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Com amor,
Larissa Gomes .
Bruxa
(substantivo feminino)
— Folkes!
Eliot Folkes era um homem de meia-idade,
sempre de postura impecável, que trabalhava
como valete de Samuel desde que este ainda era
um garoto.
O pobre estremeceu com o chamado feito
em um sussurro.
Ressabiado pela notícia sórdida que
recebera há poucas horas sobre a morte do criado,
começou a olhar de um lado para o outro em busca
do interlocutor, mas não via ninguém. A cozinha
jamais lhe parecera tão vazia e assustadora. Com a
noite já formada, uma corrente de ar gélida
penetrava por algum canto, e fazia com que os
talheres pendurados nos ganchos da parede se
movessem suavemente, tilintando uns contra os
outros.
— Aqui! — Samuel voltou a chamar,
aparecendo discretamente no alto da escada de
pedras que dava para o corredor leste, ligado à ala
privativa.
Por se tratar de uma mansão centenária,
Granville Hall tinha sofrido diversas alterações ao
longo dos anos, com entradas, saídas, câmaras e
atalhos sendo construídos e desativados de acordo
com a conveniência de cada um dos proprietários.
— Ah, senhor, graças a Deus apareceu. Já
imaginava estar ouvindo coisas.
O valete se aproximou da escada,
surpreendendo-se com as vestes do rapaz.
Samuel tinha o corpo coberto por uma
grossa capa de couro preta, e utilizava luvas
igualmente escuras em suas mãos.
— Está com tanto frio assim?
O jovem engoliu seco.
— Nem pode imaginar. — Seu semblante
carregava um ar tão pesado quanto à voz. —
Venha, Folkes, preciso de sua ajuda.
Sem dizer nem mais uma palavra, caminhou
escada acima, em direção ao corredor leste e
depois à ala privativa. O valete o seguiu em
silêncio nos vários lances de escada seguintes,
enquanto Samuel repetia o caminho que fizera com
Cassandra, naquele mesmo dia, poucas horas
atrás...
... quando ela ainda estava viva.
O pensamento o pegou desprevenido e fez
os passos do cavalheiro estagnarem a poucos
centímetros da porta. Que Folkes o desculpasse
pelo que estava prestes a ver. Que o perdoasse por
colocá-lo naquele segredo, mas, fora o pai e o
irmão, era a pessoa em que mais confiava, e não
poderia contar com mais ninguém para auxiliá-lo
na tarefa que estava prestes a executar.
Ele se virou para o valete e enxergou em
seus olhos todas as interrogações.
— Sei que não tem ideia do que está
acontecendo, mas preciso que me dê a vossa
palavra, Folkes... Jamais, sob qualquer hipótese,
poderá contar a alguém sobre o que verá esta
noite.
— É claro, senhor.
Nenhum questionamento foi feito. Sem nem
mesmo hesitar, Folkes prometera.
— Eu lhe pagarei uma bela quantia para que
saia desta casa quando terminarmos, se assim
desejar. Poderá adquirir uma propriedade no
campo e viver como o bom homem que é, sem ser
necessário voltar a se envolver com outros como
eu. — A voz de Samuel falhava.
Sentia vergonha, medo, raiva, culpa e
exaustão.
— Não sei o que pode haver de tão terrível
atrás desta porta, meu senhor, mas o conheço
desde menino e sei que, independentemente do que
seja, o senhor é um homem bom.
As palavras de Folkes comoveram o
coração ferido, mas reafirmaram dentro de Sam
aquilo que precisava saber. Nada do que fazia era
por si mesmo. As atitudes seguintes possuíam
como único objetivo salvaguardar o bom nome de
seu pai e irmão.
Não poderia macular sua família.
Há séculos, o nome dos Granville era
sinônimo de confiança e honra, e ele não seria o
responsável por fazer tudo aquilo ruir.
— Imagino que não pensará o mesmo após
entrarmos, mas agradeço a estima — murmurou em
um lamento.
E então, o caçula do Conde de Granville
finalmente abriu a porta, colocando-se com o
criado dentro do cômodo.
O corpo de Cassandra estava coberto pelos
vários lençóis brancos retirados da mobília, mas
em um ponto ou outro o sangue ainda conseguia
penetrar o tecido, oferecendo manchas
avermelhadas ao olhar surpreso de seu mais novo
espectador. O rosto da mulher também estava
omisso, mas algumas mechas dos inconfundíveis
cabelos negros escapavam, o que não dificultou
para que o criado a identificasse.
— Então, é isso... — sussurrou com a voz
sábia, que parecia comum aos homens de certa
idade. — A bruxa finalmente teve o que mereceu.
Surpreso pela reação que nem de longe
assemelhava-se com a aguardada, Samuel o
encarou.
— Temos que tirá-la de Granville Hall o
quanto antes. — O criado caminhou até o corpo,
sem qualquer ressabiamento.
Samuel tornou-se ainda mais perplexo.
— Folkes, garanto que foi um acidente… —
Algo nele o obrigava a dizer. — Quando percebi,
a arma havia disparado e...
— Não é necessário justificar, senhor.
Apenas Deus sabe a que estado de perturbação o
deve ter levado para que isto acontecesse. Como
disse, Cassandra acabou tendo o que merecia. A
mulher nunca me enganou. Talvez não se recorde
porque permanecia no colégio por muitos meses na
época, mas quando chegou para trabalhar nesta
casa, o senhor ainda era um menino, e ela, por
outro lado, possuía o mesmo rosto. — Um arrepio
longo percorreu a espinha do valete, fazendo-o
tremer. — Assim como outros criados, sempre
suspeitei que fazia coisas que não são corretas a
uma alma temerosa ao Senhor sequer pensar, e
nada tira de minha cabeça que, inclusive, a morte
do pobre Sr. Migles foi produto de suas mãos.
Samuel deu um passo adiante demonstrando
interesse em ouvir.
A dada altura, a porta do quarto já estava
devidamente fechada.
— Estiveram juntos pela manhã, senhor. —
O valete balançou a cabeça. — Pude ver quando
ela o procurou, logo nas primeiras horas do dia,
interessada no que ele tinha para fazer. Havia algo
estranho em seu olhar. Algo que minutos mais
tarde também ocupava o do pobre cocheiro,
quando retornou para a cozinha.
— Ela lhe deu alguma coisa?
O Sr. Folkes suspirou, balançando a cabeça.
— Jamais teremos como saber. As únicas
pessoas que conhecem o conteúdo daquele diálogo
agora estão mortas e levaram esse segredo ao
túmulo. Me arrepio em pensar que, se a missiva do
parlamento não houvesse chegado uma hora mais
tarde, lorde Granville e seu irmão estariam
naquela mesma carruagem, tornando a tragédia
ainda maior.
Samuel começou a caminhar de um lado ao
outro, pensando em tudo o que aquela mulher havia
feito na intenção de assassinar sua família. A
infeliz poderia já estar morta, mas o ódio dentro
dele não parecia arrefecer.
— Vamos jogá-la no mar — comunicou o
valete.
— Como?
— Uma alma tão maldosa não merece voltar
à terra, como as sagradas escrituras designam que
deve ser feito aos bons. Além disso, seria muito
mais difícil encontrarem qualquer prova do que
houve quando os demais derem conta do sumiço.
— Preciso pensar no que farei sobre isso.
— Samuel esfregou o rosto. — Não vai demorar
para que comecem a questionar...
— Uma coisa de cada vez. — O Sr. Folkes
voltou a demonstrar a sabedoria e tranquilidade
que rivalizavam com a agitação do mais jovem. —
Primeiro precisamos resolver isso, para que
ninguém suspeite e venha a dizer o mínimo ao
vosso pai quando retornar. Pretende omitir o fato,
imagino…?
— Ainda não sei. — Sam voltou a esfregar
o rosto, ainda mais desnorteado. — Não deixarei
que minha desgraça seja reconhecida pela
sociedade, para arrastá-los à lama, mas não creio
que seria capaz de esconder o que fiz de meu pai e
irmão. Eles merecem saber quem eu sou! —
concluiu em tom irado, direcionando-o a si
mesmo.
Folkes se aproximou em silêncio, e o tocou
de modo inédito no ombro.
— Eles sabem quem o senhor é.
A paisagem coberta de névoa nunca
parecera tão medonha.
Enquanto fazia os cavalos correrem o
máximo possível, afastando-os diversas milhas de
Granville Hall, Folkes percebia que o silêncio
exterior de Samuel se tornava maior, contrastando
com o verdadeiro caos que deveria revolver seu
interior.
Aquilo não era justo.
A maldita mulher havia conseguido roubar
do coração outrora cheio de vida e alegria o tipo
de brilho que raramente é possível devolver. O
valete se revoltava ainda mais porque, apesar de
tratá-lo sempre com a postura correta a um criado,
sentia por Samuel o orgulho que um homem
destinaria ao próprio filho. Havia dedicado sua
vida a servir a família Granville e, portanto,
considerava-a com tanta estima quanto faria com a
própria.
Era doloroso vê-lo daquela maneira, até
mesmo revoltante.
Que justiça haveria no mundo se os maus
sempre fossem capazes de perturbar a paz de
espírito dos bons?
Passadas duas horas de uma viagem difícil,
já que a condição das estradas próximas à praia
não era das melhores, começou a diminuir o ritmo
do veículo.
Cuidadosamente, os homens desceram,
realizando no cais afastado uma breve inspeção
com o auxílio de uma das lanternas do cupê.
O nevoeiro lúgubre que se estendia como
uma manta sobre a terra também o fazia sobre as
águas escuras e plácidas do mar.
Amarrada ao pequeno cais de madeira uma
singela jangada estava disposta, parecendo
aguardar pacientemente pelo momento em que
carregaria seus passageiros em direção ao outro
lado.
— Os remos estão dentro — Folkes
informou enquanto pendurava a lanterna no lugar
devido no barco, deixando claro que já o utilizara
outras vezes.
Juntos, ele e Samuel abriram a porta do
cupê e retiraram o corpo que havia deixado a
mansão sem dificuldades de discrição graças ao
horário e a enorme quantidade de atalhos e
acessos extras.
A areia daquela praia não era macia, sendo
formada por uma quantidade infinita do que
pareciam ser minúsculas pedrinhas. Tal fato seria
irrelevante, se o encontro dela aos passos das
botinas de Samuel não produzissem um barulho
irritante, que parecia existir com o ínfimo objetivo
de tornar ainda mais aceleradas e nervosas as
batidas de seu coração.
Assassino. Assassino. Assassino.
Cada passo parecia condenar.
Depois de colocarem o corpo dentro do
barco, Folkes se afastou voltando ao cupê e, pelo
curto instante que permaneceu sozinho junto de
Cassandra por uma última vez, Samuel só
conseguia questionar o porquê.
Por que havia sido tão tolo?
Por que tudo precisava ter chegado a tal
ponto?
Por que não tentara com mais afinco afastar
a arma de suas mãos?
Nenhuma resposta vinha.
Sua mente seguia como mar diante de si e o
corpo envolto pelo lençol: silenciosa como a
morte.
— Aqui está. — O valete retornou com a
coluna envergada, carregando em suas mãos uma
rocha de tamanho considerável, jogando-a também
no barco.
A pequena jangada sacolejou com o
impacto, mas logo voltou a ficar firme.
Enrolada em seu braço, também trazia uma
corda, e embarcou, pronto para iniciar a segunda
etapa do processo.
Samuel o assistiu amarrar a corda na pedra
e sentiu o mesmo nervosismo com o qual veria um
nó ser preparado pelo carrasco. Naquele caso,
porém, buscou lembrar-se de que a sentença já
havia sido proferida e executada. O rapaz também
embarcou e, após aproximar-se do valete, tomou a
corda em suas mãos antes que a extremidade
oposta fosse enrolada ao pescoço de Cassandra.
— Eu o farei.
Já não era hora para vacilos e meias ações.
Se suas mãos estariam para sempre sujas
com aquela morte, que fosse de modo completo,
sem manchar as de mais ninguém.
Com movimentos ágeis e até mesmo
furiosos, ergueu o pescoço da mulher e começou a
enrolar a corda. A cada vez que puxava, sentindo o
volume da carne fria que jazia sobre o pano, seu
estômago se revolvia ao lembrar que seus lábios
já haviam depositado inúmeros beijos no ponto
que agora maltratava.
— Senhor… — Folkes estendeu a mão,
notando a palidez que tomava sua tez.
— Eu o farei — Samuel repetia, quase que
vertiginosamente — Eu o farei... — Enrolou mais
uma vez, até que o nó finalmente fora dado.
Quando terminou, de sua testa pingava um
suor frio.
Sem dizer uma palavra, Folkes soltou a
corda que prendia o barco ao cais, e começou a
remar mar adentro.
Apesar de não ser possível enxergar mais
do que três palmos adiante, conhecia muito bem
aquelas águas nas quais, em seus raros momentos
de folga, costumava pescar.
Durante todo o trajeto, assim como em terra,
Samuel mantinha-se em silêncio.
— Aqui está bom, senhor? — questionou,
após dez minutos.
— Mais adiante.
E o diálogo aconteceu mais algumas vezes,
até que estivessem muito, muito longe da costa.
Assim que a jangada parou, Samuel se
organizou e, com a ajuda do valete, deixou o corpo
de Cassandra parcialmente pendurado na borda. A
cabeça permanecera do lado de dentro por alguns
segundos a mais e, mesmo sob os lençóis que
acabavam por se tornar sua mortalha, algo o fazia
enxergar o olhar que a mulher lhe lançava.
A água extremamente gélida já devia
congelar a parte submersa.
Sobre a pele pálida que ele diversas vezes
havia acariciado, pontos arroxeados deveriam há
muito ter começado a se espalhar.
Um novo acesso de fúria o atacou, foi
impossível controlar.
E, na escuridão da noite, no meio do mar,
seu bramido de ira, pavor e lamento ecoou.
Ira pelo que havia feito.
Pavor pelo que ainda fazia.
E lamento pelo que se tornara.
No mesmo instante em que gritava, Samuel
tomou a rocha nas mãos, finalmente lançando-a ao
oceano.
O corpo afundou rapidamente, tragado pelas
águas escuras, desaparecendo como as lembranças
de um pesadelo pueril.
Para a própria infelicidade, entretanto,
Samuel já era adulto e sabia que seu verdadeiro
pesadelo acabava de começar.
Naquela noite, Samuel não voltou para casa.
Sabia que seria impossível encarar o irmão
sem contar a verdade e por isso solicitou que
Folkes o deixasse em seu clube de cavalheiros.
Ele não desejava jogar ou entregar-se a
depravações outrora apreciadas, longe disso. Tudo
o que almejava era um quarto e uma cama para se
deitar, com um travesseiro tão macio que fosse
capaz de sufocar todos os gritos ainda presos em
sua garganta. Um quarto que não fosse seu, e que,
diferente da grande maioria dos cômodos de
Granville Hall, não estivesse marcado com
lembranças de momentos que vivera com
Cassandra.
Não que o afastamento físico de tais lugares
conseguissem arrancá-la de seus pensamentos, é
claro. Conforme já pressentia, estava condenado a
levar para sempre a impressão de que em sua
própria alma carregaria parte dela.
As raízes de uma existência costumam
absorver nutrientes de cada experiência vivida,
sendo essas boas ou más. Divinas ou profanas.
Quando já se passavam dois dias, nos quais
Samuel praticamente não dormira, comera e, muito
menos, saíra do quarto, Folkes retornou com uma
missiva.
— É de lorde Francis, senhor.
Samuel suspirou sofregamente, já
imaginando que dois dias sendo apenas informado
de que o irmão havia resolvido tirar alguns
momentos de ócio não adiantaria. Tomando a
missiva em suas mãos, leu em um único fôlego.
[...]
Molhado.
Assim como em todas as noites, o Conde de
Granville despertara com os lençóis empapados e
o corpo agitado, encharcado em suor frio.
— Desgraçada. — O murmúrio fora feito
com a voz ainda trêmula, assim como pôde
perceber que permaneciam seus braços ao se
apoiar para sentar na cama.
Samuel levou as mãos espalmadas ao rosto
e se curvou, deixando os braços apoiados nos
joelhos. O cordão que há anos trazia no pescoço
ficou esticado como um pêndulo, graças à posição.
Esfregou os olhos por mais de cinco minutos,
apertando-os o quanto podia, mas as imagens do
pesadelo teimavam em permanecer.
A imagem de Frank… A imagem de seu pai.
A imagem daquilo que, a alguns metros de
distância e alguns anos atrás tornara-se a realidade
dos dois, no jazigo da família, localizado na parte
mais reservada dos jardins da propriedade.
Sam costumava visitá-los todas as manhãs
e, por vezes, de madrugada, dependendo do estado
de perturbação ao qual lhe levava o pesadelo.
Os pesadelos, aliás.
Os presentes diários e cruéis da existência
de Cassandra. A bruxa poderia ter deixado este
mundo, mas permanecia utilizando seus elos de
acesso conhecido no outro para perturbá-lo e
eliminar qualquer chance de paz de sua existência.
E, quando não se satisfazia em invadir apenas suas
noites, a mulher também se fazia presente em
diversas ocasiões do dia, vez ou outra enviando as
próprias sombras para observá-lo entre as paredes
de Granville Hall ou através de ruídos que o
faziam se lembrar de que não importava quanto
tempo passasse, sempre estaria ali.
Sempre estaria com ele.
Passada a agitação do primeiro momento,
Samuel se restabeleceu, como fazia todas as
madrugadas, retomando sua postura impassível.
Diferente da personalidade que o revisitava
no pesadelo, na vida aprendera a duras custas que
de nada adiantava demonstrar desespero, e há
muito tudo o que revelava do lado de fora de seus
aposentos era um semblante duro e sombrio,
resultado de todas as desgraças que seguiram a
maior.
De um jovem cheio de vida, cercado de
afetos por parte de sua família e amigos, tornara-
se do dia para noite, aos olhos da sociedade, um
homem ganancioso e cruel, capaz de cometer uma
atrocidade sem precedentes para obter um título.
Em poucas horas, tendo a notícia se
espalhado por cada uma das ruas e estaleiros de
Liverpool, todas as pessoas com as quais
confraternizava tomavam-no como um monstro, e
chamavam-lhe de assassino.
Desespero seria uma palavra simples
demais para descrever o sentimento de pavor que
o envolveu ao notar-se sozinho, preso a todas
aquelas acusações, a toda culpa que parecia como
as labaredas do inferno espalharem-se por sua
existência e consumi-lo.
O fato de não ter assassinado o pai e o
irmão poderia ser negado com veemência pelo
advogado da família — que fizera com extremo
êxito o trabalho —, mas não conseguia contra-
argumentar com a sentença que lhe gritava a
própria consciência.
Samuel poderia não ter lhes ministrado o
veneno, mas a culpa era sua.
Poderia não saber como Cassandra fizera
aquilo, estando morta, mas isso em nada diminuía
sua responsabilidade de tê-la feito desejar
realizar.
Lembrava-se de, ainda naquela famigerada
manhã, antes mesmo que o médico chamado
terminasse de concluir as verificações necessárias,
ter ido como um louco ordenar pessoalmente que
cada criado da mansão, da copeira ao mordomo,
se apresentasse, exigindo aos berros que o
responsável assumisse sua culpa.
Para Samuel, ficara nítido que Cassandra
agira através deles como fizera ao Sr. Migles, mas
nenhuma palavra foi dita, enquanto as mulheres o
observavam com os olhos vermelhos que vertiam
lágrimas, e os homens com os semblantes tomados
de pavor.
O conde estava morto e seu primogênito
também. O senhorio agora tratava-se de um homem
perturbado ou, na pior das hipóteses, um
assassino.
— Quero todos fora! — bradava na
ocasião, ao notar que nada seria proferido, nem
mesmo para negar.
Todos estavam apavorados.
Como não se atreveram a mexer sequer um
dedo, Samuel passou a empurrá-los um a um,
furioso, em direção às portas da mansão.
Folkes fora o único que tivera coragem de
se aproximar, segurando-lhe nos ombros.
— Por favor, se acalme, senhor!
Felizmente ainda conservava o vigor
necessário para controlar o jovem que passara a
debater-se.
— Todos, fora! — Samuel seguia gritando.
— Fora daqui!
Sua ira era tamanha, que o rosto se tornava
vermelho e dentre as palavras, gotículas furiosas
de saliva passavam a espirrar.
Os criados finalmente saíram correndo,
amedrontados e, fora o valete, a Sra. Plymouth foi
a única que também restou.
Tudo isso se passara há dez anos e nunca
mais qualquer criado fora efetivamente contratado
na mansão, que não demorou a transfigurar-se de
um respeitoso palacete a uma enorme construção
praticamente abandonada, de aspecto fúnebre que,
em grandiosidade, passara a exibir apenas seu
estado deplorável de deterioração.
Com apenas dois funcionários, somente os
serviços essenciais eram mantidos e lorde
Granville não fazia questão de muito mais. Uma
vez ao mês, entretanto, quando as condições da
mansão se tornavam difíceis para que a Sra.
Plymouth conseguisse realizar o básico, sozinha,
permitia que serviços temporários fossem
contratados, desde que tais criados jamais lhe
dirigissem a palavra ou fossem os mesmos do mês
anterior. Graças a tal resolução, do lado de dentro
a situação poderia não ser tão extrema, mas na
fachada e nos jardins, que jamais eram cuidados,
além da grama da entrada aparada, cada tijolo
agonizava, deixando nítido que naquele lugar não
existia um só dia de luz.
As paredes eram degradadas pela ação do
tempo e as árvores secas, assim como os arbustos,
se contorciam, parecendo fazer esforço para
alcançarem qualquer outro lugar que se diferisse
dali.
Nada em Granville Hall possuía vida ou
calor.
Ainda assim, aquele era o lar centenário de
sua família, a família que Samuel nem por um
momento deixara de amar apesar de toda a culpa, e
era esse o sentimento que não o permitira fazer o
que realmente desejava, sentindo um lampejo
agonizante de tortura a cada segundo ocupá-lo,
junto das batidas de seu coração.
Culpado. Culpado. Culpado.
O conde se levantou da cama e buscou seu
casaco preto no mancebo próximo à lareira. O luto
também se fazia presente há uma década em suas
roupas. Sem se ocupar em acender uma vela ou
lampião qualquer, saiu do quarto em direção aos
jardins castamente iluminados por um luar tímido
que penetrava em meio à bruma daquela noite. Em
realidade, mesmo se o luar não tivesse saído o
faria sem o auxílio de qualquer iluminação, pois
há muito havia se acostumado a viver e
embrenhar-se em meio às trevas.
Enquanto caminhava até o jazigo, escutando
o chirriar das corujas ao longe, o conde levava as
mãos aos bolsos e mantinha-se reflexivo.
O respeito pela vida do pai que fora
resumida à devoção à família, de algum modo, o
forçava a prosseguir com a ideia desagradável de
manter a própria existência, mas ele relutava em
aceitar, principalmente após aquela noite, que nada
poderia ser feito.
Deveria haver uma maneira de se livrar de
tudo aquilo sem figurar-se novamente em um
cretino egoísta, e Samuel esperava que, após
conversar com as pessoas mais sábias que
conhecia no jazigo, descobriria o que fazer.
[...]
[...]
O rapaz despertou em meio a espasmos e
suor frio e, mais uma vez, durante toda aquela
noite, não voltou a dormir.
Quando a aurora finalmente chegou,
novamente o encontrara junto do jazigo da família;
o único lugar do mundo onde Samuel realmente
desejava estar.
Destruído.
Foi assim que o Conde de Granville
despertou quando seu relógio dizia que já era tarde
demais para ser considerado um horário
respeitável da manhã seguinte.
Com o corpo dolorido e os olhos pesados,
Samuel se ergueu apoiando as mãos nos lençóis
empapados de suor, apenas uma das provas de que
Cassandra estivera mesmo ali na noite anterior e,
de alguma maneira, o carregara para o sono mais
perturbado e medonho que qualquer ser humano
conseguiria imaginar.
[...]
[...]
— Senhor? — Folkes abriu a porta, o que
foi suficiente para retirar Samuel
momentaneamente de seu estado de perturbação.
— Folkes — conde não conseguiu omitir a
própria surpresa —, o que faz de pé?
O valete tentou não demonstrar, mas ficou
comovido com a nítida preocupação.
— Não sei bem explicar o que houve,
senhor, mas acordei me sentindo extremamente
disposto esta manhã. Acabo de, inclusive, receber
a visita do Dr. Vich. O médico me liberou para
retornar às atividades após me examinar. Disse
que também não sabe a que se deu a melhora
súbita, mas que não vê mal, desde que eu as
realize com cautela.
Granville apertou os olhos. Realmente, não
estava esperando por uma boa notícia, e não sabia
nem se lembrava-se como reagir a uma naquela
famigerada manhã.
— Fico satisfeito em saber que se sente bem
— pontuou, passando as mãos pelos cabelos
ensebados de suor. — Mas pode seguir com seu
descanso. Garanto que eu…
— Com todo o respeito, me parece terrível,
senhor.
Sem palavras, Samuel encarou o valete
atrevido, que entrou no quarto e começou a
recolher as peças pretas que via espalhadas pelo
chão.
— Irei até a cozinha solicitar que aqueçam a
água para preparar-lhe um banho.
Granville esfregou o rosto. Ao fechar os
olhos, porém, teve um lapso no qual revia os
fluidos de Grace, Frank e seu pai se misturando.
Seu estômago revirou.
Um banho jamais pareceu tão convidativo.
Era incrível como, desde que era garoto,
Folkes sempre parecia saber exatamente do que
precisava.
Inesperadamente, Granville se pegou
observando a figura madura com o coração tomado
por algo muito similar a carinho e gratidão.
Sentimentos sobre os quais há muito tempo não se
permitia refletir ou aproximar.
— Folkes? — chamou o valete, que a dada
altura caminhava em direção à porta.
— Senhor?
Samuel pareceu desconcertado e enfiou as
mãos nos bolsos das calças. A postura em muito
fez o mais velho recordar-se do jovem que há
tempos não via.
— Sobre nossa conversa de outro dia… —
A voz se tornou baixa e, ao final, esmaeceu.
Samuel não deixava de encará-lo, mas era como se
não conseguisse dizer o que realmente desejava.
— Não é necessário dizer — Folkes buscou
tranquilizá-lo, utilizando-se da sabedoria da idade.
Entretanto, foi incapaz de manter-se o encarando.
— Sim, é. — O conde se aproximou em um
passo. — Não foi correto tratá-lo daquele modo
da última vez que nos falamos, e precisa saber que
sinto muito por isso. — Samuel engoliu seco,
deixando a cabeça pender para trás enquanto
esticava os músculos tensionados. — Não posso
imaginar o martírio ao qual você e a Sra. Plymouth
se entregam trabalhando para esta casa, e não
deveriam receber nada além de minha mais
profunda gratidão.
Ao final, observou ao mais velho com toda
a sinceridade que poderia haver em seus olhos.
Surpreso com o teor sentimental que, pela
primeira vez em uma década via ocupar os dizeres
do senhorio, Folkes precisou de alguns segundos
para absorver as palavras.
— Não permanecemos aqui pela casa,
milorde, e não é martírio quando nos dedicamos
aos cuidados daqueles pelos quais realmente
prezamos. — Folkes realizou uma mesura
impecável, digna do mordomo real. — Ainda que,
vez ou outra, tenhamos de nos arriscar a
ultrapassar alguns limites. — Atreveu-se a dar um
sorriso discreto, deixando claro que sua crítica
sobre o vício de Samuel permanecia.
Granville balançou a cabeça, deixando
claro que compreendia bem.
Não entraria novamente em discussão, mas
apenas ele e Deus sabiam o quanto seus momentos
de esquecimento eram necessários quando o peso
da realidade e de suas culpas se tornava
insuportável.
Frente ao silêncio feito, Folkes voltou a
caminhar em direção à porta, compreendendo que
o conde dera o assunto por encerrado.
— A banheira estará cheia em um instante.
— Por favor, peça para avisarem à lady
Granville que realizarei o desjejum em meus
aposentos — Samuel aproveitou para solicitar.
Sabia que não era a melhor forma de se
comportar depois de tudo o que haviam
compartilhado na noite anterior, mas, após as
imagens que Cassandra havia colocado em sua
cabeça, tampouco se sentia pronto para se
alimentar e, ainda menos, voltar a vê-la.
[2]
Francês – Lindíssima, minha querida!
[3]
Francês - Sim, sim!
[4]
Na Inglaterra vitoriana havia grande consumo de ópio, sobretudo
na forma de láudano (uma mistura da droga com álcool que poderia
também conter outras substâncias), e este poderia ser comprado
sem receita médica. Como era utilizado para sanar desde uma
simples dor de cabeça até depressão, o consumo não se resumia aos
adultos, com os tratamentos estendendo-se à crianças e até mesmo
bebês. Porém, quando não utilizado para fins medicinais, e sim
“recreativos”, o consumo de ópio era visto como imoral, sendo
comum que seus apreciadores buscassem os estabelecimentos
conhecidos como “casas de ópio” para desfrutarem com alguma
discrição dos momentos de indolência que encontravam junto do
entorpecente, à fim de anestesiar suas mazelas, sofrimentos e
preocupações.