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RANDALL
As Irmãs Wymond - 3
AMY CAMPBELL
SINOPSE
Lady Rose Wymond é o oposto do que se espera de uma jovem dama
nobre do século XIX. Desafiando os padrões estabelecidos da época com seu
atípico cabelo cor de fogo, sua língua ferina e postura afrontosa, a fama de
megera lhe sobreveio desde que frequentara seu primeiro baile. Decidida a
usufruir de sua liberdade recém-adquirida, ela embarca em uma inusitada
viagem, onde conhece o imponente e ultrajante Lennart Randall, um corsário
fora da lei que ganha a vida saqueando e trapaceando os infortunados que
acabam na mira de sua espada.
Rose acaba deparando-se com alguém tão petulante quanto ela. Contudo,
tamanho descaramento não é capaz de impedir seu coração traiçoeiro de
apaixonar-se.
Um homem de hábitos ilícitos e uma dama de atos ousados... Conseguirá
o amor ser maior que a presunção?
A CONQUISTA DO CORSÁRIO RANDALL
SINOPSE
NOTA DA AUTORA
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO CATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
CONHEÇA O PRÓXIMO LIVRO DA SÉRIE: AS IRMÃS WYMOND
ENTRE EM CONTATO COM A AUTORA
Copyright © Amy Campbell, 2019
— Rose!
A jovem donzela saltou da poltrona em que estava, quase derrubando os
papéis que trazia sobre o colo. Antes que a flagrassem, pôs as folhas amareladas
dentro de um livro que minutos antes fora rapidamente esquecido ao lado de sua
xícara de chá, que já encontrava-se fria.
— Rose! — A mãe chamava com sua típica postura afoita.
Sua mãe, a Condessa de Houghton, sempre gritava em alto e bom som
quando queria a atenção de alguém. Não importava a razão, mesmo que fosse
apenas informar-lhe que uma correspondência havia chegado, ainda assim, a
chamaria com o mesmo denodo que mostraria se precisasse anunciar que a
propriedade estava em chamas.
— Estou aqui, mãe, na biblioteca... — Revirou os olhos tentando não
bufar de forma enfadonha.
Isabel pôs as mãos na cintura após adentrar no cômodo que cheirava à
cera de vela queimada e páginas mofadas. Segundo ela, era uma perda de um
tempo valioso gastar todas as horas do dia enfurnada naquele antro de
antiguidade em que a filha passara a estar compenetrada nas últimas semanas.
— O que faz aqui novamente? — Seus olhos eram insondáveis,
certamente estava desconfiada.
— Resolvi estudar um pouco destas importantíssimas lições! — Ergueu a
capa do livro revelando seu título.
— Regras de etiqueta para damas respeitáveis? — indagou, soando um
tanto mais incrédula do que havia planejado.
Rose deu de ombros sem desviar os olhos do grosso volume que continha
as regras estúpidas que mais odiava na vida, olhou as páginas soltas da história
que estava escrevendo e pigarreou como se estivesse interessada em retornar à
suposta leitura.
— Está bem. — Isabel espiou mais uma vez o título do exemplar que a
jovem segurava com tanto zelo como se não pudesse crer naquilo. — Eu só
queria dar-lhe uma notícia... mas não sei se será tão cativante quanto às regras
que está aprendendo... — Observou-a de soslaio, ainda intrigada demais, entre as
páginas.
— Pois diga-me depressa, mãe. — Umedeceu um dedo entre os lábios e
virou uma das páginas, ainda fingindo um inegável interesse.
— Já tratei do assunto com seu pai, e decidimos realizar os preparativos
do seu baile de apresentação à sociedade. — Juntou as mãos sobre o colo,
esperando.
Mal pôde abafar o grito agudo que escapou de seus lábios quando ouviu
as palavras da mãe.
Seu primeiro baile!
Enfim estaria livre para conhecer tudo o que aquelas paredes lhe
impediam. Levantou-se de modo tão ligeiro que sobressaltou a Condessa, que
arfava à medida que a via dar pulinhos e perambular pelas estantes altas,
enquanto sorria tão amplamente que o som das gargalhadas ecoava, quebrando o
silêncio imperturbável do ambiente.
— Eu preciso de um vestido! — Parou abruptamente, dando-se conta
daquela imprescindível necessidade. — Um belo vestido de mangas bufantes e
que tenha um laço de cetim — decidiu.
— Teremos tempo de encomendá-lo ainda esta tarde se largar este livro
agora mesmo, e for se aprontar. — Ergueu uma das sobrancelhas.
— Terá de ser verde como a relva que cobre a mais densa colina! Não
seria um sonho ter um vestido de tal cor, mamãe? — Divagou com o olhar a
mirar algum lugar longínquo.
— Hãmn... Acho que sim.
Ponderou por alguns segundos, tentando lembrar-se do exato tom de
verde das relvas que cobriam as...
— Com um vestido assim eu obteria os olhares mais calorosos, não
acha? — perguntou para ninguém em especial e prosseguiu: — Oh! Seria tão
maravilhoso se eu pudesse encontrar o cavalheiro cujo a honra e coragem
despertassem em mim algum sentimento. Não seria estupendo? — Voltou-se
para a Condessa que certamente estava confusa demais com toda aquela
empolgação.
— Não acho que deva pensar em certas coisas assim desse jeito tão... —
Não pôde concluir a sentença, pois a filha acabara de segurar sua mão como se
fossem iniciar uma valsa.
— Certamente deixaremos todos encantados pela forma graciosa que nos
moveremos pelo salão! — Deu dois passos para a esquerda, ainda imersa em sua
imaginação tão aflorada. — Estaremos tão próximos que eu sentiria o hálito
doce e quente roçar em minhas bochechas... — Fechou os olhos, recobrando a
cena inacabada que estava escrevendo antes da mãe interrompê-la.
— Rose, pare agora mesmo com essas bobagens! — Isabel apartou-a
com certa brusquidão. — Não devia pensar nestas coisas tão impróprias. Aliás,
nada disso acontecerá. Eu estarei atenta para certificar-me que estará distante o
bastante para que não sinta nenhum hálito em suas bochechas! — Negou com a
cabeça repetidas vezes. — Imagine só! — Alisou as saias que já estavam
perfeitamente alinhadas.
— Não foi exatamente isso que eu quis dizer. — Abriu os olhos um tanto
desconcertada por ter dito aquilo em voz alta.
— Vá se aprontar, Rose — declarou categórica enquanto retirava-se do
cômodo com uma das mãos sobre a boca, ocultando o sorriso ao ver a filha tão
animada.
Mal podia conter a euforia em que estava. Sempre sonhara com o dia em
que poderia finalmente ser vista na sociedade. Afinal, Rose amava o bulício
londrino desde menina. Era uma tortura terrível ser a mais nova de suas irmãs,
pois fora obrigada a vê-las ganhar a liberdade que tanto desejava e ainda não
tinha idade o suficiente para usufruir.
No entanto, agora era sua vez.
Tinha a chance de sair por aqueles portões e decidir por qual rumo
enveredaria seu destino.
Constataria se realmente era verídico o que as amigas que já haviam
debutado costumavam cochichar em seus ouvidos.
Jane, Madeline e Eleonor lhe disseram que todas elas ganharam seu
primeiro beijo em um baile. Todas as três garantiam-lhe que era a melhor
oportunidade de vivenciar tal experiência.
Não que ela realmente desejasse ser beijada...
— Sua tola! — repreendeu-se.
Não poderia enganar a própria consciência. Sim, ela desejava
experimentar um beijo. Mas desejava ainda mais degustar dos licores de cores
vibrantes que vira as amigas bebericarem em suas taças tantas vezes. Para ser
franca, Rose queria explorar tantas coisas que apenas uma noite não lhe seria
tempo o bastante.
Ela queria abraçar o mundo.
Cingir cada pequena fresta de seu limitado universo com tudo que ainda
aprenderia.
Almejava conhecer os lugares mais inusitados e provar para si mesma
quão belo era o mundo em que vivia.
Saiu da biblioteca tomando cuidado para levar consigo os papéis que
logo guardaria debaixo de seu colchão. Aquele era o local perfeito para esconder
coisas. Se um dia precisasse esconder um pretendente em seu quarto, o faria
caber debaixo do colchão.
Riu consigo mesma sobre o pensamento nada adequado à uma dama de
sua estirpe. Definitivamente, deveria encontrar outro lugar para ocultar seus
segredos, pois ali já estava lotado o bastante com seus livros de romances que
eram estritamente proibidos para sua idade.
Talvez atrás da mobília fosse um ótimo lugar...
Observou o canto escuro entre os móveis e mordeu os lábios em uma
mania tão trivial que nem percebera. Teria tempo para pensar nisso depois.
Pegou a escova dourada na penteadeira e sentou-se em frente ao espelho,
mirando seu próprio reflexo distorcido entre as inúmeras colagens que pendiam
do objeto.
Um recorte de um periódico que continha informações valiosas dos vales
impressionantes de algumas das ilhas que sonhara em visitar, havia também uma
página antiga com uma das preces mais lindas que já vira na vida, e decorara
com grande estima, apenas para pronunciá-la dramaticamente todas as noites
antes de adormecer. E por último, algumas pinturas feitas por Allie, a única irmã
dotada de algum talento artístico, já que Lilian, a mais velha, era um verdadeiro
desastre com um pincel e uma paleta de aquarelas nas mãos.
Rose, por sua vez, apreciava pintar. Não era tão ruim, mas também
admitia que não era tão boa a ponto de levar a ideia adiante.
Entretanto, isso não lhe causava frustração, já que havia descoberto
recentemente uma outra paixão.
Histórias.
Adorava contá-las, encená-las ou criá-las.
A primeira vez que guiou sua pena ao papel, foi como se o mundo todo
coubesse entre o vão de seus dedos. Era mágico!
Magia... Outra coisa que lhe tirava da realidade. Não que acreditasse em
feitiços ou quisesse praticar bruxaria. Jamais. No entanto, via a magia em tudo
que seus olhos capturavam. Quer fossem as fases gradativas de uma pequena e
insignificante lagarta ao transformar-se em uma exuberante borboleta, ou nas
mais distintas lendas que resultavam em canções ou versos poéticos.
Prendeu os cachos esticados do fino cabelo ruivo com uma fita azul,
deixando apenas uns fios caírem em seu rosto, destacando os olhos azuis que
costumavam ver o que para os demais era invisível.
Respirou fundo, pôs o chapéu e segurou firmemente a pedra que pendia
de seu pescoço, cujo as tonalidades mudavam de acordo com a luz que a
irradiava. Olhou para o colar que estava com um brilho tão rubro quanto seus
cabelos e sorriu, desejando que sua vida fosse colorida com a mesma
intensidade.
— Preciso encontrar o vestido perfeito — disse em voz baixa, sentindo o
pulsar acelerado do ensandecido coração.
Saiu do cômodo como se o vestido perfeito fosse fugir de seu alcance
caso demorasse mais alguns segundos. Rose esperava uma noite mágica.
Uma noite que ficaria para sempre em suas recordações. Uma noite
propícia para tornar realidade todos os seus desejos ocultos.
Infelizmente, o que ela não esperava, era o quão decepcionada sairia
dela.
CAPÍTULO UM
"... Separou os lábios dela com a ponta do indicador e apreciou a
pequena abertura entre os dedos. Por Deus! Queria tanto beijá-la que podia
sentir tensionar os músculos do próprio corpo, que suplicavam por ela, sua
feiticeira branca."
Nos últimos dois anos, Rose passara a maior parte dos seus dias
dedicando-se aos seus escritos secretos. Por vezes, esteve convicta de que
conheceria o amor apenas desta forma, nas páginas dos livros que lia e nas
histórias proibidas que imaginava.
Obviamente sua mãe estava ardilosamente empenhada em reverter essa
situação, já que praticamente fizera uma lista dos mais influentes pretendentes
que a filha poderia estar inclinada a aceitar.
Isso dificultava em muito, as coisas, já que a grande maioria desses
cavalheiros queriam apenas levá-la para a cama, sem qualquer compromisso e a
minoria era desinteressante o bastante para ela sequer notar. Como previu, sua
reputação havia sido consideravelmente arruinada, embora não da maneira que
esperava. Apesar do escândalo com o Duque de Heavenwood, sua moral
permanecera relativamente intacta, no entanto, naquela noite, sua virtude tornou-
se um grande desafio para os cavalheiros de toda a Londres.
O homem que domasse a fera, eles diziam, conquistaria não só o tesouro
entre suas pernas, mas também ganharia o respeito vanglorioso por ter vencido a
aposta.
A tal aposta tinha sido anunciada pelos quatro cantos de Londres, e
francamente, Rose estava farta dela. Tão esgotada dos esforços contínuos e
beligerantes deles, que passara a odiá-los ainda mais, tratando-os com um
desdém afiado, reforçando assim sua popularidade de megera indomável.
Ouviu uma ligeira batida na porta de seu quarto, antes de a mãe entrar
com uma expressão indecifrável.
— Rose Wymond, escute-me e preste muita atenção ao que vou dizer-
lhe. — Sentou-se na beirada da cama com ar de seriedade. — Lorde Edward
Waters, o Marquês de Hallock, está lá embaixo com um buquê de narcisos
amarelos nas mãos, a aguardando. — Observou a jovem assentir lentamente,
com o típico olhar zombeteiro que lhe fervia os nervos. — Rose, se comporte
com ele ou garanto-lhe que tomarei severas providências — assegurou.
— Narcisos amarelos? — caçoou com um risinho.
— Pegue um chapéu e desça neste instante.
Dito isso, a matriarca bateu a porta atrás de si, com autoridade.
Mais um dia extremamente enfadonho, pensou enquanto escolhia o
chapéu azul com pequenas pedras entalhadas no cetim. Desceu as escadas o mais
devagar que pôde, antes de receber um incisivo olhar de reprimenda da mãe.
O Marquês não tinha uma aparência tão detestável, afinal. Era alto,
esbelto, a pele tão branca quanto um palmito em conserva, os lábios finos e sem
cor que sorriam-lhe de forma embasbacada, e olhos verdes que irritavam-na à
medida que fugiam para o volume de seu busto.
Aproximou-se dele com uma mesura altamente cordial, dando-lhe a mão
para que recebesse um beijo em forma de gracejo.
— Fico honrada com sua presença aqui, Lorde... hamn... — Fingiu
esquecer seu nome, deixando o homem visivelmente constrangido.
— Pode me chamar de Lorde Edward, milady. Edward Waters, ao seu
dispor. — Tocou seus dedos enluvados com afeto.
— Oh, sim, Barão de Hallock, não é mesmo? — Mais uma vez fingiu ter
uma corriqueira falha na memória, arrancando uma longa pigarreada da mãe e
deixando o homem da cor de uma cereja enrugada.
— Marquês, milady. — Sorriu, ainda amigável o bastante para tentar
flertar com ela.
— Ah, perdoe-me, milorde. Minha memória me trai a todo instante. —
Abafou um riso com as mãos.
Ele anuiu com um gesto insignificante e prosseguiu com o galanteio ao
pedir permissão para que dessem uma volta no jardim. Entregou-lhe os narcisos
com a esperança inútil de agradá-la, mas Rose adquiriu misteriosamente uma
grave alergia das pétalas e forçou tantos espirros para cima do Marquês, que ele
ofereceu-lhe de bom grado o lenço que trazia no bolso. A jovem tramava as mais
mirabolantes situações para rechaçá-lo, divertindo-se tanto com isso que por
vezes simulava um acesso de tosse para ocultar suas gargalhadas.
Caminhavam por entre as árvores altas quando ela avistou as lacunas
enegrecidas que costumavam ser compostas por dezenas de candelabros, antes
de serem quase todas destruídas pelas tempestades ao o passar dos anos. Ela
sabia que quase ninguém poderia andar por ali, antes de repararem os danos da
antiga construção, pois corriam o risco das trincas e rachaduras desmoronarem e
causarem alguns arranhões ou ossos quebrados.
Rose sabia muito bem disso.
Mas Edward Waters não fazia ideia.
— Veja! — Ela apontou para a lacuna mais próxima e apurou seus passos
com o cavalheiro em seu encalço. — Não seria esplêndida a vista dali de cima?
— sugeriu implicitamente.
— Decerto seria uma vista ampla da propriedade — concordou ele, ainda
tentando conquistá-la.
— Não é tão alto. — Rodeou o pilar, analisando-o friamente. —
Deveríamos subir nele — propôs.
— Eu não creio que seja uma boa ideia, milady... — Olhou para o alto,
um tanto relutante.
— Ora, vamos. Eu o seguirei — estimulou. — Afinal, diz o ditado que só
obtemos aquilo que desejamos, após uma árdua caminhada para nos deleitarmos
das recompensas de nossos esforços... — Não havia ditado algum, mas ela
improvisara um.
Ele a observou sorrir, um sorriso sugestivo, um erguer de lábios que
indicava suas verdadeiras intenções. Seus desejos, pensou ele, tomando coragem.
— Tem razão, milady, vou na frente. — Segurou em uma das pedras
rapidamente, ansiando obter a tal recompensa que ela provavelmente o daria.
Talvez um beijo ou algo além disso.
Pôs o pé direito em uma fenda funda o bastante para prender a ponta de
sua bota de montaria nela, impulsionou o corpo cada vez mais para cima,
erguendo-se com o apoio das pedras que percebeu estarem um tanto soltas
demais. Enquanto isso, Rose dizia palavras que o encorajavam a prosseguir sem
pensar em quaisquer infortúnios. Vez por outra ele olhava para baixo,
constatando que realmente havia subestimado a altura daquele pilar. Estava tão
alto que podia ver a copa de algumas das árvores medianas do jardim. Com certa
dificuldade, finalmente chegou ao topo, sentou-se com ambas as pernas
penduradas para a frente, e foi nesse momento, entre o alívio e a apreensão, que
uma pequena rachadura ruiu alto o bastante para que Edward tentasse descer
antes de tudo desmoronar, no entanto, indubitavelmente, a pressa e desespero
resultou em sua queda iminente, junto com muitas pedras que caíram ao redor e
em cima de sua cabeça.
Não podendo conter o ataque histérico do seu riso, Rose gargalhava sem
escrúpulo algum, enquanto o pobre homem tentava recobrar os sentidos. Ficou
claro para ele, que Rose havia planejado tudo, afinal, ela mesmo entregara-se,
fazendo-o de chacota.
— Você planejou isso! Mulher...
Ela o interrompera.
— Maldita? Ou talvez seria diaba? — sugeriu, sarcástica. — Já ouvi
todas essas ofensas antes, milorde. E sei quais são as suas intenções comigo. —
Seu semblante tornara-se severo.
— Sua vadia! — exclamou raivoso, tentando levantar-se.
— Não sou. Mas se fosse, também não iria consentir com suas
depravadas intenções.
— Bruxa dos infernos! — ralhou, sacudindo as vestes empoeiradas.
Enquanto Rose ria e o Marquês praguejava, a Condessa aproximara-se
em um silêncio sepulcral e com uma expressão tão fria que fizera ambos temê-la.
— Lorde Hallock — chamou sem esboçar qualquer simpatia.
— Senhora, eu apenas...
Ela o interrompeu.
— Eu ouvi o suficiente, não há razão para tentar justificar-se — afirmou.
— Agradeço-lhe, milady. Fico grato por compreend...
Ela o cortou novamente.
— Poupe-me de suas gratificações. Pegue o resto de sua dignidade, se
sobrou alguma, e vá embora. Antes que eu sugira enfaticamente que enfie suas
palavras em seu...
— Mamãe! — Rose pôs uma das mãos sobre a boca, espantada.
Isabel não terminara a frase, mas o Marquês foi sensato o bastante para ir
embora dali imediatamente e não voltar jamais. Cuspiu alguns resmungos
ininteligíveis enquanto dava-lhe as costas até sumir de vista.
Rose sorria. Finalmente a mãe havia tomado posição ao seu lado. A
jovem estava radiante, até notar o semblante decepcionado da mãe. Preferiria
que Isabel lhe xingasse ou gritasse pela casa, pois ver a decepção em seus olhos
causou-lhe dor. Rose baixou os olhos e passou a mirar o chão, permanecendo
cabisbaixa até que a Condessa encontrasse seu tom mais temível para repreendê-
la.
— Vou falar com seu pai agora mesmo, Rose — declarou apenas.
— Mamãe, mas a senhora viu a... — A seguiu, sendo estritamente
ignorada.
— Vá ao seu quarto. Agora, Rose! — ordenou.
A jovem não podia fazer nada senão obedecê-la. Já era ruim o suficiente
ter de receber as reprimendas da mãe, e ainda teria de suportar os discursos
moralistas também de seu pai. O Conde costumava intrometer-se apenas quando
a situação era trágica o suficiente para que Isabel abrisse mão dela.
Rose subiu até seu quarto e ficou lá o resto do dia. Não teve apetite nem
para tomar as devidas refeições. Observou o céu azul transformar-se em
alaranjado, à medida que a tarde dava início ao crepúsculo. Alguns vagalumes
brilhavam logo abaixo de sua janela, dando auxílio às poucas estrelas que já
apareciam acima deles.
Tudo estava tão pacífico que quase esquecera-se de que aguardava seu
castigo, mas os passos ansiosos subindo as escadas recobraram-lhe mais uma
vez, com uma onda gelada invadindo seu estômago.
Não houve nenhuma batida na porta.
Ao invés disso, apenas entraram com expressões nada calorosas. E ao
julgar pelo vinco que formava-se na testa de Edmund, ele não estava nada
satisfeito com seu comportamento.
— Papai... — murmurou com a voz doce, tentando derreter o gelo na
expressão impassível do Conde.
Ele ergueu um dedo, exigindo que se calasse. Rose observou a mãe, que
certamente consentiria com as palavras do Conde, por mais difícil que fosse
acatá-las.
— Rose, sua postura ultimamente nos tem entristecido demasiadamente.
— Ela abrira a boca para argumentar a seu favor, mas ele prosseguiu sem dar-lhe
qualquer espaço. — Sei que também está sendo difícil para você, minha filha. —
Olhou alternadamente dela para a esposa. — Tenho ouvido os boatos cujo seu
nome está envolvido. — Juntou as mãos, visivelmente incomodado. — Por esta
razão, sua mãe e eu tomamos uma decisão que não será revogada. Fui claro?
— Sim senhor. — Ela assentiu com um nó formando-se em sua garganta.
— Você vai ficar com sua tia Ingrid por alguns meses, até que toda essa
história seja esquecida — anunciou.
— Mas pai...
— É para o seu bem, Rose. Será proveitoso um tempo longe dos rumores
que a prejudicam e prejudicam o bom nome da família — acrescentou.
— Mamãe, eu posso rever meus modos daqui pra frente. Prometo-lhe
que... — Fungou, tentando esconder uma lágrima.
— Seu pai está certo, Rose. Não a queremos distante, mas será para o seu
próprio benefício, minha querida. — Aproximou-se de modo fraternal e sentou-
se ao lado da jovem.
— Não podem dar-me outro castigo? Um que não precise expulsar-me da
própria casa? — Levantou-se, irada.
— Não é um castigo, Rose. — Edmund tomou-a pelas mãos com a voz
afável. — Um tempo longe de toda essa confusão lhe fará muito bem. — Sorriu
timidamente. — Não está ansiosa para ver a relva verde, tão verde quanto...
— Verde como a relva que cobre a mais densa colina — completou
Isabel, compartilhando o sorriso contido.
Rose sorriu ao ver que lembravam-se das suas citações mais constantes.
Afinal, seria um tanto estranho que não a soubesse de cor, já que Rose vivia
dizendo aquilo.
— Pois bem... — Respirou fundo, reavivando os ânimos. — Talvez seja
interessante. — Pôs um dedo sobre o queixo, pensativa.
Realmente poderia ser um tanto proveitoso estar livre de todas as
etiquetas, do senso moralista e das futilidades com que obrigavam-na a se
habituar. Um pouco do ar fresco da Ilha de Man lhe traria algum vigor.
Um ambiente repleto de calmaria lhe traria conforto. As árvores lhe
fariam companhia enquanto tia Ingrid tricotava suas meias. Aquela ilha isolada e
longe o bastante da falsidade e da hipocrisia da Inglaterra... Muito distante.
E extremamente isolada.
O pensamento a fez cruzar os braços, empertigando-se com um beicinho
que partiu o coração da Condessa.
— Você ficará bem, minha querida — ela afirmou como se pudesse
prever o futuro de sua estadia naquelas terras.
Não tendo qualquer válvula de escape, Rose tratou com otimismo sua
viagem até Ramsey. Fora apenas uma vez na propriedade da tia viúva, lembrava-
se apenas da visão estonteante do mar que rodeava toda aquela vegetação, e de
sentir que morreria de tédio ao ficar todas as noites ao pé da lareira, ouvindo as
mesmas lendas repetitivas da tia.
— Partirá em uma semana, Rose. Será o necessário para que preparemos
tudo. — Edmund acenou com a cabeça para a filha, que sorriu tristemente.
Após o Conde retirar-se do cômodo, Isabel fez desaparecer a máscara
rígida que cobria suas feições amáveis e segurou a filha pelos ombros antes de
abraçá-la, deixando escapar um soluço aflito.
— Oh, Rose! Eu sentirei tanto a sua falta. — Apertou-a ainda mais em
seu abraço.
— Passará rápido, mãe. — Não sabia se consolava a mãe ou a si mesma.
— Pensarei em você todas as horas do dia, querida. — Seus olhos
turvaram-se pelas lágrimas não derramadas.
— Eu lhe escreverei diariamente — assegurou a jovem.
— Estou tão habituada a tê-la aqui. Será difícil deixá-la ir sabendo que
não poderia vigiá-la. — Afundou mais uma vez em tristeza.
Não poderá vigiar-me, pensou Rose com um indício de sorriso
salpicando sua pequena boca.
— Isso será maravilhoso — exaltou em um sussurro que não pôde calar.
— O que disse? — Isabel ergueu uma sobrancelha.
— Horroroso, mamãe. Será horroroso. — Ocultou com muito custo o
risinho abafado.
*leathcheann — idiota
*gruaig tine —cabelos de fogo
* cailín — moça
*cailleach damn — bruxa maldita
*curse — maldição
*diabhal —diabos
CAPÍTULO QUATRO
"Dríades observavam de seus carvalhos, altos e enegrecidos, enquanto ele
segurava o pequeno rosto com a concha das mãos e o trazia para si.
— Minha doce feiticeira — sussurrou entre a abertura apetitosa de seus
lábios enquanto ela fechava os olhos em
consentimento.”
*cailín — moça
*cailín álainn — moça inglesa
*gruaig tine — cabelos de fogo
*béarla — inglesa
*leathcheann — idiota
*leathcheann damn — maldito idiota
*cailín gruagach — moça atrevida
CAPÍTULO CINCO
"Seus lábios eram como flâmulas que esbraseavam seus sentidos, seu
toque era a labareda que causava-lhe ardente caos.
A jovem feiticeira desprendia-se da realidade enquanto era ludibriada
por sua própria cupidez.
Deixava-se moldar pelo desejo, suplicando para que o beijo jamais
findasse.
Este era o pedido do cerne de sua alma, pensou enquanto afastava-se de
seu amado para que pudesse olhá-lo nos olhos.
Seu coração ensandecido tentara traí-la uma vez mais.
O jovem de olhos negros a fitava de um modo doce.
Uma triste doçura.
Ela havia abandonado a quimera que os unia.
Não havia mais nenhuma fresta no véu que os apartava.
— Você não está aqui — declarou ela com amargura. — Você não é real.
— Sua voz falhara miseravelmente.
— Não. — Aproximou—se mais uma vez, intuindo que ela precisaria de
seu consolo novamente.”
Rose acordou antes do nascer do sol. Não podia continuar a dormir com a
fome que lhe assolava impiedosamente.
Calçou os sapatos e tentou adornar os cabelos com os grampos que
retirara do penteado na noite anterior. Sempre fora vaidosa, mas nunca fora
prendada o bastante para ter aprendido a prender os cabelos de maneira formosa.
Desistiu assim que entortara o segundo grampo entre os dedos, tamanha era sua
impaciência e indisciplina com tais tarefas tão corriqueiras para as debutantes da
alta sociedade.
Bufou um tanto irritadiça ao lançar os grampos para longe de sua vista,
preferindo manter os cabelos revoltos e livres.
Dobrou as mangas longas de seu, agora maltrapilho vestido, até o alto
dos cotovelos, e caminhou com altivez para fora da malcheirosa cabine. Recebeu
a lufada de ar fresco com muito bom grado, já que tudo ali parecia cheirar a
peixe morto e marinheiro sujo.
Em seu caminho, encontrou um jovem franzino de aparência sofrida,
donos de olhos bondosos. Indagou-lhe sobre os mantimentos e onde era o local
que preparavam as refeições.
Ele a conduziu por um caminho ainda mais perturbador, a obrigando a
pôr ambas as mãos sobre a boca ao notar o que parecia ser um horrendo rato
perambulando pelos latões vazios e encardidos.
Aliás, todos os utensílios ali encontravam-se em um estado deplorável. À
medida que desviava dos restos espalhados pelo convés enegrecido, questionava-
se como tinham coragem de comer qualquer coisa que saísse daquela verdadeira
imundície.
Tomando fôlego e muita coragem, ela começou a pôr alguma ordem
naquele caos que chamavam de cozinha.
Pediu um esfregão para o menino que descobriu se chamar Gael, ao invés
disso, ele a levou uns retalhos de panos esfarrapados e um pouco de sabão em
um balde de água.
Teria de servir, pensou ela enquanto lavava cada pedaço daquele cômodo
de aparência terrível.
Precisava fazer isso se quisesse se alimentar de algo relativamente limpo
naquele navio. Não tinha outra escolha.
Passou algumas horas com os joelhos metidos no chão, à medida que
toda a pegajosa gordura ia se desgrudando da madeira, que por sua vez, mostrara
ser de um tom agradável de marrom. Jamais perceberia isso com todo aquele
mofo devastando cada perímetro empoeirado.
Gael mostrou ser uma companhia formidável ao auxiliá-la em suas
atividades. Qualquer objeto que ela lhe pedia, ele encontrava algo útil para
substitui-lo, já que não havia muitos utensílios domésticos por ali. Tinham de
improvisar.
Francamente, isso não a surpreendia, a julgar pelas fisionomias dos
homens que conhecera da tripulação. Eram todos tão desordeiros e desprovidos
de modos, que por vezes temeu que fossem uma verdadeira embarcação de
selvagens.
Exceto por Randall.
Ele ainda lhe despertava muita curiosidade por ter uma distinta
miscelânea de educado cavalheiro e indômito displicente. Ainda não entendia
como duas personalidades podiam caber em um só homem.
Passado algum tempo, Rose olhou para Gael, que estava igualmente
agachado tentando remover a fuligem de algumas panelas de ferro.
— Gael? — o chamou com o olhar especulativo.
— Sim, senhorita — respondeu, extremamente solícito.
Ela perscrutou ligeiramente as expressões amenas de menino,
observando as mãos impiedosamente tisnadas, prova de uma vida de labutas.
— Está com Randall há muito tempo? — inquiriu de modo trivial.
— Não, senhorita. Faz pouco mais de um mês — falou, categórico.
— E ele o trata bem? — Quis tocar a mão machucada do menino, era
apenas uma criança, e não estava certo uma criança estar fadada àquela vida de
miséria. — Os homens aqui são um tanto ríspidos demais — prosseguiu ao notar
que ele calara-se de repente. — O próprio Randall mostra-se demasiadamente
severo em alguns momentos.
Gael pareceu engolir em seco antes de pigarrear, parou com os
movimentos frenéticos ao esfregar as panelas e a fitou com uma intensidade que
a assombrou.
— Senhor Randall é a melhor pessoa que eu conheci. — Antes que Rose
pudesse refutar suas palavras, ele continuou. — Se não fosse por sua inestimável
bondade, talvez eu estaria morto em uma vala agora. — Escondeu os olhos
castanhos levemente marejados.
Francamente, “bondoso” jamais seria uma qualidade que ela atribuiria a
Randall. Apesar da divergência de seus pensamentos, ela assentiu, notando a
gratidão pintando o olhar cabisbaixo de Gael, que levantou-se rapidamente com
o término de seus serviços.
— Tem alguma dispensa aqui? Fermento, farinha... — sugeriu ela um
tanto temerosa ao julgar a escassez evidente que reinava ali.
Ele anuiu com um movimento ligeiro, levando úteis ingredientes poucos
minutos depois.
Gael ainda permanecera ali até que os deliciosos assados de Rose
estivessem quase no ponto.
Ela estava corada e ainda mais exausta do que no dia anterior, mas ao
menos teria um desjejum decente.
— A senhorita cozinha muito bem! — Gael elogiou enquanto mastigava
um pedaço macio e quente que ela lhe dera para experimentar.
— Não tão bem quanto gostaria. Mas aprendi algumas coisas com nossa
cozinheira enquanto mamãe estava longe o bastante para não flagrar-me. — Riu
consigo mesma ao recordar as traquinagens.
Deu-lhe mais alguns generosos pedaços, percebendo que a fome do
menino parecia ainda mais vigorosa.
—Agora ajude-me a levar esses caixotes lá para fora. — Ele prontamente
fez o que lhe fora pedido.
Quando saíram na luz do dia, o sol nascia esplendoroso, misturando os
tons do alvorecer ao azul intenso das águas do mar. Uma brisa reconfortante os
embalava ao balançar suave do navio. Após alguns minutos admirada com
aquela vista, Rose passou a montar o que parecia uma grande mesa, obviamente
improvisada, como era tudo ali.
Juntara todos os caixotes que levaram para fora, pôs alguns panos limpos
que lavara algumas horas antes e estavam quase totalmente secos. Para finalizar,
pegou alguns gravetos que estavam jogados por lá, bem como uma ressequida
folhagem de tomilho, que certamente seria um útil condimento se não estivesse
tão frágil.
— Por que Randall repõe a dispensa com tão pouca frequência? — Tinha
um olhar apurado ante sua simplória decoração.
— As vezes o lugar em que desembarcamos não é tão rico em
suprimentos. — Limitou-se ele a lançar-lhe um ligeiro olhar de esguelha, como
se temesse dar-lhe informações indevidas.
Ocupada como estava, Rose não deu muita importância ao relutar de
Gael, que logo voltou aos seus afazeres rotineiros.
Ela pegou um pedaço do bolo que ficara superficialmente queimado nas
beiradas e degustou do sabor adocicado, sentindo a satisfação logo invadir o
estômago outrora vazio.
Antes que pudesse limpar as mãos e tirar as migalhas que grudaram em
seus dedos, notou que Randall a observava secretamente da porta estreita que
dava às cabines. Ele tinha um esboço de sorriso nos lábios, e nitidamente estava
tão surpreso que suas expressões eram um tanto embasbacadas ao fitá-la junto de
seu minucioso trabalho.
— Pelos céus! — Ronan foi o primeiro a sentar-se desajeitado no convés
úmido. — Pegou um pedaço de pão e o apertou como que para testá-lo. —
Realmente parece-me bom. — Pôs um pequeno pedaço na boca, ainda
desconfiado. — A pequena tinhosa tem mãos de fada! — exclamou, servindo-se
novamente.
Os outros homens passavam por ela com um olhar diferente da maneira
que a encaravam no dia anterior. De certa forma, passaram a admirá-la por sua
atitude altruísta.
Muitos ali não comiam nada além de peixe mal assado há meses. Para
estes, o que Rose os proporcionara era um farto banquete.
Ela sorria incentivando os mais reservados a se servirem também.
Logo estavam todos postos à mesa improvisada, deleitando-se da comida
enquanto agradeciam-na mais vezes do que pudera contar.
Tão grato quanto os demais, Randall finalmente aproximou-se de onde
ela estava.
Ainda tinha o resquício do sorriso atenuando suas feições.
— Isso foi muito generoso de sua parte. — Ela assentiu com um sorriso
casto. — Creio que mereça ser recompensada. — Olhou para a tripulação
animada ainda se fartando. — Eles não comiam algo assim há muito tempo. —
Voltou a fitá-la. — Merece uma retribuição, gruaige tine.
— Não fiz isso para ter...
Ele ergueu uma das mãos em sua direção e tocou o canto de sua boca,
tirando algumas migalhas teimosas que ficaram ali.
No mesmo instante, Rose esquecera-se da conclusão de sua sentença.
Sentia apenas o calor dos dedos ásperos roçando no canto de seus lábios.
Indiferente as reações dela, Randall apenas lhe sorriu de modo matreiro antes de
se afastar.
— Pense um pouco. Deve haver algo que queira — sugeriu antes de se
juntar aos seus homens.
Ela permaneceu ali, sobressaltada demais para esboçar qualquer reação
ou cogitar qualquer interesse que pudesse ter.
*ifreann — inferno
*cailín damn — menina maldita
*cailín — moça
*gruaige tine — cabelos de fogo
CAPÍTULO SETE
"Eileen"
Seu nome reverberava ao som do vento que uivava entre as árvores.
A jovem corria sem olhar para trás.
Não podia permitir-se fraquejar.
Se cedesse, certamente retrocederia.
E retroceder significava entregar-se.
Tal entrega inegavelmente acabaria nos braços dele."
*cailín — moça
*gruaig tine — cabelos de fogo
CAPÍTULO OITO
"Não podia mais continuar com aquilo. Deveria parar de fugir, não
estava certo.
Eileen parou abruptamente de correr.
Estava arrasada.
Desestruturada.
Pôde ouvir a voz dele clamando por ela. Uma voz acariciadora que
afagava seus lamentos.
O ar embalsamado com o perfume das madressilvas, tornava sua lástima
uma doce poesia.
As lágrimas perolavam suas pálpebras, e seu vestido de cambraia não a
protegia do vento que eriçava sua pele.
— Assombra-me! — gritou entredentes enquanto mais lágrimas
banhavam o seu rosto. — Venha até mim mais uma vez somente. — Juntou as
mãos sobre o colo com uma expressão de derrota.
Eileen ajoelhou-se, sentindo as forças a abandonarem.
Nunca saberia dizer o que realmente a impeliu.
A única coisa de que estava convicta, era da loucura que acabara de
cometer."
*cailín — moça
*cailín tempting —moça tentadora
*cailín béarla — moça inglesa
CAPÍTULO ONZE
" — Oh, volte para mim, Ryan. Atormenta-me, eu lhe imploro — suplicou
com desconsolo.
Eileen encontrava-se debruçada sobre um nodoso tronco de um
salgueiro antigo, que curvava-se perante ela, parecendo compartilhar de seu
desalento, os ramos prostrando-se ao chão, como que esmorecendo ante a
desesperança."
— Tudo está dentro dos conformes, por fim. — A voz grave de Ronan
ressoava pelo cálido alvorecer, atingindo Randall que estava debruçado no
parapeito observando o sol beijar o oceano.
Ele assentiu com um maneio ligeiro de cabeça, tentando não se mostrar
tão empertigado quanto realmente estava, apesar de Ronan não colaborar com
seu bom humor.
Os acontecimentos da noite anterior pairavam em sua mente.
Pôs uma das mãos rente ao bolso externo de seu fraque de cor escura,
sabendo que a mecha de cabelos rubros estava ali, presa em uma fita verde de
cetim.
Haviam passado boa parte da noite entregues nos braços um do outro, até
que a primeira sentença estupidamente sincera saiu de seus lábios, quando Rose
insistiu em permanecer ali.
— É loucura. Não pode estar sendo franca — dissera com certa ausência
de polidez.
Ela ergueu o queixo da maneira mais aristocrata que já vira em sua vida,
e encarou-o como se desafiasse seus demônios a um duelo.
— Estou sendo verdadeiramente genuína em minhas palavras. — Tomou
uma de suas mãos, entrelaçando os dedos alongados e finos aos seus calejados e
grosseiros.
Aquela situação era tão absurda que sentiu que poderia rir naquele
mesmo instante, só não o fez para não magoá-la com tamanho escárnio, e
certamente se fizesse, seria por puro desespero ao ver a verdade daquelas
palavras esboçadas em seu olhar.
Um olhar que tiraria qualquer homem do fundo do poço, lugar cujo ele
mesmo estava naquele momento.
Nada que pudesse pensar poderia ser uma fuga sensata.
Não poderia simplesmente roubá-la para si. Ela não era uma mercadoria
que poderia ser surrupiada. Rose tinha uma família que ansiava por recebê-la de
volta, tinha um lar afortunado e um futuro ainda mais privilegiado. Mesmo que
tentasse se convencer de que poderiam construir algo juntos, seria em vão.
Sabia como ela seria rechaçada de seu meio social, apenas por aceitá-lo
ao seu lado. Ele sujaria sua reputação e macularia para sempre seu bom nome.
Jamais a sujeitaria a uma humilhação de dimensões tão cruéis.
Apertou os nós de seus dedos, pensando em como foi fácil se afeiçoar a
ela, mesmo sendo tão teimosa. Sorriu em silêncio ao observá-la sob o luar.
Nunca poderia imaginar que sentiria algo tão intenso por uma senhorita
tão distinta. Lembrou-se com nostalgia o momento em que a vira, e em como
tudo havia sido tão errado.
Um dia lhe perguntariam como se conheceram, e o que ela diria? Que ele
tentou raptá-la e ela revidou com uma adaga em suas entranhas!
— Eu gosto do seu sorriso — ela disse, tocando-lhe lábios levemente.
— Estava pensando em quando a vi pela primeira vez — declarou como
se tentasse se justificar. — Se um dia fosse descrever aquela cena em um de seus
manuscritos, como o faria? — inquiriu com curiosidade, mas temia sua resposta.
Ela pôs o indicador a tamborilar pelos lábios selados, pensativa.
Aquele era o momento de dizer-lhe a verdade, concluiu ela com um
presságio apertando o peito.
— Você acredita em magia, Lennart? — murmurou seu nome como que
degustando de cada som que o compunha.
Um sorriso pintou seus lábios imediatamente, quando deu-se conta de
que ela repetira a pergunta que ele lhe fizera outrora. Randall anuiu com grande
afinco esperando que ela prosseguisse.
Mas Rose não disse mais nada.
Apenas fitava-o em silêncio de uma forma que o assombraria até o fim
de seus dias. Ela não precisava de palavras ditas em voz alta para fazê-lo crer no
inacreditável. Afinal, era um maldito marujo que já vira coisas que o julgariam
louco se as revelasse.
Jamais saberia o motivo, mas tinha certeza de que seu destino fora
meticulosamente traçado com o dela por uma razão.
Uma razão tão desconhecida quanto o universo.
Rose aproximou-se lentamente reivindicando seus lábios, seu ardor, seu
espírito. Embora sua alma estivesse entregue àquela teimosa inglesa de cabelos
cor de fogo, não poderia ceder. Não podia permitir-se beijá-la outra vez, pois
sabia que não a soltaria jamais se assim o fizesse.
Ela pareceu notar sua relutância quando afastou-se devagar, sem desviar
de seus olhos.
— Você não quer beijar-me — ela disse amargamente, mas um riso cruel
e perturbado surgiu no canto de sua boca.
Ele não disse nada. Não poderia. Mas o aperto em sua mão era um gesto
desesperado de agarrar-se a ela. Ela tentou ocultar os olhos marejados, mas ele
apanhou uma de suas lágrimas nas pontas dos dedos. Rose fechou os olhos e
demorou-se com as pálpebras fechadas, como se temesse despertar de um
pesadelo.
— Você não sentiu nada quando tomou-me em seus braços? Todas as
vezes que beijou-me... — perguntou, tentando miseravelmente manter-se
composta.
— Ifreann! — praguejou, irritado consigo mesmo por não ser capaz de
fazê-la compreender o quão equivocada ela estava. — Eu senti tudo, mo
bheagán. Minha alma a sentiu. — Beijou delicadamente sua tez, até encontrar o
caminho derradeiro de seus lábios e refrear-se.
Em um ímpeto, ela tomou seu rosto com ambas as mãos, obrigando-o a
encará-la impiedosamente. Randall podia ver a fúria no mar dos seus olhos e
admirou-se ao notar que mesmo em sua ira, ainda era bela como uma verdadeira
fada que enfeitiça homens de corações vulneráveis.
— Então diga-me qual a razão para estar fugindo do meu toque agora?
— Sua voz era instável bem como a aparência conturbada.
Não podia perder o controle, não naquele instante. Mas parecia tão fácil
deixar-se engodar pelo desejo de trazê-la ao seu encontro e perder-se entre seus
lábios odiavelmente convidativos. Segurou-a quase de modo bruto ao pressionar-
se sobre ela, deixando-a sem fôlego com tal ato indômito. Ele fechou os olhos
enquanto sentia sua respiração úmida e descompassada. Deveria pôr um limite
aquele jogo arruinado de sedução.
Pousou os lábios sobre os dela de maneira suave, fazendo-a arfar apenas
com o prelúdio do que ela esperava que viria a seguir. Entreabriu os lábios,
recebendo-o de modo lento e gradual, mas antes que pudesse alcançá-lo da
maneira que desejara, ele afastou-se outra vez com uma tristeza invadindo as
sombras de seu olhar.
— Eu preciso de mais — sussurrou ela com ambas as mãos ao redor de
seu pescoço.
Aquelas palavras que pareciam tão inofensivas, atingiram algum ponto
ferido de seu orgulho quando Randall subitamente abandonou seu abraço.
Ela precisava de mais, mas não era mais de seus beijos. Estava decidido a
dar-lhe a oportunidade de ter tudo o que merecia, e Rose merecia ganhar o
mundo. Mas não seria ele quem o daria.
— Não posso, mo milis Rose. — Suspirou pesadamente antes de
prosseguir. — Nada que eu pudesse lhe dar seria o suficiente.
— Você está...
— Shh... — Pôs um dedo sobre seus lábios, exigindo que ela se calasse.
— Você nunca se habituaria ao meu modo de viver, e eu jamais
permitiria que se rebaixasse tentando. — Ainda tinha os dedos pressionados em
sua pequenina boca. — Eu não posso lhe oferecer o que você deve receber. E
enquanto eu não puder, não sou digno, mo bheagán.— Ela tentou protestar
novamente, mas ele a interrompeu com um imponente erguer de voz. — Quando
eu estiver em posição de tê-la, eu a perseguirei por toda a Irlanda e Inglaterra, se
for preciso. — Sorriu tristemente. — Mas não me espere, milady. Isso não é uma
promessa, talvez esse dia nunca chegue. — Manteve-se firme temendo iniciar o
incêndio que via em seus olhos.
Ela queria dizer o quão errado ele estava, e que suas conclusões
precipitadas a seu respeito subestimavam seus sentimentos. Mas antes que
pudesse sequer tentar persuadi-lo, ele a impediu.
— Randall, eu te...
— Não. — Negava com a cabeça com as expressões sôfregas e olhos apertados
que temiam fitá-la. — Não diga, gruaig tine.
— Por quê? — Seus olhos tormentuosos perscrutavam-no.
— Porque não seria o bastante. — Levantou-se de maneira brusca,
deixando-a tão transtornada que não fora capaz de reiterar nenhum de seus
protestos em voz alta. — Não é o bastante.
Dito isso ele deu-lhe as costas, ainda ouvindo o eco dos xingamentos que
não tardaram a aparecer. Rose estava deveras tão furiosa quanto decepcionada e
faria questão de mostrar-lhe o quão insatisfeita estava.
Não é o bastante.
Aquelas palavras destruíram qualquer migalha de esperança que ainda
pudesse existir dentro dela, e ele jamais saberia o quanto a havia machucado.
— Finalmente chegamos — Ronan anunciou enquanto atracavam no cais
de alvenaria apinhado de passageiros ansiosos por chegarem aos seus destinos.
— Não demore muito, Lennart, temos pouco tempo até a noite de Litha.
— A tia dela mora nesta ilha. Não será difícil encontrar sua propriedade
— declarou com a testa vincada.
Ouviu um barulho tumultuoso vindo do porto, tentou apurar a visão com
uma mão sombreando os olhos, mas antes que pudesse prestar atenção ao
desenrolar da balbúrdia, Rose surgiu diante dele com uma carranca tão
empertigada que assustaria até o Barba-Azul.
Ela cruzou os braços, e permaneceu tão calada que ele decidiu tentar
atenuar seu estado de espírito.
— Não é tão ruim, Rose...
— Vá para o inferno, Randall! — exaltou-se sem qualquer polimento ou
censura.
Certamente ela era o diabo de saias! Pensou ele enquanto sorria
tristemente, pensando no quanto ela lhe faria falta, apesar do estado de humor
constantemente irritadiço. Decidiu não retrucá-la, afinal, deveria estar insatisfeita
por ser contrariada e estar indo embora contra a própria vontade.
Ele sabia o quanto ela o afetava. Contudo, jamais se atreveria a pensar
que ela lhe retribuiria da mesma forma.
Não estavam vivendo uma história de amor. Apesar de guardar em seu
íntimo a certeza de seus sentimentos, sabia que não poderiam levar aquele
disparate adiante.
Para ser franco, ele estava negligenciando o que sentia. Tentava enganar
o próprio coração que clamava por ela. Mas Randall era um homem feito que
não choraria por uma mulher. Ainda mais uma inglesa deslumbrada por seus
beijos.
Era duro admitir, mas ela era apenas uma jovem senhorita em busca de
aventuras e um pouco de lasciva. Não soube ao certo quando passou a ter
conceitos tão contraditórios, no entanto, não podia fraquejar naquele momento.
Pôs as mãos sobre as têmporas, confuso demais para tentar compreender
o que estava acontecendo.
— Do mhíle deamhain! — praguejou em voz alta lembrando-se das juras
de amor que havia lhe dito na noite anterior.
Era mesmo um idiota por afeiçoar-se a ela de modo tão descomedido.
Fora imprudente. Um irlandês imprudente e tolo.
— Dê-me isto. — Ela havia se aproximado e quase sorrateiramente
pegara de modo furtivo a adaga que ele trazia na cintura.
Era ridícula a facilidade que ela tinha de peitá-lo daquela forma, concluiu
ele voltando-se para a jovem tinhosa e determinada que tinha diante de si.
— Já que vou embora, deixe-me seguir meu próprio caminho daqui em
diante. — Virou-se para Ronan, que observava-os, divertindo-se com a cena. —
Onde está o jovem Gael? Preciso despedir-me.
Deixou que ela fizesse a despedida ao seu próprio modo, não querendo
importuná-la quando viu uma lágrima escapar dos olhos azuis ao abraçar o
jovem franzino que chorava compulsivamente em seus braços. Eles trocaram
algumas poucas palavras antes de ela o soltar relutante, e fazer menção de deixar
o navio a passos decididos.
Randall a alcançou rapidamente e a deteve, segurando rudemente seu
braço.
— Não pense que vai sozinha, cailín.— Eu a levarei em segurança. —
Não afrouxou os nós dos dedos em seu braço que tentava desvencilhar de seu
domínio.
— Solte-me, Randall! — ela gritou em alto e bom som. — Eu não o
quero perto de mim! Saia daqui! — Ela debatia-se cada vez mais em seu aperto
de mãos de ferro.
— Fique calada ou eu a levarei em meus ombros como da última vez! —
avisou em tom ameaçador.
Aquilo era torturante demais para qualquer um suportar, pensou Rose
com um nó formando-se em sua garganta. Ela sempre fora forte, e desejava
manter a reputação intacta, mas não podia continuar usando aquela máscara por
muito mais tempo. Randall a havia desestruturado desde a primeira vez que o
vira. Não podia mais fingir que aquela situação não estava partindo-lhe de dentro
para fora. Embora quisesse tentar convencê-lo do quão errado ele estava, não
queria humilhar-se ainda mais, dando novos motivos para ele rir de seus
sentimentos posteriormente. Sabia em seu âmago que ele nutria algo intenso por
ela. Tinha essa confirmação quando ele a desnudava com os olhos inundados de
cobiça e ardor. Era visceral. Mas não o suficiente, como ele bem mencionara.
Rose tinha a respiração laboriosa e encarava-o de modo dolente, os olhos
aquosos entregavam-na, apesar de manter com muito custo a postura altiva e o ar
melindroso. Suas bravatas vazias só demonstravam o quão afetada ela estava por
deixá-lo.
Randall tomou sua lassitude como ofensa à medida que ela desviava os
olhos dos dele. Soltou o braço de pele alva, e arrefeceu ao enxergar o rosto
afogueado que guardaria em suas reminiscências. Observou o nariz fino
cinzelado que dava-lhe uma elegância incomparável, os lábios pequenos e
escarlates que deixaram laivos de fogo sob os seus, as maçãs enrubescidas e
pronunciadas, os olhos azuis mais cinicamente aristocráticos que ele já vira, tão
belos e tempestuosos que levariam qualquer homem à loucura.
Queria memorizar cada traço dela, desde a voz cadenciada até o fio de
cabelo mais ruivo que mesclava-se entre o dourado ouro. Ela estaria
inextricavelmente gravada nele.
Lentamente ele se aproximou, tentado a tocá-la uma vez mais, tomá-la
em seus braços e senti-la.
Ela o havia feito sentir da forma mais cruel que poderia. Tocou-o da
maneira mais devastadora e o cativou com o mais intenso dos encantamentos.
— Fique longe de mim, Randall — ela pediu com a voz falhada do modo
mais diplomático que pôde, entre uma lágrima e outra, que já não era mais capaz
de esconder.
Tudo estava acabado, concluiu ele ao afastar-se abruptamente. Conteve o
desejo de confortá-la e fez um gesto breve e rudimentar para que ela tomasse a
frente e deixasse o navio.
Ela assentiu ligeiramente, ainda limpando o rosto absurdamente
desfigurado em lástima, enquanto tentava se convencer de que ficaria bem.
Repetia para si mesma que Randall era apenas outro homem idiota e egoísta que
infelizmente cruzara seu caminho. Certamente logo o superaria e o expulsaria
dos recônditos de sua mente traiçoeira.
Ninguém seria capaz de derrubá-la, afinal, era Rose, a megera, não era?
Questionou-se em silêncio enquanto reestabelecia sua dignidade ferida. Contudo,
apesar das contingências ela sabia que de modo desbragado, Randall havia
domado a megera que carregava dentro de si, mas aquela era a última vez que
admitiria isso.
Ela balançou a cabeça em negativa, respirando fundo e terminantemente
decidida a ser sensata dali em diante.
Sabia que Randall estava ao seu encalço, ele a acompanharia até a
propriedade de sua tia, mas ao menos usou de bom senso para manter-se a alguns
passos de distância, permitindo-lhe sofrer e irritar-se em paz.
Caminharam por algum tempo entre a multidão barulhenta e apinhada
que encontrava-se ali. O sol derramava-se no horizonte, a brisa morna soprava
embevecida pelo calor e o cheiro pungente do mar ainda os alcançava. De onde
estavam, dava pra ver a encosta íngreme das falésias irlandesas, mas nem toda
aquela magnífica paisagem podia animá-la naquele momento.
Estavam demasiadamente imersos em suas próprias divagações quando
um grupo de homens aproximou-se, aumentando a pilhéria entre marinheiros
carregando caixilhos e mulheres lamentando com seus lenços sendo levados
pelos ares. Randall não percebeu suas expressões rudes e agressivos, e quando
deu-se conta de suas intenções já era tarde demais para agir.
Um deles havia capturado Rose, que gritava e clamava por ajuda,
enquanto outro segurava-o, desferindo-lhe socos e pontapés.
— Finalmente o pegamos, demon! Você vai pagar por ter nos roubado,
bastardo.
Um deles cuspiu no chão enquanto falava ruidosamente.
— Leathcheann de ifreann!— Randall tentava desvencilhar-se em vão.
— Randall! Randall! — Rose chamava por ele desesperadamente
enquanto o sujeito a detinha sem qualquer cortesia.
— Soltem-na! Vocês querem a mim, estou aqui! — falava com
dificuldade, um filete de sangue escorria pelo canto de sua boca devido ao soco
furtivo que o pegara desprevenido.
O homem alto de feições sujas e violentas olhou para ele com escárnio ao
soltar uma deplorável gargalhada.
— Você nos dará seu navio por tudo que nos deve — rugiu com grosseria
e deu ordens para que alguns de seus homens seguissem adiante para tomar a
tripulação desavisada de Randall.
Ele se aproximou de Rose, que tremia e olhava para Randall em sua
agonia, tocou-lhe o rosto com rudeza como que avaliando-a e pressionou seus
lábios com os dedos escuros de fuligem.
— Ela ficará conosco. Como uma recompensa adicional. — Dito isso, o
sujeito a arrastou junto de si, ignorando os protestos da jovem e as ameaças de
Randall.
Com ímpeto e vigor renovado, Randall empurrou o sujeito grandalhão
que o segurava e o acertou com um golpe no estômago, deixando-o para trás.
Correu o mais rápido que seus pés podiam suportar, ainda conseguindo
ouvir a voz de Rose sobrepondo-se aos risos cruéis dos homens que arrastavam-
na ao outro lado do porto, onde um barco de pequeno porte os aguardava.
Ele não iria alcançá-la a tempo, concluiu desolado.
Naquele instante, deu-se conta de que não podia abandonar sua
tripulação, seus amigos de longa data. Não podia traí-los.
Mudou a direção rapidamente rumo ao seu próprio navio, traçando um
plano enquanto os gritos de Rose atormentavam-no com assombro.
*ifreann —inferno
*mo bheagán —minha pequena
*mo milis —minhas doce
*gruaig tine —cabelos de fogo
*do mhíle deamhain —por mil demônios
*cailín —moça
*demon —demônio
*leathcheann de ifreann —idiota dos infernos
CAPÍTULO CATORZE
"O dia mais longo estava chegando ao fim, bem como as esperanças de
Eileen.
Aproximou-se das velhas rochas donas das mais antigas lendas, e
prostrou-se diante do altar de pedras cinzentas cobertas de musgo.
Queria fechar os olhos, permitir-se um pouco de paz antes de juntar-se
aos ancestrais nativos que dançavam ao redor do fogo que olhos comuns não
podiam enxergar.
Aquele lugar era manchado pelo sangue dos sacrifícios que
equilibravam os dois mundos.
E finalmente aquele solo receberia sua penitência."
— Você está terrível, Lennart. — Ronan olhou para ele em seu estado
lastimável.
Randall tinha um corte profundo do lado esquerdo do rosto, mais
algumas escoriações que seguiam a linha de seu pescoço até o antebraço, onde a
roupa havia sido deixada em retalhos, revelando as fendas profundas dos
ferimentos feitos à espada.
— Nossa sorte foi que o jovem Gael os avistou antes que chegassem até
nós. — Ronan limpou um filete de sangue que escorria por sua testa.
Apesar da vantagem que tiveram por não terem sido pegos
desprevenidos, ainda assim o embate para que pudessem proteger a tripulação, e
o comando do próprio navio, havia sido violento. Randall olhou para o
horizonte, o alívio fazendo-se presente em seu olhar ao ter sido capaz de chegar
a tempo. Estavam todos relativamente bem, apesar dos resmungos de Ronan e
alguns outros marinheiros que tiveram algumas partes de suas peles rasgadas.
Um casal de melros voava graciosamente pelos céus. Randall os
observava atentamente, seu semblante era inóspito e suas expressões estavam
crispadas como se pudesse prever um augúrio que não lhe traria nenhum póstero
favorável ou promissor.
Precedeu-lhe uma sensação de perda, antes mesmo que pudesse dar-se
conta da guinada que seus planos concomitantemente sofreram.
A luz infiltrou-se pelos postigos do navio, o sol anunciando o dia mais
longo do ano que certamente chegaria ao seu fim, sem que Randall atingisse seus
objetivos.
— Faeries. — Ronan se aproximou com a voz tornando-se um arrulhar.
— Espero que não nos tragam má sorte hoje! — Sorriu calorosamente com ar
magnânimo.
Laconicamente, Randall sustentou seu olhar, mas não seu sorriso. Ronan
notou o assomo de apreensão no rosto de expressões severas do amigo.
Supersticioso como era, levou uma das mãos ao pescoço e tocou freneticamente
o colar de contas que jurava trazer-lhe boa sorte.
— Eu não posso, Ronan. — Seus lábios eram uma linha rígida de tensão.
O senhor mais velho andou de um lado para o outro, com as contas de
pérolas pressionadas entre os dedos e uma silenciosa prece para que os ouvidos o
estivessem traindo.
Não podia crer que Lennart estava abandonando tudo o que doravante
conquistara, por uma mulher. Uma inglesa que não sabia nada a respeito dele ou
da vida que levava.
— Lennart, não temos tempo. Você sabe que não podemos mudar nosso
destino esta noite. — Suas palavras eram piores que qualquer lança que já havia
o ferido.
— Eu não posso deixá-la, Ronan — declarou, ainda elevando os olhos
aos dele.
Sabia que aos ouvidos do amigo seus argumentos e suas razões seriam
improfícuas. Contudo, apesar de não ser compreendido, não podia negar seu
truísmo, sua verdade incontestável.
— Você não terá outra chance, Lennart. Depois que o sol se pôr será
tarde. — Seu tom era uma represália afiada que atingia-o de modo cruel.
Ele também sabia disso. Não poderia retroceder, nem atrasar o tempo. A
ilha ficava a algumas horas de onde estavam. Velejaram por semanas com um
mapa puído, uma bússola trincada e uma fé inabalável de que encontrariam o
inimaginável.
— O que está fazendo não é algo valoroso. Lennart. — Arrefeceu o
timbre outrora ruidoso demais.
Definitivamente ele estava equivocado, concerniu Randall ao medir tais
valores na balança pouco justa de seu coração.
— Vocês podem seguir o destino que havíamos traçado. — Soou
estritamente formal. — Eu vou partir, Ronan. Não tomarei parte de nada. Não há
ouro suficiente para fazer-me trair meus próprios conceitos — anunciou
peremptório.
— Conceitos? — rechaçou o velho à guisa de um riso escarnecedor. —
Você nunca foi um homem de conceitos tolos, Lennart. — Não iria ceder as
declarações infundadas dele.
— Presumo que tornei-me um desses. — Deu de ombros e virou-se com
a sensação de que um peso lhe saíra das costas.
Ronan suspirou longamente, mostrando-se exausto de tentar convencê-lo
em vão. Podia ver a determinação iluminar os olhos negros de Randall.
Condescendendo à sua maneira pouco afável, retirou as pérolas que levava
consigo ao pescoço e colocou-as ao redor da cabeça de Randall, depositando
toda a sua credulidade irrestrita naquele conjunto de contas.
— Que lhe dê a proteção que necessita em sua jornada. — Suas
sentenças eram como um derramar de bênçãos.
Não precisou dizer nada para mostrar o quão grato e emocionado ficara,
contudo, ao deixar a embarcação, Randall o abraçou como nunca antes havia
feito. E fora recebido com o mesmo formidável sentimento do apreço que
nutriam um pelo outro.
Quando deixou os braços do velho amigo que tinha como um pai, não
olhou para trás. Não podia mensurar o quão insano e irresponsável eram suas
atitudes, no entanto, algo em seu cerne pulsava como um vívido sinal de que
seguia na direção certa.
*sassenach —inglesa
*shamrock —trevo
*faeries —fadas
CAPÍTULO QUINZE
Silêncio.
Tudo estava silencioso demais, notou Rose enquanto observava de
soslaio ambos os homens que acompanhavam-na.
Após muita discussão e uma troca de palavras genuinamente vulgares,
decidiram dar-lhe alguma trégua, afinal.
Estavam todos encarando a modista que cuidadosamente embalava seu
vestido comprado por Randall.
Ele fizera questão de presentear-lhe com a peça, e ela secretamente
admirou o gesto, apesar de ter de aturar o semblante fechado de Henry, que não
admitia sua afeição pelo corsário.
Passado alguns minutos, sua encomenda já estava adornada por um
bonito pacote em suas mãos. Agradeceu a gentil senhora de sorriso caloroso e
dirigiu-se à porta, sentindo-se extremamente animada por ter um novo traje, já
que o que vestia estava deliberadamente parecendo trapos. Estava ansiosa por
finalmente poder usar algo limpo depois de tanto tempo.
— Logo vai anoitecer. — Henry olhou para o horizonte em tons pastéis.
— Deveríamos encontrar uma estalagem por aqui e seguimos amanhã. — Olhou
para Rose, que anuiu brevemente. — Sua tia iria ficar assustada ao nos ver tão
tarde da noite, já que ainda temos algumas horas até chegar a sua propriedade, e
não queremos alarmá-la em uma hora tão inconveniente — concluiu ao vê-la
assentir em silêncio.
Não demoraram muito para encontrar um local apropriado. Havia uma
estalagem logo à direita das docas. Era um lugar com muito movimento, mas
também parecia ser um estabelecimento decente. O capitão foi na frente, munido
de seu bom nome e ar de superioridade. Pôde obter dois dos melhores aposentos
que ofereciam. Quando o estalajadeiro entregou-lhe as chaves de ambos os
quartos, Henry dirigiu o olhar para Randall, que permanecia os observando um
tanto acuado, tentando evitá-los.
— Você não vai pagar por um quarto? Vamos pernoitar aqui. — Henry
levava consigo um riso de escárnio à guisa dos lábios.
— Pernoitarei em outro lugar — Randall limitou-se a dizer, cabisbaixo.
Rose havia percebido seu desconforto e sabia que certamente ele havia
gasto seus últimos recursos com o vestido que lhe dera. Só não sabia o que fazer
para Henry parar de provocá-lo daquela maneira. Era humilhante. E ela estava
farta de vê-lo se rebaixar ante o capitão. Apesar de compreender Henry e todo
seu ódio pelo homem que o havia furtado, ainda assim, este homem era Randall,
que havia lhe tratado tão bem, que nunca lhe fizera mal algum, e que talvez —
apenas talvez —, havia tocado uma grande parte de seu coração.
Ela não iria deixá-lo nas mãos de Henry.
Voltando-se para eles, ela aproximou-se de Randall a passos ligeiros e
logo empurrou o grande pacote do vestido em sua direção.
— Oh! — Arfou quase teatralmente, passando as mãos pela testa,
limpando um suposto suor, pelo esforço falso que encenava. — Isso está
realmente pesado. Ajude-me a levá-lo ao meu quarto primeiro. — Randall a
olhava desconfiado, sabendo o quão leve estava o embrulho em suas mãos.
— Deixe-me levá-lo para você. — Henry se interpôs entre eles quase de
modo brusco.
— Não será necessário. Randall pode levá-lo para mim. — Ela já estava
dando-lhes as costas, mas antes, olhou por cima dos ombros, certificando-se de
que o homem certo a seguiria.
Henry era um homem deveras maravilhoso. Era gentil, inteligente, belo e
portador de um espírito aventureiro que poucos sabiam apreciar.
Ele seria perfeito, pensou ela enquanto o via com o semblante um tanto
decepcionado. Henry só tinha um problema. Ele tinha apenas um defeito que
infelizmente ofuscava todas as suas cordiais qualidades.
Ele não era Randall.
Ele era extremamente agradável aos olhos e qualquer mulher se
encantaria por seus atributos. Mas ela sempre procuraria compará-lo com
Randall.
Sua pele alva não tinha o bronzeado deslumbrante que tinha a pele de
Randall. Seu cabelo loiro e seus olhos claros jamais causariam nela o efeito que
os cabelos e olhos negros de Randall causavam-lhe.
Ele poderia ter a beleza mais deleitável, mas não arrancava-lhe o fôlego...
como Randall fazia.
Aquilo era terrível, concluiu ela ao destrancar a fechadura.
Randall entrou no cômodo, admirando o requinte do lugar. Apesar de não
ser tão luxuoso, tinha móveis de madeira talhada em pequenos ornamentos, uma
cama de dossel com um véu rendado que chegava até o chão, papéis de parede
floridos delicadamente bordados, e uma pequena banheira redonda ficava dois
degraus acima, em um suporte com alguns itens de fragrâncias perfumadas.
Ele pôs o embrulho nos pés da cama e estava dirigindo-se de volta à
porta quando viu que Rose a havia trancado e posto a chave muito bem guardada
no decote do vestido maltrapilho.
— Se quisesse falar comigo era só dizer, não precisava ter me trancado
em um quarto e escondido a chave. — Ele se aproximou dela, mas não ousou
ficar perto o suficiente para sentir seu cheiro adocicado.
— Se eu dissesse, você teria ficado para ouvir-me? — ela indagou, já
sabendo o que ele responderia.
Randall pôs as mãos nos bolsos de seu fraque desgastado e fez um gesto
negativo com a cabeça.
— Pois então. Não me deu outra alternativa a não ser obrigá-lo a ficar. —
Ela o encarou, altiva e decididamente determinada.
— Eu não sei o que você tem a dizer, cailín, mas não devia continuar
fazendo isso. — Sua voz carregava um ar de derrota.
— Fazendo o quê? — Seu timbre era apenas um fiapo de voz
entrecortado.
— Enlouquecendo-me desta maneira. — Ele acabou com a distância que
os apartava. — Pare de vir até mim com palavras mansas, de cativar-me com
seus sorrisos e enfeitiçar-me com seus olhos de ternura. — Ele pôs uma das
mãos em seu rosto e percorreu um caminho tentador até tocar os lábios
entreabertos. — Isso é um tormento, mo temptation. — Ele a observou fechar os
olhos enquanto acariciava lentamente seus lábios com a ponta dos dedos.
Ela viu a tristeza pintar a escuridão de seu olhar, e contraditoriamente
ofereceu-lhe mais um de seus sorrisos.
— Posso te atormentar apenas um pouco mais esta noite? — disse quase
timidamente.
Aquilo era um convite declarado. Um convite que Randall não poderia
ter aceito, mas aceitou. Ele simplesmente via-se incapaz de afastá-la. Apesar de
saber que estava apenas adiando sua partida, seu coração teimava em mantê-la
por perto enquanto ainda podia. Quando ele assentiu e compartilhou de seu
sorriso, Rose caminhou lentamente pelo cômodo e subiu os dois degraus até a
banheira, despejando alguns sais na água ainda morna.
— Já que presenteou-me com um belo traje, nada mais justo do que eu
vesti-lo agora mesmo para que possa apreciá-lo em mim. — Ela deu de ombros
com graciosidade. — Suponho que você ficará feliz. — Tentou esconder o riso,
mas falhou miseravelmente.
— Ficarei um pouco mais que apenas feliz. — Passou uma das mãos
pelos cabelos negros que caíam-lhe quase sobre os ombros. — Mas, presumo
que eu deva sair para que possa banhar-se com devida privacidade, milady. —
Fez uma mesura teatral e sarcástica antes de voltar-se para ela novamente.
— Já fizemos isso antes, e apesar da sua má reputação o preceder, você
não me espiou. — Ela deixou o laço de cetim escorregar por sua cintura.
— Uma dama não devia confiar em um corsário. — Não desviou os
olhos dela enquanto seus dedos abriam cada botão perolado.
Ela se libertou do tecido pesado e ficou coberta apenas pelas anáguas que
desenhavam seu corpo. Ignorou o último comentário de Randall, não precisando
fazer-se ouvir em voz alta. Suas ações falavam por si.
Soltou os cabelos desgrenhados que despencaram em largas ondulações
até o meio das costas. Certificou-se de que Randall não a estava observando,
com um misto de decepção e genuíno agradecimento quando descobriu que,
assim como fora da primeira vez, ele tinha os olhos fechados.
Ele podia ser um fora da lei, mas pelo menos era um fora da lei com certa
honradez, concluiu ela, demorando-se ao sentir a água morna de encontro ao seu
corpo quando mergulhou na banheira.
Deus sabia como ele queria observá-la naquele momento.
Apreciá-la.
Venerá-la com tudo que tinha.
Mas sentiria-se o mais vil dos homens se cedesse aos seus indômitos
desejos.
Não pôde refrear sua mente ao imaginá-la naquele instante. Contudo,
Rose era pura demais para alguém como ele, devia se lembrar disso, e era isso
que o fazia permanecer de olhos fechados.
Passado algum tempo, ela o chamou e pediu que a auxiliasse com o fecho
do vestido. O fechou o mais rápido que seus dedos permitiram, não querendo
abusar de seu autocontrole em tomá-la para si. Ela jogou os cabelos para trás e
pôs as mãos na cintura, um sorriso largo iluminando suas feições.
Randall tinha a respiração presa na garganta ao vê-la tão bela. O vestido
tinha um corpete da cor da terra, descia sobre sua silhueta e era majestosamente
apertado no busto farto e na cintura fina. As mangas vinham justas até a altura
dos cotovelos e abriam em um conjunto de rendas suaves e imaculadamente
brancas, que iam até suas mãos. O decote quadrado dava-lhe um ar elegante
unido às rendas acima da costura que emolduravam seu colo. Quando ela deu um
passo à frente, pôde se ater à calda de tecidos que arrastava sobre os pés
desnudos, que eram de uma tonalidade quente, e tinha listras largas em verde
musgo e dourado.
Rose deu dois pulinhos, ansiosa, aguardando que ele lhe dissesse algo,
mas Randall parecia um tanto embasbacado à procura de ar fresco.
Antes que ele pudesse pensar em algo coerente a lhe dizer, ouviram uma
batida constante na porta.
— Precisa de ajuda, Lady Rose? — A voz de Henry conotava sua
solicitude genuína.
Lady Rose. Já fazia tanto tempo que alguém a tratava pelo título, que por
um segundo esquecera-se das suas responsabilidades como a lady que era, ou
deveria ser.
Rapidamente, ela olhou para Randall com um dedo em riste sobre os
lábios exigindo silêncio.
— Não, eu estou bem. Agradeço a preocupação. — Tentou soar o mais
gentil que pôde. — Presumo que seja melhor eu dormir por algumas horas, estou
exausta — declarou após um falso bocejo.
— Claro. Mas Randall ainda está aí com você? — Não pôde disfarçar a
severidade de seu tom.
— Não. — Olhou para Randall que negava com a cabeça em uma
forçada indignação. — Ele saiu há alguns minutos — anunciou sem parecer
afetada com a mentira.
— Ele deve ter ido achar algum canto para dormir, já que não podia
pagar por um quarto. O bastardo deve aparecer pela manhã. — Ele desejou uma
boa-noite e retirou-se a passos ligeiros pelo estreito corredor.
Ela respirou fundo após ter a certeza de que Henry estava longe o
bastante para não ouvir o receio em sua voz.
— Este sujeito é odiável — resmungou Randall com os punhos cerrados.
— Shh... — Rose se aproximou da porta novamente e a destrancou. — Vamos
sair daqui. Ele deve estar longe, mas tenho certeza de que retornará, e irá
estranhar se encontrar a porta trancada outra vez.
*cailín —moça
*mo temptation —minha tentação
*gruaig tine —cabelos de fogo
*mo chailín milis —minha doce menina
CAPÍTULO DEZESSETE
O céu era um magnifico pálio espesso das mais brilhantes estrelas, a lua
derramava no mar sua luz opaca, pálida. Não havia nenhum som além das ondas
quebrando na areia, das aves de rapina que mergulhavam no céu e da respiração
entrecortada de Rose, quando Randall estendeu gentilmente a mão, oferecendo-
lhe uma dança.
Ela tocou seus dedos rígidos, sentindo os calos em sua mão de encontro a
suavidade de sua pele, segurando firmemente em seu ombro enquanto ele a
tocava sutilmente no alto das costas para conduzi-la. Pensou que morreria
quando ele lentamente amoldou seu corpo ao dela. Rose sentiu o coração pular
no peito ensandecido, tendo a certeza de que ele poderia a ouvir arfando em um
gemido baixo. Giraram em compassos ritmados em um silêncio que fazia tudo
parecer ainda mais mágico.
Rose tentava em vão fazer os pensamentos pararem de girar em sua
mente, mas era incapaz de manter-se tranquila quando o calor do corpo daquele
homem a invadia daquela maneira. Pensou que nem se tivesse sido jogada na
fogueira de chamas ígneas, não arderia tanto quanto naquele instante em que ele
buscou sua boca. Seus lábios firmes eram exigentes, ela temia que não pudesse
oferecer-lhe tudo que seu beijo buscava, afinal, ela não sabia como aquela noite
terminaria. Quando propôs que ele aceitasse sua entrega, despejou seu coração
aos pés de Randall, para que ele escolhesse juntá-lo do chão ou deixá-la
desvanecer com um desejo não atendido. Apesar de o querer de uma forma
devastadora, ela não sabia ao certo o que deveria fazer ou como tinha de agir se
ele seguisse em frente.
Sabia que tudo se iniciava com um beijo, ou vários beijos, no entanto,
cada contato parecia inflamar ainda mais o calor que existia entre eles e ela
sinceramente não sabia o que tinha de fazer para abrandá-lo.
Ela não queria admitir, mas estava em pânico.
Randall estava decidido a não ouvir sua própria consciência naquela
noite. Ele queria poupá-la de todas as consequências que poderia resultar
daquele ato que cometeriam. Tinha medo de machucá-la, mas quando olhou em
seus olhos suplicantes, soube que iria feri-la ainda mais se a rejeitasse.
Senhor, como ela a queria. Não podia negar que seu corpo e sua alma
clamavam por ela, deveras encontrava-se sedento por tudo que ela queria lhe dar.
Abandonou seus lábios por apenas alguns segundos e sussurrou
delicadamente, vendo-a com os olhos fechados, divagando.
— Você é doce, mo bheagán. Tão doce...
Ela tinha de saber o quão bela era, o quanto o enlouquecia apenas com
um toque e o quanto ela o fazia sentir.
Porque ele sentiu.
Randall sentiu o coração inflar e transbordar dentro de si quando a viu
entregue. Beijou seus lábios, sua bochecha, o alto da testa e a ponta de seu nariz,
contou as pequeninas e quase invisíveis sardas que davam cor à porcelana de sua
tez.
Enrolou os dedos entre os cabelos ruivos, sem temer que seu fogo o
pusesse em chamas. Não se importaria que ela o incendiasse, o enfeitiçasse e o
possuísse. Ao seu modo, entregou-se a ela da mesma forma que ela havia agido
anteriormente. Queria dizer-lhe que tudo de que era composto, tudo o que lhe
pertencia, mesmo que não fosse muito, ele o daria. Randall ansiava mostrar a ela
o quanto estava agradecido, o quanto a queria e admirava. Queria que ela
entendesse algo que nem ele mesmo compreendia.
As chamas faziam a fogueira crepitar. A brisa ricocheteava em seu rosto
quando Rose atreveu-se a abrir os olhos, sentindo os rastros dos beijos de
Randall em sua própria pele. Ele parecia querer tomá-la, fundir-se a ela, em seu
espírito e alma, enquanto seus lábios a veneravam.
Ele a observava como se quisesse confessar algo, era quase perturbador
vê-lo em sua agonia enquanto as mãos trabalhavam nas pérolas de seu vestido.
Ela sentiu o vento mordiscar sua pele exposta quando o tecido caiu de
seus ombros. Puxou o cabelo para frente, de encontro ao colo, mas Randall a
impediu, parecendo absorto com sua beleza.
Os cabelos emolduravam seu rosto e desciam até a cintura; os olhos azuis
continham um certo acanhamento, mas havia fogo neles quando ele cobriu seu
corpo com seu amor.
Ela sentia a areia escorregando em suas costas, o calor das chamas da
fogueira que ardia, e Randall.
Ele estava em todo lugar.
Ele fazia parte dela de uma maneira que ela nunca pensou que poderia.
Quis fechar os olhos, quis gritar seu nome, mas tudo que ela pôde fazer
era observá-lo enquanto uma lágrima escapava e rolava pelo rosto dele.
Por um breve segundo, pensou ter feito algo errado, algo que o
desagradou, talvez, mas logo notou um esquiço de sorriso nos lábios dele,
enquanto seu cheiro almiscarado misturava-se ao odor puro dela. Ele sorriu tão
amavelmente que ela não pôde deixar de fazê-lo também.
Mais uma vez ele pareceu atormentado com algo a lhe dizer.
Buscou sua boca de forma lenta, ignorando o que quer que fosse que estava
tentando lhe falar. Beijou-a de modo sôfrego, iniciando o fogo que parecia
nascer de seus lábios, até a extremidade mais sensível de seu coração.
— Você deve ser apreciada lentamente, mo candy Rose. — Ele pousou os
lábios sobre os seus. — Você merece ser venerada. — Ele a pressionou contra si
novamente. — Uma mulher como você deve ser amada. — A frase saiu entre
sussurros de aquiescência quando ela o sentiu ainda mais perto. — Eu a amo,
gruaige tine. — Fechou os olhos com a declaração invadindo suas emoções.
Ela queria dizer que também o amava, mas as lágrimas caíam de seus
olhos e um nó formou-se em sua garganta quando ela tentou fazer-se ouvir em
voz alta.
Então ela teria que demonstrar o quanto sentia-se da mesma forma, que
compartilhava do mesmo sentimento intenso. Ela tocou seus ombros e seguiu um
rastro quente em sua pele beijada pelo sol, da mesma forma que ele lhe fizera
entender que merecia cada beijo, cada carícia e cada gota de paixão. Assim ela
fez com ele quando o tomou para si, buscando marcar cada traço que seus dedos
percorriam, cada sabor que sua boca provava e cada palavra não dita que suas
reações revelavam.
Ela desnudava sua alma com seu toque, a fazia sorrir com seus beijos, e o
despia de todos os medos quando o afugentava em seus braços.
Permaneceu aninhada em seu colo até quase o nascer do sol.
Randall não conseguira dormir. Não depois de possuí-la com tanto ardor
em seu fascínio flamejante. Não depois de render-se sob seu toque e deixar-se
moldar sob suas mãos daquela maneira quase obscena que ela o tinha cobiçado.
Não depois de amá-la ao seu modo profano de amar.
Sempre soube que não era digno de uma mulher como Rose. O contraste
entre eles não estava apenas atribuído à aparência ou boas condições de vida,
mas também se refletia ao modo que ambos viam o mundo.
Ele era um bastardo fora da lei.
E ela uma dama, uma senhorita respeitável, uma lady... Por Deus! Ela era
pura como um anjo vindo dos céus quando se deitou com ele.
Certamente ele imaginava que seria o primeiro a transformá-la de menina
à mulher, contudo, não ocorreu-lhe que se sentiria tão afetado ao roubar-lhe a
castidade.
Observava-a ressonar dentro do seu abraço, tão serena que parecia não
ter sido tocada por suas mãos tão vis. Ela estava deitada sobre seu peito nu, a
respiração morna acariciando sua pele, os lábios inchados de terem sido
maravilhosamente apreciados por ele durante quase toda a noite. Os cabelos
espalhados entre os dois, em um divino emaranhado que parecia ser tecido com
fios de ouro flamejante.
Ela era quente como a cor vermelha de seus cabelos, e pura como o
índigo perfeito de seus olhos.
Ele não queria tê-la amado. Não planejou se apaixonar, pois sabia que
teria que conviver com os destroços que ela deixaria seu coração.
Aquilo era ridículo, mas ela o tentou.
Senhor, como ela o tentou. A cada resposta irreverente seguida de um
sorriso malicioso, cada impropério vindo de um gesto corajoso de peitá-lo
quando ninguém mais o faria, e sua ternura demonstrada desde quando botou os
olhos nele.
Ela era inacreditável e havia tido sua gloriosa conquista ao fazê-lo ceder
aquela noite. Inferno, pensou ele enquanto sentiu que a queria uma vez mais,
com a certeza de que a desejaria por todos os dias de sua vida. E aquilo seria sua
maldição por ter provado do fruto proibido. Jamais a teria novamente, apesar de
cobiçá-la pelo resto de seus dias.
— No que está pensando? — A voz suave e baixa o despertara de suas
impiedosas divagações.
— Em você. — Ele beijou seus lábios brevemente antes de puxá-la ainda
mais apertada sobre seu peito. — E em como acorda tão bela. — Moldou uma
das mãos sobre a dela, entrelaçando os dedos miúdos aos seus.
— Acho que estavam certos quando diziam que corsários são mentirosos.
— Seu riso o dominou, fazendo sorrir também.
— Para ser franco, estavam sim. Presumo que seja mais sensato que
corra dos meus braços enquanto ainda pode, antes que eu a leve para mim, e a
faça repetir tudo o que fizemos. — Aproximou os lábios de sua orelha ao
prosseguir em um sussurro. — Por todas as noites.
— Todas? — Ela arregalou os olhos quase pulando de seu abraço,
tamanho era seu espanto. — Então quer dizer que...
— Quero dizer que foi a melhor noite que já tive ou terei, mo chailín
milis.— Perpassou os dedos pelo seu rosto, guardando cada traço de seu
semblante entre as primícias de suas memórias.
— Poderíamos fugir! — Ela levantou-se e equilibrou o peso em um
cotovelo na areia, enquanto os dedos passeavam pelo peito de Randall,
enroscando-se na macia pelugem negra e rala que cobria sua pele. — Você
poderia me levar para algum lugar, onde ficaríamos só nós dois e...
— Pare com isso, cailín — Ele segurou a mão que descia por um
caminho tentador, e a trouxe para os lábios. — Deve seguir seu caminho com o
capitão. Apesar de eu não gostar dele, e a antipatia ser recíproca, ele é um bom
homem e a manterá em segurança — admitiu a contragosto.
— Mas... — Ela pôde sentir toda a magia da noite dissipando-se com a
neblina fria da manhã. — Você o odeia! Não pode deixar-me ir com ele assim...
— Eu não o odeio. Não verdadeiramente. Não tenho razões para odiá-lo.
— Deu de ombros de forma banal. — Eu o roubei indiscriminadamente. Apesar
de não agir corretamente, não sou tão hipócrita para não admitir que ele está
certo em nutrir repulsa por um saqueador. — Ele tocou a ponta de seu nariz. —
É o que eu sou, Rose. Eu não sou honesto, não sou um bom sujeito — declarou
com um fiapo de voz.
— Praticar coisas ruins não o torna uma pessoa ruim, Randall. — Ela
sustentou seu olhar, determinada a fazê-lo compreender aquela verdade. — As
circunstâncias cruéis obrigaram-no... é diferente. — Ela engoliu em seco,
sabendo que o diálogo estava beirando a um passado delicado e sofrido que nem
mesmo ela entendia. — Há bondade em você.
Ele segurou-a mais uma vez contra seu corpo.
Reconfortava-o o fato dela vê-lo de uma maneira tão bela, apesar da
realidade se mostrar ser tão deturpada.
Lentamente afagou seus cabelos e afundou o nariz na cavidade
convidativa de seu pescoço, permanecendo ali, agarrando-se àquela cujo era
capaz de enxergar além dos demônios que o compunha.
Ela o rodeou com ambos os braços e gentilmente acariciava seus cabelos,
enquanto ele silenciosamente despedia-se.
— Rose? — pronunciou o nome cujo o levava quase ao caminho da
rendição.
— O quê? — Uma lágrima trilhava um caminho salgado até seus lábios.
— A história que leu para mim e o jovem Gael... Outras pessoas
deveriam ler. Você tem o dom de tocar corações. Não deixe que tirem isso de
você. — Ela assentiu em silêncio, segurando um soluço doloroso na garganta. —
Você promete? — Ele tentou esboçar um sorriso, mesmo o coração estando
esmigalhado no peito.
— Por que ei de lhe fazer promessas se você não me fará nenhuma? —
Ela chorava lágrimas condoídas de uma saudade que posteriormente a sufocaria.
Ele segurou sua mão e beijou cada um de seus dedos até pousar os olhos
de ébano no oceano anil que vertia tristeza.
— Se um dia eu for abençoado com algo que puder lhe oferecer... — Pôs
as mãos nos ombros frágeis que tremiam à medida que ela se entregava ao
pranto. — Eu prometo que vou buscá-la, mo ghrá milis. — Ela assentiu, mas
parecia que ia desmoronar em seus braços.
Ela estava destruída, queria implorar para que ele não a deixasse ali,
queria tentar convencê-lo a ficar apesar de saber que já tinha conquistado muito
ao fazê-lo lhe dar uma promessa tão valiosa.
Contudo, não seria o suficiente.
E apesar de ser destemida e corajosa, ela não era tão ingênua a ponto de
achar que ele seria abraçado pela sociedade se ficasse ao seu lado.
Certamente o olhariam com desprezo. Um desprezo que ele não merecia.
Ela precisava achar um jeito de poder recebê-lo sem tantos julgamentos, e ela
pensaria em algo. Mas não seria naquele momento. E apesar de nutrir
esperanças, a despedida era tão dolorosa que pensou que poderia morrer com a
dor que cravava em seu âmago.
— Você tem de voltar. O dia já amanheceu — disse apenas, sem afrouxar
os braços que a protegiam da solidão.
— Para onde você vai? — Ela fungou duas vezes antes de conseguir
endireitar sua postura.
— Encontrarei minha tripulação. Tenho um longo caminho pela frente
até ser um sujeito abastado. — Esboçou um falso e triste sorriso que jamais
iluminaria seus olhos.
— No caminho da estalagem, estão vendendo filhotes de cachorros. Leve
um para o jovem Gael antes de partir. — Tentava pensar em qualquer outra coisa
que não fosse aquele triste adeus.
Ele anuiu brevemente, um tanto sem jeito, tentando inutilmente não
parecer um pobre menino em busca de consolo.
— Verei o que posso fazer quanto a isso. — Pôs uma das mãos em seu
queixo, erguendo seu rosto, guardando a lembrança por uma última vez.
— Por favor, não me olhe assim. Não é uma despedida. — As lágrimas
represadas ameaçavam retornar.
Poderia de fato não ser. Mas as probabilidades eram grandes. A sorte
nunca esteve a seu favor, por que naquele momento estaria? Ele faria tudo que
estivesse ao seu alcance para um dia ir ao seu encontro, mas naquele instante, as
chances lhe pareciam quase impossíveis.
Depois de se vestirem devidamente e guardarem as doces lembranças da
noite nos recônditos da mente, ele a abraçou pela última vez.
Segurou sua mão pela última vez.
Atreveu-se a provar de seus lábios uma última vez, sorvendo lentamente
seu gosto salgado devido as lágrimas que banhavam o beijo com desalento.
Não era preciso dizer mais nada.
Ele partiu.
Sem olhar para trás.
Não se permitiu vê-la cair em desolação, pois certamente se assim o
fizesse, faria jus a sua má reputação e a levaria consigo para jamais deixá-la ir.
Ela ficou ali, pensando em tudo que havia feito, sem conseguir se
arrepender de nada.
O observou se afastar rapidamente a passos largos, deixando rastros na
areia que o vento logo apagaria. Admirou mais uma vez os cabelos negros como
uma noite sem estrelas, a postura altiva e o modo elegante de caminhar, as mãos
largas que pendiam ao lado do corpo que tocaram-na até alcançar sua alma.
Ela fechou os olhos por alguns segundos tentando se recompor.
Rose juntou seus pedaços do chão, ergueu a cabeça com uma valentia
que jamais saberia de onde conseguiu, e caminhou de volta à estalagem.
Ela precisava voltar.
Voltar para casa.
Para sua antiga vida.
Segurou a pedra que pendia de seu pescoço — a única parte de Randall
que levaria consigo além do amor que ele lhe dera —, girou-a entre os dedos e
seguiu com determinação.
Afinal, ela levava duas promessas junto de seu coração.
"O sol era apenas uma luz opaca e laranja no limiar do horizonte. Os
ventos derramavam um clamor lânguido sobre as rochas que formavam um
círculo perfeito na clareira.
Quem passava por aquela parte silenciosa do bosque, podia jurar que a
brisa morna que soprava lá, assemelhava-se ao gemido de alguém que lamenta
um amor perdido.
O corpo de Eileen não estava mais ali.
Muitos diziam que nunca esteve.
Mas o sangue que demarcava aquela área jamais poderia ser apagado
ou esquecido.
E é por isso que as pedras cantavam aquela canção.
A canção que falava sobre um amor que sobreviveu à morte, mas que
pagara com a vida."
*sassenach —inglesa
CAPÍTULO DEZENOVE
"A melodia só podia ser ouvida por aqueles que tinham pendências com
o destino.
Soava baixo, ritmado, suave... Um farfalhar que aquecia o espírito de
uma forma a embalá-lo com a canção. Até tornar-se parte do som, de uma
forma a não ouvir nada além das vozes que clamavam. Vozes que pareciam
enfeitiçar, vozes que lembravam dois amantes desventurados que há muito
tempo estiveram ali."
*sassenach —inglesa
CAPÍTULO VINTE E UM
Rose olhou para fora, temendo ver olhos de noite sem lua assombrando-
lhe também.
Fim
Rose tinha os olhos úmidos da emoção que não pôde conter ao findar sua
história.
Ela havia cumprido a sua promessa, e todos que a lessem saberiam que
ela acreditava no amor, na magia e na perseverança.
A manhã já dava-lhe boas vindas, a luz pintando cada canto daquele
cômodo, cada recôndito de sua mente.
Ela se vestiu, não de maneira simples, mas elegante. Um vestido bem
asseado desenhava modestamente suas curvas, e um chapéu de cascata deixava
metade do seu rosto oculto por uma fina camada de renda. Pôs as luvas
imaculadamente brancas, e juntou as folhas que tinha organizado em sua
escrivaninha.
Ela iria mostrar a sua história ao mundo.
Mas antes precisava que alguém a publicasse, e isso seria uma tarefa não
muito simples.
Encontrou a primeira livraria, também conhecida como a gráfica do
Senhor Thomas Evans, um famoso crítico que era responsável por muitos nomes
que levavam seus periódicos e breves contos ao público. Ela sabia que o que
tinha em mãos era muito diferente das tramas cotidianas que a maioria dos
escritores desenvolviam em seus textos. Contudo, precisava tentar.
— Bom dia, Senhor Evans! — Um sino soou alto assim que abriu a porta
de vidro emperrada da livraria.
— Bom dia, milady, em que posso ajudá-la? — Ele a observou
atentamente através de seus óculos redondos que repousavam acima de seu
nariz.
— Eu... trouxe algo. Algo escrito por mim. — Ela esperou ver algum
traço de expectativa em seus olhos perspicazes, ou algum esboço de ferrenha
curiosidade.
No entanto, nenhuma dessas reações tomou conta do semblante de
Thomas Evans.
Ele pegou o original de suas mãos, estreitando os olhos ao ver as
primeiras palavras de letra rebuscada. Pediu para que a jovem se sentasse, sem
tirar os olhos do papel pardo em suas mãos. Senhor Evans parecia absorto na
narrativa de Rose e não desviava os olhos da história nem por um minuto sequer.
Estava tão silencioso em alguns momentos e tão agitado no seguinte. A
respiração irregular e os olhos arregalados em alguns instantes de sobressalto.
Ela queria tocá-lo de alguma forma com as suas palavras.
Randall havia dito que ela tinha este dom. E ela acreditou nele.
Mesmo que parecesse loucura, já que ele fora o primeiro a ler seu texto
na íntegra.
E ela depositara sua confiança em uma única pessoa, mas descobriu que
essa pessoa não era Randall, mas sim, ela mesma.
Ele apenas a havia ensinado a confiar em si mesma e em sua obra. Ele a
havia feito prometer para que pudesse ter a coragem que por certo lhe faltaria em
momentos desafiadores.
Ela só não podia deixar de acreditar. Mas para ser franca, sua confiança
estava sendo testada a cada vez que o senhor Evans pigarreava em alto e bom
som, parecendo ter dificuldades em compreender seu manuscrito.
Ela sabia que era uma história atípica. Sabia que as menções místicas
talvez não fossem bem recebidas pela crítica piamente conservadora, mas era
aquela mesma história que havia pairado por sua mente durante todos aqueles
meses, e isso não podia ser em vão.
Certamente havia uma razão, um propósito.
— Hamn... Lady Wymond? — Ele ergueu os olhos do papel por alguns
instantes.
— Sim, senhor Evans. — Ela olhou para ele. Um olhar pedinte, um olhar
que suplicava para obter sua aprovação.
— A jovem Eileen... Ela tem um fim trágico — declarou com um espanto
evidente em sua voz.
— Oh... sim e não. — Ela deu de ombros tentando disfarçar o fato de que
seu coração parecia querer pular para fora.
— Pode me explicar o que quis dizer, milady? — Ele abaixou os papéis e
abandonou os óculos de leitura, levantando-se com certa dificuldade. —
Prepararei um chá. Certamente preciso de um chá. — Ele sorriu do modo que
alguém sorri quando é cumplice de alguma confidência.
Aquilo podia ser algo muito bom, ou extremamente ruim. As pessoas
pedem chá tanto na hora de aconchego quanto em momentos soturnos. Ele
poderia querer uma xícara de chá para acompanhar a formidável leitura, ou
precisar da fumegante bebida para engolir uma história que não estava lhe
agradando.
De uma forma ou de outra ela deveria esperar para saber.
Ele mandara preparar o chá que rapidamente fora servido. Senhor Evans
levava a xícara de porcelana aos lábios com uma lentidão insuportável para
Rose, que já havia queimado os lábios mais de uma vez por conta de sua
ansiedade.
— Então, Lady Wymond, o final não lhe pareceu trágico? — Ele
bebericava o chá fazendo um barulho irritante.
— Não nego que há uma certa... excentricidade na trama. — Ela respirou
profundamente antes de prosseguir. — Mas, de certa forma, eles terminam juntos
no final como certamente o senhor notou. — Ela sorriu da forma mais doce e
amável que seu temperamento permitia.
— Oh, claro. De uma forma um tanto... peculiar. — Franziu as
sobrancelhas.
Parecia que faltavam-lhe palavras para descrever seu romance. Nem
Rose saberia parafrasear certas metáforas que havia usado.
Pensava que certas coisas eram para ser sentidas e não explicadas. E se o
senhor Evans não havia sido capaz de senti-las, ele jamais entenderia.
Ela não queria obter algo por insistência ou pena, queria merecer uma
publicação.
Levantou de forma lenta, depositou a xícara e o pires sobre a mesa, e
passou as mãos pelas saias do vestido antes de encará-lo com grande obstinação.
— Senhor Evans, sei que não é uma história tradicional. Há sombras em
minhas palavras. Há algo de sobrenatural em minha trama, e em tudo que eu
creio. Então eu não poderia criar algo diferente. Essa sou eu. — Ela suspirou
pausadamente, tentando manter a voz estável. — É uma história para chocar,
para sentir, para ver o amor, a dor e a perda em cada linha daquele livro. Se não
fosse para atiçar as emoções, as reflexões... eu nem perderia meu tempo. — Ela
agradeceu-lhe pela atenção que tivera, pela oportunidade que lhe dera ao se
dispor a ler seu manuscrito.
— Espere... — Ele tocou seu ombro antes que ela pudesse lhe dar as
coisas.
Uma gota de esperança pintou o oceano tempestuoso em seus olhos.
— Eu senti cada palavra. A dor, o amor, a morte e a vida. Eu realmente
senti. — Ele levou ambas as mãos ao peito como que segurando o próprio
coração. — Há mais do que apenas talento em você. Há paixão, ardor! — Ele
sorria e batia pequenas palmas parecendo eufórico demais para se conter. —
Você está pronta para tocar almas, milady — declarou, convicto de que
acenderia as chamas dos sonhos no coração da pequena menina.
— Então, então... vai publicar? — Lágrimas brotaram de seus olhos
inundados de emoção.
— Oh... — Ele arfou pesarosamente, quase temendo furtar a alegria que
vira nos olhos da jovem. — Não posso. É com muita tristeza que lhe digo isso.
— Ele ficou cabisbaixo por alguns segundos antes de observá-la novamente.
— Mas eu não entendo. Se o senhor diz ser algo bom, algo realmente
valioso aos seus olhos... — Ela juntou as mãos na frente do corpo, apertando os
nós dos dedos em apreensão.
— Você tem potencial. Sem dúvidas, é notável. — Ele parecia titubear,
hesitante. — Mas, uma moça tão jovem escrevendo sobre paixões, desejos... É
algo tão...
Ela o interrompeu.
— Impróprio para uma mulher. — Ela deu continuidade às palavras que
sabia que viriam.
— Não posso negar o mérito de sua obra, mas tenho receio de publicá-la.
Perguntas surgirão, comentários sugestivos poderão ser devastadores. Tanto para
você, quanto para mim. — Ele pôs uma mão gentilmente sobre a dela, como um
pai amoroso que consola sua filha. — Perdoe-me, senhorita.
Ela compreendia. Do fundo de seu coração ela compreendia, apesar de
ser mortalmente injusto.
Era doloroso.
Obviamente, ela queria que as virtudes de sua obra fossem reconhecidas.
E queria ter o reconhecimento para si, afinal, ela havia dado uma parte de sua
alma naquela história.
Ela queria orgulhar-se ao ver seu nome escrito na capa de seu livro.
Entretanto, embora fosse uma realização importante, não era
imprescindível.
Sempre escrevera por encontrar a salvação nas palavras, por despejar os
sentimentos no papel e ser abraçada por suas criações de uma forma que fazia a
solidão ficar apartada de seu espírito.
Escrevia porque ninguém mais via o mundo, as pessoas e os sentimentos
da mesma forma que ela, então teve de conceber a sua própria realidade,
descobrindo que havia compreensão dentro da sua própria solidão.
Ela não escreveria buscando alguma vantagem ou fama, ela escreveria
para tocar almas.
— Eu vou adotar um pseudônimo! — ela disse em voz alta exatamente o
que escutava dentro de seu coração.
*sassenach —inglesa
CAPÍTULO VINTE E DOIS
*ifreann — inferno
*mo chara —meu amigo
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
*cailín —moça
*mallacht —maldição
*mo ghrá —meu amor
*mo bheagán —minha pequena
*mo chailín milis —minha doce menina
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Randall ensaiara durante quase a noite toda, mas apesar de seu empenho,
parecia ter desaprendido o dom da fala quando se viu em frente a oponente
mansão da família Wymond.
Tudo era tão elegante e grandioso, que pensou estar indo visitar a própria
Rainha, riu consigo mesmo diante de sua pequenez.
Sempre soube que Rose vinha de uma linhagem nobre, mas não estava
preparado para ser apresentado a todo aquele requinte e magnitude.
A propriedade perdia-se de vista enquanto ele caminhava pelo jardim,
acompanhado de um lacaio. Havia alugado uma carruagem, já que não herdara
uma.
Ao entrar na mansão, fora recebido pelo mordomo que imediatamente o
ajudou a retirar seu casaco, pendurando-o próximo à porta, juntamente com seu
chapéu.
Randall olhou para o sujeito discreto à sua frente e praguejou em voz
baixa, notando que inacreditavelmente a vestimenta do mordomo era superior a
dele.
— Ifreann!— atalhou quando percebeu que havia se esquecido da
maldita gravata.
Vestia apenas uma camisa de linho fino, calças pretas que pareciam-lhe
apertadas demais, e o casaco que o mordomo havia pendurado. Ao menos os
sapatos estavam devidamente polidos, pensou ele ao conferi-los.
— O Conde e a Condessa de Houghton o receberá em breve. Sente-se
enquanto os aguarda. — O lacaio de semblante severo o conduziu até uma
pequena saleta.
Estava sentado enquanto ouvia alguns passos agitados alcançando-no
próximo à porta.
Rose estava apreensiva demais para fazer qualquer outra coisa, a não ser
caminhar de um lado para o outro enquanto os pais conversavam em particular
na biblioteca.
Certamente ela havia dito a mãe tudo o que acontecera na noite anterior,
e apesar de Isabel tê-la proibido de pensar em Randall nas vintes primeiras
vezes, uma hora ela teria de ceder, e assim aconteceu.
A Condessa sempre fora dura em seus tratos, mas sabia aceitar a derrota
quando percebia que não tinha saída, e além disso, como uma mulher experiente
e apaixonada, ela soube ver o amor nos olhos da filha enquanto descrevia o
homem que nutria seu afeto.
No entanto, mesmo que Isabel se esforçasse para imaginá-lo, jamais
poderia pensar que ele aparentava ser tão incivilizado quanto parecia, quando
pôs os olhos nele pela primeira vez em sua sala.
Randall esperava que Rose fosse ao seu encontro antes dos demais, mas
soube que aquilo não aconteceria quando viu a distinta senhora caminhando em
sua direção.
— Lady Wymond. — Ela lhe estendeu a mão, esperando que ele a
reverenciasse e beijasse de maneira breve o dorso.
Miseravelmente, Randall não fez nada do que ela esperava. Em um
impulso ligeiro, ele segurou sua mão da forma que um cavalheiro
cumprimentaria o outro, sacudindo-a em um aperto de mão firme demais para
uma dama de sua estirpe.
Rose os espiava entre o vão da porta entreaberta. A mãe instruiu-lhe
duramente que queria conversar com seu suposto pretendente a sós, mas nada a
impedia de sorrateiramente flagrá-los.
— Lorde Culbert, milady — disse ele ao soltar sua mão, tentando
esboçar um sorriso que mais pareceu uma careta de dor.
— Sua família não é muito conhecida, ou eu lembraria de seu nome. —
Ela sentou-se lentamente, servindo-se de uma xícara de chá fumegante.
— Viviam na área campestre da Inglaterra. Não eram frequentadores
assíduos de eventos sociais, apesar de carregarem um título bastante influente.
— Ele tinha ambas as mãos unidas sobre o colo.
— Entendo. — Ela bebericou do líquido devagar, parecendo testar a
paciência do jovem à sua frente.
A Condessa tinha um olhar apurado em sua direção, observando as mãos
do homem, que pareciam trêmulas. As calças surradas de segunda mão,
pequenas demais para comportar pernas tão longas. Certamente, ele não tinha
um valete para auxiliá-lo naquela tarefa.
Seus cabelos eram definitivamente longos demais para um lorde
respeitável, concluiu ela, enquanto o analisava em um silêncio mortal.
Os olhos eram negros, quase tanto quanto os cabelos que batiam em seus
ombros. Era um homem rústico, pôde perceber pelo modo como se referiu a ela.
No entanto, também havia coragem naqueles olhos, e ela tinha certeza de que se
ele parasse de balançar freneticamente as pernas, poderia até mesmo transparecer
uma demasiada determinação.
E isso ela admirava naquele sujeito.
— Vamos poupar os preâmbulos, milorde. — Colocou sua xícara sobre a
pequena mesa de centro. — Sei de suas origens, e sei também tudo o que fez
com minha filha — declarou, fazendo-o ter uma súbita crise de tosse.
Ela quase se compadeceu dele.
Quase.
Havia pedido para que servissem um copo d'água, já que ele parecia ser
incapaz de falar algo coerente sem que a tosse lhe afligisse como se tivesse
tentado engolir todo o ar de uma só vez.
— A senho... madame... Oh, não... diabhal— resmungou ele antes de
prosseguir. — Milady, não pense que eu fiz algum mal a Rose. Eu...
— Oh, não, não. Certamente, não. — Ela estalava a língua ritmadamente,
deixando-o ainda mais agoniado com o rumo que aquela conversa estava
tomando. — Mal não deve ter sido, já que ela pediu-me com tanta veemência
para que eu lhe desse meu consentimento ao seu pedido. — Encarou-o após a
deixa.
Seria aquele o momento? Ele devia pedir a mão de sua filha naquele
instante?
Oh, céus, senhor misericordioso, pensou ele em uma prece silenciosa ao
encarar o teto por alguns segundos.
— Sim, bean— Engoliu em seco, tentando inutilmente não gaguejar. —
Peço que, por favor, possa me dar o privilég... não. Mallacht— Mais uma infeliz
imprecação saíra de sua boca. — Honra! Suplico que dê-me a honra de ter sua
filha como minha esposa. — Apertou as mãos em dois punhos cerrados.
Aquilo era um disparate.
Aquele homem era ultrajante.
Mal conseguia findar uma sentença sem soltar algum impropério. Jamais
sabia dizer como Rose, sua pequena menininha, tinha escolhido alguém como
ele.
No entanto, se realmente não pensasse sendo dissuadida pelo seu pobre
coração de mãe, ela poderia, sim, imaginar os atrativos que fizeram Rose se
apaixonar por aquele selvagem.
Ela queria paixão.
Rose sempre ansiara algo que a tirasse dos eixos, nunca teria se
contentado com um amor brando. Ela queria ardor, queria sentir o coração
ensandecido no peito e o fascínio arrebatador que, para ser franca, sabia que
alguém como Randall poderia causar.
Ele era um homem atraente. Exalava masculinidade, aquilo era fato. Mas,
o mais curioso, era que havia gentileza em seus olhos.
Quase uma inocência.
Ele falava quase temeroso, quase ingênuo demais para quem praticara
atos ilícitos outrora.
Estava diante de um bom sujeito, Isabel soube assim que olhou-o
diretamente nos olhos, afinal, havia bondade neles. Aquilo era inegável.
Contudo, ela iria fazê-lo penar um pouco mais. Não era todo dia que um
homem daquele tamanho encontrava-se à beira do desespero ao enfrentar uma
mãe.
Ela poderia ter rido dele naquele momento, quase podia sentir pena do
rapaz, mas ela não poderia perder a oportunidade de agir conforme a fama que a
precedia.
— O que o faz pensar que eu, em sã consciência, negaria seu pedido? —
Ele estava prestes a sorrir, quase sendo tomado pelo alívio, quando ela
continuou. — Já que fora o responsável por deflorar a mácula de minha filha,
terá mesmo de casar-se com ela — declarou ela, impassível, como se suas
palavras não o tivesse deixado à beira de uma síncope.
Ele nunca havia sentido tanto medo em toda sua vida, como sentia
naquele instante, com aquela mulher.
Preferia mil vezes estar fugindo de uma multidão querendo matá-lo, do
que sentado naquele cômodo.
Era constrangedor ter aquele tipo de diálogo com a mãe da mulher que...
deflorara.
Era até difícil pensar naquela palavra, que dirá dizê-la.
Antes que pudesse recuperar a compostura, um barulho na porta o
sobressaltou, fazendo-o pular. Nem se precisasse enfrentar o próprio diabo, não
sentiria tanta apreensão quanto sentia com Lady Wymond.
— Por Deus, mãe! Está assustando-o. — Rose entrou na saleta como
uma verdadeira tempestade.
— Não lhe pedi para que deixasse-nos a sós? — indagou a Condessa
com soberania.
— Que diabos! Olhe só para ele, está pálido. — Rose pegou o copo que
ainda continha um pouco de água sobre a mesa e ofereceu-lhe.
Randall bebeu vagarosamente, tentando assimilar tudo o que acontecia
naquela sala.
Isabel não tirava os olhos dele, enquanto Rose segurava uma de suas
mãos, tentando esconder o riso em seus lábios.
Quando pensou que nada poderia ficar pior e mais vergonhoso, o Conde
fora anunciado, juntando-se a eles com um olhar astuto, nitidamente avaliando-o
da cabeça aos pés.
— Então, este é o jovem Lorde Culbert. — Estendeu a mão, que o rapaz
segurou um tanto afoito demais.
— Sim, senh... milorde — corrigiu-se rapidamente Randall.
— Então é você que está querendo levar minha menina embora! —
afirmou.
Mas antes que Randall pudesse cavar um buraco no chão para se enfiar,
notou que o Conde sorria, juntamente com a Condessa, que atenuou suas
expressões vincadas. Somando tudo aquilo ao fato de Rose ainda estar segurando
sua mão, sem que alguém fosse mandado para que o tirassem dali a pontapés,
parecia estar sendo bem-sucedido em sua tarefa.
Em uma inesperada onda de coragem, ele levantou-se.
Ficou frente a frente com Edmund, que parecia divertir-se com toda a
cena que a esposa armara.
Pigarreou algumas vezes e pensou que verdadeiramente iria desmaiar,
então juntou todo o seu destemor, antes que aquilo de fato viesse a acontecer.
— Eu jamais fiz qualquer mal a sua filha, milorde. — Olhou para Rose,
que fez um gesto, incentivando-o a seguir adiante. — Sei que não sou quem
esperavam ter como genro. Não sou um cavalheiro, como já devem saber. Ter
um título não me faz ser um de vocês. — Pôs as mãos nos bolsos, já que
pareciam desajeitadas pendidas ao lado do corpo. — Sei também que não
mereço alguém tão bom quanto a filha de vocês, mas... — Olhou-a mais uma
vez, buscando denodo. — Eu a amo. Amo mesmo. Com todo o meu coração. E,
se puderem consentir com isso, eu juro que a protegerei com minha vida. —
Olhava para o Conde que tinha ficado sério subitamente.
— Venha aqui, rapaz. — O Conde foi para o sofá, sentando-se com
Randall ao seu lado. — Está errado. Amargamente equivocado. — Encarou-o
com o olhar de brandura. — Você merece nossa filha. Vejo que é um homem que
tem suas honrarias. E só pelo fato de amar minha pequena garotinha, já tem
minha benção. — Ele pôs uma mão no ombro de Randall, que parecia ainda
mais pálido.
— Seja bem-vindo à família, filho. — Isabel se aproximou dele, com
olhos de ternura ao falar.
Rose havia lhe confidenciado detalhes da vida de Randall, e apesar de
desaprovar alguns de seus atos e até mesmo a forma que ele levava a vida, Isabel
sentiu-se compelida a recebê-lo de braços abertos, por fim.
Quando ele ouviu as últimas palavras da Condessa junto a benção do
Conde, não pôde deixar de comover-se com tamanha aceitação.
Não era aquilo que esperava daquelas pessoas que chamaria de sogros.
Fora até ali preparado para enfrentar uma árdua batalha, uma em que
poderia sair ferido, ou pior, ofendido. Contraditoriamente, eles receberam-no
com gentileza e deram-lhe o maior presente de todos, sua amada Rose.
— Oh, céus, pode voltar a respirar agora, Randall. — Rose pôs uma mão
em seus ombros de modo consolador, enquanto ele ainda tentava absorver tudo o
que acontecera ali.
— Peça para que tragam-lhe outra xícara de chá — Isabel pediu ao
marido quando retirou-se do cômodo para voltar ao escritório. — A dele
certamente está fria.
Rose olhou para o pai, que ofereceu-lhe um sorriso. Um breve e ligeiro
levantar de lábios que conotava toda a sua aprovação. E ela estava
verdadeiramente grata por ser afortunada com pais tão compreensivos.
Após alguns minutos de notório silêncio, serviram uma nova xícara de
chá para Randall, que queimou a ponta dos dedos ao pegá-la de modo instável.
Isabel, vendo-o tão atabalhoado com sua presença, deu-lhes um momento
de privacidade, retirando-se do cômodo com o pretexto de que precisavam de
suas ordens na cozinha.
— É sério, Randall, pode voltar a respirar. — Ela quis gargalhar, mas o
poupou de sua chacota quando ele suspirou longa e demoradamente.
— Leathcheann!— Levou as mãos até a fronte. — Fui um verdadeiro
idiota. Não disse nada do que gostaria. — Empertigou—se. — Devem ter
tomado-me como um verdadeiro tolo.
— Você disse o que precisava ser dito — garantiu Rose. — Agora trate
de tomar este chá, ou lhe trarão uma terceira xícara. — Ela revirou os olhos em
escárnio.
Randall olhou para a mesa à sua frente, onde a xícara repousava sobre o
pires. Havia também duas colheres pequenas ao lado, com alguns utensílios
contendo cubos de açúcar e provavelmente leite. Não sabia se devia beber
imediatamente, ou adoçá-lo antes de provar. Ou até mesmo devesse servir-se do
leite, mas o quanto deveria pôr? Aquilo tudo era uma verdadeira perda de tempo
e ele encarava o jogo de chá como se as peças fossem atacá-lo a qualquer
momento.
— Por Deus, Randall! Apenas faça o que eu fizer, está bem? — Rose
estava impaciente, vendo-o tão confuso.
Ela pegou sua própria xícara, que fora servida alguns segundos após a
dele, e serviu-se de um pouco de leite juntamente com uma pequena porção de
açúcar, pegando a colher menor que estava ao lado da porcelana, e misturando
lentamente à bebida no recipiente. Randall a imitou meticulosamente, ainda mais
quando percebeu que vez ou outra a Condessa espiava-os do vão da porta.
Ele queria passar uma boa impressão. Estava tão preocupado que não
havia pensado no mais relevante daquele dia.
Rose era oficialmente sua noiva.
— Cailín, temos de marcar uma data. — Seus olhos fitavam-na ao
mesmo tempo que pareciam enxergar o vazio, tamanha era sua concentração.
— O quanto antes, por mim está ótimo! — Ela esqueceu sua xícara na
mesa e pegou a dele, também levando-a para o mesmo esquecimento.
Ela olhou para os lados com uma expressão maliciosa e voltou-se para
ele após certificar-se de que ninguém iria os flagrar. Lançou-se em seus braços,
buscando ardorosamente sua boca com uma urgência que a fazia queimar como
brasas sendo engolidas pelas chamas.
Ele queria afastá-la, Deus sabe o quanto queria, mas não pôde reagir. Não
quando suas mãos trilhavam um caminho tão tentador.
Pressionou-se contra ela e murmurou seu nome quase penosamente, antes
de entregar-se ao seu domínio.
— Oh, daor, pare! — sussurrou entre os lábios dela.
Ela sorriu, um risinho maroto que o aqueceu por dentro, fazendo-o crer
que a qualquer instante seu coração poderia inflar de tanta felicidade.
Antes que pudesse recuperar o fôlego, a Condessa retornou à saleta,
sobressaltando-os. Ele pegou sua xícara novamente, bem como Rose, que tinhas
as maçãs do rosto coradas pelo desejo.
— Visto que estão tão... empolgados... — Isabel arqueara uma
sobrancelha — presumo que queiram planejar tudo com a devida antecedência.
— Sentou-se novamente ao lado de Randall, que não pôde deixar de ajeitar a
postura.
— Eu não sei quanto tempo demora... Quer dizer, todas as coisas, os
editais e arranjos. — Randall olhou para Rose, seu olhar suplicando auxílio.
— Tudo pode ser feito em uma semana. — Rose deu de ombros como se
falasse a mais trivial banalidade.
— Apenas uma semana? Não creio que poderão preparar tudo em tão
pouco tempo. Há convites para serem entregues, um vestido para ser escolhido...
Céus! Vocês não têm uma casa! — Isabel estava inquieta, pensando em tudo que
precisava ser feito.
— Temos uma casa, mãe — Rose declarou, com um sorriso morno que
fez Randall igualmente sorrir ao seu lado, enquanto buscava suas mãos. —
Randall tem uma propriedade no campo, onde vive com o jovem Gael, um
menino adorável que terei imensa alegria de ver crescer. — Ela olhou para ele,
saudade invadindo seus olhos de anil.
Ele tinha pedido que ela o aceitasse, se ele fosse-lhe suficiente.
E Rose mostrara mais uma vez que aquilo bastava. Tudo que tinham e
tudo o que ainda construiriam, era suficiente para fazê-la sorrir com
desprendimento daquela forma tão bela. Ele a observava com todo o amor,
paixão e gratidão que guardava em seu peito.
Aquela mulher o orgulhava a cada ato altruísta, cada palavra sensata e
cada sorriso que esboçava.
Tinha a certeza de que, juntos poderiam tecer uma vida solidificada em
verdadeiros sentimentos. Juntos eles poderiam realizar qualquer sonho.
— Já temos até um cachorro, mãe — Rose emendou após ver a expressão
apaziguadora nos olhos da Condessa.
— E quanto à festa? — Isabel indagou com curiosidade.
— Não quero algo luxuoso. Apenas algo íntimo. Uma cerimônia
acolhedora em algum lugar a céu aberto. — Seus olhos sorriam como se pudesse
avistar o mais belo dos lugares. — Não quero que convide ninguém, exceto a
família e amigos mais próximos. — Pegou a mão de Isabel com suavidade. —
Eu já tenho tudo o que preciso, mãe. Não necessito de nada além disso —
afirmou com convicção.
— Eu posso ver isso em seus olhos, filha — murmurou Isabel, puxando-a
para seus braços.
Ela envolveu sua pequena menina de cabelos cor de fogo em um abraço
fraterno, embalando-a como costumava fazer quando ainda não passava da altura
de sua cintura.
Sua última filha iria casar, seguiria seu próprio destino.
Após alguns minutos, ela ergueu os olhos para o homem que cuidaria de
Rose dali pra frente, e com um gesto genuíno o puxou para junto delas,
recebendo-o como um filho junto de seu colo.
Percebeu algumas lágrimas descendo pelo seu rosto, mas afinal, eram
lágrimas de uma mãe que casaria a última filha. No entanto, surpreendeu-se
quando viu discretamente que o pobre rapaz também tinha os olhos marejados,
como um menino em busca de acalento.
Nunca pensou que teria genros tão diferentes, mas sabia que em seu
íntimo, amava a todos eles. E com Randall não seria diferente. Ele já havia
conquistado sua confiança e certamente havia ganho um lugar especial em seu
coração.
*ifreann —inferno
*diabhal —diabos
*bean —senhora
*mallacht —maldição
*leathcheann —idiota
*cailín —moça
*daor —querida
CAPÍTULO VINTE E SEIS
As luzes mornas do crepúsculo tangiam as mais calorosas emoções, à
medida que o sol derramava-se na relva verde da colina, lugar escolhido por
Rose para sua cerimônia de casamento.
Ela queria um lugar especial, e não havia nada mais extraordinário que as
luzes do entardecer a céu aberto. As matizes laranjas desenhavam o pôr do sol e
a brisa morna recitava uma doce melodia junto ao som harmonioso das folhas
que agitavam-se na copa das árvores. Aquele era um dia em que era fácil crer em
magia.
Todos estavam presentes para celebrar com eles aquele dia memorável.
Todos os que realmente importavam.
A família de Rose e alguns poucos amigos comoviam-se ao verem
Randall. O noivo mais emocionado que já haviam visto, eles diriam
posteriormente.
Era deveras notável as emoções tecendo lágrimas nos olhos de Randall
quando avistou Rose indo ao seu encontro no altar de rosas silvestres que
haviam construído juntos.
Rose caminhava lentamente ao ser conduzida pelo pai. As saias longas e
armadas de seu vestido imaculadamente branco chegavam até o chão. As
mangas bufantes, na altura de seu cotovelo, unidas ao justo corpete adornado de
brilhantes, davam-lhe o requinte que uma noiva precisava em seu grande dia.
Um laço pendia de sua cintura e cabelos ruivos lançavam-se à brisa morna do
crepúsculo. Ela estava particularmente bela, mas nada era um adorno mais lindo
que o sorriso que carregava em seu rosto.
Sorria como se fosse a mais afortunada das mulheres, e em seu íntimo,
sabia que era. Não podia sentir o contrário ao ver Randall sorrindo para ela
daquela forma tão bela. Os olhos negros que tanto amava, estava iluminado
naquele dia. Finalmente as estrelas passaram a habitar os céus negros de seu
olhar.
Quando ela chegou até o noivo, Randall jamais esqueceria da expressão
em seus olhos.
Fitou-a por longos instantes, desejando do fundo de seu coração ter
algum dom para poder eternizá-la naquele momento. Podia ser um pintor com
traços apurados, um escultor com mãos hábeis, ou até mesmo um poeta para
descrevê-la minuciosamente. No entanto, não era nenhum destes, e teria de
bastar que a eternizasse em seu coração.
E ele fez aquilo.
Lembraria para sempre de seus olhos naquele dia.
Olhos da cor do mar, que por vezes brilhavam como a própria relva
coberta de orvalho ao alvorecer. Os olhos mais ternos que já vira em toda a sua
vida.
E ele a faria recordar daquele dia, por todos os anos que viriam a seguir.
Uma lágrima caiu de seus olhos enquanto ele erguia o véu que cobria ser
rosto, beijando-lhe demoradamente o alto da testa. Ele sussurrou palavras
arrastadas em irlandês. Palavras doces, quentes, que fizeram-na sorrir e corar na
mesma medida.
Segurou-lhe ambas as mãos enquanto a melodia retomava, anunciando a
entrada das alianças trazidas pelo jovem Gael.
Rose não pôde conter sua euforia ao vê-lo, já que ainda não o tinha
reencontrado antes.
O menino caminhava um pouco acanhado, com o pequeno conjunto de
rendas nas mãos pequeninas.
Antes que pudesse chegar ao altar, Rose já havia descido do emaranhado
de flores em prol de recebê-lo nos braços, e assim ela fez. Tomou o pequeno
rapaz em um abraço aconchegante, fazendo uma grande parte de seu coração se
aquecer.
Ela pôde ver lágrimas nos olhos do menino e o abraçou novamente.
Quando o reverendo começou a bater um pé irritantemente, tentando
chamar-lhe atenção, ela revirou os olhos e voltou para o lado de Randall, que
tentava inutilmente segurar o riso diante de sua postura.
— Estamos todos aqui reunidos nessa bela tarde de primavera, para... —
o reverendo iniciou, mas logo foi interrompido pela noiva, que de forma não
muito sutil, apontou para o papel que ele ignorara em sua bancada.
O reverendo olhou de Rose para o papel e suspirou quase penosamente.
Ela havia escrito um pequeno discurso e o entrego com o devido pedido
que ele repetisse cada palavra ali, mas ele nunca pensou que ela seria tão
absurdamente literal.
Limpou a garganta e aumentou a voz uma vez mais, dando continuidade
à sentença.
— Estamos todos aqui reunidos nessa esplêndida — enfatizou, olhando
para Rose, que sorria satisfeita, prosseguindo — tarde de primavera, para
celebrarmos o enlace de Lorde Lennart Randall Culbert e Lady Rose Wymond,
com a benção do Senhor — declarou ele, sendo surpreendido por uma salva de
palmas dos presentes.
O discurso prosseguiu rapidamente após todo o alvoroço, mais palmas
surgiram quando chegou a troca dos votos, e Randall passou a chorar e a
praguejar pelo fato de estar chorando. Risos foram abafados quando Randall
derrubou a aliança, atabalhoadamente, soltando alguns impropérios até que o
reverendo olhou para ele com indignação e ele desculpou-se com mais algumas
palavras torpes, arrancando ainda mais risos dos demais.
O reverendo só faltou ter um ataque apoplético quando Rose atirou-se
nos braços de Randall, antes que ele dissesse que o noivo podia beijar a noiva.
Ela o beijou avidamente, entrelaçando os braços em seu pescoço
enquanto o reverendo estava da cor de um tomate maduro, pigarreando
inutilmente ao tentar lembrá-los do pudor.
Quando o senhor e a senhora Culbert foram devidamente anunciados, as
felicitações surgiram em forma dos mais familiares abraços.
Rose lembraria para sempre a forma que a mãe a embalou em seu colo,
dizendo que Deus a havia abençoada com três lindas filhas, mas que estava grata
por estar casando a última delas antes de perder o juízo de vez. Derramou mais
algumas lágrimas lamentando que a filha caçula deixaria o ninho, mas ao mesmo
tempo dava graças aos céus pela mesma razão.
Seu pai foi ao seu encontro munido de carinho. Ele nunca precisou dizer
muita coisa para se fazer entender. Seus olhos de amabilidade sempre foram o
suficiente para esboçar todo o amor e orgulho que sentia pela filha. Os gestos
fraternos sempre conotaram todo seu apreço e aprovação, e naquele momento
em que tinha sua filha nos braços, não foi diferente.
Os próximos na fila do abraço foram Richard e Lilian. A irmã mais velha
a abraçou de forma espirituosa, dando-lhe os mais sinceros votos de felicidades,
enquanto Richard a segurou pela cintura e a ergueu do chão, arrancando risos de
todos que testemunhavam a cena. Após abraçá-la, Richard fez questão de
certificar-se que Randall seria um bom marido com sutis ameaças que deixou o
pobre noivo com os olhos arregalados em desespero, até Lilian interceptá-los e
puxar Richard, que miseravelmente gargalhava da expressão de Randall,
levando-o para longe dali.
Allie fora a próxima. Com os olhos vermelhos e inchados de tanto
comover-se, abraçou a ambos com delicadeza, enquanto tinha a pequena filha
adormecida nos braços.
— Tenho algo para vocês. — Allie pediu para que Daryl mostrasse o
grande embrulho que trazia consigo.
— Não é grande coisa, mas...
Rose a interrompeu quase bruscamente quando notou o quadro pintado
pela própria irmã, retratando sua nova família.
— Oh, Allie, é maravilhoso! — Puxou-a mais uma vez para um abraço
apertado.
Daryl seguia o exemplo de Richard, mas de uma forma muito mais
cortês, ao dar as felicitações a Randall, que logo estava recebendo-o em um
breve, mas verdadeiro abraço.
Quando chegou a vez das crianças, quase derrubaram-na do altar. Os
sobrinhos estavam aumentando e a forma com que os abraçavam, chamando-os
de tia Rô e tio Len, era uma doce demonstração de amor.
Suas amigas, Jane, Madeline e Eleonor, também estavam lá dando-lhe
abraços e sorrisos, sussurrando que também iriam para a Irlanda em busca de um
pirata, se na próxima temporada continuassem solteiras.
A figura ilustre de Lady Campbell também estava presente, juntamente
com seu marido, para celebrarem mais uma união de amor, evento que
infelizmente não acontecia com tanta frequência naqueles tempos.
Quando Rose pensou que nada podia emocioná-la ainda mais, ela viu
Lizzie à espreita, esperando pacientemente sua vez em um canto próximo ao
arranjo de rosas.
Ela tomou a amiga nos braços. Lizzie era tão pequena que parecia apenas
uma menina. Juntas, elas sorriam e abraçavam-se demoradamente, até que Rose
avistara o capitão Henry aproximando-se, e Lizzie apressou-se em voltar para
seu canto discreto, ocultada pelas flores silvestres.
Quando Henry a abraçou, Rose agradeceu por tudo que ele fizera por ela.
E Randall, por sua vez, limitou-se a um ligeiro aperto de mãos à medida que
resmungava algo incoerente.
O fim da tarde logo anunciara o início da noite, quando todos já estavam
despedindo-se do casal.
O jovem Gael abraçou Randall antes de juntar-se a Daryl, que o convidou
para uma estadia em sua casa campestre, prometendo-lhe que o ensinaria a
montar, arrancando assim o sorriso mais feliz que já havia visto nos lábios de um
menino.
Enquanto isso, uma carruagem levava Randall e sua esposa ao seu lar.
Rose ainda não tinha ido à sua humilde propriedade, e ela ansiava aquele
momento com os olhos brilhantes de expectativa.
Randall havia trabalhado duro durante aquela semana que antecedeu seu
casamento. Tinha muitos reparos para realizar e cômodos para aumentar na
residência.
Com uma esposa, ele certamente precisaria de mais privacidade, então
rapidamente aumentou mais alguns cômodos na casa. Em uma semana não
poderia ter feito tudo sozinho, mas tamanha foi sua surpresa quando alguns
supostos vizinhos apareceram para lhe dar uma mão.
Aquela pequena comunidade de Bath havia o acolhido, e quando
souberam de seu casamento, juntaram até mesmo seus recursos para presenteá-
lo.
Assim, com mais alguns habilidosos homens ajudando-o na construção,
resultou em uma bela casa de dois andares.
Tudo era muito simples, mas feito com muito carinho.
Ao fim daquela semana, Randall tinha uma casa digna de abrigar toda
sua família, amigos de confiança com quem podia contar, e uma esposa que o
faria companhia pelo resto de seus dias.
Era mais do que ele poderia pedir ao Senhor.
Quando a carruagem parou lentamente, ele desceu e a auxiliou,
segurando sua mão. Rose ergueu os olhos e deparou-se com uma das cenas mais
belas que seus olhos já haviam testemunhado.
Era uma casa de madeira tão bem desenhada, feita com tanto zelo e
capricho, que podia-se notar o trabalho grandioso realizado ali.
Ela queria dizer a Randall o quanto estava orgulhosa, e o quanto estava
grata por tudo o que ele lhe dera naquela noite, mas tudo que ela foi capaz de
fazer era derramar lágrimas no escuro.
— Não chore, mo ghrá. — Ele passou os dedos pelo seu rosto.
— É tudo tão lindo, Randall. — Ela caminhava diante da casa.
Observou o pequeno jardim que contornava a propriedade, bem como os
altos carvalhos que adornavam o lugar. Antes que pudesse chegar até a varanda
que tinha três cadeiras de balanço lado a lado, próximo às tulipas, um cachorro
veio ao seu encontro, tão veloz que ela não pode detê-lo.
— Então este é o Beag — indagou ela, acarinhando as orelhas do enorme
cão.
— Este é o Beag — Randall respondeu em concordância, tentando em
vão limpar as marcas das patas no vestido da esposa, enquanto ela sorria
amplamente.
Quando Randall viu que não poderia afastar Beag da nova integrante da
família, ele pegou Rose em seu colo, arrancando-lhe uma sutil gargalhada
quando a passou entre o limiar da porta.
Ela olhou em volta, examinando tudo minuciosamente, apreciando cada
detalhe desde os quadros pendurados na parede até o vaso com flores recém
colhidas, que estava no centro da pequena mesa quadrada.
Caminharam juntos enquanto Randall apresentava-lhe o lugar,
justificando-se a cada passo pela simplicidade oferecida.
Subiram um lance de escadas, algumas tábuas rangeram e um vento
soprou de uma das janelas propositalmente deixada aberta. Quando abriram a
porta do cômodo, Rose deparou-se com mais um estimado presente.
Randall havia preparado um tipo de escritório, a fim de que ela tivesse
um lugar especial para criar suas histórias.
Da janela podia-se avistar um pé de cerejeira carregado das mais lindas
flores, de onde também era possível ver o lago que Gael gostava de brincar e
tinha uma visão privilegiada do moinho de vento que girava vagarosamente
naquela noite morna de primavera.
— Nada poderia ser mais perfeito. — Ela voltou-se para o marido, que a
recebeu em um abraço aconchegante.
— Eu queria poder ter mais a lhe oferecer, mas... — Rose pôs um dedo
em riste, silenciando-o.
— Eu já tive toda uma vida abastada de bens, e ainda assim, minha alma
estava presa na miséria, Randall — disse ela, beijando brevemente os lábios do
marido, apenas tocando-os. — Hoje eu sou a mais rica, pois tenho tudo que é
mais valioso, bem aqui, diante dos meus olhos. — Ela levou uma das mãos até o
rosto dele, afagando-o ternamente. — Nós conquistamos tudo. — Ela sorriu,
encorajando-o a sorrir também.
Em um movimento rápido ele a pegou nos braços novamente,
sobressaltando-a. Randall caminhou pelo estreito corredor até o final dele.
— Para onde estamos indo? — Ela sorria com abandono quando
perguntou.
— Acho que já sabe, senhora Culbert —respondeu ele, retribuindo-lhe o
riso maliciosamente.
Ao abrir a última porta do corredor, ela deparou-se com um caminho de
pétalas vermelhas que trilhavam até uma bela cama de dossel, onde tinha mais
pétalas aguardando-os.
— Em nossa primeira noite estávamos debaixo de um céu de estrelas.
Mas nesta primeira noite como minha esposa, eu queria amá-la em uma cama de
rosas — confidenciou Randall, pegando-a pela cintura, mantendo seus olhos nos
dela.
— Quem diria que um irlandês bronco seria tão romântico... — ela
rechaçou, deixando-se ser conduzida por seus braços que a rodeavam.
— Esse irlandês pode ser ainda melhor — falou sugestivamente enquanto
segurava a ponta do laço de seu vestido, desatando-o.
— Então mostre-me.
Havia fogo no olhar dela.
Um fogo que não seria abrandado. Não naquela noite, tampouco pelas
demais noites em que queimariam nos braços um do outro, sem qualquer
clemência.
Randall beijou-lhe os lábios com delicadeza enquanto a levava pelo
caminho das pétalas.
Ele a sentia estremecer em seus braços quando os beijos tornaram-se
mais ávidos, pressionando-se sobre ela como se quisesse se fundir ao seu
coração.
— Mo gruaig tine — murmurava entre seus lábios enquanto derramava
seu amor, sustentando seu olhar.
Ele a observava com admiração. Finalmente podia venerá-la da maneira
que ela merecia, amá-la com todo o desejo ardente de seu corpo e com toda a
intensidade de sua alma.
Durante um instante muito breve, enquanto fitava o vasto mar daqueles
olhos, ele pensou em tudo o que poderia ter tido, tudo o que poderia ter
adquirido se tivesse ido atrás da vida abastada que tanto almejou um dia.
Talvez pudesse ter alçado as riquezas que foram sua ambição por tantos
anos, contudo, enquanto mergulhava nos olhos cálidos de Rose, não poderia
querer uma vida melhor do que a que já lhe pertencia.
Nada no mundo, nem todos os bens debaixo da imensidão dos céus, nem
todos os tesouros perdidos no desconhecido das águas do mar... nada daquelas
futilidades serviriam para preencher o vazio que antes habitava em seu espírito.
Ele queria enriquecer, mas estava buscando os valores equivocados, e
naquele momento, ao ver o mais valioso dos sentimentos nos olhos de sua
esposa, ele podia verdadeiramente concluir que esteve por toda a sua vida
tentando enlaçar o vento.
Nada daquilo traria-lhe a satisfação que teve ao erguer seu próprio lar
com o trabalho árduo de seu próprio suor, ou a serenidade ao deitar a cabeça no
travesseiro e saber que tudo o que havia conquistado veio por sua própria
honestidade, e que nada daquilo teria um fim funesto, como tinham todas as
coisas que podiam ser compradas.
Ele havia construído um lar de amor, e nada nem ninguém poderia tirar-
lhe aquilo.
Era o mais rico dos homens por ter descoberto que às vezes um lar não
era um lugar, mas sim, outra alma disposta a compartilhar de suas desventuras.
As riquezas mais valiosas não eram aquelas que os olhos podiam ver e as
mãos podiam tocar.
O verdadeiro tesouro estava escondido no olhar genuíno de um menino
ao receber um cachorro; a verdadeira fortuna encontrava-se no som do riso da
mulher que amava, esperando-o ao final de um longo dia; o patrimônio mais
opulente era aquele que deixávamos guardado eternamente na memória dos que
amamos.
Quando olhava nos olhos de Rose, ou quando via a alegria retornar ao
sorriso desprendido de Gael, ele tinha a plena convicção de que havia
conquistado o mundo.
Afinal, eles eram seu mundo.
"Só é possível distinguir os verdadeiros valores, quando há no coração a
sabedoria de buscá-los."
Fim
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à Deus, pelo dom de contar histórias.
À minha família, que por mais louca que seja, sempre me apoia em cada
novo projeto.
Ao meu marido, minha eterna fonte de inspiração para todos os meus
mocinhos.
Um agradecimento especial à Ella Mackenzie, que me adotou como
irmã.
Minha constante gratidão à Nana Valenttine, uma amiga tão perturbada
quanto eu, mas muito preciosa.
Meu carinho eterno às primeiras autoras que trilharam meu caminho: A.
G. Moore, Juju Figueiredo e Valéria, vocês fazem parte de todas as minhas
conquistas e sempre farão.
Natalia Oliveira, sem você eu nunca teria escrito nem a primeira página
de um livro, obrigada por ser meu pilar.
Um agradecimento muito especial à Gabriella Macedo, que tornou-se
uma amiga muito querida, que trilha esse longo caminho ao meu lado.
Meu carinho e gratidão à Luciana Vaz, uma amiga valiosa que me
incentiva e faz parte da minha trajetória, sempre me animando a escrever uma
nova história, não me deixando desistir.
Agradeço também a querida Grace Ribeiro, uma das minhas leitoras mais
amáveis. Também deixo meu carinho e gratidão pela querida Gleice, que sempre
me emociona com sua sensibilidade.
Agradeço novamente minha amiga e designer Michaelly Amorim, que dá
vida às minhas histórias com as capas mais lindas.
Chego ao final desse livro com muita emoção.
Minha última Lady Wymond tendo sua história contada.
Eu nunca poderia deixar de ser grata pelos personagens que vieram até
mim, já que cada um deles é um pedacinho da minha alma, e que me ensinaram
tanto.
Richard foi o primeiro, e sempre será um dos mais especiais por muitas
razões. Com ele, aprendi que preciso aprender a não ouvir meus próprios
demônios.
Lilian me fez ver a leveza, mesmo em situações difíceis.
Allie me fez querer ser forte, mesmo se toda uma sociedade estiver
contra meus conceitos.
Com Daryl eu aceitei que tenho um limite e preciso respeitá-lo,
perdoando-me por tudo que eu não capaz de ser.
Randall me ensinou à duras penas, que eu tenho que manter o foco no é
mais importante, sem me deixar enganar por trivialidades mascaradas.
E Rose, ah Rose... essa me fez ver que eu sempre estive no caminho
certo, só precisava de um pouco de coragem para seguir meus sonhos.
Por fim, agradeço à todos os meus leitores. Cada leitor aquece meu
coração, recebendo meu eterno amor e genuína gratidão.
Amy Campbell
CONHEÇA O PRÓXIMO LIVRO DA
SÉRIE: AS IRMÃS WYMOND
O Desígnio do Capitão Wannell
Spin-off
Sinopse:
Elizabeth Williams é uma jovem senhorita que teve os sonhos arrancados
de seu coração quando era apenas uma menina.
Desde tenra idade, conhecera a truculência em sua forma mais cruel, e
ainda assim, apesar de todos os seus tormentos, ela encontra uma forma de ter
forças tecendo sorrisos de seus devaneios.
Quando o Capitão Henry Phillips Wannell a conhece em seu retorno à
Inglaterra, ele encontra uma razão para estender o que era pra ser uma breve
estadia.
Com sua doçura e delicadeza, Lizzie o envolve de uma maneira
inexplicável, mas o medo ainda reside nela, impedindo-a de se aproximar
demais.
Tudo o que ele deseja é poder dar vida ao que antes era apenas escopo de
imaginações.
Henry só conseguia pensar que precisava encontrar uma maneira de fazer
com que Lizzie o olhasse sem temor nos olhos. Aquilo seria difícil, mas ele
estava disposto a tentar.
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