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Sobre o autor
Edição em formato digital: abril de 2024
© desta edição:
2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.
ISBN: 978-989-787-942-5
PASSAGENS
A MORTE TRANQUILA
DO SR. WEBBER
Cassie conduziu Izzy através de uma porta que deu para uma
grande sala circular com janelas do chão ao teto a toda a volta.
Havia pessoas a circular e um leve burburinho, mas o espaço não
estava apinhado.
— Onde é que estamos? — perguntou Izzy, a observar os rostos
das outras pessoas na sala.
— Vem — disse Cassie, incitando-a a continuar com um
movimento da mão.
Dirigiram-se para uma janela que se estendia do chão ao teto e a
vista abriu-se diante delas, uma extensão interminável de edifícios e
ruas em todas as direções, sob um céu azul enevoado. Ao longe, no
horizonte, erguia-se uma forma gigantesca, perfeitamente simétrica
e triangular, encimada por um cume branco.
— Uau! — exclamou Izzy, enquanto apreciava a vista. — Onde é
que estamos?
— Tóquio — disse Cassie, com os olhos fixos nas ruas
espalhadas lá em baixo.
— Estamos no miradouro do edifício do Governo Metropolitano
de Tóquio, para ser mais exata. E aquilo… — Apontou para a forma
no horizonte, batendo no vidro com o dedo indicador. — É o monte
Fuji. Já alguma vez viste uma montanha com mais aspeto de
montanha do que aquela?
Izzy sorriu.
— Pensava que Nova Iorque era a melhor cidade do mundo…
mas isto é… — Abanou a cabeça lentamente. — Isto é como Nova
Iorque vezes dez.
— Sim — concordou Cassie.
Izzy apreciou a vista em silêncio por alguns instantes.
— Mas podias comprar um bilhete e voar até aqui, Cassie —
disse ela, olhando para a amiga. — Tóquio está aqui, com ou sem o
livro.
— Não tem realmente que ver com Tóquio — disse Cassie,
deixando o seu olhar pousar no monte Fuji.
— Não percebo — queixou-se Izzy. — Tem que ver com o quê,
então?
Mantiveram-se em silêncio por breves instantes, enquanto um
casal de japoneses idosos passou lentamente por elas. Depois,
Cassie respondeu.
— Sabes que o meu avô morreu?
— Claro. Cancro do pulmão.
Cassie anuiu.
— Mas nada mais, certo? Isso é tudo o que eu digo. «Cancro do
pulmão.» E depois as pessoas dizem que sim com a cabeça e
fazem de conta que compreendem, e seguimos em frente. Nunca
digo mais do que isso, porque é demasiado difícil e tenho medo de
que, se começar a desabafar, não consiga parar e passe a ser só
isso, só aquela tristeza interminável e…
Cassie desviou os olhos da vista e viu a expressão de
preocupação no rosto de Izzy. As palavras secaram-se-lhe na boca.
A amiga pôs-lhe uma mão no braço.
— O meu avô criou-me — explicou Cassie. — Quando a minha
mãe me deixou com ele porque era toxicodependente. Mais tarde,
ela morreu de overdose. E depois ele perdeu a mulher, a minha avó,
quando eu era bebé.
— Credo.
— Não, correu tudo bem. Nunca conheci a minha mãe nem a
minha avó. Tive uma infância muito feliz. O meu avô foi o melhor pai
que eu podia ter tido. O melhor progenitor. Éramos só eu e ele. Foi
ele que me passou o amor pelos livros. Lia para mim quando eu era
pequena, e depois comecei a ler sozinha. Ele era carpinteiro e tinha
uma oficina ao lado da nossa casa. Havia um grande pufe num
canto e eu sentava-me lá depois da escola ou aos fins de semana,
enquanto ele trabalhava, e ficava a ler. Não tínhamos muito dinheiro,
mas estávamos bem.
Izzy assentiu, franzindo um pouco o sobrolho como se não
compreendesse o objetivo daquele fluxo de memórias.
— Soubemos do cancro quando eu tinha 18 anos — prosseguiu
Cassie. — Apareceu do nada, foi uma daquelas coisas. Quando
surgiram os sintomas, já era tarde demais. Passei com ele todos
aqueles meses em que ele foi morrendo, Izzy. Uma pessoa com
cancro… não morre de um momento para o outro. É uma morte
longa e lenta, ao longo de semanas e meses, em que tudo o que a
pessoa é lhe é retirado. É… desumanizante.
— E os médicos não podiam fazer nada? — perguntou Izzy.
Cassie sorriu com tristeza.
— Não tínhamos um bom seguro. O meu avô tinha investido
todo o dinheiro na casa. E quando ficou realmente doente, não quis
tirar dinheiro da casa para pagar os medicamentos. Dizia que era
para mim. Dizia que sabia que estava a morrer e que nada iria
mudar isso. Uma vez perguntei a uma das médicas se ele poderia
ter sido salvo se tivéssemos o seguro adequado. Ela disse que
achava que não, mas não sei se acredito nela.
Cassie sentiu os olhos lacrimejarem à medida que deixava entrar
as más recordações, os pensamentos que normalmente mantinha
fechados. Virou as costas à vista e caminhou ao longo da janela,
observando a sala, os outros turistas de olhos arregalados e
excitados, os funcionários a desempenharem as suas tarefas. Izzy
caminhou ao lado dela.
— Ele sofreu muito no final — acrescentou Cassie. — Dias de
agonia no quarto dele. No escuro, a suar, a tossir sangue. — Cassie
estremeceu, tentando livrar-se das más recordações como um cão
se livra da água. — Sabes que ele nunca chegou a fazer nada na
vida? — Encarou Izzy. — Ele criou a filha e depois a mulher morreu.
E depois a filha morreu. E depois teve de me criar a mim. E durante
todo esse tempo continuou a trabalhar, dando-me uma infância feliz.
Ele sempre quis viajar, mas acho que nunca saiu do estado; pelo
menos, durante todo o tempo que vivi com ele. E o que é que ele
ganhou com isso? Uma morte horrível e dolorosa antes sequer de
fazer 60 anos. — Cassie abanou a cabeça. — Isso não está certo.
— Pois não… — concordou Izzy.
— Este mundo é horrível e mau e eu odeio-o… mas os livros
sempre foram um lugar para onde posso ir. Quando eu era jovem e
quando o meu avô estava a morrer. Prefiro os livros ao mundo real.
— Eu percebo — disse Izzy. — A vida é uma merda.
— E agora tenho isto — disse Cassie, tirando o Livro das Portas
do bolso, segurando-o em frente à amiga. — Eu não sei porque é
que me foi dado, mas foi. E o Sr. Webber era um bom homem. Um
homem que adorava livros. Por isso, recuso-me a acreditar que seja
algo de mau. Tenho de acreditar que me foi dado para que eu possa
viver a vida que o meu avô nunca viveu. Posso fazê-lo por ele.
Izzy contemplou a lógica.
— Eu percebo — repetiu ela.
Ficaram à janela, a olhar para o sol.
— Podemos ir para casa, por favor? — perguntou Izzy.
— Sim — disse Cassie. — Quero dizer, podemos voltar quando
quisermos, com o livro.
— Pois — disse Izzy, num tom monocórdico.
— Estou com fome. Vamos ao Ben’s?
— Claro.
Usaram a porta da casa de banho das senhoras na extremidade
da plataforma de observação e entraram no Ben’s Deli, novamente
em Nova Iorque. Percorreram o espaço, acenando com a cabeça às
caras conhecidas atrás do balcão, e sentaram-se numa mesa na
parte de trás. Já passava da meia-noite e o restaurante estava
quase vazio, à exceção de uma pessoa, mas só quando se sentou é
que Cassie percebeu que se tratava do homem que tinha visto
antes, no terraço do hotel, e depois na rua, quando ela e Izzy
passeavam juntas havia alguns dias. Ela arfou, mesmo quando o
homem levantou os olhos e a viu, quando o próprio rosto dele
denunciou que tinha dado por ela. Ele levantou-se rapidamente,
como se tivesse algo importante a dizer, e dirigiu-se à mesa das
duas raparigas.
— Tem andado a seguir-me — disse Cassie, e apercebeu-se de
Izzy a levantar a cabeça para olhar para ela, e depois para o
homem.
— Não — disse o homem. — Não tenho andado a segui-la e não
sabia que ia estar aqui. Foi apenas sorte. Mas fico contente por a
ver. O meu nome é Drummond Fox, e vocês correm um perigo
imenso.
UM ESTRANHO
NO BEN’S DELI
MEMÓRIAS
A CASA DAS SOMBRAS
— O quê?——Podíamos
perguntou Cassie.
vendê-lo a si. Quanto é que daria por ele?
— perguntou Izzy, e Cassie lançou-lhe um olhar cortante.
— Não vai destruir o meu livro — insistiu Cassie. — E também
não o vou vender.
Drummond anuiu com a cabeça para si próprio.
— Não esperava que concordasse com isso. É um pedido
chocante, eu compreendo perfeitamente. O livro é precioso para si.
— Foi uma prenda — disse Cassie. — De um amigo.
— Eu entendo — repetiu Drummond. — Todos os livros são
preciosos. Acredite em mim, eu sei. Particularmente estes livros.
Mas a Cassie não compreende como esse livro é perigoso. Não me
refiro apenas a si e à Izzy, refiro-me a toda a gente.
— Como é que o iria destruir? — perguntou Izzy, ignorando
Cassie.
— Queimava-o — informou Drummond. — Os livros queimam-se
sem dificuldade. Provavelmente porque são velhos.
— Não o vai destruir — disse Cassie, com a voz calma. Sentiu-
se a tremer novamente, como se os efeitos benéficos do croissant
estivessem a passar.
Drummond olhou-a nos olhos por um momento, como se
estivesse a tentar avaliar a força do seu sentimento.
— Há outros livros — disse ele. — Talvez haja mais alguma
coisa que eu possa fazer por si, alguma coisa pela qual eu possa
trocá-lo?
— Pode transformar os nossos sonhos em realidade, Sr. Fox? —
perguntou Izzy, a brincar. — Podia fazer-me rica e famosa? Podia
fazer de mim uma estrela de cinema?
— Quer ser uma estrela de cinema? — perguntou Drummond,
como se fosse uma possibilidade que ele estivesse a considerar.
— O quê? — perguntou Izzy, chocada. — Está a falar a sério?
— A decisão é da Cassie — disse ele. — Qual seria o seu
sonho, Cassie?
A resposta foi imediata para Cassie, não exigiu qualquer
reflexão.
— Gostava de voltar a falar com o meu avô. — Drummond
inclinou a cabeça, sem perceber. — Ele morreu — explicou ela. —
Há muitos anos. Mas acho que não consegue ressuscitar os mortos,
pois não?
— Eu gostava de ser feliz — disse Izzy. — Eu sei que é infantil.
Se me tivessem perguntado há cinco anos, eu teria dito que queria
ser uma estrela de cinema. Mas agora acho que só quero ser feliz.
Com alguém que ame e com filhos, e gostava de viver num sítio
bonito. Meu Deus, ouçam só o que estou para aqui a dizer, estou a
ficar tão chata.
— Os jovens têm os sonhos mais exuberantes — murmurou
Drummond, mais para si próprio. — Sem as amarras da vida e da
realidade.
Cassie e Izzy entreolharam-se. Apareceu, então, um casal
jovem; afastaram as cadeiras fazendo-as raspar no chão e
sentaram-se na mesa ao lado da deles. Cassie e Izzy trocaram
sorrisos educados com eles, enquanto a mulher do café aparecia e
os saudava com o seu Bonjour! cantarolado.
— Ouça, esqueça os nossos sonhos — disse Cassie. — O que é
que fazemos em relação àquele homem na mercearia? Tem de nos
ajudar com isso e depois talvez possamos falar sobre a razão pela
qual o livro é tão perigoso.
Drummond anuiu com a cabeça.
— Muito bem, então — disse ele. — Primeiro, temos de
regressar a Nova Iorque. Há algumas coisas que tenho de fazer que
vos vão ajudar, mas temos de estar em Nova Iorque. Podemos ir,
agora?
Cassie assentiu.
— OK — disse ela.
— Deixem-me só pagar isto — disse Drummond, a acenar para
os cafés.
Levantou-se e desapareceu no interior do pequeno café.
— O que é que achas? — perguntou Cassie, quando ficaram a
sós.
Izzy encolheu os ombros.
— Não sei, Cass. Só quero que a vida volte a ser normal. Aquele
homem no Ben’s assustou-me.
— Sim — concordou Cassie. O seu cérebro obrigou-a a ver o
homem careca a pontapear o empregado novamente, e mais uma
vez o seu estômago encolheu-se. — Confias nele? — perguntou
Cassie, acenando com a cabeça para o lado do café, na direção de
Drummond.
— É mais não desconfiar dele — disse Izzy. — Ele parece
simpático. E não tentou nada suspeito até agora. Mas sabes que
mais, Cassie? Ele é apenas um. Aquele Dr. Barbary é outro. Vai
haver mais. Esse livro que trazes por aí contigo… As pessoas vão
fazer coisas terríveis para o conseguir. Eu disse-te, nada de bom
virá disso.
Cassie anuiu com a cabeça.
— Mesmo apesar de teres sido tu a contar ao mundo, quando
pesquisaste no Google?
Arrependeu-se imediatamente das palavras que lhe saíram da
boca. Izzy encarou-a como se tivesse levado uma bofetada. Cassie
estendeu o braço para pedir desculpa com um toque, mas Izzy
virou-lhe as costas quando Drummond saiu do café, e o momento
passou.
— Vamos — disse ele.
— E uvídeo
lembro-me, mas não me lembro — disse Izzy, ao ver o
que mostrava Cassie à porta do apartamento delas,
com a rua de Veneza atrás dela. Ela encontrara-o quando verificara
os seus movimentos no telemóvel nos últimos dois dias. — É como
um sonho, sabes? Quando nos lembramos, mas não parece real?
— Abanou a cabeça, observando até a filmagem ser cortada pelo
som da sua própria voz. Ela pôs o vídeo a correr novamente e viu
mais uma vez. Era hipnótico. — Como é que isto funciona? —
perguntou. — É como ciência ou magia?
Não tendo recebido resposta à sua pergunta, levantou os olhos.
Lund estava sentado do outro lado da mesa, com uma tigela de
canja de galinha à frente, a colher a caminho da boca. Na outra
mão, segurava metade de um pãozinho. Parecia minúsculo.
— Voltarei a lembrar-me? Será que me vou lembrar de tudo? —
perguntou Izzy.
Lund engoliu a sopa e os seus olhos desviaram-se para Izzy e
depois para a tigela.
— Não sei — disse ele.
— Quero dizer, acho que me lembro de quase tudo — continuou
Izzy. — Aquilo que aquele homem fez, toda aquela dor… — Ela foi
sacudida por um estremecimento. — Isso fez com que algumas
coisas se soltassem. Eu sei o que aconteceu. Mas não me lembro
de ter passado por elas. Se é que isso faz algum sentido… — Izzy
olhava para o seu reflexo na janela. Sabia que estava a tagarelar.
Estava nervosa, talvez em choque, e não conseguia conter-se. Lá
fora, a manhã já ia avançada, a rua fervilhava com o trânsito e as
pessoas. Izzy e Lund encontravam-se num restaurante algures no
centro da cidade, um lugar grande e espaçoso na esquina de um
quarteirão, um local escolhido por Lund.
Duas horas depois de terem chegado, continuavam sentados na
mesma mesa e Lund estava a terminar a sua terceira refeição, a
tigela de canja de galinha, depois de um cheeseburger com batatas
fritas e uma omelete. Izzy não tinha fome, estava demasiado
abalada para comer, mas mesmo assim tinha pedido uma tosta de
queijo e um café. Na altura em que a comida foi servida, as
memórias já estavam a começar a regressar. Ela tinha deixado isso
decorrer naturalmente, sem forçar, sentindo que era todo um
processo de regresso à normalidade, de se sentir mais como ela
própria do que se tinha sentido durante todo o dia. O processo
ajudava-a a distanciar-se do que tinha acontecido, da dor, do
homem careca que a tinha torturado.
— Não falas muito, pois não? — perguntou Izzy, refletindo sobre
as poucas palavras que o gigante articulara desde que tinham saído
do apartamento.
Lund levantou a tigela e bebeu o resto da sopa.
— Não — concordou ele, limpando a boca com o guardanapo.
Enfiou na boca a metade do pãozinho que restava e mastigou,
observando Izzy sem expressão.
— Pareces uma vaca — observou Izzy, mas não havia crueldade
nas suas palavras. — Ele sorriu enquanto mastigava. — De que é
que estamos à espera? — perguntou Izzy, subitamente impaciente.
— Tu não estás à espera de nada — disse Lund. — Podes ir se
quiseres. Não te estou a obrigar a esperar.
— OK, de que é que tu estás à espera? — perguntou ela.
— De uma mensagem — disse Lund. Izzy esperou que ele
desenvolvesse, mas tal não aconteceu. Deixou-se cair para trás,
encostando-se às costas da cadeira, derrotada.
— Achas que a Cassie está bem? — perguntou ela.
Lund encolheu os ombros.
— Não sei. — O gigante estava a observar o mundo lá fora, o
trânsito que passava, os edifícios do outro lado da rua. Parecia
satisfeito por estar simplesmente à espera.
Izzy voltou a verificar o telemóvel. Não havia mensagens nem
chamadas.
— Não tenho tido notícias dela. Nem parece dela. E se aquele
homem a apanhou?
— Se aquele homem a tivesse, não teria ido ter contigo —
observou Lund.
Izzy aceitou essa garantia com gratidão.
— Sim — disse ela. — Tens razão. Espero que ela esteja bem.
Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo, e Izzy
lembrou-se de outra coisa, de um outro momento desenterrado: o
Ben’s Deli, com Cassie e um homem.
— Havia um homem — disse ela de repente. — Comigo e com a
Cassie… — Lund observou-a com interesse. — Acho que… Acho
que foi ele que me fez esquecer. — Lund esperou. — Tinha um
nome invulgar. — Ela murmurou para si mesma enquanto se
esforçava para se lembrar. — Drummond — disse ela finalmente,
aliviada. — Ele explicou que era apenas para me proteger —
continuou, à medida que as memórias avivavam. Lembrou-se de
Cassie a falar com ela, a dizer-lhe que a iria ajudar a lembrar-se, e o
seu amor por Cassie inundou-a como uma onda de água quente. —
Ela está bem — concluiu ela, sentindo-se subitamente mais alegre.
— Ela está com aquele homem.
Izzy bebeu um pouco do seu café, sentindo-se melhor com o
mundo agora que sabia que Cassie estava a salvo.
— Então, o que é que eu faço agora? — interrogou-se ela. —
Não posso voltar para minha casa. Mas eu hoje devia estar no
trabalho… Oh, meu Deus, o trabalho. Vão despedir-me. — Deixou
cair a cabeça nas mãos. Era tudo uma loucura, aparentemente, e
ela ansiava por uma normalidade aborrecida.
— Acho que já não precisas de te preocupar com o trabalho —
disse Lund.
— O quê? Porque não?
— Vais ficar rica — disse ele.
— O quê?
Lund tirou o telemóvel do bolso e verificou-o novamente, sem
responder diretamente. Anuiu com a cabeça, escreveu qualquer
coisa e voltou a guardar o telemóvel no bolso.
— Estamos à espera da Livreira — disse ele, como se isso
explicasse tudo. — O homem que estava comigo, o Azaki… ele
tinha um contacto que vende esses livros mágicos. Eu tenho o
número dessa pessoa. — Lund agitou o telemóvel entre os dedos.
— Eu disse-lhe que temos um livro e que quero conhecê-la. Estou à
espera de que ela responda.
— Não faço ideia do que estás a falar — exclamou Izzy.
Lund meteu a mão num bolso diferente e tirou um livro. Ao ver a
capa roxa e verde, Izzy estremeceu e o seu estômago deu uma
cambalhota. Ela desviou o olhar.
— Nós temos este livro — disse ele. — Estava no chão, onde
aquele homem o deixou cair. Por isso, peguei nele enquanto fazias
as malas. Não é o livro que o Azaki procurava, mas a Livreira vai
interessar-se por ele na mesma. Vendemo-lo a ela e ficamos ricos.
Izzy tentou compreender a explicação dele.
— Espera, o quê? Não estou a perceber. Porque é que eu havia
de ficar rica?
— Estes livros têm um valor incalculável. As pessoas pagam
muito dinheiro para os ter. Tipo, quantias ridículas! Porque é que
achas que o Azaki andava à procura deles? Um só livro pode
orientar-te para o resto da vida. Era disso que andávamos à
procura. — Lund refletiu por momentos, observando o livro. —
Provavelmente ele tinha outros livros — aventou. — Um homem
daqueles provavelmente tinha alguns nos bolsos. Talvez eu devesse
ter verificado. Mas ser ganancioso acaba por matar as pessoas.
— Lamento o que aconteceu ao teu amigo — disse Izzy,
recordando o japonês e apercebendo-se de que não tinha voltado a
pensar nele desde que pulara por cima do seu corpo para sair de
casa. — Meu Deus, ele ainda está lá deitado no meu apartamento.
E se as pessoas pensarem que eu o matei?
— Ele não era meu amigo — disse Lund. — Não propriamente.
Mas era um homem bom. Simpático.
— Podes guardar isso? — pediu Izzy, acenando com a cabeça
para o livro. — Está a deixar-me nauseada.
Lund voltou a guardar o livro no bolso e desviou os olhos para o
mundo lá fora, novamente à espera.
— Então porque é que eu havia de ficar rica? — perguntou Izzy
mais uma vez.
— O livro — disse Lund. — Vendemos o livro, ficas com metade
do dinheiro.
— Porque é que eu havia de ficar com metade do dinheiro?
Lund pestanejou, como se ela estivesse a ser propositadamente
obtusa.
— O livro veio de tua casa. Foi usado em ti. Não é o livro de que
o Azaki andava à procura. Eu estava apenas no sítio certo à hora
certa para o ver. É justo que fiques com uma parte do dinheiro.
Dividimo-lo. Metade para mim por te apresentar à Livreira. Metade
para ti.
— Estás a dizer tudo isto como se fosse totalmente razoável —
murmurou Izzy. — Porque é que não havias de levar tu o livro e ficar
com o dinheiro todo? Não é como se eu te pudesse impedir, pois
não? És do tamanho de uma casa.
— Eu disse que ia cuidar de ti — disse Lund, como se isso
explicasse tudo. — Ia dividir o dinheiro com o Azaki, de qualquer
forma. De quanto dinheiro é que eu preciso? Não tenho gostos
caros.
— Como é que… — Izzy hesitou. — De quanto dinheiro estamos
nós aqui a falar?
— Dinheiro suficiente para não teres de te preocupar mais com o
trabalho. Pensa nisso como uma compensação por tudo o que te
aconteceu.
Izzy abanou a cabeça como se não acreditasse.
— Além disso, tenho outra coisa — disse Lund, sacando de um
livro diferente. Este era preto, com um desenho complexo em finas
linhas douradas na capa. — Este era do Azaki — disse Lund. — O
Livro da Ilusão. Ele conseguia criar coisas a partir do nada.
Izzy franziu o sobrolho.
— O quê, como o distintivo da polícia que ele me mostrou?
Aquilo não era a sério, pois não?
— Não — confirmou Lund. — Ele limitou-se a segurar no livro
com uma mão no bolso e imaginou-o. Eu vi-o criar uma catedral no
deserto há alguns dias. Um distintivo não era nada para ele.
As sobrancelhas de Izzy arquearam-se em sinal de ceticismo,
mas antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Lund voltou a tirar o
telemóvel do bolso para ler uma mensagem de texto.
— Está na altura de nos encontrarmos com a Livreira e fazeres a
tua fortuna — informou. — Ela está na cidade.
AS MEMÓRIAS
DE DRUMMOND FOX (2012)
— D equando
onde é que veio esta névoa? — perguntou Drummond,
se aproximaram do parque de Washington Square.
Tinha consciência de que se estava a sentir um pouco tocado. Mas
estava bem-disposto; havia muito tempo que não saía de casa,
havia muito tempo que não estava em Nova Iorque e havia muito
tempo que não estava com os amigos.
— Tempo esquisito — disse Wagner, a caminhar ao lado dele.
Uns passos atrás, Lily e Yasmin discutiam sobre algum ponto
obscuro da história do Egito, mas Drummond tinha perdido o fio à
meada.
A refeição fora tão agradável, um evento demorado e faustoso
que nenhum deles queria que terminasse. Encontravam-se tão
raramente, mas Drummond perguntava-se se os encontros seriam
tão bons se acontecessem mais vezes. Gostariam eles tanto uns
dos outros se se encontrassem com mais frequência? Ele sabia que
estes eram os pensamentos incertos de um introvertido e afastou-os
numa tentativa de viver o momento.
— Qual é o plano para amanhã, cavalheiros? — perguntou
Yasmin, aparecendo entre Drummond e Wagner e entrelaçando os
braços nos deles enquanto atravessavam a rua.
Tinham mais um dia inteiro juntos, e o plano era trabalharem um
pouco, independentemente do que isso significasse. No passado,
tinham discutido a possibilidade de reunir todos os livros na
Biblioteca Fox, para criarem uma coleção conjunta, talvez em
instalações novas. Era uma ideia com que brincavam de vez em
quando, mas Drummond nunca falava muito nessas conversas, não
querendo dar a nenhum dos seus amigos a impressão de que
estava a tentar ficar com os livros deles para si.
— Acho que devíamos comer mais qualquer coisa — disse Lily.
— Conheço todos os sítios bons em Chinatown. Consigo arranjar-
nos um local à maneira.
Drummond sorriu ao ouvir essas palavras. Da forma como se
estava a sentir naquele momento, teria ficado contente só por
comer, falar e divertir-se com os amigos. Era bom distrair-se das
suas preocupações, das histórias que ouvia sobre os caçadores de
livros que se estavam a tornar mais violentos, mais agressivos.
Preocupava-se com o futuro, com os seus amigos e com o perigo de
os livros caírem nas mãos erradas. Às vezes, só queria esconder-se
na sua casa no meio do nada, fechar as portas e esquecer o mundo.
— Se calhar, devíamos tentar trabalhar um pouco — sugeriu
Wagner, quando entraram no parque de Washington Square. — Mas
eu estou a pensar em abrir um restaurante quando me reformar, por
isso, para mim, isso conta como trabalho.
— Muito bem visto — concordou Lily com seriedade.
— Estou a ficar demasiado velha para comer tanto — queixou-se
Yasmin. — Estou a ficar gorda.
— Por favor — balbuciou Lily. — Eu podia enfiar três de ti no
meu vestido.
A névoa parecia mais densa no parque, pensou Drummond,
como se a sua origem estivesse ali. A primeira comichão de
inquietação provocou-lhe irritação no fundo da mente, mas era um
pensamento distante, suavizado pelo álcool que tinha estado a
beber a noite toda, e distraiu-se com a pergunta de Lily.
— Ouviste os rumores sobre um livro que foi descoberto no
interior australiano?
— Não! — exclamou ele. — Onde? Que livro?
Lily encolheu os ombros e depois estremeceu, como se de
repente sentisse frio.
— Pensei que devia estar calor em Nova Iorque nesta altura do
ano. Devia ter trazido um casaco.
— Quem é aquela? — perguntou Yasmin.
Drummond olhou em frente e avistou uma mulher parada no
caminho deles, não muito longe. Ele viu que se tratava de uma
mulher bonita, jovem e magra, com um vestido branco de verão —
uma luz brilhante no meio daquele nevoeiro. A Mulher sorriu quando
todos olharam para ela, inclinando ligeiramente a cabeça.
— Sim? — perguntou Wagner, mas Drummond sentia a irritação
a ficar cada vez mais intensa.
Ele sabia, ele já sabia que algo estava errado.
A Mulher não disse nada, mas Drummond ficou com a sensação
de que a névoa se adensava à volta deles, engolindo-os e
separando-os da cidade fora do parque.
— É ela quem está a fazer isto? — perguntou Yasmin.
— O quê? — perguntou Lily.
— A névoa — disse Yasmin. — É a Mulher que está a criar esta
névoa?
— Sim — respondeu Drummond, porque o viu no rosto dela.
— Quem está aí? — perguntou Yasmin em voz alta. — E o que é
que quer?
A Mulher de branco sorriu e tudo ficou em silêncio por alguns
instantes na escuridão enevoada. Drummond ouvia o seu próprio
coração a bater nos ouvidos.
E depois, ação súbita e chocante.
A Mulher moveu-se tão rápido que se transformou num borrão e,
num segundo, estava ao lado de Lily, ao lado de Drummond. Antes
que Lily tivesse oportunidade de reagir, a Mulher apertou-lhe um
livro na mão e Lily caiu imediatamente no chão com um gemido de
dor.
— Lily! — arfou Drummond, chocado com o som da dor da
amiga.
A Mulher de branco olhou para Drummond, depois para Yasmin
ao seu lado e para Wagner logo a seguir, escolhendo um
adversário. Os cantos da sua boca encaracolaram-se para cima,
como se estivesse a divertir-se, e baixou ligeiramente a cabeça para
os olhar por baixo das sobrancelhas. Atrás dela, no chão, Lily
rebolou e começou a bater com a cabeça no asfalto, levantando-se
violentamente e atirando a cabeça para o chão outra vez.
— Lily! — disse Drummond de novo. A sua bela amiga parecia
saída de um pesadelo, com riachos de sangue a escorrerem-lhe
pelo rosto, os dentes brancos e brilhantes expostos em agonia.
Drummond deu um passo para o lado, tentando passar pela
Mulher para ajudar Lily. A Mulher ignorou-o enquanto Wagner e
Yasmin se afastavam.
— Quem é você? — exigiu saber Yasmin. — Sabe o que está a
fazer? Sabe quem é que nós somos?
Não houve resposta. Enquanto Drummond corria para Lily, viu
Yasmin acenar uma vez com a cabeça e fechar os olhos. Era assim
que ela usava o Livro da Luz. Um brilho amarelo brilhante surgiu
então, rodeando Yasmin como um contorno.
— Vou fazê-la cegar — disse ela, tanto como um aviso aos seus
amigos como uma promessa à Mulher. Quando Drummond se virou,
uma luz irrompeu atrás dele, como uma estrela a explodir. Ele
agachou-se junto de Lily, com o rosto agora danificado e partido, o
livro agarrado com força ao peito.
— Deixa-me ajudar — disse ele, estendendo o braço para o livro.
Lily rebolou para longe, com os olhos esbugalhados, buracos
brancos na cara vermelha, a boca um fosso em choque, horror e
dor. Ela abanava a cabeça durante a sua agonia.
— Por favor! — implorou Drummond, horrorizado com o
tormento da amiga e querendo desesperadamente ajudá-la.
Lily abanou a cabeça mais uma vez, uma mensagem severa:
Não me podes ajudar! O que quer que me esteja a acontecer
também te vai acontecer a ti.
Drummond apercebeu-se de que a luz atrás de si tinha diminuído
subitamente e, quando olhou, viu que o espaço onde Yasmin estava
era agora uma nuvem de nevoeiro denso e névoa, como se o clima
se tivesse reunido subitamente à volta dela e estivesse a conter a
luz quente e branca.
— Oh, meu Deus — murmurou ele, recuando rapidamente.
Um pouco mais longe, Wagner e a Mulher imitavam os passos
um do outro como se estivessem numa espécie de dança de salão.
Drummond conseguia ver a desconfiança de Wagner, sem dúvida
chocado pela rapidez e facilidade com que a Mulher tinha
incapacitado as suas duas amigas. A Mulher parecia descontraída,
com o mesmo sorriso tímido a brincar nos cantos dos lábios, as
mãos fechadas atrás das costas.
Drummond estava paralisado, querendo ajudar os amigos, mas
sem saber como. Nenhum deles era um combatente; eram
académicos e bibliotecários. Traziam consigo apenas livros que
podiam ser usados para se defenderem se necessário, não para
atacar. Drummond transportava apenas o Livro das Sombras, a
capacidade de desaparecer e escapulir-se.
Voltou a olhar para Lily. Os seus lamentos transformaram-se em
gemidos, toldados pelo sangue que tinha na boca, pela destruição
que provocara no próprio rosto enquanto continuava a bater com ele
no chão. Se Lily tinha um livro, Drummond não sabia onde estava.
Yasmin estava perdida na tempestade que a havia engolido, o Livro
da Luz lutava contra a escuridão. Ele conseguia vê-la a mexer-se, a
passarinhar e a tentar fugir, mas a nuvem movia-se com ela,
enrolando-se como uma cobra.
— Não sei o que fazer, não sei o que fazer — balbuciava ele,
desamparado e aterrorizado. Era uma criança sozinha no quarto
durante a visita noturna dos monstros; uma criança sem pais para
afugentar os monstros.
Os olhos de Wagner, em pânico, olharam para Drummond. Havia
neles uma mensagem, um ato de coragem: Protege os livros! E
depois Wagner voltou o seu olhar para a Mulher. Drummond pegou
no Livro das Sombras, pronto para desaparecer na noite. Antes que
pudesse fazer qualquer coisa, um grunhido perfurou o ar.
Drummond viu Wagner de joelhos, agarrado ao peito. A Mulher
estava imediatamente à sua frente, tendo-se movido num piscar de
olhos, com uma mão no ombro de Wagner. Este grunhiu de novo e
arfou, com o rosto em agonia, caiu para o lado e sacudiu-se
algumas vezes, como se estivesse a ter espasmos.
Depois ficou inerte.
— Não! — disse Drummond, com o estômago aos saltos. Virou-
se e vomitou, despejando no cimento o jantar meio digerido,
enquanto os gemidos de Lily ainda lhe ecoavam nos ouvidos.
Quando Drummond voltou a encarar a Mulher, ela ainda estava
de pé sobre Wagner, como se estivesse a observar o último
resquício de vida que lhe restava. A escuridão caiu sobre
Drummond como uma nuvem, o desespero e o terror a agarrarem-
no e a paralisarem-no.
A Mulher passou os olhos pelo parque — Lily agora deitada
inconsciente, mas ainda a tremer; a nuvem que engolia a luz de
Yasmin. Drummond viu uma expressão cruzar o rosto da Mulher, um
lampejo de raiva e ódio, como uma luz apagada e acesa de novo, e
o seu sangue pareceu hesitar nas veias por um segundo, o seu
coração gaguejou e depois acelerou. Sabia que tinha visto o mal, o
mal desumano absoluto, e envergava a pele de uma bela mulher.
A tempestade em que Yasmin se encontrava desmoronou-se
para dentro de si própria de repente, como uma explosão ao
contrário, e ouviu-se um grito de agonia, um horrível esmigalhar de
ossos como o de um talhante a cortar um animal com um cutelo, e
um esmagamento de sangue e tecidos, e depois o grito foi
subitamente cortado. A névoa dissipou-se, libertando o corpo
fragmentado de Yasmin. Ela caiu no chão como um líquido envolto
em pele, todos os seus ossos transformados em pó.
— Não! — Drummond gritou para o céu, sem se conseguir
travar, vendo o que tinha acontecido à sua brilhante e divertida
amiga. Aquela mulher, aquela encarnação do mal, transformara-a
em carne, tirara a Yasmin tudo o que a tornava brilhante. Os olhos
de Drummond encheram-se de lágrimas enquanto o seu estômago
se revirava e as suas entranhas tremiam de medo. Levou um punho
à boca e mordeu-o, tentando silenciar o grito que lhe subia ao peito.
A Mulher dirigiu-se para a confusão de pele e cartilagem que
tinha sido Yasmin, baixou-se e pegou no Livro da Luz. Inspecionou-
o por um momento, e depois virou-se para olhar para Drummond.
— Drummond Fox — disse ela, na sua voz baixa e rouca. Era
quase um sussurro, quase uma provocação.
Drummond queria gritar. Queria correr. Queria ficar perfeitamente
imóvel e esperar que ela não o visse, apesar de já estar a olhar para
ele. No seu bolso, um dedo trémulo procurava desesperadamente
uma página do Livro das Sombras.
— Entrega-me a Biblioteca Fox — disse a Mulher, caminhando
casualmente até onde Lily jazia numa poça do seu próprio sangue.
Olhou para a amiga de Drummond por instantes e depois deu um
salto no ar e aterrou pesadamente sobre o estômago de Lily com os
dois pés. O ar e o sangue explodiram da boca de Lily.
— Para! — gritou Drummond por reflexo, afastando-se,
horrorizado. — Foda-se!
A Mulher olhou para ele por cima do ombro, ainda de pé sobre o
estômago de Lily.
— Entrega-me a Biblioteca Fox — disse ela de novo, com um
tom que sugeria que estava a perder a paciência.
Drummond abanou a cabeça, com o olhar a percorrer o corpo de
Wagner, a confusão que tinha sido Yasmin, a forma ensanguentada
e partida de Lily. Aqueles eram os seus amigos, as pessoas que ele
amava. Eram pessoas que nunca tinham feito mal a ninguém na
vida. Eram brilhantes e divertidos e tão cheios de vida, e agora já
não existiam; eram pontos finais no fim de um belo poema.
Drummond recuou, odiando ter de deixar os seus amigos, mas
sabendo que eles iriam querer que ele sobrevivesse, que
mantivesse os livros bem distantes daquela mulher. No bolso, os
seus dedos encontraram finalmente uma página do Livro das
Sombras. À sua frente, a Mulher desceu de Lily e limpou os sapatos
no cimento. Depois, virou-se para o encarar.
— Dá-me os teus livros! — gritou-lhe ela, com o rosto
subitamente transformado numa máscara retorcida de fúria.
Drummond rasgou o canto da página e desapareceu nas
Sombras, no exato momento em que a Mulher se deslocou num
borrão para o local onde ele tinha estado momentos antes.
Ao sair a correr do parque para a rua, viu-a a olhar em redor à
procura dele.
Ele escapou, fugindo às imagens que o iriam assombrar para
sempre, a chorar nas Sombras pelos seus amigos e pelas coisas
horríveis que a Mulher lhes tinha feito.
A LIVREIRA (1)
ECOS NO PASSADO
SOZINHA NO PASSADO
Cassie esperou pelo Sr. Webber à porta do seu prédio. Era o fim de
tarde quando ele apareceu e, inicialmente, Cassie não percebeu
que era ele. Era um Sr. Webber com cabelo mais escuro e menos
anos em cima dos ossos.
Ela alcançou-o antes de ele chegar à esquina.
— Sr. Webber!
O homem deteve-se e olhou para ela. Cassie viu um sorriso
educado, curiosidade e cautela na sua expressão.
— Sr. Webber, é tão bom vê-lo — disse ela, com as suas
emoções subitamente a transbordar. — Nem faz ideia. Por favor,
preciso da sua ajuda. — As suas palavras eram uma torrente; doze
horas de medo, ansiedade e pânico jorravam para fora do seu ser
porque viu um rosto que conhecia, mesmo que esse rosto não a
conhecesse. — Lamento muito, sei que não me conhece, mas
preciso de ajuda e o senhor é a única pessoa que conheço.
O Sr. Webber franziu as sobrancelhas e os seus olhos
percorreram o rosto dela como se estivesse a tentar situá-la.
— Preciso do Livro das Portas. O senhor deu-mo no futuro. Não
sei porquê, mas deu-mo. Mas eu fiquei presa aqui no passado e
preciso dele para voltar para casa e não consigo pensar em mais
ninguém para me ajudar, oh, meu Deus… — Cassie levou uma mão
à cabeça. O seu cérebro disse-lhe que estava a divagar. Disse-lhe
para pensar em como um homem que não a conhecia a estaria a
ver. Ela obrigou-se a respirar, a acalmar-se. — Eu sei que isto
parece uma loucura. Eu sei o que deve estar a pensar de mim.
— Precisa de ajuda? — perguntou o Sr. Webber, a anuir
gentilmente com a cabeça.
— Sim! — exclamou Cassie. — Sim! Preciso de ajuda, por
favor… O Livro das Portas. Preciso de o usar, só uma vez.
O Sr. Webber anuiu de novo lentamente com a cabeça. Lançou
um olhar para o lado, para a azáfama e para o barulho da Second
Avenue.
— Desculpe, mas não sei o que é isso. Mas parece-me que
precisa de uma refeição quente e de beber alguma coisa, não é
verdade?
Cassie hesitou, sem saber ao certo onde é que a conversa ia
dar.
Viu o Sr. Webber tirar algumas notas do bolso e entregar-lhas,
pressionando-as na sua mão.
— Compre alguma comida e uma bebida. Há um abrigo para
mulheres no centro da cidade, acho eu. Lá podem dar-lhe alguma
ajuda. Tenho muita pena, mas não posso fazer mais nada.
Cassie viu o Sr. Webber a afastar-se apressadamente, enquanto
lançava um olhar preocupado por cima do ombro para ver se a
mulher louca o seguia ou não.
Cassie deixou-se ficar ali, parada, muda, durante alguns
minutos, com as notas apertadas na mão, enquanto a cidade,
indiferente, se agitava à sua volta.
A FABULOSA HISTÓRIA
DE CASSIE ANDREWS
C assie fez a única coisa que lhe ocorreu fazer: foi para um lugar
que lhe fosse familiar, um lugar onde pudesse pensar. Dirigiu-se
à Kellner Books. Depois das ruas quentes e peganhentas da cidade,
entrar pela porta da livraria foi um alívio. A loja parecia a mesma,
embora os livros fossem diferentes e ela não reconhecesse nenhum
dos funcionários. Era um lugar seguro, um lugar reconfortante.
Cassie encontrou a velha poltrona no canto de trás da sala e
sentou-se, com um livro qualquer na mão, como se estivesse a ler,
limitando-se a tentar aplacar a sua mente acelerada.
Permaneceu ali sentada durante algum tempo, enquanto a sua
mente abrandava, mas o desespero teimava em estar presente,
enumerando as suas falhas pessoais.
Porque é que tinha voltado ao apartamento?
Porque é que não tinha visto Hugo Barbary na sala de estar? Era
estúpida ou cega?
Porque é que tinha deixado Izzy para trás quando partira com
Drummond?
— Oh, não! — murmurou ela, e o estômago contorceu-se
quando se lembrou do sangue no chão. Onde estaria Izzy?
Alguém junto a uma estante próxima dela fitou-a ao ouvir o seu
desespero, e Cassie tentou afastar a preocupação com um sorriso.
Ela não podia ficar ali para sempre, tinha consciência disso. Sabia
que ia escurecer em breve, e não tinha onde ficar. A ideia de passar
mais uma noite em Times Square sozinha era desanimadora. Seria
essa a sua vida a partir daquele momento?
Pensou no abrigo que o Sr. Webber tinha mencionado. Seria
melhor ir para lá? Talvez houvesse uma cama, pelo menos. Comida.
Depois, lembrou-se das notas que ele lhe tinha depositado na
mão e, de repente, apercebeu-se do seu estômago vazio e
barulhento. Tinha caminhado quilómetros ao longo do dia — com
um único objetivo em mente: manter a calma — e não comia desde
o jantar com Drummond, quando se encontrara com o avô.
Precisava de comida. Sorriu debilmente ao lembrar-se de
Drummond a dizer-lhe a mesma coisa em Lyon, e deu-se conta de
que tinha saudades dele. Conhecia-o há apenas um dia, mas tinha
saudades dele.
Obrigou-se a pôr-se de pé. Arrumou o livro na prateleira e dirigiu-
se à cafetaria na parte da frente da loja. Comprou um queque de
chocolate grande e um café e depois sentou-se numa das mesas
vazias, subitamente consciente de que poderia estar a cheirar mal
depois da noite passada nas ruas da cidade, e teve esperança de
que os outros clientes não notassem.
Foi comendo o queque aos bocadinhos, tentando demorar-se,
saboreando cada pedacinho como se fosse a sua última refeição.
Com o estômago cheio e café nas veias, começou a sentir-se
novamente mais racional, capaz de reforçar as paredes da sua
mente para fazer face às suas emoções furiosas.
Deixou-se ficar ali sentada, a olhar para a parte da frente da loja
e para a rua, sem tentar resolver todos os seus problemas, sem
tentar resolver o impossível. Limitou-se a ficar sentada e manteve-
se calma e tranquila.
E então a porta da rua abriu-se e o Sr. Webber entrou na Kellner
Books.
Ele não reparou nela, pelo menos inicialmente, e ela não lhe
chamou a atenção. Dirigiu-se ao balcão, como sempre fazia, e pediu
a sua bebida. Cassie reparou que ele trazia agora um livro debaixo
do braço, um livro que não tinha quando o vira pouco antes na rua.
Ela viu o Sr. Webber sentar-se, a três mesas de distância, e
soube que a sua presença na Kellner Books era a sua última
oportunidade. Ele era o caminho para o Livro das Portas. Ela tinha
de o fazer acreditar.
Ela observou-o a ler e a beber a sua bebida durante alguns
minutos, tentando pensar na melhor abordagem, tentando pensar na
forma de o fazer acreditar nela, pelo menos o suficiente para terem
uma conversa.
Depois, levantou-se, levando a bebida consigo, e sentou-se à
frente dele. Quando ele levantou os olhos do seu livro, a sua
expressão passou por várias emoções: surpresa, choque,
desconfiança.
— Obrigada pelo dinheiro, Sr. Webber — disse ela. — Foi muito
simpático da sua parte.
Cassie percebeu que as suas palavras o desarmaram. A cautela
diminuiu.
— Consegui comprar uma bebida e alguma comida, e estava
mesmo a precisar disso. — Cassie sorriu. — Acho que estava um
pouco excitada quando falei consigo há pouco. Desculpe se o
alarmei.
Ele abanou a cabeça, começando, educadamente, a pôr um fim
à conversa antes que Cassie dissesse o que queria.
— Permita-me que lhe diga uma coisa — pediu ela. — E depois,
se quiser, deixo-o em paz, prometo. Só uma coisinha.
O Sr. Webber cerrou os lábios por breves momentos, pensando
no assunto.
— Admito que estou intrigado com o facto de a menina saber o
meu nome.
— Por favor — disse Cassie, sentindo os olhos fecharem-se com
o esforço de manter a calma. — Por favor, deixe-me dizer-lhe só
uma coisa.
— Muito bem — acedeu ele. — O que é que me quer dizer?
Cassie anuiu com a cabeça e sentiu mundos inteiros de
esperança e desespero ancorados num momento, numa frase.
— Quando esteve em Roma, quando era mais novo — começou
ela. — Ficou numa casa de hóspedes perto da Fonte de Trevi. A
dona do hotel entrou no quarto para lhe levar o café e encontrou-o
despido.
O Sr. Webber ouviu as palavras com uma expressão vazia, e
depois recostou-se na cadeira, com a testa franzida, e ficou a olhar
para Cassie durante muito tempo.
— Quem é você? — perguntou ele.
— Chamo-me Cassie.
— Nunca contei essa história a ninguém. A ninguém. Ninguém
poderia saber isso. Como é que a conhece?
— O senhor contou-ma. Nós somos amigos. É por isso que sei o
seu nome. É por isso que sei onde mora. Eu estava à sua espera há
pouco. É por isso que sei que vem aqui regularmente para se sentar
a ler os seus livros. Sei que adora O Conde de Monte Cristo.
— Mas como é que sabe essas coisas? — perguntou o Sr.
Webber, a abanar a cabeça. — Nós não nos conhecemos.
— Não — Cassie concordou. — Essa é a parte mais difícil, Sr.
Webber. Eu sou do futuro. Encontramo-nos no futuro e tornamo-nos
amigos. E não espero que acredite nisso porque… Bem, é de
loucos, não é?
O Sr. Webber ficou a observá-la e Cassie podia ver que ele
estava a ter uma espécie de debate interno, a digladiar-se com
factos contraditórios.
— Eu não sou perigosa, Sr. Webber — assegurou Cassie. — Só
estou aqui à deriva, sozinha, sem dinheiro e sem amigos que me
possam ajudar. O senhor é a única pessoa que conheço que talvez
me possa valer.
O Sr. Webber bebeu um gole da sua bebida.
— Não sei se acredito em si — disse ele. — O que está a dizer…
é demasiado fabuloso, demasiado louco.
Ela anuiu tristemente com a cabeça, baixando os olhos para a
mesa. É claro que ele não ia acreditar nela. Porque é que alguém
havia de acreditar?
Mas ele não a rechaçou. Quando ela voltou a levantar os olhos,
ele continuava a observá-la.
— Não consigo perceber como é que pode saber de Roma —
disse ele, mas estava a falar mais para si próprio. — Não contei
essa história a ninguém. Nunca a escrevi. Se isto é algum tipo de
esquema ou conto do vigário, não consigo perceber como é que
poderia saber isso. E eu já lhe dei dinheiro hoje. Que razão teria
para falar comigo?
— Não é nenhum esquema — asseverou Cassie, baixinho.
Permaneceram sentados em silêncio durante algum tempo.
A loja tinha agora menos movimento e havia só algumas
pessoas a ver os livros e um jovem casal sentado numa das outras
mesas com as cabeças juntas e a rir. O dia estava a passar, a tarde
a transformar-se em noite, e Cassie sentiu o seu coração afundar-se
ao pensar em ter de sair da familiaridade reconfortante da loja e
voltar para a noite solitária.
— Tem telefone? — perguntou o Sr. Webber, interrompendo os
seus pensamentos.
— O quê? — perguntou Cassie.
— Um telefone — disse ele. — Um telemóvel. Toda a gente anda
com um telemóvel hoje em dia.
— Sim — disse Cassie, batendo automaticamente nos bolsos do
casaco.
— Deixe-me vê-lo, por favor — pediu o Sr. Webber, estendendo
a mão.
— Porquê? — perguntou Cassie.
— Se quer que eu acredite em si, se não quer que eu me levante
e me vá embora neste preciso instante, deixe-me ver o seu
telemóvel.
Cassie contemplou o pedido por um momento e não viu qualquer
inconveniente. Pegou no telemóvel e passou-o ao Sr. Webber.
— Desbloqueie-o, por favor — pediu ele, entregando-lho outra
vez.
Cassie digitou o código de acesso, devolveu-o e aguardou
alguns instantes enquanto o Sr. Webber inspecionava o aparelho,
mexendo no ecrã, com os olhos a moverem-se enquanto lia. Depois,
pousou o telemóvel na mesa, com a mão em cima dele, e ficou a
olhar em silêncio para o tampo da mesa.
— O que foi? — perguntou Cassie, quando já não conseguia
aguentar mais.
— É do futuro — disse ele, com os olhos a olhar para ela. — Eu
não sou o ludita que gosto de fingir que sou. Tenho o meu próprio
telemóvel. — Ele levou a mão ao bolso e tirou o seu iPhone, um
antecessor muito mais antigo do telemóvel que Cassie tinha. — O
que tem aí é obviamente um modelo muito mais avançado.
— Nem sequer o vou conseguir carregar nos próximos cinco
anos — refletiu Cassie, infeliz.
— E o site que estava aberto no browser — continuou o Sr.
Webber, abanando lentamente a cabeça — estava datado de vários
anos no futuro. É impossível.
— Sim — concordou Cassie. — É.
O Sr. Webber suspirou então, um som pesado e cansado.
Depois, empurrou o telemóvel para Cassie e ela devolveu-o ao
bolso.
O Sr. Webber bebeu o seu café e recostou-se na cadeira.
— Passei a maior parte da minha vida sozinho — disse ele. —
Durante muito tempo, era só eu e a minha mãe, mas depois ela
morreu e eu fiquei sozinho. — As suas sobrancelhas franziram-se,
como se estivesse a debater-se com algo que se esforçava por
compreender. — Não sei bem porque é que estive sempre sozinho
— refletiu. — Gostava muito de ter tido mais amigos, alguém para
amar. Mas a minha vida profissional era passada em constantes
viagens e eu sempre trabalhei a desoras. Era difícil conhecer
pessoas e, para ser sincero, acho que se tornou mais fácil deixar de
tentar ao fim de algum tempo.
Cassie ouviu, perguntando-se qual seria o rumo da conversa.
— Por isso, acabei por passar a minha vida sozinho e, quando
estamos sozinhos, tornamo-nos muito bons a observar as pessoas.
Eu presto atenção. Não tenho conversas para me distrair, não me
preocupo com amigos nem com uma companheira, não tenho noites
de bebedeira das quais precise recuperar. Tornei-me muito bom a
ler as pessoas. E o problema que tenho é que não acho que esteja
louca, minha querida. Não acho que me esteja a tentar enganar,
apesar de tudo aquilo que diz ser ridículo. Não consigo conciliar
estas coisas.
— Peço desculpa — disse Cassie, e o Sr. Webber anuiu,
aceitando o pedido de desculpas. — Se ainda não o assustei, posso
pelo menos contar-lhe a minha história?
O Sr. Webber anuiu com a cabeça.
— Muito bem — disse ele. — Conte-me a sua história.
Então, Cassie contou a sua história, deixando de fora a morte
tranquila do Sr. Webber, e o Sr. Webber ouviu sem fazer
comentários, ocasionalmente bebendo um gole de café ou
remexendo-se no seu lugar.
Quando ela terminou, o Sr. Webber não disse nada durante
algum tempo. Os seus dedos compridos tocaram na chávena de
café vazia e os seus olhos pousaram na mesa entre eles.
— É uma loucura — disse ela, sentindo a necessidade de o
tranquilizar, pois sabia que tudo o que tinha acabado de dizer era
inacreditável. — Eu sei que é. Mas é tudo verdade.
— Não sei se é verdade ou não — disse o Sr. Webber. — Mas
tendo visto o seu telemóvel… e com o que disse saber sobre mim, é
mais fácil de acreditar do que seria de esperar. Mas se for
verdade…
— Sim?
— O problema reside num ponto crucial.
— Que ponto? — perguntou Cassie.
— Esse livro mágico que diz que lhe dei.
— O Livro das Portas?
— Não o tenho — disse ele. — Não faço ideia do que seja, e não
faço ideia de como lho poderei dar no futuro.
Cassie abanou a cabeça, esforçando-se por acreditar nele.
— Deve ir parar-lhe às mãos — insistiu ela. — Nos próximos dez
anos, deve ir parar-lhe às mãos. Caso contrário, não podia ter-mo
dado e nada disto poderia ter acontecido.
O Sr. Webber encolheu os ombros.
— Talvez. Mas neste momento não o tenho. E não a posso
ajudar a regressar ao seu futuro.
Cassie sentiu-se fisicamente encolhida pela derrota.
— Mas o que é que eu vou fazer? — lamentou-se ela, mais para
si própria do que para o Sr. Webber. — Não posso ficar aqui presa.
Os seus olhos voltaram a ser invadidos por lágrimas, lágrimas
horríveis e amargas.
— Bem, vai ter de esperar, minha querida — disse o Sr. Webber,
e ela viu preocupação no seu rosto, como se talvez ele pensasse
que as lágrimas tinham sido provocadas por ele.
— Mas eu não posso esperar — exclamou Cassie, enquanto o
pânico espumava dentro de si. — Preciso de voltar. Não tenho
dinheiro, não tenho casa. O que é que vou fazer aqui, presa no
passado?
O Sr. Webber pensou um pouco antes de responder.
— Está a tentar resolver tudo ao mesmo tempo. Porque não
resolve um problema de cada vez? Precisa de um sítio para dormir.
Depois de uma boa noite de sono, pensará com mais clareza.
— Onde é que eu vou dormir? — perguntou Cassie. — Num
albergue para sem-abrigos?
O Sr. Webber abanou a cabeça, suspirando. Desviou o olhar
para a rua. E depois voltou a olhar para Cassie. Cassie viu que
havia outro debate dentro dele; ele estava a ser puxado em
diferentes direções. Então, anuiu com a cabeça, tinha tomado uma
decisão.
— O meu apartamento não é muito longe daqui — disse ele, e
depois conteve-se. — Mas a menina já sabe isso, não sabe, minha
querida?
Cassie anuiu com a cabeça por entre as lágrimas.
— Tenho um quarto vago. Pode dormir lá até perceber a sua
situação. Não pode ficar muito tempo, mas talvez até decidir o que
fazer. Um dia, dois no máximo. Isso já ajuda?
Cassie pestanejou e enxugou algumas das suas lágrimas.
— Está a falar a sério? — perguntou ela.
— Não tenho a certeza se estou — admitiu o Sr. Webber. — Mas
seria errado deixá-la em tal aflição. Eu tenho os meios. Mas só por
uma ou duas noites; isto é uma medida provisória. Entendido?
— Prometo — disse Cassie, embora não fizesse ideia de como a
sua situação pudesse melhorar no espaço de dois dias.
O Sr. Webber terminou o café e, em silêncio, saíram juntos da
livraria.
A PASSAGEM DOS DIAS
— O quê?Tinha
— perguntou Cassie.
acabado de regressar de um passeio. Era outono,
quase inverno, e os dias estavam escuros e tempestuosos. Ela
estava postada mesmo à entrada da porta, a tirar o sobretudo, e o
Sr. Webber apressara-se a ir ter com ela, com os olhos brilhantes.
— Encontrei o Livro das Portas — disse ele. Estava quase a
saltar de excitação, mal conseguindo ficar parado.
— O quê? — perguntou Cassie novamente. Todos os
pensamentos na sua mente tinham parado, como um carro a
embater numa parede.
— Vem cá, senta-te — insistiu o Sr. Webber. Ele puxou-a para o
sofá e depois explicou. — Desde que vi aquela outra versão de ti, a
mais jovem, tenho andado à procura. Desde que comecei
verdadeiramente a acreditar.
— Hum-hum…
— Por isso, enviei e-mails a todos os meus contactos, a todos os
meus amigos dos livros.
— O senhor tem amigos dos livros — disse Cassie, uma
afirmação, não uma pergunta.
— Colecionadores de livros raros. Pessoas que vão a leilões de
livros. Eu gosto das primeiras edições.
Gesticulou para as prateleiras que os rodeavam.
— Hum-hum… — articulou Cassie novamente. Ela estava a
esforçar-se muito para não sentir nada. Para ser cética.
— Recebi esta manhã um e-mail do meu contacto Morgenstern.
É um colecionador, de Toronto.
— O que é que lhes contou? Quando enviou o e-mail? — A
mente de Cassie estava a acompanhar a conversa e a fazer
disparar sinais de alarme com a ideia de um e-mail enviado a
inúmeras pessoas, a falar de livros mágicos.
— Oh, nada de revelador — descansou-a o Sr. Webber. —
Limitei-me a descrever o livro tal como mo descreveste a mim. Disse
que, por vezes, lhe chamavam o Livro das Portas. Disse que tinha
rabiscos indecifráveis e esboços.
— Certo — disse Cassie. Ela estava consciente de que o seu
joelho oscilava nervosamente. — Então, o Morgenstern, de
Toronto…?
— Sim! — disse o Sr. Webber. — Ele disse que o encontrou. Ou
acha que encontrou. Ele estava na Europa de Leste de férias e,
claro, o que é que as pessoas que gostam de livros fazem? Vamos
a todas as livrarias, percorremos todas as feiras de aldeia. Estamos
sempre à procura de livros.
— Ele encontrou-o? — perguntou Cassie, incrédula.
— Olha! — disse ele. Ele pegou no portátil, que estava pousado
na mesa de centro, e virou-o para que ela pudesse ver o ecrã. Ele
abriu um anexo de um e-mail e exibiu uma imagem, e o coração de
Cassie gaguejou. — É isto? — perguntou ele.
Cassie aproximou-se da fotografia. Mostrava um livro na mão de
um homem. Ela só conseguia ver a capa do livro e a lombada.
— E isto — disse o Sr. Webber, passando para uma segunda
fotografia. Esta mostrava o interior do livro, páginas com rabiscos
feitos a tinta preta. A imagem não tinha a resolução necessária para
revelar o texto com suficiente pormenor, mas Cassie sentiu o seu
coração saltar e cantar vitória dentro do peito.
— Pode ser — disse ela, obrigando-se a manter a calma.
— Pode ser assim! — exclamou o Sr. Webber. — Pode ser
assim que eu consigo o Livro das Portas. Pode ser que seja agora
que podes ir para casa!
O Sr. Webber tratou de organizar a viagem do seu amigo para ele ir
a Manhattan nessa noite.
— É um voo curto — disse ele. — Eu pago. Instalo-o num bom
hotel. Ele há vir por isso. Ele adora as coisas boas da vida.
Cassie nem sequer estava a ouvir. Passarinhava pela sala,
incapaz de ficar quieta. Tinham passado mais de quatro anos desde
que ficara presa no tempo, e agora parecia que não tinha tempo
para se preparar.
— Tenho de encontrar a Izzy — disse ela, anuindo para si
própria. — Isso é tudo o que importa. Se eu conseguir o livro e voltar
mais cedo, talvez a tire do apartamento até mesmo antes de o Hugo
Barbary chegar.
Tinha consciência de que estava a divagar para si própria.
Passado um momento, parou e viu o Sr. Webber encostado à
bancada da cozinha, a observá-la. O seu rosto estava sério.
— O que foi? — perguntou ela.
Ele sorriu, mas com uma expressão de tristeza.
— Estou muito contente por ti — disse ele. — Espero
sinceramente que este seja o Livro das Portas e que possas ir para
casa.
— Mas…?
Ele suspirou. Ela percebeu que aquilo que ele estava prestes a
dizer era difícil de admitir.
— Vou ter saudades tuas, minha querida. Se fores para casa,
vais-te embora daqui.
Cassie não sabia o que responder a isso. Entreolharam-se
durante alguns momentos.
— Oh, Sr. Webber — murmurou ela. — Ela foi até à cozinha e
abraçou-o por trás. — Também vou ter saudades suas. Até nos
encontrarmos de novo.
O Sr. Webber batucou com as mãos dela no peito dele, e Cassie
sentiu-o a anuir com a cabeça.
— Acho que vou dormir uma sesta, até sairmos. Acorda-me, está
bem?
Ele afastou-se e dirigiu-se para o quarto, e Cassie pensou que
talvez ele tivesse vergonha de mostrar quão perturbado estava.
— Oh, Sr. Webber — disse ela novamente, em voz baixa.
Encontraram-se com Morgenstern no Champagne Bar do Plaza
Hotel. Era um homem corpulento, com cabelo comprido e
esvoaçante e óculos de armação grossa. Vestia um fato caro com
um plastrão.
— Morgy! — exclamou o Sr. Webber, agarrando na mão do
homem e apertando-a.
— Webber! — respondeu Morgenstern, e depois olhou
lentamente para Cassie, de cima a baixo.
— Ah, sim. Esta é a minha assistente de investigação, a menina
Andrews — apresentou o Sr. Webber.
Morgenstern anuiu e lançou um sorriso rápido a Cassie, mas não
lhe ofereceu a mão. Apontou para os lugares ao seu lado e
sentaram-se todos. O Champagne Bar encheu-se com o murmúrio
de conversas e o tilintar de uma leve música de piano ao fundo.
— É um prazer poder passar uma noite no Plaza Hotel — disse
Morgenstern a Webber. — Foi muito simpático da tua parte
hospedares-me aqui.
— Bem… — disse o Sr. Webber. — Era o mínimo que eu podia
fazer.
Os olhos de Cassie estavam cravados no pacote pousado em
cima da mesa. Parecia um livro embrulhado em papel pardo. Um
livro mais ou menos do tamanho do Livro das Portas.
— Hum — disse Morgenstern. — Faz-me pensar porque é que
este livro é tão importante. Trazes-me de avião para cá em cima da
hora. Instalas-me neste lugar adorável, adorável. — Ele gesticulou
para a sala em redor, no momento em que um empregado apareceu
junto ao seu ombro. — Champanhe para os meus amigos — disse
Morgenstern, e o empregado voltou a afastar-se.
— Bem… — disse o Sr. Webber — Não sabemos se este livro
tem alguma coisa de especial, pois não? É por isso que está aqui,
para podermos verificar se é o que eu procuro.
— E o que é que procuras? — perguntou Morgenstern.
— É isto? — perguntou Cassie, interrompendo o fluxo da
conversa e apontando para o embrulho em cima da mesa.
Morgenstern suspirou, um som de aborrecimento. Cassie olhou
para o Sr. Webber e este lançou-lhe um olhar de reprovação,
praticamente como quem diz: Deixa-me ser eu a fazer isto.
— Quem é esta rapariga? — perguntou Morgenstern.
— Então, Morgenstern — disse o Sr. Webber, sentando-se mais
direito na sua cadeira. — Estás aqui por minha conta, como meu
convidado. Não sejamos indelicados com a minha colega. Mostra-
nos o livro para podermos determinar se é ou não aquilo que
procuro. Se for, serás muito bem recompensado, asseguro-te.
Morgenstern fez questão de mostrar que estava a pensar no
assunto, fazendo um ligeiro beicinho enquanto bebia o seu
champanhe, e depois esperou enquanto o empregado pousava mais
dois copos na mesa e servia bebidas a Cassie e ao Sr. Webber.
Cassie só tinha vontade de gritar. Queria arrancar tudo da mesa
e atirar com tudo ao chão. Queria pegar no livro e arrancar-lhe o
papel. Ela queria o Livro das Portas.
— Muito bem — disse Morgenstern, amuado. Empurrou o livro
na direção do Sr. Webber com um dedo delicado.
— Onde é que disseste que o encontraste? — perguntou o Sr.
Webber, enquanto pegava no livro para o passar a Cassie.
— Na Roménia — respondeu Morgenstern, vendo o pacote a
mudar de mãos. Ele bebeu o seu champanhe, e Cassie
desembrulhou efusivamente o livro, atraindo os olhares de algumas
das pessoas sentadas perto deles.
Ao ver a capa de couro do livro, o seu coração palpitou e as suas
mãos tremeram. Parecia ser o Livro das Portas, e tudo à sua volta
se desvaneceu: o barulho, as pessoas, a conversa entre
Morgenstern e o Sr. Webber, que ia anuindo educadamente com a
cabeça enquanto observava o que ela estava a fazer.
Cassie rasgou mais papel, revelando a lombada, e continuava a
parecer o Livro das Portas.
— Será…? — murmurou para si própria.
Mais papel rasgado, e depois o papel caiu no chão entre as suas
pernas como folhas de outono, e Cassie estava a segurar um livro…
o livro…
Agarrou nas margens com mãos trémulas e abriu-o à pressa,
desesperada por ver aqueles esboços, as palavras rabiscadas.
Ela viu texto, uma confusão de tinta preta.
— Está cheio de disparates — ouviu Morgenstern dizer, com o
seu tom desdenhoso, e nunca teve tanta vontade de esbofetear
alguém.
E então os seus olhos fixaram-se no texto e deram-lhe sentido, e
a sua respiração parou no peito e o mundo inteiro pareceu ficar
paralisado.
Ela viu um texto que não entendeu, mas reconheceu as letras.
Viu frases que eram obviamente humanas, talvez em romeno ou
noutra língua europeia.
— Talvez… — murmurou ela, numa súplica desesperada.
Ela folheou mais páginas, à procura de imagens, esboços, à
procura de coisas que ela sabia que estavam dentro do Livro das
Portas.
E depois o seu coração despenhou-se quando a desilusão se
abriu como um vasto abismo à sua frente. Ela olhou fixamente para
o livro que não era o Livro das Portas e odiou tudo e todos no
mundo.
— Cassie? — perguntou o Sr. Webber, perfurando com a sua
voz os pensamentos dela como um alfinete num balão.
Quando ela olhou para ele e abanou a cabeça, tinha os olhos
marejados.
O NADA E O LUGAR
NENHUM
Ela não era nada e não se encontrava em lado nenhum. Era apenas
pensamentos e memória no silêncio para lá da realidade.
Nada existia aqui, em lado nenhum e em todo o lado; nada podia
existir. Nada que fosse vivo, muito menos qualquer coisa humana, e
os pensamentos e a consciência que tinham sido Cassie momentos
antes também não teriam existido, não fosse o facto de ela ter
levado o Livro da Segurança com ela. Alguma essência do livro
persistia, recusando-se a deixar Cassie dissipar-se no nada,
ligando-a à existência.
Ela não estava em lado nenhum e estava em todo o lado. Os
seus pensamentos estavam parados e estagnados, existindo, mas
apenas por um triz. Tudo o que havia era pensamento, um único
pensamento que se formava lentamente ao longo de uma época
sem fim. A ideia de ser. Mas esta coisa que era, esta coisa que tinha
sido Cassie, estava em choque e inanimada, persistindo sobre o
nada para lá da criação.
Depois, uma imagem: uma mulher.
Izzy.
Izzy!
O seu rosto horrorizado e despedaçado, vazio.
No nada e em lado nenhum, explodiram muitas cores, um arco-
íris a gritar, e uma nota grave e profunda vibrou e abalou toda a
consciência, uma enorme sirene de nevoeiro a explodir através da
irrealidade.
Depois disso, ficou tudo novamente em silêncio. O choque
daquela imagem de Izzy fez com que a consciência voltasse para a
escuridão como uma criatura assustada. A consciência tentou
esconder-se, para não existir mais. Mas era impossível existir sem
pensar. Mesmo o desejo de não pensar era pensar.
Formaram-se pensamentos à revelia, memórias, emoções e
imagens, todas as coisas que formam um ser humano.
A consciência afastou-se destas coisas, mas não tinha para
onde se virar nem nada atrás do qual se esconder. Só tinha
pensamento.
Esses pensamentos que perturbavam a consciência eram,
inicialmente, coisas distantes, como algo numa praia longínqua, algo
que está definitivamente presente, mas é incerto e indistinto. A
consciência ignorou essas coisas, mas depressa se sentiu atraída
por elas. Com o passar do tempo, foi perdendo o medo. Foi ter com
elas — essas memórias e emoções —, porque o pensamento
precisava de algo em que pensar.
Primeiro foram as sensações, e a consciência recordou as
sensações. Um tipo diferente de pensamento: um pensamento com
substância, uma porta para o mundo exterior.
Óleo e madeira, a humidade de um dia de chuva.
Depois os sons, o zumbido das máquinas, o raspar rítmico da
lixa. E depois a luz e a textura de uma imagem, uma memória: um
homem numa bancada de trabalho. Um homem alto, com peito
largo, com o rosto concentrado no trabalho. E a consciência
lembrou-se da sensação do tato: a sensação das páginas de um
livro entre os dedos. A flexibilidade voluptuosa de músculos jovens,
membros fortes.
O homem na bancada olhou para a consciência — para a coisa
que havia sido Cassie —, e a consciência sentiu outra coisa então:
um súbito desabrochar, como um vasto prado de flores a brotar para
uma vida vibrante todas de uma só vez. Isso era bonito e
reconfortante, tão colorido como o grito em forma de arco-íris
berrante, mas não era terrível e aterrador. Era alegria, e a
consciência estava deliciada com isso.
A consciência sentiu então qualquer coisa, algo para lá do
pensamento. Sentiu-se a si própria, a personalidade que havia sido
Cassie, as vontades e os desejos, os medos e os prazeres. E a
consciência queria mais como o prado da alegria.
Surgiu então outra imagem: um dia quente, com a luz do sol no
rosto e a brisa a fazer-lhe cócegas nas faces. Os seus olhos
estavam protegidos por um chapéu, com a aba a abanar ao vento, e
ela sentia no ar o cheiro do sal grosso do mar. Era de novo uma
jovem mulher, a olhar para o Mediterrâneo a partir de um penhasco
alto, com uma catedral branca atrás de si. Algures na brisa, uma
gaivota grasnou para o céu, e o ruído chegou até Cassie — porque
esse era o seu nome, ela sabia, Cassie — no lugar onde ela se
encontrava, no penhasco.
As cores reapareceram, a trama da realidade, o prado em flor,
um arco-íris no céu na sua visão, mas desta vez a sirene de
nevoeiro era um acorde maior, brilhante e vivo, em vez de um grito
estridente de dor.
Cassie lembrou-se da alegria que sentira naquele momento no
alto do penhasco, da liberdade e da oportunidade, e a sirene de
nevoeiro soou novamente o seu acorde maior. Isto não lhe dava
vontade de fugir. Era a vibração da emoção humana, da sensação,
da vida.
Uma recordação mais sombria irrompeu nos seus pensamentos,
como um intruso numa festa: um quarto sombrio com a figura
torturada do homem que tinha sido o seu avô, agora emaciado e
fraco, a desvanecer-se cada vez mais. A casa onde crescera, o
único lar que conhecera, transformada num lugar onde já não queria
estar. O que outrora fora acolhedor e caseiro era claustrofóbico e
sufocante, e as paredes e a roupa de cama tresandavam a suor,
sangue e dor. Era uma casa de morte, e foi ali que o seu avô
morreu, sozinho, enquanto Cassie dormia numa cadeira, exausta
pelos cuidados que tinha estado a prestar.
Cassie, em lado nenhum, lembrou-se do horror silencioso em
que a sua casa se tinha transformado, e a sirene de nevoeiro soou
mais uma vez, um som furioso, atonal e brutal, e a sua consciência
tremeu. O grito em forma de arco-íris também regressou, mais
vívido e terrível, a guinchar a agonia desta memória, e Cassie, a
consciência, afastou-se, encolhendo-se em si mesma para esquecer
e esconder-se.
Quando Cassie se atreveu a emergir, perante a sua consciência
incapaz de se impedir de flutuar para a superfície, as memórias e
emoções chegaram mais rapidamente. Cada vez mais depressa,
cada uma delas era uma erupção de luz e ruído, todas as emoções
e memórias humanas a irromperem no nada e em lado nenhum por
detrás da realidade. Cassie apercebeu-se de que estava a criar
coisas, a criar por estar a recordar e por existir; toda a realidade em
mudança. As memórias e a dor de Cassie, o seu desespero e a sua
alegria, a sua fuga e o seu medo fizeram a irrealidade tremer e
agitar-se. Todas essas emoções, todas essas lembranças, os blocos
de construção da personalidade e da humanidade, eram demais
para a consciência de Cassie conter.
Aqui fora, no nada e em lado nenhum, a flutuar como
pensamento, ela era poderosa. A consciência de Cassie, em lado
nenhum e em todo o lado, usou o grito em forma de arco-íris, usou
essa energia de criação, para esconder as suas emoções e
memórias, os fragmentos da sua vida que a tinham destruído e
construído e destruído novamente. Eram demasiado para ela, por
isso colocá-los-ia noutro lugar.
Onde mais poderia ela depositar todas essas coisas senão nos
livros? Onde mais poderia guardar todas as suas emoções senão no
lugar onde se encontrava toda a alegria e todo o prazer da vida, à
espera de serem encontrados? E à medida que criava esses livros,
esses livros especiais, nascidos em lado nenhum e em todo o lado,
cada um criado a partir das suas memórias e emoções, dos
fragmentos da sua realidade, Cassie lançou-os pelo mundo,
afastando-os dela, espalhando-os pela realidade e pelo tempo, as
suas páginas cheias de linguagens antigas e novas, conhecidas e
desconhecidas, imagens e palavras, a linguagem de todo o lado.
Ela fez isso ao longo de uma era, não havendo qualquer sentido
de tempo em lado nenhum e em todo o lado, e só depois de ter
esgotado todas as suas agonias e todos os seus prazeres, depois
de ter atirado para a realidade todos os seus livros especiais, depois
de estar vazia, é que descansou em paz.
A consciência que tinha sido Cassie, e que estava a tornar-se
Cassie novamente, dormiu — ou entrou no estado mais próximo do
sono na irrealidade. Quando acordou — ou entrou no estado mais
próximo da vigília em lado nenhum e em todo o lado —, havia mais
Cassie do que consciência. A Cassie em lado nenhum não entrou
em pânico; ela estava apenas consciente de que se encontrava
noutro lugar, num lugar que não era lugar nenhum.
Tinha chegado a este lugar através de uma porta que ela própria
abrira, tentando fugir à realidade e ao horror do que havia feito.
Quando agora se lembrava dos seus terrores, não havia grito em
forma de arco-íris nem prados floridos, não havia sirene de
nevoeiro. Só memória.
Ela sabia que tinha de regressar. A sua consciência não podia
existir neste lugar.
E tal como alguma essência do Livro da Segurança tinha
permanecido e a mantivera viva onde não deveria existir vida,
alguma essência do Livro das Portas permaneceu com ela. E
quando Cassie pensou em regressar, apareceu uma porta, um
retângulo sem caraterísticas especiais que se distinguia do nada por
ser alguma coisa.
O limiar era a única realidade, e atraiu-a para ele, atraiu-a para
algo que Cassie percebeu ser luz.
Trouxe-a de volta à realidade, e tirou-a de nenhures e de todo o
lado.
Sexta Parte
UM PLANO
EM CINCO PARTES
A MULHER,
DEPOIS DO LEILÃO
Lund foi buscar mais bebidas e batatas fritas à loja que ficava a
algumas ruas da praia. Demorou algum tempo, deixando Izzy e
Cassie a sós. Quando regressou, a praia tornara-se mais calma e o
vento do oceano tinha um toque mais agreste. Dedicou alguma
atenção à fogueira, reanimando as chamas e o calor, e passou
cervejas a Izzy e a Cassie.
— Onde é que vais ficar a dormir? — perguntou Izzy.
— Vou arranjar um quarto no motel — disse a amiga. — Ou, se
não houver nenhum vago, vou para outro sítio. Tenho o livro.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, ouvindo apenas o som
das ondas e o crepitar do fogo.
— O que é que fizeste com o livro? — perguntou então Cassie,
com os olhos nas chamas. — O Livro da Ilusão?
Izzy olhou para Lund.
— Enterrámo-lo — respondeu ele.
— Não achámos que fosse seguro mantê-lo connosco —
esclareceu Izzy.
— Voltaste a usá-lo? — perguntou Cassie a Izzy. — Descobriste
como é que se criam ilusões?
Izzy disse que não com a cabeça.
— Talvez só consiga fazer magia em caso de morte iminente.
Lembras-te daquilo que o Drummond disse quando estávamos em
Lyon? Algumas pessoas conseguem aprender a usar os livros.
— Sim — disse Cassie.
— Talvez eu consiga aprender a usar o Livro da Ilusão — disse
Izzy. Ela olhou para o fogo. — Mas não sei se o quero fazer.
— Precisamos do livro — insistiu Cassie. — Se a Mulher pensou
que estavas morta, isso significa que as ilusões funcionam nela.
Talvez possamos usar uma ilusão para a derrotar.
— Podemos ir desenterrá-lo, então? — sugeriu Izzy.
— É longe? — perguntou Cassie.
— Sim — disse Lund. — É longe.
— A que distância?
— Demoramos alguns dias para chegar lá, a não ser que
arranjemos um carro.
— Não precisamos de um carro — disse Cassie. — Só
precisamos de uma porta lá perto.
Lund bebeu a sua cerveja e abanou a cabeça.
— Não há lá portas por perto — disse ele. — O teu livro só te
consegue levar até certo ponto. Nós pensámos nisso. Só para o
caso de alguém ter ficado com o teu livro.
Ele viu-a assentir, consciente do cuidado que tinham tido.
— Está a ficar frio — disse então Izzy. — E o resto das pessoas
está a ir-se embora. Vamos para dentro? Não gosto destes sítios
vazios quando não há mais ninguém por perto.
— Miúda da cidade lá bem no fundo — murmurou Cassie.
Lund pôs-se de pé num salto e apagou a fogueira, atirando areia
para cima dela.
— Vens? — perguntou Izzy a Cassie, enquanto Lund a puxava
para cima.
— Vou já a seguir — disse ela. — Preciso de pensar um bocado.
Izzy hesitou.
— Não vou voltar a desaparecer — assegurou Cassie. —
Prometo.
— Acho bem que não — murmurou Izzy. Ela acenou a Lund e
conduziu-o pela areia fora.
Lund olhou para trás uma vez e viu Cassie sentada sozinha, a
olhar para o céu escuro e para o oceano ao fundo.
A SOMBRA NA AREIA
— P odes sair
sozinhos.
agora — disse Cassie ao vento. — Estamos
Quando o carro parou, Cassie estava acordada. Ela olhou para ele,
com os olhos arregalados e preocupados, nas Sombras, e ele
tentou apertar-lhe a mão, tentou tranquilizá-la, apesar de estar
arrepiado de medo.
Drummond colocou-se de lado e fluiu para fora do carro,
puxando Cassie com ele. Havia um bosque em redor, uma casa,
barulho e luz: outro veículo. Cassie e Drummond flutuavam atrás da
Mulher, observando em silêncio enquanto ela convidava os dois
homens a entrar em sua casa. Cassie puxou o braço de Drummond
para chamar a sua atenção e, quando ele olhou na sua direção, ela
gesticulou com urgência para os homens.
O que é que fazemos?
Drummond encolheu os ombros e depois abanou a cabeça com
tristeza.
Nada.
Cassie ficou tensa e levou as duas mãos ao rosto, puxando a
mão de Drummond com ela, até ele resistir. Ela lançou-lhe um olhar
feroz, e ele só conseguiu acenar com a cabeça: Eu sei.
Ele conduziu-a através das paredes da casa, seguindo os dois
homens enquanto desciam para uma cave.
Drummond posicionou-se com Cassie ao lado das escadas e
esperou, com o estômago cheio de pavor, como se tivesse acabado
de comer demasiado. Havia um zumbido nos seus ouvidos que ele
percebeu ser o seu próprio sangue a circular cada vez mais
depressa pelo seu corpo.
A Mulher dirigiu um dos homens para um colchão no canto e
instruiu o outro para se deitar no chão frio de cimento. Aquele
homem tinha olhos famintos, reparou Drummond, olhos famintos
que estavam cegos à ameaça. Achou que estava a controlar a
situação. Achou que aquela mulher pequena e bonita não
representava qualquer perigo para ele.
E depois a incompreensão, o pânico, quando o chão o engoliu.
Drummond obrigou-se a observar, obrigou-se a ver cada segundo
horrível em que o homem lutava e se debatia. Observou a Mulher e
a alegria nos seus olhos pelo sofrimento que produzia. Drummond
obrigou-se a ver porque era um baluarte contra quaisquer reservas
que ele pudesse ter em relação ao que tencionavam fazer. Aquilo
era quem ela era. Aquilo era o motivo pelo qual tinham de a travar.
Cassie puxou-lhe o braço como se quisesse fugir, mas ele
segurou-a, a olhar para ela e a abanar a cabeça com severidade:
Temos de saber. Ainda não acabámos o que viemos fazer!
Drummond Fox, a fazer o que tinha de ser feito, custasse o que
custasse.
Odiou-se quando Cassie tentou afastar-se, virando as costas ao
que se estava a passar.
Depois, o homem no chão não era mais do que lábios a dar
estalidos e narinas dilatadas a lutarem por oxigénio. Drummond viu
os lábios ficarem imóveis, enquanto o homem morria no seu túmulo
de betão, e segurou Cassie junto a si, com o rosto dela encostado
ao seu peito, as mãos ainda apertadas entre os seus corpos.
A Mulher aproximou-se do colchão e Drummond deu alguns
passos em frente para a observar. Não porque quisesse. Mas
porque tinha de o fazer.
Cassie levantou os olhos do peito dele e olhou naquela direção,
no preciso instante em que o homem no colchão estremeceu e se
derreteu num líquido espumoso, enquanto os seus gritos ecoavam
nas Sombras.
Cassie abanou a cabeça e afastou-se, usando a mão livre para
tentar arrancar os dedos de Drummond dos seus. Ela gritava
silenciosamente para as Sombras: Não! Não! Não! E Drummond era
capaz de ver o terror e o trauma que a dominavam, os seus olhos a
voltarem a centrar-se na Mulher, que inspecionava agora os
despojos líquidos que momentos antes haviam sido um homem.
Drummond tentou puxá-la para junto de si, tentou chamar a
atenção de Cassie, mas ela estava em pânico como um animal
aterrorizado, com os olhos arregalados e descontrolados. Começou
a bater no peito dele com o punho, desesperada por ser libertada.
Depois, a Mulher levantou-se.
E olhou diretamente para eles.
O coração de Drummond parou. E precisou de recorrer a todo o
seu autocontrolo para não largar a mão de Cassie e desatar ele
próprio a fugir.
Sentindo qualquer coisa, vendo a mudança em Drummond,
Cassie parou e seguiu os olhos dele até onde estava a Mulher. E, de
repente, também ela ficou imóvel, como se tivessem acabado de ver
um predador, o mundo inteiro petrificado, à espera de ver o que ia
acontecer.
— F orça!A Mulher
— exclamou Cassie. — Dá o teu melhor.
observou-a por breves instantes e depois sorriu
para Cassie.
— É agora que queres que eu use os meus livros? — perguntou
a Mulher, inclinando ligeiramente a cabeça. — É agora que queres
que eu perceba que os meus livros desapareceram?
O cérebro de Cassie congelou quando o seu plano foi
subitamente posto fora dos eixos; o seu plano era um comboio a
descer uma encosta enquanto a Mulher a fitava calmamente.
Enquanto Cassie lambia os lábios, enquanto as suas entranhas
ferviam de medo, a Mulher espreitou para dentro da mala
pendurada no cotovelo. Retirou um livro e olhou para ele sem
expressão. Quase imediatamente o livro tornou-se insubstancial,
apenas uma sugestão de um livro no ar. E depois nada… apenas a
mão vazia da Mulher.
Os seus olhos viraram-se para Cassie.
— Pensaste que eu não ia perceber? — perguntou a Mulher,
enquanto tirava os outros livros, um após o outro, cada um deles a
dissipar-se em nada ao seu toque. — Eu conheço os livros — disse
a Mulher. — Sei qual é a sensação de lhes pegar.
Cassie ficou petrificada, a Mulher entre ela e a entrada do salão
de baile.
Ela só tem o Livro das Brumas!, gritou o cérebro de Cassie. Mas
Cassie lembrava-se do que a Mulher tinha feito a Yasmin, a amiga
de Drummond, com o Livro das Brumas.
— Mas a ti, eu não te conheço — disse a Mulher, com os olhos
cravados em Cassie. — Não sei quem és. Não sei como chegaste
aos meus livros. Mas vi-te com o Bibliotecário. Vi-te aqui, no último
leilão. — A Mulher deu alguns passos em frente. — Diz-me quem
és.
— Não importa quem eu sou — afirmou Cassie, com a voz
entrecortada, a mente acelerada e a tentar arranjar um plano.
— Oh, importa, sim — respondeu a Mulher. Ela avaliou Cassie
lentamente de cima a baixo. — Eu vou manter-te viva — disse ela.
— Mas vais desejar estar morta. Vou fazer-te cantar para mim a tua
dor. Vou deliciar-me com as tuas agonias durante semanas e
meses.
A Mulher deu mais um passo em frente.
— O Bibliotecário está por detrás disto — disse ela. — Diz-me,
lourinha, onde está o Bibliotecário? Qual era o plano dele? Ele
achava que me conseguia deter só por me tirar os livros?
Cassie engoliu em seco, sentindo o medo como uma grande
pedra áspera na garganta. Não se conseguia mexer. Não conseguia
raciocinar.
Então, a Mulher voltou a meter a mão na mala, mas desta vez
tirou uma pistola, um revólver, cuja extremidade do cano era um
enorme buraco negro na visão de Cassie.
— Achas que preciso de livros? — perguntou a Mulher. — Esta é
a arma com que matei o meu pai. Ele demorou muitos dias a morrer.
Arranquei-lhe a tiro várias partes do corpo e depois tratei-lhe das
feridas para o manter vivo. Naquela altura, não tinha livros, mas
mesmo assim consegui fazê-lo cantar para mim.
Cassie deu por si hipnotizada pelo cano, um olho negro que a
observava.
— Para.
Cassie olhou por cima do ombro da Mulher. Drummond estava
ali, surgido do nada, aparecendo por detrás do véu de invisibilidade
de Azaki. Azaki também lá estava, e Lund, e Izzy mais atrás. Cassie
sentiu-se aliviada.
— Já chega disto — disse Drummond. Os seus olhos desviaram-
se para Cassie, para verificarem se ela estava bem, e depois
regressaram à Mulher.
— O Bibliotecário — disse a Mulher. — E… mais outros.
Ela sorriu como se estivesse deliciada.
E nesse momento, Lund correu para a Mulher, e o seu
movimento repentino surpreendeu toda a gente. Cassie estremeceu
de choque, mas a Mulher foi demasiado rápida. Ela girou e disparou
e Lund foi atirado para trás como se tivesse levado um murro,
aterrando com força no chão.
Imediatamente, Cassie viu três coisas.
Viu Izzy gritar o nome de Lund e correr para ele.
Viu Azaki cintilar e desaparecer novamente.
E viu Drummond a correr em direção à Mulher, tal como Lund,
com o rosto fechado num esgar de determinação.
A Mulher apontou e disparou contra Drummond, tal como tinha
disparado contra Lund momentos antes.
Cassie hesitou, sem saber o que fazer e, quando decidiu agir e
correr para a Mulher do lado oposto ao de Drummond, era
demasiado tarde. A névoa já se estava a formar à sua volta.
Drummond não parou — e nenhuma bala parecia atingi-lo; e
mesmo com o adensar da névoa, Cassie viu os olhos da Mulher
semicerrarem-se de surpresa.
Tentou mexer-se, mas era como se estivesse a empurrar contra
lençóis, e depois almofadas, à medida que a névoa se tornava mais
espessa.
— Drummond! — chamou ela.
Depois, a névoa desapareceu, o ar ficou subitamente claro e
limpo e, à sua frente, Azaki estava a agarrar no pulso da Mulher,
aparecendo do nada para lhe roubar o livro. E enquanto ela olhava
para aquele lado, Drummond alcançara-a e agarrara na arma com
as duas mãos.
— É difícil matar alguém que traz o Livro da Sorte — disse-lhe
ele. — Para minha grande alegria.
A Mulher gritou, furiosa, a espumar de raiva, enquanto Azaki e
Drummond lhe arrancavam as armas das mãos, dois homens que
facilmente dominaram uma mulher de baixa estatura.
— O que és tu sem os teus livros? — perguntou Drummond,
enquanto ele e Azaki se afastavam alguns passos dela. — Como é
que és sem os teus poderes?
A Mulher não respondeu.
Do fundo da divisão, Izzy gritou.
— Cassie, ele está ferido. Levou um tiro!
— Estou bem — resmoneou Lund, com a voz débil.
— Afinal, não és nada de especial — disse Drummond,
continuando a olhar para a Mulher.
— És mais pequena do que eu pensava — observou Azaki. —
Não acredito que tive medo de ti todos estes anos. — Ele olhou para
o Livro das Brumas na sua mão.
— Mataste os meus amigos — continuou Drummond, com uma
expressão séria. — Há uma década que ando a fugir de ti. A minha
biblioteca… — A Mulher inclinou a cabeça, interessada. — Mantive-
me afastado da minha biblioteca durante tanto tempo, só para a
proteger de ti. — Drummond levantou a arma e apontou-a à testa da
Mulher. — Porque é que eu não te mato agora e torno o mundo um
lugar melhor?
— Não — disse Cassie, baixinho.
Ela aproximou-se e pôs uma mão no braço de Drummond,
obrigando-o a baixar a arma, obrigando-o a olhar para ela.
— Foi ela que trouxe a arma — protestou Drummond.
— Eu sei — disse Cassie. — Mas tu não és um assassino. Essa
não é a maneira de resolver isto.
Os três olharam para a Mulher em silêncio, e ela respondeu-lhes
com um olhar desafiador. Cassie conseguia ouvir Izzy a falar com
Lund, tranquilizando-o. Cassie estava ciente de que não dispunham
de muito tempo. Ela não sabia se Lund estaria muito ferido, mas
tinham de o ajudar.
— Está na altura de fazeres uma viagem — disse Cassie à
Mulher. — Quero mostrar-te o Livro das Portas. — Tirou o livro do
bolso, e a Mulher olhou para ele como se fosse um homem
esfomeado, e o livro, uma refeição. — Quero mostrar-te o nada e o
lugar nenhum. Quero mostrar-te de onde vêm os livros.
A Mulher arqueou as sobrancelhas ao ouvir essas palavras.
— Eu já lá estive — prosseguiu Cassie. Abanou a cabeça
lentamente. — Não vais sobreviver lá. É um lugar onde os humanos
não podem existir. Vai desfazer-te aos bocadinhos.
Drummond enfiou a arma no bolso e Azaki atirou o Livro das
Brumas para o chão, e os dois aproximaram-se da Mulher, um para
cada braço, tencionando levá-la até à porta na lateral da sala, onde
Cassie revelaria o nada e o lugar nenhum. Mas antes que
conseguissem agarrá-la, a Mulher pousou as mãos sobre a saia,
com as palmas viradas para baixo sobre as penas negras.
Azaki alcançou-a primeiro, agarrou-lhe no braço e ela baixou a
cabeça e sorriu-lhe por entre as sobrancelhas.
Azaki resmoneou. A sua boca abriu-se e ele soltou um grito
horrível que ecoou no salão de baile. Caiu de costas, no chão
alcatifado, enquanto levava as mãos ao rosto, e Cassie viu que a
saia da Mulher brilhava agora, pulsando com uma luz negra.
A Mulher estendeu um braço e agarrou Drummond antes que ele
conseguisse afastar-se, e então Drummond soltou um grito agudo e
horrorizado, e os seus olhos reviraram-se, e também ele caiu no
chão, com as duas mãos no rosto.
Cassie afastou-se.
Ela já tinha visto aquilo antes, nas memórias de Drummond.
— O Livro do Desespero — disse ela.
A Mulher virou-se sem sair do lugar, dando piruetas elegantes
como uma bailarina, com a cabeça para trás e os olhos para o teto,
como se Cassie não estivesse ali. Cassie olhou novamente para a
saia de penas de corvo e percebeu que não era tecido. As penas
eram as páginas de um livro costuradas de modo a formarem uma
peça de roupa.
Antes que Cassie conseguisse reagir, a Mulher lançou-se para a
frente, sem usar uma velocidade sobre-humana, mas ainda assim
mais rápida do que Cassie contava, e agarrou-a com ambas as
mãos, o seu rosto um grito contorcido de fúria, e Cassie encheu-se
de desespero.
DESESPERO
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