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Copyright © 2021 Larissa Gomes

Capa: Alice Prince


Diagramação: Larissa Gomes
Revisão: Bárbara Pinheiro
1ª. edição

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens,


lugares e acontecimentos descritos, são produtos
de imaginação da autora. Qualquer semelhança
com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução
de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer
meios – tangível ou intangível – sem o
consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido pela lei nº 9.610/98 e punido pelo
artigo 184 do Código Penal.
NOTA DA AUTORA
PRÓLOGO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
CAPÍTULO XXXIII
CAPÍTULO XXXIV
EPÍLOGO
SOBRE A AUTORA
APENAS UM CLIQUE PARA
CONHEÇA OUTRA OBRA
DA DUOLOGIA BRUXAS
VITORIANAS
Querido (a) leitor (a),

Apesar de ser um romance de época, “O


Conde Amaldiçoado” é uma história que aborda
tópicos que podem se mostrar sensíveis para
algumas pessoas, tais como: depressão,
assassinato, suicídio, violência e espiritismo.
Todos os temas foram trabalhados com o
devido cuidado e respeito, mas creio que seja
importante realizar este alerta, como uma forma
de carinho.
Se, por alguma razão, não se sentir
confortável para realizar esta leitura, por favor,
não se force.
Lembre-se que o mais importante, em toda
e qualquer situação, deve ser sempre sua
felicidade e bem-estar.

Muito amor, paz e luz para todos nós.

Com amor,
Larissa Gomes .
Bruxa
(substantivo feminino)

1. OCULTISMO: mulher que tem


fama de se utilizar de supostas
forças sobrenaturais para causar
malefícios, perscrutar o futuro e
fazer sortilégios; feiticeira.
Liverpool, 1853
Da sala de estar, o relógio de carrilhão
anunciava meia-noite e o som poderoso competia
com os gemidos de Cassandra. Naquele horário,
felizmente, não havia ninguém nas proximidades
da cozinha para testemunhar o pequeno escândalo
que a criada protagonizava junto ao caçula do
Conde de Granville, que a possuía com vigor
sobre os degraus frios da escada de pedra.
Em meio às pernas dela, as investidas do
corpo jovem e viril tornaram-se mais intensas ao
notar que o ápice conjunto se aproximava, até que
a ouvira clamar seu nome uma última vez e,
minutos depois, o silêncio se fez presente junto ao
murmúrio baixo das respirações satisfeitas e
entrecortadas.
Samuel, porém, não demorou para se
restabelecer, levantando-se com agilidade para
abotoar a braguilha das calças.
— Necessita de ajuda? — Estendeu a mão à
mulher que permanecia sobre os degraus.
Aquela era uma postura inerente de si, pois,
apesar de grande parte da sociedade o considerar
de acordo com a pouca estima reservada aos
segundos filhos, tomando-o na maioria das vezes
como um desocupado e libertino, ainda era um
cavalheiro.
Cassandra aceitou a ajuda e se levantou,
abaixando as saias, porém, não se afastou do
toque, aproveitando-se das mãos unidas para puxá-
lo novamente para si.
— Poderíamos continuar em meu quarto…
— murmurou a proposta indecente, praticamente
colando os lábios macios à orelha masculina.
— O baile desta noite foi cansativo. Preciso
descansar. — Sam buscou ser cortês ao recusar a
proposta, enquanto enfiava a camisa no cós.
Afastou-se em seguida, inclinando-se para
recolher o casaco que deixara jogado no chão.
Ela deu dois passos adiante, pisando na
peça propositalmente.
— Poderia fazê-lo em minha cama.
Samuel reorganizou a postura e suspirou,
levando as mãos ao quadril quando voltou a fitá-
la.
— Já conversamos sobre isso. — Sua voz
soava séria junto das sobrancelhas unidas.
Cassandra apertou os dentes, mas buscou
dissimular com um sorriso.
— Ninguém precisaria saber.
— Cassandra…
— E, se soubessem, não lhes diria respeito.
— Sabe que meu pai jamais permitiu que…
— Que você e seu irmão se aproveitassem
das criadas, mas sabemos que conosco não é
assim. — Deu um passo adiante, segurando nas
laterais do rosto que os fios de obsidiana, tão
negros quanto os seus, emolduravam. — E mesmo
que ele ainda não aceite, poderíamos lutar juntos
para…
— Para quê? — Samuel a segurou nos
pulsos, afastando-se do toque.
Desta vez, a irritação ficava nítida em seu
tom.
Já haviam tido aquela conversa em mais de
uma ocasião, e sempre que Cassandra lhe dizia
compreender o que poderia ou não a oferecer, mas
fazia exatamente o oposto no encontro seguinte, se
detestava por ter voltado a cometer o equívoco de
acreditar.
— Eu sei que você me ama e você também
sabe!
Exasperado, Samuel voltou a se afastar,
virando-se de costas.
— Malditas sejam todas as vezes que me
deixei enganar — praguejou consigo mesmo.
Desesperada, ela o puxou pelo braço,
fazendo-o voltar a observá-la. O movimento fora
tão abrupto que chegou a arranhá-lo.
— Não digo a verdade?! — indagou.
Samuel respirou fundo, antes de repetir o
habitual discurso:
— Desde o princípio, lhe disse para não
alimentar ideias românticas sobre o que se passa
entre nós.
Os olhos escuros da mulher o ameaçaram
com a chegada de lágrimas, e ele se detestou
novamente.
— Esta foi a última vez.
Extremamente incomodado com a situação,
se retirou com passos firmes, sem sequer dar a ela
tempo para contra-argumentar.

Alguns minutos mais tarde, em seu quarto na


ala dos criados, Cassandra sorvia o perfume do
casaco masculino que havia carregado consigo
quando escutou a carruagem do Conde de
Granville chegar.
Após caminhar até a janela, observou parte
do jardim a dada altura coberto pela bruma fria e
sentiu uma fúria amarga retorcer em seu interior ao
pensar nas duas pessoas dentro do veículo, o
conde e seu primogênito, que, de acordo com as
próprias considerações, eram as únicas
responsáveis em afastá-la de seu verdadeiro
destino.
Samuel havia nascido para ser seu.
Há muito carregava tal certeza e ninguém no
mundo poderia se considerar no direito de evitá-
la.
Abraçada ao casaco, percebeu o momento
em que, no canto do cômodo, reunidos em um baú,
as essências e demais ingredientes, seus elos com
o outro lado, pareciam convocá-la para que
fizesse de uma vez o que há muito já sabia
necessário.
— Ficaremos juntos, meu querido —
sussurrou para o casaco, como se em seus braços
tivesse Samuel e não uma veste inanimada —, nós
ficaremos juntos.
Seus olhos se tornaram ainda mais escuros,
reluzindo um brilho frio e determinado quando
Cassandra se afastou da janela e caminhou até o
baú.
Ninguém mais ficaria em seu caminho.
Uma fumaça insólita de aroma acre aos
poucos se erguia no cômodo. Adornado com dois
grandes espelhos posicionados de modo paralelo,
o quarto transmitia à Cassandra a ideia necessária
de poder, refletindo infinitamente sua imagem.
“Grande parte do feitiço está em acreditar.”
O mestre lhe dissera, certa vez.
E ela acreditava.
Enquanto macerava as ervas junto de sangue
e essências, entregava-se ao poder milenar,
deixando palavras dissonantes fluírem dentre os
lábios ainda manchados pelo fluido fresco de um
camundongo — o indispensável sacrifício. Seus
pés estavam descalços e os cabelos, tão pretos
quanto se pode imaginar, soltos, seguindo o ritmo
lânguido do corpo em transe. Os olhos negros de
pupilas dilatadas reviravam a todo instante,
denunciando a entrega ao êxtase.
Pouco de sua vertente humana permanecia
durante os rituais.
Quando o elo com o outro lado era
estabelecido.
O único elo que realmente conhecia desde
menina, e que a ajudava a manter-se com o aspecto
jovem quando, na verdade, tal fase já havia
passado há muito mais tempo do que as pessoas
acreditavam.
Poderia não ter ganhado a imortalidade, mas
aprendera a tornar-se tão íntima da morte a ponto
de barganhar com ela.
“Não existe pacto para receber a vida
eterna ou o amor de outra pessoa.” Junto da lição
anterior, esta fora uma das primeiras que o mestre
concedeu enquanto a alimentava no casebre
imundo próximo às docas do porto — onde o
aroma de peixe podre mesclava-se ao de latrinas
— e, tendo apenas nove anos, não fora difícil para
Cassandra apegar-se à cada palavra que dizia,
principalmente quando não possuía nada mais para
se apegar.
Mas, ainda que alguns controles sobre a
vida lhe fossem negados mesmo com a magia,
conhecia ferramentas suficientes que a permitiriam
construir a estrada necessária para alcançá-los e,
assim como nas grandes obras, teria que, antes de
qualquer outra coisa, arrancar de seu caminho as
árvores mais antigas, extinguindo-as por suas
raízes.

Samuel tinha um sono agitado quando


despertou subitamente, erguendo-se com os
cotovelos apoiados no colchão. Não reconhecia o
motivo, mas tinha o corpo trêmulo e um suor frio
minava de sua pele, deixando os lençóis brancos
empapados. A sensação já seria naturalmente
inquietante, mas conseguiu se acentuar ao perceber
que Cassandra o observava bem ali, aos pés da
cama.
Silenciosa como uma alma penada, e com a
tez mais pálida do que geralmente possuía, a
criada trazia algo de sombrio em seu olhar e uma
rosa vermelha nas mãos.
Em todas as manhãs, após seus encontros
tórridos com Samuel, tinha por costume deixar a
flor no corredor em frente à porta de seu quarto,
para que ele a encontrasse ao despertar.
— Há quanto tempo está aqui? —
questionou o rapaz, nitidamente desgostoso.
— Gosto de vê-lo dormir — respondeu
enquanto se aproximava, estendendo a ele a rosa.
Não apenas a atitude, mas seu olhar e tom
de voz conseguiam incomodá-lo.
— Quero que saia, Cassandra, e não volte a
invadir minha privacidade desta forma. — Samuel
se levantou e caminhou até o aparador do quarto,
sobre o qual repousava uma jarra e um copo.
A dada altura os olhos recém-despertos se
acostumavam com a esparsa luminosidade
provinda do fogo baixo e crepitante da lareira.
Enquanto servia-se de um pouco de água,
sentiu que o olhar da mulher continuava queimando
a pele desnuda de suas costas e se virou para
encará-la.
— Está esperando alguma coisa?
Cassandra deu um sorriso medonho.
A água que ele engolia pareceu travar em
sua garganta.
— Estou.
Samuel apertou os olhos e buscou afastar de
sua mente as fofocas que, vez ou outra, ouvia
escapar da criadagem sobre alguns hábitos poucos
ortodoxos que, segundo eles, Cassandra carregava.
Destoando-se da moda que se encontrava
em voga na sociedade, na qual a fissura por tudo
aquilo que simbolizasse o ocultismo causava
fascinação, Samuel não era um homem
supersticioso ou dado a crendices, e sabia que,
além de tudo, ao longo da História, teorias
mirabolantes e sem fundamentos eram criadas
acerca de mulheres que possuíam relação mais
íntima com plantas e ervas, o que no caso de
Cassandra seria natural. Afinal de contas, há
alguns anos era responsável por auxiliar nos
cuidados com o jardim da mansão.
— E o que é? — Impaciente, se encostou no
aparador, deixando ali o copo para cruzar os
braços sobre o tórax.
— Nosso momento... — As palavras
soaram frouxas, como se a mulher estivesse ébria.
— O resultado de meu empenho. —
Demonstravam certo orgulho, também.
O suor frio voltou a se intensificar e a
coluna dele tornou-se rija. Definitivamente, muito
além de incomodar, algo na postura de Cassandra
estava conseguindo deixá-lo perturbado.
— O que você fez? — Seus olhos se
apertaram.
Quando se deu conta, a pressionava até
mesmo com o próprio corpo por uma resposta.
Cassandra manteve o sorriso sinistro nos
lábios e colocou a flor atrás da própria orelha,
adornando-lhe os cabelos, e depois ergueu as
mãos pálidas e o tocou no torso nu.
Estavam frias como gelo.
Samuel desejou se afastar de imediato, mas
o temor inconsciente que correu por sua espinha o
deixou paralisado.
— Apenas o necessário para finalmente
sermos livres.
— Do que está falando?
— Que você será o meu conde, e eu serei
sua condessa.
Sobrepondo-se ao medo, ira se inflou no
interior do rapaz ao compreender que ela se
referia à sua família. Que falava sem ressalvas
sobre a morte de seu pai e irmão.
Em um movimento rápido e firme, a segurou
pelo braço com força.
— Você está louca — bramiu a sentença,
julgando-a com o olhar.
— Não tenha medo… — O tom ébrio
prosseguia na voz feminina, como se não fosse
capaz de perceber o que ele dizia. — Será um
conde muito melhor do que Francis seria.
— Não diga nem mais uma palavra…
— Condessa de Granville… — murmurou
envaidecida, apreciando como o título soava em
sua voz.
O modo como Cassandra falava
levianamente sobre tais assuntos o deixou
descontrolado.
— Sairá desta casa pela manhã!
Samuel poderia não ser considerado um
jovem conservador, mas tudo o que mais adorava
neste mundo resumia-se à própria família, o que
também incluía a memória da mãe.
Levando-a pelo braço até a porta, tremores
apossaram-se de seu corpo ao notar que Cassandra
ainda sorria, o que, mesmo com seu histórico de
ceticismo, o fez considerar que algo ruim, muito
próximo de energias malignas, poderiam ter
invadido seus aposentos junto dela.
— Não precisa ter medo — ela repetiu,
enquanto Samuel a expulsava.
— Afaste-se de mim e de minha família! —
o jovem ordenou uma última vez, antes de fechar a
porta com um estrondo.
Com o movimento abrupto, a rosa caiu no
chão, mas Cassandra não se abaixou para pegá-la,
permitindo-se admirar a cena por alguns instantes.
Assim como ela, a flor parecia reconhecer
naturalmente qual era o seu destino...
Qual era o seu lugar.

— Por Deus, homem, o que houve com


você?
Samuel ainda se sentava à mesa para o
desjejum quando Francis, seu irmão mais velho e
herdeiro de Granville Hall, o julgava pela péssima
aparência.
Como era de se imaginar, voltar a dormir
havia se mostrado impossível após a visita de
Cassandra, principalmente junto do suor frio e dos
tremores que se intensificaram nos instantes
seguintes à partida dela na noite anterior.
— Bem que achei suspeito quando disse que
pretendia vir para casa ao sair antes do baile. —
Lorde Granville se colocou no diálogo, sem
desviar os olhos de seu exemplar do Times.
Realizar o desjejum juntos era um hábito
pelo qual os três homens prezavam, toda manhã.
— Eu vim para casa. — Sam buscou não
soar tão mal-humorado, mas percebia no próprio
tom que falhava.
Sempre ficava irritado quando não tinha
uma boa noite de sono.
— Para trocar de roupa antes de ir ao
clube? — o irmão voltou a provocá-lo, com um
riso mordaz.
O pai também deu um sorriso de lado.
Apreciava os embates estabelecidos entre
os filhos desde que eram meninos. Isto quando um
deles não terminava com o nariz sangrando, é
claro. Graças ao bom Deus, há vários anos não
chegavam às vias de fato. Seus cabelos brancos
denunciavam que o conde já não teria disposição
para intervir.
— Não. Para dormir. — E ter um momento
com Cassandra.
Samuel se condenou ao recordar da segunda
parte, odiando-se por todos os desdobramentos
infernais que o novo encontro havia gerado.
— Sim, é claro — o mais velho ironizou,
enquanto um dos criados o servia com um pouco
mais de arenque defumado. — E já que estamos
falando de delírios e inverdades, valsei quatro
vezes com a Srta. Madson na noite anterior.
Dessa vez, o riso de lorde Granville soou
mais alto.
— Ainda está obcecado por ela, Frank? —
Sam perguntou em tom provocativo, utilizando-se
do apelido do irmão, após tomar um generoso gole
de café.
— Dizer que estou obcecado me faz parecer
um cachorro babão — defendeu-se.
— Você parece um cachorro babão.
— Ah, meu irmão, um dia compreenderá as
maravilhas de se encantar pela dama certa.
Frank já nem se preocupava mais em se
defender da acusação.
— Deixo para você as honras, já que lhe
cabe a missão de perpetuar a linhagem.
— E passará a vida sem ter uma mulher?
— Está muito equivocado. — Samuel
conseguiu sorrir. O diálogo aliviava um pouco a
tensão de outrora. — Pretendo passar a vida sem
ter uma única mulher.
Lorde Granville abaixou alguns centímetros
o jornal, apenas o suficiente para encará-lo,
voltando a erguê-lo em um segundo.
— E ainda quer que acreditemos quando
fala que ontem não saiu atrás de um rabo de saia…
— Frank complementou baixinho, mais para
provocar: — Ainda que possa não ter sido no
clube.
Samuel o dilacerou com os olhos.
Obviamente, o primogênito sabia da
proibição de seu pai acerca de relacionamentos
furtivos entre seus filhos e as criadas e que, ainda
assim, há vários meses o jovem Samuel, no auge
de seus vinte anos, não conseguira resistir à
beldade de cabelos negros que trabalhava no
jardim.
— Haverá tempo para que mude esta
cabeça. — O pai se levantou de repente, deixando
o jornal sobre a mesa. Depois, direcionou a Frank:
— E você, trate de ficar apresentável, pois temos
uma visita para realizar ainda hoje.
— Uma visita?
— Lorde Madson veio falar comigo durante
o baile de ontem. Aparentemente, gostaria de
discutir alguns assuntos e pediu para que nos
acompanhasse.
— Lorde Madson?!
Frank se levantou em um pulo.
Samuel nem tentou dissimular o riso.
— O próprio.
— Mas por que não me disse isso ontem
mesmo?
— Se já estava correndo atrás da filha do
homem sem ter conhecimento, imagina o que não
faria se soubesse? Acredite em mim, o livrei de
ser o assunto desta manhã em grande parte das
salas de Liverpool. — Olhou para Samuel,
oferecendo-lhe uma piscadela.
Com toda certeza do mundo, o pai era o
homem mais sábio que conhecia.
Frank não demorou para sair em disparada
aos próprios aposentos, bradando ordens ao
valete.
Quando o filho mais velho já estava longe o
suficiente, lorde Granville se virou para o caçula.
— Talvez não seja uma escolha inteligente
se divertir tanto com a aflição do pobre. O
próximo será você.
— Ah, com certeza não. Não se trata de
algo que almejo, meu pai, e o senhor bem sabe
disso.
— Nenhum de nós deseja, aos vinte anos.
— Frank possui vinte e cinco.
— O que significa que ainda lhe restam
alguns até chegar à sua vez.
Samuel terminou sua xícara de café e
levantou.
— Não sou um homem que costuma mudar
de ideia.
— Não terá opção. — Lorde Granville
enrolou o jornal, colocando-o sob o braço. — Veja
bem, está em nosso sangue. Todos os homens desta
família se casaram apaixonados.
— Pois eu serei a exceção.
O caçula ofereceu uma vênia ao pai, e
estava prestes a se retirar quando o ouviu dizer:
— Não deseja compartilhar com alguém o
que vivi com sua mãe?
Os passos de Sam estagnaram.
Diferente da maioria dos aristocratas, o
conde fora extremamente devoto à esposa quando
viva e, mesmo com o sofrimento da perda que
viera prematura, considerava que o casamento e os
filhos o tornavam, dentre todos, o homem mais
abençoado do mundo.
Virando-se para observar o pai novamente,
o jovem confessou:
— Não é a parte boa que me preocupa.
Seu olhar tornou-se triste, e lorde Granville
soube que o filho se referia ao próprio desespero
que o abatera com a perda; a todo sofrimento que
havia de muito perto, e ainda tão novo,
acompanhado.
— É errado evitarmos conquistar algo por
receio de perdê-lo. O medo…
— …se alimenta de nossa imaginação. —
Samuel sorriu. — Sei disso, meu pai. O senhor nos
ensinou bem.
Lorde Granville sorriu, orgulhoso, e deu um
tapinha no ombro do filho.
— De fato, eu os ensinei.
Sam devolveu o sorriso e, na sequência,
reafirmou:
— É por isso que tê-los me basta.
Horas mais tarde, Frank lamentava a
própria sorte na sala de música, colocando pouco
reparo no fato do irmão não o ouvir.
Com uma sensação estranha, similar com a
da noite anterior sendo prenunciada todas as vezes
que pensava em voltar aos próprios aposentos,
Samuel os evitara o dia todo, buscando o cômodo
de menor circulação para permanecer um tempo
sozinho com suas ideias. Nenhum dos três homens
possuía talento para a música e, desde quando sua
mãe morrera, há mais de doze anos, as teclas de
marfim do antigo pianoforte não eram tocadas.
Os Granville apreciavam bailes e jantares
elegantes, mas, desde a referida época, não
conseguiam mais encontrar o ânimo necessário
para voltar a oferecê-los.
— Sou o homem mais azarado da Inglaterra,
não sou? Vamos, pode falar.
Frank caminhava de um lado para o outro,
com as mãos metidas nos bolsos.
Poderia estar impecavelmente vestido,
como de costume, e com os cabelos castanhos
perfeitamente escovados, mas carregava o
semblante derrotado.
Samuel sentiu um peteleco na cabeça.
— Hei! — o mais velho o recriminou. —
Eu estou falando com você. — Direcionou a ele
um olhar desgostoso. — Não importa se me
considera um tolo apaixonado, poderia demonstrar
alguma comiseração.
— Eu não disse isso.
— Ah, não disse?
— Lembro-me muito bem de dizer que era
um cachorro babão. — O mais novo se levantou,
na intenção de afastar novamente, os pensamentos
que o incomodavam.
Frank se aproximou, dando-lhe outro golpe.
— Ora essa, se acalme, homem! — Samuel
resolveu consolá-lo. — Estou certo de que lorde
Madson irá compreender seus motivos ao ler a
missiva. Afinal de contas, quem poderia saber que
nosso pai seria convocado para uma sessão
extraordinária na Câmara dos Lordes, justo hoje?
Frank meneou a cabeça.
— Tem razão, devo estar me preocupando à
toa.
— Com certeza está.
Frank passou mais alguns segundos
reflexivo e depois fez um estalo com a boca.
— Sabe, deveria tentar demonstrar esse
grau de maturidade mais vezes. É interessante ter
um irmão adulto com quem conversar.
E já voltavam as provocações.
Sam sorriu.
— A culpa não é minha se envelheceu por
nós dois, me deixando com a tarefa de equilibrar.
— Deu ombros, levando o irmão a balançar a
cabeça. — Alguém precisa seguir aproveitando a
vida.
— Está brincando com algo que não
deveria, Samuel. Apesar de ser um homem bom,
não é inteligente provocar a ira de nosso pai. Ele o
mandará à Crimeia se descobrir sobre Cassandra.
— Argh! Não me diga o nome dela.
Samuel se expressou com tamanha
intensidade, que o deixou impressionado.
— Então, o fogo já passou?
— Não deveria ter sequer começado, irmão.
— E por que diz isso?
Porque ela é louca!
O mais jovem bem pensou em responder,
mas considerou que tal fala o cobraria mais
explicações, e preferia encerrar o assunto, não o
estender. Cassandra logo estaria fora de sua vida,
e carregaria consigo uma quantia mais do que
satisfatória para ajudá-la a sobreviver até que
encontrasse um bom emprego. Um arranjo que, em
segredo, ele mesmo havia combinado com o
administrador da propriedade mais cedo.
— Por nada… — Respirou fundo, levando
as mãos ao quadril. — Ao menos, nada que valha
a pena. — Forçou um sorriso. — Mas é bom que
saiba que agora, mais do que nunca, estou
inclinado a seguir as orientações de nosso pai.
— Inclusive sobre casamentos?
— Ora, você não comece a…
Outro espirituoso diálogo estava prestes a
ser iniciado quando gritos de pavor ecoaram pelos
corredores e um furor sem precedentes os levou
correndo até a cozinha onde criadas choravam com
lamento e valetes pareciam entorpecidos.
— Oh, milorde! Algo terrível aconteceu! —
A Sra. Plymouth, governanta de Granville Hall há
quase trinta anos, tinha a voz trêmula. — O Sr.
Migles, o cocheiro...
O rosto de Samuel ficou lívido. Fora
inevitável não se lembrar das palavras de
Cassandra.
James Migles era o cocheiro de seu pai.
— O que aconteceu, Sra. Plymouth?! —
Sam deu um passo adiante e sentiu as pernas
vacilarem.
— Aparentemente, não ouviu o sinal quando
o veículo que conduzia cruzava a linha férrea, e a
locomotiva...
— Santo Deus…! — Frank fechou os olhos.
Os olhos de Sam tornaram-se vidrados.
— E meu pai?! Onde está o meu pai?! — A
juventude e o desespero lhe roubaram qualquer
resquício de sutileza. Quando viu, já balançava a
mulher pelos ombros.
Os criados observavam a cena, assustados.
— Samuel! — Frank o segurou, buscando
contê-lo. — Samuel, se acalme, por favor!
— Como pode me pedir isso? Como me
pede algo assim quando nosso pai pode estar
morto?! — gritava a plenos pulmões, expressando
o desespero.
— Ele não estava lá! — Frank também
precisou gritar para fazer-se ouvir. — O Sr.
Migles levava a missiva para lorde Madson.
Estava sozinho!
— O quê?
— Nosso pai achou de bom tom enviar a
missiva através do cocheiro pessoal aos Madson,
em uma demonstração de respeito e alta estima.
De repente, todo ar que Samuel nem sabia
represar escapou dentre seus lábios, ainda que se
compadecesse pelo funcionário.
— Ah, pobre Sr. Migles! — uma das
criadas lamentou-se alto ao fundo e o choro das
demais, passada a agitação, voltou a ressoar.
— Sra. Plymouth, eu sinto muito, eu… —
Samuel estava perdido em suas palavras.
Envergonhado e ao mesmo tempo compadecido
pela dor que todos em volta demonstravam.
— Está tudo bem, senhor. — A governanta
fungou, sem forças para dizer qualquer outra coisa.
— Como ficaram sabendo? Onde… Onde
ele está? — Frank tomou a dianteira para tratar do
que fosse devido.
— Um menino gritava a notícia na rua da
feira — esclareceu a governanta.
Apenas então Samuel se deu conta de que
ela trazia uma sacola com verduras pendurada em
um dos braços.
— Iremos até o local do acidente para
organizar o necessário — Frank comunicou a um
dos criados que o seguiu no mesmo instante.
— Eu disse que deveria ter pedido o dia de
folga… — Samuel ouviu a governanta murmurar
em tom de lamento, assim que o irmão saiu.
— Sra. Plymouth? — Deu um passo
discreto observando a mudança intensa que
ocorria em sua postura.
— O Sr. Migles, senhor… — Balançou a
cabeça, enquanto prosseguia, desolada: — Ele não
estava bem para trabalhar hoje. Percebi que havia
algo estranho em seu olhar, como se alguma força
ruim tentasse dissuadi-lo. — A voz chegava a soar
trêmula.
Assim como grande parte dos criados, a
governanta de Granville Hall acreditava em
espíritos e era supersticiosa.
— Acredita que ele…? — Samuel não
conseguiu concluir em voz alta.
A ideia de um homem tirar a própria vida de
modo tão brutal lhe parecia absurda.
— Havia algo estranho em seu olhar…
A repetição foi a única resposta que
ofereceu. A cabeça adornada pela touca branca se
abaixou em seguida.
Samuel sentiu um arrepio intenso como o da
noite anterior percorrer sua espinha, impelindo-o a
virar-se bruscamente na direção das escadas e,
apesar de não ter conseguido vê-la a tempo,
percebeu pela sombra do vestido o momento exato
em que Cassandra, como um vulto, se afastou.

Os passos dela aceleravam na mesma


medida em que Samuel corria para alcançá-la.
— Cassandra!! — bradava em tom de
ordem, mas a jovem não parava de correr,
erguendo as saias do vestido marrom para ganhar
velocidade.
Em dado momento, ele chegou a tropeçar
em um dos degraus das escadas que a mulher subia
ininterruptamente, o que diminuiu drasticamente as
chances de alcançá-la.
— Cassandra, pare com isso! — gritava,
enquanto era conduzido até o terceiro andar da
mansão, onde localizava-se a ala infantil, há muito
desativada.
Ao entrar em um longo corredor, já
parcialmente escurecido com o prenúncio do fim
de tarde, ela se virou abruptamente, na altura da
sexta porta. Quando Samuel a seguiu, entrando no
aposento com o mesmo ritmo desvairado da
perseguição e sentindo o sangue pulsar em seus
ouvidos pela adrenalina, atrás dele, a porta se
fechou.
— Lembro-me das vezes que me possuiu
neste quarto. — Nos olhos escuros não estava
presente a mesma aura sinistra da noite anterior,
mas a voz de Cassandra ainda soava amolecida.
— O que foi que você fez? — Tendo a
respiração intensificada pela ira, ele se
aproximou, encarando-a com olhar letal.
— Pobre Sr. Migles… — Ela fez uma voz
meiga, unindo as sobrancelhas. — Sua morte
deveria possuir um propósito, e agora, por uma
mudança inesperada, tornou-se um desperdício.
Apesar de imaginar o envolvimento dela em
tudo aquilo, fora inevitável para Samuel não ser
atingido com a crueza de suas palavras. O tom frio
e despido de qualquer compaixão o assustava mais
do que faria a aparição de mil demônios.
Quem era aquela mulher com a qual
diversas vezes havia se deitado?
Que durante anos estivera abrigada debaixo
do teto de sua família?
Fazendo o movimento contrário, passando
de ataque para defesa, o rapaz afastou-se
torpemente.
Nenhum ceticismo sobreviveria à
experiência de enxergar a atmosfera densa e
escurecida que se desprendia como algo palpável
ao redor dela.
— Talvez seja um sinal… — Cassandra
disse sorrindo, caminhando em sua direção.
— Fique longe de mim — A voz dele era
desprezo mesclado à repulsa.
— Talvez a razão de não podermos ficar
juntos neste mundo seja porque estamos destinados
a nos pertencer mutuamente no outro... pela
eternidade. — Ela levantou o vestido, e Samuel
sentiu todo sangue gelar quando notou que trazia
uma arma presa à liga.
Não qualquer arma, mas a arma de seu pai,
que permanecia guardada no escritório e que, de
alguma maneira, havia ido parar em suas mãos.
Sem hesitar, a mulher apontou em sua
direção.
— Cassandra, pare com isso! — estático
como uma coluna de mármore, voltou a ordenar.
— Não vai doer, meu amor… — Ela se
aproximou ainda mais, fazendo-o retroceder os
passos na mesma medida enquanto desespero o
corroía.
A cada segundo que passava, tinha
confirmada a hipótese de que ela já não se
encontrava em posse das próprias faculdades
mentais — ou espirituais.
— Isso do que fala não é amor. Por favor, se
afaste, eu não quero machucá-la! — Samuel voltou
a vociferar, quando suas costas bateram contra a
parede.
Se Cassandra não retrocedesse, não lhe
restaria escapatória. Precisaria enfrentá-la
diretamente.
— Você será o primeiro, mas prometo que
irei em seguida. — A mulher firmou o braço,
apoiando o dedo no gatilho.
E em uma reação natural, que mesclava
sobrevivência e pavor, Samuel se lançou sobre
ela.
Os corpos caíram sobre o assoalho e o
baque surdo do impacto ressoou, junto do som
inconfundível de disparo.
E tudo o que Samuel sentiu foi um calor
incomum e viscoso se espalhar em seu abdômen,
quando o sangue começou a escorrer.
O aroma pungente de sangue assemelhava-
se ao de metal e parecia estar por toda parte.
Apesar das janelas fechadas, o cômodo era
castamente iluminado pela delicada claraboia
localizada no canto esquerdo do telhado. Como de
costume, o luar daquela noite estava encoberto por
uma constante camada de névoa, mas ainda assim
era capaz de espalhar sua luminosidade prateada,
que invadia o ponto exato onde haviam
aterrissado.
Como se observasse a cena de fora, sendo
um mero espectador, Samuel via a si mesmo
enquanto levantava e afastava-se de Cassandra.
Mesmo com um buraco no abdômen, a mulher
continuava sorrindo. Em seu semblante, nenhuma
expressão de dor afastava a de pleno deleite.
— Agora você, meu querido. — A voz
lânguida soou enquanto os olhos caíram sobre a
pistola que ele tinha nas mãos.
A compreensão de que deveria tê-la
disparado o deixou ainda mais apavorado. Samuel
permanecia estático.
— Não tenha medo, o fará por nós.
A fala suave era dissonante com o cenário e
a perturbação que o arrastava. Sua visão estava
turva, o olhar fixo sobre a mancha vermelha que se
estendia no tapete e começava a fluir também nos
lábios femininos, escorrendo até o queixo,
manchando a pele pálida.
— Eu não pretendia… — ele balbuciou.
Desesperado por ainda sentir o peso e
formato em sua mão, Samuel jogou a arma em
direção a um estofado coberto por lençóis
brancos, como o restante da mobília. Por um
capricho cruel, a pistola se negou a ficar parada,
escorregando dentre as reentrâncias da peça,
espalhando pelo tecido alvo o escarlate que a
manchava, marcando mais daquele cenário.
O cenário de um crime.
De seu crime.
Cassandra observou a cena e, de extasiado,
seu olhar se tornou indignado, como se labaredas
vindas do próprio submundo o acendessem.
— Samuel, faça-o! — As palavras ditas
com força faziam o sangue respingar.
Finalmente algo no mundo seria
inteiramente seu e não estava disposta a abrir mão
disso.
O rapaz abriu a boca para responder, mas
encontrava-se tão próximo de um estado
catatônico, que nada conseguia proferir. O terror
que lhe causava os olhos de Cassandra duelava
com o pavor gerado por todo sangue que minava
da ferida e de seus lábios.
Ele não faria.
A compreensão definitiva a deixou ainda
mais colérica. Dentro de seus pulmões o ar
começou a faltar, mas Cassandra ainda sorria.
Na verdade, em seus últimos instantes o
sorriso cruel e obstinado, tingido de vermelho,
parecia reluzir ainda mais.
Utilizando a última força de suas reservas, a
mulher se apoiou nos cotovelos e endireitou a
postura, lançando sobre ele as palavras que pelo
resto de sua vida o acompanhariam:
— O amor que me negou jamais será
entregue a outro alguém, pois a vida será
drenada daquela que possuir o que deveria ter
sido meu.
A sentença parecia ainda flutuar no quarto,
carregando o ar com seu peso, quando um último
suspiro ressoou, lhe drenando de vez a vida.
E mesmo permanecendo estático, foi
inevitável a reação de Samuel em olhar com
desespero as janelas fechadas. Qualquer resquício
de ceticismo que ainda fizesse a tolice de carregar
desapareceu em meio à compreensão de que
vivenciava o que dizia a crendice popular.
O corpo poderia ter expirado, mas sentia
que o espírito de Cassandra, ou algo ainda mais
profundo, permaneceria preso em Granville Hall.

Quantas horas haviam passado? Duas?


Três?
Samuel não sabia. Talvez apenas uma que,
por um castigo tortuoso, parecia se estender pela
eternidade.
Enquanto observava o corpo ensanguentado
e morto diante de si, todas as compreensões
deixaram de habitar sua mente, vagando espaço
para o crescente desespero.
Santo Deus, o que seria dele?!
Cassandra estava morta por sua culpa e não
sabia o que fazer!
Vez ou outra deixava as mãos percorrerem
os cabelos escuros em uma válvula de escape para
o pavor, mas então as olhava em seguida, e notava
que o nervosismo o fazia arrancar diversos fios.
Estava sem controle; sem rumo. Sem chão.
Como voltaria a encarar o pai? Como
contaria o que havia feito ao irmão?
De que forma poderia lidar com os reflexos
que aquele desgraçado feito traria para a vida das
duas únicas pessoas que amava?
O jovem caiu de joelhos e colocou-se a
chorar.
Na juventude, quando os homens ainda não
se deixaram invadir totalmente com resoluções
equivocadas sobre o que a masculinidade deveria
ser, aquele ato, acima de tudo humano, ainda era
possível.
Após o choro de desespero, as lágrimas
tornaram-se mais densas com o amargurado, e
finalmente gélidas, com o raivoso.
Os sentimentos desfilavam dentro dele em
cada fase, mas seus olhos permaneciam fixos em
Cassandra, vislumbrando também o que havia feito
de si: um assassino. E naquele momento, Samuel
poderia odiá-la, mas o fazia principalmente em
relação aos próprios equívocos. Em relação à
leviandade com a qual tratara os primeiros
indícios e com a ignorância de não ter considerado
aquilo que diziam sobre ela.
A racionalidade poderia, sim, tornar um
homem ignorante, principalmente quando o cegava
para tudo de abstrato existente ao seu redor,
estando este disposto ou não a acreditar.
O som de uma carruagem se aproximando o
levou a despertar das reflexões atormentadas.
Samuel não sabia se se tratava do pai ou do irmão,
mas a proximidade de qualquer um deles com o
pavoroso cenário foi suficiente para fazê-lo
decidir que não os mancharia com sua desonra.
Poucas horas atrás, Frank lhe dissera que
estava na hora de amadurecer, e era isso o que
faria.
Que sua alma pagasse sozinha no inferno
por aquilo que tinha feito e pelo que ainda estava
prestes a fazer em nome daqueles que amava.
Samuel se levantou e assustou-se ao notar
que um riso mordaz escapava de seus lábios ao
compreender que, no final das contas, Cassandra
havia conseguido carregar parte de si junto dela,
conforme desejava, em direção às profundezas.

— Folkes!
Eliot Folkes era um homem de meia-idade,
sempre de postura impecável, que trabalhava
como valete de Samuel desde que este ainda era
um garoto.
O pobre estremeceu com o chamado feito
em um sussurro.
Ressabiado pela notícia sórdida que
recebera há poucas horas sobre a morte do criado,
começou a olhar de um lado para o outro em busca
do interlocutor, mas não via ninguém. A cozinha
jamais lhe parecera tão vazia e assustadora. Com a
noite já formada, uma corrente de ar gélida
penetrava por algum canto, e fazia com que os
talheres pendurados nos ganchos da parede se
movessem suavemente, tilintando uns contra os
outros.
— Aqui! — Samuel voltou a chamar,
aparecendo discretamente no alto da escada de
pedras que dava para o corredor leste, ligado à ala
privativa.
Por se tratar de uma mansão centenária,
Granville Hall tinha sofrido diversas alterações ao
longo dos anos, com entradas, saídas, câmaras e
atalhos sendo construídos e desativados de acordo
com a conveniência de cada um dos proprietários.
— Ah, senhor, graças a Deus apareceu. Já
imaginava estar ouvindo coisas.
O valete se aproximou da escada,
surpreendendo-se com as vestes do rapaz.
Samuel tinha o corpo coberto por uma
grossa capa de couro preta, e utilizava luvas
igualmente escuras em suas mãos.
— Está com tanto frio assim?
O jovem engoliu seco.
— Nem pode imaginar. — Seu semblante
carregava um ar tão pesado quanto à voz. —
Venha, Folkes, preciso de sua ajuda.
Sem dizer nem mais uma palavra, caminhou
escada acima, em direção ao corredor leste e
depois à ala privativa. O valete o seguiu em
silêncio nos vários lances de escada seguintes,
enquanto Samuel repetia o caminho que fizera com
Cassandra, naquele mesmo dia, poucas horas
atrás...
... quando ela ainda estava viva.
O pensamento o pegou desprevenido e fez
os passos do cavalheiro estagnarem a poucos
centímetros da porta. Que Folkes o desculpasse
pelo que estava prestes a ver. Que o perdoasse por
colocá-lo naquele segredo, mas, fora o pai e o
irmão, era a pessoa em que mais confiava, e não
poderia contar com mais ninguém para auxiliá-lo
na tarefa que estava prestes a executar.
Ele se virou para o valete e enxergou em
seus olhos todas as interrogações.
— Sei que não tem ideia do que está
acontecendo, mas preciso que me dê a vossa
palavra, Folkes... Jamais, sob qualquer hipótese,
poderá contar a alguém sobre o que verá esta
noite.
— É claro, senhor.
Nenhum questionamento foi feito. Sem nem
mesmo hesitar, Folkes prometera.
— Eu lhe pagarei uma bela quantia para que
saia desta casa quando terminarmos, se assim
desejar. Poderá adquirir uma propriedade no
campo e viver como o bom homem que é, sem ser
necessário voltar a se envolver com outros como
eu. — A voz de Samuel falhava.
Sentia vergonha, medo, raiva, culpa e
exaustão.
— Não sei o que pode haver de tão terrível
atrás desta porta, meu senhor, mas o conheço
desde menino e sei que, independentemente do que
seja, o senhor é um homem bom.
As palavras de Folkes comoveram o
coração ferido, mas reafirmaram dentro de Sam
aquilo que precisava saber. Nada do que fazia era
por si mesmo. As atitudes seguintes possuíam
como único objetivo salvaguardar o bom nome de
seu pai e irmão.
Não poderia macular sua família.
Há séculos, o nome dos Granville era
sinônimo de confiança e honra, e ele não seria o
responsável por fazer tudo aquilo ruir.
— Imagino que não pensará o mesmo após
entrarmos, mas agradeço a estima — murmurou em
um lamento.
E então, o caçula do Conde de Granville
finalmente abriu a porta, colocando-se com o
criado dentro do cômodo.
O corpo de Cassandra estava coberto pelos
vários lençóis brancos retirados da mobília, mas
em um ponto ou outro o sangue ainda conseguia
penetrar o tecido, oferecendo manchas
avermelhadas ao olhar surpreso de seu mais novo
espectador. O rosto da mulher também estava
omisso, mas algumas mechas dos inconfundíveis
cabelos negros escapavam, o que não dificultou
para que o criado a identificasse.
— Então, é isso... — sussurrou com a voz
sábia, que parecia comum aos homens de certa
idade. — A bruxa finalmente teve o que mereceu.
Surpreso pela reação que nem de longe
assemelhava-se com a aguardada, Samuel o
encarou.
— Temos que tirá-la de Granville Hall o
quanto antes. — O criado caminhou até o corpo,
sem qualquer ressabiamento.
Samuel tornou-se ainda mais perplexo.
— Folkes, garanto que foi um acidente… —
Algo nele o obrigava a dizer. — Quando percebi,
a arma havia disparado e...
— Não é necessário justificar, senhor.
Apenas Deus sabe a que estado de perturbação o
deve ter levado para que isto acontecesse. Como
disse, Cassandra acabou tendo o que merecia. A
mulher nunca me enganou. Talvez não se recorde
porque permanecia no colégio por muitos meses na
época, mas quando chegou para trabalhar nesta
casa, o senhor ainda era um menino, e ela, por
outro lado, possuía o mesmo rosto. — Um arrepio
longo percorreu a espinha do valete, fazendo-o
tremer. — Assim como outros criados, sempre
suspeitei que fazia coisas que não são corretas a
uma alma temerosa ao Senhor sequer pensar, e
nada tira de minha cabeça que, inclusive, a morte
do pobre Sr. Migles foi produto de suas mãos.
Samuel deu um passo adiante demonstrando
interesse em ouvir.
A dada altura, a porta do quarto já estava
devidamente fechada.
— Estiveram juntos pela manhã, senhor. —
O valete balançou a cabeça. — Pude ver quando
ela o procurou, logo nas primeiras horas do dia,
interessada no que ele tinha para fazer. Havia algo
estranho em seu olhar. Algo que minutos mais
tarde também ocupava o do pobre cocheiro,
quando retornou para a cozinha.
— Ela lhe deu alguma coisa?
O Sr. Folkes suspirou, balançando a cabeça.
— Jamais teremos como saber. As únicas
pessoas que conhecem o conteúdo daquele diálogo
agora estão mortas e levaram esse segredo ao
túmulo. Me arrepio em pensar que, se a missiva do
parlamento não houvesse chegado uma hora mais
tarde, lorde Granville e seu irmão estariam
naquela mesma carruagem, tornando a tragédia
ainda maior.
Samuel começou a caminhar de um lado ao
outro, pensando em tudo o que aquela mulher havia
feito na intenção de assassinar sua família. A
infeliz poderia já estar morta, mas o ódio dentro
dele não parecia arrefecer.
— Vamos jogá-la no mar — comunicou o
valete.
— Como?
— Uma alma tão maldosa não merece voltar
à terra, como as sagradas escrituras designam que
deve ser feito aos bons. Além disso, seria muito
mais difícil encontrarem qualquer prova do que
houve quando os demais derem conta do sumiço.
— Preciso pensar no que farei sobre isso.
— Samuel esfregou o rosto. — Não vai demorar
para que comecem a questionar...
— Uma coisa de cada vez. — O Sr. Folkes
voltou a demonstrar a sabedoria e tranquilidade
que rivalizavam com a agitação do mais jovem. —
Primeiro precisamos resolver isso, para que
ninguém suspeite e venha a dizer o mínimo ao
vosso pai quando retornar. Pretende omitir o fato,
imagino…?
— Ainda não sei. — Sam voltou a esfregar
o rosto, ainda mais desnorteado. — Não deixarei
que minha desgraça seja reconhecida pela
sociedade, para arrastá-los à lama, mas não creio
que seria capaz de esconder o que fiz de meu pai e
irmão. Eles merecem saber quem eu sou! —
concluiu em tom irado, direcionando-o a si
mesmo.
Folkes se aproximou em silêncio, e o tocou
de modo inédito no ombro.
— Eles sabem quem o senhor é.
A paisagem coberta de névoa nunca
parecera tão medonha.
Enquanto fazia os cavalos correrem o
máximo possível, afastando-os diversas milhas de
Granville Hall, Folkes percebia que o silêncio
exterior de Samuel se tornava maior, contrastando
com o verdadeiro caos que deveria revolver seu
interior.
Aquilo não era justo.
A maldita mulher havia conseguido roubar
do coração outrora cheio de vida e alegria o tipo
de brilho que raramente é possível devolver. O
valete se revoltava ainda mais porque, apesar de
tratá-lo sempre com a postura correta a um criado,
sentia por Samuel o orgulho que um homem
destinaria ao próprio filho. Havia dedicado sua
vida a servir a família Granville e, portanto,
considerava-a com tanta estima quanto faria com a
própria.
Era doloroso vê-lo daquela maneira, até
mesmo revoltante.
Que justiça haveria no mundo se os maus
sempre fossem capazes de perturbar a paz de
espírito dos bons?
Passadas duas horas de uma viagem difícil,
já que a condição das estradas próximas à praia
não era das melhores, começou a diminuir o ritmo
do veículo.
Cuidadosamente, os homens desceram,
realizando no cais afastado uma breve inspeção
com o auxílio de uma das lanternas do cupê.
O nevoeiro lúgubre que se estendia como
uma manta sobre a terra também o fazia sobre as
águas escuras e plácidas do mar.
Amarrada ao pequeno cais de madeira uma
singela jangada estava disposta, parecendo
aguardar pacientemente pelo momento em que
carregaria seus passageiros em direção ao outro
lado.
— Os remos estão dentro — Folkes
informou enquanto pendurava a lanterna no lugar
devido no barco, deixando claro que já o utilizara
outras vezes.
Juntos, ele e Samuel abriram a porta do
cupê e retiraram o corpo que havia deixado a
mansão sem dificuldades de discrição graças ao
horário e a enorme quantidade de atalhos e
acessos extras.
A areia daquela praia não era macia, sendo
formada por uma quantidade infinita do que
pareciam ser minúsculas pedrinhas. Tal fato seria
irrelevante, se o encontro dela aos passos das
botinas de Samuel não produzissem um barulho
irritante, que parecia existir com o ínfimo objetivo
de tornar ainda mais aceleradas e nervosas as
batidas de seu coração.
Assassino. Assassino. Assassino.
Cada passo parecia condenar.
Depois de colocarem o corpo dentro do
barco, Folkes se afastou voltando ao cupê e, pelo
curto instante que permaneceu sozinho junto de
Cassandra por uma última vez, Samuel só
conseguia questionar o porquê.
Por que havia sido tão tolo?
Por que tudo precisava ter chegado a tal
ponto?
Por que não tentara com mais afinco afastar
a arma de suas mãos?
Nenhuma resposta vinha.
Sua mente seguia como mar diante de si e o
corpo envolto pelo lençol: silenciosa como a
morte.
— Aqui está. — O valete retornou com a
coluna envergada, carregando em suas mãos uma
rocha de tamanho considerável, jogando-a também
no barco.
A pequena jangada sacolejou com o
impacto, mas logo voltou a ficar firme.
Enrolada em seu braço, também trazia uma
corda, e embarcou, pronto para iniciar a segunda
etapa do processo.
Samuel o assistiu amarrar a corda na pedra
e sentiu o mesmo nervosismo com o qual veria um
nó ser preparado pelo carrasco. Naquele caso,
porém, buscou lembrar-se de que a sentença já
havia sido proferida e executada. O rapaz também
embarcou e, após aproximar-se do valete, tomou a
corda em suas mãos antes que a extremidade
oposta fosse enrolada ao pescoço de Cassandra.
— Eu o farei.
Já não era hora para vacilos e meias ações.
Se suas mãos estariam para sempre sujas
com aquela morte, que fosse de modo completo,
sem manchar as de mais ninguém.
Com movimentos ágeis e até mesmo
furiosos, ergueu o pescoço da mulher e começou a
enrolar a corda. A cada vez que puxava, sentindo o
volume da carne fria que jazia sobre o pano, seu
estômago se revolvia ao lembrar que seus lábios
já haviam depositado inúmeros beijos no ponto
que agora maltratava.
— Senhor… — Folkes estendeu a mão,
notando a palidez que tomava sua tez.
— Eu o farei — Samuel repetia, quase que
vertiginosamente — Eu o farei... — Enrolou mais
uma vez, até que o nó finalmente fora dado.
Quando terminou, de sua testa pingava um
suor frio.
Sem dizer uma palavra, Folkes soltou a
corda que prendia o barco ao cais, e começou a
remar mar adentro.
Apesar de não ser possível enxergar mais
do que três palmos adiante, conhecia muito bem
aquelas águas nas quais, em seus raros momentos
de folga, costumava pescar.
Durante todo o trajeto, assim como em terra,
Samuel mantinha-se em silêncio.
— Aqui está bom, senhor? — questionou,
após dez minutos.
— Mais adiante.
E o diálogo aconteceu mais algumas vezes,
até que estivessem muito, muito longe da costa.
Assim que a jangada parou, Samuel se
organizou e, com a ajuda do valete, deixou o corpo
de Cassandra parcialmente pendurado na borda. A
cabeça permanecera do lado de dentro por alguns
segundos a mais e, mesmo sob os lençóis que
acabavam por se tornar sua mortalha, algo o fazia
enxergar o olhar que a mulher lhe lançava.
A água extremamente gélida já devia
congelar a parte submersa.
Sobre a pele pálida que ele diversas vezes
havia acariciado, pontos arroxeados deveriam há
muito ter começado a se espalhar.
Um novo acesso de fúria o atacou, foi
impossível controlar.
E, na escuridão da noite, no meio do mar,
seu bramido de ira, pavor e lamento ecoou.
Ira pelo que havia feito.
Pavor pelo que ainda fazia.
E lamento pelo que se tornara.
No mesmo instante em que gritava, Samuel
tomou a rocha nas mãos, finalmente lançando-a ao
oceano.
O corpo afundou rapidamente, tragado pelas
águas escuras, desaparecendo como as lembranças
de um pesadelo pueril.
Para a própria infelicidade, entretanto,
Samuel já era adulto e sabia que seu verdadeiro
pesadelo acabava de começar.
Naquela noite, Samuel não voltou para casa.
Sabia que seria impossível encarar o irmão
sem contar a verdade e por isso solicitou que
Folkes o deixasse em seu clube de cavalheiros.
Ele não desejava jogar ou entregar-se a
depravações outrora apreciadas, longe disso. Tudo
o que almejava era um quarto e uma cama para se
deitar, com um travesseiro tão macio que fosse
capaz de sufocar todos os gritos ainda presos em
sua garganta. Um quarto que não fosse seu, e que,
diferente da grande maioria dos cômodos de
Granville Hall, não estivesse marcado com
lembranças de momentos que vivera com
Cassandra.
Não que o afastamento físico de tais lugares
conseguissem arrancá-la de seus pensamentos, é
claro. Conforme já pressentia, estava condenado a
levar para sempre a impressão de que em sua
própria alma carregaria parte dela.
As raízes de uma existência costumam
absorver nutrientes de cada experiência vivida,
sendo essas boas ou más. Divinas ou profanas.
Quando já se passavam dois dias, nos quais
Samuel praticamente não dormira, comera e, muito
menos, saíra do quarto, Folkes retornou com uma
missiva.
— É de lorde Francis, senhor.
Samuel suspirou sofregamente, já
imaginando que dois dias sendo apenas informado
de que o irmão havia resolvido tirar alguns
momentos de ócio não adiantaria. Tomando a
missiva em suas mãos, leu em um único fôlego.

“Nosso pai retorna amanhã. Tenha o


mínimo de decência e dê-se por satisfeito com
estas 48 horas de vadiagem.
O aguardamos para o desjejum.
Frank.”

O jovem sorriu com a provocação presente


no bilhete do irmão, seu primeiro sorriso em dias,
mas este logo desvaneceu.
Momentos como aquele, de descontração
entre os dois, estavam encerrados. Samuel já não
era o mesmo para torná-los possível e, após saber
de tudo, Frank também jamais o veria da mesma
forma.
Ninguém mais o faria.
Quem quer que ele fosse antes, o segundo
filho alegre, o libertino despreocupado, ou o
amigo para boas farras, já não existia mais, e
duvidava que tal parte de si poderia ser
restaurada.
A única coisa que sabia naquele momento,
após passar um tempo com suas reflexões, era que,
depois de confessar ao pai e ao irmão tudo o que
havia acontecido, deixaria a Inglaterra. Ainda não
havia decidido para onde ir, ou por quanto tempo,
e nem mesmo se pretendia algum dia retornar, mas
estava certo de que aquela seria a melhor
resolução.
Seu pai e irmão logo saberiam quem havia
se tornado, mas não precisariam olhar nos olhos
de um assassino todas as manhãs enquanto este,
por sua vez, se contorceria em culpa e vergonha.
Seria melhor para todos se partisse.

Na manhã seguinte, o caçula retornou para


Granville Hall e foi necessário apenas atravessar
os enormes portões de ferro escuro, adornados
com arabescos pontiagudos, para ter certeza de
que o próprio lar, o lugar onde havia nascido,
cenário de lembranças felizes, jamais lhe seria o
mesmo.
Apesar de já ser dia em Liverpool, o sol se
escondia por trás das nuvens naquela manhã, não
passando de um círculo opaco e prateado ao alto
do céu. O ar estava frio como era comum nos
meses de outono, e fazia a respiração do jovem
condensar-se como névoa em frente à boca.
— Não precisa fazer isso, senhor.
Folkes percebia o olhar vidrado de Samuel
em cada detalhe da casa, enquanto os conduzia
pelo jardim. Havia um ponto próximo ao telhado,
uma pequena claraboia, no qual o olhar apático
permanecia ainda mais.
O rapaz havia desejado acompanhá-lo no
banco da frente do cupê, não no interior da cabine.
A ideia de enclausurar-se no cubículo onde noites
atrás estivera o corpo de Cassandra o deixava
exasperado.
— Tente esquecer tudo, deixar que essa
desgraça morra junto com ela... que fique para trás
— insistiu o valete, diminuindo o ritmo do
veículo.
Samuel o escutava, mas não absorvia
nenhuma palavra. Dentro de seu peito, por mais
dolorosa que fosse a compreensão, já aceitava o
que devia ser feito.
Ele se virou para o criado quando o veículo
finalmente parou no pátio, observando-o com
sinceridade.
— Agradeço por vossos cuidados ao longo
dos anos, Folkes. Mesmo que deseje permanecer
em Granville Hall para o exercício de outra
função, o valor que o prometi lhe será entregue.
— Outra função? — O pobre homem quase
gaguejou.
— Partirei ainda hoje.
Samuel desceu do veículo, e os olhos do
valete piscaram duros.
— Partir?
— Para algum lugar onde o sangue de
minhas mãos não respingue no mesmo chão sobre
o qual caminham aqueles que amo — respondeu
simplesmente, e depois colocou-se a andar.
Mesmo considerando o quão absurdo aquilo
soava, Folkes reconhecia os limites de sua posição
e não teve muito o que fazer. Tudo o que pôde foi
rezar para que o conde e seu filho mais velho
compreendessem aquele pobre homem destruído, e
o ajudassem a enxergar que havia muito mais em
seu coração.
Sem nem mesmo deixar o casaco no hall de
entrada, Samuel adentrou com passos firmes na
mansão, ciente de que, se parasse, não conseguiria
a força necessária para retomar seu caminho até a
sala do desjejum.
Alguns criados o cumprimentaram no
caminho, mas, diferente do habitual, o rapaz
parecia nem os escutar, tamanho o estrondo que o
sangue retumbando em seus ouvidos fazia junto
dos calafrios que corriam por sua espinha e dos
tremores que se espalhavam por cada parte de
quem era.
A porta da sala se aproximava e seu
coração, a dada altura, batia tão desesperado que
o pobre temeu desfalecer. Mas nem mesmo isso se
permitiria. Não antes de lhes dizer. Não antes de
confessar.
Quando sua mão finalmente tocou a
maçaneta, fria como um cadáver, Samuel sentiu
que aquele seria um prenúncio sobre o que o
momento a seguir significaria à própria vida e,
mesmo assim, não hesitou em abri-la.
Quando o fez, porém, não foi a própria
morte que encontrou.
A ceifadora de almas havia de fato passado
por Granville Hall naquela manhã, mas não para
carregá-lo sob o manto lôbrego de sua figura.
Ao invés disso, o fizera com seu pai e
irmão.
Liverpool, 1863
Os lábios abertos e arroxeados pareciam
reagir em um grito silencioso frente ao encontro
pavoroso com a morte, enquanto os olhos
esbugalhados e injetados por veios vermelhos
perdiam-se na imagem adiante, em outro vislumbre
horripilante do destino reservado. Na pele, veias
estavam saltadas, projetando-se na linha do
pescoço como ocorre a um enforcado.
Ao lado de cada prato, como na manhã
original, uma rosa vermelha repousava como a
assinatura da criatura nefasta que pintara aquele
quadro.
Samuel tinha os pés descalços e a
respiração calma quando se aproximou da mesa,
observando-os com mais detalhes.
Diferente das primeiras vezes, o
subconsciente parecia ter se acostumado com a
repetição incessante da cena.
Tudo parecia tranquilo. O cenário prévio
perfeito, como uma pradaria segundos antes de
tornar-se um campo de batalha ou o oceano
plácido prestes a ser transformado por uma
tormenta.
Qual seria o extra naquela noite?
Muitas pessoas poderiam considerar
sórdida a ideia de jogar com os próprios
pesadelos, mas, depois de algum tempo, a mente
simplesmente se acostuma.
Acostuma-se com o terror, com o frio, a
solidão, o luto e, até mesmo, com a morte.
Não fora essa a virtude humana que fizera
da espécie a líder de todas as demais? A
capacidade de se adaptar?
Mais alguns passos, e Samuel encontrava-se
muito próximo do corpo do pai, bem como do
irmão. Não havia sangue jorrando de suas
gargantas, como duas noites atrás, ou pregos lhes
furando os olhos, outro recurso já utilizado.
O que seria dessa vez?
O atual Conde de Granville abaixou o olhar,
e verificou que sob os próprios pés marcas
avermelhadas manchavam o assoalho da sala de
desjejum.
Ah, sim, sua parcela diária de culpa.
Marcar seus passos com sangue havia sido
um interessante recurso eleito, mas nada muito
surpreendente, também.
Entretanto, se até então acreditava já ter
visto o pior, foi quando seus olhos voltaram a se
erguer que percebeu seu ledo engano.
Finalmente, os demônios que o
atormentavam a cada noite revelaram a visão para
aquela escolhida.
Diferente de poucos segundos atrás, a face
de Frank, assim como a de seu pai, trazia a carne
roxa já apodrecida. Dentre as chagas e buracos
presentes nas bochechas e pescoços, um
emaranhado de vermes esfomeados sobrepunha-se
na carne pútrida, que se tornava alimento.
— Desgraçada… — amaldiçoou entre uma
ânsia e outra, sentindo o estômago revirar.
Se havia outra infâmia dos pesadelos era
essa, pois não importava o tamanho de sua repulsa,
não conseguia vomitar.
— Maldita!
Enfurecido por reconhecer que ainda era tão
impressionável quanto dez anos atrás, começou a
retirar todos os objetos da mesa para lançá-los ao
chão, desesperado por conseguir expressar sua ira
de alguma forma, mas bastava tocá-los para
tornarem-se fumaça em suas mãos. Uma fumaça
preta de partículas grosseiras que se dissipava em
seu entorno enquanto, ressoando dentre elas,
ouvia-se a risada metálica, cruel e pavorosa de
uma mulher.
A risada de Cassandra.
O desespero tornava-se maior.
A carne apodrecida se partia mais a cada
instante, fazendo um barulho repulsivo quando
novos pedaços dos cadáveres caíam sobre o
assoalho.
Mesmo em seu estado de perturbação,
Samuel percebeu que dentre todos os objetos
apenas uma faca sobrava na mesa, uma que se
encontrava, assim como naquela manhã pavorosa
de outono, uma década atrás, dentre os dedos do
pai.
Jogando-se sobre o item, lutando contra a
repulsa de tocar na carne pútrida do genitor, teve
vontade de chorar ao sentir que este mantivera-se
concreto em suas mãos.
— Isso acaba aqui. — O tom era solene
como uma promessa, mesmo que na sala,
aparentemente, não houvesse ninguém.
— Você não tem coragem.
A voz espectral carregada de cólera e ironia
zombava de si.
A garganta de Samuel oscilou por saber que
Cassandra falava a verdade.
Quão desgraçada uma alma poderia ser?
Quão cruel poderia ser o sentimento que
todos enalteciam quando, no seu caso, tornava-se o
responsável por prendê-lo à vida, enquanto o que
mais desejava era vê-la se encerrar?
— Isso é apenas um sonho, Samuel.
Experimente como poderia ser a liberdade…
Faça! — Cassandra voltava a murmurar, com sua
presença flutuando ao redor dele junto daquele
aspecto que transitava entre fumaça e poeira negra.
A lâmina parecia reluzir em suas mãos.
Talvez ela tivesse razão.
Quem sabe morrer, mesmo que pelo breve
período de um piscar de olhos, não fosse eficaz
para ao menos fazê-lo experimentar uma breve
fuga do tormento?
Samuel ergueu a faca e em seguida disparou
um golpe em direção ao próprio abdômen. Quando
seus olhos já estavam fechados e o tempo indicava
que deveria ter sido atingido, porém, nada
aconteceu.
A risada alta de Cassandra voltou a ressoar.
— Sempre tão inocente, querido Samuel...
não seria tão simples livrar-se de mim.

[...]

Molhado.
Assim como em todas as noites, o Conde de
Granville despertara com os lençóis empapados e
o corpo agitado, encharcado em suor frio.
— Desgraçada. — O murmúrio fora feito
com a voz ainda trêmula, assim como pôde
perceber que permaneciam seus braços ao se
apoiar para sentar na cama.
Samuel levou as mãos espalmadas ao rosto
e se curvou, deixando os braços apoiados nos
joelhos. O cordão que há anos trazia no pescoço
ficou esticado como um pêndulo, graças à posição.
Esfregou os olhos por mais de cinco minutos,
apertando-os o quanto podia, mas as imagens do
pesadelo teimavam em permanecer.
A imagem de Frank… A imagem de seu pai.
A imagem daquilo que, a alguns metros de
distância e alguns anos atrás tornara-se a realidade
dos dois, no jazigo da família, localizado na parte
mais reservada dos jardins da propriedade.
Sam costumava visitá-los todas as manhãs
e, por vezes, de madrugada, dependendo do estado
de perturbação ao qual lhe levava o pesadelo.
Os pesadelos, aliás.
Os presentes diários e cruéis da existência
de Cassandra. A bruxa poderia ter deixado este
mundo, mas permanecia utilizando seus elos de
acesso conhecido no outro para perturbá-lo e
eliminar qualquer chance de paz de sua existência.
E, quando não se satisfazia em invadir apenas suas
noites, a mulher também se fazia presente em
diversas ocasiões do dia, vez ou outra enviando as
próprias sombras para observá-lo entre as paredes
de Granville Hall ou através de ruídos que o
faziam se lembrar de que não importava quanto
tempo passasse, sempre estaria ali.
Sempre estaria com ele.
Passada a agitação do primeiro momento,
Samuel se restabeleceu, como fazia todas as
madrugadas, retomando sua postura impassível.
Diferente da personalidade que o revisitava
no pesadelo, na vida aprendera a duras custas que
de nada adiantava demonstrar desespero, e há
muito tudo o que revelava do lado de fora de seus
aposentos era um semblante duro e sombrio,
resultado de todas as desgraças que seguiram a
maior.
De um jovem cheio de vida, cercado de
afetos por parte de sua família e amigos, tornara-
se do dia para noite, aos olhos da sociedade, um
homem ganancioso e cruel, capaz de cometer uma
atrocidade sem precedentes para obter um título.
Em poucas horas, tendo a notícia se
espalhado por cada uma das ruas e estaleiros de
Liverpool, todas as pessoas com as quais
confraternizava tomavam-no como um monstro, e
chamavam-lhe de assassino.
Desespero seria uma palavra simples
demais para descrever o sentimento de pavor que
o envolveu ao notar-se sozinho, preso a todas
aquelas acusações, a toda culpa que parecia como
as labaredas do inferno espalharem-se por sua
existência e consumi-lo.
O fato de não ter assassinado o pai e o
irmão poderia ser negado com veemência pelo
advogado da família — que fizera com extremo
êxito o trabalho —, mas não conseguia contra-
argumentar com a sentença que lhe gritava a
própria consciência.
Samuel poderia não ter lhes ministrado o
veneno, mas a culpa era sua.
Poderia não saber como Cassandra fizera
aquilo, estando morta, mas isso em nada diminuía
sua responsabilidade de tê-la feito desejar
realizar.
Lembrava-se de, ainda naquela famigerada
manhã, antes mesmo que o médico chamado
terminasse de concluir as verificações necessárias,
ter ido como um louco ordenar pessoalmente que
cada criado da mansão, da copeira ao mordomo,
se apresentasse, exigindo aos berros que o
responsável assumisse sua culpa.
Para Samuel, ficara nítido que Cassandra
agira através deles como fizera ao Sr. Migles, mas
nenhuma palavra foi dita, enquanto as mulheres o
observavam com os olhos vermelhos que vertiam
lágrimas, e os homens com os semblantes tomados
de pavor.
O conde estava morto e seu primogênito
também. O senhorio agora tratava-se de um homem
perturbado ou, na pior das hipóteses, um
assassino.
— Quero todos fora! — bradava na
ocasião, ao notar que nada seria proferido, nem
mesmo para negar.
Todos estavam apavorados.
Como não se atreveram a mexer sequer um
dedo, Samuel passou a empurrá-los um a um,
furioso, em direção às portas da mansão.
Folkes fora o único que tivera coragem de
se aproximar, segurando-lhe nos ombros.
— Por favor, se acalme, senhor!
Felizmente ainda conservava o vigor
necessário para controlar o jovem que passara a
debater-se.
— Todos, fora! — Samuel seguia gritando.
— Fora daqui!
Sua ira era tamanha, que o rosto se tornava
vermelho e dentre as palavras, gotículas furiosas
de saliva passavam a espirrar.
Os criados finalmente saíram correndo,
amedrontados e, fora o valete, a Sra. Plymouth foi
a única que também restou.
Tudo isso se passara há dez anos e nunca
mais qualquer criado fora efetivamente contratado
na mansão, que não demorou a transfigurar-se de
um respeitoso palacete a uma enorme construção
praticamente abandonada, de aspecto fúnebre que,
em grandiosidade, passara a exibir apenas seu
estado deplorável de deterioração.
Com apenas dois funcionários, somente os
serviços essenciais eram mantidos e lorde
Granville não fazia questão de muito mais. Uma
vez ao mês, entretanto, quando as condições da
mansão se tornavam difíceis para que a Sra.
Plymouth conseguisse realizar o básico, sozinha,
permitia que serviços temporários fossem
contratados, desde que tais criados jamais lhe
dirigissem a palavra ou fossem os mesmos do mês
anterior. Graças a tal resolução, do lado de dentro
a situação poderia não ser tão extrema, mas na
fachada e nos jardins, que jamais eram cuidados,
além da grama da entrada aparada, cada tijolo
agonizava, deixando nítido que naquele lugar não
existia um só dia de luz.
As paredes eram degradadas pela ação do
tempo e as árvores secas, assim como os arbustos,
se contorciam, parecendo fazer esforço para
alcançarem qualquer outro lugar que se diferisse
dali.
Nada em Granville Hall possuía vida ou
calor.
Ainda assim, aquele era o lar centenário de
sua família, a família que Samuel nem por um
momento deixara de amar apesar de toda a culpa, e
era esse o sentimento que não o permitira fazer o
que realmente desejava, sentindo um lampejo
agonizante de tortura a cada segundo ocupá-lo,
junto das batidas de seu coração.
Culpado. Culpado. Culpado.
O conde se levantou da cama e buscou seu
casaco preto no mancebo próximo à lareira. O luto
também se fazia presente há uma década em suas
roupas. Sem se ocupar em acender uma vela ou
lampião qualquer, saiu do quarto em direção aos
jardins castamente iluminados por um luar tímido
que penetrava em meio à bruma daquela noite. Em
realidade, mesmo se o luar não tivesse saído o
faria sem o auxílio de qualquer iluminação, pois
há muito havia se acostumado a viver e
embrenhar-se em meio às trevas.
Enquanto caminhava até o jazigo, escutando
o chirriar das corujas ao longe, o conde levava as
mãos aos bolsos e mantinha-se reflexivo.
O respeito pela vida do pai que fora
resumida à devoção à família, de algum modo, o
forçava a prosseguir com a ideia desagradável de
manter a própria existência, mas ele relutava em
aceitar, principalmente após aquela noite, que nada
poderia ser feito.
Deveria haver uma maneira de se livrar de
tudo aquilo sem figurar-se novamente em um
cretino egoísta, e Samuel esperava que, após
conversar com as pessoas mais sábias que
conhecia no jazigo, descobriria o que fazer.

Horas mais tarde, o conde retornava para o


interior da mansão sem nenhuma resposta.
Acontece que, como em outras vezes, a culpa o
tomara de modo completo ao confessar em voz alta
aquilo que desejava. Acabar com a própria vida
poderia significar o fim de seus suplícios, ao
menos os já conhecidos, mas também seria um ato
cruel e egoísta, pois extinguiria o sangue de toda a
linhagem que o precedera, fazendo com que esta
em pouco tempo não passasse de uma lembrança
apagada e carcomida; esquecida sob a terra.
— Bom dia, senhor — Folkes o
cumprimentou assim que o viu passar pelo hall de
entrada.
Era comum encontrá-lo entrando na mansão
ao amanhecer.
— Folkes. — Samuel ofereceu-lhe uma
vênia, caminhando a passos lentos e pesados em
direção à escada.
— A Sra. Plymouth gostaria de saber se já
pode preparar-lhe o desjejum, e servi-lo na sala
de jantar.
Desde o terrível incidente, era
terminantemente proibido a qualquer um entrar na
antiga sala de desjejum.
— Diga a ela que pretendo fazê-lo em meus
aposentos — informou, já do meio da escada.
— Mas, senhor, seria... sensato?
A pergunta fez Samuel parar de subir, e
virar-se para o criado.
— E por que não?
— O Sr. Carter, milorde. Conforme
informado ontem, pretende juntar-se ao desjejum
desta manhã.
Ah, sim... William.
Samuel franziu as sobrancelhas ao lembrar-
se da missiva na qual o jovem lhe comunicara a
visita.
Há algum tempo a relação dos dois
acontecia desta forma.
Sabendo que Samuel fazia o necessário para
se manter isolado de todos, e sendo o amigo da
época da escola a única pessoa que jamais chegara
a possuir qualquer desconfiança de si, William
Carter simplesmente informava-lhe sobre o dia e o
horário que pretendia visitá-lo.
E Samuel poderia ficar carrancudo na maior
parte das vezes, como o fazia agora, mas seria
mentira dizer que tais visitas, depois de alguns
minutos, não eram apreciadas. Nos diálogos com
William, que se tornara seu único amigo, voltava a
experimentar a mínima parte de algo próximo a um
sopro de vida, ainda que a leve sensação não
chegasse a conseguir penetrá-lo, apenas passando
perto de si e lhe acenando como uma conhecida
distante através daquela amizade.
— Obrigado pelo memorando, Folkes. —
Suspirou. — Por favor, peça que a Sra. Plymouth
sirva o desjejum na sala de jantar.
— Sim, senhor.

— Milorde — William cumprimentou,


levantando-se do assento corpulento assim que
Samuel se juntou a ele.
O conde revirou os olhos, percebendo que,
para sua infelicidade, aquele era mais um dia em
que o amigo se encontrava de bom humor.
— William. — Sentou-se do outro lado da
mesa, pois negava-se com veemência a ocupar o
lugar na ponta, que fora sempre destinado ao pai.
— Espero que você esteja mais inclinado a
falar do que na semana passada — disse, com um
sorriso provocativo nos lábios.
— E eu espero que você esteja menos —
devolveu-lhe Samuel, com a acidez que sempre
fazia o outro gargalhar.
Carter não era nobre, mas um rapaz bem-
educado e com uma vida confortável, assegurada
por uma boa família. Na época do incidente, não
estava em Liverpool, mas, dois anos depois,
quando regressara, não deu ouvidos aos boatos
que haviam cercado Granville Hall, fazendo
questão de manter os laços com o amigo que, por
uma tragédia do destino — ao menos assim
considerava — tornara-se conde.
— Sinto desapontá-lo.
Samuel bufou, tomando um gole generoso de
café.
Como o número de empregados em
Granville Hall era mínimo, não era incomum
durante as refeições os próprios comensais se
servirem.
— Aliás, trago uma notícia fresca do mundo
exterior para você.
— Hum...
— Minha nossa, como lidarei com tamanho
entusiasmo? — O outro não perdeu a chance de
provocar. — Bem, se está tão animado em saber,
não farei mistérios e lhe direi logo que se trata do
Sr. Parkins.
Samuel franziu as sobrancelhas.
O Sr. Parkins era o advogado da família, o
mesmo que fizera o suficiente para conseguir
livrá-lo da acusação de assassinato, junto ao qual,
através de cartas e muito empenho, trabalhava para
administrar com excelência as demais
propriedades ligadas ao título que herdara do pai.
Granville Hall, por motivos óbvios, era a
única da qual não cuidava extremo zelo, sendo
importante frisar.
— O que houve com ele?
— Agora sim, temos um interesse genuíno.
— Will pegou uma torrada da bandeja sobre a
mesa e começou a cobri-la com geleia,
pacientemente. — Permita-me aproveitar e
estender o suspense.
Samuel apertou os olhos de violeta-escuro e
praticamente o perfurou.
Junto da pele pálida e dos cabelos negros,
sua figura era capaz de, sem muito esforço, gerar
tremores em qualquer um.
— Diferente do resto da cidade, não tenho
medo de você, sabe? — O outro se levantou,
degustando a torrada em sua mão.
Em seguida, foi até o aparador onde deixara
o próprio chapéu e um exemplar do jornal daquela
manhã.
— Aqui está.
Retornou à mesa, oferecendo-lhe o material.
O conde não demorou a ler a notícia em
destaque, com os olhos correndo rapidamente as
letras miúdas.
— Ele não pode… — resmungou, enquanto
ainda lia.
— Mas fará. — William, que já havia
terminado a torrada, não se preocupava ao mínimo
com qualquer etiqueta ao lamber os dedos
lambuzados.
— Aceitar uma empresa deste tamanho
como cliente seria insanidade. Ainda mais, quando
Parkins sabe de tudo o que precisamos organizar
com as propriedades próximas ao período de
safra. Oitenta por cento da colheita… — E então,
sua voz desvaneceu. Não demorou a perceber que
estava ficando de fora das equações do advogado.
Ah, como era tolo!
— Pois é, meu amigo. — Carter levantou os
ombros. — Imaginei que o covarde não tivesse
tido a coragem necessária para comunicá-lo.
Provavelmente, o fará no último momento.
Samuel lançou o jornal de lado e fechou os
olhos, apertando-os com o polegar e o indicador
da mão direita.
Ótimo.
Mais uma incumbência em sua vida
miserável na qual estava prestes a falhar. Seria
impossível administrar tudo sozinho e, ainda mais,
encontrar um advogado renomado e eficiente que
aceitasse trabalhar para si. Até mesmo com as
contratações mensais de criados, a Sra. Plymouth
encontrava dificuldades, tendo de ir sempre atrás
daqueles aos quais a recusa por trabalho não era
uma opção.
— Preciso falar com meu advogado. — A
ideia de encontrar-se pessoalmente com qualquer
pessoa sempre o atormentava, e por isso foi
necessário dizer a resolução em voz alta.
— Concordo. — William servia-se de um
pedaço de bolo de limão ao anuir.
— Subirei o ordenado, se necessário.
— Um bom começo. — O outro balançou a
cabeça, com a voz comprometida pela mastigação.
— Ainda assim, não creio que dinheiro seja
o problema. Desde que conseguiu me livrar da
acusação, utilizando os registros do hotel, passei a
pagar-lhe semanalmente uma quantia mais do que
considerável...— As reflexões seguiam em voz
alta.
William tomou um gole de chá, e uniu os
dedos sistematicamente, apoiando os cotovelos
sobre a mesa.
Se a mãe visse os modos que ostentava
durante aquela refeição, o puxaria fortemente pela
orelha.
— Já lhe ocorreu que o pobre homem possa
estar preocupado com a própria reputação?
— Como é?
Will respirou fundo, como se dissesse “não
ache ruim, só estou constatando o óbvio”.
— Está dizendo que, após dez anos, de
repente, o Sr. Parkins tem receio por estar
trabalhando para o Conde Assassino? — Samuel
fez questão de designar-se pela infame alcunha sob
a qual toda a cidade o chamava, desde então.
— Oh, não, sabemos bem que isso o trouxe
até mesmo certo prestígio. Muitos o consideram
um camarada de fibra por conseguir lidar com
você. — William achou graça, mas seu sorriso
desapareceu ao ver a irritação com a qual o amigo
ainda o fitava. — Pense bem, homem! O que pode
levar à ruína um advogado de respeito que
administra os bens de um conde?
Samuel uniu as sobrancelhas.
— Uma propriedade fracassada! — O outro
nem lhe deu chance de responder.
— Mas as propriedades do condado estão
muito bem!
William analisou a sala ao seu redor.
— Estão mesmo?
— Sabe que Granville Hall é exceção.
— Nós sabemos, Sam, mas não é o que
dizem as más línguas da cidade, que não possuem
acesso aos rendimentos das propriedades de
campo e registros de safra. Além disso… — A voz
de William vacilou.
— Diga de uma vez.
— Não deve contar como algo bom ao
currículo a administração das propriedades de um
título prestes a ser extinto.
Samuel ficou sem palavras.
Aquela perspectiva dos fatos, realmente, o
havia escapado.
— Estive no cortejo fúnebre de um barão
que não deixou herdeiro ao título na semana
passada, sabe? — um tanto incerto, William
continuou. — Já estava em sua família há sete
gerações e é uma coisa realmente triste imaginar
que…
— Está bem, William. Já compreendi.
Samuel se levantou com rispidez, passando
a caminhar de um lado ao outro.
Atrás do conde havia uma grande janela
luminosa, que fazia sua figura completamente
coberta de preto assimilar-se mais com o espectro
perturbado de um fantasma do que com um homem.
Mesmo sem desejar, William o observava
com pena.
Se colocassem o Samuel atual ao lado do
rapaz jovem e alegre que conhecera há vários
anos, poderia contar nos dedos de uma única mão
a quantidade de similaridades que encontraria
observando de um ao outro.
A vivacidade dera lugar à apatia, a energia
ao abatimento e o sorriso fácil a uma carranca
lúgubre, amarga e constante.
— Ainda não é tarde para que o faça.
— Faça o quê?
— O enlace, ora essa!
— Ah, claro, o enlace! — Samuel repetiu a
resolução do amigo, carregando seu tom de ironia
e desgosto.
— Sei que nunca se interessou pelo tema,
mas deve compreender que agora que se tornou
conde, o casamento deveria ser considerado...
— Não sabe do que fala, William.
— Mas é claro que sei, ainda quando
estávamos no colégio, você dizia que…
— Um bando de asneiras! Era somente isso
que o Samuel que conheceu dizia e fazia naquela
maldita época! — Ressentia-se com a própria
juventude e não era capaz de omitir. — E, caso
não tenha percebido, diferente de épocas passadas,
já não reúno hordas de damas interessadas a
manter qualquer tipo de relação comigo. Que
mulher desejaria como marido um homem que
carrega fama de assassino?
— Poderia tentar e ao menos propor a
algumas, do modo tradicional…
— Ah, claro…
— E se estas realmente o negassem, poderia
recorrer às mais excêntricas… Sempre existem as
excêntricas.
— Carter!
— Ora essa, está bem — O outro também se
colocou de pé, caminhando de um lado ao outro
pela sala, com as mãos unidas atrás das costas. —
Tenho uma vaga ideia de como ajudá-lo, meu caro,
mas antes, preciso saber: para manter o advogado
e, assim, a boa administração das propriedades,
estaria realmente disposto a se casar?
Fazendo o movimento contrário, Samuel
voltou a se jogar na cadeira.
Era claro que não.
A última coisa que desejava era arrastar
para sua vida amargurada e cheia de sombras uma
pessoa inocente, principalmente ao lembrar-se de
que jamais poderia vir a ter qualquer sentimento
por ela, uma vez que não era possível se esquecer
das últimas palavras de Cassandra.
Ainda assim, se a missão de perpetuar o
sangue dos Granville na Terra até o momento o
impedia de partir, foi impossível deixar de
enxergar que, naquele momento, um filho poderia
tornar-se também o fim de tal missão.
Samuel respirou fundo enquanto pensava.
O sentimento egoísta e seu desejo pelo fim
da própria vida voltavam gritar em seu interior
enquanto contemplava a resolução. Porém, a cada
segundo em que o fazia, sentia-se ainda mais
culpado. Como poderia oferecer aquele tipo
desgraçado de existência a alguém?
— Eu não seria capaz — praticamente
murmurou, com os olhos baixos e as mãos
estendidas sobre a mesa.
Carter não precisou nem questionar,
sabendo exatamente a que o amigo se referia.
— Sabe… — Voltou a se sentar também. —
Existem condições muito piores para uma mulher
do que tornar-se uma condessa.
— Tornar-se uma condessa seria muito
diferente de tornar-se minha condessa, e você bem
sabe disso.
— Estou certo de que, para muitas, ainda
seria um grande alívio. Basta saber em que lugar
procurar.
— Bom, só consigo imaginar que teríamos
de buscá-la no inferno para considerar tal destino
algum tipo de salvação.
Will ergueu uma sobrancelha, e o gesto
despertou a atenção do conde.
— De que tipo de lugar está falando?
O amigo bateu com os polegares na mesa e
o encarou com seriedade.
— Irei lhe contar mais detalhes, mas
preciso que me ouça atentamente e, se possível,
guarde os julgamentos para depois.
Grace apertou os olhos para se acostumar
com a claridade ao sair de uma das docas do porto
de Liverpool, onde o marido há pouco conversava
com um senhor de porte tão desagradável quanto o
próprio, próximo a um navio ancorado que trazia
registrado no casco o nome de Princesa Delphine.
— Bando de imprestáveis — Owen Doyle
resmungou enquanto a puxava sem qualquer
delicadeza pela cintura, utilizando uma corda que,
dada a situação, mais assemelhava-se a um
cabresto. — Os malditos me passaram a
informação errada. O leilão acontecerá próximo à
taverna.
A voz grosseira e ébria que sempre o
acompanhava estava ligeiramente agitada naquela
manhã e Grace bem sabia o motivo. Há muito
Doyle se lamuriava pela falta de recursos tanto
quanto o fazia em relação à própria esposa que,
segundo ele, só havia carregado infortúnios à sua
vida, e depositava naquele evento a esperança de
estar prestes a encontrar uma solução rápida e
agradável para ambas as mazelas.
Enquanto se aproximavam da taverna, a
jovem de vinte e três anos engolia seco. Poderia
ter aceitado de certa forma sua nova perspectiva
de vida, mas era inegável que a ideia de ser
leiloada para um homem desconhecido, que
poderia se mostrar tão ou mais cruel que o atual
marido, a assustava.
Havia tomado conhecimento, através das
fofocas da vila onde morava e da fábrica onde
trabalhava, ambas localizadas nos arredores de
Liverpool, que nos leilões clandestinos de esposas
que aconteciam no porto a maioria das mulheres
combinava a compra com seus amantes, sendo este
um recurso conhecido para que pudessem enfim ter
a vida ao lado da companhia desejada, uma vez
que o processo de desquite era extremamente
burocrático e caro, inviável para a maioria. Ela,
porém, jamais possuíra um amante, e encontrava-
se à mercê de qualquer homem que desejasse
comprá-la ao oferecer o maior lance.
Finalmente chegaram à viela lateral da
taverna, onde uma multidão de curiosos e
interessados já se organizava. Grace observou
com atenção os rostos das demais mulheres
presentes, dispostas ao lado dos respectivos (e
ainda atuais) maridos em uma fileira. Algumas
possuíam cabelos mais dourados, como os seus, e
outras eram morenas, mas todas tinham em comum
o receio expresso na face e o abandono da
jovialidade, apesar da maioria aparentar menos de
trinta anos.
Aquelas eram mulheres infelizes que, de
uma maneira ou de outra, eram forçadas a estarem
ali. A própria Grace, como já dito, havia aceitado
seu destino, mas não seria justo dizer que aquela
seria sua primeira escolha.
Se pudesse de fato escolher não teria sequer
se casado, quatro anos atrás, principalmente com
um homem que jamais havia feito questão de
esconder que a desprezava, ao ser praticamente
entregue em uma bandeja pela própria família. Até
hoje não saberia dizer por qual motivo Owen a
tinha aceitado, possuindo em sua mente a
persistente ideia de que o pai, um pequeno
agricultor de sangue irlandês que trazia uma pedra
de gelo no lugar de coração, não lhe dera escolha
ao lembrá-lo que possuía uma grande dívida
consigo. Tal possibilidade era muito provável, já
que o marido vivia se endividando para conseguir
bebida, e a família faria qualquer coisa para
livrar-se da garota estranha que era.
— Fique aqui. — Doyle a empurrou
rudemente para um canto, caminhando em seguida
para conversar com um homem bem-vestido, que
parecia tratar-se do organizador.
O gesto, sem querer, a fez se aproximar
muito de outra jovem que possuía longos cabelos
negros. Grace reparou que sua pele era
extremamente pálida e, ao seu redor, enxergou a
existência de algo similar a uma aura fria, densa e
cinzenta, do tipo que invade as almas que estão
assustadas, tomadas pela insegurança, medo ou
pavor.
O lugar todo, aliás, desde que Grace havia
chegado, transmitia-lhe tal sensação. Uma ausência
incômoda de conforto, afeto... calor. Não muito
diferente, por mais trágico que seja dizer, daquela
que encontrara durante toda a vida nos dois
lugares que havia chamado de casa.
Inclusive, vinha daí o motivo de seus
familiares, extremamente supersticiosos,
considerarem-na estranha.
Mesmo sem compreender como ou por que,
desde muito jovem Grace possuía tal sensibilidade
para todas as coisas intangíveis, que muitos
consideravam pertencer ao sobrenatural. Era como
se sua essência buscasse os maltratados e feridos,
pessoas e até mesmo animais, reconhecendo que
lhe cabia a missão de oferecer-lhes conforto com
sua presença. Tudo em Grace era suave e brando,
de sua voz afável ao toque de sua pele, e
carregava algo sublime, capaz de transmitir
conforto e, dependendo de onde estivesse a ferida,
mitigar a dor existente. E, mesmo que as poucas
pessoas que soubessem, sendo estas da própria
família, a afastassem ao compreender o quanto era
diferente, a jovem não se zangava por isso, e
seguia considerando tais habilidades como uma
dádiva; um dom.
No mundo, infelizmente, já existiam muitos
que dedicavam a vida a ferir, e a consolava pensar
que a sua estava destinada a curar.
Seus pais, no entanto, a haviam recriminado
desde que ainda era menina devido a algumas
demonstrações involuntárias que puderam
testemunhar e, por diversas vezes, diziam que
possuir uma coisa do tipo na família só poderia
atrair coisas ruins ou representar ao lar uma
terrível maldição.
Grace crescera ouvindo tais palavras, mas,
ainda assim, não conseguia considerar algo que
poderia ajudar a atenuar as dores de outrem como
desgraça, mesmo que se forçasse a evitar fazê-lo
por não saber qual tipo de reação esperar e, muito
além disso, nem mesmo compreender como ou se
poderia controlar.
Em alguns momentos, porém, era como se
tal essência tirasse de suas mãos as rédeas do
próprio destino; tais episódios se davam quando a
jovem se aproximava de algo ou alguém que
parecia afundar-se no mais intenso estágio do
sofrer. Nessas ocasiões, Grace somente agia,
sendo sábia o suficiente para reconhecer, apesar
de toda sua simplicidade, que alguns mistérios
deste mundo se encontravam muito além do que a
mente humana seria capaz de compreender ou
aspirar.
Um desses momentos, aliás, acabava de ter
início.
Ao redor da jovem de cabelos negros,
Grace sentiu aquela aura fria se expandir e
desestabilizar, o que poderia representar um risco
muito grande se tal descontrole refletisse em uma
ação. Buscando de algum modo a1judá-la, esticou
a mão e a segurou levemente no braço, no exato
momento que um impulso delicado demonstrava
que, realmente, a moça estivera próxima de tomar
uma atitude temerosa.
Com o toque não pretendia segurá-la
efetivamente, nem mesmo a apertava o suficiente
para que isso fosse possível, mas tranquilizá-la do
modo que há muito descobrira ser capaz de fazer,
projetando de seu interior sentimentos e sensações
com os quais percebia que a alma aflita precisava
ser alimentada.
— Chamo-me Grace. — Buscou sorrir, do
modo discreto e sutil que a situação permitia. —
Eu também estou com medo.
Em seus olhos cor de mel, tão claros que se
assemelhavam a pepitas de ouro, a outra jovem de
olhos cinzentos parecia encontrar o oposto de tudo
o que sentia. Um calor e conforto que nem mesmo
se tentasse conseguiria explicar.
— Obrigada — disse tão baixo que lhe
pareceu um sussurro.
Grace voltou a oferecer-lhe outro sorriso,
mas não teve tempo sequer de perguntar seu nome.
— Venha. — Doyle havia voltado e já a
puxava pelo cabresto.
Grace apertou a mão da jovem uma última
vez enquanto o corpo se afastava, e desejou que o
tempo de contato fosse suficiente para lhe
transmitir o mínimo de energia.
Assim como pressentia que seria com a
própria vida, sabia que aquela jovem dama ainda
teria muitos desafios a enfrentar.

Um pouco mais adiante, a alguns metros de


distância, Samuel caminhava com os passos
apressados de um condenado e fugitivo. Poderia
não ser tido assim pela lei, mas considerava-se os
dois.
Shakespeare já dizia que “a suspeita
sempre persegue a consciência culpada” e isso
bem era verdade.
Mesmo estando disfarçado, coberto de preto
da cabeça aos pés — e literalmente, pois a gola
alta do casaco chegava a encostar na aba do
chapéu — sentia que as pessoas o observavam a
cada esquina, disparando olhares de ódio sobre si.
Um nervosismo aflitivo passou a invadi-lo
conforme se aproximava da taverna indicada por
William duas manhãs atrás, e o conde tentou se
lembrar por que diabos se encontrava ali.
Era óbvio que aquele plano estava fadado
ao fracasso.
O amigo poderia ter agido com a melhor das
intenções ao ajudá-lo, indicando que buscasse uma
esposa no leilão, mas Samuel ainda possuía
domínio de parte da própria sanidade e sabia que
aquilo não era algo que conseguiria fazer.
Um vento frio soprou do mar, ameaçando
arrancar-lhe o chapéu, mas ele o segurou com
força, pois nada o desagradava mais do que a
ideia de ter a face exposta. De repente, viu-se
muito próximo de um grande grupo e se afastou,
caminhando de modo automático em direção à
porta da referida taverna, fugindo da pequena
multidão que começava a se reunir ao lado do
estabelecimento, em um indicativo de que o evento
estava prestes a começar.
Assim que entrou, um sino antigo de caráter
nostálgico ressoou no batente da porta, o que foi o
primeiro motivo para fazer o coração do conde
acelerar. Como não desejava ser notado, Samuel
ficou satisfeito ao perceber que o barulho fora
encoberto pela animação dos diálogos das dezenas
de pessoas acomodadas nas mesas.
Ele engoliu seco enquanto parecia estar em
um sonho distante, através das cenas que se
desenrolavam ao seu redor. Havia muito tempo
que não entrava em um lugar tão cheio de calor e
agitação, e sentia-se estranho por estar ali.
Aliás, o que o havia feito entrar?
Nem mesmo isso saberia dizer.
Sentindo-se deslocado, e também que uma
porção de olhos começavam a inspecionar o
grande homem de preto parado no meio do salão, o
conde buscou um canto vazio do balcão para se
apoiar. O aroma de carvalho e cevada
impregnaram suas narinas, carregando lembranças
de sua juventude que pareciam ter feito parte de
uma vida distante ou, até mesmo, anterior.
Ao seu lado, dois amigos discutiam sobre
uma tal ruiva bem-dotada do bordel, e Samuel uniu
as sobrancelhas ao perceber que ele e o mundo
dos vivos possuíam cada vez menos em comum.
Algumas mulheres serviam as mesas da
taverna, mas o dono do estabelecimento ocupava-
se do balcão, polindo-o incessantemente com um
pano roto que vez ou outra jogava sobre o ombro.
Samuel notou que os olhares do homem se
tornavam cada vez mais inquisidores sobre si e
resolveu agir do modo mais natural que lhe fosse
possível, solicitando uma bebida. Nem mesmo
ergueu a face ao fazer o pedido.
Logo, uma dose generosa de brandy era
colocada à sua frente no balcão.
O conde olhou para o copo, mas não o
pegou de imediato. Mais lembranças de épocas
passadas o invadiam ao notar-se prestes a realizar
o simples gesto.
Compartilhar doses de brandy e os
chamados drinks com seus amigos era o auge de
toda e qualquer confraternização, e já fazia muito
tempo que não possuía absolutamente nada para
comemorar.
— Granville? — A voz de William soou
naquele exato momento, parecendo cortar todas as
demais. — É bom vê-lo. — Ergueu o caneco.
De fato, o jovem Carter estava tão satisfeito
em ver que o amigo considerava sua ideia para
ajudá-lo, que não chegou a ponderar sobre as
complicações daquele gesto.
Não fosse o número de testemunhas e a fama
que não desejava ter ampliada, Samuel faria
questão de deixar seu canto e estrangulá-lo bem
ali, pouco se importando com o fato dele possuir
companhia à mesa. Não fazia ideia de quem era o
cavalheiro, mas, assim como todos os demais
presentes no estabelecimento, percebeu que
passava a realizar uma análise minuciosa de sua
figura.
Respirando fundo para não cometer
qualquer insanidade, como sair em um rompante,
deixando até mesmo de pagar pela bebida, Samuel
se virou e, visivelmente constrangido,
correspondeu o cumprimento com um gesto
simples.
Não foi surpresa alguma ao conde notar as
conversas tão efusivas de outrora rapidamente
desaparecerem, dando lugar a um denso silêncio,
que vez ou outra era cortado por um sussurro ou
suave burburinho.
Tudo o que mais desejava evitar acabara
acontecendo naquela manhã: ele fora notado. E,
sem a menor dúvida, acertaria as contas com
William por isso, na próxima visita.
Com uma pressa que apenas quem já viveu
o mais angustiante e vexatório dos momentos pode
compreender, sorveu em um único gole sua bebida,
deixando sobre o balcão uma nota de valor
superior ao necessário para pagar mais dez, se
desejasse.
Ele se levantou e passou rapidamente pelas
mesas enquanto o silêncio perdurava e os olhos o
seguiam, evitando até mesmo qualquer gesto de
despedida na direção de Will.
Nem bem fechara a porta, poderia jurar que
foi capaz de ouvir o som provindo daquelas
dezenas de pessoas que permaneceram lá dentro,
em uníssono, soltarem uma respiração aliviada.

Praticamente diante da taverna, havia uma


estrutura similar a um palanque na qual as
mulheres que seriam leiloadas subiam para
ficarem em exposição. Vez ou outra tal movimento
sequer era necessário, principalmente quando o
amante desesperado mal via a hora de gritar uma
soma considerável para finalmente ter em seus
braços uma única mulher.
— Deveria ter se lavado melhor. — Doyle
lambeu o polegar grosseiro e em seguida o
esfregou na bochecha direita de Grace, limpando
uma marca de fuligem. — Vi alguns homens
poderosos aqui hoje, que não se importam se o
leilão é ilegal ou não, e você finalmente terá algo a
me render.
Em seguida, observou o casaco de lã que
Grace vestia e fez um bico de desagrado; não
pensando duas vezes no frio que fazia antes de
tirar a peça do corpo da jovem e jogá-la no
próprio ombro.
Os olhos de Grace se abriram.
— Está frio — a jovem protestou, mais pela
desagradável ideia de ficar com o colo exposto.
— Quer se livrar de mim ou não quer?
O infeliz se aproveitava do argumento
inegável para fazê-la se calar.
Grace apertou os lábios e buscou afastar da
própria mente mais aquele episódio terrível de
humilhação. Apegava-se ao fio delicado e frágil
de esperança que mantinha junto ao próprio peito,
responsável por fazê-la acreditar que em um futuro
muito próximo poderia ter algo menos pior a lhe
aguardar.
— Jogue o cabelo para trás.
— Como?
— O cabelo! — vociferou Doyle, agitando-
se em notar que seriam os próximos.
A jovem seguiu a ordem e sentiu o corpo
todo tremer, mas dessa vez por timidez, ao afastar
do colo parcialmente desnudo a única cobertura.
— Muito melhor. — Ele deu um sorriso
amarelo, observando-a com malícia.
A verdade é que reconhecia, sim, que a
esposa era uma mulher muito bonita, muitos a
consideravam incrivelmente bela, aliás, mas seu
único e verdadeiro afeto, desde sempre, estivera
com a bebida. Além disso, ouvir as pessoas da
vila onde moravam sempre comentando sobre as
esquisitices que a família vez ou outra deixava
escapar sobre Grace, inclusive fazendo com que
antigos credores o evitassem, tornava-se cada vez
mais uma grande fonte de chateação.
Não adiantava ter nascido bonita se, como a
família dizia, a garota também carregava
desventuras e prejuízos junto da própria maldição.
Sentindo as pernas vacilarem, Grace subiu
no palanque quando o organizador anunciou Doyle
por seu nome. Mesmo mantendo o queixo erguido,
sabendo que sua mínima chance de se livrar de
uma vida cruel encontrava-se lá, foi impossível
não se sentir vulnerável e exposta, enquanto os
homens pareciam despi-la com os olhos e os
elogios que lhe direcionavam começavam a criar
uma verdadeira agitação.
— Bom, senhores, essa dama que lhes trago
é de primeiríssima qualidade. — Diante do
palanque, Doyle comandava o espetáculo,
exibindo-a como se Grace fosse qualquer objeto à
venda, ou até mesmo um animal em uma feira
agropecuária; como uma cabra. O laço que a
mantinha amarrada na cintura seguia firme em sua
mão.
Mal tinha começado a falar e o primeiro
lance, um valor consideravelmente alto, fora feito.
O sorriso cretino se alargou.
De repente, percebendo que as ofertas já
haviam começado, todos os demais interessados
começaram a gritar, competindo uns com os outros.
Tendo acabado de sair da taverna, passando
atrás da multidão, Samuel buscava se retirar o
quanto antes do maldito porto quando uma
comoção sem precedentes pareceu agitar os
homens que participavam do leilão. Por um
instante, suspirou, aliviado, pensando que seria
afortunado sair sabendo que não lhe dariam
qualquer tipo de atenção, mas fora a exata ideia de
que algo lhes seria tão interessante que o fez ter a
infeliz — ou não — ideia de espiar o que se
passava adiante.
Menos de um segundo foi preciso para que
compreendesse tamanha agitação.
Ali, parada sobre o palanque como uma
verdadeira obra de arte prestes a encontrar um
comprador, estava a mulher mais bonita que já
vira.
Ele não saberia dizer se eram os longos
cabelos áureos, a pele levemente bronzeada ou os
olhos de formato meigo que brincavam de modo
triunfante entre o âmbar e o dourado que o fizeram
ter tal impressão, mas, assim como o sol, ela
parecia brilhar.
Tal luz era tamanha que se tornava
excessiva para ele, que há muito vivia em meio a
mais completa escuridão. Como se tivesse
acabado de sair do breu, os olhos de Samuel se
apertaram, e ele deu um passo para trás. Algo
parecia desejar tirá-lo dali, infligindo em seu
interior a sensação de que deveria o quanto antes
se afastar.
Mas então, ele voltou a abrir os olhos e,
quando o fez, a coisa mais inesperada aconteceu:
em meio àquele bando de homens agitados, e ao
verdadeiro furor que se seguia, a jovem acima do
palanque também tinha o olhar fixo em si.
Samuel engoliu seco.
Dentro dele, algo muito profundo começou a
se mover.
— Eu acho que ainda conseguimos um
pouco mais, hã? — Doyle seguia com seu
espetáculo pavoroso, instigando os homens a cada
vez que puxava Grace pela cintura. — Pensem,
cavalheiros… — Ele baixou o tom de voz, como
se segredasse algo ao público efusivo. — Já estão
maravilhados e a moça ainda está vestida.
Uma algazarra seguiu a provocação, que
apenas serviu para atiçá-los mais.
Mesmo considerando-se forte para suportar
muita coisa, Grace percebeu que não estava
preparada para aquilo. A moça fez esforço para
engolir o choro que subiu pela garganta, mas foi
impossível evitar que seus olhos ficassem úmidos,
mesmo mantendo-os fixos no único cavalheiro
presente que parecia enxergar o sofrimento que a
tomava.
Parecia até mesmo uma ironia do destino.
De um cavalheiro desconhecido recebia,
através daquele contato distante, uma mínima
parcela de comiseração.
Do outro lado, Samuel sentia uma agitação
sem precedentes tomá-lo. Aquela moça parecia
agonizar em meio à multidão, e percebia que se
tratava do único capaz de escutá-la.
Um homem roliço de bigode esnobe de
repente gritou uma grande quantia, cobrindo todas
as ofertas anteriores.
— Eu me lembrarei de aproveitar minha
aquisição por cada um de vocês. — Fez questão
de gritar o comentário repulsivo, para que a jovem
também pudesse ouvir.
A respiração de Grace parou. Aquele fio
delicado de esperança estava prestes a romper.
Apenas de olhar para aquele homem e ouvir suas
palavras sujas, conseguia ter um vislumbre terrível
no novo — ou velho — destino que poderia
esperar.
Mais um marido disposto a usá-la quando
desejasse e a tratá-la o resto do tempo como lixo.
Mais uma casa na qual ficaria sujeita a todo tipo
de grosseria quando este desejasse lhe atingir.
— Bom, se ninguém pretende cobrir… — O
sorriso de Doyle era tão largo que poderia ser
visto de costas. O infeliz praticamente saltava.
— Eu cubro a oferta.
Samuel não sabia ao certo de onde vinham
aquelas palavras, mas, quando notou, terminava de
proferi-las.
Como estava no fundo, dissera bem alto
para se fazer ouvir e os homens começaram a se
virar para ver quem era o homem que dispunha de
tanto dinheiro para realizar a oferta mais alta do
leilão.
— Cobre? — Doyle apertou os olhos,
desconfiado.
O cavalheiro misterioso tinha a cabeça
baixa e a face praticamente omissa. Além disso,
estava todo coberto de preto o que não facilitava
distinguir se realmente tinha tanto dinheiro assim
por suas vestes.
— E cobre por quanto? — o oponente
interessado perguntou, com a voz afiada.
Samuel ergueu somente os olhos e voltou a
fitar Grace.
— Por quanto for preciso.
Foi a vez do coração dela parar.
— Consigo aumentar o valor — o outro
cavalheiro se dirigiu a Doyle, demonstrando nítido
desdém ao terceiro.
— E qual seria? — Doyle aproveitou.
Ao redor deles, os homens se mantinham
calados e atentos, acompanhando a disputa que se
desdobrava com a mesma diligência que fariam se
fosse uma partida esportiva.
O senhor de bigode disse uma quantia
exorbitante.
Uma reação impressionada e uníssona
ressoou.
A dada altura, vários transeuntes também
paravam para acompanhar o desfecho da
transação, inclusive os oficiais comissionados
para fazerem vista grossa.
Foi nesse exato momento que, ao contrário
de tudo o que evitara durante os últimos dez anos,
e infinitamente pior do que acontecera na taverna
poucos minutos atrás, Samuel notou que todos os
olhos do porto se voltavam para si.
Ele buscou respirar fundo, antes de repetir:
— Eu cubro.
A agitação que seguiu sua fala tornou-se
efervescente.
— O senhor não pode cobrir! — o outro o
acusou, estupefato.
Ficou tão agitado que o bigode parecia
prestes a saltar de sua face.
— Não só cubro como dobro, se for o
necessário para encerrarmos de vez o assunto. —
Voltou a ergueu os olhos para Grace, que seguia
estagnada.
Quem era aquele cavalheiro?
Seria alguma espécie de milagre?
Um anjo salvador?
— Dobrar! Ora, essa é boa! Agora ficou
claro que está apenas tentando rir à custa deste
senhor. — Apontou para Doyle, que se mantinha
igualmente desconfiado. — Nenhum homem de
Liverpool teria dinheiro para fazer isso, não sei
quem o senhor pensa que é, mas…
Irritado por tamanha impertinência, Samuel
sequer pensou; quando viu retirava a cartola,
revelando-se aos olhos de todos, afirmando com
seu imponente tom de voz:
— Eu sou o Conde de Granville.
O silêncio dos espectadores que até aquele
momento se ocupavam em acompanhar o
desdobramento das negociações, deu lugar a uma
onda crescente de sussurros e cochichos
espantados. Fazia muito tempo que Samuel não era
visto fora de sua propriedade e o fato de morar em
um palacete que parecia a cada dia embrenhar-se
mais em meio às trevas alimentava na imaginação
popular a ideia de quem ou o que aquele homem
se tornara e os horrores que poderia representar.
— É o Conde Assassino! — A voz de um
dos homens próximos ao palanque ressoou um
pouco mais alta, o suficiente para que Grace
escutasse.
Um arrepio frio lhe subiu pela espinha, mas
ela se manteve encarando a figura de preto adiante,
agora tendo como ponto de destaque o rosto
anguloso de pele pálida que parecia feito de
mármore, do tipo que o sol não deveria há muito
tempo tocar. A distância não permitia que fosse
capaz de enxergar e sentir seu tipo de luz, mas fora
seu dom, Grace também carregava o mais antigo
dos instintos humanos, sobreviver, e este não lhe
mentia: algo muito profundo e grave omitia-se por
baixo daquela superfície.
— Um conde — foi a vez de Doyle
murmurar, com a voz tomada pela satisfação.
Se até o momento duvidava da capacidade
do comprador honrar com o lance, tal
possibilidade já não existia.
Ao ouvir o nome de Granville, seu oponente
na disputa havia simplesmente se calado e, como
um rato, aproveitado a primeira oportunidade que
teve para se evadir.
— Vendido, milorde!
A exclamação foi seguida de outra reação
estupefata do público.
Vender a esposa para um assassino?
Aquele homem deveria ser muito cruel ou, na
pior das hipóteses, um imbecil. Pobre, pobre,
mulher!
Ninguém, obviamente, se arriscava a dizer
uma única palavra em voz alta, por mais que o
pensamento fosse comum a todos os presentes. Se
apenas o nome de lorde Granville já habitava as
entranhas mais obscuras da imaginação, sua figura
soturna e voz austera era capaz de fazer até o mais
valente dos homens entrar em estado de
subordinação.
Exceto Doyle, é claro, que continuava a
observá-lo com completa devoção. Acontece que a
ignorância e alienação costumam caminhar em
conjunto, fazendo com que o portador
desconsidere, muitas vezes, o risco em que se
encontra.
Grande parte da espécie humana vive deste
modo e um naturalista denominado Charles
Darwin compartilhou o destino que lhes é
reservado através da teoria que chamou de
Seleção Natural.
Mesmo incomodado com os olhares, Samuel
compreendeu que deveria ir logo em direção ao tal
homem. Caminhando entre a multidão, que se
afastava abrindo caminho para que avançasse, o
conde buscou reafirmar a si mesmo que o que
estava fazendo tivera como base um objetivo mais
nobre que egoísta. Que salvara aquela jovem de
um destino cruel enquanto desejaria dela uma
única coisa para que, em troca, lhe oferecesse o
mais próximo de uma vida que muitos
considerariam como ideal.
— Aqui está. — O homem lhe estendeu a
corda.
Samuel observou o item e seus olhos
seguiram até a outra ponta, chegando, por fim, à
cintura pequena e delicada que marcava.
Fora inevitável não deixar que a inspeção
fosse mais adiante. Seus olhos buscaram
novamente os da jovem que permanecia sobre o
palanque e, mesmo que timidamente, ela fazia o
mesmo, com aquelas grandes íris praticamente
douradas que pareciam capazes de em mesma
medida salvar e condenar.
Granville não soube o motivo, mas prendeu-
se por longos segundos naquela troca; na
observação direta daquele ser sublime sobre o
altar, que parecia tão oposto de si, capaz de
intrigá-lo da forma que nada fazia há dez anos.
Ao mesmo tempo, Grace se perdia no olhar
dele, que admiraria por ser do mais escuro e
incomum tom de violeta, não fosse o fato de estar
paralisada e absorta pela aura que sentia e as
cores que finalmente conseguia enxergar ao seu
redor. Assim como a jovem que conhecera minutos
atrás, a do homem que a comprara também era
formada por uma massa densa e cinzenta, mas
ainda mais escura, como um tom de chumbo muito
intenso, que conseguia com o preto flertar.
Grace já havia encontrado pessoas assim e
sabia que, além da tristeza e solidão, geralmente
carregavam sentimentos nocivos como raiva e
ódio tão intrínsecos em seu interior que
começavam aos poucos a transbordar, manchando
com sua passagem catastrófica tudo que estivesse
ao seu redor. Dentro de seu peito, o coração se
apertou por variados motivos. Tinha medo por
saber que o título que o davam dificilmente seria
infundado, mas, ao mesmo tempo, compadecia-se
pela dor profunda e absoluta que aquela infeliz
alma parecia carregar.
Doyle pigarrou.
Samuel piscou os olhos, retomando a razão.
— Isso não será necessário — disse, ao
apontar para a corda.
O outro uniu as sobrancelhas, mas
rapidamente deu ombros.
Pela quantia que o tal conde estava prestes a
lhe pagar, tudo o que dissesse seria seguido por
sua pessoa com um sonoro e satisfeito amém.
Doyle fez um gesto para que Grace descesse
do palanque e em seguida voltou a referir-se ao
cavalheiro.
— Sobre o pagamento, milorde, acredito
que seja certo imaginar que não possuiria tal
quantia neste momento, em seus bolsos…
— Não possuo.
Samuel sequer o olhava. Tinha sua atenção
voltada para a jovem que abaixava a cabeça ao
descer da estrutura, rodeada por lamentos e
sussurros.
— Se desejar, posso acompanhá-los até…
— O pagamento será realizado na taverna.
— Na taverna? — Doyle observou o
estabelecimento poucos metros atrás.
— Meu advogado estará na taverna para
encontrá-lo junto do organizador do evento
amanhã, neste mesmo horário. Poderão tratar com
ele sobre o valor e documentos necessários,
senhor…
— Owen Doyle.
Grace finalmente se aproximou, mas parou
ao lado de Doyle, por costume. A sensação de
receio a levava a cruzar os braços sobre o peito,
abraçando o próprio corpo.
— Não, não… — O cretino a empurrou em
direção ao conde como uma mercadoria
indesejada. — Já não tenho qualquer propriedade
sobre você.
Após tropeçar nos próprios pés, a jovem
finalmente encontrou coragem para erguer os olhos
e observar seu comprador de perto.
— Milorde. — Realizou uma vênia
deplorável, deixando claro que não era algo que
estava acostumada a fazer.
Ao captar o som doce de sua voz, todos os
nervos de Granville estremeceram.
A pobre jovem lhe pareceu ainda mais
delicada e desprotegida. Um ser frágil e puro, mas
que resplandecia aquela presença inconfundível de
vida, completamente oposto à realidade fúnebre
para qual estava prestes a arrastá-la.
— Use isto.
Grace se surpreendeu ao vê-lo retirar o
próprio casaco e jogá-lo sobre seus ombros.
Sua voz poderia não conter qualquer
resquício de emoção, mas o gesto demonstrava um
fragmento de humanidade.
Mais baixo do que a primeira vez, ela
voltou a sussurrar:
— Obrigada.
A multidão permanecia entretida naquele
curioso espetáculo, e vez ou outra era possível
escutar uma voz um pouco mais alta ao fundo,
dizendo “é uma pena, uma jovem tão bonita” ou
“pobrezinha”.
— Agora que está tudo acertado, creio que
possamos ir — Samuel dissera para o marido da
jovem, mas mantinha os olhos presos nela.
— É claro, milorde — concordou Doyle.
Grace viu que ele conseguiu realizar ao
conde uma vênia ainda pior do que a sua enquanto
os olhos transbordavam júbilo. E assim como a
própria família fizera ao entregá-la ao marido três
invernos atrás, não lhe ofereceu uma única palavra
de despedida, deixando claro que sua existência
logo seria mais uma vez esquecida, como algo que
não valia a pena lembrar.

Granville Hall não era muito longe do


porto, mas a carruagem levava em média um
quarto de hora para percorrer a distância. Os
poucos minutos, porém, pareciam triplicar à
medida que o silêncio entre os presentes se
estendia, tornando-se opressor.
Assustada, Grace mantivera-se calada na
maior parte do caminho, tentando evitar ao
máximo ceder à curiosidade irresistível que sentia
de analisar um pouco mais a figura do cavalheiro à
sua frente, e em razão disso mantinha o rosto
virado para a janela.
De qualquer maneira, aquela era a primeira
vez que circulava pelas áreas mais abastadas de
Liverpool e seus olhos atentos tinham muita
novidade a captar.
Extensas ruas arborizadas, com construções
admiráveis e imponentes que se erguiam em toda
parte confirmavam que o mundo era muito mais
amplo do que as choupanas que compunham a vila
em que morava, nos arredores de Kirkdale. Dentre
todos, um enorme edifício chamou sua atenção em
particular, enquanto passavam pela Church Street.
Este era composto por quatro andares e ostentava
em cada detalhe de sua arquitetura mais luxo do
que o olhar de Grace, tão simplório, sentia-se
capaz de absorver. Havia um letreiro à frente, que
provavelmente o identificava, mas a moça
suspirou baixinho devido às próprias limitações.
O movimento nas ruas também era intenso
com carruagens, locomotivas e transeuntes
deslocando-se por toda parte. Grande parte das
mulheres ostentava belos vestidos elaborados de
acordo com a última moda. Compostos por saias
retas na frente com uma generosa forma elíptica
projetada atrás, mangas amplas e pescoço
adornado por rendas e outros tecidos delicados,
que eram um sinal claro de distinção. É verdade
que todo o reino ainda parecia estar coberto por
um véu negro naquele ano, tendo transcorrido
pouco tempo após a trágica morte do príncipe
consorte, mas, ainda assim, algumas cores mais
sóbrias apareciam timidamente nas estampas e
tecidos. Os homens, por sua vez, apoderavam-se
de uma tendência carregada pelos americanos,
utilizando altas cartolas pretas — apelidadas por
muitos de chaminé —, que lhe atribuíam certo
aspecto de modernidade para compor o visual.
Ao analisar as vestes, fora inevitável à
Grace não se ater ao enorme casaco que tinha ao
redor dos ombros e, menos ainda, ao perfume
masculino que se desprendia da peça: uma mistura
simples e almiscarada que a fazia lembrar tabaco e
sabão. Entre esses aromas, também havia uma nota
mais profunda e intensa, mas esta não conseguia
identificar.
No outro banco, e lutando da mesma
maneira para controlar seu olhar, estava Granville,
curioso em poder observar mais detalhes da jovem
que havia comprado.
Ah, que expressão repugnante.
Seu estômago contraiu-se apenas em
lembrar. Mas o fazia ainda mais quando Samuel
voltava a elencar para si mesmo as próprias
razões e, entre elas, os benefícios que seu ato
poderia tê-la provido.
A ideia do que uma mulher de aspecto tão
delicado já poderia ter vivido ao lado de um
troglodita como aquele que a acompanhava no
porto deixava-o aterrorizado. Algumas almas
pecadoras e decadentes como a dele mereciam
pagar com seus martírios, mas estava certo de que
a alma dela, não. Poderia estar sendo precipitado
em suas considerações, é verdade, mas possuindo
como parâmetro a própria existência malograda,
Samuel tinha certa tendência a considerar que
todos os outros eram melhores do que ele e, como
consequência, mereciam algo melhor.
De repente a carruagem passou por um
buraco, o que fez a jovem se desestabilizar no
banco e inclinar o corpo à frente. Em um reflexo
natural, Samuel elevou as mãos cobertas por luvas
pretas para apoiá-la, segurando-a nos braços.
Grace voltou a estremecer com o contato.
Mesmo sobre os tecidos, era possível sentir
que o toque dele emanava uma sensação fria.
— Desculpe-me. — Engoliu seco,
organizando-se o mais rápido que pôde, para
desvencilhar-se.
— Está tudo bem — ele disse baixo, com a
voz austera e grave. — Eu… — limpou a garganta,
pois fazia realmente muito tempo que não
dialogava com uma mulher — ...acabo de perceber
que ainda não sei o vosso nome, senhorita.
— Meu nome é Grace — a jovem
respondeu observando-o nos olhos, mas logo
percebeu que não era capaz de ater-se naquele tom
tão intenso de violeta por mais de um segundo.
Por fora, Granville apenas balançou a
cabeça, mas por dentro sentia-se gargalhar com
escárnio.
Grace.
Era claro que a vida colocaria em seu
caminho uma jovem com um nome que a cada
momento o lembraria o quão desprovido de
bênçãos era, tomado em cada parte por maldições.
— E o senhor, milorde?
A pergunta o surpreendeu, pois Samuel se
recordava ter dito em bom tom durante o leilão.
— Granville, senhorita.
— Digo… vosso nome de batismo, meu
senhor…? — A voz dela ainda soava tímida, mas
Grace aos poucos tentava afastar o sentimento.
Aquele mesmo instinto de sobrevivência a levava
a reconhecer que precisava descobrir o mínimo
sobre quem se tratava aquele homem.
Ele uniu as sobrancelhas em um primeiro
momento, pois a pergunta não era aguardada, mas
logo depois se lembrou que Grace era uma moça
simples, acostumada às informalidades e ao
trivial.
— Samuel.
A resposta dele fora simples e direta, como
se o desagradasse dizê-lo, o que era verdade.
O nome o lembrava de quem fora enquanto
o título o lembrava quem agora, por consequência
dos próprios e desgraçados atos, era.
— Assim que chegarmos a Granville Hall,
pedirei que lhe sirvam de comer. Parece estar
faminta. — Ele não pretendia ser grosseiro, mas
demonstrar que não desejava maltratá-la.
Grace se envergonhou com o que a dedução
indicava da própria aparência, mas bem sabia ser
verdade.
— Obrigada.
E, com a simples menção de algo para se
alimentar, o estômago dela começou a contorcer.
— Percebi que não carrega nenhuma maleta
com vossos pertences… — Ele aproveitou para
esclarecer mais aquela dúvida.
— Owen acreditou que meu… — a garganta
dela se fechou ao recordar do termo —
…comprador poderia não aprovar se carregasse
comigo pertences do matrimônio anterior. De
qualquer maneira, não possuía muito além de outro
vestido.
O conde cerrou os dentes ao imaginá-la
vivendo dentre tantas privações.
— Farei com que o assunto seja resolvido.
Grace consentiu em silêncio, temendo que
outro agradecimento a fizesse soar repetitiva.
Porém havia algo que a deixava curiosa a cada vez
que ele falava, e resolveu esclarecer:
— Não é necessário que me chame de
senhorita, milorde. Agradeço a gentileza, mas,
como sabemos, sou uma mulher casada.
— Meu advogado tomará as devidas
providências quanto ao desquite.
Era inegável que o coração de Grace se
enchia de alívio ao pensar que em breve não teria
mais um contrato ligando-a de forma vitalícia a
Doyle, mas igualmente impossível deixar de
sentir-se incerta sobre o próprio futuro.
Afinal de contas, havia sido adquirida por
um conde.
Um conde.
E, diferente dos outros homens presentes no
evento, duvidava muito que o interesse de lorde
Granville sequer chegasse próximo de desposá-la.
Grace mordeu o interior da bochecha.
Seria capaz de viver como amante de
alguém?
Este deveria ser o real interesse do conde
ao comprá-la, não é?
Mas, e se existisse uma possibilidade
diferente…? Uma possibilidade pior?
Sua respiração tornou-se mais acelerada.
— Milorde…
— Falaremos sobre outros assuntos no
momento apropriado — Samuel a interrompeu,
fazendo um movimento pontual com as mãos.
De alguma maneira, já previa o terreno ao
qual as perguntas dela estavam prestes a adentrar,
mas tudo tinha acontecido depressa demais
naquela manhã. Antes do próximo passo, seria
necessário refletir e analisar.
E ela selou os lábios de imediato, pois,
fosse como fosse, ainda não tinha ideia da pessoa
com a qual estava destinada a se envolver.
O silêncio, aliás, viera em um bom
momento, pois Grace duvidava que conseguiria
manter qualquer diálogo ao notar o lugar do qual
se aproximavam, após afastarem-se da parte mais
movimentada da cidade e seguirem durante alguns
minutos por uma alameda silenciosa e reta, que
terminava de encontro a um imenso portão antigo
de grades retorcidas que findavam em pontas
afiadas. Tal portão poderia ter sido belo no
passado, pois em toda sua constituição havia uma
ideia de opulência, mas tornava-se macabro à
medida que os muros que o ladeavam eram
tomados por heras secas e espinhosas.
Foi o próprio cocheiro que teve de descer
da carruagem para abri-lo, fazendo um rangido
alto e enferrujado ressoar.
Grace engoliu seco e, quando a carruagem
voltou a avançar, prosseguiu sua inspeção.
A parte de fora assustava, mas o jardim
mostrava-se ainda mais lúgubre e tenebroso.
Enquanto no resto da cidade a bruma do início da
manhã se dissipava, algo parecia ser responsável
por mantê-la presa ali. Aparentemente, nem mesmo
o sol desejava visitar aquele lugar, que agonizava
por uma mínima parcela de luz. Galhos e arbustos
secos ocupavam toda parte, retorcendo-se em cada
extremidade. Ao invés de folhagens verdes e
frescas, era como se o arvoredo ostentasse garras.
As poucas árvores que ainda possuíam algumas
folhas, as tinham alaranjadas como a estação
exigia, mas até mesmo tal coloração parecia
tornar-se opaca e sem vida por ali. Um vento mais
forte soprou, e Grace observou algumas plantas
secas voarem na direção oposta à qual a
carruagem seguia, como se tentassem fugir da
propriedade.
A jovem estava tão absorta com o enorme e
sinistro jardim, que demorou algum tempo para
perceber que se aproximavam da mansão. Quando
o fez, entretanto, já era tarde demais, e a
construção gigantesca praticamente a engolia, com
suas paredes descascadas e generosas porções de
musgo.
Agora compreendia a aura que o conde
carregava. Uma fonte inesgotável de tristeza e
agonia existia bem ali, no lugar que o pobre
homem denominava como lar.
A carruagem finalmente parou, mas Grace
sentiu os pés se prenderem ao veículo, negando-se
a descer.
Samuel havia permanecido em silêncio
enquanto a notava realizar sua pavorosa inspeção,
e notou os lábios da jovem tornarem-se pálidos,
mas não tinha o que fazer. Se Grace estivesse
disposta a aceitar seus termos teria de saber que,
ao menos pelo tempo necessário, aquela também
seria sua realidade.
— Senhor. — Folkes abriu a porta do
veículo após estacioná-lo.
O valete há muito tivera as funções
ampliadas, bem como a Sra. Plymouth, mas
negava-se a deixar Samuel e, consequentemente,
seu emprego.
Conforme fizera com o pai do atual conde,
prometera dedicar-se a servi-lo a cada momento
de sua vida, e assim o fazia, sem jamais questionar
as escolhas daquele que, por trás de toda a
enxurrada de desgraças, sabia ser um homem bom.
Inclusive, naquela manhã, ao ver Samuel retornar
para a carruagem na companhia de uma jovem,
nenhuma palavra dissera, atendo-se apenas à
função que lhe cabia executar.
Mesmo com as pernas vacilantes, Grace
aceitou a mão que Folkes lhe estendera para ajudá-
la a também descer da carruagem.
— Levarei os cavalos ao estábulo, senhor.
Estarei disponível em poucos minutos — informou
o criado.
Granville anuiu com um movimento de
cabeça e o outro logo saiu em direção aos fundos
do palacete.
Sozinhos, Samuel e Grace permaneceram
alguns segundos parados diante dos primeiros
degraus da porta da frente.
E enquanto ela pensava se desejava mesmo
entrar, visto que sentia os arrepios e tremores
aumentando ao observar as gárgulas assustadoras
que davam forma à aldrava de metal, Granville
fazia o mesmo.
Um impulso dentro dele lhe gritava para que
parasse com aquela loucura, que a tirasse naquele
exato momento dali. Mas era um impulso ainda
maior o que o levava a reconsiderar, enquanto o
pequeno frasco permanecia pendurado em seu
peito, na altura exata de seu coração.
Se Samuel desejasse finalmente ver-se livre
para utilizá-lo, precisava fazer aquilo.
Precisava ao menos tentar!
Após tais segundos de reflexão, ele ergueu a
mão enluvada à jovem, sem sequer observá-la,
mantendo o olhar adiante.
Grace compreendeu o gesto e apertou os
dedos agarrados ao casaco. Um instinto parecia
ordenar que começasse imediatamente a correr,
mas outro ainda mais profundo a fazia sentir que
deveria ficar e aceitar o convite. Aceitar aquela
mão.
Este segundo instinto carregava consigo
imagens de todas as suas mazelas e das
possibilidades que agora poderiam esperá-la se
seguisse sozinha mundo afora, sem contatos, ou
qualquer tipo de proteção. Sua respiração cessou.
Não era o momento de tomar atitudes
temerárias.
Lorde Granville havia dito que possuía uma
proposta a lhe fazer e, considerando suas poucas
prospecções, Grace soube que ao menos isso
deveria esperar.
Respirando fundo, a jovem finalmente
ergueu uma das mãos cobertas pela luva branca e
puída, acomodando-a sobre a dele.
Luz e trevas se uniram, formando um trágico
e magnífico contraste.
Uma respiração discreta e profunda ressoou
nos lábios dos dois que, em seguida, passaram a
subirem juntos as escadas para finalmente
entrarem.
O interior da mansão conseguia ser ainda
mais frio que o lado de fora.
Cortinas pesadas e escuras impediam que a
luz penetrasse dentre a maioria das janelas. Uma
casta iluminação provinda de alguns vitrais
coloridos era tudo o que restava ao ambiente, mas
estes eram pequenos e localizados no alto das
paredes; apenas um dos muitos acréscimos na
decoração deixado pelos senhorios anteriores.
Acuada pela atmosfera densa e soturna,
Grace voltou a apertar com as mãos o casaco em
torno dos ombros quando Granville se afastou
dizendo que iria em busca de alguém. O conde
chegou a pronunciar um nome, mas ela estava tão
nervosa que não foi capaz de escutar.
O hall de entrada era espaçoso, e logo
adiante se via uma enorme e larga escada,
adornada com corrimãos de imbuia repletos de
entalhes, que ascendia aos demais andares com um
imenso caracol. O centro dos degraus era coberto
com um tapete vinho, o qual Grace acreditava ser
vermelho a princípio, mas com o passar dos anos,
como o restante da decoração, acabara por perder
a cor.
Diferente do exterior da mansão, porém, o
interior demonstrava receber certo tipo de
cuidado. Ainda assim, não ostentava a opulência
que sempre imaginou existir na residência de um
nobre, mas o ar triste e melancólico de um lar
austero e vazio de emoção.
De repente, enquanto os olhos de âmbar
ainda analisavam o espaço, Grace pôde sentir que
alguém se aproximou por trás. Ela se virou para
observar de quem se tratava, mas quando o fez
enxergou apenas a enorme porta fechada atrás de
si. Seguia sozinha. O que lhe pareceu estranho,
pois continuava com a sensação de compartilhar o
espaço com outro alguém.
A jovem engoliu seco, sentindo-se pequena
em toda aquela imensidão.
O silêncio era praticamente absoluto,
cortado apenas pelo vento que batia nos galhos
secos do jardim e pela madeira dos degraus da
escada que vez ou outra estalava.
A imaginação pode ter espírito infantil e
alegre quando deseja, mas em tais situações,
consegue ser perversa.
Todavia, Grace sabia que o que sentia
naquela casa não era fruto de sua imaginação; toda
a propriedade parecia agonizar, e seria capaz de
assegurar isso com a sensibilidade oferecida por
seu dom.
A tal presença voltou a rodeá-la, e desta vez
de modo ainda mais real, visto que parecia ter
puxado o casaco que então lhe escorregava dos
ombros.
Virando-se de imediato, viu-se sozinha
novamente, e um suor nervoso começou a brotar
em sua nuca.
— Senhorita?
Praticamente saltou ao ouvir o chamado de
lorde Granville, do outro lado do hall.
Junto dele uma senhora de cabelos
grisalhos, corpo roliço e vestes cinzentas a
observava.
— Está tudo bem? — Deu um passo adiante
ao notá-la assustada.
— Está — Grace mentiu, esforçando-se
para manter a voz e abaixou-se para recolher o
casaco do chão. — Desculpe-me por tê-lo
derrubado, milorde.
Granville balançou a cabeça, deixando
claro que o pedido de desculpas não era
necessário e prosseguiu:
— Srta. Grace, gostaria de apresentá-la à
Sra. Plymouth, governanta de Granville Hall.
— Sra. Plymouth. — Grace realizou uma
vênia, como se fosse ela a criada.
A governanta olhou para o conde,
visivelmente encabulada.
Em outra época, Samuel teria rido com a
cena, mas sorrir era algo que já não fazia.
— A Sra. Plymouth está aqui para servi-la,
senhorita Grace — esclareceu.
Foi a vez da senhora realizar um
cumprimento formal à Grace, deixando-a
encabulada pela falta de habilidade que
demonstrara com o próprio.
— É um imenso prazer conhecê-la,
senhorita.
— Tudo o que necessitar, poderá ser
solicitado à Sra. Plymouth e ao Sr. Folkes.
— Sr. Folkes? — indagou Grace.
— Meu valete, que nos trouxe até aqui.
— Imaginei ser o cocheiro.
O comentário fora inocente, mas gerou certo
desconforto ao recordá-lo da quantidade de
informações excêntricas sobre a mansão que ainda
teria de compartilhar.
— Também. — Por ora, deu-se por
satisfeito ao responder isso. — Agora a Sra.
Plymouth irá acompanhá-la até meus aposentos
para que possa se lavar e descansar um pouco.
Também pedi que lhe seja servido um chá.
Os olhos de Grace nem mesmo piscavam.
— Vossos aposentos? — Tinha certeza de
que as bochechas estavam vermelhas de tanto que
queimavam.
Imaginava que lorde Granville fosse, pelo
menos, apresentar os tais “termos” antes de todo o
resto.
— Permanecerei em meu escritório até que
os vossos estejam devidamente preparados,
senhorita. — Ele compreendeu a indagação.
A falta de preparo de qualquer acomodação
para recebê-la era mais um indício de que havia
ido até o porto com o claro objetivo de falhar em
sua missão, naquela manhã. Mas, como o destino
possuía sempre os próprios meios para
trabalhar…
— Pedirei a Folkes que busque a modista
ainda esta tarde, para que tenha algo a vestir até o
jantar.
— Milorde, talvez tenhamos que contar com
o ajuste de algum modelo pronto, visto que
teremos poucas horas — a Sra. Plymouth
esclareceu.
— Conto com vossa eficiência para
escolher algo adequado a uma futura condessa —
disse-lhe Samuel.
A boca de Grace se abriu.
— Perdão? — Foi a vez dela se aproximar
em um passo, certa de que havia escutado errado.
A Sra. Plymouth o observava com espanto
similar apesar de, intimamente, sentir-se satisfeita
com a notícia.
— Agora lhes peço licença. Alguns assuntos
demandam minha atenção — o conde respondeu de
modo furtivo, sabendo que realmente tinha muito a
analisar.
Grace o viu caminhar ao longo corredor que
se estendia em direção à ala oeste, e não teve
coragem nem força suficiente para qualquer coisa
dizer. Ainda tentava absorver o significado que
aquela fala poderia carregar.

O aposento suntuoso era impregnado de


algo masculino, decorado em tons de dourado e
carmim. Diferente dos poucos espaços da
residência que pudera vislumbrar, aquele parecia
de fato ser habitado, inclusive, oferecendo algum
calor graças ao fogo crepitante na lareira.
— Uma jovem tão graciosa deveria ter mais
do que trapos para vestir.
A Sra. Plymouth não percebia que os
pensamentos lhe escapavam em voz alta, enquanto
auxiliava Grace a retirar o vestido.
— Acredite ou não, este é o melhor de meus
trajes — buscou responder com algum humor,
demonstrando que não se envergonhava de quem
era e reconhecia a própria origem.
— Ah, sinto muito, senhorita. Não
pretendia...
— Está tudo bem — Grace a tranquilizou.
Em seguida, caminhou até a banheira
disposta diante da lareira, observando-a com
admiração antes de entrar. Um vapor suave
denunciava a temperatura agradável da água.
— Há algo errado?
— Não… não há nada. — Grace inclinou o
corpo, coberto apenas por sua fina e desgastada
camisa de baixo, e deixou que os dedos
submergissem, balançando-os suavemente. —
Acontece que nem me lembro a última vez que tive
algo assim…
— Uma banheira?
— Água quente.
O coração da governanta se contraiu, bem
como as sobrancelhas grisalhas.
Com passos sutis, caminhou até Grace
oferecendo-lhe a mão para ajudá-la a entrar. A
jovem sentiu a calidez das águas relaxarem seus
músculos exaustos enquanto pouco a pouco
permitia-se submergir. Também fora gradual o
sorriso tímido e satisfeito que brotou em seus
lábios.
— Não imagino pelo que já tenha passado,
e nem mesmo cabe a mim questionar, mas ouviu o
que lorde Granville disse há pouco… Vossos dias
de privação acabaram, senhorita.
A Sra. Plymouth, assim como Folkes,
dedicava a própria vida a zelar por Samuel e o
fazia sem jamais o questionar uma só ordem
devido ao carinho e respeito que o tinha,
principalmente reconhecendo o tamanho da dor
que o acompanhava. Era por isso que ouvi-lo dizer
que pretendia se casar a deixara extremamente
satisfeita, mesmo que a notícia fosse inteiramente
inesperada. Qualquer chance de vê-lo reaver a
mínima parcela de alegria ou satisfação na vida
lhe era suficiente. Amava-o como a um filho e
estaria disposta a qualquer coisa para voltar a vê-
lo algum dia sorrir como o jovem contente que
fora anos atrás.
Grace ouviu as palavras da senhora, mas
teve medo de soar indelicada ao fazer-lhe
qualquer pergunta, por mais que desejasse. Em seu
interior, algo lhe dizia que os tais “termos”
deveriam ser muito específicos se trouxessem
consigo a possibilidade de torná-la algo que
jamais poderia imaginar.
De miserável à condessa em um único dia…
Tremia em considerar o preço estipulado
para tão absurda transformação.
Nos minutos seguintes, as duas mulheres
permaneceram em silêncio enquanto a governanta
a auxiliava a lavar também os cabelos dourados.
Para Grace, a sensação de ficar completamente
limpa era indescritível; energizante.
Na vila onde morava, banhos de imersão
como aquele só eram possíveis nas águas frias do
lago, e durante o verão. No restante do ano
mergulhar seria pedir para adoecer, e por isso era
necessário contentar-se com escassas e precárias
limpezas, utilizando-se de panos úmidos na maior
parte das vezes.
A verdadeira pobreza da humanidade se
enxerga quando o básico é visto como privilégio.
Após o banho, a Sra. Plymouth serviu o chá
acompanhado de bolinhos de gengibre e Grace se
alimentou de acordo com a fome que estava, visto
que não colocava nada de substancial no estômago
há praticamente dois dias. Não seria surpresa
dizer, entretanto, que mesmo após suprir a
primária necessidade, não conseguira dormir.
Mesmo tendo à sua disposição a cama mais
confortável e convidativa que já vira, a jovem
simplesmente não pudera, pois sua mente estava
tudo, exceto próxima de relaxar. Para o corpo,
água quente bastava…, mas o que fazer quando os
pensamentos a agitavam internamente, produzindo
o efeito de um turbilhão?
Quando a Sra. Plymouth lhe informou que
precisava tratar do jantar e da organização do
aposento que lhe seria destinado — comunicado
que achou curioso provir da governanta —,
deixando-lhe sozinha, Grace começou a caminhar
de um lado ao outro do quarto e seu caminho
tornou-se tão repetitivo que as tábuas sob o tapete
começaram a ranger.
Logo, cansada do mesmo itinerário,
permitiu-se analisar outras áreas do cômodo,
buscando convencer a si mesma de que não
cometia qualquer indiscrição. Ela caminhou até o
closet — um quartinho discreto de onde a Sr.
Plymouth retirou o robe enorme e macio que agora
vestia — e também até a sala de banho anexa ao
quarto, onde pôde ver alguns dos pertences
pessoais do conde, como seu kit de barbear. Este
encontrava-se em uma caixinha de madeira, mas
como estava aberta, Grace não hesitou em se
aproximar e observar alguns detalhes. Era
composto por um pincel que parecia ser
extremamente macio, uma navalha de empunhadura
ornamentada em metal e um potinho pequeno, onde
acreditou encontrar-se o pó de sabão. Nos meses
mais quentes, imaginou que o conde deveria
banhar-se ali e não em frente à lareira, do modo
como a Sra. Plymouth organizara a banheira aquela
tarde.
Apesar de carregar certo ar misterioso,
assim como o proprietário, a jovem logo percebeu
que o quarto, depois de algum tempo e junto das
observações de tais elementos triviais, deixava de
parecer tão sombrio. Ou ao menos foi o que
chegou a imaginar, mas apenas até notar que entre
uma das paredes divisórias de carvalho entre os
ambientes, encontrava-se camuflada uma porta.
Seus olhos brilharam.
Para a mente agitada e confusa, uma porta
camuflada pareceu o gênero perfeito de distração.
O que lorde Granville teria guardado ali?
Que segredos o ambiente omisso poderia
segredar?
A jovem caminhou até ficar muito próxima
da discreta fechadura que delatava a existência da
passagem e estendeu a mão, chegando a tocar a
madeira. Ao fazê-lo, porém, sentiu uma força
intensa e pesada atingi-la como se a transpassasse,
e dado o susto pelo impacto, seu braço estagnou. A
garganta de Grace ficou seca; seus pelos
arrepiaram.
A ideia de que poderia não estar preparada
para ver o que a porta omitia a fizera reconsiderar.
O Conde Assassino.
As palavras sussurradas por inúmeras vozes
durante o leilão começaram a ecoar em sua mente,
povoando-a com os pensamentos mais medonhos.
Grace afastou a mão e, no instante seguinte,
passou a caminhar lentamente para trás.
Assustada, foi até a poltrona localizada
diante da lareira, e resolveu permanecer ali
enquanto a incerteza e o temor se espalhavam e
criavam raízes em seu interior.
Cada parte daquela casa parecia carregar
algo que, fora a essência sinistra, ainda não era
capaz de identificar e, mesmo sabendo de todas as
dificuldades e mazelas que enfrentaria sozinha no
mundo exterior, foi impossível não voltar a
indagar a si mesma: se seus instintos continuassem
alertando-a de tal maneira, seria capaz de
permanecer?
O Conde de Granville encontrava-se em um
aflitivo estado de agitação.
Apesar de buscar se manter concentrado nos
documentos que redigia com a mão esquerda, os
dedos da direita tamborilavam impacientemente
sobre a mesa.
Até mesmo a característica motora dos
amaldiçoados[1] carregava.
Porém, naquele momento pensava que seria
um homem muito feliz se fosse esta sua única
mazela. Pouco depois de chegar, após apresentar
sua futura condessa — ao menos assim esperava
— solicitou que Folkes fosse até a residência de
seu advogado, a poucas milhas de distância, e o
convocasse para Granville House com urgência. O
valete (mordomo, cocheiro, secretário etc.) de fato
o fizera, mas retornara ainda mais rápido,
comunicando que, para a infelicidade de Samuel,
este não se encontrava em Liverpool.
Folkes permaneceu em silêncio por alguns
minutos enquanto ouviu o senhorio vociferar, mas
manteve-se a postos por saber que uma nova ideia
surgiria após a explosão, o que não demorou a
acontecer. Na segunda vez, Granville o solicitou
que fosse em busca do Sr. Carter com urgência,
pedindo para frisar que o assunto do qual
necessitava tratar pertencia ao gênero de “vida ou
morte”, e ficou satisfeito ao ver que o criado
retornara minutos depois, ao lado do rapaz.
— Tenho uma agenda bastante atribulada,
sabe?
Nem bem William passara pela porta do
escritório, já buscava provocá-lo.
— Finalmente.
O conde se adiantou, caminhando até o
jovem com as mãos cheias de papéis.
— Confesso que esperava uma recepção um
pouco calorosa, visto que este é o primeiro
convite que recebo em vários anos, mas estou
inclinado a ignorar suas falhas. Já tive o suficiente
para me preocupar essa manhã.
Massageou as têmporas, lembrando-se da
situação em que um outro amigo há poucas horas o
envolvera.
— Excelente. — Granville nem parecia
ouvi-lo, enquanto William sentava-se em uma das
poltronas de couro. — Agora, leia isso. —
Entregou-lhe as folhas.
Carter ergueu uma sobrancelha desconfiada
antes de tomar os papéis em suas mãos.
Deixou os olhos percorrerem as linhas de
grafia impecável e firme enquanto Samuel
caminhava de um lado ao outro à sua frente.
— Santo Deus, homem, será que pode
parar?
O movimento o deixava irritado, é verdade,
mas a visível agitação de seu amigo mais taciturno
o intrigava ainda mais.
Granville não ofereceu uma resposta, mas
se acomodou na poltrona ao lado, fazendo um
esforço homérico para não bater com o pé no chão.
— Não sabia que havia resolvido assumir
vossas funções no parlamento — William
comentou enquanto notava se tratar de uma minuta
formal.
— Não resolvi.
A resposta seca e pontual fez Carter erguer
os olhos.
— Mas então, do que se trata isso? —
Sacudiu as laudas.
— Preciso que verifique se os termos estão
de acordo ao de um processo de desquite.
A confusão de Will tornou-se ainda mais
aparente. O jovem se levantou.
— Para manter o advogado, está prestando-
lhe favores e adiantando outros serviços? —
praticamente zombou.
Irritado, Samuel também se ergueu.
— Se não pretende ajudar… — Esticou a
mão para tomar de volta a papelada, mas William
as puxou com um reflexo admirável.
— Seja sincero comigo, Granville, do que
se trata?
— Se está sendo incapaz de identificar, já
tenho minha resposta. — Voltou a esticar as mãos
para pegar os documentos e William teve a mesma
reação da vez anterior.
— Está nítido que se trata de um processo
de separação conjugal. O que me intriga é saber
quem são Owen e Grace Doyle.
Sabendo que não haveria motivos para
seguir omitindo a verdade, Granville resolveu
esclarecer:
— O homem é o tipo mais desagradável que
já conheci em toda minha vida… — Levou as
mãos unidas às costas, postando-se formalmente.
— E a jovem, se tudo correr conforme o esperado,
será minha condessa.
Carter abriu os olhos com surpresa e seus
lábios seguiram o movimento.
— Quer dizer que esta manhã quando o vi
no porto, você realmente…
— Participei do leilão de esposas.
— Santa mãe — o murmúrio baixo escapou
enquanto William voltava a se sentar.
Foi a vez de Granville demonstrar
incompreensão.
— Não o entendo. Afinal de contas, foi
você que me instruiu a fazê-lo e, como bem disse,
viu quando eu estava no local.
— Sei disso, sei disso.
Parte de Carter realmente se orgulhava em
ver suas ideias serem consideradas por Samuel
que, geralmente, não solicitava ou aceitava auxílio
de ninguém. Entretanto, agora que se tornara real
tal ideia parecia distribuir um peso maior em seus
ombros, pois direta ou indiretamente, também se
sentia responsável pela jovem que nem mesmo
conhecia.
Seus olhos voltaram a percorrer as linhas
do papel.
— Por que está cuidando dos documentos
ao invés do advogado?
— Parkins não está em Liverpool. —
Esfregou o rosto, exasperado.
— Provavelmente está acordando com a
outra empresa os termos para deixá-lo… — Will
murmurou com ironia, o que roubou de Granville
uma encarada mortal.
— Não o trouxe aqui apenas para analisar
os documentos — disse o conde, voltando a se
sentar, também. — Disse a Doyle que meu
advogado o encontraria amanhã na taverna do
porto para tratar dos trâmites.
— Mas se acaba de dizer que…
— Que vossos serviços estão
temporariamente contratados, Sr. Carter.
Incrédulo sobre a artimanha demonstrada
pela mentira do amigo, William inclinou a face,
apertando os olhos.
Granville era cruel a ponto de nem mesmo
questioná-lo, sabendo que sua lealdade o levaria a
cumprir qualquer solicitação. No entanto, não
deixou de espezinhá-lo:
— Saiba que meus honorários são caros.
— Desde que obtenha êxito em vossas
funções, não me importarei em lhe pagar.

Nem bem Carter deixara o escritório, a Sra.


Plymouth entrou.
— Tudo foi organizado com a Srta. Grace,
milorde, e aproveitei que o Sr. Folkes levava o Sr.
Carter para solicitar que fosse até a modista.
Encaminhei a ela uma missiva comunicando a
urgência de nossa situação.
— Excelente, Sra. Plymouth. — Samuel
ergueu os olhos dos livros de registro nos quais
trabalhava para agradecer.
Mas então, quando imaginou que ela iria se
retirar, a governanta deu um passo, aproximando-
se da mesa.
— Milorde, sei que não lhe agrada a ideia
de termos mais funcionários em Granville Hall,
mas penso que com a chegada de uma condessa
seria viável considerar um acréscimo… — Sua
voz demonstrava todo o receio dos dizeres.
Apesar de lorde Granville ser sempre bom
e tranquilo consigo, sabia que as circunstâncias
passadas o haviam deixado sensíveis ao tema.
— Um acréscimo?
— Sim, milorde… uma jovem condessa
como será a Srta. Grace necessitará de uma dama
para acompanhá-la e suprir-lhe as necessidades
mais íntimas.
— Sra. Plymouth… — Samuel começou a
protestar.
— Antes que imagine diferente, asseguro
que jamais me importaria em fazê-lo, mas temo
que minhas outras atribuições tornem pouco de
meu tempo disponível para ela.
Incomodado por reconhecer que a Sra.
Plymouth dizia a verdade, Samuel bufou.
— Por mais que eu concorde com o que diz,
Sra. Plymouth, sabe dos motivos que carregam
minha decisão de não manter outros funcionários
empregados na mansão — relembrou em voz séria
e, ao fundo, sofrida.
A ideia de que havia abrigada sobre o
próprio teto mandante e executor do assassinato de
seu pai e irmão diariamente o corroíam.
Além das três pessoas que mantinha em seu
estreito círculo, Samuel sabia que não era seguro
confiar em mais ninguém. A vida o mostrara que
era assim.
— E se fosse alguém realmente de
confiança, senhor?
— Não é possível garantir isso, Sra.
Plymouth.
— Ah, mas eu poderia fazê-lo ao tratar-se
de minha própria sobrinha.
Uma sobrancelha escura se ergueu.
— Pensei que vossos familiares morassem
todos em Warrington…?
— E de fato moram, milorde, por isso viajo
para lá em minha semana semestral de folga.
Acontece que, da última vez, minha sobrinha mais
velha, Vivienne, disse que estava considerando
mudar-se para Liverpool em busca de emprego.
— Não consegue encontrar algo por lá?
— Não com a fama que meu cunhado
possui... — Os olhos da Sra. Plymouth se
abaixaram. — Envergonho-me em dizer isso, mas
não é o tipo que consideram confiável,
compreende? E, infelizmente, a mancha em sua
honra espalhou-se sobre toda a família.
Samuel suspirou alto, deixando claro que
bem entendia. De fato, uma má fama era algo
contra qual pouco adiantava lutar, tivesse o
portador desta genuína parcela de culpa ou não.
Além disso, há muito a Sra. Plymouth se
desdobrava sem nunca reclamar para servir
Granville Hall e ele considerou que aceitar a
vinda da sobrinha seria o mínimo que pudesse
fazer para demonstrar que lhe guardava gratidão.
— Está certo, Sra. Plymouth, pode enviar
um comunicado à vossa sobrinha dizendo que o
cargo de dama da condessa a aguarda.
Ainda que singelo, um sorriso se abriu nos
lábios da governanta, que se inclinou até a mesa,
segurando a mão enluvada do senhorio.
— Muito obrigada, senhor!
Na sequência, Granville a viu deixar o
recinto e resolveu esticar um pouco as pernas
caminhando até a janela que dava para os jardins
da mansão. Ele afastou as cortinas pesadas e
observou os arbustos secos e espinheiros que
precediam a área do jazigo. Uma chuva fina
começou a cair. Dentro de poucas horas o jantar
seria servido e sua proposta à Srta. Grace feita, e
era impossível não ser invadido pela expectativa.
A resposta da jovem agora se tornava a única
barreira que o impedia de finalmente se aproximar
daquele que se tratava de seu destino: ocupar o
espaço que também lhe cabia no sepulcro.
Grace observava o reflexo no espelho, mas
não era capaz de reconhecer a própria imagem. A
figura distinta e feminina diante de si não parecia
ser ela.
— Très belle, ma chère![2] — a modista
elogiou ao terminar os últimos detalhes da
bainha.
Conforme a Sra. Plymouth havia previsto, a
urgência tornou necessário o ajuste de dois
modelos que trouxera prontos do ateliê. Ao saber
que os serviços eram solicitados para a Granville
Hall, aliás, Madame L’afaiat fizera questão de
levar consigo peças em tons de luto e semiluto,
sendo de conhecimento popular que o conde há
anos carregava tal estado de espírito.
— Até mesmo cinza lhe cai bem, Srta.
Grace. Não concorda, Madame L’afaiat? — A
governanta se encantava com a imagem da futura
condessa.
— Oui, oui![3] — afirmou a outra, com um
sotaque mais francês do que muitos compatriotas
genuínos ostentavam.
Grace recebeu os elogios em silêncio
enquanto as bochechas enrubesciam. De fato,
jamais havia se sentido tão bela, mas seguia sendo
estranha a sensação de não reconhecer a si mesma,
e o pior era saber que não o fazia apenas em
relação à própria imagem, mas também sobre as
considerações que forjava acerca da oferta que
considerava aceitar.
Naquela tarde, mesmo sentindo cada fibra
de seu ser clamar para que deixasse a mansão e se
afastasse de tudo que ali poderia estar segredado,
foi incapaz de fazê-lo ao colocar à frente suas
considerações racionais que, de um modo ou de
outro, também demonstravam lutar pela própria
sobrevivência.
Grace não possuía família ou casa para
onde voltar. Não possuía ninguém.
Além disso, não sabia ler, escrever e
recebera na vida pouquíssima instrução. Como
faria para se manter? Que meio encontraria para se
alimentar?
Tudo que conhecia da vida resumia-se à
carente vila de onde vivera em Kirkdale e à
fábrica na qual Owell arranjara serviço por lá,
mas retornar para aquela cidade estava fora de
questão.
A modista partiu com as encomendas em
poucos minutos e a Sra. Plymouth tomou para si a
tarefa de lhe organizar os cabelos em um penteado
ornamentado, mas Grace seguia com as
divagações.
Novamente em frente a um espelho, mas
agora sentada diante da penteadeira, tinha o olhar
distante enquanto considerava sobre a realidade
que a maioria de pobres mulheres como ela
recebiam do mundo ao serem agraciadas com
alguma beleza: a prostituição.
A ideia formava um bolo em sua garganta e
trazia uma sensação nauseante. Imaginar ter o
corpo tocado irrestritamente por homens como
Doyle — ou ainda piores do que ele — a enchia
de pavor. Ainda se recordava do aroma podre de
cevada que provinha de sua boca a cada vez que
se aproximava para satisfazer seus desejos carnais
em certas noites. Sendo ele seu marido, Grace não
possuía muita escolha além de ceder, mas
lembrava-se de correr para o fundo da choupana
onde moravam e chorar após o término de cada
relação. Isto quando não possuía algo no estômago
e o corpo apresentava reações ainda piores. De
qualquer maneira, em todas as ocasiões, sentia-se
suja, molestada. Uma boneca de trapos da qual
Owen tirava proveito a cada vez que lhe fosse
necessário aliviar.
Não, ela não suportaria esta vida. Não
suportaria a ideia de sentir o mesmo dia após dia
com homens, cheiros e gostos diferentes, mas
igualmente repulsivos.
Imaginava que a proposta de lorde
Granville, na pior das hipóteses, a faria ter aquele
tipo de relação apenas com ele, e um sacrifício de
uma única face lhe parecia infinitamente mais
viável de se cumprir. A preocupação ao considerar
tal hipótese, porém, era acompanhada por uma
nova, uma vez que Grace não possuía certeza de
que, caso aceitasse, seria capaz de satisfazer todas
as necessidades que o lorde desejava ter supridas.
Cumprir seus deveres de esposa não seria o único
desafio… Dentre todas suas limitações,
conseguiria mesmo se tornar uma condessa?
— Pronto, senhorita — a Sra. Plymouth
informou que havia concluído o trabalho e Grace
voltou a fitar o próprio reflexo.
Seus cabelos haviam sido reunidos em uma
elaborada trança e depois enrolados como um
vistoso caracol no topo da cabeça. Alguns fios
ondulados emolduravam o rosto e a proximidade
dourada destacava o mesmo tom luminoso em seus
olhos.
— Já faz muito tempo que não tenho este tipo
de serviço, mas espero que tenha ficado de
vosso agrado.
A última mulher que havia penteado fora a
mãe de Samuel, e isto quando ainda se tratava de
uma jovem solteira. Após tornar-se condessa, lady
Lucille fizera questão de levá-la para Granville
Hall, oferecendo-lhe o cargo de mais alto prestígio
na mansão.
— Ficou excelente, Sra. Plymouth. Muito
obrigada. — Grace foi sincera ao agradecer.
E, como um último toque de esmero, a
governanta prendeu entre os gomos da trança uma
belíssima pena negra, também levada pela modista
junto de outros ornamentos.
De fato, o reflexo assegurava que poderia
assemelhar-se a uma dama do lado de fora, mas
estaria lorde Granville ciente de que não existiam
artifícios similares para transformar quem
realmente era por dentro?

Samuel fechava os botões da camisa preta


quando Folkes entrou no escritório, carregando o
restante dos trajes.
— Necessita de ajuda, milorde? —
questionou ao deixá-los sobre a mesa.
— Não é necessário — o conde respondeu
até mesmo com certa rispidez, mas sequer notou
que o fazia.
Estava com os nervos agitados pelo jantar
que seria iniciado dentro de poucos minutos, e não
conseguia pensar em nada além de causar em
Grace uma boa impressão, o que não era comum.
Ela precisava aceitar.
Seus dedos tocaram os botões mais
próximos da gola e, naturalmente, roçaram no
pequeno recipiente que trazia pendurado junto ao
peito. Ele interrompeu a tarefa para segurá-lo e
observar o líquido escuro ali guardado. A singela
dose seria suficiente para que todo o martírio
acabasse, e a carregava na esperança de algum dia
ser invadido pela coragem súbita e repentina de
tomá-la.
Naquela manhã, uma década atrás, o médico
que atestara a morte por envenenamento em lorde
Granville e seu legítimo herdeiro não fora capaz
de identificar a substância responsável, gerando o
laudo através de observações técnicas e pontuais.
Mesmo sem os pesadelos diários, Samuel jamais
se esqueceria do pavor vítreo presente nos olhos
saltados do pai e irmão ou da pele arroxeada
característica daqueles que expiram em uma busca
agonizante por ar. Jamais seria capaz de apagar de
sua memória as línguas escuras e inchadas, e muito
menos as rosas vermelhas e murchas que
repousavam sob suas mãos rígidas e frias.
Porém, apesar da cena revelar a causa da
morte, Samuel não se deu por satisfeito e, nos dias
seguintes, como o espectro atormentado que se
tornara, foi em busca de mais. Tal jornada o levou
a caminhos desconhecidos, sobre quais poucas
almas temerosas deveriam saber, até finalmente
conhecer um homem que poderia lhe dar a resposta
tão almejada, nos subúrbios mais afastados de
Liverpool. Após ouvir sobre a descrição dos
corpos e a incapacidade dos legistas em
identificar os detalhes, o tal homem, que se
identificava apenas como mestre, questionou sobre
a existência de determinada flor em seus jardins;
existência que naquela mesma noite o conde pôde
confirmar.
Acônito.
Aparentemente, Cassandra não possuía uma
ligação especial apenas com as rosas, tendo
escondido entre as sebes um pequeno canteiro de
belas flores roxas e mortais, das quais conseguira
extrair o veneno desejado a seu bel prazer.
O mesmo veneno que Samuel passara a
carregar junto de si desde então, e que o faria
sentir na pele suplício similar ao qual destinara
seu pai e irmão, da forma como lhe parecia ser
justo a própria morte encontrar.
— Senhor? — Folkes se aproximou ao
observá-lo concentrado.
Samuel soltou o vidro.
— Meu colete, Folkes, por favor. — Buscou
disfarçar o quanto pôde.
Quando terminou de se vestir, necessitando
da ajuda do valete para ajustar o nó do lenço,
Granville tomou em sua mão o pequeno espelho
que tinha sobre a mesa para observar a própria
imagem.
As constantes olheiras, resultado das noites
mal dormidas, seguiam sob seus olhos, recebendo
algum destaque na pele clara, e os cabelos pretos,
um pouco mais longos do que ditava a moda
vigente, roçavam sobre a extremidade do
colarinho, mas de modo geral parecia um homem
limpo e bem-cuidado, que guardava em seus traços
harmoniosos lembranças da beleza pela qual anos
atrás muitas mulheres suspiravam, o que o levou a
considerar que, ao menos, não seria capaz de
afastar a pobre jovem por repulsa ou pavor.
Ao menos, não até comunicar suas ideias.

Granville se colocou de pé assim que Grace


chegou à sala de jantar. Obviamente, a atitude era
o mínimo esperada de seu cavalheirismo, mas
agradeceu por ter de fazê-lo ao notar certa
dificuldade em preencher de ar os pulmões quando
voltou a vê-la.
Ela estava sublime.
Mesmo trajando um vestido que mesclava
tons de cinza e lilás, que em outras mulheres
transmitiria a ideia de dor e tristeza, o brilho
dourado que trazia em sua constituição natural
parecia ainda mais decidido a reluzir naquela
noite. Os longos cabelos haviam sido recolhidos, é
verdade, mas desta forma davam às outras
características do rosto perfeitamente desenhado a
chance de também brilharem.
— Boa noite, milorde — ela o
cumprimentou assim que o viu, e Folkes se ocupou
da função de puxar-lhe a primeira cadeira ao lado
direito da mesa, deixando-a à frente do conde.
O fato de o assento da ponta ser mantido
vazio, e não ocupado pelo senhorio, não passou
despercebido por Grace, mas a jovem nada
questionou.
— Srta. Grace. — Granville realizou um
movimento sutil de cabeça, aproveitando para
desviar os olhos da pele graciosa que o decote
singelo oferecia.
Após tê-la acomodada, ele também se
sentou e Folkes começou a retirar as tampas que
preservavam o calor dos alimentos postos.
Se em um primeiro momento Grace não
havia sido capaz de identificá-lo, estando muito
concentrada no fato de voltar a ver lorde Granville
e seus intensos olhos violeta, agora percebia que
se tratava do cocheiro — ou valete, mordomo,
copeiro — que a levara até a mansão.
Enquanto a refeição era servida, Samuel
aproveitou que Grace mantinha os olhos baixos
para observar mais alguns detalhes de seu rosto,
finalmente limpo e bem-tratado como deveria ser.
Apesar de ostentar a pele levemente bronzeada,
algo que seria considerado indevido dentre as
damas da aristocracia, tal característica não
parecia ser um erro nela. Uma pele pálida e lívida
não combinaria em nada com a jovem, pois não
transmitiria a ideia de calor que toda a bela
composição teimava em ostentar.
Aliás, apesar da lareira acesa, Samuel se
recordava de sentir o cômodo frio quando entrou,
mas, curiosamente, a sensação foi atenuada depois
que a Srta. Grace chegara. Nas velas espalhadas
por candelabros e castiçais, inclusive, as chamas
alaranjadas pareciam mais incandescentes,
ondulando como se algo as tornasse mais vívidas,
inclinadas a dançar.
— Milorde?
Samuel despertou de sua análise ao ver que
Folkes esperava uma resposta para finalmente
servi-lo, tendo uma bandeja de tubérculos assados
nas mãos.
— Ah, sim. Por favor. — Granville
esperou, e viu o delicado nariz de ponta arrebitada
remexer enquanto Grace observava com atenção a
decoração ao seu redor ao invés de dar atenção ao
alimento em seu prato.
— Não gosta de aves?
Ela olhou imediatamente o próprio prato,
mais generoso do que qualquer outro servido em
sua vida. Apesar de possuir excelente mão para a
cozinha, a Sra. Plymouth tinha muitos afazeres com
os quais se ocupar, o que tornavam restrito o
número de iguarias servidas em Granville Hall.
Entretanto, sendo aquele jantar variado ou não, a
moça o enxergava como um verdadeiro banquete.
— Ah, não… quero dizer, sim — enrolava-
se, sentindo os olhos intensos tornarem-se a cada
instante mais escuros. — Na verdade, o aroma está
delicioso e tenho certeza de que o sabor também
estará. Apenas me distraí um pouco enquanto
observava aquele quadro.
Samuel virou o rosto discretamente, mas
seus olhos se abaixaram após fitarem por um
mísero segundo o referido retrato, disposto acima
da lareira.
— É uma obra muito bonita — Grace
comentou em voz branda, realmente encantada.
Dois meninos de cabelos volumosos, um de
fios mais escuros e outro com fios acobreados,
posavam ao lado de uma dama de porte magnífico,
cabelos negros, sorriso gentil e olhos do mais puro
anil. Na verdade, em um primeiro momento, foram
os magníficos e expressivos olhos daquela mulher
que chamaram sua atenção com algo diferente. No
retrato, ela estava acomodada em uma poltrona
luxuosa de pés altos e curvados. O fundo da
imagem fazia alusão a uma floresta, banhada por
reflexos e sombras, como se o quadro tivesse sido
pintado em um cenário bucólico ao entardecer.
— Obrigado. — A voz de Samuel ficou
automaticamente mais séria.
— O menino mais jovem, de cabelos
escuros… trata-se do senhor?
— Sim.
Ele ficou desconfortável e a resposta curta
demonstrou isso. Grace, entretanto, estava imersa
demais para notar.
— O outro…
— Francis. — O conde puxou o lenço que
trazia ao redor do pescoço e a atitude não escapou
aos olhares atentos de Folkes, que seguia de pé ao
lado da mesa, no mais completo silêncio. — Meu
irmão mais velho. Na verdade, costumava chamá-
lo de Frank. Como já deve imaginar, a dama do
retrato trata-se de nossa mãe. — A voz soava
ainda mais séria.
— Imaginei que sim. — Grace esboçou um
sorriso. — Possuem os mesmos traços do senhor.
— Possuíam.
A correção de Samuel a retirou rapidamente
de seu estado contemplativo e seus lábios ficaram
entreabertos ao compreender a tolice cometida.
Era óbvio que o irmão mais velho do conde, assim
como o pai, estaria falecido para que fosse ele o
atual detentor do título. Poderia desconhecer muita
coisa sobre o mundo da aristocracia, mas o pouco
conhecimento que tinha deveria ao menos tentar
utilizar.
— Eu sinto muito. — Foi tudo o que se
sentiu capaz de dizer, consternada, voltando a
abaixar os olhos.
Samuel aceitou em silêncio as condolências
e buscou se reorganizar.
Aquele era o tipo de curiosidade que a
jovem naturalmente teria, e não deveria
surpreendê-lo.
— Espero que a visita da modista tenha
sido de vosso agrado — comentou após algumas
garfadas, depois de fervilhar a mente em busca de
um assunto capaz de evitar que o clima incômodo
perdurasse.
Precisava mantê-lo o mais ameno possível
até chegarem ao tema principal.
— Com toda certeza, milorde. Aliás, por
todo o cuidado que tenho recebido desde minha
chegada, gostaria de agradecer. — Grace foi
sincera, sabendo que ter roupas limpas, comida
quente e uma cama macia para se deitar era mais
do que um dia chegou a imaginar que pudesse
receber.
— Não é necessário. — Granville buscou
ignorar o conforto que aquelas palavras tentaram
carregar para dentro de si, barrando-o com a
própria moral.
Afinal de contas, não poderia dar-se à ideia
ridícula de se enganar como se fosse merecedor de
tal gratidão; um grande filantropo. Tudo o que
estava oferecendo àquela jovem fazia parte de um
plano egoísta que traçara ao levá-la até ali.
A nova resposta pontual fez Grace engolir
seco, e a jovem resolveu que o mais inteligente
que teria a fazer era seguir com a refeição.
Poucos minutos mais tarde, Granville
ergueu ligeiramente o braço e Folkes o serviu com
uma taça de vinho. Tinha o hábito de degustar a
bebida após as refeições — o mais inocente de
seus vícios — e naquela noite tal necessidade
seria ainda mais intensa.
— Por favor, Folkes, sirva um cálice
também à Srta. Grace — solicitou, com o mesmo
tom grave.
Grace observou a garrafa e o líquido
vistoso que preenchia o cálice de cristal do conde.
Mesmo sendo capaz de chamar-lhe a
atenção, era inevitável recordar-se de Doyle ao
ver ou sentir o aroma de qualquer bebida de teor
alcoólico.
— Agradeço, milorde, mas…
— Recomendo que aceite. — O modo como
as três palavras saíram dos lábios de Granville
deixou claro que não esperava receber uma
objeção.
E, por mais que soubesse parecer um tirano
ao praticamente forçá-la a aceitar, Samuel tomava
aquela atitude visando o bem da moça. Ouvir sua
proposta seria muito mais difícil se a pobre
mantivesse a mente completamente sóbria.
— Está bem. Mas adianto que beberei
pouco. — Grace achou bom demonstrar que sua
posição não a faria inteiramente submissa, ainda
que não soubesse muito bem qual ocupava na
mansão.
Folkes também a serviu e em seguida
começou a retirar a mesa, levando as bandejas
para a cozinha.
— Não poderá dizer que não a preveni. —
Granville deu ombros, erguendo o próprio cálice
na altura dos olhos.
Começou a remexer lentamente o líquido,
analisando-o de modo pragmático.
O vinho de Grace permaneceu intocado
enquanto a jovem o esperava finalmente voltar a
falar:
— Como sabe, Srta. Grace, possuo a
intenção de torná-la minha esposa. — Granville
abaixou o cálice para encará-la ao pontuar o
último termo. — Como conde, possuo diversas
obrigações, e teria sucesso se desejasse da
maioria delas me esquivar, exceto de uma... — Sua
mandíbula tensionou e Grace percebeu o
movimento, que deixava proeminentes as linhas
firmes e marcantes da fisionomia austera. —
Produzir um herdeiro.
Produzir?
O termo utilizado de tal forma conseguiu
surpreendê-la mais do que o teor da fala. Parecia
que lorde Granville lhe falava de algo proveniente
de uma das fábricas para as quais oferecera seus
serviços no passado.
— Compreendo.
De fato, não era necessário ter muita
instrução para saber que aristocratas prezavam por
suas linhagens e a única palavra foi tudo que
ofertou.
— Se assim o é, devo entender que
compreende também o que seria necessário para o
sucesso da empreitada.
Grace uniu as sobrancelhas.
— O senhor me adquiriu em um leilão de
esposas, milorde, o que imagino ser suficiente
para que saiba que o faço.
A resposta decididamente atrevida o
surpreendeu, principalmente pelo fato de Granville
aprovar.
Realmente, a figura de Grace poderia
remetê-lo a um ser celestial, mas era necessário
Samuel recordar-se de que, sendo infeliz ou não, o
matrimônio a fazia uma mulher experiente.
Ele se levantou e voltou a puxar o lenço que
trazia ao redor do pescoço. De repente, seu cálice
já estava detestavelmente vazio.
— Deve saber, senhorita, que mesmo dadas
as circunstâncias jamais me aproveitaria ou
tomaria liberdades indesejadas com uma mulher
— pontuou de forma clara, mantendo as mãos
unidas nas costas e uma postura impecável.
O Samuel de dez anos atrás jamais o
reconheceria ao tratar com tamanha seriedade de
assuntos outrora tão aprazíveis.
— Mas se deseja tornar-me vossa esposa…
— Grace iniciou.
— Apenas se também o desejar — Samuel
colocou prontamente. — Antes do que imagina,
vosso marido não carregará mais este título, o que
a tornará uma mulher livre. Não tenho como
objetivo oferecer-lhe em troca do que foi feito um
novo cabresto, mas tão somente uma
oportunidade.
Ouvi-lo dizer que estava disposto a libertá-
la após a verdadeira fortuna gasta para adquiri-la
no leilão a deixou verdadeiramente surpresa.
Grace sentiu a boca seca e a garganta raspar. Seus
olhos correram naturalmente para o cálice sobre a
mesa.
— Fique à vontade.
Samuel gesticulou para a bebida, deixando
claro que tinha razão.
Grace chegou a tocar a haste com os dedos
delgados, mas então uma dúvida profunda surgiu,
fazendo uma ruga delicada e graciosa surgir-lhe
em meio à testa.
— Por que eu?
O conde respirou lentamente e permaneceu
alguns instantes em silêncio, enquanto parecia
eleger as palavras corretas para respondê-la. Sam
apoiou as mãos nas costas da cadeira, pela
primeira vez permitindo-se uma postura mais
espontânea.
— Sinto se lhe parecer indelicado, mas
acredito que arranjos como este demandam
sinceridade entre as partes e por isso me sinto no
direito de dizer que hoje pela manhã, quando a vi
naquele leilão, percebi que dentre muitas
diferenças poderíamos ter algo em comum.
Grace voltou a engolir seco.
— Que seria...?
— Nenhum de nós possuía mais nada a
perder.
De fato, a crueza nas palavras dele era
excruciante. E quando Grace abaixou a face,
visivelmente atingida pela clareza de sua triste
verdade, Samuel fechou os olhos por toda ausência
de delicadeza que sua falta de tato cultivada em
solidão o fizera em uma única frase demonstrar.
— Eu não desejava… — iniciou,
balançando a cabeça.
— Está tudo bem. — Foi a vez dela
interrompê-lo, sorvendo profundamente o ar. — O
senhor não disse nenhuma inverdade e concordo
sobre a necessidade de sermos sinceros se formos
levar tudo isso adiante.
Granville apertou os olhos.
Santo Deus, ela estava mesmo
considerando...
— Lorde Granville, não imagino o que deve
ter ocorrido ao senhor para que se considere em
posição similar à minha, mas não creio que me
caiba a tarefa de julgar as aflições de outro
coração. — A voz dela ainda era suave, mas
carregava a firmeza de quem fala com sinceridade
e coerência. — A ideia de finalmente possuir
minha liberdade é realmente tentadora, mas
preciso fazer minhas escolhas guiada pela razão.
— Uma pequena pausa a fez correr os olhos de um
lado para o outro, como se observasse lembranças
do que pretendia falar. — Sei que uma mulher
como eu não teria muitas chances de usufruí-la por
muito tempo, e que logo me tornaria escrava de
minhas próprias necessidades. — Seus olhos
marejaram, mas ela fez questão de evitar o choro e
qualquer demonstração de autopiedade. — O que
o senhor expôs não se trata de uma mentira ou
exagero, mas sim da realidade de minha situação.
Granville não sabia que ainda era capaz de
sentir isso até aquela mesma manhã, mas dentro do
peito voltou a ser tomado por uma fagulha de
comiseração.
As provações pelas quais uma pessoa tão
jovem quanto Grace passara o fazia sentir-se um
ser humano ainda mais cruel.
Que direito um monstro, um assassino como
ele, tinha de viver cercado de privilégios como
teto e alimento, enquanto uma alma boa como
aquela era destinada sem ressalvas a tão miserável
e cruel existência?
— Asseguro com minha palavra que o
aceite deste acordo não irá lhe tirar a liberdade de
viver da forma como bem desejar. A visitarei em
vossos aposentos apenas em algumas noites —
Samuel limpou a garganta quando inesperados
vislumbres ocuparam a mente há muito celibatária,
tal como o próprio corpo. Fazendo esforço, buscou
retomar a linha de raciocínio. — Assim que a
criança for gerada, inclusive, pretendo mandá-los
para uma propriedade de campo, na qual estarão
seguros e mais bem servidos do que aqui.
Aquela última parte Grace não
compreendeu.
— Mas se o senhor acaba de dizer…
— Que desejo me casar para obter um
herdeiro, e que estará livre de vossa única
atribuição no acordo assim que atingirmos o
objetivo.
— Mas a criança…
— Se não desejar criá-lo…
— Claro que desejarei.
Dentro dele uma sensação gigantesca de
alívio ecoou. O filho teria ao menos um dos
progenitores a acompanhá-lo. Muito melhor assim.
— Excelente.
— Mas e quanto ao senhor? — O semblante
dela demonstrava genuína preocupação. Algo que
quase chegou a comovê-lo.
— Meus planos são diferentes. — Samuel
reorganizou a postura, sabendo que soava
incoerente com a fala anterior, mas que havia
algumas verdades sobre si que seria melhor omitir.
Foi a vez de Grace apertar os olhos,
buscando enxergar a verdade profunda que os
violetas omitiam. Tudo o que encontrou, porém, foi
uma barreira fria na aura cor de chumbo. Lorde
Granville era um homem de camadas extensas e
sólidas, do tipo que impedia sem dificuldades
qualquer um que tentasse mais a fundo penetrar.
— Compreendo — ela repetiu, mas com
menos verdade desta vez.
Por que um homem como ele, capaz de
casar com qualquer mulher que desejasse, a
escolhia para ter seu herdeiro e, em seguida,
assumia ter planos de afastar-se inteiramente da
própria criação?
— Não se esqueça que, independentemente
do aceite para o que proponho, amanhã a esta hora
poderá considerar-se uma mulher livre, pois Doyle
terá assinado os documentos necessários ao
processo de desquite — Granville achou melhor
esclarecer após os longos minutos que seguiram a
profunda reflexão à qual ela parecia se doar.
Grace voltou a escutá-lo, mas em seu
interior uma escolha já havia sido feita.
“Nenhum de nós possui mais nada a
perder.”
Aquele homem sofria, ela já sabia disso, e
negar-lhe a única coisa que pedia após oferecer-
lhe a liberdade lhe pareceria algo extremamente
egoísta e cruel.
Grace levou o cálice aos lábios e sorveu
todo o conteúdo sem nem mesmo respirar. Na
sequência, após encarar os olhos surpresos do
Conde de Granville, questionou:
— E se não tivermos um menino?
Samuel limpou a garganta e, visto que
Folkes demorava em retornar, provavelmente por
estar ciente de que a conversa demandava
privacidade, se ocupou de completar novamente o
próprio cálice.
Sorveu um generoso gole antes de sentir-se
apto para responder:
— O título deve ser passado a um sucessor
do gênero masculino. Deste modo, até que dê à luz
a um menino, teríamos de continuar…
— Tentando — Grace completou por ele,
fitando-o nos olhos.
Granville confirmou em um gesto de cabeça,
e aproveitou o silêncio para apreciar um novo gole
da bebida, que pareceu queimar em sua garganta
tanto quanto os olhos dela agora faziam, refletindo
uma luz que em outra época seria capaz de
incendiá-lo até a alma.
Sob a mesa, as mãos de Grace amassavam o
tecido da saia enquanto seus olhos voltavam a se
abaixar, fitando a toalha.
Granville, ouvindo o murmúrio da seda e,
acostumado aos infortúnios, temeu encontrar-se
próximo de receber uma resposta negativa.
— Onde será a residência? — A voz baixa
e delicada cortou o silêncio.
— Residência?
— Para onde serei enviada junto de nosso
filho.
Nosso filho.
O sangue dele pareceu congelar em suas
veias.
Por mais que tivesse acabado de realizar a
proposta visando tal objetivo, aquelas não eram
palavras que esperava algum dia ouvir.
— Eu…
O pensamento lhe travou. O vinho começava
a trabalhar.
Grace voltou a observá-lo e reparou que
lorde Granville ficara ainda mais tenso do que no
início do diálogo.
— Não pretendo levantar inúmeras
condições — pontuou. — Apenas saber se de fato
seria em um lugar reservado.
— Preferiria se fosse? — A fala dele
finalmente retornava. Já não era sem tempo.
— Não faria mal me afastar dos ares daqui.
— Imaginou que Granville compreenderia
facilmente suas razões.
— Possuo residências de campo em
diversos condados do país. Estaria livre para
escolher qualquer uma que desejar.
Os lábios naturalmente vermelhos e
delicados curvaram-se para cima, com discrição.
A perspectiva de viver livre do fantasma de
Doyle, da violência, de julgamentos, dos ruídos de
fábricas e dos trágicos retratos da miséria aos
quais temia retornar parecia tão vívida diante de
seus olhos naquele momento que Grace sentiu
vontade de esticar o braço e agarrá-la com a mão,
para que não pudesse lhe escapar.
Sob a mesa, o tecido das saias deixou de
farfalhar, indicando aos ouvidos atentos de Samuel
que a jovem havia tomado sua decisão.
Após receber auxílio da Sra. Plymouth para
retirar o elaborado vestido e colocar a camisola
de algodão — outra necessidade corretamente
antecipada por Madame L’afaiat —, Grace foi
informada de que na manhã seguinte a sobrinha da
governanta começaria a trabalhar em Granville
Hall para servi-la como dama de companhia. O
anúncio a surpreendeu, é verdade, mas a
perspectiva de possuir mais alguém com quem
conversar a deixou extremamente satisfeita. Além
disso, Grace via a contratação como um gesto
atencioso de lorde Granville, ainda que fosse
outro oferecido de modo velado.
Já sozinha em seus aposentos, a jovem
começou a caminhar na intenção de observar mais
detalhes do quarto que lhe tinha sido
providenciado.
O cômodo era significativamente menor do
que o do conde, localizado a algumas portas de
distância no mesmo corredor, mas isso a agradava
por enxergar em tal característica uma atmosfera
mais intimista e acolhedora. Um papel delicado de
arabescos estampados em tons de lilás e marfim
cobria a metade superior de cada uma das paredes,
enquanto painéis de mogno decoravam a parte de
baixo. A madeira, aliás, era a mesma utilizada
para dar forma à cama confortável de dossel e ao
restante da mobília — cadeiras, penteadeira,
cômodas e aparador —, toda ao estilo Luís XIV,
como acontecia na maior parte da mansão. Do lado
direito da cama, uma lareira modesta e
aconchegante ocupava o centro da parede, tendo à
frente um canapé estofado em veludo marfim e
capitonê, que lhe atribuía um ar indiscutível de
elegância.
Uma dama da sociedade poderia identificar
rapidamente que a decoração possuía algo de
antiquado, mas Grace jamais a enxergaria assim.
Para ela, o aposento, comparado à sua antiga
choupana, poderia ter sido retirado de qualquer
história de conto de fadas.
Aliás, em vários momentos a jovem notava
semelhanças do que vivenciava com uma história
do tipo. Sair da miséria em que vivia e de repente
ver-se cercada de luxos e cuidados jamais
recebidos era algo que poderia levá-la a crer que
a qualquer momento abriria os olhos ao acordar
para descobrir que tudo não passava de um sonho,
e assim o faria se a presença e os diálogos
estabelecidos com lorde Granville não a
carregassem constantemente de volta à realidade.
O papel do próprio conde, na verdade, lhe era uma
verdadeira incógnita, pois Grace não conseguia
determinar se estava decidida a vê-lo como
mocinho ou vilão na nova fase de sua história.
Pela forma de se dirigir a ela e toda a frieza que
teimava em demonstrar, imaginava que o deixaria
mais satisfeito com a segunda opção, mas algumas
de suas atitudes destoavam daquilo que lorde
Granville esforçava-se para parecer.
Grace caminhou até a cama e sentou,
soltando um suspiro ruidoso.
Uma parte dela se ofendia pelo modo como
o havia conhecido, mas, ao mesmo tempo, não
achava justo culpá-lo por adquiri-la no leilão, pois
lembrava-se de não ter sido totalmente contrária à
oportunidade de finalmente livrar-se de Owen.
Porém aquela mesma parte de seu coração, que
parecia decidida em não a permitir apreciá-lo,
também a lembrava constantemente que Granville
a havia adquirido não por piedade ou altruísmo,
mas em nome dos próprios interesses. Entretanto,
acerca de tal ponto, a própria consciência o
libertava ao recordá-la de que a proposta de
casamento não fora feita como uma imposição. Ao
lembrar que, mesmo após seu aceite, o conde
ainda fora cortês, dizendo que mesmo assinando
em breve os documentos que tornariam o enlace o
oficial, lhe daria o tempo que julgasse necessário
para acostumar-se com a ideia de visitá-la em seu
quarto.
Instintivamente, Grace prendeu a
respiração.
Tal comunicado fora feito pouco antes de
sua retirada da sala de jantar, mas se recordava de
ter no mesmo momento permitido que seus olhos
rumassem aos lábios de lorde Granville e sentido
um espiral confuso de medo e expectativa a
percorrer ao imaginar se dentre tais visitas o
conde tentaria beijá-la. Por saber o que era
necessário à concepção de uma criança,
reconhecia que tais carícias não seriam
indispensáveis ao sucesso da missão.
Ainda assim, ela pensou.
— Foi o vinho — argumentou baixinho para
si mesma, puxando até a altura dos ombros a
colcha para se cobrir após deitar.
As experiências com Doyle não
apresentavam nada de positivo no tocante a
relacionamentos mais íntimos, e Grace sabia que
não poderia ter sido racional o pensamento gerado
por sua imaginação. Além do mais, lorde
Granville poderia possuir porte e traços
harmônicos, mas sua postura austera e semblante
sombrio não eram bem o que uma jovem procurava
quando pretendia sobre um cavalheiro fantasiar.
Não importava o quão agradáveis seus
cabelos pretos parecessem ao toque, ou a
intensidade que os olhos violeta conseguiam
alcançar… não, não importava.
Grace soltou um arquejo e notou que havia
voltado a segurar a respiração.
Confusa sobre os pensamentos que
rondavam sua mente, e mais ainda sobre tudo que
lhe tinha acontecido no decorrer de um único dia,
resolveu que já passava da hora de dormir.
Conforme previsto, um sono profundo e
necessário a carregou rapidamente.
Um sono tão intenso que, durante toda a
noite, a jovem não chegara nem mesmo a sonhar.

A portas adiante, algo muito diferente


acontecia.
Se os pensamentos e nervos de Samuel já
estavam agitados antes do jantar, se tornaram ainda
mais após receber o aceite dela.
Realmente seria feito.
Alívio e culpa se mesclavam no peito do
conde, enquanto este buscava suprimi-las em seu
quarto do abandono.
A nomenclatura que dera ao cômodo secreto
em seus aposentos era particular, assim como o
acesso. Nem mesmo Folkes, apesar de saber de
tudo sobre a vida do patrão, possuía autorização
para entrar no espaço onde Samuel libertava-se
por poucas horas de seus demônios mais
profundos, com o auxílio de seu entorpecente
favorito.
Claramente, Granville não o utilizava para
fins medicinais e, se a maioria dos nobres e
burgueses preferiam desfrutar de suas horas de
indolência em conjunto, nas licenciosas casas de
ópio[4] espalhadas pelo reino, o conde preferia
fazê-lo trancafiado em seu cubículo, sabendo que
ali teria a privacidade necessária para se esquecer
por algumas horas sua existência malograda.
Para, de fato, abandonar-se.
Segundo uma lenda oriental, difundida na
região de Laos, o ópio surgira do néctar de uma
flor mágica, nascida do peito de uma bela mulher
nobre e triste. A seiva teria o poder de fazer com
que os desgraçados como ele esquecessem por
alguns momentos tanto suas dores quanto amores
não correspondidos.
Samuel poderia não sofrer do segundo mal,
mas não demorou a substituí-lo pela culpa. Se a
mulher da lenda se tornara triste pelo amor
perdido, à sua maneira, Granville também o fazia,
pois havia perdido por consequência das próprias
ações as únicas pessoas que amava. Além disso,
lhe parecia correto fazê-lo também por Frank, não
sendo raros os momentos em que afundava-se
ainda mais em seus remorsos por lembrar-se que o
irmão morrera na condição mais triste para um
homem: estando apaixonado.
Deitado em sua chaise long de veludo
negro, o conde tragava seu cachimbo de marfim, o
único ponto claro em toda aquela escuridão,
permitindo que a fumaça de aroma forte e
desagradável penetrasse em seus poros da mesma
maneira como a droga lhe invadia pelos lábios.
Geralmente, Samuel retornava para o quarto
ao final do ritual, mas naquela noite seu
esquecimento demorou mais para vir, o que o fez
necessitar de uma dose maior, sendo a nova culpa
que sentia por carregar a inocente Srta. Grace para
o seu mundo de infortúnios a causa velada de tal
necessidade.
Sentindo-se sufocar no cômodo castamente
iluminado e sem janelas, começou a retirar suas
vestimentas em meio à cada tragada e, após longos
e angustiantes minutos, o relaxamento finalmente o
contemplou, sendo este tão intenso que logo o fez
cair em um sono profundo e assombrado.

[...]

Caminhando por um jardim primaveril e


viçoso, seus pés tomavam a direção de uma igreja
singela, com as paredes azuis parcialmente
omissas pelo vistoso arvoredo.
Samuel não sabia aonde ia ou o que o
aguardava, mas cobria os olhos em busca de
diminuir a enorme quantidade de luz provinda do
céu mais azul que vira em anos.
Quando finalmente entrou, o conde
caminhou pela nave, reparando que o interior do
espaço sagrado se encontrava completamente
vazio. Porém, de repente, um jovem alto de
cabelos acobreados saiu da sacristia,
caminhando em direção ao altar, virando-se para
cumprimentá-lo.
— Frank?
A visão do irmão daquela maneira, vivo e
saudável, o deixara visivelmente emocionado.
Samuel pôs-se a correr em sua direção,
quando a voz do pai ecoou em suas costas,
fazendo-o novamente se virar.
— Filho?
O antigo Conde de Granville também se
apresentava impecável, trazendo o olhar firme e
honrado que Samuel desde menino julgava
majestoso.
— Meu pai. — Em meio às lágrimas de
alegria, começou a sorrir.
Que dádiva incomum seria aquela?
— Eu sinto muito, Samuel — Frank voltou
a falar, fazendo Samuel virar-se outra vez para
fitá-lo.
Quando o fez, porém, a luz que penetrava
pelos vitrais coloridos tornara-se desbotada,
perdendo o calor outrora presente.
Granville apertou os olhos, e viu que
lágrimas de sangue escorriam pela face do
irmão, que já não tinha a tez corada, mas pálida
como um cadáver.
Seu corpo cambaleou.
A pequena ilusão terminara e os pesadelos
retornavam.
— Pai… — Samuel se virou novamente
para a entrada da igreja, e nela não viu mais o
corpo roliço e saudável do conde, mas uma
caveira vestindo suas roupas.
Cólera e ira se inflaram em seu interior.
Desgraçada! Desgraçada!
Cassandra lhe dera aquele vislumbre de
sonho apenas para ter a chance de fazê-lo se
afundar ainda mais na dor acabrunhante da
perda.
Um calor estranho lhe correu entre os
dedos e Samuel abaixou os olhos, fitando o
vestido que apenas então notava segurar. A peça
era delicada, e sua cor pura como creme tingida
por uma nascente viscosa de tom escarlate que
aos poucos passou a lhe banhar também as mãos.

[...]
O rapaz despertou em meio a espasmos e
suor frio e, mais uma vez, durante toda aquela
noite, não voltou a dormir.
Quando a aurora finalmente chegou,
novamente o encontrara junto do jazigo da família;
o único lugar do mundo onde Samuel realmente
desejava estar.

Na manhã seguinte, Grace foi orientada pela


Sra. Plymouth que deveria descer para realizar o
desjejum junto do conde.
Quando chegou à sala de jantar, lorde
Granville se levantou para cumprimentá-la de
modo formal. A jovem o correspondeu e Folkes
não demorou para começar a servi-la.
Assim como o jantar, a primeira refeição do
dia em Granville Hall não era variada como nas
residências de outros nobres, mas extremamente
bem servida. Além de arenque e presunto
defumado, na mesa havia pães, bolinhos e
biscoitos amanteigados, juntos de chá e café para
acompanhar.
Samuel se surpreendeu ao ver que a jovem
optou pela bebida amarga, mas seguiu com os
olhos presos em seu jornal, sem exprimir qualquer
comentário.
Vez ou outra os erguia ligeiramente para
espiá-la um pouco por cima da página, mas era
ágil em disfarçar quando a face de perfil delicado
se virava em sua direção.
Granville não sabia por que se sentia tão
curioso em observá-la, mas acreditava que a
ausência de novidade mantida há alguns anos
causasse tal alvoroço em seus olhos. Além disso,
fazia uma década que não possuía qualquer
companhia feminina — assim como as mães, a Sra.
Plymouth lhe era uma figura isenta de gênero — e
seria tolice negar que não era aprazível admirar a
Srta. Grace e sua agradável constituição.
Naquela manhã, por exemplo, a jovem
trajava-se com um vestido de crepe cinza, com um
decote quadrado e modesto arrebatado com um
tipo discreto de renda e longas mangas justas que
lhe cobriam até os pulsos, mas nem mesmo tal
modelo monótono era capaz de ocultar-lhe a
beleza, principalmente quando trazia os cabelos
meio soltos, presos apenas na parte de cima, com
o restante comprido e dourado lhe caindo em
ondulações graciosas pelas costas.
— Faz uma manhã agradável.
A fala da jovem o surpreendeu, e Samuel
observou a janela do cômodo que tinha a cortina
castamente aberta. Pelo pequeno espaço, era
possível notar que o céu estava tomado por nuvens
escuras. Contra o vidro, gotas espessas batiam.
— Decerto, uma temperatura mais aprazível
do que ontem — respondeu, buscando ser cortês
frente à nítida tentativa dela em estabelecer algum
diálogo.
A respiração de Grace soou mais tranquila
após ouvi-lo.
Granville conseguia intimidá-la apenas com
sua presença, e tê-lo em silêncio durante muito
tempo conseguia deixá-la desconfortável. Além
disso, poderia não ver, mas sentia que o lorde vez
ou outra parecia analisá-la com seu frio e duro
olhar.
Um novo silêncio se estabeleceu, e Samuel
voltou a desviar os olhos do jornal, sabendo que
agora, pelas leis da boa educação, seria sua vez de
dizer algo:
— Gostou do café?
Depois de falar, engoliu seco,
recriminando-se por considerar que a própria
pergunta soara um tanto idiota.
Grace sorriu de modo singelo ao notar seu
esforço.
— Sim — afirmou. — É o melhor que já
provei.
Samuel ergueu ligeiramente uma
sobrancelha, pois estava curioso.
— Não é muito comum uma jovem preferir
café ao chá. Há alguma razão pela qual se dê a
preferência?
Não percebeu que o fazia, mas aos poucos
abaixava o jornal, destinando-lhe deste modo toda
sua atenção.
— Creio que seja o hábito. — Ela deu
ombros, deixando claro que jamais pensara no
assunto. — Costumava tomar ao menos duas vezes
por dia, na fábrica.
Samuel piscou com rigidez.
— Na fábrica?
Tarde demais, Grace percebeu que havia
compartilhado outra informação sobre sua vida, e
realmente não sabia se aquilo teria um efeito bom
ou ruim nas considerações do conde. Entretanto,
visto que já havia começado a falar…
— Trabalhei durante alguns anos em uma
fábrica de tecidos, localizada a poucas milhas da
vila onde morava. Apesar de relativamente cara,
meus patrões consideravam que a bebida
estimulante aumentava o ritmo de produção dos
operários e nos ofereciam junto à papa que era
servida durante as refeições. — Ela deu um longo
suspiro, e estremeceu ligeiramente ao lembrar-se
de algo que Samuel imaginou ser o sabor do
alimento.
— Durante quanto tempo permaneceu neste
ofício?
— Neste, pouco mais de dois anos. Owen
também trabalhava nesta fábrica, mas ambos
fomos demitidos algumas semanas atrás, quando se
envolveu em uma briga com outro operário.
Tentando não demonstrar qualquer afetação
ao lembrar-se do trabalho árduo, exaustivo, e do
temperamento desagradável do marido, Grace
sorveu um gole da bebida após esclarecer.
Sem conseguir crer no que seus ouvidos
escutavam, Granville precisou respirar fundo para
não soltar um impropério. Apenas de imaginá-la
em um ambiente rude e insalubre como o
industrial, onde além do trabalho humilhante as
mulheres ainda eram submetidas a um tratamento
despudorado e lascivo por grande parte dos
supervisores, o sangue lhe ferveu.
Já considerava Owen um desgraçado, mas
agora atribuía-lhe o título de escória da
humanidade por saber ter permitido que a esposa
levasse uma vida como aquela.
Eles não possuíam filhos. Se o homem
trabalhasse direito e não gastasse seu dinheiro com
a bebida, como em um único encontro conseguira
constatar, poderia muito bem ter sido capaz de
mantê-los sem que a esposa tivesse de viver em
tão cruel situação.
Fora inevitável sentir certa satisfação ao
recordar-se de que, a dada altura da manhã e
graças às próprias ações, William já deveria estar
ao lado de infeliz para encerrar de vez qualquer
ligação deste com Grace.
— Sinto muito pela experiência que teve de
enfrentar.
A fala dita em tom sério, mas de teor
compassivo a surpreendeu.
— Está tudo bem. Sei que poderia ter sido
pior. — Resolveu que o melhor caminho era
sempre evitar a autopiedade. — Quando era mais
jovem, lembro-me de certa vez ter sido enviada
por meus pais para trabalhar algumas semanas em
uma mina de carvão, e...
— O quê?!
Ah, não.
Tarde demais notava, pela reação de lorde
Granville, que voltava a falar além do que devia.
A última coisa que desejava era incomodá-lo com
discursos de mártir e a extensa lista de desventuras
que lhe ocorreram ao longo dos anos graças ao
desafeto da família.
— Foram poucos dias. — Tentou fazer
pouco caso, erguendo os ombros e voltando a
atenção para o presunto em seu prato.
Samuel reparou que se tratava de uma
maneira de se esquivar do assunto e não quis soar
indelicado perguntando mais detalhes.
Ainda assim, as sobrancelhas contraídas
revelavam o quão fundo chegava seu desgosto.
Quão desgraçada a história de vida daquela
pobre jovem poderia ser?
Novos minutos de silêncio se estabeleceram
entre eles, mas logo Grace tentou outra vez:
— Se estiver de acordo, milorde, hoje
gostaria de conhecer as demais dependências da
mansão.
O pedido o surpreendeu.
— É claro. Fique à vontade para conhecer o
que desejar. Apenas a sala de desjejum e os
aposentos do terceiro patamar não são permitidos.
— O que há nestes…
— Necessitam de reformas. — Granville
sequer a deixou concluir.
A verdade era que tal patamar abrigava a
ala infantil e, consequentemente, o cômodo onde se
dera o fatídico episódio com Cassandra e, a sala
de desjejum, as lembranças da morte do pai e
irmão.
Desde aquele dia ninguém, nem mesmo
Folkes ou a Sra. Plymouth, possuíam permissão
para transitar em tais ambientes.
— Ah.
— Se algum outro quarto da ala privativa a
agradar mais do que aquele em que está instalada,
possui autorização para ocupá-lo.
Granville buscou tirar a atenção do assunto
anterior com o comunicado.
— Agradeço, milorde, mas o quarto em que
estou me serve muito bem. — Grace ofereceu um
sorriso delicado e Samuel sentiu novamente aquela
sensação estranha e indecifrável que costumava
acompanhá-la, como se o ar presente no cômodo
passasse a aquecer. — A Sra. Plymouth me disse
que Granville Hall também possui uma belíssima
sala de música.
— De fato. Mas encontra-se negligenciada.
— O senhor não aprecia música?
Samuel a encarou com uma profundidade
que até então não acontecera.
— Não depois que todas passaram a ressoar
como marchas fúnebres aos meus ouvidos.
Ao redor dele, aquela aura densa e escura
que constantemente o acompanhava se expandiu, e
Grace voltou a entrever com nitidez e pesar a dor
e angústia que ocupavam aquele triste coração.
Ela sabia que Granville parecia sofrer, mas
a cada vez que se sentia tentada a perguntar o que
havia acontecido para mergulhar daquela maneira
na existência fúnebre, lembrava-se dos sussurros
que ouvira no leilão e da sensação de que vez ou
outra lhe trazia certas partes da casa. Gostaria de
saber a verdade sobre a desgraça que pairava
sobre a vida dele, mas temia não estar preparada
para conhecê-la.
— Eu sinto muito. — Demorou algum tempo
para que ele percebesse o que havia dito.
Irritado consigo mesmo pelo momento de
fragilidade e transparência, o conde abaixou os
olhos, deixando as olheiras das noites mal
dormidas mais intensas.
O coração de Grace voltou a se apertar.
Era mais forte do que ela a necessidade que
sentia de confortar as pobres almas e acalentar os
sofrimentos daqueles que pareciam não ter mais
motivos para acreditar que a vida ainda possuía
algo de bom.
Entretanto, dizer qualquer coisa poderia
consterná-lo, e isso poderia não ser inteligente se
fazer, quando o conhecia tão pouco.
— Quais cômodos o senhor costuma
frequentar? — Encontrou na pergunta
despretensiosa o subterfúgio necessário.
Percebendo a intenção por trás das palavras
dela, Granville realizou um movimento discreto
para voltar a se ajeitar, respondendo em seguida:
— Além de meus aposentos, estou
frequentemente em meu escritório, nesta sala
durante as refeições e na biblioteca.
— Ah, o senhor tem uma biblioteca — Um
brilho encantador se ocupou dos olhos dela.
— E muito bem guarnecida, se me permite
dizer. — Em muito tempo, era a primeira vez que
uma parcela mínima de orgulho ocupava sua voz.
— Por favor, fique à vontade para utilizá-la
quando desejar.
Inesperadamente, as bochechas de Grace
enrubesceram e a jovem baixou os olhos,
tornando-se visivelmente sem graça.
— Agradeço a disponibilidade, milorde, e
garanto que me sentiria honrada em fazê-lo.
Entretanto, infelizmente, nunca tive a oportunidade
de aprender a ler ou escrever.
Grace trazia consigo a concepção de que a
autopiedade em nada ajudava na superação de
obstáculos e tristezas, é verdade, mas tal
deficiência sempre conseguia abalá-la no canto
mais secreto de seu coração. Apenas aqueles que
convivem com esta ou algum tipo similar de
ausência compreendem a tristeza que causa ver
todo um mundo de promessas infinitas diante de si,
mas não ser capaz de verdadeiramente o enxergar.
Samuel voltara a ficar tocado por mais
aquela confissão, mas preferiu não tecer nenhum
comentário ao perceber o quanto a falta de
conhecimento a incomodava.
Automaticamente, o conde passou a enrolar
o exemplar do jornal que tinha ao seu lado na
mesa, e o colocou sob o próprio braço.
Considerava terminar de ler as notícias em
outro lugar.
Grace percebeu o disfarce do ato, mas não
pôde deixar de ficar comovida com a nítida
consideração da parte dele. Além disso, o olhar
que Samuel lhe lançava havia se tornado um pouco
mais sereno… Um pouco menos frio.
O lorde já estava prestes a se levantar
quando Grace voltou a falar consigo, estimulada
pela ideia de retribuir a gentileza:
— Apesar de tudo, milorde, existem
algumas instruções que recebi, e gostaria
muitíssimo através delas auxiliar, como nos
cuidados com o jardim, por exemplo.
Em menos de um segundo, o violeta nos
olhos dele voltou a congelar.
Grace notou que as mãos de Granville
cerraram-se em punhos.
— Prefiro que estes sejam mantidos como
estão. — A resposta gélida e grave soou com uma
intensidade inesperada, capaz de realmente
impactá-la.
Não conseguia compreender.
O que teria dito de tão errado?
— É claro — praticamente murmurou,
voltando a abaixar os olhos.
A culpa já começava a invadi-lo, mas antes
que pudesse pensar no que dizer, a Sra. Plymouth
adentrou no recinto, trazendo consigo uma
agradável surpresa: uma jovem de pele clara,
cabelos escuros e adoráveis olhos castanhos.
— Milorde; Srta. Grace — iniciou a
governanta —, lhes apresento minha sobrinha,
dama de companhia da futura condessa, a Srta.
Vivienne Devout.

O restante da manhã e grande parte da tarde


de Grace foram ocupados pela companhia
agradável da governanta e sua sobrinha. Apesar de
a Sra. Plymouth dizer que tinha muitos afazeres a
aguardando na cozinha, a jovem disse que gostaria
de acompanhá-la e inclusive ajudar se fosse
necessário para permanecerem as três
conversando. Obviamente, a mais velha não
permitiu que a futura condessa se ocupasse de
afazeres domésticos, mas aceitou de bom grado a
companhia das duas, aproveitando para colocá-las
a par de algumas informações sobre a mansão.
A cada palavra que a governanta dizia,
ficava mais nítido à Grace o quão intenso era o
afeto da funcionária para com a família
proprietária da mansão.
— Lady Lucille deve mesmo ter sido uma
dama muito especial — disse, acomodando-se
melhor na banqueta.
A dada altura, Vivienne auxiliava a tia na
organização dos pratos.
— Tia Porshia lhe tinha mais carinho do que
por qualquer outra pessoa no mundo — confirmou
a sobrinha, tocando delicadamente o ombro da tia.
Apenas então Grace se deu conta de que não
sabia o nome de batismo da governanta, e ficou
encantada ao perceber o quanto este combinava
com ela.
— Já lhe disse que não é correto me chamar
desta forma em Granville Hall, minha querida — a
Sra. Plymouth a corrigiu.
— Ah! — Vivienne olhou imediatamente
para Grace. — Minha senhora, eu sinto muito. —
Realizou uma mesura arrependida.
— Oh, não, de forma alguma! — Grace
desceu da banqueta onde estava sentada para
aproximar-se da jovem. — Por favor, não se
preocupem com este tipo de detalhe em minha
presença. Para dizer a verdade, estou encantada
em vê-las conversar e realizar as tarefas com
tamanha cumplicidade.
As duas poderiam não compreender, mas
desfilavam diante de seus olhos aquilo que,
secretamente, Grace sempre desejara: o afeto de
uma família.
Não uma que assim se classificasse apenas
por laços sanguíneos, pois a própria cumpria tal
requisito, mas uma família na qual os laços de
carinho, fraternidade e união fizessem a
nomenclatura realmente valer.
A Sra. Plymouth sorriu, tomando a liberdade
de apertar carinhosamente o queixo da sobrinha.
— Vivienne é uma jovem de ouro — disse,
orgulhosa. — Não imagina quão feliz fiquei
quando lorde Granville me permitiu trazê-la para
cá.
A jovem deu um sorriso triste, sabendo bem
ao que a tia se referia.
— Espero que seja feliz em Granville Hall,
Vivienne — disse-lhe Grace, soando gentil.
A moça a observou com ternura nos olhos e
buscou afastar de seus pensamentos todas as
histórias que já ouvira sobre a mansão. Entretanto,
em sua mente, murmurava à Grace como em uma
prece: espero que seja também.

Algumas horas mais tarde, a chuva


finalmente cessou, deixando o ar carregado com
uma bruma densa e fria em torno dos jardins que
Grace observava através da janela dos próprios
aposentos. Era curioso como a cada novo
vislumbre, este lhe parecia diferente.
Se em um primeiro contato o considerou
assustador, agora o compreendia melancólico. Os
galhos secos e retorcidos já não pareciam mais
prestes a agarrá-la a arrastá-la para as profundezas
mais medonhas, mas braços estendidos, que
suplicavam silenciosa e desesperadamente por um
abraço, um auxílio, uma salvação. Na ponta destes
a neblina condensava, e gotas espessas caíam
como lágrimas vertidas pela sôfrega vegetação.
O coração de Grace voltava a apertar.
Seu instinto natural lhe dizia para todo
aquele sofrimento buscar resolver, mas apenas de
lembrar a expressão e tom de voz com as quais
lorde Granville a proibira de cuidar do jardim,
seus pés congelavam no chão.
O que ele faria se ousasse desobedecê-lo
daquela maneira? Um arrepio longo percorria sua
espinha desde a base apenas de imaginar.
— Senhora?
Do outro lado do quarto, Vivienne entrou,
trazendo um recipiente com líquido fumegante nas
mãos.
Grace sentiu o aroma familiar, mas não
soube muito bem identificar o que era.
— O Sr. Folkes logo trará a água para que
eu possa preparar vosso banho, e resolvi lhe fazer
uma surpresa como forma de demonstrar minha
gratidão pelo trabalho.
Grace ficou verdadeiramente comovida com
a atitude.
— Oh, minha querida, é muito gentil de sua
parte, mas garanto que não precisava. —
Caminhou até a criada, que mais cedo descobrira
ser dois anos mais jovem que ela. — De qualquer
maneira, o perfume é maravilhoso. — Fechou os
olhos para sorver ao máximo o aroma doce e
delicado.
— Pensei nisso assim que vi a cor de seus
cabelos. Minha irmã mais nova não possuía os fios
castanhos tão escuros quanto os meus, e minha mãe
sempre lhe fazia esta mistura de camomila e canela
para iluminar ainda mais suas mechas douradas.
Apenas então Grace conseguiu identificar o
aroma das especiarias, ficando fascinada pelo
novo conhecimento adquirido. Com a vida que
levara até então, era natural que jamais tivesse
tempo para pensar em procedimentos de beleza.
— Disse que a vossa mãe fazia a mistura
para sua irmã mais nova… Isso significa que ela já
se casou? — perguntou, sentando-se diante da
penteadeira enquanto Vivienne se colocava atrás
de si para espalhar a mistura em seus longos fios.
— Infelizmente, não. — O tom de voz da
criada tornou-se ameno. — Victória faleceu há
pouco mais de um ano.
Grace se virou imediatamente, tomando a
mão da jovem entre as suas.
— Ah, eu sinto muito…
— Está tudo bem, senhora, não teria como
saber. — Vivienne buscou conter as lágrimas que
ameaçavam escorrer, como sempre acontecia
quando falava sobre a irmã.
Curiosamente, porém, daquela vez a emoção
vinha de forma saudosa, não com a dor que sempre
costumava abatê-la ao se lembrar da falta que
sentia e, ainda mais, do modo como a caçula havia
partido.
— Não é necessário que me chame de modo
tão formal — Grace pontuou gentilmente,
continuando a segurar-lhe as mãos.
— Mas como deveria chamá-la? —
Vivienne sorriu, surpresa por sentir algo muito
próximo de um calor agradável lhe ocupando o
peito.
— Apenas Grace — a outra jovem
respondeu, apertando-lhe com sincero afeto os
dedos enlaçados a seu toque.
Toque através do qual, com a sutileza que
lhe era inerente, mais uma alma sofrida conseguia
confortar.
O fim de tarde se aproximava quando
William entrou no escritório de Granville, antes de
ser anunciado.
— Acredite, meu velho Folkes, ele está
mais interessado neste encontro do que eu —
informou, fechando no mesmo instante a porta que
dava para o corredor.
Samuel colocou-se de pé assim que o viu.
— E então?
Carter deu um sorriso comprimido.
— Ora essa, como estamos ansiosos —
provocou.
A carranca que o amigo lhe devolveu fez a
vontade de rir crescer ainda mais. Havia algo
revigorante em provocar homens contidos e
soturnos como Samuel.
Entretanto, sabendo que o assunto
demandava certa postura, William se aproximou
sentando-se diante da mesa.
— Está feito — garantiu com um tom de voz
muito mais sério do que o anterior. — A Srta.
Grace, desde esta manhã, está apta a se tornar lady
Granville.
Obviamente que não seria tão simples
quanto a fala de Carter fazia parecer, mas o rapaz
sabia que com a influência do título e fortuna que
possuía, o amigo conseguiria sem muitas
dificuldades tornar o processo tão ágil quanto
gostaria. Do bolso interno do casaco, retirou os
documentos que Owen Doyle havia assinado e os
entregou ao conde.
Como se fosse possível, o olhar de Samuel
tornou-se mais intenso.
— O infeliz fez alguma objeção? —
questionou, deixando os papéis sobre a mesa.
— De forma alguma. Quando recebeu o
valor acordado estava feliz como pinto no lixo e
pelo que pude notar de seu estado, já bebia por
conta.
O cenho de Samuel se fechou ainda mais.
Parte da escuridão dentro dele se revolvia a cada
vez que pensava em Owen Doyle e no pouco caso
que esse demonstrava em relação à própria
esposa. Ou melhor, futura ex-esposa.
Inesperadamente, sentiu uma satisfação
ímpar percorrê-lo ao recordar que aquele
matrimônio estava, através das próprias ações,
prestes a findar.
— Teve notícias de Parkins? — Carter o
tirou de suas reflexões.
— Ainda não — assumiu, ficando agitado
com a lembrança. — Mas não importa. Teremos de
agilizar o possível até que o desgarrado retorne.
Pretendo oficializar o casamento o quanto antes.
William o encarou com uma nova expressão
de curiosidade e surpresa.
— Realmente, estamos ansiosos — repetiu
a provocação, com leve ar de malícia desta vez.
— Confesso que quando lhe dei a ideia de se casar
para demonstrar que se mantinha atento às vossas
funções como conde, não imaginei que se
mostraria tão disposto.
Granville soltou um murmúrio desgostoso
frente a graça.
— Sempre preferi a guilhotina à forca —
devolveu, deixando claro que pretendia terminar
rapidamente com o suplício.
— Não tenho certeza se Ana Bolena
concordaria com você.
— Mas ela certamente compreenderia
algumas de minhas mazelas — Granville
praticamente sussurrou, verbalizando um
pensamento que deveria ter sido particular.
Assim como ele, a rainha não tivera chances
de defesa sobre os crimes dos quais fora acusada.
Quando todas as vozes ao redor se tornam
uníssonas no juízo, nem mesmo a mais pura das
almas é capaz de continuar acreditando-se como
total inocente.
— Posso ajudá-lo com os documentos, se
quiser.
William se prontificou, deixando as
provocações de lado ao perceber a mudança de
atmosfera.
Granville jamais lhe dava chance de tratar
abertamente sobre a morte do pai e do irmão e,
muito menos, sobre as acusações que o pobre
diabo, apesar de absolvido, tinha há anos de
enfrentar. Para preservar a amizade, Carter
respeitava tais limites.
— Agradeço por isso. — Samuel realizou
uma mesura após permanecer por mais alguns
segundos distante, como se prolongasse o paralelo
entre sua ruína e a da rainha decapitada.
Will balançou a cabeça, retirou o relógio do
bolso para verificar as horas e colocou-se de pé.
— Bom, creio que já tenha dado minha
hora. Só Deus sabe as novidades que encontrarei
em Violet Valley após passar tanto tempo fora.
Granville não compreendeu muito bem a
fala do amigo, mas, visto o favor que este havia
lhe prestado, pareceu incorreto não o convidar
para permanecer no jantar.
— Desejando mais de minha companhia,
Granville? — O infeliz não perdeu a chance de
provocá-lo, fazendo Samuel se arrepender em
tempo recorde.
— Esqueça o que acabei de dizer.
— Ah, com toda certeza não esquecerei. Já
aceitei o convite. — Carter deu um sorriso
presunçoso. — Aliás, ficarei bastante satisfeito em
finalmente conhecer a tão famosa Srta. Grace. Ela
irá nos agraciar com a companhia, não é?
As sobrancelhas de Granville se uniram.
— Seja. Cortês. — As duas palavras
soaram duras, como a mais absoluta das ordens.
— Jamais ofereceria menos do que isso à
nossa futura condessa. — William realizou uma
mesura elaborada e o ato arrancou mais um
rosnado do amigo.

Com muito esforço, Granville conseguiu se


lembrar de como deveria proceder em uma
apresentação formal.
— É um imenso prazer conhecê-la,
senhorita.
Carter realizou uma mesura impecável,
impressionado com a beleza da jovem, é verdade,
quase tanto quanto fazia seu amigo.
Grace devolveu-lhe o cumprimento, e
estava tão concentrada em portar-se da maneira
correta em sua primeira apresentação formal, que
não foi capaz de notar os olhos violeta fixos sobre
si.
Samuel tinha consciência de que seu
veredito se tornava ridiculamente repetitivo a cada
vez que a via, mas, novamente, Grace estava
deslumbrante.
Durante a tarde, a modista enviara mais
algumas peças a Granville Hall, e ela trajava um
dos novos vestidos no jantar. O corpete afunilado
de decote quadrado ofertava vislumbres dos seios
macios e era, assim como a camada interna das
saias, composto por linho azul-escuro, enquanto os
babados externos e as mangas pagodas, amplas e
abertas, forjadas em seda preta. Além disso, o
cabelo da jovem voltava a ser preso, mas de um
modo mais elaborado do que na noite anterior,
com cachos dourados e delicados fluindo na altura
do pescoço. Pescoço que, aliás, estava
perfeitamente adornado por uma faixa azul de seda
— do mesmo tom do vestido — responsável por
marcar ainda mais a curva delgada e feminina
daquela região.
— Sinto não ter conseguido anunciar
previamente a presença do Sr. Carter nesta
refeição. — Granville fez esforço para dizer algo
visto que o próprio silêncio o incomodava.
— O convite foi feito em cima da hora.
Tenho para mim que Granville preferiu ponderar
até o último instante se tratava-se mesmo de uma
boa ideia — Will acrescentou, atribuindo algum
humor.
Grace sorriu discretamente com o
comentário vivaz e William conseguiu observar
naquele rosto angelical mais de uma boa razão
para Granville oficializar o quanto antes o
matrimônio.
A Srta. Grace era belíssima e possuía um
sorriso gracioso, que combinava harmoniosamente
com sua constituição. Além disso, ao sorrir com
sua fala, demonstrava possuir senso de humor, o
que era uma característica rara em grande parte
das damas.
— Não faça com que me arrependa da
conclusão. — Samuel não tinha a intenção de soar
bem-humorado, sendo esta uma ameaça real, mas
os dois ouvintes não conseguiram deixar de
esboçar um novo sorriso discreto frente a acidez.
Começaram a se acomodar nos assentos em
torno da mesa, e não demorou para que Folkes
passasse a servi-los. Como a presença do Sr.
Carter fora informada de última hora, a Sra.
Plymouth solicitou o auxílio da sobrinha nos
serviços de copa, e logo Vivienne também
apareceu, ajudando o valete na tarefa.
Assim que a jovem entrou no recinto, os
olhos de William capturaram sua figura. Não
demorou para compreender que se tratava de uma
nova criada em Granville Hall, o que já seria
suficiente para sua surpresa, mas o que realmente
o deixou em um estado inesperado de agitação foi
perceber que não conseguia parar de observá-la
com curiosidade a cada movimento, enquanto a
jovem de cabelos castanhos realizava seus
afazeres.
Mas por que fazia aquilo?
Diferente de Samuel, nem mesmo em sua
juventude fora do tipo que lançava olhares
voluptuosos às criadas.
Grace agradeceu a moça em um momento
específico e esta lhe ofereceu um sorriso discreto
em resposta. O gesto simples reverberou no corpo
de Carter com uma força inesperada, gerando
motivo suficiente para que se mexesse na cadeira,
sentindo-se levemente desconfortável. O branco
daqueles dentes assemelhava-se ao algodão puro
do vestido que ela utilizava e tal pureza parecia
dissipar-se ao seu redor, com cada gesto que
carregava humildade e singeleza.
Vivienne terminava de organizar uma última
bandeja quando, pela falta de habilidade em
realizar aquele tipo de serviço, acabou esbarrando
a superfície de metal na molheira ao centro da
mesa, chegando muito perto de derrubá-la, não
fosse a agilidade com a qual o convidado de lorde
Granville se inclinara para segurá-lo com uma
mão larga e firme, evitando o pequeno desastre.

— Está salva — assegurou o jovem de


belos olhos azuis, observando-a de um modo tão
direto que foi capaz de incomodá-la.
— Obrigada, milorde. — A voz dela estava
levemente agitada pelo susto.
Uma voz aveludada, que William
considerou tão singular quanto a própria portadora
e tinha certeza de que buscaria em sua memória
para recordar o timbre mais tarde.
— Disponha.
Em seguida, percebendo que permanecia
mais tempo do que o necessário com o item de
prata em sua mão, Carter o soltou, reorganizando-
se no assento.
Em silêncio, Grace e Samuel observaram a
curiosa interação, mas, se foram capazes de
reparar que havia algo digno de ser notado, a
compreensão os escapou no momento em que os
próprios olhares acidentalmente se cruzaram.
A jovem criada se retirou e não voltou a
agraciar a sala de jantar com sua presença, para o
desalento de William que, surpreendentemente,
percebeu que desejava vê-la outra vez.
— Não sabia que estava contratando —
comentou de modo despreocupado, enquanto
espetava algumas batatas em seu garfo.
Tentara evitar que a curiosidade tomasse
suas palavras, mas falhou miseravelmente.
— A Srta. Grace necessitava ter à sua
disposição os serviços de uma dama de companhia
— respondeu Granville, fazendo o máximo para
manter os olhos focados no próprio prato. —
Inclusive, espero que tais serviços estejam de
vosso agrado. — Traiu aos próprios objetivos,
observando-a ao questionar.
— Ah, sim, com toda certeza — respondeu
Grace. — Vivienne tem sido uma excelente
companhia, além de tudo.
Vivienne…
O nome ressoou na mente de Carter em
velocidade reduzida enquanto o cavalheiro
analisava o quanto combinava com a jovem de
cabelos escuros e olhos brilhantes.
A falta de prática de Granville em ser
anfitrião fez com que o restante do jantar fosse
ocupado em sua maioria pela ausência de diálogo,
mas vez ou outra William realizava um comentário
leve e agradável sobre assuntos amenos, na
intenção de ajudá-lo em suas visíveis limitações.
Para ele, estava claro que Granville possuía uma
postura ainda mais fechada na presença da futura
esposa, mas não seria capaz de julgá-lo sabendo
dos anos que passara sem praticamente nenhuma
interação com outras pessoas além de si.
Em dado momento, Grace compreendeu o
que o rapaz fazia, e achou muito gentil de sua
parte. Além disso, a maneira como o Sr. Carter
falava sobre os mais diversos assuntos era
realmente estimulante e a fizera, inclusive, buscar
participar mais ativamente do diálogo, realizando
algumas perguntas sobre a propriedade da qual lhe
falava com tanto apreço.
— Sinta-se mais do que convidada para
visitar Violet Valley sempre que lhe aprouver,
Srta. Grace. — O convite seguiu a breve
explanação que o rapaz fizera sobre a propriedade
da família.
— Agradeço a gentileza, Sr. Carter. —
Grace lhe sorriu e o gesto não passou
despercebido a Granville, que tinha os olhos tão
atentos quanto os ouvidos, apesar de permanecer
calado na maior parte do tempo.
— Apesar de não me visitar há anos, creio
que Granville se recorde bem do caminho. —
William aproveitou a deixa para fazer o
comentário provocador e tentar inserir Samuel na
conversa.
Há muito tentava fazer o amigo voltar a ter
vida social fora dos muros lúgubres de Granville
Hall e possuía alguma fé de que sua chance
poderia surgir através da graciosa senhorita diante
de si.
Samuel percebeu a intenção nada omissa de
Carter, e apertou discretamente os olhos em sua
direção.
— Folkes poderá levá-la quando desejar.
Certamente, está mais habituado ao caminho do
que eu — respondeu sem nem bem olhar para
Grace, o que a deixou levemente incomodada.
Seria assim tão desagradável ao futuro
marido apenas a ideia de lhe compartilhar em uma
visita de cortesia ao próprio amigo?
Carter também compreendeu a intenção por
trás da resposta de Samuel, e buscou disfarçar o
riso irônico atrás da taça de vinho que Folkes
servira ao fim do jantar. Afastar todos de si
parecia ser a Granville mais do que um estilo de
vida. O conde fizera dessa sua missão.
— Se me permite, milorde, gostaria de me
retirar. — Grace abaixou o olhar, visivelmente
incomodada com a última resposta do conde.
— É claro. — Granville se levantou de
imediato e Carter o seguiu no gesto cortês.
Na sequência, a jovem se despediu de modo
simples, mas bem-educado, e logo os deixou
sozinhos na sala de jantar.
— “Folkes poderia levá-la quando
desejar”? — Carter devolveu a Samuel a própria
fala, observando-o com um olhar incrédulo. —
Com esta dose de cavalheirismo não me
surpreenderá se logo for considerado o marido do
ano.
O conde não se afligiu nem um pouco com a
crítica, terminando o próprio vinho ainda de pé.
— Antes que me tome como um cretino,
permita-me esclarecer que a Srta. Grace já teve
todos os termos deste enlace esclarecidos na noite
passada e concordou com cada um. Não existem
expectativas que possa nutrir, e isto me isenta de
qualquer crueldade ou indelicadeza da qual esteja
próximo de me condenar.
— Ainda assim, não custa muito se esforçar
para de vez em quando parecer um pouco mais
gentil — Carter fora direto. — A pobre acaba de
sair de um casamento desprovido de qualquer de
afeto, Samuel. Quem poderia condená-la por
buscar o mínimo de afeição?
— De fato, eu não a condenaria — o conde
pousou a taça na mesa em um movimento pontual
—, mas tão menos poderia oferecer.

Na manhã seguinte, Grace foi informada que


poderia tomar seu desjejum nos próprios
aposentos se desejasse, visto que lorde Granville
não estaria disponível para acompanhá-la na sala
de jantar. A jovem não fez nenhuma objeção e, na
verdade, sentiu-se aliviada por não ter de voltar a
vê-lo tão cedo com o semblante sempre fechado e
olhos insondáveis. Aproveitou para permanecer
mais tempo na companhia de Vivianne e esta lhe
prendia os cabelos em uma elaborada trança
enquanto escutava a jovem falar com certa
animação sobre o diálogo estabelecido com o
amigo de lorde Granville na noite anterior. A dama
de companhia sentia certo incômodo a cada vez
que ouvia o nome do rapaz, lembrando-se do modo
intenso como ele a observara, mas buscava
disfarçar a sensação.
— Pelo que disse o Sr. Carter, Viollet
Valley deve ter um belo jardim. — Grace suspirou,
abaixando ligeiramente os olhos. — Um jardim
fresco e cheio de vida, do modo como todos
deveriam ter a oportunidade de ser.
Foi inevitável levar os olhos ao reflexo do
espelho, de onde era possível ver os galhos secos
e espinheiros que se encontravam do lado de fora
da janela.
— Minha tia disse que o jardim de
Granville Hall já foi o mais bonito e frondoso de
Liverpool — comentou Vivienne, enquanto as
mechas sedosas arrastavam-se por seus dedos.
— Ela lhe disse o que levou a uma mudança
tão drástica?
Prendendo a ponta da trança com um laço
azul, da mesma cor do vestido escolhido para
Grace naquela manhã, a jovem esclareceu, fitando-
a no espelho:
— Após a morte do pai e do irmão, lorde
Granville dispensou todos os criados da mansão,
permanecendo apenas com ela e o Sr. Folkes.
Periodicamente, o conde permite que outros sejam
contratados por alguns dias para preservarem a
casa, mas estes jamais possuem permissão para
estenderem seus cuidados à área externa da
propriedade. Com muito custo, minha tia conseguiu
convencê-lo de que a cada três meses a grama
deveria ser aparada, mas o jardineiro só possui
autorização para fazê-lo em áreas muito
específicas.
Mordendo a parte interna da bochecha,
Grace se esforçava para compreender. Ainda
sentada, virou-se para Vivienne, ao questionar:
— Sua tia já lhe contou alguma vez o
motivo de lorde Granville ter despedido os demais
criados?
— Este é um assunto do qual não costuma
falar muito, mas lembro-me de ter escutado uma
conversa dela com minha mãe quando era mais
jovem, na qual dizia que o conde fora aplacado
por uma fúria sem precedentes após o falecimento
dos dois.
— O que houve com…
— Foram envenenados, dez anos atrás. —
Vivienne não precisou ouvir o restante da
pergunta.
Mesmo que Grace já pressentisse desde sua
chegada que uma tragédia muito profunda havia
acontecido dentre as paredes tristes e frias daquela
mansão, fora impossível não ser aplacada pela
infeliz revelação e pelas várias características de
lorde Granville que esta era capaz de lhe explicar.
— Aparentemente, o conde passara a culpar
todos pelo que havia acontecido e, em
contrapartida, todos passaram a… — Vivianne
prosseguia, quando batidas ressoaram na porta,
chamando a atenção das jovens antes que pudesse
concluir.
A jovem a abriu e Grace se surpreendeu
com a presença de Folkes.
— Lorde Granville gostaria de vê-la em seu
escritório, Srta. Grace.
Ela engoliu seco frente a solicitação, mas
não lhe ocorreu oferecer qualquer resposta
diferente de “é claro” e um curto aceno de cabeça.
Poucos minutos mais tarde, caminhava pelos
frios corredores de Granville Hall sozinha, já que
Vivienne ficara em seus aposentos para terminar
de organizá-los. Deveria ser coisa da sua
imaginação, mas a jovem poderia jurar que agora,
sabendo da trágica história do assassinato de lorde
Granville e seu primogênito, sentia o ar
constantemente denso tornar-se ainda mais
carregado. Assim como o jardim, era como se
cada uma das paredes carregasse sofrimentos e
agonias das quais ela desejava, mas não saberia
como lhes livrar.
Lembrando-se das orientações que a Sra.
Plymouth certa vez lhe passara sobre a localização
de alguns cômodos, finalmente conseguiu chegar a
seu destino, não demorando a bater na imponente
porta do escritório para anunciar a própria
chegada, apesar desta estar entreaberta.
Completamente vestido de preto, como de
costume, Samuel encontrava-se concentrado em
seu caderno de registros quando ela chegou, mas
os números logo perderam sua atenção.
— Entre, por favor. — O lorde colocou-se
de pé.
Apesar de séria, sua voz não soava tão
soturna quanto na noite anterior, e isso foi
suficiente para levar certo alívio ao coração da
jovem.
Grace caminhou até o assento diante da
mesa que ele ocupava, e realizou uma mesura ao
se aproximar.
— Milorde.
— Não é necessário que me trate de modo
formal quando estivermos a sós, Srta. Grace e,
como já deve ter percebido, isso ocorrerá na
maior parte das vezes.
O pedido a surpreendeu, mas seria mentira
dizer que a desagradava.
— Sim, senhor — limitou-se a responder.
Samuel também não achava necessário que
ela o respondesse de modo tão formal, mas a ideia
de tê-la chamando por seu nome de batismo não o
agradava, assim como na voz de qualquer um e,
deste modo, evitou qualquer tipo de correção.
Ele gesticulou em direção à cadeira, em um
convite silencioso para que se sentasse. Grace
assim o fez.
— Peço desculpas se a tiver interrompido
em suas atividades.
— Não interrompeu — esclareceu ela.
Para dizer a verdade, ainda se encontrava
extremamente compadecida com o que descobrira
sobre ele há pouco para conseguir repreendê-lo
por qualquer coisa. As novas informações sobre o
trauma pelo qual lorde Granville havia passado a
faziam compreendê-lo um pouco mais,
principalmente no que dizia respeito ao eterno
estado de luto que carregava em sua postura, já
que esta configurava-se em um reflexo direto do
sentimento que o preenchia o coração.
— Fico satisfeito em saber. — O conde
desviou os olhos com rapidez para uma pilha de
documentos que tinha sobre a mesa ao notar que
estava prestes a cometer novamente o equívoco de
analisá-la com detalhes. — Pedi que Folkes a
chamasse para lhe mostrar isto. — Retirou um
documento da pilha e lhe estendeu uma lauda.
Grace observou o documento e em seguida
o encarou, visivelmente constrangida.
Samuel demorou alguns segundos para
compreender o olhar que recebia, mas, quando o
fez, sentiu vontade de acertar a própria face pela
falta de atenção.
— Eu sinto muito — pediu desculpas,
visivelmente consternado pelo que esquecia. —
Eu… — Atrapalhou-se com as palavras, mas logo
respirou fundo, buscando reaver o controle das
próprias faculdades.
Por que diabos estas coisas pareciam lhe
acontecer justamente quando estava junto dela?
— Está tudo bem, milorde. — Grace
percebeu que ele não fazia por mal. — Se puder
me dizer do que se trata, já será o suficiente.
— É claro. — Samuel limpou a garganta. —
Esta é a minuta referente ao vosso desquite, Srta.
Grace. Foi assinada pelo senhor Owen Doyle na
manhã de ontem, e este — esticou a mão, para
pegar outro documento, composto de algumas
páginas — trata-se de nosso… — Ergueu os olhos
para ela e no mesmo momento se amaldiçoou por
tê-lo feito ao notar que o ato o deixou com a voz
ligeiramente afetada. — Contrato de núpcias.
— Ah.
— Ambos só possuirão valia para seguirem
aos trâmites burocráticos a partir do momento em
que forem assinados pela senhorita.
— Entendo...
Grace buscou não transparecer seu
nervosismo, mas, além do peso que aquelas folhas
de papel possuíam sobre o próprio destino,
recriminou-se por apenas então se recordar de que
na época de seu casamento os documentos
necessários haviam sido assinados por seu pai.
Samuel observou certa palidez tomar os
lábios dela, bem como sua respiração se tornar
gradualmente agitada.
Ele já temia que isso acontecesse e, por
mais que os próprios nervos lhe aflorassem pela
compreensão das reflexões que a desistência dela
lhe trariam, não pôde deixar de reiterar:
— Srta. Grace, se necessitar de tempo para
reconsiderar, ou…
— Não — ela o interrompeu de imediato.
— Por favor, lorde Granville, não considere minha
hesitação como ausência de palavra. Acontece que
eu… — As mãos dela começaram a retorcer o
tecido da saia, do modo que Granville já
percebera que costumava fazer quando ficava
nervosa.
Tentando ajudar de alguma maneira, Samuel
deu a volta na mesa, colocando-se ao lado da
jovem.
— Sentiria-se mais tranquila se eu lhe
dissesse que pretendo ler cada um dos termos
antes de lhe pedir para assinar?
Tão contrária à postura rígida que ele
transmitia, a fala gentil conseguiu tranquilizá-la.
Ao menos um pouco.
— Eu agradeço por fazê-lo, mas não sei se
seria suficiente.
— E por que não? — Ele não compreendeu.
— Na ocasião de meu primeiro casamento,
ainda não havia atingido a maioridade legal e,
sendo assim, toda documentação foi assinada por
meu pai. Como disse ao senhor, nunca aprendi a
ler ou escrever, e sei que já deveria ter previsto,
mas apenas agora notei que não saberia como fazê-
lo.
Granville voltou a sentir aquele aperto
incomum na região esquerda do peito.
— Entendo.
Ele balançou a cabeça, e Grace começou a
ter uma torrente de possibilidades envolvendo sua
mente sobre o que poderia ser feito, mas então ele
a surpreendeu, ao sugerir:
— Se a senhorita não se importar, após
concluir a leitura das cláusulas, eu poderia ajudá-
la.
— O senhor faria isso? Digo… estaria
disposto a me ajudar?
Ela não perguntou por retórica. Grace não
possuía a sagacidade feminina para charmes
programados e tais sutilezas. De fato, ficara
surpresa pela oferta de lorde Granville,
principalmente ao notá-lo observando-a com
intensidade e tão próximo de si.
E Samuel percebeu tarde demais que não
somente estava disposto, como também gostaria
de fazer aquilo ao responder:
— Com toda certeza.
Apesar da temperatura seguir baixa naquela
manhã, Samuel sentia que seu escritório se tornava
mais quente a cada minuto.
Enquanto lia o contrato matrimonial para
Grace, o conde vez ou outra desviava o olhar e a
via focada em compreender cada palavra. A
jovem, inclusive, questionava o significado dos
termos legais que desconhecia. Quando finalmente
concluiu a leitura, abaixou as laudas que tinha nas
mãos e voltou a fitá-la.
— Há alguma dúvida ou objeção?
Grace ergueu suavemente os lábios para
cima.
— Não sou a pessoa mais indicada para
analisar documentos legais, mas creio que não.
Granville mordeu o interior da bochecha,
aproximando-se dela em alguns passos.
Como permanecia sentada diante dele,
Grace precisou erguer a face para observá-lo.
— Esta documentação ainda será revisada
por meu advogado, Srta. Grace, e tenho certeza de
que o parecer dele poderá deixá-la ainda mais
segura sobre minhas intenções. Não espero que
confie apenas em minha palavra.
— E por que eu não deveria?
Granville ficou momentaneamente mudo.
Ela voltava a surpreendê-lo.
— Porque neste mundo não conhecemos
ninguém verdadeiramente. — Automaticamente,
seu olhar tornou-se distante. — E confiar
facilmente em quem não devemos, pode se mostrar
um erro fatal.
A resposta fora muito mais sombria do que
Grace esperava, fazendo-a engolir seco, antes de
dizer:
— Ainda assim, quando disse que
concordava com este arranjo, na noite passada,
pensei já ter deixado clara minha escolha de
confiar no senhor. — Um riso resignado lhe
escapou. — Sinto muito que isto tenha lhe
acontecido.
— Isto o quê?
— Bom, pelo modo como fala, devo
compreender que se arrependeu de ter confiado em
alguém.
Oh, sim… ele se arrependia.
A lembrança de Cassandra jamais o
abandonava completamente, mas naquele momento
se fez ainda mais presente, deixando-o
incomodado.
— Isso não importa. — Granville foi até a
mesa atrás dela e esticou o braço para pegar sua
pena, uma folha de papel e o mata-borrão. —
Arrependimentos não mudam os fatos —
praticamente murmurou.
Grace percebeu que novamente havia
tocado em um assunto do qual o conde não gostaria
de tratar e ficou ligeiramente incomodada com a
postura que voltou a tornar-se rígida.
— Irei escrever o vosso nome nesta folha
para que possa reproduzir algumas vezes, antes de
assinar o documento — informou, inclinando-se
ligeiramente ao lado dela para utilizar o apoio da
mesa.
Ficando tão próximos quanto jamais
estiveram, Grace não pôde deixar de sentir-se
novamente invadida pelo perfume masculino que
mesclava tabaco e sabão, bem como levemente
inclinada a observar atentamente as formas que se
escondiam, tão discretas, sobre a massa de vestes
pretas. Com o tecido escuro geralmente era difícil
captar os contornos de lorde Granville, mas dada a
posição, pela primeira vez, ela conseguia. A luz
das velas dispostas na mesa e espalhadas no
cômodo pareciam jogar com as sombras dele, lhe
concedendo vislumbres das reentrâncias, das
curvas e volume dos músculos de seus braços e
pernas. Ele era um homem forte, sem sombra de
dúvidas.
— Bem. — Samuel se endireitou,
encarando-a, e Grace sentiu o coração parar na
garganta por um momento, crente de que lia seus
pensamentos. — Aqui está. — Arrastou a folha
para ela.
No topo do papel praticamente imaculado,
havia duas palavras registradas em uma caligrafia
impecável:
Grace Coleman
A jovem reconheceu o primeiro nome, ao
menos um pouco, mas teve dificuldade de fazê-lo
no segundo.
— Este é o meu… — Apontou com o dedo
para a palavra.
— Seu sobrenome de batismo. — Samuel a
viu observar algo que deveria pertencê-la como
estranho, o que lhe pareceria tão incorreto que
causava certa angústia.
— Aqui está escrito Coleman?
— Exatamente.
O sobrenome de seu pai.
Aquele com o qual Grace jamais conseguira
se identificar, assim como acontecera com o de
Owen.
— Como o senhor sabia?
— Quando Carter foi até a taverna para
encontrar o Sr. Doyle, precisou requisitar vossos
dados para que os documentos fossem preenchidos
— esclareceu.
— Ah, sim…
A citação de Owen sempre conseguia causar
em Grace um tipo singular de mal-estar.
— Se desejar, poderá levar meus pertences
para o quarto e treinar com paciência antes de
assinar. Não é necessário ter pressa.
Na verdade, o acônito sob a camisa dele
discordava, mas Samuel não desejava pressioná-la
com tão delicada tarefa.
Além disso, certa ideia começava a lhe
ocorrer sobre alterações que pretendia fazer
acerca do enlace. A cada momento partilhado com
Grace, a jovem lhe parecia mais pura e inocente, e
Samuel passava a considerar meios para que a
nova fase de sua visa não fosse iniciada com
outras mazelas.
— Eu agradeço. — Grace estendeu a mão
até a pena, segurando-a com delicadeza e
reverência. — É tão leve… — considerou em voz
alta, observando cada detalhe da peça.
Granville se virou, encostando o quadril na
mesa enquanto seguia observando-a. Novamente,
nem percebia, mas acabava por assumir uma
postura mais relaxada ao lado dela.
— Será mais fácil sem as luvas.
— Como?
— Suas luvas, Srta. Grace. — Apontou com
os olhos às pequeninas peças de renda imaculadas.
— Adquirir o domínio da pena será mais fácil
tendo contato diretamente com suas mãos. O tecido
pode torná-la escorregadia e difícil de controlar.
— Ah, claro.
Cuidadosamente, Grace deixou a pena sobre
a mesa e começou a retirar a luva esquerda.
Apenas então Samuel percebeu que ela
também havia segurado a caneta com a referida
mão. Mas a surpresa pelo curioso fato de que
poderia não ser destra, como ele, logo perdeu
lugar. Sua atenção fora inegavelmente roubada
pelos dedos delgados e delicados gradualmente
revelados.
— Realmente, é mais fácil.
A fala de Grace o fez reaver a razão e
apenas então Granville percebeu que ela já
voltava a segurar o item, uma vez que estava
concentrado demais em observar somente aquele
pequeno vislumbre de pele e unhas delicadas.
O lorde limpou a garganta e voltou a postar-
se ereto.
Onde seus pensamentos tinham ido parar?
Enquanto Samuel buscava reorganizar uma
linha de raciocínio que não fosse absurda, Grace
se arriscou para molhar a caneta no tinteiro e fez
seu primeiro registro no papel. Naturalmente, a
inicial de seu nome saiu como um rascunho
sôfrego do que deveria ser, mas estava tão
animada com a ideia de escrevê-lo que permitiu-se
sorrir ao terminar a desafiadora missão.
— Bom, ainda não está como deveria, mas
prometo treinar muito mais.
Tocou na letra malfeita, como se buscasse
acariciá-la, mas então se deu conta de que a tinta
ainda estava fresca.
A ponta de seu indicador ficou totalmente
manchada.
— Oh, não...
Chateada, a jovem olhou para seu recente
trabalho que agora não passava de um terrível
borrão.
— Por isso utilizamos o mata-borrão ao
terminar de escrever. — Granville lhe indicou o
objeto com o dedo. — E pela mesma razão deve
ser sutil ao mergulhar a ponta da caneta no
tinteiro… Permita-me.
Na sincera intenção de ajudar, o conde
segurou a mão dela, e tarde demais percebeu que
poderia não ser uma ideia muito inteligente
sujeitar-se àquele tipo de contato. Entretanto,
sabendo que a situação ficaria ainda mais
constrangedora se deixasse de fazê-lo
abruptamente, Granville se esforçou para seguir
com a instrução, mesmo sentindo a mão feminina e
pequena desestabilizá-lo com o calor
surpreendente que emanava.
Não era a primeira vez que percebia. A
jovem possuía algo singular em seu toque.
Grace ficou sem reação ao ver que o conde
pretendia tocar-lhe, mas sua respiração cessou
verdadeiramente ao sentir o choque que a mão fria,
coberta com uma luva de couro preta, novamente
causara junto à sua, agora nua.
A tristeza e a dor que Granville carregava
tornavam-se muito mais nítidas às sensibilidades
dela dada a inédita proximidade.
O interior dele era como a mais soturna e
longa noite de inverno. Não havia resquício de
luar, ou brilho das estrelas. Apenas frio e
escuridão profunda, envoltos por uma angústia sem
fim.
Como que por instinto, a jovem se obrigou a
fixar os olhos na pena e não o observar enquanto
sentia Granville guiá-la em um movimento
cadenciado até o tinteiro para mergulhar apenas a
ponta da pena e rapidamente retirá-la.
— É assim que deve ser feito. — Samuel
cortou o silêncio ao final, encerrando o contato
subitamente.
Grace notou que a voz dele estava mais
rouca do que costumava ser.
A jovem ergueu os olhos e sentiu que ele
também a observava com mais profundidade do
que em qualquer outra ocasião, o que fez algo
dentro dela estremecer. Era nítido que Granville
também havia sentido. Havia notado que, de
alguma maneira, os corpos correspondiam à
energia tão diferente que trocavam.
— E co-como eu deveria utilizá-lo?
Ela apontou com os olhos para o outro item
do qual o conde há pouco falava, buscando afastar
de sua mente o pensamento confuso gerado pelo
contato.
Samuel agradeceu aos céus pela pergunta,
pelo mesmo motivo, e logo demonstrou como a
jovem deveria pressionar o mata-borrão sobre o
papel. Desta vez, entretanto, não cometeu o mesmo
erro, entregando-lhe o objeto para que Grace,
sozinha, testasse sua funcionalidade.
Acontece que ao fazer isso o pobre diabo se
colocara em uma situação tão delicada quanto a
anterior e sua respiração não demorou a
comprovar.
A maneira como a mão descoberta de Grace
coordenava em movimentos fluídos um ritmo
constante de vaivém, inclinando ligeiramente o
corpo delicado para que a peça de formato cônico
cumprisse sua função, o deixara perturbado.
— Estou fazendo certo? — A pergunta dela
o levou a um nível mais abaixo do inferno pelo
número de coisas indevidas que, para sua própria
surpresa, o levara a pensar.
— Está.
Granville voltou a responder de modo
direto e com a voz ainda mais rouca, achando
melhor se afastar para o outro lado da mesa.
Diferente de sua mente, o corpo
demonstrava que não havia se mantido celibatário
tanto tempo por uma escolha consciente, como
imaginava, mas pelo fato de ter estado anos sem
conviver com uma mulher.
— Possuo mais desses em minha gaveta.
Poderá levá-los para seu quarto e treinar até que
tenhamos os documentos finais.
O conde se tornara inquieto e começou a
remexer em alguns papéis, sem nem mesmo voltar
a observá-la enquanto dizia.
Grace estava tão animada com o
empréstimo que nem mesmo ocupou-se em
perceber.
— Eu agradeço muito, milorde. —
Levantou-se da cadeira, reunindo todos os itens em
seus braços. — Há alguma previsão sobre
quando…
— O quanto antes.
Ela nem precisou terminar a pergunta e
Samuel já respondia um tanto afobado, como se
realmente ansiasse por aquilo.
A questão era que, naquele momento, o
conde possuía sérias dúvidas se realmente
conhecia os motivos que o faziam ansiar pela
oficialização do enlace.
— Está bem. — Grace realizou uma vênia,
despedindo-se. — Até mais tarde, milorde.
— Até mais tarde, Srta. Grace.
Quando ela finalmente saiu, Samuel levou
alguns instantes para voltar a erguer a face,
ocupado demais em compreender o que acontecia
com seus pensamentos e, ao fazê-lo, notou que
Grace havia esquecido a luva sobre sua mesa.
Ele não buscou compreender de onde viera
o impulso, mas quando percebeu, tinha a delicada
peça de renda junto à própria mão.

Nos dias seguintes, os encontros entre o


conde e sua futura esposa seguiram resumidos às
refeições. Em raras ocasiões um diálogo era
estabelecido e estes eram muito mais comuns de
acontecer quando Grace tomava a iniciativa,
comentando sobre os avanços que fazia em sua
caligrafia. Aparentemente, apesar de sua origem
simples, Vivienne havia aprendido a ler e escrever
o básico quando ainda era menina, e buscava
ampliar o repertório de Grace durante as tardes,
sendo estes momentos muito aprazíveis à futura
condessa que, pela primeira vez, sentia ter alguém
a quem podia chamar de sua amiga.
Granville, por outro lado, passara a semana
toda se esquivando da jovem de cabelos dourados
o quando podia. Já ficara claro que inconstâncias
sempre o cometiam quando estava perto dela e
desejava mais do que tudo eliminar estes terríveis
incômodos. Para isso, permanecia quanto tempo
fosse possível em seu escritório, enfiado em
afazeres burocráticos e, não raras vezes, a
comunicava de que não poderia acompanhá-la
durante o desjejum. Diminuir os contatos
facilitaria seus objetivos, visto que não demorou
muito a perceber que seus olhos mundanos o
traíam sempre que ela estava presente.
Além de sua beleza, parecia que Grace
possuía algo a mais que o atraía como um ímã e,
mesmo que o lorde tentasse, era incapaz de
permanecer durante muito tempo próximo sem
desejar observá-la.
Samuel se pegou espiando-a por cima das
folhas jornal, através do vapor da xícara de café e
da borda do cálice de vinho. Pegou-se admirando
os quadris redondos de Grace enquanto ela saía da
sala de jantar algumas noites atrás e ficou furioso
ao compreender que parte de sua razão e bom
senso, aqueles pelos quais tanto prezava, tentavam
lhe escapar a cada oportunidade quando a tinha
por perto; algo que não poderia acontecer.
Seus planos não poderiam coincidir com
frivolidades e desejos mundanos, dos quais há
muito tempo havia renunciado.
Em certa noite, durante o jantar, Granville
informou à Grace que com a ajuda de Carter
descobrira onde estava o advogado, enviando-lhe
uma missiva junto dos documentos já redigidos
para revisão. Segundo o lorde, Parkins
encontrava-se em um condado não muito distante,
o que tornava ainda mais próxima a data do
enlace, uma noção que o acometia com medidas
iguais de satisfação e nervosismo.
Se por um lado desejava terminar logo com
tudo aquilo e fazer o que fosse necessário, por
outro a ideia de voltar a se deitar com uma mulher
depois de tantos anos o deixava agitado a cada vez
que pensava na questão. Para piorar, era como se
Cassandra se mantivesse onipresente em suas
ideias, pois além dos constantes pesadelos das
cenas com o pai e o irmão, passara a ter alguns
envolvendo uma figura feminina que sempre
aparecia nua e coberta de sangue em sua cama,
abaixo dele.
Ela lia seus pensamentos, até mesmo os
inconscientes, o que intensificava suas
preocupações. Atormentava-o como fosse possível
e sempre de maneiras criativas, o que tornava
inviável a missão de Samuel tentar se defender.
Após quase duas semanas treinando, Grace
fora informada pela Sra. Plymouth de que o conde
a esperava em seu escritório após o desjejum. Ao
lado de Vivienne, que fizera questão de carregar as
folhas de suas lições com todas as letras do
alfabeto registradas, a moça respondeu ao
chamado, chegando em poucos minutos.
— Bom dia, milorde.
Realizou uma vênia muito mais elaborada
que a primeira, visto que também estava treinando
esta e outras cortesias, e apenas depois notou que
o Sr. Carter também se encontrava no cômodo,
replicando o cumprimento.
— É muito bom vê-lo novamente, senhor
Carter. — Sorriu, aproximando-se do cavalheiro
que estava pronto para beijar-lhe de modo galante
a mão.
— Asseguro-lhe que o prazer é todo meu —
William respondeu com seu comum senso de
humor, mas não demorou para ter os olhos
desviados à jovem criada que seguia atrás dela. —
É um prazer vê-la novamente também, Srta.
Vivienne.
A jovem, que mantivera os olhos baixos
desde o momento em que notara a presença do
cavalheiro, se surpreendeu com o cumprimento
inesperado e o devolveu com uma vênia e um
breve olhar desconfortável, mas este fora tão
rápido que William não pôde ter certeza do que
vira.
— Chamei-a aqui porque acabo de receber
os documentos revisados pelo Sr. Parkins, Srta.
Grace. — Granville, que se mantinha de pé do
outro lado da mesa, apontou para os papéis dos
quais falava.
A informação a surpreendeu, e a jovem
caminhou a passos lentos até a mesa, chegando tão
próxima que foi capaz de reconhecer, agora sem
dificuldades, os trechos onde o próprio nome
estava destacado.
— Srta. Vivienne? — chamou o conde.
A criada caminhou até ele imediatamente e,
apesar de ter permanecido praticamente duas
semanas sem ir a Granville Hall na esperança de
afastar os pensamentos dos olhos escuros que o
haviam cativado após tê-los visto apenas uma vez,
Carter percebeu que a seguia a cada passo.
— Sim, milorde?
— Precisamos de mais de uma testemunha
para assiná-los. Se importaria?
Vivienne olhou para Grace antes de
responder, mas rapidamente confirmou:
— De forma alguma, milorde.
— Excelente.
Mesmo sentindo que um nervosismo
incomum começava a ocupá-la, Grace sorriu em
agradecimento à criada.
— Deixe-me ajudar com isto. — William
caminho até Vivienne, segurando os papéis que a
jovem trazia nas mãos e depositando-os na mesa
do conde. — Precisará delas livres para assinar.
— Ofereceu um sorriso gentil, que a criada
ignorou, desviando rapidamente os olhos.
— Obrigada.
Poderia ser algo de sua cabeça, mas
William jurou captar algo de amargo na voz com a
qual lhe fizera o curto agradecimento.
Mais rápido do que Grace imaginara, a
documentação que a tornaria Condessa de
Granville fora assinada. Em realidade, o processo
fora tão simples, apesar de estritamente
burocrático, que nada parecia ter sido alterado
quando, pela última vez, registrou seu nome em
tinta preta.
— É só isso? — questionou com
sinceridade.
Já havia se casado uma vez, é verdade, mas
imaginava que a oficialização de um matrimônio
nas camadas sociais mais abastadas, que
envolviam títulos, posses e fortunas, seria muito
mais complicada.
— O Sr. Parkins providenciará o necessário
daqui em diante — esclareceu Samuel.
— Não são necessários proclamas?
— Ser conde inclui algumas prerrogativas.
— respondeu Granville, ao mesmo tempo que
sentia a garganta secar por aquilo que considerava
necessário omitir.
— Ou condessa — Fora a vez de William
esclarecer, oferecendo à Grace uma piscadela. —
Milady. — Inclinou-se na direção da dama, em um
cumprimento formal completo.
Grace não conseguiu evitar de sorrir.
— Isso me parece um tanto exagerado —
respondeu com bom humor, mas assumia que parte
de seu riso era de nervoso.
Afinal de contas, como aceitar que se
tornara realmente uma condessa?
— Mas não é. — Granville se aproximou
dos dois, cortando a atmosfera leve com seu tom
de voz sério e estritamente formal. — Minha lady.
Foi a vez dele realizar o cumprimento
formal à Grace, enquanto negava-se a aceitar que
seu mais recente golpe de mau humor se dera pelo
fato de William ter reverenciado primeiro a
mulher que havia acabado de tornar-se sua esposa.
Diferente de quando Carter o fizera, o
cumprimento de Granville fizera o peso do título
cair sobre Grace de uma só vez, sem restar espaço
para dúvidas ou hesitação.
— Meu lorde. — Sua voz estava
ligeiramente trêmula, bem como suas mãos, mas
ela fez o máximo esforço possível para conseguir
concluir o movimento sem gaguejar ou tropeçar na
barra do vestido ao correspondê-lo.
Aliás, apenas ao fazê-lo Grace reparou em
seu vestido: se casara de preto.
— Se me permitem, gostaria de ter um
momento a sós com minha esposa.
Como se fosse possível, o pedido
inesperado de lorde Granville e o modo inédito
como a chamara a deixou ainda mais nervosa.
Igualmente surpreso, Carter cerrou os lábios
para segurar o trocadilho infame que lhe correu a
mente no mesmo instante e não demorou a cumprir
a ordem do amigo, tendo o gesto cavalheiresco de
conceder a frente à Vivienne. A criada, por sua
vez, saiu da sala a passos apressados e, se o amigo
do conde tentou trocar qualquer palavra com ela,
foi incapaz de ouvi-lo, pois o deixara para trás
enquanto Carter fazia questão em ocupar-se ele
mesmo de fechar a porta.
Assim que se viu novamente sozinha com
lorde Granville, a primeira coisa que Grace fez foi
reparar no inconfundível som de clic que a porta
fez ao ser fechada atrás de si. Mesmo que quisesse
disfarçar seu nervosismo, seria impossível evitar
que o conde, bem diante de si, não enxergasse o
movimento seco que fizera sua garganta.
— Carter carrega o péssimo hábito de ser
solícito demais. — Samuel fez questão de frisar
que não tivera qualquer envolvimento com a ideia
da porta fechada enquanto se afastava em direção
a um pequeno e escuro armário disposto no canto
esquerdo cômodo.
Grace viu quando retirou de lá uma garrafa
de vidro escurecido e dois ornamentados cálices
de cristal, bem menores do que os que costumava
utilizar após o jantar.
— Milorde, eu não… — ela se adiantou,
buscando lembrá-lo sobre suas considerações
quanto à bebida.
— Será apenas um brinde — ele assegurou,
enquanto se aproximava.
Em seguida, colocou os cálices sobre a
mesa enquanto os preenchia com uma dose singela.
— Meu pai, milady, foi um homem ligado às
tradições e desde menino me fez compreender o
significado que carregavam. Segundo me ensinou,
sempre que um contrato ou acordo é selado, as
duas partes devem brindar e celebrá-lo como
demonstração de um desejo genuíno de sucesso. —
Levantou as pequenas doses de licor, oferecendo
uma a ela.
Grace notou que havia um nítido tom de
triste saudosismo em sua voz.
— Vamos apenas brindar, sim? Não é
necessário beber — Samuel esclareceu, erguendo
o próprio cálice entre eles, fazendo-a seguir o
movimento. — Que este enlace corresponda aos
nossos anseios e… — Ele engoliu seco. A segunda
parte saiu mais como uma prece: — Que não
existam arrependimentos.
Enquanto dizia, Grace notava o esforço de
Granville para seguir observando-a nos olhos a
cada palavra.
— Bem… Creio que seja isso.
Ele estava prestes a virar o cálice quando
ela o interrompeu.
— Também posso dizer algo?
Como ela nem mesmo pretendia brindar, a
fala o surpreendeu. Entretanto, o momento como
um todo estava fazendo Samuel sentir-se tão
deslocado que o lorde apenas balançou a cabeça,
confirmando.
— Além dos arrependimentos… Que não
existam mentiras.
— Grace…
— Se vamos fazer isso, milorde, devemos
ser sinceros, como fomos desde o princípio.
Ambos sabemos porque estamos aqui. — Ela deu
ombros de modo leve, tentando aliviar a tensão
que de repente correu entre eles.
— Ainda assim, existem assuntos que não
lhe dizem respeito. — Granville não desejou ser
grosseiro, mas tudo o que menos desejava era
compartilhar com ela seus demônios.
— E não lhe peço que compartilhe sobre
tais assuntos. Desejo sinceridade tão somente
sobre aqueles que me cabem, e conto com vossa
parcimônia para decidir quais são, milorde. Como
já lhe disse anteriormente, confio no senhor. —
Ela levantou o cálice. — Estamos de acordo?
Samuel observou os olhos dourados, tão
meigos quanto obstinados, e soube que em outras
épocas seria colocado de joelhos por qualquer
pedido que a dona deles lhe fizesse.
— De acordo. — Ele ergueu o cálice e os
cristais delicados tilintaram um contra o outro em
um brinde curto que ressoou na mansão silenciosa.
Em seguida, para a surpresa do conde,
Grace demonstrou respeito à tradição sobre a qual
lhe falara, tomando um gole da bebida.
Logo ela afastou os lábios da borda e
aproximou o nariz.
— Isso é…?
— Licor de pêssego.
— É delicioso.
A fala surpreendeu Granville.
— Era o favorito de minha mãe.
Grace ergueu os olhos para ele, surpresa
com a resposta, sem saber o que dizer.
— Gostaria de mais?
— Ah, sim, por favor.
Até mesmo ela se surpreendia com a
resposta.
Enquanto a servia, Samuel aproveitou para
realizar um novo comunicado.
— Ainda em tempo, milady, gostaria de
avisá-la que amanhã pela manhã receberá uma
visita. — Ao terminar de servi-la, apontou para
um conjunto de poltronas de couro localizado
diante da lareira.
Grace foi incapaz de dissimular sua
surpresa enquanto se acomodava.
— Por favor, não me diga que será Madame
L’afaiat novamente. Juro que não necessito de
tantos vestidos quanto à Sra. Plymouth acredita…
— Ela terminou a segunda dose rapidamente,
deixando o cálice sobre a mesinha de centro.
O singelo desespero presente em sua voz fez
um esboço de sorriso surgir nos lábios de Samuel,
mas ele o reprimiu rapidamente, por hábito.
— Não será a modista. Trata-se da Sra.
Burns. Ela será sua tutora de estudos.
— Minha… — A empolgação de Grace foi
tamanha, que a jovem se levantou. — Minha
tutora?! — Uniu as mãos diante das saias com um
sorriso tão resplandecente nos lábios que se
estendia até os olhos, observando lorde Granville
com um misto de admiração e devoção por aquilo
que acabava de lhe dizer.
Novamente, Samuel poderia jurar que via as
chamas da lareira e das velas espalhadas pelo
escritório tornarem-se mais incandescentes e
vibrantes, junto do brilho dourado que parecia
provir dela.
— Considere um presente de casamento. —
Granville se levantou, realmente surpreso com a
reação e, mais ainda, com a sensação que esta
gerava em si mesmo.
— Ah, muito obrigada, milorde! —
Empolgada demais para perceber o que fazia,
Grace se apoiou nos ombros dele, beijando-o na
bochecha para demonstrar sua gratidão.
Samuel ficou estagnado.
— Oh! Ah, me desculpe! Eu…— Não
demorou para Grace perceber que sua reação fora
um tanto exagerada e a jovem logo passou a
ruborizar.
— Não, está tudo bem. Isso foi só… —
Samuel, por sua vez, limpava a garganta, e
necessitou ir imediatamente alocar o quadril atrás
da mesa.
— Um agradecimento.
— Sim, um agradecimento — ele
respondeu, fazendo o máximo para retomar a voz
etérea.
— Eu creio que seja melhor me retirar para
contar a novidade à Vivienne. — As bochechas de
Grace ainda ardiam.
— Creio que seja melhor. — Samuel já
desviava os olhos, remexendo em papéis sobre a
mesa.
— Até mais tarde, lorde Granville — ela se
despediu, já abrindo a porta.
— Até mais tarde, lady Granville — e ele
respondeu, mas Grace já saíra.
Conforme o conde dissera, na manhã
seguinte a tutora aguardava Grace na biblioteca.
Dona de olhos verdes, praticamente
cristalinos, cabelos grisalhos e pele de ébano,
marcada com tantas linhas quanto deveria possuir
sua longa história de vida, a senhora observou a
condessa se aproximar da mesa onde os livros e
demais materiais encontravam-se dispostos.
— Minha lady — realizou a reverência que
o corpo gasto pelo tempo permitia.
— Ah, isto não será necessário, Sra. Burns
— Grace se adiantou, tocando-a delicadamente no
ombro.
Imediatamente, os olhos da tutora se
ergueram, encontrando-se com os dourados, como
se um fio poderoso e intangível os ligasse.
Foi este o exato momento em que ambas
souberam.

— O Sr. Carter deseja vê-lo, milorde —


anunciou Folkes.
— Outra vez?
Sem pronunciar uma palavra, o criado
anuiu.
Granville suspirou. Seu humor, que já não
era dos melhores, estava especialmente amargo
naquela manhã.
— Mande-o entrar.
— Sim, senhor.
Menos de um minuto depois, Carter cruzou a
soleira da porta mais bem vestido do que Samuel o
vira em muito tempo.
O amigo sempre andava asseado, é verdade,
mas naquele dia as vestes bem-recortadas
pareciam mais nobres e o colete que vestia era
confeccionado em seda verde.
— Perdi alguma coisa? — o conde
questionou, enquanto dividia a atenção entre os
documentos em sua mesa e o visitante.
— Bom dia para você também.
— Por que está vestido assim? — Granville
ignorava a cortesia propositalmente.
— Se não se recorda, fui tratar de assuntos
oficiais com vosso advogado e é de seu interesse
que me mostre apresentável em tais encontros —
mentia.
Ao menos em parte.
A menção do advogado fez a atenção de
Samuel ser inteiramente retida.
— Parkins fez alguma objeção ao meu
pedido?
— Até o momento, nenhuma. — William
caminhou até a mesa do conde e começou a mexer
com desinteresse em um pequeno busto de Platão
que havia sobre ela. — Ainda que tenha ficado em
dúvida sobre seus motivos, o que é compreensível.
Granville suspirou.
— Ele lhe disse isso?
— Não exatamente com essas palavras. Mas
não entendeu por que quis realizar o matrimônio
por procuração, como se a noiva estivesse em
outro país quando, na verdade, encontra-se aqui.
— O que disse a ele?
— Que eu era somente o menino de recados,
e que ele deveria buscar a resposta direto na fonte
se desejasse saber.
— Acredita que ele virá a Granville Hall?
— Duvido muito, na verdade. O fiz crer que
está furioso com os rumores que ouviu sobre o
novo cliente e disse que seria tolice demais
despertar a ira de alguém como você.
— Alguém como eu? — Samuel ergueu uma
sobrancelha.
— Ora essa, vamos lá… De que adianta
uma fama desgraçada se não pudermos nos
aproveitar dela de vez em quando? — Willian
devolveu a estátua à mesa, puxou uma cadeira e se
sentou. — Devo confessar que eu também tive
dúvidas sobre essa sua ideia.
Samuel soltou a pena que tinha nas mãos e
levou os dedos à fonte, massageando-a. Para
variar, havia tido uma péssima noite de sono, com
pesadelos perturbadores, e a cabeça começava a
lhe doer.
— O casamento de um modo ou de outro
logo se tornará público, e será mais fácil se todos
acreditarem que Grace não estava aqui, mas que eu
já conhecia sua família há muito tempo, ou
qualquer coisa do gênero. Desta forma, não
poderão levantar suspeitas quanto à sua origem e
evitaremos mais especulações do que já teremos.
— Compreendo… — Até certo ponto, Will
realmente o fazia. — Mas se esquece de que foram
vistos no porto, no dia do leilão?
— Por pessoas que jamais admitiriam estar
envolvidas em uma atividade ilícita apenas para
fomentar uma fofoca, Carter, não se esqueça disso.
Além do mais, ninguém da aristocracia estava
presente, além de mim. Acredita mesmo que
qualquer um daqueles homens colocaria sua
palavra contra a de um conde? — Samuel ergueu a
sobrancelha.
William balançou a cabeça. De fato, o
amigo parecia ter considerado com esmero cada
detalhe do plano, só faltava saber de um:
— Falou sobre isso para ela?
Apenas o olhar que Samuel o lançou seria
resposta suficiente.
— Temi ofendê-la. — Suspirou. — Li para
Grace todos os termos do enlace, mas omiti sobre
as circunstâncias que seria feito. De qualquer
maneira, pretendo esclarecer sobre isso o quanto
antes.
Carter compreendia as ponderações do
amigo, mas possuía as próprias ressalvas sobre
isso. Sendo assim, decidiu preservar-se de tecer
qualquer comentário que pudesse ser considerado
impertinente.
— Pensava nela, também — era Granville
quem voltava a falar —, tenho certeza de que não
deseja que saibam como realmente nos
conhecemos. Aquele episódio não é digno de
compor a história de alguém, muito menos de uma
pessoa como ela.
— Como ela? — Uma sobrancelha de
Carter se ergueu.
Samuel limpou a garganta, levantando-se.
— Uma dama, William. — Buscou
disfarçar, olhando pela janela a imagem do jardim
coberto pela bruma de mais uma manhã úmida e
fria em Liverpool. — Deveria deixar de ser tão
parvo.
— E você de ser tão emburrado. — Carter
cruzou uma perna sobre a outra. — Imaginei que a
noite de núpcias o deixaria mais tranquilo. —
Amenizou o tom de voz.
Samuel se virou, lançando sobre ele um
olhar nada menos que letal.
— Alguém deveria lhe dar uma surra.
— Provavelmente. — O infeliz lhe
devolveu um sorriso de lado.
Samuel voltou a respirar fundo e caminhou
até o canto esquerdo da mesa, onde havia uma
garrafa de uísque. Após servir-se de uma dose,
prosseguiu:
— Darei à pobre moça o tempo necessário
para que se acostume com a nova vida antes de
cobrar-lhe de qualquer obrigação.
Carter fez uma expressão de genuína
surpresa.
Em seguida se colocou de pé, vendo que
ficaria a próprio cargo servir outra dose de uísque
se também desejasse beber.
— Quem diria, meu caro Samuel… justo
você! — após um gole, comentou, impressionado.
Samuel não esboçou qualquer resposta além
de um rosnado abafado pelo copo.
— E eu que cheguei a imaginar que estaria
afoito para… — William começou a comentar com
bom humor, mas logo a voz foi esmaecendo ao
notar que ao seu lado Sam permanecia sério. —
Nada.
Entretanto, um silêncio longo e perturbador
se instaurou entre eles, tão grande que Granville
poderia jurar ouvir a dúvida de William ecoando
pela sala.
— Se deseja saber algo, pergunte de uma
vez, ou...
— Quanto tempo faz?
Carter sequer hesitou.
— Dez anos — Samuel respondeu
prontamente.
— Santa Mãe!
— Até para mim essa reação parece
pecaminosa.
— Mas como?! — Will o ignorou. Estava
verdadeiramente incrédulo.
— É mais fácil do que parece.
Ao menos era, Granville considerou, até
certa dama instalar-se no mesmo corredor.
— Não consigo imaginar… — Carter tinha
o olhar distante e, quando se deu conta, a mente
também, voltando a ter o imaginário inundado por
imagens da jovem criada de cabelos e olhos
castanhos que deveria se encontrar a poucos
corredores de distância.
Samuel franziu o cenho e terminou seu
uísque em um único gole flamejante. Há alguns
anos também não conseguiria, mas tudo mudara
depois de Cassandra, inclusive os mais primitivos
desejos.
Depois dela, jamais se envolveu com
nenhuma outra mulher, e inicialmente nem mesmo
sentia vontade ou ânimo para isso, é verdade, mas,
passados os cinco primeiros anos de seu estado
celibatário, seu corpo solicitou alívio e ele havia
buscado, certa noite, encontrá-lo sozinho, quando
descobriu que nem mesmo este gênero seria capaz
de obter sem tê-la presente, invadindo seus
pensamentos e atormentando suas ideias, pois
quando buscava imagens agradáveis de jovens
com rostos e corpos delicados e corados, era
apenas o da maldita bruxa que encontrava, pálido
como a morte, além das pupilas negras dilatadas e
os cabelos negros o envolvendo como enguias
viçosas, afastando-o de qualquer ideia próxima de
satisfação ou prazer.
Era por isso, aliás, que oferecer à Grace o
tempo necessário para se acostumar com a ideia
de recebê-lo em sua cama também configurava a
Granville um bom negócio. O próprio Samuel
precisava se acostumar com o fato de que voltaria
a ter uma mulher junto de si e, ainda mais, reunir o
que fosse possível de seu controle para evitar que
no momento crucial Cassandra conseguisse
penetrar em sua mente, fazendo-o de alguma
maneira falhar naquela que era sua única e
inevitável missão no casamento: produzir um
herdeiro.
— Mas você ainda sabe, não é? Esse tipo
de coisa não se esquece, eu imagino — Carter
voltou a falar, lembrando Granville de que
permanecia por ali.
— Minhas capacidades permanecem
intactas, se é isto o que lhe preocupa. — Irritado,
Samuel deixou o copo na mesa e saiu em direção à
porta.
— Aonde vai?
— Você veio sem avisar e eu tenho um
compromisso. — O conde observou o amigo. —
Até logo, Carter.
— Pensei que não saísse de casa.
— Eu não disse que pretendo sair.

Como Grace permaneceria com as manhãs


ocupadas pela Sra. Burns, Vivienne passara a
auxiliar a tia nos cuidados com a mansão neste
período. Foi ao dobrar o corredor com uma pilha
de lençóis nos braços, inclusive, que a jovem
esbarrou em algo largo e firme, mas que não se
assemelhava a uma parede.
Como leite derramado, as peças alvas de
linho logo encontravam-se todas espalhadas pelo
chão.
— Desculpe-me — disse William,
prontamente.
— Sinto muito, milorde. — A criada se
abaixou de imediato, apressando-se em recolhê-
las.
O jovem estava prestes a se abaixar para
ajudá-la, quando Vivienne ergueu o rosto e lhe
lançou um olhar impassível com a face
emoldurada pela trança que lhe prendia os cabelos
castanhos.
— Por favor, permita que eu faça.
— Mas desejo ajudá-la. — Carter voltou a
se mover, com um sorriso gentil nos lábios.
— E eu agradeço, mas não desejo vossa
ajuda, milorde. — Buscou não ser grosseira, mas
pontual. Desejava fazer-se entender e estabelecer
seus limites o quanto antes.
Havia aprendido da pior forma possível o
que acontece às mulheres que se permitem aceitar
gentilezas demais de homens que possuem honra
de menos.
Impactado pela sinceridade dela e pelo
olhar que lhe lançara, William apenas permaneceu
ali, observando-a até que terminasse de recolher
tudo.
Era estranho, e ele não conseguia identificar
onde exatamente, mas algo na região de seu peito
havia murchado ao receber tal tratamento
desprovido de qualquer afeto por parte da jovem.
— Eu sinto muito que tenha de dobrá-los
novamente. — Por que ele simplesmente não
conseguia calar a maldita boca e ir embora?
Vivienne balançou a cabeça.
— Não tem importância. Faz parte do
trabalho — ela o respondeu com a mesma
imparcialidade e começou a se retirar na direção
oposta, passando diante dele.
— Srta. Vivienne?
Ele poderia jurar que ouviu o longo suspiro
que ela deu antes de virar-se novamente em sua
direção.
Mas que inferno, homem! Apenas cale essa
boca! Voltou a repreender a si mesmo.
— Sim, milorde?
— Na verdade, é senhor.
— Como?
Will deu um sorriso sem graça, engolindo
seco, como raramente lhe ocorria.
— Eu não sou um lorde. Não possuo um
título como lorde Granville, sabe? Sou apenas um
senhor.
Ela o mediu da cabeça aos pés. Foi
inevitável.
Aquele homem a parava ali, no meio do
corredor, a vendo com os braços abarrotados de
lençóis, vestido com a roupa de melhor qualidade
que já havia visto em toda sua vida, para lhe dizer
que era apenas um senhor.
Vivienne teve vontade de rir. Teve vontade
de chorar. Teve vontade de gritar.
Ah, como odiava homens como ele!
— Farei questão de me lembrar disso,
senhor. — Ao final, carregou seu sorriso mais
forçado de ironia antes cumprimentá-lo para
finalmente conseguir se retirar.
E, se antes William acreditava que a dama
de companhia da condessa não nutria grande
simpatia por si, para sua infelicidade, passava a
possuir certeza.

O vazio pode ser uma bênção ou uma


maldição.
Quando buscava uma palavra para definir a
ausência de fluxo de suas ideias, Samuel
considerava a primeira.
Assim como a fumaça que dançava ao redor
dele, erguendo-se como uma cortina em direção às
reentrâncias do forro de madeira invisíveis a olho
nu, tudo se tornava mais leve, menos denso,
volátil.
Em seu quarto do abandono, as culpas e
anseios mais profundos conseguiam ser
relativizados, inclusive, os mais recentes,
relativos ao prazer.
Você não pode desejá-la.
A voz cantarolou sussurrada e melódica ao
fundo da mente do conde, enquanto ele se mantinha
estendido sobre a chaise long com a camisa aberta
e os cabelos negros desalinhados caindo sobre o
rosto, em um retrato perfeito do que o espaço
significava.
Entretanto, mesmo que aquele resquício de
razão tentasse ainda habitá-lo, o poder do
entorpecente mostrou-se maior e mais ousado,
ludibriando-o com imagens de Grace em vestes e
poses insinuantes e reveladoras, que Samuel
jamais a tinha visto, mas que a criatividade
teimava em imaginar.
— Não é suficiente. — Esticando o braço
até uma mesinha de apoio, Granville voltou a
pegar seu cachimbo, ansioso por uma nova tragada
de ópio.
Ele precisava de mais.
Aquele quarto era feito para esquecer, não
para lembrar, e muito menos de algo que nem
mesmo chegara a realmente viver.
Resolver a questão foi exatamente o que fez.
Fumaça invadiu seus pulmões carregando
uma nova onda de veneno e esperança.
E esta foi a última coisa de que Samuel se
recordou.

— Amanhã ajudarei minha tia a encontrar


funcionários para a faxina periódica da mansão.
Ela disse que lorde Granville não costuma repeti-
los, portanto, teremos de buscá-los em outra região
da cidade…
Grace tinha os cabelos escovados por
Vivienne em seu quarto, enquanto a jovem falava.
— Gostaria de ir com vocês.
— Ah, mas isso não é função de uma
condessa — a jovem disse com humor, sorrindo
para Grace através do reflexo do espelho. —
Além do mais, possui suas aulas pela manhã.
— De fato. — Grace lhe sorriu de volta,
mas em seguida tornou-se reflexiva.
— A primeira lhe agradou?
— O quê?
— Digo, a aula que teve com a tutora.
— Ah, sim. Muito.
A resposta de Grace era sincera, mas
carregava reticências. Mesmo que nem ela nem a
Sra. Burns tivessem comentado sobre a ligação
que foram capazes de sentir no primeiro momento
do encontro, sabia que não havia escapado à sua
tutora o mesmo.
Grace não voltara a tocá-la durante toda a
manhã, mas a simples proximidade da senhora era
suficiente para aflorar e tornar ainda mais sensível
a percepção de seus dons, conforme era capaz de
sentir.
A ideia de haver mais pessoas como ela
sempre foi um acalento secreto ao coração
solitário de Grace e, após o ocorrido, era
inevitável que a dúvida permanecesse presa à sua
cabeça: será que, assim como ela, a tutora
carregava algum tipo de dom?
Quem, verdadeiramente, seria a Sra. Burns?
— Espero que minhas instruções prévias
tenham sido de alguma ajuda — Vivienne voltou a
dizer, enquanto passava a organizar a cama para
que Grace se deitasse.
— Ah, ajudaram muito. Em realidade, a Sra.
Burns elogiou minha caligrafia e disse que com
treino logo a terei impecável. — Grace caminhou
até ela, segurando com carinho em suas mãos. —
Obrigada por toda a ajuda, Anne.
A criada observou o gesto e também o modo
como Grace a chamava, reproduzindo o apelido
íntimo que a tia, por vezes, deixava escapar. E, por
mais que soubesse que o correto seria se afastar,
não foi capaz, apertando-a de volta.
— Estarei aqui sempre que precisar. —
Devolveu o gesto de amizade. Em seguida,
retomou o diálogo: — A Sra. Burns me pareceu
ser gentil e amável.
— De fato é — concordou Grace. — E
bastante paciente, apesar de também demonstrar
certa rigidez. — Riu.
— Tal equilíbrio deve fazer parte da
constituição de todas as tutoras, creio eu.
— Imagino que sim.
Na sequência, a criada começou a recolher
a louça disposta sobre a mesinha de canto na qual
o jantar da condessa fora servido, antes de se
retirar.
O tilintar dos pratos fez um vazio curioso
ecoar no abdômen de Grace.
Como já estava se tornando costume, havia
tomado o desjejum sozinha naquela manhã, mas
ficara verdadeiramente surpresa ao ser informada
que o conde realizaria o jantar também nos
próprios aposentos.
— Folkes lhe informou mais alguma coisa
sobre lorde Granville?
A jovem mordeu os lábios, antes de
responder.
— Não.
Grace captou algo estranho em sua voz.
— Tem certeza? — questionou, já sentada
na cama.
Vivianne suspirou e deixou os pratos sobre
a mesa, virando-se para ela.
— Perguntou-me se Folkes havia me
informado sobre mais alguma coisa.
Grace abriu os lábios, surpresa pela
perspicácia demonstrada.
— Não desejo que pense que fico escutando
pelos cantos… — A jovem fez um bico, realmente
preocupada.
— Prometo que não pensarei. — Grace se
levantou, tamanho o interesse que a percorreu em
ter notícias do marido.
Algo que, inclusive, a surpreendeu.
Desde quando se importava tanto assim com
o que lorde Granville fazia ou deixava de fazer?
— O que foi que ouviu? — estimulou
Vivienne, mais uma vez.
A jovem ponderou alguns segundos sobre as
palavras certas, mas logo começou a falar:
— Quando fui buscar o jantar na cozinha,
ouvi que minha tia e o Sr. Folkes estavam
lamentando sobre algum hábito de lorde Granville.
Nenhum dos dois chegou a mencionar o que era,
mas pelos semblantes que tinham, pude perceber
que falavam de algo nocivo… — Uniu as
sobrancelhas. — De algum tipo de vício.
Ao ouvir a palavra, Grace instantaneamente
levou a mão aos lábios.
Conhecia bem seu significado. Aprendera
sobre seus reflexos de perto.
Vícios eram verdadeiros abismos, capazes
de levar aos mais putrefatos submundos até as
mais brilhantes almas da Terra.
— Eu não deveria ter dito. — Vivienne
notou o quanto a condessa ficara impactada.
— Não, está tudo bem. — Grace respirou
fundo, afastando os fantasmas de seus pensamentos
para voltar a se concentrar. — Por favor, me conte
o que mais escutou.
— Eles não falaram muito mais, milady,
juro. Aparentemente, respeitam tanto lorde
Granville que se sentem mal em repreendê-lo
mesmo longe de sua presença.
— Mas possui alguma ideia de que tipo de
vício poderia ser esse? — Começou a refletir. —
Sei que lorde Granville aprecia vinho e outras
bebidas em geral, mas não me pareceu um homem
dado ao excesso. Aliás, creio que seja por isso
que a ideia tenha me surpreendido tanto… — De
repente, o olhar de Grace se tornou mais distante,
e a jovem abraçou ao próprio corpo, enquanto
recordava-se do marido. — Sempre me pareceu
um cavalheiro comedido e concentrado…
Inteligente e extremamente bem-educado. — Ela
não notou, mas junto do último adjetivo
praticamente suspirava.
Isso tudo além de extremamente bonito.
Teve o cuidado de completar apenas para si.
— Homens são peritos em fingir ser o que
não são. — Com a voz baixa e ressentida, assim
como seu olhar, Vivienne soltara a fala amarga.
Grace voltou a fitá-la.
— O que quer dizer com isso? — Grace
percebeu que a criada tivera a sentença arrancada
do fundo do próprio peito e, talvez, desejasse
compartilhar um receio mais profundo ou mesmo
uma experiência dolorosa. Ao redor dela, a aura
triste e enlutada que vez ou outra aparecia voltou a
se expandir.
Mas Vivienne apenas balançou a cabeça,
forçando um sorriso sem graça.
— Nada de importante, milady. Na verdade,
creio que já tenha falado demais. — A moça
voltou ao trabalho, retirando a louça da mesa.
Como a mudança em sua postura foi
perceptível, Grace desejou não a incomodar com
mais perguntas. Além do mais, naquela noite, já
possuía informações suficientes sobre as quais
precisava pensar.
Ao que parecia, as paredes de Granville
Hall guardavam mais segredos do que chegara a
imaginar.
Samuel tinha os olhos pesados e sua língua
estava áspera quando despertou. Ele não se
recordava em que momento havia ido para a cama,
mas soube que se encontrava nela ao apoiar-se nos
lençóis.
Que diabos tinha acontecido?
Viu que seu relógio de bolso repousava na
mesa de cabeceira e verificou as horas, dando um
salto ao constatar que havia dormido o dia todo.
— Maldição.
Passou a mão pela face, irritado.
Estava claro que havia perdido o controle
da situação mais cedo, e tal constatação o
desagradava.
Mesmo em seus momentos de abandono
Granville evitava o descontrole, e a ideia de que
voltara a cometê-los o deixava amargurado.
Zangado, lavou o rosto com a água
disponível no gomil de prata e, sem se preocupar
em vestir sequer o casaco, saiu do quarto em
direção ao único lugar que poderia acalmá-lo da
maneira que sempre acontecia.
Naquela noite, Cassandra não havia
conseguido penetrar em seus sonhos pelas densas
barreiras formadas pelo entorpecente, mas a
perturbação constante que a mente do conde sofria
retornou assim que o vira despertar.
Dado o horário, a casa toda já estava escura
— ou mais escura do que de costume — e Samuel
se aproximava da entrada quando ouviu um som
incomum provir do corredor da biblioteca,
acompanhado de um filete de luz.
O conde apertou os olhos e os esfregou em
seguida.
Estava desperto, mas não excluía a
possibilidade de algum resquício de alucinação.
Do lado de fora da mansão, como se
correspondendo à tensão que a dúvida fizera surgir
em seu corpo, o vento soprou alto, entoando uma
melodia sombria entre os galhos das árvores,
conseguindo penetrar pelas paredes centenárias.
Samuel escutou mais um ruído proveniente
do corredor; algo caindo no chão.
O que estaria acontecendo ali?
Sem pensar duas vezes, caminhou naquela
direção enquanto a luz tornava-se mais próxima.
Conforme previra, apenas a porta da biblioteca
estava aberta, e era de lá que provinha a
luminosidade.
— Agora terá de dar certo… — Grace
murmurava para si mesma com a voz abafada
pelos livros que trazia nos braços, em uma pilha
tão alta que chegava até a altura de seus lábios.
Samuel não sabia se estava mais surpreso
por descobrir que era ela a figura misteriosa que
ocupava o cômodo no meio da noite, ou pelo fato
de a esposa não apenas tentar carregar um número
absurdo de livros sozinha pela casa a dado
horário, mas fazê-lo enquanto trazia um tinteiro,
uma pena e uma lanterna no topo desta, elevando
à milionésima potência os riscos iminentes da
missão.
— Ah! Boa noite, milorde. — Ela se
surpreendeu ao vê-lo, e tentou virar um pouco a
face para observá-lo.
Estava tão concentrada em sua tarefa que
nem mesmo reparou que apenas uma camisa preta
cobria o torso do marido.
— Não se mova. — Granville se aproximou
com passos ágeis, retirando o quanto antes a
lanterna do topo da pilha suicida. — O que pensa
que está fazendo? — questionou, enquanto a outra
mão pegava o tinteiro e a pena.
Grace olhou para os livros e novamente
para ele.
— Pensei que não se importaria se levasse
alguns até meu quarto para treinar a leitura.
A dada altura, Samuel já havia depositado
os itens sobre a mesa de estudos e retirava os
livros de suas mãos.
— E com toda certeza não me importo, mas
isto desde que não coloque toda a casa em risco de
incêndio. — Observou a lanterna. — Por que não
pediu ajuda?
— Porque todos já estavam dormindo —
ela esclareceu o óbvio, com a voz contrariada. —
E já realizei tarefas muito mais complexas em
minha vida. Asseguro-lhe que não corria risco
algum.
Voltou a tomar os livros para si, o
desafiando novamente daquele modo sutil e
obstinado que o deixava louco, e aos poucos
tornava-se especialista em fazer.
— E os barulhos que escutei há pouco? —
ele perguntou ao acaso, gesticulando de modo
irritante.
Grace mordeu o interior da bochecha. O
peso dos livros começou a fazer seu braço direito
reclamar.
— Eu estava fazendo um teste. — Ergueu o
pequeno nariz, de modo orgulhoso.
Samuel apertou os olhos. Não sabia nem
mesmo o porquê, mas algo dentro dele gostava de
reconhecer na composição daquela figura doce e
angelical o toque atrevido de teimosia.
Em seguida, observou os dedos dela, e
apenas então percebeu que Grace estava sem
luvas, como era de se esperar devido ao horário.
Dessa vez, entretanto, não tivera muito tempo para
fantasiar sobre suas mãos, visto que notou as
articulações esbranquiçadas devido ao esforço que
a pesada pilha demandava.
— Por favor, me deixe ao menos ajudá-la.
Levantando uma bandeira de trégua, o conde
pegou um pouco mais da metade da pilha,
deixando-a com o restante.
— Agora, um de nós equilibra a lanterna,
enquanto o outro fica responsável pela pena e o
tinteiro.
— Milorde, não é necessário que…
— Eu insisto. — Granville não deixou
margem para protestos.
Sabendo que realmente seria mais fácil
fazer o que desejava com auxílio, Grace resolveu
concordar silenciosamente com a resolução,
apoiando os livros que segurava sobre a mesa para
realocar o tinteiro e a pena sobre a pilha dele e a
lanterna acima da própria.
— Não confia em mim para carregar o
fogo? — Sua escolha não passou despercebida por
Granville, que teceu o comentário enquanto
caminhavam em direção ao corredor.
— Minha escolha não foi baseada nisso. —
Um riso atrevido pronunciou-se nos lábios
rosados. — Se um de nós tropeçar com o tinteiro
cheio, prefiro que seja o senhor a ter de enfrentar a
Sra. Plymouth por manchar a tapeçaria.
Granville não chegou a sorrir, mas Grace
sentiu uma pontada de orgulho ao notar que curvou
levemente os lábios para cima.
— Queimaduras são mais fáceis de perdoar,
eu suponho? — Para surpresa dela, ele deu
continuidade ao assunto.
— Eu diria que mais simples de resolver.
Se eu tropeçar, por exemplo, é provável que deixe
um único e pontual vestígio se for ágil em apagar,
o que seria facilmente escondido por um vaso de
plantas, uma poltrona, ou qualquer outro elemento
de decoração. — Deu ombros. — Já quanto aos
respingos de tinta…
— Parece possuir bastante habilidade em
esconder evidências, milady. — Samuel ergueu
uma sobrancelha.
Como o corredor era largo, caminhavam um
ao lado do outro ao conversar.
— Quando era criança, meus irmãos
costumavam colocar em mim a culpa sobre
absolutamente qualquer coisa que fizessem de
errado, então tive que aprender desde cedo. — Ela
sorriu, mas Granville notou que, intimamente, foi
um sorriso triste.
— Não se defendia?
Grace balançou a cabeça.
— Não valia muito a pena tentar, quando
meus pais não estavam inclinados a acreditar em
mim.
— E por que não? — A fala dela o
incomodou.
Novamente, Grace percebeu que começava
a caminhar por campos delicados da própria
história.
— Creio que seja melhor eu subir na frente
para iluminar os degraus — desconversou ao notar
que se aproximavam da escada.
Samuel percebeu o artifício que ela
utilizara, mas teve pouco tempo para refletir após
ver que a esposa se colocou alguns degraus à sua
frente e, apesar da iluminação extremamente
escassa, as curvas que as vestes de dormir pela
primeira vez revelavam de modo mais nítido aos
seus olhos.
A camisola de algodão era ainda coberta
por um penhoar mais grosso de lã, é verdade, mas
este trazia uma faixa amarrada à cintura de Grace,
de modo que suas curvas ficavam ressaltadas e
muito mais expostas do que os vestidos geralmente
permitiam, principalmente as traseiras.
Precisou engolir seco.
A peça tinha um tom azul-claro, sereno e
macio, que combinava com a ideia que a pele por
baixo transmitia, ao menos assim imaginava. Na
verdade, se perguntassem a Granville em que
momento de sua miserável existência havia tido a
infeliz ideia de começar a imaginar qual textura a
pele da esposa teria, o conde não saberia dizer,
mas inevitavelmente o fazia.
Os dedos dele apertaram ainda mais as
bordas dos livros. De repente, toda sua
constituição foi tomada por uma vontade absurda
de soltá-los, esticar as mãos e sentir novamente a
sensação do calor magnífico e único que o toque
dela transmitia.
Os olhos dele subiram um pouco mais, na
altura onde as pontas onduladas dos cabelos
dourados dançavam de encontro à curvatura
arrebitada do traseiro redondo a cada passo que
ela dava, formando um pêndulo hipnotizante.
A respiração de Granville acelerou.
Aparentemente, o libertino que permanecera
durante anos enclausurado não possuía mais
qualquer possibilidade de ser contido diante da
presença daquela mulher.
Para sua sorte, o quarto dela encontrava-se
logo no início do corredor em que entraram após o
findar da tortuosa escada.
— Deixou a porta aberta?
Ele permaneceu parado sob o batente ao vê-
la entrar.
— Pretendia retornar carregando tudo isso
sozinha, se não se recorda. — Grace depositou a
própria pilha na mesinha de canto e o observou,
sem compreender. — Há algo errado?
Foi a vez de Samuel a observar como se ela
tivesse dito algo inesperado.
— Não se importaria se eu… — Observou
dentro do cômodo, com discrição.
— Ah, mas é claro que não. — Grace
voltou a se aproximar da porta. — Além do mais,
se não bastasse o fato de estar aqui me prestando
um auxílio, trata-se do proprietário da casa.
Com tão nítido esclarecimento, Samuel não
teve outra opção senão entrar, também depositando
em seguida a própria pilha sobre a mesa. O conde
não pôde deixar de notar que um agradável aroma
parecia preencher todo o cômodo de modo sutil. O
cheiro era adocicado e tranquilo, e conseguia lhe
transmitir uma sensação incomum de paz.
Observou a esposa mais uma vez e agora, com a
luz da lareira também ajudando, finalmente pôde
admirar de modo completo a forma como ela
estava adorável, vestida de modo tão íntimo.
— A propriedade agora também lhe
pertence, visto que se trata de minha esposa. —
Por alguma razão, Granville sentiu imperativa a
necessidade de fazê-la recordar.
— Ah, sim… — Grace abaixou os olhos,
balançando sutilmente a cabeça.
Por vezes, realmente se esquecia de que já
se tornara uma condessa, principalmente pelo fato
de o casamento ter acontecido sem cerimônia,
proclamas ou o compartilhamento do leito
conjugal.
— Bom, tente não estudar até muito tarde.
— Granville retomou a postura, caminhando em
direção à porta — A Sra. Burns estará aqui pela
manhã e é necessário que descanse.
Grace sorriu.
— Agradeço o conselho.
A despedida parecia iminente, quando um
som pavoroso ressoou do lado de fora da janela
do quarto, fazendo Samuel em um pulo avançar
diante dela, afastando-a com o braço para trás.
A jovem não soube o que aconteceu, mas em
questão de poucos segundos o viu transformar-se
em outra pessoa, como se estivesse prestes a ver
surgir por de trás das cortinas o próprio demônio.
— Fique onde está! — Qualquer delicadeza
já estava extinta de seu tom de voz quando
ordenara, caminhando em direção à fonte do
barulho, afastando em seguida os tecidos em um
único movimento para que a janela de vidro
revelasse de uma vez a verdade à sua visão.
— Oh!
O conde ouviu a surpresa de Grace quando
a esposa levou as mãos aos lábios e saiu correndo,
passando por ele.
Samuel, por sua vez, respirava fundo,
sentindo que apenas então o sangue em seu corpo
voltava a circular.
— Um gato — praticamente rosnou.
— Pobre gatinho! — Grace abriu a janela,
debruçando-se sobre o peitoril de mármore. —
Pssst, querido! Desça aqui!
Esticando-se o quanto podia, tentava
observar o felino apavorado que havia de alguma
maneira subido, mas agora não conseguia descer
pelas treliças de espinhos fixadas na parede ao
lado de sua janela.
— Não se preocupe com isso, uma hora ele
há de pular — Granville tentou dissuadi-la.
Ficou levemente incomodado ao notar que
ela estava na ponta dos pés.
— Ele não vai pular, está assustado. Veja só
quantos espinhos podem machucá-lo na queda. —
Grace colocou a cabeça para dentro rapidamente,
e na sequência voltou a colocá-la para fora, mas
junto ao tronco desta vez.
— Grace! — Samuel correu em direção à
janela, mas a esposa já estava com a maior parte
do corpo para fora. — O que pensa que está
fazendo?!
— Já realizei tarefas muito mais complexas
em minha vida — ela repetiu a máxima, que agora
Granville já não sabia se se tratava de um relato
verídico ou instrumento motivacional.
Santo Deus, a janela ficava a pelo menos
cinco metros de distância do chão, a noite estava
úmida, e a ideia de vê-la cair e partir o pescoço
com qualquer movimento em falso conseguia
deixá-lo muito próximo de apavorado.
— Pssssst! Aqui, meu querido…
Enquanto Grace se esticava para escalar o
peitoril e chamar o gato, ignorando-o solenemente,
Granville começou a caminhar de um lado ao
outro.
— O-oh. — A voz dela tornou-se mais
aguda de repente.
— O-oh, o quê? — Ele enfiou a cabeça pela
janela, olhando para cima.
— Essas treliças são muito antigas, não
são?
— Muito mais velhas do que você. Por
favor, não me diga que está se apoiando somente
nelas. — Automaticamente, as mãos de Samuel
rodearam os tornozelos macios que estavam sobre
o parapeito.
— Ele está quase vindo…
Situações desesperadoras pedem medidas
desesperadas. Para o inferno se ela o chamaria de
tirano mais tarde.
— Grace, como seu marido, exijo que...
Meow.
Como se fizesse de propósito, o gato o
interrompeu no mesmo instante.
— Shiiiu, ele está descendo.
Shiiiu? Granville piscou os olhos. Duas
vezes.
Buscou qualquer lembrança de alguma vez
em toda sua vida alguém além do pai tê-lo
mandado ficar quieto daquela forma. Não
encontrou a informação.
Antes que conseguisse voltar a raciocinar,
sentiu algo macio e com três quilos, no máximo
quatro, pular em sua cabeça, descendo em seguida
pelo braço.
— Ele consegui... Oh!! — Grace mal teve
tempo de comemorar, quando o restante da treliça
que segurava com a mão esquerda se partiu,
deixando-a apoiada apenas com a direita.
Em uma fração de segundos, o coração de
Granville foi parar no estômago.
— Aqui, segure minha mão!
Ela não teve tempo de pensar na proposta,
pois o restante da estrutura também ruiu e, sendo
assim, tudo o que lhe restou foi confiar que ele
seria forte e ágil o suficiente para conseguir puxá-
la de volta para dentro, como Samuel de fato fez.
Eles caíram juntos, com as costas do conde
encontrando o chão em um baque.
Com as mãos espalmadas nas costas dela,
Samuel sentiu quando o corpo de Grace começou a
ter pequenos espasmos e um desespero crescente
tomou posse dele ao imaginá-la chorando, ferida
de alguma maneira.
— Grace? — chamou, organizando-se para
tentar ver a face da jovem, que tinha o rosto
apoiado sobre seu peito.
Os espasmos do corpo delicado se
intensificaram, deixando-o aflito.
— Pelo amor de Deus, me diga onde está
doendo!
— Doendo? — Ela finalmente ergueu o
rosto, mas, quando o fez, tinha a tez relaxada,
fazendo Samuel compreender que os espasmos
eram resultados de um acesso de riso.
O conde se apoiou nos pulsos, encarando-a,
incrédulo.
— Eu sinto muito por isso. — Grace levou
uma mão aos lábios, tentando mesmo se controlar.
Estava expresso na face do conde que ele
não compartilhava seu humor.
— Você poderia ter caído e quebrado o
pescoço — Granville fez questão de lembrá-la. —
Tomou tanta friagem que seu rosto começou a
queimar! — Observou irritado as bochechas e
nariz avermelhados que ela trazia graças à
exposição ao vento gélido da noite. — Santo Deus,
deve estar congelando. — Tomou a mão que ela
tinha nos lábios e envolveu com as próprias, pela
primeira vez sentindo-a com o toque mais frio que
o dele, igualmente desprovido de luvas.
Entretanto, mesmo que as temperaturas não
correspondessem ao que geralmente eram, ambos
puderam sentir novamente, sem a adrenalina da
queda, a força do encontro de peles; a curiosa e
intensa conexão.
Com os olhos fixos nas grandes mãos que
guardavam a sua, Grace sentiu a própria
respiração tornar-se comprometida, e uma corrente
cálida percorrê-la dos dedos dos pés até o último
dos fios de cabelo, contrastando com o vento frio
que a janela aberta denunciava que ainda soprava
do lado de fora.
— Ao menos, conseguiu livrar a pele do
gato. — Granville foi responsável por cortar o
denso silêncio que se instaurou entre eles. Sua voz
soava mais rouca.
Os olhos de Grace pousaram nos violeta,
que tinham um brilho incomum quando vistos de
perto, iluminados pelo fogo alaranjado da lareira.
De repente, ela foi capaz de sentir com
maior clareza as formas masculinas e firmes que
tinha sob o próprio corpo e tornou-se muito
inquieta.
— Eu não quero machucá-lo.
Apoiou-se em um dos braços com mais
força, tentando colocar-se de pé.
Acontece que a jovem não notara que a
ponta de seu penhoar havia ficado presa abaixo do
corpo do conde, o que a fizera ter o movimento
interrompido de forma brusca, caindo de modo
ainda mais estabanado sobre ele.
— Eu sinto muito — repetiu, ainda mais
sem graça.
— Deixe-me ajudá-la.
Consciente de que seria melhor encerrar
aquele contato pelo bem da própria sanidade, o
conde girou o corpo em busca do tecido que tinha
sob as pernas, mas Grace o fez ao mesmo tempo e
na direção contrária, o que os deixou em uma
confusão de braços e troncos na qual, agora, ele
jazia por cima.
— Minha nossa — ela sussurrou.
Os movimentos haviam feito as amarras da
camisa dele se abrirem mais, expondo uma parte
inédita de músculos do tórax claro e definido.
Além disso, como um pêndulo, um cordão escuro
ficara pendurado, com algo similar a uma ampola
de vidro pairando diante dos olhos da jovem.
A mão dela começou a se erguer e o peito
dele se agitou.
Petrificadas, as íris de Granville fixaram-se
sobre os dedos delicados que não foram de
encontro à sua pele, mas sim do cordão.
Em direção ao acônito.
Samuel se afastou de modo brusco, como
um animal que se sente ameaçado, fazendo Grace
retrair a mão. Ela sabia que estava sendo
impertinente ao tocar daquela forma em algo tão
íntimo que ele carregava, mas fora como se o
próprio coração a instruísse a fazê-lo.
Aquele líquido. Aquela coloração…
— O quê…
— Precisa de ajuda para se levantar? —
Granville a interrompeu enquanto se erguia em um
movimento limpo e extremamente ágil, voltando a
utilizar com ela o tom frio e impessoal de outrora.
Se antes acreditava ter ultrapassado uma
barreira indevida, agora Grace tinha certeza.
— Não é necessário. — Buscando manter o
mínimo do próprio orgulho, a jovem se apoiou nos
pulsos, erguendo o corpo.
Ela percebeu que Granville estava de costas
para si e trabalhava em enfiar o cordão de volta ao
interior da camisa, certificando-se de que o laço
da gola, desta vez, estivesse bem amarrado.
Em seguida, o conde caminhou até a janela e
tratou de fechá-la, fazendo o vento gelado
finalmente cessar. Grace nem mesmo notava, mas a
dada altura abraçava ao próprio corpo.
— Amanhã pedirei a Folkes que instrua o
conserto da treliça ao funcionário que for aparar a
grama do jardim.
— Não vejo razão para isso — Grace
murmurou mais para si mesma, mas ele escutou.
— O que disse?
— Digo… — Ela limpou a garganta. —
Creio que seria perda de tempo fazer com que
qualquer um se ocupe com isso, se tudo o que se
apoia nas treliças são espinheiros. — A jovem
ergueu o ombro. Em seguida, sugeriu com a voz
delicada e insinuante. — Se ao menos os jardins
voltassem a ser cultivados…
— Isto está fora de questão! — Samuel deu
um passo adiante, gesticulado energicamente.
O tom utilizado por ele fora tão enfático que
fizera Grace se assustar. A pobre ficou sem
palavras.
Onde havia ido parar o homem que estivera
há poucos instantes consigo no chão?
— Já passou da hora de dormir — ele se
despediu como se ela fosse uma criança, e ele um
ancião extremamente regrado, que não carregava
sob os olhos marcas constantes causadas pela
insônia.
— Acredito que sim.
A resposta dela soou extremamente baixa,
com o tom claro de sua decepção.
Samuel partiu sem nem ao menos desejar-
lhe boa noite, mas Grace fingiu a si mesma não se
importar. Seria melhor não se apegar à ideia de
que a postura dele poderia ser outra.
Em sua vida não havia espaço para abrigar
um novo tipo de decepção.
Fosse pelas horas que passara dormindo no
dia anterior ou pelos pensamentos perturbados que
trazia em sua mente, Granville nem mesmo tentou
retornar para a cama naquela noite. Ao lado de
escrituras, registros, tinteiro e pena, passou a
madrugada verificando informações sobre as
propriedades mais afastadas que possuía
espalhadas em território inglês e escrevendo
missivas aos funcionários responsáveis por mantê-
las para solicitar relatórios de suas atuais
condições.
O chilrear distante e insistente de uma
coruja não foi capaz de dissuadi-lo e nem mesmo
os estalos das prateleiras de madeira mais bem-
sucedidos na missão. Samuel precisava encerrar o
quanto antes a temporada de sua esposa em
Granville Hall e a sensação que sentira tomá-lo ao
vê-la em perigo naquela noite fora uma prova mais
do que convincente de que passava da hora de
fazer o necessário para tornar isso possível.
Tempo significava convivência e a
convivência possuía a inconveniente mania de
transformar-se em algum tipo de afeição. A
afeição, por sua vez, era algo que há dez anos
abrira mão de em seu coração abrigar.
Ele não precisava, não desejava e, acima de
tudo, não poderia cometer a idiotice de começar a
se afeiçoar a ela.
“O amor que me negou jamais será
entregue a outro alguém…”
O canto da coruja foi substituído por uma
voz que penetrou dentre as pedras da construção,
ressoando em um tom metálico que Samuel sentia
lhe arranhar os tímpanos ao penetrar em seus
ouvidos.
O conde levou as mãos às orelhas.
Inferno.
A pena que soltara de modo abrupto caíra
sobre a folha, penetrando as fibras do papel até
tingir de preto o nome da atual Condessa de
Granville.
“... pois a vida será drenada daquela que
possuir o que deveria ter sido meu.”
A voz retornara ainda mais intensa ao
concluir a maldição.
— Não seja ridículo, Samuel!
Granville se levantou furioso, julgando ser
fruto da própria imaginação o pesadelo que,
mesmo acordado, evocava com a lembrança das
últimas palavras de Cassandra.
Afinal de contas, aquilo não faria sentido.
Afastar Grace dali seria afastar uma
distração. O mesmo que livrar-se de um
indesejado empecilho. Só. Poderia ser
considerado, ainda, o último de seus atos gentis ao
tirá-la de um ambiente onde logo não demoraria
para uma nova desgraça ser noticiada.
Não havia motivos para pensar nela com a
lembrança de Cassandra e, muito menos, para
aquela maldição.
A dada altura, era ainda muito cego pelo
egoísmo para seguir acreditando que havia sido
ele mesmo a tê-la evocado e não o espírito da
própria bruxa que, instigada pelos últimos
episódios testemunhados, achara de grande valia
recordá-lo de que não importava onde ou mesmo
horário em que os fatos em Granville Hall
aconteciam… sempre estaria lá.

O fogo da lareira se apagou, deixando o


quarto iluminado apenas pela singela vela disposta
ao lado do móvel de cabeceira.
Com a respiração suave e tranquila, do tipo
que apenas as almas puras são capazes de entoar
durante o sono, Grace dormia serenamente sem
perceber que a escuridão ao redor tomava a forma
de um espectro de cabelos escuros, pele clara e
formas esquálidas que em outros tempos
assemelhavam-se a de uma bela mulher.
Cassandra não costumava ocupar forma
similar à humana nos passeios que realizava por
sua mansão, mas a visita à sua primeira oponente
em uma década a fez sentir algo muito parecido
com necessidade. Nem todo o poder dos dois
mundos, entretanto, era capaz de omitir a essência
de uma alma quando se chega ao outro lado e, por
isso, aquilo que então apresentava agora tratava-se
de sua melhor versão.
A bruxa observou os lábios rosados e a pele
dourada da jovem sobre a cama, sentando-se aos
pés do colchão. Por se tratar apenas de espectro e
não matéria, este não afundou, mas Grace, mesmo
dormindo, conseguia senti-la. A jovem dobrou as
pernas, recolhendo-se em uma postura de defesa,
com os cabelos dourados caindo sobre os ombros.
Cassandra observou o brilho que a chama da vela
refletia nos fios e, imediatamente, teve vontade de
vê-los queimar.
Aquele era o inseto vulnerável que tivera a
audácia de se apossar do título que deveria ter
sido seu?
Apertou os olhos negros e no cenho de
Grace surgiu uma expressão simultânea de dor.
A respiração da jovem se tornou lenta e
pesarosa.
— Pragas em meu jardim devem ser
exterminadas. — A mesma voz metálica que
Samuel há pouco ouvia, agora cantarolava.
A bruxa contorceu os dedos na esperança de
que o corpo de Grace fizesse o mesmo de modo
abrupto e violento, mas o que obteve em resposta a
surpreendeu.
O cenho da jovem expressou ainda mais de
sua dor, mas em contrapartida ela passara a
abraçar ainda mais os joelhos, como se buscasse
em seu centro algum tipo de força ou proteção.
Cassandra reforçou o movimento, mas o
cenário não se alterou, exceto pelo gemido baixo
que Grace começou a emitir com o suave som de
sua voz.
Talvez a praga não fosse tão frágil quanto
Cassandra imaginava, mas existiam diversas
táticas mais intensas que utilizaria com gosto para
destruí-la. A bruxa já estava prestes a utilizar uma
delas quando, de repente, uma bola de pelos
malhados saltou sobre o corpo de Grace, levando
a jovem a despertar em um pulo.
Como fumaça, o espectro se dissolveu do
ambiente antes mesmo que a condessa
compreendesse o que havia ao seu redor.
Grace coçou os olhos e sentiu a garganta
seca, como se algo ou alguém tivesse, junto do
fogo, levado toda umidade e vida dali, deixando
apenas o frio.
Meow.
Vendo-a confusa e levemente atormentada, o
bichano se aproximou, roçando-se nos braços que
a mantinham com o tronco erguido.
— Ah, é você que está aí. — Ela observou
a porta. — Ainda bem que deixei entreaberta para
que pudesse voltar.
O gato pareceu agradecer a gentileza, pois
no exato momento saltou para o colo de Grace,
sobre o amontoado de cobertas, e começou a
esticar as patas para afofar o espaço escolhido
para pernoitar.
A noite de aventuras felinas, ao que tudo
indicava, finalmente chegava ao fim.
Grace o viu aconchegar-se em seu colo e
observou a lareira a alguns passos de distância.
Sabendo que não teria coragem de retirá-lo de lá
para tentar acendê-la novamente e, muito menos de
acordar alguém para fazê-lo, deitou-se com
cuidado e levantou os cobertores o máximo
possível para enrolar o corpo no restante da noite
que ainda teria para descansar.
O pelo de seu novo amigo era bastante
quente e, pelo menos, teriam calor para oferecer
um ao outro enquanto passassem por aquela
inesperada situação.
Na manhã seguinte, Vivienne percebeu que a
condessa tinha os olhos cansados, mas a jovem
omitiu a pequena aventura compartilhada com
Granville em seu quarto, explicando o fato ao
apenas dizer que ficara até mais tarde mergulhada
em seus estudos.
Ainda não sabia como se sentir sobre o
momento com o conde e, menos ainda, se havia
mesmo compreendido o que cada parte poderia
significar, principalmente aquela na qual tivera
diante de seus olhos exposto o pequeno frasco que
o lorde trazia junto ao pescoço.
Grace poderia não saber o que o vidro
continha, mas a escuridão de seu conteúdo era a
mesma propagada ao redor dele.
Por que lorde Granville andaria por aí
portando uma substância nociva?
Seria mesmo veneno?
Que tipo de homem desejaria carregar a
morte junto de si?
O Conde Assassino.
A alcunha da qual há muito tempo não se
recordava voltou a ressoar em sua mente, e seu
corpo estremeceu.
— Está tudo bem?
Vivienne terminava de amarrar-lhe os
cabelos e levou uma mão ao ombro direito da
jovem, visivelmente preocupada.
— Está, sim — mentiu.
Em seu colo, o felino que a acompanhava
fielmente espreguiçou-se, finalmente dando
indícios de que pretendia despertar.
— Ainda não acredito que ele tenha
simplesmente entrado em vosso quarto —
comentou a criada, enquanto recolhia algumas fitas
da penteadeira.
Grace piscou para o felino, como se
confiasse a ele o segredo sobre sua verdadeira e
triunfal chegada, e voltou a acariciá-lo nos pelos
malhados.
— Pois é. — Ergueu os ombros, com um
sorriso forçado. — Poderia trazer uma tigela de
leite junto de meu café, minha querida? Não sei há
quanto tempo o pobrezinho não se alimenta...
— É claro. — A criada saiu pelo corredor
quando um grito a fez estagnar os passos e Grace
correr até lá.
Diante de seus pés, um amontoado de penas
marrons respondia à última dúvida da condessa.
— Trarei o leite, milady, mas creio que ele
não esteja com tanta fome assim.

Grace realizava a cópia de um texto sob o


olhar atento da Sra. Burns quando deu seu oitavo
— ou talvez nono — bocejo. Sequer imaginava
que, além da agitação que se recordava, naquela
noite, a visita de Cassandra também cobrara muita
energia de si.
— Está tudo bem, criança?
A forma carinhosa da tutora chamá-la fez um
conforto imensurável se instalar no peito da moça.
Poderia ser a falta de sono, a bagunça de seus
pensamentos, ou a união das duas coisas, mas a
pobre se sentiu realmente tocada por enxergar em
sua tutora o mínimo resquício de uma postura
maternal que sempre lhe faltara.
— Sinto muito por não estar produzindo
tanto quanto gostaria hoje, Sra. Burns. Confesso
que estou um pouco cansada. — Deixou a pena
apoiada ao lado do mata-borrão.
A tutora puxou uma cadeira, sentando-se ao
lado da moça.
— Devemos nos desculpar apenas pelos
erros que poderíamos evitar. Sentir-se cansada não
se trata de um deles. — Soou afável, apesar da voz
firme de quem carregava uma vida de experiências
regadas com sabedoria. — Aconteceu algo essa
noite que mexeu com você, não foi…? — A Sra.
Burns não sabia se deveria tocar em um assunto
tão delicado, mas desde o primeiro momento
percebera que Grace sentira tanto que as duas
possuíam sensibilidades a mais, e algo muito mais
denso, realmente, parecia ter entrado em contato
com a aura da jovem que geralmente conseguia
manter-se, mesmo em uma casa carregada como
aquela, sempre leve e límpida.
— Como pode saber? — Grace endireitou a
postura.
— Nós sempre sabemos — a tutora
respondeu com outro enigma. — O contato foi
direto?
Grace engoliu seco.
Nossa.
A tutora tinha o talento de ser mais pontual
nos questionamentos do que imaginava.
— Creio que ainda não podemos dizer que
tenha sido completamente direto. — Remexeu-se
na cadeira. — Digo… ontem, pela primeira vez,
estivemos realmente próximos.
Seus olhos se tornaram distantes, e em uma
fração de segundo já revisitavam todo um universo
composto por pele alva, cabelos negros e um tom
específico de violeta. Ela se lembrou da sensação
de ter Samuel tocando em sua pele e se assustou ao
perceber que em seus pensamentos já o chamava
com a intimidade do primeiro nome quando
desejava evocar suas lembranças.
— E como foi? — prosseguiu a tutora.
— Maravilhoso…
— Como?!
— O quê?! — Grace piscou, apenas então
notando que devia ter dito algo muito próximo do
absurdo.
— O contato, minha querida, como
aconteceu?
— Ah, sim, é claro. — A respiração da
jovem já se agitava. Ela se levantou para
prosseguir e refrescar os pensamentos. — Teve
início aqui, na biblioteca, mas a parte principal
acabou acontecendo em meu quarto.
— Você passa muito tempo em seus
aposentos, imagino…
— Mais do que em qualquer outra parte da
casa.
— Isso já explica muito. Nossa energia se
concentra onde ficamos por longos períodos.
Grace não entendeu muito bem a colocação,
mas, após um breve silêncio, prosseguiu:
— Então eu abri a janela após ver que
Claws estava preso no alto da treliça de
espinheiros, e…
— Claws?
— Ah, sim, dei ao gatinho o nome de Claws
— Grace sorriu ao lembrar-se do felino. — As
garras parecem inofensivas, mas Vivienne não
para de encontrar penas e almofadas rasgadas
como evidências de que é um nome muito
apropriado para ele.
— Entendo… — sussurrou a senhora.
Mas a verdade é que já não possuía muita
certeza se entendia.
— Bom, foi depois que subi no parapeito da
janela para ajudar Claws que o contato mais
intenso ocorreu. — A Sra. Burns abriu os olhos,
deixando claro que compreendia o risco da
empreitada. — Eu sei, eu sei, lorde Granville
também disse que era perigoso, mas eu precisava
ajudá-lo. Quando a treliça se quebrou e ele me
puxou de volta para o quarto, caímos juntos sobre
o chão e então…
— E então…
— Aconteceu.
A jovem concluiu o breve resumo,
permitindo-se cair sentada na cadeira, novamente.
— Oh… — murmurou a Sra. Burns,
levemente decepcionada.
Não pelo que lhe confidenciava sua pupila,
mas pelo que o fato revelava. Aparentemente,
Grace ainda não havia tomado completa
consciência de seus poderes e relações com o
outro lado e tinha em sua cabeça outros assuntos
demandando muito de suas atenções para que a
tutora se sentisse no direito de adiantar-lhe
qualquer coisa.
— Poucas pessoas sabem disso, Sra. Burns,
mas eu e lorde Granville ainda não consumamos o
casamento — confidenciou, demonstrando mais
uma vez sua ânsia por qualquer tipo de conselho.
Grace já havia sido casada, é verdade, mas
a situação anterior em nada tinha a ver com a atual
e era muito difícil encontrar-se em um mundo
novo, com um marido novo e perspectivas novas,
sem saber o que fazer.
— E isso lhe aflige, minha querida?
A senhora voltou a chamá-la de modo
carinhoso, e Grace se inclinou, aproximando-se
ainda mais.
— Sinceramente, acredito que sim. —
Engoliu seco. — Não espero que entenda, mas
sinto como se estivesse faltando com meu único
papel… Minha única função. Além disso, creio
que fazê-lo seria uma forma de acabar de uma só
vez com as… — Os lábios dela se fecharam.
Fantasias que criei. Mas a mente concluiu.
— Não precisa dizer. — A Sra. Burns a
segurou solenemente nas mãos. — De qualquer
maneira, posso lhe dizer que pendências são como
pedras amarradas em nossos tornozelos. Elas nos
afundam e acabam por roubar todo o ar e leveza de
nossos pulmões. Se acredita que já está pronta
para resolver esta que há em seu matrimônio, não
se demore mais. Livre-se deste peso e faça o
mesmo com os demais que tentam lhe tragar para
as profundezas. Lembre-se de que o melhor da
vida a aguarda na superfície.
Novamente, Grace sentiu no contato uma
conexão específica se formar entre ela e a tutora.
Os olhos verdes e cristalinos agora não lhe
transmitiam apenas experiência, mas também
acolhimento, como se a Sra. Burns desejasse
lembrá-la de que não estava sozinha.
— Agradeço o conselho. — A mais nova
intensificou o aperto das mãos.
E, mesmo que não pudesse compreender, a
tutora lhe deu uma breve dica de quem realmente
era com sua resposta:
— Disponha. Meu papel neste lado é
orientar.

Horas mais tarde, determinada em colocar


em dia suas atividades e adiantar outras tarefas
como a aluna empenhada que era, Grace mantinha-
se na biblioteca quando lorde Granville chegou.
Sendo imediatamente invadida pelas
recordações confusas da noite anterior, a jovem
preferiu permanecer com os olhos abaixados,
focados na leitura que realizava quando ouviu os
passos firmes aproximarem-se da mesa.
— Uhum. — Ele limpou a garganta, como
meio de anunciar a própria presença.
Grace mordeu o lado interno da bochecha
antes de respirar fundo e erguer os olhos com sua
mais plácida expressão.
— Boa tarde, milorde.
— Boa tarde, Srta. Grace.
Os lábios dela repuxaram, junto de um
discreto murmúrio de desaprovação.
— Disse algo de errado? — Não bastasse a
pergunta, a jovem já havia reparado em sua
postura e tom de voz que Granville carregava o
constante semblante rígido.
Ela voltou os olhos ao livro antes de
responder, marcando com o dedo a linha onde
parava.
— Parece-me incongruente meu próprio
marido me chamar de senhorita.
— Incongruente? — Uma sobrancelha
escura se ergueu.
— A Sra. Burns me pede para ampliar e
praticar constantemente o vocabulário, e penso que
tal palavra sirva para o que desejo expressar…
estou errada? — Não soava prepotente, mas
verdadeiramente interessada.
Granville engoliu seco.
— Não. Não está.
A jovem respirou, aliviada.
— De qualquer maneira, não me importaria
se o senhor permanecesse me chamando da mesma
forma que o fez noite passada.
Ótimo, ao menos ela havia tocado no
assunto.
Granville apertou os olhos. Realmente não
se lembrava.
— Simplesmente, Grace — explicou a
jovem condessa, abaixando os olhos para terminar
de ler a frase e, finalmente, fechar o livro com um
movimento delicado das mãos enquanto Granville
a observava e digeria suas palavras.
— Eu não percebi que…
— Estava nervoso demais para perceber.
— Havia um motivo para estar.
— Já concordamos que Claws precisava de
minha ajuda naquele momento. Se não tivéssemos
ido até ele…
— Claws?
— Ah, sim. Foi como o batizei. Deixei a
porta de meus aposentos entreaberta e ele retornou
para pernoitar ao meu lado, o que foi muito bom.
Minha lareira apagou e, como deve recordar, fazia
frio… — Ergueu os olhos e se arrependeu no
mesmo instante.
Samuel a encarava com a mesma
intensidade e foi como se visse refletido em seus
pensamentos as próprias lembranças de como
havia, por preciosos instantes, se esquecido da
temperatura enquanto se encontravam
aconchegados no calor do corpo um do outro.
Ela se levantou e começou a organizar os
itens sobre a mesa. Samuel tomou o movimento
como o prenúncio de uma retirada.
— Estou aqui para comunicar que solicitei
relatórios aos administradores de minhas
propriedades de campo.
Não pretendia prendê-la, mas seria
importante compartilhar o que desejava ao buscá-
la.
Grace anuiu com um movimento de cabeça,
fazendo uma pilha com os livros.
— Estarei disposta a escolher aquela para a
qual pretendo me mudar, bem como recebê-lo em
meus aposentos a partir desta noite para que
ocorra o quanto antes.
Ele não bebia nada, mas ainda assim
engasgou.
— Como disse?
A surpresa fora tamanha que o conde chegou
a inclinar o corpo levemente para a frente.
Esforçando-se para manter a postura, Grace
ergueu os olhos e o encarou com ainda mais
determinação ao repetir:
— Disse que estou pronta para cumprir com
meus deveres de esposa, milorde, e que me
encontro à vossa disposição a partir de hoje.
O pomo de adão dele subiu e desceu e
Grace precisou manter os lábios entreabertos para
não resfolegar enquanto aguardava a resposta de
Granville.
Quando o conde falou, porém, esta veio
carregada com bem menos emoção do que poderia
esperar:
— Excelente — Ele realizou uma vênia,
despedindo-se. — Aguarde-me em vossos
aposentos após o jantar.
Grace foi informada por Folkes que poderia
realizar o jantar em seus aposentos, visto que
lorde Granville não se juntaria a ela para realizar
a refeição naquela noite.
Ótimo.
Ela pôde não sorrir ao valete ao receber o
comunicado, mas desejou abraçá-lo tamanho o
alívio que a percorreu ao saber que teria mais
algumas horas de preparo antes que tivesse de
voltar a encontrar o marido; antes que Samuel
finalmente batesse em sua porta para que os dois
finalmente pudessem…
— E o que acha dessa, milady? — Vivienne
interrompeu seus pensamentos, trazendo uma
camisola rosada estendida nos braços.
Demonstrava empenho ao expor a peça à
condessa sentada na cama.
— Tão graciosa quanto a anterior.
Perto das roupas puídas que utilizara para
dormir durante toda sua vida, seria incapaz de
eleger a mais bonita dentre aquelas que nos
últimos dias Madame L’afaiat mandava entregar
na mansão.
Vivienne uniu as sobrancelhas,
demonstrando estar preocupada. A jovem
pendurou a camisola nas costas da cadeira e se
aproximou, ajoelhando-se diante da condessa.
— Deseja que eu diga ao conde que se
encontra indisposta?
Os olhos de Grace a fitaram, sem
compreender.
— Como?
— Se me disser que ainda não deseja
recebê-lo em sua cama, a apoiarei e farei o que
estiver ao meu alcance para evitar isso.
Um sorriso grato e tímido surgiu nos lábios
de Grace.
— Oh, Anne… Faria isso por mim?
A criada balançou a cabeça.
— Se não deseja que ele venha esta noite…
— reafirmou.
Poucas coisas no mundo a deixavam mais
incomodadas do que a ideia de que uma mulher
deveria se dispor aos caprichos masculinos,
tratando-se de maridos ou não. Aos seus olhos, a
vaidade dos homens era o que existia de mais
nocivo e cruel, algo sobre a qual não se importaria
carregar a fama de “solteirona” pelo restante de
sua vida se pudesse evitar se curvar.
— Mas como, se fui eu que o disse para
vir? — Grace a surpreendeu, levantando-se à
medida que as próprias palavras a faziam retomar
a responsabilidade do presente.
— Você? — A criada se levantou, incapaz
de omitir o tom surpreso.
À frente das saias do vestido, a condessa
retorcia os dedos, enquanto afirmava com a
cabeça.
— “Se almejamos um resultado satisfatório,
nenhuma etapa deve ser negligenciada.”
— Como disse?
— Apenas uma metáfora de fábrica. —
Grace sorriu com a própria referência, retomando
o ar com esperança renovada.
— Então devemos prosseguir com os
preparativos para a próxima etapa desta noite, não
é?
A condessa se virou, e fitou a própria
imagem no espelho.
Sua liberdade, a chance de finalmente ter
paz podendo ser quem verdadeiramente era em
algum canto isolado do país, sem nunca mais se
preocupar em passar fome, frio ou qualquer tipo
de humilhação, estava cada vez mais próxima, e
tudo o que precisava fazer para finalmente
alcançá-la era entregar a Samuel Granville a única
exigência que o conde lhe fizera como parte do
acordo.
— Sim. Devemos prosseguir.

Granville sorveu um último gole de vinho e


decidiu que não seria prudente deixar-se seduzir
por uma terceira taça.
Caminhando de um lado para o outro, o
conde refazia infinitas vezes o percurso enquanto
aguardava o relógio bater vinte e duas horas. Não
sabia corretamente o motivo, mas havia
estabelecido a si mesmo que seria este o horário
no qual iria até ela.
Até sua esposa.
Santo Deus.
Samuel virou a taça nos lábios e a encontrou
desgraçadamente seca, o que lhe arrancou um
impropério do fundo da garganta. Desde o diálogo
que havia tido com Grace, algumas horas atrás,
tinha perdido as contas de quantos tinha soltado. A
verdade era que se mostrara impassível diante
dela e da resolução que tão tranquilamente a
jovem o transmitira, mas ficara absolutamente
inquieto e perturbado assim que virou o corredor e
pôde verdadeiramente se expressar.
Ele mesmo se surpreendera com a reação.
Seria mesmo para tanto?
Dez anos longe de uma mulher deveriam ser
suficientes para fazê-lo duvidar de que saberia o
que fazer quando chegasse a hora de finalmente
possuí-la?
— Não seja ridículo, Granville! — Sentou-
se aos pés da cama, desferindo um sonoro golpe na
própria coxa.
No fundo, sabia bem que não eram os
próprios talentos que o preocupavam.
Mesmo tendo passado horas buscando
formas de ensaiar em pensamento cada movimento
para tornar o ato o mais eficiente e aprazível
possível à jovem, fora impossível não ser
capturado a todo instante pelo mais profundo e
real de seus receios: o aparecimento de
Cassandra.
O que faria se a bruxa não o permitisse
concentrar?
Como explicaria para a esposa se
Cassandra entrasse em sua mente impossibilitando
sua disposição?
Samuel tinha a mão livre enfiada nos
cabelos e uma das pernas tremendo agitada
enquanto lutava pela milésima vez para afastar os
pensamentos da mente constantemente perturbada.
Ele precisava conseguir.
Sua semente precisava render frutos para
que a árvore podre que era pudesse de uma vez
essa terra deixar.
Irritado como sempre ficava ao pensar na
desgraçada existência ao qual fora resumido, o
conde lançou o cálice que segurava contra o chão,
estilhaçando-o em vários pedaços.
A eficiência do ato o deixava com inveja.
Antes fosse tão instantâneo o ato de destruir
ou gerar vidas.
E foi então que uma ideia lhe ocorreu, no
exato momento em que seus olhos desceram em
direção ao centro das próprias pernas.
Na mesa de cabeceira, Samuel verificou o
relógio de bolso que marcava nove e quarenta e
cinco da noite quando decidiu o que seria feito.
Quanto menos tempo desse à Cassandra enquanto
estivesse no quarto, com Grace, melhor.
Ele não se orgulhava de ter de iniciar sua
noite de núpcias sozinho, mas, visto que o
casamento não fora nada convencional até então,
buscou não se concentrar nisso, mas no fato de que
suas chances de ser bem-sucedido, com a nova
estratégia, poderiam aumentar.
— Muito bem. — O lorde esticou o corpo,
permitindo-se ficar minimamente confortável
sobre a cama com um braço servindo de apoio
enquanto a mão esquerda ocupava-se em abrir a
braguilha das calças.
Já fazia muito tempo que não tinha um
momento como aquele, mas foi natural o
movimento de fechar os olhos enquanto a mão
buscou envolver a própria intimidade, quase tanto
quanto à sua mente imagens de Grace buscar para
adiantar o que fosse possível antes de encontrá-la.
— Huuum.
Definitivamente, ele não esperava por
aquilo.
A resposta ao estímulo físico e mental, ao
estímulo dela, o fizera pulsar de modo delicioso e
magistral, como há muitos anos não acontecia.
Samuel mordeu o próprio lábio e de repente se viu
pensando com muito afinco nos lábios suculentos
da esposa. Apertou a mão e se pegou lembrando
do toque delicado dela. Acelerou um pouco mais
os movimentos que se tornaram naturalmente
cadenciados, e se recordou das curvas, do
perfume, dos cabelos…
— Grace... — gemeu.
— Não. — Mas foi a voz de Cassandra a
respondê-lo em retorno.
— Bom dia, Sr. Carter — Grace
cumprimentou o cavalheiro assim que o viu entrar
na sala de jantar para o desjejum.
Apesar de desejar mais do que tudo
permanecer em seus aposentos naquela manhã,
resolveu que não seria de bom tom ficar no quarto
enquanto recebia uma visita, e desejava ser
educada com uma das pessoas mais gentis e cortês
que conhecia em anos.
— Bom dia, milady — o jovem devolveu o
cumprimento, desviando o olhar para o assento
vazio adiante. — Onde está Granville?
Grace engoliu seco e buscou não demonstrar
o desconforto que a pergunta, que repetia a si
mesma desde a noite anterior, lhe causava.
— Sinto muito, mas estaria mentindo se lhe
dissesse que sei.
— Encontro-me bem aqui.
Nem no mais rigoroso inverno Grace sentiu
correr por seu corpo o frio que a voz de Samuel
lhe causou.
Mesmo sabendo que deveria fazê-lo, foi
incapaz de fitá-lo enquanto o conde entrava na
sala.
— Bom dia, milorde. — William se
acomodou ao lado de Grace, enquanto o amigo se
sentava diante deles. — Por um momento, pensei
que não fosse se juntar a nós.
Discretamente, Grace ergueu os olhos e viu
que o marido tinha a expressão mais pesada e
exausta que o comum.
— Eu também pensei. — O ouviu murmurar.
— Como disse? — Carter questionou.
— Nada. — Granville evitou repetir,
finalmente tomando coragem para encará-la. —
Bom dia, Grace.
A utilização do primeiro nome, de modo tão
preciso e pontual, a deixara surpresa. Grace
engoliu seco e se detestou por saber que, justo
naquele dia, havia optado por uma gargantilha
preta como acessório, algo que sem dúvida
destacou aos olhos dele a reação.
— Bom dia, Samuel.
Ao lado deles, Carter tentou disfarçar que
se engasgava com o chá.
Além dele, sabia que há anos ninguém mais
ousava chamar Granville pelo nome de batismo.
E a verdade era que nem mesmo a condessa
sabia de onde viera aquela atitude. A única coisa
que sabia era que algo em si ficara
verdadeiramente ofendido com a falta de retorno
do marido em relação à noite passada, e que não
demorou para que a mente, sozinha, encontrasse
alguma maneira de demonstrar que também sabia
importunar.
Após a troca de cumprimentos um silêncio
incômodo se instaurou.
— Chá? — William fez as vezes de
anfitrião, visto que apenas ele se servia e nenhum
criado permanecia no recinto.
— Café — Grace e Samuel responderam em
uníssono e então se encararam.
O visitante ergueu as mãos, retirando-as do
bule — e do embate.
— À vontade…
Os dois fitaram o recipiente onde estava a
bebida, e então Samuel realizou um gesto
cavalheiresco, concedendo à Grace a frente, como
era de se esperar. Diferente do que a jovem
pudesse imaginar, a irritação que demonstrava
naquela manhã não tinha nada a ver consigo, mas
com o novo suplício no qual sua vida havia sido
transformada por Cassandra na noite anterior, no
momento em que a desgraçada bruxa resolveu,
conforme previra, invadir a sua mente,
perturbando-o com visões e pesadelos no sono
perturbado e profundo para o qual o arrastou.
— Obrigada.
Após agradecer o gesto de concessão a
jovem não serviu apenas uma, mas duas xícaras da
bebida, deixando claro que, apesar de não saber o
que havia acontecido na noite anterior e possuir
parte do orgulho inevitavelmente ofendido com o
que poderia ser compreendido como uma recusa
de seu marido, também não desejava permanecer
com hostilidades desnecessárias.
Granville deu um gole generoso e deixou os
olhos fecharem.
Santo Deus, como aquilo era bom.
Ao lado de Grace, William Carter deu um
sorriso discreto ao ver que nenhum dos dois era
capaz de reparar, mas a jovem replicava o gesto.
A cada dia ficava mais nítido que, apesar de
tão diferentes em vários aspectos, o conde e a
Condessa de Granville poderiam ter muito em
comum.

Carter não soube explicar muito bem ao


amigo o que o levava a Granville Hall naquela
manhã, mas sua visita se estendeu poucos minutos
após o café. Pela primeira vez em muito tempo,
entretanto, o conde percebeu que não ficaria
chateado por tê-lo falando em seu ouvido por
horas a fio visto que, ao menos dessa forma, teria
os pensamentos momentaneamente afastados do
verdadeiro suplício que vivera na noite anterior.
A frustração de ter que reprimir o desejo
que sentia pela esposa por mais tempo já seria
motivo suficiente para tirar do controle um homem
são, mas o verdadeiro transtorno que Cassandra
conseguira causar em sua mente ao tentar
convencê-lo de terminar o que começara na noite
anterior para ela era motivo suficiente para, ainda
naquele momento, fazer o estômago de Granville
revirar.
Além de arrastá-lo para um sono confuso e
perturbado, a bruxa ainda o colocara em um
redemoinho forjado de pesadelos e lembranças,
nos quais o levava a revisitar os diversos
encontros e momentos tórridos em que juntos
haviam trocado carícias e sido entregues aos
prazeres carnais.
No estômago de Samuel, o café se revolveu.
O conde se colocou de pé, e buscou respirar
fundo para livrar a mente das imagens que
mesclavam a mulher que um dia ela fora e o
espectro tenebroso que vez ou outra entrevia. Na
noite passada, não havia diferença. Em meio às
recordações, as duas faces se mesclavam, o que o
fazia ter a impressão de ter compartilhado seu
corpo dezenas de vezes com algo tão ou mais
mórbido que um cadáver.
Samuel se apoiou nos joelhos, certo de que
estava prestes a vomitar.
A imagem perturbadora parecia presa à sua
visão.
— Milorde? — Folkes entrou no escritório
no mesmo instante, correndo ao seu alcance. —
Milorde, está tudo bem? — Apoiou as mãos nas
costas de Samuel, que rapidamente se endireitou.
— Sim. Sim, está.
Um segundo depois, já retomava o
semblante impassível. Por mais que confiasse sua
vida a Folkes, não gostava de demonstrar a
ninguém seus momentos de fraqueza.
O valete deu um passo para trás, encarando-
o com os olhos penalizados.
— Mais que inferno, Folkes, não me olhe
assim!
Samuel saberia lidar com o escárnio de
todo o reino e com mil olhares de desprezo.
Nenhum deles, porém, conseguia atingi-lo mais do
que fazia um regado de pena e comiseração.
O conde se sentou, na esperança ínfima de
que um pouco do muito trabalho que o aguardava
em sua mesa ajudaria a distrair a mente.
— Sabe que nos preocupamos com o
senhor.
Excelente. Aparentemente, Folkes não
compreendera a deixa para se retirar.
— Pensei já ter deixado claro há algum
tempo que sei me cuidar.
Geralmente Samuel não era tão ríspido em
suas respostas, mas sabia aonde o diálogo
chegaria e aquele não era um bom dia para isso.
Definitivamente, não.
— A Sra. Plymouth e eu…
— O guardião e a babá — murmurou.
— Sabe que jamais desejamos interferir em
vossos assuntos, mas percebemos que tem
consumido mais ópio do que de costume e...
— E tenho pedido que paguem com vossos
ordenados, por acaso?! — Granville bateu a mão
sobre o tampo da mesa, com fúria.
Nos olhos de Folkes, viu algo muito pior do
que pena: decepção.
— Não, senhor. Não tem.
Samuel fechou os olhos, automaticamente
arrependido pelo acesso de raiva.
— Folkes...
— Com sua licença, senhor
Mas a resposta do criado foi seguida de
uma vênia e retirada.

Grace não se surpreendeu quando foi


informada de que o marido não se reuniria a ela
para o jantar.
Na verdade, o que teria acontecido de mais
surpreendente naquela noite fria de outono seria a
chuva inesperada que começou a cair, não fosse a
fuga de Claws que a fizera, sem nem mesmo
considerar quão tarde já estava, correr em direção
aos jardins.
A tempestade poderia não estar mais no seu
ápice, mas gotas insistentes e gélidas conseguiam
penetrar por seu casaco quando a jovem finalmente
pôde vislumbrar o felino que se divertia,
provavelmente atrás de roedores, dentro de uma
construção grande disposta no lateral da
propriedade; muito similar a um galpão. A lanterna
que Grace trazia em sua mão pingava, e ela não
conseguia enxergar muita coisa, mas era
estimulante — e ao mesmo tempo intimidador —
percorrer aquele território inteiramente
inexplorado.
Atrás e diante da casa o jardim estendia-se,
ainda mais misterioso e melancólico do que lhe
parecera outras vezes, com a esporádica luz dos
relâmpagos distantes projetando sombras
aleatórias a cada minuto.
— Claws! — chamou o felino, ao notar que
a chuva voltava a apertar.
Parte de seu espírito poderia ser intrépido,
mas a verdade era que seus cabelos já começavam
a pingar.
Grace viu o focinho rosado sair pela janela
de vidro quebrado, mas então um trovão muito
mais alto dos que os outros ressoou, o fazendo
pular de volta para dentro do galpão.
Sem coragem de deixá-lo fora durante a
noite fria, a jovem atravessou a parte aberta do
gramado, sem importar-se em sujar as sapatilhas
nas poças de lama, dando-se por satisfeita apenas
quando finalmente o teve de volta em seus braços
e, juntos, retornaram para o interior da mansão.

Granville estava prestes a entrar em seu


quarto quando escorregou ao passar pelo corredor,
tendo de se apoiar na parede para não anotar mais
um infortúnio em sua lista do dia.
Ele se agachou e, com a ajuda da casta
iluminação de um candelabro fixo na parede, notou
que o fizera em decorrência de uma poça e que
essa, na verdade, tratava-se de um passo marcado
por lama fresca, parte de uma sequência que
seguia em direção ao quarto da esposa.
Alguém havia entrado em Granville Hall no
meio da noite, mesmo com a tempestade.
Os olhos de Samuel correram até a porta
fechada do aposento e a pulsação nervosa de seu
coração, que já parecia ecoar em seus tímpanos,
denunciava que nenhuma ideia agradável lhe
surgia ao imaginar quem ou até mesmo o que
poderia acompanhá-la.
— Grace?
Granville não tinha pensado em amenidades
ou cortesias em relação ao avançado horário.
Quando deu por si, já batia na porta.
A demora da esposa em responder o
chamado só aumentou sua agitação.
Culpa começou a corroê-lo. Depois da noite
passada, ficara nítido que Cassandra tinha
conhecimento de seus desejos pela jovem. O que
ele faria se, de algum modo, a bruxa estivesse
tentando se vingar e atacá-la?
— Grace?!
O segundo chamado já demonstrava mais de
seu nervosismo e Samuel mandava às favas
qualquer protocolo social ao virar ele mesmo a
maçaneta.
— Oh, meu Deus! — A jovem levou a mão
ao peito ao abrir a porta no mesmo instante em que
o conde também o fizera, levando um susto sem
precedentes.
Devido aos tremores que o frio lhe cobrava,
a voz soava um pouco falha.
— O que aconteceu? — Os olhos do marido
a percorreram em um exame completo, sem pudor
algum.
Grace ficou muda por alguns instantes,
ainda recobrando-se do susto, mas buscou retomar
a razão após fungar com pouca graça o pequenino
nariz:
— Precisei ir até… — Um tremor mais
forte do que os outros a interrompeu. O tecido da
roupa encharcada parecia congelar seus ossos. —
Até o jardim.
— Então foi você? — Ele observou as
pegadas de lama que prosseguiam quarto adentro,
até o tapete, onde sapatilhas pequenas e imundas
de lama repousavam. Inevitavelmente, reparou que
ela estava descalça e manteve-se vidrado em suas
meias por mais segundos do que deveria imaginar.
— Deve estar congelando. — Granville deu um
passo adiante, se colocando dentro do quarto e
fechando a porta.
Grace o observou ainda muda, pois o frio
era tamanho que conseguia entorpecer suas ideias.
Geralmente não o sentia com facilidade, mas
aquela era uma situação um tanto extrema.
— Precisamos chamar alguém para que a
ajude a trocar essas roupas antes que fique doente.
— Ele se virou em direção à lareira — O fogo
também precisa ser aumentado.
— Não! — A energia dela pareceu voltar no
mesmo instante. — Por favor, milorde, não é
necessário que ninguém saia de seu repouso para
me servir a este horário. Garanto ao senhor que
consigo… — mais um tremor — ...me virar muito
bem.
Apesar de achar a postura dela respeitável,
Samuel sabia que aquilo era absurdo e demonstrou
o pensamento com o olhar que lhe lançou.
— Falo-o a sério — Grace protestou. —
Já…
— ...realizou tarefas muito mais complexas
em sua vida — ele completou a fala e, para a
surpresa da jovem, esboçou o que poderia ser
considerado um rascunho de sorriso. — Imagino
que sim.
Droga.
Se apenas aquele simples rascunho foi
capaz de fazer o estômago dela — que estava
praticamente congelado — dar uma cambalhota,
Grace sentiu medo do que poderia experimentar se
um dia realmente chegasse a vê-lo sorrindo.
— Não pode ser saudável permanecer
assim por mais tempo e este quarto está muito frio.
Permita-me então, ao menos, aumentar o fogo da
lareira enquanto toma as providências necessárias
quanto às vossas vestes?
— O senhor? — A indignação foi tamanha
que o tom de voz se tornou agudo, rendendo-lhe
um espirro.
Granville mordeu o interior da bochecha.
— Eu mesmo — garantiu, com o orgulho
ligeiramente afetado.
Afinal de contas, condes ainda podiam
saber o mínimo das tarefas necessárias em um lar.
— Eu... lhe seria muito grata.
Foi surpreendente até mesmo para ela, mas
Grace de repente percebeu que aquela resolução
dos fatos a agradava mais do que qualquer outra.
Não atrapalhar o descanso de outros, ter o corpo
envolto por roupas quentes e secas o quanto antes
e o quarto aquecido seria o cenário ideal para que
pudesse finalmente descansar, e a ideia de fazê-lo
com o auxílio do marido lhe pareceu, de algum
modo, um ato de equilíbrio. Mesmo que não fosse
intencional, a gentileza oferecida por lorde
Granville viria justamente na noite seguida àquela
em que ele a havia magoado com sua ausência, o
que lhe parecia, de alguma forma, um ajuste
simétrico que poderia muito bem ter sido
orquestrado pelo destino.
— Excelente. — Samuel pareceu satisfeito
com o aceite também, e Grace notou seu olhar e
tom mais tranquilo. — Aguardarei do lado de fora
enquanto se troca. — Deu um passo adiante.
— Não é necessário — para surpresa de
ambos, Grace replicou imediatamente. — Digo…
Estará de costas enquanto… — Gesticulou em
direção à lareira. E além do mais é meu marido.
Complementou em pensamento.
Em seu interior, os desdobramentos de tal
pendência continuavam a incomodá-la.
Samuel apertou os dentes e fez o mesmo
com as mãos dispostas ao lado do corpo. Os
movimentos foram tão contidos, que Grace fora
incapaz de vê-los.
O conde sabia que permanecer seria
loucura, que a simples ideia de ouvi-la se
despindo seria capaz de perturbá-lo ainda mais
quando o aroma e presença de Grace já pareciam
conseguir ao preencher o cômodo e abalá-lo por
inteiro, mas negar uma colocação tão racional
seria demonstrar fragilidade e, acima de tudo,
condená-la a sofrer ainda mais tempo com o frio
que a cada segundo deveria tornar-se uma aflição
ainda maior.
— Está bem.
Duas palavras.
Estas duas curtas e simples palavras foram
suficientes para, nos minutos seguintes, o
carregarem a um suplício muito maior do que no
próprio purgatório o pobre diabo poderia
encontrar.
O tecido pesado do vestido escorregou
através do corpo de Grace fazendo mais barulho
do que ele estava preparado para escutar, e
Samuel se viu imaginando todo o percurso que a
roupa molhada, seguida da seca, teriam de
percorrer através da pele macia e levemente
dourada. Da pele que ele não deveria, mas
desejava incessantemente tocar, e que o fazia arder
mais do que as chamas que junto do fole atiçava.
Prrrrrr.
Demorou para que outro som que não
fossem os provenientes dela conseguissem chamar
sua atenção, mas o conde reparou que Claws, que
apenas então notava dormindo na chaise longue
em frente à lareira, soltava um murmúrio de
satisfação pela fonte de calor reabastecida.
— Disponha — ironizou.
— Disse alguma coisa? — Grace
questionou, ao mesmo tempo em que também se
aproximava.
E Samuel, ainda agachado, se virou para
respondê-la, mas teve as palavras roubadas de
seus pensamentos mesmo antes de organizá-las.
Nem se quisesse conseguiria domá-las de volta de
modo a formar uma frase, pois nenhuma parcela de
sua racionalidade lhe sobrava. Estava
compenetrado demais em absorver e admirar. Em
ser absorvido e deixar-se enfeitiçar.
Sua esposa era uma visão.
E Grace não era tola ou inocente a ponto de
não compreender o que se passava. O modo como
os olhos de lorde Granville pareciam consumi-la a
assustava, é verdade, mas também a preenchiam
com uma parcela inegável de orgulho e satisfação.
Afinal de contas, ela era uma mulher e, vez ou
outra, poderia mostrar-se acalentador ser de
alguma forma admirada.
— A modista fez para mim. — A humildade
que carregava, porém, a fez direcionar a atenção
para a camisola rosada que trazia coberta por um
macio penhoar de cashmere no mesmo tom.
Não se tratava do modelo mais revelador
dentre todos que Madame L’afaiat havia enviado,
mas o recorte aberto em formato “V” na linha do
colo revelava mais de sua pele do que Granville
estava habituado a vislumbrar.
Vagarosamente, sem deixar por um instante
de fitá-la, o conde se levantou.
— É encantadora.
Encantadora.
A palavra deveria ser a mais doce e sutil
que Grace já o havia escutado proferir e, mesmo
que fosse direcionada à sua veste, fora impossível
não se permitir por alguns segundos se ludibriar.
Granville sentiu a respiração agitada. A
situação tornava-se mais desafiadora a cada
instante. Era como se a sua mente lhe dissesse para
correr, mas algo mais profundo lhe pedisse para
ficar.
— Como está se sentindo? — disse a
primeira coisa que lhe veio à mente, na ideia de
afastar de vez o assunto da camisola, visto que
seus olhos, aparentemente, não eram capazes de
fazer o mesmo com muita diligência.
E Grace notava o insucesso do marido em
deixar de observá-la por mais que desejasse, o
que foi fazendo com que aquele calor íntimo e
agradável se desdobrasse em partes ainda mais
profundas em seu interior.
Sem compreender direito por que o fazia, a
jovem deu mais alguns passos para perto,
colocando-se muito rente ao conde antes de
responder:
— Me sinto ótima.
Seus olhos se abaixaram e, quando
percebeu, também o analisava sem muitas
ressalvas através das vestes soturnas e pretas.
Será que o pequeno vidro continuava
pendurado em seu pescoço?
Samuel cerrou o maxilar.
— Creio que seja melhor que eu a deixe
descansar — praticamente sussurrou.
A proximidade tornava o perfume suave da
esposa ainda mais evidente, o que o deixava com a
respiração mais difícil.
Mas acontece que, naquele momento, Grace
percebeu que o que menos queria era uma noite
tranquila de sono. Fosse pela pendência que a
incomodava, ou pelo desejo que teimava em negar,
mas que vinha alimentando continuamente,
compreendeu que tudo o que mais desejava era
reclamar para si o direito que tivera negado na
noite anterior:
— Não desejo dormir agora... — os olhos
de âmbar se ergueram, e Samuel se perdeu neles
assim que viu dançar em sua íris o reflexo das
chamas que havia alimentado na lareira — …mas
cumprir com meus deveres de esposa.
E foi com esta única frase, dita por uma voz
que parecia mais um som celestial, que Samuel
observou todo o autocontrole que havia cultivado
ao longo de uma década se esvair.

Grace não sabia o que esperar quando


dissera aquilo. Na verdade, não havia pensado
sobre as possíveis reações do marido, pois se
fosse este o caso, muito provavelmente, teria
desistido de proferi-las no exato momento em que
as últimas palavras surgiram em sua mente, mas
ela as dissera. As dissera e sentiu a respiração
começar a se tornar mais pesada a cada centímetro
que o conde se tornava mais próximo e,
principalmente, no momento seguinte quando
rodeou sua cintura com a mão, puxando-a
ligeiramente para si.
O violeta de seus olhos jamais estivera tão
intenso como naquela noite, e a aura ao seu redor,
geralmente tão escura e triste, carregava desta vez
uma tonalidade um pouco mais sutil, que foi capaz
de, provavelmente de modo inconsequente, fazê-la
pensar que talvez devesse permitir-se relaxar.
— Está certa disso? — Granville
questionou, mas já tinha os lábios tão próximos
que o hálito quente penetrava em seus ouvidos.
Grace sentiu as pernas bambearem.
Ela balançou timidamente a cabeça em um
movimento afirmativo, virando-se para observá-lo
nos olhos mais uma vez, e tomou a coragem
necessária para permitir que suas mãos o
segurassem no ombro, confirmando que o marido
era tão musculoso e largo quanto há muito tempo
imaginava e o fugaz contato de duas noites atrás a
deixara provar.
Samuel fechou os olhos e aproximou o nariz
do pescoço delicado, colando-o sutilmente a pele
macia e cálida. Inspirou o aroma doce e
tranquilizante em sua nascente, e o gesto percorreu
o corpo feminino em um arrepio confuso, pois
conseguira ser profundo e sutil ao mesmo tempo.
— Gosto do seu cheiro.
O comentário foi baixo e sussurrado,
provavelmente um pensamento que não deveria ter
escapado em voz alta, mas reverberou através dela
com reflexos físicos e ainda mais. Foi impossível
não sentir o impacto de tais palavras quando
aquela era a primeira vez que um cavalheiro
alegava com tamanha delicadeza e aparente
sinceridade, gostar de algo em si.
O conde tinha os olhos fechados, e
realmente não notava o que dizia. Enquanto uma
mão a segurava na cintura, permitindo-se
experimentá-la sob seu toque, a outra passou a
apoiar o pescoço lânguido que, frente às suas
carícias, passou a derreter.
Ah, como Samuel adorava os movimentos
voluptuosos do corpo feminino durante um ato de
entrega.
Como sentira falta deles!
Sedentos por provarem o doce daquela pele
tentadora, seus lábios finalmente pousaram sobre a
maciez do pescoço de Grace, sentindo o calor que
toda ela desprendia, mesmo tendo há pouco tempo
o corpo encharcado. Era encantador como sempre
estava quente e seu toque o confortava.
Era como se a esposa guardasse em seu
interior o próprio sol.
— Oh… — Fora a vez dela murmurar
baixinho frente a carícia sutil. Não estava
esperando por aquilo e, muito menos, pelos
diversos beijos menores e diligentes que seguiram
subindo por seu pescoço, queixo e bochecha até,
finalmente, encontrarem seus lábios.
O sussurro de deleite dela o deixou tão
inebriado quanto à experiência de provar seu
sabor.
— Tão preciosa — sussurrou Samuel, que
afagava com os próprios lábios sua boca.
Preciosa…
A palavra nem pediu licença. Junto de
encantadora, mergulhou ao fundo do peito de
Grace, em um lugar secreto e especial de seu
coração.
Quando o beijo finalmente aconteceu e logo
nos primeiros movimentos se viu esfomeado para
tomar o que fosse possível de uma única vez,
intimamente, o Conde de Granville temeu ter
perdido seu talento, é verdade, mas logo encontrou
o ritmo e obteve o retorno esperado, ao ouvir a
esposa gemer com nítida satisfação em sua boca.
Deus, como ela era doce. Muito mais do que
ele imaginava. Muito além do que Samuel se
recordava que os lábios de uma dama poderiam
ser.
A mão de Samuel a apertou com mais força
na cintura enquanto a outra fez o mesmo em sua
nuca e sua língua buscou se aprofundar, tomando-a
com uma fome que Grace até então jamais
imaginava ser capaz de habitar o interior de uma
figura tão contida.
Ela se apoiou nos ombros firmes e deixava-
se guiar à medida que ia aprendendo aquilo que
para si era inteiramente novo.
Em seus momentos com Owen, beijos eram
raros, e jamais permeados de carícias. O que sabia
sobre o ato conjugal, em suma, poderia resumir-se
ao fato de que lhe cabia, na maior parte do tempo,
se deitar e esperar.
— Minha nossa. — Precisou retomar o ar
em meio a um movimento mais intenso, afastando
ligeiramente os lábios para respirar.
E apesar de estar enfrentando as próprias
questões, sendo a longa abstinência que tivera uma
delas, Granville a observou, preocupado.
— Está tudo bem?
Sem desejar ofendê-lo, ela garantiu:
— Sim... Sinto muito ter interrompido,
apenas não estou acostumada com… — Suas
bochechas enrubesceram.
As sobrancelhas de Samuel se uniram.
Do que ela estava falando? Havia sido uma
mulher casada.
— Digo… Eu e meu marido…
— Ex-marido. — A voz dele fora tão dura
que o próprio Samuel se surpreendeu.
— Ah, sim, é claro. — Grace retomou
novamente o ar. — O que quero dizer, é que
obviamente não sou uma donzela, mas percebo que
desconheço certas… — Gesticulou.
As mãos de Granville suavizaram-se em
torno da cintura fina.
— Desconhece tais carícias? — perguntou,
com a voz suave.
— Sim — assumiu ela, abaixando os olhos.
— Incomodo-a quando as faço?
— De modo algum — Grace voltou a
encará-lo, esclarecendo de imediato. — Apenas
fico surpresa e, por vezes, posso não saber se ou
até mesmo como devo retribuir ou me comportar.
Seus cabelos já registravam um pouco da
paixão compartilhada, e Samuel levantou uma das
mãos em um gesto inesperadamente gentil de
arrumá-los.
— Não se preocupe com isso quando
estivermos juntos. — Ele se inclinou e a beijou
sutilmente nos lábios, fazendo Grace voltar a
fechar os olhos, permitindo-se ser novamente
carregada para a atmosfera inebriante que parecia
ter tomado conta de todo o quarto naquela noite.
— Estou certo de que saberá o que fazer quando
for necessário — o conde murmurou, antes de
voltar a aprofundar o beijo, conforme desejava
muito fazer.
E como se tudo o que precisasse fosse de
fato aquela motivação, Grace no instante seguinte
já demonstrava que realmente sabia, afundando os
dedos delicados de suas mãos nos cabelos negros
e macios, experimentando o toque de seda que há
muito tempo imaginava que os fios de ébano
deveriam segredar.
Uma das mãos de Granville escorregou, e
ela percebeu quando ele a apertou ainda mais
contra as formas firmes e musculosas do corpo
masculino, fazendo-a sentir, inclusive, a
proeminência do desejo volumoso e rijo sob suas
calças.
Seu baixo ventre sacudiu. A ideia de tê-lo
tão perto e de que em breve o teria preenchendo-a
fez o desejo indevido que sentia por Samuel
crescer, se expandir; a dominar.
Além disso, diferente de seu último marido,
Granville demonstrava se importar em agradá-la, o
que também conseguia emocioná-la já que, como
era de conhecimento geral, não se tratava de um
requisito indispensável para o objetivo final que
os levava àquele encontro.
Mais uma vez, à sua maneira, e buscando
estar munido de todas as camuflagens possíveis,
Samuel demonstrava tratar-se de um bom homem.
Quando as mãos do conde resvalaram a
região de seus seios, com longos dedos esticando-
se para serem capazes de tocar sutilmente as
curvas delicadas que a esposa ostentava, Grace
sentiu novamente todo corpo estremecer.
Automaticamente, os mamilos se tornaram tesos
sob o tecido delicado da camisola, e ela percebeu
que os olhos de Granville desviaram sutilmente
para observar.
— Vamos para a cama — ele murmurou em
seu ouvido.
A fala soara tão convidativa e sedutora, com
o tom de voz rouco e arrastado, que nem em um
milhão de anos ela seria capaz de recusar.
Acontece que nem mesmo o conde
compreendia o que estava acontecendo ali. Desde
o momento em que entrara no quanto de Grace,
naquela noite, fora como se estivesse entrando
também em um ambiente diferente e deixasse do
outro lado da porta toda sua maldição.
No momento em que a jovem o dissera que
gostaria de consumar o matrimônio fora inevitável
recordar-se do martírio pelo qual passara na noite
anterior, é verdade, mas a lembrança o pegara com
menor força do que ao longo do dia, e a presença e
desejo que sentia pela esposa pareciam ser
capazes de todos os seus pensamentos
redirecionar.
Samuel não sabia onde estava Cassandra.
O que importava era que de alguma forma
sabia que ela não estava ali...
— Alguém?! SOCORRO!! — Gritos de
desespero ecoaram do lado de fora do quarto.
… mas pelo jeito acabavam de encontrar.
— Não irei deixá-las! — Samuel vociferou,
enquanto gesticulava agitado.
Precisava pensar em uma solução. Cada
segundo era precioso.
— Não há outra escolha!
Grace não se importava com seu tom. Se
gritar fosse a única maneira de fazer o marido
ouvi-la, que fosse.
— Eu sinto muito, tia Porshia… sinto muito!
— Vivienne repetia à tia, enquanto esta tentava
acalmá-la, dizendo pela milésima vez à pobre que
não havia feito nada de errado.
Ao menos não que soubesse.
— Se não for agora mesmo em busca de um
médico, podem não restar chances a ele. — Grace
levou a mão à testa do Sr. Folkes, que permanecia
desacordado sobre a mesa da cozinha.
Granville o colocara sobre o móvel, após
ele e a esposa o encontrarem desmaiado no chão,
ao lado de uma Vivienne em crise, gritando
desesperada por socorro.
— E deixá-las sozinhas aqui… — Granville
observou ao redor, sentindo um frio tenebroso
correr-lhe pela espinha.
Não era tolo.
Ainda não sabia como ou mesmo o que
havia acontecido exatamente, mas o mal-estar de
seu valete acontecer no momento em que estivera
prestes a deitar-se com Grace só poderia ser obra
de Cassandra. Era capaz de sentir a presença dela.
— Não será por muito tempo. — Grace
notou que ao redor dele a massa escura de
tormentos parecia crescer e se aproximou para
tocá-lo no ombro ao assegurar: — Prometo que
ficaremos bem. — Buscou fitá-lo com tamanha
sinceridade e segurança que, unidas à estima que
sentia pelo valete, Samuel não pôde ignorar.
Sabia que precisava ajudá-lo.
— Voltarei em menos de meia hora. — Saiu
apressado, tropeçando nos próprios pés.
— Coloque o casaco, senhor! — A Sra.
Plymouth correu para alcançá-lo e ao menos esse
cuidado buscou oferecer, mesmo em meio às
lágrimas.
O som de Vivienne fungando tomou conta da
cozinha e Grace observou à jovem, penalizada.
— Ah, minha querida, venha aqui… —
Esticou um dos braços e a apertou tão forte quanto
conseguiu, permitindo-a derramar em seus ombros
todo seu lamento.
A jovem forte e determinada que conhecia
estava assustada de uma forma que jamais vira.
— E-eu não s-sei o que houve. Juro! —
lamentava-se.
Grace acariciava seus cabelos, deixando-a
falar.
Mesmo que em meio às lágrimas nervosas,
Vivienne havia compartilhado com eles um pouco
do que acontecera, mas, ainda assim, algumas
peças da cena pareciam não se encaixar.
Pelo que lhes dissera, a criada estava de pé
na cozinha, preparando uma bebida quando o Sr.
Folkes a cumprimentou. Ela correspondeu o
cumprimento e o ofereceu uma xícara, mas ele
mesmo fizera questão de se servir enquanto ela
saiu rapidamente. Quando retornou, Vivienne o
encontrara convulsionando no chão, já
inconsciente, e com um ferimento na cabeça,
provavelmente causado em decorrência da queda.
A história, aliás, era exatamente a mesma
que a jovem repetia para Grace naquele exato
momento, enquanto a condessa buscava confortá-la
e manter uma mão discreta sobre a do valete.
— Quando você saiu… — Grace tentou
encontrar alguma explicação.
— Foi uma saída breve, fui apenas buscar a
bandeja.
— Bandeja?
— Para lhe levar a bebida — esclareceu.
Grace piscou algumas vezes.
— Estava preparando-a para mim?
Vivienne estava com a expressão trágica,
mas seu carinho era visível quando disse:
— Imaginei que permaneceria estudando até
mais tarde mais uma noite e, como certa vez me
falou sobre vossa preferência ao café e sobre os
estímulos da bebida, pretendia lhe servir uma
xícara.
— Ah, Anne. — Grace observou a jovem
com ainda mais carinho. Mas então, uma ideia
alarmante lhe ocorreu. — Oh, minha nossa! A
bebida! — Sua expressão se transformou. —
Anne, onde está...
Mas então seus olhos desviaram-se para o
chão e a condessa percebeu que lá estavam tanto a
xícara quanto o bule onde deveriam estar o que
restava do líquido, ambos estilhaçados.
— Lorde Granville os empurrou para
acomodar o Sr. Folkes — Vivienne buscou
recordar.
Grace mordeu os lábios.
Se o Sr. Folkes tivesse ingerido algo que o
fizera mal, algum outro sinal seu corpo deveria
dar. A jovem lhe tomou com delicadeza o pulso.
Era preocupante como a cada vez que verificava
pareciam mais amenas as batidas de seu coração.
Foi então que uma nova ideia lhe ocorreu.
— Anne, onde está o recipiente em que
guardam o pó de café?
Sem ser necessário um pedido, a jovem
criada correu até a prateleira onde diversos potes
enfileirados continham tanto o referido pó quanto
as ervas dos chás que também costumavam ser
servidos em Granville Hall.
— Aqui está. — Anne o abriu, inclinando
um pouco para que a condessa pudesse ver o pó
escuro e aparentemente comum.
— Aproxime-o, por favor, minha querida.
Desejo cheirá-lo.
— O que estão fazendo?
A Sra. Plymouth retornou neste exato
momento, surpreendendo ambas.
— A condessa estava… — Vivienne
iniciou.
— Verificando se o aroma forte do café
seria capaz de fazê-lo retomar a consciência, mas
não obtivemos sucesso — Grace a interrompeu,
enquanto lhe lançava um olhar discreto e
sugestivo, deixando claro que ainda não pretendia
compartilhar suas suposições.
— Pobre Sr. Folkes — a governanta voltou
a lamuriar, aproximando-se do colega de trabalho.
— Ainda hoje estava tão chateado. Jamais se
perdoaria em partir assim…
Deu a volta na mesa, segurando na mão
suspensa que, apesar da luva, começava a tornar-
se assustadoramente fria.
— Do que está falando, Sra. Plymouth? —
Grace questionou.
A governanta fungou.
— Que ele jamais se perdoaria em partir
desta forma, desentendido com lorde Granville.
— E quando foi que se desentenderam?
Sobre o que poderiam brigar? — Grace uniu as
sobrancelhas, surpresa pelo fato.
Ao que parecia, mais uma vez, desconhecia
algo que se passava em Granville Hall.
Além do mais, Folkes sempre lhe pareceu o
tipo de servo mais fiel. Se havia, realmente, se
desentendido com lorde Granville, o motivo
deveria ser extremamente sério.
— Eu não deveria ter dito nada. — A
governanta balançou a cabeça.
— Por favor, Sra. Plymouth… — Grace
ainda tentou.
— Irei em busca de uma manta para aquecê-
lo mais.
A condessa a viu dando as costas,
visivelmente consternada pelo assunto que deixara
escapar.
— Anne… — Grace observou a criada e
não foi necessário completar.
— Irei falar com ela.

— Onde está o médico? — Grace auxiliava


Samuel a retirar o casaco coberto de sereno.
— Onde estão as outras? — o conde
questionou, com a pele ainda mais pálida do que
de costume pelo vento gélido da noite.
— Foram buscar mais casacos. Ficavam
com mais frio aqui embaixo a cada instante.
Antes que ele pudesse notar, a jovem jogava
uma das echarpes que trazia em seus ombros sobre
ele.
— Por incrível que pareça, não sinto tanto
frio esta noite — Grace explicou, quando o viu
prestes a protestar. — Mas onde está o médico?
— Carter o está trazendo. Passei em Violet
Valley para solicitar auxílio, pois não ficaria por
mais tempo fora se o Dr. Vich não estivesse
disponível. — Ele a observou, deixando que os
olhos percorressem cada traço de Grace para se
certificar de que ela se encontrava mesmo bem.
Em seguida, os desviou para o Sr. Folkes. —
Algum sinal?
— Nenhum — respondeu, penalizada.
Mesmo que não o agradasse demonstrar
seus sentimentos, Grace conseguia captar na voz
de Samuel seu receio e pesar.
Ela voltou a se aproximar do valete,
tocando-o vez ou outra com discrição como fizera
desde o momento em que o encontraram para
recarregar as doses de energia vital do pobre
corpo que lhe pareciam tão escassas. Mesmo com
seus dons, entretanto, existiam certas situações em
que Grace não sabia como ou mesmo o que
deveria fazer e tinha medo de, ao tentar uma
abordagem mais intensa, prejudicar a situação
delicada do valete.
Poucos minutos mais tarde, praticamente
juntos, William, o médico, Vivienne e a Sra.
Plymouth entraram.
— Santa mãe de Deus! Querem matar a
todos nós?! — O comentário de Carter não era
exagerado, apesar de parecer.
O frio dentro daquela cozinha conseguia ser
muito maior do que o que já era exagerado do lado
de fora.
— Por favor, cavalheiros, me ajudem a
levar o senhor para perto de alguma lareira! — o
Dr. Vich exclamou com a voz trêmula.
Os homens carregaram o valete para uma
das salas de estar de Granville Hall, a única
mantida verdadeiramente habitável e, enquanto a
governanta organizava o estofado de modo a torná-
lo o mais confortável possível para o Sr. Folkes;
Grace, Carter e Vivienne se reuniram para acelerar
o processo de acender a lareira.
Samuel havia entrado em um estado de
nervosismo perturbado. Caminhava
incessantemente.
— Por favor, não é necessário que se ocupe
— Vivienne disse para Grace em tom gentil,
vendo-a ajoelhar-se ao seu lado.
— Faremos isso juntos — Grace garantiu,
procurando a pederneira.
Ao lado delas, Carter organizava a lenha.
Vivienne virou ligeiramente o rosto para
observá-lo, apenas então notando que o jovem
havia arregaçado as mangas do casaco que jogara
sobre as vestes de dormir antes de sair às pressas
de Violet Valley.
Apesar de duvidar que aquele era o tipo de
tarefa que tinha o hábito de fazer, a moça
precisava reconhecer que o trabalho era realizado
de modo diligente.
Em poucos minutos, a lareira já estava
acesa. Após agradecer o auxílio de ambos, Grace
se afastou, aproximando-se de Granville.
Conforme o Dr. Vich solicitou, todos o
deixaram a sós com o paciente na sala, e passaram
a aguardar por notícias no extenso corredor do
lado de fora.
— Eu sinto muito que tenha sido você a
encontrá-lo — Carter sussurrou à Vivienne,
enquanto ambos tinham os olhos fixos na porta.
Os de Vivienne se abaixaram.
— Teria sido pior se ninguém o encontrasse.
Ela sabia que soaria um tanto amarga e que,
por vezes, tal conduta poderia ser vista como
desnecessária, mas algo a deixava realmente
incomodada com as constantes e insistentes
demonstrações de gentileza que o senhor Carter
lhe fazia questão de demonstrar.
Já havia presenciado uma história parecida,
e escutado várias outras. Jovens como ela nunca
terminavam bem em seus finais.
— Sei disso — Carter voltou a sussurrar,
buscando se corrigir. — Apenas sinto que tenha
sido você. Penso que tenha ficado assustada e me
incomoda a ideia imaginá-la assim… — A fala
dele a surpreendeu, e Vivienne virou-se para
observá-lo diretamente — Digo… — Apenas
então William notou que havia dito em voz alta
algo que não deveria — A ideia de ver qualquer
jovem assustada me incomoda muitíssimo —
corrigiu-se, buscando um campo genérico.
Os olhos escuros de Vivienne se apertaram.
Lá estava.
Mais um homem acreditando ser superior a
todas as mulheres indefesas e frágeis existentes no
mundo.
— Pois eu lhe garanto que neste mundo
existem outras coisas capazes de me assustar muito
mais, senhor Carter, sendo a arrogância uma delas.
Sem nem mesmo dar a ele oportunidade de
defesa se afastou, buscando a companhia da tia.
Um pouco mais adiante, depois de
permanecer vários minutos em silêncio, Grace
direcionou suas primeiras palavras a Granville:
— Ele possui família?
O conde não parou de caminhar diante da
esposa, e nem mesmo ergueu os olhos ao
responder que não, com um simples aceno de
cabeça.
A família de Folkes estava ali, em Granville
Hall, praticamente resumia-se a ele e, mais uma
vez, Samuel havia falhado em defendê-la.
Quando seus passos finalmente cessaram, o
conde se virou para a parede do corredor e
desferiu um sonoro golpe contra a estampa de
damasco.
A respiração de Grace travou com a reação
intensa e inesperada.
Os olhos de todos ao redor caíram sobre a
figura soturna e perturbada.
— Samuel… — William se aproximou.
Mas ao redor do conde a massa nebulosa e
escura se tornava tão densa que Grace considerou
a aproximação do amigo arriscada. A jovem
respirou fundo e deu um passo adiante, impedindo-
o ao sussurrar:
— Eu gostaria de tentar.
William observou a figura grandiosa e
transtornada atrás dela, e teve receio sobre ser ou
não uma boa ideia.
— Não estou certo se deveria...
Grace compreendeu o que se passava em
sua mente e o tocou com delicadeza no ombro,
buscando tranquilizá-lo.
— Prometo não forçar além do limite. —
Sorriu singelamente ao final, desarmando qualquer
resistência.
— Se precisar de mim, estarei com a Sra.
Plymouth e Vivienne na cozinha.
— Obrigada.
— Boa sorte com a fera. — Ele indicou
com a sobrancelha, e partiu dizendo às duas
mulheres que o conde e a condessa necessitavam
de privacidade para conversar.
A perturbação de Granville era tamanha que
o conde sequer percebeu a retirada dos demais.
Tomando coragem, Grace voltou a se
aproximar, estendendo a mão para tocá-lo no
braço e buscar dissolver ao menos uma parte da
bruma escura e densa que o envolvia.
Ao senti-la, porém, o marido se afastou.
O coração da jovem se encolheu. Desejando
ou não, o gesto lhe feria.
— Samuel…
— Ele não se retira tão tarde. Ele nunca se
retira tão tarde.
O conde passou a caminhar de um lado para
o outro, enfiando os dedos longos entre os cabelos.
As palavras escapavam de seus lábios como
reflexões íntimas e distantes, de quem busca
argumentar com as próprias ideias.
— Quem? — Mesmo magoada, Grace
tentava compreendê-lo.
O conde a observou com os olhos violeta
pesados, muito mais cansados do que pareciam há
poucas horas, e se deixou, ao caminhar torpemente
para trás, apoiar as costas na parede.
— Folkes — murmurou. — Ele nunca se
deitou tarde, mas sei que hoje o fazia por estar
agitado devido à discussão que tivemos mais cedo.
— O maxilar se apertou com ira, enquanto olhava
para o lado.
A desaprovação que trazia por si mesmo
estava clara em sua voz.
Vendo-o de alguma maneira se culpar pelo
ocorrido, Grace ficou ainda mais penalizada, e
buscou uma nova aproximação.
— Não há como saber se um fato possui
relação com o outro. Você não deveria…
— Culpar-me? — Granville voltou a
encará-la, mas agora tinha os olhos apertados e
visivelmente coléricos. — Diga-me, Grace, era
isso que pretendia dizer? — Sua voz era tão dura,
tão similar a do Samuel distante e soturno dos
primeiros dias, que o frio daquela época voltou a
correr na espinha dela, junto ao temor de não saber
quem realmente era aquele homem.
— Não tem por que agir assim — Grace
resolveu enfrentá-lo, consciente de que o conde
adotava tal postura na intenção de tentar afastá-la
com sua frieza e indiferença.
Ele não precisava mais fingir ser apenas
aquela casca insensível se há poucos momentos
havia demonstrado sem ressalvas em seu quarto o
quão delicado e atencioso poderia ser.
Grace não esperava que o marido de
repente se tornasse enamorado por si, ou passasse
a lhe escrever sonetos e dedicar juras de amor,
longe disso. Mas almejava uma relação sincera e
clara, na qual poderiam ser verdadeiros a ponto de
não terem de possuir vidas e personalidades
completamente distintas, dependendo do horário
do dia e cômodo da mansão onde poderiam estar.
Ela dissera ao se casar: não desejava
entre eles uma vida de mentiras e omissões.
Já possuía o próprio fardo de segredos para
carregar.
A condessa estendeu a mão mais uma vez, e
o viu desviar novamente de seu toque.
O conde reorganizou a postura, afastando-se
da parede.
— Acontece que este sou eu, e as culpas
que carrego, desejando-as ou não, sempre serão
minhas.

Nem bem o diálogo fora encerrado e o Dr.


Vich abriu a porta da sala para compartilhar as
novidades.
Ao que tudo indicava um milagre havia
salvado o Sr. Folkes, pois apesar de
aparentemente ter ingerido uma quantidade
significativa de substância nociva para o
organismo, o valete conseguia se recuperar.
— Vamos torcer para que a substância não
consiga avançar mais, ainda que eu não tenha sido
capaz de identificar o que a conteve até agora —
dizia o médico.
Fechando os olhos, Grace sentia-se aliviada
em saber que os momentos que passara ao lado do
criado haviam surtido algum efeito.
— Necessito que tragam a jovem que o
encontrou. Precisamos saber o que o Sr. Folkes
ingeriu para sermos mais assertivos e evitarmos
que outras pessoas padeçam.
— Sei que precisa dessas informações, Dr.
Vich, e eu mesma as conseguirei ao senhor, mas
peço que dê alguns instantes à Vivienne. Ela teve
uma noite agitada, e precisa se recompor. —
Grace demonstrou preocupação.
Granville espiava através da porta
entreaberta, observando o criado dormir sobre o
estofado.
— Amanhã pela manhã, lhe garanto que terei as
informações — Grace garantiu ao médico, que
anuiu na sequência e lhe passou as demais
orientações.

A manhã não demorou a chegar, e veio fria.


Grace havia saído há pouco dos aposentos
de Vivienne, pois resolvera dar o dia de folga para
a jovem, quando passou diante da porta do
escritório de Samuel e percebeu que o conde se
encontrava de pé, com os olhos fixos em um ponto
qualquer.
Na noite anterior, após receber do médico o
parecer de que, apesar da situação
consideravelmente delicada, o Sr. Folkes estava
fora de risco, Granville fora para os jardins, dos
quais ela não vira retornar desde então e, naquele
momento, alguma energia que a jovem não poderia
denominar parecia responsável por empurrá-la
para dentro do cômodo, tornando imperativa a
necessidade de saber como ele estava.
— Bom dia. — Sequer bateu. Quando
percebeu, caminhava adiante com passos bastante
seguros, até ficar diante da mesa.
A chegada da esposa o surpreendeu.
— Bom dia. — O conde puxou o colete
amassado, e passou as mãos pelos cabelos. Ainda
vestia as mesmas roupas da noite anterior,
conforme ela pôde reparar.
A voz grave transmitia exaustão.
— Pensei que gostaria de saber que nós
conseguimos transferir o Sr. Folkes para um dos
quartos na noite anterior. Certamente estará melhor
acomodado. —Mordia os lábios enquanto falava,
e buscava atenuar o tom de voz.
As olheiras de Samuel eram profundas
demais e cada parte do conde parecia pedir por
socorro. Se ao menos ele lhe permitisse ajudar…
— Nós? — Ele não compreendeu.
— Digo, eu, a Sra. Plymouth e o Sr. Carter.
— Por que não solicitaram minha ajuda? —
De repente, ele se agitou.
— Nenhum de nós sabia exatamente onde
encontrá-lo. — Grace falou a verdade.
Uma quantidade ainda maior de culpa tomou
conta dele.
— É claro. — Samuel se levantou e
caminhou até a janela, observando a manhã fria em
que a bruma densa e suspensa tornava os jardins
secos ainda mais melancólicos, como o retrato
perfeito de toda a tristeza que o preenchia em seu
interior.
Na noite passada, mais uma vez, havia ido
de encontro ao jazigo de sua família, em busca de
reunir coragem suficiente para tomar o maldito
veneno e ter de uma vez o mesmo fim ao qual fora
responsável em levar o irmão e o pai. Do sepulcro
do patriarca, entretanto, a culpa seguia gritando,
impedindo-o de fazê-lo antes que as obrigações de
sangue fossem cumpridas.
— O Dr. Vich esteve aqui bem cedo, hoje.
Como não o encontrou, pediu para falar comigo.
Disse que o Sr. Folkes segue se recuperando muito
bem, e já se encontra fora de risco.
Os olhos de Samuel se apertaram.
— Descobriram qual foi a substância?
Grace engoliu seco.
— Não. Vivienne não estava em condições
de se lembrar de muita coisa e eu também não
desejei forçá-la. De qualquer maneira, pedi que a
Sra. Plymouth realizasse a verificação do
armazenamento de todos os mantimentos da
cozinha.
A jovem ainda não sabia o motivo, mas algo
lhe dizia que o fato de ter sido justamente o café a
fazer mal ao valete não havia sido apenas uma
simples coincidência. Por sua vertente mística,
Grace costumava valorizar os próprios sentidos, e
buscava prezar pelas percepções que tinha do
intangível.
Samuel balançou a cabeça, mas a verdade
era que não se importava muito em obter o nome
de uma substância dessa vez. Para ele, não restava
dúvida de que o mal que acometera Folkes fora
obra de Cassandra e que a bruxa havia encontrado
uma maneira de atingi-lo de duas formas ao fazê-lo
justamente no momento em que estivera prestes a
consumar o matrimônio.
Ah, como fora inocente!
Por alguns momentos, chegara mesmo a
considerar que algo havia acontecido junto de
Grace, e que seria capaz de, de alguma forma, se
livrar daquela presença infeliz enquanto estava
com a esposa.
Tola, completa ilusão.
— O que acha de comemorarmos? — Uma
ideia correu os pensamentos da condessa, que
resolveu compartilhá-la antes que a coragem se
fosse.
Caminhou até o armário disposto no canto
esquerdo do escritório, e retirou de lá a mesma
garrafa e os dois cálices pequeninos que o marido
pegara no dia de seu casamento.
Surpreso, Granville a observou servi-los,
mantendo-se calado.
— Confesso que jamais me imaginei
propondo um brinde — ela disse em meio a um
sorriso tímido, enquanto entregava um dos cálices
pequeninos a Granville.
Samuel esticou a mão e o segurou.
— Não desejo ser mal compreendido,
Grace, mas pelo que deveríamos brindar? — A
fala poderia fazê-lo parecer ainda mais amargo do
que Samuel já costumava ser, mas existia nele a
verdadeira necessidade de compreensão.
— Pela recuperação de um amigo.
— Folkes é meu…
— Dentre as mil funções que desempenha
em Granville Hall, já ficou mais do que claro que
a mais importante de todas é a de vosso amigo. —
A esposa sequer o deixou prosseguir com a
negativa. — E também… — Ela o encarou com o
olhar um pouco mais cintilante, detalhe que não o
escapou. — Por, apesar de tudo, termos avançado
em nosso objetivo na noite anterior.
Seria egoísmo desejar impedir que as
lembranças ruins da noite passada tornassem as
boas um mero borrão?
O conde engoliu seco.
Por Deus.
Grace sequer havia vacilado o olhar ao
dizer aquilo; não demonstrara qualquer hesitação.
O impacto da fala da esposa fora tremendo
em seu interior e constituição.
Tê-la envolvida era perigoso. Mais do que
nunca ele sabia disso.
A noite anterior havia sido um
demonstrativo claro de que carícias e beijos
significavam mais do que a objetividade inicial
com a qual desejava tratar o matrimônio e,
consequentemente, os encontros com a própria
mulher, e Samuel sabia que as ações de Cassandra
haviam sido um reflexo da percepção que a
própria bruxa deveria possuir sobre isso.
Grace dizia que haviam avançado, quando,
na verdade, Samuel enxergava regressão.
Não havia outra maneira de categorizar a
própria perda de controle.
— Grace… — O conde abaixou o cálice,
junto do olhar. Sua voz carregava desapontamento
e algo ainda mais pesado.
A respiração dela travou.
— Oh… — a jovem sussurrou sua lamúria,
também apoiando o cálice sobre a mesa. — Eu
entendo.
— Entende?
— Já imaginava que não saberia
corresponder às carícias que me fez, mas irei me
esforçar para aprender e tentar tornar tudo ao
menos…
— Santo Deus, acha que é disso que estou
falando? — Granville espalmou as mãos sobre a
mesa, inclinando-se em sua direção.
Os olhos dourados dela se abriram, surpresos
pela reação intensa.
— E, não é?
— Certamente que não! — ele enfatizou com
tanta intensidade que, em outras circunstâncias,
ela teria sido capaz de captar o elogio.
— Mas então… Eu não o compreendo,
milorde.
Granville respirou fundo, abaixando a
cabeça, tendo os olhos fechados.
De fato, em vários momentos, nem mesmo
ele entendia.
Como faria o necessário sem se permitir
envolver por aquela mulher? Como não inflamar a
ira de Cassandra se Grace o inflamava até mesmo
quando não tentava provocar?
— Apenas saiba que na noite de ontem,
enquanto estávamos juntos, você não fez nada de
errado. — Buscou ser o mais sincero e afável que
conseguia em suas palavras.
Grace percebeu o esforço e tal fato
conseguiu, ao menos em parte, aquecê-la.
— Então, esta noite…
— Não.
A negativa fora tão enfática que a fizera
piscar.
— Neste momento preciso me ater a outros
assuntos que demandam mais de minha atenção —
mentia.
Na verdade, pensava em como seria capaz
de não se envolver quando a tivesse sob seu
corpo.
Granville se afastou, caminhando novamente
até a janela com as mãos unidas nas costas,
sentindo o peso do olhar que Grace mantinha sobre
si.
— Compreendo que ambos possuímos
nossas atribuições e deveres neste matrimônio,
Grace, e lhe garanto que em breve cumprirei as
minhas — complementou.
Ela ainda não sabia muito bem como
encarar a forma dúbia como o marido parecia
tratar a obrigação de ter de deitar-se consigo, mas
a última fala do conde, realmente, a instigou.
— Sinto se sou impertinente ao insistir no
assunto. — Samuel se virou para dizer algo, mas
ela não o permitiu, prosseguindo: — Mas
realmente sinto falta de outra atribuição enquanto
permaneço nesta casa. Minhas aulas com a Sra.
Burns são excelentes, mas correspondem
principalmente a um anseio particular. Se ao
menos, como condessa, pudesse auxiliar mais na
administração... Se pudesse cuidar mais de
Granville Hall, dos jardins...
— Já conversamos sobre isso. — A voz
dele soou dura e Samuel voltou a fitar os
espinheiros e árvores secas.
— Não, Samuel, não conversamos. — Com
uma coragem que até então desconhecia, Grace o
enfrentou.
O conde a encarou, e viu a esposa virar em
um único movimento a dose de licor que havia
deixado sobre a mesa.
— Tudo o que fez, assim como na maioria
das vezes, foi ditar ordens, me dizendo que não
deveria tocá-los, mas isto me parece uma
crueldade sem fim quando é possível notar que
tudo ao redor de Granville Hall agoniza.
Samuel umedeceu os lábios, rodeando a
mesa até postar-se de frente à esposa.
— É isso o que pensa? — Encarou-a
duramente, mas muito além da severidade, em seus
olhos e alma, Grace enxergava dor.
— O que sinto é que pode existir cor e
felicidade por baixo de toda a melancolia que se
instalou entre estes muros, e que basta vossa
permissão para que, ao menos em parte, voltem a
se mostrar. — Grace o tocou levemente no braço.
— Jamais buscaria interferir em vosso luto, mas
que culpa outros devem carregar sobre nossa
tristeza?
O calor dela… Ah, maldição.
O toque fez todo o corpo de Samuel,
imediatamente, corresponder.
— Você está falando de plantas —
praticamente murmurou.
— Eu estou falando de vida — Grace
rebateu, mas o fizera com tamanha gentileza, que o
desarmou.
Pela primeira vez, Samuel começou a
refletir sobre a possibilidade de também ser o
responsável de manter em Granville Hall a
presença de Cassandra. Afinal de contas, tudo era
mantido com a mesma configuração que a bruxa
deixara.
— Poucas mudanças seriam feitas, e
nenhuma sem a vossa aprovação.
— Se for mesmo acontecer, desejo que
mude tudo. — Samuel se virou para encará-la
ainda mais, tornando as faces extremamente
próximas.
Grace se surpreendeu com a mudança
repentina de postura.
Um sorriso discreto, entretanto, já
começava a surgir.
— Farei duas exigências, porém. — Ele se
afastou do toque, postando-se mais ereto.
Sua expressão se tornou tão soturna, de
repente, que o sorriso de Grace precisou regredir.
— Pois bem — o estimulou a prosseguir.
— Vossas atividades ficarão limitadas aos
jardins frontal e lateral.
— Mas…
— Grace.
Ela puxou o ar.
— Está bem.
Precisava saber contentar-se com o que
recebia. Ao menos, por ora.
— A segunda é que não haverá roseiras.
Os olhos dela conseguiram transmitir toda a
indignação.
Um jardim sem roseiras?
— Não darei explicações e, muito menos,
estou disposto a barganhar sobre qualquer uma
dessas condições. — O conde percebeu que a
esposa ficara sem palavras, e esperou até notar
que os anos também lhe haviam roubado, além da
jovialidade, grande parte da paciência por
retornos: — E então? Está de acordo ou não?
A jovem remexeu por alguns segundos nas
saias. Obviamente, não o fazia sopesando sobre as
exigências, pois ficara claro não ter opções se
desejasse mexer nos jardins, mas sobre a pergunta
que passara a fervilhar em sua mente. No final das
contas, fora impossível contê-la:
— Quem era ela? — fitava-o quando
questionou.
— Ela?
— Nas poucas vezes em que estive nos
jardins, percebi que existe a estrutura para um
pequeno roseiral. Se não deseja mais essas flores,
só posso imaginar que houve uma mulher que…
— Devo considerar que aceita as
condições? — Granville a cortou de imediato,
afastando-se em direção à mesa.
Havia voltado a utilizar o tom frio que
deixava nítido à Grace ter tocado em um assunto
que não deveria.
Droga.
Foi a voz da jovem condessa observar o
marido virar de uma só vez o licor servido no
pequeno cálice que ainda repousava sobre a mesa.
— Sim, eu aceito.

Um pouco mais tarde, Grace fazia suas


lições ao lado da Sra. Burns quando a tutora notou
nos registros da pupila um novo erro. Algo que
naquela manhã, diferente das outras, estava sendo
recorrente.
— Eu sinto muito — desculpou-se, mesmo
sabendo que as palavras seriam de pouca valia
frente a própria desatenção.
A Sra. Burns a observou com os olhos
sábios de sempre e demonstrou compreensão:
— Está tudo bem. — Fechou o livro diante
delas. — Pelo que vejo, seria melhor adiarmos os
estudos de hoje para que possa descansar e
recuperar a energia gasta com a magia.
— Agradeço a compreensão, Sra. Burns,
mas gostaria mesmo de concluir este texto. Eu... —
Os lábios de Grace se calaram no mesmo instante
em que foi capaz de processar o que a tutora lhe
dissera.
Frente a surpresa dos olhos de âmbar, a
mais velha deixou o sorriso sereno e sábio se
alargar.
— Sra. Burns…— Grace engoliu seco,
mesmo sem saber corretamente o que pretendia
falar.
Não poderia negar, pois já ficara claro para
si que a senhora possuía uma alma tão ou mais
sensível do que a própria, mas fora inevitável não
sentir medo ao perceber que seu segredo estava
exposto.
Imediatamente, os gritos do pai e da mãe lhe
dizendo que os dons que carregava, na verdade,
tratava-se de uma maldição, voltaram a ressoar em
sua memória.
— Está tudo bem. — A tutora estendeu a
mão, colocando-a sobre a dela. — Será nosso
segredo, agora.
Grace engoliu seco, e observou a porta da
biblioteca em uma reação automática. A ideia de
que qualquer um poderia ouvi-la fazia um nervoso
absurdo correr por suas veias; levava-a a suar
frio.
— Imagino que a utilização de seus poderes
tenha tido relação com a situação do valete sobre a
qual me contou — sugeriu a mais velha.
Mas a condessa logo percebeu que a Sra.
Burns, na verdade, o fazia mais por gentileza do
que por realmente necessitar de uma confirmação.
Ainda não sabia quais poderes encontravam-se
omissos naquela mulher, mas compreendia que
seus olhos verdes e cristalinos, desde o mais tenro
momento, e com ainda mais destreza do que os
próprios, eram capazes de captar de qualquer
cenário e pessoa a verdade.
— Eu precisava ajudá-lo. — Grace uniu as
sobrancelhas.
— E por que fala como se fosse algo ruim?
— Não é — a jovem pontuou no mesmo
instante — Mas me incomoda a mentira —
confessou — A ideia de ter de fazê-lo em silêncio,
de ter de fingir e esgueirar meus atos como se
estivesse sempre tramando… — Um nó terrível se
apossou de sua garganta.
— Nunca é fácil para aquelas que são como
nós.
Pela primeira vez, a Sra. Burns assumia em
voz alta.
Poderia parecer estranho, mas certo
acalento percorreu o coração de Grace. Uma
sensação acolhedora, que a fez, em uma vertente
inédita, sentir que pertencia a um grupo.
— Vossa família…
— Oh, sempre me repudiaram! — Grace se
levantou, pois apenas de lembrar-se tornava-se
difícil respirar. — Nossa origem irlandesa fazia
com que fossem extremamente supersticiosos, e
quando perceberam que eu carregava algo
diferente, não demoraram a interpretar como uma
maldição. — Os olhos de Grace começaram a
marejar. Era inevitável. — Jamais compreendi o
porquê… — A jovem abraçou o próprio corpo,
lembrando-se das palavras amargas que desde
muito jovem escutara daqueles que deveriam tê-la
amado. — Tudo o que eu queria era ajudar… — A
voz foi esmaecendo, conforme as lembranças se
tornaram mais vívidas e opressoras, de violências
verbais, psicológicas e físicas, não demorando a
chegar no momento em que fora entregue sem
ressalvas às mãos de Owen Doyle.
Com os olhos fixos na figura da jovem e
sendo capaz de compreender todo o seu
sofrimento, a Sra. Burns também se levantou.
— Sei que desta vez não está me pedindo
conselhos, minha cara. — A tutora afastou
delicadamente uma mecha dourada de cabelo que
lhe caía sobre o ombro. — Mas já vivi tempo
suficiente para compreender que o destino jamais
sobrepõe dois caminhos sem motivo, e creio que
exista algo que eu possa lhe ofertar. Ter de oprimir
sua magia durante tanto tempo, provavelmente,
jamais lhe possibilitou explorar e conhecê-la
verdadeiramente, estou correta?
Grace afirmou em um gesto de cabeça.
— Bom, e o que acharia se eu…
— A senhora faria mesmo isso?! — Nem
fora necessário concluir. À Grace, mostrou-se
impossível omitir o entusiasmo em sua voz.
— O conde me paga para ensiná-la, mas o
conteúdo, como bem disse no ato da contratação,
permanece a meu encargo. — Sorriu, dando
ombros com uma jovialidade bem-humorada, que
contrastava com a tez experiente e enrugada.
— Mas por quê…?
— Como disse, já vivi tempo suficiente
para saber que o destino possui suas razões, e
acredito que não tenha sido ao acaso minha vinda
à esta casa e, menos ainda, a de uma bruxa com
poderes como os seus a um lugar como este aqui.
— Acredita mesmo?
Burns balançou a cabeça.
— Mas para termos certeza, precisaríamos
descobrir mais sobre quem realmente é. Você
gostaria?
— Seria maravilhoso — afirmou a jovem,
sem hesitar.
Grace jamais tivera com quem falar sobre
tais assuntos e, intimamente, sonhava com o dia em
que a existência dos próprios dons não fosse um
emaranhado de perguntas e mistérios sem
soluções. Aquilo que a Sra. Burns lhe ofertava era
a realização de um desejo tão profundo e absurdo
que, nem mesmo secretamente, lembrava-se de ter
tido a coragem de algum dia formular.
— Pois então, prepare-se. Continuaremos
com as aulas, é claro — disse a tutora, apontando
para os livros. — Mas já adianto que etimologia
se tornará um tanto entediante perto das outras
descobertas que está prestes a fazer.
Ao descobrir que a condessa recebera
permissão para cuidar dos jardins, Vivienne voltou
a se animar, não demorando a oferecer-lhe a
própria ajuda. Grace bem tentou dissuadi-la, mas
logo ficou claro que a moça não estava disposta a
permitir.
— Além do mais, mexer com plantas me faz
mais bem do que imagina, pois remete às
memórias que possuo de minha irmã —
argumentou, ostentando um sorriso saudoso.
Mesmo que lembrar-se da ausência a
deixasse triste, pelo que Grace conseguia notar, as
lembranças das duas jovens trabalhando junto à
terra eram de momentos felizes.
— Está bem. — Deu-se por vencida e as
duas logo passaram a caminhar até o galpão, por
onde Grace informara que iniciaria a inspeção
prévia das ferramentas que possuía para trabalhar.
— De qualquer maneira, assumo que será um
prazer tê-la ao meu lado, e será muito mais rápido
organizar o necessário do que se o fizesse sozinha.
— Sozinha? — Vivienne não foi capaz de
esconder a surpresa.
Afinal de contas, Granville Hall possuía um
jardim imenso.
— Lorde Granville não aprova a presença
de outros funcionários, Anne, e me esforçarei ao
máximo para não o contrariar, contratando apenas
aqueles que forem extremamente necessários, na
chamada periódica.
— Mas levará muito tempo até que coloque
tudo em ordem…
A dada altura, chegavam ao hall de entrada,
e Grace manteve-se em silêncio até abrir a porta
principal e observar o jardim maltratado que, mais
do que nunca, deixava de lhe parecer assombrado,
e passava a figurar a seus olhos como uma pobre e
abandonada alma, pedindo por socorro e atenção.
— Por isso mesmo devemos começar.

O galpão dos jardins era uma construção de


pedra de tamanho considerável, adornada com
janelas de madeira e vidro, tendo, assim como a
mansão, sofrido alterações por diferentes
proprietários, até ser tomada pelo abandono
durante a gestão do conde atual. A parte de fora
tinha o telhado coberto por hera e musgo, enquanto
no interior teias de aranha e poeira tomavam os
cantos e grande parte das ferramentas que há uma
década não eram utilizadas. Além disso, havia
também um mezanino, no qual se subia através de
uma escada.
— Serão dias apenas para organizarmos
este lugar. — Vivienne girou nos próprios
calcanhares, observando o entorno com a ajuda da
luz acinzentada que penetrava por entre os vidros
das janelas, muitos deles quebrados.
Grace sorriu com o exagero da fala.
— Ainda bem que ambas temos experiência
com esse tipo de serviço. — Ergueu o ombro,
lembrando-a de que não era uma lady comum, e
que juntas dariam conta da missão.
De repente, uma rajada mais intensa de
vento fez-se ouvir dentre as folhagens e troncos
secos, terminando por fechar com um estrondo a
porta que as jovens haviam deixado aberta.
— Santo Deus! — Vivienne deu um pulo,
levando a mão ao coração.
Grace também se virou em um rompante,
assustada.
A condessa caminhou até a porta para abri-
la e notou com alívio que o incidente não a havia
emperrado de alguma forma. O vento, entretanto,
parecia ter cessado da mesma maneira que viera.
— Bom, com vento ou não, precisamos
deixar mais ar entrar neste lugar. — Vivienne
começou a abrir as janelas, iniciando o trabalho.
Grace, se afastou da porta, e passou a
procurar por ferramentas de limpeza e jardinagem.
Pouco seria feito se não tivessem ao menos uma
vassoura e um balde.
Não demorou muito e estava com uma
vassoura de palha nas mãos, antiga, é verdade,
mas bastante prestativa, dando fim a todas as teias
de aranha que conseguia alcançar.
— Preciso de uma escada… — murmurou.
— Como disse? — questionou Vivienne,
que a dada altura retornava com um balde cheio do
poço artesanal que havia no jardim, antigamente
utilizado para tais afazeres.
— Encontrou alguma escada? — A
condessa observou as ferramentas separadas
durante a primeira inspeção.
Havia enxadas, pás, tesouras de poda,
rastelos, um serrote e machados, além de um par
de luvas. Algumas ferramentas já estavam
destruídas pela ferrugem, mas outras permaneciam
em bom estado de conservação.
— Não encontrei nenhuma, mas ainda não
olhamos no mezanino — Vivianne lembrou.
Animada com a perspectiva, Grace
caminhou até o espaço que ficava do outro lado da
construção, e soltou um gritinho satisfeito ao notar
que lá havia um cavalete de madeira, não tão alto
como uma escada seria, mas o suficiente para
ajudá-la.
— Preciso que me ajude a descê-lo, minha
querida, por favor.
A criada foi prontamente auxiliá-la, visto
que a peça tinha um peso substancial, e ainda
existia a complicação dos degraus.
— Ah, temos mais algumas ferramentas
aqui! — disse Grace, ao observar alguns
instrumentos encostados ao lado da janela próxima
de onde estava.
No entanto, nem bem terminara de dizer e
uma nova rajada de vento entrou pela janela de
vidro quebrado, muito mais forte do que a anterior,
fazendo a foice que ali estava vir em sua direção e
cortar o ar a um centímetro de seu nariz, em um
único golpe.
— Grace! — Vivienne gritou, visto que
neste exato momento chegava ao topo das escadas.
Paralisada, ainda tomando consciência de
que por um mísero passo poderia ter morrido, a
condessa piscou algumas vezes.
— Está tudo bem — buscou acalmar
Vivienne, enquanto engolia seco.
A criada a puxou pela mão.
— Saia daí. — Observou a foice no chão,
aos pés da condessa. — Ah, minha nossa! Se
tivesse dado um passo um pouquinho mais longo…
— As palavras de Vivienne soavam trêmulas.
— Mas não o dei. — Grace percebeu que o
novo susto se somava ao da noite anterior, e
buscou fazer o máximo para acalmá-la. — Está
tudo bem. — Tentou até mesmo dissimular um
sorriso fraco.
Quando abaixou os olhos, verificou que
havia marcas de ferrugem em suas saias,
comprovando que a queda fora tão próxima que a
foice chegara a lhe tocar.
Uma sensação estranha começou a percorrer
seu estômago. Ela se lembrava de ter acabado de
observar todas as ferramentas apoiadas na parede,
e vê-las perfeitamente imóveis. Não queria
alimentar a imaginação ainda em choque, pois
sabia que jamais tratava-se de uma boa escolha,
mas era impossível não se impressionar com a
abrupta alteração.
— Talvez mexermos aqui não seja uma boa
ideia. — Imediatamente, as histórias sobre a
mansão começaram a povoar a imaginação da mais
jovem. — Se algo tivesse acontecido… Só de
imaginar o que eu teria de dizer a lorde Granville
se…
— Nada será dito a lorde Granville, Anne.
— Grace fora enfática.
— Mas…
— Se Samuel possuir o mínimo acesso ao
que aconteceu, pensará em mil motivos para me
tirar a atribuição que acabei de conquistar, e isto é
tudo o que menos desejo — argumentou, segurando
as mãos da amiga para, à sua maneira, acalmá-la.
Vivienne mordeu os lábios, ponderando.
— Jamais faria algo para desagradá-la ou
deixá-la infeliz.
Grace lhe sorriu.
— Obrigada.
— Mas temos que tomar mais cuidado,
então. Ninguém mexe neste galpão ou nos jardins
há muito tempo.
— Prometo que terei — a condessa
assegurou. — Agora vamos. Creio que seja melhor
retirarmos as ferramentas do caminho antes de
descer o cavalete.
As duas se empenharam na nova função e,
junto dos demais serviços, mantiveram-se
ocupadas durante toda a tarde.
Samuel obtinha êxito na missão de manter
os pensamentos afastados de sua mais recente e
controversa decisão quando teve a visão periférica
capturada pelo ponto de luz que se destacava
dentre a paisagem cinzenta da janela de seu
escritório.
Com um balde nas mãos, Grace caminhava
por seus jardins.
Quando lhe dera permissão para recuperá-
los, o conde não imaginou que a esposa estava
falando de fazê-lo com o esforço dos próprios
braços e o suor da própria testa, mas sim de gerir
a presença de alguns funcionários para isso e,
talvez, cuidar de algumas flores. Entretanto, como
já se tornava costume, a jovem de cabelos
dourados voltava a surpreendê-lo ao tomar a tarefa
para si.
Se nem mesmo notar, o conde afastou a
cadeira, se levantando para observá-la mais
atentamente até onde era possível. Pelo que
percebia, ela caminhava do poço ao galpão.
“Já realizei tarefas muito mais complexas
em minha vida.”
Ele a imaginava repetindo a máxima se, por
uma completa idiotice, fosse questioná-la sobre
tais funções.
Também sem perceber, as extremidades dos
lábios de Samuel ergueram-se de leve ao pensar
nisso.
Ao pensar nela.
— Uhum. — William limpou a garganta,
entrando sem aviso prévio.
O conde quase saltou ao ser pego de
surpresa.
— Posso voltar depois, se estiver muito
ocupado. — Carter possuía uma suspeita muito
precisa do que, ou melhor, de quem o amigo
observava com tanta atenção.
— Ouvi uma carruagem chegando, e agora
compreendo o porquê — disfarçou Samuel,
buscando algum motivo para estar com os olhos
presos à janela.
— Interessante… — William caminhou até
o aparador onde deixou a própria cartola e passou
a servir-se de uísque.
— O que é interessante?
Granville estava tão desconcertado por ter
sido pego, que até mesmo caía em seus joguetes
verbais.
— Eu vim a cavalo. — O outro o brindou
com gesto e sorriso prepotentes, antes de apreciar
um imenso gole.
Desconcertado, e sabendo que continuar no
diálogo o traria apenas mais constrangimento,
Samuel caminhou até o aparador, erguendo o
queixo de forma aristocrática, como se nada no
mundo pudesse atingi-lo.
Nem mesmo ter sido pego espiando a
própria mulher.
Um silêncio profundo se instaurou entre os
dois antes que o conde terminasse de se servir.
— Seria mais fácil pedir que lhe
preparassem um quarto aqui — soltou o
comentário ácido antes de dar seu primeiro gole na
bebida.
Ofendido, Carter abaixou o copo.
— Caso não se recorde, foi o senhor a me
tirar de minha residência ontem, no meio da noite,
quando não tive qualquer dúvida se deveria ou não
o auxiliar. — Apertou os olhos. — Bons amigos
fazem isso, Granville, apesar de não possuir
certeza se sabe mesmo o que é ser um.
Exasperado, Samuel deixou o próprio copo
sobre o aparador e esfregou o rosto.
Sabia que tinha dito aquilo para espezinhar
William e devolver a provocação que o deixara
com o ego ofendido, mas não tinha o direito de ser
tão injusto.
— Sabe que não foi o que quis dizer.
Carter sorveu outro gole de uísque.
— Sua a sorte é que sei. — Depositou o
copo no aparador e, na sequência, um golpe de
parceria no ombro do outro.
— Mas vamos, me diga… O que o traz
aqui? — perguntou o conde, finalizando o uísque
também e retornando para trás da mesa.
Entretanto, para a surpresa de ambos, as
palavras que sempre fluíam com tanta maestria dos
lábios de Carter cessaram e o jovem não soube
exatamente o que dizer.
Era como se seu coração gritasse uma
resposta clara e objetiva: ver Vivienne novamente,
mas toda sua racionalidade se negasse a aceitá-la
e compartilhar.
— Gostaria de saber como se encontra o Sr.
Folkes — finalmente falou, após uma longa pausa.
De certa forma, também se tratava da
verdade. Ainda que uma parte reduzida dela.
Samuel apoiou os cotovelos na mesa e a
cabeça nas mãos.
— Ainda inconsciente. — A voz era grave e
carregava densidade.
— O Dr. Vich…
— Já fez tudo o que lhe cabia. Agora tem
vindo para acompanhar o caso, mas devo dizer que
se mostra mais preocupado em me acusar do que
de fato ajudar…
— Acusar-lhe? — Carter não compreendeu.
Puxou uma cadeira, e sentou-se diante do
conde.
— A criada de Grace não sabe informar
nada sobre a substância que pode ter causado mal
a Folkes, mas o Dr. Vich insiste nisso, dizendo que
será primordial para sabermos como tratar,
quando, na verdade, bem sei o que pensa…
Carter apertava os olhos, buscando
compreender.
— Pensa que foi envenenado, e que o
culpado sou eu! — Samuel bateu na mesa,
levantando-se furioso.
— Talvez ele apenas queira saber para
realmente…
— Ora, por favor, Carter, não me venha com
essa. — Granville sequer o deixou concluir. —
Apenas alguém que já teve de lidar com olhares de
desprezo e desconfiança o tempo todo
compreenderia o que falo. Um homem como você
jamais saberia como é. — Inconscientemente, o
mediu, de cima a baixo.
— Um homem como eu?
Carter realmente teve medo da forma como
deveria interpretar aquilo, principalmente sabendo
que, provavelmente, não o faria de modo
lisonjeiro se relacionasse tais palavras com
aquelas que Vivienne antes lhe dissera.
Samuel levou as mãos ao quadril e,
virando-se de costas, suspirou.
— Esqueça.
Afinal de contas, de que adiantava?
Mesmo que William dissesse compreendê-
lo duvidava que conseguiria, de fato, enxergar a
amplitude de seus demônios. Tudo o que poderia
conseguir com aquela conversa era inspirar a pena
de Carter, e isso jamais quisera. Carregava suas
culpas como maldições, mas nunca as admitiria
como fraqueza.
— Creio que seja melhor.
Utilizando-se da sensatez, Carter percebeu
que o diálogo não seguiria por caminhos saudáveis
à amizade dos dois se resolvesse insistir. O jovem
se levantou e caminhou até o aparador, de onde
retirou a própria cartola.
— Mande me chamar, se precisar de alguma
coisa.
Fez questão de enfatizar antes de se retirar.

Já era fim de tarde quando Samuel desejou


ir até o jazigo da família, na esperança de aliviar
ao menos em parte o peito tomado por sentimentos
nocivos ao conversar com aqueles que amava.
Mais tarde, como outra parte da estratégia,
planejava lançar-se ao abandono tendo, inclusive,
solicitado que notificassem à sua esposa que
jantaria nos próprios aposentos.
Entretanto, enquanto caminhava através dos
jardins, foi surpreendido ao notar movimentação
dentro do galpão. O lorde retirou seu relógio de
bolso do interior do casaco para verificar o
horário, e surpreendeu-se ao imaginar que Grace
ainda poderia estar trabalhando.
Obviamente, fora impossível criar apenas
teorias. Quando deu por si, afastava a porta de
madeira, observando o interior da construção.
O conde se surpreendeu por encontrá-lo
consideravelmente limpo e organizado, bem como,
aparentemente, vazio.
— Alguém? — chamou, mais por
precaução.
— Aqui! — Foi a voz da esposa a
respondê-lo, do mezanino.
Da porta, Samuel não conseguia vê-la, então
caminhou até as escadas, subindo os primeiros
degraus.
— O que ainda faz aqui?
A esposa, conforme pôde reparar, utilizava
um pesado casaco azul-royal sobre suas vestes de
dormir, o que evidenciava que já havia tomado
banho e deveria estar descansando ou aguardando
o jantar nos próprios aposentos.
Grace estava ajoelhada próxima a um canto,
ao lado de um amontoado de fenos. Colocou-se de
pé e batia as mãos para limpá-las enquanto
respondia:
— Boa tarde para o senhor, também.
Ele estava prestes a dizer alguma coisa,
quando o feno começou a se mexer, roubando-lhe a
atenção. Meio segundo depois, o gato saía de lá
em um pulo, miando animado.
— Ah, o Sr. Claws também parece feliz em
vê-lo novamente — ela o provocou. — Percebi
que mesmo podendo ficar na mansão, gosta de vir
para cá, e voltei para providenciar-lhe uma cama
quente. — Apontou para os fenos.
— Agora o trata como senhor?
— Combina-o muitíssimo, não acha?
Samuel abriu os lábios, mas ficou em
silêncio, sem saber como se expressar.
— Sei que não aprovou o nome — disse
Grace, no exato momento em que o felino desceu
as escadas, enroscando-se entre as pernas do
marido.
— Eu não disse isso — defendeu-se.
— Mas pude ver em seu rosto.
Samuel subiu os degraus que restavam,
colocando-se enfim no mezanino.
— Apenas me pareceu um tanto cruel.
Espero que o pobre tenha feito jus à tal nome. —
Apontou em direção ao gato que, a dado momento,
saía correndo pelo galpão, perseguindo algumas
mariposas.
— Ele matou três pássaros em três dias.
Merece o nome — argumentou Grace, desviando o
olhar para o felino que, então, lançava uma pobre
mariposa capturada pelo ar.
Samuel pareceu considerar o argumento por
alguns instantes.
— Se pode comprovar o que diz, me parece
justo. Difícil é quando se leva a fama sem possuir
a culpa. — As palavras foram suavizando-se em
seus lábios e a segunda frase soou mais como um
sussurro.
Granville não sabia por que havia dito
aquilo, mas, por mais que buscasse omitir,
inclusive para si mesmo, já havia percebido que
uma parte de quem era tornava-se vulnerável perto
dela em certos momentos.
O Conde Assassino.
Grace soube, imediatamente, que era à
alcunha e toda a história que esta deveria carregar
que o marido se referia.
Sentindo a dor e sofrimento se expandirem
no interior e ao redor dele, não pôde evitar de se
aproximar e tocá-lo no antebraço.
— Não sei do que o acusam, milorde. Mas,
em meu coração, não acredito que possa ter feito
algo ruim.
Uma alma verdadeiramente ruim não
carregaria a culpa e pesar pelos quais Samuel
sempre parecia sofrer.
O toque de Grace em seu braço poderia,
como sempre, de alguma maneira acalentá-lo, mas
Samuel se sentiu pior ao ouvir suas palavras.
Poderia não ser culpado daquilo que o acusavam,
mas a esposa se enganava ao pensar que não seria
capaz de cometer um ato hediondo, pois havia
realmente assassinado uma mulher.
— Não faça isso… — ele sussurrou,
balançando a cabeça em negação.
A voz era tão baixa, que carregava o tom de
súplica.
Grace se sentiu atraída pela voz, pelos
olhos de violeta e pelos traços dele, como sempre
ocorria, e se aproximou ainda mais, praticamente
unindo as faces.
— Não faça o quê? — ciciou.
— Não me faça sentir mais culpa —
Granville a viu observando seus lábios e, por mais
que o coração estivesse pesado, sentiu uma fagulha
se acender ao notar nos olhos dourados que ela o
queria. — Ou mais… — Grace voltou a fitá-lo,
como se o pedisse para concluir — ...desejo —
Samuel por fim confessou, no exato momento em
que voltou a beijá-la.

Dessa vez, Grace já se sentia mais segura


ao tentar reproduzir as carícias que o marido lhe
fazia durante o beijo, tanto com as mãos, quanto
com seus lábios.
A jovem não hesitou em mergulhar os dedos
nos fios pretos e macios e, muito menos, em
permitir-se corresponder aos movimentos lascivos
que a língua quente realizava dentro de sua boca.
Grace queria mais.
Algo em seu corpo, aliás, dizia que
desejava tudo.
Da mesma maneira, Samuel possuía
inúmeras razões para acreditar que a qualquer
minuto perderia a última capacidade que ainda o
levava a se conter.
Ele precisava tê-la.
Precisava ter Grace sob si, com cada parte
de quem era junto dele.
A força que parecia atraí-lo era tão ou mais
poderosa do que a própria gravidade, pois no seu
caso não seria suficiente apenas orbitar o corpo da
esposa.
Samuel desejava o choque, a colisão e, na
sequência, a fusão.
Ah, sim...
Ele precisava se fundir ao corpo de Grace e
senti-lo junto ao próprio, tornando-os apenas um.
As mãos do conde apertavam a cintura
marcada pela faixa do casaco, mas o toque logo
tornou-se mais exigente. Granville as desceu
suavemente até encontrar a curva traseira e macia,
aproveitando-se disso para puxá-la ainda mais
perto.
— Oh — Grace murmurou em deleite e
surpresa, ficando com o abdômen rente ao volume
rígido e masculino.
— Assim está melhor — Samuel sussurrou
com tom predatório, aproveitando que o fazia ao
pé do ouvido para morder o lóbulo da orelha dela,
algo que fez os joelhos de Grace derreterem.
A jovem apoiou uma das mãos no ombro do
marido e, com uma parcela extra de coragem,
levou a outra a apertá-lo de forma similar no
bumbum, sentindo a força do corpo dele.
Samuel soltou um grunhido em aprovação.
Era delicioso sentir-se reclamado pelo
toque dela.
Em um momento, os dois ainda estavam de
pé e, no seguinte, jaziam deitados sobre o
amontoado de fenos que a condessa levara mais
cedo para Claws, com os cabelos dourados
misturando-se às gramíneas secas.
Granville organizou instintivamente os
corpos, de modo que o ponto mais necessitado dos
dois colidisse e, mesmo sob as vestes, se
correspondesse em uma deliciosa fricção
estimulada por seus movimentos lascivos e
experientes.
Graças a Deus a experiência poderia ser
retomada após um bom tempo adormecida.
E felizmente poderiam ser ilimitadas,
também, pois aquela não se comparava em nada
com qualquer outra que Grace tivera a respeito de
intimidades.
— É tão gostoso… — ela murmurou em um
lamento algo que deveria ter sido um comentário
particular.
Um estímulo inesperado que Samuel aceitou
de bom grado, e o inspirou a aumentar ainda mais
o ritmo das investidas de sua rigidez contra o
ponto suplicante entre suas pernas. O conde desceu
os lábios e passou a beijá-la no pescoço, deixando
a língua percorrer, enquanto as mãos passaram a
resvalar a lateral de cada um dos seios.
Estava mais duro do que em qualquer outra
vez se recordava. O calor dela conseguia
transpassar o tecido e chegar até ele, fazendo-o ter
certeza de que apenas com as preliminares poderia
se desfazer.
— Já chegou ao clímax dessa maneira?
— Como…? Ah! — Grace não sabia se
havia compreendido muito bem a pergunta dele,
mas se surpreendeu com a investida mais firme
que fez o baixo ventre dela doer, tamanha a onda
de desejo que a percorreu.
O gemido alto fora mais do que ele pôde
suportar. Samuel deixou as mãos finalmente se
atreverem a investir contra a faixa do casaco,
desfazendo a amarração. O conde afastou uma das
laterais da peça sem deixar de beijá-la e, com
apenas o algodão da camisola o protegendo, foi
capaz de vislumbrar o seio de Grace, com seu
botão rijo de desejo se destacando, muito próximo.
Grace abaixou os olhos, sua respiração era
mais agitada do que se lembrava de tê-la qualquer
vez.
— No que está pensando? — perguntou.
Uma pulsação acusou a falta do ritmo mais
intenso nas investidas do marido, que de repente
estava muito concentrado.
— Eu a assustaria se dissesse tudo em que
estou pensando em fazer neste momento — Samuel
a fitou com o olhar mais selvagem que Grace vira
até então, e a jovem sentiu uma liquidez cálida e
viscosa lhe tomar a intimidade, escorrendo entre
suas pernas.
Era a essência do desejo.
— Faça. — Ela se apoiou em um braço,
puxando-o de volta para si com a outra mão.
Não sabia o que ele pretendia.
Tudo o que compreendia, era que precisava
daquilo. Precisava de mais.
E Samuel lhe entregou.
Ainda por cima do tecido, o conde apertou
o seio da esposa, sentindo seu calor, peso e
maciez, levando-a a arfar em sua boca enquanto
lhe beijava.
Grace sentiu que os corpos voltavam a
entoar o poderoso ritmo de investidas.
Em meio às próprias pernas, a condessa
sentia a masculinidade do marido provocá-la a
cada vez com mais intensidade e vigor. Beijos e
mãos se tornaram descontrolados. A respiração de
ambos acelerou. Os corações batiam a um ritmo
tão acelerado e consonante, que as pulsações
pareciam se mesclar.
— Preciso prová-la, Grace. — Quando
Granville voltou a falar, não foi apenas para dar o
breve comunicado, mas também para oferecer à
esposa uma condenação.
— Samuel! Ohh!! — ela gritou e gemeu o
nome do conde, que observou maravilhado à
entrega da esposa e a forma como os olhos
mantinham-se abertos e lânguidos em busca dos
dele, enquanto as mãos o agarravam como se
buscassem manter um contato com o mundo real,
para não se desfazer junto à própria essência.
Sem nem mesmo possuir conhecimento de
que represava em si tamanha energia, algo dentro
de Grace explodiu, destruindo-a enquanto a
carregava ao mais completo estado de prazer,
êxtase e torpor.
Os olhos dourados faiscaram, e algumas
faíscas o atingiram diretamente em seu coração.
Mais envolvido e excitado do que em
qualquer vez estivera, o conde sentia o próprio
corpo, junto ao dela, tremer.
O que era aquilo que sentia? O que havia
acontecido?
As perguntas que ressoavam na mente de
Grace, foram as mesmas que o lorde se fez.
— Eu… — Grace tinha a respiração
entrecortada e a face ruborizada. — O que foi
quê…? — Piscou, aturdida.
Na sequência, foi a vez de Samuel fazê-lo,
sem deixar de observá-la.
— Quer dizer que nunca… — Gesticulou
com a cabeça. Grace pareceu não compreender. —
Digo, o clímax, você nunca…?
— Aparentemente, não. — Grace tentou se
manter o mais tranquila possível, buscando não ser
assaltada pela timidez ou falta de jeito por sua
aparente ignorância. — Deveria?
Era só o que faltava. Mas uma esquisitice
de sua parte.
Apenas então, Granville se deu conta da
magnitude da experiência que havia apresentado a
ela, e que o fizera ali. Em meio aos fenos!
— Grace... — Ele se sentou, puxando-a
consigo pelas mãos. — Por todo desgraçado
mundo, onde é que eu estava com a cabeça ao
tratá-la desta forma?
Automaticamente, ele teve os pensamentos
carregados até Owen, seus modos grosseiros, e as
palavras baixas que os homens haviam
direcionado a ela no dia do leilão. Deitando-a
daquela maneira, no galpão, mostrava que não era
melhor do que qualquer um deles.
— Por favor, me desculpe por isso. —
Perturbado, se colocou de pé, sem saber como
poderia redimir-se ou mesmo o que poderia dizer.
O conde se virou de costas, apoiando-se no
guarda-corpo, com os ombros pesados e curvos
demonstrando sua frustração.
A mudança de postura era tudo o que Grace
menos desejava, e por isso também se levantou,
amarrando com pressa o casaco em torno do corpo
enquanto dizia:
— Por favor, não se desculpe. — Ela se
aproximou, tocando-o suavemente, fazendo-o virar
a face para encará-la. — Confesso que minha tarde
começou ruim… — Um sorriso tímido surgiu nos
lábios dela, junto de certo rubor na tez levemente
dourada. — Mas terminou muito melhor.
Frente ao elogio, mesmo que não desejasse,
foi impossível ao peito de Samuel não se inflar.
Após uma silenciosa troca de olhares,
permeada de significados, foi ele que voltou a
falar:
— Por que sua tarde começou ruim? —
desejou saber.
Ah, o arrependimento.
Grace sabia que havia dito aquilo por uma
boa razão, mas não pensara muito bem nas
consequências.
— Por nada. — Tentou dissimular, mas
engoliu seco em seguida, rápido demais.
— Grace? — Agora Samuel já sabia não
ser algo irrelevante, e se virava completamente
para ela, com os braços cruzados sobre o tronco.
Os dedos dela voaram para as saias, o que,
naturalmente, ele já compreendia como um
péssimo sinal. Um frio apontou em sua espinha.
— Tive um acidente esta tarde…
— Um acidente? — Granville uniu as
sobrancelhas. — E por que diabos eu não fiquei
sabendo? Que tipo de acidente?
Grace olhou para os lados por alguns
segundos. Sabia que se mentisse seria pior. Não
queria mais mentiras em seu casamento. Não mais
do que as necessárias.
— O tipo normal durante os afazeres de um
jardim, envolvendo uma ferramenta.
— Qual ferramenta?
— Não tem importância…
— Qual ferramenta, Grace? — Ele estava
irredutível.
A condessa suspirou.
— Uma foice.
— Como é?!
— Mas ninguém se feriu e, como pode ver,
nenhuma parte me falta. — Tentou amenizar a
atmosfera, movimentando os braços.
— Isso não é engraçado. — Granville
começou a caminhar de um lado para o outro, com
a respiração agitada. — Tem ideia do que poderia
ter lhe acontecido?
Em sua concepção, já conseguia vislumbrar
de diversas formas a participação de Cassandra no
episódio e um nervosismo absurdo começava a
percorrê-lo.
— Por favor, não faça isso — praticamente
em um murmúrio, ela pediu, fazendo-o estagnar os
passos para encará-la — Tudo o que menos desejo
é que terminemos mais uma noite discutindo sem
necessidade.
Que mais lembranças boas sejam
manchadas por memórias desagradáveis.
A suavidade e sinceridade nas palavras dela
o tocaram, mas Samuel precisava ser pontual.
— Por favor, vá para casa — pediu.
— Perdão?
— Não quero voltar a vê-la aqui sozinha,
você entendeu?
— Mas eu não estava sozinha no momento
do acidente. Estava com Vivienne — explicou.
— Entretanto, agora, quando a encontrei,
estava sozinha. Repito: tem ideia do que poderia
ter acontecido? — Samuel se aproximou
novamente, soando incisivo.
— E você tem ideia do que está fazendo
com o que nos aconteceu?
— O quê?
Aparentemente, eles falavam sobre
momentos distintos, mas o conde demorou a
compreender.
Decepcionada com a postura dele, mas
ainda mais chateada por mais uma vez ter
esperado do marido o tipo de parceria que desde o
mais tenro momento Granville havia deixado claro
que não poderia lhe ofertar, Grace se despediu.
— Com sua licença, milorde.
A jovem saiu a passos firmes do galpão e
foi surpreendida com a presença de Claws em
meio aos arbustos que ladeavam o caminho para
os jardins do fundo. A dado horário já havia
escurecido, mas a bruma suspensa encoberta pela
luz prateada do luar parecia lançar uma camada
tenra de iluminação sobre a propriedade.
O gatinho miou e parecia chamá-la
justamente em direção à área em que Grace não
possuía permissão para mexer. Não possuir
permissão para mexer, entretanto, não significava
que não possuía permissão para ir.
— Claws! — chamou o bichano, vendo aqui
e ali o tufo malhado que se movia com bastante
habilidade entre os espinheiros.
Quando os sons de galhos e folhas secas
finalmente cessaram, a visão de Grace foi
comprometida por uma treliça antiga e coberta de
hera que possuía como função oferecer
privacidade ao espaço adiante. Ela precisou
atravessar a barreira para enfim conseguir
verificar onde seu amigo tinha se enfiado.
— Oh! — Não conseguiu evitar se
surpreender com a revelação perante seus olhos.
Claws parecia aguardá-la enquanto lambia a
pata sentado sobre o jazigo mais oponente que já
vira.
Forjado em mármore negro, a peça era a
reprodução em escala reduzida da fachada de
alguma catedral, cercada por estátuas de anjos
feitas em granito branco que, pela ação irrefreável
do tempo, ostentavam marcas de água. Em suas
faces, as linhas definidas pelo constante sereno
pareciam fazê-las chorar.
“Se no caminho percorrido houve honra e
amor, este jamais terá sido curto demais.”
Grace leu com atenção o epitáfio gravado
na pedra.
Sem conseguir controlar a necessidade que
sentiu se aproximou, acariciando com a ponta dos
dedos os nomes de cada membro da família que
Samuel havia perdido e pelos quais visivelmente
sofria, registrados logo abaixo.
Seu luto intermitente.
Era esta a razão de não a permitir que fosse
até ali.
De alguma maneira, o conde sentia que
aquele espaço deveria ser apenas seu, e Grace não
desejou por sequer um instante julgá-lo. Sabia
muito bem como era aterradora a sensação. Como
era acreditar que não possuía mais nada ou
ninguém. Que se estava completamente sozinho.
A diferença era que ela havia aprendido à
força a lidar com o sentimento desde que se
conhecia por gente, pois com a família julgando os
dons com os quais nascera e mantendo-a como
uma pária dentro do próprio lar, jamais tivera
opção.
Para Samuel, porém, fora diferente, pois ele
havia pertencido a uma família. E não apenas no
sentido biológico, mas como uma realmente havia
de ser, pois os quadros que ela via pela casa e as
raras ocasiões nas quais lhe falava sobre os
Granville deixava claro que entre todos existira o
sentimento altruísta e carinhoso do qual ela apenas
ouvira falar.
Os olhos de Grace marejaram ao pensar na
dor do marido e no buraco profundo existente em
seu coração. Ao imaginar que agora fazia sentido
para onde ele ia, e em busca de que, quando,
certas noites, desaparecia no jardim.
Claws se aproximou das mãos da condessa,
roçando-se nos dedos delgados ao vê-la triste, na
nítida intenção de acalentá-la.
Mesmo em meio às lágrimas, Grace sorriu
com aquela demonstração de carinho, encostando
o próprio nariz no focinho gelado.
Afeto.
Toda e qualquer espécie sabia que o afeto
era capaz de curar.
— Você tem razão, meu querido.
Grace o segurou em seus braços e caminhou
em direção à mansão.
Durante toda sua vida, mesmo que não
soubesse o motivo, fora destinada a curar, e sentia
que as palavras da Sra. Burns agora, mais do que
nunca, faziam todo o sentido: talvez houvesse
mesmo um motivo muito específico para que o
destino, naquela manhã fria no porto, a tivesse
tirado das mãos de Owen e a levado até ali.

Samuel estava tão irritado consigo mesmo


pelo que havia feito e com a ideia dos resultados
que os últimos ardis de Cassandra poderiam ter
conseguido alcançar que não foi capaz de esperar
por mais tempo. Naquela noite, a ida até o túmulo
da família foi adiada. Por ora, tudo o que desejava
em seu atual estado de perturbação era esquecer.
Quão desgraçado poderia ser alguém que
faria qualquer coisa para conseguir estar em
qualquer outro lugar que não fosse a própria
existência?
Ao entrar em seus aposentos, sequer se
preocupou em retirar o casaco, correndo em
direção à porta omissa do cômodo anexo. Ele a
abriu com agilidade, praticamente correndo em
direção à mesinha na qual repousava o cachimbo
de marfim e o recipiente onde guardava o ópio.
Era apenas disso que precisava.
Uma nova dose de esquecimento.
Qualquer vazio de sensações era melhor do
que a opressão constante do martírio.
A primeira tragada aconteceu em um minuto
e a segunda veio antes mesmo que a fumaça
alcançasse seus pulmões.
Os resultados precisavam ser rápidos.
Samuel permitiu-se relaxar o corpo na
intenção de torná-lo mais suscetível ao avanço do
narcótico e praticamente se jogou na chaise long
de veludo negro.
Suspirou alto.
Daquela maneira, tendo o corpo relaxado,
foi impossível não se recordar que há pouco
menos de uma hora o tivera tão próximo ao de
Grace. Que fora o responsável por apresentar ao
dela a mais intensa de todas as sensações que o
corpo feminino poderia experimentar.
— Cretino! — recriminou a si mesmo pela
culpa que voltou a sentir e também por notar que
tais pensamentos não ajudavam em seus objetivos.
O conde voltou a se sentar e tragar com
vontade o cachimbo que trazia em uma mão
enquanto com a outra esfregava o pescoço.
Passados poucos minutos, sequer parecia
que os efeitos desejados estavam próximos de
serem alcançados quando escutou batidas
ressoarem na porta de seu quarto.
Assustado por apenas então notar que
permanecera com a porta do cômodo anexo aberta
e que a fumaça já se espalhava, Granville temeu
pelas sensibilidades da Sra. Plymonth ao vê-lo
naquele cenário.
Sabia há muito tempo que a governanta
partilhava da opinião do Sr. Folkes acerca de seus
hábitos e, especificamente naquele dia, não
desejava ter de ouvi-la dizer qualquer coisa sobre
o assunto, principalmente por não querer se
envolver em outra desavença.
Folkes, Carter, Grace…
Ultimamente, sua lista só aumentava.
O conde se levantou aos tropeços enquanto
se livrava do cachimbo, e retirou o casaco que a
dada altura deveria estar impregnado com o odor
forte da droga.
— Estou indo — avisou, enquanto se
ocupava em fechar a porta do quartinho e abrir
uma das janelas do cômodo principal para que
parte da fumaça se esvaísse.
Por um breve momento, se lembrou das
vezes em que ele e Frank bebiam escondido dos
pais e precisavam omitir as evidências, quando
jovens.
A memória até fez um riso saudoso surgir
em seus lábios, mas este foi seguido, como de
costume, pela sensação aterradora de culpa.
Se jamais poderia se recordar das
artimanhas pueris ao lado do irmão, o responsável
era somente ele. Os olhos de Samuel se abaixaram
no mesmo momento em que mais um pedaço de sua
alma há muito em frangalhos se partiu.
O conde se esforçou para caminhar até a
cômoda onde repousava a bacia e despejar nela
um pouco da água que ficava no gomil para lavar o
rosto e se mostrar minimamente apresentável à
Sra. Plymouth. Só Deus sabia as atenções com as
quais lhe cobriria se descobrisse estar largado às
favas durante a convalescência do valete.
Samuel aproveitou os dedos levemente
molhados e os passou nos fios longos, jogando-os
para trás. Em seguida, puxou as mangas da camisa
e o colete preto que vestia e seguiu até a porta,
acreditando verdadeiramente que, se tivesse sorte,
a governanta já teria desistido de esperar.
— Pois não, Sra. Plymou… — o
cumprimento morreu em seus lábios enquanto
abria a porta e verificava que, na verdade, tratava-
se de sua esposa a aguardá-lo.
— Não sou a Sra. Plymouth. — Grace se
recriminou logo em seguida por dizer o óbvio, mas
já o havia feito. — Eu… — Ela se viu mais
agitada do que imaginava estar, com os dedos
cruzando-se uns sobre os outros diante do vestido.
— Trouxe chá.
Virou-se ligeiramente de lado e apontou
para o aparador do corredor que geralmente ficava
apenas ornamentado por um vaso, mas sobre o
qual hoje Samuel via repousar uma bandeja com
uma chávena, um par de pires, xícaras e uma
pequena travessa com biscoitos.
O nariz dela se mexeu, como se estivesse
captando um aroma diferente, e ao reparar o conde
deu um passo em direção ao corredor, fechando
em um movimento seco a porta do quarto.
O barulho roubou a atenção dela que, de
fato, estava prestes a se prender naquele cheiro.
O gesto de Samuel em fechar a porta com
tamanho ímpeto a deixou ressabiada. Parecia-lhe
uma clara renúncia ao convite.
— Então. — Granville respirou fundo,
gesticulando na direção da bandeja. — Chá...?
— Apenas pensei que… — ela tentou
explicar, mas o gesto deixara mais do que claro
que ele não desejava saber. — Esqueça.
Virou-se, pronta para levar de volta a
bandeja, quando Granville a segurou (para a
surpresa de ambos) delicadamente em seu braço.
— Sinto muito se fui mal compreendido. —
Apertou os olhos, como se repreendesse a si
mesmo por, mais uma vez, ter feito algo que não
desejava. — A verdade é que, se ainda desejar,
também apreciaria partilhá-lo com você.
Ao final, as sobrancelhas de Granville
estavam unidas, como se realmente tivesse sido
difícil para si organizar as palavras de modo
gentil.
Sem perceber, Grace desviou os olhos
automaticamente por cima do ombro do conde, em
direção à porta fechada.
Percebendo o gesto, Granville mordeu o
interior da bochecha e completou:
— Apreciaria ainda mais se pudéssemos
fazê-lo em vossos aposentos.

Grace terminava de organizar o chá sobre a


mesinha de centro disponível em seu quarto
enquanto notava, através da visão periférica,
Granville caminhar de um lado para o outro em
frente à lareira.
O conde parecia agitado, como se
pensamentos o perturbassem mais que o normal.
Inevitavelmente, a jovem acreditava que o
fato passado entre os dois mais cedo poderia ter
relação com seu atual estado de espírito e sentia-
se culpada por isso. Era esta, aliás, uma das
causas que a fizera buscá-lo com aquela oferta de
paz.
Após visitar o túmulo da família de Samuel
e conhecer mais de perto o tamanho do luto e da
dor que o acompanhavam diariamente, tudo o que
sentiu foi que precisava encontrar alguma maneira
de aproveitar o pouco tempo que permaneceria em
Granville Hall para ajudá-lo. Para amenizar o que
fosse possível da solidão e sofrimento daquela
alma que sequer sabia, mas necessitava do calor e
proximidade de outra para se acalentar.
Em seu eterno luto, Samuel se afastava de
tudo e de todos, sem perceber que tal
comportamento apenas o afundava ainda mais na
armadilha que forjava em tristeza e solidão.
Se o conde desejasse e, mais além, se
permitisse, enquanto ela permanecesse ali
encontraria em Grace uma amiga.
— Aqui está.
A jovem apontou para as xícaras servidas
quando já se encontrava sentada no canapé de
capitonê.
Samuel a observou e agradeceu com um
gesto de cabeça. Ao se aproximar, fez o possível
para se acomodar o mais distante possível, na
outra extremidade.
— Sem café? — Ainda que sua postura
guardasse certa tensão, o comentário levemente
humorado a surpreendeu.
— Pelo estado em que se encontra, penso
que escolhi bem — respondeu, sorrindo.
A xícara de Granville parou a caminho da
boca.
Céus, era só o que lhe faltava.
Será que estava mais comprometido pelo
ópio do que fora capaz de avaliar?
— Pelo estado em que me encontro? —
perguntou, preocupado.
— Agitado, Samuel. — Grace notou que ele
atribuía às suas palavras mais significado do que
desejava ao dizê-las. — Percebo que está agitado,
e o chá deve ajudar a relaxar.
A respiração que ele nem notava prender
escapou.
Graças a Deus.
Granville sabia que não devia explicações
do que fazia ou deixava de fazer, mas já havia tido
tempo suficiente para compreender o trauma que
Grace desenvolvera em relação a homens e vícios
e não desejava, de forma alguma, que a esposa
soubesse de sua relação com o alucinógeno,
principalmente pelas chances que sabia existir de
enxergá-la assim.
Já havia demonstrado defeitos suficientes.
Não precisava de mais um.
O conde tomou um gole da bebida e notou
que esta desceu aquecendo-o de modo realmente
aconchegante. Gradualmente, sua respiração foi
ficando mais calma.
Granville a observou pela borda da xícara e
notou que a esposa também sorvia a bebida
enquanto o fitava com os olhos de âmbar.
O interior dele voltou a se aquecer, mas,
dessa vez, não apenas em decorrência do chá.
— Do que é? — Afastou a xícara dos lábios
para perguntar.
— Jasmins.
Ele ergueu uma sobrancelha e em seguida
cheirou o líquido.
— Deu-me chá de flores?
Grace não conseguiu conter uma risada.
Uma que ele classificou como nada menos
que adorável.
— Muitos chás são feitos de flores. Este é
um de meus favoritos, e fiquei muito feliz quando
Vivienne disse que tínhamos, mais cedo —
confessou, depositando a xícara na mesinha de
centro. — Deu-me, inclusive, vontade de preparar
eu mesma uma chávena a ela e à Sra. Plymouth.
— E isso nos leva à seguinte questão. —
Samuel repetiu o gesto, colocando a própria xícara
na mesa, voltando-se rapidamente a observá-la —
Por que você, Grace? Inclusive este, por que fez
questão de trazê-lo ao invés de solicitar que nos
servissem? Sei que não gosta de incomodar os
criados, mas teve um dia cheio no jardim, e deve
estar exausta.
Grace ficou tocada com a pergunta. A
preocupação parecia genuína. E ela também se
sentiu grata por ter sido o marido a voltar ao
assunto, pois agora teria a chance de falar o que
realmente desejava com aquilo tudo:
— Pode lhe parecer estranho ouvir isso,
sendo um nobre desde que nasceu, mas realmente
gosto de cozinhar. Além disso, realizar tarefas na
cozinha faz me lembrar da vida que tive antes de
chegar a Granville Hall.
A voz fora sutil, mas a menção à vida
anterior fez algo extremamente desconfortável se
revolver no interior de Samuel ao pensar que,
talvez, pudesse omitir algum tipo de nostalgia.
Ele limpou a garganta.
— Entendo — comentou, simplesmente. A
voz estava mais grave do que imaginava.
Grace prosseguiu:
— Quando era mais jovem, costumava
realizar a maior parte dos serviços domésticos em
minha casa, e confesso que isso não me fazia muito
feliz por sentir como uma injustiça, visto que meus
dois irmãos pouco realizavam, mas sempre gostei
das tarefas que envolviam o preparo de refeições
e, principalmente, ensopados e chás.
— Jamais a impediria, se desejasse… —
Samuel imediatamente tentou.
— Eu sei. — E Grace o brindou com um
sorriso doce e resplandecente; grato e em todos os
sentidos encantador. — E é justamente sobre isso
que gostaria de lhe falar.
A jovem condessa respirou fundo e ficou de
pé, mexendo por alguns instantes no dedo mínimo
da mão direita antes de prosseguir. E Samuel se
atentaria a este fato para compreender que ela
estava levemente nervosa, se não tivesse ficado
visivelmente abalado com a silhueta incandescente
que o fogo da lareira forjara junto de sua imagem,
por trás dos longos cabelos soltos e dourados.
Santo Deus, a composição era estupenda.
As chamas atrás dela tremulavam como se
acompanhassem o leve movimento de sua figura,
mas Samuel apertou os olhos afastando aquele que
obviamente havia sido um efeito conjunto dos
resquícios de alucinógeno em sua mente e seu
breve estado de fascinação.
— Minha família nunca foi afetuosa ou
realmente preocupada em relação ao meu bem-
estar, e devo dizer que, quando meu pai
praticamente forçou Owen a aceitar se casar
comigo, acreditei que não teria como me sentir
mais sozinha do que já me encontrava, não tendo
mostrado grandes resistências. — Grace engoliu
seco, e foi sua vez de começar a caminhar de um
lado ao outro. Desconfortável, Granville se mexeu
no estofado, porém, sem jamais deixar de encará-
la. — Não demorou para que eu descobrisse que
estar sozinha era muito melhor do que me
encontrar na companhia de um demônio. — Os
passos da jovem estagnaram, enquanto observava
ao chão. — Na maioria das noites, Doyle sequer
estava em casa e eu costumava encontrá-lo apenas
na fábrica, pela manhã, quando aparecia para o
trabalho — Os dedos de Grace começaram a se
entrelaçar ainda mais — Mas nas noites em que
ele retornava…
— Grace... — Granville fez menção de se
levantar, mas ela o impediu com um gesto.
— Por favor, me deixe prosseguir...
O pedido fora tão humilde e sincero, que o
conde engoliu a bílis que subiu por sua garganta e
esforçou-se para manter-se calado e respeitá-la.

— Sempre que terminava, me sentia tão


mal… — Grace observou o próprio corpo, com a
expressão do rosto transformada. — Tão suja, que
não conseguia evitar correr para os fundos de
nossa cabana para chorar e colocar para fora o que
estivesse em meu estômago.
Granville desviou os olhos e sua mandíbula
se apertou tão forte, que o conde sentiu uma
pontada atrás da cabeça. Suas mãos formavam
punhos cerrados e a vontade que tinha era de matar
alguém.
Alguém não: Owen Doyle.
Grace reparou nos gestos e também notou
quando o tom de chumbo se tornou praticamente
preto, com a aura expandindo-se, demonstrando
agitação e algo muito similar a um sentimento de
vingança e revolta, mas não era isso o que
desejava inflamar.
— Samuel… — Ela se aproximou,
deixando os joelhos de ambos praticamente se
tocarem, levando-o a ter de olhar para cima para
fitá-la. — Eu lhe contei isso porque… Sobre o que
houve esta noite… — Vacilou algumas vezes, até
finalmente conseguir dizer o que desejava: — Por
favor, nunca mais volte a se desculpar por ser
como é. Sei que não somos perfeitos e que nem
mesmo a forma como entramos na vida um do
outro é algo que sobre o qual se possa poetizar,
mas… por favor, não me faça sentir ingrata pelo
que agora tenho. — A segunda parte saiu
praticamente em um sussurro, mas viera do fundo
do seu coração.
O peito de Samuel se apertou como há muito
não acontecia ao ver aquele ser tão delicado lhe
demonstrar tamanha gratidão por tão pouco.
Por ser tratada com dignidade.
De repente, o tom mais escuro que antes se
infiltrava em meio à massa ao redor dele foi se
esvaindo, e Grace sentiu o coração se aquecer.
Ela estava certa.
Apesar de se mostrar frio e indiferente,
Samuel ainda possuía omisso um coração sensível,
e as próprias reações o entregavam, demonstrando
sua compaixão.
— Já não sou tão bom com as palavras
quanto um dia fui, Grace — o conde manteve-se
fitando-a quando, em um movimento natural, a
segurou em uma das mãos —, mas gostaria que
acreditasse que o faço com toda a sinceridade
existente em mim quando lhe digo que sinto muito
por tudo o que passou.
O encontro dos toques reverberou nos dois
corpos com o reconhecimento que já era corrente,
mas nunca esperado.
A condessa ergueu a mão livre e tomou a
liberdade de seguir o desejo que surgiu em seu
peito, levando-a a acariciar os cabelos longos e
escuros do marido.
— Em meu coração, sinto que podemos ser
um ao outro muito melhores do que imaginamos,
Samuel, se nos esforçarmos para fazer esse plano
dar certo.
Apesar de tudo, desejava deixar claro a ele
que se recordava bem do que a levara até ali e de
quais eram os objetivos finais dos dois. Tudo seria
muito mais fácil se ambos mantivessem o foco.
Isso, entretanto, não significava que durante o
percurso não poderiam buscar explorar o melhor
de suas versões. Ela o ajudaria a encontrar a
própria se Granville permitisse, pelo bem dele
mesmo.
Dar certo.
Samuel manteve os olhos de violeta presos
aos dela enquanto refletia sobre o horror que se
instalaria em sua face delicada se soubesse o que,
para ele, significaria realmente o sucesso da
empreitada.
Se Grace compreendesse que assim que
desse a vida a seu herdeiro lhe concederia a
autorização para que fosse de encontro à própria
morte.
Mesmo tocando-o, Grace notou que a aura
dele voltou a escurecer e tornar-se densa, o que
significava que os pensamentos que voltavam a
afligi-lo deveriam ser extremamente intensos e
lúgubres.
Nada poderia diferir-se mais do que
desejava.
A condessa deixou a mão direita correr
dentre os cabelos escuros e acariciar com certa
liberdade o maxilar firme e anguloso, segurando-o
para que Samuel não tivesse chance de deixar de
encará-la quando voltou a declarar:
— E por falar em nosso plano… gostaria de
lembrá-lo que estou pronta. — Sua voz possuía um
tom naturalmente sedutor, e seus olhos um brilho
que conseguia penetrá-lo.
Um dos dedos de Grace tomou a liberdade
de estender o toque, encontrando com delicadeza
os lábios de Granville. A respiração do conde,
automaticamente, se tornou mais agitada. Ela o
acariciou no inferior e foi preenchida com orgulho
quando, frente à sua singela carícia, o marido
fechou os olhos. Na sequência, Samuel apertou as
mãos que mantinham unidas e, encaixando a
esposa entre as próprias pernas, a puxou para mais
perto.
Ele não sabia o que acontecia naquele
quarto, ou mesmo se gostava da sensação por
saber tratar-se de uma realidade ilusória, mas
todas as perturbações pareciam demonstrar
menores capacidades quando buscavam atacá-lo
ali.
Naquele momento, por exemplo, sabia que
deveria preocupar-se com o que Cassandra faria
ao tê-lo tão envolto pelos desejos que sentia em
relação à esposa, mas era como se algo
simplesmente o impedisse de ter os pensamentos
completamente voltados à bruxa.
Era em Grace que pensava. Quem sentia;
respirava.
Naquele momento, suas atenções resumiam-
se exclusivamente a ela e na vontade imperativa
que o invadia de fazê-la sentir-se desejada como a
mulher incrível que era e do modo que merecia.
Adorada de todas as formas que conseguisse,
através de suas capacidades de fazê-la se sentir
dominada pelo prazer.
O conde aproveitou as carícias que a esposa
fazia em seus lábios e capturou seu indicador entre
eles, chupando-o e na sequência acariciando-o de
modo diligente e lânguido com a língua.
— Ohh…
A reação de surpresa e deleite escapou em
um sussurro da garganta feminina e Samuel gostou
da aprovação.
Depositou a outra mão da esposa no próprio
ombro e utilizou as duas, agora livres, para
segurá-la com posse no quadril e puxá-la ainda
mais em sua direção. A outra mão de Grace rumou
ao outro ombro para também apoiá-la. Granville
tinha a face praticamente colada em seu monte de
vênus e inspirou o ar com força e sofreguidão.
O cheiro dela era divino, e ali ficava mais
intenso, denunciando que estava excitada.
À medida em que as mãos de Grace
tomavam liberdade para explorar através do
pescoço e cabelos dele, as do conde faziam o
mesmo, até finalmente alcançarem as curvas
traseiras e voluptuosas da esposa.
— Grace? — ele murmurou com a voz
rouca, inebriado pela proximidade em que estava
da nascente de sua essência.
Já fazia tanto tempo…
Tinha praticamente apagado em sua
memória a lembrança de como era maravilhoso
sentir o sabor de uma mulher.
— Sim? — Grace olhou para baixo e o viu
com os olhos erguidos para si, enquanto as mãos
seguiam firmes em apertá-la.
— Desejo prová-la — repetiu a fala que a
fizera perder o controle mais cedo.
Novamente, ela sentiu as pernas
bambearem, mas as mãos firmes de Samuel
seguiam lá para segurá-la.
— Desejo que me prove — ela
praticamente murmurou o aceite, balançando a
cabeça.
Porque Deus, sim, ela desejava! Por mais
que não soubesse exatamente o que aquilo poderia
significar, seu coração palpitava tão forte e
correspondia de modo tão inebriado a cada
estímulo dele que se mostrava completamente
aberta a qualquer coisa que Granville quisesse
fazer.
Samuel brindou a permissão com um som
masculino e gutural, enquanto suas mãos voaram à
frente do casaco da esposa, desfazendo
rapidamente o laço. Menos de um segundo depois,
a peça pesada já estava no chão.
— Se estiver com frio… — Voltou a agarrá-
la no quadril, puxando para perto.
— Não estou — Grace assegurou,
afundando as mãos nos fios macios.
E realmente, não parecia estar.
Agora, tocando o corpo delicado que
permanecia omisso apenas pela camisola de
algodão, Granville voltava a se surpreender com o
fato de que sua esposa era adoravelmente cálida.
Seus dedos formigaram com a vontade de sentir a
pele diretamente contra a sua, e ele não demorou
por corresponder ao anseio, puxando o tecido das
saias até que fosse possível tocá-la na altura dos
joelhos, e em seguida em suas coxas...
— Ahhh…
Senti-lo diretamente em sua pele,
obviamente, também reverberou reações no corpo
dela, e Grace não foi capaz de conter um gemido
satisfeito. Apesar de levemente frio, o toque de
Granville parecia oferecer a si exatamente o que
precisava, como se as temperaturas se
equilibrassem de forma magistral.
Ao mesmo tempo em que ia subindo as
mãos, Samuel mantinha-se roçando o nariz de
encontro ao delicado monte de vênus e, desta
forma, seguia se inebriando ainda mais com as
carícias que a esposa fazia em seus cabelos. Os
movimentos se conectavam enquanto o prazer
crescia e a expectativa também.
— Você é tão quente — sussurrou ao apertar
as coxas torneadas com um pouco mais de
intensidade — Tão macia...
Grace choramingou e sentiu que entre suas
pernas um ritmo íntimo e conhecido de pulsar
desejoso se instalava. Já se sentia úmida lá
embaixo, em um lugar muito próximo de onde o
marido mantinha a face.
— Da última vez que estive em seu quarto,
disse que gosta quando eu a beijo, não é verdade?
— A voz de Samuel soava tão rouca e lânguida
que nem mesmo ele reconheceu.
Grace balançou a cabeça, engolindo seco.
Os polegares dele se esticaram, um em cada
extremidade da virilha e, a dada altura, Grace o
via praticamente desnudá-la frente aos próprios
olhos. Ele a acariciou languidamente nos pontos
exatos entre as coxas e a intimidade, e seu corpo
estremeceu.
— Vou beijá-la aqui enquanto a provo em
sua essência… — A mão esquerda de Granville se
meteu entre as pernas unidas, e um dedo longo
percorreu a extensão do sexo cálido, dentre os fios
macios e molhados.
Grace voltou a gemer e suas pernas
vacilaram mais desta vez, fazendo Granville ter de
afastar a outra mão para apoiá-la. O conde ergueu
o rosto e a viu extasiada, observando-o com os
olhos atentos, esperando ansiosamente por seu
próximo movimento.
Com a experiência de anos, sabendo
exatamente onde deveria tocar, Samuel manteve-se
encarando-a quando levou o polegar a acariciá-la
na pérola intumescida de seu sexo, despertando-a
para uma torrente absurda de prazer. Enquanto a
massageava, deliciando-se na expressão angelical
de mais puro deleite, o dedo médio do conde
permaneceu ameaçando sua entrada por alguns
instantes, apenas instigando.
— Huumm — Grace choramingava em tom
de lamento, completamente perdida.
Respirar estava difícil. Raciocinar, uma
tarefa impossível.
Tudo o que ela fazia era se doar. Entregar-
se ao mais pleno prazer.
Os olhos de Samuel não deixavam de fitá-la
por um momento sequer e estavam tão escuros e
predatórios que Grace jurava tê-los vistos
enegrecer. A imagem era muito para si. Ela sentia
que estava prestes a se partir, como acontecera no
galpão. Que, se os mantivesse presos aos dele, na
expressão de posse e orgulho que o conde
ostentava ao levá-la de encontro à própria
satisfação, iria se desfazer.
Foi inevitável fechá-los.
— Olhe para mim, Grace. — A voz do
conde ressurgiu antes que ela concluísse o
movimento, e soou com uma ordem. — Quero que
veja o que realmente merece. Ser adorada, e
receber todo o prazer.
No momento em que voltou a fitá-lo, Samuel
segurou delicadamente a perna esquerda da esposa
com uma mão depositando-a sobre o próprio
ombro. A outra seguiu apoiando-a e a condessa
teve certeza de que iria desfalecer ao finalmente
compreender qual era sua intenção.
Trabalhando em uma fábrica, era claro que
já ouvira buchichos sobre todo o tipo de coisas
que homens e mulheres faziam entre quatro
paredes para encontrar satisfação, mas jamais
havia experimentado algo daquele tipo. Owen
jamais faria algo assim, voltado para sua
satisfação.
Os lábios de Samuel encontraram seu sexo
no exato momento em que um longo dedo a
penetrou.
Firme como em todos os seus movimentos
demonstrava ser, Granville a fez refém de suas
carícias extremamente diligentes e bem
articuladas, ritmando um fluxo contínuo de beijos,
chupões e estocadas.
— Samuel…! — A voz de Grace se esvaiu.
Sua respiração estava por um triz. Sentia que o
coração batia tão forte que a qualquer momento,
junto ao próximo gemido, poderia lhe escapar.
— Deixe-me prová-la — ele voltou a pedir
de encontro à pele sensível, sem parar por um
instante sequer de provocar.
— Como…? — ela murmurou fino,
praticamente suspirando.
Como o prazer a deixava com os
pensamentos anuviados, demorou um pouco para
que entendesse o que ele queria dizer, mas o
significado das palavras a tomaram em cheio
quando o conde declarou:
— Goze em minha boca.
O pedido feito em sua forma mais crua, com
Samuel a encarando, fora muito além do que a
pobre poderia suportar. No instante seguinte,
sendo apoiada pelas duas mãos largas do marido
enquanto o corpo era invadido por uma torrente
sem precedentes de tremores e convulsões, Grace
experimentava o ápice do prazer pela segunda vez.
E, conforme suplicava o próprio desejo, o
conde sorveu até a última gota dela para si.
Tornou-se ébrio com seu sabor, mas não se
ateve ao perigo que poderia representar se
cometesse o engano de se permitir envolver por
aquele novo vício.
— Eu preciso de você — Samuel
praticamente implorou ao retirar cuidadosamente a
perna de Grace de seu ombro, mas este foi o
último movimento delicado que teve.
Na sequência, o conde se levantou com
tamanha pressa que chegou a surpreendê-la,
agarrando em sua nuca para tomar os lábios da
esposa com o beijo mais desesperado, profundo e
faminto que ela já provara.
Grace se agarrou ao colete dele com a
mesma intensidade, e a entrega com a qual se
dispôs à carícia também foi idêntica.
Não sabia ao certo o motivo, mas mexia
com seu baixo ventre reconhecer que encontrava
em sua boca resquícios do próprio sabor. O sabor
que ele havia buscado. Que havia feito questão de,
com tamanha posse, reclamar.
— Vamos para a cama — Granville
murmurou ao mesmo tempo em que a puxou pelo
quadril, roçando-a firme contra o próprio desejo.
Estava duro e inchado.
Estava pronto, clamava, e o peito de Grace
voltava a se inflar com orgulho ao saber que era
por si.
O conde a conduziu em meio a carícias e
beijos, até que ela finalmente sentiu as pernas
contra o colchão. Quando os passos cessaram, ele
se afastou apenas o necessário para esticar as
mãos enquanto a encarava e passava a afrouxar o
laço do decote de sua veste.
Os dedos de Grace fizeram um caminho
similar até os botões do colete, e Samuel fechou os
olhos ao ser tocado novamente daquela maneira,
depois de tantos anos, por uma mulher.
Estava pronto para afastar a camisola e
deixar a peça ir de encontro ao chão, quando
sentiu que Grace terminara e levava os dedos a
fazer o mesmo em sua camisa, o que o fez se
recordar do que encontraria se o fizesse: a dose de
veneno pendurada em seu pescoço.
Imediatamente, a segurou em suas mãos.
— Apenas o colete — pediu, buscando
manter o tom de voz o mais afável possível.
Obviamente, o pedido a pegara de surpresa
e causara em Grace certa decepção, uma vez que
também possuía seus anseios, mas a condessa
buscou se lembrar de seu maior desejo naquela
noite.
Além disso, durante cada momento
Granville havia demonstrado tamanho zelo e
cuidado consigo que não se sentia capaz de lhe
negar um pedido.
— Está bem. — Demonstrou respeitá-lo,
voltando a segurar as laterais do colete para
afastá-las e deixar a peça cair.
Samuel não disse em palavras, mas ela foi
capaz de enxergar a gratidão em seus olhos.
O conde fez o mesmo, afastando as laterais
da camisola que não tardou a escorregar sobre a
pele macia, fazendo charme até, finalmente,
também ir de encontro ao chão.
A meia-luz da lareira era responsável por
iluminar o quarto e fazia o tom levemente
bronzeado da pele dela se destacar ainda mais.
Samuel precisou se afastar em um passo
para observar a totalidade da composição.
— Santo Deus, olhe só para você…
Havia admiração em seu olhar e voz
arrastada, é verdade, mas Grace também conseguiu
captar uma parcela de culpa, e não se enganava.
Naquela pequena pausa, observando-a em
todo o seu esplendor, tudo em que Granville se
tornou capaz de pensar era no que um desgraçado
como ele fazia com uma benção como aquela. Se
conseguiria mesmo macular com seu corpo imoral
e envolto em decadência toda aquela perfeição.
Desesperada pela perturbação que sentia
novamente ocupá-lo, Grace caminhou até ele para
não apenas tocá-lo, mas beijá-lo com todo seu
fervor.
Ela buscou se lembrar do que a Sra. Burns
dissera sobre ter consciência de seus poderes, e
soube que precisava começar a exercer bem ali
sua magia com mais intenção. Mais do que nunca,
percebia: Samuel precisava de si.
E a intensidade com a qual a jovem bruxa o
fizeram fora tanta e tão real, que não demorou para
envolvê-lo. Os pensamentos ruins voltaram a se
afastar da mente do conde, tornando-se distantes e
dissolutos como nuvens escuras e tempestuosas se
tornam quando sopradas pelo vento.
Carregado novamente para o estado de
prazer e torpor, as mãos de Granville voltaram a
agarrá-la finalmente sem qualquer empecilho, e
Grace gemeu em sua boca ao tê-lo explorando com
o toque um de seus seios. Uma liberdade há tanto
almejada pelos dois.
Estava dando certo.
O coração dela acelerou ainda mais frente a
felicidade que a abateu ao perceber.
Samuel acariciou os mamilos rijos que, para
seu deleite, agora sabia reconhecer em cor e
textura…, mas faltava provar o sabor. Porém, foi
justamente na intenção de corrigir essa falha que,
antes mesmo de Grace perceber que estava prestes
a fazê-lo, o marido capturou um deles com a boca.
— Ah, sim! — Ela o apertou na nuca,
suplicando por mais.
Os fios escuros se emaranhavam entre seus
dedos, acariciando sua pele tanto quanto ele lhe
fazia com a língua. Agora que sabia dos talentos
que o marido segredava, era de muito bom grado
que permitiria ser feita refém.
E foi em meio a este movimento que
Granville passou a delicadamente deitá-la sob si,
acomodando o corpo firme sobre o dela.
— Abra um pouco mais as pernas. —
Precisou retirar os lábios do seio cálido ao pedir.
Para surpresa de Grace, entretanto, quando
ela o fez, não foi contra tecido que sentiu o ponto
mais sensível de sua feminilidade se esfregar.
— Quando você…?
— Das habilidades que não perdemos com
o tempo. — Samuel se permitiu sorrir
discretamente, enquanto terminava de empurrar as
calças com os próprios pés.
Aquele era um sorriso tão raro quanto
devasso, que ela não conseguiu julgar como nada
menos que avassalador.
E Grace buscou, de verdade, ignorar a
maneira como tal gesto pareceu atingir-lhe bem na
altura de seu coração, mas soube imediatamente
que nem mesmo a bruxa mais preparada do mundo
teria tanto poder.
O conde investiu novamente, roçando o
volume rijo contra a sua entrada, deixando-a ainda
mais ciente de seu tamanho e desejo enquanto
seguia com as mãos e lábios ocupados em seu
corpo.
— Grace, se eu não conseguir… — Antes
mesmo de concluir a fala, o corpo de Granville
voltou a investir sozinho contra o seu e com ainda
mais intensidade, como se protestasse contra a
demora.
O de Grace pareceu corresponder, pois
passou a se remexer com bastante ansiedade para
recebê-lo.
— Talvez eu não possa… — Outra
investida e o conde grunhiu. O esforço que fazia
para se controlar era tamanho que ela era capaz de
notar através da veia saltada em seu pescoço. —
Ah, maldição!
— Diga. — Ela o segurou delicadamente no
rosto, desejando saber o que o preocupava.
Seus lábios soltavam pequenos murmúrios
entrecortados e satisfeitos pelos extremos que se
esfregavam abaixo.
— Não sei se conseguirei lhe dar prazer, ou
mesmo ser delicado. — Ela notou que suor já
escorria na fronte dele, lhe umedecendo os
cabelos. — Já faz muito tempo que não tenho uma
mulher — finalmente confessou, sentindo-se
satisfeito por surpreendentemente não ter a mente
invadida com memórias do motivo.
A maneira como mais uma vez demonstrava
preocupar-se consigo deixou Grace emocionada.
Ela aproveitou que segurava a face do marido em
suas mãos e o puxou para um novo beijo. Em
seguida, levou os lábios até a orelha de Sam para
tranquilizá-lo em um sussurro:
— Permita-me apenas senti-lo.
E ele permitiu.
Tão forte quanto era a necessidade que o
tomava, Samuel afundou-se na carne macia da
fenda apertada, reclamando-a como sua.
O gemido de satisfação foi uníssono ao som
dos corpos colidindo, entregues ao prazer, e os
olhares de violeta e âmbar se encontraram no
exato momento no qual a realidade fora do quarto
parecia estar suspensa, como a constante bruma
dos jardins.
— Agora eu sinto você — Grace voltou a
murmurar, enquanto percebia a maneira como seu
interior se acostumava com a invasão e parecia
reconhecê-lo de modo como jamais imaginou ser
possível.
Ela sentia uma conexão.
Samuel fechou os olhos ao ouvi-la, e cerrou
os dentes.
Estar dentro dela era estupendo. Conforme
seu toque já deixava claro, o calor do corpo de
Grace o entorpecia em sua nascente e seria preciso
se concentrar se não quisesse se perder cedo
demais, e por vários motivos.
Estava inebriado.
Se para Grace a experiência era nova, para
ele era um reencontro para o qual, apenas então,
compreendia que não estava preparado. Acontece
que aquela não era apenas a primeira vez que
voltava a estar com uma mulher após tantos anos…
Com a união dos corpos, o calor dela conseguia
penetrá-lo tão profundamente, que se tratava da
primeira vez em uma década que Samuel voltava a
se sentir realmente vivo.
Quando o conde finalmente encontrou forças
para se movimentar sem temer se desfazer, a
primeira estocada foi seguida de outras em um
ritmo vigoroso e sequencial no qual Granville
realmente parecia entregar-se a uma postura muito
mais primitiva do que aquela que geralmente o
comandava.
A virilidade com a qual batia ao fundo de
seu ventre era algo extremamente novo para Grace,
mas também de um prazer absurdo, do qual ela não
desejava se queixar.
O que Samuel fazia com seu corpo era…
gostoso.
Nenhuma outra palavra poderia descrever
aquela mistura de sensações que as intimidades
conduziam abaixo enquanto os beijos lânguidos e
toques ansiosos prosseguiam acima.
Nada parecia ter ordem se analisado de
forma isolada, mas o todo que seus corpos
produziam unidos possuía uma cadência
esplendorosa.
Samuel possuía uma cadência
esplendorosa.
Mostrava-se um amante maravilhoso que,
apesar das próprias ressalvas, sabia exatamente o
que deveria fazer para agradar uma mulher.
Para agradar sua mulher.
Ela estava ali como sua esposa, e ele, como
seu marido.
A intimidade de Grace contraiu com o
pensamento de posse, e seu desejo, como se fosse
possível, duplicou.
— Huum… — Granville sentiu o
movimento e estocou ainda mais fundo,
correspondendo com igual intensidade. — Faça de
novo — pediu.
Grace tinha a voz mole de prazer ao
confessar.
— Eu não sei como… — Mordeu o lábio.
— Apenas estava pensando em algo que me
agradou e... Ohh! — Perdeu o raciocínio com os
lábios de Granville em seu pescoço.
— Se a levou a fazer isso é porque lhe dá
prazer, Grace... — O conde empurrou mais fundo,
fazendo-a soluçar. Subiu os lábios para ser a vez
dele sussurrar com a voz grave em seu ouvido: —
Pense de novo. — Mordeu o lóbulo delicado,
deixando-o preso entre os dentes.
E apenas o pedido já foi suficiente para que
Grace sentisse a onda absurda de desejo percorrê-
la acima da outra, levando-a a contrair seu sexo,
apertando-o lá dentro.
— Hum, minha nossa... Isso! — Samuel
gemeu mais alto, deixando claro que já perdia o
controle.
Não apenas a reação física, mas a ideia do
que ela poderia estar pensando alimentava de tal
forma sua imaginação que o destruía.
Além disso, já fazia tempo demais. E seu
corpo, por mais ávido que estivesse em aproveitar,
já não conseguiria resistir por mais tempo à ideia
de desfazer-se no calor de uma mulher.
No calor dela.
Grace sentiu quando os movimentos dele
foram se tornando ainda mais intensos e
acelerados. Acontece que, para a própria surpresa,
a jovem já se encontrava tão ou mais próxima do
ápice quanto ele.
— Samuel? — A voz não passava de um
gemido lamurioso, e o quadril se remexia ao
buscá-lo.
— Sim? — Granville fechou os olhos
novamente ao ouvi-la chamar seu nome.
— Podemos ir juntos?
— Oh, Deus. — Granville a agarrou,
apertando o corpo de Grace contra o colchão para
afundar-se contra ela o máximo que a física
permitia e oferecer-lhe a resposta na prática.

Os dois ainda possuíam as respirações


agitadas quando Grace o sentiu se retirar de seu
corpo e, em seguida, se apoiar nos antebraços para
observá-la. Eles se encararam por alguns segundos
em completo silêncio, até que a jovem notou que o
marido parecia incerto, como se ponderasse sobre
fazer ou não uma pergunta:
— Pergunte — decidiu ser direta.
— Como?
— Consigo ver em seus olhos que possui
uma dúvida.
Granville uniu as sobrancelhas,
impressionado e também ligeiramente sem jeito
por ter sido pego, mas não se omitiu.
Grace notou que o olhar dele se tornou mais
intenso e, de repente, sentiu que apenas esse fato já
era capaz de fazê-la ter de deixar os lábios
entreabertos para respirar.
— Estava me perguntando sobre os
pensamentos que poderiam ter lhe causado tais…
reações.
No mesmo instante, o conde a notou
engolindo seco enquanto suas bochechas eram
adoravelmente cobertas por rubor. O que era
estimulante, visto que aumentava em muito sua
curiosidade.
O que faria uma mulher nua corar? Apenas
um pensamento muito indevido e tentador.
— Eu… — A palavra saiu em meio a uma
respiração agitada.
Samuel voltou a oferecer aquele sorriso
singelo e absurdamente cativante.
— Se não se sente à vontade em
compartilhar, não é necessário que o diga.
Demonstrou mais uma vez respeitá-la,
contentando-se com a ideia de que teria de
satisfazer-se com a própria imaginação. Em
seguida, se virou para o lado, mas apenas o
suficiente para que pudesse puxar um pouco do
acolchoado sobre a cama e cobri-la.
— Sei que não sente tanto frio, mas não é
sensato arriscar um resfriado.
Os olhos de Grace mantinham-se fixos nele,
impressionados com mais aquele gesto de cuidado.
— Não vai se cobrir? — ela perguntou,
vendo que os cuidados não se estendiam a ele
mesmo.
Granville mordeu os lábios e se sentou,
coçando a nuca antes de respondê-la com
sinceridade:
— Dormirei em meus aposentos, Grace.
— Ah… — Ela o seguiu no movimento,
apoiando as costas na cabeceira, trazendo a
coberta junto de si.
Mais uma vez, os dois se fitaram em
silêncio e Samuel voltou a ficar impressionado. Os
cabelos dourados estavam desconexos e caíam
sobre a face e ombros dela, seus lábios vermelhos
estavam inchados e as bochechas ainda ostentavam
algum rubor.
Deus, ela era tão bonita.
A última coisa que pretendia após tamanho
ato de entrega daquele ser tão precioso, era
magoá-la.
— Sinto muito se…
— Está tudo bem. — A condessa o tocou
delicadamente no ombro, oferecendo um sorriso
sincero junto ao gesto.
E, mais uma vez, Granville notou que ela
buscava fazer dar certo, esforçando-se tanto
quanto possível.
— Obrigado.
Tranquilizava-o saber que ela o respeitava a
ponto de não desejar saber seus motivos, quando
esses, obviamente, tinham a ver com a certeza que
possuía de que, ao sair por aquela porta, seria
aplacado por toda a fúria de Cassandra. Suas
perturbações poderiam não conseguir corroê-lo
com a mesma intensidade ali dentro, por mais que
não compreendesse o motivo, mas sua
racionalidade não estava perdida e, apesar de
sequer imaginar o que havia acontecido para a
desgraçada não os ter conseguido interromper
daquela vez, algo em seu interior o dizia, ou
melhor, o alertava para se preparar pelo que
estava por vir.
No mínimo, a infeliz o presentearia com os
pesadelos mais pavorosos que qualquer ser
humano poderia ter, e apenas a ideia de forçar
Grace a acordar assustada com sua aflição o fazia
descartar qualquer possibilidade de passar a noite
ali.
Os pensamentos sobre o que poderia
aguardá-lo começaram a fazer retornar o tom
escuro à aura de Granville e Grace notou ao
também vê-lo se levantar para recolher as próprias
calças no chão. Na esperança de que poderia
afastar mais uma vez o sentimento ruim que
percebia novamente desejar retomá-lo, a jovem
confessou em voz tímida, sem possuir coragem de
observá-lo em tão íntimo ato:
— Eu pensava em você.
Os dedos de Samuel paralisaram nos
botões, quando já voltava a se vestir.
— O quê?
Grace respirou fundo, tomando coragem
para finalmente voltar a encará-lo ao esclarecer:
— Há pouco, me perguntou no que eu estava
pensando quando aquilo aconteceu e, bem… —
Ela deu ombros, pois realmente não havia outra
forma de dizer. — A verdade é que senti meu
corpo se tornar mais sensível quando pensei em
você.
— Hum. — Granville não conseguiu evitar
o som enquanto comprimia os lábios, buscando
fingir-se controlado.
Era melhor do que deixar escapar um
gemido.
Outra coisa que não conseguiu evitar era
que o pau lhe pulsasse imediatamente sob a mão,
ao ouvir sua esposa confessar que a própria
intimidade fizera o mesmo ao pensar nele.
Entretanto, apesar das tentativas de disfarce,
Grace notou a maneira como os olhos do marido
denunciavam uma nova onda de desejo.
— Samuel… — praticamente sussurrou seu
nome.
Mas Granville percebeu que precisava
começar a estabelecer imediatamente seus limites.
Desejar sua esposa poderia ser um agradável extra
para a realização de seu plano, mas sentir-se
extasiado daquela forma por saber que ela fazia o
mesmo era demasiadamente perigoso.
E, tão perigoso quanto apegar-se a ela,
poderia ser considerado o movimento contrário.
Na verdade, ele seria um desgraçado cruel e
perverso se não considerasse que a segunda opção
seria ainda pior.
— Eu preciso realmente ir. — Abaixou-se
para recolher o colete do chão e, enquanto ainda o
vestia, caminhou em direção à porta. — Durma
bem, Grace.
Grace não conseguiu acompanhar a
repentina mudança de postura, mas, tão menos, ser
rápida o suficiente para formular outra resposta:
— Você também.
Os votos poderiam ser sinceros, mas
nenhum dos dois realmente o faria.

Samuel praticamente correu até os próprios


aposentos. Assim que entrou, fechou a porta e
permitiu-se apoiar as costas contra a madeira fria,
buscando realocar os pensamentos no lugar.
Não fora apenas sexo.
A certeza estava registrada em sua mente,
assim como o perfume e calor de Grace pareciam
permanecer impregnados em sua pele.
Ele fechou os olhos e, por um instante, foi
capaz de sentir a presença dela ao seu lado. Como
se a parcela de vida que tivesse voltado a sentir
quando estivera dentro dela continuasse a brilhar,
ainda que timidamente em seu interior, carregando
parte de Grace consigo.
Algo absurdo e absolutamente assustador.
A cabeça do conde se abaixou e seus dedos
se enfiaram nos cabelos. Em meio às recordações
do que haviam feito, as perturbações voltaram a
aparecer, lembrando-o de que não poderia se
apegar a nenhum momento com ela, nem mesmo à
mínima parte dela.
— Você não pode estar aqui… não pode
estar — murmurava, buscando afastá-la dos
próprios pensamentos.
— Mas eu estou.
Ainda voltados para o chão, os olhos de
Samuel se abriram ao ouvir a voz sinistra e
metálica. Uma rosa vermelha jazia entre seus pés.
Como se os residentes da Granville Hall
tivessem se tornado espectros ao invés de ser esta
a própria realidade, Cassandra tentou atingir a
cada um e tornou-se um espírito consumido pela
fúria ao notar que, assim como na primeira noite
que tentara fazer o mesmo à Grace, falhava.
A governanta e sua sobrinha pareciam
levadas ao estágio mais profundo e imperturbável
do sono quando a bruxa tentou persuadi-las a fazer
algo capaz de chamar a atenção do casal reunido
no quarto e, ao redor do corpo convalescente do
Sr. Folkes, uma luz delicada e alva parecia flutuar,
como se auxiliasse em seu processo de cura,
impedindo-a até mesmo de chegar mais perto.
Cassandra se materializou na figura
esquálida e pálida que tomava forma quando
desejava se lembrar como era se sentir o mais
próximo que conseguia de uma mulher.
Com passos lentos caminhou através do
corredor da ala privativa enquanto as unhas longas
e escuras arranhavam o papel de parede de
estampa adamascada. Os olhos de íris negras e
leitosas seriam suficientes para fazer qualquer um
que a encontrasse perceber que a figura macabra
não pertencia a este mundo, mas os cabelos longos
e pretos atribuíam um novo lembrete, flutuando ao
redor da face esquelética em um movimento
sinistro.
Ao se aproximar da porta do quarto de
Grace, a bruxa escutou as vozes da jovem praga
que infestava seu jardim e de Samuel se mesclando
em um diálogo ameno, e a fúria em seu interior se
inflou.
Já que não seria possível interrompê-los de
modo indireto, perturbando-os como apreciava,
percebeu que teria de ser incisiva, mas teve uma
nova surpresa ao notar que uma luz dourada e
muito mais intensa do que aquela que permeava o
corpo do valete impedia sua mão de aproximar-se
da porta. Ela tentou outra vez, e foi novamente
repelida.
Os olhos de Cassandra se apertaram da
mesma maneira que seu interior revolvido pela
cólera.
Aquele pequeno inseto...
A última coisa que poderia imaginar era que
Samuel acabaria trazendo para a própria casa
outra mulher que compartilhasse da mesma relação
que possuía com as forças do outro lado, mas,
pelo jeito, era exatamente isso que seu querido
desgraçado havia feito.
Não só colocava outra mulher em seu lugar,
mas outra bruxa para tomar o que deveria ter sido
seu.
Ao redor da figura medonha, resquícios de
poeira negra começaram a flutuar, demonstrando
que o nervosismo a levava a perder a estabilidade.
Cassandra voltou a se tornar uma sombra,
na intenção de penetrar de uma vez o recinto sem
barreiras materiais para impedi-la. Entretanto, da
mesma maneira, a cada vez que seu espectro
avançava em direção ao quarto, a luz forte e
dourada a repelia.
Murmúrios baixos começaram a ressoar.
Por baixo da porta, sombras denunciaram a
movimentação dos corpos no interior do cômodo,
tudo enquanto era capaz de ouvir.
— Ahhh…
O gemido de Grace fez o emaranhado de
sombras e poeira se tornar tão agitado que se
assemelhava a um redemoinho.
Se estivesse em sua forma humana, naquele
momento, Cassandra teria levado a mão onde antes
tivera um coração.
Raiva e fúria a consumiam, mas o mais
perigoso era o fato de se sentir humilhada. De
perceber que Samuel tinha junto de si justamente
uma mulher contra a qual, naquele momento, não
conseguiria atacar.
Os sons molhados e de respiração agitadas
seguiam do lado de dentro enquanto, em um
desespero crescente, Cassandra tentava outra e
mais outra vez invadir o recinto, mas era em vão.
Por diversos momentos, a bruxa repetia a si
mesma o mantra do mestre antes de forjar um novo
ataque para conseguir penetrar: grande parte do
feitiço está em acreditar.
Maldição, ela acreditava!
Por todos os mil demônios, acreditara com
a própria vida que o destino de Samuel era ser
seu, e era por isso que estava ali. Por que, então,
não dava certo?!
Era claro que em sua fúria ignorava que, no
interior daquele quarto, a magia que a repelia era
provinda de alguém que também acreditava com
toda pureza e veracidade na salvação da alma
dele, e o fazia ainda mais.
Grace acreditava na recuperação de Samuel
de toda aquela tristeza e solidão, e era naquilo que
se aplicava em fazer. E a ligação que ambos
estabeleciam naquela noite, mesmo que a jovem
bruxa não soubesse, também carregava os próprios
efeitos em si, sendo capaz de fazer a intensidade
de seus poderes aumentar.
A jovem os protegia enquanto nem fazia
ideia de todas as ameaças que os sondavam.
— Olhe para mim, Grace.
O pedido dele soou alto e fora mais do que
Cassandra poderia suportar. Se não conseguiria
mais impedir aquilo, foi o momento exato em que
decidiu utilizar os instantes seguintes para
organizar sua vingança.
Faria muito mais sentido do que seguir
assistindo de camarote à própria humilhação.

Destruído.
Foi assim que o Conde de Granville
despertou quando seu relógio dizia que já era tarde
demais para ser considerado um horário
respeitável da manhã seguinte.
Com o corpo dolorido e os olhos pesados,
Samuel se ergueu apoiando as mãos nos lençóis
empapados de suor, apenas uma das provas de que
Cassandra estivera mesmo ali na noite anterior e,
de alguma maneira, o carregara para o sono mais
perturbado e medonho que qualquer ser humano
conseguiria imaginar.

[...]

Após declarar sua presença e fazê-lo notá-


la com a aparência mais assombrosa que poderia
conservar, a bruxa o envolvera em algo similar à
poeira obscura, tragando de si todo e qualquer
sentimento que ainda o deixasse crer que estivesse
vivo ou fosse capaz de sentir algo bom. Samuel se
sentiu inerte, sem controle das próprias ações,
como se estivesse adormecido com os olhos
abertos.
Ela o arrastou até a cama e o fez deitar,
tomando para si a função de fechar-lhe os olhos
com o toque fúnebre. Se ele se sentisse vivo,
talvez tivesse tentado alguma reação, mas era
oposta a sensação que se espalhava por todo o
corpo: sentia-se entregue à própria morte.
Na sequência, os pesadelos — ou visões, já
não saberia como denominar — começaram.
Naquela noite, Cassandra não apenas o
recordara da culpa pela morte do pai e irmão, o
fazendo novamente observar seus corpos
resumidos a carcaças vestidas a rigor, como
também o fizera com Grace, trazendo-a nua, com a
pele e cabelos dourados que ele há pouco havia
acariciado sendo carcomidos por vermes e chagas.
Os três emitiam gritos esganiçados, com
vozes pavorosas e seus gemidos eram sobrepostos
pelo sangue que respingava em um escuro e
abandonado salão.
Na medonha visão, Samuel não enxergava a
si mesmo, mas lembrava-se de tentar virar o rosto
e sentir a presença da bruxa atrás de si, segurando-
o pelo pescoço com as unhas longas e frias o
arranhando, forçando-o a olhá-los.
— Você fez isso a todos…
A voz metálica declarava, enquanto o hálito
de trevas roçava em sua nuca.
— Só deveria ter sido meu para evitar.
Reiterava sua culpa, enquanto uma perna de
Grace terminava por se partir como cera, fazendo-
a cair no chão, acompanhada por um grito
lancinante de desespero e dor.
Samuel se lançava até ela em uma atitude
automática, mas a bruxa o segurava. Ao redor
deles, tudo estava em preto e branco, como um
infinito e odioso limbo.
— Que não sobrem sequer vísceras. —
Cassandra enfiou os dedos nas pálpebras do
conde, forçando-o a abri-las mais. — Irá me fazer
companhia, querido, e observá-los corroer até o
final.

[...]
— Senhor? — Folkes abriu a porta, o que
foi suficiente para retirar Samuel
momentaneamente de seu estado de perturbação.
— Folkes — conde não conseguiu omitir a
própria surpresa —, o que faz de pé?
O valete tentou não demonstrar, mas ficou
comovido com a nítida preocupação.
— Não sei bem explicar o que houve,
senhor, mas acordei me sentindo extremamente
disposto esta manhã. Acabo de, inclusive, receber
a visita do Dr. Vich. O médico me liberou para
retornar às atividades após me examinar. Disse
que também não sabe a que se deu a melhora
súbita, mas que não vê mal, desde que eu as
realize com cautela.
Granville apertou os olhos. Realmente, não
estava esperando por uma boa notícia, e não sabia
nem se lembrava-se como reagir a uma naquela
famigerada manhã.
— Fico satisfeito em saber que se sente bem
— pontuou, passando as mãos pelos cabelos
ensebados de suor. — Mas pode seguir com seu
descanso. Garanto que eu…
— Com todo o respeito, me parece terrível,
senhor.
Sem palavras, Samuel encarou o valete
atrevido, que entrou no quarto e começou a
recolher as peças pretas que via espalhadas pelo
chão.
— Irei até a cozinha solicitar que aqueçam a
água para preparar-lhe um banho.
Granville esfregou o rosto. Ao fechar os
olhos, porém, teve um lapso no qual revia os
fluidos de Grace, Frank e seu pai se misturando.
Seu estômago revirou.
Um banho jamais pareceu tão convidativo.
Era incrível como, desde que era garoto,
Folkes sempre parecia saber exatamente do que
precisava.
Inesperadamente, Granville se pegou
observando a figura madura com o coração tomado
por algo muito similar a carinho e gratidão.
Sentimentos sobre os quais há muito tempo não se
permitia refletir ou aproximar.
— Folkes? — chamou o valete, que a dada
altura caminhava em direção à porta.
— Senhor?
Samuel pareceu desconcertado e enfiou as
mãos nos bolsos das calças. A postura em muito
fez o mais velho recordar-se do jovem que há
tempos não via.
— Sobre nossa conversa de outro dia… —
A voz se tornou baixa e, ao final, esmaeceu.
Samuel não deixava de encará-lo, mas era como se
não conseguisse dizer o que realmente desejava.
— Não é necessário dizer — Folkes buscou
tranquilizá-lo, utilizando-se da sabedoria da idade.
Entretanto, foi incapaz de manter-se o encarando.
— Sim, é. — O conde se aproximou em um
passo. — Não foi correto tratá-lo daquele modo
da última vez que nos falamos, e precisa saber que
sinto muito por isso. — Samuel engoliu seco,
deixando a cabeça pender para trás enquanto
esticava os músculos tensionados. — Não posso
imaginar o martírio ao qual você e a Sra. Plymouth
se entregam trabalhando para esta casa, e não
deveriam receber nada além de minha mais
profunda gratidão.
Ao final, observou ao mais velho com toda
a sinceridade que poderia haver em seus olhos.
Surpreso com o teor sentimental que, pela
primeira vez em uma década via ocupar os dizeres
do senhorio, Folkes precisou de alguns segundos
para absorver as palavras.
— Não permanecemos aqui pela casa,
milorde, e não é martírio quando nos dedicamos
aos cuidados daqueles pelos quais realmente
prezamos. — Folkes realizou uma mesura
impecável, digna do mordomo real. — Ainda que,
vez ou outra, tenhamos de nos arriscar a
ultrapassar alguns limites. — Atreveu-se a dar um
sorriso discreto, deixando claro que sua crítica
sobre o vício de Samuel permanecia.
Granville balançou a cabeça, deixando
claro que compreendia bem.
Não entraria novamente em discussão, mas
apenas ele e Deus sabiam o quanto seus momentos
de esquecimento eram necessários quando o peso
da realidade e de suas culpas se tornava
insuportável.
Frente ao silêncio feito, Folkes voltou a
caminhar em direção à porta, compreendendo que
o conde dera o assunto por encerrado.
— A banheira estará cheia em um instante.
— Por favor, peça para avisarem à lady
Granville que realizarei o desjejum em meus
aposentos — Samuel aproveitou para solicitar.
Sabia que não era a melhor forma de se
comportar depois de tudo o que haviam
compartilhado na noite anterior, mas, após as
imagens que Cassandra havia colocado em sua
cabeça, tampouco se sentia pronto para se
alimentar e, ainda menos, voltar a vê-la.

Grace apertava os olhos enquanto mantinha


as mãos firmes em torno da xícara de café.
— Nada — murmurou com desalento, após
voltar a abri-los.
— Está tudo bem — a Sra. Burns a
reconfortava por seus esforços.
Naquela manhã, encontrara a jovem pupila
com olheiras profundas na biblioteca, e uma
palidez incomum ocupando sua tez. Ao questionar
se havia passado a noite bem, inicialmente, Grace
havia corado ao se recordar do que compartilhara
com Samuel, mas qualquer sentimento bom
desapareceu ao se recordar de algumas horas
depois, em meio à madrugada, quando tivera seu
sono tomado por pesadelos terríveis.
Na verdade, a parte mais pavorosa, fora
perceber que os pesadelos, na verdade,
misturavam-se com lembranças.
A jovem se via em seu quarto e cama em
Granville Hall, mas ao invés de ter seu corpo
tocado por Samuel, era Owel quem se colocava
sobre ela, a tomando com hostilidade e grosseria,
como sempre fizera, por momentos que pareciam
durar a eternidade.
Durante o pesadelo Grace não apenas se
sentia menor e mais frágil do que nas vezes
anteriores, como também estava sem voz, o que a
deixava incapaz de protestar. Ela se lembrava de
chorar em meio às investidas, e fechar os olhos,
desesperada por comprovar que de fato era um
sonho e conseguir acordar, mas algo parecia
prendê-la na maldita situação.
Era sobre esta força que parecia mantê-la
que a Sra. Burns, inclusive, a pedia para se
esforçar e buscar qualquer sinal em sua memória
após ouvi-la relatar o que a afligia.
Pedia para que Grace se esforçasse e
tentasse enxergar.
Mas a jovem não conseguia. Talvez fosse
porque não desejasse se permitir revisitar com
tamanha vivacidade as cenas.
— Eu juro que gostaria de conseguir —
voltou a se lamentar. — Se ao menos pudesse
compreender o porquê… — Deixou a xícara sobre
a mesa, observando adiante.
Era inegável que estava chateada.
Será que nunca poderia ter um momento de
felicidade e satisfação pleno, sem este ser logo
seguido por um infortúnio responsável por lhe
roubar sua paz?
— O que mais houve ontem, Grace?
Aquela era a primeira vez que a Sra. Burns
a tratava com tamanha intimidade, e a pergunta
fora tão direta que fizera a condessa engasgar.
— Bem… — Ela suspirou, finalmente
dando espaço às recordações boas da noite
passada. — Finalmente aconteceu. — Voltou a
bebericar o café, com os olhos da bruxa ainda
fixos em si, o que a fez perceber que esta não era a
resposta que desejava. — Mas percebo que isto a
senhora já sabia.
Os olhos verdes de Burns piscaram
lentamente, e a senhora se levantou.
— Realmente, percebi que havia algo
diferente em sua energia assim que entrou por
aquela porta, algo comum de acontecer quando
conectamos nosso corpo de forma tão íntima ao de
outra pessoa..., mas também estou conseguindo
notar outra coisa. — Inclinando-se, Burns tocou
no queixo da jovem, erguendo os olhos de âmbar
para si.
Ah, sim, era aquilo.
Aqueles olhos faiscavam.
— Você o fez, não foi? Utilizou sua magia
com mais intenção.
A garganta de Grace se movimentou
graciosamente quando ela engoliu seco.
— Acha que o fiz cedo demais?
— Longe disso, menina! — Burns sorriu, e
os dentes brancos se destacaram em meio à pele
negra.
Porém a expressão da bruxa logo voltou a
ficar séria e seus olhos desviaram.
— Entretanto…
— O que foi?
— A magia, Grace, funciona como um tipo
de ímã. Um chamariz. — A bruxa voltou a se
sentar. — Se ontem passou a utilizá-la com maior
intensidade, não creio que tenha sido coincidência
sentir que forças ocultas pareciam dominá-la
enquanto estava inconsciente.
A postura da condessa se tornou mais
rígida, imediatamente.
O frio que tinha sentido na espinha ao
chegar em Granville Hall; a sensação de que
alguém a observava na escada e lhe puxava o
casaco; o sentimento perturbador que a atingia
quando vez ou outra transitava por certos cômodos
da casa; o acidente com a foice no jardim...
absolutamente cada lembrança assombrosa a
ocupou.
— Está me dizendo que aqui…
Mas a jovem não teve tempo de concluir a
indagação.
Batidas ressoaram na porta, no mesmo
momento em que Granville entrou, sem sequer
aguardar uma resposta, com algo muito próximo
de preocupação estampando em seu olhar.
Realmente, Samuel não acreditou que
estaria preparado para voltar a encontrar sua
esposa tão cedo, porém, quando concluía seu
banho e cometeu a tolice de perguntar para Folkes
se a condessa já havia terminado o desjejum,
recebera como retorno a notícia de que, antes dele,
a própria teria avisado à Sra. Plymouth de que não
se sentia disposta o suficiente para se alimentar
naquela manhã, e permaneceria em seus aposentos
por mais algumas horas, até a chegada da tutora.
Obviamente, a primeira ideia que correu na
mente de Granville foi a correta e, desesperado
pelo que Cassandra poderia ter feito à pobre,
Samuel concluiu o banho se vestindo com mais
pressa do que Folkes já vira em toda sua vida para
ir de encontro a ela e assegurar-se de que se
encontrava bem.
— Bom dia, milorde. — A Sra. Burns se
levantou, cumprimentando-o assim que o viu surgir
na porta.
Grace se levantou logo em seguida, mas
precisou retomar o ar com um pouco mais de
intensidade, pois, se fosse sincera consigo mesma,
assumiria que ainda não estava preparada para vê-
lo, também. Principalmente assim, tão asseado,
com os cabelos ainda molhados reluzindo,
penteados para trás, e as vestes pretas fazendo a
pele fresca de traços firmes e harmônicos cintilar
como se fosse feito de mármore.
— Bom dia, Sra. Burns. — Granville
limpou a garganta, tentando retomar a postura
habitual.
Era como se apenas então percebesse que
havia interrompido a aula da esposa como um
desvairado. Vê-la inteira, porém, conseguia
amenizar ao menos o mínimo de sua agitação.
— Milorde. — Foi a vez de Grace
cumprimentá-lo com a voz suave.
— Grace. — Samuel nem percebia que
praticamente murmurava seu nome.
Santo Deus, ela estava ali, e não tinha
nenhum pedaço faltando, ou apodrecido.
Burns baixou ligeiramente o rosto ao notar
que uma troca de olhares intensa passou a ser
realizada entre o casal.
— Creio que tenhamos terminado por hoje.
— Recolheu o livro que permanecia ainda fechado
sobre a mesa e começou a caminhar até a porta.
— Obrigada pelos ensinamentos desta
manhã, Sra. Burns. — Grace despertou brevemente
do pequeno transe para despedir-se.
— A seus serviços, milady — a bruxa
respondeu, virando-se ligeiramente para lhe
oferecer uma piscadela de parceria. Em seguida,
voltou-se novamente para oferecer uma última
mesura a Granville, antes de passar pela porta. —
Milorde.
— Até breve, Sra. Burns. — Ele foi cortês.
Quando a porta da biblioteca foi fechada,
assegurando aos dois que se encontravam
novamente sozinhos, Samuel foi quem primeiro
voltou a fitá-la. Apesar de estar linda em seu
vestido cor azul-safira adornado em tule preto, o
semblante da jovem demonstrava que estava muito
mais abatida do que a deixara na noite anterior.
— Folkes me informou que permaneceu o
início da manhã em vossos aposentos. —
Automaticamente, o conde havia se aproximado ao
dizer.
Grace balançou a cabeça, também voltando
a observá-lo.
— Tive uma noite de sono agitada, e acabei
despertando cansada. — Resolveu que seria
melhor não mentir.
Maldita bruxa! Em sua mente, o conde
vociferava com Cassandra.
Assim como seus punhos, a mandíbula dele
se apertou.
— Sinto muito por isso — disse com
sincero pesar, unindo as sobrancelhas escuras.
Mas a forma como dissera era tão profunda,
que Grace sentia como se Samuel, de fato,
soubesse o suplício pelo qual passara mesmo antes
de contá-lo, o que era, no mínimo, curioso.
— Já está tudo bem. — Ela se aproximou,
deixando entre eles menos de um metro de
distância. — É adorável de sua parte, mas não é
necessário se preocupar.
Ah, não.
Infortúnio! Ele estava fazendo de novo!
Samuel sabia que tinha que ser cauteloso
com as próprias atitudes, que não poderia
demonstrar à Grace perspectivas ilusórias, mas
fazia exatamente o contrário, mais uma vez. Ele
gostaria que a esposa se sentisse cuidada, mas não
querida, o que, em sua concepção, eram coisas
extremamente diferentes. Uma ia de encontro à
parceria saudável que estabeleceriam para o
sucesso do acordo e, outra, para um final trágico
no qual ela sairia perdendo muito mais do que um
marido quando ele finalmente se fosse.
— Mas é claro que me preocupo. — Samuel
caminhou até a mesa, afastando-se
propositalmente, e serviu a si mesmo uma xícara
de café. — Afinal de contas, vossa saúde é
fundamental para o sucesso de nossa empreitada.
— Olhou discretamente ao abdômen ainda liso da
moça, fazendo-a seguir o olhar.
Grace mordeu o interior da bochecha.
— Ah, é claro... — Fez o possível para
afastar o fundo de decepção (?) que carregava a
própria voz. — Se me der licença, agora tenho de
ir. — Alisou as saias, em um movimento repentino.
— Vivienne me espera para começarmos a mexer
efetivamente no jardim — informou.
— Ah, sim, é claro. — Granville sorveu um
gole da bebida, despreocupadamente.
— Até mais tarde. — Ela realizou uma
vênia rápida, retirando-se antes que o marido
pudesse responder.
— Até mais tarde, Grace.
Mas Granville o fez mesmo assim.

— O Sr. Folkes realmente parece melhor,


não é? — Vivienne comentou animada, enquanto
ela e Grace retiravam algumas ervas-daninhas
secas de um dos canteiros da fachada.
A condessa sorriu ao se recordar da boa
notícia.
— Felizmente, minha querida.
O coração transbordava em contentamento
apenas de imaginar que o tinha ajudado em sua
recuperação. Grace sentia-se realmente viva
quando fazia aquele tipo de coisa. Sentia que havia
nascido para aquilo: curar.
— Minha tia disse que o Dr. Vich o liberou
para realizar algumas tarefas, e ele mal se
aguentou para já correr até os aposentos do conde
— a criada dizia com humor, enquanto limpava as
mãos enluvadas no avental. — Ela bem que tentou
dissuadi-lo, mas, quando viu, já tinha os braços
repletos de roupas e pedia para esquentar a água
do banho de lorde Granville.
Grace tentou ignorar o arrepio indevido que
a percorreu ao imaginar o marido ao tomar banho.
De repente, sua boca se tornou extremamente seca.
— Folkes tem muito carinho por Samuel, e
tenho certeza de que o sentimento é recíproco —
conseguiu comentar após se restabelecer da onda
repentina de calor.
O semblante de Vivienne se alterou e Grace
percebeu que algum pensamento mais denso se
apossava da jovem.
— Não parece concordar comigo...
— Não se trata disso — Vivienne
respondeu rapidamente, encarando a condessa
diante de si. — Apenas acredito que, se for mesmo
verdade, lorde Granville deveria considerar mais
as preocupações que demonstram os dois, tanto o
Sr. Folkes quanto minha tia. — Engoliu seco,
ponderando por alguns instantes se deveria
novamente tocar no delicado assunto ou não, até
que resolveu dizer de uma vez: — Os ouvi
dizendo que o aroma presente nas roupas de lorde
Granville denuncia que ele não está disposto a
parar.
O vício.
Grace abaixou os olhos.
— Sei que não cabe a mim falar disso, e
que não é a primeira vez que o faço, mas, talvez,
agora que você e o conde…
A condessa voltou a fitá-la.
— Digo… — Vivienne ficou visivelmente
sem jeito. — O fato de deixá-la cuidar dos jardins
e até mesmo o modo como demonstra preocupar-se
consigo. — A jovem levantou ligeiramente o
ombro. — Talvez seja capaz de fazê-lo ouvir
algum conselho.
Mudos, os lábios de Grace se abriram.
— Sinto muito se falei demais — Anne se
corrigiu imediatamente, abaixando a cabeça.
— Não! Não foi isso — Grace garantiu. —
Apenas não creio que tenha compreendido o tipo
de enlace que realmente forjamos, minha querida.
Em certos momentos, nem eu mesma sei se
compreendi. Internamente, Grace completou.
Vivienne observou a figura querida diante
de si e ofereceu-lhe um sorriso de parceria ao
notar que Grace, como sempre, desejava, mas não
sabia como ou até mesmo se poderia ajudar.
— De qualquer maneira, minha tia diz que é
inegável o fato de vossa chegada ter carregado de
volta a parcela de vida que faltava à Granville
Hall.
Ao ouvir aquelas palavras, o coração da
jovem condessa se aqueceu.
— Sei que ela e o Sr. Folkes dedicaram a
vida a este lugar e às pessoas que viveram aqui.
Esteja certa de que farei de tudo para descobrir
como ajudá-los.
No fim de tarde, quando saía de seu quarto,
Grace encontrou o Sr. Folkes no topo da escada,
chegando ao corredor da ala privativa, carregando
em seus braços uma pilha de roupas pretas que a
Sra. Plymouth acabava de engomar.
— Por favor, permita-me ajudá-lo. —
Sequer deu ao valete a chance de recusa, apesar de
ouvi-lo balbuciar alguma coisa. — Imagino que
pertençam a lorde Granville — perguntou mais por
retórica, e também desejando confirmar se deveria
se dirigir aos aposentos do conde. Era curioso
como, mesmo lavadas, as roupas pareciam guardar
notas específicas pertencentes ao perfume singular
que provinha dele.
— Sim, milady. Mas não é necessário…
— Excelente.
Grace ofereceu um sorriso ao criado e
passou a caminhar adiante. Talvez aquela fosse a
chance que desejava e não pretendia desperdiçá-la
ou permitir que o Sr. Folkes, sem saber, a
roubasse.
Com uma habilidade que impressionou o
valete, equilibrou as peças sobre um único braço
enquanto utilizou a outra mão para abrir a porta,
sem se dar ao trabalho de bater. O esquecimento,
contudo, não fora ao acaso, uma vez que Grace
possuía uma desculpa.
Porém, ao abrir a porta e notar que o marido
não estava ali e, tão menos, que o misterioso
quarto anexo era utilizado, sua decepção tornou-se
evidente.
— Está tudo bem, minha senhora? — Folkes
se aproximou por trás, observando os ombros
caídos.
— Ah, sim, está. — Tentou dissimular. —
Onde devo colocá-las, Sr. Folkes?
— Pode deixá-las sobre a cama, milady, por
favor.
A condessa seguiu as orientações,
entretanto, sem conseguir desviar os olhos por
muito tempo da passagem camuflada. Algo dentro
de si ansiava por respostas sobre aquele segredo
de Samuel. Na verdade, sobre todos os segredos
que o marido parecia possuir, mas aquele,
especificamente, naquele momento o fazia ainda
mais.
Grace observou as roupas que deixara sobre
a cama, e de repente teve a mente invadida pela
lembrança de uma fala de Vivienne que poderia
ajudá-la a, ao menos, tentar obter parte de suas
respostas através do valete.
— Que aroma é esse?
O criado se ocupava em organizar alguns
pertences do conde sobre o aparador e se virou
para ela.
— Aroma, milady?
— Sim. — Grace se afastou das roupas,
mas, então, forçou a expressão dando a entender
que desta forma o aroma também se afastava.
Como consequência, voltou a aproximar-se das
vestes do marido, pegou uma peça e levou até o
nariz. — Parece-me provir da camisa de lorde
Granville.
— A Sra. Plymouth costuma fazer o próprio
sabão. Talvez… — Nervoso, Folkes esticou a mão
para pegar a peça, mas Grace a levou novamente
ao nariz.
— Não creio que seja isso. — Grace
começou a caminhar e percebeu que o valete
empalidecia enquanto, com um lenço, precisava
secar da testa um suor frio.
— Minha senhora, creio que seja melhor…
— De onde vem esse cheiro, Sr. Folkes?
— Não sei a que cheiro se refere, milady.
— Se esforçou para soar enfático, e Grace
percebeu que teria de fazer o mesmo se desejasse
obter qualquer informação.
— Imagino que da mesma maneira que não
deve saber se possui relação com o que o conde
faz quando está atrás daquela porta. — Apontou
para o cômodo omisso e viu o momento em que o
pobre engoliu seco.
As mãos de Grace caíram ao lado do corpo
ao ter certeza de que sua suposição estava correta.
Em um passo resoluto, se aproximou:
— O que Samuel esconde, Sr. Folkes? Sei
que o senhor e a senhora Plymouth também não
aprovam o que ele faz.
— Como pode saber que…
— Isso não tem importância — Grace o
interrompeu, pois jamais entregaria Vivienne. — O
que realmente importa é que ambos sabem que
meu marido possui um vício, e este não é o tipo de
coisa sobre o qual uma esposa deveria ignorar.
Além do mais… — Com os olhos desviados ao
chão, suspirou. — Samuel não merece isso. Se ao
menos eu soubesse do que se trata, poderia
descobrir se há algum modo de poder ajudá-lo.
De repente, os olhos do valete também se
tornaram baixos, assim como os próprios ombros,
visivelmente cansados.
— Jamais poderia trair a confiança de lorde
Granville desta maneira.
— Mas o senhor não estaria… — Grace
ainda tentou.
— Sabemos que estaria, sim. — Apesar de
notar que a jovem condessa possuía boas
intenções, o mais velho voltou a fitá-la ao pontuar
com clareza: — Não poderia julgar de outra
maneira ao tratar de um assunto que diz respeito
somente a ele.
Apesar de considerar com dificuldade,
havia muita honra na postura de Folkes ao proferir
tais palavras, e Grace não pôde desconsiderar
aquilo.
Um suspiro longo escapou de seus lábios.
— Sinto muito, Sr. Folkes. Sei que foi o que
pareceu, mas não era minha intenção forçá-lo.
Chateava-se com o fracasso do plano,
obviamente, mas não obteria seu sucesso a
qualquer custo, muito menos se fosse esse relativo
à paz de espírito de um homem tão leal.
— Está tudo bem. — O criado se
aproximou, balançando a cabeça. — Sabe… tenho
trabalhado para Samuel desde que ele era um
garoto, e o conheço suficientemente bem para dizer
quando confia ou não em uma pessoa. — Ainda
que soasse um tanto incerto, e até mesmo
temeroso, o valete se atreveu a dizer.
— Está dizendo que acredita que o conde
me diria se eu…? — Grace fez um gesto com a
cabeça.
— Realmente creio nessa possibilidade,
milady, mas há apenas uma forma de saber.

Em seu escritório, Granville ainda buscava


se adaptar ao mais recente golpe do destino
recebido através de uma missiva de seu advogado.
Parkins ainda não havia encontrado tempo
— ou coragem — para dirigir-se a Granville Hall,
mas fora bastante ousado nos termos escolhidos
para compor a missiva na qual comunicava que a
condessa deveria preencher os documentos que
enviava anexo o quanto antes. Não solicitava, ou
fazia um pedido. Deixava claro, mais algumas
linhas abaixo, que o preenchimento e assinatura de
Grace nos cartões de embarque que enviara seriam
indispensáveis para conseguir finalizar de uma vez
os álibis que justificassem o fato do matrimônio
ter sido realizado através de uma procuração.
Acontece que Samuel ainda não havia
esclarecido tal verdade à esposa e, se fosse
sincero consigo mesmo, tratava-se de um fato que,
se não fosse o advogado, pretendia continuar a
omitir.
Grace deixara claro por mais de uma vez
sua aversão às mentiras, e Granville não se
orgulhava de tê-la enganado, sabendo que a jovem
acreditava assinar o contrato de matrimônio há
algumas semanas, no lugar de uma procuração.
Agitado, o conde coçou a cabeça com uma
das mãos enquanto permanecia com os cartões que
necessitavam ser preenchidos na outra.
Não apenas havia mentido para Grace como
agora teria de pedir para que ela também se
enfiasse em sua mentira.
— Mas que inferno, Samuel! — Virou-se,
depositando um golpe nervoso na mesa.
Até mesmo quando agia na intenção de
ajudar, parecia fazer tudo errado.
Que ser humano desgraçado era!
A ira que começou a percorrê-lo veio em
velocidade similar ao nervosismo, não demorando
para que Granville percebesse que já não poderia
adiar por mais tempo o relaxamento necessário.
Muita coisa havia acontecido nas últimas horas. Se
não conseguisse espairecer por alguns momentos,
a sensação que possuía era de que a mente ia
fundir.
Após guardar os documentos na gaveta, o
conde saiu em disparada com destino certo, mas
deu de encontro com a esposa assim que colocou
os pés no corredor.
— Samuel — Os olhos de Grace pareciam
surpresos, diferente de sua voz, que denunciava
que esperava vê-lo.
— Desculpe-me. — Granville notou que a
segurava pelos ombros e se afastou ligeiramente,
desfazendo o contato breve.
— Está tudo bem. Na verdade, estava indo
agora mesmo lhe falar em seu escritório.
— Estava?
Por fora, Samuel buscou parecer tranquilo,
mas por dentro não se sentia nada pronto para
voltar a conversar com Grace, principalmente
sabendo que precisava tratar com ela sobre a
questão abordada por Sr. Parkins na missiva.
— Sim. — A condessa mordeu os lábios,
parecendo ligeiramente ansiosa. — Gostaria de
convidá-lo para um breve passeio no jardim.
— Um passeio? — O corpo dele retesou.
Não estava esperando por aquilo.
— Uma inspeção — Grace se corrigiu
imediatamente, percebendo que o teor romântico
da proposta anterior poderia repeli-lo.
Samuel mordeu a língua. Fazia tanto tempo
que não andava pelos jardins com qualquer
objetivo que não fosse ir até o jazigo de sua
família e, se fosse sincero consigo mesmo, a ideia
de voltar a fazê-lo não o agradava nem um pouco.
Grace percebeu que o marido estava incerto
e, como possuía planos bastante específicos para
tal momento, resolveu ser mais insistente:
— Gostaria que visse o que eu e Vivienne
fizemos na área dos jacintos. É a primeira em que
mexemos e não pretendo prosseguir sem obter
vossa aprovação. Se gostar, entretanto, garanto que
será a última vez. — Ela o ofertou um olhar e
sorriso gentis, do jeito que deveria saber ser
impossível há qualquer ser com a mínima parte de
um coração recusar.
E antes mesmo do que Granville pudesse
perceber, estava com a esposa no espaço que dez
anos atrás era dominado por Cassandra, sem
imaginar, porém, o significado que essa ligação
ainda poderia conter.
Era inesperado, mas Samuel realmente
estava satisfeito por notar que naquela área do
jardim as folhas secas e arbustos de espinheiros
haviam sido substituídas por terra limpa e fresca.
Ainda não havia o verde de grama ou o colorido
de flores no espaço que Grace tão animadamente
mostrava, é verdade, mas aquele era um terreno
que parecia novamente capaz de fazer a vida
germinar, o que tornava impossível ao conde não
vislumbrar que significava à propriedade de sua
família algo bom, por mais que tentasse não se
animar sabendo de suas perspectivas limitadas de
futuro.
Além do mais, naquela tarde, pela primeira
vez em muito tempo, a bruma havia diminuído um
pouco nos jardins, deixando uma parcela mínima
da luz do poente penetrar, tocando as poucas
folhas alaranjadas que lutavam para se manter
presas aos galhos secos das árvores, fazendo
parecer que o calor de Grace transcendia sua
figura, carregando para toda parte seu toque cálido
que transmitia a sensação de aconchego e, ainda
que ilusória, esperança.
— …e depois que terminarmos de preparar
o solo, iremos iniciar o plantio, de acordo com a
época propícia à cada espécie — ela terminou de
falar e se virou para o marido, notando-o observar
tudo com bastante interesse. — Isto se estiver de
acordo, é claro. — Pela expressão séria que
Samuel trazia, já não tinha tanta certeza.
— Ah, não… quero dizer, sim! Claro…
Tenho certeza de que terão tudo pronto para
plantar muito em breve, se continuarem
trabalhando com tamanha diligência — O conde
apontou para a área do terreno impecável.
Grace sorriu, orgulhosa.
— É claro que não teria conseguido nem a
metade sem a ajuda de Anne — confessou, com
tom de voz carinhoso.
— Anne?
— Ah, sim, é como chamo Vivienne, minha
dama de companhia. — Sorriu. — Na verdade, já
deve ter percebido que a considero ainda mais
como uma amiga — confessou.
Samuel suspirou ao ouvir a declaração, mas
não foi capaz de repreendê-la em voz alta,
principalmente por saber da origem de Vivienne e
confiar na Sra. Plymouth. Entretanto, o assustava
saber que Grace acreditava poder confiar de tal
forma, com tamanha rapidez, em criados.
Ele já havia sido assim…
A atitude do conde, ainda que velada, não
fugiu à Grace, mas a jovem seguiu caminhando a
passos suaves ao seu lado, enquanto seguiam
automaticamente pelos jardins frontais, em direção
ao galpão.
— Sabe, desde que cheguei, Anne
conquistou minha confiança se mostrando digna de
ser considerada desta forma… uma amiga com a
qual posso contar, se quiser. — Enquanto falava, a
condessa ergueu o braço esquerdo em um
movimento fluído, tocando com a ponta dos dedos
em um galho seco, onde uma gota de neblina de
algumas horas atrás havia condensado. Em
seguida, cessou os passos. Não se importou em ter
a ponta da luva esquerda molhada e tão menos em
imaginar como a figura esguia seria valorizada
perante os olhos do marido frente ao simples
gesto. O fez de forma inocente, mas, quando
percebeu, o tinha com os olhos fixos, praticamente
cravados sobre si, de tal modo que foi capaz de,
no mesmo segundo, aquecê-la.
— Bom… — Engoliu seco, buscando
retomar a coerência dos próprios pensamentos. —
É este o papel dos amigos, não é? Se desejarmos,
podemos nos abrir…
Enquanto dizia aquilo, seus olhos não
desviavam do marido, e Samuel começou a ter
uma leve suspeita.
— Compreendo — com as mãos nos bolsos,
ele murmurou, voltando a entoar passos sutis ao
seu lado.
— Podem ajudar a aliviar nossos fardos —
ela prosseguiu.
E foi então que Samuel teve certeza.
— Grace — o conde parou de caminhar,
virando-se para ela —, sei o que deseja saber.
Tropeçando nos próprios pés, a pobre
praticamente engasgou:
— Sa-sabe?
— Com a quantidade de indiretas que está
me dando, seria muito parvo se não soubesse, não
acha? — A condessa ficou vermelha. As palavras
lhe fugiram, de tão envergonhada. — É natural que
fique curiosa.
Nossa.
Talvez lorde Granville estivesse disposto a
ser mais transparente do que imaginava, o que a
deixava realmente surpresa.
O conde prosseguiu:
— Deseja saber há quanto tempo eu não
tinha uma mulher — disse, sem deixar de fitá-la.
Imediatamente, Grace abriu a boca para
negar, porém, tão rápido quanto, uma curiosidade
ainda mais intensa a fez conter a reação.
Era inesperado, mas a informação passou a
de fato se tornar algo imperativo a se saber.
Na verdade, tudo que fosse relativo a
Samuel passara a despertar em Grace um interesse
genuíno, que a jovem não compreendia. Ela
desejava saber mais sobre ele e, muito além de
conhecer suas dores, queria descobrir sobre quem
era, porque o marido, de certo modo, despertava
em si um tipo confuso de fascínio… De
admiração.
Seria errado desejar saber mais?
Até que ponto o acordo estabelecido a
permitia admirá-lo?
— E então? Era isso, não era? — Samuel
solicitava uma confirmação, retirando-a das
reflexões íntimas.
E mesmo sabendo que depois precisaria
encontrar outro caminho para os questionamentos
iniciais que a levavam até ali, ela o respondeu:
— Sim.
Granville balançou a cabeça.
— Quanto tempo fazia? — Grace apertou os
olhos, fitando-o com ainda mais intensidade,
aproveitando para reiterar que aquela era mesmo a
dúvida que carregava.
Samuel tinha as mãos nos bolsos da calça
quando respondeu, devolvendo o olhar:
— Dez anos, Grace.
Uma réplica verbal não foi necessária. A
surpresa ficara nítida na expressão da esposa. Sem
saber como se sentir após compartilhar a
informação de teor extremamente pessoal,
Granville abaixou o rosto, observando com
demasiada atenção uma pedrinha que passou a
chutar.
E apesar de aquele ser um homem forte e de
expressão austera, que conseguia fazer dezenas de
pessoas se calarem apenas com sua presença e
porte amedrontador, Grace percebeu, naquele
momento, que era justamente por aquela vertente
humana de Samuel, que tão poucos conheciam,
capaz de demonstrar inclusive insegurança, que
passava a se afeiçoar.
— Você se saiu muito bem — praticamente
sussurrou, incerta sobre ser ou não o correto a se
fazer.
E inesperadamente, até mesmo para ele, tais
palavras o levaram novamente, de sua forma
comedida, a sorrir.
Ele voltou a observar a esposa, e notou que
ela também sorria, sem sequer imaginar que Grace
o fazia por satisfação ao notar que seu retorno lhe
surtia tal efeito.
Infelizmente, ao pousar nos traços
delicados, os olhos de violeta não se contentaram
apenas em analisar os dentes alinhados, e
passaram a observar com mais atenção do que
deveriam os lábios rosados, que ele ainda se
recordava serem mais doces do que cerejas
maduras e muito mais delicados que pétalas de
flor.
Granville sentiu a garganta secar.
Aquele encontro não poderia acabar bem se
começasse a se lembrar dos dotes físicos de sua
esposa, e muito menos das sensações que
causavam de encontro ao próprio corpo.
Atenta à análise silenciosa que recebia do
marido e parecendo aprovar, Grace se aproximou
em um passo, de modo que o silêncio já não era
mais absoluto, mas cortado delicadamente pelo
som das respirações que aos poucos se tornavam
agitadas.
Um beijo estava prestes a acontecer, ambos
conseguiam pressentir.
Mas Samuel não poderia pensar em beijos.
Não assim.
Não sem ao menos estarem em um quarto ou
possuírem um objetivo final.
Beijos não produziriam um herdeiro e,
daquela maneira, soltos no meio da tarde, seriam
tidos por ela apenas como uma troca aleatória de
carinho, e tais trocas ofereciam riscos. Os riscos
dos quais ele já havia decidido se afastar pelo
próprio bem e, principalmente, pelo bem de
Grace.
A jovem deu mais um passo e já fechava
delicadamente os olhos, começando a se inclinar,
quando o conde se afastou rapidamente,
caminhando em direção ao grande poço localizado
ao lado do galpão.
— Meu pai sempre disse que tudo em
Granville Hall possui estrutura sólida, e esse poço
comprova ser verdade. — Apontou para a
construção forjada em tijolinhos, madeira e ferro
fundido.
Buscando reorganizar os pensamentos,
Grace se virou para ele, piscando os olhos com
dificuldade.
Samuel mexia com demasiado interesse na
roldana do poço e parecia ignorá-la por completo.
O que tinha acabado de acontecer?
Caminhou até ele, sem conseguir disfarçar
muito bem a expressão confusa e decepcionada.
— Sim… — A voz da condessa soava baixa
e incerta. — É ótimo para realizarmos as
atividades no jardim.
Samuel não teve coragem de observá-la por
muito tempo, mas notou com extrema culpa a forma
como seus olhos permaneciam distantes ao dizer.
Era óbvio que sua atitude a confundia e, em uma
hipótese ainda pior, havia magoado. Mas ele agiria
assim para evitar consequências ainda mais
graves.
— De fato. — A voz dele também não
passava de um sussurro.
Até mesmo a pequena fresta de sol que os
visitava parecia ter escolhido o exato momento
para desaparecer e deixar o cenário mais
deprimente.
Com uma velocidade impressionante,
nuvens escuras e carregadas começaram a se
aproximar, espalhando-se rapidamente pelo céu de
Liverpool.
— Creio que seja melhor retornarmos. —
Samuel passou a se afastar em direção à mansão,
mas notou que a esposa fez o movimento contrário.
Com os olhos fixos na estrutura diante de si,
a jovem caminhava em direção ao poço e parou
apenas quando as mãos estavam agarradas à
borda.
— Grace? — ele a chamou, sem
compreender.
A esposa começou a olhar de um lado para
o outro, parecendo procurar por alguma coisa, em
uma profusão de movimentos confusos e
visivelmente agitados.
— Está ouvindo isso? — perguntou,
fazendo-o travar a respiração no mesmo instante.
Samuel não ouvia nada, mas via seu olhar
distante e perturbado.
Cassandra.
O firmamento já se tornava praticamente
enegrecido quando uma ventania furiosa começou.
— Afaste-se do poço! — Granville gritou
ao mesmo tempo em que correu em sua direção.
Mas antes que pudesse alcançá-la, uma
rajada ainda mais violenta, com destino
orquestrado, fez com que uma porção de terra o
atingisse nos olhos.
— Samuel?! — Grace também tentou
chamá-lo, sentindo que algo a impelia a inclinar-se
para o interior do poço, enquanto em sua mente um
som metálico e perturbador, muito similar ao que
escutara em seu sonho, ressoava palavras
dissonantes.
A ventania revolvia seus cabelos
parcialmente soltos, levando-os a cobrir-lhe os
olhos, o que deixava a sensação de descontrole
ainda mais desesperadora.
Se soltasse a borda por um instante sequer,
sabia que iria cair.
— Grace! — Mesmo sem conseguir abrir as
pálpebras direito, o conde correu até a esposa na
intenção de segurá-la, mas quando estava
extremamente próximo teve o pé agarrado por algo
que acreditou ser uma raiz.
Eu avisei, Samuel... você a condenou,
também.
Enquanto sentia o corpo encontrar em uma
queda catastrófica o chão, a voz de Cassandra
ressoou em sua mente, e tudo o que Granville
conseguiu enxergar adiante foi a mancha cinzenta
que parecia ser o vestido de Grace ser engolida
pelo poço.
Nos instantes seguintes, o mundo ao redor
foi tomado pelo silêncio excruciante do pavor, e o
conde não conseguiu nem mesmo ouvir o rugido
que escapava de sua garganta, tão furioso quanto
desesperado.
O vazio foi seguido pelo breu e a sensação
apavorante da queda.
Grace soube que não tinha mais volta e
sentia seu corpo atraído ao fundo como se uma
rocha estivesse amarrada ao redor de sua cintura,
com algo além da gravidade a puxando de
encontro ao iminente fim.
A jovem bruxa, porém, não desejou gritar.
Falando mais alto do que qualquer instinto
de sobrevivência, sentiu a própria essência lhe
guiar a fechar os olhos, e percebeu que o corpo
passou a coordenar sozinho os movimentos
seguintes, provindos além de qualquer escolha
racional.
A umidade fria e gélida desapareceu.
Tudo se tornou calor e o tempo pareceu
estagnar enquanto, mesmo com as pálpebras
cerradas, sentia-se cercada e invadida por luz,
poucos segundos antes de perder a consciência e
adormecer.

— Por que demônios o fogo dessa lareira


está tão baixo?!
Grace ouviu o marido vociferar enquanto a
consciência ia despertando aos poucos e os olhos
se moviam suavemente por baixo das pálpebras
ainda cerradas. Seu corpo não estava dolorido,
mas era acometido por uma exaustão aterradora.
— Gritar dessa maneira não vai ajudar
ninguém, homem, tente se acalmar! — Agora era a
voz de William Carter que ouvia.
A condessa virou ligeiramente a face e
precisou de bastante esforço para abrir o mínimo
das pálpebras que pareciam pesar uma tonelada.
— Eu sei que foi ela… — Ouviu Samuel
murmurar com a voz amarga, aproximando-se de
sua cama.
Carter suspirou, esfregando os olhos
exaustos.
— Granville, precisa descansar um pouco.
— Onde está o maldito médico?! — O outro
pareceu lhe ignorar completamente, socando o
batente antes de sair em busca do pobre doutor.
Apesar de baixa, a respiração de Grace
estava agitada. Já vira o marido perturbado, mas
jamais daquela forma.
— Carter? — arriscou chamar, sentindo a
garganta arranhar pela falta de uso.
Há quanto tempo estava inconsciente?
William praticamente saltou ao ouvi-la,
levando uma das mãos ao peito.
— Graças ao bom Deus. — Caminhou até o
lado de Grace, sem ser capaz de omitir o tamanho
do alívio que o tomava por vê-la finalmente
despertar.
— O que aconteceu? — A jovem começou a
se erguer nos próprios pulsos, e Carter esticou as
mãos na intenção de conte-la.
— Ora, ora, tenhamos calma, por favor. —
Começou a olhar de um lado para o outro.
Não cometeria a grosseria de segurá-la, mas
se ela se machucasse em sua presença, visto os
últimos fatos que testemunhara, tinha certeza de
que Granville tomaria para si a tarefa de lhe
estrangular.
— Eu estou calma, mas… — Buscou se
sentar, enquanto apertava os olhos em busca de
suas últimas recordações.
Lembrava-se de estar com Samuel no jardim
e, de repente, ver tudo ser transformado pelo vento
na companhia de uma voz medonha que a puxava
em direção ao poço. A jovem se recordava de
buscar com todas as forças que possuía livrar-se
das amarras que passara a enxergar como sombras
ao redor do próprio pulso e que pareciam arrastá-
la, como se fossem raízes profundas, extremamente
fortes, mas que estas continuaram a prendê-la, por
mais que tentasse se soltar. No meio de tudo,
Samuel a chamara por mais de uma vez, mas Grace
não conseguia vê-lo. Os próprios cabelos
começaram a lutar contra si, embalados pelo vento
e, de repente, tudo se tornou breu, enquanto se
sentia despencar em direção ao mais profundo
vale de ecos e escuridão.
— Não se recorda do que aconteceu? —
Carter se sentou em uma cadeira disposta ao lado
da cama.
Granville já havia saído em busca do
médico, de qualquer maneira, e a pobre não
parecia desejar permanecer sozinha naquele
momento.
— Creio que não de forma completa. — Ela
remexeu os dedos por cima da coberta. — Eu
caí… você sabe…? — Até para si a ideia de ter
caído em um poço e continuar viva para contar a
história soava absurda.
Em silêncio, o rapaz balançou a cabeça,
confirmando.
A respiração de Grace se tornou difícil,
ainda mais agitada.
Para si era óbvia a relação que continuar
viva possuía com a própria magia, mas que lógica
deveria ter sido empregada ao pensamento dos
demais?!
Não conseguiria suportar a ideia de voltar a
ser tomada como uma estranha.
William notou sua agitação, e se levantou
prontamente para lhe servir um copo d’água,
aproveitando a bandeja disposta na penteadeira.
— Por favor, Grace, busque se manter
calma.
Com a mão trêmula, ela aceitou a oferta, e
percebeu que estava com mais sede do que
imaginava ao acabar com o conteúdo em goles
sequenciais.
William não demorou para pegar a jarra e
servi-la mais duas vezes, até que estivesse
satisfeita.
A sede, entretanto, também servia como
outro indicativo.
— Por quanto tempo permaneci
desacordada? — perguntou.
— Creio que seja melhor esperarmos que
Granville retorne. Saiu há pouco para chamar o
Dr. Vich, e...
— William? — Grace o chamou pelo
primeiro nome, deixando claro que desejava dele
e imediatamente a resposta.
Carter bufou, depositando a jarra sobre a
mesa de cabeceira, ocupando novamente a cadeira.
— Temos certeza ao menos desde o resgate,
concluído oito horas atrás — ela ponderou com a
cabeça, considerando que poderia ser pior, mas
então, o cavalheiro prosseguiu —, foram mais de
vinte horas para conseguirmos resgatá-la.
— Vinte horas! — repetiu, incrédula.
— Não a conheço o suficiente para saber se
é religiosa, mas creio que algo muito próximo a
um chamado divino me fez vir a Granville Hall
naquele fim de tarde, quando encontrei Samuel
prestes a pular atrás de você, certo de que teria
sucesso com um plano ridículo de segurar-se na
corda da roldana.
— O quê?! — Ela não acreditou no que
ouvia.
— Exatamente. — William esfregou o rosto
com as mãos. — Não precisou de muito para
compreender o que havia acontecido, e enquanto
tive de permanecer aqui para impedir que
Granville cometesse qualquer idiotice suicida no
lugar de uma missão de resgate, pedi que Folkes
fosse até Violet Valley em busca de ajuda.
— Minha nossa… — O coração de Grace
se tornou tão oprimido, que nem mesmo o sentia
bater. Apenas de imaginar o desespero que causara
em Samuel, seus olhos se enchiam de lágrimas. —
Eu sinto muito, eu… — balbuciou, levando as
mãos à boca.
— Mas pelo que está se desculpando? —
Carter se aproximou penalizado, tocando-a
delicadamente em sua mão. — Nada do que
aconteceu foi culpa sua, minha cara.
Grace comprimiu os lábios na intenção de
evitar o choro, mas internamente temia que, sim, a
culpa realmente lhe coubesse.
E se, de fato, a energia maligna existente
em Granville Hall, sobre a qual a Sra. Burns lhe
falara, estivesse se intensificando por sua
presença?
— Não desejava trazer a ele mais
tribulações — com um sussurro e olhos baixos,
confessou.
— Não creio que tenha sido isso que lhe
trouxe. — Will a tocou delicadamente no queixo,
levando Grace a fitá-lo. — Mesmo com meia
dúzia de homens presentes e sendo o último
herdeiro vivo de sua linhagem, Granville fez
questão de descer para buscá-la quando a estrutura
para içá-la de volta estava finalmente montada. —
Achou correto fazê-la saber. — Disse que seria em
seus braços que a esposa sairia de lá, com ou sem
vida. — Cerrou os lábios, tocado ao se lembrar
das palavras mais carregadas de afeto que se
lembrava de já ter escutado o amigo proferir.
— Ele… — a voz de Grace estava
embargada — ...ele disse mesmo isso?
Carter afirmou com a cabeça.
— Granville possui um jeito particular de
demonstrar, mas se importa muito com você.
Grace engoliu seco e sentiu o estômago
gelar ao ouvir aquilo. Ao ter o amigo mais
próximo do marido lhe confidenciando tais ideias.
Seria mesmo possível?
— Não me compreenda mal, Sr. Carter, mas
Samuel é sempre tão reservado, que creio ser
realmente impossível a qualquer um de nós
sabermos o que realmente se passa em sua cabeça.
— A jovem buscou aliviar o teor da conversa,
dando um sorriso ao final.
— Eu não estou me referindo àquilo que
Granville guarda em sua cabeça. — William
ofereceu uma piscadela. — E, além do mais, se o
considera tão reservado é porque ele se preocupa
o suficiente consigo para não desejar que conheça
os próprios demônios. Seja paciente. — Apertou
em seguida as mãos que se mantinham unidas.
— Deixe tudo o que for necessário aqui, Dr.
Vich, desejo que esteja próximo quando a
condessa… — Granville entrava bradando ordens
ao médico que tinha ao seu lado, quando seus
olhos caíram sobre as figuras de Grace e Carter —
...despertar.
Automaticamente, seus olhos rumaram para
as quatro mãos unidas sobre o colo da esposa.
— Bem a tempo. — William se levantou,
desfazendo o contato.
— Grace. — Samuel precisou piscar
algumas vezes para retomar o foco. — Há quanto
tempo despertou? — Aproximou-se.
A jovem se organizou um pouco mais sobre
o colchão.
— Há poucos minutos, eu…
— Por que diabos não me chamou?! — Nem
bem ela terminara de responder, o novo
questionamento do marido já era dirigido para
Carter.
— Porque já tinha saído em busca do
médico, ora essa! Que sentido faria? — o outro lhe
devolveu de forma simples, erguendo as mãos —
Aliás, Granville, sei que deseja conversar com sua
esposa, mas deixemos que o Dr. Vich faça o
necessário antes. — William puxou o amigo que
praticamente o intimidava com o corpo pelos
ombros, afastando-o do caminho do médico.
Com um gesto um tanto truculento, Samuel
se afastou do toque, e colocou-se a observar
atentamente enquanto o médico realizava alguns
exames básicos em Grace como observar suas
pupilas e ouvir sua respiração, além de fazer
algumas perguntas.
O conde poderia estar apreensivo demais
para reparar, mas William buscou omitir uma
risada na voz quando disse, antes de se retirar:
— Acho melhor deixá-los à vontade.
Após a saída do Dr. Vich, Samuel
permaneceu no quarto, ao lado da cama.
Apesar do silêncio que o conde fazia, Grace
era capaz de imaginar o barulho que tomava sua
mente, pois permanecia visivelmente mergulhado
em um estado de perturbação comedida.
— Não deseja se sentar? — Tocou
delicadamente o espaço ao lado do próprio corpo.
Granville evitava observá-la diretamente
até então, mas foi capaz de notar o gesto.
— Creio que seja melhor deixá-la
descansar. — Esfregou o pescoço, finalmente se
rendendo à vontade que sentia de olhá-la nos olhos
ao questionar: — Como está?
— Ouviu o que o Dr. Vich acabou de dizer.
Eu estou bem.
— Sabe que não me refiro à análise médica,
Grace. — A fitou com ainda mais intensidade e
reiterou: — Como se sente?
— Sinto-me grata — A resposta inesperada
era a única que estaria verdadeiramente disposta a
oferecer. — Carter me contou o que fez. — A
condessa abaixou os olhos — Samuel, sei que não
estaria viva se não tivesse se arriscado para…
— Por favor, não prossiga.
Mais do que nunca, a culpa dentro dele
dilatou.
Grace havia flertado com a morte, e tudo
porque a tinha arrastado para Granville Hall, para
Cassandra, em nome do maldito plano que forjara.
Seria pérfido demais, até mesmo para uma alma
condenada como a dele, permiti-la por tamanha
desgraça agradecer.
Ao redor dele a mesma escuridão que por
diversas vezes se destacava voltava a condensar e
Grace, ainda que sentisse seus poderes limitados,
provavelmente porque ainda se recuperavam dos
recentes esforços, percebeu.
— Já está tudo bem — inocentemente,
buscou acalmá-lo.
— Não, Grace, não está!
Mas o modo como a esposa dizia, a candura
que tal ato demonstrava, só conseguiam fazer
Samuel sentir-se ainda mais cruel, e a ira que
alimentava contra si mesmo era refletida em suas
palavras de tal maneira que foi capaz de assustá-
la.
Granville notou isso.
Enxergou quando os olhos de âmbar se
abriram receosos, como se temessem seu próximo
ato, e sentiu-se um monstro. Um demônio ainda
pior.
Transtornado, o conde se virou em direção à
porta e começou a caminhar a passos firmes
enquanto anunciava:
— Eu preciso ir.

Já era tarde da noite quando Grace buscava


descansar, com Sr. Claws em seu colo.
Em pouco tempo se sentiu mais disposta
fisicamente, e acreditava que a recuperação de
suas energias possuía relação com a rápida
convalescença, pois a magia e sua integridade
física, conforme o acidente deixara claro,
possuíam ligação direta.
O Dr. Vich realizara a última verificação há
algumas horas, partindo com a promessa de
retornar no dia seguinte para visitá-la e a jovem
tivera o jantar servido em uma bandeja na cama
por Vivienne que, junto da Sra. Plymouth, parecia
aproveitar-se da situação para mimá-la como
nunca.
Assim como o doutor, Carter também havia
partido, mas não antes de vê-la outra vez e
inocentemente aliviar seu coração ao esclarecer
que dentre todos se espalhara a notícia de que só
havia sobrevivido à queda porque ao fundo do
poço uma lâmina de um metro de meio de água se
formara. Aparentemente, Deus e a sorte haviam
sido atribuídos pelo restante segundo os demais, e
Grace agradecia a cada uma das possibilidades.
Prrrr.
Aconchegando-se ainda mais em seu colo, o
felino demonstrou aprovação ao ser acariciado
atrás das orelhas, nos pelos macios. Até mesmo o
Sr. Claws havia decidido deixar a cama de feno no
galpão para agraciar Grace com sua companhia
naquela noite tendo, inclusive, lhe levado um
agrado. Vivienne não ficou feliz em ter que retirar
o roedor morto do quarto, mesmo com Grace
defendendo-o ao buscar explicar que se tratava de
uma demonstração encantadora de afeto.
— Sinto-me honrada — a jovem condessa
sussurrou ao gatinho, que lhe devolveu os dizeres
empurrando a cabeça em sua mão, solicitando
mais afagos.
Quando estava prestes a se organizar melhor
para dormir, entretanto, notou que seu companheiro
esticou as orelhas e virou agilmente a cabeça em
direção à porta.
Como não havia escutado nada, Grace
esperou mais alguns segundos para verificar se
não fora apenas impressão, mas então Claws
desceu da cama em um salto majestoso e caminhou
em direção à porta de modo intrigado.
Os pelos do corpo da jovem bruxa se
eriçaram.
Não poderia ser diferente dada as últimas
experiências que tivera de enfrentar.
Com passos tão comedidos e silenciosos
quantos as patinhas do gato haviam sido sobre o
tapete, a condessa caminhou até a porta,
observando em um movimento natural de um lado
ao outro, temendo que a qualquer momento
pudesse ser surpreendida.
raaac raaac raaac
Seu coração voou para a garganta com o
som inesperado, mas logo percebeu tratar-se de
Claws arranhando a porta. O alívio, porém,
passou, ao notar que o gatinho permanecia
intrigado com o que havia atrás dela.
Afinal de contas, o que deveria ser para
deixá-lo agitado daquela forma?
Grace engoliu seco, fechando os olhos e
apertando os punhos ao lado do corpo.
Só havia uma forma de saber.
Buscou se recordar do que a Sra. Burns lhe
dissera e, se da última vez sua magia não havia
conseguido salvá-la completamente, desta,
precisaria utilizá-la com ainda mais intenção.
Ao que percebia, o que quer que fosse que
estivesse a perseguindo, não parecia inclinado a
desistir de atacá-la.
Assim que esticou a mão, o Sr. Claws
pareceu prever seu próximo ato, pois já se meteu
entre os tecidos do penhoar que cobria suas
pernas. Grace sorveu o ar com toda a força e
apertou mais uma vez os olhos, entretanto, desta
vez sem fechá-los, e o ato fora tão impregnado de
determinação que levou as chamas da lareira do
quarto a tremularem.
Em um movimento súbito, a porta fora
aberta, e a figura que apareceu diante de si era a
última que esperava encontrar.

Há mais de quarenta minutos parado,


ensaiando se deveria ou não bater na porta dos
aposentos da esposa, Samuel foi surpreendido
quando viu Grace abri-la.
A surpresa dos olhos dela era tão ou mais
intensa do que a presente nos dele, e ambos se
encaravam em silêncio, sem saber o que dizer pela
inesperada situação.
Um tufo de pelos malhados começou a se
movimentar, chamando a atenção do casal para
baixo, e Granville sentiu quando Claws começou a
se enrolar em meio às suas pernas, como gostava
de fazer. Em seguida, o felino saiu correndo em
direção ao final do corredor, parecendo perseguir
algum bichinho minúsculo que apenas seu olhar
apurado era capaz de captar na parcial escuridão.
— Irei buscá-lo — disse Samuel.
Grace notou pelo tom que empregava que
tê-lo surpreendido o deixara sem jeito. Antes que
o marido pudesse se mover, a condessa o fez em
direção ao próprio quarto, abrindo a porta em um
convite silencioso:
— Ele sabe o caminho.
Um sorriso gentil permeava seus lábios
enquanto, por um segundo sequer, deixava de
encará-lo.
Sem forças para negar a ela ou a si mesmo
que era aquilo o que mais desejava, Granville
caminhou adiante, e logo voltou a se sentir envolto
na atmosfera singular que impregnava aquele lugar
e parecia sempre capaz de invadi-lo.
Aproveitou o momento em que ela fechava a
porta para voltar a observá-la e finalmente dizer:
— Sinto muito pela forma como falei com
você mais cedo. — As palavras estavam em sua
garganta há horas, ansiosas demais para sair.
Envergonhado por se lembrar de como a esposa o
olhara, Samuel abaixou os olhos. — Por favor,
peço que me desculpe.
Vê-lo tão vulnerável era algo que mexia
consigo e Grace não sabia dizer o que, mas uma
sensação cálida de que se assemelhava com um
tipo de dor a tomava no peito por isso. Por tê-lo
tão humano junto a si. Por si. Era a primeira vez
que tinha visto Samuel perder o controle e não por
questões que desconhecia, mas em razão da
preocupação que sentia por ela.
Como poderia condená-lo se era a primeira
vez em sua vida que alguém realmente se
importava consigo a ponto de perder a própria
razão?
Com passos sutis, a jovem se aproximou ao
responder:
— Desculpas aceitas.
Ele suspirou.
Ao menos um dos fardos, o menor e mais
recente, saía de seus ombros.
Inquietos, os dedos da esposa se enrolavam
no cordão do penhoar marfim, denunciando que
estava nervosa.
Granville ergueu os olhos e se condenou por
notar o quanto ela estava linda e saber que tal
concepção de sua parte não tinha nada a ver com a
veste, os cabelos soltos e dourados, os lábios
rosados, a pele levemente bronzeada ou os olhos
de âmbar.
Grace parecia reluzir para si como em
nenhuma outra vez pelo simples fato de estar viva.
— Tive medo de perdê-la — praticamente
em um murmúrio, confessou, levando-a a fechar os
olhos.
— Eu estou aqui. — Grace os sentia
levemente umedecidos quando voltou a abri-los
para fitar o marido, esticando a mão para tocar em
sua face.
— Agora eu sei que está. — A fala dele era
praticamente outro suspiro aliviado.
Samuel levou a própria mão a repousar
sobre a da esposa e a segurou quando virou a face
para depositar um beijo em sua palma.
Foi a vez de Grace suspirar.
Eles se encararam por mais um curto
instante, apenas o suficiente para que ficasse claro
pelo que ambos ansiavam.
O beijo ao qual se entregaram nos minutos
seguintes não foi formado por um desejo
avassalador, mas pela intensidade marcante da
entrega que apenas dois amantes que correram o
risco de jamais se encontrarem novamente são
capazes de compreender.
Quando Samuel a segurou em seu pescoço e
cintura, colocando-a de encontro ao próprio corpo
com a necessidade de sentir seu calor, não era a
carne de Grace que desejava tocar, mas a essência
de sua existência como um todo; uma comprovação
física de que a esposa ainda existia, de que ainda a
tinha bem ali.
Profunda, a língua dele buscou o mesmo ao
revisitar seu sabor, e os ouvidos se deleitaram
quando, novamente, puderam também comprovar a
realidade do momento com os leves murmúrios
que Grace deixava escapar; seus registros
delicados de prazer.
— Sei que deve estar cansada… —
sussurrou de encontro à carne do pescoço macio,
puxando delicadamente a borda do penhoar para
descê-la um pouco mais.
— Não estou. — Grace fora ágil em
mostrar-se disponível para prosseguir, enquanto
deleitava-se com uma mão entre os cabelos
escuros e outra apertava-se contra o dorso firme e
musculoso.
— Ainda assim — a consciência de Samuel
implorava para que buscasse ser um cavalheiro,
enquanto o corpo, descortês, a empurrava contra a
cômoda —, necessita descansar…
Grace balançava a cabeça em negação
enquanto o acomodava naturalmente entre as
próprias pernas. Sua intimidade despertava, já
sabia o que queria e, se preciso, a faria implorar.
— Necessito de você... — murmurou rente
ao ouvido masculino, sentindo imediatamente o
efeito que suas palavras surtiram com a investida
vigorosa de Samuel contra o próprio cerne.
— Ah, Grace. — O conde abaixou a face e
passou a beijá-la com ainda mais fome em seu
colo, enquanto a mão seguiu para a camisola,
puxando a barra sem ressalvas.
— Necessitamos um do outro — Grace
repetiu com o tom de voz rasgado, que o deixava
extasiado. — Muito além do que imaginamos... —
Os olhos dela se ergueram e Samuel fez o mesmo.
Entretanto, o conde se assustou ao notar que
além da bruma de prazer a esposa os tinha coberto
por algo ainda mais profundo.
Eles estavam abraçados quando Grace
prosseguiu:
— Muito além de prazer, desejo ser sua
parceira para também compartilhar fardos. Deixe-
me ajudá-lo, Samuel — Apesar de não chorar, em
seus dizeres estava visivelmente emocionada.
As sobrancelhas sôfregas do conde se
uniram.
— Eu não posso. — Sua respiração estava
agitada, o que fez com que as palavras soassem um
tanto falhas.
Grace o apertou em seus braços ao pedir,
mais uma vez:
— Confie a mim seus segredos.
Granville fechou os olhos, apertando-os
com intensidade. Poucos segundos foram
necessários para que a ideia de a ter ciente de
todas suas desgraças conseguissem reafirmar que
tal possibilidade era inexistente.
Sendo o mais delicado que pôde, ele se
afastou, com a cabeça baixa.
— Grace…
— Quando fizemos este trato prometemos
dizer a verdade. — Ela tentou não se abalar pela
distância estabelecida, interrompendo o argumento
antes mesmo de ouvir.
— Assim como concordamos em respeitar o
espaço um do outro. — Granville voltou a encará-
la, e sua voz não estava mais incerta, mas
irredutível.
A condessa mordeu os lábios, nitidamente
abalada por sua mudança de postura. E, por mais
que incomodasse notar que ela se ofendia com
isso, Samuel sabia que em tais aspectos não
poderia vacilar.
— Grace, pelo bem desse acordo, não pode
desejar ultrapassar as barreiras que estipulamos
desde o início.
— Sempre pelo bem do acordo…
— E do que mais seria? — Granville uniu
as sobrancelhas ao questionar, e poderia jurar que
um buraco abriu sob seus pés ao notar que os
olhos dela marejaram, ofendidos, antes que a
esposa se virasse rapidamente para disfarçar.
Nem mesmo Grace estava preparada para o
golpe que a pergunta representaria ao próprio
coração. Mas ela precisou agradecer quando, em
silêncio, ouviu o marido dar alguns passos e
fechar a porta atrás de si ao, novamente, se retirar.
Quando entrou nos aposentos da condessa
pela manhã, Vivienne surpreendeu-se ao encontrá-
la já com os cabelos amarrados, em um dos
assentos da mesa na qual era geralmente servido o
desjejum.
— Sente-se bem? — perguntou com
delicadeza, enquanto se aproximava.
Lentamente, a jovem virou a face e foi o
mais cristalina possível quando solicitou à amiga
aquilo pelo que ansiava:
— Preciso que me conte tudo o que sabe,
Anne.

Após se acomodar na cadeira ao lado,


Vivienne buscou despir-se de receios sobre as
histórias que ouvia há anos sobre Granville Hall e
contou cada detalhe sobre qual se recordava de,
vez ou outra, ouvir a tia compartilhar com a mãe
em suas visitas.
Ela voltou a citar o assassinato do antigo
Conde de Graville e seu herdeiro, pai e irmão de
Samuel, e disse com todas as letras que o caçula
fora formalmente acusado quando a causa da morte
foi apontada como envenenamento. Grace buscou
não perder a concentração em cada palavra que
ouvia, mas vez ou outra era impossível não fechar
os olhos frente a pontada que sentia no coração
pela dor excruciante que a atingia imaginando os
martírios que cada desgraça deveria ter levado ao
marido, ainda tão jovem.
— Mesmo quando o advogado conseguiu
comprovar que lorde Granville não estava aqui no
momento do assassinato, e com a criada que
trabalhava nos jardins tendo se tornado a principal
suspeita ao ser constatado o desaparecimento, a
sociedade não deixou de se apegar às próprias
crenças... — Até mesmo os olhos de Vivienne
estavam baixos.
Reconhecia que, antes de trabalhar em
Granville Hall, mesmo sabendo da grande estima
que a tia guardava pelo atual conde, ainda não
sabia se aquele era um homem no qual conseguiria
confiar.
— Todos seguiram culpando-o — Grace
murmurou em um lamento.
Anne balançou a cabeça.
O Conde Assassino.
Por mais que tentasse evitar, a condessa
sentiu quando sua visão se tornou embaçada. Sabia
como era terrível a dor de ser culpada por coisas
que jamais havia feito, e imaginava como tal
aflição tornava-se ainda mais cruel quando
elevado ao caso de tratar-se do roubo da vida de
alguém. De mais de um alguém. Mas então…
Santo Deus. Com Samuel a perversidade dos fatos
conseguira ser ainda pior, pois as vidas daqueles
que o acusavam de tirar eram das pessoas que
mais amava no mundo.
Sem ânimo para dizer muita coisa, Grace
agradeceu Vivienne e disse que não precisaria se
preocupar em levar seu desjejum. A Sra. Burns
logo encontraria consigo na biblioteca e uma
xícara de café preto seria mais do que suficiente
quando estivessem por lá.
A verdade é que gostaria de aproveitar os
momentos que teria antes da chegada da tutora
para permanecer um pouco mais sozinha, imersa
em seus pensamentos. A atitude de Samuel na noite
passada, naturalmente, ainda conseguia magoá-la,
mas, mais do que nunca, estava inclinada a
compreendê-la.
Existiam ligações que nem mesmo Vivienne
ou a Sra. Plymouth pareciam capazes de realizar
nos fatos, mas, fosse pelos sentidos mais apurados
graças à sua magia, ou pelas graças ancestrais que
carrega o coração sábio de uma mulher, a jovem
condessa fora capaz de captar que a culpa dele ia
além daquela lançada por terceiros. Envolvia uma
presença feminina.
“… com a criada que trabalhava nos
jardins tendo se tornado a principal suspeita…”
Os jardins nos quais Samuel, antes dela,
jamais deixara ninguém voltar a tocar.
Algumas peças ainda não se encaixavam na
história como um todo e estas correspondiam a
culpas tão íntimas e pessoais que Grace sabia que
não teria outra maneira de descobrir, senão através
dele. Mas, se o marido não estava disposto a lhe
dar acesso, como descobri-las?
Talvez fosse o momento de uma nova
orientação.
— Você está muito bem — Burns realizou a
observação enquanto Grace entrava na biblioteca.
— Obrigada…? — A jovem bruxa não
soube muito bem como responder.
Tinha a certeza de carregar um semblante
confuso e os olhos pesados pela noite mal
dormida.
A mais velha compreendeu a dúvida e,
quando já a tinha próxima o suficiente, cochichou:
— Não são todas que conseguem enfrentar o
primeiro embate direto sem quebrar alguma parte
ou coisa pior. Pelo que sinto, até mesmo suas
forças já estão praticamente recuperadas.
— Como a senhora pode saber? — Os
olhos de Grace expressaram sua surpresa.
— Sobre o acidente? Enviaram o Sr. Folkes
para me informar que não viesse ontem.
— Não digo sobre isso…
— Então, fala sobre o fato de eu saber que
não foi um acidente? — Burns deu um sorriso
perspicaz. — Eu lhe disse sobre a magia funcionar
como um chamariz, Grace. A sua tem se
desenvolvido em Granville Hall com bastante
intensidade, como se tivesse encontrado aqui o
solo fértil do qual necessitava. Aliás, isto me faz
lembrar de algo. — A bruxa se abaixou e apenas
então Grace notou que trazia junto de si uma bolsa
maior que o habitual. De lá, retirou um Livro,
colocando-o sobre a mesa. — Começará a treinar
suas leituras neste aqui.
Grace se virou para o exemplar e passou os
dedos sobre as letras douradas gravadas. A capa
era de um material escuro e grosso, que parecia
ser muito, muito antigo.
— Do que se trata?
— Digamos que uma iniciação oficial. —
Burns se sentou. — Apesar da vida ter lhe iniciado
de forma prática, existem coisas sobre o outro
lado das quais possui muito o que aprender.
A garganta da mais jovem oscilou.
— Sra. Burns — Grace se sentou,
acompanhando-a —, sobre isso, aliás, gostaria de
saber se é possível utilizar a vossa experiência
para me ajudar a encontrar algumas respostas.
— Respostas?
— Sim.
— Sabe que algumas perguntas não
precisam ser feitas, não é? — alertou-a.
— Como assim?
— A vida, Grace, na maioria das vezes se
encarrega de nos trazer as respostas no momento
certo.
A porta da biblioteca se abriu, e Grace
notou que era Vivienne que entrava com a bandeja
do café.
— Obrigada, Anne — agradeceu.
Mas quando a criada estava prestes a se
retirar, Burns a segurou delicadamente pelo pulso.
— Espere um segundo, minha jovem —
pediu.
Vivienne a observou sem compreender.
— Há algo errado? — questionou, solícita.
A bruxa observou-a nos olhos castanhos por
alguns segundos e então piscou com a rapidez
necessária para absorver o que as íris de verde
cristalino haviam imaginado enxergar.
Não deveria estar correto.
— Café me faz doer o estômago — Burns
respondeu, após uma longa pausa, oferecendo-lhe
um sorriso gentil. — Poderia, por gentileza, me
trazer uma xícara de chá?
Vivienne não soube o motivo, mas o toque
da tutora carregava algo reconfortante, e lhe
devolveu o sorriso, confirmando:
— É claro.
Em seguida, devolveu às duas a vênia,
retirando-se.
Quando a criada fechou a porta, Grace
perguntou de imediato:
— O que houve?
— Não foi nada — Burns a tranquilizou
imediatamente. — Acreditei ter visto algo, por
isso pedi que a jovem ficasse para que pudesse ter
certeza, mas o momento foi suficiente para
descartar a hipótese, fique tranquila. Está tudo bem
com sua criada.
A respiração que Grace segurava escapou,
tranquilizada.
— Anne se tornou uma amiga muito querida.
Burns balançou a cabeça.
— Vejo que sim.
— É justamente sobre o que consegue
enxergar que preciso de sua ajuda, Sra. Burns. —
A condessa aproveitou para retomar o assunto
anterior. — Sei que já falamos sobre utilizar minha
magia com mais intenção para ajudar Samuel e
Granville Hall, mas existem verdades que por
mais que eu tente, ele se nega a revelar. Na noite
do meu acidente, eu o ouvi murmurar e culpar
algo, ou alguém, não sei exatamente... Junto disso,
sei que também se culpa pelo que aconteceu ao pai
e ao irmão, e agora pelo que houve comigo. —
Grace se levantou, a voz agitada refletindo os
pensamentos. — Sra. Burns, gostaria de saber se é
possível me dizer se existe uma maldição em
Granville Hall, e se a morte do pai e do irmão de
Samuel estão interligados com ela. Preciso
compreender por que Samuel se culparia desta
forma se reconhece a existência de uma força
maligna… — Balançou a cabeça. — Qual seria a
ligação de meu marido com algo do tipo? — Ao
final, encarou Burns, com os olhos repletos de
dúvidas.
— A vida, Grace…
— Por favor, não repita que se encarrega de
trazer as respostas no momento certo. — As
sobrancelhas de Grace se uniram e Burns precisou
comprimir uma risada.
Após alguns segundos, a bruxa se levantou e
caminhava em círculos quando começou a falar:
— Como já disse, sinto que há, sim, a
presença de uma força maligna em Granville Hall,
e que esta força está aqui com a intenção de ferir,
tanto quanto a sua demonstra a de curar. — Fixou
os olhos sobre Grace. — O que acontece, minha
cara, é que neste momento, por exemplo, o último
embate entre vocês ainda deve estar exigindo dela
alguma recuperação, pois não a sinto com a mesma
intensidade de outros dias. Ou… — Os passos
cessaram.
— Ou? — A jovem aproximou-se.
— Ou ela está se preparando para o
próximo ataque.
— Ela? — Grace apertou os olhos.
— Digo, a força — Burns tentou disfarçar.
— Grace, existem verdades e respostas que não
poderá obter através de mim. Fazem parte de seu
propósito e cabe somente a você encontrá-las.
Grace estava exausta e isso ficou claro
quando Burns reparou que seus ombros
despencaram.
— Seja persistente, minha criança. — A
bruxa lhe tocou no ombro, em um movimento que a
condessa reconhecia muito bem o objetivo. — A
jornada valerá a pena e se tornará muito mais
objetiva se jamais se esquecer de meu conselho:
deixe seu lado sensitivo lhe guiar.

O dia passou com uma lentidão agonizante


para Samuel, e o conde reconhecia que o principal
motivo era não ter voltado a ver a esposa desde a
discussão na noite anterior. Na verdade, até havia
conseguido vislumbrar Grace secretamente da
janela de seu escritório por alguns minutos quando
a condessa, mesmo após os acontecimentos
recentes, fora cuidar do jardim ao lado de
Vivienne.
Esta era outra característica dela que
Granville admirava.
Grace não era do tipo que se permitia
abalar, fosse por tarefas, atmosferas densas, ou
mesmo situações extremas. Por baixo do ser de
aparência delicada havia uma mulher de fibra e,
maldição, ele a admirava.
A admirava e se sentia ainda pior por saber
que, mesmo com toda essa força, na noite anterior,
suas palavras a haviam feito chorar.
Terminando de se vestir para o jantar, o
conde observou o vidro que trazia pendurado no
pescoço e considerou por alguns segundos que
seria realmente um homem de sorte se seu destino
já não estivesse preso ali, por ter alguém como ela
como esposa. Porém, desgraçado como era,
Samuel estava fadado a apenas degustar o que
prometia a vida daqueles que são abençoados com
coisas triviais como liberdade de escolha e opção.
— Devo solicitar que informem à condessa
que já está descendo, milorde? — questionou
Folkes, ao vê-lo sair do quarto.
— Não será necessário, Folkes. Ela irá se
estiver à vontade.
A resposta deixava claro que jantar na sala
de desjejum fora sua opção. Samuel, entretanto,
não a forçaria a ter a mesma postura se ainda não
estivesse pronta para voltar a encontrá-lo.
Qual não foi sua surpresa, no entanto, ao
encontrá-la já lá, à sua espera, quando passou pela
porta.
Grace não apenas ficara de pé para saudá-
lo, como havia se preparado com esmero para
encontrá-lo, trajando um vestido verde-escuro que
em muito destacava o tom vívido de seu olhar.
— Boa noite, milorde. — Para terminar de
desarmá-lo, o cumprimento fora acompanhado de
um delicado sorriso.
— Boa noite.
Samuel precisou de alguns minutos para se
concentrar e lembrar qual era o caminho correto
até o próprio assento.
— Espero que não se importe, mas pedi que
a Sra. Plymouth já deixasse a mesa servida — a
condessa voltou a falar, tomando para si a tarefa
de abrir os recipientes nos quais estavam os
alimentos.
Naquela noite havia guisado de carneiro,
legumes assados e ervilhas.
— De modo algum. — Granville ainda
estava possuindo dificuldade em assimilar a
postura da esposa, tão antagônica ao que esperava
encontrar.
Ambos passaram a se servir, e quando
Folkes apareceu, dizendo que tomaria para si a
tarefa, visto que a governanta não estava, Grace o
dispensou com delicadeza, dando a entender que
realmente desejava possuir com o marido certa
privacidade naquela noite.
— Entretanto, lhe agradeceria se pudesse
nos trazer o vinho que lorde Granville aprecia
após o jantar — solicitou.
O valete saiu de imediato para
providenciar.
Os olhos de Granville se apertaram, bem
como seus dentes em um pedaço especialmente
suculento de carne.
Tudo ia bem demais…
— Grace?
— Hum? — ela perguntou com ar inocente,
enquanto espetava com o garfo uma batata.
— Do que se trata tudo isso?
— Tudo isso? — Fingiu não compreender.
Folkes retornou com o vinho e duas taças,
deixando-as sobre a mesa para sair o mais rápido
possível.
— Pensei em acompanhá-lo com uma
pequena dose hoje, se desejar — disse ela.
— Não me diga. — Granville soltou os
talheres e cruzou os braços sobre o tórax.
A condessa mordeu o lábio inferior.
Não fosse esse indício suficiente de que a
havia pegado, Samuel conseguiu ouvir o som da
seda sendo amassada sob a mesa.
— Gostaria de me redimir pela noite
passada. — Os olhos de Grace tornaram-se mais
brandos quando ela confessou, mas não deixaram
de fitá-lo.
— Você?
Ele não acreditava no que ouvia.
— Sim. — Ela ponderou com um
movimento de cabeça. — Não me arrependo do
que disse, pois ainda se trata da verdade… — Foi
corajosa, e o viu puxando o ar ao tocar no assunto
novamente. — Mas deveria ter sido mais sensível
ao perceber que o deixei desconfortável.
Mesmo?
Granville voltou a apertar os dentes.
Qual era a necessidade de sua bendita
esposa se tornar ainda mais adorável tendo aquela
postura?
Desconfortável, por dentro e por fora, ele se
mexeu na cadeira.
— Já está tudo bem. — Tomou novamente
os talheres nas mãos e voltou a dar atenção ao
alimento em seu prato.
Grace inclinou-se ligeiramente sobre a
mesa.
— Realmente?
— Sim — ele assegurou.
— Ótimo — Um sorriso tímido e satisfeito
escapou dos lábios dela. — Precisava mesmo que
me desculpasse, ou não teria outra forma de poder
lhe mostrar isso.
Antes que o conde conseguisse ver, ela dava
a volta na mesa, acomodando-se no assento à sua
esquerda, ficando muito próxima. Ao lado de seu
prato, depositou uma anotação:

“Dentre as paredes frias,


O olhar de violeta me aquece;
Sinto o aroma das flores vindouras
Uma promessa que o tempo tece.”

As palavras o impactaram tanto, que Samuel


precisou reler os versos.
— Foi você que…
— Eu que escrevi — confessou ela,
orgulhosa — A Sra. Burns disse que estou
avançando rápido, ampliando meu vocabulário, e
por isso começamos a introduzir rimas.
Claro que as lições “oficiais” eram do que
menos falavam atualmente, mas a jovem dizia a
verdade.
— Ficou muito bom, realmente — Samuel a
observava nos olhos quando disse, com a voz
visivelmente comprometida.
“O olhar de violeta me aquece…”
Poderia ser um recurso qualquer utilizado
por ela para rimar, mas ele fora tolo suficiente
para deixar o verso se fixar com ainda mais
intensidade em um local muito próximo do próprio
coração.
— Obrigada. — O sorriso de Grace se
alargou. — Realmente desejava lhe mostrar. —
Passou os dedos sobre as palavras registradas em
tinta preta, lembrando-se que ele fora o primeiro a
se importar em ensiná-la.
Mas então a gratidão e o gesto dela fizeram
Samuel perceber que, além de todo o resto, havia
algo mais urgente sobre o qual precisava falar,
pois o levava a sentir-se mais culpado ainda por
vê-la sendo tão dedicada em fazer a situação entre
eles melhorar.
Grace se surpreendeu quando a mão do
marido cobriu a própria, logo antes de dizer:
— Há algo sobre o qual preciso lhe falar.
Ela não queria, mas sentiu-se esperançosa.
Será que ele finalmente se sentia mais à
vontade para abrir-se consigo?
— Sim? — Seus olhos nem mesmo
piscavam.
— Trata-se de algo que escondo de ti.
Oh, Deus…
O coração de Grace acelerou.
— Não desejava ter mentido para você, mas
realmente acreditei estar fazendo o melhor, eu…
— Samuel não desejava enrolar, então, apenas
deixou claro antes de confessar: — Apenas saiba
que realmente sinto muito.
— Só de confiar em mim a ponto de saber
que já não é mais necessário mentir, me faz feliz
— disse ela.
E então, ele confessou:
— Quando assinou os documentos de nosso
casamento, na verdade, aproveitei-me do fato de
que não sabia ler para fazê-la assinar uma
procuração.
— O quê?
A voz dela não omitia. Grace estava tão
surpresa e incrédula, que não conseguia nem
mesmo ficar decepcionada em um primeiro
momento.
— Eu sinto muito.
— Nós não nos casamos? — Ela se
levantou, desfazendo-se do contato.
— É claro que nos casamos! — O conde foi
enfático. — Apenas… não o fizemos da forma
como a levei a imaginar. — Ele esfregou a nuca.
— Essa procuração da qual falo é um documento
no qual você permite que outros assinem contratos
em seu nome quando não se encontra em
determinado lugar.
— Mas eu estava aqui! — Grace esticou os
braços, verdadeiramente confusa.
— Apenas porque eu a havia adquirido em
um leilão! Um meio que, para dizer o mínimo,
permanece sendo ilegal. — Samuel bateu na mesa,
irritado consigo mesmo pela confusão que havia
criado. — Meu advogado, Parkins, e eu forjamos
todas as documentações necessárias para que
acreditem que você provém de uma boa família
irlandesa, do interior, e que estava viajando na
época em que casamento foi realizado.
— Vocês fizeram… — Perdidos, os olhos
de Grace analisaram ao redor. — Minha nossa!
— Por favor, se acalme.
— Como posso me acalmar sabendo do que
fez? — Grace estava se sentindo verdadeiramente
lesada, e Samuel conseguia enxergar o peso da
ofensa em seus olhos.
— Eu sinto muito — o conde disse baixo,
puxando os cabelos para trás. Entretanto, reiterou:
— Ainda assim, da mesma maneira que foi justa há
poucos minutos, também serei, e lhe digo que
mesmo sabendo que a magoei com minha postura
não teria feito diferente.
A fala a deixou surpresa e, muda, Grace o
encarou.
Samuel voltou a se sentar e tinha os olhos
baixos quando prosseguiu com a voz grave:
— Sei como a maldade existente nas
palavras das pessoas é capaz de ferir, e vendo-a já
tão assustada e maltratada pela vida, não desejava
que tivesse de enfrentar mais essa provação. — O
conde finalmente voltou a fitá-la. — Se o fiz, foi
realmente por acreditar ser melhor para você
evitarmos que a história sobre o leilão fosse de
alguma forma descoberta quando o casamento se
tornasse de conhecimento público.
Ainda que seu orgulho não permitisse
esquecer a omissão, Grace não pôde deixar de
sentir-se tocada pela sinceridade e cuidado
existentes nas palavras e gesto.
Ela suspirou, e também voltou a se sentar.
— Mas poderia ter me contado. Poderia ter
dito quais eram seus planos, ao invés de tentar me
enganar.
Granville meneou a cabeça por alguns
instantes.
— Agora percebo que deveria, mas
confesso que não fiz porque temi deixá-la ainda
mais assustada com o peso da mentira. É claro
que, naquela época, eu ainda não sabia...
— Não sabia?
— Da mulher forte que era.
Oh, não.
Novamente, palavras ditas por ele entravam
por seus ouvidos e abrigavam-se diretamente
naquele lugar secreto, especial e indevido do
coração de Grace.
Dessa vez, porém, parecia ser ainda pior,
pois tratava-se de uma frase inteira.
Em silêncio, os dois se encaram pelo que
pareceu ser uma eternidade, enquanto as mãos
sobre a mesa se aproximavam automaticamente,
como se os toques ansiassem por um novo
encontro.
Quando este aconteceu, entretanto, Samuel
se levantou em um pulo, despertando para o
momento presente.
— Não possuía a intenção de magoá-la, e
por isso confesso que pensei em permanecer com
esse segredo. — O conde notou a desaprovação
dela pela resolução. — Entretanto, como não sou
dado a golpes de sorte, e sim de azar, a vida me
fez o favor de adiantar a necessidade e sou sincero
ao assumir que agora percebo ter sido o melhor a
ser feito.
— Dizer a verdade é sempre o melhor a ser
feito — ela buscou lembrá-lo. Quem sabe não
conseguisse tirar mais alguma confissão?
Quisera ela poder revelar todas as suas...
Percebendo o que a esposa tentava, Samuel
utilizou as palavras como um bom subterfúgio para
se manterem em assuntos de seu interesse:
— Existem alguns documentos pertinentes à
viagem que demandam vossa assinatura.
— Pertinentes à viagem que nunca fiz. —
Grace não conseguiu perder a chance de provocar
com tom levemente irônico.
Também era humana, ora essa.
Ele aprovou a provocação com um riso
discreto.
— Esta mesmo.
— Não creio que tenha muita escolha.
— Infelizmente, acredito que já tenha feito a
pior de todas há algumas semanas, justamente
nesta sala. — Samuel também buscou realizar um
comentário irônico, mas seu humor era
naturalmente trágico.
Sabendo que ele se referia à noite em que
aceitara tornar-se sua esposa, Grace ponderou por
alguns instantes sobre a resposta que deveria
oferecer. Ela o surpreendeu quando, em silêncio,
se levantou, servindo as duas taças de vinho.
— Está esperando que eu afirme o oposto
para amaciar vosso ego, milorde? — Apertou os
olhos.
E diferente, mas muito melhor do que
qualquer reação que ele pudesse devolver,
surpreendendo inclusive a si próprio, Samuel deu
risada.
E, bom Deus, aquele foi o som mais
glorioso que ela já ouviu.
Após retomar o fôlego, ele sorveu um gole
generoso de vinho, sem deixar de observá-la pela
borda.
— Se ainda possuísse alguma moral para
fazê-lo, lhe confiaria minha palavra de que não foi
essa a intenção.
Era estranho, mas um sorriso teimoso ainda
estava em seus lábios e Granville não sabia por
que, mas o cretino recusava-se a ir embora.
Foi a vez de Grace beber um pouco do
vinho e fechar os olhos enquanto sentia o calor da
bebida se espalhar por sua garganta.
— E pode parecer incorreto frente à luz dos
últimos fatos — Ela se inclinou, deixando as faces
extremamente próximas —, mas ainda confio em
sua palavra, Samuel.
Lentamente, o sorriso dele foi esmaecendo,
ao mesmo tempo em que os olhos se tornavam
mais escuros e fixos nos lábios que o tom aplicado
pelo vinho tornava ainda mais apetitosos.
Ele desejava ter Grace outra vez.
Desejava-a sob seu corpo e queimar dentro
dela como se fosse abraçado pelo sol.
Sem mover a face, Grace voltou a erguer a
taça e terminou a própria bebida. Depois a deixou
sobre a mesa, levantando-se em seguida.
— Devo aguardá-lo em meus aposentos esta
noite?
Se já não estivesse em combustão, a
pergunta faria o corpo dele explodir.
Granville balançou a cabeça em silêncio, de
modo que mais tarde julgaria como patético, e
então finalmente retomou o controle da fala para
oferecer uma resposta, ainda que com a voz
comprometida:
— Subirei em alguns instantes.
Samuel estaria mentindo a si mesmo se
dissesse que acreditava ser possível voltar a ver a
esposa ainda naquela noite.
Após a saída de Grace, solicitou que Folkes
fosse discreto ao segui-la, assegurando-se de que a
condessa não encontraria qualquer tipo de
adversidade no caminho até seu quarto.
Sabia que Cassandra não iria desistir.
Quando o valete retornou, dizendo que ela
entrara nos próprios aposentos tranquilamente,
Granville sentiu-se aliviado ao pensar que naquela
noite seria ele a presa na qual a bruxa focaria seus
perversos estratagemas.
Seguiu aos próprios aposentos, e
praticamente uma hora se passou sem que
acontecesse nada.
Obviamente, ignorava que o recente embate
com Grace e outras razões cobravam de
Cassandra uma retirada estratégica de campo
naquela noite, por mais que a bruxa estivesse
ciente do que acontecia na mansão.
Furiosa, Cassandra recolhia-se enquanto
esperava pelo momento certo de agir. A praga que
infestava seus jardins seria finalmente eliminada e,
da próxima vez, a atacaria em um momento e lugar
dos quais Grace não teria forma de escapar.
Mas, diferente da bruxa, Samuel estava
inquieto demais, enquanto sentia seu corpo
suplicando para agir. Cassandra não havia
aparecido até então, e a recordação de que até
mesmo de seus pensamentos costumava
desaparecer quando estava nos aposentos da
esposa fora a última das motivações que precisava
para finalmente se render a encontrá-la.
— Você demorou...
A constatação de Grace não foi feita em tom
acusatório, mas carinhoso, enquanto observava o
marido finalmente cruzar a porta.
— Tive alguns contratempos.
Quando Samuel respondeu, finalmente
erguendo os olhos para observá-la, temeu
desfalecer.
Sua esposa vestia apenas uma chemise de
renda preta; uma peça claramente projetada para
revelar mais do que esconder.
Para seduzir.
Mesmo sentindo-se tímida pelo olhar que o
marido lhe lançava e pela situação inédita à qual
sabia se propor, Grace levou às mãos ao cordão
que amarrava a veste em torno da cintura e se
atreveu a dizer:
— Madame L’afaiat diz que homens gostam
de renda.
De fato, as palavras da modista em sua
última visita haviam sido de grande peso em sua
escolha.
— Gostamos — Granville praticamente
balbuciava; nem mesmo conseguia piscar.
Dentre as aberturas da peça, enxergava a
pele dourada como pequenas parcelas de
promessa do paraíso e, em pontos ainda mais
específicos, na altura dos seios, delicadas
insinuações rosadas que o faziam, literalmente,
salivar.
— Bem… — Grace o notou paralisado em
sua análise, e percebeu que teria de ser ela a
caminhar até ele. Com passos sutis, aproximou-se.
— Tomarei como um elogio.
Ofereceu um sorriso delicado ao final, que
capturou a atenção de Granville e foi muito além
do que o pobre poderia suportar.
Suas mãos a agarraram com posse a cintura
delicada, puxando Grace de encontro ao próprio
corpo com urgência.
Ela soltou um arquejo, deixando as mãos
buscarem automaticamente os ombros largos
quando os olhares se encontraram.
— Sinto muito se me falta eloquência esta
noite — Samuel confessou —, mas não pode
apresentar a um homem tudo isso — deixou que os
olhos a percorressem de cima a baixo, espalhando
labaredas pelo corpo feminino — e esperar que
ainda lhe sobre qualquer parte da razão. —
Aproximou os lábios firmes do pescoço da esposa,
e notou com imensa satisfação a maneira como ela
o esticou, disponível para recebê-los.
— Tomarei como outro elogio — Grace
praticamente murmurou, com a voz já amolecida.
Os lábios de Samuel, dada a altura, já
estavam de encontro à sua pele, provando o calor
que tanto o agradava.
A carícia foi a fagulha inicial para que toda
a combustão de desejo que existia dentro deles
explodisse.
Com ainda mais intensidade, Granville
apertou a cintura da esposa enquanto a outra mão
foi até sua nuca para posicioná-la na altura exata,
do modo perfeito para que seu beijo conseguisse
entregar e receber tudo o que desejava. Ele foi
profundo e explorou a boca macia com fome,
deixando-a com os joelhos amolecidos apenas
com as promessas que tal gesto continha.
Samuel a queria com fervor aquela noite.
Tanta quanto Grace também reconhecia desejar, o
que era delicioso.
Durante o beijo, uma das pernas do conde
se enfiou entre as dela, aproveitando que a renda
da chemise era transpassada e se abria bem ali. O
tecido de sua calça encontrou a intimidade de
Grace e a fez suspirar. Compreendendo que havia
chegado aonde desejava, Granville começou a
entoar um ritmo delicioso com a perna,
esfregando-a de modo que a fricção se tornasse
irresistível contra o ponto feminino de prazer.
Os lábios e as mãos dele também
passeavam por Grace, enquanto ela tentava
corresponder, mas sentia-se rendida. Buscava
acariciá-lo em suas costas e nuca, mas, quando
percebia, estava novamente o apertando pela
intensidade de uma nova corrente de prazer
causada pela fricção.
Seus murmúrios e gemidos foram
aumentando em frequência e volume, até que
Granville a sentiu apoiar a face em seus ombros,
tomada por uma onda lancinante de lascívia.
— O que deseja, Grace? — sussurrou em
seu ouvido.
E o centro entre suas pernas, que ela já
sentia úmido, passou a palpitar.
— Eu… Oh! — a jovem praticamente gritou
ao ser surpreendida por um dedo longo
provocando sua intimidade.
— Seria isso? — Samuel mordeu o lóbulo
delicado e depois a beijou no pescoço, deleitando-
se em ter de segurá-la com mais força em seus
braços. Sua esposa estava derretendo. — Vamos,
diga para mim.
Havia, realmente, descoberto um prazer
descomunal em ouvi-la dizer.
— Humm — ela soltou um miado baixo,
com a voz abafada contra o tecido. — Sim… Sim,
por favor.
Granville fechou os olhos e forçou a
mandíbula.
Estava tão excitado, tão absurdamente duro
por aquela mulher, que sentia que os botões de
suas calças estavam prestes a estourar.
Com delicadeza e extrema dedicação,
massageou o clitóris inchado e suplicante,
aproveitando-se da sensação maravilhosa que era
beijá-la para receber na própria boca os gemidos
incomparáveis do prazer que lhe causava.
A necessidade de Grace escorria entre seus
dedos, ela estava tão molhada quanto ele estava
rijo, o que fazia seu orgulho, tão esquecido e
abandonado antes dela, voltar a se inflar.
Era como se nos momentos em que se
dedicava ao prazer dela, Samuel sentisse que suas
mãos não estavam destinadas apenas a provocar
desgraças e espalhar pelo mundo os reflexos
sombrios da própria maldição.
Em seu estado de torpor, a figura de Grace
lhe parecia ainda mais divina, o que o fazia crer
que alcançava o máximo que poderia ter de
qualquer encontro com uma rendição.
Quando percebeu que a esposa possuía a
respiração entrecortada, o conde a segurou com
ainda mais força na cintura para que o corpo
delicado e torpe suportasse a dose extra de prazer
ao ser inesperadamente penetrado por dois dedos
que passaram a estocar vigorosamente contra a
carne sensível e apertada.
— Samuel, por favor! — O gemido de
Grace fora uma súplica por mais, pois ela tinha
certeza de que sua vida acabaria se, por qualquer
razão, aquilo tivesse de parar.
Vidrado na expressão de entrega e no olhar
lânguido que a esposa lhe lançava, Samuel sentia
tanto prazer que temia desmanchar.
— No que está pensando, Grace? Hum? —
questionou mais uma vez, com a voz rouca. As
estocadas pontuando cada indagação.
Sentindo o ápice iminente, Grace o segurou
o mais forte que pôde nos ombros e sussurrou em
seu ouvido, segundos antes de atingir o ápice:
— Você ainda não está pronto para saber.

Samuel era cuidadoso e paciente enquanto


aguardava a respiração da esposa se restabelecer.
Quando isso aconteceu, ainda com as mãos
apoiadas sobre os ombros largos e as faces tão
próximas quanto poderiam estar, Grace voltou a
fitá-lo com um sorriso tímido e satisfeito no rosto.
— Agora precisamos que você…
— Do que estava falando? — Granville
ainda a abraçava ao questionar, mas ela notou que
já não trazia a mesma languidez de outrora em sua
voz.
Sua respiração, que ainda se acalmava,
voltou a acelerar.
— Eu não estava pensando direito. —
Voltou a enrubescer, desvencilhando-se
delicadamente dos braços dele.
— Concordamos que não iremos mais
mentir — buscou lembrá-la.
Grace abaixou os olhos.
— Então, talvez, o mais correto seja dizer
que eu ainda não esteja pronta para compartilhar.
— Foi sincera.
No momento antes de sua entrega, sentia-se
completamente tomada por ele, e não apenas em
seu corpo, mas também em sua alma e coração. A
sensação fora completamente inédita, mais do que
o suficiente para fazê-la se assustar.
Ainda assim, Grace resolveu aproveitar-se
do momento em que o tinha aberto para ouvi-la:
— Às vezes precisamos do momento certo
para dizer aquilo que guardamos, e desejo que
saiba que eu também estarei aqui quando decidir
que chegou o seu.
— O meu...?
— De compartilhar comigo seus segredos.
Foi a vez dele se afastar.
De repente, o calor remanescente do corpo
de Samuel se esvaiu.
— Por favor, Grace, não voltemos a isso.
— Buscou manter a voz amena, mas seu desgosto
estava expresso.
Tão expresso que conseguia atingi-la.
Ofendê-la.
— Por que está sendo tão injusto?
— Eu estou sendo injusto? — Ele levou a
mão esquerda ao próprio peito.
— Sim. Sempre busco ser o mais sincera
que consigo, mas percebo que nem ao menos se
esforça para fazer o mesmo. Noto que nem mesmo
quer! — pontuou um tanto mais enfática, dando um
passo firme em sua direção.
Samuel ficou surpreso com a postura
petulante.
— Não ouse imaginar que sabe o que
realmente quero. — Sua voz era tão baixa e grave,
que Grace sentiu cada pelo de seu corpo arrepiar.
Atônitos, os olhos dela piscaram.
— Você sabe? — perguntou, erguendo o
queixo delicado com altivez, cruzando os braços
em frente ao corpo.
Granville deu um riso irônico, esfregando
os olhos.
— “Se no caminho percorrido houve honra
e amor, este jamais terá sido curto demais.” — A
frase dita por Grace o fizera encará-la com os
olhos muito abertos — Essas me parecem as
palavras de um homem realmente convicto do que
desejava, e sábio o suficiente para compreender o
que valia a pena.
— Como você… Quando? — Samuel
estava atônito demais para formular uma frase
sequer.
— Estive no jazigo algumas noites atrás. —
Em respeito, ela abaixou os olhos ao assumir. —
Não entendo por que deseja esconder de mim uma
parte tão importante de quem é. Samuel, sua
família…
Em um movimento ágil, o conde se colocou
diante dela, encarando-a com ira:
— Você nada sabe sobre minha família! —
Dessa vez, sua voz não continha nada além de
mágoa e fúria.
Ao redor dele Grace viu a aura escura
condensar, e sentiu o próprio coração
despedaçado.
— Por favor, deixe-me ajudá-lo — pediu,
mais uma vez.
Ao tentar tocá-lo no rosto, porém, Samuel
se afastou, e voltou a vociferar, com a voz
desprovida de qualquer afeto ao encará-la com
frieza:
— Você está aqui para gerar um herdeiro, e
é somente com isso que deveria se preocupar!
Golpes físicos não teriam poder para feri-la
da maneira como Grace se sentiu lesada pela
acidez daquelas palavras.
A jovem já havia passado por muita coisa
em sua vida, mas seria capaz de jurar que jamais
se sentira tão ofendida e magoada como Samuel,
logo ele, o fizera naquela ocasião.
Era óbvio que o arrependimento o abatera
no exato momento em que os dizeres saíram de sua
boca, mas Granville já havia aprendido há muito
tempo que tal sentimento pertencia aos inocentes,
uma vez que nada era capaz de consertar. Além
disso, mais uma vez, por mais cretino e
desgraçado que tal fala o fizesse parecer,
reiteravam sua postura, ao deixar claro que apesar
de qualquer prazer que encontrassem na
companhia um do outro, Grace não deveria, ou
melhor, não poderia, se esquecer dos limites
estabelecidos.
Ele precisava mantê-la afastada de se
envolver ainda mais consigo e com a própria
história pelo próprio bem, pelo amor de Deus!
Será que era tão difícil entender?! O que mais
Grace desejava que fizesse?! Que fosse até o
quarto dela todas as noites para fazer o necessário
com um carimbo em sua testa ostentando os
dizeres “afaste-se, problema”?
Contrária à reação para a qual se preparava,
esperando até mesmo ouvi-la dizer seus primeiros
impropérios e palavras de baixo calão, Grace
caminhou até a cama e se virou em sua direção,
abrindo sem qualquer cerimônia a chemise que não
fez charme para cair.
— Faça-o, então.
Dessa vez, Samuel não se iludiu. Enquanto
observava o corpo nu da esposa diante de si, as
chamas das velas e da lareira do quarto
tremularam.
Acontece que, assim como o fogo que os
aquecia, a ira dentro dele também se inflou com o
ato dela.
Estava exausto.
Cansado de precisar se redimir, veja bem a
ironia, por ser um desgraçado.
Por buscar mantê-la a salvo da própria
desgraça e, ainda assim, constantemente precisar
se explicar.
Grace gostaria de tê-lo como vilão de sua
história?
Ótimo! Pois então, ele lhe daria razões para
tal.
Com os olhos mais escuros do que em
qualquer outra vez ela pôde enxergar, Granville se
aproximou, fazendo suas pernas tremerem. Dessa
vez, no entanto, o sentimento que o ato causava,
assim como aquele que enxergava através dele,
não carregava nada de bom.
Ela respirou com força, mantendo o queixo
erguido, e se negou a mover os olhos ou
demonstrar qualquer hesitação enquanto os dedos
furiosos do marido eram responsáveis por soltar
os botões do colete e jogá-lo longe.
— Deite-se — Granville ordenou, e não
havia qualquer resquício de carinho em sua voz.
Engolindo o nó que se formava em sua
garganta, Grace se deitou e não ofereceu
resistência quando o marido se colocou por cima
de seu corpo, tocando-a em sua pele com frieza, na
nítida intenção de demonstrar quem continha o
poder ali.
Já havia feito isso muitas vezes. Pensava
para evitar a iminente vontade de chorar.
Era só permanecer estática, como uma
boneca de trapos, enquanto o permitia tomar o que
desejava de si.
Samuel fechava os olhos e se esforçava
para continuar. Tinha de fazer aquilo.
Aquela era sua chance de afastar a figura
ilusória que, de alguma maneira, Grace havia
começado a forjar sobre si.
O conde levou a mão até um dos seios
delicados para tocá-lo. O gesto, no entanto, não
gerou nela qualquer reação.
O estômago dele embrulhou.
Enquanto buscava manter a face enfiada em
seu pescoço, Granville a ouviu tentar suprimir um
soluço e aquilo fora muito além do que sua alma
desgraçada poderia suportar.
Onde estava com a cabeça?!
Como poderia ter pensado que conseguiria
seguir com uma ideia infeliz como aquela,
principalmente sabendo do verdadeiro inferno
pelo qual o marido anterior a fizera noite após
noite passar?
Com nojo de si mesmo e mais rápido do que
Grace conseguia acompanhar, se levantou da cama,
depositando um sonoro golpe em uma das quatro
colunas de madeira que sustentavam o dossel.
Sua respiração estava agitada e ele
permanecia de costas quando, com lágrimas
molhando o rosto, a jovem se organizava sentada
sobre o colchão.
— Pode me tomar como um monstro se
desejar, Grace, mas jamais serei um como Owen
Doyle.

O sono de ambos foi invadido por


pesadelos terríveis naquela noite.
Cassandra poderia estar concentrada em seu
próximo passo, mas, ao perceber que seus
queridos estavam vulneráveis pelas recentes
agitações internas e inconscientes, não resistiu em
ofertar-lhes os agrados que pouco demandavam de
suas energias recém-recuperadas.
Como uma corrente de ar pútrido, que
conhecia dos corredores às rachaduras das
paredes, a bruxa e sua essência agourenta
pareciam se esgueirar por cada canto da casa.
Em dado momento da madrugada, Grace
despertou e acreditou ser um livramento quando
em seu pesadelo estivera prestes a ver Samuel e
Vivienne terem os olhos arrancados por pássaros
bem à sua frente, enquanto se encontrava
amarrada.
Um frio congelante lhe correu a espinha e a
jovem buscou se afastar da imagem de pleno
terror. Não fossem as cenas suficientes, a voz
metálica que escutara no pesadelo anterior e
durante o ocorrido no poço também retornara, mas
dessa vez com ainda mais intensidade. O som era
pavoroso, do tipo que arranhava com unhas
afiadas o cérebro.
A condessa esfregou os olhos e se levantou,
caminhando até a lareira em busca de um pouco de
movimento e alguma distração. Acontece que bem
ali, sobre o estofado de capitonê, acabou por
vislumbrar a peça de renda que vestira mais cedo,
completamente oposta à camisola de algodão que
agora a cobria, e teve os pensamentos invadidos
por lembranças ainda mais infelizes.
Sua relação com Granville havia superado
outros desentendimentos menores, mas temia que
aquele não fosse capaz de conseguir transpassar.
O que ela faria, então?
Clic.
Para sua surpresa, a porta do quarto se abriu
delicadamente, apenas o suficiente para fazê-la
vislumbrar uma faixa do corredor castamente
iluminado.
Grace ponderou por alguns instantes, se
lembrando que da última vez tratava-se de Samuel
do outro lado, mas sabia que não deveria sequer se
iludir sobre tal possibilidade.
— Anne? — chamou, caminhando até lá
com passos sutis. — Anne, é você?
Quando finalmente chegou, abriu a porta um
pouco mais, colocando o rosto parcialmente para
fora. Tudo parecia tranquilo, e começou a imaginar
se a porta não havia sido deixada aberta por
Granville, sendo todo o resto fruto de sua recém-
desperta imaginação.
— A verdade.
Baixo como um sussurro, Grace ouviu a
mesma voz metálica de seus sonhos lhe dizer,
provinda do final do corredor.
— Quem está aí? — A condessa apertou os
olhos, tomando cuidado para não elevar o tom de
voz.
O marido se encontrava algumas portas
adiante e sentia que aquele momento não era do
tipo que deveria ser compartilhado.
— Venha para a verdade, Grace.
A voz voltou a chamá-la, mas, dessa vez,
parecia se encontrar ainda mais distante, como se
descesse as escadas.
Grace olhou para trás e observou a porta
dos próprios aposentos ainda aberta, como se a
convidasse a retornar, oferecendo conforto e
segurança. Porém, em seguida, observou o final do
corredor que dava para as escadas e se lembrou
das palavras que a Sra. Burns por mais de uma vez
lhe dissera: deixe seu lado sensitivo a guiar.
Ela não desejou pensar nos riscos eminentes
e, apesar dos próprios receios, seguiu a voz que
continuava lhe apontando a direção.
Conforme Grace caminhava, a luz provinda
das poucas velas acesas no corredor da ala
privativa ficava para trás. A escuridão ganhava
espaço e seus pés eram comandados pela intensa
atração que a força oculta, mesmo quando calada,
continuava exercendo sobre si.
“A verdade.”
Sim, Grace desejava saber a verdade.
Fossem quais fossem os horrores omissos dentre
as paredes de Granville Hall, já não suportaria
mais viver imersa em tantos segredos que
pareciam sufocá-la da mesma maneira que faziam
a Samuel.
Nuvens escuras cobriam o céu do lado de
fora, o que fazia com que nem mesmo por entre os
escassos vitrais o luar pronunciasse alguma
iluminação. Ainda assim, quase que
instintivamente, Grace seguia.
Ao se aproximar da porta da biblioteca,
ouviu as dobradiças rangerem, denunciando
movimentação.
Seu coração parou, bem como seus passos.
Foi como se apenas então os pés descalços
percebessem o chão frio sobre o qual pisavam. Os
dedos se remexeram roçando a barra da camisola
enquanto o restante do corpo paralisou em um
mecanismo de defesa à espera do próximo
movimento do possível oponente.
Segundos se passaram e Grace notou que
nada acontecia. Impaciente, deu mais alguns
passos até que ouviu a porta ranger novamente.
Dessa vez, entretanto, engoliu seco, reunindo a
coragem necessária para finalmente observar o
que poderia existir do outro lado. Algo agarrou em
seu calcanhar delicado no mesmo instante, e um
salto desastroso foi a primeira ideia natural de
reação.
— Ah! Sr. Claws! — ralhou com o bichano
que a havia atacado com se fosse um roedor e
agora brincava com a barra de sua veste, alheio ao
disparo que havia causado em seu coração.
Grace levou a mão à testa e buscou respirar
fundo. Sabia que o gatinho não tinha culpa de nada.
Meow.
Olhando para cima, finalmente parecia notar
o quanto sua humana estava agitada, como se
tentasse perguntar o que se passava.
— Eu também não sei — Grace respondeu,
voltando a observar o corredor diante de si.
Seria possível estar ainda mais escuro?
— Estamos perto, Grace. Muito perto...
A voz metálica voltou a ressoar e Grace
olhou imediatamente para o Sr. Claws, desejando
observar algum sinal se o gato ouvia. Suas orelhas
não se movimentavam, mas ela percebeu que tinha
o pelo eriçado.
Poderia não escutar, mas havia sentido a
nova interação.
Dessa vez, a voz havia ressoado do interior
do escritório de lorde Granville. Grace voltou a
respirar fundo e, sabendo que não era hora para
regressões, a caminhar naquela direção. Quando
chegou, notou que a porta estava apenas encostada
e não deu tempo para a imaginação florear sobre o
que encontraria do lado de dentro. Para sua
surpresa, no entanto, o interior do escritório
permanecia tão escuro e silencioso quanto o lado
de fora.
Permeando seus calcanhares, Claws
acompanhou a entrada da dama que passou a
inspecionar cada canto, desde as prateleiras
abarrotadas de livros até a parte de trás da grande
mesa.
— Onde você está? — chamou pela
companhia desconhecida, parada no centro do
cômodo.
Esperava vislumbrar alguma coisa.
Qualquer coisa.
A expectativa, o vazio, era o mais
angustiante.
— Consegue saber se desejar. Use o que
tem para descobrir.
Seus poderes.
Os dedos de Grace se apertaram.
A presença, a força, o espírito, ou seja lá
que nome levasse, sabia sobre seus poderes e
buscava testá-los. Tentava jogar com ela.
Um frio desconfortável percorreu seu
estômago. Era a confirmação que precisava de
que, de fato, se encontrava junto da presença
obscura que de alguma maneira se relacionava
com todas as desgraças e mazelas existentes em
Granville Hall.
Mas o que desejava de si?
— E se eu não quiser? — a condessa
desafiou.
Cassandra deu uma risada tão amarga que
conseguiu fazer a agonia percorrer a cabeça de
Grace.
— Não vamos fazer esse jogo, querida.
Você já está aqui. Não teria vindo se não
desejasse saber mais. Se não almejasse tudo,
aliás.
Samuel, inclusive. Cassandra não
compartilhou a última resolução, mas corroía-se
por saber que era a verdade.
Grace olhou para os lados, sabendo que a
voz tinha razão. Que enxergava dentro de si. Havia
ido até ali porque desejava saber a verdade, fora
levada até lá pela promessa e, inclusive, não
acreditava estar realmente disposta a sair sem
recebê-la.
Com mais atenção, a jovem passou a
procurar por algum sinal. Algo que poderia lhe
informar como saber onde encontrar a portadora
da voz e o que almejava.
Foi então que ao fundo de sua mente
apareceu a lembrança do quarto de Samuel e sua
porta camuflada. Considerou que aquele já poderia
muito bem ser um primeiro sinal de que seus dons
e instintos trabalhavam a seu favor.
A jovem passou a caminhar próxima às
paredes, mas a escuridão praticamente completa
não ajudava na missão. Sair do escritório em
busca de fogo para acender as velas dispostas ou
até mesmo a lareira naquele momento, entretanto,
estava fora de questão. Na intenção de apurar mais
a visão, Grace apertou os olhos e foi quando notou
algo verdadeiramente inesperado acontecer: a
paisagem ao seu redor se iluminou.
Mas não foi como se a iluminação fosse
provinda de um fator exterior e sim da própria
visão. Como se ela, mesmo em meio ao breu,
conseguisse enxergar com clareza. A jovem
piscou algumas vezes para constatar que a
percepção era real e permanente, enquanto
continuava a tatear entre as paredes e reentrâncias
das prateleiras, e quando finalmente chegou à área
próxima da lareira, observou a própria imagem
refletida no grande espelho sobre essa.
— Oh! — Afastou-se pela surpresa do que
viu.
Seus olhos não ostentavam apenas o tom
dourado que se assemelhava ao sol, mas pareciam
flamejar como ele.
Ao seu lado, Claws também tinha os olhos
brilhando, algo comum aos felinos quando se
encontram no escuro, mas não parecia tão excitado
quanto ficaria ao ver um novelo de lã.
Gatos.
Grace tomou coragem para se aproximar do
espelho e observar com mais atenção o próprio
reflexo. Era estranho, pois este parecia pertencer-
lhe de maneira única na mesma intensidade em que
não o reconhecia.
— Hum, um belo truque.
A voz continha um tom irônico e amargo
quando voltou a falar consigo e Grace percebeu.
Magia atraía magia.
A Sra. Burns havia dito isso e o poder de
Grace estar aflorando daquela maneira,
demonstrando-lhe facetas inéditas, só poderia
significar uma coisa: a portadora da voz se
encontrava cada vez mais próxima.
Fazendo esforço para retomar o foco, Grace
voltou a analisar o espaço, observando com
atenção, tateando cada reentrância, quando
finalmente notou que o armário disposto em um
dos cantos do escritório, de onde Samuel retirara
licor de pêssego para brindarem na ocasião de seu
casamento — ou no dia em que ela acreditou
assinar os documentos de seu casamento —
possuía um quadro ao lado, mas este não se
encostava inteiramente na parede.
Não havia uma pessoa retratada na imagem,
mas uma paisagem. A paisagem de um jardim.
Os instintos de Grace se agitaram. Era isso.
Ela ainda não sabia como ou qual relação
aquele quadro teria com a voz, mas o caminho até
ela estaria ali. A jovem bruxa o examinou várias
vezes e tentou retirá-lo, mas este parecia fixado na
parede, não simplesmente pendurado.
— Vamos, Sr. Claws, me ajude a pensar. —
Bateu o pé no chão, enquanto olhava para os lados.
Claws pareceu ouvi-la, pois começou a
percorrer o escritório, como se buscasse uma
ferramenta ou solução; ou, talvez, só estivesse
entediado.
O que acontece é que Grace, em seu estado
de reflexão, fechou os olhos para pensar e acabou
apoiando a mão sobre a parte de baixo da
moldura, estabelecendo a pressão exata e
necessária para fazer a passagem omissa atrás do
quadro se abrir com um clic discreto.
Sem acreditar na própria sorte, a jovem a
empurrou um pouco mais na intenção de
vislumbrar o que havia atrás, e pôde ver uma
escada de pedra em formato de caracol e, após
tomar coragem, pisou no primeiro degrau.
No instante seguinte, depois de descer mais
alguns, viu quando Claws a procurava e estava
prestes a chamá-lo, mas a passagem se fechou.

Sem qualquer escolha e também consciente


de que não faria diferente, Grace desceu as
escadas e se surpreendeu ao dar de encontro com
uma antecâmara. Nesta, havia apenas uma porta de
madeira, tão simples que era desprovida de
maçaneta. Um singelo ferrolho a mantinha fechada,
e Grace sentiu o gosto do metal em sua boca ao
tocá-lo; o mesmo gosto de sangue.
Ainda que tivesse tentado se preparar para
o que encontraria, fora impossível não se impactar
com o que viu ao abri-la.
Dentro do pequeno quarto empoeirado,
claramente negligenciado pelo tempo, uma
pequena cama se tornava o detalhe mais comum,
frente aos espelhos que tomavam lados opostos
das paredes de pedra e as rosas murchas e secas
que se espalhavam pelo chão. Automaticamente, a
condessa começou a caminhar na intenção de
observar mais os elementos que via amontoados
em um dos cantos, e não demorou a perceber que
estes eram compostos por punhais, potes, restos de
velas já utilizadas e alguns recipientes sobre os
quais os conteúdos nem conseguia imaginar. Os
dedos curiosos se esticaram para um porta-retratos
caído próximo aos objetos. A moldura estava
virada para baixo e a necessidade de observá-lo
parecia visceral.
— Samuel... — O nome saiu em um
sussurro ao notar que o retrato presente na moldura
era um desenho feito em carvão, simples, mas
visivelmente talentoso em captar as principais
características do rosto de lorde Granville.
De seu marido.
— Lindo, não é?
A porta pela qual Grace entrara se fechou
no mesmo instante em que a voz voltou a ressoar.
A condessa se colocou de pé, com o retrato em
mãos.
Do outro lado do quarto, havia outra porta,
essa devidamente guarnecida por fechadura e
chave, como habilmente fizera questão de
registrar.
— Que lugar é este? De quem é este quarto?
— Grace buscou manter a voz amena, mas seria
mentira dizer que estava perto de sentir-se
tranquila.
Naquele lugar, a atmosfera densa da
presença oculta dominava.
— Isso depende a quem pergunta.
Apesar de Grace não ver ninguém, a voz
parecia rodeá-la, movimentando-se através do
espaço, levando-a a segui-la e fazendo com que o
efeito se tornasse vertiginoso pelo próprio reflexo
nos espelhos.
— Estou perguntando a você.
— E você sabe quem sou?
Cassandra resolveu ser mais provocativa
agora que já tinha atingido o objetivo de atrair sua
presa à armadilha que forjara.
— Pensei que fosse me dizer. — Grace
sentiu algo soprar em seu ouvido e a sensação
carregou arrepios por todo seu corpo. Em seguida,
foi como se lhe acariciassem os cabelos. Mãos
atrevidas se metendo entre os fios.
— E terei mesmo de fazer isso, não é? Já
que ele não parece disposto a lhe contar…
Inconscientemente, Grace ergueu o retrato
de Samuel e fitou os olhos intensos.
— Também fiz isso, sabe? Dei a ele meu
coração, Grace... A história não acaba muito
bem.
Com a respiração agitada, Grace voltou a
girar ao redor do próprio corpo ainda mais aflita.
Do que a voz falava?!
— O que deseja de mim? — Pela primeira
vez a condessa notava algum tremor na própria
voz.
— Não é nada pessoal, praga, estou
apenas cuidando do que é meu.
Grace voltou a ouvir a voz do outro lado,
mas dessa vez, ao erguer os olhos, não se viu
sozinha no reflexo. Atrás de si, agora havia uma
mulher. Ou o espectro pavoroso daquilo que um
dia havia sido uma.
Em um movimento ágil se virou para
encará-la, mas a outra fora ainda mais rápida ao
fazer o mesmo pelo lado oposto, aproveitando-se
dos espelhos para confundi-la e atormentá-la.
Além disso, Cassandra permanecia com uma
risada perversa ressoando de forma aguda, de
modo que as faculdades da pobre, por mais que
tentasse mantê-las, se tornavam comprometidas
naquele ambiente tão impregnado pela energia
maligna.
Tudo ali estava corrompido. Cassandra era
cada parte do lugar.
— Você não deveria estar aqui. — Grace
fechou os olhos, buscando concentrar-se o máximo
que podia. — Vá embora e deixe este lugar em
paz. Deixe Samuel em paz! — vociferou.
Cassandra realmente gargalhou.
O som tão alto e estridente que os dentes da
condessa se apertaram. Dentro de sua mente, sentia
que se continuasse a ouvi-la, poderia enlouquecer.
— Você não sabe quem ele é. O defende
porque não o conhece. Samuel é tão obscuro por
dentro quanto eu. — Grace sentiu o toque frio de
morte voltar a acariciá-la em seu corpo e começou
a se debater, mesmo sem conseguir acertar nada.
— Por isso somos perfeitos um para o outro.
— Samuel é um homem bom! — Grace
voltou a abrir os olhos para afirmar, mas então
teve a visão ocupada pela cena mais pavorosa que
poderia encontrar.
Ao seu redor, as paredes e teto do quarto
eram tomados por sangue, e o líquido escarlate
minava de cada parte, cobrindo o chão e pingando
sobre ela.
Sua respiração começou a falhar. Ela sentiu
o calor das gotas viscosas em seu rosto e mais do
líquido quente alcançando seus pés.
A intenção de Cassandra não era apenas
matá-la. Desejava fazê-la implorar pelo fim ao
causar um verdadeiro inferno em sua mente e, para
isso, utilizava-se de todas as estratégias que
conhecia, desde palavras cruéis até as mais
perversas alucinações.
Aquela seria a vingança pelo atrevimento da
jovem em ter provado o que lhe pertencia.
— Isso é o que há em Granville Hall,
Grace… — a bruxa voltou a falar, vendo a
adversária abalada. — Ele sabia e, ainda assim, a
trouxe até aqui.
Ao final da última fala, notou que Grace
voltava a fitar o quadro com o retrato do marido e
materializou-se na figura esquálida que utilizava
para caminhar através das sombras.
Dessa vez, quando ergueu o olhar para fitá-
la, porém, mesmo tratando-se da figura mais
pavorosa que já vira, Grace não vacilou:
— Eu não acredito em você.
O amargor daquelas palavras poderia ser
imenso, mas naquela mesma noite, mais uma vez,
Samuel havia demonstrado que não era o monstro
que a voz e até mesmo ele desejavam demonstrar.
Possuía uma alma boa. Um coração gentil. Um
coração do qual Grace gostaria de cuidar,
oferecendo todo o afeto que possuía no seu.
A condessa lhe deu as costas e correu em
direção à porta com maçaneta, sabendo que a força
que retirava para caminhar no cenário apavorante
provinha não apenas da própria magia, mas
também do que sentia pelo próprio marido.
Por quem Samuel verdadeiramente era.
Antes que conseguisse alcançá-la, porém,
uma força inesperada tirou seus pés do chão,
lançando-a impiedosamente contra a parede.
Ainda que o som deixasse dúvidas, o grito e a dor
não deixariam: com o golpe feroz, uma de suas
costelas se partiu.
Cassandra se aproximou da figura encolhida
no chão, e Grace sentiu o prenúncio de morte
caminhar ao seu lado. Acontece que os próprios
poderes fizeram o mesmo e, em um movimento
natural de defesa e evolução frente a nítida
ameaça, voltaram a demonstrar à jovem bruxa sua
força quando um calor sem precedentes a tomou
justo na área afetada, próxima ao seio direito.
A magia não restaurava apenas seu corpo,
mas também sua determinação de que, mesmo
frente a uma oponente tão experiente, não poderia
se entregar sem lutar.

Retornando do jazigo da família, Samuel


fora surpreendido quando Claws pulou diante de
si, fazendo um escândalo sem precedentes.
Ótimo.
Em uma das piores noites de sua vida,
ainda teria de enfrentar aquilo.
O conde desviou do bichano e do som
infernal, mas qual não foi sua surpresa quando este
literalmente pulou em sua calça, fincando as garras
em sua perna sem cerimônia alguma.
— Era só o que me faltava! Até o gato nesta
casa é endemoniado?! — Granville sacudiu a
perna tentando se livrar, mas o desespero do
coitado em avisá-lo era tamanho, que Claws se
apegava com força.
Quando finalmente percebeu que já tinha
toda a atenção do aristocrata para si, saltou para o
chão e voltou a miar de modo estridente enquanto
caminhava em direção a um corredor específico.
Samuel estava prestes a xingá-lo quando
seus olhos se apertaram. Imediatamente, se
recordou da ligação que o felino possuía com
Grace e não demorou para perceber que este
parecia chamá-lo.
O conde deu alguns passos na direção que
era indicada e notou que o felino deu mais alguns
passos adiante, aguardando-o novamente.
De fato, lhe mostrava uma direção.
Algo diferente percorreu o estômago dele.
Uma sensação desconfortável, como uma
premonição.
O conde apertou o passo e se surpreendeu
quando o felino entrou no próprio escritório, mas
este encontrava-se completamente vazio.
— Grace? — chamou, ainda que tivesse o
tom de voz desconfiado.
Claws voltou a miar alto, e Granville
percebeu que o fazia diante de um quadro, próximo
ao armário de bebidas.
Granville sabia que o quadro, na verdade,
dava para uma das dezenas de passagens secretas
existentes em Granville Hall, mas como acreditava
que esta ia em direção à cozinha ou algo do tipo,
sequer se lembrava de alguma vez tê-la utilizado.
Abaixo dele, enquanto buscava descobrir
como abrir, Claws miava desesperadamente.
— Diabos! Eu estou tentando!
Após longos minutos arrastando e
pressionando os dedos, Samuel finalmente
encontrou o ponto certo da moldura responsável
por fazer a passagem destravar. O conde observou
a escada de pedras que ela revelava e o sentimento
angustiante crescia enquanto se colocava a descer
os degraus sem nem mesmo considerar.
— Grace?! — chamou assim que chegou à
porta de madeira ao final das escadas, notando-a
trancada. Tentava forçar o ferrolho, mas este
parecia odiosamente emperrado. — Grace, você
está aí? — Samuel forçou o ombro contra a
madeira e sentiu o desespero começar a tomá-lo na
mesma proporção que a presença maligna parecia
aproximar-se.
A presença de Cassandra.
— Samuel? — Do lado de dentro, com a
voz amolecida pelas forças exauridas, Grace
surpreendia-se com a chegada do marido.
A jovem bruxa concentrava-se o quanto
podia em seus poderes, lutando contra a torrente
cruel de alucinações perturbadoras com as quais
Cassandra buscava fazê-la perder o controle da
própria mente, mas começava a sentir medo de não
ser capaz de enfrentá-la estando ali. Naquele
ambiente tão impregnado de sua essência, era
como se Grace não conseguisse suprimentos para
prosseguir; como se agonizasse em busca de ar.
— Desista.
Com os olhos fechados, sem forças para
manter-se nem mesmo de pé, Grace se agachou no
canto da porta pela qual entrara, enquanto a voz
odiosa voltava a ressoar em sua mente junto de
risadas horripilantes.
— Grace, você está aí?! Fale comigo! —
Samuel voltou a gritar do outro lado da porta,
visivelmente desesperado.
— Desista!
A notável preocupação do conde mexia com
Cassandra, deixando-o ainda mais colérica.
Mas também mexia com Grace, que foi
capaz de sentir, mesmo em meio a todo o pavor
pela iminente derrota, se aquecer.
Mesmo após o desentendimento dos dois e
tudo mais que havia acontecido naquela noite,
Samuel estava ali. Fora em busca dela. Grace
esticou a mão instintivamente, tocando-a na
madeira da porta, sem nem mesmo imaginar que do
outro lado o marido fazia o mesmo ao tentar forçá-
la, e, para sua surpresa, sentiu um calor sem
precedentes invadi-la, espalhando-se como um
líquido incandescente em suas veias.
Sua essência.
A proximidade de Samuel e a conexão que
esta estabelecia a recarregava com a própria
essência.
— Samuel, se afaste da porta! — levantou-
se, informando enquanto os olhos se abriam mais
acesos do que jamais estiveram, para encarar os
escuros e nitidamente surpresos da figura
esquálida presente nos inúmeros reflexos diante de
si.
Granville subiu dois degraus e seus olhos se
fecharam por reflexo, impedindo-o de ver detalhes
quando um clarão sem precedentes tomou toda a
antecâmara escura, acompanhado pelo som similar
ao de uma explosão.
Quando voltou a abrir os olhos, a porta de
madeira estava aberta, e Grace caminhava a
passos torpes diante de si. Repentinamente, a
escuridão e o silêncio haviam retornado.
— Grace! — Ele a apoiou na cintura no
exato momento em que o corpo fraco e debilitado
pelo imenso esforço estava prestes a cair.
— Precisamos sair daqui! — Grace pediu,
fazendo o máximo para caminhar em direção às
escadas e demonstrar em sua voz e olhar que havia
motivos para pressa.
Ainda não sabia até que ponto seu último
ato havia conseguido atingir Cassandra, mas não
gostaria de ficar para descobrir e, tão menos, ter
de enfrentá-la diante dele.
Samuel compreendeu a urgência e,
carregando-a nos braços, subiu as escadas o mais
rápido que pôde. Tinha consciência de que apenas
Deus sabia o suplício pelo qual a desgraçada a
havia feito passar.

Quando Grace despertou, reconheceu os


próprios aposentos.
— Como se sente?
Nem bem tinha os olhos abertos, e a voz de
Sam a fez virar o rosto, surpresa por tê-lo tão
próximo. Aparentemente, o marido zelava por seu
sono, sentado ao lado da cama.
Agitada, Grace também se sentou. As
lembranças do que havia acontecido começaram a
invadi-la em uma torrente.
— Quanto tempo faz? — Foi sua primeira
pergunta.
— Grace…
— Por favor, não me diga que passei horas
inconsciente como da última vez…
— Apenas uma hora se passou — Samuel
buscou tranquilizá-la. — Por favor, me diga como
se sente? O que… — Ele esfregou o rosto, pois,
apesar de buscar tranquilizá-la, não estava sequer
perto de sentir de tal modo. — O que ela lhe fez?
Grace o encarou com mais intensidade.
— Como sabe que foi ela? — Sua voz soou
baixa.
Inquieto e nitidamente perturbado, Samuel
se levantou passando a caminhar de um lado ao
outro. A respiração estava tão agitada que se
tornava audível.
— No final das escadas… — Grace
começou a se recordar do cenário apavorante. —
Você sabia?
Os passos dele cessaram.
— Nunca estive naquele lugar. Aquela
passagem, assim como várias outras existentes em
Granville Hall, jamais utilizei. — Foi enfático. —
O que há ali?
— Nem mesmo se quisesse poderia lhe
dizer — Grace foi sincera. — Creio que em algum
momento tenha sido um tipo de dormitório, mas
também se tornou uma espécie de santuário… Eu
não sei.
Os olhos dela se apertaram, e os reflexos da
figura macabra refletida infinitamente nos espelhos
retornaram, bem como a sensação agonizante da
voz que ressoava em sua mente enquanto o sangue
escorria pelas paredes.
O quadro de Samuel em algum momento do
suplício havia deixado suas mãos e Grace sentia-
se culpada por tê-lo abandonado naquele lugar.
— Grace, quem… o que você viu? —
Finalmente, o conde obteve coragem para
questioná-la e Grace buscou o mesmo sentimento
para fitá-lo ao responder.
— Uma presença onde habita apenas o mal
— murmurou, com os olhos tristes. — É ela, não
é? Que jamais permite que a escuridão se afaste de
você?
Cassandra.
Em um acesso de fúria, Granville segurou a
cadeira e a lançou com força para trás.
— Já chega! — vociferou, furioso. — Não
permitirei que essa desgraçada também tire vossa
paz.
Com passos determinados, o lorde
caminhou em direção à porta e não viu quando a
esposa desceu da cama em um pulo, alcançando-o
desesperada.
— O que pensa que está fazendo?!
— Voltarei àquele quarto, Grace. Preciso
deixar claro que as amarguras de Cassandra dizem
respeito somente a mim. Ninguém mais deve ser
obrigado a viver no inferno que criei.
— Não! — Grace se colocou diante do
marido, segurando-o pelos ombros. — Por favor,
você não pode ir até lá. E por tudo que existe de
mais sagrado, por que insiste em se culpar desta
forma? Samuel, por que teima em ser tão cruel
consigo mesmo? — Encarou-o profundamente,
esperando ainda possuir qualquer resquício de
poder em seu toque capaz de acalmá-lo.
Exausto, Granville confessou:
— Não me encarrego da culpa, Grace. Ela
pertence a mim.
Seus olhos pareciam sinceros, mas Grace
relutava em acreditar.
— Sei que esta deve ser a forma como
enxerga. Conheço-o o suficiente para saber que
não faria nada que…
— Grace, a força maligna que assombra
Granville Hall é o espírito de uma criada chamada
Cassandra. — Samuel a calou com as próprias
palavras, afastando-se de seu toque. — A mulher
que, dez anos atrás, eu assassinei.
Grace não esboçou qualquer reação
enquanto o ouvia, e Samuel se esforçava ao
máximo para manter-se firme, encarando-a
enquanto realizava sua confissão, mesmo com a
repulsa que sentia ao proferir cada palavra.
Um peso absurdo parecia deixar seus
ombros, pelo menos. Grace já não o teria como o
mocinho do mundo utópico com o qual teimava em
fantasiar. Saberia de uma vez sobre toda a
podridão que carregava e a que estava condenado,
se não pela falha justiça dos homens, pela
eternidade, através de sua alma.
— Eu não queria ter feito aquilo, mas
confesso que jamais consegui me arrepender
quando, duas manhãs depois, a desgraçada
assassinou meu pai e meu irmão. — Pela primeira
vez, Granville assumia em voz alta tal
consideração, até mesmo para si.
Seus olhos poderiam não estar marejados,
pois carregavam mais sentimentos do que
quaisquer lágrimas conseguiriam condensar, mas
Grace notou que eram tomados por um brilho
vítreo, que conferia ao violeta um tom
praticamente negro. Ela enxergava a escuridão ao
redor dele e percebia que a nascente da dor era tão
profunda que se tornava insondável. Sabia que o
pouco poder que lhe restava após o embate seria
incapaz de fazer esvair tão profundo sofrer.
Além disso, nem mesmo dentro dela
reconhecia, após o relato, se encontrar em posse
da própria luz. A ideia de que pessoas utilizavam a
magia para fins nefandos existia, é claro, pois
assim como toda criação tocada pelo ser humano
esta se tornava passível de subversão, mas Grace
se sentia intimamente culpada por não poder
enxergar uma forma de, através de seu dom,
praticar um bem tão grande quanto todo aquele
mal.
O sofrimento dele a destruía.
— Samuel… — murmurou, mas não
conseguiu se mexer. Lágrimas inundaram seus
olhos e, apesar de buscar contê-las, uma escorreu
até tocá-la nos lábios.
— Não. Não faça isso. Por favor, não tenha
pena de mim. — A voz dele soou arrastada em um
misto de vergonha e fúria interior. — Eu fui o
desgraçado que causou tudo isso, Grace! —
Apontou ao próprio peito. — Ninguém mais além
de mim deveria pagar!
As palavras demonstravam ainda mais de
seu sofrimento e a jovem sentia o coração
contorcer.
— Cassandra precisa saber de uma vez por
todas que não permitirei que machuque mais
ninguém. Que roube vossa paz de espírito assim
como conseguiu extinguir a minha!
Sem ser capaz de observar a esposa por
mais tempo, o conde voltou a caminhar em direção
à porta, desviando-se do corpo feminino, mas foi
novamente interrompido.
— Não!
As mãos delicadas agarraram-se com força
nos ombros largos, levando-o a fechar os olhos.
— Por favor, me deixe passar.
— Eu não posso. — A jovem ergueu os
olhos suplicantes. — Não posso deixá-lo ir até lá
e se arriscar, principalmente agora que sei o que
me contou e com tudo o que vi. — Tinha a voz
tomada pelo desespero.
O que faria se Cassandra se cansasse do
jogo de mantê-lo em seu suplício?
Grace imaginou por rápidos segundos e
percebeu que não suportaria viver em um mundo
sem Samuel, caso a bruxa decidisse matá-lo e
tomá-lo de uma vez para si.
— O que mais ela poderia me fazer? —
Voltando a se afastar, Granville abriu os braços.
— Não percebe? Já sou um homem destruído,
Grace.
Não para mim.
O pensamento correu sua mente e as
palavras tocaram a ponta da língua, mas ela teve
medo de fazê-lo se afastar ainda mais se as
dissesse.
— Ela poderá feri-lo — disse, voltando a
se aproximar. — Samuel, as coisas que me fez ver,
a forma como entrou em minha mente… —
Abaixou a cabeça, levando as mãos a segurá-la ao
lembrar-se dos arranhões que a voz metálica lhe
fizera no crânio.
— Agora você está aqui. — Vendo-a aflita
com a lembrança, foi a vez de Samuel tocá-la, mas
apenas para segurar nos pulsos de Grace e fazê-la
olhar em seus olhos enquanto garantia: — E farei
com que Cassandra compreenda de uma vez que
minha alma será a única que carregará junto à dela
a este inferno que criou.
— Se for até ela agora, principalmente em
minha defesa, Cassandra o machucará. — Grace
segurou os pulsos do marido, invertendo a posição
das mãos. — Por favor, precisa acreditar em mim!
A magia dela é muito poderosa!
— Mas se você foi capaz de sair!
— Mas eu só fui capaz porque…— As
palavras de Grace morreram da mesma maneira
que o brilho determinado em seu olhar, substituído
pelo anuviamento do pavor daquilo que estivera
prestes a dizer.
Nos primeiros segundos, Samuel não
compreendeu a mudança brusca, mas foi questão
de poucos instantes para que a mente encaixasse
cada peça.
Todas as peças, aliás.
Sendo sua vez de ficar mudo, próximo a um
estado catatônico, o conde se afastou com passos
lentos.
Grace ainda ofereceu alguma resistência
contra a quebra de contato, mas o marido foi
enfático na necessidade que sentiu de se afastar,
puxando os próprios braços sem delicadeza.
— Você é como ela... — murmurou. Tinha
os olhos petrificados.
— Não! — Grace deu um passo automático
em sua direção e viu o desespero do marido no
exato momento em que ele se afastava, evitando-a
como se estivesse contagiada com a peste.
Como se despertasse de um estado de
liturgia para qual a preocupação com ela o tinha
tragado até então, Samuel acusou, com a voz
desprovida de qualquer emoção:
— Foi por isso que conseguiu escapar! —
Esfregou o pescoço, sentindo o suor frio se
espalhar entre os dedos trêmulos. — Agora tudo
faz sentido! — Virou-se, sentindo os olhos
vagarem sem rumo de um canto ao outro.
O quarto que em outras ocasiões lhe trazia
calmaria, agora, impregnado com o perfume de
Grace, parecia ampliar seu desespero.
— Samuel… — Grace o chamou em um fio
de voz, sentindo a necessidade que possuía de
negar que ele dizia a verdade lutar contra a
vontade de confessar de uma vez o que era. — Por
favor, me escute! — Não sabia qual resolução
sairia de seus lábios, mas se precipitou na ânsia de
segurá-lo em suas mãos.
— Fique longe de mim! — Granville
vociferou, afastando-se com ainda mais pavor.
Outra bruxa.
Outra mulher que o fazia de tolo ao mantê-lo
como uma marionete em suas mãos!
Sim, agora tudo fazia sentido. Desde o
primeiro momento, no porto, quando sentira uma
força sem precedentes atraí-lo até ela,
absolutamente cada desdobramento que havia
existido entre os dois, era Grace quem comandava.
Os sentimentos que afloravam mesmo quando
reconhecia há muito já estar morto por dentro...
Tudo era fruto de magia.
Mais alucinações.
Em Grace, o desespero por vê-lo desolado
era enorme, mas o medo que sentia agora que
possuía o maior segredo de sua vida revelado era
arrebatador. O que Samuel seria capaz de fazer
movido por tamanha ira? Agora, mais do que
nunca, ela sabia dos motivos que o levavam a ter
aquela reação, e temia que, na cabeça do marido,
sua figura e a de Cassandra tivessem se tornado
uma só.

Quando entrou em seus aposentos, tudo o


que Samuel viu foram vultos, assim como no curto
caminho que percorreu ao sair com passos torpes
do quarto da esposa. Nada que observava parecia
pertencer ao mundo real. O conde duvidava até
mesmo da própria sombra. Desconfiava da própria
existência, dos próprios pensamentos.
Como seria diferente se nem mesmo no que
sentia poderia mais confiar?
Após fechar a porta, Granville correu ao
espelho, desesperado por uma confirmação de que
ainda era ele mesmo. O rosto parecia mais pálido
do que de costume e as olheiras mais profundas.
Dentro de poucos minutos um novo dia chegaria,
mas não era o sono que as causava.
Aquelas eram marcas de um cansaço mais
profundo. De alguém que já não aguentava mais
sofrer.
Em um único movimento arrastou os braços
pela penteadeira jogando os objetos que jaziam
sobre ela no chão.
O barulho do gomil de prata era a
comprovação de um impacto pertencente ao mundo
real e o fez desejar outros. Samuel correu até a
mesa próxima à lareira e começou a lançar os
objetos sobre ela contra a parede e a chutar a
própria mobília violentamente.
Precisava dos sons, do concreto, de uma
válvula mínima de escape para sua fúria
transfigurada em dor.
Ou talvez, fosse o contrário.
A dor aparecera primeiro?
Não!
Ele estava furioso, furioso e apenas isso!
A mentira de Grace não o havia machucado.
Granville era senhor de si e dos próprios
sentimentos, novamente, e não permitiria isso.
— Apenas desgraças, apenas desgraças! —
Com os olhos fechados, ergueu o rosto para o alto
enquanto a face era desfigurada por um sorriso
amargurado. — Conseguiu, não foi? — Quando
percebeu, era com Cassandra que falava. —
Tornou-me isso. Um amontoado de desgraças! —
repetiu, abaixando os olhos que encontraram um
pobre copo sobre o aparador, sendo este
rapidamente reduzido a cacos.
Não sabia até que ponto a bruxa estava
envolvida na mentira de Grace, mas, em sua
cabeça, as duas haviam, de alguma forma, unido
forças contra si.
— Mas você também perdeu, sabe? De tudo
isso, poderá levar uma mente reduzida aos
farrapos e jamais meu coração. — O riso cruel se
alargou ainda mais, transformando-se em uma
risada perturbadora.
É claro que Samuel desconhecia que a
infeliz não poderia estar ali para atormentá-lo.
Após a última provação, o escudo que Grace
formava ao redor de Granville Hall havia se
expandido, o que deixava Cassandra ainda mais
enfraquecida.
Acontece que o silêncio do outro lado
conseguiu elevar ainda mais seu estado de
perturbação. Seus dentes estavam tão apertados
que Granville sentia o gosto de sangue minar em
sua boca.
Caminhou desesperado até o cômodo anexo,
mas assim que se colocou lá dentro e seus olhos
percorreram a cheise long de veludo negro, o
cachimbo e o recipiente que guardava a droga,
percebeu que não desejava esquecer.
A dor que o tomava no peito era tão
excruciante que um desgraçado como ele deveria
degustar.
Dor.
Maldição, mas por que dor?!
Foi a vez do cachimbo de cerâmica ser
lançado ao chão.
Fazia sentido ter sido tomado pela dor
quando perdera a mãe, o pai e o irmão, mas não
naquele momento.
Como era possível sofrer por ter perdido
alguém que jamais lhe pertencera?
A pergunta lhe corroeu as entranhas e ecoou
em sua mente como faria em uma sala vazia.
Não. Grace nunca o havia pertencido e as
lembranças que começavam a invadir sua memória
remetiam aos momentos em que apenas fingira
fazer.
Cada parte dela era parte da armadilha. De
um plano muito bem articulado e composto por
magia. Cada detalhe calculado para enfeitiçar,
desde os olhos de âmbar até o toque cálido de suas
mãos.
Samuel sentiu a garganta secar e a
respiração se tornou difícil.
Não percebeu quando o corpo caiu sentado
sobre a cama, pois estava imerso demais nas
recordações de como o toque de Grace, após seus
anos de martírio e solidão, o fizera sentir. Os sons
que ela fazia quando estava excitada. A maneira
como os olhos faiscavam enquanto o fitava ao
encontrar o êxtase. O som doce de sua voz quando
o chamava da maneira como ele não aprovava na
voz de ninguém, mas que, na dela, parecia tão
correto.
“Samuel…”
Granville fechou os olhos, buscando limpar
a mente repentinamente invadida por cada
momento que até então havia compartilhado ao
lado da esposa.
“Deixe-me ajudá-lo” dissera mais de uma
vez.
Dentro de Granville, a angústia se tornou
mais aguda. O que a esposa deveria desejar com
tal artifício? Sua completa redenção para que lhe
tomasse a razão de vez, entorpecendo seus
sentidos?!
Ele buscava a lógica daquilo, da mentira
infausta, mas não encontrava.
Sentia-se esgotado demais, até mesmo para
raciocinar.
Abaixo da camisa, o vidro que trazia
pendurado sobre o peito pareceu reagir à última
constatação, pulsando, lembrando-o de sua
proximidade.
Bastava estender a mão. O fim para toda
aquela miséria encontrava-se junto de si.
Quando percebeu, segurava-o entre os
dedos trêmulos, observando com mais cobiça do
que em qualquer outra vez.
Seu brilhante plano para finalmente
conseguir utilizá-lo sem culpa havia fracassado de
forma magistral. Dentre todas as mulheres que
poderia eleger para gerar seu herdeiro, havia
escolhido a pior.
Samuel ergueu os olhos rapidamente em
direção ao teto enquanto sussurrava, adiantando-se
em suplicar por um novo perdão:
— Sinto muito, meu pai.
A certeza de que o sangue dos Granville
seria extinto junto de si cristalizava-se a cada
segundo.
As desgraças eram muitas.
Os infortúnios em maior número do que uma
única alma conseguiria continuar a suportar. Temia
não possuir mais forças.
O conde voltou a observar o vidro e seu
polegar acariciou lentamente a cortiça da rolha
diminuta que o vedava.
Quando sentiu o nó em sua garganta mais
intenso, voltou a dar um sorriso trágico. A dada
altura, acreditava que já deveria ter se acostumado
a decepcionar.
Estava tão concentrado que nem mesmo
ouviu quando Folkes abriu a porta, assustando-se
com o cenário de destruição que encontrou e,
principalmente, com a maneira como os olhos do
patrão pareciam fissurados no pequeno vidro em
sua mão.
— Senhor…? — O pobre valete se
aproximou com passos temerosos, chamando em
voz contida.
— Deixe-me sozinho, Folkes — Samuel
sequer fez menção de observá-lo, enquanto
guardava com atraso o vidro na camisa.
A voz não continha qualquer traço de
emoção.
— Senhor, está tudo bem?
A preocupação de Folkes era genuína e seus
olhos corriam entre as peças quebradas e objetos
espalhados pelo chão enquanto esperava
pacientemente por uma resposta.
As mãos de Granville se abaixaram,
apertando com intensidade o colchão ao lado do
corpo.
— Em nome de toda e qualquer
consideração que possa me nutrir, sabe lá Deus
por que, peço que apenas me deixe — voltou a
pedir, com o mesmo tom de voz e olhar fixo à
frente, demonstrando que o valete não obteria
qualquer outro retorno de si.
Quando Folkes finalmente saiu, o fizera com
frio lhe tomando a espinha, e tal sensação apenas
se tornou ainda mais aflitiva, pois, logo na
sequência, ouviu que Samuel trancava a porta.
Grace esperava ansiosamente pelo horário
de sua aula com a Sra. Burns, e se colocou de pé
assim que a tutora entrou.
— O que aconteceu? — perguntou a
senhora, caminhando apressadamente até ela,
demonstrando que já reconhecia algo diferente na
atmosfera da casa.
Com o olhar refletindo todo seu desespero,
Grace compartilhou rapidamente as informações
sobre o novo embate com aquela que agora sabia
poder denominar como Cassandra, mas logo
tratou de esclarecer sua maior aflição:
— Ele sabe, Sra. Burns! Samuel sabe quem
sou e temo que me expulsar seja o mínimo que
esteja considerando fazer. — A voz trêmula a fazia
engasgar em algumas palavras.
A mais velha não conseguiu esconder a
surpresa que a revelação lhe causava e, tão menos,
que incerteza se apossava de si ao ouvir o
desespero da bruxa mais jovem.
— O que ele lhe disse, exatamente? —
perguntou.
Ambas estavam tão agitadas, que sequer
haviam considerado sentar.
— Está crente que omiti tudo por possuir
intenções hostis. Que de alguma maneira utilizei
minha magia para enganá-lo. — Os olhos de Grace
se inundaram ao se recordar do marido proferindo
tais palavras, mas ela conteve o choro. — Não
sinto somente por mim, Sra. Burns, mas temo
porque sei que se Samuel me expulsar não serei
capaz de ajudá-lo, de ajudar Granville Hall e
todos que sofrem aqui! — Mordendo os lábios,
Grace caminhou de um lado para o outro, sentindo
o desespero crescer ainda mais.
— Ele não poderia fazer isso… digo,
poderia, mas não seria o devido. — Burns unia as
sobrancelhas, nitidamente desgostosa.
Grace voltou a observá-la e reparou que a
incerteza em seu olhar se acentuava.
— O que quer dizer com isso? — Buscava
compreender.
— Ah, minha criança… — murmurou a
mais velha, levando uma mão enrugada a lhe
acariciar no queixo. — Existem verdades que não
pertencem a mim para revelar. — Parecia sofrer
verdadeiramente. — Mas, por favor, não desista,
Grace. Precisa continuar acreditando em sua magia
e, mais do que nunca, seguir os instintos de seu
dom. Imagino que, à esta altura, já tenha avançado
na leitura do Livro. Como pôde compreender
melhor lá, tudo possui um propósito.
Grace soltou um suspiro de lamento por
perceber que tudo o que receberia seria mais uma
orientação em forma de incógnita, mas não foi
capaz de cobrar que a tutora lhe entregasse mais
nada enquanto notava nos olhos experientes que, se
pudesse, a Sra. Burns realmente lhe diria o que
deveria fazer.
— Eu preciso ir — a tutora comunicou de
maneira repentina.
O olhar de Grace demonstrou sua confusão.
— Mas…
— Terei de terminar nosso encontro mais
cedo hoje. Há algo que preciso fazer.
Assim como Grace, Burns também desejava
ser de mais ajuda, mas, se realmente fosse fazer
aquilo, precisava ter tempo para refletir, bem
como, encontrar o necessário para validar os
próprios argumentos.

Grace caminhava até a cozinha enquanto


tinha os pensamentos confusos e acrescentava a
postura misteriosa da Sra. Burns à sua lista. Uma
xícara de café, provavelmente, ajudaria em suas
reflexões. Entretanto, quando a jovem se
aproximou da entrada, ouviu a voz suave de
Vivienne a acalentar:
— Por favor, tia Porshia, beba um pouco
mais do chá.
Ao cruzar a porta, notou que a criada se
encontrava ajoelhada diante da Sra. Plymouth,
sentada em uma cadeira enquanto vertia lágrimas.
— Sra. Plymouth? — Aproximou-se,
preocupada.
— Ah, milady! — A mais velha se levantou
rapidamente, soluçando.
— Por favor, permaneça sentada.
Vivienne puxou a tia pela mão, para fazê-la
sentar-se mesmo a contragosto.
— O que houve?
— Não foi nada, eu asseguro, fique
tranquila — respondeu a governanta — Ah,
Vivienne, me deixe secar o rosto, tenho muito o
que fazer.
A tia se desfez do contato com habilidade,
enfiando-se em uma das portas que dava para a
despensa.
Grace observou a amiga, que se colocava
de pé.
— Também não quis me contar... —
confessou. — Tudo o que sei é que ficou assim
depois que o Sr. Folkes lhe confidenciou alguma
coisa, mas ele se afastou ao me ver chegar.
Grace engoliu seco.
— Viu para onde o Sr. Folkes foi, Anne?
— Saiu em direção à porta principal —
informou a criada. — Por que sinto que também
está preocupada, e não apenas pelo que acabo de
falar? O que está acontecendo?
Grace se compadeceu com a nítida
inquietação.
— Estou preocupada com vossa tia, minha
querida, apenas isso. — Fez o máximo que pôde
para disfarçar. — Mas irei em busca do Sr. Folkes
para descobrir o que houve.
E, por mais que tal resposta não tenha sido
suficiente para convencer Vivienne, a jovem não
desejou ser impertinente a ponto de insistir.
Talvez Grace apenas estivesse em um dia no
qual as lembranças de momentos passados se
fizessem mais vívidas, e ela sabia que existiam
coisas sobre as quais simplesmente não se deseja
falar.
Há muito a vida a fizera compreender que
cada coração era responsável por abrigar um
universo carregado de segredos.
Após sua busca, Grace constatou que o
valete não se encontrava mais no interior da
mansão e passou a procurá-lo no jardim, não
demorando a encontrá-lo no galpão.
— Senhor Folkes? — anunciou a própria
chegada.
O valete estava sentado no mezanino, com
os olhos murchos e a face abatida de um modo que
jamais o vira, nem mesmo quando doente.
— Ah, olá, milady. — Ele se levantou,
vendo-a caminhar em sua direção.
Grace subiu as escadas e postou-se diante
dele.
— Não sabia que apreciava jardinagem. —
Notou que trazia uma pequena pá de plantio entre
os dedos.
— Não sou bom, para ser sincero —
assumiu Folkes. — Nem sei por que estou
segurando isso. — Soltou um suspiro lamurioso.
— Está tudo bem. — Grace foi
compreensiva. — Todos nós fazemos coisas sem
motivos, às vezes. Apenas achei curioso pelo fato
de nunca ter visto o senhor nos jardins desde que
eu e Vivienne começamos a mexer aqui. Sempre o
vejo trabalhando do lado de dentro.
Folkes balançou a cabeça, soltando outro
suspiro.
— Creio que hoje esteja destinado a falhar
em meus serviços — Esfregou o rosto, nitidamente
cansado.
— Por que diz isso? — Grace não
compreendeu a fala e temeu pelo tom lamurioso
novamente empregado.
Folkes voltou a fitá-la com o olhar triste ao
dizer:
— Lorde Granville me proibiu de entrar em
seus aposentos essa manhã.
Imediatamente, Grace se recordou do vício
omisso do marido e do que tal proibição, após
tudo o que havia se passado entre eles na
madrugada anterior, poderia significar. Foi
impossível não se recordar do olhar de Samuel e
seu nítido estado de perturbação. Além disso, se
fosse necessário algum outro indicativo de que
suas ideias trilhavam o caminho certo, havia o
choro da Sra. Plymouth, a quem o Sr. Folkes
provavelmente havia compartilhado o que sabia
sobre as atividades autodestrutivas do conde.
— O que ele faz lá, Sr. Folkes? — A
suavidade desapareceu do tom de Grace, dando
lugar à aflição.
De uma vez por todas, precisava saber.
O valete observou os olhos da condessa
com intensidade e notou o quão genuína, mais uma
vez, se mostrava sua preocupação. Mesmo se
quisesse, daquela vez, não teria forças ou coragem
para lhe negar:
— Jamais pensei que diria isso algum dia,
mas bendito seria aquele quarto se apenas o ópio
fizesse companhia a lorde Granville.
— Ópio? — Grace murmurou a palavra. —
É este o vício de Samuel? — Seu peito sofreu um
novo golpe ao imaginar que o marido procurava
afago no entorpecente que as pessoas buscavam
para fugir da realidade.
Sabendo de todo o sofrimento e sentimento
de culpa que o cercava, como poderia julgá-lo?
Folkes balançou a cabeça.
— Mas por que diz que não é apenas o que
o acompanha? — Ela sentiu o coração acelerar.
— Porque lorde Granville possui outro
apego ainda mais nocivo, e o leva junto ao peito.
— Folkes apertou os olhos, lembrando-se da cena.
— Hoje pela manhã, quando entrei em seu quarto,
o vi observando com mais intensidade do que em
qualquer outra vez a dose de veneno que carrega.
— Ergueu os olhos para fitar a condessa, sabendo
que sua fala iria chocá-la, e surpreendeu-se com o
retorno:
— Trata-se de veneno, realmente? — A voz
de Grace soou trêmula.
— Então, já viu?
— Apenas uma vez —murmurou. — Sr.
Folkes, por que Samuel…
A pergunta não precisou ser concluída. O
olhar que o valete lançou foi capaz de respondê-la
com algo que, agora, ela compreendia que não
desejava jamais ter de saber.
Mais do que sentir o coração se despedaçar,
foi como se um buraco se abrisse no peito de
Grace.
— Intimamente, sei que se trata de uma
possibilidade que contempla há anos. — O valete
voltou a ter o olhar vazio adiante enquanto falava.
— Porém, quando decidiu se casar, acreditei que
ter uma esposa poderia fazê-lo reaver algo de bom
na vida… — Deu um sorriso triste. — Agora
percebo que, talvez, buscasse apenas conseguir
aquilo que o impedia de concretizar seu maior
desejo.
— Eu não o entendo… — murmurou Grace,
incapaz de reprimir as lágrimas de dor que lhe
escorriam pela face a dada altura.
— O conde amava a família, milady. Jamais
seria cruel a ponto de deixá-la sem um herdeiro
para conduzir o nome dos Granville.
As lágrimas da condessa já estavam secas
quando voltou a entrar na mansão, tão furiosa
quanto jamais estivera.
Grace sequer reconhecia a si mesma.
Ao ouvir as palavras de Folkes, acreditava
ter perdido parte substancial da própria razão.
— Ah, bom dia, milady. — Carter havia
chegado há poucos minutos e saía do corredor do
escritório quando cruzou seu caminho. — Por
acaso, sabe me informar onde está Granville?
— Tenho uma vaga ideia, mas logo saberei
exatamente onde não desejaria estar — soltou o
comentário irônico, pouco típico de si, sem nem
mesmo observá-lo ao continuar seu caminho.
Carter abriu os olhos com surpresa e esticou
os lábios, reconhecendo com sabedoria que o
amigo deveria estar muito encrencado.
— Milady? — Vivienne, que entrava no
hall, ouviu o comentário e notou a postura agitada
de Grace, chamando-a com preocupação, mas
Carter a segurou gentilmente pelo pulso.
— Eu não me meteria nisso, se fosse você
— sussurrou, aproximando-se do ouvido da moça.
E Vivienne poderia não ter a intenção de
seguir a instrução, mas a maneira como tal
proximidade a perturbou fora surpreendente, o
suficiente para fazer a jovem devolver a William
um olhar ressabiado e, logo em seguida, se afastar
em direção à cozinha.
Samuel tinha tanto barulho em sua cabeça
que só foi capaz de escutar que batiam em sua
porta porque era feito um verdadeiro estardalhaço.
— Mas que inferno, Folkes! — ralhou,
sabendo que deveria ter imaginado que o valete
não lhe deixaria em paz por muito tempo.
O conde avançou em passos duros até a
porta para abri-la na única intenção de expulsá-lo
novamente, mas não teve tempo de atestar o
próprio engano, visto que Grace avançou dentro
do cômodo, fechando-a com uma batida feroz.
A expressão dela era feroz.
— Então esse era o seu brilhante plano?! —
acusava em tom tão duro que Granville mal a
reconhecia.
— O quê?!
— Pretendia me usar para atender vossos
objetivos e em seguida descartar, como todos os
outros fizeram! — Dessa vez, já não perguntava, e
Samuel sentira um fundo de mágoa no tom
utilizado.
— Do que está falando?!
Por acaso, ele tinha fumado e não se
lembrava? A presença dela seria fruto do ópio? De
alguma alucinação?
Grace deu três passos adiante, ficando
extremamente próxima, e Granville sentiu o corpo
tremer. Gostaria de acreditar que era pelo que
agora sabia sobre a esposa, mas reconhecia que
eram outros os motivos que o faziam reagir de tal
maneira a tamanha aproximação.
Grace ergueu os dedos em direção ao seu
tórax.
Santo Deus.
Sabia que deveria se afastar, mas a ideia de
que ela desejava tocá-lo fez sua racionalidade se
esvair.
— Estou falando sobre isso!
Diferente do que imaginava, os dedos de
Grace não buscaram sua pele, mas o colar que
carregava no pescoço. O olhar que a esposa lhe
lançou deixava claro o que sabia. Com qual
objetivo carregava a dose junto ao próprio
coração.
— Não ouse — acusou ele. — Até mesmo
para alguém como você, seria cruel equiparar o
que cada um de nós omitiu.
— Alguém como eu? — A garganta de
Grace oscilou.
O quão baixo ele a tinha nas próprias
considerações?
— Solte isso. — Granville puxou o
pescoço, mas os dedos delgados se fecharam com
ainda mais força ao redor do pingente.
— Pode se julgar o melhor entre nós, mas
minha mentira não possuía a intenção de ferir e,
muito menos, como fim, extinguir a vida de
alguém. — Grace voltou a utilizar o tom de voz
firme, sem deixar de encará-lo. — Não permitirei
que me subjugue, Samuel, como todos os outros
fizeram.
Incrédulo sobre a nova estratégia de
manipulação que a esposa forjava, foi a vez do
conde se aproximar, intimando-a com o próprio
corpo.
— Não irei mais acreditar em você. Agora
sei o que é, e não me deixarei enfeitiçar.
Surpreendendo-o, ela deu um sorriso triste,
sem deixar de fitá-lo.
— Apesar de todos que conheci enxergarem
como uma maldição, sempre compreendi minha
magia como um dom. Um dom através do qual sou
capaz de cuidar. De curar. — A tensão no pescoço
dele pareceu diminuir, o que fez Grace encontrar
coragem para prosseguir: — E acredite, não teria
mais essas malditas lembranças e ideias em vossa
mente se fosse mesmo capaz de usar os feitiços
dos quais fala. — As palavras dela cessaram por
alguns instantes, enquanto o via absorver a
informação. — Se soubesse fazê-los, aliás,
utilizaria um em mim mesma para esquecer o que
Folkes me contou. — Abaixou os olhos ao
perceber que as lágrimas desejavam retornar.
Com tanta informação para processar, e
ainda sem saber se poderia ou não confiar no que
ela dizia, Samuel se manteve imóvel, incapaz de
responder e, por isso, fora ela quem prosseguiu:
— Iria se livrar de uma existência maldita
para condenar-me a ela, Granville — confessou
em um sussurro, deixando as mãos finalmente
caírem ao lado do corpo, revelando o próprio
cansaço. — Não imaginou que seria este o mesmo
meu destino? Buscar em desespero qualquer
alternativa que me ajudasse a esquecer? — Olhou
em direção ao quarto anexo, deixando claro a ele
que conhecia mais aquela dentre todas as suas
falhas.
Mas muito maior do que a preocupação de
tê-la sabendo sobre o ópio, se tornava para
Granville compreender sobre o sentimento que
Grace, de modo singelo, revelava.
— Maldição, Grace, eu disse que não
poderia…
— Apegar-me a você? — Ela voltou a
encará-lo. — Pois trata-se de uma péssima ideia
quando se oferece tudo a alguém que jamais
possuiu nada.
Ela sentiu quando as lágrimas represadas
começaram a escorrer, e não se esforçou para
contê-las. Estava exposta naquele momento,
disposta a ser o mais transparente possível para
que Samuel fosse capaz de vislumbrar através de
si o que se passava em seu coração.
— Como disse, apesar de minha família
enxergar a magia como maldição, sempre a
considerei uma dádiva. Não poderia ter sido
diferente quando compreendi que era capaz de,
além de enxergar, sanar as aflições e dores
daqueles que sofrem ao meu redor, por mais que
ainda esteja buscando entender como posso fazer
para utilizá-la de modo completo — Grace esticou
a mão, tocando-o delicadamente no peito, quando
voltou a sussurrar: — Samuel... me permita curá-
lo…
O silêncio dele se tornou absoluto nos
instantes seguintes, e ela sentiu uma dose mínima e
indevida de esperança penetrar em seu peito,
apenas para ser violentamente arrancada quando o
marido voltou a se afastar, reafirmando:
— Eu não posso.

Sombras começavam a ser projetadas sobre


a pedra do jazigo, denunciando a chegada de um
novo dia.
Samuel havia perdido a noção de quantas
horas passara imóvel diante do sepulcro da
família, tendo-o mais silencioso do que nunca.
Não era mais capaz de captar a presença dos que
amava, e acreditava que fosse sua culpa não
conseguir senti-los.
Talvez estivesse completamente morto por
dentro, finalmente, e precisasse apenas terminar
com o restante de uma vez. Além disso, também
não julgaria se os ancestrais o renegassem. Ele
mesmo o faria se pudesse, ainda mais depois do
que tinha visto ser capaz de fazer Grace sentir.
Sim, diabos, Samuel se importava com ela,
e o fazia muito além do que desejava considerar.
No dia anterior, as lágrimas da esposa se
tornaram ainda mais abundantes após sua última
recusa, e soluços de dor se juntaram ao choro
lamurioso quando fora enfático ao determinar que
deveriam apenas esperar a chegada de suas
próximas regras para estabelecer o que seria feito
sobre o casamento; ou a anulação deste, em outras
palavras.
Granville jamais se acostumara a ver uma
mulher chorar, é verdade, mas as lágrimas de
Grace conseguiam ser piores do que todas as
outras. As delicadas gotas, aos seus olhos,
pareciam peças de cristal que ao invés de escorrer
tomavam forma sólida e afiada e, uma a uma, eram
cravadas como pequenos projéteis em seu
avariado coração.
“Se no caminho percorrido houve honra e amor,
este jamais terá sido curto demais.”
Samuel leu o epitáfio pela milésima vez e
suspirou.
Jamais teria a vida da qual o pai se
orgulhava e, graças a ele, Frank também jamais
tivera.
Deu um passo adiante, passando os dedos
sobre o nome do primogênito, gravado na pedra
fria. A dada altura, sobre a superfície das estátuas
de anjo que rodeavam o jazigo, o sereno da noite
condensava, levando-os a também chorar.
Mesmo se estivesse disposto a ignorar o
que Grace era, a mentira que lhe contara e a
maldição que o impedia de amá-la, tinha
consciência de que não seria capaz de usufruir do
fruto de um roubo, pois era assim que se sentiria,
caso possuísse a vida que deveria ter pertencido
ao irmão.
A possibilidade era tão hipotética quanto
ridícula, é claro.
Ele não poderia. Era algo fora de questão.
Não havia por que se ludibriar.

Mais algumas horas adiante, Samuel voltava


para o interior de Granville Hall quando escutou
um assovio.
Carter apeou no cavalo com destreza e
surpreendeu-se ao perceber que o conde não
notara sua aproximação enquanto cavalgava.
— Finalmente o encontrei, Sam! Parkins
está desesperado em meus calcanhares e virá
pessoalmente em busca dos documentos que
enviou para Grace assinar — informou, deixando
o cavalo preso pelas rédeas a uma pilastra para
seguir ao lado do amigo. — Como sei que não o
agrada a visita, devo dizer que se não apressarmos
as coisas...
— Grace não precisa assinar mais nada. —
Não lhe dirigiu sequer o olhar ao responder,
seguindo em direção à entrada.
William estagnou nos primeiros degraus.
— Por que diabos diz isso, homem?
— Com todo respeito — Granville parou de
caminhar com a mão sobre a aldrava, mas não se
virou —, não é da sua conta, Carter. — Em
seguida abriu a porta e entrou, ciente de que,
naquele momento, aquela era a melhor resposta
que teria a oferecer.
O som da porta sendo fechada ainda
ressoava aos ouvidos de William quando um bem
mais delicado o fez desviar o olhar em direção ao
galpão.
Demorou um pouco para acreditar que se
tratava da realidade, e não de um sonho, mas
aquilo fora realmente um chamado que, guiado
tanto pela curiosidade quanto pelos anseios
secretos que guardava sob o peito, o cavalheiro
fez questão de atender.

O conde foi surpreendido quando, ao entrar


em seu escritório, encontrou diante da própria
mesa a tutora da esposa.
— Sra. Burns. — Buscou recompor-se ao
mínimo, puxando as mangas da camisa amassada.
— Em que posso ajudá-la?
Apesar de seus receios, Burns resolveu ser
pontual:
— Estive durante as últimas horas buscando
orientação e ponderando se deveria ou não
compartilhar uma verdade que não me pertencia,
milorde, mas as circunstâncias atuais me fizeram
reconsiderar e por isso estou aqui para falar com o
senhor.
Já do outro lado da mesa, Samuel uniu as
sobrancelhas.
— Creio não estar entendendo…
— O senhor se recorda quando ou como me
conheceu? — perguntou.
— Quando ainda era bastante jovem,
através de minha mãe.
Apesar de não entender o objetivo daquilo,
Granville respondeu rapidamente, pois se lembrou
com facilidade da primeira vez que a mãe levara a
tutora para auxiliar ele e Frank com algumas aulas
extras de gramática, por mais que passasse mais
tempo em longos diálogos com a condessa do que
se dedicando às lições dos meninos.
Sem lhe oferecer qualquer retorno, a tutora
levou a mão ao bolso do casaco bordô que vestia,
retirando de lá uma missiva.
— Leia isto, por favor.
Granville esticou a mão e tomou entre os
dedos o papel amarelado pelo tempo, abrindo-o e
correndo rapidamente os olhos pelas linhas.
Não demorou muito para que se
arrependesse da leitura dinâmica, uma vez que
tivera de reler a carta mais de uma vez para
acreditar nas palavras registradas.
A missiva era curta e parecia conter um
pedido no qual uma bruxa solicitava ajuda para se
afastar da magia por ter encontrado algo com o
qual, ao invés dos poderes, preferia se
estabelecer.
A respiração de Granville se tornou agitada
e os olhos violeta, por cima da missiva,
derramaram sobre a figura da tutora a verdade de
sua conjectura.
Aquilo significava que Burns também
era…
— Por que me entregou isso? — questionou,
com toda a desconfiança do mundo transmitida em
sua voz.
— Porque precisa saber, milorde, que foi
desta maneira que conheci vossa mãe.
Burns aproveitou que Granville permanecia
em estado de choque e levou à luz mais detalhes:
— Algumas pessoas nascem com a magia,
enquanto outras necessitam ir em busca se desejam
encontrá-la. Assim como Grace, vossa mãe
pertencia ao primeiro grupo. Era extremamente
poderosa. — Os olhos de Samuel se ergueram
enquanto o conde era impactado pela nova fala,
tomando enfim conhecimento de que Burns sabia a
verdade sobre a esposa, e estava tão absorto
dentre todas as revelações que se manteve calado
enquanto a ouvia prosseguir: — Não demorou para
que lady Lucille percebesse que um talento como o
dela, uma magia como a dela, poderia atrair
forças semelhantes, mas que estas poderiam servir
tanto ao bem quanto ao mal.
A garganta de Granville oscilou.
— O que isso quer dizer?
— Que vossa mãe me enviou esta carta
assim que percebeu estar apaixonada por vosso
pai, o então Conde de Granville, e que ele
correspondia ao sentimento e desejava desposá-la.
— Burns deu um sorriso nostálgico ao se recordar
da jovem que então se tornara uma amiga. — Lady
Lucille estabeleceu como única prioridade de sua
vida o bem-estar da família que desejavam formar,
e buscou meu auxílio para tanto, desejando saber
se havia algum modo de se afastar definitivamente
da magia. — A bruxa se inclinou, observando o
conde com sentimentalismo. — Percebe, milorde?
Vossa mãe sempre esteve disposta a se sacrificar
por vocês.
— Mas como sabia sobre a senhora? E meu
pai... ele...?
— Se algum dia chegou a contá-lo, eu nunca
soube. — Burns foi sincera. — E minha
participação nessa história não aconteceu por mera
coincidência. — Um sorriso perspicaz se
desenhou nos lábios maduros. — Como disse,
vossa mãe pertencia a um grupo, e não foi a única
filha da aristocracia a nascer com tais dons, ainda
que se faça silêncio sobre isso por razões que a
História nos ilustra. — Torceu os lábios,
demonstrando desaprovação. — Quando ainda era
muito jovem, orientei vossa avó sobre os poderes
que ela possuía e como poderia controlá-los.
— Como minha avó…?
— Existem muitas coisas sobre este lado
que as pessoas comuns ignoram — Burns resumiu
—, mas àqueles que buscam referências sobre
magia, podemos dizer que sou uma das maiores
autoridades existentes na Grã-Bretanha há alguns
séculos.
— Séculos?! — Samuel abriu os olhos ao
repetir a palavra, sem omitir seu espanto.
Em seguida, caiu sentado na cadeira, pois
sua constituição inteiramente humana lhe cobrava
isso.
— Milorde, precisa saber que nem todos
possuem a chance de uma tutoria adequada como
vossa mãe teve, principalmente os menos
privilegiados, que não raramente pertencem ao
segundo grupo, e buscam na magia alguma maneira
de fazer justiça com os próprios meios. — Burns
deixou as mãos se apoiarem sobre a mesa, e o
encarou intensamente. — Essas pessoas, muitas
vezes, acabam por receber o conhecimento de
forma deturpada e utilizam a magia para espalhar a
maldade e o caos. Creio que seja este o caso da
entidade maligna presente em Granville Hall.
— O que sabe sobre isso? — A voz de
Granville voltou a se erguer.
— Creio que mais do que eu mesma
imaginava — Burns confessou. — Inclusive,
também estou aqui para confessar que tal entidade
pode ter relação com vossa mãe.
— Com minha mãe?!— Samuel voltou a
ficar de pé, enfiando os dedos nervosos nos
cabelos.
Aquilo não era possível.
Ele não permitiria que a existência pútrida
de Cassandra tivesse absolutamente nada em
comum com a da mãe.
De repente, uma dúvida absurda lhe
ocorreu.
— Isso tudo significa que eu e Frank
também... de alguma maneira…?
— Ah, não, milorde — Burns negou
enfaticamente. — A magia realmente pode ser
passada através do sangue àqueles que são
primogênitos de bruxas, mas não se trata de uma
regra. Além disso, existe uma razão para buscar
em nós, humanos, seus caminhos e o faz melhor
através do que denominamos como Sagrado
Feminino, devido à conexão que este nos permite
com a fonte basal de magia existente em nosso
planeta: a natureza.
— Isso significa que apenas mulheres
podem ser bruxas pelo meio “natural”?
— Bom, seria generalizar dizer que apenas
nós somos escolhidas para tanto, mas compomos
uma imensa maioria. São extremamente raras as
ocorrências em que meninos nascem com poderes
herdados da mãe. Não me recordo de ter
conhecimento de alguma, inclusive, há mais de
dois séculos.
Séculos.
Por Deus. Sempre que Burns repetia a
expressão, Samuel sentia a necessidade de apertar
os olhos para conferir se não estava, realmente,
tendo uma alucinação sobre aquele diálogo.
— Quais eram… — Ele não conseguiu
concluir a pergunta seguinte. Pareceu-lhe absurda
demais.
— Os poderes dela? ​— Burns fez questão
de dar sequência e responder: — Similares aos de
Grace. Conseguia atenuar aflições; curar
sofrimentos e dores. Assim como a vossa esposa,
era uma alma bondosa. — O carinho na voz de
Burns se tornou evidente.
— Mas isso não faz sentido — rebateu o
conde. — Se seu poder era curar, como pôde
morrer tão jovem?
— Na verdade, a explicação pode estar
justamente na magia. — Burns afastou a cadeira
diante de si e também se acomodou. — Quando
lady Lucille adoeceu, já estava no processo de
desligamento há algum tempo. Entretanto, à medida
que este progredia, levava consigo parte
substancial de sua essência.
— Quando disse que ela estava disposta a
se sacrificar — Samuel murmurou.
— Dizia no sentido literal. Para uma bruxa,
desligar-se de sua essência é o mesmo que podar
suas raízes mais profundas. Algumas permanecem,
mas grande parte de sua energia vital se esvai, e
ela estava ciente disso quando decidiu fazê-lo para
mantê-los seguros. Ainda assim…
— Ainda assim?
— Não foi suficiente — assumiu Burns,
desolada. — Como já disse, a magia que lady
Lucille carregava possuía um brilho singular, e foi
capaz de atrair outros, mantendo seu propósito,
mesmo quando enfraquecida.
Como se fosse golpeado pela fala,
Granville inclinou o corpo tenso para trás.
— Não pode estar dizendo o que penso que
está.
— Milorde, os antigos registros profetizam
que cada uma de nós, que nascemos com o dom,
possuímos aquilo a que chamamos de propósito...
— Não! — Granville deu a volta na mesa,
sem conseguir controlar o próprio corpo.
— Creio que curar a alma de Cassandra
fosse o propósito de sua mãe, e que o destino a
tenha feito atraí-la para Granville Hall a fim de se
concretizar.
— Curar Cassandra?! — Quando Samuel
voltou a se virar, tinha o semblante desfigurado
pela fúria.
— Quando almas permanecem presas a este
lado, como é o caso dela, é porque possuíram um
passado cruel. Estão doentes e, assim como
qualquer enfermo, necessitam de auxílio para que
possam se curar.
— Não pode estar falando sério. —
Granville soltou um riso anasalado de puro
escárnio.
A testa estava lustrosa, banhada em suor
frio.
— O mestre que a instruiu sobre a magia
deve tê-la corrompido quando ainda era jovem
demais para compreender — Burns seguiu
argumentando.
— Não me peça comiseração — Samuel
voltou a rosnar. Em seguida olhou ao redor do
cômodo, até que seus olhos caíram sobre o quadro
que segredava a passagem e gritou, como se
falasse diretamente com Cassandra: — Não terá
isso de mim!
Burns notou a intenção do conde e
esclareceu:
— Ela não pode entrar aqui. — Ele voltou a
encará-la. — A cada dia que passa, a presença de
Grace se torna mais intensa em Granville Hall, e
seus poderes aumentam a cada embate direto que
há com Cassandra, expandindo-se ao redor da
mansão como um escudo. — Notou quando a tez
de Granville voltou a se tornar lívida e o conde se
deixou cair novamente na cadeira.
Samuel apertou os olhos, e passou a
esfregá-los com força, como uma criança que
deseja despertar de um pesadelo.
Estava mesmo falando sobre aquilo?
Teria perdido de uma vez o controle de
suas faculdades mentais?!
— Não.
Rígida como uma vara, as costas do conde
grudaram no espaldar e ele voltou a fitar a tutora
que agora parecia capaz de ler seus pensamentos.
Burns não precisou dizer uma única palavra,
oferecendo um sorriso discreto que dizia “sim, eu
posso fazer isso se desejar” para deixar claro que
suas mais recentes e assustadoras suposições
estavam corretas.
— Milorde, o principal motivo que me fez
vir até o senhor, munida de tantas verdades esta
manhã, foi o fato de saber que estava prestes a
cometer um terrível engano sobre Grace. — Por
fim, Burns resolveu redirecionar suas energias ao
tema central.
— A senhora sempre soube, então? — Era
inevitável que se sentisse traído.
— Desde o primeiro momento em que a vi
— a bruxa confessou. — Naquele dia, percebi que
Grace possuía aqui seu propósito, ainda que
nenhuma de nós possuísse clareza sobre qual este
poderia ser. Porém, se em nossos primeiros
contatos acreditei que se tratava de utilizar seus
poderes para salvar Granville Hall e ao senhor,
agora noto que estive enganada.
Salvá-lo.
Samuel engoliu seco frente à perspectiva.
Há muito desconsiderava para si qualquer
perspectiva de salvação.
— Não me peça para compreender o que
diz. — Balançou a cabeça, exausto.
— O que digo é que agora compreendo que
a condessa foi enviada, sim, para cumprir seu
propósito em Granville Hall, mas que este trata-se
de concluir o que deveria ter sido feito por vossa
mãe.
Um silêncio sepulcral tomou conta do
escritório, mas foi gradualmente ocupado por uma
risada cruel que aos poucos Granville deixava
escapar do fundo da própria alma amargurada.
Frente ao acesso que o fazia parecer um
homem tomado pela insanidade, Burns permaneceu
impassível. A sabedoria e paciência eram seu
resguardo absoluto.
— Deseja que eu acredite que
absolutamente tudo o que aconteceu foi obra do
destino? Que o que houve com meu pai e irmão foi
necessário para que Grace estivesse aqui e o ciclo
deixado por minha mãe fosse encerrado?
— Exatamente.
Samuel bateu na mesa com a risada se
tornando ainda mais estridente.
Ah, Deus, agora sim, ele sentia. Estava a um
passo. Não, ainda menos, a um mísero sopro de se
tornar completamente louco!
— Por mais trágico que tenha sido...
— “Por mais trágico que tenha sido”? —
Samuel ironizou se inclinando, encarando-a com
os olhos esbugalhados e tão de perto que Burns
sentia sua respiração nervosa.
A dada altura, a risada incessante
misturava-se às lágrimas de desespero que
passavam a banhá-lo.
Pobre daquele espírito que perdia
definitivamente o controle para as próprias
aflições.
A ideia de que as desgraças não cabiam
somente a ele fulgurava como uma luz ofuscante
responsável por assustar a um animal há muito
escondido nas sombras da mais profunda e
inóspita caverna. Era tentadora demais. A tal ponto
que Granville sabia que não conseguiria através
dela caminhar.
Ele não poderia aceitar.
Abrir mão da culpa seria abrir mão do
elemento sobre o qual forjara a estrutura do
próprio destino ao longo de toda uma década.
Burns percebeu que as reflexões às quais o
conde necessitava se entregar eram de cunho
estritamente pessoais e resolveu que, ao menos por
ora, já havia oferecido o que podia.
— Estarei de volta para a aula da condessa
pela manhã. Entretanto, se necessitar de mim antes
disso, saberá onde me encontrar. — Antes de
partir, depositou a missiva de lady Lucille sobre a
mesa, e mesmo com a visão turva pelas lágrimas,
Samuel percebeu que deixara o lado com o
endereço do destinatário virado para cima.

William Carter considerava-se um homem


vivido.
Primogênito de uma boa família, com
sangue nobre, aliás — ainda que o pai houvesse
renunciado ao título para desposar a mãe de
origem plebeia —, havia tido a oportunidade de
viajar e conhecer bastante do mundo, diversos
países e culturas. Tendo recebido uma boa
educação desde garoto, era natural que dominasse
inúmeros idiomas e que conseguisse manter os
mesmos dons comunicativos com os quais fora tão
afortunado onde quer que estivesse, inclusive, para
lidar com as mulheres.
Entretanto, ali no galpão dos jardins de
Granville Hall, ao atender ao chamado da dama da
condessa, foi acometido por um nervosismo sem
precedentes ao notar que as palavras simplesmente
lhe esvaíram; nem sombra restava, em qualquer
idioma. Toda a versatilidade que na profissão de
advogado era bem-vinda, inclusive, tornara-se pó.
— Sinto muito se o atrapalhei, Sr. Carter. —
A primeira fala de Vivienne viera acompanhada de
um olhar desconfiado, demonstrando que a jovem
estava incerta sobre o tipo de reação que deveria
aguardar.
À percepção de Anne, o silêncio do amigo
de lorde Granville não foi um bom indicador.
— Eu não fazia nada — Carter esclareceu,
de imediato. — Digo… claro que fazia algo, pois
não faria sentido a um cavalheiro que se preze
entregar-se ao completo ócio, e lhe garanto que
não sou esse tipo de homem. O que quero dizer é
que não fazia nada de importante… digo, não que
ocupe meu tempo com bobagens, mas… —
Resolveu que seria melhor se calar, engolindo
seco.
Aos poucos, a expressão da jovem se
alterou, ficando confusa.
Carter desejou acertar a própria face pela
quantidade de asneiras que dizia. Não era a
primeira vez que a boca se tornava um torvelinho
de lorotas ao tê-la por perto.
— Bom, então, se estava ocupado, buscarei
ser o mais breve possível — ela resolveu
prosseguir.
— Mas eu não estava! — ele voltou a
enfatizar o contrário do que dissera há pouco,
dando um passo resoluto à frente, se aproximando
do corpo feminino.
William não desejava que o encontro
terminasse rapidamente. Na verdade, afastar-se da
jovem dama era o que menos queria,
principalmente quando eram tão raras as ocasiões
que possuía de encontrá-la, e inédita uma em que
Vivienne o buscava por vontade própria e a sós.
A jovem notou a aproximação e deu um
passo sutil para trás.
— Compreendo... — Balançou a cabeça,
começando a se reconsiderar as próprias ideias.
— De qualquer maneira, preciso ser concisa e
retornar aos meus afazeres na mansão.
— Admiro muito vosso empenho. — O
elogio saiu sem que Carter ponderasse.
— Trata-se do meu trabalho. — Ela não
desejou parecer ingrata, mas o cavalheiro voltava
a incomodá-la com os modos que, aos seus olhos
treinados para reconhecer certas estratégias,
pareciam muito bem calculados.
— É claro. — Will comprimiu os lábios na
intenção de forçar a si mesmo a manter-se calado.
Aparentemente, aquilo era o melhor que possuía a
fazer pelo próprio bem.
Mas então, para sua surpresa, Vivienne
demonstrou pela primeira vez certa insegurança
em seus gestos, levando as mãos a remexerem de
forma que julgou encantadora nos fios que
formavam a ponta da generosa trança que trazia
sobre o ombro direito, arrematada por um laço
vermelho.
Carter não pôde deixar de notar que tal laço
contrastava de modo cativante com o tom escuro
dos cabelos castanhos e o branco leitoso do
vestido simples de algodão.
— Por favor, peço que não me considere
impertinente pelo que irei perguntar e, tão menos,
pelo pedido que desejo fazer ao senhor.
Os olhos de Carter cintilaram tanto que o
tom se tornou exatamente o mesmo da safira que
trazia no anel em seu polegar.
Um pedido! Vivianne iria lhe fazer um
pedido!
Maldição.
Um frio nervoso apontou logo em seguida
no estômago dele.
Por que raios tal compreensão tinha a
capacidade de deixá-lo radiante?!
— Sr. Carter?
— Ah, mas é claro que sim. — Will
despertou de seus pensamentos sem possuir
novamente o controle do que dizia.
— Como?
— Digo, é claro que não! — corrigiu-se,
sem ser capaz dessa vez, entretanto, de evitar que
as mãos formassem punhos de descontentamento
pela própria falta de controle. — Jamais a julgaria
de tal modo, Srta. Vivienne, tem a minha palavra
— concluiu em tom solene, feliz por, ao menos
dessa vez, não ter soado feito um tolo.
A postura e voz dele, bem como o fato de
vê-lo garantindo enquanto a fitava diretamente em
seus olhos, fez uma singela parcela de admiração
atingi-la.
— Eu lhe agradeço por isso. — Vivienne
puxou o ar, afastou os dedos da trança e, na
sequência, prosseguiu: — Sei que se trata da única
pessoa que lorde Granville realmente considera
como amigo. Na realidade, penso que o conde
também nutre considerações pelo Sr. Folkes e
minha tia, mas esses o têm em tão elevado nível de
respeito, que não creio serem capazes de me
responder o que estou prestes a lhe perguntar se o
fizesse.
Carter ergueu uma sobrancelha.
— Acha que eu não…
— Sei que respeita lorde Granville, Sr.
Carter, mas também já percebi que o senhor, além
da condessa, é o único que possui coragem para
enfrentá-lo e, portanto, não temeria me dizer o que
desejo.
A agilidade do pensamento dela fez a
admiração de William crescer ainda mais. Um
sorriso indevido apareceu no canto de sua boca e
o rapaz fez o possível para tentar reprimi-lo.
— Pois então… O que deseja saber? ​
— Acredita que lorde Granville possa vir a
amá-la?
Se estivesse bebendo algo, William
engasgaria.
— Como?
— Sua esposa, lady Grace. — Vivienne não
percebeu, mas se aproximou ao repetir a
indagação: — Acredita que o conde seria capaz de
nutrir sentimentos por ela?
Tendo-a mais perto, Carter ouviu um enorme
“sim” ser formulado em sua mente sobre a
possibilidade de sentimentos surgirem, mas não
exatamente acerca de Granville e Grace.
— Eu… — Ótimo. Justo naquele momento,
as palavras voltavam a desaparecer.
— O senhor? — Vivienne deu um outro
passo. Estava realmente ansiosa.
— Penso que ele já o faça, apesar de não ter
plena consciência. — A resposta finalmente veio
em tom aveludado, mas Will voltava a ter dúvidas
se referia-se ao amigo.
Os olhos de Anne demonstraram sua
surpresa.
— De fato?
Concentrado demais em observá-la, Carter
apenas se dignou a balançar afirmativamente a
cabeça.
E, mesmo que tentasse esconder, um sorriso
sutil se pronunciou nos generosos lábios da moça,
ao dizer:
— Obrigada, Sr. Carter. — Realizou uma
vênia delicada.
Temendo que esta fosse seguida de uma
despedida para qual ainda não estava preparado,
William questionou:
— Mas por que me perguntou isso?
E sabendo que seria injusto lhe negar a
verdade, Vivienne foi sincera:
— Porque possuo por lady Grace minhas
mais sinceras considerações, e não me importaria
em colocar em risco o trabalho ou o que mais
fosse necessário para ajudá-la a sair de Granville
Hall se me dissesse ser inexistente qualquer
expectativa de felicidade em seu destino.
— Fala de fugir?! — William piscou,
realmente surpreso por vê-la confessar aquilo ao
amigo do conde.
— Se necessário fosse… — Vivienne
confessou. — Já vi o que uma união forjada em
sentimentos unilaterais é capaz de fazer ao coração
e espírito de alguém, e não permitiria que o mesmo
acontecesse a ela.
William ignorou completamente o
atrevimento e desejou apenas apegar-se à nova
parcela de admiração que a fala lhe causava sobre
a jovem, mas foi incapaz de não dar atenção à
sensação estranha e desconfortável que o atingiu
ao lado esquerdo do peito.
“Já vi o que uma união forjada em
sentimentos unilaterais é capaz de fazer.”
Será que ela falava de si?
Mas é claro!
Era por isso que o negava com tanta
veemência em todas as tentativas de aproximação.
Havia sido magoada por um cavalheiro de
tal forma que agora, ferida, estava disposta a
repelir de todas as maneiras qualquer
possibilidade de voltar a se apaixonar.
— Sinto muito. — Foi a vez de William se
aproximar naturalmente, ao praticamente sussurrar:
— Sou eu que me adianto em pedir perdão desta
vez, mas me atrevo a dizer que o cavalheiro que a
fez passar por isso não deve ser digno de ser
chamado desta forma, ou sequer caminhar sobre
este mundo.
Subitamente, a respiração de Vivienne
estagnou.
— E-eu não falava sobre mim. — Ela
desviou os olhos aos próprios pés, diminuindo
automaticamente o tom de voz.
Era sempre muito difícil falar sobre a irmã.
Mas William interpretou a atitude como um
gesto de timidez, e insistiu:
— Não precisa mentir para mim, Vivienne.
— Atrevendo-se mais do que sabia ser devido,
Carter levou uma mão ao queixo delicado, e
ergueu o rosto feminino em direção ao próprio.
O que viu, porém, foram olhos furiosos
encarando os seus.
— Eu jamais mentiria sobre isso.
Com um movimento conciso, Vivienne se
afastou do toque que julgou impertinente.
Lá estava!
Era apenas isso o que homens como ele
almejavam de moças como ela. Enxergar o que
bem entendiam. Receber o que desejassem tomar.
— Vivienne — Carter a chamou ao notar
que a jovem se afastava.
— Agradeço por ter respondido ao meu
chamado e minha pergunta, Sr. Carter.
— Mas e quanto ao pedido que tinha a me
fazer?
Ela fingiu não o escutar. Com pressa,
realizou uma vênia mal elaborada, ergueu as saias
do vestido até os tornozelos e praticamente correu
para colocar-se o quanto antes do lado de fora do
galpão.
Sozinho, o rapaz permaneceu lá ainda por
longos minutos após a retirada repentina,
condenando a si mesmo por não ter permanecido
calado quando, obviamente, deveria tê-lo feito.
Já fazia algumas horas que Samuel havia
deixado o escritório, mas o conde não fora direto
para seus aposentos e, tão menos, para o jazigo da
família.
Estivera desde então trancado na sala de
jantar, sentado em uma das cadeiras ao redor da
mesa, com os olhos fixos no quadro que ostentava
a imagem de lady Lucille acompanhada de si e de
Frank.
A imagem de sua mãe.
Samuel não conseguia observá-la sem se
lembrar do som doce de sua voz, ou do toque
cálido que os lábios delicados possuíam de
encontro à própria testa quando ela, diferente da
grande maioria das mães da alta sociedade, fazia
questão de colocá-lo para dormir.
Jamais deixou de considerar que tivera
sorte na escolha que a Divina Providência lhe
fizera sobre os pais, mas agora, sabendo de tudo o
que a mãe havia feito em nome da família, seu
peito chegava doer pela ideia de que jamais a
veria sendo um homem já formado e esclarecido,
capaz de ter a hombridade de observá-la nos olhos
ao agradecer com as palavras provindas da parte
mais sincera de seu coração por tudo que havia
feito e, em seguida, a abraçar.
Na primeira hora após a retirada da Sra.
Burns, o conde havia temido ressentir-se por toda
a omissão sobre a magia, é verdade, mas não
demorou a perceber que seria incapaz quando a
enxergava mais, a cada segundo transcorrido,
como um ato de coragem.
Afinal de contas, havia outra forma de
considerar alguém que havia colocado em risco
seu maior segredo junto da própria vida em nome
do amor?
Aos seus olhos, a mãe se tornara uma figura
ainda mais sublime. Não havia outra forma de vê-
la.
Que outra pessoa estaria disposta a arriscar
a própria vida para assegurar a proteção daqueles
que reconhecia amar?
Grace.
Respondendo à própria pergunta, o nome da
esposa ressoou em sua mente em alto e bom tom.
Samuel se levantou da cadeira e caminhou
até ficar diante do retrato da mãe e, ao ver os
próprios olhos refletidos nos dela, foi inevitável
se recordar do epitáfio do pai:
“Se no caminho percorrido houve honra e
amor…
— …este jamais terá sido curto demais” —
concluiu em voz alta, enquanto seu interior
estremecia com a magnitude da decisão que
acabava de tomar.
Granville Hall seguia mais silenciosa do
que de costume naquela noite quando Folkes bateu
à porta dos aposentos da condessa. Como Anne a
auxiliava com sua toilet noturna, foi a criada a
atendê-lo, recebendo do valete um bilhete.
— Não lhe disse mais nada? — questionou
Grace, ao tomar a folha dobrada em suas mãos.
— Segundo o Sr. Folkes, lorde Granville
apenas solicitou que fosse entregue após o jantar.
Ambas se encararam por alguns instantes,
até que Grace finalmente tomou coragem para
abrir o bilhete no qual esperava ler qualquer
coisa, menos o que viu:

“Aguardo-a em meu escritório, às 21h.


Samuel.”

— Grace? — Percebendo que a condessa


ficara abalada pela singela linha, Vivienne se
aproximou, chamando-a em voz sutil e como a
amiga que era.
— Lorde Granville deseja me ver dentro de
uma hora. — A pobre sequer esperou pela
pergunta.
Ainda que a última atitude do Sr. Carter
tivesse guardado sua desaprovação, Anne
acreditara em sua resposta e, sabendo há muito o
que se passava no coração da amiga, não pôde
deixar de se sentir animada com a perspectiva.
— Também deseja vê-lo?
— Muito.
— Então por que não me parece feliz? —
Soou preocupada.
Grace sorriu tristemente com a percepção.
— Porque sempre julguei a ignorância como
a maior injustiça do mundo, tendo inclusive jurado
a mim mesma que sempre aprenderia o que
pudesse sobre todas as coisas, mas…
— Mas…?
— …mas finalmente compreendi que nos
mantermos ignorantes sobre certos sentimentos
pode ser um ato de misericórdia quando não
nasceram destinados a cultivá-los.
A condessa se virou e continuou sozinha a
pentear os cabelos, observando o próprio reflexo
enquanto, em vão, tentava recordar-se dos
momentos “felizes” em que o coração ainda não
conhecia o sentimento sublime e cruel que,
dependendo unicamente das escolhas de outrem,
seria capaz de aniquilá-lo.
Certa de que o marido havia agendado tal
audiência para conversarem sobre a separação,
Grace foi invadida por uma sensação sem
precedentes de nostalgia assim que Vivienne a
deixou sozinha, após ajudá-la a se arrumar.
Observou cada móvel do quarto se
lembrando da impressão que esses lhes
transmitiram da primeira vez, e tocou com os
dedos delicados dos detalhes da madeira ao papel
de parede adamascado.
Cronologicamente, não fazia muito tempo
que estava em Granville Hall, mas para Grace, que
já vivera em algumas casas, a sensação iminente
de partida era diferente desta vez, pois tratava-se
do primeiro lar que tivera em sua vida.
Ali havia encontrado pessoas que gostavam
e cuidavam verdadeiramente de si e, mesmo que
por um curto período, fora o único espaço do
mundo em que, junto de Burns, pudera em toda sua
essência se expressar.
Sim, Samuel poderia resolver mandá-la
embora naquela noite — pois realmente não fazia
ideia do que se passava na cabeça do conde —,
mas uma parte dela permaneceria para sempre ali.
Prrrr.
Claws pulou a janela entreaberta e não
demorou a se aconchegar no colo da condessa, que
permanecia sentada diante do espelho, com os
olhos fixos no próprio reflexo.
— Poderá me acompanhar se quiser, meu
querido — Precisava fungar enquanto dizia, pois
algumas lágrimas teimosas haviam começado a
cair. — Já percebi que assim como eu, trata-se de
um sobrevivente nato. — A resposta do gatinho
permaneceu uma verdadeira incógnita, pois ele
logo se levantou e voltou para o parapeito da
janela.
Grace também se levantou e caminhou até
lá.
Observou mais uma vez o jardim que
inicialmente lhe dera certo medo, mas pelo qual
agora nutria tanto amor, e a dor em seu peito
voltou a crescer.
Seu trabalho e de Vivienne estava apenas
iniciado e ainda faltava muito a ser feito.
Duvidava que após sua partida, lorde Granville
permitiria que a empreitada continuasse, e sentia-
se culpada por isso, também. Por não ter sido
capaz de devolver vida à propriedade enquanto
estivera presente.
Após desviar os olhos na direção dos
jardins dos fundos, Grace os fechou.
— Desculpem-me. — Pegou-se sussurrando
à família de lorde Granville a súplica cheia de
remorso sobre o filho e irmão amado que tentou,
mas também falhara em ajudar.
O sentimento melancólico e nostálgico a
acompanhou em uma caminhada de despedida que
se estendeu por outros cômodos da mansão. Em
cada espaço, Grace era invadida por lembranças
de momentos compartilhados e diálogos
estabelecidos, o que agora poderia deixá-la triste,
mas a jovem buscava ater-se ao fato de que seria
bom tê-las para, quando estivesse sozinha,
recordar.
Ao passar pelo corredor da sala de jantar,
porém, certa iluminação chamou sua atenção. A
dado horário não era esperado que alguém
estivesse no local, e Grace avançou por entre a
porta encostada para verificar do que se tratava.
Não foi necessário muito tempo.
Mesmo com o rosto virado e acomodado em
uma das cadeiras próximas à cabeceira distante da
mesa, jamais teria dificuldade em reconhecer
qualquer traço daquele perfil.
Samuel não tinha uma postura relaxada, mas
sentava-se de modo pouco formal, a fim de
observar com toda intensidade existente nos olhos
violeta àqueles registrados no retrato em que sua
versão pueril e do irmão acompanhavam a mãe
enquanto posavam em meio ao cenário bucólico.
Grace ainda se lembrava da primeira vez
em que vira o retrato e impressionara-se com o
efeito que causara em si a intensidade presente nos
olhar da mulher. Acontecera na mesma noite em
que a proposta de casamento fora feita.
Inevitavelmente, a lembrança a fez sentir a
garganta apertar, a levando a puxar o ar com mais
força. Como resultado, um ruído escapou,
captando a atenção de Granville.
Assim que viu a esposa, o olhar do conde
foi redirecionado em sua total atenção.
— Não a vi chegar. — Ele levantou,
organizando os cabelos para trás.
Agora sabendo que também possuía
contados seus últimos momentos ao lado do
marido, Grace percebia que estava destinada a
valorizar cada pequeno contato, sentindo-se
nostálgica pela falta que teria das pequenas coisas,
como aquele simples gesto.
As mãos de lorde Granville jamais lhe
pareceram tão majestosas, nem os cabelos tão
negros e sedosos. Ela queria tocá-lo como fizera
há pouco com a mobília. Mais do que desejar,
sentia que precisava arquivar em sua memória tátil
tudo o que apenas Samuel a levava a sentir antes
de dizer adeus.
— Não faz muito tempo que cheguei —
finalmente o respondeu.
— Compreendo. — Samuel não conseguia
deixar de fitá-la e perceber, agora com a
consciência de que tal percepção era real, que a
luz outrora amena do cômodo se tornara mais
incandescente.
Na sala de estar, o relógio de carrilhão
anunciou às vinte e uma horas, ocupando o silêncio
enquanto soava, os lembrando do compromisso
previamente marcado.
Quando finalmente cessou, foi Grace quem
voltou a falar, tendo o olhar baixo:
— Confesso que não me importaria de
conversarmos aqui… A menos que documentos me
aguardem em vosso escritório. — Timidamente,
ergueu os olhos para completar, aguardando que a
reação do marido oferecesse algum retorno
perante a própria insinuação.
Percebendo a quais tipos de documentos a
esposa se referia e que gênero de conversa
imaginava que estaria disposto a ter, o conde
umedeceu os lábios, antes de solicitar:
— Feche a porta, Grace.
A condessa permaneceu com os olhos
estáticos e inclinou a cabeça.
— Perdão?
— Se a agrada termos a conversa aqui ao
invés de em meu escritório, não farei qualquer
objeção, mas, visto que são assuntos somente de
nosso interesse, gostaria de mantê-los em privado.
— Samuel indicou a porta com o rosto, novamente.
Ainda sem compreender o que acontecia,
Grace caminhou até a porta da sala de jantar,
fechando-a conforme solicitado. Quando se virou
para retornar, percebeu que o marido afastava duas
cadeiras, deixando-as uma diante da outra.
O conde gesticulou em direção a um dos
assentos, aguardando que a esposa se acomodasse
para segui-la.
Nem bem se sentara, Grace já tinha as mãos
sobre o tecido do casaco azul-marinho,
remexendo-o.
Como sabia que iria conversar com lorde
Granville, não colocara um penhoar sobre a
camisola, mas tampouco utilizava um vestido
elaborado, uma vez que fora avisada sobre a
conversa quando já se preparava para dormir.
Seus cabelos haviam sido parcialmente presos por
Vivienne para ficar minimamente apresentável, e a
verdade era que se arrependia de não os ter
completamente presos, pois estava tão nervosa que
sentia os fios mais finos colarem em sua nuca já
tomada pelo suor.
Sendo capaz de perceber a agitação da
esposa, Granville achou melhor esclarecer o
quanto antes:
— Não a chamei para falar sobre separação
ou qualquer tema similar.
— Não? — A pobre sequer conseguiu
dissimular a surpresa.
— Não — reafirmou Samuel. — Minha
intenção não é desfazer o acordo que firmamos
semanas atrás, nesta mesma sala.
O teor nostálgico da fala dele era o que a
surpreendia agora, e Grace percebeu soltar o ar
com alívio que a levara a sentir. Aquilo
significava que…
— Desejo manter minha palavra sobre o
que foi dito quando a trouxe para Granville Hall.
— Antes que a jovem pudesse teorizar, o conde
prosseguiu: — Prometi lhe oferecer uma vida
digna ao torná-la minha esposa, bem como
protegê-la do que fosse necessário para que jamais
voltasse a sofrer das mazelas que outrora lhe
traziam aflições. — Seus olhos desviaram ao
pensar no quanto falhara, mas o conde voltou a
encará-la ao prosseguir: — Sinto muito por ter
falhado em diversos desses aspectos até aqui.
Sinto por tê-la deixado sofrer atribulações das
quais jamais desejei e, mais recentemente, pelas
injúrias que lhe proferi, sobre as quais peço
encarecidamente que queira me perdoar. —
Samuel não era um homem orgulhoso há muito
tempo e, com aquele gesto, recolhia qualquer
resquício que ainda pudesse existir do sentimento
em seu interior. — Dito isso, se ainda assim
desejar, pretendo levar nosso acordo adiante.
Muitas coisas se passaram no interior de
Grace enquanto ouvia e absorvia a cada um
daqueles dizeres, mas era inegável que o último
trecho tivera um efeito incomparável em seu
coração.
— Samuel, isto significa que nós… — Ela
se inclinou, pousando delicadamente a mão
esquerda sobre a perna do marido. Seus olhos
passavam a ostentar um brilho singular.
Um brilho que Granville notou com pesar e
extrema culpa ao notar que não fora tão claro
quanto deveria.
— Mas eu não poderia lhe oferecer
reciprocidade. — O conde sequer a deu tempo
para que continuasse a se iludir.
Não falava sobre sentimentos, e precisava
que a esposa estivesse plenamente consciente
disso.
O âmbar que outrora brilhava com os
fulgores de uma promessa passara a ostentar as
sombras da desilusão proveniente da mais recente
recusa.
De repente, Grace se sentia envergonhada e
extremamente sem jeito. Automaticamente, seu
toque se afastou do marido e os olhos voltaram a
se abaixar.
Como dissera, ele falava do acordo. Não
falava dos dois.
A diferença era nítida.
Fora muito tola em não notar.
A tristeza que ocupou o semblante dela
parecia capaz de transformar-se em uma garra e
perfurar o coração de Granville. Desta vez era o
corpo dele que se inclinava, com o conde
apoiando-se com os braços nos joelhos para
encará-la o mais próximo possível. Aflito por vê-
la daquela maneira, Samuel assegurou, antes
mesmo de pensar se deveria:
— Grace, deve saber que qualquer outro
homem deveria ser considerado o filho da mãe
mais sortudo do mundo por tê-la como esposa, a
menos que fosse um desgraçado como eu.
As palavras lhe haviam surgido de modo tão
sincero e com tamanha autenticidade que Grace o
fitou como se esperasse pelo restante, onde a razão
para aquilo tudo fosse finalmente revelada.
E Samuel foi capaz de notar isso, pois a
dúvida nos olhos dela o agitou.
Levantando-se, o conde ergueu a face
enquanto inspirava o ar da noite e, em seguida,
confessou:
— Há uma maldição.
Foi a vez de Grace se levantar.
Cassandra.
Não era necessário dizer. A presença da
bruxa estava implícita em mais aquela desgraça
que o afligia, e apenas em imaginar que mais
aquele martírio o corroía por dentro, seu coração
se apertava.
Observando-a nos olhos, Samuel proferiu:
— “O amor que me negou jamais será
entregue a outro alguém, pois a vida será
drenada daquela que possuir o que deveria ter
sido meu” — após repetir o rogo amargo,
Granville ergueu os ombros, como um mártir que
reconhece a derrota.
Os olhos de Grace encheram-se de lágrimas
na mesma medida em que notou que os do marido
também eram tomados de umidade, mas eles se
fitavam muito além das lágrimas um do outro.
Fitavam-se através dos sofrimentos e anseios um
do outro, de dois corações solitários que viam
renegados pela vida o desejo mais profundo,
secreto e puro que como sôfregas e lamentosas
almas possuíam: ser amados.
— Eu não tenho medo — Grace cortou o
silêncio.
A determinação presente em sua voz perdeu
apenas para aquela presente em seus atos, pois a
condessa avançou em direção aos lábios do
marido, surpreendendo-o com um beijo profundo e
apaixonado.
Lutando contra os próprios anseios, Samuel
desviou o rosto. Grace notou a tentativa de
resistência racional e repetiu em um sussurro, com
a respiração entrecortada:
— Samuel, eu não tenho medo.
— Mas eu tenho.
Medo de perdê-la, também.
Não foi necessário que o conde dissesse.
Algumas verdades são ditas com mais
clareza através do olhar.
As testas de ambos se uniram enquanto as
mãos pareciam encontrar de modo natural o
encaixe perfeito dos dedos, assim como faziam os
olhares trocados. Tudo ali sabia seu lugar, mesmo
que o destino se negasse a permiti-los pertencer.
— E se fizéssemos concessões? — Grace
murmurou.
— Concessões?
Mantendo as mãos unidas às dele, ela
reorganizou a postura.
— Prometo que me esforçarei diariamente
para abrir mão de qualquer expectativa fora
àquelas que acordamos, desde que faça o mesmo
em relação ao restante do plano que pretendia
seguir após o nascimento de um herdeiro.
Inevitavelmente, as sobrancelhas de Samuel
se uniram.
— Grace… — Ele tentou desfazer o contato
das mãos, mas ela o segurou.
— Peço apenas que fique. — Um sorriso
singelo e levemente triste apareceu nos lábios
delicados da jovem enquanto prosseguia: — Que
fique para que possa entregar o que sei que há de
bom em vosso coração para alguém que será digno
e livre para recebê-lo. — Grace apertou a mão do
marido, e o sorriso em seu rosto se alargou. —
Isso já seria o bastante para mim. Saber que
estaria aqui para o nosso filho, Samuel.
Inegavelmente tocado com o que ela
dissera, Granville mordia os lábios. Grace estava
disposta a se sacrificar vivendo ao lado da pessoa
amada, abnegando-se de qualquer possibilidade de
recíproca.
— Como pode me desejar aqui lhe
oferecendo tão pouco?
— Você jamais seria pouco. Tê-lo aqui,
Samuel, isso basta.
A garganta de Granville oscilou, e o conde
levou o polegar a acariciar a face da esposa.
— Uma mulher como você merece mais do
que apenas o suficiente — sussurrou.
— Sabe a diferença entre o suficiente e o
essencial? — perguntou, sem deixar de fitá-lo,
deleitando-se pela carícia, com os olhos
apaixonados sobre a figura oposta.
Granville balançou a cabeça em negação.
— O valor que atribuímos àquilo que se
torna indispensável — esclareceu, virando o rosto
para conseguir alcançar os dedos com os lábios e
acariciá-los suavemente. — Tê-lo aqui conosco
será o essencial, Samuel. — Delicadamente, a
jovem bruxa depositou um beijo na pele
masculina, deleitando-se com a aprovação que a
respiração agitada do marido denunciou.
— Grace… — A voz rouca era outro
indício claro de sua excitação.
— Sim? — concentrada demais em sanar a
falta que sentia do sabor dele, Grace o respondera
com a voz lânguida.
— O quê… Ah. — Granville ficou sem
capacidade de prosseguir ao sentir que os lábios
macios haviam mudado de direção e que a esposa,
sem ressalvas, beijava-lhe então o pescoço.
Automaticamente, as mãos largas do conde
se enroscaram em torno da cintura fina.
— Voltamos a prezar pelo sucesso do
acordo, não é? — em seu ouvido, com a voz
cálida, Grace murmurou.
Imediatamente, Samuel sentiu o interior de
suas calças pulsar.
Oh, sim.
— Uhum — a afirmação gutural viera
acompanhada de uma carícia atrevida das mãos
firmes, que escorregaram da cintura até as curvas
traseiras e femininas.
Santo Deus, como estava com saudade.
Samuel a apertou de modo intenso contra o
próprio corpo, esfregando-a contra o volume já
eriçado, fazendo-a soltar um murmúrio baixo e
ainda tímido de aprovação frente ao contato. As
mãos correram rapidamente à frente do casaco
para desfazer o nó que o prendia em torno da
cintura da esposa e não demorou para que apenas
o algodão da camisola o separasse do calor
magistral, capaz de devolver vida a toda uma
atmosfera.
— Beije-me — Grace pediu; praticamente
suplicou.
E ele não pensou em negar.
Tal beijo, no entanto, daquela vez, possuía
algo de diferente. Não apenas o fervor com o qual
ambos se entregaram pareceu ser ainda maior do
que em todas as anteriores, como a intensidade
parecia capaz de fazê-los vibrar, liberando o que
nas outras experiências não os permitia
compartilhar um com o outro.
Naquele beijo, Samuel sentia-se livre para
demonstrar-se em toda sua intensidade e
imensidão, pois agora que a esposa conhecia até a
mais profunda camada de seu ser, já não temia
qualquer possibilidade de assustá-la e Grace, por
sua vez, entregava-se de modo radiante,
compartilhando de maneira singular, como jamais
fizera em qualquer outra situação e com tamanha
liberdade, toda sua essência. Desejava realmente
se entregar e a todo ele pertencer.
A língua de Samuel a explorava com fome,
posse e saudade, enquanto as mãos de Grace
faziam o mesmo, percorrendo caminhos dos quais
sentira falta de tocar.
Em dado momento, o conde a empurrou
contra a mesa, e a jovem bruxa abriu as pernas de
forma automática para senti-lo encaixar-se de
encontro ao próprio corpo. Havia entre os dois um
magnetismo que os fazia ansiar pelo contato; pela
proximidade que jamais parecia bastar.
— Ahhh... — O gemido de Grace seguiu a
investida viril contra o cerne da própria
intimidade.
A dada altura, de forma saudosa, já era
capaz de sentir que através de pulsações o baixo
ventre o clamava.
Os beijos tornaram-se intermitentes,
estendendo-se através dos lábios, pescoços,
mandíbulas e orelhas. As mãos, afoitas por
sentirem mais da pele um do outro, também
passaram a exercer as próprias funções, e
enquanto Granville lutava com os laços do decote
da camisola com a direita e na esquerda buscava
se entender com o tecido das saias, as de Grace
concentravam esforços nos botões do colete
masculino, pois este, diferente do casaco — que
encontrara facilmente o chão — parecia demandar
um pouco mais de trabalho.
— Deveriam usar mais laços em vestes
masculinas — murmurou com humor, ao notar que
Granville já havia concluído a própria empreitada
e descia os lábios famintos em direção aos seus
seios.
A risada de Samuel soou abafada, mas o
hálito quente de encontro à pele delicada do
mamilo esquerdo — pois sim, ele chegava bem ali
— a levou ao delírio.
— Se tivesse botões em sua camisola, já
não restaria nenhum — ele informou pouco antes
de tomar em sua boca o botão deliciosamente
retesado e o sugar.
— Ohhh. — Grace sentiu as pernas
derreterem e as mãos outrora diligentes tornarem-
se incertas tamanho o prazer que sentiu pelo beijo
íntimo e fala provocante.
A colocação do marido, porém, a deu uma
ideia bastante agradável e, visto que a missão com
o colete logo fora concluída, não pensou duas
vezes antes de abrir a camisa preta de Samuel de
modo muito menos lisonjeiro, surpreendendo-o
com o som de tecido rasgado e pequenos artefatos
espalhados pelo chão.
Quando Samuel ergueu os olhos para a
esposa seminua, Grace encarava a pele que
acabava de expor.
— Tem razão… — ela murmurou com o tom
lânguido e arrastado, permitindo que os dedos
delicados, pela primeira vez, o acariciassem sobre
o tórax alvo, musculoso e bem-torneado. — É
mais estimulante assim.
Sam engoliu seco, e percebeu que os olhos
dela se mantiveram por alguns instantes sobre o
vidro pendurado em seu pescoço.
— Grace... — murmurou.
— Você é lindo... — os olhos dela se
ergueram para fitá-lo ao declarar.
Espalmando a mão direita Grace voltou a
acariciá-lo, enquanto a esquerda correu até a nuca
do marido para segurá-lo e trazer para perto dos
próprios lábios seu ouvido.
— Lindo… — voltou a sussurrar, sentindo
com satisfação quando as mãos do marido
voltaram a apertá-la com ainda mais intensidade, e
o corpo a prensá-la contra a madeira firme da
mesa.
Era claro que Samuel a desejava com toda
sua força, mas não era à toa que fazia isso. Seus
pensamentos precisavam estar focados no prazer e
no sexo. Precisavam manter-se voltados para o
desejo de proporcionar satisfação à Grace, pois
sabia que aquilo era tudo o que poderia oferecer a
ela. Tê-la observando, tocando e elogiando-o
daquela maneira mexia demais com seu coração.
Mais do que o conde poderia suportar, e era por
isso que seus esforços se tornaram redobrados.
Completamente envolto na atmosfera
sedutora e embebida em volúpia e prazer, Samuel
também a segurou pela nuca, aprofundando tanto o
beijo que foi capaz de deixá-la sem ar. Suas mãos
se tornaram impiedosas; seu corpo, uma
irrefreável ferramenta de prazer e devassidão.
Quando seu toque experiente se meteu entre
as pernas da esposa, Samuel temeu se desmanchar:
— Ah, Grace, está tão molhada —
sussurrou rente à orelha macia.
Ela precisou se apoiar com mais força ao
sentir-se prestes a derreter.
Granville a invadiu com um dedo impetuoso
e profundo, fazendo-a soluçar.
— Tão pronta… — Voltou a provocá-la,
deliciando-se na expressão excitada. Logo em
seguida se inclinou em direção ao corpo dela,
aprofundando ainda mais o toque. — O que acha
de irmos para a cama?
O interior de Grace o apertou e foi a vez de
Samuel voltar a pulsar.
— Vejo que gosta da ideia. — O conde
enfiou outro dedo como recompensa, abafando o
grito de satisfação da esposa com mais um beijo
profundo.
— Não precisamos de uma cama — Grace
se afastou para murmurar com a voz entrecortada.
Naquela mesma noite havia flertado com a
certeza de que jamais voltaria a tê-lo e qualquer
perspectiva de espera, mesmo que fosse em busca
de uma cama, se tornava uma necessidade frívola,
praticamente irrisória.
Ela e Samuel estavam ali, voltariam a se
tornar um só, e aquilo era tudo o que importava.
Com determinação refletida em seus olhos
dourados, a condessa se levantou, caminhando até
ficar de frente para a lareira que ornamentava a
sala de jantar.
Grace esticou as mãos e empurrou sem
cerimônia as mangas da camisola que não fizeram
charme para cair.
O rosto dela estava ruborizado pelo calor
dos corpos excitados, e os lábios inchados pelos
beijos trocados segundos atrás; parte de seus
cabelos rolavam nas costas e parte caía na frente,
acima dos seios e Samuel juraria a qualquer um
que cometesse a audácia de questionar que a
esposa jamais estivera tão absurdamente bela.
A proximidade do fogo a fazia resplandecer.
A magia de Grace naquele momento, era tão
sublime e palpável, que o conde jurava ser capaz
de enxergá-la ao seu redor.
Notando-o enfeitiçado pela própria figura,
Grace percebeu que teria de ser ela a tirá-lo do
pequeno transe. Sendo assim, a jovem esfregou o
pé contra o tapete que cobria aquela área do chão.
— Parece-me bastante macio.
Se já não estivesse ruborizada, teria ficado
naquele momento.
A satisfação poderia lhe conceder certa
dose de atrevimento naquela noite, mas seria
impossível negar que descobria aos poucos as
vertentes das próprias capacidades de sedução.
Samuel compreendeu o convite e se
aproximou, sem conseguir disfarçar que a
observava atentamente em cada detalhe. Antes de
finalmente voltar a tocá-la, o conde se ocupou em
retirar com proposital lentidão as próprias calças.
Foi a vez de Grace observá-lo em cada
detalhe sem capacidade de disfarce.
Granville notou que os olhos da esposa se
mantinham em um ponto específico. Ela tinha fome
e não hesitou em buscar o que desejava junto dele,
retomando o contato com urgência, voltando a
beijá-lo enquanto permitia que as mãos o
percorressem o corpo livre, experimentando, com
satisfação como era tê-lo inteiramente nu sob seu
toque, pela primeira vez.
Juntos, eles se ajoelharam, mas a surpresa
de Samuel se deu ao notar que Grace inclinou o
corpo, demonstrando que pretendia manter-se por
cima; que desejava montá-lo.
— Grace… — A voz dele era um misto de
arrebatamento, súplica e deleite.
Com o toque espalmado sobre o tórax firme,
a condessa o conduziu a se deitar enquanto uma
intensa e sensual troca de olhares foi mantida.
Demorou alguns instantes para que
conseguissem encontrar a posição exata, mas,
quando aconteceu, os corpos se encaixaram de
forma magistral.
— Ah, sim! — A aprovação lamuriosa saíra
dos lábios dela.
A reação de Granville foi ainda mais
intensa e gutural. Um som primitivo e ininteligível.
As mãos do conde agarraram a esposa pela
cintura e todo o desejo até então acumulado foi
finalmente libertado em uma explosão de
investidas vigorosas; um amor feito com posse.
— Ah, Grace, é demais... — Samuel
lamentou, enquanto os olhos se fechavam.
Tê-la daquela maneira, recebendo-o por
inteiro enquanto a via sobre seu corpo em todo seu
esplendor, era mais do que qualquer homem
poderia por mais tempo suportar.
— Abra os olhos — ela pediu, inclinando-
se de forma que a visão se tornava ainda mais
tentadora.
Sentiu que Granville diminuía o ritmo dos
movimentos abaixo de si e passou a ser ela mesma
a responsável a comandar, rebolando sobre o
marido de modo que o prazer conseguia se tornar
ainda mais profundo, como se ampliasse entre eles
a conexão.
Samuel voltou a abrir os olhos e quando o
fez, notou que Grace tomava em uma das mãos o
colar que continha o veneno, enquanto a outra
ainda a mantinha apoiada sobre si.
— Olhe para mim… — ela pediu em um
gemido.
— Sempre — e ele respondeu em uma
lamúria. — Sempre...
— Fique, Samuel. — O pedido era feito
com a voz envolta em prazer. — Fique comigo.
Ela empurrou o corpo com mais
intensidade, alcançando pontos que ele jamais
experimentara em qualquer outra relação. Samuel
voltou a segurá-la na cintura, observando os olhos
nos quais ardiam as chamas mais intensas que já
vira, incandescentes como o fogo da própria
redenção.
Mas foram as últimas palavras de Grace
que o fizeram finalmente queimar, e ambos
encontraram o ápice enquanto ele aceitava que
sobre o próprio destino já não possuía mais
controle, e a jovem bruxa sentia o colar partir em
suas mãos.
— Minha mãe também foi uma bruxa —
Samuel murmurou enquanto acariciava os cabelos
da esposa acomodada sobre seu peito.
Grace inclinou a face, observando-o com os
olhos tão surpresos quanto inquisidores.
— Burns me contou. — O marido não
deixou de enrolar alguns fios dourados entre os
dedos enquanto esclarecia, apesar de possuir os
pensamentos nitidamente distantes.
— Samuel… — Com cuidado, ela ergueu o
corpo para observá-lo com mais atenção, fazendo
o mesmo em seguida para o quadro que continha
retratada a figura da antiga Condessa de Granville.
Finalmente fazia sentido.
A maneira como os olhos de lady Lucille,
desde o primeiro contato, havia conseguido
despertar uma sensação diferente nela.
Fora reconhecimento.
— Sinto muito que tenha descoberto desta
forma. — Grace o viu se organizar sentado e
acariciou o marido nos cabelos escuros,
percebendo que a lembrança o deixara reflexivo.
— Que não pôde ter sido ela a lhe contar.
Mas a descoberta não era a única
responsável por conturbar seus pensamentos, e
Granville confessou:
— Há mais algumas coisas que precisa
saber, Grace.
Sem desejar omitir por mais tempo,
compartilhou com a esposa nos momentos
seguintes cada uma das outras verdades por Burns
reveladas.
— …ela se sacrificou por nós ao abrir mão
de seus poderes.
A dor em suas palavras era perceptível.
— Tenho certeza de que jamais se
arrependeu — Grace buscou confortá-lo, enquanto
ainda tentava absorver tudo o que ouvia.
Samuel balançou a cabeça em negação.
— Ainda assim, não adiantou.
— E por que diz isso?
— Mesmo quando o processo de
afastamento já havia sido iniciado com o auxílio
de Burns, a magia continuou a segui-la, trazendo,
inclusive, Cassandra até nós.
“A magia, Grace, funciona como um
chamariz.”
As palavras que Burns certa vez lhe dissera
voltaram a ressoar na mente da jovem condessa.
Visto o silêncio que Grace fazia, Granville
prosseguiu:
— Burns acredita que pode ter sido por isso
que…
— Que cheguei até aqui. — A voz de Grace
não passava de um sopro ao concluir o raciocínio.
Samuel afirmou em um movimento de
cabeça.
— O propósito… — ela voltou a sussurrar,
com os olhos baixos.
— Sim, Burns fala sobre um propósito.
Grace voltou a encará-lo, ao esclarecer:
— Desde que descobriu que eu também era
uma bruxa, Burns tem buscado me ajudar a
encontrar meu caminho, a descobrir qual fora a
intenção do destino ao me trazer para Granville
Hall. Ela me ofereceu um Livro para compreender
melhor meus poderes e até mesmo quem sou, e
dentro dos princípios básicos sobre a magia está a
ideia de que cada uma de nós, ao longo do
percurso, está destinada a encontrar sua missão
mais importante entre todas as missões. Aquela
que se destaca; seu propósito.
Agitado, Samuel se levantou, virando-se em
direção à lareira.
— Burns disse que o propósito de minha
mãe era curar a alma de Cassandra... — Seus
dentes cerravam ao ter de repetir.
Grace observou a sombra que o corpo do
amado projetava através das chamas e, apesar de
considerar quão confusos eram os caminhos
escolhidos pelo destino, jamais os considerou tão
exatos. Também se colocou de pé, abraçando-o
por trás com toda a suavidade existente em si.
— …e que se trata do meu concluir aquilo
que foi iniciado por ela — completou rente ao
ouvido masculino, levando-o a fechar os olhos
com um misto agridoce de satisfação e pesar.
— Grace. — Ele se virou, puxando-a com
um braço em torno da cintura enquanto a outra mão
foi até o queixo da esposa para fazê-la encará-lo.
— Eu jamais a forçaria… — As palavras
pareciam travar em sua garganta. — Se concluir
isso significa que precisará se arriscar ainda mais,
ou… — Os olhos e tom de voz demonstravam toda
sua perturbação.
Percebendo, a condessa ergueu as mãos e
foi sua vez de segurar a face do marido na intenção
de fazê-lo fitá-la enquanto pontuava.
— Samuel, eu quero fazer isso. — Seu tom
resoluto não deixava margem para qualquer
indecisão. — Desejo encerrar de uma vez por
todas qualquer assunto pertinente à Cassandra e
permitir que Granville Hall finalmente seja livre
de sua presença.
E Samuel não imaginou que iria acontecer,
mas a declaração da esposa, tão fiel à sua família,
foi capaz de emocioná-lo.
Foi a vez de Grace se surpreender quando o
conde a beijou, fazendo os corpos se tornarem tão
unidos, a ponto de se transformarem em
praticamente um só diante das chamas.

Montados em um único cavalo selado pelo


próprio senhorio, o conde e a condessa de
Granville partiram naquela mesma noite em busca
de respostas.
Tinham pressa para iniciar o fim.
A resolução de terminar de uma vez por
todas a história com Cassandra era unânime no
coração e mente de ambos.
O galope ligeiro fez com que não demorasse
para que dentre a noite escura, iluminada apenas
por castos filetes de luar, logo se encontrassem
próximo ao endereço que Granville obtivera junto
da missiva escrita pela mãe, anos atrás.
Diferente do que imaginava, o retiro de
Burns não ficava muito longe, localizado em um
bosque próximo ao porto. As árvores frondosas
que cercavam a região ofereciam alguma
privacidade ao lugar, é verdade, mas não seria
uma busca difícil a qualquer um que realmente
desejasse encontrá-la, como fora o caso da própria
avó no passado.
Antes de sair das ruas pavimentadas e se
enfiar no caminho de pedras em meio às árvores,
entretanto, Samuel notou que próximo às docas que
margeavam o porto, metros adiante, algumas
crianças bastante jovens seguiam um homem de
casaca e cartola escuras, apesar do horário
avançado. O tal homem parecia buscar as sombras
da mesma maneira que as mariposas buscam a luz,
e Granville se recordou porque a figura lhe era
familiar: tratava-se daquele a quem chamavam de
mestre, o mesmo senhor que procurara em seus
dias de maior perturbação em busca de respostas
sobre o veneno que matara seu pai e irmão.
— Samuel? — Grace notou a mudança
repentina na aura do marido e a maneira como as
mãos se afrouxaram sobre as rédeas, fazendo o
galope do cavalo desacelerar.
— Aquele homem… — Granville
murmurou.
— Homem?
Grace buscou com o olhar a pessoa à qual
Granville se referia ao longe.
— Aquelas crianças. — A garganta dele
oscilou.
Lembrou-se sobre o que Burns dissera
acerca de uma tutoria adequada. O que faltara à
Cassandra e a fizera ser o que se tornara.
Grace finalmente notou as pessoas que o
marido observava ao longe e não foram
necessários seus poderes para sentir comiseração
pelos pequenos seres miseráveis e visivelmente
esfomeados que pareciam seguir a figura sinistra.
— Sabe quem são?
— Ainda não — Granville respondeu, pois
era verdade que se tratavam de suspeitas e,
naquele momento, possuíam outros assuntos com
os quais se preocupar.
Buscando retomar o foco, o conde se virou
novamente para a frente, mantendo o olhar adiante.
Como o bosque era fechado, a escuridão da
estrada de pedras que levaria até Burns era total.
— Talvez eu possa ajudar.
Por trás, Grace tomou as rédeas de suas
mãos, e quando Granville inclinou o rosto para
observá-la a notou com os olhos acesos como um
felino quando se tornara capaz de enxergar em
meio ao breu.
O brilho era tamanho que, mais uma vez,
fizera de Samuel um homem enfeitiçado.
— Levaram mais tempo do que imaginei. —
Burns os aguardava com um enorme livro aberto
sobre a mesa quando permitiu que o casal entrasse
em seu chalé.
Além disso, a tutora possuía um sorriso sutil
e satisfeito nos lábios, o que fazia Grace suspeitar
que imaginasse também as atividades que haviam
motivado a demora.
— Sentem-se, por favor. — Acomodou-se
do outro lado da mesa, enquanto Samuel e Grace
seguiam a instrução lentamente, com os olhos
inspecionando indiscriminadamente o ambiente
singular.
De tamanho singelo, o chalé era composto
por uma sala, uma porta que deveria dar para um
quarto ou uma sala de banho (ainda não sabiam
dizer) e um mezanino, com uma charmosa lareira
adornando o centro. Apesar de ficar no meio do
bosque e ser forjada em pedra, a construção não
era fria ou úmida, ostentando sensação e aroma
agradáveis. O segundo aspecto deveria ser em
razão da enorme quantidade de plantas e flores que
adornavam cada parte das escadas e mesas, e
também das ervas secas que se via penduradas em
extensos varais.
— Não é neste o endereço em que peço
para Folkes buscá-la — comentou Samuel.
Burns deu um novo sorriso enviesado.
— Digamos que não se trata da minha
morada oficial. — Ofereceu uma piscadela.
Grace sorriu.
— Somos gratos por nos confiar vosso
refúgio — disse a jovem.
Burns observou a pupila com carinho,
esticando a mão sobre a mesa, com a palma virada
para cima.
— Sinto muito por não ter sido capaz de
ajudá-los antes.
Grace compreendeu os dizeres, unindo a
própria mão à da tutora.
— Mais do que nunca compreendo que o
vosso silêncio era necessário, Sra. Burns, e
agradeço por ter se permitido quebrá-lo para nos
ajudar. Inclusive… — Grace virou a mão,
segurando os dedos enrugados com mais
intensidade. Burns inclinou a face.
— Entretanto, agora desejam mais, não é?
— Precisamos de mais, Sra. Burns —
Samuel reiterou, inclinando o corpo.
— Preciso saber como posso concluir o que
lady Lucille iniciou… Se este é meu propósito,
preciso saber como posso ajudar Cassandra —
Grace foi incisiva.
Desvencilhando-se do toque, a tutora tomou
o grande livro aberto em sua mesa em suas mãos
para virá-lo ao casal.
Nas páginas abertas, Granville e Grace
puderam ver poucas palavras registradas ao redor
de uma grande ilustração, na qual duas figuras
femininas, uma mais escura e outra clara, tinham
fluxos trocados.
Apesar da grafia elaborada, Grace
conseguiu identificar as palavras Cura – Memória

Troca – Conexão.
— Como já sabem, lady Lucille também
possuía o poder da cura e, por esta razão, acabou
tendo a alma de Cassandra designada como
propósito. Uma alma ferida que, assim como todas
as outras adoecidas, não conseguiria deixar este
lado quando chegasse o momento sagrado da
passagem.
— Como minha mãe não conseguiu concluir
o propósito, a alma de Cassandra permaneceu
presa — conjecturou Granville.
— Exatamente — anuiu Burns. — Assim
como a grande maioria daqueles que permanecem,
Cassandra teve a alma molestada pelos martírios
que teve de passar quando ainda era muito jovem.
O sofrimento e o terror se apegaram à sua essência
quando esta ainda se formavam, e esses são
estragos desastrosos, que apenas outras almas
extremamente poderosas — destinou um olhar
direto à Grace — conseguem consertar.
— Mas Grace costuma curar aqueles que
estão vivos. Como faria com Cassandra, se está
morta há uma década? — O conde voltou a se
colocar na conversa, visivelmente agitado.
— Além disso, costumo fazê-lo através de
meu toque… — Os olhos da condessa se
abaixaram enquanto ela também buscava
compreender.
— E você sabe por que necessita tocá-los,
Grace?
Grace voltou a fitar Burns.
— Até a senhora me perguntar dessa forma,
acreditava que sim — respondeu com sinceridade.
Burns sorriu antes de prosseguir:
— Diferente do que deve imaginar, ao tocá-
los em busca da cura para seus ferimentos e
mazelas, você não é a única a oferecer, minha
querida. O que ocorre nesta conexão é uma troca,
e essa troca só é possível porque, através do
toque, consegue acessar nas pessoas que ajuda
aquilo que possuem de melhor. Suas melhores
recordações, no caso de mazelas internas.
Grace observou as próprias mãos, como se
buscasse compreender o novo significado do
poder que estas continham.
— Está querendo dizer que… — Granville
possuía a voz agitada.
— Que quando Grace consola alguém, não é
compartilhando apenas o amor que há em si, mas
buscando das memórias mais profundas e secretas
dos enfermos momentos em que estes foram
verdadeiramente felizes ou se sentiram amados.
Ela terá de fazer isso com Cassandra. Curá-la de
dentro para fora.
Imediatamente, Samuel colocou-se de pé.
— Mas como?!
O olhar de Grace se mantinha impassível.
— A energia de ambas precisará de um
momento de conexão direta para que Grace possa
tocá-la, assim como faz aos corpos daqueles que
ainda habitam este lado.
— Parece-me extremamente arriscado. —
Sentindo-se inquieto, Samuel começou a andar de
um lado para o outro.
Grace ouvia a preocupação do marido e se
sentia querida por isso, mas não conseguia
expressar qualquer reação por estar extremamente
concentrada.
— Ela será forte o suficiente — Burns
assegurou ao notar o nervosismo que se apossava
do conde. Em seguida, voltou a segurar a mão da
pupila. — Além disso, teremos alguns dias para
que possa instrui-la até que Cassandra volte a se
mostrar. Quando estive em Granville Hall, percebi
que se encontra fraca, e provavelmente busca um
meio de recuperar as energias.
— As energias para o próximo ataque! —
Samuel pontuou.
— Que não acontecerá. — Grace notou o
tom e postura dele, caminhando até o marido na
intenção de tranquilizá-lo. — Não se eu estiver
pronta para fazer o necessário. Para encerrar tudo
de uma vez. — O encarou profundamente,
desejando transferir a Granville toda a força que
tinha no fundo de seu coração.
Sem ser capaz de manter-se encarando-a,
Samuel desviou o olhar ao sussurrar:
— Se alguma coisa acontecer com você…
— Não vai.
Granville desejou que a certeza presente na
voz da esposa fosse a mesma aplicada em fatos
futuros, mas havia aprendido da forma mais cruel
possível que com o destino e suas vontades não
era correto se ludibriar.
Grace segurou sua mão e o puxou de volta à
mesa para ouvirem mais alguns conselhos de
Burns, mas tudo o que Samuel conseguiu seguir
ouvindo naquela noite fora o silêncio pavoroso
que costuma prenunciar a morte; a marcha fúnebre
que se estende através do vazio quando se perde
uma pessoa querida.
Uma sensação que, por mais que tentasse
afastar, teimou em permanecer.
Sentia aquilo como um presságio.
Um presságio que, lamentavelmente, não
demorou a se confirmar.
Na manhã seguinte, Grace recebeu a Sra.
Burns nos próprios aposentos, mas não notou como
os olhos da tutora correram até um ponto
específico de sua constituição quando se levantou
para saudá-la.
— Bom dia, Sra. Burns. — Buscou omitir a
ansiedade de seu tom de voz.
— Bom dia, minha querida. E já me adianto
em agradecer o esforço de se mostrar tão disposta,
apesar de duvidar que tenha conseguido dormir
por uma hora sequer. — Ostentava um sorriso
discreto enquanto dizia.
A condessa nem procurou omitir.
— Samuel e eu passamos a maior parte da
madrugada conversando — assumiu, enquanto
passavam a se acomodar nos assentos ao redor da
pequena mesa sobre a qual estava acomodado o
Livro.
— Teve de expulsá-lo para me receber? —
Burns atreveu-se a brincar.
Grace enrubesceu, mas negou rapidamente
com um movimento de cabeça.
— Ele não dorme aqui. Diz que os
pesadelos não o permitem ter uma noite de paz e
que não deseja me perturbar com os horrores do
próprio sono.
Burns notou no tom de Grace que a
resolução do marido a incomodava.
— Sabe que já desenvolveu seus poderes a
ponto de conseguir expurgá-la dos sonhos dele,
não é? — Puxou a cadeira ao lado, aproximando-
se mais. — Grace, para que o que deve ser feito
dê certo, mais do que nunca, precisa acreditar no
quão poderosa é.
— Eu acredito — a condessa afirmou,
encarando-a diretamente. — Sra. Burns, é Samuel
quem ainda possui suas ressalvas, e isso é o que
mais me incomoda neste momento, mas creio que
tudo terá fim quando Cassandra finalmente for
liberta. Estou pronta para que a senhora me ensine
tudo o que preciso saber para fazê-lo, e prometo
me dedicar ao máximo para cumprir meu
propósito. Não vou falhar. — Grace esticou a
mão, colocando-a sobre a da tutora. — Não irei
decepcioná-los.
Nos olhos dourados, Burns enxergou a
mesma luz pura e incandescente que anos atrás
inundava os de tom violeta, o que foi capaz de
deixá-la emotiva.
— Você se parece muito com ela.
— Ela?
— Lady Lucille.
Um sorriso orgulhoso e emocionado tomou
os lábios da jovem.
— Eu o amo, Sra. Burns. — Os olhos de
Grace se abaixaram. — Sei que Samuel não pode
me oferecer o mesmo pela maldição que
Cassandra o rogou e, para dizer a verdade, agora
percebo que isso nem mesmo importa para a
intensidade daquilo que me faz sentir. — Deu de
ombros, verdadeiramente entregue às palavras que
provinham do próprio coração. — Amo-o de tal
forma, que o sentimento dentro de mim se expande,
e percebo fazer o mesmo a toda a família que ele
carrega no peito, bem como a Granville Hall. É
uma honra saber que me acha parecida com lady
Lucille.
Burns apertou os dedos da pupila.
— Admitir tal sentimento é só mais uma
maneira de demonstrar vossa força — ponderou,
admirada. — Você terá sucesso em seu propósito,
minha querida, e encontrará junto de seu marido a
felicidade e paz há muito merecida.
— Que assim seja — Grace anuiu,
respirando fundo.
As duas bruxas se fitaram com carinho e
admiração mútuas por mais alguns instantes, até
que Burns foi responsável por cortar o silêncio.
— Bom, então vamos ao trabalho! —
Fechou o Livro que estava sobre a mesa e se
abaixou para retirar o que trazia da sacola que
geralmente carregava, colocando-o no lugar.
Grace reparou que se tratava do mesmo que
vira no chalé na noite anterior.
— Esse exemplar que está com você fala
sobre os principais conceitos e fundamentos da
magia, enquanto este se trata de um livro de
feitiços. É do que precisamos agora.
— O que costumo fazer às pessoas ao
ajudá-las, então…
— Ainda que não soubesse, se trata de um
tipo de feitiço — esclareceu Burns.
— Compreendo…
— Como disse na noite anterior, Cassandra
viveu momentos cruéis quando a própria essência
ainda estava em formação, por isso foi corrompida
de modo que o conhecimento adquirido sobre a
magia é utilizado para fins nefastos.
Burns abriu o livro na página certa sem
necessitar de qualquer marcador, e passou os
dedos de unhas pintadas sobre uma das ilustrações
que Grace vira na noite passada, a mais escura.
— Há meios de descobrir o que aconteceu a
ela? — questionou Grace.
— Sim. Você descobrirá durante a conexão.
— Burns apontou as palavras “Conexão” e
“Troca” registradas em torno da ilustração. — Da
mesma maneira que terá de mergulhar mais fundo
para descobrir o que havia antes da ferida ser
criada, para encontrar a lembrança de onde deve
retirar a memória de afeto e, na mais auspiciosa
das possibilidades, amor, utilizando-a como fonte
de energia para a cura.
Grace inclinou o tronco sobre a mesa,
observando mais detalhes da gravura.
— Sra. Burns, preciso ser sincera e dizer
que a maneira como esta conexão será
estabelecida é o que mais me preenche de dúvidas.
Esta ligação… — Passou o dedo sobre o
“caminho” em que dois pequenos corredores, um
claro e outro escuro, se estendiam além das figuras
ilustradas, até fundirem-se em um tom acinzentado
no meio da página.
— Trata-se exatamente do que parece. Do
momento em que a magia de ambas se encontram.
— Acontece que para isso eu teria de
externalizar algo que sempre senti permanecer
dentro de mim. Preciso que a senhora também me
mostre como fazer.
— Isso seria impossível — decretou Burns.
— Como? — Grace a encarou.
— Cada bruxa é responsável por fazê-lo à
sua maneira, Grace, não se trata de algo que eu
possa lhe ensinar. — Notando que a pupila se
tornava agitada sobre o assento, a bruxa resolveu
ser mais solícita. — O que posso fazer é ajudá-la
a compreender alguns indícios, está bem?
— Eu tenho mais opções?
— Sobre isso, temo que não. — Burns
sorriu com o nítido nervosismo em sua voz. —
Agora vamos, pense comigo: quando chegou em
Granville Hall você ainda poderia ser considerada
uma bruxa inexperiente, de certa maneira, mas aqui
teve de enfrentar Cassandra algumas vezes,
inclusive, utilizando seus poderes para sobreviver,
correto?
— Bom, sim, mas não vejo como isso...
— Apenas siga o raciocínio. Nada de
pressa. — O tom professoral de Burns fora
aplicado. — Bem, ao utilizar seus poderes,
principalmente nos momentos de maior tensão,
deve se recordar de tê-lo visto, além de sentido,
não é?
— Visto?
— Não necessariamente com uma figura.
Nem todas somos metamórficas, por exemplo, mas
se fosse este o caso, você se lembraria de ter visto
um animal.
— Existem bruxas com poderes
metamórficos? — Grace ficou maravilhada.
— Sua leitura do Livro deveria estar mais
avançada — Burns deu uma reprimenda. — Mas a
perdoarei em vista dos últimos acontecimentos. —
Meneou a cabeça. — Mas, sim, algumas de nós
carregamos tal poder. — Ergueu uma sobrancelha
mais do que sugestiva.
Os lábios de Grace se abriram ainda mais.
A dúvida estava tão estampada em sua face,
que não foi necessário questionar.
— Uma coruja cinzenta — a tutora
esclareceu. — Mas vamos, estamos desviando
demais de nosso tema principal.
Grace mordeu os lábios.
— Mas isso não é justo. Seria muito mais
fácil me recordar se visualizasse alguma figura
específica quando meus poderes se expandem —
argumentou. — Todas as vezes que acontece, tudo
o que vejo é uma luz incandescente e crepitante
como fogo, que assim como ele não possui um
único formato.
— Um poder elementar — Burns murmurou.
— Como disse?
— Seu poder, minha querida, é elementar.
Por isso o enxerga como fogo a luz provinda dele
— explicou. — É assim mesmo que deverá
visualizá-lo quando estiver junto de Cassandra.
— Mas é claro… — Grace olhou para o
lado, permanecendo por um instante reflexiva.
Agora fazia sentido o fato de nunca sentir
tanto frio quanto às outras pessoas, possuir o
corpo mais adornado por tons dourados que todos
que conhecia, e ouvir que o próprio toque e
presença emanava um tipo singular de calor.
Além disso, havia também sua mais nova
capacidade de ver em meio à escuridão.
Fazia todo sentido!
Uma pessoa que carregava em si tal
elemento não precisaria buscá-lo para ser capaz
de iluminar.
— Quando estiver próxima de outra bruxa e
conseguir visualizar o próprio poder de tal modo
que se sinta capaz de até mesmo tocá-lo como uma
barreira em torno de si, verá que o mesmo
acontecerá ao dela.
— Então, o de Cassandra…
— Será o momento exato da aproximação...
— E do contato — Grace compreendeu.
— Exatamente.
A condessa balançou a cabeça.
— Ainda não a sinto com a mesma
intensidade, e isso revela que temos alguns dias
para treinar até que tente uma nova ofensiva.
— Quer dizer que terei de treinar com a
senhora? — Grace estaria mentindo se dissesse
que a compreensão não a deixava intimidada.
Burns balançou a cabeça em silêncio,
colocando-se de pé.
— Eu prometo que, caso se saia bem, ainda
hoje terei alguns feitiços extras para mostrar.

Após passar horas treinando Grace, Burns


estava indo embora quando seu caminho voltou a
se cruzar com o da jovem dama da condessa.
Era curioso, pois uma bruxa com sua
experiência não costumava sentir os próprios
instintos confundirem-se acerca de alguém, mas a
criada de cabelos e olhos castanhos que
caminhava em sua direção continuava a projetar
uma mensagem, ou melhor, uma premonição, que
Burns não sabia como deveria interpretar.
— Ah, boa tarde, Sra. Burns. — Vivienne
realizou uma vênia delicada quando ficou de frente
com a tutora, já próxima das escadas da porta
principal.
— Boa tarde, minha jovem. — Burns a
observou de cima a baixo, discretamente. — Senti
sua falta quando não nos levou o chá.
Anne sorriu.
— Tive que adiantar outras tarefas no
jardim, mas espero que não tenha comentado sobre
a preferência com minha tia, ou a deixará doente
por semanas — brincou.
— Eu jamais faria isso. — A tutora
ofereceu um sorriso à Vivienne. — A Sra.
Plymouth preza por Granville Hall há muitos anos,
e o faz com excelência.
— Certamente o faz — a mais jovem
concordou, orgulhosa pela tia.
— Bom, é melhor que eu me vá antes que a
atrapalhe mais em seus deveres. — Burns voltou a
caminhar, certa de que, se não tivesse nada de
concreto a oferecer, seria melhor não compartilhar
com Vivienne algo que apenas viesse a lhe tirar a
paz.
— Não me atrapalha de modo algum, Sra.
Burns — esclareceu a jovem. — Na verdade, se
me permite dizer, creio que seja mesmo como
costuma dizer lady Granville: há algo em vossa
presença que nos transmite sabedoria e
tranquilidade.
Ah, excelente…
Com tal fala, toda a resolução de Burns caía
por terra.
Afinal de contas, como se negar a oferecer o
mínimo de referência, de luz sobre uma situação
potencialmente nociva, a uma jovem que a via de
tal modo, e ainda por cima lhe parecia tão
indefesa?
— Ouça, minha criança… — A tutora se
aproximou, aproveitando-se para tocar o pulso de
Anne como fizera outra vez e confirmar que,
novamente, uma perspectiva confusa de luto
passado e turbulências futuras se mesclavam. —
Creio que seja o que chamam de instinto maternal,
mas você me lembra muito uma sobrinha que um
dia tive próxima, e que hoje mora longe demais
para que dê conselhos e, pelo que acaba de dizer,
sinto que poderia oferecê-los a ti.
Vivienne estava surpresa, obviamente, mas
também admirada.
Afinal de contas, era uma simples criada,
filha de humildes camponeses, e jamais se
imaginou recebendo qualquer tipo de atenção, ou
melhor, consideração de uma tutora.
— É claro… — praticamente murmurou.
— Sempre é bom valorizarmos a sabedoria
dos mais velhos e a presença deles enquanto ainda
estão conosco. — As sobrancelhas escuras e bem-
desenhadas de Vivienne se uniram. — Não sei se
vossos pais ainda estão vivos, mas deveria ser um
hábito a uma moça jovem como você visitá-los
para assegurar-se de que tudo corre bem, sempre
que possível. — Teria uma dúvida respondida ao
mesmo tempo que também oferecia uma instrução.
A garganta da moça oscilou.
Desde a morte da irmã, na verdade, um
pouco antes, Vivienne não possuía uma relação
muito afável com os progenitores, principalmente
com o pai.
— A senhora diz isso como se soubesse de
algo… — começou a tecer um comentário.
— Apenas sou alguém que já viveu o
suficiente para reconhecer que muitas vezes
cometemos o erro de valorizar a presença
daqueles que amamos apenas quando já costuma
ser tarde demais, e os temos ausentes — Burns
encerrou no mesmo instante a suposição.
Novamente, Anne engoliu seco.
Dessa vez, entretanto, balançou
afirmativamente a cabeça.
Talvez estivesse na hora de falar com os
pais. Ao menos tentar voltar a ter uma relação
saudável com a mãe.
— Obrigada pelo conselho, Sra. Burns. —
Voltou a realizar um aceno respeitoso de cabeça.
— Saiba que me encontro à disposição para
o que precisar.

Já era noite quando Grace foi de encontro


ao marido na sala de jantar para compartilharem a
refeição. No entanto, qual não foi sua surpresa ao
encontrá-lo alguns cômodos antes, na sala de
desjejum, que se encontrava mantida trancada
desde muito antes sua chegada em Granville Hall,
e sobre a qual jamais pisara.
Como a porta estava aberta, não precisou
bater, mas também não desejou atrapalhar Samuel,
que parecia extremamente introspectivo ao
observar a grande mesa empoeirada diante de si.
As mãos estavam apoiadas na cintura, os
ombros curvados para frente, e nenhuma palavra
do mundo seria capaz de descrever a mescla de
sentimentos que se abrigavam no olhar pétreo de
violeta.
— Pensei que Burns não fosse dispensá-la
para jantar.
Apesar do comentário conter algum humor,
a voz do conde estava áspera e também transmitia
a realidade que o inundava o coração.
Grace, entretanto, esforçou-se para
responder de modo simples:
— Nós nos envolvemos um pouco mais na
aula de hoje. — Deu passos sutis, sentindo a
austeridade do cômodo contrastar com a própria
essência enquanto entrava. — Ela deseja me
ensinar muito em pouco tempo e eu anseio por
aprender o máximo possível da mesma maneira.
— Sorriu singelamente.
Samuel virou o rosto para fitar a esposa, e
sentiu o calor de sua presença, pouco a pouco,
aquecer o espaço até então inteiramente tomado
pelas lembranças e frio da morte.
— Você a tem como mentora, mas Burns
também a admira muito — pontuou, com a voz
rouca.
— Ela também admira você — devolveu-
lhe a esposa, levando-o a encará-la com dúvida.
— Conversei com Burns acerca de vossa
preocupação sobre as crianças das docas, e
compartilhei sobre a possibilidade de oferecermos
ajuda, quando tudo isso acabar. — Grace mordeu
os lábios. — Espero que não se importe em ter
falado também em vosso nome, mas ela ficou
realmente satisfeita em saber que estaríamos
dispostos a evitar que outras encontrem o mesmo
destino que Cassandra. Disse que me
disponibilizaria para orientar aquelas que
demonstrarem certos dons, e ela se dispôs a me
ensinar a fazer isso.
Samuel balançou a cabeça.
— Toda criança merece um destino digno de
si — pontuou, olhando para os próprios pés.
— Sim — Grace concordou, aproximando-
se mais para segurá-lo em sua mão. — E todas
merecem conhecer o amor.
Granville voltou a alternar o olhar entre ela
e a mesa onde o pai e o irmão haviam sido
assassinados ao perceber que Grace retornava a
assuntos estritamente pessoais.
— O que está te incomodando? — A voz
dela foi suave como a bruma da manhã, e os lábios
macios praticamente colaram-se na fronte dele.
Uma respiração pesarosa escapou.
— O quão egoísta serei se desejar vê-lo
crescer, Grace? — Samuel voltou a fitá-la, com os
olhos enevoados por lágrimas de culpa. — Será
que meu pai deixaria de me amar ou me receber do
outro lado por ter tomado a vida que deveria ter
sido de Frank?
Ao final da pergunta, seus lábios se
apertaram.
— Mais do que nunca, sabe que a culpa não
foi sua. — Grace buscou acalentá-lo,
aconchegando-o em seus braços como uma
criança.
Vê-lo em tamanho sofrimento fazia seu
coração doer de maneira estrondosa.
— Ainda assim, não consigo deixar de
pensar que poderiam estar aqui. — Pela primeira
vez, ele sentia-se realmente confortável para
compartilhar seus sofrimentos e pensamentos mais
íntimos, vertendo não apenas lágrimas, mas
também seus maiores medos naquele abraço
necessário. — Ah, Grace, eu sinto tanta, tanta
falta…!
— E eles certamente sentem a sua, meu
querido. — A esposa o acariciava com mãos
suaves nos cabelos escuros, sentindo a respiração
pesada, interrompida por soluços, de encontro ao
próprio corpo. — E tenho certeza de que voltará a
encontrá-los quando for a hora certa.
Juntos, passaram praticamente um quarto de
hora abraçados, e permaneceriam ainda mais, não
fosse a chegada de Folkes, que os buscava pelos
corredores para anunciar o jantar.
Quando saíram de mãos dadas da sala de
desjejum, o valete se surpreendeu tanto pelo local,
quanto pelos olhos avermelhados do conde, mas
preferiu não tecer nenhum comentário, portando-se
impecavelmente ao realizar seu informe.
— Agradeço pelo anúncio, Sr. Folkes, mas
peço que, por gentileza, levem o jantar para o meu
quarto. — Grace observou o marido, que não
demonstrou nada além de aprovação pelo que
dizia: — Esta noite o conde dormirá em meus
aposentos.

E, depois de jantar e fazer amor com sua


esposa, Samuel realmente dormiu.
No entanto, dizer que aquela foi a noite de
sono mais tranquila que tivera em dez anos, seria
simples demais para descrever o estado de paz em
que seu coração e espírito finalmente pareciam se
encontrar.
A manhã seguinte começou com certa
agitação em Granville Hall.
Logo nas primeiras horas, Samuel solicitou
que Folkes fosse até Violet Valley convidar Carter
para um breve encontro, e possuía como objetivo
principal, dentre uma dose matinal de uísque
talvez, se desculpar pelo péssimo comportamento
que ostentara no último encontro dos dois, e
informar que possuía assinados os cartões de
embarque que deveriam ser entregues a Parkins.
Junto da esposa, o conde havia resolvido
que tal pendência seria solucionada assim que
despertaram, pois desejam ver-se livres de todas e
quaisquer amarras que ainda os mantivessem
presos ao início turbulento do matrimônio o quanto
antes.
Grace também já se preparava na biblioteca
para receber a Sra. Burns para suas aulas, e a
tutora cruzava o hall de entrada no horário
marcado, comprovando mais uma vez sua
pontualidade impecável, quando o destino voltou a
colocá-la diante de Vivienne.
Dessa vez, no entanto, a premonição ruim
ao redor da jovem parecia se acentuar, fazendo-a
chamá-la antes mesmo de um cumprimento:
— Vivienne?
— Ah, bom dia, Sra. Burns. — A jovem
estava com uma bandeja nas mãos e caminhou até
a tutora. — Ia agora mesmo à biblioteca para
servi-las. — Apontou com o rosto para a chávena
de chá ao lado da de café, deixando claro que se
lembrava da preferência da mais velha.
Burns deu um sorriso fraco frente ao gesto
de carinho, mas não conseguiu disfarçar a tez
preocupada.
— Está tudo bem? — Anne logo percebeu.
A bruxa olhou ao redor, e puxou a mais nova
delicadamente até um canto mais afastado,
orientando-a a deixar a bandeja sobre um aparador
antes de compartilhar o que realmente desejava.
— Minha querida, lembra-se que ontem
falei sobre a importância de valorizarmos a
presença dos mais velhos em nossas vidas?
— Sim… — Anne demonstrava a confusão
em seus olhos escuros.
— Pois bem, há algo que desejo saber, mas,
por favor, não me tome como uma velha
intrometida, está bem?
— Sra. Burns, eu jamais pensaria isso da
senhora — assegurou. — O que deseja saber?
— Com que frequência tem visitado vossos
pais?
Imediatamente, as bochechas da moça
tornaram-se coradas e sua voz baixa pela sensação
secreta de culpa.
— Devo admitir que não o faço com tanta
frequência, Sra. Burns, mas depois do que me
disse ontem, resolvi seguir vosso conselho, e
pretendo visitá-los em minha próxima folga, ao
final deste mês — informou.
— Ah, isso é muito bom. — Burns ficou
verdadeiramente satisfeita, e tomou a mão da
jovem para si, depositando-lhe tapinhas de
aprovação.
Estava prestes a desfazer o contato e se
afastar para seguirem seus caminhos quando o
contato fez com que a sensação de perda acerca de
alguém importante para Vivienne se acentuasse
ainda mais, tornando-se praticamente urgente.
A jovem abriu os olhos quando a mão de
Burns se apertou ao redor da própria.
— Sra. Burns?
— Escute isso como o pressentimento de
uma velha, sim, minha querida? — A bruxa sabia
que não poderia mais simplesmente ignorar aquela
sensação. Jamais se perdoaria se negasse à pobre
moça a única oportunidade de se despedir de uma
pessoa amada. — Mas sinto que há alguém que
ama precisando de vossa ajuda… — Aproximou-
se de Vivienne, vendo-a ter o semblante tomado
por preocupação, pois acreditava em sua palavra.
— Se possível, deveria ir vê-los o quanto antes.
— Minha ajuda? — A voz de Anne soou
trêmula e um tanto perdida.
— Talvez seja apenas um pressentimento
inútil, mas…
— Ah, não, Sra. Burns… Tia Porshia
também tem pressentimentos muito sábios e jamais
costumo ignorar quando se trata desse tipo de
coisa.
Ao menos a fala da jovem deixou a tutora
mais tranquila, por saber que sua postura não lhe
causava tanto estranhamento.
— Porém, não sei se lady Grace teria como
me dispensar tão imediatamente. Como sabe, não
há funcionários em Granville Hall para qualquer
tipo de substituição e…
— Fale com ela enquanto leva o chá, minha
querida. Explique o que houve, pode contar o que
eu lhe disse, e estou certa de que a condessa irá
compreender. Esperarei aqui, até que tenham
resolvido tudo com a devida privacidade.

Na biblioteca, como era de se esperar, não


foi necessário grande esforço por parte de Anne.
Assim que a criada deixou claro o envolvimento
da Sra. Burns com a urgência de sua viagem,
Grace não apenas a aprovou, como lhe disse que
seria melhor levar a Sra. Plymouth consigo e que o
Sr. Folkes as transportaria na carruagem da
família.
— Mas como farão você e lorde Granville?
— Daremos um jeito, minha querida, fique
tranquila — Grace assegurava com um sorriso
ameno no rosto, certa de que estava contribuindo
para a estratégia de sua tutora.
Em sua cabeça, Burns havia dito aquilo à
Vivienne para encontrar um pretexto, uma forma de
ter Granville Hall o mais vazia possível na
ocasião de seu embate com Cassandra. Imaginou
que a tutora deixara a seu cargo compreender que
seria sua atribuição dar um jeito para que a Sra.
Plymouth e Folkes fizessem o mesmo, e se
orgulhava pela saída encontrada.
— Talvez seja melhor que tia Porshia
permaneça… — Vivienne realmente preocupava-
se em deixar a mansão desprovida de criados.
— De modo algum. — Grace se levantou.
— Imagine como ela não ficaria preocupada se
descobrir que alguém de fato se encontra doente?
— Meneou a face. — Claro que não desejo isso a
nenhum de vossos familiares, minha querida, mas
devemos nos precaver e dar à Sra. Plymouth o
mesmo direito que damos a ti, visto que também se
trata de sua família.
Anne suspirou.
— Tem razão. — Levantou-se em seguida.
— Irei providenciar um valor extra além do
ordenado adiantado deste mês para qualquer
eventual despesa, e peço que nos escrevam,
informando a situação que encontrarem por lá, seja
ela qual for, está bem? — Segurou as mãos da
mais jovem, na intenção de tranquilizá-la com seu
poder.
Anne sorriu em agradecimento, sentindo o
coração aquecido.
— Está bem. Muito obrigada por tudo. —
Em seguida, tomou a liberdade de abraçar com
extremo carinho aquela que, além de sua condessa,
também era sua amiga.

Carter não estava em casa quando Folkes


fora chamá-lo pela manhã, mas o valete deixara o
recado de lorde Samuel de modo que, ao final da
tarde, o futuro senhor de Violet Valley entrava
pelos portões de Granville Hall.
Ele se surpreendeu ao notar a carruagem do
conde sendo preparada por Folkes, mas soube que
se desejasse respostas sobre a incomum situação
deveria buscá-las no interior na mansão.
Ao cruzar o corredor do escritório, porém,
foi com Vivienne que encontrou.
Como um reflexo àquela que não deveria,
mas passava a lhe exercer um comando absurdo,
seu coração parou de bater.
— Oh, boa tarde, Sr. Carter. — Anne
abaixou imediatamente os olhos.
Por alguma razão, a lembrança da maneira
íntima como ele lhe tocara o queixo alguns dias
atrás correu de forma automática sua mente,
deixando-a encabulada.
— Boa tarde, Srta. Vivienne. — William
notou que ela trazia um envelope em uma das mãos
e uma pequena maleta na outra. — Está indo a
algum lugar, suponho… — Engoliu seco.
Não desejava soar indelicado ou
intrometido.
Mas apenas a ideia que tal cena lhe fez
considerar, levou ao seu pescoço um suor frio.
— Irei visitar meus pais. — Finalmente,
Vivienne teve coragem de voltar a encará-lo para
responder e encerrar de uma vez por todas o
assunto e a interação.
— Ah, sim… — Carter deu um sorriso
comedido. — Não me recordo se alguma vez disse
em que cidade…
— Warrington — respondeu ela,
rapidamente.
Havia algo até mesmo no perfume do Sr.
Carter que a deixava... levemente incomodada.
— Ah, sim… — Ele voltou a se repetir e
demonstrar o magnífico domínio de oratória que
sempre o acompanhava quando estava junto dela.
— Se me der licença, Sr. Carter, creio que o
Sr. Folkes e minha tia estejam me aguardando na
carruagem. — Realizou uma vênia.
Mas antes que pudesse se retirar, Will a
fechou delicadamente no corredor.
— Não disse quanto tempo pretende ficar
fora. — Tentou ser o mais sutil possível.
Anne percebeu que ele não fazia a pergunta
de modo petulante, mas verdadeiramente
interessado, o que conseguiu deixá-la ainda mais
confusa.
— Passaremos uma semana… Talvez mais,
pois é possível que um deles esteja doente. —
Abaixou delicadamente os olhos.
— Eu sinto muito. — Novamente, ele
pareceu sincero.
— Não é nada certo — ela reafirmou,
voltando a fitá-lo, percebendo que estava mais
perto.
Ou não.
Os olhos do Sr. Carter sempre brilhavam
daquela maneira?
— Bom, lhes desejo uma boa viagem. — De
modo cavalheiresco, e um tanto atrevido também,
William puxou a mão delicada e enluvada para si,
curvou-se e depositou um beijo de despedida.
Se fosse sofrer por semanas com a distância
imposta pelo tempo, sem ao menos poder
vislumbrar secretamente sua musa de olhos
castanhos, ao menos teria aquela singela
lembrança para o pobre coração acalentar.
O ar de Vivienne ficou preso nos pulmões.
— O-obrigada — sem jeito, e nitidamente
encabulada, a donzela agradeceu e, logo em
seguida se retirou.

Após encontrar Carter e conversar sobre os


assuntos que inicialmente desejava tratar com o
amigo, não demorou para que Samuel percebesse
que este encontrava-se um pouco diferente do
habitual.
— William?
— Hem?
— Perguntei se gostaria de mais uísque —
repetiu o conde.
— Ah, sim, mais uísque, por favor —
confirmou o outro, com o olhar distante e o corpo
jogado na poltrona.
Momentos depois, Granville retornou com a
dose, sentando-se diante dele.
— Você me ouviu pedindo desculpas esta
tarde, algo no mínimo incomum. Era de se esperar
que estivesse com melhor humor. — Realizou um
comentário irônico.
— Ah, excelente. — Carter bateu com a
mão livre no braço de couro da poltrona. — No
único dia em que preciso de vosso humor
melancólico para me fazer companhia, encontra-se
com ânimo para gracinhas! Devo merecer! —
esbravejou.
Samuel uniu as sobrancelhas.
— Por que está tão irritado?
— Por nada! — ralhou William, engolindo
de uma só vez o líquido em seu copo.
Mas então, Samuel notou que logo em
seguida passou a mexer o anel de safira que trazia
no polegar, com o olhar turvo e distante.
— Em nome de todos os malditos círculos
do Inferno de Dante, Carter… — Inclinou-se na
direção do outro. — Está apaixonado?
— É claro que não!
Carter se levantou, totalmente na defensiva.
— Quem é ela? — insistiu Sam.
— Não sei de quem está falando.
— Alguma amiga de suas irmãs? Pensei que
estivessem viajando com vossos pais.
— E estão.
— Mas então…
— Não se trata de nenhuma delas.
— Ora, ora... — tripudiou Samuel.
— Ah, maldição! — Tarde demais, o pobre
percebeu que se entregara.
Aliás, tarde demais, percebia que aquela
era a primeira vez que admitia, inclusive para si,
que estava realmente apaixonado por alguém.
Apaixonado por Vivienne.
Como aquilo seria possível se conseguiria
contar nos dedos a quantidade de vezes que
estivera com ela e, nos de apenas uma mão, o
número de oportunidades nas quais a jovem lhe
concedera o inocente prazer de trocarem algumas
palavras?
Seria mesmo possível logo ele, William
Carter, ter se apaixonado praticamente à primeira
vista?
Era isto, então?
A vida o formara para ser um homem
desenvolto, safo e astuto para, no final,
transformá-lo em um clichê ambulante?
— Desculpe, Samuel, mas preciso ir. — O
jovem cavalheiro nem mesmo aguardou uma
resposta e já buscava a própria cartola disposta
sobre a mesa do conde.
Granville respondeu alguma coisa, mas os
pensamentos de William estavam tão agitados que
sequer o permitiram ouvir. Seguiam concentrado
demais em rumar os próprios passos até a porta,
onde acabou cruzando com Grace, sem
praticamente enxergá-la.
— Desculpe-me. — Tocou a aba do chapéu,
mas nem mesmo parou para cumprimentá-la,
seguindo de modo desnorteado o próprio caminho.
— O que há com ele? — Grace perguntou
ao marido, ao entrar no escritório.
— Foi atingido.
— Como assim? — O termo a deixou
assustada.
— É modo de dizer — Samuel a
tranquilizou, aproximando-se para aproveitar e
fechar a porta, visto que suas intenções jamais
poderiam ser consideradas puritanas quando a
tinha por perto. — Acredito que Carter esteja
apaixonado, e o pobre ainda está compreendendo
como sobreviver após cair em desgraça.
— Nem sempre é tão ruim assim — A
condessa deu um sorriso singelo, e seu comentário
foi o suficiente para que Samuel percebesse que
havia dito algo indelicado, principalmente por não
poder oferecer o mesmo a ela.
— Não àqueles que são livres para
escolherem o que desejam — lembrou-a.
— Samuel… — Grace murmurou,
aproximando-se o suficiente para tocá-lo no rosto.
— Já conversamos sobre isso. — Mas ele
foi conciso.
Grace engoliu seco.
Sentia-se tola por praticamente implorar
para ser amada...
...Mas seria correto condenar-se por isso?
— O essencial — Granville se aproveitou
da proximidade estabelecida por ela e sussurrou
em seu ouvido ao notá-la abaixar os olhos. — Sei
que merece muito mais do que isso, Grace, mas me
garantiu satisfazer-se se eu lhe entregasse o
essencial… — As mãos do conde a apertaram ao
redor da cintura, e Granville aproveitou que já
tinha os lábios tão próximos para beijá-la
delicadamente no pescoço, distribuindo deliciosos
arrepios ao longo da coluna esguia. — Lembra-se?
— voltou a sussurrar, enquanto a empurrava com o
próprio corpo em direção à mesa de mogno no
centro do escritório, sobre a qual não demorou
para colocá-la sentada, encaixando-se entre suas
pernas.
— Sim. — Grace o sentia puxando com
agilidade as saias de seu vestido enquanto as
próprias mãos trabalhavam para abrir a braguilha
das calças do marido. Os dedos de Granville
encontraram sua intimidade, mas foi apenas para
marcar o ponto que seria imediatamente invadido
com seu membro duro e inchado, fazendo-a gemer
em surpresa e satisfação. — Dê-me o essencial…

Ventos uivavam feito uma sinfonia fúnebre


através dos galhos secos do jardim quando Grace
despertou em meio à madrugada, compreendendo-
os como um chamado.
Aquele chamado.
A condessa teve o cuidado de se mover
suavemente sobre os lençóis e retirar com
movimentos amenos o braço do marido que
repousava sobre sua cintura. Graças aos anos de
noites infernais, Samuel possuía um sono tranquilo
e pesado o bastante para não perceber, o que foi
de grande auxílio na manobra.
Meow.
Grace ouviu o miado baixinho, e sentiu
quando o Sr. Claws começou a se alongar sobre
seus pés.
O gatinho havia, de alguma maneira,
conseguido entrar no quarto e encontrado um
espaço muito aconchegante para pernoitar entre o
acolchoado do casal.
— Preciso que fique aqui, meu querido —
sussurrou, em um tom praticamente inaudível.
O felino remexeu as orelhas e a fitou por
alguns instantes, como se ponderasse se estava
inclinado ou não a seguir o pedido. Para seu
alívio, no instante seguinte, voltou a se acomodar
ao lado dos pés de Samuel, e a cena com a qual
ela deixara o quarto, vendo-os juntos, dormindo
em paz e seguros em uma cama quente e macia, foi
como uma dose extra de determinação ao próprio
coração.
Seu último embate com Cassandra
finalmente aconteceria e, após cumprir aquele que
era seu propósito, Grace voltaria para eles,
também se meteria em meio às cobertas e, a partir
de então, nunca mais permitiria que nada, nem
ninguém, interferisse na paz daqueles que amava,
ou daquele lugar.

A jovem bruxa tinha os longos cabelos


dourados soltos, os pés descalços praticamente
cobertos pela barra da camisola branca de algodão
e se permitia ser completamente guiada pela
própria magia em meio aos corredores escuros de
Granville Hall. Em seus olhos o brilho
incandescente já se acentuava, permitindo-lhe
enxergar com tanta clareza como se fosse dia.
Quando Grace tocou a madeira da porta, sentiu que
do outro lado o frio da morte espreitava e o calor
de seu corpo correspondia.
Cassandra, como era de se imaginar,
percebia que os poderes da condessa haviam se
fortalecido dentro da mansão e, por isso, desejava
realizar o embate onde ainda possuía parte de seu
domínio: nas terras do jardim.
Quando a jovem bruxa saiu, fechou a porta
atrás de si.
— Confesso que é mais atrevida do que
imaginei.
Grace se virou e pôde ver o exato momento
em que um torvelinho de poeira se condensou até
tomar a forma de um espectro. A mesma figura
esquálida que se assemelhava a uma mulher e a
tinha confrontado no quarto secreto, dias atrás.
Cassandra tornou o vento ainda mais
intenso, utilizando-se de sua figura medonha e dos
sons que os galhos faziam para buscar intimidá-la.
— Não desejo lhe ferir — Grace precisou
falar alto enquanto descia as escadas em direção à
figura sombria no gramado.
Uma risada cruel e metálica ressoou.
— Então esta será a primeira vez que
desejamos coisas diferentes, praga — a outra
ironizou enquanto os cabelos escuros seguiam
como enguias ao redor da face esquelética.
— Cassandra, deixe-me falar com você. —
Grace se aproximou, estendendo a mão com toda a
coragem digna de si.
— Eu não estou aqui para conversar!
Mas no instante seguinte foi atacada pela
oponente de modo inesperado, precisando ser ágil
em se proteger.
Seus poderes reagiram imediatamente,
demonstrando a eficiência das aulas de Burns. A
luz dourada se condensou ao redor da dama e, em
um primeiro momento, sua intensidade foi tamanha
que conseguira repelir Cassandra, surpreendida
pelo elemento surpresa.
Tal explosão, entretanto, também gerou
reflexos externos, pois Grace não sabia, mas toda
a propriedade havia se tornado intensamente
ligada a si de tal maneira que, no mesmo instante,
cada uma das velas e lareiras existentes em
Granville Hall se acendeu.
Furiosa, Cassandra realizou uma ofensiva
similar e, conforme Burns também avisara que
aconteceria, desta vez, Grace fora capaz de
enxergar o poder escuro como carvão se
condensar ao redor da bruxa e o exato momento
em que uma rajada buscou atingi-la diretamente em
seu coração.
Seria o momento do contato.
A compreensão correu pela mente da
condessa no mesmo instante em que Grace já
realizava o necessário, e estabelecia o vínculo, a
conexão, lançando a própria magia contra a de
Cassandra de modo que a bruxa voltou a se
espantar.
— Você está em agonia, Cassandra, e causa
sofrimento aos demais porque não consegue se
libertar. — Os dizeres de Grace não eram
transmitidos por sua voz, mas por sua mente e,
através do fluxo compartilhado e estabelecido,
Cassandra foi capaz de escutá-los.
— O que pensa que está fazendo?! —
Soava ainda mais irada.
Sentia-se maculada, invadida.
— A obsessão que tem por Samuel é devido
ao fato de acreditar que se trata do único afeto que
algum dia recebeu; mas isso não é amor. —
Enquanto dizia, Grace se esforçava para impedir
as investidas que sentia o poder obscuro fazer
contra si, buscando atacá-la e, ao mesmo tempo,
desfazer a conexão. — Eu estou aqui para te
mostrar o que é o amor e que, apesar de não se
recordar, já foi amada.
Grace precisou fechar os olhos tamanho o
esforço que demandava de si buscar penetrar mais
fundo nas recordações antigas de Cassandra para
buscar reaver à bruxa aquilo sobre o que dizia.
Penetrava em sua mente.
— Saia!! — a outra gritou, percebendo o
que era feito.
Por fora, o corpo de Grace parecia
simplesmente paralisado, enquanto era cercado
por dois focos de energia — um dominado por luz
e outro forjado das sombras.
Mas o que acontecia por dentro era um
verdadeiro caos, pois, por mais que Burns tivesse
buscado prepará-la, nada seria suficiente para
precaver sobre o verdadeiro inferno de angústias,
raiva e sofrimentos que no interior da mente de
Cassandra teve de encontrar até, finalmente,
conseguir acessar as memórias de sua mais tenra
infância.
Visões começaram a se formar para
Cassandra e a bruxa ironizou a artimanha:
— Isso não funciona comigo, praga tola!
— Não são ilusões, Cassandra — Grace
notou qual era a suposição feita pela oponente e a
informou com a voz fraca.
Muita energia era drenada de si. Seus lábios
se tornavam pálidos.
Mesmo não desejando acreditar no que via
e ouvia, a atenção de Cassandra foi roubada para o
momento em que uma menininha surgiu na visão.
Esta possuía os cabelos escuros como uma noite
desprovidas de estrelas e luar, e os olhos negros
mais marcantes que um dia se viu. A menininha
ergueu os olhos, e logo se notou que observava
com ternura a mulher que a segurava pela mão, e
que esta também a olhava com carinho.
Aos poucos, mais detalhes eram
adicionados à visão, e logo foi possível notar que
as duas caminhavam em um tipo de feira, onde uma
boneca de pano foi comparada de presente à
menina e, logo depois, uma fruta suculenta. Além
da fruta, a menina recebia da mulher um beijo
delicado no topo da cabeça. “Obrigada, mamãe.”
Dissera-lhe como resposta.
Grace sentiu a energia de Cassandra vacilar
no mesmo instante. A figura esquálida diante de si,
pela primeira vez, tornava-se estática.
A visão prosseguiu e, mais tarde, quando
retornaram da feira, até mesmo o tom sépia das
lembranças foi alternado por um cinza e
melancólico, ao mesmo tempo em que tudo se
tornou um emaranhado de gritos graves e finos,
esperneio e pavor.
— Chega... — Cassandra disse com a voz
tomada por cólera.
Homens grosseiros surpreendiam mãe e
filha em uma trilha sombria, separando-as com
intenções e modos hostis
— Eu disse, já chega! — Cassandra voltou
a gritar, quando sua energia se expandiu,
alimentada pela fúria do que então se recordava.
Obviamente, Grace não possuía a intenção
de fazê-la reaver tais lembranças, mas ainda não
sabia lidar com tanto domínio com seus poderes a
ponto de encerrar a conexão no momento em que
bem entendesse.
— Você foi amada, Cassandra! — Ao
perceber que o ápice da fúria vinha de encontro
justamente com o momento em que as próprias
forças estavam se esgotando, Grace buscou apelar
para qualquer sentimento que pudesse haver na
alma da bruxa. — Há alguém lhe esperando do
outro lado. Liberte-se dessa existência sombria à
qual se condenou, e vá! — Ainda em sua mente,
buscava convencê-la.
A oponente, entretanto, ainda parecia
perturbada demais para ouvir. Grace sentia os
ataques prosseguirem mais furiosos pelo que a
havia feito recordar, e utilizava-se da pouca força
que tinha para defender a própria integridade.
E foi neste exato momento que o que a
condessa menos esperava aconteceu.
— Grace! — O chamado apavorado de
Samuel soou das escadas e ela precisou sair do
transe para se comunicar com o marido e impedi-
lo de se aproximar.
Havia muitos poderes expostos. Aquilo era
perigoso demais.
— Samuel, se afaste! — gritou.
Mas vendo-a com o corpo curvado e
visivelmente fraca, o conde sequer considerou dar
ouvidos à orientação, e continuou correndo até ela.
Cassandra voltou a se desfazer novamente
em poeira, aproveitando a fuga no fluxo, mas logo
depois voltou a se colocar diante do casal em sua
forma.
Aquela era a primeira vez que os três se
reuniam, e a bruxa não pôde evitar de, ao tê-los ao
lado um do outro, observar a maneira como os
olhares do casal diante de si se correspondiam.
Se ainda pudesse verter lágrimas, tinha
certeza de que seus olhos se encheriam com as
forjadas pela raiva diante do que acabavam de
enxergar.
— Basta, Cassandra! — ordenou o conde.
— Não… — a bruxa o respondeu,
visivelmente conturbada, e seus olhos derramaram
sobre Grace mais determinação do que Samuel
enxergara em qualquer outra vez, o que foi capaz
de apavorá-lo.
Ao perceber que um novo e definitivo
ataque seria desferido contra a esposa, Granville
se lançou diante dela bem a tempo, em um nítido
gesto de sacrifício.
As mãos que Cassandra havia erguido se
estagnaram no mesmo instante.
— Você a ama — murmurou com espanto.
Samuel ficou paralisado.
— Não! — O grito de desespero de
Granville ainda ressoava quando o conde olhou
para trás tendo tempo de testemunhar a luz se
apagar dos olhos de Grace e ver a esposa cair
morta no chão.
Carregando o corpo de Grace em seus
braços, Samuel retornou para o interior de
Granville Hall vociferando o mais alto que lhe
permitiam os pulmões:
— Desfaça isso, Cassandra! Desfaça!
— Você sabia da maldição — o espectro o
havia seguido e se resumia a lembrá-lo.
— Grace?! — O conde depositou a esposa
sobre o estofado da sala e voltou a chamá-la em
desespero, sacudindo o corpo inerte pelos ombros.
— Grace!! — Os gritos eram tão intensos que
faziam a construção vibrar.
Todas as velas e lareiras de Granville Hall
haviam se apagado junto da partida da condessa e
o frio e a escuridão da morte voltavam a se
apossar do lugar.
— Se foi. — Sam deixou a testa cair sobre
o colo imóvel e derramou suas primeiras lágrimas
de luto enquanto constatava com lábios e sussurros
trêmulos. — Você também se foi.
Cassandra o observou chorar copiosamente
pela morte da esposa enquanto permanecia imóvel
diante da cena.
Longos minutos se passaram até que Samuel
finalmente encontrasse forças para voltar a encarar
a forma cadavérica diante de si.
— Mate-me. — O apelo viera do canto
mais profundo e desesperado de seu ser.
Cassandra foi capaz de enxergar ao fundo
dos olhos do conde o quanto estava destruído.
Mais do que dez anos atrás era como se, desta vez,
nem mesmo a ideia e uma vingança ou qualquer
tipo de missão fosse suficiente para fazê-lo flertar
com a ideia de ficar.
— Vamos acabar com isso de uma forma
equilibrada, Cassandra. — Granville se levantou e
começou a tirar a camisa pelos ombros. — Da
forma como desde o princípio deveria ter sido. —
Jogou a peça ao canto da sala e esticou os braços,
expondo-se de bom grado ao próprio fim. —
Vamos, me mate! — gritou.
Compreendendo o silêncio da bruxa como
um aceite, Samuel fechou os olhos e aguardou o
momento em que sua desgraçada e desprezível
existência finalmente seria extinta.
O gesto, no entanto, o tornou incapaz de
reparar quando um foco de luz atrás de si roubou a
atenção da bruxa.
Uma vela que acendera sozinha.
A primeira foi seguida de outra, e de outra,
e depois da lareira do cômodo e dos outros
cômodos da casa. Entretanto, o fogo tornou-se tão
intenso que as chamas não demoraram a se tornar
descontroladas, tomando o papel de parede,
ameaçando inclusive as cortinas e a tapeçaria.
Sentindo um calor inesperado ocupar o
ambiente, Samuel voltou a abrir os olhos e
constatou que as pernas falharam, não apenas pelas
chamas que viu flamejando ao seu redor, mas por
aquelas que também voltavam a tomar os olhos da
esposa que, novamente desperta, sentava-se bem
diante de si.
— Grace! — Sem comedir qualquer reação,
Granville caiu de joelhos, abraçando-a com toda a
força contra o próprio peito.
Ela estava viva.
A mulher que amava estava viva!
Grace permaneceu inerte por alguns
segundos, como se despertasse de um sono
profundo e confuso, mas a conexão estabelecida
pelo abraço do marido foi o suficiente para fazê-la
compreender que havia, de fato, retornado do
mundo dos mortos. Com a mesma intensidade,
passou a apertá-lo junto ao próprio corpo.
Observando a cena estupefata, Cassandra
pareceu finalmente compreender que sua magia,
dedicada a ferir, lhe parecera invencível apenas
até conhecer aquela que possuía suas bases
forjadas nos preceitos do mais puro e
incorruptível sentimento do coração.
Um sentimento como aquele, expresso na
alma e no corpo do casal que não demorou para
voltar a trocar lágrimas e gestos de amor, enquanto
a magia de Grace, mais reluzente do que nunca,
formava uma cúpula impenetrável ao redor dos
dois.
Um sentimento que, talvez, a própria alma
só voltaria a encontrar se finalmente a permitisse
ir de encontro àquela que a aguardava.
Grace ainda tinha o queixo apoiado no
ombro do marido em meio ao abraço quando
voltou a abrir os olhos e notou que o espectro da
bruxa permanecia ali.
A jovem condessa percebeu que, pela
primeira vez, não era apenas escuridão que
orbitava ao seu redor e aproveitou o exato
momento para reestabelecer uma nova conexão,
unindo-se à magia e à mente de Cassandra.
Com mais facilidade do que da outra vez,
demonstrando que seus poderes novamente eram
fortificados quando vencia uma adversidade,
Grace penetrou em suas lembranças mais
profundas e prosseguiu pelos caminhos já
conhecidos até acessar das memórias onde a voz
melodiosa daquela mulher, da mãe de Cassandra,
sussurrava-lhe palavras carinhosas como “eu te
amo”, “minha menina” e “meu amor” enquanto
realizavam refeições e outras atividades na
companhia uma da outra em um chalé que parecia
ser extremamente simples, mas repleto do conforto
que apenas um lugar preenchido com afeto é capaz
de proporcionar.
Dessa vez, a bruxa não oferecia qualquer
tipo de reação à sua prática. Mais do que resistir,
Grace percebia que o que ela desejava era
aproveitar o momento em que as memórias
esquecidas eram trazidas novamente à tona para
usufruir da sensação que a permitiam sentir outra
vez.
Já fazia tanto tempo...
Cassandra sentia-se amada, e invadida pela
certeza de que, sim, haveria alguém lhe esperando
no outro lado quando finalmente se permitisse
descansar.
Delicadamente, a condessa desfez o fluxo
contínuo e abriu os olhos, aguardando pelo
momento em que o espectro fez o mesmo ao
encará-la.
— Em paz, Cassandra — sibilou ao
perceber que, de maneira inédita, seus olhos não
ostentavam sentimentos nocivos ao fitá-la. — Vá
em paz.
A bruxa observou a Samuel, alheio a tudo o
que acontecia pela real capacidade que a magia de
Grace e de seu amor possuíam em protegê-lo, e
percebeu que o que sentira pelo conde, mesmo
uma década atrás, sequer chegava próximo do
sentimento que agora o via receber.
E então, desfazendo-se em poeira,
Cassandra permitiu-se ser reclamada ao ritmo do
vento que continuava do lado de fora, cruzando as
portas de Granville Hall pela última vez.
— Acabou — Grace sussurrou ao marido,
permitindo-se respirar fundo com a constatação
que mais desejava declarar.

Quando Samuel voltou a abrir os olhos


percebeu que, de fato, Cassandra já não estava em
Granville Hall, comprovando o que a esposa lhe
dissera. O gesto, porém, o fez notar que a fumaça
já se espalhava ao redor.
Como se apenas então acordassem para a
nova ameaça iminente, o casal se levantou às
pressas, correndo para fora da mansão ao perceber
que, realmente, a tapeçaria e as cortinas da sala já
estavam tomadas pelas chamas que, apesar de
provirem de si, Grace não conseguia controlar.
Como possuía diversos materiais e estilos
arquitetônicos mesclados em sua constituição, o
casal assistiu como o fogo se espalhou com
rapidez, atingindo grande parte da construção.
Já estavam nos jardins quando Grace ouviu
o miado de Claws na janela de seus aposentos,
mas ambos ficaram desesperados ao notar que esta
encontrava-se fechada, restando apenas um
pequeno vitrô basculante aberto.
— Vamos, meu querido, você consegue
passar aí! — A condessa se aproximou, mas o fogo
já começava a alcançar o lado de fora,
aproveitando-se do acabamento em madeira e das
treliças para correr desenfreado.
— Cuidado! — Granville a puxou para trás
ao notar que a parte solta de uma caía
extremamente perto.
Havia, inclusive, comprometido a passagem
do vitrô por onde Claws antes conseguiria passar,
mas agora se tornava impossível.
— Terei de buscá-lo — disse ela.
— De modo nenhum! — Granville a
segurou com ainda mais força pelo braço. — Se
alguém terá de se arriscar, serei eu.
— Não seja absurdo! — Grace o fitou com
os olhos incrédulos — Em poucos minutos, pode
não restar nada lá dentro.
— É exatamente por isso. — O conde a
puxou, colando o corpo da esposa ao próprio. —
Não me peça para conviver com a possibilidade
de perdê-la outra vez — praticamente suplicou.
A declaração fora tão intensa, que os olhos
de Grace nem mesmo piscaram.
— Você não irá nos perder — garantiu,
depositando um beijo rápido nos lábios do marido.
E em seguida se soltou, correndo para
dentro da mansão com toda a velocidade que os
próprios pés conseguiram alcançar, antes que
Samuel conseguisse impedi-la.

Dentro de Granville Hall a situação já


estava muito mais avançada no andar térreo do que
a condessa supunha. Como a sala de estar para a
qual Samuel a levara era a mais próxima da
entrada, o fogo se espalhara com facilidade até
aquela área, tomando com labaredas assustadoras
as paredes forradas por tecidos. A tapeçaria e os
móveis também eram consumidos a uma
velocidade alarmante, e Grace percebeu que
deveria considerar a possibilidade de descer pela
janela, pois transitar por ali, após o resgate Claws,
estaria fora de questão.
Curiosamente, o calor que a jovem bruxa
sentia provir das chamas não era suficiente para
incomodá-la e nem mesmo a fumaça escura, apesar
de impressionante, parecia sufocar. Supôs que
deveriam ser os efeitos da própria magia a
protegê-la, mas não seria inteligente arriscar os
próprios limites, permanecendo mais que o
necessário.
Sendo assim, Grace subiu os degraus de
dois em dois, segurando a camisola na altura dos
joelhos, e percorreu o corredor da ala privativa
em uma velocidade recorde, sentindo o chão sob
seus pés começar a aquecer. Aquele era um sinal
claro de que, no térreo, as labaredas subiam até o
teto, comprometendo os alicerces da construção.
— Claws? — chamou o gatinho ao abrir a
porta, e a bola de pelos malhados não demorou a
correr ao seu encontro, miando como se a alertasse
sobre o risco iminente. — Sim, meu querido,
precisamos sair o quanto antes daqui.
Grace o tomou em seus braços, enrolando-o
em um xale que encontrou pendurado na cadeira.
Quando saiu para o corredor, no entanto,
percebeu que tinha razão, pois um laranja
incandescente tomava a base das escadas,
denunciando que seria impossível voltar por lá.
A condessa retornou ao quarto e observou
através da janela, mas surpreendeu-se ao notar que
nem mesmo a figura do marido era mais capaz de
enxergar, visto que o fogo tomava completamente a
área dos espinheiros e treliças, impossibilitando a
segunda opção.
Grace olhou para Claws e viu o par de
olhos verdes encará-la.
— Vai dar certo. — Buscou tranquilizá-lo
com palavras, enquanto fazia o mesmo com seu
toque, apertando-o ainda mais contra o próprio
coração.
Voltou a correr em direção às escadas e, ao
chegar no topo, percebeu que se tratava realmente
dos dez primeiros degraus já comprometidos.
Tudo o que precisaria fazer seria saltá-los.
Em seu interior, Grace sentiu uma intuição.
Mais do que apenas sentir, a jovem soube
que, mesmo com o risco iminente, aquele era o
caminho que deveria seguir com Claws, e deveria
fazê-lo naquele instante.
Ela começou a descer os degraus e, quando
sua vertente racional buscou fazê-la parar, sentiu
que algo muito mais profundo a impeliu a
prosseguir, no exato instante em que uma parte da
estrutura da escada onde há pouco pisava foi
atingida por um caibro que despencava do teto em
chamas.
O som foi estrondoso.
Do lado de fora, ouviu Granville gritar seu
nome.
Aquele fora mais um sinal de que precisava
ouvir os próprios instintos.
Passado o susto, Grace seguiu com passos
firmes, porém, quando chegou aos degraus
flamejantes, seus pés pareciam se negar a deixar o
chão.
Não desejavam que saltasse.
Grace observou ao redor, e percebeu que
aquilo era um sinal do próprio corpo que, à sua
maneira, possuía algo a lhe mostrar.
A condessa abraçou Claws com ainda mais
força e, certa de que deveria fazê-lo, atravessou as
chamas como se fossem o ar, rompendo-as sem
sentir nada além das próprias forças o
correspondendo, compreendendo a ligação.
Foi então que Grace percebeu que o
elemento não era apenas a base de sua magia...
…o fogo era parte de si.
— Graças a Deus! — Granville
praticamente chorou ao vê-los atravessar a porta
da mansão.
O calor a dada altura era tanto, que não
conseguia ficar próximo a ponto de enxergar o que
se passava lá dentro, pois a fumaça não o deixava
respirar.
Ele a segurou na mão livre e juntos
correram até o jardins, onde se colocaram o mais
distante possível, na extremidade próxima aos
portões.
— Eu sinto muito — Grace sussurrou,
observando grande parte da mansão ser consumida
pelas chamas com imenso pesar.
Samuel não havia afastado os braços da
esposa por um segundo sequer, e a apertou ainda
mais contra o próprio peito ao afirmar:
— Mas eu não. — Fechou os olhos, levando
o nariz aos cabelos dourados e inspirou o ar com
força. Ela estava ali, e era apenas isso o que
importava. — Que todas as recordações sórdidas
também queimem se estes forem os desígnios do
destino, pois aprendi que não cabe a nenhum de
nós desafiá-lo. Enfim deixaremos tudo isso para
trás.
“As estruturas de Granville Hall são
extremamente sólidas.”
Recordara-se que o pai lhe dissera certa
vez, e tinha certeza de que as estruturas às quais o
progenitor se referia pertenciam àquilo que nada,
jamais, seria capaz de destruir.

Algumas horas mais tarde, a notícia do fogo


se espalhara pelos arredores, e o caminho das
chamas apenas não fizera o mesmo porque uma
insistente garoa passara a cair sobre Liverpool,
prestando grande auxílio ao trabalho da brigada de
incêndio local. Conforme o estalar do fogo
diminuía, o burburinho dos curiosos atraídos pelo
evento ganhava espaço, e Grace vez ou outra
reparava nos olhares desconfiados e receosos que
lançavam em direção ao marido, que buscava
esclarecer o possível sobre a origem do incidente
junto ao líder da brigada, visivelmente
desconfortável em ter de falar com o Conde
Assassino.
Carter também correra até eles assim que a
notícia chegara a Violet Valley e tomara para si a
missão de auxiliar Samuel com o que fosse
necessário, mas não demorou para que o amigo o
chamasse de canto.
— Por favor, William, leve Grace para sua
casa e deixe-a lá até que eu a busque, assim que
tudo se acalmar por aqui.
— O quê? Não! — Grace, que ouvira o
pedido, soava incrédula.
— Grace, por favor… — solicitou Sam,
falando o mais baixo possível.
Todas as vezes que abria a boca para
proferir uma palavra sequer as pessoas o olhavam
como se esperassem ver moscas ou percevejos
sair. Era extremamente odioso.
— Não o deixarei sozinho, não teria
cabimento algum… — reiterou, vendo-o abaixar
os olhos. — Por que está fazendo isso? —
perguntou em tom ameno, mas o marido não
respondeu.
Carter lançou um olhar sugestivo ao redor,
alimentando sua leve suspeita.
— Não me importo com nenhum deles — a
condessa afirmou, segurando o marido em sua
mão.
Samuel voltou a fitá-la.
— Não é justo que passe por isso. — Sua
garganta oscilou. — Não é justo que a olhem
assim.
— Assim como não é justo que o façam com
você. — Sem se importar o mínimo com qualquer
questão relativa ao decoro, ou o que os curiosos
ao redor iriam pensar, Grace acariciou
delicadamente a face manchada de fuligem de
Samuel, observando-o com os olhos mais meigos e
sinceros que ele já vira. — Que não reste dúvidas
de que eu sei quem é, e de que escolho a cada um
de meus dias permanecer ao seu lado. — Beijou-o
com delicadeza nos lábios, causando uma onda de
sussurros surpresos e abafados ao redor.
Se fosse possível, o gesto o faria amá-la
ainda mais.
Ao se desvencilhar do beijo, Samuel
devolveu a carícia suave na face de Grace,
derramando com seu olhar toda a devoção que lhe
guardava.
William não conseguiu conter um sorriso de
aprovação e, em seguida, se virou para a fileira de
futriqueiros, dispersando-os com os braços
esticados.
— Muito bem, senhoras e senhores, a menos
que tenham baldes, pás e braços fortes para
oferecer alguma ajuda, creio que já tenham visto o
suficiente por aqui.
— Obrigado, Carter — Granville agradeceu
a postura do amigo.
— Não há de quê — devolveu o cavalheiro.
— No entanto, devo dizer que em muito me agrada
a ideia de receber ambos como convidados em
Violet Valley até que tudo se ajeite.
Grace observou o marido, aguardando pela
resposta.
— Agradeço a oferta, mas não tenho certeza
de quanto tempo tudo isso levará. — Samuel
ergueu os olhos à mansão.
Mais de um terço da construção, para dizer
o mínimo, estava completamente destruída.
— Não precisa se preocupar sobre isso…
— assegurou Carter.
— Ainda assim, creio que ficaríamos mais
tranquilos em meu apartamento.
— Aquele apartamento? — Will abriu os
olhos com nítida surpresa, deixando Grace
curiosa.
Samuel praticamente o fuzilou.
— De que apartamento estão falando? —
perguntou ela.
— Trata-se de minha residência da época
de solteiro. Não o utilizo desde a faculdade.
— Bons tempos… Ai! — Carter comentou
com alguma malícia, levando uma cotovelada do
conde. — O que foi? Só disse que temos
lembranças agradáveis de nossa juventude naquele
lugar. — Mas então, se lembrou que Samuel não
gostava de se recordar de épocas passadas. —
Desculpe-me.
— Está tudo bem. — O amigo o
surpreendeu. — De qualquer maneira, duvido em
muito que qualquer lembrança lá existente supere
aquelas que estou prestes a criar. — Observou
intensamente a esposa, de modo que Grace sentiu
todo corpo arrepiar.
— Não sei se estou confortável em
permanecer neste diálogo… — resmungou Will.
— Há apenas uma única pendência que
necessito resolver o quanto antes. — Samuel o
ignorou propositalmente, retomando os assuntos
mais sérios. — Preciso encontrar uma maneira de
comunicar o que houve aos demais.
Ficara claro que, com “os demais” referia-
se ao Sr. Folkes, a Sra. Plymouth e Vivienne.
Carter, automaticamente, se concentrou no
último nome.
— Poderia ajudá-los com isso. — Foi
extremamente solícito.
Talvez, até demais.
— Como? — questionou Granville.
— Poderia partir para Warrington agora
mesmo para informá-los com toda seriedade que o
informe necessita.
— Como sabe para onde foram? — O
detalhe não escapou aos ouvidos perspicazes de
Grace.
— Ah… bem… — O pobre se embaralhou
com a resposta, mas logo percebeu que não teria
por que oferecer algo diferente da verdade. —
Vivienne me informou.
Vivienne.
Outro detalhe que não escapara aos ouvidos
treinados de Grace, junto à aura do rapaz que
pareceu tremular de leve ao pronunciar o nome da
moça, como se a lembrança dela o abalasse.
Seria possível?
— Bom, se não for interferir em vossos
compromissos, não vejo como negar tal favor. Só
Deus sabe a falta que sentirei de ti ao ter de lidar
pessoalmente com Parkins nos próximos dias, mas
valerá a pena, uma vez que é o mais próximo que
tenho de alguém da família para compartilhar a
notícia. — De repente, a voz de Samuel oscilou.
— Por favor, William, não os transmita qualquer
ideia catastrófica, sim? Apenas diga que devem
permanecer em Warrington por mais uma semana,
até que tudo se ajeite. Só Deus sabe como aqueles
dois são apegados a Granville Hall, e não desejo
que sofram em antecipação.
Grace colocou uma mão carinhosa sobre o
ombro do marido.
Lá estava ele, novamente, demonstrando
possuir um coração muito mais sensível e
carinhoso do que na maioria das vezes desejava
demonstrar.
— Fique tranquilo, meu caro, direi apenas o
necessário para que atrasem o retorno — Carter
assegurou.
— Já tem ideia de quando pretende ir? — a
condessa questionou, buscando omitir um sorriso
suspeito nos lábios, que quase escapou com a
resposta que William lhe dera.
— Imediatamente.
Já era manhã quando Samuel e Grace
chegaram ao apartamento do conde, localizado na
região de Hanover Street. Como não era utilizado
há muitos anos, a maior parte dos móveis do local
encontrava-se coberto por lençóis e
negligenciados pelo tempo, mas não demorou para
que a personalidade prática da jovem condessa
facilitasse as coisas.
Além disso, Carter havia solicitado que um
de seus criados lhes entregasse alguns suprimentos
básicos como alimentos, roupas de cama, bem
como, oferecesse seus serviços, mas Grace havia
declinado da oferta com toda a delicadeza digna
de si.
— Não precisa se desgastar dessa maneira
— comentou o marido, ao vê-la dispensar o
criado.
— Ficaríamos sem funcionários em
Granville Hall por alguns dias, de qualquer modo
— argumentou ela, organizando sobre a mesa
alguns quitutes que viera na cesta bem-servida.
— Mas isso foi antes de precisar esgotar
vossas energias. — Granville se aproximou,
segurando-a nas mãos. — Precisa de tempo para
se recuperar de tudo o que viveu, Grace. — A
esposa o observou com extremo carinho.
— Já estou recuperada — garantiu em meio
a um sorriso, sentindo Claws se enrolar em seus
tornozelos. — Sim… enviaram leite para você. —
Abaixou-se para pegar o felino. — Além do mais,
sei que não se sente confortável tendo de conviver
com pessoas que não conhece, e jamais lhe faria
passar por isso.
— Grace…
— Não precisa negar. Vi como reagiu hoje,
estando em público, e estaria mentindo se dissesse
que não compreendo o porquê. — Terminou de
colocar leite em uma vasilha e o serviu ao lado do
pé da mesa, para Claws.
— Sinto muito se teve de ouvir qualquer
comentário infeliz.
— Não deve se desculpar por algo que não
fez. — A condessa voltou a segurá-lo nas mãos. —
Aliás, percebi que nunca mais desejo vê-lo desta
maneira, Samuel. És um homem maravilhoso, o
mais incrível que conheci, e não deveria se sentir
de modo diferente em qualquer que seja o lugar ou
circunstância.
A garganta dele oscilou, e a condessa
prosseguiu:
— Entretanto, reconheço que às vezes tudo
o que desejamos não é estabelecer uma defesa a
cada passo, mas encontrarmos um pouco de paz,
longe dos julgamentos e olhares maldosos. O que
me faz imaginar se não seria melhor mantermos
somente um aspecto de nosso plano inicial…
— Qual? — A dúvida refletiu nos olhos
dele.
— Vamos viver no campo, meu querido…
em qualquer uma de suas propriedades para a qual
prefira se mudar.
— Grace… — Muito além de surpreso,
Granville estava sem palavras.
A verdade era que, depois de se tornar
conde, jamais imaginou-se deixando Granville
Hall.
— Pense em como estaríamos sempre em
paz. Nada além do campo para nos fazer
companhia. Nenhum olhar cruel para condenar. —
Suspirou, sonhadora.
— Mas o que faria com Granville Hall? —
A proposta era realmente tentadora, mas a dúvida
martelava em seu coração.
— Também pensei nisso... — Grace
confessou, puxando-o pelas mãos unidas até um
estofado antes de prosseguir: — Lembra-se das
crianças nas docas?
Samuel balançou afirmativamente a cabeça.
— Já possuíamos a intenção de criar uma
instituição para ajudá-las, não é? Parece-me uma
interferência pontual do destino possibilitar que,
com uma reforma, esta se estabeleça em Granville
Hall — propôs.
Em silêncio, Samuel ponderou sobre a
ideia. — Um legado para minha família — disse,
após alguns instantes.
— Vosso legado, junto deles — Grace
confirmou — E poderíamos transformar o galpão
dos jardins em um chalé, talvez, para reservar uma
área particular onde está o jazigo, e visitarmos
Granville Hall periodicamente. — Sorriu.
E seu sorriso só fez se alargar ao ver que o
do marido a acompanhava, visivelmente satisfeito.
— Um legado forjado em honra… — ele
murmurou.
— E amor — Grace complementou.
Ambos se fitaram, lembrando em conjunto
do epitáfio do antigo lorde Granville.
De fato, o caminho até ali fora tortuoso,
mas, com toda a certeza do mundo, não havia sido
em vão.
Mesmo se estivessem em condições de
dormir após o desjejum que terminavam, o casal
não o teria feito, pois minutos após o último
biscoito ser provado alguém bateu à porta.
Desconfiado, o conde pediu que a esposa se
mantivesse no lugar enquanto iria verificar de
quem se tratava. Ocorreu-lhe apenas no caminho
que, no caso de uma ameaça, a probabilidade
maior seria de Grace lhe oferecer qualquer tipo de
proteção.
— Sra. Burns? — Seu tom não escondia a
surpresa.
— Bom dia, milorde. — A tutora realizou
uma vênia e não aguardou nem mesmo um convite,
entrando sem cerimônias enquanto os olhos
buscavam pela pupila — Ah, aí está você. —
Abriu um sorriso orgulhoso. — Saiu-se muito bem
na noite de ontem, minha querida!
Grace se levantou com pressa e não
demorou a segurar nas mãos da bruxa.
— Sra. Burns, mas como a senhora…
— Soube de seu sucesso na missão ao qual
foi incumbida?
— Bom, isto também, mas…
— Sabia que estavam aqui?
Grace balançou a cabeça.
— Por acaso, não tem escutado um chilrear
insistente a acompanhando um tanto próximo desde
a noite anterior? — Burns ergueu uma sobrancelha.
Os lábios da mais nova formaram um
perfeito “O”.
— Chilrear? — Granville se aproximava
com a expressão e voz confusas.
— Não disse a ele? — perguntou Burns.
Grace voltou a responder com um
movimento de cabeça. Desta vez, negando.
E então, soltando suas mãos, Burns se
afastou apenas o suficiente para ser capaz de dar
uma volta em torno do próprio eixo e ter a imagem
inteiramente coberta por uma névoa luminosa que
ostentava tons de verde e prateado. Quando a
névoa se dissipou, uma bela coruja cinzenta
tomava o espaço, empoleirando-se na mesa.
Os pelos de Claws se eriçaram no mesmo
instante e o gato soltou um rosnado.
— Santa Mãe! — Com o susto, Samuel
precisou se apoiar na parede.
Grace não conseguiu omitir uma risada.
— Sabia disso? — questionou ele,
incrédulo.
— Sim — confessou a esposa, um tanto
travessa — e não dei sossego à Sra. Burns até que
me mostrasse como acontecia no dia em que me
contou que era metamórfica.
Granville não conseguia desviar os olhos da
coruja.
Da Sra. Burns.
Enfim.
A névoa voltou a se formar e, ainda mais
rápido, a bruxa tomou novamente o lugar da
coruja, alisando as saias do vestido como se
tivesse realizado um simples movimento de dança.
— Agora sabe como pude acompanhar. —
Burns olhou para Grace, ignorando o fato de o
conde ainda observá-la com espanto.
— A senhora estava lá. — Grace ficou
emocionada.
Burns zelar daquela maneira por si era um
gesto absurdo de carinho.
— Ainda que tenha me corroído em agonia
por saber que, fosse qual fosse a conclusão, não
poderia interferir. — Pela primeira vez, o olhar da
mais velha oscilou. — Você foi muito forte, Grace.
— Fitou Samuel na sequência. — E o senhor
também precisou ser, milorde.
Referia-se claramente à experiência de
perda que haviam experimentado com a morte da
condessa que, mesmo que por alguns instantes,
havia verdadeiramente partido.
— Não tão forte quanto imagina. — Foi a
vez dos olhos de Samuel vacilarem, junto do tom
de sua voz. — Quando percebi que Grace havia
partido, supliquei à Cassandra que me levasse
também.
Grace caminhou até o marido, erguendo seu
rosto pelo queixo para fitá-la.
— Perder você, assim como todos os outros
— o conde engoliu seco, pois apenas pensar em
tal cenário era devastador — seria demais para
conviver. — A lembrança do desespero que sentiu
naqueles poucos instantes era suficiente para
deixá-lo amargurado.
— Oh, Samuel! — Grace o abraçou com
tanta força, que se sentia capaz de colar o corpo
masculino ao seu.
Não se importava que ele ainda não
houvesse proferido em uma frase.
Granville já lhe havia dado todas as provas
sobre seu amor.
— Devo dizer que na magia sempre aprendi
que o amor era capaz de curar a mais flagelada das
almas, mas foi a primeira vez que vi seu fruto,
realmente, trazer de volta uma — Burns comentou.
O casal adiante se afastou para fitá-la, sem
muito compreender.
— Imagina por que tenha retornado da
maldição, Grace, mesmo estas sendo, geralmente,
irrevogáveis?
Grace deu um leve sorriso.
— Creio que justamente pelo que acaba de
dizer, Sra. Burns. Cassandra a rogou com
sentimentos nocivos e… bem… nós a
combatemos com o amor. — Ao final deu ombros,
pois realmente não sabia explicar.
— Repita o rogo, por favor — pediu a
tutora.
— Sra. Burns… — Samuel interveio, pois
realmente não gostaria de jamais voltar a ouvir
aquelas palavras.
— Faça-o então, milorde, e o juro que será
pela última vez.
Granville observou a esposa e, após
respirar profundamente, proferiu:
— O amor que me negou jamais será
entregue a outro alguém, pois a vida — precisou
se concentrar e cerrar menos os dentes, que apenas
então notou que o fazia — será drenada daquela
que possuir o que deveria ter sido meu.
— Grace, agora é sua vez de demonstrar
que lhe ensinei bem algo além de magia… O que
era meu papel inicial, inclusive. — Burns
demonstrava uma visível animação, o que os
deixava verdadeiramente confusos. — A palavra
“vida” está no plural?
A condessa uniu as sobrancelhas.
— Não... está no singular.
— Pois então, a maldição possuía o direito
sobre uma única vida, pertencente àquela a quem
lorde Granville entregasse o coração, mas…
— Pelo amor de Deus, Sra. Burns, mas o
quê?! — Samuel praticamente gritava.
— Se a vida de Grace fosse reclamada na
noite de ontem, não seria a única carregada junto
ao próprio corpo. Por esta razão, a maldição foi
revogada.
— A senhora está dizendo que… — As
palavras de Grace desapareceram no exato
momento em que seus olhos correram ao próprio
ventre.
— Grávida. — Já as de Samuel não
passavam de um sussurro.
— E não se trata de uma vida comum, pois
só fui capaz de constatar há alguns dias porque
desde o momento da concepção, estabelecemos
nosso foco de magia. — Burns esticou a mão
espalmada na altura do ventre de Grace, e voltou a
sentir a luz que, dias atrás, havia percebido.
— A senhora sabia? — questionou Grace,
ainda em choque.
— Os séculos aumentam nossa
sensibilidade.
— E a deixou enfrentar Cassandra, ainda
assim?! — Granville se colocou entre as duas
mulheres, atônito e apavorado.
— Era preciso. — Burns não se intimidou.
— Sua mulher e filha são mais fortes do que
imagina, milorde. Sei que já sofreu muito, mas não
é porque as ama que significa que também terá de
perdê-las.
Grace sentiu que seus olhos marejavam.
A verdade era dolorosa, mas o marido
precisava ouvi-la.
— Filha? — Toda postura dura de Samuel
ruiu ao ouvir a palavra.
Em seguida, ainda um tanto tímido e
absurdamente confuso sobre os próprios
sentimentos, o conde virou-se para Grace, que não
imaginava qual nova reação esperar.
— Ouviu isso, Grace? — Os olhos violeta
não demoraram a transbordar. — Uma filha.
O sorriso tímido que surgiu nos lábios dele
foi o mais bonito e inesquecível que Grace alguma
vez pôde vislumbrar. A condessa confirmou com a
cabeça e logo em seguida se lançou nos braços do
marido, compartilhando as próprias lágrimas em
um misto acalentador de felicidade e esperança
sobre os dias vindouros.
Finalmente o Conde e a Condessa de
Granville experimentavam como era a sensação de
ter apenas sentimentos genuínos e plenos
invadindo seus tão maltratados corações.

Na tarde daquele mesmo dia, Samuel e


Grace retornaram a Granville Hall com um
objetivo muito específico.
Abraçado à cintura da esposa, diante do
jazigo da família, o conde não dizia nada, e
nenhum som além da brisa batendo contra os
galhos era ouvido, mas conseguia sentir que todos
aqueles que amava estavam presentes, reunidos
juntos de si.
Grace esticou a mão enluvada e tocou com
delicadeza sobre os três nomes gravados no
granito, demorando-se um pouco mais no de lady
Lucille.
— Ela sabe — murmurou, em meio a um
sorriso discreto.
— Como assim? — perguntou Granville,
rente ao ouvido da esposa.
— Vossa mãe sabe sobre nossa filha — a
condessa puxou a mão que se mantinha unida à sua
a depositou sobre o próprio ventre —, bem como
sobre o fato de ter herdado a magia. — Voltou a
sorrir.
Samuel também sorriu, mas engoliu seco
logo na sequência.
— Essa conexão que possuem é realmente
incrível… — Virou a esposa para si, a fim de
encará-la. — Mas, Grace, estaria mentindo se
dissesse que não me preocupo. Que não temo
quando chegar a hora de descobrirmos qual será
seu propósito, ainda mais depois de tudo o que
tivemos de passar.
— Será diferente conosco. — Vendo-o
agitado, tomado por preocupações, buscou
tranquilizá-lo — Samuel, nossa filha terá todo
apoio necessário em cada etapa, e estaremos
sempre ao lado para orientá-la.
— Sei disso… — Ele respirou
profundamente, buscando se acalmar.
— E, além de nós dois, Francine ainda
contará com o auxílio dos irmãos em seu caminho.
O conde deu um passo para trás.
— Francine? — Sua garganta oscilou. —
Irmãos? — Os olhos piscaram, já embaçados.
Grace sorriu com a reação visivelmente
emocionada.
— Caso não se recorde, milorde, possuímos
como alta prioridade a responsabilidade de gerar
um herdeiro para os Granville, e havia se
comprometido a continuar tentando caso
tivéssemos uma menina primeiro. — Ergueu os
ombros com graça, mas também já tinha a voz
ligeiramente embargada. — E, sobre o nome… —
Voltou a puxar o marido para perto, precisando
erguer o rosto para fitá-lo nos olhos. — Acredita
que Frank aprovaria?
Samuel balançou a cabeça, enquanto as
lágrimas já rolavam por sua face.
— Tenho certeza que sim.
— Fico feliz em ouvir isso. — Grace se
colocou na ponta dos pés, depositando um
delicado beijo em seus lábios.
Quando voltou a se afastar, o viu
derramando sobre si o olhar mais apaixonado que
alguém poderia oferecer.
— Eu amo você.
Foi a vez dos olhos de âmbar
transbordarem.
— Fico muito feliz em ouvir isso também.
— A condessa o brindou com um sorriso
emocionado em meio às lágrimas.
Samuel segurou seu rosto e tinha a voz
embargada enquanto prometia:
— Irei recompensá-la por todas as noites
em que a fiz dormir sem ouvir esta que se trata da
maior verdade que abrigo em meu coração, e
prometo me dedicar ao máximo para aprender a
demonstrar da forma que merece.
— Ah, Samuel… — Grace ergueu uma mão
e acariciou a fronte até os cabelos escuros,
envolvendo os dedos em meio aos fios negros que,
junto dos olhos violeta, desde o primeiro momento
a enfeitiçara. — Tenho certeza de que aprenderá
rapidamente.
— Vai me ensinar com exemplos, se
necessário? — o conde questionou, levando Grace
a sorrir.
— Como toda a certeza — a condessa
respondeu com um beijo delicado nos lábios,
concluindo em seguida: — Já realizei tarefas
muito mais complexas em minha vida.
Foi a vez do marido sorrir ao ouvi-la
repetir a máxima para, na sequência, lhe devolver
um beijo ainda mais apaixonado.
Winkhill, Staffordshire
4 meses depois

— Obrigada, minha querida — Grace


agradeceu Anne ao terminar de ajudá-la a colocar
a mesa para o jantar.
A Sra. Plymouth estava ocupada em treinar
os novos funcionários do solar para o qual haviam
se mudado, uma vez que lorde Granville
finalmente se via livre dos vícios e todos os outros
demônios que o perturbavam para permitir as
contratações. Finalmente teriam auxílio nos
cuidados da nova morada que conseguia se
equiparar a Granville Hall em tamanho.
O terreno da propriedade, por se tratar de
uma casa de campo, era infinitamente maior.
— Irei avisar minha tia que já podem servir
a refeição — informou a jovem de cabelos
escuros.
Ao passar pela porta da sala de jantar, onde
o senhorio conversava com seu mais recente
visitante, Anne realizou uma vênia sutil para
cumprimentá-lo.
Como estava auxiliando o Sr. Folkes a
cuidar da reforma da mansão em Liverpool, Carter
praticamente não visitava Granville desde que se
mudara.
A falta que sentia de certa dama, no entanto,
vez ou outra o fazia ter de pegar sua carruagem e
percorrer setenta milhas para transmitir
pessoalmente novidades que em missivas não era
possível registrar.
— Carter? — Samuel o chamou ao vê-lo
aéreo após cumprimentar Vivienne.
— Sim?
— Não ouviu nada do que eu disse?
O pobre deu um gole no uísque que bebia.
— Mas é claro que ouvi. — Tentou
disfarçar, limpando a garganta.
Os olhos de Samuel se apertaram e o conde
olhou na direção onde a jovem havia passado.
— Pois então?
— Pois então, o quê?
— O que tem a dizer sobre minha pergunta?
— provocou o conde.
Carter levou os dedos ao lenço da lapela.
— Respondo em breve, meu caro. Acho que
ouvi Grace me chamando.
E, sem mais explicações ou disfarces, saiu
caminhando até a condessa.
Mal se aproximara, e Grace foi capaz de
notá-lo tomado pela incomum agitação.
— Está tudo bem? — perguntou,
preocupada.
— Ah, sim. Sim, está. — William buscou
soar mais convincente. — Gostaria apenas de uma
desculpa para fugir um pouco de Samuel. Vosso
marido consegue ser demasiadamente incisivo
quando quer. — Enxugou a testa, forçando um
sorriso.
Grace o acompanhou no sorriso.
— Queira perdoá-lo se estiver perguntando
muito sobre Granville Hall. Acontece que Samuel
sente a necessidade de ficar ao meu lado — levou
a mão ao abdômen já levemente arredondado — e,
ao mesmo tempo, deseja saber o possível sobre
como estão as coisas por lá. Não é à toa que
confiou toda a obra a você e ao Sr. Folkes. Ele os
confiaria a própria vida se necessário. Sabem do
amor que tem àquela propriedade.
William ponderou por alguns instantes,
sentindo-se culpado. Afinal, na realidade, nem
fora essa a causa de ter se afastado.
— Tem razão. — Ofereceu um sorriso mais
tranquilo à Grace. — E me sinto muito satisfeito
em sempre poder transmitir notícias positivas
sobre a obra. Logo terão vossa instituição
funcionando por lá, estejam certos disso. —
Ofereceu uma piscadela à amiga.
O sorriso de Grace se alargou ainda mais.
— É tudo o que mais desejamos.
O jantar fora servido e os devidos elogios
oferecidos à culinária da Sra. Plymouth que,
apesar das novas auxiliares, não deixava de
cozinhar.
Entretanto, quando Vivienne retornou para
auxiliar na retirada da mesa, Grace a notou
cabisbaixa.
— Está tudo bem, Anne? — Aproveitou
para tocar-lhe a mão, uma vez que Anne retirava
sua louça, e sentiu que em seu interior o sentimento
de luto estava intenso.
— Sim, está — Anne respondeu baixinho.
Imediatamente, os olhos de Carter se
ergueram para fitá-la e seu coração disparou ao
notar a ponta do nariz delicado avermelhada.
A Sra. Plymouth não demorou a aparecer,
pedindo licença para tomar o lugar da sobrinha.
— Deixe que eu termino isso, minha
querida. Pode auxiliar as meninas na cozinha.
E, ao contrário do que seria natural de si,
Anne não ofereceu resistência, o que chamou ainda
mais a atenção dos presentes.
A jovem agradeceu a tia com a voz
recolhida em um sussurro, e nem mesmo esperou
cruzar a porta para enxugar algumas lágrimas que
já escorriam enquanto saía apressada.
A dada altura, as mãos de Cartes
seguravam-se na beirada da mesa.
— Sra. Plymouth…? — Grace questionou,
aflita.
— Esta tarde recebi uma missiva de minha
irmã, mãe de Vivienne, mas só tive tempo de ler há
pouco. Aparentemente, outra jovem do vilarejo
onde sua família vive faleceu da mesma maneira
que minha sobrinha mais nova…
— Oh… — Grace ficou penalizada.
Obviamente a notícia aflorava em Anne as
lembranças da perda, e por isso o sentimento de
luto se mostrara tão intenso ao tocá-la.
A condessa fez menção de se levantar para
consolá-la, mas antes que pudesse completar o
movimento, sentiu a mão do marido segurá-la para
impedir.
Ela não compreendeu em um primeiro
momento, mas tudo ficou mais claro quando, logo
em seguida, William pediu licença para se levantar
e saiu.

Vivienne ficara tão abalada com a notícia


que nem percebeu para onde seus pés a levaram.
Somente quando pisou nos cascalhos que
margeavam o lago do solar reparou que se dirigia
até ele. Entretanto, nada poderia ser mais diferente
da própria vontade.
Naquele momento, o que menos desejava
era ver água, ou qualquer outra coisa que a fizesse
se lembrar de um rio.
Daquele rio.
Levantando as saias do vestido simplório, a
jovem caminhou o mais rápido que pôde até o
interior do gazebo localizado no topo de um
singelo morrinho, tomando o cuidado de manter-se
virada em direção à campina e ao bosque mais
adiante.
A noite já havia chegado, e com ela uma
brisa refrescante provinha daquela direção,
acalentando suavemente a face por onde as
lágrimas escorriam.
A notícia sobre a jovem que morrera
afogada, cujo corpo também não haviam
encontrado, a fizera reviver todos os momentos de
desespero e tristeza que sucederam a perda da
irmã.
Além disso, Vivienne não chorava apenas
por si.
Há alguns meses, após ter escutado o
conselho da Sr. Burns, fora visitar os pais e,
apesar de felizmente nenhum dos pressentimentos
da tutora sobre algum deles estar sofrendo
qualquer mal se confirmar, aproveitara o momento
para restabelecer os laços com sua família. Na
verdade, o fizera de modo muito mais significativo
com a mãe.
Com o pai ainda era difícil, pois jamais se
esqueceria da maneira como praticamente vendera
a irmã mais nova, ainda tão jovem e inocente, ao
primeiro cavalheiro de posses que informou
desejar desposá-la, sem sequer se assegurar de
qual era seu verdadeiro caráter ou intenções. Mas
ela havia voltado a conversar com a mãe, e agora
só conseguia imaginar o quanto a notícia, tão cruel
ao próprio coração, também não fora ao da
progenitora que perdera a outra filha de modo tão
cruel.
— Vivienne?
Carter anunciou a própria chegada quando
já entrava no gazebo, castamente iluminado pela
luz do luar, fazendo-a enxugar o rosto às pressas,
com as mãos.
— Sr. Carter. — Anne se virou e ofereceu-
lhe uma vênia. — Sinto muito, eu não queria
atrapalhar. Já estou de saída. — Passou por ele às
pressas.
Delicadamente, William a segurou pelo
pulso. Percebendo-a tão suscetível, mantinha a voz
baixa e suave.
— Na verdade, vim até aqui para vê-la.
Os olhos de Anne se ergueram.
— Me ver?
— Sim. Percebi que saiu abalada do solar
e, por mais indiscreto que possa soar, confesso
que fiquei preocupado.
Engolindo seco, Vivienne sentiu o toque em
seu pulso, de repente, ganhar outro significado. A
jovem se desvencilhou lentamente.
— Está tudo bem, Sr. Carter — assegurou,
buscando recolher para dentro de si toda a tristeza
contra a qual lutava. — Agradeço por vossa
preocupação, mas garanto que não é necessária. —
Foi pontual.
William comprimiu os lábios em um bico.
Um bico que, se Vivienne possuísse o
direito, julgaria realmente encantador.
— Não precisa fazer isso, sabe? Grace
perguntou à Sra. Plymouth o que havia acontecido
e vossa tia compartilhou conosco o que a deixou
assim. — Carter deu um passo adiante, voltando a
se aproximar. — Estou aqui na intenção de ajudá-
la. Por que é tão difícil compreender?
Sabendo que havia tido algo muito íntimo,
uma dor muito íntima exposta, a jovem ficou sem
jeito, e virou-se de costas. Ela apoiou as mãos
sobre o guarda-corpo por alguns instantes e buscou
não blasfemar pela horrível sensação que a
invadia ao sentir-se vulnerável.
Realmente a detestava.
— Agradeço novamente por vossas
intenções, Sr. Carter, mas a ajuda também não é
necessária — finalmente voltou a falar, depois de
algum tempo. — Agora que sabe o que aconteceu,
deve perceber também que não se trata do tipo de
caso em que algo pode ser feito. — Ergueu os
ombros.
Vê-la daquela maneira o deixava
completamente penalizado.
— Se desejar conversar com alguém
sobre…
— Acredito que o melhor que possa fazer
agora seja prestar apoio à minha família. — Anne
buscou omitir, mas Carter percebeu quando ela
fungou. — Solicitarei a lorde e lady Granville
alguns dias de folga para voltar a Warrington.
— Eu poderia levá-la.
— Como?
A proposta fora tão absurda e imediata, que
conseguiu surpreendê-la, fazendo Anne se virar.
— B-bem... como sabe, vim até Winkhill
com meu próprio veículo — Carter esclareceu
como se fosse esta a explicação mais óbvia do
mundo.
Anne uniu as sobrancelhas, mas logo negou
com a cabeça.
— Realmente agradeço vossa oferta, senhor,
mas não posso aceitar. — Voltou a se virar,
apoiando novamente as mãos na madeira
esculpida. — Partirei em uma diligência.
Com Folkes em Liverpool, não pensaria em
aceitar que lorde e lady Granville dispusessem de
seu único cocheiro para a viagem, conforme
imaginava que fariam.
— Mas isso é absurdo. — William se
colocou ao lado dela. — A senhorita tem ideia de
quantas horas uma viagem como essa levaria em
uma diligência? Não poderia…
— O que eu não poderia, Sr. Carter, é
aceitar que me levasse com o senhor — Vivienne
interrompeu o argumento antes mesmo de ser
concluído.
— Ora essa. — Will pareceu
verdadeiramente ofendido. — E por que não?
De repente, Anne sentiu o próprio rosto
enrubescer.
Droga.
Ele a forçaria, mesmo, a dizer aquilo?
— Porque o senhor é um homem solteiro. —
Pronto.
Por um lado, William se sentiu levemente
lisonjeado por imaginar que ela ao menos pensava
em seu estado civil, mas, por outro, via naquele
singelo argumento a chance de ter sua primeira
oportunidade de fazer algo realmente significativo
para a mulher que lhe despertava sentimentos ruir.
— A senhorita não deveria se preocupar
com uma coisa dessas.
A expressão de Vivienne se fechou.
— Está dizendo que por ser uma criada não
deveria zelar por minha honra? — Deu um passo
adiante, verdadeiramente ofendida. — Pois fique o
senhor sabendo que…
— Não, não foi o que quis dizer! — Will
rapidamente esclareceu. — O que quis dizer é que
poderia ficar tranquila estando em minha
companhia, pois sou um cavalheiro praticamente
comprometido e, além do mais — que Deus
tivesse piedade das péssimas ideias que surgem
em momentos de desespero — apaixonado por
minha noiva.
Imediatamente, Vivienne afastou o rosto
para atrás. Como que por mágica, passara a
enxergar o Sr. William Carter através de outra
perspectiva. Uma sensação curiosa lhe bateu no
fundo do estômago também, mas a jovem resolveu
categorizá-la como reflexo de sua autêntica
surpresa.
— Eu… — Ela notou que, de repente, até
mesmo a voz lhe estava falha. — Eu sinto muito,
Sr. Carter, realmente não imaginava. Não foi minha
intenção ofender o senhor e, menos ainda, o
respeito que guarda por vossa noiva.
“Vossa noiva.”
Maldição.
Ouvi-la dizendo aquilo fazia o coração de
William pesar uma tonelada.
Ah, o fardo da culpa…
— Está tudo bem. Somos bastante discretos,
e é natural que poucas pessoas saibam sobre o
assunto. — Foi a vez de Carter abaixar os olhos.
— Ao menos devo imaginar que, agora, sinta-se
mais tranquila em aceitar minha proposta para
levá-la até Warrington.
Vivienne considerou por alguns instantes
suas próximas palavras, pois frente àquela última
descoberta todas as “desconfianças” que tivera
anteriormente sobre o Sr. Carter lhe pareceram tão
injustas, que aceitar aquela oferta se tornou,
inclusive, uma maneira de se redimir.
— Bom, se lorde e lady Granville estiverem
de acordo com minha folga, e não for gerar
incômodos ao senhor, acredito que sim.
Carter precisou de todas as suas forças para
conter o sorriso que desejou escapar, mas tudo o
que fez foi anuir com um movimento contido de
cabeça.
— O que me diz de voltarmos ao solar para
resolver o necessário o quanto antes? — propôs.
— Está bem — Vivienne concordou e
ofereceu-lhe um sorriso sincero, demonstrando que
já se sentia mais tranquila em sua companhia,
desde então.
E, mesmo sabendo que as mentiras
costumavam cobrar seu preço, se fosse para tê-la
mais receptiva junto de si, William considerou que
estaria disposto a pagar.
Fim (?)
Agradeço primeiramente a Deus por toda a
fé que diariamente me preenche, fazendo crer que
tudo dará certo mesmo em meio aos dias mais
caóticos. Realmente, no final das contas sempre
dá, mas isso só acontece quando seguimos
acreditando.
Também agradeço minha família por todo
apoio e amor incondicional, além da
compreensão por cada ausência, quando não de
corpo, em pensamento, imaginando a próxima
cena que deveria escrever enquanto estávamos
reunidos à mesa do jantar. Sempre foram os
maiores e melhores incentivadores que alguém
poderia ter.
Um agradecimento SUPER especial para
minha querida amiga e parceira de jornada nesse
mundo das Bruxas Vitorianas, B.C. Siqueira, não
apenas por ter topado embarcar nessa aventura,
mas também por todas as outras que já vivemos
juntas, sendo a maior delas nossa amizade.
Outro mais do que especial para a
queridíssima Di Acordi, que nos deu a mão e
topou trilhar esse caminho ao nosso lado ao
longo do ano, betando as duas histórias da
duologia com uma sensibilidade ímpar; um
auxílio lindo e fundamental, pelo qual jamais
cansarei de agradecer.
Também gostaria de agradecer a Bah
Pinheiro, a melhor fada/revisora que alguém
poderia ter, responsável por lapidar “O Conde”
com seu trabalho primoroso, o deixando
prontinho para vocês.
E claro, por último, mas jamais menos
importante, agradeço a vocês, meus queridos
leitores e parceiros (as), amores e amoras, que
através de todo o carinho que compartilham
comigo e meus livros acabam se tornando,
sempre, a maior inspiração que eu poderia
desejar.
Do fundo do meu coração, muito obrigada
por acompanharem mais uma história.
Cada uma delas só existe graças a vocês.

Um super beijo, e muita luz no coração!


Carinhosamente,
Larissa Gomes.
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[1]
A Bíblia faz sugestão de que a mão direita seria divina e,
consequentemente, a esquerda foi compreendida na Idade Média
como a mão voltada para o pecado. Pela lógica, a Igreja Católica
entendeu que a esquerda estava ligada ao Diabo. Durante a
Inquisição vários canhotos foram caçados, torturados e queimados
como hereges e bruxos.

[2]
Francês – Lindíssima, minha querida!
[3]
Francês - Sim, sim!
[4]
Na Inglaterra vitoriana havia grande consumo de ópio, sobretudo
na forma de láudano (uma mistura da droga com álcool que poderia
também conter outras substâncias), e este poderia ser comprado
sem receita médica. Como era utilizado para sanar desde uma
simples dor de cabeça até depressão, o consumo não se resumia aos
adultos, com os tratamentos estendendo-se à crianças e até mesmo
bebês. Porém, quando não utilizado para fins medicinais, e sim
“recreativos”, o consumo de ópio era visto como imoral, sendo
comum que seus apreciadores buscassem os estabelecimentos
conhecidos como “casas de ópio” para desfrutarem com alguma
discrição dos momentos de indolência que encontravam junto do
entorpecente, à fim de anestesiar suas mazelas, sofrimentos e
preocupações.

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