
abandonou os óculos de leitura, levantando-se com certa dificuldade. —
Prepararei um chá. Certamente preciso de um chá. — Ele sorriu do modo que
alguém sorri quando é cumplice de alguma confidência.
Aquilo podia ser algo muito bom, ou extremamente ruim. As pessoas
pedem chá tanto na hora de aconchego quanto em momentos soturnos. Ele
poderia querer uma xícara de chá para acompanhar a formidável leitura, ou
precisar da fumegante bebida para engolir uma história que não estava lhe
agradando.
De uma forma ou de outra ela deveria esperar para saber.
Ele mandara preparar o chá que rapidamente fora servido. Senhor Evans
levava a xícara de porcelana aos lábios com uma lentidão insuportável para
Rose, que já havia queimado os lábios mais de uma vez por conta de sua
ansiedade.
— Então, Lady Wymond, o final não lhe pareceu trágico? — Ele
bebericava o chá fazendo um barulho irritante.
— Não nego que há uma certa... excentricidade na trama. — Ela respirou
profundamente antes de prosseguir. — Mas, de certa forma, eles terminam juntos
no final como certamente o senhor notou. — Ela sorriu da forma mais doce e
amável que seu temperamento permitia.
— Oh, claro. De uma forma um tanto... peculiar. — Franziu as
sobrancelhas.
Parecia que faltavam-lhe palavras para descrever seu romance. Nem
Rose saberia parafrasear certas metáforas que havia usado.
Pensava que certas coisas eram para ser sentidas e não explicadas. E se o
senhor Evans não havia sido capaz de senti-las, ele jamais entenderia.
Ela não queria obter algo por insistência ou pena, queria merecer uma
publicação.
Levantou de forma lenta, depositou a xícara e o pires sobre a mesa, e
passou as mãos pelas saias do vestido antes de encará-lo com grande obstinação.
— Senhor Evans, sei que não é uma história tradicional. Há sombras em
minhas palavras. Há algo de sobrenatural em minha trama, e em tudo que eu
creio. Então eu não poderia criar algo diferente. Essa sou eu. — Ela suspirou
pausadamente, tentando manter a voz estável. — É uma história para chocar,
para sentir, para ver o amor, a dor e a perda em cada linha daquele livro. Se não
fosse para atiçar as emoções, as reflexões... eu nem perderia meu tempo. — Ela
agradeceu-lhe pela atenção que tivera, pela oportunidade que lhe dera ao se
dispor a ler seu manuscrito.
— Espere... — Ele tocou seu ombro antes que ela pudesse lhe dar as
coisas.
Uma gota de esperança pintou o oceano tempestuoso em seus olhos.
— Eu senti cada palavra. A dor, o amor, a morte e a vida. Eu realmente
senti. — Ele levou ambas as mãos ao peito como que segurando o próprio
coração. — Há mais do que apenas talento em você. Há paixão, ardor! — Ele
sorria e batia pequenas palmas parecendo eufórico demais para se conter. —
Você está pronta para tocar almas, milady — declarou, convicto de que
acenderia as chamas dos sonhos no coração da pequena menina.
— Então, então... vai publicar? — Lágrimas brotaram de seus olhos
inundados de emoção.
— Oh... — Ele arfou pesarosamente, quase temendo furtar a alegria que
vira nos olhos da jovem. — Não posso. É com muita tristeza que lhe digo isso.
— Ele ficou cabisbaixo por alguns segundos antes de observá-la novamente.
— Mas eu não entendo. Se o senhor diz ser algo bom, algo realmente
valioso aos seus olhos... — Ela juntou as mãos na frente do corpo, apertando os
nós dos dedos em apreensão.
— Você tem potencial. Sem dúvidas, é notável. — Ele parecia titubear,
hesitante. — Mas, uma moça tão jovem escrevendo sobre paixões, desejos... É
algo tão...
Ela o interrompeu.
— Impróprio para uma mulher. — Ela deu continuidade às palavras que
sabia que viriam.
— Não posso negar o mérito de sua obra, mas tenho receio de publicá-la.
Perguntas surgirão, comentários sugestivos poderão ser devastadores. Tanto para
você, quanto para mim. — Ele pôs uma mão gentilmente sobre a dela, como um
pai amoroso que consola sua filha. — Perdoe-me, senhorita.
Ela compreendia. Do fundo de seu coração ela compreendia, apesar de
ser mortalmente injusto.
Era doloroso.
Obviamente, ela queria que as virtudes de sua obra fossem reconhecidas.
E queria ter o reconhecimento para si, afinal, ela havia dado uma parte de sua
alma naquela história.
Ela queria orgulhar-se ao ver seu nome escrito na capa de seu livro.
Entretanto, embora fosse uma realização importante, não era
imprescindível.
Sempre escrevera por encontrar a salvação nas palavras, por despejar os
sentimentos no papel e ser abraçada por suas criações de uma forma que fazia a
solidão ficar apartada de seu espírito.
Escrevia porque ninguém mais via o mundo, as pessoas e os sentimentos
da mesma forma que ela, então teve de conceber a sua própria realidade,
descobrindo que havia compreensão dentro da sua própria solidão.
Ela não escreveria buscando alguma vantagem ou fama, ela escreveria
para tocar almas.
— Eu vou adotar um pseudônimo! — ela disse em voz alta exatamente o
que escutava dentro de seu coração.

*sassenach —inglesa
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Lennart Randall Culbert. Ele odiava aquele nome.


Pensar em sua desdita servia-lhe apenas para inflar seu peito com ainda
mais aversão aquele maldito nome que carregava.
Lembrava-lhe de tempos penosos, no qual tudo o que tinha era
hostilidade e frieza.
Passou boa parte da infância em um orfanato, onde não havia nada além
de miséria e sonhos cobertos pela ilusão que contém os olhos de um menino.
Não havia refúgio para quem não passava da escória de uma sociedade que em
sua inocência, era bela.
Sim, era bela.
Ele costumava observá-los ao longe, escondido em algum buraco sujo,
camuflado pelas sombras.
Vestiam roupas bonitas, andavam de um modo elegante, parecendo
flutuar, como se pudessem tocar os céus, se assim desejassem.
Tinham sempre um sorriso genuíno desenhado em suas feições tão bem
esculpidas pelo Senhor, que presenteou-lhes com uma vida abastada.
Por que Deus também não o deu um berço de ouro ao nascer? Costumava
pensar nisso, e quanto mais pensava, mais percebia o mundo injusto em que
vivia.
Contudo, ele acreditava que sua sorte poderia mudar.
Acreditava que um dia teria o mesmo sorriso que via nos lábios daquelas
pessoas que pareciam ser guardiãs da felicidade.
Ele tinha fé de que um dia os céus concederiam-lhe favor.
E encarecidamente suplicava todas as noites para que suas preces fossem
atendidas.
Até que em uma tarde chuvosa de inverno, a senhora Hawley deu-lhe a
majestosa notícia de que uma família tinha o intento de o adotar.
Ele finalmente teria um lar, uma casa, pessoas que zelariam por ele.
Não sabia ao certo sua idade, mas era suficientemente jovem para um
casal sem filhos o querer.
Naquela tarde, ele os conhecera.
Mas conhecera apenas o que eles queriam que conhecesse.
Afinal, você só conhece o que o outro permite que você veja.
Descobriu entre gestos de ternura, que a mulher de cabelos de ouro
refulgente se chamava Lady Evelyn Elisabeth Culbert. Ela pareceu-lhe naquele
momento de escassez, um adorável anjo adornado de candura.
Ele jamais poderia imaginar que as mesmas mãos que acarinhavam-no
lhe trariam tanta agonia posteriormente.
Lembrava-se de erguer os olhos lentamente, quase temeroso, ao senhor
que a acompanhava.
Lorde Charlie Edward Culbert, era um homem contido, com palavras
medidas e tratos polidos. Tinha olhos da cor dos céus e cabelos do tom da terra
úmida depois de uma tempestade.
Só não imaginou que também tinha a própria tempestade nas íris avelãs.
Pensou que estava sendo acalentado no seio de uma boa família, de boas
pessoas. No entanto, não houve clemência na primeira vez em que via a repulsa
nos olhos da mulher que pensou que um dia chamaria de mãe.
— Eu não consigo, Charlie! Não posso. — Ela olhava para o menino de
cabelos negros acuado no canto da estreita saleta. — Não posso substitui-lo —
ela dizia, amargurada, ao homem impaciente que tentava em vão tranquilizá-la.
— Então por que diabos me fez adotar esta criança, Evy? — atalhou sem
piedade.
— Eu pensei que poderia, Charlie. Pensei que poderia amá-lo como o
filho que perdi em meu ventre. — Levou as mãos à barriga lisa. — Mas ele não
é meu filho, jamais seria. Ele é... sujo. — Ela olhou para a pequena criança que
os ouvia com os olhos arregalados.
Diante daquela declaração, o pequeno Lennart havia compreendido a
dureza daquelas palavras.
Palavras que uma criança jamais deveria ouvir.
Ele era apenas um menino, cujo os sonhos estavam o abandonando,
deixando-o à mercê de uma vida de dissabores.
Lady Culbert havia perdido seu filho há poucos meses. Nascera morto o
que seria o infeliz herdeiro que carregaria a linhagem do nome dos Culbert.
Uma mulher desesperada faz coisas inimagináveis. Em sua aflição,
convencera Lorde Culbert a visitar um orfanato, para que pudessem escolher um
filho que lhe devolveria a alegria. Lorde Culbert não poderia negar o pedido de
uma mãe sem um filho. Não depois que o médico dissera-lhe que ela havia se
tornado infértil devido a graves lesões que a cirurgia deixara. Contudo, ele não
imaginaria que toda a comoção da perda havia levado sua esposa ao delírio.
Não perderam apenas um filho, perderam a lucidez e o bom nome, já que
a fama da loucura de Lady Culbert logo tornou-se conhecida por toda a Londres.
Lorde Culbert, sexto Visconde de Honneville, vivia apenas para vigiar a
esposa que em sua insensatez cometia os atos mais sórdidos.
Por muito tempo ele tentou poupar o jovem Lennart dos atos indecorosos
da mulher, mas após alguns poucos anos ele encontrava-se esgotado.
Estava exausto e não mais agia em seu juízo perfeito.
Foi quando o inferno deveras havia começado, e Randall recordava-se
com grande amargura daqueles primeiros dias.
Era como se o tornassem alvo de todas as intempéries que a vida lhes
tinha trazido. Culpavam-no pelas desgraças, já que não havia mais ninguém ali
para ser punido.
Não demorou muito para que as palavras ofensivas tornassem ações
violentas, e foi nesse antro de brutalidade que Randall cresceu, até o dia em que
decidiu fugir do alcance das pessoas que um dia pensou equivocadamente que
pudessem prezá-lo.
Viveu nas ruas como alguém sem nome, apesar de ter o sobrenome
Culbert em seus registros. Queria esquecê-los, apagar de sua mente a falsa
crença de sorrisos genuínos que tornavam-se cruéis.
Para ser franco, estava sendo bem-sucedido em deixar para trás aquele
passado de escuridão, até aquela manhã, pensou ele, com a cabeça apoiada em
uma das mãos, sentado com um cotovelo sobre a perna, olhando perdido para o
horizonte.
Um advogado tinha o procurado tão incansavelmente que havia
encontrado. O homem de olhar astuto e vestes negras, sapatos meticulosamente
polidos e gravata apertada sobre o pescoço, o observava naquele instante com
um papel nas mãos de dedos esbranquiçados.
Ele pigarreou longamente antes de prosseguir.
— Não há mais ninguém para assumir o título, senhor Culbert. O senhor
é o último membro da família e deve agir como tal. — Fitou-o, imerso em suas
inquietudes.
— Não venha me dizer como devo agir. Não sou um almofadinhas
trajado de cavalheiro — rebateu com brusquidão.
— O senhor não precisa ser como os outros. Apenas aceite o conselho de
um amigo e...
— Você não é meu amigo. Eu nem o conheço, ifreann — praguejou sem
qualquer escrúpulo.
— Eu sou advogado da família há anos senhor, Culbert. Pode ter-me
como um amigo confiável e leal. Eu jamais lhe traria uma proposta fracassada.
— Sua voz era grave e transmitia uma certa segurança adquirida dos anos de
profissão.
— Não me chame por este nome, se quer mesmo que eu o escute. —
Randall levantou-se decidido a dar-lhe uma chance. — Diga-me de uma vez o
que quer comigo. — Cruzou os braços, empertigando-se.
— Está bem, senhor Randall... — O sujeito parecia intimidado pelo
homem que o encarava. — O senhor tem direito ao título de Visconde de
Honneville, herdou também a propriedade campestre, a única que restou devido
ao infame gosto de seu pai pelos jogos ao fim da vida e...
— Ele não é meu pai — declarou com convicção.
— Oh! — O advogado soltara o ar, visivelmente amedrontado. — Então,
terá alguns arrendatários que lhe darão boas libras anualmente e...
— Eu sou rico? — Randall indagou.
— Não chega a ser tanto, senhor... mas...
— Então de que me adianta todas estas coisas? — inquiriu, voltando a
sentar-se com o rosto entre as mãos.
O advogado que apresentou-se devidamente como senhor Cooper,
sentou-se ao lado de Randall, vendo apenas um rapaz que havia desperdiçado
sonhos, lançando-os fora.
Era uma cena triste de se ver. Testemunhar tanto sofrimento e
desesperança em olhos tão jovens, que pouco vislumbraram da parte bondosa da
vida.
Ele pôs gentilmente uma mão em seus ombros, quase sobressaltando-o
com o gesto íntimo.
— Sabe, eu tenho uma casa. É um pouco longe daqui, mas tenho uma
casa, uma mulher e um filho de dez anos de idade. — Sorriu ao evocar a imagem
daqueles que amava. — Na nossa casa não há luxo, por vezes incontáveis
passamos por épocas difíceis. Não temos muito em sentido material, mas somos
ricos. Sabe por quê? — indagou com veemência.
Randall olhou para ele querendo muito acertá-lo bem no meio do nariz,
porque ele sabia a resposta.
— Porque estamos juntos. — Deu de ombros tentando disfarçar a
emoção que chegara até seus olhos. — Se eu tivesse mais, se eu pudesse
proporcionar para minha família uma vida de riquezas, eu o faria, mas não
posso. E sei que mesmo não podendo ter uma casa grande, ou a última roupa da
moda, ainda assim, não poderíamos ser mais felizes. Não há o que acrescentar
quando o amor excede todas as faltas. — Ele sorriu, de uma forma que acalentou
o coração de Randall.
Aquelas palavras cavaram fundo até chegar em algum canto esquecido de
sua consciência. Dera-se conta de que estava buscando um futuro promissor, sem
preocupar-se em viver o presente. Aquilo não era vida, era uma corrida rumo ao
desconhecido que poderia nem sequer ter a chance de explorar algum dia.
Estava errado, e faria mudanças dali pra frente.
— Obrigado, senhor Cooper. — Ele apertou sua mão de modo firme.
O distinto senhor o observou quase com tristeza. Mesmo depois de suas
palavras tão munidas de verdade, ele não acataria seu conselho.
O viu levantar-se devagar, parecendo medir a distância de cada
movimento, e olhar em direção às docas que os ladeavam.
— Então, eu tenho alguns trocados, certo? — Randall o sondou com o
canto dos olhos, vendo o homem tentar ocultar sua satisfação ao vê-lo mudar de
ideia.
— Oh, sim. O suficiente para uma boa vida, meu menino. — Deu um
tapinha amistoso em suas costas.
— Então, é o bastante para comprar um cachorro, certo? — perguntou,
parecendo tão sério, como se aquilo fosse de fato uma questão de suma
importância.
— Certamente — disse apenas, compartilhando de seu sorriso.
— Então temos de ir depressa, e você virá comigo. Tenho um título para
assumir. — Começou a caminhar rapidamente.
— Depois de comprar um cachorro? — Senhor Cooper não pôde ocultar
o riso que estava à guisa dos lábios.
— Prioridades, senhor Cooper. Prioridades. — Seguiu em sua caminhada
ligeira.

Não demorou para encontrarem a peluda criaturinha.


Randall o enrolou em alguns trapos, mas decididamente não queria levá-
lo nos braços.
Aquilo já era demais.
Pegou um caixote e forrou com uns panos maltrapilhos, depois colocou o
mais delicadamente que pôde o pequenino filhote, que dormia serenamente.
Após algumas horas, Randall encontrou aqueles que tinham sido sua
única família ao longo dos últimos anos. Estavam esperando-o, pois já havia
mandado um mensageiro para localizá-los dias antes, quando ainda pensava em
retornar à vida ilícita.
Toda a sua tripulação o recebera de braços abertos, ignorando o senhor
Cooper, que permaneceu em silêncio enquanto Randall era saudado tanto por
palavras de ternura quanto por sentenças vulgares.
Marinheiros, pensou o advogado enquanto resignava-se ao seu silêncio.
— Então, não foram atrás da ilha, afinal? — Randall perguntou a Ronan,
após um caloroso e atípico abraço.
— Como poderíamos, Lennart? Aquele era o seu plano, não o nosso. Não
poderíamos simplesmente seguir sem você, rapaz. — Seus olhos conotavam todo
o sentimento que nutria pelo jovem que considerava como um filho.
— E onde está o jovem Gael? — Olhou ao redor, buscando o menino
franzino que costumava sempre ficar em seu encalço.
— Gael! Venha até aqui, menino! — Ronan gritou animadamente.
Quando Gael surgiu e capturou os olhos negros de Randall, algo pareceu
quebrar em seu interior.
Não soube como pôde abandoná-lo por todas aquelas semanas. A
saudade parecia sufocá-lo a cada passo receoso que Gael dava em sua direção.
Quando chegou até ele, Gael tinha a cabeça baixa, temendo olhá-lo nos
olhos, temendo que ele fosse embora novamente.
Queria poder dizer algo, mas as palavras pareciam presa em um nó
apertado em sua garganta.
— Gael. — O nome saiu de seus lábios com certo alívio ao certificar-se
de seu bem estar.
— Senhor Randall. — Ele trazia um sorriso nos lábios.
Um sorriso que surgiu ao vê-lo, pensou Randall.
Quantas pessoas tinham o privilégio de ver um sorriso ser esboçado e ser
a única razão por ele estar ali? Aquilo era algo que guardaria para sempre em
algum recôndito escuro de sua alma.
— Não quero mais que me chame assim, Gael. — Esforçou-se para soar
firme.
O menino olhou para ele com a confusão nítida na inocência de seus
olhos de ébano.
— Como devo chamá-lo? — Soava como o miado de um gato
amedrontado.
— Me chame de Lennart, ou Len. É um bom apelido para meu nome,
não acha? — Ele sorriu amplamente.
— Eu acho um bom apelido — Ronan disse, fazendo soar sua risada por
todo o convés.
— Ou me chame apenas de irmão. Que é o que eu serei para você a partir
de hoje, Gael. — Ele não esperava ver tanto contentamento nos olhos daquela
criança.
Quando o pequeno rapazinho jogou-se em seus braços, era como se uma
parte quebrada de seu espírito estivesse sendo reconstruída. Como se a ferida
que há muito tempo permanecera exposta e sangrando em seu peito, estivesse
finalmente cicatrizando.
O abraçou longa e demoradamente, tomando-o nos braços como que
guardando-o em um refúgio, de um modo que ele mesmo sempre precisou ser
acalentado.
Não queria ter se comovido.
Praguejou mentalmente quando o menino começou a chorar, levando-o
consigo naquele momento de sensibilidade.
Sentiu uma umidade em seus olhos, e por mais que teimasse em admitir,
sabia que eram lágrimas de felicidade.
— Estou tão feliz, tão grato, tão...
— Shh... Não tem o que agradecer, rapaz. Eu tenho algo para você aqui.
— Ele voltou-se para o lugar em que havia deixado o caixote com o filhote de
cachorro adormecido.
Apontou para ele, estimulando o jovem a ir conhecer seu mais novo
amigo.
Gael tirou os panos que ele estava embolado, e mal pôde crer nos
próprios olhos.
Pegou a pequena criatura e a levou ao seu colo, abraçando-a com muito
cuidado enquanto acarinhava o pelo marrom felpudo.
O filhote bocejou tranquilamente e aconchegou a cabeça na curva do
ombro de Gael, como se soubesse que ali encontraria um lar.
E então o menino entregou-se ao pranto.
Lembrou-se de uma vida em que era apenas ele e seu antigo cachorro,
seu antigo amigo que falecera em um dos invernos mais frios que já
testemunhara. Ele estava tentando enterrá-lo na neve, enquanto lágrimas desciam
por seu rosto, quando Randall o encontrou.
Quando Randall o salvou.
Buscou mais uma vez seu abraço, não deixando o filhote longe por
sequer um segundo, pois palavras não seriam o bastante para mostrar a Randall o
quanto ele estava grato.
Randall havia lhe devolvido a capacidade de sonhar e ter esperança de
dias vindouros.
Ele estava lhe dando uma família.
Por fim, quando conseguiu parar de chorar, Gael não pôde controlar o
riso. E aquilo era o tipo de reação que não tinha medidas ou limites. Ele era um
menino e devia sorrir por todos os dias de sua mocidade.
Voltou-se para Randall com um olhar curioso, parecendo matutar sobre
algo importante.
— Rose disse-me certa vez para pensar no nome que eu daria a ele. —
Olhou para o filhote que dormia em seus braços. — Ela disse que isso era algo
de muita responsabilidade.
— E ela estava certa. — Randall não queria ter de lidar com a dor que as
memórias lhe traziam, mas foi inevitável. — Pense em um bom nome para ele.
— Tentou sorrir, mas falhou miseravelmente.
Enquanto Gael divertia-se com seu novo amigo, Randall conversava com
Ronan, que estava animado em saber da propriedade que ele havia herdado, bem
como as rendas que o faria ter alguma dignidade na vida.
— Venha conosco, mo chara.— Há lugar para mais um ao nosso lado.
Sabe que você foi mais pai para mim, do que qualquer um que eu já tive. — Pôs
uma mão em seu ombro.
— E quem será o capitão se eu partir? — Ele sorriu com carinho. — Eu
já vivi muita coisa, Lennart. Já tive minha família, minhas alegrias, e um lar fora
desse navio. Agora eu sei que meu lar é aqui. Esta é a minha vida e eu sou grato
por ela. — Tomou sua mão e a apertou. — É a sua vez de ter um lar. Uma
família. — Ele notou que Randall olhava para Gael e seu filhote de cachorro. —
E sua família está quase completa.
Randall assentiu ligeiramente, os pensamentos encontrando uma certa
dama de cabelos de fogo.
— Você virá nos visitar? — indagou Randall, tentando não ser tomado
por uma nova onda de emoções.
Aquilo era ridículo, mas podia sentir os olhos lacrimejarem quando olhou
Ronan e pensou em todo o tempo que ele havia cuidado dele.
— Mas é claro! Fizemos uma aposta e precisarei ver o resultado
pessoalmente daqui algum tempo. — Tinha o riso mais amável que Randall já
ouvira.
— Que tipo de aposta um bando de marinheiros bocas sujas fizeram a
meu respeito? — Ele gargalhou, já esperando a mais vil das apostas.
— Serão crianças ruivas de olhos negros ou crianças de cabelos negros e
olhos azuis? — Ronan não pôde esconder o sorriso. — Eu apostei que seriam
ruivas. Aquela sua Rose tem o gênio forte!
— Ela não é minha Rose, Ronan. — Empertigou-se.
— Ela sempre foi. — Puxou-o em um último abraço de despedida. — Vá
atrás da garota, Lennart — cochichou em seu ouvido antes de deixá-lo partir,
torcendo para que ele não deixasse o orgulho tomar posse de sua chance de viver
ao lado da mulher que amava.
Randall não sabia se um dia iria atrás da garota, como Ronan sugeriu.
Tudo o que ele sabia naquele momento era que aceitaria seu título, suas
heranças, e levaria o jovem Gael consigo. Juntos, iriam formar a família que
nunca tiveram.
Dois meninos órfãos, que tiveram parte de suas vidas roubadas de forma
tão cruel, encontrando acalento nos braços um do outro.
Finalmente tendo um abrigo, tendo segurança.
Um lugar para se esconderem da maldade que os permeava.
Um lugar construído nas bases sólidas de amor e lealdade.
Um lugar que chamariam de lar.

*ifreann — inferno
*mo chara —meu amigo
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Alguns meses depois...

— Um pouco mais de verde... — Ela tinha o pincel firme entre os dedos.


— Acho que já está perfeito! — Lizzie espiava o quadro de soslaio.
— Ainda não é o verde que eu quero. — Ela franziu as sobrancelhas e
semicerrou os olhos em uma graciosa expressão de concentração.
— É grama. Já está verde como a grama, Rose — Lizzie a provocava
enquanto revirava os olhos sem sequer tentar disfarçar.
— Eu quero verde como a relva que cobre a mais densa colina. O verde
que encontra-se nas forças inelutáveis da natureza mais selvagem! — Sua voz
tinha a excitação que seus olhos revelavam.
— Até você encontrar essa tonalidade, já estaremos atrasadas. Você
deveria ir se aprontar, se vestir adequadamente. Por Deus! Há tinta em seu rosto.
— Ela levou as mãos à boca, abafando um risinho divertido.
— Está bem, está bem. — Ela levantou as mãos em rendição. —
Terminarei em um instante. Encontre-me no salão. — Virou-se, limpando os
pincéis em um recipiente com água que tinha ao seu lado.
Lizzie foi esperá-la no salão de visitas juntamente com sua mãe. A
Condessa Isabel estava entusiasmada com o fato de que o Capitão Henry Phillips
Wannell as acompanhariam em um despretensioso passeio na cidade.
Rose era a única que sabia que, de despretensioso aquilo não tinha nada,
já que o adorável capitão não fazia questão de esconder os olhares sugestivos à
Lizzie, que por sua vez, fingia ser indiferente aos seus atrativos.
Contudo, Isabel não sabia disso. Ou se sabia, preferia não demonstrar, já
que nitidamente ela tinha esperanças e até uma certa expectativa de que Rose
pudesse se interessar por Henry, já que tinham uma amizade de laços tão
estreitos.
No entanto, aquilo nunca aconteceria.
Recordava de uma das semanas mais tristes de sua vida.
A semana em que suas regras vieram, avisando-a de que nunca esteve
esperando pelo filho de Randall. Não tinha uma parte dele crescendo dentro dela.
Nada havia restado nada.
Isabel havia ficado radiante naquela manhã, quando deu-lhe a notícia, de
que apesar do atraso em seus dias, não estava grávida. A mãe passou a respirar
aliviada, sem ter de preocupar-se com as consequências que um filho fora do
casamento acarretaria. E Rose tinha de estar deleitando-se do mesmo alívio, mas
não estava.
Não havia sequer uma noite que passara sem derramar lágrimas pela
criança que não carregava.
Seu ventre estava vazio, bem como o seu coração.
Jamais pensou que sofreria tanto quanto da maneira que havia se
angustiado, embora quisesse entregar-se ao esmorecimento. Sabia que tinha de
ser forte e esperar pelo cumprimento da promessa que carregava consigo.
Por vezes chegou a duvidar da palavra de Randall. Ele era um fora da lei.
Devia ter perdido o juízo por ter depositado sua confiança nele. Entretanto, ela o
havia conhecido.
Conhecera sua alma, desvendara o caminho para seu coração, e
desnudara a fachada supérflua de homem vil, podendo examinar a verdadeira
honestidade de seu espírito.
— Oh, céus! — resmungou, lembrando-se de que precisava se vestir
imediatamente, ou realmente se atrasaria.
Não queria pensar em Randall, em seus olhos que despiam-na de todo o
temor, nos lábios que deixavam um rastro de calor em seu corpo, nas palavras
roucas que conduziam-na a tentação com seu sotaque irlandês. Não queria, mas
como poderia deixar de pensar nele se havia roubado seu próprio nome para si?
Lorde Randall. Seria por meio deste nome que todos conheceriam suas
palavras.
Quando pensou em agir sob um pseudônimo, queria algo que deveras
carregasse um significado.
Não queria um nome qualquer, mas sim, um nome que desse sentido as
suas razões, e nenhum nome seria melhor que o dele, já que ele havia sido a
razão por trás de suas palavras.
Ele a havia incentivado desde o início.
Randall tinha a feito cumprir sua promessa, e aquilo seria uma forma de
homenageá-lo.
— Venha depressa, Rose. Ande logo. — Lizzie batia quase de forma
desesperada à sua porta.
— Se acalme, Liz. Entre. Eu já estou quase pronta — disse enquanto uma
criada apertava as fitas de seu espartilho.
— O capitão já está lá embaixo. Eu não achei que ele chegaria antes de
você descer. Oh, Senhor, não sei por que o convidou para vir conosco! — Ela
parecia prestes a ter um colapso.
— Porque ele é um amigo. Não sei a razão da presença dele incomodá-la
tanto. — Deu de ombros, parecendo não notar sua apreensão.
— Não me incomoda. Só que...
— Diga, Liz. Sabe que pode confiar em mim. — Deu uma rápida
conferida em seu reflexo no espelho, aprovando silenciosamente a escolha do
vestido cor de vinho.
— E-ele... — Ela ruborizou como se tivessem atando fogo em suas
bochechas. — Ele... oh, céus, eu devo estar equivocada. — Ela tentou fugir, mas
Rose entrou em seu caminho.
— Ele a olha de um modo diferente, não é? — Lizzie assentiu diante
daquelas palavras, ficando ainda mais corada do que já estava. — Liz, não há
nada de errado em apaixonar-se. — Pôs uma mão delicadamente sobre a dela.
— Diga isso ao meu irmão. — Tentou rir, mas o sorriso não chegou aos
olhos.
— Tenho certeza de que Daryl não seria contra, embora ele certamente
queira se assegurar de que Henry seja uma boa pessoa. — Sorriu em
comiseração.
Sabia que Lizzie estava arrumando desculpas para pôr um termo nos
interesses de Henry. Ela estava tentando achar uma fuga, para que pudesse
convencer a si mesma de que aquela relação não poderia seguir adiante. E se
dependesse de Rose, não iria deixar que seus pretextos afastassem-no. Embora
Lizzie negasse piamente, ela sabia que o capitão a afetava de uma maneira que
ela ainda não compreendia.
— Rose, por favor, não vá aprontar das suas. Não hoje. Não deixe-nos
sozinhos, nem seja inconveniente em suas palavras. —Tinha um dedo
ameaçador apontado na direção da jovem que tentava ocultar um risinho
matreiro.
— Irei me comportar — Rose afirmou, com os dedos cruzados atrás das
costas.
Aquele era um dia feliz.
Era o primeiro dia em que veria seus livros à venda em uma livraria.
Obviamente não iria fazer nenhum alvoroço diante de tal evento. Além
de sua família e Henry, ninguém mais sabia que aquele livro fora escrito por ela.
Seria uma realização que comemorariam em segredo, e para ela, aquilo
era o suficiente.
Quando desceu até o salão com Lizzie quase escondida atrás de suas
saias, fez uma breve mesura ao capitão, que levava uma animada conversa com
sua mãe. Após ter depositado um beijo casto e rápido em uma de suas mãos, ele
voltou-se para a senhorita de olhar amedrontado atrás de si. Caminhou
lentamente em sua direção, enquanto a jovem parecia querer cavar a própria
sepultura e desaparecer diante dos olhares voltados para ela.
— Está radiante, senhorita Lizzie. — Estendeu a mão para ela.
Parecia que o homem ia ficar lá com a mão estirada para sempre, até que
Lizzie ergueu a própria mão e levou-a até a dele.
Henry pôde perceber que sua pele estava fria, sua mão trêmula, e tudo o
que ele queria era tirar a luva de seus dedos e aquecê-los entre os dele. Ansiava
poder ficar a sós com ela desde a última noite em que desfrutou de sua
companhia no fatídico baile dos Campbells.
Aliás, desfrutar não era bem a palavra, pensou ele. Já que naquela noite
Lizzie parecia estar apavorada.
E não era bem aquela reação que ele esperava causar. Não era aquele tipo
de afetação que causaria em qualquer outra donzela, e talvez fosse por esta razão
que ela o deixava tão intrigado.
Geralmente eram os homens que o temiam, não as mulheres. As damas
jogar-se-iam em seus braços, não o olhariam com o temor que via nos olhos de
Lizzie a cada vez que estes encontravam-no.
— Agradeço muito, senhor. — Ela mantinha a cabeça baixa, sem encará-
lo jamais.
Estava mortificada de vergonha. Lembrava-se muito bem do escândalo
que havia feito no baile em que ele a encontrara. Era para ter sido sua noite de
Cinderela, e tudo não passou de ruínas.
— Vamos, Rose, não queremos voltar tarde. — Isabel já estava no limiar
da porta, esperando.
Quando chegaram à livraria, Lizzie fez de tudo para caminhar ao lado de
Rose e manter-se afastada de Henry o mais longe que podia. Mesmo nas vezes
que Rose os fazia trocar algumas poucas palavras, ainda assim ela desviava de
seus olhares e de suas perguntas que estavam começando a soar evasivas demais.
— Oh, céus! Lá está ele. — Rose apontou para a vitrine de vidro, onde
tinha um belo encadernado bem no centro de uma pilha de livros novos.
Ela saiu a passos ligeiros, beirando a uma breve corrida até a porta da
livraria. Quando entrou, não foi capaz de falar nada, sequer esboçar qualquer
reação.
Rose apenas pegou um dos exemplares de seu livro e passou os dedos
pela marcação da capa onde tinha o nome que estaria para sempre cravado em
sua vida.
— Eu não acho que Randall soa bem, apesar de ter escolhido este nome.
Podia ser algo mais gentil, como... Edward, talvez — Isabel cochichara em seu
ouvido.
— Eu nunca quis algo gentil, mãe. Eu queria paixão. — Ela sorria de
maneira provocativa. — Eu queria fogo, ardor. E este nome carrega tudo isso. —
Piscou deliberadamente para a Condessa, que retribuiu com seu típico olhar de
desagrado.
— Não fale dessa forma, Rose. Quanta ausência de pudor! Céus! Ainda
bem que você é a última que restou para casar. — Pegou o leque e começou a se
abanar freneticamente. — Deus sabe que eu enlouqueceria se tivesse mais uma
filha! — resmungou, como sempre fazia.
Rose ocultou o risinho debochado de sua mãe, não querendo desagradá-
la mais do que já havia feito anteriormente. Mas tinha que admitir que não fora
tão ruim, embora fosse severa. Isabel era uma mulher de alma apaixonada. Ela
tinha o espírito livre como as filhas, mesmo que negasse.
Enquanto Rose apreciava o livro em suas mãos, folheava cada página e
comovia-se com sua conquista, Henry aproveitou do momento em que Lizzie
estava distraída próxima de uma prateleira, e se aproximou quase
sorrateiramente. Não queria assustá-la desta vez, nem sequer sobressaltá-la.
Um passo de cada vez...
— Oh, céus! — Ela virou-se antes que pudesse notar sua presença, quase
atingindo-o com o livro que tinha em mãos.
— Não quis assustá-la. Perdoe-me, milady. — Ele levou uma mão até a
dela, mas logo refreou-se do gesto.
— Não sou uma lady. — Ela retrocedeu alguns passos, afastando-se com
cautela.
— E eu não sou um lorde. — Ele sorriu. Aquilo era o mais próximo que
já chegaram de uma conversa.
— Não faz diferença. — Ela esquivou-se e saiu caminhando com os
dedos tocando levemente a lombada dos livros, parecendo procurar por um título
que lhe chamasse atenção.
— O que quer dizer? — Ele a seguiu, mesmo notando seu desconforto.
Ela parou abruptamente, girando nos calcanhares. Pela primeira vez,
olhou nos olhos dele de uma forma direta, se permitindo iludir-se com aqueles
olhos que pareciam fazer as mais belas promessas. Fitou os lábios, eram quase
suaves. Tão gentis. Lábios que pareciam tentá-la com a possibilidade de um
beijo brando.
Nunca havia sido beijada em toda sua vida. E já experimentara tanta
tristeza antes mesmo de conhecer o que era um beijo.
Ela sustentou seu olhar e o segurou, lembrando-se que ele esperava sua
resposta.
— Quero dizer que vocês são todos iguais. — Ela não queria soar
ofensiva, mas não podia guardar as palavras para si.
Ele devia entender que ela não o queria por perto. Nem ele, nem qualquer
outro homem. Eles eram ruins, faziam coisas más. Machucavam-na. E ela não
suportaria mais ser destruída como já fora um dia.
Sentiu as lágrimas querendo invadir seus olhos e piscou várias vezes
seguidas, tentando dispersá-las.
Respire, Lizzie.
Um.
Dois.
Três.
Quatro.
Só respire.
Ela dizia a si mesma. Contando sempre até o número quatro, lentamente,
tentando manter sua postura, tentando não chorar, tentando não perder o
controle, tentando não ser invadida pelo pânico.
— Eu posso garantir — Ele se aproximou ainda mais. Perto demais.
Abaixando-se até nivelar seus olhares — que não sou igual aos outros.
Em outra circunstância teria sorrido, talvez um sorriso malicioso que
deixaria claro seus desejos, mas não naquela situação. Não com Lizzie. Ela tinha
algo. Algo que o fazia ser cauteloso, que o fazia querer protegê-la e não
conquistá-la de uma forma banal e frívola.
Quis tocá-la, segurar sua mão, acalenta-la e fazer sumir a desolação
refletida em seus olhos, mas de alguma forma soube que ia assustá-la se tentasse.
Então ele segurou seu olhar de uma forma intensa que não a fez desviar.
— Não sei qual o seu problema, senhorita, mas tenha a certeza de que
pode confiar em mim — murmurou, quase um sussurro inaudível.
Era isso. Ela não tinha um problema. Ela era um problema. E ele não ia
querer assumir algo tão complicado, que nem mesmo ela sabia como lidar.
— Desculpe-me — Dito isso, deixou-o ali, imerso em indagações a seu
respeito.
Lizzie foi até Rose, que acabava de receber alguns pacotes contendo os
exemplares de seu livro. Ela estava deslumbrada demais para notar os olhos
lacrimejados de Lizzie, ou seu semblante retorcido em solidão.
Rose sugeriu que não findassem o passeio, querendo aproveitar o fim da
tarde. No entanto, Lizzie alegou estar indisposta e o capitão curiosamente disse
que tinha pendências a resolver. Então, logo voltaram para a propriedade dos
Wymond.
Rose maravilhada por sua conquista, segurando seu sonho em uma das
mãos; e Lizzie decepcionada consigo mesma, por ter medo de tentar viver seus
sonhos.
Bath, Inglaterra

A serena cidade de Bath encontrava-se ao Sudoeste da Inglaterra, a


poucas horas da capital londrina, localizada no Condado de Somerset e
conhecida por suas milagrosas águas termais, provenientes de três nascentes da
região.
Era um lugar cujo a tranquilidade prevalecia, e onde Randall acreditava
que era um homem passível de redenção.
Não havia opulência em seu lar. Passara a considerar pueris tais bens
atribuídos ao valor material.
Ao invés de uma mansão abastecida de ouro, ele tinha uma pequena casa
de quatro cômodos estreitos feita de madeira. A madeira que ele mesmo havia
pego, moldado e levantado as paredes. Sua casa tinha alicerces firmados com
trabalho árduo. Não possuía muitas terras, mas a que tinha entre seu cercado era
o bastante para sentir-se livre em seu pequeno espaço naquele vasto mundo.
Ele não tinha riquezas, mas sentia-se o mais afortunado dos homens por
ter uma família.
A família que não tinha a lei do sangue, mas seguia as diretrizes do amor.
Ele e Gael formavam aquela pequena família de dois meninos. Juntos,
construíram a casa em poucos meses.
O jovem Gael tinha seu próprio quarto, uma cama e um cachorro que
corria pela propriedade campestre e fora nomeado de Beag, que em irlandês
queria dizer ligeiro, já que a peluda criatura gostava de correr quase o dia todo,
enquanto Gael tentava o acompanhar, o sorriso nunca deixando seu rosto.
Randall notou que até ele mesmo sorria de um modo diferente.
Sorria como um homem orgulho de si mesmo, orgulhoso de seus feitos.
Ele nunca tivera muitas opções em sua vida, mas sempre soube que suas
desvantagens nunca serviriam-lhe de justificativa para seu ilícito modo de viver.
Randall apenas nunca tinha pensado que poderia ter uma vida como
aquela.
Uma vida simples, mas com grande aprazimento.
Ele estava sentado debaixo das cerejeiras que adornavam sua casa
quando observou Gael se aproximando com uma porção de morangos silvestres
em uma cesta, e Beag em seu encalço, alegremente caminhando ao seu lado.
— Voltaram cedo. — Saudou-os com um aceno animado.
— Beag tinha com sede e estávamos longe da direção do riacho, então
voltamos para casa. Mas, veja. — Mostrou um lustroso morango em suas mãos.
— Olhe só para o tamanho dele! — Sorriu com demasiado deleite. — Quase não
couberam na cesta! — exaltou.
— Amanhã poderá buscar mais, e poderemos fazer geleia — Randall
sugeriu com entusiasmo, pegando um morango suculento.
— Há alguns pomares ao redor do riacho também. — Gael jogou um
pedaço da fruta para o cão, que o pegou rapidamente. — Poderíamos fazer uma
torta!
— Eu não sei fazer tortas, Gael. — Randall fez uma careta divertida e
deu de ombros.
— Não há o que não podemos aprender, Len. — Sorriu com jovialidade e
o carinhoso apelido que costumara chamá-lo.
— Você está certo, podemos tentar. — Arqueou as sobrancelhas. — Mas
não ria se as primeiras não estiverem comestíveis. — Fez um gesto de rendição
com as mãos e Gael se juntou a ele em uma uníssona gargalhada.
Randall fechou os olhos por alguns instantes, ouvindo o barulho
reconfortante e familiar do moinho de vento que também haviam construído para
moer cereais. Era um som que ouvia todas as noites antes de dormir. Um tilintar
aconchegante que embalava seus sonhos. Um barulho constante e bem-vindo,
como uma doce canção que enlevava sua alma. Um ruído com som de casa.
Havia se acostumado com tudo à sua volta, e nunca sentira-se tão parte
de algo como daquele lugar, do lar que haviam erguido.
— Gael? — o chamou, servindo-se de mais um morango. — Você ainda
tem aquela moeda que eu lhe dei? — indagou, curioso.
— Claro, Len! — Imediatamente ele enfiou a pequenina mão em um dos
bolsos e retirou de lá a antiga moeda.
— Ela não é mais um lembrete das riquezas que terá. — Randall pegou a
moeda e a girou entre os dedos. — Sabe por quê? — inquiriu.
— Já temos tudo — Gael respondeu com os olhos revelando uma morna
comoção.
— Exatamente — confirmou, puxando-o para um abraço. — Temos tudo.
Somos ricos, Gael. — Ele gargalhou com uma das mãos bagunçando o cabelo
liso do menino, que o seguiu na brincadeira.
Não havia mais nada que poderia querer.
Nada.
Apenas faltava-lhe alguém.
Uma certa dama de língua ferina e cabelos em chamas. Contudo, logo
iria reparar aquela parte que lhe faltava.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Não havia nada mais belo no mundo que uma noite sem estrelas.
Aquilo podia ser incomum, já que bardos e poetas sempre enalteceram a
beleza dos astros. No entanto, para Rose, que apreciava a negritude dos céus da
janela de seus aposentos, não havia nada mais esplêndido.
Aqueles céus lembravam-lhe certos olhos...
— Rose? Desça logo, a carruagem já está pronta — a condessa
anunciava sem entrar no cômodo.
— Já estou indo. — Olhou mais uma vez para o espelho.
O vestido justo apertava-lhe os seios e a cintura, moldando seu corpo e
revelando as curvas bem acentuadas de seu quadril. As mangas terminavam na
altura de seu cotovelo e pequenos botões de madrepérola subiam até seu colo.
Usava uma fita prendendo seus cabelos, atando-os em um penteado que deixava
apenas alguns poucos fios cor de cobre adornando seu rosto corado.
O azul de seu traje ressaltava ainda mais o vermelho de seu cabelo,
destacando algumas sardas salpicadas ao redor de seu pequenino nariz, deixando
sua beleza exótica ainda mais em evidência naquela noite.
Desceu a escada em espiral, encontrando o capitão Henry no último
degrau com um braço pronto para recebê-la.
Houve um tempo em que ela amava os bailes da alta sociedade, mas este
tempo havia ficado para trás. Não encontrava mais deleite dentre pessoas que lhe
eram indiferentes, ou que cochichavam os mais sórdidos burburinhos a respeito
de sua moral.
Contudo, como a última filha solteirona da família Wymond, ela tinha
deveres que requeriam sua presença em eventos como aquele que estava prestes
a participar.
Tentara convencer Lizzie a acompanhá-la, mas dessa vez ela negou
encarecidamente e decidiu voltar para a casa de campo de sua família.
Sendo assim, Rose havia aceito a oferta de Henry para fazer-lhe
companhia, pelo menos não teria de suportar as investidas de nenhum outro
cavalheiro, já que com o capitão ao seu lado, os demais não se atreveriam a
ofendê-la de qualquer maneira.
Ele estava fazendo-lhe um grande favor.
— Vamos, milady — disse ele, depositando brevemente um beijo no
dorso de sua mão.
Henry a conduziu educadamente até a carruagem, acenando para Isabel,
que por sua vez, mantinha as infundadas esperanças de que um dia eles viriam a
ser um casal.
— Suponho que sua mãe esteja criando certas expectativas a nosso
respeito... — Henry olhou para ela, sentada bem a sua frente, fazendo o
impossível para não soltar uma gargalhada enquanto acenava para a mãe da
janela.
— Expectativas ridículas, diria eu. — Abafou o riso com ambas as mãos.
— Não seria tão ridícula se ela soubesse que já a pedi em casamento. —
Henry ergueu uma sobrancelha, sarcástico.
Falhando miseravelmente em refrear o riso que sua expressão divertida já
anunciara.
— Ora, Henry, não seja tolo. Ambos sabemos que não é a minha mão
que deseja. — Encarou-o com uma malícia pertinente no olhar de cobalto.
— Não faço ideia do que está querendo insinuar, Lady Rose. —
Pigarreou umas duas vezes numa tentativa falha de parecer alheio ao que ela
dizia.
— Não tente negar, Henry. Sei que tem certo interesse em Lizzie —
declarou ela sem mais preâmbulos.
— Você é impossível, Rose. — Ele sorriu quase tristemente antes de
prosseguir. — Não negarei nada. Mas também não fará diferença, já que a
senhorita Lizzie não suporta ter-me por perto. — Tentou esboçar alguma reação
que não fosse a confusão que a pequena jovem de cabelos pálidos causava-lhe,
mas seus olhos certamente entregavam-no.
— Lizzie é especial, Henry. Não tome suas ações por antipatia. Ela é
apenas reservada. — Rose queria dizer para que ele não desistisse de buscar o
afeto da amiga, mas não quis ser evasiva.
— Ela parece ter medo de mim, Rose — confessou ele, em voz baixa.
— Então terá de fazê-la ver que não é uma ameaça. Mas seja como for,
se a magoar, terá de prestar contas comigo. — Ela sorriu quase maquiavélica.
— Você, sim, é assustadora. — Compartilhou de seu sorriso enquanto
notava que haviam chegado a mansão.
Ele pensara naquelas palavras durante quase boa parte da noite. Mesmo
quando Rose oferecia-lhe uma bebida, ou tentava conduzir algum diálogo de
banalidades, e até mesmo quando ela sussurrara alguma ultrajante fofoca em
seus ouvidos, ainda assim, Henry só conseguia pensar que precisava encontrar
uma maneira de fazer com que Lizzie o olhasse sem temor nos olhos. Aquilo
seria difícil, mas ele estava disposto a tentar.
Rose tentava distrair-se, mas não podia fingir que os olhares maldosos
em sua direção não lhe afetavam. Ela sabia muito bem o que eles diziam. Sabia
que por trás dos sorrisos de cordialidade havia também perversidade. Alguns
senhores tiveram a audácia de ignorar o capitão ao seu lado, e foram oferecer-lhe
gracejos, mas ela enxergava apenas os olhares vulgares que examinavam seu
corpo como se pudessem despi-la de toda a dignidade.
Aquela farsa, por si só, era um insulto a sua inteligência, mas apesar de
sentir-se ofendida por diversas vezes naquela noite, permanecia com a postura
altiva e mantinha a cabeça erguida.
Nada iria lhe abalar.
Olhou para o lado, e Henry se aproximara com um semblante suspeito.
Ele não a deixara sozinha em nenhum momento, até que havia supostamente
desaparecido de seu lado, e retornara com uma expressão indecifrável nos olhos.
— Há alguém insistindo para ter a honra de ter ao menos uma vez, o
nome escrito em seu cartão — Henry dissera em voz baixa.
— Quem é? — ela questionou com discrição.
— Eu não sei, mas há rumores de que ele disse algo que certamente não a
deixará satisfeita. — Deu de ombros enquanto tentava disfarçar um riso teimoso
à guisa de seus lábios.
— Diga-me, Henry, o que este patife falou a meu respeito? — atalhou,
empertigando-se.
Henry se aproximou discretamente, torcendo em seu íntimo que ela não
resolvesse fazer daquilo um escândalo.
— O cavalheiro supostamente disse que é capaz de “domar a fera”. —
Fez um gesto com as mãos, tentando detê-la de querer cometer algum
assassinato, já que enxergava apenas ira no azul de seus olhos.
Ela respirou fundo algumas vezes, tentando recobrar o temperamento
brando que decidira adotar naquela noite. Voltou-se para Henr e entregou-lhe seu
cartão vazio.
— Descubra quem é. Dê-lhe isso. Diga-lhe para anotar seu nome e eu
dançarei com ele uma valsa. — Havia vingança em seus olhos.
Para ser franca, ela pensou em ignorar o miserável que usara seu bom
nome para divertir-se. No entanto, já que ela tinha a fama de megera, iria fazer
jus a tal. Estava com tanta raiva, que não pôde evitar formar algum plano
maldoso em sua mente. Não sabia quem era o sujeito mal caráter, mas ela
certamente ensinaria-lhe uma lição.
Alguns minutos haviam se passado antes que Henry retornasse com seu
cartão preenchido.
Visconde de Honneville, era o nome escrito em letras elegantes no papel.
Ela mal podia esperar para pisotear os pés do homem que julgara estar
em posição de usá-la como chacota.
Quando os primeiros acordes da melodia começaram, ela aguardou
pacientemente até que o suposto cavalheiro fosse ao seu encontro. Mas aquilo
não havia acontecido.
Ela estava impaciente, incapaz de esconder sua irritabilidade, quando
Henry tocou seu ombro, detendo-lhe a atenção.
— Houve um imprevisto com o Visconde e ele espera vê-la no corredor
próximo à biblioteca. Estarei por perto se precisar de mim. — Henry não lhe deu
chance de dar uma resposta.
Aquilo lhe soava mal. Não era aconselhado tal privacidade entre uma
dama e um homem que ela nem sabia de quem se tratava. Mas sua sede de
provar-se certa era tão grande, que ela saiu em um andar ligeiro no mesmo
instante.
Andou vagarosamente quando alcançou o estreito corredor, onde avistara
a porta da biblioteca entreaberta. Se aproximou lentamente ao notar a presença
masculina.
Ele estava de costas para ela, tinha o porte elegante e os ombros largos,
bem como um ar de soberba que ela decidira odiar sem nem mesmo ver-lhe o
rosto.
Sentia o rubor invadir sua face quando chegou perto o bastante e o tocou
na altura dos ombros.
Quase não deu chance para que ele pudesse vê-la. Sua mão já estava indo
com uma violenta bofetada em sua direção.
Ela o acertara bem no meio do nariz, antes mesmo de perceber que o
suposto Visconde de Honneville, era Lennart Randall, o homem que arruinara
seu coração e furtara sua alma.
— Você me acertou mesmo, cailín! — ele resmungava com as mãos no
lado do rosto que ardia.
— Randall! — Seus olhos estavam arregalados bem com a boca que
estava aberta em uma expressão de surpresa.
— Eu sei que estas roupas são terríveis, mallacht. Estou vestido como
um verdadeiro maricas, mas presumo que ainda dê para me reconhecer e...
Ela havia atirado-se em seus braços antes que ele pudesse terminar sua
sentença.
Ela não o beijou.
Ela devorou seus lábios, sorveu seu gosto e deixou-se queimar em seus
braços.
Randall a envolveu pela cintura, trazendo para si, pressionando-a em um
abraço que jamais queria que findasse.
Ela puxava-o com os braços envolvendo seu pescoço, conduzindo-o para
as chamas que ardiam dentro de si.
Ele parou por um instante, apreciando-a daquela forma, em seu desejo
tão cru, a forma que entregava-se a ele sem qualquer reserva, a maneira que o
olhava sem nenhum pudor.
Ela era uma mulher intensa que guardava calor em seu olhar, um fogo
que ameaçava torná-lo flamejante sem sequer tocá-lo.
— Beije-me. Beije-me como nunca antes. — Ela estava ofegante,
lágrimas represadas nos olhos.
Randall levou uma mão até seu rosto, passando as pontas dos dedos por
seus lábios entreabertos, num claro convite. Traçou seu rosto enquanto suas
pálpebras fechavam-se e lágrimas deslizavam por sua pele de alabastro. Ele
aproximou-se lentamente, percorrendo com os lábios o mesmo caminho,
sentindo o calor que emanava dela.
Permitiu-se beijá-la uma vez mais, com todo seu desejo, toda a sua
admiração e todo o amor que guardava dentro de si. Ela o empurrou contra a
parede, enquanto tomava sua boca sem clemência. Aquela mulher o havia
dominava desde que pusera os olhos nela pela primeira vez, e tendia a ser
daquela maneira pelo resto de seus dias.
Se ela o aceitasse.
Se ela o quisesse.
Ele a afastou quase que com brusquidão diante daquele pensamento.
— Eu quero você, mo ghrá— sussurrou entre seus lábios.
Ela o puxou mais uma vez para si, mas ele a deteve.
— Eu a quero da maneira certa, Rose. — Afastou-se ainda mais.
Enquanto ela o encarava com confusão brilhando em seus olhos,
deparou-se com Randall tirando do bolso do elegante, traje uma pequena
caixinha aveludada, em seguida ajoelhou-se perante ela.
Rose permaneceu alguns segundos sem reação, apenas olhando para ele,
temendo que seus ouvidos tivessem a traindo.
— Eu jamais poderei oferecer-te tudo o que merece. Ainda não tenho
nada, cailín. Ainda uso minhas roupas surradas e não porto qualquer opulência
debaixo do meu teto. Tenho apenas um lar abastado de amor. Uma família, e um
cachorro. Para mim, é o suficiente. — Pegou uma de suas mãos. — Eu achava
que devia conquistar o mundo para colocá-lo de escabelo aos seus pés. No
entanto, descobri que minha maior conquista foi redescobrir os pequenos valores
que a vida tende a nos dar, mais vezes do que podemos contar. E foram estes
novos valores que trouxeram-me até aqui. — Ele sorriu de maneira doce. —
Nunca saberei o que fiz para ganhar seu apreço, mo bheagán. O Senhor fez de
mim um homem afortunado. — Sustentou seu olhar, segurando seus olhos,
prendendo-os, a tornando cativa de suas doces declarações. — Se me disser que
estas coisas também bastarão para você, então teremos conquistado o mundo
juntos, mo chailín milis.— Ele tirou o anel da caixinha, e estendeu-o para ela
aceitar ou recusar.
Ele era mesmo um patife, pensou ela com ironia.
Nunca foi pelo “ter”, mas sim pelo “ser”. Randall havia conquistado-a
por sua bravura, sua aceitação sem julgamentos, seu destemor apesar de tantas
contingências. Jamais fora pelas coisas que poderia obter, mas sim, pelas razões
que ele lhe dera para ela querer lutar suas próprias batalhas. Aprendeu a amá-lo
por suas próprias virtudes. Amava seus olhos de ébano e seus longos cabelos
sempre desgrenhados; amava quando suas palavras eram ternas e até mesmo
suas bravatas; amava-o por ser exatamente quem era, não pelo que tinha.
Mas se fosse amá-lo por tudo o que possuía, também seria a mais rica das
mulheres. Em sua alma residia bondade, honestidade e pureza. Randall era uma
pedra valiosa que não precisava ser lapidada, pois até mesmo suas imperfeições
tornavam-se belas aos seus olhos.
Ela já o havia aceito.
Mas ele precisava ouvi-la dizer em voz alta.
Então, ela pegou o anel e colocou-o em seu próprio dedo, dando-lhe bem
mais que apenas um “sim”.
Ela havia lhe dado a promessa de uma vida inteira das mais valiosas
recompensas.
Abraçaram-se demoradamente, beijaram-se ainda mais lentamente, e
antes que as carícias se tornassem urgentes demais para suportar, mais uma vez,
Randall lutou contra o desejo de tomá-la para si e afastou-se.
— Quero lhe pedir uma coisa — ele murmurou com os olhos ardentes
em excitação.
— Diga-me. — Ela estava disposta a dar-lhe qualquer coisa que ele
pedisse.
— Dance comigo, milady. — Ele ofereceu-lhe um braço.
Ela o segurou, sabendo que aquele seria um momento importante para
ele.
Randall pela primeira vez não sentia-se inferior ou indigno de tê-la. E
aquela primeira valsa aos olhos de todos, mostraria isso.
Caminharam de volta ao salão, os olhares voltando-se em sua direção.
Rose sentia-se protegida com a forma que ele a segurava, de maneira
firme e concisa. As mãos ladeando seu corpo enquanto ela encontrava acalento
em seus braços.
Pousou a cabeça sobre seu peito enquanto ele a embalava ao ritmo suave
da canção.
Podia ouvir as batidas constantes de seu coração, um som que a fizera
sorrir com a doce promessa de ouvi-lo por todas as noites quando repousasse
sobre seu peito.
— Estarei em sua casa amanhã, ao alvorecer. — Ele beijou brevemente
seu rosto.
Ela levou as mãos ao seu pescoço, ajeitando sua gravata outrora
demasiadamente torta, com um sorriso nos lábios.
— Eu disse-lhe que não era um cavalheiro — desculpou-se.
Ela deu de ombros, desinibida enquanto seus dedos continuavam a
trabalhar no nó do tecido.
Rose o desatou, tirando a gravata de seu pescoço e fazendo proveito de
um instante de dispersão dos demais casais que juntavam-se a eles no centro do
salão.
— Eu jamais quis um cavalheiro. — Ela piscou para ele, à medida que
levava o tecido que tirara de seu pescoço para a fenda em seu vestido.
Com aquele breve e sugestivo gesto, ela o fez entender que
decididamente não importava-se com as rígidas normas impostas pela sociedade.
Não fora apenas a gravata.
Fora o ato de expor-se ao seu lado.
Ao lado de um homem desajustado, que não encaixava-se ao padrão que
ditava a nobreza.
Um sujeito de raízes selvagens, disposto a se vestir como um verdadeiro
inglês para adentrar ao seu mundo, mesmo que nada daquilo importasse para ela.
Em um mundo de falsos valores, ela era uma rara verdade.
— Eu disse que seria capaz de domar a fera — ele sussurrou em seu
ouvido com um riso malicioso nos lábios.
— Há quanto tempo está em Londres? — indagou ela, revirando os
olhos.
— Tempo o bastante para conhecer sua fama — Randall afirmou, não
deixando de rir. — Rose, a megera! Quem diria... — Ele continuava rindo
indiscriminadamente.
— Não ria disso ou eu juro que vou acertá-lo novamente — ameaçou
entredentes, mas compartilhava de seu sorriso.
— Não duvido disso. — Levou uma das mãos rapidamente ao lado do
rosto que ainda ardia pela bofetada.
Ele a observou por alguns segundos, o modo que as luzes passavam por
seu rosto, fazendo os olhos tornarem-se ainda mais claros e os cabelos ainda
mais rubros. Era encantador. Ela era encantadora.
— Eles são todos idiotas, mo bheagán. — Havia aceitação em seu olhar.
— Se não a compreendem, são todos tolos. — Olhou ao redor com desagrado.
— Nunca mais terá de suportar tais ofensas, eu prometo. Não vou deixar que
falem desta maneira da minha mulher. — Ele apertou sua mão com delicadeza.
Ela sabia que estaria segura com ele.
Quando Randall fazia uma promessa, ele iria até o inferno, se necessário,
para cumpri-la.
Além disso, ninguém ousaria desafiá-lo. Rose divertia-se vendo a cautela
nos olhares lançados em sua direção. Apesar das roupas de gala, era evidente
que Randall não era um deles. Seu porte rústico e seus modos precisos,
entregavam-no.
E ela amava aquilo nele, afinal, nunca quis transformá-lo em um inglês
mesquinho. Ele seria para sempre um irlandês bronco com o coração maior que
o mundo.
Ela se aproximou ainda mais dele, estreitando-se ao seu corpo.
— Ainda não sou sua mulher. Terá de enfrentar dona Isabel antes disso
acontecer. — Sorriu com maledicência, sabendo que a mãe não cederia tão
facilmente.
Sorriu também com a ideia dos dois juntos no mesmo ambiente. Sua mãe
certamente teria uma surpresa, e aquilo seria hilário de se ver.
Randall assentiu, tentando não revelar o quão apreensivo estava.
De onde viera, as coisas eram descomplicadas. Não havia toda aquela
maldita etiqueta.
Se quisesse uma mulher, bastava conquistá-la e tomá-la como esposa.
Não tinha que conquistar também os pais dela.
Contudo, os costumes ali eram diferentes. E ele estava disposto a segui-
los.
Mas o riso maldoso que Rose tentava ocultar fora uma pista para
presumir que sua mãe não lhe daria trégua.
Engoliu em seco, enquanto a melodia chegava ao fim, pensando em
como sobreviveria ao dia seguinte.

*cailín —moça
*mallacht —maldição
*mo ghrá —meu amor
*mo bheagán —minha pequena
*mo chailín milis —minha doce menina
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Randall ensaiara durante quase a noite toda, mas apesar de seu empenho,
parecia ter desaprendido o dom da fala quando se viu em frente a oponente
mansão da família Wymond.
Tudo era tão elegante e grandioso, que pensou estar indo visitar a própria
Rainha, riu consigo mesmo diante de sua pequenez.
Sempre soube que Rose vinha de uma linhagem nobre, mas não estava
preparado para ser apresentado a todo aquele requinte e magnitude.
A propriedade perdia-se de vista enquanto ele caminhava pelo jardim,
acompanhado de um lacaio. Havia alugado uma carruagem, já que não herdara
uma.
Ao entrar na mansão, fora recebido pelo mordomo que imediatamente o
ajudou a retirar seu casaco, pendurando-o próximo à porta, juntamente com seu
chapéu.
Randall olhou para o sujeito discreto à sua frente e praguejou em voz
baixa, notando que inacreditavelmente a vestimenta do mordomo era superior a
dele.
— Ifreann!— atalhou quando percebeu que havia se esquecido da
maldita gravata.
Vestia apenas uma camisa de linho fino, calças pretas que pareciam-lhe
apertadas demais, e o casaco que o mordomo havia pendurado. Ao menos os
sapatos estavam devidamente polidos, pensou ele ao conferi-los.
— O Conde e a Condessa de Houghton o receberá em breve. Sente-se
enquanto os aguarda. — O lacaio de semblante severo o conduziu até uma
pequena saleta.
Estava sentado enquanto ouvia alguns passos agitados alcançando-no
próximo à porta.
Rose estava apreensiva demais para fazer qualquer outra coisa, a não ser
caminhar de um lado para o outro enquanto os pais conversavam em particular
na biblioteca.
Certamente ela havia dito a mãe tudo o que acontecera na noite anterior,
e apesar de Isabel tê-la proibido de pensar em Randall nas vintes primeiras
vezes, uma hora ela teria de ceder, e assim aconteceu.
A Condessa sempre fora dura em seus tratos, mas sabia aceitar a derrota
quando percebia que não tinha saída, e além disso, como uma mulher experiente
e apaixonada, ela soube ver o amor nos olhos da filha enquanto descrevia o
homem que nutria seu afeto.
No entanto, mesmo que Isabel se esforçasse para imaginá-lo, jamais
poderia pensar que ele aparentava ser tão incivilizado quanto parecia, quando
pôs os olhos nele pela primeira vez em sua sala.
Randall esperava que Rose fosse ao seu encontro antes dos demais, mas
soube que aquilo não aconteceria quando viu a distinta senhora caminhando em
sua direção.
— Lady Wymond. — Ela lhe estendeu a mão, esperando que ele a
reverenciasse e beijasse de maneira breve o dorso.
Miseravelmente, Randall não fez nada do que ela esperava. Em um
impulso ligeiro, ele segurou sua mão da forma que um cavalheiro
cumprimentaria o outro, sacudindo-a em um aperto de mão firme demais para
uma dama de sua estirpe.
Rose os espiava entre o vão da porta entreaberta. A mãe instruiu-lhe
duramente que queria conversar com seu suposto pretendente a sós, mas nada a
impedia de sorrateiramente flagrá-los.
— Lorde Culbert, milady — disse ele ao soltar sua mão, tentando
esboçar um sorriso que mais pareceu uma careta de dor.
— Sua família não é muito conhecida, ou eu lembraria de seu nome. —
Ela sentou-se lentamente, servindo-se de uma xícara de chá fumegante.
— Viviam na área campestre da Inglaterra. Não eram frequentadores
assíduos de eventos sociais, apesar de carregarem um título bastante influente.
— Ele tinha ambas as mãos unidas sobre o colo.
— Entendo. — Ela bebericou do líquido devagar, parecendo testar a
paciência do jovem à sua frente.
A Condessa tinha um olhar apurado em sua direção, observando as mãos
do homem, que pareciam trêmulas. As calças surradas de segunda mão,
pequenas demais para comportar pernas tão longas. Certamente, ele não tinha
um valete para auxiliá-lo naquela tarefa.
Seus cabelos eram definitivamente longos demais para um lorde
respeitável, concluiu ela, enquanto o analisava em um silêncio mortal.
Os olhos eram negros, quase tanto quanto os cabelos que batiam em seus
ombros. Era um homem rústico, pôde perceber pelo modo como se referiu a ela.
No entanto, também havia coragem naqueles olhos, e ela tinha certeza de que se
ele parasse de balançar freneticamente as pernas, poderia até mesmo transparecer
uma demasiada determinação.
E isso ela admirava naquele sujeito.
— Vamos poupar os preâmbulos, milorde. — Colocou sua xícara sobre a
pequena mesa de centro. — Sei de suas origens, e sei também tudo o que fez
com minha filha — declarou, fazendo-o ter uma súbita crise de tosse.
Ela quase se compadeceu dele.
Quase.
Havia pedido para que servissem um copo d'água, já que ele parecia ser
incapaz de falar algo coerente sem que a tosse lhe afligisse como se tivesse
tentado engolir todo o ar de uma só vez.
— A senho... madame... Oh, não... diabhal— resmungou ele antes de
prosseguir. — Milady, não pense que eu fiz algum mal a Rose. Eu...
— Oh, não, não. Certamente, não. — Ela estalava a língua ritmadamente,
deixando-o ainda mais agoniado com o rumo que aquela conversa estava
tomando. — Mal não deve ter sido, já que ela pediu-me com tanta veemência
para que eu lhe desse meu consentimento ao seu pedido. — Encarou-o após a
deixa.
Seria aquele o momento? Ele devia pedir a mão de sua filha naquele
instante?
Oh, céus, senhor misericordioso, pensou ele em uma prece silenciosa ao
encarar o teto por alguns segundos.
— Sim, bean— Engoliu em seco, tentando inutilmente não gaguejar. —
Peço que, por favor, possa me dar o privilég... não. Mallacht— Mais uma infeliz
imprecação saíra de sua boca. — Honra! Suplico que dê-me a honra de ter sua
filha como minha esposa. — Apertou as mãos em dois punhos cerrados.
Aquilo era um disparate.
Aquele homem era ultrajante.
Mal conseguia findar uma sentença sem soltar algum impropério. Jamais
sabia dizer como Rose, sua pequena menininha, tinha escolhido alguém como
ele.
No entanto, se realmente não pensasse sendo dissuadida pelo seu pobre
coração de mãe, ela poderia, sim, imaginar os atrativos que fizeram Rose se
apaixonar por aquele selvagem.
Ela queria paixão.
Rose sempre ansiara algo que a tirasse dos eixos, nunca teria se
contentado com um amor brando. Ela queria ardor, queria sentir o coração
ensandecido no peito e o fascínio arrebatador que, para ser franca, sabia que
alguém como Randall poderia causar.
Ele era um homem atraente. Exalava masculinidade, aquilo era fato. Mas,
o mais curioso, era que havia gentileza em seus olhos.
Quase uma inocência.
Ele falava quase temeroso, quase ingênuo demais para quem praticara
atos ilícitos outrora.
Estava diante de um bom sujeito, Isabel soube assim que olhou-o
diretamente nos olhos, afinal, havia bondade neles. Aquilo era inegável.
Contudo, ela iria fazê-lo penar um pouco mais. Não era todo dia que um
homem daquele tamanho encontrava-se à beira do desespero ao enfrentar uma
mãe.
Ela poderia ter rido dele naquele momento, quase podia sentir pena do
rapaz, mas ela não poderia perder a oportunidade de agir conforme a fama que a
precedia.
— O que o faz pensar que eu, em sã consciência, negaria seu pedido? —
Ele estava prestes a sorrir, quase sendo tomado pelo alívio, quando ela
continuou. — Já que fora o responsável por deflorar a mácula de minha filha,
terá mesmo de casar-se com ela — declarou ela, impassível, como se suas
palavras não o tivesse deixado à beira de uma síncope.
Ele nunca havia sentido tanto medo em toda sua vida, como sentia
naquele instante, com aquela mulher.
Preferia mil vezes estar fugindo de uma multidão querendo matá-lo, do
que sentado naquele cômodo.
Era constrangedor ter aquele tipo de diálogo com a mãe da mulher que...
deflorara.
Era até difícil pensar naquela palavra, que dirá dizê-la.
Antes que pudesse recuperar a compostura, um barulho na porta o
sobressaltou, fazendo-o pular. Nem se precisasse enfrentar o próprio diabo, não
sentiria tanta apreensão quanto sentia com Lady Wymond.
— Por Deus, mãe! Está assustando-o. — Rose entrou na saleta como
uma verdadeira tempestade.
— Não lhe pedi para que deixasse-nos a sós? — indagou a Condessa
com soberania.
— Que diabos! Olhe só para ele, está pálido. — Rose pegou o copo que
ainda continha um pouco de água sobre a mesa e ofereceu-lhe.
Randall bebeu vagarosamente, tentando assimilar tudo o que acontecia
naquela sala.
Isabel não tirava os olhos dele, enquanto Rose segurava uma de suas
mãos, tentando esconder o riso em seus lábios.
Quando pensou que nada poderia ficar pior e mais vergonhoso, o Conde
fora anunciado, juntando-se a eles com um olhar astuto, nitidamente avaliando-o
da cabeça aos pés.
— Então, este é o jovem Lorde Culbert. — Estendeu a mão, que o rapaz
segurou um tanto afoito demais.
— Sim, senh... milorde — corrigiu-se rapidamente Randall.
— Então é você que está querendo levar minha menina embora! —
afirmou.
Mas antes que Randall pudesse cavar um buraco no chão para se enfiar,
notou que o Conde sorria, juntamente com a Condessa, que atenuou suas
expressões vincadas. Somando tudo aquilo ao fato de Rose ainda estar segurando
sua mão, sem que alguém fosse mandado para que o tirassem dali a pontapés,
parecia estar sendo bem-sucedido em sua tarefa.
Em uma inesperada onda de coragem, ele levantou-se.
Ficou frente a frente com Edmund, que parecia divertir-se com toda a
cena que a esposa armara.
Pigarreou algumas vezes e pensou que verdadeiramente iria desmaiar,
então juntou todo o seu destemor, antes que aquilo de fato viesse a acontecer.
— Eu jamais fiz qualquer mal a sua filha, milorde. — Olhou para Rose,
que fez um gesto, incentivando-o a seguir adiante. — Sei que não sou quem
esperavam ter como genro. Não sou um cavalheiro, como já devem saber. Ter
um título não me faz ser um de vocês. — Pôs as mãos nos bolsos, já que
pareciam desajeitadas pendidas ao lado do corpo. — Sei também que não
mereço alguém tão bom quanto a filha de vocês, mas... — Olhou-a mais uma
vez, buscando denodo. — Eu a amo. Amo mesmo. Com todo o meu coração. E,
se puderem consentir com isso, eu juro que a protegerei com minha vida. —
Olhava para o Conde que tinha ficado sério subitamente.
— Venha aqui, rapaz. — O Conde foi para o sofá, sentando-se com
Randall ao seu lado. — Está errado. Amargamente equivocado. — Encarou-o
com o olhar de brandura. — Você merece nossa filha. Vejo que é um homem que
tem suas honrarias. E só pelo fato de amar minha pequena garotinha, já tem
minha benção. — Ele pôs uma mão no ombro de Randall, que parecia ainda
mais pálido.
— Seja bem-vindo à família, filho. — Isabel se aproximou dele, com
olhos de ternura ao falar.
Rose havia lhe confidenciado detalhes da vida de Randall, e apesar de
desaprovar alguns de seus atos e até mesmo a forma que ele levava a vida, Isabel
sentiu-se compelida a recebê-lo de braços abertos, por fim.
Quando ele ouviu as últimas palavras da Condessa junto a benção do
Conde, não pôde deixar de comover-se com tamanha aceitação.
Não era aquilo que esperava daquelas pessoas que chamaria de sogros.
Fora até ali preparado para enfrentar uma árdua batalha, uma em que
poderia sair ferido, ou pior, ofendido. Contraditoriamente, eles receberam-no
com gentileza e deram-lhe o maior presente de todos, sua amada Rose.
— Oh, céus, pode voltar a respirar agora, Randall. — Rose pôs uma mão
em seus ombros de modo consolador, enquanto ele ainda tentava absorver tudo o
que acontecera ali.
— Peça para que tragam-lhe outra xícara de chá — Isabel pediu ao
marido quando retirou-se do cômodo para voltar ao escritório. — A dele
certamente está fria.
Rose olhou para o pai, que ofereceu-lhe um sorriso. Um breve e ligeiro
levantar de lábios que conotava toda a sua aprovação. E ela estava
verdadeiramente grata por ser afortunada com pais tão compreensivos.
Após alguns minutos de notório silêncio, serviram uma nova xícara de
chá para Randall, que queimou a ponta dos dedos ao pegá-la de modo instável.
Isabel, vendo-o tão atabalhoado com sua presença, deu-lhes um momento
de privacidade, retirando-se do cômodo com o pretexto de que precisavam de
suas ordens na cozinha.
— É sério, Randall, pode voltar a respirar. — Ela quis gargalhar, mas o
poupou de sua chacota quando ele suspirou longa e demoradamente.
— Leathcheann!— Levou as mãos até a fronte. — Fui um verdadeiro
idiota. Não disse nada do que gostaria. — Empertigou—se. — Devem ter
tomado-me como um verdadeiro tolo.
— Você disse o que precisava ser dito — garantiu Rose. — Agora trate
de tomar este chá, ou lhe trarão uma terceira xícara. — Ela revirou os olhos em
escárnio.
Randall olhou para a mesa à sua frente, onde a xícara repousava sobre o
pires. Havia também duas colheres pequenas ao lado, com alguns utensílios
contendo cubos de açúcar e provavelmente leite. Não sabia se devia beber
imediatamente, ou adoçá-lo antes de provar. Ou até mesmo devesse servir-se do
leite, mas o quanto deveria pôr? Aquilo tudo era uma verdadeira perda de tempo
e ele encarava o jogo de chá como se as peças fossem atacá-lo a qualquer
momento.
— Por Deus, Randall! Apenas faça o que eu fizer, está bem? — Rose
estava impaciente, vendo-o tão confuso.
Ela pegou sua própria xícara, que fora servida alguns segundos após a
dele, e serviu-se de um pouco de leite juntamente com uma pequena porção de
açúcar, pegando a colher menor que estava ao lado da porcelana, e misturando
lentamente à bebida no recipiente. Randall a imitou meticulosamente, ainda mais
quando percebeu que vez ou outra a Condessa espiava-os do vão da porta.
Ele queria passar uma boa impressão. Estava tão preocupado que não
havia pensado no mais relevante daquele dia.
Rose era oficialmente sua noiva.
— Cailín, temos de marcar uma data. — Seus olhos fitavam-na ao
mesmo tempo que pareciam enxergar o vazio, tamanha era sua concentração.
— O quanto antes, por mim está ótimo! — Ela esqueceu sua xícara na
mesa e pegou a dele, também levando-a para o mesmo esquecimento.
Ela olhou para os lados com uma expressão maliciosa e voltou-se para
ele após certificar-se de que ninguém iria os flagrar. Lançou-se em seus braços,
buscando ardorosamente sua boca com uma urgência que a fazia queimar como
brasas sendo engolidas pelas chamas.
Ele queria afastá-la, Deus sabe o quanto queria, mas não pôde reagir. Não
quando suas mãos trilhavam um caminho tão tentador.
Pressionou-se contra ela e murmurou seu nome quase penosamente, antes
de entregar-se ao seu domínio.
— Oh, daor, pare! — sussurrou entre os lábios dela.
Ela sorriu, um risinho maroto que o aqueceu por dentro, fazendo-o crer
que a qualquer instante seu coração poderia inflar de tanta felicidade.
Antes que pudesse recuperar o fôlego, a Condessa retornou à saleta,
sobressaltando-os. Ele pegou sua xícara novamente, bem como Rose, que tinhas
as maçãs do rosto coradas pelo desejo.
— Visto que estão tão... empolgados... — Isabel arqueara uma
sobrancelha — presumo que queiram planejar tudo com a devida antecedência.
— Sentou-se novamente ao lado de Randall, que não pôde deixar de ajeitar a
postura.
— Eu não sei quanto tempo demora... Quer dizer, todas as coisas, os
editais e arranjos. — Randall olhou para Rose, seu olhar suplicando auxílio.
— Tudo pode ser feito em uma semana. — Rose deu de ombros como se
falasse a mais trivial banalidade.
— Apenas uma semana? Não creio que poderão preparar tudo em tão
pouco tempo. Há convites para serem entregues, um vestido para ser escolhido...
Céus! Vocês não têm uma casa! — Isabel estava inquieta, pensando em tudo que
precisava ser feito.
— Temos uma casa, mãe — Rose declarou, com um sorriso morno que
fez Randall igualmente sorrir ao seu lado, enquanto buscava suas mãos. —
Randall tem uma propriedade no campo, onde vive com o jovem Gael, um
menino adorável que terei imensa alegria de ver crescer. — Ela olhou para ele,
saudade invadindo seus olhos de anil.
Ele tinha pedido que ela o aceitasse, se ele fosse-lhe suficiente.
E Rose mostrara mais uma vez que aquilo bastava. Tudo que tinham e
tudo o que ainda construiriam, era suficiente para fazê-la sorrir com
desprendimento daquela forma tão bela. Ele a observava com todo o amor,
paixão e gratidão que guardava em seu peito.
Aquela mulher o orgulhava a cada ato altruísta, cada palavra sensata e
cada sorriso que esboçava.
Tinha a certeza de que, juntos poderiam tecer uma vida solidificada em
verdadeiros sentimentos. Juntos eles poderiam realizar qualquer sonho.
— Já temos até um cachorro, mãe — Rose emendou após ver a expressão
apaziguadora nos olhos da Condessa.
— E quanto à festa? — Isabel indagou com curiosidade.
— Não quero algo luxuoso. Apenas algo íntimo. Uma cerimônia
acolhedora em algum lugar a céu aberto. — Seus olhos sorriam como se pudesse
avistar o mais belo dos lugares. — Não quero que convide ninguém, exceto a
família e amigos mais próximos. — Pegou a mão de Isabel com suavidade. —
Eu já tenho tudo o que preciso, mãe. Não necessito de nada além disso —
afirmou com convicção.
— Eu posso ver isso em seus olhos, filha — murmurou Isabel, puxando-a
para seus braços.
Ela envolveu sua pequena menina de cabelos cor de fogo em um abraço
fraterno, embalando-a como costumava fazer quando ainda não passava da altura
de sua cintura.
Sua última filha iria casar, seguiria seu próprio destino.
Após alguns minutos, ela ergueu os olhos para o homem que cuidaria de
Rose dali pra frente, e com um gesto genuíno o puxou para junto delas,
recebendo-o como um filho junto de seu colo.
Percebeu algumas lágrimas descendo pelo seu rosto, mas afinal, eram
lágrimas de uma mãe que casaria a última filha. No entanto, surpreendeu-se
quando viu discretamente que o pobre rapaz também tinha os olhos marejados,
como um menino em busca de acalento.
Nunca pensou que teria genros tão diferentes, mas sabia que em seu
íntimo, amava a todos eles. E com Randall não seria diferente. Ele já havia
conquistado sua confiança e certamente havia ganho um lugar especial em seu
coração.

*ifreann —inferno
*diabhal —diabos
*bean —senhora
*mallacht —maldição
*leathcheann —idiota
*cailín —moça
*daor —querida
CAPÍTULO VINTE E SEIS
As luzes mornas do crepúsculo tangiam as mais calorosas emoções, à
medida que o sol derramava-se na relva verde da colina, lugar escolhido por
Rose para sua cerimônia de casamento.
Ela queria um lugar especial, e não havia nada mais extraordinário que as
luzes do entardecer a céu aberto. As matizes laranjas desenhavam o pôr do sol e
a brisa morna recitava uma doce melodia junto ao som harmonioso das folhas
que agitavam-se na copa das árvores. Aquele era um dia em que era fácil crer em
magia.
Todos estavam presentes para celebrar com eles aquele dia memorável.
Todos os que realmente importavam.
A família de Rose e alguns poucos amigos comoviam-se ao verem
Randall. O noivo mais emocionado que já haviam visto, eles diriam
posteriormente.
Era deveras notável as emoções tecendo lágrimas nos olhos de Randall
quando avistou Rose indo ao seu encontro no altar de rosas silvestres que
haviam construído juntos.
Rose caminhava lentamente ao ser conduzida pelo pai. As saias longas e
armadas de seu vestido imaculadamente branco chegavam até o chão. As
mangas bufantes, na altura de seu cotovelo, unidas ao justo corpete adornado de
brilhantes, davam-lhe o requinte que uma noiva precisava em seu grande dia.
Um laço pendia de sua cintura e cabelos ruivos lançavam-se à brisa morna do
crepúsculo. Ela estava particularmente bela, mas nada era um adorno mais lindo
que o sorriso que carregava em seu rosto.
Sorria como se fosse a mais afortunada das mulheres, e em seu íntimo,
sabia que era. Não podia sentir o contrário ao ver Randall sorrindo para ela
daquela forma tão bela. Os olhos negros que tanto amava, estava iluminado
naquele dia. Finalmente as estrelas passaram a habitar os céus negros de seu
olhar.
Quando ela chegou até o noivo, Randall jamais esqueceria da expressão
em seus olhos.
Fitou-a por longos instantes, desejando do fundo de seu coração ter
algum dom para poder eternizá-la naquele momento. Podia ser um pintor com
traços apurados, um escultor com mãos hábeis, ou até mesmo um poeta para
descrevê-la minuciosamente. No entanto, não era nenhum destes, e teria de
bastar que a eternizasse em seu coração.
E ele fez aquilo.
Lembraria para sempre de seus olhos naquele dia.
Olhos da cor do mar, que por vezes brilhavam como a própria relva
coberta de orvalho ao alvorecer. Os olhos mais ternos que já vira em toda a sua
vida.
E ele a faria recordar daquele dia, por todos os anos que viriam a seguir.
Uma lágrima caiu de seus olhos enquanto ele erguia o véu que cobria ser
rosto, beijando-lhe demoradamente o alto da testa. Ele sussurrou palavras
arrastadas em irlandês. Palavras doces, quentes, que fizeram-na sorrir e corar na
mesma medida.
Segurou-lhe ambas as mãos enquanto a melodia retomava, anunciando a
entrada das alianças trazidas pelo jovem Gael.
Rose não pôde conter sua euforia ao vê-lo, já que ainda não o tinha
reencontrado antes.
O menino caminhava um pouco acanhado, com o pequeno conjunto de
rendas nas mãos pequeninas.
Antes que pudesse chegar ao altar, Rose já havia descido do emaranhado
de flores em prol de recebê-lo nos braços, e assim ela fez. Tomou o pequeno
rapaz em um abraço aconchegante, fazendo uma grande parte de seu coração se
aquecer.
Ela pôde ver lágrimas nos olhos do menino e o abraçou novamente.
Quando o reverendo começou a bater um pé irritantemente, tentando
chamar-lhe atenção, ela revirou os olhos e voltou para o lado de Randall, que
tentava inutilmente segurar o riso diante de sua postura.
— Estamos todos aqui reunidos nessa bela tarde de primavera, para... —
o reverendo iniciou, mas logo foi interrompido pela noiva, que de forma não
muito sutil, apontou para o papel que ele ignorara em sua bancada.
O reverendo olhou de Rose para o papel e suspirou quase penosamente.
Ela havia escrito um pequeno discurso e o entrego com o devido pedido
que ele repetisse cada palavra ali, mas ele nunca pensou que ela seria tão
absurdamente literal.
Limpou a garganta e aumentou a voz uma vez mais, dando continuidade
à sentença.
— Estamos todos aqui reunidos nessa esplêndida — enfatizou, olhando
para Rose, que sorria satisfeita, prosseguindo — tarde de primavera, para
celebrarmos o enlace de Lorde Lennart Randall Culbert e Lady Rose Wymond,
com a benção do Senhor — declarou ele, sendo surpreendido por uma salva de
palmas dos presentes.
O discurso prosseguiu rapidamente após todo o alvoroço, mais palmas
surgiram quando chegou a troca dos votos, e Randall passou a chorar e a
praguejar pelo fato de estar chorando. Risos foram abafados quando Randall
derrubou a aliança, atabalhoadamente, soltando alguns impropérios até que o
reverendo olhou para ele com indignação e ele desculpou-se com mais algumas
palavras torpes, arrancando ainda mais risos dos demais.
O reverendo só faltou ter um ataque apoplético quando Rose atirou-se
nos braços de Randall, antes que ele dissesse que o noivo podia beijar a noiva.
Ela o beijou avidamente, entrelaçando os braços em seu pescoço
enquanto o reverendo estava da cor de um tomate maduro, pigarreando
inutilmente ao tentar lembrá-los do pudor.
Quando o senhor e a senhora Culbert foram devidamente anunciados, as
felicitações surgiram em forma dos mais familiares abraços.
Rose lembraria para sempre a forma que a mãe a embalou em seu colo,
dizendo que Deus a havia abençoada com três lindas filhas, mas que estava grata
por estar casando a última delas antes de perder o juízo de vez. Derramou mais
algumas lágrimas lamentando que a filha caçula deixaria o ninho, mas ao mesmo
tempo dava graças aos céus pela mesma razão.
Seu pai foi ao seu encontro munido de carinho. Ele nunca precisou dizer
muita coisa para se fazer entender. Seus olhos de amabilidade sempre foram o
suficiente para esboçar todo o amor e orgulho que sentia pela filha. Os gestos
fraternos sempre conotaram todo seu apreço e aprovação, e naquele momento
em que tinha sua filha nos braços, não foi diferente.
Os próximos na fila do abraço foram Richard e Lilian. A irmã mais velha
a abraçou de forma espirituosa, dando-lhe os mais sinceros votos de felicidades,
enquanto Richard a segurou pela cintura e a ergueu do chão, arrancando risos de
todos que testemunhavam a cena. Após abraçá-la, Richard fez questão de
certificar-se que Randall seria um bom marido com sutis ameaças que deixou o
pobre noivo com os olhos arregalados em desespero, até Lilian interceptá-los e
puxar Richard, que miseravelmente gargalhava da expressão de Randall,
levando-o para longe dali.
Allie fora a próxima. Com os olhos vermelhos e inchados de tanto
comover-se, abraçou a ambos com delicadeza, enquanto tinha a pequena filha
adormecida nos braços.
— Tenho algo para vocês. — Allie pediu para que Daryl mostrasse o
grande embrulho que trazia consigo.
— Não é grande coisa, mas...
Rose a interrompeu quase bruscamente quando notou o quadro pintado
pela própria irmã, retratando sua nova família.
— Oh, Allie, é maravilhoso! — Puxou-a mais uma vez para um abraço
apertado.
Daryl seguia o exemplo de Richard, mas de uma forma muito mais
cortês, ao dar as felicitações a Randall, que logo estava recebendo-o em um
breve, mas verdadeiro abraço.
Quando chegou a vez das crianças, quase derrubaram-na do altar. Os
sobrinhos estavam aumentando e a forma com que os abraçavam, chamando-os
de tia Rô e tio Len, era uma doce demonstração de amor.
Suas amigas, Jane, Madeline e Eleonor, também estavam lá dando-lhe
abraços e sorrisos, sussurrando que também iriam para a Irlanda em busca de um
pirata, se na próxima temporada continuassem solteiras.
A figura ilustre de Lady Campbell também estava presente, juntamente
com seu marido, para celebrarem mais uma união de amor, evento que
infelizmente não acontecia com tanta frequência naqueles tempos.
Quando Rose pensou que nada podia emocioná-la ainda mais, ela viu
Lizzie à espreita, esperando pacientemente sua vez em um canto próximo ao
arranjo de rosas.
Ela tomou a amiga nos braços. Lizzie era tão pequena que parecia apenas
uma menina. Juntas, elas sorriam e abraçavam-se demoradamente, até que Rose
avistara o capitão Henry aproximando-se, e Lizzie apressou-se em voltar para
seu canto discreto, ocultada pelas flores silvestres.
Quando Henry a abraçou, Rose agradeceu por tudo que ele fizera por ela.
E Randall, por sua vez, limitou-se a um ligeiro aperto de mãos à medida que
resmungava algo incoerente.
O fim da tarde logo anunciara o início da noite, quando todos já estavam
despedindo-se do casal.
O jovem Gael abraçou Randall antes de juntar-se a Daryl, que o convidou
para uma estadia em sua casa campestre, prometendo-lhe que o ensinaria a
montar, arrancando assim o sorriso mais feliz que já havia visto nos lábios de um
menino.
Enquanto isso, uma carruagem levava Randall e sua esposa ao seu lar.
Rose ainda não tinha ido à sua humilde propriedade, e ela ansiava aquele
momento com os olhos brilhantes de expectativa.
Randall havia trabalhado duro durante aquela semana que antecedeu seu
casamento. Tinha muitos reparos para realizar e cômodos para aumentar na
residência.
Com uma esposa, ele certamente precisaria de mais privacidade, então
rapidamente aumentou mais alguns cômodos na casa. Em uma semana não
poderia ter feito tudo sozinho, mas tamanha foi sua surpresa quando alguns
supostos vizinhos apareceram para lhe dar uma mão.
Aquela pequena comunidade de Bath havia o acolhido, e quando
souberam de seu casamento, juntaram até mesmo seus recursos para presenteá-
lo.
Assim, com mais alguns habilidosos homens ajudando-o na construção,
resultou em uma bela casa de dois andares.
Tudo era muito simples, mas feito com muito carinho.
Ao fim daquela semana, Randall tinha uma casa digna de abrigar toda
sua família, amigos de confiança com quem podia contar, e uma esposa que o
faria companhia pelo resto de seus dias.
Era mais do que ele poderia pedir ao Senhor.
Quando a carruagem parou lentamente, ele desceu e a auxiliou,
segurando sua mão. Rose ergueu os olhos e deparou-se com uma das cenas mais
belas que seus olhos já haviam testemunhado.
Era uma casa de madeira tão bem desenhada, feita com tanto zelo e
capricho, que podia-se notar o trabalho grandioso realizado ali.
Ela queria dizer a Randall o quanto estava orgulhosa, e o quanto estava
grata por tudo o que ele lhe dera naquela noite, mas tudo que ela foi capaz de
fazer era derramar lágrimas no escuro.
— Não chore, mo ghrá. — Ele passou os dedos pelo seu rosto.
— É tudo tão lindo, Randall. — Ela caminhava diante da casa.
Observou o pequeno jardim que contornava a propriedade, bem como os
altos carvalhos que adornavam o lugar. Antes que pudesse chegar até a varanda
que tinha três cadeiras de balanço lado a lado, próximo às tulipas, um cachorro
veio ao seu encontro, tão veloz que ela não pode detê-lo.
— Então este é o Beag — indagou ela, acarinhando as orelhas do enorme
cão.
— Este é o Beag — Randall respondeu em concordância, tentando em
vão limpar as marcas das patas no vestido da esposa, enquanto ela sorria
amplamente.
Quando Randall viu que não poderia afastar Beag da nova integrante da
família, ele pegou Rose em seu colo, arrancando-lhe uma sutil gargalhada
quando a passou entre o limiar da porta.
Ela olhou em volta, examinando tudo minuciosamente, apreciando cada
detalhe desde os quadros pendurados na parede até o vaso com flores recém
colhidas, que estava no centro da pequena mesa quadrada.
Caminharam juntos enquanto Randall apresentava-lhe o lugar,
justificando-se a cada passo pela simplicidade oferecida.
Subiram um lance de escadas, algumas tábuas rangeram e um vento
soprou de uma das janelas propositalmente deixada aberta. Quando abriram a
porta do cômodo, Rose deparou-se com mais um estimado presente.
Randall havia preparado um tipo de escritório, a fim de que ela tivesse
um lugar especial para criar suas histórias.
Da janela podia-se avistar um pé de cerejeira carregado das mais lindas
flores, de onde também era possível ver o lago que Gael gostava de brincar e
tinha uma visão privilegiada do moinho de vento que girava vagarosamente
naquela noite morna de primavera.
— Nada poderia ser mais perfeito. — Ela voltou-se para o marido, que a
recebeu em um abraço aconchegante.
— Eu queria poder ter mais a lhe oferecer, mas... — Rose pôs um dedo
em riste, silenciando-o.
— Eu já tive toda uma vida abastada de bens, e ainda assim, minha alma
estava presa na miséria, Randall — disse ela, beijando brevemente os lábios do
marido, apenas tocando-os. — Hoje eu sou a mais rica, pois tenho tudo que é
mais valioso, bem aqui, diante dos meus olhos. — Ela levou uma das mãos até o
rosto dele, afagando-o ternamente. — Nós conquistamos tudo. — Ela sorriu,
encorajando-o a sorrir também.
Em um movimento rápido ele a pegou nos braços novamente,
sobressaltando-a. Randall caminhou pelo estreito corredor até o final dele.
— Para onde estamos indo? — Ela sorria com abandono quando
perguntou.
— Acho que já sabe, senhora Culbert —respondeu ele, retribuindo-lhe o
riso maliciosamente.
Ao abrir a última porta do corredor, ela deparou-se com um caminho de
pétalas vermelhas que trilhavam até uma bela cama de dossel, onde tinha mais
pétalas aguardando-os.
— Em nossa primeira noite estávamos debaixo de um céu de estrelas.
Mas nesta primeira noite como minha esposa, eu queria amá-la em uma cama de
rosas — confidenciou Randall, pegando-a pela cintura, mantendo seus olhos nos
dela.
— Quem diria que um irlandês bronco seria tão romântico... — ela
rechaçou, deixando-se ser conduzida por seus braços que a rodeavam.
— Esse irlandês pode ser ainda melhor — falou sugestivamente enquanto
segurava a ponta do laço de seu vestido, desatando-o.
— Então mostre-me.
Havia fogo no olhar dela.
Um fogo que não seria abrandado. Não naquela noite, tampouco pelas
demais noites em que queimariam nos braços um do outro, sem qualquer
clemência.
Randall beijou-lhe os lábios com delicadeza enquanto a levava pelo
caminho das pétalas.
Ele a sentia estremecer em seus braços quando os beijos tornaram-se
mais ávidos, pressionando-se sobre ela como se quisesse se fundir ao seu
coração.
— Mo gruaig tine — murmurava entre seus lábios enquanto derramava
seu amor, sustentando seu olhar.
Ele a observava com admiração. Finalmente podia venerá-la da maneira
que ela merecia, amá-la com todo o desejo ardente de seu corpo e com toda a
intensidade de sua alma.
Durante um instante muito breve, enquanto fitava o vasto mar daqueles
olhos, ele pensou em tudo o que poderia ter tido, tudo o que poderia ter
adquirido se tivesse ido atrás da vida abastada que tanto almejou um dia.
Talvez pudesse ter alçado as riquezas que foram sua ambição por tantos
anos, contudo, enquanto mergulhava nos olhos cálidos de Rose, não poderia
querer uma vida melhor do que a que já lhe pertencia.
Nada no mundo, nem todos os bens debaixo da imensidão dos céus, nem
todos os tesouros perdidos no desconhecido das águas do mar... nada daquelas
futilidades serviriam para preencher o vazio que antes habitava em seu espírito.
Ele queria enriquecer, mas estava buscando os valores equivocados, e
naquele momento, ao ver o mais valioso dos sentimentos nos olhos de sua
esposa, ele podia verdadeiramente concluir que esteve por toda a sua vida
tentando enlaçar o vento.
Nada daquilo traria-lhe a satisfação que teve ao erguer seu próprio lar
com o trabalho árduo de seu próprio suor, ou a serenidade ao deitar a cabeça no
travesseiro e saber que tudo o que havia conquistado veio por sua própria
honestidade, e que nada daquilo teria um fim funesto, como tinham todas as
coisas que podiam ser compradas.
Ele havia construído um lar de amor, e nada nem ninguém poderia tirar-
lhe aquilo.
Era o mais rico dos homens por ter descoberto que às vezes um lar não
era um lugar, mas sim, outra alma disposta a compartilhar de suas desventuras.
As riquezas mais valiosas não eram aquelas que os olhos podiam ver e as
mãos podiam tocar.
O verdadeiro tesouro estava escondido no olhar genuíno de um menino
ao receber um cachorro; a verdadeira fortuna encontrava-se no som do riso da
mulher que amava, esperando-o ao final de um longo dia; o patrimônio mais
opulente era aquele que deixávamos guardado eternamente na memória dos que
amamos.
Quando olhava nos olhos de Rose, ou quando via a alegria retornar ao
sorriso desprendido de Gael, ele tinha a plena convicção de que havia
conquistado o mundo.
Afinal, eles eram seu mundo.
"Só é possível distinguir os verdadeiros valores, quando há no coração a
sabedoria de buscá-los."

*mo ghrá —meu amor


*mo gruaig tine —minha cabelos de fogo
EPÍLOGO
Dois anos depois...

— Oh, céus, ele veio mesmo! — Rose espiava da janela de seus


aposentos, enquanto embalava o filho nos braços.
Randall se aproximou dela e beijou-lhe ternamente os lábios, enquanto
afagava os ralos cabelos ruivos do filho que dormia serenamente.
— Eu vou recebê-lo. — Randall sorria amplamente à medida que descia
a escada pulando os degraus de dois em dois, tamanha era a sua euforia.
Uma carruagem havia parado diante de sua propriedade. Randall olhou
na direção do lago e deu alguns passos ao avistar Gael jogando gravetos nas
águas com Beag latindo com os respingos em seu focinho cheio de terra.
— Gael, se apresse, venha até aqui! — O sorriso nunca deixava seu
rosto.
A porta da carruagem elegante fora aberta e Randall quase não acreditou
nos próprios olhos ao vê-lo. O sujeito de cabelos grisalhos tinha dificuldades
para fechar a porta do veículo e lançava algumas pragas ao vento por seus modos
desajeitados.
— Ronan! — Randall fora ao encontro do velho amigo a quem amava
como a um pai.
Abraçaram-se demoradamente, os dois pares de olhos marejados
contendo a mesmo saudoso sentimento.
— Foi difícil chegar até aqui e certamente eu odeio carruagens, mas eu
precisava revê-los. — Sorriu ao notar Gael se aproximando rapidamente. —
Venha aqui, menino! — Puxou-o para um abraço apertado, notando que o
menino dos olhos tristes que conhecera não estava mais ali. — Você cresceu,
rapaz! — Afagou os cabelos castanhos de Gael, que afirmava que um dia seria
tão alto quanto Randall.
Randall conduziu o velho amigo até a casa, juntamente de Gael e Beag,
seu fiel companheiro. Certamente Ronan não podia estar mais feliz ao
reencontrar Lennart vivendo uma verdadeira vida, com a família que sempre
sonhara em ter e nem sabia.
Antes que Ronan pudesse sentar na cadeira que Gael puxou para ele,
Rose surgiu alegremente, cantarolando baixinho ao fim da escada. Trazia o
pequeno embrulho nos braços, que acabara de despertar. Os pequenos olhos
fitavam-na atentamente.
Quando ela se aproximou de Ronan, ele a abraçou cautelosamente para
não importunar a criança em seu colo, observando-a com curiosidade após
afastar-se.
— Tome vergonha, Ronan. Um homem da sua idade... — Randall
declarou sugestivamente ao notar o interesse do amigo.
— Você sabe que eu não gosto de perder. — O velho riu miseravelmente,
ainda espiando o bebê nos braços de Rose.
— Por Deus, Rose, deixe-o ver logo nosso filho! — Randall ergueu as
mãos divertidamente, em um gesto de rendição.
Rose os encarou sem entender ao certo, mas debruçou-se lentamente,
tirando a manta que cobria as pequenas mãozinhas de seu jovem rapazinho. Ele
espreguiçou-se e emitiu um suave gritinho, agitando as mãos e os pés como se já
quisesse explorar o mundo à sua volta.
Ronan o examinou com uma expressão satisfeita que a deixou ainda mais
curiosa diante de sua postura.
— Eu estava certo! — Ronan declarou um pouco alto demais. — Você
tem mesmo um gênio forte, menina! — Pôs uma mão no ombro de Rose,
animadamente.
Randall negava com um meneio de cabeça, indignado com a falta do que
fazer do amigo. Aquilo era tão ridículo que juntou-se a ele nas gargalhadas.
— Sobre o que estava certo, exatamente? — Rose ninava o filho,
embalando-o de volta ao mundo dos sonhos.
— Ronan e alguns homens da tripulação fizeram uma aposta a algum
tempo atrás...
Randall espreitou-a com um olhar malicioso.
— Eu disse que os filhos de vocês herdariam seu cabelo ruivo, e os olhos
negros de Lennart. Eles disseram o contrário — continuou o homem, coçando a
barba preguiçosamente com a ponta dos dedos. — Vemos que eu estava certo!
— reafirmou, sorrindo mais uma vez.
— Como podiam saber que teríamos filhos naquela época? — Rose
ergueu uma sobrancelha, desafiando-o.
Ronan olhou para ambos e deu de ombros como se aquela resposta fosse
demasiadamente óbvia.
— Havia amor quando vocês se olhavam. Todos podiam vem. Mesmo
quando brigavam — ele disse, apenas, com um sorriso matreiro, retomando a
atenção à xícara de chá que lhe fora oferecida outrora.
Diante daquelas palavras, Randall e Rose entreolharam-se como quem
confidenciava um segredo, e sorriram com doçura ao constatar que mesmo em
uma época em que a vida fora cheia de contingências, ainda assim, aquele mútuo
sentimento sobrepujara todas as adversidades.
— Como ele se chama? — Ronan questionou, apreciando a pequena
coisinha de cabelos vermelhos nos braços da mãe.
— Benjamim Randall Culbert — Randall respondeu com o orgulho em
cada palavra pronunciada.
— Mas pode chamá-lo de Ben — Rose completou, piscando para ele,
sempre preferindo os curtos apelidos.
— Ele será tão bondoso quanto o pai, e tão destemido quanto a mãe. —
Ronan sorriu para eles, enquanto afagava o pelo de Beag, que estava deitado
debaixo de seus pés.
— Estou muito feliz que tenha vindo nos visitar, Ronan. Espero que fique
por muito tempo conosco. — Randall pôs uma das mãos em seu ombro.
— Não creio que possa permanecer por mais que uma semana, Lennart.
Tenho uma tripulação que me aguarda — afirmou ele.
— Então presumo que terá de retornar daqui há nove meses, se uma nova
aposta for feita — Rose anunciou, levando uma das mãos ao ventre.
Randall olhou para ela, surpresa tingindo a escuridão salpicada de seus
olhos. Aproximou-se da esposa, que tinha lágrimas nos olhos e um sorriso nos
lábios de rubi.
— Tem certeza? — Ele levou uma mão à sua barriga, tocando-a
superficialmente enquanto ela assentia com convicção. — E quando pretendia
me contar? — indagou ele, ainda confuso demais com a inesperada notícia.
— Queria que fosse em um momento especial, e... — Olhou para Ronan
com ternura nos olhos — também queria que Ronan estivesse aqui. Sei o quanto
o ama como a um verdadeiro pai. — Ela mergulhou em seus olhos, vendo as
estrelas dentro deles sorrirem.
Gael estava tão animado com a notícia, que jogou-se nos braços de Rose
enquanto Randall segurava o pequeno Benjamim. O menino sorria, assim como
todos ali, que compartilhavam da mesma felicidade.
Por um instante muito breve, Randall afastou-se e caminhou até a janela
lentamente. Podia ouvir o barulho familiar do moinho de vento girando perto
dali.
Olhou para o filho nos braços, parecendo que a cada vez que o
observava, o amor em seu peito aumentava. Pensou em como fora abençoado e
fitou sua esposa, que contava animadamente sobre o dia em que desconfiou da
segunda gravidez. Olhou para Gael, que tinha uma das mãos seguras firmemente
na de Rose, enquanto a outra acarinhava Beag debaixo da cadeira. Por fim, seus
olhos encontraram com Ronan, o único pai que podia se lembrar de ter tido
desde sempre. Eram todos sua família. Uma família que em breve iria aumentar
ainda mais.
Ele sorriu com aquele pensamento, e silenciosamente ofereceu uma prece
aos céus, agradecendo.
Apenas agradecendo, porque não havia mais nada a pedir.
Ele já havia conquistado tudo o que tinha real valor.

"Eu não tenho muito dinheiro, mas se eu tivesse;


Eu compraria uma casa grande onde nós dois poderíamos morar.
Se eu fosse um escultor, mas também não sou;
Ou um homem que faz poções em um show itinerante.
Eu sei que isso não é muito, mas é o melhor que posso fazer.
Espero que você não se importe;
Que eu expresse em palavras quão maravilhosa a vida é, enquanto você
está no mundo."
(Your Song, Elton John)

Fim
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à Deus, pelo dom de contar histórias.
À minha família, que por mais louca que seja, sempre me apoia em cada
novo projeto.
Ao meu marido, minha eterna fonte de inspiração para todos os meus
mocinhos.
Um agradecimento especial à Ella Mackenzie, que me adotou como
irmã.
Minha constante gratidão à Nana Valenttine, uma amiga tão perturbada
quanto eu, mas muito preciosa.
Meu carinho eterno às primeiras autoras que trilharam meu caminho: A.
G. Moore, Juju Figueiredo e Valéria, vocês fazem parte de todas as minhas
conquistas e sempre farão.
Natalia Oliveira, sem você eu nunca teria escrito nem a primeira página
de um livro, obrigada por ser meu pilar.
Um agradecimento muito especial à Gabriella Macedo, que tornou-se
uma amiga muito querida, que trilha esse longo caminho ao meu lado.
Meu carinho e gratidão à Luciana Vaz, uma amiga valiosa que me
incentiva e faz parte da minha trajetória, sempre me animando a escrever uma
nova história, não me deixando desistir.
Agradeço também a querida Grace Ribeiro, uma das minhas leitoras mais
amáveis. Também deixo meu carinho e gratidão pela querida Gleice, que sempre
me emociona com sua sensibilidade.
Agradeço novamente minha amiga e designer Michaelly Amorim, que dá
vida às minhas histórias com as capas mais lindas.
Chego ao final desse livro com muita emoção.
Minha última Lady Wymond tendo sua história contada.
Eu nunca poderia deixar de ser grata pelos personagens que vieram até
mim, já que cada um deles é um pedacinho da minha alma, e que me ensinaram
tanto.
Richard foi o primeiro, e sempre será um dos mais especiais por muitas
razões. Com ele, aprendi que preciso aprender a não ouvir meus próprios
demônios.
Lilian me fez ver a leveza, mesmo em situações difíceis.
Allie me fez querer ser forte, mesmo se toda uma sociedade estiver
contra meus conceitos.
Com Daryl eu aceitei que tenho um limite e preciso respeitá-lo,
perdoando-me por tudo que eu não capaz de ser.
Randall me ensinou à duras penas, que eu tenho que manter o foco no é
mais importante, sem me deixar enganar por trivialidades mascaradas.
E Rose, ah Rose... essa me fez ver que eu sempre estive no caminho
certo, só precisava de um pouco de coragem para seguir meus sonhos.
Por fim, agradeço à todos os meus leitores. Cada leitor aquece meu
coração, recebendo meu eterno amor e genuína gratidão.

Amy Campbell
CONHEÇA O PRÓXIMO LIVRO DA
SÉRIE: AS IRMÃS WYMOND
O Desígnio do Capitão Wannell
Spin-off

Sinopse:
Elizabeth Williams é uma jovem senhorita que teve os sonhos arrancados
de seu coração quando era apenas uma menina.
Desde tenra idade, conhecera a truculência em sua forma mais cruel, e
ainda assim, apesar de todos os seus tormentos, ela encontra uma forma de ter
forças tecendo sorrisos de seus devaneios.
Quando o Capitão Henry Phillips Wannell a conhece em seu retorno à
Inglaterra, ele encontra uma razão para estender o que era pra ser uma breve
estadia.
Com sua doçura e delicadeza, Lizzie o envolve de uma maneira
inexplicável, mas o medo ainda reside nela, impedindo-a de se aproximar
demais.
Tudo o que ele deseja é poder dar vida ao que antes era apenas escopo de
imaginações.
Henry só conseguia pensar que precisava encontrar uma maneira de fazer
com que Lizzie o olhasse sem temor nos olhos. Aquilo seria difícil, mas ele
estava disposto a tentar.
ENTRE EM CONTATO COM A
AUTORA
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Table of Contents
A CONQUISTA DO CORSÁRIO RANDALL
A CONQUISTA DO CORSÁRIO RANDALL
SINOPSE
NOTA DA AUTORA
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO CATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
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