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Siqueira
B. C. Siqueira.
Promessa
a pele nua
na sola dos pés
faz do passo
uma promessa
as folhas estalam como ossos
a lua abocanha a clareira
vazando luz entre os lábios
os galhos despertam rijos
em priápica sentinela
o som musculético das feras
fere a sombra e rasga a mata
densa como a carne
a noite se encolhe
mansa e assustada
a bruxa
incandescente
troveja.
Bruxa M. Eloisa.
Massachusetts, 1863
Tic-tac, tic-tac…
Genevieve acompanhava os ponteiros se
movendo no relógio, desejando que corressem
mais rápido, puxou um pouco a gola do vestido,
sufocada.
Tal qual os outros ambientes da casa, a sala
também era sobrecarregada de memórias do Sr.
Whitewood e por mais que quisesse evitar, seguia
perscrutando os quadros em busca de sinais.
Beatrice, que estava acomodada em um estofado
diante de Genevieve, seguiu a direção da visão
dela e esboçou um fraco sorriso.
— Minha tia parece disputar com a Rainha
Vitória sobre quem se mantém enlutada por mais
tempo. Seu finado esposo era tão amado por ela
quanto Príncipe Albert pela rainha, posso
confirmar.
— É visível a devoção que dedica a ele —
comentou.
— Sim, não são apenas os retratos
espalhados. Ela mantém as roupas dele, seus
diários e demais pertences pessoais intocados.
Além, é claro, de ainda se vestir de preto, após
quase quinze anos.
— Compreendo a necessidade que ela tem
de sentir-se próxima ao Sr. Whitewood, mesmo
após a partida, porém não há como ir contra certos
acontecimentos, não há como alterar o curso
natural da vida.
As memórias de Genevieve retornaram para
seus pais, agonizando de febre, desfalecendo sobre
a cama a qual tiveram que queimar posteriormente.
Aos doze anos, fora forçada a aceitar a ausência
deles e seguir adiante, não conhecia outro meio a
não ser prosseguir; temia que se permanecesse
muito tempo prateando-os, não permitiria que as
suas almas descansassem, mantendo-as presas,
condenando-as a vagarem sem rumo, impedidas de
alcançarem o paraíso dos bons e justos.
Naquele tempo, ainda não havia sido
agraciada com os dons de cura ofertados pela lua,
eles vieram somente quando sangrou pela primeira
vez. Gostaria de que tivessem surgido antes, pois
talvez pudesse salvá-los, assim como tentava
salvar a plantação, em honra aos pais, que
trabalharam tanto para tornarem-na vigorosa e
produtiva.
Vincent não sabia conduzi-la, as maiores
preocupações do irmão giravam em torno das
noites em clubes de ópio e de apostas,
chafurdando em vícios enquanto esvaziava as
reservas deixadas pelos pais e afanava parcelas
do dote de Genevieve para mantê-los.
— Srta. Johnson, minha tia amou o marido,
percebo por sua fala que ainda não sentiu o amor
tocá-la, pois toda mulher que ama, faria o mesmo.
Eu o faria, se perdesse o homem que possui meu
coração — Beatrice retomou. — Verdadeiros
amores excedem o curso natural da vida.
Genevieve soltou uma lufada de ar pelos
lábios entreabertos, como se tivesse sido golpeada
com um soco no centro do peito. A face de
Beatrice se alterou, havia malícia, solidez e um
tipo de determinação que levava as pessoas a
cometerem atos desvairados.
Genevieve sabia sobre amor e sabia o que
era perder pessoas que considerava as mais
importantes para si. Contudo, não revelaria
qualquer informação pessoal à Beatrice, estava
claro que ela tentava suscitar ira em Genevieve,
pois sentia algo por Ethan, notou assim que a viu
sorrir para ele quando chegaram. Mas aquela
jamais fora uma situação de disputa, uma vez que
Genevieve não estava inclinada a desejar o
coração do administrador, se Beatrice não tinha a
retribuição do afeto, era por responsabilidade
apenas dele.
— Vejo que estão tornando-se amigas —
Sarah comentou ao tomar uma poltrona.
— Divergimos em algumas opiniões —
Beatrice respondeu.
— Eu imagino que sim. — A viúva mal
disfarçou o riso.
— A visita foi agradável, mas temos que
retornar — Ethan disse, sem ao menos se sentar.
— Mas já? — Sarah se levantou.
Genevieve também não dissimulou a
surpresa, combinaram de permanecerem durante a
tarde toda, porém estava aliviada por ele desejar
encurtar a estadia.
— A Srta. Johnson chegou recentemente de
viagem, não quero exauri-la.
— Muito bem, como desejarem. — Sarah
aproximou-se de Ethan e estendeu a mão para que
ele beijasse. — Mas faço questão de realizar um
baile em homenagem à Srta. Johnson, em breve. Já
que Hamilton demonstra tanto afeto para com a
senhorita, devo considerá-la parte da família.
As bochechas de Beatrice tingiram-se de
vermelho, sua boca permaneceu aberta, prestes a
formularem um protesto, contrariada com as
atitudes da tia, mas a dama não disse nada.
— Agradeço a gentileza.
— A manterei atualizada sobre a preparação
do evento.
Isso significava que Genevieve teria mais
encontros do que gostaria com aquela mulher e não
estava nem um pouco feliz com isso, entretanto,
não queria pensar sobre tais questões naquele
momento, pois estava ansiosa para deixar
Whitewood Holt.
Teriam tempo para debaterem sobre Sarah
longe dali.
Em segurança, a caminho de Violet Valley,
dentro da carruagem cedida por Sarah, Genevieve
se permitiu recostar-se contra o banco, aliviada.
Não seria capaz de permanecer naquela casa por
mais tempo.
A garoa estava engrossando e em breve se
tornaria uma chuva substancial. Seu rosto estava
voltado para a janela, acompanhando as gotas
aceleradas acertando o chão, enquanto isso, seus
pensamentos vagueavam em torno da visão que
teve, da serpente saindo da boca do Sr.
Whitewood. O que poderia significar? Por que
aquilo fora mostrado a ela? Tracejou o desenho
deixado no vidro por uma gota escorrendo,
acompanhando com o indicador a sinuosidade que
a arremetia a serpente.
“Cuidado.”
Era um claro aviso para se manter distante,
mas como o faria sendo esposa de Ethan? Talvez a
ambição dele estivesse equivocada, aquela
propriedade já possuía um dono que não permitiria
que qualquer um que não carregasse sangue
Whitewood nas veias a herdasse.
Cuidado, cuidado, cuidado… O volume da
voz que ditava a palavra em sua mente,
reproduzindo o tom assombroso que assolou seus
ouvidos quando esteve diante do retrato,
aumentava a cada vez que a advertência era
repetida.
— Peço desculpas pelo comportamento de
Sarah e de Beatrice — Ethan iniciou.
Ele estava acomodado diante dela, seus
joelhos quase se tocavam, mas felizmente a
carruagem dispunha de espaço o suficiente para
que não ocorresse. Genevieve se encolheu um
pouco mais, certificando-se de que a possibilidade
praticamente se extinguisse. Ainda estava surpresa
pelo arrebatamento que veio quando ele a segurou,
e não estava pronta para revivê-lo em um mesmo
dia.
A fala dele a obrigou a retroceder das
questões obscuras da visita, voltando-se para as
pertinentes às reações decorrentes do primeiro
contato de Genevieve com as outras duas
mulheres. Em realidade, Sarah não a assustou,
tampouco Beatrice; se de alguma forma elas
tentaram amedrontá-la com joguetes verbais
maldosos, estavam enganadas e não tinham a
mínima ideia do que verdadeiramente a fazia
tremer.
Embora não cultivasse particular interesse
nos sentimentos que Ethan, Beatrice e Sarah
dispusessem de uns para os outros, uma dúvida
surgiu sobre as atitudes do administrador.
— A Srta. Lancaster pareceu surpresa com a
nossa proximidade — declarou Genevieve. —
Não percebeu que ela tinha esperanças de casar-se
consigo? — Não o julgava, apenas buscava
compreender.
— Eu sabia. — Soltou um suspiro. — Mas
não retribuo o interesse.
— Preferiu correr o risco de perder a
propriedade?
— Jamais almejei obter Whitewood Holt
dessa forma, se eu a herdar, será porque me
empenhei em minha função.
— E qual a diferença entre obtê-la casando-
se com a Srta. Lancaster ou comigo?
— A senhorita não é sobrinha de Sarah,
ninguém poderá contestar o mérito da conquista,
como já o fazem.
— Então elaborou todas essas mentiras —
sussurrou Genevieve, incapaz de reter a reflexão
antes que escapasse pelos lábios.
Assim que a proferiu, arrependeu-se; dada a
surpresa proveniente das próprias ações, buscou
os olhos de Ethan, aguardando sua fúria. Ele a
estava observando atentamente de volta, com olhos
verde-escuros tão intensos quanto à bruma que os
cercava. Alguns fios castanhos estavam soltos,
escapando do laço, úmidos, roçavam-lhe a lapela
do casaco e alcançavam a altura dos ombros.
Era um belo homem o Sr. Hamilton, seu
rosto conservava aspectos levemente selvagens,
extremamente masculinos, seus ombros eram
robustos e largos, isto era perceptível apesar do
grosso casaco. Uma curta barba bem-aparada, de
tons castanho-claros, cobria sua face e seus olhos
possuíam um formato amendoado, suavemente
estreitos nas extremidades, finalizando a marcante
composição de Ethan.
Ele deslizou o indicador sobre os lábios,
conferindo uma expressão ponderativa.
Durante bons minutos, os únicos sons a
preencherem o ambiente foram os dos cascos do
cavalo contra o cascalho e o das gotas de chuva
contra o teto do veículo.
— Julgue-me, Srta. Johnson, sei que o
mereço. — A sua voz era destituída de raiva,
tampouco de autopiedade. Havia apenas
praticidade, de alguém que não dissimulava a
obviedade contida em qualquer situação. — Fui
para o leilão sem ter planejado previamente
retornar com uma esposa, a ideia me ocorreu
apenas no momento e admito que não era a solução
mais adequada para meus dilemas, porém, aqui
estamos.
— Aqui estamos — repetiu Genevieve.
— Sim, fui egoísta — admitiu, ainda
mantendo o tom neutro. — Sim, coloquei meu
desejo de possuir Whitewood Holt acima de
qualquer outra coisa. Sim, quis escapar de um
matrimônio com Beatrice, mesmo sabendo que ela
e Sarah o orquestravam. E, bem, fui impulsivo, não
me orgulho de envolvê-la, Srta. Johnson, sei que
minha consciência não permitirá que eu esqueça de
que lhe fiz isso.
— Vossa consciência — Genevieve
reforçou.
Ethan estava, como sempre, se colocando
em primeiro lugar. Uma vaidade incalculável,
identificou Genevieve.
— O que deseja que eu faça, Srta. Johnston?
Sinto que ainda estou sob julgamento, mesmo
esforçando-me para ser sincero.
— Não necessita da minha aprovação —
retrucou. — Quando aceitei o acordo, não me
dispus a concordar com vossas ações.
— De fato.
— Sendo assim, por qual motivo se
incomoda? — atreveu-se a questionar.
— Não sei.
Ethan não sabia, estava confuso, arrependia-
se de ter arrastado Genevieve para a difícil
situação, mas em contrapartida, necessitava da
dama. Também não suportava vê-la tão infeliz e
esse era outro ato egoísta de sua parte, que ele
achou melhor não confessar em voz alta. Tinha
consciência de que não cabia a ele requerer que
Genevieve encarasse o período com um belo
sorriso no rosto, apenas porque a tristeza dela o
desgraçava, lançando a impiedade de mil
demônios sobre seu espírito.
Mas estavam, de certa forma, unidos, e
tinham que lidar com aquilo. A melhor solução
seria tirarem proveito do trato, que Ethan pensou
ser benéfico para ambos, mas no momento já não
acreditava mais nisso. Não conseguia
compreendê-la, os olhos de tempestade escondiam
enigmas intrincados, o tipo de complicação que
buscava evitar, quando fugia do casamento.
— Não pense que sou ingrata. Reconheço
que minha situação poderia ser menos favorável se
o vencedor do leilão fosse outro…
— …mas não quer que eu me considere um
herói por ter concretizado o último lance. — Um
sorriso divertido brincou nos lábios dele, bem
como uma faísca surgiu em seu olhar, ao
interrompê-la. — Tranquilize-se, pois certamente
não o faço.
As feições carregadas de surpresa dela, e a
ausência de réplica, eram indicativos de que Ethan
interpretou corretamente as questões que a
impediam de tentar ao menos simpatizar com ele.
— Porém é verdade que me tranquilizo ao
saber que está segura — completou o
administrador. — Chame de prepotência, se assim
preferir.
— Esse último comentário foi prepotente e
não o fato de ficar feliz por minha segurança —
devolveu Genevieve e havia um curto sorriso nos
lábios dela também.
Ethan deixou escapar um riso baixo, a
compreensão de que a frase significava início
trégua o preencheu.
Mas a calmaria logo se extirpou,
interiormente ele se revolvia em remorso, pois não
sabia se Genevieve estava realmente segura ao seu
lado, principalmente ao ser exposta aos humores
de Beatrice e Sarah.
Assim que ela chegou a Whitewood Holt,
quando tropeçou nele no hall, Ethan a viu
acometida pelo horror. Os olhos dela se
arregalaram e as pupilas estavam tão dilatadas que
eclipsavam a íris cinzenta, agitadas em frenesi,
sem enxergá-lo, sem ver coisa alguma, imersa em
escuridão. A primeira reação dele, tão primitiva
quanto o ato de respirar, fora trazê-la para a luz
novamente, mas como o faria?
Sorte a dele que Genevieve não demorou a
retornar, contudo, o breve instante que se perdeu
fora capaz de incitar um medo profundo em seu
coração, a própria reação o assustava, não estava
familiarizado com tamanha intensidade despertada
por alguém que mal conhecia.
Era natural, afirmou para si mesmo, ela
passou a estar sob sua proteção, o mínimo que
podia fazer era mantê-la segura e a sugestão de
que falhava com Genevieve, o desestabilizava.
Talvez algum dia ela o considerasse digno
de confiança para compartilhar o que viu, o que foi
capaz de transtorná-la daquela forma.
Ele a queria.
Estava tão rígido que doía e por isso saiu,
necessitando de ar frio para aplacar o perigoso
incêndio que se alastrava em suas veias, porém
queria ficar, queria prová-la outra vez, de novo e
de novo, de diversas maneiras e em superfícies
variadas. Na cama, sobre o tapete, no sofá, na
banheira…
Desde que Genevieve colocou o pé em seu
apartamento, a mente de Ethan imaginou uma
centena de cenários aos quais poderiam utilizar
para afogarem-se em perdição. E aquela camisa
que ela usava? Era translúcida, forjando um
inquietante jogo de tons róseos mais escuros onde
encontravam-se os mamilos e a sombra de um
pequeno triângulo escuro entre as penas. Era
enlouquecedor.
Embora seus desejos clamassem por
saciedade, sua mente refreava o fluxo acelerado
que o consumia, lançando lucidez em meio à
irracionalidade. Se fosse outra, talvez ele não se
importasse, mas era Genevieve.
A pequena e delicada Genevieve, misteriosa
e de humor funesto. A dama que ele quis proteger,
quis providenciar um lar e que se tornou tão
importante ao ponto de Ethan não visualizar mais
sua vida sem ela.
A paciência seria sua aliada, além disso,
gostaria de recomeçar corretamente com
Genevieve e isso ocorreria assim que declinasse
formalmente o seu emprego e a propriedade, então
estaria livre para…
Deus…
Livre para amá-la.