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SUMÁRIO
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PARTE UM
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Diário do professor — 8 de agosto de 2074
Capítulo 4
Capítulo 5
Diário do professor — 20 de agosto de 2074
Capítulo 6
Capítulo 7
Diário do professor — 14 de setembro de 2074
Capítulo 8
Capítulo 9
Diário do professor — 21 de setembro de 2074
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Diário do professor — 22 de setembro de 2074
PARTE DOIS
Diário do professor
Capítulo 13
Capítulo 14
Diário do professor — 22 de setembro de 2074
Capítulo 15
Capítulo 16
Diário do professor — 1º de outubro de 2074
Capítulo 17
Capítulo 18
Diário do professor — 10 de outubro de 2074
Capítulo 19
PARTE TRÊS
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
PARTE QUATRO
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
PARTE CINCO
Capítulo 39
Agradecimentos
Créditos
A Autora
Índice
PARTE UM
— Quem é você?
— Ninguém importante.
— Preciso saber.
— É melhor se acostumar com a decepção.
— A princesa prometida, de William Goldman
1
DOROTHY
12 DE NOVEMBRO DE 2077
Já examinei as anotações de Nikola Tesla meia dúzia de vezes e ainda acho que estou nervoso
demais para testar a teoria dele.
Viagem no tempo sem um veículo, sem acesso a uma fenda, sem qualquer matéria exótica.
Se Nikola estiver certo, se essas coisas forem mesmo possíveis, significa que só começamos a
raspar a superfície dessa ciência.
Porém, se ele não estiver certo…
Bom. Só digamos que existem muitas, muitas maneiras de isso dar errado.
Por exemplo, se você se recorda, apenas duas pessoas tentaram viajar por uma fenda sem uma
nave antes de mim. Uma foi morta instantaneamente e a outra teve a pele arrancada do corpo.
Nenhum dos dois resultados é especialmente atrativo.
E, no entanto… há motivo para acreditar que deve ser possível viajar pelo tempo sem uma
máquina ultrapassada e sem acesso a uma fenda. Na verdade, histórias sobre viagens no tempo
podem ser encontradas desde o século VIII a.C.
Uma vez, Natasha me contou a história de um menino chamado Abimeleque, que viajou
sessenta e seis anos para o futuro enquanto colhia figos, só porque Deus quis poupá-lo do
sofrimento da guerra.
No antigo épico sânscrito, o Mahabharata, o rei Raivata teria deixado a terra para se encontrar
com Deus, voltando séculos mais tarde.
E a lenda japonesa de Urashima Taro fala de um pescador que vai visitar um deus subaquático.
Para ele, passam-se apenas alguns dias, mas quando volta para casa descobre que se passaram
trezentos anos.
Enquanto escrevo isso, ocorre-me que nenhum desses grandes viajantes retornou de suas
jornadas através do tempo. O que é exasperador. Mas não tanto quanto o cara que teve a pele
arrancada.
Eu deveria recuar um pouco. Antes de decidir se faz algum sentido testar a teoria de Nikola,
talvez seja melhor expor o que ela realmente é.
Na década de 1890 e início da de 1900, Nikola ficou obcecado por uma teoria de que talvez
pudesse conduzir eletricidade por longas distâncias através da superfície do planeta. Ele pegou
um bocado de dinheiro com um bocado de pessoas, mentiu para todo mundo sobre o que estava
fazendo e se mudou de Nova York para Colorado Springs com o objetivo de fazer experiências
longe dos olhos do público. Mais ou menos nessa época, ele teria dito: “O progresso nesse campo
me deu uma nova esperança de que verei a realização de um dos meus maiores sonhos: a
transmissão da energia de uma estação à outra sem o emprego de nenhuma conexão por fio.”
Alerta de spoiler: ele não viu a realização desse sonho. Estava tremendamente errado com
relação a tudo. Passou um ano em seu laboratório em Colorado Springs, gastou todas as verbas,
ficou endividado e arruinou a própria reputação. Num determinado ponto, ele parecia pensar que
estava se comunicando com outros planetas. Quando nós nos conhecemos, ele presumiu que eu
era marciano (ha!).
Mas, apesar de sabermos que não é possível transmitir eletricidade por grandes distâncias
usando a energia que há na superfície da terra, como Nikola propunha, sabemos que é possível
transmitir massa através do tempo usando uma fenda. Daí a viagem no tempo. A pesquisa que
Nikola deixou para mim parece uma espécie de mistura da dele com a minha. Ele argumenta que a
crosta do planeta é composta de milhões de fendas minúsculas e que deve ser possível aproveitar
essa energia em qualquer lugar, e não apenas dentro de uma fenda. Para estabilizar a energia, ele
recomenda injetar uma pequena quantidade de matéria exótica diretamente em mim (ele
desenhou um protótipo rudimentar de uma ferramenta que deve me ajudar a conseguir isso).
A ciência tem fundamento. No entanto, reluto em testar essa teoria. Nikola é muito conhecido,
através de toda a história, como um dos homens mais brilhantes que já existiram. Só que as
experiências dele com a transmissão de eletricidade sem fio arruinaram a reputação que ele tinha
e o deixaram com dívidas enormes.
Será que vou confiar mesmo minha vida a ele?
4
13 DE NOVEMBRO DE 2077
Passei os últimos dois dias construindo o dispositivo de Nikola para inserir a matéria exótica em
mim mesmo, usando os esquemas que ele desenhou, de modo tão prestativo, nas anotações que
deixou para mim. Ajustei-os um pouco — a ciência evoluiu um bocado nos últimos cento e
cinquenta anos —, mas a ideia geral é dele. Assim, decidi chamar esse pequeno instrumento de
“Raio da Morte”, já que ele disse à imprensa que estava trabalhando nisso em seus últimos anos de
vida.
Ah, meu Deus, que esse nome continue sendo irônico.
Agora, o Raio da Morte está pronto. É um dispositivo portátil, mais ou menos do mesmo
tamanho e forma de um revólver pequeno, com uma agulha comprida onde normalmente ficaria o
cano. Devo usar essa agulha para extrair dez mililitros de matéria exótica e inserir diretamente na
minha aorta.
Aqui, é importante observar que o rompimento de um aneurisma da aorta abdominal pode
provocar uma hemorragia. E pode ser fatal.
Então, ha, ha, é melhor não fazer besteira.
Vamos nessa.
Ah, meu Deus… minha mão está tremendo.
ATUALIZAÇÃO
20 DE AGOSTO DE 2074
16H05
Bom… estou de volta! E não estou morto! Injetei com sucesso a matéria exótica e acho que é
seguro dizer que não provoquei nenhuma hemorragia interna potencialmente fatal. Um brinde às
pequenas vitórias!
Como o primeiro homem vivo a ter matéria exótica implantada no corpo, também acho
necessário observar que esse negócio é esquisito! Houve uma sensação fria, de formigamento, no
local da injeção, seguida pelo que só posso descrever como uma claridade explodindo nas veias.
Era como luz do sol líquida se espalhando por todo o corpo. Extraordinário.
De qualquer modo, esse é apenas o primeiro passo. O segundo, na verdade, não é tão
complicado. De acordo com Tesla, existem milhões de fendas microscópicas abaixo da superfície
da Terra. A matéria exótica deve estabilizar o meu corpo para a viagem, portanto, só preciso usar a
energia desses minúsculos buracos de minhoca e permitir que eles me transportem no tempo.
Como não estarei numa máquina do tempo, a orientação será mais difícil. Não tenho certeza de
como vai ser. Quando estiver na fenda, vou procurar padrões específicos nas paredes do túnel.
Tesla teorizou que viajar no tempo usando a energia das fendas menores abaixo da superfície
da Terra deve ser como água passando entre pedras. Em outras palavras, é provável que eu viaje
por um território bem conhecido, revisitando lugares onde estive recentemente ou com
frequência. Muito interessante.
Se a teoria dele estiver correta, só preciso “me alinhar com a fenda do estuário de Puget”. Para
ser honesto, não sei o que isso significa. Como alguém pode “se alinhar” com uma anomalia do
mundo natural?
De uma coisa eu sei: essa fenda se abriu na zona de subdução de Cascadia. Acho possível que
o simples fato de estar perto de uma zona de subdução seja suficiente para captar a energia da
fenda.
É por isso que estou sentado num barquinho a remo, do lado de fora da zona, me preparando
para — dizendo de modo científico — remar em frente e ver o que acontece. Lá vou eu.
Se a teoria de Tesla estiver correta, devo sentir uma espécie de correnteza, que ele descreveu
como a sensação de um anzol preso no umbigo e…
Ah…
6
Você deve ter percebido que faz alguns dias desde a última anotação. A culpa é minha. A
recuperação demorou um pouco mais do que eu esperava. Mas já consigo ficar sentado e parece
que recobrei o uso integral das mãos, por isso não posso reclamar.
Desnecessário dizer que meu último experimento não foi exatamente o grande sucesso que eu
esperava. Pude implantar a matéria exótica dentro do meu corpo e me alinhar com a fenda. Senti
uma espécie de… puxão, por falta de uma palavra melhor, como se alguma coisa estivesse me
arrancando…
Infelizmente, foi aí que tudo deu terrivelmente errado. Instantes depois de eu sentir o puxão
revelador embaixo do umbigo, minha pele começou a pinicar. A princípio a sensação era estranha,
mas não dolorosa. Desagradável, sem dúvida. Era como se todos os meus nervos estivessem
despertando ao mesmo tempo. Admito que imaginei se isso seria algum tipo de efeito colateral da
matéria exótica, por isso não reagi imediatamente à sensação e tentei me manter firme, por assim
dizer. Foi um grande erro.
Não deviam ter se passado mais do que dois ou três minutos até que a comichão desagradável
se transformasse numa queimação. Comecei a perder a sensibilidade nas extremidades, os dedos
das mãos e dos pés ficaram entorpecidos e eu perdi o controle das mãos. Foi aterrorizante.
E mais aterrorizante do que tudo, talvez, foi o fato de que eu não sabia exatamente como fazer
aquilo parar. Eu não estava dentro da fenda, e sim “alinhado com ela”, segundo as instruções de
Tesla, que eu tinha interpretado como sendo estar dentro da zona de subdução de Cascadia.
Estava ficando desesperado. Minhas mãos tremiam e minha pele parecia a ponto de pegar fogo,
por isso fiz a única coisa em que consegui pensar. Dei o fora da zona de subdução. Por sorte, meus
sintomas pararam imediatamente de progredir e consegui voltar à oficina sem que mais nada de
ruim acontecesse comigo. Minhas mãos e pés ainda estavam bem prejudicados, mas depois de
algumas semanas de descanso parecem ter voltado quase ao normal.
Nas últimas semanas, tive pouca coisa para fazer além de pensar.
Por que meu experimento deu tão errado? A única coisa em que posso pensar é que não injetei
a matéria exótica do modo certo. Quando estava construindo a Segunda Estrela, foi crucial colocar
a ME no veículo, de modo a penetrar na estrutura geral da máquina. Isso também deve ser
verdade quando se trata de injetá-la no corpo. Devo tê-la injetado no lugar errado. Ela não se
fundiu com meu corpo e não me protegeu da energia da fenda.
Parece que preciso voltar à estaca zero.
8
Nos últimos dias, revisei de novo e de novo as anotações de Tesla para ver o que posso ter
deixado escapar. Tenho algumas teorias, mas a mais lógica é que injetei a matéria exótica no lugar
errado.
Tesla postulou que, para a ME se integrar com o corpo da pessoa, é preciso injetá-la
diretamente na aorta. Isso faz sentido, porque a aorta é a artéria responsável por levar o sangue
do coração ao resto do corpo, conectando-se a todas as outras artérias principais. Seu trabalho é
distribuir o sangue oxigenado. É razoável supor que, se você injetasse matéria exótica na aorta, ela
se espalharia por todo o corpo, como acontece com o sangue oxigenado. Certo?
Bom, essa é a teoria. Não sou médico, sou físico, e estou trabalhando muito fora da minha zona
de conforto. Sei que é incomum medicamentos serem injetados em artérias, e não em veias, mas
preciso confiar que Tesla tinha motivos para especificar a aorta como o local ideal para a injeção,
especialmente porque ela é muito mais difícil de ser localizada do que uma veia próxima da
superfície. A única opção que tenho é tentar de novo e ver se, dessa vez, posso fazer com que a
coisa funcione.
Tesla incluiu uma espécie de “mapa” do corpo humano junto com o resto das anotações, mas
dessa vez vou usar as ilustrações mais modernas que puder encontrar. Peguei emprestado um livro
de Chandra e estudei o corpo humano até encontrar o melhor local para tentar uma segunda
injeção. De novo, o rompimento da aorta é uma preocupação. Mas estou procurando não pensar
nisso. Lá vou eu.
Certo! A segunda injeção parece ter sido bem-sucedida. Tive a mesma sensação estranha, de
formigamento, da primeira vez em que tentei, e até agora não houve nenhum rompimento da
aorta. Isso é um bom sinal.
Agora é hora de voltar à zona de subdução de Cascadia e ver se, dessa vez, minha missão será
bem-sucedida.
10
Segunda tentativa.
Por mais louco que pareça, no momento estou sentado no meu velho e confiável barco a remo,
flutuando do lado de fora dos limites da zona de subdução de Cascadia. Injetei a matéria exótica
no meu corpo e estou confiante que, dessa vez, consegui fazer do jeito certo.
Relativamente confiante. Diria que estou com uns 80% de confiança.
Ops. Tudo bem. Não tinha percebido que ficaria tão nervoso. Só digamos que não quero aquela
sensação de queimadura na pele outra vez. Aquilo foi desagradável, assim como o fato de que
fiquei sem conseguir mover as mãos ou os pés durante várias semanas. Gostaria demais de não
passar por aquilo de novo.
Gostaria tanto que quase não quero fazer isso.
Ah, que se dane. Sou cientista, não sou? É hora de ir em frente. Que se dane o medo!
Me deseje sorte. Vou precisar, com certeza.
PARTE DOIS
Pessoas como nós, que acreditam na física, sabem que a
diferença entre o passado, o presente e o futuro é apenas uma
persistente ilusão.
— Albert Einstein
DIÁRIO DO PROFESSOR
DATA DESCONHECIDA
HORÁRIO DESCONHECIDO
LOCAL INDETERMINADO
Acabo de recuperar a consciência. Parece que pousei num campo isolado em algum lugar nos
arredores de Seattle.
Ou acho que devo dizer que acho que estou em algum lugar nos arredores de Seattle. De onde
estou sentado, só consigo ver pinheiros e capim, um céu chapado e cinza e o sol distante, ardente.
Precisarei andar um bocado antes de ver o horizonte da cidade. Até lá, tenho fé de que pelo
menos ainda estou na Costa Oeste. E não tenho como saber quando pousei. Nem como voltar.
Mas pelo menos ainda tenho a pele presa ao corpo (diferentemente de alguns outros
aspirantes a viajantes do tempo menos sortudos que eu poderia citar…). Acho que devo me
considerar grato pelas pequenas misericórdias.
Vou atualizar em breve.
ATUALIZAÇÃO
TEMPO AINDA INDETERMINADO
Consegui caminhar até a área antes conhecida como Lower Queen Anne. Para quem for
familiarizado com a cidade de Seattle como ela existia em 2074, era nesse bairro que ficava a torre
Space Needle.
Ou onde a torre fica, na minha linha do tempo atual. No futuro, a inundação provocada pelo
megaterremoto deixou a Space Needle quase toda embaixo d’água. É possível ver o topo da
estrutura em forma de disco voador, se chegar suficientemente perto, mas afora isso a torre está
submersa. Mas, nesta linha do tempo, a Space Needle ainda está onde deveria e a cidade não está
inundada. Assim posso deduzir, com clareza, que estou na Seattle pré-inundação. Pela tecnologia
que vi nas pessoas pela cidade, também posso dizer que estamos em meados do século XXI,
provavelmente não muito longe da época dos terremotos. Deve ser por isso que estou com tanta
dificuldade para encontrar uma porcaria de um jornal.
Infelizmente, acho que terei de fazer aquela coisa. Você sabe, aquela coisa cafona de viajante
do tempo. Parar alguém na rua, perguntar em que ano estamos e fingir que não percebo a
expressão suspeita da pessoa.
Espera aí… acho que tenho uma ideia!
ATUALIZAÇÃO
10 DE OUTUBRO DE 2073
19H10
Sucesso! Em vez de parar um estranho e perguntar em que ano estamos, parei um estranho e
pedi o telefone dele emprestado.
A hora e a data estavam bem ali, na tela inicial. É o dia 10 de outubro de 2073, perto das sete da
noite. Por que vim para cá?
Vejamos… o que eu estava fazendo em outubro de 2073, mais ou menos às sete da noite? Foi
em 2073 que comecei a trabalhar na NASA, portanto, eu devia estar…
Certo… Claro.
Sei para onde vou agora.
ATUALIZAÇÃO
20H45
E consegui! Estou do lado de fora do meu antigo escritório na ATACO, olhando para a minha
janela, vendo meu eu do passado trabalhar.
Dentro de… ah, umas duas horas, vou oficialmente descobrir a viagem no tempo.
Foi por isso que voltei. Porque esse é o começo de tudo.
Agora eu deveria estar tentando retornar, mas há uma parte de mim que quer ficar aqui um
pouco, olhando meu eu do passado trabalhar. Em apenas duas horas curtas, estarei no ponto mais
feliz de toda a minha vida (sem contar o dia do meu casamento e o do nascimento da minha filha,
claro). Será tão ruim querer experimentar aquele momento de novo?
ATUALIZAÇÃO
23H13
Puxa… eu tinha esquecido que, em 2073, a solução engenhosa para testar minha teoria da
viagem no tempo tinha sido eu mesmo viajar para o passado, chegar a esse local exato e acenar.
Acabei de me lembrar disso e consegui me esconder atrás de uma árvore antes que meu eu do
passado saísse para a calçada, bem onde eu tinha estado, e acenasse para outro eu do passado.
Três eus! Todos na mesma linha temporal. Tenho certeza de que estou violando alguma lei da
física.
De qualquer modo, acho que é hora de voltar para casa.
Isto é, se eu conseguir voltar para casa.
13
6 DE NOVEMBRO DE 2077
7 DE NOVEMBRO DE 2077
Dorothy pousou a Corvo Negro no emaranhado de docas atrás do
Coelho Morto e desligou o motor. Não tinha precisado de Chandra
para lhe contar sobre aquele encontro. Ela mesma tinha visto Ash
dentro do Coelho Morto. Lembrava-se de como ele havia sinalizado
para que ela o encontrasse.
Mas ela não zera isso. Tinha acompanhado Roman até o quarto dele
e o confrontado sobre o que viram ao viajar para o futuro. Porém, mais
tarde, Eliza dissera ter visto Ash e Dorothy nas docas. E havia aquela
fotogra a dos dois a ponto de se beijar… As bochechas dela arderam só
de pensar naquilo.
Deu a volta até os fundos do bar e esperou junto à porta, uma das
mãos en ada no casaco, os dedos envolvendo o punho da adaga de
Roman. O Coelho Morto era conhecido por sua clientela desagradável.
Dorothy não tinha como saber quem poderia estar perambulando ali
atrás. Todo cuidado era pouco.
Passou-se algum tempo. Ela não viu ninguém e afrouxou o aperto na
adaga. O ar do lado de fora estava frio e úmido. Ela estremeceu,
guardando a adaga para poder apertar os braços junto ao corpo, retendo
o pouco calor que restava. A doca se inclinou embaixo dela, deixando-a
meio nauseada. Jamais se acostumaria com o modo como essa cidade
maldita estava sempre em movimento, como nada parecia rme.
Estava começando a imaginar se tinha entendido mal. Se, a nal de
contas, eles não tinham se encontrado. E então a porta dos fundos do
bar se entreabriu e Ash saiu.
— Você já está aqui — disse ele, deixando a porta se fechar.
— Achei que você… queria que eu viesse. — De repente, Dorothy
cou sem jeito. Todo esse tempo aqui fora e não tinha conseguido
pensar em algo melhor para dizer? Suas bochechas caram vermelhas.
— Só quis dizer que você chegou mais rápido do que eu esperava —
explicou Ash.
Dorothy assentiu e começou a enrolar os dedos no cabelo trançado
para ter o que fazer com as mãos. Estava mais nervosa do que havia
esperado, talvez por causa daquela foto, porque sabia o que viria em
seguida.
— Eu conheço um atalho — murmurou. — Costumava vir bastante
aqui.
Ash pareceu esperar que ela dissesse mais alguma coisa, mas, quando
isso não aconteceu, atravessou a doca e tocou o balaústre de madeira ao
lado dela, perto o bastante para a mão roçar no quadril de Dorothy. Ela
sentiu uma trilha de calor no ponto em que ele havia tocado.
Era isso. Ele iria beijá-la. O calor subiu pelo peito dela.
— Procurei você hoje de manhã — disse Ash.
Dorothy piscou. Seus pensamentos estavam lentos e confusos. Você,
ele tinha dito. Mas de que “você” estava falando?
A noiva que tinha se escondido na máquina do tempo dele? A mulher
de cabelos brancos destinada a matá-lo? A líder sanguinária do Cirko
Sombrio?
Eu nem sei quem você é, Zora tinha dito. Você é Quinn? Ou é Dorothy?
— Você estava procurando Dorothy — disse ela com cuidado. — Eu
não sou mais Dorothy.
O que desejava dizer era: E se eu não for mais Dorothy? Você ainda
gostaria de mim? Ou tudo seria diferente? Mas, antes que ela pudesse se
corrigir, Ash recuou com a testa franzindo.
— Um nome novo não te transforma em uma pessoa diferente.
— Mas não é só o nome, né? — Dorothy balançou a cabeça,
frustrada. Estava explicando mal. Como Ash iria querer car com ela se
ela nem sabia quem era? Era isso que desejava dizer.
— Você está falando de…
Ash levou a mão ao rosto dela e Dorothy ofegou um segundo antes
de ele tocá-la, já esperando a sensação daquelas mãos ásperas na pele.
Ele se deteve, os dedos pairando sobre a linha da cicatriz.
— Posso?
Dorothy fechou os olhos e cou em silêncio por um longo momento.
Ninguém jamais havia tocado sua cicatriz. Ela mesma tentava não tocá-
la. A sensação da pele mutilada sob os dedos a enojava. Parecia
representar cada coisa horrível que ela já zera, todos os modos pelos
quais tinha fracassado. Se Ash a tocasse, Dorothy tinha certeza de que
ele veria como ela era diferente da garota que ele conhecia.
— Pode — respondeu, quase sem perceber o que estava falando.
Ash baixou a mão sobre a cicatriz. Cada nervo no rosto de Dorothy
pareceu queimar, de modo que tudo que ela sentia eram fagulhas e calor.
Estivera se contendo, rígida, mas então soltou uma respiração que era
quase um suspiro.
— Ash.
Ash baixou a testa para perto da dela e, por um momento, ela sentiu
apenas o calor da pele dele, a suavidade do cabelo.
— Volte comigo — pediu ele, a voz urgente. — Por favor. Seu lugar
não é aqui.
Seria possível? Será que ela poderia ir embora sem ao menos olhar
para trás? Por um momento pensou nisso, e dane-se a lógica da viagem
no tempo, o futuro e todas as pessoas que estavam contando com ela.
Foi o próprio Ash que a fez parar. O fato de ele ter tocado em sua
cicatriz, de ele saber sobre seu passado, seus pecados, e desejá-la mesmo
assim.
Talvez eu pudesse ser melhor, pensou ela. Talvez nem tudo estivesse
perdido.
— Eu queria poder voltar. — Ela apertou o peito dele, franzindo a
testa. — Mas não foi por isso que vim. Preciso te perguntar uma coisa.
— Não pode esperar? — murmurou ele junto ao seu cabelo.
Meu Deus, o cheiro dele continuava o mesmo. Cheiro de motores,
fogo e óleo. Ela queria absorvê-lo.
— É importante — disse, e se afastou.
Não sabia quanto tempo os dois tinham antes que Eliza os
encontrasse. Precisava ser rápida.
— Preciso que você pense um pouco — explicou com cuidado. — O
Professor alguma vez mencionou Nikola Tesla?
Ash franziu a testa e se inclinou para longe dela, apanhado
desprevenido.
— Quê?
— O Professor estava fazendo experimentos com Nikola Tesla. —
Dorothy lançou um olhar ansioso para a porta atrás de Ash e em seguida
voltou a olhar para o rosto dele. Nenhum sinal de Eliza por enquanto.
— Ele falou algo sobre isso para você? Qualquer coisa?
— Acho que não. — Ash franziu a testa. — Mas o que…
— Tem a ver com viajar no tempo sem ter um veículo. Já ouviu algo
sobre isso?
Ash coçou o pescoço, franzindo a testa.
— Não é possível viajar no tempo sem um veículo. Algumas pessoas
tentaram, antes de o Professor construir as máquinas do tempo, mas a
fenda é volátil demais, e todo mundo cou gravemente machucado.
— Sim, mas o Professor continuou fazendo experimentos para ver se
encontrava um jeito. — Dorothy mexeu no medalhão pendurado no
pescoço, os dedos ansiosos. — Pensa. Talvez tenha alguma coisa escrita
naquele diário dele? Você já leu tudo?
Ash já estava negando com a cabeça, mas parou.
— Espera — disse, quase para si mesmo. — Tinha algumas páginas
faltando. Não sei onde estão, mas…
Foi interrompido pelo som de madeira estalando e de um passo do
outro lado da porta.
Droga, pensou Dorothy, o coração pulando na garganta.
Eliza.
Recuou para as sombras um instante antes de Eliza pisar na doca. Viu
que ela fez questão de tirar do bolso um maço de cigarros e uma caixa
de fósforos, depois acendeu lentamente o cigarro enquanto seu olhar
percorria as sombras, procurando.
Dorothy olhou para ela com raiva. Eliza não tinha sido enganada.
Tudo que estava acontecendo na doca podia ser ouvido através da porta
na que os separava dos corredores do Coelho Morto. Ela havia saído
para mostrar a Dorothy que sabia que ela estava ali.
Os olhos de Eliza se voltaram para as sombras densas no cais,
casualmente, como se só estivesse espiando ao redor.
Não estou vendo você, parecia dizer, mas sei que está aqui.
Amaldiçoando o próprio erro, Dorothy voltou para as sombras,
virou-se na doca…
E, quase instantaneamente, alguém a agarrou por trás.
DIÁRIO DO PROFESSOR — 22 DE SETEMBRO DE 2074
22H07
A OFICINA
Acabo de voltar à minha linha do tempo atual, e no momento estou sozinho na oficina, onde
talvez possa me permitir ruminar sobre tudo que vi.
Voltar não foi tão difícil quando imaginei. Assim que retornei à zona de subdução de Cascadia,
senti o mesmo puxão, logo abaixo do umbigo, onde tinha injetado a matéria exótica. Uma
correnteza, como Tesla chamou. Descobri que conseguia resistir retesando os músculos do corpo.
Porém, se eu me permitisse afrouxar — não apenas física, mas também mentalmente —, era como
se o mundo flutuasse para longe e eu pudesse ficar…
Bom, acompanhando a metáfora de Tesla sobre um rio, acho que à deriva é a melhor descrição
em que consigo pensar. A sensação era quase como boiar na água, permitindo que a correnteza
me puxasse.
Tive sorte. A correnteza do tempo me levou de volta ao lugar de onde eu havia partido. Neste
momento, navegar para um ponto específico da história ou para um novo ponto da história ou do
futuro está fora das minhas possibilidades.
Esse novo modo de viajar exigirá um monte de pesquisas antes de ser tão viável quanto a forma
padrão de viagem no tempo.
Vou experimentar mais de manhã.
E, por enquanto… dormir.
15
Dorothy foi arrastada para a escuridão. Alguém envolvia seu corpo, uma
das mãos prendendo os braços dela às laterais do corpo e a outra a
impedindo de gritar. O medo rugia no peito dela, bloqueando qualquer
outro sentimento.
Será que Mac a havia encontrado? Ou uma Aberração do Cirko?
Ou…
Ah, meu Deus, seria Regan Rose?
Sentiu as pernas prestes a bambear. Não conseguiria enfrentar a
tortura outra vez. Não podia. Juntou o que restava das forças e tentou se
soltar do aperto…
— Para com isso, tá? — sussurrou uma voz no ouvido de Dorothy.
Ela parou de resistir.
Aquela voz. Dorothy conhecia aquela voz.
A pessoa a arrastou pela doca e virou uma esquina antes de soltá-la.
Dorothy girou, forçando a vista à luz fraca. Passou-se um longo
momento até que as feições familiares se destacassem das sombras.
Pele clara. Cabelo escuro emaranhado. Covinha no queixo. Sorriso
malicioso.
— Roman. — Dorothy abraçou o velho amigo, apertando-o com
força.
Ele se enrijeceu: os dois nunca foram do tipo que gosta de abraços,
mas ela não conseguira resistir. Apenas alguns dias atrás (Dois? Três?)
tinha-o visto morrer. Tinha chorado por ele, lamentado, e ali estava ele,
respirando, movendo-se e falando como se nada tivesse acontecido.
Porque nada tinha acontecido. Ainda não.
— Meu Deus, você é ruim nisso — disse Roman, dando-lhe um
tapinha nas costas antes de se afastar.
— Como assim?
Dorothy enxugou uma lágrima no rosto, tentando ngir que era só
um cisco. Roman arqueou uma sobrancelha. Parecia estar se esforçando
muito para não revirar os olhos.
— Qual é? É óbvio que você está vindo do futuro. E não está sendo
nem um pouco discreta. — Ele passou a mão pelo cabelo, suspirando. —
Está tentando ser descoberta? Isso faz parte do seu plano?
A boca de Dorothy cou muito seca.
— Como você…?
— Como eu sabia? Você tá brincando, né? A Dorothy desta linha do
tempo estava do lado de fora do meu quarto, usando uma roupa
diferente, escutando através da minha porta.
Dorothy sentiu as bochechas esquentarem, lembrando que tinha sido
pega escutando pela porta dele menos de uma semana atrás. E tinha
achado que estava sendo furtiva…
— Eu segui você — continuou Roman, estreitando os olhos escuros.
— Ou pelo menos estava tentando. Antes que pudesse te alcançar,
encontrei sua versão do futuro aqui, com os olhos brilhando para o seu
ex-namorado. — Ele balançou a mão para ela, franzindo o nariz. — Não
é exatamente o que eu chamaria de discrição.
— Eu não estava com os olhos brilhando — murmurou Dorothy.
— E o modo como você me atacou ainda pouco, como ca me
olhando como se eu fosse Lázaro ressuscitando dos mortos. — Roman
tentou dar seu sorriso charmoso, mas não conseguiu. Havia uma
expressão perturbadora nos olhos dele e o canto da boca se repuxou. —
E então? Eu morri? É por isso que você parece tão feliz em me ver?
Ah, ele era bom. Dorothy não esperava que ele perguntasse de modo
tão direto. Abriu a boca, mas não conseguiu dizer nada.
Deveria contar a verdade? De acordo com o bilhete que ele havia
deixado para ela, Roman já tinha visto a própria morte, sabia que iria
acontecer. Dorothy estremeceu, visualizando-o caído no chão, os olhos
arregalados sem enxergar.
— Na verdade… deixa pra lá. — Roman estivera observando-a com
muita atenção e naquele momento os olhos dele se estreitaram. — Acho
que posso viver sem saber qual pensamento te deixa com essa expressão
no rosto. Anda, vamos pra um lugar seguro.
A noite não tinha lua e o céu estava turvo. O som distante de um motor
cortou o ar e em seguida foi diminuindo até sumir. Uma névoa cinza e
leitosa se agarrava à superfície da água, fazendo Dorothy sentir que
utuava numa nuvem.
Roman a levou pelas docas dando a volta até os fundos do Fairmont.
— De quando você veio? — perguntou ao chegarem à porta de trás.
— De daqui a alguns dias. — O vento agitou o cabelo dela quando
Roman abriu a porta e a induziu a entrar. Dorothy fez as contas de
cabeça e disse: — Seis, acho.
— Seis dias — murmurou Roman, e Dorothy soube que ele estava
imaginando o que poderia ter acontecido de tão terrível em menos de
uma semana para fazê-la viajar de volta no tempo para consertar. Deu
um sorriso cauteloso, com algum nervosismo. — Bom, acho que não vai
ser uma semana muito boa, não é?
— Não seja bobo, vai ser uma semana fabulosa. — Dorothy precisou
se esforçar muito para manter a voz tranquila. — Só voltei para dizer
que a gente salva a cidade. Eletricidade para todo mundo, novos
medicamentos, o m das doenças. Estamos sendo saudados como
heróis. Festas todas as noites, esse tipo de coisa.
Roman levantou uma sobrancelha.
— E aí eu nalmente encontro uma garota legal e sossego?
— Encontra sim. Eliza, dá para acreditar? Todo mundo só fala nisso.
— Meu Deus, espero que você esteja brincando. — Roman fez uma
careta.
— Você não a acha bonita?
— Ela é bonita, sim, só que é… arisca. Acho que ela iria preferir uma
disputa de queda de braço comigo a me beijar.
— Eca, amor juvenil.
Tinham chegado ao andar de Roman. Ele inclinou a cabeça para fora
da escada e, vendo que o lugar estava vazio, levou-a pelo corredor até o
quarto.
Assim que entrou, Dorothy teve um déjà vu. Ali estavam os livros de
Roman, empilhados de qualquer modo em cima da cômoda, como
estariam no futuro, quando ela voltaria ali para procurar dinheiro. Ali
estava o par de botas reserva dele, chutadas e esquecidas num canto, e a
camisa suja que ele tinha jogado na cadeira da escrivaninha.
Sentiu um aperto estranho no estômago, olhando para aquela camisa.
Ele não a guardaria antes de morrer.
— O que você veio fazer aqui, de verdade? — perguntou Roman,
fechando a porta com rmeza.
Dorothy piscou, afastando o olhar da camisa abandonada. Não queria
dar mais nenhum motivo para Roman se preocupar com relação aos
próximos seis dias, por isso decidiu não mencionar a morte dele, nem a
tomada do Cirko Sombrio por Mac Murphy, nem Regan e sua terrível
sacola de brinquedos.
— Ash está… desaparecido — respondeu, em vez disso. — Todo
mundo tem certeza de que eu o matei. Inclusive o próprio Ash,
aparentemente. Voltei para ver se conseguia descobrir o que aconteceu
de verdade. E impedir, se possível.
Era uma versão resumida da verdade, mas era a verdade, mais ou
menos. Teria de servir.
Roman se encostou na porta, a cabeça inclinada, uma expressão
esquisita no rosto.
— Você veio aqui para impedir Ash de desaparecer? Você não espera
que eu a ajude com isso.
— Ah, para — reagiu Dorothy, com a frustração crescendo por
dentro. Com tudo que estava acontecendo, era nisso que ele queria se
concentrar? — Sua pequena vingança contra Ash foi resolvida. Você
ainda não sabe, mas vai perdoá-lo, tipo, amanhã. Assim, será que a gente
pode, por favor, seguir em frente?
Roman, para seu crédito, pareceu sem graça.
— Eu fui tão irritante assim quando voltei no tempo pra ver você?
— Tá brincando? — Dorothy bufou. — Toda aquela bobagem de o
tempo é um círculo. Fiquei com vontade de assassinar você.
— Touché — murmurou ele, olhando para as mãos. Depois de um
momento, suspirou e olhou de novo para ela. — Bom, se entendi
direito, você voltou no tempo pra descobrir se matou Ash, certo?
— Na verdade, tenho uma teoria de que alguém disfarçado de mim
deve tê-lo matado. — Mas, à medida que as palavras eram ditas,
Dorothy precisou admitir que isso parecia… improvável.
Roman arqueou uma sobrancelha. Depois de um momento, disse:
— Quando você veio aqui antes, no passado, estava tentando me
convencer a fazer alguma coisa pra mudar o futuro. Lembra?
Dorothy cou em silêncio por um momento. Claro que lembrava.
Antes de Roman e Ash serem assassinados, Roman a havia levado para o
futuro e mostrado uma visão sombria, aterrorizante: a cidade deles,
abandonada e destruída. Prédios haviam desmoronado e todas as pessoas
que moravam ali tinham morrido ou desaparecido. Ela ainda sentia
náuseas pensando naquilo.
Nos últimos dias, ela não tinha pensado muito naquela visão terrível
do futuro. Estivera ocupada demais tentando salvar Ash, tentando se
salvar. Constatar que deixara tudo de lado com tanta facilidade a deixou
incomodada.
— Você me perguntou se eu tinha alguma ideia do que poderia ter
acontecido para a situação chegar àquele ponto — continuou Roman. —
E eu disse que não tinha.
— Eu lembro.
— Não era verdade — retrucou Roman, sem graça.
Dorothy sentiu um arrepio na nuca. Parte dela queria dizer a Roman
para deixar aquilo para lá. Achava que nesse momento não tinha forças
su cientes para suportar qualquer coisa a mais. Poderia lidar com o
futuro quando tivesse salvado Ash, impedido Mac e convencido seus
amigos a con ar nela outra vez. Mas sempre havia sido curiosa, e não
conseguiu se impedir de perguntar:
— Você sabe por que o nosso mundo desmorona?
Roman a encarou de volta.
— Antes de começar a pesquisar a viagem no tempo com o Professor,
eu estava trabalhando num programa de computador que ajudaria a
prever terremotos. No nal, minha pesquisa foi inconclusiva, mas os
dados pareciam indicar que havia um relacionamento entre a viagem no
tempo através de uma fenda e o movimento das placas tectônicas.
— Não entendi — disse Dorothy, piscando. De repente, teve uma
lembrança: Zora, Ash e os outros reunidos na escola onde todos
moravam, tentando explicar os terremotos para ela. — Placas
tectônicas? Isso tem alguma coisa a ver com terremotos, não é?
Roman pareceu não registrar a interrupção.
— Eu vinha prestando atenção especial aos terremotos que
aconteceram no último ano. Eles tinham cado mais frequentes. Você
consegue imaginar algum motivo para isso estar acontecendo? — Ele
fez uma pausa e levantou os olhos, como se esperasse que Dorothy
entendesse. Quando ela não disse nada, ele acrescentou: — Dorothy, os
terremotos são provocados pela viagem no tempo.
Dorothy sentiu os lábios estremecerem. Era um tique, um sorriso
para esconder o nervosismo.
— Não é possível.
— Eu co repassando os dados, e a conclusão permanece a mesma,
teimosa, consistente. As datas, os horários e os números na escala
Richter, tudo leva a uma conclusão clara. — Roman soltou um riso
curto, amargo. — Fico espantado que ninguém mais tenha deduzido
isso.
— Roman, você tem noção do que está dizendo? — O sorriso havia
sumido da boca de Dorothy. Ela lambeu os lábios. — Se os terremotos
foram provocados pela viagem no tempo, isso signi ca que nós os
provocamos. Você e eu.
Roman a encarou sem piscar.
— Não é possível — repetiu ela.
Seu coração estava batendo muito rápido no peito.
— Eu queria estar errado. Mas os números não mentem.
Dorothy balançou a cabeça, sentindo um calafrio de pavor. Pensou
no bairro ao qual eles tinham voltado no tempo para saquear, na
velhinha com a cachorra, Abóbora. Na irmã de Roman.
O terremoto que havia acontecido depois de saírem daquele tempo
havia matado todos eles.
Ah, meu Deus…
Sentou-se na cama de Roman, o corpo parecendo muito pesado.
Levou a mão à boca, pensando em todas as vezes em que tinham viajado
para o passado, em todas as coisas idiotas, frívolas, que tinham feito.
Quantas vidas foram perdidas por causa deles?
— Por que você não me contou antes?
— Porque… — Roman sentou-se ao lado dela, dando um suspiro
profundo. — Para ser honesto, só aceitei isso há algumas horas. Foi
depois de eu e você irmos ao futuro com Mac e vermos o que ia
acontecer com nossa cidade. Então, percebi que minha hipótese estava
correta. Se os seres humanos continuarem a viajar no tempo, vamos
destruir tudo. Precisamos parar.
Dorothy fechou os olhos. Teve uma sensação incômoda enquanto
várias ideias que pareciam separadas tentavam se juntar.
O Professor tinha dito que era possível viajar no tempo sem um
veículo.
Mac queria viajar no tempo.
A viagem no tempo provocaria o m do mundo.
E, aparentemente, ela havia matado Ash.
Essas coisas estariam conectadas de algum modo? Não sabia, era
como olhar um quebra-cabeça sem metade das peças. Ainda faltava
alguma coisa.
— Ash sabe como viajar no tempo sem um veículo — disse ela. —
Nós vamos vê-lo amanhã, quando voltarmos para pegar os suprimentos
médicos.
Roman franziu a testa.
— O único modo de isso ser possível é com um pequeno pedaço de
matéria exótica alojado no corpo dele.
Dorothy o encarou.
— Você leu as páginas do diário do Professor que estavam sumidas?
Os experimentos dele com Tesla?
Claro que tinha lido. A nal de contas, ela havia encontrado as
páginas no quarto dele.
— Pelo jeito, você também leu — disse Roman, mas não aparentou
surpresa. — Eu mesmo pensei em tentar fazer o experimento, mas
pareceu…
— Aterrorizante?
— Exato.
— Tive a mesma sensação — admitiu Dorothy. — Acho que eu
poderia ter tentado, só que Mac me interrompeu antes que eu tivesse
coragem. E ele ainda cou com as páginas do diário.
Roman a encarou.
— Mac sabe que é possível viajar no tempo sem uma fenda?
Dorothy assentiu.
— Você disse que o único modo de impedir que a cidade seja
destruída é parar de viajar no tempo, mas Mac não vai parar. Nunca.
Agora que ele sabe que é possível viajar no tempo sem um veículo, vai
car ainda mais desesperado pra fazer isso.
Roman franziu a testa e houve um momento de silêncio enquanto ele
parecia revirar essa informação nova na cabeça.
— A viagem no tempo sem um veículo pode até ser possível, mas
mesmo assim ele precisa de matéria exótica. Então, a gente só precisa
destruir a matéria exótica. — Roman fez uma pausa, lançando um olhar
expressivo para Dorothy. — Toda a matéria exótica.
Dorothy examinou o rosto de Roman por um longo momento, certa
de que não tinha entendido bem.
— Você quer dizer que eu preciso destruir a matéria exótica que está
dentro do Ash — disse. — Que eu preciso matá-lo.
Roman a encarou de volta.
— Pra salvar o mundo.
16
— Você acha que é por isso que vou matá-lo? — perguntou Dorothy,
estarrecida. Sentiu o coração estremecendo dentro das costelas, como
um pássaro aprisionado, e apertou o peito, tentando forçá-lo a parar.
Isso é um mal-entendido, disse a si mesma. É só um mal-entendido
enorme.
— Se você não matá-lo, a viagem no tempo irá continuar e,
eventualmente, provocar um terremoto que vai destruir todos nós —
disse Roman. — Acho que você não tem outra opção.
Dorothy o encarou. Falando desse jeito, tudo parecia simples demais.
Isso dava arrepios.
— Não. — Ela começou a balançar a cabeça. Não acreditaria nisso.
Não podia acreditar. — É do Ash que estamos falando. Ash não quer que
o mundo seja destruído, tanto quanto você ou eu! Se nós o
encontrássemos, se falássemos com ele…
— Tenho certeza de que a gente poderia convencê-lo. — Roman
parecia frustrado, como se não pudesse acreditar que tinha de explicar
uma coisa tão óbvia. — Mas o que acontece se Mac pegá-lo? Você disse
que Nova Seattle está lotada de Aberrações do Cirko cujo único objetivo
é pegar Ash. E isso antes mesmo de Mac descobrir que o seu querido é
capaz de viajar no tempo sem um veículo. Isso dá um pouco mais de
incentivo para encontrar Ash, não é?
Dorothy não respondeu. Não queria dar a Roman o prazer de saber
que tinha apresentado um bom argumento.
— Pense no seguinte — continuou Roman. — Assim que você
destruir o resto da matéria exótica e Mac perceber que precisa viver
nesse buraco de merda que ele mesmo criou, quanto acha que vai
demorar até ele perceber que Ash é sua única chance de viajar no
tempo? A cidade inteira já está procurando por ele! É só uma questão de
tempo até que alguém o encontre.
— Mesmo se isso for verdade, Ash não sabe por que é capaz de viajar
no tempo sem um veículo. E, se você e eu estamos aterrorizados demais
para fazer experimentos com matéria exótica, o que faz você pensar que
Mac não vai car?
— Quanto daquele diário você leu antes de Mac roubar as folhas? —
Roman franziu a testa.
— O su ciente. Quase tudo.
Roman levantou uma sobrancelha.
— Você chegou à parte em que o Professor começa a experimentar
para ver se uma pessoa com matéria exótica no corpo pode transportar
outras?
Dorothy sentiu um frio súbito.
— Não.
— É complicado, mas não impossível. O que signi ca que Mac não
precisa entender como vai viajar no tempo, só precisa de uma carona.
Você acha, honestamente, que há uma chance de ele parar de procurar
Ash assim que ler isso?
Roman encarou Dorothy com rmeza. Ela engoliu em seco, com
força.
— Não, acho que não.
— É — concordou Roman. — E depois de um tempo ele não vai
car satisfeito em grudar no Ash sempre que quiser viajar no tempo. Vai
acabar abrindo o cara e arrancando o resto de matéria exótica do corpo
dele. Ash só está em segurança se partir. E o futuro só está em segurança
se ele nunca mais voltar.
— Para com isso. — Dorothy tapou os ouvidos, querendo bloquear
tudo que Roman estava dizendo. — Você não pode estar falando sério.
Não pode acreditar que esse é o único modo de salvar o mundo. — Ela
sentiu um gosto amargo na boca, enquanto a realidade do que ele
propunha ia se assentando.
Ela não podia ter matado Ash. Não acreditava nisso.
— Se você tiver uma perspectiva mais ampla, tudo começa a fazer
sentido — disse Roman com gentileza.
— Não. — Alguma coisa no fundo dela começou a doer. — Deve
haver outra coisa que a gente possa fazer. Esse não pode ser o único
modo. Não pode.
Roman estava encostado na parede mais distante, com os braços
cruzados. Ele a prendeu com um olhar.
— Achei que tinha voltado para isso, não? Para descobrir por que
matou Ash?
— Voltei para descobrir como não matá-lo! — Dorothy reagiu
rispidamente.
Tudo aquilo era demais para ela. Sentiu a energia percorrendo as
veias, uma energia nervosa, ansiosa, que lhe dava vontade de se mexer,
de fazer alguma coisa. Levantou-se e começou a andar de um lado para
o outro no quarto pequeno.
— Você sabe, tanto quanto eu, que não é assim que a viagem no
tempo funciona — observou Roman, parado junto à parede.
Dorothy bufou e só andou mais rápido ainda.
Não queria aceitar isso. Nada disso. Roman não podia estar
sugerindo que o único modo de salvar o mundo era matando Ash. Era
cruel… era ridículo. Ela tinha uma máquina do tempo, não tinha?
Poderia pegar Ash e desaparecer no tempo. Os dois poderiam ir para
algum lugar divertido. A Londres da década de 1960 ou Seul da de
2050, algum lugar cheio de comida, moda e festas…
Mas, ao mesmo tempo que o plano ganhava forma na sua cabeça, ela
pensava no futuro terrível que tinha visto.
Nova Seattle em ruínas. Uma cidade inteira reduzida a cinzas e gelo.
Seria capaz de viver consigo mesma, sabendo que tinha deixado isso
acontecer? Que tinha deixado todas aquelas pessoas morrerem mesmo
tendo como impedir?
Parou de andar. Continuou dizendo a si mesma que não era um
monstro, mas ir embora, deixar uma cidade inteira seguir para aquele
destino enquanto ela sabia como consertar as coisas, era monstruoso.
Tinha de haver outro modo. Tinha de haver.
— Olha — disse Roman, num tom de voz mais gentil. — Você
mesma disse que ele viu a própria morte, certo? Que ele teve uma pré-
lembrança.
— É. — Dorothy sentiu um aperto súbito nas entranhas.
— Bom, se ele viu a própria morte, isso signi ca que ela já aconteceu.
Uma pré-lembrança é uma lembrança. Não há como mudá-la.
O tempo é um círculo, pensou Dorothy. De repente, sentiu vontade de
gritar.
— Não acredito nisso — disse, virando-se para Roman. — O futuro
ainda não está xado. Você mesmo disse…
— Algumas coisas estão xadas, não importando se você quer
acreditar nelas ou não.
— Você só está dizendo isso por causa da sua vingança idiota —
rebateu Dorothy, furiosa. — Se fosse qualquer outra pessoa…
Na raiva, não conseguiu pensar em como terminaria o pensamento,
por isso apenas balançou a cabeça, deixando o resto da frase no ar.
Precisava car sozinha. Precisava pensar. Foi para a porta.
— Antes de você ir… — Roman a fez parar justo quando seus dedos
estavam envolvendo a maçaneta. — Poderia dizer exatamente quanto
tempo eu ainda tenho?
Dorothy levantou os olhos. A voz dele tinha saído dolorosamente
casual, mas ela não se enganou. Sabia que o momento em que Roman
estava mais vulnerável era quando ngia não ter nenhuma preocupação
no mundo. Aquilo devia estar consumindo ele por dentro.
— Quer mesmo saber? — perguntou.
— Durante o último ano, venho tendo visões da minha morte,
raposinha. — Roman olhou para a própria mão, examinando as cutículas
com um sorriso suave no rosto. — É melhor saber quando isso vai
acontecer.
Ela engoliu em seco. Não sabia como falar sobre a morte do melhor
amigo sem cair no choro, mas podia tentar, se era disso que ele
precisava.
A boca de Dorothy cou seca.
— Pra mim, já se passaram quatro dias — disse. — Pra você,
acontece daqui a dois.
O rosto de Roman cou sombrio. Ele virou as costas para ela.
Dorothy sentiu que ele queria car sozinho, mas não conseguia ir
embora.
— Viu? — disse Roman, depois de um momento. — Eu disse que
existem coisas que a gente não pode mudar.
Agora que confirmei que a teoria de Tesla para a viagem no tempo sem um veículo funciona,
gostaria de começar o processo complexo de descobrir como ela funciona.
De início, supus que Tesla houvesse descoberto um modo de viajar no tempo sem matéria
exótica, sem acesso a uma fenda e sem um veículo no qual viajar, mas não é bem assim. Eu usei
matéria exótica, só que a injetei no corpo. E, embora não tenha precisado viajar até a fenda do
estuário de Puget, utilizei a força das fendas menores, microscópicas, que existem na crosta da
Terra, para me puxar através das correntezas do tempo.
Assim, a única coisa de que não preciso mais é de um veículo. Meu corpo, essencialmente, se
tornou o veículo.
Isso me leva a imaginar até onde a matéria exótica se estende para além do meu corpo físico.
Por exemplo, quando viajei de volta no tempo, pude levar as roupas e os óculos. Não apareci no
passado cego feito um morcego, nem nu como vim ao mundo (graças a Deus, ninguém quer ver
isso). Não: tive a sorte de aparecer usando o mesmo jeans desbotado e a camiseta que eu estava
vestindo na minha linha do tempo original. E as roupas estavam em boas condições! Não vieram
rasgadas e nem puídas, a camiseta um pouco rançosa nas axilas, mas acho que isso foi por estar
vestindo ela há alguns dias, e não por viajar anos para o passado. Tudo estava como na minha linha
do tempo presente.
O que significa que a matéria exótica se estende para além do meu corpo físico, protegendo as
coisas mais próximas da minha pele.
Mas até que ponto vai esse poder? Será que, por exemplo, eu poderia levar um objeto?
Um pequeno animal?
Outra pessoa?
O único modo de saber se isso é possível, claro, é experimentar. Melhor começar com algo que
não seja vivo, não é? Tipo, por exemplo, uma batata. Ninguém pode ficar com raiva de mim por
ferir uma batata.
Na verdade, isso abala um pouco os nervos. Fico me lembrando daquele filme antigo com Je
Goldblum, A mosca. Para quem não é familiarizado com o cinema de terror da década de 1980,
nesse filme, Je faz experiências com o teletransporte e, por acaso, cruza os cromossomos com os
de uma mosca. Em seguida, ele começa a virar uma mosca, o que é aterrorizante, para dizer o
mínimo.
Será que a tentativa de levar uma batata de volta no tempo vai fazer com que eu me transforme
numa batata?
Só estou brincando… mais ou menos.
De qualquer modo, sem embromar mais, apresento a vocês:
Missão: Goldblum 1
Objetivo: tentar estender a proteção da matéria exótica para além do meu corpo físico.
A simplicidade é fundamental para esse experimento, acho, e por isso vou manter tudo
bastante básico: meu plano é viajar de volta no tempo — basta uma hora — segurando uma batata.
Me desejem sorte.
ATUALIZAÇÃO
1º DE OUTUBRO DE 2074
21H15
A Goldblum 1 foi um sucesso! Na verdade, estou chocado ao ver como foi fácil. Apenas remei
até a zona de subdução de Cascadia, como tinha feito na minha primeira viagem desprovida de
veículo (tente dizer isso rapidamente cinco vezes!), só que, dessa vez, estava segurando minha
batata da sorte.
Senti o puxão familiar do túnel do tempo. O mundo foi caindo para longe e lá estava eu. No
passado.
Com minha batata. Ela não estava ferida nem nada. Estava perfeita.
Estou empolgado. Não quero deixar esse sentimento ir embora, por isso vou passar ao próximo
estágio da minha experiência: uma criatura viva.
Em outras palavras, peguei um camundongo.
Vou deixar você completar o resto.
Aqui vai:
Missão: Goldblum 2
Objetivo: tentar estender a proteção da matéria exótica a outro ser vivo.
Vamos lá.
ATUALIZAÇÃO
1º DE OUTUBRO DE 2074
22H45
Quase não quero escrever isso. Sei que sou um cientista e realmente deveria ser imparcial, mas
também amo os animais, e isso…
Bom, é difícil dizer isso.
Certo, aí vai: infelizmente o Je nho não sobreviveu.
Je nho é o nome que dei ao camundongo. Como cientista, eu não deveria dar nome aos
objetos dos testes, mas não pude evitar. Ele parecia um pequeno Je Goldblum.
E morreu. Eu preferiria não entrar nos detalhes de como isso aconteceu. Direi apenas que a
matéria exótica não estendeu suas propriedades para além do meu corpo físico a ponto de mantê-
lo em segurança dentro da fenda. Por algum motivo, parece que ela não poderia proteger uma
criatura viva do mesmo modo como pôde proteger um objeto.
Fico me perguntando o motivo. Tenho algumas teorias, mas cada uma delas é menos provável
do que a outra.
17
8 DE NOVEMBRO DE 2077
Naquela noite, Roman não voltou para o quarto. Dorothy esperou por
quatro horas e, lembrando que esse era o momento em que eles tinham
errado a saída ao voltar do passado, enroscou-se na cama dele,
imaginando o que, a nal, deveria fazer.
Tinha escurecido, mas ela não tinha forças para se levantar e acender
uma vela. Enterrou o rosto no travesseiro de Roman, ofegante. Não
conseguia se lembrar da última vez em que havia se sentido tão perdida.
Talvez tivesse sido no dia do casamento com Avery, ao perceber que
havia tentado de tudo para fugir e nada dera certo.
Ou talvez fosse o momento em que tinha acordado nas docas, um ano
antes do que pretendia, sozinha e sem amigos, imaginando como
sobreviveria num mundo estranho e novo.
Suspirou, a frustração rugindo por dentro. Se fosse honesta consigo
mesma, diria que nenhum daqueles momentos se comparava. Por mais
desesperada que tivesse estado, sempre tivera algum plano de reserva,
algum modo de recuperar o controle enquanto tudo parecia car mais
difícil e mais complicado. E tivera pessoas com quem podia contar. Ash,
Roman, até mesmo sua mãe.
Mas, naquele momento…
Tinha se juntado ao Cirko Sombrio porque acreditava na mensagem
deles. O passado é nosso direito! A pergunta que a incomodava desde que
tinha viajado cem anos para o futuro e encontrado o mundo muito,
muito diferente do que esperava: que tipo de problema não poderia ser
resolvido com a viagem no tempo?
Por acaso, apenas um.
Passei os últimos dias pensando no meu último experimento. Na devastadora morte de Je nho,
o camundongo.
Não consigo deduzir por que ele morreu. Ele era menor do que aquela batata, de modo que
não foi porque a matéria exótica não se estendeu suficientemente além do meu corpo físico. Deve
ter algo a ver com a composição bioquímica dos organismos. O camundongo, diferentemente da
batata, tinha batimentos cardíacos.
Portanto, a questão é: como posso proteger os batimentos cardíacos?
Quando construí minha máquina do tempo, pude integrar as propriedades exóticas da matéria
na estrutura do próprio veículo, estendendo a proteção dada por ela. Fiz isso usando uma técnica
que, na verdade, roubei de Tesla.
Veja bem, uma bobina de Tesla consiste em duas partes: uma bobina primária e uma bobina
secundária, cada qual com seu próprio capacitor. (Os capacitores são basicamente baterias feitas
para armazenar energia elétrica.) As duas bobinas e os capacitores são conectados por um
centelhador — um espaço de ar entre dois eletrodos, que gera a fagulha de eletricidade. Uma
fonte externa conectada a um transformador alimenta todo o sistema. Essencialmente, a bobina
de Tesla é feita de dois circuitos elétricos abertos conectados a um centelhador.
A bobina primária precisa ser capaz de suportar a enorme carga e os enormes surtos de
corrente, por isso geralmente é feita de cobre; o cobre é um condutor de eletricidade muito bom.
Tive o cuidado de usar placas de cobre na estrutura de todas as minhas máquinas do tempo por
isso.
Quando você já tem uma máquina do tempo, é fácil criar esse tipo de circuito. Sem uma, a coisa
fica mais complicada. Eu precisaria usar um pedaço de cobre para conectar a pessoa à matéria
eletrônica dentro do corpo à pessoa sem nenhuma matéria exótica dentro do corpo. Não consigo
pensar num modo de fazer isso sem implicar, literalmente, o uso de facas e cortes.
O que, obviamente, não vai dar certo.
19
11 DE NOVEMBRO DE 2077
O mundo continuava como antes. A mesma água negra,
assustadoramente calma, ondulando ao vento, o mesmo céu escuro e
distante. Se Dorothy inclinasse a cabeça e prestasse bastante atenção,
conseguiria escutar os uivos e gritos das Aberrações do Cirko saindo do
Fairmont e entrando nas lanchas. Logo, as águas estariam cheias delas.
Era como se tivesse estado longe durante anos, mas eram apenas alguns
instantes. Duvidava que alguém ao menos tivesse notado que ela sumira.
Veri cou o relógio no painel da máquina do tempo: ainda faltava
uma hora para a meia-noite. O que signi cava que ela e Mac tinham
acabado de deixar o corpo de Roman para trás no futuro e voltado. Mac
teria informado ao Cirko Sombrio que Jonathan Asher era responsável
pela morte de seu amado Corvo. Dorothy ainda podia escutar a voz
dele, prometendo à gangue de Aberrações uma enorme recompensa em
troca do corpo de Ash, vivo ou morto. Nesse momento, era apenas o
Cirko que estava caçando Ash, mas Dorothy sabia que logo seria a
cidade inteira. Precisava agir depressa.
Voou até o prédio escolar onde Ash e os outros moravam e pousou a
Corvo Negro na água do lado de fora. Veri cou se ainda estava com a
adaga de Roman en ada no casaco. Estava. Soltando a respiração
lentamente, subiu na doca e deu a volta pela lateral do prédio, contando
janelas escuras até chegar à de Ash.
Ele a mantinha fechada, mas as fechaduras em Nova Seattle eram
uma piada. Dorothy en ou a adaga de Roman entre o caixilho da janela
e o parapeito, balançando a lâmina até encontrar uma trava. Então,
usando a adaga como um pé de cabra, empurrou a janela para cima,
gemendo um pouco quando a madeira nalmente cedeu, abrindo uma
fresta. Guardou a adaga de Roman e passou os dedos em volta do
caixilho, gemendo enquanto a janela estremecia e subia até se abrir por
completo.
O quarto estava vazio, escuro. Ash ainda não tinha voltado do futuro,
mas não deveria demorar muito. Dorothy encontrou um pedaço de
papel e uma caneta velha na escrivaninha e escreveu o bilhete:
Calor e dor.
A dor era pior do que o calor. Fazia Ash se lembrar de ondas.
Chocava-se contra ele, passava por cima dele, e fazia-o afundar.
Para baixo
e para baixo
e para baixo…
Justo quando achou que não aguentaria mais, a dor diminuiu, só um
pouco, só o bastante para escutar a voz dela.
— Ash? Ash, está ouvindo? Abra os olhos…
Dorothy. Ele abriu a boca e tentou forçar as palavras para fora, por
entre os lábios, mas logo a dor chegou e tudo começou de novo.
Morrer era assim?
Não sabia.
Nunca tinha morrido antes.
21
DOROTHY
7 DE JUNHO DE 1913
Dorothy não sabia direito quanto tempo havia passado agachada junto
da cama de Ash. Horas? Mais ainda?
Não tinha dormido nem comido desde que haviam chegado à casa de
Avery, e ela mal percebia as pessoas que entravam e saíam do quarto.
Geralmente era Charles, para veri car o estado de Ash, ou uma das
governantas que vinham trazer a comida que Dorothy não tocava e nem
mesmo olhava. Nada disso lhe interessava o su ciente para convencê-la
a afastar os olhos do rosto de Ash.
Será que havia um pouquinho mais de cor na pele? Será que a
respiração tinha se estabilizado? Aquilo nos cílios dele foi um pequeno
tremor?
Prendeu o fôlego, chegando mais perto.
Mal ouviu o rangido da porta se abrindo ou os passos leves no piso,
mas não pôde deixar de notar o peso súbito que preencheu o quarto,
como uma mudança de temperatura. Franzindo a testa, levantou o olhar.
A mãe estava atrás da cadeira ao lado da de Dorothy, os dedos
apertando o encosto com força, o olhar xo em frente. Dorothy sentiu
cada músculo do corpo se retesar.
— Mãe — disse ela, empertigando-se. — O que está fazendo aqui?
— O que estou fazendo aqui? — Loretta deu um riso tenso. Em
seguida, sentou-se, ajeitando as saias com um movimento rápido da
mão. — Você tem a audácia de perguntar?
— Posso explicar — respondeu Dorothy rapidamente.
— Explicar? — Loretta levantou uma sobrancelha na, parecendo
achar aquilo divertido. — Ande, então. Explique.
Dorothy sentiu os dentes trincando. Quase tinha esquecido como sua
mãe era boa em fazer com que ela se sentisse pequena, como se ainda
fosse uma criança travessa implorando perdão por ter derrubado um
copo de água ou falado fora de hora. Na verdade, aquilo era um talento.
Você comandou gangues e dominou cidades, lembrou Dorothy em
silêncio. Roubou joias de reis. Não tem nenhum motivo para temer sua mãe.
— Mãe, eu…
Loretta estalou a língua, interrompendo-a.
— Talvez você queira começar dizendo como conseguiu arruinar
nossa chance de conseguir mais riqueza e poder do que você e eu jamais
vimos na nossa vida curta e difícil?
O lábio superior de Loretta se curvou ligeiramente enquanto ela se
inclinava adiante, segurando um cacho branco do cabelo de Dorothy.
— Ou, talvez, você pudesse explicar isso. Ou… isso. — Ela indicou a
cicatriz atravessando o rosto que já fora lindo, a expressão
desmoronando de decepção, como se a lha tivesse acabado de destruir
uma preciosa herança de família. O que não estava muito longe da
verdade, supôs Dorothy, sentindo a boca seca. Não sabia por onde
começar.
Entendia a fúria da mãe. Nenhum dos convidados tinha permanecido
nas imediações da capela nas várias horas que Charles havia demorado
para salvar a vida de Ash. Depois disso, Charles sugeriu que eles
adiassem o casamento considerando as… bom, as “circunstâncias
atenuantes”, foram as palavras que ele usou, e Dorothy não pediu que
ele fosse mais claro. Sabia, desde o primeiro dia, que Avery queria ter
um troféu pendurado no braço, uma esposa bonita, quieta, que sorriria
nos momentos adequados e riria das piadas dos colegas dele. Mas, como
Dorothy estava… diferente, ela não lhe interessava mais.
O que, para ela, estava ótimo. Nunca o havia desejado. Desde que ele
lhe permitisse car junto de Ash durante sua recuperação, ela estava
satisfeita.
A mãe, por outro lado…
— Como isso aconteceu? — perguntou Loretta, a voz grave e cheia
de fúria.
O olhar dela foi na direção de Ash, ainda deitado imóvel na cama, a
pele ainda pálida, mas notavelmente menos esverdeada do que antes. Os
lábios de Loretta se retorceram com nojo.
— Quem é esse rapaz? Onde você o encontrou?
Dorothy abriu a boca e fechou de novo. O calor ardia em suas
bochechas. Não conseguia explicar. A mãe merecia uma explicação por
tudo que havia acontecido, mas era uma explicação tão estranha, tão
absurda…
Loretta piscou, olhando para a lha.
— E então? — disse rispidamente. — Estou esperando.
Vamos lá, pensou Dorothy.
— Mãe — começou devagar. — Esse rapaz é um piloto chamado
Jonathan Asher. Ele é um viajante do tempo do ano de 2077.
Ash e o Professor tinham ido para uma pequena sala de estar. Era um
cômodo rebuscado, pequeno e atulhado de coisas, a mobília delicada.
Ash se sentia grande demais para ela, como se pudesse quebrá-la caso se
mexesse muito. Equilibrou-se na beirada de uma namoradeira, uma das
mãos apertando a bandagem na barriga. O ferimento estava começando
a arder e alguma coisa perfumada pairava no ar, fazendo cócegas no
nariz dele.
O Professor se sentou e, por um longo momento, os dois caram em
silêncio.
Ash olhou para os joelhos. Tinha passado o último ano pensando
repetidamente no que diria ao seu mentor se estivesse diante dele assim,
mas descobriu que estava com a mente vazia.
Bom, isso não era verdade. A mente não estava vazia: estava cheia
demais. Era como a estática que via nos antigos aparelhos de TV
quando não conseguia encontrar uma estação. O cérebro dele estava
exatamente assim: uma névoa branca e, a intervalos de alguns segundos,
uma palavra, o início de uma pergunta que sumia antes que ele pudesse
ter a chance de fazê-la em voz alta.
Estava feliz em ver o Professor de novo. Claro que estava.
Mas também sentia raiva.
Ele o deixou pensar que estava morto. Deixou a própria lha pensar
que estava morto.
E não somente por alguns dias — por mais de um ano. Tinha sumido
no meio da noite, deixando-os para limpar a confusão que ele havia feito
na cidade.
Por quê? Essa foi a pergunta que nalmente apareceu na estática do
cérebro. Ash respirou fundo e se rmou, levantou os olhos e viu que o
Professor o encarava com uma espécie de sorriso triste no rosto.
— Imagino que você esteja se perguntando por que eu fui embora —
disse ele, em tom de desculpas.
— Dentre outras coisas — murmurou Ash.
O Professor se remexeu desconfortável na poltrona.
— Bom, infelizmente essa é uma história muito longa.
— Nós temos uns cem anos para matar, mais ou menos.
— Rá, essa foi engraçada. — O canto da boca do Professor se curvou.
— Você fez uma piadinha.
Ash não riu. Pegou-se desejando ter uma bebida nas mãos, só para ter
alguma coisa para fazer. Sem mais nada em que se concentrar, tinha
apertado as mãos, os dedos praticamente brancos, a pele repuxada nos
nós.
Abriu-as, apertando-as de novo, tentando fazer os músculos
relaxarem. Quando o Professor não disse nada, Ash o olhou.
— Os terremotos. Comece por aí.
— Vejo que você fez o dever de casa. — O Professor se inclinou
adiante, apoiando os braços nos joelhos. Em seguida, tirou os óculos e
começou a limpar as lentes com a bainha da camiseta. — Os terremotos.
Tudo isso começou porque eu queria encontrar um modo de evitá-los.
Depois que Natasha…
A voz dele falhou. Ele fechou os olhos por um momento, parecendo
que precisava recuperar o controle antes de prosseguir.
— Depois de Natasha, pareceu importante descobrir por que eles
estavam acontecendo, talvez até mesmo encontrar um modo de prevê-
los no futuro. Há anos, Roman tinha pesquisado esse tipo de coisa,
estudando a atividade das placas tectônicas e das linhas de falha. Chegou
a desenvolver um programa de computador que deveria prever como a
crosta da Terra poderia se mover no futuro, mas desistiu de tudo isso
quando o recrutei para a nossa equipe. Voltei no tempo e peguei a
pesquisa dele emprestada para ver se ele estava descobrindo alguma
coisa.
— E estava — supôs Ash.
— Ah, sim. — O Professor levantou o olhar. — Não tenho certeza de
que o próprio Roman tinha plena consciência do que havia descoberto.
Existiam padrões, veja bem, números que provavam alguma correlação
entre a viagem no tempo e o movimento das crostas terrestres. Era uma
ciência muito confusa, claro. Nem um pouco conclusiva. Mas era um
começo. Assim que vi as tendências, não consegui mais desvê-las.
Precisava saber mais. Só que a cidade ainda estava se recuperando da
inundação. Eu precisava de recursos, de um lugar limpo para trabalhar,
um laboratório, livros… Tentei entrar em contato com os poucos
aliados que ainda tinha no Centro, mas eles não estavam interessados
em ajudar. Os terremotos não os afetavam. E a ATACO… bom, toda a
pesquisa que tínhamos passado anos desenvolvendo, tudo, tinha
desaparecido.
— Por isso, o senhor foi ao Forte Hunter.
O Professor assentiu.
— Assim que percebi que precisava viajar de volta no tempo para ter
acesso aos recursos necessários, toda a história humana se abriu para
mim. Fazia todo sentido voltar a um tempo em que estavam investindo
no tipo exato de ciência que me interessava. Na década de 1980, o Forte
Hunter gastou uma quantidade enorme de tempo e dinheiro
mergulhando no mundo da modi cação ambiental. Acredito que o
plano era transformar isso numa arma. Mais tarde, naquela década, o
programa foi encerrado depois de alguma pressão política. Eu achei que
valia a pena dar uma olhada, por isso voltei.
O Professor fez uma pequena pausa e continuou:
— Passei apenas um dia lá, mas foi o su ciente. Mais do que o
su ciente. Em poucas horas, pude veri car minha teoria, de que o uso
contínuo da fenda do estuário de Puget só levaria a terremotos mais
longos e mais devastadores no futuro.
Ash pensou nas anotações rabiscadas que tinha encontrado no para-
brisa da Estrela Escura, cada uma com uma data e um número de
magnitude, a promessa de terremotos mais devastadores pela frente.
— Então por que o senhor não voltou logo? — perguntou Ash, com
a garganta se fechando. — O senhor poderia ter nos ajudado. Poderia
ter nos alertado.
— Eu queria. — O Professor franziu a testa, com rugas profundas
aparecendo ao redor da boca. — Jonathan, você precisa acreditar que
tudo que eu queria era voltar a Nova Seattle e salvar vocês daquele
futuro. Mas havia mais trabalho a ser feito. Eu tinha descoberto o que
provocava os terremotos, não podia mais usar a viagem no tempo, pelo
menos até descobrir como reduzir os danos que estava provocando a
cada vez que passava pela fenda. Consegui identi car que o tamanho do
terremoto tinha uma correlação direta com a quantidade de ruptura que
a fenda experimentava no momento da viagem.
Ash franziu a testa, com as palavras do Professor girando na cabeça.
— Acho que não entendo…
— Em termos leigos: uma nave maior criava uma grande quantidade
de ruptura, e uma nave menor criava menos. — O Professor manteve as
mãos abertas. — E nave nenhuma…
— Signi ca… nenhuma ruptura?
— Exatamente. — O professor bateu palmas, e o som súbito fez Ash
pular. — Tive a ideia a partir da minha pesquisa com Nikola Tesla. Veja
bem, Tesla tinha teorizado, muito antes, que a viagem no tempo sem um
veículo era possível. E não somente sem um veículo, mas sem acesso
direto à própria fenda. Isso implica usar a energia da Terra para acessar a
energia da fenda onde quer que você esteja, no tempo e no espaço.
O Professor endireitou os óculos no nariz com um movimento
rápido da mão.
— Para ser perfeitamente honesto, eu achei que ele estava louco!
Achei que era impossível. Mas, se desse certo, signi caria viajar no
tempo sem interferir nas placas tectônicas, um modo de impedir aqueles
terremotos. Mas é uma ciência complicada. Eu tinha acabado de
completar o protótipo quando sua amiga chegou. — Os olhos do
Professor se viraram na direção da porta no outro lado da sala, quase
como se esperasse ver Dorothy parada ali. — Ela me disse que
precisavam de mim aqui. Por isso, eu vim.
Ash olhou para as próprias mãos. Não sabia o que dizer. Tudo aquilo
fazia sentido, e ele cou arrasado ao saber que podiam ter encontrado o
Professor semanas antes, se ao menos tivessem procurado mais, se ao
menos tivessem con ado que ele ainda estava vivo.
Fechou os olhos e viu o topo do prédio do Forte Hunter, o rosto
devastado de Zora ao perceber que o pai não estava ali. Sentiu que iria
vomitar.
— Eu… eu achei que o senhor estava morto — admitiu com a voz
embargada. — Zora também. Todos nós achamos.
O Professor ajeitou os óculos no nariz. Os olhos por trás das lentes
pareciam doloridos. Ash esperou que ele perguntasse sobre a lha, mas
o Professor não fez isso.
— Eu não tinha intenção de provocar tanto sofrimento. — Ele deu
um sorriso pequeno, triste. — Estava tentando impedir tudo isso,
acredite ou não.
Ash assentiu, entendendo. Acreditava. Estava começando a perceber
que a viagem no tempo tinha a capacidade de turvar as coisas, de
bagunçar tudo.
O Professor tirou uma pequena pistola prateada do bolso do paletó.
Era estranha, quase como se tivesse sido montada usando peças da nave,
mas o Professor a segurava como se fosse preciosa.
— Os seres humanos viajam no tempo com mais facilidade do que
uma nave desajeitada. Só precisamos colocar uma pequena quantidade
de ME no corpo, o que essa arma permite fazer.
O Professor inclinou a arma e Ash viu que havia uma quantidade
muito pequena de matéria exótica armazenada dentro, mantida no lugar
por uma cápsula de vidro transparente.
— Essa coisa funciona mesmo? — perguntou Ash, cético.
— Ela me trouxe aqui. Sem solavancos nem hematomas, sem chifres
crescendo na minha cabeça.
Ash coçou a nuca. Sentia-se inquieto. Tinha algo a ver com aquela
quantidade minúscula de matéria exótica armazenada na arma do
Professor, a percepção de que havia tanto poder dentro de uma coisa tão
pequena. Qualquer um poderia pôr as mãos naquilo.
— Se alguém como Mac Murphy conseguir se apossar dessa coisa,
não há como saber… — disse com cautela, depois de molhar os lábios.
Houve um rangido do outro lado da sala, o som de uma porta se
abrindo. Ash parou de falar e levantou o olhar.
Dorothy e a mãe dela estavam emolduradas no portal. Olhando-as,
Ash percebeu que não sabia exatamente quanto tempo elas tinham
estado ali. Era possível que tivessem ouvido tudo.
— Se vocês dois não estiverem ocupados… — disse Dorothy. —
Acho que nós podemos ter um plano.
PARTE QUATRO
Não há lugar como o nosso lar.
— O Mágico de Oz
31
DOROTHY
13 DE NOVEMBRO DE 2077
A luz bateu nas pálpebras de Roman, uma sensação tão forte que era
quase como um toque físico. Ela o instigou para fora da escuridão do
sono, puxando-o de volta para, para…
Onde? Os olhos dele continuavam fechados, mas ele conseguia sentir
que estava deitado em cima de alguma coisa. Havia uma pressão rígida,
fria, embaixo dele, e o leve peso de algo sobre o corpo, um lençol ou um
cobertor leve. Ouviu o som de vozes distantes, passos. Ele respirou
fundo e o nariz foi preenchido com o cheiro de cerveja e comida frita.
Um bar, então. Estava num bar.
Abra os olhos, disse a si mesmo, mas a ordem não provocou efeito no
corpo físico. As pálpebras pareciam coladas, duas tiras de carne presas
por uma coisa pegajosa. Tentou de novo e um leve gemido escapou de
seus lábios. A luz explodiu nas retinas. A claridade era avassaladora. A
dor atravessou o crânio, chocando-o a ponto de ele ter de fechar os
olhos de novo, por instinto, fazendo uma careta.
Respirou fundo e devagar pelo nariz, esperando que os batimentos
cardíacos se acalmassem antes de tentar outra vez.
O quarto era comprido, estreito e tinha uma única janela do lado
mais distante, com uma cortina na. Ele estava deitado numa cama e
parecia estar usando as próprias roupas, mas estavam ensanguentadas,
sujas.
Tentou levantar a cabeça, mas a dor subiu pelo pescoço, e ele a
deixou tombar de novo no travesseiro, com as pálpebras estremecendo.
Algo muito ruim tinha acontecido. Com certeza. Fechou os olhos e
tentou se lembrar do que era.
Tinha esperado não encontrar nada, apenas vazio e escuridão, mas a
lembrança continuava ali, bem onde ele a havia deixado. Estendeu a
mão para ela, e foi como uma correnteza arrastando-o rio abaixo. Assim
que se entregou à lembrança, não havia nada que ele pudesse fazer para
impedi-la de novo.
Viu a máquina do tempo e Quinn. Mac. O futuro. O tiro.
Um zumbido cresceu na cabeça dele, bloqueando todos os outros
ruídos. Ele fechou as mãos, as unhas se cravando nas palmas. O quarto
parecia muito pequeno e muito escuro, e Roman foi dominado por um
terror diferente de tudo que já havia sentido.
Tinha levado um tiro.
Uma das mãos saltou na direção do peito, nervosa, procurando um
buraco de bala. Encontrou uma bandagem, ainda úmida de sangue. A
respiração começou a se estabilizar.
— Bom, olha só quem decidiu acordar — disse uma voz.
Roman abriu os olhos e viu uma garota parada junto à porta do
quarto. Estava usando jeans desbotado e uma camiseta branca, o cabelo
caindo na testa em cachos macios.
Ela sorriu, entrando.
— Fizemos uma aposta. Eu apostei que você acordaria, mas papai diz
que sou otimista.
Roman tentou falar.
— Onde… onde… — Ele mal conseguia falar. Tinha um gosto
estranho na boca. Rançoso. Como se não escovasse os dentes havia
muito tempo. E, nossa, estava com sede. A língua parecia feita de palha.
Engoliu, tentando forçar a saliva pela garganta áspera.
— Você está na adorável cidade de Nova Seattle, num barzinho
charmoso chamado Coelho Morto — contou a garota. — Encontramos
você há dois dias, com um ferimento de bala, imagine só. Foi papai que
trouxe você pra cá e fez com que fosse costurado. Se bem que, pra ser
honesta, ele tem algumas perguntas pra fazer. Tiros não são coisas
comuns por aqui, pelo menos nos últimos anos.
Ela atravessou o quarto e abriu a cortina, deixando entrar um jorro
de luz forte e branca.
— Por que não relaxa enquanto vou chamá-lo? É ele que vem
cuidando de você, e vai poder explicar tudo.
Roman piscou, tentando entender todas as coisas que ela havia dito.
Estava em Nova Seattle? No Coelho Morto? E o que ela quis dizer com
“os tiros não são comuns”?
A garota estava quase chegando à porta. Roman pigarreou, de novo
tentando usar a voz.
— Em que… que ano estamos?
A menção ao ano fez o queixo da garota se levantar. Ela o encarou
por um longo momento.
— Estamos em 2082. Por quê?
Roman soltou o ar. Podia sentir o coração batendo nas têmporas, ver
o sangue pulsando através das pálpebras.
Ano de 2082, pensou. Bom, isso não era tão ruim. Estava no futuro,
mas não tão longe a ponto de não levar uma espécie de versão normal da
própria vida. As coisas pareciam diferentes de quando tinha chegado ali
com Dorothy. Nada de cinzas e de céu encoberto. Nada de cidade em
ruínas, pelo menos pelo que dava para ver, da cama.
Eles deviam ter feito algo, percebeu. Dorothy, Ash e os outros.
Deviam ter mudado as coisas.
O pensamento lhe fez sorrir.
Bom para eles.
Quando abriu os olhos de novo, Roman viu que a garota ainda estava
perto da porta, espiando.
— O que foi? — perguntou ele.
— É só… quei imaginando se você não seria um… — ela baixou a
voz — … um viajante do tempo?
Roman se conteve. O coração martelava nos ouvidos, um som de
tambor lento, rme.
— Por que está perguntando isso?
A garota pareceu nervosa.
— Nada — respondeu rapidamente. — Só que há umas pessoas lá
fora e… achei que elas estavam malucas, mas elas disseram que também
são viajantes do tempo. Parece que são suas amigas.
AGRADECIMENTOS
Preparação de originais
BIA SEILHE
Coordenação digital
MARIANA MELLO E SOUZA
R658e
Rollins, Danielle
Estrelas escuras [recurso eletrônico] / Danielle Rollins ; tradução Ivanir Calado. - 1.
ed. - Rio de Janeiro : Rocco Digital, 2024.
recurso digital (Estrelas escuras ; 3)
1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Calado, Ivanir. II. Título. III. Série.
CDU: 82-3(73)