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Copyright © 2021 B. C.

Siqueira

Capa: Alice Prince


Diagramação: Larissa Gomes
Revisão: Bárbara Pinheiro
1ª. edição

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens,


lugares e acontecimentos descritos, são produtos
de imaginação da autora. Qualquer semelhança
com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução
de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer
meios – tangível ou intangível – sem o
consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido pela lei nº 9.610/98 e punido pelo
artigo 184 do Código Penal.
Nota da Autora
Promessa
Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Capítulo XV
Capítulo XVI
Capítulo XVII
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Capítulo XX
Capítulo XXI
Capítulo XXII
Capítulo XXIII
Capítulo XXIV
Capítulo XXV
Capítulo XXVI
Capítulo XXVII
Capítulo XXVIII
Capítulo XXIX
Capítulo XXX
Capítulo XXXI
Capítulo XXXII
Capítulo XXXIII
Capítulo XXXIV
Capítulo XXXV
Capítulo XXXVI
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Conheça outra obra da
duologia Bruxas
Vitorianas
Querido leitor,
Não costumo escrever notas iniciais, mas
me senti na obrigação de fazer para A Dama do
Luar. Há temas abordados na história que podem
causar desconforto em alguns leitores, portanto,
não prossigam se não estiverem em um bom
momento. Cuidem do bem-estar de vocês e não
deixem de procurar ajuda se necessário.
Há cenas de terror e morte, com algum
aprofundamento gráfico. Leves insinuações a
suicídio, pensamentos depressivos e cenas de
agressão. Há também questões que envolvem
religiosidade, principalmente sobre ocultismos e
sessões mediúnicas no período vitoriano.
Todo o trabalho foi realizado com o maior
cuidado e pesquisa, mas alguns tópicos são
sensíveis. Para entrar no clima sombrio e
sobrenatural que desejávamos implementar nas
Bruxas Vitorianas, tivemos que explorar alguns
assuntos mais difíceis.
Minha intenção jamais é causar dor ou
aflição, por isso, recomendo que não ultrapassem
os seus limites.
Fiquem bem e boas leituras!

B. C. Siqueira.
Promessa
a pele nua
na sola dos pés
faz do passo
uma promessa
as folhas estalam como ossos
a lua abocanha a clareira
vazando luz entre os lábios
os galhos despertam rijos
em priápica sentinela
o som musculético das feras
fere a sombra e rasga a mata
densa como a carne
a noite se encolhe
mansa e assustada
a bruxa
incandescente
troveja.
Bruxa M. Eloisa.
Massachusetts, 1863

Pés descalços de encontro à terra úmida,


Genevieve Johnson corria por entre as plantações
de tabaco, pertencentes à sua família desde a
época das colônias. A dama usava um vestido
simples de cor azul, adequado para a primavera,
que deixava os braços descobertos. Alguns
grampos soltaram-se de seus cabelos por conta da
movimentação, permitindo que os cachos longos e
negros ficassem livres aos caprichos do vento.
Seu peito subia e descia, a boca estava seca,
os batimentos cardíacos eram descompassados;
evidências de um coração culpado. Culpa essa que
a subjugava, atava seus pulsos e pernas nos
grilhões do medo, contudo, Genevieve não
deixaria que os temores a impedissem de ajudar da
maneira que podia, a única que conhecia.
A forca se desenhava sob suas pálpebras
fechadas durante todas às vezes que se permitia
refletir sobre o que fazia furtivamente a cada
primeiro dia de lua cheia, mas era verdade que
certas situações demandavam esforços e tomadas
de decisões difíceis e tampouco consideradas
ortodoxas. Acreditava ser uma pessoa prática,
apesar de tudo.
O véu noturno a cobria, ocultando seus
passos e lhe propiciava algum conforto,
abrandando uma parcela do medo que sentia. A lua
ofertava a iluminação necessária, tocando a pele
de Genevieve com um suave brilho perolado,
acalentando-a como faria um abraço materno.
Genevieve acelerou os passos, penetrando o
coração da plantação; abriu os braços, tocando
suavemente as folhas, sentindo as texturas nos
dedos. Os cultivares pulsavam, seguindo os
batimentos da moça, e respiravam, expandindo e
encolhendo assim como os pulmões dela.
Genevieve era capaz de sentir cada sutil nuance do
ambiente que a cercava, estava sensível, seu corpo
já tomava uma cadência embargada e hipnótica,
efeitos causados por estar exposta à lua.
Os anseios esmaeciam conforme se
aproximava do centro, o ponto exato em que
precisava estar. A completa lucidez e o domínio
sobre o corpo se perdiam, em seu lugar
permaneciam meros impulsos e o mais profundo
instinto, enterrado na carne e no sangue.
Teve vontade de dançar e entregou-se ao
magnetismo inexplicável, era sempre mais fácil
quando não resistia. Deu algumas voltas, agitando
a saia do vestido. Havia música alta e agradável
que somente ela podia ouvir, eram tambores que
ressoavam por todo o corpo e ditavam o ritmo de
seu coração; eram delicados sinos contidos no
vento, que se mesclavam ao farfalhar das folhas.
Genevieve deixou-se levar pela canção,
girando de braços abertos, de modo que a luz da
lua a tocava por inteiro. Alguns movimentos eram
suaves, outros precisos e enérgicos, seu corpo se
movia de uma maneira que aparentava embriaguez
e, nesse estágio, Genevieve realmente encontrava-
se fora de si, entregue ao comando de algo que
nem mesmo ela sabia denominar.
Então parou abruptamente, enterrou os pés
na terra e sentiu a energia pulsar e fluir através de
seu corpo. Ergueu os braços bem altos, com as
palmas voltadas para cima, em direção à lua,
retirando dali a força necessária para tentar
recuperar os canteiros ou, ao menos, minimizar as
perdas que recaíram sobre as plantas da
propriedade.
Fechou os olhos, ouvindo a melodia suave
da lua em seus ouvidos, sentiu o vento tocando a
pele e o cheiro fresco que pairava no ar. Quando
voltou a abri-los, sua íris estava enevoada, a cor
lunar tomando o azul-acinzentado que pertencia à
Genevieve. Suas mãos brilhavam uma fraca luz e
em um ímpeto, as cravou no solo, preenchendo-o
com os dons ofertados pela lua, concedendo saúde
para as plantas doentes.
Veios de energia penetravam e se alastravam
pela terra, sendo absorvidos pelas raízes, subindo
pelo caule e espalhando-se pelas folhas, que
passavam a vicejar. Genevieve podia sentir cada
mudança na plantação, o grande pulmão tomava
uma longa respiração, enchendo de vida o que
antes perecia, expurgando a podridão ocre da
morte.
Os seus braços doíam e tremiam, pontadas
agudas acometiam as articulações e ela teve que
morder o lábio para não gritar. O processo a
exauria por completo, contudo, era um preço justo
a pagar pelo abençoado dom.
— O que está fazendo?
Genevieve piscou algumas vezes, perdendo
a conexão, seus olhos retomaram o tom azul-
cinéreo e ela se pôs de pé, cambaleando.
— Vincent!
Liverpool, 1863

Ethan Hamilton resmungava ao adentrar o


pub que costumava frequentar, próximo ao porto.
Deus, jamais em toda vida encontrou-se tão
encurralado quanto naquele instante.
A única coisa que um homem podia
orgulhar-se de se obter era sua liberdade. Era um
direito assegurado pela lei, não? E ele estava
prestes a perder a sua tão estimada liberdade; teria
algemas restringindo-lhe os pulsos, ou um anel
dourado em seu dedo, para ele não havia nenhuma
distinção.
Afundou os dedos nos cabelos castanhos,
como se pudesse resolver seus problemas ao
bagunçar os fios. Nada! Nenhuma ideia lhe vinha!
Isso era absurdo, uma vez que seu maior trunfo era
a habilidade de encontrar soluções em locais que
os demais não enxergavam saída, entretanto, nessa
situação em específico, não identificava uma
mísera janela ou porta aberta por onde poderia
saltar, somente via as barras de ferro de sua futura
prisão.
— Hey! — O amigo acenou para ele, de
uma mesa próxima à janela.
Ethan, sem escolhas, se arrastou até Will,
tomando o assento diante dele, fazendo com que
algumas gotas de cerveja caíssem do caneco
quando balançou a mesa ao sentar.
William Carter ostentava sua melhor pose
despreocupada de quem jamais teria que
despender reflexões sobre empregos ou sobre
casamentos que não o agradassem. Will, que
obtinha toda a sorte de ter nascido em uma família
detentora de uma soma considerável de bens, e que
além de tudo respeitavam suas decisões foi, de
certa forma, protegido de alguns aspectos mais
duros da vida.
— O que há, homem? Está tão atordoado
que mal me viu aqui. — Franziu as sobrancelhas,
analisando-o.
— A viúva deu-me uma intimação, e dessa
vez não poderei escapar.
— Ora essa, pelo que eu soube, ela estava
prestes a torná-lo seu herdeiro legítimo. — Sorveu
um pouco da bebida, recostando-se relaxado na
cadeira, em uma postura completamente oposta à
de Ethan, que estava tão tenso quanto uma corda
esticada.
Sim, era verdade. A viúva não possuía
filhos e era proprietária de uma grande porção de
terras e negócios, os quais Ethan administrava. Em
quase dez anos, tornou Whitewood Holt uma das
propriedades mais rentáveis de Liverpool; obteve
a aprovação de sua empregadora, Sarah
Whitewood, para tanto.
A viúva era conhecida por possuir um
humor que oscilava entre o amargo e o ácido, mas
aparentemente o charme de Ethan foi suficiente
para conquistá-la, ou talvez fosse mera questão de
sorte, não havia como saber. Ainda assim, Sarah
demonstrava um singular apreço em torturá-lo; em
um primeiro momento, o fez crer que todos os seus
esforços seriam recompensados, para no outro,
colocar uma condição absurda para se obter o
prêmio.
— Caí nos ardis dela. — Bufou. —
Prometeu deixar Whitewood Holt para mim, sabe
como amo a propriedade. E agora…
— Agora o quê? — Will instigou, fitando-o
com os olhos azuis brilhando de divertimento.
— Quer que eu me case!
— Mesmo?
— Infelizmente, sim.
— Bem, ela possui certa razão em fazê-lo
— ponderou.
— Não venha me dizer que concorda.
— Sabe que correm diversas especulações
sobre você ter seduzido Beatrice, o enlace entre
vocês já era esperado por quase todos.
— Especulações pouco me incomodam.
— Decerto devem incomodar a viúva. —
Deu de ombros. — Pensou que iria iludir uma
moça de família e sairia impune? Já deveria ter
aprendido a tomar cuidado com determinados
rabos de saia.
Will estava certo, além disso, quando Sarah
colocava algo naquela cabeça dura, dificilmente a
ideia a abandonava. Sabia que a viúva queria que
Ethan pedisse sua sobrinha em casamento, mas ele
jamais fora apaixonado por Beatrice, longe disso.
Chegaram a trocar alguns beijos em um ponto do
passado e, desde então, a moça fixou-se a ele. Não
a culpava, de qualquer forma, a culpa era dele
próprio por ter sido tão idiota.
Sempre buscou deixar claras as suas
intenções, que não passavam de um fulgor
momentâneo, mas não foi o suficiente para fazer
Beatrice desistir de tentar prendê-lo em um
compromisso. Como se arrependia da noite em que
deixou-se levar pelo uísque e o clima agradável
do baile, para apoderar-se dos lábios de Beatrice;
se pudesse regressar no tempo, impediria a si
mesmo de sucumbir aos desejos, não era mais um
rapazote para não controlar seus impulsos.
— Seja honesto, é tão ruim assim a ideia de
se casar? — Will questionou.
— Sabe o quanto prezo pela minha
liberdade.
— Então terá que escolher entre ser livre e
possuir Whitewood Holt.
— Veja só quem fala… pelo que me
recordo, você é tão convicto de sua condição de
solteiro quanto eu.
— De fato. — Um sorriso esperto se
delineou por seus lábios. — Admito ter mais
esclarecimento lidando com os seus dilemas do
que com os meus.
— Podemos ver que sua hipocrisia é algo
extraordinário que necessita de estudos mais
aprofundados.
Permitiram-se dividir algumas risadas.
— Deve haver um número generoso de
damas que desejam ser chamadas de Sra.
Hamilton. Beatrice, por exemplo… — Will fingiu
inocência ao citar o nome, mas a fala não passava
de uma clara provocação.
— Brinque o quanto puder, saiba que não
esquecerei. Quando precisar de ajuda futuramente,
o tratarei com a mesma cortesia.
— O casamento já começou a deixá-lo
sensível, meu caro. Cuidado, pode ser
irreversível. — Cobriu o sorriso com o caneco.
Ethan ignorou o comentário e sinalizou para
que alguém viesse atendê-lo, contudo, o
estabelecimento estava cheio, e nenhum
funcionário parecia disponível.
Conheceu Will em um carteado em Londres,
na época em que nutria genuíno apreço às
jogatinas. Ethan não era de família nobre,
tampouco era de origem miserável, considerava-se
comum, invisível à sociedade. O pai, através de
seus serviços contábeis, conseguiu angariar
dinheiro suficiente para proporcionar ao seu filho
único bons estudos, mas após a morte de sua mãe,
Ethan sentia-se perdido. Vagueava frequentemente
pelas noites, entre jogos, bebidas e mulheres; até
que o pai, um homem severo, recusou-se a amparar
tal estilo de vida.
Foi então que Will, notando o raciocínio
rápido de Ethan, ofertou a possibilidade de
trabalho em Liverpool. Não tinha nada a perder e
sequer pensou antes de aceitar a proposta. Mas, ao
conhecer a propriedade e vê-la prosperar, passou
a criar laços afetivos com ela, jamais
experimentou semelhante fenômeno antes, nem
mesmo nas cartas e nos amores de somente uma
noite.
— Granville? — William chamou, fazendo
Ethan regressar das divagações. — É bom vê-lo.
— Elevou o caneco em um brinde.
Ethan virou-se na cadeira, observando o
homem que havia se aproximado do balcão do
pub, e que no momento, levantou a mão em um
aceno simples, visivelmente constrangido,
cumprimentando Will, que se mantinha
contraditoriamente tranquilo, enquanto todos ali
presentes exibiam diversos graus de desconforto.
As conversas animadas cessaram em um curto
espaço de abrir e fechar de olhos.
O Conde de Granville terminou a bebida em
um trago, deveria ser algo forte, pois ele contraiu
ainda mais as expressões após engolir. Suas vestes
eram completamente pretas, assim como seus
cabelos, e ressaltavam a palidez da pele.
Deixou o copo vazio no balcão, acertou as
contas e saiu feito um espectro, mais demônio do
que homem, sob os olhares curiosos. Em conjunto,
todos soltaram a respiração, ao passo que
pequenos burburinhos surgiam, um zumbido baixo
como uma colmeia.
A garçonete realizou um sinal da cruz,
olhando para a porta e estremeceu ao colocar um
caneco de cerveja diante de Ethan, ele se recordou
de que ainda não havia feito seu pedido, mas não
ousou corrigi-la, uma vez que compreendia o
estado de nervos alterado da jovem. A presença
atormentada do Conde de Granville tinha a
habilidade de macular qualquer atmosfera.
— Envergonhou seu amigo — Ethan
censurou. — Ele não parecia querer ser
reconhecido.
— Samuel?
— Se é tão íntimo do conde para tratá-lo
pelo nome de batismo.
— Tive intenção de convidá-lo para a mesa,
mas é claro que ele não aceitaria.
— Deveria ser mais cauteloso ao se
aproximar dele, conhece os rumores.
Ethan preocupava-se, o amigo possuía um
coração demasiadamente generoso, que o levava a
crer que os demais também conservavam tal
virtude.
— E rumores são exatamente o que são:
rumores.
— Alguns são fundamentados em uma
reserva de verdade.
— Samuel é recluso, deprimido e apenas
isso, por esses motivos vou visitá-lo às vezes.
— Não confie tanto em alguém que carrega
a alcunha de assassino.
William riu e bebeu, confiante.
— Jamais me enganei sobre o caráter de
qualquer pessoa. Acertei sobre você, não foi?
— Muito bem. — Ethan achou melhor
desistir de alertá-lo. — Por que será que ele veio
até o porto? Sequer me recordo da última vez que
o vi sob a luz do dia. — Estreitou os olhos ao
divagar.
— Eu o aconselhei a participar do leilão.
— Que leilão?
— O leilão de esposas. Soube que o
Princesa Delphine aportaria pela manhã, trazendo
algumas mulheres. — Seu rosto se contraiu em
uma careta de desgosto, frente à prática que ambos
consideravam pouco louvável.
Capitão Marchall tinha uma fama que
precedia a de simples transportador de
mercadorias, o homem costumava vender esposas.
Certamente aquele tipo de negócio não estava de
acordo com a lei, mas considerando-se que
desquites representavam dores de cabeça ao
parlamento, os leilões eram submetidos a “vistas
grossas”. Assim, Marchall encontrou uma brecha
entre aqueles que queriam livrar-se de suas
esposas e aqueles que queriam comprá-las, e ainda
lucrava com isso.
— Não deve ser fácil para ele encontrar
uma dama disposta a desposá-lo — refletiu sobre
o conde.
— Nem todos dispõem da sorte de terem
uma mulher como Beatrice aos seus pés. —
Piscou.
Ethan fez questão de ignorar a provocação,
preferindo voltar o olhar para a movimentação
exterior, através da janela, enquanto o amigo
continuava bebendo despreocupadamente. Alguns
cavalheiros se aproximavam do palanque de
madeira, onde provavelmente ocorreria o leilão. O
estômago de Ethan revirou, um sabor ácido tomou
seu paladar, pobres mulheres infortunadas…
Sentiu um curioso impulso, como se fosse
uma coceira, na verdade, um empurrão. Piscou,
confuso, tentando reprimir as sensações. Não
havia explicação para a necessidade que o obrigou
a ficar de pé, tampouco para a que o motivou a ir
para fora.

Os dentes de Genevieve batiam com força e


o barulho ecoava diretamente em sua cabeça.
Estava encolhida no canto, em um dos porões do
navio que foi jogada. As lágrimas nem caíam mais,
após chorar incessantemente desde que foi
obrigada a embarcar, elas finalmente pareciam ter
acabado.
Havia somente o vazio, um buraco oco
ocupando seu peito, espalhando gelo líquido por
suas veias. O que seria dela? Não possuía mais
família ou qualquer penny no bolso; chegou a
desejar a forca que tanto temia.
Genevieve não conseguira contar quantas
exatamente, mas havia outras dezenas de mulheres
ocupando espaço naquele porão, a maioria mais
velhas e com semblantes tão feridos quanto o dela
própria. Não se sentiu confortável em se
aproximar de nenhuma delas, preferindo se isolar.
Sua mente ansiava por silêncio, Genevieve
estava aos pedaços, quebrada de tal forma que ela
duvidava um dia voltaria a ser a mesma de antes.
Desejou se recolher o mais profundamente que
conseguisse, impedindo que a hostilidade de tudo
o que vivenciava a atingisse.
Ouviu os marujos dizendo diversas coisas,
como uma beleza feita a de Genevieve chamaria a
atenção dos homens, que pagariam somas
generosas para tê-la para si. Até mesmo ali, no
Princesa Delphine, Genevieve presenciou
barganhas do tipo sendo feitas, em que algumas
mulheres ofereciam o próprio corpo em troca de
pão amanhecido ou água putrefata.
Céus, o que faria quando aportassem?
E o pior, como Vincent pôde ser tão cruel?
Dias atrás, o irmão a arrastou pelos cabelos,
atravessando toda a plantação. Os joelhos dela
doíam ao serem flagelados, embora ainda
estivessem em um estado melhor do que os seus
pés.
Ele a atirou no centro da sala, como se a
irmã não passasse de um objeto qualquer.
Genevieve tropeçou e caiu. A governanta tentou
intervir e ampará-la, mas Vincent ordenou que a
amável Sra. Smith se afastasse.
— Bruxa, pensou que eu não sabia que se
esgueirava pelos cantos? — Vincent ofegou, sua
voz vacilava perante o nervosismo. — Confesso
que criei diversas suposições, mas jamais pude
imaginar isso. — Balançou a cabeça. Seus olhos
eram vermelhos, injetados em cólera. — Era você
esse tempo todo, amaldiçoando nossa colheita —
rosnou entredentes.
Ele arrancou o próprio cinto, havia fúria em
seu olhar, mais do que isso, um ódio ensandecido
que transfigurava as suas expressões nas de um
demônio. A acertou com o cinto, o couro estalou
contra a pele sensível, deixando uma visível
impressão vermelha na superfície pálida.
— Vincent, pare — implorou. — Deixe-me
explicar.
O couro a atingiu novamente, Genevieve
esforçou-se para se proteger com os braços, mas a
fivela era dura e Vincent estava furioso,
empregando mais força em cada golpe. Ele
levantou a mão uma, duas e três vezes.
— Sei o que meus olhos viram!
— Pare!
— Pagará por esse sofrimento que fez todos
nós passarmos! — Pontuou cada palavra com um
estalar do cinto contra a pele da irmã.
O choro de Genevieve mesclava-se com o
da governanta.
— Eu queria ajudar!
— Pois ajudará queimando no inferno —
vociferou.
— Por favor, não me mande para a forca.
— Forca? — Parou, com o braço no alto,
considerado a nova opção.
Ele largou o cinto sobre o carpete e se
aproximou, erguendo-a bruscamente pelos braços,
juntando os pulsos de Genevieve para que ficasse
bem próxima a si.
— A corda e o cadafalso parecem o destino
correto para você.
— Vi-Vincent… — Um soluço a atravessou,
provocando um aperto doloroso em seu peito.
— Eu adoraria assistir ao seu pescoço se
quebrar, ouvir o som do osso partindo —
sussurrou com o rosto quase colado ao dela, os
dentes estavam arreganhados, ameaçando trincar,
tamanha a força com que o irmão retesava a
mandíbula. — Ou melhor, eu adoraria vê-la
queimar, como a maldita bruxa que é.
Genevieve gritou e puxou os braços,
buscando se afastar, porém, o movimento somente
a machucou.
— Mas eu jamais a mandaria para a forca
— ele revelou, apertando-lhe os pulsos até que
estalassem.
O coração dela teve um momento de alívio,
nem tudo estava perdido…
— Não posso correr o risco de sofrer
represálias por seus pecados. Mas não a quero
mais em minha casa, próxima a mim. Eu tenho
repulsa a você. — Aproximou o rosto do dela
novamente.
Eram tão parecidos, dividiam os mesmos
cabelos negros e a mesma cor de olhos. Dividiam
os traços suaves e harmoniosos herdados da mãe,
entretanto, eram tão diferentes no interior e isto
jamais foi tão evidente.
Ela voltou a chorar, desta vez,
silenciosamente, gotas de orvalho deslizando
sobre mármore.
— Partirá no primeiro navio que passar por
aqui, e pouco me importo aonde vai parar. Se
necessário, pagarei para seja completamente
esquecida no canto mais remoto desta Terra.
— Você é tudo o que eu tenho! — saiu em
um ganido.
— Já está decidido — decretou. — Para os
demais, Genevieve passará uma temporada com
uma tia distante. Entendido? — Desviou o olhar
para a governanta, que só concordou com a
cabeça. — Depois farei questão de que morra de
tuberculose.
— Ainda sou sua irmã.
— Não possuo nenhuma irmã. — Soltou-a,
empurrando-a novamente de encontro ao chão. —
Esta noite será a última que passará aqui e
prometo que não será nada agradável.
A promessa foi cumprida.
Vincent se rejubilou com cada grito
arrancado de Genevieve, repetiu diversas vezes
que ela pagaria a dívida de uma forma ou de outra,
se não seria pelo dinheiro, seria pela dor; de
acordo com o irmão, a punição era uma forma de
expurgar os pecados da bruxa. Meses de perdas
foram descontados na pele dela, a ponto de no dia
seguinte, ela mal conseguir andar e necessitar ser
levada até a carruagem da família, no colo de um
funcionário.
Ao nascer do sol, foi entregue ao capitão
Marchall, o homem recebeu uma grande quantia,
retirada do dote dela, para que não abrisse a boca.
Vincent ainda foi enfático sobre a irmã ter
cometido um erro muito grave, que não merecia
nenhuma piedade ou bons tratos. Suas palavras
exatas foram “Quero que ela sofra”.
E ela estava sofrendo, mais a cada dia
miserável que a levava para um rumo
desconhecido. Genevieve piscou para afastar as
lágrimas que ameaçavam cair com a lembrança e
esfregou os braços que ainda continham vestígios
do castigo. Exausta, pendeu a cabeça para frente,
embalada pelo balanço das ondas. Encostou-se na
parte interna do casco e abraçou os joelhos. Não
ousava sequer apoiar o rosto nas mãos, estavam
imundas, tudo ali era imundo.
As mulheres que dividiam o porão usavam
baldes como latrinas, e o cheiro de fezes, urina e
vômito disputava com o de óleo de baleia. O ar
era impregnado com o odor rançoso e Genevieve
pouco se alimentou, não se atrevia a consumir a
sopa rala e carunchada servida eventualmente; a
única coisa que se permitia ingerir, era o caneco
de água turva e pouco convidativa.
Não era sem motivos que a febre assolava o
navio; gritos e delírios tornaram-se algo comum.
Por fim, o enfermo que sucumbia à doença, era
arrastado para fora e largado ao mar, evitando
disseminar um possível contágio por qualquer que
fosse a moléstia que tivesse condenado o infeliz a
perecer.
Ela se atentou à fraca luminosidade
proveniente da lua, que passava pela escotilha
aberta. Deixou-se ser alimentada pela luz
prateada, sentindo-a tocar a sua pele e infiltrar-se
pelos poros. Tirou uma mecha negra ensebada dos
olhos e os elevou para a lua. Uma sensação
ondulante de calma apoderou-se de seu coração,
assim ela soube que, de alguma forma, era
cuidada.
Uma canção suave, de voz feminina, a
embalou, uma misteriosa cantiga de ninar que a
recordava de sua mãe cantando para ela quando
era criança, mesmo que os versos fossem tão
diferentes.
"Doce criança do céu enluarado,
de alma prateada vivaz
Brilhe e encontre seu destino ocultado,
brilhe e encontre o mar
Permita sua alma despertar
Permita sua alma despertar."

As palavras repetiam e se perdiam,


envolvendo Genevieve até que todos os
pensamentos obscuros fossem obliterados por
aquela luz, esmaecendo nas bordas de um sonho
que, por fim, a tragou.
— Vamos! — Um marujo a cutucou com a
ponta da bota.
Genevieve piscou, atordoada. Pela primeira
vez, teve uma noite de sono completa há tempos.
Havia certa movimentação naquela manhã, ela
notou que todas as mulheres estavam saindo pela
escada que descia da escotilha.
Orientadas pelo capitão Marchall, seguiram
em fila, para longe do navio, e enquanto
caminhavam pelo porto, os olhos de Genevieve
capturaram a figura de uma coruja cinzenta
pousada sobre uma das embarcações ancoradas ali
próximo; a dama teve a impressão de que os
imensos e redondos olhos verdes da ave a
acompanhavam.
— Ande logo, não fique aí empacada feito
uma mula. — Marchall lhe deu um safanão.
Genevieve tropeçou para frente e quando
recuperou o equilíbrio, procurou novamente a
coruja, mas não a encontrou mais.
— Que beleza. — Um desconhecido se
aproximou demais dela, tentando tocá-la.
O homem fedia a azedo e a rum; sorriu,
malicioso, com dentes desnivelados e amarelos em
meio a uma farta barba grisalha.
— Afaste-se, este será um leilão
respeitável, somente com as melhores esposas —
capitão Marchall protestou.
Esposas?
Ethan levantou em um rompante, arrastando
os pés da cadeira no assoalho, e deixou o
estabelecimento sem sequer ter concluído sua
cerveja. Pouco depois, notou a presença de Will
ao seu lado.
— Não entendo por que quer assistir ao
leilão, são todos iguais.
— Estou curioso. — O dispensou com um
aceno.
Curioso não parecia a definição correta, a
realidade era que Ethan sentia que precisava estar
ali e tal fato era difícil de explicar.
Se havia algo que Ethan sabia era que o
tempo corria lento, principalmente para ele, que
não era contemplado por grandes mudanças em sua
rotina; os grãos de areia na ampulheta escorriam
constantes e previsíveis, mas algo mudava, como
uma página virada prestes a iniciar uma nova
história, o sussurro de promessa era perceptível
no ar.
— Deixe isso para lá, sabe que leilões
desse tipo são deploráveis. — Havia pesar na voz
de Will e Ethan o compartilhava.
Ambos não acreditavam em arranjos dessa
natureza, no entanto, Ethan seguia caminhando pelo
aglomerado de homens ansiosos.
— Não me orgulho de ter apresentado essa
possibilidade a Samuel, se quer saber —
prosseguiu Will, desviando-se de um senhor de
bigodes. — Mas parecia ser o único meio de
ele… ah, esqueça.
Ethan virou-se para trás, observando as
expressões envergonhadas do amigo. Notou que
Will carregava certa culpa por incentivar tal
prática, por isso as explicações, mas Ethan não o
julgava, qualquer que fosse o motivo, sabia que
William Carter somente agia com boas intenções.
— Não me deve justificativas — finalizou,
tranquilo.
— Obrigado, eu acho.
Aproximou-se do palanque de madeira ao
qual as damas eram exibidas aos seus futuros
maridos; se acotovelou por entre a clientela
fervilhante, buscando obter uma visão mais
privilegiada. Os olhos de Ethan correram pela fila,
analisando as mulheres que aguardavam a
sentença. O estômago do administrador se
contraiu, diante do cenário desalentador.
Algumas delas já tinham seus amantes
aguardando-as, ansiosos, prestes a comprá-las e
essas não pareciam tão assustadas, pelo contrário,
traziam uma atmosfera de calma inabalável,
deveria ser a sensação de felicidade por estarem
prestes a se livrarem de um matrimônio infeliz,
para terem a oportunidade de vivenciarem o
verdadeiro amor. Pelo que Ethan superficialmente
sabia sobre esses leilões, quase todos os arranjos
já eram pré-concebidos.
Não parecia ser o caso de uma pequenina
dama, de estatura mais baixa dentre todas daquela
fila, trêmula e com olhar tão desesperado que
conseguiu partir o coração cético de Ethan em
milhões de fragmentos afiados, que o dilaceravam
de dentro para fora. Os cabelos negros estavam
desgrenhados, havia sujeira em cada mínima
parcela de pele exposta. A bainha do vestido que
uma vez fora azul-claro, estava preta e rasgada, e,
sob tanta sujidade, era possível identificar
inegável beleza.
Como uma criatura daquelas foi parar em
tal situação?
Nos braços da mulher, havia algumas
contusões de um tom esverdeado e amarelado,
indicando estarem prestes a curarem. Se condoeu
por ela; não era possível que ela tivesse cometido
uma falta tão grave a ponto de estar prestes a ser
vendida como uma égua.
Não era de seu feitio ser piedoso, o título
combinava mais com William Carter do que
consigo, não que Ethan fosse um sujeito ruim, era
apenas… egoísta, diria; talvez um pouco
insensível. Não costumava ser alguém que perdia
noites de sono imerso em reflexões acerca da fome
dos necessitados, ainda mais estando consciente
que teria que levantar da cama cedo para trabalhar
no outro dia, porém pensaria naquela mulher e não
sabia dizer o porquê.
Havia meios de ajudá-la. Deus, ele sabia
que podia. Não, não seria tão impulsivo assim, ou
seria? Seus batimentos aceleraram e um calor
curioso brotou no centro de seu peito e se espalhou
devagar pelos membros, deixando um formigar
letárgico na ponta dos dedos. Quanto mais a
encarava, maior a pressão se tornava, mas ele não
tinha a mínima ideia de como libertar o sufoco
interno.
No bolso do casaco, as notas dobradas
pesavam, havia dinheiro o suficiente para retirar a
dama daquela situação. A ideia martelou em sua
cabeça, tomando os outros pensamentos, inclusive
os sensatos.
— Deveria procurar uma noiva em outro
local — Will opinou. — Há outras opções.
— Se o conde pode encontrar uma esposa
aqui, por que eu não poderia? — provocou.
— Não conte isso a ninguém — se alarmou,
advertindo-o. — São assuntos que dizem respeito
somente a Samuel, e suas circunstâncias são
completamente diferentes. — Inflou os pulmões e
depois soltou o ar. — Deveria casar-se com
Beatrice.
— Pois prefiro me casar com aquela mulher
ali em cima a desposar Beatrice. — Indicou a
moça com um aceno de cabeça.
— Está brincando comigo?
— De forma alguma. — Um sorriso se
espalhou nos lábios de Ethan. — É perfeito, dessa
forma ensinarei uma lição à Sarah e ainda
cumprirei os requisitos dela.
Sim, podia funcionar, e além dos motivos
citados, havia a possibilidade de ajudar uma
inocente desamparada, nunca se era tarde para
começar a realizar boas ações. Todas as peças em
sua mente se encaixaram com um sonoro click.
— Apenas na sua cabeça isso significa
“ensinar uma lição à Sarah”.
— Já está decidido.
— Pense com mais calma. Não entendo por
que está fazendo isso, não é possível que esteja tão
desesperado para herdar Whitewood Holt.
Não era desespero, tudo se resumia a uma
questão de princípios. Ethan considerava-se
merecedor da propriedade e um casamento não o
impediria de consegui-la.
— Qual mulher aceitaria casar-se com a
condição de permitir que o marido seja livre para
fazer o que bem entender? — ponderou.
— Nenhuma que conheço, mas não crê que
sua atitude esteja sendo um tanto extrema?
— Veremos as consequências depois.
— Ah, Ethan — lamentou, sabendo que a
causa já era perdida. — Você é um tolo mais
extravagante do que pensava, para se prestar a
essa insensatez.
Ethan puxou Will para mais perto, assistindo
aos lances, e quando o capitão se aproximou da
dama de cabelos pretos, houve uma visível
comoção entre os clientes que presenciavam o
leilão.
— Veja, tenho aqui uma autêntica joia vinda
das Américas. Não é todos os dias que os senhores
têm a possibilidade de encontrar mercadoria tão
preciosa.
O capitão a puxou pelo pulso, obrigando-a a
dar passos adiante, para exibi-la na beirada do
palanque. Alguns homens riam enquanto tentavam
espiar sob a suas saias, e ela prendeu o tecido
rente ao corpo, completamente ultrajada.
Uma urgência crescente o sufocava,
impedindo-o de respirar e elevando seus sentidos
ao nível instintivo, calando a racionalidade; a cada
puxão na saia rasgada e a cada sinal tristeza
naqueles olhos cinzentos, Ethan sentia-se prestes a
romper. A necessidade de tirá-la dali encobriu
todos os motivos anteriores que enumerou para
Will para comprá-la.
— Quanto estão dispostos a pagar por essa
flor rara? — O capitão apertou as bochechas dela,
erguendo seu rosto, para ficar mais visível aos
possíveis compradores. Ainda assim, ela manteve
os olhos baixos, recusando-se a ver o que se
desenrolava diante de si.
Os valores dos lances subiam rápido, vozes
se avolumavam e se sobrepunham umas às outras.
— Espero que tenha desistido de seu
propósito insensato, porém, se não desistiu, sugiro
que dê um lance, ou perderá sua esposa — Will
comentou, a contragosto.
— Obrigado — murmurou.
Ethan aproveitou uma recente estabilização
das ofertas para fazer-se ouvir em meio à
multidão, cobrindo os saldos anteriores com uma
respeitável margem de folga. Os olhos da moça o
procuraram, seguindo sua voz, e o encontraram. A
respiração de Ethan estagnou por uma fração de
segundos que guardaram o eterno; como era
possível aquelas íris possuírem o tom exato de
uma tempestade?
Jurou ouvir trovões quando seus olhares
colidiram.
Foi nesse exato momento que a ampulheta
estilhaçou, alterando para sempre o passado e o
futuro de Ethan, libertando as areias do tempo. E
como alguém que vê uma ampulheta cair e sente os
cortes do vidro quebrado em sua pele, ele sabia
que algo determinante estava acontecendo.
— Parabéns, senhor, esta é sua — capitão
Marchall declarou, dando um pequeno empurrão
no ombro da jovem.
Ela arquejou, percebendo que foi vendida,
piscou uma porção de vezes e seus ombros caíram,
sua postura toda esmoreceu; dava para notar um
novo tremor percorrendo-a. Estava apavorada e
Ethan sentiu extrema necessidade de tranquilizá-la.
Ela deu passos curtos, descendo a escada
lateral de madeira corroída pelo sal e a maresia.
Ethan se desvencilhou da multidão, indo de
encontro à jovem. Atrás dela, o leilão prosseguia,
Marchall já apresentava uma nova esposa.
— Vamos sair daqui o mais rápido possível
— sussurrou com toda a gentileza que foi capaz de
imprimir nas palavras.
A dama não o respondeu, estava de cabeça
baixa, sem rumo. Ela encolheu os dedos dos pés
descalços e sujos e Ethan teve urgência em retirá-
la dali, em minimizar os desconfortos que ela
estivesse sentindo e o frio que certamente
penetrava o vestido bucólico e as solas
desprotegidas. Buscando orientá-la sobre qual
caminho tomar, colocou a mão sobre a parte baixa
de suas costas.
— Não toque em mim. — Ela se esquivou,
sua voz era suave, poderia ser julgada como frágil,
porém soou incisiva.
— Perdoe-me. — Ergueu ambas as mãos em
rendição. — Possui algum pertence que queira
levar consigo?
— Nã… — A resposta foi interrompida.
— Aonde vai? Pague antes de levar a
mercadoria. — Os dedos grossos de um dos
marujos surgiram, puxando-a de encontro ao peito.
Ela enrijeceu.
— Sempre honrei todos os meus
compromissos, agora solte-a — bradou.
Assim o marujo o fez, não ousando desafiá-
lo.
— Por favor, aguarde aqui com William
enquanto faço os devidos acertos. — Ethan
solicitou a ela, que somente assentiu com um curto
aceno.
O administrador retrocedeu ao pub, em que
os outros compradores esperavam para finalizarem
os trâmites contratuais.
Enquanto aguardava, com os ânimos se
abrandando, Ethan pensava no que fez. Um pouco
mais cedo, estava se lamentando por ter que se
casar e, no instante seguinte, comprou uma esposa.
Sua mente estava agitada, não havia espaço
para arrependimentos, então prosseguiria com a
ideia inicial de desempenhar uma farsa para com
Sarah, visando a herança da propriedade e alçar
mais confiança aos olhos da viúva que associava
sua vida de solteiro com ares de
irresponsabilidade. Aos vinte e nove anos, Ethan
já deveria estar muito bem-casado, de acordo com
ela.
Após pagarem, os compradores tinham
direito a um recibo, que lhes resguardava o título
de marido da dama leiloada, contudo, apesar de os
recibos serem reconhecidos socialmente, os
casamentos não eram legais. Ethan ouvia os
cavalheiros discutindo sobre esses detalhes, que
antes ele ignorava completamente, e só lhe restava
torcer para isso ser o suficiente para manter a
mentira com a viúva.
A vez de Ethan logo chegou, ele se
aproximou da mesa com as documentações
espalhadas. Um homem de traços tão rudes quanto
os do capitão estava organizando os papéis; ele fez
um gesto com a mão, chamando-o.
— Qual o senhor comprou, mesmo? —
Coçou o queixo barbado, despreocupadamente.
— Não sei o nome dela, é pequena, jovem,
tem cabelos pretos… — explicou.
— Americana?
— Sim.
— Hum. — Molhou o indicador na língua e
o correu nas folhas, até encontrar o que estava
procurando. — Aqui. — Virou o documento de
frente para Ethan.
O nome Genevieve Rose Rivers estava
grifado na folha, ao lado do senhor Timothy Silver
Rivers. Ethan assinou no local indicado, pagou o
que devia, usando o dinheiro que anteriormente
seria para quitar mercadorias adquiridas por sua
empregadora no porto, valor esse que pretendia
repor nesse mesmo dia, usando uma pequena
parcela de suas economias, e teve o recibo, que
lhe garantia a posse da Srta. Genevieve.
— É um homem de sorte — o outro falou,
antes que Ethan lhe desse as costas. — Comprou
uma premiada, ela não tem documentos que
comprovem sua união com Rivers, então pode
realizar um segundo casamento com ela, se
desejar, sem necessitar de um desquite antes.
— O que houve com a documentação do
casamento anterior?
O homem deu de ombros.
— Pode ter se perdido no mar, eu não sei.
Aceite o seu golpe de sorte e mostre gratidão por
Marchall não ter aumentado o preço dela.
Ethan ofereceu um aceno cordial ao homem,
depois apertou o recibo em sua palma, afastando-
se aos poucos daquela comoção. Sarah não era
uma pessoa fácil de enganar, então Ethan se
aproveitaria da possibilidade de ter um casamento
e realmente o realizaria, um evento que não
deixaria margens para dúvidas sobre a veracidade
de seus sentimentos para com a dama que “roubou
seu coração”.
Gradualmente o plano se desenhava em sua
mente e ele teria que se preparar para uma
conversa com a sua futura esposa, ou melhor, uma
proposta.
Genevieve estava nauseada e parte de seu
mal-estar provinha da fome. Embora todos os seus
reflexos e sentidos estivessem lentos, seu coração
contraditoriamente batia rápido. Havia muitas
novidades para assimilar, não sabia sequer onde
haviam aportado; pelo sotaque dos residentes,
supôs que era em algum lugar na Inglaterra.
Encontrava-se longe demais de casa, foi
comercializada, exposta e humilhada. Passou a
pertencer à outra pessoa, com contrato assinado e
tudo, ainda não sabia o que significava, jamais se
imaginou sendo negociada, pelo menos não esse
tipo de negócio; obviamente que sua mão já fora
discutida com Vincent, e ela sabia que um dia o
matrimônio viria, entretanto, os acordos que os
cavalheiros interessados estipulavam com seu
irmão mais velho eram diferentes, menos brutais e
indigestos.
Enquanto esteve na fila do leilão,
aguardando que o “evento” se iniciasse, seus olhos
cruzaram com o de outras mulheres que estavam
tão ou mais perdidas do que ela. Genevieve havia
acabado de receber a notícia de que seria leiloada
e considerou correr o mais rápido que pudesse e
se atirar no mar. Que as ondas embalassem o seu
sono profundo, por um momento, essa solução lhe
pareceu até mesmo bonita; um sepulcro de águas
salgadas, sob o céu cinzento e tempestuoso durante
o dia, e sob a luz da lua e a névoa ao anoitecer.
Seu peito subia e descia rápido, suor frio
cobriu sua nuca. Ela tomou sua decisão.
Genevieve deu um curto passo, tendo a intenção de
colocar o plano em prática, mas uma mão suave e
quente segurou seu pulso. Odiava ser tocada, sua
sensibilidade extrema acabava por fazê-la sofrer
consequências físicas nada agradáveis ao entrar
em contato com outras pessoas, contudo, esse
toque em específico somente lhe proporcionou
calmaria.
Uma dama estava diante dela, seu olhar
apagado e suas vestes surradas evidenciavam que
também estava ali para ser vendida. Seus cabelos
louros, fartos e brilhantes a diferiam das demais
mulheres, alguns cavalheiros viravam os pescoços
para vê-la, ostentavam cobiça em cada traço de
seus rostos grosseiros.
— Meu nome é Grace. — Sorriu, triste. —
Eu também estou com medo — segredou.
A mão cálida ainda estava sobre a de
Genevieve, confortando-a. Sua pele se arrepiou,
era um presságio, a lua cantou em seus ouvidos,
apesar de ser dia. Em meio ao escuro absoluto que
se instalou em seu coração, a ponto de sufocá-la
de tal forma que a morte lhe parecia a única
opção, Grace surgiu como uma vela acesa,
simbolizando que nem tudo estava perdido.
— Obrigada. — Foi a única palavra que
pôde articular.
— Venha. — Um homem puxou Grace por
uma corda em torno de sua cintura, que muito se
assemelhava a um cabresto. De tão atordoada,
Genevieve não notou aquele instrumento bárbaro
antes.
Grace apertou a sua mão uma última vez e
se afastou; Genevieve cerrou as pálpebras e
inspirou longamente. Esteve prestes a cometer um
desatino, mas a lua a alertou, enviando uma
mensageira para impedi-la. Optou por depositar
sua sorte nas mãos do destino, confiando em forças
que mal conhecia, mas que sempre a ampararam.
Enfrentaria o leilão.
— Podemos ir para um local mais afastado
— William chamou com um sorriso amistoso,
arrancando-a das memórias. — Ethan pode nos
encontrar na carruagem, seria mais confortável
para a senhorita se o aguardássemos lá.
— Prefiro permanecer aqui.
— Como quiser. — O cavalheiro passou a
mão sobre os cabelos louros, exibindo
nervosismo.
Havia um anel de safira em seu dedo anelar,
evidenciando que era abastado, suas roupas de boa
qualidade e corte, reforçavam a suposição. O tom
da pedra era semelhante à cor dos olhos dele,
deveria ter sido escolhida propositalmente para
ressaltar sua íris.
— Onde estamos? — ousou questionar.
— Liverpool. Sei que essa não é uma das
melhores recepções que poderia ter, mas espero
que uma mais agradável esteja por vir.
Genevieve o analisou, ponderando se a fala
foi inocente ou irônica. Ela já não sabia dizer,
estava desconfiada, temendo o pior de todos que
surgiam diante de si, acuada feito um filhote
desgarrado da mãe; uma jovem destituída de sua
família e sua pátria.
— Já podemos ir. — Seu comprador, Ethan,
retornou bufando.
Ele usava uma casaca que lhe caía muito
bem nos ombros, da cor de carvalhos, e alcançava
a altura de suas panturrilhas. Os olhos verdes
brilhavam e os cabelos castanhos um tanto longos,
eram presos próximos à nuca, mas alguns fios
insistiam em escapar.
Que Ethan fosse um bom sujeito — desejou
aos céus.
Se conhecesse a ambos os cavalheiros em
outra situação, os consideraria bons sujeitos,
porém como poderia esperar virtudes daqueles
que se propuseram a comprar uma esposa em um
leilão?
— Vai levá-la até Whitewood Holt? —
William questionou, sereno, parecia uma falsa
calma, no entanto, pois ele ainda se mostrava
agitado próximo a ela.
— Obviamente que não. — A voz profunda
de Ethan soou em resposta.
Genevieve sentiu pesar por si mesma,
reconhecia estar no estado mais deplorável que já
se viu, e que nenhuma pessoa ficaria ao lado dela
de bom grado. Havia tantos ratos, baratas, piolhos
e moscas naquele porão, assim como dejetos, que
estavam, nesse instante, grudados em sua saia e em
sua pele, que certamente tornavam seu odor tão
desagradável quanto o que impregnava o navio.
Era a personificação da degradação.
— Então o que pretende fazer agora? —
William tornou a perguntar.
— A levarei para Violet Valley. — Um curto
sorriso sem humor se desenhou nos lábios de
Ethan, ao passo que a boca de seu amigo se abria
lentamente e por fim permaneceu dessa forma.
— Não imaginava ser envolvido
diretamente em suas artimanhas, quando o fizer,
espero que tenha a consideração de me perguntar
se tenho a intenção de participar.
A advertência de William era genuína,
porém Ethan não parecia ter dado importância a
ela, ainda desfrutando de aparente indiferença.
— Não seja rude, Carter. Pensei que sua
mãe tivesse criado um excelente anfitrião.
— A dama realmente não merece nenhuma
descortesia. — Deslocou o olhar para Genevieve,
havia algumas camadas de remorso ali,
espreitando a superfície. — Mas você necessita de
alguns limites. — A raiva retornou.
— Discutiremos sobre isso mais tarde —
finalizou Ethan, de um modo surpreendentemente
firme.
William assentiu, silenciosamente, ainda
com fúria faiscando em seus olhos e endurecendo
os contornos de seu rosto. O assunto ainda não
havia terminado e Genevieve achou desconfortável
que o referido assunto fosse ela.
Ele foi na frente, com passadas firmes. Era
notável como os bem-nascidos tinham a habilidade
de fazerem tudo de uma maneira negativamente
confiante. Caminhar para eles não bastava,
precisavam atravessar o mundo com passos largos,
decididos, como se tudo o que tocassem os
pertencessem.
— Ficará na casa da família de Will por
esses dias, não se preocupe, eles estão em Londres
neste momento, e costumam passar a maior parte
do ano lá. Will é o único que veio para Liverpool
— Ethan explicou a ela, em um tom gentil.
Genevieve, por mais que tentasse, não
conseguia encontrar sentido naquilo. Por que ele a
deixaria na casa de outro? Sua cabeça doía e seu
corpo tremia pela falta de alimentos e apreensão,
então apenas deixou-se levar, sem condições de
contestar ou tentar entender.
Caminharam até uma carruagem, na qual ela
descobriu que o abastado William era
proprietário, não era exatamente uma surpresa. O
veículo era bonito, preto, alguns detalhes de
arabescos o adornavam, reluzia lustroso, com
estofados interiores de boa qualidade, e ela sabia
que o emporcalharia somente ao sentar-se sobre
ele, mas se acomodou mesmo assim.
Ethan a seguiu, enquanto William assumiu a
condução. Quando a porta fechou, ela tornou-se
completamente consciente do cheiro pouco
agradável que exalava e que ficava mais
insuportável no ambiente pequeno.
Quando o veículo passou a se movimentar,
Genevieve teve que cerrar os punhos, sentindo as
unhas se enterrarem na pele. Estava com medo,
pois novamente não sabia o que esperar,
encontrava-se à mercê do destino, que ele fosse
generoso consigo dessa vez.
O balanço da carruagem a incomodava um
pouco, mais do que as oscilações ao mar; mal
havia estado em terra firme e já se via sendo
transportada novamente, feito uma mercadoria
barata. Não, não era barata — se corrigiu —,
Ethan pagou um alto valor por ela. Fechou os
olhos e ousou apoiar a cabeça no estofado,
descansando em silêncio durante alguns minutos.
— Se chama Genevieve? — Ethan
questionou, após a carruagem estar se movendo
por dentro da cidade.
De que adiantaria a ele saber? Fingiu que
não escutou, voltando o rosto para a janela,
observando a imensidão de damas e cavalheiros
transitando tranquilamente, alheios à como a vida
de Genevieve desabava.
— Acaso possui um nome, não é? —
insistiu.
— Sim, Genevieve. — Soltou em uma
lufada de ar. — Genevieve Johnson.
— Johnson… — Ethan utilizou um tom
reflexivo. — Não Rivers?
Rivers.
No primeiro dia que passou a bordo do
Princesa Delphine, algumas folhas foram
colocadas diante dela, na cabine do capitão, e ele
a obrigou a assinar. Quando Genevieve fez menção
de ler, Marchall deu um tapa na mesa.
— Apenas coloque seu nome aí, ou a
atirarei aos tubarões.
Com a mão trêmula, Genevieve rabiscou no
canto, mas ainda conseguiu capturar algumas
palavras dispostas no documento, inclusive seu
nome, mas estava errado, se chamava Johnson e
não Rivers.
Após o leilão, ficou claro para Genevieve
que naquele momento na cabine, fora forjado seu
casamento. No entanto, ela tinha dúvidas se o
documento era autêntico, poderia ser falso,
providenciado ali na hora apenas para que ela
estivesse apta a participar do leilão.
Foi capturada em uma armadilha, tecida
pelo descaso de Vincent e a ambição do capitão
Marchall.
— Johnson é o seu nome de solteira? —
Ethan tornou a tentar estabelecer um diálogo.
Genevieve estava tomada pela fraqueza e o
medo, não queria conversar com ele, muito menos
olhá-lo. Sua mente inquieta insistia em formular
cenários terríveis, em que Ethan assumia o posto
de Vincent ao castigá-la e, posteriormente, ele
realizava atos muito piores, como os que viu no
navio, quando os marujos decidiam se divertir. Era
impressionante o que homens podiam fazer quando
se julgavam detentores de uma mulher.
Genevieve escapou ilesa em sua estadia no
Princesa Delphine, a lua a protegeu, tornando-a
invisível a quem lhe direcionasse intenções
perversas. Os marujos passavam os olhos por ela,
sem se fixarem, como se estivessem cegos, mas até
quando seria resguardada pela lua? Como
conseguiria fugir daquele que a comprou?
— Pois muito bem, Srta. Johnson — Ethan
prosseguiu com o monólogo —, me faria um
homem muito feliz se aceitasse casar-se comigo.
— O quê? — Se aprumou, voltando o rosto
para ele.
— Gostaria que se tornasse minha esposa —
declarou. — Fiquei sabendo que seus documentos
do primeiro casamento se perderam no mar, então
será possível nos casarmos com todas as honras,
como dita a sociedade.
Ela piscou algumas vezes; ou estava
sonhando, ou delirando de fome, talvez houvesse
se contagiado com a febre do navio. Não era
possível que seus ouvidos estivessem certos.
Ethan parecia um cavalheiro de posses,
conservava suficiente beleza para que não tivesse
que recorrer a um leilão para conquistar uma
esposa, então por qual motivo ele havia feito tudo
aquilo?
— Perdoe-me, mas o senhor é maluco? —
questionou com toda a seriedade
Ethan riu.
— De forma alguma, necessito me casar
com urgência e a senhorita me pareceu a pessoa
mais indicada a desempenhar esse papel.
— Não encontrou nenhuma outra? — O
fitou, desconfiada. O infeliz deveria estar fazendo
troça.
— Nenhuma capaz de aceitar meus termos,
devo dizer.
Termos, então aí residia o real problema, o
motivo pelo qual ele não encontrou uma esposa do
modo tradicional.
— Que consistem em…?
— Deixar-me livre para fazer o que quiser,
não me obrigar a realizar quaisquer expectativas,
enfim… — Fez um gesto vazio com os ombros.
Ela soltou um riso fraco nasalar, destituído
de qualquer traço de humor.
— Deseja a sua liberdade enquanto possui a
minha — constatou.
— Não será para sempre, assim que eu
conseguir o que eu almejo, a senhorita estará livre
do acordo. Estou disposto a reservar-lhe uma
soma generosa para que possa recomeçar a vida.
Genevieve passou a refletir sobre aquele
plano, parecia insano e, ao mesmo tempo, era
astuto o suficiente para intrigá-la. E ela, realmente,
não tinha nada a perder. Suas perspectivas
poderiam ser bem piores do que aquelas
apresentadas por Ethan.
— Eu… — Titubeou um pouco. — Teremos
que ser como marido e mulher? — Ainda não
compreendera direito aquela parte.
— Somente perante a sociedade, mas não a
importunarei nos momentos reservados.
— Perante a sociedade? Mas provavelmente
grande parte dos homens que conhece, viram-me
naquele leilão. — Ela torceu a boca ao proferir a
última palavra.
— Estavam bêbados e creio que após
cuidarmos da senhorita, ficará irreconhecível.
Isso era verdade.
Genevieve desviou os olhos para as mãos,
largadas no colo. Estavam encardidas, sob suas
unhas havia meias-luas pretas de sujeira. O alívio
foi gradual, sua mente estava lenta, de modo que
demorou a compreender o que Ethan realmente
oferecia. Agradeceu silenciosamente à lua pela
dádiva. Era muito mais do que esperava encontrar
ao aportar. Cumpriria o casamento de aparências
e depois seria livre para fazer o que bem
entendesse, construiria uma nova vida longe de
Vincent e de qualquer outro, criaria raízes onde
poderia ser ela mesma, sem medos e sem a
necessidade de reprimir seus dons.
— Eu aceito.

— Os apresento a Srta. Genevieve Johnson,


uma prima que veio da América — Will
proclamou e sua voz não tremeu nenhuma vez ao
externalizar a mentira óbvia.
Os empregados da casa assentiram, sem
fazerem quaisquer perguntas. A matriarca da
família Carter possuía um número suficiente de
parentes para que ninguém suspeitasse da
existência de uma prima yankee que eles jamais
tinham visto antes.
— Ela sofreu um contratempo na viagem. —
Meneou a cabeça. — Sua carruagem foi saqueada,
não lhe restaram pertences e ela teve que andar
por grande parte do trajeto até eu encontrá-la.
Sorte a minha ter decidido utilizar a carruagem no
dia de hoje.
Sim, fora sorte. William costumava ir ao
porto a cavalo, era mais prático e rápido, mas por
conta de sua mãe e suas irmãs estarem em uma
temporada fora, os veículos há muito não eram
postos para funcionar e ele temia que deixá-los
parados por mais tempo, pudesse comprometer seu
desempenho.
— Oh, céus… — A governanta levou as
mãos aos lábios, penalizada.
Ethan soltou um suspiro discreto, aliviado
que a mentira estava sendo tão bem aceita por ao
menos uma pessoa ali.
— Viajou sozinha, senhorita? — o mordomo
questionou.
Stevens já estava há muito entre os Carter, o
suficiente para que dispusesse de autoridade para
especular se uma dama da família teve sua honra
comprometida. Era óbvio que o estado de
Genevieve dava margens para esse pensamento.
Ethan mordiscou o lábio inferior, deveriam
ter combinado a história melhor.
— Não viajei sozinha, meus acompanhantes
tinham urgência em retornar para Massachusetts, e
o contratempo não podia atrasá-los, pois possuíam
importantes compromissos. — Genevieve foi ágil
com as palavras.
— Eu a deixarei em suas cuidadosas mãos,
Sra. Evans. — Com essa conclusão, Will deteve
qualquer próxima pergunta que poderia estar por
vir.
A mulher deu um passo adiante, com uma
expressão afável e consternada pelos infortúnios
sofridos pela jovem.
— Vamos lá para cima, prepararei um banho
mais do que depressa. — Sorriu para Genevieve,
que não retribuiu.
Antes que subissem as escadas, um cão de
porte grande e pelo preto brilhoso, invadiu a sala,
pulando primeiro sobre Will, que o acariciou,
depois sobre Ethan que igualmente o encheu de
afeto, para, por último, surpreendê-los ao se
aproximar de Genevieve. Ela deu um riso breve e
coçou atrás de suas orelhas.
— Já basta, Storm — Will o chamou,
estalando os dedos, para que o animal voltasse
para ele.
Enquanto Will controlava o cão, Genevieve
seguia a governanta, aprofundando-se na
residência. Pouco depois, os demais funcionários
debandaram, retomando suas atividades.
— Precisamos ter uma conversa, somente
nós dois. — Os olhos irados de Will recaíram no
amigo.
— E será uma longa conversa, posso prever.
— Suspirou.

Genevieve permitiu que a Sra. Evans a


ajudasse a retirar seu vestido, que estava
visivelmente folgado, além de completamente
destruído. Também deixou que a levasse até a
banheira e a ensaboasse.
A água morna foi capaz de fazê-la notar o
quanto estava com frio até então, os cortes nos pés
arderam e quando o corpo dela relaxou, tudo
começou a doer, como se um cavalo tivesse
trotado sobre ela várias vezes.
Um tecido macio encharcado passeava por
sua pele, revelando hematomas. Fechou os olhos
com força ao recordar da brutalidade de Vincent.
Ele a castigou durante a noite toda, a fivela do
cinto causou estragos, incontáveis, mas o irmão fez
questão de reservar as piores agressões às suas
costas. “Onde ninguém poderia ver.” Era mais um
hábito, desde que eram jovens e ele a machucava
sem deixar evidências visíveis. Um puxão de
cabelos escondido dos pais, um beliscão ou outro
enquanto visitavam a igreja…
Ela suspirou profundamente, o som foi mais
próximo a um soluço, em realidade.
— Gostaria de falar sobre essas marcas? —
a governanta questionou com uma gentileza que lhe
dava vontade de chorar.
— Eu caí na estrada, em dado momento do
saque. — Sua voz saiu embargada.
— Que pena, minha flor. Mas tudo ficará
bem, agora está a salvo, com a sua família.
Genevieve não a respondeu, deixando os
pensamentos novamente vaguearem até a noite de
completo horror que vivenciou junto de Vincent. O
punho dele estava firme, os dedos apertados com
força em torno do cinto, e seu olhar… A raiva
contida ali, essa brutalidade reincidia nos golpes.
A todo instante, revivia aquela noite de novo e de
novo.
— Deite a cabeça um pouco — a Sra. Evans
pediu, prática.
Genevieve obedeceu, em seguida sentiu os
dedos da mulher ensaboarem seu couro e
massageá-lo. Quase adormeceu, como era bom
poder limpar-se e ser cuidada daquela forma que
ela pensou que jamais ocorreria outra vez.
Esteve longe de uma porção relevante de
água desde que Vincent a encontrou na plantação,
bem, permaneceu todos esses dias no mar sim, mas
não houve um contato direto. Para que Genevieve
pudesse curar seu corpo, precisaria estar imersa.
Discretamente, passou a retirar as propriedades
contidas na água e utilizá-las para reparar a si
mesma.
— Deve estar exausta — a governanta
voltou a falar.
— Realmente estou.
— Creio que seja mais que justo que tenha
um cochilo antes de almoçar.
Dormir ou comer? As duas necessidades
pareciam extremas, mas ela optou por dormir um
pouco. Já tinha se habituado à fome.
— Eu adoraria.
— Ou eu poderia trazer-lhe algum chá e
biscoitos.
— Seria perfeito. — Genevieve não
conseguiu ocultar a empolgação.
— Assim farei. — A governanta sorriu para
si mesma, feliz em ter conseguido despertar um
sorriso na jovem melancólica.
Dormir e comer.
Uma cama, com lençóis limpos e colchão
macio.
Genevieve deixou a banheira e fora vestida
com uma camisola branca de tecido tão suave que
se sentiu prontamente abraçada. Esgueirou-se para
a cama e sentou-se no centro dela. A Sra. Evans se
ausentou alguns instantes, e logo retornou com uma
bandeja repleta de belas guloseimas, deixando-a
diante de Genevieve.
Ela se fartou com biscoitos doces que
derretiam na boca e o chá mais delicioso que já
provou. Deus, era um sonho e Genevieve quase
chorou quando sentiu que a barriga não se
encontrava tão vazia. A melhor coisa que tinha
conseguido no navio eram pedaços de pão duro e
mofado, e escassos biscoitos velhos.
— Agora descanse, chamarei quando o
almoço for servido.
Genevieve balançou a cabeça
positivamente, afundando nos cobertores e
deslizando suavemente para um sono pesado de
cansaço acumulado.

— Arrastou-me para suas mentiras, está


feliz? — William questionou, ao acariciar as
costas de Storm, que relaxava ao lado da poltrona
do dono.
— Seja sincero, é meu amigo porque posso
proporcionar-lhe distrações dignas.
— Ainda acredita que gosto disso.
— Está tudo correndo perfeitamente bem.
— Você comprou a sua esposa. — Pontuou
cada palavra, querendo que elas fossem
registradas na cabeça insana do amigo.
— Não exponha os fatos dessa forma, pois
soam um feito horrível.
— E é!
— E qual seria o destino de Genevieve, se
eu não tivesse intercedido por ela? — questionou
sério, desta vez.
— O que fez por ela é nobre, de fato, mas
até certo ponto. Se fosse realmente o homem
altruísta que diz ser, a deixaria ir.
Ethan silenciou. William estava correto.
— Eu adoraria fazê-lo, mas preciso dela —
retomou, depois.
— E se ela se apaixonar por você? Ou então
desistir antes que possa adquirir Whitewood Holt?
— Caso essas coisas aconteçam, teremos
que discutir novamente as cláusulas de nosso
tratado. Além disso, não pretendo envolver
sentimentos românticos nesse entremeio.
— Se for sincero consigo mesmo, saberá
que não será capaz de cumprir. Jurou que jamais
tocaria em Beatrice e o que fez? Na primeira
oportunidade, se lançou aos beijos dela.
— Não seja tão duro comigo, sou capaz de
aprender com meus erros.
— Pois eu duvido muito.
— Provarei a você.
— Como irá convencer a todos de que se
apaixonou tão rapidamente?
— Direi que me correspondia com sua
prima, uma dama que você me falava tão bem que
eu cheguei a pensar que já a conhecia. Como não
me apaixonar perdidamente por tão doce criatura?
— A questão é que você sequer sabe se é
realmente uma criatura doce, pode acabar
descobrindo que essa sua intensa paixão possui
sabor de fel.
— Está sendo demasiado pessimista sobre
isso.
— E você, apressado. Sempre age feito um
louco, Ethan, mas desta vez conseguiu se superar.
— Tenho um bom pressentimento, apenas
confie.
— Confie… De qualquer modo, já está
feito, não? — resmungou Will.
Sim, estava feito, Ethan concordava que fora
precipitado, mas já tinha ido longe demais para
retroceder. O que fez? Jamais poderia crer que
retornaria do porto noivo! Fingiu uma postura
serena ao explicar suas intenções à Genevieve na
carruagem, mas a verdade era que se encontrava
apavorado. Não estava inclinado a envolver outra
pessoa em seus problemas, mas ali estava ele,
prestes a se casar com uma dama que mal
conhecia, arrastando-a para seus dilemas,
colocando sua ambição acima da liberdade dela.
Não era esse tipo de homem, tampouco se
orgulhava do feito, apenas esperava que ambos
pudessem encontrar vantagens ao final do trato.
Genevieve despertou do que parecia ser um
longo e estranho pesadelo, gemeu ao esticar o
corpo, inspirando o perfume suave dos lençóis.
Suas pálpebras estavam pesadas, recusando a se
abrirem, quase levando-a a ceder ao sono outra
vez, se não fosse a sede que propagava um deserto
em sua boca, ela se recusaria a levantar.
Porém, foi quando finalmente abriu os olhos,
que a realidade a atingiu com a força de um tapa
no rosto, levando-a até a se esquecer da secura em
sua garganta. Não estava em casa, na vasta
propriedade de Massachusetts, mas em Liverpool,
sob a tutela de um homem que mal conhecia.
Desmoronou, afundando no colchão macio, não
queria acordar, não queria ser obrigada a enfrentar
as divergências que se apresentaram a ela.
Sem bater, uma jovem trajada com vestido
marrom e com os cabelos ocultos em uma touca,
entrou no quarto. Os braços dela estavam
ocupados com uma confusão de tecidos.
— Ah, está acordada! O almoço já foi
servido, e o chá também, sinto em dizer. O Sr.
Carter solicitou que a deixássemos dormir —
disse ao depositar sua carga aos pés da cama, sem
nenhuma cerimônia.
— Sr. Carter? — Esfregou os olhos e
suprimiu um bocejo.
— Vosso primo — explicou delicadamente.
— Sim, meu primo — afirmou, sem
convicção.
— Ainda deve estar se sentindo muito
cansada. — A jovem lhe ofereceu um sorriso
compreensivo.
— Temo que jamais possa recuperar-me
completamente — sussurrou mais para si mesma.
— Não diga isso, amanhã já estará
renovada, verá. — Balançou a cabeça em
afirmativa. — Trouxe alguns vestidos de Srta.
Carter, até que encomende novos. Tentamos lavar e
consertar o da senhorita, enquanto dormia, mas
infelizmente não houve meios de restaurá-lo.
— Está tudo bem.
Genevieve não tinha nenhuma intenção de
rever o vestido, ele apenas lhe trazia memórias
ruins.
— Deve servir, seus tamanhos são
semelhantes. — A jovem pegou um dos modelos
que estavam embolados na pilha sobre a cama. —
A camisola lhe caiu muito bem, não é?
— Oh, sim. Fazia muito tempo que eu não
trajava algo tão confortável.
— Muito bem. — Sorriu. — Deseja
escolher alguns destes? Posso trazer outros.
— Não, esses são perfeitos.
Em verdade, as cores alegres não pareciam
combinar mais consigo, Genevieve costumava usar
tons azuis ou rosados; vestidos leves para o
campo, porém algo dentro dela se apagou, de
modo que se sentia inclinada a tornar-se mais uma
que cederia aos tons sóbrios da moda inglesa; a
Srta. Carter certamente era uma exceção por sua
predileção vibrante.
Dentre os vestidos ali expostos, Genevieve
encontrou um cinza-lilás, talvez utilizado para um
meio-luto da Srta. Carter, que considerou mais
pertinente ao seu estado de espírito; sem demora, a
funcionária passou a ajudá-la a se vestir,
amarrando o corset sobre a chemise e passando a
crinolina sobre sua cabeça. Em sua antiga vida,
não fazia uso de tantas indumentárias, a não ser
quando fosse a algum evento social.
Ao voltar seus olhos para baixo, percebeu
que as barras arrastavam no chão, e Genevieve já
estava acostumada com esse contratempo, pois a
maior parte de seus vestidos necessitavam de
ajuste. Mas não quis incomodar a jovem serviçal
com o detalhe tão pequeno e que dificilmente seria
notado pelos seus acompanhantes do jantar.
Genevieve foi penteada e teve as bochechas
levemente beliscadas para lhe proporcionarem
algum rubor, que ela duvidava que se estenderia
por muito tempo, logo seria acometida por sua
habitual palidez.
Olhou a si mesma no espelho e não se
reconheceu, estava muito diferente. A roupa de
gola alta e repleta de babados, unida aos ossos
mais proeminentes das maçãs do rosto — expostos
pelo penteado rígido — a tornavam aparentemente
mais velha do que os seus vinte e quatro anos.
— Está belíssima — a jovem elogiou.
— Obrigada. — De repente, franziu as
sobrancelhas, incomodada com a falta de atenção
que teve com a moça. — Como disse que se
chama?
— Perdoe-me, eu não disse, meu nome é
Amelie Clark. — Ruborizou.
Genevieve consentiu, com movimentos
curtos com a cabeça.
— Bem, estou pronta para descer, Amelie.

Ethan tentava, sem sucesso, se distrair com


um livro de contabilidade. Seus pensamentos
flutuavam e cruzavam os limites das paredes de
Violet Valley, adentrando sem convite o andar
superior, de encontro com a dama que no espaço
existente entre as batidas de um coração, realizou
a façanha de fazê-lo estremecer.
Esqueça, Ethan — ordenou a si mesmo, ao
seu lado mais razoável.
Preferiu tecer reflexões sobre questões mais
práticas, como costumava ser de sua verdadeira
natureza, e era recomendável permanecer nesse
segmento.
Por enquanto seus trâmites estavam sendo
bem-sucedidos, e devia gratidão a William por
isso, por ele aceitar recepcionar Genevieve, uma
vez que Ethan não poderia levá-la ao seu
apartamento enquanto não estivessem casados aos
olhos de todos. Era grato, principalmente, à
Genevieve, que aceitou ajudá-lo sem ao menos
conhecê-lo; quando estivesse terminado,
asseguraria de que ela fosse devidamente
recompensada.
Então, os pensamentos que ele tentou
reprimir escaparam de suas mãos outra vez, filetes
teimosos de fumaça fugindo por entre os dedos de
ferro em que ele tentava segurá-los. Ethan se
inquietava, pois não compreendia aquele instinto
protetor que se abateu sobre ele no momento do
leilão, tampouco sabia explicar o forte magnetismo
que o atraiu para fora do pub, o atraiu para ela,
isso sim era loucura. O que Will diria se lhe
revelasse tais sandices? Era melhor não comentar
nada…
O administrador apertou a mandíbula
inconscientemente, não gostava do que não era
claro, para ele era primordial que as situações se
alinhassem como ocorria na matemática, sem
espaços para contradições, respostas dúbias e
meios-termos. E ele sabia que não conseguiria
descansar enquanto não ordenasse essas sensações
desconhecidas, enumerando-as e nomeando-as.
Voltou os olhos para o mesmo parágrafo que
vinha tentando ler há trinta minutos, bufou, ao dar-
se conta de que o entardecer já engolia os últimos
resquícios de luminosidade, o fato de ter
esquecido seus óculos de leituras se agravava
consideravelmente frente a ausência de luz. Certo,
era melhor dar como encerrada a sua intenção de
ler algo antes do jantar.
Sem demora, uma jovem funcionária entrou
na sala, acendendo lamparinas e castiçais, junto
com ela, surgiu um segundo ruído de farfalhar de
saias e som de mais dois passos contra a madeira,
indicando a presença de mais uma dama ali.
— Sr. Hamilton — Genevieve anunciou seu
comparecimento.
A voz era suave, mas tão fria. Como ela
conseguia produzir tal som conflituoso?
Ethan se levantou prontamente, depositando
o livro no móvel que havia ao lado da poltrona.
Genevieve estava parada próxima à porta, sua pele
estava livre da sujeira, o cavalheiro vasculhou-a
discretamente, desejando que o vestido não fosse
de modelo tão fechado, impedindo-o de certificar
se os hematomas que ele pensou ver espalhados
pelos braços desnudos dela não passassem de um
truque visual, fruto da sujeira que a cobria. A ideia
de que alguém fosse capaz de feri-la, corroía seu
juízo.
Cogitou perguntar a ela sobre as marcas,
mas não quis pressioná-la a discorrer sobre seu
passado, sobre uma vida que a deixou tão
vulnerável e abandonada, contudo, não esqueceria
o assunto e pretendia retornar a ele quando os dias
de convivência cumprissem o dever de criar e
desenvolver alguma confiança entre eles.
Foi impossível não perceber o quão belo
era seu rosto, mas faria questão de guardar a
observação para si mesmo, pois nessa situação,
mais do que nunca, deveria se esforçar para
manter a sua cabeça no lugar. Elogiar damas sem
ter intenção de firmar um compromisso com elas já
lhe rendeu dores de cabeça demais. Irônico pensar
nisso, pois se comprometeu com Genevieve.
— Srta. Johnson. — Sorriu. — Está se
sentindo melhor?
O estômago de Ethan se contraiu, quando
sua mente infeliz o lembrou de que em breve a
trataria por Sra. Hamilton.
— Sim. — Se esforçou para sorrir de volta,
mas este não lhe alcançou os olhos de tempestade,
que se encontravam nublados.
Ethan inspirou profundamente e se
aproximou dela, a face de Genevieve
instintivamente se contraiu, receosa. Os passos do
rapaz estagnaram, não pretendia deixá-la
desconfortável. Com a proximidade, percebeu que
a estatura dela era ainda mais baixa do que se
recordava, o topo da cabeça de Genevieve mal
alcançaria seu ombro.
— Creio que eu ainda não o tenha
agradecido adequadamente pela ajuda que está se
dispondo a me ofertar — iniciou ele.
— Não tive muitas opções.
A fala o surpreendeu.
— E eu não tive intenção de fazer com que
parecesse que não tinha. Deseja ir embora? —
Uniu as sobrancelhas, analisando-a com cuidado.
— Saiba que está livre, não a reterei aqui contra
sua vontade.
Passeou o olhar por sobre cada sutil detalhe
que se desenhava no rosto de Genevieve, por seus
lábios fartos e róseos com um talho no meio,
franzidos; por suas sobrancelhas negras e
espessas; por seu nariz arrebitado e, por fim,
encontraram a íris cinzenta.
Santo Deus, não iria prendê-la se ela
quisesse partir.
Era por isso que Genevieve transparecia
tanta angústia? E tinha razão ao senti-la se era
assim que via Ethan: como aquele que detinha sua
liberdade. Às vezes, as situações pareciam muito
simples para ele, quando não eram para os demais.
Para Ethan o trato fora claro e objetivo, mas havia
a possibilidade de não ter sido para ela; era um
fardo decorrente de se possuir uma mente
pragmática.
A conversa que teve mais cedo com Will,
quando o amigo questionou seu altruísmo, lhe veio
à cabeça.
— Não costumo retroceder com a minha
palavra — revelou Genevieve.
Os seus pulmões esvaziaram, Ethan sequer
dissimulou o alívio que o cobriu feito um
abençoado manto.
— Muito me alegra que aceite permanecer
aqui. Tenha certeza de que está entre amigos —
quis tranquilizá-la.
Genevieve não o respondeu, preferindo
desviar sua visão para qualquer ponto, longe do
rosto dele.
A situação era ao todo desconfortável, mas
compreendia que não deveria estar sendo uma
mudança fácil para ela, sobretudo, não deveria
estar sendo fácil confiar em alguém, após ter sido
deixada por seu marido, a figura que lhe deveria
prover segurança.
— Vejam só! — Will exclamou ao entrar. —
Faltam-me palavras para expressar como está
encantadora esta noite, minha querida prima.
Um sorriso casto aflorou nos lábios da
dama, ao mesmo tempo que uma pontada
inesperada lançou calafrios na espinha de Ethan.
Queria ele ter feito o elogio, mas recordou-se de
que prometeu não externalizar a observação sobre
a agradável aparência de Srta. Johnson.
— Obrigada.
— Acompanha-me no jantar? — Ofereceu o
braço a ela.
Genevieve, delicadamente, declinou a
oferta, mas se manteve ao lado de William,
enquanto Ethan os acompanhava, alguns passos
atrás, com as mãos enfiadas nos bolsos.
Após o curto diálogo que estabeleceram na
saleta, ele esperava que certos pontos tivessem
sido esclarecidos e, com isso, Genevieve se
sentisse mais confortável, acolhida. Infeliz dele,
que não suportava ver aqueles olhos de nuvens
turbulentas, carregados de tristeza. Queria
proporcionar a ela o recomeço de uma vida
positiva, longe daquela que a deixou repleta de
tantos pesares, desamparada sobre um palanque no
cais.

Algo espesso e amargo cozinhava no âmago


de Genevieve, tornando-a pesada. Ethan realmente
acreditava que estava lhe dando opções? Ou era
ingênuo, ou pouco sensível. Para onde iria, se
desejasse partir? Estava longe de todos que
conhecia, seus pais estavam mortos, seu irmão a
odiava e ela sequer tinha dinheiro para se manter.
Mas não poderia culpá-lo, ele não sabia.
Não sabia de nada sobre ela.
Segurou o garfo com mais força do que
deveria, estava confusa, se sentia sozinha, insegura
sobre suas decisões. Estava no meio de estranhos,
que poderiam fazer o que bem entendessem
consigo, embora acreditassem que lhe
apresentavam alguma “liberdade".
— Amanhã iremos até Whitewood Holt,
pretendo apresentá-la à Sarah — Ethan declarou.
— Já? — William voltou-se para o amigo.
— É melhor que seja o quanto antes.
— Srta. Johnson necessitará de alguma
instrução prévia.
— Sarah Whitewood é minha empregadora.
— Ethan se direcionou à Genevieve. — Ela exige
que eu me case para que eu possa obter maiores
responsabilidades em Whitewood Holt. Durante
anos, fui seu administrador, mas agora tenho a
possibilidade de ser escolhido como o seu
herdeiro.
Bem, a explicação sanava muitas das
dúvidas dela.
— Compreendo — comentou, limpando os
lábios com um guardanapo.
— Terão que fazê-la crer que estão
apaixonados — opinou Carter. — A viúva é
ardilosa feito uma serpente.
— Mas estou apaixonado por sua prima,
William — Ethan gracejou.
Apaixonada. Genevieve teria que portar-se
como uma tola apaixonada, enquanto seu coração
estava partido. Sim, conseguiria fazer isso, ao
menos se esforçaria para tal.
Assim que percebeu que ela não
compartilhava da brincadeira, o sorriso de Ethan
esmaeceu.
Genevieve desviou a atenção para o assado,
que estava muito bem-feito e temperado, aliás.
Envolver-se naquele trato, poderia não a agradar
como um todo, mas pelo menos poderia contar
com boas refeições para atenuar os dias que se
seguiriam.
— Irá conosco para Whitewood amanhã? —
Ethan perguntou ao amigo.
— Não haveria riquezas suficientes no
mundo capazes de me estimularem a encontrar-me
com Sarah Whitewood por vontade própria. —
Voltou-se para Genevieve. — Perdoe-me se a
assustei, Srta. Johnson.
— Ele está exagerando, Sarah é fácil de
conviver, após ter aprendido a lidar com ela.
— E é por esse motivo que merece herdar
Whitewood Holt, Hamilton. Os xelins que lhe são
pagos não fazem jus à dedicação e paciência que
demandam seu cargo.
— Agradeço a consideração — respondeu
para Carter, mas suas atenções retornaram para
Genevieve. — Apenas mantenha-se calma, Sarah é
perspicaz e tem a habilidade de desvendar
mentiras.
— Farei o possível para que ela acredite.
— Não formalizaremos nada ainda, amanhã
será apenas uma apresentação, não há com o que
se preocupar.
As palavras não a confortaram, Genevieve
não tinha vontade de conhecer ninguém, muito
menos se essa mulher fosse tão desagradável
quanto William insinuava. Porém teria que cumprir
a sua parte, para se ver o mais rápido possível
livre.
Concentrou-se na comida, saboreando com
calma e aproveitando cada mordida. Evitaria
pensar na visita do dia seguinte até que ela
acontecesse, enquanto isso, preferia empregar sua
atenção nos aspectos positivos de sua nova
realidade. Jantaram em um silêncio tranquilo por
alguns minutos.
— Srta. Johnson — William chamou e
Genevieve olhou para ele. — Sinto muito se mais
cedo dei a entender que não queria que se
hospedasse em minha casa, pois fico feliz em
recebê-la.
Então o que Ethan disse era verdade, a mãe
de Carter de fato criou um bom anfitrião.
Genevieve teria rido se tivesse intimidade o
suficiente com seus acompanhantes para tanto.
— Não tomei a fala como ofensa —
respondeu ela.
— Quem bom, espero que as acomodações
estejam de seu agrado, ou então é possível que
sejam alteradas, se desejar.
Genevieve deixou o talher sobre o prato. As
acomodações eram perfeitas, aquela casa era
suntuosa e confortável. Violet Valley era cercada
por um vasto e belo jardim, dispunha de inúmeras
flores que caracterizavam seu nome, o seu interior
era igualmente belo e requintado, seu quarto,
inclusive.
— Está perfeito, Sr. Carter. Bem melhor que
um porão de navio. — Genevieve ousou fazer um
gracejo, mas não conseguiu sorrir, nem eles.
— O que acham de sobremesa? — William
ofereceu, com animação. Uma clara tentativa de
diluir a tensão presente.
— Eu aceito — Ethan apoiou.
Mesmo desejando se refestelar na comida,
Genevieve não suportaria permanecer ali, já teve o
suficiente de interações por uma noite.
— Prefiro retirar-me, ainda estou muito
cansada.
— Claro, fique à vontade. Tenha uma boa
noite, Srta. Johnson. — Carter ofereceu-lhe um
aceno cordial.
Os dois homens fizeram menção de se
levantarem, indícios do cavalheirismo inglês, mas
Genevieve os interrompeu com um gesto.
— Não é necessário.
— Então tenha uma boa noite, nos vemos
pela manhã — testou Ethan.
— Sim, até amanhã.
Genevieve subiu as escadas, a cada degrau
progredido, ela desejava que fosse um pouco mais
de determinação adquirida, e quem dera que fosse
verdade.
Whitewood Holt era uma construção
imponente, com diversos cômodos e, ainda no
exterior da residência, ao olhar através de uma
janela, Genevieve foi acometida por um calafrio
subindo desde a base de sua espinha e se
propagando pelos braços. Olhos pesados e vítreos
recaíam sobre a casa. Era uma força de sabor
metálico, como sangue se espalhando em sua boca,
e de cheiro bolorento.
Algo apodrecia lá dentro.
Havia um chamativo contraste entre as duas
propriedades vizinhas. Violet Valley era robustez e
delicadeza, com sua fachada de pedras e madeira
rústica cercada pelo singelo jardim de violetas,
convergindo em um recanto acolhedor, por outro
lado Whitewood Holt era sombria, com suas cores
escuras, repelia ao invés de convidar, o jardim
possuía mais folhagens do que flores, era bem-
cuidado, mesmo assim havia algo de errado na
propriedade como um todo, hostil.
Seus instintos gritavam em sua cabeça,
levando-a a quase fugir, mas não poderia
retroceder. A cada passo que dava em direção à
porta, a dor em sua cabeça aumentava, pulsando
feito um coração, agitado na frequência de um
bater de asas de uma ave enlouquecida. Genevieve
lutava com todas as forças contra a sua própria
natureza, ao se aproximar do cerne da tormenta, da
ferida que vertia pus e infeccionava aquelas terras.
Até mesmo o ato de caminhar era
prejudicado, a sensação era a de estar afundando
na lama, com os pés presos no chão, mas o
gramado era perfeitamente aparado e destituído de
lodo, embora houvesse pequenas poças por conta
da garoa fina que caía intermitente, não deveria ter
tanta dificuldade assim ao atravessar a
propriedade.
O ar era igualmente denso e impregnado,
como se estivesse no fundo de um lago escuro,
sofrendo a pressão da água em cada ponto de seu
corpo. Seus pulmões mal eram capazes de se
inflarem com oxigênio, pois se afogavam, e
afogamentos provocavam uma última tentativa
desesperada de braços agitados segurarem algo
que pudessem impedir que o corpo afundasse, mas
não havia nada em que Genevieve pudesse se
segurar.
De um dos telhados altos e pontudos da
arquitetura gótica, uma coruja cinzenta lançava seu
intenso olhar para os visitantes que cruzavam o
jardim. Genevieve comprimiu os lábios ao
perceber que a ave possuía olhos verdes, mesmo à
distância, o tom era acentuado o suficiente para
que a dama o distinguisse; seria possível que
aquela fosse a mesma coruja que ela viu no porto,
pouco antes do leilão?
— Precisamos ir embora — sussurrou para
Ethan, sem saber se ele escutaria sua voz quase
inexistente.
— Não fique receosa sobre as coisas que
Will disse no jantar, ele se equivoca em suas
impressões sobre Sarah.
— Não é isso… — Como poderia explicar?
— Se sairá muito bem, tenho certeza. —
Sorriu e ofereceu o braço a ela, interpretando
erroneamente a aflição que Genevieve
apresentava.
A dama engoliu em seco e recusou entrar de
braços dados com Ethan, mantendo as mãos unidas
diante das saias do vestido cinza-lilás que usou na
noite anterior, vestido este que ficava muito
comprido para ela, de modo que as barras
arrastavam no chão e por isso se encharcaram.
Quando subiram os degraus que finalmente
conduziam até a porta, Genevieve lançou um
último olhar para a carruagem emprestada por
William, pesarosa por sua chance de escapar, estar
prestes a ser levada embora pelo cocheiro, que
retornaria somente ao entardecer para buscá-los.
Em verdade, pelo céu escuro e as brumas espessas
que se mantinham suspensas, se poderia dizer que
estavam mais próximos da noite do que da hora de
servirem o desjejum.
Um homem, de fios grisalhos e marcas do
tempo espalhadas pelo rosto, os recepcionou.
Ethan o cumprimentou pelo nome e a apresentou a
ele, mas Genevieve não conseguiu se atentar ao
diálogo, pois seu interior revirava. O mal-estar era
tão grande que ela temia se dobrar ali mesmo e
derramar todo o conteúdo de seu estômago no
chão. Como poderiam não perceber aquele cheiro
terrível?
— Sente-se bem? — Ethan questionou ao
analisá-la, transparecendo preocupação na face.
Genevieve supôs que ele se preocupava com
o sucesso do próprio plano, apenas.
— É um mal-estar passageiro.
Ele retirou um lenço do bolso e fez menção
de tocar a testa de Genevieve com ele, mas a dama
deu um passo para trás antes que ele conseguisse.
Inconscientemente, ela encostou na fronte com o
dorso da mão, notando, apesar de permanecer de
luvas, que estava molhada, tanto de sereno quanto
de suor frio.
— Vamos, vou levá-la até a sala para que
possa se sentar e se aquecer diante do fogo —
chamou.
— Não. Dê-me apenas alguns minutos.
Ethan pareceu querer dizer mais alguma
coisa, mas se calou, aguardando em silêncio que
ela se recuperasse.
A respiração de Genevieve estava
superficial, algo a envenenava, entrava pelas
fissuras de sua pele e se espalhava como uma
doença.
Para se distrair, passou a observar as
pinturas e fotografias dispostas na entrada. Com
molduras elaboradas, os retratos de um mesmo
homem ocupavam todos os espaços de todas as
paredes disponíveis. Em alguns, a pose dele era
leve e despreocupada, em outros estoica, e em
outros quadros, Genevieve poderia jurar que não
estava vivo. Sabia ser um costume de algumas
famílias, manterem uma última lembrança antes
que o ente querido fosse perpetuamente levado
para debaixo da terra.
— No início do período de luto, Sarah
ordenou que todos esses quadros fossem trazidos
para cá. Confesso que os diversos pares de olhos
de Sr. Whitewood me incomodavam quando passei
a trabalhar aqui, porém me habituei a eles.
Genevieve deu um passo em direção à
parede abarrotada, o retrato que estava na altura
de seu rosto fora claramente feito após a morte. Os
olhos dele estavam fechados e sua postura ao se
sentar na cadeira estava rígida demais, sua pele
aparentava um tom mais escuro do que nas outras
pinturas e fotografias, quando ainda respirava.
Sem notar, Genevieve diminuiu ainda mais a
distância entre ela e a parede, de modo que sua
respiração alta e quente se condensava no vidro da
moldura. Algo a empurrava para frente, algo
mantinha seus olhos presos ao rosto que revelava
os primeiros sinais de decomposição.
As pálpebras do Sr. Whitewood se abriram,
a boca dele também. Um som rouco e grave, vindo
do próprio além-mundo, como se um túmulo
profano fosse aberto, apossou-se dos ouvidos de
Genevieve. Ela quis cobrir as orelhas com as
mãos, mas seus braços estavam tão rígidos quanto
os do homem da fotografia. A dama pensou estar
perdendo a razão, quando viu um ponto negro se
insinuar pela boca aberta de Whitewood, sem
demora, o restante do corpo da criatura apareceu,
revelando uma serpente feita de sombras.
“Cuidado.”
Genevieve deu um salto para trás, se
chocando de costas contra o peito de Ethan, que a
amparou com as duas mãos em seus braços, em
uma posição logo abaixo de seus ombros,
segurando-a com firmeza para equilibrá-la. Um
grito estrangulado estava preso na garganta dela e
as sensações dissonantes quase a rasgaram no
meio.
Ethan era o avesso do medo e da escuridão,
lavando para fora dela os espectros sepulcrais,
dissipando com a imponência de seu toque todas
as forças ocultas que se empenhavam a devorá-la.
Os joelhos ameaçaram ceder, Genevieve quase foi
arrastada pelo vórtice rodopiante que se
avolumava sobre ela.
E Ethan não percebia, percebia que ele…
Ele o quê?
Genevieve não sabia “o quê”, mas era
alguma coisa!
“Permita sua alma despertar
Permita sua alma despertar."
— Genevieve?
Girou-a delicadamente para que ficasse de
frente para si, ainda mantendo as mãos em seus
braços; o horror deveria ser evidente no semblante
de Genevieve, pois ele disse:
— Talvez seja melhor irmos embora,
podemos retornar outro dia.
Quis responder que sim, que concordava,
mas foi interrompida.
— Ora, se não é o meu mais estimado
administrador.
Genevieve se afastou de Ethan,
desvencilhando-se de seu toque, e foi abrupto
como uma foice cortando todas as linhas que os
conectaram há pouco.
Uma mulher alta, de cabelos louros opacos,
com um penteado severo e um vestido preto, os
observava com curiosidade.
— Pelo que eu me recordo, a senhora
possui somente um. — Ethan forjou um sorriso
atrevido, não completamente sincero. Seu rosto
ainda guardava a sobriedade despertada pela
preocupação.
— Não seja tão apegado aos detalhes, saiba
receber um elogio. — Fez um gesto
despreocupado.
— Perdoe-me, não estou familiarizado a
palavras de gentilezas sendo direcionadas a mim
pela senhora.
— E não espere que um dia se tornem
corriqueiras. — Elevou a cabeça e exibiu algum
divertimento em seus lábios, contudo, seu
semblante se alterou ao avaliar Genevieve. —
Quem é essa pobre criatura que traz consigo?
— Srta. Genevieve Johnson de
Massachusetts, prima de meu amigo, William
Carter.
— E acaso as despensas de Violet Valley
estão vazias, para que não a alimentassem? —
Sarah correu os olhos por ela, das barras
molhadas e compridas que ocultavam seus pés, ao
topo de sua cabeça.
Que mulher grosseira. Genevieve odiava o
fato de algumas pessoas considerarem que a idade
avançada justificasse as descortesias que
pronunciavam.
— Posso assegurar que estão abastecidas,
tive excelentes e fartas refeições desde que fui
recepcionada na casa de meu primo — Genevieve
atirou, mantendo um sorriso sereno nos lábios.
Era consciente de que tinha uma função a
desempenhar, a visita surtiria impacto diretamente
no êxito de Ethan, mas ela se recusava a permitir
que qualquer pessoa que a ofendesse não escutasse
ao menos uma réplica de sua parte.
— Que pena, minha querida, devo supor
assim que o defeito se encontra na senhorita.
— O defeito está na língua de minha mais
estimada empregadora — Ethan devolveu o elogio
recebido por Sarah, ao passo que enviava uma
reprimenda à viúva.
Inesperadamente, a mulher gargalhou, o som
flutuou feito gralhas arranhando o teto.
— Venham, chegaram na hora do desjejum,
aproveitem que os bolos ainda estão quentes e o
chá também.
Genevieve e Ethan trocaram um breve olhar
antes de seguirem Sarah.
Conforme atravessavam os cômodos, a
temperatura parecia cair, ao ponto de Genevieve
ter convicção de que estava mais frio lá dentro do
que no exterior; o ar era como estilhaços de vidro
nos pulmões. As mangas longas do vestido, as
luvas e a gola alta, não foram suficientes para
resguardá-la, além disso, suas pernas gelaram por
conta do tecido encharcado que envolvia seus
tornozelos.
Na longa mesa de ardósia, havia uma
infinidade de pães, bolos, torradas, biscoitos e
geleias. Uma quantidade que excedia ao número de
participantes do desjejum; antes de Genevieve e
Ethan chegarem, seriam apenas dois, ou melhor,
duas. A anfitriã Sarah e uma jovem, de cabelos
dourados e olhos avelã. O rosto dela era redondo,
corado e acolhedor.
— Vejam quem decidiu nos presentear com
uma visita em seu dia de folga — Sarah
pronunciou.
— É sempre um deleite revê-lo, Sr.
Hamilton.
A moça sorriu para ele, e foi como se o céu
se abrisse, permitindo que o sol lançasse réstias
mornas no salão obscuro.
— E ele nos trouxe a Srta. Genevieve
Johnson, prima de meu vizinho. Suponho que ela
seja próxima de Hamilton, pois estavam abraçados
quando os encontrei.
— Não estávamos abraçados — Ethan se
defendeu da acusação.
Mas era tarde demais, o sorriso cálido ruiu,
o rosto que antes fora luz, se recolheu em sombras.
A íris avelã, então, se deslocou para Genevieve,
que teve certeza de que se a mulher pudesse,
condensaria o ar em estacas para cavar-lhe no
peito.
— Não estávamos — Genevieve reforçou,
porque era a verdade.
— Uma mera questão de semântica — Sarah
assinalou. — Além disso, vieram sozinhos e uma
dama que preza pela decência jamais se permitiria
passar por tal situação, a não ser que a
imoralidade seja um hábito yankee, não conheço
muito bem seus costumes e condutas.
O modo como Sarah se referia à Genevieve
como yankee, algo no tom de voz, desprezo,
tornava a palavra pejorativa.
— William viria conosco, porém acordou
indisposto. Como já tínhamos planejado o passeio
e a Srta. Johnson havia se arrumado, não vi
motivos para adiar a visita — Ethan devolveu.
— Meus votos de melhoras à saúde de
Carter. — A viúva suspirou, desinteressada. —
Srta. Johnson, essa é minha sobrinha, Beatrice
Lancaster.
— É um prazer conhecê-la — Genevieve
disse, pois os ditames sociais a obrigavam, a
verdade era que não estava sendo nenhum prazer
aquela visita como um todo.
Beatrice, por outro lado, não se esforçou a
retribuir, reservando a Genevieve um curto aceno
de cabeça.
— Já que estamos devidamente
apresentadas, podemos comer — declarou a
viúva.
Ethan puxou a cadeira para que Genevieve
se acomodasse, antes de tomar o próprio assento.
Obviamente que o gesto atencioso não escapou à
Beatrice.
Logo estavam comendo, exceto Genevieve,
que sofria com a inquietação de seu estômago e o
mal-estar que não a abandonava. Diante dela, na
parede, havia outros quadros exibindo a figura do
Sr. Whitewood, lhe tirando o apetite.
— Por quanto tempo pretende ficar em
Liverpool, Srta. Johnson? — Sarah questionou.
— Ainda não sei dizer ao certo.
— Que permaneça por muito tempo. —
Ethan sorriu.
Sarah e Beatrice arregalaram os olhos,
Genevieve teve que se controlar para não fazer
uma careta. Permaneceria o tempo que ele
determinasse — ironizou na mente.
— Há muitos pontos agradáveis para se
visitar aqui e é sempre uma alegria estar junto aos
parentes que não costumamos rever com
frequência. Suponho que irá aguardar o retorno de
seus tios, de Londres, para que possa dividir
alguns momentos com eles. — Sarah foi civilizada
na resposta, provocando desconfiança em
Genevieve.
— Sim, estou ansiosa para reencontrá-los.
— Que infortúnio que tenham viajado
justamente com sua chegada, mas por outro lado, o
Sr. Hamilton a está recepcionando com as
melhores gentilezas. Sinta-se agraciada por isso,
ele não costuma apresentar modos tão refinados.
— Concordo que poderiam ser melhores. —
Genevieve se permitiu uma leve provocação
direcionada a Ethan, apenas para que vissem que
dispunha liberdades para tal.
Ele riu, aceitando a brincadeira.
— A Srta. Johnson é espirituosa, lembro-me
de algumas missivas que trocamos — Ethan falou.
— Aprecio a companhia de damas espirituosas,
não é verdade, Sra. Whitewood?
— E como sou grata ao bom Deus por isso,
tive dezenas de administradores antes de conhecê-
lo.
— Pode ser um indicativo de que deva
reavaliar certos comportamentos — sussurrou
Ethan.
— Sim, devo ser mais severa com meus
empregados, alguns estão ficando impertinentes.
O administrador riu e sorveu um gole de
chá, as conversas e implicações amenizaram a
carga lúgubre que impregnava a residência, mas o
peso ainda estava lá, se alimentando
silenciosamente daqueles que tão alegremente se
juntavam em torno da mesa, alheios ao parasita
que os espreitava.
— Eu não sabia que gostava de trocar
correspondências, Sr. Hamilton — Beatrice
retomou.
— Admito não ter apreço, não disponho de
muito tempo para elaborar missivas poéticas,
entretanto, a Srta. Genevieve não se incomodou
com minha falta de maestria com as palavras.
— Engana-se, o senhor sabe utilizar as
palavras a seu favor quando lhe convém, não
concorda, Srta. Johnson? — Beatrice não
escondeu a ira.
— Ele sabe.
De que outro modo Genevieve se veria junto
daquelas pessoas, dentro daquela casa, se não
fosse a lábia de Ethan?
— Sorte a minha, que o maior trunfo de
Hamilton seja com os números — intercedeu
Sarah.
— E minha, pois posso contribuir para
Whitewood Holt prosperar.
Sarah alcançou a mão de Ethan, sobre a
mesa, e lhe deu um aperto maternal. A fala
conseguiu penetrar no coração hostil da viúva.
Não conversaram muito depois disso,
concentrando-se na refeição. Logo haviam
terminado e dirigiam-se para uma das inúmeras
salas. Antes que chegasse ao cômodo escolhido,
Sarah puxou Ethan pelo braço, impedindo-o de
prosseguir, deixando que Genevieve e Beatrice
fossem na frente junto ao mordomo.
— Não sou tola.
— Sem dúvidas de que essa é uma das
coisas que não posso alegar a vosso respeito.
— Sou velha, mas não estou cega. Sei o que
está fazendo.
— Do que me acusa agora?
— Devo crer que nossa conversa de dois
dias atrás não teve relação com o seu súbito
enamoramento pela prima de Carter, foi apenas
uma coincidência?
— Já nutria sentimentos pela Srta. Johnson
há alguns meses, essa visita trará a confirmação de
que devo assumir um compromisso. De fato, a
conversa que tivemos estimulou-me a pensar em
matrimônio.
— Sabe que fiz aquilo para que pedisse a
mão de Beatrice.
— Jamais a tive em minhas considerações,
sinto muito, gostaria que fosse diferente. Reservo
carinho a ela, por ser sua sobrinha, mas não a vejo
da maneira que a senhora desejaria.
Ethan não mentiu, queria estar apaixonado
por Beatrice, de certa forma, tornaria tudo mais
fácil; contudo, sem sentimentos reais pela sobrinha
de Sarah, ele sabia que seria questão de tempo
para tomar atitudes que a magoariam, não seria
justo para com nenhum dos dois. Não desejava ter
sobre si, expectativas que não conseguiria cumprir.
— Se estiver tentando dar-me voltas,
Ethan… — advertiu. — O tenho como o filho que
não pude gerar em meu ventre, entretanto, não
admitirei tamanha mentira.
— E eu a respeito e a estimo tanto quanto o
faz por mim. — Foi sincero.
— Hum. — Entortou a boca e bateu o
indicador nos lábios finos. — Vamos, temo que
Beatrice possa ter cravado as unhas no pescoço
pálido da Srta. Johnson.
— Trate-a com mais respeito, Sarah, não
admitirei que fique o dia todo criticando sua
aparência. — Novamente, a verdade fluiu de
Ethan, ele de fato estava irritado com as falas da
viúva.
Irritava-se consigo mesmo, inclusive, se não
fosse por ele, Genevieve não teria se tornado alvo
das frustrações de Sarah e sua sobrinha. Decidiu
que iria embora logo em seguida, não estava
disposto a submeter Genevieve a tamanha
tormenta. Ao planejar a visita, não supôs que
Beatrice estivesse presente, e ela estar, tornava a
permanência deles ali insustentável, pois as duas
se uniriam para importunar Genevieve.
— Sra. Whitewood — corrigiu a viúva.
Os olhos severos dela o varreram uma
última vez antes de rumarem para a sala.

Tic-tac, tic-tac…
Genevieve acompanhava os ponteiros se
movendo no relógio, desejando que corressem
mais rápido, puxou um pouco a gola do vestido,
sufocada.
Tal qual os outros ambientes da casa, a sala
também era sobrecarregada de memórias do Sr.
Whitewood e por mais que quisesse evitar, seguia
perscrutando os quadros em busca de sinais.
Beatrice, que estava acomodada em um estofado
diante de Genevieve, seguiu a direção da visão
dela e esboçou um fraco sorriso.
— Minha tia parece disputar com a Rainha
Vitória sobre quem se mantém enlutada por mais
tempo. Seu finado esposo era tão amado por ela
quanto Príncipe Albert pela rainha, posso
confirmar.
— É visível a devoção que dedica a ele —
comentou.
— Sim, não são apenas os retratos
espalhados. Ela mantém as roupas dele, seus
diários e demais pertences pessoais intocados.
Além, é claro, de ainda se vestir de preto, após
quase quinze anos.
— Compreendo a necessidade que ela tem
de sentir-se próxima ao Sr. Whitewood, mesmo
após a partida, porém não há como ir contra certos
acontecimentos, não há como alterar o curso
natural da vida.
As memórias de Genevieve retornaram para
seus pais, agonizando de febre, desfalecendo sobre
a cama a qual tiveram que queimar posteriormente.
Aos doze anos, fora forçada a aceitar a ausência
deles e seguir adiante, não conhecia outro meio a
não ser prosseguir; temia que se permanecesse
muito tempo prateando-os, não permitiria que as
suas almas descansassem, mantendo-as presas,
condenando-as a vagarem sem rumo, impedidas de
alcançarem o paraíso dos bons e justos.
Naquele tempo, ainda não havia sido
agraciada com os dons de cura ofertados pela lua,
eles vieram somente quando sangrou pela primeira
vez. Gostaria de que tivessem surgido antes, pois
talvez pudesse salvá-los, assim como tentava
salvar a plantação, em honra aos pais, que
trabalharam tanto para tornarem-na vigorosa e
produtiva.
Vincent não sabia conduzi-la, as maiores
preocupações do irmão giravam em torno das
noites em clubes de ópio e de apostas,
chafurdando em vícios enquanto esvaziava as
reservas deixadas pelos pais e afanava parcelas
do dote de Genevieve para mantê-los.
— Srta. Johnson, minha tia amou o marido,
percebo por sua fala que ainda não sentiu o amor
tocá-la, pois toda mulher que ama, faria o mesmo.
Eu o faria, se perdesse o homem que possui meu
coração — Beatrice retomou. — Verdadeiros
amores excedem o curso natural da vida.
Genevieve soltou uma lufada de ar pelos
lábios entreabertos, como se tivesse sido golpeada
com um soco no centro do peito. A face de
Beatrice se alterou, havia malícia, solidez e um
tipo de determinação que levava as pessoas a
cometerem atos desvairados.
Genevieve sabia sobre amor e sabia o que
era perder pessoas que considerava as mais
importantes para si. Contudo, não revelaria
qualquer informação pessoal à Beatrice, estava
claro que ela tentava suscitar ira em Genevieve,
pois sentia algo por Ethan, notou assim que a viu
sorrir para ele quando chegaram. Mas aquela
jamais fora uma situação de disputa, uma vez que
Genevieve não estava inclinada a desejar o
coração do administrador, se Beatrice não tinha a
retribuição do afeto, era por responsabilidade
apenas dele.
— Vejo que estão tornando-se amigas —
Sarah comentou ao tomar uma poltrona.
— Divergimos em algumas opiniões —
Beatrice respondeu.
— Eu imagino que sim. — A viúva mal
disfarçou o riso.
— A visita foi agradável, mas temos que
retornar — Ethan disse, sem ao menos se sentar.
— Mas já? — Sarah se levantou.
Genevieve também não dissimulou a
surpresa, combinaram de permanecerem durante a
tarde toda, porém estava aliviada por ele desejar
encurtar a estadia.
— A Srta. Johnson chegou recentemente de
viagem, não quero exauri-la.
— Muito bem, como desejarem. — Sarah
aproximou-se de Ethan e estendeu a mão para que
ele beijasse. — Mas faço questão de realizar um
baile em homenagem à Srta. Johnson, em breve. Já
que Hamilton demonstra tanto afeto para com a
senhorita, devo considerá-la parte da família.
As bochechas de Beatrice tingiram-se de
vermelho, sua boca permaneceu aberta, prestes a
formularem um protesto, contrariada com as
atitudes da tia, mas a dama não disse nada.
— Agradeço a gentileza.
— A manterei atualizada sobre a preparação
do evento.
Isso significava que Genevieve teria mais
encontros do que gostaria com aquela mulher e não
estava nem um pouco feliz com isso, entretanto,
não queria pensar sobre tais questões naquele
momento, pois estava ansiosa para deixar
Whitewood Holt.
Teriam tempo para debaterem sobre Sarah
longe dali.
Em segurança, a caminho de Violet Valley,
dentro da carruagem cedida por Sarah, Genevieve
se permitiu recostar-se contra o banco, aliviada.
Não seria capaz de permanecer naquela casa por
mais tempo.
A garoa estava engrossando e em breve se
tornaria uma chuva substancial. Seu rosto estava
voltado para a janela, acompanhando as gotas
aceleradas acertando o chão, enquanto isso, seus
pensamentos vagueavam em torno da visão que
teve, da serpente saindo da boca do Sr.
Whitewood. O que poderia significar? Por que
aquilo fora mostrado a ela? Tracejou o desenho
deixado no vidro por uma gota escorrendo,
acompanhando com o indicador a sinuosidade que
a arremetia a serpente.
“Cuidado.”
Era um claro aviso para se manter distante,
mas como o faria sendo esposa de Ethan? Talvez a
ambição dele estivesse equivocada, aquela
propriedade já possuía um dono que não permitiria
que qualquer um que não carregasse sangue
Whitewood nas veias a herdasse.
Cuidado, cuidado, cuidado… O volume da
voz que ditava a palavra em sua mente,
reproduzindo o tom assombroso que assolou seus
ouvidos quando esteve diante do retrato,
aumentava a cada vez que a advertência era
repetida.
— Peço desculpas pelo comportamento de
Sarah e de Beatrice — Ethan iniciou.
Ele estava acomodado diante dela, seus
joelhos quase se tocavam, mas felizmente a
carruagem dispunha de espaço o suficiente para
que não ocorresse. Genevieve se encolheu um
pouco mais, certificando-se de que a possibilidade
praticamente se extinguisse. Ainda estava surpresa
pelo arrebatamento que veio quando ele a segurou,
e não estava pronta para revivê-lo em um mesmo
dia.
A fala dele a obrigou a retroceder das
questões obscuras da visita, voltando-se para as
pertinentes às reações decorrentes do primeiro
contato de Genevieve com as outras duas
mulheres. Em realidade, Sarah não a assustou,
tampouco Beatrice; se de alguma forma elas
tentaram amedrontá-la com joguetes verbais
maldosos, estavam enganadas e não tinham a
mínima ideia do que verdadeiramente a fazia
tremer.
Embora não cultivasse particular interesse
nos sentimentos que Ethan, Beatrice e Sarah
dispusessem de uns para os outros, uma dúvida
surgiu sobre as atitudes do administrador.
— A Srta. Lancaster pareceu surpresa com a
nossa proximidade — declarou Genevieve. —
Não percebeu que ela tinha esperanças de casar-se
consigo? — Não o julgava, apenas buscava
compreender.
— Eu sabia. — Soltou um suspiro. — Mas
não retribuo o interesse.
— Preferiu correr o risco de perder a
propriedade?
— Jamais almejei obter Whitewood Holt
dessa forma, se eu a herdar, será porque me
empenhei em minha função.
— E qual a diferença entre obtê-la casando-
se com a Srta. Lancaster ou comigo?
— A senhorita não é sobrinha de Sarah,
ninguém poderá contestar o mérito da conquista,
como já o fazem.
— Então elaborou todas essas mentiras —
sussurrou Genevieve, incapaz de reter a reflexão
antes que escapasse pelos lábios.
Assim que a proferiu, arrependeu-se; dada a
surpresa proveniente das próprias ações, buscou
os olhos de Ethan, aguardando sua fúria. Ele a
estava observando atentamente de volta, com olhos
verde-escuros tão intensos quanto à bruma que os
cercava. Alguns fios castanhos estavam soltos,
escapando do laço, úmidos, roçavam-lhe a lapela
do casaco e alcançavam a altura dos ombros.
Era um belo homem o Sr. Hamilton, seu
rosto conservava aspectos levemente selvagens,
extremamente masculinos, seus ombros eram
robustos e largos, isto era perceptível apesar do
grosso casaco. Uma curta barba bem-aparada, de
tons castanho-claros, cobria sua face e seus olhos
possuíam um formato amendoado, suavemente
estreitos nas extremidades, finalizando a marcante
composição de Ethan.
Ele deslizou o indicador sobre os lábios,
conferindo uma expressão ponderativa.
Durante bons minutos, os únicos sons a
preencherem o ambiente foram os dos cascos do
cavalo contra o cascalho e o das gotas de chuva
contra o teto do veículo.
— Julgue-me, Srta. Johnson, sei que o
mereço. — A sua voz era destituída de raiva,
tampouco de autopiedade. Havia apenas
praticidade, de alguém que não dissimulava a
obviedade contida em qualquer situação. — Fui
para o leilão sem ter planejado previamente
retornar com uma esposa, a ideia me ocorreu
apenas no momento e admito que não era a solução
mais adequada para meus dilemas, porém, aqui
estamos.
— Aqui estamos — repetiu Genevieve.
— Sim, fui egoísta — admitiu, ainda
mantendo o tom neutro. — Sim, coloquei meu
desejo de possuir Whitewood Holt acima de
qualquer outra coisa. Sim, quis escapar de um
matrimônio com Beatrice, mesmo sabendo que ela
e Sarah o orquestravam. E, bem, fui impulsivo, não
me orgulho de envolvê-la, Srta. Johnson, sei que
minha consciência não permitirá que eu esqueça de
que lhe fiz isso.
— Vossa consciência — Genevieve
reforçou.
Ethan estava, como sempre, se colocando
em primeiro lugar. Uma vaidade incalculável,
identificou Genevieve.
— O que deseja que eu faça, Srta. Johnston?
Sinto que ainda estou sob julgamento, mesmo
esforçando-me para ser sincero.
— Não necessita da minha aprovação —
retrucou. — Quando aceitei o acordo, não me
dispus a concordar com vossas ações.
— De fato.
— Sendo assim, por qual motivo se
incomoda? — atreveu-se a questionar.
— Não sei.
Ethan não sabia, estava confuso, arrependia-
se de ter arrastado Genevieve para a difícil
situação, mas em contrapartida, necessitava da
dama. Também não suportava vê-la tão infeliz e
esse era outro ato egoísta de sua parte, que ele
achou melhor não confessar em voz alta. Tinha
consciência de que não cabia a ele requerer que
Genevieve encarasse o período com um belo
sorriso no rosto, apenas porque a tristeza dela o
desgraçava, lançando a impiedade de mil
demônios sobre seu espírito.
Mas estavam, de certa forma, unidos, e
tinham que lidar com aquilo. A melhor solução
seria tirarem proveito do trato, que Ethan pensou
ser benéfico para ambos, mas no momento já não
acreditava mais nisso. Não conseguia
compreendê-la, os olhos de tempestade escondiam
enigmas intrincados, o tipo de complicação que
buscava evitar, quando fugia do casamento.
— Não pense que sou ingrata. Reconheço
que minha situação poderia ser menos favorável se
o vencedor do leilão fosse outro…
— …mas não quer que eu me considere um
herói por ter concretizado o último lance. — Um
sorriso divertido brincou nos lábios dele, bem
como uma faísca surgiu em seu olhar, ao
interrompê-la. — Tranquilize-se, pois certamente
não o faço.
As feições carregadas de surpresa dela, e a
ausência de réplica, eram indicativos de que Ethan
interpretou corretamente as questões que a
impediam de tentar ao menos simpatizar com ele.
— Porém é verdade que me tranquilizo ao
saber que está segura — completou o
administrador. — Chame de prepotência, se assim
preferir.
— Esse último comentário foi prepotente e
não o fato de ficar feliz por minha segurança —
devolveu Genevieve e havia um curto sorriso nos
lábios dela também.
Ethan deixou escapar um riso baixo, a
compreensão de que a frase significava início
trégua o preencheu.
Mas a calmaria logo se extirpou,
interiormente ele se revolvia em remorso, pois não
sabia se Genevieve estava realmente segura ao seu
lado, principalmente ao ser exposta aos humores
de Beatrice e Sarah.
Assim que ela chegou a Whitewood Holt,
quando tropeçou nele no hall, Ethan a viu
acometida pelo horror. Os olhos dela se
arregalaram e as pupilas estavam tão dilatadas que
eclipsavam a íris cinzenta, agitadas em frenesi,
sem enxergá-lo, sem ver coisa alguma, imersa em
escuridão. A primeira reação dele, tão primitiva
quanto o ato de respirar, fora trazê-la para a luz
novamente, mas como o faria?
Sorte a dele que Genevieve não demorou a
retornar, contudo, o breve instante que se perdeu
fora capaz de incitar um medo profundo em seu
coração, a própria reação o assustava, não estava
familiarizado com tamanha intensidade despertada
por alguém que mal conhecia.
Era natural, afirmou para si mesmo, ela
passou a estar sob sua proteção, o mínimo que
podia fazer era mantê-la segura e a sugestão de
que falhava com Genevieve, o desestabilizava.
Talvez algum dia ela o considerasse digno
de confiança para compartilhar o que viu, o que foi
capaz de transtorná-la daquela forma.

Genevieve tinha necessidade extrema de se


limpar, sentindo-se tão suja quanto chegou no dia
anterior, após passar dias nos porões do Princesa
Delphine. O que quer que fosse que cravava suas
garras em Whitewood Holt, povoando o ar da casa
com fragmentos de corrupção, repousava sobre
ela, maculando sua pele tal qual a sujeira do navio
fez.
A banheira em seus aposentos mal fora
esvaziada do último banho, quando Genevieve
solicitou que fosse preenchida outra vez. Amelie
dissimulou as expressões insatisfeitas
rapidamente, ocupando-se com os baldes.
Provavelmente os empregados ficaram aguardando
sua ausência para que realizassem a limpeza da
banheira, uma vez que mal saiu do quarto para que
pudessem fazê-lo; mas não havia tempo para se
arrepender do pedido, nem pretendia anulá-lo,
pois era urgente que entrasse em contato com a
água.
Retirou o vestido e os demais itens de
vestimenta, mantendo somente a chemise. Depois
soltou os cabelos do chignon apertado. De tão
ansiosa, dispensou os serviços de Amelie no
momento que a banheira estava cheia pela metade.
Afundou, sentindo o conforto líquido
abraçando-a, prendeu a respiração e submergiu,
entrando em estado de comunhão com a energia
ancestral contida na água, permitindo que
expurgasse qualquer mal que ousasse se prender a
ela.
Pequenas bolhas de ar deixavam seus lábios
enquanto Genevieve piscava lentamente,
observando o teto do quarto através da camada de
água ondulante. O mundo desacelerou, uma voz
feminina e tilintante cantava, seduzindo-a, sempre
chamando Genevieve.
Mas ela não podia ceder, não podia porque
tinha medo. Temia aceitar a plenitude de seus
dons, temia ouvir aquela voz com mais nitidez,
pois não sabia se iria gostar de si mesma após a
transição; a parte oculta de Genevieve a assustava
mais do que qualquer coisa.
Deixou o canto misterioso para trás e
emergiu, captando ar com a boca e afastando os
cabelos do rosto. Recostou-se na banheira e
afundou as mãos, fitando-as sob a liquidez
cristalina agitada, fez uma concha com as palmas,
as transbordou com água e depois permitiu que
fios escapassem pelos dedos entreabertos. Deitou
a cabeça na borda e relaxou os músculos
tensionados, a exaustão e a sensação de peso se
afastou, deixando Genevieve confortável, a
plenitude não demorou a dominá-la, para depois
progressivamente carregá-la para o sono.
“A garotinha, vestida de preto, assistia à
mãe repousar no caixão. Os lábios estavam
descorados, os cabelos eram ralos e sem brilho,
de nada lembravam os cachos de obsidiana
vistosos que ela gostava de brincar outrora. O
cheiro dela também não era o mesmo, a doença
consumiu as notas de violeta e primavera que
costumavam envolvê-la.
Lágrimas grossas e silenciosas escorriam
pelo rosto da pequena, vez ou outra escapava um
soluço, porém nenhum som mais alto era
proferido. Fora criada para não protagonizar
escândalos e o olhar atento do irmão estava
sobre si, pronto para recriminá-la por qualquer
ato vexatório que ela promovesse.
Capturou toda a dor que forçava sua
garganta e direcionou-a para baixo, para seu
âmago e a aprisionou ali, empurrando a porta
com força para que fechasse, virando a chave,
trancando-a.
Deu um passo adiante e tocou a mão gélida
de sua mãe, pelo que ela sabia ser a última vez…
Genevieve se lembrava com nitidez do
enterro da mãe. Era jovem demais para perdê-la,
mas velha o suficiente para memorizar os
detalhes, porém, o que veio a seguir não era um
estilhaço de memória ao perfurar sua mente.
A mão pálida devolveu o aperto da menina,
puxando-a para perto. Os lábios da mãe roçaram
os seus ouvidos e uma voz grave que não a
pertencia alertou:
Cuidado.
Foi solta e cambaleou para trás, ao
observar a mão que foi aprisionada, viu que
tinha uma serpente enroscada. Não era mais uma
mão de menina, era a mão de uma mulher, de
Genevieve adulta.”
Por quê?
Beatrice pensava, pensava, mas não
encontrava a resposta.
Os olhos colidiam com os refletidos no
espelho. Sentada diante da penteadeira, mal
suportava encarar o próprio rosto, a face da
completa derrota. Dor dilacerante ardia em seu
peito, a sensação era de que a cortavam com uma
faca e arrancavam seu coração.
Estava sangrando.
Genevieve não possuía o direito de entrar
em sua vida causando tamanha destruição,
destruindo seu futuro! O casamento seria tão
bonito, ali mesmo em Whitewood Holt. Beatrice
secretamente já havia escolhido o modelo do
vestido e as flores para a decoração. Lhe pareceu
natural que o fizesse, estava sendo inteligente em
adiantar-se. Mas então… então seu sonho
esfarelou, reduzido a pó, soprado ao vento pelos
lábios de Johnson.
Ethan não queria se casar consigo, Beatrice
estava ciente, porém ele não poderia evitar,
absolutamente tudo convergia para que se unissem.
Tolice a dele recusar-se a enxergar a realidade,
seria mais fácil se aceitasse de uma vez.
Sarah lhe prometeu que aconteceria, que
uma hora ou outra Ethan cederia. Seu pai jurou que
o administrador seria dobrado com o passar do
tempo e Beatrice acreditou nos dois, se pondo a
fantasiar cenários que não se concretizariam.
Após o beijo, suas convicções quase se
solidificaram, ao mesmo tempo, sua tia se dispôs a
colocar a última carta sobre a mesa, um blefe que
o faria pedir sua mão em poucos dias, contudo, o
artifício falhou. Ninguém poderia supor que Ethan
tinha os olhos voltados para outra dama.
Ao menos, isso justificava a feroz recusa do
administrador, mas não justificava que Genevieve
a roubasse daquela maneira, tomando para si o que
pertencia à Beatrice; cravando as garras em seu
marido, sua propriedade e seu casamento perfeito!
Seus olhos encheram-se de lágrimas quentes
e ela apertou as pálpebras, forçando as gotas a
deslizarem pelas bochechas. Um som parecido
com um ganido escapou por seus lábios, a garganta
doía pelo pranto violento que recusava a libertar.
Os esqueletos de seus sonhos jaziam em seu
íntimo, assombrando-a. Não perdera apenas Ethan,
perdera Whitewood Holt também. Sarah jamais
deixaria a propriedade em suas mãos, correndo o
risco que algum futuro marido de Beatrice não
soubesse zelar pelo bem como Ethan o fazia. Além
disso, a viúva não permitiria que o pai de Beatrice
tocasse em Whitewood Holt ao manipular os
genros.
Quando o Sr. Whitewood teve a vida
ceifada por conta de um mal súbito, Harold
Lancaster, irmão de Sarah, solicitou que fosse ele
a administrar os negócios, mas a viúva recusou
enfaticamente. Disse que ela mesma daria
prosseguimento, em honra ao amado esposo que se
foi.
Depois surgiu Ethan e até mesmo as feições
da tia se alteraram, antes pétreas e destituídas de
sorrisos, tornaram-se mais leves, a palavra correta
era despreocupada. Mais de uma vez a ouviu
proferir que poderia ter algum descanso, que podia
se tranquilizar.
— Por quê? Por quê? — Levou ambas as
mãos até a cabeça, apoiando os cotovelos na
penteadeira. Um soluço afogado a estremeceu.
Beatrice gritou, entre dentes trincados e
jogou todos os itens dispostos no móvel, ao chão,
varrendo-os com os braços. Se pôs de pé e se
curvou sobre a penteadeira, segurando suas
extremidades com os dedos e berrando feito um
animal ferido para o espelho oval, concentrou todo
ódio que lhe efervescia o interior, derramando-o
no grito, até não restar nenhuma gota. O ato
agredia a garganta, raspando suas paredes, mas ela
não se incomodou.
Após o acesso, seus olhos encontraram o
espelho outra vez, ardiam em brasas, irritados
pelo choro, rubros como suas bochechas e a ponta
do nariz. A respiração era alta e curta, mas
Beatrice não demorou a se recompor.
Soltou os dedos rígidos da beirada do
móvel, abaixou-se calmamente e capturou o pente
caído, voltando a se sentar e pondo-se a pentear as
madeixas. Ensaiou um sorriso singelo e limpou as
lágrimas remanescentes.

Batidas ocas contra a moldura da porta


aberta do gabinete de Ethan, em Whitewood Holt,
o fizeram abandonar a atenção que dava ao livro
contábil e voltá-la para a direção do som. Beatrice
estava parada ali e parecia tranquila, mas Ethan
não se deixava enganar pela superfície plácida,
era o tipo de bonança que precedia tormentas.
— Espero não atrapalhar — iniciou ela.
— De forma alguma. — Suspirou. — Mas
não penso que seja correto estar sozinha comigo
aqui, alguém poderia nos flagrar e tomar
conclusões equivocadas.
— Tão puritano, Sr. Hamilton. — Ela se
aproximou, atravessando o cômodo, em seguida
deslizando o indicador enluvado sobre o tampo de
carvalho da mesa que os mantinha separados. —
Tal moralidade não o impediu de tomar certas
atitudes em um certo baile.
Ethan retirou os óculos de aros
arredondados que utilizava exclusivamente para a
leitura, pousando-os sobre a capa do livro, e
apertou os olhos com o polegar e o indicador,
preparando-se para o que viria a seguir; soltou o
ar contido nos pulmões e encarou Beatrice.
— Não impediu. — Seus lábios forjaram um
curto sorriso, mais hostil do que qualquer outra
coisa; era uma provocação da parte da dama citar
o ocorrido e ele não cederia, sabia usar tais
artimanhas tão bem quanto ela.
Já havia se desculpado inúmeras vezes, e
não o faria outra vez, até porque não era
necessário, Beatrice não era tão inocente ao ponto
de não compreender todos os indícios que Ethan
deixou sobre não desejar tê-la como esposa.
Chegou a lhe direcionar essas exatas palavras
certa vez, esclarecendo o máximo possível, mas
ela preferiu não aceitar.
— Como pôde? — As sobrancelhas dela se
uniram. — Eu lhe ofereci meu coração e o que fez
foi usar-me para seu deleite pessoal.
— Pare com as manipulações…
— Agora está apaixonado por outra. Já a
beijou também? Trouxe-a até aqui para tripudiar
sobre mim, é tão cruel a este ponto?
— Não lhe devo explicações sobre meus
sentimentos, sou livre para apaixonar-me por quem
meu coração desejar.
— Percebo que signifiquei tão pouco a
você. — Seus olhos abaixaram e uma lágrima lhe
riscou a face.
Tudo bem, ele não era tão insensível assim,
a tristeza dela de fato o incomodava. Teve que se
controlar para não ceder e acalentá-la de alguma
forma, a atitude apenas dificultaria que Beatrice se
conformasse com o afastamento.
— Não é verdade — Ethan ditou. Seu tom
era mais afável, a hostilidade se dissipou. —
Desejo-lhe alguém que a ame com a intensidade
que merece e reconheço não ser esse homem.
— Mas pode vir a ser. — Esperança
cintilava em seu olhar.
Ethan negou com a cabeça.
— Não posso, pois amo Genevieve. Estaria
mentindo para nós dois se eu a desposasse,
Beatrice. Aceitaria casar-se comigo com a dúvida
de que minhas motivações não fossem puramente
passionais, e sim interesseiras, uma vez que é
evidente que desejo Whitewood Holt? O que
Sarah pensaria sobre isso?
Ethan se congratulou por conseguir pensar
na invertida, por outro lado, sentiu-se mau-caráter,
pois estava exatamente realizando aqueles jogos
para conquistar a propriedade.
— Pouco me interesso pelo que ela possa
pensar. Eu o aceito independentemente das
motivações que sustentam o casamento. — A frase
saiu desestabilizada, alta, a última tentativa de
quem sabia estar prestes a perder.
Ethan mal podia crer em seus ouvidos, a
situação extrapolou o nível de sentimentos sem
recíproca e tornava-se obsessão. Até onde
Beatrice iria para vê-lo diante do vigário
realizando votos matrimoniais?
— Eu já admiti à Sarah que não a amo,
Beatrice, não há como retroceder.
A jovem estagnou, levando minutos para
compreender o significado das palavras. Abriu e
fechou a boca algumas vezes, fazendo menção de
dizer algo, por fim, pronunciou:
— Irá arrepender-se.
Afastou-se em turbilhão, era desconcertante
assistir à sua fúria, pois Beatrice sempre fora
doce, contida, uma perfeita dama de boa família.
Sua voz jamais se alterava, sua postura era
recatada, era uma exímia dançarina, ela não
deixava de sorrir e ser encantadora em todos os
momentos. A joia dos bailes da região,
colecionava uma série de admiradores,
cavalheiros que duelariam por sua mão, mas ela
jamais aceitou nenhum pedido, pois aguardava o
dele.
Não havia grandes motivos para que
Beatrice preferisse declinar o pedido de um jovem
barão — sujeito galante, aliás — para preferir
casar-se com um administrador de bens. Seria ela
realmente apaixonada por ele? Se fosse, Ethan
esperava, sinceramente, que superasse o
enamoramento, pois ele não podia tomar-lhe a
mão, já havia determinado isso há muito tempo,
desde que compreendeu que envolver-se com a
sobrinha de sua empregadora poderia render
suposições pouco lisonjeiras sobre sua moral.
O administrador recolocou os óculos e abriu
o livro outra vez, fazendo as anotações
necessárias, e tentando retomar o raciocínio
anterior, porém mal conseguiu imergir em suas
tarefas, quando recebeu outra visita.
— Não desejo interromper, mas já o faço —
declarou a viúva.
A mulher não teve cerimônias ao entrar,
agindo decididamente como costumava ser.
— Em que posso servi-la? — Sorriu e se
levantou para recepcioná-la.
— Vi Beatrice há pouco, a pobre está
transtornada, temo que venha adoecer por conta do
desgosto.
— Eu realmente sinto muito. — A cabeça de
Ethan passou a latejar.
Se pudesse, retrocederia ao baile e
impediria a si mesmo de beijá-la, sequer fora um
beijo dos mais indecorosos, somente tocaram nos
lábios um do outro. Certos momentos tinham o
poder de determinar o restante da vida. Na
referida noite, ele encontrava-se demasiadamente
alegre, envolto no calor da bebida forte e do clima
fresco, uma rara noite de poucas nuvens e neblina,
em que poderia ver o céu e as estrelas. Beatrice o
encontrou no momento de contemplação solitária,
no exterior da residência e se aproximou.
Sarah puxou uma cadeira e se sentou diante
da mesa de trabalho, deixando Ethan à vontade
para que ocupasse o próprio assento novamente.
— Meu querido — alcançou as mãos dele
sobre o tampo e as apertou —, tem certeza de que
deseja prosseguir com isso? Veja bem, ainda não
se declarou para a prima de Carter e as paixões,
em sua maioria, são fugazes; surgem e se
extinguem feito uma pequena fagulha. Ouça a voz
de quem já viveu mais, quando casar-se, vai
preferir a solidez conhecida, do que a efemeridade
do novo.
— Não posso agir diferente.
— Eu faria tanto gosto que Whitewood Holt
fosse para suas mãos e para as de Beatrice.
Desejei que vivessem e construíssem uma família
aqui.
— Eu sei, lamento desapontá-la.
— Não me desapontou, fiz isso sozinha ao
tecer expectativas. — Deu tapinhas carinhosos em
sua mão. — Porém agora encontro-me em uma
situação desconfortável, compreende?
— Compreendo e confio em vosso parecer.
— Que escolha tenho eu? É o único que eu
ousaria entregar meus bens mais valorosos.
Sarah não possuía filhos, o único parente
próximo era Harold Lancaster, seu irmão, e
embora tivessem uma boa relação, ela reservava
ressalvas sobre o homem, as quais jamais
compartilhou com Ethan.
— Nenhuma outra pessoa seria capaz de
compreender a importância de Whitewood Holt,
de suas produções. Não vi meu marido dedicar a
vida para que tudo se perdesse ao ser depositado
em mãos despreparadas — a viúva prosseguiu.
Ethan não sabia o que dizer, preferindo o
silêncio. Não seria tão ingênuo ao comemorar a
vitória cedo demais e não queria correr o risco de
soar presunçoso ao tentar induzir as decisões de
Sarah, se o fizesse ainda correria o risco de perder
a estima da viúva.
— Que bagunça fez, Sr. Hamilton — ela
sussurrou. — Tenho muito o que pensar agora.
Ela não aguardou uma resposta,
abandonando o recinto com a mente repleta de
conjecturas.

Genevieve prendia a respiração, não


suportando mais ser tocada repetidamente pela
modista. Não bastou retirar as medidas, a mulher
insistiu que queria reajustar um vestido que não
fora vendido a uma outra dama que o havia
encomendado e desistido no momento do
pagamento, apenas para que Genevieve tivesse o
que vestir enquanto os seus não ficavam prontos.
Ser espetada por alfinetes não a incomodava
tanto quanto o toque dos dedos da modista. A
mulher de formas fartas sorria para ela,
ressaltando suas bochechas coradas e Genevieve
desejava retribuir a simpatia, mas não conseguia,
pois estava sendo drenada a cada resvalar sutil na
pele.
— Muito bem, pode retirar. Irei costurá-lo
sem demora.
Genevieve soltou um suspiro audível, mas a
tortura ainda não havia acabado, a mulher ia
ajudá-la a se despir. Curiosamente nem todas as
pessoas a exauriam daquela maneira, Amelie, por
exemplo, a auxiliava com as vestimentas todos os
dias e não lhe roubava o ânimo. Certos indivíduos
necessitavam de alguma ajuda mais aprofundada, e
sem força interior suficiente para prosseguirem,
inconscientemente a retiravam dos demais.
E Ethan… bem, era um caso excepcional
que Genevieve ainda não havia chegado a
qualquer conclusão.
Após a troca de roupas, assistiu à modista
habilmente fazer os ajustes pertinentes na peça.
Era preta e rendada, com gola alta e alguns
debruns pelas saias.
— Ficará lindíssima com este, a maioria das
jovens solicitam-me modelos semelhantes, seguirá
a moda mais recente. Quem sabe não conseguirá
conquistar a admiração de algum cavalheiro? —
conspirou.
— Decerto encontrarei algum — dissimulou
animação.
— E não irá demorar. — Usou um tom de
quem possuía vasta experiência sobre o que dizia.
Realmente não demorou — não foi capaz de
refrear o pensamento cínico.
— Acaso venha a ocorrer, por favor, não
deixe de mandar-me as boas novas. — Piscou.
A mulher não se demorou muito mais e
quando Genevieve finalmente ficou sozinha,
deixou o corpo afundar na cama, espalhando-se
sobre o vestido preto que ainda estava lá.
Os últimos comentários, sobre Genevieve
encontrar um par, dispararam centenas de
pensamentos ansiosos em sua mente e isso a
surpreendeu, por atingi-la com mais intensidade do
que podia imaginar. Como a maioria das jovens
que conhecia, Genevieve almejou um dia se casar,
principalmente para se ver livre de Vincent,
admitia. Ao lado do irmão, sempre se sentia
prisioneira, e ali estava ela, prisioneira outra vez,
praticamente casada, sem sentimentos de amor
envolvidos.
Como seria quando o tempo do trato se
extinguisse?
Ela estaria livre, mas quão livre? A
documentação do divórcio era extremamente cara,
como todos bem sabiam, e quem ousaria casar com
uma divorciada, mesmo que essa fosse donzela?
Ninguém acreditaria em sua virtude. Como Ethan
faria? A leiloaria outra vez?
Seus olhos encheram-se, Genevieve era
habituada a sofrer as consequências das mazelas
existentes no mundo, mas essa, em especial, a
desestabilizou, pois sempre fora algo que ela tinha
como uma esperança, a promessa de que dias
melhores estavam por vir.
Não para ela, nunca para ela, fadada a
carregar os mais diversos tipos de sofrimento.
Às vezes sentia-se sem propósito, solta
como uma folha seca, existindo somente para ser
fustigada pelo vento. Os pensamentos negativos
eram empurrados para outro lugar, mas como
afastá-los quando não conseguia visualizar nada
que a fizesse crer que algum dia seria feliz?
O abismo negro e profundo se abriu aos seus
pés, seria a hora de finalmente mergulhar?
Genevieve dançou muitas vezes sobre sua borda,
quase escorregando, quase saltando, mas algo
surgia, no último momento, para impedi-la de cair.
Ao fim do abismo, havia o chão, pronto para
quebrar-lhe os ossos quando o corpo dela o
encontrasse, mas antes disso, ela voaria, provando
a liberdade pela primeira e última vez.
Conforme descia as escadas que o levariam
para fora, após concluir sua jornada laboral, Ethan
sentia-se gradualmente mais leve. A conversa que
teve, tanto com a viúva quanto com Beatrice, lhe
trouxe o inesperado sentimento de tranquilidade. O
sufocante matrimônio com a Srta. Lancaster não
mais apertava o seu pescoço e Ethan podia voltar
a respirar; fez exatamente isso, inflou os pulmões
até o limite, preenchendo-o com o ar frio do início
da noite, depois o soltou vagarosamente pelos
lábios entreabertos.
Acabou.
Quis atirar-se nos braços do êxtase, mas não
era o momento de deixar-se levar pela alegria
inebriante, ainda havia um longo caminho a
percorrer. Chacoalhou a cabeça, retomando as
rédeas que conduziam seus pensamentos e ações: a
racionalidade. Com passos decididos, tornou a
caminhar pelo exterior de Whitewood Holt.
— Como está sorridente, meu amigo. Parece
que o que disseram é verdade, Ethan Hamilton foi
enlaçado. — Uma voz o impediu de prosseguir em
direção ao estábulo.
Era Benjamin, um dos funcionários de
Sarah, este o amigo mais próximo de Ethan, depois
de William.
Os mexericos voavam rapidamente entre a
criadagem e após muito especularem sobre o
envolvimento de Ethan com Beatrice —
desgastando o tema de modo que parecesse um
tecido lavado vezes demais, levando-o a perder o
valor que conservava outros tempos —, deveriam
estar em polvorosa com a participação de uma
nova personagem na história, personagem essa
repleta de mistérios, estrangeira e que, sem
dúvida, provocava interesse por parte dos
curiosos.
— Ouso afirmar que tal bruxaria ocorre com
os melhores homens. — Lançou um sorriso.
— Pois para despertar amor em vosso
coração, a eleita há de ser uma habilidosa
feiticeira — Benjamin deu prosseguimento à
brincadeira.
— Sua esposa deve possuir conhecimento
sobre essas artimanhas femininas.
— Odeth cativou-me com a bondade e não
com feitiços — retrucou, ainda leve, porém um
tanto contrariado por Ethan supor maledicências à
esposa.
Benjamin era um marido devoto e tornou-se
ainda mais protetor após a esposa passar a
carregar um filho no ventre; a criança estava
prestes a nascer, pelo que Ethan soube. O casal era
apegado à religiosidade, fato que os fazia repudiar
práticas que não agradassem ao Criador.
Optou por tomar outro segmento na
conversa, não desejando ofendê-lo.
— Ah, Benjamin, é melhor admitirmos que
somos todos náufragos a escutarem o canto de
sereias.
O amigo confirmou com um aceno de
cabeça, ostentando um sorriso que mal cabia no
rosto.
— Que bom, alegro-me por ter encontrado o
porto que tanto procurava. — Bateu-lhe no ombro
com camaradagem.
Ethan não via problema em navegar um
pouco mais…
— Já era tempo — respondeu.
— Concordo… desejo discorrer sobre a
dama que detém seu coração, mas é melhor eu ir
agora. Odeth deve estar aguardando-me para
jantar.
— Não a deixe esperando.
— Gostaria de ir comigo?
— Não, obrigado, jantarei com William.
— E com a prima dele — completou.
— Certamente.
Benjamin elevou as sobrancelhas de modo
sugestivo e tocou a aba do chapéu em despedida.
Quanto mais pessoas acreditassem que
estava apaixonado, melhor seria. Genevieve talvez
não precisasse sequer mentir sobre isso, Ethan o
fazia pelos dois. Inferno, que tipo de pessoa se
tornou? Não era o momento adequado para golpes
de consciência, mais tarde poderia se recriminar
por seus atos.
Ethan caminhou apressado para o estábulo,
o céu já estava obscurecido e ele não tinha
vontade de permanecer na estrada após a noite
adiantar-se, em partes, porque temia que o céu
desabasse em aguaceiro.
Tomou a direção de Violet Valley,
novamente pernoitaria na residência de Will, pois
tinha planos de aproveitar algumas horas após o
jantar, para aprofundar Genevieve em informações
que seriam importantes para ela. O galope do
cavalo, embora veloz e constante, parecia mais
vagaroso do que em outros dias; foi assim que
notou que estava ansioso para chegar.
Após vencer o interminável percurso,
batalhando o tempo inteiro contra a profusão de
pensamentos conflitantes sobre sua dignidade, o
administrador adiantou-se para guardar a montaria,
acariciando o lombo do cavalo algumas vezes e
verificando se este possuía comida e água antes de
entrar.
Atravessando os cômodos com a intimidade
de quem muito frequentava a residência, Ethan
imperceptivelmente buscava Genevieve, não sabia
ao certo o motivo, mas desejava vê-la, mais do
que isso, ansiava passar mais tempo em sua
presença. Era curioso, mas admitia que o
desconhecido sempre o instigou.
Ethan estava há muito preso ao seio da
burguesia, atado aos seus círculos sociais e
joguetes que jamais se renovavam. Foi somente
com o aparecimento de Genevieve que se deu
conta do enfado que o impregnava, mas não via a
dama como uma aventura, de modo algum, ela era
um enigma.
E como se saída do próprio umbral,
Genevieve surgiu trajando sombras.
A cor do vestido ressaltou a tez alva, feito
porcelana, a dama mal parecia real. Composta da
mesma matéria que a lua e vestida de noite, suas
íris eram certamente estrelas líquidas e cintilavam
como se fossem para recordar sua verdadeira
natureza.
— Sr. Hamilton. — Ela pareceu surpresa,
estagnando diante dele.
— Está celestialmente sublime, Srta.
Johnson — falou a primeira coisa que lhe veio à
cabeça.
Ela desviou o olhar de um modo particular,
demonstrando que o elogio a deixou
desconfortável.
— Agradeço a gentileza — devolveu um
tempo depois, em voz baixa.
Ethan engoliu um pouco de saliva, tentando
trazer um pouco de umidade para a garganta, ainda
avaliando as próprias atitudes. Era apenas um
elogio, já havia feito dezenas deles para
incontáveis damas, não deveria ter o poder de
causar-lhe remorso como ocorria no momento,
contudo Genevieve e a situação que se
encontravam eram singulares, impossíveis de
serem comparadas a outras damas e a outras
experiências já vivenciadas pelo administrador.
Também se lembrou, tarde demais, que prometeu a
si mesmo não externalizar suas percepções
relativas à aparência de Genevieve.
Will, batendo os pés, veio de encontro aos
outros dois. Ethan agradeceu silenciosamente a
aparição oportuna.
— Ainda bem que chegou, eu estava
faminto. Vamos logo, a mesa já está posta.
— É assim que trata sua visita?
— É claro que não trato as visitas assim —
retrucou.
Ethan riu e seguiram todos juntos.
O jantar foi pontuado por assuntos leves
entre Ethan e William, mas Genevieve permanecia
fechada, obstante, mal parecia estar ouvindo o que
diziam. A melancolia ainda era tão presente em
seu semblante, o peso do mundo entremeado em
cada linha do seu rosto.
Após concluírem a refeição, se alocaram em
uma sala aconchegante. A lareira fora acesa e a
presença de Storm, o cão preto da raça Whippet,
tornava o ambiente ainda mais leve. O cachorro
foi deitar-se próximo ao dono, que distraidamente
o acariciava.
Lembrava-se de quando a Sra. Carter
esbravejava que o lugar de Storm era no canil e
não sobre os estofados, entre as finas almofadas
— que por vezes eram misteriosamente destruídas
—, porém as reclamações não surtiam efeito em
seu filho, que seguia deixando o animal fazer o que
bem tinha vontade.
Storm foi um filhote enérgico, feito a
tempestade contida em seu nome, mas que no
momento, com o início da senescência, tornou-se
dócil e tranquilo, transmitindo para quem quer que
estivesse ao redor, essa tranquilidade. William o
amava e Ethan compartilhava do sentimento, de
modo que o animal era mais do que um mascote
para ambos.
Sem intenção, captou um olhar terno de
Genevieve direcionado ao cão, talvez Storm, de
alguma forma, pudesse ajudá-la nesse momento de
transições.
— Estive pensando, Will, seria importante
que a Srta. Johnson tomasse conhecimento sobre
sua família, uma vez que em breve ela será
apresentada no baile que Sarah organizará.
— É verdade, minha querida prima, está em
desvantagens, não? Enfim, o que dizer sobre os
Carter… — William ponderou um pouco. — O
fato mais relevante, penso eu, é a desistência de
meu pai, de seu título de visconde, para que
pudesse desposar uma dama que não pertencia à
aristocracia.
— Oh… — Ela permaneceu em silêncio
reflexivo. — Não compreendo por quais motivos
ele não poderia manter o título e, ao mesmo tempo,
unir-se à mulher que ama — Genevieve opinou,
aparentando interesse.
— A Srta. vem de outras terras, com outros
costumes. Aqui a nobreza segue resistente com a
pureza dos seus. Mas não há ressentimentos da
parte de meu pai, tampouco minha ou das minhas
irmãs, sobre a renúncia.
Ela consentiu, em sinal de compreensão.
— Ademais, não creio que perguntarão
sobre nós para a senhorita, eles serão mais
curiosos sobre a sua vida particular, esteja certa.
Genevieve contraiu os ombros e a
mandíbula, uma reação natural de aversão, que ela
não conseguiu ocultar a tempo.
— Não há muito o que falar sobre mim.
— Fale sobre Massachusetts, isso deve
entretê-los — Ethan sugeriu.
Desta vez os olhos dela arregalaram.
— Diga que adora fazer compras com
minhas irmãs, Daisy e Lauren. Uma possui
dezenove anos e a outra, dezesseis; ah, e deixam
qualquer um nesta casa, malucos.
— Uma dama faz mais do que comprar o dia
todo, Sr. Carter — a reprimenda veio com um tom
sutil nos lábios de Genevieve.
— Sei que o fazem — Will lhe direcionou
um sorriso apaziguador. — Não intencionei supor
o contrário, apenas quis buscar um passatempo que
pudesse usar como distração para os abutres que a
atormentarão, e como minhas irmãs são conhecidas
por frequentarem assiduamente Compton House…
— Gesticulou ao citar a grande loja.
— Entendo — Genevieve concordou.
— Gostaria de ir até lá algum dia desses?
— Ethan questionou. — Posso acompanhá-la.
— Já me servi de vossas riquezas esta tarde,
Sr. Hamilton, não desejo levá-lo à falência, de
qualquer forma, fui forjada na simplicidade do
campo.
A fala despertou a atenção de Ethan, que
tentava reunir os fragmentos que Genevieve
deixava escapar do passado, essa era a primeira
vez que a dama citava algo de sua vida. Supôs que
o marido que a vendeu lidasse com algum tipo de
produção em larga escala, certamente Ethan ouviu
rumores de má safra assolando Massachusetts e os
arredores. Teria Genevieve sofrido com o efeito
colateral daquelas perdas?
Seu modo singelo, juntamente com o vestido
modesto que trajava quando a encontrou no leilão,
evidenciava que não vinha de um lar que destinava
somas significativas para que ela ornamentasse sua
pessoa com requintes.
Enquanto permanecia devaneando e criando
suposições, William e Genevieve prosseguiam
com a conversa. Storm se levantou e foi encontrar
um novo descanso ao lado de Genevieve,
pousando a cabeça de focinho longo no colo dela.
A dama o acariciou e o cão até fechou os olhos,
conforme ela alcançou a parte de trás de suas
orelhas. Ethan quase riu, Storm era um belo
tratante e oportunista — refletiu com afeto.
— Na verdade, seria positivo se os vissem
passeando juntos — Will retomou o assunto,
parecendo que um lampejo de luz iluminou sua
mente. — Mas teríamos que encontrar uma dama
de companhia para a Srta. Johnson, não desejo que
a honra de minha prima seja hostilizada.
— Eu gostaria que fosse Amelie —
Genevieve tomou a palavra.
Ethan ficou feliz por ela se sentir mais
confiante para participar efetivamente de escolhas
que eram pertinentes a ela.
— Não há objeções sobre isso, terá a
acompanhante que desejar — Will concordou sem
titubear.
— Agendaremos um passeio — Ethan
declarou. — Não se preocupe com dinheiro, Srta.
Johnson, é o mínimo que posso fazer, para tentar
retribuir o auxílio que está prestando-me.
— Está bem — concordou ela, coçando
atrás das orelhas de Storm.
— Admito não me agradar a ideia de que
permaneça entre estas paredes o dia todo, não é
uma prisioneira.
— Sim, fomos indelicados. — Will
arregalou os olhos, surpreso com a própria falta.
— Sequer nos oferecemos para uma caminhada em
Violet Valley, para que conhecesse toda sua
extensão.
— Não há a necessidade de desculparem-se,
estive muito cansada esses dias, uma caminhada
não seria proveitosa para mim, muito pelo
contrário.
— Que falta minha mãe faz aqui — Will
ponderou em voz alta. — Ela saberia ser mais
acolhedora.
— E castigaria a nós dois, por não sermos
— Ethan complementou.
— Correto, ela deve estar sofrendo acessos
de arrepios, pressentindo que a envergonho com
meus modos.
— Não duvido.
Gentileza e decoro andavam de mãos dadas
com a Sra. Carter.
Genevieve não parecia atentar-se aos dois,
distraída com os sons que Storm fazia ao receber
os afagos, por um breve instante, um sorriso
sincero tomou o rosto que sempre fora lar da
tristeza, expulsando o pesar, preenchendo seu
espaço com contentamento.
— Já que não deseja caminhar, há algo que
possamos oferecer, algo que goste de fazer?
Pintura ou música? Temos salas específicas para
cada uma das atividades — perguntou William.
Genevieve pareceu querer dizer algo, mas
declinou educadamente.
— Não tenha receio conosco, peça, ainda
permanecerá algum tempo entre nós e o ideal é que
seja agradável.
— Uma porção de livros já é o suficiente
para mim — declarou Genevieve.
— Perfeito.
Que pena que tiveram um começo tão
conturbado, aquela deveria ter sido a primeira
conversa entre eles, antes até mesmo de ela aceitar
contribuir com o plano de ludibriar a viúva.
A vontade que Ethan tinha era de retroceder
e fazer tudo corretamente, sabendo que jamais
deixaria de participar do leilão. Se a sua
integridade estava sob julgamento em questão de
suas ambições, ele se sentia absolvido quando se
tratava de retirar Genevieve do palanque e ter a
oportunidade de provê-la alguma segurança.
Ao observá-la diante de si, acomodada com
conforto na poltrona, com o semblante iluminado
pelas chamas da lareira e a cabeça de Storm em
seu colo, Ethan tinha certeza de que pelo menos em
algo ele acertou.
Church Street estava movimentada naquela
manhã, o que deixava Genevieve um tanto
desconfortável, afinal, ao aproximar-se de
Compton House, era quase impossível não
esbarrar em nenhum transeunte apressado. Como
planejaram, no próximo dia livre de Ethan, eles
visitariam a loja, e este chegou mais rápido do que
ela imaginava.
O administrador seguia próximo a ela, mas
sem tocá-la, uma vez que Genevieve recusou o
braço que ele cordialmente ofereceu quando
deixaram a carruagem. Ethan explicava, animado,
os diversos serviços que poderia obter-se ali,
também falava da grandiosidade da loja, fator que
não poderia ser contestado.
Genevieve contabilizou cinco andares e
inúmeras janelas, jamais esteve diante de uma
construção tão grande, compreendendo finalmente
o fascínio que exercia nas jovens e as predileções
das irmãs de William a comprarem ali.
Um pequeno zumbido efervescente,
composto por diversas vozes conversando,
discutindo preços e debatendo sobre as notícias
dos jornais, preenchia os ouvidos da dama, que
era mais habituada ao silêncio e a calmaria
bucólica do que com o frenesi urbano. Seus olhos
mal podiam acompanhar a quantidade de pequenas
coisas ocorrendo todas ao mesmo tempo, o mundo
estava acontecendo bem ali, girando rapidamente
em seu próprio eixo e esse era um evento e tanto!
Quando estava prestes a entrar na loja,
inclinou a cabeça o máximo que pôde, admirando
a altura que a construção se estendia, tocando o
céu. Era vertiginoso. Algumas aves pousavam nas
torres e ocupavam as reentrâncias do muro,
tornando-o sua morada.
Ethan foi paciente, calando-se quando notou
que ela não se atentava a suas palavras, permitindo
que Genevieve estudasse a arquitetura da loja por
quanto tempo quisesse. Minutos depois, a dama
voltou o olhar para ele e com um aceno, concordou
em prosseguir, indicando que estava pronta.
Amelie os acompanhava alguns passos atrás,
mantendo extrema discrição em seus modos. A
presença dela não impedia que rumores surgissem,
ao se tratar do interesse de Ethan, mas
preservavam a índole de Genevieve das más
línguas; não que as fofocas representassem ameaça
real ao casamento, mas convenções eram
convenções, e aparências eram aparências.
As damas ali trajavam modelos de vestidos
semelhantes ao dela, igualmente de tons escuros,
compartilhando o luto da rainha por seu consorte.
O fato levou Genevieve a recordar-se do encontro
com a modista, que lhe assegurou que estaria
seguindo a tendência correta.
Ao aprofundarem-se, podia-se visualizar
uma profusão de tecidos em um dos setores, onde
as funcionárias buscavam atender às jovens que
estavam se decidindo entre alguns tipos diferentes
de rendas.
Como previu, Genevieve passou a sofrer as
implicações em estar em um local frequentado por
tantas pessoas; seu peito se comprimia, mal podia
respirar. Ela esforçou-se para manter a calma,
concentrando-se em fazer o ar entrar lentamente
através da boca, porém ao invés de ajudá-la, a
ação piorava seu estado, pois passou a sentir gosto
de cinzas em sua língua. Genevieve tossiu, como
se seu peito estivesse repleto de fumaça, embora o
local fosse bem ventilado.
— Sente-se bem, Srta. Johnson? — Ethan
voltou-se para ela.
— Minha… — a tosse voltou a ocorrer —
…minha garganta está coçando. — Limpou uma
lágrima do canto do olho com o indicador.
— Podemos retornar lá para fora. Possui
alergia a algum tecido?
— Não, já vai passar. — Pigarreou, ciente
de que era um gesto grosseiro a ser protagonizado
por uma dama, mas foi o único recurso que pode
alcançar para lhe proporcionar alívio.
Genevieve sucumbiu a um novo acesso de
tosse, chegando a apoiar-se em uma parede
próxima para se estabilizar. Seus olhos arderam e
ela teve que piscar repetidas vezes, até ter que
mantê-los algum tempo fechados para que o
incômodo diminuísse; ao abri-los novamente, viu-
se apoiando-se em uma superfície enegrecida
cheirando a queimado. Mariposas feitas de carvão
desprenderam-se da parede, próximas de onde
estava a mão dela, e voaram, despedaçando-se e
deixando um rastro esfumaçado para trás.
Genevieve recolheu a mão da parede e a
realidade retornou, acelerada, com cores vívidas e
cheiro fresco. O odor pungente sumiu, mas a nota
amarga ainda pairava em forma de lembrança no
olfato da dama e brincando no céu de sua boca. Às
vezes, ela duvidava de sua sanidade, não sabia ao
certo quando estava sonhando ou quando estava
desperta, mas tinha que confiar em suas visões,
pois os avisos não costumavam falhar.
— Srta. Johnson?
O tom utilizado no chamado deixava claro
que Ethan já o realizou mais de uma vez. Os olhos
preocupados de Amelie corroboravam com a
hipótese.
— Sim? — Genevieve endireitou os
ombros.
Ethan indicou com a cabeça que voltassem a
caminhar pela loja e ela concordou, temendo
chamar atenção para si; percorreram um trajeto
expressivo antes que ele voltasse a falar.
— Não é a primeira vez que a vejo neste
estado — Ethan iniciou em voz baixa, cuidando
para que ninguém escutasse, nem mesmo Amelie.
Genevieve estremeceu. Ele não podia saber,
não podia saber! Rangeu os dentes consciente de
que seria empurrada para a forca se a verdade
irrompesse. O pânico crescia, devorando-a de
dentro para fora, sombras abocanhando seu
coração e arranhando as paredes de seu peito. O
instinto de sobrevivência a levava a tentar
encontrar alguma saída, alguma maneira de fugir,
se precisasse.
— Qua-qual estado? — gaguejou.
Ethan parou de andar e a encarou, realmente
a encarou, com aqueles olhos tão verdes quanto
uma floresta selvagem, intocada pelo homem. Suas
sobrancelhas estavam franzidas enquanto a íris se
movia, capturando cada detalhe do rosto dela.
— Diga-me, está enfrentando alguma
enfermidade?
Genevieve soltou o ar e relaxou o abdômen,
que antes estava contraído, preparado para
qualquer golpe que viesse.
— Não, de modo algum.
Surpreendendo Genevieve, e derrubando
todas as barreiras que ela pudesse levantar, Ethan
segurou sua mão, envolvendo-a com a outra mão
livre dele, sem se importar com quem pudesse
estar assistindo. Contudo, enganava-se quem
pensasse que fora um gesto romântico, era uma
oferta de conforto. O administrador buscava
alcançar Genevieve, e não o conseguindo com as
palavras, o fez da maneira mais direta, através do
toque.
A sensação de abundância, de ser
preenchida até derramar um líquido precioso como
dobrões de ouro derretidos, a extasiou. Genevieve
comprimiu os lábios, retendo o suspiro de
satisfação.
— Deteste-me por minhas decisões e
maquinações egoístas, mas não deixe de duvidar
que lhe quero bem. Confie em mim e não me
esconda algo que possa estar causando-lhe
sofrimento. Providenciarei tratamento, basta dizer.
— Não compadeço de nenhuma moléstia.
— Mas sei que há algo perturbando-a.
— Sr. Hamilton, ainda sigo lidando com as
alterações em minha vida, perdoe-me pela
lentidão, estou esforçando-me para me habituar o
mais rápido possível, acredite.
— Não, eu sei que é outra coisa, algo que
lhe causa medo, algo que sente necessidade de
ocultar.
Como ele poderia estar tão certo?
— Eu…
— Diga quando sentir-se segura para
compartilhar, porém se estiver relacionado à sua
saúde, é imprescindível que seja tratado o quanto
antes. Solicitarei que Amelie fique atenta.
— Não há motivos para se preocupar, eu
prometo.
Ethan a perscrutou outra vez, tentando ler no
semblante de Genevieve, todos os segredos que
ela tanto guardava. A dama desviou o olhar,
temendo que ele de fato conseguisse obter a
verdade, e acabou fitando suas mãos, ainda juntas;
a dela quase sumia, coberta pelas dele, e apesar de
haver a pelica das luvas impedindo um contato
direto das peles, Genevieve sentia que haviam
ultrapassado uma linha de intimidade,
principalmente por ela não ter identificado em si
nada além de bem-estar com o toque.
— Ora, que surpresa!
Genevieve deu um passo para trás,
desfazendo o contato. Ethan, por sua vez,
permaneceu rígido ao fitar Beatrice, sem se mover
um centímetro sequer, mas não oferecendo
resistência quando Genevieve puxou a mão. A
sobrinha da Sra. Whitewood não deixou
transparecer qualquer ciúme ou aversão, muito
pelo contrário, resplandecia em um vestido verde,
ao lado de outras duas jovens.
Então quando ele segurou sua mão tratava-
se disso? Precisava demonstrar proximidade com
a “futura noiva”; o estômago de Genevieve doeu,
tinha que manter em mente que tudo não passava
de mentiras.
— Aproveitando a estadia para realizar
compras, Srta. Johnson? — a outra prosseguiu,
com um feliz sorriso no rosto.
— Sim, não podia desperdiçar a
oportunidade de conhecer Compton House, da
qual eu ouvi falar muito bem. Minhas primas a
adoram — fomentou a farsa elaborada por Ethan e
William.
— Lamento que não tenha a companhia
delas por esses dias. — Forjou uma expressão
compadecida.
— É verdade, mas haverá outras
oportunidades.
— Poderíamos fazer compras amanhã —
sugeriu, animada. — Não se ofenda, Sr. Hamilton,
mas a Srta. Johnson deve preferir uma companhia
feminina para esses assuntos.
— Seria adorável, porém tenho certeza de
que possui outros afazeres, Srta. Lancaster —
Genevieve respondeu.
— Ora, não há nada de tão urgente que não
possa ser adiado, por favor.
— Claro, se Amelie puder vir também. —
Genevieve indicou a moça com um aceno de
cabeça.
— Será perfeito. — Beatrice assinalou com
um sorriso. — Nos veremos no mesmo horário
amanhã.
Sem fornecer tempo hábil para negações ou
confirmação da parte de Genevieve, Beatrice se
afastou, juntamente de suas outras duas
acompanhantes. O fato mais curioso, era que ela
não manifestou ter o mínimo interesse por Ethan,
mal lhe direcionando a palavra. Talvez estivesse
furiosa com ele, ou talvez já o estivesse
esquecido; era impossível saber.
— Reconheço que acabamos de debater
sobre seu estado de saúde, e a senhorita assegurou
que não estava doente, entretanto, suponho que
amanhã seja um momento propício para ser
acometida por um mal-estar.
Genevieve riu, quando deu por si estava
expressando um riso perfeitamente audível, aberto,
como raras vezes fazia.
— Ah, Sr. Hamilton… — Usou um tom de
lamentação, como o que as mães direcionam a um
filho de temperamento irremediável. — Não se
cansa de mentir?
Ethan riu também, e juntos, voltaram a
caminhar.
— Jamais menti para a senhorita, isso deve
dizer algo a meu respeito, talvez um indício de
salvação da minha alma.
— Sinto em ser portadora de desgraças, mas
vossa alma segue a caminho da perdição —
provocou.
— É mesmo? Explique-me melhor quais os
fatores que a levaram a chegar a essa conclusão.
— Além de mentir, envolve a terceiros em
suas artimanhas.
— Tem razão, talvez a senhorita consiga
escapar, mas certamente condenei William comigo.
— Pobre Sr. Carter.
— Se ele vir a arder no inferno, saiba que
William fez por merecer o castigo.
— Bem, não serei eu a julgá-lo.
— Mas julga a mim. — Elevou a
sobrancelha de modo ardiloso.
— Pois notei que possui mais motivos para
ser condenado.
Ethan silenciou por um momento.
— Após tudo acabar, pode ensinar-me a ser
um bom sujeito.
Genevieve se deteve, remorso pesou em seu
coração; culpa provocada pela mentira e não era a
relacionada ao casamento.
— Tenho meus próprios pecados para
expiar — sussurrou.
— Não é da natureza de seres celestes
cometerem pecados.
Ethan enganava-se, a própria natureza de
Genevieve era um pecado.
Ela fechou as expressões e não ofereceu
nenhuma réplica, concluindo o diálogo. O
administrador pareceu notar que disse algo errado
e recolheu-se em suas próprias ponderações.
Genevieve quase podia ver pequenas engrenagens
trabalhando dentro de sua cabeça, era um homem
engenhoso e a característica podia-se comprovar
através da estratégia que armou para conquistar
seus objetivos.
Tinha que ter cuidado com ele, Ethan já
havia identificado que ocorria algo errado com
ela, e deu tanto crédito à suposição que chegou a
criar uma doença. Genevieve não dispunha de
margens para deslizar, qualquer ato de sua parte
poderia levá-lo a desvendar a verdade, o motivo
que a arrastou de Massachusetts para Liverpool.
Estremeceu ao imaginar o que poderia
ocorrer, caso ele descobrisse, o pensamento era
recorrente em sua mente, assombrando seus
sonhos, no formato de recordação dos açoites em
suas costas, do rosto feroz de Vincent a espancá-
la. Sua garganta se comprimiu e ela obrigou-se a
retroceder, uma vez que as meras lembranças lhe
causavam reações físicas, como a aceleração de
seus batimentos cardíacos, e ela não desejava
perder a compostura em um local tão público.
Para o alívio de Genevieve, Ethan tornou a
falar sobre Compton House, sem parecer
desconfiado nem nada do tipo. O administrador até
mesmo se ofereceu para pagar por qualquer item
que Genevieve desejasse, mas nada a cativou a
ponto de motivá-la pedir.
O passeio havia se tornado mais leve,
depois disso, prosseguiram tranquilos enquanto
visualizavam tantas roupas, e outra ampla
diversidade de mercadorias, incluindo uma boa
parcela de um dos andares, reservado para
produtos de marcenaria. Porém, ao final de
determinado corredor, ela viu algo que a empurrou
novamente para o passado.
Genevieve jamais se esqueceria daqueles
uniformes azuis, dos soldados da União que
combatiam os Confederados em seu país.
Massachusetts, sendo um estado repleto de líderes
republicanos, e altamente antiescravagistas, logo
tomou partido na Guerra de Secessão, de modo
que grande parte dos jovens aos quais Genevieve
cresceu sendo amiga, foram convocados a usarem
aqueles uniformes azuis.
Ela não acreditava na possibilidade de
haver algum conhecido ali, se houvesse seria uma
imensa ausência de sorte, mas não conseguiu evitar
de olhar para cada um deles, em seus rostos,
procurando algo, não sabia ao certo o quê, talvez
uma remota centelha do que um dia representou
lar. Estava realmente desesperada, tentando
encontrar fragmentos de casa em seus
conterrâneos.
O que achou, porém, foi um objeto que
sintetizava seus maiores temores, no formato de
uma cruel piada. Um dos soldados trazia consigo
um pequeno frasco transparente, pendendo em um
barbante no pescoço, dentro dele havia alguns
pregos e provavelmente unhas, talvez dentes;
Genevieve já havia visto amuletos semelhantes,
eram populares no exército, porque dentre todos
os males que espreitavam aqueles homens, eles
desejavam resguardar-se ao menos das bruxas.
Abraçou a si mesma, imersa em uma terrível
solidão, pois ninguém jamais a contemplaria por
inteiro, jamais compreenderiam suas nuances, suas
distintas fases, tal qual possuía lua. Jamais
vislumbrariam seu lado oculto, sendo esse o que
Genevieve mais estimava e em iguais medidas
odiava, configurando um sabor tão agridoce quanto
estar ali, diante de soldados americanos, que por
um instante lhe trouxeram a calidez do lar, mas que
portavam um amuleto contra bruxas, pronunciando,
mesmo que sem palavras, que, na realidade, ela
não seria bem-vinda em lugar algum.
— Retornei, sentiu saudade? — Ethan a
assustou ao questionar.
De tão absorta, Genevieve sequer havia
percebido que ele se retirou alguns minutos.
— Retornou? — Ela uniu as sobrancelhas,
confusa.
— E eu supondo que fosse uma figura
indispensável. — Usou um tom bem-humorado. —
Posso conseguir um uniforme, para capturar a
atenção da senhorita.
Ethan sabia ser terrivelmente irritante,
Genevieve teve vontade de agredi-lo e ela nunca
foi dada a atos violentos.
— E por qual motivo requer tanto a minha
atenção? — Ela cruzou os braços, visivelmente
incomodada com a brincadeira.
— Para isso. — Exibiu um livro
encouraçado diante dela. — Disse que gostava de
ler.
Genevieve segurou o volume, sentindo o
peso em suas mãos, e viu-se sem palavras.
— É para mim? — Repreendeu-se pela
pergunta estúpida, mas já tinha pronunciado.
Poderia parecer um gesto trivial, mas não
era para ela. Depois da morte dos pais, Genevieve
não se recordava de ter ganhado algum presente e
após perder tudo o que amava, deixando para trás
seu quarto, seus vestidos azuis campestres, sua
caixa de música que fora da sua mãe, um camafeu
contendo um cacho de cada um de seus pais, e
outros incontáveis tesouros tão preciosos, pensou
que parte dela havia se perdido também, ficado
para sempre em Massachusetts.
Era verdade que assim que chegou a Violet
Valley, ganhou vestidos, adornos e sapatos, mas
ela os considerava artifícios com finalidade de
cumprir o trato, contudo o livro não fazia parte
disso, o livro era para agradar a ela. Era
maravilhoso sentir que tinha posse de algo,
principalmente nesse momento em que não possuía
nada.
— Os títulos da biblioteca de William não
são tão atrativos, de qualquer forma, pensei que
gostaria de ter um livro próprio e não emprestado.
Genevieve acariciou o título, sentindo como
as letras douradas foram impressas em sulcos
profundos no couro macio, “Paraíso Perdido".
— Posso? — Ele estendeu a mão.
— Oh, é claro. — Entregou o tomo a ele.
Ethan o folheou por um tempo, então parou.
Comprimiu um pouco os olhos esforçando-se para
ler, e declamou com o seu característico tom de
voz tão profundo:
— Da minha mente a escuridão dissipa,
minha fraqueza eleva, ampara, esteia, para eu
poder, de tal assunto ao nível, justificar o
proceder do Eterno, e demonstrar a providência
aos homens. — Ele suspirou e sorriu. — Talvez
ainda exista a possibilidade de salvação para mim,
se houver alguém para me guiar.
Genevieve engoliu e passou a língua sobre o
lábio inferior, pois estavam ressecados. A
escuridão estava em Genevieve, em cada parcela
dela, e não existia providência divina que poderia
dissipá-la de sua mente.
— Vejo que é capaz de apreciar poesias, Sr.
Hamilton.
— Não conte a ninguém. — Devolveu-lhe o
livro. — Espero que a leitura a agrade, Srta.
Johnson, eu realmente não costumo deixar-me
levar pelas palavras, mas consigo identificar-me
com os textos de John Milton, principalmente
quando se diz respeito a todas falhas e fraquezas.
— E não somos todos seres tão imperfeitos?
— É o que nos torna interessantes.
— Tem razão. — Genevieve abraçou o
livro. — Obrigada pelo presente.
— Disponha. — Elevou uma das
extremidades de sua boca em um curto sorriso.
A trégua que estabeleceram estava tornando-
se sólida, se era algo positivo, não era possível
determinar, pois a dama, apesar de desejar ter uma
convivência tranquila, não podia desenvolver
apego a William, tampouco a Ethan. Mas como
evitar que ocorresse?
William encontrava-se acomodado em sua
poltrona favorita, em sua sala favorita, lendo o
jornal, com um tornozelo repousando sobre o
joelho da perna oposta. Storm cochilava ao seu pé,
ressonando leve, aproveitando o silêncio após o
desjejum para descansar, período esse que os
funcionários já retiraram a bagunça da mesa, e
onde a maioria dos residentes já se ocupava com
os próprios afazeres, propiciando momentos de
quietude em Violet Valley.
Usufruindo da tranquilidade, William ficava
a par das notícias, eventualmente, de tão distraído,
usava o polegar da mão livre, para brincar com a
joia de safira que adornava o anelar da mesma
mão, enquanto segurava o exemplar dobrado do
Times trazido junto da correspondência, com a
outra.
Pensou em mais tarde visitar seu amigo
Samuel, na realidade, estava prestando um serviço
a ele, então, de fato, teria que revê-lo em breve,
mas talvez não neste dia, que parecia perfeito para
se manter dentro de casa, tomando um bom
conhaque; pena que ainda fosse cedo demais para
bebidas dessa natureza.
Ajeitou-se um pouco mais na poltrona,
relendo os últimos parágrafos da notícia, que ele
não tinha direcionado atenção o suficiente e
terminou por ignorar os sentidos das palavras.
— Sr. Carter?
Uma voz baixa de tom suave e opostamente
firme o chamava.
Deixou o jornal no assento e se colocou de
pé para recepcionar sua falsa prima. Storm, por
outro lado, não se perturbou, permanecendo em
seu habitual cochilo. A dama parecia apreensiva,
era provável que algo a incomodasse, ou então
duvidava de que ela tomasse a iniciativa de lhe
dirigir a palavra.
— Srta. Genevieve Johnson, em que posso
servi-la? — Lançou um sorriso.
Ela o devolveu, em uma versão mais curta.
— A Srta. Lancaster convidou-me para fazer
compras hoje — revelou.
Will teve que reter um impropério que
esteve prestes a propagar em alto e bom som.
— Não é uma boa ideia. — Negou com a
cabeça, mais perdido do que qualquer outra coisa.
Genevieve estreitou os olhos para ele, mas
não disse nada, preferindo se sentar em um dos
sofás, com uma postura graciosa e costas eretas.
— Por que não? — Ela pousou a mão sobre
os joelhos cruzados.
— É mais do que óbvio, se me permite
dizer. — Ele sentou, também, amassando o jornal,
contendo novamente a vontade de praguejar ao
notar o que fez.
— Pois para mim não o é, explique-me, por
favor — solicitou calmamente, como uma
superfície plana de um lago imperturbável.
Will retirou o jornal amassado embaixo de
si e o deixou sobre a mesinha mais próxima.
— Beatrice acreditava que um dia viria a
casar-se com vosso prometido, então não penso
ser inteligente ir caminhar junto de uma possível
rival.
— Rival. — Genevieve esboçou um rígido
sorriso, amargo. — Não há qualquer sentido.
— Na situação toda, sim, eu concordo.
— Bem, eu irei.
William arregalou os olhos. Santo Deus,
todos eles seriam responsáveis por o colocarem
em um hospício: Ethan, Samuel e agora
Genevieve.
— Mas acabei de lhe dizer que não seria
prudente…
— Não conheço a Srta. Lancaster muito
bem, como posso julgá-la como uma pessoa
perversa quando em nosso último encontro ela se
mostrou tão gentil?
— Não seja ingênua, Beatrice nunca
realizaria um convite por possuir uma alma
beatífica, há interesses intrínsecos em cada ato
dela.
— Apenas saberei se eu for — argumentou.
William levou as mãos às têmporas,
massageando-as.
— Ethan não ficará nem um pouco feliz com
isso — sussurrou, refletindo sobre a situação.
— Se bem me recordo, ambos disseram que
eu não era uma prisioneira.
— E não é.
— O Sr. Hamilton não é meu dono —
pontuou.
Inferno.
— Céus, ele não é. E Ethan merece sofrer
algumas consequências por seus atos, adoraria vê-
lo enfurecido quando soubesse que a senhorita foi
encontrar-se com Beatrice, porém não creio que
esse encontro será positivo, de forma alguma. Não
sabemos quão profundo é o desgosto que Ethan
infligiu a ela, e ela pode voltar a vingança para a
senhorita.
Genevieve tinha os olhos fixos sobre ele,
levando suas palavras em consideração. William,
aos poucos, voltava a relaxar, convicto de que
conseguiu lançar alguma luz naquela cabeça dura.
— Não posso fugir dela o tempo todo. A
Srta. Lancaster supõe que me amedronta, ela
sequer duvida de que eu a tema e a tia dela, por
conta do local de importância que ocupam em
relação ao Sr. Hamilton, e não posso permitir que
ela continue acreditando nisso, pois não sei até
onde ela poderá chegar se eu não me mostrar ser
uma força equivalente.
William piscou, atordoado.
— A senhorita deveria temê-la.
— Ela deveria temer a mim — devolveu.
Silêncio pesado e angustiante povoou cada
parcela daquela sala. William não sabia o que
falar, apenas tinha certeza de que não desejava
estar no meio daquilo tudo.
— Está bem, não direi mais nada, inclusive,
lhe disporei uma pequena soma para suas compras.
Faça o que considerar necessário.
Genevieve sorriu, um sorriso sincero e feliz.
— Obrigada. — O olhou nos olhos. —
Principalmente por preocupar-se com o que ela
poderá articular contra mim, mas sei defender-me.
— Tenho o dever de proteger minha prima
— gracejou, mas a sobriedade logo apoderou-se
de suas feições outra vez. — cuidado com
Beatrice — alertou.
— Estarei atenta a ela.
— Certo, faça boas compras.
Genevieve agradeceu, deixando o ambiente
e subindo as escadas, provavelmente para
preparar-se para o passeio.
William balançou a cabeça, perdido, sem
saber se tomou a decisão correta quando
concordou que ela fosse a esse encontro, porém
Genevieve tinha razão, não eram seus donos e ela
deveria ter a liberdade de tomar suas próprias
decisões; não era nem um pouco justo que todos
ali quisessem comandá-la, usando-a como uma
ferramenta para um fim específico, podando-a de
se movimentar naquele estranho tabuleiro em que a
atiraram.
Assim como ela demonstrou confiar em
Ethan, aceitando participar da farsa, ele também
teria que confiar nela.
Ah, que o amigo viesse compreender dessa
forma. — Era o que Will desejava.
— Querida, que bom que veio! — Beatrice
exclamou, puxando o braço de Genevieve para
entrelaçar ao dela.
Genevieve teve a sensação de ser lançada
no mar, sem sequer saber nadar. A água gélida
enrijeceu seus músculos e roubou o ar de seus
pulmões. A surpresa a impediu de se mover, de
lutar para não afundar, assim, permaneceu inerte
enquanto o toque frio e úmido, tal qual uma
superfície escamosa, se enrolava em seu braço.
— Podemos procurar um vestido para o
baile que minha tia realizará em vossa
homenagem. Não me diga que já encomendou
algum.
— Encomendei alguns, sim, mas não tive o
baile em mente, confesso.
Quase se esqueceu do baile e não estava
nada ansiosa para ele. O evento prometia ser
repleto de situações desagradáveis e conversas
tensas, principalmente sobre seu provável
comprometimento com Ethan, em que novas
especulações se assomariam sobre ela.
— A ajudarei a escolher.
Atrás delas, as duas moças que Genevieve
viu com Beatrice em Compton House as
acompanhavam, juntamente de Amelie.
Aparentavam estarem mergulhadas em suas
próprias conversas, mas, na verdade, mantinham-
se atentas às damas à frente, aguardando novos
capítulos de uma história que acompanhavam há
tempos.
A Srta. Lancaster reluzia dentro do vestido
verde, usando um chapéu em tom mais escuro,
adornado de um curto véu que lhe alcançava a
altura dos olhos. Encantadora, com seu rosto
redondo naturalmente corado, e cabelos louros
arrumados sem um mísero fio fora do lugar.
Estando lado a lado, Genevieve quase sumia,
obliterada pela presença da outra, tanto pela luz
natural que Beatrice emanava quanto pela altura,
bons centímetros superiores à Genevieve.
— Está ansiosa? — Beatrice voltou a falar.
— Será como uma apresentação à sociedade.
— Suponho que seja.
— Oh, sim, minha tia possui relações
influentes, inclusive com membros pertencentes à
aristocracia. A senhorita poderia conquistar o
coração de algum nobre, basta utilizar o vestido
correto.
Genevieve sentiu a gargalhada crescer em
sua garganta. A tragédia e o humor caminhavam
entre linhas tênues, linhas essas que Genevieve
jamais soube distinguir muito bem. Era esse o
plano de Beatrice com o convite ao passeio? Fazer
os olhos de Genevieve se voltarem para partidos
supostamente melhores do que Ethan?
Nunca teve tanta vontade de revelar a
verdade daquele casamento, contudo, sabia que
tinha que manter a boca fechada. Não soube ao
certo o que a levou a querer falar, mas era
provável que fosse pena; Beatrice não merecia
iludir-se tanto.
— Já existe um cavalheiro ocupando minhas
considerações, Srta. Lancaster. — Genevieve
achou por bem delimitar certos termos.
— Sr. Hamilton — concluiu.
Genevieve quis piscar, olhar para o chão e
ruborizar, desempenhando o perfeito papel de
dama que teve o segredo de seu coração exposto,
mas não conseguiu, em partes, porque aquele
grande espetáculo não a seduzia, o achava
lastimável, então manteve-se retribuindo o olhar
incisivo de Beatrice.
— Não deveria confiar seus sentimentos a
ele, já fiz isso e não houve alegria alguma, no
final. — As palavras da Srta. Lancaster saíram
embebidas em raiva.
— Sinto muito. — E sentia.
— Já fomos íntimos, Srta. Johnson, tão
íntimos como duas pessoas podem ser. — Baixou
a voz o máximo que pôde, para que ninguém
escutasse a informação além delas.
Íntimos? Não havia outra implicação para a
palavra senão o que Genevieve estava pensando,
que Beatrice e Ethan tiveram um envolvimento
mais profundo do que o administrador fez parecer.
Seria verdade? Ethan seria capaz?
Genevieve se alarmou com a informação, que
havia possibilidade de ser real, mal o conhecia,
como poderia determinar quais seriam suas ações?
Beatrice pareceu notar a dúvida que pairava
na mente de Genevieve, e aproveitou-se da
fragilidade.
— Eu poderia obrigá-lo a se casar comigo,
se revelasse a verdade ao meu pai ou à minha tia,
mas não o queria assim. — Negou com a cabeça,
aparentando estar genuinamente desolada. — Por
favor, não conte a ninguém ou minha honra será
arruinada. — Havia lágrimas rasas nos olhos
claros.
— Tranquilize-se, não costumo revelar
segredos.
Genevieve era um profundo poço de
segredos, que crescia cada vez mais, pronto para
devorá-la um dia.
— Espero que ele não tenha conseguido
enganar a senhorita da mesma forma — a sondou,
atenta a cada movimento do rosto de Genevieve.
— Não.
— Muito me alivia. — Levou a mão livre ao
peito. — Os vi tão unidos no outro dia, pensei que
o pior aconteceu e culpei-me tanto por não a ter
alertado antes, desde a primeira vez que nos vimos
na casa da minha tia.
— Não houve nada entre nós.
— E é melhor assim, minha querida. Afaste-
se enquanto nenhum dano irreparável foi feito.
— Não posso me afastar — pronunciou
como se fosse uma sentença, e era.
— Sim, pode! Tome as rédeas de vosso
coração, ainda há tempo. Reflita sobre o que eu
lhe disse e arranque até a última raiz vislumbrada
que se entremeou em seu cerne. Quem me dera ser
aconselhada assim.
— Prometo tentar.
— E eu a ajudarei. Muito me surpreende ele
não a persuadir a desistir de encontrar-me hoje.
Ele tentou.
Genevieve mordeu o lábio inferior, perplexa
com as verdades contidas na parcela da história
contada por Beatrice.
— Será arrebatada pelo amor de um bom
homem, querida Genevieve. — Deu tapinhas em
seu braço e Genevieve quase se contorceu. —
Sequer se recordará de que algum dia estimou o
Sr. Hamilton. — Riu.
— Desejo o mesmo para você.
— A mim resta a solidão, estou conformada.
Fiz escolhas erradas e serei assombrada por elas
até o último de meus dias.
Genevieve voltou-se para Beatrice, que
trazia uma expressão pesarosa, mas não foi ela que
atraiu a atenção da dama e sim o camafeu que ela
tinha no pescoço. Havia uma gravura em relevo na
peça, uma serpente.
“Perto dali a serpente astuta,
Insinuando-se meiga tece airosa
Um laço górdio na brunida cauda
E ostenta provas da fatal malícia,
Que mesmo assim nem era suspeitada.”
Noite passada, enquanto avançava na leitura
de “Paraíso Perdido”, Genevieve sublinhou tal
verso em seu livro. Lembrou-se de todos os
avisos, sutis e extravagantes, que a alertaram para
a víbora. Soltou o braço que estava entre o de
Beatrice e sentiu a cabeça girar. Coincidências não
ocorriam em sua vida e aquela não seria exceção.
Não deveria ser uma surpresa, desde o
princípio Genevieve percebeu que estaria entrando
em um ninho de vespas ao ocupar o espaço ao lado
de Ethan, e que logo receberia as ferroadas, mas
pensou que talvez Beatrice superasse o amor que
um dia cultivou, quando visse que não era
recíproco.
Mas ainda não tinha vontade de julgar
Beatrice, obviamente que não acreditaria tão
fielmente na amizade dela, contudo, não duvidava
do envolvimento que ela alegou possuir com
Ethan.
Era cedo para determinar como a versão
segredada por Beatrice alterava suas percepções,
bem, poderia sim alterar suas percepções, mas não
alterava a sua realidade. Genevieve esperava ao
menos fazer parte dos trâmites de alguém com
caráter e Ethan não o possuir, tornava algo que já
não era fácil, dezenas de vezes pior.

O período de compras foi tão exaustivo


quanto Genevieve supôs que seria, mas não se
arrependia de ter ido. Em algum momento,
Beatrice estava convicta de que Genevieve
confiava em suas intenções e agiu com mais
segurança, conversando abertamente, tratando-a
como alguém que já conhecia há anos.
Quando passavam perto de algum cavalheiro
solteiro, Beatrice se curvava em seu ouvido, e
discretamente enumerava as qualidades dele, como
se estivesse riscando itens em uma lista.
“Deveria tentar conquistá-lo” — A Srta.
Lancaster finalizava.
“Fique à vontade para tomá-lo para si,
não tenho pressa em encontrar um partido" —
retrucava Genevieve.
E a conversa seguia assim, com risos falsos
e pequenas alfinetadas inofensivas, porém
extenuantes.
Tinha pressa de retornar para Violet Valley e
suspirou, aliviada, quando o cocheiro parou,
ajudando-a a descer da carruagem. Amelie desceu
também, já ocupando-se com os poucos produtos
adquiridos por Genevieve. O mais importante
deles, o vestido para o baile, ainda não estava
pronto, então as únicas coisas que trouxe consigo
foram os sapatos e outros acessórios que iriam
compor sua figura.
Atravessou o exterior sem demora, a tarde
já estava prestes a tornar-se noite, e Genevieve
mal se alimentou ao longo do dia, então
encontrava-se faminta. Quase correu, ansiando
pelo jantar, mas conseguiu se conter.
Quando pisou na entrada, desestabilizou-se
com o inesperado peso de Storm sobre si, o cão
pulava, apoiando as patas sobre o seu torso,
latindo animado e reivindicando carinho. Jamais o
viu tão disposto assim e foi incapaz de refrear uma
risada em resposta ao comportamento sincero do
animal.
— Também senti saudade, Storm. — Usou
um tom diferente do que o seu usual, este era fino e
bobo, reservado para bebês e animais.
Coçou as orelhas dele e continuou a
gargalhar com as investidas que quase a
derrubavam.
— Ah, pare, pare — pediu, mas era inútil.
— Ele não vai parar.
Ethan, com passadas firmes e mãos
escondidas nos bolsos das calças, se aproximava.
Ele ostentava um semblante tenso que provocou
tensão nela, o riso anterior esmaeceu.
— Você demorou — Ethan acusou.
Acusou.
— Não tive intenção de demorar, mas
imprevistos ocorrem.
— Sim, não previ que aceitaria o convite de
Beatrice.
Genevieve endireitou a postura e deu novos
passos até Ethan, mantendo-se próxima o bastante
para olhá-lo profundamente nos olhos, mas longe o
suficiente para que não invadisse seu espaço
pessoal.
Enquanto isso, Storm saía, compreendendo
que não receberia mais nenhuma atenção, por ora.
— Não vi problemas em aceitar.
— Verdade? Como pôde não os ver? —
Cruzou os braços e uniu as sobrancelhas, forjando
um vinco em sua fronte.
— Decerto eu tinha que agir somente com a
vossa aprovação, senhor — ironizou. — Sinto
muito não ter solicitado permissão.
— Não se trata disso.
— Trata-se do quê? De ser imensamente
grata, não mostrar resistência a vossas vontades,
não poder contrariá-lo, não acatar convites que
não julgue pertinentes…
— Genevieve… — advertiu.
— Até agora fiz tudo o que me solicitou sem
sequer pestanejar, mereço que confie em mim.
— Confio na senhorita, mas não confio em
Beatrice. Eu não queria que estivesse com ela sem
a minha presença.
— Por favor, não me sufoque — falou em
voz baixa.
— Sufocando-a? — Ethan se surpreendeu.
— Estive prestes a enlouquecer de preocupação,
eu jamais me perdoaria se Beatrice fizesse algo
consigo.
— E eu seria perfeitamente capaz de
revidar.
— Peço somente que me comunique quando
estiver prestes a fazer algo assim.
— Para que possa me convencer a não fazer.
— Exatamente.
— E o que reserva ao senhor este direito?
— Sua consideração por mim. Pensei que
houvesse algum tipo de cumplicidade entre nós.
— E há, não violei nenhum termo de nosso
acordo.
Ethan soltou o ar em seus pulmões e fechou
os olhos, inspirando longamente antes de tornar a
abri-los.
— É assim que vai agir daqui por diante? —
Pareceu uma pergunta mais reflexiva do que
direcionada a ela.
— Sou observadora, Sr. Hamilton, e até
agora o senhor me mostrou ser alguém que estima
ter o controle em todos os âmbitos que puder, mas
devo alertá-lo de que não o possui sobre mim.
Talvez os tenha sobre meu corpo, mas não sobre
meus pensamentos.
O corpo dele reagiu como se as palavras
fossem golpes físicos, seu rosto gradativamente se
alternava entre surpresa e indignação.
— Por que insiste em recordar sobre o
leilão, quando eu jamais fiz questão de usá-lo
contra a senhorita?
— Porque não consigo me esquecer dele —
sussurrou.
Genevieve não conseguia, era uma pequena
dor, latejando sempre, a cada segundo. Às vezes
doía menos, e às vezes mais, mas sem jamais
deixar de doer.
— Não suportarei que traga esse assunto a
cada discussão que tivermos, principalmente
quando os temas não se relacionam.
— Mas se relacionam, tudo está relacionado
a isso, ou então eu sequer teria conhecido a Srta.
Lancaster e ela sequer me convidaria para fazer
compras.
— Estou zelando por sua segurança.
— Ou por vossos interesses.
— Não creio que pense tão mal de mim
assim. — Negou com a cabeça.
— Se na primeira vez que não ajo com
postura servil, o senhor vem confrontar-me, isso
leva-me a pensar o pior sobre o senhor.
— E acaso quer que eu tenha uma postura
servil diante de situações que vejo como
potencialmente desastrosas para todos nós?
Conheço Beatrice melhor do que a senhorita
conhece, sei os perigos que ela apresenta.
— Mas estou aqui, intacta, sem qualquer
arranhão. Essa evidência deve servir de algo.
— Serviu para empurrar-me para as
beiradas da insanidade.
E ela, como se manteria sã?
Tentou compreender Beatrice, e Ethan a
recebeu com uma postura autoritária, mesmo após
fazer questão de enfatizar que Genevieve dispunha
de certa liberdade. Era desconcertante, quis gritar
com ele e depois deixar aquela casa, Liverpool e a
até a Inglaterra para trás, mas não era possível.
— Estou faminta — declarou, findando a
discussão.
Genevieve não aguardou resposta ao
caminhar para a sala de jantar.
A cada dia que se passava, tinha menos
vontade de estar ali.

Mãos firmes mexiam o caldeirão de ferro


fundido. O líquido grosso, de ossos, músculos e
pelos da cabra, ainda viva, que fora mergulhada
em água fervente, estava em processo de
resfriamento.
Se não conquistasse seus objetivos por bem,
os conquistaria pelo mal. Nunca viu problemas nos
atalhos que costumava utilizar, eles eram caros
sim, mas era um preço que considerava justo a se
pagar.
Arregaçou a manga e com a mão livre,
trouxe uma adaga antiga, de punho cravejado de
rubis, passando a lâmina suavemente sobre a
própria palma. Deixou que o líquido rubro e
morno escorresse pelo braço e caísse sobre o
tacho.
Fechou os olhos, murmurando palavras em
latim, uma versão profana e avessa do “Pai
nosso", que servia a uma criatura das trevas. Sua
respiração tornou-se superficial, a concentração
estava falha, a mão que pairava sobre o tacho
tremia, com o punho cerrado enquanto o sangue
gotejava, mas não podia interromper até que
estivesse feito. Doía prosseguir, ah, mas a dor, a
dor fazia parte do sacrifício.
Realizou treze repetições das frases em
latim e quando declamou a última palavra, levou o
polegar repleto de sangue ao centro de sua testa e
desenhou a cruz invertida.
Se permitiu alguns minutos para estabilizar a
respiração, antes de mergulhar o braço
ensanguentado dentro do tacho, procurando um
osso em específico. Tateou pela massa nada
agradável até o encontrar, era pequeno e ainda
conservava um pouco de carne grudada. Após
analisá-lo, levou-o à boca e o sugou.
Estava feito.
O baile seria no dia seguinte e Genevieve
sentiu o peso da responsabilidade se instalar sobre
seus ombros. Teria que ir e fingir que estava tudo
bem, teria que sorrir e mostrar-se apaixonada por
um homem que ela mal havia trocado duas
palavras desde que brigaram.
Mas Genevieve não se arrependia por ter
aceitado o convite para o passeio, principalmente
por ter conseguido economizar em suas compras,
guardando o dinheiro que restou. Havia uma
pequena lata de costuras em sua penteadeira e esta
se tornaria seu cofre secreto, que Genevieve
encheria sempre que tivesse oportunidade.
Deveria se precaver para o futuro incerto.
Infelizmente para ela, o período de
afastamento e silêncio não prosseguiria muito
mais, pois Ethan a convocou para conversarem em
uma das salas reservadas na casa de William. O
motivo era evidente: o baile. Como poderiam
prosseguir como um casal apaixonado se
estivessem em atrito?
Desanimada, Genevieve foi ao encontro do
administrador. Avançou pelos corredores tentando
manter-se calma, não queria discutir outra vez, sua
vida já era terrivelmente densa para que incluísse
novos dissabores a ela, entretanto, era incapaz de
não mostrar resistência quando se sentia ameaçada
e, de alguma forma, acreditava que Ethan
ameaçava suas escolhas.
Ela o viu antes que ele a visse; a porta
estava entreaberta e Ethan estava sentado, absorto
com um livro. Pela primeira vez, o presenciou com
os cabelos soltos, os fios lisos e castanhos
alcançavam seus ombros. Era a primeira vez,
também, que o via utilizar óculos, de aros
redondos finos, contraditoriamente delicados ao
repousarem em uma face vigorosa, quase selvagem
em seus contornos firmes.
Detectando-a de maneira inconsciente, ele
elevou os olhos em sua direção, um sorriso
espontâneo se formulou antes que ele pudesse
detê-lo.
Ethan ficou de pé para recebê-la e
Genevieve se adiantou para a sala, sem retribuir o
sorriso. Ela logo tomou um assento diante dele,
sem fazer cerimônias, com pressa em concluir
aquilo.
— Sobre o que gostaria de tratar? —
Genevieve questionou.
— Devo-lhe desculpas. — Foi direto e isso
a agradou. — Se quer ter encontros com Beatrice,
eu não deveria me incomodar.
— Mas se incomoda.
— É claro que sim, porém a senhorita tem
razão quando diz que não possuo o direito de
impedi-la de fazer qualquer coisa, mas eu acredito
ter o de aconselhá-la.
— Quando eu desejar um conselho, o
solicitarei.
Ethan enrijeceu, contraindo cada músculo
visível de seu corpo. Era possível notar uma veia
pulsando rapidamente em seu pescoço, na parcela
de pele descoberta entre o nó frouxo do lenço que
usava.
— Tem um espírito difícil, Srta. Johnson.
— Não pedirei desculpas por isso.
Ethan ficou sem saber o que dizer outra vez,
ponderando as palavras que deveria usar.
Genevieve era consciente de que o irritava,
e que deveria ser mais cautelosa com o nível de
fúria que provocava em Ethan, ou então correria o
risco de ser lançada na rua, sem um mísero penny
no bolso. Queria evitar, mas não conseguia, algo
nele a provocava, um traço de arrogância e ela
jamais se permitiria subjugar em qualquer
circunstância, mesmo nas que a ameaçavam de
completa ruína.
— Estive pensando em restabelecer a paz
entre nós. O que acha?
— Não gosto de brigar.
— Pois parece que faz muito gosto —
provocou ele.
— Dependerá apenas do senhor. — Sorriu.
— Sei ser tão civilizada quanto qualquer outro.
— Prometo fazer o possível para que os
desentendimentos não se repitam.
Genevieve concordou com a cabeça.
— Convivência nunca é fácil. Sempre tive
certa dificuldade em lidar com pessoas, embora
pareça que eu seja sociável — Ethan confessou,
recostando-se no estofado e concebendo uma
postura mais relaxada. — Por isso não me imagino
em um compromisso.
— Não é possível controlar relações
humanas como se controla os números, a ausência
de domínio o assusta.
— Deveria repensar sobre as conclusões
que externaliza em voz alta.
— Não quis ofendê-lo. — Realmente não
queria.
Dessa vez Genevieve se excedeu, tinha que
admitir. Até cobriu a boca discretamente, em
reflexo das suas ações inesperadas.
— Não identifico os traços de extrema
obsessão por controle que vê em mim, mas sei que
eles existem.
— Não penso que seja uma má pessoa, Sr.
Hamilton.
— Obrigado, Srta. Johnson — ditou com
humor.
— Estamos em constante evolução. —
Sorriu.
— Uma frase sábia, ambos devemos aplicar
em nossas vidas.
— Pelo menos, devemos tentar.
Ethan se ajeitou novamente, pigarreou e
jogou uma mecha que lhe caía em frente aos óculos
para trás, com os dedos.
— Pedirei sua mão amanhã. William, como
seu parente masculino mais próximo, a aceitará.
— Sinto-me arrebatada por tamanho
romantismo. — O curto sorriso dela se alargou,
cortante como estilhaços de vidro.
Ethan analisou a mulher diante de si, e a
cada dia que se passava, parecia que ele a via com
mais nitidez, e não era por conta dos óculos que
usava no momento. Descobriu em Genevieve um
traço singular, que surpreendentemente o atraía: o
seu senso de humor. Não era um tipo de humor
espirituoso e agradável que se via nos salões,
tampouco vulgar de risadas altas que se
encontrava nas tavernas; não, Genevieve era o riso
fúnebre quase sussurrante, em meio a tragédias.
— Será um evento e tanto, todas as outras
damas presentes no baile a invejarão.
— Por ser a escolhida do galante
administrador de Whitewood Holt. — Elevou uma
única sobrancelha ao declarar.
— Por ser a homenageada da noite, que
ainda terminará noiva. Todas as vozes estarão
concentradas em pronunciar seu nome, não se
falará de outra coisa. — Ele fez uma pausa e
franziu o cenho, depois sorriu. — Agradeço por
ter elogiado minha aparência, mas se a inveja
fosse relacionada a atributos físicos de seu
acompanhante, eu seria o mais invejado.
— Não me atrai ter todas as atenções sobre
mim, se estivesse tentando me conquistar, e
pedisse minha mão em um baile, saiba que eu não
aceitaria.
Ethan notou que ela fez questão de ignorar
os elogios que trocaram.
— Como eu deveria pedir? — Acariciou o
lábio com o indicador, pensativo.
— Oras, não sei… — Desviou o olhar,
levemente ruborizada.
— Como o seu primeiro marido pediu? —
Ethan alterou a pergunta.
Genevieve estagnou, sua boca abriu e
depois fechou, sem que ela soubesse quais
palavras articular.
Ele se repreendeu prontamente. A conversa
estava tendo um andamento natural e agradável e
ele teve que destruí-la ao mencionar um casamento
que provavelmente trazia péssimas recordações à
Genevieve.
— Sinto muito, deveria ter refletido melhor
antes de falar.
— Está tudo bem, apenas… — seus olhos se
moveram, talvez procurando como concluir a frase
— …apenas me surpreendi. — Piscou algumas
vezes, espantando devaneios e voltou a encará-lo.
Nesses instantes, em que ele via sua
fragilidade escapar pelas fissuras da pedra onde
Genevieve se escondia, Ethan tinha vontade de
acalentá-la, acolhê-la e oferecer apoio; queria ser
digno da confiança dela para ter a possibilidade
de lavar suas feridas, chagas que a impediam de
brilhar plenamente, como deveria ser.
— Pode conversar comigo, se desejar.
Compartilhar esse fardo enorme que carrega no
coração.
Já havia feito a mesma oferta antes, em
Compton House, mas teve a necessidade de frisá-
la outra vez, sobretudo, após terem passado quase
uma semana afastados, Ethan inclusive preferiu
dormir em seu apartamento durante esses dias, não
por estar ressentido com o atrito, mas porque uma
das falas ditas na discussão ficou gravada em sua
memória.
“Não me sufoque."
E ele não queria sufocá-la, concluindo que
algum espaço era primordial. Mas o afastamento
revelou algo que ele não estava preparado para
confrontar: sentiu falta de vê-la, sentiu falta até das
desavenças.
Genevieve não tinha respondido, preferindo
brincar com os cachos negros espalhados sobre
seu ombro esquerdo e Ethan não persistiria em
uma devolutiva.
— Era apenas isso o que eu gostaria de
dizer — ele concluiu.
— Estarei preparada para o pedido, será
uma honra. — O tom de humor trágico retornou.
Significava que tudo estava bem.
— A honra é minha.
— Ainda há tempo de se arrepender —
avisou com certa diversão.
— E casar-me com uma mulher que me
ama? Está febril, devo chamar o doutor?
— Tem razão, não sei como pude cogitar
tamanho absurdo.
— Ainda bem que a razão retornou a si,
Srta. Johnson. Assustou-me.
— Foi um lapso, estou com os nervos
alterados por conta de amanhã. Sabe como é,
haverá uma soma de emoções.
Ethan se curvou para frente, em direção à
Genevieve, e a chamou como se fosse contar um
segredo.
— Estou igualmente apreensivo. — Usou um
tom baixo, embora não houvesse mais ninguém ali.
Com a proximidade, ele inspirou um pouco
do perfume da dama, era suave, o recordava de
campos de lavanda.
— Oh, eu não sabia! — Piscou teatralmente.
— O senhor me parece sempre tão seguro.
— Está vendo só, como me conhece mal. —
Voltou a se recostar.
— Mas…
Genevieve se interrompeu quando a porta
foi aberta e a governanta entrou com um bule e
xícaras. A senhora arregalou os olhos e depois os
estreitou, depositando a bandeja de prata sobre
uma pequena mesa ao lado.
— Sr. Hamilton, sabe que não é adequado
estarem sozinhos aqui, pobre Srta. Johnson, não
merece que o senhor a corrompa.
— Em breve estaremos casados — revelou.
A governanta levou ambas as mãos à boca e
fez movimentos de negação com a cabeça.
Lágrimas se acumularam em seus olhos, fazendo-
os brilhar.
— Ah, Sr. Hamilton, eu sempre soube que
estava aguardando a chegada da dama correta. —
Sua voz mal saía, comprometida pela emoção.
— Ainda bem que decidi esperar.
— Tem razão, Srta. Johnson é um primor,
uma joia. — Mal podia se conter de felicidade. —
Já solicitou a mão dela ao pai?
— Meus pais faleceram quando eu possuía
doze anos, sou tutelada de meu irmão e o acordo já
foi devidamente estabelecido — Genevieve se
apressou a responder.
Ethan se aturdiu com a informação. Algumas
das atitudes de Genevieve tornaram-se mais fáceis
de compreender após saber que o luto se fez
presente desde muito cedo em sua vida. Talvez
após findar-se o trato, ele pudesse procurar o
irmão que ela se referiu, era uma maneira de não a
deixar desamparada.
— Que bom, minha flor, que bom. —
Colocou as mãos na cintura e os fitou, orgulhosa.
— Mas ainda não é adequado ficarem sozinhos,
vamos — chamou.
Genevieve se levantou sem demora,
acompanhando a governanta, porém lançou um
último sorrisinho sarcástico a ele.

Não podia respirar.


A sensação sufocante a despertou com
brusquidão, mas Genevieve não conseguia abrir os
olhos, tampouco a boca, para ser capaz de sorver
um pouco de ar. Seu coração retumbava
enclausurado no peito.
Pensamentos terríveis povoaram sua mente,
imagens retorcidas, assombrosas, de serpentes
emergindo de corpos abertos e vísceras expostas.
Pele pútrida esticada sobre ossos alvos, buracos
ocos de olhos vazios e bocas rijas escancaradas
em perpétuo grito de horror.
Medo. Medo. Medo.
O pavor a paralisava, sabia estar acordada,
mesmo assim estava dentro de um pesadelo. A
pressão em seu peito piorava a cada instante,
comprimindo seus órgãos, esmagando-os. Doía
tanto, que Genevieve tinha certeza de que morreria
por falta de ar.
Reunindo todo o esforço que conseguiu,
tentando reagir, abriu os olhos. O que viu a fez
desejar não os ter abertos.
Uma criatura estava de cócoras em cima
dela, com dois cascos sobre seu peito. A imagem
tremulava, vaporosa como uma sombra, mas ainda
podia ver a silhueta com nitidez, seu torso curvado
e seus chifres retorcidos. A única coisa sólida
eram os olhos, vermelhos fulgurantes, próximos
demais do rosto de Genevieve, sem piscar, sem
desviar.
Seus membros estavam dormentes, suor frio
escorria do couro cabeludo, sua respiração era
superficial e o centro do peito queimava, quase
afundando sob o peso dos cascos. Os olhos de
Genevieve ardiam, mas ela não podia desviar-se
dos dois orbes flamejantes. A criatura se
aproximou demais, rente ao rosto dela; não havia
nenhuma respiração assoprada em sua face, por
outro lado, um odor pútrido de decomposição a
sufocava.
Depois de alguns minutos de completa
imobilidade, em um período que representava a
eternidade de um horror particular para
Genevieve, uma leve brisa afastou as cortinas da
janela aberta, permitindo que a claridade do luar
invadisse o quarto. A criatura moveu a cabeça, em
um movimento rápido, de características
animalescas, e esmaeceu, assoprada e diluída no
ar, como se nunca tivesse existido.
Genevieve permaneceu presa, refém do
corpo paralisado. Lágrimas riscaram seu rosto e
um soluço escapou por entre a garganta apertada.
No escuro, o par de puxadores dourados na gaveta
superior do móvel à frente da cama se
assemelhavam aos olhos daquele ser, mas
Genevieve sabia que não tinha imaginado a
aparição, tampouco confundindo-a com o jogo de
sombras dos puxadores.
Após muito insistir, conseguiu se sentar, sua
vontade era de gritar, mas o terror a emudeceu.
Esfregou o rosto e com as mãos trêmulas, acendeu
a vela que estava ao lado da cama. Não admitiria
permanecer no completo escuro outra vez.
Correu para a janela e se debruçou no
peitoril, soltando um gemido dolorido seguido de
pranto. Com a face contraída pelo choro, observou
a lua, uma pequena réstia passava pelas nuvens de
chuva, mas foi suficiente para banir o mal de seu
quarto.
E ela se lembrou de que tinha fechado a
janela ao anoitecer, dada as baixas temperaturas e
as chuvas constantes seria impossível permanecer
no cômodo sem se resfriar acaso mantivesse as
janelas abertas, então como aconteceu? Seria um
guardião invisível a zelar por ela?
Precisava sair.
Se recompôs, fungando e limpando as
lágrimas com o dorso da mão, reprimiu alguns
soluços. Ainda atordoada, apanhou o penhoar e
desceu as escadas enquanto o amarrava na cintura,
estava descalça, mas não se incomodou com o
assoalho gelado. Abriu as portas e foi para fora,
necessitando da lua.
A brisa que anteriormente afastou as
cortinas, jogou os seus cabelos soltos para trás.
Genevieve tropeçava, com os olhos turvos pelo
choro, pequenos sons angustiantes escapavam por
seus lábios e ela avançou até achar o ponto que
recebia maior iluminação.
As nuvens foram sopradas outra vez e a luz
da lua surgiu, cobrindo Genevieve, ela parou de
chorar, mas ainda havia trilhas lustrosas em seu
rosto. Seus olhos tornaram-se perolados e ela
inspirou longamente, se acalmando.
Não estava sozinha, era protegida, tinha
que confiar.
Ao longe, uma coruja cinzenta e de olhos
muito verdes piou, observando a dama,
observando a criança perdida que em breve
encontraria seu caminho.

Ethan despertou alvoroçado, teve um sonho


ruim, mas não conseguia se lembrar dele.
Resmungou e esticou os braços ao bocejar. Sabia
que não voltaria a dormir tão cedo, encontrava-se
agitado demais para tanto, então se levantou,
prestes a buscar um copo de água, quando pela
janela aberta, vislumbrou algo que captou sua
atenção.
Aproximou-se para verificar melhor.
Névoas envolviam o jardim e tornavam-se
prateadas por conta da lua atipicamente clara. No
centro dele, uma dama de cabelos pretos, vestida
com uma fina camisola branca, envolta em um
penhoar translúcido, fitava o céu. Ela estava de
costas para ele de modo que não conseguia ver seu
rosto e isso instigava ainda mais a curiosidade de
Ethan.
Vez ou outra o vento brincava com os cachos
de obsidiana e com o tecido leve da camisola,
Genevieve não parecia se sensibilizar com o frio
ou temer sucumbir a alguma enfermidade
decorrente de friagem; seguia imóvel, fitando o
luar.
O que ela estaria pensando?
Ethan teve vontade de descer as escadas e
encontrá-la, algo naquela cena o chamava. Um fio
tênue e maleável, como de uma teia de aranha,
atado ao seu peito, conectava-o à Genevieve;
Ethan quis puxá-lo.
Mas não o faria, não sob o véu negro da
noite, que preenchia a mente de um homem com
trevas, obscuridades que não se mostram presentes
à luz do dia. A maior ameaça contida na noite,
contudo, era revelar as coisas como realmente
eram, destituídas de disfarces. A noite era dura e
honesta, não permitia dissimulações, porém Ethan
ainda não estava pronto para confrontar as
verdades contidas em seu coração.

Genevieve torcia um lenço nas mãos, não


tinha vontade de estar naquela casa outra vez e
sabia que não deveria estar, todos os avisos
culminavam ali, para que evitasse Whitewood
Holt, algo ruim estava prestes a ocorrer e
Genevieve não iria suportar.
Teve vontade de dar três socos no teto da
carruagem, solicitando que o cocheiro parasse,
para que então pudesse fugir, correr o mais longe
possível, mas não o faria, era covarde demais para
tanto, por outro lado, o ato de ir até o baile era um
indicativo de coragem.
De alguma maneira, sempre conseguiu
escapar das armadilhas preparadas pelo destino,
manteve seu segredo, suportou a travessia no
Princesa Delphine, contornou até mesmo o leilão,
mas aquele baile… ele era a sua sentença, o preço
a ser pago por ser uma criatura tão sórdida.
Infeliz dela, ser a escolhida para carregar
tamanhos fardos. Reconhecia que os dons a
auxiliaram em diversas situações, mas também
eram responsáveis por colocá-la em apuros,
levando-a a desejar que eles jamais tivessem se
manifestado. Era provável que tudo fosse
diferente; talvez a doença não tivesse roubado a
vida de seus pais e Vincent não a teria atirado na
sarjeta. Compreendia que a culpa não era dela por
essas tragédias, mas, ao mesmo tempo, Genevieve
acreditava ter responsabilidade naquilo tudo,
assumindo o papel de bruxa amaldiçoada que
todos faziam questão de repudiar.
Arderia nos círculos mais profundos do
inferno, queimaria na fogueira e viu com os
próprios olhos que seu algoz a espreitava,
aguardando o momento correto de arrastá-la para o
Érebo. A figura que descansou sobre o seu peito a
assombrava, recordando-a de que ela apenas
podia vê-lo por carregar as habilidades que
carregava.
Que dualidade cruel, estava exausta de ter
que equilibrar dom e maldição; cura e corrupção;
casamento e prisão. Eram todas as faces de uma
mesma moeda acobreada jogada para o alto que
girava sem parar: dom, maldição, cura,
corrupção, casamento, prisão…
— Parece que estamos nos encaminhando
para um funeral — William objetou, em voz baixa.
Ethan riu.
— Será um evento determinante, é natural
estarmos apreensivos.
— Claro, mas vocês podem falar, o silêncio
apenas serve para nos deixar mais nervosos —
reclamou, ajustando o alfinete de safira que
prendia seu lenço.
— Também está com medo? — Ethan voltou
o rosto para o amigo, com expressão de surpresa.
— Não é segredo nenhum que eu e sua
empregadora não reservamos muito apreço pela
figura um do outro.
— Sarah estará ocupada com os
convidados.
— E eu sou um convidado.
— Não um importante.
— Ótimo ponto, Hamilton. — Relaxou o
corpo, se sentando mais confortavelmente no
assento da carruagem. — Ótimo ponto.
— Quem dera eu não ser considerada
convidada importante — Genevieve sussurrou.
— Ocorrerá rápido. Depois disso, terá que
preocupar-se apenas com o casamento e então
estaremos livres — Ethan tentou tranquilizar.
Genevieve não o respondeu. Ela inspirou
profundamente e depois soltou o ar devagar
através dos lábios. Tinha suas ressalvas quanto à
afirmação, mas não as externalizou.
— Não dormiram bem? — William
surpreendeu a questionar. — Sei que estou sendo
indelicado, mas parecem cansados.
— Está insinuando algo, Carter? — Ethan
devolveu com outra pergunta. — Não submeta a
Srta. Johnson a esse tipo desprezível de conversas.
Genevieve não compreendeu a ferocidade
de Ethan, o desconforto, a expressão dura e ao
mesmo tempo incrédula e ofendida, sendo
direcionada a William.
— Não insinuei nada. Apenas perguntei,
pois é evidente que dormiram mal, quem imaginou
qualquer cena, foi você.
As bochechas do administrador adquiriram
um tom róseo e Genevieve mal podia crer que
Ethan Hamilton estava ruborizando. Um curto
sorriso escapou dos lábios da dama, enquanto ele,
apesar de corado, seguia com a mandíbula
tensionada e feição fechada.
— Tive um sonho ruim — Ethan revelou.
A boca de Genevieve ressecou e uma mão
invisível comprimiu seu coração, obrigando-o a
bombear mais rápido.
— Com o que sonhou? — ela quis saber, sua
voz era frágil, temendo a resposta.
— Não me recordo.
— Eu também não costumo lembrar-me dos
sonhos, curioso — refletiu Carter.
Os olhos de Ethan voltaram-se à Genevieve,
e a cada dia ela se sentia mais incomodada com
eles, com medo de que pudessem enxergar muito
mais do que deveriam.
— Algo lhe tirou o sono, Srta. Johnson?
Era evidente que não dormiu, Genevieve até
tentou recorrer a alguns truques para minimizar os
meios círculos arroxeados sob os olhos, mas não
conseguiu disfarçá-los completamente, além de
que qualquer marca em sua pele, era impossível de
não se destacar.
— Pesadelos.
— Deve ser a apreensão com o baile, estão
sob muita expectativa — opinou William.
— É verdade — Ethan concordou.
Antes que pudessem iniciar um novo
diálogo, a carruagem estagnou. William desceu
primeiro, em seguida, Ethan, que permaneceu
próximo à porta para amparar Genevieve.
A mão do administrador estava estendida
para ela, Genevieve engoliu os nós que se
avolumavam em sua garganta e segurou a palma
ofertada. Era tudo parte do espetáculo, Genevieve
concluiu, para que os convidados próximos
notassem o gesto e tecessem suposições.
Desceu com ajuda de Ethan e colocou o
braço dentro do dele, entrariam juntos. Ele lançou
um sorriso a ela, cúmplice, mas para olhos
despreparados, poderia ser julgado como
enamorado.
Essa noite, ele trajava um conjunto novo,
bem-cortado, da cor preta. O casaco caía
graciosamente em seus ombros e a corrente do
relógio, que ficava exposta sobre o colete, trazia a
elegância necessária. Embora vestisse preto, seus
olhos eram um contraponto de cor que fazia sua
figura se destacar naquele mar negro de
convidados em tons escuros se encaminhando para
a entrada. Os cabelos de Ethan estavam penteados
e cobertos por uma cartola, mas ela os preferia
revoltos. Que surpresa que foi, ela notar que tinha
uma preferência sobre os cabelos do Sr. Hamilton.
Próximos a eles, William seguia tão
impecável quanto seu amigo, os olhos azuis
brilhavam, assim como a safira que ele trazia no
anelar e a que foi cravejada no alfinete que
adornava o lenço no pescoço. Seus cabelos eram
fios de ouro mesclados ao trigo, reluzindo sob os
bolsões de iluminação alaranjada provenientes dos
postes. Não havia dúvidas de que existia sangue
aristocrata correndo em suas veias.
Genevieve, por sua vez, usava um vestido
que ali, no escuro, poderia ser considerado preto,
mas, na realidade, era de um tom profundo de azul.
Uma padronagem negra, quase imperceptível,
estampava o tecido. Apliques rendados de cor
prateada eram um contraste bem-vindo, que
espalhados rente ao decote, e descendo pela
cintura, enalteciam os atributos físicos de
Genevieve. A renda também se fazia presente na
barra e o desenho do decote era aberto, quase
alcançando os ombros, diferindo-se dos outros
modelos de gola alta que ela vinha utilizando.
A dama não supôs que haveria tantas
pessoas assim, e sua cabeça passou a latejar.
Antes que pisassem na soleira, Genevieve realizou
uma prece, solicitando por proteção, visualizando
um véu prateado recaindo sobre ela e em seus
acompanhantes, que de uma certa forma, se
tornaram pessoas de quem não desejava nenhum
mal, mal este que ela sabia estar espreitando cada
fresta de Whitewood Holt.
Ao passar pela porta, e se ver sob os
olhares das imagens fotografadas e pintadas do Sr.
Whitewood, Genevieve foi acometida pelas
mesmas sensações que ocorreram anteriormente,
porém foi capaz de antecipá-las dessa vez,
impedindo-as de se espalharem tão profundamente
em si.
Dali em diante, foi uma sucessão de rostos
sorridentes surgindo, nomes sendo apresentados
— os quais ela não conseguia lembrar — e um
borrão de pessoas que entravam em seu campo de
visão e sumiam tão rápido quanto apareciam.
Alguns deles riam, encantados, quando ela
falava qualquer coisa, por conta de sua pronúncia
diferenciada, e isso a enervava, como se ela fosse
algum tipo de atração de um espetáculo, e em
breve seria mesmo, quando Ethan expusesse o
matrimônio.
O administrador a direcionou para uma ala
oposta àquela que visitaram, onde ficava o salão.
Casais giravam em sincronia em seu centro,
compartilhando danças e Genevieve sentiu-se mais
acuada, detestava dançar, apesar de achar bonito.
Seria considerada rude se declinasse um
convite para o minueto, como poderia negar?
Deveria ter refletido sobre isso antes, sobre tocar
outras pessoas, permanecer próxima a elas e ainda
ter que girar graciosamente e com um belíssimo
sorriso no rosto.
Tudo ali era o oposto de quem ela era,
forças antagonistas convergindo e em dado
momento alguma dessas referidas forças
sucumbiria, Genevieve suspeitava de que seria ela
a ruir.
— Está se saindo muito bem — Ethan
segredou à Genevieve.
Os dois estavam mais próximos da parede
do que do centro do salão, enquanto isso, William,
do outro lado do amplo ambiente, parecia
envolvido em uma conversa com uma bela dama
jovem de cabelos louros e vestido rosa, ela sorria
e delicadamente o tocava no braço.
Pelo menos alguém ali estava se
divertindo.
— Por quanto tempo ainda precisaremos
ficar? — ela perguntou.
— Será rápido, prometo procurar Sarah
assim que os convidados pararem de chegar, para
que possamos organizar o pedido.
— Certo, eu consigo — murmurou para si
mesma, olhando para todos os lugares, mas sem
ver coisa alguma.
— Não gosta de participar de eventos, ou
não gosta deste em particular? — Ethan trazia um
genuíno interesse com a pergunta, procurando os
olhos dela e persuadindo Genevieve a devolver o
olhar.
— Estar em meio a muitas pessoas é difícil
para mim.
Ele parou e fez um gesto de concordância,
como se algumas peças se encaixassem em sua
mente.
— Agora compreendo…
— Compreende o quê?
— Os episódios de mal-estar sofridos pela
senhorita, lembro-me que um deles ocorreu em
Compton House, quando estávamos cercados de
pessoas.
— Não é sempre que acontece.
— Iremos embora assim que o pedido for
feito, não tenho intenção alguma de prolongar sua
agonia. Está de acordo, Srta. Johnson?
— Sim, é claro.
— Bem… — Olhou ao redor. — Também
não sou adepto a tais festejos, quando ocorrem eu
prefiro permanecer lá fora. — Enfiou as mãos nos
bolsos.
— Demasiadamente melancólico para o
senhor, sempre o imaginei como alguém que se
entregava aos momentos de celebração.
— Sei celebrar, não preciso de um baile
para isso.
A fala provocou algo dentro de Genevieve.
Ethan era um compilado de contradições e ela
ainda não sabia o que pensar sobre ele. Ele era um
homem ambicioso, também aquele que lhe
prestava gentilezas e ao mesmo tempo o homem
que arruinou Beatrice e se recusou a se casar com
ela. E para confundi-la ainda mais, havia
momentos em que estabeleciam diálogos tão
autênticos e ela sentia… sentia algo diferente, um
tipo de proximidade, como se tivesse encontrado
um adversário à altura para desafiá-la.
— Mesmo assim, quis um baile para
anunciar nosso casamento. — Genevieve sorriu,
mas não havia resquícios de alegria em seus
lábios. — Tem um coração dourado e a mente de
um trapaceiro, encena nosso romance com
finalidades ambiciosas, mas me presenteou com
um livro de valor sentimental e vejo como
verdadeiramente se importa com seus amigos,
inclusive, a Sra. Whitewood. Então diga-me, quem
o senhor realmente é, Ethan Hamilton?
Lentamente, um sorriso travesso se espalhou
pelos lábios dele, Genevieve se amaldiçoou por
achá-lo tão atraente.
— Não sabia que estava tão curiosa sobre
mim.
— Em breve será meu marido.
— E quem a senhorita é, Genevieve
Johnson?
— Não me respondeu e eu perguntei
primeiro.
— É uma pergunta difícil. Certas coisas não
são possíveis de serem explicadas e eu receio não
ter suficiente habilidade narrativa para tanto.
— O senhor supõe não ter — instigou.
— Não tenho — afirmou —, mas faço votos
de que se surpreenda positivamente com o que vier
a desvendar sobre minha pessoa, com quem
“realmente sou".
Ela concordou silenciosamente.
— Nos conhecemos tão pouco — sussurrou
Genevieve.
— Que tal uma troca? Revelo algo
verdadeiro sobre mim e a senhorita retribui a
gentileza.
Algo verdadeiro sobre Ethan, ela poderia
acreditar? E a troca valeria a pena? Pois
Genevieve sabia que as suas moedas não possuíam
valor equivalente, uma vez que seus segredos eram
mais sombrios e a verdadeira Genevieve deveria
permanecer escondida, enterrada nas terras das
plantações de sua família.
— Tudo bem — acabou concordando, e
fixou o olhar nos olhos dele.
— Pois bem, serei o primeiro. — Deu um
passo adiante, diminuindo o espaço que os
separava e abaixou um pouco o rosto, só um
pouco. — Não gosto de maçãs e as como, mesmo
assim.
Genevieve teve que segurar uma risada, não
estava esperando uma confissão tão banal.
— E por que as come?
— Às vezes não é possível evitá-las. — Fez
um gesto despreocupado. — Agora a senhorita.
— Bem… — Genevieve pensou um pouco.
— Gosto de tempestades. Pode parecer estranho,
mas elas não me assustam, a força delas me
desperta admiração.
— Muito apropriado para a senhorita, aliás,
tenho outra informação verdadeira para
compartilhar, desde a primeira vez que a vi,
nomeei a cor de seus olhos como “tempestade”.
Genevieve inspirou firmemente, não estava
preparada para aquele tipo de revelação.
— Dias nublados são a denominação mais
correta, eu diria.
— Dias nublados não são tão
impressionantes como os seus olhos, somente as
tempestades.
Era de se esperar que Ethan soubesse como
encantar os ouvidos de uma dama, mas Genevieve
não imaginava ser tão suscetível a esses artifícios
masculinos. O fato era que gostou de saber que a
cor de seus olhos era impressionante para ele,
mesmo que uma parcela cética de sua mente
insistisse que ele só havia feito a observação por
estar habituado a semelhantes joguetes com outras
mulheres.
— Terá que se esforçar mais se quiser
conquistar minha admiração — devolveu
Genevieve.
— Apenas externalizei o que eu acredito ser
verdade, pensei que esse era o objetivo de nossa
conversa. — Piscou, fingindo inocência.
— Poupe-me de bajulações baratas, Sr.
Hamilton. — Ela riu. — Lembre-se de que já
aceitei vosso pedido de casamento.
— Nem todas as palavras que digo são
estimuladas por interesses mesquinhos, algumas
são sinceras.
— Sendo assim, acabei de fazer uma nova
descoberta sobre o senhor.
Ethan gargalhou, Genevieve gostou do som.
— Também fiz uma descoberta sobre a
senhorita, não sabe receber elogios.
— Talvez não os oferecidos pelo senhor.
— E posso perguntar por quê?
— São potencialmente perigosos.
— É mesmo? — Arregalou os olhos. —
Pois eu facilmente diria o mesmo sobre vosso
vestido. — Mais um sorriso travesso e repleto de
um tipo singular de perversidade fluiu nos lábios
do administrador.
Ele desceu as íris verdes pelo corpo de
Genevieve, validando todas as letras da palavra
“perigo” que ele indiretamente utilizou para
ilustrar o vestido. Genevieve acabou fazendo o
mesmo, ao passear o olhar pelas vestes igualmente
perigosas de Ethan, abraçando tão bem as formas
do cavalheiro.
— Srta. Johnson, Sr. Hamilton. — Sarah se
aproximou, interrompendo a troca. — Importam-se
que eu tenha uma dança com meu administrador?
— De maneira alguma — Genevieve se
apressou a responder.
— Que bom que saiba dividi-lo. Vamos? —
Estendeu o braço a Ethan.
— Ficará bem sozinha? — ele direcionou à
Genevieve, transparecendo preocupação,
provavelmente se recordando das questões que ela
lhe revelou sobre a dificuldade de estar em meio a
muitas pessoas.
— É claro que ela ficará bem, ela não é
feita de vidro, sabia? Pare com essa adulação —
ralhou a viúva. — Torna-se deplorável quando
está apaixonado.
Mas Ethan não se moveu, ainda aguardando
uma resposta de Genevieve.
— Ficarei bem.
Relutante, Ethan cedeu, virando-se na
direção do centro do salão e conduzindo Sarah
para lá.
Genevieve os acompanhou com os olhos,
vendo quando se diluíram entre tantos outros
pares. As saias de rendas e musselinas forjavam
um cenário hipnótico ao girarem todas no mesmo
sentido e ritmo. Sem que pudesse controlar, seu
olhar sempre se voltava para Ethan, e era fácil
distingui-lo, era mais alto que a maioria, seu porte
não era esbelto como o dos demais cavalheiros, a
composição física de Ethan era sólida, de ombros
largos. Não era um homem feito para bailes, de
fato.
Quem o senhor realmente é, Ethan
Hamilton?
Com a visão periférica, detectou um rapaz
desconhecido vindo até ela e era provável que
tivesse a intenção de convidá-la para dançar.
Precisava sair dali.
Esgueirou-se pelas bordas do salão até
conseguir escapar do cerne do baile, mas ainda
estava em um local muito visível.
Contrariando seus próprios princípios, subiu
as escadas que levavam ao segundo andar. Este era
mais silencioso, o ruído da festa soava abafado,
conforme ela seguia adiante sem saber muito bem
para onde.
Após se aprofundar um pouco mais em um
corredor, seus ouvidos detectaram um par de risos
— feminino e masculino — e passos trôpegos se
aproximando, um casal buscando privacidade.
Temendo ser pega, testou uma das maçanetas e
estava aberta; Genevieve não pensou muito antes
de adentrar o cômodo.
Suspirou, aliviada, aproveitando por alguns
minutos a sua pequena vitória.
Percebeu, depois, que estava em uma saleta,
os móveis estavam dispostos de maneira a criar
um ambiente acolhedor, contudo era impossível
qualquer sala ser acolhedora naquela casa, os
diversos retratos do Sr. Whitewood asseguravam
isso, e igual ao restante da residência, ali estavam
as figuras repetidas do homem.
Genevieve não quis se concentrar em
nenhuma moldura, temendo ser acometida por
visões, porém uma delas lhe despertou a atenção,
não por conta do retrato, mas por estar coberta por
um tecido da cor preta.
A dama se aproximou, incapaz de comandar
os próprios passos. O tecido era fino levemente
translúcido, Genevieve estreitou os olhos,
forçando-os a enxergarem através do obstáculo,
mas nada era revelado.
O que havia ali?
O silêncio a incomodou, pois a tornou
extremamente consciente de cada pequena
alteração no ponteiro do relógio, cada lufada de
sua própria respiração alta e cada latejar de sua
pulsação.
Mais um passo, o ranger de tábuas sob os
pés, o tic-tac do relógio e o sangue fluindo rápido
em seus ouvidos.
Tocou as bordas do tecido, era áspero,
ouviu os sussurros dele ao ser movimentado.
Firmou os dedos em torno das extremidades e
prendeu o fôlego antes de puxar.
Camadas negras caíram aos seus pés,
deslizando pela moldura com a suavidade e
sinuosidade de um rio. Genevieve estava olhando
para si mesma, um reflexo de rosto pálido e olhos
cinzentos, escuros como ardósia, por conta da
iluminação casta.
— Oh, senhorita! Não faça isso!
Genevieve deu um passo para trás e quase
engasgou ao ser surpreendida ali. Uma mulher, um
pouco mais velha do que ela, correu para o
espelho e tornou a cobri-lo.
— Desculpe-me.
— Ainda bem que não foi a Sra. Whitewood
que a viu aqui.
— Por favor, não conte a ela.
Genevieve não sabia ao certo o real motivo
do espelho se manter oculto, mas compreendeu que
se tratava de algo importante.
A mulher, de cabelos louros opacos, fez um
gesto de negação com a cabeça e levou ambas as
mãos até a cintura, depois fitou Genevieve.
— Cheguei a tempo.
— Não quis ser inapropriada.
— Este andar não está à disposição dos
convidados — a mulher foi incisiva.
— Sim, mas eu precisava escapar… —
Diminuiu a voz.
— Já faz mais de dez anos que todos os
espelhos deste andar e os do próximo estão
cobertos. Quando o Sr. Whitewood partiu, nós os
cobrimos para que a alma não ficasse presa, que
Deus o tenha.
Por ter nascido e sido criada em uma cidade
que preservava velhas superstições e que
depositava fé em amuletos, Genevieve era
perfeitamente capaz de compreender o hábito, não
entendia, porém, porque mantê-lo, pois já havia se
passado muitos anos após a morte do Sr.
Whitewood.
— Mas não é mais necessário que se
permaneça assim — Genevieve falou, ainda
preservando a voz baixa.
— É necessário sim, ainda mais em dias
como os de hoje.
— Como hoje?
— Que o pobre é clamado a retornar.
Genevieve tentou engolir, mas não
conseguiu, sua garganta estava apertada.
— Perdão?
— A senhorita sabe… quando a Sra.
Whitewood se comunica com o espírito dele.
Temendo parecer mais confusa do que
estava, Genevieve concordou com um aceno
afirmativo.
— Sendo assim, é melhor conferir se está
devidamente coberto. — Lançou um último olhar
ao espelho, antes de retornar ao andar inferior.
Ainda refletia sobre os acontecimentos da
saleta e as revelações da empregada de Sarah,
quando colocou os pés no salão, mal notando que
Ethan encontrava-se próximo aos músicos e tinha a
viúva e William ao seu lado.
— Ela chegou! — Sarah disse e todas as
cabeças presentes se voltaram para Genevieve. —
Ande, aproxime-se. — Chamou com a mão.
A dama inspirou e fez o possível para
abrandar suas emoções. O noivado aconteceria e
seria um grande espetáculo, céus. Aconteceria
nesse instante e Genevieve não poderia se
esconder!
Ethan sorria, porém, seus lábios pareciam
engessados, o gesto não lhe alcançava os olhos,
ele estava preocupado. Preocupado pela
possibilidade de ela arruinar seus planos?
Genevieve atravessou o salão, esgueirando-
se por entre os sussurros e olhares desdenhosos e
curiosos dos convidados. A dama aprumou a
postura e empinou o nariz, mantendo o foco na mão
estendida de Ethan. Teve que tocar a palma dele
outra vez, e forçar um largo sorriso.
— Não pode estar surpresa, desde a
primeira vez que os vi juntos, soube que o
matrimônio estava por vir — ditou a viúva,
provocando alguns risos de sua “plateia”.
— Não arruíne meu gesto de amor, Sra.
Whitewood — Ethan solicitou, mesclando a crítica
a um falso tom bem-humorado.
— Sou velha, não há tempo para grandes
gestos para mim. — Fez um aceno desdenhoso
com a mão.
— O gesto não é para a senhora — William
assinalou.
Sarah fingiu não ouvir e continuou com a
pose impenetrável, ao passo que Genevieve
lançava um olhar agradecido ao rapaz, mas
interiormente, ambos sabiam que o gesto era sim
para Sarah Whitewood.
— Não sou conhecedor de gestos
grandiosos e, ainda menos de grandes amores,
porém esta noite eu me vi desejando realizar um
gesto grandioso, por causa de um grande amor —
Ethan falou, diminuindo ainda mais o espaço entre
ele e Genevieve.
A fala foi dita em voz clara e alta o
suficiente para causar comoção no salão.
Genevieve não se esqueceu em nenhum momento
de que era uma mentira. Um grandioso gesto,
verdade, por causa da amada ambição de Ethan.
— Está emocionada, não sabe o que dizer
— uma das jovens do salão falou, embebendo as
palavras em romantismo.
— Deus me ajude — Sarah resmungou,
impaciente.
Genevieve obrigou-se a reagir.
— Amor? — questionou, piscando um par
de vezes.
— Sim, minha Genevieve, eu a amo e quero
que todos saibam que desejo fazer da senhorita,
minha esposa.
Novas reações vieram do salão, essas mais
esfuziantes.
— Seria uma honra compartilhar minha vida
com o senhor — Genevieve respondeu.
Dessa vez os convidados explodiram em
aplausos e ofertas de sinceras, e não tão sinceras,
felicitações.
Genevieve reprimiu uma risada amarga,
Ethan não pediu ou perguntou se ela aceitava ser
sua esposa, apenas expressou o seu desejo de que
ela o fosse. Homem perspicaz, sempre mentindo
proferindo verdades. Ao menos havia acabado, se
casariam e estaria feito, nenhum outro gesto
grandioso seria necessário, ao não ser o de sua
liberdade.
Ethan e William se abraçaram e apertaram
as mãos, simbolicamente, como se Carter
disponibilizasse sua bênção, e enquanto os amigos
tinham um momento particular, o desconforto
rodeava Sarah e Genevieve. A viúva parecia tão
perdida quanto Genevieve e elas chegaram a um
acordo mútuo e silencioso de não dizerem nada
uma para outra e muito menos se abraçarem.
Ethan se colocou novamente ao lado de
Genevieve e a música recomeçou, algumas
pessoas se aproximaram do futuro casal,
parabenizando-os, inclusive surgiu Beatrice, ao
lado de um distinto senhor, vestido com elegância.
Ele tinha uma pose ereta, cabelos grisalhos e
aparentava conservar a beleza que teve na
juventude.
— Ah, Genevieve, que pena que não escutou
meus avisos. — Havia pesar nas expressões e na
voz aveludada de Beatrice.
— Agradeço por eles — Genevieve
devolveu. — Sei que foi sincera.
Ethan atirou um olhar contrariado a ela, mas
não disse nada, mantendo-se ocupado a retribuir
os cumprimentos de outra pessoa.
— Muito sincera e ainda faço votos de que
sejamos amigas.
Beatrice estava deslumbrante, trajando um
vestido de cor vinho profundo, como rosas prestes
a murcharem; rendas negras arrematavam os
detalhes da vestimenta.
— Finalmente terei a oportunidade de
conhecer a dama que furtou o lugar de minha filha.
— O homem correu os olhos por Genevieve e ela
sentiu arrepios. — Beatrice me falou muito bem da
senhorita.
— A Srta. Johnson não furtou coisa alguma,
Sr. Lancaster — Ethan afirmou, intrometendo-se.
— A realidade o ofende, Sr. Hamilton? —
Elevou uma única sobrancelha grisalha em
desafio.
— Não, por isso digo que não há nada para
se furtar, meu coração sempre esteve nas mãos da
Srta. Johnson, antes mesmo que eu a conhecesse.
— E há motivos para isso, Srta. Johnson
possui vistosos predicados. — Deteve o olhar no
decote de Genevieve e ela sentiu impulso de
cobrir-se, porém manteve as mãos abaixadas.
— Vamos, pai — chamou Beatrice. —
Temos que encontrar algum pretendente para mim
agora — gracejou.
— Sim, mas eu não teria tanta pressa, minha
filha. O casamento do Sr. Hamilton ainda não
aconteceu.
O Sr. Lancaster curvou-se e depois se
retirou, com Beatrice ao seu encalço.
— Ser desagradável é uma herança familiar
— William, que ainda estava por perto, disse,
depois de pai e filha terem se afastado o
suficiente.
Ethan riu.
— Tive sorte em não firmar laços com essa
família.
— Teve sorte em firmar com a minha, primo
— insinuou. — Agora preciso de alguma bebida e
depois, ir para casa.
— Tão cedo? — Ethan questionou.
— Não estou disposto a estar aqui quando
começar a comunicação com os mortos.
Genevieve se alarmou.
— Gostaria de ir embora antes disso
também.
— Assustou-a, Will. — Ethan franziu o
cenho para o amigo. — Não é de verdade, Srta.
Johnson, mas Sarah insiste em acreditar nesses
ocultistas… ah, eles chegaram.
A viúva e seu irmão apertavam as mãos e
recepcionavam com muito gosto um grupo de cerca
de cinco pessoas. Genevieve sentiu o cheiro de
fumaça doce, enjoativa, que dominou o salão,
também sentiu como o ambiente se alterou, como o
futuro casamento e seus protagonistas, deixaram de
ser o ponto mais atrativo da festa; havia algo mais
interessante a ser especulado e observado.
Genevieve, por último, percebeu as
serpentes, primeiro pequenas e finas, saindo de
baixo dos pés e das saias daquelas pessoas, para
em seguida tomarem formato mais robusto, se
espalhando, esgueirando pelo chão lustroso.
— Quero ir embora! — pontuou.
Ethan e William se entreolharam, mas não
ousaram discutir, acatando prontamente o pedido,
quase ordem, de Genevieve.
Ethan estava ocupado, desempenhando seus
cálculos para manter Whitewood Holt, assim como
as demais propriedades e negócios de Sarah.
Entendia-se com os números e um dos momentos
mais aprazíveis de seu dia, era estar ali, fazendo o
que sabia fazer. Era natural como respirar, os
elementos simplesmente se encaixavam e quando
ele encontrava o resultado, quando as respostas
batiam, fechadas e exatas, Ethan sentia-se muito
bem.
As variáveis eram controláveis, tudo era tão
claro, diferentemente de tantos outros aspectos de
sua vida. Às vezes acreditava que a sorte o
favoreceu quando conheceu William e o amigo o
apresentou ao cargo, pois se fosse diferente, Ethan
não veria nenhum propósito em seus dias.
Estaria largado em qualquer esquina,
lidando com os próprios demônios e perdido em
um caminho sem retorno. Não tinha proximidade
alguma com seu pai, e após a morte de sua mãe,
não tornou a vê-lo. Lydia era uma mulher adorável,
mas que já não era ela mesma há muitos anos antes
de ser levada deste mundo; sua mãe começou
esquecendo-se de pequenas informações, até não
ser capaz de lembrar-se de Ethan, às vezes ela
dizia que seu filho era um menino de cinco anos,
quando o rapaz de dezessete estava diante dela.
Ethan não se recordava de muitas coisas
desse período, fez questão de esquecer, mas a
sensação de ausência de controle ainda era vívida,
a impotência o desnorteava.
Números eram seguros, refletiu ao passar a
mão sobre a página de tinta seca onde seus
cálculos foram impressos através da caneta.
Números não falhavam, a não ser se houvesse
falha humana. Não havia espaço para
inconsistências, para surpresas ou qualquer coisa
que ele não pudesse antecipar, que não pudesse
solucionar.
— Veja só quem está aqui — Sarah saudou,
ao entrar no escritório.
— Bom dia, Sra. Whitewood.
Era a primeira vez que se viam após o baile,
a folga de Ethan era no dia seguinte, e essa manhã,
quando chegou para trabalhar, não a encontrou no
andar inferior, então subiu diretamente ao
escritório.
A mulher se aproximou e tomou um lugar
diante de sua mesa. A expressão dela era mais
tenebrosa do que nunca.
— Por que saíram sem se despedir? Mal
aproveitaram a noite que tive tanto empenho para
preparar. — Ela cruzou os braços e franziu as
sobrancelhas.
Sarah podia ser temperamental, embora
parecesse rígida. Ethan sabia que ela estava
verdadeiramente ofendida com o comportamento.
— William sentiu-se cansado e Genevieve
não o deixaria ir a Violet Valley sozinho, tive que
acompanhá-los.
Genevieve suplicar para que partissem, foi
algo que trouxe imenso alívio a Ethan, ele não
gostava daquelas sessões, em que o grupo de
ocultistas se reunia com Sarah, para então um
deles começar a falar como se fosse o finado
Whitewood. Era loucura, charlatanismo, mas um
tipo que intimidava Ethan, pois contrariava tudo
aquilo que ele acreditava, ou melhor, tudo o que
não acreditava, era um cético quando se dizia a
respeito ao sobrenatural.
— Que pena — sussurrou, ainda ressentida.
— Haverá outras oportunidades para bailes.
— Mas não haverá outro noivado de meu
administrador.
— E espero que não haja. — Ethan riu e
tornou a anotar, com mãos hábeis e raciocínio ágil.
Após minutos de silêncio, com somente os
sussurros da ponta da caneta sobre o papel, a voz
de Sarah voltou a ressoar.
— Surpreendeu-me, Sr. Hamilton.
Ele parou, largando a caneta e observando
Sarah.
— Em que sentido?
— Não pensei que levaria isso adiante. —
Soltou um riso amargurado. — Vi como fugiu de
Beatrice, acreditei que não teria coragem de um
dia se casar, talvez a ausência de romantismo fosse
o item que o tornava um profissional tão
competente… — Suspirou. — Mas se apaixonou
por essa moça.
— Sim e ela será minha esposa.
— Admiro-o pelo comprometimento,
colocou Whitewood Holt acima de suas próprias
convicções, abriu mão do que considerava o
melhor para si, para que pudesse cumprir meus
requisitos.
— Meu casamento não diz respeito a
Whitewood Holt, fui tão surpreendido quanto
todos.
— Ah, Ethan, eu o conheço. — Ela riu sem
humor. — Mas tudo bem, se prefere levar dessa
forma, eu respeitarei suas decisões.
Era tarde demais para Sarah começar a
respeitar as decisões dele, Ethan refletiu.
— Obrigado.
— Gostaria de ir até uma reunião com um
sócio, representar-me?
— Tem certeza?
— Sim, terá mais responsabilidades agora
que será um homem casado, e se realmente deseja
tomar à frente de Whitewood Holt e todos os seus
negócios, deve passar a atuar ativamente nas
reuniões e demais assuntos pertinentes à
propriedade.
— Sou muito grato pela oportunidade, Sra.
Whitewood.
— Esteja preparado, o encontro ocorrerá às
14h, com Ormond Gallagher.
Ormond, o irlandês que trouxe consigo na
bagagem a habilidade de produzir um excelente
uísque. Poucos realmente conheciam os reais
investimentos de Sarah, que preferia manter a
figura recolhida de uma viúva conformada; a
verdade era que a mulher dobrou e triplicou a
herança, depositando dinheiro onde deveria ser
depositado, na grande maioria das vezes, indo
pessoalmente ao encontro de possíveis sócios e
mercadores.
— E o que devo saber para tratar com esse
sócio?
Sarah usou as horas seguintes para deixá-lo
ciente de que Ormond teria bons carregamentos
sendo escoados pelo porto em breve. Ethan já
conhecia essa parte, uma vez que era ele quem
lidava com os custos e os lucros dos produtos
comercializados, porém a reunião seria também
para delimitar as abordagens que teriam no
próximo ano vigente.
Sarah expressou seus desejos, mas estava
aberta para escutar os conselhos de Ethan, mais
aberta como jamais foi, e ela abanava a cabeça
positivamente quando acreditava que ele deu uma
opinião assertiva.
Conforme o combinado, Ethan se
encaminhava para encontrar-se com Ormond e a
reunião ocorreria em uma das tabernas próximas
às docas.
Estava nervoso, o plano funcionou e
mostrava seus frutos, porém ainda havia uma
pequena parcela de remorso apodrecendo em suas
entranhas. Não merecia a confiança de Sarah, a
amizade de William e a cooperação de Genevieve.
Enquanto caminhava, sentindo a brisa marítima
salgada de encontro à face, perguntava-se se todo
aquele cerco valia a pena. Em um primeiro
momento parecia que sim, mas quanto mais
afundava na farsa, menos ele acreditava nisso.
Pare, Ethan! — se repreendeu.
Estava quase com a propriedade nas mãos,
não era exatamente isso o que queria? Então por
qual motivo se encontrava tão insatisfeito, vazio?
Talvez tivesse colocado expectativas demais em
suas ambições, para no final, perceber que ainda
não possuía a sensação de plenitude que almejava
encontrar.
Balançou a cabeça para espantar os maus
pensamentos e fez questão de se concentrar no
encontro iminente. Ormond era um sujeito de
personalidade amigável, riso fácil, mas que não
hesitava oferecer consequências nada amistosas
quando considerava que alguém queria lhe passar
a perna.
Ethan cruzou a porta e um som característico
anunciou sua entrada, derivado de um pequeno
sino sobre a passagem. Inspirou profundamente, e
não demorou a vislumbrar os fios acobreados que
já se perdiam entre os brancos, uma barba
pronunciada de cores semelhantes complementava
a aparência de Ormond.
O homem gargalhava junto ao balcão,
conversando em voz alta entre um círculo dos que
aparentavam serem seus melhores amigos. Ethan
não deixou de refletir que seria impróprio Sarah
ter uma reunião de negócios bem ali.
— Boa tarde, Sr. Gallagher.
O sócio arregalou os olhos e abriu um largo
sorriso de dentes desnivelados, enquanto os
demais se debandavam cada qual para a própria
mesa.
— Ah, Sr. Hamilton, recebi uma missiva da
viúva Whitewood, avisando que seria o senhor a
me encontrar hoje. Ela tomou a decisão correta,
esse tipo de negócio não costuma ser adequado a
ouvidos femininos.
— Foi a Sra. Whitewood que decidiu
investir em sua produção, quando ninguém mais
acreditou que poderia prosperar.
O sorriso dele diminuiu e seus olhos
endureceram.
— É verdade, transmitirei a ela sua
lealdade. — Deu de ombros. — Ande, sente-se. —
Gesticulou para o banco ao lado.
— Obrigado. — Ethan se recriminou por
agradecer, provavelmente soou estúpido, inseguro.
— O carregamento sairá amanhã e em breve
teremos a segunda parte do pagamento. —
Gallagher sequer perdeu tempo, desatando a falar
sem rodeios. — Isso nos leva ao ponto mais
importante dessa discussão: a expansão das
produções. Serão necessárias algumas reformas e
compras de alguns galpões e matéria-prima para
que possa ser feito.
Ormond, com sua conhecida rudeza, jogou
uma maleta sobre o balcão e retirou alguns papéis
de lá, entregando-os a Ethan.
— Meu administrador realizou o registro de
todos os custos, mas imagino que o senhor irá
preferir analisar cada item com calma — informou
o irlandês.
— Antes de lhe ofertar qualquer resposta,
realmente prefiro estudá-lo com cuidado. — Ethan
buscou os óculos no bolso interno de seu casaco e
os posicionou no rosto, em seguida passando os
olhos por alto no documento. — Os valores me
parecem razoáveis e se houver planejamento
adequado, a expansão será bem-vinda. Já era hora,
não?
Ormond voltou a sorrir abertamente e
segurou no ombro de Ethan com camaradagem.
— Foi o que pensei, por que esperar mais?
Mal estamos conseguindo suprir as demandas
previstas, que dirá alcançar novos compradores.
— Voltaremos a nos encontrar em breve, já
com decisões mais concretas sobre a expansão.
— Sim, mas antes, beba algo. — Fechou a
maleta e a colocou novamente no chão, encostada
no banco, e buscou o próprio copo, levantando-o
em um convite.
— Estou trabalhando.
— Exatamente, Sr. Hamilton, faz parte do
seu trabalho.
Ethan aceitou, resignado, e Ormond
solicitou uma dose de Bourbon para o
administrador.
Ele não queria permanecer muito tempo ali,
mas Gallagher o enredava em uma conversa atrás
da outra, felizmente o homem se distraía o
suficiente com as próprias histórias para perceber
que Ethan ainda se encontrava em seu segundo
copo.
Quando o céu passou a escurecer, Ethan
colocou Ormond em uma carruagem de aluguel e o
mandou para casa. O irlandês mal conseguia se
manter de pé, cambaleando e tropeçando enquanto
soluçava e dizia frases inteligíveis com a língua
frouxa. Teria que perguntar à Sarah se esse tipo de
descontrole do sócio representava algum
problema.
Depois ele mesmo decidiu partir, mas para
Violet Valley. Estava ansioso para dividir com
Will e Genevieve as novas atribuições de seu
cargo, a nova confiança concedida por Sarah.
Ao chegar à residência do amigo, Ethan foi
informado de que William não estava presente,
tendo comparecido a um jantar na casa do Conde
de Granville, mas que a Srta. Johnson mantinha-se
na biblioteca. Will teria que perdoá-lo, pois Ethan
não conseguiria esperar a chegada dele para
compartilhar as novidades.
Verificou a própria aparência no espelho,
esteve por muitas horas na taberna e não queria
aparentar que esteve em uma taberna. Arrumou o
lenço que tinha no pescoço e soltou os cabelos,
prendendo-os novamente depois. Ponderou se não
deveria cortar os fios antes do casamento, e seguiu
para a biblioteca.
Diminuiu o ritmo de seus passos conforme
se aproximou da porta, intencionando domar a
euforia crescente, estava orgulhoso, ansioso para
dizer à Genevieve que apenas conseguiu, pois teve
a ajuda dela, porém não queria surgir diante da
moça feito um rapazote descontrolado.
Ainda devagar, avançou no aposento, estava
na penumbra. Como Genevieve poderia ler no
escuro?
Diante de uma ampla janela, voltada para o
leste, havia um canapé e algumas poltronas em
tons de azul, para acomodarem aqueles que
buscavam a tranquilidade para ler. Ethan esperava
que Genevieve estivesse ali, e suas especulações
se confirmaram, porém não a encontrou como
imaginava.
A dama dormia sobre o canapé, com a
cabeça repousada no braço do móvel, abraçava
“Paraíso Perdido” aberto sobre o ventre e tinha as
pernas um pouco encolhidas, de lado, de modo que
os joelhos ficavam fora do estofado. A janela
estava aberta, a luz fria do luar escapando por
entre as nuvens nebulosas somente para recair no
rosto do anjo adormecido. Uma brisa suave fazia o
tecido diáfano da cortina dançar, como espectros
saídos de um sonho.
A euforia esmaeceu, Ethan não queria mais
falar sobre seu dia, uma vez que seria equivalente
a cometer um crime acordar a Srta. Johnson, até
porque ele a viu no jardim, algumas noites atrás,
indicando que a dama não estava conseguindo
descansar muito bem.
Aproximou-se um pouco mais, notando a
respiração lenta e contínua, as pestanas negras e
volumosas repousando sobre as alvas maçãs do
rosto, a boca entreaberta, rosada e perfeitamente
desenhada para ser beijada…
Santo Deus, não!
Já havia percebido a beleza de Genevieve
antes, e igualmente como ocorreu no baile quando
ela esteve dentro daquele vestido tentador, vê-la
lhe despertou desejo, desejo esse irracional e que
necessitava ser contido. Os efeitos se
desdobravam no corpo do administrador, no calor
que fluía por sob sua pele, se alastrando como
incêndio no feno.
As mãos dela pousavam delicadamente
sobre a capa de couro e Ethan quis ser tocado por
elas. As imaginou correndo por vários locais de
si, sem qualquer reserva.
Não!
Não podia imaginar Genevieve assim, pois
seria um caminho sem retorno e ainda tinham um
longo período de convivência adiante. Ah, mas
como cobiçou aqueles lábios… deveria ser efeito
da bebida, o álcool inflamava suas veias, nublava
seus pensamentos, povoando-os com deliciosas
ilusões.
Genevieve se moveu, o livro deslizou e fez
um barulho considerável ao cair no chão. Ela
balbuciou qualquer coisa e piscou repetidamente
ao despertar.
Ethan quis praguejar contra o livro que
ousou quebrar o sono de Genevieve, mas de certa
forma, ficou feliz por ela ter acordado. Ainda
gostaria de contar as novidades a ela.
— Onde estou? — questionou, confusa, se
sentando de forma ereta, mantendo as pernas sobre
o canapé.
O penteado havia se soltado, alguns
grampos brincavam frouxos entre os cachos
escuros. A lua como única fonte de iluminação,
conferia à moça um aspecto tentador, um perigoso
jogo de luz e sombras.
— Na biblioteca, cheguei há pouco, não
quis acordá-la.
— Desculp… — Cobriu a boca, bocejando.
— Desculpe — repetiu.
— Tudo bem, mas acho que deveria ir para
a cama. — Ethan foi assolado por novos
pensamentos indomáveis. — A sua cama. — Fez
questão de reforçar.
— Hum, minha cama. — Ela franziu as
sobrancelhas e colocou ambos os pés no chão,
levando Ethan a identificar pela primeira vez que
estava descalça. Quis tomar o pequenino pé nas
mãos e massageá-lo, teve quase certeza de que ele
caberia perfeitamente em sua palma.
— Mas pode continuar dormindo aqui, se
preferir. — Confundiu-se um pouco com as
palavras.
— Oh, não, não penso que seja adequado.
— É como se fosse sua casa, pode fazer o
que desejar.
Ethan ocupou o espaço que as pernas de
Genevieve deixou vago, ao lado dela.
— Mas não é a minha casa.
— Logo teremos uma casa, para nós dois.
— Será a sua casa, não minha.
— No período que estiver lá, será a sua
casa.
Genevieve riu e as notas eram divinas.
— Brigamos sobre tudo. — Ela balançou a
cabeça, alguns grampos bambearam ainda mais,
outros foram ao chão.
— Eu gosto.
Ela o fitou, incrédula, e Ethan acreditou que
ela estava prestes a chacoalhá-lo para lhe trazer à
razão.
— Lamento pelo senhor.
— Digo a verdade, Genevieve, você me
instiga.
Tarde demais, ele percebeu que pronunciou
o nome de batismo dela, ao invés de tratá-la da
maneira correta, como determinava os ditames.
— Srta. Johnson — se corrigiu.
— Estava em Whitewood Holt, Sr.
Hamilton?
Ethan achou estranha a súbita alteração do
rumo da conversa, mas decidiu responder.
— Não, estava em uma taberna no cais.
— Ah, compreendo. — Deu um sorriso
pequeno de autocongratulação.
— Por quê?
— Sinto o cheiro da bebida.
— Mas sequer estamos tão próximos e eu
somente ingeri dois copos.
— Foi o suficiente para soltar vossa língua.
— Tem interesse em minha língua, Srta.
Johnson?
— A anatomia humana não me fascina. —
Ela não titubeou nenhuma vez ao oferecer a
réplica.
— E meu cheiro?
— Por qual motivo eu deveria me atrair por
ele?
— Eu me atraio pelo seu.
Campos de lavanda.
— Não deveria dizer essas coisas, Sr.
Hamilton, irá arrepender-se pela manhã.
Ethan se arrependeria muito mais, então,
pois inclinou-se em direção à Genevieve e
deslizou o nariz rente à bochecha dela, sem de fato
tocá-la, para então estagnar em seu pescoço, entre
os cabelos, renegando a vontade de afundar na
pele macia e disponível.
Inspirou longamente, mas sem demora,
reorganizou a postura.
— Cheira muito bem, Srta. Johnson —
revelou, com a voz rouca.
— É o melhor que tem a dizer?
— Não sou dado a poesias.
— Que terrível sorte a minha, recebi um
marido que não sabe realizar sonetos.
— Posso aprender alguns para você.
— Guarde-os para alguma dama que o
senhor realmente destina algum sentimento.
— Curioso dizer isso, Srta. Johnson, pois
estou surpreso com alguns sentimentos que estão
surgindo por certa dama agora mesmo.
— Que tipo de sentimentos? Se me permite
perguntar. — O sorriso de Genevieve se expandiu,
talvez ela estivesse zombando.
— Nada que eu poderia revelar sem
comprometê-la.
— É tão ruim assim?
— Pelo contrário.
— Que pena, pensei que fôssemos
confidentes.
— Não para esse tipo de coisa.
— Apenas para casamentos falsos.
— E em breve ele será um casamento
verdadeiro.
Genevieve piscou, um tanto atordoada, o
sorriso dela se apagou, de repente as nuances da
lua e da penumbra se alteraram de tentadoras para
melancólicas.
— Ainda pode encontrar uma esposa
igualmente verdadeira — Genevieve declarou.
— Não estou disposto a desposar nenhuma
mulher que não seja a senhorita.
Por que disse aquilo? Disse, pois, se
tratava da honestidade contida em seu coração.
Nunca se viu como um homem que poderia ter um
casamento, sobretudo quando o casamento de seus
pais deixara um rastro de destruição dentro de
Ethan, memórias dolorosas que ele fazia questão
de conter atrás de uma porta firmemente fechada,
com tranca, correntes e cadeados.
Mas conheceu Genevieve, se acostumou
com a ideia de que poderia casar-se com ela, sem
o medo de replicar os defeitos de seu pai, que
assim como ele, não era um homem preparado
para compromissos, mas que não teve o
discernimento do filho, que evitou um enlace
indesejado.
— Devo sentir-me particularmente
agraciada? — Genevieve questionou, após se
recuperar da surpresa causada pelas palavras do
administrador.
— Ambos sabemos a resposta.
Não.
— Pois bem, comentou sobre uma casa, eu
gostaria de saber mais sobre ela. — Genevieve
alterou o curso da conversa para lugares mais
seguros.
Uma casa com Genevieve, pois se casariam
e permaneceriam casados até Deus sabia quando;
por uma fração de minuto, desejou que tudo fosse
real, desejou se casar com Genevieve sem a
promessa de que algum dia ela iria embora.
— Ainda não comecei a procurar, para falar
a verdade. Possui alguma preferência?
— Gosto do mar, talvez uma casa próxima à
praia — ela divagou.
— É possível.
— Ótimo.
— Mais alguma característica particular que
devo levar em consideração?
Genevieve suspirou.
— Não.
— Deixe-me ver, uma bela casa, com
amplas janelas com vista para o mar. Talvez uma
biblioteca para a dama? Promissor…
Ele queria não gostar tanto.
— Dispõe mesmo de recursos para
promover isso? — Ela o encarou, duvidosa.
— Economizei por dez anos, usei algum
valor para investimentos pessoais, comprei um
apartamento simples que não demanda altos custos
para se manter… enfim, eu tenho recursos para
adquirir uma casa próxima ao mar e para a
biblioteca. — Assinalou com um sorriso.
Genevieve sorriu de volta, Ethan o achou
diferente, mais sincero, leve, concebido com algo
que ele denominaria de afeto, se não fosse
Genevieve a projetá-lo. Ela mesma pareceu
identificar a peculiaridade e tratou de disfarçá-la.
— Não gastou com manutenções em seu
apartamento? Suponho que tenha contratado pelo
menos alguém para lhe auxiliar no cotidiano.
— Não, às vezes solicito serviços de
limpeza, uma visita a cada quinze dias é o
suficiente.
— Sinto muito, mas não consigo acreditar
que saiba cozinhar. — Genevieve deu um riso
contido.
— Eu costumo jantar com a Sra.
Whitewood, eventualmente com William ou com
Benjamin, como último recurso, posso contar com
uma bela torta de carne de um estabelecimento
próximo ao apartamento.
— Eu jamais poderia imaginá-lo jantando
sozinho, e ainda torta de carne.
— Há a opção de tortas de anchovas.
— Oh, não. — Gargalhou.
Ethan a acompanhou.
— Parece um pouco solitário — ela voltou
a falar, após as gargalhadas se abrandarem.
— Quando eu me via absorvido pela rotina,
eu não sentia essa solidão, porém ao olhar para
trás, era solitário, ainda mais quando comparo
com meus jantares atuais, dividindo a mesa com a
senhorita e com Will.
— É curioso, mas não consigo vê-lo longe
de Violet Valley, é como se desde sempre
pertencesse à família do Sr. Carter.
— Eu penso o mesmo sobre a senhorita —
Ethan pronunciou com uma intensidade inesperada.
Os olhos tempestuosos de Genevieve o
encontraram, o desejo reacendeu dentro dele,
Ethan a queria, e por isso precisava se afastar
nesse instante. Desfez o contato visual e ficou de
pé, rompendo as finas e numerosas linhas que os
conectaram sem que nenhum dos dois percebesse
antes que já estivessem envolvidos.
— É melhor eu ir, tomei muito de seu tempo.
— Não… na verdade, apreciei muito a
companhia. — Ela hesitou em cada palavra, mal
acreditando que as declarava.
— E eu, igualmente. — Ethan esteve tentado
a ficar, mas tratou logo de excluir a possibilidade.
— Porém tenho que organizar documentos para
apresentar à viúva pela manhã.
— Oh, sim.
Ele se despediu e caminhou diretamente
para seu quarto, só após estar lá, ele percebeu que
não havia contado as novidades para Genevieve,
contudo, a troca que tiveram foi mais agradável do
que ele poderia ter planejado.

No dia seguinte, ele se arrependeu.


Não se arrependia de ter conversado com
Genevieve ou sequer de ter se aproximado dela,
mas reconhecia que ultrapassou os limites quando
inspirou o perfume de lavanda diretamente do
pescoço dela.
Não deveria ter cedido, não era correto
aproveitar-se de uma dama em uma posição de
fragilidade, não que fosse cavalheiro, pelo
contrário, admitia ser um canalha. Ethan deveria
resguardá-la, zelar por ela e não representar uma
ameaça. Isso não voltaria a ocorrer, de forma
alguma.
Graças ao bom Deus, não a beijou, pois ele
quis, quis muito. E embora estivesse certo de que
o beijo não ter ocorrido foi algo positivo, não
deixava de sentir a frustração de não o ter
realizado perfurar sua determinação de manter-se
longe dos lábios de Genevieve.
Estava convencido a visitar qualquer bordel
aquela noite para sanar certas necessidades, após
cumprir seus deveres em Whitewood. Sequer veria
Genevieve tão em breve, cogitando voltar a dormir
algumas noites em seu apartamento.
Nesse momento, precisava da segurança
trazida por seus cálculos e números, algo que
abrandaria o fulgor que atiçava seu corpo e mente,
então tratou de tomar a direção do escritório.
— Ethan! — Sarah o impediu de prosseguir,
surgindo diante dele assim que pisou na entrada.
— Ormond Gallagher…
Ah, a reunião. Ethan mal pensou sobre ela e
isso era incomum para si, levando-se em conta o
quão animado esteve com as novas atribuições de
seu cargo. Apesar de ter dito à Genevieve que
pretendia organizar a documentação, ele não fez
isso.
— Correu tudo muito bem, hoje analisarei
os documentos que ele me entregou e…
— Não, querido — cortou em tom maternal.
— Ele morreu.
— Como disse? — Ethan teve que
perguntar, pois não acreditava ter escutado
corretamente.
— Sente-se, você não parece bem.
Gallagher estava morto? Como poderia ter
morrido?
O administrador deixou-se ser conduzido a
um pequeno sofá e se sentou, ainda pasmo demais
para articular qualquer comentário. Uniu as mãos e
descansou o queixo sobre elas, com o corpo
inclinado para frente, aguardando a explicação
para aquilo que ele acreditava ser inconcebível.
— Não se fala de outra coisa, investigações
estão sendo feitas, prepare-se para alguns
encontros com oficiais. — Sarah se sentou ao lado
dele. — Agora olhe para mim — ordenou.
Ethan fez como ela pediu, voltando-se
diretamente para ela.
— Gallagher aparentava intencionar atentar
contra a própria vida?
— Não. — Balançou a cabeça, confuso. —
Eu o coloquei em uma carruagem para ir para
casa, estava tão bêbado que mal conseguia abrir os
olhos.
— Oh, aquele homem teimoso e bufão. Já o
tinha alertado diversas vezes que seu vício seria
sua ruína… — Parou uns instantes. — Talvez a
morte tenha sido ocasionada por tais excessos.
— Eu não o conhecia suficientemente bem
para determinar o quão profundamente se
entregava à bebida.
— A bebida era a vida dele.
— O negócio dele, agora da senhora.
Os olhos de Sarah se arregalaram, então
transformaram-se em fendas, ela estava avaliando-
o. Os pequenos sulcos em torno dos lábios finos
tornaram-se mais profundos quando ela os franziu.
— É como um filho para mim, Ethan Jacob
Hamilton… — A voz dela tremeu.
Tremeu como Ethan jamais presenciou,
acreditou inclusive ter visto lágrimas acumulando-
se em seus olhos, mas não podia ser, Sarah
Whitewood era a viúva de ferro, não chorava. O
corpo dela tremia de tão retesado, mas ela buscava
disfarçar o descontrole.
— Sei que tem Whitewood Holt como uma
grande prioridade em sua vida, sei que irá casar-
se por isso, porém insisti em fingir que acreditava
em sua farsa, até a considerei engraçada, perspicaz
o modo como burlou a possibilidade de um real
compromisso com Beatrice, mas isso. — Ela
apontou o indicador para ele, uma acusação. —
Isso não poderei permitir. — Engasgou com um
pranto que não libertou.
— O que está dizendo, Sra. Whitewood? —
A compreensão do que a fala dela significava o
arrebatou, com o impacto de um raio partindo um
tronco de carvalho ao meio. — Eu não o matei! —
Não podia acreditar que justamente ela estava
suspeitando de si. A traição tinha gosto amargo em
sua boa.
— Quis eliminar Ormond para tirar proveito
de suas produções, engrandecer sua herança? —
Ela estava ofegante, o peito subia e descia tão
rápido quanto se uma faca tivesse sido cravada em
seu coração.
— Ouça o que está dizendo, crê realmente
que eu seria capaz de fazer algo assim? — A
encarou fixamente, até a empregadora ceder e
desviar o olhar. — Ofendeu-me — sussurrou. —
Sabe por que não quis casar-me com Beatrice? Se
eu fosse o crápula que está considerando que eu
seja, não me custaria nada desposá-la sem ter
qualquer tipo de sentimento por ela, seria muito
fácil obter Whitewood Holt dessa maneira, mas
não é assim que eu queria que fosse. Se eu algum
dia herdar vossa propriedade, será porque me
empenhei em vê-la progredir antes mesmo que a
posse dela viesse a ser uma opção.
Sarah manteve-se em silêncio, então Ethan
prosseguiu:
— Faz dois anos que está dando-me indícios
de que pretende deixá-la para mim, então por que
só agora eu agiria, matando Ormond? O tipo de
conhecimento que ele detinha não é fácil de
substituir e com os projetos de expansão, eu
ganharia mais dinheiro com ele vivo.
Ethan se colocou de pé.
— Com licença, Sra. Whitewood, irei para
a minha casa agora, já ouvi o bastante.
Ele virou as costas, mas a viúva o chamou,
fazendo-o estagnar e dar meia-volta. Embora
estivesse ofendido, não tinha coragem de ser tão
descortês assim com a figura que nutria tamanho
respeito.
— Perdoe-me, estou tão atônita quanto você.
— Ontem saí da taberna e fui diretamente a
Violet Valley, passei um fim de tarde agradável
com a Srta. Johnson e tive um jantar excelente,
depois pernoitei lá. Pergunte a qualquer um, se
desejar.
— Não preciso perguntar, confio em meu
administrador. Tire o dia de folga, mas por favor,
não abandone o cargo, agora mais do que nunca,
necessitarei de seus serviços. — Sarah deixou
todas as suas fragilidades expostas ali, mas a
demonstração de desconfiança e a acusação que
ela fez anteriormente, foram graves demais para
serem ignoradas.
Ethan assentiu e tomou o rumo da saída.
Seu corpo doía, a cabeça latejava feito um
grande coração e as paredes pareciam encolher e
expandir conforme o ritmo dessa pulsação. As
narinas eram insuficientes para a captação de ar,
ele também precisou da boca. Afrouxou o lenço
que tinha no pescoço, estava sufocando.
— Sr. Hamilton? — uma criada perguntou.
Ele fechou as pálpebras e fez um gesto de
negação, se colocando imediatamente para fora da
residência.
Gotas grossas e geladas o acertaram, mas
foi algo positivo, a sua temperatura necessitava ser
abaixada ao mesmo tempo que ele precisava de
algo para retirá-lo do torpor, da surpresa e da
raiva. Permaneceu alguns minutos sob a chuva,
sentindo-se encharcar por ela, até não restar
qualquer resquício de tecido seco.
Ormond Gallagher morreu, e Sarah o
acusou.
Gallagher morreu, e Sarah duvidou dele.
Ormond estava morto, e Sarah supôs que
Ethan fosse o assassino.
O administrador tomou a sua montaria nos
estábulos e cogitou ir para seu apartamento, mas
soube que não queria estar sozinho. Precisava ver
rostos amigos, nem que se mantivesse de boca
fechada o restante do dia e da noite, imobilizado
pelas incoerências das situações recentes;
precisava de companhia e apoio, a solidão de seu
apartamento o assombrava nesse momento.
Enquanto cavalgava em meio à chuva, de
gotas ardidas que arranhavam seu rosto, Ethan
repassava a reunião da tarde anterior, a risada
grave de Ormond, os planos que fizeram, a
expansão… Como poderia supor que acabaria
daquela forma?
As imagens se repetiam, Ormond rindo, as
doses de Bourbon, os documentos que ele retirou
da maleta e entregou a Ethan…
Depois, morte.
Não considerava o irlandês seu amigo, mas
passaram a tarde toda juntos, ele era sócio de
Sarah, foi o suficiente para atordoar Ethan em
diversas camadas de seu íntimo; soube que não
teria paz de espírito enquanto não lhe fosse
informada a causa da morte.
Guardou o seu cavalo, sequer notando o que
estava fazendo, da mesma maneira inerte, entrou na
casa de seu amigo, sem ao menos ter o trabalho de
retirar o casaco mais pesado, chapinhando chuva
no piso de madeira com as botas, e sendo
responsável por poças expressivas de água, que
escorriam de seu corpo.
Ao escutar o barulho da porta sendo aberta,
Storm foi o primeiro a surgir, correndo para
recepcioná-lo, porém o cão guinchou e se
confundiu com as patas, tropeçando antes de fugir,
como se estivesse sendo perseguido por um
predador. Storm gania alto, escorregando as unhas
no assoalho liso.
— Oh, meu Deus. Sr. Hamilton, precisa de
um banho ou então irá se resfriar. — A governanta
se aproximou.
— Depois. — Sua voz soou tão grave que
ele mal a reconheceu.
A mulher lançou um olhar significativo ao
mordomo, premeditando a urgência da situação.
— Chame o Sr. Carter — ela solicitou a
Stevens.
Ele se retirou, enquanto Ethan permanecia
ali, incapaz de dar um passo adiante, prestes a
desmoronar. Uma estátua de gelo quase rachando,
transformando-se em pequenos fragmentos ao ir de
encontro com o chão.
— O quê… — Will surgiu em suas passadas
rápidas. — Ethan, você está bem? — questionou,
preocupado, ao colocar os olhos cristalinos sobre
ele.
— Não muito.
O amigo se aproximou devagar, talvez com
medo de realizar movimentos bruscos.
— O que houve, homem? — Seu rosto
estava carregado de cautela.
— Ormond Gallagher morreu.
— O irlandês?
— Sim. — Engoliu o nó dolorido que
forçava sua garganta.
— Não sabia que o considerava um amigo
— especulou sutilmente.
— Estive com ele em uma reunião ontem…
— Tentou explicar, mas sua voz falhou.
Não teve tempo hábil para atualizar Will de
seus feitos do dia anterior, pois o amigo chegou
tarde do jantar na casa do conde e Ethan saiu antes
que Will despertasse essa manhã, porém nesse
instante, encontrava-se incapaz de contar tudo para
ele.
— Ande, retire esse casaco. — Will puxou
seu braço para tentar remover uma das mangas. —
Ajude-me, Stevens. — O mordomo prontamente
apareceu do outro lado, auxiliando-o a livrar-se da
peça.
Removeram também o lenço e o colete,
enquanto a governanta saiu e retornou com algumas
toalhas, passando uma delas para Will, que as
esfregou nos cabelos do amigo, mas Ethan estava
indiferente aos cuidados.
Foi então que seus olhos colidiram com íris
tempestuosas, produzindo trovoadas quando sua
própria tempestade as encontrou.
Genevieve parou quando o viu, e parecia
compreendê-lo mais do que qualquer outro, o
compreendeu sem que ele dissesse qualquer
palavra e isso o assustava um pouco, mas também
o confortava.
— Srta. Johnson, não se aproxime. O Sr.
Hamilton está muito exposto — a Sra. Evans
alertou.
— Por favor, deixem-na ficar — Ethan
pediu.
— Não é correto.
— Deixe que fique — Will consentiu.
Genevieve deu alguns passos até Ethan, seu
rosto expressava imensa dor, como se ela pudesse
enxergar a dor que existia dentro dele. Tão bonita,
mais sonho do que mulher. Tudo o que Ethan teve
vontade de fazer, era se enterrar em seu pescoço
elegante, entre os fios de obsidiana, como ele
esteve prestes a realizar no dia anterior. Queria
que ela expulsasse todas as sombras que se
acumularam sobre ele essa manhã.
“Da minha mente a escuridão dissipa,
Minha fraqueza eleva, ampara, esteia,
Para eu poder, de tal assunto ao nível,
Justificar o proceder do Eterno,
E demonstrar a providência aos homens.”
— Como posso ajudar? — ela questionou.
— Não há muito a se fazer, minha flor — a
governanta respondeu, gentil. — Já solicitei que
um banho fosse preparado, Sr. Carter, creio que
possamos levá-lo lá para cima.
— Muito bem, então vamos — Will
concordou, enquanto esfregava a toalha na cabeça
de Ethan. — Terá que subir as escadas. Reaja, não
sou sua mãe para arrastá-lo para o banho no colo.
— Tentou sorrir, mas o gesto foi tenso.
Discretamente, Genevieve esticou o braço
por trás de Stevens, alcançando os dedos frios e
enrugados de Ethan e ele sentiu que conforme suas
mãos permaneciam unidas, as pequenas lacerações
em seu peito, ocasionadas quando Sarah o chamou
de assassino, se fechavam.
Genevieve era sua cura.
Agradeceu silenciosamente a ela e, embora
quisesse permanecer segurando a mão dela, como
se o suporte fosse imprescindível para sua
sobrevivência e para que os ferimentos não
tornassem a verter sangue, ele a soltou. A dor
retornou, uma apunhalada invisível de gelo e
terror, mas ele se esforçou em se mover, tomando a
direção das escadas. Will foi ao seu encalço, mas
Genevieve permaneceu parada no centro do
cômodo do andar inferior. Ele olhou para trás uma
vez enquanto subia os degraus, e ela o olhava de
volta, sem deixar de acompanhá-lo.

Pela porta entreaberta, Genevieve podia vê-


lo dentro da banheira, na verdade, apenas
pequenos vislumbres de suas pernas dobradas, e
algumas vezes via Will andando pelo quarto.
Também ouvia as vozes deles, um zumbido baixo,
confortável e melódico, mesmo que Genevieve não
conseguisse distinguir nenhuma palavra, aquilo a
acalmava.
Sabia que o que estava fazendo era errado e
se alguém a visse ali, estaria em um possível
apuro. Abaixada, apoiada na parede do corredor,
abraçando os próprios joelhos, Genevieve tentava
compreender as sensações que teve quando Ethan
chegou.
A camisa fina e branca estava quase
translúcida, colada ao torso, as mechas estavam
molhadas, caindo sobre seu rosto enquanto Will se
esforçava para secá-las. Algo dentro dele estava
partido, mas não foi isso que alarmou Genevieve e
sim o que estava em torno de Ethan, algo denso e
corrompido, assim como os ares que permeavam
Whitewood Holt. O que quer que fosse que
estivesse residindo lá, tentava nesse instante,
reivindicar Ethan.
Genevieve apoiou a testa no joelho, teve
vontade de chorar, lamentava por Ethan. Tiveram
suas desavenças, ela sabia que ele possuía seus
defeitos, e apesar de não o perdoar por fazê-la
participar de seus arranjos, não lhe desejava
nenhum mal.
E o mal o acompanhava.
Ninguém o salvaria, o administrador estava
condenado, Genevieve sabia e lamentava por ele.
Quando segurou a mão dele, notou a
mudança, o cheiro dele estava mesclado ao de
putrefação, ao de terra remexida de túmulos
recentes. Ânsia se avolumou em seu estômago e
subiu pela garganta, mas Genevieve resistiu, pois
queria ajudá-lo de alguma forma e a água da chuva
felizmente a auxiliou no processo, alimentado a
potencialidade de sua cura, mas não foi o
suficiente e dificilmente seria para o real tormento
que ele estava enfrentando.
— O que está fazendo aí?
Ela mal notou Will saindo do quarto. Ele
fechou a porta atrás de si e se sentou no chão ao
lado de Genevieve.
— Se permanecermos aqui, Ethan
sobreviverá e nós nos resfriaremos e morreremos.
Ouça, Srta. Johnson, não posso permitir que esse
infeliz viva e eu não.
Genevieve esboçou um leve sorriso.
— Um conhecido dele morreu, foi um golpe
duro, mas Ethan ficará bem. Irá dormir um pouco,
disse que está sentindo-se cansado. Deveria tirar
uma pestana também, ou talvez ler. Não deve se
preocupar — ele continuou falando.
— Obrigada, Sr. Carter.
— William, ou pode chamar-me de Will.
— Como desejar.
Ele se levantou e ofereceu a mão a ela.
Genevieve recusou a ajuda e colocou-se de pé
sozinha, já havia tido contato o suficiente por um
dia.
— Tomarei um chá agora, gostaria de
acompanhar-me? — ele convidou.
Genevieve refletiu um pouco, cogitando
declinar, mas no último instante, decidiu aceitar.
— Sim, obrigada. — Sorriu.
Juntos, desceram as escadas e se
acomodaram para sorverem a bebida quente.
Diante da lareira, enquanto lá fora a chuva
diminuía sua intensidade e se tornava uma garoa
intermitente, Genevieve se permitia sentir um
pouco de conforto.
Storm se deitou na frente da lareira e virou a
barriga para cima, aproveitando o calor. O
silêncio que recaía no cômodo não incomodava,
estava claro que os dois ali presentes tinham os
seus pensamentos presos a Ethan e nenhuma
conversa leviana seria capaz de distraí-los, no
entanto, mesmo que estivessem quietos, a
companhia um do outro era bem-vinda.
Seguiram assim, deixando o chá e a lareira
aquecerem seus corpos até que Will decidiu falar
alguma coisa.
— Faz muito tempo que não vejo Ethan tão
infeliz — refletiu.
— Notícias dessa natureza sempre são
extenuantes.
— Ele se decepcionou com Sarah, por mais
que a mulher seja uma megera, Ethan realmente a
estima.
— As pessoas por quem mais temos
consideração são as que detém o maior poder de
nos magoar.
— Concordo. A última vez que Ethan reagiu
a algo dessa maneira, foi também a última que viu
o próprio pai. — Will suspirou.
Genevieve não poderia imaginar que Ethan
teria qualquer relação fraturada com sua família,
talvez por isso vivesse sozinho naquele
apartamento, sozinho, assim como ela supôs
quando conversaram na noite anterior e a dama
vislumbrou uma parcela da vida dele antes que ela
chegasse.
— É uma pena quando nos decepcionamos
com pessoas que antes admirávamos, meu irmão…
— Se interrompeu.
Não, não podia falar de Vincent. Por que
começou a falar de Vincent?
— Dizia? — a estimulou a prosseguir.
Oh, não, não podia falar de Vincent. Mas
estava exausta de guardar tudo aquilo somente
para si mesma, desde a noite na plantação não
havia compartilhado com mais ninguém, estivera
lidando com as implicações daquela situação
sozinha e era difícil.
— Meu irmão é o grande responsável por eu
estar aqui hoje, ele me decepcionou.
O rosto de Carter contraiu levemente, teria
passado despercebido se Genevieve não estivesse
tão atenta a ele, enquanto removia a pesada frase
de seu peito.
— E o seu marido, ele não impediu? — Will
se inclinou para frente, interessado e
absolutamente sério.
— Vincent… — O nome amaldiçoado
queimou em sua língua. — Meu irmão é o único a
quem culpar quando se diz respeito ao leilão. —
Genevieve mordeu o lábio, aquiesceu, mas
William respeitou o seu tempo, encarando-a com
seus olhos de safiras compreensivos. — Em
partes, culpei Sr. Hamilton, não que o que ele
tivesse feito fosse correto, mas… — Genevieve
expirou, seus pulmões murcharam. — Mas não foi
ele que me colocou naquele palanque. Eu não
deveria ter direcionado o rancor que guardo de
Vincent a ele.
— Você não fez nada, Genevieve. Posso
afirmar que Ethan não se sente assim sobre você, e
você tinha toda a razão de estar incomodada com
os trâmites que se viu envolvida.
— Talvez eu não tenha dito palavras duras a
ele, mas imaginei, assim como me imagino
ofendendo Vincent, gritando com ele, causando
tanta dor quanto a que ele me fez passar… —
Genevieve fechou os olhos com força. — Sou uma
pessoa terrível, eu sei. — Abriu as pálpebras
outra vez. — Tento sufocar essas inclinações, mas
ainda sinto tanta raiva.
A garganta dela ardia, as palavras
simplesmente jorraram de sua boca. Genevieve
costumava ser silenciosa, guardava a maioria de
seus pensamentos para si, mas então foi arrebatada
por aquilo, aquela confissão inesperada.
— Não consigo encontrar a pessoa terrível,
vejo somente um ser humano absolutamente
comum. Eu digo tranquilamente que estou tendo
iguais inclinações negativas sobre seu irmão.
Genevieve sorriu, ainda instável, mas de
certa forma mais leve por ter dividido parte de
suas tormentas com Will. E era grata, sobretudo
por ele reagir da melhor maneira possível.
— Obrigada por escutar e sinto muito por
ter lhe contado essa história lastimável, sei que foi
desagradável.
— Não foi, pare de se desculpar; fico feliz
por ter se sentido segura o suficiente para revelar-
me algo de tamanha importância.
Genevieve desviou o olhar, arrependida de
suas atitudes.
— Sempre que quiser e estiver apta a
conversar sobre assuntos semelhantes, saiba que
possui um amigo para ouvir.
Ela consentiu e os seus lábios esboçaram um
sorriso outra vez.
Genevieve levou a xícara aos lábios, o chá
estava frio, fazendo-a desistir da bebida e
depositar a louça sobre a mesinha. Tímida, após
ter se exposto a William, ela precisava de uma
fuga.
— Parou de chover — comentou. — Acho
que darei um passeio pelo jardim.
— Eu a acompanho.
— Eu prefiro ir sozinha.
— Oh, sim, por favor, fique à vontade.
Talvez por isso tivesse contado sobre
Vincent a Will, ele não era alguém que exigia
respostas ou impunha sua presença, costumava
respeitar o limite dos outros e Genevieve possuía
incontáveis limites, era quase impossível estar
com ela sem pisar em uma linha.
Ela se afastou da sala de chá e tomou o rumo
da saída, lá fora, no jardim, gotículas gordas e
perfeitamente redondas repousavam nas folhas e
isso trouxe uma pequena alegria a ela, tentou
capturar uma com a ponta do dedo e sorriu com o
contato úmido contra a pele.
Os bancos de ferro ainda estavam molhados,
mas ela não se incomodou, poderia trocar de
vestido depois. Fechou os olhos e sentiu as
pequenas partículas de água carregadas pelo vento
se chocarem contra sua bochecha, era uma carícia
que a acalentava feito um beijo materno.
Não estava sozinha.
Não estava sozinha, mas precisava de ajuda
para confrontar uma força que era muito maior do
que ela. Que a lua a ajudasse.
Abriu os olhos e sua visão recaiu
diretamente sobre a janela do quarto de Ethan, o
administrador estava lá, de pé, desperto e
observando-a. Ele lhe lançou um sorriso fraco e
Genevieve o devolveu, mas quando ela ia desviar
o olhar, percebeu uma sombra densa atrás de
Ethan, uma silhueta masculina com chifres.
Genevieve quis gritar, mas antes que
pudesse proferir qualquer som, o administrador
fechou as cortinas.
Uma criada havia acabado de sair, avisando
que o almoço estava sendo servido, mas
Genevieve não queria entrar, embora já estivesse
ali por pelo menos um par de horas. Ela balançava
os pés, intercaladamente, para frente e para trás,
olhando para o chão, ainda sentada no banco de
ferro do jardim.
O que podia fazer?
O pânico era crescente e a sua consciência
suplicava para que contasse toda a verdade a
Ethan, todas as visões, sensações e avisos. Queria
dizer que havia algo profano junto a ele, sugando-o
feito um parasita.
Mas ele acreditaria nela?
A resposta era mais do que óbvia: não.
Qualquer pessoa estabelecida em seu juízo
perfeito duvidaria e, além disso, o relato poderia
fazer Ethan desejar desvendar o passado de
Genevieve, vasculhando até que obtivesse a
verdade, até que encontrasse Vincent e juntos, a
atirariam na fogueira.
“Eu adoraria assistir ao seu pescoço se
quebrar, ouvir o som do osso partindo, ou melhor,
eu adoraria vê-la queimar, como a maldita bruxa
que é.” — A voz do irmão soou limpa e cortante
em seus ouvidos.
O rosto de Vincent estava gravado em sua
memória; as feições esculpidas por ponta de aço
afiado, causavam arrepios e pesadelos em
Genevieve, e era tão injusto que ela não
conseguisse esquecê-lo, pois certamente a imagem
dela já tinha se tornado um vago esboço para ele,
algo que fez parte de seu passado, mas não valia a
pena ser rememorado com nitidez.
Genevieve observou os pés atentamente,
sem deixar de balançá-los, podia sentir o calor das
chamas, a sola do sapato se derretendo e aderindo
a pele, o belo veludo azul profundo e repleto de
bordados que recobria o peito do pé, tornando-se
cinzas. Viu a vermelhidão, as bolhas e a carne se
soltando do osso, que enegrecia e virava carvão.
Não estava pronta para passar por essa situação e
jamais estaria, então não poderia abrir a boca para
dizer nada.
Mas talvez Sarah acreditasse, a viúva era
dada a assuntos espiritualistas…
Espere, ela era dada a assuntos
espiritualistas! Talvez fosse ela quem estava
atando Ethan àquela criatura, punindo-o por ter
abandonado sua sobrinha; talvez estivessem
trabalhando juntas nisso, em uma vingança
mesquinha que acabaria destruindo-o e,
consequentemente, levando Genevieve para a
mesma alcova.
Ela parou de mover os pés e apertou a
beirada do banco com as mãos, até os nós dos
dedos ficarem brancos. Seu caminho estava se
estreitando, se dissesse a verdade a Ethan, corria o
risco de ser levada à forca, se não agisse, o
declínio dele seria também o dela, então o que
fazer?
Não se sentia preparada para entrar naquela
batalha sozinha, não sabia sequer contra o que
estava lutando, mas havia uma chance de ela
alertar o administrador quanto à Sarah, não seria
fácil, ainda assim seria um meio de afastá-lo da
viúva. Ao pensar nessa possibilidade, soube
imediatamente que seria fracassada. Whitewood
Holt era tudo para Ethan e ele não desistiria da
propriedade porque Genevieve lhe diria que
deveria; ela quase riu, mas o som saiu mais como
um gemido lacrimoso.
Poderia fugir, ou poderia solicitar que Ethan
a libertasse do trato. Ele não disse que ela era
livre? Mas a visão de Ethan e Will destruídos
assombraria até o último de seus dias, e estava
certa de que se partisse, o único desfecho seria o
fim do administrador e de tudo e todos que
estivessem em torno dele.
Ficar e lutar, com a mínima chance de
vencerem o mal que os assolava?
Fugir e escapar, mas com a culpa de tê-los
abandonado para morrerem?
Genevieve não sabia, não se considerava
particularmente altruísta, porém, em toda a sua
vida, nunca se deparou com um propósito real para
seus dons e essa era uma situação em que somente
eles poderiam ofertar alguma oportunidade de
vitória.
Seria esse o motivo por ter sido arrancada
de Massachusetts, levada até Liverpool, ter sido
comprada por Ethan e inserida naquele conflito?
Que visão romântica para o absurdo…
Pés para frente e para trás. Pense,
Genevieve. Há de existir uma resposta!
Ouviu sons de passos, amassando a grama
bem-aparada, ao erguer os olhos, Genevieve se
deparou com Ethan vindo ao seu encontro. Ele
tinha as mãos enfiadas dentro dos bolsos das
calças e marchava com passadas largas e ágeis.
Felizmente nenhuma silhueta o acompanhava, mas
uma nuvem espessa ainda o impregnava.
— Posso me sentar? — ele perguntou.
— Fique à vontade. — Deslizou no banco,
liberando mais espaço.
— Eu a aguardei no almoço, mas não
apareceu.
— Não estava com fome. — Suas
preocupações roubaram o apetite.
— Eu também não.
Ethan apoiou os antebraços nas coxas
entreabertas e observou adiante, suspirando.
— Não queria que me visse naquele estado
deplorável — Ethan iniciou, após alguns minutos.
— Não sou melindrosa, tal qual as damas
que está habituado a interagir. Não desmaiaria ao
vê-lo desestabilizado.
— Sim, deve ter visto o corpo masculino
desnudo antes, às vezes esqueço-me de que já foi
uma mulher casada.
Cretino.
Genevieve não controlou o pé esquerdo, que
estava no processo de vaivém, e chutou a parte de
trás da canela do administrador.
— Ai!
— Eu estava falando de sentimentos, não
ouse me desrespeitar, Sr. Hamilton… e o senhor
estava usando uma camisa.
Ela cresceu vendo trabalhadores na colheita
com camisas tão reveladoras quanto à que ele
trajava pela manhã. A anatomia do torso masculino
não era exatamente uma surpresa e ela mal havia
parado para refletir sobre a visão de Ethan sem
casaco e colete até ele citar o ocorrido.
— Pernas curtas têm suas vantagens. —
Olhou para as pernas dela, que não alcançavam o
chão, enquanto esfregava o local atingido.
— Deseja outra advertência? Posso fornecê-
la.
— Foi uma agressão, e não advertência.
— Merecida.
— Merecida — ele concordou com um
sorriso.
Uma única fagulha incandescente faiscou no
coração de Genevieve e ela, assim que a
identificou, tratou de apagá-la.
O administrador correu uma das mãos pelos
cabelos soltos e depois voltou-se para ela. O
sorriso já não existia em seus lábios, restando
somente sobriedade, em um nível quase
devocional.
— Obrigado por me compreender.
— Não fiz nada.
— Segurou minha mão. — Ele entrelaçou os
dedos aos dela, alarmando Genevieve. —
Amparou-me quando eu estava prestes a afundar.
— Sinto muito por seu amigo.
— Ele não era um amigo.
As mãos ainda estavam unidas,
desencadeando um turbilhão de sensações em
Genevieve, que dançavam entre doce e amargo.
Havia o bolorento de Whitewood Holt, mas
também havia calor, formigar e algo agradável,
agradável o suficiente para que ela não desejasse
se soltar.
— Era o sócio de Sarah, e eu jamais
poderia supor que ele amanheceria morto. — Fez
uma longa pausa. — Tome cuidado, não sabemos
se há um assassino à solta.
— Eu mal deixo Violet Valley.
— É verdade, mas quando desejar sair,
certifique-se de que está bem acompanhada.
— Serei cuidadosa — afirmou.
Ethan tornou a olhar adiante, ele parecia
abatido, os fios castanhos emaranhavam-se por
conta da brisa, Genevieve teve vontade de afastá-
los do rosto, então enterrar os dedos neles,
enroscando as mãos, enchendo-as e fechando-as,
testando a maciez. Ela engoliu em seco e obrigou-
se a recuar, não reconhecendo seus próprios
pensamentos.
— Sarah insinuou que eu o matei —
declarou Ethan. — Enfureci-me com a suspeita,
mas acho que fiz por merecer, ela crê que eu seria
capaz de qualquer coisa para obter a propriedade.
— E seria? — Genevieve questionou,
elevando as sobrancelhas.
— Não a ponto de ceifar a vida de um
homem.
— E o que fará para provar o contrário a
ela?
— Eu não sei… as coisas estão mudando,
sinto-me exausto desde que comecei com as
mentiras.
— Então não minta.
— É tarde demais para retroceder. Já
sustentou uma mentira assim? Que quanto mais o
tempo passava, maior ela se tornava?
Genevieve ponderou sobre a própria vida,
ela toda era uma enorme mentira.
— Já. — A sentença saiu ríspida.
— E conseguiu se libertar da trama?
— Não.
Os olhos dele se arregalaram, curiosos.
— Então não há esperanças para mim, mas
pode partir quando desejar, Srta. Johnson.
Partir? Era um blefe? Após tudo o que
passaram, os encontros com Sarah, o baile…
— Abriria mão de seu trunfo?
— Um homem próximo a mim e a
Whitewood Holt morreu, eu não gostaria que a
senhorita estivesse presente nos próximos dias,
correndo riscos que estão além do meu controle.
Era uma tentativa de protegê-la, mas
Genevieve estaria mais exposta se decidisse
partir, procurando um novo rumo, enquanto um
assassino perambulava pelos arredores.
Genevieve não tinha ninguém para acolhê-la e
resguardá-la daquela ameaça, estava
completamente sozinha no mundo.
— Não tenho para onde ir. — A frase saiu
dolorida, vertendo mágoa em cada sílaba.
— E seu irmão? Lembro-me da senhorita
dizendo que possuía um. Posso pagar a travessia
para Massachusetts e…
Oh, céus, novamente Vincent!
— Não! — gritou. — Por favor, não —
retomou, mais comedida.
— Pensei que odiasse estar aqui, sempre
agiu como se detestasse o acordo.
— E o detesto. Odeio sentir-me presa, odeio
ter sido vendida e comprada como uma
propriedade, mas não odeio o senhor ou o Sr.
Carter.
Ethan fez um curto gesto de concordância, e
demorou a respondê-la, parecendo refletir sobre a
declaração dela e sobre as próprias palavras que
usaria a seguir.
— Reconheço não ter lhe dado opções, e
sinto muito por isso, eu estava eufórico, colocando
todas as expectativas no plano, mas agora não sei
se o levarei adiante. Não precisa mais ser minha
esposa, Srta. Johnson, volte para Massachusetts.
Céus, era quase como se uma outra pessoa
estivesse ao lado dela, com objetivos distintos do
Ethan de semanas atrás.
— A acusação da viúva o atingiu
profundamente — Genevieve constatou em voz
alta.
— Sim. Não sei se as perdas justificam os
ganhos, e nem se os ganhos são tão grandes assim.
— Não restou nada para mim em
Massachusetts — ela retomou. — Terei que
recomeçar aqui — sussurrou.
— É por causa de seu marido? Por isso não
fala dele?
O semblante raivoso de Vincent erguendo o
cinto cortou a visão de Genevieve, o coração dela
disparou.
— Não. — A voz dela tremeu e uma lágrima
escorregou por seu rosto. — Mas não posso
retornar.
Ethan soltou seus dedos pela primeira vez e
ergueu o queixo de Genevieve com uma das mãos,
para secar a lágrima com o polegar da outra.
— Avise-me quando decidir, se quiser
partir, irei compreender e fornecer suporte para
tanto, mas até então, possui uma casa aqui.
Ela fungou e concordou com a cabeça, Ethan
continuou a falar.
— Não a abandonarei quando mais precisar,
assim como fez comigo essa manhã. Possuí um
amigo, não marido, ou qualquer outro título que
possa denotar que está ligada a mim por conta do
leilão, tenha isso em mente.
Uma nova oferta de amizade, já eram duas
em um mesmo dia.
— Está rompendo o trato? — Elevou os
olhos úmidos aos dele.
— Sim — afirmou, convicto.
Genevieve estava confusa, seu mundo girava
em turbilhão, o perfume dele, uma linha distinta ao
cheiro do mal que tentava se infiltrar, a atordoava.
Conseguiu o que tanto queria, mas não sabia o que
fazer, feito os cavalos selvagens que eram
capturados, e passavam tempo demais presos em
baias, até temerem a liberdade.
Precisava de tempo para pensar e decidir o
que fazer, talvez realmente partisse para uma
cidade vizinha, procuraria uma ocupação de
preceptora ou dama de companhia, poderia dar
início a uma vida diferente, mas não antes de
solucionar os mistérios que cercavam Ethan.
Genevieve se afastou e aprumou a postura.
— Ainda permanecerei aqui, Sr. Hamilton,
poderemos prosseguir com os planos de
casamento, mas saiba que um dia irei embora.
— Tudo bem.
Ethan estendeu a mão e ela a apertou,
firmando um novo trato.
Lá estava ele, sem saber se tomou a atitude
correta ao regressar a Whitewood Holt, sem saber
se deveria voltar a trabalhar na propriedade, após
a insinuação de Sarah.
Genevieve o leu muito bem, a acusação da
viúva o mudou. Ethan reconhecia não ser alguém
de perfil estoico e completamente honesto, pelo
contrário, sua juventude, perambulando entre uma
mesa de carteado e outra, lhe rendeu habilidades
de trapacear e ele aprendeu que às vezes valia a
pena arriscar algum truque sujo quando o prêmio
era grande, mas não a ponto de se tornar alguém
que levantava suspeitas de assassinato contra si.
Porém ainda não estava disposto a desistir,
mesmo assim, diminuiria seu ritmo, sua ânsia em
obter mais e se não obtivesse, talvez não fosse tão
ruim. Após a morte de Ormond, ficou evidente que
todos ali eram alvos fáceis e Ethan não gostaria de
viver com medo, preferia ser livre a estar
enclausurado em desconfianças.
Livre…
A palavra o arrastou até uma dama de olhos
cinzentos, baixa estatura, silenciosa, porém
eloquente quando desejava falar. Queria vê-la
livre também, mas…, mas não queria que ela
partisse.
Curioso, não? Como em poucas semanas, já
havia se acostumado à presença dela, com a figura
pequenina e esguia enroscada em uma poltrona na
biblioteca, com a cadeira ocupada por ela ao lado
esquerdo de Will — que se mantinha na cabeceira
— em todos os jantares, enquanto Ethan ocupava o
direito, de frente para ela, observando seus gestos
graciosos, o franzir de nariz contrariado e a união
de suas sobrancelhas volumosas e expressivas
quando um dos dois homens dizia alguma idiotice.
Deu-se conta de que se Genevieve fosse embora,
sentiria falta dela, tanto quanto sentiria a de Will
se um dia o amigo viesse a se distanciar, mas
quando o momento chegasse, ele não faria
absolutamente nada para impedi-la.
Seu coração se aliviou quando pensou em
Genevieve, por mais devastado que estivesse,
havia um novo impulso o empurrando adiante,
contudo, ele ainda não conseguia compreendê-lo e
nem identificar para qual direção estava sendo
encaminhado.
Esfregou o rosto, eliminando os vestígios da
noite mal dormida, e subiu os cinco degraus que o
levariam até a porta de Whitewood Holt. Assim
que entrou, seu ouvido detectou vozes que não
pertenciam aos residentes nem aos empregados,
porém não eram completamente desconhecidas.
Inspirou cheiro de fumaça e sem demora uma
senhora de cabelos brancos e um par de óculos
pequenos e redondos na ponta do nariz arrebitado,
passou diante dele, queimando um maço de ervas e
murmurando algumas palavras inteligíveis.
Uma outra mulher, de estatura baixa, pele
marrom-escura e corpo curvilíneo, segurava
firmemente o braço de Sarah. A mulher estava de
olhos fechados e Ethan sabia o que significava: o
Sr. Whitewood a estava utilizando como um canal
para se comunicar com a esposa. Ah, não. Não
queria estar ali presenciando todos aqueles ritos,
além disso, Sarah ficava em um estado conturbado
durante e depois das visitas.
A que estava com o chumaço fumacento,
Margaret, se ele se lembrava corretamente do
nome, o rodeou, levantando os braços dele para
passar a fumaça por baixo.
— Sarah, amada de minha alma, há muitas
serpentes nesta casa — falou “Sr. Whitewood”.
Margaret fez uma careta de reprovação,
alarmada com algo no pronunciamento enigmático.
Ethan reprimiu um riso, não foi difícil, afinal, não
estava dado às gargalhadas, porém achou
engraçada a perturbação de Margaret, um pequeno
troco por ela perturbá-lo tanto.
— Será que está ocorrendo uma infestação?
— a viúva perguntou.
— Muitas serpentes, a maioria delas são
pequenas, mas você deve encontrar a grande, então
as outras não serão um problema.
— Uma ninhada? Vou solicitar que Benjamin
vistorie a propriedade.
De repente, a mulher que estava ao lado de
Sarah tossiu, um som áspero e incômodo que a fez
tombar para frente.
— Phil? Phil, tudo bem? — Sarah tentou
amparar.
— Sinto muito. — A mulher engoliu
golfadas de ar. — Ele teve que partir — continuou,
resfolegante.
— Que pena, Abigail, ele estava me dizendo
algo sobre cobras. Detesto esses animais, assim
como os escorpiões e as aranhas que fazem ninhos
e quando menos esperamos, saltam de lá para nos
envenenar. Ele sabe que tenho medo, foi gentil em
alertar-me, pena que não respondeu nada sobre
Ormond.
— Haverá novas oportunidades de falar
com ele — Abigail consolou com um sorriso e um
afago no braço da outra.
— Mas por que ele já foi? Phil costuma
ficar por horas.
— Não há como saber, os espíritos são
caprichosos.
Ethan capturou um olhar cúmplice trocado
entre Margaret e Abigail. O que quer que o Sr.
Whitewood estivesse prestes a revelar, elas não
queriam que Sarah soubesse.
Ou talvez fosse um pequeno atrito entre as
mulheres, embora fossem amigas, possuíam suas
manias e batalhas não pronunciadas. Oh, sim, ele
já ouviu a viúva desfiar lamúrias sobre quando
Margaret tomou chá na casa de uma outra e não
teve a decência de convidá-la, ou quando o círculo
de ocultistas foi realizar trabalhos em uma
residência nova e não quiseram que Sarah os
acompanhasse.
A verdade era que a Sra. Whitewood era
muito devota ao marido falecido, mas ser íntima
dos ocultistas lhe trazia um tipo distinto de
prestígio, que não se conseguia, nem nascendo sob
um brasão aristocrata. As sessões eram um
chamariz, um luxo presente somente nos eventos
mais requintados. Era uma dádiva recepcionar
aquele grupo, as pessoas fariam qualquer coisa
para tê-los, e Ethan faria qualquer coisa para não
ter encontros rotineiros com eles.
Aparentemente, os outros três membros não
estavam presentes, dois homens e mais uma
mulher. Era uma notícia boa, significava que
Margaret e Abigail iriam embora mais cedo.
— Eu precisava saber sobre Gallager… —
Sarah lamentou.
Ethan tornou a prestar atenção ao que
acontecia ao seu redor.
— Há informações que nem eles podem nos
dizer. — Abigail usou um tom ameno.
— Tudo bem, mas cuidem para que a morte
de Ormond não deixe rastros nesta casa.
— Sim. Margaret, está quase terminando,
não é?
Margaret correu os olhos com desdém para
Ethan, e virou-se para Abigail, confirmando com
um aceno.
— Posso falar com a senhora depois, Sra.
Whitewood? — o administrador questionou,
precisavam ter uma conversa.
— Hoje não, minha cabeça está doendo. Vá,
suba logo ao seu escritório. Deixe-me, tenho muito
a fazer ainda — respondeu com grosseria.
Ethan realizou uma curta mesura e obedeceu.
Sarah estaria acreditando que ele havia
matado Ormond? Será que acreditava que ele era o
animal venenoso sinalizado pelo Sr. Whitewood,
que a esposa tinha que evitar? Talvez Ethan de fato
o fosse, com suas mentiras, cobiçando os
pertences de uma viúva, espreitando sua morte,
feito um abutre prestes a tomar uma carcaça.
Sua consciência jamais foi tão pontual
assim, acertando-o com golpes regulares de
remorso. Mas ele também nunca constituiu uma
mentira tão grande antes.
Abriu a porta e um denso cheiro de mofo o
atingiu, um sopro abafado e sufocante. Decidiu
deixar a porta aberta para ventilar, também correu
para as janelas, certificando-se de que todas
estavam livres. Depois da inspeção, ocupou sua
cadeira, diante da mesa. Procurou seus livros e
anotações, dispondo-os do modo como lhe
agradava trabalhar, mas nem os números foram um
conforto naquele dia.
Ethan estava inquieto, a reunião com
Ormond ainda salpicava sua memória, saltando em
momentos nada oportunos, mas uma hora o
administrador teria que superar aquele evento, não
podia deixar-se desestabilizar dessa maneira, pois
tinha suas funções a cumprir, mesmo se não
herdasse coisa alguma, ainda tinha um emprego a
zelar.
— Bom dia, Hamilton — um timbre firme o
saudou.
Benjamin já se adiantava pelo cômodo,
sentando-se diante de Ethan.
— Está fugindo? — Sorriu o administrador.
— Não gosto daquelas pessoas — declarou,
os cantos da boca tremeram em tensão.
— Nem eu, meu caro, nem eu…
— Essas práticas não são cristãs. A viúva
deveria visitar mais a igreja e deixar de recorrer a
isso para ser confortada em seu luto. A palavra do
Criador a libertaria do tormento.
— Não tenho uma opinião formada sobre a
fé da Sra. Whitewood e não me vejo no papel de
determinar o que seria correto a ela, mas confesso
também não gostar da presença deles.
— Você é um cético, acredita somente no
que pode somar. — Bufou.
— E dividir, subtrair e multiplicar.
Benjamin riu.
— Gostaria de ir beber algo esta noite?
Soube que estava precisando, a morte de
Gallagher foi difícil.
— Bem… eu gostaria sim. — Suspirou. —
Posso tomar a liberdade de chamar William
Carter?
— Não vive mais sem Carter. — Riu. — Já
tem a mão da prima dele, não é mais necessário
que o adule.
— Will é um bom amigo, assim como você,
Benjamin.
— Obrigado.
— Sua esposa não irá se incomodar se sair
conosco?
— Conversei com Odeth sobre isso, não
gosto de deixá-la sozinha, principalmente à noite,
mas às vezes é benéfico algum momento entre
amigos.
— Feito. Irei até Violet Valley para buscar o
Will e depois nos encontraremos nas docas.
— Muito bem — concordou. — Não vejo a
hora deste dia terminar. Terei que passar a manhã e
a tarde toda procurando cobras, a viúva cismou
que a casa está cheia delas, mesmo eu dizendo que
não há.
— Melhor passar o dia ocupado, assim não
terá que se encontrar com as visitas que não o
agradam.
— É verdade. — Se colocou de pé. —
Deixe-me começar logo a caçada.
Assim sendo, Benjamin foi cumprir a tarefa,
enquanto Ethan refletia sobre a veracidade da
existência daquelas serpentes.
Mais tarde, assim como combinaram,
estavam os três em torno de uma mesa, Will já
mais falante, após ter consumido as suas doses
iniciais mais depressa do que o recomendado.
As conversas leves estavam sendo muito
necessárias a Ethan, que ainda buscava
reconstruir-se internamente após ter as estruturas
esmorecidas, contudo, mesmo que o objetivo da
ida até a taberna fosse descontraí-lo, o ambiente o
recordava do último encontro com Ormond, não
era o mesmo estabelecimento, mas, de alguma
forma, todos daquele tipo pareciam iguais.
Ordenou a si mesmo que parasse de se
lamentar e tratou de se atentar à conversa,
falhando, em seguida, era difícil prestar atenção
quando não pareciam dizer nada que fizesse algum
sentido, Ethan havia perdido o início da história
então o final soava desconexo. Entediado, seus
olhos vaguearam adiante, por cima do ombro de
William.
Uma dama, limpando uma mesa com um
trapo sujo, direcionou um sorriso curto para Ethan.
Ela era atraente, tinha olhos castanhos e um rosto
oval, com bochechas coradas; ele retribuiu,
sorrindo de volta.
— Ei, nada de sorrir para garçonetes, é um
homem comprometido — Benjamin censurou,
captando a interação. — Faça alguma coisa,
Carter.
— Foi apenas um sorriso, deixe de besteiras
— Will retrucou, com a fala amolecida.
— Sou fiel à Srta. Johnson, não há motivo
para alardes. — Ethan levou a bebida aos lábios,
um pouco mais relaxado depois de passar dias em
completa tensão.
— Está encantado pelos cabelos de
Genevieve, eu já o percebi observando-os, ou
melhor, cobiçando-os. — Will lançou um sorriso
sagaz.
— Torna-se uma criatura desgraçada quando
está sob efeito do álcool — Ethan reclamou.
— Eu não o culpo, também estou atraído por
cabelos escuros — segredou Will.
— Será que há um novo casamento a
caminho? — Benjamin aumentou o tom de voz,
externalizando sua animação.
— Não… — Will tinha um olhar vago. —
Definitivamente, não. — É apenas um interesse.
Benjamin continuou com as provocações,
querendo pescar mais detalhes sobre a eleita de
William, mas Ethan não conseguia escutar. Um
veloz fluxo de sangue fazia pressão em seus
ouvidos e ele só pensava… pensava em Will e
Genevieve.
Eles estavam morando juntos, convivendo, e
se o próprio Ethan admitia ter desenvolvido algum
sentimento por ela, por que não Will? Mas era
complicado, tão complicado que Ethan jamais se
permitiu abrir a possibilidade de envolvimento
romântico com ela, prometendo a si mesmo que
não aconteceria, mas Will não prometeu nada.
Era hora de parar, freou o raciocínio. Estava
criando suposições vazias em cima de uma frase
qualquer, muitas damas tinham cabelos escuros e
Will conhecia um expressivo número delas, de
modo que era pouco provável que ele se referisse
à Genevieve; tinha que confiar nisso, trabalhava
com estatísticas, elas não mentiam.
Mas a questão que mais o atordoava, era por
qual motivo a visão de William e Genevieve
juntos lhe causava tamanho desconforto.
— Tive notícias hoje quando fui para a
cidade mais cedo. — O tom de William sofreu
grave alteração, preocupando os outros dois.
— Pois então, diga logo — demandou Ben.
— Sei que estamos aqui para fugir desse
assunto, mas achei importante que soubessem…
dizem que Gallagher sofreu alguma parada no
coração.
Então não havia um real culpado para
aquilo. Ethan sentiu-se aliviado, apesar de desde o
princípio saber que era inocente.
— Eu não podia imaginar. — Levou uma
mão à cabeça.
— Ninguém poderia.
— É hora de deixarmos isso para lá, vamos
jogar ou não? — Benjamin puxou o baralho.
Ethan assentiu, Will também, e o amigo
passou a embaralhar e depois a distribuir as
cartas.
— O que querem apostar? — Will
perguntou.
— Que tal um anel de safiras? — Benjamin
sugeriu.
— Não estou tão bêbado a ponto de
concordar, aliás nunca estarei. Esta é uma herança
que jamais pertencerá a outro. — Girou o anel em
seu dedo, como se certificasse de que ele estava
lá.
— Vamos apostar amendoins. — Ethan
puxou o pequeno recipiente, centralizando-o na
mesa.
— Não seja sovina, sabemos que pode
dispor de alguns pences — Will reclamou.
— Não gosto de jogar a dinheiro.
A prática o transportava para um tempo que
estava quase se viciando no baralho. Jogar
valendo dinheiro despertava a ânsia de
competição nele e Ethan não gostava de si mesmo
quando se via nesse estado.
— Porque sabe que vai perder, ande,
Hamilton, deixe de melindres — Benjamin
esbravejou. — Sabem quanto tempo que não tenho
uma noite como esta? Não a desperdicem.
— Não temos culpa se a sua esposa o
coloca em rédeas curtas — Ethan retrucou. — Mas
se faz questão de perder dinheiro, não serei eu a
impedi-lo.
— Respeitar minha esposa não significa que
estou em rédeas curtas, mas não o culpo por ainda
não compreender as nuances de um casamento, em
breve aprenderá na prática.
— Já nos certificamos de que sabem blefar,
mas será que sabem jogar? — Will atirou um
amendoim na têmpora de Ethan.
— Certo, certo, mande as cartas. —
Benjamin foi organizar sua mão.
Ethan costumava ser vitorioso nos jogos,
pois eram puramente lógica, embora ele
reconhecesse que às vezes a sorte fazia-se
presente. Mas, naquela noite, o administrador não
ganhou todas as partidas, principalmente porque
um pequeno ponto latejante afligia o recôndito de
sua mente: quem era a moça de cabelos escuros
que reivindicou o coração de seu amigo?
Seus batimentos cardíacos aceleraram,
enviando vibrações de pânico para todo corpo;
identificou o desespero dentro de si jorrando
salgado com gosto de lágrimas. Genevieve
despertou gritando e nem ela entendia o motivo.
Após o atordoamento inicial, compreendeu
que o que a retirou do sono foram pancadas
pontuais contra o vidro da janela. O que quer que
estivesse tentando entrar, tinha conseguido criar
uma rachadura em formato de teia de aranha, que
se expandia a cada batida.
Genevieve se levantou da cama, e tropeçou
de costas até a parede oposta. Um grito ressoou em
seu crânio, lavando todo pensamento.
Era real ou visões?
Ela não sabia dizer, tinha medo de pedir
ajuda e aquilo não ser visível aos demais, mas
também não podia simplesmente aguardar.
Tarde para que qualquer remediação fosse
tomada, um buraco foi feito no vidro e um projétil
se estatelou no chão. Sons roucos e arranhados
provinham dali, e Genevieve, vencida por um grau
insano de curiosidade, que ultrapassava ao do seu
medo autopreservativo, se aproximou. Seus gestos
eram cautelosos, a cama larga no meio do quarto a
impedia de ver, então teve que dar a volta.
Ali estava, entre fragmentos de vidro
quebrado, havia uma bola de penas negras e
gemidos: um corvo.
O animal grasnava e chacoalhava as asas,
mas não conseguia voar. Um líquido grosso e
escuro, marrom na penumbra, passou a escorrer
entre os vincos da madeira, era sangue da ave
agonizante.
— Oh, pequeno, o que você fez? —
questionou com a voz dócil e triste.
Abruptamente, a porta de seu quarto foi
aberta, Ethan adentrou sem cerimônias.
— Está tudo bem? — Ele a girou para si,
segurando em seu cotovelo. Não imprimiu força no
gesto, mas havia urgência ali.
— Eu não sei. — Balançou a cabeça,
confusa.
O administrador se adiantou para a janela,
avaliando um buraco, então desviou o olhar para o
chão, para a ave já imóvel.
Genevieve chorou, como jamais esperava
vir a chorar diante de Ethan, se ajoelhou e quase
se engasgou no pranto. Estava exausta e não
compreendia o que havia acabado de acontecer,
mas algo que sempre a afligia, era a visão de
algum animal morto.
“Pragas" — Vincent esbravejava aos
corvos, em torno das plantações.
Para ela, eles não eram pragas.
Acolheu a ave nas mãos e removeu
delicadamente alguns estilhaços de seu corpo.
Acariciou a penugem da cabeça pequenina,
depositando no gesto um “adeus".
— Por que ele fez isso? — questionou entre
soluços.
— Eu não sei. — Ethan se abaixou ao lado
dela. — Dê ele a mim — solicitou.
Genevieve concordou, engolindo os últimos
resquícios de seu choro, esticou os braços, prestes
a entregar o corvo, mas então, involuntariamente o
comprimiu contra o peito, tentando protegê-lo e
proteger a si mesma, quando viu a figura que
estava de pé atrás de Ethan.
— O que foi? — o administrador
questionou, alarmado, olhando por sobre o ombro.
Os olhos verdes atravessaram a figura de
sombras, com cascos, chifres e olhos vermelhos de
brasas, ignorando por completo aquele que
Genevieve chamou de Devorador de Sonhos.
— Pensei ter visto algo — sussurrou a
dama.
— Deve estar assustada. — Ethan se
aproximou um pouco mais dela e a figura passou a
desvanecer.
Genevieve não perdeu sequer um segundo
da silhueta se esfumaçado e dissipando no ar,
mantendo o brilho rubro infernal de seus olhos até
o último instante, e ela revidou o olhar, mesmo que
ele a fizesse arder de dentro para fora, como se a
qualquer instante, seus órgãos liquefeitos
pudessem escorrer pelos olhos, boca e nariz.
— Agora entregue-o a mim, prometo
fornecer um sepulcro digno — Ethan retomou.
Genevieve piscou para se recuperar do mal-
estar e cedeu lentamente, acomodando o corvo
entre as grandes mãos em concha do
administrador.
— Muito bem. — Ele lhe ofereceu um
sorriso fraco. — Já vou voltar, apenas o deixarei
em outro lugar, está bem?
Genevieve afirmou com a cabeça e o
administrador saiu. Ela não foi capaz de mensurar
por quanto tempo ele esteve fora, pareceu ter se
passado somente um abrir e fechar de olhos. Ela
não se moveu, continuou largada no chão, sobre as
pernas dobradas e com as mãos ensanguentadas
inertes.
— Espero não ter demorado.
Ela não o respondeu.
— Vamos, levante-se, Genevieve. — Havia
carinho e preocupação na voz.
Ainda zonza, Genevieve se forçou a ficar de
pé, ignorando a ajuda ofertada por Ethan. Ele
vasculhou o rosto dela, à procura de algo que a
dama não sabia dizer, mas que acentuava a
obscuridade no semblante dele.
Ainda vistoriando-a, Ethan puxou-lhe uma
das mãos. Genevieve teve vontade de recuar ao
toque, contudo ele a impediu de se afastar.
— Cortou-se.
— Não, este sangue é do pássaro.
— Há um corte em sua palma que ainda
possui um pedaço de vidro. Precisarei de luz e de
meus óculos para retirá-lo.
— Não é necessário.
— Sim, é, vamos para o escritório de
William.
Cansada demais para discutir, e porque
também não desejava ficar sozinha, optou por
segui-lo. Enquanto atravessava a residência,
Genevieve teve um vislumbre de si mesma em um
espelho oval de arabescos negros. Uma face
pálida e assustada, contrastava com cabelos
pretos, porém o que mais se destacava em sua
composição, era o sangue do pássaro morto,
impresso contra seu peito, no tecido alvo da
camisola.
Sua figura foi tragada pelas sombras,
quando Ethan se distanciou com o castiçal e ela se
obrigou a mover os pés.
Já no escritório de William, Ethan acendeu
as lamparinas a gás e alguns outros castiçais,
iluminando o ambiente. Aquele cômodo, assim
como o restante da residência, era acolhedor,
havia couro marrom e um tipo de arrumação que
Genevieve determinaria como masculina.
— Por favor, sente-se — Ethan pediu.
Genevieve fez menção de acomodar-se na
cadeira diante da mesa de trabalho do seu
anfitrião, mas ele a interrompeu.
— Aí não, precisaremos de altura. Sobre a
mesa, por favor.
Ela assim o fez e aguardou, com a cabeça
baixa, viu os pés de Ethan indo para lá e para cá.
Estava de sapatos e vestido com as calças que o
viu no jantar, o único indício de informalidades
era a sua camisa branca, desabotoada no colarinho
e com as mangas arregaçadas até os cotovelos.
Ethan não estava dormindo, Genevieve
percebeu.
O administrador se aproximou dela, estava
com seus óculos, que havia resgatado antes de
tomarem o rumo do escritório, e trazia uma garrafa
cristalina bem-trabalhada, de conteúdo de cor
âmbar, segurando-a pelo gargalo, enquanto com a
outra mão, trazia um copo.
Genevieve contraiu o cenho para os objetos.
— Isso não será nada fácil — ele avisou,
colocando-se diante dela, de modo que os joelhos
de Genevieve quase tocassem o estômago dele.
— É mesmo? — Ousou depositar uma
fagulha de humor ali.
Ethan derramou um pouco da bebida dentro
do copo e deu um gole curto, repondo o líquido em
seguida.
— Beba, lhe fará bem. — Ofereceu o copo à
Genevieve.
— Não, obrigada.
— Não a deixará inebriada, apenas mais
relaxada.
Hesitou um pouco, olhando-o com
desconfiança, mas aceitou. Ingeriu a dose e sua
garganta entrou em chamas, como uma coluna de
fogo, que descia e lambia seu estômago. Tossiu,
cobrindo a boca com o dorso da mão que não
estava ferida.
— Muito bem. — Sorriu e Genevieve podia
jurar que ele estava orgulhoso.
Antes que se desse conta, Ethan puxou sua
mão e virou a garrafa sobre a palma lacerada,
embebendo o corte com o líquido e Genevieve
teve que trincar os dentes para não gritar. Ela
sequer havia notado o momento em que se
machucou, em contrapartida, nesse instante o
latejar em sua palma era tudo o que ela conseguia
sentir.
— Seu… — Os olhos dela lacrimejaram e
não conseguiu pensar em nenhuma ofensa.
— Eu sei, eu sei. — Acariciou os cabelos
dela, mas o gesto foi tão rápido e ele fez com
tamanha naturalidade que ela não teve tempo hábil
para repreender. — Feche os olhos.
— Não sou uma covarde, Sr. Hamilton…
Vim de Massachusetts para cá dentro do porão
mais desprezível que possa imaginar e sobrevivi,
fui humilhada publicamente, eu… — Ela caiu em
um pranto ressentido. — Por que aquele pássaro
tinha que morrer? — Chorou um pouco mais.
Por que aquelas coisas terríveis estavam
acontecendo? — Ela queria dizer. Como poderia
impedir? Como protegê-los?
— Acabou — Ethan sussurrou, segurando a
lasca triangular.
Genevieve fungou e continuou chorando. Seu
coração estava estrangulado, como se uma das
serpentes que vinham se mostrando a ela, estivesse
dentro de seu peito, comprimindo o coração e
obrigando-o a bombear mais depressa, mas em vez
de sangue, era veneno que se espalhava em suas
veias.
Ethan depositou o vidro longe dela, na mesa,
e então a abraçou, aparando-a em seu peito, assim
como ela havia feito com a ave, minutos atrás.
Inconscientemente, Genevieve entreabriu os
joelhos, para acomodá-lo melhor.
Ele subiu e desceu a mão sobre a espinha de
Genevieve, exercendo a pressão perfeita para
acalmá-la, por vezes enroscava os dedos nos
longos cachos negros soltos, brincando com eles.
O rosto dela estava diretamente sobre a pele nua
do pescoço dele, inspirando o cheiro pútrido de
Whitewood, mas também o de Ethan, por baixo do
intruso que o acompanhava.
— Por que não estava dormindo? —
Genevieve questionou com a voz rouca.
— Tenho pesadelos — pontuou. — Todas as
vezes que fecho os olhos, vejo um tipo de criatura
grotesca.
O Devorador de Sonhos.
— Sinto muito. — Apertou os lábios.
— É por conta de Ormond, não há um
segundo de paz em minha mente desde que ele
morreu. Pensei que após saber a causa de sua
morte, eu teria mais sossego, porém me enganei.
— Não foi culpa sua.
— Eu sei que não. — Inspirou fundo e
apertou Genevieve um pouco mais contra si, desta
vez era para estabilizá-lo em vez dela. — Estou
perdendo a sanidade e agora há pássaros atacando
janelas.
Genevieve soltou um riso fraco e trêmulo de
autopiedade.
— Ouvi o seu grito e então o som do vidro
se partindo, ao menos a insônia foi de alguma
serventia — prosseguiu ele.
— Ou então eu estaria abraçada ao corvo
até agora e não ao senhor.
— A você, me chame de Ethan. E devo dizer,
sou uma opção mais agradável de se abraçar. Não
tenho intenção de ofender vosso amigo corvo, mas
posso envolvê-la completamente. — A pressionou,
como se a protegesse em um casulo, para ilustrar a
fala.
— Isso é fácil, ocupo a metade de seu
tamanho.
— De minha parte, considero que se
encaixou perfeitamente aqui.
E ela se assustou quando percebeu que sim,
havia se encaixado perfeitamente.
— Preciso ir. — Desencostou o rosto do
peito dele, erguendo a cabeça para observá-lo.
Ethan afrouxou os braços, e abaixou o rosto para
retribuir-lhe o olhar.
— Não quero que vá. — Havia urgência,
mas também honestidade e era a segunda que
Genevieve temia.
— Não posso ficar.
Empurrou-o gentilmente, Ethan deu um
passo para trás. Ela quase se arrependeu da fala,
quando percebeu o quão desolado ele ficou, algo
dentro dele se despedaçou e um inegável medo,
irrompeu. E doeu ainda mais em Genevieve,
quando ela se deu conta de que sabia o que ele
temia, do que morderia os calcanhares dele,
quando estivesse sozinho em seu quarto.
Quase correndo, para não ceder à ânsia de
aceitar a companhia de Ethan, que ela tinha certeza
de que protegeria a ambos do Devorador de
Sonhos, Genevieve saiu pela porta, consciente de
que ficar, os comprometeria, colocando-os
igualmente em apuros, embora em aspectos
distintos.

Genevieve caminhava com Amelie pelas


ruas que cercavam Compton House; não estava
com ânimo para fazer compras, mas Ethan disse
que faria bem a ela distrair-se um pouco e
Genevieve concordou. Após tantos
acontecimentos, se assomando em uma pilha
vertiginosa que ameaçava cair sobre ela, era de se
esperar que Genevieve se sentisse sobrecarregada.
Solicitou que o cocheiro as deixasse um
pouco distantes de seu destino, pois desejava
caminhar. Amelie preenchia o silêncio com a sua
conversa fácil, a jovem estava animada pelo
passeio, e sua forma de expressar isso, era falando
sem parar.
Genevieve não se atentou a sequer metade
das histórias que contava, por outro lado, era grata
a ter seus ouvidos preenchidos, assim como seus
olhos estavam sendo, com pessoas indo e vindo, e
carruagens subindo e descendo. Havia vida ali,
agitação, em oposição aos eventos lúgubres que
estava presenciando.
Ethan tinha razão, caminhar estava fazendo
bem a ela.
Ethan…
O administrador estava sofrendo,
definhando com a ausência de sono e a presença
impiedosa dos pesadelos. Não compreendia o
motivo de ele estar sendo perseguido, a única
coisa que ele fez que poderia ocasionar algum tipo
de desgosto a alguém, foi negar a casar-se com
Beatrice.
E novamente Genevieve especulava sobre
Sarah. A viúva poderia querer a vingança, mas
algo ainda não se completava corretamente, pois
bastava ela negar a herança a Ethan e direcioná-la
para a sobrinha, sem necessidade de envolver
forças tão sombrias no meio.
— Criança! — Uma mão fina e ossuda se
grudou ao braço de Genevieve. — Pobre criança,
pobre criança! — gritou.
Uma mulher de pele escura, idade avançada,
corcunda e vestida de trapos, chacoalhava
Genevieve com mais força do que o esperado. Um
cachimbo gasto estava preso entre os dentes
amarelos, o que prejudicava a clareza com que as
palavras deixavam sua boca.
— Solte-a! — Amelie devolveu, em pânico.
— Uma criança da lua está em apuros e
precisa de ajuda — crocitou.
— Afaste-se! — Amelie puxou a mão da
mulher, soltando-a do pulso de Genevieve. — Saia
daqui, velha maluca.
A garganta de Genevieve estava atada em
um nó, não suportava mais ser acometida de
sustos, serpentes, corvos e senhoras enigmáticas a
chamando de filha da lua.
"Doce criança do céu enluarado,
de alma prateada vivaz
Brilhe e encontre seu destino ocultado,
brilhe e encontre o mar
Permita sua alma despertar
Permita sua alma despertar."
A canção antiga e esquecida vibrou dentro
do peito de Genevieve, a voz de sinos e vento
tilintava em seu ouvido.
A impressão da mão da mulher ainda
queimava em brasas em seu braço, lançando
ondulações mornas sobre a pele fria, causando-lhe
arrepios pelo choque de temperaturas. Genevieve
quase se dobrou, mas porque não estava preparada
para o impacto daquele contato, da forte energia
contida ali, quase podia senti-la faiscar no ar.
“Permita sua alma despertar
Permita sua alma despertar."
— Essa é a Burns, não dê atenção a ela, não
há nada em sua cabeça, tudo foi consumido por
traças.
— Não diga isso, Amelie — ralhou.
— É verdade, ela dorme nas ruas,
sobrevivendo da generosidade dos outros.
Geralmente é inofensiva, mas às vezes há esses
episódios infelizes de agressividade.
— Obviamente que iriam ocorrer justamente
comigo — pensou consigo mesma.
— O que disse?
— Nada que valha a pena ser repetido.
Afastaram-se mais depressa, e antes de
dobrar para a próxima rua, Genevieve olhou para
trás, para Burns. A mulher a olhou de volta e
Genevieve primeiramente viu-se de encontro a
olhos verdes, uma cor impressionante, que ela só
tinha admirado outra vez, nos olhos de uma coruja
cinzenta. No momento seguinte, vislumbrou um tom
perolado tingindo a íris.
Afundada entre os lençóis frescos e
abraçada pelo colchão macio, Genevieve dormia.
Logo depois de ser abençoada com a
inconsciência somente após faltar poucas horas
para o nascer do sol, Genevieve desfrutava de um
real descanso, livre de pesadelos ou visões.
Demorou para adormecer, pois ainda
pensava sobre o corvo e sobre o Devorador de
Sonhos. Provocava-lhe desespero saber que a
criatura não tinha impedimentos de transitar por
Violet Valley, e provavelmente se acomodava aos
pés da cama de Ethan ao observá-lo durante a
madrugada, ou talvez se posicionasse de cócoras
sobre ele, assim como fez com Genevieve,
algumas noites atrás.
Poderia soar como covardia de sua parte,
mas ela preferia que o Devorador não viesse até
ela outra vez. Quase não conseguia dormir,
postergando o momento de extrema
vulnerabilidade, temia o anoitecer, como jamais o
fez e não suportava mais viver dessa forma.
Uma voz suave, chamando seu nome, a
retirou da paz em que havia se recolhido,
trazendo-a gradativamente para a realidade.
Genevieve relutou em abrir os olhos, seu corpo
esgotado clamava por mais algumas horas de sono.
— Srta. Johnson… — Houve um delicado
chacoalhar em seu braço. — Srta. Johnson.
— Hum.
— Há uma visita para a senhorita.
As pálpebras estavam pesadas, mas
Genevieve conseguiu erguê-las, para ver Amelie
sorrindo para ela.
— Visita? — sussurrou com a voz rouca.
— A viúva Whitewood e sua sobrinha, Srta.
Lancaster.
— Oh, não. — Apertou as pálpebras outra
vez e escondeu o rosto no travesseiro. — Diga que
estou indisposta.
— Será pior para a senhorita — avisou
Amelie.
— Não me importo.
— Deveria se importar. Alegar uma
indisposição estando tão próxima do matrimônio,
pode levantar suspeitas para si. Alguns criados já
especulam sobre a vossa proximidade indecorosa
com o Sr. Hamilton, inclusive, disseram que os
viram caminhando juntos pela casa, com a
senhorita utilizando somente uma camisola.
Genevieve se sentou na cama, Amelie tinha
as bochechas ruborizadas e não conseguia olhá-la
nos olhos.
— Mexericos não me ofendem.
— Sim, mas…, mas podem macular vossa
honra e humilhar os Carter. São uma boa família e
eu não gostaria de vê-los desprezados pela
sociedade.
— Certo — Genevieve cedeu. — Ajude-me
a me vestir, por favor.
— Sim, senhorita. — Abanou a cabeça com
um aceno enérgico.
Minutos depois, Genevieve descia as
escadas, indo de encontro às duas mulheres. Soube
que uma mesa fora preparada no jardim pela
governanta, com bolos, pães, geleias e biscoitos.
Era para aproveitar o raro clima agradável que
havia surgido pela manhã. O sol fraco ainda não
fora capaz de expulsar o frio da madrugada, mas já
era o suficiente para trazer alegria aos residentes
de Violet Valley.
Genevieve se esforçou para manter a cabeça
ereta, enquanto se aproximava do jardim, antes que
sequer pudesse vê-las, pôde ouvir o riso gracioso
de Beatrice. Céus, isso seria difícil. Uma das
coisas que não sentiria falta, quando partisse, seria
a companhia daquelas duas mulheres.
Sob um caramanchão, envolvido de vinhas
viçosas que pareciam se esticar para receberem
um pouco de luz solar, havia uma mesa redonda,
de ferro, com arabescos de motivos florais. Sobre
ela, havia uma delicada renda cobrindo-a, e acima
da renda, todas as guloseimas prometidas pela
governanta.
Sarah trajava suas habituais vestes de luto e
Beatrice era moldada em um suave cor-de-rosa,
que combinava com os tons daquela manhã, seu
cabelo caía em cascatas douradas sobre o ombro e
ela estava encantadora de um modo que Genevieve
jamais poderia ser. Sempre se viu com um tipo de
espectro melancólico, forjado por dias cinéreos e
chuva. Havia beleza nisso também, mas ela não
era tão explícita e atrativa quanto a de Beatrice.
— Bom dia — Genevieve saudou com um
sorriso rígido.
— Bom dia — Beatrice devolveu
esfuziante.
— Quase boa tarde — a viúva lançou a
crítica.
Genevieve não se abalou, nem se preocupou
em tecer justificativas para seu despertar tardio;
com gestos calmos, alcançou sua cadeira e se
acomodou nela, levando quanto tempo considerou
necessário.
— A que devo a visita inesperada? —
questionou. Era consciente de que a pergunta
poderia soar rude, mas não estava inclinada a
rodeios.
— Foi minha sugestão — confessou
Beatrice. — Vossas primas encontram-se em
Londres e eu imaginei que poderia necessitar de
alguma ajuda com os preparativos do casamento.
Genevieve sofreu um choque de mil raios
percorrendo seu corpo, pequenos pontos de luzes
que acenderam, fulguraram até explodir e
apagaram todos de uma vez. Se a fala a pegou
desprevenida, Genevieve não demonstrou,
mantendo no rosto uma máscara de gelo.
— Seria adorável, possui alguma sugestão?
— Irá aceitar? — Beatrice se iluminou, o
rosto ganhando mais beleza conforme se alegrava.
— Isso me faz imensamente feliz, Srta. Johnson.
Tenho tantas ideias a lhe oferecer, casamentos
devem ser perfeitos e cada detalhe é importante. Já
começou a elaborar algo?
— Não. — Havia fragmentos de culpa em
sua voz e Genevieve não compreendeu essa culpa,
uma vez que não deveria senti-la. — Não tenho
experiência em organização de matrimônios.
Em todos aqueles dias, desde que Ethan a
comprou e lhe colocou em ciência de seu plano,
Genevieve não pensou uma vez sequer sobre a
festa. De alguma forma, imaginou que alguém se
responsabilizaria por aquilo e não ela.
— Talvez sua mãe possa querer participar.
— Sarah girou a colher dentro da xícara de chá.
— Meus pais perderam a vida quando eu
ainda era menina.
— Que pena, minha querida — Beatrice se
solidarizou.
— Não possui nenhuma família exceto os
Carter? — Sarah se inclinou para frente, sem
ocultar o interesse.
— Meu irmão era meu tutor até então, mas
não somos próximos. Creio que não voltarei a vê-
lo.
— É de bom tom convidá-lo — alertou a
viúva.
— Eu o convidarei.
Era uma mentira, Genevieve não pretendia
dar nenhum detalhe de sua nova vida a Vincent.
— Necessita de figuras femininas e nós
ocuparemos esse legado. — Beatrice sorriu.
— Sim, certamente. Ethan a escolheu e, ele
sendo como meu filho, você será também como
uma filha para mim.
Genevieve não identificou sinceridade nas
falas, mas se alarmava mais com a de Sarah. As
suspeitas sobre a mulher ressurgiram com força
dentro de si. Vê-la desejando ocupar o lugar de
sua mãe lhe causou náuseas.
— E eu serei sua irmã. — Beatrice colocou
a mão sobre a dela.
Genevieve comprimiu a mandíbula e elevou
as extremidades de seus lábios, era o pior sorriso
que já deu em toda a sua vida. Devagar,
escorregou a mão presa, puxando-a para seu colo.
— Agradeço as vossas considerações e
confio no gosto refinado da Srta. Lancaster, tem a
minha aprovação para elaborar o casamento da
maneira que lhe agradar.
— Oh, que dia perfeito. — Beatrice
levantou de sua cadeira e se lançou sobre
Genevieve, abraçando-a rapidamente e retornando
ao seu lugar.
— Controle-se, está assustando a moça —
ralhou Sarah.
— Mas estou tão feliz. — Bateu palmas. —
Não temos tempo a perder, começarei hoje mesmo.
— É o correto a se fazer, lamento não ter
iniciado os preparativos antes.
— Será um prazo apertado, mas possível…
— Como seus pais morreram? — A viúva
retorceu os rumos da conversa, e atirou a pergunta
sem o mínimo de sensibilidade.
— Febre.
— Deseja falar com eles antes da
cerimônia? Posso articular para que ocorra um
encontro.
Sua mente ainda podia estar adormecida e
Genevieve atribuiu a esse motivo ter demorado
tanto a identificar sentido nas palavras da viúva.
Um encontro com seus pais mortos, oh sim, Sarah
realmente podia promovê-lo se desejasse.
Só de imaginar o círculo de ocultistas, com
seus sorrisos peçonhentos e presença
perturbadora, evocando seus pais em um
casamento completamente destituído de
sentimentos verdadeiros, Genevieve se via prestes
a desmoronar. Não suportaria macular o sono
eterno deles com tamanho incômodo, tampouco
seria capaz de suportar o julgamento deles por
suas ações recentes, tão distintas das que eles
poderiam almejar para sua amada caçula.
— Não. — Genevieve foi enfática. —
Obrigada, mas não desejo perturbá-los de seu
descanso.
— Não há descanso, apenas vazio, como se
aguardassem serem chamados por nós, os vivos.
— Não tenho intenção de desrespeitá-la,
Sra. Whitewood, mas não creio que o que nos
resta é o vazio.
Queria dizer muito mais, como por exemplo,
que o Sr. Whitewood vivia no vazio, pois não
havia verdadeiramente partido, e sim vagava à
mercê de sua esposa, que não o permitia
esvanecer.
— Que pena que pensa dessa forma, há um
vasto benefício em estar em comunhão com os
espíritos.
— E acusou-me de assustá-la — refletiu
Beatrice. — Olhe a face dela como está pálida.
— A Srta. Johnson é pálida.
— Sim… — Beatrice a estudou, com olhos
semicerrados, como se fosse um enigma. — O
preto não lhe cai muito bem, seus cabelos acabam
não tendo o devido destaque e sua pele
embranquece ainda mais.
Apesar da ofensa implícita na fala,
Genevieve se tranquilizou por não ter mais que
debater sobre os espíritos de seus pais.
— Não deixarei de utilizar cores que gosto
por não me favorecerem.
— Mas deveria, seus olhos combinam com
tecidos azuis.
Genevieve possuía dezenas de vestidos
azuis em Massachusetts, eram leves, práticos e
soltos, alguns eram pontuados por bordados de
pequenas flores, outros possuíam fitas de cetim em
um tom mais escuro. Azul, como o céu de sua
antiga vida no campo e não cinza impenetrável,
monocromático como em sua nova vida em
Liverpool.
— Incluirei algumas peças azuis em meu
vestuário — concedeu, apenas para que o assunto
se encerrasse.
Beatrice piscou como se Genevieve tivesse
feito a escolha correta ao acatar sua opinião.
— Agora mais do que nunca, terá o dever de
agradar seu marido, e os homens gostam de
mulheres vistosas.
Beatrice era vistosa, sem dúvida alguma e
certamente agradava os olhos de Ethan. O
pensamento a afogou em desconfortos.
— Os homens casados não se importam com
as roupas de uma mulher, somente com a ausência
delas. — Sarah ergueu a voz e havia resquícios de
humor nela.
— Tia. — Beatrice corou e desviou o olhar
para o colo.
Genevieve, por sua vez, mordeu o lábio
inferior. Uma sensação ondulante crescia em seu
estômago, isso porque sua imaginação correu para
Ethan, mesmo que o enlace fosse falso e isento de
proximidades físicas.
— Uma hora precisarão ter essa conversa e
provavelmente será comigo. Genevieve está
prestes a se casar e você, Beatrice, logo irá
também.
— Que assim seja — profetizou a dama. —
Mas ainda não é o momento.
— Como preferirem — Sarah resmungou.
— Vocês são tão estranhas, há uma porção de
flores recém-desabrochadas, ávidas por essas
informações que desdenharam agora. Porém esse
de fato não é o local mais correto para falarmos
sobre núpcias.
Genevieve não queria falar sobre núpcias
em momento algum e em local nenhum com Sarah.
Mal havia acabado de conhecer a mulher e ela já
se infiltrava em papéis que não lhe cabiam.
Silêncio de desestabilizar os nervos de
qualquer um, recaiu pesado entre elas. Embora as
mulheres fizessem o possível para forçarem
intimidade com Genevieve, a verdade não podia
ser sobrepujada, elas não eram suas amigas,
tampouco sua família e não importava o quanto se
esmerassem para isso, jamais ocorreria.
— Gostaria de oferecer Whitewood Holt
como local da cerimônia — Sarah foi a primeira a
voltar a falar.
— O Sr. Hamilton ficará feliz com o gesto,
agradeço. — Genevieve sorriu, querendo chorar.
Nem ela compreendia ao certo o motivo de
estar fingindo ser aquela criatura dócil que acatava
todas as sugestões que lhe eram impostas. Talvez
fosse o desespero de ter que lidar com um
casamento. Para ela pouco importava qual seria o
local, as flores da decoração e muito menos qual
vestido usaria, então cederia de bom grado essas
pequenas decisões para um terceiro.
— Será esplendoroso, confie em mim, há
muito que planejo um casamento em Whitewood
Holt. — O olhar de Beatrice disparou para algum
lugar muito distante e Genevieve se deu conta de
que era no passado, quando supunha que se casaria
com Ethan.
Quais as intenções de Beatrice ao replicar o
casamento de seus sonhos com Ethan, para
celebrar a união dele com outra mulher?
Genevieve não era ingênua ao ponto de acreditar
que aquelas duas faziam-no de boa vontade; em
contrapartida, não via outra opção para si mesma a
não ser agradecer a ajuda.
— Estou ansiosa — mentiu mais uma vez.
No restante da refeição, foi Beatrice quem
dominou os diálogos, expondo seu vasto
conhecimento sobre os mínimos detalhes de um
enlace. Sarah aparentava estar entediada a maior
parte do tempo e Genevieve se mantinha
mastigando um pedaço de bolo ou biscoito,
manifestando-se eventualmente para concordar
com alguma ideia de Beatrice.
Casamento…
Genevieve sempre viu esse momento, oculto
por uma camada abstrata, como se a imagem fosse
gravada em um vitral colorido de uma catedral, no
qual se identificava os contornos, mas não havia o
realismo e a precisão dos retratos à óleo.
Sabia que o momento chegaria, talvez
ocorresse com algum conhecido de sua
comunidade, algum filho de alguém de posses que
pudesse deter o interesse de Vincent, e que fosse
tolo o suficiente para se encantar por uma dama
sem dote.
Em seu íntimo de menina sonhadora que uma
vez foi, desejava que viesse a se casar com alguém
que amasse e que a amasse de volta. Queria que as
juras fossem feitas no cerne na plantação de sua
família, ela estaria de pés descalços na terra e
usaria uma tiara de flores de laranjeira em seus
cabelos, para dar sorte.
A doce cena, que há muito já havia se
apagado, fora despedaçada de vez, assoprada para
longe pelo vendaval de sua realidade. Se casaria
com um homem que ela não amava e que não a
amava de volta, as juras seriam feitas em uma
residência permeada de sombras, longe demais da
terra lavrada por seus pais, ela não estaria
descalça, e provavelmente não teria as flores de
laranjeira também.
A perda dessa pequena parcela de si mesma
doeu mais do que ela poderia imaginar.
A manhã de sol tímido foi tragada por uma
tarde chuviscosa, idêntica às habituais de
Liverpool; Genevieve estava encolhida, próxima à
lareira de uma das salas de Violet Valley,
assistindo às chamas bailarem, em vermelho,
amarelo e laranja, consumindo a madeira.
O fogo crepitante refletia-se nas íris
cinzentas, nesse instante inertes, deixando-se levar
pela distração, pelos movimentos caprichosos da
chama. Genevieve não desejava pensar em nada,
absolutamente nada.
O frenesi de seus dias a estavam arrastando
para um abismo que ela não tinha vontade de cair,
então simplesmente parou de pensar, de tentar
encontrar respostas. Parou de se lamentar por
leilões, irmãos cruéis e casamentos sem amor, tais
coisas já não pertenciam mais a ela e não
deveriam ser carregadas em seu coração.
O momento era para decisões e com uma
lâmina afiada, Genevieve cortaria o que não
tivesse mais relevância para si, ou o que não
poderia mais ser possível, dada às suas
circunstâncias atuais. Entretanto, por mais afiada
que a lâmina escolhida para a tarefa fosse, o corte
não seria limpo, e sim, deixaria bordas irregulares
que não parariam de sangrar.
Havia aspectos que fugiam ao seu controle e
nada podia ser feito sobre isso, sendo assim,
sentimentos de culpa não seriam mais alimentados.
E por mais desejasse ajudar Ethan e William
acerca das manifestações terríveis em suas vidas,
não possuía todas as ferramentas para tanto, então
aguardaria alguns sinais e ela tinha que confiar que
haveria algum.
Estava forçando-se, mais uma vez, a
amadurecer antes do tempo, estava endurecendo as
últimas camadas macias de si mesma, as quais já
não restavam muitas. Colocava em sua volta
placas de mármore, protegia seu coração com
pedras polidas sobrepostas, em muros
vertiginosos.
Mas ao mesmo tempo que a vida lhe lançava
ao fogo e depois a martelava, forjando-a em uma
estrada tortuosa de dores e pesadelos, tal qual um
habilidoso e cruel ferreiro, Genevieve sentia-se
contraditoriamente ingênua em certas ocasiões.
Núpcias.
Conseguiu ocultar sua inquietação aos olhos
de Sarah, mas não podia negá-la a si própria. A
curta palavra se retorceu em seu âmago durante o
restante daquela tarde, zombando de Genevieve,
do que ela não teria, provocando-a, atiçando sua
curiosidade, o inegável calor provindo da
proibição, como uma criança espiando por trás de
uma cortina. Como uma jovem de quatorze anos
que flagrou seu irmão no estábulo com uma criada,
e que não compreendeu o que ele fazia com ela,
mas que, de alguma forma, sabia que não deveria
ser bisbilhotado e, mesmo assim, era impelida a
desejar continuar olhando.
E então, então Genevieve viu suas amigas se
apaixonarem, descobrirem o sabor da boca de
outra pessoa, do superestimado beijo, que ela não
sabia como funcionava, mas era descrito com
deleite. E ela fora deixada para trás, Vincent
jamais a permitiu ter liberdade de contato com
jovens do sexo masculino, sempre tratando-a como
um último golpe de sorte que não poderia ser
maculado. Não queria que ela se apaixonasse, para
que Genevieve não oferecesse resistência quando
ele decidisse casá-la com alguém de sua
preferência.
Mas tudo foi abaixo, soterrado em mar, na
travessia que ela fez e que a separava para sempre
dos planos do irmão ou do futuro que um dia ele
prospectou para ela. E Genevieve não havia tido
qualquer experiência ou descoberta, e nunca, até
então, sentiu falta ou necessidade delas, porém
tudo mudou, e mudava a cada instante, a cada dia
que se aproximava do casamento e a cada vez que
Ethan tão displicentemente a tocava.
Por que ele fazia isso?
Segurou sua mão mais de uma vez e na noite
que o corvo invadiu seu quarto, eles se abraçaram.
Estava atormentada, frágil, ainda sonolenta, com
dor pulsante em sua palma, com a garganta
ardendo pelo álcool, a cabeça tonta de sono e
pensamentos conflituosos demais para refletir
sobre o ato no exato instante que ocorreu,
entretanto não havia mais nada ali que a distraísse
ou a fizesse retardar a reflexão:
Fora o contato mais íntimo que já teve com
um homem.
Ethan estava com uma fina camisa; ainda
podia sentir sob a bochecha a densidade muscular
do peito dele, de como ele expandia e encolhia,
em um ritmo calmante, cadenciado, quase ninando-
a, mas era muito quente para adormecê-la,
provocava calores internos e atordoamentos
demais para causar-lhe sono. Em realidade, era o
oposto.
A madeira estalou na lareira e Genevieve
piscou.
Assim que era estar nos braços de alguém?
Ser acolhida, mas mais do que isso, mais do que
os abraços maternos em sua tenra infância, ou os
abraços igualmente maternais de sua governanta,
após sua mãe morrer. Era o encaixe, como Ethan
disse “Encaixou-se perfeitamente aqui”, e a fala
a assombrou mais do que fazia o Devorador de
Sonhos.
Era curioso o fato de Genevieve não sentir-
se confortável com toques, em parte de sua
conformidade com as regras de Vincent que
restringiam qualquer iniciativa pouco pudica com
rapazes de sua idade, provinha de sua aversão ao
toque, a consciência de que podia absorver parte
do que compunha as pessoas, seus elementos mais
íntimos, secretos, sua bondade, sua maldade e
também podia ser facilmente absorvida por
aqueles que mesmo sem saberem, roubavam um
pouco de quem quer que se aproximasse demais.
Mas com Ethan não foi assim em nenhuma das
vezes que se tocaram.
Genevieve buscou esquecer esse fato,
encobri-lo de pensamentos que demandavam mais
urgência de sua parte, até que esse evento
particular se tornou urgente o suficiente para
ocupar toda a sua atenção nesse instante. Porque
ela o abraçou e desejou muito mais, porque o
íntimo de Ethan não a repeliu, não a cansou, mas a
puxou para perto, de um modo que não parecia
suficiente, e que a deixava completamente
insatisfeita quando estavam distantes, como agora.
Era uma tola, que se deslumbrou e se
amedrontou com uma palavra que não significava
nada. Núpcias. Estava dando liberdades demais
para suas pequenas fantasias e teria que decepá-
las, como prometeu fazer com diversos sonhos e
expectativas que não viria a cumprir.
Um nariz gelado e úmido tocou sua
bochecha e, logo em seguida, uma língua
igualmente úmida a lambeu.
— Storm! — Will esbravejou.
O cão quase a derrubou, enquanto
Genevieve ria, até que William conseguisse retirá-
lo de cima dela.
— Desculpe-me, Srta. Johnson, Storm não
costuma ser assim.
— Eu gosto. — Sorriu e afagou atrás da
orelha dele, ainda sentada sobre o tapete.
— Nunca foi um cão arisco, mas não posso
dizer que é habitualmente amigável como é com a
senhorita.
— Eu também não sou com ele como sou
com as outras pessoas.
William riu.
— Eu igualmente reservo a minha melhor
versão para meu amigo Storm. — Will soltou o
cão, já mais calmo, e deu curtos passos até
Genevieve, estendendo a mão a ela. — Gostaria
de se sentar ali comigo? O chão parece
desconfortável.
— Não estava desconfortável, mas aceito o
convite. — Não aceitou, contudo, a mão estendida,
colocando-se de pé sem ajuda.
Will se acomodou em um sofá de dois
lugares, e Genevieve ocupou uma poltrona
próxima a ele, Storm, por sua vez, se enrodilhou
no espaço vago ao lado do dono.
— Estou entediado — revelou Will. —
Suponho que também esteja, ou então não a
encontraria assistindo à lareira. — Riu, mas
dissimulou passando o indicador comprido sobre
o lábio.
Genevieve sentia-se grata por Will estar
agindo normalmente consigo após toda a conversa
sobre Vincent, temia que ele se afastasse, mas
novamente ele se provou um bom amigo.
— A lareira pode ser surpreendentemente
interessante.
— Quando não há algo melhor a se fazer.
— Possui alguma sugestão?
— Cartas — respondeu prontamente. —
Acaso sabe jogar?
— Não. — Franziu o cenho para ele.
— E gostaria de aprender?
Que pergunta. Nenhum cavalheiro sequer fez
menção de apresentar-lhe o passatempo, pois era
óbvio que era extremamente inadequado para
jovens damas.
— Sim, eu gostaria.
— Perfeito.
Will enfiou a mão no bolso e retirou dali um
baralho, ele passou a misturar as cartas com
habilidade. Os olhos de Genevieve mal podiam
acompanhar todos os movimentos. As lâminas
possuíam desenhos elegantes, porém estavam
gastas, evidenciando que há muito eram
manuseadas.
— Ethan ensinou-me alguns truques e
aprendi outros por conta própria, os transmitirei à
senhorita, mas terá que encontrar seus próprios
truques, se desejar vencê-lo.
— O objetivo do jogo é vencer o Sr.
Hamilton?
— Sim, isso me deixaria feliz. Muito. Mas
quero que faça para deixá-la feliz, verá o quão
gratificante é vencer esse bastardo. — Riu consigo
mesmo.
— Está bem, veremos o quanto poderei me
desenvolver — rebateu com animação.
— Teremos tempo para treinar. — Usou um
tom despreocupado.
— Engana-se, hoje tive a percepção de que
dentre minhas obrigações recentes, está a tarefa de
organizar um casamento.
— Ah, que pena. — E ele pareceu
verdadeiramente desolado. — Peça para outra
pessoa fazer, delegue.
— A Srta. Lancaster pareceu feliz com a
tarefa.
Pela primeira vez, as mãos dele pararam de
movimentar o baralho e os olhos azuis deixaram as
cartas para encarar Genevieve.
— Não — pontuou. — Não suportarei mais
uma maluca em minha vida, e saiba que me refiro à
senhorita e não à Beatrice.
— Como disse?
— Isso mesmo, todos os meus amigos são
loucos e querem deixar-me louco também. Que
tipo de sorte é essa que tenho?
— Não sei dizer, mas lamento. — Prendeu o
lábio inferior entre os dentes para não rir.
— Hum, estou vendo sua imensa
consideração — ironizou. — Corte para mim. —
Estendeu o bolo de cartas a ela e Genevieve
esticou o braço para pegar a parte superior do
monte.
Will elevou o indicador, solicitando que
Genevieve esperasse um minuto e puxou uma
pequena mesa até o espaço vago entre eles,
depositando a sua metade do baralho sobre o
tampo, enquanto Genevieve depositava a outra.
— Conheci Ethan em um carteado e isso
significa que é um bom jogador. Jamais direi isso
a ele, porém a minha intenção aqui é alertá-la para
não o subestimar — Will retomou.
— Mas ele irá subestimar-me.
— E se acaso o fizer, será o maior erro que
ele poderia cometer, minha bela dama, pois irei
torná-la uma exímia jogadora.
— Não suportarei mais ser uma marionete
de um propósito — Genevieve censurou. — Por
que não o vence por conta própria?
— Porque estou cedendo esse legado à
senhorita. Será esposa dele, terá que possuir
alguma vantagem sobre o homem, e gostará de
possuí-la.
Genevieve o espreitou, considerando a
oferta. Will tinha um brilho matreiro no olhar e um
sorriso esperto que despertava impulsos violentos
nas pessoas, como se fosse uma obrigação
arrancá-lo de seus lábios e contraditoriamente,
também fosse um crime fazê-lo.
— Mostre-me como jogar.
— Era exatamente isso o que eu esperava da
senhorita, uma pessoa que não recua diante de um
desafio.
— Certo, então vamos…
Will se inclinou para frente e Genevieve
espelhou o gesto, em expectativa, ele parecia
prestes a lhe ensinar uma valiosa lição, mas foram
interrompidos.
— O que estão fazendo? — Ethan
questionou.
Havia um curto sorriso brincando em uma
das extremidades dos lábios do administrador, mas
ele era rígido, e seus olhos estavam levemente
comprimidos, como se estivesse desconfiado.
Ethan atravessou a sala e espiou a superfície
da mesinha, seu corpo relaxou e ele fez um
movimento de negação com a cabeça.
— William, William…
— Não era para você chegar agora —
reclamou Will. — Eu estava prestes a revelar
meus segredos.
— Não é segredo se todos sabem suas
jogadas fajutas. — Ethan se posicionou em uma
poltrona ao lado de Genevieve, deixando-a entre
os dois homens.
— É o que você acha, e para mim é
vantajoso que pense assim. — Piscou para
Genevieve. — Dessa forma posso envergonhá-lo
em uma derrota humilhante.
O sorriso de Ethan falhou, mas não foi por
conta da declaração arrogante.
— Posso perguntar qual o motivo de ter
escondido truques tão formidáveis por tantos
anos? — prosseguiu com as provocações
habituais, ocultando a compressão que o sufocava,
um desconforto proveniente de ter encontrado seu
melhor amigo e Genevieve sozinhos.
— Para fazê-lo ganhar confiança.
Ethan explodiu em risadas, Will também e a
alegria deles era contagiante, tão contagiante que
Genevieve sofreu um curto sobressalto ao
perceber que também ria com eles.
— Mas meus planos estão arruinados por
ora, terei que encontrar outro momento para
ensinar a Srta. Johnson.
Os olhos de Ethan se arregalaram,
alarmados, porém ele rapidamente desfez a
expressão estupefata.
— Posso ensiná-la — Ethan ofereceu,
voltando-se completamente para Genevieve, como
se dissesse “me escolha", e sentiu-se deplorável.
— Não posso aprender com o senhor. —
Ela abanou a cabeça veementemente. — Preciso
vencê-lo.
— Will não consegue me vencer.
— Consigo, apenas não quero. É diferente.
— Girou a safira no dedo, todo cheio de si.
— Talvez vencesse se o jogo fosse
essencialmente feito de blefes, mas não, ele
também exige alguma inteligência.
— Ser inteligente se difere de possuir
raciocínio lógico excepcional, pode pensar que é a
mesma coisa, mas não é.
— Sorte a minha ter os dois a meu dispor.
— As discussões fazem parte do jogo? —
Genevieve os interrompeu.
— Sim — responderam juntos, o que os
levou a risadas outra vez.
— Sei discutir — ela se gabou.
— Não tenho dúvida — Ethan falou, antes
que pudesse refrear a língua.
— E pelo que eu me recordo, o senhor
sempre perdeu. Se for uma competição, estou em
vantagem.
— Aí está, meu truque secreto — Will
vibrou.
— Isso não é justo, estão unindo-se contra
mim.
— Pobre homem, deixe-o vencer de vez em
quando, Srta. Johnson — Will direcionou à
Genevieve, que concordou solene.
— Pela injusta disposição da disputa,
proponho desafios em outros âmbitos. — Ethan
ergueu a voz.
— De que modo? — Will externalizou a
dúvida que também pululava em Genevieve.
— Teremos que competir em corridas a
cavalo, tiros… — Ethan contabilizava nos dedos.
— Aceito qualquer desafio, menos dança —
Genevieve argumentou.
— Oh, não… — Will reclamou, ao mesmo
tempo que Ethan reservava o seu anelar para a
referida atividade. — Não pode revelar suas
fraquezas assim, Johnson.
— Não sabe dançar? — Ethan abandonou a
lista de desafios, para olhar a dama nos olhos.
— Mas sabe correr a cavalo e atirar? —
Will a espreitou, desconfiado.
— Não gosto de dançar e recusei-me a
aprender. — Colocou os braços em torno de si
mesma, como se se protegesse. O tom tranquilo de
antes foi sobrepujado pelo de tristeza e temor,
talvez arrependimento por ter exposto uma
fragilidade.
— Eu gostaria de dançar com a senhorita no
casamento e posso ensiná-la.
— Deixe-a, não a obrigue a fazer o que não
quer — Will o censurou em tom firme.
— Não a obrigarei — devolveu com
resquícios de fúria. — Porém estou disposto a
ensiná-la, se desejar aprender.
Genevieve havia se encolhido um pouco na
poltrona e a imagem de seu corpo pequeno
buscando se esconder em um tipo de defesa,
estraçalhava o peito de Ethan, deixando-o sem
defesas, um coração sobre uma tábua, desnudo,
pronto para ser fatiado.
— Eu gostaria de tentar. — A voz dela soou
tênue, prestes a despedaçar. — Eu quero dançar no
casamento.
— Esperem, ainda tenho meu velho violino.
— Will se colocou de pé em um salto e deixou a
sala em um rompante, sendo seguido por Storm.
Ethan e Genevieve ficaram sozinhos, ele
também ficou de pé, mas não saiu da sala. Sem
pressa, se posicionou diante de Genevieve e
ofereceu a mão a ela, por um momento, ela hesitou,
estremecendo antes que suas peles se tocassem,
seu rosto transparecia dor e repulsa, Ethan quase
recolheu a mão, mas Genevieve depositou a dela
antes disso.
O administrador sorriu, e lhe deu um leve
puxão, para que Genevieve se levantasse, ela
ajeitou as saias com a mão livre e assim que
terminou de desamassar o tecido, Ethan capturou a
palma, pousando-a sobre o próprio ombro,
tomando cuidado para não pressionar o ferimento
recente.
A proximidade estava ali novamente, mas
dessa vez tinia, em alto e bom som, um apito agudo
nos ouvidos de Genevieve, como se realmente
tivesse som. As vibrações eram latentes,
ininterruptas, como as cordas do violino ao serem
tocadas de modo que ela escutava música sem
sequer que Will tivesse recuperado o instrumento e
retornado.
Uma das mãos de Ethan foi para a cintura
dela, o ponto mais baixo de suas costas e ele a
puxou um pouco mais para frente, só um pouco,
para a agonia de ambos, que seguiam separados
por um milímetro de fio de cabelo, mas que dentro
desse milímetro, sentiam até o ar que se deslocava
em torno deles e a atração de seus corpos.
Delicadamente, o administrador passou a
ditar um ritmo, balançando-os em sintonia, mal
moviam os pés, Genevieve mal respirava, mas era
consciente de todas as outras funções de seu
corpo, exceto a de capturar e devolver ar.
— Viu, não é tão difícil — Ethan declarou,
sua voz estava grave e rouca.
— É sim. — Piscou algumas vezes.
— Basta deixar-se levar.
— Por isso é difícil.
— Confie em seu parceiro, será mais fácil.
— Eu confio, ou então nem tentaria.
— Talvez tenha cometido um erro. — Ele
ofegou. — Não estou confiando em mim mesmo
agora.
— Por que, Ethan? — O olhou diretamente
nos olhos.
Mergulhou em florestas, bétulas, locais
desconhecidos e selvagens.
— Porque desejo beijá-la.
Genevieve entreabriu os lábios, deixando
uma curta respiração transpassá-lo, e
imediatamente, os olhos de Ethan foram até eles,
com cobiça, vontade, uma necessidade que beirava
à fome. Genevieve identificou a fome corroendo-a
também e junto a ela, o desespero para saná-la.
Seria relativamente fácil, Ethan só precisava
se abaixar um pouco, entretanto, o curto espaço
que os dividia era muito além do que aquele que
podia ser mensurado, era uma linha que se acaso
cruzassem, não poderia ser retrocedida.
Genevieve deu um passo para trás.
— Devemos tentar outro dia, quando não
desejar beijar-me.
A dama deixou o cômodo e Ethan sentiu
prontamente a ausência dela em seus braços, uma
ausência dolorida, pois era o inverso de como
estava há pouco: completo.
Ethan estava há muito tempo deitado em sua
cama, com os olhos pregados ao teto, mas não
conseguia dormir. Fazia dias que não conseguia
dormir, seu rosto trazia vestígios de seus demônios
noturnos, com olheiras profundas e tez abatida.
Não lhe restava energia para realizar as mínimas
tarefas de seu dia, mas não conseguia descansar ou
sentir-se menos atribulado, exceto quando estava
junto a ela.
Ah, o início de noite foi agradável, com as
provocações de Will e as propostas de desafios
que teriam que cumprir, mas foi a pequena dança
com Genevieve que exerceu maior efeito sobre
ele.
Aqueles lábios, de pêssego maduro, com
uma delicada fenda no centro, clamavam para
serem provados. Ethan quase os provou, bem ali
em uma sala de Violet Valley, o que estava
pensando?
Nos instantes em que estavam juntos,
deslizando pelo chão, em um momento retirado do
próprio tempo, em que as sensações sobrepujavam
a contagem dos minutos, prolongando-os e
encurtando-os sem qualquer regra, Ethan não
estava exausto, não estava preocupado com
Whitewood Holt e nem com a insônia persistente.
Talvez dormisse melhor se tivesse
Genevieve ao seu lado na cama, o seu quarto
pareceu vazio e silencioso demais, sem a
respiração dela povoando o ar e seu corpo cálido
pressionando o dele, porém se ela realmente
estivesse ali, Ethan certamente não iria dormir.
A solidão jamais o incomodou antes, mas
passou a incomodar, pois às vezes via nas sombras
coisas que não desejava ver. A privação de sono
estava afetando ativamente sua mente e ele não
sabia até quando poderia prosseguir, transitando
dentro desse estado de semivida, ou semimorte,
dependia do seu humor e este vinha se mantendo
péssimo.
E não importava o quão embriagado
estivesse, ou quão exausto, não conseguia
adormecer, somente ter leves cochilos entre
sonhos desagradáveis.
Mas alterou novamente os rumos de seus
pensamentos, para a breve dança que compartilhou
com Genevieve. Não lhe cabia se atrair por ela, e
essa era uma terrível inconveniência, pois
aprendeu a gostar dela, e sabia que a proximidade
faria mal aos dois. Sabia, também, que ela partiria
assim que se decidisse e ele não faria
absolutamente nada para impedi-la.
Com o impacto de um soco e a impotência
provocada por um afogamento, o ódio dominou seu
coração, ricocheteando em ondas dentro do peito.
Odiou o marido de Genevieve, pois ele a
abandonou, a colocou dentro de um navio e a
empurrou para uma terra desconhecida. Enterrou
uma preciosidade em lama, e a vendeu pelo menor
dos preços. Genevieve valia muito e merecia mais,
mais do que Ethan, inclusive.
Odiou o marido dela, pois ele a feriu de
formas tão profundas que Ethan não sabia como
alcançar e, menos ainda, reparar. Via a maneira
que, por mais que ela sorrisse, havia sempre uma
névoa de tristeza prestes a roubar-lhe a alegria.
Mas quem era Ethan para consertar qualquer
coisa, que diria consertar Genevieve? De certa
forma, ele contribuiu para que ela se partisse um
pouco mais, atingindo com uma pedra a porcelana
fraturada, e ele não podia simplesmente colocar-se
no caminho de Genevieve, exigindo que ela
retribuísse sentimentos que nem ele saberia
denominar.
Tudo se tornou mais claro quando abriu mão
de Whitewood Holt, quando percebeu que
desejava manter Genevieve em sua vida mesmo
que o trato não valesse nada; o sentimento
significava algo que não estava disposto admitir,
não ele que sempre soube que seria impossível
manter-se em um casamento, pois se recordava
demais do que fora o casamento de seus pais, algo
destituído de amor, alicerçado somente pelo senso
de obrigação. E estava prestes a fazer o mesmo
com Genevieve, ainda que os propósitos fossem
diferentes.
A névoa do sono iniciava o processo de
turvar seus sentidos, mas Ethan não queria dormir,
ainda não…
Suas pálpebras pesaram e a respiração
suavizou, até se tornar contínua e profunda,
permaneceu minutos assim, Ethan fora vencido.
Logo em seguida, sem que o administrador se
desse conta, cascos se aprofundaram em seu
estômago, quando uma criatura se pôs de cócoras
sobre ele.
Os olhos incandescentes se aproximaram do
rosto relaxado que prontamente tornou-se tenso, as
íris sob as pálpebras se agitaram e a respiração
acelerou, mas o Devorador não se contentaria
somente com pesadelos essa noite.
Elevou a mão, de sombras profundas, a cor
retirada dos recônditos mais isolados e repletos de
trevas, e posicionou o polegar com a unha longa e
encurvada ao centro da testa do administrador, um
pouco do negrume provindo da criatura se
espalhou em veias finas pela pele de Ethan, a
partir do ponto de contato, infiltrando sob a
camada superficial, o que somente poderia ser
descrito como doença.
A pele do homem descorou, os lábios
arroxearam e as bochechas se encovaram, as
olheiras tornaram-se mais escuras em contraste
com o cinza macilento da cútis. Com a mão livre,
o Devorador trouxe uma serpente, depositou-a no
peito arfante de sono atribulado do administrador,
e assistiu à víbora passear por ele, subindo,
subindo, deslizando tranquila até o pescoço, onde
se elevou e realizou o bote, certeiro e rápido. Pela
ferida envenenada, novos filetes pretos se
entranharam em Ethan, estes mais profundos,
assegurando que o efeito seria mais longo, talvez o
suficiente para que uma nova dose não fosse
necessária.
Ainda dormindo, ele engasgou e gemeu, mas
não acordou, pequenas gotículas de suor passaram
a brilhar no rosto adoecido. O Devorador
semicerrou os olhos flamejantes, observando…
Era hora de retirar um pouco mais de Ethan,
até que não restasse nada, e assim a escravidão
estaria concluída.

Em uma bacia esmaltada, com um pouco de


água sobre um móvel, Genevieve mergulhava a
mão que cortou com o vidro da janela, que ainda
não havia sido reposto e seguia quebrado,
obrigando-a a mudar de quarto, um ao lado do
ocupado pelo administrador.
Ela assistiu ao corte lentamente se fechar,
com uma sensação formigante em torno do
ferimento. Não soube por que não fez aquilo antes,
às vezes Genevieve apegava-se à dor física, eram
constantes lembretes de tudo o que ela desejava
ser: uma pessoa comum, sem habilidades
extraordinárias que também eram maldições.
Rememorou quando Ethan cuidou do
ferimento, de seu modo descuidado, mas
atencioso, e isso a arrastou ao que havia
acontecido naquele início de noite, quando ele
declarou a vontade de beijá-la, Genevieve
igualmente teve vontade de beijá-lo, porém não
era tola o suficiente para admitir.
O que aconteceria se ousassem tocar nos
lábios um do outro? O mundo ruiria, Violet Valley
seria engolida pelo buraco aos seus pés e quando
desconectassem os lábios, tudo tornaria a ser o
mesmo de antes e a realidade era a implicação
mais difícil de se lidar após um evento como esse.
Genevieve secou a mão recém-recuperada
em um tecido limpo e macio, depois trançou
rapidamente os cabelos, indo para cama. Puxou as
cobertas até o peito e se acomodou no colchão.
Deixou uma vela acesa ao lado da cama, pois não
estava mais dormindo no escuro completo.
O sono veio fácil dessa vez, ofertado pela
tranquilidade compartilhada com Ethan e Will
naquele dia, com as conversas fáceis, as risadas e
os olhos amorosos de Storm. Aquecida com a
sensação de alegria que ela não sentia há tempos,
Genevieve mergulhou em uma inconsciência
desejada.
Toc, toc, toc.
O som a fez arregalar os olhos prontamente
e sentar-se na cama. Atordoada e assustada, levou
minutos para decifrar o barulho. Eram sons de
cascos, cascos caminhando no quarto ao lado,
andando para um lado a outro. A boca de
Genevieve secou.
A porta de Ethan fora aberta violentamente,
batendo contra o umbral e o som dos cascos se
estendeu ao corredor. A vela quase toda derretida
do quarto, se apagou em um sopro. A criatura
corria, Genevieve se encolheu quando os sons
estavam próximos à sua porta, tão próximos que
chegava a fazer a madeira tremer por conta da
velocidade e a força dos passos.
A corrida não cessava, o trotar se confundia
com o ritmo frenético das batidas de seu coração,
até que de uma hora para outra, estagnou. Tudo
voltou a ser o que era antes, o barulho dos
ponteiros do relógio tornara a se fazer presente e
até mesmo o ar ficou mais leve.
Ela suspirou, aliviada, e depois olhou na
direção do relógio sobre a cabeceira, vendo que
marcavam 3h15; quando voltou a olhar para frente,
foi capturada pela visão da face monstruosa do
Devorador.
Genevieve suprimiu o grito, e não ousou
sequer piscar, intimamente ela sabia que ele não
podia lhe fazer nada, não podia! Porque era
protegida, porque a lua cuidava dela.
— Saia do meu quarto — ordenou, sua voz
era trêmula, mas determinada. — Não é bem-vindo
aqui e jamais será.
Mantendo os olhos inflamados nos dela, em
uma batalha que durou uma vida toda, nenhum dos
dois se movia. Náuseas subiam pela garganta de
Genevieve e ela estava tão nervosa que se sentia
prestes a desmaiar, ou vomitar, mas manteve-se
firme, espremendo as cobertas entre os dedos para
não transparecer o tremor que dominava suas
mãos.
O Devorador bufou, a respiração com fedor
de enxofre pairou no ar e, lentamente, a criatura
esvaneceu, pequenas partículas de sombras
mesclando-se ao nada, até sumirem. Genevieve
desmoronou no colchão, era consciente do ar
raspando sua garganta dolorida, do terror latente
em seus ouvidos e do suor frio sobre sua testa.
Genevieve mais cedo, diante da lareira,
refletiu sobre aguardar um sinal, mas não havia
tempo. O nível de posse do Devorador sobre as
madrugadas de Violet Valley só fazia progredir e
Genevieve não queria esperar para ver quais
novos limites ele transporia. Algo precisava ser
feito, mas o quê?
O quê?
Forçou-se a retroceder todas as
experiências vividas desde que chegou ali,
repassando cada aviso, cada aparição, e repetindo
todas as cenas, em busca de alguma resposta que
pudesse ter deixado passar.
A fotografia pós-morte do Sr. Whitewood,
as incontáveis serpentes negras, o pesadelo com
sua mãe, o camafeu de Beatrice, o grupo de
ocultistas, a velha pedinte…
“Uma criança da lua está em apuros e
precisa de ajuda.”
A velha pedinte.
De alguma forma, aquela mulher a enxergou,
viu quem Genevieve era, a reconheceu como uma
criança da lua. No momento que ocorreu, chegou a
sentir estranheza e depois simplesmente esqueceu,
diluindo o acontecimento entre os outros eventos
particulares que já experimentou, sem lhe dar o
devido destaque.
Não havia tempo para ponderações,
Genevieve precisava de ajuda, então teria que
tentar, engoliria qualquer ressalva ou
racionalidade que tentava se infiltrar em seus
pensamentos, objetivando dissuadi-la da decisão
que havia acabado de tomar.
Genevieve se levantou, procurou um vestido
simples, que pudesse vestir sozinha, e o trocou
pela camisola, pegou também um manto grosso e
escuro e o amarrou sob o pescoço; para calçar,
optou por um par de botas de montaria que
encontrou no armário, provavelmente pertenciam a
uma das irmãs de Will, e ficavam um pouco
grandes em Genevieve, mas serviriam por ora.
Saiu para o corredor e antes de fechar a porta do
quarto, olhou para os dois lados, certificando-se
que estava vazio de pessoas e de qualquer outra
coisa que pudesse espreitá-lo.
Avançou por ele, mas diminuiu o ritmo dos
passos ao chegar diante da porta de Ethan, que se
encontrava firmemente fechada, embora Genevieve
a tivesse escutado ser aberta com força, talvez
somente ela tivesse ouvido isso, pois se fosse ao
contrário, todos estariam acordados ali, buscando
explicação para tamanho estardalhaço.
Temendo o retorno do Devorador,
Genevieve tratou de descer as escadas o mais
rápido que pudesse, já no andar inferior, correu na
direção da cozinha, de modo apressado, mas
furtivo, onde ela sabia existir uma portinhola
reservada aos criados e para as entregas de
vegetais e mantimentos.
Estava fechada, mas a chave repousava em
um prego ao lado da porta. Eram duas cópias
idênticas, grandes, de ferro e com duas saliências
simples na parte de encaixe com a fechadura.
Genevieve retirou uma das chaves da argola
enferrujada que as unia e a utilizou para trancar a
porta por fora ao sair, depois a guardou dentro do
decote, sem outras opções de onde colocá-la.
Tomou fôlego, também tomando uma dose de
coragem, e correu para os estábulos. Sorte a de
Genevieve, que ela sabia cavalgar, seu pai a
ensinou desde quando aprendeu a andar,
colocando-a sobre pôneis. Avistou os garanhões
nas baias e correu até o único cavalo negro,
considerando que ele seria o que mais passaria
despercebido na escuridão.
Genevieve puxou o capuz do manto sobre os
cabelos e montou, galopando em direção à cidade,
até onde fora abordada por Burns. O vento frio
castigava sua bochecha e a ponta de seu nariz,
tornando seus dedos expostos igualmente
doloridos, apertados em torno das rédeas, pois ela
esqueceu-se das luvas, mas a dama sequer se deu
conta dos incômodos.
O coração de Genevieve martelava contra o
peito, ela era completamente ciente de que tinha
pouco tempo disponível, logo os funcionários
acordariam para os preparativos do desjejum e
tudo estaria perdido, pois ela não teria qualquer
desculpa para a escapatória.
A luz da lua iluminava a estrada cheia de
neblina e a dama se ateve a ela, escorregando um
pouco no lombo do animal, que ela não teve a
disponibilidade de selar corretamente. O cutucou
com o calcanhar, solicitando que fosse mais
rápido, e ele obedeceu, evidenciado que era
treinado para correr.
Finalmente ela chegou até a cidade, estava
vazia e silenciosa. Os postes forneciam pequenos
bolsões de luz, que não eram suficientes para
tornarem algo ali mais visível, pois as brumas
tomavam conta de todo o espaço. A fraca luz
amarelada se refletia nas pedras úmidas de sereno
no chão, transformando a cidade em algo
completamente diferente do que era durante o dia,
com toda a movimentação e vida.
O rombo de coragem que inflamou suas
veias, diminuiu consideravelmente e os dedos
finos do medo vieram abraçá-la. Poderia ser morta
bem ali, e não por qualquer criatura fora deste
mundo, mas uma de carne, osso e sangue.
Poderiam derrubá-la do cavalo, arrastá-la para um
beco e realizarem cruéis feitos consigo e
Genevieve poderia até gritar, mas seu desespero
ecoaria solitário.
Apertou as rédeas novamente e ditou um
“Vá", solicitando que o cavalo tornasse a se
mover, direcionando-os para a rua que viu a
mulher. Estava deserta, como as outras, e a última
fagulha que queimava dentro de Genevieve, se
apagou.
E agora? Após estar ali, não sabia o que
fazer, mal se recordava corretamente do rosto de
Burns. E se não a encontrasse? A escapada teria
sido em vão e Genevieve se recusava a aceitar a
derrota, pois não podia retornar sem qualquer
esperança para aquela casa.
Deu uma volta, em um círculo completo com
o cavalo, no meio da rua, olhando para todos os
lados, procurando qualquer indício da mulher. O
animal relinchou e empinou, confuso com os
comandos, tanto quanto Genevieve estava confusa,
sentindo as lágrimas desesperadas ardendo em
seus olhos, mas determinada a não as derrubar.
— Onde está, onde ela está? — Genevieve
questionou em voz baixa e áspera, contra seus
dentes comprimidos.
— Oh, criança, eu sabia que viria.
“Graças aos Céus.”
Genevieve voltou o rosto na direção do
som, ele provinha de algum ponto sob a moldura
robusta da entrada de uma graciosa construção à
frente, mergulhada em escuridão. Durante o dia era
uma loja, mas durante as madrugadas frias, servia
de abrigo a quem não dispunha do luxo de ter um
lar.
Burns surgiu dali, encurvada e enrolada em
tecidos puídos e encardidos, ela se aproximou.
Sorria, seus dentes eram amarelados e podres,
apertando um cachimbo entre eles. Burns tinha um
olhar enlouquecido e Genevieve considerou que
ela própria estava ficando louca, ao ponto de
recorrer à ajuda da senhora, que poderia muito
bem não ter nada que pudesse auxiliá-la em seus
problemas.
Burns tocou o focinho do cavalo, que até
então se remexia inquieto, e ele se acalmou em um
piscar de olhos, e novamente refletindo o que se
passava com o animal, Genevieve também se
acalmou.
— Então, criança, por que veio até mim? —
Os olhos enrugados voltaram-se para Genevieve,
Burns retirou o cachimbo dos lábios e soltou a
fumaça no ar.
— Porque preciso de ajuda.
Burns sorriu, calma e com uma inesperada
lucidez em seu olhar. Estava claramente contente
consigo mesma e Genevieve não sabia se deixava-
se contagiar pela felicidade serena, ou se passava
a se preocupar ainda mais.
— Há um outro lugar mais adequado para
conversarmos — Burns iniciou. — Eu gostaria que
me acompanhasse.
— Não posso demorar.
A senhora estagnou, o sorriso congelou e
depois se desfez. Burns a olhou como se estivesse
reconsiderando Genevieve, duvidando da moça e
das suas motivações para estar ali.
— Terá que ter tempo disponível para o que
lhe proporei.
Genevieve concordou, balançando a cabeça
para cima e para baixo, depois desceu do cavalo,
sem dificuldades, apesar de sua baixa estatura.
— Pois prefiro saber antes do que se trata
— a jovem respondeu, valente.
— Veio pedir ajuda, mas ainda não está
preparada. — Burns parecia até decepcionada,
Genevieve diria, se a conhecesse bem, mas não
conhecia.
— Não posso dar-me o luxo de me preparar,
ou então estarão todos perdidos. — Perdidos
talvez significasse mortos.
Burns lançou um olhar de relance para
Genevieve e saiu andando na frente, com o nariz
empinado, como se a moça não tivesse dito nada.
A senhora enfiou novamente o cachimbo entre os
lábios, amarrou o trapo velho e esfarrapado, do
que um dia foi um cobertor, em um nó firme sob o
pescoço e avançou com passadas decididas.
— Acompanhe-me — solicitou, alguns
passos adiante.
Genevieve buscou se acalmar, queria gritar
com a mulher e nunca se considerou uma pessoa
particularmente agressiva. Havia acabado de dizer
que não tinha tempo e a outra a convocava para um
passeio. Mas, por realmente precisar de ajuda,
acatou o pedido — ordem — e a acompanhou,
puxando o cavalo pelas rédeas.
— Eu vi você, sua aura prateada, como as
crianças da lua devem ser — relatou, quando
estavam lado a lado.
Crianças da lua, então havia mais de uma.
— Por que eu sou assim?
Genevieve não conteve a afobação, as
palavras praticamente saltaram de sua boca, pois
há muito dominavam sua existência. Por que era
assim? A resposta para a questão representava um
começo, meio e fim. A solução do enigma de ouro
que tinha o potencial de dar propósito a toda uma
vida.
— Não sei. — Burns deu de ombros,
dispensando, como se fosse algo trivial e
definitivamente, não era nada trivial.
— E o que a senhora sabe sobre isso? —
instigou, ainda não vencida.
— Sei que algumas de nós são diferentes
das outras mulheres; há uma característica
particular na terra ou na água, do local que
nascemos. Existe algo extraordinário entranhado
nesses lugares, não há nenhum estudioso que se
aprofundou em nenhuma análise dos componentes
do barro ou das nascentes que alicerçaram essas
civilizações, mas elas forjaram mulheres
excepcionais, sensíveis ao sobrenatural e
incrivelmente fortes ao lidarem com adversidades.
— Fez uma pausa e Genevieve parou também,
maravilhada com as revelações. — De onde você
veio, criança?
— Massachusetts… — Engoliu em seco. —
Salem. — O nome da cidade queimou em sua
boca, como uma maldição. Genevieve teve
vontade de cuspir.
— Ora essa, então tinha a resposta em suas
mãos o tempo todo. O grande julgamento das
bruxas de Salem, no ano de 1692, fora notório.
Aquela senhora não falava como uma
mendiga, nem como louca, usava palavras de
vocabulário requintado e até mesmo suas
expressões e gestos se alteraram, eram carregados
de elegância. E quanto à sua memória, então?
Burns citou o ano do julgamento das bruxas de cor.
— Sim — Genevieve anuiu, e seguiu
conversando em voz baixa. — Até hoje há
diversas superstições e o medo... — Genevieve
necessitou de um momento para se recompor,
abraçando a si mesma para controlar arrepios
provocados por lembranças. — O medo ainda é
real, medo das bruxas, e fúria, ódio a elas.
— A nós — Burns corrigiu.
Nós. Três pequenas letras com o potencial
de revolver toda a história de Genevieve e todo o
seu futuro. As letras que queimariam em brasas em
seu coração, imortalizando em si algo que ela
relutou em admitir.
— As pessoas temem quem é diferente
delas, mas por dentro somos todos monstros. —
Burns tragou seu cachimbo e soltou a fumaça pela
lateral da boca.
— Eles ainda revivem o passado
conturbado todos os dias — a moça prosseguiu.
Visões de amuletos de proteção fustigaram
sua memória, e depois vinham as lembranças mais
cruéis, de apedrejamentos daquelas suspeitas de
práticas em comunhão com as trevas, a promessa
da forca, da corda pendendo do alto, com o laço
perfeito para segurar um pescoço, e do cadafalso,
Genevieve sem dúvidas ia necessitar de um
banquinho por conta de sua altura… E sua mente ia
além, culminando nas fatídicas fogueiras, que
felizmente não eram mais uma prática comum, mas
Genevieve sempre acabava se imaginando no
cerne furioso de uma fogueira, sentindo as línguas
de fogo lambendo seu rosto.
— Por isso sentiu a necessidade de se
esconder — Burns concluiu. — Por isso não pode
enfrentar o mal que a espreita, ainda, pois não
desenvolveu seus dons como deveria. Entendo
como se sente… às vezes estamos em um caminho
sem acreditarmos que ele nos pertence, é fácil,
basta uma questão de tempo até que ele se prove
errado, mas quando o caminho verdadeiro se
revela para nós e temos que prosseguir, sentimos
medo.
Genevieve não a interrompeu, então Burns
prosseguiu.
— Conheço uma porção de pessoas que
preferem desperdiçar suas vidas trilhando estradas
que não desejariam percorrer, pois temem a única
que poderiam conduzi-las a algum lugar. —
Suspirou. — Ouça, criança, não é fácil, mas evitar
quem você verdadeiramente é, não trará o que
procura, lhe ofertará somente uma existência
repleta de insatisfação.
— Não me resta mais tempo para evitar
meus temores… — refletiu. — Como soube que
havia algum mal próximo a mim?
— Estava no seu cheiro, ainda está, e mais
pronunciado, se quer saber. Você fede.
Genevieve quase engasgou, e acabou
sorrindo, pois também percebia o quanto Ethan
fedia por esses tempos, mas jamais definiu o
cheiro como “fedor", parecia indelicado demais.
— Apenas posso banir esse mal se eu
desenvolver os dons? Não há outra maneira?
— É óbvio que não — ralhou. — Aceite-se
completamente, todas as suas partes, até as que
não gosta e então estará apta.
Uma decisão difícil, mais difícil do que
deveria ser. Teria que fazer o possível para
auxiliar Ethan, mas Burns tinha razão, ela não
estava preparada, assumir que era diferente e que
possuía dons, como uma verdadeira bruxa,
assustava Genevieve.
Na realidade, ela tratava seus episódios
agraciados pela lua, como pequenos incidentes que
não tinham a menor possibilidade de serem
reconhecidos como atos legítimos. Mas eram.
Tudo estava vindo à tona.
Genevieve não conseguiu realizar novas
perguntas, embora uma parcela de sua
racionalidade pontuava insistentemente que
deveria aproveitar a presença de Burns para obter
mais detalhes sobre si. Mas ela não conseguia,
pois não queria dar o próximo passo proposto pela
senhora.
Ah, como era difícil.
“Crescendo rápido demais” — fora a
reflexão diante da lareira. “Decepar antigos
sonhos e expectativas” — outra reflexão. Mal ela
podia imaginar que estava prestes a pôr à prova
essas determinações.
Mas sim, o caminho era claro. Se não fosse
por Ethan, seria por outro motivo mais adiante,
pois intimamente Genevieve sabia, que por mais
que relutasse, desse voltas, postergasse, a resposta
era única. O destino de alguém não se alterava, o
dela já havia há muito sido projetado, só lhe
restava aceitar. E ao invés de deixar-se conduzir
pelas adversidades, seria ela a direcionar sua
vida, pois não haveria mais nada a temer.
Mesmo assim, mesmo sabendo o que
deveria ser feito, Genevieve queria aproveitar os
últimos momentos de uma Genevieve que estava
prestes a deixar de existir, para que uma nova
renascesse. Prosseguiu caminhando alguns minutos
em silêncio, despedindo-se de sua versão do
passado, então enfim questionou:
— E por onde eu começo?
Burns somente parou, sem dizer nada, e
depois de alguns instantes de confusão, Genevieve
notou que tinham chegado a algum lugar, era uma
praia.
O rugir do mar engolia qualquer outro som e
a lua reinava maravilhosa sobre ele, comandando
as marés, segurando-as nas rédeas, assim como
Genevieve tinha feito com o cavalo. Ela mal tinha
percebido que se encaminhavam para a praia e mal
havia notado a caminhada transcorrer, de tão
imersa que esteve.
— Comece por aqui.
— Como? — Teve vontade de chacoalhar a
mulher.
— Terá que descobrir, quando mergulhar tão
profundamente em si mesma e quando vislumbrar o
que por tanto tempo escondeu, terá o que procura.
Olhe para o oceano, ele é você. O caminho da
magia é o caminho do mistério, é ter fé no que não
se pode ver.
Genevieve necessitava de frases objetivas e
curtas, que trouxessem a solução para um
problema que não podia esperar. Foi olhar para
Burns e ela soube que não teria as suas frases
objetivas, teria que descobrir sozinha.
— E isso não acontecerá hoje, não é
mesmo? — Genevieve constatou, desolada.
— Queria imediatismos, após tantos anos de
negligência? — Piou, exatamente como uma ave
mal-humorada. — Não sei operar milagres. Para
aprender é preciso ter paciência e humildade, pois
terá que avançar em um mundo que não conhece.
A moça esboçou um leve sorriso e se
adiantou, colocando o pé na areia.
— Peça licença antes de entrar em um
espaço sagrado, seja gentil — interrompeu Burns.
Genevieve teve um pressentimento e
estagnou; detectou uma fina barreira entre ela e a
praia.
— Ainda não.
— Quando estiver pronta, observe o mar e
deixe que ele conte sua própria história, hoje veio
até aqui com a expectativa de que ele confirme
algo que você já imagina saber. Mantenha-se entre
a linha visível e a invisível, somente assim terá
suas respostas.
— Obrigada.
Depois, enquanto Genevieve cavalgava para
casa, sem que a moça soubesse, uma coruja
cinzenta a acompanhava de cima, zelando à
distância pela jovem.

O dia fora longo, longo demais…


Ethan estava se arrastando para Violet
Valley. Acordou sentindo-se péssimo, pior ainda
do que nos outros dias, o que era algo
significativo, pois eles já vinham sendo terríveis,
mas nada era tão ruim que não pudesse piorar.
Talvez estivesse doente, detestava ficar
acamado, mas descobriu ter sido um erro levantar
e seguir para o trabalho normalmente naquela
manhã, pois não havia nada de normal nele e Ethan
se deu conta assim que despertou.
Lanças incandescentes perfuravam seu
crânio, e uma mão sádica invisível fazia questão
de torcê-las, provocando clarões dolorosos que o
faziam viver experiências extracorpóreas. Luz
branca, então estrelas e dor, dor muito potente.
Ethan cambaleou quando tentou levantar,
estava fraco, prestes a se dobrar, feito um graveto
fino sob um tornado. Não, ele se parecia mais com
neve derretendo ao sol, pois sentia-se transformar
de sólido para líquido.
Mas não, ele tinha que insistir.
Absolutamente todos os residentes de Violet
Valley lhe aconselharam a descansar, tomar sopa, e
chamar um doutor.
“Estou bem” — respondeu.
Como, pelos santos, podia estar bem? Ele
mesmo não acreditou na afirmação por sequer um
segundo.
Foi de carruagem para Whitewood Holt e
ele nunca usava a carruagem, mas não havia a
ínfima possibilidade de Ethan subir em um cavalo
e galopar, podia cair e ser pisoteado, isso sim
seria uma morte trágica.
Ao chegar lá, cometeu infinitos erros,
incontáveis, os números dançavam e rodopiavam
diante de seus olhos, tentar contabilizá-los foi um
grande desafio que ele não conseguiu superar.
Sarah gritou com ele e se mostrou insatisfeita com
sua desatenção e Ethan não podia contradizê-la,
pois estava mesmo desatento. Pediu para ir
embora mais cedo, pois se sentia indisposto, belo
eufemismo.
O fato era que Ethan estava pronto para a
cama, as cobertas e a sopa, talvez permanecesse
em casa no dia seguinte, se o mal-estar persistisse.
Ser teimoso, mostrou-se infrutífero e Ethan não
cometeria o mesmo erro duas vezes.
Tinha a cama acolhedora em mente, quando
viu uma dama solitária no jardim de Violet Valley,
sob o caramanchão, aproveitando os últimos
instantes da luz solar que estava a cerca de trinta
minutos de se extinguir no horizonte. Ela tinha uma
cesta de vime, repleta de flores brancas ao seu
lado, sobre a mesa, e parecia estar trabalhando
com elas, pois suas mãos tinham um ritmo
constante e firme.
Todo o corpo do administrador implorava
para que Ethan fosse se deitar, mas ele, sofrendo
de fraqueza, estava mais suscetível ao
encantamento exercido por Genevieve, e não
conseguiu evitar seguir até onde ela estava,
tomando um lugar ao lado dela na mesa redonda de
ferro.
— Oh, boa tarde, Sr. Hamilton, não
esperava revê-lo tão cedo. — Ela sorriu para ele,
mas havia certo desânimo em sua feição.
— Eu deveria ter seguido o conselho de
vocês e permanecido na cama.
Genevieve deteve as mãos, que trançavam
uma coroa de flores elaborada.
— Eu sinto muito. — Havia tanta dor nos
olhos dela, dor genuína e Ethan não via motivos
pelos quais Genevieve deveria senti-la,
principalmente por se tratar de uma indisposição
momentânea, assim Ethan esperava.
— Logo estarei como novo, uma soneca
cura diversas enfermidades.
Genevieve sorriu, mas a tristeza ainda
estava lá, com algo semelhante à pena.
— Ah, Ethan… Sr. Hamilton — corrigiu-se
rapidamente. — Eu realmente desejo que venha a
melhorar de saúde.
— Gosto que me chame de Ethan —
revelou. — Gosto de chamá-la de Genevieve —
ponderou, passando o indicador sobre o lábio.
— Mas não o faz.
— A senhorita jamais me dispôs tais
liberdades.
— É mesmo? Não recordo.
— Sim, somente eu a livrei dos tratamentos
formais, mas a senhorita não retribuiu.
— Não confiava muito em você, Ethan —
reforçou o nome, e aquilo o atingiu em níveis mais
profundos do que ele esperava. Ah, aqueles lábios
proferindo Ethan, com os cantinhos elevados em
um sorriso matreiro, seria suficiente para arruiná-
lo.
— E o que a fez mudar de ideia? — Se
esforçou para prosseguir indiferente.
— Você desistiu do casamento.
Ethan arregalou os olhos, depois se
recompôs.
— Se eu soubesse, teria feito antes.
— Você é um pouco devagar para
compreender certas coisas, se me permite dizer,
então está perdoado.
— Um elogio e uma ofensa, receio não
dispor de condições para acompanhar esse ritmo
inconstante de nossas discussões hoje. Talvez eu
seja mesmo devagar.
— Está tão ruim assim?
A diversão se dissipou do rosto dela e
Genevieve chegou a se inclinar para analisá-lo.
Ela era tão bonita, Ethan queria estar mais perto.
— Sim, não, não sei. Está ruim — ele
decidiu.
Ela mordeu o lábio inferior e a culpa
retornou aos olhos de tempestades, em formatos de
nuvens escuras.
— Não se preocupe, Srta. Johnson. —
Tomou uma das mãos dela e beijou o dorso, ela
tinha cheiro de folhas amassadas, e Genevieve, o
que era a melhor das fragrâncias para um pobre
convalescente.
Ethan não estava inclinado a soltá-la, então
manteve a palma dela junto à dele.
— Genevieve — corrigiu ela.
— Genevieve. — Ethan sorriu, em júbilo,
quando disse o nome.
— Eu sinto tanto, tanto mesmo — a moça
lamentou, apertando a mão do administrador.
— Você já disse isso, e não há nada a se
fazer. Se eu piorar, peço que chamem o doutor,
mas é apenas isso que está ao seu alcance.
— Talvez não seja — ela murmurou.
— Perdão?
— Eu gostaria de fazer mais pelo seu bem-
estar.
Ela não deveria dizer isso, pois a mente de
Ethan pensou em um grande número de
possibilidades tentadoras para ela contribuir com
o seu bem-estar e eram todas canalhas demais,
aquém da figura da mulher encantadora que tinha
diante de si.
— A sua presença já está solucionando
parte dos meus problemas.
E estava mesmo, a dor diminuiu muito.
— Está errado.
— Por que está sendo tão teimosa sobre
isso?
— Porque tenho razão.
— Você sempre tem razão?
— Sim.
— Em todas as vezes?
— Todas — pontuou com o típico humor
espinhento e cínico que permeava suas discussões.
Discussões que ele adorava.
— Pois eu não acredito — provocou ele.
— Eu não preciso provar nada, fique à
vontade para não acreditar. — Fingiu desdém.
— Genevieve, sempre fugindo dos
desafios… — Suspirou. — Teremos que superar
isso.
— Já superei, se me lembro bem, dançamos
ontem e era um grande desafio para mim. Estou
segurando sua mão agora e esse também é um
desafio para mim.
— Por quê? — Havia leveza, mas um misto
com seriedade. Ethan estava verdadeiramente
interessado na resposta.
— Pelo mesmo motivo que não gosto de
dançar, o problema está em se aproximar dos
outros, atravessar seu espaço pessoal.
Ethan considerou se essa característica não
tinha ligação com o casamento anterior e era uma
possibilidade plausível. O ódio pelo marido de
Genevieve fulgurou e transbordou um pouco mais.
— Podemos tentar outra vez aqui, um pouco
por dia, até dançar perfeitamente no dia do
casamento.
— Pois bem. — Deixou a coroa de flores de
lado, tendo que separar suas mãos para tanto. —
Aceito. Não vá desmaiar, eu não conseguiria
arrastá-lo para dentro e você teria que permanecer
aqui fora até alguém sentir sua falta.
— Acho que ainda posso reconsiderar o
casamento, pelo bem de minha integridade física.
Genevieve riu.
— Não vou desmaiar — Ethan prometeu,
adorou realizar a promessa. Se havia uma coisa
que ele não faria ali, era desmaiar, pois queria
aproveitar cada instante.
— Certo.
Ethan se levantou e ofereceu a mão a ela,
Genevieve aceitou e ele os direcionou para um
pouco longe da mesa, ainda sob o caramanchão.
Ambos prenderam o fôlego, e o soltaram
longamente quando Ethan segurou a cintura de
Genevieve.
— Agora temos que nos mover, que tal um
passo para a direita e um para esquerda?
— Posso fazer isso. — Piscou algumas
vezes, nervosa, e era encantadora.
Ele cantarolou uma música em voz baixa e
se movimentaram em sincronia, não parecia que
Genevieve não sabia dançar. Os semblantes
tornaram-se concentrados, os risos provenientes
das provocações se apagaram, e aquela terrível e
celestial energia os envolveu.
Era maravilhoso, viciante e Ethan não
queria soltá-la mais.
Foi então que Genevieve deslizou os olhos
para a boca dele, com bastante atenção. Ethan
sabia o que significava, ele próprio estava
pensando a mesma coisa, mas saber que era
recíproco, que ela também queria, era quase
irresistível.
Como se não bastasse, ela entreabriu os
próprios lábios, só um pouquinho e em seguida
umedeceu o inferior com a língua.
Ao inferno os casamentos falsos.
Ethan iria beijá-la.
Estava acontecendo, todos os sentidos de
Genevieve foram elevados à máxima
sensibilidade, o rosto dele se aproximava do dela,
a boca dele. E Genevieve queria, não podia
imaginar o quão necessitada estaria de provar os
lábios de Ethan, pareciam tão macios, feitos
exclusivamente para serem beijados.
Foi tomada por um desejo quase frívolo, de
tocar os cabelos dele, imaginando qual seria a
textura, mas então, ele se abaixou mais um pouco,
cerrando as pálpebras, prestes a cobrir os últimos
centímetros que os separavam e Genevieve, sem
querer, motivada pela timidez repentina, desviou
os olhos para outro lado, foi então que ela viu!
Havia dois furos, com um curto espaçamento
entre um e outro, no pescoço dele; estavam
vermelhos e inflamados. Genevieve se assustou e
recuou, soltando um som engasgado.
Ethan abriu os olhos, e as expressões dele
mudaram rapidamente, de relaxada entrega, se
contraíram para algo que oscilava entre
preocupação e arrependimento.
“Oh, não.”
— Ethan… — Genevieve tentou dizer.
— Perdoe-me, eu não tive a intenção, bem,
eu tive, mas não deveria. — Se atropelou nas
palavras.
— Está tudo bem.
— Não quis ser rude, ou ofendê-la, eu… —
Levou ambas as mãos à cabeça, respirou
profundamente e soltou o ar, largando também os
braços ao lado do corpo, impotente. — Devo
retirar-me. — Realizou uma curta mesura.
— Não… — ela começou a dizer, mas
fechou a boca e olhou para os pés. Era melhor que
ele se retirasse mesmo.
Ethan partiu, sem olhar para trás, deixando
Genevieve sozinha sob o caramanchão. Ela
conteve um grito de frustração, seu rosto ainda
estava afogueado pelo que quase aconteceu. Ah,
como queria beijá-lo — lamentou. Mas havia
outro fato urgente demandando suas preocupações:
a picada no pescoço.
Genevieve tinha quase certeza de que era
ela a responsável por adoecê-lo, todas as visões
de cobras, pena não ter sido mais atenta, porém
dali em diante seria e se empenharia a livrar Ethan
do ferimento, dando-se conta, pela primeira vez,
que ela poderia lhe proporcionar a cura.
Poderia curá-lo.
A ferida não se parecia com nada em que
Genevieve já tivesse utilizado seus dons, mas ela
tinha que tentar, e conseguir, diga-se de passagem.
Ou então o pior poderia acontecer, afinal, não
sabia qual a extensão da enfermidade. O
pensamento lúgubre a fez estremecer.
Andou de um lado ao outro, nervosa. Não
conseguia ficar parada, se antes ela já tinha
consciência da necessidade de ampliar seus dons,
a nova situação veio para pressioná-la
consideravelmente.

Ethan pendia da cadeira, em seu escritório


em Whitewood Holt, tendo despertado ainda mais
indisposto do que no dia anterior, começava a
cogitar chamar o doutor para vê-lo. Seria mais
sensato ter ficado deitado e descansando, para que
pudesse se recuperar, mas não queria permanecer
em Violet Valley o dia todo, o jantar passado já
havia sido constrangedor o suficiente.
Genevieve estava lá, encarando-o com olhos
piedosos, sem dúvidas preocupada com seu estado
de saúde, e ele mal podia encará-la de volta, por
suas ações que quase culminaram em um beijo. Ele
se arrependia tanto, estava mais do que claro que
ela não o queria, há poucas semanas ela não fazia
questão de esconder que o odiava. E quando
começavam a construir algum tipo de confiança,
Ethan destruiu tudo.
Ele foi impulsivo.
E burro.
Gemeu, desmoronando, colocando a cabeça
sobre a mesa, amassando uma folha dos registros
contábeis e deixando seus óculos tortos no rosto.
Porém seu corpo estava tão exausto que Ethan
adormeceu, mesmo com os óculos em posição
desconfortável, acordando somente quando a porta
se abriu e fechou, não foi um gesto rude, mas o
barulho foi o suficiente para despertá-lo.
— Deveria ir para casa.
Ethan se ajeitou no assento, esfregando o
rosto para espantar o sono. Beatrice estava diante
dele, com um glorioso sorriso.
— Talvez eu vá. — Reprimiu um bocejo.
Ele iria para seu apartamento e ficaria lá.
Nada de Violet Valley.
— O senhor está com uma aparência
terrível, precisa de descanso, minha tia não iria se
incomodar.
— Eu suponho que não. — Esticou os
braços até as articulações estalarem.
Beatrice se sentou diante dele, esperando
em silêncio até que Ethan pusesse a mão sobre a
mesa, para puxá-la para si, entranhando a dela em
sua palma. A sensação parecia errada, após ele já
ter sentido o formato da mão de Genevieve ali.
Beatrice apertou um pouco os dedos e Ethan teve
vontade de desfazer o toque.
— Deixe-me cuidar do senhor, podemos
procurar um quarto.
— Não seria adequado, não preciso nem lhe
dizer isso.
— Posso pedir que uma criada fique junto
de nós.
— Não.
Ela suspirou.
— É uma pena que seja tão teimoso.
Ethan não respondeu, puxando a mão de
volta, enquanto fingia ler os registros sobre a
mesa.
Beatrice se levantou, arrastando a cadeira
para trás, com a visão periférica o administrador a
espreitou, torcendo para que ela se fosse, mas
Beatrice fez o oposto, dando a volta na mesa e
colocando-se de pé próxima a ele.
Sem que ele pudesse antecipar, ou desviar,
ela pousou a palma sobre sua fronte, Ethan se
retesou com a surpresa do gesto.
— Estou verificando se está febril.
Ela se demorou ali, então a mão escorregou
pela bochecha dele e tracejou sua mandíbula.
— Basta. — Ethan capturou o pulso dela e o
afastou.
— Não pode amá-la — ditou, áspera,
divergindo do tom brando que utilizava até então.
— Pensei que esse tópico já tivesse sido
superado.
— Não pode, Sr. Hamilton.
— Mas amo.
— Então por que ela não insistiu para que
descansasse? Por que ela não está aos pés de
vossa cama neste instante, torcendo um pano
úmido para abrandar vossa febre? Sou eu quem
está aqui, disposta a fazê-lo! — pontuou.
— Isso não significa nada.
— Significa muito. Se não vê, é um cego.
Ela não o ama e então o senhor também não pode
amá-la.
— A senhorita não está em posição de me
dar ordens, sobretudo sobre quem direciono meu
amor.
— É somente um alerta, para que fique
ciente do que está acontecendo, sob sua visão
enamorada. Atente-se aos detalhes, Sr. Hamilton.
— Estou exausto e tenho muito a fazer.
Tornou a juntar as folhas nas mãos,
ajeitando-as.
— Está me mandando sair? — Beatrice
perguntou, ofendida.
— Estou dizendo que estou ocupado.
Ela soltou um “Humpf", insatisfeito e pisou
firme em direção à porta; antes de deixar o
ambiente, parou para reforçar um último recado.
— Ela não o ama!
E bateu a porta, o estrondo responsável por
estilhaçar o cérebro dele em milhões de
pedacinhos doloridos.
Não era nenhuma surpresa, Ethan sabia que
Genevieve não o amava e isso não deveria
incomodá-lo, mas incomodava, não a ausência do
amor, mas a perspectiva de que ele não
aconteceria. Ethan queria que acontecesse? A
pergunta o deixou desconfortável, e sem condições
para respondê-la.
Ethan chegou aos tropeços em seu
apartamento, mal encontrou as chaves, e colocá-
las no buraco da fechadura mostrou-se outro
grande desafio. Seu corpo febril delirava, o chão
estava macio sob seus pés, seus passos afundavam,
suas reações eram lentas e cada contração de
músculo resultava em dor.
Livrou-se dos sapatos, do casaco, do lenço
e do colete — com muito custo — e enfiou-se na
cama, sendo envolvido, quase que imediatamente,
por um estado de inconsciência turbulenta.
Quando abriu seus olhos novamente, sem ter
ideia de por quanto tempo permaneceu
adormecido, vislumbrou uma silhueta embaçada,
sentada aos pés de sua cama estreita. Uma única
vela, sobre a cômoda próxima ao local que a
figura quase etérea se encontrava, iluminava
parcamente seus contornos.
Ethan piscou algumas vezes, almejando
trazer nitidez ao que via, aos poucos, era possível
reconhecer as rendas de um vestido negro, uma
pele lisa e pálida, cachos pretos caindo sobre um
ombro delicado e cílios espessos, roçando em
maçãs do rosto adoráveis, por conta de a dama ter
os olhos abaixados atentos ao tecido que torcia nas
mãos, em trejeitos nervosos.
Só poderia estar sonhando, as falas de
Beatrice o devem ter o dissuadido a criar tais
imagens no inconsciente, pois não era possível que
Genevieve estivesse ali, aos pés de sua cama,
zelando por ele.
Era diferente vê-la ali, no espaço pessoal de
Ethan, sua mente sempre a assimilava a Violet
Valley e tê-la em sua casa, era como se ela
desvendasse uma fragilidade dele.
Genevieve moveu o pescoço e desviou os
olhos para o administrador, o gesto pareceu
involuntário, pois ela já retornava à sua posição
inicial, quando estagnou e tornou a olhar para ele.
Se aproximou, verificando mais de perto se estava
com os olhos abertos.
— Olá. — Ela sorriu e soltou uma lufada de
ar.
Ethan quis sorrir de volta, como não
retribuir àquela demonstração tão espontânea e
autêntica? Mas fez somente esboçar um curto
elevar de um dos cantos de sua boca.
— Esse é o sonho mais agradável que já
tive há tempos — ele sussurrou, o som saiu rouco.
— Não é um sonho — Genevieve revelou,
carinhosamente.
— Isso significa que está mesmo aqui?
— É claro que estou.
Genevieve se levantou e buscou um copo,
que estava sobre a cômoda na parede oposta — a
mesma que amparava a vela —, cheio com o que
Ethan suspeitava ser água e entregou a ele.
Agradecido, Ethan sorveu em goles
generosos, notando que se tratava de uma infusão
de ervas, ainda morna. Enquanto isso, Genevieve
voltava a se acomodar, sentando-se próxima a ele,
o assistindo com um semblante preocupado.
— Não encontrei as xícaras — desculpou-
se, sinalizando para o copo.
— Não tenho o hábito de tomar chá
enquanto estou aqui. — Ethan franziu o cenho,
tentando se recordar se já havia comprado alguma
xícara na vida.
Como poderia se casar se não possuía a
delicadeza de prover xícaras à sua futura esposa?
O pensamento o perturbou mais do que ele poderia
presumir.
— Você foi imprudente — ela começou a
dizer. — Por que não voltou para Violet Valley?
Ethan não podia dizer que não voltou porque
estar próximo a ela era equivalente a sofrer uma
doce agonia.
— Eu apenas queria descansar. — Foi o que
conseguiu articular.
Genevieve tomou-lhe o copo vazio das mãos
e o colocou sobre o móvel ao lado da cama, sem
precisar se levantar.
— E não podia descansar lá? Com todos os
criados e todos nós para cuidarmos de você?
— Pensei que fosse melhor vir para cá.
— Preocupou todos nós.
— Sinto muito.
— O Sr. Carter teve que faltar a um
compromisso.
— Will está aqui? — Se ajeitou, apoiando
as costas na cabeceira.
— Sim, viemos de carruagem, ele está na
cozinha, conversando com o cocheiro.
— Não era necessário.
— É mesmo? Ao menos jantou? Suspeito
que não o tenha feito, pois não há uma mísera
migalha de pão nesta casa.
— Está me censurando?
— Sim, pois não deveria ser tão descuidado
consigo mesmo.
Ethan sentiu-se estranhamente satisfeito com
os sermões recebidos, quase riu, e não o fez
somente porque temia despertar a fúria de
Genevieve.
— Prometo ser mais atencioso.
— Então vou agora mesmo buscar o caldo
preparado pela Sra. Roseveld. O aqueci em uma
panela.
Ela se levantou, mas Ethan a segurou pelo
pulso.
— Fique mais um pouco.
Viu a hesitação nos olhos dela, e notou o
próprio alívio quando ela consentiu em
permanecer onde estava.
— Como está se sentindo? — Genevieve
questionou, mais branda após os sermões severos.
— Ao menos conseguimos fazer a febre baixar,
isso é um bom sinal.
— Nada bem, mas agora tenho certeza de
que iniciarei o processo de cura.
— Ah, Ethan, como pôde vir para cá,
sabendo que ficaria sozinho, ainda nesse estado?
— Fui imprudente, como você mesma disse.
— Não consigo compreender, todos os dias
passa a noite em Violet Valley e quando mais
precisa, decide vir para cá, sofrer sozinho.
— Eu não quis incomodá-la com minha
presença, após meu comportamento inadequado.
Genevieve arregalou os olhos, surpresa e
incrédula, depois comprimiu os lábios, quando
compreendeu a frase em toda a sua amplitude.
— Não era necessário e nem saudável para
você.
— Ora, Genevieve, não sou tão frágil assim,
logo estarei de pé.
— Não com esse tipo de comportamento.
Ela estava furiosa, mas por baixo da raiva,
havia preocupação e medo.
— O que posso fazer para provar meu
profundo arrependimento?
— E está arrependido? — Ela elevou uma
sobrancelha.
— Por aborrecê-la? Sim.
— Era como eu suspeitava, o senhor não
guarda nenhuma consideração por si mesmo.
— Voltei a ser senhor?
— Quando assumir uma postura infeliz, sim.
Ethan riu; Genevieve também se permitiu um
breve e melancólico sorriso.
— Não faça isso novamente — Genevieve
solicitou, com a voz baixa, quase inaudível. —
Prometa.
— Não farei. Ficarei em Violet Valley até
que minha saúde seja restabelecida e não irei
sequer trabalhar enquanto estiver enfermo.
— Que alívio, sua mente não foi
comprometida pela indisposição, a má notícia é
que significa que é um tolo por natureza e para
isso não há cura.
— Adoro quando me insulta, principalmente
por estar preocupada. Receio que tenha começado
a gostar de mim.
— Oh, não, seria terrível se eu tivesse
desenvolvido alguma afeição.
— É verdade — concordou, solene.
Em um momento, estavam se divertindo com
a troça, no outro Genevieve se aproximava um
pouco mais, e com dedos hesitantes, penteava os
cabelos soltos de Ethan, afundando-os nos fios
castanhos. Estava absolutamente atenta à tarefa,
como se o mundo ao redor não passasse de um
ruído inconveniente.
Ethan se surpreendeu com a iniciativa, mas
logo dissimulou, temendo que qualquer reação de
sua parte viesse a assustá-la, como um filhote
selvagem que tornaria a se recolher na floresta,
acaso ele estendesse a mão cedo demais para tocá-
lo.
Permaneceu estoicamente imóvel por bons
minutos, contudo a postura distante não perdurou
muito mais. Ethan se inclinou em direção ao pulso
dela e o beijou castamente, no abençoado espaço
livre rente à manga do vestido; incapaz de se
mostrar indiferente às carícias, aos cuidados que
ela lhe prestava.
A mão de Genevieve se deteve no
movimento e ela o encarou, havia somente
determinação e sobriedade ali, foi quando ela
eliminou os centímetros que os separava, parando
rente aos lábios de Ethan, sem tocá-los, mas
próxima o suficiente para ele que pudesse sentir o
sabor do beijo prometido.
As respirações se misturavam, era uma
confusão de possibilidades, era uma provação a
qual Ethan não seria capaz de passar, pois sua
negação arrefecia, sendo substituída por desejo
quente e irrefreável.
Foi ele a embrenhar a mão na nuca dela e
puxá-la para si, reprimindo um gemido quando
seus lábios finalmente se encontraram. Genevieve
quase caiu sobre ele, mas conseguiu usar uma das
mãos para se amparar sobre o colchão, a outra
sobre o peito de Ethan, esbarrando no espaço de
pele nua, que os botões abertos da camisa
deixaram exposta.
A dama arquejou, entreabrindo os lábios,
mas Ethan, embora quisesse, e muito, não avançou,
degustando o momento, também aproveitando para
ceder o controle do beijo a ela, permitindo que ela
o aprofundasse, se assim desejasse. Enquanto isso,
pescou o lábio inferior de Genevieve e o
mordiscou gentilmente, passou a pontinha da
língua sobre ele e o saboreou. Era delicioso!
Seu corpo correspondia a ela com
naturalidade e parecia novamente sadio, Ethan mal
sentia as dores e a tontura decorrente da fraqueza.
Tudo era calor, sua atenção voltada
exclusivamente ao ponto de contato entre eles.
O administrador fez uma expedição
minuciosa na boca macia de Genevieve, mas não
podia mais esperar, precisava prová-la mais
profundamente. Tomou as rédeas, que
anteriormente havia cedido à dama, e com a ajuda
da língua, entreabriu um pouco mais os lábios
dela. Inseriu-se sem pressa, aproveitando cada
segundo, percebeu a surpresa dela e depois de
frações de segundos, Genevieve timidamente
passou a corresponder.
Fora a ruína dele, e sua salvação.
Ethan usou a mão livre para enlaçar a
cintura de Genevieve, a trazendo mais e mais para
perto, pois por mais próximos que estivessem, não
parecia suficiente. Foi quando ele acelerou o
ritmo, perdendo o controle, ouvindo ao fundo, o
som da colisão que era aquele momento sublime.
Genevieve o acompanhava no vigor, mesmo
que ainda estivesse vacilante com os movimentos,
como se não estivesse segura sobre o que fazer.
Até mantinha ambas as mãos educadamente
quietas, sem ousar explorá-lo com os dedos, como
Ethan tanto queria.
Se não fossem os ruídos de passos na
madeira do velho assoalho que rangia,
permaneceriam presos e entregues um ao outro.
Genevieve foi a primeira a se afastar, alarmada
com os sons; rapidamente deixando um Ethan
atordoado, ela se posicionou aos pés da cama,
recolhendo até o tecido úmido que anteriormente
torcia, trazendo-o novamente para as mãos.
— Vejam só quem está desperto — saudou
Will, recostando-se casualmente na moldura da
porta. — Amanhã, se estiver mais disposto, desejo
removê-lo para Violet Valley.
— Posso ir hoje mesmo, ou podem pernoitar
aqui.
— Não e não.
— E qual o motivo dessas duas negativas?
— Não quero correr o risco de o expor à
friagem e não podemos dormir no apartamento
simplesmente porque não há espaço para todos nós
nos acomodarmos. Deixarei Winston aqui, ele se
encarregará de seus cuidados esta noite.
— Vejo que não me restam escolhas.
— Não — finalizou Carter.
Ethan desviou a atenção para Genevieve,
que se mantinha aparentemente plácida e quieta
desde que seu amigo surgiu no quarto; ela não
retribuiu seu olhar, mantendo-o fixo nas mãos. O
que ela estaria pensando?
Não obteve a resposta, pois foi feito o que
William havia planejado, Ethan permaneceu no
apartamento, junto com o cocheiro, que prestaria o
favor de tomar uma atribuição nova e provisória
ao zelar pelo administrador durante aquela noite.
Carter conduziu a carruagem de volta a
Violet Valley, enquanto dentro do veículo,
Genevieve tinha os olhos distantes, presos à lua,
fitando-a pela janela.
Não esperaria mais, tomaria uma atitude e
sabia para qual direção seguir.
Durante a madrugada, Genevieve realizava
o seu segundo passeio furtivo, por já esperar os
obstáculos existentes na empreitada, os driblou
com muito mais facilidade, finalizando com a
saída magistral ao lombo do mesmo cavalo negro
que utilizou da última vez.
Mas diferente da outra noite, não havia
temor em seu coração, pois Genevieve tinha
acessado uma confiança que se encontrava
enterrada profundamente em seus ossos, chamava-
se instinto.
Não soube exatamente quando o sentimento
surgiu, mas estava ali, e reverberava forte quando
Genevieve via como Ethan definhava, piorando
diante de todos, sem que não fosse feito nada para
retardar a doença, que terminaria por levá-lo. Ela
não estava pronta para que ele se fosse, mesmo se
não tivesse criado afeição a ele, e agora não
permitiria que fosse, sobretudo por ter
desenvolvido sentimentos por ele.
Galopou até alcançar a praia que Burns a
levou, desmontou do cavalo e retirou os sapatos.
Parou rente ao início da linha da areia e antes de
tocá-la com os pés nus, pediu licença.
A praia que parecia antes somente uma praia
comum, ganhou intensidade e vida, a forma que o
mar se agitava, produzindo desenhos e profecias
na espuma da quebra de suas ondas… Genevieve
jamais teve o prazer de ver algo tão belo, ter a
possibilidade de ler a história do mundo.
“Deixe que o mar conte sua história” —
Burns havia dito.
O mar estava contando, exibindo eras e mais
eras de sabedoria ancestral.
As nuvens haviam se afastado e a lua
brilhava intensamente, reincidindo na areia e
deixando-a clara, luminosa, assim como o mar.
Um suave chamado preencheu seus ouvidos
e a dama sorriu, sorriu, pois estava em casa.
"Doce criança de céu enluarado,
de alma prateada vivaz
Brilhe e encontre seu destino ocultado,
brilhe e encontre o mar
Permita sua alma despertar
Permita sua alma despertar."
Ao caminhar pela areia, com os olhos
presos ao mar, enquanto cruzava a faixa alva e
macia, não demorou a notar que o contato dos
pequenos grãos contra a sola do pé não seria
suficiente para saciar a sua necessidade de
conexão direta com o mundo. Genevieve vibrava,
em comunhão com tudo que existia ao seu redor, e
as roupas representavam uma interferência.
Puxou uma das pontas do laço sob seu
pescoço e a capa se amontoou atrás de si, puxou o
vestido pela cabeça, largando-os pelo caminho,
tirando peça a peça de suas roupas de baixo, até
não restar nada, a não ser vento, areia e o rugir das
ondas.
Genevieve sorriu, olhando para o mar
infinito como se ele fosse seu espelho,
reconhecendo a verdade nas palavras de Burns,
quando a senhora disse que o mar era ela, porque
era! Não havia muita explicação, pois era uma
afirmativa simples, a verdade era sempre simples,
por outro lado, não a aceitar se mostrava um
enorme desafio.
Ela acelerou os passos, correu nua e não se
importou, não se envergonhou ou teve medo. Seus
pés tocaram o mar, uma onda cobriu seu tornozelo,
mas ainda não era o suficiente. Genevieve
progrediu, até ser capaz de mergulhar.
E mergulhou.
Milhões de conexões despertaram, luzes que
se acendiam, iluminando cada espacinho que uma
vez fora obscuro. Pelas fissuras de sua pele essa
luz escapava, rachando a casca para que algo novo
pudesse nascer.
Genevieve foi agraciada pelo canto da alma
do mundo e ela chorou diante da beleza que
preencheu seus ouvidos, as lágrimas salgadas
foram acolhidas pelo mar. Pela primeira vez, ela
se sentia completa e confortável em ser quem era.
Então ela se fundiu com o oceano, tornou-se
única com ele e percebeu que dali em diante, não
pertenceria mais somente a si mesma, pois se
entregou a algo maior, entregou-se à energia
coletiva que regia todos os seres vivos.
Não sabia mensurar por quanto tempo ficou
entregue às vontades das ondas, até que em um
estalo, percebeu que era hora de sair. Seu coração
estava leve, se sentiu amada e o amor pulsava
dentro dela, se espalhando pelas veias, tomando
cada mínima parcela de Genevieve.
Na margem, uma mulher a aguardava com
uma toalha macia em mãos, a qual Genevieve
aceitou e enrolou em torno do corpo.
Os olhos da mulher brilhavam vivazes,
verdes, com linhas pronunciadas emoldurando-os,
a cor das íris eram ainda mais intensas contra a
pele escura. A postura dela era ereta e ela usava
um vestido preto simples, com os cabelos
grisalhos soltos. Havia algo de conhecido em suas
feições e Genevieve as estudou sem reservas até
obter a resposta.
— Burns?
Era a mesma mulher, mas tão diferente, não
mais encurvada, pelo contrário, se elevava
majestosa feito uma rainha.
— Eu sabia que conseguiria.
Milagrosamente, Ethan despertou sem febre
alguma, restando-lhe apenas alguns resquícios do
resfriado, assim como algumas dores nas
articulações e na cabeça, estas muito mais
brandas. Otimista, acreditava estar prestes a se
recuperar completamente. Atribuía a melhora
inesperada às mãos de fada que cuidaram dele e
ao beijo encantado que essa criatura singular lhe
presenteou.
Nada poderia dissolver o bom humor que se
instalou sobre ele essa manhã, e crendo que não
era necessário manter-se na cama, considerando
que não quebrou a promessa feita à Genevieve,
pois de fato, estava melhor de saúde, Ethan não
viu empecilhos que o fizessem a não ir trabalhar.
Mandou Winston de volta a Violet Valley
com a incumbência de tranquilizar a todos, e partiu
para Whitewood Groove, dividindo uma
carruagem de aluguel com o cocheiro até o ponto
que descia e o outro prosseguia para a casa
vizinha. Estava um pouco atrasado, por conta de o
apartamento não ser tão próximo à propriedade de
Sarah quanto a casa de Will, além disso, dormiu
uma hora ou duas a mais, premeditando uma cura
mais rápida, se tivesse um aproveitamento melhor
de sono.
Ainda na soleira, Ethan repensou sobre a
afirmativa de que nada dissolveria seu bom humor,
isso porque, após a porta ser aberta, Ethan
identificou um conjunto de vozes conhecidas que
indicavam que o grupo de ocultistas se fazia
presente.
— Logo cedo? — questionou consigo
mesmo.
O mordomo riu, foi breve, mas deixava
registrada ali, a cumplicidade das opiniões sobre
os amigos de Sarah.
Ethan seria obrigado a pecar pela falta de
educação, pois subiria ao escritório o mais
discretamente possível, preservando-se de
cumprimentos.
— Quem foi que chegou? — A voz da viúva
surgiu para minar os seus planos.
Ela havia gritado da sala próxima, onde
provavelmente estavam os seus outros convidados,
deveria estar ocupada, pois não costumava elevar
a voz para se comunicar com pessoas em outro
cômodo.
— Sr. Hamilton — o mordomo gritou de
volta, desconcertado por erguer a sua própria voz.
— Oh, Ethan, venha, eu gostaria de vê-lo!
O administrador trincou os dentes e seguiu
adiante, sentindo o estômago contorcer.
Seus passos se detiveram,
involuntariamente, quando oito pares de olhos o
encontraram. Lá estavam, em torno de uma mesa
redonda e larga, todos os cinco ocultistas, a viúva,
o irmão dela e a sobrinha, sendo a última, a única
que se vestia com cores vibrantes, dentre tantas
vestes pretas. Os presentes tinham as mãos unidas
entre si e havia alguns itens dispostos na mesa que
Ethan não conseguia distinguir.
— Aproxime-se, querido.
Ethan recobrou o domínio sobre seus
movimentos e fez o que lhe foi dito, parando
próximo à sua empregadora.
— Não imaginei que viria hoje. Está
sentindo-se bem?
— Sim, obrigado por perguntar, não tenho a
intenção de atrapalhar, então seguirei ao
escritório. — Fez menção de partir.
— Pelo contrário — a fala o impediu de
subir. — Já que veio, deveria participar conosco,
pois há de ajudá-lo a fortalecer o corpo.
— Estou bem, Sra. Whitewood, agradeço a
preocupação.
— Não está nada bem… — O timbre
profundo de Abigail, uma das ocultistas,
intercedeu o diálogo. — Sofre por conta de algo
que a medicina não pode solucionar. — Os olhos
grandes e castanhos da mulher cravaram-se nele,
por baixo do véu negro rendado que descia sobre
seu chapéu.
— Escute o que ela disse! Eu sabia, você
nunca fica doente, procure uma cadeira agora
mesmo e junte-se a nós.
— Não desejo ser desrespeitoso, mas não
dividimos as mesmas crenças.
A frase foi sucedida por um silêncio
mortificante, e todos aqueles pares de olhos
estavam sobre ele outra vez, pesando em seu peito,
fazendo-o se sentir um rapaz desajeitado, que mal
sabia se portar diante de plateia.
— Basta de desculpas estapafúrdias, sente-
se aqui — Sarah ditou.
A situação passou a ser mais humilhante
quando o irmão da viúva, Harold, lançou um olhar
jocoso à filha, que retribuiu com um risinho que
escondeu rapidamente.
— Não há o que temer aqui — o Sr.
Lancaster declarou com palavras bem-humoradas.
— Minha filha não descreveu o senhor como
sendo um covarde, porém agora compreendo o
motivo de não ter tido a coragem de fazê-la vossa
esposa.
A mesa explodiu em risos vulgares e
aquelas pessoas não eram habituadas a rir, o que
tornava a cena algo quase hediondo de se assistir.
Ethan sentiu o corpo esquentar, mas não ofereceu
réplica à provocação. Algumas batalhas eram
perda de tempo.
— Não estou pedindo, Ethan, sente-se
conosco e evite humilhar-me diante de meus
amigos — o pronunciamento de Sarah trazia
resquícios das risadas de há pouco, mas eram
severos.
Ethan cedeu, encontrando uma cadeira no
canto e colocando-se no espaço entre Sarah e
Abigail. Dizer que estava desconfortável era o
mínimo, sentia-se um hóspede indesejado dentro
da própria pele, se pudesse fugir, fugiria, sem
sequer temer a alcunha de covarde que Harold
Lancaster viesse a lhe empregar. O problema real
era a viúva, quando ela ordenava algo, Ethan não
podia contestar.
Margaret, outra ocultista, riscou um fósforo
e jogou em algumas ervas ressecadas sobre um
prato no centro da mesa, e ao longo da
circunferência do tampo de madeira havia cartas,
cada uma com uma letra que completava o
alfabeto.
Todos seguraram as mãos mais uma vez,
Ethan sentiu os ossos de seus dedos doerem com o
aperto firme de Sarah, ela já estava de olhos
fechados, pálpebras apertadas, murmurando algo,
com uma postura de devoção fervorosa.
Ethan engoliu, a sua garganta estava
comprimida e parecia se fechar ainda mais,
conforme os aromas intensos da defumação
serpenteavam até suas narinas. Perguntou-se o
tempo todo o que fazia ali, a fumaça embaralhava
seus sentidos, turvava sua mente levando-a a
iniciar um processo de divagação.
O administrador se entorpecia e o que antes
o perturbava, não mais incomodava, ele mal se
lembrava do motivo de ter negado estar ali com
tamanha veemência. Ele não se lembrava de muitas
coisas, de quase nada, imagens disformes e em
ritmo acelerado, tomavam seus pensamentos, como
costumava a lhe ocorrer em instantes que
antecediam o sono.
Sem que percebesse, o grupo tinha entoado
um ritmo com seus corpos, balançando-se de um
lado para o outro, um lado para o outro.
— Pergunte! — Margaret comandou, e Ethan
mal compreendeu o que ela dissera.
— Como livrar Ethan de sua doença? —
Sarah questionou.
Permaneceram no mesmo ritmo, até que
lentamente, um a um, curvaram-se em direção a
uma carta, como se uma linha tivesse sido puxada
do peito deles e amarrada na dita carta,
manipulados feito marionetes por um titereiro
invisível até a letra “F". E assim se sucedeu, em
uma soletração vagarosa, até que a frase fosse
completa.
“Fim do casamento."
Todas as janelas se abriram, batendo contra
as paredes, as cortinas quase foram arrancadas dos
trilhos, com o ímpeto da rajada de vento que se
infiltrou pelo cômodo, as cartas foram varridas da
mesa e o prato de ervas parcialmente queimadas
se espalhou, mas ninguém se moveu ou soltou as
mãos, exceto Abigail.
— Fim do casamento!
A ocultista se pôs de pé com tanta força, que
a cadeira tombou para trás, a voz que usava não a
pertencia, era masculina e grave, profunda o
suficiente para se afirmar que vinha direto de
algum túmulo.
— Quem diz isso? — alguém perguntou
calmamente.
— O senhor da noite, das trevas e dos
pesadelos. — O rosto de Abigail havia se
transformado sob o véu, exibia linhas rígidas,
mostrando os caninos enquanto cuspia os títulos,
assumindo uma forma mais bestial do que humana.
Ethan estava próximo o suficiente para
capturar todas as nuances de seu semblante
transfigurado, e para ler a aspereza e o desprezo
naqueles olhos, que duraram fração de segundos
antes de dissiparem. O administrador sabia que
deveria ter medo, mas não tinha, estava dormente,
mesmo se quisesse se levantar e sair, não
conseguiria.
Exaurida, Abigail cambaleou, e quase caiu
sobre a cadeira tombada, contudo, um de seus
parceiros ocultistas foi ágil o suficiente para
segurá-la, Harold foi o segundo a ajudar,
reposicionando a cadeira para que a mulher se
sentasse.
— Creio que já seja o suficiente — Beatrice
tremia, impressionada com o que acabara de ver.
— Não, ainda não terminamos — Harold
repreendeu a filha que só fez aquiescer.
As janelas foram fechadas, a mesa foi
reorganizada, as ervas voltaram a queimar e o que
quer que fosse aquilo que estiveram fazendo antes,
recomeçaram, mas Ethan se perdeu na névoa
adocicada que o carregava para longe dali. Se o
perguntassem futuramente o que fizeram a seguir,
ele não saberia dizer, ou se recordar.
Via, vez ou outra, uma serpente de fumaça
deslizando pelo ar, se esgueirando pela mesa e
contornando mãos dadas. Via cartas se
organizando sozinhas para formar frases e sorrisos
cruéis de bordas esmaecidas, apagadas pela
confusão que se perpetuava em sua mente.
Ethan escutou frases de incentivo,
assegurando-o de que iam fazer o que era melhor
para ele, que o administrador deveria confiar e ele
não possuía uma verdadeira escolha, pois o
progresso que havia feito pela manhã, parecia
regredir e a indisposição o engolia em um abraço
apertado.
O abraço foi se fechando e se fechando,
tragando toda luz e lançando Ethan na escuridão.

Genevieve vibrava, presa à janela, ela


vigiava a entrada. Ansiava pelo retorno de Ethan,
precisava conversar com ele e talvez beijá-lo
outra vez, isso não seria nada ruim.
Não sabia que podia sentir tantas coisas
quando duas bocas se tocavam, lábios que se
abriam e se fechavam, pressionavam e
resvalavam, produzindo o mais belo dos segredos:
o beijo. Que estes mesmos lábios podiam
aprisionar outros para pequenas mordidas. Ah, e
os dentes, quem poderia imaginar que produziriam
comoções?
E ainda havia a ponta da língua e tantas
outras coisas que foram descobertas em tão pouco
tempo de contato. Era a abertura de um pequeno
universo, tão interessante quanto à vastidão
existente nas estrelas; e pensar que esse era apenas
um vão que deixava passar um feixe de luz,
perante uma abundância além.
Genevieve estava tão dividida em sua
satisfação, parte de seu dia resguardou para
refletir sobre o beijo e a outra parte, para a
descoberta de seus próprios dons.
Na noite passada, assim que saiu do mar,
perguntou:
— É real? Eu vi, eu senti como se…
— Pare — Burns a interrompeu. — Não
tente explicar emoções, viva, vibre em comunhão
com o universo. As pessoas somente vão
desvendar a verdade do mundo quando
aprenderem que devem viver e não explicar.
— Então foi tudo real — sussurrou consigo
mesma.
Burns riu.
— Vivenciamos experiências
extraordinárias todos os dias e um par de horas
depois, nos convencemos de que não passou de
uma peça empregada por nossa imaginação.
— Eu sei que não imaginei as revelações na
espuma do mar, mas por que eu não conseguia vê-
las antes?
— Não estava emanando a frequência
correta, mas o conhecimento sempre estivera lá,
bastava você aceitar.
— Agora necessito aprender a interpretar.
— Isso ocorrerá em outro momento.
Conversaram tanto, sobre tantas coisas e
eram assuntos que pareciam corriqueiros, mas que
ao mesmo tempo eram profundos e se interligavam
com o mundo, desvendando pequenos enigmas da
existência e eles eram surpreendentemente
simples.
Em dado momento, Genevieve questionou:
— Por que não apareceu para mim assim
desde o início? Por que escolheu a figura de uma
mulher que vivia nas ruas?
— A mim foi ofertado o dom de me parecer
com o que eu desejar, mas além disso, posso ler
corações. Há pessoas que são flores e outras que
são espinhos e você, minha criança, é espinho. Me
apresentei da forma que seria compreendida
melhor por você.
— Pode se parecer com o que desejar?
A memória de Genevieve resgatou o
vislumbre de uma coruja cinzenta de olhos verdes.
— Para ajudar as crianças perdidas que
buscam um caminho — assentiu Burns.
Genevieve sentiu-se confortável para contar
a sua história à mulher, sobre sua vida, a morte
prematura dos pais e Vincent. Burns a confortou,
secou suas lágrimas e disse que o irmão de
Genevieve ainda tinha muito a aprender e que
viveria muitas vidas para compreender todo o
conhecimento necessário, para que seu coração se
abrandasse e a amargura fosse expurgada.
As lágrimas de Genevieve lavaram seu
rancor, ela jamais esqueceria o que Vincent lhe
fez, mas aquilo não tinha mais o poder de feri-la
ou de fazer sua alma sangrar por dentro, em todas
as vezes que pensava nele.
Ao final da noite, Genevieve beijou a face
de Burns e pediu para vê-la outra vez, e a senhora
lhe assegurou de que tornariam a se encontrar
quando tudo fosse resolvido e reforçou que
acreditava que Genevieve seria capaz de findar os
tormentos que a perseguiam.
Que noite maravilhosa, Genevieve teve dois
momentos memoráveis e pela primeira vez ela
poderia dizer que teve alguma felicidade desde o
desabar de sua vida, ainda estava feliz, e por isso
queria que Ethan chegasse. Tinha pressa em
solucionar todos os problemas para que depois
pudesse viver uma sucessão de dias bons como
aquele, sem nenhuma ameaça espreitando ao
anoitecer.
Ah, ali estava ele!
Caminhava apressado e logo estaria na
entrada, Genevieve correu para lá, com um sorriso
bobo no rosto. Queria recepcioná-lo.
— Boa tarde, Sr. Hamilton, sei que deve
estar cansado, mas gostaria de conversar.
Ele demorou para responder, removendo o
casaco e entregando ao mordomo, mal olhava para
ela e a impaciência de Genevieve ferveu, quase
derramou. Cada minuto de silêncio que se passava
era um acréscimo de decepção que se acumulava
dentro dela. De certa forma, criou a expectativa de
que ele estaria igualmente ansioso para
reencontrá-la.
— Boa tarde — retrucou.
Genevieve estranhou a distância e gelo
afiado que o envolvia, mas não daria importância
a isso, ele estava doente, era compreensível que
seu temperamento não fosse dos melhores.
— Podemos conversar? — Buscou os olhos
de Ethan, mas ele a evitava, desviando ou olhando
por cima da cabeça de Genevieve.
— Gostaria de ir dormir.
— Ainda é cedo e deve jantar para que
continue a melhorar. Prometo não tomar muito de
seu tempo.
Caminharam juntos, se aprofundando na
residência com passos lentos; Ethan bufou,
impaciente e insatisfeito por ela ainda estar ali,
Genevieve estava quase se sentindo ofendida, mas
temia julgar antecipadamente e acabar caindo em
uma armadilha de impressões precipitadas.
— Diga logo o que quer — resmungou ele.
— Eu… — A dama titubeou, não foi assim
que imaginou aquela conversa, contudo se
esforçaria para dar prosseguimento a ela. — Creio
que posso ajudá-lo.
Ethan parou e riu, foi um som áspero e nada
agradável.
— Como poderia?
— Ora, eu…
— Desde que você chegou, só me ocorreram
desgraças — a interrompeu. — Antes minha vida
era previsível e feliz e eu nunca havia ficado tão
doente. Sinto em dizer, mas a senhorita é um
amuleto de azar.
Genevieve recebeu aquilo como se fosse
uma bofetada, sua boca formou um perfeito “O".
Como ele ousava lhe dizer aquilo?
Seus olhos encheram-se de lágrimas, pois
ouvira ali um eco de seu irmão, justamente quando
já havia curado aquela ferida que por tanto tempo
latejou. Estava se repetindo, o infame título de
bruxa amaldiçoada a perseguia.
— Isso foi rude, Sr. Hamilton. — Cerrou os
punhos, disfarçando as mãos trêmulas.
— Permita-me ser mais claro, não desejo
sua ajuda.
Ele falou pausadamente para que a frase
toda se infiltrasse aos pedacinhos em Genevieve,
cada estilhaço uma perfuração em seu peito.
— Como desejar.
Engolindo toda turbulência e decepção, ela
se afastou.
Genevieve saiu pisando firme, cega pela
raiva, sem enxergar um mísero palmo à sua frente,
de modo que acabou esbarrando em Will.
— Onde é o incêndio? — A equilibrou,
colocando ambas as mãos nos ombros da moça.
Genevieve estava com um aspecto tão
atordoado que o bom humor de Will deu lugar à
preocupação em fração de segundos.
— O que houve? — questionou, ainda
segurando-a, sentindo pequenos tremores
reverberarem pela estrutura frágil do corpo
pequeno. Ela era quase um filhote de pássaro que
caíra do ninho.
— Não é nada.
— Pois é evidente que é alguma coisa, diga-
me, ou vou pensar que acabou contraindo a
enfermidade de Ethan, para tremer desse jeito.
Ela desviou o olhar, ante a menção do nome,
dando a pista de qual a razão de suas emoções
afloradas. Soltou-se das mãos de Will, dando um
passo para trás e abraçou a si mesma, correndo as
mãos cobertas por luvas rendadas pela extensão
dos braços.
— O que esse idiota lhe fez?
— Foi grosseiro — Genevieve cedeu. —
Deve ter tido um dia ruim…
— Mas não é justificativa para tratá-la com
descortesia, sobretudo após você ter se esmerado
em recuperar a saúde dele ontem.
— Não desejo vê-lo outra vez, jantarei em
meu quarto esta noite — anuiu um pouco mais.
— Pois é ele quem deve ser castigado e
jantar sozinho.
— Basta de atritos, está bem? Prometa que
irá ignorar essa nossa conversa.
William hesitou.
— Por favor — Genevieve suplicou. —
Não quero alimentar desavenças.
Oh, céus, Will não podia vê-la com os olhos
brilhando daquela maneira. Como Ethan teve
coragem de deixá-la tão magoada?
— Tudo bem, não dê importância à rabugice
de meu amigo, ele passa tempo demais na
companhia da viúva Whitewood.
Algo perceptivelmente se iluminou na mente
de Genevieve, mas o que quer que fosse, ela não
partilhou com Will.
— Com licença. — A dama se
desvencilhou, tomando o rumo dos andares
superiores.
Will a deixou ir, depois abanou a cabeça,
inconformado. Cerca de trinta minutos mais tarde,
quando se reuniu com o amigo, fez questão de lhe
lançar olhares contrariados, para que Ethan
percebesse sua insatisfação. Persistiu naquilo,
corroborou com o silêncio, mas deu-se conta de
que a situação estava voltando-se contra ele
próprio, pois Ethan seguia indiferente a qualquer
coisa ao seu redor, mal tocava na comida e trazia
ares demasiado vagos em seu rosto.
— Aconteceu alguma coisa que o deixou
particularmente aborrecido hoje? — iniciou Will,
perdendo a disputa do silêncio.
Que Genevieve o perdoasse, mas não
conseguiria ignorar o assunto.
— Hum? — O amigo piscou algumas vezes,
retornando para a realidade.
— Perguntei se algo o aborreceu.
— Nada do que eu possa me lembrar. —
Brincou com o assado no prato, jogando os
pedaços de carne de um lado ao outro com o garfo.
— Então por qual motivo está destratando
as pessoas? — Usou um tom calmo, apesar da
infelicidade com as atitudes.
— Seja mais claro na acusação, porque não
estou compreendendo-a. — Largou o talher e o
encarou.
— Pois sou eu a não o compreender. Pensei
que jamais seria capaz de ser grosseiro com uma
dama, pensei que estava começando a se apaixonar
por ela.
— Ela quem?
— Genevieve. — Franziu as sobrancelhas,
mais confuso ainda.
— Então essa conversa é por conta dela?
Acaso sente ciúme? Condoeu-se por sua
protegida? — Veneno escorria das palavras,
proferidas entre um sorriso cruel.
Will jogou o guardanapo sobre a mesa,
inconformado. Esteve prestes a se levantar, mas
não queria perder a compostura, tomando atitudes
que se arrependeria depois.
— Bateu sua cabeça hoje de manhã, ou a
febre levou sua razão embora? Algo está errado aí
dentro e é melhor que tome providências sobre
isso.
— Poupe-me, William.
— Poupe-me você, não vou tolerar esse tipo
de atitude, ao menos seja sincero comigo sobre o
que está acontecendo. Acusou-me de sentir ciúme,
mas creio que seja você a senti-lo.
— Não é nada disso.
— Jamais brigaria com um amigo por causa
de interesses amorosos, e sei que sente algo por
Genevieve, então pare com isso e ela não merece
que desconte suas insatisfações nela.
— Não sinto nada por Genevieve. Nada —
pontuou a última palavra com ímpeto.
— Pois acho que sente e não quer admitir.
— Will deu de ombros, fingindo desinteresse.
— Não a quero mais perto de mim — Ethan
sussurrou, sua boca se retorcia, provando a
amargura de sua fala. — Curioso, não? Lembro-me
de gostar dela, de fantasiar beijá-la inúmeras
vezes, de desejá-la com ardor, a ponto de doer;
contudo agora… — Vagueou. — Agora a odeio, a
presença dela me causa repulsa e não sei por quê.
Sinto muito tê-la ofendido, não queria ter feito
isso, mas não conseguirei mais conviver com
Genevieve, pois quando a vejo, ou penso nela,
somente me surgem impulsos negativos.
— Está me assustando. — Will analisou seu
amigo com cuidado. — Estou certo de que a pobre
não lhe fez nada para que tomasse tanto ódio.
— Esse é o problema, ela não fez nada e
essa ausência de respostas está me enlouquecendo,
de fato, não há nenhum motivo concreto pela
aversão que estou sentindo.
— Então deixe de besteiras. — Will meneou
a cabeça, atordoado. — Devo me preocupar se irá
destratá-la novamente?
— Não, é claro que não. Prefiro deixar de
frequentar Violet Valley a incomodá-los.
— Hamilton, Hamilton… — advertiu.
— Não sei o que dizer a você, pois
tampouco sei o que está ocorrendo.
— Apenas pense em como ela ficou triste
com esse desentendimento, tenho certeza de que
isso não deve agradá-lo.
— De maneira nenhuma.
E dentro da mente de Ethan, formou-se o
retrato perfeito de Genevieve, no exato momento
em que a repreendeu pela oferta de ajuda. A
decepção líquida, condensada em lágrimas que se
mantiveram em seus olhos, o despertava aos
poucos, daquela névoa rancorosa incutida em sua
cabeça.
— Reflita com calma sobre essas suas
impressões recentes sobre Genevieve, não é
possível que esteja sentindo tanta raiva por nada.
— É verdade.
Ethan se recostou na cadeira, assimilando as
verdades contidas nas palavras de Will, passando
o indicador levemente sobre o lábio, recordando
sobre o beijo, as respirações ofegantes, o toque
medicinal de Genevieve…, mas, argh, a agonia
retornava, exigindo espaço entre as boas
recordações, subvertendo-as a algo
desconfortável, errado.
Bem, se havia algum problema, era consigo
e não com Genevieve, chegava a ser vergonhosa a
forma com que a tratou, devia um pedido de
desculpas, mas tinha medo de terminar por piorar
a situação.
Não conseguiu concluir o jantar, a fome se
extinguiu, Will não tentou falar com ele outra vez,
permitindo que Ethan afundasse nos
acontecimentos daquela tarde, algo o mudou, era
como se tivesse dormido e depois acordado
odiando o mundo. Aquilo não poderia ser correto,
não era? Sarah sempre afirmou que as sessões a
ajudavam, mas ocorreu o oposto com ele, pois
Ethan sentia-se pior do que quando tinha levantado
da cama pela manhã.
Ah, estava tão exausto, a doença o corroeu
até os ossos, e quando pensava em seu mal-estar, o
associava à Genevieve, e essa ligação estava além
de seu controle. Não queria culpá-la pelas
desgraças que o estavam acompanhando, nem era
uma acusação racional, porém uma lasca perfurava
seu inconsistente, envenenando-o contra ela.
Talvez devesse realmente se afastar dela e
de Violet Valley, mas não faria isso sem oferecer
um pedido de desculpas, mesmo que intimamente,
uma parcela indomável de si o provocava a
acreditar na responsabilidade dela naquela
sucessão de desastres.

Genevieve estava furiosa, mas não ao ponto


de chorar, se recusava a derramar uma lágrima
sequer para Ethan. Não deixaria de estender a mão
a ele, mas no momento, precisava ficar sozinha.
Arrependeu-se por ter entregado a Ethan uma
chave que raras pessoas possuíam, a de sua
confiança. Criou algumas expectativas e estas se
mostraram ilusões.
Se bem que já fazia algum tempo que ela
suspeitava de Sarah, e Will a alertou para a
mulher. Não poderia ser coincidência Ethan ter
ficado hostil justamente após a aproximação de
Genevieve com ele, após o beijo.
Munida de uma lamparina e uma cesta de
vime, Genevieve caminhava pelo jardim,
acompanhada de perto por Storm. Jantou em seu
quarto, mas percebeu que ficar presa lá somente a
fazia se entristecer, principalmente quando horas
antes, olhava esperançosa pela janela,
completamente derretida pelo administrador.
Quando se colocou a andar pelo jardim,
Storm a encontrou e ele saltava, ansioso para
mostrar algo que trazia em sua boca. Genevieve
abaixou-se e teve em suas mãos uma avezinha
morta, mal havia assimilado o “presente" e Storm
já tinha sumido e retornado com outra ave em
estado similar.
Foi quando Genevieve teve a ideia de
buscar a lamparina e a cesta, levando-a àquela
caçada por pássaros sem vida em torno da
propriedade, já tinha encontrado vários e aquilo se
mostrava tão antinatural quanto outras coisas que
aconteciam ali.
O episódio a arremetia ao ocorrido de dias
atrás, quando um corvo se chocou contra a janela
de seu quarto. Talvez o elemento responsável por
enlouquecer o corvo tivesse tomado maiores
proporções, a julgar pela quantidade de aves que
jaziam em Violet Valley.
Ainda não havia planejado ao certo o que
fazer com elas, mas acreditava que mereciam um
enterro digno e o realizaria assim que encontrasse
todas. Havia probabilidade de não obter nenhuma
resposta para os ministérios no ato de juntar as
aves mortas, porém não julgava ser uma tarefa
perdida.
Oh, outro pássaro!
Storm pulava e abanava o rabo, indicando o
local que a ave se encontrava. Era sob o
caramanchão, próximo à mesa branca de arabescos
de ferro. Foi até lá e abaixou-se, acomodando a
lamparina e a cesta ao seu lado, recolhendo o
animal carinhosamente. Antes que pudesse se
levantar, um par de sapatos se posicionou diante
de sua visão.
— O que está fazendo?
Genevieve sentiu gelo lhe invadir as veias.
“O que está fazendo?” — Vincent questionou,
antes de agredi-la repetidas vezes com um cinto e
enfiá-la em um porão de navio.
— Na-nada — gaguejou e odiou-se por isso.
Não foi necessário olhar diretamente para
Ethan para perceber que ele espiava o conteúdo de
sua cesta.
— Podia jantar conosco, a pouparia de
caçar.
Ofendida, Genevieve permitiu que a raiva a
fizesse se esquecer de suas inseguranças e se
colocou de pé, empinando o nariz e a postura,
enfrentando o olhar de Ethan.
— E por que não me poupa de sua
presença?
— É o que pretendo fazer em breve, mas
antes lhe devo desculpas — retrucou, ríspido.
Esse era o pior modo de alguém propor
retratações.
Genevieve colocou a ave na cesta e tornou a
sustentar o olhar de Ethan. Ele estava bonito,
apesar do ar estranho que o cercava; queria não ter
reparado tão bem na forma que o casaco longo e
aberto repousava perfeitamente nos ombros largos,
e em como a camisa de colarinho frouxo deixava
uma mostra de pele provocativa. Os cabelos
castanhos soltos eram outro ponto que a atraía,
porém quando fitava os olhos verdes, sombreados
pela falta de iluminação, só enxergava raiva e
qualquer sentimento desejoso que ela outrora
estivesse alimentando, caía por terra.
— O que quer dizer com “É o que pretendo
fazer em breve"?
— Passarei um período em meu
apartamento.
— Quanto tempo?
— Para que quer saber?
Genevieve estremeceu, deveria ter pegado
um xale antes de sair, o decote do vestido era
inadequado para a temperatura, mas ela suspeitava
de que não era o ar noturno que produzia os
arrepios, e sim a frieza de Ethan.
— Ora, porque iremos nos casar, a não ser
que esteja reconsiderando.
— Pensei que odiasse a ideia de se casar.
— E eu pensei que o trato ainda era vigente.
Mais do que nunca, precisava ter Ethan sob
suas vistas e não permitiria de forma alguma que
ele se afastasse quando estava prestes a dar um fim
àquilo tudo. Novamente, considerou não ser uma
coincidência a mudança de comportamento dele.
— Veja bem, não irei forçá-la a me
desculpar. E não lhe devo satisfações de minha
vida. — Se remexeu, desconfortável. — Passar
bem.
Ia se afastar, mas Genevieve o segurou. O
ser que tentava distanciar Ethan dela teria que se
esforçar mais, pois Genevieve não desistiria tão
facilmente.
— Você não vai sair daqui! — Sua voz era
límpida e firme, uma ordem a Ethan e ao que o
acompanhava.
— Genevieve… — Os olhos arregalados de
Ethan foram até o pulso, onde a mão dela
permanecia firme. — Eu exijo que me solte agora
mesmo — falou devagar, furioso.
Ela viu suor pontuar a tez do administrador,
reluzindo ao luar e a luz da lamparina; a picada no
pescoço ainda estava lá, parcialmente exposta pela
gola frouxa da camisa, tão inflamada quanto
quando Genevieve a viu pela primeira vez. Algo a
atraía para o ferimento, um instinto que ela não
ousaria renegar.
O corpo dele estava tenso, lutando para se
afastar, mas impedido por ela. A situação seria
quase cômica, ao considerar que uma mão pequena
e frágil exercia completo domínio sobre um
homem de estatura e formação muscular
avantajada.
— Não. — Genevieve deu um passo
adiante, parando rente ao homem. — Você não vai
a lugar algum.
Uma corrente de energia passou pelo braço
dela e se infiltrou no dele, através da palma de
Genevieve, Ethan ofegou e tentou puxar, mas
Genevieve o subjugou. Levou a outra mão ao
pescoço de Ethan, sobre a picada e a comprimiu.
— Ah! — Ele fechou os olhos e gemeu.
— Sinto muito — sussurrou.
Os olhos de Genevieve ardiam, ela mal
conseguia respirar, ele também não. A dama se
deparou com enorme resistência para que
penetrasse os seus dons de cura como gostaria,
intensificou seus esforços, a ponto de suas íris
tornarem-se leitosas.
Ethan gritou, e Genevieve o manteve no
lugar. Precisava que ele suportasse só mais um
pouco… sabia que podia ajudá-lo, o mar ofertou
essa possibilidade a ela. Tal qual um condutor,
captou a vitalidade proveniente da lua e a
transferiu dentro das veias de Ethan, assim como
ela fizera por anos, na plantação de seus pais,
porém dessa vez em uma proporção muito maior,
mais eficiente.
O administrador sorveu ar pela boca, o som
foi rouco e arranhado. Acometido por um acesso
de tosse seca, espasmos o dominaram, os olhos
rolaram nas órbitas e quando Genevieve começava
a reconsiderar seus atos, um filete de névoa
sinuoso saiu pela boca de Ethan.
Genevieve enfim o soltou, piscando algumas
vezes, para se restabelecer.
Ethan estava apoiado nos joelhos,
esforçando-se para respirar, Genevieve teve um
vislumbre da picada, ainda estava lá, revelando
que seus esforços não foram ao todo bem-
sucedidos, embora o ferimento se apresentasse
sem nenhuma inflamação, o que já poderia ser
considerado um avanço substancial.
— O que aconteceu? — Ethan questionou,
mais atordoado do que jamais esteve.
— Do que se recorda? — Genevieve
respondeu com outra pergunta.
Pela primeira vez, se preocupou consigo
mesma, com as implicações de sua atitude, que
poderiam resultar em enforcamento ou fogueira.
— Minha memória está péssima o dia todo,
lembro-me de trabalhar, de jantar com o Will e…
ah, eu a tratei mal, por isso a procurei em seu
quarto, mas você não estava lá. — Ele fez uma
pausa. — Minha cabeça está doendo, me perdoe.
— Está tudo bem. — Suspirou,
momentaneamente aliviada. — Tudo bem —
repetiu mais para si mesma, acalmando seu
coração. — Vamos voltar.
— Ainda não. — Desta vez foi Ethan a
impedi-la de partir, entrelaçando seus dedos.
Puxou Genevieve para si, trazendo-a rente
ao corpo e enlaçando sua cintura.
— Tem ideia de como a noite passada foi
longa? — Ethan falou. — Mal consegui dormir,
ansioso para revê-la.
Genevieve se esforçava em compreender a
alteração súbita nele, e até certo ponto,
compreendia, porém se magoou com as palavras
duras que ele lhe lançou, mesmo que não fosse a
intenção fazê-lo.
— Descanse um pouco.
— Sei que lhe falei algo que não devia, mas
acredita em mim se eu disser que mal me lembro?
— Afrouxou o braço que estava em torno dela. —
Eu lhe darei espaço se ainda estiver com raiva,
tenho certeza de que dei motivos.
Genevieve colocou no rosto um sorriso
triste, uma única lágrima desceu por sua bochecha
e Ethan a secou com o polegar, o remorso estava
estampado nas linhas do semblante dele, culpando-
se por algo que não era de seu controle.
— Não estou com raiva — Genevieve
forçou a frase pela garganta apertada. — Estou
triste porque você estava doente.
Não era ao todo uma mentira, estava mesmo
triste por causa do mal que a cada dia o alterava
mais e mais. A possibilidade de os efeitos
tornarem-se irreversíveis a desesperava.
— Não estou mais, você me curou com seus
cuidados. — Utilizou o polegar que secou a
lágrima, para lhe acariciar a bochecha.
Genevieve concordou, subindo e descendo a
cabeça, engolindo possíveis soluços e o abraçou.
Abraçou Ethan, estreitando os braços ao redor
dele e afundando o rosto na parte baixa do peito
dele, inspirando seu perfume, sentindo seu calor e
ouvindo o coração bater, firme e ritmado, como
sempre deveria ser.
Ethan retribuiu, comprimindo-a contra si,
aprisionando-a em um casulo que ela não desejava
sair. Após permanecerem imóveis por um instante,
desfrutando do contato. O administrador se
afastou, arrastando-a para a sensação de perda,
mas esta durou somente um segundo, pois logo
teve Ethan de volta, em seus lábios.
Dessa vez foi mais receptiva, pois sabia o
que esperar, contudo, as sensações seguiam novas,
cada movimento, uma maravilhosa descoberta. De
tão fervorosamente que desejava a recuperação de
Ethan, seguiu projetando seus dons sobre ele,
através do beijo, buscando alcançá-lo o quão
profundamente podia.
E ele correspondeu com mais ímpeto,
puxando-a mais para perto, bebendo de Genevieve
para solucionar uma sede sem fim, que fazia
somente se alastrar de modo que nunca seria o
suficiente.
A dama se curvou para trás e ainda bem que
estava firmemente segura, Ethan aproveitou-se
para levar os lábios macios ao pescoço dela,
enquanto Genevieve embrenhava uma mão nos fios
castanhos. Era impossível não querer mais,
Genevieve queria abrir a porta toda, a pequena
fresta não bastava.
Os lábios dele retornaram para o dela, não
houve hesitação, somente entrega. Ethan a ergueu
nos braços com facilidade, a colocando sentada
sobre a mesa. Nenhum dos dois podia parar,
estavam em frenesi, explorando as pequenas
dádivas escondidas um no outro.
Após tanta preocupação, tensão e
sentimentos conflituosos, deixar-se levar por
aquela explosão de calor era o que ela mais
precisava. Porque senti-lo em tantos pontos de sua
pele extremamente sensível, calava os seus
pensamentos e Genevieve necessitava de um
instante de mente silenciosa. Por outro lado, seu
corpo cantava, vibrando e despertando, dando
vazão à aflição acumulada.
Os joelhos de Genevieve se abriram,
auxiliando na aproximação de Ethan, que segurou
em suas coxas, por cima da saia, enquanto descia a
boca perigosamente em direção ao decote
generoso.
Ofegante, ela subitamente espalmou as mãos
no peito dele, repentinamente consciente de onde
se encontravam, tão expostos e progredindo tão
rápido. Admitia querer distração, mas se as
carícias fossem muito além, se transformariam em
algo que Genevieve seria incapaz de lidar, ainda
mais uma noite precedida de situações que
demandaram tanta intensidade.
Ethan parou no mesmo momento, afastando-
se, não desejando que ela se sentisse pressionada
de alguma forma. Analisando-a percebia que ela
exibia certo receio, Genevieve sempre se mostrou
avessa a toques, mas quando se beijavam, ela
possuía limites intransponíveis, apesar de
aparentar ansiar atravessá-los.
Tímida, ela não ousava olhá-lo nos olhos,
mantendo-os presos aos próprios joelhos.
— Por favor, olhe para mim — Ethan pediu.
Ele posicionou uma das mãos no joelho dela
e outra em seu rosto, erguendo-o. A íris
tempestuosa se agitava, transparecendo confusão.
— Está tudo bem — a tranquilizou. — Não
fizemos nada errado, somente cedemos por uns
instantes.
— Cedemos — Genevieve ecoou, testando a
palavra.
— Sim.
— E se acontecer outra vez?
— Poderá interromper ou prosseguir.
— E se eu não conseguir interromper, o que
aconteceria?
— Ora, você sabe…
E Ethan percebeu, pelas dúvidas dançando
no rosto dela, que ela não sabia, mas como
poderia não saber, já fora casada, não?
— Sei, mas não entendo — retificou ela.
— Como isso é possível?
Genevieve mordeu o lábio inferior,
tornando-o particularmente tentador.
— É possível.
Ethan a avaliou, ela parecia prestes a
explodir, agoniada, com algo entalado na garganta.
Abria a boca, depois fechava, o olhava nos olhos e
depois desviava…
— Sinto que quer me dizer algo, então diga.
— Facilitou.
Genevieve inspirou e depois soltou o ar.
— Ethan… — começou. Brincou com um
botão na gola dele, depois acariciou uma mecha
solta do cabelo do administrador. — Nunca me
casei de verdade.
A frase colidiu com algo dentro dele, e se
despedaçou. Ethan teve que reunir os fragmentos
para tentar entender o sentido, mesmo assim,
seguia sem ser capaz de assimilar.
— O que quer dizer com isso?
— Exatamente o que é. Quando fui posta no
navio que me trouxe até aqui, o capitão me obrigou
a assinar alguns documentos, provavelmente
falsos, para que eu pudesse ser leiloada como
esposa. Creio que ele queria ganhar ainda mais
dinheiro comigo. — Riu, o som foi melancólico.
— Ainda não entendo.
— Meu irmão não me desejava mais em sua
vida e tratou de dar um jeito de nunca mais me ver.
Aos poucos, Ethan absorvia todas as novas
informações, recriminando a si mesmo ao se
lembrar do leilão e dos primeiros dias de
convivência. Obviamente que Genevieve seria
desconfiada, que temeria um marido que jamais
vira antes e todas as outras possibilidades
implícitas em um enlace.
— Espero realmente que seu irmão realize o
desejo de não voltar a vê-la, ou então será ele a
sofrer desta vez. — Deixou escapar parcelas da
fúria recém-despertada pelo relato.
— Não me ressinto mais com Vincent.
Talvez houvesse um motivo para eu atravessar o
mar. — Sorriu.
E Ethan simplesmente teve que roubar
aquele sorriso, tomando-o nos próprios lábios.
Ethan quase não dormiu na noite que se
passou. A confissão de Genevieve se perpetuou em
sua cabeça. Ela nunca se casou, nunca se casou!
Quanto mais refletia sobre o assunto, mais
inconformado ficava. A pobre fora traída pelo
próprio irmão, qual a falta tão grave ela poderia
ter cometido para que ele a tratasse com a tamanha
ausência de humanidade? O mínimo que podia se
esperar de um homem, era que este protegesse sua
família, aparentemente Vincent Johnson não se
importava com nenhum código de honra.
E Ethan fora assolado pelos próprios atos
também, afinal, a respondeu mal sem nenhum
motivo aparente, lembrava-se de estar com muita
raiva de Genevieve, mas não via razão para tanto.
Ah, estava esgotado. Sua vida se
transformou em turbilhão desde a morte de
Ormond Gallagher, e Ethan apenas desejava que
tudo pudesse ser apagado, desejava recomeçar
com Genevieve, cortejá-la adequadamente, pois
não havia como negar que desenvolveu
sentimentos pela jovem.
Ainda não sabia determinar se foi correto ou
não a beijar, ainda mais levando em consideração
o fato de que ela nunca teve intimidades com outra
pessoa; agora Ethan conseguia compreender como
ela parecia incerta sobre alguns momentos da troca
de carícias.
Depositaria o controle da situação nas mãos
dela, era o mínimo que poderia fazer, Genevieve
decidiria se prosseguiriam ou não com essas
trocas.
Entre um pensamento e outro, Ethan acabou
adormecendo, e embora as horas de sono tenham
sido restritas, essas tiveram um bom
aproveitamento. Ele parecia quase completamente
recuperado do que quer que o tivesse adoecido.
Pouco após o sol nascer, o administrador se
levantou e desceu as escadas, para tomar o
desjejum. O céu ainda era escuro e pesado, uma
fina garoa o convidava e se deitar outra vez, mas
não conseguiria. Já havia se acostumado a levantar
cedo.
Recorreu a uma xícara de chá quente e se
encolheu em uma poltrona, próximo à lareira
acesa. Olhando vagamente para o fogo, Ethan
refletia sobre o quão confuso foi o dia anterior.
Ele ainda não conseguia preencher certas lacunas,
por mais que se esforçasse para tal.
Aos poucos, os sons da casa despertando
povoaram a saleta, juntamente com os do estalar
da lenha.
Minutos depois, Genevieve o encontrou e
Ethan a recepcionou com um sorriso. A dama
parecia feliz e a felicidade dela o agradava; o
sorriso dela vacilou somente uma vez, quando
passou a procurar algo na direção do pescoço dele
com os olhos.
— Bom dia — saudou o administrador.
Genevieve disfarçou sua inspeção e tornou a
sorrir.
— Bom dia. Deveria descansar um pouco
mais, para se recuperar.
— Sim, eu sei. — Estendeu a mão e ela
colocou a palma sobre a dele, Ethan a levou aos
lábios e beijou. — Estou aqui esforçando-me para
compreender todas as situações que aconteceram
ontem.
Genevieve foi acometida por uma nova
sombra turvando suas expressões, uma lua
eclipsada que teve seu brilho momentaneamente
engolido.
— Não acredito que seja uma maré de azar.
— Ela se acomodou ao lado dele. — Já pensou
que a Sra. Whitewood possa estar envolvida? —
Usou o tom mais delicado possível, mas eles
jamais conseguiriam diluir o peso das palavras.
— Por qual motivo ela faria isso e como ela
faria? — Não havia julgamentos nas perguntas,
havia somente curiosidade.
— Talvez ela tenha ajuda… — A voz de
Genevieve diminuiu.
Era possível, Ethan não queria atribuir os
pesadelos e as aparições noturnas em seu quarto
ao sobrenatural e aos ocultistas, mas o que mais
poderia ser? Se até mesmo Genevieve percebeu
isso?
— A possibilidade de nosso casamento
nunca a agradou, ela sempre desejou que fosse
Beatrice. Não estou enciumada, já pretendo
esclarecer, mas realmente penso que seja possível
que ela tenha tentado impedir que nosso
matrimônio se concretize, não que ela tivesse
intenção de feri-lo.
— Acredita mesmo nestas coisas?
— Um pouco — Genevieve admitiu. — Sei
que há elementos neste mundo que não
compreendemos e não sabemos explicar e
obviamente que não existem somente forças
positivas, mas também negativas.
Relances da sessão ocorrida durante a tarde
com os ocultistas, salpicaram a mente de Ethan,
aquele transe incomum e depois o ódio infundado
que ele sentiu irromper por Genevieve. Ele
conseguia identificar sentido na suposição da
dama, uma vez que tudo até então objetivou afastá-
los. Seria verdade? Céus, era sim possível, mas ao
mesmo tempo, era tão difícil acreditar, ele nunca
fez o tipo crédulo.
Ethan limpou a garganta e se amparou nos
braços da poltrona para se levantar.
— Tenho que ir trabalhar.
A íris de Genevieve se agitou.
— Mas já? Tem certeza de que quer ir para
Whitewood Holt, após tudo o que conversamos
aqui?
— Não descarto as suposições, mas não
posso renegar tudo que venho construindo.
— E o que pretende fazer?
— Ainda não sei, Genevieve. — Seus
ombros esmoreceram, ele todo tinha vontade de
desabar, mas precisava se manter de pé.
Por mais que a noite fosse repleta de trevas
e guardasse temores, um novo dia sempre surgia
lançando luz e espantando o horror. Por mais que
situações ruins acontecessem, o mundo não
deixava de seguir adiante e ele não o aguardaria se
estabelecer; não existia tempo disponível para
pausas, não era possível parar ou então seria
deixado para trás.
Genevieve também se levantou e foi até ele,
Ethan a abraçou e teve os braços dela
contornando-o de volta.
— Não quero que se machuque —
Genevieve admitiu, sua voz eram detritos de vidro
contra uma superfície dura.
— Não vou — assegurou ao acariciar os
cabelos dela. — Estarei atento, prometo.
— Queria que “atenção” fosse o suficiente,
mas não é.
— Preciso resolver isso de alguma maneira
e me esconder não é a solução. — Beijou o topo
da cabeça dela e inspirou o perfume de lavanda
que era tão presente ali.
— Você nem sabe o que está enfrentando.
— Seja o que for, não me impedirá de
retornar para você.
— Ethan… — Genevieve se afastou.
Ele aproveitou para elevar o rosto dela com
o indicador e depositar um suave beijo em seus
lábios. O beijo logo tomou maiores proporções,
pela vontade de ambos, simplesmente não
conseguiam evitar.
— Tenho que ir. — Ele foi o primeiro a se
afastar, temendo perder o controle.
Genevieve consentiu e deixou que ele
passasse.
Ethan estava exausto, essa era a sensação
que impregnava seus ossos, não sabia o que de
fato havia acontecido consigo, mas ele reconhecia
ter mudado muito desde que conheceu Genevieve.
Percebeu que não era mais tão imprescindível para
si herdar Whitewood Holt, se dedicou sim à
propriedade durante dez anos de sua vida e ainda
reservava grande consideração por Sarah,
contudo, sua existência e felicidade não giravam
mais em torno disso. A plenitude era um horizonte
mais vasto do que ele imaginava e estava pronto
para encerrar esse ciclo.
Se para voltar a ter paz, sanidade e saúde,
ele precisasse abrir mão de Whitewood Holt, ele o
faria. Não seria uma decisão fácil, uma vez que
acreditava ser merecedor das recompensas pelas
quais trabalhou, entretanto, também acreditava
merecer ser feliz, longe de intrigas que sempre o
tentariam sabotar.
Mas seria verdade? Sarah teria coragem de
fazer isso com ele? Sarah, a viúva que se tornou
sua amiga ao longo dos anos, que sempre lhe
considerou um filho…
O estômago de Ethan se revirou, não
conseguia imaginar a viúva lhe fazendo algum mal,
Beatrice ele até acreditava ser capaz, pois deu
motivos para que ela o odiasse, mas não deu à
Sarah.
Teria uma conversa franca com a viúva, e
havia a probabilidade de realmente deixar o seu
cargo, pois não tinha mais condições de se manter
da forma que estava, vivendo torturas.
Possivelmente era exatamente isso o que queriam,
que ele desistisse, Ethan desejou ser teimoso para
persistir, mas em seu íntimo, algo lhe dizia que não
valia a pena. Whitewood Holt nunca foi um legado
verdadeiramente seu para reivindicar com tanto
ímpeto, sem medir consequências.
Finalmente uma sensação de tranquilidade
se apossou dele ao tomar essa resolução, era o
silêncio proveniente da liberdade. Poderia
recomeçar, cortar todo o mal pela raiz, e sem que
pudesse dominar, seus pensamentos foram até
Genevieve, ele sorriu. Poderia ser um recomeço
em relação a ela também.
A primeira coisa que fez quando chegou, foi
procurar Sarah.
— Bom dia, Ethan. Estava precisando de
você agora mesmo.
— Eu gostaria de conversar com a senhora.
— Mais tarde, sim? Vamos, tenho urgência
sobre um documento.
Juntos, colocaram-se a subir as escadas que
levavam ao escritório, Ethan pedia paciência a si
mesmo e força, para que não mudasse de ideia
quanto à abdicar de seu cargo.
A cada degrau que avançava, seu estômago
desabava um pouco mais, uma sensação nauseante
o ameaçava, a madeira se tornou líquida, afundava
sob seus passos incertos e ele era obrigado a
segurar o corrimão com mais força. Passou a mão
livre pela testa, secando gotas inesperadas de suor.
— Não estou me sentindo muito bem —
balbuciou.
Podia ser um mal-estar súbito e apenas
precisasse se sentar um pouco para espantar a
fraqueza, provavelmente se enganou no seu
otimismo precipitado e a doença ainda fazia-se
presente em seu organismo.
Sarah pareceu não escutar, Ethan não a
culpava, pois mal podia afirmar que realmente
disse alguma coisa, talvez somente estivesse
organizando a frase em sua cabeça, sem a propagar
no ar.
Percebendo que havia menos degraus para
subir do que para descer, Ethan concluiu ser mais
inteligente chegar ao seu escritório, do que
retornar para a sala, então firmou sua mão no
corrimão e murmurou uma prece ao colocar o pé
direito no próximo degrau.
— Oh, meu Deus!
Ethan, que tinha os olhos fixos no chão da
escada, quase se desequilibrou com o movimento
brusco que fez ao levantar a cabeça para olhar
para Sarah, alarmado com a sua exclamação.
A viúva tinha a mão fixa na maçaneta da
porta aberta do escritório, a expressão horrorizada
da mulher parecia drenar toda a cor de seu rosto e
a sua vitalidade. Inconscientemente, ela apertava
cada vez mais a maçaneta circular, a ponto de suas
juntas embranquecerem.
— Sra. Whitewood?
— O-o-o… Ben. — Ela levou a mão ao
peito e puxou o ar várias vezes, sem conseguir
respirar.
Ethan se forçou a transpor o espaço até seu
escritório, ignorando a onda de mal-estar que o
ameaçou a arrastá-lo para baixo.
Sem dizer uma palavra, se colocou diante da
porta aberta e o que viu ali o petrificou. Tudo na
cena grotesca o assombrava, mas o que teve o
potencial de fazer seu coração espalhar gelo em
suas veias, ao invés de sangue, foi o fato de que
era para ser ele naquela cadeira.
Atrás da mesa pesada de trabalho que Ethan
se sentava todos os dias, havia um corpo
claramente sem vida. Com os olhos de íris
enevoadas abertas e com a boca escancarada e
rígida, Benjamin dera o seu último grito e o seu
último suspiro.
Com os olhos fixamente presos à figura de
Benjamin destituído de vida, Ethan e Sarah
avistaram quando uma serpente se insinuou pela
boca aberta. Sarah gritou e deu um salto para trás,
mas Ethan manteve-se tão rígido quanto o cadáver
de seu amigo, enquanto a víbora profana saía por
sua garganta, enrolando e contorcendo o corpo
devagar ao escorregar para fora.
Havia algo de extremamente blasfemo nas
escamas em contato com a pele pálida e fria de
Benjamin, seguindo seu trajeto ao descer pela
camisa dele, perfeitamente engomada pelas mãos
zelosas de sua esposa. A criatura o corrompia, tal
qual uma das pragas que uma vez assolaram o
Egito, lançando desolação e trevas por uma terra
que até então fora próspera e tocada pela luz do
sol.
Sarah não suportou a visão repulsiva e
curvou o corpo magro e trêmulo, derramando todo
o conteúdo de seu estômago no chão; o vômito
salpicou a barra de seu vestido e os sapatos do
administrador.
A serpente, já sobre o assoalho, cortou a
sala vagarosamente, lançando arrepios nas
espinhas de seus espectadores, Ethan e Sarah se
moveram, permitindo que ela passasse pela porta,
porém a cobra se interrompeu quando estava
diante de Ethan, colocando a língua bifurcada para
fora, provando o ar que o cercava.
Inconscientemente, ele prendeu a respiração, a
cobra se empertigou, prestes a dar o bote, e ele se
obrigou a reagir, retrocedendo um passo para trás
no momento exato da investida.
— Por mil demônios — balbuciou.
A presa da cobra ricocheteou contra a
madeira e ela se recolheu, atordoada. Ethan se
apressou em fazer uso de um vidro vazio
esquecido, que estava dentro do escritório, para
prender a serpente antes que ela causasse mais
estragos. Virando o recipiente ao contrário, cobriu
a cobra e o deixou ali sobre o chão. Antes de se
afastar de vez, pegou um livro pesado disposto em
uma das estantes e o posicionou sobre o fundo do
vidro, precavendo uma possível escapada do
animal.
O pico de agitação, motivado pelo ataque da
serpente, logo esfriou e Ethan sentia-se sem rumo,
incapaz de olhar para o pobre Benjamin. Na
parede do corredor, fora do escritório
infernalmente abafado, Sarah estava abaixada, com
as mãos escondendo o rosto, sofrendo espasmos
que indicavam que ela estava chorando.
Ethan sorveu o ar com força, por entre os
dentes cerrados. Líquido ácido e amargo subia por
sua garganta e tentava se apoderar de seu paladar.
Uma soma considerável de pensamentos
desconexos golpeava sua mente, pensou em Odeth,
a amada esposa grávida de Benjamin, em como ela
ficaria arrasada. Pensou no atordoamento de
Sarah, que o levava a crer que Genevieve se
enganou ao suspeitar da viúva e suas intenções.
Por último, pensou em si mesmo, era realmente
possível que alguém estivesse tramando contra ele,
desejando sua morte, fazendo o possível para
arruiná-lo.
Seria uma simples questão de tempo até que
seu perseguidor conseguisse alcançar o que
almejava, até que conseguisse arquitetar a morte
de Ethan. Deixar Whitewood Holt tornou-se um
ato de proteção à sua própria vida, não acreditava
que a pessoa por trás das mortes fosse Sarah,
mesmo assim, não pretendia continuar em seu
cargo, como já havia decidido.
Esforçou-se para recobrar os movimentos
de seu corpo e caminhou até Sarah. Buscando ser
gentil, mas ao mesmo tempo firme, segurou no
braço da viúva, para que ela conseguisse levantar.
— Vamos lá para baixo, vou solicitar que
alguém suba aqui.
— Co-co-como? — ela soluçou. — Como
isso foi acontecer? — Os olhos perdidos dela
procuraram desesperadamente o rosto de Ethan,
procuraram algo a que se agarrar para não
sucumbir.
— Não sei, não tenho ideia — devolveu em
tom afável.
— Phil tinha me avisado sobre as cobras, se
lembra? Eu pedi que Benjamin as procurasse e ele
disse que não encontrou nenhuma. — As palavras
se atropelavam, pareciam envolvidas em
devaneios.
— Eu me lembro, Sra. Whitewood. Agora
vamos sair daqui — Ethan a chamou, apressado
em se afastar.
Ela cedeu, se apoiando em Ethan e na
parede para finalmente se levantar. Em estado
catatônico, desceram pelas escadas que haviam
acabado de subir. O administrador deixou a viúva
acomodada em um dos sofás da sala e partiu à
procura de ajuda de outros funcionários que o
pudessem auxiliar quanto à terrível cena que
pairava sombria sobre a mansão no andar superior.
Obviamente que teriam que envolver a
polícia e isso já era um transtorno por si só.
Inferno! Ethan só podia crer que estava
vivenciando um pesadelo.
Enquanto o desespero se entremeava na
residência, incitado pela vertiginosa velocidade
das fofocas que corriam por entre a criadagem, se
espalhando como o incêndio em um monte de feno,
Sarah permanecia em silêncio, ainda no sofá.
Ethan, por sua vez, buscava ser útil, ocupando seus
pensamentos com ações para que não tivesse
espaço para sentir a perda de seu amigo, para que
não rememorasse as suas feições transfiguradas
pela morte.
E se William e Genevieve estivessem em
perigo? E se quem quer que o quisesse morto,
viesse a atingi-lo por meio das pessoas que Ethan
amava? Teve que se controlar para não correr até
Violet Valley. Imagens de Will e Genevieve mortos
da mesma forma que Benjamin levaram sua tênue
sanidade ao limite de ruptura.
— Sr. Hamilton — alguém o chamou.
— Sim?
Um rapaz, funcionário de Sarah, trazia nas
mãos o vidro que Ethan havia prendido a cobra,
porém este estava vazio e destampado
— Disse que havia uma serpente lá em
cima?
— Onde ela está? — questionou,
demonstrando toda a ansiedade que consumia seu
juízo.
— Não havia nada.
Genevieve se ocupava em enterrar os
pássaros mortos em um canto afastado do jardim
de Violet Valley, sob uma roseira. Sabia que
estava sujando seu vestido ao se ajoelhar sobre a
terra, mas não se importou. Ao seu lado, estava a
cesta de vime, vazia, pois seu conteúdo já fora
cuidadosamente depositado no buraco que
Genevieve cavou.
Vento fresco, com cheiro de chuva, beijava
o seu rosto, mas ela ainda conseguia sentir um
odor pungente vindo das aves pequeninas,
característico do mal, do Devorador de Sonhos.
De certa forma, ela sempre soube que a criatura
estava envolvida com o comportamento incomum
dos pássaros, e o grande número de aves que
encontrou mortas na noite anterior, poderia ser
indicativo de que as atividades do Devorador
estavam mais intensas.
Puxou um punhado de terra com as mãos
nuas, cobrindo a cova que havia feito. Storm
lambeu o rosto de Genevieve e ela sorriu, um curto
sorriso triste e apagado. Limpou as mãos, batendo-
as umas na outra e afagou o cão.
— Gosta de carinho, Storm? — Usou um
tom lúdico para perguntar.
Ele produziu um som baixo que Genevieve
tomou a liberdade de interpretar como aprovação.
O cão dispunha da habilidade de tornar o
coração dela mais leve e logo Genevieve já havia
se entregado às trocas com Storm, que retribuía
com lambidas, os carinhos que recebia da dama.
— Srta. Johnson!
Genevieve virou a cabeça, procurando a
direção do chamado. Arfante, Amelie corria de
encontro a ela, segurando com força seu avental e
a saia, erguendo-as para que pudesse se
movimentar mais depressa.
Genevieve se pôs de pé, aguardando a
aproximação da jovem serviçal.
— O que houve, Amelie? — Franziu as
sobrancelhas.
— Acabei de retornar da cidade,
acompanhei a Sra. Evans na compra de algumas
provisões para a casa. — Ela teve que parar para
respirar e secar o suor sob a touca que caía um
pouco sobre sua testa.
— E então?
A jovem ainda respirou profundamente
algumas vezes antes dar prosseguimento à história.
A cada instante de demora, Genevieve sentia-se
mais alarmada, havia um pressentimento ruim se
arrastando sobre ela, arranhando sua pele com
garras perfurantes.
— Não falam de outra coisa, alguém morreu
em Whitewood Holt.
Genevieve soltou a respiração, empurrando
com força o ar para fora dos pulmões; o impacto
da informação acertava seu peito, quebrando seus
ossos, estraçalhando seu espírito.
Que não seja Ethan.
— Ethan… — sussurrou, o som saiu fino e
estrangulado.
— Não, senhorita, não é o Sr. Hamilton.
— Céus, por que não me disse antes? —
Engoliu, sentindo dor latejar em sua garganta.
— Sinto muito por preocupá-la.
— E quem era, Amelie?
— Benjamin, creio que a senhorita não o
conhecia, mas era amigo de vosso primo e de
vosso noivo, por isso achei que seria melhor
prepará-la para a tristeza deles.
— Oh, sim. Agradeço.
Não era Ethan. O alívio chegou antes da
culpa por senti-lo, Ethan estava salvo, ao menos
por enquanto. Porém não era coincidência mais
uma morte resvalar o administrador, tão próxima a
ele, que era possível sentir a temperatura baixa de
seu hálito putrefato.
— Posso fazer algo para a senhorita? Noto
que a notícia a desestabilizou. Talvez queira entrar
e tomar um chá, sim?
Amelie parecia arrependida por ter
compartilhado a fofoca com ela, e ainda de
maneira tão afoita. Olhando-a com desconfiança, a
jovem analisava as reações de Genevieve.
— Está tudo bem, apenas necessito de um
momento para digerir a notícia, pensei que poderia
ter sido o Sr. Hamilton. — Genevieve teve
vontade de levar a mão até as têmporas para
comprimi-las, mas se controlou, lembrando-se a
tempo de que suas palmas estavam sujas de terra.
— A culpa foi toda minha. Peço-lhe perdão
pela impertinência, mas preciso dizer, achei muito
romântica a vossa preocupação com o Sr.
Hamilton. — Deu um sorrisinho ao final da fala.
— Eu me casarei com ele.
Era uma explicação plausível, Genevieve
assim esperava.
— Sim, e o ama, eu compreendo. — O
sorriso de Amelie se alargou. — Porém os
casamentos isentos de sentimentos são tão comuns,
alegra-me que o da senhorita não seja assim.
Genevieve esboçou algo que poderia ser um
rascunho de sorriso em resposta, tão lúgubre
quanto os que ela costumava dar.
Aos poucos, o rosto de Amelie parecia se
alterar de ansioso para desanimado, percebendo
que Genevieve não alimentaria o diálogo ou
disponibilizaria qualquer informação de potencial
especulativo sobre seu relacionamento com Ethan.
Amelie coçou a nuca, um pouco sem jeito diante
do silêncio, a jovem esperava alguma coisa indo
até ali compartilhar em primeira mão os fatos
trágicos ocorridos na propriedade vizinha, porém
Genevieve não sabia que resposta oferecer, nunca
foi dada a mexericos.
— Estarei junto à Sra. Roseveld cortando
vegetais para o jantar, caso precise de mim. Com
licença. — A serviçal realizou uma curta mesura.
Genevieve murmurou algo em
agradecimento e Amelie se afastou, deixando-a
novamente apenas com a companhia de Storm.
Preferia assim.
Inspirou profundamente e fechou os olhos,
sentindo a umidade no ar se infiltrar em seus
pulmões, limpando-a de dentro para fora,
promovendo a cura e fortalecendo-a. Genevieve
entrou em comunhão com os resquícios de chuva
no ar, com as plantas e com a terra.
Precisava se preparar para a chegada de
Ethan, ele estaria tão ou mais atordoado do que
quando ocorreu a morte do sócio de Sarah. A
memória de Genevieve resgatou o Ethan daquele
momento, era um homem destruído.

Ethan demorou, já havia passado muito do


anoitecer e ele ainda não havia chegado. William
disse que era melhor não retardarem o jantar, então
seguiram para a grande mesa para se alimentarem.
Ainda que o cavalheiro buscasse disfarçar, era
visível a tristeza que ocupava seu semblante, ele
também recebeu as trágicas notícias durante a
tarde.
A refeição era silenciosa, somente os sons
dos talheres contra a porcelana ressoavam no
ambiente. Will mal comia, movendo sua porção de
um lado para o outro no prato, e com a mão livre
apoiava o queixo, os seus olhos de safira estavam
perdidos em algum ponto em particular, distantes e
inalcançáveis.
Genevieve buscou respeitar o luto dele, não
persistindo em conversas. Compreendia como
perdas poderiam ser difíceis e que cada pessoa
reagia a elas de uma maneira diferente.
Porém ela queria tanto falar, estava
preocupada com Ethan, temia que ele pudesse
preferir ir para seu apartamento e ela acreditava
que ele não estaria em condições de passar uma
noite sozinho. Internamente, ela debatia se deveria
levantar o assunto com Will ou não. Talvez
pudessem buscá-lo lá.
Mais alguns minutos torturantes se
arrastaram com os dois ali, presos em um jantar
em que ninguém comia, quando o som da porta da
frente sendo aberta alarmou os sentidos de
Genevieve e fez Will finalmente despertar de seus
tormentos.
Com passos pesados, Ethan fez-se
perceptível na sala de jantar, tanto Genevieve
quanto William se colocaram de pé para
recepcioná-lo, não sabiam o que esperar, como
Ethan reagiria à morte de seu amigo.
O administrador surpreendeu a todos quando
foi diretamente até Genevieve e a envolveu em um
abraço, ele encostou o rosto no pescoço dela e
inspirou longamente. O contato entre eles sempre
despertava algo diferente nela e esse momento não
foi exceção, em realidade, parecia que cada vez a
ligação entre eles tornava-se mais sólida, um fio
quase visível e palpável que os conectava, antes
fino como teia de aranha, mas agora robusto e
repleto de elos como uma corrente.
Através de sua sensibilidade excepcional,
Genevieve identificou a energia agitada de Ethan,
um vendaval que ele carregava dentro do peito.
Ele comprimiu a dama um pouco mais em seu
abraço antes de soltá-la para ir até William.
Genevieve pensaria depois sobre as
implicações do abraço “público”.
— Como aconteceu? — Will questionou, a
pergunta soou cortante, uma frase com arestas
aparadas pela objetividade.
Era perceptível como lhe custou proferir
essa sentença.
— Não seria melhor todos nos
acomodarmos em outro lugar para que essa
conversa aconteça? — Genevieve sugeriu,
prezando pelo bem-estar de ambos os homens.
— Tem razão, vamos para uma das saletas
— Ethan concordou.
Will consentiu e os três seguiram
atravessando o piso inferior, à procura de um local
adequado para conversarem o mais tranquilamente
possível. Implicitamente houve um acordo sobre
esquecerem o jantar. Enquanto caminhavam, os
olhos de Genevieve estavam atentos a Ethan, em
cada nuance de sua face. Ele parecia triste, mas
não tão arrasado como na outra vez que se deparou
com uma perda.
Sem sequer que solicitassem, uma bandeja
de chá surgiu assim que se estabeleceram no
cômodo. Havia uma mesa a qual foi arrumada
pelos funcionários, onde foram depositados as
louças e o bule, contudo o trio não ocupou a mesa,
preferindo os estofados dispostos próximos à
janela que dava diretamente para o jardim.
Genevieve ocupou uma elegante poltrona
solitária, Ethan e Will o sofá de dois lugares.
— O que houve em Whitewood, Ethan? —
Will perguntou, dessa vez, aparentando menos
distanciamento e mais tristeza, demonstrando como
verdadeiramente se sentia.
— Não sabemos, quando subi ao meu
escritório, Benjamin já estava lá sem vida.
— E o que fizeram? — Se inclinou para
frente, interessado.
— Contactamos a polícia.
— Há suspeitas de assassinato? — O tom de
Will diminuiu, conforme as palavras se
esgueiravam por seus lábios.
— A possibilidade ainda não foi descartada,
porém acredita-se que tenha sido um mal súbito.
— Ethan fez uma pausa, desempenhando uma longa
respiração. — Assim como Gallagher —
assinalou, lançando um olhar significativo para
Genevieve.
Arrepios subiram pelos braços da dama e
ela sentiu necessidade de esfregá-los, mas não o
fez. Estava mais do que claro que aquela morte
fora projetada pela mesma pessoa que matou o
outro homem, todos próximos a Ethan, como se o
administrador estivesse infectado com uma praga.
— Que infeliz destino — lamentou Will.
— Sim. — Ethan abaixou um pouco a
cabeça, o remorso se sobressaía nos traços de seu
rosto.
Oh, ele se culpava. Genevieve não achou
justo que ele carregasse essa culpa, eram fardos
pesados demais e isso ela sabia, tendo Genevieve
já carregado tantas culpas similares, como a pela
morte de seus pais.
— Justamente no seu escritório? — William
externalizou um pensamento que Genevieve
também compartilhava.
— Em minha cadeira — pontuou
firmemente.
— Sinto muito por isso, me comprometo a
arcar com as reformas em seu gabinete se isso for
ajudá-lo de alguma maneira.
— Não será necessário, não pretendo
permanecer na administração de Whitewood Holt,
mas o agradeço por se preocupar.
— Não pretende? — A voz de Will se
elevou, assim como suas sobrancelhas claras que
também foram um pouquinho para cima.
Genevieve se controlou para não dizer nada,
mas estava igualmente surpresa, e não era uma
surpresa ruim, ela só não sabia o que esperar após
essa desistência de Ethan. Contudo, sabia que
seria o melhor para ele se manter longe dessa
propriedade amaldiçoada e das pessoas mal-
intencionadas por trás dela.
— Não.
— Creio que seja melhor pensar um pouco
mais antes de tomar decisões, pois ainda está
impressionado com o que ocorreu hoje.
Ethan abriu a boca para responder Will, mas
aparentemente reconsiderou suas palavras e
recomeçou a frase.
— Está bem, farei isso. — Sorriu para o
amigo. — Vamos descansar um pouco, amanhã
teremos que estar no funeral.
— Posso ficar, se precisar de mim, era mais
próximo a Benjamin do que eu.
— Noto que está esgotado, Will, não se
prive de descanso por mim. Estou bem, ou tão bem
quanto poderia estar.
— Já que está bem, irei mesmo me recolher.
— Se colocou de pé. — Aguardá-lo hoje nos
deixou apreensivos e cansados. — Gesticulou em
direção à Genevieve para incluí-la na declaração.
— Mas me chame se sentir necessidade de
conversar mais um pouco sobre isso.
— Tudo bem, também pretendo me deitar
em seguida, só preciso comer algo. Acompanha-
me, Srta. Johnson?
— É claro, não estou tão cansada assim.
— Preferem que eu solicite algo da cozinha?
— Will questionou, desempenhando os deveres de
bom anfitrião.
— Chá e biscoitos são o suficiente.
— Então, boa noite.
— Boa noite, Will.
Ethan e Genevieve permaneceram ali,
ambos conscientes de que o ato poderia ser
interpretado como indecoroso, porém fingiram não
se importarem. Ao contrário do que Ethan fizera
parecer, ele não fez menção alguma de consumir os
biscoitos e o chá que repousavam abandonados na
mesa.
— Lamento pela perda que tiveram. —
Genevieve foi a primeira a tecer um comentário.
— Era para ter sido eu, eu sei.
As palavras dilacerantes se infiltraram no
coração de Genevieve e doeram porque ela sabia
serem verdadeiras. Se importava com ele o
suficiente para reconhecer que a morte de Ethan
seria terrivelmente destrutiva para si, como um
tornado arrasando tudo o que entrasse em contato,
deixando um rastro irreparável para trás.
— E o que fará a respeito?
— Não sei, não terei descanso sendo
perseguido dessa forma. E se eles chegarem até
você? Não posso sequer imaginar algo assim.
Genevieve teve que piscar algumas vezes,
assimilando a declaração de Ethan, lendo nele os
mesmos medos que a assolavam, a de que ele
poderia se machucar. Teve vontade de tê-lo junto a
si, nem que fosse para confortá-lo através de
algum contato.
A dama deixou seu lugar e se colocou ao
lado de Ethan, ele a acompanhou silenciosamente
com os olhos. Genevieve levantou sua mão e a
posicionou delicadamente sobre as marcas ainda
visíveis da picada de cobra, no pescoço dele.
Acariciou a pele sensível, sentindo a ponta dos
dedos formigarem quando penetrou seus dons nos
ferimentos quase completamente curados.
Ethan fechou os olhos, apreciando a carícia,
e depois de alguns instantes os reabriu, procurando
instintivamente os lábios dela. Genevieve não
pôde resistir, fazendo questão de ignorar a voz no
fundo de sua mente que lhe dizia ser inadequado
pensar em beijá-lo em um momento como esses,
mas o que ele esperava quando pediu que ela
ficasse?
Foi ela a tomar a iniciativa do beijo,
encostando nos lábios dele com os próprios
lábios. Um gemido baixo fora dado por Ethan
quando suas línguas se tocaram e ele a tomou com
mais ímpeto.
Em um dia em que o frio se fez tão presente,
ali havia calor, as temperaturas aumentando
gradativamente enquanto seus corpos buscavam
desesperadamente um ao outro.
As mãos de Ethan que estavam firmes na
cintura de Genevieve, subiram deliciosamente
devagar e dessa vez foi ela a gemer, a timidez por
ter feito tal som a desconcertou um pouco, mas não
a impediu de continuar com a troca de carícias.
A mente da dama se distanciava de
pensamentos lógicos e medos, entorpecida por
Ethan, ela imaginava que ele se sentia da mesma
forma. Era uma fuga bem-vinda de uma realidade
tão desagradável, e enquanto estivessem ali,
excessivamente conscientes das reações que suas
peles produziam quando em contato, o mundo e
seus problemas se tornavam proporcionalmente
menos importantes.
Ela jamais compreendeu Vincent com
tamanha precisão quanto naquele instante, não que
quisesse se lembrar do irmão logo quando estava
se esquecendo de tantas outras coisas, contudo, foi
inevitável não refletir quanto Ethan parecia
exercer sobre ela, o mesmo efeito que o vício em
ópio em Vincent.
Vícios.
Estar assim com Ethan era viciante, desejou
mais.
E ele também parecia desejar, pois iniciou
uma minuciosa expedição com os lábios na pele
suave e sensível do pescoço de Genevieve. A
barba curta dele a arranhou e ela quis gritar de
êxtase, simplesmente porque se sentia incandescer
por dentro, queimando a cada beijo.
Ah, era tão bom.
Tomaram novamente os rumos dos lábios um
do outro, sem que Genevieve pudesse perceber,
havia se deslocado no sofá, estava praticamente
sentada sobre Ethan e ele logo resolveu a situação
imprecisa a puxando de vez para seu colo. Afastou
um pouco as pesadas saias de Genevieve para
acomodá-la melhor e aproveitou para envolver
ambas as coxas dela com as mãos largas. Havia
inegável posse no gesto, Genevieve se odiou um
pouco por gostar.
Mas gostava, gostava quando a reivindicava
nesses momentos.
Devagar, ela passou a entoar um suave
ritmo, quase como quando estava em transe, sua
mente já não comandava mais suas ações, e era
maravilhoso ceder, não precisar pensar ou tomar
qualquer decisão. Ethan correspondeu aquilo da
melhor maneira possível, aprofundando o beijo,
puxando Genevieve para si, e por mais que
parecesse impossível que estivessem mais unidos,
ela percebeu que sim, era possível, e sentia pesar
por ainda haver alguma distância entre eles,
mesmo que ínfima.
Compreendeu que aquilo era exatamente o
que os dois precisavam, apesar de soar
disfuncional. Após um dia repleto de reflexões
sobre os medos que tiveram de que houvesse a
possibilidade de que fossem feridos, precisavam
sentir que estavam bem, salvos, ao alcance das
mãos um do outro.
Sob si, notou a rigidez comprimindo as
calças de Ethan, ela não sabia que podia
desencadear essas alterações no físico de alguém,
mas se sentiu um pouco lisonjeada por isso. E
parecia justo que Ethan também sofresse tais
consequências, pois ela mesma as identificava em
si, na umidade acumulando entre suas pernas, e no
latejar constante que a obrigava a continuar se
movimentando sobre Ethan.
— Genevieve, permita-me reverenciá-la. —
A voz rouca de Ethan soou sedutora em seus
ouvidos.
— Não me obrigue a implorar — devolveu
em um tom embebido em lascívia que não a
pertencia.
Ethan riu, e antes mesmo que Genevieve
pudesse tomar ciência, ele inverteu as posições, a
colocando deitada no sofá. A cabeça dela
repousou no braço do estofado e o corpo do
administrador a cobriu, Genevieve subitamente
aprendeu a apreciar o fato de Ethan possuir o
dobro do tamanho dela.
Vagarosamente, a mão dele subia pela perna
de Genevieve, sobre a diáfana meia que ela
utilizava. Envolveu os tornozelos dela, então as
panturrilhas, subiu para as coxas e pararam por
ali. Com o indicador, Ethan tracejou espirais em
sua pele, logo após transpor o limite rendado da
meia.
Genevieve estava pronta para viver essa
experiência, a desejava e nada além disso
importava. Durante a sua vida no campo,
expectativas foram tecidas para ela, e sua
condição de donzela seria crucial para que as
coisas acontecessem conforme o estipulado, mas
tudo se perdeu quando fora leiloada, qualquer
pretensão de obter um bom casamento após isso
caiu por terra.
Queria desvendar esse segredo, e que bom
que seria com Ethan. Manteriam as relações após
o fim do tortuoso trato que estipularam? Ela não
sabia dizer, mas isso não valia de nada para si,
não exigiria promessas dele e, de forma nenhuma,
determinaria sua decisão de se entregar por conta
disso. Quando teria a sorte de se sentir confortável
com outro toque? No geral todos lhe causavam
desconfortos, exceto o dele, e era uma sensação
poderosa a do toque.
Ethan seguiu beijando-a na região do colo,
próximo do decote, enquanto as mãos dele
trabalhavam em suas coxas. Genevieve queria que
ele fosse mais para cima e parecia que ele havia
lido sua mente, pois foi exatamente o que fez, e
quando Ethan finalmente acariciou seu ponto mais
sensível, as costas de Genevieve arquearam contra
o sofá e ela suprimiu um alto gemido, sentiu dor
em seu lábio inferior por tê-lo mordido.
Os movimentos circulares do indicador
retornaram e ela se deu conta de que os feitos
anteriormente em sua coxa não passavam de um
eco fraco perto do que sentia naquele instante.
Genevieve apertou a cintura firme de Ethan,
necessitando se segurar em algo enquanto a
abençoada tortura prosseguia. Uma profusão
incoerente se apoderou de sua mente, e Ethan, o
perfume dele estava em todos os lugares, as pontas
dos cabelos um tanto logos dele roçando o rosto
de Genevieve, havia pequenos pontos cintilantes
salpicando a testa dele por conta do esforço e do
calor, e isso, ah, era queimar no paraíso.
Genevieve tremeu violentamente nos braços
de Ethan quando alcançou o ápice de seu prazer,
ele teve que abafar os gemidos dela com um beijo,
reivindicando-os todos para si, e Genevieve
concordava que eles pertenciam um pouco a ele
também.
Ela ofegou, tentando encontrar o fio de sua
racionalidade após a explosão de há pouco. Ethan
se levantou, fornecendo espaço para que ela
pudesse se recompor.
— É isso, mas, não é? Como pode ser?
Pensei que fosse diferente — refletiu Genevieve
em voz alta, após se sentar corretamente no sofá e
puxar suas saias para baixo.
— Pode ser de várias formas. — Deu um
sorriso curto, carinhoso.
— Várias formas?
Ethan se aproximou de Genevieve,
curvando-se, uma das mãos apoiadas no braço do
sofá e lhe deu um selar de lábios.
— Mas você… — ela começou a dizer. —
Você também precisa…
— Não. — Ethan negou com a cabeça. —
Não preciso de mais nada. — Beijou o topo da
cabeça da dama. — Vamos descansar, amanhã será
um longo dia.
Genevieve concordou, puxando Ethan para
um último beijo antes de deixarem a saleta e irem
para os próprios aposentos.
Mais do que nunca, as neblinas
fantasmagóricas que se acumulavam naquela
manhã, pareciam combinar com a tristeza que se
estendia sobre o local onde estavam reunidos para
o sepultamento de Benjamin. Genevieve podia
sentir o sabor salgado nas brumas gélidas, talvez
por terem sido carregadas até ali vindas do
oceano, entretanto o seu paladar identificava mais
o sabor de lágrimas do que o de mar.
O vento fazia as copas das árvores próximas
farfalharem e sol pálido e frio tentava se
desvencilhar das nuvens pesadas, fornecendo
lampejos de claridade que só faziam oposição ao
forro negro dos presentes trajando luto. A ponta do
nariz e das orelhas de Genevieve estavam geladas
e respirar doía, queria ir embora, mas sabia que
precisava ficar.
Enquanto o caixão era baixado para a cova,
o choro estrangulado da jovem viúva, Odeth,
crescia ao nível de desespero, era o tipo de som
que fazia todos ali serem reféns da mesma dor que
a assolava. Genevieve podia sentir seu próprio
coração sangrar em consideração a perda da
mulher que ela não conhecia até aquele momento.
A primeira pá de terra fora jogada, Odeth
desmaiou nos braços de seus familiares, sonoras
exclamações foram ouvidas, nenhuma em tom
superior ao que se considerava adequado à
situação, propagando-se em ecos sussurrados e
tímidos por entre os túmulos de pedra cinza
engolidos pelas espessas neblinas alvas.
Genevieve desviou os olhos para Ethan, ao
seu lado. Havia uma trilha molhada descendo pelo
rosto dele, e uma lágrima teimosa presa aos cílios
do administrador, Genevieve quis secá-la, mas não
se atreveu; atreveu-se, contudo, a estender a mão
enluvada à dele. Sua palma logo encontrou
acolhimento dentro da de Ethan, ele comprimiu um
pouco os dedos e Genevieve os comprimiu de
volta.
Podia sentir um fio de energia dançado entre
suas palmas, atravessando o tecido das luvas e
chegando até Ethan. Esperava que fosse o
suficiente para confortá-lo, e no momento, teria
que ser.
Assistiram juntos ao caixão ser
completamente coberto de terra. A pá subia e
descia, os movimentos exerciam efeito quase
hipnótico, não a pá exatamente, mas o homem que
a empunhava, com semblante calmo e indiferente
de quem realizava aquela mesma tarefa durante
várias vezes ao longo dia. Não era culpa dele, mas
a sua plenitude era quase um insulto àqueles que
tinham o seu ente querido sob toda aquela terra.
Genevieve recordava-se de ter tido o
mesmo pensamento quando esteve presente no
enterro de seus pais. Era compreensível, estava
furiosa e tinha que direcionar sua raiva para algum
lugar, infelizmente a empurrou para o pobre
homem que estava somente desempenhando sua
função. Em sua concepção infantil, acreditava que
ele também tinha que estar triste, assim como ela,
sobretudo ao ser o responsável por sentenciar a
mãe a estar perpetuamente a sete palmos de
profundidade distante da filha.
Ela engoliu um pouco de saliva, era difícil
permanecer ali, Genevieve sentia-se drenada por
aquelas almas infelizes e embora ela soubesse que
seus dons foram feitos para curar, ela não teria
meios de suprir toda a demanda que a cercava. A
própria terra estava impregnada com o pranto dos
vivos, sugando qualquer resquício de vitalidade
que pudessem encontrar e Genevieve era uma fonte
conveniente e bem-vinda.
Odeth tinha despertado do desmaio e voltou
a chorar, segurando a barriga inchada sob o
vestido preto, ela realizava gestos repetitivos de
negação e lamentava, através de sons dilacerantes,
a perda de seu esposo. Ninguém era capaz de
contê-la, se o choro dos demais eram gotas de
orvalho deslizando por vitrais, o de Odeth era uma
tempestade, trovões por dentro, hematomas
violentos por fora.
Alguém precisava fazer alguma coisa.
Genevieve afrouxou os dedos que estavam
em torno dos de Ethan e deslizou sua mão para
fora do refúgio aconchegante. Ele lançou um olhar
para a dama, estranhando a sua movimentação.
“Aonde vai?” — ele silenciosamente
questionou.
“Confie em mim” — Genevieve revidou o
olhar.
“Está bem" — Consentiu levemente com a
cabeça.
Genevieve deu a volta nos presentes,
passando despercebida, evitando tocar qualquer
um, até estar próxima à Odeth. Os cabelos da
jovem eram louros, quase pálidos, os cílios dela
eram igualmente claros, o que só fazia ressaltar o
intenso vermelho que se espalhava por sua pele e
por seus olhos, por conta do choro.
— Odeth — Genevieve se atreveu a chamar.
A mulher pareceu não a escutar, então
Genevieve teve que se aproximar mais um pouco,
removeu a luva da mão direita e tocou
delicadamente o pulso de Odeth. A jovem inspirou
profundamente e sua respiração suavizou. Fora
uma mudança sutil o suficiente para ninguém
perceber, era como um dos outros espaços vagos
entre choros, que não costumavam durar muito,
mas esse Genevieve faria questão de prolongar.
— Sim? — Piscou os olhos para Genevieve,
sua voz ainda era embargada.
— Notei que trouxe um buquê muito bonito.
Odeth encarou as flores que repousavam na
terra remexida, jazendo junto à sepultura de
Benjamin.
— São lírios. — Se aproximou um pouco
mais de Genevieve. — É em homenagem à nossa
filha, se for uma menina se chamará Lily.
— É um nome lindo.
Genevieve sorriu, e contrariando o seu bom-
senso e quaisquer outros limites, tocou a barriga
de Odeth. O bebê se mexia e chutava, certamente
em conflito com as emoções afloradas de sua mãe.
Genevieve sabia que precisava acalmar Odeth
para que a criança não sofresse.
O calor pulsante da vida era puro e
genuinamente bom, um acalento que Genevieve
espalhou por Odeth, utilizando a própria criança
dela para auxiliá-la e ampará-la. A jovem viúva
suspirou profundamente mais uma vez e pousou a
mão sobre a de Genevieve.
— Possui filhos?
— Ah, não — Genevieve titubeou ao
responder. — Ainda não me casei. — Esperava
que essa resposta fosse o suficiente.
Odeth fungou e acariciou a barriga com a
mão livre.
— Esse é o único motivo para eu não ter me
atirado naquela cova. — Ameaçou tornar a chorar.
Genevieve não disse nada, se concentrou em
ampliar o bem-estar em Odeth, pois era a forma
que efetivamente a auxiliaria. Palavras, naquele
momento, não seriam suficientes, além disso,
Genevieve nunca se considerou boa com as
palavras em situações semelhantes.
— Vamos, todos já estão partindo. É hora de
irmos, minha querida. — Uma senhora mais velha
posicionou a mão sobre a parte baixa das costas
de Odeth.
A jovem fechou os olhos com força, mas por
fim consentiu, deixando-se levar pela mulher, sem
olhar para trás, mesmo que isso parecesse lhe
custar muito.
A maioria das pessoas realmente já tinha
seguido em procissão para fora. Alguns
remanescentes eram vistos tomando o mesmo
rumo, enquanto Ethan e Will caminhavam para a
direção contrária, até Genevieve.
— Devemos ir também — declarou Ethan.
— Por favor, este lugar me causa arrepios
— reclamou Will em voz baixa.
Causava em Genevieve também, havia as
sensações desconfortáveis, de finos dedos se
prendendo em sua energia, pequenos regatos
congelados desviando o fluxo de um rio robusto e
fresco; ela estava ansiosa por se livrar desses
hóspedes indesejados.
Genevieve deu o braço para Ethan, Will fez
uma expressão surpresa ao reparar o gesto, mas
não disse nada. Juntos, os três avançaram em
direção à saída, passaram pela pequena capela e
Genevieve sentiu seu coração parar de bater
durante uma longa fração de segundo. Suas forças
quase se esvaíram e ela teve que se apoiar em
Ethan para não cair.
— Está tudo bem? — Ethan a vasculhou,
preocupado.
Genevieve, em sua confusão, virou de
costas, seus olhos recaíram diretamente no túmulo
de Benjamin. Uma sombra, coroada por dois
chifres, pousava de cócoras sobre o buquê de
lírios, amassando as flores sob seu casco.
— Genevieve? — William a chamou.
— Vamos. — Soou ríspida em resposta.
O que o Devorador estava fazendo ali? Sob
a luz do sol! Não havia mais limites para a
criatura. Ele estava profanando o descanso de
Benjamin, pelos céus, ainda bem que os demais
não podiam vê-lo.
— Sr. Hamilton? — Uma voz feminina
surgiu de dentro da capela.
Logo Beatrice fez-se perceptível através das
portas duplas, que anteriormente encontravam-se
fechadas. Atrás dela veio Sarah, por último surgiu
o pai de Beatrice.
— Pensei que já tivessem partido — Will
admitiu.
Genevieve buscou se restabelecer da melhor
maneira possível, ajeitando a postura e seu
chapéu, que possuía uma cobertura rendada que
alcançava a altura de seu queixo.
— Estávamos aproveitando a paz na capela
para comentarmos sobre os infortúnios de
Benjamin. — Sarah alisou a saia do vestido. — É
uma pena, era um excelente funcionário.
— Oh, sentirei falta de Benjamin —
lamentou Beatrice.
— Todos sentiremos — Ethan devolveu.
Genevieve não deixou de notar o camafeu
que repousava no pescoço de Beatrice, aquele que
trazia a gravura de uma serpente. Havia
definitivamente algo de errado com o objeto, e
com as pessoas que tinham acabado de deixar o
interior da capela.
— Com licença. — Will despertou a
atenção de todos.
Passando por Ethan e se desvencilhando dos
Lancaster, alcançou a porta da capela, onde
endireitou um crucifixo que estava virado ao
contrário.
— Isso estava me incomodando —
justificou o cavalheiro.
— Bem, vocês sabem o que dizem. Onde há
Deus, há também um cerco de demônios — Harold
Lancaster ditou, em tom de gracejo.
O estômago de Genevieve deu uma pirueta,
em sua mente, a dama realizou uma prece, pedindo
por proteção.
— Dispenso tais comentários, este lugar já é
desagradável o suficiente. — Will lançou um olhar
repreensivo para Harold.
— Tem razão, Will, por isso é melhor
voltarmos para Violet Valley, sim? — O
administrador tocou no ombro do amigo.
— Certamente.
Realizaram despedidas silenciosas e
corteses com gestos contidos, apressados em
deixarem o cemitério para trás.
O caminho de volta, dentro da carruagem,
foi igualmente silencioso, era de se esperar, pois
nenhum deles dispunha de ânimo para conversas.
Vez ou outra Genevieve capturava um olhar de
Will disparando entre ela e Ethan, o que a deixava
apreensiva.
Quando chegaram, Genevieve foi direto
para seu quarto, se banhar e trocar de roupas, e
Ethan tinha a intenção de realizar o mesmo, quando
Will o impediu de partir para seus aposentos.
— Posso falar com você por um instante?
— Aconteceu alguma coisa?
— Eu suponho que sim.
Sem contestar, Ethan realizou a solicitação
de Will, recorrendo à saleta que costumavam
utilizar para esses propósitos. O corpo de Ethan
enrijeceu e se aqueceu, recordando-se do que
vivenciou com Genevieve noite passada, mas se
apressou em dissimular suas reações.
Will se remexeu, parecendo incomodado.
Qual fosse o assunto que ele desejava iniciar, o
desagradava um pouco.
— Antes de tudo, eu sei que não devem
nenhuma explicação a mim.
— Fale de uma vez — demandou Ethan.
— Percebi que houve uma alteração entre
você e Genevieve e reforço que não me devem
nenhuma explicação, porém eu não poderia deixar
de dizer que não acho correto o que está se
passando, não é correto com Genevieve,
principalmente.
— Tem razão, William, isso não diz respeito
a você — retrucou Ethan.
— Eu sabia que ia responder assim — Will
proferiu em voz baixa.
— Não planejamos o envolvimento, mas
está acontecendo e não tenho intenção de impedir.
— O que fazem é responsabilidade de
vocês, mas o conheço, Ethan, e não gostaria de ver
Genevieve de alguma forma magoada ao final
disso tudo. Devemos ter consciência e não nos
aproveitarmos dos sentimentos alheios.
Ethan parou, refletindo sobre as palavras
ditas por seu amigo, eram desagradáveis,
expressavam uma verdade que ele não estava
preparado para confrontar. Eram palavras
dolorosas, pois intimamente Ethan tinha que
concordar com elas.
— Está certo. Não estou agindo bem. —
Teve que forçar a admissão pelos lábios.
— Não queria deixá-los desconfortáveis,
mas gosto dos dois o suficiente para me culpar,
acaso não o alertasse. — Havia pesar na voz de
Will.
— É um bom amigo e compreendo o seu
lado, mas não sei o que fazer. Há tantos
acontecimentos, a maior parte deles ruins, uma
maré de má sorte, e a única coisa boa em meio a
tudo isso é Genevieve. Ela é divertida, inteligente,
feroz…
— Apaixonou-se por ela?
Apaixonou-se por ela?
Talvez, Ethan não sabia. Não era tão simples
assim, entre o preto e o branco havia uma
infinidade de tons de cinza.
— Sinto algo por ela sim, o bastante para
me afastar, se for o melhor para Genevieve.
— Não deve iniciar algo que não pretende
concluir, é somente isso o que digo.
— No final das contas, talvez seja ela a não
ter intenção de prosseguir, uma vez que já me
alertou para o seu desejo de partir.
— Permitirá que ela se vá?
— Se for a vontade dela.
— É claro, o que quero perguntar é se não
vai ao menos tentar fazê-la ficar?
— Minha maior vontade neste instante, é
que ela jamais se afaste.
— Isso já quer dizer algo, mas pense no que
eu lhe disse.
William se levantou, deixando Ethan sozinho
e cheio de dúvidas.
O entardecer já reivindicava os resquícios
de luz e passava a exibir as primeiras estrelas. A
temperatura era baixa, mas não chegava a ser
completamente desagradável, Genevieve
caminhava pelo jardim, enquanto contemplava o
espetáculo crepuscular.
Em um banco de ferro, o mesmo em que
certa vez Genevieve e Ethan conversaram, após a
morte de Ormond Gallagher, o administrador
repousava, solitário.
Após os eventos do dia, não tornaram a se
encontrar, na verdade, Genevieve chegou a pensar
que Ethan a estivesse evitando, mas também
compreendia que talvez ele precisasse de um
momento de solidão e que isso não tinha qualquer
relação com ela.
Entre deixá-lo com suas conjecturas e ir até
ele, Genevieve cedeu a vontade de lhe fazer
companhia.
Contornando o jardim, se aproximou do
administrador, ele ainda trajava o pesado casaco
negro que utilizou mais cedo, embora Genevieve
soubesse que ele preferisse tons castanhos para
suas vestimentas.
— Posso me sentar com você?
— Claro.
Assim Genevieve o fez, ajeitando as saias.
Ethan fitava adiante com o olhar vago, emaranhado
profundamente em seu luto pelo amigo perdido.
— Não consigo acreditar que Benjamin se
foi… — Ethan suspirou. — E ainda daquela
maneira. — Algumas notas amargas estavam
presentes em seu tom.
— Lamento por isso — devolveu em um
quase sussurro.
Perdido em seus próprios pensamentos,
Ethan brincava com as hastes de seus óculos,
Genevieve se atentou aos movimentos que ele
imperceptivelmente fazia com as mãos, parecia
que ele os utilizava para dar vazão a uma mente
sobrecarregada. A sua mandíbula se tensionava e
soltava, fenômeno ocasionado pelo ato de Ethan
comprimir seus dentes e novamente Genevieve
acreditava que ele não tinha consciência do que
fazia.
— No que está pensando? — ela ousou
perguntar.
— Posso lhe segredar algo? — As íris
verdes intensas do administrador se cravaram nas
dela.
E antes mesmo que ele lhe revelasse o
referido segredo, ela podia vê-lo ansioso para
sair, Ethan iria enlouquecer se insistisse em deixá-
lo enclausurado nas barras de ferro de sua
memória.
— Sim.
— Disseram que Benjamin morreu, pois seu
coração parou, mas eu juro ter visto uma serpente
saindo da boca dele quando o encontrei. A
capturei em um vidro, mas depois ela sumiu, não
penso que a morte dele tenha sido ao acaso, nem a
de Ormond.
Uma serpente, sempre uma serpente.
“Cuidado.”
Uma serpente saiu da boca do retrato pós-
morte do Sr. Whitewood. Genevieve teria
vislumbrado na moldura a forma como o marido
de Sarah morreu e não um mero aviso, como
pensava?
Então não era a viúva a arquitetar tudo isso,
a mulher realmente amava o marido a não ser que
seus sentimentos fossem fingidos. Genevieve não
sabia o que pensar, mas teriam logo que descobrir,
ou fugir, pois era evidente que Ethan era um alvo.
— Acredita em mim? — ele perguntou.
— Não tenho motivos para não acreditar e
isso me deixa mais preocupada.
Ethan não disse nada, tampouco Genevieve,
palavras pareciam insuficientes. Além disso, eles
eram pessoas de trocas de provocações, de frases
perspicazes que objetivavam espezinhar um ao
outro, mas não eram pessoas de abrirem seus
corações e os derramarem em confissões.
E não havia mais nada a ser dito, a
realidade era apenas uma, só lhes restavam as
atitudes, mas não essa noite.
Genevieve parou: talvez ela tomasse uma
atitude essa noite.
Não desejava que Ethan permanecesse
pensando nas serpentes, não queria que ele
continuasse sofrendo. Ela mesma não suportava
mais viver acorrentada nas especulações, nos
mistérios, nas mortes e nos receios.
Precisavam de uma distração.
Genevieve precisava sentir-se segura e
apenas um local ali na Inglaterra lhe propiciava
isso.
— Gostaria de ir a um lugar comigo?
Ethan a olhou de uma forma diferente,
deixando o luto de lado para dar espaço para a
curiosidade
— Posso saber para onde pretende me
levar?
— Não. Precisaremos dos cavalos.
— Certo, agora estou intrigado. — Riu, o
gesto ainda fugaz após ser suprimido pela carga de
tristeza.
— E não conte para ninguém.
— Como a senhorita ordenar — brincou.
Genevieve e Ethan tiveram que entrar e
colocar roupas mais adequadas para cavalgar, se
os funcionários pensaram algo ou eram contrários
à ideia de Ethan e Genevieve cavalgando durante à
noite, sem ao menos jantarem antes, não
externalizaram.
Não encontraram com Will durante essa
empreitada, tampouco o avisaram do que estavam
prestes a fazer; Genevieve tinha certeza de que o
cavalheiro os questionaria depois sobre o passeio.
Tomaram o rumo dos estábulos, e Ethan a
espreitava com ares de divertimento ao
caminharem apressadamente. Ambos traziam
esboços de sorrisos no canto dos lábios, havia um
tipo de palpitação calorosa dentro de seus peitos,
característica da infância, quando se faz algo às
escondidas.
O proibido e seu fascínio.
Genevieve se atraía e muito por semelhantes
segredos, era voltar a escapar à meia-noite de lua
cheia para ir às plantações, dançando na vastidão
noturna, sentindo-se vibrar, era como mergulhar no
mar e despertar plenamente seus dons.
— Você é uma dama surpreendente — Ethan
comentou.
— Por qual motivo diz isso?
— Jamais me contou que sabia cavalgar.
— O senhor nunca perguntou.
— E quais habilidades ainda guarda
somente para si?
Genevieve arquejou, em seguida tropeçou
em uma raiz e teve certeza de que iria de encontro
ao chão, mas Ethan a segurou antes que a queda se
concretizasse.
— Aparentemente tenho a habilidade de
perder o equilíbrio. — Riu um pouco.
— Acabou de me surpreender outra vez. —
A vasculhou, procurando qualquer ferimento.
— Estou bem.
Ela se endireitou e tornou a caminhar, grata
pela interrupção, uma vez que não queria pensar
sobre certas habilidades que ela guardava somente
para si. Ah, Ethan, ele a conhecia tão pouco e ao
mesmo tempo tão bem. Palavras transbordaram em
sua boca dentro daquela tênue batida de coração,
toda a história de Genevieve, contada
detalhadamente e expondo-a tão profundamente,
cada pedacinho dela, cada parcela oculta que não
tinha permissão de revelar.
Outro ressoar de seu coração e este trouxe
lamento, um dilúvio de segredos e solidão. Estava
cansada de caminhar sozinha, trilhando estradas
sinuosas e ásperas, de pedras pontiagudas que a
faziam sangrar.
— Cuidado com o degrau — Ethan avisou
quando estavam prestes a entrar.
— Obrigada.
Genevieve retrocedeu de seus pensamentos
e obrigou-se a apagar tais considerações,
reprimindo mais uma vez o grito que queria se
propagar pelo mundo, enterrando-o para baixo.
Ela foi diretamente até a baia do cavalo
negro que a levou até a praia outras vezes e o
animal a recebeu com afabilidade. Bufando quente
contra a palma que Genevieve pousou sobre seu
focinho.
— Boa escolha. Shadow é um animal ágil e
gracioso.
— Ele é lindo. — Escorregou a mão no pelo
acetinado.
Ethan lhe direcionou um sorriso e foi
escolher o próprio animal, um garanhão da cor
caramelo.
Selaram os cavalos escolhidos e montaram,
a faísca de animação, provocada pela emoção
contida no passeio secreto, retornou para
Genevieve. E quando os animais passaram a trotar,
avançando para os portões de Violet Valley, ela
deixou uma volumosa risada se espalhar.
Já havia cavalgado outras vezes desde que
chegou, mas essa era diferente, pois Genevieve
não estava preocupada, a intenção era
proporcionar exatamente o sentimento oposto,
queria deixar as preocupações para trás.
O vento e a velocidade afastavam seus
cabelos trançados do rosto e por breves instantes,
Genevieve sentiu como se Shadow fosse uma
extensão de si mesma, os músculos vigorosos
trabalhando para cortarem o mundo por meio dos
seus cascos, fazendo as paisagens passarem
aceleradas, em um borrão.
E Ethan estava ao lado dela, com um sorriso
semelhante, acompanhando-a.
Assim, correram pelas estradas, Genevieve
fechou os olhos e sentiu que poderia voar, sua
alma estava livre. Quando tornou a abri-los,
minutos depois, o mundo a abraçou, a noite a
recepcionou, como sua verdadeira casa, a única
que Genevieve poderia pertencer. Era um atípico
cobertor de veludo negro pontuado por diamantes,
diferente das outras noites, em que não se podia
visualizar qualquer coisa além de nuvens escuras.
Genevieve espreitou Ethan, e identificou um
elemento selvagem em seus contornos, uma
característica do administrador que em certos
momentos fazia-se menos perceptível, mas
nesse… nesse imperava, era a real natureza dele, a
dela. Ambos eram aqueles cavalos, domesticados
a maior parte do tempo, mas quando estavam
livres, exibiam toda a sua exuberância.
Conforme deixavam as estradas e
aproximavam-se da cidade, tiveram que diminuir o
ritmo e uma parte de Genevieve lamentou por isso.
Em um trotar moderado, cavalgaram pelas ruas
menos movimentadas, então Genevieve tomou a
dianteira, direcionando-os até a praia.
Não demoraram a chegar, e antes que
Shadow pisasse na areia, Genevieve solicitou
permissão silenciosamente para adentrar o espaço
sagrado. A primeira coisa que fez, foi remover as
botas, sentindo os grãos envolverem as solas dos
pés. Olhou para trás, procurando Ethan e ele
também se livrava dos calçados.
Despreocupadamente, o administrador a
alcançou e entrelaçou os dedos aos de Genevieve.
Juntos, acomodaram seus cavalos, antes de
passarem a caminhar pela areia, seguindo o limite
do mar, de modo que o quebrar das ondas não os
atingiam.
O rugir do mar reverberava dentro do peito
de Genevieve e o estourar das ondas compunha a
imponente sinfonia.
— Faz muito tempo que não coloco os pés
em qualquer praia — iniciou Ethan, o polegar dele
acariciava distraidamente o centro macio da palma
de Genevieve.
— Deveria vir mais vezes, se eu morasse
aqui o faria sempre que possível.
— Está decidido, teremos uma casa na
praia.
— Não é tão simples. — Genevieve riu,
leve.
— Nunca parece simples para nós.
Nós.
A promessa contida na pequena palavra a
alarmava e a atraía, seria maravilhoso fingir que
tal futuro era plausível de tornar-se real. Que ela e
Ethan poderiam estar tão unidos e presentes um
para o outro que deixariam de ser “eu", para serem
“nós”.
— Mas você tem razão — Ethan tornou a
falar perante o silêncio dela. — Já me sinto menos
sobrecarregado.
— O mar tem esse poder, não é mesmo?
— Sim, e sempre vou até o porto, mas não é
a mesma sensação.
— Portos são sujos e barulhentos. —
Genevieve contraiu as sobrancelhas.
Ethan riu, foi sincero, mas não durou,
apagando-se lentamente como as últimas brasas de
uma fogueira, ele suspirou.
— Quem dera se a vida fosse tão simples
quanto caminhar pela praia.
— Mas pode ser, ao menos sempre que vier
até aqui.
Ethan puxou as mãos unidas, levando-as aos
lábios e beijou o dorso da dela. Quando voltou a
abaixá-las, havia rigidez nas linhas de seus olhos.
Genevieve esteve prestes a perguntar o que
de fato o incomodava tanto, por qual motivo estava
tão reflexivo, mas deixou as palavras morrerem
em sua garganta, na hora correta ele lhe diria.
Abruptamente, uma onda gélida quebrou aos
seus pés, de tão distraídos, não notaram que a
maré havia aumentado.
— Ah! — chiou Ethan.
Genevieve não dissimulou a risada,
recebendo uma expressão enfurecida do
administrador.
Com um atrevimento renovado, Genevieve
deslizou o casaco dela pelos ombros e os jogou na
areia seca, removeu também as saias pesadas de
montaria e o restante de seu traje.
Ethan a admirou e Genevieve identificou sua
pele aquecendo sob a minuciosa expedição, mas
não teve impulso de cobrir, e nenhum traço de
recato sobre sua nudez. Talvez o tivesse em outros
locais, mas não ali na praia, onde seu corpo
clamava para entrar em comunhão com tudo que o
cercava.
Ethan fez menção de se aproximar e com um
sorriso provocativo, Genevieve entrou no mar, a
temperatura não a incomodava e logo ela tratou de
se aprofundar, sentindo as ondas ricochetearem em
suas panturrilhas, depois nas coxas e na cintura.
— Não vai vir? — Virou em direção à praia
para perguntar.
— Está muito frio, irá se resfriar — ele
gritou de volta.
— E então terá que zelar pela minha saúde e
trazer-me chá quente.
Genevieve voltou a direcionar-se para o
mar, dando mais alguns passos, a altura da água
roçava abaixo de seu busto, quando finalmente
estagnou, observando a lua se derramando
preciosa sobre o oceano, sobre Genevieve. Onde a
luz a tocava, sentia um confortável formigar,
fechou os olhos em apreciação, ouvindo a melodia
oculta que sempre a chamava.
Ela sentiu imediatamente quando Ethan
estava próximo a si, a energia dele já era tão
familiar que conseguia identificá-la dentro da
compressão do ar entre eles. Os dentes de Ethan
batiam audivelmente e seu corpo estava tenso pelo
frio, Genevieve teve pena, mas não o suficiente
para retornar à areia.
Permitiu-se analisá-lo tão detalhadamente
quanto ele o fez, a sua cintura estava coberta pela
escuridão do mar, mas seu torso estava
completamente visível. Suaves fios castanhos o
salpicavam e desciam mais espessos em um
perigoso caminho que apontava para baixo. Os
seus ombros eram tão largos quanto Genevieve
imaginava, mas eram mais impressionantes na
realidade do que nas suposições de sua mente.
Ousou estender a mão e pousá-la sobre o
coração de Ethan, a chama da conexão se
inflamou, indomável, ou melhor, a colisão. O mar
potencializava tudo, inclusive as linhas que
conectavam Genevieve e Ethan, que eles tanto
quiseram renegar, encobrir e desgastar, tornando-o
um frágil fio de seda, quando, na verdade, era
forjado em estrelas e lua, unindo-os pelo destino e
os mistérios do mundo.
Ethan a trouxe para si, tocando os braços de
Genevieve e descendo as mãos suavemente pela
extensão deles, até que ambas as suas mãos
estivessem entrelaçadas.
— Pergunto-me como você surgiu em minha
vida. — O administrador soltou uma das mãos e a
repousou sobre a bochecha de Genevieve e ela
fechou os olhos, absorvendo a sensação.
Ah, o mar, exercendo seu efeito em
Genevieve, fazendo cada toque de Ethan se
propagar em ondulações mornas em sua pele,
maiores e mais intensas do que qualquer outra vez
que ele a tocou, ou qualquer outra pessoa que ela
já tivesse tocado.
— O destino possui seus segredos —
respondeu.
Os olhos dele estavam tão vívidos, tão
honestos, porque a praia não permitia
dissimulações. E Genevieve encontrou igual
verdade de sentimentos dentro dela, que o véu do
medo não permitiu que ela enxergasse antes.
Fechando os olhos lentamente, o cavalheiro
se aproximou, Genevieve demorou ainda mais
para fechar os dela, para que pudesse vê-lo até o
último segundo que precedia o beijo. O tempo
passou vagarosamente e fascinante como mel
escorrendo, guardando uma promessa tão doce
quanto a existente nos lábios dele.
Suas bocas se encontraram, Genevieve
ofegou, a chama rubra que se inflamou em seu
âmago foi de encontro com a languidez dourada de
mel, encobrindo-a com o furor flamejante de seus
desejos.
Puxou-o para mais perto, sentiu a pele de
Ethan se arrepiar quando ela percorreu seu braço
até a nuca, embrenhando-se aos cabelos castanhos,
enquanto afundava um pouco mais no gosto dele,
na quentura úmida e acolhedora de sua boca, de
sua língua, que seduzia tão habilmente a dela.
Poderia parecer contraditório, mas havia
tanta inocência ali, na descoberta de ambos, pois
estavam se conhecendo pela primeira vez sem as
diversas camadas que os cobriam, orgulho,
temores, apreensões que obstruíam a capacidade
de se verem plenamente. E o sentimento vibrava,
real e intenso, impossível de ser contestado após
essa experiência singular de despertar pleno de
todos os sentidos.
As estrelas acima deles eram o mais belo
infinito, o mar era a perfeição. Genevieve e Ethan
estavam no limiar, no ponto de convergência, o
beijo entre céu e oceano, uma canção antiga e
sábia que o envolviam. Juntos caíram, porém nas
estrelas, um movimento abrupto de ar. Respiraram
a respiração um do outro, em um espaço onde a
razão era subvertida, não havia gravidade, era
apenas cair.
Pois o amor possuía sua própria lógica.
“As pessoas somente vão desvendar a
verdade do mundo quando aprenderem que devem
viver e não explicar.”
O caminho da magia era o caminho do
sentir.
Genevieve evitou sentir por tanto tempo,
protegendo-se de qualquer contato.
Mas não tinha mais medo.
E estava vivenciando o extremo oposto,
estava sentindo tudo. O sabor de Ethan, o aroma
dele mesclado à maresia, o toque suave de sua
mão, as ondas fustigando seus corpos e a visão das
pequenas pintinhas espalhadas pelo rosto de Ethan,
feito constelações. Afastou-se somente para beijar
cada uma delas.
Então ela teve que jogar a cabeça para trás,
enquanto Ethan aproveitava o momento para
arrastar os lábios pelo seu pescoço. As íris dela
refletiram o luar.
— Deixe-me sentir… — ela sussurrou, as
palavras foram engolidas pela fúria do mar. —
Deixe-me sentir, deixe-me sentir — clamou,
vibrou, feito uma prece.
E ela o sentiu, toda a extensão do corpo de
Ethan colado ao dela, com uma fina camada de
água entre eles que só fazia tornar o contato mais
sensível.
As pontas suaves dos cabelos dele roçaram
o ombro de Genevieve antes que os lábios o
fizessem, de modo que quando finalmente a carícia
ocorreu, causou uma comoção.
Desvendaram a topografia um do outro
através de rastros de beijos e os dedos,
contornando cada marcação de músculos, elevação
de ossos e curvas macias, em uma preciosa
expedição.
A devoção inicial, quase respeitosa em
excesso, recuava gradativamente, conforme suas
próprias necessidades os incendiavam, as mãos e
bocas tornaram-se mais audaciosas, mais firmes e
precisas, para segurarem possessivamente nos
dedos o que não podiam deixar se perder, o que
não podiam deixar escapar, e para terem certeza
de que não se tratava de um sonho que se
dissiparia em um movimento de abrir e fechar de
olhos, e sim de algo material, tão real quanto às
palpitações frenéticas de seus corações.
Suas peles estavam em atrito em um abraço
que alinhava seus corpos como as constelações no
céu, estrelas em um poderoso espetáculo,
conectando-se em linhas de eternidade.
Instintivamente, suas bocas se procuraram outra
vez, porque nunca seria o suficiente. O beijo foi
mais voraz, faminto, pedia muito mais do que
doava, egoísta, tragando os dois na fogueira
vermelha da volúpia.
Havia ritmo, se movimentaram, procurando
alívio, pois ansiavam por algo, ansiavam
concretizar a completa e sagrada conjunção de
seus corpos e seus espíritos.
Ethan tomou a iniciativa, puxou a mão de
Genevieve, indicando a direção da praia.
Conforme deixavam o mar para trás, os dentes
dele passaram a bater outra vez e Ethan teve que
utilizar a mão livre para se cobrir, protegendo-se
do frio. Genevieve, por outro lado, tinha a pele
vestida pela lua e não sofria as implicações físicas
das baixas temperaturas.
Buscando ajudá-lo de alguma forma, correu
até o casaco de Ethan e o entregou a ele. O
cavalheiro somente sorriu e enlaçou a cintura de
Genevieve, puxando-a para um beijo que
reaqueceu seus corpos.
O casaco foi estendido sobre a areia seca e
os dois se deitaram sobre a peça, suas pernas se
emaranharam e os dedos de Ethan se perderam nos
cachos negros, da trança desfeita de Genevieve,
enroscados lá como se esse fosse seu verdadeiro
lar.
Genevieve o acomodou entre suas pernas e
o gesto lhe pareceu tão natural, como se estivesse
gravado em parte oculta de sua memória.
— Genevieve… — Ethan começou, em tom
de advertência
— Shhhh. Aqui não. — Pousou o indicador
suavemente sobre os lábios dele e o traçou,
recebendo um curto beijo na ponta do dedo. —
Aqui devemos sentir e não explicar.
Ethan ainda estava parado, tenso sobre ela,
Genevieve podia identificar sua resistência. Podia
ler nos olhos dele a intensa batalha ocorrendo,
entre o dever e a vontade; o dever estava quase
vencendo, pois o administrador desviou a visão
para o mar, sem conseguir encará-la.
— Olhe para mim. — Genevieve segurou
seu queixo. — Apenas olhe para mim.
O semblante severo de Ethan desmoronou,
trazendo de volta a atmosfera inebriada.
Genevieve o puxou para um beijo, sentindo o gosto
salgado do mar em suas bocas.
A melodia produzida pelas ondas e pelo
vento embalou os movimentos sinuosos da dança
instintiva e selvagem, mítica e natural que
governava as eras.
E quando acreditavam que não podiam mais
suportar, Ethan gentilmente a penetrou, seus olhos
eram presos um no outro. Genevieve arfou, algo
dentro dela arrebentava, havia dor, mas era
maravilhoso sentir.
Ela percebeu a alteração no ar que os
circundava, quando a energia de Ethan passou a se
infiltrar na dela, singrando lentamente, sons, cores,
sabores e cheiros que se mesclavam e davam vida
a algo novo.
— Tudo bem? — ele questionou, em iguais
medidas preocupado e à deriva.
— Sim. — Confirmou com um aceno.
Então ele passou a se mover, lânguido,
constante e paciente, a dor ainda era presente, mas
se diluía perante a todas as outras sensações que
Genevieve experimentava.
Foi quando ela se tornou ciente do repuxar
que a motivava a retribuir os movimentos,
empurrando o quadril dele com o dela, buscando
mais, sempre mais. Embora Ethan não se
considerasse hábil com os sonetos, Genevieve leu
na cadência dele uma poesia.
Sons extasiados escaparam pelos lábios
dela e em seguida pelos dele, o tom rouco da voz,
os gemidos masculinos tão próximos de seu
ouvido, ecoavam dentro de Genevieve,
empurrando-a ainda mais para o limiar.
Tudo havia sido esquecido, os desejos
imperavam soberanos, a cautela fora transfigurada
em necessidade. O que iniciou lento, evoluiu para
pressa, força, que buscava como prêmio a
promessa de saciedade.
Quando o ápice veio, o oceano bradou mais
alto, as ondas quebraram com mais fúria e o brilho
da lua cegou os olhos de Genevieve, consumando
de modo sublime uma experiência impetuosa que
ela jamais se esqueceria.
Genevieve inspirou profundamente e sentiu
o perfume de Ethan, esse foi o primeiro contato
que teve com a realidade ao despertar. Seus olhos
pesados insistiam em permanecerem bem
fechados, enquanto sua mente se acendia
lentamente, ainda confusa por não estar totalmente
alerta, imersa na languidez do sono.
Desvencilhou-se preguiçosa do torpor que
envolvia seus músculos, inspirou mais uma vez,
sua bochecha repousava de encontro a uma
superfície firme e cálida, tão quente. Genevieve
entreabriu os olhos, visualizando o torso de Ethan,
coberto por uma fina camisa.
Em uma sucessão acelerada, os
acontecimentos da noite passada apareceram todos
de uma única vez.
A praia.
E depois, os dois cavalgaram até o
apartamento de Ethan, ele encheu a banheira para
ela e emprestou uma camisa para Genevieve, a
peça que ela estava vestida nesse instante, com os
braços dele firmemente fechados em torno de sua
cintura.
Ethan tomou o próprio banho, livrando-se
do sal marinho e da areia, se vestindo
confortavelmente e então se espremeram na
estreita cama de solteiro, beijaram-se por um
tempo e tiveram o prazer de deslizarem as mãos
pelas peles um do outro, que ambos desejavam
apreciar um pouco mais.
Quando Genevieve o puxou para cima de si,
Ethan recuou, alegando que ela deveria se
recuperar um pouco antes que tentassem reviver os
feitos da praia. Genevieve concordou, mas
precisava de mais, do calor e do êxtase
embriagante.
Ah, era maravilhoso estar ali, mas com o
amanhecer, ressurgiam as suas realidades, que
durante aquela noite, conseguiram ignorar, mas que
já os reivindicavam outra vez.
Pareceu tão injusto que tivessem que
retornar. A noite passada provou para Genevieve
que a vida poderia ser maravilhosa se ela
permitisse ser, mas não permitiria e por quê? Não
conseguia se recordar, não quando sentia o corpo
de Ethan acomodado tão bem junto ao dela,
quando sua bochecha acompanhava o peito dele
subir e descer no ritmo de sua respiração tranquila
e quando o cheiro dele impregnava cada parcela
daquela cama.
Genevieve comprimiu as pálpebras,
recusando-se a despertar, fingindo por um mísero
instante que podia ficar ali na eternidade e que
todos os dias seriam assim. Talvez pudessem…
Uma tempestade dava os primeiros indícios
de devastação dentro do peito dela. Genevieve
queria rir e chorar, sorrir, pois, o que
experimentava era maravilhoso e desejou chorar
porque o que tinha a deixar para trás passou a
possuir inestimável valor.
Sem promessas.
Sem juras de amor.
Sem futuro.
Era o que ela havia afirmado a si mesma
antes de envolver-se mais profundamente com
Ethan, e não foi a praia que destruiu a sua
convicção sobre as afirmativas, não, foi o depois.
Foi o apartamento, o cuidado, a cumplicidade. Foi
ouvir o som dos risos baixos dos dois
entrelaçados, flutuando melódicos sobre a cama
estreita, foi adormecer nos braços dele e, pela
primeira vez há semanas, Genevieve não teve
medo de dormir, não temeu ter pesadelos ou a
visita do Devorador de Sonhos, porque quando
estavam juntos o além esmaecia, impotente, sem
forças suficientes para tocá-los.
Delicioso sonho, tentadora promessa.
Mas Genevieve nem sabia como ele se
sentia em relação a ela, bem, Ethan parecia gostar
dela, e sim, ele se preocupava com o seu bem-
estar, mas o que isso significava? Como poderia
pedir mais quando o administrador se esforçou
tanto para fugir de um compromisso?
No final, Ethan e Genevieve eram
exatamente o que eram, duas almas perdidas que
se encontraram, se reconheceram e compartilharam
a parcela uma da outra, mas para isso não havia
uma denominação correta ou uma condição que
pudessem se acomodar, porque Genevieve e Ethan
eram sentir e não explicar.
Não havia explicação e quando Genevieve
tentava explicar, tudo ruía, era levado pelo
vendaval perpetuamente existente no cerne da
dama.
Ethan tomou uma respiração mais longa e se
moveu.
Não, ainda não. Só mais um minuto, ela
queria apenas mais um minuto.
As mãos firmes de Ethan foram até o quadril
de Genevieve e ele a puxou para si, provocando
um gemido nos dois; o de Ethan rouco e o dela
quase um sussurro. O nariz dele desceu pela
bochecha de Genevieve e ele depositou um suave
beijo no pescoço da dama.
— Não estou sonhando, não é mesmo? —
Ethan perguntou com a voz grossa embargada no
sono.
— Não está.
— Ótimo. — Estalou um beijo na bochecha
de Genevieve.
A perna dela estava sobre a dele, e a dama
subiu a mão pelo peito de Ethan, brincando com a
abertura de sua camisa. Aconchegou-se no ombro
dele, sentindo os cabelos castanhos contra o seu
rosto.
— Podemos ficar aqui mais um pouco? —
pediu Genevieve em um fio de voz.
— O tempo que desejar, também não tenho
vontade de partir.
— Quando sairmos daqui, passarmos pela
porta e deixarmos o apartamento para trás, tudo
será diferente — refletiu.
— Pode ser como nós quisermos que seja.
Genevieve não respondeu. Era cedo demais
para tais conversas de teor determinante.
Ethan tornou a abraçá-la, comprimindo-a
contra si, havia urgência, necessidade, os corpos
já se conheciam e ansiavam estarem unidos outra
vez, o fenômeno era equivalente a um vício.
Permaneceram nesse casulo até que as
necessidades de ambos fossem urgentes demais
para que continuassem na cama, mas deixá-la foi
um suplício, Ethan foi o primeiro a se afastar,
colocando-se de pé e vestindo as peças de roupas
faltantes.
Em dado momento, ele parou com o casaco
em mãos, tinha um sorriso irrefreável ao olhar
para Genevieve.
— Está linda.
Ah, o cabelo dela deveria estar uma
confusão e a única roupa que vestia era uma
camisa de Ethan, Genevieve estava uma bagunça.
— Vou comprar algo para o desjejum, volto
em um minuto, não precisa se levantar — informou
ele.
O estômago dela estava mesmo vazio, não
chegaram a jantar e tiveram tantas atividades
distrativas que ela sequer chegou a pensar em
comida ao longo da noite.
— Algum pedido especial? — Ethan
retomou.
— Surpreenda-me.
Ele devolveu a fala com um sorriso e se
aproximou da cama para depositar um casto beijo
nos lábios de Genevieve, então saiu, fechando a
porta. Ethan permaneceu no apartamento um pouco
mais, fazendo qualquer coisa e depois Genevieve
ouviu a porta que dava para as escadas
compartilhadas entre os residentes da construção
se abrir e fechar.
Ela suspirou e jogou as pernas para fora do
colchão, seus olhos vasculharam o quarto e não
havia muito a se considerar sobre ele, era
pequeno, limpo, traduzia um tipo de praticidade
tão característica de Ethan e podia-se dizer que a
agradava, pois passou a admirar as mínimas
peculiaridades que compunham a personalidade do
administrador.
Oh, Deus.
Balançou a cabeça, para espantar o rumo
dos pensamentos e voltou a observar os móveis
simples, mas bem-conservados, do ambiente.
Sobre uma cômoda robusta de largas gavetas,
havia alguns livros e Genevieve os pegou e
folheou, em sua maioria eram títulos matemáticos e
contábeis, mas havia um exemplar de “Paraíso
Perdido", este estava surrado e quando se virava
as páginas, podia-se notar alguns trechos
destacados e algumas anotações a carvão na
margem.
Ela jamais macularia algum livro assim, mas
gostou de saber que Ethan o fazia, imprimindo
pensamentos em formato de palavras. A caligrafia
era frenética, sobreposta, quase ilegível e
novamente ela identificava familiaridade ali, como
se a característica só poderia pertencer a Ethan.
Assim como parte dela sempre estaria
destinada a ele.

Ele a queria.
Estava tão rígido que doía e por isso saiu,
necessitando de ar frio para aplacar o perigoso
incêndio que se alastrava em suas veias, porém
queria ficar, queria prová-la outra vez, de novo e
de novo, de diversas maneiras e em superfícies
variadas. Na cama, sobre o tapete, no sofá, na
banheira…
Desde que Genevieve colocou o pé em seu
apartamento, a mente de Ethan imaginou uma
centena de cenários aos quais poderiam utilizar
para afogarem-se em perdição. E aquela camisa
que ela usava? Era translúcida, forjando um
inquietante jogo de tons róseos mais escuros onde
encontravam-se os mamilos e a sombra de um
pequeno triângulo escuro entre as penas. Era
enlouquecedor.
Embora seus desejos clamassem por
saciedade, sua mente refreava o fluxo acelerado
que o consumia, lançando lucidez em meio à
irracionalidade. Se fosse outra, talvez ele não se
importasse, mas era Genevieve.
A pequena e delicada Genevieve, misteriosa
e de humor funesto. A dama que ele quis proteger,
quis providenciar um lar e que se tornou tão
importante ao ponto de Ethan não visualizar mais
sua vida sem ela.
A paciência seria sua aliada, além disso,
gostaria de recomeçar corretamente com
Genevieve e isso ocorreria assim que declinasse
formalmente o seu emprego e a propriedade, então
estaria livre para…
Deus…
Livre para amá-la.

Ethan organizou os pães doces, os biscoitos


e demais itens comprados, em uma bandeja há
muito não utilizada e a carregou para o quarto.
Quando chegou, se surpreendeu com Genevieve
completamente vestida e com a cama feita.
O administrador piscou, assimilando o
ambiente e a figura de Genevieve perfeitamente
composta, sentada rigidamente sobre a cama, com
os pés cruzados em cima do tapete. O encanto da
noite parecia ter se dissipado assim que os lençóis
bagunçados, guardando o cheiro deles, foram
esticados sobre o colchão.
— Vejo que comprou tudo o que viu pela
frente — gracejou Genevieve, espiando sobre a
bandeja.
— Pediu para surpreendê-la. — Se
aproximou, depositando a bandeja no colchão,
entre eles e ocupando a extremidade oposta da
cama, a cabeceira, enquanto Genevieve se
mantinha sentada aos pés.
— E conseguiu — o congratulou.
— Ficarei lhe devendo chá.
— Pois não tem xícaras, eu me recordo.
— Nem xícaras e nem bule — admitiu.
— Como consegue morar sozinho aqui? —
Ela franziu o cenho.
— Eu me acostumei. — Coçou a nunca, um
tanto sem jeito. — Agora coma. — Indicou a
bandeja.
— Acompanha-me? — Elevou aqueles
olhos irresistíveis a ele.
— É claro — afirmou ao buscar um dos
bolinhos.
Comeram em um silêncio delicado, havia
uma tensão palpável, a mudança no ar que
precedia o retorno para Violet Valley e tudo o mais
que teriam que enfrentar, respostas que nenhum dos
dois estavam dispostos a oferecer, pois não
sabiam o que dizer.
Tinham vontade de estarem juntos e
estiveram, isso deveria bastar, mas não bastava na
sociedade em que viviam, muito menos quando um
futuro casamento entre eles se aproximava,
complicando ainda mais pelo fato de estarem
realmente envolvidos um com o outro, o
compromisso não era mais tão vazio e destituído
de afetos.
Genevieve espreitava Ethan por baixo dos
cílios negros e curvos, querendo questionar se ele
ainda pretendia se casar com ela, se ele ainda
desejava seguir com o objetivo de tornar-se
herdeiro de Whitewood Holt. Mas tinha medo,
pois a pergunta dela poderia iniciar outras dezenas
dele, uma avalanche prestes a carregar toda a
relação que construíram, tijolo sobre tijolo,
transformando esforços em escombros.
Mais cedo do que imaginaram, estavam
descendo as escadas da construção, cada qual em
silêncio, imersos profundamente em suas
considerações. Até que Ethan a impediu de
atravessar a porta que os levariam diretamente
para a rua. Envolveu o pulso de Genevieve,
puxando-a para si, amparou-a com o próprio corpo
e vislumbrou um olhar cinzento confuso antes de
tomar-lhe os lábios.
Foi um beijo de começos, um beijo de
adeus.
Uma jura que não poderia se concretizar, a
página solta de um livro, levada pelo vento. A
esperança no incerto, um mergulho no vazio. Tudo
ou nada. Um estalo, um momento que queimava e
deixava de existir no silêncio entre uma respiração
e outra. Era o som da trovoada antes que o raio
atingisse o solo; engolidos na luz produzida pelo
relâmpago, se separaram.
A mão dela deslizou pela dele e Ethan sentiu
que era uma despedida, era um daqueles instantes
que alteravam toda uma vida e uma percepção,
uma fagulha de lucidez que mostrava o que antes
não se podia enxergar ou compreender.
A sensação fez o seu mundo oscilar em
brusco desequilíbrio, os olhos dele entristeceram
porque não queria que ela se fosse, não queria
atravessar aquela porta. Ofegou, não podia perdê-
la.
— Genevieve — chamou, urgente.
— O quê?
Mas qual resposta poderia dar?
Fique comigo.
More aqui.
Vamos recomeçar.
— Eu gostaria de conversar sobre… —
mordeu o lábio —... algo mudou entre nós.
— Por que não falamos sobre isso em seu
quarto? — Havia leve repreensão no tom dela.
— Pois me dei conta agora de que o que
temos é além de qualquer coisa que eu poderia
imaginar, poderia sentir. — Não tinha certeza se
havia sido claro, mas somente dizia a verdade.
— Conhece-me tão pouco, Ethan. — O
semblante dela se fechou.
— É o suficiente para mim.
— Não, não é. — Desviou os olhos.
— Sei que há mágoas em seu coração, mas
permita-se acreditar nas pessoas outra vez,
permita-se ser liberta de seu autoexílio.
— Ethan… — advertiu.
— Eu e Will somos seus amigos, eu mais do
que isso, ouso dizer… — Riu breve. — Por que
não permanece entre nós?
— E quando a família de William retornar?
— questionou severamente. — Ou quando a Sra.
Whitewood perguntar à Sra. Carter sobre sua
sobrinha americana? Mentiras se acumularam entre
mim e qualquer futuro que eu poderia ter aqui em
Liverpool.
— Podemos tentar.
Genevieve piscou lentamente, sua cabeça
meneou em negação.
— O que quer dizer com essas ideias,
Ethan?
— Quero que esteja aberta a possibilidades.
— Quais exatamente?
— A de se apaixonar por mim, talvez?
Ela se retraiu e deu um curto passo para
trás.
— Seria tão ruim? — questionou, um tanto
ofendido.
— Em nossa situação atual, sim.
— Sairemos dela.
— Pois mantenha-se concentrado nisso.
Ethan inspirou profundamente, controlando-
se para não abrir ainda mais seu peito e terminar
com um coração arrancado e sangrando naquele
chão desgastado.
— Vamos — Genevieve chamou, antes de
atravessar a porta sem olhar para trás.
— Onde estavam? — William sequer
titubeou ao perguntar.
O casal se entreolhou, sem respostas, nem
desculpas.
— Fomos cavalgar… — iniciou Ethan, mas
não concluiu a frase.
— E? — demandou Will.
— Está constrangendo Genevieve.
— Deus, eu sabia. — Will comprimiu as
têmporas com uma das mãos ao murmurar. —
Genevieve, chegou uma caixa com seu vestido de
noiva esta manhã, enquanto esteve ausente. — O
tom dele ficou mais ameno ao se direcionar a ela.
— Mas eu não o havia encomendado ainda.
— Franziu as sobrancelhas, expressando confusão.
— O rapaz que o entregou foi enfático,
dizendo que era o vestido de noiva da senhorita
Genevieve Johnson.
— É melhor eu conferir agora mesmo. —
Ela estava até grata com a desculpa para se livrar
da situação embaraçosa entre os dois homens. —
Com licença.
Tomou o rumo de seu quarto, sem coragem
de olhar para Ethan, temendo enfrentar as
expectativas que ele passou a criar e que ela ainda
não sabia dizer se estava pronta para
corresponder. Entregou-se completamente a ele,
seu corpo, seus pensamentos e seu coração, mas
apenas no momento presente, não poderia
prometer a ele seu futuro.
Genevieve piscou algumas vezes para se
restabelecer e abriu a porta de seu quarto, sobre a
cama havia uma grande caixa. Dobrado em cima
da tampa, havia um bilhete preso ao laço.
Genevieve o capturou e se pôs a lê-lo.
“Querida Genevieve,
Como destinou a mim a ilustre tarefa de
cuidar de vosso casamento, decidi fazer-lhe essa
surpresa e presenteá-la com o mais belo vestido
de noiva, em gratidão por ter me possibilitado a
honra de organizar esse dia tão importante.
Com os meus sinceros afetos e votos de
felicidades,
Beatrice”
Genevieve puxou uma das pontas da fita,
desfazendo o laço, deixando a tampa da caixa e o
bilhete de lado.
Como Beatrice havia descoberto suas
medidas? Assim que a pergunta lhe veio, a
resposta também surgiu, lembrou-se de que
encomendou seu vestido para o baile junto com
ela.
Tocou o tecido branco e pesado e o ergueu,
estudando a peça, era bonita, simples com algumas
rendas e bordados, com decote amplo ombro a
ombro. Deslizou o vestido para fora da caixa e
escutou um barulho de algo lá dentro. Se
aproximou para ver e no fundo, jazia o camafeu de
Beatrice.
O camafeu com gravura de serpente.
— Não vai trabalhar hoje? — Will quis
saber.
Ainda estavam parados no mesmo lugar,
após Genevieve ter ido verificar o vestido. Ethan
supunha que o amigo teria vontade de lhe dizer
algo sem a presença da dama, e imaginava que a
pergunta despretensiosa seria apenas o começo da
conversa.
— Eu deveria ter ido, mas… — Não soube
como complementar a resposta.
— E agora o que pretende fazer?
— Talvez eu vá até Whitewood Holt esta
tarde.
— O que pretende fazer sobre Genevieve —
demandou.
Ethan enfiou as mãos nos bolsos enquanto
observava o melhor amigo, incapaz de mentir para
ele.
— Ela se infiltrou em meu coração.
— Estou surpreso por possuir um —
brincou. — Mas espero que não esteja somente se
divertindo com a moça, ambos sabemos que ela já
enfrentou dissabores demais — retomou em tom
grave.
— Sim, eu sei. Não é diversão, Will. —
Ethan abanou a cabeça. — Venha.
Aprofundou-se na residência enquanto Will
o seguia, foram para um cômodo mais reservado e
Ethan seguiu diretamente ao aparador que continha
uma garrafa de uísque. Serviu-se de uma dose e a
tragou depressa.
— Não é diversão, acredite.
— Eu acredito, e lhe digo que estou
aliviado, em partes.
— É mesmo? — Um sorriso de humor
duvidoso se formulou nos lábios de Ethan.
— Sim, eu gostaria que vocês dois fossem
felizes e acredito que possam fazer isso juntos. Se
casarão, tudo está resolvido.
— As coisas não funcionam assim.
— Como disse?
— Já pensou na possibilidade de Genevieve
não desejar casar-se comigo?
Will parou de se mover por um minuto, todo
seu corpo se engessou no lugar, ele sequer piscou.
— Acredita que ela iria embora após terem
se apaixonado?
— Não sei se consigo fazê-la ficar, não sei
se seria o suficiente para ela. — Tristeza crua e
genuína se abateu no semblante de Ethan, enquanto
o tom de sua voz caía.
— Se esforce, conquiste-a.
— É fácil falar…
— É fácil falar. — Will o imitou de um
modo pouco lisonjeiro. — Até agora todo o gesto
que realizou em relação a ela foi sem o mínimo de
romantismos, não me admira Genevieve não o
retribuir nos sentimentos.
— E o que eu podia fazer? — A voz de
Ethan se elevou. — Não era um cortejo.
— Agora é, então faça algo. — Deu de
ombros e também se aproximou do aparador,
apossando-se da garrafa e servindo-se em um dos
copos que repousavam sobre a bandeja de prata.
— Está sem prática, meu caro? Não sabe mais o
que agrada uma mulher? — provocou.
O sangue de Ethan inevitavelmente se
aqueceu, mesmo que ele não desejasse
transparecer a irritação a Will.
— Não é o tipo de conhecimento que se
pode esquecer, mas não desejo agradar qualquer
mulher, necessito do gesto correto, há muito em
jogo.
— O seu pobre coração recém-descoberto?
— Sim. — Comprimiu a mandíbula.
— Pois é ele que deve escutar, assim terá a
resposta para o que procura. Pense em Genevieve,
no que sente por ela e então pense em como
poderia expressar esse sentimento.
— Não creio que realmente está me dando
um bom conselho.
— Todos os conselhos que ofereço a você
são bons, mas lhe falta inteligência para absorvê-
los.
— Por Deus, homem, está impossível de se
estipular um diálogo tranquilo com você hoje.
— Estou me divertindo. — Sorveu o
conteúdo do copo.
— Posso ver… — A voz de Ethan se
extinguiu, conforme seus pensamentos se diluíam
dentro da confusão de sentimentos que o
fustigavam por dentro, era como se seu peito fosse
partido ao meio com um machado de lâmina
afiada, rompendo músculos, ossos, para expor seu
“pobre coração recém-descoberto”. — Não quero
conquistá-la — falou em um súbito estalo de
lucidez, e eles estavam muito frequentes. — Quero
que Genevieve livre, deseje ficar. — Mordeu o
lábio inferior.
— Talvez ela não saiba que realmente possa
ficar, talvez ela acredite que a única opção é
partir, mostre um novo caminho a ela. — Os traços
de zombaria de Will sumiram e só lhe restava
sinceridade, amizade e o desejo sincero de que
Ethan e Genevieve ficassem bem.
Um novo caminho.
Um novo caminho era tudo o que
precisavam.

Genevieve enfiou o vestido de qualquer


jeito dentro da caixa, quando se deu conta de que o
colar estava ali ao fundo, depois a chutou para
debaixo da cama. O que Beatrice estava querendo
dizer com aquilo?
Um breu cegava Genevieve e ela se sentiu
subitamente exausta de tudo aquilo, parecia que
quanto mais se aprofundava naquela trama, menos
respostas ela tinha e, céus, tanto tempo havia se
passado e ela não fez quase nenhuma descoberta
sobre as forças sombrias, além de suas suspeitas
sem confirmação, não conseguiu realizar sequer
um ato de ataque contra aqueles que lhe faziam
mal. Ela se deixou cair sentada sobre o colchão,
com as mãos largadas no colo, inútil.
O vestido fazia somente lembrá-la de que o
casamento estava tão próximo de acontecer, um
casamento que ela nem sabia dizer se seria
cancelado ou não, depois de tudo que ocorreu
entre ela e Ethan, depois que ele lhe afirmou que
não se importava mais com a herança Whitewood.
O que estavam fazendo?
Era um frenesi de ventos, tempestades e
violência que rodopiava em suas vidas, sem que
tivessem tempo hábil ou possibilidade de tentar
organizar. O vórtice caótico os devorava e os
venceu, pois vejam só, encontravam-se às
vésperas de um matrimônio que nem sabiam se
ainda estavam de acordo.
Dor pulsou nas têmporas de Genevieve e ela
massageou o local. Estava tão cansada, cansada de
tanto tentar, correndo atrás da própria cauda sem
chegar a lugar algum, perdida em um labirinto de
esquinas e paredes fechadas.
Removeu as roupas de montaria devagar,
sentindo seus músculos protestarem após utilizá-lo
de maneira nova na noite anterior. Suas saias
ficaram amontoadas no chão e Genevieve jogou as
demais peças sobre ela, substituindo-as por uma
camisola.
Arrastou-se sobre a cama, enfiando-se
debaixo dos cobertores e permitiu que a
abençoada inconsciência aquietasse sua mente
frenética por pelo menos uma hora ou duas.
Ao que parecia rápido demais, os sonoros e
persistentes toques na porta a retiraram da
profunda escuridão do sono.
— Genevieve? — Era a voz de Ethan.
— Oh…
Sua voz chiou, ela ainda não havia
despertado completamente e não sabia se deveria
mandá-lo entrar ou esperar.
— Entre — decidiu.
Se pedisse que ele esperasse, seria por
muito tempo, pois precisaria se vestir sozinha e
uma tarefa que levava alguns minutos, teria seu
tempo triplicado. Em questão de decoro e
aparências, algumas pessoas poderiam repudiar a
atitude de deixá-lo entrar, se estivessem presentes
para ver, mas Genevieve não se importou, ela já
não se importava mais com muita coisa.
Ele abriu a porta e hesitou quando seus
olhos pousaram nela, na parte superior de sua
camisola, visível, enquanto a inferior estava oculta
sob as cobertas.
— Dormiu esse tempo todo?
— Aparentemente sim. — Deu de ombros.
— Não sabia que ainda estava tão cansada.
— Eu tampouco. — Esticou os braços e
bocejou. — É um cansaço acumulado, suponho.
— Sinto-me igual — concordou Ethan, se
aproximando. — Na noite passada, tive o meu
sono mais tranquilo há dias.
— Eu também, mas vejo que não foi o
suficiente. — Genevieve abraçou os joelhos,
sentindo-se repentinamente tímida.
Ele estava ali, em seu quarto e ela estava
apenas de camisola, isso já ocorreu antes, quando
ela se assustou com o pássaro quebrando sua
janela, e na noite passada quase não usou roupas e
nem ele, no entanto, após tudo isso, ali estava a
timidez assomando-se sobre Genevieve. Talvez
porque ela houvesse acabado de acordar, e ele
estava tão imponente, perfeitamente vestido, em
um cômodo que se tornou o espaço pessoal dela,
tudo isso enquanto falavam sobre a noite anterior,
o faziam de modo implícito, mas as recordações
eram recentes demais, era impossível não pensar
nos abraços, nos beijos e no dormir entrelaçados.
— Gostaria de perguntar se me
acompanharia em uma caminhada — testou ele.
— Outra caminhada?
— Não caminhamos ontem — respondeu e
sua voz tremeu um pouco, mas só um pouco, quase
imperceptível. — Cavalgamos.
— Tem razão. — Suspirou. — Poderia me
dar um minuto?
— É claro.
Ele se afastou e fechou a porta, deixando
Genevieve sozinha para lutar com um vestido.
Algum tempo depois, ela saiu; pelo que
vislumbrou sobre o relógio de madeira que
pairava acima da sua cama, a tarde já se iniciara,
Genevieve perdeu o almoço, mas não sentia fome,
era sempre assim quando dormia durante o dia.
Ethan e Genevieve desceram as escadas, ele
estava quieto, com as mãos escondidas nos bolsos,
seus ombros largos eram voltados para baixo e
havia algo de diferente nele, como uma palavra
queimando na ponta da língua, prestes a sair,
implorando para ser solta e largada no mundo, e
Ethan, por outro lado, fazia o possível para mantê-
la oculta dentro da boca. As duas vontades
estavam bem ali, uma contra a outra, lâminas
cruzadas em feroz embate.
Genevieve também vivenciava seu próprio
embate, mas o dela era um poço oco de
desesperança. Linhas que culminavam em um
mesmo fim e ele não era feliz como nas fábulas
infantis que a sua mãe lhe contava antes de dormir.
Como poderia haver um final feliz para ela? Mas
em seu íntimo o desejou, fantasiou feito uma tola,
que talvez pudesse existir algum.
E nele, Ethan estaria lá.
E Will, Storm, Amelie, Burns…
Apagou as cenas belas e vazias de sua
mente, pois uma minúscula chave girou em uma
porta pequena e empoeirada, as dobradiças
rangeram pela ferrugem quando foi aberta, atrás
dela havia noite, luar, estrelas e mar. Era
Genevieve em sua plenitude, e era esse o
verdadeiro motivo que a impedia de ter o futuro
dos sonhos, porque jamais poderia estar com
Ethan se ele não a conhecesse como ela era.
Sem que ele soubesse que era uma bruxa.
Mas não suportaria ser desprezada outra
vez, temida, repudiada, arrastada, vendida, traída
por quem mais confiava, por sua família. Não
suportaria perder outro lar, uma cama quente e
amor. Não suportaria ver o olhar de aversão de
Ethan, o mesmo que viu em Vincent, isso a
destruiria e Genevieve não sabia dizer se
conseguiria recolher seus pedaços depois.
Então ela mesma arrancou as ilusões de si
antes que se perpetuassem e criassem raízes mais
profundas. O passado de Genevieve e a forma
como tudo ocorreu, Vincent… eram bordas de
ferimentos não cicatrizados que sempre
sangravam, lágrimas que deslizavam pelo caminho
de sal deixado por lágrimas derramadas
anteriormente.
Entretanto, a solidão e o segredo eram
fardos devastadores, roubavam um pouquinho mais
de Genevieve a cada instante e ameaçavam ir para
os ares quando Ethan estava por perto, quando a
tocava e sorria para ela e aí estava o conflito outra
vez.
Mas era um desejo do que nunca poderia ser
seu, como esticar a mão para o céu, fechá-la e
esperar encontrar um punhado de nuvens. Uma
vida ali significava isso, significava mentira, bela
e tentadora mentira, Genevieve não poderia mais
viver assim, escondendo seus dons.
Encaminharam-se para o jardim, a
velocidade de seus passos diminuiu e somente
quando se aproximaram do caramanchão, Ethan
iniciou algum diálogo.
— Fui até Whitewood Holt hoje.
— Verdade? Vejo que realmente dormi
bastante.
— Não me demorei lá, fui apenas para me
desculpar e solicitar minha dispensa.
Genevieve estagnou e levantou o queixo
para encarar Ethan, mergulhando profundamente
do verde de seus olhos, até sentir que seu fôlego
lutava contra a garganta, afogado no mar
esmeralda.
— Não abra mão do que ama por mim. —
Genevieve piscou. — Pois isso não mudará nada
entre nós. — Buscou ser sincera, por mais
doloroso que fosse, não desejava alimentar falsas
esperanças, já bastavam as dela.
— Eu o fiz por mim, Genevieve. E por você
também, admito.
— Por quê?
— O que disse é verdade, mentiras a
impedem de construir uma vida aqui, mas é
possível recomeçar, não pode tratar tudo como se
já estivesse perdido, porque não está.
Genevieve não disse nada, para ela certas
coisas não possuíam remediação e uma parcela
dela sempre estaria quebrada, a parcela
relacionada à confiança e isso já estava perdido.
— Sarah me dissuadiu a permanecer no
cargo, apesar de minha recusa, mas não venho
nutrindo qualquer ambição sobre ele, após tantas
perdas — revelou Ethan. — A viúva também
perdeu muito e por isso pediu que eu ficasse, o
farei em consideração a ela.
— Eu sinto muito, vi como as perdas o
mudaram.
— Você também me mudou.
— Ethan.
— Genevieve. — Nos olhos dele, era
possível notar a aflição que o incendiava.
A palavra queimando na ponta da língua
retornou, ainda não dita, mas ansiosa para sair e
bagunçar as vidas de Genevieve e Ethan, mais do
já estavam bagunçadas.
— Tome cuidado enquanto estiver lá. —
Genevieve suspirou. — Ainda há um perigo
rondando aquelas terras, eu sinto.
Embora acreditasse que estava correndo
riscos com o aviso, ela decidiu oferecê-lo, mesmo
assim. Se preocupava o suficiente com Ethan, para
manter a cautela acerca de seus dons de lado nessa
questão. E de que eles lhe serviriam se não
pudesse ao menos ofertar o conselho ao homem
para quem entregou seu coração?
— Logo não terei mais obrigações com
Whitewood Holt, assim espero.
— Tomara que isso seja o suficiente… —
ponderou em voz alta.
— Para quê?
Genevieve se sobressaltou, mas por fim
falou:
— Para que fique seguro.
Ethan tocou o cotovelo de Genevieve e
deslizou a mão até a palma da dama.
— Nada vai me acontecer.
— Muito já está lhe acontecendo.
O administrador impossivelmente sorriu.
— Sua preocupação é encantadora. — A
enlaçou pela cintura com a mão livre. — Devo
mostrar o quão grato estou a ela?
— Eu gostaria, mas não penso que este seja
o local adequado.
— Onde você quiser. — Já se inclinava
para dar uma delicada mordida no pescoço de
Genevieve e cobri-la com beijo.
— Se alguém nos vir… — Sua voz se
perdeu.
— Uhum… — Ethan continuou mesclando
beijos e mordidas.
Aqueles dentes, resvalando superficialmente
na pele sensível, não doía, mas era tão intenso.
Acordava seu corpo, que se recordava muito bem
das experiências novas e recentes, desejando que
fossem repetidas.
Mas a repetição era impossível, porque
cada sensação era como nova, explodindo e
fulgurando em luz incandescente, estrelas cadentes
de prazer. Obliterava Genevieve, tragava seus
pensamentos e receios.
As bocas deles se encontraram e Genevieve
aprendeu que duas metades formavam um inteiro,
porque quando estavam juntos criavam uma
distinta atmosfera de calor e encantamento, de
sonhos e desejos, que Genevieve não conseguia
conjurar quando estava sozinha.
Não foi cuidadosa no beijo, nem ele, não
poderiam, queriam tudo, o inchaço dos lábios, o
leve latejar e todas as marcas possíveis que
evidenciavam o beijo, provando que ele era real.
Provando que formaram um inteiro.
Quando se realiza a conjuração de um
guardião das trevas, há uma dívida de sangue. O
guardião é implacável, espalha doenças e miséria,
até que o seu alvo seja extirpado, porém mesmo as
piores das criaturas eram submetidas a regras e
possuíam seus limites, suas fraquezas.
Quando olhava nos olhos infernais da besta
fera, sentia o ódio latejando sob a própria pele,
explodindo em suas artérias. Sentia o peso da
coleira maldita que colocou no guardião e a
vontade dele de se libertar, era uma força
opressiva, esmagadora de órgãos, revirava o
estômago, prendia o coração em um abraço mortal
de serpente.
Estava ciente dessas sensações quando o
conjurou, mas esperava que valesse a pena,
esperava ter resultados e ver sua força esvaindo
lentamente enquanto era consumido pela perdição
a troco de nada, lhe enfurecia, ah, enfurecia o
guardião também.
Algo ou alguém o estava impedindo de
concluir sua persuasão no administrador de
Whitewood Holt, não desejava matá-lo, pois
precisava dele vivo para seus propósitos, mas a
essa altura não se importava mais com quem vivia
ou morria, desde que obtivesse de uma vez por
todas o almejado desfecho e seu almejado prêmio,
para que pudesse libertar aquela fera de sombras e
fogo, que só causava devastações.

Assim como disse que faria, Ethan continuou


auxiliando Sarah com a administração de
Whitewood Holt, a viúva estava soterrada de
pendências, após as mortes de seu empregado e de
seu sócio, Ethan acabou por tomar parte dessas
atribuições para si também, pondo-se a organizar,
da melhor maneira possível, os negócios de
Whitewood.
Entrar em seu gabinete outra vez foi terrível,
o cavalheiro não sabia que se sentia tão
sensibilizado até tocar a maçaneta do escritório e
identificar um calafrio descendo por sua espinha,
sob suas pálpebras, gravada por uma faca afiada,
havia a figura de Benjamin em sua cadeira.
Obrigou a mão a girar a maçaneta, mas lhe
faltava forças para concluir o gesto e abrir a porta.
Suor cobriu sua nuca e Ethan se impulsionou a
prosseguir, não poderia ceder às peças pregadas
por sua mente, não haveria nada lá, Ethan não
precisava se preocupar, mesmo assim, ele quase
desabou, aliviado, quando abriu a porta e viu a
cadeira vazia.
Instintivamente, pousou a mão sobre o peito,
seu coração estava acelerado, a pulsação
reverberava em seus ouvidos. O odor abafado de
mofo e algo mais espesso e sufocante, que ele não
conseguia identificar, o atingiu em cheio.
Era possível que desde o dia em que
perderam Benjamin bem ali, o cômodo ficara
fechado. Mas era notável que houve certa
arrumação e limpeza, as coisas estavam
estranhamente todas no lugar e a mesa que
costumava ser repleta de papéis, se mantinha com
a superfície vazia; o que ao invés de trazer paz,
inquietava Ethan ainda mais, como se o lugar em
que ele passou grande parte dos seus últimos dez
anos, não pertencesse mais a ele.
E não pertencia já há algumas semanas.
A sua primeira atitude foi avançar até as
janelas e abri-las, permitindo que o ar frio
expulsasse os odores desagradáveis, ou ao menos
os minimizassem. Ethan colocou o rosto para fora
e inspirou fundo, prestes a tornar a puxar o corpo
para dentro, sua visão periférica captou um objeto
estranho encostado entre as reentrâncias da parede
externa. Teve que esticar o braço para pegar, era
uma trouxa de veludo negro.
Estava úmida ao toque, por ficar exposta ao
mau tempo, mas não parecia comprometida; a
levou consigo para o escritório e, ainda sem
coragem para se sentar sobre a cadeira, espalhou o
conteúdo sobre a mesa vazia, eram ossos.
Três pequenos e amarelados ossos, que para
Ethan, representavam três peças perdidas de um
imenso quebra-cabeça.
Quem teria colocado aquilo ali? Se dado ao
trabalho de se esticar pela janela alta para
esconder tal artefato? Ethan teria que se livrar dos
ossos, eles não passavam boa impressão. A
sensação de insegurança o reivindicou e reforçou
o que ele pensou antes, que o gabinete não o
pertencia, e nem Whitewood Holt.
Juntou os ossos e o tecido de veludo e os
enfiou dentro da gaveta, mais tarde jogaria fora.
Após ver a gaveta deslizar, os olhos de Ethan se
voltaram para a cadeira, para o couro macio já
gasto, que o acomodou ao longo de tantos dias e
serviu como o último repouso em vida de
Benjamin.
Ethan tentou recuperar a parcela prática de
sua mente, aquela que costumava guiá-lo, e que o
impedia de acreditar em superstições e fantasmas,
mas após tantos eventos incomuns ocorrerem, o
cavalheiro admitia estar se tornando mais crédulo.
Encobrindo todos os horrores que o
reviravam por dentro, se apoderou da cadeira de
uma vez, e sem parar para pensar muito, buscou
seus livros e anotações, dispondo-as desordenadas
sobre a mesa.
Trabalhou o dia e a tarde inteira, sem
interrupções e sem desviar sua atenção da tarefa
sequer uma vez, havia muito o que fazer e não
podia despender tempo, além disso, uma mente
ociosa apresentava tendências a fantasiar e criar
pesadelos que não existiam.
Antes de ir, pegou os objetos misteriosos e
os guardou no bolso da calça, eles afundaram
pesados, contrariando a leveza natural esperada de
ossos tão pequenos; poderia ser impressão, mas
Ethan sentiu sua coxa formigar.
Buscou seu cavalo e logo estava na estrada,
ao invés de retornar para Violet Valley, tomou a
direção da cidade, mas antes de chegar lá, atirou
os ossos em um espaço com vegetação alta,
dificultando que fossem encontrados.
Alívio o abençoou após não ter mais a posse
do artefato, e mais aliviado ele ficou pelos ossos
não estarem mais na parede externa de seu
escritório. Por quanto tempo aquilo permaneceu lá,
sem que ninguém descobrisse?
Mau agouro.
Deixou os ossos e os pensamentos sobre
eles para trás, esquecidos e encobertos pela
vegetação, e firmou suas atenções na estrada. Já no
centro da cidade, Ethan caminhou pelas lojas em
busca de algo que ele nem sabia dizer ao certo, era
o tipo de coisa que só tinha certeza de que havia
encontrado quando se colocasse os olhos.
Foi então que, depois de muito procurar,
suas íris pousaram no presente perfeito. Ethan
soube, imediatamente, que deveria pertencer à
Genevieve.
Mal podia se conter enquanto rumava para
Violet Valley, Ethan não acreditava que
conquistaria o coração de Genevieve com
presentes, mas esperava conseguir agradá-la. Ela
já havia dito que era uma mulher simples e que não
tinha desejos demasiados ligados ao consumo,
porém Ethan não conseguiria visualizar outra
mulher com aquela joia senão ela.
O cavalheiro orientou a montaria a ir mais
depressa, nuvens pesadas passavam a se juntar no
céu, obscurecendo-o e adiantando a noite. Logo
uma intensa tempestade cairia e ele detestava ser
surpreendido nas estradas por um temporal.
Felizmente, chegou antes que a tormenta o
encontrasse, porém parecia que a chuva fora presa
em punhos firmes somente para que Ethan pudesse
chegar a Violet Valley seco, pois foi colocar o pé
dentro da casa e o céu desabou, com relâmpagos e
ventos furiosos.
— Onde se encontra a Srta. Johnson? —
perguntou afoito à Amelie quando a viu passando
atarefada.
Não conseguiria esperar sequer um minuto
para vê-la.
— Na sala leste, a azul.
Era verdade que a família de Will apreciava
a cor, estava em seu brasão e na safira que seu
amigo tanto amava, mas somente uma das salas em
Violet Valley recebia o nome de “azul", não era a
única com tal tom, porém fora batizada assim pela
Sra. Carter, por ser sua sala favorita na
propriedade e ninguém jamais a contestou.
Ethan seguiu para lá e parou antes de entrar,
não havia qualquer som, exceto o da tempestade, e
nenhum lampejo de luz dentro do cômodo, que era
iluminado somente quando um raio clareava o céu.
Silenciosamente, Ethan empurrou a porta
que já estava entreaberta, então a fechou em
seguida.
Genevieve estava parada próxima à janela,
assistindo à chuva dobrar as árvores e o mundo às
suas vontades. A silhueta delicada, debruçada
sobre o espaldar do sofá, se acendeu quando a luz
de um lampejo trovejante a iluminou. No rosto não
havia nada além de contemplação.
O xale escorregava pelos ombros da dama e
ela não parecia sentir frio, nem medo, apenas
fascínio.
Foi quando Ethan percebeu que não se
continha uma tempestade. Ele não poderia jamais
conter Genevieve.
Não querendo assustá-la, Ethan deu leves
toques com os nós dos dedos contra a moldura da
porta fechada, anunciando a presença, e quando a
dama se virou e notou que era ele quem estava lá,
Genevieve sorriu.
Deus, ela sorriu.
E se era difícil para Ethan vê-la sem
imediatamente correr para beijá-la, aquele sorriso
tornou a tarefa dezenas de vezes mais árdua.
— O que está fazendo no escuro? — ele se
limitou a perguntar.
— Vendo a chuva. — A voz dela diminuiu,
presa no encantamento lançado pela tempestade.
— É linda.
— Certamente é. — Mas Ethan não olhava
para as gotas e o vento.
Genevieve saiu do sofá em um salto e o
puxou pela mão, os dedos dela estavam frios e
Ethan sentiu uma pequena descarga elétrica quando
se tocaram, as íris de Genevieve buscaram,
instintivamente, o ponto de união de suas peles,
indicativo de que também havia notado a sensação
incomum.
— Venha, aproxime-se. — Sorriu ao
direcioná-lo até o local que ela ocupava
anteriormente.
De joelhos contra o estofado e os cotovelos
apoiados no espaldar do sofá, Genevieve voltou a
suspirar enquanto absorvia cada detalhe do
temporal, e Ethan absorvia cada detalhe do rosto
da mulher que amava.
Os olhos dela estavam agitados, fascinados,
seus lábios entreabriram quando ela arfou diante
de um assobiar mais pronunciado do vento e Ethan
não pôde mais suportar a distância. Tornou a ficar
de pé e aproximou-se vagarosamente por trás,
descendo o rosto pela curvatura do pescoço
feminino, livre por conta do penteado alto e pelo
decote baixo do vestido.
Genevieve fechou os olhos e deitou-se
contra o peito de Ethan, ele a amparou e
aproveitou para beijar sua bochecha com todo o
carinho que poderia entremear no gesto, inspirou
profundamente, inebriado pela fragrância de
lavanda da dama e prosseguiu com o escrutínio.
Subiu as mãos pelo torso de Genevieve, sem
pressa, porém com firmeza, ao mesmo tempo que
mesclava toques suaves, sem jamais deixar de
beijar seu pescoço. Ela gemeu, o som foi devorado
pela tempestade, mas felizmente, Ethan pôde
escutar, ele não gostaria de perder nenhum som de
prazer que Genevieve proferisse.
Passou os polegares sobre os topos dos
seios dela, sobre os tecidos do vestido e
Genevieve instintivamente se inclinou contra suas
mãos, que nesse instante, já se apossavam
completamente dos seios da dama. As carícias
seguiram, preguiçosas e instigantes, pela urgência
com que Genevieve se movia era notável que
queria que o progresso fosse mais rápido, Ethan
também, já estava até dolorido de tão rígido,
contudo, precisava degustá-la.
Com os dentes, puxou o xale de Genevieve,
permitindo que ele escorregasse entre eles e caísse
no estofado; com as mãos, Ethan baixou o decote,
revelando a pele preciosa de Genevieve.
Reiniciou a massagem lascívia, e recuou uma das
mãos somente para que pudesse soltar os cabelos
dela, que caíram com facilidade em forma de uma
gloriosa cascata.
— Ethan… — ela começou.
— Eu sei — sussurrou contra o ouvido dela.
— Agora — ordenou.
— Tão impaciente. — Sorriu leve e a beijou
na bochecha.
Ethan se afastou para remover o casaco e
colocar uma cadeira contra a maçaneta, não
importava o que todos pensassem, desde que não
fossem interrompidos. Quando retornou os olhos
famintos para Genevieve, ela já terminava de
deslizar o vestido pelo corpo.
Ethan se desfez rapidamente de seu colete e
sua camisa, e hesitou ao abrir a calça, pois notou
que Genevieve o fitava, no mínimo, interessada.
Sorriu, com malícia e vaidade.
— Ansiosa?
Ela ruborizou e virou o rosto para a janela.
Ethan terminou de retirar as peças
sobressalentes e atravessou a sala, colando seus
corpos de forma semelhante como estavam há
pouco, porém ela estava com os pés no chão, ao
invés de ajoelhada sobre o sofá. Genevieve
apertou o espaldar do móvel e Ethan posicionou
uma das mãos ao lado da dela, e com a outra livre,
a desceu até entre as pernas de Genevieve. Ela
empinou contra ele e soltou mais um gemido, o que
somente impulsionou Ethan a continuar com os
movimentos circulares que fazia com os dedos.
Ah, ela o queria, o queria como ele a queria.
Ambos estavam prontos para receberem e se
servirem um do outro.
Ethan enterrou uma das mãos no farto cabelo
de Genevieve quando a penetrou e a puxou um
pouco para trás quando lamentaram, em uníssono,
pelo alívio que sentiram com a união.
Os olhos dela estavam abertos, desfocados
na tempestade que ainda se desenrolava, ao passo
que o casal se perdia cada vez mais nos ritmos e
nas sensações que experimentavam. Não era mais
a languidez do mar, era a explosão da tormenta, os
açoites de água que curvavam o mundo e os
trovões que rugiam e desfaziam alicerces.
Ethan não foi cuidadoso como na praia, e
ela não parecia desejar tal cautela, pois devolvia
as investidas dele com igual intensidade, e isso o
enlouquecia. Tudo ali o enlouquecia, a atmosfera
na penumbra, a tempestade em seus ouvidos e o
pontuar dos clarões ao iluminarem as costas
pálidas de Genevieve e todas as suas curvas.
Separaram-se por breves instantes, somente
para se unirem outra vez, Ethan se acomodou no
sofá e Genevieve se sentou sobre ele, as mãos do
cavalheiro foram diretamente para as coxas dela
enquanto as de Genevieve foram para os ombros
de Ethan. Céus, ela não tinha conhecimento em
como conseguia ser sensual, de como poderia
arruiná-lo ali mesmo, em uma fração de segundos
se assim desejasse, e de certa forma ela havia feito
isso, pois Ethan sentia que estava arruinado.
Ela se abaixou para beijá-lo, foi uma
torrente de sabores e sensações que se espalharam
em cada célula que os compunham. O encontro de
suas línguas iniciou o caminho para a completa
ausência de domínios racionais que qualquer um
dos dois poderia ter e então eles se entregaram.
O êxtase de Genevieve não demorou a
alcançá-la, para logo depois o de Ethan, ela
tombou, exausta e arfante, sobre o peito dele e ele
a acolheu em um abraço, apertando-a contra si até
que uma risada povoou seus ouvidos.
— Está me esmagando.
— Perdoe-me. — Ethan afrouxou um pouco,
mas não o suficiente para Genevieve escapar.
Permaneceram assim até que suas
respirações se abrandassem, ela brincava
distraidamente com um pelo no peito dele quando
questionou:
— O que está pensando?
— Que eu a amo — declarou, com a voz
rouca e grave.
Ela se afastou apenas para olhá-lo nos
olhos, as sobrancelhas dela estavam franzidas.
— E para quantas mulheres afirmou isso?
— Para nenhuma antes de você — devolveu
um tanto ofendido.
Genevieve mordeu o lábio e negou com a
cabeça.
— Ah, Ethan…
Ele a escorregou para o lado e se levantou,
procurando o casaco, os olhos astutos de
Genevieve não o abandonaram, até ele encontrar a
pequena caixa que comprou na cidade mais cedo.
Voltou para o sofá e entregou o presente à
Genevieve.
Ela abriu a tampa com um misto de
hesitação e curiosidade cruzando a face, até que
seu rosto se reluziu com a surpresa.
— Deve ter sido caro.
— Não deve preocupar-se com isso.
— Não posso aceitar. — Devolveu a ele.
— Mas é sua.
Ethan abriu a caixa e de lá retirou uma
delicada pulseira de prata, pendendo dela, havia
um solitário e pequeno pingente em formato de lua.
Acariciou a mão de Genevieve e a trouxe para
perto, para que pudesse colocar a joia em seu
pulso, e assim como ele imaginou, ficou perfeita
nela.
— Obrigada, é linda. — A dama sorriu.
— Era isso o que eu esperava inicialmente
— brincou.
Ela girou os olhos, porém não retrucou.
— Mas vamos, por mais que eu deseje
permanecer aqui com você, outros poderão nos
procurar. — Ethan beijou o dorso da mão dela. —
Veja, está gelada e arrepiada. — Esfregou o braço
dela.
— É a eletricidade, consegue senti-la no ar?
— Eu certamente senti muitas coisas.
— Está cheio de gracejos, não é?
— Você me deixa com ótimo humor.
Antes que estivesse tentado a ficar,
identificou as roupas de Genevieve e as entregou a
ela, depois passou a vestir suas próprias roupas.
Disse que a amava e não obteve resposta.
Queria tanto que ela o amasse de volta.
Quando Genevieve estava completamente
vestida, ela removeu a cadeira da porta e elevou o
pulso para mostrar a pulseira, lançando um sorriso
brilhante para Ethan antes de sair, mas ele
continuou lá na sala, preso em suas expectativas.
Genevieve acordou muito bem-disposta e a
felicidade era um calor dourado envolvendo seu
coração. Sentada diante da janela, a dama
brincava com o pingente da pulseira que ganhou de
presente noite passada; tudo foi tão perfeito, era
sempre tão perfeito quando estavam juntos que às
vezes se via desejando um lar com Ethan, e
desejava dividir pelo restante de seus dias,
momentos como aquele.
Que assistissem a incontáveis tempestades e
que as utilizassem como a melodia que
acompanharia os seus atos de amor. Quanto mais o
administrador de Whitewood Holt avançava sobre
o seu coração, mais medo ela sentia; e como quis
amá-lo sem receios, contudo, ela não conseguia,
diversos temores acorrentavam suas mãos.
Às vezes tinha vontade de confessar a Ethan
o maior segredo que guardava, talvez desse modo
as correntes fossem abertas para que Genevieve se
permitisse amá-lo livre de culpas, mas como ele
reagiria ao saber sobre os dons que Genevieve
carregava?
O peito dela se apertou frente aos
pensamentos.
E apesar de todos os temores, ela jamais
poderia deixar de amar Ethan; o amava a seu
modo, repleto de dores e traumas, desconfianças,
mesmo assim, o mais sinceramente que seu
coração conseguia. Tentar esquecer e ignorar o
sentimento seria equivalente a escrever com o
punho esquerdo, quando ela nasceu para dominar o
direito, somente linhas tortas e ilegíveis seriam
produzidas, um rascunho malfeito de sua
verdadeira inclinação.
Genevieve se recusava a lutar novamente
contra a sua natureza, então acolheria o sentimento,
por mais confuso que fosse, um emaranhado de
linhas de pontas perdidas. Em sua singularidade, o
amor deles era belo, eterno dentro de sua
efemeridade, de começo, meio e fim.
Mordeu o lábio enquanto elevava o braço,
avaliando o pingente com ajuda da parca
iluminação vinda da janela, fornecida por mais um
dia cinzento, a lua brilhava conforme ela girava
lentamente o punho, exercendo um distinto efeito
hipnótico confortável em Genevieve, até que a
atenção da moça foi desviada para a
movimentação que acontecia lá fora.
Na entrada de Violet Valley, uma robusta
carruagem preta parava, Genevieve estreitou os
olhos para ver quem tinha chegado e se aproximou
mais do vidro para enxergar melhor. Durante
alguns minutos, ninguém saiu do veículo, mas
então um chapéu verde, com uma pena clara
despontou pela porta, abaixo do chapéu havia
cabelo louro em caracóis perfeitos sobre o ombro.
Beatrice.
Foi impossível não propagar um lamento
doloroso e inconsciente, o que Beatrice poderia
querer? Genevieve não estava com disposição
para passeios e compras.
Afastou-se da janela, alisou a saia do
vestido simples de cor preta e respirou
profundamente, aproveitando os minutos restantes
de paz e silêncio, e aproveitava também para se
preparar para o desconforto de ter que sorrir e se
mostrar interessada no que quer que Beatrice
julgasse tão importante ao ponto de ir até Violet
Valley para comentar com Genevieve.
Sem demora, Stevens apareceu na sala,
anunciando a chegada da Srta. Lancaster, para em
seguida a própria se materializar diante de
Genevieve.
— Bom dia — saudou Beatrice com um
sorriso. — Fiquei aguardando uma resposta sobre
o vestido de noiva, mas acabei considerando
melhor vir vê-la para aproveitarmos e decidirmos
as demais questões sobre o casamento — disse
tudo em um único e prolongado fôlego.
— Oh, eu sinto muito por ter sido rude com
a ausência de resposta, mas acabei me esquecendo
completamente.
— Esquecendo-se do casamento? — Franziu
as sobrancelhas suaves. — Toda dama que
conheço mal estaria dormindo a essa altura, não
está ansiosa?
— Sim, estou, mas apenas para estar casada
com o Sr. Hamilton e não para o evento.
— Mas o casamento é na semana que vem e
é necessário que iniciemos os preparativos, vamos
para Whitewood Holt para que veja o espaço.
— Agora?
— Sim, sim, vim buscá-la. Experimentou o
vestido?
— Não tive tempo.
A face de Beatrice se contraiu um pouco,
desapontamento, mas ela disfarçou rapidamente.
— Então traga consigo, deve provar o
quanto antes, para que haja tempo de ajustá-lo se
necessário.
— Claro — acabou cedendo.
Genevieve subiu as escadas para o seu
quarto sentindo-se pressionada por Beatrice que a
seguia logo atrás em seu encalço, como se para
evitar que Genevieve desistisse ou formulasse uma
desculpa para não ir.
Beatrice podia ser terrivelmente
determinada, Genevieve conseguiu compreender o
empenho de Ethan a fugir de um enlace com ela...
Pare! Genevieve se censurou, não gostava de
pensar mal de Beatrice, pois a mulher, embora
tivesse suas excentricidades, se dispôs a auxiliá-la
na organização do casamento e só estava ali, pois
Genevieve não estava fazendo um bom trabalho ao
cuidar da própria cerimônia.
Genevieve se abaixou para puxar a caixa
embaixo da cama e quando se voltou para
Beatrice, a face dela estava contraída outra vez,
mas a Srta. Lancaster não externalizou nenhuma
exclamação pela forma que o seu “presente” foi
guardado.
Enquanto deixavam Violet Valley e iam de
encontro a imponente carruagem, Beatrice
utilizava a caminhada para listar para Genevieve
todas as questões que precisavam decidir ainda
nesse mesmo dia. Então algo atingiu a espinha de
Genevieve, conforme se aproximava do veículo, o
disparo de gelo lhe percorreu a coluna, a dama
prendeu a respiração com o susto e quase derrubou
a caixa com o vestido que carregava com ambas as
mãos.
— Vamos, temos que nos apressar. —
Beatrice retornou para puxá-la pelo cotovelo,
quando percebeu que Genevieve não a
acompanhava.
— Ainda há tempo antes do casamento, não
precisamos correr.
Desvencilhou-se do toque e rebateu o olhar
da mulher, de modo rude demais, mas Genevieve
estava preocupada com coisas mais urgentes do
que refletir sobre a forma pouco cortês com que
tratou Beatrice. Se preocupava com erros que
poderia ter cometido, talvez não devesse ter
aceitado a ajuda com o casamento.
E quando entrou na carruagem, teve certeza
de que cometera um grande equívoco, talvez o
maior até ali. Qual foi a surpresa de Genevieve
quando o próprio o Sr. Lancaster as aguardava lá
dentro.
Ele a olhou... Céus, ele a olhou como um
predador.
A porta foi fechada, Beatrice tomou o
assento ao lado do pai e sobrou para Genevieve se
sentar no banco posicionado de frente para os
dois, pousando a caixa com o vestido no espaço
vago.
A sensação dentro da carruagem era tão
terrível que Genevieve cogitou se ajoelhar diante
da portinhola e arranhá-la até que fosse aberta
novamente, até que a deixassem sair, e percebeu
que o Sr. Lancaster leu tudo aquilo no rosto dela.
O homem sorria, com um humor perverso, frente
ao desconforto explícito de Genevieve.
— Bom dia, Srta. Johnson — saudou
Lancaster.
O veículo se moveu para frente e ganhou
velocidade moderada, o coração dela disparou,
estava sufocando, precisava de ar. O cheiro
apodrecido era tão intenso que queimava as
narinas e fazia seus olhos lacrimejarem.
— Bom dia — conseguiu responder com a
voz rouca.
— Está sentindo-se bem?
A imagem do homem tremulava diante de
Genevieve, como se fosse um reflexo na superfície
de um lago, os contornos da face dele escorriam,
líquidos e distorcidos.
— Talvez ela enjoe de costas para o
caminho — opinou Beatrice com um tom
penalizado.
Genevieve balançou a cabeça em negativa.
— Estou bem.
— Talvez esteja grávida — atirou o Sr.
Lancaster.
— Não estou — pontuou Genevieve, firme.
— Logo chegaremos a Whitewood. —
Beatrice esticou a mão para tocar a de Genevieve,
que estava sobre o joelho, mas ela recuou antes
que o contato se concretizasse.
Beatrice torceu o nariz, visivelmente
ofendida, mas não disse nada. Já o pai dela
arregalou os olhos para o gesto, que não passou
despercebido, e ele parecia fazer notas mentais
sobre o ocorrido.
Durante o curto percurso, as vistas do Sr.
Lancaster não abandonaram Genevieve, ele a
olhava de cima a baixo e sequer se incomodava
em disfarçar, capturava cada detalhe da moça e
aos poucos, algo como compreensão sombria se
assentava sobre o rosto dele, até que ao chegarem,
não havia nada a não ser desprezo.
Era ele, era ele, era ele!
O mundo desacelerou e a compreensão
atingiu Genevieve com o impacto de uma colisão.
Harold Lancaster era o grande mal que
assolava Ethan!
Como não percebeu antes?
Precisava avisar o administrador,
precisavam encontrar uma forma de neutralizar as
influências malignas exercidas pelo Sr. Lancaster.
Beatrice estaria envolvida? Não importava, esse
seria o último dia que a situação se estenderia,
porque Genevieve fora igualmente descoberta por
Harold e, dali em diante ele faria o possível para
retirá-la do caminho de Ethan e por motivos mais
urgentes do que aqueles que ele tinha
anteriormente. Se livraria dela, pois Genevieve
era o escudo, a única coisa que protegia Ethan.
Quando a porta foi aberta, Genevieve saltou
para fora da carruagem como se o veículo
estivesse em chamas e se apoiou na lataria para
vomitar. A dor em sua cabeça praticamente a
cegava, mas o mal-estar melhorou um pouco ao se
ver em ar livre.
Beatrice cobriu o nariz com um lenço
enquanto aguardava Genevieve, o pai dela sequer
olhou para trás, rumando diretamente para dentro
da residência.
— Comeu algo que lhe fez mal?
Genevieve não se deu ao trabalho de
responder, endireitou a postura e tratou de se
direcionar para a casa, Beatrice deu algumas
ordens ao cocheiro, orientando-o a deixar a caixa
com o vestido no quarto que Beatrice costumava
utilizar na casa da tia, e logo em seguida, a dama
estava ao lado de Genevieve.
— Quero que veja o salão, vai ficar lindo
quando estiver enfeitado.
Genevieve continuou em silêncio e não
disse uma palavra até estarem dentro da casa, a
primeira coisa que a dama identificou foi o cheiro
esfumaçado que se alastrava e tomava conta de
cada espaço disponível, filetes de fumaça eram
visíveis aqui e ali.
— O círculo ocultista está aqui hoje, por
isso meu pai veio, mas eles não irão nos atrapalhar
— Beatrice explicou, ao notar a expressão
interrogativa no rosto de Genevieve.
— Que coincidência... — Mas ela tinha
certeza de que não era.
— Pois é, dia movimentado em Whitewood
Holt. — Deu de ombros. — Vamos.
— Não, preciso ver Ethan — demandou
firmemente.
— O Sr. Hamilton está ocupado... —
começou.
— É urgente. Preciso ver Ethan, agora. —
Genevieve comprimia tanto os dentes que a
solicitação se assemelhou a um rosnar.
— Tudo bem, vou pedir que o chamem aqui
para baixo, enquanto o esperamos, podemos ver o
salão.
Genevieve hesitou uns instantes, mas
concordou.
Após Beatrice mandar o mordomo para o
escritório de Ethan, elas rumaram para o salão
determinado por Beatrice, e enquanto a Srta.
Lancaster falava, a mente de Genevieve disparava
para outros rumos, para o olhar de Harold
enquanto estiveram ocupando a mesma carruagem
e a sensação opressiva que veio com ele.
Ah, Genevieve, como não enxergou antes?
— lamentava consigo mesma.
Mas ainda não era tarde demais.
Ela sempre soube que havia algo de errado
naquela casa, mas isso nunca estivera tão evidente
quanto nesse instante. Os instintos de Genevieve a
alertavam ininterruptamente para que saísse dali, o
corpo dela repelia tudo dentro do perímetro da
propriedade, e o coração dela batia tão rápido que
as pulsações passaram a reverberar na mente,
lavando todos os pensamentos, exceto um aviso:
“Cuidado".
Lembrava-se dessa exata palavra quando
colocou os pés em Whitewood Holt pela primeira
vez e ali estava a ordem de novo, porém mais
imperativa, desesperada e quase rasgava o peito
de Genevieve.
— Genevieve?
Uma voz conhecida e morna a saudou, as
pernas dela quase cederam.
— Ethan. — Ela sentiu vontade de chorar e
sorrir ao mesmo tempo.
— Não sabia que tinha intenções de vir até
aqui. — Cortou o espaço que os separava
rapidamente com passadas largas. — Está tudo
bem? — A estudou semicerrando os olhos.
Ela balançou a cabeça em negativa.
— Nós temos... — começou a falar, mas
Beatrice a cortou.
— Srta. Johnson teve um mal-estar quando
chegamos, foi algo que ela comeu ou o enjoo
proporcionado pela carruagem — revelou
Beatrice. — Mas ela disse que estava melhor.
— Deveria se sentar um pouco — A tocou
carinhosamente no cotovelo. — Podemos ir para
alguma sala e...
— Ela já está bem — Beatrice pontuou. —
Não é verdade, Srta. Johnson? Ainda temos muito
o que fazer para o casamento. — Sorriu.
— Eu estou bem — Genevieve afirmou,
porém se aproximou um pouco mais de Ethan,
como se ele pudesse protegê-la do que quer que a
estivesse tentando puxá-la para baixo. — Mas
gostaria de conversar em particular com o Sr.
Hamilton.
— Isso seria desrespeitoso e inconcebível.
Ethan correspondeu trazendo-a contra o
próprio peito e passando o braço pela cintura de
Genevieve, atuando exatamente como ela
precisava que ele o fizesse; os olhos de Beatrice
foram se abrindo lentamente, conforme ela
assimilava a carícia explícita que trocavam.
— O que houve? — sussurrou Ethan,
passeando a mão livre pelo braço de Genevieve e
tocando o pingente da pulseira. — Quer voltar
para Violet Valley?
— Venha comigo — Genevieve quase
implorou.
— Não posso, estou trabalhando. — Havia
pesar em sua voz.
— Todos os casais apaixonados são tão
dramáticos? Nós duas estamos muito atarefadas
aqui e a Srta. Johnson pode organizar o casamento
enquanto o senhor trabalha, e depois irão para
Violet Valley juntos.
— Não creio que Genevieve esteja com
disposição para permanecer o dia todo aqui —
rebateu Ethan, ainda preocupado.
— Eu a levarei para o meu quarto para que
descanse um pouco, assim ela também poderá
experimentar o vestido quando se sentir melhor.
Genevieve odiava o fato de a conversa se
desenrolar como se ela não estivesse presente.
Rangeu os dentes e sentiu tanta raiva proveniente
da impotência, precisava convencer Ethan a sair
dali e nunca mais voltar. Como ela faria? Talvez o
momento de revelar ao administrador toda a
verdade de seus dons tivesse chegado.
— Aí está! — Uma furiosa Sarah passou
pela porta. — Não o estou pagando para ficar de
ociosidades e namoricos pelos cantos, Hamilton!
— Mas, Sra. Whitewood... — ele iniciou.
— Nada de mas, vamos, meus negócios
estão desabando enquanto desfruta da Srta.
Johnson sem nenhum pudor ou decência sob meu
teto.
— Sra. Whitewood, tente entender,
Genevieve...
— Já chega, vamos — chamou Sarah. —
Terão tempo para carícias após o casamento.
— Tudo bem, Ethan, vá — disse Genevieve,
o mais firme que conseguiu. Por dentro ela gritava.
Os olhos dele hesitaram, ele a apertou uma
última vez contra o corpo e a soltou.
— Se precisar de mim, estarei no escritório.
— Cuidarei dela, não se preocupe. —
Sorriu Beatrice.
Ethan teve que retornar ao trabalho e levou
com ele qualquer resquício de tranquilidade que
Genevieve tivesse angariado em sua presença.
— Creio que é melhor subirmos, antes que o
Sr. Hamilton insista para que vá embora.
Genevieve não disse nada, pois em sua
mente só existia uma profusão de ofensas, algumas
bem pesadas, escutadas às escondidas dos
trabalhadores que cultivam a plantação de sua
família, e as proferidas por Vincent quando o
irmão estava embriagado.
Precisava sair de Whitewood Holt e levar
Ethan!
Estavam correndo perigo, incalculáveis
riscos.
— Está muito estranha hoje, Genevieve.
— Não deveria ter me trazido aqui —
rebateu.
— Estou sendo paciente, mas não irei aturar
grosserias quando estou somente tentando ajudar.
— A mim ou ao seu pai?
— O meu pai? O que está dizendo? Por
acaso, está delirando? — Beatrice a fitou
severamente, então soltou um longo suspiro. —
Noto que está nervosa, vamos até meu quarto,
sente-se um pouco e beba água.
Quais seriam as opções? Genevieve não
podia ir sem Ethan, então achou que não faria mal
ganhar tempo e era possível que Beatrice fosse
ignorante às ações do próprio pai, ainda queria dar
o último benefício da dúvida à jovem.
Concordou e seguiu Beatrice até o quarto.
Enquanto se encaminhavam para as escadas,
acabaram se encontrando com os membros do
círculo ocultista, todos cravaram os olhos em
Genevieve e ela fez o possível para manter-se com
o nariz empinado, sem demonstrar fraquezas.
Subiram as escadas juntas, Beatrice abriu a
porta para ela e deu espaço para que entrasse no
cômodo. Genevieve deu alguns passos adiante e
então se virou somente para encontrar Beatrice
com um vaso nas mãos e uma expressão sombria
que moldava as feições dela as do pai.
— O que está fazen...
Dor incandescente a atingiu antes que
pudesse concluir a frase, e a empurrou para um
abismo obscuro.
Genevieve ia e voltava da inconsciência,
todas as vezes que se sentia prestes a despertar,
um pano embebido em uma substância de cheiro
forte a tragava para a escuridão.
Submergiu do sono outra vez, a cabeça
latejava feito um grande coração e Genevieve não
conseguia abrir os olhos, pois sentia muita dor,
mais do que pudesse mensurar. Aos poucos, foi
tomando consciência do restante de seu corpo e do
ambiente que a cercava, ainda de olhos fechados,
ela percebeu que estava sentada e com os braços
para trás, amarrados nos punhos. Moveu-se,
buscando uma posição mais confortável e gemeu.
— Que bom que está acordada — a voz
inconfundível de Lancaster proferiu.
Genevieve, por fim, abriu os olhos, piscou
para desembaçar a visão e passou a assimilar o
ambiente, estava em um estábulo, no largo
corredor entre as duas paredes laterais
preenchidas com as baias. Ethan estava amarrado
a uma pilastra, desperto, e Sarah em outra, com a
cabeça pendendo para baixo. O Sr. Lancaster
permanecia parado de pé próximo a eles e
Beatrice estava a alguns passos do pai; atrás dos
dois encontravam-se os cinco membros do círculo
ocultista, silenciosos e imóveis feito as gárgulas
que guardavam os túmulos no cemitério.
A viúva murmurou alguns sons, indicando
que também regressava da inconsciência e o Sr.
Lancaster se mostrou muito satisfeito.
— Harold? — Sarah questionou, confusa.
— Harold, o que é isso?
— Infelizmente tive que me exceder, eu não
planejava que essa situação fosse tão longe, sinto
muito.
— Então explique o que diabos está
fazendo.
— Estou cuidando para que minha filha
receba sua devida herança.
Sarah negou com a cabeça, desgostosa.
— Não posso acreditar.
— Lamento, Sarah, mas isso foi causado por
você mesma.
— Por mim?
— Sim, é claro. Por que não me entregou
logo Whitewood Holt?
— E eu deveria?
— Óbvio, sou seu irmão.
— Você arruinaria todos os meus negócios,
me levaria à falência, assim como fez com as
próprias posses. Por isso está desesperado pela
propriedade, não é mesmo?
— Preferiu confiar em um estranho do que
em sua própria família, que decepção.
— E veja só o que minha família está
fazendo — devolveu, amargurada.
— Mas tudo podia ser resolvido, se o seu
escolhido se casasse com a minha filha, mas não,
ele teve que se envolver com essa... — Inspirou
com força, dilatando as narinas, como se odiasse a
palavra que estava prestes a proferir.
— Cuidado com o que diz sobre Genevieve
— Ethan avisou.
Lancaster achou graça e caminhou até a
dama, enfiou a mão entre o penteado desfeito e
puxou os cabelos negros, obrigando Genevieve a
encará-lo.
— Mas até isso pode ser resolvido, ela será
um presente ao meu guardião.
Genevieve arregalou os olhos, assimilando
o significado daquelas palavras.
— Não. — Ela quase não conseguiu falar,
tamanho o horror que a dilacerava por dentro,
cravando as garras em seu coração.
— Sim, vocês já se conhecem, vinham
travando suas próprias desavenças pela noite e
esta será a última.
Lancaster soltou Genevieve e se encaminhou
até um dos ocultistas que segurava uma caixa
pequena de veludo negro; Harold pegou algo lá
dentro, então voltou-se novamente para seus reféns
e exibiu o colar de Beatrice, o camafeu de gravura
de serpente.
— Serpentes... — Ele olhou o objeto com
carinho. — São o brasão de minha família. —
Sorriu. — Não gostou do presente que a minha
filha lhe deu, Srta. Johnson?
— Eu o odiei.
— Que pena, há um belo osso de cabra aqui
dentro e sabe o que significa?
— Não. — Sentiu sua língua amortecida.
— Significa que assim que eu o colocar em
seu pescoço, o guardião saberá que é um alvo para
ele.
— Havia ossos em meu escritório — Ethan
revelou.
— Sim.
— Por isso Benjamin morreu? Foi assim
com Ormond também?
— Não, no início eu não imaginei que fosse
precisar dos ossos, as minhas ordens deveriam
bastar para que o guardião cumprisse o seu dever,
mas então houve dificuldades.
— Que guardião é esse que você fala? —
exigiu Sarah.
— O guardião dos abismos e horrores,
senhor dos pesadelos.
— Devorador de Sonhos — atirou
Genevieve.
— Reconhece-o de seus pesadelos, Sr.
Hamilton? Ele esteve em sua cama por noites
seguidas e deveria ter conseguido dobrá-lo,
deveria ter conseguido dissuadi-lo de se casar
com a... — Novamente ele hesitou antes de falar.
— Foi tão fácil com o Philip — comentou mais
consigo mesmo, em um tom reflexivo.
— Phil? O que fez com ele? — Sarah gritou.
— Assassino, você matou meu marido!
Então, realmente o Sr. Whitewood tentou
avisar Genevieve quanto a Harold.
— Fiz o que eu precisava fazer para que
Whitewood Holt pertencesse a mim, porém, como
sempre, você quis dificultar as coisas, recuou ao
invés de me dar o controle que eu queria. Depois
de matá-lo, eu fiquei tão fraco, não podia agir
rapidamente, então esperei, me fortaleci, estudei
mais a magia sombria e aqui estamos.
— Você não é mais meu irmão, não o
reconheço como tal — a viúva disse com
determinação, mas na voz era perceptível uma
vibração de choro.
— Eu honestamente não me importo,
dispenso os sentimentalismos. — Deu de ombros.
— Vamos logo com isso.
Cobriu o espaço que o separava de
Genevieve e colocou o colar no pescoço dela.
— Não é tão forte com a ausência de lua —
zombou próximo ao ouvido dela, para que somente
Genevieve ouvisse.
E isso a levou a buscar aberturas no
estábulo que estava completamente fechado. Pelas
fissuras nas tábuas ela visualizou parcelas do céu
escuro, era noite. Ficaram o dia todo amarrados
ali.
— O que fez com meus funcionários? —
demandou Sarah.
— Eu os dispensei, disse que os ocultistas
precisavam fazer uma profunda limpeza em
Whitewood Holt. E com o anoitecer, o guardião se
fortalecerá, nada dará errado desta vez. — Olhou
diretamente para Genevieve. — Nem mesmo você
poderá impedir.
A dama engoliu em seco, o camafeu pesou
contra sua pele.
— Sobre o que ele está falando, Genevieve?
— questionou Ethan.
— Cale-se — cortou Harold.
O homem se virou para os ocultistas e fez
um aceno com a cabeça, eles se aproximaram e
passaram a organizar cartas de um baralho
incomum no chão em um amplo círculo, depois
trouxeram uma arca e a viraram dentro do espaço
delimitado, derramando ossos, Genevieve
suspeitava que se tratava do restante da cabra.
Harold voltou para Genevieve, se curvou e
desfez os nós na corda que lhe atava os punhos, a
segurou pelo antebraço e a puxou para cima
rudemente. Genevieve se debateu e tentou socá-lo,
mas era inútil.
— Solte-a agora mesmo! — exigiu Ethan.
— Como quiser.
Lancaster a atirou sobre os ossos. Ela mal
teve tempo para se recompor, os dois homens do
círculo ocultista a colocaram de pé e seguraram
seus braços um de cada lado. Harold enfiou a mão
na parte interna do casaco e tirou dali um punhal
cravejado de rubis, alarmando os sentidos de
Genevieve.
— Está louco, Harold, o que vai fazer com a
menina? — Sarah gritou.
— Sr. Lancaster, por favor, não faça mal à
Genevieve, ela não tem culpa, eu não quis me
casar com Beatrice — Ethan implorou. — A
responsabilidade é toda minha por seus planos
falharem.
— A Srta. Johnson fez suas próprias
escolhas e quis o destino que ela estivesse aqui,
para alimentar o guardião com o seu sangue.
Depois Sarah assinará um documento afirmando
que Whitewood Holt é minha e então tudo estará
terminado.
— O que quer dizer terminado? Teria
coragem de matar sua própria irmã? — a viúva
questionou, aflita.
— Como eu disse, infelizmente a situação
saiu muito de meu controle.
— Meu Deus, Harold... — Ela respirou
ruidosamente, depois pousou os olhos em cada um
dos ocultistas e, por último, em sua sobrinha. —
São todos cobras que eu trouxe para baixo do meu
teto.
Arrependimento lampejou o rosto de
Beatrice, mas ela desviou o olhar.
— Abigail! — chamou Harold em um grito
que enrijeceu a todos.
A ocultista se apresentou prontamente e se
posicionou próxima à Genevieve.
— Creio que possamos começar a nossa
sessão de hoje. — Lancaster sorriu.
Ele deu início a um cântico em uma língua
desconhecida e os outros o acompanharam,
inclusive a filha. Os cavalos se agitaram nas baias,
relinchando e raspando os cascos no chão,
perturbados com algo que olhos comuns não
poderiam ver.
As sombras ao redor dançaram, preparando-
se para recepcionarem o Devorador, o mundo
girou e se desestabilizou, se inclinando para o
lado proibido da balança. Um trovão distante
cortou o céu e a luz adentrou pelas fissuras da
construção, iluminando por frações de segundos as
feições distorcidas dos ocultistas.
Os batimentos cardíacos de Genevieve eram
rápidos, o coração quase saía pela garganta e a
boca dela estava seca com gosto metálico de
sangue, percebeu que havia mordido interior da
bochecha em algum momento.
Harold virou-se de costas para Ethan e
Sarah, ficando de frente para Genevieve. Agitou o
punhal, acomodando-o melhor entre os dedos e ela
gritou, puxou os braços, contudo, os membros
estavam firmemente imobilizados.
— Shhh, acalme-se.
Genevieve continuava gritando, sentindo a
ação reverberar em seus pulmões e em sua
garganta, como se os rasgassem. Céus, ela se
esforçou tanto para esconder seus dons, temendo a
maldade dos homens e, ainda assim, seria morta
como oferenda a uma criatura das trevas.
Lágrimas escorreram por seu rosto quando o
Sr. Lancaster arregaçou a manga de seu vestido e
perfurou a pele pálida, traçando um corte vertical
no comprimento do antebraço. Ela conseguia ouvir
os lamentos fervorosos de Ethan, tão dolorosos
quanto os próprios gritos dela, mas não teve
coragem de elevar os olhos aos dele, pois sabia
que se o fizesse, iria despedaçar a ambos.
O cântico se intensificou, Abigail passou a
balançar o corpo no ritmo da música e a proferir
um som grave semelhante a um rosnar, Genevieve,
por entre as lágrimas, viu uma silhueta de sombras
se entrelaçar a de Abigail, a mulher não passava
de um canal para o Devorador.
— Não, não, não... — Genevieve implorou.
— Sim, ele está vindo! — comemorou
Lancaster, completamente fora de si, extasiado.
Genevieve engoliu um soluço, então esse
seria seu fim. Ainda tinha tantos desejos a realizar,
tantas coisas que gostaria de viver e muitas delas
incluía Ethan. Se alguma vez houve dúvidas em
seu coração, a urgência da situação atual as
extinguiu deixando somente certezas, Genevieve o
amava.
O sangue dela gotejava no chão, escorria
pelo braço e manchava a pulseira com o pingente
de lua e a mão do ocultista que lhe segurava,
Genevieve tentou puxar uma última vez, mas o
aperto era firme demais, sequer deslizava, mesmo
que houvesse o sangue envolvendo tudo.
Abigail rugiu com uma voz masculina, a
respiração de Genevieve se tornou curta e
superficial, jamais sentiu tanto medo em sua vida,
temeu por esse momento que antecedia sua morte,
temeu pelo instante da passagem e temeu pelo
depois, por sua alma que seria arrastada pelo
Devorador para passar a eternidade com ele.
— Agora — comandou Lancaster em um
tom suave.
O cântico se abrandou, porém, a ordem
libertou Abigail, como se ela estivesse apenas
esperando a coleira se soltar para avançar até
Genevieve, a jovem gritou quando os dentes
vorazes da ocultista se cravaram no corte do
braço. Dor fulgurante latejou no ferimento, como
se estivesse sendo cutucado com uma barra de
ferro em brasas.
Abigail elevou os olhos para encontrar o
rosto em sofrimento de Genevieve, havia maldade
neles, um filete de sangue escorria pelo queixo da
mulher e ela sorriu, enquanto se refestelava no
braço de Genevieve e através da máscara de carne
e osso da ocultista, a dama conseguia enxergar
perfeitamente as feições bestiais do Devorador.
Genevieve fechou os olhos, não suportando
a visão grotesca de Abigail e nem a dor, desespero
se avolumava incontrolável dentro dela, porém,
sentia que estava sendo drenada, até mesmo seus
medos não eram mais tão fortes, nenhum
sentimento possuía alicerces para permanecer de
pé, e aos poucos ela se desfazia, feito um castelo
de areia sendo arrastado pelas ondas.
Mas ela não era areia, ela era mar.
Tinha que se lembrar, Genevieve tinha que
puxar o fio de seus dons e os trazer para a
superfície, mas como? Não parecia haver nada
para cavar, e nem forças para chegar à
profundidade necessária.
— Por favor, pare — a voz rouca de Ethan
suplicava, como se ele tivesse gritado por muito
tempo.
Os sons se distanciavam, as cores do mundo
se apagavam, uma a uma. A escuridão engolia cada
um dos pensamentos dela e depois as memórias.
Eram bordas esmaecidas de sonhos que Genevieve
não conseguia se lembrar, um sorriso de sua mãe, a
primeira vez que cavalgou, um pôr do sol laranja
tão vibrante, a sensação dos lábios macios de
Ethan, uma praia e uma lua cheia brilhando
intensamente, o rugir do mar e o vibrar de sua
alma.
Genevieve caiu e não havia nada, apenas
sombras e gelo, estava tão escuro e ela sentia tanto
frio, queria pedir um cobertor, mas sua boca não a
obedecia. Por que não conseguia falar?
Isso era morrer?
Mas não podia morrer sem dizer a ele, sem
dizer a ele que o amava. Ethan precisava saber.
Apegou-se ao pensamento com todas as
forças restantes, apertando-o nos dedos, não
queria se esquecer, não queria que a imagem de
Ethan desbotasse, assim como todos os
sentimentos que ele lhe despertava, contudo, os
veios de sombras já se infiltravam ali, espalhando-
se como uma gota de tinta preta em um copo de
água cristalina.
Os batimentos dela, antes tão acelerados,
diminuíram e se tornaram mais espaçados, um a
cada eternidade. Genevieve estava deixando de
existir, como a mais bela flor sendo arrancada
brutalmente, tendo sua vida roubada antes do
tempo. A cabeça dela pendeu para frente, os
batimentos espaçados se extinguiram de vez,
traçando uma linha contínua de silêncio.
Mas ainda havia um último resquício de
consciência, ecos que seriam em breve para
sempre emudecidos, e eles repetiam bravamente
uma única palavra:
Não. Não. Não.
Tal qual uma pedra lançada em um lago,
criando ondulações, a negativa surgia no centro de
Genevieve e se quebrava contra todas as suas
margens.
— Não! — Ethan gritou.
E com a voz dele ecoou um trovão.
Uma tempestade desabou sobre Whitewood
Holt, como se uma foice tivesse rasgado o céu.
Genevieve ouviu cada gota furiosa se
chocando contra o teto, a chamando, puxando a
corda existente no centro do peito dela,
despertando algo que há muito estivera
adormecido, fechado firmemente atrás de uma
porta de ferro. A porta se escancarou, arrebentou
nas dobradiças.
Genevieve voltou rapidamente para a
superfície, abrindo a boca para tomar uma grande
golfada de ar. As conexões perdidas dentro dela se
acenderam como constelações, brilharam e
brilharam até explodirem.
Os olhos dela se abriram e havia luz, e se
antes os seus sentidos eram obstruídos pelo
Devorador, nesse instante ela estava tão sensível
como jamais foi, conseguindo sentir cada partícula
de água existente na atmosfera.
“Afastem-se."
O pensamento dela se concretizou, quando o
ar repleto de umidade ao seu redor tomou uma
densidade diferente e se propagou com a força de
uma onda, derrubando todos aqueles que a
cercavam e arrebentando algumas tábuas do
estábulo.
Os dois ocultistas que a seguravam foram
atirados longe, Genevieve, com as mãos libertas,
levou uma delas até a nuca, abrindo o fecho do
colar, o deixou cair no chão e pisou sobre ele
algumas vezes, até quebrá-lo.
— Bruxa! — acusou o Sr. Lancaster.
Ele se levantou aos tropeços.
— Eu mesmo cuidarei de você! — berrou o
homem.
Puxou o punhal, fez um talho na mão, recitou
palavras rápidas e atropeladas, e desenhou com o
sangue uma cruz invertida na testa. Genevieve viu
claramente quando o espectro do Devorador
abandonou o corpo jogado de Abigail e trotou
faminto até o Sr. Lancaster. O homem manteve o
torso esticado e permaneceu assim até quando o
Devorador penetrou o centro de seu peito, na
forma de um turbilhão afunilado.
Genevieve desviou o olhar rapidamente
para Ethan e Sarah, certificando-se de que estavam
bem e se deparou com Beatrice se esgueirando por
entre eles, puxando as cordas, tentando soltá-los.
Harold gritou com a voz do Devorador,
retendo a atenção de Genevieve, e não havia nada
mais de humano dentro dele, tudo foi perdido
dentro daquela conjunção profana. Seus dedos se
dobravam feito garras e as veias em seu pescoço
estavam saltadas.
Ela se concentrou sentindo a chuva, se
apoderando dessa força que ela sabia ser mais
forte do que o Devorador, a utilizou para se
blindar como um escudo e então o Sr. Lancaster
correu para ela, os dois se chocaram e o impacto
estremeceu o estábulo.
Genevieve permitiu que seus dons a
reivindicassem, transformando-a em um
instrumento e dessa forma ela conseguiu que as
investidas do Devorador fossem bloqueadas, mas
até quando seria capaz de se manter assim?
Lancaster exibiu os dentes, era um difícil
embate entre forças antagonistas que se repeliam.
Genevieve sofreu com todas as sensações que
envolviam Whitewood Holt, mas em uma escala
dezenas de vezes maior, o fedor estava lá, o vazio
da morte, o horror configurado em seu estado mais
puro, entretanto, dessa vez ela soube como se
proteger.
Harold a atacava com os punhos envoltos na
força do Devorador e ela amparava os golpes com
uma superfície circular translúcida em tons de
luar, projetada pela palma da mão, mas houve um
momento em que os olhos dela não foram ágeis
para antecipar o próximo movimento de seu
oponente e Harold a jogou contra o chão.
As mãos dele foram diretamente para o
pescoço da dama, os caninos estavam à mostra.
Genevieve o segurou pelos pulsos, impedindo que
o aperto a estrangulasse e os ossos dele estalaram.
Permaneceram assim, anulados um pelo
outro, até que Genevieve buscou mais
profundamente em si a força do mar e da lua, as
marés que arrastavam embarcações independente
de seu tamanho e imponência.
A luz do luar faiscou em seus olhos, ela
girou o corpo e reverteu as posições, colocando o
homem em desvantagem.
Ela o soltou somente para posicionar ambas
as mãos no centro do peito dele, o homem se
debatia, mas não conseguia tocá-la. Genevieve
fechou os olhos, inspirou profundamente,
mergulhou no mar, deixou que as ondas a
acalmassem, então reabriu os olhos, luz prateada
envolvia ambas as suas mãos e penetravam a pele
de Harold.
— Sou bruxa, sou luz, onde nenhum
pesadelo tem permissão de habitar.
Ele gritou, seu corpo inteiro tremeu.
E Genevieve matou o Devorador de Sonhos.
Ethan a amparou antes que ela caísse, a
retirando de cima do corpo desacordado de
Harold, pegou Genevieve no colo e a apertou
contra o peito. A primeira coisa que fez foi
verificar a respiração dela, certificando-se de que
era regular.
Beatrice correu imediatamente para o pai, o
chamando e chacoalhando seu ombro, Sarah foi ao
encalço da sobrinha, espiando o irmão estirado no
chão com uma expressão que era um misto de
raiva e mágoa.
O restante dos ocultistas fugia, um deles
tratou de abrir a porta do estábulo e passaram pela
abertura feito um furacão, mas não importava,
ninguém parecia disposto a persegui-los.
O administrador ainda não acreditava que o
que seus olhos registraram era real, temia estar
sob efeito da substância que o manteve
adormecido, porém, a sua mente jamais foi
criativa a ponto de elaborar tais cenas, era como
vivenciar um pesadelo, mas nenhum dos horrores
se comparava ao que experimentou quando
acreditou que perderia Genevieve.
O coração de Ethan ainda estava
comprimido e dolorosamente sufocado, vestígios
de quando pensou que seria obrigado a assistir à
mulher que amava morrer diante de si, impotente,
amarrado, tão perto e tão distante, nem em seus
sonhos mais perturbadores ele encontrou
semelhante pânico e jamais se esqueceria da
sensação.
Ethan podia provar o gosto amargo da perda
espalhado em seu paladar e no gelo que se
alastrava em seu estômago. Instintivamente apertou
Genevieve um pouco mais contra o peito, como se
assim pudesse mantê-la segura pelo restante de sua
vida, como se dessa forma ninguém jamais
pudesse ameaçá-los e afastá-los um do outro.
Ela se moveu um pouco, reagindo ao abraço
e piscou, assimilando o que se passava ao seu
redor.
— Leve-me para fora — solicitou com a
voz suave.
Alívio refrescou a alma de Ethan quando a
viu acordada, foi inevitável não sorrir mesmo que
fosse castamente e com resquícios das turbulências
recentes.
— Está chovendo muito — informou.
— Eu sei.
Ethan, ainda atordoado demais para debater
sobre a lógica de se colocarem debaixo do
temporal, acatou o pedido de Genevieve.
Com a dama nos braços, sentindo o quão
leve ela era, Ethan atravessou a porta. Foram
imediatamente encharcados, o administrador
parou, ponderando se era saudável ficarem tão
expostos.
— Não volte para dentro. — Genevieve leu
corretamente as intenções dele.
Assim sendo, Ethan penetrou a chuva, estava
gelada e os ventos eram responsáveis por torná-la
ainda mais fria. Abaixou a cabeça para visualizar
Genevieve, parecia tão abatida, completamente
esgotada.
Como uma dama tão frágil conseguiu
realizar a façanha de parar Harold Lancaster?
Ainda não sabia determinar ao certo o que
Genevieve fez, em dado momento nas mãos dela
brilhou uma luz tão intensa que Ethan teve que
desviar o olhar, não podendo ver o que se sucedeu,
porém ainda ouviu perfeitamente Lancaster gritar
como se estivesse sendo escaldado de dentro para
fora.
Genevieve se amparou no peito dele,
descansando a cabeça ali, de olhos bem fechados.
Ficaram bons minutos em silêncio, até as gotas
diminuírem o ritmo e intensidade, passando de
uma tempestade para uma chuva branda e depois
para um fino sereno.
— Meu irmão descobriu — Genevieve
iniciou, com a voz rouca e hesitante, lágrimas se
mesclavam às gotas de chuva que deslizavam por
sua face. — Minha existência era hedionda para
ele, um sacrilégio, então me colocou no navio e se
certificou de que eu não voltaria a vê-lo jamais.
Havia temor e vergonha no relato, também
um tipo de dor tão profunda que criou raízes e era
difícil de remover após ter se fixado.
— Genevieve...
— Foi isso o que aconteceu, eu tive tanto
medo de contar, mas você descobriu, de qualquer
forma.
Se ela tivesse lhe contado antes, Ethan
acreditaria? Bem, a sua mente analítica e racional
certamente relutaria, mas ele faria o possível para
compreender Genevieve e entendia completamente
os receios dela sobre a situação.
— É difícil acreditar que seres humanos
podem ser tão extraordinários.
Ela riu sem humor.
— Por favor, coloque-me no chão.
Assim Ethan fez e Genevieve abraçou a si
mesma, virou de costas para ele e deu alguns
passos adiante. O vestido se colava ao corpo e dos
cabelos escorria água.
— Deveríamos sair do frio e tratar o seu
braço. — Adiantou-se até ela.
Genevieve se posicionou de frente para ele,
puxou a manga do vestido para cima e mostrou a
pele intacta. Ethan arregalou os olhos, então
segurou o braço dela, passando o polegar no local
onde anteriormente estava o corte, não havia
sequer uma cicatriz.
Surpreendendo-o, ela levantou a manga da
camisa dele, revelando os ferimentos ocasionados
pelas cordas, tamanha a força que empregou ao
puxar os braços para tentar se soltar. Segurou a
mão de Ethan entre as suas e o administrador
sentiu um suave formigar morno no local do
ferimento e viu quando o processo de cura se
acelerou, não deixando nenhuma marca. Era
maravilhoso, como era possível?
Ela repetiu o processo com o outro pulso e
depois seus olhos se encontram, ela foi a primeira
a desviar, desconectando suas peles e dando
alguns passos para trás.
— Compreenderei se desejar se afastar de
mim, agora que conhece a verdade.
— E por qual motivo eu faria isso?
— Ethan, é claro que você fará.
— Salvou as nossas vidas — devolveu. —
Sabe o medo que senti quando vi a possibilidade
de perdê-la? Eu nunca experimentei horror
semelhante em toda a minha existência e eu não
desperdiçaria a oportunidade de tê-la comigo.
Quero estar com você pelo restante de minha vida.
Cobriu o espaço até ela e segurou o rosto da
mulher que amava com ambas as mãos.
— Se eu a tivesse perdido hoje, Genevieve,
eu seria um homem arruinado. — Beijou os lábios
gelados dela brevemente. — Não compreendo
suas habilidades, mas posso compreendê-las.
— Viu o que aconteceu hoje, estar comigo
significa viver com medo. — O empurrou.
— Então eu irei protegê-la.
— E quem irá protegê-lo?
— Você, assim como esteve fazendo esse
tempo todo. Pelo que pude compreender, o
guardião apenas não conseguiu cumprir os desejos
de Harold porque você estava lá, não é verdade?
— Sim, mas não significa que eu também
não possa lhe trazer problemas.
— Problemas existem para todas as
pessoas.
Ela fechou os olhos.
— Comigo é diferente, sempre é —
sussurrou.
Havia tanta dor em cada linha de seu rosto,
Genevieve aparentava tanta solidão, a solidão
decorrente de se carregar um segredo grandioso.
Ethan compreendeu então todas as vezes que viu
melancolia no olhar dela, quando parecia que por
mais que fizessem o possível para incluí-la como
em uma família, ela parecia inacessível.
Percebeu que o segredo era a muralha
invisível que ele identificava entre eles e que a
impedia de experimentar o que poderiam vir a
desenvolver juntos.
— Fique comigo, Genevieve Rose Johnson
— pediu Ethan.
— Não se importa que eu seja uma bruxa?
— Essa característica é apenas uma, dentre
milhares que você tem e eu vou amá-la, assim
como amo as outras milhares.
Aproximou-se.
— Eu amo você, Genevieve. — Levantou o
queixo dela.
— Pensei que me detestaria, que teria medo,
que me atiraria na fogueira ou que me venderia
outra vez. — Soluçou.
— Não diga essas coisas. — Franziu as
sobrancelhas. — Ninguém nunca mais vai magoá-
la ou feri-la no que depender de mim e lamento
que o seu irmão o tenha feito.
Genevieve caiu em um choro ressentido,
repleto de fissuras e estilhaços, deitou a cabeça
contra Ethan e o abraçou. O administrador deixou
que ela chorasse o quanto quisesse, tal qual a
tempestade de há pouco, limpando o mundo com
suas águas.
Ela se recompôs depois, seus olhos
brilhavam e a ponta de seu nariz estava vermelha.
— Eu amo você — repetiu, pois acreditava
que ela precisava ouvir que era amada.
— E eu amo você, Ethan, mas...
Ele não a deixou concluir, tomando os
lábios dela para si. Não sabia que precisava tanto
daquelas palavras até ouvi-las.
— Por favor, diga outra vez — sussurrou
contra os lábios dela.
— Eu o amo.
Beijou-a novamente e tinha gosto de
desespero e medo, era faminto e frenético, trazia o
alívio que Ethan muito precisava, o alento e o
toque de Genevieve, em que podia comprovar que
ela estava inegavelmente viva. Os braços dele a
envolveram pela cintura e a mulher que estava ali
era a única certeza que ele precisava ter.
— Minha tia está chamando vocês. —
Beatrice surgiu no momento menos oportuno
possível.
O beijo foi interrompido, mas o casal
continuou abraçado, Beatrice cruzava os braços
diante do corpo e parecia tão deslocada e, de certa
forma, estava. Ethan poderia dizer que ela estava
arrependida, mas não desejava se precipitar sobre
seus julgamentos em relação à mulher, afinal, ela
os traiu, inclusive a própria tia.
— Já estamos indo — ditou, firme.
Beatrice assentiu com um abaixar de cabeça
e retornou para dentro do estábulo.
— Posso levá-la para Violet Valley antes de
ver o que Sarah deseja — direcionou à Genevieve.
— Não, quero estar presente.
— Tem certeza? Não prefere vestir roupas
secas?
— Estou bem.
— Certo.
Entrelaçou os dedos aos dela e rumou para a
construção, os cavalos estavam agitados e Harold
estava sentado com as costas apoiadas em uma
pilastra e com as mãos amarradas para trás, assim
como Ethan se encontrava antes. Ele parecia
confuso, mas estava desperto.
— Como você conseguiu banir o guardião?
— Havia ódio nas palavras e no rosto dele quando
visualizou Genevieve.
— Não há receita para isso. — A dama
apertou os lábios. — Fiz somente o que me foi
exigido.
— Possui muitos segredos, Srta. Johnson.
— O senhor também.
— Já chega, Harold, cale a boca, já aturei
muito por uma noite — falou Sarah.
— E o que fará agora, minha irmã? Vai me
manter preso aqui para sempre?
— Não. — Sorriu sombriamente. — O
manterei preso em uma cadeia ou em uma
instituição para loucos, você decidirá.
— E sob quais acusações?
— Tentativa de assassinato e tenho
testemunhas.
— Exporia o segredo da Srta. Johnson?
— Não, e se você o fizer, o acuso de
apresentar severos devaneios. Veremos em qual
versão as autoridades acreditarão quando a sua
filha testemunhar contra você.
— Beatrice?
A jovem não sustentou o olhar do pai.
— Pois bem, Sarah, confie nela outra vez,
será questão de tempo até que ela a passe para trás
para obter vantagens.
— A única vantagem que Beatrice terá de
mim é eu não formalizar uma acusação contra ela.
Beatrice continuou calada, assim como os
demais, até que Sarah retomou a palavra.
— Nada será dito sobre esta noite, além do
que eu determinar, preservaremos a Srta. Johnson
e o meu querido irmão. Acredite, será melhor para
você a cadeia do que o manicômio. — Suspirou.
— Agora vamos para a casa, estou congelando
aqui.
— E eu? — questionou Harold.
— Considere esta noite um castigo e uma
oportunidade para pensar no que fez.
Sarah virou as costas e saiu sem olhar para
trás, Ethan a seguiu de mãos dadas com
Genevieve, Beatrice demorou alguns minutos na
presença do pai, então partiu.
Já lá dentro, Sarah se ocupou em fornecer
roupas secas para Genevieve e Ethan, atuando
como uma perfeita anfitriã. O administrador teve
que se contentar com as peças do falecido
Whitewood, mas essa foi a coisa que menos o
incomodou depois de um dia que ele julgaria, no
mínimo, incomum.
Trocou-se em um dos quartos, então desceu
até a sala que Sarah costumava utilizar, a viúva
estava sozinha diante da lareira, sem nenhum sinal
da presença de Beatrice, sentada em uma poltrona.
Ethan se aproximou silenciosamente, parando de
pé ao lado do estofado.
— Harold, Harold... homem tolo.
Sarah suspirou, finalmente expressando todo
o cansaço e tristeza que a envolvia.
— Eu sinto muito.
— Eu também sinto.
Os sulcos na face dela pareciam mais
profundos e Sarah não era mais a viúva de ferro, e
sim uma mulher sozinha que perdeu seu marido,
seus amigos, seu irmão e as pessoas que mais
amava e confiava.
Culpa irrompeu dentro de Ethan. Era uma
noite para verdades e não seria ele a guardar um
segredo, por mais que já tivesse se arrependido e
não nutrisse mais os mesmos objetivos e
ambições.
— Sinto-me no dever de confessar que
também agi mal com a senhora.
— Como? — Virou o rosto para ele.
— Propus casamento à Genevieve somente
para fugir do compromisso com Beatrice e para
que eu pudesse cumprir os seus requisitos.
Sarah voltou a olhar para frente e relaxou na
poltrona.
— Eu suspeitei, é claro, em partes a culpa é
minha por pressioná-lo.
— Mas me apaixonei verdadeiramente por
ela.
— Então case-se.
— Não sei bem se ela aceitaria, após termos
iniciado com tantas mentiras, além disso, ela se
sente insegura sobre o que a presenciamos fazer.
— O segredo dela está seguro comigo, eu
sempre acreditei que existiam coisas demais neste
mundo, além de nossa compreensão, ela não deve
se envergonhar por isso.
— Eu também acho que ela não deve.
— É uma boa moça.
— Infelizmente, houve mais uma mentira que
eu gostaria que a senhora tivesse conhecimento.
— Diga.
— Genevieve não é prima de William
Carter.
— Oh, Deus, onde a encontrou, então?
— Em um local desagradável, o irmão a
deixou desamparada.
— Tantas mentiras...
— Estou profundamente arrependido, Sra.
Whitewood, se eu pudesse mudaria minhas
atitudes, porém, ainda fico feliz por ter conhecido
Genevieve, apesar dos meios.
— Desejo que sejam felizes, creio que todos
merecemos um pouco de felicidade.
— Certamente, mas não me ressentirei se a
senhora optar por encontrar outro administrador.
— Houve uma quebra de confiança,
precisaremos de tempo para aprendermos a lidar
com tudo o que nos ocorreu, mas o emprego ainda
é seu, se desejá-lo.
— Obrigado.
— Está resolvido — murmurou para si
mesma.
Ficaram em silêncio, se aquecendo diante
do fogo, ao se passar cerca de meia hora Ethan
notou que a viúva dormiu. Ele saiu do ambiente,
tendo a intenção de se encontrar com Genevieve,
mas acabou se deparando com Beatrice sentada no
chão, fora da sala que ele estava com Sarah.
Ela estava encostada contra a parede,
abraçada aos joelhos, seu vestido verde estava
amarrotado e molhado, seus cabelos encontravam-
se desgrenhados e os seus olhos estavam
vermelhos, assim como o seu nariz.
— Devo-lhe um pedido de desculpas —
disse ela.
— Desde que seja sincero. — Enfiou as
mãos nos bolsos.
— E é. — Fez uma pausa. — Nunca fui
apaixonada pelo senhor, eu apenas acreditava que
era, deixei meu pai me convencer de muitas
coisas. — Enxugou uma lágrima indevida com a
palma da mão.
— Até de tentar nos matar?
— Envolvi-me demais nos planos dele e
quando vi, já tínhamos chegado até àquele ponto.
O pior era que acreditava nela, ele mesmo
havia acabado de pedir desculpas para Sarah e a
viúva o perdoou, então por que Beatrice também
não poderia estar sendo sincera? Obviamente que
a falha dela fora mais grave, arriscou a vida dele,
a de Genevieve, e isso Ethan jamais esqueceria, no
entanto, não conseguia deixar de sentir um pouco
de pena de Beatrice.
Com um pai como aquele, era provável que
ela tivesse sido orientada desde muito jovem a
fazer o que ele quisesse. Alguém capaz de
escravizar o próprio inferno, não teria
dificuldades em dobrar a filha.
Beatrice deu um soluço mudo e pousou a
cabeça no joelho, seus olhos estavam perdidos em
algum ponto no chão.
— Eu amo minha tia, percebo isso agora que
estou prestes a perdê-la. — Suspirou. — Ela foi a
única mãe que conheci e desperdicei esse
presente.
— Sarah gosta muito da senhorita.
— De nós dois.
— Sim e eu também a decepcionei, mas
teremos que mostrar que aprendemos com nossos
erros através de ações.
— É verdade.
Ethan pensou em falar várias outras coisas,
mas achou melhor terminar por ali.
— Boa noite, Beatrice.
— Boa noite, Ethan.
Genevieve e Ethan mal se viram nos dias
que se seguiram, o administrador chegava tarde de
Whitewood Holt, trabalhando até passar muito do
horário do jantar e ela não deixava de acreditar
que estavam postergando um diálogo muito
necessário: como iriam prosseguir?
A ausência da resposta estava deixando a
dama aflita, declararam o amor que sentiam um
pelo outro, mas isso infelizmente não bastava.
Precisavam delimitar seus próximos passos, pois
seria insustentável ela continuar vivendo em Violet
Valley, além disso, não haveria mais um
casamento, sendo assim, não existiam motivos
reais para ela permanecer em Liverpool.
Lembrou-se de que desejou tão intensamente
partir, mas já não sentia a mesma ânsia, pois o que
ela mais temia aconteceu, se apegou às pessoas
que passou a conviver, Will se tornou seu primo e
Ethan certamente roubou seu coração, tal qual a
mentira que encenaram.
Partir a levaria a perder a nova família que
o acaso lhe presenteou.
Por outro lado, havia tanto para desvendar
sobre seus dons, a sua jornada estava apenas
começando. Genevieve parou diante de uma
bifurcação e era tão injusto que ela não pudesse ter
tudo o que desejava. Deixar Ethan para trás
partiria seu coração, mas se impedir de desvendar
sobre si mesma lhe fadaria a ter que conviver com
as palavras “e se...” ressoando eternamente em
seu interior.
Precisava de orientação, precisava ir até a
praia.
Will não estava em Violet Valley,
provavelmente se encontrava na residência do
Conde de Granville. A dama já havia notado que o
cavalheiro estava passando grande parte de seu
tempo lá, inclusive, na noite em que tudo
aconteceu, facilitando para ela e Ethan lhe
contarem a história, omitindo as partes pouco
críveis, concentrando-se na traição de Harold.
Genevieve, então, avisou somente a
governanta para onde iria, buscou Shadow no
estábulo e cavalgou até a praia.
Era incomum para ela estar ali à luz do dia,
gaivotas pontuavam o céu e vasculharam a margem
do mar em busca de peixes e crustáceos. O ruído
constante produzido pelo Atlântico era revigorante
e abrandava os pensamentos caóticos da dama; o
céu estava cinzento, com pequenas infiltrações de
sol fraco pelas espessas nuvens, mas, ainda assim,
era um belo cenário.
Ao descer da montaria e avançar pela areia,
Genevieve sentiu aquela imediata conexão, estava
mais sólida do que antes. Sentiu algo dentro dela
se revolver, ondas se quebrando contra seu
coração. A pele dela se arrepiou, escutou no
frêmito do vento sussurros de vozes perdidas.
Fechou os olhos e mergulhou dentro de si
mesma, caiu em águas iridescentes e tranquilas,
contra uma vastidão escura que se acumulava ao
redor. Não que pudesse se recordar, mas a
sensação era a de estar abrigada em um ventre.
O que deveria fazer?
— Ouça o seu coração, criança. — Uma voz
soou externamente.
Genevieve poderia identificar a quem
pertencia o som sem a necessidade de abrir os
olhos, mas o fez mesmo assim.
— É um prazer reencontrá-la, Burns.
A mulher se vestia completamente de preto,
os cabelos crespos e longos estavam soltos. Ela
estava descalça, com os pés enterrados na areia, e
seus olhos verdes estavam presos no mar.
— Alegro-me por ter superado o mal que a
cercava, alegro-me ainda mais por ter aberto a
porta de seus dons.
— Obrigada. — Estranhou o elogio, Burns
não era do tipo que os fazia.
— Agora está livre, cumpriu o seu dever
nestas terras.
— Não estou — sussurrou Genevieve, com
a voz rouca.
Burns a encarou dessa vez, afastando os
olhos do mar.
— Meu coração é refém — revelou. — Não
quero deixar quem eu amo, mas sinto que devo
partir.
Ethan era a sua âncora.
— Para onde iria?
— Eu não sei, ajudar a outros que precisam
de mim. — Umedeceu os lábios ressecados. —
Além disso, corro riscos se criar raízes em algum
local, seria questão de tempo até alguém descobrir
a verdade sobre mim.
— Viver como nós vivemos é um risco
constante, mas uma sentença que temos que
cumprir. É a responsabilidade que herdamos de
nossas ancestrais que queimaram no passado, sem
jamais deixarem de exercer suas funções.
— Sim, eu entendo, estou pronta para o que
virá a seguir, porém não imaginei que sofreria
tanto a ter que deixá-lo. — Uma lágrima
escorregou pelo rosto dela.
Burns levantou a mão repleta de marcas e
calos que escreviam toda uma história, uma vida, e
enxugou a lágrima.
— E quem está lhe impondo essa difícil
escolha, além de si mesma, criança?
— Mas como eu faria? Como poderia?
— Deixe que o destino siga o seu caminho,
a única tarefa que possui é a de se manter aberta.
Não tenha medo, as tormentas em sua vida já
passaram. Minha criança espinho, é hora de
florescer. — Ofereceu-lhe um sorriso maternal.
Genevieve fez um gesto positivo com a
cabeça, Burns se moveu um pouco, cobrindo o
espaço até ela devagar e então a acolheu em um
abraço. A dama se deixou embalar, relaxando aos
poucos.
Era difícil florescer.
— Há outras crianças perdidas — iniciou a
mulher, acariciando os cabelos de Genevieve. —
Costumo passar períodos ajudando essas jovens,
pode vir comigo se desejar, mas sempre retorno
para Liverpool, aqui é a minha casa.
— E como eu a encontro? — Genevieve
levantou a cabeça e desfez o abraço.
— Quando for o momento, a ensinarei o
caminho de minha morada, mas até que a hora de
partir chegue, descanse e aproveite a bonança, os
dias não são feitos apenas de tempestades.
Genevieve concordou, deixando que as
palavras se infiltrassem em si. Reconhecia ser
desconfiada e preferia sempre estar preparada
para o pior, mas tinha que aprender a aceitar a
felicidade também e era surpreendentemente
difícil.
— Genevieve!
As duas mulheres se voltaram em direção ao
chamado. Ethan desmontava de seu cavalo e
caminhava para elas.
Burns sorriu para a dama, um sorriso sábio
e irreverente, que rememorava a primeira versão
de Burns que Genevieve encontrou, um tanto
maluca e assustadora.
— Boa tarde — disse Ethan já junto a elas.
— Creio que não conheço a senhora.
— É uma amiga — respondeu Genevieve.
— É um prazer conhecê-la, senhora... —
Elevou as sobrancelhas, a instigando a completar.
— Burns — a mulher se adiantou e segurou
a mão de Ethan com firmeza. — É um prazer, Sr.
Hamilton.
Ele lhe ofereceu um sorriso ao soltarem as
mãos.
— Tenho que ir, mas logo voltaremos a nos
encontrar — falou para Genevieve. — Hora de
florescer — repetiu, antes de virar as costas e
percorrer a faixa de areia para deixar a praia
Ethan piscou e voltou todas as atenções para
Genevieve.
— Eu não sabia que tinha feito uma amiga
— comentou, bem-humorado.
— Você não sabia de muitas coisas sobre
mim.
Genevieve desviou os olhos para onde
Burns deveria estar, já distante, mas não a
encontrou, viu somente uma grande coruja
cinzenta, de olhos verdes intensos, alcançar voo.
Franziu o cenho para a ave, abriu a boca prestes a
falar algo, mas tornou a fechá-la.
— Sarah me dispensou mais cedo hoje, em
recompensa pelos dias que estou trabalhando até
tarde, ela quase me expulsou, alegando que eu
precisava descansar. — Ethan levou a mão até a
nuca, parecendo sem jeito. — Quando cheguei a
Violet Valley, a Sra. Evans me disse que tinha
acabado de sair.
— Sim, eu precisava pensar. — Comprimiu
os lábios, severa.
O administrador deu início a uma caminhada
lenta, Genevieve o acompanhou.
— E conseguiu? — ele questionou com leve
hesitação.
— Um pouco.
Continuaram a andar, mas em silêncio, um
silêncio apenas exterior, pois a mente de ambos
estava cheia e barulhenta.
— Tive medo de ter essa conversa com
você — admitiu ele, pouco depois de já terem
percorrido expressivo trajeto ao longo da praia.
— Eu notei, está me evitando.
— Porque sei o que vai me dizer e eu não
estou preparado para ouvir.
— Sabe?
— Sim, e eu não suportarei que vá embora.
— As sobrancelhas dele se contraíram, a face
toda, na verdade. Havia medo, desespero e
tristeza.
Genevieve identificava bem os sentimentos,
pois estava sendo acometida por todos eles.
— Por favor, não vá. — Encarou-a. — O
que eu precisarei fazer para convencê-la a ficar?
— Eu não sei. — Mordeu o lábio. — Venha
comigo. — Urgência sufocante verteu de cada
palavra.
— Não posso, tenho um emprego. Possuo
uma reserva de dinheiro, ainda assim, preciso
trabalhar.
— E ama o seu trabalho, eu entendo. —
Genevieve assentiu.
— E eu entendo que possa desejar partir,
entendo que realmente nunca esteve em liberdade,
primeiro sob a tutela de seu irmão e depois
cumprindo o trato comigo. Entendo que não se
prende uma tempestade, ainda assim... — A voz
dele falhou.
— Ainda assim, não quer que eu parta.
— Não consigo sequer viver com essa
aflição, faz dias que não durmo. Diga que me
escolhe, que quer ficar comigo.
— E eu quero, mas... — Engoliu em seco.
— Mas...? — exigiu, completamente
atormentado.
— Preciso ajudar a outros, meus dons não
pertencem somente a mim, eles possuem um
propósito.
— Ajude aqui.
— Estaria preparado, acaso as pessoas
descobrissem o que eu sou e desejassem me
queimar em uma fogueira?
— Eu queimaria com você.
— Sim, eles provavelmente queimariam a
nós dois. — Riu sem humor.
— Quantas vezes preciso dizer que não me
importo? Que estou ciente dos riscos e, mesmo
assim, desejo ficar com você, me casar e tudo
mais, despertar e você ser a primeira imagem que
vejo e também a última de meu dia. — Segurou a
mão dela e entrelaçou seus dedos. — Quero amá-
la sob as estrelas, diante do mar e durante
tempestades, quero muito mais do que vivemos;
veja tudo o que ainda podemos viver.
Genevieve fechou os olhos, inspirando a
brisa salgada, então sentiu o toque morno da palma
de Ethan na lateral de seu rosto.
— Como faríamos para vivermos juntos? —
ela questionou em voz baixa, quase introspectiva.
— Venha e descubra.
Genevieve reabriu os olhos, um sorriso
matreiro se desenhava no rosto de Ethan, ele
encostou suavemente os lábios nos dela e retomou
a caminhada, dessa vez com passadas ágeis. Ficou
momentaneamente confusa com a súbita mudança
nele, tampouco compreendia por que ele começou
a andar tão rapidamente.
— Espere-me! — pediu.
— Venha!
Ethan quase corria e Genevieve teve que
levantar as saias para conseguir acompanhá-lo.
Pararam rente ao que parecia ser o limite da
praia, grama se mesclava à areia e engrossava
conforme subia em uma pequena declividade. O
administrador encontrou uma discreta trilha lateral
que permitia que subissem, ele tomou a dianteira e
esticava a mão vez ou outra para ajudar
Genevieve.
No topo da pequena colina, havia uma casa.
A madeira era corroída pela maresia, as gelosias
pendiam precariamente e a pintura era desbotada.
— Comprei-a há alguns dias — comentou
Ethan.
Os batimentos cardíacos de Genevieve
aceleraram e os olhos dela se arregalaram,
compreendendo o que o gesto significava.
— Iniciarei a reformas e gostaria que
morasse comigo, como minha esposa. — Diminuiu
o espaço entre eles. — Sei que não começamos da
maneira correta, mas tenho esperanças de que eu
possa fazer diferente desta vez. — Buscou a mão
dela e a beijou. — Diga sim para nosso futuro
juntos, Genevieve.
— Eu adoraria, mas não posso abandonar a
minha outra parte. — As palavras saíram
engasgadas, lágrimas rasas turvaram sua visão.
— Não a abandone, e não me abandone. —
Posicionou as mãos na cintura dela.
— Eu teria que me ausentar por alguns
períodos, para ajudar a quem precisasse de mim,
talvez outras como eu.
— Desde que sempre volte para o lar.
— Aceitaria essa condição? — Piscou,
atordoada.
— Não desejo ser sua prisão, eu nunca quis
isso. Quero que encontre tudo o que busca, porém
não acho que deveríamos abrir mão do amor que
temos um pelo outro.
— Eu também não. — Sorriu. — Eu também
não, Ethan Hamilton.
Um enorme fardo saiu de seus ombros e
Genevieve só identificou o real peso dele quando
foi destituída de tal carga. Alegria em seu estado
mais puro a preencheu, luz que não permitia
nenhuma escuridão.
Acariciou a mandíbula de Ethan e se
inclinou lentamente para ele, fechando os olhos
devagar. Os lábios deles se encontraram em um
beijo de sabor doce, mel dourado escorrendo
preguiçosamente, tinha gosto de promessas.
— Ah, Genevieve, por que me torturou
tanto? — Apertou-a com força contra o corpo.
— Eu não compreendia que ambas as
escolhas poderiam coexistir, não em todos os
casamentos habituais.
— Nada sobre nós é habitual.
Beijaram-se novamente e dessa vez era
completa entrega, dois corações igualmente
abertos, linhas que se conectavam e se tornavam
elos inquebráveis. Nada mais poderia ameaçá-los,
pois já haviam tomado uma decisão, se apossariam
do mais belo futuro que poderiam escrever juntos.
Era florescer.

Enroscados preguiçosamente, nus sob os


lençóis, Genevieve sentia a saciedade se espalhar
morna por seus músculos. Ethan brincava com um
cacho de cabelo negro, distraído, enquanto se
espremiam na cama apertada do apartamento.
Após as escolhas que realizaram na praia,
firmando um compromisso, e após elaborarem
planos fantásticos para a nova residência, que
contaria com uma biblioteca e um espaço
reservado para um herbário, Ethan e Genevieve
ainda não queriam retornar para a casa de Will,
preferindo irem diretamente ao apartamento para
desfrutarem mais um pouco da presença um do
outro.
Era um oportuno refúgio de sonhos para se
comemorar, Genevieve sentia-se no lugar mais
perfeito do mundo. Os braços de Ethan eram
quentes em contato com a cintura dela, e a palma
dele se acomodava na curvatura do quadril da
dama como se houvesse um encaixe. Ela inspirou
profundamente, capturando o perfume
característico de Ethan, tão intenso diretamente da
pele e entrelaçado aos lençóis.
Sentia-se tão leve que poderia flutuar, talvez
se ele não a estivesse segurando, ela flutuaria. Não
diziam que as bruxas podiam voar?
— Podemos ter um noivado curto desta vez.
Os proclamas já foram feitos, não há motivos para
adiar — ponderou ele.
— Eu concordo, não suporto mais ser sua
noiva.
— Não se queixou sobre ser minha noiva
agora há pouco — provocou.
Genevieve acariciou a panturrilha dele com
o pé.
— Temo que nossas atividades não estão
inclusas em “noivados", apenas em casamentos já
estabelecidos.
— Tem razão, mas novamente, não a ouvi se
queixar. — Sorriu com ares de indecência.
Genevieve adorou aquele sorriso, lhe dava
vontade de estapear Ethan e beijá-lo sem cessar,
ainda mais com ele mostrando tanta pele e com os
cabelos castanhos tão revoltos; era quase um
convite.
— Seu orgulho masculino implora para que
eu admita isso, não é?
— É bom ter o ego massageado, às vezes.
— Já deveria saber que não faço tais coisas
Ethan sorriu e se abaixou para beijar
Genevieve, suas línguas se movimentaram
maliciosas, despertando o corpo da dama para
uma sensação que ela já passou a identificar como
desejo, um ponto dentro dela se contraiu,
implorando por mais. Mas Ethan interrompeu o
beijo antes que ele se transformasse em algo além,
finalizando com um suave roçar de lábios na
bochecha dela.
— É linda, sabia disso?
— Obrigada. — Enrubesceu.
Apesar de estarem nus e abraçados, o elogio
foi a primeira coisa que lhe causou timidez desde
que chegaram ao apartamento.
— Posso perguntar uma coisa? — Ethan
afastou alguns fios de cabelo do rosto afogueado
dela.
— Claro.
Ele se ajeitou, apoiando-se melhor no
cotovelo.
— Como seus dons funcionam?
Genevieve piscou, assimilando a pergunta
inesperada. Ele não parecia temeroso ou qualquer
outro sentimento de aspecto negativo, o que de
certa forma a deixava mais confortável para falar
abertamente sobre um assunto que ela guardou com
tanta cautela durante tanto tempo. Porém ainda lhe
causava estranhamentos a ausência da necessidade
de ter que se esconder de alguém.
— Eu os identifiquei ainda muito jovem, não
os compreendia muito bem, até hoje não
compreendo. No início, eu sentia a necessidade de
puxar algo para fora, como se fosse um fio. Além
disso, passei a ter visões, avisos...
— Teve tal pressentimento em Whitewood
Holt?
— Sim, desde a primeira vez que pisei lá.
— Eu me recordo... — As íris se agitaram,
pescando as memórias. — Então foi isso o que
aconteceu, por isso ficou tão nervosa — sussurrou,
preenchendo as questões na sua própria mente.
— Sim.
— Bem, é de fato intrigante. Confesso que
não acreditava nos ocultistas de Sarah, tampouco
na fé dela.
— Deve ter sido difícil para você
experienciar tudo o que ocorreu naquela noite.
O semblante de Ethan se obscureceu, como
se uma nuvem pairasse acima.
— A experiência mais difícil que tive, não
somente aquele dia, mas em toda a minha vida, foi
a possibilidade de perdê-la.
Genevieve pousou a mão sobre o centro do
peito dele, buscando uma maneira de confortá-lo, e
sentiu as batidas firmes soando contra a palma. A
mão de Ethan cobriu a dela completamente e
permaneceu ali.
— Já passou — afirmou Genevieve.
— Assim espero. Harold apodrecerá na
cadeia e Beatrice jamais foi tão dócil como é
agora, está vivendo com Sarah e praticamente
beija o chão que a tia pisa, porém os ocultistas
sumiram e não há garantias de que possam retornar
para lhe fazerem mal.
— Duvido que eles voltem, é provável que
prefiram recomeçar as suas vidas longe daqui, mas
não sei se consigo acreditar na completa redenção
de Beatrice.
— Eu também não, mas mesmo com ela
ainda morando em Whitewood, nós não nos
vemos, ela mal deixa o próprio quarto.
— Espero que não esteja se isolando para
tramar algo.
— Se o fizer, a deteremos com
antecedência. — Capturou a mão de Genevieve
que estava pousada em seu peito e levou o
mindinho à boca, mordendo a ponta.
O gesto provocou um sorriso em Genevieve,
mas ela ainda pensava em Beatrice; seria
ingenuidade confiar outra vez, mas sequer
precisava, com tudo às claras o novo noivado com
Ethan seria diferente do anterior.
— Sarah teve pena dela — comentou o
cavalheiro. — A viúva tem um coração muito
afetuoso, por mais que não pareça.
— Ela perdoou as suas mentiras, isso é de
se levar em consideração.
— Sorte a minha.
— E sorte a de Beatrice.
— O melhor a fazermos é esquecê-la.
— É difícil com ela ainda tão próxima das
nossas vidas. — Não conteve o desgosto na voz.
— Está com ciúme, minha adorável
bruxinha?
Genevieve não estava esperando ser
chamada por tal título, a desestabilizava ouvir
“bruxa" sendo proferida por aqueles lábios, mas a
forma que a palavra dançou nas curvas sensuais e
atrevidas, e a maneira carinhosa com que foi dita,
removeu parcelas do peso que a alcunha outrora
carregava.
— Estou sendo somente cautelosa —
respondeu um tanto tardiamente.
Os dedos de Ethan foram para baixo do
lençol e ele lhe acariciou a lateral do corpo. Os
pensamentos sobre Beatrice se dispersaram em um
piscar de olhos, Genevieve só conseguia se atentar
ao toque e a sensação da mão de Ethan deslizando
por sua pele.
Carícias de seu futuro marido. Céus,
realmente se casaria com Ethan e seria por amor, o
destino traçava linhas surpreendentes.
E Ethan também.
Ah, ela estava sensível a cada linha que ele
habilmente traçava em seu corpo nesse exato
instante, para cima e para baixo, depois círculos.
Impaciente, Genevieve o puxou para ela, para que
pudessem, mais uma vez, se perderem um no outro.
Uma tenda fora colocada no jardim de
Violet Valley, havia algumas pessoas sob ela, mas
os olhos de Genevieve foram prontamente para
Ethan. Ele estava tão bonito, o sorriso
deslumbrante despertado pela entrada dela, era
responsável por torná-lo o homem mais belo do
mundo; seus trajes eram elegantes e seu cabelo
estava penteado com muito esmero.
Will estava igualmente bem-vestido,
posicionado próximo ao amigo. Piscou para ela, a
seu modo irreverente, e Genevieve sentiu imensa
gratidão por ele estar presente nesse momento tão
importante.
A dama deu mais um passo, apertou nas
mãos o buquê de flores de laranjeira, que
combinavam com a sua grinalda, elaborada com as
mesmas flores, assim como imaginava se casar
quando mais jovem.
Era fim de tarde, porém o pôr do sol não foi
de muitas cores, mas isso não a incomodou, o fato
de não ter chovido e impedido a ideia de um
evento externo, já era de grande valia.
O entorno não estava demasiadamente
enfeitado, Genevieve preferiu valorizar o encanto
natural do jardim, de modo que a única grande
alteração feita no ambiente, foi a adição da tenda e
das cadeiras, para que os convidados ficassem
mais confortáveis.
Finalmente, ela alcançou o centro da tenda,
se juntando a Ethan, para que pudessem realizar os
votos matrimoniais. Mesmo enquanto o vigário
conduzia a cerimônia, Genevieve lançava olhares
para Ethan, querendo eternizar na memória cada
segundo daquele dia, cada expressão que se
desenhasse no rosto de seu amado.
Ao redor deles, havia poucas pessoas, além
de Sarah, os convidados se resumiam aos Carter,
recém-chegados de Londres.
Daisy e Lauren, as irmãs de Will,
rapidamente contornaram as defesas que
Genevieve costumava erguer entre ela e aqueles
que acabava de conhecer. Daisy era charmosa e
astuta, Lauren era adorável e gentil, e as duas
sabiam como deixar o irmão mais velho maluco,
algo que conquistou a imediata admiração de
Genevieve.
O Sr. Carter tinha os marcantes olhos azuis
que compartilhava com os três filhos. O homem
possuía o comportamento mais sutil da família, era
reservado e preferia não participar das conversas
esfuziantes das mulheres Carter, mesmo assim ele
sempre sorria por trás do jornal que lia enquanto
ouvia os seus debates.
Já a Sra. Carter era tão gentil quanto à sua
caçula e acolheu Genevieve prontamente, ela foi a
primeira a escutar a história toda do leilão e seus
desdobramentos, sendo contada pela boca de Will,
na presença de Ethan e Genevieve, e não a julgou,
declarando que Genevieve era de fato, uma prima
perdida que eles reencontraram, dando o assunto
como encerrado de uma vez por todas.
Era surpreendentemente bom ter uma nova
família, era revigorante se permitir criar raízes e
tecer afeto por pessoas que ela sabia que poderia
contar em qualquer situação que precisasse. Era
algo novo para ela, acordava receios do passado,
mas Genevieve não poderia viver sempre com
medo, desconfiando de todos e esperando sempre
que o pior acontecesse; se assim fizesse, iria
acabar desperdiçando os presentes que recebeu.
A cerimônia foi concluída, os olhos de
Genevieve umedeceram com a emoção. Se casou
com Ethan, ele era seu e ela era dele, nada
importava além disso.
Escutou alguns vivas partindo dos
convidados, os festejos eram todos sinceros,
particularmente entusiasmados por parte das irmãs
de Will, que não poupavam esforços em vibrarem
pela felicidade do casal.
Genevieve sorriu abertamente, aceitando a
felicidade que imperava dentro dela e procurou os
olhos de Ethan, para que pudesse dividir a alegria
com ele, assim como fariam pelo restante de suas
vidas. O marido retribuiu seu olhar e tomou-lhe a
mão, conduzindo-a para fora da tenda, até o
caramanchão.
Por insistência de Ethan e da Sra. Carter,
alguns músicos foram contratados e eles
começaram a tocar.
O marido posicionou a mão sobre a cintura
dela, acariciando-a levemente com o polegar.
Genevieve pousou a mão sobre o ombro dele e,
respirando fundo, seguiu o comando de Ethan,
iniciando a dança.
Estava um pouco nervosa, com medo de
tropeçar, com todos ali olhando, porém essas
impressões se atenuaram até sumir. A visão do
marido não permitia que a atenção de Genevieve
ficasse retida em qualquer outra coisa que não
fosse ele, aqueles olhos de formato amendoado e
de íris cor de florestas, os cabelos castanhos na
altura dos ombros largos e todos os seus demais
traços, que o tornavam tão perfeito.
Genevieve identificou crescer dentro dela a
luz dourada, a sensação de bem-estar provocada
quando estavam juntos, quando se tocavam e
percebeu que esse elo estava mais sólido.
Enquanto dançavam, a tarde se esvaiu e os
primeiros pontos brilhantes passaram a surgir no
céu, aumentando de número conforme o céu
escurecia, até que a lua irrompeu, lançando suas
felicitações em forma de luz. E Genevieve desejou
que as dádivas de sua protetora se estendessem
pelo seu casamento, preservando-o como uma
união repleta de amor e cumplicidade.
Genevieve tinha um irrefreável sorriso no
rosto, e ela vinha sorrindo muito ultimamente. Seus
olhos assimilavam cada novo detalhe no progresso
da reforma na casa da praia, que ainda não fora
nomeada.
Os tons da residência eram claros e o
telhado possuía uma cor cinza quase azul, que
nesse instante captava os tímidos raios solares que
fugiam pelos espaços entre uma nuvem e outra.
Havia uma bela varanda circundando toda a
entrada e Genevieve trataria de colocar uma
cadeira ali quando se mudasse, pois a vista era o
que verdadeiramente a encantava, o oceano estava
tão próximo, banhando o litoral inglês e, ao mesmo
tempo, o americano. Ela não deixava de pensar
que era uma conexão com sua terra natal.
Durante todas as vezes que iam visitar a
futura residência, Genevieve não tinha vontade de
retornar para Violet Valley. Adorava estar na
companhia de Will, e após o regresso dos Carter,
Genevieve passou a se sentir ainda mais parte da
família, mas já estava na hora de habitar sua
própria casa.
Depois de ter se casado com Ethan,
pretendiam ir para o apartamento, mas a Sra.
Carter declarou que seria inconcebível, de modo
que aguardariam as reformas serem feitas em
Violet Valley; isso já fazia cerca de três meses,
mas seus anfitriões não davam indícios de que se
sentiam incomodados com a longa estadia.
No entanto, ela mal podia esperar para viver
ali, sentir o beijo salgado do vento em todas as
manhãs e adormecer escutando a canção do mar.
Genevieve deu alguns passos, se aproximando do
limite da declividade, deixando a casa às suas
costas e voltando-se em direção à praia. Fechou os
olhos, sentindo intensamente a vibração que fluía
em torno dela, sentindo a força que compunha a
perfeição da natureza, regendo cada nota dourada
da primorosa sinfonia do mundo.
Podia escutar as vozes ancestrais
sussurrando seu nome, reafirmando que ela
pertencia àquele espaço e que na sua nova morada
não haveria locais para pesadelos, apenas para os
mais belos sonhos.
Logo Genevieve foi envolta por trás por
braços cálidos. Ela alargou o sorriso,
aproveitando a sensação de ser abraçada por seu
marido.
— Está gostando de como a casa está
ficando? — Ethan questionou próximo ao ouvido
dela, puxando-a das memórias.
— Está perfeita, já podemos nos mudar. —
Virou-se para ele.
Ethan riu.
— Ainda não, meu amor.
— Eu gostaria de aproveitar o máximo
possível.
O máximo possível antes que Burns a
convocasse para partir.
— Teremos tempo suficiente.
Nunca seria suficiente, poderia estar
eternamente com Ethan e ainda iria desejar mais.
Por outro lado, a sua jornada com Burns também
lhe despertava empolgação, estava ansiosa para
descobrir mais sobre si mesma e ajudar quem quer
que precisasse de seus dons.
Mas enquanto o momento de iniciar a nova
aventura não chegava, ela desfrutaria de seu
presente com o homem que amava.
Ethan acariciou a bochecha dela e tinha uma
expressão que Genevieve determinaria como
satisfação.
— O que foi? — ela perguntou entre
risadas.
— Eu não imaginava que casamentos
poderiam ser felizes.
Mais risadas escaparam dela.
— O solteiro convicto foi enlaçado. —
Apoiou os braços nos ombros dele de modo
relaxado.
— E eu sequer percebi quando a mudança
veio, mas agradeço por ter acontecido.
— Eu também mudei muito — confessou em
voz baixa.
— Foram caminhos que precisávamos
percorrer para que pudéssemos estar exatamente
aqui hoje.
— Tem razão. — Genevieve sorriu. — Eu o
percorreria novamente e quantas vezes fosse
necessário.
Pois os trajetos, por mais que fossem
dolorosos, em algum momento, moldavam
corações, lapidavam almas e as tornavam mais
resistentes. Despertavam coragem em horas
inesperadas e, ao final, traziam recompensas.
Com o espírito tranquilo, Genevieve
percebeu que disse a verdade, ela esteve onde
precisava estar, as adversidades a fizeram
identificar a grande força que ela sequer tinha
conhecimento de que trazia dentro de si, além
disso, conheceu Ethan e pôde firmar um laço com
o seu grande parceiro de vida.
Lentamente, seus lábios se encontraram,
manifestando o amor que queimava como uma
chama acesa dentro de seus peitos, e que brilhava
como uma linha que os conectavam.
Burns, em sua forma de coruja, assistia de
longe à protegida pela lua. A senhora sabia que
sua pupila estava animada para partir, mas alguém
que fora abençoada com o dom da cura, precisava
primeiramente curar a si mesma, e a jovem fazia
isso exercendo a sua felicidade.
A melhor maneira de uma bruxa honrar a sua
tradição, era sendo primeiramente feliz.
FIM.
Mais uma vez, venho agradecer a todos que
contribuíram para a realização de um novo livro.
O caminho é difícil, mas tenho a sorte de possuir
muitos anjos que tornam o sonho de ser escritora
possível.
Não posso deixar de mencionar meu
parceiro de vida, Carlos Eduardo, que com todo o
seu carinho, paciência e compreensão não me
permite desistir, por mais que eu queira isso às
vezes. Quando a falta de fé, o cansaço e o
desânimo batem, é você que está lá segurando a
minha mão.
Em todos os livros que já publiquei, Di
Acordi é uma figura de muita força e importância,
mas nesse livro em especial, devo gratidão
duplicada. Amiga, muito obrigada por ter topado
betar as Bruxas Vitorianas. Sem os seus
comentários perspicazes e certeiros, as bruxas não
teriam o mesmo encanto. Pela Deusa, a senhora
passou um ano inteiro com a gente! É tempo
demais e eu valorizo muito o que fez por nós.
Agradeço a Larissa Gomes, por termos
trilhado esse caminho juntas. Sempre terei as
Bruxas Vitorianas guardadas em um lugar especial
no coração, que bom que trouxemos essas histórias
para o mundo. A troca possibilitada pelo projeto
proporcionou uma grande bagagem de
conhecimento e crescimento, o percurso por si só
já foi inestimável.
E o que seriam dos autores sem os seus
leitores? Minha amiga, Samanta Galvão, eu me
diverti tanto com os seus comentários lá no
Wattpad, assim como os da Heloisa Monteiro, e o
das outras leitoras que acompanharam lá na
plataforma. Esse contato é primordial para que
tenhamos entusiasmo em criar nossas histórias.
Muito obrigada, Bárbara Pinheiro, por
aperfeiçoar sonhos e sempre cuidar dos meus com
tanto carinho. Se não fosse por você esse livro não
teria nenhuma crase, brincadeiras à parte, contar
com sua revisão é o que me deixa segura para
publicar.
Agradeço a Naiara Bacelar, por fazer de
cada lançamento um evento tão especial, através
do Pecadora Literária. Agradeço ainda mais por
todo o seu cuidado e empenho em divulgar e
resenhar livros nacionais, vejo como você luta
todos os dias contra a maré para que tenhamos
mais lugar ao sol. Já deixo aqui meu
agradecimento a todas as parceiras literárias, são
vocês que fazem nossos livros, a literatura
nacional ainda tão frágil, voarem mais longe e
alcançarem novas conquistas.
Por último, mas não menos importante,
agradeço a você leitor, que aceitou embarcar nessa
jornada mágica e misteriosa, espero que ela tenha
conseguido encantá-lo.
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autora
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