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Para Bill e Jon, porque vocês amam estes livros

SUMÁRIO
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PARTE UM

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Diário do professor — 8 de agosto de 2074
Capítulo 4
Capítulo 5
Diário do professor — 20 de agosto de 2074
Capítulo 6
Capítulo 7
Diário do professor — 14 de setembro de 2074
Capítulo 8
Capítulo 9
Diário do professor — 21 de setembro de 2074
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Diário do professor — 22 de setembro de 2074
PARTE DOIS

Diário do professor
Capítulo 13
Capítulo 14
Diário do professor — 22 de setembro de 2074
Capítulo 15
Capítulo 16
Diário do professor — 1º de outubro de 2074
Capítulo 17
Capítulo 18
Diário do professor — 10 de outubro de 2074
Capítulo 19

PARTE TRÊS

Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30

PARTE QUATRO

Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38

PARTE CINCO

Capítulo 39

Agradecimentos

Créditos

A Autora

Índice
PARTE UM
— Quem é você?
— Ninguém importante.
— Preciso saber.
— É melhor se acostumar com a decepção.
— A princesa prometida, de William Goldman
1
DOROTHY
12 DE NOVEMBRO DE 2077

À meia-noite, dizia o bilhete.


A água borbulhava ao redor do jet ski de Zora, a superfície escura
re etindo a luz da fenda, que mudava constantemente. Uma brisa
passava criando ondulações e fazia o barco a motor de Ash, vazio,
balançar. Sentada atrás de Zora, Dorothy só ouvia o som da madeira
rangendo e das ondas batendo fracas.
Era meia-noite e cinco. O que quer que tivesse acontecido ali
ocorrera apenas alguns minutos antes.
Dorothy amassou o papel úmido numa das mãos, um músculo
estremecendo no canto do olho. Sentia cada um daqueles minutos como
se fossem horas, anos. O tempo era uma coisa tão volúvel, tão
engraçada.
Ela apertou a cintura de Zora com mais força, sentindo a respiração
presa no fundo da garganta. Só quando olhou com muita atenção para a
água conseguiu ver o sangue, cujo vermelho intenso parecia preto, a não
ser pelos momentos em que a fenda o iluminava diretamente.
Contudo, sentia o cheiro. Mesmo com o odor da água do mar e da
podridão, o sangue era inconfundível. Dorothy cou nauseada e
percebeu que precisava afastar o olhar.
— Já viu o su ciente? — A voz de Zora saiu grave e baixa, mas,
mesmo assim, a emoção que transparecia espantou Dorothy. Sempre
considerara Zora estoica a ponto de parecer não ter emoção alguma. Ela
olhou para as costas dela e franziu a testa, imaginando se estaria
contendo as lágrimas.
E por que não choraria? Ash tinha sido seu melhor amigo,
praticamente um irmão. E estava…
Dorothy engoliu em seco, tentando afastar o pensamento. Não podia
deixar que a mente viajasse até aquele lugar, pelo menos por enquanto.
Pelo menos até que tivesse alguma prova.
— Pode chegar mais perto? — perguntou com a voz embargada.
Zora hesitou. Dorothy mordeu o lábio. Esperando que a outra
tomasse uma decisão, sentiu o coração se encolher a cada segundo.
Tivera esperança de que pudessem estar do mesmo lado, de que Zora
acreditasse quando dissesse que não tinha nada a ver com o que quer
que houvesse acontecido com Ash.
Minutos atrás, Zora tinha aparecido diante do seu quarto no hotel
Fairmont, o quartel-general do Cirko Sombrio. Dorothy ainda pensava
no lugar como sendo o seu quarto, mas naquele momento parecia mais
exato chamá-lo de cela. Mais cedo, naquela tarde, Mac Murphy havia
assumido o controle do Cirko Sombrio, pondo m ao domínio de
Dorothy como Quinn Fox, assassina perversa e líder da gangue mais
mortal de Nova Seattle. Tinha sido derrubada pelos próprios
seguidores, mantida como prisioneira no hotel que havia conquistado
para eles.
Dorothy ainda estaria lá se Zora não tivesse aberto caminho pelas
Aberrações do Cirko que montavam guarda, libertando-a.
Claro, se Dorothy pensasse, mesmo que por um segundo, que Zora
tinha ido lá para resgatá-la, estaria completamente enganada. Um
instante depois de invadir o quarto, Zora encostou uma arma em seu
rosto e mostrou um bilhete que Dorothy parecia ter escrito,
convocando Ash até ali, à meia-noite, para poder…
O olhar de Dorothy voltou para o sangue na água. Para poder o quê?,
pensou.
Esfaqueá-lo? Matá-lo?
Ela sentiu o horror do pensamento acertá-la como um soco. Sabia,
no fundo do coração, que jamais faria isso. Mesmo depois de Mac
Murphy ter oferecido um prêmio pela cabeça de Ash, culpando-o pela
morte de Roman, a única coisa que lhe importava era encontrá-lo e
avisá-lo. Nada daquilo fazia sentido.
Seria possível alguém sobreviver depois de perder tanto sangue? Ou
ela estava se enganando, achando que havia alguma chance de Ash ainda
estar vivo?
De repente o motor do jet ski rugiu, rompendo o silêncio da noite.
Zora o aproximou da lateral do barco de Ash, e o coração de Dorothy
pulou. Talvez as duas pudessem trabalhar juntas, a nal. Talvez…
— Preciso dizer o que vou fazer se você tentar fugir? — perguntou
Zora, a voz em um rosnado grave.
O coração de Dorothy se encolheu de novo.
— Não precisa — respondeu. Ela levantou a bainha úmida do casaco,
passando do jet ski para o barquinho que balançava sem parar. Então,
ouviu um clique e soube, sem se virar, que Zora estava com uma arma
apontada para a sua cabeça. De novo. Os pelos da sua nuca se arrepiaram.
Você faria o mesmo, se estivesse no lugar dela, pensou. Zora tinha todos
os motivos para ser cautelosa. Durante o último ano inteiro, Dorothy
havia trabalhado contra ela e o resto da Agência de Proteção
Cronológica, tentando roubar os segredos da viagem no tempo. Fazia
sentido que Zora não con asse nela.
Mesmo assim, isso a magoava demais.
Dorothy engoliu em seco, voltando a atenção para o barco. Ela mal
conseguia se concentrar em algo além das batidas do coração nos
ouvidos. O barco balançava suavemente nas ondas. Dorothy dobrou os
joelhos e se inclinou um pouco para a frente, a m de não perder o
equilíbrio. Era um re exo automático, adquirido depois de passar o
último ano naquela cidade inundada.
Havia sangue manchando a madeira gasta, uma mancha preta,
riscada, que poderia ter sido feita por uma bota. Exatamente o que se
poderia esperar depois de duas pessoas terem um confronto rápido e
uma delas ser esfaqueada e jogada no mar. Dorothy não era detetive,
mas até mesmo ela precisava admitir que tudo aquilo era condenatório.
Soltou um suspiro pesado, as lágrimas obstruindo a garganta. De
repente, o bilhete nas suas mãos parecia quente, como se pudesse
queimar sua pele, e uma parte dela queria jogá-lo na água e olhá-lo
afundar, a tinta escorrendo até virar uma mancha. Nada fazia sentido.
Era como uma charada sem resposta, mas Dorothy continuava olhando
ao redor, à espera de algo saltar na sua direção, dizendo o que realmente
havia acontecido.
Ela não podia ter feito isso. Era uma armação. Estavam tentando
culpá-la por um crime cometido por outra pessoa. Mas quem poderia se
bene ciar disso? E por quê?
Sua bota bateu em alguma coisa dura, que deslizou pelo fundo do
barco. Dorothy franziu a testa e se agachou mais.
Era uma arma. E não qualquer arma. A arma de Ash, o S&W de cano
curto, da marinha, que ele havia levado da sua linha do tempo original
— 1946 — para o futuro. A única vez em que Ash estivera sem o
revólver fora quando Roman o havia roubado.
Pegou a arma. Sua garganta apertou ainda mais. Ao olhar para trás,
viu Zora tar o revólver, os lábios ligeiramente entreabertos. As
emoções saltaram no rosto dela — dor, confusão, medo — e sumiram
um instante depois.
— Isso… — A voz de Zora saiu rouca e Dorothy soube que as duas
estavam pensando a mesma coisa: Ash não deixaria a arma para trás
voluntariamente.
Uma luz surgiu na escuridão, um pequeno círculo bamboleando
sobre as ondas. Um farol, pensou Dorothy, franzindo a testa. Ou então
um holofote preso num barco.
Outro círculo surgiu, e em seguida mais dois.
Cinco. Uma dúzia.
Droga, pensou Dorothy. Cada nervo em seu corpo se eletrizou. As
luzes brilhavam, focando e desfocando, passando por trás de árvores
distantes e dando a volta em prédios. Pareciam estar longe, mas a lisura
da água fazia o som ser transportado em ondas estranhas. Então,
Dorothy escutou vozes, rindo e falando tão claramente como se
estivessem ao seu lado. Uma série de estalos agudos rompeu a noite.
Tiros. Ela se enrijeceu, e o medo subiu pela coluna.
— O Cirko Sombrio — murmurou, olhando para Zora. — Vão
chegar aqui em minutos.
— Devem ter me seguido. — A voz de Zora saiu tão baixa que
Dorothy quase não escutou. Os olhos escuros dela brilhavam à luz que
vinha da fenda.
— Estão procurando Ash. Antes de você me pegar, Mac ofereceu um
prêmio pela cabeça dele. Cada Aberração do Cirko na cidade deve estar
atrás dele. — Dorothy não acrescentou vivo ou morto, mas não precisava.
Zora levantou uma sobrancelha, a expressão interrogatória. Havia
mais nessa história, claro, mas Dorothy não tinha tempo para explicar.
O que havia acontecido no futuro, com Roman, ainda era muito
dolorido para que ela pensasse naquilo sem chorar, e ela nunca choraria
na frente de Zora.
Ela baixou a arma de Ash para que não fosse percebida como uma
ameaça e se obrigou e encarar os olhos escuros de Zora.
— Me leve com você e eu conto tudo que sei — disse.
Outro disparo explodiu na noite. Zora se encolheu. Olhou de novo
para Dorothy, que pôde ver a indecisão em seu rosto. Não queria
con ar nela, mas não tinha muita escolha.
— Tudo bem — disse depois de um longo momento. — De qualquer
modo, não podemos ser encontradas aqui. — Em seguida, girou a
manopla do jet ski e o motor roncou. — Vem.
Dorothy en ou a arma de Ash dentro do casaco e subiu no jet ski,
sentindo um lampejo de triunfo enquanto envolvia a cintura de Zora
com as mãos.
— Você sabe para onde podemos ir? Um lugar em que não nos
procurem?
Zora bufou.
— Conheço um lugar.
2

Um prédio surgiu ao longe, aninhado entre outros mais altos. Parecia


feito de espelhos, mas trepadeiras grossas se espalhavam pela fachada,
tornando impossível ter certeza. A água se re etia nas paredes externas,
o que criava a ilusão de que a estrutura se movia.
Dorothy franziu a testa enquanto chegavam mais perto. Estavam no
território do Cirko Sombrio, a apenas alguns quarteirões do hotel que
servia como quartel-general da gangue, e, no entanto, ela nunca havia
estado ali. Obviamente já havia notado o prédio. Parecia um diamante
gigantesco, era difícil passar despercebido, mas ela nunca prestara muita
atenção. Muitos dos prédios do centro da cidade estavam inundados a
ponto de se tornarem inabitáveis.
— Que lugar é esse? — perguntou, enquanto Zora levava o jet ski até
o cais que envolvia as paredes do prédio. O farol do jet ski se re etia no
vidro e a claridade fazia os olhos de Dorothy lacrimejarem.
— A antiga biblioteca — respondeu Zora, desligando o motor.
— Isso era uma biblioteca?
As bibliotecas da época de Dorothy eram estruturas empoeiradas,
feitas de tijolos. Nem um pouco parecidas com aquilo.
— Bonita, não é? — A voz de Zora cou mais suave. — Você deveria
ter visto como era antes da inundação. Era o meu lugar favorito em toda
a cidade.
Dorothy fechou as mãos e percebeu que as palmas estavam úmidas.
Seria gentileza o que tinha acabado de ouvir? Parecia bobo ter essa
esperança, mas olhou rapidamente para Zora, as batidas do coração
martelando nos ouvidos. Talvez não fosse tarde demais.
Mas não havia gentileza no rosto de Zora. Seus olhos estavam frios e
estreitos, os lábios comprimidos.
Por favor, que não seja tarde demais, pensou Dorothy.
Elas desceram do jet ski e entraram. Havia torres de livros mofados
ao redor da entrada, lançando sombras mais escuras no piso de ladrilhos.
Não parecia haver nenhuma lâmpada, ou pelo menos nenhuma que
funcionasse. A escuridão lá dentro era profunda e perfeita, mas Zora
conseguia se orientar com facilidade no meio da desordem ao redor,
como se aquela não fosse a primeira vez ali.
Dorothy a acompanhou até um espaço amplo e aberto, iluminado por
meia dúzia de velas tremeluzentes. Foi quando viu que não estavam
sozinhas. Chandra, uma garota de pele morena, cabelo preto e óculos de
lentes grossas, jogava cartas numa mesa bamba. Willis estava de pé atrás,
a pele e o cabelo pálidos contrastando com as roupas pretas. Ele tinha
um rosto anguloso, a pele esticada demais sobre as bochechas e o
queixo. Nenhum dos dois parecia ter notado a chegada delas.
Willis se inclinou por cima do ombro de Chandra e tocou uma carta
com a ponta de um dedo enorme.
— Você não viu o ás — disse ele, numa voz profunda, aveludada.
— Eu vi o ás — reagiu Chandra rispidamente, revirando os olhos. —
Só estava guardando.
— Guardando? — indagou Willis, franzindo a testa.
— Eu gosto de guardar um monte de cartas numa leira, e aí, quando
estiver preparada, posso pou, pou, pou, baixar todas ao mesmo tempo. —
Ela gesticulou como se estivesse espalhando cartas na mesa. — É
divertido.
— Eu não sabia que jogar paciência podia ser tão empolgante —
murmurou Willis, com um sorriso curvando os lábios.
Olhando-os, Dorothy sentiu uma pontada de dor. Tinha esquecido
como era estar perto daquelas pessoas, como podia ser reconfortante,
quase como ter uma família. Um dia havia pensado que Willis e
Chandra poderiam ser seus amigos.
Mas isso tinha sido muito tempo atrás. Fazia mais de um ano que não
via os dois, e desde então as coisas tinham cado…
Complicadas.
O sorriso se apagou do rosto dela. Se tivesse feito escolhas diferentes,
poderia estar sentada com eles ali, jogando baralho e rindo. Era tarde
demais. O último ano parecia se erguer entre eles, gigantesco. Duvidou
que qualquer um deles ainda a considerasse amiga.
Mesmo assim, precisava tentar. Deu um passo na direção dos dois,
hesitante.
— Oi…
Foi interrompida por um estalo de metal, a sensação de uma coisa
pequena e fria encostada na pele do pescoço. Fechou a boca
rapidamente, engolindo o resto da frase.
Zora estava apontando a arma para ela outra vez.
Maravilha.
O cumprimento interrompido havia atraído a atenção de Chandra e
Willis. Os dois levantaram os olhos e a encararam, mas Dorothy não
soube se estavam surpresos ou com medo. Talvez um pouco dos dois.
— Se tentar alguma coisa, faço esse seu rosto bonito car um
pouquinho menos bonito. — Zora afastou o cano da arma da nuca de
Dorothy, mas continuou apontando para a cabeça dela enquanto ela se
virava.
Dorothy engoliu a frustração. A nal de contas, estava acostumada
com aquele sentimento. Não conseguia pensar em um único dia da vida
em que não fosse atormentada por alguma forma de solidão dolorosa.
Até quando Roman era vivo, sabia perfeitamente bem que o resto da
gangue só a tolerava por medo.
Mas não admitiria que alguém sentisse pena dela. Podia até não ter
nenhum amigo neste mundo, mas tinha algum orgulho.
— Não sei se é possível tornar meu rosto ainda menos bonito —
murmurou, em uma tentativa ruim de fazer piada. E apontou para a
cicatriz que passava por cima de um dos olhos e se retorcia até o canto
da boca.
Chandra soltou uma risada, surpresa. Dorothy olhou para ela,
sentindo uma chama de esperança se acendendo no peito, mas Chandra
já havia voltado a estudar as cartas espalhadas na mesa, pensativa,
qualquer traço de sorriso varrido do rosto. Willis encarou Dorothy, mas
seu olhar era frio. Isso fez o coração dela doer.
Sabia que não deveria estar surpresa com aquela recepção pouco
calorosa. No ano que passara desde que tinham se visto pela última vez,
Dorothy havia caído de uma máquina do tempo, tido o rosto retalhado,
assumido o comando de uma gangue sanguinária e ascendido aos altos
escalões do poder em Nova Seattle, tornando-se Quinn Fox: assassina,
sanguinária, supostamente canibal. Tudo isso tinha sido possível por
causa das histórias (bastante falsas) sobre o monstro violento que ela era,
o que não a incomodava nem um pouco. Poder era poder. Tinha vivido
por tempo su ciente sem poder próprio para apreciá-lo em qualquer
forma que pudesse adquirir.
Ela e Roman tinham inventado os boatos sobre sua malignidade para
mantê-la em segurança, e esses boatos não eram mais verdadeiros do
que a maioria dos contos de fadas. Mas a fama se espalhou. As pessoas
adoravam contar histórias de terror.
Infelizmente, Dorothy descobriu que elas eram menos afeitas a
contar histórias felizes. Tipo quando ela havia tentado salvar a cidade.
Como ela e Roman tinham restaurado a eletricidade e trazido
suprimentos médicos essenciais, dentre outras coisas. As pessoas
pareciam preferir mentiras macabras à verdade.
De qualquer modo, nada disso importava mais. Tudo que ela e
Roman construíram fora tomado. No decorrer de apenas vinte e quatro
horas, Mac Murphy conseguira roubar sua máquina do tempo e assumir
o controle da gangue. Quinn Fox não existia mais, e ela era apenas
Dorothy de novo. Roman, seu maior aliado e a única pessoa em quem
ela con ava naquela cidade maldita, tinha levado um tiro e sido deixado
para morrer nas ruínas sombrias do futuro.
E Ash…
Só de pensar, Dorothy sentiu um nó na garganta. Não podia car se
perguntando o que acontecera com Ash.
— Sente-se. — Zora apontou para uma cadeira ao lado de Chandra.
Dorothy levantou a bainha molhada do casaco e se sentou, a cadeira
estalando sob seu peso. Apesar de tudo, achava bom estar ali. Sabia que
no Fairmont todo mundo queria matá-la. Aqui talvez fossem apenas
dois dos três.
— E aí? — O olhar de Chandra deslizou na direção de Dorothy e se
afastou de novo. — O que você descobriu?
— Ele está mesmo…? — acrescentou Willis.
Nenhum dos dois disse a palavra morto, mas Dorothy a escutou
ecoando no ar, quase como se estivesse sendo cantada.
Ele não está morto!, queria gritar. Não pode estar.
Mas não tinha nenhuma prova. Estava se agarrando com força ao fato
de que não haviam encontrado o corpo de Ash, mas aquele barco
maldito estava utuando no meio do estuário de Puget. Qualquer
assassino com meio cérebro pensaria em empurrá-lo para fora do barco,
deixando-o afundar. Elas não teriam encontrado um corpo, não
importando o que tivesse acontecido.
Dorothy olhou para as próprias mãos, piscando com força. Não iria
chorar. Não ali, não na frente de pessoas que a odiavam.
— Nós achamos o barco dele do lado de fora da fenda. — A voz de
Zora falhou quando ela continuou: — Estava coberto de… tinha sangue
em todo canto.
Houve um instante de silêncio. E então…
— Você realmente fez isso — murmurou Chandra. — Você matou
ele.
Dorothy levantou os olhos e encontrou Chandra encarando-a de
volta, com os braços cruzados. Era como uma faca atravessando seu
peito. Não conseguia se lembrar de já ter visto Chandra com raiva antes.
— Eu não matei ele — insistiu Dorothy.
Em seguida, seu olhar foi na direção de Willis, mas também não
encontrou compaixão. O que eles fariam com ela, se não conseguisse
fazer com que acreditassem? Sua voz começou a falhar.
— Vocês… Vocês precisam acreditar em mim… Fiquei tão surpresa
quanto Zora quando achamos o barco vazio!
O olhar de Willis parecia se cravar nela.
— Ash costumava ter visões do futuro — disse ele, bem devagar. —
São chamadas de pré-lembranças. É um fenômeno que às vezes pode
acontecer quando a gente passa por uma fenda. O cérebro tem um
curto-circuito, esquecendo que o futuro ainda não aconteceu. Quando
você tem uma pré-lembrança, pode recordar uma experiência do futuro
com a mesma facilidade com que teria uma lembrança real.
Um pavor gelado arrepiou a pele de Dorothy. Sua boca cou seca de
repente.
Ela já havia tido uma pré-lembrança. Ao viajar pela primeira vez pelo
tempo com a Agência de Proteção Cronológica, tivera uma série de
premonições curtas, oníricas, sobre seu futuro. Tinha sido irritante, para
dizer o mínimo, quando aquelas premonições começaram a se realizar.
O que Ash teria visto? Algo ruim sobre ela? Será que ela havia feito
alguma coisa terrível?
Dorothy umedeceu os lábios, o coração batendo forte no peito.
— Você está tentando dizer que Ash viu a própria morte?
A expressão de Willis sugeriu que ela preferiria não saber.
— Viu — respondeu ele, depois de um momento. — Ash tinha uma
pré-lembrança recorrente, que vislumbrava quase sempre que entrava
numa fenda. Ele se via encontrando uma mulher do lado de fora da
fenda e ela dava uma facada nele. Só há pouco tempo ele descobriu que
a mulher da pré-lembrança era Quinn Fox. — Willis balançou a cabeça.
— Você.
O pavor de Dorothy foi súbito e enjoativo. Não era de espantar que
todos tivessem tanta certeza da sua culpa.
Ela tocou o casaco, o nervosismo se arrastando pela nuca enquanto
sentia o papel no bolso interno farfalhar. Não era a primeira vez que
ouvia falar de pessoas que tinham visões da própria morte antes de ela
acontecer. Roman tinha lhe deixado um bilhete antes de morrer. Dizia:
Fui assombrado pelas lembranças da minha própria morte. Ao que tudo
indicava, ele também estava familiarizado com as pré-lembranças.
Baixou a mão, voltando a focar a atenção em Willis.
— Eu estava presa no meu quarto no Fairmont até que Zora
apareceu e derrubou os homens que vigiavam a porta — disse com
muito cuidado. — Esse bilhete que Zora encontrou pedia um encontro
com ele à meia-noite, mas eu não podia ter chegado lá a tempo. Não
importando o que Ash viu na pré-lembrança, eu não poderia ter feito
isso.
Willis a examinou por entre os olhos semicerrados, mordendo o
lábio. Houve um silêncio prolongado, e então Zora soltou um suspiro
baixo.
— Eu a encontrei no hotel — murmurou, resignada. — Ela está
dizendo a verdade sobre isso.
— Eu estou dizendo a verdade sobre tudo! — insistiu Dorothy, mas
não se agarrava mais à esperança de que suas palavras tivessem algum
peso. Talvez não houvesse chance de nenhum deles se aproximar dela
outra vez. Tudo bem, poderia descobrir um modo de lidar com a
situação. Mas eles precisavam acreditar nela em relação àquilo. Se não
fosse por ela, que fosse por Ash.
Ela beliscou o nariz, sentindo um aperto no peito ao pensar no barco
de Ash utuando no mar aberto, as águas manchadas de vermelho com
o sangue dele.
A garganta dela se fechou.
— Olhem — disse, quando conseguiu falar de novo. — Parece que
todos nós concordamos com o fato de que algo terrível aconteceu. E sou
a primeira a admitir que parece que… não sei, parece que eu voltei do
futuro e… e ataquei Ash por algum motivo. Mas estou dizendo a pura
verdade quando a rmo que não sei por que voltei nem o que,
exatamente, z com ele. Eu não teria, eu jamais teria… — As palavras o
matado pareciam emperradas.
Fechou os olhos, respirando fundo antes de tentar de novo.
— Há algumas horas, Mac ofereceu um prêmio pela cabeça de Ash.
Neste momento, cada Aberração do Cirko está procurando por ele.
Talvez o que aconteceu com ele tenha alguma coisa a ver com isso.
— Por que Mac Murphy iria se importar com Ash? — Willis franziu
a testa ligeiramente. — Ele nunca se incomodou com a gente.
— Isso foi antes de Ash e eu invadirmos o bordel e eu dar um tiro na
perna dele — disse Chandra.
Dorothy piscou, perplexa.
— Espera aí… Foi você quem atirou na perna de Mac Murphy?
Pela primeira vez desde a chegada de Dorothy, Chandra olhou para
ela com algo parecido com a cordialidade antiga.
— Foi incrível. — Ela riu. — Ash começou tipo: Onde estão as garotas,
e aí Mac disse…
— Isso é irrelevante — murmurou Zora, interrompendo-a. Virando-
se para Dorothy, perguntou: — Foi por isso que Mac ofereceu um
prêmio pela cabeça de Ash? Por causa do que aconteceu no bordel dele?
— O quê? — Dorothy balançou a cabeça. — Não, não tem nada a
ver. Mac precisava de alguém que levasse a culpa por…
Parou de falar abruptamente. A morte de Roman parecia ter
acontecido séculos antes, mas a lembrança passava na sua mente como
um lme prestes a começar.
Viu o peito de Roman orindo com o sangue. Roman caindo no
chão, os olhos cando distantes. E a mão de Mac no gatilho. Precisou
fechar os olhos por um momento para impedir que as lágrimas
escorressem pelo rosto. Ah, Roman.
Era demais, aquela dor. Justo quando achava que tinha recuperado o
controle, outra lembrança rugia dentro da sua mente, ameaçando
arruiná-la.
Quando recuperou a voz, disse com o máximo de cuidado que pôde:
— Nós fomos ao futuro, Mac, Roman e eu. Nós tínhamos planejado
matar Mac, mas Ash apareceu antes que zéssemos isso. Houve uma
briga e… e Mac atirou no Roman.
Dorothy não tinha certeza do tipo de reação que estava esperando,
mas não era aquela. Chandra soltou um Ah! agudo e cobriu a boca com
a mão. O rosto de Zora cou perplexo, e algo em seu olhar se tornou
complicado e distante. Willis baixou a cabeça enorme, apoiando-a nas
mãos.
Dorothy se remexeu desconfortável na cadeira, sentindo uma
pontada de irritação. Quem eram aquelas pessoas para lamentar a morte
de Roman? Tinham dado as costas para ele, assim como estavam dando
as costas para ela. No nal, ela havia sido a única amiga verdadeira dele.
Mais lágrimas se acumularam nos seus olhos, mas ela piscou com
força, recusando-se a deixá-las cair.
— Nunca tive a sensação de que vocês fossem chegados a ele — disse
com uma voz embargada.
— Ele era um de nós antes que tudo acontecesse — lembrou Willis,
enxugando uma lágrima.
Dorothy não se comoveu.
— Ele era meu amigo também. Meu melhor amigo. — Não disse
meu único amigo, mas era o que a fala signi cava. Pigarreando,
continuou: — Depois da morte de Roman, Mac disse ao Cirko que Ash
era o assassino e ofereceu uma recompensa para quem o pegasse.
Provavelmente estão me procurando também. Já devem ter descoberto
que não estou no quarto.
— Foi por isso que você matou o Ash? — perguntou Zora. — Pra
recuperar o apoio do Cirko matando o homem que eles acham que
assassinou o líder deles?
— Eu não matei o Ash — insistiu Dorothy, mas sentia di culdade
para invocar a mesma indignação de antes.
Eles não acreditavam. Talvez jamais acreditassem nela. De que
adiantava tentar convencê-los?
— Estou dizendo: antes de ele aparecer no futuro, eu não o via desde
aquela noite no baile! — acrescentou, cansada.
Houve um instante de silêncio, os três a encarando. Dorothy
estreitou os olhos. Havia mais. Estavam escondendo alguma coisa.
— Você está mentindo — acusou Zora secamente.
Porém, atrás dela, Chandra franziu a testa. Abriu a boca, parecendo
que queria acrescentar algo, mas Zora lhe lançou um olhar que a
silenciou.
Dorothy manteve os olhos em Chandra, o nervosismo se arrastando
na pele. O que ela ia dizer?
— Você deveria ir — disse Zora.
Dorothy poderia ter gargalhado.
— Ir? Não posso ir a lugar nenhum. Se o Cirko descobrir que
escapei, eles me matam.
Zora pareceu inabalável.
— Você não pode car aqui.
Dorothy passou a mão no rosto, levantando-se. Tentou se convencer
de que nada daquilo importava, de que não precisava daquelas pessoas,
de que estava melhor sem elas.
Mas, quando encontrou o olhar de Zora, foi atravessada por uma
pontada de dor. Não podia mais mentir para si mesma.
Aquilo importava. Eles importavam. Sem eles, estava perdida.
— Você con ou em mim uma vez — disse, esforçando-se para
manter a voz rme. — Talvez você não lembre, mas eu lembro. Gostaria
que pudesse con ar em mim agora.
Zora lhe lançou um olhar estranho.
— Con ar em você? Eu nem sei quem você é. Você é Quinn? Ou é
Dorothy?
Em silêncio, Dorothy percebeu que também não sabia a resposta
para aquela pergunta.
3

De volta ao Fairmont. Dorothy teve o cuidado de se manter nas


sombras, espiando os cantos com cautela e andando perto das paredes,
de modo que as tábuas do piso não estalassem, denunciando-a.
Era perigoso estar ali. Não conseguia pensar em uma única
Aberração do Cirko que não revelaria sua localização assim que a visse.
Mas pelo jeito ela estava prestes a fugir. E, se fosse assim, havia coisas no
Fairmont das quais necessitaria. Suprimentos, dinheiro, comida, se
conseguisse pegar. Só precisava ser rápida.
O hotel tinha a aparência de um lugar que já fora bonito, mas que
estava em ruínas havia muito tempo. Lindos tapetes ornamentados
cobriam os pisos, mas o uxo de pés os havia desgastado, as bordas
esgarçadas junto às paredes. Dorothy tocou numa das portas de mogno,
e a madeira, uma vez lustrosa, estava opaca e macia por baixo dos dedos.
O cheiro de podridão pairava no ar como uma névoa. Dorothy apertou
a manga do casaco contra o nariz para bloquear o fedor enquanto virava
no corredor, entrando numa sala enorme.
Sentiu o coração bater mais fraco enquanto seu olhar examinava as
sombras em busca de movimento. Não havia ninguém. Todo mundo
devia estar lá fora, procurando Ash.
Ou me procurando, percebeu com uma agitação que fez sua cabeça
girar. Andou um pouco mais rápido.
Colunas se erguiam do piso e lustres envelhecidos pendiam no alto,
com teias de aranha estendidas entre as lâmpadas. A água suja enchia o
pátio lá embaixo. Se olhasse, Dorothy sabia, conseguiria ver uma
escadaria imponente, um piano velho e balcões de mármore.
Foi se esgueirando até o quarto onde estava antes, usando a escada
dos fundos, com os ouvidos atentos a estalos de passos ou a sons
distantes de risadas. O quarto cava no quinto andar, mas era igual
àquele em que tinha cado ao ser sequestrada no ano anterior. Duas
camas, cada uma coberta por uma colcha branca. Móveis de madeira.
Cortinas brancas. Poltrona azul. O único item que pertencia a ela era o
pequeno medalhão pendurado no espelho. O medalhão da avó. A mãe
tinha lhe dado a joia no dia do casamento, e era o único objeto de seu
tempo que Dorothy ainda possuía.
Tirou o medalhão da moldura de madeira e o pendurou no pescoço.
Em seguida, começou a juntar as coisas. Dois pares de roupas extras,
casaco, máscara, o pouquíssimo e precioso dinheiro que restava —
en ou tudo numa bolsa de lona e a pendurou no ombro. Examinou o
quarto em busca de qualquer outra coisa de que pudesse precisar. Seu
coração teve um tremor estranho quando ela percebeu que não havia
nada. Tinha passado um ano nesse hotel e começado a pensar nele como
uma espécie de lar. No entanto, podia guardar a vida inteira numa bolsa
de lona e deixar tudo para trás. Tal pensamento a deixou mais triste do
que gostaria de admitir.
— Chega — disse em voz alta, balançando a cabeça. Não era hora de
car sentimental. Não podia saber quanto tempo ainda tinha até que
uma Aberração do Cirko, ou talvez o próprio Mac, voltasse pelos
corredores. Precisava ir.
Tirou o dinheiro da bolsa e contou rapidamente as notas. Não era
muito e não duraria muito. Havia o su ciente para comer durante uma
semana. Talvez. Precisaria se acostumar a pular o café da manhã.
E depois? Poderia furtar umas carteiras, aplicar alguns golpes
rápidos, conseguir relógios de bolso ou seja lá que objetos valiosos as
pessoas desse tempo ainda tivessem. O pensamento fez um sorriso
amargo cruzar o rosto dela. Pensava ter deixado aqueles dias para trás.
Sem dúvida, os velhos hábitos custavam a morrer.
En ou o dinheiro de volta na bolsa e foi para o corredor, fechando a
porta sem fazer barulho. Com um suspiro aliviado escapando entre os
dentes, viu que ainda não havia ninguém por ali. Estava com sorte, mas
seria idiota se abusasse dela. Começou a ir na direção da escada…
E parou. Teve uma ideia.
Roman costumava guardar dinheiro na mesinha de cabeceira. Para
um dia chuvoso, era o que ele sempre dizia, ironicamente, olhando o céu
sempre nublado. Em Nova Seattle, todo dia era chuvoso — tanto
gurativa quanto literalmente.
Dorothy mordeu o lábio inferior, avaliando. Será que o dinheiro
continuava lá? Parecia maldade roubar de um morto. Mas que outras
opções existiam? Passar fome não seria muito divertido.
— Que droga… — murmurou e então se virou para a esquerda, e não
para a direita, indo em direção ao antigo quarto de Roman. Ele
entenderia, disse a si mesma, tentando abafar a culpa. Roman não
precisava mais comer. Ele acharia um absurdo sentimental desperdiçar
dinheiro.
Foi pelo corredor, depois subiu outra escada até o antigo quarto de
Roman. Diferentemente de Dorothy, Roman tinha se preocupado em
decorá-lo. Havia quadros nas paredes: desenhos arrancados de livros
antigos — Roman adorava Rembrandt e da Vinci —, bugigangas
espalhadas pelas cômodas. Dorothy parou e viu uma foto da irmã mais
nova de Roman, Cassia, en ada na moldura do espelho. Estranho como
nunca havia notado a foto antes.
Ajoelhou-se diante da mesinha de cabeceira e começou a procurar,
tirando livros e papéis do caminho. Nada. Droga.
Em seguida, procurou na escrivaninha e encontrou mais do mesmo:
cadernos, diários, livros. Nenhum dinheiro. Cravou os dentes no lábio
inferior e já ia fechar a gaveta, frustrada, quando seus dedos roçaram em
alguma coisa sedosa e grossa.
Um tremor de familiaridade a atravessou. Aqueles papéis não eram
baratos, como as outras folhas de caderno na mesa de Roman. Pareciam
ter sido arrancados de um diário muito bom. Com o coração batendo
forte, Dorothy os puxou, os olhos examinando a caligra a.
Já examinei as anotações de Nikola Tesla meia dúzia de vezes e ainda acho que estou
nervoso demais para testar a teoria dele.

Dorothy sentiu todos os músculos do corpo se retesarem. O coração


martelava rme dentro do peito. Conhecia bem aquela letra. Nunca
havia se encontrado com o homem que Roman e Ash chamavam apenas
de “o Professor”, mas sabia tudo sobre ele. O Professor tinha inventado
a viagem no tempo e desaparecido logo depois, deixando para trás um
diário com anotações cifradas sobre a teoria da viagem no tempo,
experimentos realizados no passado e no futuro e um monte de
perguntas sobre para onde teria ido e por quê.
Várias semanas antes (ou um ano e várias semanas, dependendo de
como calculasse o tempo), Dorothy havia se deparado com o diário no
meio de algumas coisas de Roman. Tinha lido o volume inteiro de uma
vez, desesperada para saber mais sobre como e por que a viagem no
tempo era possível. Tinha sido como se perder no melhor tipo de
romance, só que era tudo real.
Olhando as páginas que estava segurando, foi atravessada por uma
empolgação. Antes, não fazia ideia de que faltavam algumas páginas no
diário.
Um barulho soou em algum lugar no hotel, fraco como um suspiro:
uma sola de sapato raspando no chão, um sussurro, alguma coisa.
Ela cou alerta na mesma hora. Levantou-se, a cabeça inclinada na
direção da porta. O som não se repetiu, mas trovejou na sua memória,
parecendo muito mais alto do que havia sido na vida real. En ando as
páginas do diário dentro do casaco, Dorothy foi devagar até a porta,
pisando com cuidado para não fazer barulho nas tábuas que estalavam.
Encostou o ouvido na porta, prendendo o fôlego.
Nada.
Seus batimentos cardíacos começaram a car mais lentos, mas ela
sabia que não era a única pessoa em Nova Seattle capaz se movimentar
sem ser ouvida. Baixou a mão para a maçaneta, os dedos envolvendo o
latão frio.
Durante o último ano, havia se tornado uma boa lutadora. Era
pequena e magra, mas Roman tinha lhe ensinado a usar o peso e a força
dos oponentes contra eles. E havia a adaga escondida no casaco: com
ela, Dorothy podia ser mortal. Se houvesse apenas uma pessoa
esperando-a do outro lado daquela porta, a chance de se livrar era boa.
Se houvesse duas pessoas, ou até três, ela ainda poderia lutar e vencer,
desde que as pegasse desprevenidas.
No entanto, se fosse mais do que isso…
Bom, pensou Dorothy, engolindo em seco. Não adiantava nada
imaginar isso naquele momento. En ou a mão no bolso, os dedos
envolvendo a adaga de Roman. O peso da arma a reconfortou. Era
muito mais pesada do que as adagas especiais, mortalmente nas, que
ela costumava esconder nas mangas. Ela as havia perdido quando fora
para o futuro com Roman e Mac, mas aquela adaga serviria bem numa
emergência. Era pesada, tinha a lâmina grossa. Dorothy poderia causar
bastante dano com ela, se necessário.
Prendendo o fôlego, escancarou a porta…
O corredor estava tomado pela escuridão que fazia truques,
enganando-a. Dorothy avançou e, ao mesmo tempo, alguma coisa nas
sombras se mexeu muito rápido, fazendo o coração dela pular no peito.
Mas era somente a janela no nal do corredor re etindo seus
movimentos. O nervosismo lançou um arrepio pelo corpo dela.
Não havia ninguém ali.
Girou, olhando o corredor vazio, as portas abertas e os quartos
escuros. Tentou se lembrar do que tinha ouvido e descobriu que não
conseguia recordar o som. Talvez não tivesse sido um passo, e sim
apenas o vento soprando na janela, ou a madeira estalando enquanto o
prédio antigo se acomodava e se remexia nos alicerces.
— Ou talvez eu esteja cando maluca — murmurou.
Voltou para o quarto de Roman e pegou a bolsa de lona ao pé da
cama. Veri cou mais uma vez e viu as páginas do diário do Professor
en adas em segurança em uma das mangas. Então, voltou ao corredor.
— Donovan disse mesmo que viu ela? Ou só estava contando
vantagem, como sempre?
A voz vinha do andar de baixo, pela escada. Dorothy a reconheceu
imediatamente como sendo de Eliza, uma Aberração do Cirko que
parecia odiá-la. Prendeu o fôlego, preocupada com a possibilidade de
fazer qualquer barulho.
Em algum lugar no fundo do hotel, uma porta se abriu e se fechou, e
em seguida houve o som de passos subindo a escada, vindo pelo
corredor…
— Ele disse que viu ela — respondeu uma segunda voz.
Bennett, pensou Dorothy, com o corpo se retesando.
— Há uns vinte minutos. Disse que ela entrou pelos fundos.
— Vinte minutos? — Eliza soltou um riso curto, brusco. — Ela seria
idiota se casse mais tempo do que isso.
Dorothy recuou e fechou a porta do quarto com cuidado. Droga.
Fechou os olhos, apertando a ponte do nariz.
Pense, maldição!
Havia mais uma escada na outra extremidade do corredor, mas ela
não poderia se arriscar a voltar pelo mesmo caminho por onde tinha
vindo. Se a viram mesmo entrando no hotel, Eliza e Bennett não seriam
os únicos à sua procura. Haveria outros, provavelmente dois em cada
andar. Qualquer rota que ela pudesse pegar para descer ao cais estaria
efetivamente bloqueada.
Teria de ser pela cobertura.
Em silêncio, atravessou o quarto e abriu a janela de Roman. Oito
leiras de lisas janelas de vidro a separavam do chão. Lá de cima, a água
marrom e suja parecia inquebrável, como concreto.
Engoliu em seco e desviou o olhar. Já tinha estado ali uma vez. Na
ocasião, optara por pular, uma tentativa de escapar das pessoas que a
perseguiam. Ainda bem que dessa vez não precisaria tentar nada tão
dramático.
Virou a bolsa para ajeitá-la nas costas, apoiou um dos pés no
parapeito da janela e subiu, equilibrando-se na borda. O vento soprava
em suas pernas e o mundo girou ao seu redor.
Com habilidade, deslizou pela na borda de concreto que se
projetava abaixo da janela de Roman, os dedos tateando nas paredes em
busca dos sulcos desgastados na pedra, como Roman tinha lhe ensinado.
O vento chicoteava o casaco contra as pernas dela, ameaçando arrancá-
la da lateral do prédio, como uma criança dando um peteleco numa
aranha. Os dedos formigaram, os lábios tremeram, mas ela continuou.
Passou por uma janela, depois duas, até chegar à sacada do quarto ao
lado. Parou um instante para recuperar o fôlego e começou a subir…
Havia um andar entre o quarto de Roman e a laje de cobertura do
Fairmont, mas os braços de Dorothy ainda queimavam quando ela
conseguiu se impelir para cima, as pernas procurando apoio,
desesperada para tirar um pouco do peso dos braços. Ficou de quatro
por um momento, ofegante. Só quando a cabeça parou de rodar é que
ela se sentou.
Nova Seattle inteira girava, vertiginosa, lá embaixo. Os cadáveres das
árvores mortas muito tempo atrás subiam das águas pretas, a casca
branca re etindo o luar, fazendo parecer que elas brilhavam no escuro.
De onde estava, Dorothy podia vislumbrar o disco voador de concreto,
que era tudo que restava da torre Space Needle, as silhuetas dos prédios
altos e o negrume opaco da água que compunha todo o resto.
Ela suspirou e se inclinou para trás, apoiando-se nos cotovelos. No
ano em que morava em Nova Seattle, nunca havia se acostumado com a
linha do horizonte. Parecia estranha, futurística e alienígena, como
sempre. A única coisa familiar era a lua pendendo lá em cima, tão perto
que ela quase achava que poderia levantar a mão e arrancá-la do céu.
Levantou o rosto, tando a lua. Quando era nova no Cirko Sombrio,
costumava vir ao topo do prédio para pensar. Ninguém mais na gangue
se arriscava a subir tão alto. A não ser Roman, claro.
Uma lágrima rolou pelo rosto dela. Com um gesto raivoso, Dorothy
a afastou, mas outra veio em seguida, e então outra. Até que desistiu e
deixou que viessem. Em toda a sua vida, nunca havia se sentido tão
sozinha. Mesmo durante aqueles terríveis primeiros dias em 2076,
quando tinha pousado violentamente no tempo errado, ela ainda tinha
Roman. Mas ele havia partido. Ele e também Ash. A Agência de
Proteção Cronológica não queria ajudá-la e a gangue dela a havia traído.
Um nó subiu pela garganta de Dorothy, di cultando a respiração.
Estava sem aliados. Sem esperança. Sem dinheiro.
Pela primeira vez em muito tempo, pegou-se com saudade da mãe.
— Para com isso — ordenou a si mesma, abrindo os olhos de novo.
Apertou as bochechas com as palmas das mãos, enxugando as
lágrimas. Podia não ter aliados nem amigos, mas isso não signi cava que
não soubesse o que fazer. Já estivera em situações desesperadoras e
sempre havia encontrado uma saída, certo?
Só precisava de alguma vantagem.
Nisso, pensou, talvez eu esteja com sorte.
Tirou as páginas do diário do Professor de dentro do casaco e
começou a examiná-las. O ar estava pesado de umidade. Ainda não
estava chovendo, mas logo estaria, e as páginas grossas grudavam nas
pontas dos dedos, a tinta borrando. Fez uma careta enquanto as
separava. Precisaria ler tudo rapidamente, porque logo estariam
arruinadas e não serviriam para mais nada.
Sentou-se com as costas eretas e começou a ler.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 8 DE AGOSTO DE 2074
10H50
A OFICINA

Já examinei as anotações de Nikola Tesla meia dúzia de vezes e ainda acho que estou nervoso
demais para testar a teoria dele.
Viagem no tempo sem um veículo, sem acesso a uma fenda, sem qualquer matéria exótica.
Se Nikola estiver certo, se essas coisas forem mesmo possíveis, significa que só começamos a
raspar a superfície dessa ciência.
Porém, se ele não estiver certo…
Bom. Só digamos que existem muitas, muitas maneiras de isso dar errado.
Por exemplo, se você se recorda, apenas duas pessoas tentaram viajar por uma fenda sem uma
nave antes de mim. Uma foi morta instantaneamente e a outra teve a pele arrancada do corpo.
Nenhum dos dois resultados é especialmente atrativo.
E, no entanto… há motivo para acreditar que deve ser possível viajar pelo tempo sem uma
máquina ultrapassada e sem acesso a uma fenda. Na verdade, histórias sobre viagens no tempo
podem ser encontradas desde o século VIII a.C.
Uma vez, Natasha me contou a história de um menino chamado Abimeleque, que viajou
sessenta e seis anos para o futuro enquanto colhia figos, só porque Deus quis poupá-lo do
sofrimento da guerra.
No antigo épico sânscrito, o Mahabharata, o rei Raivata teria deixado a terra para se encontrar
com Deus, voltando séculos mais tarde.
E a lenda japonesa de Urashima Taro fala de um pescador que vai visitar um deus subaquático.
Para ele, passam-se apenas alguns dias, mas quando volta para casa descobre que se passaram
trezentos anos.
Enquanto escrevo isso, ocorre-me que nenhum desses grandes viajantes retornou de suas
jornadas através do tempo. O que é exasperador. Mas não tanto quanto o cara que teve a pele
arrancada.
Eu deveria recuar um pouco. Antes de decidir se faz algum sentido testar a teoria de Nikola,
talvez seja melhor expor o que ela realmente é.
Na década de 1890 e início da de 1900, Nikola ficou obcecado por uma teoria de que talvez
pudesse conduzir eletricidade por longas distâncias através da superfície do planeta. Ele pegou
um bocado de dinheiro com um bocado de pessoas, mentiu para todo mundo sobre o que estava
fazendo e se mudou de Nova York para Colorado Springs com o objetivo de fazer experiências
longe dos olhos do público. Mais ou menos nessa época, ele teria dito: “O progresso nesse campo
me deu uma nova esperança de que verei a realização de um dos meus maiores sonhos: a
transmissão da energia de uma estação à outra sem o emprego de nenhuma conexão por fio.”
Alerta de spoiler: ele não viu a realização desse sonho. Estava tremendamente errado com
relação a tudo. Passou um ano em seu laboratório em Colorado Springs, gastou todas as verbas,
ficou endividado e arruinou a própria reputação. Num determinado ponto, ele parecia pensar que
estava se comunicando com outros planetas. Quando nós nos conhecemos, ele presumiu que eu
era marciano (ha!).
Mas, apesar de sabermos que não é possível transmitir eletricidade por grandes distâncias
usando a energia que há na superfície da terra, como Nikola propunha, sabemos que é possível
transmitir massa através do tempo usando uma fenda. Daí a viagem no tempo. A pesquisa que
Nikola deixou para mim parece uma espécie de mistura da dele com a minha. Ele argumenta que a
crosta do planeta é composta de milhões de fendas minúsculas e que deve ser possível aproveitar
essa energia em qualquer lugar, e não apenas dentro de uma fenda. Para estabilizar a energia, ele
recomenda injetar uma pequena quantidade de matéria exótica diretamente em mim (ele
desenhou um protótipo rudimentar de uma ferramenta que deve me ajudar a conseguir isso).
A ciência tem fundamento. No entanto, reluto em testar essa teoria. Nikola é muito conhecido,
através de toda a história, como um dos homens mais brilhantes que já existiram. Só que as
experiências dele com a transmissão de eletricidade sem fio arruinaram a reputação que ele tinha
e o deixaram com dívidas enormes.
Será que vou confiar mesmo minha vida a ele?
4
13 DE NOVEMBRO DE 2077

Ao redor do barco que se movia lentamente, havia um redemoinho de água


negra. Uma brisa fresca fazia cócegas na nuca de Dorothy, agitando os cachos do
cabelo dela.
Dorothy olhou para a escuridão, atenta a qualquer movimento. Estava com
a adaga de Roman numa das mãos — o peso era familiar ao lado do corpo. O
coração dela parecia martelar.
Estava preparada. Jamais estaria preparada.
Apesar da completa escuridão, ela conseguiu enxergar, a pouca distância, a
fenda ondulando num cobertor de águas pretas. Era uma lasca a ada no céu
noturno, uma bolha de sabão quicando suavemente nas ondas, um túnel fundo,
escuro.
Desviou o olhar e só então viu a gura de pé no barco, logo antes do túnel,
esperando-a. Ele não se moveu nem acenou, só cou parado, esperando o que
sabia que iria acontecer.
Dorothy ajeitou a adaga nas dobras do casaco, engolindo em seco. Ele podia
saber o que ela fora fazer ali, mas ela não queria di cultar ainda mais as
coisas. Guiou o barco para perto do dele e tou a escuridão até a vista se
acostumar. O rosto de Ash começou a ganhar forma.
Lábios, nariz e boca. Cílios compridos. Olhos dourados.
— Não achei que você viria. — A garganta dela se apertou em volta das
palavras.
— Dorothy.
Ash estendeu a mão para ela.
Ela se deixou ser puxada, os braços de Ash envolvendo seus ombros estreitos.
E então os lábios deles se encontraram e estavam se beijando e todo o resto
desapareceu.
Ah, como gostaria de permanecer naquele momento!
Mas a adaga continuava na mão dela. Entre os dois, sempre.
Ela recuou e viu, imediatamente, como a luz parecia se esvair do rosto dele.
Ash a encarava.
— Não precisa acabar assim — disse ele.
— É claro que… — respondeu ela, levantando a adaga.

Dorothy acordou com um sobressalto, febril. O suor cobria a testa e as


palmas das mãos. A escuridão girava ao redor dela. Durante um longo
momento, ela não conseguiu se lembrar de onde estava.
Então, as sombras começaram a ganhar forma: prédios altos, árvores
e céu. Estava no topo do Fairmont. Devia ter caído no sono.
Fechou os olhos, tentando se controlar. As mãos tremiam. Ainda
podia sentir a pele e os músculos de Ash cedendo sob suas mãos, a adaga
de Roman se cravando no corpo dele com uma facilidade assustadora, o
calor úmido do sangue em seus dedos.
O que foi isso?
Parecia uma espécie de lembrança. Sabia que era possível se lembrar
de coisas que ainda não haviam ocorrido, mas achava que isso só
acontecia dentro de uma fenda. Então, o que era aquilo? Um sonho?
Um pesadelo?
Uma premonição?
Independentemente do que fosse, parecia real. Como uma coisa que
ela já tivesse vivido.
Fechou os olhos, afastando o que ainda restava do sonho. Quando
voltou a abri-los, viu que o céu estava tingido de rosa. A alvorada se
aproximava. Sentiu um nó nos músculos do pescoço e se espreguiçou,
dolorida. Talvez o topo do prédio não tivesse sido o lugar mais sensato
para passar a noite. Cada músculo do corpo estava tenso e cada
membro, rígido, parecendo ranger.
Os sons de movimento e vozes atraíram a atenção dela para alguma
agitação lá embaixo. Foi até a borda, as botas derrubando pedacinhos de
entulho pela lateral, e olhou para baixo.
As Aberrações do Cirko enchiam o cais. Os casacos pretos faziam
com que parecessem um enxame de insetos, uma infestação. Dorothy
franziu a testa.
O que eles estão fazendo?, pensou, esgueirando-se mais para perto da
borda. Mac devia ter dado alguma tarefa a eles, mas qual seria?
Esticou o pescoço o máximo que ousava, segurando a borda da laje
com tanta força que os nós dos dedos caram brancos. O chão girava
vertiginosamente.
As Aberrações pareciam estar colando cartazes e distribuindo
pan etos. Daquela distância, era impossível ler o que estava escrito
neles. Precisaria estar mais perto.
Dorothy começou a recuar quando alguém atraiu seu olhar.
Era uma mulher. Como as Aberrações, ela estava toda de preto. O
vestido tinha gola alta e mangas compridas. Usava botas de salto alto,
capuz e uma máscara que cobria todo o rosto. Foi a máscara que atraiu a
atenção de Dorothy. Pelo que sabia, ela era a única pessoa que usava
máscara em Nova Seattle.
Será que lancei uma moda?, pensou com ironia. Duvidava disso.
E havia outra coisa com relação à mulher, uma coisa… perturbadora.
Ela possuía uma qualidade estranhamente magnética, uma atração
gravitacional. Dorothy não conseguia afastar o olhar. Sentiu um arrepio
atravessar o corpo enquanto observava a mulher andando pelo cais antes
de virar uma esquina e desaparecer.
Quem era ela?
Esperou até ter certeza de que a mulher tinha ido embora. Depois,
certi cando-se de que a adaga de Roman e as folhas do diário do
Professor estavam bem guardadas no casaco, passou pela borda da laje e
começou a longa descida.

Dorothy permanecia nas sombras. Espiou pela quina do prédio


enquanto as Aberrações distribuíam os pan etos misteriosos, as vozes
abafadas pelo som da água batendo nas laterais das docas e pelo vento
no e áspero da manhã.
Então, quando elas começaram a se movimentar pelo cais e se
afastaram de onde Dorothy estava, ela saiu para a luz do dia, silenciosa
como uma sombra, para ver o que era o cartaz.
Procurado por assassinato, estava escrito. Abaixo havia uma foto do
rosto de Ash.
Dorothy levantou um dedo trêmulo na direção do cartaz, sentindo
um arrepio. A foto parecia ter sido copiada de um antigo recorte de
revista. Ash não estava olhando para a câmera, e sim rindo para alguma
coisa ao longe. Usava a velha jaqueta de couro, que Dorothy conhecia
tão bem, e a pele estava avermelhada de sol, com o vento soprando o
cabelo louro nos olhos.
Ela espiou o cais. Viu que os cartazes não estavam apenas no
Fairmont, mas em todos os prédios do quarteirão. Com certeza, as
Aberrações os tinham colado em todos os edifícios do centro da cidade.
Um arrepio a atravessou. Uma coisa era Mac ter dito às Aberrações
do Cirko que Ash era responsável pelo assassinato de Roman. Outra era
toda a cidade estar à procura dele.
— Você escolheu mesmo uma boa hora pra desaparecer —
murmurou Dorothy, engolindo em seco.
Se Ash não tinha morrido no barco na noite anterior, ela esperava
que ele tivesse o bom senso de permanecer longe. Se pusesse os pés em
Nova Seattle, estaria morto antes do m da semana.
Sentindo uma onda repentina de raiva, ela arrancou o cartaz da
parede, amassou-o fazendo uma bola e o jogou na água. Não ajudaria
em nada, os cartazes estavam em toda parte, mas ela sentiu um pequeno
alívio ao ver a tinta escorrer, o papel car encharcado. Menos um,
pensou. Puxando o capuz sobre a cabeça, tentou se misturar às outras
pessoas no cais.
Manteve a cabeça baixa, andando sem parar para pensar aonde,
exatamente, planejava ir. Sempre que se lembrava dos cartazes, uma
fúria renovada borbulhava dentro dela. Mac não podia fazer aquilo, não
podia mentir e colocar uma cidade inteira contra Ash. Ela não
permitiria. Precisava impedir. Precisava fazer alguma coisa.
Mas fazer o quê?
Estava desamparada. Impotente. Sem amigos, sem dinheiro.
Ah, como odiava aquele sentimento!
Depois de dez minutos andando sem rumo, percebeu que tinha
chegado a um destino. Em toda a cidade, só conhecia um lugar de onde
não iriam expulsá-la imediatamente.
Respirando fundo, virou-se e foi para lá.

Dorothy se escondeu atrás de uma árvore de tronco branco. E esperou.


Zora foi a primeira a sair. Dorothy cou olhando do esconderijo
enquanto Zora abria uma janela e saía para o cais oscilante, abaixo.
Ela parece péssima, pensou Dorothy. Zora estava com olheiras bem
marcadas e tinha um aspecto acinzentado e doentio na pele marrom-
escura. Ela aparentava estar murmurando alguma coisa, com uma
barrinha energética en ada entre os dentes enquanto prendia as tranças
num coque rápido na base da nuca.
Zora nem olhou na direção de Dorothy. Simplesmente montou no jet
ski. Um rugido preencheu o ar da manhã enquanto ela ligava o motor, e
ela partiu, espirrando um arco de água escura no ar.
Menos de três minutos depois de Zora ter saído, Willis passou pela
janela, os olhos se virando para um lado e para o outro, ariscos,
enquanto ele veri cava se havia alguém no cais. Dorothy franziu a testa.
Ele parecia… furtivo. Como se estivesse fazendo algo que não deveria
fazer. Como se não quisesse ser apanhado.
De cabeça baixa, ele andou rapidamente pelo cais, na direção da
Taverna do Dante.
Dorothy soltou o ar com força e saiu do esconderijo. Chandra devia
ser a única pessoa que restava na biblioteca. Aquilo era uma sorte.
Dorothy tinha pensado em pegar Chandra ou Willis a sós, mas, claro,
Chandra era a primeira opção. Ela sempre parecera gostar de Dorothy.
Vamos lá, pensou.
E caminhou abaixada pelo cais até a biblioteca, abrindo a porta com
cuidado.
5

Uma música de discoteca ribombava no corredor da biblioteca, como se


cordas, metais e uma guitarra elétrica se chocassem, o som resultante
parecendo uma tempestade. Dorothy mal conseguia escutar a voz de
Chandra (desa nada) no meio, cantando junto.
— You are the dancing queen! Young and sweet, only seventeen!
Dorothy se encolheu — ainda não gostava de música moderna, mas
achou que deveria ser grata por ela no momento. O som cobria o ruído
dos seus passos andando pelo corredor comprido.
Quando virou, encontrou Chandra dançando em volta de uma pilha
torta de livros mofados, quase de sua altura. Chandra balançava os
quadris e agitava as mãos acima da cabeça, o tipo de movimento que
uma pessoa fazia quando realmente não esperava que alguém estivesse
olhando. Dorothy sabia que deveria sinalizar que estava ali para
Chandra não se sentir envergonhada, mas não conseguiu se impedir de
car quieta por mais alguns instantes.
Chandra pegou uma garrafa vazia numa pilha de jornais e a levou
para perto da boca, berrando como se fosse um microfone.
— Dancing Queen! Feel the beat of the TAMBORINE, OH YEAH.
Dorothy conteve uma risada. Não conseguia aguentar mais.
Começou a bater palmas. Chandra soltou um berro agudo e girou,
jogando a garrafa na direção de uma pilha de papéis em cima de uma
estante atulhada demais. Os papéis se espalharam pelo chão.
— Ah, não! — As mãos de Chandra foram até a boca. — Zora vai
car pê da vida. Ela passou a manhã inteira organizando aquilo.
— Eu só estou aqui há um minuto e, de algum modo, já consegui
irritar Zora. — Dorothy se ajoelhou para juntar os papéis. — Deve ser
algum tipo de recorde, até mesmo para mim.
Chandra não disse nada, apenas correu até o antigo toca- tas,
desligando a música do ABBA. O silêncio súbito fez os nervos de
Dorothy estremecerem.
— Desculpa, sei que eu não deveria ter entrado assim. — Dorothy
levantou e colocou a pilha de papéis desarrumados de volta na estante.
— É que eu queria conversar com você a sós.
— Certo — disse Chandra. Dorothy não pôde deixar de perceber
que os olhos dela estavam um pouquinho mais arregalados do que um
minuto antes. Chandra olhou para a janela e depois de volta para
Dorothy, engolindo em seco. — Faz sentido, acho.
Dorothy franziu a testa.
— Eu não vou machucar você, se é isso que está pensando.
— Claro que não. — Chandra gargalhou, mas o riso saiu meio
nervoso. — Só que a gente não cou a sós desde que você virou…
bom… ela.
Em seguida, indicou o cabelo branco e o casaco preto. O coração de
Dorothy cou apertado. Sempre achou que Chandra gostava dela.
Quando tinham se conhecido, Chandra fazia uma pergunta depois da
outra sobre a época de Dorothy, sobre seu cabelo, suas roupas. Parecia
que estavam se tornando amigas.
Mas a garota que estava diante dela parecia aterrorizada, como se
esperasse que Dorothy puxasse uma faca de dentro da manga e a
matasse ali mesmo. Será que Dorothy havia se enganado, achando que
Chandra poderia ser uma aliada?
— Não estou diferente de quando você me conheceu — disse
Dorothy, levantando as mãos para mostrar que não estava armada. —
Juro.
— Bom… a não ser por aquele negócio de você ter começado a
comer gente. — Chandra deu um passo atrás. — Isso é novo.
— Pelo amor de… eu não como gente. — Dorothy reagiu num acesso
de raiva. — Isso é boato. Houve dezenas de boatos a meu respeito no
último ano, mas por algum motivo esse é o único ao qual todo mundo se
agarra.
— E por que será, hein?
— As pessoas são idiotas. Roman e eu inventamos os boatos para
convencer todo mundo dessa cidade de que eu deveria ser temida.
Nenhum deles é verdadeiro, juro.
Chandra ergueu uma sobrancelha.
— Tudo bem. — Dorothy levantou um dedo, rispidamente. — Eu
mordi um cara, e só porque ele me atacou primeiro. Satisfeita?
Chandra inclinou a cabeça e Dorothy não deixou de perceber o ar de
aprovação relutante que atravessou o rosto dela.
— Bom. — Chandra cruzou os braços. — Por que você veio?
— Só quero conversar com você. — Dorothy manteve as mãos
levantadas enquanto dava alguns passos e se sentava numa cadeira.
Chandra fechou a cara, os lábios comprimidos. Depois de um
momento, suspirou e se deixou afundar na cadeira ao lado dela, com os
braços cruzados.
— Certo, então — murmurou. — O que você quer conversar?
Dorothy pensou na expressão do rosto de Chandra quando todos
estavam conversando na noite anterior, aquela leve franzida nas
sobrancelhas, como se soubesse de algo, mas não tivesse certeza de que
deveria dizer em voz alta. Era por isso que Dorothy havia retornado.
Precisava saber o que signi cava aquela expressão.
— Ontem à noite — disse com cautela —, quando a gente estava
conversando, pareceu que você queria dizer alguma coisa, mas Zora…
— Nesse momento, Zora não é a sua maior fã — interrompeu
Chandra, olhando-a irritada. — E eu não a culpo. — Ela endireitou os
óculos no nariz. — O… sumiço do Ash fez a gente pirar de verdade, mas
pra Zora está sendo especialmente difícil.
— Pra mim também — murmurou Dorothy.
Os olhos de Chandra caram úmidos. Ela piscou algumas vezes,
olhando para outro lado.
— É, pra mim também, mas Zora… está obcecada. Não vai descansar
enquanto não descobrir onde ele está. — Seu olhar voltou na direção do
rosto de Dorothy. — E quem colocou ele lá.
— A gente deveria estar do mesmo lado. — Dorothy se inclinou para
a frente. — Sei que todos vocês me culpam, mas eu também quero
descobrir a verdade.
Chandra mordeu o lábio. Por um momento, pareceu que estava
tendo algum tipo de debate interno consigo mesma. E então,
suspirando, ela se levantou e saiu rapidamente da sala.
Sozinha, Dorothy franziu a testa. Será que a conversa havia
terminado? Será que Chandra esperava que ela fosse embora? Que fosse
atrás dela?
Chandra apareceu um instante depois, trazendo uma jarra com um
líquido turvo e dois copos de geleia.
— É chá — explicou, vendo a confusão no rosto de Dorothy.
Colocou a jarra e os copos numa estante perto da cadeira de Dorothy.
— Willis tem um monte dessa coisa, e eu pus gelo. Não gosto muito de
bebida quente.
Ela serviu um copo para cada uma.
— Eu só pensei que, se Willis estivesse aqui, iria oferecer uma bebida
a você — murmurou, empurrando o chá na direção de Dorothy.
Dorothy levantou uma sobrancelha.
— É mesmo?
— Não me entenda mal, ele também não gosta muito de você, mas o
cara tem bons modos. E, tecnicamente, você é uma visita. — Chandra
terminou de servir o chá e pôs a jarra na mesa, derramando um pouco.
— Bom. Você disse que queria conversar?
Dorothy sentiu uma onda de gratidão. Puxou o chá e envolveu o
vidro frio com as mãos.
— Obrigada…
— Se eu descobrir que você machucou ele, eu mesma mato você. —
A voz de Chandra saiu quase simpática. Ela levou o copo aos lábios e
tomou um gole pequeno. — Posso não ser muito forte e posso não lutar
bem, mas conheço venenos que podem matar em segundos. Você vai ter
de prestar atenção no que come e no que bebe pelo resto da vida.
Dorothy ia tomar um gole do chá, mas pensou melhor. Pôs o copo de
volta na mesa e pigarreou, ansiosa.
— Eu não matei o Ash, juro — disse. E fechou os olhos, com um
suspiro fundo. — Não sei o que aconteceu naquela noite, mas…
— Faz semanas que ele sabia que era você que iria matá-lo, e ele nem
se importou — disse Chandra com a voz amarga. — Pra você ver como
ele te amava. Sabia disso?
Dorothy sentiu as lágrimas se acumulando e piscou rápido para que
não caíssem.
— Não — respondeu depois de um momento. — Não sabia.
Chandra soltou um suspiro enorme e olhou para o copo em suas
mãos, parecendo não estar mais interessada em beber o chá.
— Achei que essa última semana cheia de encontros secretos
signi cava que ele estava tentando bolar um plano, algum modo de
impedir que isso acontecesse, mas…
— Encontros secretos? — interrompeu Dorothy. — Do que você
está falando?
Os olhos de Chandra se arregalaram. Ela tomou um gole rápido de
chá, ruborizando.
— Nada. Deixa pra lá.
Dorothy se inclinou para a frente, subitamente alerta.
— Ash e eu estivemos nos encontrando em particular?
— Bom, mais ou menos, mas eu… eu não deveria falar com você
sobre isso. — Chandra girou o copo entre dois dedos, ansiosa, fazendo o
chá bater nas laterais. — Olha, Zora acha…
— Não me importa o que Zora acha, ela não está aqui. — Dorothy
segurou o braço de Chandra. — Chandra, você precisa me contar.
Quando nós nos encontramos?
Chandra a encarou por um momento.
— Foram só umas vezes na semana passada, desde o baile. — Ela
levou uma das mãos à boca e começou a roer a unha do polegar. — Ash
saía de ninho pra se encontrar com você quando achava que nós não
estávamos prestando atenção.
— Não. — Dorothy franziu a testa. — Isso… não é verdade. Eu vi
Ash na noite do baile e depois, bem rápido, num bar do centro da
cidade, mas fora isso…
Ao mesmo tempo que as palavras saíam da sua boca, ela se lembrou
de uma conversa estranha que tinha tido com Eliza na noite em que o
Cirko Sombrio se revoltou. Eliza disse que tinha visto Dorothy e Ash
juntos do lado de fora do Coelho Morto. Dorothy não tinha pensado
muito naquilo. Achara que, sem dúvida, Eliza estava tentando armar
algo, fazer o resto do Cirko Sombrio se voltar contra ela mais
rapidamente.
Mas, pensando bem, por que Eliza iria se incomodar? Naquele
ponto, Mac já tinha subornado boa parte do Cirko. O que ela ganharia
inventando histórias?
— Quantas vezes? — perguntou Dorothy, quando conseguiu falar de
novo.
— Vocês se encontraram três vezes, acho. Uma após o baile, e de
novo naquele bar supersuspeito perto do Fairmont. E depois, você sabe,
quando você salvou ele.
Salvei ele, pensou Dorothy, atravessada por um arrepio. Claro. Eliza a
havia acusado de libertar Ash quando ele foi preso por Mac. Outra
mentira que, a nal de contas, não era mentira.
— Por que Zora não queria que eu soubesse disso? — perguntou.
— Acho que ela cou preocupada pensando que, se a gente contasse
a você sobre os encontros, isso provocaria toda a cadeia de
acontecimentos que leva à morte de Ash. Mas não acho que a viagem no
tempo funcione desse jeito.
Três encontros, pensou Dorothy. Tinha se encontrado com Ash três
vezes na semana anterior, tinha conversado com ele. Sobre o quê? O
que poderia ter sido importante a ponto de mandá-la de volta no tempo
para encontrá-lo?
Houve um som na outra sala, uma janela se abrindo, e em seguida a
voz de Zora gritando:
— Chandra, você viu aquele livro de física teórica? Eu achei que
estava na o cina, mas…
Chandra levantou em um pulo.
— Vá — murmurou para Dorothy, com os olhos arregalados. E
balançou uma das mãos na direção do corredor. — Pode passar pela
cozinha, nos fundos, a janela dá no cais do outro lado do prédio.
Dorothy hesitou. Tocou as páginas do diário do Professor, ainda
en adas dentro do casaco.
Deveria contar a Chandra o que havia encontrado. Não tinha certeza
de que algum deles sabia que, antes de sumir, o Professor estivera
pensando em viajar no tempo sem um veículo, mas imaginou que essa
informação seria valiosíssima para eles. Neste momento, Mac tinha tudo
de que precisava para viajar de volta no tempo: a última máquina do
tempo que restava, sem falar em toda a matéria exótica. Se havia um
modo de viajar sem essas coisas, sem dúvida eles iriam querer saber.
Mas algo fez Dorothy hesitar. Naquele momento, aquelas páginas
eram o único trunfo que lhe restava. Poderia precisar delas. Parecia
idiotice entregá-las sem pedir nada em troca. E só podia imaginar o que
Zora faria se a encontrasse ali, interrogando Chandra.
— Obrigada — sussurrou Dorothy, deixando as páginas onde
estavam. Em seguida, foi para o corredor e passou pela janela dos fundos
antes que Zora a visse.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 20 DE AGOSTO DE 2074
14H20
A OFICINA

Passei os últimos dois dias construindo o dispositivo de Nikola para inserir a matéria exótica em
mim mesmo, usando os esquemas que ele desenhou, de modo tão prestativo, nas anotações que
deixou para mim. Ajustei-os um pouco — a ciência evoluiu um bocado nos últimos cento e
cinquenta anos —, mas a ideia geral é dele. Assim, decidi chamar esse pequeno instrumento de
“Raio da Morte”, já que ele disse à imprensa que estava trabalhando nisso em seus últimos anos de
vida.
Ah, meu Deus, que esse nome continue sendo irônico.
Agora, o Raio da Morte está pronto. É um dispositivo portátil, mais ou menos do mesmo
tamanho e forma de um revólver pequeno, com uma agulha comprida onde normalmente ficaria o
cano. Devo usar essa agulha para extrair dez mililitros de matéria exótica e inserir diretamente na
minha aorta.
Aqui, é importante observar que o rompimento de um aneurisma da aorta abdominal pode
provocar uma hemorragia. E pode ser fatal.
Então, ha, ha, é melhor não fazer besteira.
Vamos nessa.
Ah, meu Deus… minha mão está tremendo.

ATUALIZAÇÃO
20 DE AGOSTO DE 2074
16H05
Bom… estou de volta! E não estou morto! Injetei com sucesso a matéria exótica e acho que é
seguro dizer que não provoquei nenhuma hemorragia interna potencialmente fatal. Um brinde às
pequenas vitórias!
Como o primeiro homem vivo a ter matéria exótica implantada no corpo, também acho
necessário observar que esse negócio é esquisito! Houve uma sensação fria, de formigamento, no
local da injeção, seguida pelo que só posso descrever como uma claridade explodindo nas veias.
Era como luz do sol líquida se espalhando por todo o corpo. Extraordinário.
De qualquer modo, esse é apenas o primeiro passo. O segundo, na verdade, não é tão
complicado. De acordo com Tesla, existem milhões de fendas microscópicas abaixo da superfície
da Terra. A matéria exótica deve estabilizar o meu corpo para a viagem, portanto, só preciso usar a
energia desses minúsculos buracos de minhoca e permitir que eles me transportem no tempo.
Como não estarei numa máquina do tempo, a orientação será mais difícil. Não tenho certeza de
como vai ser. Quando estiver na fenda, vou procurar padrões específicos nas paredes do túnel.
Tesla teorizou que viajar no tempo usando a energia das fendas menores abaixo da superfície
da Terra deve ser como água passando entre pedras. Em outras palavras, é provável que eu viaje
por um território bem conhecido, revisitando lugares onde estive recentemente ou com
frequência. Muito interessante.
Se a teoria dele estiver correta, só preciso “me alinhar com a fenda do estuário de Puget”. Para
ser honesto, não sei o que isso significa. Como alguém pode “se alinhar” com uma anomalia do
mundo natural?
De uma coisa eu sei: essa fenda se abriu na zona de subdução de Cascadia. Acho possível que
o simples fato de estar perto de uma zona de subdução seja suficiente para captar a energia da
fenda.
É por isso que estou sentado num barquinho a remo, do lado de fora da zona, me preparando
para — dizendo de modo científico — remar em frente e ver o que acontece. Lá vou eu.
Se a teoria de Tesla estiver correta, devo sentir uma espécie de correnteza, que ele descreveu
como a sensação de um anzol preso no umbigo e…
Ah…
6

Dorothy permaneceu nas sombras, seguindo pelas docas sinuosas,


precárias, através da cidade. O sol tinha saído do esconderijo. Sua luz
brilhante e esmagadora se re etia na água escura, bordando o dia em
dourado.
Ela percebeu que estava olhando para trás mais do que precisava e se
encolhendo dentro do casaco, como se a na camada de tecido pudesse
protegê-la de um tiro ou do corte frio de uma faca. Aquele tipo de
claridade sempre a deixava nervosa. Enganava sua mente, dava a
impressão de que estava em segurança. Fazia-a baixar a guarda. Ali,
baixar a guarda signi cava praticamente esperar a própria morte.
Dorothy duvidava de que algum dia fosse estar de fato segura de novo.
A doca se inclinou para baixo. A água subiu, passando das solas das
botas de Dorothy, trazendo uma cobra verde-veneno. A cobra deslizou
em volta dos tornozelos dela, a cauda entrando e saindo da escuridão.
Dorothy a chutou, xingando enquanto o bicho desaparecia na água.
As palavras de Chandra soavam em sua cabeça:
Vocês se encontraram três vezes… Uma depois do baile, e depois naquele bar
supersuspeito perto do Fairmont. E depois, você sabe, quando você salvou ele…
Passou a mão pelos cabelos. Como isso podia ser verdade? Ela sabia
pilotar uma máquina do tempo, mas não possuía uma. A Corvo Negro —
a última máquina do tempo, pelo que sabia — estava trancada no
Fairmont, vigiada por um exército de Aberrações do Cirko e pelo
próprio Mac Murphy. Dorothy jamais conseguiria pôr as mãos nela e
sair viva.
As ondas batiam nas docas. O vento agitava os galhos brancos das
árvores. Dorothy se encolheu mais um pouco dentro do casaco,
tentando acalmar a frustração que sentia crescer dentro de si. Sempre
que pensava estar prestes a descobrir algo, encontrava mais um
obstáculo e parecia chegar a um beco sem saída. Era irritante.
Sacudiu a água das botas e continuou andando. A Taverna do Dante
cava logo à frente. Dorothy sabia que as Aberrações não bebiam ali,
então achou que poderia car em segurança. Pelo menos durante algum
tempo. O su ciente para uma bebida, talvez até algo para comer. Ouviu
o estômago roncar e lembrou que fazia um dia inteiro desde que tinha
comido pela última vez.
Olhou em volta, certi cando-se de que ninguém a seguia. A doca
estava vazia, a água ao redor permanecia imóvel. Satisfeita, encontrou a
janela que servia como entrada do bar e pulou para dentro.
Manchas de gordura subiam pelas paredes e o ar fedia a peixe frito e
cerveja. O estômago de Dorothy roncou mais uma vez. Ela puxou o
capuz sobre o rosto, esperando que ninguém a notasse enquanto ia em
direção aos sons animados de vozes e risos.
A Taverna do Dante estava apinhada, o ambiente sujo cheio de mesas
e cadeiras descombinadas, com lâmpadas meio queimadas pendendo no
teto baixo e alguns sofás de vinil nos cantos. Havia um enorme aparelho
de televisão de 1985 atrás do balcão, mas não transmitia nada no
momento.
Dorothy esperou junto ao balcão, mantendo o capuz sobre o rosto e
o cabelo branco escondido, até que um sujeito meio baixo e meio jovem,
usando boné de beisebol, foi até ela.
— O que deseja, querida? — perguntou ele.
— Cachaça? — respondeu Dorothy, lembrando-se da bebida
transparente que Zora havia pedido para ela na primeira vez em que
tinha ido ali. — E comida, se tiver.
— A cozinha está fechada — disse o garçom, em tom de desculpas. —
Mas recebemos um suprimento de barras de proteína do Centro e uns
sacos de batata chips do mercado negro, se estiver interessada.
Dorothy molhou os lábios. Estava interessada em qualquer coisa,
desde que fosse comida.
— Vou querer os dois, obrigada.
O garçom assentiu, enxugando as mãos num avental branco
pendurado no cós da calça larga. Em seguida, pegou uma garrafa de
líquido transparente de trás da calota que servia como balcão e encheu
um copo. Encontrou uma barra de proteína e um saco de batata chips
empoeirado e deslizou até Dorothy.
— Obrigada — murmurou ela, largando algumas notas no balcão.
Pegou a bebida e foi andando pela multidão, de cabeça baixa. Imaginava
os outros a olhando de lado, sussurrando. Não tinha como saber se era
apenas paranoia.
Encontrou um lugar nos fundos do bar e tomou um gole da bebida.
A cachaça queimou enquanto descia pela garganta e se acomodou no
estômago como um pneu pegando fogo. Ela engoliu em seco, fazendo
uma careta, e mordeu a barra de proteína, uma substância meio
marrom, cheia de calombos, com um gosto salgado e achocolatado que
lembrava um pouco serragem. Era a comida menos parecida com
comida que já havia provado, mas aquilo conseguiu acalmar seu
estômago, pelo menos em parte.
Enquanto comia, repassou todas as informações que tinha.
Chandra disse que ela estivera se encontrando com Ash no passado.
Dorothy não tinha uma máquina do tempo, mas estava com as páginas
do diário do Professor, que, por acaso, detalhavam como viajar no
tempo sem uma máquina.
Apertou o copo pegajoso, pensando. Será que tinha feito isso?
Deduzido como viajar no tempo sem um veículo? Parecia improvável.
As palavras do Professor ajudavam, mas não eram exatamente um
manual de instruções. E ele tinha feito questão de dizer como era
perigoso ao menos tentar. Dorothy ainda não conseguia tirar da cabeça
a frase a pele arrancada do corpo. Estremeceu e pôs o resto da barra de
proteína na mesa. Não conseguia imaginar um modo menos agradável
de morrer.
O rapaz atrás do balcão levantou uma das mãos, sinalizando para os
fregueses carem quietos. Estava olhando para o aparelho de TV
pendurado na parede do fundo. A imagem na tela havia tremido, e em
seguida congelou.
Dorothy olhou, o pavor embrulhando o estômago, enquanto a
imagem era substituída por duas guras: Mac e a mulher estranha,
vestida de preto, que tinha visto nas docas naquela manhã.
E sentiu a raiva arder. Os dois estavam de pé no estúdio dela, aquele
que ela havia construído com Roman, no porão do Fairmont. Estavam
usando as câmeras que Dorothy havia roubado de uma estação de TV
abandonada em 2044, diante da puída bandeira americana que Roman
tinha pendurado no teto.
Como ousam?
— Amigos — disse Mac, sorrindo ligeiramente. Era um sujeito
parecido com um sapo, atarracado e baixo, com lábios grossos e olhos
perpetuamente vermelhos. — Não tentem ajustar suas televisões. Nossa
transmissão está em todos os canais. Ela não pode ser rastreada.
Dorothy não conseguia falar. Conhecia aquelas palavras. Pelo amor
de Deus… ela as havia escrito. Aquela transmissão tinha sido um projeto
dela desenvolvido no último ano, um modo de dizer aos cidadãos de
Nova Seattle a verdade sobre o que a viagem no tempo era capaz de
fazer, de mostrar às pessoas que ela e Roman estavam do lado delas, que
vinham trabalhando para melhorar a cidade.
E agora era Mac Murphy diante da câmera?
Isso bastou para fazer a bile subir pela garganta de Dorothy.
Seus dedos envolveram o copo de cachaça. Precisou de toda a força
de vontade que lhe restava para não jogá-lo na televisão. Se o próprio
Mac estivesse diante dela, Dorothy sabia que não conseguiria resistir.
Mac prosseguiu, com a voz solene:
— É um grande infortúnio dizer a vocês que nosso amado Corvo,
Roman Estrada, foi assassinado.
Um silêncio tenso baixou sobre as pessoas no bar. Todo mundo se
virou para a tela da TV. Dorothy teve a sensação de que sabia o que
vinha em seguida. Apertou o copo com um pouco mais de força.
Por você, sentiu vontade de gritar. Ele foi assassinado por você.
— Roman queria ajudar as pessoas da cidade — disse Mac. — Ele
conseguiu o feito incrível de viajar no tempo e usou esse poder para nos
proporcionar eletricidade, calor e suprimentos médicos essenciais. Por
causa dele, Nova Seattle está melhor hoje do que estava ontem.
Ele respirou fundo e continuou:
— Infelizmente nem todo mundo compartilhava do desejo de
Roman, de tornar essa nossa cidade um lugar melhor. Ontem à noite,
durante uma viagem ao futuro, duas pessoas tramaram e executaram o
assassinato de Roman.
De repente, Mac e a mulher de preto desapareceram da tela. Uma
foto de Dorothy e Ash apareceu no lugar deles.
Dorothy cou olhando, boquiaberta. Nunca tinha visto aquela foto.
Parecia ter sido tirada nas docas do lado de fora do Coelho Morto, tarde
da noite. As cores estavam borradas, quase como se tivessem sido
pintadas em aquarela, uma mistura turva de roxos, azuis e pretos. E, no
meio de tudo aquilo, claro como o dia, estavam ela e Ash, inclinados
como se fossem se beijar. Ash estava com a mão no rosto dela. Os olhos
de Dorothy estavam fechados.
Dorothy tocou o rosto no mesmo ponto onde Ash, na foto, o estava
tocando. A mente tropeçou, tentando descobrir quando tinha estado ali,
quando aquilo podia ter acontecido.
Mas, claro, não tinha acontecido. Ainda.
Mac continuava falando.
— Estou enojado com o que aconteceu, é claro. Sempre considerei
Roman um amigo íntimo, um aliado da causa. E, mais do que isso, ele
era um bem valioso para a nossa cidade. Talvez não exista nenhum modo
de mudar o que aconteceu com ele, mas acredito, do fundo da alma, que
há uma chance de consertarmos isso. É chegada a hora de mostrar que
estou falando sério. Estou oferecendo uma recompensa pela captura
desses traidores, Jonathan Asher e Quinn Fox. Se algum dos estimados
cidadãos dessa cidade me trouxer um desses traidores, ou ambos… Vivos
ou mortos, não sou exigente… Será questão de honra garantir que eles
sejam levados à justiça e obrigados a pagar por seus crimes.
Mac fez uma pausa, com aquele horrível riso de sapo.
— E, sem dúvidas — continuou —, tornarei esse cidadão muito,
muito rico.
Murmúrios brotaram entre os fregueses do bar. Dorothy sentiu um
súbito arrepio de medo. Que idiotice ter ido até ali! Se alguém
percebesse quem ela era, seria levada imediatamente a Mac. Precisava
fugir, desaparecer.
Deslizou da cadeira, achando que poderia se esgueirar para fora pela
janela do banheiro feminino — como tinha feito na primeira vez ali —
quando o garçom com boné de beisebol apareceu na sua frente.
Ele parecia arisco, nervoso. Não queria olhar nos olhos dela.
— Srta. Fox… — disse numa voz baixa, ansiosa. — Infelizmente,
preciso pedir que venha comigo.
7

Dorothy sentiu o coração martelar na garganta. As palmas das mãos


começaram a suar.
Com certeza, aquele sujeito miúdo, usando boné, não achava que
poderia simplesmente entregá-la ao Mac, ou achava?
Não se ela tivesse alguma coisa a dizer a respeito.
En ou a mão no casaco, os dedos envolvendo o punho da adaga de
Roman…
— Vai com calma aí.
O garçom tirou um revólver de dentro da jaqueta. Aquilo não era tão
surpreendente assim. Os bares em Nova Seattle eram lugares
turbulentos, perigosos, e Dorothy sabia que a maioria dos funcionários
andava armada. Aquele, pelo menos, tinha a decência de parecer
desconfortável segurando uma arma.
Mesmo assim, era uma arma, por isso Dorothy paralisou, uma das
mãos ainda apertando a adaga.
— Que tal me entregar isso? — disse o garçom.
Ela sentiu os cantos dos lábios estremecerem.
— Tenho certeza de que a gente pode chegar a um acordo.
— O único acordo em que estou interessado é aquele em que você
entrega o que está escondido na sua manga e anda, calmamente, por
esse corredor aqui, e eu não precise… atirar em você. — O garçom
indicou com a arma um corredor nos fundos, as bochechas ruborizando
lentamente. — Isso… isso parece bom pra você?
Os dedos de Dorothy se apertaram. Não conseguia enxergar uma
saída que não envolvesse uma luta explícita, o que alertaria todo mundo
no bar para o fato de que ela estava ali e provavelmente levaria pelo
menos outras vinte pessoas a ajudar o garçom. Não era uma
probabilidade que ela amasse. Seria melhor pegar aquele garoto
pequeno e nervoso sozinho e cuidar dele.
Tirou a adaga do casaco e a estendeu.
Ótimo. Então, estava desarmada.
O garçom a fez andar à frente dele, com a arma meio escondida na
jaqueta, de modo a não alertar os outros fregueses para o fato de que
alguma coisa estava acontecendo.
Ele provavelmente não quer se arriscar a perder a preciosa recompensa,
pensou Dorothy, com um risinho. Imaginou se sua prestidigitação
continuava boa como antes. Ao passar por uma mesa, pegou uma faca de
manteiga e a en ou dentro da manga, olhando para trás para ver se o
garçom tinha notado.
Não tinha. Ele parecia estar com o olhar grudado em sua nuca, e
quando ela se virou para olhá-lo, ele levou um susto e quase largou a
arma.
Nossa, pensou Dorothy, virando-se de novo. Aquilo seria
ridiculamente fácil. Quase se sentiu mal.
O metal encostado no braço dela estava frio. Uma faca de manteiga
não era exatamente uma arma, mas ela achou que poderia cravá-la na
perna do garçom baixinho. Talvez conseguisse fugir enquanto ele
berrava pela mamãe.
Ele a guiou pelo bar lotado e, em seguida, por um corredor estreito.
Franzindo a testa, Dorothy sentiu um arrepio de familiaridade. Será que
já não havia passado por ali?
Prendeu o fôlego enquanto o garçom parava diante de uma porta
fechada e se virava para ela.
— Olha — disse ele, coçando a nuca. — Eu tenho um negócio para
administrar, por isso… seria ótimo se pudéssemos ser discretos.
Dorothy sentiu a faca deslizar para a palma da mão e envolveu o
metal frio com os dedos.
— Sem problema — respondeu.
O garçom assentiu rapidamente e abriu a porta.
O olhar de Dorothy percorreu o cômodo. Por um momento, cou
chocada demais para reagir. Era o mesmo quarto onde havia acordado
um ano antes, ao pousar em 2077. A mesma cama, a mesma cômoda, o
mesmo espelho quebrado. Sentiu uma espécie de nostalgia e, por uma
fração de segundo, quase conseguiu ngir que o último ano não era uma
realidade, que tudo ainda estava para acontecer.
Ah, quantas escolhas diferentes teria feito! Era quase demais para
pensar.
E então o momento passou. Dorothy afastou o olhar do quarto e o
voltou para a perna do garçom, procurando um bom lugar para cravar a
faca. Não queria acertar uma artéria. O plano era distraí-lo, não matá-
lo. Ao contrário do que diziam os boatos, jamais havia matado alguém.
Levantou a faca…
E um homem saiu das sombras. Pareceu surgir do nada, a escuridão
afastando-se do rosto dele como óleo se separando da água, deixando
apenas a pele lisa e pálida e as sobrancelhas grossas.
Dorothy congelou, o coração falhando.
— Willis?
— Foi idiotice sua vir aqui — murmurou Willis.
A expressão dele era sombria, mas Willis não parecia sentir tanta
raiva quanto na noite anterior, na biblioteca. Passou por ela, o olhar
examinando rapidamente o corredor para garantir que ninguém tinha
seguido os dois. Então, segurou o braço dela e a puxou para o quarto
pequeno, fechando a porta.
Só então pareceu notar a faca que ela estava segurando. Levantou
uma sobrancelha.
— Sério?
— Bom, eu não sabia que ele era seu amigo — murmurou Dorothy,
pondo a faca na cômoda. — Ele foi meio enigmático.
— Eu não podia arriscar que alguém nos ouvisse — argumentou o
garçom, sentando-se na cama de solteiro.
A cômoda e a cama eram os únicos móveis dentro do quarto
pequeno, mas Dorothy sabia que o colchão era cheio de calombos e
cou satisfeita em permanecer de pé.
— Pode me chamar de Levi — continuou o garçom. — Sou amigo
de Willis e dos outros. Acho que você não lembra, mas eu estava aqui
quando Ash trouxe você, há algumas semanas. Fui eu que disse que você
podia descansar aqui atrás. Na época você estava… é… diferente. Não
tinha esse cabelo e o…
Levi apontou para o próprio rosto, depois cou vermelho e deixou a
mão baixar de novo para o colo.
— Levi é um cara legal — explicou Willis com a voz grave e
tranquila. — Pode con ar nele.
— Eu não posso con ar em ninguém. — Dorothy franziu a testa para
Willis. — Ou você não ouviu a transmissão pela TV agora mesmo? Mac
Murphy pôs a cidade inteira contra mim. Sou uma fugitiva.
Levi pigarreou.
— Na verdade, foi por isso que a gente pensou que talvez você
quisesse car aqui — retrucou Levi. — Você não vai ter segurança nas
docas.
Dorothy olhou para Willis.
— Você está me ajudando? Zora me deu a impressão de que vocês
não queriam ter mais nada a ver comigo.
— Ah, bom, essa parte não diz respeito a mim, exatamente — disse
Levi, parecendo meio sem graça enquanto cava de pé. — E preciso
voltar para o bar. Willis? Tudo bem por você?
Willis con rmou com a cabeça, mantendo o olhar em Dorothy.
— Acho que posso cuidar dela, se for preciso.
— Ou então, sabe, vocês dois poderiam tentar resolver isso sem
brigar. Podem acabar quebrando alguma coisa. — Levi cou na ponta
dos pés e deu um beijo no rosto de Willis. Virando-se de novo para
Dorothy, acrescentou: — Precisa de alguma coisa? Outra bebida, talvez?
— Estou bem — respondeu Dorothy. E, em seguida, ruborizando,
acrescentou: — E obrigada.
— Claro. Qualquer amiga do Willis… e coisa e tal. — Ele lhe
entregou a adaga. — Tente não en ar em ninguém, certo?
— Não posso prometer nada — respondeu ela, guardando a adaga.
— Bom, eu tentei.
E, com isso, Levi saiu para o corredor, fechando a porta em seguida.
Pela primeira vez, Dorothy notou que Willis parecia meio
desconfortável. Ele baixou os olhos, como se não conseguisse encará-la.
— Eu… é… agradeceria se você não contasse nada a Chandra sobre
mim e Levi — disse, passando um dedo sobre o lábio inferior. — Ela
tem uma queda pelo Levi há um tempo. Ainda espero que ela supere
isso.
Dorothy levantou as sobrancelhas.
— Minha boca é um túmulo. Chandra sabe que você está ajudando a
me esconder?
— Ela contou que você esteve na biblioteca. Achou que você tinha
um plano pra descobrir o que aconteceu com Ash. — Willis coçou o
queixo. — É verdade?
Dorothy engoliu em seco. Ela não tinha um plano. Tinha o início de
uma ideia para a metade de um plano. Mas não queria desapontar Willis
depois de ele tê-la ajudado.
— Estou… trabalhando nisso.
Willis a observava com os braços cruzados. Depois de um minuto, ele
assentiu.
— Bom, então. Vou deixar você cuidando disso.
Era o tipo de coisa que uma pessoa diria antes de sair do quarto para
passar um pouco mais de tempo com o namorado secreto. Dorothy
esperou que ele saísse, mas, em vez disso, Willis lambeu os lábios e
pigarreou.
— Mais alguma coisa? — perguntou ela.
Ele assentiu, parecendo chegar a alguma decisão, e se empertigou.
Dorothy recuou um passo, mesmo sem tomar a decisão consciente de
fazer isso, com o estômago se encolhendo de medo. Durante todo o
tempo em que havia conhecido Willis, nunca o tinha visto como uma
pessoa assustadora. Pelo menos ele nunca tinha tentado assustá-la. Ele
sempre tivera a aparência de um gigante gentil, uma pessoa grande que
jamais havia usado o tamanho para intimidar.
Mas, naquele momento…
Ele ocupava todo o espaço da porta, a cabeça praticamente raspando
no teto, e olhava para Dorothy sem nenhuma gentileza. A boca dele era
um corte reto e duro num rosto que parecia feito de granito, e os
braços… os braços dele tinham sido sempre tão grandes? Eram do
tamanho de cachorros. Era como se Willis tivesse dois pit bulls presos
no tronco.
Por um momento, Dorothy não conseguiu respirar.
— Estou ajudando porque acho que você veio aqui pra tentar
encontrar um modo de salvar a vida do Ash — disse Willis. — Se eu
descobrir que não é isso, se em algum momento parecer que você é a
razão de Ash estar morto, a nal de contas… Bom, nesse caso a gente vai
ter uma conversa muito diferente.
— En… entendido — Dorothy conseguiu murmurar com a voz
engasgando.
Willis a encarou por mais um instante, depois abriu a porta e foi
embora.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 14 DE SETEMBRO DE 2074
12H21
A OFICINA

Você deve ter percebido que faz alguns dias desde a última anotação. A culpa é minha. A
recuperação demorou um pouco mais do que eu esperava. Mas já consigo ficar sentado e parece
que recobrei o uso integral das mãos, por isso não posso reclamar.
Desnecessário dizer que meu último experimento não foi exatamente o grande sucesso que eu
esperava. Pude implantar a matéria exótica dentro do meu corpo e me alinhar com a fenda. Senti
uma espécie de… puxão, por falta de uma palavra melhor, como se alguma coisa estivesse me
arrancando…
Infelizmente, foi aí que tudo deu terrivelmente errado. Instantes depois de eu sentir o puxão
revelador embaixo do umbigo, minha pele começou a pinicar. A princípio a sensação era estranha,
mas não dolorosa. Desagradável, sem dúvida. Era como se todos os meus nervos estivessem
despertando ao mesmo tempo. Admito que imaginei se isso seria algum tipo de efeito colateral da
matéria exótica, por isso não reagi imediatamente à sensação e tentei me manter firme, por assim
dizer. Foi um grande erro.
Não deviam ter se passado mais do que dois ou três minutos até que a comichão desagradável
se transformasse numa queimação. Comecei a perder a sensibilidade nas extremidades, os dedos
das mãos e dos pés ficaram entorpecidos e eu perdi o controle das mãos. Foi aterrorizante.
E mais aterrorizante do que tudo, talvez, foi o fato de que eu não sabia exatamente como fazer
aquilo parar. Eu não estava dentro da fenda, e sim “alinhado com ela”, segundo as instruções de
Tesla, que eu tinha interpretado como sendo estar dentro da zona de subdução de Cascadia.
Estava ficando desesperado. Minhas mãos tremiam e minha pele parecia a ponto de pegar fogo,
por isso fiz a única coisa em que consegui pensar. Dei o fora da zona de subdução. Por sorte, meus
sintomas pararam imediatamente de progredir e consegui voltar à oficina sem que mais nada de
ruim acontecesse comigo. Minhas mãos e pés ainda estavam bem prejudicados, mas depois de
algumas semanas de descanso parecem ter voltado quase ao normal.
Nas últimas semanas, tive pouca coisa para fazer além de pensar.
Por que meu experimento deu tão errado? A única coisa em que posso pensar é que não injetei
a matéria exótica do modo certo. Quando estava construindo a Segunda Estrela, foi crucial colocar
a ME no veículo, de modo a penetrar na estrutura geral da máquina. Isso também deve ser
verdade quando se trata de injetá-la no corpo. Devo tê-la injetado no lugar errado. Ela não se
fundiu com meu corpo e não me protegeu da energia da fenda.
Parece que preciso voltar à estaca zero.
8

Dorothy passou o resto da noite enroscada na cama cheia de calombos.


Tinha encontrado um caderno velho e um toco de lápis numa gaveta da
cômoda e os usava para anotar tudo que conseguia lembrar dos dias
anteriores, desde que tinha visto Ash no baile do Fairmont até o
momento em que encontrou o barco sujo de sangue do lado de fora da
fenda.
Todas aquelas viagens ao passado… As reuniões que ela e Roman
tinham feito com Mac Murphy… As transmissões para a cidade…
Quando anotou tudo em que pôde pensar, ela se recostou, franzindo
a testa. Estivera ocupada naquelas semanas. Não poderia ter arranjado
tempo para um encontro secreto com Ash, mesmo se quisesse.
Claro que poderia, disse uma voz dentro da sua cabeça. Você fez isso.
Mordeu a extremidade do lápis, o olhar voltando às páginas do diário
do Professor espalhadas na cama.
Willis queria que ela bolasse um plano. Mas, até o momento, sua
única ideia implicava roubar uma coisa inestimável e muito bem
guardada por uma gangue maligna de ladrões para tentar um
experimento cientí co mortal que somente uma pessoa — talvez duas
pessoas — tinha conseguido realizar em toda a história.
Era loucura. Até pensar naquilo era loucura.
A vela que iluminava o quarto estava no nal. Com um suspiro,
Dorothy se levantou e a soprou. Mas continuou deitada na cama,
olhando para o teto, a mente girando.
Três horas. Foi o tempo que Dorothy passou tentando adormecer.
Mas não adiantava, sabia que não adiantava, por isso levantou da cama e
pegou o casaco. Precisava fazer alguma coisa. Qualquer coisa.
Abriu a porta do quartinho e espiou o corredor. Vozes distantes e
mais nada. Com cuidado para não deixar a porta ranger, fechou-a e foi
andando.
O luar se re etia na água escura. Dorothy teve o cuidado de
permanecer nos becos e nas docas laterais, o capuz escondendo o rosto,
aterrorizada com a possibilidade de ser vista. Cada barco fazia um
tremor de medo subir pelo pescoço, cada passante fazia seu coração
disparar.
Só seria necessária uma pessoa. Se uma pessoa vislumbrasse o cabelo
dela. Se uma pessoa reconhecesse o casaco, o rosto dela. Precisava ter
cuidado, mais do que nunca.
Depois de um tempo, o Fairmont surgiu diante dela, claro e
luminoso como sempre. Dorothy diminuiu o passo ao se aproximar, a
respiração presa na garganta. O prédio era lindo, mesmo naquelas
condições, mas Dorothy ainda se lembrava de sua aparência quando o
tinha visto no futuro, com Roman, quando toda Nova Seattle havia sido
destruída.
Era uma casca preta se projetando do gelo, um esqueleto do prédio
que havia sido. Ela não pôde deixar de estremecer ao lembrar. Se as
coisas continuassem como estavam, Nova Seattle caria em ruínas. O
Fairmont, junto com tudo e todos que estivessem perto do litoral, seria
destruído.
— Um problema de cada vez — murmurou para si. — Você pode
salvar o futuro depois de descobrir o que aconteceu com Ash.
Estremecendo, ela se apressou, passando por uma porta dos fundos.
Durante seu tempo no Cirko Sombrio, ela havia descoberto cada
passagem secreta e cada escada dentro do Fairmont. Estava na hora de
usar aquele conhecimento mais uma vez, esgueirando-se como uma
sombra nas profundezas do hotel e descendo pela escada dos fundos até
a porta que levava à garagem. Sabia, claro, que havia pouca chance de o
Cirko manter a Corvo Negro sem vigilância. Mesmo assim, não estava
preparada para o que viu ao abrir a porta da garagem.
Havia re etores acesos em todos os quatro cantos da garagem,
iluminando o espaço como um parque de diversões. Dorothy piscou e
deu um passo atrás. Parecia que todo o Cirko Sombrio estava cercando a
máquina do tempo, gritando e uivando. O barulho fazia os ouvidos dela
zumbirem.
O que está acontecendo aqui?
Escondeu mais o rosto com o capuz e tentou ao máximo se misturar
na multidão, abrindo caminho até o meio. Por sorte, ninguém pareceu
prestar atenção a ela.
As Aberrações tinham cercado a Corvo Negro, a última máquina do
tempo que existia. Dorothy cou olhando uma delas se separar do resto
e, em seguida, se virar de frente para as outras, com os braços erguidos
em triunfo. A multidão comemorou.
Dorothy empurrou o capuz para trás, só um pouco. Era Eliza.
Eliza era linda, se é que predadores podiam ser lindos, com olhos que
pareciam feitos de gelo, sobrancelhas grossas e a pele tão clara que era
quase branca. Dorothy cobriu o rosto com uma das mãos enquanto
Eliza passava por ela, subindo a curta escada retrátil da máquina do
tempo e entrando na cabine.
Dorothy sentiu um riso tentar escapar dos lábios. Eliza não podia
estar tentando fazer aquilo…
Um silêncio baixou sobre a multidão enquanto Eliza começava a
mexer nos mostradores do painel de controle. A máquina do tempo
emitiu uma espécie de chiado e deu um solavanco para a frente. Uma
nuvem de fumaça brotou do cano de descarga.
A multidão gemeu.
Por baixo do capuz, Dorothy comprimiu os lábios, contendo uma
risada. Aquele era o plano? Tentar pilotar, eles mesmos, a máquina do
tempo? Idiotas. Ela havia demorado quase um ano para aprender, e com
Roman ao lado, batendo no pulso dela sempre que estendia a mão para a
alavanca errada e apontando para os detalhes mais sutis das nuvens na
fenda, para saber quando sair. Mac era idiota se achava que alguém ali
conseguiria ao menos tirar a máquina do tempo do chão.
Eliza permaneceu vários minutos na cabine. Dorothy não conseguia
ver o que ela estava fazendo, mas ouviu xingamentos e, pouco depois, a
viu voltando para a garagem, batendo com força a porta da máquina do
tempo.
— É impossível! — gritou ela, enquanto vaias e gritos brotavam da
multidão. — Tem algum tipo de… truque nisso aí! Nem consegui virar
a chave!
Tente girá-la para o outro lado, pensou Dorothy, rindo. Era um detalhe
ín mo, mas isso também a havia confundido, o modo como a chave
precisava ser virada na direção de quem estava sentado no comando da
máquina, e não para o outro lado. Roman tinha dito que aquele era um
pequeno truque do Professor, projetado para retardar qualquer pessoa
que quisesse pegar a máquina do tempo sem permissão. Na estrutura da
máquina havia dezenas de sistemas de segurança semelhantes. Dorothy
nem tinha certeza de que conhecia todos.
As coisas não podiam estar indo bem, se o Cirko nem conseguia
descobrir como ligar aquela coisa.
— Não pode ser tão difícil assim! — rosnou uma voz familiar, e um
arrepio gelado subiu pela coluna de Dorothy. Ela se virou.
Mac Murphy saiu da multidão, com a mulher de preto deslizando
silenciosamente atrás. Ela atraiu o olhar de Dorothy, despertando sua
curiosidade. Era o mais próximo que ela havia chegado da estranha
desde que a tinha visto nas docas. Seus dedos estremeceram, querendo
agarrá-la e puxar seu capuz para trás para ver o rosto.
A mulher de preto era pequena e magra e tinha uma máscara na
cobrindo o rosto, um capuz puxado por cima do cabelo e luvas pretas
que iam até os cotovelos. A única parte da pele visível era o branco do
pescoço. Todo o resto estava escondido.
Dorothy sentiu um arrepio de familiaridade ao examiná-la. Por mais
impossível que parecesse, teve a estranha sensação de estar olhando para
si mesma.
Seria mesmo impossível? Sabia que tinha voltado no tempo. Talvez
tivesse cado, encontrando um modo de se in ltrar no Cirko e
recuperar seu posto de líder.
Mas por quê? Franziu a testa, revirando a pergunta na mente. Ela não
queria liderar a gangue outra vez, nem estar ao lado de Mac Murphy.
Então por que teria todo aquele trabalho, com a viagem no tempo, o
disfarce, as mentiras?
Virou-se de novo, vendo mais algumas Aberrações que tentavam
decolar com a Corvo Negro, sem sucesso. Trincou os dentes, nervosa. A
novidade de observá-los estava começando a se esvair. Eles não
demonstravam nenhuma intenção de sair de perto da máquina, e todo o
plano de Dorothy girava em torno de roubar o recipiente de ME de
dentro da cabine principal. Como faria isso com a Corvo Negro cercada
de Aberrações?
Mordeu o lábio inferior, frustrada.
E então percebeu…
Quinn Fox, assassina, canibal, líder do Cirko Sombrio, talvez não
tivesse como chegar até a ME. Mas Dorothy, golpista, ladra, sem dúvida
tinha.
Levou a mão à cabeça e tirou um grampo dos cabelos. Era um
grampo do seu tempo original, feito de prata sólida e — até o momento
— su cientemente forte para abrir qualquer fechadura sem se dobrar ou
quebrar. Teve o cuidado de guardá-lo no correr dos anos. Ele havia sido
útil muitas vezes no passado.
Enquanto a multidão estava distraída, foi até a parte de trás da
máquina do tempo, passando os dedos pelo metal frio até encontrar a
fenda de uma porta.
O compartimento de carga.
Dorothy riu. Ela o conhecia bem.
Olhando em volta para garantir que todo mundo estava prestando
atenção em Bennett — o último coitado que tentava pilotar a Corvo
Negro —, ela apoiou as costas no compartimento de carga e en ou o
grampo na fechadura. Trincou os dentes e o virou para a esquerda,
depois para a direita.
Demorou um momento para a fechadura ser acionada…
Pronto. Sentiu um estalo e fechou os olhos, com um sorriso
atravessando os lábios enquanto soltava o ar.
Ainda levo jeito.
Abriu a porta, virada de costas, e entrou, fechando-a de novo
rapidamente. Não tinha muito tempo. Tateou no escuro a parte de trás
do compartimento de carga até sentir as bordas do painel que a separava
da cabine principal. Encostou o ouvido na divisória e esperou até não
escutar nada além de silêncio. Então, mal ousando respirar, deslizou o
painel.
A cabine estava vazia. Soltou o ar com alívio e se ajoelhou, indo para
a frente.
O painel de controle interno era um dos elementos principais do
projeto da Corvo Negro. Dorothy tocou alavancas e botões até que o
painel se abriu, revelando um cilindro de vidro cheio de luz do sol
líquida. Então, uma sombra passou acima e a substância assumiu a cor e
a textura de aço. Um instante depois, era uma névoa azul girando em
redemoinhos.
Dorothy prendeu a respiração. Poderia car para sempre olhando a
substância estranha, sempre mutável, mas não tinha tempo para isso.
Precisava ir embora antes que outra Aberração subisse na cabine para
tentar pilotar aquela maldita coisa.
Movendo-se rapidamente, tirou o recipiente de matéria exótica da
nave e o en ou dentro do casaco. Em seguida, voltou pelo mesmo
caminho, recolocando o painel que separava a cabine do compartimento
de carga e retornando em silêncio para a garagem.
Parou por um momento, olhando em volta. Não havia ninguém a
observando. Todos estavam virados para a frente da garagem, querendo
ver quem seria o próximo idiota a tentar pilotar a máquina do tempo. O
recipiente de ME fazia um volume enorme dentro do casaco.
Um rapaz alto e magro levantou as mãos, destacando-se da multidão.
Dorothy não sabia quem era. Diferentemente do resto das Aberrações
do Cirko, ele não usava casaco preto. Usava uma jaqueta de aviador,
com o couro muito gasto e rachado. Dorothy paralisou. Sentiu um
arrepio atravessar o corpo.
— Ash?
Ela o olhou, a pele pinicando. Ele estava de costas, e Dorothy só via
o gorro de lã puxado na cabeça e os ombros.
Será que tanto ela quanto Ash tinham voltado no tempo até aquele
momento?
Não, disse a si mesma imediatamente. Não era possível: Ash jamais
poderia entrar num lugar lotado de Aberrações do Cirko sem ser
reconhecido.
No entanto, Dorothy não conseguia afastar os olhos dele. Ficou
olhando-o subir na cabine, mexendo com facilidade nos interruptores e
mostradores.
O rugido grave de um motor soou. Houve um clarão. Os pelos na
nuca de Dorothy se arrepiaram. Ele estava conseguindo. De algum
modo, estava fazendo a máquina do tempo funcionar.
Com um solavanco, a máquina do tempo saiu do chão e decolou.
Uma mistura de espanto e horror se revirou no peito de Dorothy ao ver
a máquina disparando pelas janelas da garagem, as Aberrações do Cirko
aplaudindo enquanto ela partia para o céu.
Dorothy permaneceu atônita, olhando a máquina do tempo
desaparecer. O piloto não notaria que a matéria exótica havia sumido até
tentar entrar na fenda. Então, a máquina do tempo começaria a se
sacudir, se desfazer e então — se ele não agisse rapidamente — seria
despedaçada pelos ventos malignos dentro do túnel do tempo.
Se ele fosse apenas uma Aberração do Cirko que tivesse encontrado a
jaqueta de Ash, isso seria bom.
Mas e se…
Dorothy balançou a cabeça, afastando o pensamento. Não podia ser
Ash, disse de novo a si mesma. Não sabia o que mais pensar. Quem mais
conseguiria pilotar a máquina do tempo?
De repente, a ME parecia gigantesca e evidente dentro do casaco.
Dorothy teve a sensação de que qualquer pessoa que olhasse saberia que
ela a havia pegado. Precisava sair dali.
Passou pelo meio das Aberrações do Cirko e foi rapidamente para os
fundos da garagem. Estendeu a mão para a porta…
E então, atrás dela: o estalo de uma pistola.
Dorothy sentiu o coração se encolher.
Afastou a mão da porta e se virou, vendo Eliza parada atrás, com a
pistola erguida.
— Velha amiga — Eliza deu um riso maligno. — O que a traz de
volta?
9

O nervosismo arrepiou os pelos da nuca de Dorothy. A boca dela se


encheu com o gosto de alguma coisa azeda.
Nem sempre ela e Eliza tinham se odiado. Ou pelo menos ela nem
sempre havia odiado Eliza. Na verdade, houve um tempo em que
Dorothy esperava que Eliza se tornasse uma espécie de aliada, talvez até
amiga. Naquele momento isso parecia idiota, mas as duas tinham sido as
únicas mulheres no Cirko Sombrio. Dorothy sempre havia achado que
as duas deveriam se ajudar.
Mas tinha descartado essas ideias meses atrás. Eliza era maligna e
cruel e parecia só desejar poder e mais poder. E, por motivos que
Dorothy jamais havia entendido totalmente, a outra a desprezava.
Dorothy comprimiu os lábios, pensando rápido. Apesar de tudo isso,
tinha de haver alguma coisa que ela pudesse dizer, algum modo de fazer
Eliza escutar a voz da razão.
O resto do Cirko ainda estava reunido perto da parede das janelas, do
outro lado, olhando a máquina do tempo diminuir de tamanho cada vez
mais no céu noturno. Ninguém tinha percebido a agitação perto da
porta dos fundos. Ainda havia tempo para se livrar.
— Eliza — Dorothy levantou as mãos lentamente para mostrar que
estava desarmada e não representava ameaça. — Você não precisa fazer
isso. Pode ngir que não me viu.
O canto da boca de Eliza se repuxou.
— E por que eu faria isso, raposinha?
Dorothy abriu a boca, mas descobriu que não tinha resposta. Não
tinha dinheiro nem poder, nada para suborná-la.
Rindo, Eliza pareceu perceber isso exatamente ao mesmo tempo. Ela
se virou e gritou:
— Mac! Parece que uma velha amiga veio visitar a gente.
Dorothy sentiu um músculo no maxilar se retesando enquanto Mac
Murphy se virava, os olhos se iluminando de alegria ao vê-la. Veri cou
se a ME roubada estava bem escondida no casaco. Estava. Graças a
Deus pelas pequenas bênçãos, pensou.
Mac se demorou, vindo para os fundos da garagem. Não fazia muito
tempo que tinha levado um tiro na perna — de Chandra, como
descobriu Dorothy — e, mesmo não precisando mais usar muletas,
ainda caminhava mancando, o joelho não se dobrando como deveria.
Ele tirou vantagem dessa de ciência, se demorando e andando
devagar pela garagem, fazendo-a esperar. As Aberrações do Cirko que
não estavam distraídas com a máquina do tempo voltaram a atenção
para Dorothy, curiosas para ver que coisas terríveis Mac havia planejado
para ela.
Dorothy se obrigou a manter o queixo erguido, os ombros para trás.
Não importando o que ele zesse, ela enfrentaria.
— Quinn. — Mac riu, deliciado. — Achei que você já deveria estar
na metade do caminho para o Centro.
Era uma provocação cruel. Mac tinha aliados nas fronteiras que
separavam os estados do Centro dos Territórios Ocidentais, mas devia
saber que Dorothy não tinha esses recursos. Sem uma máquina do
tempo, ela estava presa ali.
Ela se recusou a lhe dar a satisfação de con rmar isso.
— E não ver mais seu rostinho risonho? — disse ela, com um sorriso
tenso. — De jeito nenhum.
Mac gargalhou, um ribombo profundo na barriga que quase pareceu
genuíno.
— Eu deveria ter matado você há dias — disse ele quando terminou,
enxugando uma lágrima com o polegar. — Mas devo admitir que
sentiria falta desses nossos momentos juntos.
As Aberrações do Cirko estavam se reunindo num círculo frouxo ao
redor deles, bloqueando as portas, certi cando-se de que ela não tinha
como escapar. Dorothy sentiu um nervo estremecer no canto do olho
enquanto identi cava as poucas saídas, todas bloqueadas. Droga.
Mac tirou uma arma da cintura e a deixou pendurada,
preguiçosamente, numa das mãos. Dorothy sabia que era para parecer
uma ameaça, por isso se recusou a olhar.
— E por que você fez isso? — perguntou Mac, levantando uma
sobrancelha. — Quer dizer, voltou.
A matéria exótica parecia se avolumar embaixo do casaco, anunciando
a todo o Cirko Sombrio o que ela havia feito. Revirou o cérebro
procurando uma boa mentira, mas não encontrou nada.
— Eu… eu não tinha outro lugar para onde ir. — Sua voz falhou um
pouco enquanto as palavras saíam da boca, revelando até que ponto
eram verdadeiras.
Mac mordeu a parte de dentro da bochecha.
— É mesmo? Espera que eu acredite que planeja ser uma aliada el
de novo? — Ele olhou para as janelas dos fundos. — Não preciso mais
de você pra pilotar minha máquina. Portanto, que utilidade você tem
pra mim? Você já provou, mais de uma vez, que não é de con ança.
O estômago de Dorothy revirou. Não havia como questionar isso.
— O que você vai fazer comigo?
O sorriso dele se alargou, mostrando dentes rachados e manchados
de nicotina.
— Tenho algumas ideias. — Para as Aberrações, ele acrescentou: —
Levem ela pra cima. Já vou me juntar a vocês.

Dorothy sentiu náuseas enquanto subiam a escada. O lento arrastar dos


passos no carpete era o único som nos corredores. Um odor de mofo
subia do chão, fazendo seu nariz coçar. Ela achava que jamais superaria
o cheiro daquela cidade, o modo como a umidade perpétua deixava tudo
fedendo a podridão.
Mac Murphy tinha ocupado a Suíte Olímpica do hotel. Com cento e
quarenta metros quadrados, ela ocupava todo o último andar e era mais
ou menos do tamanho de uma casa. Diferentemente dos andares de
baixo, aquele era claro, iluminado por castiçais com velas que pingavam
formando grossas poças de cera no carpete. Havia Aberrações dos dois
lados da porta dupla que levava à suíte.
Algo na cena incomodou Dorothy.
— Eu preciso de guardas?
Eliza lançou-lhe um olhar estranho e a escoltou para dentro do
quarto. Dorothy presumiu que ela iria embora, mas Eliza cou imóvel,
com uma sobrancelha erguida.
— Que foi? — perguntou Dorothy. — Está esperando uma gorjeta?
Eliza pegou uma chave no bolso.
— Recebi ordem de trancar você.
— É mesmo? — A voz de Dorothy saiu num tom divertido.
— A ordem veio diretamente do Mac.
Dorothy soltou um riso agudo. Não conseguia se lembrar de um
tempo em que uma fechadura simples havia bastado para mantê-la em
algum lugar.
Relutante, entrou no quarto e cou em silêncio enquanto Eliza
trancava a porta. Então houve um estalo de metal contra metal e ela
cou sozinha.
O nervosismo formigou em seus dedos enquanto ela se virava,
observando o espaço. Viu que Mac tinha começado a juntar objetos que
ela e Roman tinham trazido do passado. Uma bola de beisebol do
primeiro campeonato vencido pelos Cubs tinha rolado de encontro à
cômoda. Uma taça de vinho do Titanic estava ao lado da mesinha de
cabeceira, e, no momento, era usada como cinzeiro. O baixo que
Dorothy havia roubado do camarim do primeiro show dos Beatles, em
Liverpool, estava caído no chão, perto da parede oposta, em pedaços.
Não estava assim antes. Mac devia tê-lo arrebentado.
Com uma careta, Dorothy afastou o olhar dos tesouros, dizendo a si
mesma que nada daquilo importava mais. Se os tivesse deixado no
passado, teriam sido destruídos pela devastação do tempo, de qualquer
modo. Aquilo não era pior.
Ela precisava trabalhar depressa.
Tirou a ME de dentro do casaco, os dedos tremendo enquanto
desatarraxava a tampa do recipiente. A matéria brilhava, estranha como
sempre. Ela não podia correr o risco de perder nem um pouco,
principalmente porque restava apenas um suprimento muito pequeno
no mundo. E não tinha certeza da quantidade necessária para aquele
pequeno experimento. O Professor, irritantemente, não tinha sido
muito especí co nos cálculos.
Isso não é bom sinal, sussurrou uma voz na sua cabeça, mas Dorothy a
silenciou. Que outras opções existiam? Simplesmente precisaria fazer
com que a coisa funcionasse.
Entrou no banheiro da cobertura e fechou a porta, dando um pulinho
quando ouviu a fechadura estalar. Tateou procurando o interruptor —
sucesso. Lâmpadas elétricas se acenderam, re etindo-se no mármore
branco e nos ladrilhos pretos. Deveria saber que Mac colocaria
eletricidade em seus aposentos assim que fosse possível.
Soltando o ar com força, pôs o recipiente na bancada e encarou os
próprios olhos no espelho acima da pia.
Estava pavorosa. O cabelo desgrenhado depois de uma noite ao ar
livre e precisando muito ser lavado, o rosto manchado de terra e sujeira.
Um sorriso nervoso repuxou seus lábios. Era assim que desejava se
encontrar com Ash depois de tanto tempo? Imunda? Seu olhar vagou
até o box do chuveiro e ela se pegou desejando ter tempo de tomar
banho.
Passos do lado de fora da porta do quarto a deixaram tensa. Não
sabia quanto tempo tinha até que Mac viesse aqui em cima fazer… o que
quer que planejava. E não sabia quanto tempo levaria para isso
funcionar.
— Vamos lá — murmurou, soltando a respiração.
Tirou a adaga de Roman de dentro do casaco e pegou um pouquinho
de matéria exótica na ponta da lâmina.
Parecia uma substância escura que pingava. Então, um instante
depois, era uma gosma verde grudada no metal. Depois, era gasosa,
desaparecia no ar. Então era sólida como gelo.
Piscou e desviou os olhos. A mudança constante fazia um nervo perto
da sua têmpora latejar. Empurrou o casaco para o lado, revelando a pele
branca e fria do abdômen.
A adaga tremeu em sua mão.
Dorothy respirou fundo…
DIÁRIO DO PROFESSOR — 21 DE SETEMBRO DE 2074
08H15
A OFICINA

Nos últimos dias, revisei de novo e de novo as anotações de Tesla para ver o que posso ter
deixado escapar. Tenho algumas teorias, mas a mais lógica é que injetei a matéria exótica no lugar
errado.
Tesla postulou que, para a ME se integrar com o corpo da pessoa, é preciso injetá-la
diretamente na aorta. Isso faz sentido, porque a aorta é a artéria responsável por levar o sangue
do coração ao resto do corpo, conectando-se a todas as outras artérias principais. Seu trabalho é
distribuir o sangue oxigenado. É razoável supor que, se você injetasse matéria exótica na aorta, ela
se espalharia por todo o corpo, como acontece com o sangue oxigenado. Certo?
Bom, essa é a teoria. Não sou médico, sou físico, e estou trabalhando muito fora da minha zona
de conforto. Sei que é incomum medicamentos serem injetados em artérias, e não em veias, mas
preciso confiar que Tesla tinha motivos para especificar a aorta como o local ideal para a injeção,
especialmente porque ela é muito mais difícil de ser localizada do que uma veia próxima da
superfície. A única opção que tenho é tentar de novo e ver se, dessa vez, posso fazer com que a
coisa funcione.
Tesla incluiu uma espécie de “mapa” do corpo humano junto com o resto das anotações, mas
dessa vez vou usar as ilustrações mais modernas que puder encontrar. Peguei emprestado um livro
de Chandra e estudei o corpo humano até encontrar o melhor local para tentar uma segunda
injeção. De novo, o rompimento da aorta é uma preocupação. Mas estou procurando não pensar
nisso. Lá vou eu.
Certo! A segunda injeção parece ter sido bem-sucedida. Tive a mesma sensação estranha, de
formigamento, da primeira vez em que tentei, e até agora não houve nenhum rompimento da
aorta. Isso é um bom sinal.
Agora é hora de voltar à zona de subdução de Cascadia e ver se, dessa vez, minha missão será
bem-sucedida.
10

Os dedos de Dorothy tremiam. A adaga estremeceu e caiu ruidosamente


na pia. A matéria exótica que estivera grudada na lâmina desapareceu
numa névoa iridescente que cheirava, de modo estranho, a fumaça de
fogueira.
Droga. Ela soltou o ar e seus olhos se fecharam bruscamente. Achou
que não conseguiria fazer aquilo. Era aterrorizante demais, arriscado
demais. Tinha passado o dia anterior lendo as páginas do diário do
Professor — páginas que continham detalhes sinistros, viscerais, de
todas as maneiras possíveis de a experiência dar errado.
A pele do corpo e das mãos queimando e sendo arrancada, os pés
entorpecidos e inúteis. Para não mencionar a morte…
O Professor tinha chegado perigosamente perto dessas complicações.
E estava usando ilustrações médicas para encontrar o local exato da
aorta, além de uma pistola especial que havia construído usando
esquemas desenhados por uma das mentes cientí cas mais brilhantes de
todos os tempos. Ao passo que ela só tinha uma adaga que nem fora
esterilizada de modo adequado.
E mesmo assim ele errou na primeira vez em que tentou aplicar a
injeção. Ela não tinha a mínima chance.
— Escondida, raposinha? — A voz de Mac veio do outro lado da
porta do banheiro, fazendo Dorothy estremecer.
Ela estava perdendo sua vantagem. Nem tinha ouvido ele entrar no
quarto. Com as mãos tremendo, tampou rapidamente o recipiente e o
guardou, junto com a adaga de Roman, no espaço embaixo da pia do
banheiro. Sabia que Mac iria revistá-la, e esconder aquelas coisas
poderia mantê-las longe dele por tempo su ciente para ela bolar um
plano. Esperava.
Tinha acabado de fechar o armário quando a porta do banheiro se
abriu com um estrondo e duas Aberrações do Cirko, vestidas de preto,
apareceram. Dorothy levantou os olhos na direção do espelho e viu
Donovan e Eliza parados atrás dela.
Seus ombros se retesaram. Não via Donovan desde a noite em que
ele a havia traído. Segundo Mac, ele tinha feito isso em troca de um
pêssego, imagine só. Dorothy ainda não conseguia decidir se estava
horrivelmente ofendida por isso ou se sentia pena dele. O quão triste
deveria ser a vida de uma pessoa para que ela traísse alguém em troca de
uma fruta?
Ela resistiu quando cada um deles agarrou um dos seus braços (mais
para manter as aparências do que qualquer coisa, já que ela não poderia
deixar que esses dois contassem aos outros que a grande Quinn Fox
tinha cedido facilmente), mas eram dois e estavam armados, e ela era
apenas uma. Em pouco tempo, conseguiram arrastá-la de volta para a
área principal da cobertura e a empurraram no chão.
Seus joelhos e palmas rasparam na madeira dura com força su ciente
para ela ter certeza de que caria com hematomas de manhã. Na
posição em que estava, só conseguia ver as botas de Mac, pretas e
recém-engraxadas. Uma visão distorcida do próprio rosto se re etia no
couro.
Afastou o olhar e, cautelosamente, cou de joelhos. Então, na voz
mais agradável que conseguiu, disse:
— Mac, querido. Eu estava começando a achar que você tinha se
esquecido de mim.
Mac resmungou. Seu rosto achatado, de sapo, estava quase sempre
retorcido numa expressão desagradável, vagamente constipada, só que
naquele momento ele parecia ainda mais irritado do que o usual.
Provavelmente havia esperado que ela chorasse ou implorasse. Dorothy
adorou o fato de não ter lhe dado tal prazer.
— Donovan? — grunhiu ele. — A sacola.
A sacola? Dorothy sentiu os nervos formigarem. O que quer que fosse
a sacola, sabia que não podia ser boa coisa. Esforçou-se para não
transparecer o medo que sentia enquanto Donovan atravessava o quarto,
carregando uma bolsa de lona até a cama. Dorothy pensou ter visto os
músculos dos ombros dele se retesando enquanto ele abria o zíper da
sacola e olhava para o que havia dentro.
Quando Donovan falou de novo, sua voz saiu engasgada:
— Senhor?
— Deixe aí por enquanto. — Virando-se de volta para Dorothy, Mac
disse: — Acredite, princesa, quero usar o que está nessa sacola. — Seus
lábios grossos se retorceram. — Na verdade, quero muito usar, mas
pensei em ser cavalheiro e lhe dar a chance de abrir o jogo. — Ele fez
uma pausa, piscando, antes de acrescentar: — Há algo que queira contar
ao resto do grupo?
— Abrir o jogo? — Ela se esforçou para manter a expressão de
inocência. Mac devia estar falando da matéria exótica. O piloto devia ter
voltado assim que descobriu que ela havia desaparecido.
Não havia mais ninguém a segurando, por isso Dorothy se levantou e
sentou-se na beira da cama, tentando parecer que estava apenas se
preparando para uma conversa desagradável. A sacola estava no canto de
sua visão, mas ela não se permitiu olhar, recusando-se a dar tamanha
satisfação a Mac.
Mas isso não a impediu de imaginar o que poderia haver dentro.
Alguma ferramenta misteriosa com a qual ele planejava torturá-la?
Ou…
Não, quase com certeza seria a tortura. Sua garganta se apertou
subitamente.
— Não faço ideia do que você está falando — disse. — Eu senti falta
de todos vocês, por isso voltei. É simples.
— Não sou idiota, Fox — reagiu Mac.
— É óbvio que não — disse Dorothy sem convicção, deixando o
olhar percorrer o quarto.
Donovan e Eliza anqueavam a porta e ela sabia que havia mais dois
guardas do outro lado. O único outro modo de sair era pela janela. O
que era possível, ela sabia por experiência. Mas tremendamente
desagradável.
— Mesmo assim, infelizmente não tenho ideia do que você está
falando — respondeu com um sorriso tenso.
Max a examinou, a boca se mexendo como se estivesse mastigando
uma haste de capim. Depois de um longo momento, ele cuspiu no chão.
Disse:
— Quer mesmo que eu acredite que vocês dois não estão trabalhando
juntos?
Vocês dois? Dorothy se empertigou, com o interesse estimulado.
Pensou no rapaz que tinha visto entrar na máquina do tempo, usando a
jaqueta de Ash, o que tinha conseguido pilotar a Corvo Negro.
Ash, pensou de novo. Esperou pela outra voz, a que dizia que isso era
impossível, que Mac teria reconhecido Ash. Mesmo se, de algum modo,
Ash tivesse conseguido passar pelas outras Aberrações, Mac veria o rosto
dele e saberia.
Dessa vez, a tal voz cou em silêncio. A nal de contas, Dorothy havia
mantido sua verdadeira identidade em segredo durante um ano. Ash
poderia bolar um modo de fazer isso por alguns minutos.
Sentiu-se inclinando o corpo para a frente, quase como se pudesse
arrancar as respostas de Mac usando força física. Precisou se empenhar
muito para manter a voz casual.
— Com quem você acha que estou trabalhando?
— Aquele garoto que roubou minha máquina do tempo. — Mac
pegou uma cadeira perto da mesa, no canto, e a puxou pelo quarto.
Sentou-se apoiando os cotovelos nos joelhos. — Vocês dois estavam
trabalhando juntos, certo?
Dorothy cou em silêncio por um momento, a língua passando de
leve pela parte de trás dos dentes. Não era tão louco pensar que aquele
rapaz era Ash. Havia poucas pessoas no mundo que sabiam pilotar a
máquina do tempo. Roman estava morto, e ela… bom, ela estava
sentada ali. Então quem restava?
Willis sabia pilotá-la. Ela o tinha visto fazer isso uma vez, no Forte
Hunter. Mas Willis era bem maior do que o garoto que Dorothy tinha
visto.
Engoliu em seco.
— Alguém roubou sua máquina do tempo? — perguntou, com a
maior inocência.
Mac fungou.
— É melhor você tomar cuidado com seu tom de voz.
Dorothy sabia que ele tinha dito isso como uma ameaça (aquela
sacola ainda estava no campo de visão dela), mas um sorriso surgiu.
— Infelizmente não consigo pensar em nada para ajudar você.
Desculpe.
Uma sombra passou pelo rosto de Mac. Ele engoliu em seco.
— Revistem ela — ordenou com os dentes trincados.
Eliza praticamente pulou diante dessa chance. Atravessou o quarto
em dois passos largos e correu as mãos pelo casaco de Dorothy,
en ando-as nos bolsos.
Você não vai achar nada, pensou Dorothy, presunçosa, apenas alguns
segundos antes de Eliza puxar a mão de volta, segurando uma coisa
branca com as pontas dos dedos.
— O que é isso, raposinha? — perguntou Eliza.
Em seguida abriu a mão, revelando um maço de papéis dobrados.
Dorothy sentiu o estômago embrulhar. As páginas do diário do
Professor. Estupidamente, havia deixado as folhas en adas na manga em
vez de guardá-las junto com as coisas que não queria que Mac e os
outros descobrissem. E Eliza estava com elas. Não havia nada que
pudesse fazer para impedi-la de ler o que sem dúvida tinha sido a maior
descoberta do Professor.
Como podia ter sido tão idiota?
Eliza desdobrou as páginas, com os lábios se curvando.
— Páginas de um diário? Você andou escrevendo um diário, Quinn?
Que amor!
Dorothy precisou se esforçar para manter o sorriso. Naquele
momento, sua única esperança era que Eliza não percebesse como
aquelas páginas eram importantes.
Jogue isso fora, rezou em silêncio. Não é relevante.
— Na verdade, andei escrevendo um diário, sim. — Dorothy se
esforçou ao máximo para manter a voz despreocupada, tentando dar um
sorriso hesitante. — Querido diário, hoje uma garota horrível com
quem eu trabalhava resolveu falar demais, por isso eu cortei…
Eliza acertou as costas da mão, com força, no rosto de Dorothy. Os
nós dos dedos bateram na bochecha, esmagando a parte interna da boca
contra os dentes. A cabeça de Dorothy foi jogada para o lado e a dor
disparou, subindo pelo pescoço. Durante alguns minutos, ela viu
estrelas.
Quando sua visão clareou, Dorothy mexeu o maxilar e cuspiu,
encolhendo-se ao ver o sangue cair no chão. Eliza quase havia arrancado
um dente.
De qualquer modo, a distração não tinha funcionado. Eliza estava
olhando as páginas do diário, concentrada.
— Parece uma coisa pela qual o senhor pode se interessar — disse
ela, balançando as páginas do diário na direção de Mac.
Dorothy sentiu um pânico tomando conta dela. Era como um
pesadelo. As coisas cavam cada vez piores e não havia nada que ela
pudesse fazer, não tinha como impedir.
Mac atravessou o quarto e pegou as páginas das mãos de Eliza.
Houve um momento de silêncio enquanto ele lia, os lábios se movendo
para tentar entender as palavras mais compridas e difíceis.
Depois de vários instantes, ele olhou para Dorothy com uma
sobrancelha arqueada. Havia no rosto dele uma expressão que Dorothy
só poderia descrever como júbilo. De novo, ela havia feito aquele
homem terrível feliz.
— Isso é verdade? — perguntou ele, indicando as páginas.
Quando Dorothy não respondeu, Mac chegou mais perto e segurou a
gola do casaco dela com a mão carnuda. Estava com o rosto próximo, e
Dorothy sentiu o fedor do bafo. Fumaça de cigarro e qualquer coisa que
ele havia comido no almoço. Parecia atum.
— Quer dizer que eu já poderia estar viajando no tempo, sem uma
porcaria de um piloto, sem uma máquina do tempo, apenas en ando um
pouco dessa… dessa coisa no meu corpo?
— Me dá uma adaga e a gente pode experimentar, se você quiser —
respondeu Dorothy, com os dentes trincados.
Mac soltou-a e deu um passo súbito para trás, a empolgação
brilhando nos olhos pretos.
— Foi assim que ele fez, não foi? O seu amigo Asher. Foi assim que
ele chegou ao futuro com a gente. Ele descobriu essa coisa, não é?
— Você precisará perguntar a ele — respondeu Dorothy.
Mac sorriu para ela.
— Ah, certo. Estou vendo como vai ser. Você está com raiva porque
descobri o seu segredinho, por isso não quer mais falar. Entendi. Por
sorte eu trouxe uma amiga. Achei que ela poderia fazer um serviço
melhor para soltar sua língua.
Mac cou de lado e a atenção de Dorothy se afastou dele, pousando
na mulher de preto, parada junto à porta.
A respiração de Dorothy cou presa na garganta. A voz saiu
estarrecida.
— Você.
— Achei que era hora de vocês duas se conhecerem — disse Mac. —
Quinn Fox, esta é a minha nova sócia, Regan Rose.
Regan passou por ela, como uma sombra. Seus pés não faziam
barulho ao encostar no carpete desbotado, mas o casaco balançava com
o movimento, o tecido farfalhando suavemente. Era um casaco
antiquado, algo de antes da inundação. Comprido, feito de lã grossa,
com mangas caídas e um capuz de bruxa de contos de fada escondendo o
rosto.
Dorothy olhou para Regan.
— Não conheço você.
— Isso não me surpreende.
Regan não pareceu preocupada. Dorothy notou que havia sangue nas
mãos dela. Ela não escondia isso. Na verdade, ela puxou as mangas para
cima, mostrando a mancha vermelha na pele clara.
Bom. Então ia ser tortura.
Dorothy precisou se esforçar muito para não estremecer.
11

Regan olhou dentro da bolsa de lona em cima da cama do quarto do


hotel.
— Quer ver minha coleção?
Ela não esperou resposta e começou a tirar instrumentos de
aparência antiga da bolsa, en leirando-os na cama. Olhando, Dorothy
entendeu que aquilo fazia parte da tortura, a antecipação do que viria.
Primeiro, um par de algemas. As algemas propriamente ditas eram
tornos presos em pequenas alavancas de metal, e Dorothy soube, apenas
com um olhar, como elas funcionariam. Já visualizava Regan torcendo a
alavanca de modo que os tornos esmagassem lentamente os ossos do seu
pulso, inutilizando as mãos. Conteve um tremor.
Depois, uma máscara de ferro. A parte interna da máscara tinha
espinhos feitos para cravar bochechas, pele e lábios.
Em seguida, um chicote de couro, e então correntes e outros
instrumentos que Dorothy não conseguiu identi car exatamente —
objetos de metal grosseiros cobertos por bordas serrilhadas e pontas.
Um no bastão de madeira. Grampos. Parafusos.
O medo contra o qual Dorothy estivera lutando a golpeou numa
onda. Ela tentou respirar, mas sua garganta se fechou e o oxigênio foi
direto para a cabeça, deixando-a tonta.
Calma, disse a si mesma, com os lábios comprimidos. Obrigou-se a
respirar com rmeza pelo nariz. Não deixe que eles vejam seu medo.
Regan examinou os instrumentos por um longo tempo antes de
escolher o bastão. Era comprido e tinha o diâmetro menor do que o de
um lápis. De longe, era o objeto de aparência mais inocente que ela
havia retirado da pequena sacola de truques, mas mesmo assim Dorothy
sentiu um arrepio subir pela coluna.
— Sabe o que é um bastinado? — Regan levantou o bastão para a luz,
e uma linha prateada surgiu ao longo da borda. — Ele foi usado em
algumas das formas de tortura mais antigas. A gente apenas tira os
sapatos e as meias da pessoa e golpeia os pés descalços com isso.
Regan demonstrou batendo com o pequeno bastão na palma da
própria mão enluvada. O instrumento fez um som parecido com o de
um chicote, golpeando o couro.
— É muito simples — continuou ela, rindo por trás da máscara na.
— E, ainda assim, muito e caz. Na verdade, o primeiro registro do uso
de um bastinado na Europa data do ano 1537. Na China ele é usado
desde 960.
Dorothy engoliu em seco. Com apenas uma olhada para o bastão ela
pôde praticamente sentir a madeira acertando a carne macia das solas
dos pés. Imaginou como a pele poderia se rasgar, como o sangue
escorreria entre os dedos.
Lambeu os lábios para impedi-los de tremer.
— Eu já disse que não sei de nada. Bater essa coisa nos meus pés não
vai mudar isso.
Regan olhou na direção de Eliza e Donovan e assentiu uma vez.
Algum instinto animal profundo dentro de Dorothy ganhou vida. Ela
não se importava mais em parecer apavorada. Então, saltou da cama e
deu um passo lento para trás, na direção da porta…
Os outros foram rápidos demais. As mãos de Eliza seguraram os
ombros dela, mantendo-a no lugar.
Dorothy se sacudiu.
— Me solta!
Mas Donovan já estava em cima dela, as mãos apertando seus pulsos.
Dorothy notou que as palmas das mãos dele estavam suadas. Aquele
suor, mais do que qualquer coisa, lhe mostrou como aquilo era real. Até
Donovan estava com medo, e não era ele que seria torturado.
Dorothy inspirou, a respiração estremecendo ao descer pela
garganta, como um soluço. Nunca tinha sido torturada. Não achava que
seria boa nisso.
Pensou que poderia soltar as mãos se pegasse Donovan desprevenido,
se sacudisse o corpo su cientemente rápido. Mas ainda precisaria passar
por Eliza, Regan e Mac. Não adiantava.
— Tire os sapatos dela — ordenou Regan, ainda examinando o
bastão, como se procurasse algum defeito.
Dorothy foi obrigada a se deitar na cama e suas botas foram retiradas
violentamente. Estremeceu quando o ar frio tocou a pele nua, mas pelo
menos conseguiu se controlar o su ciente para não implorar ou chorar.
Não daria tamanha satisfação àquelas pessoas.
Regan encostou o bastão nos arcos dos pés de Dorothy, que pôde
sentir cada lasca de madeira na pele. Seus músculos se retesaram,
esperando que o bastão fosse afastado e voltasse em um golpe.
Em vez disso, Regan se inclinou.
— Me disseram que você tem amigos — murmurou, su cientemente
baixo para Dorothy ter de se esforçar para ouvi-la. — Pessoas com
quem se importa.
Dorothy fechou os olhos.
— Não.
— Chandra, Willis e Zora. É verdade? — Ela estalou a língua. —
Seria uma pena se acontecesse alguma coisa com eles.
Quando Dorothy não disse nada, Regan moveu o pulso rapidamente,
acertando o bastão em seu pé com um estalo agudo. A madeira cortou a
pele e Dorothy se encolheu, soltando um ganido curto, aterrorizado.
Mas não doeu tanto quanto ela esperava. Regan devia estar guardando o
pior para mais tarde.
— Devo ir pegá-los? — perguntou Regan. — Ou você vai me contar
o que eu quero saber?
E se inclinou mais para perto, até que seu rosto mascarado estivesse a
apenas alguns centímetros do de Dorothy. Dorothy não conseguia ver
nada da aparência dela, a não ser dois olhos pretos e sem emoção.
Regan baixou a voz até estar ronronando, como se falasse com uma
pessoa amada.
— Com quem você está trabalhando, raposinha?
Dorothy fechou a boca e em seguida a abriu de novo.
— Estou trabalhando… com a princesa Mary — conseguiu dizer,
ofegante.
Os olhos pretos de Regan se estreitaram por trás da máscara. Ela
recuou o braço e Dorothy se preparou para a sensação da madeira
áspera contra os pés…
E então a porta do quarto se abriu com um estrondo e uma bala
passou assobiando junto do seu rosto, su cientemente perto para ela
sentir o calor da pólvora na pele. Donovan e Eliza a soltaram, xingando
enquanto procuravam alguma proteção e pegavam as armas. Dorothy só
teve tempo de levar uma das mãos ao rosto antes que o ar se enchesse de
disparos.
Droga. Ela rolou para fora do colchão e se agachou no espaço estreito
entre a cama e a parede, com o coração martelando no peito. Houve
uma saraivada inicial de balas, e depois um silêncio frágil baixou sobre o
quarto como uma camada de cinzas.
Dorothy se preparou, esperando. Não sabia quem estava no corredor
ou o que queriam dela. Para ser honesta, não tinha certeza de que queria
saber. Aquele lugar, escondido atrás da cama, estava bom, muito
obrigada. Fechou os olhos e soltou o ar pela boca, em silêncio. Pelo
menos ali ninguém estava atirando nela ou torturando-a.
Mas um minuto se transformou em dois, e então — maldição — sua
curiosidade a dominou. Ela era Quinn Fox, pelo amor de Deus. Não
podia ser encontrada agachada atrás da cama, escondida feito uma
criança.
Soltando o ar, lentamente, saiu de trás da cama…
O rapaz da garagem estava no meio do quarto, de costas para ela. De
onde estava, Dorothy conseguia ver bem o couro gasto da jaqueta, o
tecido liso da calça e nada mais. O cabelo dele era escuro, muito mais do
que o de Ash, e ele parecia usá-lo em tranças.
Sem conseguir mais nenhuma informação sobre ele, Dorothy
permitiu que seu olhar identi casse as outras pessoas no quarto. Eliza
estava agachada atrás de uma cadeira, e por trás da porta do banheiro
Dorothy viu os bicos das botas que, se ela precisasse adivinhar, diria que
eram de Donovan. Mac e Regan não estavam à vista.
Um movimento atraiu o olhar de Dorothy. Ela levantou os olhos e
viu que o rapaz tinha se virado para ela.
Só que não era um rapaz. Era Zora.
Os olhos de Dorothy se fecharam. Claro. O Professor Walker era pai
de Zora. Ela havia ajudado a construir a máquina do tempo. Saberia
pilotá-la.
Quando abriu os olhos de novo, Zora estava encarando-a.
— Abaixe-se — disse ela com calma.
Antes que Dorothy pudesse reagir, o piso diante dela explodiu. Ela se
arrastou para trás, xingando. Houve outro som de tiro — este passou
assobiando perto do rosto — e então Dorothy viu Mac sair
engatinhando do outro lado da cama, tentando ir para a porta. Ele
estava a menos de um metro de distância quando Zora saltou,
prendendo-o no chão. Mac tossiu com força e tentou se levantar, mas
Zora ainda estava montada nas costas dele, um dos braços apertando o
pescoço e a base do crânio. Mac jogou a cabeça para trás, acertando o
rosto dela. Zora grunhiu, com um borrifo de sangue voando da boca.
— Comece a correr, sua idiota! — rosnou ela. Ainda estava com um
dos braços apertando as costas de Mac.
Dorothy levantou em um pulo…
E então Eliza estava em cima dela, passando um braço em volta de
seu pescoço e tentando arrastá-la para trás. Dorothy se jogou para o
lado, fazendo a outra rolar pela cama e se chocar contra a parede oposta.
Estava vendo estrelas e seus braços e suas pernas pareciam feitos de
geleia, mas se obrigou a car em quatro apoios, piscando. Precisava de
armas. Precisava…
Ah, meu Deus. A matéria exótica.
Dorothy se arrastou para o banheiro, ignorando os disparos cruzados
acima da cabeça. Abriu a porta e Donovan soltou um grito surpreso.
— E aí? — Dorothy assentiu para ele.
Antes que Donovan pudesse reagir, ela abriu a porta do armário
embaixo da pia e pegou a matéria exótica e a adaga de Roman.
— Tenha uma bela noite — disse Dorothy para Donovan.
De repente, Zora estava atrás dela, segurando seu braço e pondo-a de
pé, dizendo:
— Vamos. Ou acha que vou segurar seus inimigos para sempre?
As duas saíram para o corredor, sem perder tempo para ver se
estavam sendo seguidas.
— Por aqui! — gritou Dorothy.
Ela desceu pela escada dos fundos o mais rápido que seus pés podiam
levá-la. Em seguida, as duas passaram pela cozinha do hotel e saíram por
uma porta de serviço que, por acaso, ela sabia que não era mais usada.
Ela sabia que havia uma doca precária nos fundos, mas sentiu o
coração se encolher quando passou pela porta e saiu ao ar frio.
A noite estava com mais névoa do que ela esperava, e uma grossa
cobertura de nuvens tinha se esgueirado sobre as estrelas e a lua. Não
estava somente escuro, estava um breu, uma escuridão oleosa. Não dava
para enxergar nada. Para onde iriam?
Um farol se acendeu, rompendo a escuridão.
— Ali está a nossa carona. — Zora passou pela porta atrás dela. —
Cuidado com a cabeça.
Dorothy se abaixou um segundo antes que uma Aberração do Cirko,
que ela não reconheceu, saísse para a doca atrás das duas. Mac devia ter
chamado reforços.
Zora disparou, provocando uma explosão de madeira e água em volta
delas. Dorothy engoliu em seco e recuou um passo. Apertou com mais
força a adaga de Roman.
A Aberração se levantou, sacando a arma. Zora disparou outra bala e
a acertou no ombro, jogando-a para trás. O sujeito gemeu e caiu de
joelhos enquanto outros três apareciam atrás. As duas estavam em
menor número.
Zora atirou mais três vezes, sem acertar em ninguém, mantendo-os
recuados.
— Cadê o nosso barco?
Dorothy não teve tempo de responder. Uma Aberração se jogou nela
e houve um barulho forte quando a adaga de Roman bateu na dele. A
Aberração grunhiu e jogou o peso do corpo para empurrar a própria
arma, fazendo Dorothy cambalear alguns passos, recuando. Outra
Aberração se aproximou por trás, e Dorothy abriu a boca para gritar um
aviso, mas Zora não precisava disso. Assim que a Aberração recuou o
braço para golpear, Zora girou, acertando a coronha da arma no rosto
dele e derrubando-o do cais. A Aberração caiu espirrando água.
Dorothy olhou por cima do ombro. O farol não parecia estar se
aproximando. Ela segurou o braço de Zora.
— Vem!
Correram juntas, derrapando até chegar ao local onde as docas se
bifurcavam. Ali, a distância entre a doca e a garagem era menor e — sem
se incomodar em parar para pensar no que poderia acontecer se não
conseguisse — Dorothy pulou.
Ela bateu no chão ainda correndo e cambaleou, com a dor
disparando pelos joelhos. Mas podia ver o barco, balançando na água
escura, com Chandra agachada dentro.
— Desculpe! — gritou Chandra. Parecia estar mexendo em alguma
coisa.
Dorothy ouviu um ronco e em seguida um som mais agudo enquanto
o motor morria.
— Não consigo ligar essa coisa.
Outra pancada e Zora bateu na doca, logo atrás. Ela se levantou de
novo e disparou algumas balas contra as Aberrações que as cercavam.
— Por que está demorando tanto? — perguntou.
— O motor — respondeu Dorothy enquanto uma bala passava
assobiando perto do seu rosto. Ela xingou, levando uma das mãos à
bochecha.
Zora não olhou para baixo nem parou de atirar, apenas arrancou a
corda do motor da mão de Chandra e deu um puxão forte.
Chandra soltou um ganido enquanto o motor roncava.
— Como você fez isso? — perguntou.
Dorothy não esperou a resposta de Zora. Pulou no barco, abaixando-
se enquanto outra bala passava sobre sua cabeça. Zora entrou no barco
atrás dela.
— Não importa o que aconteça, não me deixe cair! — Zora se
agachou na popa do barco, virada para as docas, para poder apontar a
arma contra as Aberrações que continuavam se aproximando.
Dorothy segurou com rmeza o couro da jaqueta dela, enquanto o
barco partia a toda velocidade. Ouviu o som de tiros e gargalhadas ao
longe. Estavam cando mais fracos, contudo, à medida que elas se
afastavam. Até que, nalmente, não havia mais nada.
12

Dorothy espiou por cima da água negra. As Aberrações do Cirko não


estavam mais atrás delas. Na escuridão, só dava para ver as formas dos
telhados se projetando das águas como icebergs. Estendeu a mão para
tocar a lateral de um e percebeu que era duro e granuloso sob os dedos,
coberto por uma camada de musgo. Apenas as fantasmagóricas árvores
brancas rompiam o breu. Os galhos brancos se estendiam formando um
dossel acima das cabeças, a casca parecendo reluzir.
Dorothy sempre havia achado que aquelas árvores mortas pareciam
teias de aranha. Na verdade, Nova Seattle sempre lhe dera a impressão
de uma coisa viva crescendo nos ossos de um cadáver morto muito
tempo atrás.
Engoliu em seco e segurou com força a beirada do barco, afastando o
pensamento mórbido.
A voz de Zora trovejou atrás dela.
— Acho que despistamos eles.
— Bom. — Chandra bufou e olhou para trás, espiando as outras
duas, como se procurasse apoio. — E aí? Isso é bom, não é? Agora
vamos comemorar?
— De jeito nenhum — disse Dorothy baixinho, tocando
distraidamente o medalhão pendurado no pescoço. — Podemos tê-los
despistado, mas eles vão revirar essa cidade do avesso procurando a
gente. Nenhum lugar para onde formos agora será seguro.
— Acho que o que ela quis dizer foi “obrigada por salvarem o meu
rabo” — disse Zora para Chandra. Em seguida, virando-se de volta para
Dorothy com um risinho, acrescentou: — De nada, realmente.
— Estou agradecida, claro — murmurou Dorothy, baixando os olhos.
As palavras pareciam insu cientes para descrever o que estava sentindo.
Como deixaria claro que tinha se sensibilizado por Zora ter ido salvá-
la? Logo Zora, que não con ava nela e que ainda estava convencida de
que ela havia matado seu melhor amigo. Mesmo assim, tinha atacado
Mac e o Cirko Sombrio só para libertá-la. Era uma lealdade que ia além
de qualquer coisa que Dorothy conhecia. Não que isso quisesse dizer
muito, mas mesmo assim…
— Nem precisa dizer — reagiu Zora, carrancuda como sempre. A
gratidão de Dorothy parecia deixá-la desconfortável, e de repente ela
cou muito interessada numa cutícula solta na unha do polegar. —
A nal, o que você estava fazendo lá? Porque, vendo de fora, parecia que
você estava cometendo suicídio usando uma gangue psicótica.
— Não exatamente. — Dorothy hesitou um momento, avaliando o
quanto deveria revelar. Em qualquer outro momento da vida, teria
mentido. A matéria exótica e a descoberta do Professor eram moedas de
troca valiosas.
Quem sabia o quanto poderiam ser úteis, se Dorothy precisasse de
alguma vantagem?
Mas Chandra e Zora tinham acabado de arriscar a vida para tirá-la do
Fairmont. Isso a amoleceu. Não conseguia se imaginar tentando
manipulá-las ou chantageá-las. Elas mereciam a verdade.
E assim, soltando o ar, Dorothy se pegou contando tudo.
— Hoje de manhã estive no quarto do Roman, procurando… bom,
procurando dinheiro, para ser honesta. Estou falida e, prevendo uma
fuga, achei que precisaria de tudo em que pudesse pôr as mãos.
Esperou, o olhar indo de Zora para Chandra, para ver se alguma
delas iria julgá-la, mas elas permaneceram em silêncio.
— Não encontrei nenhum dinheiro — continuou, depois de um
momento. — Mas ele tinha uns… uns papéis escondidos na mesinha de
cabeceira.
Zora piscou.
— Papéis?
— Folhas de um diário. Eram do diário do Professor. Reconheci a
letra que eu tinha visto na outra vez.
Um ano antes, e apenas algumas semanas atrás para Chandra e Zora,
Dorothy havia encontrado o diário do Professor no meio das coisas de
Roman. Tinha-o entregado a Ash, mas somente depois de fazer uma
barganha. Não se sentia orgulhosa daquele momento.
— Roman deve ter arrancado as páginas antes de deixar o diário para
eu encontrar — continuou, pigarreando. — Não queria que a gente
soubesse sobre elas, por algum motivo.
— Mas você leu as páginas. — Chandra franziu a testa. — O que
diziam?
— Bom… dentre outras coisas, pareciam indicar que era possível
viajar no tempo sem uma máquina.
— Não. — A testa de Zora se franziu. — Meu pai me contaria, se
estivesse trabalhando numa coisa assim.
Mas Dorothy pensou ter detectado alguma hesitação nas palavras
dela. Será que Zora sabia que Ash já havia feito aquilo? Ele devia ter
contado a ela.
— Eu… não saberia dizer — admitiu Dorothy, baixando os olhos. —
Eu invadi o Fairmont para roubar a matéria exótica da Corvo Negro e
tentar fazer isso, mas… bom… amarelei. E então Mac me encontrou e,
como eu estava com as páginas do diário… — Dorothy deixou a frase no
ar, esperando que Zora e Chandra a completassem.
— Mac está com as páginas do diário? — Chandra franziu a testa. —
Isso… isso não pode ser bom.
— Ele não tem como fazer grande coisa sem matéria exótica —
acrescentou Zora, com gentileza.
— Foi idiotice minha não ter escondido os papéis quando tive a
chance — disse Dorothy. — Para ele, o conhecimento de que é possível
viajar no tempo sem um veículo já vai ser o su ciente. Sabemos que ele
não vai descansar até que a gente mostre como fazer isso. Mesmo se isso
signi car…
Uma luz apareceu na escuridão e Dorothy fechou a boca, engolindo
as últimas palavras. Chandra também se calou e Zora se agachou na
popa do barco, uma das mãos apoiada na arma presa à cintura.
A luz entrava e saía de foco, passando por trás de árvores distantes.
Dorothy escutou vozes gritando e falando, e em seguida uma série de
estalos agudos atravessou a noite. À medida que o barco se aproximava,
pôde identi car guras vestidas de preto. Um rapaz segurando uma
lanterna, outro com uma pistola curta e brilhante.
O barco passou a toda velocidade e desapareceu entre as árvores
brancas tão rapidamente quanto havia surgido. Dorothy viu a luz
diminuir cada vez mais, mal ousando acreditar que ele tinha ido embora.
Zora e Chandra relaxaram, mas Dorothy continuou sem se mexer.
Um medo gelado apertava seu peito, e seus joelhos tinham cado
bambos.
Sabia que eles não parariam de procurar. Em Nova Seattle, não havia
nenhum lugar onde cariam em segurança.
— Preciso ir embora — disse, virando-se de volta para Zora. — Hoje
à noite. Na verdade, agora mesmo.
Ela pensou na ameaça terrível de Regan. Me disseram que você tem
amigos. Pessoas com quem se importa. Um nó se formou na garganta dela.
— Nenhum de vocês está seguro enquanto eu car aqui —
acrescentou em voz baixa.
Chandra riu, fungando, talvez achando divertida a ideia de que algum
dia já tivessem estado em segurança.
— Ele está interessado no Ash, e não no resto de vocês — observou
Dorothy.
Chandra fungou.
— Fico lisonjeada.
— Aonde você planeja ir? — perguntou Zora. — Você acabou de
dizer que a cidade não é segura. E as fronteiras…
— Não quero atravessar as fronteiras. Quero voltar no tempo.
Zora a encarou um instante.
— Isso não vai ser possível.
— O que você está dizendo? Claro que é possível. Mac me disse que
você roubou a Corvo Negro e eu tenho a matéria exótica, e sei pilotar
uma máquina do tempo…
— Eu não disse que não é sicamente possível — interrompeu Zora.
— Disse que não vai ser possível. Porque eu não vou deixar isso
acontecer.
Zora cruzou os braços, com os olhos se estreitando até virarem
fendas. Dorothy sentiu os dentes trincando, um músculo no maxilar se
retesando. De todas as coisas sobre as quais Zora poderia teimar, logo
isso?
— Posso perguntar por quê? — indagou com o máximo de calma que
pôde.
— Se eu deixar você voltar no tempo, você vai matar Ash. Talvez
nenhuma de nós saiba por que, mas sabemos que isso acontece.
— Já aconteceu — disse Dorothy rispidamente. — Zora… Ash está
morto. Se não zermos nada, ele vai permanecer assim. Você não enxerga
isso?
— Você não pode saber com certeza.
— Posso — insistiu Dorothy. — O tempo é um círculo. Isso signi ca
que qualquer coisa que a gente faça já afetou o mundo como ele é agora.
Preciso voltar no tempo porque já voltei no tempo. Chandra me disse
que Ash e eu nos encontramos em segredo na semana passada. Três
vezes.
Zora lançou um olhar furioso para Chandra.
— E Willis con rmou — acrescentou Dorothy para que Chandra
não casse encrencada demais. — Eu já voltei, Zora. Ash e eu
conversamos e, de algum modo, em algum lugar no meio de tudo isso,
alguma coisa aconteceu. Esses encontros resultaram na morte dele. Não
vou descansar até descobrir o porquê. E você?
Zora a olhava com muita intensidade, mordendo a parte de dentro da
bochecha. Depois de um tempo, xingou e desviou o olhar.
— Certo — disse. — Vem.
Depois do que pareceu uma eternidade, as duas chegaram perto de uma
doca e pararam. Zora desligou o motor, mas o som pairou como um
fantasma ao redor, não querendo morrer.
— Onde estamos? — Pelo que Dorothy podia perceber, ainda
estavam cercadas pela água escura e pelas árvores brancas.
— Num esconderijo — respondeu Zora. — Ou o melhor que eu
consegui, em tão pouco tempo. Essa área era o Parque dos Voluntários,
mas agora não é nada, só água. Pensei: que esconderijo melhor do que o
meio do nada?
Dorothy ainda não conseguia ver coisa alguma além da escuridão
pulsante, mas sentiu o barco se inclinar abaixo dela e depois balançar
enquanto Zora saía. Houve um som como o de uma chave na fechadura.
Uma luz se acendeu e iluminou uma lateral de alumínio, uma cauda com
barbatanas e o vidro escuro do para-brisa da Corvo Negro.
— A Corvo Negro. — Dorothy soltou o ar, aliviada por estar mais uma
vez de posse da máquina do tempo.
Roman a havia construído usando os esquemas do Professor Walker,
e ela era perfeita, a imagem exata de outra máquina do tempo, a Estrela
Escura.
Dorothy não tinha certeza de até que ponto as duas eram iguais.
Tinha visto a verdadeira Estrela Escura um ano antes, mas esta era a única
máquina do tempo que ela havia pilotado, aquela em que havia passado
mais tempo. Para ela, era como um pequeno pedaço do lar.
Saiu do barco e parou ao lado de Zora, na doca, já louca para subir na
cabine, sentir o couro frio do banco do piloto envolvendo-a,
experimentar aquele aperto estranhamente empolgante no estômago
quando a máquina do tempo se alçava da água negra e decolava. Seus
dedos formigaram.
— Eu posso tentar pegar de volta as páginas do meu pai com aquele
maníaco — disse Zora. — E você… bom, Willis me disse que você tinha
um plano.
Zora se virou para ela com a sobrancelha erguida, como se dissesse:
Por favor, tenha um plano. Dorothy odiou desapontá-la.
— Eu tenho… o início de um plano — admitiu.
— Isso não é reconfortante — murmurou Zora, virando-se de volta
para o barco. Depois de um momento, sua mão se estendeu, os dedos
envolvendo o braço de Dorothy. Prendeu-a com o olhar, cando em
silêncio alguns segundos antes de dizer: — Encontre Ash. Traga ele pra
casa.
Em seguida, engoliu em seco e Dorothy viu um clarão de dor no
rosto dela, que sumiu um instante depois.
— Prometa — acrescentou Zora, com a voz falhando.
Essa não era uma promessa que Dorothy poderia fazer. Não tinha
ideia do que aconteceria quando entrasse na máquina do tempo, e nem
do que havia acontecido para levá-la ao momento em que atraiu Ash
para a fenda e cravou a adaga de Roman no peito dele.
E, no entanto…
— Prometo — ela se pegou dizendo.

A fenda surgiu ao longe. Na escuridão, era como um amontoado denso


de nuvens em redemoinho, ou o início de um tornado. Relâmpagos
espocavam no fundo do túnel, com os re exos fracos ricocheteando na
água.
Dorothy levou a Corvo Negro à boca do túnel e fez a nave pairar.
Nunca havia se assustado com a fenda antes. Sentia-se mais à vontade na
rachadura do espaço do que já estivera quando andava pelo país com a
mãe, aplicando golpes. Ela sabia exatamente quem era dentro daquele
túnel.
Era Dorothy Densmore, golpista.
Mas também era Quinn Fox, assassina, canibal, viajante do tempo.
Era um monstro. Mas também podia ser uma heroína.
Passou a mão pelo cabelo branco e descobriu que ele estava úmido de
suor. Olhou o mostrador de matéria exótica. Totalmente cheio.
— Encontre Ash. — Dorothy suspirou. Pensou no piloto de cabelos
dourados que cheirava a fogueira de acampamento e não conseguiu
deixar de sorrir. — Traga ele pra casa.
Empurrou o acelerador até 2.000 RPM.
A Corvo Negro saltou adiante, desaparecendo na rachadura do tempo.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 22 DE SETEMBRO DE 2074
APROXIMADAMENTE 12H
LOCAL — ZONA DE SUBDUÇÃO DE CASCADIA

Segunda tentativa.
Por mais louco que pareça, no momento estou sentado no meu velho e confiável barco a remo,
flutuando do lado de fora dos limites da zona de subdução de Cascadia. Injetei a matéria exótica
no meu corpo e estou confiante que, dessa vez, consegui fazer do jeito certo.
Relativamente confiante. Diria que estou com uns 80% de confiança.
Ops. Tudo bem. Não tinha percebido que ficaria tão nervoso. Só digamos que não quero aquela
sensação de queimadura na pele outra vez. Aquilo foi desagradável, assim como o fato de que
fiquei sem conseguir mover as mãos ou os pés durante várias semanas. Gostaria demais de não
passar por aquilo de novo.
Gostaria tanto que quase não quero fazer isso.
Ah, que se dane. Sou cientista, não sou? É hora de ir em frente. Que se dane o medo!
Me deseje sorte. Vou precisar, com certeza.
PARTE DOIS
Pessoas como nós, que acreditam na física, sabem que a
diferença entre o passado, o presente e o futuro é apenas uma
persistente ilusão.
— Albert Einstein
DIÁRIO DO PROFESSOR
DATA DESCONHECIDA
HORÁRIO DESCONHECIDO
LOCAL INDETERMINADO

Acabo de recuperar a consciência. Parece que pousei num campo isolado em algum lugar nos
arredores de Seattle.
Ou acho que devo dizer que acho que estou em algum lugar nos arredores de Seattle. De onde
estou sentado, só consigo ver pinheiros e capim, um céu chapado e cinza e o sol distante, ardente.
Precisarei andar um bocado antes de ver o horizonte da cidade. Até lá, tenho fé de que pelo
menos ainda estou na Costa Oeste. E não tenho como saber quando pousei. Nem como voltar.
Mas pelo menos ainda tenho a pele presa ao corpo (diferentemente de alguns outros
aspirantes a viajantes do tempo menos sortudos que eu poderia citar…). Acho que devo me
considerar grato pelas pequenas misericórdias.
Vou atualizar em breve.

ATUALIZAÇÃO
TEMPO AINDA INDETERMINADO
Consegui caminhar até a área antes conhecida como Lower Queen Anne. Para quem for
familiarizado com a cidade de Seattle como ela existia em 2074, era nesse bairro que ficava a torre
Space Needle.
Ou onde a torre fica, na minha linha do tempo atual. No futuro, a inundação provocada pelo
megaterremoto deixou a Space Needle quase toda embaixo d’água. É possível ver o topo da
estrutura em forma de disco voador, se chegar suficientemente perto, mas afora isso a torre está
submersa. Mas, nesta linha do tempo, a Space Needle ainda está onde deveria e a cidade não está
inundada. Assim posso deduzir, com clareza, que estou na Seattle pré-inundação. Pela tecnologia
que vi nas pessoas pela cidade, também posso dizer que estamos em meados do século XXI,
provavelmente não muito longe da época dos terremotos. Deve ser por isso que estou com tanta
dificuldade para encontrar uma porcaria de um jornal.
Infelizmente, acho que terei de fazer aquela coisa. Você sabe, aquela coisa cafona de viajante
do tempo. Parar alguém na rua, perguntar em que ano estamos e fingir que não percebo a
expressão suspeita da pessoa.
Espera aí… acho que tenho uma ideia!

ATUALIZAÇÃO
10 DE OUTUBRO DE 2073
19H10
Sucesso! Em vez de parar um estranho e perguntar em que ano estamos, parei um estranho e
pedi o telefone dele emprestado.
A hora e a data estavam bem ali, na tela inicial. É o dia 10 de outubro de 2073, perto das sete da
noite. Por que vim para cá?
Vejamos… o que eu estava fazendo em outubro de 2073, mais ou menos às sete da noite? Foi
em 2073 que comecei a trabalhar na NASA, portanto, eu devia estar…
Certo… Claro.
Sei para onde vou agora.

ATUALIZAÇÃO
20H45
E consegui! Estou do lado de fora do meu antigo escritório na ATACO, olhando para a minha
janela, vendo meu eu do passado trabalhar.
Dentro de… ah, umas duas horas, vou oficialmente descobrir a viagem no tempo.
Foi por isso que voltei. Porque esse é o começo de tudo.
Agora eu deveria estar tentando retornar, mas há uma parte de mim que quer ficar aqui um
pouco, olhando meu eu do passado trabalhar. Em apenas duas horas curtas, estarei no ponto mais
feliz de toda a minha vida (sem contar o dia do meu casamento e o do nascimento da minha filha,
claro). Será tão ruim querer experimentar aquele momento de novo?

ATUALIZAÇÃO
23H13
Puxa… eu tinha esquecido que, em 2073, a solução engenhosa para testar minha teoria da
viagem no tempo tinha sido eu mesmo viajar para o passado, chegar a esse local exato e acenar.
Acabei de me lembrar disso e consegui me esconder atrás de uma árvore antes que meu eu do
passado saísse para a calçada, bem onde eu tinha estado, e acenasse para outro eu do passado.
Três eus! Todos na mesma linha temporal. Tenho certeza de que estou violando alguma lei da
física.
De qualquer modo, acho que é hora de voltar para casa.
Isto é, se eu conseguir voltar para casa.
13
6 DE NOVEMBRO DE 2077

As pré-lembranças atingiram a mente de Dorothy, tão rápidas e tão


fortes que causaram tontura…
Havia o céu negro de um mundo arruinado, cinzas e poeira utuando ao
redor. Roman estava ali. Ela ouviu um tiro, e então uma bala acertou o peito
dele, jogando-o para trás…
Ela estava num barco cercado por águas escuras. Ash estava diante dela, o
rosto iluminado pelas luzes sempre mutáveis da fenda.
— Não precisa acabar assim — disse ele.
A adrenalina invadiu Dorothy enquanto ela envolvia uma adaga com os
dedos…
E então ela estava na igreja, no dia do seu casamento, indo a toda velocidade
pelo corredor entre os bancos, Avery parado diante dela…
Não. Ela não estava na igreja, estava em disparada por um corredor vazio,
seguindo uma gura escura. Através de uma porta, até uma escadaria.
— Professor? — gritou.

E então ela estava fora da fenda, a Corvo Negro deslizando sobre a


superfície do estuário de Puget. Ela ia colidir.
Puxou a alavanca, freando a nave bruscamente, as ondas e o vento
batendo nas janelas ao redor. A nave se sacudiu por um momento e
parou.
Ofegante, Dorothy afundou no banco, respirando fundo. Demorou
um bom tempo para sua mente parar de girar. Tentou se agarrar às
imagens que tinham passado por sua mente e entendê-las, mas elas se
dissolveram como açúcar numa xícara de café, deixando-a tonta e
nauseada. Gemendo, abriu os olhos.
O mundo do outro lado do para-brisa era bem parecido com o que
ela havia deixado para trás. Ondas pretas batiam nas laterais de prédios
meio submersos, árvores brancas se projetando da água, como ervas
daninhas. Ao longe, a forma escura de sua cidade, um labirinto de
prédios complicados e docas serpenteando entre janelas abertas e
telhados. Com di culdade, afastou da mente o restante das pré-
lembranças e se concentrou em decolar de novo com a Corvo Negro. Os
aps das asas levantados, o acelerador de novo a 2.000 RPM. Pairou
baixo sobre as águas, provocando ondulações na superfície, e tentou
enxergar através do para-brisa.
A noite estava silenciosa, com poucas luzes na escuridão. Não havia
barcos na água nem pessoas nas docas. Um arrepio de empolgação a
atravessou enquanto ela recordava o motivo.
Claro. Naquela noite, todo mundo na cidade estaria no baile.
Guiou a máquina do tempo na direção do centro de Nova Seattle, o
coração batendo acelerado. Ela e Roman haviam passado meses
planejando o baile, mas no m das contas tinha valido a pena. A noite
havia sido maravilhosa, uma das melhores da sua vida. Um pequeno
sorriso repuxou seus lábios. Uma parte dela gostaria de viver tudo aquilo
outra vez. Haveria tempo?
Olhou o relógio no painel da nave. Naquele exato momento, seu eu
do passado estaria dando os toques nais na roupa que usaria à noite. O
vestido azul esvoaçante, o cabelo em tranças intricadas. Logo estaria
diante do salão de baile do Fairmont, com Roman ao lado, e os dois
revelariam o grande plano para salvar a cidade. Ainda conseguia se
lembrar da sensação de ver todos aqueles rostos empolgados, toda Nova
Seattle olhando-a com atenção fascinada, con ando nela.
E então veria Ash na multidão. E…
O calor subiu pelo seu rosto. Naquela noite, Ash a havia seguido até
o salão de baile. Os dois tinham discutido, depois se beijado…
Piscou, surpresa ao notar lágrimas brotando nos cantos dos olhos.
Daria qualquer coisa para viver aquela noite outra vez, mas não
conseguia ver como poderia correr tal risco. Não tinha visto nenhum
sinal de seu eu futuro andando pelo baile. Na verdade, seria melhor se
evitasse o salão de baile do Fairmont. Então, precisava passar a noite em
outro lugar…
Pôs a Corvo Negro no piloto automático, com a memória muscular
levando-a até o estacionamento do Fairmont, onde pousou a máquina
do tempo ao lado de uma Corvo Negro idêntica, do passado. Ver as duas
versões da mesma nave lado a lado a deixou um tanto nervosa.
Desligou o motor e cou sentada no frio da cabine.
Para onde vou?
Quando Ash a abordara no banheiro, naquela noite, tinha cado
claro que aquela era a primeira vez em que ele a via como Quinn Fox. O
que signi cava que ela não deveria falar com ele de novo até aquele
confronto.
Desceu da máquina do tempo e saiu, dando a volta na lateral do
hotel, até a porta dos fundos, que cava logo abaixo do banheiro onde o
tinha encontrado. Fazia frio, mas não era um frio desagradável, e as
sombras a escondiam bem. Esperou.
Alguns instantes se passaram. Então a janela do banheiro se abriu e o
tronco de um homem apareceu na escuridão.
Dorothy cou parada em silêncio, uma das mãos apertando a boca
enquanto a cabeça loura de Ash saía da janela.
Observando-o, percebeu que estava prendendo a respiração. Ele
estava ali, vivo, e com a mesma aparência da primeira vez em que ela o
vira. Braços musculosos que sugeriam dias de trabalho pesado, a pele
avermelhada por passar tanto tempo ao sol e aquela jaqueta de couro
que parecia se ajustar como uma segunda pele. Um calor se espalhou
pelo peito dela e subiu pelo pescoço. Dorothy precisou de toda a força
de vontade para não estender a mão na direção dele.
Ash grunhiu, espremendo-se pela janela pequena, sem olhar
nenhuma vez na direção dela. Assim que passou totalmente, ele hesitou,
agachado no parapeito logo abaixo da janela, olhando a água escura.
Dorothy respirou fundo. Era o momento. Precisava mostrar que estava
ali, dizer alguma coisa.
Mas, quando abriu a boca, descobriu que não conseguia encontrar a
própria voz. Era engraçado; tinha falado com Ash apenas alguns dias
antes, e era como se não o tivesse visto por anos.
Ali estava ele, perto o su ciente para que Dorothy pudesse tocar no
ombro dele, e ela descobriu que não conseguia dizer uma única palavra.
Um instante depois, Ash pulou, espirrando a água escura e suja no
cais onde ela estava.
Dorothy balançou a cabeça, xingando a si mesma. Era Ash, a nal de
contas. E, segundo Chandra, ela já havia falado com ele. Por que estava
tão nervosa? Saiu da sombra e parou na beira do cais, esperando-o.
Ash chegou à superfície logo em seguida, cuspindo água. Demorou
um instante para enxugar os olhos e piscou na direção dela, franzindo a
testa ligeiramente.
— Você saiu depressa — disse ele, segurando a borda do cais para dar
um impulso para cima.
A garganta de Dorothy cou seca.
Ash se arrastou para o cais e afastou o cabelo molhado da testa.
— Mudou de ideia? — indagou ele.
A pergunta a pegou desprevenida e Dorothy piscou, confusa. Revirou
a memória, tentando se lembrar do que tinham conversado na noite do
baile, mas não recordou nada.
— Mudei? — Conseguiu dizer.
Ash deu um passo para perto, com a água pingando do cabelo, da
jaqueta. Ainda cheirava a fumaça, mesmo encharcado, e ela conseguia
apenas vislumbrar o dourado dos olhos dele na escuridão.
Não conseguiu se conter. Levou uma das mãos ao rosto dele,
apertando os dedos contra a bochecha. A pele de Ash estava molhada e
áspera com a barba crescendo. Ele se entregou ao toque de Dorothy, e
então cobriu a mão dela com a sua.
— Com relação a ir comigo. — A voz dele saiu baixa.
Dorothy fechou os olhos, sentindo a lembrança voltar num lampejo.
Ah, sim. Quando os dois se encontraram no banheiro, na noite do baile,
Ash tinha pedido que ela fugisse com ele e com o resto da Agência de
Proteção Cronológica. Na hora, isso tinha parecido impossível. Ela e
Roman estavam à beira de realizar o plano de salvar a cidade, e a ideia
de ir embora e recomeçar em outro local tinha parecido ridícula. Era
dolorido lembrar-se disso.
Tinha sido cruel demais, descartando-o daquele jeito, dizendo que
não queria ir com ele, que tinha encontrado seu lugar aqui, no
Fairmont, e que não precisava mais dele nem dos amigos dele. Ela quis
subir pela janela de onde Ash tinha acabado de pular e dar um tapa no
seu eu do passado. Por que tinha achado que trabalhar com Mac era
uma ideia melhor? Deveria ter ido embora com Ash quando teve a
chance. Se tivesse feito isso, talvez Roman ainda estivesse vivo. Talvez
Ash ainda estivesse vivo. Sentiu um aperto no peito.
Idiota, idiota…
— Eu… não mudei de ideia. — Dorothy engoliu em seco. Seu rosto
ardia. — Só queria ver você de novo. Dizer que… também senti sua
falta.
Ash a encarou por um momento. No que ele está pensando?,
perguntou-se Dorothy. Estaria se lembrando do beijo dos dois?
— Imaginei algo diferente — disse ele.
Dorothy piscou muito rapidamente. Parecia que ela era a única que
pensava naquele beijo.
— É?
O olhar dele percorreu seu rosto, alguma coisa sombria atravessando-
o.
— Pode me chamar de maluco, mas não achei que eu iria trocar
vários beijos com a garota que vai me matar. Claro que eu não
imaginava que seria você.
Dorothy prendeu o fôlego, com o coração batendo muito forte no
peito. Não tinha esperado que ele dissesse isso de modo tão direto. A
garota que vai me matar. Apesar do que Willis tinha dito a ela sobre as
pré-lembranças de Ash, Dorothy ainda se agarrava a alguma esperança
de que tivesse havido um erro, de que Ash tivesse visto alguém e
pensado que era ela, de que tudo isso pudesse ser explicado de algum
modo.
— Você tem certeza disso? — perguntou, com muito cuidado, depois
de engolir em seco. — De que vou matar você?
Ash deu de ombros.
— As pré-lembranças nunca estão erradas.
— Mas como sabe que sou eu? Você viu meu rosto?
— Não. Eu vi isso. — Ash enrolou uma mecha dos cabelos dela no
dedo e a puxou, como uma corda de sino. — Cabelo branco. A garota da
minha pré-lembrança tem cabelo branco. Percebi que era Quinn Fox
quando vi você nos corredores do Forte Hunter. Foi quando somei dois
e dois.
Dorothy sentiu alguma fagulha se acender no fundo do peito. Espere
um minuto… ela não tinha estado no Forte Hunter, pelo menos não
como Quinn Fox. Roman tinha voltado no tempo sozinho para realizar
aquela missão.
— Mas você não viu o meu rosto — murmurou, pensando.
Ash inclinou a cabeça.
— O quê?
— Você disse que viu Quinn Fox no Forte Hunter. Mas viu o meu
rosto? Ou só o cabelo branco?
— Dorothy, eu posso não ter visto o seu rosto, mas vi sua cicatriz, seu
casaco. Era você.
Dorothy comprimiu os lábios, pensando. Cada peça nova daquele
quebra-cabeça parecia apontar para outro lugar na história que ela
visitara voltando no tempo. Até aquele momento, tinha dado como
certo que era ela. Mas cou em dúvida.
Será que outra pessoa poderia ter voltado, e não ela?
Alguém ngindo ser ela?
Por algum motivo, pensou na mulher de preto. Regan Rose.
— Cabelos podem ser tingidos — disse, mais para si mesma do que
para Ash. Inspirou fundo e acrescentou: — E nessa pré-lembrança?
Você viu meu rosto?
Ash deixou o cabelo de Dorothy se desenrolar do dedo.
— Eu também não quis acreditar — murmurou, en ando a mecha de
novo atrás da orelha dela. — Mas estou tentando aceitar isso. Pré-
lembranças são pré-lembranças, não há como impedir que elas…
— Só me diga — interrompeu Dorothy. — Você viu o meu rosto?
— Por que esse interesse súbito pela minha morte? — Ash franziu a
testa, examinando-a. — A não ser…
De repente, a voz de Zora veio da escuridão.
— Asher!
Dorothy se virou, franzindo os olhos. Dava para ver a forma de uma
pessoa parada numa doca ao longe, a silhueta comprida e magra que,
inconfundivelmente, era Zora.
— Preciso ir — disse Ash. Ele também estava olhando para Zora e
seus ombros tinham cado rígidos. — Vou ver você de novo?
Dorothy sabia de mais dois encontros secretos, o próximo
acontecendo na noite seguinte.
— Vai — respondeu ela. — Logo.
Ele tocou o rosto dela brevemente.
— Cuide-se.
E, antes que ela pudesse perguntar mais alguma coisa, ele tinha
mergulhado na água escura, nadando na direção de Zora.
Dorothy cou ali por tempo su ciente para garantir que ele havia
chegado em segurança à doca. E então, entorpecida, voltou para a Corvo
Negro.
14

A chuva começou a cair enquanto Dorothy voava na Corvo Negro de


volta à fenda, gotas enormes batendo no para-brisa, impossibilitando
enxergar qualquer coisa na escuridão absoluta. O vento uivava e
golpeava as laterais da nave, fazendo Dorothy deslizar para trás e para a
frente no banco do piloto.
Ela trincou os dentes. Roman deveria ter pensado em incluir
limpadores de para-brisa no projeto. Ou, no mínimo, um cinto de
segurança.
Um instante depois, o pensamento cou amargo. Roman não estava
ali para ser provocado com relação a isso.
Respirou fundo para se acalmar e apertou mais a alavanca. Um
encontro já aconteceu, pensou, tentando ignorar o nó que se formava no
estômago. Faltavam dois.
Ainda restavam muitas perguntas. Será que ela era mesmo a pessoa
que Ash tinha visto na pré-lembrança? Será que estava se iludindo,
achando que havia uma chance de outra pessoa ter ngido ser ela,
tentando enganá-lo?
Talvez. Mas não podia desperdiçar esses dois últimos encontros
fazendo as mesmas perguntas de novo e de novo, esperando uma
resposta diferente. Precisava chegar ao cerne de outras questões.
Os experimentos do Professor, viajando através do tempo sem um
veículo, por exemplo. Fora o próprio Professor, Ash era o único que
tinha conseguido deduzir o segredo. Talvez ele pudesse ensiná-la o que
havia aprendido.
Pisou fundo, e a súbita aceleração a empurrou para trás, de modo que
seu corpo parecia grudado ao banco.
A máquina do tempo saltou à frente, para o futuro…

7 DE NOVEMBRO DE 2077
Dorothy pousou a Corvo Negro no emaranhado de docas atrás do
Coelho Morto e desligou o motor. Não tinha precisado de Chandra
para lhe contar sobre aquele encontro. Ela mesma tinha visto Ash
dentro do Coelho Morto. Lembrava-se de como ele havia sinalizado
para que ela o encontrasse.
Mas ela não zera isso. Tinha acompanhado Roman até o quarto dele
e o confrontado sobre o que viram ao viajar para o futuro. Porém, mais
tarde, Eliza dissera ter visto Ash e Dorothy nas docas. E havia aquela
fotogra a dos dois a ponto de se beijar… As bochechas dela arderam só
de pensar naquilo.
Deu a volta até os fundos do bar e esperou junto à porta, uma das
mãos en ada no casaco, os dedos envolvendo o punho da adaga de
Roman. O Coelho Morto era conhecido por sua clientela desagradável.
Dorothy não tinha como saber quem poderia estar perambulando ali
atrás. Todo cuidado era pouco.
Passou-se algum tempo. Ela não viu ninguém e afrouxou o aperto na
adaga. O ar do lado de fora estava frio e úmido. Ela estremeceu,
guardando a adaga para poder apertar os braços junto ao corpo, retendo
o pouco calor que restava. A doca se inclinou embaixo dela, deixando-a
meio nauseada. Jamais se acostumaria com o modo como essa cidade
maldita estava sempre em movimento, como nada parecia rme.
Estava começando a imaginar se tinha entendido mal. Se, a nal de
contas, eles não tinham se encontrado. E então a porta dos fundos do
bar se entreabriu e Ash saiu.
— Você já está aqui — disse ele, deixando a porta se fechar.
— Achei que você… queria que eu viesse. — De repente, Dorothy
cou sem jeito. Todo esse tempo aqui fora e não tinha conseguido
pensar em algo melhor para dizer? Suas bochechas caram vermelhas.
— Só quis dizer que você chegou mais rápido do que eu esperava —
explicou Ash.
Dorothy assentiu e começou a enrolar os dedos no cabelo trançado
para ter o que fazer com as mãos. Estava mais nervosa do que havia
esperado, talvez por causa daquela foto, porque sabia o que viria em
seguida.
— Eu conheço um atalho — murmurou. — Costumava vir bastante
aqui.
Ash pareceu esperar que ela dissesse mais alguma coisa, mas, quando
isso não aconteceu, atravessou a doca e tocou o balaústre de madeira ao
lado dela, perto o bastante para a mão roçar no quadril de Dorothy. Ela
sentiu uma trilha de calor no ponto em que ele havia tocado.
Era isso. Ele iria beijá-la. O calor subiu pelo peito dela.
— Procurei você hoje de manhã — disse Ash.
Dorothy piscou. Seus pensamentos estavam lentos e confusos. Você,
ele tinha dito. Mas de que “você” estava falando?
A noiva que tinha se escondido na máquina do tempo dele? A mulher
de cabelos brancos destinada a matá-lo? A líder sanguinária do Cirko
Sombrio?
Eu nem sei quem você é, Zora tinha dito. Você é Quinn? Ou é Dorothy?
— Você estava procurando Dorothy — disse ela com cuidado. — Eu
não sou mais Dorothy.
O que desejava dizer era: E se eu não for mais Dorothy? Você ainda
gostaria de mim? Ou tudo seria diferente? Mas, antes que ela pudesse se
corrigir, Ash recuou com a testa franzindo.
— Um nome novo não te transforma em uma pessoa diferente.
— Mas não é só o nome, né? — Dorothy balançou a cabeça,
frustrada. Estava explicando mal. Como Ash iria querer car com ela se
ela nem sabia quem era? Era isso que desejava dizer.
— Você está falando de…
Ash levou a mão ao rosto dela e Dorothy ofegou um segundo antes
de ele tocá-la, já esperando a sensação daquelas mãos ásperas na pele.
Ele se deteve, os dedos pairando sobre a linha da cicatriz.
— Posso?
Dorothy fechou os olhos e cou em silêncio por um longo momento.
Ninguém jamais havia tocado sua cicatriz. Ela mesma tentava não tocá-
la. A sensação da pele mutilada sob os dedos a enojava. Parecia
representar cada coisa horrível que ela já zera, todos os modos pelos
quais tinha fracassado. Se Ash a tocasse, Dorothy tinha certeza de que
ele veria como ela era diferente da garota que ele conhecia.
— Pode — respondeu, quase sem perceber o que estava falando.
Ash baixou a mão sobre a cicatriz. Cada nervo no rosto de Dorothy
pareceu queimar, de modo que tudo que ela sentia eram fagulhas e calor.
Estivera se contendo, rígida, mas então soltou uma respiração que era
quase um suspiro.
— Ash.
Ash baixou a testa para perto da dela e, por um momento, ela sentiu
apenas o calor da pele dele, a suavidade do cabelo.
— Volte comigo — pediu ele, a voz urgente. — Por favor. Seu lugar
não é aqui.
Seria possível? Será que ela poderia ir embora sem ao menos olhar
para trás? Por um momento pensou nisso, e dane-se a lógica da viagem
no tempo, o futuro e todas as pessoas que estavam contando com ela.
Foi o próprio Ash que a fez parar. O fato de ele ter tocado em sua
cicatriz, de ele saber sobre seu passado, seus pecados, e desejá-la mesmo
assim.
Talvez eu pudesse ser melhor, pensou ela. Talvez nem tudo estivesse
perdido.
— Eu queria poder voltar. — Ela apertou o peito dele, franzindo a
testa. — Mas não foi por isso que vim. Preciso te perguntar uma coisa.
— Não pode esperar? — murmurou ele junto ao seu cabelo.
Meu Deus, o cheiro dele continuava o mesmo. Cheiro de motores,
fogo e óleo. Ela queria absorvê-lo.
— É importante — disse, e se afastou.
Não sabia quanto tempo os dois tinham antes que Eliza os
encontrasse. Precisava ser rápida.
— Preciso que você pense um pouco — explicou com cuidado. — O
Professor alguma vez mencionou Nikola Tesla?
Ash franziu a testa e se inclinou para longe dela, apanhado
desprevenido.
— Quê?
— O Professor estava fazendo experimentos com Nikola Tesla. —
Dorothy lançou um olhar ansioso para a porta atrás de Ash e em seguida
voltou a olhar para o rosto dele. Nenhum sinal de Eliza por enquanto.
— Ele falou algo sobre isso para você? Qualquer coisa?
— Acho que não. — Ash franziu a testa. — Mas o que…
— Tem a ver com viajar no tempo sem ter um veículo. Já ouviu algo
sobre isso?
Ash coçou o pescoço, franzindo a testa.
— Não é possível viajar no tempo sem um veículo. Algumas pessoas
tentaram, antes de o Professor construir as máquinas do tempo, mas a
fenda é volátil demais, e todo mundo cou gravemente machucado.
— Sim, mas o Professor continuou fazendo experimentos para ver se
encontrava um jeito. — Dorothy mexeu no medalhão pendurado no
pescoço, os dedos ansiosos. — Pensa. Talvez tenha alguma coisa escrita
naquele diário dele? Você já leu tudo?
Ash já estava negando com a cabeça, mas parou.
— Espera — disse, quase para si mesmo. — Tinha algumas páginas
faltando. Não sei onde estão, mas…
Foi interrompido pelo som de madeira estalando e de um passo do
outro lado da porta.
Droga, pensou Dorothy, o coração pulando na garganta.
Eliza.
Recuou para as sombras um instante antes de Eliza pisar na doca. Viu
que ela fez questão de tirar do bolso um maço de cigarros e uma caixa
de fósforos, depois acendeu lentamente o cigarro enquanto seu olhar
percorria as sombras, procurando.
Dorothy olhou para ela com raiva. Eliza não tinha sido enganada.
Tudo que estava acontecendo na doca podia ser ouvido através da porta
na que os separava dos corredores do Coelho Morto. Ela havia saído
para mostrar a Dorothy que sabia que ela estava ali.
Os olhos de Eliza se voltaram para as sombras densas no cais,
casualmente, como se só estivesse espiando ao redor.
Não estou vendo você, parecia dizer, mas sei que está aqui.
Amaldiçoando o próprio erro, Dorothy voltou para as sombras,
virou-se na doca…
E, quase instantaneamente, alguém a agarrou por trás.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 22 DE SETEMBRO DE 2074
22H07
A OFICINA

Acabo de voltar à minha linha do tempo atual, e no momento estou sozinho na oficina, onde
talvez possa me permitir ruminar sobre tudo que vi.
Voltar não foi tão difícil quando imaginei. Assim que retornei à zona de subdução de Cascadia,
senti o mesmo puxão, logo abaixo do umbigo, onde tinha injetado a matéria exótica. Uma
correnteza, como Tesla chamou. Descobri que conseguia resistir retesando os músculos do corpo.
Porém, se eu me permitisse afrouxar — não apenas física, mas também mentalmente —, era como
se o mundo flutuasse para longe e eu pudesse ficar…
Bom, acompanhando a metáfora de Tesla sobre um rio, acho que à deriva é a melhor descrição
em que consigo pensar. A sensação era quase como boiar na água, permitindo que a correnteza
me puxasse.
Tive sorte. A correnteza do tempo me levou de volta ao lugar de onde eu havia partido. Neste
momento, navegar para um ponto específico da história ou para um novo ponto da história ou do
futuro está fora das minhas possibilidades.
Esse novo modo de viajar exigirá um monte de pesquisas antes de ser tão viável quanto a forma
padrão de viagem no tempo.
Vou experimentar mais de manhã.
E, por enquanto… dormir.
15

Dorothy foi arrastada para a escuridão. Alguém envolvia seu corpo, uma
das mãos prendendo os braços dela às laterais do corpo e a outra a
impedindo de gritar. O medo rugia no peito dela, bloqueando qualquer
outro sentimento.
Será que Mac a havia encontrado? Ou uma Aberração do Cirko?
Ou…
Ah, meu Deus, seria Regan Rose?
Sentiu as pernas prestes a bambear. Não conseguiria enfrentar a
tortura outra vez. Não podia. Juntou o que restava das forças e tentou se
soltar do aperto…
— Para com isso, tá? — sussurrou uma voz no ouvido de Dorothy.
Ela parou de resistir.
Aquela voz. Dorothy conhecia aquela voz.
A pessoa a arrastou pela doca e virou uma esquina antes de soltá-la.
Dorothy girou, forçando a vista à luz fraca. Passou-se um longo
momento até que as feições familiares se destacassem das sombras.
Pele clara. Cabelo escuro emaranhado. Covinha no queixo. Sorriso
malicioso.
— Roman. — Dorothy abraçou o velho amigo, apertando-o com
força.
Ele se enrijeceu: os dois nunca foram do tipo que gosta de abraços,
mas ela não conseguira resistir. Apenas alguns dias atrás (Dois? Três?)
tinha-o visto morrer. Tinha chorado por ele, lamentado, e ali estava ele,
respirando, movendo-se e falando como se nada tivesse acontecido.
Porque nada tinha acontecido. Ainda não.
— Meu Deus, você é ruim nisso — disse Roman, dando-lhe um
tapinha nas costas antes de se afastar.
— Como assim?
Dorothy enxugou uma lágrima no rosto, tentando ngir que era só
um cisco. Roman arqueou uma sobrancelha. Parecia estar se esforçando
muito para não revirar os olhos.
— Qual é? É óbvio que você está vindo do futuro. E não está sendo
nem um pouco discreta. — Ele passou a mão pelo cabelo, suspirando. —
Está tentando ser descoberta? Isso faz parte do seu plano?
A boca de Dorothy cou muito seca.
— Como você…?
— Como eu sabia? Você tá brincando, né? A Dorothy desta linha do
tempo estava do lado de fora do meu quarto, usando uma roupa
diferente, escutando através da minha porta.
Dorothy sentiu as bochechas esquentarem, lembrando que tinha sido
pega escutando pela porta dele menos de uma semana atrás. E tinha
achado que estava sendo furtiva…
— Eu segui você — continuou Roman, estreitando os olhos escuros.
— Ou pelo menos estava tentando. Antes que pudesse te alcançar,
encontrei sua versão do futuro aqui, com os olhos brilhando para o seu
ex-namorado. — Ele balançou a mão para ela, franzindo o nariz. — Não
é exatamente o que eu chamaria de discrição.
— Eu não estava com os olhos brilhando — murmurou Dorothy.
— E o modo como você me atacou ainda pouco, como ca me
olhando como se eu fosse Lázaro ressuscitando dos mortos. — Roman
tentou dar seu sorriso charmoso, mas não conseguiu. Havia uma
expressão perturbadora nos olhos dele e o canto da boca se repuxou. —
E então? Eu morri? É por isso que você parece tão feliz em me ver?
Ah, ele era bom. Dorothy não esperava que ele perguntasse de modo
tão direto. Abriu a boca, mas não conseguiu dizer nada.
Deveria contar a verdade? De acordo com o bilhete que ele havia
deixado para ela, Roman já tinha visto a própria morte, sabia que iria
acontecer. Dorothy estremeceu, visualizando-o caído no chão, os olhos
arregalados sem enxergar.
— Na verdade… deixa pra lá. — Roman estivera observando-a com
muita atenção e naquele momento os olhos dele se estreitaram. — Acho
que posso viver sem saber qual pensamento te deixa com essa expressão
no rosto. Anda, vamos pra um lugar seguro.

A noite não tinha lua e o céu estava turvo. O som distante de um motor
cortou o ar e em seguida foi diminuindo até sumir. Uma névoa cinza e
leitosa se agarrava à superfície da água, fazendo Dorothy sentir que
utuava numa nuvem.
Roman a levou pelas docas dando a volta até os fundos do Fairmont.
— De quando você veio? — perguntou ao chegarem à porta de trás.
— De daqui a alguns dias. — O vento agitou o cabelo dela quando
Roman abriu a porta e a induziu a entrar. Dorothy fez as contas de
cabeça e disse: — Seis, acho.
— Seis dias — murmurou Roman, e Dorothy soube que ele estava
imaginando o que poderia ter acontecido de tão terrível em menos de
uma semana para fazê-la viajar de volta no tempo para consertar. Deu
um sorriso cauteloso, com algum nervosismo. — Bom, acho que não vai
ser uma semana muito boa, não é?
— Não seja bobo, vai ser uma semana fabulosa. — Dorothy precisou
se esforçar muito para manter a voz tranquila. — Só voltei para dizer
que a gente salva a cidade. Eletricidade para todo mundo, novos
medicamentos, o m das doenças. Estamos sendo saudados como
heróis. Festas todas as noites, esse tipo de coisa.
Roman levantou uma sobrancelha.
— E aí eu nalmente encontro uma garota legal e sossego?
— Encontra sim. Eliza, dá para acreditar? Todo mundo só fala nisso.
— Meu Deus, espero que você esteja brincando. — Roman fez uma
careta.
— Você não a acha bonita?
— Ela é bonita, sim, só que é… arisca. Acho que ela iria preferir uma
disputa de queda de braço comigo a me beijar.
— Eca, amor juvenil.
Tinham chegado ao andar de Roman. Ele inclinou a cabeça para fora
da escada e, vendo que o lugar estava vazio, levou-a pelo corredor até o
quarto.
Assim que entrou, Dorothy teve um déjà vu. Ali estavam os livros de
Roman, empilhados de qualquer modo em cima da cômoda, como
estariam no futuro, quando ela voltaria ali para procurar dinheiro. Ali
estava o par de botas reserva dele, chutadas e esquecidas num canto, e a
camisa suja que ele tinha jogado na cadeira da escrivaninha.
Sentiu um aperto estranho no estômago, olhando para aquela camisa.
Ele não a guardaria antes de morrer.
— O que você veio fazer aqui, de verdade? — perguntou Roman,
fechando a porta com rmeza.
Dorothy piscou, afastando o olhar da camisa abandonada. Não queria
dar mais nenhum motivo para Roman se preocupar com relação aos
próximos seis dias, por isso decidiu não mencionar a morte dele, nem a
tomada do Cirko Sombrio por Mac Murphy, nem Regan e sua terrível
sacola de brinquedos.
— Ash está… desaparecido — respondeu, em vez disso. — Todo
mundo tem certeza de que eu o matei. Inclusive o próprio Ash,
aparentemente. Voltei para ver se conseguia descobrir o que aconteceu
de verdade. E impedir, se possível.
Era uma versão resumida da verdade, mas era a verdade, mais ou
menos. Teria de servir.
Roman se encostou na porta, a cabeça inclinada, uma expressão
esquisita no rosto.
— Você veio aqui para impedir Ash de desaparecer? Você não espera
que eu a ajude com isso.
— Ah, para — reagiu Dorothy, com a frustração crescendo por
dentro. Com tudo que estava acontecendo, era nisso que ele queria se
concentrar? — Sua pequena vingança contra Ash foi resolvida. Você
ainda não sabe, mas vai perdoá-lo, tipo, amanhã. Assim, será que a gente
pode, por favor, seguir em frente?
Roman, para seu crédito, pareceu sem graça.
— Eu fui tão irritante assim quando voltei no tempo pra ver você?
— Tá brincando? — Dorothy bufou. — Toda aquela bobagem de o
tempo é um círculo. Fiquei com vontade de assassinar você.
— Touché — murmurou ele, olhando para as mãos. Depois de um
momento, suspirou e olhou de novo para ela. — Bom, se entendi
direito, você voltou no tempo pra descobrir se matou Ash, certo?
— Na verdade, tenho uma teoria de que alguém disfarçado de mim
deve tê-lo matado. — Mas, à medida que as palavras eram ditas,
Dorothy precisou admitir que isso parecia… improvável.
Roman arqueou uma sobrancelha. Depois de um momento, disse:
— Quando você veio aqui antes, no passado, estava tentando me
convencer a fazer alguma coisa pra mudar o futuro. Lembra?
Dorothy cou em silêncio por um momento. Claro que lembrava.
Antes de Roman e Ash serem assassinados, Roman a havia levado para o
futuro e mostrado uma visão sombria, aterrorizante: a cidade deles,
abandonada e destruída. Prédios haviam desmoronado e todas as pessoas
que moravam ali tinham morrido ou desaparecido. Ela ainda sentia
náuseas pensando naquilo.
Nos últimos dias, ela não tinha pensado muito naquela visão terrível
do futuro. Estivera ocupada demais tentando salvar Ash, tentando se
salvar. Constatar que deixara tudo de lado com tanta facilidade a deixou
incomodada.
— Você me perguntou se eu tinha alguma ideia do que poderia ter
acontecido para a situação chegar àquele ponto — continuou Roman. —
E eu disse que não tinha.
— Eu lembro.
— Não era verdade — retrucou Roman, sem graça.
Dorothy sentiu um arrepio na nuca. Parte dela queria dizer a Roman
para deixar aquilo para lá. Achava que nesse momento não tinha forças
su cientes para suportar qualquer coisa a mais. Poderia lidar com o
futuro quando tivesse salvado Ash, impedido Mac e convencido seus
amigos a con ar nela outra vez. Mas sempre havia sido curiosa, e não
conseguiu se impedir de perguntar:
— Você sabe por que o nosso mundo desmorona?
Roman a encarou de volta.
— Antes de começar a pesquisar a viagem no tempo com o Professor,
eu estava trabalhando num programa de computador que ajudaria a
prever terremotos. No nal, minha pesquisa foi inconclusiva, mas os
dados pareciam indicar que havia um relacionamento entre a viagem no
tempo através de uma fenda e o movimento das placas tectônicas.
— Não entendi — disse Dorothy, piscando. De repente, teve uma
lembrança: Zora, Ash e os outros reunidos na escola onde todos
moravam, tentando explicar os terremotos para ela. — Placas
tectônicas? Isso tem alguma coisa a ver com terremotos, não é?
Roman pareceu não registrar a interrupção.
— Eu vinha prestando atenção especial aos terremotos que
aconteceram no último ano. Eles tinham cado mais frequentes. Você
consegue imaginar algum motivo para isso estar acontecendo? — Ele
fez uma pausa e levantou os olhos, como se esperasse que Dorothy
entendesse. Quando ela não disse nada, ele acrescentou: — Dorothy, os
terremotos são provocados pela viagem no tempo.
Dorothy sentiu os lábios estremecerem. Era um tique, um sorriso
para esconder o nervosismo.
— Não é possível.
— Eu co repassando os dados, e a conclusão permanece a mesma,
teimosa, consistente. As datas, os horários e os números na escala
Richter, tudo leva a uma conclusão clara. — Roman soltou um riso
curto, amargo. — Fico espantado que ninguém mais tenha deduzido
isso.
— Roman, você tem noção do que está dizendo? — O sorriso havia
sumido da boca de Dorothy. Ela lambeu os lábios. — Se os terremotos
foram provocados pela viagem no tempo, isso signi ca que nós os
provocamos. Você e eu.
Roman a encarou sem piscar.
— Não é possível — repetiu ela.
Seu coração estava batendo muito rápido no peito.
— Eu queria estar errado. Mas os números não mentem.
Dorothy balançou a cabeça, sentindo um calafrio de pavor. Pensou
no bairro ao qual eles tinham voltado no tempo para saquear, na
velhinha com a cachorra, Abóbora. Na irmã de Roman.
O terremoto que havia acontecido depois de saírem daquele tempo
havia matado todos eles.
Ah, meu Deus…
Sentou-se na cama de Roman, o corpo parecendo muito pesado.
Levou a mão à boca, pensando em todas as vezes em que tinham viajado
para o passado, em todas as coisas idiotas, frívolas, que tinham feito.
Quantas vidas foram perdidas por causa deles?
— Por que você não me contou antes?
— Porque… — Roman sentou-se ao lado dela, dando um suspiro
profundo. — Para ser honesto, só aceitei isso há algumas horas. Foi
depois de eu e você irmos ao futuro com Mac e vermos o que ia
acontecer com nossa cidade. Então, percebi que minha hipótese estava
correta. Se os seres humanos continuarem a viajar no tempo, vamos
destruir tudo. Precisamos parar.
Dorothy fechou os olhos. Teve uma sensação incômoda enquanto
várias ideias que pareciam separadas tentavam se juntar.
O Professor tinha dito que era possível viajar no tempo sem um
veículo.
Mac queria viajar no tempo.
A viagem no tempo provocaria o m do mundo.
E, aparentemente, ela havia matado Ash.
Essas coisas estariam conectadas de algum modo? Não sabia, era
como olhar um quebra-cabeça sem metade das peças. Ainda faltava
alguma coisa.
— Ash sabe como viajar no tempo sem um veículo — disse ela. —
Nós vamos vê-lo amanhã, quando voltarmos para pegar os suprimentos
médicos.
Roman franziu a testa.
— O único modo de isso ser possível é com um pequeno pedaço de
matéria exótica alojado no corpo dele.
Dorothy o encarou.
— Você leu as páginas do diário do Professor que estavam sumidas?
Os experimentos dele com Tesla?
Claro que tinha lido. A nal de contas, ela havia encontrado as
páginas no quarto dele.
— Pelo jeito, você também leu — disse Roman, mas não aparentou
surpresa. — Eu mesmo pensei em tentar fazer o experimento, mas
pareceu…
— Aterrorizante?
— Exato.
— Tive a mesma sensação — admitiu Dorothy. — Acho que eu
poderia ter tentado, só que Mac me interrompeu antes que eu tivesse
coragem. E ele ainda cou com as páginas do diário.
Roman a encarou.
— Mac sabe que é possível viajar no tempo sem uma fenda?
Dorothy assentiu.
— Você disse que o único modo de impedir que a cidade seja
destruída é parar de viajar no tempo, mas Mac não vai parar. Nunca.
Agora que ele sabe que é possível viajar no tempo sem um veículo, vai
car ainda mais desesperado pra fazer isso.
Roman franziu a testa e houve um momento de silêncio enquanto ele
parecia revirar essa informação nova na cabeça.
— A viagem no tempo sem um veículo pode até ser possível, mas
mesmo assim ele precisa de matéria exótica. Então, a gente só precisa
destruir a matéria exótica. — Roman fez uma pausa, lançando um olhar
expressivo para Dorothy. — Toda a matéria exótica.
Dorothy examinou o rosto de Roman por um longo momento, certa
de que não tinha entendido bem.
— Você quer dizer que eu preciso destruir a matéria exótica que está
dentro do Ash — disse. — Que eu preciso matá-lo.
Roman a encarou de volta.
— Pra salvar o mundo.
16

— Você acha que é por isso que vou matá-lo? — perguntou Dorothy,
estarrecida. Sentiu o coração estremecendo dentro das costelas, como
um pássaro aprisionado, e apertou o peito, tentando forçá-lo a parar.
Isso é um mal-entendido, disse a si mesma. É só um mal-entendido
enorme.
— Se você não matá-lo, a viagem no tempo irá continuar e,
eventualmente, provocar um terremoto que vai destruir todos nós —
disse Roman. — Acho que você não tem outra opção.
Dorothy o encarou. Falando desse jeito, tudo parecia simples demais.
Isso dava arrepios.
— Não. — Ela começou a balançar a cabeça. Não acreditaria nisso.
Não podia acreditar. — É do Ash que estamos falando. Ash não quer que
o mundo seja destruído, tanto quanto você ou eu! Se nós o
encontrássemos, se falássemos com ele…
— Tenho certeza de que a gente poderia convencê-lo. — Roman
parecia frustrado, como se não pudesse acreditar que tinha de explicar
uma coisa tão óbvia. — Mas o que acontece se Mac pegá-lo? Você disse
que Nova Seattle está lotada de Aberrações do Cirko cujo único objetivo
é pegar Ash. E isso antes mesmo de Mac descobrir que o seu querido é
capaz de viajar no tempo sem um veículo. Isso dá um pouco mais de
incentivo para encontrar Ash, não é?
Dorothy não respondeu. Não queria dar a Roman o prazer de saber
que tinha apresentado um bom argumento.
— Pense no seguinte — continuou Roman. — Assim que você
destruir o resto da matéria exótica e Mac perceber que precisa viver
nesse buraco de merda que ele mesmo criou, quanto acha que vai
demorar até ele perceber que Ash é sua única chance de viajar no
tempo? A cidade inteira já está procurando por ele! É só uma questão de
tempo até que alguém o encontre.
— Mesmo se isso for verdade, Ash não sabe por que é capaz de viajar
no tempo sem um veículo. E, se você e eu estamos aterrorizados demais
para fazer experimentos com matéria exótica, o que faz você pensar que
Mac não vai car?
— Quanto daquele diário você leu antes de Mac roubar as folhas? —
Roman franziu a testa.
— O su ciente. Quase tudo.
Roman levantou uma sobrancelha.
— Você chegou à parte em que o Professor começa a experimentar
para ver se uma pessoa com matéria exótica no corpo pode transportar
outras?
Dorothy sentiu um frio súbito.
— Não.
— É complicado, mas não impossível. O que signi ca que Mac não
precisa entender como vai viajar no tempo, só precisa de uma carona.
Você acha, honestamente, que há uma chance de ele parar de procurar
Ash assim que ler isso?
Roman encarou Dorothy com rmeza. Ela engoliu em seco, com
força.
— Não, acho que não.
— É — concordou Roman. — E depois de um tempo ele não vai
car satisfeito em grudar no Ash sempre que quiser viajar no tempo. Vai
acabar abrindo o cara e arrancando o resto de matéria exótica do corpo
dele. Ash só está em segurança se partir. E o futuro só está em segurança
se ele nunca mais voltar.
— Para com isso. — Dorothy tapou os ouvidos, querendo bloquear
tudo que Roman estava dizendo. — Você não pode estar falando sério.
Não pode acreditar que esse é o único modo de salvar o mundo. — Ela
sentiu um gosto amargo na boca, enquanto a realidade do que ele
propunha ia se assentando.
Ela não podia ter matado Ash. Não acreditava nisso.
— Se você tiver uma perspectiva mais ampla, tudo começa a fazer
sentido — disse Roman com gentileza.
— Não. — Alguma coisa no fundo dela começou a doer. — Deve
haver outra coisa que a gente possa fazer. Esse não pode ser o único
modo. Não pode.
Roman estava encostado na parede mais distante, com os braços
cruzados. Ele a prendeu com um olhar.
— Achei que tinha voltado para isso, não? Para descobrir por que
matou Ash?
— Voltei para descobrir como não matá-lo! — Dorothy reagiu
rispidamente.
Tudo aquilo era demais para ela. Sentiu a energia percorrendo as
veias, uma energia nervosa, ansiosa, que lhe dava vontade de se mexer,
de fazer alguma coisa. Levantou-se e começou a andar de um lado para
o outro no quarto pequeno.
— Você sabe, tanto quanto eu, que não é assim que a viagem no
tempo funciona — observou Roman, parado junto à parede.
Dorothy bufou e só andou mais rápido ainda.
Não queria aceitar isso. Nada disso. Roman não podia estar
sugerindo que o único modo de salvar o mundo era matando Ash. Era
cruel… era ridículo. Ela tinha uma máquina do tempo, não tinha?
Poderia pegar Ash e desaparecer no tempo. Os dois poderiam ir para
algum lugar divertido. A Londres da década de 1960 ou Seul da de
2050, algum lugar cheio de comida, moda e festas…
Mas, ao mesmo tempo que o plano ganhava forma na sua cabeça, ela
pensava no futuro terrível que tinha visto.
Nova Seattle em ruínas. Uma cidade inteira reduzida a cinzas e gelo.
Seria capaz de viver consigo mesma, sabendo que tinha deixado isso
acontecer? Que tinha deixado todas aquelas pessoas morrerem mesmo
tendo como impedir?
Parou de andar. Continuou dizendo a si mesma que não era um
monstro, mas ir embora, deixar uma cidade inteira seguir para aquele
destino enquanto ela sabia como consertar as coisas, era monstruoso.
Tinha de haver outro modo. Tinha de haver.
— Olha — disse Roman, num tom de voz mais gentil. — Você
mesma disse que ele viu a própria morte, certo? Que ele teve uma pré-
lembrança.
— É. — Dorothy sentiu um aperto súbito nas entranhas.
— Bom, se ele viu a própria morte, isso signi ca que ela já aconteceu.
Uma pré-lembrança é uma lembrança. Não há como mudá-la.
O tempo é um círculo, pensou Dorothy. De repente, sentiu vontade de
gritar.
— Não acredito nisso — disse, virando-se para Roman. — O futuro
ainda não está xado. Você mesmo disse…
— Algumas coisas estão xadas, não importando se você quer
acreditar nelas ou não.
— Você só está dizendo isso por causa da sua vingança idiota —
rebateu Dorothy, furiosa. — Se fosse qualquer outra pessoa…
Na raiva, não conseguiu pensar em como terminaria o pensamento,
por isso apenas balançou a cabeça, deixando o resto da frase no ar.
Precisava car sozinha. Precisava pensar. Foi para a porta.
— Antes de você ir… — Roman a fez parar justo quando seus dedos
estavam envolvendo a maçaneta. — Poderia dizer exatamente quanto
tempo eu ainda tenho?
Dorothy levantou os olhos. A voz dele tinha saído dolorosamente
casual, mas ela não se enganou. Sabia que o momento em que Roman
estava mais vulnerável era quando ngia não ter nenhuma preocupação
no mundo. Aquilo devia estar consumindo ele por dentro.
— Quer mesmo saber? — perguntou.
— Durante o último ano, venho tendo visões da minha morte,
raposinha. — Roman olhou para a própria mão, examinando as cutículas
com um sorriso suave no rosto. — É melhor saber quando isso vai
acontecer.
Ela engoliu em seco. Não sabia como falar sobre a morte do melhor
amigo sem cair no choro, mas podia tentar, se era disso que ele
precisava.
A boca de Dorothy cou seca.
— Pra mim, já se passaram quatro dias — disse. — Pra você,
acontece daqui a dois.
O rosto de Roman cou sombrio. Ele virou as costas para ela.
Dorothy sentiu que ele queria car sozinho, mas não conseguia ir
embora.
— Viu? — disse Roman, depois de um momento. — Eu disse que
existem coisas que a gente não pode mudar.

Os corredores estavam escuros, mas Dorothy sabia que isso não


signi cava que estava sozinha. Desceu a escada até o andar principal do
Fairmont, os olhos atentos a qualquer movimento. O tempo todo as
palavras de Roman ecoavam na sua cabeça.
Algumas coisas estão xadas, não importando se você quer acreditar nelas ou
não.
Isso não, disse a si mesma, trincando os dentes. Não seria ela que
mataria Ash, não importando o que isso signi casse. Encontraria outro
modo.
Os pisos nessa parte do hotel estavam sempre úmidos, escorregadios
com a água suja que as pessoas traziam nas solas das botas. Toda a
mobília era preta de mofo.
Dorothy esperava ser capaz de sair pelos fundos e chegar à máquina
do tempo. Mas, assim que pisou no saguão principal, escutou vozes.
— Essa é a mulher de quem você me falou?
Dorothy cou imóvel, arrepiada. Era Mac.
Escondeu-se atrás de um pedaço de papel de parede mofado e esticou
a cabeça para ver o que estava acontecendo.
Um grupo de Aberrações do Cirko havia se reunido a poucos metros
de distância, perto da porta pela qual ela estava pensando em sair.
Dorothy viu que uma delas era Eliza. Não estavam olhando na direção
dela, por isso respirou um pouco mais facilmente. Não deviam ter
escutado enquanto ela descia a escada. Tivera um pouquinho de sorte.
— É — respondeu Eliza, com seu sorriso de tubarão brilhando à luz
fraca. — Mac, esta é Regan Rose.
Dorothy não tinha visto a mulher de preto parada no meio deles até
que ela deu um passo à frente. Tinha a aparência exata de quando estava
na linha do tempo de Dorothy: corpo pequeno, casaco preto, máscara e
luvas. Examinando-a, Dorothy sentiu uma pequena onda de histeria
atravessando o corpo.
Obrigou-se a car em silêncio enquanto ouvia.
— É um prazer — disse Mac Murphy, rude. Não deixou nem mesmo
uma sugestão de sorriso invadir o rosto ao segurar a mão pequena e
enluvada de Regan com a sua, carnuda. — Me diga o motivo de eu
nunca ter ouvido falar de você.
Ele parecia estar se esforçando para intimidá-la, mas Regan se
mantinha equilibrada e calma por trás da máscara preta.
— Uma mulher no meu campo pro ssional tem que fazer o máximo
para manter a discrição — disse em voz baixa e rouca.
Mac a avaliou por um longo momento e fungou.
— E você sabe o que estamos procurando?
Regan inclinou a cabeça, assentindo ligeiramente.
— Ouvi dizer que Quinn Fox vai car desempregada. Parece que
você vai precisar de uma substituta.
Mac levantou as sobrancelhas, fazendo uma pausa para examiná-la
com mais atenção, e então perguntou a Eliza:
— Você disse isso a ela?
Eliza fez que não com a cabeça.
— Certo, meu bem, onde você obtém suas informações? —
perguntou Mac para Regan.
— Você acha mesmo que vou contar?
As narinas de Mac estremeceram.
Em seu esconderijo, Dorothy se eriçou. Então, era isso que ele
estivera aprontando enquanto ela e Roman brincavam no passado. Fazia
algum tempo que ela sabia que Mac vinha trabalhando contra eles, mas
era diferente testemunhar isso, escutar com os próprios ouvidos as
provas da traição dele e da deslealdade de sua gangue. Isso lhe deu
vontade de gritar.
Mac coçou o queixo, observando Regan. Os lábios dele se
retorceram; era quase um sorriso.
— E você estaria interessada num combinado assim?
— Depende. Quais são os seus planos para depois?
— Só digamos que vi o futuro dessa cidade. — Mac deu de ombros.
— Não é o que eu chamaria de agradável. A melhor coisa que qualquer
um de nós pode fazer é dar o fora e deixar essa cidade maldita se
arruinar.
Regan assentiu.
— E o meu pagamento?
— Posso me sentir compelido a levar para o passado alguém que me
ajudou. — Os olhos de sapo de Mac se estreitaram. — O seu
pagamento, garota, seria a vida.
— Uma oferta intrigante. — Regan assentiu. E parou um momento
para avaliar, antes de dizer: — Aceito. Senhor.
Ela estendeu a mão, que ele apertou. Mac soltou uma gargalhada que
parecia um latido.
— Tenho certeza de que vamos formar uma equipe excelente.
Dorothy deu um passo atrás, cando de novo envolvida pelas
sombras. Por um momento, permaneceu imóvel, mal ousando respirar.
Mesmo depois de tudo que ele tinha feito, Dorothy havia presumido
que Mac tinha ao menos um pouquinho de lealdade em relação a Nova
Seattle. Ah, como estava errada! Mac não se importava com nada, a não
ser com ele próprio. Realmente deixaria a cidade em ruínas.
A não ser…
Se você não matá-lo, a viagem no tempo irá continuar e, eventualmente,
provocar um terremoto que vai destruir todos nós, tinha dito Roman.
Dorothy visualizou a água ensanguentada. Um barco vazio. As pré-
lembranças são lembranças, pensou. Elas já aconteceram.
Não há nada que você possa fazer para impedi-las.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 1º DE OUTUBRO DE 2074
20H34
A OFICINA

Agora que confirmei que a teoria de Tesla para a viagem no tempo sem um veículo funciona,
gostaria de começar o processo complexo de descobrir como ela funciona.
De início, supus que Tesla houvesse descoberto um modo de viajar no tempo sem matéria
exótica, sem acesso a uma fenda e sem um veículo no qual viajar, mas não é bem assim. Eu usei
matéria exótica, só que a injetei no corpo. E, embora não tenha precisado viajar até a fenda do
estuário de Puget, utilizei a força das fendas menores, microscópicas, que existem na crosta da
Terra, para me puxar através das correntezas do tempo.
Assim, a única coisa de que não preciso mais é de um veículo. Meu corpo, essencialmente, se
tornou o veículo.
Isso me leva a imaginar até onde a matéria exótica se estende para além do meu corpo físico.
Por exemplo, quando viajei de volta no tempo, pude levar as roupas e os óculos. Não apareci no
passado cego feito um morcego, nem nu como vim ao mundo (graças a Deus, ninguém quer ver
isso). Não: tive a sorte de aparecer usando o mesmo jeans desbotado e a camiseta que eu estava
vestindo na minha linha do tempo original. E as roupas estavam em boas condições! Não vieram
rasgadas e nem puídas, a camiseta um pouco rançosa nas axilas, mas acho que isso foi por estar
vestindo ela há alguns dias, e não por viajar anos para o passado. Tudo estava como na minha linha
do tempo presente.
O que significa que a matéria exótica se estende para além do meu corpo físico, protegendo as
coisas mais próximas da minha pele.
Mas até que ponto vai esse poder? Será que, por exemplo, eu poderia levar um objeto?
Um pequeno animal?
Outra pessoa?
O único modo de saber se isso é possível, claro, é experimentar. Melhor começar com algo que
não seja vivo, não é? Tipo, por exemplo, uma batata. Ninguém pode ficar com raiva de mim por
ferir uma batata.
Na verdade, isso abala um pouco os nervos. Fico me lembrando daquele filme antigo com Je
Goldblum, A mosca. Para quem não é familiarizado com o cinema de terror da década de 1980,
nesse filme, Je faz experiências com o teletransporte e, por acaso, cruza os cromossomos com os
de uma mosca. Em seguida, ele começa a virar uma mosca, o que é aterrorizante, para dizer o
mínimo.
Será que a tentativa de levar uma batata de volta no tempo vai fazer com que eu me transforme
numa batata?
Só estou brincando… mais ou menos.
De qualquer modo, sem embromar mais, apresento a vocês:

Missão: Goldblum 1
Objetivo: tentar estender a proteção da matéria exótica para além do meu corpo físico.
A simplicidade é fundamental para esse experimento, acho, e por isso vou manter tudo
bastante básico: meu plano é viajar de volta no tempo — basta uma hora — segurando uma batata.
Me desejem sorte.

ATUALIZAÇÃO
1º DE OUTUBRO DE 2074
21H15
A Goldblum 1 foi um sucesso! Na verdade, estou chocado ao ver como foi fácil. Apenas remei
até a zona de subdução de Cascadia, como tinha feito na minha primeira viagem desprovida de
veículo (tente dizer isso rapidamente cinco vezes!), só que, dessa vez, estava segurando minha
batata da sorte.
Senti o puxão familiar do túnel do tempo. O mundo foi caindo para longe e lá estava eu. No
passado.
Com minha batata. Ela não estava ferida nem nada. Estava perfeita.
Estou empolgado. Não quero deixar esse sentimento ir embora, por isso vou passar ao próximo
estágio da minha experiência: uma criatura viva.
Em outras palavras, peguei um camundongo.
Vou deixar você completar o resto.
Aqui vai:

Missão: Goldblum 2
Objetivo: tentar estender a proteção da matéria exótica a outro ser vivo.
Vamos lá.

ATUALIZAÇÃO
1º DE OUTUBRO DE 2074
22H45
Quase não quero escrever isso. Sei que sou um cientista e realmente deveria ser imparcial, mas
também amo os animais, e isso…
Bom, é difícil dizer isso.
Certo, aí vai: infelizmente o Je nho não sobreviveu.
Je nho é o nome que dei ao camundongo. Como cientista, eu não deveria dar nome aos
objetos dos testes, mas não pude evitar. Ele parecia um pequeno Je Goldblum.
E morreu. Eu preferiria não entrar nos detalhes de como isso aconteceu. Direi apenas que a
matéria exótica não estendeu suas propriedades para além do meu corpo físico a ponto de mantê-
lo em segurança dentro da fenda. Por algum motivo, parece que ela não poderia proteger uma
criatura viva do mesmo modo como pôde proteger um objeto.
Fico me perguntando o motivo. Tenho algumas teorias, mas cada uma delas é menos provável
do que a outra.
17
8 DE NOVEMBRO DE 2077

Dorothy passou o resto do dia seguindo Mac, observando-o virar a


gangue contra ela, e depois toda a cidade.
Era de partir o coração. Devastador. Tinha cado escondida,
espiando por trás das colunas meio desmoronadas e dos cantos escuros
do hotel, o coração se apertando mais e mais enquanto via a facilidade
com que Mac virava aliados íntimos contra ela.
Era como observar um leão perseguindo as presas. Ele esperava até
encontrar uma Aberração sozinha e ia mancando até ela, cheio de
sorrisos e promessas.
Será que a Aberração gostaria de um novo conjunto de armas? Um
par de botas mais quentes? Alguma comida ou bebida cara que só
poderia ser encontrada no Centro? Mac estalava os dedos mostrando
como seria fácil, para ele, obter essas coisas. Aquele sorriso terrível se
alargava cada vez mais, enquanto ele prometia às Aberrações tudo que
quisessem, e mais.
E, o tempo todo, Regan Rose era uma sombra atrás dele. Silenciosa,
ameaçadora. Sua presença era uma mensagem clara.
Quinn Fox não está mais no comando.
Aquilo deixava Dorothy furiosa.
Ao meio-dia, Mac já tinha ganhado mais de metade das Aberrações, e
Dorothy percebeu que o restante estaria do lado dele antes do anoitecer.
Já estavam trocando sussurros, espalhando a notícia de que Mac
Murphy estava disposto a dar tudo que Quinn e Roman não podiam —
ou não queriam — entregar.
Dorothy esperava que Mac permanecesse perto do hotel, que
continuasse a campanha para tomar sua gangue, mas justo quando
parecia estar com todos sob o controle…
Ele foi embora.
Pegou um barco para o centro da cidade. Dorothy foi atrás, o mais
perto que ousava. Ele procurou os donos dos pequenos negócios,
sempre oferecendo algo em troca da lealdade. Um espaço maior para a
loja. Uma reunião com alguém do Centro que poderia facilitar o
comércio. Em seguida, foi para os poucos bairros ricos que restavam na
cidade, sempre com algum suborno. Morangos frescos, uísque caro,
uma caixa de vinho, remédios, alguns painéis solares para que os ricos
tivessem iluminação outra vez.
Alguma coisa, alguma coisa. Sempre havia alguma coisa.
O sangue de Dorothy fervia enquanto ela o observava. Ao anoitecer,
parecia que toda a cidade de Nova Seattle acreditava que ela era
maligna, traiçoeira. Dorothy não fazia ideia de até que ponto o alcance
dele se estendia. Mas devia ter imaginado. Nunca deveria ter con ado
nele.
Eu z isso, pensou, dominada pelo horror. Mac jamais teria chegado
aonde estava se não fosse por ela, pela aliança entre os dois. Ela
praticamente havia entregado a cidade a ele de bandeja.

Naquela noite, Roman não voltou para o quarto. Dorothy esperou por
quatro horas e, lembrando que esse era o momento em que eles tinham
errado a saída ao voltar do passado, enroscou-se na cama dele,
imaginando o que, a nal, deveria fazer.
Tinha escurecido, mas ela não tinha forças para se levantar e acender
uma vela. Enterrou o rosto no travesseiro de Roman, ofegante. Não
conseguia se lembrar da última vez em que havia se sentido tão perdida.
Talvez tivesse sido no dia do casamento com Avery, ao perceber que
havia tentado de tudo para fugir e nada dera certo.
Ou talvez fosse o momento em que tinha acordado nas docas, um ano
antes do que pretendia, sozinha e sem amigos, imaginando como
sobreviveria num mundo estranho e novo.
Suspirou, a frustração rugindo por dentro. Se fosse honesta consigo
mesma, diria que nenhum daqueles momentos se comparava. Por mais
desesperada que tivesse estado, sempre tivera algum plano de reserva,
algum modo de recuperar o controle enquanto tudo parecia car mais
difícil e mais complicado. E tivera pessoas com quem podia contar. Ash,
Roman, até mesmo sua mãe.
Mas, naquele momento…
Tinha se juntado ao Cirko Sombrio porque acreditava na mensagem
deles. O passado é nosso direito! A pergunta que a incomodava desde que
tinha viajado cem anos para o futuro e encontrado o mundo muito,
muito diferente do que esperava: que tipo de problema não poderia ser
resolvido com a viagem no tempo?
Por acaso, apenas um.

Quando nalmente caiu no sono, Dorothy sonhou com um mundo de


uma escuridão perfeita. Não havia estrelas iluminando os troncos
brancos e fantasmagóricos das árvores, nem lâmpadas a óleo distantes
tremeluzindo no breu como vaga-lumes, nem o zumbido longínquo da
eletricidade, nem a lua.
E então uma luz cortou a escuridão como uma faca, revelando que o
céu estava escuro como petróleo e que a cidade havia sumido. No lugar,
uma única estrutura serrilhada se erguia das águas, coberta por camadas
de pedras pretas ásperas e cinzas.
Era o Fairmont, só que não tinha mais cobertura, e um buraco
enorme havia se aberto no meio das paredes. O lugar era lindo
antigamente. Naquele momento, era apenas uma ruína de tijolos
queimados, vidro quebrado…
Dorothy acordou, ofegante, com lembranças do futuro terrível ainda
relampejando em sua cabeça.
Era isso que a esperava se não impedisse Mac. Aquela cidade sombria,
queimada. Estava cando cada vez mais difícil dizer a si mesma que
existia uma alternativa para o plano de Roman. Mac não iria parar, e
toda a cidade estava com ele. Parecia cada vez menos provável que ele
fracassasse. Ela precisaria destruir a matéria exótica.
Toda ela.
Xingando baixinho, arrastou-se para fora da cama. Não dormiria de
novo depois disso.
Precisava de uma bebida.

A cidade estava escura. A doca balançava sob os pés de Dorothy,


acompanhando a oscilação suave das ondas.
Não iria ao Coelho Morto, decidiu. Havia uma chance grande
demais de ser reconhecida por alguma Aberração do Cirko que tivesse
saído para tomar uma bebida tarde da noite. Em vez disso, penetrou
mais fundo no coração da cidade, indo para a Taverna do Dante. Já
estava perto quando escutou vozes.
— Você está errada… passei por uma fenda… uma máquina do
tempo… sobrevivi…
Ash, pensou Dorothy, rindo. Só ao escutar a voz dele é que percebeu
que tinha esperado encontrá-lo ali, que aquele era o motivo para ter
escolhido o Dante, dentre as dezenas de bares da cidade.
Deu um passo mais para perto…
— Verdade — disse uma segunda voz. Zora.
Dorothy parou bruscamente, o riso se esvaindo. Queria saber se Zora
caria feliz em vê-la. Mas, se Ash já sabia sobre a própria morte, ela
também já devia saber.
Não pense nela, disse a si mesma. Pense no Ash.
A névoa estava densa, mas a visão de Dorothy começou a se adaptar.
Conseguia ver Ash ajoelhado na beira do cais, pouco mais do que uma
silhueta na escuridão. Zora parecia estar de pé junto dele, ajudando-o a
se levantar, mas Dorothy podia ver pouco mais do que isso. Deu um
passo adiante, pretendendo chamá-los.
— Mas ela estava segurando a matéria exótica — dizia Zora. — E o
cabelo dela cou branco. Todos nós camos com mechas brancas no
cabelo depois de cair na fenda sem um veículo. Mas o seu cabelo não
cou branco.
Cabelo branco.
Estavam falando sobre ela, percebeu Dorothy. Fechou a boca, não
tendo mais certeza de que queria mostrar que estava ali. Pelo menos não
antes de ouvir o que eles tinham a dizer.
— Não? — Ash estava franzindo a testa, tentando puxar o próprio
cabelo para a frente do rosto o su ciente para vê-lo.
— Não. Loiro sujo, como sempre.
— Ei!
Zora mal pareceu ouvi-lo.
— Tudo bem, suponhamos que você de fato tenha voltado no tempo.
De alguma forma. Como é que foi parar exatamente na mesma hora que
Dorothy e Roman?
Dorothy pensou, tentando seguir a linha do tempo na cabeça. Ela e
Roman tinham acabado de voltar para pegar suprimentos médicos. Ash
os havia seguido, surpreendendo a todos ao aparecer no passado, a
primeira vez em que tinha viajado sem uma fenda. Parecia que tinha
acabado de retornar.
— Não sei — respondeu Ash, suspirando.
Alguma coisa se mexeu entre as árvores, atraindo a atenção de
Dorothy. Ela franziu os olhos, mas a forma estava imóvel. Prestando
atenção, escutou um motor roncando baixo. Mas a névoa já estava tão
densa que ela não conseguia ver o barco.
Olhou de novo para Zora e Ash. Ainda estavam conversando e não
pareciam ter notado nada estranho. Seria perigoso se alguém escutasse
essa conversa. Abriu a boca para alertá-los…
Ash levantou a mão.
— Não deveríamos nem estar conversando sobre isso aqui.
O coração de Dorothy acelerou. Ela olhou de volta para as árvores e
logo viu que já era tarde demais. A forma estava se movendo de novo,
um barco se destacando das sombras, seguindo ao lado da doca.
E naquele momento, nalmente, Ash e Zora pareceram notar que
não estavam sozinhos. Ash estendeu a mão para sua arma, mas, no
mesmo instante, uma forma saltou do barco e o agarrou, puxando seu
braço para as costas. A arma escorregou dos dedos dele, fazendo barulho
ao bater na doca. Inútil.
Dorothy sentiu cada músculo do corpo se retesar. Devia ter sido
assim que Mac havia capturado Ash, levando-o de volta para o hotel,
percebeu. Com aquela emboscada.
En ou a mão no casaco, os dedos roçando na adaga de Roman. Cada
músculo no seu corpo queria correr para ajudá-los, mas sabia como isso
terminava. Ash seria capturado. Zora caria bem. Se Dorothy
aparecesse naquele momento, seria ferida ou igualmente capturada. E
isso não ajudaria ninguém.
— Calma aí. — A voz fria era de Eliza. Ela se ajoelhou para pegar a
arma de Ash na doca e a apontou para a têmpora dele.
Dorothy estava apertando a adaga com tanta força que os dedos
doíam.
— Não fomos apresentados — disse Eliza. — Meu nome é Eliza. E
aquele ali é o Donovan.
Dorothy se virou ligeiramente e viu uma forma sombria que ela só
pôde supor que era Donovan, lutando com a forma sombria que achou
ser Zora.
— Não posso dizer que é um prazer conhecê-la — ofegou Zora, e
Dorothy conseguiu visualizar os dentes trincados e a ponta de um
sorriso nos lábios dela.
Zora não parecia assustada, mas, a nal de contas, ela nunca parecia
assustada.
Houve um rangido na doca e Mac surgiu das sombras. Dorothy
forçou a vista. Parecia que cinco… não, seis outras Aberrações do Cirko
o acompanhavam.
Nesse momento, ela quase avançou, e que se danasse a lógica da
viagem no tempo. A única coisa que a impediu foi saber que, mesmo
com sua ajuda, seriam nove contra três. Estavam em menor número.
Dorothy engoliu em seco e cou escondida. Já tinha feito coisas
terríveis o su ciente na vida e nenhuma delas tirava seu sono. Mas essa
se alojou atrás das costelas, di cultando a respiração. Naquele
momento, soube que lembraria, para sempre, como tinha cado
escondida nas sombras sem fazer nada enquanto Ash era levado.
Apertou os punhos, amaldiçoando-se por não poder ajudar, não
poder impedir aquilo.
— Bum — sussurrou Eliza no ouvido de Ash, rindo.
Dorothy viu o último soco de Eliza chegando e se encolheu antes que
atingisse o alvo. Ouviu algo estalando — osso. Ash bateu na doca,
inconsciente. Zora soltou um grito furioso que foi interrompido por um
som de carne batendo em carne. Houve outra pancada, e Dorothy soube
que Donovan devia ter derrubado Zora também. As Aberrações a
deixaram caída, agarraram Ash pelos braços e o arrastaram para fora da
doca.
Dorothy apertou a mão na boca para não gritar. Nesse momento,
sentiu como se estivesse de volta em casa, aplicando mais um golpe com
sua mãe. Era como se estivesse recitando falas que não tinham sido
pensadas por ela, atuando numa cena em vez de fazer as próprias
escolhas, como se tudo fosse um desempenho elaborado sobre o qual
não tinha controle verdadeiro.
De novo, pensou, lembrando-se do seu antigo desejo, do motivo para
ter fugido de casa, para começo de conversa. Queria mais do que uma
vida pela metade, mais do que um casamento falso, mais do que uma
longa carreira de golpista. Mas isso, naquele momento… era apenas
mais do mesmo.
Fechou os olhos, com lágrimas se acumulando atrás das pálpebras.
Odiou a ideia de que havia coisas que ela ainda não podia mudar, odiou
o fato de o único poder verdadeiro que possuía estar na própria mente.
Odiou a viagem no tempo.
18

Dorothy se certi cou de que Zora ainda estava respirando, depois a


arrastou para longe da borda do cais.
— Desculpe deixar você assim — murmurou, afastando uma trança
de Zora do rosto dela. — Mas, de qualquer modo, você não caria feliz
se me visse quando acordasse.
Zora gemeu e começou a se mexer. Dorothy escutou vozes ao longe e
depois passos se aproximando. Logo, alguém apareceria por ali e Zora
seria encontrada. Enquanto isso, havia trabalho a fazer.
Voltou ao Fairmont, com muito cuidado, certi cando-se de se
manter escondida, como sempre. Naquele momento, mais do que
nunca, não poderia se permitir ser apanhada.
Sabia para onde Mac estava levando Ash, então não cou surpresa
quando viu o barco de novo do lado de fora da antiga garagem do
Fairmont. Esperou nas sombras até ter certeza de que as Aberrações do
Cirko tivessem levado Ash escada acima até um quarto vazio. Alguns
instantes depois, quando subiu atrás deles, não havia mais ninguém no
saguão úmido e lúgubre.
Lembrou-se de que as próximas horas aconteceriam assim: Mac
subiria a escada e torturaria Ash até que ela e Roman viessem levá-lo.
Então — e só então — ela poderia entrar no quarto e soltá-lo. Era como
deveria acontecer, ela sabia. Era o que tinha visto.
Por isso, Dorothy esperou, o olhar xo no papel de parede
descascado. Não conseguia deixar de pensar em sangue. O sangue que
Mac arrancaria de Ash dali a apenas alguns minutos. O sangue que ela
derramaria quando o matasse mais tarde, nessa mesma noite. O sangue
de todas as pessoas que restavam na cidade, milhares e milhares, todas
mortas, se ela não zesse nada.
Sangue demais. Demais. Seu futuro estava encharcado de sangue.
Pensou, de novo, em quando aplicava golpes com a mãe. Quantas
horas tinha passado assim, esperando um otário vir pela rua ou entrar
num restaurante, ensaiando falas na cabeça e sabendo que, se dissesse ao
menos uma palavra fora de ordem, poderia arruinar tudo.
Sem chance de isso acontecer agora, pensou inutilmente. De acordo com
tudo que sabia sobre a viagem no tempo, não importava o que ela
zesse. O resultado seria o mesmo.
Franziu a testa, revirando isso na cabeça. Nunca havia pensado
exatamente assim antes. Num golpe, precisava controlar cada variável de
uma interação para obter o resultado desejado. Mas a viagem no tempo
não era assim… o que era garantido era o resultado, não importando o
que ela zesse para chegar a ele. Certo?
Pensar nisso desgastava o cérebro. Tinha descoberto que, com a
viagem no tempo, era mais fácil deduzir a lógica agindo e mais tarde
analisar os fatos.
— Não há tempo como o presente — murmurou. Uma olhada em
volta mostrou que não vinha ninguém. O corredor estava vazio,
silencioso. Não havia nem vozes distantes ou som de passos.
Se sua teoria estivesse correta, não importaria se ela se escondesse
atrás dessa parede, se tentasse soltar Ash ou se dançasse uma valsa no
corredor. Não seria apanhada porque não tinha sido apanhada.
Seguiu pelo corredor como uma sombra e se ajoelhou na frente da
porta de Ash, examinando a fechadura. Mal havia apoiado o joelho
quando escutou uma porta se abrir e fechar em algum lugar mais no
fundo do hotel.
Ficou imóvel, os ouvidos atentos.
Passos na escada, chegando mais perto.
Voltou frustrada para o canto onde estivera escondida.
O que isso provou?, pensou. Se tivesse tentado soltar Ash um minuto
mais cedo, será que os passos chegariam um minuto mais cedo,
também? Seus pensamentos e suas ações eram catalisadores que
provocavam outras ações, e assim por diante, para sempre?
Sentiu que estava à beira de captar uma ideia nova, algo em que
ninguém já havia pensado. Mas, sempre que chegava muito perto, a
ideia se enterrava mais fundo na mente e se perdia.
Mac apareceu na escada antes que ela pudesse descobrir o que era
aquele pensamento. Estava acompanhado por duas Aberrações cujos
rostos Dorothy não conseguia ver de onde estava, atrás da quina da
parede. Prendeu o fôlego, esperando que ele olhasse na sua direção, que
viesse bamboleando até onde ela estava escondida, mas, claro, ele não
fez nada disso. Não iria fazer, ela sabia, porque ele não a tinha visto na
primeira vez em que tudo isso havia acontecido. Até que ponto poderia
forçar a situação? Será que ele ainda seria incapaz de vê-la se ela
disparasse pelo corredor gritando? Ou será que ela não poderia fazer
isso porque ele não a tinha visto?
Pensar nisso bastou para fazer sua cabeça quase explodir.
Observou em silêncio enquanto Mac pegava uma chave no bolso e
abria a porta do quarto de Ash. Ofegando, inclinou-se mais um pouco
para o corredor, com os ouvidos atentos.
Ash disse alguma coisa que ela não conseguiu escutar.
— Servimos bem para servir sempre — respondeu Mac.
Um instante depois, ele entrou no quarto com as Aberrações e
fechou a porta.
Dorothy permaneceu agachada, alerta, tentando ouvir qualquer som
ou movimento do outro lado da porta. Escutou pancadas abafadas,
vozes. E então… um grito. Fechou os olhos no momento em que aquilo
começou e se obrigou a respirar pelo nariz.
O tempo era interminável. Parecia que se passavam horas, mesmo
que fossem apenas minutos. Depois de um tempo, Dorothy se sentou no
chão, encostando na parede com as pernas esticadas à frente. Esperando,
esperando. A cada minuto, pensava que, nalmente, Mac caria
entediado, iria embora. No entanto, ele não fazia isso.
Você vai salvá-lo, lembrou Dorothy, quando o som dos gritos de Ash
cou insuportável. Você vai tirá-lo daqui.
Paciência.
E, nalmente, passos. Dorothy se empertigou mais, puxando as
pernas para junto do peito para não ser vista. Não ousava respirar, não
ousava se mexer.
Houve uma batida à porta. Dobradiças rangendo e o som da voz de
Eliza.
— Mac está ocupado agora. O que você quer?
Dorothy cou em quatro apoios e olhou pelo canto da parede. Viu
ela própria, como estivera quatro dias antes, parada no corredor ao lado
de Roman.
Inclinou a cabeça, incapaz de afastar o olhar. Ela era mais baixa do
que imaginava. Mal chegava aos ombros de Roman. O cabelo estava
embolado e escorrido, e as botas e o casaco estavam sujos de lama.
Dorothy sabia que era porque ela e Roman tinham passado o dia
voltando no tempo de novo e de novo, na chuva, tentando salvar a vida
da irmã dele. Um nó se formou na garganta dela ao pensar naquilo.
Tinha sido um dia difícil e só iria piorar. Em apenas algumas horas,
Roman iria morrer. Mac iria prendê-la como refém. Sua gangue iria se
virar contra ela e ela caria sabendo que Ash estava desaparecido.
O resultado não podia ser alterado, mas tudo que levava até lá
poderia, pensou.
Isso importava? Não sabia.
Sua própria voz ecoou no corredor, interrompendo seus
pensamentos.
— Isso é novo — disse a voz.
Dorothy cou olhando enquanto seu eu do passado notava as botas
de Eliza, cheia de suspeitas.
Eliza apenas sorriu.
— Mac me pediu um favor.
— Você trabalha para o Mac agora? — perguntou Roman.
— Não quem assim tão surpresos. Foram vocês que me deram a
ideia — disse Eliza. — Ou não lembram da nossa conversinha no
Coelho Morto?
Um grito abafado ressoou dentro do quarto. Dorothy cravou os
dedos no carpete.
O resultado não pode ser alterado, pensou. Tinha de haver algum modo
de usar isso a seu favor.
Seu eu do passado estava olhando para a porta, suspeitando.
— Quem tá aí dentro?
— Ninguém com quem você precisa se preocupar — reagiu Eliza
rispidamente.
A Dorothy de quatro dias atrás tirou uma adaga longa e na de
dentro da manga e a levantou diante da luz.
— Você sabe quanta pressão é necessária para romper um tímpano?
— perguntou. — Eu mesma não sei, mas ouvi dizer que as pessoas
faziam isso por acidente, com grampos e cotonetes. Imagina só o dano
que isso aqui causaria.
Eliza olhou para a lâmina e lambeu os lábios. Espiando do canto,
Dorothy sorriu. Aquele momento tinha sido divertido.
— Diga a Mac que quero falar com ele agora — disse seu eu do
passado.
Dorothy cou agachada, repassando no pensamento o resto da cena,
ao mesmo tempo em que ela se desdobrava.
Mac exigiu ser levado ao futuro. Dorothy e Roman recusaram, e
então ele abriu a porta do quarto, mostrou Ash e ela cedeu
imediatamente.
Sentiu o calor subir pelas bochechas enquanto assistia, lembrando
como tinha se esforçado para esconder a emoção, para ngir que a
tortura de Ash não a incomodava.
Fui idiota, pensou, olhando para si mesma. Podia ver cada emoção se
revelar como se estivesse escrita na sua testa. O horror, a dor, o
desespero. Qualquer um que a olhasse saberia o que ela estava sentindo.
Que vergonha, ter pensado que havia conseguido manter isso em
segredo!
— Não acha que ele merece ter uma morte pública? — perguntou
Roman.
Mac baixou a faca.
— Não é má ideia. — Olhando para trás, acrescentou: —
Mantenham ele vivo até eu voltar.
E saiu junto com eles. Dorothy soltou um suspiro de alívio,
agradecendo porque, pelo menos, Mac não poderia ferir Ash mais do
que já havia feito.
Contou até vinte mentalmente. Então, a porta do quarto se abriu e as
outras Aberrações do Cirko saíram para o corredor, resmungando que
estavam com fome e queriam uma bebida enquanto iam na direção da
escada. Dorothy cou olhando e piscou várias vezes, rapidamente, como
se estivesse acordando.
Era hora de agir. Ash estava sozinho. Ela precisava salvá-lo.
Dobrou o corredor e se ajoelhou de novo na frente da porta do
quarto. Tinha demorado a maior parte do último ano para descobrir
como mexer naquelas fechaduras so sticadas e modernas. Elas não
podiam ser arrombadas usando um dos seus grampos, como quase
qualquer outra fechadura que ela encontrava. Eram eletrônicas, por isso
Dorothy precisava de outra coisa.
Tirou um cartão do bolso. Tinha pedido para Roman con gurá-lo de
modo especial para abrir todos os quartos do prédio. Passou-o pela
fechadura.
A luz verde piscou.
Ela empurrou a porta.
O cheiro de sangue a atingiu primeiro. Era avassalador, tão forte que
ela quase engasgou. Prendendo a respiração, Dorothy atravessou o
quarto rapidamente e se ajoelhou ao lado de Ash. Ele não parecia estar
consciente.
— Ash… — murmurou ela, afastando o cabelo suado da testa dele. —
Vamos lá, hora de acordar.
Ash pareceu fazer força para levantar as pálpebras pesadas.
— Dorothy? — murmurou, parecendo confuso.
Dorothy levou a mão ao rosto dele.
— Vamos — disse. — Você não tem muito tempo.
Ash continuou sem abrir os olhos. Havia uma crosta de sangue nas
pálpebras, mantendo-os fechados. Era doloroso de olhar.
— Você não está aqui — murmurou Ash.
— Você precisa sair daqui — disse ela, ansiosa, olhando por cima do
ombro. Não fazia ideia de quanto tempo tinham. — Mac não vai
demorar e, se ainda estiver aqui quando ele voltar, vai acabar morrendo.
— Não vou morrer hoje — murmurou Ash. — Eu sei quando vou
morrer.
Eu também, pensou Dorothy.
— Sorte a sua — disse. — Agora vai.
Não esperou que ele se levantasse. Não precisava, sabia que ele faria
isso. Sabia tudo que aconteceria em seguida.
Ash iria com ela e Roman para o futuro. Ela tentaria matar Mac e
fracassaria. Ash e Roman brigariam e Roman morreria.
Seu coração deu um pulo violento. Sabia que tudo iria acontecer
assim porque tinha visto. Não existia outro modo.
O resultado não pode ser alterado, pensou de novo. Talvez estivesse se
iludindo, achando que havia alguma brecha a ser explorada. Talvez ela
fosse impotente.
Tirou a arma de Ash de dentro do casaco e a colocou no piso à frente
dele. Depois, se levantou e foi de volta para o corredor, deixando a porta
escancarada.
Seu coração estava pesado e frio. Parecia uma espécie de tortura
cruel, ver as mesmas coisas acontecendo de novo e de novo. E saber que
não podia fazer nada para impedir.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 10 DE OUTUBRO DE 2074
11H56
A OFICINA

Passei os últimos dias pensando no meu último experimento. Na devastadora morte de Je nho,
o camundongo.
Não consigo deduzir por que ele morreu. Ele era menor do que aquela batata, de modo que
não foi porque a matéria exótica não se estendeu suficientemente além do meu corpo físico. Deve
ter algo a ver com a composição bioquímica dos organismos. O camundongo, diferentemente da
batata, tinha batimentos cardíacos.
Portanto, a questão é: como posso proteger os batimentos cardíacos?
Quando construí minha máquina do tempo, pude integrar as propriedades exóticas da matéria
na estrutura do próprio veículo, estendendo a proteção dada por ela. Fiz isso usando uma técnica
que, na verdade, roubei de Tesla.
Veja bem, uma bobina de Tesla consiste em duas partes: uma bobina primária e uma bobina
secundária, cada qual com seu próprio capacitor. (Os capacitores são basicamente baterias feitas
para armazenar energia elétrica.) As duas bobinas e os capacitores são conectados por um
centelhador — um espaço de ar entre dois eletrodos, que gera a fagulha de eletricidade. Uma
fonte externa conectada a um transformador alimenta todo o sistema. Essencialmente, a bobina
de Tesla é feita de dois circuitos elétricos abertos conectados a um centelhador.
A bobina primária precisa ser capaz de suportar a enorme carga e os enormes surtos de
corrente, por isso geralmente é feita de cobre; o cobre é um condutor de eletricidade muito bom.
Tive o cuidado de usar placas de cobre na estrutura de todas as minhas máquinas do tempo por
isso.
Quando você já tem uma máquina do tempo, é fácil criar esse tipo de circuito. Sem uma, a coisa
fica mais complicada. Eu precisaria usar um pedaço de cobre para conectar a pessoa à matéria
eletrônica dentro do corpo à pessoa sem nenhuma matéria exótica dentro do corpo. Não consigo
pensar num modo de fazer isso sem implicar, literalmente, o uso de facas e cortes.
O que, obviamente, não vai dar certo.
19

Três visitas a menos.


Dorothy soltou um suspiro profundo enquanto subia de novo na
Corvo Negro. Fazia frio na máquina do tempo e a respiração dela soltava
vapor no ar noturno, pairando como uma nuvem prateada. Os bancos de
couro pareciam gelados sob o casaco no e seus dedos estavam rígidos e
desajeitados por causa do frio. Precisou abrir e fechar as mãos algumas
vezes para estimular o uxo de sangue antes de começar o processo de
ativar interruptores e veri car mostradores.
Não sabia quanto tempo havia passado desde que voltara. Teria
perseguido Ash por vinte e quatro horas, rondando no passado? Teria
levado mais tempo ainda?
Os olhos dela se fecharam enquanto esses pensamentos circulavam
pela cabeça. Só sabia que estava cansada, exausta. Um peso a puxava
para baixo, o corpo todo implorando para dormir. Forçou os olhos a se
abrirem de novo e deu um tapinha leve na própria bochecha.
Ainda não podia dormir. Ainda faltava uma visita.
A visita. Que ela estava morrendo de medo de fazer.
Ajustou a máquina do tempo para pairar, sentindo o estômago
embrulhando enquanto o veículo se erguia acima das ondas e vibrava no
ar. Por um momento, não conseguiu recuperar o fôlego.
Pensou no barco de Ash, vazio, iluminado pela luz sempre mutável da
fenda.
Pensou no véu de sangue utuando na água e na arma abandonada
no fundo do barco.
Um soluço abriu caminho por sua garganta, mas ela o engoliu de
volta. Sem lágrimas, pelo menos por enquanto.

11 DE NOVEMBRO DE 2077
O mundo continuava como antes. A mesma água negra,
assustadoramente calma, ondulando ao vento, o mesmo céu escuro e
distante. Se Dorothy inclinasse a cabeça e prestasse bastante atenção,
conseguiria escutar os uivos e gritos das Aberrações do Cirko saindo do
Fairmont e entrando nas lanchas. Logo, as águas estariam cheias delas.
Era como se tivesse estado longe durante anos, mas eram apenas alguns
instantes. Duvidava que alguém ao menos tivesse notado que ela sumira.
Veri cou o relógio no painel da máquina do tempo: ainda faltava
uma hora para a meia-noite. O que signi cava que ela e Mac tinham
acabado de deixar o corpo de Roman para trás no futuro e voltado. Mac
teria informado ao Cirko Sombrio que Jonathan Asher era responsável
pela morte de seu amado Corvo. Dorothy ainda podia escutar a voz
dele, prometendo à gangue de Aberrações uma enorme recompensa em
troca do corpo de Ash, vivo ou morto. Nesse momento, era apenas o
Cirko que estava caçando Ash, mas Dorothy sabia que logo seria a
cidade inteira. Precisava agir depressa.
Voou até o prédio escolar onde Ash e os outros moravam e pousou a
Corvo Negro na água do lado de fora. Veri cou se ainda estava com a
adaga de Roman en ada no casaco. Estava. Soltando a respiração
lentamente, subiu na doca e deu a volta pela lateral do prédio, contando
janelas escuras até chegar à de Ash.
Ele a mantinha fechada, mas as fechaduras em Nova Seattle eram
uma piada. Dorothy en ou a adaga de Roman entre o caixilho da janela
e o parapeito, balançando a lâmina até encontrar uma trava. Então,
usando a adaga como um pé de cabra, empurrou a janela para cima,
gemendo um pouco quando a madeira nalmente cedeu, abrindo uma
fresta. Guardou a adaga de Roman e passou os dedos em volta do
caixilho, gemendo enquanto a janela estremecia e subia até se abrir por
completo.
O quarto estava vazio, escuro. Ash ainda não tinha voltado do futuro,
mas não deveria demorar muito. Dorothy encontrou um pedaço de
papel e uma caneta velha na escrivaninha e escreveu o bilhete:

Perto da fenda. À meia-noite.

Parou depois de escrever, com um tremor atravessando o corpo


enquanto examinava a mensagem. Não fazia muito tempo que Zora
havia en ado exatamente aquele bilhete diante do seu rosto e exigido
saber por que ela o havia escrito e o que tinha feito com Ash. Na
ocasião, Dorothy insistiu que não tinha sido ela. Sentiu um aperto no
peito, percebendo que estava se transformando em uma mentirosa.
Mentirosa não é a pior coisa em que você vai se transformar hoje à noite,
disse a si mesma. Um gosto azedo tomou a boca dela. Ela o engoliu,
voltando à janela.
Era hora de acabar com aquilo.

Faltavam quarenta e cinco minutos até eles se encontrarem. Dorothy


voou com a Corvo Negro até uma parte deserta da cidade e escondeu a
nave entre as árvores, do melhor modo que pôde, usando até mesmo
alguns arbustos e galhos para camu á-la ainda mais. Não podia ir nela
para o encontro com Ash. Com o Cirko vasculhando a cidade em força
máxima, seria vista. Precisaria voltar para pegá-la mais tarde, depois…
depois de tudo estar feito. Assim que se convenceu de que ninguém
esbarraria na máquina do tempo por acaso, começou a longa caminhada
de volta ao Fairmont.
O hotel estava escuro quando ela chegou; Mac tinha saído com o
resto do Cirko Sombrio para procurar o traidor. Dorothy sabia que seu
eu do passado estaria no quinto andar, no quarto de Roman, tentando
entender tudo que havia acontecido. Havia pouco risco de alguém vê-la.
Mesmo assim, puxou o capuz sobre o rosto e foi até a garagem.
Encontrou um barco de que ninguém daria falta e entrou dentro.
Remou até deixar o Fairmont para trás, não querendo atrair atenção
com o barulho do motor. Quando estava su cientemente longe, ligou o
motor, sentindo algum conforto com o som das engrenagens
mastigando o ar. Isso tornava mais difícil ainda se concentrar nos
próprios pensamentos, o que para ela estava ótimo. No momento, seus
pensamentos não eram agradáveis.
Árvores brancas passavam à toda velocidade, fazendo-a se lembrar de
vaga-lumes no escuro. Prestou pouca atenção a elas. Estava fazendo uma
contagem regressiva até a meia-noite, tentando descobrir quanto tempo
tinha antes que precisasse fazer aquela coisa horrível.
Seriam quinze minutos? Dez?
Sua respiração cou mais curta.
A adaga de Roman pesava no bolso do casaco: era o peso das
expectativas do que Dorothy deveria fazer com ela. En ou a mão no
tecido e segurou-a, as palmas cando suadas rapidamente em volta do
cabo de metal frio. Pegou-se imaginando que tipo de adaga tinha o cabo
feito de metal, em vez de osso ou madeira. Será que Roman tinha
encontrado aquela coisa numa das viagens? Ela não se lembrava de ele
ter roubado uma adaga no passado, numa das jornadas no tempo feitas
pelos dois, mas achou que isso não queria dizer muita coisa. Roman
sempre tivera segredos.
Pegou a adaga e a examinou à luz fraca do farol do barco.
Parecia cara, mas não velha. Era pesada e simples, a lâmina quase tão
larga quanto seu pulso. E, sim, o cabo era mesmo feito de algum metal.
À luz fraca, parecia amarronzado, como latão ou…
Dorothy piscou. Uma passagem do diário do Professor relampejou
na sua mente.
Eu precisaria usar um pedaço de cobre para conectar a pessoa à matéria
eletrônica dentro do corpo.
O motor estremeceu embaixo dela, cuspindo um jato de água que
atraiu sua atenção de volta para o barco. Ela estivera examinando a
adaga em vez de guiar, e voltou a en á-la no bolso. Precisava se
concentrar. Aquilo tudo acabaria logo.
Viu o barco de Ash ao longe. E o viu de pé dentro dele, a silhueta à
luz sempre mutável da fenda. En ou a mão no casaco e segurou com
força o cabo da adaga entre os dedos trêmulos.
Cabo de metal, pensou. Cabo de cobre.
Sua mente se agarrou a algo que ela não conseguia entender.
Era estranho, mas sentiu uma calma ao saber o que aconteceria em
seguida. Tinha tentado mudar as coisas. De novo e de novo, mas, no
m, não obtivera sucesso. Havia apenas uma coisa que precisava ser
feita. Uma espécie de consolo estranho, raso, por perceber que jamais
seria capaz de alterá-la, tomou conta de Dorothy. O tempo era um
círculo. Isso já havia acontecido. Era idiotice achar que tinha uma
escolha.
Ash estava de pé no barquinho, a água escura batendo nas laterais. As
árvores pareciam reluzir na escuridão ao redor. Árvores fantasmas.
Árvores mortas. A água se comprimia contra os troncos ocos, brancos,
movendo-se com o vento.
Dorothy puxou o capuz por cima do cabelo. Estava ofegante. O
vento soprou algumas mechas, fazendo-as dançar no escuro. Ela
empurrou aquelas mechas brancas de volta para baixo do capuz com um
movimento rápido, ligou o motor e navegou para perto do homem que
amava.
Ele estava com a mesma aparência de quando tinham se conhecido: a
pele queimada de sol e os olhos de um castanho-esverdeado tão claro
que eram praticamente dourados.
Aqueles olhos lindos se xaram em Dorothy e, por um momento, ela
não conseguiu falar.
— Não achei que você viria — disse ela.
O que queria dizer era: eu esperava que você não viesse. Mas não podia
dizer isso. Suas esperanças não importavam mais.
Ash a encarou, implorando com o olhar. Dorothy viu que ele sabia o
que iria acontecer. E, ainda assim, ele não acreditava. Doía pensar que
ele achava que tudo aquilo poderia ser diferente.
— Não precisa acabar assim — disse ele.
Dorothy abriu a boca. Como explicar? Se não zesse isso, Mac o
encontraria. Arrancaria a matéria exótica do corpo dele. Usaria a viagem
no tempo de novo, de novo e de novo, não se importando se isso
transformasse o resto do mundo em poeira. Era o único jeito. O
resultado não podia ser alterado.
Dorothy envolveu a adaga de Roman com os dedos.
— Claro que precisa — disse.
A não ser que…, pensou.
Não consigo pensar num modo de fazer isso sem implicar, literalmente, o uso
de facas e cortes.
Dorothy hesitou, pensando. Estava tendo uma ideia. O resultado não
podia ser alterado, mas tudo que levava a ele podia.
Seria uma ideia? Sim, era. Suas ações podiam mudar. Ela poderia
fazer isso de modo diferente.
Faróis reluziam na escuridão. Cada nervo no corpo de Dorothy
soltava fagulhas. Ela escutou vozes distantes, seguidas por uma série de
estalos agudos.
Tiros.
Virou-se para Ash. As Aberrações estavam mais perto, circulando.
Logo eles seriam vistos. Se quisesse tentar essa coisa maluca, precisaria
ser naquele momento.
Pegou a adaga de Roman. Os olhos de Ash acompanharam o
movimento, alguma coisa lampejando neles. Não era medo, era
decepção.
— Dorothy…
Ela se inclinou, segurando o ombro dele. Ash a olhou, franzindo a
testa.
— Você con a em mim? — perguntou ela, ansiosa.
Uma expressão confusa obscureceu o rosto de Ash.
— O quê? Eu não…
— Mais perto. — Ela mergulhou a adaga no abdômen dele, logo
abaixo das costelas, onde sabia que a matéria exótica estava alojada. Não
parou até sentir a ponta da lâmina encostar.
Eu precisaria usar um pedaço de cobre para conectar a pessoa com a matéria
eletrônica dentro do corpo.
Alguma coisa faiscou, enviando energia pelo braço dela. Por favor,
funcione, pensou. Em seguida, puxou Ash para perto, a lâmina ainda
conectada àquele pedaço minúsculo de matéria exótica. Ela se jogou
com ele por cima da borda do barco, caindo na água escura.
A fenda fez um redemoinho furioso, puxando os dois para o centro.
PARTE TRÊS
— É, mas e se você voltasse atrás e matasse seu próprio avô?
Ele me tou, perplexo.
— Por que diabos alguém faria isso?
— Novembro de 63, de Stephen King
20
ASH

Calor e dor.
A dor era pior do que o calor. Fazia Ash se lembrar de ondas.
Chocava-se contra ele, passava por cima dele, e fazia-o afundar.
Para baixo
e para baixo
e para baixo…
Justo quando achou que não aguentaria mais, a dor diminuiu, só um
pouco, só o bastante para escutar a voz dela.
— Ash? Ash, está ouvindo? Abra os olhos…
Dorothy. Ele abriu a boca e tentou forçar as palavras para fora, por
entre os lábios, mas logo a dor chegou e tudo começou de novo.
Morrer era assim?
Não sabia.
Nunca tinha morrido antes.
21
DOROTHY
7 DE JUNHO DE 1913

Fumaça e giros. Luzes piscando.


E então ela estava à deriva, à deriva…
A primeira coisa da qual Dorothy teve certeza foi da terra
compactada embaixo dos joelhos, a ligeira umidade atravessando o
casaco. Estava ajoelhada… e depois dobrada ao meio, uma das mãos
apoiada no solo. Sentia a terra úmida sob a palma da mão. Fechou os
dedos e a terra se esfarelou entre eles, o que era bom. Exatamente como
a terra devia se comportar. Era estranho pensar assim, mas estava tonta,
o peito cheio e quente, e não tinha certeza de que a matéria agiria como
devia.
Abriu os olhos, mas o ar estava denso com uma névoa cinzenta que
podia ser fumaça ou nuvens caídas do céu.
Onde estou?, pensou.
E quando?
Começou a engasgar, tosses fundas, ásperas, que pareciam arrancar
pedaços dos pulmões. Pensamentos começaram a se formar na bruma da
sua mente.
Ash. A adaga. A teoria do Professor.
— Ash… — Dorothy ofegou quando conseguiu respirar de novo. Na
mão dela, havia alguma coisa quente, úmida e rme. A adaga de Roman.
Não conseguia enxergar através da fumaça, mas, se era isso que estava
segurando, ela devia estar coberta de sangue. Do sangue de Ash.
O estômago de Dorothy se revirou.
Ah, meu Deus… O que tinha feito?
Começou a entrar em pânico, tentando afastar a fumaça densa e
cinza, tentando enxergar alguma coisa.
— Ash, você está vivo?
Pensou ouvir um gemido, mas não conseguia identi cá-lo através do
som estrondoso que preenchia os ouvidos. Meu Deus, que som era
aquele? Tinha pensado que eram os próprios batimentos cardíacos, a
adrenalina fazendo o sangue bombear rápido e forte, bloqueando todos
os outros ruídos. Mas dava para ver que o som não vinha de dentro dela.
Era outra coisa, alguma coisa próxima e barulhenta.
Houve movimento na fumaça. Piscando, Dorothy achou ter visto
alguma coisa, algum animal voando no céu. Franziu os olhos…
Não, o que viu estava se movendo de modo muito suave para ser um
animal. Era algum tipo de máquina. A fumaça aumentou e se dissipou
ao redor daquilo. Uma luz piscou atrás de nuvens distantes, iluminando
um objeto esguio e metálico contra o negrume.
Um avião, pensou Dorothy, com um toque de déjà vu. E olhou em
volta, observando o ambiente. Galhos nodosos, grama achatada e o
cheiro pesado de fumaça de fogueira. Estava na área do bosque logo
atrás da igreja onde deveria se casar com o doutor Charles Avery, em
1913.
Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. Não tinha como saber a
data ou a hora exata, mas podia supor que era a manhã do casamento, e
que a máquina que tinha acabado de ver decolando não era um avião, e
sim uma máquina do tempo. E que, de fato, era a Segunda Estrela,
desaparecendo no futuro com ela e Ash a bordo.
A última coisa de que se lembrava era de ter estado de pé no barco
precário do lado de fora da fenda em Nova Seattle, em 2077, olhando os
olhos dourados de Ash enquanto cravava uma adaga no corpo dele,
rezando a quem quisesse ouvir para que sua ideia idiota funcionasse.
Soltou um risinho agudo. Fascinante. Tinha acontecido exatamente
como o Professor havia escrito. Claro, nem o Professor nem ela sabiam
que a fenda iria cuspi-los exatamente ali, naquele momento, dentre
todos os tempos e lugares da história para onde poderiam ter ido, mas
Dorothy não conseguia pensar nisso. O tempo, como sempre, estava
escorrendo para longe.
— Ash? — Ela voltou toda a atenção para o corpo esparramado na
terra à sua frente. Depois que a máquina do tempo foi embora e a
fumaça começou a se dissipar, conseguiu vê-lo com mais nitidez.
Ah, ele estava com uma aparência de morte. Deitado de costas, os
olhos fechados, os braços abertos ao lado do corpo assustadoramente
imóvel. A pele estava acinzentada e macilenta. Havia sangue grudado na
camisa, a cor vermelha demais, espalhafatosa à luz da manhã. Olhando-
o, Dorothy sentiu o medo rugir por dentro.
Não, pensou, trincando os dentes. Ele não podia estar morto. O plano
não era aquele.
Não acabaria assim.
Com um grunhido, puxou a cabeça e os ombros de Ash do chão e os
acomodou no colo. Deu um tapinha de leve no rosto dele.
— Ash? Jonathan Asher, está me ouvindo? Acorda. Por favor.
Ele não se mexeu, não fez nenhum som. Suas pálpebras sequer
estremeceram. Dorothy cou imóvel, apavorada.
Ah, meu Deus, o que eu z?
Tateou o pescoço dele, procurando desesperadamente uma pulsação.
Nada, nada e mais nada…
E então… Logo abaixo da pele de Ash, ela sentiu um leve bomp bomp
bomp, tão fraco que mal conseguia perceber a vibração contra o dedo.
Não eram fortes, mas eram batimentos, o que signi cava que havia
esperança. Se ao menos ela pudesse descobrir o que fazer.
Pense, caramba. E levantou os olhos. Ah, isso era ruim. Os dois
estavam no meio de lugar nenhum, cercados por árvores, a poucos
metros da velha igreja e a cerca de um quilômetro e meio da estação de
trem. O hospital mais próximo cava em Seattle, e eles demorariam
séculos para chegar.
— Droga — murmurou Dorothy. — Tendo a história toda na ponta
dos dedos, a gente podia ter pousado em algum lugar com uma droga de
um médico…
Parou de falar imediatamente. Eles tinham pousado num lugar onde
havia um médico. O noivo dela, o dr. Charles Avery, era cirurgião. E
não um cirurgião qualquer; um dos bons. Era o cirurgião-chefe do
Centro Médico Providence de Seattle.
E estava ali dentro.
O coração de Dorothy deu um pulo no peito. Havia uma chance. Se
fosse rápida, ainda havia uma chance.
Inclinou-se para perto de Ash.
— Já volto… — sussurrou. — Só… por favor, por favor, que vivo.

A igreja era menor do que Dorothy lembrava. Uma construção


atarracada, de dois andares, feita de tijolos meio esfarelados, com portas
altas, em arco, e vitrais intricados.
Estava ofegante quando chegou à porta e lutou por um momento
com a madeira pesada, as dobradiças rangendo. Quando conseguiu
abrir, viu que o ar da parte interior estava denso de poeira e do cheiro de
incenso. Podia ouvir música tocando em outro ambiente, alguma coisa
com cordas. Um violoncelo, talvez, ou um violino. Engraçado, ela não
tinha lembrança de ninguém ter arranjado um violoncelista ou violinista
para tocar no casamento.
— Olá? — gritou, olhando ao redor.
Seus passos soavam altos e sua voz ecoava nas paredes de pedra. Mas
tudo bem: ela queria ser ouvida.
— Charles…
A porta da igreja bateu com força atrás dela, abafando sua voz.
— Posso ajudar? — disse uma voz.
Dorothy girou rapidamente, o coração martelando enquanto o olhar
pousava na mulher mais velha e miúda, impecavelmente vestida, que
estava começando a descer a escada de pedra.
Trincou os dentes com tanta força que o maxilar começou a doer. A
mulher tinha cabelo denso e escuro, preso num coque intricado no topo
da cabeça, e a examinou com olhos pretos confusos.
— Lamento, mas este é um serviço privado.
A mulher falava com o tipo de voz friamente educada que alguém
usaria com um parente longínquo e irritante. Fez um gesto na direção
da porta.
— Terei de pedir que você…
— Mãe — interrompeu Dorothy, quase engasgando com a palavra. A
boca estava seca e pegajosa. Molhou os lábios e acrescentou, tentando
um sorriso: — Não me reconhece?
A mulher virou o corpo na direção de Dorothy e a olhou de cima a
baixo, começando a falar antes de registrar o que via.
— Não desejo chamar as autoridades, senhorita, mas veja bem, isso
é…
Ela piscou, deixando o resto da frase no ar. Suas sobrancelhas se
franziram.
— O que…
E deu um passo mais para perto de Dorothy, os olhos se estreitando
ainda mais. Os lábios nos se separaram, mas ela não falou. Por um
momento longo e terrível, houve apenas silêncio.
Dorothy inspirou por entre os dentes e se permitiu ser examinada.
Tentou imaginar como devia estar sua aparência naquele momento, com
o cabelo branco e a cicatriz no rosto, a terra e o sangue manchando a
pele, a calça.
— Eu… eu não entendo — disse sua mãe, nalmente, soltando o ar.
E como poderia entender?, pensou Dorothy. Mas não disse isso em voz
alta. Sua mãe merecia uma explicação, mas ela não conseguia pensar
nem mesmo em por onde começar. Pelo cabelo? Pela cicatriz? Pelo fato
de que a viagem no tempo era real?
Ela não tinha tempo para nenhuma daquelas questões.
— Mãe — disse Dorothy, com o máximo de calma que pôde —, sei
que deve ser um choque terrível para a senhora, mas não há tempo de
explicar o que está acontecendo. Preciso encontrar Charles
imediatamente.
— Charles — repetiu sua mãe, parecendo atordoada. Em seguida
balançou a cabeça, meio se virando de volta para a escada. — Eu acabei
de ver…
— Charles, mãe — interrompeu Dorothy, frustrada. — Onde ele
está?
Mas a mãe não parecia estar conectada à parte do cérebro capaz de
responder. Ela abriu a boca e fechou de novo, as rugas da testa se
aprofundando.
Dorothy se forçou a pensar. Faltavam apenas alguns minutos para o
casamento. Ela deveria estar lá em cima, sentada imóvel no quarto de
vestir para não estragar o penteado nem amarrotar o vestido, esperando
que as damas de honra viessem buscá-la.
Portanto, Charles devia estar…
Levantou a cabeça, percebendo que o olhar era atraído para um curto
corredor que terminava numa pesada porta dupla. Sabia que aquela
porta dava na capela. Tinha estado aberta enquanto os convidados
chegavam, mas estava fechada, o que só podia signi car que todos os
convidados já se encontravam lá. E se todos os convidados já se
encontravam lá, Avery devia estar…
Ah, não, pensou Dorothy, com a compreensão baixando com força
total. Avery estava de pé na parte da frente da capela, perto de uma
porcaria de um padre, com toda a família e amigos sentados nos bancos
diante dele. Dorothy sentiu o coração pulsando dentro do peito e, por
um momento, pensou que iria vomitar. Se queria convencê-lo a ajudar
Ash, primeiro precisaria andar pelo corredor entre os bancos e alcançá-
lo. Que ironia terrível.
De repente, a mãe a agarrou pelo pulso.
— Senhorita, não sei que jogo você está fazendo, mas se não for
embora imediatamente terei de chamar as autoridades.
— Ah, por favor, mãe, nós duas sabemos que a senhora não fará isso.
— Dorothy torceu a mão, soltando-a. — A senhora tem uma cha
policial mais comprida do que o meu braço. Tanto quanto eu, não quer
que a polícia venha aqui.
— Mas como foi… — Loretta estava nitidamente tentando parecer
calma, mas sua respiração cou presa, fazendo a voz falhar. O olhar
voltou ao rosto de Dorothy e ela parecia travar alguma luta interna
consigo mesma com relação ao que via. — Isso não é possível.
Dorothy deu um passo na direção da capela. Loretta entrou na
frente, bloqueando o caminho.
— Mãe, por favor… — pediu Dorothy com um suspiro exasperado.
— Pare de me chamar assim!
— Então, por favor, saia do caminho. — Dorothy desviou da mãe e
foi andando rapidamente, empurrando a porta dupla da capela.
A música aumentou de volume, não somente violinos e violoncelos,
mas um quarteto de cordas completo.
Que lindo, pensou. Sem dúvida, Avery se esforçou.
E então a música foi abafada pelo som de madeira rangendo e corpos
se virando enquanto setenta e cinco pessoas giravam nos bancos para
olhá-la.
22
ASH

Às vezes, a dor diminuía por longos períodos, deixando Ash sozinho no


nada.
Não era exatamente o nada, era mais uma escuridão. Como uma
noite sobre mais uma noite sobre mais uma noite, e mais e mais, para
sempre.
E então, depois do que pareceu um tempo muito longo… alguma
coisa que não era escuridão. O negrume parecia diferente, de algum
modo. Mais intenso. Ash se estendeu através da névoa no cérebro,
lutando para se lembrar da palavra.
Azul. Era isso. E não somente azul, mas também púrpura, e clarões
profundos, sangrentos, de vermelho. As cores faziam redemoinhos, uma
ao redor da outra. Quanto mais Ash olhava, mais cores pareciam se
entrelaçar nas espirais e nos tentáculos da escuridão que era toda a sua
existência.
Houve um clarão laranja. E um círculo rosa. Pontos de luz
relampejavam profundos dentro do breu, e por um momento o zeram
pensar em estrelas. Dezenas, em seguida centenas, e depois toda uma
galáxia esperando por ele.
Um estrondo profundo ecoou em algum lugar da mente dele, e todas
as estrelas se apagaram ao mesmo tempo, como se jamais tivessem
estado ali.
Túnel do tempo, pensou Ash, relaxando. Era o que isso o lembrava:
estar dentro da fenda. Se ele estava dentro da fenda, tudo caria bem.
Sempre havia se sentido em casa dentro da fenda.
Relaxou e, enquanto relaxava, imagens da sua vida começaram a
surgir na mente, aparecendo e desaparecendo como ashes de uma
máquina fotográ ca.
Ele era criança, pequeno, e estava correndo. Podia sentir o sangue
bombeando no peito e nas pernas, os pulmões se expandindo e se contraindo atrás
das costelas. O sol estava quente nos ombros, e em sua volta havia o marrom, o
amarelo e o verde do milharal, oscilando. Ele estava correndo no milharal atrás
da casa dos pais e era verão.
Em dias assim, sempre se sentia capaz de correr para sempre…
E então a lembrança mudou:
Tinha dezesseis anos e era seu primeiro dia no campo de voo. Estava parado
diante de um grupo de soldados, todos mais velhos do que ele, carrancudos e
con antes. Eles o deixavam nervoso. Achou que deviam ter crescido perto de
aviões, em vez de pés de milho e terra. Visualizou-os subindo nas cabines dos
jatos como jovens príncipes montando belos corcéis, pilotando-os com tanta
facilidade que fariam parecer que eram coisas vivas, que respiravam. Sentiu a
vergonha subir pelas bochechas. Todos estavam rindo dele, sabia, dizendo que ele
tratava as aeronaves como se pudessem morder…
Mais uma vez, a lembrança mudou.
Era noite e Ash estava dormindo, mas um homem agarrou seu braço,
acordando-o com uma sacudida.
— Meu nome é Professor Zacharias Walker — disse o homem num sussurro
profundo, vibrante. — Sou um viajante no tempo vindo do ano de 2075. Se me
acompanhar, posso lhe mostrar minha máquina do tempo.
E de novo.
Ash estava numa clareira de terra, cercado por árvores, o ar cheio com o som
de sinos de igreja. Havia uma garota parada diante dele, descalça, usando um
vestido de noiva com a bainha suja de lama. Era a garota mais linda que Ash
já vira, com a pele parecendo porcelana, uma boca pequena em forma de botão
de rosa e cachos castanhos cascateando nos ombros.
Os sinos pararam de tocar e a garota forçou a boca a dar um sorriso
treinado.
— Na verdade, esperava que o senhor pudesse me ajudar — disse ela,
inclinando a cabeça. — Acredito que estou perdida.
Ash sentiu os lábios se movendo.
— Me perdoe por dizer isso, senhorita, mas parece que você queria se perder.
Ela tentou conter um sorriso.
As imagens começaram a se desvanecer, girando e desaparecendo nas
paredes púrpura e azuis e nas estrelas que piscavam distantes…
23
DOROTHY
7 DE JUNHO DE 1913

Dorothy parou na entrada da capela, o nervosismo se arrastando pela


pele. Havia uma dúzia de bancos à sua frente, todos ocupados por
pessoas que tinham se virado para olhar. Elas haviam esperado um
vestido bonito, ores, uma noiva. E não a garota suja que estava ali, de
cabelo branco e com uma cicatriz no rosto. Dorothy cou olhando as
sobrancelhas franzidas e os lábios contraídos, a confusão evidente em
todos os rostos ao mesmo tempo. Sussurros irromperam como
pequenos incêndios orestais: uma pessoa se inclinando para a do lado e
depois cinco pessoas, todas falando baixo, e então, menos de um minuto
após ela ter aberto a porta, toda a capela estava falando ao mesmo
tempo.
— Quem é ela?
— … poderia estar fazendo aqui…
— Alguém a reconhece?
Um sorriso ansioso surgiu no rosto de Dorothy. Mexa-se, disse a si
mesma. Deu um único passo, as pernas tão rígidas que achou que
tropeçaria nos próprios pés. Anda, é fácil. É só colocar um pé na frente do
outro.
Um passo se transformou em dois, e depois três, e então ela estava
andando pelo corredor, os olhos à frente, ngindo que não havia nada
de errado.
Charles esperava na parte da frente da capela com uma expressão
interrogativa no rosto sem graça. Dorothy havia esquecido que ele era
assim: não era feio, mas era terrivelmente, quase assustadoramente
tedioso. Todas as feições eram o que seria de esperar, o nariz em forma
de nariz, os olhos num tom chapado de castanho e situados à distância
correta um do outro, o cabelo não muito comprido nem muito curto,
partido no centro. Era o tipo de rosto que a gente começava a esquecer
antes mesmo de afastar o olhar.
Ele não pareceu reconhecer Dorothy até ela estar parada diante dele.
Então piscou duas vezes.
— Ah…
— Charles — disse Dorothy, apressada. — Infelizmente não há
tempo para explicar…
— Você está tão… tão diferente! — Charles conseguiu dizer.
Em seguida inclinou a cabeça, examinando-a como se não pudesse
precisar o que havia mudado na aparência dela. Tirou um lenço do
bolso e o passou de leve no lábio superior.
— O que aconteceu?
Dorothy teve uma percepção súbita, dolorosa, do padre e dos
padrinhos ali perto, ouvindo cada palavra. Ao fundo, o quarteto de
cordas continuava tocando corajosamente. Os sussurros tinham
diminuído um pouco, todo mundo esperando para ver o que
aconteceria.
Dorothy se inclinou um pouco mais para perto de Charles.
— Charles, há um rapaz na clareira lá fora — disse ela, numa voz
baixa e urgente. — Ele precisa desesperadamente de ajuda… Ele está
morrendo.
Charles piscou, com um franzido surgindo entre as sobrancelhas.
Parecia não ter certeza do que dizer. Tentou dar um sorriso, em seguida
pareceu perceber que isso não era adequado e comprimiu os lábios.
— Minha querida… É o dia do nosso casamento.
— Esse rapaz vai morrer se você não ajudá-lo.
— Nós deveríamos nos casar… — Seu olhar se demorou na cicatriz
dela, com uma expressão bastante perturbada. Pigarreando, ele
acrescentou: — Todo mundo está olhando.
— Por favor, Charles. — Dorothy segurou o braço dele. — Ele
precisa de você.
Devia haver alguma coisa na voz dela, algum sinal da dor profunda
que ela sentia, porque, depois de um momento, Charles assentiu.
— Claro. Onde ele está?
Dorothy o levou, acompanhado de dois dos padrinhos dele, até a
clareira plana onde tinha deixado Ash deitado no chão. Ainda se
encontrava a certa distância, mas mesmo assim viu que a pele dele estava
mais pálida do que quando ela o havia deixado, e cando quase verde.
Não sabia se ele estava respirando.
Ela parou, sentindo um aperto no peito. Seria tarde demais? Será que
ele…
Charles passou por ela e se ajoelhou ao lado de Ash. Inclinou-se para
perto, veri cando a pulsação.
— O pulso está fraco, mas está aí — disse depois de um momento, e
Dorothy sentiu um pouco da tensão se aliviar.
Ah, graças a Deus.
Charles se empertigou e começou a subir as mangas.
— Preciso do meu kit. Está no meu quarto de vestir…
Dorothy se virou para correr até lá, mas um padrinho já estava indo
pelo gramado. Então, ela se agachou ao lado de Charles.
— O que mais? — perguntou, ansiosa. — Como posso ajudar?
Charles a olhou como se tivesse esquecido que ela estava ali. Dava
para ver que ele tinha entrado em modo cirurgião e que seu único
objetivo era salvar aquela vida.
— Ponha a mão aqui — disse ele, e pegou a mão dela, apertando a
palma no ferimento embaixo das costelas de Ash. — Precisamos
estancar o sangramento.

Trabalharam durante horas. Os convidados do casamento caram por


perto durante um tempo, olhando espantados e murmurando entre si,
até que Loretta disse algo sobre lanches e o espaço e os levou de volta
para a igreja. Dorothy achou que ela os estava aplacando com comida
antes de dar a notícia de que podiam ir para casa, que não haveria
casamento. Mas, com sinceridade, não sabia e nem se importava. Só
pensava em Ash.
Dorothy não tinha ideia do que Charles estava fazendo, mas era boa
em seguir orientações. Enxugava a testa dele, entregava instrumentos do
kit. E o tempo todo sentia que o estava vendo pela primeira vez.
Quando ele começou a costurar Ash, as pernas de Dorothy estavam
entorpecidas e os ombros encolhidos, mas ela mal percebia o
desconforto. Charles era como um mestre alfaiate; cada ponto que dava
no corpo de Ash era tão minúsculo e perfeito que era praticamente uma
obra de arte.
Quando terminou, ele se sentou nos calcanhares, suando.
— Vamos levá-lo para a casa — disse, passando a mão na testa. —
Precisarei monitorar o progresso dele nos próximos dias, para garantir
que permaneça estável.
— Obrigada. — Dorothy estava ofegante. — Charles… eu nem sei
como… Obrigada.

Dorothy não sabia direito quanto tempo havia passado agachada junto
da cama de Ash. Horas? Mais ainda?
Não tinha dormido nem comido desde que haviam chegado à casa de
Avery, e ela mal percebia as pessoas que entravam e saíam do quarto.
Geralmente era Charles, para veri car o estado de Ash, ou uma das
governantas que vinham trazer a comida que Dorothy não tocava e nem
mesmo olhava. Nada disso lhe interessava o su ciente para convencê-la
a afastar os olhos do rosto de Ash.
Será que havia um pouquinho mais de cor na pele? Será que a
respiração tinha se estabilizado? Aquilo nos cílios dele foi um pequeno
tremor?
Prendeu o fôlego, chegando mais perto.
Mal ouviu o rangido da porta se abrindo ou os passos leves no piso,
mas não pôde deixar de notar o peso súbito que preencheu o quarto,
como uma mudança de temperatura. Franzindo a testa, levantou o olhar.
A mãe estava atrás da cadeira ao lado da de Dorothy, os dedos
apertando o encosto com força, o olhar xo em frente. Dorothy sentiu
cada músculo do corpo se retesar.
— Mãe — disse ela, empertigando-se. — O que está fazendo aqui?
— O que estou fazendo aqui? — Loretta deu um riso tenso. Em
seguida, sentou-se, ajeitando as saias com um movimento rápido da
mão. — Você tem a audácia de perguntar?
— Posso explicar — respondeu Dorothy rapidamente.
— Explicar? — Loretta levantou uma sobrancelha na, parecendo
achar aquilo divertido. — Ande, então. Explique.
Dorothy sentiu os dentes trincando. Quase tinha esquecido como sua
mãe era boa em fazer com que ela se sentisse pequena, como se ainda
fosse uma criança travessa implorando perdão por ter derrubado um
copo de água ou falado fora de hora. Na verdade, aquilo era um talento.
Você comandou gangues e dominou cidades, lembrou Dorothy em
silêncio. Roubou joias de reis. Não tem nenhum motivo para temer sua mãe.
— Mãe, eu…
Loretta estalou a língua, interrompendo-a.
— Talvez você queira começar dizendo como conseguiu arruinar
nossa chance de conseguir mais riqueza e poder do que você e eu jamais
vimos na nossa vida curta e difícil?
O lábio superior de Loretta se curvou ligeiramente enquanto ela se
inclinava adiante, segurando um cacho branco do cabelo de Dorothy.
— Ou, talvez, você pudesse explicar isso. Ou… isso. — Ela indicou a
cicatriz atravessando o rosto que já fora lindo, a expressão
desmoronando de decepção, como se a lha tivesse acabado de destruir
uma preciosa herança de família. O que não estava muito longe da
verdade, supôs Dorothy, sentindo a boca seca. Não sabia por onde
começar.
Entendia a fúria da mãe. Nenhum dos convidados tinha permanecido
nas imediações da capela nas várias horas que Charles havia demorado
para salvar a vida de Ash. Depois disso, Charles sugeriu que eles
adiassem o casamento considerando as… bom, as “circunstâncias
atenuantes”, foram as palavras que ele usou, e Dorothy não pediu que
ele fosse mais claro. Sabia, desde o primeiro dia, que Avery queria ter
um troféu pendurado no braço, uma esposa bonita, quieta, que sorriria
nos momentos adequados e riria das piadas dos colegas dele. Mas, como
Dorothy estava… diferente, ela não lhe interessava mais.
O que, para ela, estava ótimo. Nunca o havia desejado. Desde que ele
lhe permitisse car junto de Ash durante sua recuperação, ela estava
satisfeita.
A mãe, por outro lado…
— Como isso aconteceu? — perguntou Loretta, a voz grave e cheia
de fúria.
O olhar dela foi na direção de Ash, ainda deitado imóvel na cama, a
pele ainda pálida, mas notavelmente menos esverdeada do que antes. Os
lábios de Loretta se retorceram com nojo.
— Quem é esse rapaz? Onde você o encontrou?
Dorothy abriu a boca e fechou de novo. O calor ardia em suas
bochechas. Não conseguia explicar. A mãe merecia uma explicação por
tudo que havia acontecido, mas era uma explicação tão estranha, tão
absurda…
Loretta piscou, olhando para a lha.
— E então? — disse rispidamente. — Estou esperando.
Vamos lá, pensou Dorothy.
— Mãe — começou devagar. — Esse rapaz é um piloto chamado
Jonathan Asher. Ele é um viajante do tempo do ano de 2077.

Houve um instante de silêncio quando Dorothy terminou de contar a


história. O canto do lábio de Loretta se repuxou. Por um momento, as
duas apenas se encararam, sem dizer nada.
Então, Loretta soltou um suspiro baixo e fraco entre os lábios.
— Que jogo é esse? — perguntou.
— Jogo? — Dorothy piscou. — Mãe, isso não é um golpe.
— Não banque a espertinha comigo, garota. Eu sei identi car um
golpe. — Loretta levantou a mão ruim e ngiu tirar um apo de uma
das unhas compridas e amarelas. — Diga qual é a sua intenção. Quer
acabar com o noivado? Ótimo, de qualquer modo não posso fazer nada
para consertar esse relacionamento, mas se pensa ao menos por um
segundo que vai conseguir dinheiro…
— Mãe, olhe para mim. — Dorothy apontou para o próprio rosto
arruinado. — Como eu poderia ter ngido isso? A senhora me viu
alguns instantes antes de eu desaparecer, mas essa cicatriz está curada há
muito tempo.
Loretta levantou os olhos para o rosto de Dorothy. Até então só
havia espiado a lha rapidamente, como se sentisse uma dor física ao
encará-la mais de perto, mas os olhos se estreitaram, examinando-a.
Parecia estar tendo alguma batalha interna consigo mesma antes de,
nalmente, levantar a mão para encostar o dedo na cicatriz de Dorothy.
Dorothy sentiu uma pressão levíssima. Sua mãe hesitou, inspirando
fundo, depois baixou a mão rapidamente, como se tivesse sido
queimada.
— Não sei como você fez isso — respondeu Loretta.
— Não é falsa, mãe — insistiu Dorothy, baixinho. — Estou dizendo a
verdade.
Loretta balançou a cabeça, ainda sem se convencer. Levantou-se e
começou a ir em direção à porta.
— Vou tentar ajeitar as coisas com Avery. Se ele nos expulsar, não
teremos opção, a não ser car na rua.
Dorothy precisou se esforçar para não revirar os olhos. Sua mãe
estava exagerando, como sempre. Sempre havia um plano B, um hotel
que não trancava a porta dos fundos, um bar cheio de empresários com
os bolsos pesados e os cérebros vazios, ou então um velho amigo que as
deixaria dormir no sofá. Mas não queria discutir.
— Obrigada, mãe.
Loretta abriu a porta, mas fez uma pausa antes de sair.
— Eu z tudo isso por você, sabe — disse, num tom de voz muito
diferente. — Para mantê-la em segurança e bem alimentada, para lhe
dar uma vida diferente da minha. Nem sempre pode ter parecido que
era assim, mas é verdade.
Dorothy encarou a mãe, pasma. Em todos aqueles anos de golpes e
mentiras, nem uma vez lhe ocorrera que a mãe podia estar tentando lhe
dar uma vida melhor. Sentiu um aperto no peito.
— Mãe… — começou.
Mas Loretta já havia saído para o corredor, deixando a porta se
fechar.
24
ASH

Os olhos de Ash estremeceram no sono, os ashes passando por baixo


das pálpebras.
Estava na o cina do Professor, parado diante da Segunda Estrela, sua
máquina do tempo. Ele destrancou a porta do compartimento de carga e a abriu
com um grunhido.
— Durante a guerra, a gente tinha uma palavra para…
O resto da sua frase cou presa na garganta.
Ali, agachada no compartimento de carga da Segunda Estrela, estava a
garota de 1913, o vestido de noiva lamacento todo amassado ao redor dela.
Ela afastou o cabelo suado do rosto.
— Acho que vou vomitar — disse.
Então vomitou nas botas de Ash.
A lembrança se esvaiu. No lugar, Ash viu um barco cercado por água
negra… Árvores fantasmagóricas reluzindo brancas na escuridão… Uma
mulher com capuz cobrindo a cabeça… Cabelo branco agitado ao vento… Um
beijo… Uma adaga…
A imagem mudou de novo. Ash estava no complexo do Forte Hunter,
olhando uma garota num trecho de vídeo.
A garota se virou para a câmera e ele captou a curva esboçada de uma cauda
de raposa pintada na frente do casaco preto.
Quinn Fox. Ash cou olhando, inquieto. Se Quinn estava ali, aquilo
signi cava que eles tinham conseguido. O Cirko Sombrio tinha encontrado um
modo de viajar pelo tempo sem matéria exótica.
Quinn levantou as mãos, retirando o capuz que cobria o rosto.
Ela estava virada para longe da câmera, e a princípio ele viu apenas a
cicatriz que marcava metade do rosto, uma coisa disforme, nodosa, que tornava
difícil se concentrar no resto dela. Ash se encolheu ao ver aquilo. Não era
incomum ver cicatrizes feias e deformidades em Nova Seattle — os cuidados
médicos não eram mais como antigamente. Mas entendeu por que Quinn
escondia o rosto. Em seguida, os cabelos dela saíram do capuz, tombando nos
ombros numa confusão de cachos emaranhados.
O coração de Ash parou de bater. Em algum lugar no fundo do corpo dele, as
veias vazavam ácido.
Nunca tinha visto o cabelo de Quinn antes. Sempre estivera escondido no
capuz, e Ash se sentiu idiota por não ter somado dois e dois.
Branco. O cabelo de Quinn Fox era branco.
Na tela, uma Quinn Fox passava os dedos compridos pelo cabelo, soltando as
últimas mechas de dentro do casaco. Não estava mais olhando para a câmera,
por isso Ash olhou para a mão dela, examinando cada detalhe que podia
perceber na tela granulada. As unhas curtas. Os franzidos nos nós dos dedos.
Uma pequena mancha preta parecida com uma tatuagem.
Ele levou a mão ao rosto, pré-lembrando o roçar daqueles dedos em sua pele,
segundos antes de ela cravar uma adaga entre suas costelas.
— Quinn — murmurou no sono.
25
DOROTHY

Dorothy se sentou um pouco mais ereta, com os ouvidos atentos. Ash


tinha falado. Tinha dito o seu nome — ou, bom, tinha dito seu outro
nome. Tinha chamado por Quinn.
Inclinou-se sobre o corpo adormecido dele. Ele não parecia estar
melhorando, pelo que dava para ver. Mal havia se mexido e a respiração
parecia curta e custosa, como quando o tinham trazido para cá. Ainda
estava com aquele horroroso tom esverdeado na pele, que a fez pensar
num surto de febre amarela que tinha visto em Nova Orleans, muito
tempo atrás, quando ela e a mãe estavam passando pela cidade.
— Shh… — murmurou, apertando a palma na testa dele. Apesar do
suor, Ash estava frio ao toque. — Você precisa dormir, Ash. Precisa
recuperar as forças.
Ash se remexeu, afastando a mão dela.
— Para onde você iria, Quinn? — murmurou.
Dorothy franziu a testa. Sentia que estava escutando partes de uma
conversa muito mais longa. Era frustrante, como pegar uma história
pela metade. Mas ela e Ash nunca haviam tido essa conversa. Então, o
que estava acontecendo? Seria um sonho? Uma fantasia?
— Fique aqui — murmurou Ash. — Eu… vou… eu… provavelmente
consigo convencê-los de que estava sozinho aqui. Então você pode… ir
a um lugar seguro.
Dorothy se inclinou mais para perto. As palavras pareciam familiares.
Tinha ouvido Ash dizê-las antes.
— Você acha que eu carei para trás? — perguntou ela, o cérebro
fornecendo as palavras antes que pudesse lembrar de onde.
Com isso, a lembrança voltou numa torrente: ela e Ash estavam na
Estrela Escura, cercados por soldados armados. Tinham acabado de se
beijar pela primeira vez, e Ash estava dizendo para ela car com a
máquina do tempo, para não ser capturada.
Por que ele havia mencionado Quinn?
Ela não entendeu. Não era a primeira vez que dizia tê-la visto no
Forte Hunter. Quando Dorothy voltou no tempo, ele mencionou tê-la
visto percorrendo os corredores com o Professor. Na época, ela estava
tão assoberbada com todas as outras coisas que não pensara muito nisso.
Mas aquilo a incomodou.
Roman tinha voltado sozinho ao Forte Hunter. Eles tinham
concordado que seria confuso demais se ela estivesse lá e nenhum dos
dois queria correr o risco de seu eu do passado e o atual se descobrirem
mutuamente. Quinn Fox nunca entrara no Forte Hunter.
E, no entanto, Ash disse que a tinha visto lá.
E ela não havia pré-lembrado algo assim? Algo sobre perseguir o
Professor pelos corredores do Forte Hunter? Sem dúvida, isso parecia
familiar.
— O que o Professor queria fazer com uma arma? — murmurou
Ash, remexendo-se um pouco no sono.
Dorothy mordeu o lábio. Ele não parecia bem. Olhou para trás,
imaginando se deveria chamar Avery.
Mas, se o chamasse, Ash poderia parar de falar. E ela jamais saberia o
que ele tinha visto no Forte Hunter.
Tomando uma decisão, Dorothy se virou e tocou no ombro de Ash,
balançando-o de leve.
— Ash? Onde você me viu? O que eu estava fazendo?
A testa de Ash cou lisa, a respiração mais rme. Dorothy suspeitou
que, independentemente da lembrança que ele tivesse revivido, Ash
estava em outro lugar, num lugar novo. Recostou-se outra vez na
cadeira, soltando o ar com força.
Como tinha voltado ao Forte Hunter? E quando?
E por quê?
Nada fazia sentido.

Dorothy saiu do quarto de Ash. Havia lâmpadas elétricas em arandelas


nas paredes do corredor, fazendo as sombras tremerem. As botas
ecoavam no piso de ladrilhos e, em algum lugar no fundo da casa, ela
escutou uma voz que podia ser de Avery ou da mãe dela. A voz estava
muito distante para ser identi cada, já que, fosse masculina ou feminina,
tudo que podia escutar com certeza era a cadência da fala, aquele
aumento e a diminuição de volume.
Com o coração batendo forte, entrou no próprio quarto e fechou a
porta com um estalo baixo.
Era o quarto onde ela estivera hospedada nas semanas anteriores ao
casamento, quando não seria adequado car com Avery. Não tinha
entrado ali desde que havia retornado, preferindo, em vez disso, se
aconchegar na cadeira ao lado da cama de Ash, mas viu que o lugar
estava exatamente como o havia deixado. Uma cama fofa, de dossel,
móveis chiques e vestidos caros largados no encosto de cadeiras ou
então chutados nos cantos, fora do caminho.
Fechou os olhos e encostou a cabeça na pesada porta de carvalho.
Obrigou-se a se concentrar na respiração, tentando inalar e exalar em
equilíbrio. Precisava de foco. O que ela sabia? O que aquilo signi cava?
Segundo Ash, Dorothy tinha voltado no tempo, para o Forte Hunter,
em 1980, no mesmo dia em que eles haviam invadido a base para… para
que, exatamente? Seguir o Professor? Falar com ele, talvez? Mas por
quê?
— Droga, isso está me dando dor de cabeça — murmurou em voz
alta, pousando o rosto nas mãos.
Pense, idiota, pense. Que motivo ela poderia ter para falar com o
Professor?
Era verdade que ela até gostaria de trocar uma palavrinha com o
sujeito. Nunca havia se encontrado com ele, mas o Professor devia ser o
cientista mais brilhante que já existira. Para começo de conversa, ele
poderia explicar aqueles terremotos que iriam acabar com o mundo e
dizer se eram provocados ou não pela viagem no tempo. E, se fossem, o
que eles deveriam fazer a respeito. Ela poderia perguntar se havia
alguma chance de salvar Ash. Ah, e ele poderia explicar aquelas malditas
anotações no diário. Viajar pelo tempo sem ME…
Levantou a cabeça, piscando os olhos na escuridão do quarto.
Viajar pelo tempo sem ME.
Dorothy não tinha certeza de que horas eram, mas o céu do lado de
fora já estava escurecendo, portanto, devia ser tarde. Tinha deixado as
lâmpadas do quarto apagadas e a única luz que podia ver vinha da adaga
de Roman, na mesinha de cabeceira, com uma quantidade minúscula de
matéria exótica ainda grudada na lâmina, brilhando e tremeluzindo na
escuridão.
Era um relâmpago roxo. E então era um líquido pálido, vermelho. E
então era algo duro e metálico.
Dorothy mordeu o lábio. Aquela matéria tinha vindo de dentro do
corpo de Ash quando ela o esfaqueara. Aquilo a havia trazido para cá,
para 1913. Tinha lido as instruções do Professor sobre como colocá-la
dentro do próprio corpo para formar um circuito.
Sentiu a pele pinicar. Será que conseguiria?
Será que já havia feito?
Com um arrepio, Dorothy atravessou o quarto e pegou a adaga de
Roman. Era pesada e estava quente. Ela não conseguiu deixar de
estremecer, lembrando-se da última vez em que a tinha segurado, em
como a havia cravado na barriga de Ash.
Atordoada, como num sonho, andou pelo quarto e entrou no
banheiro anexo, onde apertou um interruptor. As luzes se acenderam
com um zumbido, enchendo o cômodo com uma claridade opaca,
arti cial.
Levantou a cabeça, avaliando-se no espelho. Iria mesmo fazer isso?
Segundo os diários do professor, as consequências de inserir a matéria
exótica de modo incorreto poderiam ser bastante sérias. Hemorragia
interna. A pele arrancada do corpo. Morte.
Engoliu em seco. Mas… mas sabia que isso não aconteceria com ela,
certo? Ash a tinha visto no Forte Hunter. Ela devia ter tido sucesso.
Faça uma escolha, pensou. Deveria ser fácil. Morra pulando ou morra
cando.
A lembrança a fez sorrir. Aquele tinha sido o pensamento que havia
atravessado a cabeça dela momentos antes de saltar de uma janela do
oitavo andar. Nunca tinha sido do tipo que fugia de alguma coisa porque
era assustadora. Por que começar naquele instante?
Levantou a bainha da camiseta preta, avaliando a pele branca e
pálida. Levou a lâmina até o espaço logo abaixo das costelas,
encolhendo-se quando o metal frio beijou a barriga.
Só precisava acrescentar um pouco de pressão. Um único furo…
Inspirou pelo nariz e soltou o ar pela boca. Colocou uma pressão
levíssima, fazendo um corte raso na pele.
A dor a atravessou. Cada nervo do corpo chamejava, implorando que
ela parasse. Continuar cortando, empurrar a adaga para dentro da dor,
ia contra todos os instintos. O cômodo se inclinou e ela sentiu que
poderia desmaiar. Precisava parar… precisava…
Pôs a adaga de Roman na bancada do banheiro. Estava ofegante. O
sangue escorreu pela cintura e empoçou no chão, espalhando-se na
louça branca.
Dorothy piscou, olhando-o, tentando recuperar a força. Lembrou-se
vagamente de ter escondido alguma coisa naquele cômodo. Mas o quê?
Chocolate? A mãe nunca a deixava comer doces, aterrorizada com a
ideia de que arruinassem sua aparência. Talvez um pouquinho de açúcar
ajudasse.
Dorothy se ajoelhou e procurou embaixo da pia. Não encontrou
chocolate, mas encontrou algo melhor: uma garra nha de vidro. Um
sorriso se abriu em seu rosto. Gim.
— Graças a Deus — murmurou, tirando a rolha do frasco. Tomou
metade num único gole. O álcool se espalhou por dentro dela como
remédio.
Levantou-se e pegou pela segunda vez a adaga de Roman. Segurou o
cabo com força e respirou fundo, obrigando-se a mantê-la rme.
Morra pulando ou morra cando.
— Nosso mundo não tem lugar para covardes — disse em voz alta.
Trincando os dentes, apertou a lâmina contra o ferimento aberto,
en ando o resto da matéria exótica dentro do corpo.
26
ASH
10 DE JUNHO DE 1913

Uma explosão de luz, forte demais para se olhar diretamente.


Ash gemeu e fechou os olhos de novo. Era claridade demais, demais.
O que estava pensando, abrindo a porcaria dos olhos como um idiota?
Precisaria ir devagar.
Concentrou-se primeiro na respiração. Inspirar e expirar. Os pulmões
faziam força contra as costelas e algo a ado e doloroso atravessou a
parte inferior da barriga.
Bom, pensou, fazendo careta. Aquilo era preocupante.
Primeiro os olhos.
Dessa vez teve cuidado. Abriu os olhos o su ciente para deixar que
uma lasca de luz na como agulha batesse nas pupilas e parou. Quando
se acostumou com a luz, abriu as pálpebras um pouquinho mais, e
depois um pouquinho mais. Até que estava olhando para o teto.
Hã, pensou, piscando. Era um teto bem… ornamentado. O reboco
tinha a forma de uma estrela, irradiando-se de uma luminária no centro,
com o vidro fosco em forma de cúpula. A luz era fraca e piscava um
pouco. Era diferente de tudo que ele já tinha visto, fosse no seu próprio
tempo ou no futuro.
O que provocou uma pergunta: que tempo era aquele?
Começou a se virar, mas pensou melhor. Sentia muita dor pelo
corpo. Dava para situar a fonte principal — o ponto abaixo das costelas,
onde tinha sido ferido por um pedaço da sua antiga máquina do tempo
—, mas a dor que sentia parecia muito maior do que aquela à qual estava
acostumado. Então precisaria ir devagar, do mesmo modo como tinha
aberto os olhos.
Primeiro a cabeça, pensou, com um gemido. Virou-se para a esquerda
e forçou a vista. Estava num quarto. Bela mobília, ornamentada, como o
teto, e nova em folha, mesmo tendo uma aparência antiquada. Tapetes
persas no chão — novos, como os móveis — e um papel de parede
intricado. Então, ele estava no passado. Razoavelmente longe no
passado, pela aparência dos tapetes. O excesso de ornamentos tinha
saído de moda na década de 1950.
Com um gemido, virou a cabeça para o outro lado…
E encontrou uma mulher vestida de preto, sentada ao lado dele,
olhando-o.
— Ah — ofegou ele. A voz era uma garra arranhando a garganta. Isso
fez com que começasse a tossir.
— Você está acordado — disse a mulher, arqueando uma
sobrancelha. Tinha um ar estranho. Isso o incomodou por motivos que
ele não conseguia identi car. Ela parecia…
Astuta. Ele precisaria ter cuidado.
— Estou — Ash conseguiu dizer, a voz fraca. Muito lentamente,
ergueu o corpo para se sentar. Pigarreando, acrescentou: — Isso é…
surpreendente?
A mulher inclinou a cabeça, avaliando a pergunta.
— Por um tempo pareceu improvável que fosse acordar. Se eu
gostasse de jogos, apostaria meu dinheiro numa morte lenta e dolorosa.
Pelo jeito, eu estava errada.
Ela disse tudo isso como se estivesse comentando sobre o clima, e
não sobre a mortalidade de Ash. Ele engoliu em seco.
— Sorte minha, acho — conseguiu dizer.
A mulher o olhou como se dissesse: É mesmo?
— Não costumo estar errada.
É, pensou Ash. Eu deduziria isso sozinho.
— Onde estou? — perguntou.
— Seattle — respondeu a mulher, com a voz nítida. Em seguida,
levantou uma das mãos, examinando as cutículas por um momento antes
de acrescentar: — Se bem que, se minha lha está dizendo a verdade,
você provavelmente preferiria saber qual é a data, e não a cidade,
correto?
— Filha? — perguntou Ash. De repente, tudo fazia sentido. — A
senhora é mãe de Dorothy?
Pelo menos, isso explicava por que ela era tão aterrorizante. Dorothy
tinha dado a entender que sua mãe era… intensa.
— Sou. — A mulher piscou lentamente. — E você é Jonathan Asher.
O piloto que ela trouxe do futuro.
Disse isso com uma tensão na voz, deixando claro o que achava da
ideia de trazer alguém do futuro. Mas Ash notou um brilho no olhar
dela. A mulher o estava testando.
— Ela contou isso à senhora?
— Ela me contou uma historinha absurda, sim. — De novo, aquele
brilho. A mulher estava tentando decidir se engolia aquilo. — De
qualquer modo, ela me levou a acreditar que você não se importa nem
um pouco com onde estamos. Está mais interessado no quando.
— Seria bom saber, senhora.
A mulher assentiu. Cruzou as mãos no colo e se recostou na cadeira.
— A data é 10 de junho de 1913. Minha lha devia ter se casado na
semana passada.
— Certo — murmurou Ash, sentindo-se culpado por motivos que
não conseguia explicar. — Ela me contou isso.
— Contou, é? — A mulher fungou. — Podemos discutir seu papel
nessa coisa toda daqui a pouco. Por enquanto, eu esperava que você me
dissesse o que quer, exatamente. Dinheiro? — Ela deu um sorriso frio.
— Porque não tenho nenhum. Cada centavo que tínhamos vinha do ex-
noivo da minha lha, Charles. Por motivos que deveriam ser óbvios, ele
não está mais ansioso para bancar nosso estilo de vida.
— No lugar de onde eu venho, dinheiro não tem muita utilidade,
senhora.
— Chega desse negócio de “senhora”. — A mulher balançou a
cabeça. — Pode me chamar de Loretta.
Ash se esforçou para assentir, apesar das ondas de dor que atingiam
sua cabeça.
— É um prazer conhecê-la, sen… Loretta.
Loretta estreitou os olhos.
— De onde você vem, exatamente?
— Dorothy não contou?
— Não chegamos tão longe assim.
— Sou daqui, de Seattle. Só que o ano é 2077.
— 2077? — Loretta sorriu. — As mulheres conseguiram o direito de
votar?
— Conseguiram.
— Pequenas bênçãos. — Ela examinou as unhas e depois estendeu a
mão em cima do colo. — Bem, então… Se você não está atrás de
dinheiro, está atrás de quê? Amor?
Ela disse a palavra amor como se fosse uma piadinha que só os dois
entendessem. Por um momento, Ash sentiu a voz car presa na
garganta.
— Na verdade, sim, estou — respondeu, lentamente. Teve o cuidado
de não olhar Loretta direto nos olhos. Sabia que ela estaria procurando
algo na expressão dele e não queria desapontá-la. Mesmo nessas
circunstâncias estranhas, parecia importante causar uma boa impressão
na mãe de Dorothy. — Se Dorothy me quiser, claro.
Loretta levantou o queixo, com a boca formando uma linha na. Não
disse nada, mas Ash sentiu uma centelha de triunfo, como se tivesse
vencido alguma batalha da qual nem tinha percebido que estava
participando. Era possível que essa mulher sentisse um pouquinho de
respeito por ele, pensou.
— Por falar em Dorothy — acrescentou Ash, sentando-se um pouco
mais ereto. — Ela está… aqui?
— Ah, não. — E Loretta sorriu, a boca cheia de dentes brancos e
a ados. — Parece que minha lha acaba de partir.
27
DOROTHY
17 DE MARÇO DE 1980

A lua pendia cheia e prateada no céu, a luz pálida mal conseguindo


romper as sombras da oresta.
Dorothy estava encolhida atrás de uma árvore nodosa, com o vento
agitando seu cabelo. Através da luz fraca podia vislumbrar a forma
encolhida de Ash mais adiante, a cabeça curvada enquanto abria um
buraco no portão de segurança com arame farpado no topo. Depois do
portão, um grande túnel de metal brotava da lateral da montanha, e
soldados armados esperavam em posição de sentido: a entrada do Forte
Hunter.
Dorothy prendeu o fôlego, esperando. Lembrava-se dessa parte por
causa da primeira vez em que haviam invadido a base, com ela se
escondendo atrás de uma árvore com os outros enquanto Ash ngia
invadir o local, à vista das câmeras de segurança.
A qualquer momento…
Pronto. Dorothy captou movimento com o canto do olho e se virou
quando um soldado apareceu por entre as árvores. Ele se esgueirou
silenciosamente, sacou a arma do coldre e apertou o cano no pescoço de
Ash. Muito lentamente, Ash se levantou, erguendo os braços. O soldado
disse alguma coisa, mas Dorothy não escutou, devido ao som do vento
agitando os galhos das árvores. Tudo bem, disse a si mesma. Não
precisava escutar a conversa. Tinha ouvido na primeira vez.
Um instante depois, outro soldado apareceu, junto com uma
Dorothy ligeiramente mais nova, ainda com o cabelo castanho, além de
Chandra, Willis e Zora. Instantes depois, um grande jipe saiu roncando
do meio das árvores e os soldados os empurraram para dentro.
Dorothy soltou o ar. Isso era bom. Tudo estava acontecendo como
ela recordava. Esgueirou-se, escolhendo o caminho entre gravetos e
pedras, tendo o cuidado de não fazer nenhum barulho ao se abaixar atrás
do jipe. Enquanto os soldados estavam distraídos, experimentou a porta
de trás do veículo.
Nem estava trancada. Eles estavam facilitando as coisas para ela.

Ninguém falou enquanto o jipe sacolejava entre as árvores. Os únicos


sons eram das pedras e dos arbustos sendo esmagados pelos pneus
enormes e um dos soldados pigarreando de novo e de novo, como se
precisasse de uma pastilha para a garganta.
Dorothy teve o cuidado de permanecer encolhida na parte de trás e
manteve a respiração suave e curta, para não atrair a atenção de
ninguém. A oresta era um borrão verde e preto, e a chuva caía
inclinada, batendo no vidro da janela. Se esticasse o pescoço só um
pouco, poderia ver o trajeto que percorriam por entre as árvores.
O jipe seguiu por um caminho de terra que fez uma curva saindo do
meio das árvores, levando-os para uma estrada pavimentada e com
cercas de arame farpado dos dois lados. Adiante, uma leira de soldados
montava guarda na entrada do Forte Hunter, com armas a postos.
Re etores brilhavam acima. O jipe parou e Dorothy escutou vozes
aumentando e diminuindo de volume. Um instante depois, os soldados
se deslocaram para o lado e um caminhão passou roncando.
Dorothy mal conseguiu enxergar as palavras -  
   numa parede distante antes que o jipe entrasse num
túnel escuro, onde o som do motor ecoava em tijolos sujos enquanto o
veículo desacelerava. Vários minutos se passaram até pararem diante do
posto branco que parecia uma cabine de pedágio grande demais. O
soldado que vigiava o posto veio até o jipe, a arma em punho.
Dorothy comprimiu os lábios. Lembrava que nenhum soldado havia
revistado o jipe na primeira vez em que tinha vindo, mas, mesmo assim,
não pôde deixar de car nervosa.
O motorista baixou a janela de vidro do jipe e conversou um pouco
com o soldado, que en m assentiu e abriu espaço para que pudessem
passar.
Dorothy soltou o ar por entre os dentes. Estava dentro. De novo.
Não saiu na cela de detenção, com os outros. Ficou encolhida na
parte de trás até que, nalmente, o jipe foi estacionado perto de um
refeitório. Houve um enorme barulho de vozes e passos, em seguida o
motorista e os outros soldados desceram, deixando-a sozinha.
Contou até cem e, espiando por cima do banco para garantir que
ninguém iria vê-la, desceu também.
Encontraria o Professor.

Depois de uma caminhada eterna pelo túnel escuro e úmido, Dorothy


teve certeza de que estava perdida. Estivera andando pela escuridão
durante o que pareciam ter sido horas, com as luzes no teto cando um
pouco mais fracas a cada passo que dava mais para dentro do túnel.
Não tinha um mapa e, mesmo se tivesse, não fazia a mínima ideia do
lugar para onde o Professor ia. E, mesmo se tivesse uma pista do lugar,
suas duas opções, no momento, eram continuar seguindo por aquele
túnel escuro ou voltar na direção oposta, para o refeitório, onde quase
com certeza seria vista.
En ou as mãos nos bolsos da calça. Seu coração estava batendo mais
rápido a cada momento. Mas por fora permanecia calma. Como a mãe
havia ensinado. Não podia arriscar ser apanhada e jogada numa cela
antes de encontrá-lo. O jeito era continuar pelo túnel. O Professor tinha
de estar ali em algum lugar. Tinha de estar.
Alguma coisa pingava no túnel, o som constante de água batendo no
tijolo como um metrônomo. Depois de contar até cem, Dorothy contou
de volta até zero. Ping. Ping. Ping. Em seguida, disse o alfabeto — de
trás para a frente e de frente para trás. Tinha começado a tentar se
lembrar de todas as palavras de uma cantiga de ninar sobre uma ovelha
quando chegou a uma parede de tijolos.
— Droga — murmurou.
Sem saída. Deu a volta, lutando contra a súbita ânsia de bater em
alguma coisa.
Desesperada, apertou a parede à frente, os dedos se movendo
ansiosos sobre um tijolo. Tinha de haver uma porta. Não podia estar
encurralada. Tinha de haver algo…
Depois de dois minutos procurando no escuro, sentiu uma borda de
madeira áspera. A respiração começou a se acalmar. Sabia. Acompanhou
as bordas até encontrar uma coisa fria e metálica. Uma maçaneta.
Tentou girá-la e… pronto, sua sorte acabou. Trancada.
— Bom, esse é um problema fácil de resolver — murmurou, soltando
um grampo do cabelo.
Quando voltasse a 1913, precisaria encontrar sua antiga cabeleireira e
contar como aqueles grampos haviam sido úteis durante o último ano.
En ou-o na fechadura e, trincando os dentes, girou até ouvir um estalo.
A porta se abriu com um rangido. Rindo, Dorothy passou por ela e
entrou num corredor mal iluminado, com as palavras Ala Leste escritas à
frente numa tinta desbotada e descascando.
Virou-se, afastando o cabelo dos olhos…
E viu a ponta de um paletó escuro sumindo, virando num corredor.
— Professor?
Correu atrás dele. Sentia o coração batendo na garganta, o sangue
correndo ruidoso nos ouvidos. Parecia sussurrar para ela: nalmente,
nalmente.
Perseguiu o paletó escuro passando pela porta e se viu no meio de
uma escadaria. Poderia subir ou descer.
— Professor?
A voz ecoou e ela achou ter escutado passos, alguém correndo para o
topo do prédio. Com o coração martelando, correu, prendendo o fôlego
enquanto subia a escada.
Cada passo provocava um tremor no corpo, chacoalhando os ossos e
fazendo os joelhos doerem. Até que ela chegou a uma porta pesada.
Empurrou-a e saiu ao ar livre.
A luz do sol a acertou no rosto. Dorothy protegeu os olhos,
franzindo-os por causa da claridade.
Havia um homem à frente dela. Tinha a pele e os cabelos de um
marrom-escuro e uma barba preta salpicada de grisalho. Era diferente
do que Dorothy estivera esperando, com seu paletó e sua camiseta preta
e larga. A garganta dela se fechou. Ele se parecia muito com Zora.
O Professor estava cantarolando, segurando um objeto que parecia
uma arma pequena. Dorothy olhou, imaginando se deveria estar
preocupada. Ele não aparentava ser perigoso, mas… Bom, ocorreu-lhe
que ele poderia ser meio maluco. Tinha lido o diário. Ele poderia ser até
mais do que só meio maluco.
Mas, a nal de contas, ela havia ido até ali. Pigarreou.
O Professor levantou os olhos.
— Ah! — disse ele, animando-se ao vê-la.
Dorothy não sabia se tinha sido pelas roupas modernas ou pelo
cabelo branco, mas ele pareceu saber, instantaneamente, que ela não era
do mesmo período de tempo que ele.
— Você veio me pegar, então?
Por algum motivo, a postura casual dele a deixou inquieta. Ocorreu-
lhe que ele não tinha a menor ideia do que estava acontecendo no
próprio tempo. Ela não queria ser a pessoa que daria a notícia.
— Professor — disse, dando um passo à frente. — O senhor sabe
quem eu sou?
Ele estreitou os olhos, observando as roupas rasgadas, o cabelo
branco e a cicatriz no rosto.
— É amiga da minha lha?
O lábio de Dorothy se repuxou.
— Ah, mais ou menos — respondeu, tentando não visualizar a
expressão de terror que atravessaria o rosto de Zora se soubesse que
Dorothy havia se referido a si mesma como sua amiga. — Vim ver se
poderia convencê-lo a vir comigo.
— Ah… — O Professor franziu a testa, torcendo o nariz. — Sei. É só
que… eu esperava ter um pouquinho mais de tempo.
— Professor, nesse momento o futuro está uma confusão completa.
Os terremotos estão piorando e há um homem tentando dominar Nova
Seattle. E a viagem no tempo…
Foi interrompida pelo som de passos. Virou-se com o coração
batendo forte.
— Droga. Devo ter sido seguida.
— Na verdade, acho que eles estão atrás de mim — corrigiu o
Professor.
Ele estava olhando para a arma, mexendo em algo que Dorothy não
conseguia ver.
— Eu não deveria estar aqui. — Ele levantou os olhos, as
sobrancelhas se erguendo acima da armação dos óculos. — Mas duvido
que você devesse estar aqui também.
— De nitivamente, não deveria. — Dorothy espiou ansiosa por cima
do ombro. Os passos estavam chegando mais perto. — Como é que
vamos…
— Ah, isso. — O Professor levantou sua arma. — Estive trabalhando
numa coisa especial.
— A viagem no tempo sem veículo — disse Dorothy, olhando para a
arma.
— Sem veículo, sem fenda, sem nada. — O Professor acariciou as
laterais da arma, com o riso se alargando. — Na verdade, foi por isso
que voltei. Para ver se conseguia um modo de viajar no tempo sem
provocar os terremotos. Acredito que descobri. Basta um disparo disso e
podemos desaparecer para qualquer ponto da história sem afetar nem
mesmo remotamente a estrutura das placas tectônicas.
Dorothy olhou uma última vez para a porta atrás dela. Não tinha
tempo para pensar duas vezes. Podia con ar no Professor ou enfrentar o
que estava por vir pela porta.
— Isso precisa ser injetado na minha aorta também?
— Ah, não, querida, qualquer braço serve. — Ele a encarou,
levantando a arma. — Posso?
Ela ofereceu o braço, nervosa.
Vamos lá, pensou, fechando os olhos com força.
Foi como ser espetada por uma agulha, apenas uma pontada rápida,
uma centelha de dor, e depois mais nada. Dorothy abriu os olhos a
tempo de ver uma luz branca fazendo um redemoinho sob a pele e em
seguida sumir.
— Nossa — disse, pasma.
A porta se abriu com um estrondo e soldados se espalharam pela laje,
ao redor deles.
— Ah. Bom, então. — O Professor empurrou os óculos para cima do
nariz, com um dedo. — Acho que estamos um pouquinho mais
atrasados do que eu pretendia. É melhor eu ser rápido. — Ele apontou a
arma para o próprio braço e puxou o gatilho de novo, encolhendo-se um
pouco. — Hora de ir.
Dorothy cou confusa.
— Ir?
Em vez de responder, o Professor passou um braço pelos ombros
dela e a puxou, saltando da borda da laje.
Balas encheram o ar ao redor. Pessoas gritavam. Dorothy viu o chão
se aproximar, árvores e céu cando turvos enquanto os dois caíam cada
vez mais rápido…
E então, num piscar de olhos, eles desapareceram.
28
ASH
12 DE JUNHO DE 1913

Ash teve certeza de que estava sonhando outra vez.


A dor continuava ali, e tudo oscilava, turvo, como se ele estivesse
acabando de acordar. Estivera deitado de lado na cama, olhando pela
janela para a Seattle de 1913 e tentando não cair no sono.
Não tinha sido fácil. O céu estava cheio de pesadas nuvens cinza.
Parecia muito baixo, e Ash teve a sensação de que, se abrisse a janela e
estendesse a mão para fora, poderia tocar as nuvens. Lembrou-se de
imaginar se elas seriam macias, como algodão, ou molhadas…
E deve ter sido então que caiu no sono. Porque, quanto mais olhava,
mais escuras as nuvens cavam. A princípio, a mudança foi tão gradual
que ele nem a havia registrado. Era como olhar a tinta escurecer à
medida que secava, uma mudança tão sutil que só é perceptível depois,
quando comparamos as imagens mentais.
Ficou observando as nuvens escurecendo e, quando estavam quase
pretas, percebeu que uma tempestade devia estar se aproximando. Mas
— que coisa estranha — a tempestade só parecia estar se formando
numa parte muito especí ca do céu. Se ele virasse a cabeça para a
esquerda ou para a direita, as nuvens continuavam claras e fofas.
Estranho, pensou. Tinha visto um monte de tempestades na vida, mas
nunca soubera que podiam ser assim.
As pálpebras estavam cando pesadas. Houve um relâmpago e ele
pensou ter sentido o trovão ribombar através da terra, a vibração
subindo pela cama. O travesseiro era tão macio…
E então surgiu uma fumaça. Ele sentiu o cheiro antes de vê-la, aquele
cheiro pungente de motor, escorrendo através do vidro das janelas. Os
olhos se abriram de novo no momento exato em que as formas de duas
pessoas surgiram nas nuvens. Ficou olhando, melancolicamente, com a
certeza de que estava sonhando, enquanto aquelas pessoas caíam no
chão, os corpos batendo com força na grama achatada. Por um
momento, elas caram imóveis. Ash imaginou se estariam mortas. Não
tinham caído de uma altura muito grande, mas parecera doloroso.
Começou a apagar. Estava preso naquele ponto intermediário entre o
sono e a vigília. Não tinha certeza de que estava com os olhos abertos, e
tudo parecia muito pesado, muito quente.
As duas pessoas que tinham caído do céu começaram a se mexer.
Ficaram em quatro apoios e depois se levantaram, espanando as calças e
sacudindo os casacos. A fumaça ao redor começou a se dissipar e as
nuvens acima caram claras e mais ralas. Uma das pessoas era uma
mulher…
Dorothy, percebeu Ash. O que ela estava fazendo?
Ela se ajoelhou, estendendo a mão para a outra pessoa. Ash franziu os
olhos. Era um homem com um paletó de tweed, o cabelo grisalho
estranhamente familiar…
Certo, pensou Ash com um riso idiota. Era mesmo um sonho. Porque
aquele não era um homem qualquer, era o Professor, e Ash sabia que o
Professor estava morto. Tinha morrido no complexo do Forte Hunter
em 1980. Ele e Zora tinham visto o vídeo e tinham estado na laje
manchada de sangue. O Professor havia morrido muito tempo atrás.
Por isso, não podia estar ali fora naquele momento.
Não podia.
Os olhos de Ash se fecharam. Ele se sentiu afundando ainda mais no
travesseiro, a sonolência dominando-o como uma onda. Não tinha se
recuperado da facada e precisava de descanso. Descanso e um pouco de
mor na, de preferência. Por que Dorothy não podia tê-lo levado para
um período em que existissem medicamentos melhores?
Dormir, pensou, grogue. Dormir parecia bom demais.
Mas uma coisa o incomodava.
Todos os sonhos que tivera enquanto estava inconsciente eram sobre
o passado, sobre coisas que tinham acontecido. Um deles foi sobre o dia
em que conhecera Dorothy, na clareira perto da igreja, e outro sobre
aquele primeiro momento em que vira o cabelo de Quinn Fox numa
câmera de segurança e percebera que era ela a pessoa que iria matá-lo.
Mas a única vez em que tinha visto o Professor e Dorothy juntos era no
complexo do Forte Hunter.
E… Bom, pensando bem, vê-los juntos era uma coincidência bem
estranha. Quando isso havia acontecido? Dorothy nunca mencionou
que tinha voltado ao Forte Hunter com Roman. E o que ela queria com
o Professor? Pelo que sabia, os dois nunca haviam se encontrado na vida
real. Ela teria contado a ele, não teria?
Minha lha acaba de partir, Loretta havia dito. Ash tinha tentado fazer
com que ela contasse mais, só que ela se recusara. Levantara-se, dizendo
que ele precisava descansar, depois saíra do quarto sem dizer mais nada.
Ash não havia pensado muito no assunto — Loretta estava certa, ele
precisava descansar.
Que droga…
A curiosidade foi su ciente para forçá-lo a reabrir os olhos. O resto
da sonolência havia sumido e a cena do lado de fora da janela não estava
mais tão oscilante e estranha. Dava para ver o Professor e Dorothy
andando pelo gramado. Conversando.
O coração dele começou a bater um pouco mais depressa.
— Professor? — murmurou.
Em seguida, sentou-se com um gemido profundo. Tudo doía. Sentia-
se como se tivesse sido atropelado por um caminhão. Precisou de várias
tentativas para pôr as pernas para fora da cama e várias outras para
conseguir apoiar o peso nelas. Estendeu a mão para a parede para se
rmar, pensando: Calma. Moveu um pé e depois o outro. Só quando
caminhou até o nal da cama é que sentiu con ança para afastar a mão
da parede. Oscilou um pouco, mas conseguiu car de pé. Até ali, tudo
bem.
Foi cambaleando pelo quarto, na direção da porta. Era uma porta
pesada, e ele precisou de todo o resto das forças para abri-la, mas o
corredor do lado de fora estava vazio. Ash sentiu os batimentos
cardíacos martelando. Queria correr, mas não queria acabar de cara no
chão, por isso se obrigou a ir devagar, com cuidado. Era insuportável o
tempo que tudo demorava.
Saiu mancando do quarto e foi pelo corredor. Quando chegou à
escada, havia conseguido se convencer de que estivera alucinando. Tinha
de estar alucinando. O Professor tinha morrido. Não podia estar lá fora.
Não podia.
Devagar, devagar. Cada degrau da escada era uma agonia, mas ele
teria descido uma dezena de escadas se isso fosse necessário para
descobrir a verdade.
Chegou ao primeiro andar e cambaleou até a porta da frente,
segundos antes de ela se escancarar e a silhueta de Dorothy aparecer
contra a luz.
— Ash? — Ela estendeu as mãos para ele, com rugas de preocupação
no rosto. — O que você está fazendo fora da cama? Você está doente…
— Eu… eu vi você… — murmurou Ash, olhando para além dela. —
Vi você com…
O resto da frase morreu enquanto um homem entrava na casa. Ele
usava um paletó de tweed coberto de poeira e pedacinhos de detritos.
Estava com a cabeça curvada, distraidamente espanando o casaco, mas
levantou os olhos quando Ash falou.
O Professor sempre fora assustadoramente parecido com a lha.
Tinha o maxilar forte e os olhos escuros de Zora, e a boca tinha o
mesmo jeito de se retorcer num sorriso irônico sempre que alguém dizia
alguma coisa que ele achasse meio idiota. Mas no rosto dele havia rugas
que Zora ainda não tinha, rugas fundas em volta da boca, vincos que
atravessavam a testa e se espalhavam para longe dos olhos.
— Jonathan — disse o Professor, animado e sorrindo.
Ouvir o próprio nome trouxe lágrimas aos olhos de Ash. Era o
Professor, com certeza, depois de tanto tempo. Ash abriu a boca, mas
não con ou em si mesmo para falar.
O Professor deu um passo à frente, segurando o ombro de Ash.
— Que bom ver você de novo, lho!
29
DOROTHY

Dorothy achou melhor deixar o Professor e Ash terem um momento a


sós. Recuou enquanto os dois se abraçavam, sentindo como se estivesse
invadindo um momento muito pessoal — um encontro entre pai e lho,
e não entre um professor e um aluno, por exemplo. Quando viu que eles
não dariam falta dela, passou por uma porta e foi pelo corredor.
Andou por um tempo pela casa de Avery, sem saber aonde ir. Aquele
lugar nunca tinha parecido um lar para ela, nem mesmo nas semanas
anteriores ao casamento, quando ela e a mãe haviam morado ali. A casa
tinha um ar de museu, os tetos muito altos, os corredores ornamentados
e forrados com os tecidos orientais mais caros, os pisos e acabamentos
brilhando, parecendo recentemente encerados, apesar de Dorothy
nunca nem mesmo ter visto alguém tirando a poeira ou passando pano.
Até a mobília era exagerada, luxuosa, complexa. Sofás forrados de
veludo, almofadas com bordados elaborados, mesas esculpidas com
animais e ores minúsculas. Era demais, e Dorothy cou surpresa ao
sentir uma intensa pontada de saudade enquanto caminhava pelos
corredores.
Pensou em paredes de brocado apodrecido e tapetes encharcados, o
topo de uma claraboia espiando embaixo das nuvens negras. O hotel
dela. Seu lar de verdade.
Pegou-se entrando na sala de estar, que sempre havia sido… bom,
parecia hipocrisia chamá-la de seu cômodo favorito na casa de Avery, mas
pelo menos não era um cômodo que ela odiava. Era pequena e estreita,
com pesadas cortinas de veludo e tapetes grossos que lembravam um
pouco uma cabaninha de criança, quase como se tivesse sido construída
inteiramente de cobertores e travesseiros. E havia o fato de que Avery
raramente entrava ali. O que era sempre uma vantagem a mais.
Havia um bule de chá e várias xícaras arrumados numa mesinha perto
da namoradeira, provavelmente do desjejum servido à mãe dela naquela
manhã, percebeu. Já devia estar frio, mas mesmo assim Dorothy se
serviu de uma xícara. Cafeína era cafeína, e ela não sabia quanto tempo
fazia desde que tivera uma noite de sono decente. Colocou algumas
colheres de açúcar e se deixou afundar no sofá, pensando no Fairmont.
Era o único lugar na vida dela que tinha parecido um lar. Será que
conseguiria voltar?
Tomou um gole de chá frio e amargo.
— Ora — disse a mãe, atrás dela. — Foi um show e tanto que você
deu.
Dorothy se encolheu e quase se engasgou com o chá. Obrigou-se a
recolocar a xícara na mesa lateral, antes de se virar e encontrar a mãe
parada junto à porta da sala de estar.
Loretta entrou e se sentou na poltrona ao lado. Serviu-se de uma
xícara de chá e fez uma careta, bebendo.
— O gosto está horroroso — murmurou, recolocando a xícara na
mesa. — Deveríamos pedir outro bule. — Ela olhou em volta, como se
esperasse que uma criada saísse de uma parede.
— Deixe os empregados em paz. O chá está bom. Na verdade, acho
que está muito bom. — Era uma mentira boba, mas Dorothy estava se
sentindo do contra.
Tomou outro gole cuidadoso, tentando não fazer uma careta sem
querer. A mãe a olhou com desdém, claramente não caindo na mentira.
— Bom, acho que a senhora estava olhando, não é? — perguntou
Dorothy, engolindo o chá.
— Sua pequena proeza lá fora? É, eu estava olhando. Você e aquele
homem parecem ter surgido do ar, com nuvens de fumaça girando em
volta. Muito empolgante.
Havia uma contenção na voz dela, como se tudo aquilo fosse uma
brincadeira elaborada, mas também havia um brilho complexo em seus
olhos. Dorothy sentiu a boca se repuxar. Não importava o que a mãe
dissesse, dava para ver que a curiosidade a estava dominando.
— Ainda não acredita em mim? — perguntou Dorothy, esforçando-
se para conter um sorriso.
Loretta apenas a encarou. Olhando de volta para a mãe, Dorothy se
lembrou de uma história que ela costumava contar, de quando tinha ido
a uma sessão espírita com as irmãs Fox, muito antes de Dorothy nascer.
As irmãs Fox eram as médiuns mais famosas do século XIX e tinham
conseguido enganar a maior parte do país, dizendo que podiam se
comunicar com os mortos através de batidas misteriosas. Mas Loretta
tinha percebido que os barulhos pelos quais aqueles “fantasmas” deviam
ser responsáveis só vinham quando os pés das irmãs estavam no chão, ou
quando seus vestidos estavam em contato com a mesa. Depois da sessão,
ela confrontou as mulheres e recebeu um maço de dinheiro para car de
boca fechada.
Pensando naquela história, Dorothy se pegou incapaz de suprimir
um riso. O fato de não conseguir explicar como ela estava fazendo
aquelas coisas devia estar consumindo Loretta.
— O que, exatamente, você planeja fazer?
Com isso, qualquer vestígio de sorriso sumiu da boca de Dorothy.
Como poderia começar a responder a tal pergunta?
Pensou no Fairmont, meio inundado, com os tapetes arruinados e as
belas colunas. Pensou em Zora, Willis e Chandra e no futuro horrível
que esperava por eles. Céu escuro. Sem sol. Um nó se formou na
garganta de Dorothy. Pensou em Roman, no querido Roman, que não
tinha merecido morrer daquele jeito. Sozinho num futuro sombrio e
terrível.
E, ainda por cima, Mac e aquela pavorosa mulher de preto ainda
mantinham Nova Seattle refém. Dorothy descansou o rosto nas mãos,
beliscando suavemente o nariz. Sua cabeça girava, só de pensar em tudo
isso.
— Precisamos voltar — disse por m. — Logo, espero.
— Voltar? Para o… — Loretta fez uma careta, como se fosse
dolorido dizer — … o futuro?
— É, mãe.
— Algum dia você vai voltar para casa?
Vou? Dorothy piscou, surpresa ao descobrir que não tinha pensado
naquela questão. Não tinha planejado retornar, mas, pensando bem,
percebeu que não poderia, mesmo se quisesse. Assim que voltassem ao
futuro, precisariam descobrir um modo de destruir a matéria exótica que
restava. Não seria possível retornar.
Por algum motivo, aquela percepção tornou muito mais difícil
encarar tudo aquilo.
— Eu… não vou voltar — disse, piscando com força. Eram lágrimas?
Que estranho. — O que signi ca que isso é uma despedida, acho.
Loretta a examinou por um longo momento, com a expressão
ilegível. A mãe sempre havia sido dura com ela. Até mesmo cruel,
pensou Dorothy. Mas ela sabia como era tentar cuidar de si mesma num
mundo onde não possuía nada — amigos, família ou dinheiro — e
achava que entendia de onde vinha aquela crueldade. Também tinha se
transformado num monstro, a nal de contas.
Depois de um momento, Loretta suspirou e estendeu a mão, também
arruinada, para tocar o rosto arruinado da lha. Acompanhou a cicatriz
com o polegar e, por um instante, Dorothy teve certeza de que a mãe
diria algo terrível sobre como ela havia sido descuidada com a própria
beleza. Preparou-se…
Mas Loretta cou quieta. Alguma coisa tinha sido transmitida entre
elas, e Loretta afastou a mão.
— O que você vai fazer nesse mundo futuro? — perguntou,
fungando. Em seguida, olhou por cima do ombro, na direção do
corredor, onde Ash e o Professor ainda estavam conversando. — Vai
car com ele?
— Eu… não tenho certeza. — As bochechas de Dorothy caram
vermelhas. Ela se apressou em acrescentar: — Precisamos cuidar de
outras coisas, coisas muito mais importantes.
Dorothy percebeu o que a mãe estava pensando, tão claramente
como se ela tivesse dito as palavras em voz alta.
Mais importantes do que o casamento? Existe alguma coisa assim?
— Existe um homem terrível, Mac Murphy — acrescentou Dorothy.
— É uma espécie de chefão do crime em Nova Seattle. Ele quer
controlar sozinho a viagem no tempo, e o único modo de impedi-lo é
tornar a viagem no tempo impossível.
Dorothy olhou para a xícara de chá, sentindo-se impotente.
— Portanto, é isso que vamos fazer.
Loretta a estava examinando. Parecia decepcionada, o que provocou
em Dorothy uma pontada de dor. Até naquele momento, depois de todo
aquele tempo, ainda existia uma parte dela que desejava
desesperadamente agradar à mãe.
Depois de um instante, Loretta pegou a xícara abandonada e olhou a
borra no fundo, com o nariz franzido. Balançou o chá, pensando.
— Mac Murphy é o nome desse homem?
Dorothy franziu a testa. A mãe tinha um jeito de fazer perguntas que
não pareciam perguntas. Era como se já soubesse tudo e só quisesse
con rmação.
— É. Esse é o nome dele.
— E ele é uma espécie de chefão do crime? — Chefão do crime foi dito
com o lábio encurvado, como se a ideia fosse uma piada.
Dorothy tomou mais um gole do chá horrível.
— É — respondeu, engolindo. — Ele está com a cidade inteira no
bolso.
— É um homem feliz? — Loretta ergueu uma sobrancelha. — Tem
muitos amigos? Família?
— Bom… não. — Percebeu que nunca tinha considerado a vida
pessoal de Mac Murphy. Ele apenas… existia. — Pensando bem, não
creio que ele tenha amigos ou família.
Um sorriso surgiu no rosto de Loretta. Dorothy conhecia bem
aquele sorriso. Era a mãe pensando no início de um golpe. O coração da
garota se acelerou.
— O que é? — perguntou, pousando a xícara de volta no pires.
Derramou um pouco de chá, um líquido fraco, marrom. — O que a
senhora está pensando?
— Só que estou meio desapontada com você. Homens assim, homens
que têm poder, mas não têm relacionamentos, homens solitários…
Como ensinei você a tratá-los?
— Como otários — respondeu Dorothy, sentindo-se entorpecida.
— Exatamente. — Loretta bateu com a mão arruinada no joelho,
enfatizando o argumento. — Homens assim são fracos, não importando
quanto poder pareçam ter adquirido. São cegos. Acham que a riqueza e
a in uência irão salvá-los, mas se deixam car abertos e vulneráveis. O
que nós fazemos com homens assim?
Dorothy sentiu o lábio estremecer.
— Nós os arruinamos.
— Exatamente — repetiu Loretta com um triunfo gelado. Em
seguida, tomou outro gole delicado do chá e disse com calma: — Nós os
arruinamos.
30
ASH

Ash e o Professor tinham ido para uma pequena sala de estar. Era um
cômodo rebuscado, pequeno e atulhado de coisas, a mobília delicada.
Ash se sentia grande demais para ela, como se pudesse quebrá-la caso se
mexesse muito. Equilibrou-se na beirada de uma namoradeira, uma das
mãos apertando a bandagem na barriga. O ferimento estava começando
a arder e alguma coisa perfumada pairava no ar, fazendo cócegas no
nariz dele.
O Professor se sentou e, por um longo momento, os dois caram em
silêncio.
Ash olhou para os joelhos. Tinha passado o último ano pensando
repetidamente no que diria ao seu mentor se estivesse diante dele assim,
mas descobriu que estava com a mente vazia.
Bom, isso não era verdade. A mente não estava vazia: estava cheia
demais. Era como a estática que via nos antigos aparelhos de TV
quando não conseguia encontrar uma estação. O cérebro dele estava
exatamente assim: uma névoa branca e, a intervalos de alguns segundos,
uma palavra, o início de uma pergunta que sumia antes que ele pudesse
ter a chance de fazê-la em voz alta.
Estava feliz em ver o Professor de novo. Claro que estava.
Mas também sentia raiva.
Ele o deixou pensar que estava morto. Deixou a própria lha pensar
que estava morto.
E não somente por alguns dias — por mais de um ano. Tinha sumido
no meio da noite, deixando-os para limpar a confusão que ele havia feito
na cidade.
Por quê? Essa foi a pergunta que nalmente apareceu na estática do
cérebro. Ash respirou fundo e se rmou, levantou os olhos e viu que o
Professor o encarava com uma espécie de sorriso triste no rosto.
— Imagino que você esteja se perguntando por que eu fui embora —
disse ele, em tom de desculpas.
— Dentre outras coisas — murmurou Ash.
O Professor se remexeu desconfortável na poltrona.
— Bom, infelizmente essa é uma história muito longa.
— Nós temos uns cem anos para matar, mais ou menos.
— Rá, essa foi engraçada. — O canto da boca do Professor se curvou.
— Você fez uma piadinha.
Ash não riu. Pegou-se desejando ter uma bebida nas mãos, só para ter
alguma coisa para fazer. Sem mais nada em que se concentrar, tinha
apertado as mãos, os dedos praticamente brancos, a pele repuxada nos
nós.
Abriu-as, apertando-as de novo, tentando fazer os músculos
relaxarem. Quando o Professor não disse nada, Ash o olhou.
— Os terremotos. Comece por aí.
— Vejo que você fez o dever de casa. — O Professor se inclinou
adiante, apoiando os braços nos joelhos. Em seguida, tirou os óculos e
começou a limpar as lentes com a bainha da camiseta. — Os terremotos.
Tudo isso começou porque eu queria encontrar um modo de evitá-los.
Depois que Natasha…
A voz dele falhou. Ele fechou os olhos por um momento, parecendo
que precisava recuperar o controle antes de prosseguir.
— Depois de Natasha, pareceu importante descobrir por que eles
estavam acontecendo, talvez até mesmo encontrar um modo de prevê-
los no futuro. Há anos, Roman tinha pesquisado esse tipo de coisa,
estudando a atividade das placas tectônicas e das linhas de falha. Chegou
a desenvolver um programa de computador que deveria prever como a
crosta da Terra poderia se mover no futuro, mas desistiu de tudo isso
quando o recrutei para a nossa equipe. Voltei no tempo e peguei a
pesquisa dele emprestada para ver se ele estava descobrindo alguma
coisa.
— E estava — supôs Ash.
— Ah, sim. — O Professor levantou o olhar. — Não tenho certeza de
que o próprio Roman tinha plena consciência do que havia descoberto.
Existiam padrões, veja bem, números que provavam alguma correlação
entre a viagem no tempo e o movimento das crostas terrestres. Era uma
ciência muito confusa, claro. Nem um pouco conclusiva. Mas era um
começo. Assim que vi as tendências, não consegui mais desvê-las.
Precisava saber mais. Só que a cidade ainda estava se recuperando da
inundação. Eu precisava de recursos, de um lugar limpo para trabalhar,
um laboratório, livros… Tentei entrar em contato com os poucos
aliados que ainda tinha no Centro, mas eles não estavam interessados
em ajudar. Os terremotos não os afetavam. E a ATACO… bom, toda a
pesquisa que tínhamos passado anos desenvolvendo, tudo, tinha
desaparecido.
— Por isso, o senhor foi ao Forte Hunter.
O Professor assentiu.
— Assim que percebi que precisava viajar de volta no tempo para ter
acesso aos recursos necessários, toda a história humana se abriu para
mim. Fazia todo sentido voltar a um tempo em que estavam investindo
no tipo exato de ciência que me interessava. Na década de 1980, o Forte
Hunter gastou uma quantidade enorme de tempo e dinheiro
mergulhando no mundo da modi cação ambiental. Acredito que o
plano era transformar isso numa arma. Mais tarde, naquela década, o
programa foi encerrado depois de alguma pressão política. Eu achei que
valia a pena dar uma olhada, por isso voltei.
O Professor fez uma pequena pausa e continuou:
— Passei apenas um dia lá, mas foi o su ciente. Mais do que o
su ciente. Em poucas horas, pude veri car minha teoria, de que o uso
contínuo da fenda do estuário de Puget só levaria a terremotos mais
longos e mais devastadores no futuro.
Ash pensou nas anotações rabiscadas que tinha encontrado no para-
brisa da Estrela Escura, cada uma com uma data e um número de
magnitude, a promessa de terremotos mais devastadores pela frente.
— Então por que o senhor não voltou logo? — perguntou Ash, com
a garganta se fechando. — O senhor poderia ter nos ajudado. Poderia
ter nos alertado.
— Eu queria. — O Professor franziu a testa, com rugas profundas
aparecendo ao redor da boca. — Jonathan, você precisa acreditar que
tudo que eu queria era voltar a Nova Seattle e salvar vocês daquele
futuro. Mas havia mais trabalho a ser feito. Eu tinha descoberto o que
provocava os terremotos, não podia mais usar a viagem no tempo, pelo
menos até descobrir como reduzir os danos que estava provocando a
cada vez que passava pela fenda. Consegui identi car que o tamanho do
terremoto tinha uma correlação direta com a quantidade de ruptura que
a fenda experimentava no momento da viagem.
Ash franziu a testa, com as palavras do Professor girando na cabeça.
— Acho que não entendo…
— Em termos leigos: uma nave maior criava uma grande quantidade
de ruptura, e uma nave menor criava menos. — O Professor manteve as
mãos abertas. — E nave nenhuma…
— Signi ca… nenhuma ruptura?
— Exatamente. — O professor bateu palmas, e o som súbito fez Ash
pular. — Tive a ideia a partir da minha pesquisa com Nikola Tesla. Veja
bem, Tesla tinha teorizado, muito antes, que a viagem no tempo sem um
veículo era possível. E não somente sem um veículo, mas sem acesso
direto à própria fenda. Isso implica usar a energia da Terra para acessar a
energia da fenda onde quer que você esteja, no tempo e no espaço.
O Professor endireitou os óculos no nariz com um movimento
rápido da mão.
— Para ser perfeitamente honesto, eu achei que ele estava louco!
Achei que era impossível. Mas, se desse certo, signi caria viajar no
tempo sem interferir nas placas tectônicas, um modo de impedir aqueles
terremotos. Mas é uma ciência complicada. Eu tinha acabado de
completar o protótipo quando sua amiga chegou. — Os olhos do
Professor se viraram na direção da porta no outro lado da sala, quase
como se esperasse ver Dorothy parada ali. — Ela me disse que
precisavam de mim aqui. Por isso, eu vim.
Ash olhou para as próprias mãos. Não sabia o que dizer. Tudo aquilo
fazia sentido, e ele cou arrasado ao saber que podiam ter encontrado o
Professor semanas antes, se ao menos tivessem procurado mais, se ao
menos tivessem con ado que ele ainda estava vivo.
Fechou os olhos e viu o topo do prédio do Forte Hunter, o rosto
devastado de Zora ao perceber que o pai não estava ali. Sentiu que iria
vomitar.
— Eu… eu achei que o senhor estava morto — admitiu com a voz
embargada. — Zora também. Todos nós achamos.
O Professor ajeitou os óculos no nariz. Os olhos por trás das lentes
pareciam doloridos. Ash esperou que ele perguntasse sobre a lha, mas
o Professor não fez isso.
— Eu não tinha intenção de provocar tanto sofrimento. — Ele deu
um sorriso pequeno, triste. — Estava tentando impedir tudo isso,
acredite ou não.
Ash assentiu, entendendo. Acreditava. Estava começando a perceber
que a viagem no tempo tinha a capacidade de turvar as coisas, de
bagunçar tudo.
O Professor tirou uma pequena pistola prateada do bolso do paletó.
Era estranha, quase como se tivesse sido montada usando peças da nave,
mas o Professor a segurava como se fosse preciosa.
— Os seres humanos viajam no tempo com mais facilidade do que
uma nave desajeitada. Só precisamos colocar uma pequena quantidade
de ME no corpo, o que essa arma permite fazer.
O Professor inclinou a arma e Ash viu que havia uma quantidade
muito pequena de matéria exótica armazenada dentro, mantida no lugar
por uma cápsula de vidro transparente.
— Essa coisa funciona mesmo? — perguntou Ash, cético.
— Ela me trouxe aqui. Sem solavancos nem hematomas, sem chifres
crescendo na minha cabeça.
Ash coçou a nuca. Sentia-se inquieto. Tinha algo a ver com aquela
quantidade minúscula de matéria exótica armazenada na arma do
Professor, a percepção de que havia tanto poder dentro de uma coisa tão
pequena. Qualquer um poderia pôr as mãos naquilo.
— Se alguém como Mac Murphy conseguir se apossar dessa coisa,
não há como saber… — disse com cautela, depois de molhar os lábios.
Houve um rangido do outro lado da sala, o som de uma porta se
abrindo. Ash parou de falar e levantou o olhar.
Dorothy e a mãe dela estavam emolduradas no portal. Olhando-as,
Ash percebeu que não sabia exatamente quanto tempo elas tinham
estado ali. Era possível que tivessem ouvido tudo.
— Se vocês dois não estiverem ocupados… — disse Dorothy. —
Acho que nós podemos ter um plano.
PARTE QUATRO
Não há lugar como o nosso lar.
— O Mágico de Oz
31
DOROTHY
13 DE NOVEMBRO DE 2077

Dorothy e Ash estavam na doca, voltados para o estuário de Puget. Era


uma noite silenciosa, e barcos distantes circulando ao redor da fenda
agitavam a superfície lisa da água. Dorothy contava as ondulações que
vinham na direção deles, fazendo a água bater de leve no cais.
— Eles acham que vamos chegar pela fenda.
Ash afastou o cabelo molhado da testa. Não estava chovendo, mas o
ar continuava denso e úmido. Dorothy sentiu o casaco grudando na
nuca, o cabelo colado na testa e nas bochechas. Estremeceu.
— Parece que sim.
Na verdade, eles não haviam usado a fenda. Com a nova tecnologia
do Professor, eles puderam aparecer a uma distância confortável do
próprio Fairmont, num velho cais que, por acaso, Dorothy sabia que era
usado raramente. Dali, podiam ver o que estava acontecendo tanto na
fenda quanto no hotel, sem chegar perto a ponto de serem vistos.
Isso, claro, não iria durar. Não fazia parte do plano.
Ash tocou com cuidado o ponto abaixo das costelas e fez uma careta.
Dorothy sentiu dúvida por um momento. Ele não deveria estar aqui.
Ainda estava ferido, devia ter esperado mais tempo para se recuperar.
A nal de contas, tinham tempo su ciente em 1913.
Mas Ash insistiu em agirem quanto antes. Não gostava da ideia de
car escondido no passado.
— Qualquer coisa pode acontecer enquanto estamos aqui — havia
dito a Dorothy. E depois, assentindo para o Professor, acrescentou: —
Veja o que aconteceu com ele.
Dorothy supôs que ele tinha razão. O Professor tinha passado apenas
um dia em 1980, mas, quando encontrou o caminho de volta, toda uma
cidade havia se desfeito. Por isso, ela concordou.
O que não signi ca que devo gostar disso, pensou, olhando a palidez de
Ash, o suor na testa dele. Ficaria tudo bem se ele tivesse se permitido ao
menos uma semana a mais para se recuperar, não?
— Vamos resolver logo isso — disse ela, o olhar voltado na direção
das Aberrações. Sentiu o coração começando a martelar no peito. —
Vamos.
Ash assentiu e levantou os braços acima da cabeça. Juntos, os dois
saíram das sombras.
Havia uma densa névoa pairando no ar noturno que di cultava
enxergar quantas Aberrações tinham convergido para as docas na frente
do velho hotel. Dorothy conseguia enxergar as luzes fantasmagóricas
das janelas e as formas turvas de pessoas se movimentando, e nada mais.
Dorothy prendeu o fôlego à medida que elas se aproximavam. Essa
era a parte mais perigosa do plano. Iriam simplesmente se entregar, e, se
as Aberrações decidissem atirar em um deles ou nos dois… Bom, que
fosse. Tudo acabaria antes mesmo de começar.
Foram andando pelo cais. A primeira Aberração se virou e os viu
através da névoa, depois três delas, seis, muitas. Uma gargalhada
percorreu a multidão e Dorothy se enrijeceu, esperando que um tiro
rompesse o silêncio. Não houve nenhum. Ficou incomodada diante do
alívio que sentiu.
— Até agora, tudo bem — murmurou baixinho, enquanto o círculo
de Aberrações se expandia.
Ash assentiu, mantendo o olhar xo à frente.
Mac apareceu no topo da escada do Fairmont com uma arma en ada
preguiçosamente na cintura, o rosto retorcido num rosnado. A mulher
de preto estava logo atrás dele, de cabeça baixa, silenciosa como sempre.
— Veio se render, Quinn? — perguntou Mac.
Dorothy umedeceu os lábios, com o nervosismo retesando os
músculos. Tinham pensado em muitas versões do plano antes de se
decidir por essa, descartando uma depois da outra. Desaparecer no
passado implicava deixar aquele mundo apodrecer, e atacar Mac
diretamente signi cava morrer por estar em menor número.
Assim, decidiram-se por isto. Por aparecerem desarmados, sozinhos.
Na hora, parecia ter sido a única opção. Mas, naquele momento,
percebeu que era loucura.
Por favor, dê certo, pensou ela, levantando as mãos um pouco mais alto,
para mostrar que não planejava pegar as adagas.
Num segundo, Eliza estava ao lado de Dorothy, puxando os braços
dela para trás com mais força do que o necessário.
— Boa escolha — rosnou no ouvido de Dorothy.
Em seguida, começou a revistá-la. Não havia motivo para con ar em
Dorothy, que tentou não fazer uma careta enquanto o resto das
Aberrações os cercava, apontando armas.
— Estou aqui para fazer uma troca — disse Dorothy, esforçando-se
para manter a voz calma. Com o canto do olho, viu Bennett revistar
Ash.
Mac levantou as sobrancelhas.
— Uma troca?
— Isso mesmo. — Dorothy deu um sorriso lento. — Ash e eu
estamos prontos para entregar o que resta da matéria exótica e levar
você até onde está a Corvo Negro. Agora, se você quiser.
Mac mordeu os lábios gordos por um momento, pensando.
— E estão fazendo isso por pura bondade do coração, não é?
— Claro que não. — Dorothy sentiu os cantos da boca se repuxando.
Era difícil manter o sorriso. — Em troca, você vai retirar o prêmio pela
nossa cabeça. Chega de Aberrações perseguindo a gente em todo lugar,
chega de ameaças. Você ca com a máquina do tempo e nós camos
livres. Todo mundo ca feliz.
Por um longo momento, ninguém disse nenhuma palavra. O único
som era o do vento sobre a água, o arrastar de botas na madeira úmida,
o gemido de desaprovação do cais.
— Não existe negócio sem um piloto — disse Mac, com os olhos se
estreitando.
Dorothy manteve o olhar xo à frente. Tinha feito muitas coisas
questionáveis no ano que havia passado como Quinn Fox, mas sempre
tinha podido justi cá-las como necessárias. Estava construindo um
mundo melhor, um futuro melhor. Se havia pessoas em quem ela
precisasse pisar nesse caminho, que fosse.
Mas nunca havia se considerado uma pessoa egoísta. Até aquele
momento.
Se olhasse para Ash, sabia que não conseguiria fazer o que viera fazer.
Assim, manteve o olhar xo à frente, com um músculo se contraindo no
maxilar.
— Eu lhe trouxe um piloto — explicou calmamente.
Com o canto do olho, viu a cabeça de Ash girar, o olhar se cravando
na lateral do seu rosto.
— Quinn… — disse ele.
Dorothy sentiu um músculo no maxilar se retesando. O som da voz
de Ash retorceu alguma coisa dentro dela. Ele parecia se sentir traído
demais, ferido demais.
— Agora você e eu estamos combinados — concluiu ela e deu alguns
passos decididos, de modo a car ao lado de Mac, os dois virados para
Ash, juntos.
Uma Aberração do Cirko gargalhou, o som cortando cruelmente a
névoa. Elas começaram a se aproximar, cercando-o.
— Não.
O rosto de Ash estava terrível, confuso e magoado.
Dorothy se obrigou a encará-lo, apesar da dor que sentia ao fazer
isso.
Ash olhou para Mac e em seguida para ela, como se tentasse apelar
para alguma humanidade dentro dela.
— O que está fazendo? Nós íamos pegar o Mac juntos. Esse era o
plano!
— Ash, seja razoável. Se a gente zesse desse jeito, Mac e os homens
dele iriam car me seguindo pelo resto da vida.
Dorothy sentiu um desconforto enquanto a verdade dessa declaração
preenchia as palavras. A mãe dela é que tinha observado isso. Ela havia
conhecido homens como Mac durante toda a vida, e tinha certeza de
que ele não desistiria até encontrar um piloto. O único modo de se
livrar dele, de uma vez por todas, era lhe dar um.
— Sinto muito — disse, com vergonha de ouvir a própria voz
falhando. — Não existe outro jeito. — Virou-se para Mac e acrescentou:
— Agora você tem tudo de que precisa. Diga, temos um acordo?
Mac estava avaliando a situação, um sorriso de alegria surgindo no
rosto. Parecia ter gostado da proposta. Balançou-se dos calcanhares até
a ponta dos pés, as mãos en adas nos bolsos da calça. Dorothy prendeu
o fôlego, esperando. Praticamente podia ouvir as palavras nos lábios
dele.
Temos um acordo.
Mas, depois de um longo momento, ele balançou a cabeça, quase
com tristeza. Tirou a arma da cintura e a usou para coçar a têmpora.
— O negócio, princesa — disse com um riso curto —, é que não
con o em você.
E apontou a arma para o rosto de Dorothy, puxando o gatilho com o
polegar.
32
ASH

Ash sentiu a coluna se enrijecer enquanto as Aberrações do Cirko o


cercavam por todos os lados. A cabeça dele girava. Não tinha gostado
nem um pouco do plano, desde o momento em que Dorothy e a mãe
dela apareceram para tentar convencê-lo. Parecia perigoso, complicado
e… bom, idiota.
Mas era o único plano que tinham. Por isso havia concordado.
Idiota, idiota, idiota.
Ele engoliu o medo e olhou ao redor, tentando avaliar a situação.
Havia quatro Aberrações à esquerda, outras cinco à direita. Era um
número grande demais para lutar e, com Dorothy ao lado de Mac, ele
estava meio desprovido de aliados. A parede do Fairmont estava atrás
dele, cortando qualquer saída, e o estuário cava adiante, liso, preto e
frio. Não tentaria nadar. Naquela noite, não.
Estava ferrado, não importando de que modo olhasse a situação.
— Não. — Forçou a palavra a sair da boca, com o gosto amargo na
língua. Virando-se de volta para Dorothy, disse: — O que está fazendo?
Nós íamos pegar o Mac juntos. Esse era o plano!
Enquanto isso, baixou a mão para a arma, os dedos envolvendo
suavemente o cabo. O metal estava úmido e frio ao toque no ar
nevoento. Sentiu algum conforto por estar com ela. Ferrado ou não, não
cairia sem lutar.
Prepare-se, disse a si mesmo. Os músculos se retesaram, esperando.
Do outro lado, Mac tirou a própria arma da cintura e a usou para
coçar a têmpora.
— O negócio, princesa — disse ele —, é que não con o em você.
Ele apontou a arma para o rosto de Dorothy, puxando o gatilho com
o polegar.
Ash sentiu uma agitação antiga rugir dentro de si. Queria saltar na
direção de Mac, empurrá-lo para longe de Dorothy. Iria mesmo car
parado, olhando, enquanto ela levava um tiro na cabeça, como um
animal? Não seria capaz disso, não importava o que ela tivesse feito ou
dito.
No entanto, permaneceu parado, mal conseguindo respirar.
Os olhos de Dorothy se viraram rapidamente na direção dele e
depois para o outro lado. Se estava com medo, não demonstrava. O
rosto dela permaneceu sem emoção, sem revelar nada.
— Não me chame de princesa. — Ela deu um sorriso a Mac.
Mac pareceu achar isso engraçado. A gargalhada amarga dele
atravessou a noite.
— Acho essas últimas palavras bastante boas.
Em seguida, lambeu os lábios e franziu os olhos ao longo da mira da
arma, apontando.
— Foi bom conhecer você, raposinha…
— Não! — Num segundo Ash estava com a arma na mão, o coração
batendo forte no peito como um animal. Antes que pudesse puxar o
gatilho, o chão à sua frente explodiu, lançando uma chuva de madeira e
água em cima dele.
Dorothy cambaleou para trás, xingando, enquanto Ash piscava na
nuvem de poeira, tentando encontrar alguma coisa na qual atirar. As
Aberrações estavam se aproximando, disparando. Ele ouviu outro tiro
— este passou perto do rosto dele — e o ar clareou o su ciente para Ash
identi car Mac parado no topo da escada do Fairmont, com detritos
caindo como neve.
Ash afastou o olhar de Mac por uma fração de segundo, tentando
encontrar Dorothy na escuridão.
— Espera, por favor! — Dorothy estava agachada alguns degraus
abaixo dele, com uma na linha de sangue atravessando o rosto. Ela
tentou pegar alguma coisa no casaco e Ash ouviu um som de metal
raspando. — Eu estou com a matéria exótica aqui. Estou dizendo a
verdade…
Um tiro espocou no ar e uma bala acertou Ash no braço, fazendo-o
girar. Com uma careta, ele apertou a arma com mais força, atirando de
volta. Estava tonto, dominado pelo nojo e pela fúria.
Apertou o braço ferido com uma das mãos, ofegante. Mal conseguia
sentir o sangue encharcando a camisa.
Balas passavam assobiando perto das pernas de Ash, batendo na
parede atrás dele. Ping. Ping. Ele conseguiu dar um único tiro antes que
o terceiro o acertasse no polegar — uma explosão de dor, branca e
luminosa. Recolheu a mão, deixando a arma bater no chão.
Ele se abaixou atrás da parede do Fairmont, arfando pesadamente.
Merda.
— Mac, por favor — dizia Dorothy. — Ouça a voz da razão!
Ash pensou ter ouvido outro tiro, uma pancada surda. Apesar de tudo,
o horror o inundou. Espiou pelo canto da parede.
A matéria exótica estava caída no chão, a um metro dele. Não viu
Dorothy em lugar nenhum.
Voltou o olhar para a matéria exótica. Estava longe demais para ele
alcançar. Se quisesse pegá-la, precisaria avançar.
Estava a apenas um metro. Não era longe. Ele conseguiria.
Provavelmente.
Os músculos da perna dele se prepararam. O coração bateu com
força e depressa no peito.
Mergulhou…
No segundo em que a mão se fechou em volta da matéria exótica,
ouviu um estalo. Levantou os olhos e viu Mac parado na escada do
Fairmont, pouco acima dele, uma das mãos envolvendo os ombros de
Dorothy, a arma apontada para a cabeça dela.
— Entregue isso aí, lho, ou a garota morre — ameaçou Mac,
sorrindo.
33
DOROTHY

Dorothy manteve o corpo imóvel, tentando respirar, apesar da pressão


fria da arma em sua têmpora. As Aberrações tinham parado de atirar.
Estavam num círculo frouxo em volta dos três, olhando-os, ansiosas,
querendo ver o que aconteceria. Dorothy encontrou Donovan e
Bennett na multidão e cou satisfeita ao ver que eles pareciam
preocupados. Eliza estava um pouco à frente, aparentemente empolgada
com o potencial de derramamento de sangue. Dorothy virou o rosto
para a mulher de preto, imóvel como uma sombra, sem dizer nada.
Tudo é um golpe, pensou. Os dedos dela estremeceram.
— O que vai ser, garoto? — perguntou Mac, animado. — Vai me
entregar esse recipiente numa boa? Ou devo en ar uma bala na
cabecinha linda dela?
Dorothy engoliu em seco, deixando o olhar ir até o rosto de Ash.
Estava de pé, acima dele, na escadaria do Fairmont, enquanto ele
permanecia ajoelhado na doca, com a cabeça erguida e uma expressão
preocupada. Ele se levantou muito devagar, segurando o recipiente de
matéria exótica com força numa das mãos.
— Por que eu me importaria com ela? — perguntou. Estava
espanando a poeira da calça, por isso Dorothy não conseguia ver o rosto
dele, mas a voz estava embargada de emoção. — Ela tentou me
barganhar.
— Ele tem razão, meu bem — disse Mac.
Dorothy sentiu o bafo dele no ouvido e teve de se esforçar para não
se encolher.
— Ash… — Ela precisou forçar o nome dele por entre os lábios.
Ele a encarou, os olhos se estreitando, e por um longo momento
Dorothy apenas o encarou de volta, examinando aqueles olhos dourados
e pensando em quando tinham se conhecido. O que ele havia dito a ela?
Me perdoe por dizer isso, senhorita, mas parece que você queria se perder.
Ela sorriu, lembrando. Sua mente estava estranhamente vazia.
Ash franziu a testa, esperando que ela falasse. Que implorasse pela
vida, talvez, ou então que implorasse pela con ança dele. Dorothy não
tinha intenção de fazer uma coisa nem outra. Tudo em que podia pensar
para dizer parecia insigni cante e idiota. O que estava feito estava feito,
e só podiam esperar para ver como tudo iria se desenrolar.
— Se eu fosse você, não con aria nele — disse ela, simplesmente.
O canto da boca de Ash estremeceu com o início de um sorriso.
Mac xingou, apertando-a com mais força. Dorothy ouviu um estalo.
— Não… — gritou Ash do cais.
Dorothy teve uma vaga impressão de movimento, Ash lutando para
subir a escada, as Aberrações fechando o cerco ao redor dele. Naquele
momento, tudo parecia muito distante. Dorothy fechou os olhos com
força, cada músculo do corpo se retesando…
Mac puxou o gatilho. Um som que lembrava fogos de artifício
preencheu os ouvidos de Dorothy, a explosão ricocheteando dentro do
crânio. Ela tentou respirar, mas era como se alguém estivesse segurando
os pulmões dela, apertando. Luzes pretas explodiram diante dos olhos e
a dor a atravessou. E então…
Bom, e então não houve nada por algum tempo.
34
ASH

O tiro ecoou através da cabeça de Ash, parecendo ressoar nos ouvidos


por muito tempo depois de quando deveria ter silenciado.
O tempo empacou. Ele quase achou que era uma coisa de viagem no
tempo, o modo como o mundo ao redor parecia diminuir de velocidade,
fazendo-o ver cada momento do que aconteceu em seguida numa
câmera lenta vívida, insuportavelmente vagarosa.
Dorothy cou frouxa nos braços de Mac, a cabeça inclinando-se para
o lado enquanto o sangue se espalhava na têmpora. Ash olhou para ela,
sem conseguir focalizar direito. Não conseguia se obrigar a acreditar no
que havia acabado de acontecer.
Mac se afastou, permitindo que o corpo de Dorothy batesse no chão,
justo quando a fumaça da arma se dissipou.
— Estou farto de bancar o bonzinho — avisou ele, estalando os
lábios. — Vocês dois tiveram a chance de fazer um acordo muito tempo
atrás. Estamos no meu hotel, cercados pelo meu pessoal e no momento
sou o único que tem uma arma, por isso eu é que dito as regras.
Ash notou que Mac não tinha guardado a arma no coldre. Olhou
para onde havia largado a própria arma. Ainda a pouco mais de um
metro. Longe demais.
Mergulhou na direção dela, mas ela ainda estava a uns trinta
centímetros quando Mac atirou. Desviou-se da bala, batendo no chão,
os dedos estremecendo, a boca se enchendo de pó e sujeira. A madeira
raspou nas bochechas dele e restos de vidro quebrado penetraram na
pele.
Ash tossiu com força e tentou se levantar de novo, mas Mac foi
rápido demais. Houve um estalo que podia ter sido de um polegar
puxando o gatilho de uma arma — provavelmente era um polegar
puxando o gatilho de uma arma — e a sensação do metal frio encostado
na nuca de Ash.
— Vocês dois encheram o meu saco por tempo demais — disse Mac.
— Por que não entrega esse recipiente e nós dois podemos…
Ash inclinou a cabeça para trás, o crânio batendo em alguma coisa
dura. Um grunhido e um jato de sangue lhe mostraram que tinha sido o
rosto de Mac.
— Seu lho da puta!
Mac ainda estava com um braço às costas de Ash, segurando-o para
baixo, mas sua posição havia mudado. Ash soube que o outro devia estar
com di culdade de segurá-lo junto com a arma, já que o rosto sangrava
muito. Aproveitando o caos, ele se apoiou no antebraço e deu uma
cotovelada para trás.
Um clang agudo lhe disse que Mac também tinha largado a arma.
Os dois estavam desarmados.
Mac passou um braço em volta do pescoço de Ash e tentou puxá-lo
para trás, mas Ash era maior e se jogou de lado, arrancando Mac das
suas costas e rolando através das cinzas. Estava sentindo dor, os braços e
as pernas pareciam feitos de geleia, mas se obrigou a car em quatro
apoios, piscando.
Onde está a minha arma?
Ali, um brilho de metal no meio das cinzas. Ash grunhiu,
engatinhando na direção dela, e foi então que notou Mac a pouco mais
de um metro, o olhar xo em algo à frente.
Mac alcançou a própria arma primeiro e cou de joelhos, girando. O
dedo no gatilho…
Meio segundo depois, um tiro espocou no ar.
Ash fechou os olhos com força, um instante antes que a bala o
acertasse.
35
DOROTHY

Dorothy estava caída na escada do Fairmont, os olhos apertados com


força. A dor batia nas têmporas, mas era uma sensação oca, quase como
o início de uma dor de cabeça. Sentia o ombro latejando no ponto em
que havia batido nos degraus, e tinha quase certeza de que o sangue
falso estava penetrando no seu cabelo.
Abriu um pouco os olhos e viu que tudo ao redor tinha cado escuro
e nebuloso. As pessoas estavam turvas, fora de foco. As bordas da visão
pareciam pulsar.
Droga. Era possível que tivesse sofrido uma concussão.
Abriu os olhos só mais um pouquinho e conseguiu ver um brilho de
luz na mão de Ash. Ele ainda estava segurando a matéria exótica. Que
bom.
O som do tiro veio de longe, como se estivesse em outro cômodo de
uma casa muito grande.
A bala acertou o lado direito do peito de Ash, sacudindo-o. Ele
cambaleou para a frente, caindo de cara no chão, com nuvens de fumaça
e cinzas subindo ao redor. O recipiente de matéria exótica escorregou
para longe do corpo dele, rolou para a lateral do Fairmont… e se
despedaçou.
Houve um estalo e uma pequena explosão, como fogos de artifício.
Dorothy viu fagulhas de relâmpago azul, depois chamas fracas,
estalando. Então, a matéria exótica desapareceu numa nuvem de fumaça
cinza e densa.
As sombras que escondiam o rosto de Ash se dissiparam, e então ele a
estava encarando, com os olhos sem foco. Ele engoliu em seco, com
di culdade. Dorothy viu seu pomo de adão subir e descer.
E então… ele deu uma piscadela.
Tudo estava acontecendo de acordo com o plano.
36
ASH

Fingir-se de morto era a parte mais difícil.


Ash precisou se esforçar para manter a respiração lenta, de modo que
ninguém visse seu peito subindo e descendo. O ar estava denso de
poeira. O nariz coçava. Era vergonhoso, mas… ele precisava espirrar.
Tinha fechado os olhos antes que o recipiente de matéria exótica
batesse no chão, por isso não viu o momento em que ele se despedaçou.
Mas ouviu o som de vidro quebrando, e foi assim que soube que o
último estoque de matéria exótica no planeta havia desaparecido.
Alguma coisa dentro do peito dele se apertou. Era uma percepção
agridoce. Sabia que precisava ser assim, mas a matéria exótica havia
mudado tudo. Havia mudado a vida de um monte de gente. Ele não
gostava de pensar que não existia mais. Que a viagem no tempo era
coisa do passado.
Bom, quase.
Passos zeram barulho no cais. Um instante depois, Ash sentiu o bico
de uma bota cutucando o seu braço. Precisou se lembrar de permanecer
imóvel.
— Ele está morto? — perguntou uma voz de mulher. Eliza, pensou
Ash mal-humorado, lembrando-se do nome dela.
Dois dias atrás, ela havia ajudado a torturá-lo, quase até a morte. Não
gostava dela.
— A gente não precisava dele. — A voz de Mac estava carrancuda,
mas Ash podia ouvir um tom diferente nas palavras.
— Ele sabia pilotar a máquina do tempo — observou Eliza.
— Você também leu aquelas páginas. Não precisamos mais de uma
máquina do tempo.
Mas Mac não tinha tanta certeza quanto tivera um instante atrás. Sua
voz hesitava, fraca.
Ele estava cando nervoso, sem dúvida. Aquele pensamento fez Ash
querer gargalhar.
Que bom.
Eliza pareceu perceber isso também. A doca embaixo do rosto de Ash
tremeu quando ela se levantou e foi até a escadaria do Fairmont.
— Mas a gente precisava daquele recipiente, não é? — perguntou. E,
em contraste com Mac, sua voz estava cheia de uma raiva mal contida.
— Aquela matéria exótica, ou sei lá o que era… não é possível viajar no
tempo sem ela, não é?
— Não temos certeza…
— Temos.
Ash mordeu a parte interna da bochecha. Depois que Mac estragou
tudo, o Cirko Sombrio começava a se virar contra ele, como Dorothy e
a mãe dela disseram que aconteceria.
O plano estava se desenvolvendo maravilhosamente.
E ele estava quase sorrindo.
Banque o morto, lembrou-se. Você deveria estar morto.

O golpe tinha começado mais de cento e cinquenta anos antes. Loretta é


que o havia bolado.
— Segundo minha lha, esse tal de… Mac Murphy vem causando
encrenca na cidade de vocês — disse ela.
Estavam na casa de Avery, na sala atulhada de móveis, e Loretta
serviu um chá morno com açúcar em excesso.
— É — admitiu Ash, pegando a xícara oferecida por Loretta. Parecia
pequena demais na mão dele, como um brinquedo. — Obrigado —
murmurou.
Ele tomou um gole, tentando não franzir os lábios.
Loretta pôs a bandeja do chá numa mesa e se ajeitou na beirada de
uma poltrona perto de Ash, arqueando as sobrancelhas.
— Um homem solitário com dinheiro e poder demais e sem aliados
su cientes. — Loretta fungou, sem se impressionar. — O que
precisamos é de um bom golpe.
— Não sei bem se aquele sujeito pode ser enganado — disse Ash.
— Qualquer um pode ser enganado — insistiu Dorothy. — A chave é
fazer a pessoa acreditar que está no controle. Mac é presunçoso demais
para achar que pode ser manipulado.
— Podemos usar isso, claro — acrescentou Loretta. — Homens com
tanto poder assim têm pontos cegos. Passaram tempo demais tentando
conseguir dinheiro e respeito. Isso os deixa fracos. Bom, só precisamos
de alguma coisa que ele queira. Diga: o que ele quer?
— A viagem no tempo. — Dorothy franziu a testa. — Matéria
exótica, as anotações do Professor…
Loretta descartou tudo isso.
— Não, nada disso vai funcionar. Ele já planejou pegar você e Ash,
não é? O que mais?
Dorothy franziu a testa, pensando.
— Eu diria que ele precisa de gente nova, depois de me perder e
perder o Roman, mas…
Sua voz cou no ar, os olhos se iluminando.
— Ah — disse Dorothy. — Eu… acho que tenho uma ideia. Uma
ideia boa.
Ash franziu a testa, sem entender.
— Será que você poderia compartilhar essa ideia com o resto do
grupo?
— É uma coisa que minha mãe disse, que me fez pensar… Homens
como Mac costumam não ter muitos relacionamentos pessoais. —
Dorothy acrescentou com cuidado. — Foi assim que nós duas
conseguimos ganhar tanto dinheiro com tanta facilidade. Os homens
poderosos cam tão acostumados a ver todo mundo ao redor se
encolher de medo que não fazem ideia de quando estão sendo
manipulados. Isso os transforma em otários fáceis.
— Então você vai fazer… o quê, exatamente? — Ash tomou um gole
de chá, pensando, e quando a ideia lhe ocorreu, ele quase engasgou. —
Seduzi-lo?
Loretta e Dorothy trocaram um olhar, rindo.
— Eu, não — disse Dorothy.
37
DOROTHY

Os olhos de Dorothy estavam abertos, mas só um pouco.


Viu um par de botas pretas passar entre a multidão que gritava. As
botas chegaram a cerca de um metro dela e pararam. Uma voz soou
acima dos gritos.
— Eliza! Bennett! Deem uma ajudinha com os corpos.
Era Regan Rose. Dorothy teve o cuidado de não respirar muito
fundo, para não se revelar, enquanto alguém en ava a mão embaixo dos
braços dela e a levantava do chão.
— Ela parecia muito menor antes de morrer — resmungou Bennett.
— Você acha que ela parecia menor? — grunhiu Eliza. Pelo esforço
na voz, Dorothy supôs que ela estava tentando arrastar Ash.
— Chega — disse Regan, e houve o som súbito de palmas. — Levem
os dois lá para trás, onde não precisaremos olhá-los.
Dorothy prendeu o fôlego para impedir o peito de inchar. Não
ousava abrir os olhos mais do que já estavam, por isso não viu Ash ser
arrastado atrás dela, mas ouviu o som das botas dele batendo no chão e
soube que ele estava vindo logo atrás.
Que bom, que bom, pensou.
O som de gritos e discussões foi sumindo enquanto eles eram
arrastados para uma sala nos fundos, longe das outras Aberrações do
Cirko. Eliza largou Dorothy no chão, o que doeu, e ela ouviu outra
pancada, o que signi cava que Ash tinha sido largado junto dela.
— Vamos, quero ver o que está acontecendo lá fora — disse Bennett.
— É — concordou Eliza.
Houve o som de passos e os dois foram embora.
Ash e Dorothy estavam a sós com Regan, que disse:
— Podem abrir os olhos. Eles foram embora.
Dorothy abriu os olhos enquanto a mãe tirava a máscara.
— Vocês se saíram bem. — Loretta olhou para Ash e acrescentou: —
Os dois. Se eu não soubesse, também acreditaria que estavam mortos.
38
ASH

Primeiro, tinham levado Loretta para setembro de 2077. Lá haviam lhe


dado um disfarce, algum dinheiro e instruções sobre as pessoas que ela
deveria contatar.
Loretta sorrira.
— Esse mundo pode ser novo — dissera. — Só que o jogo é mais
antigo do que eu.
— Mesmo assim, não vou deixar a senhora aqui passando fome. —
Dorothy en ara o dinheiro na mão da mãe. — Pegue.
Loretta não tinha parecido convencida, mas envolvera as notas
emboladas e as guardara no fundo do bolso.
— Eliza vai apresentar a senhora ao Mac daqui a pouco mais de dois
meses — dissera Dorothy. — Até lá, crie a reputação de ser cruel. É isso
que vai interessar ao Mac. A senhora precisa garantir que essa reputação
se sustente. Consegue fazer isso?
Loretta piscara lentamente para a lha.
— Admito que sou nova nisso — dissera com cautela. — Mas
acredito que, se você viu isso acontecer, devo ter sucesso. Correto?
Dorothy precisara admitir que a mãe havia captado com facilidade
alguns dos aspectos mais complicados da viagem do tempo.
— A senhora só precisa ganhar a con ança dele. E então, em 13 de
novembro, quando Ash, o Professor e eu voltarmos, a senhora vai ter de
trocar as balas da arma dele por munição de festim. — Naquele
momento, a garganta de Dorothy começara a se fechar, mas só um
pouco. — Se a senhora fracassar… todos nós morremos.
Loretta havia encarado a lha.
— Então não vou fracassar — respondera, com a voz rme.

Ash, Dorothy e Loretta juntaram rapidamente as coisas e se esgueiraram


em silêncio pelo Fairmont, passando por corredores escuros e mofados,
descendo escadas estreitas até, nalmente, chegarem à entrada que dava
na doca dos fundos.
Ninguém os tinha visto. Tinham sido como fantasmas.
Dorothy chegou à porta e a escancarou, os olhos atentos a qualquer
movimento enquanto fazia a mãe e Ash passarem. Em seguida, fechou a
porta, estremecendo ao pisar na doca.
Um barco já estava esperando, com Zora sentada na frente, uma das
mãos apoiada no volante.
— Vamos — disse ela, ligando o motor.

O barquinho passou rapidamente por leiras e mais leiras de botes


velhos, lanchas e um ou outro iate que já vira tempos melhores. Eles se
mantinham abaixados para o caso de haver outras Aberrações do Cirko
por perto, e os barcos balançavam nas ondas que eles provocavam. Fora
isso, a noite estava silenciosa. Dorothy forçou a vista na escuridão, os
nervos à or da pele enquanto se aproximavam da biblioteca. Sabia que
estavam mais seguros ali do que em qualquer outro lugar de Nova
Seattle. Mac continuava perto do Fairmont com o resto das Aberrações,
e era improvável que alguém tivesse percebido o sumiço deles. Mesmo
assim, ela estava preocupada.
Quando chegaram à porta da biblioteca, Dorothy estava encharcada
até os joelhos e tremendo.
— Depressa — disse quando Zora desligou o motor. — Já está
cando tarde.
Ash estava com uma das mãos cobrindo o queixo, os dedos batendo
nervosos na lateral do rosto, mas sorriu para ela.
— Sim, chefe.
— Vão arranjar um quarto — murmurou Zora, revirando os olhos na
direção dos dois.
Desceram do barco e entraram rapidamente, serpenteando entre as
pilhas de livros, até onde os outros esperavam.
O Professor estava perto da janela, entreabrindo uma cortina,
ansioso, a intervalos de alguns minutos, o olho esquerdo estremecendo.
Chandra aparentava estar tentando escolher algo para vestir. Pareceu
demorar muito tempo ajeitando camisetas e tirando apos invisíveis das
bainhas do jeans.
— Vocês voltaram — disse Willis, levantando-se.
Willis precisou se agachar para não bater com a cabeça no teto. As
sombras na biblioteca pintavam o rosto dele em tons ásperos de cinza e
preto, fazendo-o parecer talhado em pedra.
Ao som da voz dele, os outros dois levantaram os olhos.
— E então? — perguntou Chandra, o olhar se movendo ansioso
entre os três. — Como foi?
— Estamos parecendo mortos para vocês? — perguntou Ash.
Chandra franziu a testa.
— Bom, não…
— Então tudo correu bem.
Chandra abriu a boca, mas, antes que ela respondesse, Zora deu uma
cotovelada em Ash, que fez uma careta e esfregou o braço.
— Precisamos agir. — A expressão de Zora permaneceu a mesma,
mas os ombros dela se retesaram embaixo da camisa justa. Para o pai, ela
disse, hesitante, como se escolhesse cada palavra cuidadosamente: —
Como foram as coisas por aqui?
Todos caram em silêncio, olhando Zora e o pai tentando parecer
que não estavam bisbilhotando. Era uma coisa incômoda, e havia uma
parte de Ash querendo pedir que parassem com aquilo. Mas a outra
parte, a parte maior, também queria ouvir.
Ele estivera presente no primeiro encontro entre Zora e o pai, que
tinha sido… dizer que não tinha corrido bem era eufemismo. Zora havia
passado o último ano imaginando para que época seu pai havia ido ao
desaparecer, e as últimas quatro semanas achando que ele estava morto.
Então, apenas algumas horas atrás, ele havia entrado de novo na vida
dela — e estava bem vivo.
Ash ainda conseguia se lembrar da emoção que tinha visto surgir no
rosto da melhor amiga quando ela o viu. Era um caos de esperança e
desespero, alegria e confusão. E, sendo Zora, isso se transformou
rapidamente em raiva, como acontecia com tantas emoções dela. O
Professor tinha tentado abraçar a lha, mas ela apenas cruzara os braços
e dissera com voz inexpressiva:
— Você está atrasado.
Naquele momento, o Professor riu para a lha, os olhos brilhando
como se estivessem voltados para o sol. Zora o olhou de volta e Ash
percebeu que ela estava se esforçando para se manter rígida — o que
não estava funcionando. O canto da boca foi se curvando num riso, não
importando o quanto ela tentasse impedi-lo. Era uma expressão
estranha no rosto de Zora. Ash gostou.
Zora o viu olhando.
— Cala a boca — murmurou e tentou conter o sorriso. Quando isso
não deu certo, ela gemeu e se virou para a janela.
— Tudo correu maravilhosamente bem — disse o Professor. — A
matéria exótica foi administrada. — Ele assentiu para o balcão, onde
estava a arma que contivera o resto da matéria exótica. Dorothy olhou
para ela, mas não disse nada. Tudo estava no lugar.
— Acho que a gente deveria se apressar — disse Ash. — Mac acha
que nós dois estamos mortos, mas deve descobrir a verdade quando
voltar para os fundos da o cina dele e vir que sumimos.
— Isso seria muito ruim? — perguntou Chandra. — O Cirko se
virou contra ele, não foi? Ele não tem mais nenhum poder.
— A traição deles depende de acharem que ele fracassou, que nos
matou e fez com que eles perdessem a última chance de usar a viagem
no tempo — explicou Dorothy. — Nós ganhamos tempo su ciente para
sair daqui antes que Mac mande o resto do Cirko atrás de nós.
— Não se preocupe. Até lá, nós teremos ido embora — disse o
Professor. — Só resta uma pergunta. Para onde todos vocês gostariam
de ir?
PARTE CINCO
O m está no começo e se encontra muito à frente.
— Ralph Ellison
39
3 DE MAIO DE 2082

A luz bateu nas pálpebras de Roman, uma sensação tão forte que era
quase como um toque físico. Ela o instigou para fora da escuridão do
sono, puxando-o de volta para, para…
Onde? Os olhos dele continuavam fechados, mas ele conseguia sentir
que estava deitado em cima de alguma coisa. Havia uma pressão rígida,
fria, embaixo dele, e o leve peso de algo sobre o corpo, um lençol ou um
cobertor leve. Ouviu o som de vozes distantes, passos. Ele respirou
fundo e o nariz foi preenchido com o cheiro de cerveja e comida frita.
Um bar, então. Estava num bar.
Abra os olhos, disse a si mesmo, mas a ordem não provocou efeito no
corpo físico. As pálpebras pareciam coladas, duas tiras de carne presas
por uma coisa pegajosa. Tentou de novo e um leve gemido escapou de
seus lábios. A luz explodiu nas retinas. A claridade era avassaladora. A
dor atravessou o crânio, chocando-o a ponto de ele ter de fechar os
olhos de novo, por instinto, fazendo uma careta.
Respirou fundo e devagar pelo nariz, esperando que os batimentos
cardíacos se acalmassem antes de tentar outra vez.
O quarto era comprido, estreito e tinha uma única janela do lado
mais distante, com uma cortina na. Ele estava deitado numa cama e
parecia estar usando as próprias roupas, mas estavam ensanguentadas,
sujas.
Tentou levantar a cabeça, mas a dor subiu pelo pescoço, e ele a
deixou tombar de novo no travesseiro, com as pálpebras estremecendo.
Algo muito ruim tinha acontecido. Com certeza. Fechou os olhos e
tentou se lembrar do que era.
Tinha esperado não encontrar nada, apenas vazio e escuridão, mas a
lembrança continuava ali, bem onde ele a havia deixado. Estendeu a
mão para ela, e foi como uma correnteza arrastando-o rio abaixo. Assim
que se entregou à lembrança, não havia nada que ele pudesse fazer para
impedi-la de novo.
Viu a máquina do tempo e Quinn. Mac. O futuro. O tiro.
Um zumbido cresceu na cabeça dele, bloqueando todos os outros
ruídos. Ele fechou as mãos, as unhas se cravando nas palmas. O quarto
parecia muito pequeno e muito escuro, e Roman foi dominado por um
terror diferente de tudo que já havia sentido.
Tinha levado um tiro.
Uma das mãos saltou na direção do peito, nervosa, procurando um
buraco de bala. Encontrou uma bandagem, ainda úmida de sangue. A
respiração começou a se estabilizar.
— Bom, olha só quem decidiu acordar — disse uma voz.
Roman abriu os olhos e viu uma garota parada junto à porta do
quarto. Estava usando jeans desbotado e uma camiseta branca, o cabelo
caindo na testa em cachos macios.
Ela sorriu, entrando.
— Fizemos uma aposta. Eu apostei que você acordaria, mas papai diz
que sou otimista.
Roman tentou falar.
— Onde… onde… — Ele mal conseguia falar. Tinha um gosto
estranho na boca. Rançoso. Como se não escovasse os dentes havia
muito tempo. E, nossa, estava com sede. A língua parecia feita de palha.
Engoliu, tentando forçar a saliva pela garganta áspera.
— Você está na adorável cidade de Nova Seattle, num barzinho
charmoso chamado Coelho Morto — contou a garota. — Encontramos
você há dois dias, com um ferimento de bala, imagine só. Foi papai que
trouxe você pra cá e fez com que fosse costurado. Se bem que, pra ser
honesta, ele tem algumas perguntas pra fazer. Tiros não são coisas
comuns por aqui, pelo menos nos últimos anos.
Ela atravessou o quarto e abriu a cortina, deixando entrar um jorro
de luz forte e branca.
— Por que não relaxa enquanto vou chamá-lo? É ele que vem
cuidando de você, e vai poder explicar tudo.
Roman piscou, tentando entender todas as coisas que ela havia dito.
Estava em Nova Seattle? No Coelho Morto? E o que ela quis dizer com
“os tiros não são comuns”?
A garota estava quase chegando à porta. Roman pigarreou, de novo
tentando usar a voz.
— Em que… que ano estamos?
A menção ao ano fez o queixo da garota se levantar. Ela o encarou
por um longo momento.
— Estamos em 2082. Por quê?
Roman soltou o ar. Podia sentir o coração batendo nas têmporas, ver
o sangue pulsando através das pálpebras.
Ano de 2082, pensou. Bom, isso não era tão ruim. Estava no futuro,
mas não tão longe a ponto de não levar uma espécie de versão normal da
própria vida. As coisas pareciam diferentes de quando tinha chegado ali
com Dorothy. Nada de cinzas e de céu encoberto. Nada de cidade em
ruínas, pelo menos pelo que dava para ver, da cama.
Eles deviam ter feito algo, percebeu. Dorothy, Ash e os outros.
Deviam ter mudado as coisas.
O pensamento lhe fez sorrir.
Bom para eles.
Quando abriu os olhos de novo, Roman viu que a garota ainda estava
perto da porta, espiando.
— O que foi? — perguntou ele.
— É só… quei imaginando se você não seria um… — ela baixou a
voz — … um viajante do tempo?
Roman se conteve. O coração martelava nos ouvidos, um som de
tambor lento, rme.
— Por que está perguntando isso?
A garota pareceu nervosa.
— Nada — respondeu rapidamente. — Só que há umas pessoas lá
fora e… achei que elas estavam malucas, mas elas disseram que também
são viajantes do tempo. Parece que são suas amigas.
AGRADECIMENTOS

Obrigada às minhas agentes — Mandy Hubbard, que encontrou um lar


para esta série, e Hillary Jacobson, pelo apoio contínuo. Às minhas
editoras, Elizabeth Lynch e Erica Sussman, por amarem Roman tanto
quanto eu, e à toda a equipe da Harper Teen pelas mil e uma coisas que
fazem para criar um livro. E, como sempre, obrigada ao Ron, que lê
cada palavra.
Título original
DARK STARS

Copyright © 2021 by Danielle Rollins

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por
meio eletrônico, mecânico, fotocópia ou sob qualquer outra forma sem
a prévia autorização do editor.

Edição brasileira publicada mediante acordo com HarperCollins


Children’s Books, uma divisão da HarperCollins Publishers.

Direitos para a língua portuguesa reservados


com exclusividade para o Brasil à
EDITORA ROCCO LTDA.
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Preparação de originais
BIA SEILHE

Coordenação digital
MARIANA MELLO E SOUZA

Revisão de arquivo ePub


MANUELA BRANDÃO
Edição digital: janeiro, 2024.
CIP-Brasil. Catalogação na Publicação.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

R658e
Rollins, Danielle
Estrelas escuras [recurso eletrônico] / Danielle Rollins ; tradução Ivanir Calado. - 1.
ed. - Rio de Janeiro : Rocco Digital, 2024.
recurso digital (Estrelas escuras ; 3)

Tradução de: Dark stars


Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5595-234-6 (recurso eletrônico)

1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Calado, Ivanir. II. Título. III. Série.

23-87207 CDD: 813

CDU: 82-3(73)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439


24/11/2023 29/11/2023

O texto deste livro obedece às normas do Acordo Ortográ co da Língua


Portuguesa.
A AUTORA

D R é um dos pseudônimos da autora Danielle Valentine,


que já escreveu livros de romance, suspense, cção cientí ca e terror,
como Impiedosa, publicado pela Rocco sob o pseudônimo de Danielle
Vega. Ela mora no Brooklyn com o marido e o gato chamado Goose, e
gasta dinheiro demais com móveis antigos e botas de couro. Você pode
encontrá-la no site www.daniellerollins.com e no Twitter @vegarollins.
Índice
Capa
Folha de rosto
Dedicatória
Sumário
PARTE UM
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Diário do professor — 8 de agosto de 2074
Capítulo 4
Capítulo 5
Diário do professor — 20 de agosto de 2074
Capítulo 6
Capítulo 7
Diário do professor — 14 de setembro de 2074
Capítulo 8
Capítulo 9
Diário do professor — 21 de setembro de 2074
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Diário do professor — 22 de setembro de 2074
PARTE DOIS
Diário do professor
Capítulo 13
Capítulo 14
Diário do professor — 22 de setembro de 2074
Capítulo 15
Capítulo 16
Diário do professor — 1º de outubro de 2074
Capítulo 17
Capítulo 18
Diário do professor — 10 de outubro de 2074
Capítulo 19
PARTE TRÊS
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
PARTE QUATRO
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
PARTE CINCO
Capítulo 39
Agradecimentos
Créditos
A Autora

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