Você está na página 1de 77

FICHA CATALOGRÁFICA

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem
autorização da autora e da editora.
Este livro foi composto na ordem em que seu conteúdo foi escrito, não sendo permitida a modificação de
conteúdo em sua forma original, nem por seus editores, nem por quaisquer outros elementos pertinentes à
obra que não seja a autora.
Proibida a comercialização e reprodução parcial ou integral, em qualquer meio, sem prévia autorização
por escrito.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Câmara Brasileira do Livro.
Leitora Beta: Marina Antoniassi.
Revisão: Carmen Machado
Ilustrações: Michel Gomes.
Diagramação: Patrícia Criado.
Designer de Capa: Natalia Carvalho

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO

Criado, Patrícia
Amor e Sombras - As crônicas de Júpiter
livro 1,5

Literatura Brasileira 2. Fantasia 3. Realismo Mágico


1ª Edição, São Sebastião – SP

ISBN: 978-65-00-76328-7

Direitos Reservados ® Patrícia Criado • 2023, São Paulo – Brasil

Copyright © 2023 Patrícia Criado


Classificação indicativa:
+ 16 anos

Alerta de gatilhos:
O livro contém cenas gráficas de cunho sexual, violência, guerra e morte.
Para o meu irmão, que me ensinou
que os personagens mais incompreendidos
têm as melhores histórias
e que o amor não é menos poderoso
por ser monossilábico.
Nota da autora

EI, VOCÊ! Não você que comprou o livro bonitinho na Amazon (quem comprou,
merece todo o meu amor), mas sim você, varão abençoado de Deus, que está lendo
este livro por qualquer meio que não seja a Amazon. Saiba que está pirateando o
meu trabalho e passando-me a informação de que ele não merece ser reconhecido.
Ao piratear, você está dizendo que o meu ilustrador não merece ganhar dinheiro pelo
trabalho dele e que a minha revisora também não. Ao piratear, você destrói meu sonho
como escritora, porque a escrita é uma profissão — muito mal paga no Brasil — e se
você que é o meu fã não a valoriza, quem vai valorizar? Por isso, mesmo que tenha
baixado este livro em algum lugar indevido, eu peço humildemente para que feche
ele e compre na Amazon. É baratinho, o preço de uma coxinha, e está disponível
gratuitamente no Kindle Unlimited! Eu agradeço, a literatura nacional agradece e o
equilíbrio financeiro deste investimento — muito alto, inclusive — também
agradecem profundamente!
Agora, vai lá comprar, meu alecrim dourado, porque a escrita é por amor, mas
as contas que eu preciso pagar não! <3
Continuando meu recado, desta vez para todos vocês, amados leitores:
Este livro é um extra comemorativo pelo aniversário de 1 ano de Interion – As
crônicas de Júpiter, e deve ser lido na sequência do primeiro, porque contém muitos
spoilers (depois não diga que eu não avisei!).
Ele estava engavetado há um bom tempo, pois eu sentia que precisava contar
mais sobre a origem da Kiara, mas não conseguiria colocar tudo dentro do livro I ou
II, então este extra caiu como uma luva!
Além disso, também incluí cenas deletadas do livro I que foram cortadas por não
haver espaço, então vocês finalmente vão saber o que aconteceu entre Zion e Sirena
no elevador do Palácio Real e também verão o resgate da Kiara quando ainda era um
filhote.
Dito isso, chega de falatório. Desejo a vocês uma ótima leitura e espero que
gostem deste projeto tanto quanto eu. Beijinhos de luz estelar. Com carinho,
Patrícia Criado.
PS: Esta é a minha redenção por aquele final desesperador do livro I.
Ou não.
CAPÍTULO 1
Amor e sombras

Ela estava lá quando o apocalipse começou.


Era uma meia-alma nascida do ventre de Ariel, a Deusa da Guerra, em uma
tentativa solo de ter filhos sem precisar do seu consorte e parceiro, Tyrael. O termo
“meia-alma”, ou “wyvern”, era uma definição dada pelos cinco Deuses pela raça ter
apenas o gene da sua mãe, sendo assim considerada um experimento incompleto,
cujas essências mental e física não eram iguais às dos Deuses.
Seu corpo era animalesco e repleto de escamas azuis, que a recobriam desde o
pescoço comprido até a cauda cheia de espinhos. Caminhava apenas sobre as duas
patas traseiras, porque as dianteiras eram acopladas à envergadura das asas
membranosas
Por nascer diferente, foi segregada e, junto dos seus muitos irmãos meias-almas,
a criatura foi selada no subnível do Divino, um lugar escuro e sufocante sob a
superfície, cujo único brilho eram seus olhos nas trevas.
Era apenas uma wyvern de escamas azuis espreitando na escuridão do
isolamento quando sua mãe tentou procriar novamente, dessa vez com a ajuda de
Tyrael. O resultado foi o nascimento dos arcanjos: os gloriosos filhos da Deusa da
Guerra e do Deus da Sabedoria.
Vieram à existência em corpos semelhantes aos dos Deuses e asas tão lindas
quanto a aurora, além de possuírem almas inteiras, o que, de início, despertou um
sentimento amargo no peito primitivo da criatura. O problema é que, diferente dela e
de seus irmãos animalescos, as tais crianças perfeitas tinham a dádiva mais preciosa:
a liberdade.
Por anos no escuro, a besta azul ruminou aquele sentimento abrasivo, sem
compreender de fato o que era. Se compreendesse, saberia que era inveja, mas o que
uma wyvern, nascida e criada no silêncio de uma mente solitária, entendia de palavras
ou até mesmo sentimentos?
Nada. Eram apenas deduções.
Assim, do canto esquecido da morada dos Deuses, a wyvern assistiu à ascensão
dos dois irmãos: Angel, a Chama da Guerra, e Oriel, a Lâmina Fria; sempre afastados
um do outro, pois tinham no coração a fúria da mãe, causando mais problemas do
que soluções.
E a wyvern azul... Bem, ela continuava sem qualquer propósito ou escolha.
Passava os seus dias deitada ao lado de uma parede cheia de pequenos orifícios, por
onde assistia aos eventos transcorridos no Salão dos Prazeres. Em seu âmago, um
vazio abrasador surgia no intuito de tragá-la de dentro para fora e tal incômodo só
diminuía quando Angel ou Oriel desciam os níveis do lugar para alimentá-la. Aqueles
momentos eram os melhores da sua existência, fosse pela comida, fosse pela
companhia. No entanto, assim que partiam, tal vazio retornava, parecendo querer
esmagar-lhe as entranhas e a wyvern se punha a observar pelas frestas silenciosas
mais uma vez.
Por eras, sua vida permaneceu a mesma. Ao amanhecer, era alimentada; ao
entardecer, entrava em brigas com os outros wyverns pelo melhor lugar da parede de
buracos; e, na hora mais escura da madrugada, assistia aos cinco Deuses promoverem
festas, embriagarem-se e acasalarem.
Havia dois casais entre eles: o primeiro era Ariel, a Guerra, e Tyrael, a Sabedoria,
pais dos arcanjos alados, seus maiores orgulhos; o segundo era Lauriel, o Deus da
Vida, e Muriel, a Deusa do Amor, cujos filhos eram numerosos e habitavam tantos
planetas que seria impossível nomear todas as suas raças e cores. Mas, para a meia-
alma, a mais curiosa e empolgante era Anabel, a Deusa da Morte, que vivia distante,
com o olhar apático, tendo as sombras em seus ombros como única companhia.
A wyvern só via brilho na feição da Deusa quando, distraída, a entidade deixava
seus olhos vagarem por Lauriel. E ela reconhecia aquele sentimento. Era fome.
Os dias passaram monótonos até que um evento abalou o equilíbrio do cosmos.
Anabel, a Deusa da Morte, deitou-se com Lauriel, o Deus da Vida, e dessa união
germinaram seres tão sombrios quanto a noite e famintos como a ponta de uma espada,
aos quais os Deuses nomearam de voracious.
Os voracious mal haviam nascido quando os Deuses incumbiram Angel e Oriel
de aniquilar a nova raça, pois tais criaturas alimentavam-se da energia vital de outros
seres, consumindo toda a vida do planeta que habitavam e consequentemente
exterminando os filhos de Lauriel e Muriel.
Na primeira batalha da guerra entre arcanjos e voracious, a wyvern azul foi
convocada para lutar na linha de frente. Aquela foi a primeira vez que pôde sair da
escuridão e sentir o vento entre as asas. Seus olhos azuis, curiosos e rápidos, foram
testemunhas da destruição do mundo e assistiram ao universo expandir-se em
vermelho, enviando poeira cósmica pelo espaço quando os filhos da guerra venceram
os filhos da morte em um combate sangrento.
No entanto, tais seres já haviam contaminado outros planetas, espalhando seu
grande mal e iniciando uma corrida de destruição que ficou conhecida como A Guerra
do Apocalipse.
Na época, a besta azul não passava de uma meia-alma faminta, cuja sede por
aventuras extrapolava o limite do que era saudável para si mesma. E era por isso
que, após se mostrar útil na primeira batalha e ganhar a liberdade de sair do subnível
para ver a grandeza do universo, passou a viver grudada aos calcanhares de Angel e
Oriel, quase como uma sombra à espreita, pois sabia que onde eles estivessem haveria
batalhas, e onde elas estivessem, ali estaria a glória.
Não que ela soubesse o que significava aquela palavra, mas a buscava como se
fosse o elixir da vida, afinal, sua Deusa, e mãe, sempre dizia antes de um combate
para que seus filhos lhe trouxessem vitória e glória. De imediato ficara confusa, pois
imaginava que as duas palavras significariam a mesma coisa, mas, depois de um
tempo de lutas infinitas contra os filhos da morte, compreendeu que a vitória era fácil
e só dizia respeito a ganhar, não importava como. Mas a glória? Ah, a glória era
magistral.
E com ela vinha a liberdade para vagar entre os mundos, sentindo o vento em
suas asas e a luz dos astros celestes aquecendo aquele frio que os anos no subnível
conquistaram. Sabia que não deveria almejar a guerra, pois ela não era de forma
alguma bonita, mas a liberdade de galgar as estrelas entre uma batalha e outra era
como um sonho de verão para as meias-almas, e quem conquistasse a glória poderia
vagar livremente até mesmo em períodos em que não houvesse confrontos.
Ocorre que só se conseguia tal honra sendo a melhor e mais forte. Com isso,
faminta, ela lutava como um demônio alado na busca de conseguir matar o máximo
de voracious que conseguia. O corpo recoberto por escamas era implacável e as asas
moviam-se como escudos blindados contra o ataque do inimigo. Por dias incontáveis
ela lutou, matou e afundou-se até o pescoço em rios de sangue negro, apenas porque
isso lhe faria ser notada. Na linha de frente, comandou as tropas dos wyverns e
batalhou ao lado de Angel e Oriel, fazendo com que os mundos ruíssem ao bater de
suas asas.
Um por um, os planetas eram reduzidos a cinzas e, quando a corneta da Deusa da
Guerra soava, a wyvern estava a postos, tão faminta pela glória da matança quanto era
pela carne que a divindade lhe dava. Após uma guerra, quando voltava para o Divino
sendo aclamada pelos Arcanjos que passaram a apreciá-la, prostrava-se aos pés da
Deusa e ganhava um afago sobre as escamas, então era alimentada e autorizada a voar
livre pelas estrelas. Naqueles momentos, sua existência valia a pena, ainda que as
imagens de seus irmãos menores presos nas trevas do subnível amargassem seus dias.
Então chegou aos seus ouvidos a informação de que a Deusa da Guerra, Ariel,
promoveria um lugar especial para a mais gloriosa criatura da raça, um posto
privilegiado pelo qual qualquer wyvern brigaria até o último suspiro: a posição do
alfa, que ficava aos pés da Deusa.
O posto ficaria no Salão Celestial, a superfície do Divino, onde, além de sempre
estar na presença das cinco entidades, ainda poderia olhar o universo infinito e
apreciar as estrelas, sentindo o vento cósmico fluindo pelas suas asas e a luz dos astros
celestes aquecendo suas escamas. Seus olhos brilharam quando Ariel mencionou tal
lugar e, de um dia para o outro, ele se tornara sua maior obsessão. Não tardou para
conquistá-lo, já que era a melhor entre os seus irmãos, e então sentou-se ali, ao lado
do trono de Ariel, guardando-a como se fosse seu maior tesouro.
Em poucos dias os outros wyverns perceberam o privilégio do posto alfa, mas a
besta azul era tão forte e havia passado tanto tempo cultivando esforços para a glória
que nenhum outro wyvern conseguia lhe tomar a posição — ainda que um deles, um
macho de escamas pretas e asas tão grandes quanto as dela, estivesse sempre a um
passo de conseguir.
Foi no final das batalhas que tudo mudou.
Inúmeros wyverns morreram nas últimas guerras contra os voracious e os que
restaram estavam tão desesperados por luz que pareciam doentes e insanos em seus
túmulos de escuridão. Mas não a wyvern azul, que agora era a favorita dos Deuses.
Por passar tanto tempo ao lado deles, já compreendia sua linguagem, assim como o
que fazer para agradá-los.
E ela os agradava. Estava sempre em busca de fazer o que lhe pediam sem
questionar, assim como Angel e Oriel.
Foi este, então, o motivo de sua queda.
Quando as guerras finalmente cessaram, só havia um planeta sobrevivente, ainda
que contaminado pelos filhos da morte. Os Deuses não queriam destruí-lo, então
uniram-se para tentar salvá-lo, criando uma barreira de poder com a energia dos seus
olhos. A wyvern obviamente não compreendia muito como eles fariam aquilo, pois
os assuntos dos Deuses eram tão incompreensíveis para ela quanto o nome de todos
os sentimentos. Ela só entendia de voos e batalhas e, como não haveria uma, preferiu
ficar guardando o trono no Salão Celestial. Seus olhos fixos nos astros reluzentes,
desejosos como sempre.
E foi ali que viu Anabel caminhar pelo salão estrelado, silenciosa como um
câncer.
Ostentava um vestido longo feito de sombras e salpicado por luz estelar, cujo
tecido era tão transparente que revelava mais do que escondia. Usava um tapa-olho
sobre a órbita esquerda e os cabelos brancos eram tão lisos que lembravam um véu
ao redor do seu corpo. No centro do seu peito, um molho de chaves tilintava contra
a pele branca como a neve.
No entanto, o que mais chamava a atenção da wyvern era a expressão da Deusa:
triste e apática. Um olhar que ela só encontrava em seus irmãos confinados na
escuridão.
Anabel, surpresa por vê-la ali, examinou a criatura com um interesse descarado.
Seu único olho brilhou, ao passo que seu semblante ganhava vida. Mas a wyvern
não era tola quanto ao intuito da atenção. Sabia que a Deusa só estava vendo-a como
um objeto e, ainda que ela não entendesse muitas coisas, sabia reconhecer a eras de
distância quando alguém queria algo.
Afinal, era exatamente por isso que a wyvern fora criada por Ariel, sua Deusa
e mãe. Porque ela sempre queria algo.
Durante aquele momento de avaliação, a criatura percebeu que a Deusa da Morte
parecia assustada. O medo era algo tão familiar em seus dias quanto o bater das suas
asas na brisa fria do horizonte.
Ainda que a wyvern não soubesse, Anabel estava procurando uma forma de
fugir, porque estava prestes a ser punida pela traição que cometeu ao se deitar com
Lauriel. E como Tyrael colocara uma barreira de poder ao redor do Divino,
bloqueando sua passagem e impedindo que ela abrisse um portal de sombras para
longe dali, Anabel estava presa.
Quando os Deuses descobriram o seu ardil, Ariel foi a primeira a ceder à ira para
partir em retaliação. A Deusa da Guerra jamais aceitaria um ataque tão direto à sua
irmã oposta, Muriel, Deusa do Amor. Ambas sempre se defenderiam, desde quando
concebidas no ventre do Divino — até porque guerra e amor eram os dois lados da
mesma moeda. Mas o castigo desejado foi evitado por Tyrael, que, com toda a sua
sabedoria, convenceu Ariel a acalmar-se e esperar, pois todos eles precisavam unir-
se para salvar os mundos.
Contudo, agora tudo estava acabado e a Deusa sabia que seria punida, pois, ainda
que Muriel fosse a serenidade e o acalento de uma chama, Ariel era todo o calor
destrutivo das labaredas.
Com o único olho brilhando ao perceber o tamanho da sua sorte, Anabel encarou
a maior wyvern, mais rápida e mais feroz, além de ter nascido com a capacidade de
quebrar barreiras de poder. Estalando os dedos, a Deusa materializou em suas mãos
uma enorme peça de carne, expondo-a ao olhar da fera que já salivava.
— Aceitas uma barganha? — questionou, aproximando-se e acomodando sobre
o degrau do trono a peça suculenta. — Eu lhe ofereço comida em troca de me levares
para um passeio pelas estrelas.
Por um momento a wyvern cogitou a proposta incrível que lhe foi oferecida,
porque era boa demais para ser verdade. A Deusa queria alimentá-la e ainda montá-la
para um passeio em pontos celestiais? Soava surreal e ela — ingênua e impulsionada
pela fome insaciável — correu para atendê-la, sem mais explicações, assim como tudo
o que fazia para estar nas graças do Divino.
Afinal, Anabel era uma Deusa, o que poderia haver de errado?
Curvou-se diante da divindade, permitindo que ela subisse em suas costas e
prendesse-se às escamas por filamentos de sombras que a estabilizou perfeitamente.
Alçou voo sem dificuldade, achando incrível o fato de Anabel não lhe chicotear ao
dar comandos, algo que Ariel fazia questão a cada curva ou mudança de ritmo, e
atravessou a barreira tão facilmente que mal percebeu sua presença até que fosse
rompida.
Por dias galgaram a escuridão infinita, visitando galáxias em ruínas e estrelas
tão grandes quanto a fera jamais acreditou que pudesse existir. Batia suas asas
membranosas numa euforia sem igual, porque nunca lhe fora permitida tamanha
liberdade. Sempre que se cansava, a Deusa alimentava-a com banquetes exuberantes
de todo o tipo de carnes que pudesse existir e então retornavam ao passeio.
Quando finalmente pararam, a anos-luz de distância, em um lugar frio e coberto
de gelo, estavam tão longe de casa que a wyvern não saberia dizer se conseguiria
voltar sem ajuda. Aquilo lhe causou um aperto nas entranhas, mas Anabel a assegurou
de que estava tudo bem e que agora ela poderia brincar no céu celestial por quanto
tempo desejasse.
Feliz, acreditou, porque – novamente – aquela era uma Deusa.
Viveram naquele lugar de gelo e sombras por tempo o suficiente para que a
wyvern se esquecesse de que um dia sentiu fome ou medo de ser enclausurada na
escuridão. Sendo a Deusa da Morte ou não, Anabel era boa com ela, melhor do que
qualquer outro ser divino. Assim, acompanhada da mulher de vestes negras, a wyvern
sentiu paz em sua eterna fome.
Certamente não estava saciada, mas ao menos não lhe doíam as entranhas com
o desejo de mais — fosse comida ou qualquer outra coisa que ainda não soubesse
nomear.
Com o silêncio do confinamento, Anabel acabou se aproximando da wyvern e
iniciando uma conversa. Cantou para a criatura canções tão lindas quanto as estrelas
cadentes que surgiam no céu, além de histórias magníficas sobre o seu trabalho em
guiar as almas do mundo mortal. Quando seu repertório de contos terminou, as duas
já eram tão próximas que a Deusa finalmente lhe falou sobre a sua eterna solidão.
Nesse dia, estavam acomodadas dentro de uma cratera em um pequeno planeta
inabitável e a wyvern enrolava-se ao redor da Deusa, servindo como um encosto para
as costas frias da divindade. Sombras translúcidas dançavam sobre o corpo da fera e
naquele ponto ela já estava tão acostumada com a presença das gavinhas de sua Deusa
que até mesmo gostava. Com a cabeça sobre o colo da mulher, ouviu atenta toda a
narrativa sobre como Anabel amava seus filhos e como fora obrigada a ajudar a matá-
los para que os descendentes de Lauriel e Muriel vivessem no único planeta que
restara. Triste, ela disse à fera que só restaram três deles e que seus futuros
caminhavam rapidamente para a extinção. Ela sabia que era errado desejar que seus
filhos prosperassem quando isso significava a extinção das outras espécies e
destruição total daquele universo, mas também odiava o fato de vê-los morrer presos,
afinal, que tipo de mãe desejaria o mal aos próprios filhos? Ao fim da história, colocou
as mãos sobre o peito e confessou que a solidão que sentia agora era comparada a
um vazio na alma e que não conseguia ser preenchido nem pelas mais belas canções
ou banquetes.
A fera levantou a cabeça, atônita. Os olhos enchendo-se de um entendimento
mudo, pois ali, pela primeira vez, ela compreendeu o que havia de errado em sua vida
e de repente aquela fome em seu âmago ganhara um nome: solidão.
Naquela noite, enquanto aproveitavam o calor uma da outra, a Deusa olhou
profundamente em seus olhos e a wyvern soube que agora não era vista como um
objeto, mas sim um ser vivo.
— Se conseguires me perdoar pelos meus pecados anteriores, aceitas ser minha
amiga?
A wyvern azul devolveu-lhe o olhar profundo. Não sabia o que era perdão, afinal,
nunca ninguém havia lhe pedido isso, mas entendia a expressão no rosto da Deusa.
Era arrependimento.
Aproximou-se com cautela e então esfregou o nariz áspero no ombro da
divindade. Se pudesse falar, diria-lhe que o passado estava há anos-luz de distância
e o que importava eram as estrelas que elas ainda desbravariam juntas. O fato é que
aquela Deusa nunca lhe fez nada de mau, pelo contrário, ela via a wyvern como uma
companheira.
Anabel abraçou seu pescoço com os braços gélidos e suaves, encostando a testa
contra a sua, ainda que a diferença de tamanho entre as duas fosse gigantesca.
— Serás minha amiga de agora em diante até que o universo nos chame —
sussurrou, acariciando-lhe o topo da cabeça.
E foi assim que a wyvern descobriu mais uma palavra: amizade. Um elo tão forte
quanto os seus dentes de marfim.
Por anos voaram juntas pelo cosmo. Anabel, mesmo foragida, ainda aparecia vez
ou outra no Vale da Lua, um lugar que apenas ela poderia acessar com as sombras.
Ficava em um buraco negro no universo, cujo horizonte era cercado por dez luas de
tamanhos diferentes. Ali havia uma ponte de arco-íris por onde as almas atravessavam
da vida para a morte. Se conseguissem atravessar a ponte sem caírem, Anabel as
recepcionava no além-vida, mas, se caíssem, iam parar no Abismo, o lugar das almas
perdidas. Uma vez no Abismo, só Anabel poderia destrancar as portas inferiores e
retirar alguém de lá, algo que raramente acontecia. Era no Vale da Lua que a Deusa
cuidava dos mortos, guiando-os em direção à travessia para o Santuário, onde Lauriel,
o Deus da Vida, preparava-os para a reencarnação.
E todos os dias a wyvern azul esperava deitada sobre a entrada da ponte do arco-
íris, pois, sendo um lugar único da morte, não poderia adentrá-lo. Mantinha as asas
cruzadas em frente ao corpo e a cabeça repousando sobre elas, observando a Deusa
de longe, cumprindo seu trabalho. Sentia-se extremamente contente por ser útil ao
carregá-la de um lado para o outro.
Entretanto, foi em uma noite qualquer que tudo começou a dar errado.
Naquele dia, Anabel estava montada nas suas costas e sua risada ecoava no
infinito, linda como uma constelação reluzente. Ao lado das duas, um wyvern feito de
sombras brincava de pega-pega voando em seu encalço, pois até mesmo as sombras
reconheciam-na como amiga e agora tomavam formas animais para alegrá-la sem que
a Deusa ao menos pedisse. Estavam sobrevoando uma estrela vermelha quando os
raios vermelhos começaram a surgir na curva do horizonte. A criatura azul estacou
no ar, batendo as asas assustada para se manter parada e viu o wyvern de sombras
se desintegrando ao seu redor, enquanto um medo dilacerante dominava a face da
Deusa da Morte.
A meia-alma estremeceu ao clarão que se seguiu e suas escamas se arrepiaram de
tal forma que pareciam querer desgrudar da carne e fugir para longe, porque aqueles
raios só poderiam significar uma coisa: Ariel, Deusa da Guerra e portadora dos raios
vermelhos, estava em uma caçada. E pelo que Anabel lhe contara, Ariel estaria furiosa
com as duas. Com Anabel, pela traição e por apropriar-se de sua melhor criatura, e
com a wyvern azul, por ter ajudado a Deusa a fugir e permanecer com ela.
Aterrorizada, Anabel ordenou-lhe que voasse o mais rápido possível. Assim,
fugiram pela escuridão, tendo as sombras da Deusa como um véu de invisibilidade.
Aqueles foram dias de terror, nos quais seu coração batia como tambores quase
colapsando pelo esforço, até que, cansada, a wyvern aterrizou em um lugar ainda mais
longínquo. Um pequeno astro branco. Dessa vez, o clima era tão frio que a criatura
mal conseguia controlar o tremor em seus ossos.
Seus olhos encheram-se de temor porque, mesmo longe, os resquícios dos raios
ainda as incomodavam vez ou outra, sondando o paradeiro de ambas. E a wyvern se
desesperava toda vez que isso acontecia, perguntando-se o que aconteceria caso Ariel
pusesse as mãos em sua amiga.
Se não bastasse o medo, o frio daquele lugar era insuportável. Aos poucos,
perdeu o prazer em voar e foi definhando, sem conseguir comer ou dormir. Viveram
assim por mais alguns anos, geladas devido ao clima, mas aquecidas como nunca por
terem uma à outra.
Em uma noite, enquanto a wyvern dormia enrolada ao redor da sua Deusa, os
raios mais uma vez as encontraram. Em pânico, as duas alçaram voo, fugindo com
dificuldade devido ao estado debilitado da criatura e, quando estavam saindo da
atmosfera do astro, um raio vermelho atingiu o flanco direito da wyvern,
ricocheteando nas escamas sem causar danos, mas lançando as duas pelos ares.
Deusa e criatura rodopiaram no céu em um frenesi para se estabilizarem e,
quando finalmente planaram no vento, avistaram Ariel, a Guerra, surgindo no
horizonte montada no wyvern negro, o mesmo com o qual a wyvern azul brigava pela
posição alfa. Os cabelos flamejantes da divindade flutuavam ao redor do seu torço nu
como fogo em combustão e carregava no semblante um ódio ardente. Em seu encalço
vinham os arcanjos, voando sozinhos com suas asas divinas.
Com a mão esquerda a Deusa puxou um fio incandescente da sua saia divina, que
retinha uma carga gigantesca de poder, e criou um arco. Com a direita ela apanhou
mais fios vermelhos e materializou um punhado de flechas. O coração da wyvern
gelou no peito, pois aquele era o poder de Ariel em sua forma mais forte e pura: a arte
de criar armas capazes de matar até mesmo um Deus.
Em segundos inúmeras setas dispararam em direção a wyvern que manobrou
seu corpo em giros perfeitos, ziguezagueando em direção ao infinito, em uma corrida
desesperada pela própria vida. Saíram da atmosfera do astro e estavam disparando
pela escuridão do cosmos quando algo negro surgiu em sua visão periférica. A wyvern
azul teve poucos segundos para entender que a criatura preta estava planando ao seu
lado, sem muito esforço e mais rápido do que ela mesma conseguia voar, afinal, ela
estava realmente muito debilitada. Sobre as costas da fera, Ariel viajava de pé,
prendendo-se à criatura por cordas do seu poder vermelho e agora apontava uma lança
escarlate na direção da fera azul.
Vendo que não conseguiria voar mais rápido, a wyvern decidiu despencar em
queda livre e desceu rodopiando pelos ares, apenas para encontrar Angel alguns
metros abaixo, apontando uma flecha para o seu peito.
Desviou por uma fração de centímetros da entidade, as asas inclinadas
resvalando na mulher e, quando isso aconteceu, a arcanja soltou a flecha que viajou
diretamente para o alvo.
Uma seta de poder arcano herdado da Deusa da Guerra. Algo capaz de acabar
com a sua vida imortal em apenas um bater de asas.
Gritou, sabendo que não conseguiria fugir do golpe, mas em segundos as
sombras cobriram-na e materializaram-nas alguns metros dali, longe o suficiente para
ganharem tempo de fuga. No entanto, Oriel já as aguardava no horizonte com sua
lança em riste, numa emboscada final. Quando se deram conta, já era tarde demais e
a lâmina havia sido lançada sobre Anabel.
Afoita, a wyvern mudou sua posição de voo de tal forma que sua asa direita
protegesse a lateral. Foi o centro da couraça membranosa que a lança prateada de
poder arcano perfurou, saindo inteira pelo outro lado e abrindo um buraco ali. A
wyvern gritou, perdendo altitude devido ao ferimento e, quando isso aconteceu, o
wyvern negro já a esperava logo abaixo.
Agora não havia como fugir, teriam que lutar. As duas feras trombaram no céu
estrelado, brigando com unhas e dentes enquanto tentavam causar ferimentos letais
uma na outra. Assim que se embolaram, Ariel enlaçou o pescoço da wyvern azul com
um chicote vermelho fluorescente que criou com o seu poder e pulou em direção à
Deusa da Morte.
Não houve tempo de a wyvern reagir quando já estava ocupada tentando não
ser atingida pelos dentes do macho, mas, assim que Ariel moldou seu poder para
transformar o chicote em uma espada e partiu para atacar Anabel, as duas sumiram
em sombras.
Entre mordidas e grunhidos, a Wyvern viu as duas divindades caindo pelo
espaço, em uma confusão de poderes preto e vermelho que se misturavam emitindo
explosões pelo céu. No momento em que Ariel atacava com a espada, chicote ou
qualquer arma que pudesse conjurar em segundos, Anabel desaparecia e contra-
atacava com as sombras. A distração foi o suficiente para que a fera negra afundasse
seus dentes no pescoço da wyvern, que se virou de frente para o macho e fechou as
unhas da pata contra o seu peito, rasgando a couraça de cima a baixo. Rugindo de dor,
a besta negra soltou-a apenas para mudar a posição e então atacou a asa da wyvern.
Rodopiaram em queda livre pelo céu, atacando-se com selvageria. O fato é que
não se importavam com as consequências de uma luta insana, afinal, eram wyverns
e viviam com o peso da morte sobre as costas. E naquele dia, em específico, havia
muito em jogo para ambos. Com a asa presa nos dentes da criatura, a besta azul viu
que era tarde demais para tentar voar, então o atacou do mesmo modo, mordendo
e rasgando o couro que recobria a envergadura da asa para que ele também ficasse
incapacitado de voar e fugir da situação em que a colocou. Mutilou suas asas até que
o ar em seus ouvidos começasse a zunir devido a velocidade da queda e ambas as
bestas estivessem caindo sem controle em direção à gravidade do astro branco onde
a fera azul passara os anos com Anabel.
Ela já havia despencado dessa forma uma vez, quando batalhou em um planeta
cujos carniçais haviam sido moldados a partir de seres voadores e sabia como tirar
vantagem da situação. Assim, no último rodopio rumo ao solo, ela cravou suas garras
no peito da fera e abriu as asas em ruínas, destruindo-as no processo. O vento bateu
contra o couro esburacado, tingindo sua visão de vermelho. Ouviu os ossos estalarem
na articulação quando a manobra desesperada diminuiu a velocidade da queda,
fazendo com que ela se estabilizasse o suficiente para colocar a besta negra por baixo,
amortecendo o impacto. Foi assim que os dois gigantes despencaram, levantando uma
espessa camada de brumas e causando uma imensa rachadura no gelo, o que quase
fragmentou o astro.
Quando abriu os olhos, estava jogada dentro de uma cratera causada pela sua
colisão com o solo. O macho jazia logo embaixo do seu corpo, desacordado devido
à queda. Em alerta, a fêmea azul levantou-se, zonza, sangrando e com as duas asas
destruídas. Olhava para o céu, tentando enxergar as Deusas, mas nada via, porque um
véu de neve e destroços do solo recobria toda a paisagem.
Soltou um grunhido agudo e esganado que fez suas cordas vocais arderem ao
clamar por Anabel, mas apenas o silêncio a respondeu. Sabia que a Morte era forte e
arisca com as sombras, mas também sabia que a Guerra jamais perdera uma batalha
e agora ela temia por Anabel com cada escama do seu corpo.
O que seria do universo se a Morte morresse? Pensava que provavelmente seria
o fim dos tempos, o total desequilíbrio do ciclo da vida, morte e reencarnação.
Desesperada, arrastou-se para longe da cratera, procurando um lugar onde o céu
estivesse mais limpo, e foi entre as brumas densas que viu a figura de vestido negro
caminhar.
A pele branca estava coberta pelo seu próprio sangue azul que ainda escorria da
lateral da cabeça no local em que fora acertada por Ariel e o tapa-olho fora perdido
durante a batalha, deixando à mostra a cavidade ocular seca e oca.
As duas olharam-se por um momento sem acreditar que estavam mesmo vivas,
e então a Deusa lançou-se ao encontro da fera, abraçando sua cabeça.
— Oh, minha doce criatura, o que causei a você? — Afastou-se levemente e
inspecionou as asas do animal. Estavam em ruínas e daquela forma não poderiam
mais fugir.
Sobre suas cabeças, as duas conseguiam ouvir as asas dos arcanjos procurando
por elas nas brumas.
A Deusa olhou a wyvern com o único olho inundado por lágrimas.
— Não podes mais permanecer comigo, velha amiga. Minha única forma de
fugir daqui é abrir um portal para o Abismo, mas, para onde eu vou, você não pode
me acompanhar.
O coração da wyvern gelou, se é que ainda havia algo em seu corpo que já não
estivesse parcialmente petrificado. Queria dizer à Deusa que não a deixaria ir sozinha
e que, se fosse preciso, morreria, se isso significasse ficar ao lado dela no Abismo.
Porém, Anabel uniu sua fronte à da amiga, parecendo muito pequena diante do
tamanho da wyvern, e abraçou o focinho dela, mesmo que não conseguisse englobar
a cabeça toda.
— Sua alma não é como as do plano material. É apenas meia e pertence a Ariel.
— A mulher afastou-se, olhando-a profundamente. — O único modo de sobreviver
a isso é voltar para casa com ela. Ainda que Ariel a castigue, será melhor do que vir
comigo.
Mais uma vez a besta negou, então, quando um raio se ramificou logo acima
de suas cabeças, iluminando o céu como um sol ardente, Anabel beijou seu focinho
azulado em despedida e desvaneceu nas sombras, deixando-a sozinha, mas não antes
de sussurrar:
— Se um dia precisar da minha ajuda, clame às estrelas, elas mostrarão a você
o caminho até mim.
Não demorou para que Ariel, Angel e Oriel surgissem das brumas, portando
armas de poder divino apontadas para o peito da criatura. A wyvern azul não mostrou
resistência quando a Deusa, também ensanguentada, mandou os arcanjos surrá-la.
Ao fim do castigo, Angel e Oriel arrastaram-na de volta pelo universo, jogando-a
no Salão Celestial perdido em meio às estrelas. Ali, seu sangue espirrou como tinta
vermelha sob o solo, quando foi açoitada mil vezes por um chicote de poder arcano
que os guerreiros conjuraram. A cada chibatada, a criatura olhava as estrelas distantes,
buscando forças para aguentar até o fim. Suportou apenas por ser imortal e, quando
tudo terminou, foi confinada novamente ao subnível do lugar. Dessa vez, em um nível
ainda mais baixo destinado aos prisioneiros, no qual não havia frestas na parede ou
irmãos com quem pudesse compartilhar o seu calor, somente ela, sua fome abrasadora
e a escuridão. Estava muito longe da glória e da visão dos astros que fizeram seus
dias dignos de serem vividos.
Pela primeira vez em sua longa existência, a wyvern desejou o acalento de uma
vida mortal e curta.
CAPÍTULO 2
O crepúsculo dos wyverns

A criatura jamais saberia mensurar o tempo, ainda que contasse cada um dos
segundos passados na escuridão, até o momento em que foi finalmente convocada ao
patamar superior do Divino.
A luz que a tocou quando saiu pela porta do cativeiro já não tinha a beleza de
outrora e fez seus olhos doerem a ponto de querer esconder-se da claridade. Pelo
caminho, percebeu que os seus irmãos já não estavam mais trancafiados ali embaixo
e até mesmo o cheiro deles havia se dissipado no tempo, o que a fez questionar o que
mudara no universo para tal milagre acontecer.
Subiu vagarosamente. As pernas fracas quase não conseguiam levá-la por um
degrau adiante e as asas esburacadas já estavam tão atrofiadas que pendiam aos seus
pés, arrastando-se como um manto sujo. Quando não conseguiu mais subir, Angel
colocou-a sobre as costas.
— Será a única bondade que terás de mim, criatura, porque, ainda que tenha nos
traído, era a minha preferida no passado.
A wyvern franziu o cenho. Ruminara por longos anos o seu ato de “traição” e
chegara à conclusão de que não fez nada de errado. Traição, pelo que ela entendeu,
era comprometer-se sentimentalmente com alguém e então trocá-lo por outro. Como
Lauriel fez com Muriel, ao acasalar com Anabel. Mas a wyvern nunca entregou seu
coração à Deusa da Guerra, então como alguém que nunca teve escolha poderia trair?
Sobre os ombros de Angel, foi carregada até a superfície. Agora estava sob as
suas amadas estrelas, que permaneciam tão belas quanto recordava. Mais à frente
avistou Ariel, cujos cabelos vermelhos pareciam uma chama viva sob o brilho dos
astros. Usava uma saia esvoaçante feita do seu poder escarlate, mas essa permanecia
sendo a sua única peça de roupa no corpo, pois os pés descalços e os seios nus eram
sua marca registrada. Ao seu lado, o wyvern negro rondava-a como uma sombra,
crispando as escamas quando Angel a colocou diante da Deusa. O outro estava
novamente com a aparência perfeita. Asas inteiras com couro negro brilhante,
provavelmente curadas pelo poder regenerativo da Deusa ou dos Arcanjos.
Também avistou Tyrael ali em cima. O Deus da Sabedoria vestia-se com um
longo manto azul e estava sentado à beira do Olhário, um poço no centro do Salão
Celestial, cujas águas calmas não refletiam o céu, mas mostravam-lhe diversas
imagens que poderiam ser tanto do presente quanto do futuro.
A fera azul voltou-se para Ariel e o semblante da Divindade mais sério e
controlado que o habitual fez suas escamas retorcerem-se.
— Aproxime-se, criatura traiçoeira — disse a Deusa, segurando um chicote
vermelho feito do seu poder divino.
Quando a wyvern caminhou lenta demais, Ariel estalou o chicote em suas costas,
abrindo um corte que a fez urrar de dor, então a arrastou pela asa direita, forçando sua
cabeça sobre o Olhário para que ela pudesse contemplar as águas. Depois, a Deusa
comandou o wyvern negro para se sentar ao lado da azul e este respondeu caminhando
silencioso até ficarem lado a lado.
— Eu tenho uma missão para vocês dois. — Os olhos azuis da wyvern correram
pelo ambiente, astutos e famintos. A calma tensão presente na voz da Deusa dava à
criatura mais arrepios do que seus ímpetos furiosos. Mesmo assim, a expectativa de
receber ordens a fez ansiar pela glória dos tempos antigos e, se tivesse um propósito,
sabia que não voltaria para as trevas. — Uma missão importante, na qual todos os
seus irmãos têm falhado.
Atenta às palavras, empertigou-se. Seria capaz de executar qualquer ordem que
lhe fosse dada, ainda que seus irmãos não conseguissem. Não por ser a melhor, visto
que agora era um amontoado de músculos atrofiados, mas porque sua vontade era tão
grande que moveria mundos inteiros.
Ariel curvou-se levemente sobre o Olhário e aos poucos a água ali movimentou-
se, mostrando a imagem do único planeta com vida que sobrara após a Guerra do
Apocalipse.
— Como sabem, há muitos anos, eu e os meus quatro irmãos prendemos os
voracious neste planeta, segregando-os dos mortais que habitavam ali com uma
barreira feita com o poder dos nossos olhos. — A mulher apontou toda a extensão
da muralha que partia o mundo em dois. — Mas essa barreira foi afetada pela junção
de dois olhos e uma criatura sombria esgueirou-se para o outro lado. Mandei Angel
e Oriel para lidar com o problema, mas a barreira também impede que eles adentrem
o mundo em seus corpos, assim como também não deixaria wyverns como vocês
entrarem.
Ariel parou, então sinalizou para Tyrael mudar a visão do Olhário. Nas águas
turvas, surgiu a imagem de bestas disformes em um campo de batalha em chamas.
Não eram como os wyverns, grandes e escamosos, estes pareciam mais com uma
junção desordenada de vários tipos de animais do plano terrestre.
— Por isso, Tyrael e eu sussurramos no ouvido de um feérico deste planeta todas
as coordenadas para que ele criasse criaturas animalescas compatíveis com as almas
dos wyverns e também com força e tamanho o suficiente para poderem batalhar contra
os carniçais, os súditos dos voraciuous. Nós as batizamos de “quimeras” e, como
vocês podem ver nas imagens, o feérico teve muito sucesso em seus experimentos —
a Deusa acariciou a face do Deus da Sabedoria, que sorriu para ela, ainda concentrado
no Olhário. — E quanto a Angel e Oriel, que também não podem descer portando os
seus corpos originais, conseguimos progredir criando um receptáculo perfeito. Ela é
uma das inúmeras filhas da linhagem de Oriel, porém, a única descendente a herdar o
meu poder divino. — A cena que se sucedeu no Olhário era a de uma jovem debilitada,
vestida em trapos, que vagava acorrentada a outras igualmente enfraquecidas. —
Ainda que hoje seja fraca como um sussurro, portará no futuro uma fração do meu
poder e por isso eu a batizei de “neta do apocalipse”. Uma filha dos meus filhos e a
única mortal detentora do meu poder divino.
A Deusa enrugou o nariz em desgosto ao ver a garota furtando comida do lixo.
— Esse receptáculo é a chave para o fim da Guerra do Apocalipse, mas há a
probabilidade de não sobreviver até a vida adulta e então teremos um problema ainda
maior. Por isso, eu preciso que pelo menos um de vocês dois a proteja até que ela esteja
pronta para ser usada. Seus irmãos, aqueles cabeças de merda, assim que acordam no
plano material, esquecem-se da missão à qual foram enviados e tornam-se capachos
dos feéricos lá. — Novamente a imagem das águas voltou-se para as pertinentes
quimeras bestializando. — Se um de vocês for capaz de cumprir essa missão, eu darei
todas as glórias ao campeão e então terá seu lugar de volta aos meus pés.
O wyvern preto não esboçou nenhuma reação perante as palavras, mas os olhos
da wyvern azul brilharam, assim como a fome em seu âmago remexeu-se, pronta para
ser sanada. Olhou para o céu, vasto e infinito e para as estrelas que um dia foram suas
amigas. Sabia que, em algum lugar lá em cima, Anabel ainda estaria à sua espera e,
para poder vê-la novamente, teria que ser livre mais uma vez. Então, voltou-se para
Ariel com a resposta estampada em cada escama eriçada do seu corpo. Aceitava a
missão, não só porque não tinha nada a perder, mas pela ganância de obter a liberdade
que a colocaria nos céus mais uma vez.
Curvou-se, tocando a cabeça no solo, sentindo os músculos tremerem apenas por
aquele pequeno esforço.
Ariel soprou sobre os dois wyverns e ela se sentiu desvanecendo de seu físico,
afastando-se do espectro dos Deuses, até cair pelo Olhário em direção à sua missão.
Antes que sua consciência se desfizesse de vez, pôde ouvir o sussurro imperioso
da Deusa da Guerra:
— Lembrem-se, wyverns... — Um último eco ficou gravado em sua mente e
ainda permaneceu ali por um tempo quando acordou em um corpo branco, macio e
muito diferente do seu. — Protejam o receptáculo.
CAPÍTULO 3
Cemitério de quimeras

Os flocos de fuligem sangravam do céu recobrindo o campo de cadáveres.


Aos olhos de um poeta, a cena poderia se passar por uma tentativa nobre dos
Deuses de encobrir com cinzas a morte do mundo, mas, para qualquer um que tenha
participado da batalha, o cenário era apenas a realidade amarga da guerra: destruição.
Entre as árvores carbonizadas e as ruínas de uma instalação Drutes, os poucos
soldados sobreviventes do exército de Interion arrastavam corpos para as chamas
famintas de uma pira improvisada no campo de batalha. Para qualquer lugar que se
olhasse só havia fumaça, terra coberta por destroços e tantos mortos que a fogueira
seria alimentada por três dias até que todos fossem incinerados.
Zion, o general dos exércitos de Interion, abaixou-se ao lado do cadáver de um
homem que conhecia desde a infância e arrancou do uniforme dele o broche de
identificação, guardando o objeto no bolso. O metal tilintou quando se juntou a
inúmeros outros. Um peso que no dia seguinte ele teria que compartilhar com as
famílias em luto, entregando cada metal pessoalmente. Os olhos mortos e opacos do
homem ainda encaravam o céu, como se a morte tivesse sido tão repentina que mal
tivera tempo de fechá-los.
O general colocou seus dedos sobre a pálpebra do soldado e a selou para a
eternidade, fazendo uma oração silenciosa pela alma do homem. Aquele fora morto
por uma quimera-tigre, que trespassou seus grandes chifres negros pelo peito do
soldado, destruindo coração e pulmões. Zion assistiu à morte do soldado em questão
de segundos sem ao menos poder ajudar, porque estava lidando com outra quimera
no fervor da batalha.
Devastado, levantou o morto e o carregou até a pilha de corpos, então afastou-se
enquanto alguns soldados de aparência cansada arrastavam o homem até as chamas
da pira.
Queimavam seus mortos porque não podiam levá-los de volta para um funeral
adequado. Eram ordens do rei, pois Interion não tinha espaço suficiente para todos
os túmulos da guerra.
Era mais uma das inúmeras insensibilidades que deixava o general desgostoso
das decisões do monarca.
Enquanto caminhava sobre o que restara da última batalha dos feéricos e das
quimeras, Zion ruminava sua frustração ao se lembrar de que o rei lhe enviara uma
mensagem pelo psíquico, dizendo que declarou feriado dentro das muralhas pela
vitória dos exércitos. Uma festa aconteceria ao pôr do sol, enquanto o sangue ainda
molhava a terra e os órfãos da guerra choravam em suas camas. Para o general, aquilo
era algum tipo de piada de mau gosto, porque aquela vitória ele jamais teria orgulho
de comemorar. Não havia honra alguma em matar animais explorados pelo inimigo,
muito menos glória em perder quase metade dos esquadrões naquela carnificina.
Parou no centro do campo carbonizado, olhando para o céu de cinzas que
derramava sobre ele feixes de luz na cor de prata líquida. Ao fundo do cenário, entre
a fumaça que subia do solo, um soldado inimigo gritava implorando por sua vida.
O general olhou em direção ao som e viu um feérico ruivo amarrado a uma
cadeira de ferro, com os braços presos a um suporte para que as mãos ficassem
espalmadas e os dedos livres. Kaori, a imediata, segurava um alicate de corte contra
o dedo anelar do prisioneiro. Três dedos já estavam no chão, ainda faltavam sete.
Era lógico que o interrogatório pelo paradeiro de Akira ou por informações sobre
os campos de reprodução poderia ser feito pelo psíquico do exército, mas Kaori jamais
renunciaria a fazer aquilo com as próprias mãos, e tentar convencê-la do contrário era
o mesmo que dizer a um demônio que ele precisava fazer boas ações.
Zion virou o rosto, sentindo o estômago contrair-se. Não gostava de presenciar
as torturas e muito menos era adepto a elas, mas sabia que aquilo sempre lhes dava
vantagens contra o inimigo.
— Contagem dos mortos! — Zion bradou, limpando o suor da testa, o que só fez
com que a fuligem se espalhasse pelo rosto como uma pintura selvagem.
Durante a batalha, um dos três laboratórios detonou uma bomba para que o
exército de Interion jamais soubesse o que estava sendo feito lá dentro, destruindo
assim todo o material científico e as armas biológicas nas quais Drutes era especialista.
A bomba causou um incêndio que se alastrou pelas árvores, queimando tudo no
perímetro de uma milha e deixando o cenário devastado.
— Até agora encontramos 438 corpos! — A voz de Marcel elevou-se, vinda
da esquerda, onde estavam as ruínas do laboratório mais afastado, o único que não
fora incinerado pelo fogo da explosão. — Há 380 corpos dos nossos homens, 49 do
exército Drutes e 9 das quimeras.
Zion balançou a cabeça frustrado. Aquele era um número alto de perdas para os
padrões de Interion e isso se devia à nova arma biológica que Drutes criara. Se não
bastassem todos os problemas com os campos de reprodução forçada e o histórico de
modificações genéticas que os descendentes sofreram, agora eles ainda tinham que
lidar com quimeras. Com exceção das lâmias, aquelas feras eram as mais mortais
que já conhecera na vida e, durante os últimos meses, vinham causando inúmeros
problemas a ele.
— Avisem aos esquadrões de suporte para continuarem mantendo a vigília na
floresta! Havia seis baias na última instalação e até agora achamos cinco animais,
sendo que a Terror Branco ainda não foi avistada. Se a virem, quero que todos fujam.
— Fugir? — Marcel questionou.
— Fugir! — repetiu Zion. — Ninguém sobreviveu à fera até agora e eu não vou
perder mais homens. Se a virem, quero que me avisem e depois corram.
Terror Branco era o nome que seus soldados deram para a quimera mais
mortífera que eles conheceram em campo de batalha. Era um monstro com corpo
de leão e asas brancas que lutava como um pesadelo mortal. Possuía três fileiras de
dentes, além de garras tão afiadas quanto navalhas e uma cauda poderosa capaz de
esmagar um feérico com apenas um golpe. Era a maior entre elas, mais rápida e larga
ao ponto de parecer um cavalo. Terror Branco, até o momento, havia matado mais de
300 feéricos e só não desequilibrou a luta de hoje porque não estava na batalha.
— Sim, senhor! Mais alguma ordem? — perguntou Marcel.
— Peça reforço para as górgonas que estão patrulhando as muralhas de Interion.
Muitas morreram na batalha e precisamos repor o número antes que as lâmias se
atrevam a entrar no nosso território.
— Sim, senhor! — disse Marcel, batendo o punho sobre o coração e virando-se
em direção aos escombros do laboratório mais afastado.
Zion observou o horizonte, onde algumas poucas figuras com cabelos
serpenteantes aproximavam-se dos troncos das árvores carbonizadas e marcavam
território. O ato consistia em deixar que suas serpentes mordessem folhas, galhos
e troncos, injetando o veneno cheio de feromônios que afastava as lâmias. Apenas
isso bastava para que os monstros reconhecessem a reivindicação do território e
afastassem-se, mas, dependendo da situação – por exemplo, um campo inteiro de
cadáveres tentadoramente expostos como se estivessem em uma feira –, era preciso
muito feromônio para fazer com que recuassem. Em último caso, as górgonas também
poderiam urinar pelo território ou marcá-lo com sangue, mas não gostavam dessa
opção, além de ser menos eficiente.
Caminhou pelo campo em ruínas até parar ao lado de um monstro cuja cabeça ele
mesmo decepara. Era uma mistura entre corvo e cavalo, tão alta quanto o general, mas
menor que Terror Branco. Alguns homens se juntavam a ele para carregar o monstro
e já o estavam arrastando pelo campo carbonizado quando Zion ouviu um grito vindo
do lado mais afastado da floresta.
Então o rugido característico de um leão enfurecido reverberou em meio à
fumaça e logo o som de armas sendo desembainhadas preencheu o vazio que o fogo
deixou.
O general sacou a espada de sua cintura, tendo o nome Terror Branco ecoando
na mente, e em segundos se materializou próximo da última instalação. Foi quando
viu a fera albina terminando de destruir o corpo de um feérico para em seguida pisar
sobre o peito de Marcel e abrir a bocarra em direção à cabeça do soldado.
Agiu por instinto, enfiando-se entre a quimera e o homem para evitar o golpe
fatal e conseguiu aparar a boca da besta, colocando a espada entre os seus dentes.
O soldado arrastou-se para longe com um ferimento grave no ombro e Zion sacou
suas adagas enquanto Terror Branco, com os lábios retraídos em fúria e mostrando
as três fileiras de dentes afiados, mordia o metal, partindo-o em dois e cuspindo os
pedaços para longe.
Tinha fixos no general os olhos azuis injetados por veias vermelhas, o que, na
face coberta por cicatrizes grandes e disformes, dava-lhe uma aparência demoníaca.
Babava de ódio, parecendo três vezes mais insana que o habitual.
A luta que se seguiu foi uma das piores da vida de Zion. Ele precisou segurar a
quimera com todas as suas sombras para que pudesse, em meio à batalha, conseguir
um bom golpe em direção a algum ponto vital, mas a cauda da criatura parecia ter vida
própria e, sempre que o general achava que tinha encontrado uma brecha, o animal
lançava-o para longe.
Kaori foi a única que desacatou sua ordem de retirada, entrando na luta com as
suas espadas vinturianas mesmo sabendo que não poderia dar conta do monstro.
— Saia daqui! — Zion gritava enquanto pulava e rolava pelo chão, fugindo da
cauda e dos chifres da besta.
Mas Kaori não o deixou sozinho, jogando espadas em sua direção sempre que
a fera quebrava a que ele segurava e dando o melhor de si para conseguir distrair a
besta o suficiente para que Zion a matasse.
Rolaram pelas ruínas enquanto o tempo escorria como sangue e suor ao seu redor.
Quando a górgona finalmente perdeu as forças, vacilando, a quimera acertou-
a com a cauda, jogando-a contra o chão, e então abocanhou sua perna, arrastando-a
para os escombros. Zion aproveitou a distração e materializou-se embaixo da criatura,
que tentou perfurá-lo com os chifres, mas agiu tarde demais. O general desviou-se
dos cornos que se cravaram ao redor do seu pescoço e, no segundo em que ela os
arrancou da terra para uma nova investida, ele atravessou duas adagas na axila da
besta, mirando o coração e fazendo o sangue fluir pelo cemitério de quimeras.
Quando tudo acabou, só restara a respiração pesada dos dois amigos e o silêncio
da floresta abandonada pelos soldados.
— Você está bem? — Zion questionou, ajudando Kaori a se levantar e não a
soltando até que tivesse certeza da sua estabilidade.
— Acho que preciso de um elmédico — disse a górgona, comprimindo com a
mão a coxa ensanguentada, no local onde os dentes rasgaram profundamente pele e
músculos. O sangue fluía pelo tecido azul-escuro da calça, encharcando-a.
Zion ajudou Kaori a sentar-se sobre os restos do que fora a parede de pedras
da última instalação e então afastou os retalhos da calça que a quimera fatiou com
os dentes, avaliando o corte. Não estava tão ruim, porque o uniforme de Kaori era
revestido com mais fios de sérum do que o normal, um presente do pai. Por fim,
retirou a própria jaqueta, rasgando a manga para usar de atadura e amarrando sobre
a ferida para conter o sangramento.
— Vamos, eu levo você até o hospital da fronteira — Abaixou-se para pegar a
imediata e estava prestes a levantá-la quando ouviu algo vindo dos escombros.
Imediatamente se levantou, o corpo entrando novamente em modo de batalha,
com as sombras correndo como veios negros sobre a pele. Sacou mais uma adaga do
cinto e caminhou até Terror Branco, conferindo se de fato estava morta. Estava. O
coração parara de bater e o corpo já começava a esfriar.
Então ouviu um choro baixinho, assim como uma fungadela vindo da esquerda,
dos escombros.
Zion caminhou imperturbável pelo campo devastado, pronto para mais uma luta,
e parou em frente a uma pilha de destroços, a mesma para a qual a quimera tentou
arrastar Kaori. Desconfiado, levantou um pedaço do telhado que havia desabado sobre
as paredes, criando um vão escuro.
Fez isso apenas para descobrir um buraco escavado no chão e, no centro dele,
um filhote albino.
O pequeno corpo estava mole sobre um ninho de feno, ossos e tecidos verdes,
que pareciam com os uniformes do exército de Interion. Havia até mesmo broches de
identificação com o nome dos soldados que Zion enterrara após as antigas batalhas
contra Terror Branco.
Observou o filhote de quimera coberto por lascas de madeira e serragem. Estava
zonzo e parecia frágil largado ali, mas certamente fora protegido quando a instalação
desabou, o que explicava o sumiço de Terror Branco durante a batalha. Mesmo sem
asas nem chifres, a criatura certamente era uma cria da besta que acabara de matar,
pois tinha um corpo de leão e ostentava a mesma cauda da mãe, ainda que as escamas
fossem translúcidas e delicadas.
Olhando-o ali, com a aparência tão inocente, Zion perguntou-se se o animal
estaria morrendo ou apenas fingindo, para atacar quando ele se aproximasse demais.
Bem, isso era o que ele esperaria do filhote de Terror Branco.
— O que você achou aí? — Kaori perguntou, levantando-se de onde o general
a deixara.
Ele não respondeu, ainda olhava desconfiado para o filhote. Por fim, jogou o
pedaço de telhado para o lado e abaixou-se, pronto para ativar as sombras ao menor
sinal de um ataque. Segurou o animal pelo cangote, levantando-o contra a luz do sol
vaporosa que ainda atravessava o céu fúnebre.
Foi pendurada daquele jeito que a fera abriu os olhos.
Eram azuis-celestes como os da mãe e corriam frenéticos pelo rosto do general.
As sombras eriçaram-se nos ombros de Zion, curiosas com a descoberta, e ele
preparou a adaga em sua mão livre pela expectativa do ataque. Contudo, seu coração
afundou-se em uma queda de milhares de metros para dentro do peito quando uma
lágrima escorreu dos olhos da quimera, sendo absorvida no pelo branco do focinho.
A criatura tremeu em sua mão, emitindo um choro baixo e agudo. Seus grandes
olhos redondos vagaram arregalados de medo, mas ela não tentou mordê-lo ou
esquivar-se, apenas o encarou aterrorizada. Zion pôde ver que, além de todos os
pedaços de madeira pelo qual fora atingida, a pata dianteira também estava dobrada
em um ângulo torto e havia um pequeno corte perto da orelha.
— Mais uma? — questionou Kaori, mancando em direção ao general e
removendo um pequeno kit com seringas de eutanásia do bolso.
Zion não prestou atenção na amiga, pois tinha os olhos presos no filhote
debilitado. Então, lentamente seu semblante foi mudando, quando o entendimento da
situação caiu sobre ele. Com cautela, trouxe a quimera para mais perto, segurando-a
com as duas mãos para ter mais cuidado com os ferimentos.
— Que diabos você está fazendo? — A górgona caminhou até o general e puxou
seu pulso, entregando a ele uma seringa. O ato fez com que as sombras se crispassem
para a górgona e Zion aconchegasse o animal contra o corpo, equilibrando-o. — Se
não tem coragem de matar o monstro, eu mesma faço.
Zion olhou da seringa para a quimera.
— Não é um monstro. — Voltou sua atenção para a amiga. — É apenas um
filhote.
Mirou novamente a criatura em seu colo. Ela olhava-o paralisada pelo choque. O
general então contornou a górgona e caminhou até a parede onde ela estivera minutos
antes, pegando o restante da sua jaqueta abandonada. Com cuidado, movimentou a
quimera, que chorou baixinho pela provável dor na pata, e enrolou-a no tecido,
aninhando-a contra o peito. Sentia que a criaturinha estava com fome, além de medo,
e julgou que sabia disso por causa de seu segundo poder, mesmo que o general não
o estivesse usando.
— Não precisa ter medo — sussurrou para o filhote. — Eu não vou machucar
você.
A quimera observou-o desconfiada. Agora que estava quente e aconchegada, o
medo, aos poucos, dava espaço para a curiosidade. O filhote remexeu-se, observando
as sombras agitadas ao redor de Zion, e aproximou-se de uma delas com o focinho.
Fungou na gavinha enrolada no braço do general e qual foi a surpresa dele quando as
sombras responderam, dando um toque no nariz animalesco.
— Sabe que ela é a cria de Terror Branco e pode muito bem ser tão mortal quanto
a mãe no futuro, não sabe? — Kaori falou às costas do general, sacando outra seringa
do kit preto e estendendo-a para ele.
— Em minha experiência de vida, Kaori, você nunca deve julgar um filho pelo
seu pai. — Zion sinalizou para ela abaixar o objeto.
Os dois encararam-se em um entendimento mudo. Ambos encaixavam-se
perfeitamente naquela descrição. Em alerta, caso ela ainda quisesse insistir com a
eutanásia, percebeu quando a amiga engoliu em seco, piscando algumas vezes antes
de baixar a seringa e guardá-la no compartimento preto, colocando um fim naquele
assunto.
Zion olhou ao redor para a chuva de cinzas e o cemitério de homens e quimeras
que se estendiam por quilômetros de solo devastado. Ali perto dos seus pés, Terror
Branco jazia em uma poça do próprio sangue e Zion lamentou. Lamentou que o único
final feliz para Interion fosse aniquilar as quimeras treinadas para derrotar os feéricos
interianos. Lamentou que elas só tivessem conhecido dor e ódio desde que nasceram.
Lamentou por si mesmo, por ser obrigado a ser a foice ceifadora que extinguiria a raça.
E então olhou para o filhote de olhos azuis. A única que sobrara após Zion ter
exterminado todas as outras.
— Sinto muito por tê-la deixado órfã — disse por fim, enquanto a criatura apenas
o observava. — Mas a sua mãe também deixou inúmeros órfãos dentro das muralhas.
— Zion apontou a destruição ao redor, sentindo-se frustrado. — E isso é a guerra.
Os dois lados perdem.
Em sua mente, ouviu um resmungar baixinho, quase como um bebê tentando
vocalizar alguma palavra. “Dem” era como soava a palavra, como se tentasse repetir a
última que ele havia pronunciado. Piscou algumas vezes sem entender de onde vinha
aquele som, porque aquela criaturinha jamais teria a capacidade de emitir palavras.
A quimera focou os olhos em uma fuligem que descia ao encontro do seu nariz
e então espirrou quando ela pousou ali. Zion sorriu, achando graça do som. Naquele
momento, uma pequena luz brotou em seu peito, algo secreto e delicado que ele ainda
não sabia nomear, mas que mataria para proteger até seu último suspiro. Foi então
que decidiu não exterminar a raça das quimeras. Ficaria com o filhote e daria a ele
uma criação adequada, algo que lamentava não ter sido feito pelas outras quimeras.
E, se um dia o animal se mostrasse tão maligno quanto a mãe, Zion mesmo lhe
daria um fim. Mas não agora. O filhote merecia uma chance.
Enfim, descartou a seringa de eutanásia sobre o solo carbonizado, deixando que
a morte fosse confinada ali, onde as cinzas e o tempo a cobririam.
— Acho que isso é um acordo de paz entre as nossas espécies — disse satisfeito,
caminhando para longe.
— Você sabe que estará arrumando confusão com o rei e Serguei se levar essa
coisa para as muralhas — avisou Kaori, mancando às costas de Zion.
— Essa coisa agora tem nome e é Kiara! — avisou Zion ao se dirigir para um
caminhão militar, procurando na traseira por água e ração.
Ao longe já via a movimentação dos soldados retornando após a fuga. Para a
sua sorte, havia um elmédico entre eles, então Kaori estaria em boas mãos ali mesmo,
pois seria muito lento transportar duas pessoas e uma quimera pelas sombras.
— Claro que você já deu um nome! Kiara: que significa “brilhante” no antigo
idioma feérico — reclamou Kaori enquanto ele destampava a garrafinha de água e
despejava gota por gota na boca do animal sedento.
— Combinou, você não acha? Ela é a única coisa iluminada neste abismo de
cinzas.
A imediata balançou a cabeça, chocada com o olhar amável que o general lançava
à criatura ao tentar fazê-la comer uma bolota de ração feérica.
— Você é louco! Eles vão cortar as nossas cabeças.
— Que tentem — disse Zion.
A mulher estalou a língua parecendo preocupada.
— Nem seja estúpido de mencionar meu nome quando descobrirem que você a
resgatou. Eu não tenho as costas quentes e seu pai já não vai com a minha cara.
— Fique tranquila, Kaori. Eu assumo os riscos.
A górgona ainda reclamava quando Zion caminhou para longe e sumiu nas
sombras. Em seu colo, Kiara, “a brilhante”, dormia pacificamente, trazendo para o
peito do general um vislumbre de luz para o futuro.
CAPÍTULO 4
Epitáfio ao exílio

As sombras cederam, desvanecendo-se ao dar espaço à presença física de Zion


e, como um fantasma, ele materializou-se no meio da recepção do hospital central
de Interion.
Não precisou emitir um único som para que todas as atenções se voltassem para
ele e para o paciente dilacerado em seus braços. O sangue do feérico escorria a ponto
de pingar sobre o piso e já encharcava seu uniforme, transformando o verde da calça
em um marrom úmido.
Imediatamente a recepção virou um caos, com os profissionais correndo para
tentar ajudá-lo, e Zion atendeu à voz de Lorenzo, um dos elmédicos mais famosos
da nação:
— Sala cirúrgica 07, rápido!
Milésimos de segundos bastaram para que as sombras o engolissem, levando-o
ao centro cirúrgico, que já se encontrava em uma explosão de profissionais
organizando máquinas e paramentos. Deixou o paciente sobre a maca, evitando movê-
lo além do necessário para que o deslocamento não fizesse fluir mais sangue – se é
que ainda restava alguma gota ali para ser derramada.
Quando os médicos começaram os procedimentos, Zion deixou a sala e foi
encaminhado por uma enfermeira loira e tímida a um banheiro de um dos quartos
hospitalares, para tomar banho e trocar as roupas ensanguentadas. Agradeceu à loira,
que corava, olhando-o de cima a baixo, e encaminhou-se ao banheiro.
Depois de livrar-se do sangue e das roupas sujas, manteve-se no corredor lateral
da recepção, tentando não chamar mais atenção do que havia provocado.
Algo que se mostrava impossível para Zion.
O fato é que ele não pisava em solo interiano há 4 anos, 362 dias e 22 horas
e, de repente, explodiu em meio a sombras e sangue no centro do maior hospital de
Interion com um homem retalhado. Era óbvio que as pessoas comentariam aquilo e
naquele mesmo momento podia sentir olhares curiosos sobre ele, ainda que estivesse
recostado à parede de um corredor afastado.
Ali, vendo enfermeiras e médicas passando apressadas de um lado para o outro,
uma ansiedade ameaçava a dominá-lo. A cada figura feminina de jaleco branco que
via, seu coração dava um salto no peito. Ela não está no hospital, ele repetia
mentalmente, cruzando os braços emburrado, mas bastava outra médica apontar no
corredor e lá estava o seu coração tropeçando nas próprias batidas.
Andou de um lado para o outro observando a placa que indicava a ala neurológica
e apertou a fonte do nariz para aliviar a pressão. Deveria ser naquele espaço que a sua
parceira passava boa parte do tempo e Zion precisou se conter para não bisbilhotar
os corredores por onde ela caminhava todos os dias. Olhou o relógio de pulso pela
milésima vez e suspirou. Parecia que, quanto mais próximo estava dela, mais difícil
era esperar o tempo passar. Ele sabia que ainda não podia ir até Kyller, então só lhe
restava manter-se o mais ocupado possível no tempo que faltava. Por isso, resolveu
esperar alguma notícia do feérico que ele havia levado até ali.
A forma como Zion havia encontrado o homem fora da cidade era, por falta de
uma palavra melhor, estranha. Na situação em que se encontrava, já deveria estar
morto. O general cogitou terem sido lâmias as causadoras dos ferimentos, mas por
que elas não teriam drenado o sangue do corpo? Aliás, não havia rastros de lâmias
pelo local e elas raramente se aventuravam tão perto das muralhas, tendo as górgonas
patrulhando a área e marcando território.
Aquelas eram perguntas que só teriam resposta quando um dos médicos viesse
falar com ele e, devido ao estado que deixou o homem, acreditava que demoraria
muito, por isso sentou-se na sala de espera.
Permaneceu ali por várias horas até que os primeiros raios solares anunciaram
a manhã, então viu Ambrose cruzar as portas duplas que separavam a recepção do
resto do hospital e vir em sua direção.
— Quando me informaram da chegada de um “paciente-problema” trazido
exclusivamente para mim, eu tinha certeza de que teria dedo seu nisso! — disse o
médico removendo a touca e máscara do rosto.
Zion levantou-se encarando o neurocirurgião que caminhava em sua direção com
um sorriso completo nos lábios. Ambrose tinha cabelos castanhos, fugindo do padrão
interiano, que era o tom loiro, mas possuía olhos azuis, um físico magro e alto, assim
como todos os da nação.
— Bem, não pode me culpar por eu sempre escolher o melhor cirurgião. Ou eu
estou errado e deveria procurar outro elmédico? — brincou Zion.
Quando Ambrose se aproximou, estalando a língua em reprovação, o general
ficou confuso com o que fazer com as mãos, pois não se lembrava de como era ter
uma interação comum dentro das muralhas. Passara tanto tempo apenas no exército,
dando ordens e recebendo comandos, que agora se sentia como um prego rígido e
enferrujado. Por falta de escolha melhor, fechou o punho e bateu-o contra o peito em
um sinal genuíno de respeito dentro do exército interiano. Ambrose revirou os olhos,
ignorando o espaço pessoal do feérico e jogou seus braços ao redor dele, fechando-
os em um abraço caloroso.
— Pelas barbas de Lauriel, Zion! Deixe de formalidades — o homem disse
batendo em suas costas e apertando-o contra o peito. — Ouse me cumprimentar assim
novamente e eu anotarei no seu prontuário que você não tomou as vacinas de febre
feérica, então você terá que tomar tudo de novo.
Duro como uma vara, Zion riu e bateu com uma das mãos no ombro do elmédico,
tentando ser gentil, ainda que estivesse destreinado na arte da socialização.
— Você não faria isso — retrucou, afastando-se com um meio-sorriso no rosto,
agora que Ambrose havia “quebrado o gelo”.
— Ah, eu faria, meu querido. — O homem segurou seu ombro, apertando-o
levemente. — E ainda mandaria uma das nossas residentes novatas para aplicar. Seria
o caos com ela tremendo por ter que espetar o... — Ambrose gesticulou aspas com a
mão livre, intensificando o tom da voz ao completar: — grande general de Interion.
O sorriso no rosto de Zion vacilou ao pensar que a residente poderia muito bem
ser Kyller e Ambrose deve ter percebido, pois deu um passo para trás, juntando as
mãos nas costas e avaliando-o.
— Como você está? — Zion perguntou, interrompendo o clima tenso.
— Com uma intoxicação de cafeína por dar tantos plantões noturno. Fora isso,
estou ótimo. — O bipe em seu bolso apitou, mas o elmédico só deu uma olhada rápida,
ignorando o aparelho. — E você, como está?
— Melhor do que aquele paciente que eu trouxe — respondeu Zion. — Ele
sobreviveu?
A pergunta foi o suficiente para fazer o homem assumir a postura médica e
submergir no caso em questão.
— Em coma, mas vivo. A cirurgia foi complexa, porque ele tem o dom da cura
e curiosamente apresenta grande tolerância ao poder, por esse motivo, a manipulação
das energias foi mais difícil para regenerar alguns órgãos.
— Então foi por isso que não morreu mesmo com aquele tipo de trauma —
cogitou Zion.
— Exatamente. Agora ele está em coma profundo, mas ao menos os batimentos
cardíacos estão estáveis.
— Você acredita que possam ser ferimentos causados por lâmias?
Ambrose cruzou os braços sobre o peito, pensativo.
— Não, Zion. Não havia nenhum vestígio de mordidas, mas, sinceramente, não
faço ideia do que causou tanto estrago. E para piorar, Liríope não conseguiu acessar
a mente dele.
Com a primeira hipótese negada, o general cogitou a ideia em que pensara
durante toda a madrugada: talvez fosse trabalho de alguma quimera com uma mutação
genética diferente. Então preocupou-se com o que aquilo poderia significar para
Kiara.
— Nesse caso, resta ao exército procurar vestígios. Vou enviar um psíquico de
alto nível para fazer uma varredura na mente dele — disse Zion.
Ambrose concordou, ouvindo novamente o bipe apitando em seu jaleco. Depois
entortou levemente a cabeça, avaliando o amigo ao falar:
— Enquanto isso, vou deixar o homem aos cuidados de Kyller.
Ainda que o general não esboçasse reação alguma diante do nome, sentiu como
se houvesse um formigueiro em seu peito. Limpou a garganta tentando não
transparecer o quanto aquele nome mexia com ele, porque tinha certeza de que
Ambrose havia tocado no assunto apenas para analisar suas reações. Zion dava a ele
toda a razão sobre a curiosidade e reconhecia que já era hora de ter aquela conversa,
afinal, deixou a parceira aos cuidados do elmédico e nunca trocou com ele mais
palavras além das informações básicas sobre a saúde dela.
— Como ela está? — foi a única coisa que conseguiu questionar, ainda que
sentisse infinitas perguntas borbulhando no fundo da mente.
— Incrivelmente bem — disse Ambrose pousando a mão sobre o peito, com os
olhos brilhando enquanto o bipe gritava em seu bolso. — Ela é a minha melhor pupila
e tem evoluído seu dom de cura em um ritmo sobrenatural. Quanto à personalidade,
ainda continua um pouco tímida e reclusa, lógico, mas é uma mulher incrível e nada
parecida com aquela selvagem do passado que você trouxe praticamente morta. Meu
amigo, você precisa ver tudo com os próprios olhos o quanto ela é...
A porta dupla da recepção abriu-se com um estrondo, fazendo Ambrose pular.
— De papinho no corredor enquanto o seu paciente do 56 sofre uma convulsão?
— A voz aguda de Lorenzo ecoou mal-humorada pela recepção, mas, quando viu
o general, seu sorriso se abriu. — Oh! É mesmo! Zion retornou! Seja bem-vindo a
cidade das cores e desculpe por estragar a conversa, mas esse fujão precisa voltar
comigo.
Ambrose virou-se, encarando o marido, já Zion agradeceu as boas-vindas com
um cumprimento interiano, que lhe rendeu um olhar fechado de Lorenzo e Ambrose.
Riu de si mesmo, sentindo-se tão inadequado quanto um elefante em alto-mar.
Ambrose voltou-se para Zion com um olhar culpado.
— Depois conversamos mais! Eu tenho muitas coisas sobre Kyller para lhe
contar!
Zion acenou concordando e então o elmédico desapareceu pela porta dupla.
Sozinho na recepção vazia, preocupou-se em como estava lidando com as
pessoas e o que aquilo significava quando pudesse estar de frente para Kyller.
Rígido, conciso e direto. Essas eram as características nas quais ele foi moldado
durante aqueles anos no exército. Era óbvio que parte do comportamento sistemático
vinha da criação de Serguei, o que se agravou quando foi obrigado a se afastar,
deixando para trás sua parceira indefesa. Nos primeiros anos longe, sentia-se como um
louco, delirando em uma maré de possibilidades como uma panela de pressão prestes
a explodir, porque sabia que ela precisava dele e o general não poderia fazer nada além
de vê-la pelos olhos da quimera. Acompanhava de longe, sem interferir, e torcia com
todo o seu coração para que ela fosse forte o suficiente para lidar com a reabilitação.
Naqueles primeiros anos, quando sua loucura vinha à tona, Zion perdia-se na floresta
caçando acampamentos Drutes como um desvairado e resgatando mulheres e crianças
como Kyller, em busca de uma redenção por não tê-la protegido antes e por não poder
fazê-lo naquele momento.
Aqueles anos miseráveis tornaram-no amargo como a realidade do acordar.
Pensativo, Zion andou para fora do hospital, cruzando as portas de vidro e
esquecendo-se de que tinha suas sombras para movê-lo. Encarou a gigantesca estátua
de Rosnir do lado de fora sem prestar muita atenção no que via, porque seus
pensamentos só apontavam em uma única direção: Kyller.
Passou as mãos pelos cabelos, voltando-se na direção da casa onde ela estava.
A luz do sol banhava as montanhas ao leste e Zion encarou o amontoado colorido
de casas, focando no ponto verde, ao pé da montanha menor, e sentindo o coração
bater dolorido apenas com a ideia de que ela estava lá. O fato é que estava seriamente
obcecado.
Olhou mais uma vez para o relógio preto em seu pulso. O maldito dizia que ainda
faltavam 37 horas e 53 minutos.
Queria ao menos poder espiar pelos olhos de Kiara, mas a quimera estava no
veterinário. Zion ria de si mesmo nos dias em que o animal visitava o doutor Owen.
Ficavam Kiara e ele lamentando-se pela estadia forçada e apenas sossegavam quando
o animal voltava para os braços de Kyller, afinal, fora desse modo que ele conhecera
um pouco sobre a força de sua parceira. Bufou sentindo-se encurralado com a
ansiedade da véspera. Então, agindo da forma mais imbecil possível e consciente do
tamanho da burrice da atitude, o general transportou-se para a frente da casa verde.
Por um momento achou que errara o endereço, mas a placa de identificação com
o seu sobrenome na parede do imóvel a identificava como sua, ainda que não
parecesse em nada com a velha casa de sua infância.
— Bom — sussurrou para as sombras sua aprovação pelas mudanças enquanto
caminhava sobre uma trilha de cascalhos brancos que cortava um jardim de
margaridas. As gavinhas em seus ombros agitaram-se, como se concordassem.
Parou perto da escada de entrada, olhando para o segundo andar.
Pelo barulho, Kyller já estava acordada e ele podia ouvi-la movendo-se lá em
cima como um tornado ao se arrumar. Por um segundo, Zion teve um vislumbre da
figura de cabelos acobreados aparecendo na parede de vidro.
Aquilo foi o suficiente para sentir seu coração tropeçar no peito e até mesmo
suas sombras trombaram umas nas outras antes de voltar para as suas costas, espiando
por cima dos ombros, como se temessem olhar muito. Ela desapareceu novamente,
deixando um rastro de tristeza em seu encalço e Zion soube que não tinha estabilidade
suficiente para estar ali. Nem mesmo cinco anos longe teriam a força para diminuir a
intensidade do laço de parceria e suas mãos tremendo eram a maior prova disso.
Precisou de muito autocontrole para ativar seu dom e transportar-se dali.
E ele o fez, mas direto para o quarteirão no qual se localizava o veterinário de
Kiara: o único ser com o qual poderia contar para distraí-lo de cometer uma loucura
nos resquícios finais do prazo que o aprisionava.
Caminhou pela rua de paralelepípedos em direção ao consultório alaranjado do
doutor Owen. Humanos e feéricos paravam na rua e batiam sobre o peito ao ver o
general, depois andavam apressados, como se fugissem da sua presença. Ainda que o
aborrecesse, hoje ele praticamente não notava, pois já estava entusiasmado, sentindo
os pensamentos tumultuados da quimera por saber da sua proximidade. Sorriu pela
euforia que transbordava pelo laço entre os dois e, antes mesmo de terminar de abrir
a porta da clínica, chacoalhando o sininho, o animal saltou sobre o seu peito,
derrubando-o de costas sobre a calçada do lugar.
As sombras agitaram-se, recepcionando a criatura em um vórtex de gavinhas que
lhe rodeavam o corpo pesado.
Pelos deuses, estava muito maior e mais gorda do que ele se lembrava, mas ficou
aliviado por não ver nenhuma mutação, apenas mais escamas azuis recobrindo os
tornozelos.
— Senti sua falta — ele sussurrou, abraçando-a, enquanto ouvia carros freando
e algumas pessoas emitindo gritinhos na rua ao ver a cena.
“E acha que eu não sei?”, ela perguntou, lambendo-lhe a orelha e chicoteando o
rabo escamoso no batente da porta. Depois olhou em direção à entrada, abaixando a
cabeça como apenas felinos faziam ao espreitar a caça “Mas agora precisamos fugir
da prisão, antes que o velho sarnento também fure você”.
A quimera levantou-se, dando pulinhos ao redor do general e apontando o fim
da rua.
Zion riu e levantou-se, batendo a poeira da roupa.
— Eu só preciso pagar por sua estadia e já vamos.
Kiara bufou, vendo Zion entrar pela porta e segurando-a aberta. Quando a
criatura não o seguiu, Zion apenas ficou plantado ali aguardando para ver quem
venceria a batalha de olhares. Por fim a quimera bufou aceitando a derrota e então o
seguiu com as orelhas murchas.
“Quando ele inventar de medir seu clima com o vidro de buraco de trás, não
reclame, porque eu avisei!”.
Ao fechar a porta, o sininho badalou uma vez mais, fazendo companhia ao som
da gargalhada que o general emitiu.
CAPÍTULO 5
Intruso no ninho

Zion corria sobre a muralha, desaparecendo entre as sombras e reaparecendo


metros adiante, algo que deixava Kiara ainda mais empolgada com o próprio voo,
batendo as asas uniformemente na tentativa de ultrapassar a velocidade do seu tutor.
Feliz, a quimera rolava no ar quente com pequenos toques e movimentações de suas
longas asas albinas, como se o céu crepuscular fosse liquefeito e ela se deleitasse nele.
Após resolver suas questões pendentes na central do exército e passar a tarde toda
procurando vestígios do que acontecera ao homem que encontrou no dia anterior, Zion
levara a quimera para passear no lugar onde ele a ensinou a voar quando a criatura
ainda era um filhote. Assim, a tarde de verão escorreu tão lânguida quanto as nuvens
no horizonte montanhoso e, quando se deu conta, já era noite e não podia mais
postergar a volta para a cabana no Dornéu.
A quimera resmungou quando ele a comandou pelo pensamento, pedindo que
voasse para a cabana, mas contentou-se quando o general propôs continuar com a
brincadeira ao longo do caminho, já que bastava seguir pela muralha em direção oeste.
E Zion permitiu-se sorrir enquanto ela dava voos rasantes ao seu redor,
desequilibrando-o levemente. A verdade é que estava tentando recuperar qualquer
tempo perdido que os cinco anos longe lhe roubara, ainda que não se sentisse
merecedor. Não era como se ele tivesse abandonado a quimera, afinal, todos os dias à
noite os dois conversavam, mas sem a presença física ele sentia que, de alguma forma,
não estava sendo presente o suficiente, ainda que ela afirmasse que estava feliz com
Kyller e gostava da missão de protegê-la.
Olhou o relógio no pulso uma vez mais, incapaz de esquecer do tempo.
Quando finalmente chegou diante da cabana do Dornéu, vendo Kiara voando e
contornando o imóvel em busca da janela que ele sempre deixava aberta para ela, as
estrelas ganhavam contraste no céu, brilhando como vaga-lumes eternos. Observou a
estrutura de madeira e vidro pensando que aquele era o único lugar que permaneceu
inalterável por cinco anos. A normalidade era muito bem-vinda quando sua própria
mente estava toda desconfigurada com as mudanças que viriam em breve.
Sentindo-se satisfeito com o dia, transportou-se para dentro, mas antes mesmo
de se materializar no quarto, sentiu o cheiro de vinho e perfume caro. Seu semblante,
até então um pouco relaxado, tornou-se tenso, como o de alguém que se prepara para
uma tempestade em alto-mar.
Os olhos que o encaravam da cama tinham tanta semelhança com o que via no
seu reflexo todos os dias que, se não fosse o resto, Zion poderia muito bem acreditar
estar olhando a si mesmo no espelho. Aquilo o deixava ainda mais irritado.
Encarou o relógio acima da cama na qual o feérico estava sentado. Ainda
faltavam 22 horas e 37 minutos.
Kiara finalmente pousou na janela, arranhando o piso de madeira com as garras
para se estabilizar, e então bufou com o focinho, rosnando ao ver o homem ali.
— Olá para você também! — disse o psíquico com uma sobrancelha levantada
encarando a madeira do piso toda destruída pelos pousos do animal.
Ignorando o cumprimento debochado, Kiara caminhou ao redor da cama,
olhando de Zion para Serguei, indignada.
“No nosso ninho?”, resmungou, encarando o psíquico.
Zion deu de ombros, também não sabendo como lidar. Por fim, vendo que o
general não expulsaria o intruso, a quimera subiu na cama e bufou em cima de Serguei,
molhando-o levemente com gotículas do seu nariz.
Serguei sorriu, irônico.
— Criaturinha adorável, não é mesmo?
Zion contornou a cama, observando o homem como quem observa um escorpião.
— O que quer aqui, Serguei?
O psíquico chacoalhou o vinho na taça, então o entornou, fazendo barulho ao
degustar o líquido. Kiara bufou novamente, enojada.
— Bem... Se Lauriel não desce até seus filhos, seus filhos sobem até Lauriel. —
Serguei deu de ombros. — Enfim, qualquer coisa que explique minha presença aqui.
Zion quis revirar os olhos. Ainda que infeliz, pensava que havia demorado para
o homem vir se meter no pouco de sossego que ele tinha arranjado ao permanecer
no Dornéu.
— Se Lauriel não desce até os filhos, significa que ele não quer vê-los — disse
Zion, retirando a jaqueta e dobrando-a sobre uma poltrona perto da parede de vidro.
— Nesse caso, Lauriel que fique sozinho onde está. Ao contrário dele, eu quero
ver o meu.
Zion o observou de esguelha e, receoso pelo que encontraria, estendeu o seu
segundo dom pelo quarto, sentindo o que vinha do homem: melancolia e ansiedade
misturadas com suaves notas de alegria. Soltou o ar pela boca, conseguindo relaxar
um pouco. O homem estava estável psicologicamente, ainda que marinado em um
estado leve de embriaguez.
— Lógico que eu preferia que você tivesse ido até mim — completou Serguei,
passando a mão pelo colchão e dando um tapinha ao terminar. — Mas dormir
abraçadinho aqui não é ruim.
Kiara rosnou novamente.
“Não ouse!”
O psíquico a olhou de lado, avaliando penas, rabo e pelos.
— Por que ainda não a transformamos em um travesseiro de penas? —
questionou Serguei, estendendo a mão para tocar as asas brancas da quimera.
Imediatamente ela o repeliu com o rabo, chicoteando-o nas costelas do homem em
aviso. Serguei riu, ainda mais interessado. — Na verdade, daria um ótimo casaco de
pelos, além de um sapato incrível de couro reptiliano.
Kiara rosnou em sua direção.
“Tente e não terá um corpo para usá-los.”
Serguei riu, buscando a garrafa sobre a mesa de madeira envernizada na lateral
da cama enquanto o animal o fulminava com os olhos.
Zion apenas observava a interação típica dos dois. Já nem se preocupava com as
ameaças sem fundos, porque, ao longo dos anos, aquilo era tudo o que ambos sabiam
fazer um com o outro.
Quando ele trouxe Kiara para Interion, Serguei só faltou arrancar seu couro por
desacatar a ordem do rei. Até mesmo jurou que sacrificaria a criatura quando Zion
não estivesse próximo. Foram incontáveis as noites em que acordara no meio da
madrugada preocupado com a quimera, tateando como um louco a cama que dividiam.
A aflição o dominou por meses, até o dia em que chegou de uma missão e não
encontrou Kiara em casa. Partiu furioso para questionar o pai, temendo pelo pior, e
que os deuses o ajudassem se o que achava fosse a realidade.
Caminhou até o palácio parecendo um tornado de sombras e abriu a porta do
apartamento aos chutes. Fez isso tudo apenas para descobrir Serguei ensinando o
animal a nadar na piscina de borda infinita da sacada, porque “um monstro como
aquele precisava saber tudo sobre sobrevivência e ele iria treiná-la”. Ao lado da
piscina também havia uma tigela de ouro escrito “Criatura Horrenda”.
Zion soube ali que todo o teatro era uma desculpa esfarrapada para ter a
companhia da quimera, ainda que os dois se odiassem de mentira e fingissem não se
conhecer todas as vezes em que se viam.
O general olhou para o relógio fosco no próprio pulso mais uma vez.
Serguei pigarreou, agora de pé em frente à parede de vidro, encarando-o.
— Não adianta olhar o relógio. Eu não vou embora.
— Eu não estava contando com essa sorte. — Zion retirou o colete, dando de
ombros, e foi pegar uma troca de roupas dentro da bagagem.
Enquanto revirava os tecidos ali, o entendimento caiu sobre o psíquico.
— Ah, você está ansioso para vê-la. — A voz do homem continha um humor
ácido, como alguém muito experiente falando com um jovem adolescente. — Mas eu
devo alertá-lo de que, apesar de o nosso acordo de cinco anos estar quase chegando
ao fim, o acordo de sangue permanece.
Zion endireitou-se, deixando a mala de lado, ficando frente a frente com o pai,
que estava de pé agora.
— Eu não esqueci, Serguei.
— Não pode atar o laço de parceria nem falar sobre os acordos.
O sangue do general ferveu e a raiva ecoou pelas palavras que saíram de sua boca.
— Acredita que eu sou uma criança inexperiente? Eu sei as consequências de
um acordo de sangue.
— Saber das regras e seguir as regras são coisas muito diferentes, garoto, e dada
a forma com a qual você tem olhado para esse relógio, tem me passado tanta confiança
quanto uma raposa cuidando do galinheiro — após uma pausa dramática, continuou:
— Você não parece pronto, estou seriamente cogitando estender o prazo...
— Não se atreva! — rugiu para o homem, quase animalesco, deixando até Kiara
em alerta dentro do quarto. — Você já fez mais exigências do que deveria.
— Você sabe que eu estava certo em fazê-las. A garota iria matá-los.
Zion pensou em todas as vezes que Kyller escolheu viver e persistir mesmo
estando no limite.
— Para mim, parece que você a subestimou demais.
— Você não conhece a confusão da mente dela, então não diga o que não tem
capacidade para julgar.
— E como eu poderia julgar qualquer coisa de longe? Todo o pouco que eu sei
é que ela tem melhorado muito.
— Melhorado muito? — Serguei escarneceu um riso. — Sabe quantas lutas ela
perdeu na academia? Todas! Sabe quantas vezes eu tive que confundir a mente de
pessoas que certamente a matariam no primeiro momento que pudessem? Nem eu sei
ao certo quantas, porque me faltariam dedos para contar.
Zion, que já estava pronto para retrucar, calou-se. Todas as lutas? Ele sabia que
ela era ruim na academia, mas... Todas as lutas? Ou Serguei estava mentindo para
intensificar o drama ou... Sua parceira era um desastre. Pensou que não poderia ser
verdade, porque mulheres Drutes eram conhecidas pela força e pelo temperamento
volátil, explosivas como bombas de pressão, jamais aceitariam uma posição inferior.
Abriu a boca para retrucar, mas um odor amargo e forte chegou ao seu olfato.
— Que cheiro é esse? — questionou, já se desvanecendo nas sombras, mas não
antes de ouvir a voz de espanto de Serguei.
— A rã!
Rã? Pensou antes de reaparecer na cozinha. O lugar estava infestado pelo cheiro
condensado. Desligou o botão do forno embutido na parede rústica de tijolos e segurou
um guardanapo que estava esquecido sobre a pia de mármore negro para abaixar a
portinhola, o que foi uma péssima decisão, porque uma nuvem tóxica espalhou-se
do forno para o ambiente quase como se suas gavinhas tivessem criado identidade
própria e o deixado para trás.
Colocou a assadeira sobre a pia, contendo algo disforme e torrado. Serguei
chegou um momento depois, observando Zion e a rã com um olhar de desgosto, como
se o general tivesse estragado tudo. Revirando os olhos, Zion pegou uma das inúmeras
facas em exposição na parede e tentou cortar as camadas de cima na tentativa de tirar
a casca prejudicada. Experimentou a carne de baixo, mas, nem mesmo a parte que
parecia menos corrompida tinha um gosto razoavelmente melhor.
— Não pode estar tão ruim assim! — disse Serguei, desafiador.
Então fisgou uma parte do bicho, tentando sentir o gosto enquanto Zion colocava
uma mão na cintura para assistir à teimosia do velho. Assim que mastigou, cuspiu-
o de volta na palma, jogando-o no lixo. O general apenas observava sem dizer uma
palavra, ainda que um sorriso se puxasse na lateral do seu lábio.
Por fim, Kiara chegou perto interessada, cheirando o assado, então Zion estendeu
a ela um pedaço, afinal, a quimera comia até pedra quando estava com fome. No
entanto, assim que deu uma pequena lambida, afastou-se rápido, fugindo para longe
antes que alguém a obrigasse a comer aquilo.
A boca de Serguei abriu-se pela audácia do animal e Zion teve que morder o
lábio inferior para não rir.

O som da ração feérica sendo mastigada preenchia a cozinha, enquanto pai e filho
compartilhavam um jantar silencioso. O assado de rã, que deveria ser o prato principal,
acabou arruinado, resultando em uma refeição improvisada com as poucas latas de
comida disponíveis na cabana. Sentados em extremidades opostas da grande mesa
de mogno envernizada, ambos contemplavam uma pintura envelhecida pendurada na
parede lateral.
A moldura negra do quadro estava empoeirada, e pequenas luzes amarelas
iluminavam a imagem em tinta óleo, que datava 266 anos atrás. O quadro mostrava
Zion e Serguei lado a lado trajando o uniforme militar da época. O garotinho de
cabelos longos na imagem não passava de uma criança quando fora eternizado ali
e Serguei estava no auge de sua juventude, ainda que os olhos mostrassem aquela
perspicácia que nada tinha a ver com os anos, mas sim com a sua história. A obra fora
encomendada por Serguei para celebrar a data em que Zion conseguiu dominar suas
sombras, um dos raros dias bons que passaram juntos.
Com uma pontada de nostalgia, Zion recordava-se vividamente do orgulho nos
olhos do psíquico ao pendurar uma pequena medalha de mérito elementar em seu
uniforme. Também lembrava-se da sensação de euforia por finalmente ser merecedor
daquele orgulho após passar dois anos se esforçando ao máximo para conquistá-lo.
Mas, infelizmente, aquele dia marcante também trouxe consigo uma tempestade de
mudanças. Após a comemoração, o poder de Zion aumentou exponencialmente, o que
gerou certo incômodo em Serguei, que já não sabia como lidar com a paternidade.
Ele nunca entendeu o que fez Serguei mudar tão drasticamente depois da cerimônia,
mas logo começaram as patrulhas mentais, os treinamentos exaustivos e, de um dia
para o outro, o álcool tornou-se uma presença constante nas refeições. Os conflitos
aumentaram, assim como as restrições impostas ao garoto, que ansiava por uma vida
normal.
Assim, o relacionamento entre pai e filho tornou-se cada vez mais tenso, e o
ponto de ruptura foi a tentativa de lavagem cerebral que Serguei tentou fazer em Zion,
no intuito de subjugar a sua vontade e substituí-la pelas próprias.
Sentado ali, o general apertou o maxilar, desviando o olhar da pintura e
esforçando-se para suprimir as emoções que a imagem lhe evocava. No entanto, ao
desviar sua atenção, encontrou o olhar de Serguei fixo nele, carregando uma sombra
amarga e cansada que refletia seus próprios pensamentos.
Por vários minutos, o som dos talheres se sobressaiu em meio ao desconfortável
silêncio que os envolvia, até que Serguei fez uma tentativa para romper a tensão que
permeava o ambiente.
— E o exército? Como foram os últimos cinco anos?
Zion olhou novamente o relógio, depois colocou a lata vazia sobre a mesa,
limpando a mão no guardanapo. Sob os globos de luzes amarelas, instaladas nas
paredes do cômodo no intuito de tornar o ambiente mais intimista, analisou o homem
sentado ereto como uma agulha em sua cadeira. Ele já vestia o pijama de seda preta
para dormir e parecia muito à vontade na casa usando suas pantufas de caxemira.
Com pesar, Zion deu-se conta de que Serguei não iria embora, não importava
o quanto o ignorasse.
Olhando o pai ali, com os olhos cheios de expectativas, sentiu-se mal por ser tão
duro, mas também não conseguia ser melhor. A sensação era muito parecida com o
dia em que ele e Kaori inventaram de patinar no lago congelado de Yonser, quando
fizeram uma missão naquela cidade. Zion não tinha coordenação com os patins, então,
quando tentava sair do lugar, ridiculamente se esborrachava no chão, mas, ao desistir
e ficar parado, sentia-se patético por nem tentar. No caso do pai, entre o ridículo
ou o patético, ficava com a segunda opção e criara um bloqueio gigantesco em seu
emocional.
Ainda assim, com o silêncio estendendo-se tão incômodo quanto uma pedra em
seu sapato, fez um esforço, porque sabia que o homem também estava se empenhando.
Prova disso é que o prato favorito da infância de Zion era rã assada e, mesmo que a
comida estivesse intragável, ele reconhecia que Serguei pelo menos tentara.
Reuniu toda a sua paciência e habilidade social para responder:
— Antes de voltar, encontrei um campo de reprodução abandonado. Havia duas
mulheres ali e estavam sem comer ou beber por seis dias. Disseram que os soldados
foram convocados para se realocarem novamente em Valmar e as abandonaram à
própria sorte.
— Estão seguras agora? — questionou Serguei.
— Sim. Eu as alimentei durante a viagem para o norte e, quando as coloquei no
barco, já estavam fortes e hidratadas. — Zion tomou um pouco de vinho do seu copo
e completou: — Essas foram as duas únicas em oito meses. Acredito que estamos
bem próximos de acabar com os campos. Parte do avanço rápido é que os soldados
estão cada vez mais eficientes em lidar com a tecnologia vinturiana para encontrar
as instalações.
— Vai ficar seis meses longe, está preocupado com eles? — questionou Serguei,
batucando os dedos sobre a mesa de forma ritmada.
— Não. Kaori foi muito bem treinada e sei que os comandará da melhor forma.
Serguei remexeu-se em seu assento, parando com o bater de dedos e entornando
a taça de vinho. Depois pousou, encarando Zion.
— Na verdade, não. Eu indiquei outra pessoa para o seu cargo.
Por um segundo, o general ficou sem reação tentando entender se ouviu
corretamente. Até mesmo Kiara levantou a cabeça ao seu lado, sentindo a mudança
de ares.
— Você fez o quê? — Zion cruzou os braços sobre o peito.
— Eu promovi um general provisório — Serguei imitou sua postura.
— Kaori é minha imediata, por direito e mérito. Ela é a escolha óbvia para ser
minha substituta.
— Não mais. Eu promovi uma votação entre os pilares e Elitium. Indiquei Cauê
e a aprovação foi unânime.
— Eu não acredito que você fez isso — Zion sibilou, pousando os punhos
cerrados sobre a mesa.
— Eu não poderia deixar a górgona cuidando do maior exército do continente.
— Por acaso o posto dela é de enfeite? — Zion questionou, revoltado. — Além
de ser diretamente treinada por nós e conhecer o desenvolvimento do exército, ela é,
claramente, a mais preparada entre todos os soldados que eu conheço.
— Mas não é a mais confiável.
— De novo essa história.
— Aquela garota é instável como um tornado, Zion! Instável, rancorosa e
impulsiva. A combinação perfeita para o desastre! Ela é boa, isso ninguém pode negar
— Serguei levantou a voz, impedindo Zion de retrucar. — Sei que ela esconde bem
mais do que a superfície mostra e vejo um potencial gigantesco em relação à
inteligência e hierarquia górgona, afinal, ela entrou em conflito com o clã todo e saiu
vitoriosa. Também sei que ela sozinha consegue manter as lâmias afastadas, algo que
um esquadrão inteiro de górgonas tem dificuldade em fazer, além de ser habilidosa
no campo de batalha. Não tiro todos os méritos da sua imediata, Zion, mas Kaori é
tão volúvel quanto as fases da lua e precisa de alguém acima do seu cargo para lhe
impor limites.
O general levantou-se da mesa, levando sua lata até o lixo. Precisava se mover
para não surtar.
— Aquela garota treinou a vida toda para assumir o cargo de imediata e está mais
do que preparada para isso, além de saber sobre o todo o esquema dos descendentes e
me ajudar, por anos, a mantê-los seguros das lâmias enquanto eu os levo para o norte.
Você apenas fica incomodado porque ela consegue criar bloqueios na mente, como
o irmão dela fazia. Ambos treinaram para isso e eu fui um incentivador. Vai julgá-
la por fazer o mesmo que você?
— Sim?! — debochou Serguei.
Zion revirou os olhos, exasperado.
— Então vai me dizer que Cauê é confiável? E quanto aos descendentes que
forem resgatados enquanto eu estiver fora? Ele vai desconfiar quando Kaori os levar
para longe e me chamar para lidar com a situação.
O homem fez um gesto afirmativo de cabeça antes de continuar.
— Cauê é um bom soldado e merecia a chance de reconhecimento. Aliás, ele
não vai desconfiar de nada ou relatar algo ao rei, porque eu limparei sua mente
constantemente.
O general riu, irônico.
— Você não quer um bom soldado, Serguei, você quer uma marionete.
— Eu quero alguém que não esconda nenhuma informação importante.
Zion respirou fundo.
— Se a decisão está tomada, eu não vou mais discutir sobre Kaori, mas saiba
que você está cometendo um erro. Ela já demonstrou por séculos a sua lealdade e
merecimento
— Não, garoto — disse o psíquico, enchendo novamente a taça. — Como
especialista em erros, eu lhe digo que esse não cheira como um. Prefiro morrer com
a desconfiança do que ser morto pela falta dela.
— Mórbido como sempre. — Zion balançou a cabeça e retirou as demais coisas
da mesa, levando-as até a pia.
— Teimoso como sempre — retrucou Serguei, observando-o com olhos
cansados. — Um dia, garoto, você ainda vai cair por confiar em alguém que ama.
— Zion revirou os olhos e caminhou para a lateral da cozinha, começando a subir as
escadas. — E não! Isso não é o que eu desejo para você, estou apenas lhe dizendo
como a vida funciona, porque ninguém passa por ela com o coração ileso. — Serguei
levantou a voz quando o general chegou ao patamar da escadaria. Então apontou um
dedo para ele, revoltado por ser deixado falando sozinho. — E quando esse dia chegar,
você vai se lembrar de mim e eu espero estar bem perto para dizer: eu avisei.
Zion lançou um novo olhar para o relógio antes de bater à porta do quarto, o
que fez com que Serguei estalasse a língua, mas não se atreveu a dizer mais nada,
algo que ele agradeceu mentalmente, pois não queria lidar com mais das merdas que
o psíquico tivesse a oferecer.
Qual foi a surpresa do general quando, ao se deitar na cama, recebeu a companhia
do homem que se deitou do outro lado. O desconforto e a estranheza dominaram
o ambiente deixando-o tenso como um cabo elétrico desencapado, mas, no fundo,
um toque de serenidade parecia tentar tomar posse de algo em sua mente. Talvez
nostalgia. Coisa que Zion empurrou para qualquer porta em que isso estivesse
trancado antes.
Kiara, antes deitada ao lado da parede de vidro observando as estrelas, bufou
incomodada por ter seu espaço tomado pelo homem, então enfiou-se no meio do
colchão, dominando a área dos pés e deixando o rabo e uma asa penderem para fora
da cama, já que não cabia o corpo todo. E foi assim que ficaram os três naquela noite:
desconfortáveis, sem conseguirem dormir de fato, mas sem nada a dizer.
CAPÍTULO 6
Guerra de corações

Olhos no relógio. Os últimos minutos restantes para o fim do acordo de cinco


anos que Serguei o obrigara a cumprir estavam chegando ao fim, mas parecia que
cada segundo se arrastava como éons.
Zion permanecia impaciente, andando de um lado para o outro na parte mais
escura do jardim de margaridas, parcialmente escondido para que não precisasse
estragar tudo devido à sua ansiedade. Kiara seguia cada um de seus passos, em uma
sincronia insana.
“Nós estamos tentando cavar um buraco?”, ela questionou, olhando o pequeno
trecho de chão por onde caminhavam há alguns minutos.
Zion parou de andar, respirando um pouco da brisa noturna e tentando fazer com
que o ato automático o deixasse mais concentrado. Fingiu não ter ouvido a quimera,
mas sabia que estava parecendo um idiota ali, rodando como se estivesse procurando
por um ninho.
Patético como um jovem. Tão nervoso quanto alguém que nunca viu uma mulher
na vida, ainda que essa fosse a segunda vez que veria pessoalmente a parceria. Isso
depois de cinco anos longe, sem sentir o cheiro ou a vibração da pele dela.
O general, acima de tudo, estava ansioso para conhecer de perto todas as nuances
na personalidade e comportamento que só pôde vislumbrar pelos olhos da fera. Queria
entender os porquês, os motivos, os pensamentos...
Seus dedos tremiam ligeiramente, então fechou a mão em punho, tentando não
ceder.
“Porque, se estamos brincando de cavar, a fêmea vai nos mandar dormir fora
de casa. Ela odeia que eu estrague as flores”. Kiara o encarava com as orelhas em
riste e a cabeça levemente inclinada, esperando uma resposta.
Por fim, o general assumiu — com culpa — o que estava sentindo.
“Não estamos cavando um buraco, eu só estou... nervoso para encontrá-la.”
Zion viu a parceira chegar de uma caminhada não fazia muito tempo e saber que
ela estava apenas a alguns metros e minutos dele o deixava selvagem, como se algo
dentro da bestialidade feérica dominasse seu lado racional.
Kiara balançou a asas achando graça da situação.
“Não se preocupe, nossa fêmea é a mais adorável entre todas as fêmeas”. A
quimera inclinou a cabeça para cima, com um olhar sonhador. “Ela tem dentes bonitos
e fortes, além de uma juba vermelha magnífica. E os peitos? São fartos como uma
tigela de ração transbordando! Dá para amamentar uma ninhada inteira dos seus
filhotes.”
Zion observou Kiara com o cenho franzido, analisando cada palavra animada
que saía da mente dela.
“Mas, caso esteja muito ansioso, eu conheço um truque que não tem erro! Você
já ouviu falar em dança do acasalamento? Eu posso ensinar a você.”
A surpresa pela resposta de Kiara quase fez com que ele engasgasse. Segurou
o riso para não se delatar, caso Kyller estivesse atenta aos ruídos, e sentiu o peito
expandir-se, aliviando a tensão acumulada. Por um momento, ele não sabia se
agradecia ou se amaldiçoava a quimera.
— Por tudo o que é mais sagrado, Kiara, não haverá acasalamento.
“Não? Mas esse não é o grande objetivo de todas as relações entre fêmeas e
machos?”
Zion não respondeu, porque novos sons vieram de dentro da casa. Podia ouvir
a parceira movendo-se no andar de cima enquanto se trocava, logo depois ouviu o
interruptor do globo arquêmico e os passos da garota viraram pequenos baques na
escada. Observou pela parede de vidro o contorno do seu corpo descendo os degraus
de mármore negro e agradeceu pela modernidade e pelos espaços envidraçados que o
permitiram colocar os olhos nela antes dos minutos finais se passarem. Isso tornava
o tempo mais suportável.
Zion pensou que seu coração poderia colapsar quando viu a ruiva, vestida com
um pijama, adentrar o espaço da cozinha. O tecido era tão minúsculo que ele mal
sabia se aquilo era considerado uma peça de roupa.
A voz mental de Kiara chamou sua atenção novamente.
“Vamos lá, eu vou ensinar a você, caso se complique e a dança seja uma solução.
É só você abrir as asas, assim...”. A quimera ergueu as asas, estendendo-as
completamente acima da cabeça, como se fizesse um arco para englobá-las. “Ficar
na ponta das patas e depois chacoalhar o corpo de um lado para o outro.”
A criatura começou a se requebrar pelo jardim, balançando o corpo volumoso
em frente à vidraça. Zion não sabia se ria ou se desesperava.
“Pare com essa insanidade! Pelos deuses, Kiara.”
Sua parceira acabaria vendo as asas da quimera e ele estaria ferrado, quebrando
o acordo por questão de minutos.
Inconformada por ele não apreciar sua dança, a quimera abaixou as asas.
“Não reclame quando ela não quiser acasalar.”
Olhou no relógio pela milésima vez desde que colocara os pés em Interion. Agora
não eram mais minutos que o separavam de Kyller; eram segundos. Cada um deles
na contagem do seu coração. Audível como o badalar de um sino.
O relógio marcou o horário exato e seus batimentos dispararam como nunca, em
uma adrenalina desconhecida.
Transbordando de ansiedade, transportou-se para dentro da casa, sentindo o beijo
da magia ao desfazer a barreira de proteção que tremeluziu em azul. Em sua intensa
necessidade, só percebeu que a havia assustado quando ouviu o zunido do metal.
Então virou-se, vendo a faca aproximar-se e desviou-se dela antes de terminar de se
materializar segurando o pulso da feérica, que já se armara de uma nova lâmina.
Isso o deixou perto demais. Seus corpos estavam colados. Manteve-se impedindo
que Kyller soltasse a segunda faca e acabasse se ferindo. Temia por ela mesma, porque
a parceira claramente estava longe de causar algum dano a ele. Aquilo o deixou
ensandecido, pois piorava muito seu descontrole por ter se sentido obrigado a tocar
nela de forma precipitada.
Ele não estava preparado para tocá-la, ainda que desejasse aquilo
desesperadamente.
Minutos atrás, Zion mal sabia se conseguiria ficar no mesmo ambiente que a
parceria sem que a situação causasse um dano irreparável aos dois, mas ali estava ele,
colado ao corpo dela, quase despido. Sentia o coração da garota se chocar contra o
peito e sabia que precisava dizer algo, ainda que não confiasse no som da própria voz:
— Sou eu, Kyller.


Zion não conseguia deixar de se orgulhar ao ver a parceira analisando-o
minuciosamente quando o primeiro impacto do susto pelo desconhecido foi embora.
Ela parecia tentar desvendar cada centímetro dele, o que fazia seu peito inflar de
euforia, enquanto os seus olhos também vagueavam pelo corpo dela, aprovando cada
parte do que via. Desde os cabelos acobreados até as sardas castanhas espalhadas
como estrelas por sua pele. A garota era deslumbrante a ponto de tirar-lhe o fôlego.
Tiraria também a sanidade se ele já não estivesse sem ela há dias.
Ela pareceu piscar por alguns momentos, meio incerta, e então seus lábios
rosados entreabriam-se algumas vezes antes que finalmente conseguisse dizer alguma
coisa um pouco incoerente.
— Você...
A forma como ela pareceu desconcertada arranhou suas estranhas como um
animal enjaulado doido para ser liberto. Zion só conseguia pensar que, se Kyller ao
menos soubesse que ele estava infinitamente mais embasbacado do que ela,
provavelmente se sentiria melhor.
— Eu...
Sua voz saiu divertida e ele agradeceu. Antes isso do que rouca ou com adoração,
o que delataria seu atual estado. Não conseguia deixar de olhá-la, era como uma
imagem mais nítida e perfeita de um sonho há muito desejado. Deixou seus olhos
correrem pelos braços fortes parando a atenção sobre a clavícula proeminente cortada
por inúmeras veias azuis que subiam e desciam dos seios em direção ao pescoço.
A pele branca e translúcida ali parecia delicada ao ponto de Zion se perguntar qual
seria a textura se corresse os lábios por ela. Depois voltou sua atenção para o rosto da
feérica, pensando que queria contar cada uma daquelas sardas em sua face e descobrir
até onde elas iriam.
Kyller piscou novamente, libertando-se do transe em que ambos haviam se
instaurado ao analisarem um ao outro, quebrando o elo ao olhar para o chão e
mexendo-se sem graça.
— O que você está fazendo aqui? Por que não bateu à porta?
O general viu quando ela inclinou a cabeça, tentando verificar a entrada.
Aproveitou o momento e retirou a faca da mão dela, o que fez seus olhos voltarem
para os dele. Zion manteve seus olhares fixos ao colocar o objeto metálico sobre a pia.
Diante das palavras, sentiu-se tenso. Lógico que ele não era burro de esperar uma
recepção calorosa, mas aquela pergunta foi como um soco em seu estômago, porque
o fazia sentir como se ela não o quisesse na casa. Quase riu, desgostoso, porque não
podia julgá-la. Ele a deixou lá sozinha, não é? Kyller não lhe devia absolutamente
nada, ainda que ele não tivesse opção.
Afastou-se antes que seu rosto começasse a demonstrar a frustração que sentia,
indo se recostar no batente da porta. Kiara aproveitou esse momento para se jogar
sobre a ruiva e ele sentiu inveja da criatura. Ao menos alguém podia fazer isso.
“Não está funcionando.”
Zion ergueu a sobrancelha sem entender o que a quimera queria dizer ao lamber
a bochecha da garota, distraindo-a.
“O que não está funcionando?”
“Seu acasalamento é vergonhoso!”
Somente Anabel saberia o esforço heroico que o general fez para não gargalhar.
Ao notar que Kyller o analisava novamente, percebeu que ela realmente esperava uma
resposta e acabou dizendo a verdade, mesmo que soasse estranha e antipática.
— Não me ocorreu bater à porta da minha própria casa.
Os olhos dela prenderam-se a ele, subindo desde os pés, vagando por todo o seu
corpo e parando sobre a alça em seu peito. Isso o fez se dar conta de que ainda estava
com a bolsa, então a retirou, depositando-a sobre a cadeira da cozinha. Sem conseguir
se controlar, acabou encarando novamente o corpo exposto de sua parceira. Não se
conteria dessa vez, afinal, tinha sido ela quem começara com aquela verificação
descarada.
Deleitou-se com a imagem das pernas grossas e torneadas que o pequeno short
rosa expunha como um desfile aos seus olhos. Brancas como um palmito, mas
salpicadas de sardas castanhas que as deixavam ainda mais bonitas. O quadril era
largo e afinava na cintura, ainda que a barriga não fosse reta como as das interianas,
o que o deixava feliz, porque era sinal de que estava se alimentando bem. Os seios
fartos e redondos eram exatamente como Kiara havia lhe dito e marcavam na pequena
camiseta sem sutiã. Apenas naquele momento lhe ocorreu que realmente deveria ter
batido à porta, ou avisado que viria, porque a roupa dela era imprópria em níveis
catastróficos.
Zion respirou fundo, tentando não deixar seus pensamentos vagarem por esse
ângulo.
Além de tudo o que observava, notou que Kyller cheirava à macadâmia e ameixa.
A cada vez que ela se constrangia com alguma coisa, o sangue em sua corrente
sanguínea vascularizava mais forte e o seu aroma projetava-se com uma força
sobrepujante. Era como uma poção feita para enfeitiçar os sentidos dele.
— É um bom ponto, mas... — ela começou, remexendo as mãos de nervosismo.
Zion soube que a garota estava tentando fingir que não se importava com a atenção
que ele dava a ela, mas não conseguia mascarar as reações do próprio corpo. — Não
poderia avisar que voltaria para casa? Eu... eu esperei você quando fiquei sabendo
que estava de volta às muralhas.
Seu peito apertou-se e ele teve que engolir o ressentimento que sentiu na voz
dela, pois, mesmo que tivesse um motivo para a sua ausência, não poderia explicar a
ela. Novamente optou por uma resposta evasiva.
— Eu não pedi que me esperasse — respondeu e só então se deu conta de que a
frase também havia saído de forma muito ruim. Sentiu-se um selvagem que não sabia
mais conviver civilizadamente, nem mesmo com sua parceira.
Atento a todas as reações do corpo dela, viu-a cruzar os braços sobre o peito,
irritada. Aquilo pesou em si e então ele teve a ciência de que aquele encontro estava
caminhando para algo como um trem em meio a um acidente inevitável.
— Mas também não disse para não esperar. Na verdade, você não disse nada. —
A mágoa era latente na voz dela. — Eu esperei por educação, mas acho que você não
entende muito disso, já que eu soube por outras pessoas de seu retorno.
Sentia que a ironia daquele momento iria matá-lo. Ser obrigado a ficar longe a
ponto de enlouquecer, voltar contando os minutos para vê-la e ser recebido como se
fosse apenas falta de educação. Segurou o riso da própria desgraça. Ele sequer podia
dar uma satisfação e explicar seus motivos para ela. Depois de todo o afastamento
e o que a fez passar sozinha, ainda precisava deixá-la no escuro, pensando que
simplesmente não se importava.
Serguei era um maldito que buscava desgraçar sua vida das mais inúmeras
formas possíveis.
Concentrou-se nos assuntos em que podia falar com ela, coisas que gostaria de
saber, além das que precisava entender para que a relação dos dois não fosse mais
um impedimento. Para que Kyller soubesse o que precisava fazer para ajudá-lo com
aquela situação do acordo de sangue. Começou a tirar as luvas, logo depois pegou
uma maçã na fruteira sobre a mesa e voltou para o batente, ainda avaliando como
abordar a academia militar sem ter que explicar os motivos, já que não poderia.
A garota voltou-se para a frigideira, começando a fazer uma omelete, em
silêncio, mas claramente irritada, e Zion precisou de um esforço gigantesco para
apenas não ficar ali como um maníaco, observando-a do novo ângulo.
— Soube que você cursou a faculdade de medicina e agora está no último ano
como residente no hospital. — O general teve sua atenção de volta, quando Kyller se
virou para ele. — Está gostando?
— Gostando? — Ela pareceu um pouco confusa, até surpresa, com a pergunta,
como se não esperasse algo assim. Respondeu como se desse de ombros para qualquer
sentimento que a estivesse incomodando. — Sim. Estou gostando da faculdade, sou
boa em ajudar outras pessoas e meu dom vem se mostrando promissor.
Kiara apoiou a cabeça no balcão da cozinha, encarando a bandeja de ovos.
Quando não recebeu a atenção que queria, ergueu-se nas duas patas, ficando ainda
mais alta que Kyller e acabou ganhando um ovo na boca, após se sentar comportada.
Zion estava tenso porque sabia que a parte importante vinha agora. Ela realmente
precisava melhorar na academia militar ou nunca poderiam estar livres daquele
maldito acordo de sangue. Viveriam para sempre em meios-termos se o que Serguei
disse realmente era verdade.
— E como vai a academia militar?
Viu as costas da garota retesando-se no mesmo minuto.
— Você deve saber como vai a academia militar, é o general dos exércitos.
Ele estreitou os olhos em direção a ela, surpreso com o quanto a mente da parceira
estava afiada para repeli-lo. E aí estava o problema. Não conseguiriam uma conversa
calma, porque ela já estava armada e ele, frustrado.
A única forma de o relacionamento dar certo, e ele poder se explicar, era Kyller
não ser um ponto fraco na vida dele e, pelo que ouviu tanto de Cauê quanto de Serguei,
ela estava muito longe de ser minimamente boa.
Tentou manter a voz no tom mais leve possível, até bem-humorada para tentar
aliviar a pressão que ela empurrava contra ele.
— E como general dos exércitos, eu quero ouvir de você. Sei de sua situação
apenas por terceiros.
Ela ficou em silêncio por um momento e Zion soube que estava tensa pela forma
como a garota mexia a frigideira, como se quisesse lançá-la na parede – ou nele.
— Ainda continuo tentando alcançar os alunos. Amanhã é meu primeiro dia do
último semestre.
Tentando era uma ótima palavra. Permitia a Zion muitas coisas, inclusive
propostas.
— Tentando... E o que está fazendo para melhorar?
— Estou indo às aulas — ela respondeu de forma seca.
— E o que mais? Porque, na minha época, isso nunca foi o suficiente.
— Para quê? Eu não quero seguir carreira militar, desejo ser elmédica titular e
me dedicar a salvar vidas aqui no hospital.
O absurdo da frase fez com ele o mesmo que o limão fazia com o leite: azedar
completamente.
— E na carreira militar você pensa que fazemos o quê? Dançamos balé e assamos
bolos? Devo lembrar você de como nos conhecemos? — O general sentiu-se
descontrolar, tanto pela situação, quanto pelas lembranças do dia em que a encontrou.
As gavinhas de suas sombras começaram a se movimentar sobre a pele, alimentando-
se da sua raiva.
Ela o olhou, arqueando uma sobrancelha em desafio.
— Não sei exatamente o que você faz, senhor das sombras, mas acredito que
fugir da parceira seja a parte principal do serviço.
Aquilo foi como um tapa em seu rosto e Zion a fuzilou com o olhar. Não com
ódio dela, mas com ódio do que toda essa obrigação de silêncio e distância estava
fazendo com a parceira e o laço. Serguei estava destruindo qualquer coisa que pudesse
existir ali e o aspecto selvagem de isolamento do general não ajudava em nada.
Tentou controlar a irritação que sequer era destinada a ela, pois ali só iria
atrapalhar ainda mais a comunicação que já estava extremamente prejudicada.
Manteve a voz firme e controlada.
— Ninguém exige que você siga a carreira militar, mas eu exijo que você saiba
se defender bem, para que não dependa de outras pessoas e possa seguir qualquer
caminho que desejar. Isso não vai acontecer caso não possa ser pelo menos melhor
do que seus colegas de turma.
— Você quer dizer “para que eu não tenha que proteger você”. É isso o que quer
dizer? — Zion pôde ouvir a raiva na voz da parceira. Ela estava tão longe da verdade
quanto uma criança longe da velhice. — Porque, na última vez que verifiquei, eu
continuava sozinha e estava me virando muito bem dessa forma.
Sua conclusão quebrou-o.
Trincou os dentes, tentando conter a raiva que estava sentindo. Raiva dele
mesmo, do pai, de Elitium, daquela maldita cidade, do mundo. Raiva inclusive da
prepotência dela em achar que estava segura, porque isso a fazia ser um alvo fácil.
— Estou vendo o quão bem você se cuida sozinha, não preciso lembrá-la de que
vive no lugar mais seguro do continente. Aliás, se eu fosse um assassino, você estaria
morta há dez minutos. Como consegue chamar aquilo de arremesso de faca se ela nem
se cravou em nada? Praticamente bateu com o cabo na parede e caiu.
Ela olhou para a faca que havia arremessado, agora abandonada no chão, mas
não respondeu. Ficou em silêncio, como se ele sequer tivesse dito algo.
— Vai me ignorar? — Ao não obter resposta, continuou: — Muito maduro de
sua parte, Kyller.
— Ignorar como você fez comigo por cinco anos? — ela praticamente gritou
de volta.
“Eu falei para você fazer a dança do acasalamento”, Kiara invadiu seus
pensamentos e ele a bloqueou, ainda focado na tempestade raivosa à sua frente.
— Você diz essas coisas como se ficasse realmente preocupado se estou viva ou
morta. Faz cinco anos que eu não tenho notícias suas, Zion. Agora você volta, não me
avisa, só aparece como um fantasma na cozinha e começa a enlouquecer porque eu
ainda não acompanhei os outros alunos. Juro que não o entendo.
“Ela tem um ponto”, murmurou Kiara, olhando de um para o outro, como se
fossem bolas de tênis.
Abismos! Lógico que ela não entenderia, porque ele também não podia explicar.
E agora ela estava tão enfurecida que sequer tentava ver a situação por todos os
ângulos. Os dois estavam descendo ladeira abaixo e daquela forma ela jamais
entenderia metade das implicações de tudo o que Zion abdicou e do que ele precisava
que ela fizesse para tornar a situação mais fácil. Era redundante e cansativo em níveis
absurdos.
— Não precisa entender. A única coisa de que precisa é parar de choramingar e
fazer algo a respeito da sua própria segurança.
Kyller bateu a mão sobre o balcão, irritada.
— Deve ser difícil ter uma parceira Drutes quando o único objetivo de sua vida
é matar cada um de nós. — E ali estava a mágoa sendo escancarada em sua cara. Ela
encarou-o no fundo dos olhos, como se soubesse tudo de Zion, tão inocente em sua
ignorância. Um nó enforcava a garganta dele enquanto ela desferia cada uma daquelas
palavras cortantes. — Se eu fosse você, também viveria preocupado com a minha
segurança, é compreensível.
— Você não sabe nada sobre mim, Kyller! — Zion disse numa explosão. Estava
no limite. Acusado de mil coisas das quais não poderia se defender, mas o pior era
ver a dor e a mágoa que todas as ocultações causaram nela.
— Eu não sei nada sobre você, porque você não me permite saber.
— Se ainda não percebeu, esse é o objetivo. E é assim que devemos continuar.
Simplesmente não conseguia mais encará-la e também não podia dizer nada sem
que a ferisse por não ser sincero, então optou pelo afastamento, já que nada do que
dissesse poderia deixar de causar uma catástrofe. Cansado, apenas deixou que as
sombras o engolissem e carregassem-no para o quarto.
Andou pelo cômodo ouvindo o som do coração dela disparar no andar de baixo.
Um sinal de que estava tão afetada quanto ele.
Passou as mãos sobre o cabelo sentindo a ansiedade anterior se tornar apenas
um amontoado de frustração. Bem, ele reconhecia que fora ingênuo por esperar um
encontro agradável quando havia tantas questões pendentes. O primeiro contato foi
tão ruim quanto ele poderia ter imaginado, e muito pior do que seus anseios. Ainda
assim, uma coisa ele havia percebido naquela noite ao ficar cara a cara com a parceira:
ela tinha uma língua deliciosamente cortante e não abaixou a cabeça mesmo quando
as sombras se descontrolaram na cozinha.
Deitou-se na cama escutando os passos dela ecoando pela escada e a porta do
quarto ao lado batendo com mais força que o necessário. Minutos depois ainda podia
ouvir o coração da garota batendo acelerado.
Sorriu para o teto ouvindo o seu próprio coração disparado no peito.
Só conseguia pensar que os próximos dias seriam muito interessantes.
CAPÍTULO 7
Batalha ante a centelha

O vento lá fora carregava a agressividade da nevasca que estava por vir na


semana seguinte.
Zion sentia a pressão dos dias afunilando-se até o teste final e, por isso, a
necessidade de cercar Kyller com o treinamento correto estava deixando-o em um
estado eterno de ansiedade e frustração. Ansiedade porque o resultado dela
influenciaria diretamente na vida dos dois e frustração por não ter mais tempo para
prepará-la.
Após uma corrida de aquecimento no bairro militar, encaminhou a parceira para
os degraus de madeira do porão, acendendo o globo arquêmico que emitiu uma luz
amarelada pelos anos em desuso.
— Nada de Dornéu? — ela perguntou com o cenho franzido ao segui-lo.
— O clima já esfriou o suficiente para que o frio atrapalhe o treino. Não temos
tempo para testá-la em baixas temperaturas e o frio é um retardante para as nossas
lições.
Ajeitou o tatame, colocando-o no chão ao chegar no patamar. Kyller o esperou
no pé da escada, apoiada no corrimão enquanto amarrava as tranças laterais do cabelo
em um coque, para que não atrapalhasse o treino.
O general colocou-se no centro do cômodo de teto baixo e mirou a parceira,
torcendo para que aquele treinamento em um lugar tão fechado não causasse um caos
completo na vida dos dois.
Diferente do que ele pensava, passar mais tempo perto dela não tornava o laço de
parceria mais fácil, muito menos deixava a beleza de sua parceira menos esmagadora.
Agora mesmo, olhando-a na escada, distraída ao arrumar os cabelos, ele sentia que
teria um colapso nervoso. Ela usava uma legging branca que marcava cada contorno
do seu quadril, além de um moletom rosa que terminava muito acima do cós da calça,
mostrando uma faixa da barriga.
Céus, ele só queria correr seus dedos por ali, traçando cada pinta visível. Não
sabia se agradecia pela mulher linda que tinha ou se amaldiçoava os deuses por não
poder tocá-la.
Um brilho cômico passou pelos olhos dela quando notou o olhar faminto do
general. Ele tentou manter a postura o mais profissional possível, mas era óbvio que
Kyller via a luxúria em seus olhos. Conhecendo-a bem, tinha certeza de que ela
também estava pensando coisas piores. Nas últimas semanas, a parceira não tirava
os olhos curiosos dele e sua mente docemente diabólica ainda colocaria os dois em
problemas. Não que Zion pudesse culpá-la, afinal, também estava no limite com
aquela tensão esticando-se como um elástico entre os dois, muito perto de romper.
— Talvez eu devesse trocar o moletom? — ela brincou, puxando um pouco a
blusa que só cobria o top sobre os seus seios.
— Nem pense nisso — ele sorriu de lado, ainda com os olhos na pele de sua
barriga. — Estragaria toda a minha diversão.
Kyller corou, segurando as mãos atrás do corpo.
— Ambrose me deu de presente no meu aniversário de 20 anos, quando eu
comecei a ter coragem de trançar meus cabelos. Ele disse que esse é um modelo de
roupa usado pelas mulheres Drutes e eu sei disso porque me lembro da minha mãe
usando peças assim. Eu o guardei para quando fosse seguro usar.
O peito de Zion estufou ainda mais, pelo simples fato de sua parceira sentir-se
segura ao seu lado.
— Ambrose tem razão. Mulheres Drutes não gostam de muita roupa, porque os
trajes são vistos como uma forma de proteger o corpo. Elas acreditam que uma mulher
forte não precisa disso para se proteger, pois sua presença já envia uma mensagem
clara para o inimigo. Quando se expõe a barriga, a mensagem passada ao oponente
é a de que você é intocável.
— Seria por isso que a Deusa da Guerra batalha nua da cintura para cima? —
ela questionou franzindo o cenho, pensativa.
— Exatamente por isso.
Kyller olhou para si mesma, balançando-se sobre as pontas dos pés. O sorriso
em seu rosto se desfez, voltando a olhar para Zion.
— Então talvez eu devesse realmente mudar o moletom.
— De jeito nenhum — disse o general, mantendo o tom sério. — Use-o mesmo
que ainda não se sinta merecedora. Use-o até que se orgulhe de usá-lo.
Um rubor coloriu as bochechas de Kyller e ela sorriu fracamente para o general.
Sempre que ela duvidava de si mesma, Zion tinha vontade de abaixar seu escudo
mental e mostrar a ela como ele a via. Como ficava embasbacado dia após dia ao vê-
la vencendo cada aluno que ele colocava junto dela no tatame ou como ela parecia
destemida, forte e até mesmo selvagem ao nocautear um oponente, apenas para em
seguida curá-lo com tanta facilidade que chegava a ser assustador de olhar.
Nesses momentos ele se sentia queimando lentamente em uma euforia
desesperada, e a cada vez que ela lançava alguém ao chão e levantava-se vitoriosa, ele
via fúria e fogo em seus olhos. Quando isso acontecia, ele só queria ajoelhar-se aos pés
dela e ser consumido por aquele fogo em seu olhar. Às vezes, passava as madrugadas
perguntando-se se a paixão era realmente isso, sentir-se em chamas, porque, se fosse,
Zion ficaria mais do que feliz em ser queimado até os ossos por ela.
Agora mesmo ele queria abaixar suas barreiras mentais e mostrar a ela cada uma
daquelas nuances que o deixavam cada dia mais... apaixonado? Mas não podia. Ainda
não.
A parceira deu um passo à frente, pisando sobre o chão recoberto, e ficou em
silêncio, esperando que ele ditasse as regras.
Apesar de o general saber o que precisavam treinar, estava hesitante sobre o quão
difícil o contato seria.
— Hoje não vamos treinar ataque e defesa padrão — disse ele, caminhando ao
redor do tatame. — Você precisa melhorar seu desempenho contra oponentes no chão,
porque tem perdido muitas lutas na academia quando alguém a derruba. Além de
também ter medo de usar golpes de queda em seus adversários por não saber lidar
com eles, perdendo muitas oportunidades de vencê-los assim.
Kyller ficou quase de frente para ele, os olhos brilhando de interesse antes de
questionar:
— Vai me ensinar no chão? — levantou uma sobrancelha em desafio. — E o
que eu devo fazer?
O interesse descarado da parceira fez com que um sorriso se formasse nos lábios
de Zion, assim como a ideia tomava forma em sua mente.
— Me ataque!
Kyller não hesitou. Estava tão acostumada com a ordem que já nem pensava mais
nela, simplesmente desferiu golpes em direção a ele com toda a graça e velocidade
que treinara nos últimos meses. Ele aparou socos, chutes altos e baixos, além de
cotoveladas tão fortes que o fazia estremecer a cada golpe. Deixou que ela se divertisse
um pouco e então a surpreendeu, aumentando o seu ritmo.
Preparando a emboscada, fez uma finta, para pegar um dos socos, virando o
corpo de lado e puxando o braço dela sobre o ombro, forçando-a a se colar na lateral
dele e fingindo que tentaria arremessá-la para frente. Kyller seguiu por essa linha de
raciocínio, inclinando o corpo para trás e abrindo as pernas para ter um suporte maior
de equilíbrio, mudando assim o ponto de apoio para a perna direita e evitando ser
arremessada. Satisfeito, Zion mudou o golpe, deslizando uma perna entre as dela, em
seguida dobrando-a e enganchando ao redor da sua direita, para então puxar, fazendo
com que a parceira perdesse o equilíbrio, jogando seu peso sobre ela.
Em segundos, estavam no chão.
É só uma luta, Zion tentava se convencer ao colocar um joelho de cada lado
do tronco da feérica, enquanto ela tentava se debater para longe... Sem sucesso, pois
ele tinha 260 anos de experiência a mais. Com uma das pernas, pressionou o braço
esquerdo dela, paralisando-o e dando um suporte ainda maior para essa imobilização
ao segurar o pulso da parceira.
— Entendeu o que eu fiz? — ele questionou, olhando-a nos olhos.
— Queda clássica de enganchamento — disse ela, ofegante.
— Entendeu o seu erro?
— Não houve erro. É um golpe inevitável. Após pegar o meu braço, você poderia
me derrubar mesmo que eu não mudasse o meu equilíbrio.
— Mas você poderia ter saído do golpe assim que tocasse no chão — ele levantou
uma sobrancelha, desafiador, e ela suspirou.
— Sim, poderia, mas se estamos treinando isso, quer dizer que eu não sei fazer
tão bem.
— Reconhecer já é um progresso — Zion disse, vendo o peito dela se
movimentar numa subida e descida ao respirar fundo. — A manobra para executar a
queda você já conhece, então eu não vou me aprofundar, mas quero que você comece
a utilizá-la mais. — Com a mão livre, ele indicou o tórax dos dois. — Nesse tipo de
ataque, o oponente não fica colado ao seu abdômen, o que torna mais difícil de se
desvencilhar. E também existe o fator agravante de que ele também pode utilizar um
dos punhos — mexeu os dedos sobre o rosto dela para exemplificar — O oponente
estará atacando você e tirando toda a sua atenção para elaborar uma estratégia de
contra-ataque. — Kyller prestava atenção aos mínimos detalhes, porque já caíra
naquele golpe diversas vezes e em todas saiu com pelo menos um olho roxo. — O
primeiro passo é desviar os ataques, somente depois pensar em desequilibrar o
inimigo. Lembra-se de todos os movimentos de defesa que lhe ensinei no Dornéu?
— Sim.
— Você vai usar a mão livre para interceptar o soco. Pronta?
Ela fez um aceno afirmativo. O general começou a ensaiar golpes na direção
do rosto dela, cada vez com mais agilidade e força, sentindo-se aliviado quando a
parceira conseguiu desviar de todos. Então, mais confiante, ela fez um movimento ao
levantar o próprio quadril para desestabilizá-lo.
Zion fingiu desferir um novo golpe que, ainda que ela tivesse reagido no último
instante, teria a acertado de raspão.
Estalou a língua, repreendendo-a:
— Essa rotação de quadril não vai desequilibrar o oponente, porque ele não está
sobre você. Além disso, no momento em que você se moveu, ficou com a guarda
baixa e quase tomou um soco no queixo. — Viu a compreensão adentrar os olhos
dela, assim como a irritação, então continuou: — A única forma de desestabilizar seu
oponente nessa situação é bater com a parte macia da mão na região do vasto medial.
Zion indicou o local na lateral do joelho mais por costume do que por
necessidade, pois Kyller era elmédica e conhecia anatomia melhor do que ele. Quando
deu o sinal, ela fez algumas tentativas, a maioria delas certeira sobre a região.
Recomeçaram a técnica desde o início e, a cada execução, ele empregava mais
dificuldade nos golpes. Ainda assim, ela teve cerca de 60% de aproveitamento.
Resolveu ensinar outra maneira de desestabilização que poderia, inclusive, quebrar
um cotovelo, se necessário. Não que ele fosse ser enfático quanto a essa parte, mas
ela estaria dentro do teste sozinha e à mercê de pessoas que Zion sabia não terem um
pingo de escrúpulos.
Depois de um tempo considerável de investimento nas técnicas, ele completou
por fim:
— Você ainda pode inverter a posição nesses casos se o oponente não rolar para
longe, mas, como não tem uma habilidade muito grande com esse tipo de luta corporal,
eu não indico se não for estritamente necessário. Lembre-se Kyller: o enfrentamento
não é o ponto do teste.
Ela concordou, de cara fechada.
Saiu de cima da parceira, conseguindo finalmente respirar fundo sem receber um
ataque aromático do laço. Não que fosse mais fácil respirar com ela ali, mas ao menos
não estava sobre o seu corpo, praticamente colado.
Ele se permitiu beber um pouco de água antes de voltar para o centro do tatame.
— Agora eu vou ensinar uma técnica de raspagem para inverter os corpos e ficar
por cima.
— Raspagem, certo — ela concordou e Zion voltou a sobrepor-se a ela no tatame.
Engoliu em seco. Sabia que aquela forma deixaria o corpo dos dois mais colado do
que jamais estiveram antes e o fato de estarem tão próximos do teste final fritava as
expectativas dele.
Kyller parecia sentir o mesmo, era nítido pelo tom avermelhado em sua pele
e o coração que batia mais rápido. Cada vez que ele se abaixava demais ou falava
próximo, a respiração ofegante dela testava sua força de vontade em níveis absurdos.
Zion não sabia que tinha tanta força, nem em seus dias mais difíceis como general
do exército.
O feérico encaixou-se no quadril da parceira, fazendo com que as pernas dela
rodeassem sua cintura, depois lhe agarrou o pescoço com uma das mãos, sentindo a
pulsação sanguínea disparar ali. Tentou ignorar o cheiro adocicado e enfeitiçado que
começava a exalar dos poros dela antes de recomeçar a falar.
Limpou a garganta, olhando-a nos olhos.
— Se alguém estiver sobre você, segurando no seu rosto, pescoço ou a roupa,
você precisa focar primeiro em estourar a pegada antes de pensar em tirá-lo de cima
de você.
Ela olhava para os olhos dele tão fixamente que as íris douradas pareciam em
chamas. Deitada sob ele, trêmula e quente em contato com o seu corpo, Zion só
conseguia pensar em jogar todo aquele maldito treinamento para os ares. E o cheiro?
Pelos deuses, ele mal conseguia raciocinar direito com tanto feromônio dela exalando
como ondas pelo ambiente. Precisava concentrar-se e parar de se imaginar beijando
a boca da parceira ali mesmo, naquela posição. Não que fosse a única imagem que
tentasse invadir a mente dele.
Focou em ensiná-la a formar um quadrante com o braço, colocando o punho
abaixo da mão do adversário para interceptar a pegada, finalizando ao agarrar o braço
agora livre do oponente e puxando para cima de si, na lateral da cabeça.
A demonstração acabou deixando-os novamente cara a cara, próximos demais.
Além do que Zion poderia suportar, aquém do que ele realmente desejava. O corpo
parecia pinicar com um tipo de magnetismo enervante.
— Você entendeu como desmanchar a pegada? — sussurrou para ela, sua voz
rouca tirando qualquer tentativa de se passar equilibrado. Tentou dosar a própria
malícia para que a parceira não achasse que era uma instigação, o que nada tinha a
ver com ele estar completamente fora do próprio controle.
Ainda mais quando ela o olhava daquela forma: como se o despisse com os olhos.
Zion se sentia um maldito desgraçado de sorte. Seu corpo latejou.
Ela fez um aceno positivo antes de emitir um “sim” anasalado. O sangue do
general ferveu dentro das veias e ele respirou fundo.
— Ok. Agora envolva suas pernas ao redor da minha cintura.
Um silêncio ecoou pelo cômodo.
— O quê? — questionou ela, parecendo quase desesperada.
Um sorriso torto formou-se nos lábios dele ao notar o constrangimento dela.
— Suas pernas. Em torno da minha cintura. — Ela seguiu o comando, ainda
um pouco receosa, e Zion precisou de muito esforço para não a puxar ainda mais
para perto. Deuses, ele só queria envolver o quadril dela com as mãos e afundar-se
ali. Respirou fundo, limpando a mente. — Muito bom. Agora você vai aproveitar
minha mão presa do lado oposto do meu corpo e fechar seu braço em torno do meu
pescoço, usando os dois braços. — Zion a guiou no movimento. — Isso, formando um
triângulo. Agora você vai usar suas pernas para me fazer voltar para trás e empurrar
a minha perna com seu pé, já nos virando para o solo. É assim que vai inverter a
posição. Precisa usar seu peso.
Ele acompanhou o movimento, para que ela visse até o fim onde deveria chegar
com toda a técnica. Por fim, Kyller estava sobre o corpo dele e ele amaldiçoou-se por
achar que aquela insanidade seria possível de ensinar.
Olhos nos olhos. Os dois não conseguiam emitir uma palavra sequer.
— De novo — ele disse por fim, forçando-se a pensar em suas memórias de
guerra, membros decapitados ou qualquer bizarrice que ajudasse a limpar sua mente
do traseiro dela sentado sobre o seu abdômen.
Voltando para o estado anterior, curvado sobre ela e segurando seu pescoço, Zion
questionou se não deveria ter trazido Serguei para ficar vigiando-os da escada.
— Vamos repetir esse golpe até que você saiba fazer isso de olhos fechados —
incentivou e um brilho diferente cruzou os olhos da parceira. Algo como
determinação.
Kyller empenhou-se, mas, nas primeiras vezes, não conseguia imobilizar o
pescoço dele. O general havia contado cerca de seis tentativas antes que ela executasse
uma raspagem completa a ponto de se encavalar sobre o seu abdômen.
Estava suada e respirando com dificuldade, com o cabelo desalinhado jogado
sobre os seios e as tranças fugindo selvagens nas laterais. A imagem o derrotou,
fazendo com que imaginasse cenários onde aquilo não fosse apenas um treino.
— Assim? — ela perguntou, eufórica por concluir o golpe.
Isso Kyller, assim mesmo que você vai nos enviar direto para o Abismo. Foi
a única coisa que o feérico conseguia pensar. Céus, que ela não jogasse o quadril
mais para baixo ou Zion estaria em uma enrascada gigantesca para se explicar. Ele
precisava de algo para amortecer aquele treino ou o acordo de sangue o mataria.
Pigarreou, tentando manter a voz estável antes de responder.
— Sim, o golpe está quase perfeito.
— “Bom” o suficiente ao ponto de eu ter o direito a uma pergunta? — ela
questionou. Seus olhos cor de ouro derretido o analisavam de forma divertida, ainda
que houvesse uma nota quente de malícia.
Ele deu um sorriso irônico de canto.
— De novo o jogo das perguntas? — questionou, pensando no quão perigoso
seria se distrair em um momento como aquele. — Depende da pergunta.
Ela ameaçou abrir a boca, mas calou-se por um momento, mordendo o lábio,
pensativa. Com Kyller ainda sobre ele, Zion martirizou-se, mantendo as mãos na coxa
dela, perto dos joelhos, mas estava lutando consigo mesmo para impedi-las de criarem
vida própria e terem a audácia de subirem pelo seu quadril. Ao ver uma das gavinhas
ir direto se enrolar pela cintura dela, percebeu que, ainda que controlasse o próprio
corpo, as sombras já tinham resolvido esquecer quem obedecia a quem ali.
— Bom... — ela começou. — Tem uma coisa que ficou na minha mente depois
que fomos ao aniversário de Serguei.
— O que exatamente? — questionou, tentado pela curiosidade.
— O que aconteceu entre você e a górgona? — Zion imediatamente pensou
em Kaori e imaginou se aquela conversa viraria uma nova briga de facas. Antes que
pudesse abrir a boca para questionar, ela completou. — Sirena. Acho que esse era o
nome dela.
— A recepcionista? — questionou, ainda um pouco afoito.
— O que aconteceu com vocês dois naquele elevador?
Aliviado, agradeceu aos deuses pela zona segura. Aquilo ele poderia responder.
— Certo, então vamos brincar de “uma pergunta por uma pergunta”.
— Não! Uma pergunta pelo meu progresso — ela rebateu, agarrando-se ao
pescoço dele.
— Combinado! Uma pergunta por uma pergunta — ele teimou, enquanto ela
executava o movimento e sentava-se sobre ele, bufando. Zion rolou-a novamente no
chão, protegendo a cabeça da parceira com o antebraço para que não batesse no
tatame. Então recomeçaram o treino. — Eu respondo primeiro e você continua
executando o movimento. — Ela voltou a puxá-lo, tentando desequilibrá-lo ao mesmo
tempo em que ele falava. — Quando eu tinha cerca de 18 anos, treinava com Serguei
todas as tardes depois da academia militar. Ele preferia que os treinos fossem dentro
do seu aposento no palácio, porque não podia se ausentar por muito tempo.
Ao executar uma manobra perfeita, o general precisou interromper para elogiá-
la.
— Ótimo. Tente fazer um pouco mais rápido. — Ao vê-la recomeçar, voltou
também para a história. — Serguei sempre me alertou para ficar longe de Sirena,
porque ela era uma górgona e as górgonas eram perigosas. Mas eu era amigo de Kaori
e nunca vi nada parecido com o que ele queria demonstrar.
— Kaori é a imediata de um exército. Se tem algo que ela é, essa coisa é perigosa.
— Por um momento Zion teve um estalo com a informação e um baque surdo ecoou
pelo ambiente quando Kyller plantou-o no chão, afundando-se sobre seu tronco com
mais força do que era necessário.
— Pensando por esse lado, sim, mas eu era jovem e Kaori não era uma imediata.
— Agora começava a se arrepender por dar corda para a história da górgona.
Voltaram para a posição original, para que ela treinasse mais uma vez.
— Um dia, chegando sozinho no palácio, Sirena pediu para eu segurar o elevador
porque ela precisava subir também. Eu não era idiota, a mulher era atraente e eu era
um adolescente com todos os hormônios em ebulição. Acabei ignorando os avisos.
Kyller ergueu uma das sobrancelhas, parando o movimento no meio. O general
engoliu em seco.
— E ainda diz que não era idiota? — ela repetiu e Zion sentiu a ironia das
palavras.
Abaixou a cabeça até que suas respirações condensassem juntas.
— Está chamando um general de idiota? — ele se abaixou mais, querendo sorrir,
mas mantendo a expressão rígida ao quase roçar seu nariz no dela. — Cuidado com
as suas gracinhas.
A ruiva mordeu o lábio inferior, com os olhos fixos em seus lábios.
— É você quem deveria ter cuidado. Não fui eu que me enfiei em um elevador
com uma górgona só porque ela era bonita.
Apertou um pouco mais os dedos em torno do maxilar dela, chamando sua
atenção. Um pequeno riso marcou o canto esquerdo dos lábios carnudos da parceira
e Zion fechou os olhos tentando controlar a enxurrada de pensamentos.
— Dessa vez passa, porque você está certa. Eu fui um idiota. — Encarou todos os
cantos do rosto corado de Kyller antes de completar, sussurrando: — Mas da próxima
vez, eu posso apertar com um pouco mais de força.
— Está me incentivando a continuar? — ela retorquiu, mordendo o lábio inferior.
— Porque, se o castigo for o enforcamento, eu ficarei feliz em recebê-lo.
Zion aliviou o aperto, sentindo suas entranhas contraírem-se. Não apenas as
entranhas. O problema é que ela estava ficando cada vez mais audaciosa e ele,
descontrolado.
— Não me tente, Kyller — avisou, com a voz rouca. Estavam tão perto um do
outro que bastaria um leve movimento para os seus lábios se tocarem.
— Ou o quê? — ela provocou, apertando as pernas ao redor da cintura dele, com
os olhos dourados que eram duas brasas fustigando seu controle. O aperto fez com
que a parte interna da coxa dela entrasse em contato com a sua ereção, e a boca da
parceira entreabriu-se em surpresa.
E lá se foram todos os seus esforços na tentativa de ser cavalheiresco. A verdade
era que ele se sentia um filho da puta descontrolado, e agora ela sabia.
— Isso é resposta suficiente para você, Kyller? — Pronunciou seu nome como se
degustasse cada letra em sua língua e, quando ela mordeu o lábio inferior, Zion desceu
a mão do pescoço da parceira, deslizando-a pela lateral dos seus seios e agarrando sua
cintura forte o bastante para ouvi-la ofegar, então apertou o quadril contra o dela, que
arregalou os olhos ao sentir toda a extensão comprimindo-se bem ali. — Ou precisa
de mais alguma demonstração?
A feérica fechou os olhos por alguns segundos, mantendo-se imóvel. A
respiração ofegante parecia difícil, mas o sorriso em seus lábios tornava-se cada vez
mais faminto.
— Eu gostaria de ver mais demonstrações, mas vou me contentar com essa.
Zion balançou a cabeça, imaginando uma dúzia de cenas em que a faria implorar,
mas quando os seus feromônios simplesmente entraram em pane, carregando o ar com
a sua excitação, ele teve de fechar os olhos, afastar-se um pouco e respirar fundo para
não causar nenhuma tragédia.
Maldita feérica destruidora de autocontrole.
Ela riu, travessa por ter ganhado a batalha de provocações, e ele retomou a
raspagem como se nada tivesse acontecido. Só depois de duas tentativas Zion voltou
a falar novamente.
— Quando Sirena e eu estávamos no meio da subida, ela parou o elevador e me
beijou. — Outro erguer de sobrancelha de Kyller quase o fez rir. — Continue seu
treino. — Chamou sua atenção mais uma vez, evitando desviarem-se do que
importava. — Eu iria repetir que tinha apenas 18 anos, mas você já entendeu essa
parte. Foi meu primeiro beijo e eu sequer imaginei que ela pretendia alguma coisa,
até que senti a mordida de uma das serpentes.
Os dois acabaram rindo da situação.
— Eu não acredito que seu primeiro beijo foi com a Sirena.
— Logo antes de ser mordido por uma górgona pela primeira vez e ficar
paralisado.
— Meu primeiro beijo foi melhor. — Ela o provocou.
Zion ignorou a fera do ciúme afiando suas garras em seu peito e eles riram
novamente antes dela continuar.
— Um dia de muitas primeiras vezes.
— E nenhuma delas boa — Ele riu, ao lembrar-se que se enrolou com o beijo
e não conseguiu fazer nada certo. — Caí no chão do elevador, paralisado, como eu
disse, e Sirena montou sobre mim, pronta para me morder ali mesmo. O que ela não
esperava era que a paralisia não afetaria as sombras e, sentindo o meu desespero, elas
saíram em disparada, atacando-a para matar, não somente imobilizar. Apesar de as
górgonas terem uma resistência gigantesca às sombras, Sirena passou sufoco a ponto
de urinar na roupa, no chão e inclusive em mim, já que tinha sentado sobre meu
quadril para tentar se alimentar. Eu não faço ideia de quanto tempo ficamos naquela
luta insana e estranha até que Serguei abrisse o elevador.
Kyller riu, presa sob ele, então arregalou os olhos.
— Ei, mas se Serguei consegue ler pensamentos, por que não foi socorrer você
antes?
Zion riu com amargura.
— Porque ele me avisou várias vezes para ficar longe e eu não tinha obedecido.
Serguei decidiu que era um excelente momento para me dar uma lição valiosa.
— Mas você já tinha aprendido, acredito eu, ao ser mordido e ficar paralisado.
— Serguei tem métodos questionáveis. Não basta o aprendizado, ele gosta da
humilhação. Se você acha ruim ser treinada por mim, não imagina o pesadelo que é
ser treinado por ele.
Kyller finalizou-o mais uma vez, montando sobre ele, dessa vez mais embaixo,
encaixando seus quadris. Olhou-o ali de cima, com as bochechas corando ao se
inclinar em direção ao seu rosto, com as mãos espalmadas sobre o peito dele.
— Na verdade, eu acho muito interessante ser treinada por você.
A voz ofegante dela saiu baixa, o que fez o laço cantar dentro dele, agitando
cada célula de seu ser. O sangue do corpo de Zion desapareceu por completo, indo se
alojar numa parte muito específica que agora estava em contato com ela, retirando o
restinho de normalidade que ainda mantinha aquele momento seguro.
— Interessante é uma palavra um pouco distante dos sentimentos que eu vejo em
seus olhos — disse Zion, respirando fundo e tentando não ceder a excitação. Maldito
dia que foi provocá-la na academia, porque depois daquilo ela tornara a provocação
um jogo muito perigoso, que ele tendia a perder para não morrer pela quebra do
acordo. Por isso declarou: — Está bom de treino por hoje, amanhã continuamos.
Ela fez biquinho, ainda animada.
— Mas eu ainda não cansei! — a garota movimentou-se sobre ele, fazendo com
que Zion levasse as duas mãos a cintura dela, envolvendo-a com força para que ela
ficasse imóvel e não o provocasse mais.
— Mas eu sim — ele retrucou entredentes.
Não estava cansado do treino em si, mas sim da tensão que ameaçava parti-lo
ao meio.
— Podemos fazer só mais uma repetição.
— Não!
— Sim!
— Não!
Quando Kyller, sorrindo, abriu a boca para continuar teimando, Zion a agarrou
pelo quadril e sumiu nas sombras, tornando a reaparecer no mesmo lugar, só que agora
de pé. Ela emitiu um gritinho pela surpresa, então, sendo segurada por ele, prendeu
as pernas ao redor da sua cintura, que a ajudou a se firmar melhor.
Ainda tenso, Zion a ajeitou no colo, seus rostos muito perto um do outro.
— Minha vez de fazer uma pergunta — disse ele olhando-a intensamente de
baixo, já que havia deixado ela mais alta para evitar muito contato.
Kyller, corada pela adrenalina do treino e agarrada ao seu ombro, encarou-o de
cima, torcendo os lábios.
— Justo. Faça a sua pergunta.
O general pensou em muitas coisas que gostaria de saber, mas algo gritava em
seu peito como uma grande dúvida que o corroía por dentro, ainda que achasse saber
a resposta.
— Você mudou seus pensamentos sobre mim desde nosso reencontro?
A feérica ficou pensativa, ainda em seu colo, olhando-o nos olhos. Tantas
divagações cruzando a íris dourada que ele não sabia ler ou interpretar. Seu coração,
ainda que não quisesse admitir, estava acelerado e, de repente, aquela pareceu a
resposta que estava aguardando em todo aquele tempo.
— Algumas coisas sim, outras não — a garota disse por fim, seu rosto
indecifrável.
Zion engoliu em seco.
— O que isso significa?
— Isso são duas perguntas , general. — Um sorriso crispou no canto dos lábios
dela.
— Por favor. — As palavras saíram de sua boca e ele mal pôde acreditar que
elas haviam escapado tão facilmente. O pequeno choque espelhou nos olhos dela e a
pose risonha desapareceu. Ela o observou contemplativa, como se tentasse enxergar
algo em seu rosto. Por fim, pareceu render-se.
— Significa, Zion Voluz, que eu já o considerava meu salvador e tinha
sentimentos bons além de curiosos a seu respeito, ainda que estivesse magoada e
frustrada com o seu afastamento. Às vezes, ainda sinto coisas ruins quando você omite
informações ou quando me faz treinar além do meu limite, mas de um modo geral,
eu o vejo. Eu vejo quem você é, aí embaixo dessa casca do general sério e, o que eu
vejo, é ainda melhor do que eu já fui capaz de imaginar. Então sim, eu ainda tenho
coisas guardadas daquela época, mas isso está longe de ser ruim.
O feérico não soube entender as próprias reações durante aquela fala. Seu peito
aliviou-se, assim como se estendeu, como se fosse romper a caixa torácica. Seu
coração apertou, tropeçando algumas vezes, e um nó retorceu-se em seu estômago.
Ainda com as mãos apoiando o traseiro dela, puxou-a para mais perto, como se
fosse possível, já que ela estava enrolada ao redor dele. Kyller deve ter entendido que
ele precisava de ainda mais contato e abaixou o rosto em sua direção. Sob a única
luz amarelada do globo arquêmico, Zion recostou sua cabeça na dela, testa com testa,
e fechou os olhos tentando absorver as muitas informações que seu corpo gritava,
assim como sua mente ecoava as palavras de sua parceira. Como um mantra. Como
uma oração muito divina.
Sem desgrudar seus corpos, a feérica sussurrou, tirando-o da contemplação.
— Você me deve uma pergunta, mas eu vou usá-la em outro momento.
Ele sorriu, abrindo os olhos para encarar o rosto perfeito da ruiva.
— Espero em breve poder responder a todas as suas perguntas.
— Qualquer uma?
— Qualquer pergunta que você puder pensar. Vou compensá-la pela paciência.
— Lembrou das facas. — Isso se você mantiver o faqueiro longe.
Ela ergueu uma sobrancelha, inquisitiva, afastando o rosto.
— Precisarei das facas?
— Prefiro não responder a essa pergunta.
— Zion! — Ela riu, chamando sua atenção.
— Kyller! — ele a provocou. Então sorriu, dissipando aquele magnetismo entre
os dois. — Agora vamos subir, porque você precisa de um banho. Está fedendo.
A boca da parceira abriu-se, incrédula com a audácia dele, e então Zion a
carregou pelas escadas, enquanto ela discutia que não estava fedendo coisa nenhuma.
Não estava mesmo. O que pesava em seu olfato eram os feromônios adocicados
que vinham da pele da garota, que o impeliam a querer lamber cada centímetro do
corpo dela.
Chegaram à sala com o riso dos dois propagando-se em vibrações pela casa, e ali,
em seus braços, vendo-a feliz e com a aparência selvagem, ele pensou que a parceira
era a imagem mais linda e excitante que já vira na vida.
Céus, Zion é quem precisaria de um bom-ar agora.
CAPÍTULO 8
O início do fim

Tão instintiva quanto a necessidade de respirar era a sua sede de sangue.


A canção das batalhas corria em seu sangue como um comando para a morte,
liberando uma descarga de adrenalina antes mesmo que abrisse os olhos. Aquilo fez
com que se debatesse contra as correntes, sem saber exatamente onde estava.
— A quimera acordou! — ouviu fora da sala uma mulher falando, e o som vívido
de suas cordas vocais causou um alvoroço no peito da fera, incitando ainda mais seus
instintos básicos, como um alvo a ser abatido.
Sentindo o corpo todo doer como um carvão em brasa, correu os olhos pelo
ambiente entendendo onde estava. Era a sala de recuperação, aquela que Kiara
conhecia muito bem, mas o monitor de sinais vitais era algo novo e apitava em sua
audição sensível, deixando-a ainda mais irritada.
Olhou ao redor e não avistou a gaiola de poder, então ergueu a cabeça tentando
se levantar, mas foi puxada com um solavanco para baixo. Havia uma argola de metal
presa em seu pescoço, assim como também havia mais delas circulando seus
tornozelos.
Estava presa por correntes.
Algo em seu peito incendiou. Lembrou-se de outra vida, outra era, em que estava
presa na escuridão e o único som era o metal retinindo a cada passo que dava,
subjugada e castigada por algo que nem entendia.
Cega de ódio, tentou novamente se levantar, forçando o metal e, quando não
teve sucesso, decidiu mordê-lo, mas tudo parecia estranho: a claridade, os dentes, o
próprio corpo.
Não precisou se esforçar muito para conseguir o seu propósito, na quinta mordida
a corrente do pescoço rompeu e então ela partiu para as outras, com um ódio cego que
fazia seus olhos injetarem-se de sangue ao ponto de delirar.
Uma porta abriu atrás dela e subitamente ela se virou, a juba revolta balançando
no ar enquanto olhava em direção ao homem parado ali. Era velho, pequeno e
encurvado como um camarão, mas o que lhe chamou a atenção era o vidro que
carregava, cuja ponta de metal se projetava fina e afiada. Alguns borrões de memórias
lhe dominaram a mente e, ainda que não o reconhecesse, sabia que ele a espetava
com aquilo.
— Acalme, Kiara! Eu vou soltar você, mas precisa se acalmar — disse o velho
senhor, com a voz tão fraca que parecia quebradiça.
Ela mal entendia o sentido das palavras, porque morte era tudo o que os seus
instintos gritavam. Assim, Kiara debateu-se ainda mais contra a última corrente em
sua pata traseira. Quando o velho se aproximou, ela estourou a liga do metal e então
avançou sobre ele, derrubando-o no chão e colocando uma pata com uma tornozeleira
prateada em seu peito, subjugando-o. A injeção voou para longe, estourando na parede
do lugar.
— Calma, Kiara! — o velho implorou, sentindo o hálito dela a centímetros do
seu rosto. Seus olhos azuis estavam tão arregalados que até mesmo as rugas na pele
ao redor se esticavam. — Calma! Você deve se lembrar de mim, sou o Owen, seu
veterinário.
O nome não era estranho, mas, ao mesmo tempo, carregava uma bagagem de
coisas ruins.
— Eu salvei você 15 dias atrás e desde então você estava em coma. Precisa se
lembrar! — o homem gritou desesperado, enquanto a quimera abria a boca diante do
seu pescoço, porque era ali que encontraria mais sangue.
Ao ouvir as palavras, travou no meio do ato, então chacoalhou a cabeça com a
mente parecendo um tornado de confusão. Rosnou na cara do velho, os dentes
escancarados, com ódio dele e de si mesma pela bagunça que se tornara.
Naquele momento, uma mulher, também de jaleco branco, apareceu na porta,
apontando para ela um grande dispositivo vermelho.
— Não, Eláina! — gritou o velho, sem ar sob a pata pesada. — Ainda não!
Ela não quer fazer isso, não é Kiara? — o homem olhou novamente para a quimera,
encarando seus olhos azuis e a saliva que escorria de sua boca, onde os lábios se
retraíam em uma expressão selvagem de ódio. — Você não quer me machucar,
porque, se quiser, seremos obrigados a matá-la e isso não vai ser legal nem para você,
nem para nós.
O animal rosnou novamente, travando uma luta contra o seu instinto. Ela queria
machucá-lo. Precisava rasgar algo e sentir o gosto de sangue em sua língua, porque
aquele comando em seus genes era mais forte que ela. Abaixou-se novamente,
salivando diante do homem.
— Não quer machucar Zion e Kyller, não é mesmo? — disse o velho, agora
desesperado. — Eles ficariam desapontados com você.
Ao ouvir os nomes, a quimera retraiu-se, afastando os dentes e sentindo que
havia um cabo de guerra dentro de si mesma. Uma parte só queria matar o homem,
mas a outra... estava lutando para se lembrar.
Zion e Kyller... o nomes mexeram com as suas entranhas, explodindo sensações
em seu peito que ela mal conseguia distinguir. Dedos acariciando sua barriga. Olhos
dourados e gentis. Uma cama ao lado da lareira. Brincadeiras sobre o alto de uma
muralha.
Zion e Kyller. O som se propagava em suas lembranças, como se vasculhasse
onde eles se encaixavam em toda a bagunça. Ainda que não se lembrasse, sabia que
eles tinham um cheiro único. Algo quente como a luz do sol.
O homem tentou se mover embaixo de sua pata e Kiara afundou as garras em
sua carne para que ficasse imóvel. O velho gemeu com a dor em seu peito. No local
em que as garras rasgaram o jaleco, algumas manchas de sangue começaram a brotar,
manchando o tecido. Ensandecida pela audácia do veterinário em tentar fugir e
satisfeita pelo sangue, ela o farejou, esperando encontrar alívio para a besta em seu
peito. Mas, como se a magia a deixasse, seus instintos recuaram.
Porque não estava certo.
Aquele sangue continha quase o mesmo cheiro que o de Zion e de Kyller. Eram
ligados pelos genes da mesma raça e ela se lembrava vagamente de um homem de
olhos cor de oceano lhe dizendo que nunca, em hipótese alguma, ela deveria matar
um feérico.
Quando a verdade a atingiu, Kiara saiu de cima do doutor Owen, caminhando
irritada e confusa para a parte mais distante da sala, onde havia uma claraboia
quebrada.
Agora sabia que aquele sangue era proibido. Muito vermelho e muito vivo para
acalentar seus instintos, o que ela buscava era algo negro e fétido. Algo que matara
dias atrás e que despertou seus genes da mutação para que se transformasse em um
monstro ainda pior do que aqueles que enfrentou.
Confusa, perguntou-se o que estava acontecendo com ela e onde estavam seu
macho e sua fêmea, para que a ajudassem a entender.
O homem levantou-se cambaleante e retirou outra seringa do bolso do jaleco,
mas a visão da arma não fez Kiara se enfurecer, agora que sabia que aquele não era
o seu alvo.
Olhou para cima, avistando a claraboia quebrada e iluminada. Lembrou-se de
ter quebrado o vidro após receber a visita da sua deusa. Sua não, pensou aliviada.
Jamais seriam uma da outra novamente. Depois as imagens correram em sua mente,
viajando em direção ao campo de batalha, mas as memórias pareciam envoltas por
um véu disfuncional. Ela sabia que conseguiu salvar sua fêmea, disso se lembrava
com clareza, mas o preço pago foi a perda das asas.
Kiara olhou para o seu flanco, onde só havia duas pontas de osso enfaixadas.
Respirou fundo, sentindo o peito arder ao compreender que agora não podia mais voar,
um sentimento que ela afastou da sua mente. Preferia agarrar-se ao lado positivo da
situação, pois, quando foi para a guerra, estava disposta a sacrificar tudo: seu corpo,
sua alma e até mesmo sua imortalidade. Tudo para que a fêmea de olhos dourados
sobrevivesse e para que ela pudesse continuar ao lado da feérica, pois uma existência
sem Kyller e Zion não seria nada além de uma vida de cinzas.
Olhou novamente para o coto da asa e pensou que o custo foi baixo diante de
tudo o que apostara. Além da falta das asas, notou que as poucas escamas ao redor
do seu tornozelo haviam se multiplicado, subindo em direção à barriga, criando uma
couraça azulada que agora recobria as quatro pernas e também a parte inferior do
abdômen. Também notou que sobre a sua cabeça havia um peso adicional. Passou a
pata sobre as orelhas sentindo algo retorcido e poroso.
Chifres.
A quimera arregalou os olhos, preocupada com o que descobrira sobre si mesma.
A boca também parecia estranha, mas isso teria que esperar, porque mais pessoas
agora se reuniam na porta, com espadas e armas que ela nem sabia para o que servia.
Olhou uma última vez para o velho senhor, que ainda estava com as mãos
trêmulas segurando a seringa e apertando o peito machucado. Ele parecia muito menor
do que ela se lembrava, talvez até mesmo menor do que ela. Perguntou-se se, ao
dormir tanto tempo, ele talvez tivesse encolhido. Queria se desculpar, mas não
conseguiria com palavras, então curvou-se, tocando o chão com a cabeça em uma
demonstração de respeito. Quando levantou, o homem havia abaixado a seringa.
Agora precisava fugir, antes que alguém a prendesse ali. Então, sem pensar,
Kiara encarou a claraboia mais uma vez, sua única forma de escapar. Pulou,
agarrando-se à borda, mas o que era para ser uma saída fácil, tornou-se um pesadelo
quando sua barriga entalou na passagem.
Forçou as patas dianteiras contra o telhado, esticando-se para erguer o corpo e
esperneando em busca de apoio. Naquele momento de sufoco, deu-se conta de que
não foi o veterinário que encolheu, mas ela que cresceu, pois anteriormente não teve
problemas para sair pelo buraco.
Esperneou, esforçando-se mais uma vez, perguntando a si mesma o que,
abismos, aconteceu com o seu corpo quando estava desacordada. Após alguns
segundos de sofrimento, finalmente conseguiu passar a barriga pelo buraco,
arrastando-se sobre o telhado.
Ar livre. A cidade estava uma bagunça caótica, o que era esperado após o ataque
do teste. Havia homens do exército por todos os lados e, assim que colocaram os olhos
nela, a gritaria começou.
Kiara olhou ao redor, perdida. Tinha que voltar para o seu ninho, para o macho
filho da noite, pois tinha certeza de que ali seria o único lugar onde estaria segura.
Comandou as asas para se impulsionar e, quando nada funcionou, a quimera lembrou-
se de que não as tinha mais. Bem, isso era um problema, mas pelo menos suas patas
estavam ótimas, mesmo com o peso adicional das tornozeleiras de ferro, que
permaneceram ali após ela quebrar as correntes.
Virou-se para o leste, descendo do telhado inclinado e saltando sobre a rua de
paralelepípedos, por onde homens conduziam latarias móveis e machos fardados a
seguiam, apontando flechas em sua direção.
Afoita, procurou pela voz do macho a quem era ligada e então parou, confusa.
Ele não estava na cidade. Estava longe. Muito longe. Tão longe quanto nunca
esteve e a fêmea estava ao lado dele.
Ambos foram embora sem ela.
Sem ela...
Como Anabel fizera.
Sem tempo para pensar, a quimera deu meia-volta e então apressou-se em direção
à muralha média, ziguezagueando entre as latas ambulantes que lhe pareciam
pequenas agora. Atravessou o portal da muralha média com os soldados entrando em
estado de alerta e gritando para que a parassem.
— A quimera do general! Peguem-na! Há uma recompensa pela cabeça.
E Kiara corria, enquanto as latas militares a perseguiam como se fosse um rato.
Mas ela não era um rato, era uma quimera, que um dia foi o wyvern mais grandioso
do universo, e agora alcançara a mutação avançada do corpo terrestre. Sem asas para
pesar sobre as costas, suas patas a levavam com a graça de um felino em direção à
muralha externa, levantando poeira enquanto desbravava a estrada de terra.
Quando chegou ao portão da última muralha viu que ele estava fechado, mas ela
brincava naquele lugar desde que se conhecia por ser vivo e sabia de todos os truques
ali escondidos. E esse segredo estava na guarita de vidro ao lado dos portões.
Como um raio, o animal saltou sobre o vidro da janela e o estilhaçou, entrando
e caindo sobre um soldado que estava sentado diante do controle. O homem
imediatamente desmaiou com o peso e a quimera levantou-se, chacoalhando os cacos
de vidro grudados na juba e ouvindo os caminhões derrapando ao redor da instalação,
cercando-a. No painel de controle havia inúmeros botões que controlavam cercas
elétricas, iluminação, câmeras e sensores. Vasculhou ignorando tudo, porque o que
lhe interessava era apenas um: o maior, na lateral do painel, azul como a liberdade.
Afundou sua pata ali, esmagando o botão, e lá fora se ouviu o enorme portão ranger,
abrindo-se.
Sem perder tempo, quebrou a janela traseira do lugar, porque a dianteira já estaria
cercada, então aterrissou ao lado da entrada, enquanto os soldados apontavam flechas
em sua direção. Uma saraivada foi direcionada a ela, mas Kiara ziguezagueou pela
passagem, evitando a maioria. Duas delas lhe acertaram as pernas, mas ricochetearam
nas escamas sem causar dano.
Quando estava prestes a sair, um bloco de terra elevou-se à sua frente. Kiara
não parou, porque já sabia que havia um elemental de terra protegendo a entrada.
Saltou sobre o bloco de terra e, quando outro se levantou à sua frente, ela também o
escalou. Pulou, contornou e deslizou ao redor de vários deles em acrobacias de guerra
que conhecia tão bem quanto as posições das estrelas. Quando finalmente chegou ao
portão, estava sobre o último, tão alto que quase alcançava o meio da muralha.
Olhou para baixo, onde a liberdade estendia-se pela floresta infinita, depois para
trás, e viu mais flechas apontadas para si mesma.
Sem pensar, saltou do bloco em direção ao desconhecido. Pesada como uma
bigorna, mas leve como apenas um felino de 300 quilos poderia ser. Aterrissou usando
cada músculo para aliviar o impacto e surpreendeu-se com o quão fácil foi.
E então estava correndo, fugindo de Interion, galgando as estradas para longe
dali. Lógico que preferia ter as suas asas para voar, entretanto, sem elas, as patas a
impulsionaram como aríetes em direção ao seu destino, ao seu lar, onde estava seu
coração, agora mortal e finito como nunca fora.
Havia uma beleza oculta na mortalidade. Sentia o sangue correr em suas veias de
uma forma diferente, como se em cada respiração deixasse um fiapo de sua existência
no ar.
Encheu os pulmões e disparou pela estrada de terra vermelha. Sem a
possibilidade de voar, suas unhas cravavam cada partícula do solo, jogando-a em
direção ao início do fim de sua vida. E mesmo duas vezes mais pesada do que antes,
sentia-se leve, sem a sombra de uma Deusa sobre suas costas ou qualquer capricho
que uma divindade a obrigasse a fazer.
Franzia o cenho enquanto rasgava o vento, com um ar divertido estampado no
olhar, como se agora compreendesse o motivo de os Deuses serem tão chatos e
irritados. Diante de uma existência vazia, eles entediavam-se facilmente, porque não
havia em seu íntimo qualquer razão para existir, pessoas por quem viver, ou melhor,
por quem morrer. Aos Deuses não era concedido o privilégio de defender quem
amavam, servirem de escudo no meio de uma chuva de flechas, mergulharem em
águas profundas para resgatar e garantir que aquelas não fossem as últimas golfadas
de ar de seus protegidos.
Em seus ossos, a canção da liberdade ecoava e, não obstante tivesse os seus dias
contados, prometeu a si mesma que viveria todos eles intensamente. Descobriria mais
sentimentos e os devoraria com a sua fome insaciável, assim, quando partisse para o
limbo do universo, seria inteira, não meia.
Mas agora não pensaria nisso, só aproveitaria a liberdade que era percorrer
aquele mundo tão grande e bonito em direção às pessoas que amava. Seu coração
estava leve, porque na guerra conseguira salvar seu lar e agora tinha um para onde
voltar, ainda que eles a tivessem a...
Abandonado.
A palavra fez uma antiga cicatriz se abrir em seu peito, mas Kiara a abstraiu
convencendo-se de que havia um motivo maior por trás daquela ação. Certamente
haveria de ter. Ela confiava com todo o seu coração.
Apertou o passo mandando uma única mensagem pelo elo que a ligava ao macho
com olhos de oceano.
“Estou chegando”.
Agradecimentos

Este livro é a luz no fim do túnel. Uma fuga desesperada do bloqueio criativo
que me pegou de jeito durante dois anos, mas que eu consegui afastar na força do
ódio. Mais do que isso, ele é a comemoração do aniversário de 1 ano de Interion e eu
me sinto uma grande filha da puta orgulhosa por conseguir entregar ele a tempo! Dito
isso, eu não poderia começar esse agradecimento sem declarar meu amor e minha
reverência a todos os leitores que permanecem ao meu lado, vibrando pelas conquistas
e surtando pela continuação da saga! Vocês são a força motriz de Interion e, a todos,
o meu mais sincero obrigada!
Preciso dizer que essa pequena obra jamais teria saído sem o apoio e a dedicação
de algumas (muitas) pessoas.
Em primeiro lugar, gostaria de expressar minha profunda gratidão à minha Beta,
Marina Antoniassi, que tem sido meu verdadeiro salva-vidas neste mar turbulento da
escrita. Quando me sinto à deriva, perdida nas águas profundas do bloqueio criativo,
a Mari prontamente mergulha e vem ao meu encontro, levando-me para lugares
melhores, onde posso navegar novamente por conta própria. Suas intervenções têm
sido como uma brilhante luz na escuridão, tornando a jornada da escrita muito menos
assustadora. Que possamos continuar navegando juntas por muitos mares literários,
superando os desafios e celebrando as vitórias. Mais uma vez obrigada, minha querida
Beta, por tudo o que você é e faz. Minha gratidão é eterna.
Ao meu marido, que é a minha rocha de sustentação e também o ouvido no
qual eu despejo todas as minhas ideias malucas. Obrigada por dizer que eu sou o seu
orgulho, mesmo quando tudo o que eu faço é andar de um lado para outro, reclamando
que não vou conseguir. Você é o melhor marido do mundo e sou grata ao universo
por nós dois existirmos no mesmo tempo e espaço. Amo você!
Ao meu ilustrador, Michel Gomes. Hoje, encho meu peito de orgulho e grito
aos quatro ventos: VOCÊ É O MAIOR QUE TEMOS! Sua habilidade de transformar
minhas palavras em magia visual é inigualável. Cada ideia abstrata que sai da minha
mente é traduzida por você com tanta realidade que nos faz acreditar que os
personagens saltaram diretamente para o mundo real. O que você realiza com um
simples lápis é uma forma de arte sublime, e tenho um imenso orgulho de poder
afirmar com todas as letras: VOCÊ É O MELHOR. Mais uma vez, obrigada por
acreditar no meu projeto.
À Carmen, minha revisora super-heroína. Não consigo nem começar a expressar
minha gratidão e felicidade por ter você neste time. Sinto-me verdadeiramente
abençoada por contar com alguém tão detalhista ao meu lado, moldando e
aprimorando cada aspecto da minha obra. Você é o meu anjo da guarda literário, e
eu não poderia pedir por uma “Edna” (de os Incríveis)" melhor para esta importante
missão de salvar minha obra de suas imperfeições. Sei que sou suspeita, mas acredito
sinceramente que você consegue extrair o melhor dela, tornando-a mais brilhante e
cativante a cada revisão. Obrigada, Carmen, por dedicar seu tempo e esforço ao meu
trabalho.
À Larissa, por ler essa obra quando ela ainda era só um projeto desordenado de
contos que mal passavam de frases perdidas e desordenadas. Obrigada por ajudar a
melhorar o texto e acreditar em mim quando eu dizia que iria ficar bom nem que fosse
na base do ódio.
Ao Eduardo Domingos, melhor amigo, inspiração para o Breno, e um chutador
de bunda de primeira quando eu preciso de um sacode. Obrigada por ser meu
termômetro de lirismo e, se um dia alguém me perguntar de onde saiu tanta palavra
poética, seu nome será o primeiro a ser citado. Amo você!
E, por fim, agradeço novamente às vozes da minha cabeça, que me acompanham
em todos os banhos e as viagens para o trabalho. Antes se chamavam Serguei e agora
assumiram a identidade de Kiara. Obrigada por não me abandonarem quando eu mais
precisava de vocês e, pelo amor de Deus, não me virem as costas novamente, não
enquanto esta saga estiver sendo escrita.
Sobre a autora:

Patrícia Criado Harada é uma cirurgiã-dentista apaixonada por livros e animes.


Desde pequena, apresenta sintomas graves de dependência literária, principalmente
por contos de fadas. Em 2021, em meio a pandemia e uma crise de abstinência causada
pelo término de um livro, iniciou sua jornada no mundo das letras. Patrícia também
é apaixonada por filmes da Marvel, músicas ruins e viagens. Mora em São Sebastião
(Brasil) e, quando não está dentro do consultório — atendendo ou escrevendo —,
pode ser encontrada em algum restaurante à beira-mar. Você também pode descobrir
mais sobre ela ou enviar uma mensagem pelo intagram do livro:
@ascronicasdejupiter

Você também pode gostar