Título original: LOVING A LOST LORD Autor: Mary Jo Putney Tradução: Joana Koehler Revisão: Ana Marta Ramos Capa: Alexandra Costa Imagem da capa: Lee Avison/Trevillion Images ISBN: 9789892348124
Edições ASA II, S.A. uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201
Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990. A todos aqueles professores que me ensinaram
a gostar de livros e de instrução.
Obrigada pela paciência! CAPÍTULO 1
Kent, 1812
V isitas tardias nunca traziam boas notícias. Lady Agnes Westerfield acordou com pancadas estrondosas na porta da sua ala privada, na extensa Westerfield Manor. Como os criados dormiam dois andares acima e desejava parar a algazarra antes que os alunos acordassem, calçou os chinelos e embrulhou-se num roupão quente. A vela projetava sombras perturbadoras enquanto avançava para a porta. Uma chuva suave e regular sibilava contra as janelas, interrompida por dois profundos sinais sonoros do relógio de pé. No meio das colinas sossegadas do Kent, era pouco provável que os ladrões lhe batessem à porta da frente, mas mesmo assim perguntou: – Quem é? – Randall. Reconhecendo a voz familiar, abriu a porta. Sentiu-se desanimar ao ver os três jovens altos nas escadas da frente. Randall, Kirkland e Masterson tinham feito parte da primeira turma de alunos – os seus «senhores perdidos» que necessitavam de cuidados e formação especiais. Aquela turma tivera seis meninos, que se tornaram mais próximos que irmãos. Um perdera-se no caos de França; outro estava em Portugal. Terem aparecido três dos outros com angústia no olhar não era um bom presságio. Fez-lhes sinal para entrar. – É o Ballard? – perguntou, dando voz a uma preocupação que sentia há meses. – Portugal é um sítio perigoso, com o exército francês de cabeça perdida. – Não é o Ballard. – Alex Randall entrou e despiu o capote encharcado. Coxeava devido a uma lesão sofrida na Península, mas mesmo assim estava ridiculamente bem-parecido com o uniforme militar escarlate. – É... o Ashton. Ashton era o sexto da turma, o mais enigmático e talvez o mais encantador de todos. Ela preparou-se. – Morreu? – Sim – respondeu James Kirkland de modo terminante. – Soubemos da notícia no nosso clube e viemos de imediato para cá, para lhe contar. Ela fechou os olhos, sem esperança. Não era justo que os jovens morressem quando os mais velhos perduravam. Mas tinha aprendido cedo que a vida não é justa. Um braço passou-lhe em volta dos ombros, reconfortando-a. Abriu os olhos e viu Will Masterson, sério e silencioso, mas que sabia sempre qual a coisa certa a fazer. – Vieram juntos para me apoiar, caso eu tivesse um ataque histeria? – perguntou, tentando ser a diretora calma que eles conheciam há tantos anos. Masterson sorriu de modo estranho. – Talvez. Ou talvez quiséssemos que nos confortasse, e não o contrário. Imaginou que fosse aquela a verdade subjacente. Nenhum dos jovens cavalheiros tivera uma mãe decente, e como tal ela assumira esse papel na vida deles. Apareceu uma empregada a bocejar e Lady Agnes pediu-lhe comida para os visitantes. Os jovens precisavam sempre de alimento, especialmente depois de uma longa viagem a cavalo desde Londres. Assim que eles penduraram os capotes a escorrer, conduziu-os até à sala de visitas. Todos sabiam o caminho pois eram convidados frequentes, mesmo depois de terminada a escolaridade. – Acho que precisamos todos de um pouco de conhaque. Randall, serves? – perguntou Lady Agnes. Em silêncio, Randall abriu o armário e tirou quatro copos, com a luz da lâmpada a brilhar no cabelo loiro. Estava tenso, a ponto de desmoronar. Lady Agnes aceitou um copo cheio e afundou-se na sua cadeira preferida. O conhaque queimava, mas aguçava-lhe a vivacidade de espírito. – Diz-me o que aconteceu. Um acidente? Kirkland assentiu. – O Ashton nunca esteve doente um só dia na vida. – Parecia uma década mais velho do que o habitual. – Miss Emily está cá? Precisará também de saber. Lady Agnes abanou a cabeça, desejando que a companheira e amiga de longa data estivesse presente, para que pudessem fazer o luto juntas. – Foi visitar a família ao Somerset e só voltará daqui a uma semana. O General Rawlings também não está. – Contemplou o copo, pensando na adequação de beber até perder os sentidos. Nunca o fizera, mas seria uma boa altura para começar. – Ele foi o meu primeiro aluno – disse com doçura. – Se não fosse o Adam, a Westerfield Academy não existiria. – Não reparou que tinha cometido o lapso de usar o nome próprio do falecido duque, em vez do título. – Como é que isso aconteceu? Nunca me contaram a história. Sabe como era o Ash. Quando se tratava da vida privada dele, fazia uma ostra parecer conversadora. – Enquanto Masterson falava, a criada voltou com uma bandeja a abarrotar. Os jovens atacaram como lobos as carnes fatiadas, o queijo, o pão e legumes em conserva de vinagre. Lady Agnes sorria enquanto os servia de vinho clarete, satisfeita por poder fazer-lhes algo pelo corpo, se não pelo espírito. Randall olhou para cima. – Conte-nos como tudo começou. Ela hesitou, depois tomou consciência de que queria – precisava de – falar sobre como conhecera o jovem Duque de Ashton. – A Emily e eu tínhamos acabado de regressar dos nossos anos em viagem. Embora eu adorasse visitar tantos lugares longínquos, parecia-me hora de voltar para casa. O meu pai estava adoentado e... bem, havia outras razões, mas não importa. Três meses depois do regresso a Inglaterra estava em pulgas, sem saber o que fazer a mim mesma. Já tratara do intendente aqui em Westerfield Manor, e precisava de um desafio. Uma pena que não permitam mulheres no Parlamento. Kirkland levantou os olhos da carne cortada com um sorriso. – Adoraria vê-la falar na Câmara dos Lordes, Lady Agnes. Atrevo-me a dizer que trataria deles num instante. – Encontrei melhor uso para a minha energia. Um dia, andava a passear por Hyde Park e a questionar o que fazer de mim quando ouvi um chicote estalar. A pensar que estava alguém a bater num cavalo, entrei no matagal e encontrei um homenzinho medonho a praguejar para uma árvore. Empoleirado num dos ramos por cima da cabeça dele estava o Ashton, agarrado ao cachorro mais indescritível. – Bhanu! – exclamou Masterson. – Ainda sinto falta desse cachorro. Como diabo é que o Ashton o subiu para a árvore? – E porquê? – questionou Kirkland. – O homem era o precetor do Ashton, um indivíduo chamado Sharp. Para ser justa, o Ashton estava a levar o homem à loucura – disse judiciosamente. – Recusava-se a falar inglês e a olhar qualquer pessoa nos olhos. O único amigo dele era aquele cachorro imundo que encontrara algures. O Sharp mandou matar o cachorro, mas o criado nomeado para a tarefa não aguentou fazê-lo; então, libertou o Bhanu em Hyde Park. Quando o Ashton descobriu, fugiu de Ashton House para encontrar o cão. – E não desistiria até conseguir – murmurou Randall. – O homem mais obstinado que já conheci. – Tu podes falar! – exclamou Kirkland. Rir da observação aliviou um pouco o ambiente. Lady Agnes continuou: – Quando apareci e perguntei qual era o problema, o Sharp desabafou todas as frustrações. Tinha-lhe sido atribuída a função de preparar o rapaz para Eton. Depois de uma quinzena a ser levado à loucura, o Sharp estava convencido de que o novo Duque de Ashton era um estúpido que não sabia falar inglês e que certamente não poderia frequentar Eton. O rapaz era um vil traquinas de Satã! Era o duque errado; o título deveria ter ido para o seu respeitável primo inglês! Mas o tolo do pai do menino tinha sido um primo que nunca pensou que herdaria, e como tal casou com uma prostituta hindu enquanto designado para um cargo na Índia. Quando os outros herdeiros morreram, o nosso Ashton acabou com o título, para horror de toda a família. Houve um sobressalto coletivo à sua volta. – Estou espantado por o Ash não ter ido atrás do precetor com uma faca – pronunciou Masterson. – Senti-me tentada a tirar o chicote ao Sharp e a usá-lo nele. – Em vez disso, olhara para a árvore e vira uma completa aflição no rosto do rapaz, enquanto o professor se enchia de cólera. A criança compreendia todas as palavras e sabia que era desprezada. Naquele momento, ele capturou-lhe o coração. Lady Agnes sabia muito sobre ser diferente: uma pária na sociedade em que nascera. Aquele rapazinho de impressionantes olhos verdes precisava de uma aliada. – O Ashton tinha sido tratado com desdém por aqueles que o rodeavam desde que foi retirado à mãe, na Índia, e mandado de volta para Inglaterra. Não admirava que esperasse poder fingir que aquela nova vida horrível não existia. O olhar dela percorreu cada um dos homens à sua volta, sucessivamente. – E foi então, cavalheiros, que a inspiração surgiu e a Westerfield Academy nasceu. Usei a minha voz mais imponente para anunciar que era Lady Agnes Westerfield, filha do Duque de Rockton, e que possuía um estabelecimento de ensino para meninos de bom nascimento e mau comportamento. Também declarei ter aprendido métodos de disciplina antigos durante as minhas viagens pelo misterioso oriente. «O Sharp ficou intrigado e fechámos negócio. Se eu conseguisse tirar o Ashton da árvore e fazer com que se comportasse de maneira civilizada, o Sharp recomendaria aos tutores que o rapaz fosse enviado para a minha escola, e não para Eton. Então, afugentei o homem para fora do alcance da voz, desenterrei o hindi que tinha aprendido durante o tempo que passei na Índia e pedi ao Adam para descer. Ela sorriu com ternura perante a memória. – Claro que ele falava um inglês perfeito; tive a certeza de que devia ter aprendido a língua com o pai. Mas uma vez que fiz uma tentativa de me dirigir a ele em hindi, decidiu que era hora de descer da árvore e lidar com o mundo à sua volta. Ele tinha lágrimas no rosto quando chegou ao chão, mas ela jamais contaria a alguém. – Embora eu falasse mal a língua, pelo menos tentava. Fizemos um acordo. Ele estava disposto a vir para a minha nova escola se o deixassem ficar com o Bhanu e continuar com o estudo da mecânica, que começara com o pai. «Pareceu-me perfeitamente razoável. Em troca, eu esperava que se dedicasse a todos os estudos e que aprendesse a desempenhar o papel de cavalheiro inglês. Ela prometera-lhe também que os pensamentos privados seriam só dele. Arrancado da sua terra natal e da mãe, ele precisava de saber disso. – Depois fui à procura de mais estudantes. Todos vocês sabem como vieram para Westerfield. – Na aristocracia inglesa não havia falta de rapazes zangados e insatisfeitos, que não se enquadravam no padrão que se esperava deles. Randall, por exemplo, conseguira ser expulso de Eton, Harrow e Winchester, os três colégios privados mais prestigiados da Grã- Bretanha. Acreditava que a proeza dele era sem igual. Os pais e tutores da primeira turma ficaram gratos por encontrar uma escola respeitável que aceitasse os meninos problemáticos. A extensa propriedade de Lady Agnes era apropriada para tornar-se numa escola, e o seu bom nascimento um poderoso chamariz. Tal como o recrutamento do general Philip Rawlings. A reputação militar do general era excecional e os pais assumiam que ele governaria com mão de ferro. Em vez disso, o general partilhava a convicção de que a violência nunca deveria ser um primeiro recurso com crianças. Entediado com a reforma, aceitara a oferta com entusiasmo. Com as relações na alta roda de Lady Agnes e a capacidade do general de dirigir rapazes sem sequer levantar a voz, tinham criado uma escola única. No espaço de um ano, outros pais suplicavam por colocações e as turmas seguintes eram maiores. Lady Agnes tornara-se especialista em fazer alusão aos seus misteriosos métodos orientais de criar jovens cavalheiros bem- educados e bem-comportados. Na verdade, os métodos não eram de todo misteriosos, embora fossem pouco convencionais. Quando conhecia um rapaz, descobria o que ele mais queria e o que mais detestava. Depois, arranjava forma de ele ter o que queria e não ser forçado a passar pelo que considerava insuportável. Em troca, exigia que os meninos se aplicassem nos estudos e aprendessem a jogar o jogo da sociedade. Se os alunos percebessem que poderiam desempenhar o papel que se esperava deles sem perder a identidade, sair-se-iam bem. Kirkland acabou de encher o clarete a todos e depois ergueu o copo num brinde. – Ao Adam Darshan Lawford, sétimo Duque de Ashton e melhor amigo que um homem poderia ter. Os outros levantaram os copos solenemente. Lady Agnes esperava que, na sala mal iluminada, as lágrimas nos olhos não se mostrassem. Não desejava arruinar a sua reputação. Depois do brinde, Kirkland disse: – Agora o primo dele, o Hal, é o oitavo duque. Foi o Hal quem nos informou, na verdade. Encontrou-nos a jantar no Brooks, porque sabia que quereríamos saber o mais depressa possível. – O Hal é um bom companheiro – observou Masterson. – Estava destroçado com as notícias. Herdar um ducado está muito bem, mas ele e o Adam eram amigos. Lady Agnes conhecera Hal, o primo de Adam. Era de facto um indivíduo decente, embora convencional. A vida e o título Ashton continuariam. Questionou-se se haveria alguma jovem especial que devesse ser informada da morte de Adam, mas ele nunca tinha manifestado interesse em nenhuma mulher em particular. Sempre fora muito reservado em relação à sua vida privada, mesmo com ela. Bem, as notícias tornar-se-iam públicas muito em breve. Apercebendo-se de que não ouvira toda a história sobre Adam, perguntou: – Em que tipo de acidente morreu? Ia a cavalo? – Não, estava a testar o novo iate a vapor, o Enterprise, perto de Glasgow – respondeu Randall. – Ele e os engenheiros andavam a fazer um teste no rio Clyde. Acabaram por navegar uma distância considerável. Tinham acabado de virar para voltar quando a caldeira explodiu. O barco afundou quase de imediato. Sobreviveram meia dúzia de engenheiros e tripulantes, mas muitos outros não conseguiram. Disse Masterson com tristeza: – O Ash estava provavelmente na sala das máquinas a mexericar na maldita coisa quando explodiu. Isso... terá sido rápido. Lady Agnes supôs que, se Ashton pudesse escolher como morrer, ficaria contente por partir desta forma. Era com certeza o único duque em Inglaterra com tal paixão por construir engenhocas mecânicas. Contudo, ele era invulgar de muitas maneiras. Depois parou e considerou o que fora dito. – Encontraram o corpo? Os jovens trocaram olhares. – Não que eu tenha ouvido – disse Randall. – Embora a nossa informação possa estar incompleta. Ele podia estar vivo! Embora quisesse desesperadamente acreditar naquilo, Lady Agnes sabia que a ideia era esperança, não uma probabilidade. E, no entanto... – Portanto, não há provas de que esteja morto. – Com o incêndio e o naufrágio do barco em águas tão difíceis, poderá nunca se recuperar o corpo – disse Masterson com sobriedade. – Mas pode ter sobrevivido. – Ela franziu a testa enquanto considerava. – E se ficou ferido e deu à costa a alguma distância? Numa das cartas, contou-me como são fortes as correntes nas costas escocesa e de Cumberland. No mínimo, o... corpo pode ter sido levado a tal distância que não se relaciona com a explosão de um barco a vapor a muitos quilómetros dali. – É possível, suponho – disse Randall, as sobrancelhas franzidas. – Então por que estão aqui, em vez de a procurá-lo? – vociferou Lady Agnes. Todos se esticaram com o seu tom cortante. Houve um longo silêncio antes de Masterson bater com o copo de vinho na mesa. – Essa é uma ótima pergunta. Fiquei tão chocado com a notícia que o meu cérebro parou de trabalhar. Vou dirigir-me para norte e descobrir o que aconteceu. Os sobreviventes serão capazes de contar-nos mais. Talvez... talvez aconteça um milagre. Disse Randall em tom sombrio: – Nem pensar. – Talvez não, mas pelo menos vou saber mais sobre a morte dele. – Masterson levantou-se, praguejando baixinho enquanto hesitava devido a uma combinação de exaustão e bebida. – E eu vou contigo – disse Kirkland terminantemente. Ele e Masterson viraram o olhar para Randall.
– Vai ser um esforço em vão! – exclamou Randall. – Agarrarmo-nos a uma falsa esperança apenas tornará a verdade mais dura no final. – Não para mim – ripostou Masterson. – Sentir-me-ei melhor por saber que tentei. Admito, é improvável que ele tenha sobrevivido, mas há uma hipótese de se encontrar o corpo. Randall mostrou um semblante carregado. – Muito bem, vou convosco. O Ashton merece os nossos melhores esforços. – Então está decidido, cavalheiros. Podem passar cá o resto da noite e levar montadas frescas dos meus estábulos. – Lady Agnes levantou-se e agarrou-lhes o olhar, um após outro. Com uma voz inabalável, ordenou: – E se o Adam estiver vivo, espero que o tragam para casa! CAPÍTULO 2
Cumberland, Noroeste de Inglaterra Dois Meses Antes
Q uando o circuito pela casa chegou à sala de estar, Mariah Clarke sentia-se estonteada de felicidade. – É maravilhosa! – Rodopiou num círculo com os braços estendidos e o cabelo loiro a voar, como se tivesse seis anos, mais do que como uma mulher adulta. O pai, Charles, deslocou-se até à janela para admirar o mar da Irlanda, que reluzia ao longo do limite ocidental da propriedade. – Finalmente temos um lar. Um digno de ti. – O pai olhou-a com ternura. – A partir de hoje, és Miss Clarke de Hartley Manor. Miss Clarke de Hartley Manor. Aquilo soava um tanto intimidador. Estava na hora de começar a comportar-se como uma jovem dama. Endireitou-se e apertou um nó solto no cabelo comprido, de forma a parecer mais perto dos seus vinte e cinco anos. Como Sarah. Em criança, estivera muitas vezes sozinha, por isso imaginara ter uma irmã gémea chamada Sarah, sempre disponível para brincar. Sempre leal. A amiga perfeita. Sarah era também uma dama perfeita, o que Mariah não era. Se Sarah fosse real, estaria impecavelmente vestida, e nunca teria um cabelo fora do sítio. Não haveria botões em falta, nem manchas de relva por se sentar num relvado. Montaria sempre à amazona e jamais chocaria a região rural por cavalgar com uma perna para cada lado. Seria capaz de encantar toda a gente, desde crianças de trato difícil a coronéis grosseiros. – Terei de aprender a arte de governar uma grande casa. Podemos pagar a mais criados? Os três de cá realmente não são suficientes para uma estrutura deste tamanho. O pai assentiu. – O mesmo jogo de cartas em que ganhei Hartley Manor rendeu também uma boa importância em dinheiro. Com cuidado, haverá o suficiente para fornecer devidamente a propriedade de pessoal e fazer remodelações. Se a casa for bem administrada, gerará um rendimento considerável. Mariah franziu o sobrolho, desagradada com a lembrança de como o pai adquirira a mansão. – O cavalheiro que perdeu a propriedade ficou na miséria? – O George Burke vem de uma família rica, portanto não vai morrer de fome. – Charles encolheu os ombros. – Não devia ter jogado a dinheiro, se não podia dar-se ao luxo de perder. Apesar de não conseguir atribuir tão pouca importância ao destino de Burke como o pai, não falou sobre o assunto. Em criança vivera com a bisavó, que tinha sangue cigano. Depois da morte da avó Rose, Charles levara Mariah com ele para todo o lado. Embora ela o amasse, nunca gostara da vida que levavam na estrada, onde o encanto e o talento para as cartas do pai originavam um modo de vida por vezes errático. Quando a carteira de Charles ficava particularmente vazia, Mariah lia a sina em feiras de aldeia, uma habilidade que aprendera com a avó. Mariah não conseguia ver o futuro, mas era boa a ler as pessoas, e como tal elas iam embora a sentir-se mais felizes com as suas vidas e perspetivas. Ler a sina não era ocupação que Miss Clarke de Hartley Manor algum dia admitisse ter. Felizmente, não teria de o fazer outra vez. – Vou procurar os livros de contas da propriedade para perceber melhor as nossas finanças. – Minha menina prática – disse Charles, divertido. – Vais organizar esta casa num instante. – Espero decerto que sim. – Tirou uma cobertura em pano de Holanda da peça de mobiliário mais próxima, revelando uma poltrona estofada em brocado azul. Tal como a maior parte da mobília que restava na casa, estava gasta, mas própria para ser usada. Todos os aposentos e paredes tinham vazios de onde George Burke retirara as peças mais valiosas. Não tinha importância; a mobília e as pinturas podiam sempre ser substituídas. – Com tão poucos empregados, nem a casa nem o jardim foram tão bem cuidados quanto seria desejável. – O Burke preferiu gastar o dinheiro numa vida elegante em Londres. – Charles olhou-a com a mágoa que revelava quando pensava na mãe de que ela não conseguia lembrar-se. – Serás uma magnífica senhora da mansão. Mas é melhor avisar-te já de que, logo que nos instalarmos, terei de me ausentar por algumas semanas. Ela olhou-o fixamente, consternada. – Isso é necessário, Papá? Pensei que, agora que temos uma casa, permaneceríamos nela. – E assim farei, Mariah. – Torceu a boca ironicamente. – Não sou tão novo como era, e a ideia de uma casa confortável é muito apelativa. Mas tenho... uns assuntos familiares para tratar. – Assuntos familiares? – perguntou Mariah, surpreendida. – Não sabia que tínhamos parentes. – Tens ninhadas inteiras deles. – O olhar do pai afastou-se dela para contemplar novamente o mar. – Eu era a ovelha negra e o meu pai renegou- me. Com justiça, devo acrescentar. Agora que alcancei respeitabilidade, está na hora de tentar fazer as pazes. Família. Que conceito tão estranho. – Tem irmãos e irmãs? Eu poderei ter primos? – Primos, de certeza. Não que eu tenha conhecido algum deles. – Suspirou. – Eu era um jovem muito rebelde, Mariah. Só comecei a crescer quando me tornei responsável por ti. Ela tentou imaginar como seria ter família, além do pai. – Conte-me sobre a sua – a nossa – família. Ele abanou a cabeça. – Não direi mais nada. Não quero que fiques dececionada se a casa da família ainda me estiver proibida. Realmente não faço ideia do que vou encontrar lá. – A sua expressão era pouco animadora. – Com certeza, pelo menos alguns dos seus parentes irão recebê-lo bem de volta. – Tentou não parecer ansiosa quando acrescentou: – Talvez eu possa visitá-los. – Tenho a certeza de que até os parentes que ainda me desaprovam ficariam encantados por conhecer Miss Clarke de Hartley Manor. – Sorriu. – Agora, vamos ver a cozinha. Descobri que Mrs. Beckett é a mais excelente cozinheira. Ela seguiu alegremente, preparada para um pouco do pão cuja cozedura tinha cheirado. Ia valer a pena sentir a falta do pai por uma quinzena ou duas, para ter finalmente uma família.
Hartley Manor, várias semanas depois
Mariah despertou com um sorriso ridículo no rosto, como acontecia agora todas as manhãs. Deslizou da cama, envolveu-se num roupão e caminhou tranquilamente até à janela, para ver lá fora a areia reluzente que debruava o mar. Ainda lhe era difícil acreditar que aquela propriedade maravilhosa se tornara na sua casa. Reconhecia, precisava de se fazer muito trabalho, mas todos os dias havia alguma melhoria. Quando o pai voltasse, ficaria surpreendido e contente com os seus esforços. Uma chuva branda seguia à deriva pela paisagem, suave e mágica. O recanto mais húmido de Inglaterra não teria sido a sua primeira escolha para uma casa, mas não importava; agora que ali estava, adorava cada gota de chuva e cada véu de nevoeiro. Na expectativa de naquele dia receber uma carta do pai, vestiu-se, dando o seu melhor para se assemelhar à digna irmã imaginária. Começou a pentear o cabelo à medida que listava mentalmente as tarefas do dia. Depois de tomar o pequeno-almoço, iria à aldeia. Primeiro, visitaria o vigário, que prometera sugerir-lhe homens que poderiam dar bons empregados de exterior. Os seus pensamentos refletiram no vigário. Mr. Williams era solteiro e atraente, e ela detetara-lhe entusiasmo no olhar em todas as ocasiões em que se tinham encontrado. Se ele estivesse à procura de mulher, quereria uma Sarah, não uma Mariah, mas ela estava a fazer progressos no que tocava a ser respeitável. Depois de visitar Mr. Williams, tomaria chá com a nova amiga, Mrs. Julia Bancroft. Conhecer uma mulher inteligente e engraçada quase da sua idade era, em alguns aspetos, ainda melhor do que a admiração do vigário. Julia, a parteira local, era uma jovem viúva e também médica substituta da localidade, uma vez que não havia verdadeiros médicos num raio de quilómetros. Tratava ferimentos e males menores e sabia algumas coisas sobre ervas. Tinham-se conhecido depois de um serviço religioso e encetaram de imediato uma amizade. A avó Rose ensinara a Mariah muito sobre as ervas. Mariah não era uma verdadeira curandeira como Julia, e como tal ficava contente por passar o conhecimento da bisavó a uma mulher que o apreciava. Tirados os emaranhados do cabelo, enrolou um nó bem arranjado na parte de trás da cabeça. Sarah aprovou. A jovem criada para todo o serviço chegou com uma bandeja que continha torradas e uma chávena de chocolate quente, e ajudou Mariah a vestir-se. Mariah sentiu-se uma senhora distinta. Depois de terminar o leve repasto, calçou as luvas e vestiu o manto, foi buscar o chapéu de palha e desceu as escadas, a assobiar com alegria. Parou antes de chegar à cozinha. Tinha toda a certeza de que Sarah não saberia assobiar. – Bom dia, menina. – A cozinheira, Mrs. Beckett, falou com um sotaque cumbriano tão cerrado que Mariah mal conseguiu entender, mas não tinha importância. Era uma boa cozinheira de pratos simples e recebera bem os novos proprietários, porque habitavam a casa. Durante anos, Mrs. Beckett fora responsável geral pelo governo da casa e ocasional cozinheira, nas raras vezes em que o anterior proprietário resolvia fazer uma visita. Era bom ter uma posição segura, confidenciou ela, mas sentia falta de ter pessoas por perto. – Precisa de algo das lojas da aldeia? – perguntou Mariah. A cozinheira abanou a cabeça. – Não há necessidade, a despensa ‘tá cheia. Bom passeio, menina. Mariah apertava a capa quando a criada entrou na cozinha a passo rápido, os olhos arregalados. – Mr. George Burke está de visita para a ver, menina – deixou escapar. A alegria de Mariah desvaneceu-se. Se ao menos o pai ali estivesse! Mas há mais de uma semana que não recebia sequer uma carta dele. – Imagino que tenha de ver o homem – disse ela com relutância. – Por favor, pede-lhe que espere na sala de visitas pequena. – Depois de a empregada sair, Mariah disse: – A esta hora, não me parece que seja preciso servir-lhe aperitivos. Que quererá ele? Mrs. Beckett franziu o sobrolho. – Não sei o que fará Mr. Burke, é um facto. Ouvi dizer que ele estava hospedado no Bull and Anchor. Tive esperança de que o malandro deixasse Hartley sem vir cá. Tenha cuidado com ele, Miss Mariah. Era bom que Mariah estivesse vestida para sair. Dar-lhe-ia uma desculpa para tornar a reunião breve. – Pareço respeitável? – Parece, sim, menina. Invocando a expressão serena de Sarah, Mariah encaminhou-se para a pequena sala de visitas. Quando chegou, George Burke contemplava uma pequena mesa embutida. Com trinta e poucos anos, tinha cabelo claro e era atraente, de uma forma arrebatadora e viril. Ao entrar, disse: – Mr. Burke? Sou Mariah Clarke. – Agradeço-lhe por me receber. – Ele passou os dedos sobre a madeira embutida nostalgicamente. – Esta mesa pertencia à minha avó. Era uma mesa bonita e Mariah gostava dela, mas ela e o pai tinham concordado que deviam autorizar Burke a retirar os pertences pessoais e o que quer que tivesse valor sentimental. – Nesse caso, deve ficar com ela, Mr. Burke. Ele não a olhara quando entrou, mas com aquelas palavras ergueu os olhos. A sua expressão mudou. Mariah reconhecia aquele olhar. Era o interesse de um homem que encontrava uma mulher atraente e que questionava se ela estaria sexualmente disponível. – É amável – disse ele. – Lamento que nos encontremos nestas circunstâncias. Então, por que não se manteve longe? Friamente, ela perguntou-lhe: – Voltou a Hartley para uma visita? – Estou hospedado na estalagem. – Ele mostrou um semblante carregado. – Isto é delicado. Fiz a visita em grande medida porque questionei se já teria sabido das notícias sobre o seu pai. A inquietação atingiu-lhe a espinha. – Que notícias? Se lhe deseja falar, terá de esperar até que ele regresse de Londres. – Portanto, ainda não soube. Temi que assim fosse. – Burke desviou o olhar, sem encontrar o dela. – O seu pai foi morto por salteadores de estrada nos arredores de Londres, no Hertfordshire. Eu estava hospedado na estalagem local quando soube do forasteiro assassinado, por isso parei para ver o corpo, no caso de poder ajudar a identificá-lo. Reconheci de imediato o seu pai. O rosto, a cicatriz nas costas da mão esquerda. Era ele, sem dúvida. Mariah arquejou, incrédula. – Como sei que está a dizer a verdade? – Insulta-me, minha senhora! – Burke respirou fundo. – Farei concessões devido à sua dor. Se não acredita em mim, quanto tempo passou desde que recebeu uma carta do seu pai? Demasiado. Depois de ele partir, tinha recebido uma carta dia sim, dia não. – Há... há mais de uma semana. – Afundou-se numa cadeira, ainda sem compreender bem que o pai poderia estar morto. Mas as estradas eram perigosas e ela andava a sentir-se ansiosa com a falta de cartas. O pai prometera escrever-lhe muitas vezes, e com ela cumpria sempre a palavra dada. – Isto foi retirado do corpo do seu pai. Não sabia bem se ele tinha família, mas uma vez que vinha a Hartley, disse que tentaria devolvê-lo. – Ele puxou de um anel de ouro, ornamentado com um padrão celta entrelaçado, do bolso do colete. Ela aceitou-o com dedos trémulos. O anel estava bem gasto e era absolutamente familiar. O pai andava sempre com ele. A mão enluvada prendia com firmeza o anel enquanto ela aceitava que Burke dizia a verdade. Estava sozinha no mundo. A última carta do pai não relatava que já visitara os parentes com quem cortara relações há muito e, por conseguinte, eles não saberiam da sua existência. Não fazia a mais pequena ideia de onde morava a família dele, e como tal não podia escrever-lhes a apresentar-se. Para todos os efeitos, eles não existiam. Estava sozinha. A avó Rose e o pai tinham ambos desaparecido, e tudo o que lhe restava era Hartley. Não obstante, era muito mais do tinha há dois meses. Ainda entre o choque e incredulidade, perguntou: – Por que não me deu conhecimento, para eu poder tratar de o sepultar com dignidade? – Na altura, não sabia da sua existência. Mas pode estar certa de que foi decentemente sepultado. Uma vez que o conhecia, dei dinheiro às autoridades locais para o porem num cemitério local. Dei-lhes também o nome e o endereço do advogado do seu pai, que conheci durante a transferência de propriedade de Hartley. Conto que tenha notícias dele. – Obrigada – respondeu, entorpecida. – Isto é muito difícil, Miss Clarke, mas devo dizer-lhe que o seu pai fez batota no jogo em que deitou a mão à minha propriedade – disse Burke de modo seco. – Eu estava preparado para o questionar legalmente, mas a morte dele complica a situação. Voltei a Hartley para recuperar a minha propriedade e soube de si. Decidi que seria melhor visitá-la para lhe dar as más notícias, se não as tivesse recebido. As palavras dele passaram por cima do torpor dela. – Como se atreve a fazer tal acusação! Insulta o meu pai, senhor! Apesar das suas palavras, um pequeno e frio recanto da sua mente questionava se a afirmação seria verdadeira. O pai era, de modo geral, um jogador honesto. Como ele lhe tinha dito mais do que uma vez, aquilo era apenas um bom negócio. Um vigarista depressa seria impedido de jogar com cavalheiros. Mas Charles Clarke sabia como fazer batota. Havia demonstrado vários métodos de comprimir cartas, fazer sinais e outras técnicas, para que Mariah fosse capaz de reconhecer os truques quando jogasse. Ela era uma jogadora de cartas competente e descobrira que as grandes damas podiam fazer batota, independentemente do quão antigos e ilustres eram os seus nomes de família. Se necessário, Mariah sabia como retribuir a trapaça. Mas não iria mostrar a Burke dúvidas em relação ao pai. – O meu pai é um homem honesto. Se ele estivesse aqui, poderia defender-se desta calúnia! – Uma vez que ele já não está connosco, não falarei mais do que fez. – Burke estudou-lhe o rosto, os olhos azuis-claros a avaliar. – Miss Clarke, sei que esta não é uma boa altura, mas ocorreu-me uma ideia. Ficou órfã, e eu quero a minha propriedade de volta. Estava preparado para recorrer à lei para exigir a restituição, mas os tribunais são lentos e caros. Existe uma solução mais conveniente para ambos. – Mariah olhou-o, só meio ciente das suas palavras. Não existia solução que trouxesse o pai de volta. – Eu preciso de uma esposa, e a menina é uma jovem amável que precisa de um homem que a proteja – continuou ele. – Proponho que nos casemos. Não haverá uma ação nos tribunais nem desentendimento. Ambos teremos um lar, rendimento e posição na comunidade. Seremos uma combinação muito conveniente. – Ele olhou em volta da sala, com aprovação. – Vejo que a casa funciona bem sob a sua supervisão, o que me agrada quase tanto como a sua beleza e graciosidade. Dá-me a honra de se tornar minha esposa, Miss Clarke? Mariah ficou de queixo caído, em choque. Um completo desconhecido pedia-a em casamento, porque era conveniente? Era aquele o problema de fingir ser distinta: obviamente parecia uma pateta desamparada. A proposta era ultrajante, mesmo se gostasse do homem – o que não era o caso. Reconhecia, ele era atraente e a oferta tinha uma lógica pérfida, mas não desejava unir a vida à de um jogador. Vira o inferno que tais homens causavam às famílias. Se casasse com o homem, ficaria à mercê dele. O absurdo da oferta de Burke levou-a ao limite do riso histérico. Pôs a mão sobre a boca numa tentativa infrutífera de o abafar. O maxilar dele ficou mais tenso. – Acha a ideia ridícula? Garanto-lhe que meu nascimento é mais do que adequado, e parece-me ser óbvio que o casamento é no melhor interesse de ambos. Para ser franco, beneficiaria mais do que eu, dadas as suas origens bastante dúbias. No seu lugar, consideraria uma proposta de casamento honrosa com mais cuidado. Mrs. Beckett prevenira-a em relação a Burke, e a expressão dos olhos dele confirmava que seria um homem perigoso de se contrariar. Moderou-se e lançou-lhe o seu melhor olhar inocente. – Lamento muito, Mr. Burke. Estava a rir-me porque estou consternada por tudo... o que aconteceu. – Era fácil parecer confusa e transtornada pela dor. Mas que desculpa poderia ela dar que o mandasse embora de uma vez por todas? Ocorreu-lhe uma ideia extravagante. Considerou-a por um instante, bastante chocada com a própria habilidade para faltar à verdade. Porém, esta mentira em particular serviria bem o seu propósito. – Sinto-me honrada com a sua proposta – disse ela com a expressão mais sincera –, mas eu já tenho marido. CAPÍTULO 3
–É casada? Mariah. – O olhar de Burke precipitou-se para a mão esquerda de
Mariah resistiu à tentação de esconder as mãos atrás das costas.
Felizmente estava de luvas calçadas, uma vez que em vias de caminhar até à aldeia, e como tal ele não lhe via o terceiro dedo despido. – Na verdade, sou, Mr. Burke. Embora me sinta honrada com a sua proposta de casamento, não a posso aceitar, como é evidente. – Ninguém na aldeia disse nada sobre ter um marido – disse ele, desconfiado. – E chama-se Clarke, como o seu pai. Na verdade, toda a gente lhe chama Miss Clarke. – O meu marido é um primo afastado que também se chama Clarke. – Ela encolheu os ombros. – Visto que tenho sido conhecida como Miss e Mrs. Clarke, respondo a ambos. Ele olhou em volta da sala, como se à espera de que o marido se materializasse. – Onde está esse misterioso cônjuge? – Só estou em Hartley há algumas semanas – salientou Mariah. – Ele não teve tempo de se juntar a mim. Burke parecia ainda mais desconfiado. – Que tipo de homem não está com a sua bela mulher quando ela se muda para uma casa nova? Decidindo que já tinha tido o suficiente de Burke, pôs-se em pé. – O tipo que serve o seu país na Península, em vez de perder o património ao jogo, em estado de embriaguez! Está na hora de ir embora, Mr. Burke! Pegue na mesa da sua avó e saia. Em vez de perder a calma, o homem exasperante sorriu-lhe. Como todos os jogadores, adorava um desafio. Adorava o risco. – Perdoe-me, Miss Clarke. Não deveria ter falado consigo sobre assuntos pessoais quando ainda está a absorver a notícia da morte do seu pai. – Fez uma reverência. – Apresento-lhe as minhas condolências. Voltarei para buscar a mesa noutra altura. – Virou-se e saiu, fechando discretamente a porta atrás dele. Preferia não voltar a ver Burke, mas pelo menos a presença dele fora uma distração. De joelhos fracos, sentou-se novamente e abriu a mão direita, mostrando o anel de ouro do pai. Ele estava morto. Ainda não parecia real. Tinha de contactar o advogado de Londres que tratara da transferência de propriedade de Hartley Manor e pedir-lhe que investigasse mais. Talvez saber mais pormenores fizesse com que a morte de Charles Clarke parecesse mais real. Averiguaria também se seria possível trazer o corpo dele para Hartley, para ser sepultado. O Papá estava tão ansioso por morar ali... Mariah fechou os olhos, as lágrimas a arder. Ele era novo de mais para morrer! Imprescindível de mais. No entanto, testemunhara a morte súbita mais que uma vez e sabia que esta não mostrava favoritismos. Tinha de tirar o melhor partido possível da vida ali em Hartley. Deu graças por estar numa posição muito melhor do que estivera dois meses antes. A sorte do pai nas cartas deixara-a uma jovem de posses, e não numa situação desesperada. Fora o seu último presente. A única coisa desesperada em torno dela era agora a enorme mentira que acabara de dizer. Anos em viagens com o pai, em situações por vezes desagradáveis, haviam-na tornado muito boa na falsidade. Conseguia abrir os grandes olhos castanhos e mentir com total convicção, quando necessário, embora não lhe agradasse ter de o fazer. Mas era uma mulher prática e, quando forjou aquela mentira em particular, estava preparada para dizer qualquer coisa que persuadisse Burke a ir embora e a deixá-la em paz. Alguma vez contara a alguém da aldeia que era solteira? O assunto não tinha surgido, na verdade, tanto quanto conseguia lembrar-se. Chamava-se Miss Clarke e, sem dúvida, todos presumiam que era uma solteirona, mas ela nunca o dissera. Em público usava habitualmente luvas, como uma autêntica senhora, por isso era improvável que a presença ou ausência de um anel fosse notada, a não ser pelos criados da mansão ou pela amiga Julia Bancroft. Mariah teria de encontrar um anel para o dedo anelar, pelo menos até Burke deixar Hartley definitivamente. Como o pai se riria quando lhe contasse esta cena. O corpo convulsionou-se com a visceral tomada de consciência de que o pai estava morto. Mariah começou a chorar incontrolavelmente. Descansa em paz, Papá.
No dia a seguir à visita de Burke, chegou uma carta do advogado de Londres que tratara da transferência do título de propriedade da mansão. Confirmava a morte de Charles Clarke e oferecia as suas condolências numa prosa insípida e típica de advogado. A carta matou a esperança desesperada de Mariah de que Burke tivesse mentido sobre a morte do pai, com vista a coagi-la ao casamento. Nos dias seguintes, repletos de dor, George Burke visitou-a com regularidade. Trazia flores e deixava os seus corteses melhores votos, ainda que a princípio ela não o recebesse. Os criados e a amiga Julia eram as únicas pessoas que suportava ver. Por fim, a sua consciência social alcançou-a e desceu as escadas para ver Burke quando ele a visitou. Era tão delicado e encantador que Mariah questionou se o teria julgado mal. Na primeira vez em que se encontraram, estavam ambos perturbados e pouco razoáveis. Desconfiava que Burke tentava decidir se era ou não verdade que tinha marido. Sentia-se atraído por ela – Mariah reconhecia a luxúria que irradiava dele, e talvez ele pressentisse que lhe mentia. Quaisquer que fossem os seus pensamentos secretos, o comportamento era irrepreensível. Uma vez que ele se comportava como um cavalheiro, ela tinha de ser uma dama. À medida que começava a conformar-se com a nova vida, o seu lado Sarah começou a murmurar que talvez valesse a pena considerar a proposta de Burke. Embora admirasse o vigário, aquilo era um mero devaneio. Burke fizera-lhe uma proposta genuína, e ser uma mulher casada dar-lhe-ia mais estatuto na comunidade. Provavelmente, ele passaria grande parte do tempo em Londres, deixando a mulher livre para gerir a propriedade. E era sem sombra de dúvida bonito. Podia arranjar bem pior como marido, e muitas mulheres arranjavam. Além disso, sentia-se muito sozinha, sabendo que o pai nunca regressaria a casa... Neste ponto das suas ponderações, Mariah diria a Sarah que não era possível sentir-se solitária com uma irmã imaginária a habitar na cabeça. Burke era um jogador e faria a vida da mulher um inferno. Provavelmente perderia Hartley Manor ao jogo, tirando-a de baixo dos pés de Mariah. Ela ansiava por estabilidade há demasiado tempo para depositar o seu bem-estar em mãos que não inspiravam confiança. Era bem melhor que Burke acreditasse que era casada e inacessível. Apesar disso, Burke mantinha-se firme na sua atenção. Uma noite, Mariah despertou abalada por um sonho vívido em que se casavam. Declaravam-nos marido e mulher, ele pegava-lhe na mão – e comprimia-a dolorosamente, prendendo-a a ele para sempre. Mariah sabia porque sonhara com aquilo: ele visitara-a mais uma vez naquela tarde e insinuara processos judiciais entre os elogios. O nó apertava-se em volta dela. Enterrou o rosto nas mãos e disse baixinho: – Oh, avó Rose, que hei de fazer? Se o Burke continuar a aparecer, num momento de fraqueza poderei dizer que sim. Ao passo que Sarah era um produto da sua imaginação, a avó Rose era uma parte indelével das memórias. Misteriosa, calma e afetuosa, criara Mariah, ensinando-a a cozinhar, a montar e a rir. Embora Mariah esperasse com ansiedade as visitas do pai, o centro da sua vida tinha sido a avó Rose. Havia algumas pessoas, na pequena aldeia de Appleton, que diziam que a avó era bruxa. Um disparate, está claro. A avó Rose fazia poções de ervas, lia as palmas das mãos e dava conselhos sábios às meninas e às mulheres da aldeia. Por vezes, executava rituais para alcançar fins específicos, embora dissesse sempre que não envolviam magia. Em vez disso, os rituais concentravam a mente no que se desejava, o que aumentava a probabilidade de os fins serem atingidos. Como a oração, mas acrescentando ervas. Mariah necessitava de um bom ritual. Recuou na memória e decidiu que um encantamento dos desejos seria o melhor, já que poderia pedir o que quer que melhor lhe resolvesse os problemas. A avó prevenira-a sempre em relação a ser muito categórica nos desejos, pois às vezes a melhor solução era uma em que nunca pensara. Tinha algum incenso da sorte que ela e a avó haviam feito juntas anos antes, e era noite de lua cheia, uma boa altura para um ritual. Já que não conseguia dormir, poderia tentar um ritual. No mínimo, fazê-lo iria fortalecer a resolução de manter George Burke à distância. Apertou um roupão sobre a camisa de dormir, deslizou os pés para dentro dos chinelos e de seguida enrolou um xaile pesado em volta dos ombros. Depois de recolher uma acendalha e um pacote de incenso da sorte, desceu as escadas e saiu em direção à praia. A noite estava fria e clara, e a luz do luar prateava os campos e o mar. O jardim incluía um mirante aberto com um pátio em pedra e um relógio de sol. Pensando que aquele era um bom lugar para o ritual, Mariah fechou os olhos e pensou nos entes queridos desaparecidos, até sentir as suas presenças acolhedoras. Começou por pousar o incenso no topo de bronze do relógio de sol. Depois de acender uma faísca e o pôr a arder, pediu ajuda em silêncio para ultrapassar aquele momento difícil. Cura, proteção, força, sorte... Por um instante imaginou um verdadeiro marido – não Burke, mas um homem que se enquadrasse nos seus sonhos. De forma implacável, suprimiu essa imagem e concentrou-se em pedir força mental e emocional. À medida que o aroma pungente do incenso se diluía no vento, entrou no mirante e sentou-se num dos bancos de pedra que circundavam o interior. Encostou-se à parede, sentindo-se tranquila. A sua trança da noite desmanchara-se e o cabelo flutuava em volta dos ombros, mas sentia-se demasiado indolente para a refazer. Em criança, teve poucos companheiros de brincadeira – foi por isso que inventou Sarah. Mas tinha tido a avó, e fizeram tudo juntas durante muitos anos. Mariah cuidou da avó idosa na sua doença final e o pai apareceu no fim para ajudar. Ela e Charles choraram juntos, e depois ele levou-a nas suas turbulentas viagens pelas ilhas britânicas. Agora tinham morrido e, pela primeira vez na vida, estava de facto só. Daí que George Burke se afigurasse perfidamente atraente. Parecia gostar dela, e ser desejada era muito apelativo. Mas não por George Burke. Embora gostasse de um dia ter um marido, queria um homem bondoso e de confiança, como o vigário local. A quem vinha evitando desde a morte do pai, devido à sua situação complicada. Não podia andar a olhar com falso pudor para o vigário, nas barbas de Burke, quando alegava ser casada. Fechando os olhos, descansou.
Aguenta, aguenta, aguenta... No recanto mais remoto do seu espírito, para o qual se havia retirado, ele tinha consciência de que o fim estava próximo. Andava a agarrar-se à vida há uma eternidade, e em breve o mar reivindicá-lo-ia. Por estas horas, já não se importava se vivia ou morria. Quase não se importava.
O sonho deixou Mariah abruptamente desperta. Vai à beira-mar. A voz interior soava como a avó, e mostrava-se cheia de urgência. Sem parar para questionar, puxou o xaile em volta dos ombros e precipitou-se pelo caminho à velocidade de uma maria-rapaz. A luz da lua cheia era brilhante e misteriosa, e Mariah sentiu um calafrio, como se acabasse de entrar num mundo onde a magia podia realmente acontecer. As ondas rebentavam com força na praia estreita, que era uma mistura de areia e seixos. Ela parou, imaginando que loucura a trouxera ali, a meio da noite. Viu então, a pouca distância da praia, um objeto escuro que flutuava e se aproximava a cada onda. Curiosa, estudou-o. Santo Deus, aquilo era uma cabeça? Um cadáver, talvez? Sentiu náuseas com a ideia, querendo fugir. Mas, se aquele era um homem afogado, era seu dever cristão trazê-lo para terra, para que pudesse ser sepultado com dignidade. A maré mudaria em breve e ela não tinha a certeza de que o... objeto não seria levado outra vez. Descalçou os chinelos e enrolou o xaile em volta deles. Depois de pôr o embrulho acima da linha da maré alta, investiu contra as ondas. Quase foi derrubada, e a água estava fria. Por sorte, conseguiu recuperar-se antes de afundar completamente, mas ao tempo em que alcançou o objeto flutuante, estava encharcada até aos ossos. Esperando que a visão não fosse pavorosa de mais, olhou mais de perto e viu que era de facto o corpo de um homem. Os braços cerravam-se em volta de um grande cepo de madeira, talvez um pedaço de uma viga. Pensando se seria possível estar vivo, agarrou a madeira e rebocou homem e viga para terra, lutando contra as águas agitadas durante todo o caminho. Uma última onda ajudou a transportá-lo para a areia, acima da linha da maré. As roupas estavam esfarrapadas ao ponto de indecência, com a camisa e as calças reduzidas a trapos. A tremer, ajoelhou-se ao lado dele e esticou a mão com cuidado através da camisa. Para sua surpresa, existia um batimento cardíaco fraco e lento. O corpo do homem trazia a frieza mortal da água e tinha lacerações e outras marcas na pele, mas estava vivo! Ao luar, o cabelo e a pele pareciam escuros, e por isso imaginou que fosse um marinheiro estrangeiro. Como a água lhe batia nos pés, Mariah segurou- o por baixo dos braços e arrastou-o para a areia grossa. Ao puxá-lo, ele começou a tossir convulsivamente. Largou-o com pressa e o marinheiro rolou para um lado, a vomitar água. Quando o violento ataque terminou, ele respirava com dificuldade, mas estava incontestavelmente vivo. Aliviada, pensou o que fazer. Não queria ir buscar ajuda e deixá-lo sozinho, mas quanto mais depressa o pusesse quente e dentro de casa, melhor. Na esperança de que ele conseguisse andar, inclinou-se e perguntou: – Percebes-me? Depois de um longo momento, ele assentiu, a cabeça inclinada. – Se eu ajudar, achas que consegues caminhar até à minha casa? Não é longe. Ele anuiu novamente. Embora de olhos fechados e a tremer de frio, ele tinha, pelo menos, alguma consciência da situação. Mariah varreu a areia dos pés e voltou a calçar os chinelos, depois ajoelhou-se e pôs-lhe o braço esquerdo em volta dos ombros. – Vou levantar-te o melhor possível, mas não consigo arranjar-me sem a tua ajuda. Ela elevou e ele esforçou-se. Entre os dois, ele pôs-se em pé, oscilando. Mariah usou a mão livre para lhe pôr o xaile nos ombros, na esperança de que a lã pesada dissipasse um pouco o frio. – Estamos a caminho. A caminhada não é muito grande. Ele não respondeu, mas, quando ela começou a andar, seguiu-lhe o exemplo. O progresso atabalhoado pela areia era atroz e a brisa rompia através das roupas molhadas. As coisas melhoraram quando chegaram ao caminho. Uma pena que fosse todo a subir. No entanto, com ela debaixo do braço a levar-lhe metade do peso, o marinheiro lá arranjava maneira de continuar a deslocar-se. Ele usou um corrimão para arrastar-se escada acima, para dentro de casa, enquanto Mariah o apoiava do outro lado. Entraram a cambalear, Mariah a pensar no que fazer a seguir, uma vez que ele certamente não aguentaria mais um lanço de escadas até aos quartos de hóspedes. Lembrou-se então de um pequeno quarto nas traseiras do rés do chão, usado em tempos por uma governanta idosa. O quarto era pobre e despido, mas tinha uma cama. Seria o bastante. Guiou o marinheiro pela casa escurecida, batendo às vezes na mobília. Esperava que a sua carga não adquirisse tantas nódoas negras como ela. Foi um grande alívio entrar no pequeno quarto. Como a velha governanta havia estado enferma, a cama fora construída abaixo do nível normal. Com as últimas forças, conduziu-o até ela. – Podes deitar-te. O marinheiro dobrou-se na direção da cama num estatelamento desajeitado e agarrou prontamente uma almofada, da mesma maneira que se agarrara à viga. Mariah moveu-lhe as pernas para o colchão, servindo-se depois da acendalha para atear um candeeiro. Embora o quarto não fosse usado há anos, a competente Mrs. Beckett tinha óleo no candeeiro e fogo preparado na pequena lareira. A cama não estava feita, mas haveria cobertores no guarda-vestidos pequeno e gasto. Depois de acender a lareira, Mariah puxou a almofada que ele esmagava. – Agora estás a salvo. A salvo. Ele aliviou a força e ela conseguiu retirar a almofada e examiná-lo. Bateu-lhe ao de leve no corpo trémulo, secando-o, com uma toalha fina do lavatório. As roupas estavam tão esfarrapadas que foi capaz de fazer um exame razoável sem lhe despir os restos andrajosos. Algumas das peças de vestuário apresentavam-se chamuscadas nas extremidades. Talvez um incêndio no navio o tivesse levado a saltar para o mar. Estava muito magoado e tinha cortes e arranhões para lá da conta. Havia também áreas de carne com bolhas e queimadas, que combinavam com as roupas carbonizadas. Misericordiosamente, as queimaduras não eram sérias. Devia ter chegado depressa à água. Não lhe encontrou lesões graves nos membros, nem no tronco. Embora alguns dos ferimentos tivessem sangrado, o tempo passado na água do mar fizera desaparecer o sangue e agora nada parecia sangrar. Tirou cobertores do guarda-vestidos e envolveu-o em várias camadas. Felizmente, o fogo aquecia depressa o pequeno quarto e ele estava a perder o frio de morte. Pegando no candeeiro, Mariah foi em passo rápido ao seu quarto para buscar roupa seca, e depois desceu à cozinha. Enquanto a água para o chá e o caldo aqueciam, levou um jarro de água e um copo ao paciente. Ele dormia. À luz suave, a tez e o cabelo antiquadamente longo eram escuros. Não era especialista em suíças masculinas, mas aparentavam pelo menos uns dias de crescimento. Se ele estivera na água tanto tempo, tinha de ser tão forte como um boi para sobreviver. Era difícil adivinhar a idade sob os ferimentos faciais, mas Mariah acreditava que andasse por volta dos trinta. Embora não fosse encorpado, tinha o corpo musculado de um homem trabalhador, com mãos calejadas. Franziu o sobrolho quando reparou na forma como o cabelo se emaranhava no lado esquerdo da cabeça. Pousando o candeeiro, explorou com as pontas dos dedos e descobriu um golpe longo e fundo que ressudava vestígios de sangue. Praguejou em voz baixa ao enfaixar-lhe a cabeça noutra toalha. Tudo o que fizera até ali era bom senso, mas o ferimento na cabeça parecia sério e não sabia o que fazer. Tinha de chamar já Julia Bancroft, não esperar até de manhã. Mariah afastou o cabelo molhado do rosto do marinheiro, perguntando-se de onde viria ele. Algures do Mediterrâneo, talvez. Puxava os cobertores para cima quando as pálpebras dele se abriram, e ele a olhou fixamente com uns olhos verdes hipnotizantes. CAPÍTULO 4
D epois de uma eternidade de água fria, entorpecimento e desespero, foi arrastado para terra. Emergir da água resgatou-o do transe mortal que lhe permitira sobreviver durante tanto tempo. Recordava-se vagamente de cambalear com ajuda, deslizar para a escuridão e depois acordar para... a perfeição. A mulher inclinada sobre ele parecia mais sonho que realidade, mas o calor que dela irradiava era palpável. Os olhos eram de um castanho quente, e uma nuvem de cabelos dourados flutuava em redor do seu rosto oval perfeito. Ela brilhava à luz do candeeiro. Questionando se se teria afogado e ido para qualquer outro reino, levantou a mão trémula para afagar aqueles fios torcidos. Eram seda delicada contra os seus dedos. – Agora estás a salvo. – Ela puxou para trás os longos cabelos e apanhou o aglomerado brilhante num nó solto na nuca. Todos os seus movimentos eram graciosos. – Falas inglês? Teve de pensar para responder à pergunta. Inglês. Língua. Compreensão. Lambeu os lábios secos e murmurou: – S... sim. – Excelente. Isso tornará tudo mais fácil. – Mariah passou-lhe um braço sob os ombros e levantou-o o suficiente para beber do copo que segurava junto aos lábios dele. Ele engoliu, cheio de sede, achando estranho o quanto ansiava por água, quando esta quase o matara. E humilhante estar tão fraco que não conseguia sequer beber sem ajuda. Quando bebeu o suficiente, ela afastou o copo e deitou-o de novo com delicadeza. Vestia um traje de noite e, embora a cobrisse muito bem, o penteador era deliciosamente tentador. – Que olhos verdes tu tens – observou ela. – Ficam impressionantes com a tua pele escura. Os olhos eram verdes e o resto escuro? Ele deslocou o olhar para a mão direita e examinou-a. A pele tinha um bronzeado médio, meia dúzia de tons mais escura do que a tez de marfim dela. Apercebeu-se de que não fazia ideia de como era, além de bronzeado e ferido. Ou de como devia ser. Ela continuou: – Podes dizer-me o teu nome? Ele procurou na mente e saiu-se com... nada. Sem nome, sem lugar, sem passado, tal como não tinha noção do próprio corpo. Aquilo tinha de estar mal. O pânico dominou-o, mais assustador que o mar gelado que quase o afogara. Não era nada nem ninguém, arrancado ao passado e empurrado para um presente desconhecido. O horror da ideia ecoou por cada fibra do seu ser. Lutando para controlar o medo, disse com um nó na garganta: – Eu... eu não sei. Vendo o medo dele, Mariah tomou-lhe a mão fria entre as palmas quentes. – Passaste por uma provação muito grande. Depois de descansares e recuperares, vais com certeza lembrar-te. – Ela franziu o sobrolho, indecisa. – Terás esquecido que sou a tua mulher, Mariah Clarke? – Minha... minha mulher? – Ele olhou, incrédulo. Como poderia ter esquecido que era casado com uma mulher assim? Mas ainda que não se lembrasse do casamento, os seus medos atenuaram-se ao apertar-lhe compulsivamente a mão. – Então... Sou um homem muito afortunado. Ela sorriu de modo caloroso. – Descansa enquanto vou buscar chá e caldo. Mandei chamar uma pessoa que saberá como tratar esse golpe que tens na cabeça. Com sorte, ela chegará dentro em pouco. Amanhã, provavelmente vais lembrar-te de tudo sobre ti. Ele subiu os dedos trémulos até à ferida irregular que lhe descia pelo lado esquerdo do crânio. Tinha tantas dores e pisaduras que não notara nenhuma em particular, mas, agora que ela o mencionava, a cabeça latejava-lhe como o próprio diabo. – Chá seria... bem-vindo. – Demoro só uns minutos – prometeu, enquanto se afastava depressa. Ele ficou a olhar para o teto depois de ela sair. Tinha uma mulher. Detestava não se lembrar de nada acerca daquela visão de graciosidade que lhe salvara a vida, nem de ser casado. Era fácil imaginar-se a beijá-la e muito mais. Mas verdadeiras memórias, não tinha. Parecia muito injusto. Passou a ausência dela a procurar na memória e a tentar não fazer nós nos lençóis com os dedos nervosos. Reconhecia os objetos ao seu redor. A cama, o cobertor, o fogo. O tom rosado do céu, lá fora. Seria... o amanhecer. Estranhamente, um segundo conjunto de palavras seguia de perto o primeiro. Palang. Kambal. Aag. Tinha a certeza de que o significado das palavras era o mesmo que o das inglesas que lhe vinham à mente; então, provavelmente sabia uma língua diferente, embora não fizesse ideia de qual poderia ser. Contudo, não tinha memórias pessoais. Lutou mais uma vez contra o medo crescente. A emoção era uma consciência gritante e vulnerável de que estava sozinho e tão indefeso que não sabia sequer o que poderia ameaçá- lo. Curiosamente, no seu íntimo sentia que não era a primeira vez que era arrancado a si mesmo. Talvez por isso o medo fosse tão grande. Todavia, não conseguia lembrar-se de nada sobre essa outra situação, qualquer que ela fosse. Sobrevivera a essa perda anterior. Desta vez, tinha uma esposa a dizer-lhe que estava a salvo. Ela iria, com certeza, cuidar dele até ficar forte o suficiente para tomar conta dela. Por enquanto, lembrava-se do facto mais básico de todos: era um homem e Mariah Clarke uma mulher.
Mariah deslocou-se num estrépito até à cozinha, sabendo-se a ficar vermelha como uma beterraba. Por que diabo deixara escapar tão ultrajante afirmação? Dizer ao pobre homem que era sua mulher! As palavras simplesmente saíram, quase como se a avó Rose tivesse falado por ela. Mas ele parecera tão abalado ao perceber que não se lembrava de nada. Aterrorizado, de facto. Ao pensar nos seus medos de estar sozinha no mundo, Mariah compreendeu. Já era suficientemente mau estar sozinha, sem familiares conhecidos e poucos amigos – mas, pelo menos, sabia quem era. Perder a própria identidade... Estremeceu com a ideia. Ocorreu-lhe um pensamento bizarro. Tinha realizado o ritual de encantamento a pedir ajuda. No espaço de uma hora, foi-lhe entregue este homem invulgar, um presente do mar. Ouvira até a voz da avó a instigá-la a correr para a beira-mar. E juraria ter sido a avó Rose a dizer as palavras sobre ela ser a esposa do homem. Mariah dissera no início a George Burke que tinha marido, para o desencorajar. Seria o marinheiro, um desconhecido que podia reivindicar como esposo, a resposta ao seu desejo? Estaria a ser orientada pela avó Rose ou simplesmente louca? A Sarah em si era bastante clara: estava louca. Mas não se sentia doida. A avó Rose não fora uma bruxa nem vidente, mas era muito perspicaz e acreditava na intuição. Se sentia algo como errado, provavelmente estava errado, ainda que os motivos fossem tão subtis que se mostrasse difícil identificá-los. Mariah tivera um mau pressentimento quanto ao pai partir para Londres, e tinha tido razão. Todos os dias relia a carta do advogado de Londres, à espera de que as palavras mudassem, mas nunca mudavam. Igualmente verdade era que, se algo parecia certo, provavelmente era, se se estivesse a pensar com clareza. A intuição levara-a ao marinheiro, e a intuição dissera-lhe que seria sensato tirar partido daquela oportunidade para conquistar um marido a fingir, dispensando George Burke de uma vez por todas. Parecera-lhe certo oferecer ao marinheiro a garantia de que não estava sozinho no mundo. Vira, pela expressão dele, que as suas palavras lhe haviam dissipado grande parte do medo. Para o bem dele, seria melhor que se lembrasse da sua vida. Mas Mariah recordava-se de um operário da aldeia da avó que caiu de um telhado e rachou a cabeça, e que nunca mais conseguiu lembrar-se de nada que tivesse acontecido antes daquele dia. Continuou a viver uma vida completamente normal e depressa reaprendeu o seu ofício. A esposa confidenciou à avó Rose que se sentia feliz por o velho ter esquecido algumas coisas. Talvez o marinheiro acabasse na mesma condição. Se não recuperasse a memória, teria afinal de lhe dizer que não eram casados, mas, por enquanto, não iria privá-lo desse conforto. E, se ele se lembrasse, explicar-lhe-ia que dissera ser sua mulher para que não se sentisse tão sozinho, nem compelido a deixar os seus cuidados. Eram boas razões. Inequivocamente nobres, na verdade. Com a consciência reconciliada, preparou um bule de chá, adicionando muito açúcar para o adoçar. O caldo de galinha também estava quente, e serviu então um pouco numa caneca e colocou tudo num tabuleiro. Quando entrou no quarto, disse alegremente: – Aqui estás tu. O que preferes primeiro, chá ou caldo de galinha? – Chá, por favor. – Ele tinha boas maneiras e era também bem-falante. Mariah supôs que tivesse alguma instrução e que fosse inglês, não obstante a sua aparência estrangeira. Empilhou duas almofadas atrás dele e depois serviu metade de uma chávena do chá doce. Ele engoliu-o bem e libertou um suspiro de prazer. – Que fazíamos nós antes da descoberta do chá? – Bebeu o resto mais devagar. – Sofríamos muitíssimo. – Ela voltou a encher a chávena. – O chá de menta é bom, mas não é a mesma coisa. – Mariah – disse ele, hesitante, como se a estudar como sentia o nome na boca –, como me chamo? Ela pensara acerca disso na cozinha. – Adam – respondeu prontamente. O nome do primeiro homem. Parecia adequado a um homem nascido no mar, sem memória do passado. – Adam Clarke. – Adam! – A expressão iluminou-se-lhe com reconhecimento. – Claro. Admirada, ela perguntou: – Lembras-te de que é esse o teu nome? – Não é exatamente lembrar – disse ele devagar. – Mas parece certo. – Lembras-te de mais alguma coisa? – Se ele recuperasse a memória rapidamente, poderia desistir do fingimento de que eram casados. Se tal acontecesse, perguntar-lhe-ia se se faria passar por seu marido o tempo suficiente para livrar-se de Burke. O seu Adam parecia um homem agradável, e como tal talvez cooperasse por gratidão. Ele abanou a cabeça, a expressão entristecendo. – Não, nada. Embora sinta o nome Adam como certo, Clarke parece-me menos familiar. Neutro. – Torceu a boca. – Todas as pessoas à minha volta saberão mais sobre a minha vida do que eu. – Na verdade não. Só moro em Hartley há uns meses e tu acabaste de chegar, portanto és desconhecido na vizinhança. – Ele estava quase despido por baixo dos cobertores, e Mariah tentou não reparar no seu atraente par de ombros. Vira muito poucos ombros masculinos despidos na vida e a visão era extraordinariamente sugestiva. Lutando pelo decoro, continuou: – O meu pai ganhou a mansão nas cartas, e foi por isso que viemos como forasteiros para a região. – Foi o teu pai que mandaste chamar para ajudar? Ela mordeu o lábio. – Quem me dera que tivesse sido, mas ele foi morto perto de Londres há várias semanas. – Lamento muito. – Com viva solidariedade, Adam deu-lhe a mão. O seu aperto sereno era reconfortante. – É desesperante conseguir compreender a tua sensação de perda, mas não ver uma imagem do rosto dele. – Não o conhecias muito bem. – Lembrando-se do que dissera a Burke, acrescentou: – Somos primos afastados, já nos chamávamos ambos Clarke. – Então pelo casamento tornaste-te Mariah Clarke Clarke – disse ele, com o vislumbre de um sorriso. – Pelo menos, não tenho de lembrar-me de alterar a assinatura. – Ela sorriu, feliz por ver que ele tinha sentido de humor e que este sobrevivera à situação. O olhar dele encontrou o seu, os olhos verdes envolventes. – Conta-me mais sobre ti. Mariah hesitou, pensando no quão depressa a situação se tornava mais complicada. – Creio que é melhor se te lembrares de ti. Há muito que não sei sobre as tuas raízes. Só nos conhecemos brevemente, antes de nos tornarmos marido e mulher. – Um tempo assombrosamente breve – menos de uma hora. Continuou: – Não quero incutir memórias que se possam revelar incorretas. Ele pareceu prestes a protestar, depois exalou bruscamente. – É sensato, suponho. A minha mente está tão vazia que é melhor cuidar de como a preencho. – Ele continuava a dar-lhe a mão, e o polegar acariciava-lhe com doçura a palma. Para Mariah era bom de mais. Ela retirou a mão e ofereceu-lhe o caldo. – Quanto tempo andaste à deriva? – Pareceu-me... uma eternidade. Lembro-me pelo menos de duas noites, dois amanheceres. Talvez mais. Está tudo junto na minha cabeça. – Ele bebericou o caldo de galinha com cuidado. – Eu sabia que a água fria era fatal, por isso abrandei a respiração e retirei-me para um recanto tranquilo da mente, para me salvaguardar. – Abrandaste a respiração e retiraste-te na mente? – perguntou ela, desconcertada. Ele pareceu igualmente desconcertado. – Não é algo que faças? A mim pareceu-me muito natural. – Nunca ouvi falar de tal coisa, mas parece ter resultado. – Apesar do inglês irrepreensível, Mariah questionou novamente se ele seria estrangeiro. Retirar-se para um recanto tranquilo da mente para sobreviver em condições perigosas parecia deveras estrangeiro. Mas para ele deve ter resultado, para ter sobrevivido durante tanto tempo. Perguntou ele: – Porque é que eu estava no mar? Pensando mais uma vez nas mentiras ágeis que oferecera a George Burke, respondeu: – Estiveste no continente e vinhas a caminho daqui, para te juntares a mim. Deves ter naufragado perto do fim da viagem. Ficou aliviada por serem interrompidos antes que ele fizesse mais perguntas. Julia Bancroft entrou no quarto, acompanhada por Tom Hayes, o rapaz de estrebaria que a trouxera à mansão. – Vim o mais rápido que pude, Mariah. É este o homem ferido? Julia pousou a pasta de médico e aproximou-se da cama. O acesso de energia de Adam fora-se e agora ele parecia completamente exausto. Mariah disse: – Mrs. Bancroft, este é o Adam Clarke. Disse Adam numa voz débil e áspera: – As minhas desculpas por não me levantar para a cumprimentar, Mrs. Bancroft. Julia sorriu ao debruçar sobre ele a cabeça escura. – Há um tempo para a delicadeza, Mr. Clarke. Este não o é. – Enquanto Mariah segurava o candeeiro perto, Julia examinava a cabeça ferida. – Temos aqui um golpe sério. – Não estou assim tão ferido, minha senhora – protestou Adam. – A minha mulher tomou bem conta de mim. O olhar de Julia disparou para Mariah. Mariah abanou levemente a cabeça, com o intuito de adiar as questões. Compreendendo, Julia perguntou: – Consegues arranjar a Mr. Clarke um pijama lavado? O mais quente que esteja disponível. Mariah assentiu e saiu. Depois de saber da morte do pai, entrara no quarto dele e tocara nos pertences; inalara o seu odor, que a fez pensar em segurança. Depois saíra, a chorar, incapaz de se desfazer dos haveres. Agora estava feliz, porque as roupas poderiam ser usadas por Adam, que era de tamanho e constituição semelhantes. Pegou num pijama de flanela grossa e num robe de lã gasto, mas quente, que seria útil quando Adam estivesse capaz de levantar-se da cama. Quando regressou ao quarto do doente, Adam dormia, o rosto pardacento de exaustão. Julia encostava as mãos ao peito dele, de olhos distantes e expressão séria. Quando Mariah entrou, Julia restituiu a atenção ao quarto. – Estava a rezar – disse simplesmente. – Pensei que mal não fazia. Mariah anuiu, pensando que o homem do mar precisava de toda a ajuda que conseguisse obter. – Como está ele? – Razoavelmente bem, considerando tudo. Vai à cozinha fazer mais chá, enquanto Mr. Hayes e eu vestimos o pijama ao teu paciente – respondeu Julia. – Falarei contigo lá. Mariah concordou e dirigiu-se para o andar inferior. O céu clareava e em breve Mrs. Beckett e a criada da cozinha pôr-se-iam a pé. Abafando um bocejo, Mariah acrescentou carvão ao fogo e pendurou uma chaleira a aquecer. Encontrou também um pão de forma e cortou várias fatias para torrar. Quando Julia chegou, havia chá, torradas e doce à espera. Enquanto os servia, Mariah perguntou: – O que aconteceu ao Tom Hayes? – Decidiu que preferia dormir mais uma hora do que tomar o pequeno- almoço cedo. – Julia espalhou doce na torrada e trincou-a com entusiasmo. Depois de engolir e dar um gole no chá, continuou: – Não gosto de falar sobre pacientes que estão ao alcance da voz, mesmo que pareçam estar a dormir. Podem ouvir e perceber mais do que pensamos. Mariah pousou a chávena, o ritmo cardíaco a acelerar. – O Adam corre perigo? – Ele é novo e forte, acho que recuperará bem – assegurou Julia. – Mas não sou médica e não tenho experiência com ferimentos graves na cabeça. – Devo mandar chamar um médico ou um cirurgião a Carlisle? – Podes fazê-lo, mas, para ser sincera, não sei se seriam capazes de fazer muito mais do que eu. As lesões na cabeça são misteriosas. Tudo o que se pode fazer é esperar e ver como se curam. Mariah sentia-se inclinada a concordar. Julia já limpara o ferimento e pusera-lhe unguento. Um cirurgião faria provavelmente o mesmo e cobraria mais pelo privilégio. – Suponho que estejas a questionar o porquê de eu nunca ter mencionado um marido. – Admito que estou curiosa. Mas segredos são uma especialidade minha. – Ela sorriu ironicamente enquanto pegava em mais uma torrada. – Eu mesma tenho que cheguem. Por outras palavras, Julia não iria bisbilhotar sobre o homem desconhecido e a sua relação com a herdeira de Hartley Manor. Contudo, Mariah verificou que sentia um impulso poderoso de desabafar. – Posso contar-te a história toda? – Depois de Julia concordar, Mariah descreveu concisamente a pressão que vinha sentindo da parte de George Burke, a declaração impulsiva de ter marido e a chegada fortuita do homem do mar. – Espero que ele recupere a memória depressa. E que, quando isso acontecer, coopere para me ajudar a livrar-me do Burke de uma vez por todas. – Mas ele pode não recuperar a memória, e já está muito afeiçoado a ti – salientou Julia. – Penso que acredita que és a mulher dele, a âncora num momento terrível. O que farás se ele não se lembrar da antiga vida e quiser reivindicar os seus direitos conjugais? Os homens têm tendência para o fazer. Direitos conjugais. De repente a torrada sabia a cinzas. – Eu... não tinha pensado tão à frente. – Imaginou aqueles olhos verdes junto dos dela, aquele corpo bem constituído a abraçá-la e estremeceu. Mas não com repulsa. – Se gostamos um do outro, levo-o a Gretna Green e tornamo-lo oficial. Pelo que vi do meu homem do mar, prefiro-o ao George Burke! – Um completo estranho, de família e origem desconhecidos? – As sobrancelhas de Julia arquearam-se. – Alguém que pode ter mulher e filhos noutro lado? Mariah esgasgou-se com o chá. – Não pensei nisso! Que horrível para eles, acreditarem que ele morreu! – Não sabemos se ele tem família, tal como não sabemos que não tem. Mas o meu palpite é que, algures, as pessoas sentem falta dele. É raro o homem que pode desaparecer sem que ninguém se preocupe. – Julia sorriu de forma encorajadora. – Há uma boa hipótese de esta situação se resolver dentro de um ou dois dias, quando o teu Adam recuperar do choque dos ferimentos e de quase se afogar. Não acredito que conseguisse falar com tanta sensatez, se os ferimentos no cérebro fossem graves o suficiente para apagar de vez o passado. – Isso faz sentido – disse Mariah, aliviada. – Vou esperar que volte a si. E se não voltar, dir-lhe-ei a verdade. – Não faças isso tão cedo. – Julia cobriu um bocejo. Lá fora, os pássaros chilreavam um coro do amanhecer, para começar o dia. – Embora eu acredite que ele vai recuperar, os ferimentos na cabeça são incertos e ele está num estado debilitado. Seria um choque grave, se descobrisse que não tem nome nem mulher e que anda à deriva num mundo estranho. Inquieta, Mariah reconheceu a verdade daquilo. Impulsivamente, lançara uma tábua de salvação ao desconhecido para o ancorar. Não podia agora decidir libertá-lo repentinamente. CAPÍTULO 5
–M r. Burke está aqui para a ver. Mariah levantou os olhos dos livros de contas. Resgatar o homem do mar significara não dormir na noite anterior, e a fadiga fazia-a querer negar que estava em casa. Mas também desejava mandar George Burke embora definitivamente, e agora tinha a oportunidade. – Ele está na sala de estar? A empregada assentiu. – Trago uns aperitivos? – Não é necessário. Mr. Burke não se demorará. Mariah levantou-se da secretária, sabendo que não estava no seu melhor depois da longa noite. Tanto melhor para afugentar Burke. Usou as escadas dos fundos para o rés do chão, saindo na passagem estreita que separava a sala de estar, na frente da casa, do quarto de Adam, nas traseiras. Não o controlara na última hora, por isso olhou para dentro. Ele dormia pacificamente e tinha mais cor no rosto. Agitou-se um pouco quando a porta abriu, mas não acordou. Julia dissera para o deixar dormir pois, depois do seu suplício, o descanso era o melhor remédio. Tranquilizada, Mariah virou-se e abriu a porta oposta, que dava para o fundo da sala de estar. Entrou e encontrou Burke a olhar por uma janela. Vinha vestido com a habitual elegância dândi. Um homem agradável à vista. Uma pena não ser mais amável. Sentiu um momento de compaixão por ele. O facto de Burke, insensatamente, ter perdido a propriedade ao jogo não diminuiria a dor da perda. Antes pelo contrário. A compaixão desvaneceu-se quando ele se virou e lhe dirigiu um sorriso indolente, enquanto a examinava com uma franqueza insultuosa. Mariah franziu o sobrolho. Estava habituada a ser admirada pelos homens, mas os bem-educados pelo menos começavam por olhar para o rosto. – Mariah. – O sorriso insinuava uma intimidade muito maior do que a partilhada. – Como está encantadora, hoje. Dados os círculos sob os olhos, ela assumiu que ele ou era cego ou um mentiroso. – Lisonjeia-me. Pareço uma mulher que precisa de uma boa noite de sono. Estava prestes a explicar-lhe que fora atrasada pelo regresso do «marido», quando Burke disse, a escorrer solicitude: – Carrega um fardo grande de mais para uma mulher. Admiro a sua coragem e determinação, ao tentar administrar a propriedade sozinha, mas precisa de um homem para tratar desses assuntos de negócios. – Não preciso – ripostou. – Sou perfeitamente capaz de gerir Hartley. E se precisar de ajuda, tenho o meu marido. Burke sorriu compassivamente. – Não estará na hora de desistir desse fingimento? Sei que inventou um marido para manter-me longe, porque fui tolo o bastante para lhe propor casamento quando ainda estava em choque com a notícia da morte do seu pai. Chegou a hora de haver sinceridade entre nós. – Ele aproximou-se e pegou-lhe na mão, o rosto bonito sério. – Case comigo, Mariah. Podemos seguir até Gretna Green e casar-nos num dia. – A voz tornou-se carinhosa. – Gostaria de a levar a Londres antes de a temporada terminar. Merece uma temporada em Londres, e que melhor maneira de ver os prazeres da cidade do que com um marido dedicado ao seu lado? Sentiu-se tentada a rir. Ou possivelmente a atirar-lhe com algo. – Duvido que haja em si um marido dedicado! E, mesmo que haja, o meu marido voltou justamente ontem à noite. – Tentou, sem sucesso, afastar a mão do aperto dele. – E não lhe dei autorização para me chamar pelo nome de solteira. Sou Mrs. Clarke. Depois de um momento de sobressalto, ele riu-se abertamente. – É certamente persistente nas suas pretensões! Onde está esse seu marido? Ficaria encantado por conhecê-lo. Exasperada com a arrogância, conseguiu soltar a mão num movimento brusco. – Não pode vê-lo agora. Ele está adoentado e a descansar de uma viagem difícil. – E eu sou o Xeque da Arábia. – A expressão mudou, e ela visualizou o primeiro sentimento genuíno que naquele dia ele demonstrava: luxúria. – Eu adoro-a, Mariah. Por si, acho que posso até tornar-me num marido dedicado. Antes que ela conseguisse protestar, ele puxou-a para os braços e comprimiu a boca na dela. Sabia a conhaque. Àquela hora da manhã! Não admirava que estivesse a comportar-se tão mal. Ela inclinou a cabeça para o lado e exclamou: – Largue-me! Burke ignorou o protesto, dizendo: – Somos os dois bonitos e um pouco malvados. Fomos feitos para estar juntos, Mariah! – E forçou mais um beijo. Ela tentou afastar-se, mas só conseguiu desequilibrá-los aos dois. Tombaram na mesinha da avó, que caiu com um estrondo, mas ele manteve- a presa no abraço. Mariah já tinha sido beijada por cavalheiros ardentes e levemente ébrios, mas nunca sentira verdadeiro medo, porque o pai estivera sempre perto. Agora estava desprotegida e não conseguia fazer frente à força de Burke. Não havia criados homens em casa, apenas a governanta e duas criadas, e não era provável que estivessem ao alcance da voz. Furiosa com o seu desamparo, deu-lhe um pontapé no tornozelo, mas o chinelo macio nem o fez vacilar. Com os dedos dos pés a doer, ela levantou o pé para o esmagar. Antes que conseguisse, Burke libertou-a com tanta brusquidão que ela quase caiu. Não, não a libertou; estava a ser puxado – por Adam. O marinheiro agigantava-se sobre ela, descalço, a cabeça protegida com uma ligadura e envolto no robe gasto do pai. Enquanto Mariah observava, em choque, ele torceu Burke e lançou-o pela sala. O agressor bateu contra o sofá e caiu desamparado no chão, com uma expressão incrédula. Adam alcançou-lhe o cotovelo e estabilizou-a, os olhos sombrios de preocupação. – Estás bem? Ela assentiu, a tremer. – Sem a menor sombra de dúvida. – Minha pobre querida. – Ele passou o braço esquerdo em volta dos seus ombros, virando-se depois para o agressor. Embora não tão alto como Burke, Adam irradiava uma autoridade que fazia um homem com o dobro do tamanho encolher-se de medo. – Nunca mais toque na minha mulher – disse, numa voz como pedra. – Fiz-me entender? – Eu... Não pensei que a Mariah fosse mesmo casada – balbuciou Burke. – Não usará o nome de batismo da minha esposa – disse Adam com frieza, o braço a apertar-se em volta dos ombros dela. – Para si ela é Mrs. Clarke e deve-lhe um pedido de desculpa. Não só a tomou de assalto, como também lhe insultou a integridade, recusando-se a acreditar na verdade. Mariah estremeceu intimamente. Na verdade, Burke lera com precisão as suas mentiras. Mas isso não lhe dava o direito de a atacar! Burke fez um esforço para pôr-se em pé, agora já não um dândi confiante. – Eu... Eu pensei que era um tipo de jogo que ela estava a jogar. Todos em Hartley pensam que ela é solteira. A primeira vez que mencionou um marido, parecia estar a tirar a ideia do nada. Eu tinha a certeza de que, depois de absorver a notícia da morte do pai, ela veria as vantagens de casar comigo e aceitaria a minha proposta. – Ele quer a propriedade de volta – explicou Mariah. – George Burke é o antigo dono, o que perdeu esta propriedade num jogo de cartas com o meu pai. Que Deus livre qualquer mulher de ser tola o suficiente para lhe confiar o seu futuro! – Respirou fundo. – Mas creio que hoje não queria fazer mal. Foi apenas... irrefletido e deixou-se levar. Burke fez cara feia, a expressão uma mistura de raiva e vergonha. – Peço desculpa pelo meu comportamento, Mrs. Clarke. A minha admiração e esperanças levaram-me a interpretar mal a situação. – Recuperou o chapéu. – Deixarei Hartley hoje. Já não há cá nada para mim. Não houve menção a um processo judicial. Talvez tivesse sido sempre uma ameaça vazia, agora dissipada pela presença de um marido existente e a respirar, e disposto a defender Mariah e os seus direitos. Na expectativa de não haver mais conflitos, Mariah disse calmamente: – Desejo-lhe felicidades no futuro, Mr. Burke. – Ele agradeceu-lhe com um aceno de cabeça brusco e depois saiu. Ela exalou agitadamente. – Sinto muito pelo homem, mas não sentirei falta dele. – Olhou para Adam que, agora que a crise havia passado, parecia exausto. – Ouviste-nos a discutir? – Vozes levantadas e mobília a partir têm jeito para atrair a atenção. Uma vez que ele começava a descair pesadamente no seu ombro, ela conduziu-o até ao sofá. – Senta-te. Estou espantada que tenhas tido força para entrar aqui, quanto mais salvar-me do George Burke. Adam sorriu-lhe com uma intimidade cativante, que a fez recobrar o fôlego. – Não podia deixar esse indivíduo magoar a minha mulher. – Estou muito contente por teres vindo investigar. – Sentia vergonha do tremer da voz. – Como conseguiste atirar um grande idiota como o Burke para o outro lado da sala? Adam franziu o sobrolho, inquieto. – Eu... apenas soube. Há maneiras de usar o peso e o tamanho de um homem contra ele. Não que tenha pensado nisso. Simplesmente vi-te a lutar com ele e agi por instinto. Portanto, qualquer que fosse o seu passado, ele sabia lutar. O que condizia com as mãos de trabalhador, mas não com o discurso civilizado. Ele era um enigma. E acreditava totalmente no casamento deles. Saber que ele defendera a sua integridade com Burke fê-la sentir-se malévola. – Ajudo-te a voltar para o quarto quando conseguires andar. Estás a recuperar otimamente, mas a Julia não vai gostar se eu permitir que te esforces de mais. – Gostava de me sentar um pouco. – Ele desceu-a para junto dele, no sofá, e abraçou-a, puxando-a para perto. – Senti a tua falta. Embora soubesse que era insensato, descontraiu junto a ele, agradecida pela sua força e capacidade de proteção. – Lembras-te de estar comigo? – perguntou ela com prudência. – Receio que não. – Ele apoiou a face no topo da cabeça dela. – Mas abraçar-te parece tão certo que sei que devo ter sentido a tua falta. A fraude tornava-se mais perigosa a cada segundo, mas não conseguia arranjar coragem para afastar-se dele. Também ela sentia que estava certo, quando estavam próximos. – Estás a sentir-te melhor, deduzo. – Ainda me dói a cabeça e neste momento estou demasiado fraco para balançar um gato, mas sinto-me muito melhor do que quando estava agarrado a destroços no mar. – A mão quente acariciou o braço de Mariah. – Ainda que seja melhor não falar sobre o meu passado, e sobre o teu pai? Como conseguiu ele ganhar a propriedade ao desagradável Mr. Burke? – Ele sustentou-nos a viajar de uma festa privada para outra. Ele era um convidado encantador, um bom desportista, nunca um fardo. Era bom o bastante a jogar cartas para nos manter confortáveis – explicou ela. – Mr. Burke não é um bom jogador de cartas. – O teu pai era de cá? – Adam parou. – Onde estou, afinal? – Em Cumberland. Extremo noroeste de Inglaterra, a sul da Escócia. Faz sentido para ti? Ele franziu a testa e, com o dedo indicador livre, começou a delinear uma forma no tecido do robe, onde este assentava sobre o joelho. Mariah viu que era o contorno aproximado da Grã-Bretanha. – Cumberland é aqui, certo? – Ele tocou num ponto na costa noroeste. – Exatamente. Então lembras-te da Grã-Bretanha. – Ela olhou-o. – Sabes se és britânico? Ele franziu novamente a testa. – Na minha cabeça, ouço sim e não ao mesmo tempo. – É uma mistura tão interessante de coisas, o que sabes e não sabes – disse ela, pensativa. – Com certeza vais lembrar-te de tudo em breve. E quanto mais depressa, melhor. Ocorreu-lhe que agora, com Burke a ir embora de Hartley, poderia contar a «Adam» a verdade – que eram estranhos, não cônjuges. Mas não podia fazer-lhe isso. Não com ele a olhá-la como se fosse o centro do seu universo. Não aguentaria dizer-lhe que estava sozinho, sem nome, amigos ou família. A ajuda dele libertara-a de Burke. Agora tinha de auxiliá-lo enquanto estava vulnerável. – Conta-me sobre ti – disse ele. – Onde nasceste? De onde é a tua família? Agora que o teu pai morreu, tens parentes por perto? Ela sorriu pesarosamente. – Sei pouco mais sobre as minhas raízes familiares do que tu. Eu e o meu pai eramos próximos. Conhecia-o melhor do que qualquer outra pessoa na vida. Contudo, ele nunca falava sobre o seu passado. Não sei onde nasceu, quem era a sua família, como ele e a minha mãe se conheceram, nem mesmo como ela morreu. – Então tens tido dois homens misteriosos na vida. – A boca de Adam curvou-se para cima. – Porque é que o teu pai não falava sobre o passado dele? – Acho que ele nasceu numa família da pequena nobreza e foi deserdado por causa do mau comportamento – disse ela de modo cândido. – Mal tinha vinte anos quando eu nasci, e perdeu a minha mãe quando eu tinha cerca de dois. Não me lembro de nada dela. Depois disso, morei com minha avó no Shropshire. O meu pai visitava-nos várias vezes por ano. Tínhamos as festas de Natal mais adoráveis. Depois ele partia, para se juntar a uma caçada qualquer. – Ela suspirou, recordando o quão difícil era despedir-se sempre que ele ia embora. – A família dele era do Shropshire? – Embora a avó Rose morasse lá, nunca ouvi nada que sugerisse sermos da mesma família que alguém da vizinhança. – Não tencionava dizer mais sobre a avó, mas mudou de ideia. O facto de ter dito a Adam uma enorme mentira fazia com que lhe parecesse essencial ser sincera em tudo o resto. – A avó Rose era meio cigana. Era minha bisavó, na verdade. A parteira e curandeira da aldeia. Mariah olhou para ver se Adam ficara chocado por saber que ela tinha sangue cigano, mas ele parecia apenas interessado. – Ouço na tua voz o quanto ela era especial para ti. Tens os olhos castanhos dela? Mariah assentiu. – Ela disse que o sangue cigano tornava as mulheres da nossa família irresistíveis. Acho que o sangue se diluiu em mim, mas a avó Rose foi bonita até morrer, e a filha bela o bastante para conquistar o coração de um cavalheiro. – O sangue não se diluiu em ti – disse Adam com convicção. O olhar dele era tão arrebatado que Mariah corou e desviou o olhar. – Eu tinha dezoito anos quando a avó Rose morreu, e depois disso viajei com meu pai. – Os lábios puseram-se mais finos. – O Burke acusou-o de fazer batota para ganhar Hartley, mas é mentira. O Papá nunca fez batota. Não precisava de fazer. O Burke ameaçou processar-me para recuperar a propriedade, usando a batota como base. Se o aceitasse como marido, nada de processo. – Ultrajante que tenha falado assim com uma mulher casada! Devia tê-lo atirado contra outra parede antes de ele sair. – Não estavas cá e, na verdade, eu não discuti a minha situação com ninguém. – Riu-se um pouco. – Não falar sobre o passado parece ser de família, portanto consigo compreender o porquê de ele não acreditar em mim. Mas era exasperante ele pensar que eu precisava de um homem para assumir o controlo de Hartley Manor. Embora não saiba muito de agricultura, posso aprender, e sou muito melhor com os livros de contas do que o George Burke algum dia foi. – Quando estiver um pouco mais forte, posso tomar conta da gestão da quinta – disse Adam. Ela olhou-o, surpreendida com a forma calma como ele presumiu que assumiria a administração da propriedade dela. Mas ele pensava que eram casados e, na lei inglesa, a propriedade de uma mulher pertencia ao marido. Mais um inconveniente de fazê-lo pensar que eram um casal. Compreendendo mal a expressão dela, Adam disse: – Acredito que tenho realmente experiência agrícola, embora não me lembre de pormenores. – Ele franziu o sobrolho. – Simplesmente parece-me ser algo de que percebo. – Mais mistérios. – Mariah acalmou-se. – Espero que em breve te lembres de tudo, mas, se não, quando estiveres melhor, mostrar-te-ei Hartley Manor e podemos pôr à prova o teu conhecimento. Ele levantou-se, vacilando com o esforço. – Acho que consigo voltar para o quarto, com a tua ajuda. Prometo ressuscitar se precisares que se arremesse qualquer outro sujeito fogoso. Mariah riu-se e fez deslizar um braço solidário em volta da cintura dele. Gostava de lhe tocar, gostava da forma como o braço dele vinha facilmente para os seus ombros. Voltaram para o quarto e ela ajudou-o a despir o robe e a ir para a cama. Quando o tapou com as cobertas, ele murmurou: – Posso convencer-te a deitares-te comigo? Só até eu adormecer. A sugestão foi em igual medida chocante e apelativa – e não teria sido chocante se fossem realmente casados. O fator decisivo foi o seu cansaço. – Parece uma ótima ideia. Com cuidado, ela esticou-se por cima das cobertas do lado direito dele, para que não magoasse a cabeça se rolasse em direção a ela. Mariah criou uma anotação mental para mais tarde verificar se era preciso mudar a ligadura. Por agora, descansava. Embora estivesse do lado de fora dos cobertores e ele por baixo, parecia-lhe ainda assim deliciosamente pecaminoso encostar- se a ele a todo o comprimento. Poderia tornar-se apreciadora daquilo...
Apesar do cansaço, Adam estava desperto. Já dormira o suficiente, e preferia bem mais saborear a sensação de ter a mulher nos braços. Ela adormecera imediatamente com a cabeça no seu ombro, cansada da noite longa e da difícil entrevista com aquele Burke pateta. Graças a Deus, Adam tinha sido capaz de convocar energia suficiente para a proteger. A maior parte dos cabelos loiros brilhantes estava presa para trás, com sobriedade, mas os fios que haviam escapado eram sedosos ao toque. A memória de Mariah a resplandecer à luz da lâmpada, quando acordou na noite anterior, era suficiente para o fazer desejar ter força suficiente para ser um marido perfeito. Seria um grande desperdício se a memória não voltasse. Queria recordar todos os pormenores de como se conheceram. O primeiro beijo. A noite de núpcias. Desejava até lembrar-se da dor de ter que a deixar. Quanto a isso, onde tinha ele estado e por que partira? Libertou a respiração com um suspiro. Tudo a seu tempo. Inclinou-se e beijou-lhe o cimo da cabeça. Se a sua memória nunca voltasse, teriam simplesmente que criar novas memórias. CAPÍTULO 6
Glasgow
R andall olhava pela janela da mala-posta, enquanto atravessavam a toda a pressa a cidade densa e fervilhante. – Não sabia que Glasgow era tão grande. – Não tanto como Londres, mas é terra de alguns dos maiores comerciantes e fabricantes da Grã-Bretanha – disse Kirkland. – E mais agitada que um enxame de abelhas ávidas. – O teu sotaque está a resvalar para o escocês – disse Masterson com simpatia. – É natural – disse Kirkland com deliberada grosseria. – Mas se pensas que pareço escocês, espera até ouvires o típico habitante de Glasgow. Nem sequer vais perceber que estão a falar inglês. Randall esboçou um sorriso com a cena entre os amigos. No geral, fora uma viagem silenciosa desde Londres. Tinham contratado a mala-posta e partido para a Escócia à maior velocidade possível. Embora estar fechado na carruagem, com paragens mínimas, tivesse sido um inferno para a sua perna ferida, haviam feito uma boa média. Mas, se não fosse o ferimento, já estaria de volta à Península e teria sabido da morte de Ashton semanas depois do acontecimento. Perdera amigos em campanha, tanto em batalha como com febres perigosas, como a que trouxera Will Masterson a casa, para recuperar. Mas os amigos que estavam de volta a Inglaterra esperar-se-iam em segurança. Não era suposto fazerem-se explodir em malditos navios a vapor, raios os partissem. Enquanto se deslocavam sobre o rio Clyde por uma ponte ampla e concorrida, pensou no alívio que era estar finalmente ali, de forma a poderem fazer alguma coisa. – Sabemos onde fica o estaleiro do Ashton? – Algures em Port Glasgow, a oeste da cidade propriamente dita – respondeu Kirkland. – Não será difícil encontrar o estaleiro certo. Glasgow tem mais do que a sua quota de engenheiros, e projetos como o do Ashton seriam discutidos em todas as tabernas e cafés da cidade. Observou Masterson: – Pareces conhecer bem Glasgow. Kirkland encolheu os ombros. – Passei aqui bastante tempo em rapaz. A minha infeliz inclinação pelas relações comerciais ajudou-me a ser condenado à Westerfield Academy. Pela qual sou eternamente grato. Masterson soltou um riso abafado. – Adoraria conhecer todas as razões pelas quais os alunos acabaram nas mãos de Lady Agnes. – As maneiras pelas quais um rapaz pode desviar-se dos padrões civilizados são abundantes – disse Randall secamente. – E nós descobrimos a maioria delas. Quanto tempo falta para chegarmos a Port Glasgow? – Pelo menos uma hora. – Kirkland observou Randall com atenção. – Nessa altura, já será quase hora do jantar. Sugiro que marquemos quartos numa estalagem e que tenhamos uma boa noite de descanso, antes de começarmos à procura de informação sobre o Ashton e o Enterprise. Randall assentiu. A sua mente impaciente queria começar a investigar de imediato, mas o corpo maltratado precisava de repouso. O tempo não seria desperdiçado. Se bem conhecia Kirkland, um mestre da recolha de informação, de manhã saberiam por onde começar a busca. * A suposição de Randall estava certa. Quando, na manhã seguinte, encontrou os amigos no bar do Crown and Sail para tomarem o pequeno- almoço, Kirkland possuía o endereço do engenheiro-chefe do Enterprise. Archibald Mactavish morava numa casa agradável numa rua sossegada, não muito longe da movimentada zona do porto. Os homens foram recebidos por uma empregadinha tímida que pegou nos cartões, saindo depois rapidamente para dizer à senhora da casa que um trio de cavalheiros estava de visita. Mrs. Mactavish era uma mulher jovem de aspeto cansado, com uma criança a reboque, e não ficou satisfeita por ter três cavalheiros pesadões na sala de estar. – Não tenho tempo para receber – disse ela, sem rodeios. – Estão aqui para ver o meu marido? – Se for possível – disse Kirkland, com um claro entoar escocês no discurso. – Somos amigos do Duque de Ashton e gostaríamos de saber mais sobre o acidente que lhe tirou a vida. – Não foi culpa do Mactavish! – disse ela com veemência. Masterson, sempre diplomático, disse: – Não pretendemos atribuir a culpa, Mrs. Mactavish, apenas perceber o que aconteceu. Todos nós andámos na escola com o Ashton, e ele era-nos muito querido. Gostaríamos de saber mais, se o seu marido estiver bem o suficiente para conversar. – Muito bem – disse ela com relutância. – Vou ver se ele está disposto. – Saiu da sala com a criança, regressando sozinha uns minutos depois. – Ele falará com vocês. Mas tratem de não o cansar. Teve a sorte de sobreviver. A senhora mostrou o caminho para um quarto no andar de cima, com vista para as águas do Clyde. Mactavish era um homem esguio, a entrar na meia-idade, de cabelos ruivos a escassear, uma grande coleção de nódoas negras e ligaduras e uma expressão de profundo infortúnio. A mulher sustentou-o com almofadas numa posição sentada e depois consultou os cartões das visitas. – Os visitantes são Kirkland, Masterson e Randall. Não sei bem qual é qual. Kirkland, tomando novamente a dianteira, disse: – Eu sou o Kirkland. – Deu um passo em frente para oferecer a mão e depois parou. O braço direito de Mactavish terminava num coto ligado. A boca do outro homem torceu-se amargamente enquanto ele levantava o coto. – Sim, já não sou grande engenheiro. O que quer saber? – Como e onde morreu o Ashton – disse Randall antes que o silêncio se tornasse muito estranho. – Esperamos, se conseguirmos determinar o local da explosão, poder encontrar o corpo e levá-lo para casa, para o sepultar. A expressão de Mactavish enterneceu-se. – É isso que os amigos fazem, embora o mar possa não cooperar. Era um bom homem, o Ashton. Dificilmente se diria que era um duque. – A falta dele será sentida – disse Masterson serenamente. – Sabe o que causou a explosão? Os motores a vapor são bestas complicados, mas nas cartas o Ashton indicava que o projeto estava a correr bem. – Sim, estava. – Mactavish cerrou a mão esquerda e bateu na cama com fúria. – Tivemos uma boa e longa travessia até ao estuário do Clyde. O motor cantava como um rouxinol. – É uma grande distância – disse Kirkland, surpreendido. – Sim, de facto. Com combustível suficiente, poderíamos ter navegado até Liverpool. Tínhamos acabado de virar quando a caldeira explodiu. Foi como ser atingido por um raio. – Poderá ter acontecido isso? – perguntou Masterson. – Se houve uma tempestade... O engenheiro abanou a cabeça. – Estava um pouco enevoado, mas sem tempestades. – Onde estava o Ashton quando a caldeira explodiu? – Desta vez, Kirkland fez a pergunta. – Estava com ele? – Eu estava lá em cima, no convés, a tentar calcular que distância tínhamos percorrido. Acabara de decidir que estávamos perto da Ilha de Arran quando a caldeira rebentou. Fui lançado para a água. – Mactavish olhou para o feio coto. – Nem me lembro de como esmaguei a mão. Para minha sorte, o Davy, o timoneiro, é um nadador excelente. Apanhou-me e levou-me para terra, em Arran, que não ficava longe. – Viu o Ashton na água? – mais uma vez Kirkland. – Nem ponta dele – respondeu o engenheiro. – Possivelmente estava por baixo do convés, na sala das máquinas. Passou lá boa parte do tempo. – Tocou a cabeça enfaixada. – O meu entendimento ficou baralhado e não me lembro de ter visto ninguém, além do Davy. Fiquei surpreendido quando soube, mais tarde, que dois dos outros também chegaram à costa. Randall preparou-se para fazer a pergunta mais difícil. – Ouviu falar de algum corpo a dar à costa nessa zona? – Há tantas ilhas que um corpo poderia acabar em mil lugares e nunca ser encontrado – disse Mactavish. – Mas, pela minha experiência, diria que o corpo do Ashton ficou preso nos destroços do navio. Parecia provável. Randall perguntou: – Quantas vítimas houve, ao todo? – Quatro, incluindo o Ashton. Um dos corpos deu à costa perto de Troon, a terra em frente a Arran. – Mactavish suspirou profundamente. – Tanto quanto sei, os outros continuam desaparecidos. E poderiam nunca ser encontrados. Randall voltou ao que o engenheiro dissera antes. – Como o Enterprise estava perto da costa, há alguma hipótese de resgatar os destroços? Mactavish pareceu pensativo. – É possível. Estou muito interessado em descobrir o porquê de o motor explodir. – Precisávamos de um navio de resgate com um guindaste bom e forte e uma tripulação experiente – disse Masterson. – Conhece alguém que seja capaz de um trabalho como este? – O Jamie Bogle, de Greenock, é o homem a visitar. Ele tem o melhor equipamento de resgate da Escócia. – Uma centelha assomou aos olhos de Mactavish. – Eu gostaria de ver o resgate. – Isso pode arranjar-se. – Kirkland olhou para Mactavish com muita atenção. – Se anda à procura de um novo emprego, o meu tio Dunlop tem um estaleiro e precisa de engenheiros com experiência em navios a vapor. – É sobrinho de George Dunlop? – Mactavish pareceu surpreendido e a esposa, discretamente sentada ao lado, respirou fundo. Deviam estar preocupados com dinheiro, agora que o emprego de Mactavish explodira, deixando-o inválido. O engenheiro olhou para o coto onde costumava estar a mão direita. – Eu... Não posso fazer o trabalho que fazia antes. – Pode-se contratar mãos. O meu tio está interessado na mente e na experiência de um homem. Vou informá-lo de que pode ter notícias suas. – Kirkland tirou de dentro do casaco um pequeno caderno de apontamentos. – Agora, quais são os nomes dos outros sobreviventes e onde podemos encontrá-los? Quando partiram, Mrs. Mactavish sentia-se feliz com os visitantes o bastante para lhes ter servido chá e bolos. De volta à carruagem, Randall perguntou: – O teu tio Dunlop está mesmo à procura de engenheiros com experiência em navios a vapor? – Se não está, vai estar – respondeu Kirkland. – Ele tornou-se num dos melhores construtores navais da Grã-Bretanha por contratar homens de boa qualidade. Ficará feliz por contratar este. Randall recostou-se no assento. Podiam não estar muito mais perto de encontrar Ashton, mas pelo menos alguém saíra a ganhar do dia. CAPÍTULO 7
E le –eraOlha, um rapaz na brincadeira com outros rapazes. é assim que atiras alguém. – Ele fez a demonstração num rapaz loiro, usando os métodos que aprendera de arremessar o oponente para cima de uma cama. O rapaz loiro primeiro ficou chocado, depois cheio de contentamento. – Mostra-me como se faz isso! – berrou ele. – A mim também, a mim também! – ecoou dos outros no quarto. Ficara satisfeito por demonstrar, sabendo que as suas competências de combate não só eram divertidas e úteis, como também o faziam ganhar respeito. Uma mulher alta e forte entrou no quarto quando dois dos rapazes voavam pelo ar, nas mãos de outros dois. Silêncio imediato, com exceção do tombar de pequenos corpos nos colchões. Ela inspecionou a cena, e ele podia jurar que lhe vira divertimento nos olhos. – Vejo que terei de vos pôr a jogar à bola, rapazes, antes que se matem por excesso de energia. Terão, contudo, de jogar com os rapazes da aldeia, porque na escola não há os suficientes para um autêntico jogo de futebol ou de críquete. Um rapaz de cabelo escuro com olhos mais escuros disse: – Vamos ser melhores. Não se pode esconder o que é de família, diz o meu pai. – Não no campo do atletismo – disse a mulher, pouco impressionada. – Vai fazer-vos bem serem derrotados por rapazes com mais habilidade que educação. – O seu olhar implacável passou por cada um deles, sucessivamente. – Hora de dormirem, e nada de partir a mobília! Todos assentiram com ar grave e rebentaram depois em risadinhas quando, sem perigo, a mulher desapareceu. Não houve, no entanto, mais lançamentos. O rapaz largo e de ar bem-disposto, de cabelo castanho, revelou uma lata cheia de biscoitos de gengibre, que partilharam enquanto se esparramavam nas camas e conversavam. Alguns falavam mais que outros. Não conseguia lembrar-se de nomes nem de nada da conversa. Mas sentia a boa vontade e o afeto que fluía entre eles. Amigos. Ele tinha amigos.
Adam acordou cedo, sorrindo de prazer com os fragmentos do sonho que persistiam. Um alongamento cauteloso confirmou que as pisaduras e os músculos doridos ainda não estavam curados, mas, no geral, sentia-se muito bem. Incitou a memória, questionando se aquele sonho tinha sido uma parte do seu passado, ou simplesmente um sonho, inspirado pelo confronto com George Burke. As suas primeiras memórias verdadeiras ainda eram de estar na água, à deriva, cada vez mais perto da morte. Não se recordava de nada antes disso, embora os acontecimentos fossem nítidos a partir de Mariah o puxar para terra. O mais nítido de todos era o medo que sentiu quando a viu agredida pelo pretenso pretendente. Ainda não sabia bem onde encontrara forças para atirar Burke para o outro lado da sala. Mas sabia que, se necessário, teria arrombado portas trancadas para chegar a Mariah. O mais vívido de todos era a paz que sentiu quando ele e Mariah se deitaram a descansar, depois de Burke partir. Ela deixara-o uma ou duas horas depois, com um toque suave no cabelo. Talvez um beijo? Gostava de pensar que sim. Desde então dormia a maior parte do dia, com ocasionais períodos de vigília, durante os quais comia, bebia e usava o pote. Recordava-se também indistintamente da visita de Mrs. Bancroft, que lhe mudara o curativo e afirmara que ele estava a sair-se bem. Agora mostrava-se completamente acordado e já não parecia um inválido. Rolou da cama e pôs-se em pé. Oscilou sem firmeza por um momento, depois conseguiu caminhar até ao lavatório sem incidentes. Fez um esgar quando viu o seu reflexo no pequeno espelho pendurado por cima da bacia. Parecia um perfeito bandido. O queixo coberto por barba escura por fazer, as nódoas negras passavam de púrpura a desagradáveis tons de verde e amarelo, e a ligadura em volta da cabeça tinha uma inclinação desleixada. Examinou a barba, pensativo, questionando quantos dias de crescimento teria. Impossível dizer sem saber com que rapidez cresciam as suíças, mas suspeitava que fossem bastante vigorosas. Depois de lavar o rosto, procurou uma navalha da barba, sem sucesso. Pediria uma a Mariah. Sem pensamento consciente, dobrou-se para se sentar no tapete gasto com as pernas cruzadas. Apoiando as mãos sobre os joelhos, de palmas para cima, fechou os olhos e inspirou profundamente. Já tinha caído num ritmo de respiração lento antes de realmente pensar no que fazia. Manifestamente, sentar-se assim era algo que fazia com regularidade, mas tinha a certeza de que as pessoas ao seu redor consideravam tal comportamento estranho. Então, o que estava ele a fazer? Meditando. A palavra surgira-lhe na mente. Com o à-vontade de uma longa prática, sossegou os pensamentos e levou a consciência para o centro do seu ser. Apesar da cortina escura sobre o passado, estava vivo, bem e seguro. Por enquanto, era o bastante. Alguns minutos de quietude deixaram-no a sentir-se concentrado e preparado para o que viesse. Suspeitava que meditava todas as manhãs, depois de se lavar. A água que lhe salpicou para o rosto devia ter desencadeado um padrão bem estabelecido. Enquanto se levantava, perguntou-se que outros padrões de hábitos surgiriam. Na ausência da memória, a intuição seria o seu melhor guia. Já tinha acontecido um assunto em particular parecer-lhe familiar. Estava certo de que sabia algo sobre agricultura. Que mais sabia? Cavalos. Tinha a certeza de que possuía conhecimentos sobre cavalos. Pronto para explorar, investigou o pequeno guarda-vestidos e encontrou uma variedade de roupas usadas, mas ainda próprias para uso. Não dele, pensou; faria escolhas diferentes de cores e tecidos. As peças eram bem cortadas e bem feitas, mas refletiam uma sensibilidade que não a sua. Mariah devia ter trazido as roupas enquanto ele dormia. A menos que os gostos tivessem mudado com o desaparecimento da memória. Um pensamento inquietante. Preferia acreditar que era o mesmo homem que sempre fora, ainda que com as memórias temporariamente indisponíveis. Precisava de acreditar em algo. Acreditava que era um homem afortunado por ter conquistado uma mulher como Mariah. Reanimado com o pensamento, vestiu roupas adequadas para o campo. O processo confirmou que as roupas não lhe pertenciam. Era um pouco mais alto, um pouco mais estreito na cintura, e o casaco e as botas haviam-se moldado a um corpo diferente. Mas, no geral, o ajuste era aceitável. Muito melhor do que os trapos em que fora resgatado. Supôs que as roupas fossem do sogro. Tentou visualizar o pai de Mariah e criou uma versão masculina dela, de cabelo loiro e olhos de um castanho quente. Invenção, não memória. Do verdadeiro Charles Clarke, não encontrou nada. Curioso para explorar a casa que nunca vira, deixou o quarto. Dentro em pouco a casa estaria em movimento, mas tudo era silêncio quando saiu para o exterior. A mansão tinha a oeste uma vista maravilhosa para o Mar da Irlanda, com ilhéus distantes e talvez uma península continental. O pôr do sol devia ser memorável. Encontrou um caminho que levava da mansão à praia e desceu até a uma curva estreita de areia e seixos. Tinha de ser o caminho por onde voltaram, depois de Mariah o tirar do mar. A distância agora parecia curta. Na outra noite, fora interminável. Inalou o ar salgado, as ondas a bater na praia a um metro dos pés. Seria um marinheiro, um homem do mar? Não tinha a certeza. Conhecia bem o mar, adorava estar perto da água, mesmo agora, depois de quase morrer naquelas escuras profundezas. Mas não tinha a sensação de a sua vida ser construída em volta do mar, o que seria o caso se fosse um capitão da marinha. Agora, porque pensou automaticamente que seria um capitão? Suspeitava que estivesse habituado a dar ordens. Ao subir o caminho de volta para a casa, viu-se a respirar com dificuldade e os membros trémulos. Embora a mente estivesse alerta, o corpo não recuperara por completo da provação. Em vez de voltar para casa, dirigiu-se para os anexos mais à frente. Um pequeno cercado adjacente aos estábulos continha vários cavalos. Um deles, um baio de olhos vivos, trotou na sua direção com entusiasmo. Ele sorriu e acelerou o passo. Os cavalos eram definitivamente um assunto que conhecia.
Ao descer para o pequeno-almoço, Mariah parou no quarto de Adam para ver como ele estava. O coração saltou quando bateu à porta e olhou para dentro, encontrando o quarto vazio. E se ele tivesse partido à aventura durante a noite e se perdesse? E se tinha sido novamente atraído para o mar e arrebatado pela maré? Disse a si mesma para não ser idiota. Adam estivera bastante racional nos intervalos em que se encontrava desperto; provavelmente acordou cedo e decidiu que estava bem o suficiente para sair da cama. Uma verificação do guarda-vestidos provou que faltavam algumas das roupas do pai. Na esperança de que Adam não tivesse ido mais longe que a cozinha, encaminhou-se para lá e encontrou Mrs. Beckett a cozer no forno scones de farinha de aveia com passas. Mariah pegou num, tão quente que lhe queimou os dedos. Enquanto espalhava a manteiga, disse: – Mr. Clarke já anda por aí. Veio aqui? – Ainda não. – A cozinheira olhou-a seriamente. – Nunca disse que tinha marido. – Tenho-o visto tão pouco que não me sentia muito casada – disse Mariah, a consciência a censurá-la. Era horrível como uma mentira gerava todo um charco de mentiras. – Vamos ter que travar conhecimento outra vez. – Deu uma trinca no scone. – Delicioso! – Desconfiava que Mrs. Beckett tinha perguntas sobre aquele casamento subitamente revelado, mas a mulher mais velha não falou no assunto. – O que é que Mr. Clarke gosta de comer? Se já anda por aí, deve estar pronto para uma refeição decente. – Hoje é melhor comida leve – disse Mariah, uma vez que não fazia a menor ideia de quais eram os gostos de Adam. – Talvez uma sopa substancial e um pouco de peixe para o jantar. – Pegou em mais dois scones. – Vou ver se ele está lá fora. – Se o encontrar, preparo uma boa omeleta com ervas para o pequeno- almoço dele. – Também quero uma dessas. – Mariah deu um beijo na bochecha da cozinheira ao encaminhar-se para a porta. – Mrs. Beckett, a senhora é um tesouro! A mulher mais velha soltou um riso abafado. – Sou mesmo, não se esqueça disso. Lá fora, Mariah percorreu com os olhos a encosta até ao mar, mas não viu Adam. Virou-se para os estábulos, de scones na mão. Pela sua experiência, era raro o homem que não se atraía pelos cavalos mais próximos, e como tal os estábulos eram o seu melhor palpite. Hartley Manor tinha os habituais burros de carga, mais dois excelentes cavalos de montar que o pai ganhara nas cartas. Dava mais uma trinca num dos scones quando o pai surgiu a cavalo na esquina do estábulo. Gritou e pressionou a boca com as mãos, os scones a cair na relva e ela quase a desmaiar do choque. Adam catapultou-se do cavalo e disparou em direção a ela, a preocupação nos intensos olhos verdes. – Mariah, o que se passa? – Adam. Não o pai – Adam. A tremer, ela balbuciou: – Eu... eu pensei que eras o meu pai. Estás com a roupa dele, a montar o seu cavalo, o Grand Turk. Por um momento, tive a certeza de que eras ele. Enquanto Grand Turk comia o scone parcial do chão, Adam envolvia-a nos seus braços. Havia um leve aroma do pai nas roupas, mas o abraço era definitivamente Adam. – Minha pobre querida – disse ele com ternura. – Tiveste umas semanas muito más. Desculpa-me ter-te assustado tanto. Ela desapareceu no peito dele, dolorosamente agradecida pelo apoio. – Eu... Ainda não aceitei completamente que o Papá morreu – explicou. – Se o tivesse visto morto, seria diferente, mas ouvir um relato não é o mesmo. Enquanto Adam lhe acariciava os cabelos, Mariah percebeu que havia algo de desconhecido na forma como ele a abraçava. O abraço não era luxúria e era mais do que o reconforto de um amigo. Era... intimidade? Adam acreditava ser seu marido e agia com um afeto protetor que tomava por garantido o facto de ter direito a abraçá-la. O pensamento era tão perturbador quanto o toque dele era agradável. Movia-se com tanta naturalidade para o espaço de um marido que Mariah teve de questionar-se se ele teria realmente uma mulher algures. Uma mulher tão desesperada para saber qual fora o seu destino, como Mariah para ter a certeza do que acontecera ao pai. Encobrindo os pensamentos, afastou-se de Adam. Ele juntou os outros scones antes que Turk conseguisse comê-los. Os scones ainda estavam quentes quando ele lhe ofereceu um. – Como soubeste da morte do teu pai? Há alguma possibilidade de a informação estar errada? – Soube pelo George Burke. – Ao ver a expressão de Adam, sorriu sem humor. – Não, ele não é uma fonte fidedigna, mas tinha o anel que meu pai usava sempre. Foi convincente. – Tendo conhecido o homem, não ficaria surpreendido se soubesse que roubou o anel – disse Adam antes de morder o scone. – Provavelmente é capaz disso, mas pouco depois recebi uma carta do nosso advogado de Londres a confirmar a morte do Papá. – Ela mordeu o scone com força, mastigou pensativamente e depois disse: – A prova mais convincente é não ter tido notícias do meu pai em tanto tempo. Ele escrevia-me várias vezes por semana. Depois... nada. Ele simplesmente não pararia de escrever assim, se estivesse bem. – Tomou fôlego tremente. – Acredito que tenha morrido e, no entanto, pareceu-me perfeitamente natural que viesse em direção a mim no Turk. Adam comeu o resto do scone. – Acho que, mesmo quando já não há esperança, é natural esperar que tenha havido um engano. Que essa tragédia não possa atingir-nos. – Sabes isso por experiência própria ou és só sábio? Ele pareceu pensativo. – Não sei, mas não apostaria que possuo grande sabedoria natural. Mariah soltou um riso abafado. Se a avó Rose lhe enviara um falso marido, escolhera um com sentido de humor. – Gostas do Grand Turk? O meu pai disse que ele era o melhor cavalo que já teve. Ganhou-o nas cartas, está claro. O rosto de Adam iluminou-se. – É esplêndido. Passos bonitos e vivaz sem maldade. A égua alazã também é muito boa. Mais um prémio na mesa de jogo? – Sim. É a minha montada, Hazelnut. Hazel, para abreviar. – Mariah examinou Adam, que parecia um autêntico cavalheiro rural com as roupas do pai, mas cujo rosto se mostrava abatido. – Não esperava encontrar-te a cavalo. Montar não foi de mais para ti? – A minha força ainda não voltou ao normal – admitiu ele –, mas eu queria mesmo sentar-me outra vez num cavalo. Talvez possamos dar um passeio pela propriedade hoje. – Mais tarde, se achas que estás preparado, mas agora Mrs. Beckett gostaria de nos alimentar com o pequeno-almoço. Está pronto para uma omeleta? – Claro que sim! Adam pegou-lhe no braço e viraram-se para a casa. Ele gostava de lhe tocar. Mariah questionou mais uma vez se ele demonstrava o à-vontade de um homem casado, habituado a ter uma mulher a quem tocar sempre que desejasse. Quanto mais cedo o seu presente do mar recuperasse a memória, melhor para todos.
Depois de um excelente pequeno-almoço, Adam retirou-se para o quarto para descansar novamente. Ao início da tarde, Mariah entrou no quarto em pontas dos pés e encontrou-o estendido de costas na cama. Tirara as botas e o casaco, mas ainda tinha vestidas a camisa e as calças. Era uma bela figura de um homem, que preenchia o ideal de elegância saudável e bem proporcionada própria de um cavalheiro. Seria cavalheiro por nascimento? Mariah não tinha a certeza, mas ele tornara-se num. Pensando que o deixaria dormir se não acordasse com facilidade, sussurrou: – Adam? Como te sentes? Ele acordou e ofereceu-lhe um sorriso que a fez sentir-se a mulher mais especial do mundo. – Conseguia aguentar-me num passeio pela propriedade. Ela avaliou-o, as contusões visíveis a lembrar-lhe todas as não visíveis. Apanhara uma boa sova. – Vamos esperar até amanhã para fazer o passeio. É melhor não te esforçares de mais. – Então preciso de encontrar uma atividade física diferente. – Ele pegou- lhe na mão e puxou-a para baixo, para que ficasse junto a ele na cama. De olhar intenso, disse-lhe: – Gostaria de lembrar-me do nosso primeiro beijo. Vou ter de começar tudo outra vez. Antes que Mariah percebesse por completo a intenção, ele puxou-a para baixo e beijou-a. A boca era forte e quente, a língua suave a separar-lhe os lábios. A sensação inundou-a, misturando-lhe o entendimento e o bom senso. Tinha sido beijada por jovens fervorosos e, mais do que uma vez, pusera em fuga bêbados como Burke, mas nunca experimentara um beijo como aquele. Sentiu o espanto e o deleite dele, como se fossem amantes recentes, mas detetou também o compromisso e a crença de que tinham uma história. De que pertenciam um ao outro. Mariah arquejou quando as mãos que a acariciavam lhe desceram as costas, venerando-lhe cada curva e concavidade. Onde os corpos se tocavam, ela incendiava-se. Queria fundir-se com ele, beijá-lo até ficarem ambos sem sentidos. A mão direita dele deslizou sob o vestido e subiu-lhe a coxa despida, tão indecorosa quanto tentadora. Com um movimento brusco afastou-se do abraço dele, o coração a bater forte. Algures lá dentro, a sua Sarah dizia: – Isto é por tua própria culpa. Mariah não podia negá-lo. Se continuassem por aquele caminho, perderia a virgindade e possivelmente levaria Adam ao adultério. Devia fugir a gritar desta situação insuportável. Ele fitou-lhe o rosto ruborizado, perplexo e um pouco magoado. – O que se passa, Mariah? Por breves instantes pensou em confessar, mas não conseguia suportar a ideia de o desatar da pequena certeza que ele tinha. Esforçou-se por uma resposta que inserisse mais distância entre eles, mas que tivesse também alguma honestidade. – Desculpa, Adam. – Sentou-se na extremidade da cama, incapaz de pensar com clareza nos braços dele. – Isto é muito... repentino para mim. Passámos tão pouco tempo juntos, e agora sou uma estranha para ti. – Uma estranha amada – disse ele tranquilamente. – E eu não sou com certeza um estranho para ti. Ou mudei assim tanto? Mariah sentiu um calafrio, pensando se os sentimentos de Adam seriam pela verdadeira mulher e ela apenas uma substituta conveniente. Lembrando-se do que dissera a Mrs. Beckett, declarou: – Não que tenhas mudado, mas a situação em si é muito estranha. Vais cortejar-me como se tivéssemos acabado de nos conhecer? Podemos descobrir-nos um ao outro novamente. – Pegou-lhe na mão. – A tua memória pode voltar a qualquer momento, claro, e isso simplificará tudo. Mas até que isso aconteça, podemos começar outra vez? Ele hesitou e Mariah supôs que preferiria conhecê-la de uma forma mais bíblica. Mas depois ele sorriu e levantou as mãos unidas, beijando-lhe as pontas dos dedos. – Que ideia sábia, Miss Clarke, a menina é a criatura mais adorável que já conheci. Acompanha-me num passeio pelo jardim? – Gostaria muito, Mr. Clarke – disse ela, aliviada. – Podemos admirar os narcisos amarelos e um ao outro. Ele riu e balançou as pernas para o chão. Pegou nas botas. – Espero que te encantes com nódoas negras e suíças. Eu próprio não sei bem como sou. – És adorável de todas as maneiras – disse ela com convicção. E essa era com toda a certeza a verdade. CAPÍTULO 8
Q uando Adam tinha calçado as botas e vestido o casaco para sair, Mariah reapareceu com um chapéu de um atrevimento encantador, decorado com flores de seda, e um xaile azul coçado. Ele ofereceu-lhe o braço. – Está encantadora, Miss Clarke. Mariah pestanejou descomedidamente ao aceitar o braço. – Que amabilidade a sua, senhor. Se for muito, muito bom, poderei por fim permitir-lhe que use o meu nome próprio. Ele sorriu enquanto segurava a porta aberta para ela sair de casa. – Se isso não a fizer sentir-se dissoluta, pode chamar-me Adam. – Eu nunca faria nada dissoluto, Mr. Clarke – disse ela com vigor. – Sou uma jovem muito bem-educada, faço-o saber. – Ninguém poderia pensar de outra forma – assegurou-lhe ele. Tinha ficado desapontado – deveras desapontado – por Mariah não se ter disposto a deixá-lo fazer amor com ela, mas agora percebia que estava certa. Precisavam de tempo para cortejar, para se conhecerem novamente, para reconstruir uma base de afeto e companhia. O desejo era uma coisa boa no matrimónio, mas era preciso haver mais, especialmente para uma mulher confrontada com um marido que não se lembrava dela. Não só estavam a conhecer-se outra vez, como também o faz-de-conta era um jogo delicioso, melhor do que um jogo real, porque o fim, o leito conjugal, estava predestinado. Desejava conseguir lembrar-se de como ficava a sua forma elegantemente curvada sem o adorno das roupas. Era de enlouquecer saber que tinham sido amantes e não ser capaz de invocar memórias exatas do corpo dela. Ou do seu sabor e toque. No exterior da casa, ela conduziu-o para a esquerda, o lado contrário da mansão, a partir dos estábulos e de outras construções agrícolas. Ele apreciou o leve calor da mão de Mariah apoiada no seu braço, o cheiro a lavanda agradavelmente adstringente que o ar levava das suas roupas. – Não percebo nada de moda, mas parece-me que o seu chapéu encantador deve estar em voga. – Obrigada, senhor. – Mariah perdeu o recato exagerado e riu-se. – Refiz este chapéu de palha vezes sem conta, portanto não está particularmente em voga. Raras vezes havia dinheiro disponível, e por isso tornei-me muito boa a renovar vestidos e chapéus com rendas, fitas e flores. Todas as jovens damas de boas maneiras se dispunham a admitir uma falta de fundos ou a franqueza dela devia-se a serem casados? Qualquer que fosse o motivo, a sua falta de cerimónia era agradável. – É menos provável que o seu xaile seja acusado de estar na moda. Ela aconchegou melhor a peça azul gasta. – A avó Rose tricotou-o para mim, num Natal. Sempre que o uso consigo sentir os braços dela à minha volta, por isso uso-o muito. – Embora o tom fosse leve, ele escutou a solidão sob as palavras. Ela levara uma vida invulgar, que pouco tinha em comum com a da maioria das jovens bem- educadas. – Foi difícil andar sempre a viajar de um lugar para o outro, sem verdadeiras raízes? Como te entretinhas? Suspeito que em algumas das casas as mulheres se ressentissem com ter uma rapariga tão bonita como tu por perto. Mariah fez uma careta. – Inteligente da tua parte, perceber isso. Todos desfrutavam da presença do meu pai, pois ele era uma ótima companhia. Mas as mulheres muitas vezes pensavam que eu tinha em vista casar-me com os filhos, e uma noiva sem dinheiro nunca serviria. Ele deu voz a um pensamento que andava a perturbá-lo. – Então escolheste um marido sem dinheiro? Não consegui dar-te um lar decente? Ela franziu a testa e desviou o olhar, como se não tivesse certeza de como responder. – Tu tinhas inteligência e perspetivas. Não estava preocupada com o nosso futuro. Tiveste de partir pouco depois de nos casarmos, portanto fazia sentido que ficasse com o meu pai até voltares. – Fez um gesto que incluía a mansão. – Depois aconteceu Hartley. – Quanto tempo estivemos separados? – Pareceu uma eternidade. – Por que tive que te deixar? Qual era a minha profissão? – Estavas envolvido num trabalho muito secreto para o governo. Nunca me falaste disso. Pensei que preferias que eu não perguntasse. – Mudando de assunto, disse com pesar: – Este passeio seria mais romântico se os jardins fossem agradáveis, mas cresceram descontrolados e não tive tempo para pensar o que fazer. O Burke nunca gastava um cêntimo na propriedade, podendo evitá-lo. Mrs. Beckett, a cozinheira, diz que costumava haver um velho jardineiro, mas morreu e não o substituíram. Agora os jardins são coisa próxima de uma selva. Ela exagerava, mas só um pouco. Cheia de vegetação, a parte do jardim com relva e canteiros de flores mais parecia um labirinto; as árvores estavam desgrenhadas e por podar, e os canteiros irregulares. Mesmo na primavera, os jardins pareciam negligenciados. No verão, algumas áreas ficariam impenetráveis. – É preciso muito trabalho – concordou ele, enquanto desciam um caminho de tijolo rústico. – Mas o estilo básico é bom e as plantas estão certamente vigorosas. – Afastou um ramo para que Mariah pudesse passar. – Opor-te-ias a que eu tentasse organizar os jardins? Ela lançou-lhe um olhar vivo. – Jardinagem é algo que te é familiar? – Parece ser. – Ele dobrou os dedos inconscientemente. – Sinto um forte desejo de trabalhar com as mãos. Pô-las em algo e torná-lo melhor. – Então este é o lugar para começar. Tudo o que fizeres será uma melhoria. Posso contratar algumas pessoas da aldeia para te ajudar, se quiseres. – Isso será bom, depois de eu decidir o que é preciso fazer. – Ele levantou a mão e entrelaçou os dedos nos dela. Mariah recobrou o fôlego, pois não estava com luvas e a pele despida tocou a pele despida. Ao retomarem a caminhada, ele observou: – Vejo os jardins de modo diferente, agora que estou a traçar-lhes o destino. Mariah riu-se. – Os arbustos têm ansiado por atenção. Há partes dos jardins que nunca sequer vi. Há sempre muito mais que fazer. – Então exploraremos cada centímetro. Aonde vai dar este caminho? – Não faço ideia. Mas gostava de descobrir. – Ela aproximou-se à medida que o caminho se estreitava entre sebes invasoras. – A poda é urgente, sem dúvida. – Ele olhou para as mãos, em pulgas para começar a trabalhar, e flutuaram-lhe na mente questões de posição e classe. – Não sou um verdadeiro cavalheiro? – Para mim sempre foste. – Mariah traçou-lhe uma linha no meio da palma da mão direita. A resposta ao toque disparou através dele, ardente e erótica. Ele relembrou que andavam a cortejar e que não podia, de modo algum, deitá-la na relva luxuriante e redescobrir aquele adorável corpo macio. Respirou fundo para controlar as partes mais rebeldes da sua anatomia, e depois recomeçou a andar. O caminho virava para a direita e terminava num jardim fechado. Duas paredes de pedra levemente desgastadas encontravam-se num ângulo reto no declive de uma colina. Os outros dois lados mostravam-se definidos por um denso matagal. Os narcisos estavam prestes a florescer e uma árvore de fruto espaldeira espalhava-se sobre a parede virada a sul. A outra parede estava coberta de trepadeiras que no outono se tornariam vermelho vivo, enquanto uma árvore elegante oferecia sombra. Ele parou e tomou fôlego. – Isto parece-me... familiar. Mariah levantou acentuadamente o olhar. – Já estiveste aqui? – Não – disse ele devagar, enquanto tentava analisar a imagem viva que lhe aparecera de súbito na mente, antes de desaparecer. – Mais propriamente, o ambiente é familiar. – De que forma? – perguntou ela, encorajadora. – O facto de ser fechado e parecer... seguro. Protegido. Sereno. – Fechou os olhos e tentou recordar-se desse outro jardim. – Tenho uma vaga memória de um sítio semelhante, embora com muito mais flores. Flores espantosas. Num recanto havia uma fonte com... um elefante no meio? Acho que era um elefante. – Esse jardim podia não ser em Inglaterra. – Não era – disse ele com certeza. – Mas não faço ideia de onde ficava. – Ele abriu os olhos e analisou o jardim. A folhagem dos arbustos era uma mistura agradável de cores e formas. Caminhos de tijolo estavam dispostos em padrão espinhado, e grandes pedras pareciam servir de assentos. – Acho, todavia, que os dois lugares foram concebidos para incentivar o pensamento, a oração e a serenidade. – Falando em calma, está ali a gata da cozinha de Mrs. Beckett, a Annabelle. – Esta dormitava num trecho de sol sob a árvore de fruto espaldeira. Os olhos felinos abriram-se quando Mariah se aproximou, e a gata não se opôs a ser levantada e arrulhada. Mariah devia levá-la com ela para todo o lado, decidiu Adam. Ficava irresistível, com uma madeixa de cabelos loiros a espalhar-se sobre o ombro e o gato preto e branco a ronronar nos seus braços. A afeição terna tornava- a ainda mais bonita. – Viver na cozinha deve explicar as curvas generosas da Annabelle. – Isso é dizê-lo educadamente – afirmou Mariah com um riso abafado. – É uma gata vadia meiga. Até condescende em dormir na minha cama, algumas noites. Adam virou-se devagar, pensando naquele outro jardim. Via-o agora mais claramente. A água na fonte não jorrava da tromba de um elefante, mas de um homem com cabeça de elefante. Muito impróprio de um inglês. O ar era abrasadoramente quente e uma mulher sentava-se à sombra de uma grande árvore. Não conseguia vê-la com nitidez, mas sabia que tinha cabelo escuro e era bonita. Mariah empoleirou-se na maior rocha com a gata. – Compreendo que um ambiente como este seria bom para acalmar os nervos. – Vou limpar isto e transformá-lo num verdadeiro jardim de meditação, como meu primeiro projeto. – Ele sentou-se na pedra ao lado dela e afagou o pelo sedoso de Annabelle, os dedos provocadoramente perto do peito de Mariah. – Se eu estivesse a cortejá-la, Miss Clarke, aproveitaria esta privacidade para lhe roubar um beijo. Inclinou-se para a frente e pressionou os lábios nos dela com tanta suavidade como se fosse a primeira vez. Ela fez um pequeno som com a voz e os lábios colaram-se aos dele. Um beijo que começou na inocência depressa se tornou mais. Ele aproximou-se, movendo a mão para lhe tocar o seio. A gata deu um rosnido de protesto e lançou-se do colo de Mariah. O ato de Annabelle fez Mariah sobressaltar-se e recuar. – Eu permitiria que me roubasse um beijo, mas não mais. Porque sou uma... senhorita muito respeitável. As mãos dele cerraram-se. Embora o seu corpo precisasse com urgência do calor familiar de Mariah, concordara em avançar devagar. Ela não merecia nada menos. – Como cavalheiro não muito respeitável, pediria desculpa pelo meu comportamento mal-educado, embora desejando secretamente repeti-lo logo que possível. Ela riu-se de modo um pouco irregular enquanto se levantava e escovava as saias. – Creio que é mais sincero do que seria um pretendente normal. – Isto não é uma corte normal. – Ele levantou-se, sentindo-se um pouco atordoado. Oferecendo-lhe o braço, perguntou: – Voltamos às nossas explorações? – Desde que evitemos mais jardins demasiado privados. As hortas servirão muito bem. Todas aquelas hortaliças são muito pouco românticas. O sorriso dela mostrava-se um pouco hesitante ao aceitar o braço. Adam lembrou mais uma vez a si mesmo que Mariah precisava deste tempo para aceitar que ele havia mudado. Não era o homem que antes fora, e o facto de serem casados não significava que automaticamente o convidasse a partilhar a cama outra vez. Inquieto, questionou se a amnésia seria motivo de anulação. Esperava que não. CAPÍTULO 9
Greenock e Ilha de Arran, Escócia
W ill Masterson agarrou o parapeito do navio enquanto o Annie ancorava, numa tarde fria e chuvosa. Junto a ele, Randall perguntou: – O que é aquilo no convés traseiro? – Um sino de mergulhador – respondeu Will. – Tal como um sino de igreja, é aberto na parte inferior. Devido ao peso, mantém-se direito quando entra na água e o ar fica preso por baixo. Os mergulhadores podem descer dentro do sino e nadar até onde trabalham, e depois entrar novamente no sino quando precisam de recuperar o fôlego. – Engenhoso – comentou Kirkland. – De que se lembrarão a seguir? – Aristóteles escreveu sobre um primeiro sino de mergulho, portanto não é a invenção mais recente que anda por aí – disse Will. – Mas melhoraram muito, nos últimos anos. Este tem uma janela para se ver o fundo do mar e ar comprimido, para que possa ficar mais tempo mergulhado. Randall franziu o sobrolho. – Espero que consiga fazer o trabalho. – É provável que o Ash estivesse na sala de máquinas. Se assim for, devemos conseguir recuperar o corpo. – A voz de Will era calma, embora as suas emoções não o fossem. Enquanto não houvesse corpo, podia agarrar-se à leve esperança de que Ash ainda estivesse vivo. Com gritos e madeira a chiar, o Annie partiu para a primeira etapa da viagem. Archie Mactavish estava certo: Jamie Bogle, de Greenock, tinha uma operação de resgate de primeira ordem, com todos os equipamentos mais recentes. O sino de mergulho até tinha um tubo de ar comprimido. Bogle também tinha algo mais: um motivo pessoal para ajudar a encontrar o Enterprise. O seu primo Donald era um dos homens desaparecidos e presumíveis mortos. – O Donald gostava de trabalhar para o vosso duque – dissera Bogle com rispidez a Will, quando se conheceram para ver se Bogle aceitava o trabalho. – Disse que era a melhor posição que já teve. – Então talvez consigamos trazer o corpo dele para casa – respondeu Will. – A família apreciaria disso – dissera Bogle. – Podem navegar na maré da tarde? Podiam. O navio de resgate Annie e uma lancha navegaram para sul com Will, Randall e Kirkland, mais dois outros passageiros: Archibald Mactavish e Davy Collins, dois dos quatro sobreviventes do Enterprise. Com as suas lembranças de pontos de referência na Ilha de Arran, levaram menos de um dia a localizar os destroços do navio a vapor. As águas tinham pouca profundidade, o que significava que a operação de resgate deveria ser simples. Debaixo de um céu húmido e ameaçador, o sino de mergulho submergiu com dois mergulhadores, um deles o filho de Bogle, Duncan. O tempo que os homens estiveram lá em baixo pareceu interminável, embora não pudesse ter sido muito. A corrente da grua agitou-se e ficou esticada quando a prenderam a um pedaço de destroços. Os mergulhadores voltaram à superfície. Enquanto se envolviam em pesados cobertores de lã, Duncan relatou: – Encontrámos a parte de trás do navio, incluindo a sala das máquinas. Uma sorte que o Enterprise não fosse um grande veleiro. Acho que podemos puxá-lo, com um pouco de cuidado. O pai assentiu e ordenou à tripulação que começasse a içar. Com a corrente a chiar, a carga foi elevada, a água a jorrar por cada fenda e abertura enquanto o enorme pedaço de destroços surgia à superfície. Os dedos de Will apertaram o parapeito do navio quando perguntou a si mesmo se Ash estaria lá dentro. Tinha dificuldade em acreditar que Ash, com o seu espírito sereno e absoluta lealdade, realmente desaparecera. Por isso é que recuperar o corpo era tão importante. A grua balançava os destroços em direção à lancha quando a corrente que sustentava a carga se rompeu, precipitando-se em direção a Duncan Bogle. Rápido como um gato, Randall tentou tirar o jovem mergulhador do seu caminho perigoso. Só foi parcialmente bem-sucedido. A extremidade da corrente atingiu Duncan com uma força brutal. O jovem gritou e caiu no convés. Uma gigantesca onda de água explodiu em todas as direções quando a enorme parcela de destroços mergulhou novamente no mar, balançando o Annie. A praguejar, o capitão inclinou-se sobre o filho, que ofegava de dores do impacto da corrente recuada com violência. – Estás bem, rapaz? – Bem... o suficiente – conseguiu dizer o jovem. – Se aquele inglês não me puxasse para trás, a maldita corrente tinha-me cortado a meio, acho. – Esteve perto, mesmo assim. – Randall, que tinha experiência em cuidar de homens feridos no campo de batalha, ajoelhou-se junto a Duncan e examinou-lhe o peito e o ombro. – Um ombro partido e talvez uma costela estalada, penso eu. Com uma ligadura, ele deve cicatrizar bem. – Mas não vai mergulhar por uns tempos. – Bogle franziu a testa. – Posso substituir as correntes, mas mergulhar é trabalho para dois homens e o Wee Geordie não pode fazê-lo sozinho. Teremos de voltar a Greenock para ir buscar mais um mergulhador. – Eu posso mergulhar – disse Will. – Em rapaz vivi nas Índias Ocidentais e aprendi a nadar tão cedo quanto soube andar. – Tem a certeza? – disse o capitão, hesitante. – É um trabalho difícil e perigoso, mesmo para homens experientes com sinos de mergulho. – Tive experiência com um sino quando trabalhei num navio de resgate à procura de tesouros espanhóis nas Índias – respondeu Will. Kirkland, que se juntara a eles, disse: – Não sabia disso. Will sorriu. – Todos temos os nossos segredos. Quanto tempo para conseguir descer novamente o sino, capitão? Bogle avaliou o céu e a superfície do mar. – Aproxima-se mau tempo, portanto o melhor é fazê-lo o mais depressa possível. Talvez meia-hora. Foi necessária uma quantidade assombrosa de blasfémias para substituir a corrente. Will desejou perceber o dialeto de Glasgow: os violentos palavrões eram completamente poéticos. Enquanto se preparava o sino, Will vestiu um rudimentar fato encerado usado para se defender do frio. Era o traje de Duncan, portanto estava frio e húmido e não era grande o suficiente, mas ficaria satisfeito com a proteção quando mergulhasse. Wee Geordie era um jovem musculado tão grande como o próprio Will. Estava frio no sino quando mergulharam abaixo da superfície. Sentado no banco de metal frio que contornava o interior do sino, Will pensava com nostalgia nas límpidas águas turquesa das Índias Ocidentais. Durante a descida, o nível da água subiu lentamente até aos pés e depois aos tornozelos. Os ouvidos começaram a doer. Esquecera-se dessa parte. – É uma sorte que o navio naufragado esteja apenas a alguns metros de profundidade – disse Wee Geordie. – De outro modo, sentiríamos os ouvidos furados com facas. – Franziu o sobrolho. – Tem certeza de que sabe o que está a fazer? – Acho que sim, mas aqui o especialista és tu. – Will supôs que o escocês não conseguisse acreditar que um lorde inglês servisse para algo útil. Tinha razão, mas Will nem sempre fora um lorde inglês. – Já analisaste o local. – Não deve ser difícil recuperar a parte de trás do navio – disse Wee Geordie. – As correntes desceram com ele, por isso é só uma questão de as prender outra vez. Quando der conta, estaremos de volta à superfície. Will espreitou pela compacta janela de vidro instalada no lado do sino. Aquelas sombras escuras que começavam a desenhar-se através da água deviam ser os ossos partidos do Enterprise. Quando se encontravam na posição devida, Wee Geordie inalou profundamente várias vezes. Will fez o mesmo. – Não tente passar demasiado tempo fora do sino – disse o mergulhador. – O capitão pagou uma pequena fortuna pelo equipamento de ar comprimido e gosta que o usem. – Inclinou-se para a frente, deslizando depois através do chão encharcado, pés primeiro. Will seguiu uns segundos depois. A água estava gelada. Mais uma vez, pensou com pesar nas Índias. Mesmo com a proteção do fato de mergulho em couro, teriam de trabalhar rápido ou correriam o risco de gelar perigosamente. Com movimentos calmos e poderosos, nadou atrás de Wee Geordie. Como previra o homem mais novo, a operação de resgate foi simples. Os ganchos nas extremidades das correntes tiveram de ser novamente presos, depois o gancho da grua ligado a onde as três correntes de suspensão se uniam. Foram necessários múltiplos retornos ao sino, Will com mais frequência do que Wee Geordie. O seu fôlego já não era tão bom como quando nadava regularmente. Quando as correntes estavam no lugar, sólidas, e eles prontos para regressar à superfície, Will perguntou: – Tu e o Duncan verificaram o resto dos destroços, em busca dos corpos? O pequeno Geordie assentiu com seriedade. – Sim, verificámos. A maior parte dos destroços está aberta e qualquer corpo teria sido arrastado. A popa está fechada o suficiente para que possamos encontrar lá alguém. Instalaram-se no sino e deram sinal para que os puxassem para cima. Quando chegaram à superfície, foram de imediato embrulhados em cobertores e ofereceram-lhes canecas de chá fumegante, reforçado com açúcar e uísque. Will tragou a bebida e pediu para encher de novo. Depois de os ossos descongelarem, desceu para vestir uma roupa seca. Conservou o cobertor. Quando voltou ao convés, a popa do Enterprise estava a ser posicionada na lancha. Kirkland ajudou Archie Mactavish a atravessar entre embarcações, pois o engenheiro estava com muita determinação para ver o que correra mal. Dois dos tripulantes de Bogle usavam malhos e pés de cabra para abrir os destroços, o suficiente para lhes permitir entrar. Todos os outros esperavam em silêncio. O vento aumentava e a chuva começava a cair. Will preparou- se quando um dos homens gritou: – Está aqui um corpo. Os dois trabalhadores tiraram o morto e deitaram-no no chão da lancha, com movimentos respeitosos. Randall ajoelhou-se junto ao corpo. Depois de um momento de tensão, disse: – Não é o Ashton. – Sim – disse o capitão com pesar. – É o meu primo Donald. – Tirou o chapéu e segurou-o sobre o coração. – Pelo menos agora sabemos. Will libertou a respiração, contente por não ter provas da morte de Ash e desanimado por ficar na incerteza. – Com esse mistério resolvido, vamos ver o motor. Um tripulante acendeu lanternas e Will, Mactavish e o capitão entraram nos destroços. Mactavish examinou o motor com esmerada minúcia, enquanto os outros dois homens seguravam as lanternas. Quando terminou de verificar a frente e os lados do motor, disse: – Não vejo nada que pudesse ter causado a explosão. – Dê a volta para a parte de trás – sugeriu Will. – O motor livrou-se da maioria das guarnições, portanto consegue ver este lado. – Mactavish serpenteou junto a ele no espaço apertado e escuro e olhou para a parte traseira da caldeira. Depois de um instante, praguejou violentamente. – Olhe para isto. – Apontou o coto do braço direito para um buraco irregular no lado curvo da caldeira. Will franziu o sobrolho perante o buraco. – Obviamente o motor explodiu a partir daí, mas porquê? Um defeito no revestimento da caldeira? – Veja mais de perto – resmungou Mactavish. Will inclinou-se para perto e viu que as bordas do buraco mostravam clarões de uma solda mais brilhante. – Um ponto fraco na caldeira foi remendado aqui e o restauro não se aguentou? – A caldeira estava perfeita. Este buraco teve de ser cortado e mal remendado, para que explodisse depois de algum tempo de uso. Disse o capitão Bogle, incrédulo: – Então isso significa... Will terminou a frase, a voz brutal. – A explosão não foi um acidente. CAPÍTULO 10
A porta maciça foi aberta por um homem de feições duras e vestido com um libré. Ao ver quem se encontrava na soleira, o criado tentou bater com a porta. Adam meteu prontamente o pé na abertura, feliz por ter calçado as suas botas mais fortes. – Eu vou vê-lo – disse Adam com veemência. – Vai dizer-me onde ele está, ou teremos de fazer uma busca à casa? – Isto é um ultraje! – vociferou o criado enquanto tentava chutar o pé de Adam da entrada. Levantando a voz, disse: – Socorro! A casa está a ser invadida! Ignorando o servo, Adam e os três companheiros forçaram a abertura da porta. – Temos de manter-nos juntos – exclamou Adam. – Provavelmente, ele está lá em cima. Enquanto empregadas aos gritos e criados aos berros corriam de um lado para o outro, Adam e os companheiros investiam escadaria acima. Num quarto, interromperam um encontro ilícito entre uma criada aos guinchos e um lacaio macho, mas não deram com o homem que buscavam. Quando saíram do último aposento, Adam disse: – O sótão. As escadas eram custosamente apertadas e, naquele dia quente, o calor sufocante. A maior parte dos quartos do sótão pertencia manifestamente às criadas e estava vazia. Encontraram o seu homem no quarto mais pequeno e miserável do sótão, o teto enviesado e o chão coberto por pó e moscas mortas. Não havia mobília, à parte um colchão de palha no chão. O fedor a infeção e a corpo por lavar causava náuseas. Adam arquejou ao ver a figura esquelética e imóvel, temendo que o amigo estivesse morto. O rosto mostrava-se inanimado e os cabelos loiros baços e imundos. Mas os olhos pestanejaram para abrir quando Adam se ajoelhou ao lado do colchão. – Eu... perguntei-me quando chegarias aqui – disse o homem com a imitação de um sorriso. – Desculpa não ter vindo mais cedo. Não estava na cidade. – Adam percorreu com os olhos o corpo lesionado, esperando que conseguissem movê-lo sem provocar mais ferimentos. Levantando a voz, disse: – Alguém traga água e um cobertor de um dos outros quartos. Demorou apenas uns momentos a providenciar-lhe um cântaro lascado de água morna e um copo pesado e estalado. – Queres uma bebida? – perguntou ele enquanto despejava água no copo. – Deus, sim! Adam levantou a cabeça do amigo o suficiente para lhe permitir que sorvesse. As cordas na garganta do homem mostraram-se quando ele engoliu convulsivamente. – Por agora, chega – disse Adam, afastando o copo. – De mais pode fazer-te mal. Pareceu que o homem loiro ia discutir, mas depois mudou de ideia. – Despeja o resto da água em cima da minha cabeça. Adam obedeceu, e o loiro deu um longo suspiro de alívio. – O mais fantástico que estou, desde sabe Deus quando. Adam levantou-se. – Vamos embrulhá-lo no cobertor e sair daqui. Dois dos seus companheiros estenderam o cobertor no chão, levantaram depois o loiro do colchão imundo e o instalaram-no no meio do tecido grosseiro. O ferido soltou um arquejo agudo de dor, mas aquele foi o único som que emitiu – mesmo quando o desciam pelas escadas estreitas, com a cabeça e os pés a bater nas paredes, apesar dos melhores esforços dos dois homens que o carregavam. O próximo lanço de escadas era mais largo. Tinham chegado ao hall de entrada quando um velho furioso irrompeu da sala de estar para lhes bloquear a saída. O vestuário caro proclamava riqueza, mas os olhos mostravam-se enfurecidos e as mãos nodosas seguravam uma espingarda. – Maldito sejas, monte de esterco arrogante! – rugiu, a arma apontada ao peito de Adam. – Não tens o direito de o levar de minha casa! Adam tomou fôlego devagar, imaginando o tamanho do buraco que a espingarda lhe abriria àquela distância. – E o senhor não tem o direito de o deixar morrer de negligência. – Ele merece morrer! – A espingarda oscilou na direção do homem envolvido no cobertor, voltando depois para Adam. – Atire se quiser – disse ele. – Mas se pretende evitar escândalos, cometer um homicídio não é maneira de o fazer. A espingarda hesitou e depois desceu. – Maldito sejas! – praguejou novamente o velho, os olhos ferozes. – Maldito sejas tu e todos os teus amigos maus e desregrados! – A condenação chegará sem dúvida, a seu tempo. Mas não hoje. – Adam abriu a porta e gesticulou aos outros para que saíssem, antes que o velho mudasse de ideias. Estava mais ou menos à espera de que a espingarda fosse disparada, mas carregaram o homem ferido para a carruagem sem incidentes. Ao examinar o rosto parado do homem que tinham resgatado, Adam questionava se a vida do amigo poderia ser salva ou se era tarde de mais. Estava a fechar a porta da carruagem quando soou um tiro. *
Adam acordou com um salto, o coração a esmagar o peito. Ouviu mais um som agudo. Não um tiroteio, mas um machado a cortar lenha. Ele e Mariah haviam discutido remover uma árvore moribunda, o que provavelmente estava a ser feito naquela manhã. Uma mulher eficiente, a sua. Levantou-se e atravessou até ao lavatório, agora munido de uma navalha, podendo assim amansar temporariamente as suíças. Enquanto se lavava e barbeava, pensava no sonho. Seria pura invenção ou memória de algo que acontecera? Parecera-lhe muito real. Ao acomodar-se na sua meditação, questionou o que o sonho teria a dizer sobre a sua vida, se refletisse um incidente real. Quem era o homem loiro, e o que levara Adam a invadir uma casa imponente? Algumas das respostas poderiam deduzir-se. O homem loiro era obviamente detestado pelo velho zangado e estava a ser deixado à morte por negligência, depois de um ferimento grave. Adam soube do que se passava e resgatou o amigo. O velho também o odiava. Com grande probabilidade, odiava toda a gente. Tinha sido usado algum nome? Não conseguia lembrar-se de nenhum. Teria sido conveniente se o velho fosse mais específico nos seus insultos. Que mais sugeria o sonho? Que Adam se movia entre pessoas de elevado estatuto, pese embora o próprio estatuto fosse pouco claro. Que estava de facto habituado a dar ordens. E que tinha amigos.
Quando Mariah parou no quarto de Adam para uma verificação rápida, mais uma vez ele não estava. Parecia ser madrugador. E também saudável o suficiente para que, provavelmente, não precisasse de o rondar com muita regularidade. Encontrou-o na sala do pequeno-almoço a atacar um prato cheio de ovos, presunto e torradas. – Pareces bem, esta manhã. – Fez sinal à criada para lhe trazer o pequeno- almoço. Depois de se servir de uma chávena de chá, sentou-se em frente a ele. – Sentes alguma tensão por tudo o que fizeste ontem? Ele abanou a cabeça. – Alguns músculos doridos e outras penas. – Tocou a ligadura da cabeça. – Mas sinto-me bem o bastante para hoje percorrer a propriedade a cavalo. – Muito bem, depois do pequeno-almoço vou mandar vir os cavalos. – Deu um gole no chá, pensando no quanto gostava de o observar. Tinha uma eficiência calma nos movimentos, um ar de estar confortável na própria pele, ainda que não se lembrasse do passado. Perguntou-se se ele estaria tão relaxado se não tivesse a falsa identidade de Adam Clarke a que se agarrar. A sua vida seria tão mais fácil se pudesse confessar-lhe a verdade! Quanto mais mantinha as mentiras, mais furioso ele ficaria quando as descobrisse. O facto de o achar atraente tornava tudo mais complicado. Questionou com confiança: – Algumas memórias novas, hoje? Ele mostrou um semblante carregado. – Tive um sonho tão vívido que parecia uma memória, mas mesmo assim não me disse nada sobre mim. Não se mencionaram nomes nem lugares, embora eu ache que a localização era Londres. Desapontada, Mariah disse: – Então isso não ajudou em nada. – A empregada pousou um prato de ovos e torradas em frente a ela. Ao voltar a atenção para o pequeno-almoço, disse: – Estou ansiosa para descobrir o que sabes sobre agricultura. Ele sorriu. – Eu também.
Três horas depois, paravam os cavalos numa colina que proporcionava uma vista impressionante da propriedade, do mar e dos montes escarpados. Mariah já tinha a sua resposta. Adam cavalgava com uma perícia impensada e sabia falar de agricultura como o intendente das terras de um duque. – És um homem de talento, Adam – disse ela, escolhendo as palavras com cuidado. – Nunca te ouvi falar sobre agricultura até hoje, mas é evidente que sabes muito sobre o assunto. – Não sabia que tinha tantas opiniões sobre gado e cultivo. Que raça de porcos engorda mais rapidamente, que vacas dão o melhor leite. – Ele suspirou. – É desesperante lembrar-me de gado e porcos, mas não me lembrar de nada da minha vida. – Isso virá. – Espero que sim. – Deu sinal ao cavalo para descer a colina. – Tinhas toda a razão, o Burke negligenciou vergonhosamente este lugar. A propriedade tem bastante terra arável para esta zona de Inglaterra, mas são necessários um semeador e uma ceifeira, além de sementes melhores. Com investimento e boa gestão, os rendimentos da propriedade poderão duplicar em cinco anos. – Isso seria sem dúvida bem-vindo. – Teria de contratar um bom intendente para dirigir a propriedade. Adam seria maravilhoso, mas era improvável que ficasse por ali muito tempo. Lançou-lhe um olhar de soslaio, admirando a forma como se sentava no cavalo. Todavia, se ele nunca recuperasse a memória... O vago sonho esbarrou, trepidando, na perceção de que ele poderia ter uma esposa, cada vez com mais medo, à espera de que o marido voltasse para casa. Se Adam fosse seu marido, começaria com certeza a procurá-lo, se desaparecesse. Horrores, e se ele tivesse uma mulher que fizesse exatamente isso e aparecesse em Hartley Manor a reclamar o marido de volta? Mariah estremeceu, pensando que tinha só demasiada imaginação. Ficou contente quando Adam apontou para a torre da igreja, bem visível no topo da colina. – Aquela é a aldeia? Podemos visitá-la? Mariah mordeu o lábio, inquieta. Preferiria não ter de apresentar Adam à aldeia como seu «marido.» Mas teria de acontecer, mais cedo ou mais tarde. – Julgo que sim, se estiveres a sentir-te forte o suficiente. Tens a certeza de que não preferes voltar para casa e descansar? Ele mostrou-lhe um sorriso animado e, com grande probabilidade, enganador. – Tenho a certeza. – Era bem provável que quisesse incitar-se tanto quanto possível para restaurar a força. Macho até aos ossos. – Muito bem, a aldeia será. A estrada bifurca-se dentro em pouco. Se formos pela direita, o caminho leva-nos à rua principal. Chegaram à bifurcação alguns minutos depois e viraram para o caminho, tão profundamente cavado por gerações de uso que era quase um túnel. Adam disse: – Quando chove, a água deve lançar-se por aqui como uma onda gigantesca. Mariah estudou os lados inclinados a pique, pensando que não gostaria de ter de sair do caminho se houvesse uma forte tempestade. – Acho que tens razão, mas não vi isso. Habitualmente não ando por este caminho. Aproximavam-se da aldeia quando ouviram o latido descontrolado de um cão. Franzindo o sobrolho, Adam instigou o cavalo a trotar, fazendo Mariah o mesmo. Dobraram a curva e viram três rapazes a atirar pedras a um cão meio crescido. Nas suas tentativas de escapar, a pequena criatura corria em direção a Mariah e Adam, mas um mau coxear reduzia-lhe a velocidade e os lados do caminho eram íngremes de mais para que escalasse e fugisse. Enquanto observava, horrorizada, uma pedra atirada pelo rapaz maior atingiu o cão. Este ganiu, enquanto os mais novos gritavam de prazer. Adam bateu com o pé no cavalo para galopar e vociferou-lhes. – Alto! – Ele girou no cavalo e exclamou: – Como se atrevem a abusar de uma criatura indefesa! Onde estão os vossos pais? – Este cão não é de ninguém! – protestou o rapaz mais velho. – O meu pai disse para o afastar de casa. – Então decidiram torturar o pobre animal – disse Adam numa voz que corroía até ao osso. – A vida é preciosa, e nunca para se terminar com indiferença. O vosso comportamento é vergonhoso. Gostavam de ser apedrejados até à morte, quando apenas tentavam escapar? Os meninos pareciam querer correr, mas não podiam escapar com mais facilidade do que o cão. – Não queríamos matar a criatura feia, só fazê-la desaparecer – protestou um dos rapazes mais pequenos. Mariah desmontou e levantou nos braços o cãozinho ofegante. Debaixo do sangue e da imundície estavam orelhas pendentes e manchas castanhas e pretas misturadas com brancas. Imaginou alguma raça de cão de caça combinada com sabe Deus o quê. A princípio o cão debateu-se, mas ela segurou-o bem, afagando-o enquanto lhe dizia suavemente: – Pobre cãozinho. Não te preocupes, agora estás seguro. – Demasiado cansado para continuar a correr, o cão acomodou-se nos braços dela. Mariah havia perdido parte da repreensão de Adam aos rapazes, mas quando levantou os olhos os culpados pareciam perto das lágrimas. Adam concluiu: – Tenho a vossa palavra de honra de que não voltarão a comportar-se com tanta crueldade? – Todos assentiram em silêncio. Depois viraram-se e correram quando ele os soltou, dizendo: – Vejam se cumprem o prometido. Quando os rapazes desapareceram numa curva, Mariah disse: – Achas que de futuro eles se portarão melhor? – Um sermão não vai corrigi-los por completo, mas talvez pensem duas vezes antes de atormentar descontraidamente outras criaturas. – Ele virou- se e tirou-lhe o cão devagar. Começando a recuperar, o cão empinou-se e desatou a lamber o queixo de Adam. Ele riu-se. – Ela tem um temperamento notavelmente inclinado ao perdão. Ficamos com ela? Mariah sempre adorara animais, mas a sua vida nómada não o admitira. Agora que tinha um verdadeiro lar, era mais que hora de adquirir companheiros animais. – Se ninguém na aldeia a reclamar, mais vale ficarmos, já que ela não parece servir para nada senão encantar humanos sensíveis. – Mariah coçou a cabeça da cadelinha. Ela recostou-se alegremente na sua mão. – Que nome lhe damos? – Bhanu – disse Adam com prontidão. Mariah franziu a testa. – Nunca tinha ouvido esse. O que significa? Adam pareceu desorientado. – Não faço ideia. Mas na minha cabeça é definitivamente nome de cão. – Mais um fragmento do passado que chega sem explicações – disse Mariah com ironia, pensando no quanto ser bondoso com os animais tornava um homem atraente. – Bhanu será. Olha para o tamanho desses pés. Vai ser grande. – Já é uma braçada. Vou carregá-la até casa. Espero que não tenha a perna partida. Adam pousou Bhanu e ajudou Mariah a sentar-se na sela. Entregou-lhe depois a cadela, montou o próprio cavalo e pegou de novo em Bhanu. A cadela instalou-se com alegria no seu colo. A um ritmo de caminhada, continuaram a descer o caminho até à aldeia. Depois de um desvio para ver o pequeno cais, casa de vários barcos de pesca, desceram a rua principal. Adam disse pensativamente: – Hartley parece familiar. Não que tenha estado aqui, mas assemelha-se a um sem número de outras aldeias inglesas. – Pode ser típica, mas é muito bonita – disse Mariah, um pouco à defesa. – Muito bonita, de facto – respondeu ele, sorrindo-lhe. Mariah ruborizou-se e afastou o olhar. Não estava surpreendida por ver exatamente o que temia: pessoas a espreitar da janela e algumas até a arranjar motivos para emergir inopinadamente de casa. Como dona da maior propriedade da região, as suas atividades eram de grande interesse em Hartley. Em especial a aquisição de um marido inesperado. A primeira a intercetá-los foi Mrs. Glessing, que Mariah conhecera na igreja. A mulher era a bisbilhoteira da aldeia, ansiosa por ser a primeira com notícias sobre qualquer assunto. – Mrs. Clarke, que bom vê-la! – Atravessou-se na estrada para que tivessem de parar para cumprimentá-la. – E este bonito indivíduo é o seu marido? Ouvi dizer que ele tinha chegado à mansão, e uma história e tanto sobre ser resgatado do mar! Mariah sabia que a história era demasiado boa para não se espalhar num instante pela aldeia. – É, de facto – disse Mariah, mantendo as apresentações tão breves quanto possível. Mrs. Glessing fez má cara quando viu a cadela. – Essa criatura incomodou-os? Tem andado a esquivar-se pela aldeia. – Se não tiver dono, vamos levá-la para casa. – Adam foi educado, mas mostrou uma atitude de reserva fria que Mariah ainda não vira. Provou também ser um mestre a evitar respostas, quando Mrs. Glessing sondava informações sobre as suas origens. Quando se despediram, Mrs. Glessing não sabia mais do que quando os intercetara. Felizmente, mais ninguém foi corajoso o suficiente para os deter na rua, apesar de algumas pessoas que Mariah conhecera na igreja ou nas lojas lhe acenarem. Ela sorria e acenava também, mas não parava. Ao passarem pela estalagem, a Bull and Anchor, perguntou-se se George Burke teria deixado a cidade. Esperava certamente que sim. – Não é bonita, a igreja? – perguntou Mariah quando se aproximavam. – E olha, a Julia Bancroft vem a sair com o vigário, Mr. Williams. Ela mora perto e ajuda com regularidade na igreja. As sobrancelhas de Mariah juntaram-se ao observar a amiga e o vigário juntos. Admirava Mr. Williams desde que o conheceu. Ele era bondoso e muito instruído, devotado à igreja e aos paroquianos, e também bastante bonito. Achava que ele a olhava com um afeto especial, e por vezes até fantasiava sobre como seria ser mulher de um vigário. Mas ele não era para ela. Era o tipo de cavalheiro que devia estar com uma mulher como a sua irmã imaginária, Sarah. Ou como Julia, que se ria de algo que o vigário dissera. Mariah pensou se estaria a desenvolver-se entre eles uma discreta relação romântica. Julia seria inquestionavelmente uma esposa de vigário exemplar. Com uma leve angústia, Mariah renunciou aos seus sonhos com Mr. Williams. Embora ele fosse uma pessoa admirável, boa parte do seu interesse devera-se a ele ser o homem mais desejável e atraente da região. Preferia Adam, embora não soubesse nada do seu passado. Podia ser um cavalheiro ou não, mas não importava. Era com ele que agora sonhava. Adam, que podia ter uma mulher ansiosamente à espera do seu regresso. Julia levantou os olhos e viu-os. – Mariah, que bom ver-te. Mr. Clarke, ainda não devia montar. – Falou, todavia, com o divertimento irónico de uma mulher que aceitava que os pacientes nem sempre se portavam bem. Mariah ficou agradecida por Julia ter feito as apresentações, porque isso a dispensava de mentir ao vigário. Mr. Williams sorriu calorosamente e ofereceu a mão a Adam. – Ouvi falar do seu salvamento, Mr. Clarke. Foi com certeza a mão da providência que lhe poupou a vida e o levou para casa, para a sua mulher. – Tenho perfeita consciência disso. – Adam apertou a mão do vigário. – Eu desmontaria, mas perturbava a cadela e ela já teve um dia difícil. Williams riu-se e coçou as orelhas felpudas de Bhanu. – Ela é uma vadia que tem andado a vaguear pela aldeia. Provavelmente foi afugentada de uma das quintas. Agora parece feliz. Disse Mariah: – Julia, poderias fazer um exame rápido à perna traseira esquerda da Bhanu? Uns rapazes estavam a atirar-lhe pedras, e ela coxeava quando o Adam a salvou. – Pobre animal. – Julia examinou com cuidado a perna da cadela. Bhanu ganiu e afastou a perna, mas não procurou libertar-se. – Não me parece que a perna esteja partida – disse Julia depois do exame. – Apenas pisada. Ela teve muita sorte. – Julia pegou num lenço e limpou as mãos. – E sugiro um banho, logo que ela chegue a casa! – Sim, senhora – disse Adam com um sorriso rasgado. – Mr. Williams, foi um prazer conhecê-lo. Vemo-nos na igreja este domingo. Enquanto foram buscar os cavalos e voltavam para casa, Mariah pensou que ela e Adam estavam a tornar-se decididamente familiares. O que não sabia bem se era bom ou mau. CAPÍTULO 11
E ncontrava-se num aposento amplo e ressonante, o ar perfumado com aromas penetrantes que eram exóticos, porém assombrosamente familiares. A escuridão sufocava, tão densa que sentia que poderia agarrá-la com as mãos. Depois, candeeiros de bronze inflamavam-se devagar em volta das extremidades do salão. As luzes a óleo tremeluzentes deixavam entrever o teto e as paredes sumptuosamente decorados. Virou-se, tentando orientar-se, e sobressaltou-se ao descobrir uma grandiosa deusa dourada a elevar-se sobre ele. Esta ostentava uma expressão de vaga benevolência ao estudá-lo. Os quatro braços graciosos pareciam inteiramente naturais. Depois de um longo olhar, ela virou-se, como se ele fosse uma criatura sem importância. Desesperado para recuperar a sua atenção, correu atrás dela, mas ela desvaneceu-se na escuridão. Um clarão de luz chamou-lhe a atenção e ele voltou-se, vendo mais uma formidável figura dourada. Desta vez, um deus dançava num círculo de chamas, os movimentos dos seus muitos braços uma harmonia intemporal de poder e serenidade. Adam tentou aproximar-se, mas o deus levantou os braços e foi reduzido a cinzas pelas chamas. Adam era tão pequeno comparado com estes seres, um rato entre gigantes. Quando o pensamento se formou, viu um outro deus de ouro eminente. Este possuía um corpo humano, coroado com a cabeça de um elefante de olhos sábios e antigos. Já antes vira este ser, embora não conseguisse recordar onde. Com o coração a bater freneticamente perante a estranheza de tudo, caiu de joelhos para honrar o deus. Mas a reluzente presença dourada também desapareceu, deixando o vazio. Pôs-se em pé, doendo-se com a perda e meio sufocado pelo ar carregado de incenso. Outro movimento chamou-lhe a atenção. Voltou-se e viu uma mulher real, que era de tamanho normal e possuía membros normais. Esta ajoelhou-se diante de um conjunto de candeias e montes de flores espantosas, mas, quando ele recuperou o fôlego, levantou-se e encarou-o. As roupas eram véus leves de cores vivas e adornos dourados que lhe engrandeciam a beleza de cabelos escuros. Ao vê-lo, sorriu radiantemente e ofereceu-lhe as mãos. Com o coração prestes a rebentar de felicidade, correu em direção a ela, sabendo que preencheria o vazio do seu coração. Mas, precisamente antes de a alcançar, foi apanhado numa força poderosa e arrastado dali. Num frenesi, bateu com os pés e contorceu-se e mordeu para escapar ao seu captor, mas estava desamparado. Desamparado. Os deuses dourados haviam desaparecido, os esplêndidos aromas condimentados diluíram-se em pó... e a mulher de cabelos escuros fora-se para sempre.
Adam despertou, torturado pela angústia. Quando uma língua áspera lhe lambeu a bochecha, pôs um braço em volta de Bhanu, agradecido por ter um corpo quente e afetuoso na cama. A cadela devia ter sentido a sua aflição. Porque é que este sonho o fazia sentir tal desespero? Talvez porque os outros pareciam retratar uma experiência real, mas este viera do mundo das visões e alucinações. Tentou visualizar aquelas grandiosas figuras douradas, os movimentos vagarosos e sinuosos harmonizados com um ritmo de vida diferente, mas os pormenores escapavam-lhe. Eram familiares, mas não conseguia lembrar-se porquê. Já tinha visto o ser com cabeça de elefante, quando recordou um jardim do passado distante. E a bela mulher de cabelos escuros era a do jardim e real, estava certo. Mas qual a relação entre eles? Ela tinha a sua idade, ou era um pouco mais nova. E desaparecera para sempre. Talvez fosse por isso que o sonho ardia com uma sensação de perda tão profunda que lhe havia influenciado a própria alma. Poderia a amnésia ser uma maneira de esconder de si mesmo essa perda, porque lembrá-la seria intolerável? Mariah era uma âncora nos ventos fortes, mas sabia surpreendentemente pouco sobre a sua vida. Ela dizia que não haviam estado juntos tempo suficiente para conhecerem muito um do outro, mas ele suspeitava que o verdadeiro problema era que lhe contara muito pouco. Teria cometido um grande crime? Ou sofrido uma tragédia inexprimível? Se assim era, o golpe na cabeça podia ter-lhe oferecido a abençoada libertação de um passado intolerável. Sentindo-se doente, fez-se subir na cama. Estava noite profunda e escura, mas duvidava que fosse adormecer outra vez. Embora fechasse os olhos e buscasse paz, a sua mente estava demasiado caótica para a meditação. Desistiu de tentar quando Bhanu veio hesitante pelo seu colo, emitindo pequenas fungadelas. Adam coçou a cabeça da cadela. Embora não mais bonita do que era quando a encontrou, agora estava consideravelmente mais limpa. – Quem disse que podias dormir na cama? Creio que discutimos os teus planos para dormir e optámos pelo tapete em frente à lareira. Bhanu fitou-o com veneração, ignorando-lhe os disparates. A luz débil da janela fazia o rosto preto e branco parecer apalhaçado. Ele não pôde deixar de sorrir. Embora preferisse a companhia da sua afetuosa e bonita mulher, a cadela era muito melhor que nada. – Queres vir à biblioteca? – Bhanu arrebitou as orelhas. – Estás a pensar em passeio e comida. Não é uma grande caminhada, mas depois arranjo-te alguma coisa para comer. – Deslizou da cama e vestiu o robe quente e os chinelos desproporcionados, acendendo depois uma lamparina e encaminhando-se para a biblioteca da mansão. Talvez conseguisse encontrar um livro que lhe dissesse o que necessitava de saber. Em harmonia com o resto da propriedade, a biblioteca revelava pouco cuidado e atenção. Havia apenas algumas prateleiras de livros, e estes provavelmente adquiridos usados para dar a impressão de erudição. Metade eram volumes encadernados de sermões ou coleções de revistas antigas e desinteressantes. No entanto, a absoluta aleatoriedade da coletânea significava que era possível haver um volume que o ajudasse a desvendar os segredos da sua mente. Virou a lamparina para cima e começou a investigar os livros.
Mariah ia a caminho da cozinha para arranjar uma refeição noturna, quando ouviu um som na pequena divisão a que chamavam, um tanto grandiosamente, biblioteca. Questionando se Bhanu andaria a explorar a casa ou se desejava que a deixassem sair, fez um desvio até lá e encontrou Adam a explorar com método as prateleiras, à luz da lâmpada. Levantando a sua, Mariah disse: – Adam? Estás à procura de algo em particular? Ao vê-la, Bhanu abanou-se e saltou numa saudação alegre. Adam simplesmente virou-se, o rosto abatido. – Tive outro sonho, este com seres e símbolos estranhos. Eram familiares, como se fossem parte do meu passado, mas não consigo lembrar-me. – A sua expressão mudou. – Não me lembro! Digo a mim mesmo que em breve irei lembrar-me, que as peças vão começar a encaixar-se. De dia, acredito nisso. À noite é... mais difícil. E se nunca me recordar do meu passado? E se estiver condenado a ficar sempre sozinho na minha própria mente? Até então, parecera tão sereno sobre a sua situação que era impressionante ver-lhe no rosto o sofrimento puro. Excetuando alguns hematomas a esbater-se, já não parecia ferido. Até a ligadura da cabeça se fora, porque o ferimento estava a cicatrizar bem. Mas o seu espírito estava vulnerável, de uma forma que partia o coração. Mariah pousou a lâmpada na mesa e atravessou o aposento para lhe dar as mãos. – Podes nunca te lembrar – disse com solenidade –, mas isso não significa que tens de estar sozinho. Repara nas memórias que criámos, só nos últimos dias. A expressão dele suavizou-se. – Não sei o que faria sem ti, Mariah. É terrível imaginar como seria se tivesse dado à costa num lugar de estranhos, sem ninguém que me dissesse como me chamo e se importasse se vivo ou morro. As palavras dele eram tanto faca como corrente. Embora a sua repugnância pela farsa se agravasse todos os dias, não podia contar-lhe que, de facto, viera a terra entre estranhos. Ele precisava de acreditar nela. E se nunca se lembrasse da sua verdadeira identidade? Se não, e a quisesse, então, por Deus, seria sua mulher. Se tivesse uma esposa em qualquer outra parte, essa mulher aceitaria por fim a viuvez e talvez arranjasse outro marido. Se Adam estava condenado a ser um homem sem passado, ele pertencia-lhe. Conhecera mais do que a sua quota de homens, tanto bons partidos como não, e Adam era o único que queria para si. Era bondoso, divertido e inteligente – justamente o que pretendia num marido. Se ele nunca se recordasse da sua identidade... bem, poderia encontrar ali uma nova. Juntos, poderiam gerir Hartley Manor em paz e prosperidade – apesar disso, ela organizaria a devida cerimónia de casamento. Diria a Adam que, uma vez que ele era, de certo modo, um novo homem, precisavam de renovar os votos. Mais uma vez embaraçada pela destreza das próprias mentiras, disse: – O passado influencia-nos, mas o que importa é o presente e o futuro. Esses ainda os tens, e serão o que fizeres deles. – És tão sábia quanto bonita. – Com o olhar a prender o dela, segurou-lhe o rosto nas mãos e beijou-a, os lábios ansiosos. Ela respondeu intensamente, a escuridão iminente a facilitar-lhe a expressão dos sentimentos. O seu homem do mar era tão adorável, tão atencioso, e fascinante e viril. Por norma pensava nele como sendo de tamanho médio, mas ao abraçá-la parecia-lhe muito grande e muito forte. Atordoada, tomou consciência de que as costas estavam apertadas contra as prateleiras dos livros e as mãos dele a exploravam sem constrangimentos. Depois de lhe desapertar o cinto do roupão, ele curvou as palmas das mãos em volta dos seios. Sem a armadura do corpete, a intimidade era tão chocante como emocionante. A boca de Mariah abriu-se sob a dele, as línguas unindo-se. Ela empurrou a anca contra ele. O intenso calor do seu corpo era inquietante, porém tão tentador como o canto de uma sereia. Ousada, fez deslizar as mãos dentro do robe. O calor do corpo dele ardia através da camisa de noite, enquanto ela acariciava as costas magnificamente musculadas. Fora beijada mais do que uma vez e por vezes acolhera-o bem, mas o desejo nunca ameaçara queimar sem controlo. Até agora. Queria envolvê-lo nela, fundirem-se num só corpo. – Desejo-te tanto, minha atraente mulher – murmurou ele antes de pressionar a boca no pescoço dela. Ela gemeu, as unhas cravando-se nele. Quando a mão dele deslizou debaixo da sua camisa de noite e lhe subiu pela coxa, quase derreteu no local. O abraço de um homem nunca a tinha afetado assim, nunca assim. Se ele ia atraí-la para o tapete frio e empoeirado, recebê-lo-ia com prazer. Mas antes que isso pudesse acontecer, Bhanu empinou-se contra os dois, gemendo por atenção. Mariah ofegou e afastou-se ao lembrar-se de todos os motivos pelos quais não deviam tornar-se íntimos. O menor deles não seria explicar o porquê de ser virgem. – Eu... lamento muito – segredou. – Não consigo fazer isto. Não agora. Adam estendeu-se para a abraçar outra vez, e depois deu um passo atrás, as mãos cerrando-se. – Tens medo de mim, Mariah? Ou será que não me queres? Ela abafou uma gargalhada histérica. – Não podes achar que eu não te quero, não depois disto! Como posso ter medo, quando tens sido tudo o que é bondoso e compreensivo? Mas... para mim, continua a parecer muito cedo. Talvez quando me conheceres melhor não me queiras. – Impossível. – Ele tocou-lhe o cabelo, descendo-lhe depois o corpo com a mão, deixando um rasto de fogo pelo caminho. – Sinto que te conheço do fundo do coração. Mas... não tão bem aqui e agora. – A mão caiu e ele lançou-lhe um sorriso enigmático. – Quando o meu sangue arrefecer, irei com certeza aceitar que tens razão. Mas neste momento é difícil ser razoável. Não era o único a ter problemas com o sangue quente. Mariah voltou a apertar o roupão. – Seria bom comer. Tenho a certeza de que é isso que a Bhanu quer, e eu ia para a cozinha quando te ouvi aqui. Vamos ver o que encontramos na despensa? Mrs. Beckett mantém-na bem abastecida. Ele riu-se e pôs-lhe um braço em volta dos ombros. – Uma ideia esplêndida. Se não se pode satisfazer um apetite, alimentar outro é um bom remédio. Mariah corou, mas desfrutou do peso do braço dele à sua volta enquanto se dirigiam para a cozinha, Bhanu em passeio rápido à frente. – O que procuravas na biblioteca? – Esperava que houvesse um livro com imagens dos seres que vi nos meus sonhos. – Adam suspirou. – Era um tiro no escuro, mas pensei que valia a pena tentar, uma vez que não conseguia dormir. – Não achei a biblioteca útil para nada, a não ser para prensar flores – disse ela. – A sopa quente do tacho, que ficou a ferver no fogão, vai ajudar- te a dormir. – Parece-me bem. – Ele lançou-lhe um olhar oblíquo. – Ajudaria ainda mais se partilhasses a minha cama. Mariah parou, cautelosa. – Pensei que tínhamos concordado que agora não é a altura. – Não queria dizer estarmos juntos como amantes – respondeu ele com ternura. – Mas não há nada que quisesse mais do que descansar contigo nos braços. Pensou em deixar-se envolver pelo corpo quente e forte dele e sorriu. A encantadora irmã Sarah teria dito que não. Mas Mariah simplesmente não era tão virtuosa. – Eu também gostaria disso. Ela gostaria muito daquilo. CAPÍTULO 12
R ir-se enquanto comia pão, sopa e queijo com Mariah não arrefeceu propriamente o sangue de Adam, mas o calor foi reduzido a um ferver em lume brando. Mais tarde, subiram as escadas para os aposentos dela, que Adam ainda não tinha visto. Tal como no resto da casa, a decoração e a mobília eram irregulares em qualidade e estado, mas o quarto de dormir era acolhedor, rico em cores e perfumado com lavanda intensa. Tímida, Mariah tirou o roupão e subiu para a cama. Adam reconheceu que ainda era, de certo modo, um estranho para ela. Mas ela não era uma estranha para ele. Estranho, considerando que foi ele quem perdeu a memória. Adam subiu para o outro lado da cama, tentando não parecer assustador. Mariah inclinou-se para a frente para lhe dar um beijo suave na face. – Boa noite, e dorme bem. – Deitou-se e virou-se para o lado, de costas voltadas para ele. Não era a posição de melhor acolhimento. O que foi facilmente emendado. Rolou para o seu lado, atrás dela, e puxou-a para ele, ao estilo colher. Havia uma exatidão familiar na maneira como ela assentava nos seus braços. – Pareces-me o céu – murmurou ele. Mariah ficou tensa quando o braço dele veio sobre a sua cintura, mas aquelas palavras descontraíram-na. – Tu também. Ele adorava a sensação do cabelo dela contra a sua face. Um dia, em breve, queria ver a plena glória áurea daquele cabelo, espalhado sem pudor pela cama, e ela deitada debaixo dele, o rosto adorável ruborizado pelo desejo. Por enquanto, era quase suficiente tê-la contra o seu peito. Não estar sozinho. Acariciou-lhe o corpo de modo descendente. A camisa de noite era de algodão usado e gasto, tão deliciosamente suave como ela. Quando a mão dele se moveu sobre o seu abdómen, Mariah disse sem fôlego: – É melhor voltares para a tua cama. O que estás a fazer é demasiado tentador, e não sei se a minha força de vontade é capaz de te resistir. A mão de Adam deteve-se na curva suave do abdómen. Ela estava determinada a não voltar a consumar o casamento e, na parte ainda racional da mente, Adam compreendia e concordava. Mas não suportava a ideia de a deixar e dormir sozinho. – Se te der a minha palavra de honra de que hoje à noite não me junto a ti, deixas-me lembrar-te dos prazeres que partilhámos no passado? Mariah susteve a respiração. – Lembras-te de sermos amantes? – Não – respondeu ele com pesar. – Mas sei o que devo ter feito e quero fazê-lo outra vez. Tanto pelo prazer de te tocar, como pela esperança egoísta de que em breve decidas que estás pronta para ser verdadeiramente minha mulher. – A mão dele subiu até ao peito e tocou-lhe com delicadeza o mamilo. Endureceu naquele instante. – Oh, Deus... – Ela exalou devagar. – A tua palavra de honra de que não vais perder o autocontrolo? – Juro-o e não faltarei à palavra dada, porque nunca mais voltarias a confiar em mim – disse com franqueza. Ele lambeu-lhe a pele pálida e delicada sob as orelhas, deliciando-se com o seu suspiro de prazer. – E com razão. Mas será meu o prazer de relembrar-te o que um homem e a sua mulher podem fazer, fora o derradeiro ato. Permites-me que demonstre? O riso dela foi vacilante. – Se eu fosse uma mulher melhor e mais sensata, diria que não e iria dormir noutro sítio, para me livrar da tentação. Mas não sou boa nem sensata, por isso continua com a demonstração. Lembra-te apenas do que prometeste. – És verdadeiramente boa, Mariah, e nisto talvez nenhum de nós esteja a ser sensato. – Moveu os quadris contra as adoráveis nádegas redondas, para que fossem moldados juntos. – Mas, por vezes, o senso não é verdadeira sabedoria. Mariah ficou tensa perante o testemunho da excitação de Adam, mas não se afastou. Ele decidiu manter-se naquela posição porque seria menos provável esquecer a promessa. Poderia ainda alcançar todos os pontos mais doces do corpo elegantemente curvado. Os seios dela, ah, os seios dela... amorosos, redondos e assentando-lhe perfeitamente na palma da mão. Mesmo o tamanho certo. Nem muito grandes nem muito pequenos. Embora suspeitasse que, qualquer que fosse o tamanho, achá-los-ia perfeitos. Agora que já não a preocupava onde iriam acabar este namoro, Mariah mostrava-se prodigiosamente recetiva aos beijos meigos na orelha e no pescoço e à exploração vagarosa e íntima dos seus seios. Não se opôs quando a mão dele lhe desceu à cintura, embora tenha ficado novamente tensa assim que os dedos chegaram à junção das suas coxas. Quando ele acariciou com ritmo aquele calor escondido, a anca de Mariah começou a pulsar de encontro a ele. Adam supôs que ela não tinha consciência do quanto o seu corpo desvendava. – Não! – ofegou quando ele puxou para cima a bainha da camisa de noite, para poder tocar a carne tenra e íntima. – Tu prometeste! – Não me esqueci – disse ele, a voz tranquilizadora, ainda que a sua mente estivesse meio enlouquecida de desejo. Concentrar-se nela ajudou-o a evitar que o controlo se estilhaçasse. Embora estivesse ela por ela. – Pararei já, se quiseres. – Eu... Eu não quero que pares. A confiança dela era pura de mais, valiosa de mais para trair. Passou os dedos entre as dobras húmidas e delicadas. O corpo dela não esquecia isto, ainda que a mente fosse ponderada. Adam começou a acariciar o calor melífluo, movendo-se cada vez mais rápido ao sentir a excitação dela. De súbito, Mariah soltou um clamor sufocado e o corpo convulsionou-se, os quadris batendo ferozmente contra ele. Para seu choque, a culminação dela provocou a sua própria libertação, intensa. Prendeu-a a ele enquanto um fogo mútuo se alastrava por eles, misturando-os de corpo e alma. Por um tempo infinito ficaram deitados e abraçados, as respirações irregulares. Quando percebeu que a segurava com uma força esmagadora, atenuou o abraço. Levantou-lhe os cabelos e beijou-lhe a nuca. – Quando te escolhi – murmurou –, escolhi ainda melhor do que pensava. – Aquilo foi... mais demonstração do que eu esperava – disse ela com moleza. – E mais do que eu tinha em mente – disse ele com uma gargalhada pouco firme. Girou da cama e caminhou calmamente pelo chão frio para ir buscar duas toalhas ao lavatório. Os passos desencadearam um ganido esperançoso e um arranhar do lado de fora da porta. Pensando que lhes faria bem alguma distração, Adam deixou Bhanu entrar. A cadela saltou pela porta, ofegando com alegria. Coçou-lhe as orelhas e voltou para a cama, entregando uma das toalhas a Mariah. Enquanto se limpava, disse: – Dentro em pouco podemos ter companhia. Dependerá da Bhanu arranjar maneira de saltar para a cama. As garras arranharam a arca de nogueira que se encontrava em contacto com os pés da cama de dossel. O colchão abateu-se quando Bhanu saltou para cima dele. Girou várias vezes, depois instalou-se entre os pés deles, acrescentando calor canino. Mariah riu-se. – Esperta, Bhanu. Ainda bem que a cama é grande que chegue para três. – Todas as criaturas solitárias são atraídas para ti, em busca de conforto. – disse ele, sério. Mariah acomodou-se contra ele. – Não creio que a Bhanu seja muito criteriosa. Qualquer cama com um corpo quente servirá. – Mas isso não me serviria. – Ele beijou-lhe o lado do pescoço. – Só tu servirás. Só a minha mulher. Ela recobrou o fôlego e apertou-lhe a mão onde esta repousava, nas suas costelas, mas não disse mais nada. Depressa respirava com a lenta regularidade do sono. Mais cedo, depois do torturante sonho de perda, Adam tinha pensado que não iria dormir mais naquela noite. Agora desejava manter-se acordado para poder saborear a maravilha de ter Mariah nos braços. Lembrar-se da resposta extasiada ao seu toque. Contudo, para sua surpresa, bocejou e pouco depois flutuava em direção ao mundo dos sonhos. Não dos pesadelos, com certeza, não desta vez...
O tempo estava péssimo, com fiapos de neve e chuva gelada a soprar de lado na estrada. Demasiado tempestuoso para uma carruagem, que se atolaria num instante. Portanto, ele montou, usando o seu cavalo mais robusto e confiável. Por norma, a viagem para fora da cidade não levaria muito mais do que uma hora, mas a tempestade abrandara-o para um ritmo de caminhada. Mais que uma vez, temeu ter-se extraviado da estrada. À medida que o corpo entorpecia, questionava se deveria ter trazido alguém com ele. Mas não desejara companhia, não numa viagem como aquela. Por fim, chegou à bonita casa com vista para o Tamisa. Cavalgou direto para os estábulos, homem e cavalo igualmente agradecidos por se livrarem do vento cortante. Não havia criados de estrebaria, porque o daquela casa viajara para Londres com a mensagem. Ele quisera voltar, mas Adam proibira-o terminantemente, pois o homem já parecia meio morto da viagem até à cidade. Assim, Adam tratou ele mesmo da montada, escovando o cavalo cansado e dando-lhe alimento e água, apesar de impaciente para entrar. Mais uma rajada de gelo e chuva atingiu-o como um golpe quando atravessou para a casa e bateu à porta. Uma espera demasiado longa, exposto ao péssimo tempo, antes de um criado abrir a porta. O lacaio ofegou. – Senhor! Chegou, graças a Deus. Pensei que não ia conseguir fazer a viagem antes de a tempestade passar. – Não era o tipo de mensagem que se ignora. – Despiu o casaco, que de tão encharcado dava a sensação de ter os bolsos cheios de pedras. – Onde está ele? – Lá em cima, no quarto deles. Ele... ele não vai deixá-la. Adam entregou o casaco gotejante e o chapéu e depois subiu as escadas. Visitara muitas vezes a casa, em tempos mais felizes. Agora o sofrimento impregnava o próprio ar. Encontrou o amigo no aposento que havia partilhado com a jovem esposa. O quarto estava iluminado apenas pelo fogo que tremeluzia na lareira. Na cama, um corpo débil mal fazia um montículo no cobertor que o tapava. O amigo, um homem alto de ombros largos e membros vigorosos, estava sentado numa cadeira junto à cama, a cabeça enterrada nas mãos. Olhou quando a porta abriu, sem surpresa por ver a visita. – Ela foi-se. – À luz do fogo, o rosto destroçado era muito jovem. – Eu sei. – Adam atravessou o quarto e deixou cair uma mão no ombro do amigo. – E o bebé? – Ele era... pequeno de mais para sobreviver. – O homem pousou a mão sobre a de Adam ao respirar com um estremecimento. – Como vou continuar sem ela? – Vais aguentar – disse Adam com calma. – Vais sofrer e as cicatrizes permanecerão para sempre na tua alma. Mas por fim prosseguirás. Ela não te desejaria menos. – Suponho que tenhas razão – disse o homem forte, em baixo. – Mas é muito mau. – Muito mau, de facto. – Ao ver uma licoreira com conhaque, serviu dois copos. Ambos necessitavam da força do álcool, ainda que por motivos diferentes. O amigo tragou metade da fortíssima bebida, engasgou-se e depois bebeu o resto. Ao recuperar o fôlego, disse: – Agora não sei o que vou fazer de mim mesmo. – Precisas de um novo lar e de uma nova atividade. Algo que te mantenha ocupado. – Adam deu uns goles no conhaque, devagar. – Antes de casares, pensaste em alistar-te no exército. Talvez agora esse seja um bom caminho para ti. O outro homem, distante, virou o copo vazio. – Possivelmente. Servir o meu país, e talvez encontrar uma bala nalgum campo estrangeiro. Ambas perspetivas honradas. – Não te atrevas a ir embora e a arranjar maneira de te matares – ripostou Adam. – Proíbo-o. A resposta do amigo foi quase uma gargalhada antes de o sonho mudar completamente para outra cena...
Mariah estava no sonho mais feliz que já tivera – quente, segura e estimada. Até tomar consciência de que não era um sonho, mas a realidade. A inquietação subiu por ela em flecha quando recordou o que se passara com Adam na noite anterior. Tinha sido louca por permitir-lhe que a tocasse daquela forma! Porém, não podia desejar não ter experimentado tal prazer. Era uma libertina, tal como Sarah lhe dissera. Abriu com prudência os olhos e verificou que estava deitada de costas, com o braço de Adam em volta dela e os olhos verdes a observá-la com afeto e estima. Ele era de facto espantosamente bonito, com um toque exótico na estrutura óssea. Um purista poderia dizer que precisava de cortar o cabelo, mas Mariah gostava dele comprido. Levantou a mão e acariciou- lhe as madeixas escuras e brilhantes. – Bom dia. – Bom dia – respondeu ele. – Dormiste bem? O sorriso de Adam dissipou-lhe a ansiedade devida a uma mulher acordar na cama com um homem pela primeira vez. Era isto o casamento, percebeu – um círculo de intimidade que os enlaçava, só aos dois, num paraíso privado. Perigosamente sedutor. O seu prazer esmoreceu quando pensou que outra mulher poderia tê-lo conhecido assim. Uma mulher que não era uma amante fortuita, mas que tinha sido uma esposa amada. O estômago de Mariah deu um nó. Pela primeira vez, esperava que Adam nunca recuperasse a memória. Que ficasse ali e fosse seu marido até que a morte os separasse. Horrorizada com a natureza condenável e egoísta daquela esperança, sentou-se e esboçou um sorriso. – Espantosamente bem. E tu? Ele parecia pensativo. – Não contava dormir, mas dormi. E sonhei, embora não tenha sido como o pesadelo que tive antes. Bhanu levantou de súbito a cabeça aos pés da cama, depois aproximou-se e afundou-se entre eles. Boa. Quanto mais separados estivessem, melhor. Mariah afagou as orelhas caídas da cadela e foi recompensada com um suspiro de felicidade canina. – Qual foi o sonho? – Foram vários. Num cavalgava para ir ter com um amigo que acabara de perder a mulher. Foi muito triste, mas não um pesadelo. Depois sonhei com brincar com outras duas crianças, um menino e uma menina. Ele era mais ou menos da minha idade e ela mais nova, creio. Ambos tinham olhos verdes. Pensei, será que tenho um irmão e uma irmã? Evitando mais mentiras, Mariah disse: – Se sim, nunca te ouvi falar deles. – Pergunto-me se morreram. No sonho tive uma sensação de perda. – Abanando a cabeça, levantou-se da cama. – Sinto-me como se tivesse uma mão-cheia de peças de um quebra-cabeças tão grande que nunca verei o todo. – Dá tempo ao tempo – disse ela. – A Julia Bancroft diz que a mente é a parte mais complicada do corpo. – Ao observar Adam a vestir o roupão e calçar os chinelos, Mariah decidiu que o melhor resultado possível era ele recuperar a memória, não ser casado e dispor-se a perdoar-lhe o engano. Poderiam então ter um futuro – mas as probabilidades pareciam irremediavelmente contra. Poderia também aproveitar o tempo que tivessem juntos. – Queres ir dar um passeio a cavalo hoje de manhã? – Gostaria muito. – Ele mostrou um sorriso aberto. – Depois, minha senhora, começo a arquitetar-lhe um jardim. CAPÍTULO 13
Greenock, Escócia
D epois de mais um longo dia a realizar investigações separadas, os três homens encontraram-se para jantar na saleta privada da estalagem, que se tornara no quartel-general. Kirkland largou o casaco húmido sobre uma cadeira e pousou sobre a mesa o comprido tubo protetor de couro. Os amigos já tinham chegado. Randall lançou uma pá de carvão para o fogo. – Mais do maldito tempo frio escocês – disse sombriamente ao coxear de volta para uma cadeira junto ao fogo. A busca fora dura para a sua perna lesionada. Kirkland sorriu com ironia. – É tonificante. Só ingleses de sangue fino se queixariam. Alguém pediu o jantar? – Está a caminho – respondeu Will. – Soubeste alguma coisa? – Uma possibilidade. Vaga. E vocês dois? – Kirkland aceitou um copo de vinho clarete de Will e sentou-se vagarosamente numa cadeira junto ao fogo, esticando com cansaço as pernas. Disse Will: – Os outros engenheiros que chamei para examinar a máquina a vapor concordaram com o Mactavish. O buraco remendado na caldeira foi feito para destruir o navio. Nenhum verdadeiro engenheiro repararia uma caldeira daquela maneira, porque a falha era garantida. Mas nenhum de nós encontrou qualquer prova que sugerisse quem poderia ter feito algo tão malévolo. – Teve de ser um homem com experiência em engenharia – disse Kirkland. – E teve de fazer o estrago no momento certo, para não ser descoberto. Will assentiu. – O nosso melhor palpite é de que ele foi a bordo uma noite, quando a caldeira já tinha sido instalada no lugar, mas ainda não trancada. Como um projeto destes é falado em metade das tabernas ao longo do Clyde, um homem inteligente podia facilmente ficar a saber quando agir. Se o remendo fosse descoberto, o acidente seria evitado, mas não era provável que se apanhasse o vândalo que provocou a avaria, e como tal não havia grande risco em tentar. Randall, soubeste alguma coisa sobre os homens que trabalharam na construção do Enterprise? – Entrevistei a maior parte deles. São locais respeitados, com reputação sólida e sem qualquer motivo para destruir o navio de outro homem – respondeu Randall. – Vocês conhecem o Ash; nunca se importou de pagar bom dinheiro para contratar os melhores. Os empregados dele são do tipo que acredita que todos os que trabalham em Clydeside beneficiam das inovações da técnica. – A maior parte? – Kirkland voltou a encher o copo de clarete. – Encontraste alguns homens que pudessem ser menos íntegros? – Um dos homens desaparecidos quando o navio afundou era novo na zona. Chamava-se Shipley – respondeu Randall. – Consideravam-no de várias maneiras, como irlandês ou londrino, mas era do tipo calado. Ninguém sabia muito sobre ele, exceto que era má companhia, mas um assistente de engenharia competente. Com tatuagens. – O corpo foi encontrado? Randall abanou a cabeça. – Ainda não. – Se morreu na explosão, provavelmente não a causou – disse Kirkland. – Claro, poderia ter montado a armadilha e abandonado o navio antes da explosão. Mas, se o fizesse, creio que a sua ausência seria notada, e nenhum dos sobreviventes mencionou tal coisa. – Eu escrevi a Lady Agnes sobre o que descobrimos, e também para lhe perguntar se sabe de alguém que pudesse querer o Ash morto – disse Will calmamente. Instalou-se um breve e pesado silêncio. – Não podemos ter a certeza de que danificar o navio tivesse como alvo o Ash – disse por fim Kirkland. – Não. Mas essa é a explicação mais provável. Mais ninguém a bordo parece um possível alvo de uma conspiração de homicídio e há bastantes mais navios a vapor em desenvolvimento, tanto que é improvável alguém escolher destruir o Enterprise – disse Will sem rodeios. – Enquanto o Ash era um duque e um homem que, em alguns quadrantes, inspirava ressentimentos só por existir. – Se alguém queria o Ash morto, não teria sido difícil matá-lo com uma faca ou uma bala de pistola – disse Randall. – Se a explosão foi uma tentativa de assassinato dirigida a ele, fez-se um esforço considerável para a morte parecer acidental. – Um acidente é uma forma arriscada de matar um homem – disse Will. – Ele poderia facilmente ter sobrevivido. Metade dos homens do Enterprise sobreviveu. – Se tivesse sobrevivido, poderia fazer-se outra tentativa – mencionou Kirkland. – Tivemos sorte por encontrar os destroços e recuperar o motor tão depressa. Se o navio tivesse descido a águas mais profundas, poderia não ter sido recuperado e nunca se levantariam suspeitas. – Agora que já apresentámos o relatório, descobriste alguma coisa, Kirkland? – Will olhou para o tubo de couro em cima da mesa. Kirkland abriu o tubo e tirou um mapa enrolado. – Depois da nossa operação de resgate, ainda havia três desaparecidos: o Ashton, o Shirley e um marinheiro chamado O’Reilly. Esta manhã, soube que deu à praia um corpo, bem abaixo na costa. Randall entorpeceu. – O Ash? – O O’Reilly. Vestia uma daquelas camisolas de lã irlandesas com os padrões elaborados, que podem ser usadas para identificar os corpos dos afogados. Assim, o Ashton e o Shipley são os únicos que ainda não apareceram. – Kirkland abriu o mapa sobre a mesa, firmando os cantos para que os outros vissem a zona costeira, desde um pouco a norte de Glasgow até ao Lancashire. – Passei a tarde num bar de pescadores a pedir bebidas e a perguntar sobre as correntes. Especificamente, até onde poderá ser arrastado um corpo, se desaparecido perto da Ilha de Arran, e onde irá parar. – Assumindo que virá a ser encontrado – disse Randall num tom sombrio. Pôs-se ao lado de Kirkland para poder examinar o mapa. – Onde apareceu o O’Reilly? Kirkland bateu no mapa. – Perto desta aldeia, Southerness. Randall assobiou suavemente. – Tão longe? Fica do outro lado do estuário de Solway, a partir de Inglaterra. – Há tantos fatores de vento, clima e correntes. Devíamos investigar na Irlanda; na realidade, é mais perto de Arran do que Southerness. – Kirkland suspirou. – Ninguém sobreviveria a ser arrastado até tão longe, não numa água tão fria. Se o Ashton tivesse chegado em segurança a terra, por esta altura já teria regressado a Glasgow, ou pelo menos enviado de lá uma mensagem aos seus. – Poderia ter ficado ferido com tanta gravidade que não conseguiria fazê- lo – disse Will, obstinado. Kirkland reconheceu que Will não aguentava largar a esperança, por muito diminuta que fosse. – É possível – concordou. – Mas não muito provável. Passou demasiado tempo desde o acidente. Uma lesão tão grave... provavelmente não seria possível sobreviver-lhe. Randall bateu em locais ao longo da costa onde tinham sido desenhadas cruzes. – O que significam estas marcas? – Pontos em que é mais provável aparecer um corpo, com base nas correntes normais. Acho que devemos separar-nos e passar por outras zonas em volta de Southerness, para ver se encontraram homens afogados – disse Kirkland. – Em algumas aldeias ou quintas, os locais limitar-se-iam a dizer uma oração e a enterrar um corpo não identificado. – Como dividimos o território? – perguntou Will. Depressa dividiram as zonas da costa prováveis, para não se sobreporem. Com isso decidido, disse Randall sombriamente: – Esta é a única coisa que nos resta fazer. Depois, teremos todos de voltar à nossa vida normal. Will suspirou. – Não tenho muita vontade de contar a Lady Agnes que falhámos. – A principal preocupação dela sempre foi que déssemos o nosso melhor – afirmou Kirkland. – O sucesso era apreciado, mas não essencial. – Duas criadas entraram com tabuleiros de carne, pão e batatas. Kirkland tomou consciência de que estava faminto e que era hora de terminar a discussão. Olhou para o mapa, para a cruz mais a sul. – Quando acabarmos, encontramo-nos nesta cidadezinha no lado inglês do estuário de Solway, já que é mais ou menos em frente a Southerness e parece grande o suficiente para ter uma estalagem. – Bateu com o dedo no local. – Hartley. CAPÍTULO 14
M ariah depressa verificou que Adam não brincara quanto a construir-lhe um jardim. Nos dias que se seguiram, ele contratou meia dúzia de homens da aldeia para começar a limpar os canteiros e as plantações deixados ao abandono. O período de cultivo da primavera estava mesmo a começar, portanto já era imperativo trazer o arranjo aos jardins. Isso durante o dia. À noite, já partilhavam a cama, embora cumprissem os limites físicos que Mariah estabelecera. Uma vez, Adam levantou-se, praguejando em voz baixa, e voltou para o seu quarto, antes que perdesse o controlo. Mariah ficou contente com o seu autodomínio, e triste por vê-lo partir. Adorava tê-lo por perto, adorava o prazer que aprendia com ele. E tentava timidamente aprender a dar-lhe também prazer; assim, depois daquela noite, ele não tinha precisado de sair. Onde terminaria tudo aquilo? Com ele a lembrar-se e a deixá-la, ou com eles a tornarem-se amantes? Ou ambas, embora não necessariamente naquela ordem. Ela tornou-se fatalista. Desfrutaria dele tanto tempo quanto pudesse – e tentaria evitar fazer algo que lhe arruinasse o futuro. * A equipa de trabalhadores de Adam atacou os jardins maiores, mas no jardim fechado trabalhou ele pessoalmente. O objetivo era criar um verdadeiro jardim de meditação que gerasse tranquilidade em todos os que entravam. Cortar videiras e o que crescera em excesso dava-lhe uma profunda sensação de satisfação, embora ao fim do dia o seu aspeto sujo de lama decidisse bastante bem a questão de saber se ele era ou não um cavalheiro. Não era. Mariah andava impaciente para ver o jardim da meditação, mas Adam não a autorizava antes de estar pronto. Uma vez por dia, ela saía do escritório para apanhar um pouco de ar fresco e tentava entrar despercebida no jardim. Ele detinha-a. Era um jogo de que ambos gostavam. Adam tinha acabado de limpar a desgastada fonte de pedra que encontrara embutida na parede quando ouviu Bhanu a aproximar-se, o que significava que Mariah também o estava a fazer. Levantou-se apressadamente e limpou as mãos numa velha toalha estragada, e foi depois intercetá-la antes que chegasse à entrada do jardim. Mariah ofereceu-lhe um sorriso maliciosamente insinuante. Com o simples roupão azul, estava encantadora. – Já acabaste? Estou a morrer de curiosidade! Ele abanou a cabeça, os olhos a dançar. – Ainda não. É claro que um jardim nunca está verdadeiramente acabado, mas quero que este esteja numa condição aceitável quando o vires. – Proibir a entrada é a melhor maneira de me fazer querer desesperadamente visitá-lo. – Fez um movimento rápido para o circundar, mas ele apanhou-a, rindo. – Vale a pena esperar por algumas coisas. – Ele inclinou-se e beijou-a; só os lábios se tocaram, pois ele não queria enlamear-lhe o vestido. A boca de Mariah era um banquete, e ele tinha sempre fome dela. – Estás só a tentar distrair-me – disse ela, sem fôlego, quando o beijo terminou. – Está a resultar? – Temo que sim. – Ela lançou-lhe um olhar de confusão exagerada. – Porque é que eu andava a vaguear por este caminho? Adam segurou-lhe o queixo com a mão, o seu toque uma carícia. – Querias perguntar-me quando é que o jardim ficará pronto para o veres, e oferecer-te para pedir a Mrs. Beckett que prepare um piquenique para almoçarmos aqui nesse dia. Mariah soltou um riso abafado. – Era essa a minha missão? Muito bem, quando será a visita? – Dentro de dois dias, se o bom tempo se aguentar. – Ele olhou para o céu. – O que nunca é certo, nesta parte do mundo. – Espero que corra bem. Mrs. Beckett ficará encantada por cooperar. Ela adora o teu apetite substancial. – Tentou passar despercebidamente por ele. Adam agarrou com firmeza a rapariga matreira e beijou-a novamente. – Vejo-te mais tarde, ao jantar, e podemos trocar novidades dos nossos feitos. – Muito bem. – Mariah desceu os olhos para Bhanu, que investigava com felicidade aromas interessantes. – Bhanu, vens comigo ou ficas com o Adam? A cadela olhou-a, voltando depois a farejar. – Acho que tu e o jardim conquistaram a lealdade dela, por enquanto. – Ela é um bicho inconstante e não tarda vai à tua procura. – Observou a cadela. – Como é possível que uma criatura seja ao mesmo tempo tão adorável e tão feia? – Ela é excecionalmente talentosa. – Com um último olhar sedutor, Mariah virou-se e dirigiu-se de volta para casa. Adam teve a sensação de que o seu coração a seguia pelo caminho. Que homem afortunado era ele. À parte os sonhos incertos, continuava sem memórias do passado, mas Mariah tivera razão ao dizer que o presente e o futuro importavam mais. Desde que a tivesse, talvez de facto o passado não importasse. * O bom tempo manteve-se, pelo que Mariah estava agradecida. Invejava Adam por trabalhar lá fora. Ela passava grande parte do tempo no escritório, a desenvolver planos para melhorar a propriedade com os fundos bastante modestos à sua disposição. Adam tinha sido uma grande ajuda. Ainda melhor, o vigário apresentara-a a Horace Cochrane. Mr. Cochrane fora intendente de um conde em Northumberland. Uma vez que estava a envelhecer, reformara-se recentemente e voltara para a sua cidade natal, Hartley. Um mês de ócio convencera-o de que preferia trabalhar, mas num ritmo menos árduo. Em apenas alguns dias em Hartley, ele já estava a fazer a diferença. No dia em que ia visitar o jardim de Adam, Mariah achou difícil concentrar-se nas contas. Foi um alívio quando chegou o meio-dia e pode pôr de lado o trabalho. Adam anunciara ao pequeno-almoço que queria vendá-la, para que pudesse entrar no jardim e ter uma surpresa. Isso dera- lhe, em consequência, a ideia de surpreendê-lo. Com os olhos a dançar de divertimento, desceu à cozinha para ir buscar o cesto de piquenique que Mrs. Beckett preparara. Como sempre, ele ouviu-a a aproximar-se pelo caminho sinuoso e foi ao seu encontro. O trabalho no exterior fizera maravilhas. Os hematomas haviam desaparecido e ele estava em forma e saudável. Andava sem chapéu, os cabelos escuros despenteados e a cor viva dos olhos realçada por toda a verdura ao redor. De camisa branca e calças azuis escuras, parecia decididamente fogoso. Mariah saudou-o com um sorriso. – O dia de primavera bom e soalheiro que encomendaste chegou mesmo a horas. – Estou muito contente por isso. As encomendas de um tempo perfeito muitas vezes extraviam-se. – Ele beijou-a, fazendo com que os seus dedos dos pés se enrolassem de prazer. Os últimos dias tinham sido tão perfeitos que ela sentia que estavam em lua de mel. Pegando no pesado cesto, Adam disse: – Uso um destes grandes laços moles como venda? Mariah assentiu. – Achei que atar lenços na asa faria o cesto parecer festivo. Esta é uma ocasião especial, no fim de contas. Ele olhou para o caminho. – Onde está a Bhanu? – Ela considerou juntar-se a mim, mas não quis deixar a cozinha – Mrs. Beckett está a assar carne para o jantar. – Mariah sorriu. – Além disso, a Bhanu e a Annabelle estão a ficar bastante amigáveis. Vi-as enroscadas uma ao lado da outra, junto à lareira. – Cadelinha infiel. – Adam pousou o cesto e desatou o lenço azul, cuidadosamente escolhido para condizer com o vestido de Mariah. Enquanto Adam lhe enrolava o tecido em volta da cabeça, para que os olhos ficassem completamente tapados, ela comentou: – Isto é muito disparatado, sabes? Tenho a certeza de que vou adorar o que fizeste, mesmo que não envolvesse uma surpresa. – Espero que sim. – Ele meteu a mão de Mariah na curva do braço, e pegou no cesto. – Mas a verdadeira razão por que te vendo é para que experimentes primeiro o jardim com outros sentidos. A visão é tão poderosa que subjuga tudo o resto. – Essa é uma ideia interessante. – Depois de uma dúzia de passos, ela disse: – Tens razão, estou mais consciente da sensação de ter as pedras sob os pés. Pequenas irregularidades, os tufos de relva entre as pedras, quando uma pedra é elevada ou desnivelada. – Reforçou o aperto no braço dele ao pisar uma pedra particularmente baixa. – É estranho ter de depender de outra pessoa para algo tão simples como andar. – Não vou levar-te por um mau caminho. – A voz era baixa e persuasiva. Extremamente consciente da entoação rica, Mariah perguntou: – Vendaste-me como uma... metáfora para a maneira como te tenho guiado desde que não consegues ver o teu passado? Em voz surpreendida, Adam respondeu: – Não tinha pensado nisso dessa forma, mas é verdade. – Ele beijou-lhe a testa. – Não me levaste pelo mau caminho. A confiança na voz dele fez com que Mariah se encolhesse, no seu íntimo. Depois de mais uns passos, perguntou: – Acabámos de passar pelo arco que leva ao jardim? O ar pareceu... mais comprimido, por um momento. – És muito percetiva. – Ele conduziu-a para a frente mais uma dúzia de passos e parou, retirando-lhe a mão do seu braço. – Chegámos. Diz-me o que sentes. – Para começar, acabei de ouvir-te a pousar o cesto. Os ladrilhos em que estou parecem diferentes das lajes do caminho que vem até aqui. Mais simples, mas mais regulares. – Mariah virou-se num círculo lento. – O ar está muito parado; os muros protegem-nos da brisa. E também apanham o sol. O teu jardim é percetivelmente mais quente do que o lado de fora. – O que ouves? Mariah recobrou o fôlego. – Água corrente! O som geral é constituído por vários sons menores, que são como notas diferentes, altas e baixas. Montaste uma fonte? – Restaurei uma fonte que já existia, que tinha ficado escondida debaixo da videira – respondeu ele. – Que mais? – Chilreios. As aves canoras estão por todo o país, mas normalmente não reparo tanto nelas. Há passarinhos aqui dentro do jardim, não há? E ouço... toutinegras e pardais, acho. Mais longe. Camadas e camadas de sons adoráveis. E os aromas! Os narcisos amarelos estão em flor, acho eu. Sinto- lhes o cheiro. Fazem-me sempre pensar em manteiga. Mas há também outros odores. Diferentes aromas de plantas. E acho que aquela árvore de fruto espaldeira está a começar a florescer. Maçãs? Adam riu-se entre dentes. – Estás a sair-te muito bem nisto. Usaste o cheiro, o som e o toque. Tudo, menos o paladar. Gostarias de mordiscar uma flor? – Posso fazer melhor do que isso. – Usando a voz dele como guia, aproximou-se e segurou-lhe os braços, esticando-se depois para lhe beijar o pescoço. – Mmm, salgado. Muito agradável. – Apertou-lhe os braços. – Forte, mas um pouco dócil. Uma sensação agradável e sólida. Adam riu-se e atraiu-a para um abraço. Mariah deu-se conta de que toda a extensão do seu corpo se empurrava contra ele. A pressão estimulante dos seios contra o peito dele, o pulsar do sangue através dos seus pontos mais íntimos devido à proximidade entre eles. A visão foi-lhe devolvida abruptamente quando Adam lhe tirou o lenço dos olhos. Mariah quase ficou triste por ser arrancada do mundo dos sentidos, embora feliz por ver o bonito rosto moreno tão perto do dela. – Graduaste-te com distinção – disse ele. – Acho que, em criança, me levaram vendado a um jardim. Mais uma vez, não me lembro verdadeiramente, mas dá-me a sensação de que eu próprio experimentei isto, há muito tempo. Foi por isso que quis que tentasses. – Foi aquela visita ao outro jardim de que te lembraste? – perguntou Mariah ao sair do abraço dele. Ele franziu o sobrolho e depois abanou a cabeça. – Talvez, mas na verdade não sei. Querendo tirar-lhe do rosto a expressão sombria, Mariah observou o jardim. No seu estado selvagem fora adorável, mas o trabalho cuidadoso de Adam havia criado uma sensação de profunda harmonia. Um velho banco de madeira fora convidativamente colocado debaixo da árvore, e o que tinha sido um canteiro irregular de folhagem transformara-se numa agradável porção de relva. O melhor de tudo era a fonte. Mariah atravessou o jardim para a ver mais de perto. – Adoro o modo como a água flui da boca do leão, em cima, e depois se entorna naqueles reservatórios de diferentes tamanhos, criando sons diferentes. Disseste que a fonte estava aqui quando podaste a videira? – Ela tocou a pedra cinzenta coberta de líquenes da cabeça do leão, depois vagueou os dedos na água límpida do reservatório por baixo. – Estava completamente coberta. Tinha planeado instalar uma fonte, por isso foi muita sorte descobrir esta. O cano e os reservatórios precisavam de ser limpos, mas mais nada. Mariah deixou-se ir pelo jardim, examinando e tocando. – Fizeste aqui um trabalho maravilhoso. Até respirar o ar é relaxante. – Fico feliz por gostares. – Ele olhou em volta com satisfação. – Ainda falta fazer muito, mas estou contente por estar a tornar-se no que eu queria. – Está na hora de comemorar a tua criação. – Mariah levantou a tampa do cesto apenas o suficiente para tirar uma manta de colo um tanto esfarrapada. Depois de a estender na relva, pousou o cesto no meio da manta e instalou- se graciosamente ao lado dele. Pelo menos, esperava parecer graciosa. – Tinhas uma surpresa para mim. Agora tenho uma para ti. – Ela esboçou um sorriso malvado. – Vamos ter um almoço escuro. CAPÍTULO 15
À squepalavras de Mariah, Adam levantou os olhos para o céu cheio de sol, continha apenas algumas nuvens brancas inchadas. – Espero que isso não queira dizer que vou ter de esperar pelo anoitecer para comer. – Vamos comer agora, mas vendados – explicou ela. – Uma vez, o meu pai esteve numa casa de jogo em Paris que servia um souper noir – um jantar escuro. A sala de jantar estava completamente às escuras e os criados eram invisuais, peritos em trabalhar na escuridão. Serviam uma variedade de comida. O meu pai disse que foi interessante, se bem que um tanto desconcertante. – Mariah sorriu. – Ele contou também que o jantar era essencialmente um prelúdio para uma orgia. – O teu pai contou tal coisa à jovem filha? – perguntou Adam, escandalizado. – Usou linguagem bastante mais delicada, mas sim, era essa a ideia geral. – Por instantes, sentiu novamente a sufocante dor da perda. Mas, desde que Adam chegara, não era tão forte. Quase desistira de esperar que chegasse uma carta do pai, animada e cheia de novidades, desculpando-se por não ter escrito durante tanto tempo. Forçando-se a continuar, disse: – Ele achava que eu devia conhecer os desígnios do mundo, uma vez que o acompanhava a todas aquelas festas privadas. A história do jantar escuro foi só por divertimento, pois aconteceu muitos anos antes. Era ele um rapaz a fazer a Grand Tour 1, creio eu. – Ele fez a Grand Tour? Teve a sorte de ter a oportunidade. – Adam dobrou-se sobre a manta. – Desde a Revolução Francesa, os jovens cavalheiros ingleses têm sido privados da oportunidade de fazer fraca figura nas grandes capitais da Europa. O teu pai era de uma família abastada? Mariah hesitou. – Ele nunca falava sobre essas coisas. Fiquei com a impressão de que era companheiro de viagem do herdeiro de algum grande lorde. Um pensamento assustador, o meu pai poder ter sido considerado o rapaz responsável! Adam soltou um riso abafado. – Quaisquer que fossem os seus defeitos, criou uma filha excelente. Mariah desapertou o segundo lenço da asa do cesto. – Não faço mais ideia do que aqui está do que tu. Expliquei o almoço escuro a Mrs. Beckett e disse-lhe para usar a imaginação. Ela pareceu gostar bastante da ideia, por isso prepara-te! – Ajoelhou-se e enrolou o lenço em volta da cabeça de Adam. – Consegues ver alguma coisa? – A mais leve ponta de luz entra através do tecido, mas não vejo nada. É uma sensação estranha – disse Adam, pensativo. – Diferente da escuridão da noite. Mais... vulnerável. Agora para ti. Consegues vendar-te? Não pode haver batota! – Assim perdia-se a graça. Eu enrolo, mas ajudaria se apertasses o lenço. – Ela enrolou a extensão em volta da cabeça, tapando os olhos com tanto cuidado como fizera com Adam. – Vou curvar-me sobre o cesto para que o prendas. – Ouviu os ligeiros sons de um homem a mudar de posição. Depois os dedos dele, em busca, tocaram-lhe na nuca. Mariah susteve a respiração, pois dispararam por ela sensações eróticas. A voz fraquejava quando disse: – Isso é o meu pescoço. O lenço está alguns centímetros mais perto de ti. – Desculpa. – As mãos dele moveram-se até onde ela segurava as extremidades do lenço, atrás da cabeça. Enquanto Adam o apertava com destreza, Mariah maravilhava-se com o quanto os toques entre eles pareciam mais íntimos naquele estado vendado. Até o roçar das pontas dos dedos dele no seu cabelo era fascinante. Assim que o lenço estava apertado, Mariah abriu a tampa do cesto. – Agora, toca a descobrir o que temos. Ah, quatro guardanapos para que possamos tapar o colo e ter um de reserva para limpar derramamentos. Aqui tens – estou a segurar o teu acima do meio do cesto. – É uma mulher sábia. A sujeira é inevitável. Mas divertida, penso eu. – A mão à procura localizou os dois guardanapos. – Isto será provavelmente mais fácil se comermos um prato de cada vez, pois qualquer coisa que se pouse poderá perder-se. – Mariah estendeu um guardanapo no colo e depois vasculhou novamente com a mão no cesto. – Vamos começar pelas bebidas. Mrs. Beckett disse que pôs duas garrafas de algo apropriado, mas não disse o quê. Aqui está a tua. Muitos momentos passaram antes que a mão dele tocasse o fundo da garrafa e subisse depois sobre os dedos de Mariah, acariciando-a com a palma. Ela lambeu os lábios, querendo inclinar-se para a frente e mordiscá- lo. Estava surpreendentemente consciente da presença de Adam, de certa forma mais do que se conseguisse vê-lo. Calor corporal. Movimento do ar quando se estendia em direção a ela. Os sons débeis que se faziam, mesmo quando a pessoa estava parada. O odor particular dele, no qual ainda não reparara conscientemente. O dele era... intrigante. Masculino. Queria esfregar o rosto contra ele. Mariah corou ao perceber que a consciência não seria mais acentuada se estivessem sentados na manta despidos. Graças a Deus ele não conseguia ver como estava a reagir! Os dedos de Adam fecharam-se na garrafa, roçando-lhe o lado da mão. – Já a tenho, por isso podes largar. Uma rolha, vejo, mas não muito metida para dentro. – Ouviu-se um estouro, seguido por sons efervescentes. – Champanhe! Mrs. Beckett entrou no espírito da ocasião, sem dúvida. Vamos ver se a outra garrafa é do mesmo. Ele abriu-a. Mais efervescência. – Champanhe para cada um de nós. Aqui está o teu. Mariah pegou na garrafa e inclinou-a para cima para beber. O vinho desceu borbulhante pela sua garganta, fazendo-a sentir-se igualmente efervescente. – Delicioso! O orgulho da garrafeira do Burke, desconfio. – Belo produto – concordou ele. – Que vem a seguir? A garrafa gorgolejou quando Adam a inclinou para beber. Mariah imaginou os lábios dele fechando-se sobre a borda de vidro e estremeceu perante a sugestiva ideia. Para manter sem riscos a garrafa na vertical e fácil de encontrar, colocou-a entre os joelhos, mais uma vez agradecida por ele não conseguir ver o comportamento impróprio de uma senhora. – Tu escolhes. Sons suaves enquanto ele explorava o conteúdo do cesto. – Há todos os tipos de formas interessantes. Vou dar uma olhadela a este objeto redondo embrulhado em gaze. – Deu uma risada pesarosa. – Desculpa, ver e olhar fazem tanto parte da linguagem que é difícil não usar as palavras. Ela sorriu com ele. – Como é o toque e o cheiro do teu prémio? Um frufru de tecido fino em movimento. Depois ele cheirou. – A embalagem contém duas bolas com cerca de sete centímetros de diâmetro. São quentes e flexíveis. Crocantes e bastante gordurosas. Algum tipo de carne frita, creio. – Fez uma pausa. – Existem lugares onde certas... partes essenciais do material reprodutivo do touro são comidas como um acepipe especial. Achas que...? – Com certeza Mrs. Beckett não nos faria isso, mesmo assumindo que os ingredientes estavam disponíveis! – Mariah também fez uma pausa, desconcertada. – Ou faria? Qual de nós provará primeiro? – Eu provo, porque sou um marido valente que protege a mulher de desagrados. – A trinca pareceu cautelosa. – Tem carne, mas por dentro é suave e escorregadio. Não creio que seja o que debatíamos. Aqui está o segundo. Talvez consigas identificar. Depois de uma agradável confusão de dedos, ela tirou-lhe a esfera quente. Uma dentada confirmou a sua suposição. – Um ovo escocês! Devia ter percebido, mas sempre os identifiquei à vista. – Regou a dentada com um generoso trago de champanhe. Começava a ter uma sensação agradável e feliz do álcool. Se estivessem num baile, dançaria toda a noite. – Cobre-se um ovo cozido com linguiça moída, enrola-se em ovo e miolo de pão e depois frita-se. Muito saboroso, quando se sabe o que é. – O sabor é muito melhor, agora que sei. – A voz tinha um sorriso. Depois de terminarem os ovos escoceses, ele disse: – É a tua vez. Mariah tateou em volta dentro do cesto. – Encontrei dois frascos largos e pequenos com tampas de cortiça. Quentes. – Levantou um e inclinou-o. – Sopa, suponho. Mrs. Beckett faz sopas maravilhosas. Queres? Adam pegou no frasco e removeu a tampa de cortiça. Libertou-se um exótico aroma condimentado. – Bom Deus, caril! – exclamou ele. Mariah abriu o seu frasco e inalou. – É muito característico, não é? Comi algumas vezes comida com caril. Obviamente tu também comeste. – O cheiro é muito evocativo – disse ele devagar. – Penso que o comi muitas vezes, mas não me lembro de nenhuma ocasião em concreto. – Talvez comer a sopa te refresque a memória. Deve haver colheres no cesto. Ah, aqui está a tua. Tinham desenvolvido um certo jeito para passar peças de um lado para o outro usando a mesma área sobre o cesto. Quando a mão dele tocou na sua, os dedos acariciaram-lhe o pulso, arrastando-se através dele. – Hmm, suave – disse ele. – Não é uma colher. Os dedos de Mariah firmaram-se involuntariamente no instrumento de metal. Era um esforço para dizer com calma: – A sua colher, senhor. Ele aceitou-a e ela provou a sopa. – Cremosa. Penso que tem cebola picada e cenoura, mas não sei bem o que são os pedaços de carne. Frango, talvez? – Isso ou coelho. É difícil dizer, porque nenhum deles é particularmente característico. Todavia, é bom. Depois de terminarem e Mariah ter colocado os frascos vazios no cesto, ele disse: – O sabor do caril é estimulante, mas não se revelou nenhuma memória. Ouvindo-lhe a frustração na voz, ela disse: – Vou pedir a Mrs. Beckett que faça pratos com caril até que as memórias ganhem forma. Agora é a tua vez de escolher. Adam atacou novamente. – Cá está mais um artigo flexível embrulhado em gaze. Vamos ver... duas fatias de uma substância mole e húmida, com massa em volta do rebordo. Aqui está a tua fatia. A dose de Mariah tinha um aroma intenso, familiar, mas desesperantemente esquivo. – Não é queijo. Algo de carne. – Ela trincou um pedaço e deixou que se dissolvesse na boca, para poder tomar completamente o gosto aos sabores. – Patê. – De cogumelos – concordou ele. – Mrs. Beckett tem uma variedade impressionante. Ela comeu o resto da fatia e regou-a. Tudo sabia melhor quando era seguido de champanhe. – Estou a ficar bastante cheia, mas o cesto ainda não está vazio. Vou ver se consigo encontrar um fim doce para a refeição. – A mão que sondava encontrou uma taça oval com tampa, a cerâmica quente ao toque. – Aqui está uma caneca rasa que poderá conter um pudim. Vamos ver... – Levantou a tampa e enfiou lá dentro um dedo hesitante. Puxou-o bruscamente com rapidez. – Oooh, é repugnante! Parecem minhocas picadas. – Com certeza que não. – Os dedos tocaram os dela ao tatear em busca da taça. Fez-lhe uma pequena carícia antes de lá chegar. – Definitivamente... estranho – concordou ele. – Mas cheira bem e tenho fé em Mrs. Beckett. Vou provar um pouco. – Mariah ouviu-o provar e engolir. – Macarrão com queijo – anunciou. – E uma versão muito boa. Nunca tive consciência do quanto o macarrão com queijo parece assustador, se não o pudermos identificar pela visão. Era um prato de que Mariah gostava, portanto disse: – Teremos de partilhar, uma vez que só há uma taça. Pega num garfo. Podemos segurar a taça entre nós e comemos os dois dela. O prato estava tão saboroso que sem demora riam, os garfos a chocar. – Vou ter de usar os dedos para ver se sobra algum. Ah, há um pouco. Vais tu comê-lo, já que enfrentaste as minhocas picadas. Consegues tirar este último pedaço dos meus dedos? – Para provar que me tens a comer da mão? – disse ele com um sorriso na voz. – De muito bom grado. Mariah estremeceu de prazer quando ele encontrou o petisco e o mordeu com lábios quentes. Adam demorou-se, chupando-lhe devagar as pontas dos dedos. Ela inalou acentuadamente enquanto todo o seu corpo vibrava com a consciência. – Os dedos não... estão no menu. – Não? – Ele arrastou a língua sobre o centro de intensa sensibilidade da palma da mão. Mariah soltou um gemido sufocado. Adam recobrou o fôlego e, por um momento, pressionou a face na palma da mão. – És mais doce do que o prato mais excecional alguma vez criado – segredou. Empurrando o cesto para o lado, baixou-a para a manta. A boca encontrou a dela e as línguas juntaram-se com uma sensualidade feroz. Tonta com o champanhe e com o jogo erótico, Mariah ansiava pelo toque dele em cada fibra do seu ser. A exploração mútua das últimas noites ensinara-lhe algo dos prazeres da paixão. Agora queria-o – todo ele. As vendas levavam-nos do mundo normal para um reino de puro prazer. Os seus sentidos estavam em chamas. Adorava o sabor dele, o cheiro, a voz. Acima de tudo, adorou a sensação das mãos e dos lábios dele, quando lhe puxou as saias para cima e lhe acariciou a pele macia da barriga. Mariah ofegou quando a mão dele deslizou entre as suas coxas, os dedos tão íntimos como a boca perversamente hábil. – Linda – respirou ele. – Em todos os aspetos do corpo e da alma, és linda. Estonteada com o desejo e o champanhe, não lhe interessava a moral, o futuro ou as possíveis consequências. A paixão andava a construir-se desde a noite em que se conheceram, e nada importava senão unirem-se na mais primitiva das formas. Mariah gemeu no pescoço dele quando os dedos deslizaram bem fundo dentro dela. Toda ela era calor, humidade e necessidade lasciva. Os momentos em que Adam parou para desabotoar a braguilha e libertar-se foram demasiado longos. Ela mordeu-lhe o ombro, querendo consumi-lo. – Acho que não consigo fazer isto durar – disse ele, irregular, enquanto se pressionava contra ela. – Não me importo! – Envolveu os braços em volta do peito dele e puxou- o com força contra o seu corpo. Uniram-se com uma velocidade que não deixava margem para dúvidas. Adam estava dentro dela, ardente e vigoroso, incrível, surpreendente e necessário. A breve ponta de dor não lhe esmoreceu o desejo, apenas intensificou a necessidade de se tornarem numa só carne. Balançou-se contra ele, sentindo cada movimento no seu corpo esguio e poderoso. Depressa encontraram um ritmo que intensificava a cada impulso o escaldante prazer. Ela era uma mola espiralada, a enroscar-se intoleravelmente mais, até que ele deslizou os dedos entre eles e a tocou com a perícia de um especialista. Ela despedaçou-se, já sem consciência dos limites entre eles. Só a intimidade e o prazer pecaminoso, para lá de tudo que já sonhara. Meu Deus, Meu Deus, Meu Deus... Quando as unhas dela lhe picaram nas costas, Adam libertou um clamor sufocado e ficou rígido. Mariah envolveu-o com os braços e as pernas, mantendo-o seguro enquanto ele transbordava dentro dela. Com a paixão extinta, a consciência normal voltou. Mariah respirou irregularmente ao reconhecer que estavam fechados, juntos, numa manta tosca, os pássaros a cantar como se os dois humanos em baixo não tivessem acabado de realizar um ato que mudava irrevogavelmente a relação. A cabeça girou com o champanhe e o choque. – Mariah, meu amor. – Adam rolou para o lado, mas manteve-a perto. Ela ouviu o frufru quando ele tirou a venda. Depois, ele puxou a dela. Quando piscou os olhos, com a luz, ele beijou-lhe o canto do olho com uma ternura dolorosa. Era tão honesto, tão verdadeiro. E ela não. – Dou graças pelo dia em que te tornaste minha mulher. Mas... – Ele hesitou, a voz indecisa. – Talvez esteja enganado, mas... não consumámos o matrimónio, depois do casamento? Mesmo agora confiava nela, dando-lhe o benefício da dúvida quando os factos não concordavam com o que ela lhe dissera. A culpa pelas mentiras em cascata espalhou-se por ela. Pôs-se em pé, com lágrimas de angústia e aversão a si mesma a encherem-lhe os olhos. – Lamento – ofegou. – Lamento muito. Querendo escapar antes de desmoronar por completo, virou-se e tentou fugir do jardim, mas ele foi demasiado rápido. Agarrou-a por trás, puxando- lhe as costas contra o seu corpo, os braços em volta da cintura. – Sinto muito, Mariah – disse ele numa voz confusa. – Pensei que querias deitar-te comigo. – Queria – respondeu ela, a voz sufocada. – Magoei-te? Isso seria a última coisa que eu jamais quereria fazer. – Mantendo-a presa com um braço em volta da cintura, Adam usou a outra mão para lhe afagar o ombro e o braço, como se ela fosse um pónei nervoso. – Nada que tenha importância – sussurrou ela. – Então o que se passa, Mariah? Eu amo-te e quero ser um bom marido. Sou assim tão diferente do que era antes? Por muito que desejasse desaparecer no chão, Mariah tinha de dizer-lhe a verdade. Respirou fundo e libertou-se do abraço, virando-se para encará-lo. – Não sei como eras antes – disse ela com tristeza. – Não somos marido e mulher. Nunca na vida te tinha visto, antes da noite em que te tirei do mar. 1 Expressão utilizada para referir uma viagem cultural pela Europa, empreendida por jovens aristocráticos, comum sobretudo durante os séc. XVII e XVIII. (N. da T.) CAPÍTULO 16
O fôlego de Adam extinguiu-se como se um gigante lhe tivesse batido na barriga. O cabelo loiro brilhante de Mariah espalhado pelos ombros, solto e sensual, como ele desejara ver. Ansiava por tomá-la nos braços – e ela dizia que não pertenciam um ao outro. – Não somos casados? – perguntou ele, entorpecido, incapaz de acreditar que Mariah não era sua. – Não és minha mulher? Ela usou um lenço para absorver as lágrimas. Mesmo com os olhos inchados e o nariz vermelho, era adorável. – Não. Lamento muito. Menti, e isto... simplesmente descontrolou-se. – Por que disseste que éramos casados? Mariah enrolou o lenço húmido. – Estava tão sozinha, e o George Burke andava a cortejar-me – disse ela, hesitante. – Algo me dizia que seria um erro terrível casar com ele, mas normalmente ele era encantador e razoável. Conseguia sentir-me a ser arrastada para dizer sim. Dessa forma, seria poupada de um processo judicial, teria um marido com raízes em Hartley – tudo seria muito mais fácil. Num momento de fraqueza, poderia tê-lo aceitado. P... por isso disse- lhe que tinha um marido que estava na Península. – A combater os franceses? – Imagens de soldados, planícies altas e quentes e combates sangrentos passaram-lhe pela mente. Passara pela experiência? Talvez tivesse apenas lido sobre a batalha nos jornais, já que faltava às imagens a clareza dos sonhos. – Depois apareci eu e não sabia quem era. Material conveniente para um marido que não existia. – Há mais. – Dobrou-se na extremidade do banco. – Aprendi pequenos rituais fora do vulgar com a avó Rose. Maneiras simples de nos concentrarmos no que queremos ou precisamos. Uma noite acordei desesperada e por isso decidi fazer um encantamento, a pedir uma solução para o meu problema com o Burke. – Sorriu de modo estranho. – A avó Rose costumava dizer que os seus rituais eram como orações com ervas acrescentadas. – Então desejaste um marido. – Não queria ser tão específica. Mas à medida que queimava o incenso no mirante, dei por mim a suspirar pelo... marido dos meus sonhos. Alguém diferente do Burke. A seguir ao ritual, senti-me em paz e dormitei um pouco; e depois acordei, a ouvir na minha cabeça uma voz insistente que parecia mesmo a avó Rose. Ela disse-me que tinha de descer à praia. – Levantou os olhos para ele. – Foi então que te encontrei. – Custa-me a acreditar que na altura eu parecesse o marido dos sonhos de alguém. – Ele sentou-se no extremo oposto do banco, tão longe de Mariah quanto conseguia. O seu sentido de identidade despedaçara-se numa confusão sem remédio. Ele não era Adam Clarke. Ele não era ninguém. Havia assumido que amava Mariah porque ela era sua mulher, portanto claro que a amava. A convicção tinha sido fácil, dada a sua beleza e bondade. Mas tudo entre eles era baseado numa mentira. Eram desconhecidos, e já não sabia o que sentia por ela. Mariah continuou: – A princípio, não te relacionei com o ritual de encantamento. Só queria trazer-te para terra em segurança. – Ficou em silêncio por uma dúzia de batidas do coração. – Quando te perguntei se te lembravas de que era tua mulher, foi quase como se a avó Rose falasse através de mim. Mas não posso culpá-la. Eu disse as palavras e não as retirei mais tarde. De uma forma estranha, Adam compreendia que as circunstâncias podiam fazer algo parecer correto e lógico, ainda que não o fosse. Mas – ela mentira acerca de um facto crítico que se tornara na sua âncora. Agora essa âncora fora-se. – A minha aparência deve ter parecido marcada pelo destino. Mas por que não me revelaste a verdade depois de o Burke ir embora? – Queria fazê-lo, mas parecias tão feliz por pensar que eu era tua mulher. – Desceu os olhos para o lenço enrolado. – Preocupava-me como reagirias, se percebesses que estavas sozinho, sem memória de quem és. Ela tinha tido razão em preocupar-se, mas Adam pensava que teria sido mais fácil aceitar que não se conheciam no princípio. Desde o momento em que acordou, ainda um pouco abatido, abraçara a afirmação de que eram casados. Depressa acabou por sentir que não precisava de saber mais nada. Agora muito do que era misterioso fazia sentido. Não admirava que ela fosse tão ignorante em relação ao seu passado, à família e à profissão. Talvez tivesse sido o golpe na cabeça a torná-lo tão recetivo às explicações. Olhando para trás, espantava-o que não a tivesse questionado de forma mais dura. – Por que me chamaste Adam? – Adam foi o primeiro homem, e tu parecias confortável com o nome. – Mariah suspirou. – Fiquei na esperança de que a tua memória voltasse e eu pudesse confessar. Se tivesse sido só cerca de um dia, não teria tido tanta importância eu mentir. Eu podia arranjar um motivo que parecesse de certa forma convincente. Mas quanto mais durava o meu fingimento, mais difícil era contar a verdade. Assim, ele era um desconhecido sem nome, a viver da caridade de uma mulher que havia precisado de proteção de um patife. Olhou para as mãos calejadas. Não eram mãos de um cavalheiro. Saber que podia ser um jardineiro ou marinheiro não o perturbava muito. Era não saber que o perturbava. – Partirei amanhã, embora tenha de pedir roupas emprestadas, já que não tenho nenhumas. – Soltou um ganido de riso seco. Não tinha nada, não sabia nada, não era nada. – Não! – Ela encarou-o, horrorizada. – Teria todo o gosto em arranjar-te roupas e dinheiro, mas para onde irias? O que irias fazer? – Não faço ideia. Mas diabos me levem se continuarei como um mendigo à tua mesa – disse ele com frieza. – Não és um mendigo! – exclamou ela. – És meu... meu amigo. És sempre bem-vindo aqui. – Teu amigo. – O entorpecimento que começara no seu meio propagava- se, desvanecendo a força e a felicidade que conhecera com Mariah. – Eu tinha pensado que era muito mais. Mas agora compreendo o porquê de teres evitado a minha cama. – Eu... estava a tentar ser sensata – sussurrou ela. Adam analisou-lhe o rosto. – Por que mudaste de ideia hoje? Foi descuidado da tua parte ofereceres a virgindade a um desconhecido. – Já não és um desconhecido. – Ficou escarlate. – E hoje desejei-te tanto que não me importei com as consequências. O comentário era lisonjeiro, mas apesar disso assustou-o. – E se as consequências incluírem um bebé? O sangue escoou-se do rosto de Mariah. – Eu... eu não estava a pensar em nada, além do quanto te queria. – Os bebés são uma consequência normal da intimidade. Na verdade, são certamente o objetivo. – Olhou ao longo do seu jardim, que já não era seu. – Se estiveres grávida e eu tiver ido embora, podes dizer aos vizinhos que morri. Isso fará de ti uma viúva respeitável. Prometo não voltar para complicar-te a vida. – Não quero que vás embora! – As lágrimas cintilaram-lhe nos olhos. Adam analisou-lhe mais uma vez o rosto. Talvez devesse estar indignado com as mentiras, mas sentia-se sobretudo profundamente triste. Via que ela começara com uma pequena mentira conveniente que se estendera para fora do controlo. Agora, a sinceridade transparecia no rosto angustiado. A sua paixão parecia real, sem dúvida. No entanto, antes confiara nela sem questionar e essa simples confiança já não era possível. Mas continuava a desejá-la. Apertou-lhe a mão esquerda. Os dedos frios de Mariah prenderam-no com força. – Se queres que eu fique, podemos transformar a tua mentira em verdade. Não estamos longe de Gretna Green. Mariah mordeu o lábio. – Não há nada que quisesse mais, mas e se já tiveres uma mulher? Adam sentiu-se como se tivesse sido atingido por um golpe mortal. Poderia ser casado com outra mulher? – Eu... Eu não tinha tido tempo de pensar nisso. – Assentaste tão naturalmente no papel de marido que questionei se serias casado. – Mariah torceu a boca. – É mais provável do que seres solteiro. És demasiado bonito e bondoso para não teres tido raparigas a pretender-te. Se fores casado com uma loira pequena como eu, posso até ter-te parecido familiar. Mais elogios, mas não conseguia ultrapassar a compreensão de que, em termos práticos, não tinha um cêntimo em seu nome nem uma camisa para tapar as costas. Friccionou as têmporas latejantes. Os vasos sanguíneos pareciam prestes a explodir. – A ideia de outra esposa é mais do que consigo alcançar. Mariah esmagou o lenço na mão livre. – Estou sempre a imaginar uma mulher à tua espera, desesperada pelo teu regresso. E talvez filhos. Como poderei casar contigo sabendo que uma outra mulher pode ter o coração destroçado pela tua ausência? Não seria só bigamia, seria errado. Adam sentiu-se quase doente. Filhos era mais um assunto que não tivera em consideração. Além disso, não era descabido que pudesse ter uma jovem família. – Se tenho filhos, claro que não poderei abandoná-los conscientemente. Mas e se eu nunca recordar quem sou? Terei de viver a minha vida sozinho? – Pensei muito sobre isto, sem dúvida. – Mariah sorriu de modo inseguro. – Não passou assim tanto tempo do teu acidente. O facto de andares a ter sonhos que podem ser memórias dá a entender que em breve te lembrarás de quem és. Adam pensou naqueles sonhos. Algures na mente, a verdade sobre a sua identidade ainda devia existir. Tudo o que tinha de fazer era encontrá-la. – Quanto tempo devo esperar antes de ser seguro seguir em frente com a minha vida? – Acho que um homem tem de estar desaparecido sete anos para ser considerado morto – disse ela, hesitante. – Se ao fim desse tempo ainda não souberes quem és ou de onde vens, deve ser seguro supor que a tua nova vida é a única que terás. – Sete anos – disse ele sem graça. – É muito tempo. Muito pode acontecer em sete anos. – Achas que algum dia vais aprender a confiar em mim outra vez? – murmurou ela. – Ou se não confiança... pelo menos perdão. – Espero que sim. – Ele observou-lhe os traços delicados e a figura sensual e de proporções perfeitas, desejando tê-la visto despida. Imaginava que não significasse muito para um homem com amnésia pensar que ela era a mulher mais bonita que algum dia vira, mas mais do que bonita era... muito querida. A confiança e o desejo não tinham muito que ver um com o outro. – Mas é muito cedo. Mariah assentiu, sem surpresa. – Gostava que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer para te ajudar a lembrar. Já me ajudaste tanto, livrando-me do George Burke. Agora que ele pensa que tenho um homem para me proteger, não se deu ao trabalho de começar um processo. – Teria sido melhor se tivesses feito menos. Mas fico contente por o Burke ter parado de te incomodar. – Suspirou ao olhar para a água que a fonte derramava. – Se estiveres grávida, acho que terás de casar comigo. Depois, se uma manhã eu acordar e me lembrar de que tenho uma família noutra parte qualquer, vou embora e tu choras a minha morte prematura. Pelo menos a criança não carregará o estigma público da ilegitimidade. – Isso parece... razoável – disse, com um nó na garganta. Embora não conseguisse confiar em Mariah, Adam também não aguentava ver a sua infelicidade. Moveu-se ao longo do banco e apertou-a num grande abraço, pensando em como passara depressa de uma alegria apaixonada para um sofrimento igualmente apaixonado. Mariah agarrou-se a ele, no princípio a tremer, mas pouco a pouco relaxou. Ele acariciou-lhe o cabelo brilhante, passando os dedos pela massa dourada. Desejava puxá-la para a relva macia e fazer de novo amor com ela. Desta vez devia ser lento e sensual, com todas as peças de roupa despidas para que pudessem deitar-se carne com carne. Contudo, agora que sabia que não eram casados, a paixão já não levava a melhor. Se não tinham feito um filho naquele dia, não deviam arriscar que tal acontecesse quando tanto era incerto. Adam enterrou o rosto no cabelo dela e pensou no que iria acontecer- lhes.
Naquela noite dormiram ambos sozinhos. Ou talvez não tenham dormido. CAPÍTULO 17
Hartley, Norte de Inglaterra
O sdireção dias tornavam-se maiores à medida que a primavera avançava em ao verão. Will Masterson ficava contente por isso, pois de outro modo estaria a cavalgar na escuridão. O que não era sensato, quando se viajava por estradas desconhecidas em lugares agrestes. Entrou no pátio do Bull and Anchor, a única estalagem de Hartley, quando a claridade começou a desaparecer sobre o mar da Irlanda. O sítio era pequeno, mas parecia bem conservado. Esperava que tivessem um quarto para ele, mas, dado o seu nível presente de cansaço, aceitaria de bom grado a palha dos estábulos, se razoavelmente limpa. Teve sorte. Três dos cinco quartos da estalagem estavam disponíveis, portanto, se Randall e Kirkland aparecerem no dia seguinte, como planeado, devia haver espaço. Por aquela noite, Will ficava satisfeito por estar sozinho. O bar tinha uma carne de vaca cozida e uma cerveja aceitáveis. Considerou perguntar ao proprietário se algum corpo fora lançado à praia nas semanas anteriores, mas decidiu esperar até que os amigos se juntassem a ele. Não precisava de mais más notícias. Assim, comeu em silêncio, sabendo que Hartley era o fim da busca. Depois de terminar o jantar, aproveitou o longo crepúsculo do norte para descer até ao pequeno cais da cidade. Meia dúzia de barcos de pesca encontravam-se amarrados às pequenas docas. O rebentar das ondas e os clamores melancólicos das gaivotas eram calmantes. Embora os amigos o considerassem um otimista incurável, sabia que não havia muitas probabilidades de encontrar Ashton vivo. Todavia, esperava que encontrassem um corpo para levar para casa. Ash merecia a dignidade de um funeral decente. Embora tivesse inimigos, devido à sua posição, tinha ainda mais amigos por causa do homem que era. As hipóteses de um funeral decente já eram escassas. Depois de todo aquele tempo, era improvável o mar entregar o seu morto. Ao olhar o céu pós-pôr do sol, reconciliou-se com essa informação. Ash adorava o mar, e não era um mau lugar de repouso para os ossos de um homem. Porém, ficava ainda a questão de como morrera Ash. Will perdera amigos em batalhas, doenças e acidentes, e um maldito tolo que não conseguia conservar as calças apertadas fora alvejado por um marido espanhol ciumento. Mas nunca perdera um amigo num assassínio a sangue-frio. A procura pelo corpo de Ash terminava. A procura pelo seu assassino não terminaria até se encontrar o filho da mãe.
Na manhã seguinte, Will soube, com satisfação, que a estalagem servia um pequeno-almoço bastante decente. A bonita filha do senhorio, Ellie, chegou com um grande tabuleiro que continha uma caneca fumegante, uma cesta de pão fresco e um prato com uma pilha de salsichas e ovos, batatas fritas e cebolas. Ao pousar a comida, Ellie perguntou: – Deseja mais alguma coisa, Mr. Masterson? – Isto deve chegar perfeitamente. – Depois de um gole de chá, Will decidiu que estava na hora de fazer a pergunta. – Um amigo meu desapareceu quando o seu navio naufragou, a norte daqui. Eu e mais dois amigos temos andado à procura, a ver se o corpo apareceu algures ao longo da costa. Sabes se foi encontrado algum afogado nesta zona, nas últimas duas ou três semanas? Ela abanou a cabeça. – Há o marido de Mrs. Clarke, que deu à costa ao vir ao encontro dela, mas está vivo. Nenhum corpo, graças a Deus. Sobressaltado, Will perguntou: – Esse Mr. Clarke. É bem conhecido localmente, presumo. Teve um acidente de barco? – Tem razão quanto ao acidente, mas ele é novo em Hartley – respondeu Ellie. – A mulher dele acabou de receber Hartley Manor e Mr. Clarke vinha ter com ela quando o navio foi ao fundo ou coisa assim. – Ela franziu o sobrolho. – Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. – Nitidamente a falta de informação irritava-a. – Viste Mr. Clarke? – perguntou Will, de súbito com dificuldade em respirar. Quando a rapariga anuiu, continuou: – Como é ele? – Oh, um sujeito bonito, e muitíssimo cavalheiro – disse vivamente. – Vi- o várias vezes a andar a cavalo por Hartley. Não muito alto, mas uma boa figura de homem. Uma aparência morena, menos os olhos que são de uma tonalidade rara de verde. Uma bênção, não se ter afogado. Will praguejou em voz baixa e saltou da cadeira. Quase antes de Ellie ter acabado de falar, estava a caminho dos estábulos. CAPÍTULO 18
M ariah passou uma noite agitada, a pensar se o entorpecimento horrorizado de Adam iria transformar-se em zanga. A infelicidade no rosto dele quando ela confessou fê-la sentir-se doente. E, apesar da culpa, tinha saudades de o ter na sua cama. Embora tivessem dormido juntos apenas umas noites e feito amor uma só vez, a ausência dele doía-lhe como um membro amputado. Mal aguentava pensar que poderiam nunca mais estar fisicamente próximos. Encontrou algum conforto em acordar com Annabelle em cima do peito, o peludo rosto preto e branco zeloso à luz vaga. O habitual era a gata ficar na cozinha, junto ao fogo, mas talvez tivesse pressentido a angústia de Mariah. Qualquer que fosse a razão, estava contente por ter o corpo preto e branco lustroso instalado junto a ela. Mariah sentia-se nervosa quando se levantou e desceu ao piso inferior. Adam não se encontrava na sala do pequeno-almoço quando ela lá chegou. A imaginação produziu de imediato uma imagem dele a fazer a mala a meio da noite e a fugir a cavalo, para se afastar do seu eu mentiroso e indigno de confiança. A sua irmã Sarah não daria por si em tal situação. Adam apareceu quando Mariah servia o chá, lançando-lhe um leve sorriso ao aceitar a chávena que ela preparara para ele. – Dormiste bem? – Sinceramente? Não. – Mariah sorriu com pesar. – A Annabelle fez-me companhia. – E a Bhanu juntou-se a mim. – Adam barrou manteiga numa torrada. – Não foi... uma melhoria em relação ao que cheguei a esperar. Partilharam um olhar de soslaio. Mariah quase derreteu com o alívio. Poderia ser impossível estarem juntos no futuro, mas era muitíssimo importante que ele não a odiasse. Sentindo um desejo arriscado de o beijar, relembrou-se vivamente de que, a qualquer momento, Adam poderia lembrar-se de uma vida onde não havia lugar para ela. – Prova um pouco das conservas de amora. Foi a filha de Mrs. Beckett que as fez. – Obrigado. – Tirou uma colher cheia. – Acho que é melhor continuarmos a agir como antes. Até certo ponto. E Mariah sabia exatamente onde era esse ponto. Ele não lhe tocara desde aquele último abraço desesperado no jardim. Era um homem sensato. Mais sensato do que ela. – Concordo. Prefiro muito mais ter boas relações contigo. – E eu contigo. – disse ele de modo suave. Conversavam afavelmente, quase como antes da confissão, quando a criada do piso de baixo entrou na sala do pequeno-almoço, os olhos arregalados de excitação. – Está aqui um cavalheiro para ver Mr. Clarke. Um Mr. Masterson. Está à espera na sala de estar. A avó Rose tinha por vezes clarões de certeza que, dizia ela, eram como ser borrifado com água gelada. Pela primeira vez, Mariah experimentou essa sensação arrepiante. Adam levantou-se e disse: – Provavelmente é alguém da aldeia à procura de emprego. Devia ter ido ao Cochrane, mas pode não saber que contratámos um intendente. Vou falar com ele. Gosto de tirar as medidas aos homens a quem nós... – Adam hesitou e continuou: – Homens a quem tu poderás dar trabalho. Com o coração a bater muito depressa, Mariah levantou-se também. – Vou contigo. Talvez o reconheça da igreja. Ao caminhar junto a Adam, desejou poder pegar-lhe na mão e fugir, mas algo lhe dizia que, fosse qual fosse o destino que os aguardava, não podia ser evitado. Entraram na sala de estar e Mariah compreendeu de imediato o porquê de a criada ter dito «cavalheiro». O desconhecido, alto, Masterson, encontrava- se em pé junto à janela, o corpo muito bem constituído esticado com a tensão. De cabelo castanho e olhos cinzentos, ostentava o poder e a autoridade com tanta facilidade como a roupa de bom corte. Tinha aproximadamente a idade de Adam e, embora não fosse bonito, o rosto de estrutura larga parecia desenhado para o riso. Logo que entraram, ele fitou Adam, o olhar fixo. – Ash! – pronunciou. O sofrimento trespassou Mariah. Tinha chegado a catástrofe. Masterson precipitou-se para a frente e agarrou a mão direita de Adam com as suas. Nem sequer viu Mariah. – Meu Deus, estás vivo! Estávamos todos convencidos de que te tinhas afogado! Mariah sentiu o abalo a fulminar Adam. O abalo, mas também a impaciência. Perguntou: – Conheces-me? – Em qualquer altura dos últimos vinte anos. – A testa de Masterson enrugou-se e ele libertou a mão de Adam ao perceber que algo estava errado. – Não me reconheces? – Temo que não. – Adam fechou a porta. – Temos de falar. Por que pensaste que eu tinha morrido? – Pegou na mão de Mariah e conduziu-a para o sofá, o seu aperto com uma firmeza paralisante. Masterson sentou-se numa cadeira em frente. – O teu navio a vapor explodiu numa verificação de funcionamento, ao largo de Glasgow. Ficaste desaparecido e presumivelmente morto. Depois de eu, o Randall e o Kirkland termos sabido da notícia, viajámos até Glasgow e desde então temos andado à tua procura, ou do teu corpo. Como é que acabaste tão a sul? – Analisou o rosto impassível de Adam. – Sofri uma lesão na cabeça que mexeu com a minha capacidade mental. – Adam tocou de forma despreocupada a cicatriz em recuperação na cabeça. – Não me lembro do acidente, mas recordo-me vagamente de me agarrar a um pedaço de destroços durante muito tempo. Dias. Por fim vim dar à costa, sem memória do meu nome ou do passado. – Franziu a testa a Masterson. – Contudo... vi o teu rosto num sonho. Uma noite gelada perto de Londres, e a morte de uma mulher. O rosto de Masterson empalideceu. – Houve uma noite assim. Não te lembras de mais nada, antes de estares na água? – Só de sonhos que podem ser sonhos reais. – A voz tornou-se decidida. – Como nos conhecemos? – Conhecemo-nos os seis como a primeira turma da Westerfield Academy, quando tínhamos cerca de dez ou onze anos. Temos sido muito amigos desde então. – Esboçou um ligeiro sorriso. – Era uma escola para rapazes problemáticos. Sou o Will Masterson. O meu problema era a teimosia aguda. – Pela primeira vez, pareceu reparar em Mariah e o seu olhar foi desconfortavelmente incisivo. – Vais apresentar-me a esta senhora? – É a Mariah Clarke. A mulher que salvou a minha vida, tirando-me da água e acolhendo-me. – Reforçou o aperto na mão de Mariah. – A minha noiva. Mariah ficou quase tão surpreendida como Masterson, cujo queixo caiu. Ao que tudo indicava, Adam queria manter a ilusão de que eram um casal. Se pudessem ser. Temendo ouvir o pior, Mariah perguntou: – Ele não é casado, pois não? – Não. – Masterson recompôs-se. – Perdoe a minha descortesia. Estou meramente surpreendido com a subitaneidade. Prazer em conhecê-la, Miss Clarke. Em especial atendendo a que salvou a vida do Ash. Mariah quase se desfez com o alívio. Graças a Deus, a mulher dedicada e os filhos amorosos da sua imaginação não existiam! Não sabia bem por que Adam a declarara como noiva, mas imaginava que fosse o escudo dele contra esta nova incerteza. – Fico contente por não ter esquecido uma família – disse Adam. – Mas ainda não me disseste quem sou eu. Masterson sorriu como quem pede desculpa. – Perdão, não estou a pensar com clareza. Ainda estou aturdido pelo milagre da tua recuperação. O teu nome é Adam Darshan Lawford. – Adam? – Ele olhou para Mariah, surpreso. – Escolhi um nome ao acaso! – disse ela em voz baixa. – Explica o porquê de parecer confortável. – A Masterson, disse: – Então, o meu nome é Adam Lawford. Onde vivo? Qual é a minha profissão? Tenho uma, sequer? – Tens várias casas. Uma é um Londres, claro – disse Masterson, como se uma casa em Londres fosse a coisa mais natural do mundo. – Embora possuas várias outras propriedades, a tua casa principal é Alstom Abbey, no Wiltshire. Enquanto Mariah mordia o lábio perante a ideia de tanta riqueza, Adam disse de forma circunspecta: – Pareço... próspero. – Bastante mais que próspero – respondeu Masterson, divertido. – E também te manténs bastante ocupado. És o sétimo Duque de Ashton. O alívio de Mariah ante o estado solteiro de Adam desvaneceu-se. – O Adam é um duque? Estava tão longe dela como sempre. Talvez ainda mais longe. Adam ouviu Mariah arquejar. O choque dela ecoava o seu. Começava a ficar diabolicamente cansado de choques. – Um duque. Se bem me lembro, é uma posição social muito alta, não é? – A mais alta, fora da família real – respondeu Masterson. Um duque. Adam detestava a ideia. Só pensar naquilo fazia-o sentir-se sufocado. – Parece improvável que eu seja um duque. – Improvável, mas verdadeiro – disse Masterson com resignação. Devia ser estranho para ele estar a falar com um velho amigo que não o reconhecia. Embora não tão estranho como ser o velho amigo. Adam recuou até ao sonho com um jovem Masterson que acabara de perder a mulher. Fora evidente a amizade entre eles. No entanto, não tinha nenhuma verdadeira memória dos milhares de pequenas interações que haviam construído aquela amizade. Conservava, porém, uma confiança subjacente. Não duvidava de que Will Masterson dissesse a verdade. Adam contara ficar encantado por redescobrir o seu passado, mas assumira que as memórias voltariam por si mesmas. Explicarem-lhe a própria vida era profundamente estranho. – Fico contente por nem mulher nem filhos terem andado de luto por mim. – Apertou de novo a mão de Mariah. Apesar do embaraço da situação de ambos, ela era familiar. – Tenho mais família? Mãe, irmãos, irmãs? – Não tens muitos familiares próximos. – Masterson franziu a testa. – É melhor começar pelo princípio. Nasceste na Índia. O teu pai esteve ao serviço como diplomata britânico num tribunal real hindu; não sei bem qual. Era primo do Duque de Ashton, mas não muito aproximado na linha de sucessão para herdar. Creio que havia quatro ou cinco herdeiros mais perto. Assim, quando se apaixonou por uma rapariga hindu, bela e bem- nascida, não houve razão para não casar. Muitos outros oficiais britânicos ao serviço na Índia faziam o mesmo. Adam olhou para a mão que não agarrava a de Mariah. Então era esta a origem da sua coloração escura e imprópria de um inglês. Pensou no sabor familiar do caril na boca e no exótico jardim florido. Mais que tudo, pensou na bonita mulher de cabelo escuro. – Presumo que os outros herdeiros tenham morrido, depois o meu pai, e como tal a herança Ashton foi para um mestiço pouco inglês. – Exatamente assim. Creio que o teu pai acabara de ser informado de que era o sexto duque e fazia planos para regressar a Inglaterra, quando uma febre o atacou e ele morreu. – A voz de Masterson tornou-se seca. – Naturalmente, as autoridades intervieram, enviando-te de volta a Londres com uma família britânica que regressava a casa, para que pudesses ser educado com um verdadeiro cavalheiro inglês. Com que indiferença «as autoridades» o haviam arrancado de tudo o que conhecia. – E a minha mãe? Tenho irmãs ou irmãos mais novos? – Pensou no sonho em que brincava com um menino e uma menina de olhos verdes. Masterson começou a responder, depois parou. – Agora que penso nisso, não conheço as circunstâncias da morte da tua mãe. Nunca falaste muito sobre o teu passado. Talvez tenha morrido antes de o teu pai herdar. Não havia crianças mais novas, ou também teriam vindo para casa. – Que crime me pôs numa escola para rapazes problemáticos? Ser estrangeiro? – A voz de Adam era cortante. Masterson pareceu embaraçado. – Penso que foi grande parte da razão. Estavas a ser difícil e os teus tutores simplesmente não sabiam o que fazer contigo. Mas ser mandado para a Westerfield Academy foi o melhor. A fundadora e diretora da escola, Lady Agnes Westerfield, é a mulher mais espantosa. Viajou pelo mundo, visitou locais agrestes e perigosos. Costumava contar-nos histórias das suas aventuras, se nos portássemos bem. Começou a escola para manter-se ocupada. Na verdade, foste tu o primeiro aluno. Ela gosta mesmo de rapazes, o que tornou a escola um bom sítio para se estar. Adam olhou novamente para as mãos morenas, com os seus calos. Não poderia ser a ideia de duque de ninguém. – Não tenho mais família? – Passaste verãos e férias na casa de um primo direito do teu pai. Ele e a família não estavam em Inglaterra quando regressaste, ou terias sido mandado para lá e não para Westerfield. Chamavas-lhes tio Henry e tia Georgiana. Ele morreu há algum tempo, mas ela e os dois filhos, o Hal e a Janey, continuam vivos. Contente por não ser inteiramente desprovido de familiares, Adam perguntou: – Os meus primos têm olhos verdes? Masterson pensou sobre aquilo. – Por acaso têm. Os olhos deles são muito como os teus. Tanto quanto sei, dás-te bem com ambos. O Hal é um bom tipo, e a Janey verdadeiramente encantadora. Um pensamento atingiu Adam. – Este primo Hal. Seria o meu herdeiro, creio. Pode não rejubilar ao saber que estou vivo. – Suponho que seja verdade. – A expressão de Masterson alterou-se, como se um pensamento desagradável tivesse acabado de o atingir. – Pode estar um pouco desiludido por não ser o oitavo duque – é humano. Mas ficará mais feliz que desolado por ver-te vivo, penso eu. Masterson pareceu bastante hesitante na afirmação. Mesmo um primo dedicado teria tendência a sentir-se desapontado se o grande prémio que herdara lhe fosse retirado. Uma pena que não o tivessem deixado na Índia, de forma a que fosse este primo o duque. Com certeza teria desfrutado mais da posição. Desceu os olhos para Mariah, sentada em silêncio e infeliz, os dedos cerrados nos dele. Com a sua graciosidade loura e expressão séria, parecia uma madona ferida. Se nunca tivesse deixado a Índia, nunca a teria conhecido, portanto devia ficar reconhecido pela herança, apesar dos sentimentos confusos sobre ela. – Que mais queres saber? – Masterson abriu as mãos. – Não sei por onde começar. És respeitado e tens muitos amigos. Gostas de trabalhar com as mãos, seja a construir um navio a vapor ou a trabalhar a terra no jardim. – O olhar passou para Mariah. – E foste considerado um dos melhores partidos no mercado matrimonial desde que entraste na sociedade. Adam estremeceu. – Acho que preferia não ter sabido disso. – A cabeça latejava com a pior dor que experimentara desde que Mariah o tirara do mar. Agora, apesar de tudo, queria estar sozinho com ela. – Acho que ouvi tudo o que consigo absorver por agora. Aceitando a indireta, Masterson pôs-se em pé. – O Kirkland e o Randall devem chegar hoje a Hartley, salvo algum imprevisto. Quererão ver por si mesmos que estás vivo. Quando seria uma boa altura para te visitar? Enquanto Adam e Mariah se levantavam, ela disse: – Podem juntar-se todos a nós, hoje ao jantar, se por ti estiver bem, Adam. Dar-lhe-ia o resto do dia para acalmar-se. Adam concordou. – Vejo-o então mais tarde, Mr. Masterson. – Sempre me chamaste Will. Toda a gente chama. – Masterson parou em frente a Adam, a caminho da porta. – Eu saio sozinho. E... graças a Deus que estás vivo. – Saiu apressadamente, como se embaraçado por mostrar tal emoção sem disfarces. Logo que Masterson saiu do aposento, Adam virou-se e submergiu Mariah nos seus braços. – Pensei que ficaria contente por saber quem sou – disse com firmeza. – Agora queria que o Masterson nunca me tivesse encontrado. Mariah ocultou o rosto no ombro dele, o seu aperto tão forte como o dele. – É melhor saber, creio. Mas esta informação é... enorme. – Enorme de mais – disse ele sem ânimo. Terminando o abraço, ele disse: – Vamos até lá fora. Estou a precisar de paz. – Lado a lado, saíram de casa, para a luz irregular do sol, e encaminharam-se para o jardim da meditação. – Tive um sonho com seres dourados grandiosos com muitos braços – disse ele. – Na altura não compreendi, mas penso que eram deuses hindus. – Deves ter visto estátuas na Índia quando eras pequeno. – Mariah levantou os olhos para ele. – O jardim de que te lembras – também era na Índia? – Penso que devia ser. As flores e as formas não eram europeias. – Adam evocou novamente o jardim. – Muitas vezes, sonhei com uma mulher bonita, de cabelo escuro, com roupas de seda fluídas. A minha mãe, creio. Mariah apertou-lhe a mão. – Que triste que a tenhas perdido tão novo. – Pelo menos tive-a tempo suficiente para criar algumas memórias. Tu não tens sequer isso, creio. – Era um laço triste entre eles. Acabaram a caminhada até ao jardim da meditação em silêncio. A tensão de Adam suavizou-se quando entraram no espaço isolado. A água a fluir com suavidade era imensamente calmante. Sentaram-se no banco, tão perto que quase se tocavam. – Pergunto-me se alguma vez gostei de ser duque. Agora a ideia não me agrada nada. Parece... uma jaula com grades de ouro. – A ideia também não me agrada. – Mariah suspirou. – Percebo agora que tinha conservado uma leve esperança de que talvez um dia pudéssemos ficar juntos, mas acabou. Estás muito acima de mim. – Não digas isso! – respondeu Adam vivamente. – Mas é verdade – disse ela com serenidade. – Um homem com grande riqueza e poder tem muitas responsabilidades e exigências ao seu cuidado. Em geral casa-se com uma mulher de origem semelhante, para que ela possa gerir as suas casas, ser uma anfitriã para os seus convidados e dar boa reputação ao seu nome. Não casa com a filha de um jogador pouco respeitável. – O Masterson não sabe quem era o teu pai – salientou ele. – Não, simplesmente suspeita de que sou uma oportunista que te apanhou quando estavas vulnerável e confuso. – Esboçou um leve sorriso. – Mas acolho bem que afirmes que sou tua noiva, enquanto precisares de proteção contra donzelas ambiciosas e suas mães. Quando te sentires seguro na tua posição, rompo educadamente o noivado, e não se ligará qualquer escândalo a nenhum de nós. Tens a minha palavra. – A sua expressão mudou quando percebeu que ele tinha razões para duvidar da sua palavra. – Juro em cima da sepultura da avó Rose que não vou prender-te a um noivado indesejado. Adam acreditava naquele juramento. Sempre acreditou nela. Era esse o problema. – Aceito a tua promessa. Admito que estou contente por ter uma razão para manter-te por perto enquanto redescubro, da pior maneira, quem sou. – Afirmares que sou tua noiva pode acabar por causar mais problemas do que resolvê-los – alertou ela. – Sempre vivi nas margens da sociedade, e os de boa estirpe sabem ser cruéis para aqueles que julgam inferiores. Até o Masterson, que parece um indivíduo descontraído, não ficou contente quando disseste que estamos noivos. Adam levantou-lhe a mão e beijou-lhe a palma. Mariah estremeceu ao toque dos lábios dele. Entrelaçando os dedos nos dela, disse: – Não tinha percebido o quanto a vida era simples antes de o Masterson ter chegado. Na altura, só tinha de preocupar-me com não ter memória. Agora sinto-me como se parado na beira do abismo. – Imagino o quanto a tua situação é perturbadora. – Os dedos dela apertaram os de Adam. – Lamento muito o meu papel em tornar tudo pior. – Disseste que éramos amigos, Mariah. Simplesmente... continua a ser minha amiga. Gosto do Masterson, mas, neste momento, conheço-te muito melhor do que a qualquer outra pessoa. – Conhecia-a intimamente. Conhecia a doçura do seu corpo, a alegria do seu riso... Controlou rapidamente a imaginação, antes que cedesse ao desejo e fizesse algo que tornasse a situação atual ainda mais desastrosa. – O que quer que desejes, tentarei dar-te – respondeu ela com simplicidade. – Devo-te isso. Adam exalou agitadamente. – Se eu fosse um homem mais forte, rejeitaria ajuda baseada na obrigação, mas por agora preciso de ti junto a mim. – Tu és forte, Adam. A maioria dos homens estaria a balbuciar, lunática, depois de tudo por que passaste. – Mariah deteve-se. – Devo chamar-te Ashton? Ou vossa Graça? Ele retraiu-se. – Adam chega. Ser duque é muito para absorver. – Na realidade, não tenho dificuldade em ver-te como um duque – disse ela, de forma bastante surpreendente. – Sabes tanto de tantas coisas. Tens uma compostura que diz que te sentes à vontade em qualquer lado, ainda que agora estejas um tanto perturbado. E tens ar de autoridade, como se habituado a que te ouçam e obedeçam. – Eu próprio pensei nessa última. Mas pensei mais sobre o papel de ser comandante de um navio. – Tinha um longo caminho a percorrer até ver-se a si mesmo como um duque. CAPÍTULO 19
P erturbado, Will despendeu várias horas a cavalgar pela acidentada região rural antes de regressar a Hartley. Passava do meio-dia quando entrou no pátio do Bull and Anchor. Os cavalos de Kirkland e Randall estavam nos estábulos, portanto poderiam jantar os três em Hartley Manor. Depois de guardar a sua montada, avançou diretamente para a sala de estar privada. Como esperado, os amigos desfrutavam de um almoço de carnes frias e queijos. Kirkland serviu cerveja de um jarro e ofereceu-a a Will. – Suponho que queiras algo para comer. O proprietário disse que chegaste ontem à noite e depois saíste para um sítio qualquer. Randall acrescentou: – Se te perguntas se temos novidades para contar, a resposta é não. – Ao contrário de vocês, eu tenho novidades. – Will deu um gole na cerveja e instalou-se numa das cadeiras. – No geral, mas não inteiramente, boas. Kirkland susteve a respiração. – Encontraram o corpo do Ash aqui perto? – Melhor do que isso. Encontrei-o vivo e em geral de boa saúde, mas sofreu uma lesão na cabeça e não se lembra de nada antes de o Enterprise afundar. – Will engoliu mais cerveja. – E isso inclui-nos. Fui um desconhecido para ele. – Meu Deus! – Randall levantou-se tão depressa que a cadeira caiu. – Onde está ele? E porque não o trouxeste até cá? O rosto de Kirkland iluminou-se. – Não acreditava que fosse possível ele estar vivo. Mas amnésia... – Hesitou e depois disse: – Tens absoluta certeza de que é ele? – É o Ash, sem dúvida, até à cicatriz na mão que arranjou quando separou dois cães a lutar. Quanto ao porquê de não o ter trazido... – Will franziu o sobrolho. – Ele ligou-se a uma local. A filha do proprietário que me contou que o Ash tinha sido encontrado na praia disse-me que ele se chama Mr. Clarke e é casado com essa mulher, Mariah Clarke. O Ash diz que ela é a noiva. Tem um domínio forte sobre ele e não está a soltar. Randall recostou-se na cadeira. – Portanto, uma megera caçadora de fortunas espetou as garras no Ash. Podemos resolver isso. O que é importante é que esteja vivo. – Não creio que seja uma caçadora de fortunas. Pareceu chocada ao saber que ele é um duque. – Talvez seja só uma boa atriz – disse Randall com cinismo. – Talvez o tenha visto em Londres uma vez e reconheceu-o quando apareceu aqui, desamparado e confuso. – Talvez, mas não é provável. – Will cortou ele mesmo dois pedaços de pão. – O Ash também ficou chocado quando lhe contei o que ele é, e nada agradado. – Ele é provavelmente o duque mais consciencioso de Inglaterra – observou Kirkland. – Mas o seu verdadeiro prazer está em navios a vapor, jardinagem e as outras ocupações. – Talvez goste de não ser duque. – Will espalhou uma camada espessa de chutney numa fatia de pão, depois empilhou fatias de presunto e queijo para fazer uma sanduíche. – Não estar ciente da própria identidade deve ser desconcertante como o diabo, mas tem o seu quê de liberdade. Miss Clarke salvou a vida do Ash, é uma verdadeira beleza e proprietária de Hartley Manor. As circunstâncias podem ser estranhas, mas ela não é uma alpinista social sem quaisquer recursos. – Não admira que ele lhe esteja agradecido – disse Kirkland. – Mas a gratidão não exige casamento. – O Ashton não está, como é óbvio, em condições de escolher uma mulher, não depois de uma lesão tão grave na cabeça – acrescentou Randall. – Talvez se tenham apaixonado à primeira vista e isto seja uma história de amor grandiosa. – Will sentira-o quando conheceu Ellen. Mordeu com vontade a sanduíche. – Ela parece agradável e, para ser franco, fico contente por ver o Ash tão perdido de amores. Questionei algumas vezes se gostaria sequer de mulheres. É perito em mantê-las à distância. – Ele mantém toda a gente à distância – observou Kirkland. – Até a nós. Tem sido o mais firme dos amigos. Mas quantas vezes se mostra ou pede ajuda? Crescemos juntos, mas ele é, de muitas maneiras, um mistério. Disse Randall devagar: – Perguntei-me algumas vezes se existirá uma parte dele demasiado estrangeira para conhecer. – Tive pensamentos semelhantes – admitiu Will. – Mas sinto-me inclinado a pensar que a reserva dele é uma defesa em relação a uma sociedade que nem sempre o acolheu bem. – Qualquer que fosse o seu caráter, Mariah Clarke parecia ter penetrado na reserva de Ash. Ou talvez o facto de desconhecer quem era lhe tivesse possibilitado revelar-se a Mariah de maneiras que não poderia como Duque de Ashton. Um pensamento interessante. Randall perguntou: – Ele está bem o suficiente para regressar a Londres? Podemos partir de manhã. Com certeza não há motivo para ficar aqui, no fim do mundo. – Pode preferir ficar cá. – Will preparou mais uma sanduíche, desta vez com carne fatiada. – Na verdade, não podemos simplesmente sequestrá-lo. Randall encolheu os ombros. – Estou disposto a fazer o que for necessário para o tirar das garras dessa rapariga. Uma vez que se feriu, temos o direito de agir para seu próprio bem. – Para seu próprio bem é uma frase muito insalubre – murmurou Kirkland. – O tipo de coisa que diziam sobre nós quando éramos pequenos e não fazíamos o que os adultos pensavam ser melhor. Randall retraiu-se. – Ponto para o escocês. – Lady Agnes nunca nos disse que agia para nosso próprio bem. Perguntava-nos o que queríamos, certificava-se de que compreendíamos o que custaria o sucesso e depois ajudava-nos a alcançá-lo, se ainda o desejássemos – disse Will. – Por falar em Lady Agnes, tenho de escrever- lhe e ao Hal Lawford a dizer que encontrámos o Ash. Houve um silêncio pensativo antes de Randall dizer: – Será um choque para o Hal. Ele e o Ash sempre foram amigáveis, mas se andamos à procura de alguém que tivesse um motivo para matar – bem, o Hal sem dúvida beneficiaria mais. Kirkland abanou a cabeça. – Conheço o Hal razoavelmente bem, e isto não parece algo que ele faria. Ele gostaria de ser Duque de Ashton, mas homicídio? Penso que não. – Quanto se sabe, alguma vez, sobre o coração de outro homem? – perguntou Will com suavidade. Randall encolheu os ombros. – Não sendo do tipo filosófico, considerarei o Lawford um suspeito. Também quero conhecer a rapariga que se ligou ao Ashton. – Terás a tua oportunidade em breve. – Will serviu mais cerveja. – A rapariga convidou-nos a todos para jantar com eles hoje à noite em Hartley Manor. CAPÍTULO 20
M ariah vestiu-se com cuidado para o inesperado jantar de festa. Nenhum dos seus vestidos era novo. Nas viagens com o pai, fora-lhe por vezes oferecida roupa pela dona da casa. Alterar essas peças de vestuário ensinara-a a ser muito boa costureira. O seu melhor vestido de noite tinha sido presente de uma mulher alegre que definitivamente não era uma dama, mas que lhe fornecera informação valiosa sobre assuntos mundanos. Naquela noite, Mariah usava um vestido azul simples, mas elegante, com um modesto xaile de renda loira que lhe dava um ar jovem e inocente. Nada como a caçadora de fortunas que os amigos de Adam deviam julgar que era. A abordagem à refeição propriamente dita foi igualmente pragmática. Mrs. Beckett não seria uma chefe francesa, mas era uma ótima cozinheira inglesa de província. Pela experiência de Mariah, a maioria dos homens ficava feliz se tivesse carne bem cozinhada e em grande quantidade, e Hartley Manor poderia fornecê-lo. Os convidados também não iriam implicar com o peixe fresco apanhado naquela tarde e envolvido num delicado molho de vinho. Por atenção a Adam, Mariah acrescentou caril de frango. Com uma boa seleção de acompanhamentos, ninguém teria motivo para reclamar. O Duque de Ashton devia ter algures guarda-fatos cheios de vestuário de corte impecável, mas naquela noite Adam teria de remediar-se com o melhor casaco e calças do pai de Mariah. Ela passara várias horas a alterar o casaco. Adam protestou: – Não precisas de te dar a tanto trabalho. Pelo que o Masterson disse, conheço-os a todos há vinte anos, por isso não é necessário impressioná- los. – Tu não precisas de os impressionar, mas eu sim – respondeu ela. – Embora não estejamos verdadeiramente noivos, quero que pensem que, pelo menos, tomo bem conta de ti. – Garantirei que sim. – O afeto no olhar de Adam fê-la descer os olhos, com um rubor, mas ele não protestou mais. Enquanto esperavam pelos convidados, sentaram-se no sofá e deram as mãos, sem falar, embora Mariah analisasse Adam pelo canto do olho. Mostrava-se particularmente bonito naquela noite, as suas feições harmoniosas calmas e circunspectas. Estivera bastante silencioso desde a visita de Masterson. Devia ter os nervos tensos como cordas de arco perante a perspetiva de encontrar três homens que sabiam muito sobre ele, enquanto que ele, na prática, nada sabia sobre eles. Embora não admitisse tal coisa, como era natural. Mariah quase deu um salto quando bateram na pesada aldraba da porta, o estrondo a ressoar pelo vestíbulo da frente e aposentos contíguos. Adam sorriu ao levantar-se. – Venha, minha senhora. Deverá ser uma noite educativa. – É um mestre dos eufemismos. – Robusteceu-se, agradecida pelo toque da mão dele na sua região lombar. Enfrentar estes desconhecidos aproximava-os. A criada acompanhou os convidados, os olhos arregalados enquanto anunciava: – Lord Masterson, Lord Kirkland e Major Randall. – Depois desapareceu para a cozinha, onde ajudaria a levar a refeição para a mesa. Oh, Deus, Masterson e Kirkland também eram lordes? Pelo menos Masterson sorriu-lhe, provavelmente porque já se haviam conhecido. Os outros dois dirigiram-se para Adam numa pressa controlada. Randall era loiro, tenso e de aspeto perigoso. Caminhava com postura de oficial e um visível coxear. O moreno Kirkland era mais moderado. Seria usualmente um homem difícil de ler, supôs Mariah. Mas, no momento, ele e Randall estavam rejubilantes. – Meu Deus, Ash! – Kirkland pegou na mão direita de Adam com as suas. – Quase pensei que o Masterson tinha perdido a capacidade mental, mas não há dúvida, és tu. Randall esmurrou o ombro de Adam com uma força considerável. – Nunca mais voltes a morrer assim! As semanas que passámos à procura do teu esqueleto afogado significaram má comida escocesa a mais para o meu gosto. – Adam e Randall apertaram as mãos. Mariah perguntou-se se os outros reconheceriam que Adam se sentia desconfortável com tão efusivas saudações por parte de homens que lhe eram desconhecidos. Ele disse: – O Masterson falou-vos sobre a minha amnésia? Kirkland acenou com a cabeça. – Deve ser uma sensação estranha como o diabo. Espero que, na altura em que acabarmos de te falar sobre ti, te recordes de tudo por ti mesmo. Como deitar pólvora numa bomba. Adam mostrou a Randall um semblante carregado. – Tive um sonho com o Masterson, e um contigo também. Estavas doente e eu... levei-te à força de onde vivias. Randall fez um esgar. – De todas as coisas malditas a recordar. – Lembrando-se das suas maneiras, virou-se para Mariah. – Desculpe a minha linguagem, Miss Clarke, e o meu esquecimento de a cumprimentar devidamente. Ela identificou animosidade no olhar. Masterson era descontraído e inclinava-se a dar-lhe o benefício da dúvida, pelo bem de Adam. Embora Kirkland escondesse a opinião, supunha que fosse justo. Mas Randall via-a como uma ameaça para o velho amigo e não a aceitaria facilmente, se a aceitasse de todo. – Claro. Está entusiasmado por ver o seu amigo desaparecido – respondeu ela de forma branda. – Se eu perdesse o Adam, ficaria certamente contente quando voltasse a encontrá-lo. Os cavalheiros gostariam de tomar um xerez? Todos responderam que sim, portanto assumiu a tarefa de servi-lo. Adam disse a Kirkland: – Não me parece que tenha sonhado contigo. Exceto... talvez quando éramos pequenos. Sonhei que estava num quarto com várias camas e uns diabinhos cheios de vida. Entrou uma mulher e mandou-nos calar. Disse que ia pôr-nos a fazer desporto com os rapazes locais para usarmos a nossa energia. – Lady Agnes! – disse Kirkland com um sorriso rasgado. – Tinha de mandar-nos calar com muita frequência. Com o xerez na mão, Adam conduziu Mariah para o sofá. – Contem-me mais sobre essa escola. As visitas ficaram contentes por fazer-lhe a vontade, espalhando-se pela sala de estar com as bebidas. Enquanto descreviam a Westerfield Academy, Mariah percebeu que Masterson não estava a brincar quando dissera que nenhum dos alunos tivera uma mãe decente. Em vez disso, haviam tido a esplendorosamente excêntrica Lady Agnes, filha de um duque, de bom coração e habilidade para lidar com rapazinhos zangados. A sua assistente, Miss Emily, o general, a idílica e verdejante zona rural do Kent – tudo emergia, nítido, das descrições. Mas embora Adam escutasse com interesse, as memórias não surgiam. Enquanto seguiam para a sala de jantar disse: – Parece uma escola excelente, embora um pouco estranha. Quanto tempo estive lá? – Oito anos, até teres entrado para Oxford. Especializaste-te em duas matérias. Costumavas passar as férias com os teus primos – respondeu Kirkland. – Não te lembras de nada disto? – Não, embora o que descreves não me pareça... desconhecido. – O olhar de Adam deslocou-se de um homem para outro. – Nós os quatro fomos a primeira turma? Ao ocuparem os seus lugares à mesa, Kirkland respondeu: – Havia mais dois. O Ballard tem estado sobretudo em Portugal desde que deixou a escola, a gerir a companhia de vinho do Porto da família. Faz uma visita a casa a cada um ou dois anos. O Wyndham – não sabemos bem. Pode estar vivo... ou não. Encontrava-se em França quando terminou a paz de Amiens e os franceses detiveram todos os homens britânicos que estavam no país. Não sabemos nada dele desde então. – Ocasionalmente os detidos arranjam maneira de fazer chegar a Inglaterra cartas de França – acrescentou Masterson. – O nome de Wyndham nunca foi mencionado, mas isso não significa que não continue vivo. – Ergueu o copo a Adam. – No fim de contas, tu regressaste dos mortos. Os outros homens juntaram-se ao brinde informal. Mariah deu um gole no vinho, pensativa. Portanto, estes amigos já tinham vivido com a incerteza de não saber se um dos seus estava morto ou vivo. Isso poderia explicar a intensidade da busca por Adam. Masterson lançou um olhar a Mariah. – Desculpe se a aborrecemos com os nossos dias de escola, Miss Clarke. Conte-nos mais sobre si. Na estalagem, disseram que herdou recentemente a propriedade. Mariah já decidira que não iria simular ser alguém que não era. – O meu pai ganhou a propriedade ao antigo dono, George Burke. Chegámos no início da primavera. Umas semanas mais tarde, o meu pai viajou para Londres e... foi assassinado por salteadores da estrada. Assim, agora sou a proprietária de Hartley Manor. – Fez uma nota mental para escrever novamente ao advogado. Ainda não recebera uma resposta dele, embora devesse haver formalidades relacionadas com a herança. Talvez ele estivesse a atrasar a carta até saber mais sobre a morte do pai. – Lamento a sua perda – murmurou Masterson. Menos delicado, Randall disse numa voz cortante: – O seu pai era o Charles Clarke? – Sim, era. – Mariah fortaleceu-se. – Conhecia-o? – Pessoalmente não, mas ouvi falar nele. Tinha reputação de ser um trapaceiro cujo jogo nada tinha de honesto. – A sua informação está errada – respondeu ela com frieza. – Era um jogador de cartas muito hábil. Nunca precisava de vigarizar. Os adversários, que em geral estavam embriagados ou eram incompetentes, provavelmente ambos, muitas vezes contestavam a sua honestidade em vez de admitir a falta de capacidades. – Disse que o seu pai ganhou esta propriedade – ripostou ele. – Extorquir a herança a um jovem não é cunho de um cavalheiro. A mão de Mariah apertou-se em volta do garfo quando relembrou a si mesma que Sarah nunca atacaria um convidado à mesa. Sarah que fosse para o diabo. – Não falará assim do meu pai em minha casa – disse terminantemente. – Peça desculpa, ou terei de pedir-lhe que se retire. Ouviu um baque que sugeria que Masterson acabara de bater com o pé no tornozelo de Randall. – Desculpe – disse o homem loiro numa voz constrangida. – Os meus comentários foram desalinhados, em especial dado que nunca conheci o seu pai. – Aceito o seu pedido de desculpa. – Os olhares agarraram-se. Nenhum deles se sentia muito inclinado ao perdão. Graças a Deus pela educação, para amortecer uma situação difícil. Tentando aliviar o ambiente, Masterson disse: – A sua cozinheira é excelente, Miss Clarke. Acha que ela estará disposta a separar-se da receita do fricassé de cogumelos? É o melhor que já comi. – Vou perguntar-lhe. Creio que Mrs. Beckett pode ser persuadida. Ela gosta que apreciem a comida. – E se o consumo de grandes quantidades significava apreciação, os amigos de Adam estavam a ser muito elogiosos. A refeição aproximava-se do fim quando Kirkland disse: – Presumo que queiras regressar a Londres, Ash. Podemos fazer juntos a viagem de regresso. Adam ficou tenso. – Não sei se quero voltar para Londres. Os amigos mostraram vários graus de consternação. Mariah questionava se algum deles percebia o quanto era difícil para Adam – assustador, até – regressar a um mundo complicado, onde estava em tal desvantagem. As pessoas fariam exigências, esperariam que fosse o mesmo. Ele não saberia em quem confiar. Homens na posição de Adam eram sempre fonte de atração para os desonestos. – Tens muitas responsabilidades – disse Kirkland. – Não podes ignorá-las para sempre. No mínimo, tens de tratar da confusão que a notícia da tua morte provocou. – Dado que não me lembro de nenhuma dessas responsabilidades, duvido que possa cumpri-las – respondeu Adam com secura. – Não contratei pessoas competentes para vigiarem o património na minha ausência? Com certeza conseguem aguentar-se. – Tens empregados excelentes – concordou Masterson. – Mas mesmo que não consigas trabalhar da maneira habitual, estar num ambiente familiar pode estimular a tua memória. As sobrancelhas de Adam uniram-se. – Talvez tenhas razão. Embora seja bom terem-me encontrado e identificado, seria muito melhor para mim lembrar-me de quem sou. Com o coração a afundar-se, Mariah aceitou que ia perdê-lo. Assim que voltasse à sua vida normal, ela desvanecer-se-ia numa memória boa e ambivalente. Prendeu as mãos debaixo da mesa. Seguramente era pelo melhor, já que duvidava poder adequar-se ao mundo dele, ainda que ele a quisesse. Mas não contara perdê-lo tão depressa. Adam olhou para ela, os olhos verdes decididos. – Se eu for para Londres, a Mariah tem de vir comigo. Houve um frufru de mal-estar dos amigos. Aliviada por ele a querer, mas indecisa, Mariah disse: – Mesmo como tua noiva, não posso viajar contigo e mais três homens. Uma pessoa na tua posição é vigiada com cuidado. A minha presença seria um escândalo. – Então podemos casar-nos antes de partirmos. Gretna Green não fica longe. Mariah respirou fundo, o coração apertado. – Por muito que eu queira casar contigo, é demasiado cedo. Precisas de tempo para redescobrir a tua vida. O protesto de Mariah foi repetido pelos outros homens. Masterson disse: – Um casamento em Gretna seria escandaloso e refletir-se-ia negativamente em Miss Clarke. Assumir-se-ia que ela te seduziu a garantir- lhe casamento quando estavas num estado enfraquecido. O levantar de sobrancelhas irónico de Randall disse que era exatamente o que tinha acontecido, mas ele não falou. Adam franziu a testa. – Não quero comprometer a reputação de Mariah, de forma nenhuma, mas não vou para Londres sem ela. – Não haverá escândalo se Miss Clarke for acompanhada – disse Kirkland. – Tem uma amiga que possa juntar-se ao nosso grupo, Miss Clarke? Se não, posso ir buscar uma tia ou uma prima a Glasgow, embora não garanta encontrar alguém que seja boa companhia. Adam parecia pensativo. – Achas que Mrs. Bancroft viria, Mariah? Ela é viúva e ponderada, assim como tua amiga. Mariah pensou naquilo. Queria desesperadamente estar com Adam e, com quase tanta intensidade, ir a Londres para descobrir mais sobre a morte do pai. – Não sei se a Julia concordará, mas posso perguntar-lhe. Mesmo que esteja disposta a acompanhar-me, duvido que saia para a sociedade londrina. Ela detestaria fazê-lo. – Não haverá falta de acompanhantes respeitáveis em Londres, começando pela tia Georgiana e a prima do Ash, Janey– assegurou Masterson. – O que é preciso é uma companhia para que a viagem seja livre de escândalos. – Temos um plano aceitável para todos? – perguntou Adam. Depois de sussurros de concordância, Adam disse: – Então, Londres será. Adam parecia desmotivado, mas não havia nada a fazer. Não podia evitar Londres por muito tempo, e claramente precisava da segurança da presença de Mariah. Entraram duas criadas para levantar a mesa. Logo atrás delas caminhava a passo rápido Bhanu, que escapara da cozinha. Adam estalou os dedos e a cadela saltou para ele, orelhas a cair. Com um sorriso raro, Randall disse: – Tens talento para encontrar cães feios, Ashton. Pela primeira vez naquela noite, Adam riu-se. – A Bhanu não é feia. É apenas bonita de uma forma que vocês ainda não tinham visto. Masterson susteve a respiração. – Tiveste um cão chamado Bhanu na escola. Assombrosamente feio, um grande favorito de todos. Foi, de forma indireta, responsável por teres acabado na Westerfield Academy. Lady Agnes contou-nos a história. – Sim? – Adam coçou a cabeça da cadela. – O que quer dizer Bhanu? – O sol – disse Kirkland. – É hindustâni. Adam sorriu. – É evidente que ambos os Bhanus são bonitos de uma maneira hindu. Todos os homens riram, mas, nesse momento, Mariah teve a certeza de que Adam recuperaria a memória. Pequenas coisas, como o nome do cão e os sonhos, provavam que o passado andava perto, esperando apenas para emergir no presente. Depois, Adam não precisaria mais dela. CAPÍTULO 21
U ma empregada trouxe uma licoreira de vinho do Porto e quatro copos de pé. Adam não se surpreendeu ao ver Mariah levantar-se com uma rapidez inconveniente. – Cavalheiros, deixo-vos com o vosso Porto – disse ela de forma clara. Enquanto Adam servia um copo, Kirkland perguntou a Mariah: – É Porto Ballard? Esse seria da empresa gerida pelo outro velho amigo de escola, de que falámos antes. É muito bom, também. – Na verdade não sei. – Mariah deslocou-se para a porta. – Foi outra pessoa a encher a licoreira. – Tenho a certeza de que vamos aguentar-nos. – Adam empurrou a garrafa para Kirkland. – Vemos-te mais tarde na sala de estar. – Ele olhou para Mariah, tentando transmitir que percebia perfeitamente o desejo de escapar aos convidados por uns instantes. Infelizmente, Masterson também se levantou. – A luz fica até muito tarde, aqui a norte. Gostaria de ver os jardins, se estiver disposta a guiar-me, Miss Clarke. Mariah não pareceu encantada, mas era educada de mais para recusar. – Terei todo o prazer em mostrar-lhe parte da propriedade – disse ela. – Deixe-me só ir buscar um xaile. Voltou coberta pelo xaile da avó, apesar da sua andrajosidade. Deve ter sentido que precisava do apoio da avó Rose. Masterson abriu-lhe a porta e saíram, Bhanu a segui-los de perto. Adam esperava que Masterson fosse tão benévolo quanto parecia. Mariah tinha que chegasse para aguentar, com estes desconhecidos a invadir-lhe a casa. Não sabia bem o que sentia em relação a eles. Eram todos homens honrados e inteligentes, até Randall, à parte as suas óbvias suspeitas de Mariah. Mas Adam não sentia nenhuma ligação especial. Friccionou a têmpora dorida, pensando que a sua antiga vida era uma fonte de dores de cabeça regulares. Depois de a porta se fechar, disse: – Em Hartley, as pessoas pensam que eu e a Mariah somos casados. Pareceu uma maneira de afastar o escândalo de eu viver debaixo do mesmo teto. Peço-vos que mantenham o fingimento enquanto aqui estiverem. – Muito bem. Isso tem a virtude da simplicidade. – Kirkland franziu o sobrolho. – Há algo que temos de discutir contigo, Ash, e prefiro não o fazer em frente a Miss Clarke. – Espero que não tentem convencer-me de que ela não é conveniente para ser minha mulher – respondeu Adam, a voz cortante. Podia não estar certo de ela ser confiável, mas diabos o levassem se a veria criticada por homens que mal a conheciam. – Nada disso. Ela é uma jovem atraente e inteligente, e vocês parecem gostar um do outro, o que é uma boa base para o casamento. Isto é um assunto bem diferente. – Kirkland trocou um olhar com Randall. – Lembras-te de absolutamente alguma coisa sobre o acidente que te deixou ferido e perdido no mar? As sobrancelhas de Adam uniram-se enquanto ele tentava lembrar-se das memórias mais antigas e esbatidas. – Lembro-me vagamente de me agarrar a uma viga e flutuar na água fria durante o que me pareceu uma eternidade. Mas não me lembro do acidente. Por que interessaria isso? – Porque começámos a procurar-te resgatando os destroços do navio, o Enterprise – respondeu Randall. – Descobrimos que a caldeira foi deliberadamente danificada e reparada com desmazelo, de maneira a provocar uma explosão. Ao que tudo indica, alguém tentou matar-te. Atónito, Adam exclamou: – Matar? Que fiz eu para merecer um inimigo assim? – Nada – respondeu Kirkland. – Mas há quem desaprove um duque inglês meio hindu. Tens sido alvo de caricaturas infames e peças satíricas. Embora não tenha nada que ver contigo pessoalmente, há pessoas que não gostam de ti por uma questão de princípio. – Compreendo que me desprezem pelo meu sangue – disse Adam devagar –, mas seria essa raiva grande o suficiente para fazer explodir um navio escocês com vários tripulantes britânicos? É uma forma complicada de matar, quando uma bala no coração chegaria. Estaria o vilão a tentar destruir o navio? Talvez algum construtor de navios a vapor rival quisesse destruir a concorrência. Kirkland fez uma expressão pesarosa. – Tudo é possível. Não temos provas. Mas não há história de rivalidade criminosa entre engenheiros e construtores navais escoceses. – Se o perseguido era eu, pode haver mais uma tentativa. – Adam tentou assimilar o facto de alguém andar a tentar matá-lo. – Se eu levar a Mariah para Londres, ela pode-se magoar, se andar alguém atrás de mim. Embora Randall desse a impressão de que seria uma boa desculpa para deixá-la para trás, Kirkland disse: – Eu espero que estejas seguro connosco, e tu és mais que impressionante por si só. Mas tens de ter consciência de que alguém pode querer-te mal. – Sou impressionante? – perguntou Adam, confuso. – Não fazia ideia. Os olhos de Randall brilharam. – Num dia bom, consegues atirar tão bem como eu. – E em qualquer dia, derrotar o Masterson, o Randall ou eu na luta corpo a corpo – acrescentou Kirkland. – Aprendeste umas técnicas de combate dos diabos em rapaz, na Índia, e, por precisares de adversários, ensinaste os teus colegas de turma. Apesar disso, nunca nenhum de nós foi tão bom. – Sempre suspeitei de que não ensinaste alguns dos teus melhores movimentos, e eras rápido de mais para eu os perceber. – O olhar de Randall mostrava-se distante. – Mas mesmo assim aprendi o suficiente para salvar a minha vida em batalha mais do que uma vez. – Portanto, sou duque e mestre em artes mortais – disse Adam friamente. – Não tinha reparado. Mas sei que, no geral, seria mais simples se vocês não me tivessem encontrado. – Preferias isso? – perguntou Kirkland de forma serena. Adam friccionou novamente a cabeça dorida, a imaginar. A vida que tinha deixado para trás parecia avassaladora e não particularmente atrativa. O Cumberland era muito mais calmo e ele teria tempo para reconciliar-se com os sentimentos complicados em relação a Mariah. Mas enquanto não tivesse memória, iria sempre questionar o que tinha perdido. – Suponho que... é melhor saber a verdade. Apesar das palavras, não tinha a certeza.
Ao sair de casa com o seu convidado, Mariah disse: – O Adam tem trabalhado no restauro dos jardins, Lord Masterson. Podemos caminhar para lá ou descer até à beira-mar, onde o encontrei. Não é longe. – Chame-me Will. Toda a gente chama. Gostaria de ver onde encontrou o Ash. – Masterson acompanhou-a, pondo-se ao lado. – Talvez amanhã ele possa mostrar-nos os jardins. Sempre se interessou por paisagismo. Os jardins de Ralston Abbey são dos melhores de Inglaterra. O jardim de Ashton House é bem mais pequeno, está claro, mas muito agradável. Quando andar lá, terá dificuldade em acreditar que está no coração de Londres. Dentro de duas semanas, Mariah estaria em Londres como convidada de um duque. A visita seria muito diferente das anteriores visitas com o pai, quando se hospedavam em alojamentos arrendados que eram, na melhor das hipóteses, modestos. Doía-se pelos dias em que o pai era vivo e eram companheiros constantes, mas não havia como voltar atrás. E enquanto ela e Adam estivessem juntos, havia uma possibilidade de um futuro, não importava quão diminuta. Desceram o caminho até à pequena praia. Mariah sentia-se satisfeita por Masterson não parecer disposto a conversar. Ele tinha razão quanto aos dias longos, ali tão a norte. Mesmo já passando muito do jantar, o sol ainda andava acima do horizonte. Quando chegasse o verão pleno, não haveria muita noite. A praia estava cheia de vento, com ondas picadas a bater com força na areia e nos seixos. Bhanu correu até à borda da água, dando um ganido quando uma onda lhe salpicou o nariz. Perguntou Masterson: – A água estava assim tão agitada quando o resgatou? – Pior. Era tarde, perto da meia-noite. – Gesticulou para o sítio onde tinha visto Adam pela primeira vez. – Havia bastante luar, tanto que consegui ver algo escuro a flutuar. Julguei que era um afogado. – Fez uma careta. – Senti-me tentada a correr e a esconder-me, mas a maré começava a mudar. Pensei que o corpo poderia ser arrastado novamente para o mar, então avancei e encontrei o Adam. Não propriamente morto, embora quase. Creio que não teria durado muito mais. – O que a trouxe à praia a meio da noite? – perguntou ele, curioso. Se lhe contasse a verdade sobre o ritual da avó Rose, ficaria sem dúvida esquisita de mais para um duque. – Estava inquieta e não conseguia dormir. Burke, o antigo proprietário da mansão, andava a tentar convencer-me a casar com ele e eu tinha medo de, num momento de fraqueza, aceitar, e depois arrepender-me para o resto da vida. Então decidi dar um passeio e cansar-me. Masterson assentiu como se lhe soasse perfeitamente razoável. Olhando para a água, disse: – Espanta-me que o Ash tenha sido arrastado tão longe para sul e que tenha sobrevivido à água fria. O navio dele afundou perto da ilha de Arran, não de Glasgow, mas mesmo assim deve ter andado à deriva durante dias. É um milagre, estar vivo. – Não foi bem um milagre. – Mariah tentou lembrar-se das palavras exatas de Adam. – Uma das primeiras coisas que ele me disse foi que abrandou a respiração e se retirou para um canto da mente, para se preservar. Nunca tinha ouvido tal coisa, mas talvez isso o tenha mantido vivo. Masterson pareceu interessado. – Isso parece um dos seus excertos de magia hindu. – Magia? – perguntou ela com prudência. Não que negasse a existência de magia. A avó Rose fizera-a tomar consciência de que havia muito que a humanidade não entendia. – Não exatamente magia, mas, como é provável que saiba, o Ash conserva algumas disciplinas hindus. Como a meditação diária. Mariah sentiu-se pateta. – Não sabia que o fazia. Masterson franziu a testa. – Talvez se tenha esquecido. Ele meditava de manhã no quarto, em silêncio, depois de se lavar. Se ainda o faz, a Mariah não saberia necessariamente. Ele é muito reservado. Durante a vida em Inglaterra, tem sido exposto ao desdém e insulto por causa da mistura de sangue. A resposta foi ser um perfeito cavalheiro inglês, ocultando o legado indiano. – Ele ergueu-se do leito de doente e atirou o George Burke pela sala de estar, quando o homem estava a ser difícil – disse ela, pensativa. – Questionei como o teria feito. Os movimentos não eram de todo como boxe. Mais práticas hindus? Masterson anuiu. – Chama-se Kalarippayattu e é uma técnica de combate de Kerala, no sul da Índia. O Adam é do norte e aprendeu Kalarippayattu com os filhos do tribunal régio, que eram treinados em todas as artes guerreiras. Ele, por sua vez, ensinava-nos, habitualmente à noite, já tarde. – Masterson sorriu, recordando o passado. – Os rapazinhos podem ser monstros. O Ash conquistou muito respeito por causa das habilidades de combate. – Por que me conta estas coisas? – observou Mariah. – Esta não é uma conversa de ocasião. Ele sorriu com pesar. – Pensei que repararia nisso. Estou a explicar-lhe as origens do Ash porque a Mariah é importante para ele e, por agora, a pessoa que lhe é mais próxima. Quanto mais o compreender, melhor para os dois. As sobrancelhas dela arquearam-se. – Então não desaprova que a noiva de Adam seja filha de um jogador? – A Mariah é uma jogadora? – perguntou ele. – De modo nenhum. Não gosto da incerteza daquilo. – Fez um pequeno sorriso. – Para mim, o dinheiro é algo que deve ser estimado e usado com cuidado, e não deitado fora. – Uma atitude sábia. Tem outros vícios quaisquer? Mariah riu-se. – Está a entrevistar-me para a posição de esposa de Adam? Masterson riu-se com ela. – Talvez. Quando as pessoas se conhecem em sociedade, conhecem geralmente os antecedentes uma da outra ou podem descobri-los rapidamente. Aqui não é o caso. Mas a Mariah parece ser bondosa e ponderada, e gosta do Ashton. Penso que poderia adequar-se muito bem. Mariah virou-se para olhar a água, pensando como seria inverosímil que viesse a tornar-se a Duquesa de Ashton. Não queria explicar que Adam duvidava dela e porquê, mas podia transmitir uma verdade parcial. – Para ser sincera, conto que, quando o Adam voltar à antiga vida e recuperar a memória, o nosso noivado termine. Quando se lembrar dos amigos, não precisará de mim como precisa agora. – Tenho muita esperança de que ele se lembre dos amigos. – Masterson pareceu por instantes melancólico, antes de olhar para Mariah de soslaio. – Mostra-se extraordinariamente calma em relação à perspetiva de o perder. Pensei que estava... bastante afeiçoada. Mariah suspirou. Diplomático da parte dele não perguntar abertamente se estava apaixonada por Adam. Não era algo que desejasse discutir. – Sempre tive de ser prática. As ilusões românticas acabam demasiadas vezes em infelicidade. – Puxou o xaile com mais força, querendo sentir a avó Rose por perto. – Embora o Adam não seja casado, perguntei-me se teria uma namorada que andasse a cortejar discretamente. Se existir uma mulher assim, com certeza virá a correr quando souber que ele está vivo. – Não sei de tal mulher – disse Masterson, surpreendido. Bhanu saltou em volta e pôs as patas enlameadas no melhor vestido de Mariah. Esta inclinou-se para agitar as orelhas compridas da cadela. – Tem a certeza de que não existe alguém? – Não – admitiu ele. – Como disse, o Ash é muito reservado, e eu não tenho estado muito em Londres nos últimos anos. Mas se não existir tal mulher e ele ainda quiser casar consigo, casará? Ou só desempenha o papel de noiva por ele estar tão sozinho? Masterson era notavelmente perspicaz, para um homem. – Casarei com ele de bom grado, se for isso o que ele quiser. Mas duvido que, durante algum tempo, vá saber o que quer. Se no fim de contas não me desejar – Mariah encolheu os ombros como se fosse uma questão de pouca importância –, não o segurarei contra vontade e não darei pela falta de ser duquesa. Creio que tal posição significaria estar sempre a ser vigiada, avaliada e julgada. – Em especial uma duquesa jovem e bonita – concordou ele. – Mas pode escolher o quanto a vida será pública. O Ashton sai regularmente em sociedade, mas não é de modo nenhum viciado na rotina social. Provavelmente ficaria contente por ter razões para ficar em casa consigo. Aquilo não soava mal. – Perguntou-me sobre os meus vícios, Will. Tenho demasiada imaginação, e por vezes isso causa-me problemas. – Pensou na mítica e muito correta Sarah. – Mas tento mantê-la sob controlo. – Há coisas piores que a imaginação. – O sol punha-se em filões de dourado, carmesim e índigo, quando Masterson se afastou do mar. – Está a ficar frio. Hora de voltar para casa. – Mariah aconchegou melhor o xaile e acompanhou-o; Bhanu corria de um lado para o outro pelo caminho, as patas e as orelhas caídas encharcadas. Gostava muito deste amigo de Adam. Era bom ter um aliado.
Depois de Mariah e Masterson regressarem a casa, serviu-se o chá na sala de estar. A festa terminou pouco depois disso. Os amigos de Adam já tinham feito grande parte do planeamento necessário para rumarem a sul. Ele aceitara as ideias de bom grado, já que o próprio não tinha ideias melhores. Adam e Mariah acompanharam os convidados até à porta, suspirando ambos de alívio quando os homens desapareceram. Ao virarem costas, fatigados, à porta da frente, ele desejou atraí-la para um abraço, mas controlou o impulso. Seria muito fácil retomar a intimidade, o que não seria justo para nenhum deles, estando ele tão inseguro dos seus sentimentos. Mariah disse: – Correu quase tão bem como se esperava. Voltaram algumas memórias quando falaste com os teus amigos? Adam friccionou a cabeça. – Não, embora perceba por que nos tornámos amigos. Sinto-me confortável com eles, ainda que na realidade não me lembre deles. Mariah franziu a testa perante o gesto. – Dói-te a cabeça? Ele deixou a mão cair. – Um pouco. Eles puseram-se a olhar para mim com confiança, à espera de que eu exclamasse: «Já me lembro de tudo!» – Suspirou. – Desejava poder fazer-lhes a vontade. A maneira como me dói a cabeça... quase parece que a informação está fechada à chave na minha mente, só à espera de explodir. Mas isso ainda não aconteceu. – Vai acontecer – disse ela, reconfortando-o. – Quando regressares à tua própria casa, provavelmente uma manhã acordas e voltou tudo. – Talvez. – Preferia acordar na manhã seguinte e encontrar Mariah ao seu lado. Apertou as mãos para impedir-se de a tocar. – Boa noite. Obrigada por receberes tão bem os meus velhos amigos. Mariah hesitou, como se à espera de um beijo de boa noite, ou pelo menos de um toque. O rosto aplainou-se quando aceitou que ele não agiria. – Dorme bem, Adam. Ele observou-a a afastar-se, os passos graciosos e os quadris a oscilar. Desejo, sim. Era um fogo no seu sangue. Mas estava menos certo quanto ao que havia para lá do desejo.
Adam dormiu mal, os sonhos assombrados por deuses zangados e assassinos desconhecidos. Se aquelas eram memórias, não queria nenhuma parte delas. CAPÍTULO 22
M ariah foi à cidade visitar Julia Bancroft na manhã seguinte. A amiga abriu a porta com um sorriso. – Que bom ver-te! Não falamos desde que o Adam recuperou o bastante para não precisar dos meus serviços. Tomas um chá comigo? – Há tanto tempo? Suponho que sim. – Mariah tirou o chapéu e seguiu a amiga até a cozinha, nas traseiras da casa. – Desculpa. Tenho andado distraída. Julia serviu chá a Mariah, depois deu-lhe um prato com algumas fatias de bolo de gengibre. – Correm para aí uns rumores desenfreados, desde que aqueles três cavalheiros impressionantes chegaram ao Bull and Anchor. Ouvi dizer que ontem à noite jantaram na mansão. Mariah suspirou. – Jantaram, de facto. – Estava à espera de saber a verdade por ti. – Julia riu-se. – E se esta indireta não for suficientemente forte, terei que aprender a viver com a minha curiosidade. Mariah debicou o bolo de gengibre, pensando por onde começar. – Os cavalheiros são amigos do Adam, cujo nome de batismo é mesmo Adam, espantosamente. Andavam à procura dele, ou antes, do corpo dele, uma vez que o navio a vapor em que navegava se afundou perto da ilha de Arran. Já o encontraram, mas, até agora, não recuperou nenhuma memória. – Dado o quanto os amigos se vestem bem, suponho que o Adam não seja um marinheiro de convés. É proprietário de navios? – Muito, muito pior. – A boca de Mariah retorceu-se. – Ele é o Duque de Ashton. – Meu Deus – disse Julia de modo terminante. – Ele é um duque? – Isso ou os amigos são todos mentirosos. – Mariah começou a desfazer a fatia de bolo em pedaços. – Querem levá-lo para casa, para Londres. Eu e ele... gostamos muito um com o outro, mas acho que o perdi, Julia. Antes de os amigos terem chegado, contei-lhe que menti sobre sermos casados. Ele ficou perturbado, claro, e agora não sabe bem o que pensa de mim. Não me odeia, mas também não confia em mim. Acho que, quando voltar à antiga vida, não haverá lugar para mim. – Lamento muito – disse Julia de forma serena. – As circunstâncias conspiraram para juntar-vos muito depressa. Compreendo por que afirmaste ser casada, mas também entendo o porquê de ele agora estar perturbado. Talvez com o tempo ele perdoe a tua falta de verdade. – Pode ser, embora eu não esteja confiante. – Mariah torceu a boca, sem graça. – Mas o Adam quer que eu vá a Londres com ele. Acho que quer um rosto familiar por perto. Isso passará quando se sentir novamente confortável com a antiga vida. Mesmo assim quero ir, se não por outro motivo, para falar com o advogado sobre a morte do meu pai. – Ainda não soubeste de nada? Talvez o advogado também esteja doente. – Ou isso, ou não sente a necessidade de esforçar-se por conta de uma cliente mulher. Se for esse o caso, talvez precise de arranjar um novo advogado. – Mariah não estava com muita vontade de lidar com um advogado lento, mas teria de aprender a fazê-lo. Talvez Masterson a ajudasse a encontrar um melhor, se fosse necessário. – Se fores para Londres com um grupo de jovens bonitos, vais precisar de uma criada – disse Julia. – Melhor ainda, de uma acompanhante. – Essa é uma das razões por que te estou a visitar hoje. – Sorriu de modo persuasivo. – Gostarias de uma viagem a Londres com todas as despesas pagas? – Queres que eu vá? – Julia baixou a chávena de chá com um tinido. – Não posso fazer isso. E os meus pacientes? Mariah já sabia que a amiga resistiria. Julia não era natural de Cumberland. O sotaque classificava-a como educada, talvez filha de um médico ou de um vigário. Mariah suspeitava de que a amiga tivesse vindo para aquele recanto remoto de Inglaterra para fugir do passado. Mas o seu rosto mostrava ânsia perante a ideia de Londres. – Disseste que a tua aprendiza está a tornar-se muito hábil. Se houver uma verdadeira emergência, a Jenny ou a paciente podem chamar outra parteira. Julia estava tentada, mas ainda não convencida. – Não tenho roupas apropriadas. Mesmo que o transporte e o alojamento estejam incluídos, eu precisaria de dinheiro. – Ela sorriu. – Muito do meu rendimento é em géneros, e não me parece que possa usar uma galinha como moeda em Londres. Mariah riu-se. – Suponho que não. Mas somos quase do mesmo tamanho, por isso podemos partilhar algumas roupas. O meu guarda-roupa não está ao nível dos padrões de Londres, mas recebi algumas coisas bonitas de senhoras que fui conhecendo. Também sou bastante boa costureira. Podemos comprar umas roupas usadas e eu altero-as. – Mudando a abordagem, acrescentou: – Não seria bom ir um bocado para fora? Poderíamos ver Londres juntas. – Não posso mesmo – disse Julia. Mas os olhos mostravam anseio. – Não precisas de aparecer na sociedade – disse Mariah. – Não, se não quiseres. Julia sorriu com pesar. – Como sabes que quero evitar a sociedade? – Foi só uma suposição. – Mariah fez uma careta. – Eu própria não sou uma entusiasta da ideia, mas preciso de descobrir se consigo nadar nessas águas, se há alguma hipótese de eu e o Adam nos casarmos. Eu e o meu pai nunca nos movemos na alta roda, mas tive que me adaptar continuamente a novas situações, por isso devo conseguir arranjar-me. A expressão indecisa de Julia firmou-se. – Eu sei que não devia, mas... sim, vou contigo. Como tu, também tenho assuntos em Londres. – Levantou-se. – Quanto à roupa, espera aqui um momento. Os momentos alongaram-se bastante, a ponto de o gato de Julia saltar para o colo de Mariah e pôr-se à vontade. Mais uma chávena de chá e uma fatia de bolo tinham sido consumidas quando Julia voltou com uma braçada de vestidos. Todos vestidos de dia de boa qualidade, não da última moda, mas feitos com bons tecidos e cores vivas. Mariah susteve a respiração, assustando o gato do colo. – Onde...? – Não perguntes – disse Julia, enquanto colocava as peças de vestuário em cima de uma cadeira. – Por favor. Mariah assentiu, imaginando que as roupas vinham do antigo casamento de Julia. Devia ser muito nova quando o marido morreu, pois não era muito mais velha que Mariah e morava há anos em Hartley. Virando a bainha da peça por cima, Mariah analisou o bordado. – Muito bem feito. Um pouco antiquado, mas podem ser alteradas para ficarem mais à moda. – Não quero moda – disse Julia com firmeza. – Bastará simples e discreto. Isso ajustar-se-ia ao estilo atual de Julia, mas as roupas confirmavam a suspeita de Mariah de que a amiga tinha um passado mais glamoroso. – Como desejares. Não demorará muito a fazer as alterações. Mudar os enfeites e talvez adicionar pequenos xailes ou lenços aos vestidos de decote descido. Julia puxou do fundo um vestido cor-de-rosa. – Gostava que ficasses com este. A cor fica-te muito melhor do que a mim. Mariah afagou a manga com prazer. – Tens a certeza? Este cetim é ótimo. Pode-se cortar o vestido e combiná- lo com cores que fiquem bem com o teu cabelo escuro. – Prefiro que fiques com ele. – Apareceu uma ruga entre as sobrancelhas de Julia, como se o vestido trouxesse más memórias. Mariah pegou num bonito vestido de passear verde. – Veste este e decidiremos o que é preciso fazer. O rosto habitualmente sério de Julia iluminou-se. – Vou desfrutar muitíssimo disto, Mariah. Desde que evite a sociedade, vou divertir-me imenso!
Mariah já tinha comido e saído de casa quando, na manhã seguinte, Adam se levantou, cansado de uma noite de maus sonhos e sono escasso. Estava ele a meio de um pequeno-almoço tranquilo quando Randall entrou como um furacão, à frente da criada que lhe permitira a entrada. – Bom dia, Ash. Pensei levar-te a praticar tiro. Adam pestanejou. – É suposto que mate criaturas indefesas ainda antes de acabar o pequeno-almoço? Randall sorriu abertamente. – Até agora, essa é a prova mais convincente de que ainda és tu. Importas-te que coma um pouco de presunto? – Não esperando pela resposta, serviu-se de presunto e torradas no aparador, depois serviu chá e sentou-se em frente a Adam. – Nunca te soube efetivamente caçador, mas, como disse ontem à noite, és um craque a disparar. Pensei que devíamos praticar tiro ao alvo. Ver se ainda és bom. – Uma pergunta interessante: a perícia do tiro situa-se no corpo ou na mente? – perguntou Adam, pensativo. – Não saberia por onde começar a manejar uma arma. – Ótimo! Se bater com a cabeça te arruinou a pontaria, hoje devo conseguir ultrapassar-te. – Randall serviu-se de mais uma torrada. – Tu e os outros andam a revezar-se a passar tempo comigo para ver que memórias conseguem fazer sair? – perguntou Adam com alguma secura. – Não demoraste muito a deduzir. – Randall engoliu um pedaço de presunto. – A cozinheira de Miss Clarke é de facto excelente. Não admira que não queiras ir embora. – Há uma competição para ver qual de vocês consegue estimular-me melhor a recordar? – Ainda não, mas é uma ideia. – Randall despachou a sua comida e olhou para o prato vazio de Adam. – Pronto para testar a pontaria? – Parece que não tenho alternativa. Acredito que fornecerás a arma. – Adam levantou-se, admitindo secretamente que estava curioso para saber se conservara a habilidade. – As armas são uma das minhas especialidades. – Enquanto se encaminhavam para o vestíbulo da frente, Randall levantou com um movimento rápido uma caixa de armas comprida, em couro, que tinha metido num canto. O chuviscar da madrugada desanuviara para um sol ténue de primavera. Adam perguntou-se onde estaria Mariah. Sentia-se mais feliz quando a sabia por perto. Provavelmente fora à aldeia visitar Julia Bancroft. – Para lá dos jardins, há uma área que deve dar um bom campo de tiro. Algumas árvores, sem muita vegetação rasteira e uma colina atrás, portanto as balas perdidas vão para a terra em vez de continuarem a voar. – Então lembras-te de alguma coisa, ainda que não saibas que te estás a lembrar – disse Randall, pensativo. – Possivelmente. Ou talvez seja só senso comum. – Adam observou o outro homem. Alto, loiro e de constituição esguia, Randall era a imagem de um inglês, embora a sua animosidade tumultuosa fosse menos típica. – Estás muito mais bem-disposto do que ontem à noite. Naquela altura parecias pronto a morder. Que estado de espírito é mais frequente? – O mordaz, acho. Hoje estou de bom humor, porque finalmente entendi que estás mesmo vivo. Não tenho tantos amigos que possa dispensar algum. Espera-se perder amigos no exército, mas não homens que andam por Inglaterra a descansar no regaço do luxo. – Desculpa por quase te ter falhado. – Adam percebeu que deslizavam para o tipo de gracejo provocador que se esperaria de velhos amigos. Interessante. – O sonho que tive, de tirar-te de uma casa em Londres quando estavas muito doente. Isso aconteceu mesmo? A expressão de Randall ficou mais tensa. – Sou sobrinho de um homem que não gosta muito de mim. Ele não podia matar-me abertamente, mas quando regressei da Península, ferido, dispôs-se a deixar-me morrer por negligência. Adam estremeceu. – Ainda bem que agi. Teve repercussões legais? O outro homem abanou a cabeça. – Ele dificilmente poderia apresentar queixa sem admitir o que fazia, portanto deixou-se cair o caso. Recuperei muito bem em Ashton House. Isso aconteceu no verão passado. Salvaste a minha vida. É uma dívida substancial. – Dada a minha amnésia, diria que não há motivo para preocupação com dívidas. – Deixaram para trás os jardins formais e apareceram numa clareira assente contra uma colina. – Aqui está o sítio onde pensei que poderíamos praticar. – Perfeito. – Existia um afloramento rochoso do tamanho de uma mesa à direita, portanto Randall pousou a caixa das armas e abriu-a. Dentro encontravam-se duas espingardas polidas e um par de pistolas, assim como pólvora e balas. Adam observou as armas. – Viajas sempre assim armado? – Numa viagem longa a atravessar o país de um lado ao outro, tenho com certeza tanto uma espingarda como um revólver. E uma faca, claro. – Claro – disse Adam friamente. – Um cavalheiro e um arsenal. Randall sorriu enquanto batia numa das espingardas. – Esta é minha, a outra do Masterson. O Kirkland contribuiu com uma das pistolas. Queres ver do que te lembras? Atuando depressa para não pensar demasiado, Adam levantou a espingarda de Masterson e verificou o peso para equilibrar. Uma boa arma. Verificou a limpeza e não se espantou por encontrá-la imaculada. Com meia dúzia de movimentos eficientes, carregou pólvora, alça e balas, e depois procurou um alvo. – Vamos ver o quanto esta espingarda é precisa. A flor no topo daquele tojo. – Ainda a usar o instinto, levantou a espingarda e disparou. A flor amarela explodiu em fragmentos. – Bastante precisa, embora eu ache que se desvia, de modo insignificante, para a esquerda. – Baixou a arma. – Descobri que também me lembrei de como montar. Ao que tudo indica, os músculos têm memórias separadas das da mente. – Assim parece. Não há dúvida, não perdeste nenhuma da tua técnica de tiro – observou Randall. – Não sei bem se fico satisfeito ou desiludido. – Fica satisfeito. Sorrir faz-nos sentir melhor – disse Adam. – Se me lembro da conversa da noite passada, deves conseguir igualar aquilo. Mostra-me. Randall carregou a sua arma. Um corvo voou rasante e ele levantou a espingarda. – Um alvo em movimento é mais desafiante. Adam levantou a mão. – Não. Aquela criatura não te fez mal. Randall baixou a arma, o espanto no rosto. – Realmente não mudaste, não por dentro. Muito bem, vou tentar a flor do lado esquerdo do mesmo arbusto. Fez rapidamente pontaria e disparou. Quando a flor se desintegrou, Adam disse: – Temos de usar outro arbusto. Este já sacrificou o suficiente à nossa causa. Randall riu-se. – Isso também é característico em ti. Bem-vindo a casa, Adam. Experimentamos agora as pistolas? CAPÍTULO 23
N os três dias antes de o grupo partir para Londres, Mariah mal viu Adam. Ele estava muitas vezes ocupado com os amigos, ao passo que ela passava a maior parte do tempo em casa de Julia, a trabalharem nos guarda- roupas. Era mais sossegado estar com a amiga do que com Adam. Viram-se tempo suficiente para trocar mensagens: sim, Julia estava disposta a acompanhar Mariah; sim, Kirkland alugara duas malas-postas em Carlisle, e iriam buscar toda a gente na terça de manhã; não, não havia problema em Cochrane gerir a propriedade enquanto Mariah se ausentasse, e ele saberia escrever-lhe para Ashton House enquanto estivesse fora, se algo essencial reclamasse a sua atenção. O intendente ficou muito impressionado ao saber que seria convidada de um duque. Mariah presumia que Adam lhe teria contado se tivesse havido algum progresso na frente da memória, mas ele não disse nada. Embora os amigos andassem a ensinar-lhe a sua vida, até então não se desencadeara nenhuma torrente de recordações. Mariah passou a última noite na biblioteca, que usava como escritório e sala de trabalho. Encontrava-se a costurar enfeites numa manga quando uma leve batida soou na porta. Adam entrou, parecendo calmo, retraído e terrivelmente bonito. – Desculpa interromper-te. – Parou à entrada, como se cauteloso de aproximar-se de mais. – Queria verificar se está tudo em ordem para partir de manhã. Queres que faça algo? – Não, estarei pronta logo que acabar e emalar este vestido. A Julia também está preparada. E bastante ansiosa pela viagem. – Mariah deu um nó numa linha e arrancou-a com os dentes. – Ótimo. – Ele esfregou a cabeça. O cabelo crescera o suficiente para cobrir a cicatriz em recuperação, mas era nítido que a ferida ainda o incomodava. – Não te perguntei sequer se tinhas vontade de vir comigo para Londres. Queria-te lá para não me sentir tão sozinho. Mas se preferires não fazer a viagem, não é tarde de mais para mudar de ideia. Ele deixara isto para muito tarde, de facto. Mariah enfiou de novo linha na agulha. – Independentemente do que acontecer entre nós, eu quero ir a Londres. Tenho de falar com o meu advogado, Mr. Granger, e saber por que não respondeu às minhas perguntas. Talvez não tenha mais informação sobre a morte do meu pai, mas eu devia saber da minha herança. – Claro. Talvez aí eu possa auxiliar. Parece o tipo de situação em que ser duque pode ajudar. – Adam mudou de um pé para o outro, inquieto, mas manifestamente pouco inclinado para sair. O desejo irradiava dele em ondas. E, Deus a ajudasse, também ela sentia desejo. Havia uma razão para se manter os solteiros, homens e mulheres, separados. Só com os dois ali, os pensamentos sacrílegos eram fáceis de mais. Mariah questionou como reagiria Adam se ela atravessasse a sala, se enrolasse em volta do seu corpo esguio e musculado e o beijasse. O seu palpite era que ele esqueceria todas as dúvidas e levá-la-ia direta para o chão atapetado da biblioteca, com a sua plena cooperação. Mariah fechou os olhos por um instante, arrebatada por memórias sensuais de quando tinham feito amor. Não! Lembrada da notícia que lhe devia dar, disse: – Podes ficar descansado em pelo menos uma situação. Hoje descobri que não estou grávida. – Graças a Deus – ele exalou, a expressão aliviada. Que feliz ficou ele por ver-se livre dela. Mariah enfiou a agulha na bainha com tanta força que perfurou o dedo. – Na verdade, não há necessidade de me levares a Londres. Os teus amigos vão tomar conta de ti, e nessa altura já os conheces bem e não te sentirás sozinho. Viajarei para Londres sozinha. – Que disparate. Estarás muito mais segura no nosso grupo. Mais confortável, também. – Ele mostrou um sorriso torcido que lhe dissipou a irritação. – E eu gostaria mesmo de te ter por perto. Devo-te, no mínimo, alguma hospitalidade e, no máximo... muito mais. – Muito bem. Economizo bastante dinheiro se viajar contigo. – Odeio estar dependente dos meus amigos. Primeiro tu, e agora os outros. O Kirkland paga a mala-posta, e o Randall e o Masterson andam a discutir como repartir o alojamento e a comida. Pretendo pagar a todos, mas de momento não tenho sequer roupa nas costas. – Tenho a impressão de que fizeste muito pelos teus amigos no passado, e eles ficam muito felizes por te ajudar agora. – Deu mais um ponto. – Aceitar com benevolência será bom para a tua alma. Ele sorriu, mais descontraído. – Excelente conselho. Darei o meu melhor. Mariah deu outro ponto. – Queres manter a ilusão do noivado? – Sim. – Ele suspirou. – Por favor, sê paciente comigo, Mariah. Eu não deixei de gostar de ti. Nem um pouco, sequer. Mas... preciso de compreender a vida que viverei antes de saber o que posso mudar e o que tenho de aceitar. Mariah questionou se algum dos amigos admitiria vulnerabilidade de livre vontade. Masterson era possível. Kirkland... não tinha a certeza. Randall provavelmente preferiria ser despedaçado por cavalos selvagens do que admitir fraqueza. – Tens razão em proceder com cautela. Tento imaginar como seria lidar com tudo o que te tem sido arremessado, mas só posso imaginar. – Ela sorriu-lhe. – Estás a sair-te espantosamente bem, sabes? As sobrancelhas de Adam arquearam-se. – Sinto-me desastrado e incompetente. Fico contente por não o achares. Mariah descansou as mãos sobre o tecido no colo. – A perda de memória é tanto um presente como uma infelicidade. Tens a oportunidade de ser a pessoa que deves ser, sem a coação de como foste educado ou do que os outros esperam de ti. Os teus amigos acham-te diferente de antes? – O Masterson fez um comentário assim, hoje – disse Adam com surpresa. – Disse que eu parecia um pouco menos reservado. Menos... menos ducal. – Talvez não seja mau, dado que o ducado te foi imposto em tenra idade. – Franziu as sobrancelhas. – Pergunto-me o que teria pensado de ti se nos tivéssemos conhecido antes do acidente. Tive pouco a ver com a alta sociedade. É provável que te tivesse achado importante de mais para falar. Agora és muito acessível. Adam riu-se. – Acessível está muito bem, mas, como grande parte dos homens, preferiria que uma mulher bela pensasse em mim como fogoso, bonito ou intrigante. – Todas essas também – disse ela com ternura. A mão de Adam firmou-se no puxador da porta quando os olhares se encontraram. Meu Deus, queria ir com ele! Ele disse, tenso: – Vou sair agora, antes que façamos algo de que nos venhamos a arrepender. – Girou para o corredor e fechou com força a porta atrás dele. Mariah mordeu os nós dos dedos da mão direita de pura e atroz frustração. Em poucos minutos de conversa, o sangue subira-lhe ao ponto de ebulição. Uma verdadeira senhora não sentiria tal... tal desejo! Sarah não sentiria. Mariah era mais como uma leiteira libertina. O único consolo era que Adam sentira exatamente o mesmo.
Adam percebeu que fora um erro falar com Mariah antes de ir para a cama; vê-la deixara-o excitado e ansioso. Ela parecia tão sem maldade e sincera, além de extaticamente adorável. Mas parecera-lhe sincera desde a primeira vez em que abriu os olhos e a encontrou inclinada sobre a sua cama. O seu julgamento foi imperfeito. Talvez pudesse confiar nela. O mais claro era que não podia confiar em si mesmo. Quando finalmente adormeceu, os sonhos foram os mais perturbadores que tivera até ao momento, começando com ele, um rapazinho aos gritos, a ser arrastado de casa. O cenário era claramente a Índia e o sentimento compreensível. Era uma memória que teria ficado mais feliz por não recuperar. Aquele foi seguido por um sonho inquietante de uma jovem adorável nos seus braços. Falou com ela e ela levantou o rosto, radiosa. Tinha pele clara e olhos verdes e era inglesa, não a mãe. Embora não tivesse mulher, teria uma namorada? Mariah questionara se se pareceria com outra mulher da sua vida, e podia estar certa. O pior de todos foi o sonho de entrar num salão de baile cheio de pessoas bonitas e vestidas de forma requintada – e descobrir que estava nu, cada centímetro da pele demasiado escura exposta. Acordou a transpirar, tanto a cabeça como o coração a bater forte. Inalar, exalar. Inalar, exalar. Conseguiu encontrar um estranho divertimento na situação, depois de se acalmar. Tinha a certeza de que jamais ocorrera tal incidente. O sonho devia ser sobre o seu medo de entrar na sociedade de Londres quando se julgava tão despreparado. Sentir-se-ia nu e vulnerável, independentemente do que vestisse. Graças a Deus pelos amigos. Embora a sua falta de memória os desapontasse, não mostravam sinais de o abandonar. Protegê-lo-iam bem. Tinha também de agradecer por Mariah. A mentira sobre o casamento era uma pena profunda em que não queria pensar, mas ela ainda era a sua pessoa preferida. Mais do que qualquer outra pessoa, via-o como era agora. Ele sentia-se melhor quando estavam juntos. Infelizmente, não conseguia sequer falar com ela sem que o cérebro se toldasse pelo desejo e, quanto menos a via, mais intensa era a ânsia. Um outro motivo para a sua dificuldade em dormir. Pelo menos decifrara como aliviar a fogosa luxúria, embora fazê-lo fosse menos satisfatório do que estar com Mariah. Ao tocar-se, questionava se tal comportamento seria proibido na sociedade inglesa. Essa era uma informação de que não precisava.
Depois de três dias de atividade, Mariah achou um alívio deixar Adam ajudá-la a entrar na «saltona amarela», como eram chamadas as malas- postas. A carroçaria amarela brilhante tornava as carruagens alugadas inconfundíveis. Esta tinha espaço para quatro passageiros e era puxada por quatro cavalos. A que fora buscar os amigos de Adam a Hartley devia ser idêntica. Se mudassem de cavalos várias vezes por dia, deviam chegar a Londres dentro de uma semana. Uma carruagem-correio era mais rápida, mas a carruagem seria mais veloz que a maior parte dos outros métodos de viagem. Ela e o pai viajavam por norma de diligência, que era mais lenta e menos confortável, e, por conseguinte, a mala-posta era um luxo. Mariah pôs-se à vontade no assento de couro e reprimiu um bocejo. Dormira pouco na noite anterior, preocupando-se com se teria emalado tudo de que precisava, bem como a matutar sobre Adam. Annabelle saltara-lhe para a cama de manhã, lançando-lhe um olhar magoado e saindo depois majestosamente para a cozinha. Mariah esperava que a gata lhe desculpasse a ausência, quando regressasse a Hartley. Mas gata e propriedade estariam em boas mãos com Mrs. Beckett e Mr. Cochrane. Adam estava prestes a juntar-se a ela na carruagem quando Bhanu saltou com entusiasmo para o interior. Parecia preparada para instalar-se e viajar até Londres. Mariah inclinou-se para a frente e coçou a cabeça da cadela. – Lamento muito, mas tens de ficar cá. Pensa em como a Annabelle teria saudades tuas. Adam levantou a cadela para os braços. – Acho que tem de ficar presa lá dentro, senão segue-nos. Vou levá-la para a cozinha e ela não dará conta que partimos. Pouco tempo passou enquanto levou Bhanu para dentro. Depois voltou e o condutor pôs a carruagem em movimento. O olhar de Adam permaneceu na casa enquanto se afastavam. – Estás a pensar que podes nunca mais voltar? – perguntou Mariah, mantendo a voz equilibrada. Parecendo pouco à vontade, ele respondeu: – Espero sem dúvida voltar, mas... não sei. – A carruagem virou para o caminho que levava à estrada, pondo um fim à sua vista da casa. Olhou para Mariah. – Tanto aconteceu aqui. – Perguntei-me se, a acontecer algo que traga de volta as memórias da tua vida anterior, vão desaparecer as de desde o acidente – disse ela, ponderada. – Uma vez, conheci um médico que lidava com muitas lesões na cabeça e, pelos vistos, tudo pode acontecer. – Não consigo imaginar esquecer-te. – Fixou-a intensamente. Inquieta, Mariah deslocou-se sob aquele olhar, ao mesmo tempo que a carruagem bateu num sulco. O seu joelho roçou no dele. Adam susteve a respiração. – Acho que vou na outra carruagem a maior parte do tempo. Não é uma rejeição da tua pessoa. Antes... pelo contrário. – Muito sensato – concordou ela. – Claro, a Julia vai comigo, mas se não fosse, haveria sempre o perigo de isto acontecer. – Deslizou para a frente e pôs-lhe as mãos nos ombros; depois, deu-lhe um beijo que tentava dizer tudo o que não conseguia verbalizar. Que o amava, o desejava, que lamentava ter mentido... Se não tivesse afirmado que eram marido e mulher, ter-se-iam tornado tão próximos? Agora não valia a pena questionar. Adam ofegou e pôs os braços em volta da cintura de Mariah enquanto a beijava também, a boca devoradora. – Isto é perigoso – disse ele com a voz tomada. – Não há espaço para mau comportamento numa carruagem – disse ela com uma gargalhada sufocada. – Achas que não? – Ele apertou as mãos em volta da cintura de Mariah e levantou-a na sua direção, puxando-a para o colo com as pernas escarranchadas. Mariah estava chocada com o quão intimamente se abraçavam. Chocada e excitada. Enquanto as mãos dele lhe acariciavam as costas, ela derretia-se nele, a anca a mover-se num ritmo involuntário. – Seria fácil... – arquejou. O balançar da carruagem aumentava o movimento inebriante. A mão dela desceu entre eles. – Fácil, mas não sensato. – Com a respiração irregular, ele agarrou-lhe a mão antes que descesse mais. – Felizmente, a viagem até Hartley é curta. – Oh, céus! – Mariah tentou afastar-se quando a razão voltou. Ele segurou-a no colo, as mãos novamente a acariciá-la. – Ainda temos uns minutos. Mas somente alguns. Mariah questionou se este seria o último beijo. Teriam poucas oportunidades de ficarem sozinhos durante aquela viagem e, assim que chegassem a Londres, as circunstâncias rapidamente se poriam entre eles. Descansou a cabeça no ombro de Adam enquanto pensava nos dias seguintes. – Estás pronto para Londres? – Tanto quanto posso estar. – Pôs um braço em volta dos ombros de Mariah. – Pedi aos outros para não falarem sobre a minha amnésia. Os meus amigos próximos e a família terão de saber, mas prefiro que a minha fraqueza não seja motivo de riso para a sociedade londrina. – Não é uma fraqueza, é uma lesão. – Parece uma fraqueza, quando todos sabem mais acerca da minha vida do que eu. – És um duque – disse ela. – Fá-los calar com sarcasmo. Adam deu uma risada surpreendida. – És uma serigaita travessa. – Os braços apertaram-na. – Como pode algo errado parecer tão certo? – Porque estás a pesar em duas escalas diferentes. – Ela afagou com a mão o peito dele. – Sentimento é... sentimento. Gosto, toque, emoção, excitação – questões do coração. Certo e errado são uma matéria completamente diferente. Envolvem moralidade, sabedoria, justiça – questões da mente. – Suspirou. – Muitas vezes eles não concordam. – Sabedoria é algo que tens bastante. Em Londres, espero assassinar os dragões da minha mente. Depois... veremos o que vem a seguir. – Acariciou-lhe a face com ternura, com as costas da mão, depois levantou-a do colo – nada fácil, já que estava sentado – e pousou-a de volta no assento. – Pareces enganadoramente recatada. –É a minha especialidade. – Juntou as mãos enluvadas. Recatadamente. Minutos mais tarde estacionavam em frente ao Bull and Anchor. A outra carruagem aguardava com os amigos de Adam a demorarem-se ao ar livre tanto quanto podiam. Os homens subiram e seguiram para a casa de Julia, que ficava a caminho da saída da aldeia. Mariah desceu da carruagem e andou até à casa com Adam ao seu lado. Julia abriu a porta de chapéu e pronta a sair. Tal como Mariah, a sua bagagem consistia numa pequena mala e uma caixa de chapéus. Adam levantou a mala num movimento rápido. – Eu levo-te isto. Julia lançou-lhe um olhar perplexo. – Não sabia que os duques carregavam bagagem. – Estou certo de que crescerei em arrogância quando me aproximar de Londres – disse com solenidade. – Mas por enquanto prefiro ser útil. – Virou-se e dirigiu-se para as carruagens. Mariah esperou que Julia fechasse a porta. – Estás com segundos pensamentos? – Segundos, terceiros, quartos, quintos – disse Julia com ironia quando se encaminhavam para as carruagens. – Mas... estou contente por ir. Existe uma pessoa que tenho de ver antes que seja tarde de mais. – Teremos o apoio uma da outra. Desconfio que também vou precisar. Quando chegaram às carruagens, Adam apresentou Julia aos amigos, que tinham saído para a conhecer. Masterson foi afável, como era habitual, e Kirkland de uma educação impecável, mas Randall fez má cara e lançou a Julia um olhar que congelaria os bigodes de um texugo. – Prazer em conhecê-la, Mrs. Bancroft – disse friamente. – O prazer é mútuo – disse Julia sem pestanejar. Deixou que Adam a ajudasse a entrar na carruagem e Mariah seguiu-a. Para Mariah, Adam tinha um aperto de mão especial, mas depois virou-se e disse aos amigos que não manteria, egoistamente, duas lindas senhoras para si próprio, e perguntou quem gostaria de ter a primeira oportunidade de viajar com elas. – O que foi aquilo? – indagou Mariah num sussurro enquanto os homens discutiam o arranjo dos lugares. – Conheces o Randall? Julia abanou a cabeça. – Nunca nos conhecemos. É óbvio que ele antipatizou de imediato comigo. Mariah bufou de forma senhoril. – O Randall não tem grande consideração pelas mulheres. Está convencido de que sou uma caçadora de fortunas, a armar uma cilada ao Adam para casar. – Mas tu não fazias ideia de quem era o Adam quando o encontraste. – O Randall não é homem para deixar os factos interferirem num bom enredo. Partilharam um sorriso. Masterson abriu a porta e juntou-se a elas na carruagem. – Sou o sortudo que ganhou a companhia de duas belas donzelas. Mariah riu-se. – Devíamos ter deixado a Bhanu vir, para equilibrar a beleza. Embora, para ser franca, eu a ache linda. – Se consegue amar uma cadela feia o bastante para lhe encontrar beleza, não devia perder-se a casar com um homem bonito como o Ash – disse Masterson prontamente. – Seria melhor aliar-se a um como eu, que precisa do seu dom de ignorar a realidade. Por um instante, Mariah viu-lhe algo no olhar que a fez pensar que estava, pelo menos, meio sério, mas o momento passou. – Quando chegarmos a Londres, vamos estar todos sinceramente cansados de nos vermos uns aos outros – disse ela. – E pisados, rígidos e cansados de viajar – acrescentou Julia. – Mas pelo menos estaremos desconfortáveis a um elevado grau de velocidade, em vez de vagaroso – salientou Masterson. Todos se riram. Era um bom começo para uma longa viagem. CAPÍTULO 24
A dam tinha assumido que Ashton House seria uma casa de cidade rica. Não uma mansão independente em Mayfair, cercada por jardins e um muro de pedra alto encimado com formidáveis espigões. – Bom Deus – disse ele quando pararam junto aos altos portões de ferro. – Isso é bastante mais do que eu esperava. Kirkland, sentado no lado oposto da carruagem, disse: – Nenhum de nós mencionou que é a maior casa privada de Londres? É bem agradável, por acaso. Há bastante espaço para os teus amigos, por isso parece muitas vezes um hotel particularmente bom. – Eu sempre fico em Ashton House, quando estou em Londres. Deste-me os meus próprios aposentos, na verdade. – disse Randall. – Ainda é oportuno? – Claro. – Adam observou a mansão que se expandia. – O sítio é tão grande que posso passar dias sem te ver. A viagem correra tão bem quanto se poderia esperar, com contínuas trocas de cavalos e uma só situação de atolamento na lama durante uma tempestade de chuva torrencial. Pernoitaram em boas pousadas, geralmente optando por três quartos, com as mulheres a dividir um e os homens os outros. Contudo, os dias numa carruagem deixavam muito tempo para pensar. Conseguiria sem dúvida lidar com Londres e suas demandas, embora a possibilidade de alguém ter tentado matá-lo acrescentasse um pouco de excitação a mais. Embora sem nunca se mencionar o assunto, Adam sabia bem que os amigos vigiavam o ambiente com atenção. Como Masterson escrevera antecipadamente ao pessoal doméstico de Ashton e aos primos a dizer que ele ia voltar, não era impossível que um assassino determinado deduzisse o itinerário. Mais um bom motivo para não viajar na mesma carruagem que Mariah. Se fosse baleado, pelo menos ela estaria segura. No entanto, isso significava que quase nunca se viam. A ausência dela doía-lhe como um dente perdido. As únicas vezes em que a via eram quando os seis elementos do grupo jantavam juntos nas salas particulares das várias estalagens. Independentemente de quão longo tinha sido o dia, Mariah estava calma, imperturbável e paciente. Julia Bancroft era uma viajante igualmente boa. Embora silenciosa, a sua presença era tranquilizadora. Todos gostavam dela, exceto Randall, que se entorpecia sempre que ela andava por perto. Ele nunca partilhava a carruagem das mulheres. Com Masterson e Kirkland para conduzir a conversa, os jantares tinham sido agradáveis. Depois do jantar, as senhoras retiravam-se para os aposentos partilhados. Adam não estivera a sós com Mariah desde a viagem de carruagem de Hartley Manor até à aldeia. Certamente, este grandioso e extenso bloco que era a casa conceder-lhes-ia alguma privacidade. Não que desejasse arrebatá- la – bem, na verdade desejava, mas não o faria –, mas adoraria sentar-se a tomar chá com ela e, talvez, a segurar-lhe a mão. Para descontrair com ela como não fazia com mais ninguém. Um porteiro de libré, idoso, mas de olhos argutos, emergiu da portaria para inspecionar as duas saltonas amarelas enlameadas. O condutor da carruagem de Adam anunciou com pompa: – O Duque de Ashton e amigos. O porteiro devia ter sido informado da sobrevivência de Adam, mas a sua expressão ainda se agitou por um momento ao olhar para dentro da carruagem, para confirmar a identidade de Adam. – Bem-vindo a casa, vossa Graça. – Fez uma reverência profunda e abriu o portão. Enquanto passavam pelo extenso arco da entrada, Randall disse: – Estamos de volta à terra dos criados agitados e das obrigações sociais. – Lamenta-te se quiseres – replicou Kirkland –, mas quanto a mim fico contente por ter roupa limpa e um criado para me vestir. – Olhou para o casaco verde escuro e calças largas de camurça, que pareciam bem vividos. – Vou dizer ao Jones para queimar o que trago vestido. Não obstante, viajar grosseiramente faz-nos apreciar o conforto da civilização. – Viajar grosseiramente é a retirada para a Corunha – disse Randall com secura. – Uma viagem à Escócia é só cansativa. Embora admita que partilhar aposentos contigo e com o Masterson durante semanas foi por si só esgotante. Adam e Kirkland riram-se e a carruagem parou sob uma ampla porta- cocheira. Um criado jovem de cabelo empoado apressou-se a sair, o rosto radiante de excitação. Quando este abriu a carruagem e desceu as escadas, Adam disse: – Pergunto-me quão grande será o comité de boas-vindas. Randall fez um esgar. – Grande. Embora ninguém saiba a hora exata da chegada, até ao fim da tarde toda a Londres elegante saberá e metade fará uma visita para ver com os próprios olhos que estás vivo. – E isso não contando com o pessoal que está à espera lá dentro – acrescentou Kirkland. A segunda carruagem parou atrás da deles e o criado ajudou Julia e Mariah a sair, seguidas por Masterson. Adam ofereceu o braço a Mariah. – Entramos no covil dos leões? Os olhos dela sorriram com confiança quando a mão se curvou sob o cotovelo dele. – Siga em frente, vossa Graça. – Era a primeira vez que se tocavam desde Hartley. O efeito foi... estimulante. Apesar da agitação na viagem, Adam descobriu que agora ansiava por mergulhar na sua vida. Certamente ali recuperaria o que tinha perdido. O grupo entrou nos espaços amplos e ressonantes de um átrio de entrada com três andares. Estava cheio de criados. Dezenas deles. Quando ele e Mariah apareceram, houve uma onda de movimento gigantesca, com as fêmeas a fazerem uma vénia e os machos a curvarem-se. Em toda a parte para onde olhava via sorrisos luminosos. Estas pessoas que não reconhecia mostravam-se genuinamente felizes por vê-lo vivo. Reparou em várias criadas bonitas e esperou ter sido cavalheiro o suficiente para não as molestar. Aproximaram-se três criados mais velhos. A mulher de meia idade tinha de ser a governanta, vestida de forma imaculada e a irradiar confiança. O homem à sua direita era um mordomo igualmente imaculado. Os amigos de Adam tinham-no informado sobre o pessoal sénior, portanto ele sabia que o casal era Mr. e Mrs. Holmes. Era estranho lembrar-se de como se administrava uma grande casa, mas não da própria vida. O outro homem era... muito diferente. Embora bem vestido, tinha a constituição entroncada e o rosto marcado com cicatrizes de um lutador de rua. Randall murmurou: – O sujeito à direita é o Wharf, o teu criado particular. Devia ter-te falado mais sobre ele. Tarde de mais. O trio alcançou-o e disse: «Bem-vindo, vossa Graça» num uníssono quase perfeito. Perguntou-se se teriam ensaiado. – É bom estar cá – disse ele. – Creio que conhecem a maioria dos meus amigos, mas não Miss Clarke e Mrs. Bancroft. Elas ficarão hospedadas em Ashton House. Tratem-nas muito bem. – Claro, vossa Graça. – Mrs. Holmes pareceu pensativa. – A suite azul tem dois quartos ligados por uma sala de estar. Seria satisfatório? – Claro – murmurou Mariah. Julia concordou com a cabeça. Ambas mostravam uma expressão de aprovação calma, como se se hospedassem regularmente em residências ducais. Adam sentia-se divertido, mas não apreciava a lembrança de que Mariah era uma boa atriz. – Mr. Randall, os seus aposentos habituais estão preparados. – O olhar da governanta voltou-se para Adam. – Se convier a vossa Graça, o almoço será servido dentro de uma hora, portanto haverá tempo para que todos se refresquem. Uma vez que o pequeno-almoço fora ao amanhecer, Adam tinha fome e imaginava que os amigos também. Masterson e Kirkland planeavam ir para as suas casas de Londres, mas agora que tinha novamente recursos, devia- lhes no mínimo uma refeição. – Seria muito bom, Mrs. Holmes. Masterson, Kirkland, ficam? – Ficaria feliz por passar a próxima hora na tua biblioteca, com uma pilha de jornais e um copo de xerez – disse Kirkland. – Quieto! Masterson riu-se. – Junto-me a ti lá. As filas de servos dispersaram, os amigos de Adam a serem levados em diferentes direções. Virando-se para o seu criado particular, Adam disse: – Também preciso de mudar de roupa. Guias-me até aos meus aposentos? – Claro, senhor. Até ali tudo bem. Enquanto seguia Wharf para o andar de cima, Adam questionava o que a tarde reservaria.
Mariah deixou uma criada desemalar-lhe as roupas e abriu a porta de ligação à sala de estar. Julia já se encontrava lá, tendo deixado atrás dela outra criada a desfazer as malas. Fechando a porta para terem privacidade, Mariah exclamou: – Algum dia viste um sítio assim, Julia? Presume-se que os duques tenham riqueza, mas este lugar envergonharia Carlton House! – Carlton House é mais grandiosa, mas menos acolhedora, pelo menos pelo que vi. – Julia andou pela sala e olhou para os jardins pela janela. Mariah olhou-a, espantada. – Estiveste em Carlton House? – Há muitos anos. Mas não é um privilégio raro – disse Julia com um sorriso. – Por cada aristocrata que é convidado do príncipe regente, há dezenas de criados, trabalhadores e lavadeiras. Mariah duvidava que Júlia tivesse visitado a residência real como lavadeira, mas não falou sobre o assunto. – Estou ansiosa para ver as vistas contigo. Mas antes tenho de localizar o meu advogado e fazer-lhe uma visita. Julia instalou-se numa das cadeiras forradas a seda. – Ambas temos tarefas a cumprir, mas tenho a certeza de que também haverá tempo para o turismo. Ao ver o rosto tenso de Julia, Mariah disse com delicadeza: – A julgar pela tua expressão, o assunto deve ser difícil. Acompanhar-te- ei de boa vontade, se ajudar. Julia abanou a cabeça, a expressão suavizada. – Não há necessidade. Estou triste, mas este é um tipo muito comum de dor. Vou visitar a minha avó. É velha e frágil, e esta visita pode ser a minha última oportunidade de a ver. Ela viveu uma vida longa e boa, o que torna mais fácil aceitar que partirá em breve. Mas quero vê-la, e isso não teria acontecido se não me tivesses convencido a vir a Londres. Obrigada. – O benefício é mútuo. – Mariah sentou-se no sofá elegante em frente a Julia e contemplou as cornijas elaboradas e as belas pinturas. Aquela sala de estar e o quarto eram os lugares mais bonitos em que já estivera. Ver Ashton House fez com que percebesse como era largo o abismo entre ela e Adam. Intransponivelmente largo. CAPÍTULO 25
Q uando Wharf abriu a porta da suite ducal, Adam disse: – Informaram-te de que o ferimento que sofri na cabeça me comprometeu a memória? – Depois de o criado anuir, Adam continuou: – Lembro-me muito pouco da minha vida anterior. O que te inclui. – Os olhos dele brilharam de diversão. – Seria o momento ideal para dizeres que te prometi um aumento no salário. – Não, senhor! – Wharf pareceu escandalizado e fechou a porta para o corredor. Entraram para uma sala de estar espaçosa, a partir de onde se abriam várias portas. – Já sou pago com muita generosidade. E o homem era honesto de mais para se divertir com a ideia de que poderia tirar partido da incapacidade do patrão. O que intercedia a favor dele. – Espero que, com o tempo, as minhas memórias voltem, mas por enquanto prefiro que não circulem histórias sobre a minha fraqueza. Será impossível manter uma coisa assim em total segredo, mas quanto menos se disser, melhor. Como serias uma fonte principal de tal informação, conto que sejas discreto. Wharf pareceu ainda mais escandalizado. – Eu nunca, nunca falo sobre assuntos pessoais de vossa Graça. E muito menos agora. Melhor e melhor. – Tu não assentas na imagem habitual de um criado particular. Como te empregaste aqui? Qual é a tua história? A expressão de Wharf tornou-se prudente. – Nasci no East End. O meu pai era estivador. Morreu quando um barril de xerez caiu em cima dele. A minha mãe era lavadeira e não conseguia sustentar-nos a todos, por isso alistei-me no exército logo que pareci ter idade suficiente. Dei a gratificação à minha mãe, para ajudar a cuidar dos pequenos. Estava agora explicado o sotaque de Londres. Adam atravessou a sala de estar e abriu uma porta para um quarto com uma enorme cama de dossel, adornada com pesadas tapeçarias em brocado azul e prata. – Quantos anos tinhas, na verdade? – Treze, mas era grande para a idade. Alguns dos que se alistam são magricelas, por isso eu parecia crescido que chegasse para passar. Adam atravessou o quarto com Wharf a seguir-lhe o rasto. Outra porta se abriu para um enorme quarto de vestir cheio de camisas, calças e casacos pendurados em móveis embutidos especialmente desenhados. Botas, chapéus e outros objetos de uso pessoal masculino estavam arrumados com ordem nas prateleiras. – Meu Deus, eu uso mesmo estas roupas todas? – Vossa Graça é conhecida pelo seu vestir impecavelmente elegante, nem muito extravagante nem muito conservador – disse o criado de modo bastante pomposo. – Presumo que te devo muita da minha reputação. – Adam tocou numa esplêndida camisa de algodão, uma das muitas penduradas em armações de madeira individuais da largura dos ombros de um homem. Uma porta do lado oposto da sala dava para o quarto arrumado do próprio Wharf, que tinha uma saída separada para o corredor. – Como te tornaste meu criado? – Tive licença do exército depois de ser ferido e chocar uma febre tifoide. Eu e o meu companheiro, o Reg, fomos mandados para casa para recuperar, se conseguíssemos – explicou Wharf. – De volta a Londres, um gangue de bêbados ferozes atacou-nos. Espancaram-nos fortemente, até aparecer o Major Randall e os afugentar. – Sozinho? – perguntou Adam. – Quantos estavam lá? – Eu e o Reg derrubámos quatro, mas ainda faltavam mais quatro. – Wharf parecia melancólico. – Se estivéssemos em condições de lutar, eu e o Reg podíamos ter tratado deles, mas não como estávamos na altura. Ainda assim, foi um raro prazer ver o major em ação. Ele achava que os ex- soldados não deviam passar fome nas ruas, por isso trouxe-nos até si e perguntou se poderia dar-nos trabalho. Eu ficava contente a esfregar o chão da cozinha como uma criada de lavagem, desde que me alimentasse e voltasse a Inglaterra, mas fez melhor. Pôs o Reg nos estábulos, uma vez que ele é bom com os cavalos. Disse-me que precisava de um novo criado particular e se eu estaria interessado em aprender o ofício. Quando disse que sim, contratou um criado de uma agência para ensinar-me o processo de manter o guarda-roupa de um cavalheiro. Talvez Adam, nesse primeiro tempo, tivesse compreendido que era bom valorizar mais a lealdade do que as referências. – Devo ter gostado de ti, para te oferecer treino para o trabalho. – Isso e, apesar de eu estar meio faminto e ter a constituição de um pugilista profissional, as minhas roupas terem sempre bom aspeto – disse Wharf com sarcasmo. – Não sou feito para ser elegante, por isso tem sido um prazer raro servi-lo como criado particular. – O olhar passou rápido pelas roupas de Adam. – O que traz vestido não é mau, mas não está à altura dos nossos padrões habituais. Adam virou-se para olhar o criado nos olhos. – Que tipo de relacionamento tínhamos? Não te levei comigo para a Escócia. Por que não? O rosto de Wharf ficou tenso. – A minha mãe estava a morrer e disse-me para ficar em Londres com ela. Faleceu pouco antes de recebermos a notícia do seu acidente. – Os meus sentimentos pela tua perda – disse Adam com sobriedade. – Teria sido bruto exigir-te que partisses em tais circunstâncias. – A maior parte dos senhores não teria pensado além da própria conveniência – disse Wharf sem rodeios. – Na altura fiquei agradecido por não insistir em que eu fosse, mas talvez não tivesse ficado tão ferido se eu estivesse consigo no Enterprise. – Ou talvez tivesses morrido. Não há razão para inquietações com o passado. – Adam observou o rosto cheio de cicatrizes do criado. – Parece que temos tido uma relação que é... menos formal do que o normal, entre um cavalheiro e o seu criado. – Eu sempre soube o meu lugar, senhor – disse Wharf, escolhendo as palavras com cuidado. – E espero nunca ter sido invasor. É o mais excecional cavalheiro de Londres, e não digo isto só porque trabalho para si. Mas... ambos somos um pouco diferentes dos outros. Penso que talvez isso influencie a maneira como lidamos um com o outro. – Presumo que a minha diferença esteja no sangue hindu. – Adam examinou os cabides de casacos feitos magnificamente à medida, as cores um arco-íris vivo e escuro. – Qual é a tua diferença? O facto de não teres sido criado para o serviço doméstico? Wharf corou, um carmesim profundo e infeliz. – É isso, mas também... Eu... Eu devo contar-lhe primeiro, antes que outra pessoa o puxe para o lado e nos acuse, a mim e ao Reg, de termos uma... uma relação não natural. Uma relação não natural? Devia significar sexual. Algures, nas profundezas da mente, Adam lembrou-se de que uma ligação assim era um crime punível com a pena de morte. Não admirava que Wharf parecesse tão nervoso ao mencionar o assunto. – Têm? – Sim, senhor. – A voz de Wharf era um simples sussurro. – Podemos ir embora, se não gostar. Ter uma «relação não natural» poderia explicar o porquê de Wharf e o companheiro terem sido atacados por um gangue de homens zangados. Adam questionou o que poderiam exatamente fazer dois homens juntos, mas não era altura de perguntar. – Eu sabia disto antes? O criado acenou afirmativamente. – Presumo que o conhecimento não me incomodava. – Wharf abanou a cabeça. – Então não sei por que deveria incomodar-me agora. – Voltou-se de novo para as roupas. – Escolhes uma roupa apropriada para o almoço? Estou esmagado por escolhas. – Olhou para si mesmo. – A minha roupa atual foi emprestada. Tem de ser lavada e reparada para a devolução. – Muito bem, vossa Graça. – A voz de Wharf vibrou de alívio. Adam saiu do quarto de vestir e tentou outra porta. Esta estava trancado. Franziu a testa. – Por que não consigo entrar aqui? – O quarto é... um gabinete particular seu. É por isso que o tranca. – Sabes onde está a chave? O criado anuiu. – Eu limpo o aposento de vez em quando, porque não quer que as criadas entrem. – Andou até a uma escrivaninha elegante e complicada, abriu uma das gavetas e retirou uma chave da parte inferior. – É aqui que se guarda a chave. Adam examinou o compartimento secreto construído com cuidado. – Ao que tudo indica, estou decidido a que mais ninguém entre. – Muito decidido mesmo. – Wharf entregou-lhe a chave. – Vou preparar uma muda de roupa para o almoço enquanto entra. Satisfeito por o criado lhe dar privacidade, Adam destrancou a porta, questionando sobre que seria tão reservado o seu antigo eu. Entrou na divisão – e viu-se num santuário hindu. O ar cheirava a incenso e a luz entrava por janelas altas, iluminando os altares que serviam de suporte a estátuas de divindades esculpidas e pintadas com requinte. Tecidos de cores vivas precipitavam-se do centro do teto e adornavam as paredes, fazendo o quarto parecer uma tenda exótica. Os candeeiros a óleo em bronze assemelhavam-se aos dos seus sonhos. Em frente à porta estava novamente o deus com cabeça de elefante. Ganesha. Agora já recordava com facilidade os nomes e as características. Ganesha era um sujeito popular, destruidor de obstáculos e senhor dos inícios. O patrono das artes, das ciências e da sabedoria. No seu altar encontrava-se um ramo de flores tão secas que não conseguiu identificar o tipo. Adam levantou o ramo, as pétalas a flutuar para o chão. Se Wharf apenas entrava ali para limpar, Adam devia ter deixado aquelas flores como uma oferta antes de viajar para a Escócia. Por que teria orado? Sucesso para o navio a vapor ou algo menos óbvio? Este espaço era de uma calma profunda, como um jardim de meditação, mas ainda mais. Virou à direita e reconheceu Lakshmi, a consorte de Vishnu e deusa da beleza, do amor e da prosperidade. Um pouco como Afrodite ou Vénus. Lakshmi era a essência da feminidade, celebrada durante o Diwali, um festival de luzes. Mariah em nada se parecia com esta divindade de cabelos escuros, mas possuía a mesma essência profundamente feminina. Havia também altares para Shiva, o Destruidor, o deus dançante da aniquilação e do renascimento, e Vishnu, o ser supremo, acima de todos os outros. Os deuses dos seus sonhos. Sentindo uma sensação de regresso a casa ainda mais poderosa do que ao entrar em Ashton House, Adam girou- se num círculo, o tapete espesso a amortecer-lhe os passos. Este quarto representava a secreta parte hindu de si mesmo. Quando foi tirado à força da mãe e trazido para Inglaterra, para ser educado para a herança, percebeu por instinto que, para manter-se são, devia parecer inglês. Não podia eliminar a pele escura, mas podia falar como um senhor, vestir- se como um senhor, realizar as atividades de um senhor. Daí aquelas roupas bonitas penduradas no quarto ao lado. Teria alguém visto este santuário particular, à parte Wharf? Não. Adam soube logo que mesmo os amigos que deixaram tudo e viajaram à Escócia em busca do seu corpo afogado não sabiam deste santuário escondido. Não confiara a ninguém esta parte de si mesmo, exceto ao criado, que tinha as próprias razões para segurar a língua. Debatendo-se com pensamentos que não conseguia bem clarificar, passou ao de leve as pontas dos dedos ao longo da roda de fogo em bronze que continha o Shiva dançante. Havia uma ligação profunda e complicada entre a amnésia e a forma como ocultara tanto da sua natureza interior. Todavia, não sabia bem como poderia tornar-se novamente inteiro. Lembrou-se de frequentar a igreja com Mariah em Hartley, e de como as cerimónias lhe haviam parecido naturais e inspiradoras, um pouco como aquela sala. Saiu do santuário, trancando a porta atrás dele. Wharf estava no quarto de vestir a escovar um casaco azul escuro que não precisava da atenção. – Wharf, eu considerava-me cristão? O criado lançou-lhe um olhar direto. – Disse-me uma vez que era cristão e hindu, mas que achava que a maioria das pessoas não compreenderia. Aquilo surpreendeu uma gargalhada de Adam. – Provavelmente não. É melhor continuar a manter aquilo para mim. És a única pessoa que sabe do meu... templo particular? – Creio que sim, senhor. Os olhares tocaram-se por um momento antes de Adam desviar o seu. Cada um deles tinha os seus segredos e respeitava os do outro. – Deduzo que esse é o casaco que devo vestir quando me juntar outra vez aos meus convidados. – Sim, senhor. As outras roupas também estão organizadas. Pensei em roupa de manhã, já que os seus amigos não tiveram oportunidade de trocar a roupa de viagem. Em poucos minutos, Adam estava vestido como o Duque de Ashton, com casaco, colete e calças de corte irrepreensível. Tinha de admitir que o efeito de uma alfaiataria soberba era impressionante. As botas de cano alto brilhavam e ele descobriu que os dedos recordavam como dar um nó elegante no lenço de pescoço. Sentindo que se conhecia melhor do que quando chegara, perguntou: – Como encontro os meus convidados? – Eu mostro-lhe o caminho, senhor. A casa precisa de algum conhecimento. – Com a orientação de Wharf, Adam chegou à pequena sala de jantar ao mesmo tempo que os convidados. Mariah ria-se de algo que Julia dissera, e estava tão adorável e cativante que o coração dele se apertou como se comprimido por um punho. Ficara perturbado com a falsa declaração de que eram casados, mas o santuário hindu escondido provava que ele não era verdadeiro na própria vida. Ainda era muito cedo para assumir um compromisso definitivo – tinha demasiadas peças de si mesmo para redescobrir. Mas estava pronto para aceitar que queria estar sempre com ela. Oferecendo-lhe um sorriso privado, deu-lhe o braço. – Vamos ver o que providenciaram as cozinhas de Ashton House? – Com certeza será tudo esplêndido – murmurou ela, os olhos iluminados ao ver a expressão dele. – A comida será mais que esplêndida. Tens o melhor chefe de cozinha de Londres, Ash. – Kirkland ofereceu o braço a Julia. – A nossa recompensa por todos aqueles jantares ao longo da estrada. O mordomo, Holmes, chamou a atenção de Adam e depois virou rapidamente o olhar para uma extremidade da mesa, para mostrar a Adam onde se sentar. Ele puxou a cadeira à sua direita para Mariah, dizendo com delicadeza: – Mais tarde temos de conversar. Quero mostrar-te uma coisa. Revelaria o seu santuário oculto porque, se iam ter um futuro, Mariah devia compreender e aceitar a parte de si que tinha enterrado. Mas não antecipava um problema. Mariah era tão tolerante quanto bonita. Os olhares encontraram-se por um instante e, pelo sorriso dela, reconhecia o que ele, em público, não podia pôr em palavras. Adam estava prestes a sentar-se quando três pessoas entraram na sala de jantar. Uma delas era o criado de Ashton que recebera Adam mais cedo. Atrás dele vinha um homem bem vestido, de cabelo claro, mais ou menos da idade de Adam, e uma mulher de meia-idade bonita. Adam fitou os olhos verdes do jovem. Não tão escuros como os dele, mas definitivamente verdes. Seria este...? – Mrs. Lawford e Mr. Lawford – anunciou ansiosamente o criado. O primo e a tia de Adam – os parentes mais próximos que tinha. O rosto do jovem abriu-se num sorriso. – Ashton, és mesmo tu! Avançou apressado e pegou na mão de Adam. Em voz baixa, disse: – Sou o teu primo Hal, sabes? Igualmente baixo, Adam respondeu: – Não tinha a certeza. Obrigado por confirmares. – Apertou a mão de Hal, pensando que o primo parecia genuinamente feliz por vê-lo vivo. Claro, Hal já recebera as notícias, portanto houve tempo para preparar a reação. Se mentia quanto a estar contente, era um bom ator. Experimentalmente, Adam disse: – Não estás aborrecido por não herdar? Hal fez um ar pesaroso. – Gostaria do título, claro, mas ainda é muito cedo. Prefiro viver várias décadas descontraído antes de herdar por tu só teres tido filhas. Muito mais agradável. – O seu aperto era firme. A mãe de Hal era alta e bem vestida, com um toque grisalho nos cabelos loiros. – Meu querido rapaz! Não posso dizer-te como foi maravilhosa a supresa de saber que estavas vivo. – Ofereceu-lhe a face para um beijo, embora os olhos azuis claros mostrassem pouco fervor. – O Hal insistiu que viéssemos logo que soubemos que estavas de volta a casa. Satisfeito por lhe terem dito o nome dela, Adam disse: – É bom estar em casa, tia Georgiana. Espero que se juntem a nós para o almoço. – À concordância dela, instruiu o criado para pôr mais dois lugares na mesa. Quando o criado saiu e ficaram presentes apenas a família e os amigos, acrescentou: – Informaram-na de que sofro de problemas de memória. Não me lembrava de como a minha tia é bonita. O olhar dela enterneceu-se com a lisonja. – Fico contente por te ver com tão bom aspeto depois de tal provação. Temos uma dívida considerável para com os teus amigos, por te encontrarem. – Eles foram muito além do dever. – Pousou a mão no ombro de Mariah. – Permitam-me que apresente as minhas novas amigas, Mrs. Bancroft – indicou Julia com um aceno de cabeça – e Miss Clarke, que viajaram connosco do norte. – A mão apertou o ombro de Mariah. – Miss Clarke e eu estamos noivos. O queixo de Georgiana caiu, em choque. – Ashton, isso é impossível! Estás noivo da minha filha, Janey! CAPÍTULO 26
N oivo de Janey. Os dedos de Adam agarraram-se ao ombro de Mariah, enquanto as palavras lhe arrasaram o coração. O afeto na expressão de Adam, quando se encontraram à porta da sala de jantar, dera-lhe esperança de que pudessem arranjar solução para os problemas. Agora, essa esperança desaparecera. Adam e Janey haviam crescido juntos. Ela conhecia-o de maneiras que Mariah nunca conheceria. Tinham decidido casar e um cavalheiro não rompe um noivado. Em circunstância alguma. – Porque é que mais ninguém falou disto? – exclamou Adam, a voz tensa. Sobressaltado, mas não surpreendido, Hal arqueou as sobrancelhas. – Estava mais ou menos à espera de um noivado há anos; mesmo assim, a malandra da minha irmã devia ter-me contado, quando aconteceu. Vocês os dois sempre foram unha com carne. Pensei que ias esperar pelo vigésimo primeiro aniversário da Janey e pedir nessa altura. Faz agora apenas algumas semanas. – Ele sorriu. – Parabéns! Não poderia desejar um cunhado melhor. – A princípio tu querias esperar, Ashton – disse Georgiana –, mas quando falaste comigo para pedir a bênção disseste que, uma vez que ias partir para a Escócia, querias fazer o pedido à Janey antes de ir. – Sorriu com ternura. – Não querias que ela se apaixonasse por outro durante a temporada. – Eu... compreendo – disse Adam devagar. Mariah viu como ele lutava para aceitar que estava noivo de uma mulher de quem não se lembrava. – Onde está a Janey agora? Por que não veio hoje com vocês? – Ela ficou entusiasmada depois de teres proposto – explicou Georgiana. – Já tendo duas temporadas, não fazia gosto em passar esta sem ti, portanto decidiu ir visitar a minha irmã ao Lincolnshire até voltares. Eu planeava fazer um grande baile para comemorar o aniversário da Janey e anunciar o noivado, até que soubemos da terrível notícia do teu acidente. – A expressão de Georgiana ficou séria. – Ela ficou destroçada quando lhe escrevi a contar a tua morte aparente. Resolveu ficar no Lincolnshire e fazer lá o luto, em privado, em vez de voltar para Londres. – Ela sabe que sobrevivi? – perguntou Adam. – Escrevi-lhe logo que recebemos a carta do Masterson, por isso já deve saber. Quererá apressar-se a voltar para te saudar, mas tem estado doente, por isso vai demorar. – Nada sério, espero. – As palavras de Adam eram inexpressivas. – Ela apanhou uma febre, uma combinação de tristeza e humidade dos pântanos, creio. – Georgiana mostrou um semblante carregado. – Preocupei-me com a humidade quando decidiu fazer a visita, mas ela queria ver a tia e os primos. A minha irmã não a deixará regressar a Londres até que esteja suficientemente bem para viajar, por isso podem passar-se várias semanas. – Desejo-lhe uma rápida recuperação – disse Masterson. Georgiana olhou para Mariah, o olhar frio. Estava contente por a filha ir ser duquesa e a expressão deixava claro que uma zé-ninguém do campo não ia interferir naquele acordo familiar perfeito. – Como vê, Miss Clarke, é completamente impossível estar noiva do Ashton. Tentando agarrar-se à dignidade que podia, Mariah disse: – É claro que eu e o Ashton tínhamos consciência de que poderia haver uma relação atual que ainda não se tornara conhecida. Sabes que te desejo o melhor, Ash. – Achava que conseguira parecer calma, embora Masterson e Julia a olhassem com uma expressão preocupada. – Obrigado. – A voz dele era um sussurro enquanto a mão descia do ombro de Mariah. O silêncio congelado quebrou-se quando os criados entraram com dois novos lugares. Os convidados sentaram-se e o primeiro prato mostrou-se numa abundância de travessas e taças. Masterson e Kirkland fizeram grande parte da conversa, com a ajuda de Hal Lawford. As mulheres estavam uniformemente silenciosas e Randall franzia a testa ao prato. Adam parecia entorpecido. Embora a comida fosse deliciosa, sem dúvida, caía como gravilha no estômago de Mariah. O almoço arrastou-se pelo que pareceu uma eternidade. Tão cedo quanto era educado, Mariah pediu licença, dizendo que estava cansada da viagem e desejava descansar. O olhar ferido de Adam seguiu-a enquanto saía. Se fosse mais egoísta, sentir-se-ia satisfeita por ele estar tão infeliz como ela. Estava muito orgulhosa de si mesma. Conseguiu controlar as lágrimas até estar a salvo no quarto.
O grupo do almoço dispersou-se depressa depois de Mariah sair. No bulício da saída dos convidados, Adam puxou Will Masterson à parte. – Este noivado com a Janey Lawford – é verosímil que eu a tenha pedido em casamento? – Nunca deste a entender que ias propor, mas sim, faz sentido – respondeu Will, a testa franzida. – Tu sempre gostaste muito da Janey. Pensei que a consideravas mais como uma irmã mais nova, mas os sentimentos mudam, e ela cresceu e, de maria-rapaz, transformou-se numa bonita jovem. Adam pensou no sonho em que abraçava uma jovem de olhos verdes bela. Estaria a lembrar-se de quando ele e Janey ficaram noivos? – Ninguém pareceu surpreendido ao saber do noivado. – Eras mais descontraído com a Janey do que com qualquer outra mulher da sociedade, mas como tutor legal considerarias inapropriado declarar os teus sentimentos antes de ela atingir a maioridade. – Will parecia pensativo. – Se estivesses discretamente à espera de que ela fizesse vinte e um anos, explicaria o porquê de não mostrares interesse em cortejar outra pessoa. Adam sentiu o ressoar das barras da prisão a fechar. Estava noivo de uma mulher de quem não se lembrava. Com medo de saber a resposta, perguntou: – Se bem recordo, é inadmissível que um homem desista de um noivado. – Em absoluto. Simplesmente, nenhum homem de honra o faz. – A expressão de Masterson era solidária. – Quando conheceres a Janey outra vez, vais lembrar-te do porquê de quereres casar com ela. É uma jovem cordial, encantadora e inteligente. – Hesitou. – Se tivesses conhecido Miss Clarke antes de propores casamento à Janey, poderia ter sido diferente. Miss Clarke tem igual cordialidade e inteligência, a que acrescenta uma maturidade e preparação que a Janey não teve oportunidade de desenvolver. Mas conheceste Miss Clarke tarde de mais. Tarde de mais. Maldição, mas deveria ter insistido que Mariah fugisse com ele para Gretna! Antes que Adam pudesse dizer mais, um cavalheiro de meia-idade vestido com sobriedade aproximou-se dele. – Vossa Graça, sou George Formby, o seu secretário. Se esta tarde tiver tempo, há assuntos de trabalho urgentes que requerem a sua atenção. Lá se ia o correr atrás de Mariah. O dever chamava e, ao que tudo indicava, o Duque de Ashton cumpria sempre o seu dever. * O bem organizado Formby tinha uma montanha de documentos para análise de Adam. Este assinou os que eram simples, urgentes e fáceis de decidir. Pôs de parte as questões mais complexas, para mais tarde. O secretário explicou-lhe tudo com paciência. Havia uma vaga sensação de familiaridade em todos aqueles assuntos de trabalho, mas sem Formby Adam ter-se-ia perdido. Foi uma sessão esgotante para ambos. A tarde ia bem adiantada quando Adam disse: – Absorvi tudo o que aguento por um dia. Há outros assuntos que precisem de ser tratados de imediato? Formby procurou uns papéis e depois parou. – Nada tão urgente que não possa esperar. Saiu-se bem no seu primeiro dia em casa. – Reuniu os papéis que Adam assinara. – Em nome de todo o pessoal da casa, vossa Graça, estamos felizes por ter sobrevivido. Adam esfregou a têmpora dorida. – Obrigado, Formby. E obrigado pela sua paciência com as minhas falhas. O secretário inclinou a cabeça e retirou-se. Adam sentou-se à secretária, fatigado. Este gabinete no rés do chão era uma divisão bonita com lambris escuros, tapetes orientais sumptuosos, muitos livros e mobília confortável. Dava uma boa toca para se esconder. Não fazia a menor ideia do que fazer a seguir. Durante a viagem, tivera esperança de que regressar à vida real trouxesse de volta a memória e uma sensação de pertença. Em vez disso, sentia-se mais como um forasteiro a visitar aquela vida com resignação. Quando uma leve pancada soou na porta, gritou autorização para entrar. O coração deu uma cambalhota quando Mariah entrou. Levantou-se e olhou-a com avidez. A expressão dela parecia quase normal, embora estivesse encostada à porta fechada, como se preparada para fugir. – Vim pedir emprestado um criado para me acompanhar até ao escritório do meu advogado, de manhã – disse ela numa voz de subtil neutralidade. – Quero tratar depressa dos meus assuntos para poder voltar para casa. – Não há necessidade de sair de Londres à pressa – disse ele, a garganta apertada. – És sempre bem-vinda em minha casa. – Há toda a necessidade de partir – disse ela de forma branda. – Não há lugar para mim aqui. Ela era sensata. Mais sensata do que ele, porque ele não queria nada senão mantê-la por perto. Contudo, dizê-lo seria errado e pioraria a situação. Forçando a calma na voz, Adam disse: – Claro que podes ter os serviços de um criado, mas porque não começar por enviar uma carta breve? Dessa forma, podes agendar uma hora em vez de ires ao escritório e talvez não o encontrares. – Sorriu. – Usa o papel de carta de Ashton House. Isso chamar-lhe-á a atenção. Mariah fez uma careta. – Detesto contar com o teu nome, mas isso seria conveniente. Mr. Granger tem sido negligente. Não respondeu a uma única das minhas cartas. Embora talvez esteja doente e não possa fazê-lo. – É generoso da tua parte dar-lhe o benefício da dúvida, mas é mais provável que ele seja um incompetente – disse Adam. – Um homem competente teria um empregado para manter o negócio se ficasse doente. Gostarias que fosse contigo? Seria um prazer. Mariah considerou e depois anuiu. – Uma mulher solitária pode não ser levada a sério. Depois de o conhecer, saberei se tenho de arranjar outro advogado. – Tenho muito gosto em ajudar-te, e a Mrs. Bancroft igualmente. – O seu sorriso era forçado. – Posso também tirar algum partido da minha elevada posição. O sorriso de resposta de Mariah foi de igual modo forçado. – Se há coisa que aprendi na minha vida irregular foi a ser prática. Estou certa de que alarmarás o advogado e, se o George Burke algum dia voltar a ameaçar uma ação judicial, ficarei feliz por te ver a aterrorizá-lo. Obrigada, vossa Graça. Adam fez uma respiração pesarosa. – Por favor, não me chames isso. Prefiro Adam, ou Ash ou Ashton, mas «vossa Graça» é muito absurdo, vindo de ti. – Muito bem, Ash. – Virou-se e pegou no puxador da porta. Adam queria que lhe chamasse Adam, mas era demasiado íntimo. Com necessidade de falar da situação deles, disse, hesitante: – Quando especulaste que eu talvez tivesse um compromisso com uma mulher de que não me lembrava, realmente não achei provável, mas tinhas razão. Eu... lamento mesmo muito. Mariah pareceu nostálgica, mas abanou a cabeça. – Eu também, mas quando a tua tia revelou o noivado, percebi que tínhamos sido sensatos por esperar antes de fazer algo irrefletido. Tinham sido irrefletidos naquela tarde no jardim e ele não se arrependia. – És uma pessoa melhor do que eu. O meu primeiro pensamento foi lamentar não termos ido a Gretna. Não se podia fazer nada, se tivéssemos chegado a Londres casados. – Dizes isso agora porque não te lembras da Janey, mas pensa como isso teria sido para ela. Conheceu-te quase toda a vida e provavelmente amou-te durante todo esse tempo. Ficaria destroçada se voltasses com uma noiva. – A expressão de Mariah tornou-se frágil. – E pode bem ser uma esposa melhor para ti. Foi criada no teu meio; conhece os teus amigos e sabe como ser duquesa. Adam suspirou. – Talvez tenhas razão, mas é difícil lamentar por uma estranha. És tu que eu conheço e desejo. Os olhos de Mariah contraíram-se. – Quando nos encontrámos à porta da sala de jantar, olhaste para mim de uma maneira diferente. – Quando estava nos meus aposentos, percebi que não tinha sido muito franco na minha própria vida e decidi que dei demasiada importância à mentira que disseste – afirmou ele. – Estava prestes a pedir-te que me perdoasses, na esperança de que pudéssemos retomar onde parámos. – Não há nada para perdoar. – Mariah desviou o olhar, incapaz de encontrar o dele. – Estou feliz por nos termos conhecido, mesmo que nunca mais te veja depois de deixar Londres. As palavras eram cáusticas, mas irrefutáveis. Se estava amarrado a outra mulher, seria insensato e injusto voltar a ver Mariah. Mas mesmo não podendo passar a vida com Mariah, queria que ela conhecesse a sua parte oculta. – Sobes aos meus aposentos? Há lá uma coisa que eu gostava que visses. – Sorriu ironicamente. – Sei que não é respeitável levar-te lá, mas as minhas razões não são desonrosas e creio que acharás... interessante. – A minha curiosidade sempre foi mais forte que o meu bom senso – disse ela com um sorriso de resposta que quase o fez esquecer as razões honrosas. – Vá à frente, vossa Graça – Ash. Depois de saírem do gabinete e ao subirem as escadas, ele perguntou: – O teu quarto é confortável? – É o melhor em que já estive, e falo como alguém que foi convidado em demasiadas casas. – Olhou-o com curiosidade. – O que sentes em relação a esta casa? É-te familiar? – Um pouco. Mas esperava que regressar a casa trouxesse de volta o meu passado. – No cimo das escadas, orientou-a para a direita. – Em vez disso, é uma frustração que arrelia. Até agora, só há um lugar que realmente fala comigo. É para lá que estou a levar-te. Abriu a porta da suite, depois atravessou até à escrivaninha e tirou a chave do esconderijo. Não fez qualquer tentativa de esconder a localização. Era apenas um pequeno ato de confiança, comparado com a revelação da sua alma. – Entra no meu refúgio secreto. – Ele abriu a porta e fez-lhe sinal para entrar. Mariah arregalou os olhos e virou-se num círculo lento, o olhar fascinado a observar as estátuas. – Isto é oração, não arte, penso eu. Adam concordou. – Disseste-o melhor do que eu conseguiria. Mariah tocou nas flores secas em frente a Lakshmi. – Conservaste a fé da tua infância no coração. – Estás horrorizada com os meus hábitos pagãos? Não sou um cavalheiro inglês cristão normal. – Conhecias as orações e os responsos anglicanos tão bem como eu – disse ela, pensativa. – Acho que te tornaste mais do que um inglês comum, não menos. Adam suspirou de alívio. – Não sabia bem o que pensarias disto. Talvez não devesse importar-me com o que pensas da minha natureza hindu, mas... importo-me. Não quero que sintas repulsa. – A avó Rose contou-me que há muito, muito tempo, os Rom – os ciganos – vieram da Índia. Talvez sejamos primos muito afastados. – Fez um gesto para Lakshmi. – Não ficaste horrorizado quando te contei sobre o meu sangue cigano. Podemos partilhar tolerância. – Obrigado pela tua aceitação – disse ele, sereno. – Queres saber mais sobre os diferentes deuses? Mariah esboçou um sorriso rápido. – Por favor. Falar sobre as diferentes divindades ajudou-o a controlar o desejo latente. Ao saírem da divisão, Mariah disse: – Lembras-te de muito sobre os deuses. Esta parte da memória está a funcionar, creio eu. – Assim é – disse ele, surpreendido. – Espero que seja um bom sinal. Acho que reconhecer o lado hindu da minha natureza é crucial para recuperar o passado. – Trancou a porta. – Pergunto-me se a Janey aceitará esta parte de mim ou se ficará chocada. – Não me parece que a pedisses em casamento se não tivesses confiança na sua aceitação – disse Mariah. – Na verdade, talvez já a tenhas trazido aqui. – Um pensamento interessante. Estás sempre um passo à minha frente. – Adam franziu a testa ao tentar visualizar-se com Janey no santuário. – Não me parece que tenha acontecido, mas não posso confiar em mim mesmo, se mal me lembro de como ela é. – Lembras-te de algo dela? – Acho que sim – respondeu ele, relutante. – Tenho uma imagem dela a pôr os braços à minha volta, a sorrir radiante. Talvez quando a pedi em casamento. – É muito provável. – Todo o entusiasmo deixou o rosto de Mariah quando seguiu para a porta que dava para o corredor. – Obrigada por partilhares uma parte de ti tão importante. A expressão dela era uma espada no coração de Adam. Ia embora, e em breve sairia completamente da sua vida. O pensamento era insuportável. Alcançou-a antes que abrisse a porta. – Mariah... Ela virou-se, o rosto angustiado. Juntaram-se como uma tempestade de fogo, beijando-se e tocando-se como loucos. Adam soterrou os dedos nos cabelos de luz do sol. A boca dela embriagava como vinho, e o corpo quente moldava-se perfeitamente ao dele. Adam esqueceu as barreiras entre eles enquanto lhe acariciava, saboreava e inalava a essência. Mariah, sua salvação e alegria, centro da sua vida. Queria protegê-la para sempre e fazer amor com ela por igualmente tanto tempo. – Estou a tentar fazer o que é correto, Adam – murmurou ela de modo intermitente –, mas é tão difícil querer-te tanto quando não posso ter-te. Pressionaram contra a porta, as ancas a pulsar no desejo instintivo de se unirem. A arder de afeto e desejo, ele beijou-lhe o pescoço. – Como pode isto não ser correto? Mariah ofegou, cravando-lhe os dedos nas costas. Depois afastou-se num repente, arquejando enquanto lutava por controlo. – O que estamos a fazer é desonroso. Não podemos continuar, por muito irresistível que seja o desejo. Adam queria tomá-la novamente nos braços. Mais ainda, queria levá-la para a cama. Mas o recanto da sua mente ainda capaz de raciocinar sabia que ela tinha razão. – O que sinto por ti é muito mais que desejo. Mas... a honra é importante. – Não podemos voltar a estar sozinhos. – Sorriu com voz tremente enquanto penteava os cabelos para trás. Quando se haviam soltado as ondas douradas? – Nenhum de nós tem força de vontade para isso. – Não podemos ficar sozinhos em privado, mas podemos com certeza estar juntos em público no pouco tempo que resta. – Precisava de armazenar memórias para os anos sombrios em que ela não estaria. – Dás um passeio a cavalo comigo de manhã? A cavalo e num parque com o rapaz da estrebaria atrás, conseguiremos sem dúvida controlar a tentação. Mariah deu um suspiro triste. – Se eu tivesse algum juízo diria que não, mas provei que juízo tenho pouco. Muito bem, amanhã de manhã vamos andar a cavalo. Hoje à noite, porém, jantarei no meu quarto. Acho que não conseguiria partilhar uma mesa contigo depois deste momento. Com a expectativa de um passeio, Adam podia agora deixá-la ir com alguma aparência de calma. – Deixa-me verificar o corredor. É melhor não seres vista a sair dos meus aposentos. Ela alisou o cabelo para trás e voltou a arranjar a expressão para um calmo desprendimento. – Ora essa, mantenhamos as aparências, já que é tarde de mais para bons comportamentos. Ele abriu a porta e olhou para fora. Ninguém à vista. Recuando, fez-lhe sinal para avançar. Mas quando Mariah saiu, ele tocou-lhe os cabelos brilhantes e encerrou a mão em volta da memória dos fios. CAPÍTULO 27
A ssim que chegou ao quarto, Mariah dobrou-se em cima da cama, a tremer. Teria sido melhor se Adam não lhe tivesse perdoado a mentira? Era doloroso saber que agora ele a queria, mas que tinham a separá-los as convenções sociais. Ocorreu-lhe a ideia, malévola e inversa a Sarah, de que poderia persuadi-lo a casar; a amnésia significava que o entendimento do código de honra de um cavalheiro era mais influenciável do que seria de outra forma. A ideia era tentadora, muito tentadora. Mas a vida de Adam ainda estava demasiado instável, demasiado cheia de mudanças. Seria idiota manipulá-lo para fazer algo de que poderia arrepender-se para sempre. Mas mesmo assim a ideia continuava a ser... penosamente tentadora.
Mariah partilhou chá e torradas com Julia na sala de estar comum, bem cedo na manhã seguinte. Depois Julia ajudou a amiga a vestir um traje castanho escuro com enfeites prateados que Adam não a tinha visto usar. Depois de Julia sair, Mariah examinou a sua imagem no espelho. Não embaraçaria um duque. Embora o traje lhe tivesse sido oferecido por uma mulher mais velha muitos anos antes, as suas alterações habilidosas removeram o tecido gasto e fizeram o conjunto parecer novo e elegante. Impiedosamente, lembrou-se da proveniência do traje para sublinhar a distância entre ela e Adam. Ele era um duque; ela, apenas respeitável e vestia roupas usadas. E estava noivo. Viviam em mundos diferentes. Meteu com cuidado uma madeixa de cabelo rebelde sob o chapéu de estilo militar. A sua aparência estava perfeitamente sob controle. Conseguia aguentar um passeio no parque com um homem que não podia ter. Saiu do quarto e desceu a grande escadaria para o vestíbulo da frente. Adam estava à sua espera, a expressão de admiração ao cumprimentá-la. Por um instante, Mariah paralisou, percebendo que podia controlar a aparência, mas não o olhar. Rezou para que os olhos não revelassem tanto como os de Adam. Retomou a descida. – Uma manhã ótima para um passeio. – De facto está, e gosto do aspeto das montadas que o chefe da estrebaria escolheu para nós – respondeu ele, tão conscientemente descontraído como Mariah. Continuaram a trocar trivialidades enquanto saíam de casa e caminhavam para os estábulos. E não olharam um para o outro. Os cavalos eram deveras bonitos. Mariah usou um bloco de montar para saltar para a sela de amazona posta no cavalo alazão escolhido para ela. Era melhor não deixar Adam ajudá-la. A intensa consciência que tinha dele fê- la perceber que teria sido mais sensato recusar o convite. Mas ansiava por um bom galope para queimar a energia turbulenta, quase tanto como desejava estar na companhia de Adam. Conduzidos por Murphy, um irlandês magro e de aspeto duro, cavalgaram para o parque pelas ruas de Mayfair, o que chamou a atenção mesmo tão ao início do dia. Mariah começou a relaxar quando chegaram ao Hyde Park. Durante as elegantes horas do fim da tarde, Rotten Row estaria lotada de carruagens, mas naquele momento estava quase vazia. – Vamos ver quem chega primeiro ao fim de Rotten Row! – gritou ela a Adam. Sem esperar pela resposta, partiu pela pista larga e arenosa. Era glorioso sentir o vento no rosto, como se pudesse fugir aos problemas. Ouvia o riso de Adam à medida que ele igualava o seu ritmo. Lado a lado, galoparam a extensão da Rotten Row. Ao aproximarem-se do fim, abrandou o passo do cavalo. Adam fez o mesmo. Quando viraram, Mariah bateu ao de leve no pescoço do alazão. – O teu estábulo é mesmo excelente, Ash. – Estou impressionado com minha capacidade de avaliar cavalos, embora seja talvez ao Murphy que devo agradecer. – O olhar de admiração percorreu-a. – Ficas especialmente bem com esse traje de montar. Nem todas as loiras vestem bem o castanho escuro. Ignorando a admiração, ela disse: – Parece que a tua memória da moda está a voltar. Lembras-te de outras coisas? – Tenho a impressão de que me lembro mais das coisas do que das pessoas. – Adam suspirou. – Esperava que algo ativasse as minhas memórias numa grande torrente e eu recordasse tudo de uma vez, mas isso parece cada vez menos provável. – Talvez, quando a Janey voltar, tudo vá ao sítio – disse Mariah, a voz cuidadosamente neutra. Adam encolheu os ombros. – Talvez. Quando voltarmos a Ashton House, o criado já deve ter regressado com informação do teu advogado. Presumo que herdes tudo, como única herdeira do teu pai, mesmo que ele não tenha deixado um testamento formal. – É muito provável, mas um testamento tornaria o processo mais fácil. Sei que ele pretendia fazer um, mas não sei se teve tempo antes... antes da morte. – Questionou quando seria capaz de se referir à morte do pai sem se retrair. – Nada pode substituir um progenitor perdido, mas pelo menos ele deixou-te numa boa situação – disse Adam de forma serena. – A mais pura sorte – respondeu ela, o sorriso renovado. – E estou convenientemente agradecida. Sou Miss Clarke de Hartley, e isso faz maravilhas pela minha autoconfiança. O ritmo do regresso ao longo da Rotten Row foi vagaroso, como se nenhum deles quisesse que o passeio terminasse. Murphy seguia-os vários e discretos troços atrás. Adam estava certo: ter um criado por perto ajudava a controlar impulsos insubmissos. Mesmo assim, Mariah tinha perfeita noção de que Adam se encontrava a pouca distância dela e que o tempo se esgotava. Havia então mais cavaleiros. Um cavalheiro militar galopou em direção a eles num bonito cavalo baio e, ao longe, vários homens trotavam num ritmo calmo. Era difícil acreditar que o parque se situava no coração de Londres. As árvores à direita protegiam-nos das ruas da cidade e, à esquerda, os patos altercavam nas águas calmas do lago Serpentine. De repente, Murphy gritou: – Senhor, está um atirador nas árvores! Fuja! Mariah mexeu de súbito a cabeça para a direita e viu o brilho da luz do sol num longo cano apontado na direção deles. Adam incitou o cavalo para a frente entre Mariah e o atirador, batendo o chicote sobre os quartos traseiros da montada. – Vai! O alazão de Mariah disparou como uma raposa assustada quando o estalo de uma arma de fogo destroçou a tranquilidade da manhã. Enquanto Mariah lutava para se manter sentada, o cavalo de Adam lançava-se para a frente ao lado do dela. Recuperou o equilíbrio depressa, depois olhou por cima do ombro e viu Murphy a galopar furiosamente em direção ao arvoredo, de pistola na mão. O cavalheiro de aspeto militar também atacava o bosque. Disparou-se um segundo tiro. Mariah teve a impressão de que passou perto dela e de Adam quando se inclinavam sobre o pescoço dos cavalos velozes. Galoparam metade da extensão da Rotten Row e Adam abrandou a montada para passo. – Já estamos fora do alcance. Pelo seu semblante, Mariah imaginou que ele não gostava de fugir enquanto outros homens perseguiam o atirador. Colocara a segurança dela acima do desejo de perseguição. – Que tipo de louco dispararia contra estranhos num parque? – Não sei. – Ele tocou no ombro direito e os dedos vieram escarlates. Mariah sobressaltou-se ao ver uma mancha a espalhar-se pela camisa branca. – Adam, estás a sangrar! Ele olhou para os dedos ensanguentados, desconcertado. – Não reparei até teres dito. O meu ombro arde. Mas não me sinto baleado. – Apavorada por ele estar gravemente ferido e em choque, Mariah saltou do cavalo. – Desce do cavalo para eu te examinar. Adam obedeceu, estremecendo. Ela ajudou-o a despir o braço direito do casaco. A camisa tinha um buraco no topo do ombro direito e muito mais sangue. Rasgou o tecido para abrir e viu que uma bala de espingarda o havia raspado. – Provavelmente não é perigoso, se não infetar. Com uma limpeza e um pouco de pó de basilicão, deves sarar depressa. – Complicado, no entanto. – Ele olhou para o ombro. – Não gosto de ver o meu próprio sangue. – Também não posso dizer que gosto da visão do teu sangue. – Dobrou o seu lenço de bolso como um penso, depois desapertou-lhe e desprendeu o lenço de pescoço. – Uma coisa boa é que estes lenços são compridos que chegue para servir de ligadura. – Quem diria que a moda poderia ser prática? – O seu tom era leve, mas ele retraiu-se quando ela pressionou o penso sobre a ferida. – O Wharf não vai ficar agradado com a destruição deste casaco. Mariah apertou o lenço na frente do peito, depois ajudou a alargar o casaco, para que a ferida e o sangue fossem menos óbvios. – Ficará demasiado feliz por estares vivo para se importar. Uns centímetros abaixo e estarias morto. Murphy e o militar juntaram-se a eles. – Não conseguimos apanhar o diabo, senhor – disse o criado enquanto desmontava. – Ele escolheu o lugar perto do limite do parque para poder desaparecer depressa nas ruas. – A expressão ensombrou-se quando viu a ligadura. – Foi atingido, senhor? – Só um raspão, Murphy. Obrigado por teres ido atrás do vilão. – O Wharf disse-me para olhar por si, senhor – disse o criado. Adam assentiu, como se as palavras confirmassem um pensamento. – És o amigo que serviu com ele no exército. Parecendo um pouco cauteloso, Murphy disse: – Sim, senhor. – Estou grato por ambos cuidarem do meu bem-estar. O militar, um indivíduo de costas direitas e cabelo grisalho, disse: – A arma era uma carabina Baker. Reconheci o som. Murphy assentiu em concordância. – Uma arma de infantaria, e o filho da mãe tinha boa pontaria. Teve sorte, senhor. – Lembrando-se da presença de Mariah, puxou o chapéu. – Peço perdão pela minha linguagem, menina. – Não podia concordar mais com a sua avaliação. – Mariah olhou na direção em que se escondera o atirador. – Penso que está na hora de voltar para Ashton House e chamar um médico. – Concordo. – Adam deslizou o braço para dentro do casaco, quase controlando o estremecimento. Virou-se para o militar desconhecido. – Sou Ashton e esta é Miss Clarke. Obrigado por afugentar o vilão antes que causasse mais danos. O outro homem avaliou Adam intensamente, os olhos cinzentos perspicazes num rosto exposto ao sol. – Será o Duque de Ashton? Regressei recentemente a Inglaterra depois de servir na Índia. Ouvi falar de si, mas quando chegámos a Londres, dizia-se que tinha morrido há pouco tempo num acidente de navio a vapor na Escócia. – Fiquei ferido, mas sobrevivi. Só voltei para Londres ontem. – Folgo em vê-lo vivo – disse o homem mais velho, a expressão ilegível. – Sou John Stillwell. Murphy exclamou: – O general Stillwell de Mysore, senhor? Stillwell acenou afirmativamente. – Chamaram-me assim. Reformei-me do exército. As palavras despretensiosas escondiam o facto de ele ser um herói militar, pelo que Mariah lera nos jornais ao longo dos anos. Não admirava que tivesse ido atrás de um atirador perigoso. Por mais interessante que fosse, Mariah disse com convicção: – Foi bom estarem ambos aqui, mas agora está na hora de ir embora. Murphy, podes ajudar-me a montar? Ele avançou e uniu os dedos para lhe oferecer um degrau para o alazão, que havia ficado por perto. Adam montou sozinho, disfarçando qualquer dor que sentisse. – General Stillwell, ficar-lhe-ei grato se mantiver este incidente em segredo. Não desejo tornar-me assunto de mais bisbilhotices. Voltar dos mortos já é dramático que chegue. – Claro. – Stillwell montou o próprio cavalo. – Com a sua permissão, poderei visitá-lo? Conheci o seu pai na Índia. Adam sorriu. – Será muito bem-vindo, senhor. Sabe a localização de Ashton House? – Não sabe toda a gente? – disse o general com um clarão de humor. – Fico na expectativa de o ver novamente, Ashton. – Com uma expressão pensativa, virou o cavalo em direção à extremidade da Rotten Row e retomou o passeio. Mariah sugeriu: – Vamos para casa por um caminho diferente. Por via das dúvidas. Murphy acenou em concordância. Adam e Murphy não se mostravam nada surpreendidos com um ataque que poderia ter sido fatal. Algo estava errado – e ela tencionava descobrir o quê. * Ao voltar para Ashton House com Mariah e Murphy, Adam notou que o criado perscrutava continuamente os arredores em busca de possíveis perigos. Como um soldado, ou um guarda-costas. Se Murphy não estivesse alerta, o atirador poderia ter sido bem-sucedido na sua missão. A ideia de um inimigo secreto engendrar a explosão do navio fora um pouco vaga, mas a queimadura no ombro era vividamente real. Tinham de localizar e deter o inimigo, pois diabos o levassem se ia passar o resto da vida a esconder-se dentro de casa. Mariah arranjara-lhe bem a aparência, o bastante para que uma multidão de criados preocupados não descesse logo que entrassem em casa, mas ao chegarem ao vestíbulo da frente, disse discretamente: – Adam, ninguém ficou surpreendido por teres sido baleado no meio de Londres. Há algo que não me tenhas contado? Mariah tinha o direito de saber. – Os meus amigos acham que alguém quer matar-me – respondeu. – Antes não tinha a certeza disso, mas depois de hoje, sinto-me inclinado a pensar que têm razão. Ela empalideceu. – Por que quereria alguém matar-te? – Uma pergunta interessante. Gostaria de saber responder. Talvez porque o meu sangue pagão é uma vergonha para a aristocracia britânica. Ninguém tem uma teoria melhor. – Virou-se para o mordomo, que se aproximava depressa. – Holmes, poderias chamar um médico? Tive um pequeno acidente no parque. Os olhos de Holmes arregalaram-se ao ver as nódoas de sangue que não estavam totalmente escondidas pelo casaco de Adam. – Fá-lo-ei de imediato, vossa Graça. Depois de o mordomo se afastar com pressa, Adam disse: – Dado que eu posso ser um alvo, quanto mais cedo voltares para norte, melhor. Podias ter sido baleada hoje. – O pensamento gelou-o. – Se isso acontecesse, eu não aguentaria. – Não sei se consigo aguentar ir para casa e ficar à espera de saber que o Duque de Ashton foi assassinado – disse ela, tensa, os olhos arregalados. – Isso não vai acontecer – disse ele, com mais segurança do que sentia. – Agora que se confirma que tenho um inimigo, vou concentrar os meus poderes ducais a encontrar o vilão. – Não querendo explicar como o faria, uma vez que não tinha uma resposta, olhou para várias cartas e mensagens que aguardavam no aparador reluzente. Pegou numa. – Aqui está a resposta do teu advogado. – Entregou a carta a Mariah. Ela quebrou o lacre e percorreu com os olhos a meia dúzia de linhas. – É do empregado dele. Pelos vistos, Mr. Granger não está na cidade, mas espera-se que chegue a casa hoje, e o empregado agendou um horário para amanhã de manhã. Suponho que a ausência de Mr. Granger em Londres explique a falta de resposta até agora. – Estou ansioso para saber o que terá a dizer quando o visitarmos. – Quando Mariah levantou os olhos com a testa franzida, ele disse: – Viajaremos numa carruagem simples, sem brasão, quando sairmos da propriedade. Não voltarei a ser um alvo fácil. – Isso terá de servir – disse ela, a expressão ainda preocupada. Adam não a culpava. Ele próprio estava preocupado, mas não passaria o resto da vida a esconder-se. Olhou novamente para as cartas e viu uma escrita numa caligrafia que lhe parecia muito familiar. Partiu o lacre de cera e abriu a carta, descobrindo que era de Lady Agnes Westerfield.
Meu querido Adam, Não há palavras para descrever a alegria que senti ao receber de Masterson a mensagem de que tinhas sobrevivido. Nunca há homens bons suficientes no mundo para que se possa dispensar um. Ele referiu que os ferimentos que sofreste te afetaram a memória. Tentei, com pouco sucesso, imaginar quão estranho será não reconhecer a própria vida. Deve ser inquietante ao máximo. Falei com Mr. Richards, o médico que deu os primeiros cuidados a tantos dos meus alunos, incluindo tu. Já teve alguma experiência com lesões na cabeça e disse que é impossível afirmar se a memória voltará ou não, o que dá que pensar. Se nunca te recordares dos primeiros anos, estarás então a começar uma nova vida, o que não é inteiramente mau. Poucos de nós não têm experiências que prefeririam esquecer. Embora não estejas a começar em criança, com pais para te educarem e protegerem, tens muitos amigos que farão tudo por ti. Podes contar-me entre eles. Embora estivesse extremamente tentada a ir ver-te à cidade, um dos meus novos rapazes está a passar por uma fase difícil, e não posso mesmo deixá-lo. Mas irei a Londres tão breve quanto possível. Considera-o como uma promessa ou uma ameaça. Em rapaz passaste por grandes mudanças na tua vida e adaptaste- te de forma magnífica. Adaptar-te-ás novamente. Com o mais sincero afeto, Lady Agnes Westerfield
Ouviu uma afetuosa voz feminina na cabeça enquanto lia, e as imagens começaram a agitar-lhe a mente. Primeiro, uma memória nítida de olhar para uma mulher alta e bonita, que agia como se fosse perfeitamente normal falar com um rapaz empoleirado numa árvore e agarrado a um rafeiro sujo. Reparou mentalmente no cão e viu que os amigos tinham razão: o Bhanu original era talvez o cão mais feio à face da terra, mas também o mais amoroso. Lady Agnes compreendera isso. Outras recordações dela começaram a girar-lhe pela mente. Ensinar, disciplinar, reconfortar. Sentiu os braços dela ao seu redor quando chorava depois de receber uma carta dos advogados de Ashton a dizer que a mãe tinha morrido. Lady Agnes dera-lhe o afeto de que desesperadamente necessitava, e sem revelar a ninguém que estivera débil a ponto de chorar. As memórias atropelavam-se de forma dolorosa. Mariah agarrou-lhe o braço com firmeza e conduziu-o para uma porta próxima. – Vamos esperar pelo médico no pequeno salão. – Quando ficaram em privado, ela sentou-o no sofá junto a ela, a expressão preocupada. – O que se passa? Parecia que alguém te tinha batido, depois de leres a carta. Adam percebeu que esfregava a cabeça dorida e deixou cair a mão. – Era uma carta muito simpática de Lady Agnes Westfield e desencadeou várias memórias dos meus dias de escola. Um golpe de várias espécies, mas no bom sentido. – Que maravilha! – Mariah pegou-lhe na mão, o aperto reconfortante. – Lembras-te de outras coisas, como ir à Escócia para testar o navio a vapor? – Ele pensou, depois abanou a cabeça. – E a tua infância na Índia? Adam tentou recuar até àquela época, mas não descobriu nada de novo. Apesar disso, as perguntas de Mariah ajudavam-no a concentrar-se nas memórias que acabara de recuperar. – Lembro-me sobretudo da escola e dos meus amigos. Como nos conhecemos, como a nossa amizade se desenvolveu. – Consegues lembrar-te dos dias de escola com razoável ordem? – Vejamos... – As sobrancelhas uniram-se enquanto procurava no meio da confusão de memórias. – Lembro-me de conhecer Lady Agnes, viajar para a casa dela no Kent e conhecer os outros rapazes à medida que chegavam. Aprender. Fazer asneiras. Verões e férias com os meus primos. – Tinha agora recordações nítidas de Janey, e ela era de facto uma criança adorável. Sentindo-se desleal pelo pensamento, continuou: – As memórias que voltaram parecem ser apenas daqueles anos de escola, mas parecem-me razoavelmente completas. Sorriu ao lembrar-se de como cada amizade fora fortalecida ao longo do tempo, como mosaicos comuns de divertimento, inquietação e ocasionais conflitos. Ficara espantado por Masterson, Randall e Kirkland terem feito toda aquela viagem até à Escócia para procurar o seu corpo. Via agora que teria feito exatamente o mesmo por qualquer um deles. Estavam mais perto de ser irmãos do que amigos. Recordava com nitidez ter lançado Randall para o outro lado do quarto durante uma das lições de Kalarippayattu que deu aos rapazes. Randall partiu o braço. Rindo-se pelo meio da dor, exigiu que Adam lhe ensinasse mais tarde o truque daquele lançamento. O médico local, Richards, um homem de meia-idade imperturbável, ligou a lesão. Havia inúmeras histórias e momentos assim ligados a cada um dos amigos – e Adam recordava-os a todos, incluindo os que vivera com Wyndham e Ballard, os outros colegas de turma. – Isto parece-me muito promissor – disse Mariah, pensativa. – Uma vez que acabaste de recuperar uma grande porção de memória de uma só vez, outras peças podem encaixar-se com igual perfeição. – Talvez seja uma questão de encontrar as chaves certas – disse ele. – Lady Agnes foi a chave para os meus dias de escola. A expressão de Mariah tornou-se neutra. – Janey pode ser a chave para os últimos anos. Wharf entrou na sala com uma expressão preocupada. – Vossa Graça, está ferido? Mariah levantou-se, os dedos a escorregar irrevogavelmente do aperto de Adam. – Deixo-te aos cuidados do Wharf. O médico chegará em breve. Tiveste um dia emocionante. Uma tentativa de assassinato e a restituição de uma grande porção de memória – sim, emocionante. Entusiasmava-o ter de volta tanto da sua vida. Poderia talvez lembrar-se de uma pista sobre quem tentava matá-lo. A parte difícil era ver Mariah afastar-se. CAPÍTULO 28
M ariah estava a melhorar no que tocava a deixar Adam sem olhar para trás. Talvez quando partisse pela última vez tivesse apanhado o jeito. Nem sequer se prostrou na cama. Um tanto sem refletir, dirigiu-se em vez disso à sala de estar que partilhava com Julia e dobrou-se numa poltrona. A amiga tinha saído, portanto havia um silêncio abençoado. Seriam as mulheres as chaves do passado de Adam? Lady Agnes abrira uma porta grande e Mariah suspeitava que Janey Lawford faria o mesmo quando regressasse a Londres. Adam encontrara mais do passado no santuário secreto ligado ao próprio quarto. Em breve recuperaria a maior parte da vida. Não precisaria dela, e era assim que devia ser. Não passara muito tempo desde que se haviam conhecido, apenas algumas semanas. Ela voltaria para casa e construiria uma vida como Miss Clarke de Hartley. Quando fosse idosa e grisalha, o tempo em que conhecera Adam seria a mais simples ondulação no lago da vida. Mas não o esqueceria. Oh, não, não esqueceria. O torpor durou até Julia entrar na sala, o rosto entusiasmado. – Mariah, que bom ver-te! Tive a visita mais maravilhosa com a minha avó. Quanto mais conversávamos, mais forte ela parecia. Estou tão contente por ter feito esta viagem. Mariah abandonou os devaneios, que se aproximavam perigosamente da autocomiseração. – Tu própria pareces cinco anos mais nova – disse ela de modo caloroso. – Conta-me sobre a tua avó. A expressão de Julia tornou-se circunspecta. – Ela é sábia e bondosa e sempre me aprovou, mesmo quando mais ninguém da família o fez. Não sei como teria aguentado sem ela. – É exatamente para isso que servem as avós – disse Mariah com nostalgia. – A minha avó Rose sentia o mesmo por mim, mesmo quando eu estava no máximo da travessura. Julia sentou-se na cadeira em frente com uma agitação de saias. – Gostaste do passeio com o Ashton? – Até ao ponto em que alguém o baleou – disse Mariah com ironia. – Não ficou muito ferido, mas não foi um bom começo de dia. Julia sobressaltou-se e Mariah explicou-lhe o que aconteceu no parque. – Para um homem agradável, parece ter arranjado uns inimigos perigosos – observou Julia. – E tu poderias também ter sido ferida. Ou morta. Mariah suspirou. – Estarei a salvo quando deixar Londres, o que é já daqui a uns dias. Só espero que o Ash também fique em segurança. – Vai ficar. É poderoso e inteligente, e tem bons amigos. – Espero que isso chegue. – Destroçava o coração de Mariah pensar no corpo quente e apaixonado de Adam deitado, frio e morto. Reparou que as mãos estavam cerradas e descontraiu-as com cuidado. Tinha uma ideia tão pecaminosa que não deveria dizê-la em voz alta, mas mais uma vez o lado virtuoso de Sarah da sua natureza saiu derrotado. – Julia, sabes como uma mulher pode evitar ficar enceinte? Julia pestanejou, mas não mostrou nenhum outro sinal de choque. – Conheço um ou dois métodos. Não são garantidos, mas geralmente funcionam. – Deu o vislumbre de um sorriso. – É o motivo mais comum por que as mulheres vêm ter comigo. Especialmente as que têm muitos filhos. Ter filhos ou não sempre foi um assunto feminino. – Qual é a melhor maneira de o impedir? – Mariah olhou para as mãos, novamente cerradas. Se Julia perguntasse por que queria saber, dissolver-se- ia de vergonha. Mas Julia não precisou de perguntar. – Uma esponja encharcada em vinagre geralmente é eficaz. – Com palavras calmas e sem crítica, descreveu como se usava a esponja. – Tenho algumas esponjas comigo, na verdade. Nunca se sabe quando se conhecerá uma mulher a precisar de ajuda. Vou buscar uma para ti? – Por favor. – A voz de Mariah era quase um sussurro. Julia levantou-se para ir ao quarto buscar a esponja. Quando chegou junto a Mariah, pousou-lhe uma mão dócil no ombro. – Tens a certeza de que sabes o que estás a fazer? – Poderei não o fazer. – As unhas de Mariah cavavam-lhe semicírculos nas palmas das mãos. – Mas... poderei arrepender-me para sempre se não o fizer. – É justo. Quando Julia se virou para o quarto, Mariah perguntou: – Tens algum interesse romântico no reverendo Mr. Williams? – Santo Deus, não! – exclamou Julia, levantando as sobrancelhas. – Tive um marido e certamente não quero outro. Tens o meu consentimento para namoricar com ele tanto quanto quiseres, quando voltares para Hartley. Mariah conseguiu esboçar um sorriso contrafeito. – Talvez o faça. Ele é agradável e atraente, e depois de eu voltar para casa e embarcar numa vida de virtude inocente, pode ser ele o único homem elegível que vou encontrar. Julia riu-se. – Se saíres na sociedade de Londres, terás homens a amontoar-se à tua volta como abelhas. Mariah fez uma careta. – Não penso ser picada. Julia pôs-se séria. – Desejaste que o Ashton tivesse sido arrastado para a praia de outra pessoa? – Nunca – respondeu Mariah num instante. – Nem lamento ter-me apaixonado por ele. – Pronto, dissera-o em voz alta. – O meu coração pode estar amolgado, mas sobreviverei. E gosto bastante de Mr. Williams, sabes? Talvez um dia sinta mais. Quando Julia saiu, Mariah perguntou-se se iria ter coragem de usar a esponja e seduzir Adam. E, se tentasse, se seria bem-sucedida. Se ele tivesse uma memória nítida do noivado, a honra obrigá-lo-ia a não trair a futura esposa. Mas se Janey permanecesse uma vaga obrigação... bem, seria um assunto diferente. Janey tê-lo-ia sempre. Mariah conformar-se-ia com uma única noite.
A reunião de Mariah com o advogado era a meio da manhã, portanto, depois de tomar o pequeno-almoço no quarto, dirigiu-se aos estábulos por trás da casa. Adam estava parado junto a uma pequena carruagem fechada de aspeto deveras pobre, a conversar com Murphy. Perplexa, perguntou: – Esse veículo já estava nos estábulos de Ashton, ou fez-se aparecer por encanto de um dia para o outro? Adam sorriu. – Foi por encanto. Ontem falei com o Murphy, expliquei-lhe o que era preciso e, vede, um milagre. Mariah soltou um riso abafado. – Muito bem, Murphy. Este veículo desaparecerá nas ruas de Londres com muita facilidade. – Em particular porque há uma saída nas traseiras de Ashton House – disse Adam. – Esperemos que o vilão não tenha colegas para vigiar todas as saídas. – Esta carruagem entrou pelos portões hoje de manhã e parece pertencer a um comerciante – disse Murphy. – Não será óbvio que o duque está a sair nela. Murphy era claramente um protetor talentoso, mas enquanto ajudava Mariah a entrar na carruagem, ela desejou que tais aptidões fossem desnecessárias. Instalou-se no assento virado para trás, de forma a não ficar sentada ao lado de Adam. Quanto mais distância, melhor – e não havia muita distância naquele pequeno veículo, ainda que ambos os passageiros estivessem a dar o seu melhor para não se tocarem. O próprio Murphy conduzia a carruagem, vestido com roupas asseadas, mas indefinidas. Ao passarem pelos jardins das traseiras em direção à saída dos fundos, Mariah reparou em vários homens vestidos de forma sóbria a caminhar dentro dos muros. – Agora tens guardas? – Antigos soldados – respondeu Adam. – O meu secretário, entre outros, insistiu nisso. O número de guardas aumentará depois do anoitecer. Mariah tentou descontrair contra o assento grumoso. – Isto não é uma boa maneira de viver. – Não será por muito tempo, espero. – Adam suspirou. – Eu queria recusar os guardas, mas tenho muitas pessoas em casa, incluindo tu. Seria imperdoável se alguém se magoasse por negligência da minha parte. – Ele olhou pela janela para as ruas que se tornavam cada vez mais lotadas à medida que seguiam para este, em direção à City, a antiga zona comercial e financeira de Londres. – As precauções fazem sentido, mas creio que é impossível protegermo-nos completamente de um assassino determinado. – Felizmente, as armas costumam falhar os disparos, e se fores atacado diretamente és muito capaz de te defender – disse ela com pragmatismo. – Ainda aprecio a memória de lançares o George Burke pela sala de estar. – O sorriso de Adam fez com que desejasse inclinar-se para a frente e beijá-lo. Não o fez, mas ocorreu-lhe que não o via sorrir muito, nos últimos tempos. – Disseste que os teus amigos foram os primeiros a sugerir que estavas em perigo. Porquê? O sorriso de Adam desapareceu e ele descreveu de modo conciso o que tinham descoberto sobre a explosão no Enterprise. Quando terminou, Mariah disse: – Então alguém quer matar-te e não há um motivo óbvio, exceto talvez o ressentimento do teu sangue indiano. – Talvez tenha ofendido gravemente alguém e não me lembro. Posso ter tido uma vida debochada secreta, desconhecida de amigos e familiares, e feito uma porção de inimigos. – Encolheu os ombros. – Estou menos interessado no motivo do que em parar o sujeito. – Concordo. – Os lábios de Mariah curvaram-se num sorriso. – Tenho dificuldade em imaginar-te com uma vida debochada secreta. – Eu também – admitiu ele. – Não me lembro do suficiente sobre deboche para saber o que poderia ter feito. Olharam um para o outro e desataram a rir. Mariah tapou a boca com a mão e olhou pela janela, a pensar em como era íntimo o riso partilhado. Esperava que ele e Janey conseguissem rir-se juntos.
O escritório de Mr. Granger situava-se numa zona mediana, nem rica nem pobre, viu Mariah ao descer da carruagem. Fazia sentido. O pai queria competência, mas buscá-la-ia a um preço razoável. Murphy esperou na carruagem enquanto Adam a acompanhou ao interior. O escritório estava bem conservado, embora a secretária do jovem funcionário estivesse a transbordar de arquivos. Ele levantou-se com um sorriso. – Deve ser Miss Clarke. – Sim, e este é o meu amigo, o Duque de Ashton – disse ela, disposta a tirar o máximo de partido da presença majestosa de Adam. O funcionário arregalou os olhos. – Vou dizer a Mr. Granger que estão aqui. Desapareceu e voltou em menos de um minuto, uma voz atrás dele a gritar: – E faz um bule de chá às nossas visitas! Mariah questionou-se se a simples Miss Clarke teria merecido o chá. Quando entrou no escritório, Adam um passo atrás, Mr. Granger avançou e cumprimentou-a calorosamente. Era um homem forte, de cabelo a tornar-se grisalho e, embora lançando a Adam um olhar perspicaz, não parecia inclinado a bajular. – Por favor, sentem-se – disse ele, indicando duas cadeiras em frente à sua pesada secretária. – Estou encantado por finalmente a conhecer, Miss Clarke. O seu pai fala sempre muito bem de si e do seu jeito para os negócios. Ele também está em Londres? Mariah paralisou. – Não sabia que ele morreu? – Meu Deus, não! – disse Granger, chocado. – Acabou de acontecer? Mariah engoliu em seco, sentindo-se tal como quando recebeu a notícia. Ao ver a sua angústia, Adam disse: – Há já algumas semanas. Mr. Clarke viajava para Londres quando foi atacado e morto por salteadores. Disseram-nos que foi sepultado numa igreja local no Hertfordshire. – Mr. Clarke visitou-me há talvez dois meses – declarou o advogado devagar. – Disse que estava a considerar mudar o testamento e que pretendia voltar em breve, mas não o vejo desde então. Nunca me ocorreu que tal má sorte o tivesse atingido. – Ele disse por que queria fazer alterações? – perguntou Mariah, intrigada. – Sou a única herdeira. Isto afeta a minha herança? – Não explicou o porquê – respondeu o advogado –, mas visto que o testamento anterior permanece inalterado, Miss Clarke herdará todos os bens terrenos. – Tendo adquirido recentemente Hartley Manor, talvez quisesse prover ao futuro dos criados de longa data – sugeriu Adam. – Talvez, se bem que não me disse nada. Talvez tenha só pensado fazê-lo. Ele era muitas vezes impulsivo. – A mente de Mariah começou outra vez a trabalhar. – Recebi uma carta sua a confirmar a morte, Mr. Granger. – Isso não é possível – disse ele terminantemente. – Ouvi hoje pela primeira vez que o seu pai morreu. – A carta vinha no seu papel timbrado. A expressão do advogado endureceu. – Não sou mentiroso, Miss Clarke. Adam interveio. – Pode roubar-se ou forjar-se um papel timbrado. Tens a carta contigo? Mariah abanou a cabeça. – Não pensei que fosse precisar dela. Assumi que iria dispensar os serviços de Mr. Granger, porque lhe escrevi quatro vezes e ele nunca respondeu. Granger enrugou a testa. – Nunca recebi qualquer carta, Miss Clarke. Tê-las-ia tratado de imediato. Sei que Hartley Manor fica numa das regiões mais remotas de Inglaterra, mas com certeza o Royal Mail opera lá. – Opera, de facto. – Adam olhou fixamente para Mariah. – O Royal Mail chega a Hartley, mas na maioria das aldeias o posto dos correios é numa loja. Se for esse o caso em Hartley, poderia o George Burke ter subornado o proprietário da loja para intercetar as cartas que lhe fossem endereçadas? – Isso seria altamente ilegal! – exclamou Granger. – Mas não impossível – respondeu Adam. – Parece algo que o Burke faria. Mariah arquejou ao pensar noutra possibilidade. – Se for esse o caso, as cartas do meu pai também podem ter sido intercetadas. Ele pode estar vivo! Os olhos de Adam mostravam-se compassivos. – Talvez. Mas, por outro lado, está ausente de Hartley há muito mais tempo do que esperavas. Tinha razão, percebeu Mariah. Havia também o anel de ouro do pai que Burke lhe dera. Isso sugeria que o pai tinha realmente morrido. Levantou-se da cadeira, vacilante. – Por favor, desculpe-me, Mr. Granger. Tenho muito em que pensar. Ele e Adam levantaram-se. – Claro, Miss Clarke – disse o advogado. – Diga-me se houver algo que eu possa fazer para ajudá-la a resolver este enigma. – Ele hesitou. – Se não houver provas claras da morte do seu pai, não terá direito legal a Hartley Manor antes de decorridos sete anos. – Compreendo – respondeu ela, entorpecida. Adam pegou-lhe no braço, dizendo: – Se souber de algo útil, Mr. Granger, envie uma nota a mim ou a Miss Clarke em Ashton House. Mariah conseguiu controlar-se até estarem na carruagem a voltar para Ashton House. Começou a tremer, depois virou-se para Adam, que a segurou nos braços. A esperança magoa. CAPÍTULO 29
A dam segurou Mariah até ela parar de tremer, desejando que houvesse algo mais que pudesse fazer para atenuar-lhe a dor. Estavam a meio caminho de Ashton House quando ela se afastou do abraço de Adam. A expressão era desolada, mas os olhos estavam secos. – Cheguei a aceitar a morte do meu pai. Agora... Não sei o que pensar. – Acho provável que o Burke tenha falsificado a carta do Granger. Descobriu, talvez, quem era o advogado do teu pai quando discutiram a transferência do título de propriedade. Também acho possível que um confederado nos correios de Hartley tenha impedido as tuas cartas de seguir para Londres. – Desejando ser mais otimista, continuou: – Nesse caso, o confederado também poderia, com igual facilidade, impedir que as cartas te fossem entregues na mansão. Contudo, não se explica o porquê de o teu pai não ter regressado em pessoa. Mariah suspirou. – Sei que estás certo, sem dúvida. Mas e se ficou ferido ou doente e não pode viajar? Seria fácil atrasar-se este tempo todo. Poderia... estar a dirigir- se para Hartley agora e surpreender-se por eu não estar lá. – A voz dela alterou-se. – É duro não saber. Adam pegou-lhe na mão. – A tragédia é mais simples do que a incerteza. Não mais fácil, mas mais simples. Ela assentiu. – Acho que tens razão. Mas que faço agora? Como se encontra um homem que está desaparecido e pode estar morto? – Vou mandar pessoas à procura do teu pai – disse Adam com convicção. – Sabemos que chegou a Londres porque visitou o Granger. Anota tudo o que sabes sobre o plano dele: quando partiu de Hartley, quando pensou que voltaria, como teria viajado. Mala-posta, estações de muda – o que sabes e as tuas melhores suposições. Escreve também uma descrição da aparência e dos hábitos do teu pai. Há lugares ou pessoas que fosse provável visitar na zona de Londres? A expressão de Mariah ficou pensativa ante a perspetiva de ações concretas. – Terei as informações prontas para ti esta tarde. Além disso, quando vir a Julia, pergunto-lhe o que acha do casal que gere o posto dos correios de Hartley. – Há muita informação por aí. – Ele apertou-lhe a mão uma última vez e soltou-a. – Vamos descobrir a verdade sobre o teu pai. – Encontrar o Burke poderá dizer-nos o que queremos saber. – Acredita, localizar o vilão está no topo da minha lista de prioridades. Satisfeita, Mariah mudou-se do assento dele para o oposto. Pela primeira vez, Adam sentia-se feliz por ser um homem obscenamente rico. Gastaria o que fosse necessário para dar paz de espírito a Mariah.
Mariah sentia-se calma na altura em que entrou em Ashton House, acompanhada por Adam. Egoistamente, ele esperava que o mistério do pai a mantivesse em Londres por mais alguns dias. Quando Janey Lawford regressasse do Lincolnshire, a situação tornar-se-ia insustentável para Mariah, mas por enquanto tê-la sob o seu teto trazia mais prazer que dor. O mordomo aproximou-se quando entraram. – Tem visitas, vossa Graça. – Holmes entregou um cartão gravado. – O general Stillwell, a mulher e a filha aguardam no pequeno salão. O general não perdera tempo para o visitar. Adam questionou, um tanto cinicamente, o que pretenderia Stillwell – favor social para uma filha casadoira, talvez. Mas o homem mostrara coragem ao perseguir o atirador, e se esperava tirar partido da influência de um duque, conquistara o direito de a pedir. Adam tinha de saber junto de Formby quanta influência possuía e como a usara no passado. Olhou para Mariah. – Gostarias de ver o Stillwell? Ela sorriu. – Ainda não lhe agradeci devidamente, portanto esta é uma boa oportunidade. Adam seguiu Mariah até ao salão – depois parou, incapaz de respirar. Tinha uma noção vaga da figura alta de Stillwell e de uma jovem rapariga junto à janela, mas a maior parte da sua atenção prendeu-se na mulher que se levantou e o fitou com uma esperança incerta. Era a bonita mulher de cabelo negro dos seus sonhos, e vestia um elegante sari escarlate bordado. Impossível. Impossível! Ela sorriu como se não estivesse certa de ser bem-vinda. – Darshan? Era a única pessoa que algum dia o chamara pelo nome do meio. As lembranças começaram a fazer ricochete pela mente, como quando lera a carta de Lady Agnes, mas agora mil vezes mais intenso. Lembrou-se da infância, do pai, da longa viagem para Inglaterra. E não apenas os primeiros anos, mas o tempo em Inglaterra depois de deixar a escola. Esperara um afluxo de memórias a regressar – e agora corria o risco de ser comido vivo por elas. Mariah tocou-lhe no braço, ancorando-o ao presente. – Adam, estás bem? Ele acalmou-se o suficiente para esboçar um sorriso irregular. Que dia tão estranho estavam a ter, ele e Mariah, ambos a saber que os pais desaparecidos talvez não estivessem tão desaparecidos. Parte dele desejava afastar-se da dor lacerante, mas não podia, não com um milagre diante dele. Estendeu as mãos, com medo de que ela não fosse real. – Mãe? Ela pegou-lhe nas mãos, radiosa. O seu aperto era quente e firme. Ele puxou-a para os seus braços, pensando em todas as noites em que chorara por ela. Agora chorava ela por ele, o rosto enterrado no ombro. Era muito mais baixa do que nos seus sonhos, mas tê-la-ia reconhecido em qualquer lugar pelo perfume, um aroma exótico a especiarias, desconhecido em Inglaterra. Era ainda mais bela do que se lembrava. Tão perto, conseguia distinguir rugas finas em volta dos olhos e a expressão de uma mulher que vira da vida o seu quinhão. No entanto, parecia muito nova para ter um filho da idade dele. Adam percebeu que não devia ser muito mais que uma criança quando casou com o pai. Com um nó na garganta, declarou: – Disseram-me que tinhas morrido. O general Stillwell resmungou. – Tendo-o arrancado dos braços da sua mãe, as autoridades diriam naturalmente que ela tinha morrido, para o separar dos seus laços indianos. Para seu próprio bem, claro. Para seu próprio bem. Adam conseguia imaginar os tutores a dizerem-no, convencidos de que sabiam o que era melhor para um duque menor de idade, com uma mistura de sangue lamentável. A mãe deu um passo atrás, pestanejando para tirar as lágrimas dos olhos. – Desculpa-me ser uma torneira – disse ela num inglês fluente e com um sotaque encantador. – Acho que a ocasião merece lágrimas – disse Mariah com ternura. – Talvez devêssemos sentar-nos. Vou tocar para trazerem chá. Quando a mãe de Adam o puxou para junto dela no sofá, Mariah sentou- se ao lado, observando-o com olhos calmos, caso precisasse dela. Adam dava graças por Mariah estar ali a apoiá-lo no turbilhão de emoções e memórias. Depois, um pensamento eliminou-lhe o clamor doloroso da mente. Olhou para o general. – É meu padrasto? Stillwell acenou afirmativamente. – Como disse no parque, eu e o seu pai éramos amigos. A Lakshmi escreveu-me a pedir ajuda quando as autoridades o levaram, mas eu estava em campanha. Quando regressei, já estava a caminho da Inglaterra. Eles não disseram nada à sua mãe, a não ser que seria educado como convinha à sua posição. – Bah, como se uns desconhecidos soubessem educar melhor o meu filho! – disse Lakshmi, com a mão fechada em volta da de Adam. Os olhos eram de um verde acinzentado, contrastando com a tez escura. – Sempre sonhei com este dia, mas pensei que nunca viria. Quando chegámos a Londres e soubemos que tinhas morrido... – Ela estremeceu. – Por vezes penso que a Lakshmi casou comigo para que a trouxesse a Inglaterra, para te encontrar – disse Stillwell com afeto. O olhar caloroso que a mãe lançou ao marido desmentiu as palavras provocadoras. – Tive muita sorte com os meus maridos. A tua irmã também se saiu bem com eles. – A minha irmã? – perguntou ele, terminante. Embora a cabeça explodisse com memórias, não se contava entre elas uma irmã. A mãe gesticulou para a jovem junto à janela, que observava a cena com vivo interesse. – Esta é a tua irmã, Lady Kiri Lawford. Eu estava grávida quando o teu pai morreu. Não contei às autoridades, com medo de que a levassem também. – Kiri. É um nome adorável – disse ele, perguntando-se se conseguiria suportar mais choques. A nova irmã parecia-se... com ele. Cabelos escuros, olhos verdes, mais alta do que a mãe. Vestia-se ao estilo europeu e adequar- se-ia a qualquer sala de estar inglesa, apesar de um ar subtil que sugeria lugares distantes e exóticos. Como a mãe, era bela. – Sempre quis ter uma irmã. – Levantou-se e atravessou a sala até ela. – Mas não me parece que quisesses um irmão mais velho. Sei que podem ser criaturas medonhas. Ela sorriu-lhe abertamente, os olhos a dançar. – Felizmente, meu irmão, quando eu era pequena não estavas por perto para me atormentar. – Quem me dera ter estado, Kiri – disse ele com serenidade. O sorriso dela dissipou-se. – Quem me dera, também – sussurrou. As palavras ecoaram dentro dele, o sangue a chamar o sangue. Adam pegou-lhe na mão. – Então, agora temos de começar a ser irmão e irmã, Lady Kiri. Enquanto ela lhe apertava a mão, o general disse: – Também tens um meio-irmão e uma meia-irmã. Thomas e Lucia Stillwell. Adam ficou abalado por descobrir que agora tinha toda uma família. – Eles estão cá em Londres? Stillwell assentiu. – Sim, mas não o quisemos soterrar. – Além disso – disse Kiri desapaixonadamente –, eles são jovens criaturas bastante malévolas. Poderiam levar-te a reconsiderar se nos aceitas. –Kiri! – disse a mãe com dureza. Adam sorriu. – Estou ansioso para os conhecer. – Mas não naquele dia. Esfregou a cicatriz da cabeça. – Sinto-me bastante sobrecarregado. Mariah disse: – Na explosão, o Ashton sofreu uma lesão na cabeça que quase o matou e a sua memória está um pouco danificada. – Além disso, foi baleado ontem. – Stillwell levantou-se. – Não ficaremos para o chá, mas precisávamos de saber se reconheceria a sua mãe e a sua irmã. Adam disse, chocado: – Pensaram que não o faria? – Era possível – disse Stillwell, sem rodeios. – Dependendo do quão profundamente os advogados e tutores o convenceram a ter vergonha do seu legado. – Eles falharam. Jantam comigo amanhã à noite? Toda a família, incluindo a Lucia e o Thomas. – Nessa altura, já teria recuperado o suficiente para os saudar com a alegria que a situação merecia. – Espero que fiquem em Londres por algum tempo. – Para sempre, talvez. – A mãe encolheu os ombros. – Os meus filhos são todos meio ingleses. Têm direito a conhecer a sua herança. – Inclinou a cabeça para um lado. – Sentes falta da Índia? Ou sentes-te feliz por te terem trazido para Inglaterra? Adam nunca pensara em perguntá-lo a si mesmo, e a resposta levou-o a refletir. – Ambos. Sinto falta da Índia, mas dou muito valor aos amigos que fiz cá. – O olhar foi para Mariah. Com preocupação no olhar, ela levantou-se. – O Ash é demasiado cavalheiro para lhes pedir se retirem, por isso faço- o eu. Ele ainda não recuperou completamente dos ferimentos. – Claro. – A mãe levantou-se e tocou-lhe a face com um sorriso cintilante. – Não pareces bem. Agora descansa. Basta-me saber que te verei amanhã. Adam conseguiu segurar-se enquanto se despedia, mas depois de Mariah sair para acompanhar as visitas – a sua família – à porta da frente, dobrou- se no sofá, os cotovelos nos joelhos e o rosto enterrado nas mãos. Tantas coisas boas tinham acontecido naquele dia. Por que lhe doía tanto? CAPÍTULO 30
E nquanto os Stillwell aguardavam a carruagem, a mãe de Adam mostrou a Mariah um sorriso encantador. Não admirava que já tivesse conquistado dois maridos. – Sinto muito, menina, ainda não fomos apresentadas. – Estava a acontecer tanto – disse Mariah, imaginando como seria pouco o que podia dizer sobre a sua posição na vida de Adam. – Eu sou a Mariah Clarke. O Ashton foi lançado à praia na minha propriedade e eu acolhi-o. A princípio não se lembrava de quem era, mas está a recuperar. Os amigos da escola encontraram-no e ofereceram-se para acompanhar-me e à minha amiga, Mrs. Bancroft, até Londres. O Ashton convidou-nos, atenciosamente, para ficar aqui durante a visita. Os olhos de Lakshmi brilharam. – É a noiva dele? A pergunta otimista doeu. – Não, ele está noivo da prima, Jane Lawford. Estou certa de que a conhecerá em breve. O general aceitou-o, mas as duas mulheres pareciam confusas. Mariah deu graças por a carruagem dos Stillwell ter parado, para que a conversa não fosse mais longe. Depois de se despedir, virou-se e voltou para junto de Adam. A família agora descoberta parecia ser constituída de boas pessoas e iria trazer-lhe muitas alegrias, com certeza. Contudo, ele parecera prestes a despedaçar-se, e não de felicidade. Quando entrou no salão, Adam estava curvado como se com dores e respirava com dificuldade. Mariah sentou-se ao lado dele e pôs-lhe a mão nas costas. – Pareces um homem no inferno – disse ela sobriamente. Adam torceu a boca com um humor desolado. – Uma descrição acertada. – Tens dores físicas? Mentais? Ambas? Ele respirou de modo longo e trémulo ao considerar a resposta. – Ambas. A dor na cicatriz da cabeça é abominável, mas a dor mental é pior. Muitas, talvez todas, das minhas memórias voltaram, e todas martelam por espaço na mente. O resultado final será bom. O processo é... difícil. Não admirava que estivesse esticado até ao ponto de rutura. – Consegues subir até ao teu quarto? Ele respirou fundo mais uma vez e pôs-se de pé. – Sim. Fisicamente, não há nada de errado comigo. Estou apenas a afogar-me em demasiada felicidade. – Todo o teu mundo mudou, e a mudança dói. – Pegando-lhe no braço, ela conduziu-o para fora do salão e a subir as escadas. Quando entraram nos aposentos dele, Mariah foi buscar a chave escondida à escrivaninha e abriu a porta do santuário secreto. Ele soltou a respiração num longo suspiro. – Como sabias? Tens razão – preciso de paz e meditação. Juntas-te a mim? Agradecida por ele querer a sua companhia, entrou no santuário. À medida que a tranquilidade a libertava, percebeu que precisava tanto daquilo como ele. Não tinha reparado nas grandes almofadas escondidas atrás de um pedestal até ele tirar duas. Estas fizeram com que sentar fosse muito mais fácil quando se dobrou em cima da almofada, os joelhos para um lado. Adam sentou-se ao lado dela, dobrando-se com facilidade devido à muita prática, e possivelmente também às roupas personalizadas que usava. Adam pegou-lhe na mão, fechou os olhos e começou a respirar fundo e lentamente. Mariah seguiu-lhe o exemplo e descobriu que as próprias emoções caíam, assentando. Adam ajudá-la-ia a descobrir a verdade sobre o pai e ela viveria com ela, acontecesse o que acontecesse. Depois de um longo e sereno intervalo, ele apertou-lhe a mão. – Ainda me dói a cabeça, mas a ordem começa a emergir do caos. Obrigado. Mariah abriu os olhos e viu que, embora com uma expressão esgotada, Adam parecia novamente ele próprio. – Não consigo imaginar como te sentes por saber que a tua mãe está viva e que tens uma família inteira que desconhecias. – Essa parte é maravilhosa. – Fez um esgar. – Hoje recebi um milagre, enquanto que a ti te foi dada incerteza. Parece injusto. – Mesmo que o meu pai não regresse milagrosamente dos mortos, tive-o durante todos aqueles anos em que estava a crescer. Tu não tiveste a tua mãe durante mais de vinte anos. As situações equilibram-se, talvez. – Tive Lady Agnes, que foi uma boa substituta. – Franziu a testa. – Só ler a carta de Lady Agnes recuperou um conjunto de memórias; conhecer a minha mãe trouxe de volta um conjunto maior, que me tilinta com fúria na cabeça. Foi intenso, inquietante. Como tentar atravessar um terramoto em que nem o chão sob os meus pés é confiável. Ela perguntou: – Achas que tens as memórias todas? – Tal era mais neutro do que perguntar se se recordava de se apaixonar por Janey Lawford e de lhe pedir que casasse com ele. – É difícil lembrar-me do que não me lembro – disse ele com ironia. – Mas depois de ter acalmado com a meditação, tentei organizar as recordações e elas parecem-me bastante completas. Pelo menos até aos últimos meses. Lembro-me de trabalhar nos planos do navio a vapor e de me preparar para ir para a Escócia, mas há um vazio desde o outono até eu dar à costa em Hartley. Mariah desistiu da luta pelo distanciamento. – Não te lembras do noivado? Ele abanou a cabeça. – Tudo o que tenho é a primeira imagem do sonho, da Janey nos meus braços. – Desviou o olhar. – Lembro-me de que sempre... gostei muito dela. Ainda que tão discretas quanto possível, as palavras mesmo assim feriam. Mariah teve a triste sensação de que dali não viriam milagres. Janey era a querida amiga de muitos anos, a jovem mulher com quem ele se comprometera a casar. Ainda bem que estava a melhorar no que dizia respeito a dissimular a reação à situação. – Lembras-te de algo que possa dar pistas sobre quem está a tentar matar- te? – Nem um sinal de inimigos assassinos, nem uma vida debochada secreta. – Ele gesticulou para as estátuas hindus com a mão livre, já que a outra ainda estava fechada em volta da dela. – Esta parece ser a única vida secreta que tenho. Que mais seria útil saber? – Já que seria o Hal Lawford a beneficiar mais com a tua morte, lembras- te de algo que possa implicá-lo? – Pelo que recordo, é um péssimo mentiroso e não tem um único osso desleal no corpo – respondeu Adam. – É difícil imaginá-lo a tentar matar- me. – Mas as pessoas surpreendem-nos. – E que disfarce melhor do que parecer honesto e íntegro, como Hal? – Talvez te lembres de mais, à medida que a tua mente se vá acomodando a toda esta barafunda. – Talvez. – Ele pôs-se em pé e ajudou-a a levantar-se, levando-a depois do quarto-santuário. – É estranho e sem dúvida maravilhoso procurar na mente e encontrar algo diferente de corredores vazios e ressonantes. Mas Lady Agnes tinha razão quando escreveu que todos temos coisas que preferimos esquecer. – Coisas más que te aconteceram ou coisas que tu fizeste? – O que me aconteceu faz parte do que sou. Mas as coisas que fiz... essas são mais difíceis de encarar. – Hesitou antes de continuar. – Há alguns anos, fui a uma grande receção no palácio. Encontrava-se lá um cavalheiro indiano, um diplomata, talvez. Todos os ingleses presentes o ignoravam. Devia ter ido até ele e conversado. Em vez disso, afastei-me. Não queria que as pessoas me vissem a falar com o homem e se lembrassem do meu sangue indiano impuro. Ela retraiu-se. – De certa forma, um pequeno acontecimento. Olhado de outra perspetiva, foi uma traição à boa educação e ao que és. – Exatamente assim. – Esfregou a cicatriz, parecendo pronto a destroçar- se. – Penso que deves achar extremamente entediante estar sempre a tratar de mim. Se te serve de alguma coisa, lembro-me com grande nitidez de que, até à explosão do navio, fui sempre muitíssimo saudável. Mariah pensou no corpo esguio e poderoso e não teve dificuldade em acreditar. – Serás outra vez. Daqui a um ano olharás para trás, para esta altura, como um sonho muito interessante. – Assumindo-se que não seria assassinado antes. – Queres que fique contigo? Ele abanou a cabeça. – Por enquanto, vou descansar e esperar que ajude a mente a organizar-se ordenadamente. Embora possa ser pedir de mais. – Nunca tive amnésia e minha mente não é nada ordenada – disse ela com delicadeza. – Posso dizer ao Formby que queres que comece a investigar o que aconteceu ao meu pai? Gostava de iniciar o mais rápido possível. Adam começou a concordar e depois parou. – Fala antes com o Randall. Ele pode organizar melhor uma investigação. E nem sei dizer-te como é bom já me lembrar de uma coisa destas! – Tendo visto como lutaste – disse ela com ternura –, nunca mais tomarei a mente e a memória como garantidas. – Nem eu. – Ele pegou-lhe na mão e levantou-a para roçar os lábios sobre os nós dos dedos, num beijo que, como uma pena, lhe causou arrepios. – És um tesouro, Mariah. Agradeço a todos os deuses que conheço pelo destino que me levou até ti. – Destino ou acaso, ambos beneficiámos. – Seria tão fácil ir para os braços dele. Em vez disso, puxou com suavidade a mão livre. – Talvez o Wharf tenha um remédio que ajude a tua dor de cabeça. Adam parecia pensativo. – Por acaso, ele tem um excelente tratamento para dores e sofrimentos. Vou pedir-lho. – Esguio, moreno e intoleravelmente bonito, Adam puxou a corda para chamar o criado. Custava a crer que alguém quisesse matá-lo, tirando o facto de ter visto a prova. – Até mais tarde – disse ela. – Não ficarei ofendida se dormires durante o jantar. – Saiu do aposento e atravessou a imensa casa até aos próprios aposentos. Depois de pedir um chá para acalmar os nervos esgotados, sentou-se na requintada escrivaninha da sala de estar que partilhava com Julia. Quanto mais pormenorizadas fossem as descrições do pai, dos seus hábitos e da viagem para Londres, mais úteis seriam. Terminava as anotações quando Julia se juntou a ela, sorrindo depois de mais uma visita à avó. Enquanto Julia tomava o chá e comia vários dos bolos de gengibre que o acompanhavam, Mariah descreveu a visita ao advogado. Concluiu dizendo: – Achas que o casal que gere os correios de Hartley poderia ter sido subornado para roubar a minha correspondência? Julia pareceu pensativa. – Mr. Watkins ficaria horrorizado com a simples sugestão. É extremamente meticuloso e muito orgulhoso das suas responsabilidades. Mas a mulher, a Annie... – Julia abanou a cabeça. – Ela tem olho para homens bonitos. Talvez esteja enganada, mas imagino o George Burke a convencê-la a roubar correspondência para ele. Recebeste alguma carta enquanto estiveste em Hartley? – Quase nenhuma. Estava tão ocupada a organizar a propriedade e a casa que tive pouco tempo para correspondência. Sem família além do meu pai e tendo-me mudado tanto durante anos, não me surpreendeu receber tão pouca. – Não receberes nada do teu pai confirmou a afirmação do Burke de que ele tinha sido morto. Nenhuma carta do advogado sugeria apenas que ele era um mau advogado. – Exatamente. – Mariah esfregou as mãos húmidas na saia. – Continuo a dizer a mim mesma que o meu pai morreu, ou teria regressado a Hartley, mas é impossível não ter esperança. – O facto de o George Burke não ser um bom homem não significa que tenha mentido sobre a morte do teu pai – disse Julia de modo brando. A mente de Mariah sabia-o. O coração era mais teimoso. Pensou se deveria partilhar as notícias da nova família de Adam e decidiu que sim. Em breve o reencontro seria do conhecimento público, e era melhor que os amigos o soubessem em privado. Quando acabou de descrever a visita dos Stillwell e quanta mais memória fora restituída a Adam, Julia abanava a cabeça, perplexa. – Eu não devia sair de Ashton House. Acontece tanta coisa quando não estou! – Pelo menos as notícias de hoje são melhores do que o Ash levar um tiro, como ontem. – Mariah dobrou com ordem as anotações e levantou-se. – Vou levar estas para baixo e deixá-las para o Randall. Quase tinha descido as escadas quando Randall e Will Masterson foram recebidos por um criado, sacudindo gotas de chuva dos chapéus e parecendo preocupados. Will exclamou: – Mariah, que bom ver-te! O que aconteceu? O Ash foi baleado? – Apenas de raspão – assegurou-lhes ela. – Mas foram dois dias de grandes acontecimentos. Juntem-se a mim no pequeno salão e eu atualizo- os. Ao entrar na divisão com os dois homens atrás, Mariah pensou ironicamente que aquele salão já lhe era tão familiar como a sala de estar em Hartley. Começou por descrever o incidente no parque, assegurando- lhes mais uma vez que Adam não fora ferido com gravidade. Daí, avançou para a família e para a memória recuperada. Quando terminou, Will abanou a cabeça, tal como Julia fizera. – Isto está para lá do espantoso. Dizes que agora ele se lembra de quase tudo? – Sim, até aos últimos meses antes de viajar para a Escócia. Randall murmurou por entre dentes, em voz baixa, uma praga. – Espero que o Ash recupere depressa as memórias desse período. Isso poderá ajudar-nos a apanhar o vilão. – O Adam disse que eras a pessoa certa a quem falar sobre uma investigação – disse Mariah a Randall. – Suponho que já tenhas começado o processo. Randall confirmou com um aceno de cabeça. – Conheço um agente de polícia que é capaz de resolver qualquer mistério. O Rob está a trabalhar desde o dia em que regressámos a Londres. – Temos uma possibilidade – acrescentou Will. – Supostamente, morreu um homem chamado Shipley na explosão do Enterprise, mas o corpo não foi encontrado. Tinha experiência em motores a vapor e era de Londres. O Kirkland teve pessoas a investigar o Shipley em Glasgow e justamente esta manhã recebeu informações. Se o Shipley estiver vivo e tiver regressado a Londres... bem, será muito interessante conversar com ele. Os amigos de Adam andavam atarefados. – O teu agente da polícia – disse Mariah –, consegue investigar mais de um mistério de cada vez? Tenho algumas questões urgentes. – Diz-me. – A expressão de Randall era tão encorajante que ele devia ter esquecido o quanto, a princípio, desconfiara de Mariah. Mais uma vez, ela descreveu a visita ao escritório de Mr. Granger, terminando com: – Quero descobrir o que aconteceu ao meu pai. Se realmente morreu, que assim seja. Mas se estiver vivo, onde tem estado? O que aconteceu? – Entregou as anotações a Randall. – Isto é tudo o que é útil de que consegui lembrar-me. Randall folheou os papéis. – Excelente. Vou dá-los ao Rob. Ele poderá querer falar diretamente contigo. Estás disposta a isso? – Claro – disse ela, surpreendida. – Porque não estaria? – Há senhoras que consideram os agentes de polícia demasiado grosseiros para as suas sensibilidades delicadas – disse ele com sarcasmo. Mariah sorriu. – Progredi para senhora na tua consideração? Estou chocada, mas sinceramente lisonjeada. Will riu-se enquanto Randall desceu o olhar, embaraçado. – Tens sido uma senhora melhor do que eu um cavalheiro. Espero que me perdoes a descortesia inicial. – Estavas a proteger um amigo. Como posso culpar-te por isso? – Muitas pessoas fá-lo-iam. – Meteu os papéis dentro do casaco. – Além de informações sobre o teu pai, também queres localizar o George Burke? – O meu pai é mais importante. Mas talvez encontrar o Burke ajudasse. – A boca contraiu-se. – Se mentiu deliberadamente sobre o meu pai ter sido morto, é indigno de atenção. – Devo matá-lo por ti? – perguntou Randall educadamente. – Não me tentes! – exclamou Mariah, sem saber bem se ele estava a brincar. – Muito bem. Danificá-lo-ei um pouco, apenas. Pelo brilho dos olhos de Randall, Mariah teve a certeza de que não era uma brincadeira. – Desde que não o danifiques muito – disse ela um tanto indiferente. Ironicamente, reconheceu que, se fosse uma dama, como a irmã imaginária, ficaria chocada com a sugestão de Randall. Porém, as últimas semanas haviam-na convencido de que nunca seria um modelo de decoro, e era melhor desistir de tentar. Porque Adam estava a descansar, os amigos saíram e Mariah foi à procura de Mr. Formby. O secretário tinha um escritório espaçoso nas traseiras da casa e forneceu-lhe com prazer a morada do Lincolnshire onde Janey Lawford estava hospedada. Até ofereceu um pedaço de papel franquiado, para que a carta pudesse ser enviada sem pagar portes. Antes de partir para a Escócia, Adam assinara várias folhas para uso da casa e Formby ainda tinha meia gaveta cheia. No andar de cima, mais uma vez na escrivaninha, Mariah pensou com cuidado no que queria dizer, antes de aplicar a pena ao papel. Não devia ter nenhuma sugestão de que ela e Adam tinham um relacionamento romântico. Era melhor que Mariah parecesse mais uma tia preocupada. Cara Miss Lawford... Começou desculpando-se por escrever sem que tivessem ainda sido apresentadas e resumiu como conhecera Adam. Depois chegou à substância da carta.
Naturalmente a sua mãe está preocupada com a sua saúde, mas, por favor, se recuperou da febre o suficiente para viajar, regresse a Londres logo que possa. O Ashton é demasiado delicado para pedir- lhe que deixe o Lincolnshire só por causa dele, mas como amiga preocupada, sinto que deve saber que o seu noivo precisa de si junto a ele. Com os melhores cumprimentos, Miss Mariah Clarke
Com um suspiro, selou a carta para que fosse enviada pela manhã. Podia não ser uma senhora de verdade, mas tentava fazer o que era melhor para Adam. Esperava que, algures lá no Céu, estivesse a ganhar crédito por ser nobre. CAPÍTULO 31
A dam acordou devagar, agradecido por já não lhe doer a cabeça. Na verdade, os pensamentos possuíam uma claridade que desconhecia há... muito, muito tempo. De olhos fechados, explorou a mente. Os pedaços entalhados e insubmissos de si mesmo pareciam ter assentado num todo pacífico. Algumas das costuras podiam estar mal-acabadas, mas já não se sentia fragmentado como sentira antes. Recordava-se agora com clareza da vida como duque. Gerir as propriedades – uma tarefa imensa, mesmo com a assistência de Formby e de outros. Sentar-se na Câmara dos Lordes a ouvir debates, dando e recebendo votos de negociação. Ter pessoas a procurar a sua influência e proteção, para si mesmas e para os filhos. Em Cumberland tivera dificuldade em aceitar a posição, mas agora percebia que, na vida real, acabara por sentir-se confortável em ser duque. Trabalhara de modo consciencioso para fazer bom uso do poder e do dinheiro e fora bem-sucedido. Com método, olhou para trás na vida, começando pela infância na Índia. Embora tivesse sonhado com a mãe, também já se lembrava do pai: olhos verdes, de trato fácil e a divertir-se com a riqueza da vida na Índia. Dez anos tinham sido longos o suficiente para conhecer bem Andrew Lawford e sentir-lhe a falta para sempre. Memórias vívidas rodopiaram por ele. Talvez a mais antiga fosse andar de elefante numa cadeirinha pouco firme, com os braços de Andrew à sua volta. O pai chamava-lhe a atenção para as flores espantosas e para os pássaros que na floresta iam e vinham, dando nome a cada um para que Adam aprendesse. Na mente, via as cores, ouvia o canto dos pássaros e inalava os odores fortes e misturados. Depois de ser informado da impressionante herança, o pai, o novo sexto duque, preparou-se para a viagem de regresso a Inglaterra. Adam tinha a nítida sensação de que ele não queria ir. No espaço de quinze dias, Andrew foi atacado por uma febre que o matou em menos de quarenta e oito horas. Adam não fora autorizado a visitar o quarto do enfermo, por medo do contágio. Olhando para trás, questionava se o pai teria ficado tão relutante em voltar que se tornou propício a contrair uma doença. Agora os restos mortais repousavam para sempre na sua Índia amada. À medida que procurava no meio daquele período da vida, Adam notou que tinha também algumas memórias do jovem John Stillwell. As mulheres hindus de origem nobre viviam por norma vidas isoladas, mas Lakshmi saíra da reclusão depois do casamento. Teria casado com um inglês porque ansiava mais liberdade? Tinha de lhe perguntar, pensou. Saber que poderia fazê-lo soltou uma inundação de entusiasmo dentro dele. Stillwell fora visita regular da casa dos Lawford. Por vezes, o seu olhar seguia Lakshmi com um desejo silencioso e conformado. Embora nunca lhe tivesse ocorrido que a mãe poderia ter casado novamente e dado à luz mais filhos, Adam ficava feliz por ela ter encontrado alguém que a amava e estimava. Passou as pernas pela borda da cama e levantou-se. A fadiga anterior desaparecera. A noite caíra, o que significava que tinha dormido até ao jantar e bem depois. Em silêncio, caminhou devagar até à sua sala de estar, iluminada apenas por um pequeno candeeiro. Depois de ir buscar a chave escondida, levou o candeeiro para dentro do santuário e examinou as imagens divinas. As estátuas pareciam quase vivas sob a luz vagamente trémula e observavam-no com sabedoria antiga. O olhar demorou-se em Lakshmi, a homónima da mãe. Como um estranho lado bom do ferimento na cabeça e da quase-morte, aceitara por completo a sua natureza indiana vital. Mas era igualmente inglês, igualmente cristão. Tinha a educação de um cavalheiro inglês, a marca de honra de um cavalheiro inglês. Fora necessário combinar as duas partes. Agora, por fim, combinavam-se. E diabos o levassem se algum dia voltava a esconder o que era. Saiu do santuário e verificou as horas no relógio da lareira. Ainda não era meia-noite. Talvez Randall estivesse acordado. Pensou em calçar os sapatos, mas a casa era dele. Se quisesse vaguear descalço e em mangas de camisa, fá-lo-ia. Ashton House estava silenciosa quando saiu da suite. Durante o dia, havia um sussurro contínuo de atividade devido ao pessoal necessário para manter um edifício daquela dimensão. Casa a mais para um homem. Mas estava noivo e, se Deus quisesse, um dia teria filhos para preencher os espaços vazios. Olhou para a direita. Os aposentos de Mariah ficavam no outro extremo do corredor. A apenas uma curta caminhada. Queria lembrar-se mais do noivado. Recuperara algumas memórias dos meses anteriores ao acidente, embora nada muito útil. Recordava-se de rir com prazer no convés do Enterprise, o navio a vapor rugindo pelo estuário de Clyde. Todos haviam trabalhado com uma intensidade doida e o sucesso era doce. Ao olhar em volta, via o mesmo prazer no rosto dos engenheiros e da tripulação. Tencionava recompensá-los com um bónus e agora alguns estavam mortos, provavelmente porque tinham trabalhado para ele. Que descansassem em paz. Lembrava-se também do rosto resplandecente de Janey, mas a falta de pormenores era frustrante. Ter-se-ia apaixonado por ela durante os meses perdidos? Com certeza amava-a. Ela era sua irmã de uma forma que Kiri nunca poderia ser, porque Janey fora criança com ele. Mas tê-la-ia amado como amava Mariah? Parecia-lhe impossível. Olhando para trás, percebia que assumira há muito que nunca casaria, porque não queria passar para os filhos o fardo de uma herança misturada. Embora ansiasse por uma companheira e uma família, ocultara com rigor o lado hindu da sua natureza. A um nível profundo e irracional, acreditara que revelar-se seria fatal e, por essa razão, conservara todos a uma certa distância, até os amigos mais próximos. Seria ainda mais difícil ocultar-se de uma esposa. Foi por isso que propôs casamento a Janey? Ela conhecia-o há muitos anos e estava habituada às suas excentricidades, portanto talvez lhe parecesse segura. Mariah conhecia-o melhor do que qualquer outra pessoa e aceitava-o. Na verdade, parecia gostar do que o tornava desconfortavelmente diferente. Com perfeita clareza, aceitou que, mesmo que não amasse Janey como amava Mariah, não poderia romper o noivado, e não só porque agora tinha plena consciência do código de honra inglês. Janey amava-o, e rejeitá-la quando ela o aceitara com tanta alegria era... impensável. Virou-se e caminhou para a esquerda, em direção aos aposentos de Randall. Uma luz mostrava-se por baixo da porta, por isso bateu. Depois de um arranhar de pernas de cadeira, Randall abriu a porta. Para lá dele, Masterson e Kirkland encontravam-se sentados ao redor de uma mesa, em mangas de camisa, garrafas de vinho clarete na frente e copos na mão. – Vejo que vocês os três estão outra vez a conspirar – disse Adam com secura. – Está na hora de me juntar. As sobrancelhas de Kirkland arquearam-se. – O duque está de volta. – Estou de volta há vários dias – observou Adam enquanto entrava na sala, aceitava um copo de vinho de Randall e se sentava na única cadeira vazia. A suite era quase tão grande como a dele. Uma vez que o afastamento de Randall em relação à família significava que não dispunha de outro alojamento em Londres, Adam oferecera-lhe estes aposentos como lar, por quanto tempo o amigo os quisesse. – Não desta forma – disse Kirkland. – A Mariah contou-nos que a tua mãe te visitou e que recuperaste grande parte da memória. A mudança é evidente. Adam franziu a testa. – Pareço diferente como? Depois de um silêncio, pensativo, Will disse: – Mais limites. A tua natureza era essencialmente a mesma, mesmo quando a amnésia estava no seu pior, mas agora acrescentaste a soma total das experiências. – Bebeu um gole de vinho. – Se isto faz sentido. Adam percebeu que, desde que Mariah o encontrara, se tinha protegido com a reserva que cultivava desde a infância. Era desconfiado, mesmo com estes amigos. Era isso o que queria? Levantou-se. – Venham comigo. – Desorientados, mas solícitos, os amigos seguiram- no pelo corredor até aos seus aposentos. Adam acendeu um candeeiro maior, depois abriu o santuário e fez-lhes sinal para entrar com uma formalidade trocista. – Eis a minha vida secreta. O tagarelar dos amigos desvaneceu-se ao olharem em volta. – É um templo hindu, não é? – perguntou Randall com uma expressão de incerteza. – O entalhe destas estátuas é magnífico. – Kirkland circundou a sala, estudando cada divindade. – Deduzo que seja uma capela particular, como muitas grandes casas têm. – Só que sem cruzes na parede. – Will lançou a Adam um olhar penetrante. – Isto não é propriamente uma surpresa, Ash. Tu nunca fizeste segredo da tua herança indiana. – Não – admitiu ele. – Mas sempre escondi o quanto isto é importante para mim. – Reconhece-nos algum mérito – disse Will, divertido. – Nós sabíamos, mas uma vez que nunca falaste no assunto, nós também não. – O Will poderia saber. – Kirkland parou em frente ao Shiva dançante, fascinado. – Não posso dizer que fui tão perspicaz. Mas isto não muda nada. – Gesticulou para as estátuas. – Tu eras o que eras. És o que és. Não queria que fosses diferente. Adam sentiu um ardor nos olhos. Fumo do candeeiro, sem dúvida. – Não sei por que achei necessário esconder muita da minha natureza, mas fi-lo. Muito vivamente. – Com justiça – disse Will, com seriedade. – Embora nós não fiquemos chocados, os desconhecidos poderiam sentir-se horrorizados se soubessem que tens imagens pagãs que não numa coleção de arte. Os teus tutores repetiram vezes sem conta que tinhas de ser mais inglês que um inglês de raça pura, para mereceres um ducado inglês. – Graças a Deus pelos métodos de ensino subversivos de Lady Agnes – murmurou Kirkland. – Ou teríamos todos sido deformados para lá da salvação. Bastante verdade. Foi Lady Agnes quem permitiu que Adam se mantivesse fiel à herança hindu. Fazê-lo ajudou-o a conservar a sanidade numa altura de muitas mudanças na vida. Randall afastou-se do santuário. – Não te esqueças de que o homem que anda a tentar matar-te pode não ter outro motivo além do ódio pela tua mistura de sangue. As palavras foram uma dura chamada de atenção para a realidade. Os amigos que o conheciam há anos seriam mais recetivos do que estranhos mordazes e reprovadores. Conservaria em privado as crenças íntimas. Mas já não em segredo. Como reagiria Janey? Aceitaria ou condenaria? Neste último caso, talvez terminasse o noivado. Adam sentiu uma pontada de esperança obstinada perante a ideia. Mas, para ser justo com Janey, embora a primeira reação pudesse ser de choque, ela provavelmente aceitaria a sua natureza misturada, como os outros amigos acabavam de aceitar. – Por falar no homem que anda a tentar matar-me, surgiu mais alguma informação? – Acenou com a mão para as cadeiras da sala de estar. – Também podemos conversar aqui. Tenho mais espaço e uma reserva de vinho melhor. – Subestimas a qualidade das garrafas que persuadi o teu mordomo a pôr- me à disposição. – Randall instalou-se no sofá, as longas pernas esticadas sobre o tapete oriental. – Acho que temos várias garrafas dignas de discussão à nossa frente. Wharf entrou na sala silenciosamente. Era provável que as vozes o tivessem despertado. Depois de um olhar rápido, perguntou: – Precisa de algo, vossa Graça? Adam percebeu que, perdido o jantar, estava faminto. – Uma bandeja de frios saberia bem. Carnes e queijos, nada complicado. Retirou uma garrafa de vinho clarete do armário das bebidas e abriu-a, enquanto Wharf fez a vénia e desceu para a cozinha. Era uma satisfação arrebatada lembrar-se exatamente onde encontrar o vinho que desejava. Poderia com a mesma facilidade ter tirado conhaque, hock ou xerez. Poder é estar-se familiarizado com o próprio meio. Encheu os copos dos amigos enquanto eles se punham à vontade. – Agora, alguma informação? – O Ned Shipley era um londrino que trabalhava no Enterprise – disse Kirkland. – Segundo a minha fonte em Glasgow, foi-te recomendado para este projeto pela sua experiência com máquinas a vapor. Ele isolava-se e não falava muito, mas sabia o que fazia e trabalhava arduamente. Está desaparecido desde a explosão, presumivelmente morto. Mas sem ser encontrado o corpo, pode não estar morto o suficiente. Adam fez má cara. Shipley. – Tenho uma vaga memória do nome. Poderia ser uma vítima da explosão – ou talvez um homem que saberia como engendrar uma explosão. – Andamos à procura dele aqui em Londres. Pode ter usado um nome falso na Escócia. – Kirkland deu um gole no vinho. – Mas tenho uma descrição pormenorizada dele. Tem tatuada uma âncora nas costas da mão esquerda e uma caveira nas da mão direita. Adam visualizava com facilidade aquelas mãos tatuadas, mas não sabia se era memória ou imaginação. – Disseste que ele me foi recomendado. Por quem? Os amigos trocaram olhares preocupados. – Não está inteiramente esclarecido – respondeu Kirkland. – Mas... poderá ter sido o Hal Lawford. Adam fitou, sem ver, o clarete. Embora não houvesse certezas, teria de aceitar que talvez Hal – Deus, o seu futuro cunhado, bem como primo! – poderia estar a tentar matá-lo. O título e a fortuna de Ashton eram um prémio valioso o bastante para transtornar muitos homens. – Há alguma maneira de se ter a certeza, à parte perguntar ao Shipley ou ao Hal? Kirkland suspirou. – Provavelmente não. Ao que tudo indica, mencionaste a alguém que estavas satisfeito pelo teu primo recomendar o Shipley, mas foi vago. Seria muito útil se conseguisses lembrar-te desta última parcela da tua vida. Quem lhe dera poder fazê-lo. – Randall, puseste o Rob à procura do assassino a partir deste lado? – Sim, mas até agora não tem tido muito com que trabalhar – respondeu Randall. – Tem os informadores em busca do Shipley. E também do George Burke, a pedido da Mariah. Adam contraiu os olhos. – Correu bem? – Se o Burke voltou para Londres, não deverá ser difícil localizá-lo, pois provavelmente não está a tentar esconder-se. Se estiver fora da cidade, demorará um pouco mais. Adam pensou no sofrimento de Mariah quando lhe disseram que o pai tinha morrido. Se Burke tivesse mentido sobre isso... – Quando o localizarem, falarei com ele. Randall franziu a testa. – É perigoso andares por Londres. Se o atirador de ontem tivesse tido melhor pontaria, estarias morto. – Sim, mas não viverei como um animal enjaulado. Tomarei precauções razoáveis. – Adam encolheu os ombros. – Talvez tenha de andar por aí para atrair o assassino a sair do esconderijo. Randall e Kirkland pareciam horrorizados, mas Masterson disse: – É razoável. Algum de vocês aceitaria ficar preso dentro de casa? Não, não me parece. – Vou usar a carruagem fechada e arranjar mais guarda-costas. – Adam terminou o clarete com um só trago. – Também darei um jantar aqui. Convido o Hal e a mãe, a minha mãe e a família, vocês os três, e a Mariah e a Julia. Nessa altura tens de parecer ameaçador, Randall. Talvez o Hal se convença a confessar. Serviu-se de mais vinho. Hal poderia provar ser inocente. Mas seria esperar de mais. CAPÍTULO 32
D adas as emoções fortes dos dias anteriores, na manhã seguinte Mariah decidiu fazer o que qualquer mulher sensata faria: ir às compras com a melhor amiga. Começaram nas lojas de pechinchas, seguindo até à Bond Street, que era cara, mas tinha artigos que não se encontravam noutros sítios. Ao meio-dia, estavam ambas carregadas de embrulhos e Mariah não pensava em tentativas de homicídio nem em pais desaparecidos há horas. Na última loja de fazendas e miudezas do itinerário, Julia examinou dois pedaços de tecido, um de musselina rosa suave com desenhos, e o outro de popelina num verde folha subtil. – Qual deles compro? Não posso dar-me ao luxo de comprar os dois. – Compra os dois, de qualquer maneira – disse Mariah. – Ambos te ficarão muito bem e não encontrarás idênticos em Carlisle. Já que partiremos de Londres dentro de poucos dias, temos de aproveitar as lojas agora. Só Deus sabe quando tu ou eu voltaremos e, de futuro, teremos de pagar as despesas da viagem. Portanto, compra os dois com o que poupaste nos custos da viagem. Julia mostrou um sorriso aberto. – Eu não teria feito esta viagem se não fosse essencialmente gratuita, mas acabaste de me dar uma boa desculpa para ser extravagante. – Fez sinal ao empregado de vendas de que estava pronta para fazer a compra. Quando saíram, mais tarde, Mariah parou na soleira da loja e baixou o olhar para o recinto estreito e cheio de vida de Bond Street. – Adoro o campo e estou ansiosa por regressar a Hartley – disse com melancolia –, mas também adoro Londres. Eu e o meu pai costumávamos vir cá com regularidade, quando não havia uma propriedade rural bem situada para visitar. – Sorriu. – Evidentemente, os aposentos eram muito mais modestos do que os desta viagem. – Pelo menos, tivemos um ótimo dia de caça – disse Julia. – Não podemos comprar mais nada, porque ficámos sem mãos e sacos de transporte. Vamos procurar uma casa de chá para nos refrescarmos antes de regressarmos a Ashton House? – Um embrulho deslizou para fora do saco de transporte e ela inclinou-se para o apanhar. – Agora desejava que tivéssemos aceitado a oferta do Holmes, de uma carruagem e um criado. Doem-me os pés de tanto andar. – Não quero habituar-me ao luxo de Ashton – disse Mariah com convicção. Uma carruagem e um criado ainda seriam outro aviso da distância social entre ela e Ashton, e dispensava mais avisos. Perto, uma mulher ofegou. Mariah olhou para cima e viu uma mãe de família elegante a olhar fixamente para Julia. À companheira, disse: – Com certeza é a....? – Impossível – disse de modo terminante uma mulher igualmente bem vestida. – Ela morreu. Julia ficou branca. Agindo por instinto, Mariah agarrou-lhe o braço e virou-se, afastando-as depois rapidamente e contornando a esquina seguinte. Quando se encontravam a alguma distância, disse: – Aquele chá vai definitivamente saber bem. Julia respirou fundo, devagar. – Não vais perguntar-me sobre aquela mulher? – Não, a menos que queiras discutir o assunto. – Obrigada. – Julia respirou de forma irregular. – Talvez, um dia. Poderá ser bom falar do passado. Foram interrompidas por uma voz masculina amigável que dizia: – Miss Clarke! Mrs. Bancroft! Que prazer vê-las novamente. Mariah virou-se e viu Hal Lawford a descer de uma carruagem. Era difícil resistir ao seu sorriso, embora não conseguisse deixar de pensar que ele poderia estar por trás das tentativas de matar Adam. Os dois pensamentos discrepantes paralisaram-lhe temporariamente a língua. Julia foi mais eloquente. – Bom dia, Mr. Lawford. O prazer é mútuo. – Vejo que andam a aproveitar as lojas de Londres. – Lançou um olhar avaliador às compras. – Posso oferecer-lhes a minha carruagem para guardarem os embrulhos e depois convidá-las para almoçar? Há uma casa de chá excelente ao virar da esquina. Mariah e Julia trocaram olhares. – Sou a favor de ser mimada pela boa vida – disse Julia. E provavelmente Julia precisava daquilo agora mesmo. – Obrigada, Mr. Lawford. Aceitamos ambas as ofertas com gratidão – respondeu Mariah. – Por favor, chame-me Hal. – Fez um sinal ao criado para ir buscar os embrulhos e guardá-los no veículo. – Como qualquer pessoa lhe dirá, não sou de modo nenhum importante o suficiente para que me chamem senhor regularmente. Era difícil não se gostar daquele homem, admitiu Mariah no seu íntimo. Mas não conseguia fazer vacilar a sensação de que havia mais nele do que a aparência afável. * Ao terminarem um excelente almoço, disse Hal em tom sério: – Soube-se alguma coisa sobre o homem que tentou balear o Ashton? Acho muito inquietante pensar que o vilão poderá tentar novamente. – Tal como eu. – Os olhos de Mariah contraíram-se. – Se alguém fizesse uma lista de suspeitos que o queriam morto, o Hal estaria no topo. Em vez de parecer comodamente culpado, Hal disse com ironia: – Um facto de que me dói ter consciência. O que é irónico é que eu não queria ser duque, sinceramente; faria um trabalho horrível. O Adam é ótimo – nascido para assumir a responsabilidade. O pai era um alto oficial britânico na Índia, e o Adam herdou sangue de príncipes hindus através da mãe. Ele lê e compreende a legislação proposta, sobre a qual eu adormeceria. Uma vez, ele ofereceu-se para me propor para um lugar na Câmara dos Comuns controlado pela propriedade Ashton. Muito prestigiado, mas recusei porque me teria entediado até à inconsciência. Julia inclinou a cabeça para o lado. – O que lhe interessa, Hal? O jogo? Deslumbrar as senhoras? – Gosto de ambos, mas minha verdadeira paixão é a criação de cavalos. A mãe do Ash tem sangue real. A minha é irlandesa, de uma família que cria bons cavalos há gerações. – Ele sorriu. – E apesar do meu tédio com a legislação, guardo registos de criação ridiculamente pormenorizados de todos os cavalos que já tive. Isso nunca me aborrece. Enquanto as mulheres riam, Mariah olhou para os olhos verdes, tão parecidos com os de Adam, e não conseguiu decidir se Hal Lawford era um homem honesto ou o mentiroso mais perigoso de Londres.
Adam estava diferente. Mariah viu-o assim que ele entrou na sala de estar, antes do jantar. Não o vira todo o dia por causa da expedição das compras. Porém, ao observá-lo a atravessar a sala, sombrio e reservado, soube sem qualquer dúvida que estava na hora de deixar Londres. O homem maltratado e amnésico que tirara do mar era, final e integralmente, o Duque de Ashton. Mostrava o poder e a autoridade com tanta naturalidade como vestia o casaco de corte irrepreensível. Tinha-se afastado dela, de forma gradual, desde que os amigos apareceram em Hartley para o reivindicar. Agora que se acomodara de novo à sua vida, não havia espaço para ela. Mariah engoliu de encontro ao aperto na garganta. Não podia desejar-lhe que vivesse sem passado para sempre. Mas por um breve período de tempo, quando ele era somente Adam e o mundo ficava muito longe, tinham sido felizes. Ele deslocou-se ao armário das bebidas e olhou para ela e para Julia. – Querem um xerez? – O olhar demorou-se em Mariah e, pelo ardor, ela julgou que ele não deixara Hartley totalmente para trás. Antes que pudesse comentar, a porta abriu-se e Holmes anunciou que havia chegado a família Stillwell. Logo atrás estavam Lakshmi e o general Stillwell, Kiri e duas pessoas mais novas. Adam atravessou a sala para os cumprimentar, beijando levemente a mãe na face. – Portanto, não sonhei com vocês ontem, mãe. Lakshmi pôs-lhe a mão debaixo do cotovelo, como se tivesse de tocar no filho há muito perdido. – Temia nunca ter os meus quatro filhos lindos num só lugar. – Fez um gesto. – A Kiri já conheceste. Aqui estão a Lucia e o Thomas. Não são esplêndidos? Lucia corou, mas Adam riu-se ao cumprimentar o meio-irmão e a meia- irmã, pegando-lhes sucessivamente nas mãos. – Tornei-me rico em família. Os quatro descentes de Lakshmi começaram a falar animadamente, as palavras a tropeçarem umas nas outras. Eles eram deveras bonitos, com uma forte semelhança que tornava fácil ver que eram irmãos. Adam ia adorar ser o irmão mais velho, obviamente. Embora Mariah sentisse novamente a tristeza de não ter um lugar ao lado dele, era impossível levar a mal a Adam e à família há pouco descoberta pela alegria. Lucia tinha talvez dezassete anos e estava caminho de ser tão atraente como Kiri, embora os olhos fossem verdes acinzentados, como os da mãe. Thomas era um ano ou dois mais velho, um jovem bonito, de olhos azul-acinzentados semelhantes aos do pai. Todos tinham uma tez mais clara do que a de Lakshmi, mas mais escura que a de um inglês médio. Enquanto Holmes servia xerez aos convidados, em silêncio, o general Stillwell aproximou-se para se juntar a Mariah e a Julia. – São um bonito grupo, não são? – disse com orgulho. – De facto – concordou Julia. – Parece-me que herdaram o melhor tanto do sangue inglês como do hindu. Curiosa, Mariah perguntou: – General Stillwell, preocupa-o que aqui os seus filhos enfrentem intolerância? – Claro que me preocupa. Os pais nascem para se preocupar. – O sorriso trocista envolveu tanto Mariah como Julia. – Descobrirão a seu tempo. Mas eles teriam também encontrado intolerância na Índia, e todos precisavam de descobrir a metade inglesa da sua herança. Criei a Kiri e é como se fosse minha, mas é filha de um duque, e isso conta muito em Inglaterra. Ela merece ser beneficiada por isso. E, para ser franco, a posição dela também beneficiará os irmãos mais novos. – Não admirava que o general se tivesse mostrado preocupado em saber se Adam aceitaria ou não os meios-irmãos mais novos. Ser apadrinhado pelo Duque de Ashton ajudaria a todos. Kiri estava numa posição ainda melhor. Ainda que o pai não tivesse tido a oportunidade de escrever um testamento propriamente dito, Adam dar-lhe- ia com certeza um dote adequado à sua posição. O mordomo anunciou que o jantar estava pronto para ser servido. Enquanto as pessoas se deslocavam em direção à sala de jantar, Adam acompanhou Mariah. – A minha mãe, duas irmãs e um irmão! É um milagre. – Realmente. – Deixou que o seu sorriso lhe mostrasse como estava feliz por ele. – Mais do que isso, são pessoas adoráveis, não um monte de louça suja, como são tantas vezes os parentes. Ele sorriu ao dar-lhe o braço. – Eu acolheria bem até a louça suja, mas isto é muito melhor. Uma vez que não estava ninguém por perto, Mariah baixou o tom de voz e disse: – Falei com a Julia e ela imaginou facilmente a Annie Watkins, que gere os correios de Hartley com o marido, a ser seduzida, subornada ou ambas a intercetar cartas de e para Hartley Manor. O olhar de Adam acentuou-se. – Não é uma prova concreta, mas é muito interessante. Se o Burke voltou para Londres, deve ser relativamente fácil encontrá-lo. Ele pode ser a melhor via para descobrir o que aconteceu ao teu pai. – Então esperemos que apareça depressa. – Respirou devagar. – Eu e a Julia tencionamos voltar para casa daqui a três dias. Posso pedir ao Holmes que descubra os horários das diligências? A mão de Adam apertou-lhe o braço e ele parecia destroçado. De modo suave, ela disse: – Está na hora, Adam. Podes enviar-me por correio qualquer informação que descubras sobre o meu pai pois, garanto-te, vou tratar da Annie Watkins. Ela não intercetará mais correspondência. – Eu sei que tens razão. – Ficou em silêncio por meia dúzia de passos. – Vou enviar-te numa das minhas carruagens. Não quero que tu e a Julia tenham de viajar de transportes públicos. Mariah teve que rir. – Já o fiz muitas vezes e não tirei daí nenhum mau efeito. – Deixa-me fazer isto por ti, Mariah. – O olhar era desolado. Era desconcertante ver-lhe nos olhos o quanto se preocupava – mas também gratificante saber que o que havia entre eles era real. – Se tens a certeza. Seria uma pateta se recusasse um passeio confortável e gratuito até à minha porta. E mesmo que quisesse, a Julia não é pateta e não me permitiria recusar – disse com ligeireza. – Ficas mais um dia? Vou organizar um jantar para que as duas metades da minha família possam conhecer-se, e gostaria de te ter lá. – Sorriu um pouco. – Tu e a Julia seriam presenças tranquilizadoras, creio eu. – Tenho a certeza de que a Julia não se vai opor. E Mariah teria mais um dia perto de Adam. CAPÍTULO 33
D emoraram apenas encontrava-se no um dia e meio a localizar George Burke. Adam escritório a ler com atenção as intermináveis burocracias incluídas na propriedade, questionando se seria mesmo necessário ter uma opinião sobre a renovação dos arrendamentos aos inquilinos de uma propriedade no Yorkshire. Visto que o administrador da propriedade recomendava a renovação, assinou uma concordância. O documento seguinte dizia respeito a assuntos em discussão na Câmara dos Lordes. De facto, devia começar a estar presente, agora que reconhecia as pessoas novamente. Havia algumas questões interessantes a considerar nesta sessão. Pôs de lado os documentos com alívio quando Kirkland e Randall apareceram à porta. – Trouxeram-me uma desculpa para escapar às minhas responsabilidades? – Trouxemos – respondeu Kirkland. – O Burke está hospedado numa estalagem perto de Covent Garden. Há uma hora, estava no quarto. Queres fazer-lhe uma visita? Adam empurrou a cadeira para trás com prontidão. – Quanto mais cedo, melhor. Mais uma vez, levaram a velha carruagem fechada. Ao passarem pela saída dos fundos, Adam questionou se a casa estaria sob vigilância de um homem com o assassínio no coração. Era difícil de acreditar, num dia de primavera tão luminoso, mas o ombro ligado debaixo da camisa e do casaco elegantes era um aviso de que devia ter cuidado. A estalagem de Burke era pobre e já vira dias melhores. Adam pensou o que estaria o homem a usar como moeda, já que perdera a propriedade ao jogo. A estalagem não sugeria que estava a prosperar. O condutor parou na entrada da frente do alojamento. Quando os três homens saíram, emergiu das sombras um indivíduo magro de cabelo castanho. Adam reconheceu-o como sendo o agente da polícia, Rob Carmichael. Carmichael virou o polegar para cima. – O Burke ainda cá está. Quarto de cima, à direita. – Obrigado por o encontrar. – Adam levantou os olhos para a janela. – Teve alguma sorte a localizar o misterioso Ned Shipley? – Ouvi na zona do porto que ele tem sido visto por aí ultimamente, mas a informação não está confirmada. – Embora Carmichael estivesse vestido como um operário, o sotaque era civilizado. O que não admirava, já que fora educado na Westerfield Academy. – Quer que suba consigo? – Isso pode ser útil, se se precisar de mais investigação. – Adam entrou na estalagem, os outros três homens atrás. O estalajadeiro pôs a cabeça de fora de uma das divisões dos fundos, viu que os recém-chegados vinham dispendiosamente vestidos e determinados e, prudente, retirou-se. Uma subida rápida pela escada estreita e uma curva à direita levaram-nos à porta do quarto do canto. Adam bateu com grande comedimento, considerando que queria amolgar os painéis com os punhos. – Quem é? – gritou uma voz familiar. Adam lembrou-se de arrancar Burke de Mariah e as suas mãos cerraram- se. – Trouxe o dinheiro. – O que não fazia sentido, mas ele pensou que qualquer alusão a dinheiro atrairia o interesse de Burke. Atraiu. Ouviu-se uma raspagem quando o trinco foi levantado e Burke abriu a porta. Estava em mangas de camisa e sem gravata, os olhos raiados de sangue. Franziu a testa. – Nós conhecemo-nos, mas diabos me levem se sei onde. Perdeu contra mim nas cartas? – Foi na sala de estar de Hartley Manor. – Adam deu um passo à frente, empurrando a porta para trás antes que Burke pudesse fechá-la com estrondo. – Estava a pressionar a Mariah Clarke com as suas atenções. O que quer que o rosto de Adam mostrasse fez com que Burke recuasse nervosamente pelo quarto. – Não havia necessidade de trazer os amigos para me dar uma sova. As minhas intenções eram honrosas. Maldição, eu pedi a rapariga em casamento! – Se se recorda do nosso primeiro encontro, deve lembrar-se de que não preciso de ajuda, se quiser matá-lo com as minhas próprias mãos. Os meus amigos estão aqui para evitar que eu o faça. – Adam sorriu, numa ameaça fria. – E não ofereceu um casamento honroso. Estava a tentar coagir a Mariah a pôr-se a si mesma e à herança nas suas mãos desprezíveis. Mas isso não foi a pior coisa que lhe fez. – Deixei Hartley depois de saber que ela era casada – disse Burke à defesa. – Não lhe fiz mal. – Exceto contando-lhe a mentira vil de que o pai tinha morrido. – Adam descalçou as luvas devagar, como se a preparar-se para cometer um ato de violência. – Matou-o, Mr. Burke? A lei do Antigo Testamento reclama vida por vida. – Não! – exclamou Burke, parecendo apavorado. – Não vejo o filho da mãe desde que fomos ao escritório do advogado dele para transferir o direito de propriedade de Hartley, depois de eu a perder. – E enquanto lá esteve, surripiou papel de carta e sobrescritos de Granger para poder escrever a Mariah a anunciar a morte do pai. Burke encolheu-se, confirmando a suposição de Adam. – Eu disse-lhe, eu queria casar com ela! Se ela se sentisse sozinha no mundo, naturalmente desejaria um homem que tomasse conta dela, e quem melhor do que eu? Conheço a propriedade e a aldeia. A catraia é uma beleza e ambos beneficiaríamos. Não quis fazer mal. Quando o pai voltasse, ela ficaria feliz por vê-lo e todos daríamos uma boa gargalhada juntos. – Mas o Charles Clarke não voltou – disse Adam, brando. – O que leva à conclusão lógica de que o matou para melhorar as suas hipóteses com Miss Clarke. Também seduziu e subornou a Annie Watkins, a chefe dos correios de Hartley, para interferir na correspondência de Miss Clarke. – Como soube que...? – Distraído, Burke voltou ao ponto principal. – Eu não o matei! Várias semanas depois de perder a propriedade, parei para jantar numa estalagem nos arredores de Londres. Estava lá o magistrado local. Uma tropa de soldados tinha acabado de capturar um par de salteadores que andava a aterrorizar a zona. Nos meses anteriores tinham matado dois homens e roubado muitos outros. O magistrado possuía uma caixa cheia de joias que foram recuperadas. Fiquei curioso e pedi para a ver, declarando que era um dos roubados pelos salteadores. Reconheci o anel do Clarke. O estilo é invulgar e lembrei-me dele. Disse que o anel era meu e o magistrado deixou-me levá-lo. – Porque era um cavalheiro? – disse Randall, incrédulo. – Tu podes ter escrúpulos, Ash, mas eu não. Deixa-o nas minhas mãos. As palavras de Randall fizeram Burke ficar branco. Adam perguntou: – O Clarke era um dos homens assassinados pelos salteadores? – Não sei. Não mencionaram nomes. Se o Clarke nunca mais voltar a Hartley, talvez seja uma das vítimas. Ou talvez tenha sido morto de outra maneira. Ele mereceu-o – disse Burke, taciturno. – Depois de ter o anel, arranjei o plano de dizer à Mariah que o pai tinha morrido, para que ela aceitasse a minha proposta. Pensei que não levaria muito a convencê-la. Juro pelo túmulo da minha mãe que, se o pai está morto, não é por minha causa! – Sabe se a sua cúmplice no posto dos correios intercetou alguma carta do Charles Clarke que possa provar que ele está vivo? Burke encolheu os ombros. – Não faço ideia. Não vejo a Annie Watkins desde que deixei Hartley. Portanto, Julia estava certa no seu palpite sobre quem andava a interferir na correspondência de Mariah. – Tem a certeza de que não sabe se o Charles Clarke está vivo ou morto? – Adam deixou cair a mão no ombro e no pescoço de Burke. O movimento parecia descontraído, mas os dedos prendiam com força vasos sanguíneos escolhidos com cuidado. Burke arquejou e caiu atordoado contra a parede, arranhando de forma débil o pulso de Adam. – Não sei! Por amor de Deus, largue-me! – Rob, tem tido muita experiência com ladrões e mentirosos – começou Adam, aliviando a pressão para que Burke não desmaiasse. – Acha que ele está a dizer a verdade? Rob ponderou. – Acho que sim. Mas se quiser, acendo um charuto e aplico-o em alguns sítios. É sempre uma boa maneira de obter respostas francas. Burke choramingou de medo. Repugnado, Adam soltou o ombro do outro homem. – O que fazemos com este patife? – Entrega-o aos homens que alistam marinheiros e soldados à força – disse Kirkland, de modo prestável. – Ser marinheiro de convés de um navio de guerra faria maravilhas pelas maneiras dele. Burke ofegou, virando nervosamente o olhar para os homens atrás de Adam. – Ele seria capaz de os convencer em contrário – disse Adam. – Podíamos apresentar queixa contra ele por fraude e suborno do Royal Mail. Isso é um crime capital? – Provavelmente – pronunciou Rob devagar. – Há tantos crimes que são. Quando Burke se retraiu, Adam disse: – Os tribunais demoram muito. Tenho uma solução melhor. Dando uma interpretação errada à expressão de Adam, Burke sobressaltou-se: – Não pode matar-me sem mais nem menos! Será enforcado! Adam sorriu angelicamente. – Mas posso matá-lo se decidir. Sou um par do reino, Burke. Sento-me na Câmara dos Lordes. Atrás de mim estão três cavalheiros bem-nascidos de reputação impecável, que jurarão que foi legítima defesa, se eu o matar. Qual é a probabilidade de ser processado? – O rosto desesperado de Burke mostrou o reconhecimento de que Adam poderia vencer sem consequências. De repente, Adam cansou-se do jogo. Aterrorizar Burke não aliviaria o profundo sofrimento que Mariah suportara por causa da cobiça e malícia daquele homem. – Concordo que Mr. Burke beneficiaria com uma longa viagem marítima. Kirk, tens ideias? – Estás com sorte – disse Kirkland. – Um dos navios da minha empresa partirá na maré da noite, rumo à Colónia do Cabo e à Índia. Arranja-se com certeza espaço para o Burke, embora talvez num espaço não muito confortável. – Isso serve. – Adam viera preparado para isto, portanto puxou de um envelope do bolso. – Aqui estão duzentas libras, Burke. É mais do que merece, mas dar-lhe-ão a oportunidade de começar uma nova vida onde quer que acabe. Ou pode perdê-las ao jogo numa única noite e morrer de fome, se preferir. – Os olhos contraíram-se. – Se algum dia voltar a Inglaterra, conte os dias com cuidado, porque não terá muitos. Os olhos de Burke voltaram-se para o lado enquanto ele pensava, percebendo provavelmente que não teria uma opção melhor. – Tenho de fazer as malas e escrever umas cartas. Dizer às pessoas que vou embora de Inglaterra. – Kirk, quanto tempo tem ele antes de ser levado para o navio? – Cerca de duas horas – respondeu Kirkland. – Eu e o Rob podemos ficar aqui enquanto ele faz os preparativos e depois pomo-lo no navio. Adam acenou em concordância. – Se o Rob estiver disposto, ficarei muito agradecido. Deixo-vos a carruagem. – O prazer é meu, Ash – respondeu Carmichael, parecendo bem divertido. – Ver-te em ação vale o tempo. – Houve muito pouca ação. Somente a eliminação de parasitas. – Adam rodou nos calcanhares e saiu do quarto, acenando agradecimentos aos amigos. Ainda estava tenso de fúria quando desceu e deixou a estalagem, com Randall atrás dele. Adam deu instruções ao cocheiro para esperar por Kirkland, Carmichael e Burke, seguindo depois para oeste, em direção a casa, numa caminhada rápida. Randall acompanhou-o. – Exageraste quando disseste que tinhas três homens de reputação impecável nas tuas costas – observou. Os lábios tensos de Adam aliviaram-se num sorriso genuíno. – Soou bem. – Olhou para Randall. – Vais ficar comigo como guarda- costas? O amigo sorriu. – Só se for necessário. De outro modo, isso é uma mera caminhada. Adam questionou quanto tempo passaria até que a sua vida se tornasse normal e uma caminhada fosse apenas uma caminhada. Demasiado tempo. CAPÍTULO 34
M ariah penteou o cabelo solto, sabendo que o tempo se esgotava. Na noite seguinte, Adam daria o jantar para apresentar as duas famílias. Na manhã a seguir, Mariah e Julia seguiriam para norte, para casa. A noite estava tempestuosa, com a chuva a bater com constância e trovões distantes. Uma noite para fazer coisas secretas e vergonhosas, como seduzir um homem que não lhe pertencia. Titubeara para a frente e para trás durante dias, desejando tanto estar com Adam que doía, embora sabendo que não era correto e que poderia acabar por magoar-se mais. Esta noite era a sua última hipótese, portanto não podia adiar. Sorriu com pesar em frente ao espelho. A decisão estava tomada: agiria e arriscaria o arrependimento, em vez de ser moderada, segura e ainda mais arrependida. A sua consciência de Sarah desistira e nem sequer lhe falava. Já era tarde o suficiente para a casa estar em silêncio, e provavelmente não seria vista a caminho dos aposentos de Adam. Depois de ensopar em vinagre a esponja que Julia lhe dera e colocá-la em posição, vestiu a sua melhor camisa de noite e roupão, um conjunto brilhante de peças de seda verde-mar que lhe fora oferecido por uma viúva demasiado fogosa, depois de uma festa privada. Apanhou o cabelo folgadamente na nuca com uma fita verde a condizer. Pegou então num candeeiro protegido, para lançar uma luz acanhada para caminhar, e saiu sorrateiramente do quarto. Não a mataria se ele a rejeitasse. Seria gentil, estava certa. Mas se não tentasse, pelo menos, com certeza morreria por dentro.
Agora que estava em casa e na posse da maior parte da memória, Adam retomara as meditações matinais. Por vezes meditava também à noite, pois limpar a mente ajudava-o a dormir. Não havia, porém, quantidade de meditação que o fizesse esquecer que, no espaço de uns dias, Mariah deixaria a sua vida para sempre. Depois de terminar no seu santuário, trancou a porta e apagou todas as luzes da sala de estar, deixando apenas o candeeiro ao lado da cama, no quarto contíguo, para fornecer luz. A tempestade volteava sobre a cidade, por isso abriu uma série de cortinas e viu lá fora Londres coberta de raios. Gostava de tempestades. Um pancada leve soou na porta. O som foi quase afogado pelo ribombar distante de um trovão. Curioso, abriu a porta e encontrou ali Mariah, parada, a centímetros de distância. Ela olhou-o, tensa, pequena e ilusoriamente frágil. – Posso entrar? – perguntou com delicadeza. – Claro. – Ele deu um passo para dento, perguntando-se por que estava ela ali. Certamente não para... Mariah deslizou para dentro do quarto, graciosa e irresistível com uma peça muito leve, concebida sem dúvida para a sedução. Virando-se para o encarar com os enormes olhos castanhos, disse numa voz menos firme: – Não há uma maneira subtil de o dizer. Deitas-te comigo, Adam? Tomei medidas para prevenir consequências inconvenientes. – O olhar afastou-se do dele. – Sei que é errado, mas a Janey ter-te-á para sempre. Ficarei agradecida se pudermos ter uma noite em que nos juntamos livremente, com paixão e afeto. Se... se me desejares. De todos os choques que experimentara nos últimos tempos, nenhum era maior do que este. – Se te desejar? Nunca desejei mais nada nem ninguém. – Adam cerrou as mãos, lutando contra a tentação de a tocar. – Eu não devia. Se bem que... Não me sinto noivo da Janey. Ela é-me muito querida, mas estar contigo não me parece uma traição. Parece-me... certo. – Então, estejamos juntos por esta noite. – Mariah sorriu com melancolia. – Podemos criar memórias que viverão para sempre nos nossos corações. A amnésia ensinara-lhe o quanto a memória define um homem, e como a sua perda destruía a consciência do eu. A recordação de fazerem amor no jardim da oração era uma centelha de luz que o reconfortava. Ansiava por mais memórias assim. Tirou-lhe o candeeiro e pousou-o na escrivaninha, depois pôs-lhe as mãos em concha no rosto, maravilhando-se com a textura sedosa da pele. Mariah levantou os olhos corajosos e vulneráveis, o desejo tão intenso como o dele. Já se tinham beijado, mas nunca com um afeto tão doloroso como agora, quando o tempo se esgotava com uma velocidade terrível. A boca dela era doce como mel, exploraram-se um ao outro sem pressa. Adam desapertou a fita que segurava para trás os gloriosos cabelos, libertando a espessa cabeleira que lhe correu entre os dedos como um rio de ouro. – Queria tanto ver-te – pronunciou ele de modo suave. – Ver-te toda. Ela riu-se um pouco. – Esse desejo é nos dois sentidos. No nosso primeiro encontro, estava à procura de ferimentos e hematomas e não te apreciei inteiramente. – Fez a mão deslizar entre as barras de tecido sobrepostas do robe, a palma da mão quente contra o peito. A doçura ardeu num calor incandescente. Ele puxou-lhe o cinto e despojou-a do roupão. Sob a luz débil dos dois candeeiros, a silhueta ficou sedutoramente visível através da camisa de noite. – Mariah... – Incapaz de pensar numa palavra poderosa o suficiente para expressar a beleza, Adam tocou-lhe ao de leve as curvas graciosas das costas. Ela era perfeita nas proporções, uma pequena deusa que lhe derretia a compreensão. Inclinou-se e beijou-lhe o peito através do delicado tecido, sentindo o mamilo endurecer sob a sua língua. Mariah exalou acentuadamente ao desapertar-lhe o robe. Este abriu-se, revelando a nudez e a forte evidência do desejo. Adam gemeu quando ela o tocou. – É melhor ir mais devagar, minha querida, ou isto acaba cedo de mais. – Com certeza, aproveitemos a noite toda. – Ela tirou-lhe o robe dos ombros, as pontas dos dedos a delinear-lhe linhas de fogo pelos braços. Ele deixou a roupa escorregar para o chão. Não sentia a frieza do ar noturno porque o mundo era todo calor e chama. Demorou apenas um momento a despir-lhe o roupão. – Isto é adorável, mas tu és mais. – Como tu és – respondeu quando ele a levantou e levou para o quarto, para a deitar na cama. A luz do candeeiro revelou Mariah em todo o seu voluptuoso esplendor. Um trovão ribombou pela casa, abanando a mobília, ou talvez fosse o bater do seu coração quando se juntou a ela na cama. – Quero beijar cada centímetro do teu corpo. – Ele estreitou os lábios no seu pescoço, sentindo-lhe a pulsação rápida ao tocar-lhe os seios. – Há muitos centímetros, mas por favor tenta – murmurou enquanto ocultava os dedos nos cabelo dele e lhe massajava a cabeça. – Não acredito que estamos realmente aqui, juntos. Tive tanto medo de que fosses sensato. – Contigo, o meu coração é mais forte que a razão. Tinham feito amor numa inesperada confusão de corpos e emoções. Desta vez, estavam cientes do objetivo, e todas as carícias, todos os beijos, toda a respiração suave construía a antecipação. Quando a tocou intimamente, ela estremeceu de prazer. Começou devagar, unindo os movimentos à excitação dela, até estar ofegante e frenética de carência. Libertou um grito sufocado quando atingiu o clímax, as unhas penetrando nos ombros dele. Quando ela abriu os olhos aturdidos, disse: – Agora é hora de nos unirmos. Apesar do desespero, Adam arranjou maneira de manter o controlo tempo suficiente para entrar nela devagar, já que era apenas a segunda vez. O êxtase tornou quase impossível ficar parado enquanto o corpo dela se ajustava à sua presença. Então ela exalou desigualmente, com prazer, e começou a mover-se contra ele. Depressa encontraram juntos uma cadência, como se parceiros desde sempre, mas partilhando também o espanto inebriado dos novos amantes. Ela era a companheira por que ansiara durante anos de solidão, a mulher que o completava. Despedaçara-se e ela salvara-o, com um espírito que envolvia tudo o que ele era. – Amo-te – ofegou ele. – Para sempre. – E eu amo-te – murmurou ela, os olhos a encherem-se-lhe de lágrimas. Adam virou-se de lado e puxou-a para ele, os braços a abrigá-la da tempestade que esmagava Londres. O próprio céu chorava porque eles se amavam, e não era o suficiente. Enquanto Mariah descansava serenamente nos braços de Adam, contente por estar no momento, ele dormitava, o rosto descontraído como raras vezes havia estado desde que os amigos o encontraram em Hartley. Tentou lembrar-se de como o vira no princípio. Tinha visto, sobretudo, hematomas, lacerações e diferença. Recordou-se de pensar que ele poderia ser bem-parecido sob os hematomas. O que acabou por ser uma subestimação de grandes proporções. Adam Darshan Lawford era belo, com traços fisionómicos fortes que combinavam a sua mescla de heranças num rosto que era único e intrigante. O corpo era também maravilhoso, gracioso e ágil com músculos. Embora ele ficasse provavelmente envergonhado se ela lho dissesse. Mariah gostava da pele mais escura, tão mais interessante que a sua palidez inglesa. Passou com delicadeza a mão pelo lado dele, pensando em como era intensamente real a sua presença. Era difícil acreditar que nunca mais estariam assim juntos. Não queria acreditar. Acariciou-lhe a face, sentindo o leve picar do bigode. Ele abriu os olhos com um sorriso. – Tens frio? – Um pouco – admitiu ela. A noite de chuva estava fria e eles haviam-se deitado por cima das cobertas, com a pele despida. Mariah equilibrou aproximando-se mais dele. Não teria acreditado que deitar-se ao lado dele, despida, lhe parecesse tão natural. Uma vida de recato dissipara-se numa hora. Algum dia voltaria a conhecer aquela proximidade com alguém? – Pareces triste. – Ele penteou-lhe o cabelo para trás, a mão vagarosa. – Lamentas ter vindo aqui? – Não. – Ela tentou sorrir. – Só lamento que esta noite termine. – O rosto dele pôs-se tenso e ela viu-lhe sofrimento no olhar. – É pena que não possamos fazer o tempo parar. Um cobertor leve encontrava-se dobrado aos pés da cama; ele foi buscá- lo e pô-lo sobre ela. – Mas pelo menos podemos estar confortáveis. – Obrigada – disse ela. – Embora tu sejas melhor do que qualquer cobertor. Adam sorriu ao escorregar para debaixo da coberta com ela. – Não queremos desperdiçar o resto da noite a dormir, pois não? – Prefiro fazer mais memórias. Ele rolou sobre as costas e puxou-a para cima dele. Os olhos riam-se para ela. – Tenho a certeza de que consegues descobrir como me extasiar. E ela assim fez, encontrando variações novas e doces a fazer amor. Estavam ambos húmidos de transpiração quando ela caiu sobre ele depois de viajarem até à loucura e voltarem. – Não sabia que a paixão podia ser assim – ofegou ela. – Ou será apenas que és muito bom a fazer amor, como és bom em tantas coisas? Ele acariciou-lhe a anca. – Eu também não conhecia este tipo de fazer amor, até agora. Vem de nós os dois. E se essa era uma pergunta indireta, não tive tanta experiência como imaginas. – Ele sorriu com ironia. – Estava tão interessado como qualquer outro jovem, mas sempre foi difícil para mim baixar os escudos. Exceto contigo. Mariah cruzou as mãos no peito dele e apoiou o queixo nelas. – Acho que tive muita sorte por te encontrar quando não sabias quem eras. Conheci o homem que estavas destinado a ser. – Agora tento ser essa pessoa mais vezes. – Ele reposicionou-a de forma a que ficassem deitados de lado, as costas dela à sua frente dele e o seu braço em volta da cintura. Encaixavam na perfeição. Mariah tentou ficar acordada para não perder um momento inestimável. A respiração regular de Adam dizia que estava a dormir. O tempo esgotava- se...
O candeeiro ardia devagar quando acordaram novamente. Sem palavras, beijaram-se. Desta vez, o desejo era uma queima vagarosa, alimentada pelo entendimento de que aquela poderia ser a última vez, pois certamente aproximava-se o amanhecer. Quando Adam penetrou nela, Mariah suspirou; ondas de prazer irradiaram através dela. Nesta altura os corpos já se conheciam e fundiam-se sem esforço. – Amo-te – murmurou ele. – Nunca duvides disso. – Nunca te vou esquecer. – Ela abriu os olhos, desejando observar o rosto amado – e viu a figura sinistra de um homem a pairar sobre Adam com uma faca. – Adam! – Chutou descontroladamente o homem com o pé direito, conseguindo golpeá-lo de lado entre as pernas. – Cabra! – O homem recuou, deixando cair a mão que segurava a faca. Tinha uma caveira tatuada nas costas da mão. – Por isto, tu morres também! O homem precipitava-se novamente para a frente quando Adam a agarrou pela cintura e os fez rolar da cama, para longe do atacante. O mundo deu um solavanco quando caíram da cama, o cobertor em queda com eles. Adam virou-se para cair de nádegas, protegendo-a do impacto. Ela aterrou em cima dele, sem fôlego. Enquanto tentava acalmar-se, atordoada, Adam afastou-se e pôs-se em pé. – Mariah, para trás! Moveu-se entre ela e o assassino, aninhando-se defensivamente enquanto o homem circundava a cama a praguejar, a luz do candeeiro a brilhar na lâmina. Alto, corpulento e todo vestido de preto, o intruso era um pesadelo tornado realidade. Adam, desnudo e desarmado, parecia em comparação assustadoramente vulnerável. Mas não sentia medo ao aguardar que adversário desse o primeiro passo. Mariah levantou-se apressadamente, pensando, desesperada, o que poderia fazer. Seria imprestável a combater um homem armado. Uma rajada de ar frio revelou uma janela aberta. Só Deus sabia como o intruso o levara a cabo, ou como sabia exatamente em que quarto entrar. Mas ao olhar para a janela, Mariah viu a corda da sineta no lado oposto da cama. Atirou-se através da cama e puxou a corda uma e outra vez, tentando acordar todos os criados da casa. – Ela é uma cabra com bom aspeto. Vou deitar-lhe a mão depois de te matar. – O homem saltou para a frente, desbastando caminho com a faca com uma perícia perigosa. Movendo-se elegantemente e sem esforço, Adam deslizou para o lado e agarrou o braço do atacante. Girando, arremessou o intruso de cabeça para a parede. – Jesus! – O homem praguejou enquanto se levantava. – Seu pagão imundo! Vou cortar-te em pedaços tão pequenos que nem a tua mãe os vai reconhecer! – Que mente limitada tu tens – respondeu Adam, andando às voltas. – Tentas matar duques com mistura de sangue por diversão ou pagam-te? – As duas coisas – cuspiu o homem. – Negócios e prazer juntos. – Saltou para Adam, passando velozmente a faca para cima num golpe para estripar. Adam não estava lá. Mais uma vez escapulira-se como uma sombra, a luz a brilhar sobre a pele despida como se ele fosse uma estátua grega em movimento. Golpeou com a mão o pescoço do outro homem. O assassino desviou-se, mas Adam ainda conseguiu uma pancada parcial. A porta para o quarto de vestir e aposentos de Wharf abriu-se com estrépito. Wharf e Reg Murphy, o chefe da estrebaria, avançaram, trazendo ambos pistolas. Avaliando num instante a situação, Wharf praguejou: – Filho da mãe! Ele e Murphy atiraram tão perto um do outro que pareceu um só disparo. O intruso pôs a mão nas costelas. Os dedos afastaram-se ensanguentados. Excedido em número, mas não ferido com gravidade, saltou pela janela. Mariah viu a extensão indistinta de uma corda pendurada do lado de fora, à chuva. O homem agarrou-a e desapareceu da vista. Sentindo-se muito despida, Mariah recuou e levantou o cobertor do chão com um movimento rápido. Enquanto se envolvia nele, soaram passadas fortes no corredor. Adam agarrou-lhe os ombros e empurrou-a na direção dos criados. – Murphy, tira-a daqui pelos aposentos do Wharf. Não deixes que ninguém a veja! Wharf, esconde essas duas coisas verdes sedosas. Era difícil preocupar-se com a própria reputação quando Adam quase fora assassinado na cama, mas virou-se e fugiu pela porta de Wharf, com Murphy mesmo atrás dela. Quando o criado fechou a porta, Mariah ouviu a voz de Randall, que irrompia pela sala de estar de Adam. – Ash! – Parecia que outros seguiam Randall de perto. Ela e Murphy passaram pelo quarto de vestir e entraram no de Wharf. Era um aposento bastante grande com uma cama em desordem. – É melhor descansar aqui e recuperar o fôlego, menina – disse Murphy. – Os corredores estarão concorridos por um bocado. Um feixe de fumo corria do cano da pistola e o cheiro acre da pólvora preta colava-se a ele. Mariah percebeu que, embora ele e Wharf tivessem sido rápidos e competentes na resposta, estavam meio vestidos e desalinhados. Olhou para a cama e depois para longe. – Ainda bem que estavam ambos aqui e prontos. Murphy parecia desconfortável. – Com as ameaças a sua Graça, o Wharf achou que devíamos estar prontos e armados, por via das dúvidas. Éramos os dois militares. A educação excêntrica de Mariah tornara-a mais mundana do que a maioria das jovens. Tinha uma ideia razoável do verdadeiro motivo pelo qual os homens estavam ali juntos, mas não havia necessidade de discutir mais o assunto. Tal como ela, Murphy tinha boas razões para evitar ser visto na casa por outras pessoas. – O Ashton tem sorte em tê-los ao serviço. – O duque foi bom para nós. – Murphy foi escutar na porta que dava para o corredor público. – Agora parece silencioso. Preparada para arriscar voltar para os próprios aposentos, Miss Clarke? – Por favor. – Ela sorriu com pesar. – Sinto-me ridícula com este cobertor. – Ele abriu a porta com prudência e espreitou, depois fez-lhe sinal para avançar. Passou por ele e lançou-se como uma seta, descalça, pelo corredor. Murphy seguiu-a. À sua porta, ela disse de modo suave: – Tem de se verificar os guardas do exterior. O assassino pode ter magoado um deles para entrar nos jardins. – Bem lembrado. Vou já ver. – Ele hesitou. – Não precisa de se preocupar que eu e o Wharf falemos, menina. Nunca faríamos nada que a magoasse, ou ao duque. Mariah imaginou que o criado fosse um especialista em amor proibido. – Obrigada, Mr. Murphy. Quanto menos qualquer um de nós disser, melhor. Escapou-se para dentro do quarto, onde deixara um candeeiro a arder, e foi direta ao armário da roupa. Uma camisa de noite de flanela, o roupão de lã mais pesado e os chinelos substituíram o cobertor. Entrançava os cabelos quando Julia entrou no quarto a correr. – Mariah, o que aconteceu? Aquilo foi um tiro? Mariah tomou consciência de que haviam passado simples minutos desde o ataque. Após breve reflexão, decidiu contar a verdade. – Eu estava com o Adam quando um assassino invadiu o quarto, empunhando uma faca. O Adam lutou com ele com as próprias mãos, enquanto eu puxava a corda da sineta. O Wharf entrou a correr com uma pistola e alvejou o homem, que saiu pela janela como uma ratazana a toda a velocidade pela calha. – Não havia necessidade de mencionar Murphy. – Bom Deus. – Julia recobrou o fôlego. – O Ashton não ficou ferido? Mariah confirmou com um aceno. – Ele foi... extraordinário. – Se não houvesse sido rápido como um gato e tivesse uma habilidade assombrosa a lutar, estariam os dois mortos. Mariah amarrou uma fita na extremidade da trança. – Vou aos aposentos dele, já que seria surpreendente não investigar um tiro. – Vou contigo. Pareceremos muito respeitáveis. Mariah esperava que sim, porque o ar de respeitabilidade era tudo o que lhe restava. CAPÍTULO 35
S em surpresa, naquela noite Adam não conseguiu dormir mais. Na altura em que tinha outra vez o robe vestido, o que parecia metade dos residentes da casa estava nos seus aposentos, atraída pelos tiros. Randall ficou com uma disposição assassina ao saber o que acontecera e saiu prontamente para ver se conseguia encontrar vestígios do intruso. Mariah e Julia chegaram minutos depois, bem enfaixadas nos roupões e parecendo exatamente tão perturbadas como se esperaria se tivessem sido despertadas de um sono profundo. O olhar de Mariah encontrou com intensidade o dele por um momento antes de, propositadamente, olhar em volta do quarto e perguntar: – O que aconteceu? – Um homem forçou a entrada, mas foi derrotado. Não há danos – assegurou ele às mulheres, tentando não pensar na aparência de Mariah deitada nos seus braços. – Graças a Deus, estás bem. – Mariah estremeceu. – Se isto é Londres, estou ansiosa pela paz de Hartley. – Pegou no braço de Julia e saíram. Adam questionou se teria sobrevivido se Mariah não se encontrasse com ele. O assassino fora muito silencioso. Se estivesse a dormir, aquela faca poderia ter acabado no seu coração. Fora Mariah a detetar o intruso, e o pontapé dera-lhes o tempo de que precisavam para escapar. Teve uma visão horrível de estar morto com ferimentos da faca enquanto o assassino violava e matava Mariah. Wharf enxotava outros elementos do pessoal quando Randall regressou, molhado e carrancudo. – Um dos guardas estava inconsciente e amarrado. A chuva forte encobriu a aproximação do invasor por cima do muro. Ele arranjou forma de escalar a casa e deixar cair uma corda da tua janela. – O guarda vai ficar bem? – perguntou Adam. Randall assentiu. – Teve sorte. Viste claramente o atacante? – Tinha uma caveira tatuada na mão – disse Adam de modo conciso. – Portanto, é o Shipley e está vivo. – Randall exalou energicamente. – Pelo menos agora sabemos de quem andamos à procura. – A proeza vai ser apanhar o demónio. – Adam franziu a testa. – Pelo que ele disse, gostaria de matar um pagão imundo como eu, mas também lhe pagaram para me matar. Portanto, a questão subjacente é: quem lhe pagou? – O que significa que, quando apanharmos o Shipley, temos de o manter vivo o tempo suficiente para saber quem é o patrão. Isso é muito mau. – Randall encaminhou-se para a porta. – Vou falar com o Rob Carmichael para lhe dar conhecimento. – Não há necessidade de acordar o Rob a esta hora – disse Adam. – Duvido que o Shipley volte esta noite. – Mariah também não o faria, lamentavelmente.
Depois do pequeno-almoço com Randall, que saiu para ir ter com o agente da polícia, Adam dirigiu-se com relutância ao escritório para enfrentar o interminável trabalho burocrático exigido a um duque. A última coisa que desejava, depois das paixões e perigos da noite anterior, era ler papéis legalistas desinteressantes. Mais, naquela noite seria o jantar da família, um pensamento que o distraía. – Formby, alguma vez irei pôr em dia este trabalho? – Está a fazer bons progressos, vossa Graça – disse o secretário na sua voz mais formal, a que sugeria que não ia permitir que Adam escapasse. – Contrato-lhe um assistente? Alguém para ajudar com a seleção e o básico, dando-lhe mais tempo para os assuntos que requerem um parecer experiente. Formby pareceu surpreendido, depois intrigado com o pensamento de ter um subalterno a quem dar ordens. – Isso pode ser bom e, por fim, reduzir a quantidade de assuntos com que tem de lidar. Tentando não parecer indecentemente aliviado, Adam disse: – Excelente. Por favor, comece a procurar alguém qualificado e que considere aceitável. Formby sorriu. – Obrigado, vossa Graça. Tenho um sobrinho que pode ser indicado. A porta abriu-se e um criado perturbado disse: – Lamento muito, vossa Graça, mas este cavalheiro insiste em vê-lo. Foi posto de parte por um homem bem vestido com quarenta e poucos anos, o braço direito ao peito e o rosto tenso com uma fúria controlada. Plantando-se em frente à secretária de Adam, disse com rudeza: – O que está a fazer com a minha filha? Bom Deus, tinha os olhos castanhos e o cabelo loiro de Mariah. Tinha de ser Charles Clarke. Por um momento de aflição, Adam sentiu-se como se o homem estivesse ao corrente das coisas esplêndidas e retemperadoras que fizera com Mariah na noite anterior. Mas não era possível que Clarke soubesse. Adam disse baixinho: – Mande chamar Miss Clarke, Formby. Imediatamente. Quando o secretário assentiu e se retirou, Adam levantou-se. – Deve ser Charles Clarke. – O ilustre Charles Clarke Townsend – desembuchou o recém-chegado. – Posso não ser um duque, mas a minha família não é desprovida de influência; não será autorizado a prender e a arruinar a minha filha. – Não desejaria fazê-lo – disse Adam, moderado. O que ele e Mariah haviam feito não fora ruína, antes amor generoso e sincero. – A sua filha salvou-me a vida quando estive perto de morrer afogado. Ela é convidada de honra em minha casa, juntamente com a amiga de Hartley, Mrs. Bancroft, que é uma acompanhante muitíssimo respeitável. – Embora não necessariamente rigorosa. – A propósito, vesti a sua roupa durante várias semanas. Tem bom gosto. O que o faz pensar que arruinei a sua filha? Ela é uma jovem muito independente. Não facilmente arruinável, creio eu. É Mr. Clarke Townsend ou Mr. Townsend? – Townsend serve. – A visita franziu o sobrolho, a ira atenuada. – Acabo de vir do escritório do meu advogado. O Granger diz que a Mariah o visitou com o Duque de Ashton. Que a Mariah pensava que eu tinha morrido e que o senhor a observava como um falcão. Como se ela fosse sua prisioneira. Ela não responde a nenhuma das minhas cartas há semanas, o que significa que algo terrível lhe aconteceu. Ela é sua convidada de honra ou sua prisioneira? Apesar do sofrimento e da cólera de Townsend, Adam teve de sorrir ante o absurdo da situação. Fez sinal com a cabeça em direção à porta, onde Mariah acabara de aparecer com um elegante vestido cor de pêssego. Parecia demasiado delicada e senhoril para ter dado um pontapé na virilha a um homem na noite anterior, enquanto fazia amor apaixonada e ilicitamente. A sua incomparável Mariah. Quando Townsend se virou, o choque de Mariah transformou-se numa alegria intensa. – Papá! – A chorar, lançou-se-lhe nos braços. – Pensei que tinhas morrido! Ele estremeceu quando ela colidiu com o braço lesionado, mas pôs o outro braço em volta dela com força. – Estava tão preocupado, Mariah! O que aconteceu? – Olhou para Adam. – Este homem fez-te mal? Mariah riu-se. – De maneira nenhuma. Oh, papá, aconteceu tanta coisa! Num dos lados do escritório estava organizado um agrupamento de mobília estofada com couro. Mariah baixou o pai para o sofá e sentou-se ao lado dele, tão perto que se tocavam. Adam deixou a secretária e sentou-se na cadeira em frente ao sofá. – Disse que é o ilustre Charles Clarke Townsend. É filho do conde de Torrington? Clarke acenou afirmativamente. – Eu era o mais novo e a ovelha negra. O meu pai morreu há umas semanas. Arranjámos uma reconciliação no leito de morte. – A expressão era irónica. – Talvez até seja bom não se testar a reconciliação por um longo período de tempo. Nós éramos como água e vinho. Mas... creio que ambos ficámos felizes por nos separarmos como amigos. O meu irmão mais velho é o novo conde. Mariah arquejou. – Pensei que talvez viesses da pequena nobreza. Não imaginei que a tua posição social fosse tão alta. – Os Townsends têm um dos sangues mais azuis da Grã-Bretanha, o que fez o meu comportamento vergonhoso parecer ainda pior – disse ele. – Legalmente, o teu nome é Mariah Clarke Townsend. Simplifiquei o nome para Clarke depois de o meu pai me renegar. Adam fez má cara. – Isso não é gesto de um pai decente. – Ele tinha justificativa, embora talvez exagerasse. – Charles suspirou e depois disse a Mariah: – Consideravam-me travesso mesmo antes de eu e a tua mãe fugirmos para Gretna, quando tínhamos dezassete e dezoito anos. Ambas as famílias ficaram escandalizadas. Não comecei a crescer até me tornar responsável por ti e, mesmo assim, precisei da ajuda da avó Rose. – Onde estiveste nas últimas semanas? O George Burke disse que tinhas morrido; forjou uma carta do Granger e mostrou-me o anel de ouro como prova. Descobrimos que ele subornou os correios, mas isso não provava que estavas vivo. – Ela tocou na ligadura. – Feriste-te e foi por isso que não voltaste para Hartley quando esperavas? – É parte da razão. Mas e tu? – O olhar para Adam ainda continha desconfiança. – Por que estás aqui, nesta casa, em Londres? Adam deixou Mariah contar a história, convenientemente editada. Ela terminou com: – Eu e a Julia planeámos voltar para Hartley amanhã, já que o Ashton foi simpático e nos ofereceu uma carruagem. Tenho a certeza de que ele não se importa se nos acompanhares. Estás pronto para ir para casa? Ele sorriu com travessura. O encanto que usara para tornar-se um convidado bem-vindo em muitas casas, durante tantos anos, era claramente visível. – Lembras-te de eu dizer que a lesão era apenas parte da razão do atraso? Há mais da razão a apenas umas ruas de distância. Vens comigo para eu poder explicar melhor? Ela riu-se. – Nunca resististe a uma surpresa. Queres que eu conheça alguns dos familiares com quem agora te reconciliaste? – Sempre foste boa a ler-me. Sim, é esse o caso – admitiu ele. – O meu irmão é muito mais tolerante em relação aos meus defeitos do que era o meu pai. Mas não direi mais nada. – Ele levantou-se. – Estás livre agora? Gostaria muito de te levar. – Muito bem. – Ela olhou para Adam. – Vens também? Ignorando a má cara do pai, ele respondeu: – Claro. – Tentou parecer inocente o suficiente para não alarmar um pai protetor. Duvidava ter sido bem-sucedido. * Com o pai de Mariah a dar instruções, o cocheiro de Adam levou-os a uma casa do outro lado de Mayfair. Quando puseram o pé no passeio em frente, Charles ofereceu o braço bom a Mariah de modo bastante vistoso. Ela suspeitava que o pai iria ficar muito mais feliz quando ela não estivesse hospedada na Ashton House. Por norma não era tão protetor, mas era muito perspicaz. Imaginava que ele pressentisse uma ligação entre ela e Adam. A chuva da noite anterior limpara o céu e estava um belo dia de primavera. Mariah percebeu que o destino era uma casa típica da zona de Mayfair, bem conservada, com caixilhos cor de marfim e vasos de janela floridos. O pai abriu a porta com uma chave, o que era interessante. Enquanto levava Mariah e Adam para dentro, gritou: – Já voltei e trago-a! Conduziu-os para o salão à direita, onde duas mulheres bordavam. Ambas saltaram do lugar. Uma era uma mulher pequena e atraente, com quarenta e poucos anos, a outra era... Mariah. Mariah ofegou, prestes a desmaiar. Adam agarrou-lhe o braço. – Firme, Mariah – murmurou. – Acho que, tal como eu, tens uma irmã que ainda não conhecias. Mariah escrutinou a outra jovem. Embora fossem muito semelhantes, o rosto desta desconhecida era um pouco mais franzino, o cabelo loiro tinha um estilo diferente e a expressão deixava entrever uma personalidade distinta. Mas o vestido de manhã elegante era exatamente do mesmo tom pêssego do que Mariah vestia. – Mariah? – perguntou a rapariga, hesitante. Mariah teve de engolir antes de conseguir falar. – Papá, tens-me escondido uma irmã gémea? – Bem... sim. – Ele parecia tanto satisfeito como embaraçado. Um pensamento louco atingiu Mariah. – Chamas-te Sarah? – Sim! – A irmã parecia esperançosa. – Lembras-te de mim? – Não, nem por isso. Mas, por favor, diz-me: és um modelo de todas as virtudes próprias de uma senhora? Sarah pareceu surpreendida. – De forma alguma! Como a mamã será a primeira a dizer-te. Mamã? Mariah virou-se para a mulher mais velha, que a fitava com avidez. Era um pouco mais baixa do que Mariah e o cabelo loiro escuro era acentuado com fios de prata, mas parecia-se com Sarah. Parecia-se com Mariah. Mariah comprimiu a mão esquerda sobre o coração, com a sensação de que este ia saltar do no peito. – És minha mãe? Sempre supus que tinhas morrido quando eu só tinha dois anos! O pai tossiu. – Sempre disse que perdemos a mãe. Nunca disse mesmo que ela morreu. Mariah olhou-o fixamente, espantada. – Não me digas que deixaste a mãe e me separaste da minha irmã, como se fossemos um par de cachorros! – Ao lado dela, Adam abafou uma gargalhada. – Legalmente, ele tinha o direito de levar as minhas duas filhas, se quisesse, por isso fiquei agradecida por ter levado só uma. – A mãe aproximou-se um pouco mais, o rosto sincero. – Mas não se passou nem um dia sem que pensasse em ti. Minha filha perdida. A mão de Adam apertou o cotovelo de Mariah, enquanto o olhar dela passou da mãe para o pai e para a irmã. Não conseguiu evitá-lo; desfez-se em gargalhadas. – Papá, seu maroto! Todos estes anos e nunca me contaste! – Pareceu-me mais fácil – disse ele, desconfortável. – Fácil. – Mariah abanou a cabeça. – Começo a perceber o porquê de o teu pai te ter renegado. – Virou-se para a irmã. – Desde que me lembro, imagino que tenho uma irmã chamada Sarah, sempre uma perfeita senhora. Ela foi a minha consciência e, muitas vezes, única amiga. Vejo agora que estava a lembrar-me de ti. – Espero certamente que sejamos amigas! – Sarah deu um passo à frente e apertou-lhe a mão, os olhos castanhos ansiosos. – Cresci a saber que tinha uma irmã chamada Mariah e rezei para que um dia nos reencontrássemos. – Eu também teria rezado, se soubesse. – De repente Mariah e Sarah estavam nos braços uma da outra. Mariah estendeu a mão à mãe e o abraço transformou-se num abraço a três. Embora não tivesse memórias conscientes da mãe e da irmã, Mariah conhecia-as a um nível profundo da alma. Preenchiam buracos que ela não sabia que tinha. Por fim libertou-se e tirou o lenço de bolso do saco de rede para poder limpar os olhos. – Papá, ainda há muito que desconheço na tua história. Para começar, onde diabo estavas? E como magoaste o braço? – Eu próprio estou muito ansioso para ouvir isso – comentou Adam. A mãe de Mariah olhou para Adam, uma pequena ruga entre os olhos. – Não fomos apresentadas ao teu amigo. – Lamento muito, minha querida – disse Charles com um brilho nos olhos. – Posso apresentar o Duque de Ashton? Vossa Graça, a minha mulher e a minha filha mais nova, Mrs. Townsend e Miss Sarah Townsend. – Quanto mais nova? – perguntou Mariah com interesse. – Cerca de cinco minutos – respondeu a mãe, o olhar para Adam tornando-se mais aprovador. – Há muito para falar. Vamos sentar-nos e tocarei para o chá. Ao ocuparem os lugares, Mariah ficou perto da irmã e da mãe recentemente descobertas, mas lançou a Adam um olhar agradecido quando este se sentou em frente. Ele, melhor do que ninguém, conseguia perceber as suas emoções tumultuosas. O pai disse: – Mariah, contei-te que queria restabelecer a minha ligação com a família. Em particular, queria ver o meu pai, pois soube que ele estava muito doente. Mas ainda mais, queria ver a Anna. – Olhou para a esposa distante com o coração nos olhos. – Ela era uma herdeira e todos pensavam que casei com ela pelo dinheiro. Estavam enganados. Anna suspirou. – Fui tola o bastante para acreditar naqueles que me diziam para não confiar no Charles, que ele não passava de um inútil desregrado e caçador de fortunas. Um dia, quando vocês tinham cerca de dois anos, começámos a discutir. Começou do nada, mas dissemos coisas horríveis um ao outro e o Charles enfureceu-se e saiu, jurando nunca mais voltar. – E, sendo um imbecil, não voltei – disse o pai com tristeza. – Por demasiados anos. Mariah inclinou-se para a frente. – Por que não, papá? Não querias ir para casa? – Soube que tinha cometido um erro terrível quase logo que saí. – Fez um esgar. – Mas fiz de tudo uma trapalhada. Eu era um vagabundo, um fracasso inútil. Decidi que não regressaria até me estabelecer de forma independente. Queria provar ao meu pai que não era indigno e à Anna que não era um caçador de fortunas. – Tornou-se então jogador profissional – disse Adam brandamente. A boca de Charles torceu-se. – Jogar não era uma boa maneira de fazer fortuna, mas eu não tinha outras competências. Fiz o suficiente para me sustentar, à Mariah e à avó Rose em moderado conforto, mas não o suficiente para tornar-me num homem de posses. Apesar dos meus outros defeitos, não estava disposto a enganar um jovem para lhe ficar com a herança. Depois conheci o George Burke. Ele era um homem adulto e um imbecil mal-intencionado. Uma vez que parecia determinado a perder a propriedade, decidi que mais valia perdê-la para mim. Depois de ter ganhado Hartley, compreendi que estava na hora de procurar a Anna e pedir-lhe perdão. – O olhar voltou para a mulher. – Não me atrevi a sonhar que ela me aceitaria de volta, mas pelo menos queria que soubesse o quanto eu estava desesperadamente arrependido. Nunca tive mais ninguém. Mariah sabia que aquilo não era inteiramente verdade. Contudo, nunca viu nenhum sinal de que o pai estava apaixonado por qualquer das mulheres com quem teve casos fortuitos. A mãe não precisava de saber dessas outras mulheres. O olhar de Charles mudou para Sarah. – Queria também ver a minha outra filha. Fui abençoado contigo, Mariah. Sempre que olhava para ti, perguntava-me como estaria a crescer a minha outra menina. – Devias ter vindo para casa mais cedo, Charles. – Anna estendeu-se para ele. Charles pegou-lhe na mão e beijou-a. – Agora sei disso. Teres-me dado uma segunda oportunidade é o maior milagre da minha vida. Sarah inclinou-se na direção de Mariah e disse num aparte malicioso: – Estão nisto desde que ele voltou! Mariah riu-se. Gostava muito mais da verdadeira Sarah do que daquela que vivera na sua cabeça e a repreendera durante tantos anos. Olhando para a ligadura que segurava o braço magoado do pai, perguntou: – A mamã partiu-te o braço antes de aceitar o pedido de desculpa? Ele sorriu abertamente. – Não, embora pudesse sentir-se tentada. Eu viajava de carruagem para a visitar no Hertfordshire quando fomos assaltados por salteadores. Insensato, envolvi-me numa luta para salvar o meu anel de ouro. A Anna tinha-mo dado, sabes? Portanto, roubaram-me o anel e partiram-me o braço. Tive sorte por não ser o pescoço. Anna retomou a história. – O jornal local publicou um relato do roubo e os nomes das vítimas. Quando vi na lista um Charles Clarke, tive a estranha sensação de que deveria visitar a estalagem onde se dizia que ele estava a recuperar. – Então, entrou no meu quarto na estalagem, tão bonita como no dia em que nos conhecemos, e disse que não a surpreendia que eu tivesse sobrevivido aos saqueadores, já que nasci para ser levado pelo diabo. – Riu- se com alegria. – Concordei prontamente e continuámos a partir daí. Entreolharam-se com amor. Mariah disse: – Sinto-me como se tivesse vagueado por uma comédia da Restauração inglesa2. Sarah deu um sorriso compreensivo. – Estranho, de facto. Mas sem dúvida encantador. Podem fazer companhia um ao outro na velhice. Mariah imaginou que havia muito mais no reencontro dos pais do que dar as mãos em frente à lareira. Dado o quão jovens eram quando fugiram, havia ainda muito tempo e força para a paixão. Não que quisesse pensar nisso com demasiados pormenores! Desviando a atenção da mulher, o pai continuou: – Escrevi-te, Mariah, a explicar que me atrasaria e que tinha uma surpresa maravilhosa para ti. Mas tu não respondeste. No princípio, estava tão absorto na Anna e na Sarah que não me preocupei, mas com o passar do tempo fiquei cada vez mais apreensivo. Maldito seja o Burke por roubar a nossa correspondência! – Tratou-se dele – observou Adam. – Decidiu ir para as colónias, onde pode começar de novo. – Não por vontade própria, espero – disse Charles com confiança. – Foi encorajado. – A expressão de Adam mostrava-se branda. Levantou- se. – Têm todos muito que pôr em dia, como tal retiro-me. Hoje à noite darei um jantar de família. A Mariah planeava estar presente. Juntam-se todos a mim? Estarão presentes mais duas famílias redescobertas, portanto uma terceira será ainda melhor. – Temos muito gosto em aceitar. – Anna ofereceu um sorriso agradado. – Eu e a Sarah temos vivido sobretudo no campo e precisamos de expandir as nossas relações em Londres. Esta é a casa de cidade do meu irmão, e ele sugeriu que a visitássemos mais vezes. – Tens razão, Ash, quero ficar aqui e conversar com a minha família. – Mariah levantou-se. – Vou levar-te à porta. – Voltaram para o saguão, e Mariah esboçou um sorriso mais íntimo do que podia arriscar em frente à família. – Entendes isto como mais ninguém. – Descobrir a família há muito perdida é desorientador, mas milagroso. – Inclinou-se para a frente para lhe dar um leve beijo nos lábios. – Fica feliz, Mariah. Os teus familiares nem sequer são louça suja. Enquanto ela se ria, ele saiu de casa. Ainda doía desmesuradamente que tivessem de se separar, mas agora, graças a todos os deuses, não ficaria sozinha. 2 Género dramático do período que se seguiu à restauração da monarquia inglesa (1660), caracterizado por proporcionar uma análise do comportamento humano e dos costumes em determinado contexto social (N. da T.) CAPÍTULO 36
E ra quase hora de Adam descer e cumprimentar os convidados do jantar. Estava praticamente vestido quando Wharf se aproximou com um bonito casaco verde-garrafa. Adam franziu o sobrolho. – Quero um dos casacos com bolso de pistola cosido. As sobrancelhas de Wharf curvaram-se interrogativamente. – Espera sarilhos, vossa Graça? – Quase ter sido assassinado na cama ontem à noite deixou-me desconfiado – explicou Adam. – A vida tem sido imprevisível, nos últimos tempos. As minhas pistolas de bolso ainda estão na escrivaninha? – Devem estar, senhor. – O criado parecia pensativo. – Os soldados falam sobre sentido de batalha: a sensação de que algo está mal e é necessário um cuidado extra. Talvez seja isso que sente. Vou buscar um casaco adequado. Adam foi até à escrivaninha. O estojo de nogueira polida encontrava-se numa gaveta inferior, exatamente onde deveria estar. Abriu o estojo e tirou uma das pistolas combinadas. Na mão, parecia-lhe familiar. As armas, pequenas, mas terrivelmente precisas, haviam sido desenhadas e construídas por Joseph Manton, considerado o melhor armeiro da Grã- Bretanha. Manton cobrara uma pequena fortuna, está claro, mas as pistolas valiam- na. Adam examinou a facilidade da arma antes de a carregar. Quando terminou, já Wharf voltara com um casaco azul ciano. A peça de vestuário era de corte mais folgado do que a anterior e dentro, do lado esquerdo, existia um bolso reforçado para transportar a pistola em segurança. Como Adam era destro, conseguiria alcançá-la e retirá-la com facilidade. Do lado direito, um bolso reforçado idêntico continha balas e pólvora adicionais e um pequeno maço. Não abraçaria ninguém sem que se notassem arma e munição, mas não pensava que aquela fosse ser uma noite de abraços. Depois de vestir o casaco e apertar o lenço de pescoço, examinou a imagem no espelho. Parecia exatamente o duque perfeito que tanto tentara, durante anos, estar para lá da crítica. No entanto, muita coisa tinha mudado. Quase morreu; redescobriu-se, peça por peça; encontrou uma família e apaixonou-se. Embora a perda iminente de Mariah fosse como uma bigorna no coração, a sua vida era mais valiosa e significativa do que algum dia fora. Questionando como iriam dar-se os Stillwell e os Lawford, desceu as escadas. Embora nunca tivesse sido soldado, identificava o sentido de batalha a levantar-lhe os cabelos na parte de trás do pescoço. Mariah era a única no salão. Estava sentada no sofá em frente à lareira, onde o fogo tremeluzia, porque a noite era fria. Com o cabelo penteado para cima e um vestido dourado caindo em graciosas pregas, parecia uma princesa, todavia mais palpável. Adam conteve o pensamento antes que agisse de acordo com ele. – Esta noite estás particularmente encantadora. Ela levantou os olhos, o sorriso radiante. – Adam, tenho uma irmã! É tão maravilhoso que mal posso acreditar. – A felicidade dela fazia-o feliz. – Ela pareceu-me igualmente contente. Mariah passou a mão sobre o tecido dourado cintilante no joelho. – A Sarah emprestou-me este vestido. Estivemos numa tagarelice espantosa. Em alguns aspetos somos muito diferentes, mas noutros absurdamente parecidas. Acabávamos as frases uma da outra! As roupas dela são novas e elegantes, e as minhas muitas vezes em segunda mão, mas os vestidos dela assentam-me na perfeição e gostamos das mesmas cores. Reparaste que estávamos vestidas com o mesmo tom de pêssego? Ele abanou a cabeça enquanto se inclinava para a armação da lareira, tendo mais juízo do que aproximando-se dela. – A cor combina com as duas. Também têm alguns gestos em comum. Aborrece-te que ela tenha sido criada num lar mais próspero? – Nem por isso. Eu e o papá nunca passámos fome. Invejo o facto de ela ter tido mãe, mas ela sente o mesmo em relação ao pai. – Mariah considerou. – Acho que sou mais independente e adaptável do que ela. Tive de ser. Ela inveja o que pensa serem as minhas aventuras. Mas tem uma confiança em si mesma e na sua posição no mundo que me faltam, porque eu e o papá mudávamos muitas vezes de lugar e vivíamos no limiar da respeitabilidade. A Sarah e eu decidimos que as nossas vidas se equilibraram. Eram sensatas. – Ela é solteira, não é? É fora do comum duas irmãs adoráveis serem solteiras aos vinte e cinco anos. – Estava noiva, mas ele morreu. – Mariah pareceu triste por um momento, antes de mudar de assunto. – Não é uma coincidência extraordinária termos ambos descoberto famílias desconhecidas? Parentes aleatórios que voltaram dos mortos? Não sei o que pensar, além de ficar feliz. Mas sinto-me como se a vaguear numa peça de teatro. – Os acontecimentos não foram realmente aleatórios – disse ele, pensativo. – Eu e tu fomos tirados do nosso devido lugar, tu pelo teu pai, eu pelas autoridades todo-poderosas. Por meio dos esforços do teu pai e do meu padrasto, fomos reintegrados em famílias que já existiam. O momento é um pouco coincidente, porque aconteceu a ambos quase ao mesmo tempo, mas os acontecimentos são lógicos. Mariah considerou as palavras dele e disse: – Quando vejo por essa perspetiva, não tenho a certeza de que seja coincidência. É mais uma cadeia de acontecimentos. Se eu não julgasse que o meu pai tinha morrido, não teria realizado o ritual da avó Rose e não estaria lá fora naquela noite; não teria ido à praia, nem te teria encontrado. Portanto, não saberíamos que tínhamos coincidências, porque nunca nos teríamos conhecido. – Sem mencionar o facto de que eu estaria morto e, por esse motivo, não saberia da minha família há muito perdida – disse ele com frieza. – Acho que vou seguir um ponto de vista hindu: estávamos destinados a encontrar- nos e a tornar-nos parte da estrutura da vida um do outro. Embora também resulte à maneira cristã, agora que penso nisso. – Deus move-se de formas misteriosas para realizar as suas maravilhas. – Mariah citou o cântico com um sorriso que era tanto melancólico como afetuoso. – Destinados a encontrar-nos. Gosto de pensar que a nossa amizade tem significado, se não estabilidade. – O laço que os unia era tão intenso que Adam sentia que poderia segurá-lo nas mãos. Mariah desviou o olhar do dele. – Afinal, não vamos precisar da tua carruagem. Amanhã mudo-me para casa do meu tio, para estar com a minha família. Iremos para Hartley daqui a duas semanas ou coisa assim, mas quando chegar a altura usaremos a carruagem da minha mãe. Elas viveram numa casa na propriedade do irmão durante anos. Deduzi que foi ótimo, mas ela está ansiosa por morar na própria propriedade, na própria casa. – Mariah riu-se um pouco. – Habituei-me a pensar em Hartley como minha, por isso terei de segurar a língua quando a mamã fizer mudanças. Adam suspeitava que iria haver alguns conflitos, já que Mariah estava encarregue da própria vida há anos. Mas com amor conseguiriam suavizar o processo. – E a Julia? Terei todo o gosto em levá-la para norte, com uma criada de Ashton a fazer-lhe companhia na viagem. Mariah abanou a cabeça. – A Julia também deixará a Ashton House para ficar connosco. Uma vez que passa boa parte do tempo com a avó, será uma hóspede fácil. Portanto Mariah estaria em Londres, mas já não iria vê-la todos os dias. Mesmo assim, era melhor do que tê-la a centenas de quilómetros. Foi até ao armário das bebidas. – Eu sou defeituoso nos meus deveres. Queres um xerez? – Por favor. – Mariah aceitou o copo que ele serviu, tendo o cuidado de não deixar que os dedos se tocassem. – Com tantos convidados a chegar, ficarás ocupado a servir. – Dentro de minutos, o Holmes assumirá o comando. – Serviu-se de uma pequena dose de xerez, sem dizer que viera cedo na esperança de passar algum tempo a sós com ela. – Cerca de um quarto de hora depois, os criados entrarão com bandejas de deleitáveis petisquinhos. Essa é a ideia de Mrs. Holmes. Muitos dos convidados não se conhecem, por isso pareceu boa ideia dar-lhes a hipótese de se movimentarem e fazerem novos conhecimentos, antes de nos instalarmos em posições fixas em volta da mesa de jantar. – Um plano inteligente. – Mariah ergueu o copo, mal molhando os lábios com o xerez. – A comida e a bebida vão pôr todos de bom humor. – A conversa privada terminou quando a tia Georgiana e Hal entraram na sala. Mudando a atenção de Mariah para o resto da vida, Adam deslocou-se para os cumprimentar. – Boa noite. – Apertou a mão a Hal e fez à tia uma reverência respeitosa. Ela tinha visto Mariah e parecia irritada por a intrusa ainda se encontrar ali. Adam perguntou: – Receberam notícias da Janey? Contava que por esta altura já tivesse regressado. – Atrasou-a uma ligeira recaída, ou é o que ela diz. – A tia sorriu com ternura. – Acho que a verdade é que não quer ver-te até recuperar a aparência. A febre faz-nos parecer muito pálidos e abatidos. – Ela devia saber que isso para mim não tem importância. – O que era verdade, percebeu ele. Gostava muito de Janey. Talvez a amasse. De uma forma ou de outra, não importava se estava pálida. – Espero que volte para Londres em breve. – Tenho a certeza de que voltará – disse Hal com alegria. – Não é da Janey perder a agitação, por isso é quase certo que apareça em breve. A mãe franziu a testa. – Ela não pode arriscar a saúde. Tu e ela terão anos para aproveitar a companhia um do outro, Ashton. A conversa tornou-se geral quando Masterson e Kirkland chegaram, tendo partilhado uma carruagem. Randall e Julia entraram lado a lado, embora não verdadeiramente juntos, já que não falavam nem olhavam um para o outro. Adam supôs que se tivessem encontrado ao descer as escadas, vindos dos quartos. Os próximos a chegar foram os Townsends. Mariah levantou-se e cumprimentou-os, o rosto a brilhar de prazer. Todos os homens presentes olharam para Sarah, espantados. – Meu Deus, existem duas Mariahs? – exclamou Masterson. Executou uma profunda reverência a Sarah e à mãe. – Como se tornaram tão afortunados os homens de Inglaterra? Sarah corou enquanto Mariah se ria. – Não é maravilhoso? Só descobri a minha irmã gémea hoje! Deixe-me apresentar-lhes os meus pais, Mr. e Mrs. Townsend, e a minha irmã, Miss Sarah Townsend. Parecendo equivocamente angelical, Mariah continuou as apresentações em volta da sala. Georgiana Lawford franziu o sobrolho a Charles. – Tem relação com o Conde de Torrington? – É meu irmão – respondeu Charles, parecendo completamente o aristocrata. – Ausentei-me durante alguns anos e é um prazer estar de volta a casa. Georgiana franziu o sobrolho com mais profundidade ao olhar para Mariah, que agora se estabelecia como neta e sobrinha de um conde. Era uma posição que seria bastante aceitável numa duquesa e que faria de Mariah, ainda mais, uma potencial ameaça. A tia não tinha fé suficiente no sentido de honra de Adam. Ele não trairia Janey. Tentou recordar se a tia sempre tivera tão mau génio. Nunca fora particularmente calorosa, mas tratava-o de forma razoável. Pelo menos até ao marido morrer. Depois disso, a disposição tornara-se mais azeda. Os últimos a chegar foram os Stillwell, incluindo os três filhos. Lucia, mal tendo saído da sala de aula, borbulhava de excitação por estar numa reunião de adultos glamorosa. Sorrindo, Adam avançou e beijou a face da mãe. Também ela irradiava alegria. Com um sari carmesim bordado a dourado, parecia muito jovem e de uma beleza exótica. – Meu lindo filho – disse ela com ternura. – Valeu a pena navegar metade do mundo para te encontrar. Depois de cumprimentar o general, o irmão e as irmãs, virou-se para os outros convidados. – Tenho a grande honra de apresentar a minha mãe, chegada recentemente da Índia, e o meu padrasto, o general Stillwell. Também as minhas irmãs e o meu irmão, Lady Kiri Lawford, e Lucia e Thomas Stillwell. Disse Kirkland com fervor: – Ashton, como conseguiste encontrar tantas mulheres bonitas num só lugar? – Com o olhar em Kiri, fez uma vénia de saudação. – O crédito é das duas bonitas mães que produzem filhas bonitas. Um brinde às senhoras! – Adam levantou o copo para Lakshmi e depois para Anna Townsend. Os seus gestos e palavras foram ecoados pelos outros. A tia Georgiana deitava fumo em silêncio, com o olhar a escrutinar fixamente Lakshmi. Adam reconheceu a repugnância por ter de encontrar socialmente uma pessoa que ela considerava inferior. Vira essa expressão noutros olhos quando o fitavam, mas a tia deveria ter sentido social suficiente para dissimular a intolerância. Levou a família pela sala para fazer apresentações mais pessoais. Mariah também agia discretamente como anfitriã, aproximando as pessoas. Ela e Adam trabalhavam juntos com muita naturalidade. Depressa a sala se encheu de conversas animadas. Os jovens reuniram-se em grupos, com Sarah, Kiri e Lucia a receber uma atenção entusiasta dos amigos de Adam. Mais surpreendentemente, o general Stillwell, Thomas e o pai de Mariah mostravam-se absortos numa conversa, e Lakshmi e a mãe de Mariah pareciam muito íntimas. Adam sondava a sala, a verificar se ninguém era deixado de fora. A tia Georgiana era uma terceira bastante carrancuda numa discussão entre Julia e Hal, mas todos os outros pareciam estar a divertir-se. Deveria tê-la incluído no brinde, ainda que Janey não estivesse presente. Aconteceu Adam olhar na direção da porta principal quando esta se abriu e mostrou uma mulher alta e amarrotada pela viagem, que se comportava como uma deusa grega. Tinha chegado Lady Agnes Westerfield. – Lady Agnes! – Ele atravessou a sala numa dúzia de passos e abraçou-a. – Ashton! – Ela retribuiu o abraço, radiante. As suas sobrancelhas ergueram-se ao sentir a pistola sob o casaco de Adam. Brandamente, disse: – Armado na própria casa, meu rapaz? Ele sorriu. Aquela sala continha a sua mãe verdadeira e a tia cuja casa visitara regularmente nos anos de crescimento, mas nenhuma delas era mais sua mãe do que Lady Agnes, que fora o alicerce da sua vida inglesa. – Falo consigo sobre isso mais tarde. Por enquanto, é suficiente dizer que recuperei muita da minha memória e estou contente por Lady Agnes estar aqui, mesmo lembrando-me de todas as reprimendas que me deu. Ela olhou em volta da sala. – Como o meu aluno problemático recuperou e agora é louco por críquete, decidi vir à cidade. Não vou interferir na tua festa, mas não podia esperar mais para te ver. – Ela riu-se. – A caminho da Ashton House, encontrei outra pessoa que quererias ver, mas foi refrescar a aparência depois de saber que tinhas convidados. Na minha idade, ter mau aspeto não tem importância. – Está maravilhosa e vai ficar para jantar. – Segurou-lhe com firmeza o braço. – Vai começar por conhecer a minha mãe, Lakshmi Lawford Stillwell. – Adam! Verdadeiramente? – exclamou ela com alegria. Ele explicou-lhe de modo breve enquanto a conduzia pela sala, juntando outros alunos de Westerfield ansiosos para a cumprimentar. Quando chegaram a Lakshmi, ele disse: – Mãe, posso apresentar-te Lady Agnes Westerfield, que tomou conta de mim quando estavas muito longe? A mãe levantou-se do sofá e depois caiu numa vénia profunda, a seda carmesim e molhada formando um lago no chão à sua volta. – Tem a gratidão do meu coração, Lady Agnes. Ligeiramente alarmada com o gesto dramático, Lady Agnes disse: – E a senhora tem a minha gratidão por produzir tão bom filho. Ele foi a inspiração para a minha escola. Adam retirou-se, deixando as mulheres a conversar, e foi ao encontro de Mariah. Esta encontrava-se um pouco à parte, do outro lado da sala, a observar os convidados. Saudou-o com um sorriso. – Tantas pessoas maravilhosas num só lugar. Espero conhecer Lady Agnes, mais tarde. – Conhecerás. A porta de serviço a um canto da sala abriu-se e vários criados entraram na sala, transportando bandejas de prata. Um avistou o empregador e veio de imediato oferecer uma bandeja cheia de pequenos pastéis de massa folhada, cada qual empalado por um palito. Mariah tirou um. Enquanto mordia com delicadeza do palito, lambendo flocos amanteigados dos lábios entre as trincas, Adam teve de desviar o olhar. Nem era justo que fosse tão sedutora sem sequer tentar. – Delicioso – referiu. – Tem um queijo ótimo a derreter lá dentro. – Tirou outro e suspirou, feliz. Adam provou um, depois outro. E um terceiro. Quando recusaram mais, o criado passou para outro grupo. Um criado diferente dirigiu-se a eles, contendo a bandeja pedaços de salsicha assada. A libré era diferente da dos outros e, depois de um instante, Adam identificou-o como criado de Lawford. Devia ter acompanhado Hal e a tia Georgiana e sido obrigado a servir. Mariah franziu a testa quando o homem se aproximou, como se algo nele a perturbasse. Foi então que um zumbido de vozes soou da entrada principal da sala de estar, quando várias pessoas exclamaram: – Está aqui a Janey! Adam olhou ao longo da vastidão da sala e viu a noiva a apresentar-se na ampla entrada, o olhar a perscrutar o grupo. Tinha de ser a mulher que Lady Agnes mencionara como tendo chegado ao mesmo tempo. Embora trouxesse um vestido de viagem simples, o cabelo claro mostrava-se bem arranjado e o rosto adorável vivo de interesse. – Olá! – disse com jovialidade. – Acabo de voltar do Lincolnshire e soube que estavam todos aqui. Espero não ser inoportuna, Ash. – Claro que não – gritou ele do outro lado da sala, os nervos a cerrarem- se por saber que a chegada dela mudava tudo. Ao seu lado, Mariah gritou: – Adam! Cuidado! Ele moveu rapidamente a cabeça perante a urgência de Mariah. Com as atenções concentradas na entrada de Janey, o criado que se aproximava puxara de um punhal malévolo de debaixo da bandeja e levantava o braço para esfaquear Adam. A figura alta e forte do criado era familiar, assim como a rosnadela ameaçadora. – Desta vez não escapas, seu bastardo pagão! Adam esquivou-se para trás e tirou a pistola do bolso. A faca cortou-lhe a manga direita. Os seus pressentimentos estavam certos, e agora que chegava o momento a sua calma era inabalável. Mostrou a pistola e fez pontaria. – Larga a faca, Shipley! Os olhos de Shipley arregalaram-se perante a visão da arma. – Maldito sejas! – Atirou a bandeja ao chão, fazendo saltar as fatias de salsicha, e capturou Mariah. Puxando-a com força contra ele com um braço em volta da cintura, assentou-lhe a faca no pescoço. – Dispara e ficas sem a tua linda prostitutinha! Arquejos de choque ecoaram pela sala quando os outros convidados viram o que se passava. Hal exclamou: – Shipley, que diabo estás a fazer? Randall praguejou e começou a mover-se em direção ao intruso. – Não! – Shipley pressionou a ponta da lâmina no pescoço de Mariah. Uma gota carmesim escorreu pela pele pálida e manchou a seda dourada. – Ou corto a garganta da cabra. Os olhos irados estavam meio loucos. Ninguém são teria perseguido Adam de forma tão implacável, arriscando uma tentativa de homicídio numa sala cheia de testemunhas. Com os nervos tensos, Adam baixou a arma para o lado. – Solta-a e podes sair livre desta casa – disse, esperando conseguir persuadir um louco. – Ela não fez mal nenhum. – Abriu as pernas a um duque indiano imundo – rosnou Shipley. – Nenhuma inglesa decente faria isso. Sarah avançou, o rosto pálido, mas a voz firme. – Tem a certeza de que foi a ela que viu? Ou teria sido a mim? Liberte-a! Shipley sacudiu-se, confuso, ao olhar para Sarah, depois para a prisioneira. Começou a recuar em direção à porta de serviço, arrastando Mariah com ele. – Mesmo que esta seja a cabra errada, matá-la-ei se vierem atrás de mim! Adam sabia, com devastadora certeza, que Shipley mataria Mariah logo que saíssem da sala. Cheio de ódio e frustração, queria sangue. Adam esperou até que Shipley virasse o olhar para o outro lado da sala. Levantou então a pistola, feliz pelo topo da cabeça de Mariah mal chegar ao queixo de Shipley. Proferindo orações silenciosas por uma pontaria perfeita a todos os deuses que conhecia, comprimiu devagar o gatilho e disparou. CAPÍTULO 37
O coração de Mariah disparou como um tambor frenético quando Shipley a arrastou para trás. A mão da faca agitou-se nervosamente contra o pescoço dela, enquanto ele tentava detetar o possível ataque de um dos homens furiosos presentes na sala. Apenas o facto de o demónio a poder matar mais depressa do que qualquer um conseguiria interceder o salvava de ser feito em pedaços. Mariah respirou, trémula, tentando evitar que o medo a dominasse. Seria a única a perceber que Shipley a mataria assim que se encontrasse em segurança? Quatro vezes ele tentara matar Adam e falhara, e a sede de sangue já não lhe poderia ser negada. Adam percebia. Mariah via-lhe a compreensão nos olhos rígidos. Ele iria agir, e ela teria apenas um instante para aumentar as suas hipóteses de sobrevivência. Quando a cabeça de Shipley se virou, Adam levantou a pistola e fez pontaria. Com a esperança de ele ser tão bom atirador como os amigos afirmavam, Mariah agarrou o pulso de Shipley e empurrou a faca para longe do seu pescoço. De outro modo, ainda que a pontaria de Adam fosse certeira, a mão do captor poderia convulsionar-se e matá-la. A explosão da arma entorpeceu-lhe os ouvidos; a bala bateu no crânio de Shipley. O captor caiu sobre ela, arrastando-a para o chão sob o corpo pesado. Quando caiu, sentiu a lâmina a cortar-lhe o pescoço. Estava deitada no tapete, atordoada, incapaz de respirar, e temia estar fatalmente ferida, sem ainda o saber. – Mariah! – Adam atirou o corpo de Shipley para o lado e esmagou-a num abraço desesperado. – Estás bem? Livre do peso de Shipley, engoliu ar para os pulmões. – Acho... acho que sim. – Tocou no pescoço e as pontas dos dedos voltaram escarlate. Havia sangue por todo o lado. Desviou o olhar do crânio despedaçado de Shipley e respirou fundo. – Seria mais fácil respirar se abrandasses o aperto. Adam riu-se a tremer e obedeceu, enquanto mantinha um abraço firme. Ela fechou os olhos, com calafrios, agradecida pelo abraço afetuoso de Adam. Era ele o que a impedia de cair numa gritaria. Disse Georgiana Lawford numa voz horrorizada: – Deus misericordioso! O vilão está morto? – Completamente – disse Kirkland, sombrio. – Uma morte que bem mereceu, mas agora não saberemos quem o contratou. Julia caiu de joelhos ao lado de Mariah com um lenço branco de homem. – Deixa-me dar uma vista de olhos a isto. – Com suavidade, absorveu o sangue. Depois de um momento, disse: – O corte é superficial. Sangrento, mas não provocou nenhum estrago grave. – Dobrou o lenço como uma almofada comprida e estreita e amarrou-o com cuidado ao pescoço de Mariah. – Ashton, o teu braço está muito magoado? – Não tinha reparado – disse Adam, assustado. – Todavia, não me parece que seja grave. Mariah olhou para baixo e viu que a manga direita de Adam estava escurecida com sangue. Por favor, Deus, não deixes que seja grave. Ele já passou por muito. Uma mulher pegou-lhe na mão e soube de imediato que era a gémea. – Tive tanto medo de te perder quando acabei de te encontrar, Mariah! – disse Sarah. – Não te livrarás de mim com tanta facilidade. – Mariah sorriu à irmã. – Foi corajoso da tua parte tentar distraí-lo. Em troca, estraguei o teu lindo vestido. – Apertaram as mãos uma da outra, sem precisar de mais palavras. Uma voz feminina desconhecida falou: – É esta a Mariah Clarke? Pensei que eras muito mais velha. Mariah levantou os olhos e viu Janey Lawford no círculo de pessoas que observavam. Era linda, com cabelos como carvalho-ouro reluzente e olhos verdes cheios de vida. Iria Adam lembrar-se do noivado, agora que Janey se encontrava ali em pessoa? Outras mulheres tinham-lhe despertado a memória, em ocasiões anteriores. Mariah pôs-se uma posição sentada. Uma vez que chegara a futura mulher de Adam, era hora de Mariah deixar o abraço dele para sempre. Adam ajudou Mariah a levantar-se, já que ela parecia determinada. – Quando te escrevi, tentei parecer madura e desinteressada – explicou Mariah a Janey. – Agora não pareces desinteressada. – O olhar da outra rapariga mudou de Mariah para Adam e novamente de volta. Ignorando-o, Mariah disse: – Pareces bem recuperada da febre. – Febre? – disse Janey, surpreendida. – Eu nunca estou doente. Adam conservou o braço em volta de Mariah, ainda abalado até à medula por ela ter estado tão perto da morte. O horror de quase a perder passava por cima de todos os limites sociais com os quais fora educado. Não podia deixar Mariah ir, não agora. Apanhando o olhar da prima com o dele, disse com solenidade: – Estou feliz por teres voltado, Janey. Temos de discutir o nosso noivado. – O Hal disse que o teu entendimento estava confuso, Adam, e eis aqui a prova. – As sobrancelhas de Janey franziram-se. – Por que pensas que estamos noivos? – Uma vez que o meu entendimento estava confuso, de facto, a tua mãe contou-me sobre o noivado e os nossos planos de o manter em segredo até ambos regressarmos a Londres. – Adam estremeceu ao lembrar-se do rosto de Janey. – A memória não está nítida, mas lembro-me de eu e tu nos abraçarmos. Parecias muito feliz. Isso não foi quando te pedi em casamento? – Recordo-me da ocasião – disse Janey com um sorriso sarcástico. – Mas não pediste a minha mão em casamento. Adam entorpeceu-se assim que novas memórias começaram a fazer sentido. – Não, não pedi – disse ele devagar. – Estavas louca por um homem bastante inconveniente. A tia Georgiana estava terminantemente contra, mas eu sou teu tutor e como tal podia conceder permissão, ainda que ela não aprovasse. Eu disse que se sentisses o mesmo seis meses depois, consideraria a oferta do indivíduo. Janey assentiu. – Estava tão entusiasmada que te dei um beijo. Ouvires-me teve tanto significado. A mamã ficou furiosa contigo por dizeres que davas permissão se o Rupert fosse quem eu realmente queria. Mas ela tinha razão – ele teria sido um erro medonho. Percebi isso quando me afastei dele por umas semanas. – Isso não explica o porquê de a tua mãe afirmar que estamos noivos. – Adam olhou através da sala para a tia, não gostando da direção dos pensamentos. – Sei que sempre teve esperança de que nos casássemos, tia Georgiana. Pensou em usar a minha amnésia para me convencer a subir ao altar? – Teria de me convencer também! – exclamou Janey. – Eu adoro o Adam, mamã, mas seria como casar com o Hal! – Pensei que podias mudar de ideia, depois de ultrapassares aquele rapaz estúpido – disse a mãe na defensiva. – Tu e o Ashton sempre se deram tão bem. Seria uma excelente combinação. – Disparou um olhar rancoroso a Mariah. – Eu queria garantir que nenhuma rameira caçadora de fortunas comprometeria o Ashton antes de voltares para Londres. Janey abanou a cabeça. – Mesmo que eu estivesse disposta, e não estou, o Adam nunca me viu senão como uma irmã mais nova. – A nossa mãe pode ter tido planos mais profundos – disse Hal com uma veemência na voz que Adam nunca lhe ouvira. O olhar fixou-se em Georgiana. – Foi a mãe que contratou o Shipley. Os outros criados desprezavam-no por ele ser tão bruto, e as suas funções nunca foram claras. – Conheci a família do Shipley na Irlanda – ripostou. – Isso, além do facto de ele ter servido no exército, fez-me pensar que merecia um emprego decente. – Contratou-o para assassinar o Adam? – A voz de Hal cortava como um chicote. A mãe arqueou as sobrancelhas. – Não sejas absurdo, Hal! Ele era um criado, não mais. Como é que eu havia de saber que ele ia enlouquecer e tentar matar o Ashton? – Durante uma tentativa anterior, o Shipley disse que matar um pagão imundo como eu era tanto um negócio como um prazer – disse Adam terminantemente. – Julgo que desprezava a minha mistura de sangue, mas também que foi pago para me matar. Hal aproximou-se da mãe, o rosto desesperado. – Mãe, como pode fazer isto? O Adam é como seu filho! – Não era filho para mim! Foi o teu pai que insistiu em que ele passasse as férias connosco. – Georgiana explodiu de raiva. – Eu fiz isto por ti, Hal! Deverias ter sido tu o duque, não o ilegítimo estrangeiro de um primo. Virou o olhar venenoso para Adam. – O meu marido devia ter sido o Duque de Ashton e eu a duquesa, e o Hal a seguir. Em vez disso, fui obrigada a aceitar-te na minha própria casa. Mencionei ao meu marido a facilidade com que os rapazinhos morrem, mas ele ficou chocado com a ideia. – Respirou com dificuldade, o rosto distorcido pela fúria. – Se casasses com a Janey, pelo menos ela seria duquesa de Ashton e o meu neto seria um duque, mas tu não o farias nem que não houvesse rapariga mais bonita em Inglaterra! – Como encontrou o Shipley? – perguntou Adam, querendo obter todas as respostas enquanto ela estava enfurecida o suficiente para falar. – A família dele trabalhava para a minha na Irlanda – disse, taciturna. – Quando veio ter comigo a Londres a pedir trabalho, percebi que era a ferramenta perfeita para me livrar de ti. Ele odiava estrangeiros pagãos e sabia como matar. Quando lhe disse o que tinha de ser feito, ficou encantado. Disse que tentaria fazer com que parecesse um acidente, mas como isso não funcionou, passou para uma abordagem mais direta. As palavras caíam no silêncio como pedra. O general Stillwell passou o braço em volta dos ombros da mulher e Janey pressionou a boca com as mãos, quase a chorar. – Então escolheu matar o Adam para dar à Janey e a mim algo que não queríamos – disse Hal com amargura. – Desonrou-nos a todos. Tenho vergonha de o seu sangue correr nas minhas veias. – Virou-se para Adam, a devastação nos olhos. – Se a acusares, será enforcada. Todos os que aqui estão são testemunhas da confissão. Adam, ainda atordoado com o choque, visou a tia. Tinha-lhe custado a acreditar que Hal poderia estar por trás das tentativas de homicídio. Saber que a tia era responsável era inconcebível de uma maneira diferente. Embora ela sempre tivesse sido distante, não fazia ideia de que o odiava o bastante para querer que morresse. – Adam – sussurrou Janey, os olhos suplicantes. Adam pensou no quanto um julgamento seria devastador para Janey e Hal e tomou a decisão. – Por sua causa, homens inocentes morreram na Escócia – disse ele à tia, o olhar resoluto. – O Shipley quase matou a Mariah. Isso e a própria morte dele estão nas suas mãos. Merece ser enforcada, mas... já houve mortes suficientes. O que se fazia a um parente assassino? Não podia empacotá-la para o outro lado do mundo, como fizera a Burke, embora a ideia fosse tentadora. Ocorreu-lhe uma solução. – Não quero que os meus primos tenham de passar pela sua execução, mas também não quero passar o resto da vida a olhar por cima do ombro. Porei provas dos seus crimes nas mãos de um advogado. Retirar-se-á para a propriedade da sua família na Irlanda e nunca mais porá os pés em Inglaterra. Se eu morrer antes, as provas serão entregues aos tribunais, e a tia será enforcada e votada às penas eternas. Hal respirou, vacilante. – Isso é mais generoso do que o que ela merece. – À mãe, disse: – Agora vou acompanhá-la a casa. Amanhã levo-a à Irlanda. – Fiz isto por vocês – desculpou-se ela, erguendo os olhos para o filho. Agora que a fúria se esgotara, parecia encolhida e velha. – Tu merecias ser o Duque de Ashton. – Se realmente me conhecesse e se preocupasse comigo, saberia que prefiro os meus cavalos a ter como mãe uma assassina. – Ele ofereceu-lhe o braço, a expressão inflexível. – Madame, é hora de partir. Janey foi até Adam, com lágrimas por cair nos olhos. – Obrigado por não lhe dares o que ela merece – sussurrou. – O que ela fez foi imperdoável, mas... é minha mãe. – Seguiu o irmão e a mãe a sair da sala de estar, fazendo uma tentativa corajosa de manter a cabeça erguida. Houve um silêncio depois de saírem, até Lady Agnes dizer: – Depois do drama, o jantar. – Sorriu sarcasticamente. – Criar rapazes ensinou-me que a comida faz maravilhas pelo estado de espírito e, Ashton, tens um dos melhores chefes de Londres. Lembrando-se de que tinha uma sala cheia de convidados, Adam recompôs-se. – Seria uma pena desperdiçar uma refeição excelente. E esta noite temos muito para celebrar: famílias recuperadas. – Acenou em direção à sua família, depois à de Mariah. – E também o facto de já não ter de me preocupar em ser assassinado. Isso estava a dar-me cabo dos nervos. Mariah, sentada no sofá, disse: – Se me deres licença, por esta noite retiro-me. Não estou muito boa companhia, no momento. – Vou contigo e protejo o teu pescoço com ligadura como deve ser – disse Julia. Franziu o sobrolho a Adam. – Pede ao Wharf que te trate desse braço. O olhar de Adam seguiu Mariah quando ela e Julia saíram. Queria desesperadamente estar com ela para garantir que estava bem. Para lhe dizer o quanto a amava. Antes que pudesse segui-la, Holmes aproximou-se e disse: – Informarei o magistrado mais próximo dos... infelizes acontecimentos, pois será necessária uma investigação. Pode servir-se o jantar dentro em pouco, mas será aconselhável mudar os convidados para o pequeno salão até que esteja tudo pronto. Adam concordou. Tinha sido colocada uma coberta sobre o corpo de Shipley, mas de facto um cadáver estragava a disposição. Levantou a voz para chamar a atenção de todos. – Vamos passar para o pequeno salão até ao jantar ser anunciado. – Olhou em volta da sala, fitando sucessivamente cada um dos convidados. – O magistrado será notificado, e presumo que ele deseje falar com todos os presentes. Não peço a ninguém que minta. Mas... talvez não seja necessário mencionar o papel da minha tia nos atentados à minha vida. As cabeças assentiram, compreensivas. Era melhor que algumas coisas ficassem bem guardadas na família. Quando Adam levou os convidados da sala de estar, percebeu que realmente tinha muito que celebrar. A sua família, a eliminação de uma ameaça letal – e Mariah. CAPÍTULO 38
Em cima, nos aposentos, Julia removeu o lenço que havia amarrado em volta do pescoço de Mariah e usou uma toalha húmida para absorver o sangue seco. – O sangramento parou – disse ela depois do exame. – Vou colocar um pouco de unguento e uma ligadura mais leve. – Esta é a minha oportunidade de ser muito parisiense – disse Mariah com um humor frágil, enquanto Julia a ajudava a despir o vestido dourado arruinado. – Dizem que durante o período do Terror as francesas elegantes amarravam um cordão vermelho em volta do pescoço como uma referência frívola à execução pela guilhotina. Julia estremeceu. – Não estou pronta para tanta frivolidade. Muito melhor usar lenços durante os próximos dias. Não se sentindo ela própria muito frívola, Mariah concordou. Depois de Julia lhe pôr uma ligadura limpa em volta do pescoço, era um alívio vestir a sua camisa de noite mais antiga e confortável. Antes de descer, Julia disse timidamente: – O facto de Adam não estar noivo muda tudo. Talvez. Talvez não. – Não consigo pensar para lá deste momento – disse Mariah, cansada –, ou dissolvo-me num forte ataque de nervos. – No dia seguinte, quando se sentisse menos esgotada, física e emocionalmente, seria cedo que chegue para descobrir se ela e Adam tinham futuro. – Todos os presentes naquela sala sabem que o Shipley me encontrou na cama com o Adam. Já vejo as caricaturas, se ele casar comigo: a duquesa meretriz. Julia estremeceu. – A maioria dos convidados é familiar de um de vocês, por isso pode muito bem segurar a língua. Se não... bem, não é invulgar os casais anteciparem os votos de matrimónio. – O problema não é a antecipação. Toda a gente de Londres saber, é. – Estremeceu com o pensamento. – Não quero encarar já o pai, a mãe ou a minha irmã. – Nem descobrir se um duque casaria com uma mulher sem reputação. – Queres que eu fique? – perguntou Julia. – Obrigada – Mariah inclinou-se para descalçar as meias. – Por enquanto, quero estar sozinha e dormir, e tu provavelmente tens fome. Volta para a festa e diverte-te. Julia observou o rosto de Mariah. – Como quiseres. Não receies mandar chamar-me, se precisares de companhia. Quando finalmente ficou sozinha, Mariah afundou-se numa cadeira e enterrou o rosto nas mãos, satisfeita por já não precisar de parecer calma e em controlo. Nunca esqueceria a sensação do aperto daquele louco, nem a faca dele contra o seu pescoço. Tivera a certeza de que ia morrer, e os tremores de choque e medo ainda ondulavam dentro dela. No dia seguinte, arranjaria maneira de parecer forte. Cansada, levantou-se da cadeira, subiu para a cama e puxou as cobertas sobre a cabeça. Por aquela noite, o mundo que fosse para o diabo.
O jantar foi uma mistura de agradável e estranho. Todos se esforçavam para estar animados, e ao segundo prato o esforço tornara-se realidade. Adam queria ir ter com Mariah, mas ela precisava de descansar e ele precisava de alcançar algum grau de normalidade. O magistrado chegou quando terminavam a refeição, o que foi um alívio. O homem era meticuloso, mas sensato. Com tantas testemunhas eminentes a concordar que um criado perturbado tentara matar o mais nobre Duque de Ashton, sendo depois ele próprio morto enquanto ameaçava uma jovem dama, não restava dúvida sobre o que acontecera. Famílias e amigos partiram depois de serem interrogados no pequeno salão. Adam encorajou o magistrado a falar primeiro com os Townsends, para evitar o pai de Mariah. Charles não parecia agradado por ver confirmadas as suas piores suspeitas sobre Adam. Quando Lakshmi e a família foram embora, ela deu-lhe uma palmadinha na face. – Não quero mais ouvir falar destes atentados à tua vida. Eu, tua mãe, proíbo-o! Ele sorriu com lassidão e deu-lhe um beijo. – Espero que o universo a ouça. Adam foi o último a ser interrogado. Quando o magistrado o dispensou com garantias de que o assunto desagradável se resolveria discretamente, descobriu que Randall ainda estava acordado, à espera no escritório, segurando nas mãos um copo de conhaque. – Parabéns por sobreviveres ao próprio jantar do inferno. – Randall entregou outro copo cheio de conhaque a Adam. – Se um homem merece uma bebida, és tu. – Obrigado. – Adam dobrou-se numa cadeira e caiu sobre ele uma fadiga esmagadora. – Não me lembro de fazer hábito de ficar completamente bêbado, mas posso tentar. – Não recomendo. O preço é demasiado alto, na manhã seguinte. – Randall bebeu um gole de conhaque. – Recuperaste as últimas das tuas memórias? – Penso que sim. – Adam testou a mente. – Não me lembro de nada da explosão. Tenho a sensação de que se foi para sempre. Fora isso, preencheram-se as falhas. – Estou feliz por a tua pontaria ter sido tão boa como sempre. – Eu também. – Adam tomou um gole de conhaque. As mãos tremiam. – Continuo a pensar que poderia facilmente ter matado a Mariah. – Mas não mataste. Foi um risco calculado. Se não tivesses tentado, era provável ela morrer nas mãos do Shipley. Ele parecia pronto para matar. – Foi o que pensei. – Engoliu mais conhaque, tentando não lembrar como foi quando a bala da pistola bateu no crânio de Shipley. – Antes desta noite, nunca tinhas matado um homem – disse Randall de modo delicado. – Um registo que gostaria de ter mantido. – Os dedos de Adam cerraram- se em volta do copo. – Fá-lo-ia de novo sem hesitar. Mas sou um cobarde. Preferia não o ter baleado. – Isso não faz de ti um cobarde. Significa que tens alma. A tensão de Adam começou a soltar-se. – Coisas dolorosas, as almas. Mas melhor que a sua falta, suponho. Randall examinou-lhe o rosto com atenção. Evidentemente decidindo que Adam se arranjaria, terminou o conhaque e levantou-se. – Descansa um bocado, Ash. Amanhã o mundo parecerá um lugar melhor. – Obrigado por estares aqui – disse Adam calmamente. Randall deu um sorriso raro. – Como tu sempre estiveste para mim? Fico feliz pela oportunidade de retribuir o favor. – Tocou o ombro de Adam ao sair da sala. – Não deixes os filhos da mãe ganharem, Ash. Depois de a porta bater atrás de Randall, Adam fechou os olhos e buscou o centro calmo e silencioso da sua alma. A verdadeira meditação estava de momento para lá dele, mas à medida que o espírito acalmava, ele reconhecia, final e completamente, a grande bênção nascida da noite traumática: era livre de casar com Mariah. Nada se interpunha entre eles. Exceto, talvez, a própria dama. Poderia ter dúvidas quanto a casar com um homem que poderia matá-la só por estar ao seu lado. Mas todas as suas dúvidas desapareceram. Esvaziou o copo e deixou o escritório para subir ao andar de cima. Era meia-noite de um dia extenuante, e ele necessitava de Mariah como necessitava de respirar. Haviam passado por tanto juntos, em tão pouco tempo. De mais, talvez. Houvera deceção, perdão e paixão. Oh, sim, eles tinham paixão. Entrou silenciosamente no quarto dela. Não estava nenhum candeeiro aceso, mas as cortinas abertas permitiam a entrada de luar suficiente para revelar uma pequena forma amontoada no meio da cama. Completamente coberta, rejeitando o mundo. Ele tirou os sapatos e o casaco e deitou-se na cama, tendo o cuidado de não a acordar quando lhe pousou um braço sobre a cintura. Por ora, bastava-lhe estar perto. Apesar dos cuidados, Mariah suspirou e tirou as cobertas da cabeça. Os cabelos caídos eram loiros ao luar, os traços delicados mais de fada do que reais. Ela mostrou-lhe um sorriso cansado de boas-vindas. – O dia acabou? Quero mesmo, mesmo que este dia acabe. – Passa da meia-noite, por isso já é oficialmente amanhã. Estou exausto de mais para fazer alguma coisa senão dormir, mas queria fazê-lo contigo. – Ele afastou-lhe com gentileza os cabelos, a pensar que pareciam raios lunares. – Casas comigo, Mariah? Quanto mais cedo, melhor. O seu coração desanimou quando Mariah franziu o sobrolho. – O facto de não estares noivo da Janey não significa que agora sejas obrigado a casar comigo. – A voz tornou-se frágil. – Fui revelada como uma libertina. Se isso se tornar público, será um grande escândalo. – Mesmo que o noivado fosse real, eu já tinha decidido rompê-lo. – Encontrou a mão dela por baixo da colcha e tirou-a para fora, para lhe beijar as pontas dos dedos. – Quando estive muito perto de te perder, decidi mandar o escândalo para o diabo. Estou aliviado por não ter destroçado o coração da Janey, mas ter-me-ia casado contigo de qualquer maneira. Mariah olhou-o, pensativa. – Muita coisa aconteceu. Talvez seja melhor esperarmos uns meses. A normalidade pode mudar... tudo. Adam entrelaçou os dedos nos dela. – Não vai mudar o facto de eu te amar. Ela mordeu o lábio. – Tens a certeza? Possivelmente é só porque eu estava à mão enquanto passavas por uma fase difícil. Poderás sentir de forma diferente quando tiveres tempo para relaxar e olhar em volta. – A incerteza dela doeu até Adam se lembrar de que a noite de Mariah fora pelo menos tão terrível como a sua. Ela tinha também uma vida inteira a viver à margem da sociedade. Agora precisava de uma nova coragem e persuasão. – Passei anos a procurar na sociedade londrina e nunca encontrei uma mulher com quem quisesse casar. Tu és a pessoa certa para mim, Mariah. Um amor de mil vidas. Espero que sintas o mesmo por mim. A mão dela apertou a dele. – Claro que sinto. Como poderia não sentir? Eu... só não quero que te arrependas. A alegria começou a transbordar dele, fazendo desaparecer a tensão e o sofrimento da noite. – Que disparate. Sou um duque – feroz, poderoso, egoísta e decidido. Se vejo algo que quero, agarro-o. E eu quero-te. – Inclinou-se para a frente e beijou-a. A boca era mais doce do que o mel, mais viciante que o ópio. – Prepara-te para ser conquistada, mulher. És minha, agora e para sempre. – Nesse caso, meu querido amor, casarei contigo com toda a certeza. – Mariah riu-se com uma alegria que igualava a dele. – Vais arrebatar-me, meu duque feroz? – Certamente. De imediato. Uma e outra vez. A menos que tu me arrebates. Cooperarei com felicidade. – Deu-lhe outro beijo na orelha. – Vou comprar uma licença especial. A Sarah será a tua madrinha. Tu serás a minha duquesa antes que possas apresentar arranjar mais razões disparatadas para me recusar. – És demasiado poderoso para se resistir. Resigno-me a tornar-me duquesa. – Com um sorriso radiante, pôs-lhe a mão na face. – Amo-te, Adam Darshan Lawford. És o meu presente do mar. Nem posso acreditar na sorte que tenho! – A sorte é mútua. Devo agradecimentos à minha tia traiçoeira. Se não fosse ela, nunca te teria conhecido. – Deslizou a mão debaixo do cobertor e repousou-a no peito quente de Mariah, tão perfeito quando coberto por algodão gasto, como por seda voluptuosa. Ela recobrou o fôlego e passou os dedos pelos cabelos dele, puxando-o para um beijo. Ele sentiu-se como regressasse a casa pela primeira vez na vida. – Suspeito que já te amei antes – murmurou ele. – Os hindus acreditam na reencarnação, sabes. Isso pode significar que nos amámos antes e que nos voltaremos a amar. – Gosto da ideia de estarmos unidos através dos tempos. Mundo sem fim, amém. – Com um sorriso travesso, desapertou-lhe o lenço amarrotado, passando depois a mão dentro da camisa para lhe pousar no peito. – Quão cansado disseste que estavas? Não tão cansado como pensava. Na verdade, absolutamente nada cansado... AGRADECIMENTOS
O meu agradecimento especial ao Shobhan Bantwal, autor e perito em tudo o que é hindu. Quaisquer erros são meus. Como sempre, obrigada aos elementos da Cauldron pela troca de ideias e apoio. E um agradecimento especial à Kate Duffy, uma editora que sabe pôr os autores a ronronar.