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ÍNDICE

O Livro das Portas

Créditos

Dedicatória

Primeira Parte – Passagens

Segunda Parte – Memórias

Terceira Parte – Ecos no passado

Quarta Parte – Uma dança num lugar esquecido

Quinta Parte – O nada e o lugar nenhum

Sexta Parte – Um plano em cinco partes

Sétima Parte – Inícios e fins

Agradecimentos

Sobre este livro

Sobre o autor
Edição em formato digital: abril de 2024

Título original: The Book of Doors


© 2024, Gareth Brown
Publicado por Bantam, uma chancela de Transworld Publishers,
uma divisão de Penguin Random House, Londres.
Todos os direitos reservados.

© desta edição:
2024, Penguin Random House Grupo Editorial, Unipessoal, Lda.

Topseller é uma chancela de


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numa base de dados, difundido ou de qualquer forma copiado para uso público ou
privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, sem a prévia
autorização por escrito do editor.

Editora: Ana Beatriz Manso


Coordenação editorial: Vanessa Domingos
Tradução: Maria Ferro
Revisão: Teresa Antunes
Capa: Beci Kelly/TW
Imagem de fundo: © Getty Images
Adaptação da capa: Wonder Studio / Carolina Leonardo

ISBN: 978-989-787-942-5

Composição digital: Simon and Sons ITES Services Private Limited


Composição digital PRHGE: Luís Gomes
Site: penguinlivros.pt
Twitter: @PenguinLivrosPT
Facebook: topseller.editora
Instagram: topseller.suma
Dedicado à minha mulher, May, por todas as
memórias que já criámos e pelas aventuras que
ainda estão para vir.
(NMINOO! VWDDR!)
Primeira Parte

PASSAGENS
A MORTE TRANQUILA
DO SR. WEBBER

N a Kellner Books, no Upper East Side de Nova Iorque, alguns


minutos antes da sua morte, John Webber lia O Conde de
Monte Cristo. Estava sentado na sua mesa habitual, no centro da
loja, com o sobretudo bem dobrado sobre as costas da cadeira e o
romance em cima da mesa à sua frente. Parou por momentos para
beber um gole de café, fechando o livro e assinalando o local onde
ficara com um marcador de pele macia.
— Como está, Sr. Webber? — perguntou Cassie, atravessando a
loja com uma pilha de livros debaixo do braço. Já era tarde e o Sr.
Webber era o único cliente.
— Oh, estou velho, cansado e a cair aos bocados — respondeu
ele, como sempre fazia quando Cassie lhe perguntava como estava.
— De resto, não me posso queixar.
O Sr. Webber era um rosto habitual na livraria e um dos clientes
com quem Cassie se esforçava sempre por conversar. Ele era um
cavalheiro, falava baixinho e estava sempre bem vestido com
roupas que aparentavam ser caras. A sua idade notava-se na pele
enrugada das mãos e do pescoço, mas não na pele lisa do rosto
nem na farta cabeleira branca. Cassie sabia que ele se sentia só,
ainda que parecesse viver bem com isso, sem nunca impor a sua
solidão aos outros.
— Estou a ler O Conde de Monte Cristo — confidenciou ele,
acenando com a cabeça para o livro. O marcador estava espetado
na direção de Cassie como a língua de uma cobra. — Já o tinha
lido, mas à medida que vou ficando mais velho, tenho encontrado
conforto em reler alguns dos meus preferidos. É como passar tempo
com velhos amigos. — Soltou uma risada autodepreciativa para
indicar a Cassie que sabia que estava a ser tonto. — Já o leu?
— Já li, sim — respondeu Cassie, aconchegando a pilha de
livros debaixo do braço. — Acho que o li quando tinha 10 anos. —
Vieram-lhe à memória longos dias de chuva num fim de semana de
outono, quando O Conde de Monte Cristo, como tantos outros livros,
a tinha levado para longe.
— Não me lembro de ter 10 anos — murmurou o Sr. Webber
com um sorriso. — Acho que nasci já de meia-idade e com um fato
vestido. O que é que achou quando o leu?
— É um clássico, claro — respondeu Cassie. — Mas a parte do
meio, toda aquela secção em Roma… achei demasiado longa. Eu
queria sempre chegar à parte da vingança no final.
O Sr. Webber anuiu com a cabeça.
— Ele faz-nos esperar pelo desfecho, lá isso faz.
— Hum — concordou Cassie.
O momento expandiu-se e o silêncio foi preenchido pelo jazz
suave que saía dos altifalantes na parede.
— Já alguma vez foi a Roma? — perguntou o Sr. Webber,
esfregando as mãos como se estivessem frias. Cassie sabia que ele
tinha sido pianista e compositor antes de se reformar e que tinha o
tipo de dedos compridos e delicados que dançariam facilmente num
teclado.
— Sim, já fui a Roma — respondeu Cassie. — Não me lembro
de muita coisa. — Ela tinha passado uma semana em Roma anos
antes, quando viajara pela Europa, e lembrava-se bem, mas queria
deixar o Sr. Webber falar. Ele era um homem cheio de histórias de
uma vida bem vivida; um homem que possuía mais histórias do que
pessoas a quem as contar.
— Adorei Roma — disse ele, recostando-se descontraidamente
na cadeira. — De todos os sítios por onde viajei… e viajei muito…
Roma foi um dos meus preferidos. Quando passeamos naquela
cidade conseguimos visualizar como teria sido há quinhentos anos.
— Hum — murmurou Cassie, percebendo que a atenção do Sr.
Webber se desviara para as suas memórias. Ele parecia feliz lá.
— Sabe, fiquei num pequeno hotel perto da Fonte de Trevi —
disse ele, subitamente tomado por uma recordação. — E levavam-
me café à cama todas as manhãs, quer eu quisesse, quer não. Sete
da manhã em ponto. Uma batida rápida na porta e depois a velhota
que geria a casa irrompia por ali adentro, pousava à bruta o café na
mesa de cabeceira e saía outra vez. Na primeira manhã, estava no
meio do quarto, prestes a vestir-me, quando ela entrou de rompante,
com o café na mão. Olhou-me de cima a baixo, manifestamente
pouco impressionada com o que viu, e voltou a sair. — Ele riu-se da
sua memória. — Ela viu-me na minha… plenitude.
— Oh, meu Deus! — exclamou Cassie, rindo-se com ele.
Ele estudou-a enquanto ela se ria, tirando uma conclusão.
— Já lhe tinha contado isto, não tinha?
— Não — mentiu ela. — Não me parece.
— Estraga-me com mimos, Cassie. Tornei-me uma daquelas
pessoas velhas que aborrecem os jovens com as suas histórias.
— Uma boa história é igualmente boa da segunda vez —
argumentou ela.
Ele abanou a cabeça, como se estivesse aborrecido consigo
próprio.
— Ainda viaja, Sr. Webber? — perguntou Cassie, afastando-o do
seu aborrecimento.
— Oh, agora nunca vou a lado nenhum. Estou demasiado velho
e demasiado fraco. Duvido que sobrevivesse a um voo longo. —
Apertou as mãos sobre o estômago e ficou a olhar para a mesa,
perdido naquele pensamento.
— Isso é um bocadinho mórbido — comentou Cassie.
— Realista — disse ele, a sorrir. Depois olhou para ela com
seriedade. — É importante sermos realistas. A vida é como um
comboio que vai ficando cada vez mais rápido e quanto mais cedo
percebermos isso, melhor. Estou a dirigir-me velozmente para a
última paragem; tenho consciência disso. Mas já vivi a minha vida e
não me queixo. No entanto, os jovens como a Cassie… vocês têm
de sair e ver o mundo enquanto podem. Há tanto para ver para lá
destas quatro paredes. Não deixe o mundo passar-lhe ao lado.
— Já vi muita coisa, Sr. Webber, não se preocupe com isso —
replicou Cassie, pouco à vontade agora que a conversa se virara
para si. Ela apontou com a cabeça para os livros que tinha debaixo
do braço. — Deixe-me levar isto para as traseiras antes que o meu
braço caia.
Ela passou pelo balcão do café — agora encerrado, após o
expediente — e dirigiu-se para a caverna sem janelas repleta de
caixas e cacifos dos funcionários na sala das traseiras. Depositou os
livros em cima da secretária desarrumada para que a Sra. K.
tratasse deles no dia seguinte, quando abrisse a loja.
— Cassie, eu não estava a tentar dizer-lhe como deve viver a
sua vida — disse o Sr. Webber, com uma expressão séria, quando
ela reapareceu. — Espero não a ter insultado.
— Insultar-me? — perguntou Cassie, genuinamente intrigada. —
Não seja tonto. Nem voltei a pensar nisso.
— Bem, o que eu quero dizer, na verdade, é que, por favor, não
deixe a Sra. Kellner saber que eu estava a sugerir a possibilidade de
abandoná-la a ela e à sua livraria.
— Ela bania-o para o resto da vida — disse Cassie, a sorrir. —
Mas não se preocupe. Não vou dizer nada. E não vou a lado
nenhum tão cedo.
Enquanto levantava as canecas e os pratos das mesas, Cassie
olhou em redor da loja, o local onde trabalhava desde que chegara a
Nova Iorque, seis anos antes. Era tudo o que uma livraria devia ser:
tinha prateleiras e mesas cheias de livros, música suave sempre a
tocar e luzes que pendiam de cabos do teto alto, criando pontos
bem iluminados e sombras aconchegantes. Havia cadeiras
confortáveis nos cantos e entre as estantes, e obras de arte
dissonantes nas paredes. O espaço não era pintado havia dez anos
e as estantes tinham sido compradas, provavelmente, nos anos
sessenta, mas parecia tudo adequadamente desgastado em vez de
degradado. Era um local confortável, daqueles em que nos sentimos
à vontade assim que atravessamos a porta pela primeira vez.
Ela acenou com a cabeça para a chávena de café do Sr.
Webber.
— Quer uma última dose antes de eu fechar?
— Já bebi mais do que suficiente — disse ele, abanando a
cabeça. — Vou andar para cima e para baixo como um elevador
toda a noite a caminho da casa de banho.
Cassie fez uma careta, entre o divertida e o enojada.
— Ofereço-lhe uma janela para a vida de uma pessoa idosa —
disse o Sr. Webber, sem se desculpar. — É um prazer constante.
Agora, dê-me alguns minutos para reunir as minhas forças e depois
desamparo-lhe a loja.
— Demore o tempo que quiser. É muito bom ter companhia ao
fim do dia.
— Sim — concordou o Sr. Webber, olhando para a mesa, com a
mão pousada na capa do seu livro. — Sim, é verdade. — Ele ergueu
o olhar e sorriu para ela timidamente. Cassie deu-lhe uma
palmadinha no ombro quando passou por ele. Na frente da loja, a
grande montra espalhava uma luz suave na noite, uma lareira na
sala escura da cidade, e quando Cassie se empoleirou no seu
banco, viu que estava a começar a nevar, os flocos caíam em
espirais como grãos de poeira através da névoa de luz.
— Que bonito — murmurou ela, encantada.
Ela observou a neve durante algum tempo, à medida que se foi
tornando mais forte e os edifícios do outro lado da rua se
transformavam num puzzle de janelas iluminadas e apagadas. Os
transeuntes levantavam os capuzes e baixavam a cabeça para fazer
face àquela investida, e os clientes do pequeno restaurante de sushi
mesmo em frente à Kellner Books olhavam para o tempo com
pauzinhos na mão e preocupação nos rostos.
— O melhor lugar para desfrutar de uma noite de tempestade é
numa sala quente com um livro ao colo — disse Cassie para si
própria. Sorriu com tristeza, porque essas palavras lhe haviam sido
ditas por uma pessoa de quem sentia saudades.
Olhou de relance para o relógio de parede e viu que estava na
hora de fechar a porta. Na sua mesa, o Sr. Webber estava sentado
com a cabeça estranhamente inclinada para o lado, como alguém
que julga ter ouvido chamar pelo seu nome. Cassie franziu o
sobrolho e um dedo de inquietação cutucou-lhe o âmago.
— Sr. Webber? — perguntou ela, descendo do banco.
Cassie atravessou rapidamente a loja, ouvindo as notas de jazz
ao fundo que chocavam com o seu súbito desconforto. Quando pôs
a mão no ombro do Sr. Webber, ele não respondeu. Tinha a
expressão fixa, os olhos abertos e sem vida e os lábios ligeiramente
afastados.
— Sr. Webber? — tentou novamente, embora soubesse que era
inútil.
Cassie conhecia o aspeto da morte. Da primeira vez que vira a
morte, muitos anos antes, ela roubara-lhe o homem que a tinha
criado e a única família que havia conhecido. Agora, a morte voltara
a aparecer e, desta vez, tinha levado um homem simpático que ela
mal conhecia, enquanto estava distraída com a neve.
— Oh, Sr. Webber — disse ela, enquanto a tristeza crescia
dentro de si.

Os paramédicos chegaram primeiro, entrando na loja com


espalhafato e sacudindo a neve das roupas e dos cabelos. Vinham
enérgicos, como se houvesse uma hipótese de salvar o Sr. Webber,
mas assim que o viram, toda a urgência se desvaneceu.
— Ele já foi — disse-lhe um deles, e os três ficaram num silêncio
constrangedor, como estranhos numa festa. O Sr. Webber olhava
para o nada a meia distância com olhos vidrados.
Depois, chegou a polícia, um jovem e um homem mais velho, e
ambos lhe fizeram perguntas enquanto os paramédicos levantavam
o Sr. Webber da cadeira e o prendiam a uma maca.
— Ele vem à tarde, duas ou três vezes por semana — explicou-
lhes ela. — Mesmo antes de o balcão do café fechar ao fim do dia.
Pede uma bebida e depois senta-se ali a ler o seu livro até eu fechar
a loja.
O polícia jovem parecia aborrecido, de pé com as mãos nas
ancas e a observar os paramédicos enquanto trabalhavam.
— Provavelmente sentia-se sozinho — disse ele.
— Ele gosta de livros — disse Cassie, e o polícia olhou para ela.
— Às vezes, falamos sobre livros que já lemos, livros que ele está a
ler. Ele gosta dos clássicos. — Ela percebeu que estava a tagarelar,
mesmo enquanto as palavras continuavam a sair dos seus lábios.
Cruzou os braços para se conter. Havia qualquer coisa na polícia
que a deixava constrangida, dolorosamente consciente do mais
pequeno gesto.
— Certo — disse o polícia, observando-a com uma indiferença
profissional.
— Acho que ele gostava de conversar consigo, minha senhora
— disse o polícia mais velho, e Cassie pensou que ele estava a
tentar ser simpático. Ele estava a revistar o conteúdo da carteira do
Sr. Webber, à procura de uma morada ou de um parente. Cassie
achou o procedimento estranhamente obsceno, como remexer na
gaveta da roupa interior de alguém.
— Não há nada como uma menina bonita para dar a um velhote
algo por que ansiar — disse o polícia mais novo, com um sorriso
malicioso a roçar-lhe o canto da boca. O polícia mais velho abanou
a cabeça em sinal de reprovação, sem levantar os olhos da carteira
do Sr. Webber.
— Não era nada disso — ripostou Cassie com brusquidão, as
suas palavras afiadas com irritação. — Ele era apenas um homem
simpático. Não transforme isto numa coisa que não era.
O polícia jovem anuiu com a cabeça, numa espécie de pedido de
desculpas, mas não tentou esconder o olhar carregado que lançou
ao colega. Dirigiu-se à porta para a segurar para os paramédicos
passarem.
— Aqui está — disse o polícia mais velho, tirando a carta de
condução do Sr. Webber. — Apartamento 4, número 300, East 94th
Street. Belo bairro. — Voltou a enfiar a carta de condução na
carteira e fechou-a. — Nós avisamos se precisarmos de mais
alguma informação — disse ele a Cassie. — Mas ligue-nos se se
lembrar de alguma coisa.
Entregou-lhe um cartão de visita da Polícia de Nova Iorque com
um número de telefone.
— Tipo o quê? — perguntou Cassie.
O polícia encolheu os ombros.
— Qualquer coisa que precisemos de saber.
Cassie assentiu como se aquela fosse uma boa resposta,
embora não tivesse sido.
— E a família dele?
— Nós tratamos disso — assegurou o polícia mais velho.
— Se ele tiver família — acrescentou o polícia mais novo, à
espera junto à porta. Ele queria ir-se embora, reparou Cassie; isto
era aborrecido para ele, e ela odiava-o por isso. O Sr. Webber
merecia mais. Toda a gente merecia mais.
— Vai ficar bem, menina? — perguntou-lhe o polícia mais velho.
Tudo no homem parecia cansado, mas ele continuava a fazer o seu
trabalho, e a fazê-lo melhor do que o seu parceiro mais jovem.
— Sim — respondeu Cassie, franzindo o sobrolho com irritação.
— É claro que sim.
Ele observou-a por alguns instantes.
— Olhe, às vezes, as pessoas simplesmente morrem — disse
ele, esforçando-se por dizer algo consolador. — É assim mesmo.
Cassie anuiu com a cabeça. Ela sabia. Por vezes, as pessoas
simplesmente morriam.

Cassie ficou parada na parte da frente da loja a vê-los partir,


primeiro a ambulância e depois o carro da polícia. O seu próprio
reflexo era um fantasma na montra — a rapariga alta e desajeitada
vestida com roupas em segunda mão: uma velha camisola de lã
com gola redonda e calças de ganga azul puídas nos joelhos.
— Adeus, Sr. Webber — disse ela, arregaçando distraidamente
as mangas da camisola até aos cotovelos.
Disse a si própria para não ficar triste — o Sr. Webber era velho
e tinha morrido em paz e rapidamente, ao que parecia, num lugar
que lhe trazia alegria —, mas a sua tristeza era teimosa, uma nota
grave e constante que ressoava no fundo dos seus pensamentos.
Pegou no telefone e ligou para casa da Sra. Kellner.
— Morto? — perguntou a Sra. Kellner, quando Cassie lhe contou
o que tinha acontecido. A palavra foi uma bala disparada de uma
arma, um estrondo rápido e agudo.
Cassie esperou e ouviu um suspiro longo e cansado.
— Pobre Sr. Webber — lamentou a Sra. Kellner, e Cassie
conseguiu ouvi-la a abanar a cabeça. — Mas há maneiras piores de
morrer. Certamente o Sr. Webber pensaria assim. Como é que
estás, Cassie?
A pergunta surpreendeu Cassie, como sempre acontecia quando
alguém lhe perguntava como é que ela estava.
— Oh, estou bem — mentiu, descartando o assunto. — Só estou
chocada, acho eu.
— Hum, pois… Acontece-nos a todos, e o Sr. Webber já tinha
uma boa idade. É triste, mas não é razão para ficares deprimida,
estás a ouvir?
— Sim, senhora — aquiesceu Cassie, de bom grado, aos
conselhos amáveis da Sra. Kellner.
— Agora, fecha tudo e vai para casa. Está um nevão lá fora e
não quero que apanhes hipotermia. Isto é uma instrução, não um
pedido.
Cassie deu as boas-noites à Sra. Kellner e pôs-se a arrumar
tudo, perguntando-se até que ponto os Kellners conheciam o Sr.
Webber. Eles pareciam conhecer a maioria das pessoas que ia à
loja regularmente. Não que o Sr. Kellner ainda soubesse muita
coisa, já que a demência lhe tinha roubado a memória há alguns
anos. A mente de Cassie vagueou, tentando lembrar-se de quando
o Sr. Kellner tinha estado na loja pela última vez. Tinham passado
anos, disso ela tinha a certeza. Agora, a Sra. Kellner mal falava do
marido.
Quando Cassie varreu o chão à volta das mesas de café, à volta
do lugar do Sr. Webber, viu que o seu exemplar d’O Conde de
Monte Cristo ainda se encontrava em cima da mesa, junto à
chávena de café quase vazia. A visão do livro atingiu-a como um
murro no estômago, como se o Sr. Webber tivesse sido levado sem
o seu bem mais precioso. Depois, viu outro livro ao lado, um livro
mais pequeno com uma capa de pele castanha, desbotada e
gretada como tinta envelhecida numa porta. Cassie não tinha
reparado no livro antes — nem quando o Sr. Webber chegara, nem
durante toda a atividade com os paramédicos e os polícias. Como
lhe teria passado despercebido?
Encostou a vassoura ao ombro e pegou no livro. Sentiu-o
estranhamente leve, como se fosse mais insubstancial do que devia.
A lombada de pele soltou um rangido agradável quando ela o abriu.
As páginas eram grossas e ásperas e estavam cobertas com o que
parecia ser um texto rabiscado a tinta escura, mas numa língua e
numa letra que Cassie não reconheceu. Ao folhear o livro, Cassie
reparou igualmente nuns esboços de desenhos, alguns espalhados
pelo texto, outros a ocuparem páginas inteiras. Parecia uma espécie
de diário, um local onde alguém tinha reunido os seus pensamentos
ao longo de muitos anos, mas de forma caótica. O texto não seguia
numa única direção; ia para cima e para baixo, atravessava a
página e enrolava-se à volta de imagens.
Na primeira página do livro, Cassie viu algumas linhas escritas
com a mesma caligrafia do texto de todas as outras páginas, mas
em inglês:

Este é o Livro das Portas.


Se o mantiveres na mão, qualquer porta poderá ser uma porta
qualquer.

Por baixo dessas linhas, havia outra mensagem, escrita numa


letra obviamente diferente. Cassie arquejou, sobressaltada, quando
viu que se tratava de uma dedicatória:

Cassie, este livro é para si, um presente de agradecimento pela sua


amabilidade.
Espero que goste dos lugares aonde a vai levar e dos amigos que lá
irá encontrar.
John Webber

Cassie franziu o sobrolho, surpreendida e tocada pelo presente.


Voltou a folhear as páginas, parando a cerca de um terço, onde uma
única página acomodava o esboço de uma porta com a respetiva
ombreira. O desenho fora feito a tinta preta simples; a porta estava
escancarada e, através da abertura, via-se o que parecia ser um
quarto na escuridão, com uma janela na parede oposta. Para lá
dessa janela, havia uma luz solar intensa e um céu azul
resplandecente, além das muitas cores de flores primaveris a
desabrochar entre o verde-vivo da relva. Tudo estava desenhado a
preto, exceto a vista da janela, que se encontrava gloriosamente
colorida.
Cassie fechou o livro, acariciando a pele gretada.
Teria ela sido assim tão amável com o Sr. Webber? Tencionaria
ele dar-lhe o livro naquela noite? Talvez o tivesse tirado do bolso
enquanto ela estava distraída com a neve, pouco antes de morrer?
Durante algum tempo, ficou a pensar no que fazer, perguntando-
se se deveria chamar a polícia e contar-lhes sobre o livro, sobre
ambos os livros. Ela já conseguia praticamente ver o polícia mais
novo a revirar os olhos: O caderno de um maluquinho que ele lhe
queria dar…?
— Estúpida — murmurou para si própria.
O Sr. Webber queria que ela ficasse com ele. Ela aceitá-lo-ia
como recordação do homem simpático que, muitas vezes, lhe fazia
companhia ao fim do dia. E levaria também o seu exemplar d’O
Conde de Monte Cristo, certificando-se de que ia para um bom lar.
Quando saiu da loja, pouco depois, embrulhada no seu velho
sobretudo cinzento, cachecol e gorro com pompom cor de vinho, as
rajadas cortantes de vento feriram-na, mas ela não reparou, tão
distraída estava com o conteúdo do estranho caderno. Após alguns
passos, parou debaixo de um candeeiro de rua e tirou o caderno do
bolso, sem se dar conta da figura que a observava nas sombras,
oculta numa porta do outro lado da rua.
Voltou a folhear as páginas: mais texto, linhas aparentemente
desenhadas ao acaso, como se as páginas pudessem ser retiradas
do caderno e reunidas numa ordem diferente para revelar um
desígnio grandioso e secreto. Mesmo no meio do caderno, ela viu
que uma centena ou mais de portas tinham sido desenhadas em
filas ordenadas ao longo das duas páginas, cada uma delas
ligeiramente diferente em formato, tamanho ou caraterísticas, tão
variadas como as portas de qualquer rua. Era estranho, mas bonito,
enigmático e convidativo, e Cassie só queria debruçar-se sobre as
páginas e sonhar com quem quer que fosse que tivesse passado
tantas horas a rabiscar o livro. Parecia-lhe um tesouro, aquele livro,
um mistério para lhe ocupar a mente.
Limpou os flocos de neve das páginas e voltou a enfiar o livro no
bolso, depois pôs-se a caminho pelas ruas silenciosas, em direção
ao metro, a três quarteirões de distância, com os pensamentos
cheios de imagens e palavras estranhas rabiscadas a tinta preta.
A figura parada na entrada de um edifício não a seguiu.
O JOGO DO PREFERIDO

Q uando Cassie chegou a casa, pegou no exemplar d’O Conde


de Monte Cristo do Sr. Webber e encontrou um lugar para ele
entre os livros de bolso na estante ao fundo da sua cama.
A estante era um mapa da sua vida: os livros que devorara em
criança, os livros que comprara ou lhe tinham ido parar às mãos nas
suas viagens pela Europa, os livros que lera e guardara desde que
vivia em Nova Iorque. O seu próprio exemplar muito folheado d’O
Conde de Monte Cristo encontrava-se ali, um velho livro de bolso
que pertencera originalmente ao seu avô. Cassie lembrava-se de o
ter lido no estúdio do avô, em Myrtle Creek, aninhada num pufe a
um canto, enquanto ele trabalhava, com o aroma a madeira e a óleo
no ar, enquanto a chuva forte batia no chão lá fora. Tirou o livro da
prateleira e folheou as páginas, captando o fantasma de um aroma
que fez com que o seu coração encolhesse com as memórias e
emoções que evocava, a satisfação e o conforto daqueles dias da
sua infância.
Voltou a pôr o livro no lugar e despiu a camisola velha para a
atirar para a pilha da roupa suja. Viu o seu reflexo no espelho na
parte de trás da porta e olhou para si própria de forma
desapaixonada. Ficava sempre um pouco desiludida quando se via
em reflexos ou fotografias. Aos seus olhos, era demasiado alta e
demasiado magra. Achava que as ancas eram demasiado estreitas
e o peito demasiado plano, e os olhos eram grandes e
esbugalhados, como os de um veado assustado. Não usava
maquilhagem, porque nunca tinha aprendido a fazê-lo, e o seu
cabelo louro estava sempre a esvoaçar em várias direções, por mais
que o penteasse.
— Então, já chegaste? — gritou Izzy, da sala de estar.
— Sim — respondeu ela.
Cassie abriu a porta do quarto, afastando o seu reflexo, e dirigiu-
se à sala, onde encontrou Izzy de pernas cruzadas no sofá, vestida
para ir para a cama com uma t-shirt enorme e calças de pijama.
— Como é que foi a cena do trabalho? — perguntou Cassie. —
Deve ter corrido bem, já que estás em casa e de pijama.
Izzy revirou os olhos com aborrecimento.
— Fomos a uns quantos sítios. Dois tipos tentaram engatar-nos
no último bar onde estivemos. Um tipo grandalhão tentou usar o seu
charme em mim. Ele era horrível. Todo musculado e monocelha.
Sugeriu que fôssemos juntos até Times Square para vermos as
luzes.
— Ena! — disse Cassie.
— É, não é? — concordou Izzy. — Quem é que quer ir a Times
Square? As únicas pessoas interessadas em Times Square são os
turistas e os terroristas.
Cassie sorriu, apreciando o som da voz da amiga e a distração
da sua tristeza persistente. A viagem para casa, numa carruagem
de metro vazia e através de ruas cobertas de neve, tinha sido longa
e solitária.
— Eu disse-lhe isso — continuou Izzy, enquanto Cassie se
juntava a ela no sofá. — Ninguém quer saber de Times Square,
exceto os turistas e os terroristas. Ele ficou todo ofendido, como se
eu tivesse dito algo horrível. — Ela fez uma careta, e disse, então,
num tom mais grave: — Isso é mesmo de mau gosto; tu sabes que
os terroristas matam pessoas.
— Isso é muito especial — disse Cassie, com um sorriso de
orelha a orelha.
— Estragou um pouco o ambiente, por isso demos a noite por
terminada. Também tive sorte. — Ela anuiu com a cabeça para a
janela, onde a neve continuava a cair.
Izzy trabalhava no departamento de joalharia do Bloomingdale’s
e, de duas em duas semanas, ia para os copos com as colegas
depois do trabalho. O seu mundo girava em torno de produtos
caros, pessoas ricas e turistas de olhos arregalados. Era um mundo
que Cassie não compreendia e que não lhe dizia nada, mas Izzy
adorava o seu trabalho. Em tempos, ambicionara ser atriz. Mudara-
se da Florida para Nova Iorque quando era adolescente, com o
sonho de cantar e atuar na Broadway. Quando se conheceram, Izzy
trabalhava na Kellner Books enquanto fazia audições e atuava em
teatros minúsculos. Depois de alguns anos sem chegar a lado
nenhum, desistira do seu sonho.
«Consegues pensar em algo pior?», perguntara ela a Cassie,
numa noite em que tinham ido beber uns copos no bar do terraço do
Library Hotel. «Ter 30 e poucos anos e ver todas aquelas jovens
belíssimas entrarem nas mesmas audições que tu, olhando para ti
exatamente como eu olho para todas as mulheres mais velhas
agora? O mundo tem um número infinito de mulheres bonitas,
Cassie. Há sempre uma mais nova, uma mais jovem que quer
aparecer. Não sou suficientemente boa enquanto atriz a ponto de a
minha aparência não importar.»
Cassie e Izzy tinham trabalhado juntas na Kellner Books durante
mais de um ano e tinham-se tornado amigas quase de imediato.
Eram pessoas muito diferentes, com interesses distintos, mas, de
alguma forma, sempre se tinham dado bem. Era uma amizade
natural e fácil, do tipo que surge do nada e muda a vida de uma
pessoa. Quando Cassie começou a procurar um apartamento para
arrendar, Izzy sugeriu que tentassem encontrar uma casa juntas
para poupar nos custos. Desde então, partilhavam um apartamento
de dois quartos num terceiro andar, em Lower Manhattan. O
apartamento ficava na orla de Little Italy, por cima de uma loja de
cheesecakes e de uma lavandaria. Era frio no inverno e quente no
verão e, devido às subdivisões do senhorio, nenhum dos quartos
tinha a forma ou o tamanho certos, e nenhum dos móveis encaixava
onde devia. Mas funcionava para elas, e tinham continuado a viver
juntas mesmo depois de Izzy ter deixado a livraria para trabalhar no
Bloomingdale’s. Izzy geralmente trabalhava durante o dia, enquanto
Cassie preferia trabalhar no turno da noite e aos fins de semana.
Por isso, havia fases em que não se viam durante vários dias
seguidos, mas isso só evitava que se metessem no caminho uma da
outra e que a convivência estragasse a amizade. A cada três ou
quatro dias, os seus caminhos cruzavam-se e Izzy fazia um rápido
resumo de todos os acontecimentos da sua vida, enquanto Cassie a
ouvia. E depois, quando o fluxo de consciência de Izzy se esgotava,
ela olhava para Cassie com uma expressão maternal e perguntava:
«E tu, como estás, Cassie? O que se passa no teu mundo?»
Izzy olhava para ela agora com aquela expressão no rosto, o
cabelo preso numa confusão de caracóis. Era uma mulher bonita,
com maçãs do rosto salientes e grandes olhos castanhos. Era o tipo
de mulher que os grandes armazéns gostavam de ter atrás dos seus
balcões, o tipo de mulher que poderia ter sido uma estrela de
cinema se soubesse representar. Cassie sentia-se banal em
comparação com ela, mas Izzy nunca fizera nada para que ela se
sentisse assim. Esse facto dizia tudo sobre o tipo de pessoa que
Izzy era.
— O que se passa no meu mundo? — antecipou-se Cassie.
— O que se passa no teu mundo?
— Nada — respondeu Cassie. — Pouca coisa.
— Vá lá — disse Izzy, descruzando as pernas e levantando-se
de um salto para ir até à bancada da cozinha. — Deixa-me ir
buscar-te uma caneca de vinho toda finória e podes contar-me o teu
nada e pouca coisa.
Izzy ligou o candeeiro de pé atrás da porta, espalhando uma luz
suave pelas paredes.
— O Sr. Webber morreu hoje — disse Cassie. Ela baixou o olhar,
percebendo que ainda tinha na mão o livro que ele lhe havia dado. A
sua intenção era tê-lo deixado na estante do quarto.
— Oh, meu Deus, isso é horrível — exclamou Izzy. — Quem é o
Sr. Webber?
— É só um velhote — disse Cassie. — Ele vem à loja de vez em
quando. Bebe um café e lê.
— Meu Deus, está tanto frio. O que é que se passa com este
tempo? — murmurou Izzy, fechando a porta do corredor enquanto
voltava para o sofá e entregava uma caneca a Cassie. Não bebiam
vinho em copos, não em casa.
— Acho que ele era apenas solitário. E gostava da livraria.
— Então, o que é que aconteceu? — perguntou Izzy, servindo o
vinho. — Tropeçou e caiu ou qualquer coisa do género? O meu tio
Michael morreu assim. Caiu, partiu a anca e não se conseguiu
levantar. Morreu no chão da sala de estar.
Ela estremeceu.
— Não, nada disso — respondeu Cassie. Pegou na caneca de
vinho, embora não estivesse interessada em bebê-la. — Ele
simplesmente morreu. Ali sentado. Como se fosse a hora dele.
Izzy anuiu com a cabeça, mas parecia desapontada.
— Foi o que os polícias disseram, pelo menos — refletiu Cassie.
— Às vezes, as pessoas simplesmente morrem.
Izzy instalou-se mais confortavelmente no sofá, cruzando as
pernas por baixo do corpo. Cassie bebeu um gole de vinho, e
deixaram-se ficar em silêncio durante algum tempo.
— Olha para a neve — murmurou Izzy, olhando pela janela. Os
edifícios do lado oposto da rua estavam quase escondidos pela
tempestade. O vento parecia ter amainado, mas os flocos eram
agora maiores e mais macios, caindo do céu lenta mas firmemente.
— É tão bonito — disse Cassie.
— O que é isso? — Izzy apontou para o caderno no colo de
Cassie e esta passou-lho, explicando-lhe que tinha sido um
presente.
— Cabedal — observou Izzy. Abriu o livro e folheou as páginas
distraidamente. — Uau. Parece que um louco vomitou uma sopa de
letras. Será que vale alguma coisa?
— Provavelmente, não — replicou Cassie, irritada por o primeiro
pensamento de Izzy ter recaído no valor monetário. Não era esse o
objetivo. — De qualquer forma, foi uma prenda.
— Acho que o Sr. Webber gostava de ti, Cassie — disse Izzy,
com um sorriso malandro, devolvendo-lhe o livro.
— Deixa-te disso — protestou Cassie. — Não era nada disso.
Ele era um homem simpático. E teve um gesto amável.
Izzy bebeu mais um gole de vinho, já com os olhos ligeiramente
vidrados.
— Está bem. Não entremos numa fossa. Vá lá. Vamos pensar
em coisas mais alegres.
— Tipo o quê? — perguntou Cassie, pousando a caneca na
mesa. — Não posso beber isto, vou adormecer.
— Fracota — murmurou Izzy. — Fala-me de… fala-me do teu dia
preferido.
— O quê? — Cassie sorriu, embora lhe tivesse vindo à memória
o Jogo do Preferido. Jogavam-no muitas vezes na loja quando as
coisas estavam calmas e não havia nada para fazer. Uma delas
pedia à outra para falar sobre aquilo de que mais gostava: a refeição
preferida, as férias preferidas, o pior encontro preferido. Era uma
forma divertida de passarem o tempo.
— Fala-me do teu dia preferido — repetiu Izzy. — Qual foi o teu
melhor dia de sempre?
Cassie pensou na pergunta, olhando pela janela para o mundo
nevado, embalando o livro do Sr. Webber ao colo.
— Digo-te qual é que não foi o meu dia preferido — disse Izzy,
interrompendo os pensamentos de Cassie. — Aquele dia na
Greyhound.
— Oh, meu Deus! — gemeu Cassie, e sorriu, lembrando-se da
viagem que ela e Izzy tinham feito à Florida alguns anos antes para
visitar a prima de Izzy. As duas tinham passado quase vinte e quatro
horas juntas numa camioneta Greyhound para Miami, alternando
entre o terror e a hilaridade dos acontecimentos que tinham
aguentado. — Lembras-te daquele homem que cheirava como se
tivesse ido à casa de banho na camioneta sem sair do seu lugar?
— Oh, nem me lembres — disse Izzy, tapando a boca como se
quisesse vomitar.
Cassie voltou a sua mente para dias melhores. Lembrava-se de
dias em que era muito mais nova, dias na casa onde crescera, só
ela e o avô, ou só ela e um livro, mas não falou disso. Essas
memórias eram demasiado preciosas. Em vez disso, pensou nas
viagens que tinha feito antes de se mudar para Nova Iorque, depois
de o seu avô morrer. Tinha feito uma viagem à Europa sozinha, em
parte, para fazer o luto e, em parte, para perceber o que queria fazer
da vida. Durante um ano, andou de mochila às costas de cidade em
cidade, quase sempre sozinha, mas, de vez em quando, fazia
amigos: um alemão giro em Paris, um jovem casal japonês em
Londres. Havia um casal de lésbicas holandesas de meia-idade que
conhecera em Roma e com quem viajara durante algumas
semanas, porque pareciam pensar que ela era inocente e precisava
de proteção. Cassie prometera manter-se em contacto com aquelas
pessoas, mas nunca o chegou a fazer. Eram meros figurantes na
sua vida. Embora estivessem perdidas para ela agora, aquelas
pessoas e aqueles dias quentes e cheios de sol pela Europa
contavam-se entre as suas memórias mais felizes.
— Lembro-me de quando estive em Veneza — disse Cassie.
— Ui, Veneza… Boa! — Izzy nunca tinha saído do país, mas
falava muitas vezes em regressar a Itália, de onde a sua família era
originária, falando disso da mesma maneira que as pessoas falam
de sonhos que sabem que nunca se irão realizar.
— Eu estava alojada num hostel — disse Cassie. — E tinha o
quarto só para mim. Não havia mais ninguém lá, não no início. Era
gerido por um casal de meia-idade com filhos pequenos. Eles eram
tão simpáticos. Não me consigo lembrar dos seus nomes agora… —
Cassie pensou por um momento, procurando nas suas memórias,
mas não encontrou nada. — Mas eles tratavam-me como uma filha.
Izzy inclinou a cabeça para o lado, apoiando-a nas costas do
sofá enquanto ouvia.
— A rua onde eu estava — continuou Cassie — era estreita,
empedrada, com todos aqueles edifícios amarelos e cor de laranja
com grandes portas de madeira e janelas pequenas com portadas.
Provavelmente, nunca mais a encontraria se lá voltasse. Bem, havia
uma padaria do outro lado da rua, e eu dormia com as janelas
abertas porque fazia muito calor.
— Hum, calor é bom — disse Izzy, parecendo sonolenta.
— E, de manhã, acordava com o cheiro do pão e dos bolos
acabados de fazer. — Cassie suspirou com a lembrança. — Era o
melhor cheiro do mundo. E conseguia ouvir os habitantes locais a
falar e a rir quando se encontravam uns com os outros. O café ao
fundo da rua dispunha as mesas e as cadeiras na esplanada,
fazendo uma grande algazarra com o metal, apesar de ser cedo, e
todos os habitantes locais paravam para tomar um cappuccino a
caminho do trabalho ou qualquer outra coisa.
— Quero ir a Itália — disse Izzy.
— Todos os dias, saltava da cama e descia as escadas a correr
— continuou Cassie. — O edifício tinha uma porta de madeira,
grande e velha. Abria-se e a padaria ficava mesmo em frente, e
normalmente tinha uma fila de pessoas à espera para comprarem
aquilo de que precisavam.
— Adoro pão — murmurou Izzy. — Não posso comer. Vai
diretamente para as ancas. Mas adoro.
Cassie ignorou-a, apanhada na rede da sua própria memória por
alguns instantes.
— Vou guardar isto — disse ela, apontando com a cabeça para o
livro que ainda segurava. — E vou fazer um café ou qualquer outra
coisa, senão adormeço antes de ti.
— Não tenho sono — disse Izzy, com a sua voz obviamente
sonolenta. — É mentira.
Cassie sorriu e forçou-se a sair do sofá.
Estava a lembrar-se de Veneza outra vez, a pensar nos cafés
que tinha bebido no café da esquina, no pão estaladiço que tinha
comido ao pequeno-almoço e, quando alcançou a porta do corredor,
sentiu um arrepio, um momento de estranheza em que o mundo
pareceu ficar tenso e soltar-se dentro dela.
Depois, abriu a porta e deu por si a olhar para aquela pequena
rua de Veneza, onde estivera nas férias, com a calçada empedrada,
tranquila, escura e a reluzir à chuva.
VENEZA

O cérebro de Cassie deu uma cambalhota para trás e perguntou-


lhe que partida os seus olhos lhe estavam a pregar. Depois, a
sua boca abriu-se, sem conseguir acreditar.
Havia um mundo onde deveria estar o corredor da sua casa.
Havia ar fresco e humidade e o cheiro ligeiramente orvalhado e
fresco de um lugar diferente. Havia escuridão, mas uma escuridão
mais próxima da luz do que a escuridão nevada da cidade de Nova
Iorque.
À sua frente, na padaria que tinha visitado durante aqueles dias
em Veneza, uma luz acendeu-se, abrindo um buraco na noite
chuvosa. Ela viu um homem a mover-se lá dentro, uma figura
desfocada para lá da janela por onde a chuva escorria, e
apercebeu-se de que não era uma fotografia que estava a ver.
Estava tudo a mover-se, era real!
— Oh, meu Deus! — exclamou ela, abismada.
— Vais ou vens, querida? — perguntou Izzy, num mundo que
ainda fazia sentido. — Fecha a porta! Está um vento uivante a subir
por onde não deve.
— Izzy — disse Cassie, numa voz que parecia muito distante. —
Anda cá. — Em Veneza, na padaria que não devia estar ali, o
homem para lá do vidro tirava um casaco escuro e passava por uma
porta nas traseiras da loja para o pendurar algures. — Vem cá, Izzy
— disse Cassie novamente, com a voz estrangulada e apertada.
— O que é que se passa? — perguntou Izzy. — Oh, merda.
Temos ratazanas outra vez?
Cassie não respondeu. Fechou os olhos, contou até três e voltou
a abri-los. A rua ainda lá estava. A chuva, as pedras da calçada, o
homem na padaria. Cassie viu agora que o céu não estava
totalmente escuro, o dia ameaçava chegar, e uma voz distanciada
no fundo da sua mente disse Claro, a Itália está seis horas à frente
de Nova Iorque. É de madrugada.
No instante seguinte, Izzy estava ao lado dela. Cassie virou a
cabeça para ver o modo como os olhos de Izzy se arregalaram,
enquanto ela processava a mesma impossibilidade com que Cassie
ainda se debatia.
— Estou a ter um AVC? — perguntou Izzy, num tom monótono.
— Cassie, será que estou com uma moca do caraças?
— É impossível — articulou Cassie lentamente, sem responder à
pergunta de Izzy. — É espantoso.
— Mas que merda é esta? — perguntou Izzy, com um suspiro de
incompreensão.
— É Veneza! — exclamou Cassie. — É o sítio de que te tinha
acabado de falar.
— Porque é que está em minha casa? — perguntou Izzy, à beira
da histeria. — Tenho de fazer chichi! Onde é a casa de banho?
Cassie largou o puxador da porta e estendeu a mão para a
frente. Izzy agarrou-a.
— O que é que estás a fazer?
— O quê? — perguntou Cassie, em resposta.
Izzy soltou-a e ficaram ambas a ver Cassie esticar-se para a
frente através da soleira da porta. Ela sentiu as cócegas de uma
brisa, o pequeno beijo das gotas da chuva. Mexeu os dedos e
depois virou a mão, com a palma para cima. Riu-se de incredulidade
e prazer e puxou a mão de volta. Ela e Izzy inspecionaram-na com
atenção.
— Chuva — disse Cassie, olhando para as gotículas na sua
pele. — Senti a brisa — disse ela, sorrindo, voltando a olhar através
da porta.
Era inacreditável. Outro lugar, uma cidade noutro país, do outro
lado do oceano, estava mesmo ao passar da porta. A mente de
Cassie mastigou essa ideia lentamente, como quem saboreia a sua
refeição preferida.
— O que estás a dizer? — perguntou Izzy.
— Estou a dizer que a minha mão estava em Veneza —
respondeu Cassie. — O meu corpo estava em Nova Iorque, mas a
minha mão estava em Veneza?
Izzy parecia estupefacta.
— Como é que isto é possível? — perguntou Cassie a si própria
num sussurro.
Olharam para a passagem em silêncio. Era impossível desviar o
olhar. Do outro lado da rua, havia agora uma segunda pessoa na
padaria, formas indistintas através da janela riscada pela chuva,
como rabiscos no carvão.
— O que é que vamos fazer? — perguntou Izzy, e foi a primeira
vez, pensou Cassie, que Izzy lhe soou insegura. Ela era sempre tão
confiante, e tão óbvia quanto à sua confiança.
— Quero ir — murmurou Cassie.
— Ir? Ir para onde?
— Para Veneza — afirmou Cassie, gesticulando para o que
estava à frente delas. Como é que ela podia não querer ir? Era outro
lugar muito distante, um lugar que ela amava, e estava mesmo ali,
mesmo à frente delas.
— Não podemos ir para Veneza! — Izzy ofegou. — Estou de
pijama e meias. E tu… Não sei o que tens vestido, mas também não
tens sapatos calçados.
— Tenho de saber que é real — disse Cassie, mal ouvindo os
protestos de Izzy. Parecera real. E dera a sensação de ser real. —
Põe lá a tua mão, Izzy. — Izzy olhou para o mundo para lá da porta
com desconfiança. — Por favor — implorou Cassie. — Só quero ter
a certeza de que não sou só eu, que não estou a alucinar.
Izzy benzeu-se — algo que Cassie só a tinha visto fazer uma
vez, quando um peão tinha sido atropelado na rua, muitos anos
antes — e depois estendeu a mão. Os seus dedos ultrapassaram o
limiar da porta e Izzy semicerrou os olhos, como se estivesse à
espera de sentir dor. Depois, a mão dela estava na rua que não
devia estar ali, e Cassie levou as mãos aos lábios, ansiosa. Ela
queria que fosse verdade, aquele milagre, aquela impossibilidade.
Ela queria acreditar que coisas como aquela podiam acontecer.
Então, Izzy riu-se de incredulidade.
— Está frio — disse ela. — Consigo sentir o ar.
— Sim — confirmou Cassie alegremente, encantada com o facto
de Izzy também o sentir, de ser real. — E a chuva?
— Sim, e a chuva. — Ela agitou os dedos, tal como Cassie tinha
feito, e depois puxou a mão para si para a inspecionar, abanando a
cabeça.
Cassie queria atravessar a porta. Queria ir para Veneza. Ela não
se assustou com o que viu; não havia nada a temer ali, apenas algo
para admirar e apreciar.
— Não faças isso — disse Izzy, como se estivesse a ler a mente
de Cassie. — E se não conseguires voltar? E se ficares presa em
Veneza, à chuva, de meias e não conseguires voltar?
Cassie hesitou, a cautela de Izzy era uma âncora para a sua
alegria, impedindo-a de ir.
— Eu tiro uma fotografia! — sugeriu Izzy. Meteu a mão no bolso
do pijama e tirou o telemóvel para tirar uma fotografia da passagem
e da rua. Depois, afastou-se e tirou mais algumas fotografias,
mostrando Cassie em frente à porta. — Sorri! — disse Izzy.
Cassie sorriu distraidamente. Ela queria atravessar a porta. Era
tudo o que queria.
— Espera aí. Vou gravar um vídeo — continuou Izzy. — Acena
com as mãos ou algo do género. Começa.
Cassie levantou a mão livre para apontar para a porta.
— Parece Veneza — disse ela. — Onde devia estar o nosso
corredor. — Depois escapou-lhe uma gargalhada ligeiramente
maníaca. — É de loucos!
— Volta a pôr a mão lá dentro — instruiu Izzy.
Cassie inclinou-se para dentro da passagem, atravessando-a
com a mão, e depois deu um passo e enfiou a cabeça.
— Cassie! — exclamou Izzy.
Cassie sentiu Izzy agarrá-la e puxá-la para trás.
— É mesmo real — disse Cassie. — Não posso acreditar.
— Já chega, isto agora está a assustar-me.
Antes que Cassie conseguisse responder, Izzy agarrou na porta
e empurrou-a com força. A porta estremeceu na ombreira e as
mulheres ficaram a olhar para ela em silêncio. Depois, Izzy virou a
cabeça e encontrou os olhos de Cassie, fazendo-lhe uma pergunta.
Cassie anuiu em silêncio e Izzy abriu a porta mais uma vez,
revelando o corredor, o espaço estreito e estranho com as portas da
casa de banho e dos quartos, e os casacos e sapatos à entrada do
apartamento. A respiração de Cassie explodiu, e foi tomada, em
ondas sucessivas, pelo alívio e pela desilusão.
Izzy olhou imediatamente para o telemóvel. Cassie aproximou-
se, com as cabeças a tocarem-se, e olharam juntas para as
fotografias que Izzy tinha tirado, para o vídeo de Cassie junto à
porta e depois a inclinar-se para dentro — ou a inclinar-se para
fora? — antes de Izzy dar um grito e o vídeo ser cortado.
— Como é que isto é possível? — interrogou-se Izzy.
Cassie parou à porta e pôs as mãos nas ancas, e foi apenas ao
fazer esse movimento que reparou que ainda segurava o livro do Sr.
Webber, mantivera-o na mão durante toda a milagrosa descoberta
de Veneza no seu corredor. Levantou o livro, passando o polegar
sobre a capa de pele castanha. Estava agora mais quente e pesado
do que quando tinha pegado nele na livraria.
— É o livro — disse ela, enquanto examinava novamente o
objeto. Não parecia apenas mais pesado, parecia mais sólido, como
se agora houvesse mais substância entre as capas.
— Hã? — resmoneou Izzy.
— É o livro — repetiu Cassie. Passado um instante, sentou-se,
pegou na caneca de vinho que ainda não tinha bebido e bebeu-a de
uma só vez.
— Como assim, é o livro? — estranhou Izzy.
— O Livro das Portas — disse Cassie, folheando-o até à página
inicial, lendo o que estava escrito antes da nota do Sr. Webber. —
«Qualquer porta poderá ser uma porta qualquer.» Eu estava a
pensar naquela rua, na entrada daquela porta do lugar onde fiquei
— disse Cassie. — Eu tinha o livro na mão e estava a pensar nela e
depois senti…
Cassie estremeceu.
— Sentiste o quê? — perguntou Izzy.
— Senti-me estranha. E depois abri a porta e vi Veneza, ali. A
Veneza em que eu estava a pensar. — Cassie sentiu a maravilha
nascer dentro dela, como o melhor e mais belo nascer do sol de
sempre. Seria possível que…?
Izzy ficou a olhar para ela, a absorver tudo aquilo. Depois disse:
— Estás doida? Achas que foi um livro que fez isso?
Cassie encolheu os ombros, com uma expressão que convidava
a outras explicações.
— Eu sei que adoras livros, Cass, mas livros mágicos que te
podem transportar para o outro lado do mundo?
— O Livro das Portas — proferiu Cassie, saboreando o som das
palavras. Ela abriu o livro e folheou-o, parando com o dedo numa
página aleatória. Era a página que vira antes, o esboço da porta
com o quarto escuro e a janela com vista para as flores e para o sol.
Desta vez, porém, não havia janela. Desta vez, através da porta
desenhada, viu uma rua calcetada, a montra de uma padaria. Era a
rua que ela tinha acabado de contemplar, e a boca de Cassie abriu-
se em descrença. Ela folheou as páginas novamente, a tentar
encontrar a imagem que tinha visto antes, mas não estava lá.
— O livro mudou — murmurou para si mesma, entusiasmada
com tal revelação, entusiasmada com mais uma impossibilidade.
Era quase como se o livro estivesse vivo ou a falar com ela. — Olha
— disse ela a Izzy, segurando no livro e a sentir que começava a
ficar histérica. — Olha para esta imagem! Antes era uma imagem
diferente! Agora, parece-se com aquela rua!
Izzy pegou no livro e olhou para ele.
— É aquela rua, não é? — perguntou Cassie, precisando que
Izzy confirmasse o que estava a ver.
— Pode ser — disse ela, com cautela, como se não quisesse
admitir algo que era claramente impossível.
— Oh, vá lá — disse Cassie, pegando no livro e olhando para ele
novamente. — É decididamente aquela rua. Mas antes era uma
coisa diferente. Mudou.
A mente de Cassie rodopiou alguns instantes, todo o seu corpo
estremeceu.
— Será magia?
— Um livro mágico — disse Izzy, levantando uma sobrancelha
cética.
— Porque não? — perguntou Cassie. — Tu viste o que acabou
de acontecer.
— Se tens tanta certeza de que foi o livro, faz outra vez. — Izzy
fechou a porta do corredor e apontou para ela. — Vá lá, faz
aparecer outra coisa.
Cassie pensou no assunto, capacitando-se de que queria fazer
exatamente o que Izzy estava a exigir.
Queria voltar a abrir a porta para outro lugar.
Queria usar o estranho e maravilhoso livro.
Estava a atormentá-la, a oferecer-lhe algo de espantoso num
mundo de tão pouco espanto.
— É melhor irmos buscar os nossos casacos — disse Cassie. —
E é melhor ires fazer chichi primeiro.
VISITA MÁGICA
A MANHATTAN À MEIA-NOITE

— O nde é que queres ir? — perguntou Cassie, parada em


frente à porta, com o estômago às voltas. Izzy tinha ido à
casa de banho e tirado o pijama, e ambas tinham vestido casacos e
sapatos. Cassie tinha o Livro das Portas na mão.
Izzy encolheu os ombros.
— Não para Itália — disse ela. — Um sítio de onde possamos
regressar a pé para casa se ficarmos presas.
— Certo — concordou Cassie. Ela pensou na livraria, porque era
o seu local preferido, um local confortável, mas depois Izzy fez uma
sugestão melhor.
— Já sei — disse ela. — O terraço no telhado do Library Hotel.
Lembras-te?
Cassie lembrava-se. Antes de Izzy sair da Kellner Books, o
Library Hotel era o local preferido das duas para irem beber um
copo depois do trabalho. Ainda lá iam ocasionalmente, mas não
com tanta frequência como quando trabalhavam juntas. Era um
lugar que Izzy adorava porque podiam sentar-se no exterior,
rodeadas pelos edifícios imponentes do centro de Manhattan, a
beberem cocktails caros e a verem os jovens ricos a socializar.
Cassie adorava a vista, a oportunidade de olhar para todas as
janelas de Manhattan.
— Sim — concordou Cassie. — Boa ideia.
— Escolhe também um sítio! — propôs Izzy. — Vamos à minha
escolha e depois à tua!
Cassie sorriu, gostando da ideia.
— O quê, como uma visita mágica a Manhattan à meia-noite?
— Adoro! — exclamou Izzy, com os olhos a brilhar.
— OK — disse Cassie, virando-se novamente para a porta do
corredor. — O bar do Library Hotel.
Ficou pensativa por momentos, a sua mente no bar do hotel, na
porta do terraço, mantendo o Livro das Portas na mão. Anuiu com a
cabeça de modo decidido, esticou o braço e abriu a porta, mas viu
apenas o corredor.
— Merda.
— O que é que aconteceu? — perguntou Izzy. — O que é que
terá corrido mal?
— Sei lá eu!
— Bem, o que é que fizeste da última vez? Faz isso outra vez.
Mas Veneza, não. — Cassie cruzou o olhar com o de Izzy. — Devia
ser mais fácil — disse Izzy. — Fica a poucos quilómetros daqui!
Veneza fica do outro lado do oceano!
— Queres ser tu a fazer? — sugeriu Cassie, oferecendo-lhe o
Livro das Portas.
— Não, não — recusou Izzy, dando um passo atrás.
Cassie suspirou e voltou a sua atenção para a porta. Fechou-a
novamente e tentou acalmar a respiração — porque é que o seu
coração estava tão acelerado? Tentou lembrar-se do que tinha feito
da última vez.
Tinha estado a pensar em Veneza. Na rua, na padaria. A porta.
Estava a lembrar-se — não, não estava apenas a lembrar-se,
estava a visualizar aquela porta em Veneza. E depois sentiu-se
esquisita…
Fechou os olhos e pensou na porta que dava para o terraço do
hotel, uma porta de vidro fria ao toque, gordurenta por fora.
Visualizou-se a estender o braço na sua direção enquanto pegava
na maçaneta.
Depois, sentiu novamente aquela sensação, aquela pressão
efervescente e estranha que a atravessou, e uma parte distante da
sua mente exclamou: Estás a conseguir!
— Olha! — disse Izzy, arquejando.
Cassie abriu os olhos e olhou para baixo. O livro voltou a
parecer-lhe pesado na sua mão, mas agora viu que mais qualquer
coisa estava a acontecer. Havia um brilho, ou uma aura, à volta do
livro, como uma espécie de sombra intangível, mas gloriosamente
colorida, como um arco-íris. Cassie moveu a mão para trás e para a
frente e a aura do arco-íris seguiu o movimento do livro, ondulando
preguiçosamente no ar.
— Está a brilhar! — disse Izzy.
Cassie ergueu os olhos para a porta. Pegou na maçaneta e
puxou.
E a porta não se mexeu.
— Hã? — disse ela, surpreendida.
— O que foi? — perguntou Izzy. — Qual é o problema agora?
— A porta não se mexe.
Cassie olhou para o livro. Continuava a reluzir com aquela
estranha aura multicolorida. Continuava a senti-lo pesado e sólido
na mão. Estava a acontecer qualquer coisa.
Voltou a olhar para a porta e puxou duas ou três vezes.
— É como se não abrisse — murmurou.
Passado algum tempo, Izzy disse:
— A porta do bar abre para fora, não é?
Cassie percebeu imediatamente que ela estava certa. A porta —
a porta normal que dava para o corredor — abria-se na direção
delas, tal como a porta de Veneza. Mas se ela estivesse no bar do
Library Hotel e saísse para o terraço, teria de empurrar a porta para
a abrir.
— Não pode ser — murmurou Cassie, espantada. A porta tinha
sido alterada de alguma forma, e agora movia-se de uma maneira
que normalmente seria impossível. Cassie empurrou, a porta para o
corredor abriu para trás, e o ar frio irrompeu ao encontro delas como
um cão excitado.
Cassie olhou para baixo e viu a aura à volta do livro a dissipar-
se, levada pela brisa, e o livro voltou a ficar mais leve na sua mão.
Ela cruzou o seu olhar com o olhar abismado de Izzy.
— Vamos lá! — disse Izzy, e as duas entraram
atabalhoadamente no terraço do Library Hotel, a rirem como
crianças.

A noite estava vibrante com a neve; o céu para lá do terraço, cheio


de formas brancas a rodopiar; as luzes da cidade, difusas e
indistintas. Os edifícios altos eram gigantes que observavam
silenciosamente, envoltos pela tempestade.
Izzy levou Cassie até um banco na extremidade do terraço e
abriu um guarda-sol sobre a mesa para as proteger da neve. Havia
um homem no terraço com elas, sentado na outra extremidade a
beber, mas, de resto, estavam sozinhas na neve.
— Será que podemos pedir uma bebida? — indagou Izzy,
espreitando pela janela para o bar no interior. Sentado do outro lado
do vidro, estava um pianista, e o som da sua música era arrastado
pelo vento, rodopiando na noite, numa espiral com a neve.
— Isto é inacreditável — disse Cassie, abanando a cabeça com
espanto. Como é que elas podiam ter atravessado a cidade? Olhou
para o livro que tinha na mão, um simples caderno castanho, e deu-
se conta de que o adorava. Tinha entrado na sua vida e estava a
fazer milagres.
— Está um gelo, mas não me importo! — comentou Izzy,
atirando uma gargalhada para a tempestade. — Estamos no Library
Hotel!
— Eu sei! — exclamou Cassie. — Vamos lá!
Arrancou Izzy do abrigo do guarda-sol, apoiando-se na
balaustrada na extremidade do terraço para olhar para o desfiladeiro
da Madison Avenue. Era um mundo ártico lá em baixo, a neve a
acumular-se rapidamente, todas as luzes da rua e dos faróis
esbatidas pela tempestade. Algumas pessoas aventureiras
caminhavam por entre os montes de neve, de cabeça baixa e capuz
levantado. Atrás de Cassie e Izzy, no bar, o pianista terminou uma
música lenta e começou algo mais rápido, uma espécie de arranjo
jazzístico de um clássico ao estilo big band que Cassie reconheceu
vagamente.
— Pega na minha mão — disse Izzy, com um sorriso rasgado.
— O quê? — perguntou Cassie, a olhar para a amiga enquanto
esta pestanejava contra a neve.
— Dança comigo, Cassie! — disse Izzy.
— Estás bêbeda!
— Sim!
Izzy puxou Cassie para junto de si e, durante um minuto,
dançaram ao som da música do bar, só elas, a neve e as notas do
piano a descreverem piruetas no céu frio da noite.
— Isto é de loucos! — disse Cassie, quando se sentaram nos
bancos debaixo do guarda-sol, limpando a neve da cara.
— Continuo a achar que estou a sonhar — disse Izzy. — Será
que acabámos de dançar no céu?
— Uma pessoa maluca agarrou-me e obrigou-me a dançar o
foxtrot — concordou Cassie.
Izzy sorriu e observou a neve, abanando a cabeça para si
própria. Atrás delas, o pianista terminou a peça e voltou a tocar algo
mais lento, algo mais adequado a uma noite num bar de Nova
Iorque.
— O que farias com este poder? — perguntou Izzy, uns instantes
depois. — Com esta possibilidade de poderes ir a qualquer lado
quando quisesses?
Cassie pensou no assunto.
— Nunca terias de apanhar o metro para o trabalho? — sugeriu
Izzy. — Simplesmente sais do quarto para a livraria.
Cassie sorriu ao imaginar a cena.
— Às vezes, até gosto bastante da viagem para o trabalho. Mas
não quando está frio.
— O frio é do pior — concordou Izzy. Ela olhou por cima do
ombro para o bar. — Apetece-me mesmo ir beber um copo.
A mente de Cassie estava a pensar nas possibilidades.
— Nunca mais terias de usar uma casa de banho pública.
— Oh, meu Deus, sim! — exclamou Izzy. — Já viste como seria
fantástico? Nunca mais ter de fazer chichi suspensa no ar.
— Posso usar a casa de banho em casa — disse Cassie. —
Sempre que quiser.
— Mas e se fizeres isso e eu estiver lá dentro? — perguntou
Izzy. — E se me apanhares em flagrante a fazer chichi?
— Por favor. Tu usas a casa de banho com a porta aberta, de
qualquer maneira. Já vi tudo o que havia para ver.
— Sabes, foi uma sorte teres ficado com este livro — disse Izzy,
aproximando-se de Cassie no banco para se aquecer. — Quero
dizer, em vez de outra pessoa, alguém menos bom. Pensa no que
poderias fazer com ele se não fosses uma boa pessoa.
Cassie ficou silenciosa, não querendo voltar a sua mente para
esses pensamentos. Ela queria brincar com as possibilidades e
desfrutar da excitação, e não afundar-se em preocupações.
— Imagina um tarado que consegue entrar e sair do quarto de
qualquer mulher — aventou Izzy. — Em qualquer parte do mundo.
— Pois…
— Podias ir para outro país, cometer crimes e voltar para cá e
ninguém iria saber quem eras. Mesmo que as pessoas pensassem
que tinhas sido tu, terias o álibi perfeito por estares num país
diferente.
Cassie anuiu com a cabeça, em silêncio.
— Ou um ladrão — continuou Izzy. — Entras e sais de qualquer
cofre. Não precisas de arrombar a porta. Nem sequer tens de entrar
no banco. Podias abrir a porta do cofre e meter a mão lá dentro. Ou
em qualquer joalharia. Nada estaria seguro.
— OK — disse Cassie, de semblante carregado. — Podemos
não fazer uma lista de todas as coisas horríveis que alguém pode
fazer? Isto é espetacular, Izzy. É tipo… a melhor coisa de sempre.
Um livro mágico que me pode levar para onde eu quiser! Não
estragues tudo!
Izzy levantou as mãos para pedir desculpa.
Deixaram-se ficar sentadas em silêncio durante algum tempo,
mas Cassie estava impaciente para usar o livro novamente. Ela
queria ver onde mais poderiam ir.
— Que tal irmos para outro sítio?
— Está bem — disse Izzy. — Um sítio mais quente.
Dirigiram-se novamente para a porta do bar e Cassie viu que o
homem que bebia sozinho ainda lá se encontrava. Ele olhou para
elas, fitando ora Cassie ora Izzy com os seus olhos escuros, e
depois olhou para os edifícios em redor. A seguir, Cassie voltou a
usar o livro, tal como tinha feito em casa, sentiu-o pesado e houve
uma explosão de todas as cores do arco-íris à volta da sua mão, e
tudo pareceu ainda mais fácil do que da última vez. E então
atravessaram a porta do bar, mas em vez de entrarem lá, chegaram
a outro lugar.
Viajaram até à Biblioteca Pública de Nova Iorque, a sala de
leitura onde Cassie havia passado muitas horas felizes, agora
escura e silenciosa, com a tempestade a fustigar as janelas altas.
Andaram em bicos de pés na escuridão como fantasmas risonhos,
Cassie aterrorizada com a possibilidade de haver algum alarme ou
um segurança que as descobrisse. E depois usaram uma porta
lateral da sala de leitura para se deslocarem à Strand Book Store,
uma livraria a sul da Union Square, um dos outros locais preferidos
de Cassie na cidade. A cada passagem bem-sucedida, Cassie tinha
a certeza de que a realidade entediante iria regressar e roubar-lhe
este conto de fadas, mas cada viagem provava que ela estava
enganada. De repente, o mundo tornara-se maravilhoso e cheio de
possibilidades.
— Tenho fome — disse Izzy, enquanto estavam na livraria
Strand.
— Queres ir ao Ben’s? — sugeriu Cassie, referindo-se a um deli
que funcionava durantes as vinte e quatro horas do dia, a poucos
quarteirões de casa delas. Era o local delas, o sítio onde tinham
esperado mais de duas horas para se encontrarem com o agente
imobiliário no dia em que se mudaram para o apartamento, e o sítio
onde agora costumavam ir comprar comida para levar para casa.
— Claro! — concordou Izzy.
Cassie abriu uma porta nas traseiras da livraria e entraram no
Ben’s Deli, a um quilómetro e meio de distância. Sentaram-se nas
traseiras da loja e Izzy comeu panquecas e bacon com uma Coca-
Cola, enquanto Cassie bebia um café e tentava conter o seu
entusiasmo.
— Olha para mim — queixou-se Izzy miseravelmente. — Até
meto nojo. É meia-noite e estou a fazer isto ao meu corpo.
— Não há nada de errado com o teu corpo e tu sabes disso.
— Pode ser que venha a haver, se continuar a comer assim.
Viste as minhas tias? São todas enormes. Aquilo são os meus
genes, Cass.
— Então, porque é que estás a comer?
Izzy encolheu os ombros.
— A minha boca está aborrecida e eu estou bêbeda. — Ela
bateu com o garfo no prato e afastou-o. — Já sabes o que vais fazer
em relação ao livro?
— Como assim? — perguntou Cassie.
Izzy franziu o sobrolho.
— Bem, não podes ficar com ele e continuar a usá-lo assim, pois
não?
Cassie não percebeu.
— Porque não? Foi-me dado. Pertence-me.
— Tu não sabes nada sobre ele, Cass — alertou Izzy. — Pode
ser perigoso.
Cassie suspirou, odiando o aviso, odiando o facto de o ter
compreendido. Pensou durante alguns instantes, enquanto Izzy
bebia o último gole da sua Coca-Cola.
— Eu podia tentar descobrir mais — admitiu Cassie. — Sobre o
livro, sobre o Sr. Webber.
— Como é que vais fazer isso? — perguntou Izzy. — Ele está
morto, lembras-te?
— Vou perguntar à Sra. Kellner. Ela pode tê-lo conhecido. Ele
era um cliente habitual.
Izzy anuiu.
— Até saberes mais, não devias brincar com ele. Não sabes o
que é que ele pode estar a fazer.
— Estivemos a brincar com ele toda a noite — disse Cassie.
— Sim — concordou Izzy, com uma expressão séria. — Mesmo
assim. Eu não o faria.
— Que tal irmos para casa? — perguntou Cassie, evitando o
assunto. — Estou cansada.

Quando regressaram ao apartamento, tendo caminhado pelas ruas


cobertas de neve de braço dado, deitaram-se na cama de Cassie,
ambas incapazes de dormir, mas a tentarem manter-se quentes.
Conversaram sobre o Livro das Portas, sobre a sua magia louca e
fabulosa e o que ela poderia significar. Cassie apercebeu-se de que
estava feliz, deitada com a sua melhor amiga num quarto às
escuras, a falar de coisas fantásticas; a noite estava fria, mas o seu
coração estava quente.
A dada altura, Izzy levantou-se para ir para a sua própria cama e
Cassie ficou sozinha. Tirou o Livro das Portas de debaixo da
almofada e segurou-o entre as mãos, afagando a capa com o
polegar. Voltou a folhear as páginas, maravilhada com o texto denso
e as imagens bem desenhadas. Tentou identificar as línguas, mas
muitas delas nem sequer pareciam usar símbolos que ela
reconhecesse. Passou para a frente do livro, para a mensagem do
Sr. Webber, e sentiu a boca abrir-se de novo quando viu que as
palavras dele tinham desaparecido. A primeira página continha
agora apenas as poucas linhas que diziam o que era o livro. Não
havia nenhum sinal da mensagem do Sr. Webber, nenhum traço de
tinta, nenhuma marca.
Cassie não podia acreditar. Era mais um pequeno milagre, um
pedacinho de magia, mas ela descobriu que o desaparecimento das
palavras do Sr. Webber a magoava um pouco. Remoeu nisso alguns
instantes, mas deu por si a pensar naquilo que o livro podia fazer, no
presente que o Sr. Webber lhe tinha dado. Que o Sr. Webber lhe
tinha concedido.
— É mesmo real — insistiu ela, num sussurro.
Contudo, tinha de o provar a si própria mais uma vez. Apesar
das reservas de Izzy, ela sabia que queria voltar a usá-lo. Quem é
que podia ignorar a magia? Quem recusaria?
Saiu da cama e foi em bicos de pés até à porta do quarto.
Pensou nas férias que passara na Europa anos antes — os
melhores meses da sua vida — e sabia que o livro podia permitir-lhe
voltar a ter esse tipo de felicidade.
Fechou os olhos e tentou lembrar-se de outra porta das suas
viagens. Lembrou-se do hostel onde tinha ficado em Londres.
Lembrava-se daquela porta, da madeira escura, das duas janelas
altas e estreitas, da forma como a porta rangia sempre que era
aberta. Sentiu o livro a ficar mais pesado na sua mão e, quando
abriu os olhos, viu novamente aquela mesma auréola, como se o
livro existisse numa nuvem de arco-íris.
— É lindo — murmurou, com a luz a refletir-se no seu rosto.
Cassie estendeu a mão para a porta do quarto, segurando no
Livro das Portas com a outra mão e, quando a abriu, esta emitiu um
ruído que a porta do seu quarto nunca tinha feito e Cassie sentiu um
sorriso de prazer a formar-se no rosto, mesmo quando a auréola de
arco-íris se dissipou.
Espreitou pela soleira da porta e viu aquela rua de Londres de
que se lembrava tão bem, uma manhã cinzenta, chuva e carros
estacionados ao longo do passeio. Estava a observar uma cidade
estrangeira do outro lado do oceano a partir do conforto do seu
próprio quarto.
— Uau — disse, a rir. Cassie não se lembrava da última vez que
algo a tinha feito sentir-se tão feliz, mas agora era assim que se
sentia.
Fechou a porta, abanando a cabeça ao fazê-lo, não por se ter
arrependido do que estava a fazer, mas porque não conseguia
acreditar no que tinha acabado de fazer.
Voltou para a cama, segurando no livro entre as duas mãos e
olhando para ele como se fosse o rosto de um amante.
Ela podia fazer magia.
Ela podia regressar a qualquer porta por onde tivesse passado,
em qualquer parte do planeta.
DRUMMOND FOX
NA NEVE

D rummond Fox estava na neve, com fantasmas.


Parado à beira do parque de Washington Square, pensava
no dia, uma década antes, em que o seu mundo tinha mudado.
Ele não sabia porque é que tinha vindo. Era estúpido, na
verdade — perigoso, até —, mas sentira a necessidade de voltar
àquele lugar para recordar os amigos que tinha perdido.
Drummond baixou o rosto para se proteger da intempérie e
caminhou para norte, em direção à fonte, com a mente num
torvelinho de recordações e emoções daquele dia havia tanto
tempo. Risos, abraços e longos passeios. E depois gritos e luz,
sangue e escuridão. Alguns momentos de loucura em Manhattan
que marcaram o início de uma época mais perigosa. O início da sua
vida como errante. A criação da Casa das Sombras. Todas estas
coisas tinham surgido daquele momento, dez anos antes.
Chegou ao arco de Washington Square e abrigou-se debaixo
dele. Tinha frio, o seu velho casaco pouco o protegia das condições
atmosféricas, mas não se queria ir já embora. Deixou-se ficar imóvel
durante algum tempo, permitindo que o vento o arrefecesse,
enquanto observava o parque. Passado algum tempo, reparou que
não estava sozinho.
Uma forma materializou-se para lá da fonte e Drummond sentiu
o coração acelerar. A figura tornou-se maior, mais próxima, e ele viu
um homem emergir da neve e entrar no espaço por baixo do arco ao
seu lado.
— Olha o Sr. Fox — disse o Dr. Hugo Barbary. O homem sorriu,
mas para Drummond parecia a expressão satisfeita de um predador
ao encurralar a sua presa. — Que sorte encontrar-te, ainda por cima
aqui. Não sei se devo ficar surpreendido ou desapontado por teres
efetivamente voltado.
Estavam a apenas alguns metros de distância, suficientemente
perto para que Barbary pudesse tocar em Drummond se quisesse.
Drummond tentou não deixar transparecer o medo que sentia.
— Hugo — disse ele, num tom neutro. Voltou a olhar para a
tempestade, recusando-se a deixar-se intimidar, mas meteu as
mãos nos bolsos para estar preparado.
Barbary era um homem grande e rotundo, com uma grande
careca e olhos escuros por detrás das grossas armações dos
óculos. Vestia um fato de três peças por baixo de um sobretudo
comprido, com o colete demasiado esticado sobre a barriga, e
usava um grande chapéu que lhe protegia o rosto da neve. Trazia
uma mala de couro antiquada junto ao corpo, como um médico
numa visita ao domicílio.
— Há quem tenha andado à tua procura, nestes últimos dez
anos — disse Barbary. — Muito tempo e esforço foram despendidos
a tentar localizar-te.
Drummond não disse nada.
— Que sorte a minha ser o primeiro a voltar a ver-te. — Barbary
era sul-africano e, embora o seu sotaque se tivesse atenuado ao
longo de muitos anos de deslocações pelo mundo, ainda lá estava
nas suas vogais estranhas e cortadas.
— Enoja-me a alma — disse Drummond, e Barbary inclinou a
cabeça como se estivesse interessado — que um homem como tu
ainda esteja vivo, quando pessoas muito melhores morreram aqui
sem qualquer razão válida.
— Ui — disse Barbary, com um sorriso rasgado. — Eu não vou
levar isso a peito. Mas o que aconteceu há dez anos não teve nada
que ver comigo. Eu nem sequer cá estava. Se bem me lembro,
encontrava-me na Tailândia à procura do raio de um livro que afinal
não existia. Já alguma vez foste à Tailândia? Quente que se farta.
Detestei o sítio. Tudo o que comem está cheio de erva-príncipe.
Sabe tudo a remédio e a sabão.
— O que é que queres? — perguntou Drummond, farto do
homem, farto da sua falsa bonomia.
Barbary trauteou pensativamente, como se estivesse a estudar
uma ementa.
— Eu quero os teus livros. Só estou a tentar decidir se tenho de
te matar primeiro ou não.
Drummond anuiu com a cabeça para si próprio.
— É sempre por causa dos livros, não é?
Barbary encolheu os ombros.
— De que mais se trataria?
Drummond não disse nada, observando a tempestade. Era uma
cortina entre os dois homens e o mundo. Naquele momento,
rodeados pela neve, a segurança de outras pessoas e de lugares
mais luminosos parecia muito distante.
— O que é que tens aí contigo, Bibliotecário? — perguntou
Barbary, aproximando-se um passo de Drummond, os seus olhos a
revelarem finalmente a fome da sua alma. — O que é que tens
andado a carregar para te manter seguro todos estes anos?
— Eu já não sou o Bibliotecário — respondeu Drummond. —
Não há biblioteca. Desapareceu.
Até o facto de reconhecer esta verdade lhe causava dor, mas o
seu rosto não a denunciou.
— Foi o que eu ouvi dizer — comentou Barbary, coçando a face
ociosamente. — Desaparecida, mas não esquecida, não é? Há
muita gente à procura da Biblioteca Fox.
— Muita? — perguntou Drummond com ceticismo. — Não
pensei que ainda restasse muita gente. Pensei que ela se tinha
certificado disso.
— Oh, não é assim tão mau — disse Barbary. Tirou o chapéu e
passou uma mão pela cabeça careca. — Eu ainda aqui estou. Há
outros. Menos do que havia, é verdade. Ela está a apanhar as
pessoas uma a uma e a tirar-lhes os livros. Mas é darwiniano, não
é? A sobrevivência do mais apto. Tenho a certeza de que ela me vai
encontrar mais cedo ou mais tarde, mas não me importo com isso.
Veremos se ela é mesmo boa.
— Ela vai apanhar-te — disse Drummond. — Ninguém está a
salvo. Eu sei. Já a conheci.
Barbary olhou para Drummond por breves instantes, como se
estivesse a considerar aquela avaliação que dava que pensar.
— Algumas pessoas estão seguras — contrapôs ele. — Aquelas
que têm os tipos de livros certos. Os livros mais poderosos.
— Serás tu, Hugo? — perguntou Drummond. — Tens andado
por aí com um livro poderoso?
— Foi uma tolice teres vindo a Nova Iorque — disse Barbary,
ignorando a pergunta de Drummond. — Devias saber que era um
risco.
— Apetecia-me mesmo um cachorro-quente — murmurou
Drummond. Barbary riu-se uma vez, e o som ecoou no arco por
cima deles. — Estou cansado — disse Drummond. — Podemos
chegar à parte em que me tentas matar, ou em que me deixas em
paz, por favor? Pode ser qualquer uma das opções, mas, sabes…
quanto mais cedo melhor.
— Porque não me dás simplesmente os teus livros? — sugeriu
Barbary. — Poupas-me algum trabalho. Eu deixo-te viver. Nem
sequer digo a ninguém que te vi.
— Quantos livros tens agora, Hugo? — perguntou Drummond.
Ele próprio transportava três livros, dois num bolso e um no
outro. Agarrara-os assim que metera as mãos nos bolsos,
assegurando-se de que se encontravam lá. O Livro das Sombras
estava sozinho no bolso direito, aberto e dobrado para trás pela
lombada. Drummond habituara-se a transportar o livro desta forma
ao longo dos anos. Estava sempre pronto para que ele rasgasse um
canto de uma página, para desaparecer nas Sombras. Na sua
mente, ouvia as palavras do Livro das Sombras como se fossem um
amuleto de boa sorte: As páginas são feitas de sombras. Pega
numa página e serás também uma sombra.
— Não é o número de livros que importa, pois não? —
respondeu Barbary. — É o que se faz com eles.
— O Livro da Dor? — perguntou Drummond. — Esse foi sempre
o teu preferido, não foi?
— Tu não ias gostar que eu usasse o Livro da Dor, Drummond —
disse Barbary. Soou quase simpático, como se estivesse
preocupado com a saúde de Drummond. — Eu sei como o usar. Dá-
me prazer.
Os dois homens olhavam-se fixamente — Drummond sem dar
parte de fraco, apesar do medo que lhe tensionava todos os
músculos. Então, Barbary sorriu.
— Ora aí está ele! Ora aí está o Bibliotecário. A espinha dorsal
de ferro. Tal como quando fugiu e abandonou os amigos à morte.
Foi, então, a vez de Drummond desviar o olhar, contemplando o
redemoinho de neve.
— Pergunto-me que favores a Mulher me concederia se eu lhe
dissesse onde estavas.
Drummond cruzou novamente o olhar com o de Barbary,
avaliando a ameaça.
— Nã… — disse Barbary. — Acho que vou simplesmente matar-
te e ficar com os teus livros para mim.
Moveu-se repentinamente para a frente, com um braço a
disparar como um pistão, mas quando o braço chegou ao seu
destino, Drummond já se tinha desviado.
— Tens de me apanhar primeiro — disse Drummond, a um
passo de distância. No bolso, rasgou um canto de uma página do
Livro das Sombras e apertou-o na mão. Quase de imediato sentiu
aquele fragmento de papel ficar pesado na palma da mão e, à
medida que o peso aumentava, foi desaparecendo na neve,
tornando-se ele próprio uma sombra, intangível e invisível.
Hugo olhou para a tempestade, com os lábios comprimidos de
aborrecimento.
— Eu sei que estás aqui — disse ele em voz alta. — Agora já
mostraste a tua cara. Eu hei de encontrar-te, Bibliotecário. Podes ter
a certeza disso.
Drummond nada disse, recusando-se a mover-se enquanto
Barbary esperava, ainda que o frio lhe estivesse a roer os ossos. O
homem mais corpulento perdeu a paciência primeiro, murmurando
qualquer coisa depois de alguns minutos e virando as costas. A
tempestade engoliu a sua enorme forma quase de imediato.
Drummond aguardou mais um pouco, só para se certificar de
que Hugo se tinha mesmo ido embora, e depois dirigiu-se para
norte, saindo do parque, mantendo-se escondido nas Sombras até
se encontrar novamente na rua. Quando lá chegou, abriu a palma
da mão e revelou o pedaço de papel escuro com a sua aura de
arco-íris. O vento levantou o papel à medida que este se foi
tornando mais leve, enquanto a aura de arco-íris se extinguia, e o
pedaço de papel esvoaçava ao sabor da brisa. Drummond saiu das
Sombras, mais uma vez substancial.
Enfrentou a intempérie ao longo da Fifth Avenue, encaminhando-
se para o centro da cidade, deixando pegadas na neve atrás de si.

Naquela noite, Drummond ficou hospedado no Library Hotel, no


centro da cidade, sabendo que era um risco pernoitar num local tão
óbvio, mas escolhendo não se importar. Tinha ido ao parque de
Washington Square para se lembrar, e agora só queria beber, dormir
e esquecer.
Pagou um quarto, ignorou os olhos assombrados do homem
magro e de cabelo escuro no espelho da casa de banho enquanto
lavava a cara, e depois dirigiu-se ao bar do terraço. Pediu um
whisky e procurou um lugar para se sentar, mas a sala estava cheia
do tipo de pessoas que o faziam sentir-se deslocado — ricos, ou
que fingiam sê-lo, excessivamente confiantes e descuidadamente
insensíveis à sua riqueza —, por isso foi para o terraço. Sentou-se
num canto, debaixo de um guarda-sol, e bebeu a sua bebida. Havia
um céu aberto por cima dele e paredes altas de janelas a toda a
volta, os edifícios do centro da cidade que formavam um recinto de
betão. A neve continuava forte, com flocos grandes e macios que
tornavam o mundo branco e enevoado.
Drummond bebeu o seu whisky e levantou o copo num brinde
silencioso aos amigos que perdera havia pouco mais de uma
década. A Lily e à comida que ela lhe cozinhava sempre que vinha
de Hong Kong para o visitar. A Yasmin e à sua paciência com a sua
falta de conhecimentos históricos e as perguntas estúpidas com que
a incomodava. E a Wagner, com os seus telefonemas regulares da
Europa para saber como estava Drummond, certificando-se de que
ele falava com outro ser humano pelo menos uma vez por semana.
Drummond continuava a sentir a falta dos amigos e transportava
consigo as recordações deles como fantasmas, companheiros
constantes em todas as suas deambulações ao longo dos anos.
Estava a envelhecer e a ficar cansado e desconhecia quanto
tempo mais poderia continuar a vaguear, mas não sabia como parar,
e não tinha para onde ir. Andava em movimento havia dez anos,
servindo-se dos livros que tinha na sua posse para se proteger: o
Livro das Sombras, para passar despercebido; o Livro das
Memórias, para fazer com que as pessoas se esquecessem dele
quando ele disso precisava; e o Livro da Sorte, para lhe trazer bem-
aventurança. Os livros tinham-no ajudado durante dez anos, e ele
tinha existido sem ser perturbado pelos seus próprios pensamentos.
Não se importava com a solidão — tinha sido solitário durante a
maior parte da sua vida —, mas a necessidade constante de se
deslocar tornara-se cansativa. Mais do que tudo, sentia falta da sua
casa.
Porém, agora Hugo Barbary vira-o, e Drummond perguntava-se
como é que isso era possível quando ele trazia consigo o Livro da
Sorte. Parecia ser o oposto da sorte. Porém, Drummond sabia que a
sorte não era um caminho reto, tinha aprendido ao longo dos anos
que era uma estrada cheia de curvas, com desvios e saídas
escondidas. Talvez a sorte de ter sido visto por Barbary ainda não
fosse óbvia para ele.
Enquanto bebericava o seu whisky, Drummond dava conta de
quão agradavelmente desconcentrada sentia a sua mente. Voltou ao
bar para ir buscar mais um copo e depois regressou ao seu lugar no
terraço.
Pensou então em Barbary, um dos piores homens que alguma
vez conhecera, um monstro disfarçado de cavalheiro. Perguntou-se
se deveria ter deixado Hugo executá-lo. Teria sido poético, de certa
forma, morrer dez anos depois do massacre, no mesmo sítio. Talvez
tivesse sido um alívio, uma libertação do fardo da sua vida e do
medo da Mulher.
O som repentino de uma gargalhada perfurou o ruído branco da
tempestade, desviando-lhe a atenção dos pensamentos. Duas
mulheres atravessaram a porta do bar para o terraço, ambas com os
olhos semicerrados e trazendo as mãos levantadas para se
protegerem da neve. As mulheres olharam na direção dele e depois
viraram-se para encontrar outro lugar na extremidade do terraço,
longe de Drummond.
Ele desviou o olhar, mas o seu coração ficou subitamente
acelerado, como se um pesadelo o tivesse acordado a meio da
noite.
Ele tinha visto qualquer coisa, uma explosão de luz de fogo de
artifício na escuridão.
Disse a si próprio que era impossível. Logo naquela noite e logo
naquele lugar.
Mas ele tinha o Livro da Sorte na sua posse, e tais coisas
aconteciam a pessoas com sorte.
Esperou, sabendo que tinha de ter a certeza antes de fazer fosse
o que fosse. Viu as mulheres a dançarem embriagadas na neve e,
depois, a regressarem ao seu lugar e a conversarem entre si
durante alguns minutos. Em seguida, voltaram a levantar-se e
dirigiram-se para a porta do bar.
Ele observou-as, estudou-as, memorizou-as. Uma mulher alta e
loura, uma mulher mais baixa e de cabelo escuro. Ele olhou-as nos
olhos, uma e de seguida a outra, e depois voltou-se para o lado,
como se não estivesse interessado nelas.
Quando elas atravessaram a porta do bar, viu, por um breve
instante, a luz do arco-íris refletida nos seus rostos, cores que ele
conhecia tão bem. E quando esticou o pescoço para ver melhor,
Drummond não viu as mulheres aparecerem do outro lado do vidro.
— Merda — murmurou, sabendo então que as mulheres tinham
na sua posse o Livro das Portas, por mais impossível que isso
parecesse. — O Livro das Portas — murmurou Drummond. Um livro
que a sua família e outros caçadores de livros procuravam havia
mais de um século. Um livro que muitas pessoas duvidavam que
existisse. Imaginem só a sorte dele por ter esbarrado nele.
Ele tinha de encontrar aquelas duas mulheres.
Corriam um perigo enorme, um perigo inconcebível.
A ILUSÃO NO DESERTO

N uma casa luxuosa entre o oceano e o deserto, Hjaelmer Lund


olhava para a escuridão da sua janela. Não havia nada para ver
agora que a noite tinha caído, mas, na manhã anterior, quando
tinham chegado, as janelas do chão ao teto haviam proporcionado
uma vista deslumbrante sobre o oceano Pacífico. Agora, tudo o que
Lund conseguia ver era o seu próprio reflexo no vidro.
A casa era um edifício moderno e grandioso de um só piso, com
quartos grandes e corredores largos, muito arenito e mármore e a
sensação minimalista de um hotel dispendioso. Situava-se numa
falésia a norte de Antofagasta, numa estrada privada que emanava
da Route 1, entre o oceano Pacífico e o deserto de Atacama. A casa
tinha sido construída de forma que ficasse virada de costas para a
cidade, com uma vista que levaria qualquer um a achar que estava
sozinho no mundo.
— Senta-te, Lund — murmurou Azaki, atrás dele, do sofá no
centro da sala. — Ninguém quer entrar numa sala e ver-te aí de pé.
Lund era um gigante, desse por onde desse — com dois metros
e três de altura, tão grande que era impossível passar despercebido
e intimidante sem qualquer intenção de o ser. Percebeu o que Azaki
estava a dizer e afastou-se da janela para se sentar no sofá.
— Aí vêm eles — disse Azaki, ajeitando a gravata. — Deixa-me
ser eu a falar.
Lund arqueou uma sobrancelha, como se dissesse: Quando é
que não o faço?
As portas do corredor abriram-se e a Sra. Pacheo apareceu na
sua cadeira de rodas, com Elena atrás a empurrar a cadeira para a
sala. A idosa, frágil e enrugada, mas com olhos cheios de vida,
iluminou-se ao ver Azaki. A Sra. Pacheo sofria de esclerose múltipla
havia muito tempo e não falava quase nada de inglês. Elena, além
de ser a sua assistente, era a sua intérprete. Depois de Elena ter
estacionado a idosa, sentou-se na ponta do sofá e começou a
traduzir enquanto a Sra. Pacheo falava.
— Sr. Ko, Sr. Jones — disse ela, usando os nomes falsos que
Azaki tinha fornecido. — A Sra. Pacheo quer saber como correu a
vossa demanda.
Azaki fez uma vénia educada, imitando os modos do japonês
académico que fingia ser. Azaki tinha ascendência japonesa, mas
nascera na Califórnia. Era um homem baixo e elegante, sempre
bem-apresentado, com cabelo preto e um rosto bonito e simétrico.
— Por favor, diga à Sra. Pacheo que estamos incrivelmente
gratos pela sua hospitalidade e pelo acesso à biblioteca privada da
sua família.
Elena traduziu enquanto Azaki falava. Lund olhou para a Sra.
Pacheo e viu-a ficar cada vez mais atenta à medida que a
mensagem era transmitida.
— Por favor, diga à Sra. Pacheo — continuou Azaki — que
temos muita pena de informar que não encontrámos livros de
particular interesse académico ou significado histórico.
Ambos tinham passado dois dias a procurar meticulosamente
livros especiais na biblioteca Pacheo, mas não tinham encontrado
nada. Lund olhou de novo para a velhota e viu a desilusão
estampada no seu rosto.
— Peço desculpa pelo incómodo que causámos — disse Azaki.
— Eu sei que a Sra. Pacheo queria muito que a biblioteca da sua
família pudesse ter algum interesse.
Azaki tinha descoberto a biblioteca Pacheo um ou dois meses
antes, durante uma semana em Santiago, quando tinha ido beber
um copo com um académico local. Pesquisara a história da família,
descobrindo uma biblioteca que havia começado com livros trazidos
de Espanha havia um século ou mais, mas que tinha sido
aumentada ao longo dos anos pela família Pacheo, à medida que
enriqueciam com o seu negócio de transportes marítimos. Azaki
enviara uma carta, a afirmar que ele e Lund eram académicos em
viagem pela América do Sul à procura de livros com significado
histórico. Tinha sido o suficiente para os fazer passar pela porta e,
depois disso, o charme de Azaki conquistara a velhota o suficiente
para que ela lhes concedesse acesso à biblioteca.
«Ela está a morrer», explicara Azaki a Lund, a caminho da casa
no primeiro dia, embora Lund não tivesse perguntado. «Não tem
filhos e nunca casou. Ela quer um legado. É essa possibilidade que
lhe estou a oferecer.»
Naquele momento, a Sra. Pacheo aceitava a notícia com um
lento anuir de cabeça.
Depois de um momento de silêncio, dirigiu mais algumas
palavras a Elena.
— A Sra. Pacheo agradece o seu tempo — disse Elena. — Está
desapontada. Mas agradece o esforço que despenderam.
Azaki anuiu. Lund percebeu que ele queria ir-se embora agora.
Não havia ali livros especiais. Apenas tristeza e um fim de vida.
— Obrigado — agradeceu Azaki, anuindo novamente com a
cabeça.
A sala ficou então em silêncio, a Sra. Pacheo com os olhos fixos
no chão, Azaki de pé, educadamente, com as mãos cruzadas à
frente do corpo, como um criado à espera de instruções. Elena
observava a Sra. Pacheo e Lund observava-a a ela.
— Oh, Sra. Pacheo — disse Elena, levantando-se de repente.
A idosa estava a chorar, uma espécie de choro calmo e digno,
com lágrimas individuais a descerem pelas rugas do rosto.
— Mais uma vez, peço imensa desculpa — tentou Azaki.
Elena sorriu educadamente, mas Lund percebeu que, naquele
momento, Azaki a estava a irritar.
A Sra. Pacheo sorriu por entre as lágrimas e disse algumas
palavras que não precisavam de tradução.
— Não há por que pedir desculpa — disse Azaki, baixando
ligeiramente os olhos.
Enquanto Elena cuidava da velhota, Azaki fez questão de
desviar o olhar, voltando a perscrutar a sala de estar. Tinham
passado apenas alguns minutos naquela divisão no dia anterior,
antes de serem conduzidos para a biblioteca na ala leste da casa.
Lund viu Azaki franzir o sobrolho para uma série de fotografias
grandes na parede do fundo, imagens a preto-e-branco de um
edifício que Lund não reconheceu. Parecia quase um edifício de um
filme de fantasia, com torres e janelas em arco.
— Aquela construção é a Sagrada Família — disse Azaki,
apontando. — Em Barcelona.
Elena levantou os olhos.
— Sim, é — disse ela.
Azaki aproximou-se da parede e estudou as fotografias.
— Tantas fotografias do mesmo edifício — comentou ele.
Elena entregou um lenço de papel à Sra. Pacheo, e a idosa
limpou debilmente as suas próprias faces enquanto observava
Azaki.
Elena esboçou um sorriso triste.
— A Sra. Pacheo sempre quis ir a Espanha, um dia — explicou
ela. — Regressar ao país de origem da família. O pai falava-lhe
muito da Sagrada Família e ela queria muito vê-la. Infelizmente,
devido à doença e à idade, agora isso já não é possível.
Azaki estudou as fotografias em silêncio por breves instantes.
— Eu vi-a — acabou por dizer. — Estive em Barcelona, vi a
Sagrada Família.
Elena sorriu educadamente, como se dissesse: Bom para si,
agora importa-se de se ir embora, por favor?
Azaki olhou para a Sra. Pacheo na sua cadeira de rodas por
momentos. Lund conseguia vê-lo a debater-se com uma decisão, a
sua generosidade a lutar contra os seus medos.
— Elena, sinto-me mal por ter desiludido a Sra. Pacheo. Sei que
ela está muito doente. Se servisse para a compensar pela
desilusão, gostaria de lhe oferecer um presente.
As sobrancelhas de Elena ergueram-se de surpresa.
— Gostaria de dar à Sra. Pacheo a oportunidade de visitar a
Sagrada Família.

Saíram da casa em grupo, com a Sra. Pacheo à frente, empurrada


por Elena, e Azaki e Lund atrás, seguindo um caminho de lajes que
se afastava da propriedade em direção à paisagem árida e arenosa
ao longo da costa. O oceano Pacífico rugia na escuridão à esquerda
do grupo, carregando o ar de sal e salpicos.
— Pode ser aqui — disse Azaki.
Uma vasta planície de areia castanho-alaranjada estendia-se na
escuridão, e a única luz vinha dos holofotes que rodeavam a casa
da Sra. Pacheo, a pouca distância atrás deles. Azaki abaixou a
cabeça por breves instantes, com uma mão enfiada no bolso para
segurar no Livro da Ilusão. Fechou, então, os olhos, e Lund sabia
que ele iria imaginar aquilo que quisesse conjurar, pintando com a
sua mente. Ele sabia que se Azaki tivesse tirado o livro do bolso,
uma dança de luzes teria iluminado a noite — o Livro da Ilusão
rodeado por uma névoa de cores suaves enquanto ele trabalhava. A
Sra. Pacheo e Elena olhavam para Azaki com um ar interrogativo,
mas Lund voltou os olhos para a planície árida, com o som do
oceano nos ouvidos.
Passados uns momentos, houve movimento, um remoinho de pó
e areia na escuridão. E depois o movimento tornou-se mais nítido, e
o remoinho tornou-se sólido, e essa solidez espalhou-se. O nada
transformou-se em qualquer coisa e um grande edifício com torres
em forma de fuso que se estendiam bem acima deles emergiu
subitamente da escuridão. O efeito foi o de um enorme edifício que
acelerou em direção a eles e depois se deteve subitamente com um
estremecimento, quase à distância de um toque.
A Sra. Pacheo guinchou e levou as mãos à cara. Elena recuou
num movimento brusco, afastando-se da ilusão do enorme edifício.
Azaki mantinha os olhos fechados e, conforme o fazia, a superfície
da catedral tornava-se mais detalhada, como se um escultor
estivesse a retirar com um cinzel o material indesejado de uma
obra-prima.
— A Sagrada Família — anunciou ele.
Elena ficou boquiaberta e deu alguns passos para o lado, para
confirmar que aquele edifício tinha três dimensões, que não era
apenas uma imagem.
Lund viu que Azaki estava a transpirar ligeiramente, como se
aquela ilusão representasse um esforço físico.
— Talvez um pouco de luz? — sugeriu Azaki.
Logo em seguida, fitas de cor encheram o ar por cima do objeto
conjurado, como a aurora boreal, mas em muitas tonalidades
diferentes, que ondulavam e se misturavam. Eram cores como estas
que Lund tinha visto a sair do livro sempre que Azaki o usava.
Elena disse qualquer coisa numa língua que Lund não percebeu
e depois olhou para a idosa. A Sra. Pacheo estava a fazer força
para se levantar, com os olhos vivos e brilhantes, e as luzes do céu
a pintarem-lhe o rosto de cores. Esticou o braço na direção de
Elena, a agitar a mão com urgência, e Elena correu para ela e
amparou o seu corpo fraco.
Juntas, as duas mulheres dirigiram-se aos tropeções para a
porta da igreja.
Azaki manteve a mão no bolso enquanto as mulheres
exploravam a ilusão que ele estava a sustentar.
Lund manteve-se de pé ao lado dele, a observar e a aguardar.

Pouco depois, no carro de regresso a Antofagasta, Azaki olhava


para a escuridão através da janela do lado do passageiro.
— Achas que foi estúpido? — perguntou ele, mesmo sabendo
que Lund não ia responder. — Estou tão farto de enganar as
pessoas. De lhes dar esperanças e sonhos. Não seria assim tão
mau se encontrássemos alguma coisa; nessa altura, pelo menos,
valeria a pena.
Lund não achava que Azaki tivesse sido estúpido, mas não disse
nada nesse sentido. Limitou-se a conduzir. Era esse o seu trabalho.
Conduzir, proteger, esperar para ver o que acontecia e depois fazer
o que lhe fosse pedido. Era essa a sua vida com Azaki: viajar pelo
mundo, ficar em bons hotéis e esperar para ver o que Azaki queria
fazer. Era assim há quase nove meses, desde que Lund salvara
Azaki de um grupo de bêbedos num bar em São Francisco. Lund
trabalhava como segurança e ocasionalmente como barman,
apenas os derradeiros de uma série de empregos que tinha tido nos
últimos quinze anos, à medida que se deslocava num longo e lento
arco pelo sul dos Estados Unidos. Tinha sido operário, escavador de
piscinas, jardineiro, segurança de bares com frequência, foi guarda-
costas uma vez e barman mais vezes do que se conseguia lembrar.
Eram trabalhos simples, nada desafiantes, trabalhos que eram
fáceis para alguém do seu tamanho, constituição e porte. Durante
toda a sua vida adulta, desde que deixara a pequena cidade no
nordeste do Canadá onde crescera, apenas permanecera num lugar
o tempo suficiente até se aborrecer e ficar irrequieto, e depois
voltava a pôr-se em marcha. Nunca quis muito mais do que comida
e uma cama, e sentia-se feliz com a sua existência simples.
Até que, num bar em São Francisco, um Azaki embriagado
ganhou um jogo de póquer, limpando três homens que não tinham
planeado ficar sem dinheiro, muito menos perdê-lo para um
«japonês baixo e bêbedo». Lund assistira à troca de palavras, que
passara de uma brincadeira amigável para infelicidade e depois
para violência descarada, e então interviera no preciso instante
antes de Azaki estar prestes a ser espancado até cair. Lund fizera
frente aos homens e eles não tinham gostado, por isso foi ele que
acabou por lhes bater até caírem. Quando acabou com os homens,
Azaki perguntou-lhe se ele queria um emprego.
«Acabei de perder o meu guarda-costas», dissera ele. Depois
soltara uma gargalhada. «Foi mesmo a altura certa para me
envolver numa luta num bar, eu sei. Pago-te bem. Só precisas de
viajar comigo e ser o meu guarda-costas.»
Lund decidira acompanhar o homem, em parte porque estava
aborrecido com São Francisco, mas sobretudo porque, quando
estava a assistir ao jogo de cartas, tinha visto Azaki olhar para as
suas cartas e depois mudá-las para uma mão melhor: copas
mudaram para espadas, cartas com números mudaram para cartas
com figuras. Perplexo, Lund começara a interessar-se pelo homem.
Andavam a viajar juntos havia quase dois meses, subindo a
costa ocidental desde São Francisco, atravessando depois para
Chicago e voltando a sul, seguindo o Mississípi. Azaki era uma
companhia fácil. Não exigia muito e só falava de vez em quando.
Passado algum tempo, começou a contar a sua vida a Lund. Era um
nipo-americano de terceira geração e uma desilusão para a sua
família.
«Queriam que eu fosse heterossexual, casado e que me tivesse
tornado médico ou engenheiro. Que cliché, não é? Acontece que
lhes calhou um gay, solteiro e artista. Sempre quis fazer algo
criativo, tal como o meu bisavô.»
O bisavô de Azaki fora um famoso mágico de cartas em meados
do século XX. Azaki tinha pesquisado tudo sobre ele na sua
juventude, e chegara a aprender magia, bem como arte e música,
enquanto fingia estudar Medicina na faculdade. Foi durante a sua
pesquisa sobre livros raros de magia que encontrou o Livro da
Ilusão. Lund sabia disso porque Azaki tinha finalmente revelado a
verdade sobre o livro durante uma noite de bebedeira prolongada
em Memphis. Azaki revelava mais quando passava dos limites.
«É isto», dissera ele a Lund, mostrando-lhe o pequeno livro
preto. Estava coberto de finos padrões dourados, como o verso das
cartas de um baralho dispendioso. «Isto é tudo o que eu sou»,
acrescentara, sonolento. «É um livro mágico, meu amigo Hjaelmer
Lund. E há muitos livros mágicos por aí. Eu sei. Já os vi. Tive
amigos que os tinham, tal como eu.»
Azaki parecera triste por alguns instantes, mas depois o seu
rosto iluminara-se. Entregou o livro a Lund e disse-lhe para o ver.
Lund folheou as páginas e viu que estavam cheias de rabiscos de
linhas, esboços de pessoas, lugares e objetos.
«Desenhos», dissera Lund.
E Azaki anuiu com a cabeça.
«São as ilusões que o livro cria. Quando faço aparecer alguma
coisa, consigo encontrar um desenho dessa coisa no livro. Deixa-me
mostrar-te o que ele pode fazer! Só tenho de segurar no livro e
imaginar o que quero ver. Consigo fazer-te ver o que eu quiser.»
Enquanto Lund observava, Azaki agarrara no livro. E depois
houve luzes, uma névoa de cores brilhantes que dançavam e
rodopiavam em torno das margens do livro. Lund sentira a boca a
abrir-se, o primeiro momento da sua vida em que sentira
estupefação genuína.
«Olha», dissera Azaki, acenando com a cabeça para o prato
vazio de Lund, que agora estava novamente cheio de comida.
Lund estendera a mão para tocar na comida. Parecia ser real.
Tinha aspeto de ser real.
«Consigo cheirá-la!», dissera ele.
«É tudo ilusão», esclarecera Azaki, e Lund vira que ele estava a
sorrir com orgulho.
Depois, Azaki relaxara visivelmente, pousando o livro na mesa, a
névoa de luzes desaparecera como se alguém tivesse acionado um
interruptor, e o prato de Lund ficara novamente vazio.
«E olha para isto», prosseguira Azaki, enquanto abria o livro. Ele
folheara as páginas até encontrar aquilo que procurava. Depois
virara o livro de costas para si e mostrara-o a Lund: um desenho
tosco e rabiscado do prato de comida que ele tinha acabado de ver,
tocar e cheirar.
«É inacreditável como o caraças, não é?», perguntara Azaki.
Lund tinha simplesmente anuído, porque era exatamente isso:
inacreditável como o caraças.
Não sabia porque é que Azaki lhe tinha contado o seu segredo,
mas supunha que Azaki achasse que Lund era, de alguma forma,
simplório. Não era invulgar. As pessoas viam o tamanho de Lund e,
se passassem algum tempo com ele, reparavam que ele não falava
muito e, por isso, presumiam que era estúpido. Lund não se
importava de ser subestimado e, por muito que gostasse de Azaki e
da sua companhia fácil, não tinha planos para dissuadir o homem da
noção de que era um pouco lerdo.

Quando regressaram ao hotel à beira do porto de Antofagasta,


Azaki disse que ia ao bar, sozinho. Lund percebeu a mensagem e
foi diretamente para a suite do último andar. Tirou uma cerveja do
minibar e ficou à janela durante algum tempo. Lund conseguia ver o
porto, e gostava da vista. Gostava de ver a atividade, as pessoas a
trabalhar.
Lund bebeu a cerveja e pensou em Azaki. Por detrás de tudo
aquilo, ele era um homem compassivo, um coração mole. Lund não
o entendia como uma falha; era uma grande parte do que o tinha
feito viajar com ele durante tanto tempo.
Azaki regressou à suite mais cedo do que Lund esperara, pouco
mais de uma hora depois. Pegou numa cerveja do minibar e juntou-
se a Lund nos sofás.
— Acho que vamos voltar para os Estados Unidos — disse
Azaki. — Sinto que devíamos ir para Nova Iorque.
Lund olhou para ele. Azaki tinha um olhar distante. Às vezes,
ficava assim quando estava triste, ou a beber, ou triste e a beber.
— OK — retorquiu Lund. Ele não se importava. Só tinha estado
em Nova Iorque uma vez, quando era muito mais novo. Agradava-
lhe a ideia de lá voltar.
Depois de umas quantas cervejas, e enquanto estavam os dois
deitados nos sofás em cantos diferentes da sala, Lund pediu:
— Faz aquilo.
Azaki suspirou teatralmente, mas Lund sabia que ele gostava de
exibir as suas capacidades.
— OK — acedeu Azaki. Tirou o Livro da Ilusão e segurou-o na
mão, fechando os olhos por momentos. O livro reluziu com várias
cores, e depois cores semelhantes iluminaram toda a sala, com uma
cascata de faíscas de arco-íris a cair do teto sobre eles. Lund
recostou-se no sofá e apreciou a ilusão, sentindo-se a adormecer.
— Aproveita — aconselhou Azaki —, pois amanhã começa uma
nova aventura.
Lund levantou a garrafa para retribuir e voltou a contemplar as
luzes.
Ele não imaginava que fossem encontrar alguma coisa no dia
seguinte. Não tinham encontrado nada nos nove meses em que
andara a viajar com Azaki, mas estava feliz por poder participar nas
viagens, feliz por aprender tudo sobre o mundo oculto dos livros
mágicos.
O APARTAMENTO
DO SR. WEBBER E AS
INVESTIGAÇÕES DE IZZY

N a manhã seguinte, depois de uma noite mal dormida e muito


agitada, Cassie foi em busca de respostas e levou o Livro das
Portas consigo.
A sua primeira paragem foi no prédio do Sr. Webber, que ficava
na East 94th Street, um edifício de tijolo vermelho de quatro andares
com uma escada de incêndio preta que ziguezagueava pela fachada
e que estava coberta por uma espessa camada de neve. A porta do
prédio estava trancada — Cassie tentou abri-la, mas a porta
chocalhou, mantendo-se irredutível. Ela pensou um bocadinho, e
depois levou a mão ao Livro das Portas que tinha no bolso,
imaginando-se a abrir a porta e entrar diretamente no corredor, mas
quando pegou no puxador, a porta permaneceu teimosamente
fechada.
— O que se passa? — perguntou-se ela, as palavras como um
sopro tossido num turbilhão para o ar.
Olhou em redor, certificando-se de que continuava sozinha na
rua, e tirou o livro do bolso. Tentou novamente, confirmando que o
Livro das Portas estava rodeado pela sua névoa de luz arco-íris
enquanto puxava o puxador, mas a porta do prédio do Sr. Webber
continuava sem se mexer.
— Porque é que não funciona?
Manteve-se imóvel durante algum tempo, a ponderar no mistério.
As viagens que fizera na noite anterior tinham todas começado em
portas que estavam destrancadas — a porta do seu apartamento, a
porta do terraço do hotel. A única diferença que lhe ocorria era que
a porta do prédio do Sr. Webber estava trancada — ela não
conseguia passar por esta porta sem usar o Livro das Portas,
portanto porque é que havia de conseguir passar por ela usando o
livro?
— Não consegue abrir portas trancadas — disse a si própria. O
Livro das Portas conseguia transformar uma porta noutra porta, mas
só se a primeira já estivesse destrancada. — Hum — murmurou ela,
à medida que a conclusão se instalava e solidificava. Fazia sentido.
Ela só podia passar por uma porta trancada se viajasse a partir de
uma porta destrancada. Precisava de testar essa hipótese.
Cassie retrocedeu os seus passos até à Second Avenue,
percorrendo com o olhar toda a extensão da rua, de uma ponta até
à outra, assobiando alegremente para si mesma. Encontrou um
Citibank, estando o edifício que o banco ocupava coberto por
andaimes que davam cobertura à entrada. O próprio Citibank era
apenas uma sala quadrada com cinco multibancos e sem
funcionários.
— Perfeito — murmurou ela.
Estendeu a mão para a porta, mantendo a outra mão no bolso a
agarrar no Livro das Portas. Lembrou-se da porta que tinha acabado
de experimentar no edifício do Sr. Webber, da sensação que
provocara na mão. Lembrou-se do metal frio, do chocalhar da
maçaneta. Recordou — sentiu — tudo isto enquanto se dava conta
de que o livro estava a mudar dentro do bolso, a ficar encorpado.
Olhou para baixo e espreitou para dentro do bolso, vendo luzes
cintilantes como um fogo de artifício numa gruta, e sorriu para si
própria enquanto abria a porta do Citibank e entrava não no banco,
mas no corredor do edifício do Sr. Webber, um quarteirão a sul e ao
virar da esquina. O mundo ficou subitamente silencioso, e o cheiro a
calor e madeira penetrou no nariz de Cassie.
— Fixe — murmurou, enquanto a porta batia atrás de si,
mantendo a Second Avenue do lado de fora. Sentiu-se inundada
pelo alívio e percebeu que tinha ficado preocupada com a porta
trancada na rua, preocupada por pensar que a magia tinha deixado
de funcionar.
Cassie tirou o Livro das Portas do bolso e folheou as páginas até
chegar ao desenho de uma porta. Onde antes havia um prado
florido, e depois uma rua em Veneza, a imagem mostrava agora o
corredor onde Cassie se encontrava. Deu por si a olhar para aquele
desenho, e depois levantou os olhos para o comparar com o que a
rodeava.
— Inacreditável — murmurou, a sorrir.
Subiu a correr as escadas até ao último andar. A porta do
apartamento do Sr. Webber, a única porta do último andar do prédio,
estava trancada. Bateu energicamente à porta e o som fez ricochete
nas paredes e no chão de tijoleira como uma bola de borracha.
Esperou, mas não estava ninguém em casa.
Cassie refletiu em como entrar no apartamento do Sr. Webber.
Agora que tinha visto a porta, agora que tinha a experiência de
sentir a porta que queria abrir, só precisava de uma porta
destrancada para passar por ela.
Compreendeu o que tinha de fazer. Olhou bem para a porta mais
uma vez, esticou a mão e agarrou no puxador, tal como tinha feito
com a porta da rua. E depois desceu as escadas e saiu para a rua,
contornou a esquina e voltou ao Citibank, ligeiramente irritada por
ter de refazer os seus passos, mas deliciando-se com o que
pareciam ser travessuras e artes mágicas, nas suas aventuras
secretas.
Passados alguns minutos, abriu a porta do Citibank pela
segunda vez e entrou num corredor escuro atrás da porta trancada
do Sr. Webber. Incapaz de se conter, olhou novamente para o
desenho no livro e viu que tinha mudado mais uma vez, mostrando
o interior sombrio da casa do Sr. Webber.
— É magia — disse ela, abanando lentamente a cabeça. Foi tão
emocionante como a primeira vez que ela tinha usado o livro no dia
anterior. Mais ainda, porque agora ela estava a testar o que ele
podia fazer; estava a explorar o impossível. A desenvolver uma
relação com o livro.
Percorreu o corredor e entrou num espaço aberto com duas
grandes janelas com vista para a rua. Feixes de luz matinal,
cinzenta e aguada, espalhavam-se pela divisão. As paredes
estavam forradas com estantes, todas preenchidas com livros e
muito organizadas. Havia uma poltrona junto à janela, com uma
banqueta em frente, e um sofá de dois lugares no meio da sala, de
frente para uma televisão pequena e quadrada em cima de um
móvel de madeira. A zona da cozinha ficava à sua direita. Todo o
espaço cheirava a madeira, couro, livros e café.
Cassie passou os olhos pelas estantes. Viu Dickens e Dumas,
Hardy e Hemingway, peças de teatro, teoria literária e partituras de
música. Havia também livros modernos, de fantasia, ficção científica
e terror, livros de bolso em cores vivas que enchiam toda uma
estante. Mas não havia nada parecido com o Livro das Portas, não
havia mais cadernos mágicos.
Encontrou um segundo corredor curto do outro lado da sala de
estar, com três portas ao longo da sua extensão. Ignorou a casa de
banho e olhou para o quarto sombrio à direita do corredor. Havia
uma cama de solteiro encostada à parede e um armário velho a um
canto. Uma pequena janela dava para um pátio atrás do edifício.
Dentro do armário, Cassie encontrou roupas, mas as roupas de uma
mulher mais jovem e não de um homem idoso. Perguntou-se se o
Sr. Webber teria tido uma namorada em tempos. Ou uma parente,
talvez. Havia ali livros, dispostos numa fila ordenada ao longo do
parapeito da janela. Livros de bolso, clássicos e livros modernos,
uma mistura eclética. Cassie ia assentindo enquanto passava o
dedo pelas lombadas, apreciando o gosto da pessoa que reunira
aquela coleção.
O quarto principal, ao fundo do corredor, era muito maior, com
uma grande cama de casal encostada à parede mais afastada, uma
única janela de tamanho semelhante às duas da sala de estar e um
armário embutido à esquerda, cheio de roupas e sapatos
cuidadosamente arrumados no chão. Eram as roupas do Sr.
Webber. Cassie reconheceu os cachecóis e os casacos, o cheiro
ténue dos produtos de higiene que ele usava. A tristeza voltou a
abater-se sobre ela pela perda daquele homem que mal conhecia,
mas afastou esse sentimento.
Fechou a porta do armário e dirigiu-se à janela, observando um
camião de entregas a passar pela rua coberta de neve, enquanto se
perguntava o que estava ela a fazer. Não havia nada de significativo
naquela casa.
Porque é que lá tinha ido?
O que é que ela esperava obter, na verdade? Ou tinha sido
apenas uma desculpa para brincar com o Livro das Portas?
Voltou para a sala de estar, o espaço confortável cheio de livros
e luz natural. Era um lugar tranquilo e alegre, pensou Cassie, um
lugar onde o Sr. Webber certamente teria sido feliz.
— Porque é que me deu o livro, Sr. Webber? — perguntou ela à
sala. — E onde é que o arranjou? Qual é o segredo por detrás dele?
Ela esperou, mas não havia ninguém para lhe responder.

— Como estás, querida? — perguntou a Sra. Kellner, quando


Cassie chegou ao trabalho. Ela tinha caminhado pelo ar frio da hora
do almoço desde o prédio do Sr. Webber, escorregando e
deslizando ocasionalmente na neve congelada onde as calçadas
não tinham sido limpas, e o seu rosto parecia seco e queimado pelo
vento frio.
— Bem — respondeu Cassie.
A Sra. Kellner anuiu em sinal de aprovação.
— Isso é bom, minha querida.
A Sra. Kellner tratava toda a gente por «querida»,
independentemente de serem velhos ou novos. Ela própria era uma
mulher de idade indeterminada e, aos olhos de Cassie, não tinha
envelhecido nos seis anos que haviam passado desde que Cassie a
conhecera. Era baixa, robusta e sempre bem-apresentada, e era o
tipo de mulher que encarava uma crise como se fosse apenas a pior
coisa que lhe tinha acontecido na meia hora anterior.
Cassie fora cliente da livraria antes de ser funcionária. Nos seus
primeiros meses na cidade, depois de regressar da Europa e
enquanto ainda dormia em hostels, Cassie percorreu as livrarias de
Nova Iorque. A Kellner Books era a sua preferida — era acessível,
ficava longe dos turistas e das pessoas ocupadas do centro da
cidade, e suficientemente grande para ter uma boa seleção de livros
sem ser tão grande a ponto de se tornar impessoal e desprovida de
alma. Tinha acabado por ir à livraria quase todos os dias da
semana, tornando-se conhecida dos funcionários e até
reorganizando os livros quando os encontrava no sítio errado nas
prateleiras. Depois de meses assim, a Sra. Kellner chamou Cassie à
parte e ofereceu-lhe um emprego.
«Já cá passas tanto tempo, mais vale seres paga.»
A verdade é que, como Cassie tinha descoberto algumas
semanas depois através de Izzy, o Sr. Kellner sofria de Alzheimer e
mostrava já sinais de uma rápida deterioração.
«Ele não vai poder fazer nada na loja daqui a pouco tempo»,
revelara-lhe Izzy, enquanto arrumavam o espaço ao fim de um dia.
«E a Sra. Kellner vai fazer menos coisas porque vai estar a tomar
conta dele. Por isso, ela precisa de mais ajuda. E tu tens um rosto
honesto.»
«Tal como todos os bons mentirosos», comentara Cassie, a
brincar.
De facto, a presença do Sr. Kellner foi desaparecendo
lentamente da loja. Era um homem tão alto e magro como a sua
mulher era baixa e sólida, com o cabelo desgrenhado e uma
maneira de ser simpática, mas Cassie mal começara a conhecê-lo
quando ele deixara de ir à loja. Nos últimos anos, a Sra. Kellner
pouco mencionava o marido e Cassie nunca se sentira à vontade
para lhe perguntar como é que ele estava.
— Vai beber um café — instruiu-a a Sra. Kellner. — Estás com
um ar cansado.
Era o seu tipo de gentileza habitual, oferecida como uma
repreensão ligeira.
Cassie arrumou as suas coisas nas traseiras da loja — o casaco
e a mala, com o Livro das Portas lá dentro — e depois parou no
balcão do café. A loja não estava muito movimentada, alguns
estudantes com os seus portáteis nas mesas do café, dois ou três
clientes habituais a deambular, por isso Cassie conversou com
Dionne durante alguns minutos enquanto o seu café arrefecia,
descrevendo o que tinha acontecido na noite anterior da forma mais
desapaixonada que lhe foi possível.
— Pobre Sr. Webber — disse Dionne, abanando a cabeça e
fazendo um estalido com a língua.
— Serviste-o ontem, não foi? — perguntou Cassie. — Antes de
acabares?
— É verdade — confirmou Dionne, apoiando-se no balcão.
— Reparaste…? — Cassie hesitou, mas não sabia bem porquê.
— Reparei em quê?
— Reparaste, por acaso, se ele trazia um livrinho castanho? Tipo
um caderninho?
Dionne riu-se.
— Querida, no fim do meu turno já é uma sorte se eu reparar se
estou a servir um homem ou uma mulher ou um raio de um
extraterrestre. Eu recebo o pedido e dou-lhes o café. Não reparo
nos livros que trazem na mão.
— Certo — disse Cassie.
— Estás bem, querida?
— Só estou cansada — respondeu Cassie, erguendo o café. —
Preciso disto.
Cassie voltou a dirigir-se ao balcão da parte da frente da loja e
sentou-se no seu banco.
— Sra. Kellner? — perguntou ela, tentando parecer
despreocupada.
— Sim, querida?
— Conhecia o Sr. Webber?
— Como assim, se eu o conhecia? Conhecia-o. Ele vinha à
minha loja e comprava livros. É a isso que te referes?
As conversas com a Sra. Kellner eram muitas vezes assim. Ela
tinha de dizer à pessoa que era estúpida antes de lhe responder à
pergunta. Não havia malícia nisso; era apenas a forma como falava.
— Não, quero dizer, se sabia alguma coisa sobre ele?
— Sei que ele era velho e que não comia o suficiente. Um
homem daquela idade e assim tão magro, que até parecia que se ia
partir se caísse. Não estava certo.
— Ele sempre tinha vindo aqui? — perguntou Cassie.
— Mas que gramática horrível, minha querida, «sempre tinha
vindo aqui»?
Cassie lançou um olhar à mulher mais velha, um olhar que não
se atreveria a lançar-lhe alguns anos antes. A Sra. Kellner suspirou
e desviou o olhar distraidamente.
— O Sr. Webber era um bom cliente — retomou ela, e Cassie
sabia que isso era um grande elogio. — Ele vinha a esta loja desde
que me lembro. Lembro-me dele quando não era tão magro.
Quando ainda trabalhava. Era um homem bonito, alto e forte. — A
velhota sorriu para si própria. — Estava sempre sozinho —
continuou, voltando a olhar para o computador. — Não me lembro
de alguma vez cá ter vindo com outra pessoa. Na verdade,
perguntei-me se ele seria gay, mas não se fala dessas coisas com
os clientes, pois não? Mas era um bom cliente. Já há poucos como
ele. — Deixou-se ficar em silêncio por alguns instantes, perdida nos
seus pensamentos, e depois acrescentou: — Houve aquela mulher
que uma vez… Ele uma vez foi para casa com uma rapariga,
demasiado jovem para ele. Acho que ela era sem-abrigo ou algo
assim. Talvez ele estivesse a tentar ajudá-la.
Cassie esperou por mais.
— Ou talvez isso tenha acontecido com outra pessoa — disse a
Sra. Kellner, abanando a cabeça. — Já ando nisto há tanto tempo
que faço confusão.
A Sra. Kellner voltou ao trabalho. Cassie também tentou
trabalhar, mas os seus pensamentos estavam constantemente a
regressar ao Livro das Portas, para as suas muitas páginas de
mistério. Ela queria sentar-se com ele e debruçar-se sobre os
pormenores.

Izzy apareceu na livraria ao fim da tarde, entrando ruidosamente


pela porta e espalhando pelo chão a neve que se desprendia das
botas. O seu cabelo estava molhado pelo ar frio e as suas faces
estavam quase comicamente vermelhas.
— Minha querida Izzy — disse a Sra. Kellner, abraçando-a junto
ao balcão, enquanto Cassie olhava. — Pareces uma boneca; olha
para estas bochechas rosadas.
— Pareço congelada, isso sim! — murmurou Izzy.
A Sra. Kellner segurou Izzy com os braços esticados, passando
os olhos por ela como se fosse uma neta que não via há anos.
— Quando é que vais deixar de vender aquelas bugigangas
caras, hã? Volta para cá e vende coisas que fazem do mundo um
lugar melhor.
— Desculpe, Sra. K., mas o pessoal das bugigangas caras paga
melhor. Se quiser igualar o que eles me pagam, eu volto já para
aqui.
— Ah, o dinheiro. Os jovens só querem saber de dinheiro. Há
mais na vida do que o dinheiro, minha querida. — A Sra. Kellner
pegou numa pilha de livros e afastou-se em direção à sala das
traseiras.
— Isso é fácil de dizer quando se vive num apartamento de
vários milhões de dólares no Upper East Side! — murmurou Izzy
para Cassie, inclinando-se sobre o balcão.
— Ela só está com saudades tuas — disse Cassie. — O que é
que estás a fazer aqui? Pensava que estavas a trabalhar hoje.
— Saí agora mesmo. Sabes que horas são? Não importa. Tenho
de falar contigo.
— Sobre o quê?
— Sobre o… — Izzy olhou em redor e baixou a voz. — O livro do
teletransporte.
Cassie quase sorriu.
— Aqui não — disse ela. Uma mulher aproximou-se do balcão,
empurrando uma criança num carrinho de bebé. A criança segurava
um grande livro ilustrado à sua frente como se fosse um volante. —
Dá-me dez minutos e depois faço uma pausa mais cedo. Podemos
ir dar uma volta e conversar.

Caminharam de braços dados, amparando-se uma à outra para se


aquecerem e se equilibrarem. Cassie levava a mala pendurada ao
ombro, com o Livro das Portas lá dentro. A rua estava cheia de
barulho e de fumos de escape, e de pessoas agasalhadas, com a
respiração a ondular no ar. O sol parecia ter sido engolido por
pesadas nuvens cinzentas que ameaçavam mais neve.
Caminharam em silêncio durante alguns minutos, e Cassie deu por
si a pensar nas muitas outras vezes em que ela e Izzy tinham
caminhado de braço dado daquela forma — para o trabalho e de
regresso a casa, nos primeiros tempos da sua amizade; para
jantares com amigos; em noites em que Izzy andava à procura de
parceiro e Cassie estava desesperada por chegar a casa e ao livro
que andava a devorar. Era a história que partilhavam, e Cassie
sentia que se conheciam desde sempre, como se fossem irmãs.
— De que é que querias falar? — perguntou ela.
Izzy anuiu com a cabeça, olhando para a frente ao longo do
desfiladeiro urbano.
— Não consegui dormir ontem à noite — disse ela. — Quero
dizer, provavelmente dormi, quando voltei para o meu quarto. Umas
duas horas, talvez.
— Sim.
— Mas foi aquele tipo de sono como quando temos de nos
levantar cedo para alguma coisa. Acordamos sempre e… — Izzy
abanou a cabeça. — Fiquei a ver o vídeo que fizemos, sabes, da…?
— Sim — disse Cassie, novamente. Esperaram numa
passadeira que o semáforo ficasse verde e depois atravessaram a
rua com a multidão, dois grupos de peões que se juntaram como
exércitos que se enfrentam numa batalha, antes de se separarem
novamente e seguirem em direções opostas.
— Quando cheguei ao trabalho, não conseguia parar de pensar
no assunto e passei o dia a pesquisar no Google.
— Dia agitado na Bloomingdale’s, então… — observou Cassie.
— O que pesquisaste no Google?
Izzy revirou os olhos.
— O tempo no Minnesota! O que é que achas, Cassie? O teu
livro de teletransporte. Pesquisei isso no Google.
Cassie mordeu o lábio, desconfortável com a ideia de Izzy ter
feito alguma coisa em relação ao livro sem falar com ela.
— O que é que descobriste?
— Nada. Estive a navegar na Internet como uma estudante de
doutoramento durante horas. Entrei em todos os sites e todos os
fóruns de discussão. Todos os vlogues e blogues e sabe Deus o que
mais. E não encontrei nada. Nenhuma referência a livros de
teletransporte ou ao Livro das Portas ou algo do género. Nada.
— Hum — disse Cassie, surpreendida pela sua própria
desilusão. — Porque é que estás aqui, então, se não encontraste
nada?
Izzy lançou-lhe um olhar incrédulo.
— Não percebes? A Internet não sabe nada sobre o teu livro.
— Sim, foi o que tu disseste.
— Cassie — disse Izzy, falando-lhe como se ela fosse estúpida.
— O Google sabe tudo. Tudo. Aposto que conseguia encontrar o
tamanho do teu sapato e as declarações de impostos da Sra. K. E
este livro… não é uma coisa normal, pois não? É o tipo de coisa que
as pessoas conheceriam. Então, porque é que não há lá nada?
Cassie pensou na pergunta. Algo pesado instalou-se no seu
estômago, uma sensação de que não gostou. Recusou-a, ignorou-a.
— Oh, vá lá, Iz — respingou ela. — Estás preocupada porque
não encontraste nada. Se tivesses encontrado alguma coisa,
também ias ficar preocupada.
— É como se alguém estivesse a vigiar, a apagar todas as
referências a coisas como esta — continuou Izzy, com a voz baixa e
apressada. — Não me agrada.
— Estás a complicar! — insistiu Cassie, forçando um riso que
não sentia.
— E tu estás a simplificar! — ripostou Izzy de modo brusco; e
Cassie olhou para ela com surpresa, percebendo, pela primeira, que
Izzy estava a falar a sério. — Eu sei que andas sempre a sonhar
acordada, como se nada importasse e nada te pudesse magoar,
mas isto está a arrepiar-me! Tens de ir à polícia, para que eles
investiguem esse Sr. Webber… — Cassie fez uma cara de culpada
que Izzy interpretou de imediato. — Cassie… — disse ela,
parecendo desiludida.
— Sou capaz de ter visitado a casa dele hoje de manhã…
— Cassie, alguém pode ter-te visto! E como é que entraste…
oh… — Izzy interrompeu-se, e Cassie anuiu com a cabeça em jeito
de confirmação. — Não sei se devias usá-lo assim. Pelo menos, até
saberes mais sobre ele. Pode ser perigoso.
— Não encontrei nada — disse Cassie, semicerrando os olhos,
enquanto virava o rosto para o vento. — Era apenas a casa de um
velho. Eu não me pus a vasculhar as gavetas dele nem nada, mas
fiquei com a ideia de que não havia lá nada.
Izzy abanou a cabeça, olhando para os pés enquanto
caminhavam, obviamente infeliz.
— Anda, é melhor eu voltar — disse Cassie.
Chegaram ao fim de um quarteirão e começaram a voltar para
trás. Quando deram meia-volta, algo chamou a atenção de Cassie;
uma figura, um rosto familiar. Do outro lado da rua, um homem
observava-as — um homem de cabelo escuro com um rosto magro,
envergando um fato escuro — e Cassie percebeu que já o tinha
visto antes. Era o homem da noite anterior, o homem sentado no
terraço do Library Hotel. Ela cruzou o olhar com ele enquanto
caminhava, esticando a cabeça para continuar a olhá-lo nos olhos.
— O que foi? — perguntou Izzy.
— Nada — mentiu Cassie, sorrindo para a amiga. — Não é
nada.
Ela olhou para trás e o homem já não se via através do trânsito.
— Demorámos mais tempo do que eu pensava — arguiu Cassie,
subitamente inquieta, mas sem saber porquê. — Vou usar o Livro
para voltar.
O rosto de Izzy enrugou-se de infelicidade.
— Cassie…
— Por favor, Izzy, confia em mim.
Qualquer coisa no tom da voz de Cassie fez Izzy parar os
protestos. Viraram na rua seguinte e encontraram um grande deli.
Momentos depois, estavam a entrar na Kellner Books, longe da
Second Avenue e longe do homem que as tinha estado a observar.
PESSOAS COM LIVROS

E m Nova Orleães, na sua casa no French Quarter, Lottie Moore,


mais conhecida como a Livreira, recebeu uma mensagem que
há muito esperava, com informações sobre o Livro das Portas.
Leu o e-mail com atenção, sentindo o pulso acelerar, e depois
leu-o novamente para se certificar de que retivera os pormenores na
memória. Levantou-se da secretária e dirigiu-se à varanda. Apoiou-
se no corrimão de metal à sombra do cipreste que ficava em frente à
sua casa e ficou a olhar para a Orleans Street, em direção ao
pináculo da Catedral de St. Louis, ao longe. Estava um dia quente
para aquela altura do ano, mas não demasiado húmido. A brisa
agradava-lhe e ela deixou-se ser varrida por ela enquanto pensava
na questão durante algum tempo. Depois, puxou do telemóvel para
ligar ao caçador de livros Azaki. Tinha tido muito tempo para pensar
sobre a quem havia de pedir ajuda, e Azaki fora o escolhido.
— Senhora Livreira — cumprimentou Azaki, quando atendeu.
— Obrigada por atender a minha chamada — disse Lottie. Ela
sabia que Azaki não era dos seus maiores fãs. A única vez que
tinham tido contacto fora vários anos antes, quando Azaki lhe
vendera um livro. Ele fizera-o por necessidade, para sobreviver, e
não por não se importar que um livro especial fosse vendido no
mercado livre.
— O que é que quer?
— Preciso da sua ajuda — disse ela. — Por onde anda?
Azaki não respondeu de imediato.
— Digamos que pela América do Sul.
— Compreendo a sua cautela, mas esta conversa é estritamente
confidencial.
— América do Sul — repetiu Azaki. Era um homem cauteloso.
Lottie não o censurava.
— Vou ser sincera consigo, Sr. Azaki — disse ela. — Preciso de
alguém de confiança, alguém cuidadoso.
— Para quê?
— Tenho informações sobre um livro especial que surgiu em
Nova Iorque.
— Sou todo ouvidos — disse Azaki, a sua voz brevemente
obscurecida pelo som do trânsito e do ruído da rua.
— Não posso revelar como sei aquilo que lhe vou dizer, mas
creio que o Livro das Portas veio à tona.
— O Livro das Portas — disse Azaki. — Tem a certeza?
— Tenho.
Azaki ficou em silêncio por alguns instantes.
— Interessante.
— Preciso de alguém de confiança para o ir buscar.
— Para lho levar, para o vender? — perguntou Azaki.
— Claro — respondeu Lottie. — Imagine os lucros. Mesmo
depois da minha parte, teria o suficiente para fugir e esconder-se
para o resto da vida. É isso que pretende, não é?
Azaki não respondeu. Ele estava assustado e a passar
necessidades. Era com isso que ela contava.
— Se esse livro cair nas mãos erradas…
Ela sabia o que ele queria dizer. A quem é que ele se referia.
Mas Lottie não disse nada.
— Conte-me o que sabe — acabou ele por dizer.
Lottie contou-lhe os pormenores.
— Estou a pedir-lhe ajuda, por isso pago o seu voo para Nova
Iorque, se me disser de que aeroporto é que vai partir.
— Não é preciso — disse Azaki. — Eu consigo pagar dois
bilhetes.
— Dois?
— Eu e o meu guarda-costas — explicou. — Tenho um tipo
novo. Um tipo grande. Muito bom com as mãos. Mais alguém sabe
disto?
— Provavelmente. Mas mesmo que ainda não saibam, em breve
hão de saber. Vai ser uma competição desenfreada.
— Sim — concordou Azaki.
— Quero que me faça outra coisa — disse Lottie. — Algo um
pouco mais invulgar. E foi por isso que o escolhi a si. Uma das
mulheres que tem o livro chama-se Isabella Cattaneo.
— O que é que ela tem?
— Se ela estiver sozinha quando a encontrar, quero que ma
traga.
— O quê?
— Quero que a traga até mim.
— Porquê?
— Tenho de a proteger.
— Protegê-la de quê?
— Isso não é da sua conta. Faz-me isso? Recupera o livro e
traz-me a mulher?
Azaki refletiu no pedido durante algum tempo, enquanto Lottie
ouvia apenas o vento e o trânsito.
— Deixe-me chegar a Nova Iorque — disse ele, por fim. —
Entrarei em contacto quando lá chegar.
Ele desligou.
Lottie guardou o telemóvel e voltou a apoiar-se no corrimão. Não
estava preocupada com o Livro das Portas; sabia que, de uma
forma ou de outra, ele iria acabar na sua posse, e ela faria a sua
última venda e sairia do negócio de uma vez por todas. Azaki era
realmente apenas uma garantia nessa questão. Na verdade, o que
precisava mesmo de Azaki era que ele lhe levasse a mulher. Isso
era o mais importante. Porque Lottie tinha feito uma promessa, e ela
cumpria sempre as suas promessas.

Drummond Fox, outrora o Bibliotecário, mas agora um nómada,


acordou naquela manhã a pensar nas mulheres que tinha visto na
noite anterior. Sentiu uma urgência em encontrá-las, em salvá-las de
qualquer destino que lhes pudesse sobrevir. Tomou banho, vestiu-se
e pegou nos três livros que se encontravam em cima da mesa de
cabeceira: o Livro da Sorte, com a sua capa dourada e as suas
páginas douradas, o Livro das Sombras e o Livro da Memória.
Voltou a deter-se no Livro da Memória, abrindo a capa e olhando
para o texto escrito numa caligrafia elegante na primeira página, tal
como fizera milhares de vezes ao longo dos anos.

Este é o Livro da Memória.


Partilha-o, para partilhares uma memória,
Dá-o, para dares memória,
E recolhe-o, para recolheres uma memória.

Drummond pensara muitas vezes em recolher as suas próprias


memórias, esquecer tudo o que sabia sobre os livros especiais,
sobre a Mulher e a Biblioteca Fox e simplesmente começar uma
vida nova. Tinha sido tentador, mas resistira sempre. Resistiria
novamente agora, porque tinha um objetivo. Precisava de encontrar
as mulheres que tinham o Livro das Portas na sua posse.
Enfiou o Livro da Memória no bolso, juntamente com os outros
dois livros. Formavam uma ligeira protuberância na sua anca, mas
ele sentia-se confortável com isso. Era assim que sabia que eles
estavam sempre lá; normalmente eram tão leves e insubstanciais
que era fácil esquecer-se de que os tinha. Saiu para a manhã fria,
sentindo o vento a queimar-lhe as faces, e caminhou sem direção
pela cidade coberta de neve, descendo as longas avenidas nas
sombras entre os edifícios altos, percorrendo as ruas largas e
estreitas ao longo de toda a sua extensão. Comprou um cachorro-
quente a um vendedor ambulante, ajudou-o a ir para baixo com uma
Coca-Cola e depois caminhou mais um pouco, confiando na sua
sorte.
Era hora de almoço quando as viu. Estava parado numa
passadeira no Upper East Side, à espera de que o semáforo ficasse
verde, quando avistou as duas mulheres na esquina oposta. A loura
viu-o e olhou-o nos olhos com uma expressão séria, do outro lado
da rua. Entreolharam-se durante alguns instantes, mas quando ele
acabou de atravessar a rua, escorregando no asfalto coberto de
neve, tropeçando e caindo, as mulheres já tinham chegado ao fim
do quarteirão. Quando ele alcançou a esquina, instantes depois, não
havia sinal delas. O único sítio para onde podiam ter ido era um deli,
a primeira porta ao longo da rua. Drummond entrou na loja, mas
estava vazia, com exceção da mulher idosa atrás do balcão.
Regressou à rua e ali ficou, com a respiração pesada, olhando
em redor para se certificar de que não lhe tinha escapado nada. Não
havia nada além de portas de prédios habitacionais, nenhum lugar
para onde as mulheres pudessem ter ido, a não ser que vivessem
naquela rua em particular.
Porém, Drummond não achava que fosse esse o caso. Ele
achava que havia uma explicação diferente, e estava mais seguro
disso do que estivera na noite anterior.
Era o Livro das Portas, por mais inacreditável que isso
parecesse.

O Dr. Hugo Barbary manteve-se a um quarteirão de distância de


Drummond Fox durante todo o passeio matinal do homem. Hugo
fora caçador antes de se tornar um caçador de livros, e tinha sido
fácil para ele, na noite anterior, seguir os rastos do homem na neve,
desde Washington Square até ao Library Hotel. Barbary havia
reservado um quarto para si no mesmo hotel, e um suborno
considerável ao rececionista garantira que ele seria notificado
sempre que Drummond saísse do edifício. Barbary seguira-o toda a
manhã, perguntando-se o que estaria o homem a fazer.
Barbary sabia que Drummond Fox teria livros. Ninguém
sobrevivia durante dez anos sem ser encontrado, se não tivesse
algum tipo de ajuda. Especialmente tendo em conta o tipo de gente
que andava à procura dele.
Barbary tinha apenas dois livros, mais do que suficiente para
preencher a sua vida com os prazeres e riquezas de que gostava.
Além de serem livros poderosos, suficientemente poderosos para o
terem deixado em paz até àquele momento. Mas um dia, mais cedo
ou mais tarde, alguém viria atrás dele, disso ele tinha a certeza — o
sacana do Okoro da Nigéria, ou alguém como ele. Ou a própria
Mulher. Era uma corrida ao armamento para ver quem conseguiria
reunir o maior número de livros e o máximo de poder. Hugo estava
confiante nas suas próprias capacidades; sabia que instilava medo
nos outros. Mas também sabia que seria sensato ter mais livros na
sua posse, se conseguisse. Livros como os que o Bibliotecário
usara para não ser detetado durante dez anos. Esses livros ser-lhe-
iam, de facto, muito úteis.
Barbary observava, do outro lado da rua, Drummond Fox parado
na esquina, com um ar ligeiramente perplexo, como se tivesse
acabado de perder algum objeto importante.
Depois, o homem voltou a pôr-se em marcha, dirigindo-se para
sul, do Upper East Side, em direção ao centro da cidade.
Hugo não se importou. Gostava de caminhar; assim, mantinha-
se em forma.

Mais ou menos na mesma altura em Londres, onde era o final da


tarde e não o meio do dia, Marion Grace estava à espera da irmã
num movimentado restaurante italiano em Covent Garden. Marion
não via a irmã há mais de cinco anos — já raramente se encontrava
com alguém —, mas a irmã enviara-lhe um e-mail a solicitar um
encontro urgente. Assim, Marion saiu do seu apartamento em
Docklands e dirigiu-se a Covent Garden. Sentira-se nervosa e
desconfortável durante a viagem e só descontraiu um pouco quando
chegou ao restaurante e lhe foi dada uma mesa num canto ao fundo
da sala.
— Quando a reserva foi feita — explicou o empregado —, foi-nos
solicitado uma mesa sossegada. Espero que esta esteja ao seu
gosto.
Marion agradeceu com um sorriso, grata por a irmã ter tido a
consideração de pensar nos seus receios. Instalou-se enquanto
aguardava. O empregado tinha trazido um cesto de pão e depois
uma bebida, e, entretanto, Marion deixou-se distrair com o telemóvel
por um minuto, perguntando-se se teria recebido uma mensagem da
irmã; quando reergueu o olhar, a Mulher estava lá, a observá-la,
sentada à sua frente, do outro lado da mesa, com os seus olhos
muito escuros e aquele rosto belíssimo.
Marion arfou. A Mulher fitava-a, sem expressão.
Marion perscrutou o restaurante como se procurasse ajuda, mas
mais ninguém iria saber quem era a Mulher. Ninguém teria visto
outra coisa que não fosse uma mulher atraente com um vestido de
verão florido.
— Tu — disse Marion, com a voz a tremer.
A Mulher olhou-a nos olhos, sem dizer nada.
Marion engoliu em seco e a sua própria garganta pareceu-lhe
diminuta.
— Vinha encontrar-me com a minha irmã — disse Marion.
A Mulher manteve o olhar fixo, depois abanou lentamente a
cabeça.
— Tu… — disse Marion. — A minha irmã, ela está…?
— A tua irmã já não está entre nós — declarou a Mulher
simplesmente. A sua voz era calma; as suas palavras, quase
sussurradas. Marion desviou o olhar, consternada.
Pensou em fugir, mas como poderia fugir? Ela era uma mulher
idosa que tinha passado cinco anos escondida. E quem sabia que
livros a Mulher teria?
— O que é que tu queres? — perguntou Marion, com a voz a
tremer. — O que é que queres de mim?
A Mulher chamou a atenção de um empregado de mesa que
passava. Ele inclinou-se para ouvir e ela disse-lhe qualquer coisa
perto do ouvido, e depois o homem fez uma pequena reverência e
afastou-se apressadamente.
— Eu não sei de nada — continuou Marion. — Por favor. Há
cinco anos que vivo como uma eremita. Não falei com ninguém.
A Mulher estava a inspecionar o cesto de pão enquanto Marion
falava. Pegou num pãozinho branco e cheirou-o.
— O que é que fizeste à minha irmã? — perguntou Marion,
embora não quisesse saber.
A Mulher olhou Marion nos olhos e abriu lentamente o pãozinho
ao meio. Depois, os cantos da sua boca contorceram-se num
sorriso.
— Não tenho o meu livro — disse então Marion, e os olhos da
Mulher voltaram-se para ela enquanto punha um pedaço de pão na
boca. O empregado voltou a aparecer com uma taça de champanhe
e pousou-a. A Mulher mastigou o pão, observando Marion em
silêncio.
— Não o tenho — insistiu Marion. — Não o queria. Não queria
que viesses à procura dele.
A Mulher bebeu um gole de champanhe e esboçou um esgar de
desapontamento, inspecionando a bebida através do copo e
emitindo um estalido com os lábios, como se não tivesse o sabor
que esperara.
— Não o irias querer, mesmo que eu o tivesse — disse Marion.
— O que farias com o Livro da Alegria? — Os lábios de Marion
voltaram-se para baixo, e o seu ódio finalmente superou o medo. —
A alegria é a última coisa que te interessa.
A Mulher comeu mais um pedaço de pão.
Marion observou-a, à espera.
À espera de algo.
À espera do terror.
— Enviei-o ao Drummond — disse ela, por fim. — Mandei-o
embora há mais de dez anos para o manter em segurança, está
bem? Foi isso que fizeste a este mundo. Obrigaste-me a esconder o
Livro da Alegria porque isso era melhor do que ficares tu com ele.
Marion ficou surpreendida com as lágrimas nos seus olhos. Não
sabia se eram lágrimas de medo, lágrimas pela irmã, ou lágrimas
pelo mundo que aquela mulher tinha criado.
— Foi isso que fizeste — insistiu, enxugando os olhos com a
mão. — Não tens vergonha nenhuma?
— Onde é que fica a Biblioteca Fox? — perguntou, então, a
Mulher, o som da sua voz tão baixo que Marion teve de se inclinar
para ouvir o que ela dizia.
— Não sei onde fica a Biblioteca Fox — respondeu Marion,
subitamente em pânico. — Porque é que havia de o saber? Eu não
ia querer saber! Ninguém quer saber, porque isso só significa que
irias acabar por ir atrás de nós, não é?
A Mulher estava a olhar para o pãozinho, mas as suas
sobrancelhas ergueram-se como que a perguntar: A sério, é isso
que as pessoas têm dito?
— Só o Drummond Fox é que sabe — disse Marion. — Se
queres a Biblioteca Fox, tens de o encontrar a ele. Não sei porque
mo perguntas a mim!
A Mulher não disse nada. Ela era uma mulher tão bonita, pensou
Marion, tanta escuridão envolta num pacote tão encantador.
— Nunca encontrarás o Drummond Fox — disse Marion,
sentindo o medo a escorregar-lhe dos ombros como um casaco
descartado. Ela sabia que ia morrer, e era incrível como esse
pensamento a libertava. Sorriu para si própria, e a Mulher deixou
cair a parte do pão que não comera em cima da mesa. — Não o
encontraste durante todos estes anos e não o vais encontrar agora,
pois não?
A Mulher olhou para ela com a sua expressão vazia e bela.
— Oh, esta é a melhor notícia que tenho há anos — disse
Marion, juntando as mãos num momento de prazer. — Oh, sim! Se
não o tiveres, nunca irás encontrar a Biblioteca Fox, pois não?
Marion riu-se com vontade e, com a libertação da tensão,
pareceu-lhe que o ar à sua volta se descontraiu ligeiramente.
Olhou para a Mulher e viu como ela era vazia, como não tinha
qualquer tipo de substância humana. Era como um retrato de uma
mulher, pensou Marion: linda, mas sem vida.
Depois, a Mulher estendeu o braço e pôs uma mão no braço de
Marion, a sua boca a exibir um sorriso de escárnio, inesperado e
cruel. Um momento depois, Marion sentiu uma dor imediata e
imensa, como se uma mão enorme lhe tivesse agarrado o coração e
o esmagasse.
Arfou e bateu com força na mesa, fazendo os talheres e os
copos chocalharem. Morreu num instante, com os seus olhos a
verem o seu próprio reflexo contorcido no jarro de água de metal, o
rosto de uma mulher idosa a gritar.

A Mulher caminhou para sul, de Covent Garden até à margem do


Tamisa, afagando a sua fúria silenciosa e odiando o mundo
movimentado e ativo que a rodeava.
Estava furiosa por todo o seu trabalho ter sido em vão. O Livro
da Alegria estava fora de alcance. Tinha tolerado um voo
transatlântico e agora tinha de tolerar outro para regressar a casa.
Subiu à ponte de Westminster, vendo o Palácio de Westminster
iluminado e a brilhar como ouro na escuridão da noite. A ponte
estava repleta de pessoas atarefadas, com as idas e vindas da
humanidade. As pessoas conversavam enquanto caminhavam,
sorriam ou forçavam caminho umas por entre as outras. A Mulher
moveu-se através de tudo isto sem expressão, como um tubarão a
deslizar por entre cardumes de peixes.
Ela queria infligir dor, queria causar sofrimento. Isto sempre fora
verdade, mas era particularmente verdade naquele dia, dada a sua
desilusão. Não bastava ter matado a idosa no restaurante. Isso tinha
sido uma necessidade instantânea e insatisfatória. A Mulher sentia a
necessidade de se acalmar com um sofrimento mais substancial, de
fazer o mundo cantar em agonia para ela ouvir.
O dia escurecia à medida que a noite se aproximava, quando a
Mulher atravessou a ponte, e as pessoas por quem ela passava
olhavam em volta na escuridão, como se de alguma forma
estivessem conscientes do que se movia entre elas, como se
tivessem ficado subitamente desconfortáveis, mas incapazes de
saber porquê.
A Mulher viu então uma jovem mãe, que caminhava na sua
direção, de mão dada com uma menina dos seus 8 ou 9 anos. A
menina ia saltitando enquanto caminhava e vestia um bonito casaco
creme e collants brancos. Usava proteções para os ouvidos e as
suas faces estavam avermelhadas pela brisa fria que soprava do
Tamisa. A criança sorria enquanto os seus olhos contemplavam as
Casas do Parlamento, com a torre do relógio a perfurar o céu. Era
vivaça, saudável e enérgica, e a mãe parecia tão feliz, tão satisfeita
consigo própria, tão cheia de si por causa daquilo que tinha trazido
ao mundo. A Mulher odiava tudo isso.
A Mulher moveu-se em direção às duas quando elas se
aproximaram, e ao fazê-lo retirou o Livro do Desespero da mala e
apertou-o contra o peito, como uma mulher a caminho da igreja
agarrada à sua Bíblia. Ela sentiu o poder do livro, o desespero, a
borbulhar no ar ao seu redor. As trevas vazaram das bordas do livro
conforme ela o trouxe à vida, mas ninguém olhou para ela.
A criança passou por ela, e a Mulher baixou a mão para permitir
que os seus dedos roçassem a face rosada e macia da menina. O
desespero saiu dela como água de um jarro, jorrando para a criança
através daquele breve momento de contacto. A Mulher ficou
emocionada com isso, com a agonia que a atravessou e penetrou o
corpo vibrante e jovem.
Imediatamente ouviu-se um lamento angustiado e, nunca
detendo a marcha a Mulher olhou por cima do ombro para ver a
mãe agachada a segurar na filha com as duas mãos, com a
preocupação vincada na testa.
A criança chorava enquanto o vazio a preenchia, e a Mulher
pensou que os olhos da rapariga pareciam agora mais escuros, tão
escuros como o céu noturno por trás do Palácio de Westminster.
A menina tinha o rosto vermelho e enrugado, as lágrimas
deslizavam pelas suas faces enquanto gritava com o horror súbito
que sentia, enquanto cantava a canção da Mulher. Ela virou a
cabeça para olhar para a Mulher, como se soubesse a origem da
sua agonia. Observou a Mulher através das suas lágrimas,
enquanto a mãe a abraçava e se ocupava dela, enquanto os outros
transeuntes na ponte lançavam olhares para as duas e se
desviavam.
Quanto à Mulher, olhou para trás e sorriu para a menina. Sim,
criança, dizia aquele sorriso. Fui eu. Foi o meu presente para ti.
A Mulher sabia que a criança nunca mais voltaria a sorrir. Nunca
conheceria a felicidade ou a alegria. Talvez nem sequer chegasse a
viver até à idade adulta, de tão destruída pela infelicidade que a
Mulher lhe transmitira.
E isso satisfê-la. Também ela tinha sido uma rapariga inocente e
feliz, antes de ter ocorrido a mudança. Porque havia uma rapariga
de ser feliz e sorrir, quando podia estar a cantar a sua dor,
espalhando-a pelo mundo, para a Mulher ouvir?
A Mulher continuou o seu caminho, ouvindo os gritos da criança
desesperada a voarem para o céu atrás de si, numa melodia
deliciosa e medonha.
UMA NOITE A VIAJAR

F inal do dia, e Cassie encontrava-se sozinha na livraria. Estava


sentada ao balcão com o Livro das Portas no colo, a virar
lentamente as páginas e a passar os olhos pelos rabiscos e pelas
imagens. A maior parte não lhe fazia sentido, mas os seus olhos
detiveram-se nos desenhos e nos gatafunhos. Portas, abertas e
fechadas, e corredores. Também havia rostos — homens e
mulheres, crianças e adultos —, e Cassie perguntou-se quem
seriam aquelas pessoas. Teriam elas mantido o livro na sua posse
antes dela? Seria possível que, um dia, o rosto de Cassie se
juntasse a eles naquelas páginas? O que lhes teria acontecido?
Pela primeira vez, Cassie perguntou-se se Izzy teria razão ao
pensar que a utilização daquele livro poderia implicar um risco. Mas,
em resposta, a sua mente regressou à noite anterior e recordou a
última conversa que tivera com o Sr. Webber. Ele dissera-lhe para
sair e ver o mundo, contando-lhe histórias das suas viagens.
Certamente, porque tencionava dar-lhe o Livro das Portas.
Certamente, aquelas palavras haviam sido uma mensagem.
Cassie pôs o livro de lado e começou a limpar tudo antes de
fechar a loja. Enquanto tirava as canecas e os pratos das mesas de
café, lembrou-se de um jantar com o avô, muitos anos antes, os
dois à mesa a comer guisado, quando o avô lhe confessou os seus
sonhos de viajar.
«Fico tão entusiasmado só de conduzir até à cidade mais
próxima», dissera-lhe ele, enquanto a servia. «Uma estrada que vai
dar a qualquer lado, e eu seria capaz de simplesmente continuar.
Imagina entrar num avião para um país completamente diferente.
Estar lá em cima no céu com o mundo inteiro a passar por baixo de
nós.»
O avô nunca chegara a viajar. A vida dele resumira-se a
trabalho, contas para pagar, responsabilidades e criar Cassie, e ela
tinha a certeza de que viajar sempre fora algo que ele tencionava
fazer naquele lugar a meia distância chamado «um dia», embora
esse «um dia» nunca tivesse chegado.
Por essas razões, mas principalmente porque assim o entendia,
Cassie não ia deixar de usar o livro. Não ia virar as costas à magia e
à impossibilidade.

Nessa noite, Cassie fechou a loja e usou a porta da sala das


traseiras para se transportar para a Europa, para lugares que tinha
visitado oito anos antes. Primeiro, viajou novamente para Veneza, a
rua que tinha visto em sua casa na noite anterior. Atravessou o
limiar da porta e saiu para as pedras da calçada. Estava uma noite
fria e seca, e Cassie, de olhos reluzentes, descreveu um círculo sem
sair do lugar, maravilhada com o que via. Agachou-se e tocou com a
mão na calçada aos seus pés, certificando-se de que aquilo era real.
A porta por onde tinha acabado de entrar ainda estava entreaberta e
ela viu o interior da Kellner Books, uma visão impossível que fez o
seu coração acelerar de excitação.
— É real — disse ela. — É tudo real.
Fechou a porta, observando Nova Iorque através da nesga que
se estreitava, como quem tenta apanhar a luz do frigorífico a
apagar-se. Depois, manteve-se imóvel e inspirou o ar de Veneza.
Eram as horas antes do amanhecer e as ruas estavam escuras e
silenciosas. Cassie sentiu as lágrimas a brotarem-lhe nos olhos:
lágrimas de alegria, lágrimas de espanto.
Virou-se para a direita e caminhou durante algum tempo,
ouvindo os seus passos ecoarem à sua volta. Chegou ao fim da rua,
onde esta ia ao encontro de um estreito troço de canal que
contornava algumas esquinas irregulares e passava por baixo de
uma ponte pedonal antes de desaparecer por uma fenda entre dois
edifícios altos. A água do canal estava perfeitamente parada,
fazendo lembrar vidro preto. Do outro lado do canal havia uma
pequena praça — um campo, lembrava-se Cassie — com um velho
poço de pedra no centro. Durante o dia, os restaurantes em torno
daquela praça montavam mesas e cadeiras e, a meio do dia, o sol
estava mesmo lá no alto, aquecendo e iluminando o mundo. Cassie
tinha passado muitas horas felizes naquele campo, a beber vinho
barato e a ler. Agora, a praça estava vazia, os edifícios em redor tão
silenciosos como pessoas reunidas à volta de uma campa num
funeral.
Cassie afastou-se do canal e fez o percurso inverso, enxugando
as lágrimas de felicidade que lhe haviam inundado os olhos. Passou
pela padaria, sabendo que, dali a pouco tempo, os padeiros
estariam lá a amassar a massa e a acender os fornos, e pelo
pequeno café na esquina, e depois virou à esquerda para uma
passagem entre dois edifícios. Era como caminhar por uma falha
geológica: o céu era uma fenda que ziguezagueava lá no alto.
Cassie tinha adorado caminhar à deriva, na primeira vez que
estivera em Veneza, explorando aquelas passagens secretas e as
surpresas a que conduziam: canais inesperados que interrompiam o
seu progresso e que a obrigavam a voltar para trás; ou uma
pequena praça rodeada de edifícios de tijolo vermelho em ruínas,
janelas fechadas para tapar a luz do sol do meio-dia e velhotas
italianas com roupas escuras e pesadas a falar alto e a gesticular
umas para as outras nas portas. Essa era a cidade durante o dia, tal
como Cassie se lembrava dela, mas este lugar por onde agora
caminhava era diferente. As passagens estreitas eram quase
assustadoras, claustrofóbicas, e ela começou a atormentar-se com
a ideia de que um estranho podia aparecer ao fundo da passagem e
bloquear-lhe a saída.
Enxotou a sua imaginação brincalhona quando emergiu numa
praça comprida e larga. Os edifícios em redor do espaço estavam
quase todos silenciosos, mas havia algumas luzes acesas, vida
noturna por trás de persianas. Os edifícios eram bonitos aos olhos
de Cassie, gastos com os seus tijolos irregulares e estuque amarelo
e cor de laranja gretado, mas tão evocativos de um tempo e de um
lugar diferentes, de história e de contos e de todas as pessoas que
tinham vivido e continuavam a viver naquela cidade espantosa.
Cassie percorreu as passagens e as praças, dirigindo-se para
sul e leste até chegar ao Grande Canal e à ponte Rialto. As lojas
para turistas na ponte estavam fechadas e silenciosas, mas havia
algumas pessoas, apesar da hora: jovens turistas embriagados à
beira da ponte, a rir e a sussurrar; um homem com uma máquina
fotográfica num tripé ao ombro, à procura do melhor local para o
nascer do sol; e dois jovens asiáticos sentados em cima de grandes
malas de viagem, como se tivessem chegado demasiado cedo ou
demasiado tarde para algum evento. Cassie encontrou um lugar
vazio entre as traseiras das lojas para turistas e a beira da ponte e
ficou a contemplar o canal largo. Fazia frio ali, longe da proteção
dos edifícios, um vento desanimador que se movia com as águas do
canal e que lhe tocava ao de leve. Mas Cassie não se importou;
deixou-se ficar parada por alguns instantes e absorveu Veneza à
noite. A água do Grande Canal movia-se em silêncio, suavemente, e
ela ouvia o embater ténue de barcos próximos que se
entrechocavam no seu sono, acorrentados. O céu estava limpo,
pontilhado de estrelas, e uma lua convexa espalhava ondulações de
leite na água negra.
Queria ficar ali para sempre, sozinha, a apreciar aquela bela
cidade adormecida. Porém, começou a tremer de frio e, depois, o
barulho dos dois asiáticos a arrastarem as malas arrancou-a do seu
devaneio. Continuou a caminhar pelas ruas, seguindo a conversa
cansada dos homens à sua frente, até que deu por si numa esquina
da Praça de São Marcos, com o campanário vermelho-alaranjado
mesmo à sua frente, como um lápis quadrado em pé. Viu os dois
homens asiáticos já longe, do outro lado da praça, a puxarem as
suas malas com rodinhas.
Cassie encaminhou-se para a esquerda para passar em frente à
basílica de São Marcos, onde esta se aninhava no extremo leste da
praça, com o seu conjunto de cúpulas em forma de bolbo de alho e
pontos de crucifixo a perfurar o céu, e o ouro ornamentado nos
mosaicos por cima das portas a reluzir ao luar. Alcançou a margem
do Grande Canal novamente, logo a seguir à basílica, e viu uma
frota de gôndolas amarradas em filas, à espera da manhã, dos
turistas e da atividade. Cassie deu meia-volta, esticando as mãos ao
lado do corpo e rindo enquanto lançava a cabeça para trás para
observar as estrelas que dançavam lá em cima.
— Estou em Veneza! — gritou ela, sem se importar que o som
da sua voz ecoasse na noite, galopando pela praça como um
cavalo. — Estou em Veneza — disse outra vez, mais baixinho.
Limpou os olhos, sentindo as lágrimas novamente, e voltou a
atravessar a praça. Lembrou-se de como era movimentada durante
o dia, das hordas de turistas cuspidos pelos barcos de cruzeiro, os
empregados de mesa e os pombos a esvoaçar. Estava contente por
se encontrar ali sozinha, no silêncio, mas começava a ficar
impaciente para visitar um lugar diferente, provar uma iguaria
diferente.
Entrou numa passagem do lado oposto da praça e caminhou
durante alguns minutos até encontrar o que procurava: um pequeno
hotel numa praceta sinuosa, com a luz acesa por cima da porta da
entrada. Tirou o Livro das Portas e segurou-o numa mão, permitindo
que a sua luz suave de arco-íris lhe iluminasse o rosto enquanto se
lembrava de outra porta, noutra cidade antiga, e depois abriu a porta
do hotel para revelar uma viela em Praga.
Saiu para as pedras da calçada — mais irregulares e mais
redondas do que em Veneza — e virou-se para trás, vendo a porta
da pousada de juventude onde ficara hospedada anos antes.
Parecia que agora as ruas de Veneza viviam dentro daquela
pousada de juventude, e Cassie riu-se ao pensar nisso enquanto
fechava a porta.
Caminhou até à praça do centro histórico de Praga, onde
elegantes edifícios antigos se encontravam face a face ao longo de
uma vasta calçada — uma plateia à volta de uma pista de dança em
cima da qual Cassie saltava enquanto a alegria lhe enchia o
coração. Um bando de pombos, assustados pelos seus saltos,
dispersou-se no céu com um alvoroço de asas em pânico.
Caminhou pela Cidade Velha, ao longo de ruas tão estreitas e
tortuosas como as de Veneza, mas onde os edifícios eram mais
baixos e menos amontoados; ali, conseguia ver mais do céu, e as
paredes não estavam tão perto dela como em Veneza. Cassie
passou por cafés às escuras e lojas de chocolate que tinha visitado
anos antes e chegou à ponte Carlos, sobre o largo rio Moldava. Tal
como em Veneza, estava mais frio junto à água. A brisa do rio era
forte, fazendo com que Cassie se arrepiasse novamente,
embrulhada no seu casaco, mas ela ignorou-a, encostando-se à
parede entre os candeeiros antigos e as estátuas de ferro fundido. O
castelo de Praga estava adormecido no topo da colina, iluminado
por holofotes na escuridão, e outra ponte atravessava o rio à sua
frente. Além disso, a encosta verde erguia-se onde o rio se curvava
até se perder de vista. O céu estava mais nublado ali do que em
Veneza, encobrindo as estrelas.
Cassie virou o olhar para o caminho por onde tinha vindo, em
direção à torre gótica no fim da ponte. Continuava a parecer um
rosto para Cassie: o arco e as janelas formavam a imagem de um
homem indignado, o telhado alto assemelhava-se a um chapéu na
sua cabeça. Cassie sorriu ao pensar nisso e bateu com os pés para
os aquecer.
Ela sabia que o sol surgiria por cima da torre. Já ali estivera para
ver o nascer do dia quando visitara a cidade anos antes,
levantando-se cedo com um grupo de mais três turistas americanos.
Cassie sorriu para si própria, recordando aquela manhã, lembrando-
se de que tinham vagueado sonolentos pelas ruas tranquilas,
embrulhados em cachecóis e casacos para se protegerem do frio,
com a sua respiração a formar uma névoa branca. Aglomeraram-se
no meio da ponte, a conversar, à espera de que o sol espalhasse a
sua luz resplandecente pelo mundo. Tinha sido uma visão fabulosa,
uma imagem que ficara gravada na memória de Cassie.
Os quatro tinham esperado até que o sol estivesse bem alto no
céu azul brilhante antes de irem beber café, comer bolos e
conversar. Tinha sido uma amizade fácil e casual com aqueles
outros turistas, que não exigiam nada dela, e Cassie sabia que tinha
sido feliz na altura, feliz e livre como nunca fora, antes ou depois.
— Até agora — disse a si mesma, levantando os olhos das
pedras da calçada e olhando para sul, ao longo do rio. Com o Livro
das Portas ela era livre. Podia ir para onde quisesse, quando
quisesse, como se tivesse o seu próprio tapete mágico saído de um
conto de fadas. Mais ninguém tinha uma vida assim.
Cassie continuou a andar, atravessando para a outra margem do
rio e saindo da ponte Carlos para a calçada que subia a colina até
ao castelo. Os edifícios ali estavam pintados em tons pastel, cor-de-
rosa e branco, e eram ornamentados como bolos de casamento.
Mais acima, a rua alargava-se e alojava muitos carros, antes de
desembocar numa grande praça, com as torres de uma catedral no
lado oposto. Passou um autocarro a zunir, dois rostos cansados que
olharam para ela, depois mais alguns carros, e Cassie viu mais
pessoas a atravessarem a praça, agasalhadas por causa do frio e a
descerem a colina em direção à Cidade Velha. A cidade começava a
ganhar vida.
Olhou para o relógio. Em Nova Iorque passava pouco das onze
da noite, mas em Praga passava das cinco da manhã. Já estava a
caminhar há mais de duas horas. Sentiu um ronco no estômago e
percebeu que tinha fome. Sorriu, então, lembrando-se do pequeno-
almoço de que mais gostara durante a sua estadia na Europa. Mas
isso foi noutro lugar, numa cidade diferente, num país diferente.
Encontrou outro hotel numa outra viela e, com o Livro das Portas
na mão e a projetar uma luz colorida na manhã escura, abriu a porta
e saiu do hotel low cost onde tinha ficado durante as suas semanas
em Paris, perto da Gare du Nord.
O mundo ficou subitamente mais húmido, mais frio e mais
movimentado. Uma névoa ou chuvisco pairava no ar como uma
cortina fina, fazendo com que tudo parecesse desfocado e indistinto.
Ainda estava escuro, mas alguns cafés e hotéis estavam abertos,
com os letreiros de néon a brilharem por detrás dos chuviscos
cinzentos. Autocarros circulavam com os interiores iluminados, bem
como carros com painéis de instrumentos a brilharem e rostos
fantasmagóricos ao volante. Cassie caminhou para norte, refazendo
os passos que tinha dado anos antes, e dirigiu-se a um café mesmo
em frente à entrada da estação de comboios. Ela adorava ir lá para
comer croissants quentes e beber café, e ver todos os parisienses a
entrar e a sair, especialmente durante a hora de ponta.
Quando chegou ao café, sentou-se numa das mesas da
esplanada, debaixo da cobertura. Pediu um café e um croissant ao
empregado velho e bem-disposto — um homem que,
aparentemente, assobiava para si próprio sempre que caminhava —
e depois relaxou na cadeira, apreciando a dor nas pernas e o ar frio
nas faces. As ruas foram ficando mais movimentadas e barulhentas
enquanto ela bebia o café e comia o croissant, e outras pessoas
juntaram-se a ela nas mesas ao longo da fachada do café,
enchendo o ar com fumo de cigarros, conversas e os latidos de um
cãozinho ao colo de uma mulher.
Cassie adorava tudo aquilo. Adorava ver outra parte banal do
mundo a viver a sua vida, os sons, os cheiros. Deu-se conta, então,
enquanto comia as últimas migalhas de croissant do prato, que
adorava as histórias que estava a ver: as muitas vidas diferentes
que se desenrolavam à sua frente. Todos os dias, em todos os
locais onde ia, deparava com outras vidas, um milhão de pessoas
no centro das suas próprias histórias, e Cassie adorava tocar em
todas elas.
Enquanto se demorava no café, tirou o Livro das Portas do bolso
e voltou a folhear as páginas, pousando os olhos em esboços nos
quais não tinha reparado antes, fragmentos de texto ilegível. Cada
vez que abria o livro, parecia que encontrava uma página que ainda
não tinha visto. Ou talvez, pensou ela, o livro estivesse em
constante mudança, sempre alguma coisa diferente, tal como os
lugares que visitava.
Quando terminou, pagou o pequeno-almoço com um cartão de
crédito e saiu de debaixo do toldo para o chuvisco refrescante da
manhã. Viu que a luz do dia estava mais próxima, enquanto refazia
os seus passos de volta ao hotel, um tipo de luz do dia sombria e
invernal que não afastava totalmente as sombras. Levou encontrões
e empurrões enquanto abria caminho por entre o fluxo de peões,
mas sentia-se mais feliz e satisfeita do que havia sentido durante
muitos anos. Chegou à porta do hotel, com o Livro das Portas no
bolso, e abriu a porta do seu quarto em Nova Iorque, atravessando
um oceano e vários fusos horários. Atrás de si, na rua em Paris, um
casal jovem olhou para Cassie, talvez vislumbrando a luz do arco-
íris a sair do seu bolso, talvez vendo algo que não fazia sentido
através da porta, mas Cassie fechou-a antes que eles pudessem
reagir, antes que pudessem ter a certeza do que tinham visto.
Minutos depois, caiu na cama, exausta e eufórica, com o Livro das
Portas apertado contra o peito como um peluche de criança,
enquanto dormia.
Quando arrastou o seu corpo cansado para o trabalho na tarde
seguinte, a Sra. Kellner olhou para ela e perguntou:
— Estás a ficar com gripe? Pareces meio morta.
Cassie sorriu com uma expressão sonolenta.
— Estou ótima. Fiquei acordada até tarde com um livro, só isso.
POSSIBILIDADES
E RESERVAS

Q uando Cassie chegou a casa vinda do trabalho ao final do dia a


seguir à sua noite a viajar por Veneza, Praga e Paris, estava
pronta para viajar mais um bocadinho, para regressar novamente
aos lugares que tinha visitado oito anos antes. Despiu o casaco e
dirigiu-se à cozinha, com ideias de fazer uma sanduíche para se
abastecer para as suas viagens. Ao chegar ao frigorífico, os seus
olhos pousaram num postal preso na porta, o tipo de coisa que
estaria ali havia tanto tempo que se tornara invisível. O postal tinha
sido enviado pelos pais de Izzy há vários anos, aquando de uma
viagem que tinham feito ao Egito, e mostrava uma igreja ao fundo
de um pátio, com uma porta aberta em primeiro plano. Cassie
estudou a imagem durante alguns momentos, com a mão pousada
na pega do frigorífico e a mente tranquila.
Depois, apercebeu-se de uma série de possibilidades que lhe
provocaram fogos de artifício no estômago. A sua mente fez a
pergunta: Será que conseguiria…?
Cassie nunca tinha estado no Egito. Nunca tinha atravessado a
porta da imagem no postal. Mas perguntou-se se poderia fazê-lo.
Perguntou-se porque é que tinha assumido que o Livro das Portas
só a podia levar a portas pelas quais já tinha passado, ou a portas
que podia tocar na vida real.
— Qualquer porta poderá ser uma porta qualquer — murmurou.
Esqueceu-se da sanduíche e tirou o postal do frigorífico. Dirigiu-
se para o quarto e fechou a porta atrás de si. O Livro das Portas
continuava no seu bolso. Tirou-o e segurou nele com uma mão
enquanto segurava no postal com a outra, com os olhos postos
naquela imagem e naquela porta num lugar longínquo.
— Vá lá — murmurou para si própria, fechando os olhos e
tentando visualizar, tentando sentir a porta do Cairo.
Pouco depois, após várias tentativas falhadas, Cassie abriu uma
porta que dava para escuridão e ar quente, um pátio com palmeiras.
À sua esquerda, ao fundo, as torres gémeas da Igreja Suspensa do
Cairo exibiam crucifixos idênticos erguidos para o céu. Ao longe,
conseguia ouvir o ruído de uma cidade, sons diferentes daqueles
que escutaria em Nova Iorque. Enquanto atravessava e se via
debaixo dos céus do Cairo, olhou para trás, através da velha porta
de madeira, e viu o seu pequeno quarto, a cama, a luz suave do
candeeiro e dos estores puxados para baixo.
— Oh, uau! — exclamou, com um suspiro de espanto.
O Livro das Portas era ainda melhor do que lhe parecera na
noite anterior. Tinha o mundo inteiro ao seu dispor, todas as cidades
e todas as ruas; qualquer lugar onde houvesse uma porta era um
lugar para onde ela podia viajar num ápice.
Ainda segurava o postal numa mão. Olhou para ele e depois
para o que a rodeava e soltou uma gargalhada, incrédula.
Era avassalador, e o seu coração palpitava de excitação
enquanto ela tentava aceitar aquela verdade, enquanto se debatia
com a razão pela qual o Sr. Webber lhe tinha dado aquele presente.
O que teria ela feito para merecer tal milagre?
Descartou as perguntas, recusando-se a ser melancólica.
— Estás no Cairo! — repreendeu-se a si própria.
Encontrava-se num continente onde nunca sequer tinha posto os
pés. Olhou para a igreja na sua beleza silenciosa e simples,
limitando-se a desfrutar da experiência de um novo lugar.
Nessa noite, passou horas a encontrar fotografias de portas de
todo o mundo, em locais onde nunca tinha estado, e viajou até elas,
fazendo experiências com o seu leque de possibilidades. Visitou
cidades da América que lhe eram completamente desconhecidas,
abriu portas para um miradouro no alto de Tóquio, uma biblioteca
em Pequim e um hotel no Rio de Janeiro, onde atravessou o átrio e
depois passou por outra porta de volta ao seu quarto. Estava a
testar o Livro das Portas, a ver o que ele conseguia fazer, quais
eram os limites deste milagre. E não encontrou limites.
Podia ir a qualquer lado.

Izzy estava à espera quando Cassie chegou a casa depois do


trabalho, no final da tarde do dia seguinte.
— Como estás? — perguntou ela, a olhar para Cassie, do sofá.
— Estou bem — respondeu Cassie com leveza, tirando o casaco
e atirando-o para a ponta do sofá. Pousou a mala na bancada da
cozinha e tirou a sanduíche e a fruta que tinha comprado a caminho
de casa. Tencionava fazer uma refeição rápida antes de viajar.
— Pareces cansada — disse Izzy, levantando-se do sofá. —
Como se precisasses de dormir.
Cassie anuiu. Deu uma dentada numa maçã antes de largar a
mala ao fundo do sofá juntamente com o casaco.
— Deve ser da fruta toda que ando a comer.
Izzy sorriu de forma educada.
— O que é que se passa? — perguntou Cassie, soando mais
desafiadora do que pretendia. — Izzy suspirou e desviou o olhar por
um momento. — Podes contar-me — disse Cassie, com mais
suavidade. — Não faz mal.
— Senta-te aqui.
Sentaram-se, de frente uma para a outra, em lados opostos do
sofá. Izzy demorou alguns instantes, como se estivesse a tentar
escolher as palavras certas.
— Continuas a usar o livro, não é?
Cassie não respondeu, optando por não confirmar nem negar a
acusação.
— Não é seguro — disse Izzy.
— Não podes dizer isso — argumentou Cassie.
— Não sabes o que é, nem de onde veio, nem o que está a
fazer! — exclamou Izzy, com as palavras a saírem-lhe pela boca aos
tropeções. — Tudo o que vês é a aventura que ele te está a permitir.
Mas não sabes a que custo!
— Que custo?
— Há sempre um custo para esse tipo de coisas!
— Não há mais coisas deste tipo! — gritou Cassie, subitamente
frustrada. — Nada, Izzy. Estamos a falar de magia!
— Isso assusta-me — admitiu Izzy, com a voz calma. — E
assusta-me que não te assustes com isso.
Cassie deteve-se alguns instantes a pensar nas palavras de Izzy,
tentando olhar para elas de todos os ângulos para ver se estava a
ser irracional. Ela não gostava que Izzy se sentisse infeliz, mas não
conseguia contemplar a ideia de desistir do Livro das Portas. Era
tudo o que a vida dela nunca tinha sido, era um joguete de
impossibilidades, excitação, mistério e maravilha. Ela não
compreendia porque é que Izzy não conseguia ver isso.
Deu outra dentada na maçã, pensando em como fazer Izzy ver,
como fazê-la compreender.
— Posso mostrar-te uma coisa? — perguntou ela.
Os olhos de Izzy semicerraram-se, como se pressentisse uma
armadilha.
— Isso implica eu ter de atravessar uma porta para outro lugar?
Cassie pousou a maçã meio comida na mesa de centro, limpou a
mão às calças de ganga e estendeu-a a Izzy.
— Vens comigo? Só uma vez? — disse ela. — Por favor.
Izzy manteve o olhar fixo por um momento, depois cedeu.
— Está bem. Mas não vou pegar nessa tua mão toda
peganhenta da maçã.

Cassie conduziu Izzy através de uma porta que deu para uma
grande sala circular com janelas do chão ao teto a toda a volta.
Havia pessoas a circular e um leve burburinho, mas o espaço não
estava apinhado.
— Onde é que estamos? — perguntou Izzy, a observar os rostos
das outras pessoas na sala.
— Vem — disse Cassie, incitando-a a continuar com um
movimento da mão.
Dirigiram-se para uma janela que se estendia do chão ao teto e a
vista abriu-se diante delas, uma extensão interminável de edifícios e
ruas em todas as direções, sob um céu azul enevoado. Ao longe, no
horizonte, erguia-se uma forma gigantesca, perfeitamente simétrica
e triangular, encimada por um cume branco.
— Uau! — exclamou Izzy, enquanto apreciava a vista. — Onde é
que estamos?
— Tóquio — disse Cassie, com os olhos fixos nas ruas
espalhadas lá em baixo.
— Estamos no miradouro do edifício do Governo Metropolitano
de Tóquio, para ser mais exata. E aquilo… — Apontou para a forma
no horizonte, batendo no vidro com o dedo indicador. — É o monte
Fuji. Já alguma vez viste uma montanha com mais aspeto de
montanha do que aquela?
Izzy sorriu.
— Pensava que Nova Iorque era a melhor cidade do mundo…
mas isto é… — Abanou a cabeça lentamente. — Isto é como Nova
Iorque vezes dez.
— Sim — concordou Cassie.
Izzy apreciou a vista em silêncio por alguns instantes.
— Mas podias comprar um bilhete e voar até aqui, Cassie —
disse ela, olhando para a amiga. — Tóquio está aqui, com ou sem o
livro.
— Não tem realmente que ver com Tóquio — disse Cassie,
deixando o seu olhar pousar no monte Fuji.
— Não percebo — queixou-se Izzy. — Tem que ver com o quê,
então?
Mantiveram-se em silêncio por breves instantes, enquanto um
casal de japoneses idosos passou lentamente por elas. Depois,
Cassie respondeu.
— Sabes que o meu avô morreu?
— Claro. Cancro do pulmão.
Cassie anuiu.
— Mas nada mais, certo? Isso é tudo o que eu digo. «Cancro do
pulmão.» E depois as pessoas dizem que sim com a cabeça e
fazem de conta que compreendem, e seguimos em frente. Nunca
digo mais do que isso, porque é demasiado difícil e tenho medo de
que, se começar a desabafar, não consiga parar e passe a ser só
isso, só aquela tristeza interminável e…
Cassie desviou os olhos da vista e viu a expressão de
preocupação no rosto de Izzy. As palavras secaram-se-lhe na boca.
A amiga pôs-lhe uma mão no braço.
— O meu avô criou-me — explicou Cassie. — Quando a minha
mãe me deixou com ele porque era toxicodependente. Mais tarde,
ela morreu de overdose. E depois ele perdeu a mulher, a minha avó,
quando eu era bebé.
— Credo.
— Não, correu tudo bem. Nunca conheci a minha mãe nem a
minha avó. Tive uma infância muito feliz. O meu avô foi o melhor pai
que eu podia ter tido. O melhor progenitor. Éramos só eu e ele. Foi
ele que me passou o amor pelos livros. Lia para mim quando eu era
pequena, e depois comecei a ler sozinha. Ele era carpinteiro e tinha
uma oficina ao lado da nossa casa. Havia um grande pufe num
canto e eu sentava-me lá depois da escola ou aos fins de semana,
enquanto ele trabalhava, e ficava a ler. Não tínhamos muito dinheiro,
mas estávamos bem.
Izzy assentiu, franzindo um pouco o sobrolho como se não
compreendesse o objetivo daquele fluxo de memórias.
— Soubemos do cancro quando eu tinha 18 anos — prosseguiu
Cassie. — Apareceu do nada, foi uma daquelas coisas. Quando
surgiram os sintomas, já era tarde demais. Passei com ele todos
aqueles meses em que ele foi morrendo, Izzy. Uma pessoa com
cancro… não morre de um momento para o outro. É uma morte
longa e lenta, ao longo de semanas e meses, em que tudo o que a
pessoa é lhe é retirado. É… desumanizante.
— E os médicos não podiam fazer nada? — perguntou Izzy.
Cassie sorriu com tristeza.
— Não tínhamos um bom seguro. O meu avô tinha investido
todo o dinheiro na casa. E quando ficou realmente doente, não quis
tirar dinheiro da casa para pagar os medicamentos. Dizia que era
para mim. Dizia que sabia que estava a morrer e que nada iria
mudar isso. Uma vez perguntei a uma das médicas se ele poderia
ter sido salvo se tivéssemos o seguro adequado. Ela disse que
achava que não, mas não sei se acredito nela.
Cassie sentiu os olhos lacrimejarem à medida que deixava entrar
as más recordações, os pensamentos que normalmente mantinha
fechados. Virou as costas à vista e caminhou ao longo da janela,
observando a sala, os outros turistas de olhos arregalados e
excitados, os funcionários a desempenharem as suas tarefas. Izzy
caminhou ao lado dela.
— Ele sofreu muito no final — acrescentou Cassie. — Dias de
agonia no quarto dele. No escuro, a suar, a tossir sangue. — Cassie
estremeceu, tentando livrar-se das más recordações como um cão
se livra da água. — Sabes que ele nunca chegou a fazer nada na
vida? — Encarou Izzy. — Ele criou a filha e depois a mulher morreu.
E depois a filha morreu. E depois teve de me criar a mim. E durante
todo esse tempo continuou a trabalhar, dando-me uma infância feliz.
Ele sempre quis viajar, mas acho que nunca saiu do estado; pelo
menos, durante todo o tempo que vivi com ele. E o que é que ele
ganhou com isso? Uma morte horrível e dolorosa antes sequer de
fazer 60 anos. — Cassie abanou a cabeça. — Isso não está certo.
— Pois não… — concordou Izzy.
— Este mundo é horrível e mau e eu odeio-o… mas os livros
sempre foram um lugar para onde posso ir. Quando eu era jovem e
quando o meu avô estava a morrer. Prefiro os livros ao mundo real.
— Eu percebo — disse Izzy. — A vida é uma merda.
— E agora tenho isto — disse Cassie, tirando o Livro das Portas
do bolso, segurando-o em frente à amiga. — Eu não sei porque é
que me foi dado, mas foi. E o Sr. Webber era um bom homem. Um
homem que adorava livros. Por isso, recuso-me a acreditar que seja
algo de mau. Tenho de acreditar que me foi dado para que eu possa
viver a vida que o meu avô nunca viveu. Posso fazê-lo por ele.
Izzy contemplou a lógica.
— Eu percebo — repetiu ela.
Ficaram à janela, a olhar para o sol.
— Podemos ir para casa, por favor? — perguntou Izzy.
— Sim — disse Cassie. — Quero dizer, podemos voltar quando
quisermos, com o livro.
— Pois — disse Izzy, num tom monocórdico.
— Estou com fome. Vamos ao Ben’s?
— Claro.
Usaram a porta da casa de banho das senhoras na extremidade
da plataforma de observação e entraram no Ben’s Deli, novamente
em Nova Iorque. Percorreram o espaço, acenando com a cabeça às
caras conhecidas atrás do balcão, e sentaram-se numa mesa na
parte de trás. Já passava da meia-noite e o restaurante estava
quase vazio, à exceção de uma pessoa, mas só quando se sentou é
que Cassie percebeu que se tratava do homem que tinha visto
antes, no terraço do hotel, e depois na rua, quando ela e Izzy
passeavam juntas havia alguns dias. Ela arfou, mesmo quando o
homem levantou os olhos e a viu, quando o próprio rosto dele
denunciou que tinha dado por ela. Ele levantou-se rapidamente,
como se tivesse algo importante a dizer, e dirigiu-se à mesa das
duas raparigas.
— Tem andado a seguir-me — disse Cassie, e apercebeu-se de
Izzy a levantar a cabeça para olhar para ela, e depois para o
homem.
— Não — disse o homem. — Não tenho andado a segui-la e não
sabia que ia estar aqui. Foi apenas sorte. Mas fico contente por a
ver. O meu nome é Drummond Fox, e vocês correm um perigo
imenso.
UM ESTRANHO
NO BEN’S DELI

— D esculpe, quem é o senhor? — perguntou Izzy, e Cassie


percebeu que a amiga se pôs imediatamente na defensiva,
imediatamente a protegê-la.
O homem puxou de uma cadeira e deslocou-a para se sentar à
cabeceira da mesa.
— Oh, esteja à vontade, faça o favor de se sentar — troçou Izzy.
— Por favor, deem-me licença — disse o homem.
Antes que Izzy pudesse responder, chegou um dos empregados
do deli, um rapaz jovem que lhes acenou com o queixo indicando-
lhes que fizessem o pedido.
— Café, por favor — disse Cassie. — E traga-me também uma
bolacha com pepitas de chocolate.
Izzy olhou de relance para Cassie, como se estivesse
surpreendida por ela não se sentir incomodada com o homem
sentado à mesa delas.
— Coca-Cola — disse ela. — E uma tosta de queijo. Com
pickles.
O empregado afastou-se.
— Tem até a comida chegar para nos dizer quem é e porque me
tem andado a seguir — disse Cassie.
— Já lhe disse, não a tenho andado a seguir.
Cassie achou que o homem parecia cansado. Os olhos
encovados e com olheiras negras demarcavam-se no rosto magro.
Estava vestido com o mesmo fato preto e camisa branca com que
ela já o tinha visto anteriormente, as roupas de um banqueiro ou de
um advogado, mas havia algo de amarrotado e desgrenhado nele,
como se tivesse sido despedido do seu emprego e não se tivesse
dado ao trabalho de mudar de roupa desde então. Era mais velho
do que elas, talvez na casa dos 40, com cabelo castanho curto que
começava a ficar grisalho nas pontas. O seu corpo era tão magro
como o seu rosto, mas tinha um aspeto muito físico, como se fosse
um homem que passava mais tempo a caminhar do que sentado
num carro ou atrás de uma secretária. Enquanto Cassie o estudava,
decidiu que ele não era um homem obviamente bonito — o seu
rosto era só ângulos e cantos —, mas havia algo naqueles olhos
escuros que era interessante, algo que a fazia querer continuar a
olhar para eles.
— Acho que ainda não perceberam o perigo que estão a correr
— disse ele, quase como se fosse um pedido de desculpa.
Cassie e Izzy entreolharam-se.
— Perigo? — perguntou Cassie, afastando-se ligeiramente.
— Não da minha parte — disse o homem, levantando uma mão
para a acalmar. — Há outras pessoas.
— Porque é que havíamos de correr perigo? — exigiu saber Izzy.
O homem suspirou; parecia tão cansado.
— Por causa do livro.
O empregado voltou e pousou as bebidas de Izzy e Cassie na
mesa.
— Suponho que não venda whisky aqui, pois não? — perguntou
Drummond.
O empregado abanou a cabeça.
— Bem me parecia que não — murmurou Drummond para si
próprio.
— Que livro? — perguntou Cassie, enquanto o empregado se
retirava para o balcão.
Drummond anuiu, num gesto de aprovação.
— Têm razão em serem cautelosas — disse ele. — Mas eu sei
que têm um livro, um livro muito especial que vos permite fazer
coisas invulgares.
Cassie manteve o olhar dele durante o máximo de tempo que
conseguiu, mas depois olhou para Izzy, e o homem interpretou esse
gesto como uma confirmação, respondendo com um aceno de
cabeça. Depois lançou um olhar nervoso para a porta da rua.
— O que é que o senhor é? — perguntou Izzy. — Irlandês ou
algo do género?
O homem sorriu, e o seu rosto ganhou uma espécie de beleza,
como se toda a sua boa aparência estivesse guardada para os
momentos em que ele estivesse feliz.
— Não, não sou irlandês. Olhem, peço desculpa por isto, mas
têm de falar a sério agora. —Olhou alternadamente para uma e para
outra. — Eu posso ajudar-vos, posso proteger-vos, mas têm de
confiar em mim.
— Que tipo de nome é Drum and Fox? — perguntou Izzy.
Cassie podia ver que Izzy estava a empatar, tentando evitar
comprometer-se com qualquer coisa. Cassie observou o homem
enquanto ele digeria a pergunta. Deu-se conta de que não tinha
medo dele, daquele homem com as roupas amarrotadas, os olhos
escuros, aquele homem que era bonito quando sorria. Ela estava
insegura em relação a ele, mas não assustada.
— Drummond — disse o homem. — Não é «Drum and»…
Drummond. Não sou irlandês, sou escocês. É um nome escocês.
— Drummond — repetiu Izzy, testando o nome na boca.
— Já que estamos a fazer apresentações…?
Cassie e Izzy voltaram a entreolhar-se, conferenciando em
silêncio sobre se deviam responder.
— Chamo-me Cassie.
— Muito prazer em conhecê-la, Cassie — disse Drummond,
acenando ligeiramente com a cabeça.
— Chamo-me Isabella, Izzy para abreviar — disse Izzy, mas de
má vontade, dizendo o seu nome apenas porque Cassie tinha dito o
dela.
— Izzy — disse Drummond. — É um prazer. Agora, eu já vi o
livro que tem. Vi-a a segurá-lo no terraço do Library Hotel, quando
estavam vestidas como se não devessem estar lá. Vi-a a usá-lo, vi a
luz colorida. E depois vi-as na rua há uns dias e simplesmente
desapareceram. Acho que sei aquilo que têm.
— OK — disse Cassie com cautela.
— Como é que sabe isso tudo? — perguntou Izzy.
— Tenho alguma experiência com esse tipo de livros. — O
homem lançou mais uma vez um olhar à rua, perscrutando-a, como
se procurasse alguma coisa.
— Livros? — perguntou Cassie, apercebendo-se do plural e
sentindo o coração a falhar algumas batidas.
— Sim, livros — respondeu Drummond, encarando-a. Ele sorriu
novamente, com um ardor genuíno nos olhos. — Não pensou que o
seu era o único, pois não?
— Não pensei nessa questão — disse Cassie, e Izzy abanou a
cabeça.
— Existem livros — continuou ele. — E existem pessoas que
querem os livros, e vão fazer tudo o que puderem para os apanhar.
— Eu disse-te — murmurou Izzy para Cassie. — Eu disse-te que
não era seguro.
— Este local é adorável… — disse Drummond, apontando em
redor. — Mas temos de ir para outro sítio para falarmos. Um lugar
onde as pessoas não vos encontrem. Só por um bocado, até eu
conseguir dizer-vos o que precisam de saber. Aqui não é seguro.
Ficaram a olhar para ele em silêncio, sem se mexerem. Cassie
olhou diretamente nos olhos escuros de Drummond e viu uma
súplica, mas não conseguia responder.
— Não confia em mim — concluiu.
— Não me diga?! — disse Izzy.
— Acabámos de o conhecer — elaborou Cassie.
Drummond pareceu refletir por alguns instantes.
— Compreendo — acabou por dizer. — Como eu disse, é bom
que sejam cautelosas. Mas preciso que confiem em mim, para
vosso próprio bem. Como um ato de boa-fé, deixem-me mostrar-
vos: eu também tenho um livro. — Tirou um livrinho, mais ou menos
do tamanho de um caderno, mais ou menos do tamanho do Livro
das Portas, mas a capa e as bordas das páginas eram douradas,
como se tivessem sido revestidas a folha de ouro. — Este é o meu
livro — disse Drummond, segurando nele com cuidado. — Este é o
Livro da Sorte. Se eu o tiver comigo, terei sempre sorte. Foi por isso
que a encontrei, porque foi uma sorte para nós os dois.
Cassie e Izzy olharam para o livro. Era uma coisa linda de se ver,
ainda mais do que o Livro das Portas. Cassie queria fazer
perguntas. Queria pegar no Livro da Sorte e abri-lo para ver o que
estava lá escrito, que imagens tinha desenhadas. Queria saber o
que é que ele podia fazer e de onde tinha vindo, se também
produzia uma auréola de cores fabulosas no ar. E queria saber mais
sobre aquele homem misterioso, com o seu sotaque escocês e os
seus olhos escuros. Mas antes que ela pudesse fazer ou dizer
alguma coisa, a porta abriu-se no fundo da loja e os três olharam
nessa direção, quando um homem entrou. Era um homem alto e
careca, com óculos redondos que trazia uma mala de cabedal na
mão. Envergava um fato de três peças por baixo de uma gabardina
comprida.
— Merda — murmurou Drummond, devolvendo o Livro da Sorte
ao bolso.
— Eu fico com isso — disse o homem careca, com a voz a sair-
lhe do peito enquanto se dirigia calmamente até eles.
Drummond levantou-se lentamente, empurrando a cadeira para
trás e dando alguns passos em direção ao recém-chegado.
— Tens andado a seguir-me, Hugo.
— Claro — disse o homem. Pousou a mala no chão, aos seus
pés, e enfiou uma mão no bolso do sobretudo. — Eu disse-te que ia
fazer isso. E agora quero os teus livros.
— Quem é este? — perguntou Izzy, e o homem olhou para ela.
— Dr. Hugo Barbary — respondeu o homem, cumprimentando
com um ligeiro aceno da cabeça. — É um prazer conhecê-las.
Quem são as tuas amigas, Drummond?
— Ninguém — disse Drummond. — Estava perdido e a pedir
indicações. Não sou destas bandas, pois não?
O homem sorriu, tendo gostado da resposta.
— Dá-me o livro que acabaste de meter no bolso e os outros que
tiveres, e eu não as mato.
Cassie sentiu o estômago a cair-lhe aos pés, e Izzy arfou e olhou
para ela em choque.
O empregado apareceu atrás de Barbary com a comida de Izzy
na mão.
— Ei, com licença, mano — disse ele, tentando passar por ele.
— Desaparece — disse Barbary, sem virar a cabeça.
— Então?! — reagiu o empregado em protesto. Antes que ele
pudesse terminar o pensamento, Barbary levantou o braço, como se
tivesse acabado de tocar em algo inesperadamente quente, e o
homem foi atirado para trás no ar como se tivesse sido atropelado
por um camião, batendo no chão e atirando a comida de Izzy para
um canto. Conforme o empregado aterrou, Barbary retirou a mão
que tinha no bolso e Cassie viu que ele estava a segurar num livro.
À medida que movia a mão, um rasto de roxos e vermelhos seguia-
a pelo ar.
— Olha! — disse Izzy. — Ele está a fazer aquela coisa!
Houve uma reação atrás do balcão à comoção, os outros
funcionários apressaram-se a ajudar o colega, mas antes que
conseguissem avançar muito, o Dr. Barbary sacudiu novamente a
mão livre, o seu rosto uma carranca de aborrecimento, e ambos os
homens dispararam para cima e embateram no teto. Caíram no
chão, com ladrilhos do teto e pó a seguirem-nos. O Dr. Barbary
regressou para a frente do deli, com as cores do arco-íris a
seguirem o livro que tinha na mão como uma fita pelo ar, e fechou
casualmente a porta. Virou o sinal de «aberto» para «fechado» e
Cassie e Izzy saltaram dos seus lugares. Havia pessoas na rua, a
caminhar em ambas as direções, mas ninguém estava a prestar
atenção ao que se passava dentro do Ben’s Deli.
— Se o seu livro é o que eu penso que é — disse Drummond,
virando a cabeça para falar com Cassie por cima do ombro —,
agora é a altura de o usar. Por favor. A vossa vida corre perigo.
Os olhos dele pediam-lhe que agisse. Ela hesitou, com o
coração a bater no peito, os olhos a olharem para o homem careca
enquanto ele se dirigia novamente para eles. Ele agitou a mão no ar,
fazendo voar uma das mesas e esmagando-a contra a parede,
enquanto as cores do arco-íris da sua outra mão pulsavam
furiosamente.
— Dá-me a merda dos teus livros! — gritou ele, com o rosto
contorcido num nó de fúria, a sua voz a fazer Cassie estremecer.
Voltou a deslizar a mão e todas as restantes mesas e cadeiras
deslizaram de repente e bateram contra a parede do lado direito,
como os móveis de um navio num mar agitado.
— Não há para onde fugir — disse Barbary. Sacudiu o pulso e o
empregado que tinha trazido a comida de Izzy deu um salto de um
metro no ar e depois caiu no chão novamente com um gemido.
Barbary pontapeou casualmente a cabeça dele, sem sequer olhar
para baixo, provocando um ruído crocante e húmido.
— Credo! — gritou Izzy.
— Está na hora de nos irmos embora — disse Drummond. —
Por favor!
— Para onde é que vais fugir, Drummond? — perguntou Barbary.
Cassie pegou em Izzy com uma mão trémula.
— Vamos — disse ela num impulso. Deram as mãos e correram
para a casa de banho nas traseiras da loja.
— Dá-me os livros e eu deixo-te ir, Drummond. — repetiu
Barbary. — Provavelmente.
— Ele matou-os? — perguntou Izzy, arfante e horrorizada. — Ele
matou aquele miúdo?
Cassie não respondeu. Meteu a mão livre no bolso e agarrou no
Livro das Portas. Concentrou-se num destino, um lugar longínquo, e
sentiu a sensação familiar nos braços e no fundo do estômago, a
forma como o Livro das Portas parecia mudar na sua mão, e depois
abriu a porta da casa de banho e viu uma rua noturna, sentiu o ar
fresco no rosto.
— Vamos — disse ela de novo, puxando Izzy pelo limiar da
porta.
Drummond correu para se juntar a elas, com o seu corpo magro
a mexer-se a uma velocidade surpreendente, os pés a bater no piso
de mosaicos e um esgar no rosto.
— Fecha-a! — ordenou Izzy, enquanto observava Drummond a
correr na direção delas e o homem careca mais atrás no deli.
— Esperem! — suplicou Drummond.
Cassie hesitou, sem saber o que fazer, mas Drummond parecia
aterrorizado, com os olhos arregalados e brancos. Ela não podia
deixá-lo para trás.
— Fecha-a depressa, antes que ele a alcance, Cassie! —
ordenou Izzy de novo.
Drummond passou pelo limiar da porta com um salto e caiu no
passeio à frente delas. Cassie fechou a porta no momento em que
uma expressão de surpresa atravessou o rosto do homem careca
no deli, quando este percebeu que talvez não estivessem apenas a
fugir para se esconderem na casa de banho.
Drummond levantou-se lentamente e sacudiu-se. Depois, exalou
um suspiro profundo, exsudando alívio por todos os poros, com os
braços a tremerem ao de leve. Olhou para elas, franzindo o sobrolho
para o seu próprio corpo.
— Pensei que me iam deixar lá — admitiu ele a Cassie. —
Obrigado.
— OK — disse Cassie, depois de algum tempo.
— Acreditam em mim agora quando digo que correm perigo? —
perguntou Drummond.
— Sim — admitiu Cassie. De repente, todo o seu corpo estava a
tremer, foi percorrida pelo choque e sentiu que só queria cair de
joelhos ou vomitar ou fazer as duas coisas ao mesmo tempo. —
Sim, corremos perigo.
A MULHER

A Mulher chegou a Atlanta depois de um voo noturno vindo de


Londres, oito horas presa num tubo com demasiadas pessoas.
Livrou-se do avião e atravessou rapidamente o aeroporto, irritada
por cada interação, até entrar no carro que tinha deixado
estacionado havia alguns dias, antes da viagem.
Era uma viagem curta até casa, duas horas a norte de Atlanta,
atravessando a Geórgia, em direção às montanhas Blue Ridge. Não
se importava de conduzir; na verdade, até gostava (tanto quanto lhe
era possível gostar de alguma coisa), porque era algo que podia
fazer sem ter de lidar com mais ninguém. Era isso que preferia. Nas
raras ocasiões em que não tinha outra escolha senão estar perto de
outras pessoas, em viagens internacionais, por exemplo, a Mulher
podia adotar um comportamento superficialmente normal para gerir
qualquer contacto humano que não pudesse evitar. Mas isso
deixava-a exausta, sendo tolerável apenas quando absolutamente
necessário.
A viagem a Londres tinha sido uma desilusão, e ter tido de
suportar todo o sofrimento da viagem de ida e volta para obter
poucos benefícios irritava-a. A única vantagem era o facto de mais
uma caçadora de livros ter morrido. E ela agora sabia que aquela
mulher — Marion — tinha, em algum momento, possuído o Livro da
Alegria, que neste momento se encontrava na Biblioteca Fox. Outro
livro especial guardado fora do seu alcance.
A Mulher não sabe o que teria feito se tivesse conseguido obter
o Livro da Alegria. Tê-lo-ia juntado à sua coleção, sem dúvida,
porque desejava todos os livros. Mas não tinha a certeza se a
alegria teria qualquer utilidade para si. A não ser que o livro pudesse
ser usado tanto para tirar alegria como para a dar. Isso poderia ter
sido interessante.
Enquanto conduzia, pensou nas possibilidades.
A sua casa ficava nas profundezas do bosque, no norte do
estado, nos confins do vale de Arkaquah. A casa era uma grande
cabana de madeira que tinha sido construída no final da década de
1990. Tinha três quartos no piso de cima, e uma grande cozinha,
uma sala de estar e uma casa de máquinas no piso térreo, com um
alpendre onde os pais costumavam sentar-se nas noites agradáveis.
A mãe e o pai da Mulher já tinham morrido, estavam enterrados
algures no bosque, nos vinte hectares de terreno anexos à
propriedade. Ela não chorou a morte deles. Mal pensava neles.
A maior parte da casa estava agora negligenciada, degradada e
a cair aos bocados, e vista de fora quase parecia abandonada. O
caminho de acesso desde a saída da estrada principal estava
coberto por vegetação por falta de manutenção, mas a Mulher não
se importava com isso, porque significava que a casa era quase um
lugar escondido e secreto.
Estacionou no caminho de acesso, desligou o motor e saiu para
o ar denso e húmido do fim da manhã. Subiu as escadas para a
cabana, destrancou a porta e entrou. A Mulher mantinha um quarto
para si, o quarto mais pequeno que sempre fora o seu. Fazia parte
do sótão, com paredes esconsas e janelas de claraboia, e era
espartano e limpo a ponto de um observador casual o poder
descrever como vazio. Quando ela era criança, o quarto tivera mais
coisas, os objetos que preenchiam a vida de uma rapariga. Mas a
Mulher já não era essa rapariga. Essa rapariga estava perdida, e a
maioria dos seus pertences tinha sido descartada há muitos anos.
Abriu as janelas para deixar entrar o sussurro das árvores. À
noite, a área em redor da cabana ficava negra como breu e, em
miúda, essa escuridão aterrorizava-a. Recusava-se a sair de casa
depois do anoitecer, especialmente sozinha, detestando o vasto e
desumano vazio do campo. Sempre quisera viver num lugar mais
luminoso e mais vivo, um lugar com mais pessoas e risos. Agora, as
coisas não podiam ser mais diferentes. A Mulher gostava de estar
sozinha e saboreava a escuridão e a solidão da noite no bosque.
Odiava a irritação que as outras pessoas lhe provocavam, o barulho
e a atividade, o cheiro.
A Mulher despiu as roupas que tinha usado durante o voo.
Gostava de roupas e de como elas assentavam no seu corpo.
Gostava de se vestir e de experimentar roupas diferentes, quase
como se o seu corpo fosse um brinquedo, como se não fosse seu.
De certa forma, ela sabia que essa era a verdade. O corpo pertencia
a Rachel Belrose, e a Mulher já não era essa pessoa, já não se
podia considerar ela.
Tomou um duche, livrando-se do cheiro das outras pessoas, e
vestiu uma camisa de dormir simples. Tirou quatro livros da mala —
o Livro da Velocidade, o Livro das Brumas, o Livro da Destruição e o
Livro do Desespero. Eram os seus livros preferidos, os livros que
usava com mais frequência, pelo menos, em parte, porque eram
fáceis de usar. Não lhe exigiam mais nada além de os ter na sua
posse. Outros livros exigiam que ela fizesse coisas específicas, ou
que os desse a pessoas em quem os quisesse usar. A Mulher
preferia estar livre de tais restrições, e normalmente descobria que
os seus livros preferidos eram tudo aquilo de que precisava.
Voltou a descer calmamente para o piso de baixo e, depois, à
cave. Ali, encontravam-se as entranhas do edifício, a caldeira e os
canos, madeira velha e ferramentas. Numa parede, ainda estava a
caixa de armas do pai, com as armas e as munições lá dentro. O pai
sempre gostara de caçar, mas não tinha gostado muito quando, nos
últimos dias da sua vida, a Mulher andara a caçá-lo com a sua
própria pistola. A Mulher tinha gostado de usar a arma nele, e
noutras pessoas nos anos que se seguiram. Tinha sido um
brinquedo divertido, até ela ter os livros.
A cave estava escavada na terra, e tinha um pavimento de
betão. Era iluminada apenas por uma simples lâmpada suspensa
num fio. A Mulher puxou o fio para a acender e a lâmpada oscilou
suavemente, espalhando a luz pelo chão. Num canto da divisão,
havia um colchão velho encostado à parede. A Mulher já tinha
usado aquele colchão, quando mantinha pessoas ali em baixo, para
fazer experiências com elas. Nos últimos anos, tinha experimentado
diferentes maneiras de usar o Livro do Desespero. Esse livro
sempre a intrigara — ela gostava da ideia de usar o desespero
como arma; de alguma forma, isso dizia-lhe muito. Lembrou-se de
quando usou o livro na criança em Londres e as suas entranhas
fervilharam. Provocara-lhe uma satisfação intensa. Ela tinha dado
àquela menina tanta dor, tanta miséria duradoura.
No canto oposto da cave, cimentado no chão, estava um velho
cofre de ferro. Pertencera à sua mãe, quando era viva. A mãe da
Mulher era veterinária e guardava certos medicamentos no cofre. A
Mulher nunca percebera porquê, e já não se importava com isso. Os
medicamentos tinham sido descartados havia muito tempo e o cofre
guardava agora apenas os seus pertences: os livros que colecionara
ao longo dos anos de caçada.
Abriu o cofre e depositou três dos seus livros ao lado dos seus
três irmãos, seis livros dos sete que possuía no total. Guardou
consigo o Livro do Desespero porque teve uma ideia no voo de
regresso de Londres, uma ideia de algo que podia experimentar
fazer com o livro. Fazia tenções de trabalhar nisso nos dias
seguintes.
A Mulher fechou o cofre e regressou ao seu quarto, onde dormiu
durante muitas horas, com o Livro do Desespero ao seu lado na
cama. Dormiu o sono dos mortos, sem sonhos.

No dia seguinte ao seu regresso de Londres, a Mulher começou a


pesquisar outros livros para caçar. Era isso que fazia. Ela existia, e
procurava livros. Tinha uma fome insaciável de livros, um buraco
dentro de si que só podia ser preenchido com a aquisição de mais
livros. Às vezes, quando era preciso, comia e dormia, mas comer,
em particular, era uma tarefa árdua para ela.
A Mulher começou a sua pesquisa percorrendo os vários fóruns
online secretos conhecidos pelos caçadores de livros e
colecionadores. Os livros estavam a tornar-se mais raros, tinha
consciência disso, o que tornava a caçada mais agradável. Quantos
menos livros houvesse no mundo, mais ela possuiria.
Às vezes, nas raras ocasiões em que refletia realmente sobre o
que andava a fazer e sobre quem era, perguntava-se o que faria
quando tivesse todos os livros. A motivação, a necessidade
insistente de encontrar e colecionar livros, isso era tudo o que a
definia. Porém, quando todos lhe pertencessem, o que faria com
eles?
Não gostava de pensar nesse tipo de questões, porque era
nesses momentos que se sentia mais vulnerável, quando sentia a
rapariga que tinha sido em tempos a observá-la das profundezas do
seu ser. Essa rapariga desesperava com a Mulher. Essa rapariga
gritava e berrava por causa de tudo o que tinha sido feito. Como
uma prisioneira num quarto sem janelas, a rapariga batia e socava e
empurrava as paredes, e só naqueles momentos calmos, quando a
Mulher se interrogava, é que conseguia ouvir a rapariga.
Era melhor não pensar, tinha plena consciência disso. Era
melhor concentrar-se na tarefa.
Havia mais livros por aí, mais proprietários para localizar e
destruir.
E havia a Biblioteca Fox.
Ela tinha visto o Bibliotecário uma vez, há muitos anos. Mas era
mais nova, e andava distraída com o prazer de matar e usar os
livros, e o Bibliotecário tinha sumido, desaparecendo no nada antes
que ela o conseguisse eliminar. Tinha sido uma boa noite, que
acabou por recompensar os seus esforços com três livros, mas ela
ainda sentia desilusão sempre que pensava em como ele lhe tinha
escapado. Que oportunidade perdida. Em todos os lugares onde
estivera, todos os caçadores de livros que encontrara, interrogara e
torturara desde aquela noite — ela fizera as mesmas perguntas:
Onde está o Drummond Fox? Onde fica a Biblioteca Fox?
Sabia que ele seria o grande prémio. Seria a chave para a
Biblioteca Fox, onde quer que fosse.
— Drummond Fox.
Ela raramente falava, quase nunca. Falar era uma função que
servia para promover o relacionamento com outros seres humanos,
e ela não tinha interesse nisso. Ainda assim, proferiu o nome do
homem, como uma promessa a si própria.
— Drummond. Fox.
Naquela noite, depois de completar a sua pesquisa e trabalhar com
o Livro do Desespero, retirou o Livro da Destruição do cofre na cave
e caminhou pelo bosque na escuridão, navegando por memória e à
luz do luar. Encontrou o local onde tinha enterrado o pai depois de o
ter matado. Ela tinha 16 anos, apenas alguns anos depois do
momento em que deixara de ser Rachel Belrose para ser o que era
agora. A sua mãe tinha vivido durante sete meses depois da morte
do pai, apenas porque a Mulher fizera experiências para saber
quanto tempo uma pessoa podia sobreviver.
Ela ficou impressionada com o que a sua mãe conseguiu
aguentar. A perda dos dedos das mãos e dos pés, dos membros,
dos olhos. A Mulher tinha adorado infligir dor à mãe, ainda mais do
que ao pai. Ela adorava a sensação de ver os outros a sofrer. Fazia-
a sentir-se viva. Foi quando torturou a mãe que a Mulher percebeu
que essa era a sua missão: trazer dor ao mundo, fazer sofrer os
outros seres vivos.
As últimas palavras da mãe, antes de a Mulher lhe ter tirado a
língua e os lábios, foram: «O que é que te fizemos para ficares
assim?» Uma pergunta que resultava de exaustão e derrota, uma
pergunta que não pretendia efetivamente obter uma resposta, e a
Mulher não deu nenhuma. Os seus pais não tinham feito nada para
a tornar o que ela era. Exceto, talvez, levá-la de férias a Nova
Iorque, levar a filha a um local onde, por acaso, ela passou a estar
no lugar errado à hora errada, para ser mudada.
A Mulher — ou talvez algum resquício da rapariga, naqueles
primeiros anos — tinha enterrado a mãe ao lado do pai, como se
pensasse que poderiam fazer companhia um ao outro na outra vida.
Os outros dezassete corpos espalhados pelo bosque não
tiveram a mesma sorte de ter companhia. Estavam sozinhos na sua
miserável eternidade. Mas a Mulher lembrava-se deles. Lembrava-
se de como cada um deles tinha sofrido, do som da sua dor.
Pensava neles muitas vezes. Neles e nas outras pessoas que ela
faria sofrer no futuro, na dor que infligiria.
Na escuridão, junto às campas dos pais, a Mulher ficou em
silêncio enquanto sentia a aragem roçar-lhe a pele. Ouviu o farfalhar
das folhas. Numa outra altura do ano, o bosque estaria vibrante com
o zumbido dos insetos, mas era inverno e a vida escondia-se e
hibernava. Para a Mulher, parecia que estava sozinha, mas ela
sabia que ainda havia vida lá fora. Nem tudo estava a dormir.
A Mulher fechou os olhos e agarrou no Livro da Destruição,
estendendo os seus sentimentos pelo mundo num círculo largo. A
sua mente era como dedos rastejantes, que encontravam os insetos
e os vermes, os pássaros nas árvores com as suas penas inchadas
para os manter quentes. Ela reteve todas estas coisas na sua
mente, e nas suas mãos o Livro da Destruição brilhou na escuridão,
iluminando o seu rosto a partir de baixo.
Então, a Mulher escarneceu, uma súbita explosão de fúria, de
necessidade, e o Livro da Destruição pulsou uma vez, uma erupção
furiosa de luz com a Mulher no seu centro, a estender-se cada vez
mais como ondulações num lago, e tudo aquilo em que tocava
morria subitamente. Os insetos na vegetação rasteira, as aranhas a
tecerem as suas teias. Todos eles cessaram, destruídos
instantaneamente pela Mulher e pelo livro.
Não houve gritos, não houve berros de agonia, mas a Mulher
sentiu toda a dor, a súbita ausência de vida, o momento de terror em
cada ser vivo ao saber que deixara de existir.
Quando a luz se dissipou na escuridão, quando o Livro da
Destruição se calou, a Mulher trauteou para si própria alegremente,
como alguém convidado para jantar saciado depois de uma
excelente refeição, e abriu os olhos para a escuridão.
Ela já tinha usado o Livro da Destruição desta forma uma vez, no
outono, quando o bosque estava mais animado. Daquela vez, fora
ainda mais prazeroso. Nessa altura, tinha ouvido os mamíferos
gritarem e berrarem, guinchando de agonia enquanto tremiam e
expiravam. Contudo, com o frio do inverno, havia menos mamíferos
agora.
Às vezes, a Mulher considerava usar o livro numa vila ou numa
cidade, onde não houvesse apenas insetos e animais. Ela
imaginava como seriam os gritos, mas perguntava-se se não seria
tudo demasiado repentino, demasiado rápido. Pensou em como
fazer com que as pessoas soubessem o que estava para vir, para
que ela pudesse sentir o seu terror enquanto se movia entre elas.
Eram estas as coisas em que pensava quando não estava à
procura de livros: como fazer com que o mundo cantasse de dor aos
seus ouvidos.
A Mulher deu meia-volta e caminhou novamente pela escuridão
silenciosa e morta até casa, acariciando o livro que trazia consigo
como se fosse um animal de estimação.
E, à sua volta, nada se mexia.
Segunda Parte

MEMÓRIAS
A CASA DAS SOMBRAS

N uma casa perdida no tempo, uma casa em lado nenhum, a


Biblioteca Fox esperava ser descoberta.
A casa situava-se nas margens de um lago no noroeste das
Terras Altas da Escócia, um edifício vitoriano que tinha sido uma
casa e depois um hotel, antes de ser comprada por Sir Edmund Fox
no início do século XX.
— Preciso de um sítio para guardar os meus livros dissera ele ao
agente imobiliário.
— É uma casa grande — assegurara o homem, enquanto os
dois estavam de costas para o lago, a admirar a construção.
— Eu tenho muitos, muitos livros — comentara Edmund.
A casa era um lugar estranho, mas não sem encanto. Era um
edifício cheio de escadas estreitas e recantos inesperados, janelas
altas que deixavam entrar a luz e permitiam ver ocasos majestosos.
Tinha tetos altos, soalhos irregulares e lareiras enormes que se
abriam como a boca de um dragão. E depois de Sir Edmund se ter
mudado, tinha livros.
No final da sua vida, os livros ocupavam todas as divisões da
casa, deixando espaço apenas para as janelas e portas e outros
elementos menos importantes, como os interruptores da iluminação
e os móveis. Os livros estavam por todo o lado, em estantes altas
ao longo das paredes e em prateleiras por cima das portas, em
mesas de apoio ao lado de poltronas confortáveis. Mas não eram os
livros comuns que tinham entusiasmado Edmund Fox durante a
maior parte da sua vida. O seu interesse tinha sido outro: o negócio
dos livros especiais.

Nascido no final do século XIX e criado nas classes altas da


sociedade britânica, Edmund Fox ansiara por escapar ao que
considerava ser uma existência entediante. Começou a sua vida
adulta com a ideia de se tornar um explorador. No decurso das suas
aventuras no sul da Europa e no norte de África, no início do século
XX, deparou-se com histórias sobre um livro especial que podia
transportar o leitor para onde ele quisesse ir. Alguns diziam que o
livro era uma relíquia do Antigo Egito, enquanto outros afirmavam
que era um produto de bruxaria e que era demoníaco. Fox, que
detestava tudo o que era moderno e científico e adorava tudo o que
sugerisse conhecimento antigo e oculto, começou a perseguir esse
objeto com considerável vigor. Seguiu pistas e ignorou becos sem
saída por toda a Europa e América do Norte, desperdiçando o
dinheiro da família em qualquer história ou boato. Encontrou
pessoas que diziam ter visto o livro, pessoas que diziam tê-lo usado,
e, embora a maioria dessas pessoas mentisse, não era o caso de
todas. Algumas deram informações suficientes para sugerir ou dar a
entender uma verdade oculta por detrás dos mitos e mistérios.
Quando já estava na casa dos 40 anos, Fox investiu a sua
considerável fortuna familiar na criação de uma organização secreta
dedicada a encontrar esse incrível objeto: a Biblioteca Fox.
Convencido da existência desse livro, Edmund Fox deu um salto
dedutivo e concluiu que deveriam existir outros livros e objetos
mágicos semelhantes, outras maravilhas escondidas do mundo
racional.
«Uma pessoa não olha para um cão e parte do princípio de que
é o único animal que existe», foram as palavras que o deixaram
célebre, na noite da primeira reunião do pequeno grupo de membros
da sua biblioteca. «Uma pessoa pondera que devem existir outros
animais, alguns que podemos ver facilmente, outros que nunca
esperamos ver. Estes livros são a mesma coisa. Se sabemos que
um existe, então os outros também devem existir, e vamos
empenhar-nos em encontrá-los. A Biblioteca Fox manter-se-á
durante toda a minha vida e depois dela, para preservar estas
maravilhas para toda a humanidade!»
O grupo de amigos e colaboradores de Fox — muitos dos quais
pensavam que ele estava louco, mas apreciavam as bebidas e a
boa companhia — aplaudiu e bateu na mesa, e a Biblioteca Fox
pôs-se a procurar livros mágicos durante o resto da vida de Edmund
Fox.
A Biblioteca Fox — a organização, mais do que a coleção de
livros — poderia ter definhado e morrido pouco depois da morte do
seu fundador e benemérito, não fosse por um acontecimento
surpreendente: a Biblioteca encontrou efetivamente o que
procurava. Não o livro lendário que tinha chamado a atenção de
Edmund Fox, mas outro livro, com capacidades igualmente
confusas e surpreendentes.
Em meados da década de 1920, apenas alguns meses antes de
Edmund Fox sucumbir finalmente à insuficiência hepática que o seu
consumo excessivo de álcool lhe tinha garantido, um dos
investigadores mais obstinados da Biblioteca descobriu um livro
especial. Como todos os outros livros semelhantes, era um caderno
fino, do tamanho certo para caber num bolso interior e
suficientemente inócuo para passar despercebido e ser ignorado. A
capa de couro era pintada em tons de cinzento-escuro e preto, só
percetíveis com a luz certa, e as margens das páginas do livro
estavam pintadas da mesma forma, como se tivessem sido
pulverizadas com tinta preta. Quando chegou ao conhecimento do
investigador de Fox, o livro estava na posse de um antigo soldado
britânico que obtivera sucesso a ganhar a vida como ladrão de joias
na Europa continental. O ladrão-soldado admitira ter encontrado o
livro, alguns anos antes, na biblioteca abandonada de uma
propriedade algures no interior de Inglaterra. Durante anos, o
homem levara o livro consigo e, durante esses anos, nunca tinha
sido apanhado enquanto se dedicava à sua atividade, nunca tinha
sido descoberto, nem mesmo nos assaltos mais audaciosos.
— No início não acreditei — disse ele ao investigador da
Biblioteca Fox, enquanto bebiam uns copos num restaurante francês
com vista para o golfo da Biscaia. O homem já era velho e há muito
que tinha desistido dos assaltos. — Olhe para isto, para o que diz.
— O homem abriu o livro e mostrou ao investigador a primeira
página. Havia algumas linhas de texto que o investigador leu
enquanto o homem falava. — Diz que é o Livro das Sombras —
disse ele. — Diz que, se eu rasgar uma página e segurar nesse
pedaço de papel, entro nas Sombras e ninguém me consegue ver!
O investigador anuiu com a cabeça.
— Que mais há no livro? — perguntou ele.
O homem encolheu os ombros e folheou algumas páginas,
mostrando densos rabiscos e manchas de tinta em muitas delas.
Por instantes, o investigador pensou ter visto o texto a mover-se ou
a tremer.
— Só disparates — disse o homem, cortando os pensamentos
do investigador. — Não importa o que está nas páginas. O que
importa é o que o livro faz! Quando rasgo uma página e a seguro na
mão, o livro começa a brilhar!
— Brilhar? — perguntou o investigador, com hesitação.
— Como fogo de artifício! — O homem anuiu. — Como uma
pequena nuvem de cores. E enquanto eu tiver o pedaço de página
rasgado na mão, ninguém me pode ver! Só quando eu o soltar e
regressar. E sabe que mais? Quando volto, não há páginas
rasgadas no livro. É como se ele se curasse sozinho!
O investigador da Biblioteca Fox não sabia se devia acreditar no
homem, mas pagou o livro com os recursos da Biblioteca,
recompensando o homem com uma fortuna para esbanjar nos
últimos anos da sua vida. Quando regressou à Biblioteca, o
investigador fez experiências com o livro, juntamente com outros
membros da equipa. Examinaram as páginas de texto e imagens
que pareciam flutuar, aparecer e desaparecer. Estudaram as
propriedades do livro, notando como parecia ser mais leve do que
deveria ser. E experimentaram rasgar pedaços das páginas,
tentando fazer com que o livro fizesse realmente o que o antigo
dono tinha afirmado que podia fazer. Demorou alguns dias, com
diferentes pessoas a tentar repetidamente, até que um dos
membros da equipa simplesmente desapareceu, e depois
reapareceu prontamente, com a mão aberta e um pedaço de papel
a desintegrar-se no ar.
— Que estranho! — exclamou o homem.
As outras pessoas presentes na sala também acharam estranho,
mas a sua excitação rapidamente ultrapassou o choque e o livro
passou a ser o Item 001 no catálogo da Biblioteca Fox.
Isso foi o início de tudo. O Livro das Sombras foi a validação da
obsessão de Edmund Fox e a legitimação do objetivo da Biblioteca
Fox. Edmund Fox foi para o túmulo sabendo que tinha provado que
os céticos estavam errados, legando toda a sua considerável fortuna
à Biblioteca, cuja gestão tinha passado para a sua sobrinha e para o
seu sobrinho, filhos da sua irmã mais nova.
Ao longo das décadas do século XX, a Biblioteca Fox continuou a
desenvolver a sua atividade, procurando e investigando livros
especiais, tendo como base a casa de campo de Edmund Fox, na
sua propriedade escocesa. Ao longo dos anos, foi sendo construída
uma coleção significativa, dezassete livros no total, tendo o Livro
das Sombras sido um aliado nesse trabalho, uma ferramenta a ser
utilizada por um ou dois investigadores que conseguiam usá-lo,
sempre que necessário. Todos os livros partilhavam qualidades
semelhantes às do Livro das Sombras: tamanho semelhante, texto
denso semelhante em línguas ilegíveis e esboços e rabiscos
enigmáticos, e peso igualmente inexplicável. Alguns dos livros
tinham notas na primeira página que descreviam o que eram ou o
que conseguiam fazer, mas outros não tinham, e o objetivo e as
capacidades de vários dos livros permaneciam desconhecidos,
talvez à espera do leitor certo para desvendar o seu mistério. A
Biblioteca tinha notado como o conteúdo de muitos dos livros
parecia mudar e evoluir, como se estivessem de alguma forma
vivos, respondendo às circunstâncias, talvez procurando o leitor
certo para recompensar com as suas riquezas.
Durante os dias mais negros da Segunda Guerra Mundial, a
Biblioteca Fox, enquanto organização, caiu intencionalmente na
obscuridade, decidindo que era melhor manter as suas atividades e
bens longe da luz, mas a biblioteca de livros especiais permaneceu
escondida na casa de campo de Fox.
No início do século XXI, Drummond Fox, o único descendente do
sobrinho de Edmund Fox, era o Bibliotecário, a pessoa responsável
por cuidar da coleção de livros especiais e por continuar a procurar
outros. A vida tranquila na Biblioteca Fox, na costa ocidental da
Escócia, agradava-lhe. Adorava livros, especiais ou vulgares, e
podia passar semanas sozinho a ler ou a estudar ou a tentar
compreender tudo o que os livros especiais podiam fazer.
Ocasionalmente, aventurava-se e travava amizade com outras
pessoas de outras partes do mundo, cada uma das quais tinha os
seus próprios livros especiais. Eram pessoas que partilhavam os
interesses de Drummond, mas também a sua perspetiva de que os
livros especiais deviam ser mantidos em segurança, longe daqueles
que os poderiam utilizar para fins errados. Eram objetos de museu,
para serem estudados e compreendidos, mas para serem usados
apenas raramente, ou mesmo nunca.
Mas então o mundo tornou-se um lugar muito mais perigoso. Do
nada, surgiu uma ameaça, e quando os amigos de Drummond
foram massacrados no parque de Washington Square e os seus
livros lhes foram roubados, ele soube que a existência da Biblioteca
Fox já não era segura. Drummond viajou de regresso à Escócia,
tendo o Livro das Sombras como aliado na sua fuga, e escondeu-se
na Biblioteca Fox, sabendo que o terror poderia segui-lo até lá. Por
isso, usou o Livro das Sombras de uma forma que nunca tinha sido
tentada antes: fez com que toda a casa onde se encontrava a
Biblioteca Fox saísse da realidade e fosse para as Sombras, um
lugar aonde era impossível chegar. Tornou-se uma casa no nada,
uma casa à espera de ser visitada e uma biblioteca de livros à
espera de serem abertos e lidos. A casa continuava a existir, com
todos os seus livros e móveis, as suas janelas e portas, mas não
havia maneira de a alcançar agora, não nas Sombras.
A não ser, claro, que alguém conseguisse abrir uma das portas
interiores a partir de um local completamente diferente.
Se alguém tivesse o Livro das Portas.
CAFÉ EM LYON

M antiveram-se postados na rua a recuperar o fôlego e a olhar


em redor.
Estavam junto a um rio largo, com árvores altas inclinadas para a
água como bailarinas em fila. Os ramos das árvores estavam
despidos, mas as folhas caídas juntavam-se ao longo da berma em
montes cor de laranja e castanhos. Estava escuro, mas a
madrugada estava prestes a chegar, o céu noturno já se iluminava
ao longe, e Cassie conseguia distinguir os edifícios estreitos que
ladeavam a outra margem do rio, pintados de laranja, amarelo e
creme.
Drummond arqueou-se para trás para esticar a coluna, como se
tivesse distendido um músculo quando caiu pela porta, e perguntou:
— Onde é que estamos?
— Lyon — disse Cassie, percebendo que alguma parte da sua
mente que não ficara petrificada em choque conseguia conjurar as
palavras que sua boca produzira. — Estive aqui há alguns anos.
— Sempre gostei de França — disse Drummond, falando mais
para si próprio, como se estivesse perdido em memórias de tempos
mais felizes. Depois olhou para Cassie e Izzy. — Têm uns bolos
ótimos. Vamos, temos de encontrar comida. Temos de comer.
— Ainda é cedo — observou Cassie. — Talvez não encontremos
nada aberto.
— Vamos tentar — disse Drummond.
Izzy não parava de olhar ora para um ora para o outro.
— Aquele homem andava a atirar pessoas pelo ar! — exclamou
ela. — Como é que ele estava a fazer aquilo?
Um ciclista passou por eles a alta velocidade, arrastando uma
cortina de ar atrás de si e olhando para os americanos barulhentos
com o sobrolho franzido.
— Vamos lá — insistiu Drummond. Ele começou a andar antes
de esperar por uma resposta e Izzy voltou o seu olhar para Cassie.
— Cassie, isto é uma loucura! Aquele homem…!
Cassie anuiu, tentando apaziguar Izzy, mas estava a ter
dificuldade em juntar palavras. Em vez disso, foi atrás de
Drummond. Izzy revirou os olhos, insatisfeita, mas seguiu-a.
Caminharam ao longo do rio em silêncio durante alguns minutos,
passando por poças salpicadas de amarelo pelos candeeiros de rua
e a sentirem a brisa de inverno a entranhar-se-lhes nos ossos.
Havia sinais de que a cidade estava a acordar: algumas pessoas
que já circulavam pelas ruas, os faróis dos carros que passavam,
mas tiveram de caminhar um pouco até encontrarem um local onde
pudessem beber qualquer coisa. Era um pequeno café que acabava
de abrir para o dia, uma porta de luz quente e uma mulher a
manobrar mesas e cadeiras no pavimento, uma dança estranha que
envolvia demasiadas pernas e uma música de coisas que se
entrechocavam ao serem arrastadas.
— Isto serve — decidiu Drummond. Aproximaram-se e
Drummond indicou uma das mesas à mulher enquanto ela se
retirava para o interior do café. Ela anuiu com a cabeça em sinal de
concordância.
Drummond puxou duas cadeiras e fez sinal para Cassie e Izzy
como faria um empregado de mesa, depois sentou-se no lado
oposto da mesa e virou os olhos para o rio, com o nariz levantado
como um cão a farejar o ar. Cassie deu-se conta de que estava a
tremer, com a adrenalina e o choque a percorrerem-lhe o corpo.
Olhou para as suas próprias mãos, a tentar impor-lhes a sua
vontade de modo que acalmassem.
A mulher voltou a sair do café e saudou-os com um «Bonjour!»
cantarolado que parecia o som da campainha de uma porta.
— Cafés? — perguntou Drummond, e tanto Cassie como Izzy
anuíram com a cabeça.
— Três cafés? — disse a mulher, passando para inglês com a
facilidade de uma pessoa habituada a turistas.
— Suponho que não tenha whisky? — tentou Drummond,
semicerrando os olhos.
A mulher esboçou um sorriso enigmático e depois olhou
ostensivamente para o relógio.
— Non, monsieur.
— Croissants? — perguntou Drummond. — Temos de comer.
— Oui. — A mulher assentiu e desapareceu no interior do café
com um sorriso no rosto, como se Drummond a tivesse divertido.
Cassie observava tudo isto como se estivesse à distância, a
acontecer a outra pessoa. O mundo parecia muito distante, e a sua
mente parecia paralisada. Reproduzia imagens — o homem careca
a pontapear a cabeça do empregado, a atirar móveis ao ar
magicamente —, e o seu estômago estremecia com cada
recordação.
Izzy estendeu a mão para Cassie e agarrou-lhe no braço, talvez
sentindo o que a amiga estava a sentir. Entreolharam-se, ambas à
procura de conforto depois da experiência aterradora que tinham
acabado de viver.
— Quem era aquele homem? — perguntou Cassie a Drummond.
A voz dela soava normal, sem revelar nada do choque que vibrava
nos seus membros.
— Hugo Barbary — retorquiu Drummond. — É um homem
horrível. Lamento que tenham passado por aquilo. — Ele suspirou,
expirando arrependimento para o ar. — Quem me dera
sinceramente que ele não tivesse estado lá.
Cassie anuiu com a cabeça, aceitando o pedido de desculpas, e
deu pelo seu olhar a fixar-se nos olhos escuros de Drummond. A
quietude neles acalmava-a.
— Mas quem é ele? — perguntou Izzy. — Como é que ele
consegue fazer aquelas coisas?
Drummond desviou o olhar para a outra margem do rio, muito ao
longe.
— É um caçador de livros.
— Um caçador de livros? — perguntou Cassie. — O que é isso?
Drummond olhou para ela com olhos semicerrados.
— O termo percebe-se perfeitamente, não é? Ele caça livros.
— Ele deu um pontapé na cabeça do rapaz — disse Izzy. — Foi
tão horrível. Ele não precisava de ter feito aquilo!
A imagem voltou a surgir na mente de Cassie quando Izzy falou,
e ela estremeceu e fechou os olhos, tentando afastá-la. Teria o
rapaz morrido por causa dela? Estaria ele ainda vivo se Cassie
tivesse levado Izzy a comer noutro sítio? A culpa era uma massa
amarga em franca formação no fundo da sua garganta. Ela tentou
engoli-la.
— Não — concordou Drummond. — Mas é esse o tipo de
homem que ele é. — Abanou a cabeça. — Aquele pobre rapaz foi
apenas mais uma vítima do Hugo Barbary.
Permaneceram sentados em silêncio, cada um deles a recordar
o que tinha acabado de acontecer.
Então, Drummond olhou para Cassie e perguntou:
— Há quanto tempo é que tem o livro? Porque abriu a porta para
aqui com rapidez. Com facilidade.
Cassie abanou a cabeça lentamente. Ela não queria responder a
perguntas.
Não queria simplesmente falar como uma pessoa normal, como
se não tivessem acabado de acontecer coisas horríveis.
A dona do café reapareceu com um tabuleiro de bebidas apoiado
numa mão.
— Bon, aqui estão os três cafés — disse ela, pousando as
bebidas. — E três croissants.
— Eu compreendo — disse Drummond a Cassie, enquanto a
mulher desaparecia no interior do café. Cassie encontrou os olhos
dele, cheia de ceticismo, mas as suas dúvidas dissiparam-se
quando ele olhou para ela. Ele anuiu com a cabeça uma vez. — É
horrível, eu sei. Não quero parecer insensível. — Ele empurrou um
dos croissants na direção dela, e depois outro na de Izzy. — Vocês
têm de comer — disse-lhes.
Cassie olhou para o croissant com ar de dúvida. A boca só lhe
sabia a culpa e a medo. Ela achava que não conseguiria comer.
— Isto vai ajudar — insistiu Drummond, na sua voz calma. —
Confie em mim, eu sei. Neste momento, está em choque. O seu
corpo está a bombear adrenalina. Precisa de comida, precisa de
energia. Isto vai ajudá-la a recuperar.
Izzy já estava a comer — era uma mulher que nunca precisava
de ser encorajada quando se tratava de comida. Drummond fez o
mesmo, observando Cassie enquanto mastigava, com migalhas nos
lábios. Finalmente Cassie cedeu, levantando o croissant para lhe
dar uma dentada. Era bom: quente, amanteigado e folhado.
— Ótimo — murmurou Izzy.
— É, não é? — concordou Drummond, nitidamente deliciado
com o prazer de Izzy. — Adoro croissants em França.
Os três comeram num silêncio sociável durante algum tempo,
sentados na nesga de luz que aquecia o passeio em frente ao café.
Drummond bebeu um pouco do seu café, reclinou-se na cadeira e
fechou os olhos por breves instantes.
— Lamento ter-vos conhecido nestas circunstâncias — disse ele.
— Não era o que eu queria. Mas talvez seja bom.
— Bom? — perguntou Cassie, arqueando uma sobrancelha. —
Acho que não há nada de bom no que acabou de acontecer.
— Não, não foi isso que quis dizer — corrigiu-se Drummond,
abrindo os olhos. Abanou a cabeça para si próprio, como se
estivesse aborrecido por não estar a comunicar bem. — Quero dizer
que é bom que tenham visto como é perigoso. Sabem que têm de
levar a ameaça a sério.
— Não cheguei a comer a minha tosta — murmurou Izzy, como
se não tivesse estado a ouvir. — Antes de aquele homem chegar.
Cassie pegou em migalhas de croissant, apercebendo-se de que
se sentia um pouco melhor. O seu coração parecia estar menos
acelerado, e a sua boca já não lhe sabia só ao amargor da culpa.
— Foi tão violento — disse ela. — Porque é que ele tem de ser
assim?
— Porque é que qualquer pessoa tem de ser assim? —
perguntou Izzy, desviando o olhar para a vista.
Permaneceram todos em silêncio durante alguns instantes e
Cassie aproveitou para respirar e olhar em redor. O céu estava
lentamente a adquirir um azul mais profundo ao longe, à medida que
a noite se transformava em dia. À sua volta, ouviam-se os sons da
cidade a acordar: camiões de entregas, pessoas a conversar e o
barulho de chávenas e pires dentro do café. Era absurdo, pensou
ela. Dez minutos antes, ela estava a fugir da violência e agora
encontrava-se a saborear um café e um croissant a um oceano de
distância. Este é o propósito do Livro das Portas, pensou ela,
viagens, maravilhas e prazeres, e não homens violentos a atirarem
mobília de um lado para o outro.
— Quero ajudar-vos às duas — disse Drummond. — Mas eu sei
que é muita coisa para assimilar. Tudo o que acabou de acontecer.
O que é que eu tenho de fazer para que confiem em mim? Para que
me deixem ajudar-vos?
Cassie refletiu sobre a questão. Era uma manhã fria, mas ela
estava a usar o seu velho sobretudo e o seu cachecol de lã enrolado
ao pescoço, e sentia-se quente e confortável na cadeira, com o café
no estômago e o sabor do croissant nos lábios. Perguntou-se como
é que se podia sentir tão confortável tão cedo depois do que tinha
acabado de viver, mas não tinha resposta.
— Tem de responder a algumas perguntas — disse Cassie.
— Que perguntas? — quis saber Drummond. — O que é que
querem saber?
— Os livros — disse Cassie. — Fale-nos dos livros. O que é que
eles são?
— São livros — respondeu Drummond, encolhendo os ombros
como quem desconsidera a questão. Bebeu um gole de café e
passou com a língua pelos dentes. — Não sabemos o que são, nem
de onde vieram. Mas as pessoas sabem da existência deles talvez
há uns cem anos. Primeiro eram mitos e mistérios, histórias sobre
pessoas que conseguiam fazer coisas invulgares e incríveis, mas
depois acabaram por perceber que eram os livros. Primeiro um livro,
e depois outro. E depois, ao longo do século passado, começaram a
perceber que esses livros existiam, que podiam fazer coisas.
— Mas o que é que eles são? — insistiu Izzy. — E não diga «são
livros».
— São… — Drummond pensou por alguns instantes, tentando
encontrar a palavra certa, erguendo os olhos para o céu. — São
mágicos — respondeu. Sorriu como se estivesse envergonhado,
com os olhos a brilharem, e, naquele instante, Cassie achou-o
bonito. — Eu sei como isso soa.
— Mágicos — repetiu Cassie.
— Não gosto da palavra — disse Drummond. — Faz-me pensar
em números de má qualidade num teatro de variedades. Mas não
há uma maneira melhor de os descrever. Cada livro concede a
quem o possui uma habilidade, um poder. O que quer que lhe
queiram chamar.
— Quantos livros há? — perguntou Cassie.
Drummond encolheu os ombros.
— Quem sabe? Alguns foram encontrados, mas provavelmente
há outros por aí. Há rumores e histórias sobre outros livros. Algumas
dessas histórias serão apenas fantasias, outras serão baseadas na
verdade. Como o Livro das Portas. É um dos livros de que sempre
se falou, mas até agora ninguém foi capaz de provar a sua
existência.
Cassie anuiu com a cabeça, absorvendo aquilo e muito
consciente do peso do Livro das Portas no seu bolso.
— Onde é que o obteve? — perguntou Drummond.
— Ei, nós é que fazemos as perguntas — respondeu Izzy.
— Conte-me sobre os caçadores de livros e aquele homem no
deli — pediu Cassie, ignorando a pergunta de Drummond.
— O que é que eu posso dizer? — interrogou-se Drummond. —
Os livros são objetos extraordinários, em todos os sentidos da
palavra. As pessoas que os conhecem pagam muito para os
possuir. Os livros mudam de mãos em troca de fortunas. Ou do
derramamento de sangue. Algumas pessoas, o tipo errado de
pessoas, querem-nos pelas razões erradas.
— Disse «pessoas que conhecem os livros»…? — perguntou
Izzy. — Então são poucas as pessoas que os conhecem? Como é
que uma coisa destas não é mais conhecida? Isso é uma loucura. A
magia é real e ninguém sabe?
— Respondeu à sua própria pergunta — disse Drummond. — É
realmente uma loucura. É magia. Aqueles que sabem disso querem
que se mantenha em segredo. É poder. Eles suprimem todo o
conhecimento para guardarem o poder para si.
Izzy lançou a Cassie um olhar conhecedor.
— Eu disse-te! Não admira que não tenha aparecido no Google.
Está tudo a ser retido.
— O que é que procurou no Google? — perguntou Drummond,
inclinando a cabeça para o lado.
— Pesquisei o livro no Google — respondeu Izzy. — O Livro das
Portas. E sabe que mais? Não houve resultados. Nenhum resultado.
Drummond comprimiu os lábios pensativamente por alguns
momentos.
— O que foi? — perguntou Cassie, lendo a preocupação na
expressão dele.
Ele hesitou em responder, e Cassie percebeu naquele momento
que ele estava a tentar protegê-las. Era um homem a debater se
devia ou não revelar uma verdade preocupante.
— O que foi? — insistiu ela.
— Significa que as pessoas vão saber — disse Drummond. —
As pessoas vão andar à vossa procura agora. Terão seguido o rasto
das vossas buscas. Eles suprimem todo o conhecimento dos livros.
Mas estão todos atentos a qualquer sinal de que alguém saiba.
Quando pesquisou «Livro das Portas» no Google, devem ter-se
erguido bandeiras por todo o mundo.
Cassie olhou de relance para Izzy e viu o choque a surgir no seu
rosto.
— Eles conseguem localizar-me através de pesquisas na
Internet?
Drummond anuiu com a cabeça.
— Sim. Tenho muita pena. Eles têm formas de a encontrar. As
forças da lei conseguem localizá-la, por isso estas pessoas
conseguirão de certeza. Elas são motivadas e ricas.
Izzy olhou para Cassie.
— Peço imensa desculpa, Cass. A culpa é minha. A culpa é toda
minha.
Cassie estendeu a mão para tocar no braço de Izzy.
— Não te preocupes.
— Quem são «estas pessoas»? — perguntou Izzy. — Está
sempre a dizer «estas pessoas».
— Grupos diferentes — esclareceu Drummond. — Caçadores e
colecionadores de livros. Governos.
— Os governos sabem disto? — perguntou Izzy.
— Alguns. — Drummond anuiu com a cabeça. — Algumas
pessoas nalguns governos. Mas a maioria são privados.
— Que tipo de pessoas? — perguntou Cassie. — Aliás, será que
eu quero saber?
— Terroristas. Senhores da guerra. Colecionadores de arte.
Alguns deles são pessoas terríveis, outros não são mal-
intencionados. Estes livros fazem lembrar as armas e o poder: são
sempre as pessoas erradas que acabam por lhes deitar a mão. E
elas vão querer o seu livro, Cassie. É uma peça incrivelmente
valiosa, um livro que as pessoas estão a tentar encontrar há mais de
um século. Imagine o que as pessoas poderiam fazer com o Livro
das Portas. — Ele baixou os olhos para o seu prato, para as últimas
migalhas do croissant, como se desejasse comer outro. — Há
sempre alguém feliz por usar um livro pelas razões erradas.
— Como aquele homem no deli? — perguntou Izzy.
Drummond anuiu com a cabeça.
— Ele não andava à vossa procura. Ele não vos encontrou por
terem feito pesquisas na Internet. Peço imensa desculpa. A culpa é
minha por ele lá ter estado. Ele estava a seguir-me.
— Como é que ele conseguia fazer aquilo? — perguntou Izzy. —
Atirar aqueles corpos de um lado para o outro?
— Ele tem um livro — disse Drummond. — Mais de um,
provavelmente, mas tem sem dúvida o Livro do Controlo. Era o que
ele tinha na mão. Permite-nos controlar objetos, movê-los, atirá-los.
O Hugo Barbary é muito bom a usar livros, infelizmente.
— Como assim, ele é bom a usar livros? — perguntou Izzy. —
Tipo, há pessoas que não são?
Drummond confirmou.
— Em princípio, toda a gente consegue usar os livros, mas
algumas pessoas têm mais dificuldade. Há quem ache que usar
alguns livros é muito fácil, mas tem dificuldade com outros. Algumas
pessoas, talvez como o Hugo Barbary, são naturalmente boas com
os livros e parecem ser capazes de usar a maioria dos livros quase
imediatamente.
— Porquê? — perguntou Cassie.
Drummond encolheu os ombros.
— Quem sabe? Porque é que algumas pessoas têm uma voz
perfeita? Porque é que algumas pessoas conseguem desenhar e
outras não? Toda a gente pode tentar tocar um instrumento musical,
mas nem todos conseguem ser pianistas de concerto. É uma
caraterística humana, não é? Mas a questão é que, agora que o
Hugo sabe que tem o Livro das Portas, é quase certo que virá atrás
de si. E para onde ele for, outros seguir-se-ão. Vocês correm perigo
de vida.
Cassie anuiu lentamente, a responsabilidade e as implicações a
assentarem nela como um edredão pesado num dia quente, algo de
que ela queria libertar-se.
— Mas quem é o senhor? — perguntou Izzy. — Está aqui a falar-
nos de toda essa gente, mas nós não sabemos quem é.
Drummond anuiu com a cabeça.
— Sim, eu sei. A minha história é longa, e não temos tempo para
a contar agora. Só preciso que confiem em mim. Eu não sou como
aquele homem que viram.
— Bem, essa é uma resposta vaga e totalmente insatisfatória —
replicou Izzy, recostando-se e cruzando os braços.
Drummond anuiu com a cabeça, como se concordasse, mas não
disse mais nada. Em vez disso, os seus olhos viraram-se para
Cassie e perguntou:
— Posso vê-lo? O seu livro? — Cassie não disse nada, sem
saber como responder, sem conseguir avaliar o risco. — Eu não lho
roubo. Prometo.
Izzy soltou uma gargalhada cética.
Cassie olhou Drummond nos olhos, sem desviarem o olhar, a
tentar avaliá-lo e às suas intenções. Depois, levou a mão ao bolso e
tirou o livro, Izzy sempre a observá-la. Pousou-o na mesa e
empurrou-o na direção dele.
— Tinha uma nota escrita quando o recebi — disse Cassie,
enquanto Drummond examinava o livro. — Uma mensagem da
pessoa que mo deu.
Drummond anuiu, olhando para o livro com uma careta.
— A escrita não perdura nos livros. Desaparece ao fim de algum
tempo. Exceto a escrita que está no próprio livro.
— Porquê?
— Quem sabe? — disse Drummond, semicerrando os olhos,
perplexo, enquanto olhava para o Livro das Portas. — Alguém lhe
deu isto?
Cassie disse que sim.
— Quem?
— Foi só um homem. Eu trabalho numa livraria. Ele deu-mo de
presente.
— Que homem?
— Não importa. Ele morreu.
Os olhos de Drummond voltaram a encarar Cassie, a fazerem
uma pergunta a que ela não respondeu. Voltou a concentrar-se no
livro, explorando-o em silêncio durante algum tempo, abanando
ligeiramente a cabeça para si próprio, como se estivesse a ver algo
em que não podia acreditar ou que não conseguia compreender.
Depois fechou o livro e empurrou-o novamente na direção dela,
do outro lado da mesa. Mas os seus olhos não o deixaram. Os seus
olhos permaneceram fixos no livro até ele desaparecer de novo no
casaco de Cassie.
— Então, o que é que fazemos agora? — perguntou Izzy. — Se
as pessoas perigosas vão andar à nossa procura, podemos ir para
casa? Eu tenho um emprego. Tenho contas para pagar, não posso
viver em França o resto da minha vida.
Drummond pensou por momentos em silêncio, batucando com
os dedos no tampo da mesa.
— Eu posso ajudar-vos — acabou por dizer. — Posso fazer com
que tudo se resolva, se confiarem em mim. Consigo fazer com que
tudo isto desapareça. Mas preciso da sua ajuda em troca. Preciso
que me deixe fazer uma coisa.
— O quê? — perguntou Cassie.
— Preciso de destruir o Livro das Portas — disse ele.
O LIVRO DAS MEMÓRIAS

— O quê?——Podíamos
perguntou Cassie.
vendê-lo a si. Quanto é que daria por ele?
— perguntou Izzy, e Cassie lançou-lhe um olhar cortante.
— Não vai destruir o meu livro — insistiu Cassie. — E também
não o vou vender.
Drummond anuiu com a cabeça para si próprio.
— Não esperava que concordasse com isso. É um pedido
chocante, eu compreendo perfeitamente. O livro é precioso para si.
— Foi uma prenda — disse Cassie. — De um amigo.
— Eu entendo — repetiu Drummond. — Todos os livros são
preciosos. Acredite em mim, eu sei. Particularmente estes livros.
Mas a Cassie não compreende como esse livro é perigoso. Não me
refiro apenas a si e à Izzy, refiro-me a toda a gente.
— Como é que o iria destruir? — perguntou Izzy, ignorando
Cassie.
— Queimava-o — informou Drummond. — Os livros queimam-se
sem dificuldade. Provavelmente porque são velhos.
— Não o vai destruir — disse Cassie, com a voz calma. Sentiu-
se a tremer novamente, como se os efeitos benéficos do croissant
estivessem a passar.
Drummond olhou-a nos olhos por um momento, como se
estivesse a tentar avaliar a força do seu sentimento.
— Há outros livros — disse ele. — Talvez haja mais alguma
coisa que eu possa fazer por si, alguma coisa pela qual eu possa
trocá-lo?
— Pode transformar os nossos sonhos em realidade, Sr. Fox? —
perguntou Izzy, a brincar. — Podia fazer-me rica e famosa? Podia
fazer de mim uma estrela de cinema?
— Quer ser uma estrela de cinema? — perguntou Drummond,
como se fosse uma possibilidade que ele estivesse a considerar.
— O quê? — perguntou Izzy, chocada. — Está a falar a sério?
— A decisão é da Cassie — disse ele. — Qual seria o seu
sonho, Cassie?
A resposta foi imediata para Cassie, não exigiu qualquer
reflexão.
— Gostava de voltar a falar com o meu avô. — Drummond
inclinou a cabeça, sem perceber. — Ele morreu — explicou ela. —
Há muitos anos. Mas acho que não consegue ressuscitar os mortos,
pois não?
— Eu gostava de ser feliz — disse Izzy. — Eu sei que é infantil.
Se me tivessem perguntado há cinco anos, eu teria dito que queria
ser uma estrela de cinema. Mas agora acho que só quero ser feliz.
Com alguém que ame e com filhos, e gostava de viver num sítio
bonito. Meu Deus, ouçam só o que estou para aqui a dizer, estou a
ficar tão chata.
— Os jovens têm os sonhos mais exuberantes — murmurou
Drummond, mais para si próprio. — Sem as amarras da vida e da
realidade.
Cassie e Izzy entreolharam-se. Apareceu, então, um casal
jovem; afastaram as cadeiras fazendo-as raspar no chão e
sentaram-se na mesa ao lado da deles. Cassie e Izzy trocaram
sorrisos educados com eles, enquanto a mulher do café aparecia e
os saudava com o seu Bonjour! cantarolado.
— Ouça, esqueça os nossos sonhos — disse Cassie. — O que é
que fazemos em relação àquele homem na mercearia? Tem de nos
ajudar com isso e depois talvez possamos falar sobre a razão pela
qual o livro é tão perigoso.
Drummond anuiu com a cabeça.
— Muito bem, então — disse ele. — Primeiro, temos de
regressar a Nova Iorque. Há algumas coisas que tenho de fazer que
vos vão ajudar, mas temos de estar em Nova Iorque. Podemos ir,
agora?
Cassie assentiu.
— OK — disse ela.
— Deixem-me só pagar isto — disse Drummond, a acenar para
os cafés.
Levantou-se e desapareceu no interior do pequeno café.
— O que é que achas? — perguntou Cassie, quando ficaram a
sós.
Izzy encolheu os ombros.
— Não sei, Cass. Só quero que a vida volte a ser normal. Aquele
homem no Ben’s assustou-me.
— Sim — concordou Cassie. O seu cérebro obrigou-a a ver o
homem careca a pontapear o empregado novamente, e mais uma
vez o seu estômago encolheu-se. — Confias nele? — perguntou
Cassie, acenando com a cabeça para o lado do café, na direção de
Drummond.
— É mais não desconfiar dele — disse Izzy. — Ele parece
simpático. E não tentou nada suspeito até agora. Mas sabes que
mais, Cassie? Ele é apenas um. Aquele Dr. Barbary é outro. Vai
haver mais. Esse livro que trazes por aí contigo… As pessoas vão
fazer coisas terríveis para o conseguir. Eu disse-te, nada de bom
virá disso.
Cassie anuiu com a cabeça.
— Mesmo apesar de teres sido tu a contar ao mundo, quando
pesquisaste no Google?
Arrependeu-se imediatamente das palavras que lhe saíram da
boca. Izzy encarou-a como se tivesse levado uma bofetada. Cassie
estendeu o braço para pedir desculpa com um toque, mas Izzy
virou-lhe as costas quando Drummond saiu do café, e o momento
passou.
— Vamos — disse ele.

Encontraram uma passagem numa viela empedrada, uma porta


destrancada que parecia levar a um corredor estreito, e Cassie usou
o Livro das Portas para a atravessar e entrar no seu próprio quarto
em Nova Iorque, a meio da noite. Atrapalharam-se no espaço
reduzido até todos conseguirem passar pela porta de saída de Lyon,
depois Cassie fechou a porta e o apartamento ficou subitamente
silencioso. Voltou a abrir a porta, verificando que estava normal, e
conduziu todos para a sala de estar. Era estranho estar de regresso
a casa, ao seu espaço seguro e confortável, depois do que tinham
visto na última hora.
— E agora? — perguntou Cassie, acendendo a luz da cozinha.
— Qual é o plano?
Drummond começou a mexer no casaco, como se estivesse à
procura de alguma coisa.
— Precisamos de fazer duas coisas — disse ele, tirando um livro
de dentro do casaco. — Em primeiro lugar, quero mostrar-vos o
segundo livro que tenho. E depois quero mostrar-vos exatamente o
que o Livro das Portas consegue fazer.
— Que segundo livro? — perguntou Cassie.
— Segura nisto, por favor — disse ele, passando o livro a Izzy.
Ela pegou nele com as duas mãos e olhou para o objeto, de olhos
baixos, como uma pessoa nervosa a ler um guião. A capa do livro
era cinzento-clara, lembrando uma nuvem carregada de chuva.
— O meu segundo livro — prosseguiu ele, dirigindo-se a Cassie
— é o Livro das Memórias.
— O que é que ele permite fazer? — perguntou Cassie.
— Consegue fazer uma série de coisas — explicou Drummond.
— Pode ajudar-nos a esquecer coisas ou a lembrarmo-nos delas.
— Como se tivesses perdido alguma coisa e estivesses a tentar
encontrá-la? — sugeriu Cassie.
Drummond sorriu.
— Um pouco mais do que isso. Usei-o uma vez com uma pessoa
que sofria de demência — disse ele. — Trouxe-a de volta para a
família, apenas por algumas horas.
— Uau! — exclamou Cassie.
Drummond anuiu.
— Foi uma das melhores coisas que já fiz. Foram tão felizes,
durante algum tempo. — Ele pareceu divagar por momentos, como
se estivesse a deleitar-se com aquela memória feliz. Izzy tinha
razão, pensou então Cassie, Drummond Fox parecia ser um homem
bondoso. — Foi de facto maravilhoso — continuou ele, já com o
sorriso a desvanecer-se ligeiramente. — Até eu ter de lhe tirar o
livro, até ela saber o que ia acontecer. Isso foi… angustiante. Nunca
mais tentei ajudar ninguém assim.
Cassie pensou nisso. Pensou no facto de o Sr. Kellner poder
voltar a saber quem era, e depois saber que voltaria a cair na
demência.
— Que horror — murmurou ela.
Drummond assentiu em sinal de concordância.
— Sim, é horrível. Mas, ao longo dos anos, o livro tem sido
usado mais para ajudar as pessoas a esquecer.
— Porque é que uma pessoa há de querer esquecer? —
perguntou Cassie.
Drummond encolheu os ombros.
— Pensem bem. Não houve nenhum trauma terrível, nenhuma
coisa horrível que vos tenha acontecido e que preferissem esquecer
completamente?
Cassie conseguia pensar nalgumas coisas assim, mas não sabia
se gostaria de as esquecer. Faziam parte de quem ela era.
— Ou podemos fazer com que as pessoas se esqueçam de
coisas que queremos que elas se esqueçam — acrescentou
Drummond. — Taticamente muito útil para coisas como crimes e
espionagem. Para pessoas que querem ter casos e depois fazer
com que os seus amantes se esqueçam delas. Para tudo, desde o
mundano ao malicioso.
Cassie abanou a cabeça.
— Não estou a ver como é que isso nos ajuda com o Dr.
Barbary.
Drummond suspirou, então.
— Não ajuda — admitiu. — Mas ajuda a Izzy.
Ele olhou para Izzy e Cassie seguiu o seu olhar. Izzy continuou a
olhar para o livro que tinha nas mãos e Cassie viu agora que o seu
rosto estava iluminado pelas cores que dele emanavam, uma dança
rodopiante de vermelhos e azuis profundos.
— Sinto-me estranha — disse Izzy.
— Sim — disse Drummond suavemente. — É normal que isso
aconteça.
— O que é que lhe estás a fazer? — perguntou Cassie,
alarmada. Aproximou-se de Izzy e pôs-lhe uma mão no braço.
Izzy levantou a cabeça, com um esforço considerável, ao que
parecia, e fixou os olhos em Drummond.
— O que é que está a acontecer? — perguntou ela.
— Vais ficar bem — disse Drummond, com uma voz suave. Izzy
estava a observá-lo como se estivesse presa no seu olhar. —
Prometo que nada de mal te irá acontecer. O que estou a fazer é
para te proteger. Estás a segurar no Livro das Memórias. Eu dei-to,
para te ajudar a esquecer.
— Esquecer o quê? — perguntou Cassie, com os pensamentos
a correrem desenfreados. O pânico estava a crescer como uma
onda dentro dela.
— A melhor coisa que podia acontecer à Izzy neste momento era
esquecer-se do Livro das Portas.
Cassie olhou para o livro que Izzy estava a agarrar, as cores que
ele produzia ondulavam e rodopiavam à sua volta como fumo.
— Parece pesado — murmurou Izzy. — O livro parece pesado e
quente. — A sua voz era como a de uma criança, quando virou o
rosto para Cassie. — Não me sinto bem.
— Estás bem, Izzy — disse Drummond. — Isto é para tua
própria proteção.
— O que está a acontecer? — Izzy suplicou.
— Quando largares o livro — explicou Drummond —, vais
esquecer o Livro das Portas, tudo o que aconteceu nos últimos dias.
O Livro das Portas ficará nublado e escondido na tua mente.
— Não podes fazer isso — avisou Cassie, empurrando
Drummond com força no ombro. — Não tens o direito de o fazer!
Para lá com isso!
— Já está feito — disse Drummond. — Lamento muito, mas
tenho de proteger a Izzy.
— Não me quero esquecer! — lamentou-se Izzy, suplicando a
Cassie. — Não gosto que ele mude as minhas memórias!
— Está feito — Drummond disse novamente. — Pessoas como o
Dr. Barbary vão continuar a aparecer. Gente pior do que ele. A única
maneira de vos proteger é não saberem nada sobre isso.
— Mas ele viu-nos juntos! — exclamou Cassie, não
compreendendo como é que Drummond não conseguia ver como
Izzy era importante para ela. — Ele sabe que a Izzy sabe.
— Sim — disse Drummond. — Mas ele também me viu contigo,
e está muito mais interessado em mim. É a mim que ele vai
procurar, não à Izzy. E se ele encontrar a Izzy, verá facilmente que
ela não lhe consegue dizer nada. Ele vai descobrir o que eu fiz.
Izzy estava quase a chorar agora, mas tentava não o fazer,
agarrando o livro com tanta firmeza que os nós dos dedos estavam
brancos.
— O que é que acontece se eu não o largar? — perguntou ela.
— Vais largar — disse Drummond, falando com a certeza de um
homem que já tinha tido discussões semelhantes antes. — Vais ter
de largar. Mais cedo ou mais tarde. Não consegues viver a tua vida
a segurar num livro. E o livro vai ficar cada vez mais pesado, cada
vez mais quente, cada vez mais quente, à medida que vai levando
mais e mais das tuas memórias. Não conseguirás aguentar para
sempre. O melhor é deixares a coisa acontecer.
Cassie estava a observar Izzy, odiando a mágoa na sua
expressão, com a sua própria mente acelerada enquanto tentava
contemplar a gestão deste mundo novo e perigoso sem ela.
— Não podes fazer isto — suplicou ela a Drummond, com a voz
lacrimejante. — Por favor, Drummond.
Deu-se conta de que tinha lágrimas nos olhos e detestava
parecer fraca em frente àquele homem, mas não as conseguia
travar.
— Não chores, Cass — disse Izzy, apesar de as lágrimas lhe
estarem a brotar nos olhos. — Se chorares, eu também começo a
chorar…
Drummond franziu o sobrolho a Cassie, com uma expressão de
surpresa e pesar, como se não tivesse esperado esta reação.
— Mas é para a proteger — disse ele, como se não percebesse
porque é que Cassie estava tão perturbada. — É para a manter a
salvo, Cassie.
Cassie queria gritar: Mas e eu? Porém, sabia que isso a faria
parecer egoísta.
Ela abraçou Izzy.
— O que é que acontece quando eu soltar o livro? — perguntou
ela.
— Nada — disse Drummond, olhando para Izzy. — Vais
adormecer e acordar amanhã normalmente, como em qualquer
outro dia. E depois vais ter vontade de sair da cidade por uns
tempos, talvez visitar a família.
Os ombros de Izzy subiam e desciam e ela debatia-se com a
inevitabilidade do que lhe tinha acontecido, do que estava para vir.
— Não gosto da minha família — disse ela, entre soluços.
— Desculpa ter-te culpado por aquilo do Google — disse-lhe
Cassie, com as lágrimas a deslizarem pelas faces.
— De que é que adianta dizeres-me isso agora? — lamentou-se
Izzy. — Vou esquecer-me de tudo.
— É por isso que te estou a dizer agora — disse Cassie. —
Porque vais esquecer tudo isto, mas quero que saibas antes de te
esqueceres: eu não te culpo. Não foi isso que quis dizer.
Izzy anuiu distraidamente com a cabeça, como se aceitasse o
que Cassie estava a dizer, mas que não era assim tão importante no
esquema geral das coisas.
— Pode ser desfeito? — perguntou Izzy a Drummond. — Posso
lembrar-me novamente depois de me ter esquecido?
Drummond encolheu os ombros.
— Não sei mesmo, Izzy. Mas queres voltar a saber de tudo isto?
Não é melhor ficares sem te lembrar? Porque é que havias de
querer lembrar-te de algo que te vai pôr em tal risco?
— Eu ajudo-te — disse Cassie a Izzy, embora não fizesse ideia
se isso era possível ou não. — Eu ajudo-te a lembrares-te, prometo.
Quando for seguro.
As duas mulheres entreolharam-se, e Drummond estendeu o
braço na direção do livro.
— Deixem-me ajudar — disse ele.
— Não! — disse Cassie ferozmente, colocando-se à frente de
Izzy de forma protetora.
O rosto de Drummond ensombreceu-se.
— Não pode ser travado, Cassie — disse-lhe ele. — Tenho muita
pena. — Ele afastou-a com gentileza para o lado e pegou no livro.
— Vais ficar bem, Izzy, prometo.
Izzy virou-se para Drummond.
— Vai-te foder! Odeio-te!
— É justo — Drummond disse calmamente. — Pagarei esse
preço se isso te mantiver em segurança.
Depois, o livro escapou da mão de Izzy e Drummond afastou-se.
Izzy olhou para Cassie por um instante com uma expressão
simultaneamente vazia e confusa, como se fosse alguém com
demência, e depois simplesmente caiu de joelhos, aterrando
desajeitadamente no chão entre a extremidade do sofá e a porta do
corredor.
— Está feito — disse Drummond, olhando para Izzy.
Cassie deu dois passos em direção a ele e deu-lhe uma forte
bofetada na cara.
— Não tinhas o direito de fazer isso! — gritou ela, com as
lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces.
Drummond esfregou a cara onde fora esbofeteado, com uma
expressão de dor. Deixou-se ali ficar em silêncio, a olhar para o
chão, como um homem que se tinha intrometido num momento
privado e quisesse estar noutro sítio qualquer.
— Não tinhas esse direito — disse Cassie novamente, agora
mais baixo. Ela olhou para o rosto adormecido de Izzy e sentiu o
seu coração dar um nó agonizante.
— Ajuda-me a carregá-la — ordenou ela a Drummond.

Levaram Izzy para a cama e depois Drummond saiu do quarto


enquanto Cassie trocava a roupa a Izzy para lhe vestir o pijama e a
cobria com o lençol. Izzy parecia tranquila, nada preocupada com o
que tinha acontecido.
Drummond estava à espera na cozinha, a andar de um lado para
o outro, quando Cassie apareceu.
— Detestei ter de fazer aquilo — disse ele, antes que ela
dissesse alguma coisa. — Detestei enganar-vos às duas daquela
maneira. Mas às vezes tenho de fazer coisas de que não gosto para
proteger as pessoas. Por vezes, tenho de fazer coisas que me
aterrorizam para proteger as pessoas. É esta a vida que tenho de
levar.
Ele parecia zangado: zangado consigo próprio pelo que tinha
feito, zangado com Cassie pela sua falta de compreensão.
Passarinhou pela divisão, inquieto, durante alguns momentos.
Cassie observou-o, sem o perdoar, mas descobrindo que o calor da
sua raiva começava a dissipar-se.
— Ela vai ficar em segurança? — perguntou ela.
— Sim — disse ele.
— Porque hei de confiar em ti?
— Não sei — admitiu Drummond com um suspiro exasperado.
— A melhor maneira de a manter em segurança é os livros que
transportamos e nós próprios estarmos noutro lugar.
Cassie anuiu.
— Tenho de descansar. Estou exausta.
Drummond observou-a por alguns instantes, obviamente a
pensar nalguma coisa.
— O que foi? — perguntou ela.
— Sei que não confias em mim. Mas há um sítio para onde
podemos ir, se nos levares. Um lugar que te vai mostrar porque é
que isto é tão importante. E talvez te possa contar a minha história.
— Que lugar é esse?
— A minha biblioteca — disse ele. — Se te mostrar uma
fotografia da porta, consegues levar-nos até lá?
A BIBLIOTECA FOX,
NAS SOMBRAS

E ra tudo cinzento e insubstancial, e Cassie pensou que estava a


flutuar.
Demorou algum tempo a abrir a porta. Pensava que estava
cansada ou stressada, mas Drummond explicou-lhe que seria difícil,
que teria de continuar a tentar.
— Fica nas Sombras — disse-lhe ele.
Ela voltou a tentar, com o Livro das Portas numa mão,
Drummond a segurar o telemóvel e a mostrar-lhe uma imagem de
uma grande divisão, com uma porta de madeira ao canto. Depois,
sentiu algo; tinha agarrado alguma coisa com a mente, alguma coisa
frágil que ameaçava dissipar-se se puxasse com demasiada força.
Cassie aguardou um momento, puxando depois suavemente, e a
porta do seu quarto abriu-se, revelando um quarto monocromático,
como se estivesse a ver um filme numa televisão a preto-e-branco.
— Vamos entrar nas Sombras, agora — disse Drummond. —
Não podemos falar, mas não te assustes. Vai ficar tudo bem dentro
de pouco tempo.
Ele passou por ela e entrou na sala, e Cassie seguiu-o,
hesitando apenas um instante.
O ambiente era silencioso e cinzento e, quando ela caminhava,
parecia que estava a nadar. Fechou a porta, observando o seu
braço, que deixava ondulações nas Sombras à medida que se
movia, e depois virou-se para ver algo parecido com a forma de
Drummond à espera.
A forma virou-se e Cassie seguiu-a, perguntando a si mesma se
seria assim a sensação de se estar morto, andar a assombrar o
lugar dos vivos.
Deixaram um espaço grande e flutuaram para um espaço mais
pequeno. Havia uma sugestão de altura atrás deles, de luz, mas a
forma de Drummond moveu-se na direção oposta, em direção a
uma escuridão mais profunda. Depois, apareceu uma linha de luz,
branca e em expansão, e Cassie viu a forma que era Drummond ali
de pé. Para lá dele, percebeu Cassie, estava o exterior, mas ainda
nas Sombras, e Drummond tinha aberto a porta da frente do edifício.
A forma que era Drummond comprimiu-se e ela distinguiu que
ele estava curvado, a apanhar qualquer coisa. Depois endireitou-se,
e houve um gesto, como se estivesse a atirar fora um pedaço de lixo
e, um momento depois, cor e substância espalharam-se pelo
mundo, como um líquido a derramar-se sobre uma mesa. A luz
afugentou as Sombras, e Cassie sentiu uma brisa no rosto, o cheiro
do ar fresco. De repente, Drummond estava sob o limiar de uma
grande porta em arco, com um cenário de árvores verdes atrás dele,
as folhas e os ramos a ondularem ao sabor da brisa.
— Bem-vinda à Biblioteca Fox — disse ele. Então, afastou-se
dela e saiu para a luz do dia.

Cassie seguiu Drummond, ouvindo o crepitar da gravilha debaixo


dos pés quando saiu da casa. Deu alguns passos e virou-se para
olhar para a fachada, ficando ao lado de Drummond enquanto ele
contemplava a sua biblioteca, com as mãos nos bolsos e uma
expressão ilegível no rosto.
A Biblioteca era uma grande casa de campo construída em
arenito vermelho, com telhas cinzento-escuras e ferragens e
caleiras pintadas de vermelho-sangue. A porta por onde tinham
acabado de sair era um arco ao fundo de uma torre alta que ficava
na esquina do edifício, com janelas altas que faziam lembrar um
farol. De ambos os lados da torre, as paredes estendiam-se até aos
cantos mais afastados, com grandes janelas de sacada no rés do
chão que revelavam vislumbres de estantes e painéis de madeira e,
no piso superior, mansardas que transformavam a linha do telhado
num emaranhado de picos e vales.
Atrás da casa, ao longo da encosta de uma montanha castanha
ao longe, pinheiros em tons de verde tremeluziam sob o vento
fresco da manhã. Por cima, o céu estava cinzento, mas brilhante, e
as nuvens baixas moviam-se firmemente sobre ele, navegando no
mar do vento. Tudo, aparentemente, se movia. Tudo exceto a
Biblioteca, que estava solidamente imóvel, como uma pedra
enraizada no centro da Terra, permanente e imóvel. Mas havia algo
de acolhedor no local, pensou Cassie, algo que tinha que ver com
as proporções e a dimensão, bem como com a sua fachada
acolhedora de arenito vermelho.
— É linda — disse Cassie.
— Sim — retorquiu Drummond, sorrindo com um misto de
felicidade e tristeza. — É mesmo.
Cassie deu meia-volta sem sair do lugar. À sua direita, para lá do
fosso de gravilha, uma faixa lisa de alcatrão circulava por entre
relvados bem cuidados antes de desaparecer no meio das árvores
ao longe. A linha de árvores estendia-se mesmo por detrás do local
onde se encontravam e por algum caminho na outra direção,
criando uma cortina à volta da Biblioteca e do seu terreno. Num
ponto distante do relvado, Cassie viu que estavam a ser
observados, um veado perfeitamente imóvel nas sombras olhava
para eles.
— Veado — murmurou ela.
Drummond olhou para ela, e depois para onde ela estava a
olhar.
— Sim. Há muitos veados no vale. Antigamente, isto era uma
zona de caça.
Cassie continuou a observar o veado. O animal abanou as
orelhas e depois virou-se e fugiu, de volta para as árvores até deixar
de se ver.
— Estamos a quase dez quilómetros da estrada principal —
disse Drummond, embora ela não tivesse perguntado. — Tudo o
que fica entre o que está aqui e lá pertence à Biblioteca Fox. O vale
inteiro, as montanhas. É uma estrada privada, por isso ninguém a
percorre.
— És dono de uma montanha? — perguntou Cassie,
semicerrando os olhos.
Ele sorriu, e Cassie gostou dessa expressão no rosto dele.
— Várias, na verdade. Não é assim tão invulgar.
Cassie arqueou as sobrancelhas, discordando.
— Mas onde estamos ao certo?
— No noroeste da Escócia. Nas Terras Altas.
Cassie anuiu e inspirou profundamente, sentindo o ar limpo e
fresco encher-lhe os pulmões. Algures lá em cima, um pássaro
gritou e rompeu o silêncio.
— Estamos, o quê… cinco horas adiantados em relação a Nova
Iorque? — perguntou Cassie. — Como é que já está claro aqui?
Ainda devia ser noite, não é?
— O tempo funciona de forma diferente nas Sombras — disse
Drummond. — É um pouco mais tarde do que isso. Demorámos
algum tempo a emergir das Sombras. — Ele olhou em redor,
farejando o ar. — Manhã cedo. Vem, vamos sair do frio. Quero dar
uma vista de olhos e depois levo-te à biblioteca.

Cassie seguiu Drummond pela casa, observando-o a abrir portas e


a vaguear pelas divisões, tocando carinhosamente na mobília,
anuindo com a cabeça para si próprio com satisfação, como se
estivesse contente por ver que tudo estava onde devia estar. Havia
uma sala de jantar e uma sala de estar, uma sala de bilhar com uma
mesa debaixo de uma pesada coberta cinzenta e, num dos lados da
casa, uma velha cozinha com um grande fogão e uma coleção de
tachos e panelas pendurados numa prateleira suspensa.
Excetuando na cozinha, havia estantes e prateleiras por todo o lado.
As divisões eram todas grandes, com o pé-direito alto e as paredes
forradas com painéis de madeira escura. Feixes de luz penetravam
diagonalmente na escuridão através das janelas altas, revelando
partículas de pó que dançavam e giravam à medida que Drummond
e Cassie deslocavam o ar. As divisões estavam cheias de silêncio e
de memória, o cheiro doce dos livros antigos e o travo forte das
lareiras muito usadas à espera de rugir de novo. Era um lugar de
madeira e papel, de pedra e vidro; não havia nada digital, nem
televisões de ecrã plano ou LED. Era quase como se a casa tivesse
nascido noutro tempo e tivesse existido sem ser perturbada pela
modernidade desde então.
De certa forma, a casa de Drummond fazia lembrar a Kellner
Books. Tal como a loja, a casa estava cheia de livros — nenhuma
prateleira estava vazia, nenhum livro estava sozinho e à procura de
companhia —, mas era mais do que isso. A casa estava cheia de
recantos quentes e lugares tranquilos, tábuas de soalho que
rangiam agradavelmente e correntes de ar que vinham de fendas
invisíveis. A iluminação era suave e as cores eram esbatidas e
quentes, interrompidas apenas pelo verde-escuro cintilante das
árvores no exterior, quando vislumbradas de passagem através das
janelas. Era um edifício que acolhia pessoas que queriam conforto e
silêncio, que queriam espaço para contemplar. Tinha um ar de
formalidade, mas não de rigidez, como um avô bem vestido a contar
uma piada ordinária.
Enquanto percorria o rés do chão com Drummond, os dois
caminhando em silêncio, Cassie rapidamente concluiu que adorava
a Biblioteca. Era um lugar onde queria estar, um lugar onde poderia
viver com prazer se lhe fosse dada essa oportunidade. Quando
regressaram ao corredor, demorando-se ao fundo de uma grande
escadaria, Drummond disse:
— Tenho saudades deste sítio.
— Dá para perceber porquê — disse Cassie.
De frente para eles, no patamar do meio da escadaria, um vitral
alto derramava luz no corredor. Fazia com que o espaço parecesse
arejado e aberto, apesar de toda a madeira escura e das pesadas
estantes de livros que se aglomeravam à volta deles.
— Vamos — disse Drummond. — Vou mostrar-te a biblioteca.
Ele começou a subir as escadas e ela seguiu-o.
— O que é que foi aquilo com as Sombras? — perguntou
Cassie, enquanto subiam as escadas. — Quando chegámos,
quando parecia que estávamos debaixo de água e era tudo
cinzento.
— A Biblioteca estava nas sombras — disse Drummond. — Eu
escondi-a.
— Porquê? Como?
— Já iremos chegar ao porquê, prometo, porque tens de saber.
Quanto ao como… Usei o Livro das Sombras. — Ele tirou um livro
de um dos bolsos e passou-lho conforme chegavam ao primeiro
patamar e davam meia-volta para subirem ao piso superior. O livro
era cinzento-escuro e quando Cassie o abriu, leu o texto na primeira
página.
— «As páginas são feitas de sombras» — leu ela. — «Pega
numa página e serás também uma sombra.»
Cassie folheou as páginas e viu manchas cinzentas, como tinta,
e palavras e imagens que pareciam deslocar-se e mudar,
desaparecendo parcialmente e depois reaparecendo. Ela observou-
o durante algum tempo enquanto subia as escadas, maravilhada
com aquele livro que parecia vivo.
— Como é que funciona? — perguntou ela, voltando a entregar o
livro a Drummond.
— Rasga-se um bocadinho de uma página e segura-se nesse
fragmento. Enquanto tivermos o fragmento na mão, ficamos nas
Sombras. Quando escondi a Biblioteca, arranquei uma página
inteira e deixei-a dentro da porta da frente. E então a casa deslizou
para as Sombras. Ninguém conseguia cá chegar. Pelo menos, sem
usar o Livro das Portas.
Cassie pensou nas suas palavras.
— Não a conseguias alcançar, com o Livro das Sombras?
— Não — disse Drummond. — Não podia voltar cá. Só pude
agora. — Ele suspirou e pareceu melancólico por instantes
enquanto olhava em redor. — Já se passaram dez anos.
— Dez anos? — perguntou Cassie, chocada. — Estiveste
ausente durante dez anos?
Drummond disse que sim com a cabeça.
— Foi o preço que tive de pagar para manter os livros em
segurança.
Cassie olhou novamente para ele. O que ele tinha feito a Izzy
levara-a a odiá-lo, mesmo que apenas por alguns momentos, mas
agora ela via que ele também tinha pagado um preço alto. Ter sido
afastado da sua casa, particularmente de uma casa tão especial
como aquele lugar… ela não conseguia sequer imaginar. Perguntou-
se quão difícil teria sido a vida dele.
No cimo da escada, chegaram a um comprido patamar com um
tapete espesso e várias portas pesadas de madeira. As paredes
entre as portas estavam cobertas com o que parecia, aos olhos de
Cassie, um papel de parede dispendioso, um padrão de finas flores
roxas sobre um fundo creme pálido. Uma segunda escadaria, mais
pequena, conduzia a um piso mais alto, que curvava até deixar de
se ver.
— Por aqui — disse Drummond. Atravessou o patamar e abriu
uma porta mesmo em frente ao topo da escadaria, revelando uma
sala grande e luminosa na parte da frente da casa. Uma janela alta
de sacada dava para as árvores na parte da frente da casa e para
as montanhas mais além. Esta extremidade da casa estava virada
para poente, longe da estrada, e mesmo da porta do salão Cassie
conseguia ver uma extensa massa de água, plana e azul-
acinzentada.
— O que é aquilo? — perguntou ela.
— O quê? — disse Drummond. — Oh. É o Loch Ailda.
O lago estava rodeado de montanhas verdes, castanhas e áridas
acima das árvores, e uma linha reta e espumosa de nevoeiro
pairava no ar fresco da manhã, até meio da encosta. Cassie achou
que provavelmente nunca tinha visto uma paisagem tão bonita.
As paredes da sala estavam forradas do chão ao teto com
estantes cheias de livros e a mobília estava disposta num grande
tapete retangular no centro do espaço — poltronas, mesas de apoio
e uma mesinha de centro, todas as peças também cheias de livros.
Uma grande lareira de ferro fundido assemelhava-se a uma boca
lamentosa na extremidade da sala, e ao lado dela uma mesa de
apoio estava atolada com garrafas de whisky e copos.
— Esta é a minha biblioteca — disse Drummond, com a sua voz
calma enquanto passava os olhos pela sala. — Estendeu a mão
para as estantes junto à porta e roçou por elas, levemente, num
gesto de afeto. Depois, dirigiu-se à mesa junto à lareira e serviu-se
de um whisky. Bebeu-o de um só trago e suspirou de satisfação. —
O whisky ainda está bom. Graças a Deus. Se não, ainda me vias a
chorar.
Cassie caminhou lentamente ao longo da estante encostada à
parede oposta, passando os olhos pelas lombadas, tirando um livro
aqui e outro ali com um dedo curioso. Reparou que os livros eram
muito velhos, provavelmente antiguidades, o tipo de livros com um
texto pequeno e denso, e um cheiro agradavelmente doce quando
são abertos.
Chegou à grande janela de sacada e ficou a admirar a vista.
— Que lindo — disse ela, e depois virou-se e ficou de frente para
a sala. — E isto… — Ela fez um gesto com a mão. — Este sítio é…
é ideal. É perfeito. É tudo aquilo que uma biblioteca particular devia
ser.
Drummond pesou as palavras por breves instantes. Depois anuiu
em sinal de concordância.
— É o meu lar — admitiu ele. Drummond sorriu então, mas com
uma expressão triste, e Cassie pensou ver lágrimas nos olhos dele.
— Eu costumava passar todo o meu tempo aqui. E depois os meus
amigos… Eles vinham, e nós sentávamo-nos a apreciar os nossos
livros. Ou bebíamos e ficávamos a conversar, até altas horas da
noite. Havia música e comida e acendíamos a lareira. Gargalhadas,
muitas gargalhadas. As reuniões na Biblioteca Fox… eram sempre
os meus momentos preferidos.
Abanou a cabeça, como se todas estas recordações fossem
loucas, impossíveis, e enxugou os olhos com a palma da mão.
— Parece um lugar feliz — refletiu Cassie, enquanto os seus
olhos percorriam as estantes na outra parede. — Para mim, pelo
menos. Seguro e feliz.
Drummond anuiu com a cabeça, tomando as palavras de Cassie
como um elogio, e serviu-se de outra bebida.
— Os outros livros especiais estão aqui? — perguntou Cassie, a
inspecionar as prateleiras próximas.
— Estão cá — disse Drummond. — Não nesta sala. — Ele
aproximou-se e entregou-lhe um copo com uma dose de whisky. —
Bebe.
— Não gosto muito de whisky — admitiu Cassie, olhando para o
copo com ar duvidoso.
— Eu adoro — disse Drummond. — As minhas três coisas
preferidas no mundo: whisky, bolos e livros.
Cassie tossiu uma gargalhada, sem conseguir evitar.
— Bolos?
Ele anuiu seriamente.
— Não me envergonho disso. O que é que há de melhor do que
um bom livro e uma fatia de bolo?
— Suponho que isso seja verdade — disse Cassie, ainda a olhar
para o whisky.
— Não é preciso gostares — disse Drummond. — Mas bebes.
Vai fazer-te bem, tal como os croissants em Lyon.
Ela debateu-se por breves instantes e depois bebeu o líquido
âmbar. O líquido desceu-lhe pela garganta e fê-la tossir.
— Parece fogo — balbuciou, devolvendo-lhe o copo.
— Eu sei — disse ele, sorrindo como se ela tivesse feito um
elogio à bebida. Ele pousou o copo no parapeito da janela e ficaram
envoltos num silêncio constrangedor por um momento. — Tenho
muita pena do que aconteceu à Izzy — disse ele, observando-a com
os seus olhos escuros.
Ela assentiu.
— Está bem.
— Queres ver os outros livros especiais? — perguntou, então, e
pareceu entusiasmado, como um rapaz que quer mostrar o seu
brinquedo novo.
Ela anuiu com a cabeça.
— Quero.
— OK.
Drummond dirigiu-se para a estante de livros na parede junto à
janela e estendeu a mão para uma das laterais. Cassie ouviu um
estalido e depois a estante abriu-se numa dobradiça oculta,
revelando uma pequena porta e degraus curvos de pedra dentro de
uma torre.
Drummond gesticulou e sorriu, mexendo as sobrancelhas para
cima e para baixo.
— Onde mais poderia eu guardar livros especiais senão numa
sala secreta no topo de uma torre escondida?
No cimo dos degraus, uma pequena porta de madeira abria-se para
uma sala circular com janelas em dois lados que davam para
nascente e poente, para a estrada e para o lago. Cassie percebeu
que este era o topo da torre que tinha visto do exterior.
No centro da sala, em cima de um tapete quadrado, encontrava-
se uma única secretária, muito grande e com uma cadeira em cada
um dos quatro lados. A secretária estava cheia de papéis e canetas.
A toda a volta da parede circular, Cassie viu uma série de coisas:
mapas com alfinetes, fotografias que mostravam Drummond e
outras pessoas com um ar feliz em redor de mesas de jantar ou
sentadas na biblioteca do andar de baixo. Havia uma pintura a óleo
da casa numa moldura ornamentada e uma série de três molduras
mais pequenas dispostas em fila que exibiam flores prensadas. Por
cima, várias lâmpadas pendiam das traves em fios elétricos, a várias
alturas. Enquanto o resto da casa parecia limpo, arrumado e
ordenado, aquela sala secreta parecia desarrumada, ou
descontraída. Aquele espaço parecia mais habitado até do que a
biblioteca do andar de baixo.
Cassie absorveu tudo aquilo, mas a sua atenção foi atraída pelos
pequenos armários de madeira que estavam espalhados
aleatoriamente pela parede da torre, entre os quadros, as janelas e
os mapas. Cada um dos armários tinha um número romano gravado
na frente num dourado desbotado. Havia vinte armários no total, e a
disposição e a numeração fizeram Cassie pensar num estranho
calendário de advento.
— Esta é a biblioteca secreta — disse Drummond, abrindo os
braços enquanto caminhava à volta da mesa.
— Esses são os livros? — perguntou Cassie, apontando para os
armários.
Drummond anuiu. Encostou-se a um dos peitoris das janelas.
Cassie viu um par de binóculos ali pousados. Drummond pegou
neles e depois olhou para o mundo, na direção da estrada
alcatroada que descia até às árvores. Ela perguntava-se do que é
que ele estaria à procura.
— Tens vinte? — perguntou ela, passando os olhos de armário
em armário.
— Não — respondeu Drummond, pousando novamente os
binóculos. — Nem todos estão ocupados.
Levou a mão ao bolso e tirou um porta-chaves. Identificou uma
chave e dirigiu-se ao armário pendurado mais perto dele na parede,
o número dezassete. Destrancou o armário e abriu a porta. Cassie
viu uma pequena prateleira com um expositor de arame fino de
latão. Um único livro estava apoiado no expositor. Drummond pegou
no livro e levou-o para a mesa no centro da sala. Pousou o livro e
depois dirigiu-se a um armário diferente, do outro lado da sala, o
número doze. Repetiu o processo de abrir a porta, retirar o livro e
colocá-lo em cima da mesa. Ambos os livros eram do mesmo
tamanho e forma que o Livro das Portas. Levantou os olhos para
ela, um convite.
Cassie aproximou-se e olhou para os dois livros.
— O que são? — perguntou.
— Exemplos — disse Drummond. — Dois dos livros da
Biblioteca Fox.
Cassie pegou no primeiro livro. Era leve e insubstancial, quase
sem peso, tal como o Livro das Portas. A capa era um mosaico de
cores vivas, como um chão coberto de pétalas de flores ou confetes.
— O que é que faz?
— É o Livro da Alegria — disse Drummond, voltando a
aproximar-se da janela. Cruzou os braços e encostou-se à parede.
— O livro permite-nos sentir a verdadeira alegria. Remove da nossa
mente todas as dúvidas, toda a infelicidade e toda a dor.
— Ena! — exclamou Cassie. Folheou as páginas brevemente e
viu textos e esboços numa infinidade de cores.
— Foi-me enviado por uma amiga de Londres — disse
Drummond, olhando para o livro na mão de Cassie. — Para ficar
guardado em segurança.
Cassie anuiu e voltou a pousar o Livro da Alegria na mesa.
— E este? — perguntou, pegando no segundo livro. A capa tinha
tons vermelhos e alaranjados, tons zangados.
— O Livro da Chama — respondeu Drummond. Encolheu os
ombros. — É bastante óbvio o que esse faz.
Cassie folheou as páginas, vendo textos e esboços semelhantes
aos do Livro das Portas, mas desta feita o conteúdo estava
rabiscado com tinta vermelho-escura, e as páginas estranhamente
pareciam quase acastanhadas. Como madeira, talvez.
— Quantos livros tens? — perguntou Cassie. — Se não são
vinte, quantos são?
— Dezassete — disse Drummond.
— Dezassete? — arfou Cassie, e as suas sobrancelhas
arquearam-se de surpresa.
— A Biblioteca Fox é a maior coleção de livros especiais em todo
o mundo — explicou Drummond. — A maior; tanto quanto sei, pelo
menos.
— O que é que os outros fazem? — perguntou Cassie,
perscrutando os outros armários numerados. Ela estava
entusiasmada, a pensar em todas as maravilhas que poderiam ser
possíveis.
Drummond encolheu os ombros.
— Muitas coisas diferentes. Alguns, nem sei. Eles nunca
revelaram os seus segredos. Sabemos que são livros especiais,
porque têm todas as qualidades: o peso, o texto… Mas talvez
estejam apenas à espera da pessoa certa para revelar o que são.
Mas os outros… bem, fazem muitas coisas. Mas não é isso que
importa.
— O que é que importa? — perguntou ela.
— O que importa é que tenho de os proteger. É por isso que tos
estou a mostrar. Imagina o que aconteceria se isto caísse nas mãos
erradas. Há tanto poder aqui. E são tão importantes. Não suporto a
ideia de alguém pegar neles e usá-los como ferramentas, como
armas. — Ele fez um esgar, como se tivesse acabado de comer algo
com um sabor horrível.
Cassie olhou para o livro que tinha na mão e voltou a pousá-lo
na secretária, ao lado do seu congénere.
— Eles são tão importantes, Cassie — disse Drummond, o seu
tom mais suave agora. — Os meus amigos, outras pessoas como
eu… nós adorávamos o mistério que encerram, o que nos podiam
dizer sobre o mundo e a criação. A História.
— A História?
— Eles existem há séculos, Cassie, alguns deles. Alguns dos
meus amigos estavam convencidos de que a existência dos livros
explicava alguns dos mistérios da História humana. Porque é que
algumas sociedades floresceram enquanto outras com vantagens
semelhantes falharam. Porque é que o Egito se distinguiu na
História da Humanidade? Porque é que a China foi responsável por
tantas invenções importantes? Porque é que Gengis Khan
conquistou tanto do planeta? Coisas desse género. Até figuras
religiosas e milagres. Quando se sabe da existência de livros
especiais, é impossível não os relacionarmos com os grandes
acontecimentos da História da Humanidade.
Cassie anuiu, compreendendo o que Drummond queria dizer. Ela
não sabia muito sobre história, mas conseguia perceber que aquilo
que ele estava a dizer fazia sentido.
Drummond aproximou-se novamente da secretária e pegou nos
dois livros. Devolveu-os, um de cada vez, aos respetivos armários e
voltou a fechar as portas.
— É por isso que são tão importantes. Fizeram parte da História
do mundo. Têm de ser estudados e protegidos. Não devem ser
usados por idiotas, bandidos e psicopatas. — Voltou a guardar o
porta-chaves no bolso. — Eu tenho a responsabilidade de os
proteger, Cassie. Não escolhi esta vida, mas levo a
responsabilidade a sério. Foi por isso que pus a casa nas Sombras:
porque havia uma ameaça. É por essa razão que preciso de destruir
o Livro das Portas, para os manter a salvo.
O âmago de Cassie revirou-se com as palavras dele.
— Que ameaça?
— Agora não — disse ele. — Estás exausta. E se não estiveres,
eu estou. E já não venho a casa há uma década. Quero descansar
algum tempo.
Cassie não disse nada. Ela estava a ouvir, mas sobretudo estava
a pensar nos outros livros fechados nos armários à sua volta.
Pensou em todas as coisas milagrosas que podiam fazer.
— Vamos — disse Drummond, afastando-a dos seus
pensamentos. — Temos vários quartos. As camas já estão feitas.
Podes dormir algumas horas.
Ele conduziu-a novamente pelos degraus e para a sua biblioteca,
fechando a porta secreta da estante atrás deles e selando a torre.
— Será seguro dormir? — perguntou Cassie. — Disseste-me
que tinhas escondido este lugar nas Sombras…
Ele acenou com a mão.
— Não vai haver problema durante algumas horas. O perigo está
muito longe. Vai ser bom estar aqui outra vez, só por um bocadinho.
Cassie assentiu. Apesar da excitação da sala secreta da torre e
dos livros especiais, apesar da casa de Drummond ser confortável e
acolhedora, apesar de querer muito desfrutar da experiência de
estar ali, ele tinha razão: ela estava exausta. Voltou-se novamente e
olhou para o dia através da grande janela de sacada. As nuvens
abriram-se nesse momento e a luz do sol atravessou-as,
espalhando o seu brilho pela encosta por breves instantes. Depois,
voltou a desaparecer.
— Então, vou dormir. O que é que acontece depois? —
perguntou Cassie. Parte dela não queria saber. Parte dela queria
deitar-se na cama e esconder-se debaixo dos cobertores.
— Já te disse. — Drummond encaminhou-se para a porta do
salão. — Quero destruir o Livro das Portas. Mas sei que não queres
fazer isso. Até o fazeres, preciso de te manter a ti e ao livro em
segurança. Por isso, vou ficar contigo. Amanhã, vou mostrar-te
porque é que ele tem de ser destruído, e espero que depois
concordes comigo. — Cassie fez uma careta que espelhava bem o
que ela pensava em relação a isso. — Eu sei que não confias em
mim — continuou ele. — Sei que aquilo que fiz à Izzy não ajuda.
— Pois não, não ajuda — concordou Cassie.
— Por isso, vou fazer duas coisas. Em primeiro lugar, vou
mostrar-te aquilo que o Livro das Portas é capaz de fazer, para que
compreendas realmente a razão por que é tão perigoso. E depois
vou falar-te da ameaça que enfrentamos. Vou contar-te porque é
que tive de esconder este lugar nas Sombras. Mas, agora, vamos lá
arranjar-te uma cama.
Abriu a porta do corredor e fez sinal a Cassie para que o
seguisse.
Cassie assim fez, triste por estar a deixar o conforto da
biblioteca.
— Como assim, vais mostrar-me aquilo de que o Livro das
Portas é capaz? — perguntou Cassie, atrás dele. — Acabei de te
levar do meu apartamento em Nova Iorque para a tua casa na
Escócia. Eu sei usá-lo.
Drummond abriu uma porta no átrio ao cimo das escadas,
espreitou para o interior e voltou a fechá-la.
— Este não — murmurou ele. Depois, para Cassie: — Anda não
viste nem um décimo.
— Como? Como é que ainda não vi nem um décimo?
Drummond dirigiu-se à porta seguinte, ao longo do corredor, e
abriu-a.
— Este serve — disse ele, entrando.
Cassie seguiu-o e entrou no grande quarto quadrado. Uma
janela retangular dava para a mesma paisagem vista de uma
direção diferente. As colinas pareciam mais próximas ali, ou talvez
fossem colinas diferentes. Havia uma grande cama de dossel
encostada à parede mais distante, feita com lençóis azul-celeste, da
cor de um céu de verão. Mais uma vez, as paredes estavam
forradas com estantes de livros, e havia uma poltrona aos pés da
cama, uma mesa de apoio ao lado e um banquinho para os pés em
frente. Na parede ao lado da poltrona, havia uma pequena lareira
embutida, com um montinho organizado de troncos ao canto. Cassie
conseguia imaginar uma noite de inverno naquele quarto — tão
acolhedora, o lume a crepitar enquanto o vento e a chuva batiam na
janela, uma pilha de livros e uma bebida quente na pequena mesa
de apoio.
— A casa de banho é ali — informou Drummond, apontando
para uma porta na parede oposta, ao lado da cama.
— É adorável — disse ela, virando-se para ele. — Mas como é
que eu não vi nem um décimo?
Drummond abanou a cabeça.
— Dorme um bocadinho primeiro. Eu digo-te quando acordares.
— Não — disse ela, cada vez mais irritada. — Diz-me. Eu quero
saber.
Ele hesitou por instantes, mas viu que a jovem não ia dormir
enquanto ele não respondesse.
— Tens contigo um supercomputador — disse ele. — E estás a
usá-lo para jogar Space Invaders.
— O que é que isso significa?
— «Qualquer porta poderá ser uma porta qualquer». É o que diz
no início do livro.
— Sim — disse Cassie. — Eu sei.
— Não — disse Drummond, a abanar lentamente a cabeça —,
não creio que saibas. As portas não existem só agora, pois não? As
portas existem em todos os tempos, em toda a História da
Humanidade. — Cassie pensou nisso por alguns momentos e
depois, quando compreendeu, a sua mente cambaleou para trás,
como um homem que inesperadamente descobre um enorme
desfiladeiro à sua frente. — As pessoas não querem o teu livro só
porque podem viajar à volta do mundo — continuou Drummond,
enquanto a mente de Cassie acelerava. — Qualquer pessoa com
dinheiro pode enfiar-se num jato privado e estar em qualquer lugar
em doze horas. Disseste que o teu sonho era voltar a falar com o
teu avô. Não consigo ressuscitá-lo dos mortos, mas não precisas
que eu faça isso. Só precisas do Livro das Portas.
Cassie pestanejou, a tremer.
— Podes abrir uma porta para o passado — prosseguiu
Drummond. — É por isso que as pessoas querem o teu livro.
Porque ele significa que se pode viajar no tempo.
O LIVRO NO ARMÁRIO SEIS,
E DEBATES NA BIBLIOTECA FOX

N a cozinha, sozinho, Drummond Fox encontrou um gelado no


congelador. Pousou-o na bancada para descongelar um
bocadinho e preparou uma chávena de chá. Há dez anos que não
entrava na Biblioteca Fox, em sua casa e, da última vez que lá tinha
estado, tivera de fugir, depois de ter visto os seus amigos a serem
chacinados.
Drummond sentou-se à bancada, sob a luz do candeeiro
suspenso, e abriu o gelado. Já estava meio comido, claro — os
gelados nunca duravam muito tempo em casa de Drummond —,
mas restava o suficiente para o animar. Escavou com a colher e
sacou uma colherada, deixando-a derreter na boca.
— Gelado de sombras — murmurou para si próprio, sorrindo
ligeiramente. O gelado não sabia a sombras, sabia a um dia de
verão, bagas e açúcar, tão fresco como no dia em que ele o tinha
comido pela última vez. Nas Sombras, as coisas não se
estragavam, não se decompunham, nem ficavam empoeiradas.
Drummond continuou a comer, sem pensar em nada, apenas a
apreciar o sabor, o impacto do açúcar no seu organismo. Comer
sempre fora um dos seus prazeres, e fora o que lhe permitira
aguentar-se durante os últimos dez anos, enquanto se mantinha
constantemente em movimento. Nos momentos mais sombrios,
parava num restaurante ou numa cafetaria, rodeava-se dos ruídos
felizes das outras pessoas a viverem as suas vidas fáceis e
desfrutava, sem pressas, da comida. Esses momentos eram o seu
refúgio, ilhas de paz num mar tempestuoso.
Comeu o gelado lentamente, saboreando-o, e depois voltou a
guardar o recipiente no congelador. Em seguida, pegou na sua
caneca, apagou a luz e levou a bebida para cima, passou pela
biblioteca, e subiu a escada oculta que dava acesso à torre. Pousou
a caneca na mesa e ficou à janela durante algum tempo, a olhar
para a vista familiar. Era bom estar em casa, era bom estar de volta
ao lugar onde se sentia seguro e confortável, ao fim de dez anos,
embora não estivesse realmente seguro e estivesse a ter dificuldade
em sentir-se confortável.
Drummond dirigiu-se a um dos pequenos armários pendurados
na parede, o número seis, e abriu-o. Tirou o livro que lá estava e
levou-o para a mesa, pousando-o ao lado da caneca. Pousou a mão
sobre a capa, acariciando-a suavemente, e depois abriu-o. As
páginas estavam cheias de texto denso e esboços, como sempre
tinham estado, mas a primeira página estava em branco. O livro era
obviamente um livro especial, era por isso que a Biblioteca o
possuía, era por isso que fazia parte da coleção há já algum tempo,
mas nunca ninguém tinha sido capaz de o ler, ou de compreender o
que ele conseguia fazer. As instruções na primeira página do livro
nunca haviam sido reveladas a nenhum membro da Biblioteca Fox.
Drummond pegou noutro livro, um volume encadernado a pele
que se encontrava no canto da secretária. Era o registo da coleção
de livros especiais da Biblioteca. Foi até à entrada relevante e
verificou exatamente quando é que o livro do armário seis tinha
entrado no acervo da Biblioteca Fox.
— Dia 3 de abril — leu. — De 1933. Identificado no Egito, nas
escavações de Assuão.
Drummond anuiu. A sua memória estava certa. O livro
encontrava-se na Biblioteca Fox há quase um século, guardado em
segurança no armário número seis. Nunca saíra da Biblioteca —
teria havido uma entrada no registo — e, na verdade, o facto de a
primeira página ainda estar em branco significava que ninguém na
história da Biblioteca tinha sido capaz de o ler.
Drummond abanou a cabeça, intrigado com o mistério.
Porque o livro que tinha à sua frente era familiar. Era idêntico ao
livro que Cassie lhe tinha mostrado em Lyon, o livro que ela trazia
consigo.
Era, Drummond tinha a certeza disso, o Livro das Portas.

Drummond bebeu um gole do seu chá e estalou os lábios. O chá


sabia-lhe sempre melhor depois de qualquer coisa doce. Ao fundo,
ouvia os sons da casa, o ranger das velhas madeiras, o vento a
assobiar por entre as frestas e, algures por baixo dele, Cassie
estaria provavelmente deitada sem conseguir dormir, a processar o
que ele lhe acabara de dizer: o Livro das Portas permitia-lhe viajar
no tempo.
— Viagens no tempo — disse Drummond a si próprio,
acariciando novamente o livro.
Viajar pelo tempo tinha de ser a explicação. Se o Livro das
Portas podia viajar no tempo, era possível que duas versões do
mesmo livro coexistissem ao mesmo tempo no mesmo sítio.
O facto de o livro de Cassie ter o texto na primeira página indicou
a Drummond que tinha de ser uma versão posterior do livro ao longo
da sua própria linha temporal. A versão do livro na mesa à sua
frente era mais jovem.
Ele estreitou os olhos enquanto se esforçava por desenredar o
novelo.
Isso significava que, em algum momento no futuro, de alguma
forma, o Livro das Portas seria retirado da Biblioteca Fox e acabaria
nas mãos de Cassie no passado, na cidade de Nova Iorque.
Mas como?
E quando?
E porquê?
Drummond não sabia, mas isso preocupava-o.
Ele tinha planeado tirar o Livro das Portas a Cassie. Depois de
Barbary ter aparecido, ele quisera levá-la a ela e a Izzy para um
lugar seguro e então tirar-lhes o livro. E quase o fizera, quando
Cassie o deixou olhar para o livro em Lyon. Mas Drummond
reconheceu-o como um livro que deveria estar na Biblioteca Fox.
Ele devolvera o livro a Cassie, porque queria que ela o levasse à
Biblioteca para que ele pudesse verificar.
— E isso significava que podias voltar para casa — disse ele,
anuindo com a cabeça perante o seu próprio motivo oculto.
E ali estava ele: a Biblioteca estava segura, tal como a tinha
deixado, e o livro que ele tinha a certeza de ser o Livro das Portas
permanecia no respetivo armário, intocado. Ele não sabia se isso
era reconfortante ou preocupante.
Levantou-se e devolveu o livro ao armário número seis.
Decidiu que teria de se manter perto de Cassie até saber a
resposta. Ele tinha de descobrir como é que a jovem tinha obtido o
livro.
Ficou surpreendido ao perceber que a ideia de se manter perto
dela não era desagradável, muito pelo contrário; na verdade, até o
animava um pouco.
— Porquê? — perguntou ele à sala silenciosa.
À primeira vista, a resposta era simples: porque tinha gostado do
tempo que passara com Cassie e Izzy. Depois do restaurante,
depois de Hugo Barbary, aqueles escassos minutos a beber café e a
comer croissants em Lyon tinham-no deixado feliz. Ele dissera muito
mais do que esperava, respondera às perguntas delas mais
abertamente do que provavelmente seria sensato.
— Porque te sentes só — admitiu a si próprio.
Tinha saudades dos seus amigos. Tinha saudades de falar sobre
os livros. Estava farto de estar sozinho.
Anuiu com a cabeça para si próprio enquanto aceitava esta
verdade. Voltou para a secretária e bebeu o seu chá.
Drummond tinha medo da Mulher. Continuava a ter pesadelos
com aquela noite em Nova Iorque, dez anos antes, quando os seus
amigos tinham morrido. Vivia aterrorizado com o que ela faria se
tivesse acesso ao Livro das Portas e o usasse para aceder à
Biblioteca Fox, com o que ela faria com todos os livros. Mas ele não
podia deixar Cassie sozinha para enfrentar os perigos para os quais
ela não estava preparada. E ele tinha de descobrir como é que ela
obtivera o livro.
— Uma jigajoga qualquer das viagens no tempo — disse ele, a
sorrir para si próprio. Porque essa frase já tinha sido usada antes na
Biblioteca Fox.
Drummond ficou postado à janela, a recordar uma noite com os
seus amigos na Biblioteca Fox e os debates sobre viagens no
tempo.
— Então, temos quatro categorias — disse Wagner, de pé diante
do velho quadro de ardósia, como um professor, com giz na mão.
Drummond estava sentado no seu cadeirão a observar, com um
copo de whisky. Lily estava encostada à janela, com a noite escura
atrás de si, os olhos fechados enquanto dormitava depois do jantar,
e Yasmin estava sentada em frente a Drummond, com as faces
avermelhadas pelo calor do lume. Mordiscava uma bolacha de
manteiga. Lá fora, a noite estava ventosa e chuvosa, com gotas a
serem atiradas contra a janela pela escuridão, mas na sala o ar
estava quente e o fogo crepitava. Era um lugar tão confortável.
— Quatro categorias — repetiu Drummond. — Diz lá quais são,
outra vez.
Wagner assentiu.
— Livros que afetam a realidade externa do mundo físico —
disse ele, a apontar com o giz para o lado esquerdo do quadro. —
Livros que têm impacto no estado interno dos seres humanos: o
Livro da Alegria, o Livro do Desespero, o Livro da Dor, o Livro da
Memória.
— Sim — disse Yasmin. — Emoções e sentimentos.
Wagner hesitou, ponderando naquelas palavras.
— Emoções e sentimentos — disse ele, e depois rabiscou essas
palavras no fundo da lista, como se fossem um potencial título
alternativo de categoria. — A seguir, temos aquilo a que chamamos
vagamente de livros dos superpoderes. Livros que podem dar a
quem os usa poderes sobre-humanos.
— A Lily está a dormir? — perguntou Drummond, a espreitar
para o outro lado da sala. Wagner virou-se para verificar.
— Ja — concluiu ele. — Demasiada comida pesada. Muita coisa
para digerir.
— Eu ouvi isso — murmurou Lily, sonolenta, sem abrir os olhos.
— O Livro da Velocidade — disse Yasmin, a sacudir as migalhas
da bolacha dos lábios. — O Livro dos Rostos. O Livro das Sombras.
— O Livro do Controlo — disse Drummond.
— O livro do Hugo Barbary — acrescentou Lily, da janela, o
nome a soar como um palavrão na sua boca.
— Mórbido — concordou Yasmin.
— E depois a quarta categoria — continuou Wagner. — Livros
que parecem ter algum tipo de efeito sobre as leis do Universo.
Drummond levantou-se e espreguiçou-se, e depois deu alguns
passos até ao quadro.
— O Livro da Luz — disse ele. — O Livro da Sorte.
— O Livro da Luz pode ser um superpoder — comentou Yasmin.
Wagner balançou a cabeça para trás e para a frente enquanto
pensava sobre o assunto.
— Há vários livros que podem ser classificados em mais de uma
categoria. Mas eu sou um físico. A luz é uma propriedade
fundamental do Universo, por isso quero colocá-lo aqui, está bem?
— Sorriu para Yasmin. — Mas somos nós que estamos a inventar
esta classificação; toda esta categorização pode ser um exercício de
futilidade.
— Continua — encorajou-o Drummond. Não fazia ideia se havia
algum valor em categorizar os livros desta forma, mas estava a
gostar. — Que outros livros brincam com as leis do Universo?
Refletiram sobre a questão durante alguns momentos, o silêncio
foi sendo preenchido pelo crepitar do fogo e pelo bater da chuva nas
janelas.
— Não conhecemos os livros todos — disse Lily, abrindo os
olhos. Empurrou-se da janela com um grunhido e atravessou a sala
para se sentar na cadeira ao lado de Yasmin. — Ainda há livros por
aí para encontrar. Talvez encontremos um Livro da Gravidade ou um
Livro do Tempo.
— O Livro das Portas — disse Drummond, e Yasmin e Lily
sorriram para ele. Era a história que tinha dado início a tudo na
Biblioteca Fox, o mítico Livro das Portas.
— Se é que existe mesmo um Livro das Portas que nos permita
viajar no tempo — concordou Wagner. — Se pudéssemos abrir
qualquer porta, seria qualquer porta em qualquer lugar.
— Há uma expressão de que gosto muito… — disse Yasmin, a
tentar lembrar-se das palavras. — Ah… sim… uma jigajoga das
viagens no tempo.
Drummond sorriu para ela. A palavra «jigajoga» soava
engraçada por causa do seu sotaque.
— Se existisse — disse Lily.
Drummond sabia que Lily não estava convencida da existência
de um Livro das Portas. «Parece demasiado saído de um conto de
fadas», dissera-lhe ela quando ele a visitara pela primeira vez em
Hong Kong, vários anos antes. Ele tinha ido a Hong Kong com a
ideia de que talvez conseguisse encontrar o Livro das Portas.
«Parece uma coisa que alguém inventou.»
— Se pudesses viajar no tempo — começou Yasmin —, imagina
o que poderias fazer. Podias mudar a História, mudar os
acontecimentos mundiais. Talvez seja melhor que esse livro
permaneça escondido.
— Nein — disse Wagner, pegando na caneca de café que estava
em cima da mesa. Wagner não bebia álcool, por razões que
Drummond nunca descobrira. Ele parecia viver apenas de café e
água. — Eu não acredito nisso.
— Não acreditas em quê? — perguntou Drummond.
— Que se possa mudar a História com viagens no tempo. Sou
um físico. Compreendo as leis do Universo. Não acredito que as
viagens no tempo funcionem dessa maneira. Continua a haver
causa e efeito.
— Tens de nos dizer como é que isso funciona, querido Wagner
— disse Lily. — Anda, guarda lá o quadro e fala sobre as viagens no
tempo.
Wagner deixou cair o giz no suporte que se encontrava ao lado
do quadro e voltou para o seu lugar.
— É claro que tudo isto são conjeturas: ninguém saberá até
viajarmos no tempo… mas parece-me que o tempo é fixo. O
passado não pode ser alterado.
— Porquê? — perguntou Drummond.
— Olha — explicou Wagner, cruzando as pernas, com o cotovelo
no braço da cadeira e a mão no ar, a balançar enquanto falava,
como se enfatizasse as suas palavras. — Há duas ideias sobre as
viagens no tempo. Há o modelo aberto de viagem no tempo e o
modelo fechado, ja? No modelo aberto, podemos viajar para o
passado e alterar os acontecimentos de modo que o nosso presente
também seja alterado. É o que se vê nas histórias de ficção
científica. Voltamos atrás e fazemos uma coisa qualquer e a História
muda.
Yasmin anuiu com a cabeça.
— Mas tu não acreditas que isso acontecesse.
— Nein. Porque o passado é passado; os factos já aconteceram.
Se voltarmos atrás e tivermos algum efeito sobre o passado, isso
contribuirá para o presente que já estamos a viver. Este é o modelo
fechado. Não se pode mudar os acontecimentos a partir do que já
aconteceu. Se voltarmos atrás e fizermos algo no passado, então
isso já aconteceu no passado e faz parte da História. Faz parte
daquilo que fez o nosso presente ser o presente que é, o presente
do qual nos afastámos quando fomos para o passado.
— Estou a esforçar-me muito para compreender isso —
murmurou Lily, sonolenta. — Mas tenho demasiada comida pesada
para digerir e pouca energia.
— Então, estás a dizer que não se pode mudar os
acontecimentos — disse Drummond. — Mesmo que tivéssemos um
Livro do Tempo, ou o Livro das Portas, se tentássemos mudar
alguma coisa no passado, nada mudaria no presente?
— Exato — confirmou Wagner. — Porque já aconteceu. As
coisas que fizeste no passado já aconteceram, antes que a tua
pessoa no presente volte atrás para as fazer.
Os três pensaram na ideia em silêncio, enquanto Wagner bebia
o seu café placidamente.
Drummond sentia a sua mente a debater-se com as ideias que
Wagner estava a descrever. Na melhor das hipóteses, sentia-se
sempre cerca de três passos atrás de Wagner, mas agora estava a
correr para acompanhar um homem que andava a passear
calmamente.
— Mas isto é apenas uma teoria — prosseguiu Wagner,
encolhendo os ombros com bonomia. — Não iremos saber até
descobrirmos se viajar no tempo é possível.
Os olhos de Lily estavam vidrados, e Yasmin olhava para o prato
de bolachas de manteiga como se estivesse a pensar se seria má
ideia comer mais uma ou não. Drummond ainda estava a tentar
perceber as palavras de Wagner.
— Já pensaste em fazer ciência com os livros, Wagner? —
perguntou Lily.
— Fazer ciência com os livros? — perguntou Wagner, divertido.
Lily acenou com a mão.
— Tu percebeste, levá-los para um laboratório, examinar o que
acontece quando são usados.
Wagner refletiu sobre a questão.
— Não, nunca pensei nisso — admitiu ele. — Talvez devesse,
como dizes, fazer ciência com os livros. — Olhou para Drummond.
— Talvez se eu pudesse levar emprestado um ou dois livros da
Biblioteca, pudéssemos fazer algumas experiências.
Drummond anuiu. Era uma ideia interessante e, tanto quanto ele
sabia, nunca ninguém tinha feito experiências sobre o que eram os
livros ou como funcionavam.
— Alguém sabe alguma coisa dos Popovs? — perguntou
Yasmin, já a pensar no assunto seguinte.
— Os Popovs? — perguntou Lily, com os olhos subitamente
focados de novo. — Os Popovs do Livro do Desespero, em São
Petersburgo?
Yasmin assentiu.
— Tenho um contacto que me contou uma história sobre eles
terem desaparecido. Ninguém os vê nem sabe deles há alguns
meses.
— Espero que não — disse Drummond. — O Livro do Desespero
pode ser muito perigoso nas mãos erradas.
— Ja — disse Wagner, anuindo, enquanto pegava na sua
caneca de café.
— Foi por isso que me lembrei de perguntar — disse Yasmin.
Lily estava a abanar a cabeça.
— Devíamos mesmo tentar comprar todos estes livros e guardá-
los num sítio seguro. Tenho noites em que fico acordada, assustada
a pensar no que poderia acontecer se as pessoas erradas
deitassem a mão a mais livros.
— Como o Hugo Barbary — comentou Yasmin.
— Ouvi uma história, na verdade, de um amigo na América —
disse Drummond. — Uma história sobre uma mulher que estava a
tentar recolher todos os livros.
No presente, na Biblioteca Fox, onde Cassie dormia noutra parte do
edifício, Drummond estava à janela da sua torre, com a caneca de
chá na mão e a tristeza a sufocá-lo, enquanto recordava aqueles
dias com os seus amigos. Desejava que tivessem sido mais
cautelosos, mais atentos aos rumores e às histórias que se ouviam.
Tinham sido ingénuos, demasiado dispostos a acreditar que o pior
não aconteceria.
Agora os seus amigos estavam mortos, e ele estava sozinho.
Tinha de pensar no que fazer a seguir.
Bebeu um gole de chá e sondou a noite, à procura de uma
resposta.
MATT’S ALL-AMERICAN BURGERS
(2012)

V árias horas depois de Drummond ter revelado a Cassie aquilo


que o Livro das Portas podia fazer, e mais de uma década
antes, Cassie e Drummond entraram no Matt’s All-American Burgers
em Myrtle Creek, no Oregon. Drummond tinha devolvido a Biblioteca
Fox às Sombras, tentando, sem sucesso, esconder a sua óbvia
tristeza por abandonar a sua casa mais uma vez, e depois tinham
voltado à porta por onde haviam entrado no dia anterior, e Cassie
levara-os para o passado. Para o passado dela.
Ficaram parados à porta do restaurante por alguns instantes,
enquanto Cassie recordava aquele lugar que tinha conhecido
durante a sua infância. Depois, um dos empregados cumprimentou-
os e levou-os para uma mesa de bancos corridos junto à janela.
— Onde estamos? — perguntou Drummond, olhando para as
árvores verde-escuras e para o pesado céu cinzento.
— No Oregon — disse Cassie. A sua voz soava-lhe muito
distante. Deu conta de que estava a debater-se com a realidade, a
debater-se com o que tinha ido ali fazer. — Numa cidade chamada
Myrtle Creek. Eu cresci aqui. Vínhamos muito a este restaurante.
O interior do restaurante fora concebido de modo a lembrar os
clientes de uns anos cinquenta idealizados que provavelmente
nunca existiram. Havia muito néon, cromados, bancos corridos de
vinil vermelho e um chão axadrezado. As fotografias nas paredes
estavam cheias de rostos jovens e otimistas em churrascos ou à
roda de uma fogueira.
— Este sítio é a sério? — perguntou Drummond. — Diz-me que
é irónico, por favor.
— As pessoas não vêm aqui pela decoração — retorquiu Cassie.
— A comida é mesmo boa.
As televisões atrás do balcão mostravam canais de desporto e
de notícias, acontecimentos atuais para os clientes, mas históricos
para Cassie. Ela observou, hipnotizada por alguns momentos,
enquanto um Barack Obama mais jovem se dirigia a uma sala, uma
multidão de rostos reunidos em filas atrás dele, e depois tirou um
menu do suporte ao fundo da mesa.
— Café? — perguntou a empregada, vinda de uma mesa
próxima. Era uma mulher de meia-idade que parecia cansada,
transmitindo todos os sinais de que queria um pedido e não uma
conversa. Cassie lembrava-se vagamente dela. — Café? —
perguntou a mulher outra vez, e Cassie percebeu que tinha ficado a
olhar especada para ela.
— Sim — disse ela. — Café. Drummond?
— Têm whisky? — perguntou ele, e a empregada respondeu
com um ar enfadado. — Chá? — tentou ele.
— Café, chá — disse a mulher, e virou-se para se ir embora.
— Chá preto com leite — disse-lhe Drummond quando ela se
afastou, e ela olhou para trás sem abrandar o passo. — Água a
ferver para o chá, por favor, não água simplesmente morna.
Havia apenas mais algumas pessoas à volta deles, mas Cassie
sabia que o restaurante iria em breve ficar cheio com a multidão da
hora de almoço. Cheio de pessoas como o avô dela.
Voltou os olhos para o mundo lá fora. A estrada que passava
pelo restaurante era-lhe tão familiar. Percorrera-a milhares de vezes
ao longo da sua infância. Alguns quilómetros mais a leste
encontrava-se a casa onde Cassie tinha crescido. Enquanto ela
olhava e recordava, perdida nos seus pensamentos, as primeiras
gotas de chuva salpicavam a janela, gordas e redondas. Cassie
sabia que a chuva cairia durante toda a tarde. Lembrava-se daquele
dia.
O chocalhar de louça trouxe-lhe a atenção de volta para o
restaurante — alguém deixara cair uma chávena —, e depois
Cassie olhou para o outro lado da mesa, para Drummond, que
estava a observar a ementa com uma careta.
— O que é que se passa com a tua cara?
Drummond gesticulou para a ementa.
— Ando a viajar por este país há uma década e estou farto da
comida — queixou-se ele. — Será que é possível encontrar alguma
coisa para comer que não seja apenas carne entre dois bocados de
pão? Hambúrgueres… cachorros-quentes… Mini-hambúrgueres…
Sanduíches? A França tem uma cozinha maravilhosa. Quem me
dera ter passado os últimos dez anos em França.
O seu olhar deambulou para a janela, enquanto a sua mente se
perdia em pensamentos.
Cassie observou-o por breves instantes, sem saber se as suas
palavras a tinham irritado ou divertido, e depois perguntou:
— O que é que vai acontecer se eu falar com ele? — Esta era
uma das perguntas que lhe tinha atormentado a cabeça durante
toda a tarde e noite na Escócia, enquanto estava acordada no
luxuoso quarto de Drummond, a pensar no que ele tinha revelado.
— Será que vou mudar a História? Ou… Não sei, será que vai
acontecer alguma coisa má?
— Falámos sobre isso uma vez, eu e os meus amigos — disse
Drummond. — Na Biblioteca. Lembro-me de um debate sobre
viagens no tempo. — Abanou a cabeça. — Na verdade, não faço a
mínima ideia. Estudei Literatura na universidade, não Física
avançada, e, infelizmente, os poetas metafísicos não têm muito a
dizer sobre viagens no tempo. — Ele sorriu e ela deu por si a sorrir-
lhe de volta, apesar do nervosismo. Ela deu-se conta de que se
sentia animada quando ele estava feliz. — Mas o meu amigo
Wagner, esse, sim, era um físico — continuou Drummond. — E ele
tinha a certeza de que viajar no tempo não poderia alterar o rumo da
História. Se fizermos alguma coisa aqui, agora, então isso cria o
futuro como o conhecemos, o futuro em que existimos. Não muda a
nossa realidade. Porque ela já aconteceu.
Cassie franziu o sobrolho.
— Então… se eu falar com o meu avô aqui, agora, quer dizer
que foi assim que sempre aconteceu? Eu estive sempre aqui, neste
tempo, a falar com ele?
Drummond assentiu.
— Acho que sim. Acho que foi isso que o Wagner quis dizer.
— Acreditas nisso?
Drummond encolheu os ombros.
— Não sei se cheguei a perceber, quanto mais a acreditar. Mas o
Wagner era um homem muito inteligente, e ele havia de saber mais
do que a maioria das pessoas.
O olhar dele pousou na mesa por alguns instantes, e Cassie
percebeu que ele devia estar a pensar no amigo.
A empregada de mesa aproximou-se no silêncio que se formara
e pousou as bebidas diante deles. Cassie pediu torradas de pão
integral e ovos mexidos, apesar de achar que não ia comer.
Drummond pediu uma fatia de bolo red velvet.
— Em que data é que estamos exatamente? — perguntou
Drummond, depois de a empregada os ter deixado.
— Se eu estiver certa, isto foi há pouco mais de dez anos: 22 de
agosto de 2012, no final das férias de verão.
Passar por uma porta para o passado não tinha sido difícil para
Cassie. Tinha sido mais fácil, na verdade, do que abrir a porta da
Biblioteca Fox nas Sombras. Ela interrogou-se se isso acontecera
por a porta de entrada para o Matt’s ser um lugar que ela conhecia
tão bem e há tanto tempo. Era-lhe uma porta muito familiar.
— Porque é que escolheste este dia? — perguntou Drummond.
— Lembro-me perfeitamente dele. Eu estive fora da cidade
durante alguns dias, a acampar com uma amiga e os pais dela. —
Apontou para a janela, para a chuva que criava estrias no vidro e
para as nuvens pesadas que se formavam ao longe. — Este é o
início de um aguaceiro de três dias. Não é algo que se esqueça
quando se está a acampar. Estava tudo tão húmido. Foi terrível.
Nunca mais fui acampar.
— Isso não responde à minha pergunta — insistiu ele. — Porquê
vir hoje?
— Estou fora da cidade, por isso não vou dar de caras comigo,
pois não? E nenhuma das pessoas que eu conhecia daqui vai ver
duas de mim a andar por aí.
Drummond anuiu, apreciando a sua linha de raciocínio.
— Não sei o que aconteceria se te encontrasses contigo mesma
— disse ele. Ele pareceu distraído com essa ideia por breve
instantes.
— Não consigo pensar em nada pior — murmurou Cassie. —
Não sei quem ficaria mais horrorizada: eu mais jovem ao ver-me
vestida com estas roupas em segunda mão — gesticulou para a
camisola — ou o eu de agora a ser recordada de como era antes
de…
— Antes de quê? — pressionou Drummond.
— Apenas antes — respondeu ela, passado um momento.
Mantiveram-se em silêncio até a comida chegar e depois o
silêncio fez-lhes companhia enquanto comiam, enquanto Cassie
dedicava mais tempo a brincar com os ovos do que a comê-los. O
restaurante ficou movimentado. Grupos de homens entravam para
fugir da chuva, a conversarem e a rirem ruidosamente; raparigas
adolescentes riam e sussurravam, e um rapazinho entrou com livros
de banda desenhada encharcados e a infelicidade estampada no
rosto. Em redor, os talheres tilintavam e as canecas e os copos
batiam nos tampos das mesas. Durante alguns minutos, Cassie
esteve distraída, feliz até, a imaginar que os últimos dez anos não
tinham acontecido, que podia estar de volta ao restaurante com a
sua vida a estender-se à sua frente, uma terra de oportunidades à
espera de ser descoberta.
— Conta-me mais sobre como conseguiste o livro — pediu ele,
tirando-a relutantemente dos seus próprios pensamentos. Ela viu-o
dissecar um bocado do bolo red velvet e depois enfiá-lo na boca.
— Isso é bom? — perguntou ela.
— Não é mau — admitiu. — Vai dar-me alguma energia para
continuar. O livro. Quem era o homem que to deu?
Ela pensou no que dizer, perguntando-se porque é que ele
estava tão interessado em saber de onde vinha o livro. Mas depois a
porta abriu-se novamente e, quando Cassie virou a cabeça, viu o
seu avô a sair da tempestade, a passar a mão pelo cabelo e a
sacudir a chuva, enquanto cumprimentava a empregada com um
sorriso que fez com que a garganta de Cassie ficasse subitamente
seca e dorida.
Depois, atravessou a sala atrás da empregada, dirigiu-se a uma
mesa no canto mais afastado e sentou-se.
O avô dela.
O seu avô maravilhosamente vivo e saudável, o homem que
tinha morrido há mais de oito anos.
IZZY FORA DE SI

Q uando Izzy acordou na manhã seguinte, mais ou menos à


mesma hora a que Cassie e Drummond estavam a sair da
Biblioteca e a viajar para o passado de Cassie, teve imediatamente
a certeza de que alguma coisa não estava bem.
Levantou-se da cama com esforço e ficou parada no meio do
quarto, a tentar localizar a origem da sua ansiedade. Parecia a
recordação de um pesadelo, um terror noturno que ainda não tinha
sido ultrapassado. Mas ela não se lembrava de ter tido nenhum
sonho.
Tomou um duche, na esperança de que isso lhe aliviasse o mal-
estar, mas, quando acabou, não se sentia melhor. Teria bebido
muito na noite anterior? Tentou lembrar-se, mas a noite anterior
parecia-lhe vaga. Começou a perguntar-se se teria sido drogada.
Talvez não se lembrasse porque alguém lhe tinha posto alguma
coisa na bebida? Talvez a estranheza que estava a sentir fosse uma
espécie de efeito secundário?
Vestiu-se para ir trabalhar, examinando-se cuidadosamente
enquanto o fazia, sem admitir a si própria que estava à procura de
nódoas negras, escoriações ou outros sinais de que algo lhe tinha
acontecido. Tanto quanto podia ver, tanto quanto sentia, estava
fisicamente bem. O que quer que estivesse errado, era algo mais
intangível.
Conforme se preparava para sair, reparou que a porta do quarto
de Cassie estava entreaberta.
— Cassie? — perguntou, espreitando pela porta. A cama estava
feita, como se não tivesse sido usada. Cassie também não estava
na sala de estar. Izzy franziu o sobrolho perante mais uma anomalia.
Não se lembrava de alguma vez Cassie não ter passado a noite em
casa. Ficou preocupada.
Tentou telefonar à amiga, mas não obteve resposta e, pela
primeira vez, perguntou-se se estaria a sentir-se estranha porque
algo tinha acontecido a Cassie. Talvez alguém a tivesse atacado ou
raptado? Talvez a sensação estranha resultasse de ter ouvido
alguma coisa enquanto dormia?
Ela não sabia o que fazer. Não sabia se estava a exagerar, ou se
algo estava realmente errado. Perguntou-se se deveria chamar a
polícia, e depois pensou no que lhes diria.
— Sinto-me esquisita e não consigo falar com a minha
companheira de casa — disse a si mesma, e depois fez uma careta.
Eles iriam olhar para ela como se fosse estúpida. Iriam gozar com o
facto de ela ser uma mulher muito sensível.
Izzy ligou a Cassie pela segunda vez e deixou uma mensagem
de voz:
— Cassie, podes ligar-me, por favor? Estou preocupada e não
consigo falar contigo.
Assim que desligou, bateram à porta, um truz-truz alegre e
ritmado. Ela abriu a porta e deparou com dois homens, o par mais
estranho que alguma vez vira. O homem que estava mais perto dela
era asiático, baixo e compacto, com maçãs do rosto proeminentes e
cabelo bem arranjado. Reparou que era bonito. Atrás dele,
encontrava-se um gigante, um homem com mais de um metro e
oitenta de altura e um peito largo como uma espécie de super-herói
saído dos desenhos animados. Era branco, com cabelo castanho
encaracolado e um olhar plácido e atento. Ambos estavam vestidos
com fatos escuros e gabardinas, mas a gravata do gigante estava
solta e o fato mais desalinhado.
— Menina Cattaneo? — perguntou o asiático, com um sorriso.
— Sim — disse Izzy.
— Importa-se que entremos por um minuto e falemos consigo?
Eram da polícia, percebeu Izzy.
— Isto tem que ver com a Cassie? — perguntou ela.
O homem asiático olhou por cima do ombro para o gigante e
depois voltou a olhar para ela.
— Receio bem que sim — disse ele, com uma expressão
pesarosa.
— Oh, meu Deus — murmurou Izzy, levando as mãos ao cabelo.
— O que é que aconteceu? Ela está bem? Não me digam que está
morta… Eu não podia…
O homem levantou a mão para a tentar acalmar.
— É melhor se nós… — começou ele, a acenar com a cabeça
na direção do apartamento atrás de Izzy, incitando-a a entrar.
— Oh, meu Deus — disse Izzy novamente, virando-se e
regressando para dentro. Os dois homens seguiram-na até à sala
de estar. O espaço parecia apinhado com os três, especialmente
com o gigante parado mesmo em frente à porta, de mãos nos
bolsos.
— Menina Cattaneo — disse o homem asiático. — O meu nome
é Azaki. A parede ambulante atrás de si é o Lund. Ele não fala
muito.
— Não quero saber os vossos nomes. O que é que aconteceu à
Cassie?
— Podemos fazer-lhe algumas perguntas rápidas primeiro? —
perguntou Azaki.
Izzy apercebeu-se de sombras a deslocarem-se e percebeu que
o homem grande se estava a afastar da porta. Ele espremeu-se
entre ela e Azaki e foi até à janela para espreitar o dia.
— Que perguntas? — perguntou Izzy com impaciência.
— Quando foi a última vez que viu a Cassie? Ela falou-lhe de
amigos novos ou encontros estranhos recentemente?
— Ontem à noite — disse ela, com mais certeza do que sentia.
— Eu vi-a ontem à noite. E depois, quando acordei esta manhã, ela
tinha desaparecido. E…
— E o quê? — perguntou Azaki.
— Não devia estar a tomar notas ou algo assim? — perguntou
Izzy.
Azaki bateu com o dedo indicador na têmpora.
— Está tudo aqui em cima. Não se preocupe, menina Cattaneo;
isto não é uma entrevista formal. O que é que ia dizer?
— E tenho-me sentido estranha desde que acordei, como se
alguma coisa estivesse errada, mas não consigo perceber.
— É invulgar a Cassie não estar em casa de manhã? —
perguntou Azaki.
— Sim — respondeu Izzy. — Ela normalmente trabalha à tarde e
à noite. É um animal noturno. Fica acordada até tarde e depois
dorme pela manhã fora. Ela ainda devia estar na cama.
— Estou a ver — disse Azaki. Ele olhou para o outro homem,
mas o gigante não respondeu. — Uma outra pergunta, menina
Cattaneo — continuou Azaki. — A Cassie trouxe para casa alguns
livros novos recentemente? Ou disse-lhe alguma coisa sobre ter
encontrado alguns livros interessantes?
— Livros? — perguntou Izzy, extremamente confusa. — Por que
raio me está a perguntar sobre livros?
— Responda à pergunta, por favor — insistiu Azaki.
Izzy pensou um pouco no assunto.
— Não sei — disse ela. — A Cassie trabalha numa livraria e está
sempre a ler. Está sempre a comprar livros novos. Não é uma coisa
de que falemos.
— Ela trabalha numa livraria? — perguntou Azaki, como se isso
fosse interessante.
— Calma aí — disse Izzy. — Pensei que estavam aqui para me
contar alguma coisa sobre a Cassie. Pensei que ela estava no
hospital ou morta ou algo do género!
— Oh, não fazemos ideia — disse Azaki.
Izzy sentiu um sobressalto no instante em que fez uma ligação,
uma dedução.
— Vocês não são da polícia — replicou ela, subitamente alerta.
Azaki franziu o sobrolho.
— Oh, somos, sim. Peço desculpa. — Ele sorriu a pedir desculpa
e enfiou as duas mãos nos bolsos, como se estivesse à procura de
alguma coisa, depois uma mão emergiu com um crachá que lhe
estendeu. Ela inclinou-se e leu-o.
— Inspetor Azaki — disse ela.
— É verdade — confirmou ele, guardando o distintivo.
— Porque é que está a fazer-me essas perguntas sobre a
Cassie? — Izzy olhou de relance para o homem grande à janela. O
homem observava-a, mas não havia qualquer ameaça óbvia na sua
expressão.
— Estamos muito interessados em encontrá-la — explicou Azaki.
— Achamos que ela pode correr perigo por causa de um objeto
valioso de que se apoderou recentemente. Sabe se ela tem alguma
coisa valiosa?
— Valiosa? — disse Izzy. — A Cassie? Acho que está enganado.
A única coisa que a Cassie tem são livros e péssimo gosto para
roupas.
O gigante tossiu uma gargalhada, um único «Ah» que perfurou o
ar e, quando Izzy olhou para ele, um sorriso estava a desaparecer
do seu rosto. Azaki suspirou, irritado com a interrupção.
— Disse que ela corria perigo? — perguntou Izzy. — Que
perigo?
— Acreditamos que a menina Cattaneo também possa estar a
correr perigo — continuou Azaki, parecendo preocupado.
Izzy sentiu a mão a ir ao peito, em choque.
— Porque é que eu havia de correr perigo? Não fiz nada. O que
é que não me estão a dizer? Onde é que está a Cassie?
— Não sabemos mesmo — declarou Azaki, mostrando empatia.
Ele analisou-a por momentos, como se estivesse a pensar nalguma
coisa. — Talvez fosse melhor se viesse para a esquadra connosco,
só por algumas horas. Só até conseguirmos encontrar a Cassie.
— Para a esquadra? Estão a prender-me?
— Não, de todo. Só para sua própria proteção. Não quero deixá-
la preocupada.
— Não estou a gostar disto — disse Izzy. — Não podem vir aqui
e simplesmente dizer-me que corro perigo.
Soou outra batida na porta da frente, desta vez um baque alto
em vez da batida alegre que Azaki tinha produzido. Este virou a
cabeça na direção do som e depois anuiu para si próprio. Em
seguida, sorriu para Izzy.
— Um segundo, por favor — disse ele. Hesitou um momento e
inclinou-se para junto dela, baixando a voz. — Vai correr tudo bem,
Izzy. Vai ter de ser corajosa.
Enquanto Izzy absorvia a estranha mensagem, Azaki fez um
gesto para o gigante com um movimento de cabeça e os dois
saíram da sala de estar para o corredor. Izzy foi até à janela e ficou
a olhar para a rua, tentando encontrar algum sentido naquela manhã
louca.
Entretanto, ouviu a porta do apartamento a abrir-se. Depois,
ouviu um ruído como um arfar ou um grito de surpresa. A seguir,
houve duas pancadas abafadas, e depois dois baques maiores, o
som de pessoas a embaterem no chão, e Izzy ficou petrificada.
A porta do apartamento fechou-se com um estrondo e, logo de
seguida, um terceiro homem apareceu na entrada, com uma
espécie de arma com um tubo comprido no cano numa mão e um
saco grande na outra. Era um homem alto, careca, com óculos
redondos. Por alguma razão, só o facto de o ver deixou Izzy
nervosa.
— Olá, outra vez — disse ele, sorrindo-lhe como se fossem
velhos amigos. Ele olhou em redor da sala como se estivesse a
pensar em mudar-se para lá. — Uau! Que merda de lugar horrível.
Não conseguem pagar nada melhor do que isto?
Izzy queria dizer alguma coisa — uma pergunta que a ajudasse
a compreender, um grito de socorro —, mas estava petrificada. Viu o
homem meter a arma que tinha na mão num coldre na anca, com a
ponta do cano a chegar-lhe à coxa, e depois a puxar o sobretudo
para a esconder.
— Tu e eu vamos ter uma conversinha — disse ele,
aproximando-se dela. Assentou-lhe uma mão no ombro e encorajou-
a gentilmente a sentar-se no sofá. Ela conseguia sentir o cheiro do
perfume dele, um cheiro picante e abrasivo que era demasiado forte
ou aplicado em demasia. — Vais contar-me tudo o que sabes.
— Sobre o quê? — perguntou ela. — Quem é você? O que é
que fez aos dois polícias?
Ele observou-a por instantes, com um ligeiro franzir de
sobrancelhas, e Izzy teve a sensação de que ele estava a chegar a
alguma conclusão.
— Muito bem — disse ele. — Não sabes nada.
Ele agachou-se à frente dela, com os joelhos a estalar
audivelmente, e cruzou o seu olhar com o dela.
— Temos de ver se conseguimos ajudar-te a lembrares-te.
E, então, sorriu, deixando Izzy arrepiada até ao âmago.
— Oh, não te preocupes — disse ele, lendo-lhe alguns
pensamentos na expressão. — Vai ser bom. Mesmo bom.
CASSIE E JOE (2012)

— É ele — disse Cassie, a falar com Drummond, mas a olhar


para o avô.
— Devias ir falar com ele — incentivou Drummond, fazendo
Cassie olhar para ele. — Era o que tu querias.
Era mesmo o que ela queria, percebeu Cassie. O seu avô,
Joseph Andrews, estava a analisar a ementa, como se não fosse
pedir a mesma coisa que pedia sempre.
— Anda, vai lá — disse Drummond, as suas palavras tingidas de
impaciência.
Ela hesitou durante algum tempo, observando o avô enquanto
ele fazia o pedido à empregada. Cassie sabia o que ia ser: um
cheeseburger, batatas fritas à moda da casa e café simples. Era o
que ele pedia sempre no Matt’s. Depois, a empregada afastou-se e
ele ficou sozinho. Deu umas palmadinhas nos bolsos e tirou o
telemóvel de um deles: um Nokia antigo, estreito e retangular, com
um ecrã minúsculo e um pequeno teclado que se revelava ao
deslizar a parte superior do aparelho para cima. Cassie lembrava-se
de como tinha ficado deslumbrada com o telemóvel quando o avô o
levara para casa pela primeira vez, apesar de já estar alguns anos
desatualizado nessa altura. Parecera-lhe tão futurista, e vê-lo agora
trouxe-lhe essa memória de volta à vida, com a excitação a
borbulhar-lhe no estômago como uma garrafa de refrigerante
agitada. Viu o avô pousar o telemóvel na mesa, ao seu lado. De
outro bolso, retirou um livro de Stephen King, já velho e gasto, e
recostou-se na cadeira para ler.
Cassie levantou-se e atravessou a sala, com o estômago às
voltas como uma máquina de lavar roupa. Sentou-se em frente ao
avô sem dizer nada. Ele levantou o olhar do seu romance e uma
série de expressões passou-lhe pelo rosto: o brilho do
reconhecimento a transformar-se em confusão, um rápido
esbugalhar em sinal de preocupação. Depois, ficou simplesmente a
olhar para ela, pestanejando uma vez, com os olhos cravados no
rosto de Cassie, vendo algo familiar que parecia diferente.
A empregada trouxe um café e voltou a afastar-se, mas o avô de
Cassie nem deu por isso.
— Olá, avô — disse ela, a tentar sorrir, a tentar não chorar.
Ele olhou para ela com uma expressão que ela nunca vira antes,
o olhar inocente e espantado de um rapaz no rosto de um homem
de meia-idade.
— Cassie? — perguntou ele, num sussurro hesitante.
Ela anuiu com a cabeça uma vez.
— Mas tu pareces…
— Pareço mais velha — disse ela. — Isso é porque estou.
O avô abanou a cabeça lentamente, pousando o livro na mesa e
chegando-se mais para a frente na cadeira de modo a conseguir
analisá-la melhor.
Cassie viu agora que ele era um homem bonito, algo em que
nunca tinha reparado. Estava desgastado pelo trabalho e pela vida,
mas era bonito — tinha um maxilar anguloso e uma cabeça cheia de
cabelo e olhos azul-escuros com rugas nos cantos. Tinha um peito
largo e braços fortes que tinham sido desenvolvidos ao longo de
muitos anos de trabalho físico. As suas mãos eram calejadas e
ásperas, com nós dos dedos enormes como porcas enroscadas em
parafusos, mas eram mãos capazes de trabalho delicado e de
ternura. As mãos de um artesão.
— Quando eu tinha 6 anos — disse Cassie, enquanto despia o
braço esquerdo do casaco —, caí e fiz um corte junto à clavícula. —
O avô observou-a, com a expressão vazia e a boca ligeiramente
aberta. Ela baixou a camisola e a t-shirt para mostrar a cicatriz que
ainda era bem visível junto à alça do sutiã. A cicatriz tinha uma
cabeça redonda com uma cauda que se estendia para fora, e
Cassie sempre achara que parecia um cometa.
Cassie esperou enquanto o avô estudava a cicatriz. Depois, viu
os olhos dele deslocarem-se para os seus. Ele anuiu com a cabeça
uma vez e Cassie enfiou o braço no casaco.
— Um cheeseburger, batatas fritas — anunciou a empregada,
pousando a comida. — Queres alguma coisa, querida?
— Não, obrigada — respondeu Cassie, sem quebrar o contacto
visual com o avô. A empregada deixou-os novamente e, passados
uns instantes, o avô pareceu lembrar-se de onde estava. Baixou os
olhos para a comida que tinha à sua frente. Pegou no café e
segurou-o, mas não o bebeu.
— Devias estar a acampar com a Jessica e os pais dela — disse
ele.
— E estou — disse Cassie. — A Cassie desta época. A Cassie
mais jovem.
O avô absorveu a resposta e depois bebeu um gole do café,
franzindo o sobrolho.
— O que é que se está a passar aqui?
— Não sei como explicar sem parecer maluca — disse Cassie,
debatendo-se agora com todas as coisas impossíveis e importantes
que tinha para dizer. O avô estava a olhar para ela, como se não a
conseguisse ver o suficiente, como se não houvesse espaço
suficiente nos seus olhos para ver tudo o que precisava de ver.
— Diz-me de uma vez — pediu ele.
Com essas quatro palavras, ele lembrou Cassie de tudo o que
ele era e de tudo o que ela amava. Ele era um homem que ouvia e
absorvia, um homem que nunca fazia um julgamento rápido.
— Eu sou do futuro. — Cassie sentiu-se um pouco
envergonhada por sequer usar tais palavras. — Não importa como
ou porquê, mas eu voltei aqui para te ver.
— Estou a ver — disse ele, a observá-la.
— Não queres comer o teu hambúrguer?
— Não. Ainda não.
— OK.
Ficaram sentados em silêncio por breves instantes, a olhar um
para o outro, enquanto o restaurante fazia barulho e conversava à
sua volta.
— Acreditas em mim? — perguntou ela. — Acreditas naquilo que
eu disse?
— Acredito que sejas minha neta — disse ele, falando devagar,
sopesando as suas palavras. — E acredito que és mais velha do
que a Cassie de quem me despedi ontem de manhã. Tu és uma
mulher. Consigo ver isso.
Cassie anuiu com a cabeça. As suas emoções eram uma
cascata dentro dela, uma vasta e estrondosa cascata que abafava
tudo o resto, mas o seu rosto não revelava nada.
— E então? — disse Cassie.
— O que dizes é uma explicação tão boa como qualquer outra.
Não consigo pensar em nada melhor. A menos que eu esteja a
alucinar. A menos que não sejas real.
Cassie estendeu a mão e colocou-a sobre a dele.
— Consegues sentir-me?
Ele assentiu.
— Estou aqui.
Cassie sentiu que se estava a amarrotar, como se fosse feita de
papel. Sentiu-se a cair no seu âmago, todas as paredes e defesas
que tinha construído ao longo de uma década a desmoronarem-se à
sua volta porque ele estava ali, e estava vivo. As lágrimas brotaram-
lhe nos olhos, por mais que ela as quisesse afastar.
— O que é que se passa, Cassidy? — perguntou o avô.
— Cassidy — disse ela, a fungar. — Ninguém me chama isso.
Ele estava a olhar para ela de forma estranha, com os olhos
ligeiramente semicerrados, como quando fazia cálculos para uma
peça complexa de carpintaria.
— Porque é que estás aqui? — perguntou ele. — Não deve ter
sido fácil para ti chegar aqui, então porque é que vieste? Os
hambúrgueres são proibidos no futuro ou alguma coisa do género?
Ela riu-se, uma gargalhada única e alegre, e depois limpou os
olhos à manga, sempre consciente de que ele a observava.
— Não — disse ela. — Ainda se pode comer hambúrgueres. Eu
só… Eu só queria ver-te, avô.
Ele anuiu lentamente com a cabeça e depois olhou para o café.
Levantou a caneca e bebeu mais um gole.
— Suponho que não me possas ver no futuro, então.
Cassie olhou-o nos olhos, compreendendo a pergunta, e depois
limitou-se a abanar a cabeça. Ele anuiu, aceitando a resposta dela e
tudo o que isso implicava, e os seus olhos afastaram-se dela.
— Certo — disse ele.
Quando ele voltou a olhar para a neta, percorrendo-lhe o rosto e
a roupa com os olhos azuis, ela quase conseguia ver a sua linha de
pensamento: Que idade tens? Quanto tempo é que me resta?
— Queria dizer-te algumas coisas — disse ela. — Oh, meu
Deus. Há tanto tempo que penso nisto, no que te diria se te voltasse
a ver. Todas as coisas que nunca cheguei a dizer.
O avô dela estendeu as mãos.
— Estou aqui, Cassidy. Podes falar comigo.
— Só queria agradecer-te — disse ela, passado um momento,
sentindo as lágrimas voltarem aos olhos, o ardor no fundo da
garganta. — Deste-me tanto; deste-me tudo. Foste o melhor pai que
eu poderia ter tido. O melhor dos progenitores. E tenho pena de
nunca te ter dito isso.
Ele franziu ligeiramente os lábios, evitando os olhos dela,
embaraçado perante aquela emoção tão crua.
— Eu sei, Cassidy — murmurou ele. — Eu sei tudo isso.
— Eu viajei! — disse ela então, subitamente entusiasmada pelo
assunto. — Por toda a Europa!
Os olhos do avô reluziram de interesse, como a luz do sol na
água.
— Sim, onde é que foste?
— A todo o lado! — disse ela, cheia de entusiasmo. — França,
Itália e Grã-Bretanha. Vi todos os museus, as obras de arte e os
edifícios antigos.
Ele abanou a cabeça lentamente. Depois, quase num sussurro:
— És uma linda mulher.
— Avô… — murmurou ela, sendo agora a sua vez de se sentir
desconfortável.
— Eu sempre soube que o virias a ser — continuou ele. — És
parecida com a tua avó. Também vejo um pouco da tua mãe, nos
teus olhos.
Cassie não disse nada em relação a isso, ciente de que o avô
devia poder desfrutar daquele momento, que era o futuro que ele
estava a encarar.
— Trabalho numa livraria — disse ela.
— Bem, isso não me surpreende. Tu adoras os teus livros.
— Saí a ti nesse aspeto. Todas as noites, depois do trabalho, um
livro até à hora de dormir.
— Sim — concordou ele.
Ela observou-o, recordando traços do seu rosto que tinha
esquecido, o franzir dos olhos, a cor do cabelo, mas viu que ele
começava a ficar desconfortável sob o seu escrutínio. Ele olhou
para a comida que estava a arrefecer à sua frente.
— Come — encorajou ela. — Desculpa, estou a interromper a
tua pausa para almoço.
Ele lançou-lhe um olhar de desaprovação, mas levantou o
hambúrguer, deu uma dentada e começou a mastigar, observando-a
o tempo todo.
— Eu devia contar-te — disse ela, as palavras a saírem-lhe
antes de ter pensado nelas, embora soubesse que esse tinha sido
sempre o objetivo da conversa. Se eu puder contar-lhe sobre a sua
doença, talvez ele não morra. Mas ela hesitou, sem saber como o
dizer.
Ele franziu a testa enquanto mastigava. Cassie olhou por cima
do ombro para onde Drummond estava sentado, a observá-los sem
expressão. Ele não lhe tinha dito para não seguir com o seu plano.
Não lhe tinha dito que algo de mau poderia acontecer. Bem vistas as
coisas, até a tinha encorajado.
— Quem é aquele? — perguntou o avô, vendo o olhar.
— Ninguém.
— É o teu namorado?
— Céus, não! — disse ela, horrorizada. — Dá-me algum crédito.
— Está bem — disse ele, sorrindo e simultaneamente
encolhendo os ombros num pedido de desculpa. — Não sei o que
pode ser considerado um homem bonito.
Ela voltou a pôr-lhe a mão no braço, encostando-se à mesa.
— Preciso de te contar o que vai acontecer.
— O que é que vai acontecer a quê? — perguntou.
— A ti — começou ela, mas ele interrompeu-a prontamente.
— Não — disse ele, com a mão a cortar o ar num único golpe
decisivo.
— Mas…
— Não, Cassidy — insistiu ele, com a voz firme. — Não sei de
onde vieste, nem o que sabes; nem sequer sei se tenho um tumor
cerebral ou algo do género e estou aqui sentado a falar sozinho.
Mas sei que não é suposto eu saber sobre o futuro. O que me
queres dizer, o que eu penso que me queres dizer… não é suposto
ninguém saber.
— Mas pode ser que…
— Não — disse ele num tom feroz, e Cassie sentiu-se como se
tivesse 8 anos outra vez, quando ele a tinha apanhado a desenhar
no novo papel de parede com lápis de cera. Ela não gostara da cor
do papel, por isso tinha tentado mudá-la. Cassie nunca tinha visto o
avô tão zangado. Na altura, ela não tinha percebido quanto dinheiro
ele gastara para tornar o quarto bonito para ela, e que ele não tinha
ficado zangado, tinha ficado magoado por ela não ter gostado.
— Eu só… — começou ela, mas tudo o que queria dizer, cada
justificação, parecia débil. Tinha consciência de que as lágrimas lhe
escorriam pelas faces, gotas grandes e volumosas que lhe caíam no
colo… — Foi tão difícil. Para ti. E para mim. E depois… — Ela
desviou o olhar, limpando as faces com a palma da mão. — Sinto a
tua falta todos os dias, a toda a hora. Eras tudo o que eu tinha
durante toda a minha vida e depois desapareceste.
Estava a chegar agora, aquela cascata de emoções a rebentar.
— Tem sido tão difícil. É uma ferida que não cicatriza e eu passo
a minha vida sozinha, a ler os meus livros e sem sair para lado
nenhum. Talvez se eu puder contar-te certas coisas, talvez tudo seja
diferente e eu possa continuar em casa, a ler na oficina enquanto tu
trabalhas.
Ele dirigiu-lhe um olhar preocupado, mas ela viu que estava
tingido de desilusão e ouviu a forma como as suas próprias palavras
soavam patéticas.
— Cassidy… Aquilo de que estás a falar… é assim que a vida é,
não há nada a fazer em relação a isso, e é preciso seguir em frente
com as coisas.
As sobrancelhas dela franziram-se de frustração. O avô não
estava a perceber.
— Não temos um direito garantido à felicidade, Cassidy. Olha
para mim, olha para a minha vida. Perdi a minha mulher e a minha
filha, trabalho todos os dias para pôr comida na mesa e mal consigo
manter a cabeça à tona da água. Mas nunca é fácil. Houve alturas
em que passei fome, em que não consegui pagar as contas. A
felicidade não é algo de que se fique à espera. Temos de a escolher
e de a perseguir independentemente de tudo o resto. Ela não nos
vai ser dada. E essas coisas de que estás a falar: sentir saudades
de casa, sentir saudades minhas. Isso é apenas envelhecer. Achas
que não sinto falta da tua avó? Sinto. Todos os dias, cada vez que
respiro, de cada momento que partilhámos juntos. Mas não te podes
agarrar a essas coisas, senão isso vai consumir-te. Tens de abrir
mão das coisas.
— Não quero — disse ela, entre lágrimas.
— Ninguém quer. Mas tens de o fazer.
Foi a vez de ele estender o braço e segurar-lhe na mão. A mão
dele parecia maciça em cima da dela, uma concha enorme e
pesada.
— Mesmo que me digas o que me queres dizer, mesmo que isso
mude o futuro, tens de viver, Cassidy. Não te podes esconder para
sempre dos golpes e dos arranhões da vida. Sei que gostas de te
esconder nos livros, e talvez a culpa seja minha, porque gosto de te
ter por perto o tempo todo. — Ele suspirou baixinho. — Talvez eu
devesse começar a obrigar-te a sair e a fazer amigos.
— Não — disse ela, porque era a última coisa que queria.
— Andas a esconder-te da realidade. Mas isso não é viver. Tu
sabes que não é. — Ela anuiu com a cabeça, apesar de odiar tudo o
que ele estava a dizer. — E agora? — ele perguntou pouco depois.
— Não sei — admitiu Cassie. Sentia-se desanimada. O que é
que ela procurara quando se tinha ido encontrar com ele? Teria
melhorado as coisas, ou só as tinha piorado? — Imagino que tenha
de me ir embora.
O avô ponderou nas palavras dela.
— Isto é… É uma coisa que consigas fazer mais do que uma
vez?
— Não sei — admitiu ela. — Não sei muito sobre isto. Desculpa,
é muito difícil de explicar. Mas… Mas eu gostava de voltar. Gostava
de te ver outra vez, se não te importares.
Ele sorriu então, e foi como a primeira luz do amanhecer depois
de uma noite má.
— Porque é que me havia de importar? Volta outra vez, sempre
que quiseres.
— É bom ver-te — disse ela.
Ficaram a olhar um para o outro por momentos, constrangidos.
Depois ela perguntou:
— Dás-me um abraço? — Ele pareceu surpreendido com a
pergunta. — Por favor? — pediu ela.
— Claro, Cassidy. É claro que sim.
Levantaram-se ao mesmo tempo e contornaram a mesa para se
abraçarem. Foi estranho no início, mas transformou-se em algo
mais natural, mais familiar.
— Tenho saudades tuas — disse ela no ombro dele.
— Eu sei — respondeu-lhe ele ao ouvido.
Separaram-se e ele estendeu os braços a segurá-la, passando
os olhos por ela, com um ligeiro sorriso nos lábios.
— Isto é inacreditável — disse ele, falando mais para si mesmo
do que para Cassie. Soltou-a, mas a conversa ainda não tinha
terminado. — Como é o futuro? — perguntou, com um sorriso a
puxar o canto da boca.
Ela encolheu os ombros, sem saber como responder.
— Não é muito diferente de agora. Só que… não estás lá.
O sorriso dele vacilou.
— Desculpa — disse ela, odiando a possibilidade de o ter
magoado. — Eu devia ir-me embora — acrescentou, embora não
quisesse ir.
— Eu também tenho de ir — disse ele, subitamente distraído.
Olhou para a mesa e pegou no telemóvel e no livro de Stephen
King. Tirou algumas notas e deixou-as junto aos restos do
hambúrguer, e depois manteve o olhar na neta por mais uns
momentos. — Sê feliz, Cassidy, por favor, por mim?
Ele apertou-lhe brevemente o ombro e ela anuiu com a cabeça.
— Talvez um dia te volte a ver — disse ele. Depois foi-se
embora, atravessou a porta e enfrentou a chuva.
Cassie dirigiu-se à janela e observou-o a atravessar rapidamente
a chuva torrencial e entrar na carrinha. Permaneceu lá sentado
durante algum tempo, a olhar fixamente para a frente, sem se
mexer. Parecia um homem em estado de choque. Depois, abanou a
cabeça uma vez, ligou o motor e fez marcha-atrás para sair do lugar
de estacionamento. Virou o volante e arrancou para a estrada, com
as luzes traseiras a brilharem na sua tonalidade vermelha e a
desaparecerem no cinzento.
Quando o avô se foi embora, as emoções de Cassie invadiram-
na. Ela abriu a porta com um safanão e correu para a rua. Ficou
parada no parque de estacionamento, a deixar que a chuva caísse
sobre ela, ensopando-lhe o cabelo até ao couro cabeludo,
escorrendo-lhe pelas costas. Quando olhou para cima, o céu estava
baixo e cinzento-escuro, um tipo de céu sério e pesado.
— O que é que estás a fazer? — perguntou Drummond, saindo
do restaurante e semicerrando os olhos para espreitar através da
chuva. — Está a chover a cântaros.
Ela ignorou-o. Atravessou o parque de estacionamento em
direção à linha das árvores sem fazer ideia de aonde estava a ir ou
porquê, mas parou antes de se afastar muito. Caiu de joelhos,
sujando as calças de ganga de lama. Gritou e berrou para o dia
cinzento, perturbada e destruída pela perda do avô e precisando de
deitar tudo para fora. A chuva continuava a cair, como se o mundo
estivesse a chorar com ela.
AQUILO QUE IZZY
ESQUECEU

D o sofá, Izzy viu o homem a dirigir-se à janela e espreitar para a


rua lá em baixo. Olhou de relance para a porta e o corredor.
— Não vais conseguir — disse o homem, sem olhar para ela.
Ela não estava a pensar em fugir. Estava a ver o que tinha
acontecido aos dois inspetores.
— Matou-os? — perguntou ela, espantada com a calma com que
as palavras soaram quando saíram da sua boca.
— Sim — disse o homem, virando-se para ela. — Dei um tiro na
cabeça a cada um.
A resposta dele fez a mente de Izzy tropeçar por momentos.
Aquela era uma resposta simplesmente demasiado incomensurável
para assimilar.
— Quem é você? — perguntou ela.
— Chamo-me Dr. Hugo Barbary — disse ele. — Conhecemo-nos
ontem à noite.
Izzy não se lembrava da noite anterior, nem de ter conhecido
aquele homem.
— Que tipo de médico é você? — perguntou ela, não porque
estivesse interessada, mas porque estava a tentar mantê-lo a falar.
— Oh, eu não sou um médico a sério. Quero dizer, andei na
Faculdade de Medicina. Mas era tão aborrecido que nem acabei.
Costumo simplesmente apresentar-me como doutor. Mas sempre
me interessei pelo que faz das pessoas aquilo que elas são. Sempre
pensei que talvez estivesse escondido entre todas as coisas
vermelhas e húmidas que temos dentro de nós.
Deu uma palmadinha no estômago.
Izzy deu-se conta de que ele tinha um sotaque, um sotaque
invulgar. Falava inglês como um nativo, mas as suas vogais
estavam erradas.
— Isto tem que ver com a Cassie? — perguntou Izzy. — O
homem levantou ligeiramente a cabeça, como se estivesse curioso
para saber porque é que Izzy tinha feito aquela pergunta. — A
minha colega de casa.
— O que é que ela tem? — perguntou o homem.
— Ela não está cá. Não sei onde está — disse Izzy. Ela não
sabia porque lhe estava a contar estas coisas.
— Quero saber onde está o Livro das Portas — respondeu o
homem.
— O quê?
O homem aproximou-se, sem se apressar minimamente.
— Quero saber onde está o Livro das Portas — repetiu ele. Pôs-
se à frente de Izzy, agigantando-se sobre ela, ainda sentada no
sofá.
— Não faço ideia do que está a dizer — disse ela. O pânico
estava a começar a borbulhar, como uma panela a aquecer no
fogão. Ela tentou manter-se calma, mas não fazia ideia de quem era
o homem ou do que ele iria fazer. — Por favor, não me mate —
tentou ela, odiando quão patética soava.
— Eu não quero matar-te — disse Barbary. — Quero dizer, eu
até era capaz de gostar, mas provavelmente não é do meu
interesse. Tu és uma mais-valia. Quando eu encontrar a tua colega
de casa, ela vai querer que estejas viva, e isso é uma vantagem
para mim. Se estiveres morta, perco isso.
Izzy absorveu as palavras dele, agarrando-se à esperança. O
seu coração estava a esmurrar a caixa torácica como um pugilista.
Uma parte distante da sua mente recordou-lhe os nervos que
sempre sentira antes das grandes audições, e como conseguira
suprimi-los, para não denunciar nada a ninguém com quem se
cruzasse. Ela sabia que tinha de usar essa capacidade agora; ela
não tinha de mostrar nada do que estava a sentir por dentro.
— Mas para mim é menos importante se estás inteira ou não —
acrescentou o homem. — Se perderes um dedo, ou um braço ou
uma perna, ou os teus olhos… — Ele gesticulou vagamente para as
partes do corpo dela consoante as mencionava. — Portanto, é do
teu interesse manteres-me feliz.
As palavras dele deram-lhe vontade de vomitar, e as suas
entranhas apertaram-se de repente.
— Eu não sei de nada — disse Izzy, juntando as mãos no colo.
— Juro.
O homem anuiu lentamente com a cabeça.
— Acredito — disse ele. — É naquilo de que te esqueceste que
estou interessado.
— Não percebo — disse Izzy, tentando sorrir. — Eu quero ajudá-
lo. Eu não quero morrer, mas não lhe posso dizer aquilo que não
sei.
O homem suspirou. Parecia ligeiramente irritado, como se
tivesse entrado numa loja e descobrisse que aquilo que queria
estava esgotado.
— Preciso de saber do que te esqueceste, e se não te
consegues lembrar, então vou ajudar-te.
— Como é que me posso lembrar daquilo que não me lembro?
— perguntou ela, agora em pânico. — Não me consigo lembrar!
O homem pôs o saco no chão e abriu-o. Esticou a mão e tirou
um pequeno caderno. A capa era um amontoado de formas roxas e
verdes, como se alguém tivesse tentado pintar uma enxaqueca.
— Isto é capaz de ajudar — disse ele.
— O que é isso? — perguntou Izzy.
— Pega nele — ordenou, estendendo-lhe a mão.
Ela olhou para o livro, para o rosto inexpressivo do homem, e de
novo para o livro.
— O que é isso? — perguntou ela, mais cautelosa.
— Pega nele com as mãos — instruiu o homem, falando devagar
como se estivesse a tentar fazer com que uma pessoa estúpida
compreendesse algo simples. Puxou o sobretudo para trás,
revelando a arma no coldre. — Ou espeto-te com uma bala numa
das tuas articulações.
Izzy pegou no livro e, assim que o fez, sentiu uma pontada nos
nós dos dedos, uma pontada que não parava. A dor manteve-se no
mesmo nível, como um guincho agudo de baixo volume a ranger
nos seus dedos.
— Au! — exclamou ela, a olhar para o livro. O que ela viu não
fazia sentido. O livro, ou o ar à sua volta, parecia estar a pulsar em
tons vermelhos, verdes e púrpuras que emanavam por entre os
seus dedos. A imagem levou-a a pensar numa espécie de criatura
bizarra das profundezas do oceano, que tremeluzia, colorida,
enquanto abria caminho através da água escura. Esse pensamento
foi afastado quando ela se apercebeu de que o livro parecia estar a
ficar mais pesado e mais quente, à medida que a dor pulsava dentro
dela ao ritmo das cores que via.
— Este é o Livro da Dor — disse o homem. — Não o podes
largar até eu o permitir. A dor que estás a sentir na tua mão vai
espalhar-se por todas as partes do teu corpo…
Enquanto o homem dizia isto, Izzy percebeu que a dor se
arrastava pelo antebraço, como pregos ferrugentos a rasparem-lhe
as veias.
— Au! — queixou-se ela de novo, enquanto o seu corpo tentava
afastar-se do livro. Ela era um animal preso numa armadilha e
sentia as lágrimas a borbulharem-lhe nos olhos. — Pare com isto! —
implorou. As cores pareciam estar a pulsar mais rapidamente agora.
— Quando estiver em todas as partes do teu corpo — continuou
o homem, num tom completamente indiferente à dor de Izzy —,
então irá gradualmente piorar cada vez mais, até seres só dor. Não
serás mais do que um saco de agonia. E depois o teu coração vai
ceder.
O ombro de Izzy era uma bola de espinhos, seca e estaladiça,
que rodopiava no seu encaixe. O livro nas suas mãos estava tão
quente e pesado, as cores estranhas gritavam no ar e tremeluziam
rapidamente na sua cara.
— Ninguém consegue segurar o Livro da Dor por muito tempo —
avisou o homem, o som da sua voz a agonizar os ouvidos de Izzy.
Ele agachou-se à frente dela para observar o seu rosto, interessado
no que estava a acontecer.
A dor chegou ao pescoço de Izzy e ela gritou, um uivo de agonia
que soou muito distante para a sua mente chocada. Ela sabia que o
homem estava a falar, mas já não conseguia entender as palavras.
Dedos de agonia percorriam-lhe os seios e as costas, ferrões
quentes que lhe queimavam a pele. Ela balançou-se no sofá. A
bexiga cedeu e ela urinou sobre si própria, mas nem reparou nisso.
O mundo estava a desaparecer sob o ataque de dor.
— Pedaços da tua memória estão-te vedados — dizia o homem,
palavras sem sentido, uma língua estrangeira no mundo de
tormento de Izzy. — A tortura vai abrir as portas, vai reiniciar a tua
mente. Acredito que isso seja verdade. Vais lembrar-te, terás de
aguentar.
Gritou em silêncio, com a boca e os olhos arregalados, incapaz
de dar voz à agonia que a assolava. A sua garganta começou a
tremer enquanto a dor se estendia ao outro braço, até às ancas. Ela
não via fim, não via esperança. Era incapaz de ter um pensamento
coerente. Sentia-se desamparada.
E depois parou. A dor desapareceu num instante e Izzy viu-se
estendida no sofá, na sua própria urina, a pestanejar, com a mente a
gaguejar, e cada parte dela estava gloriosamente livre de dor. Ela
nunca tinha sido tão feliz como nesse instante, nunca tinha estado
tão cheia de alegria.
— Alguma coisa?
A voz do homem surpreendeu-a, por isso ela afastou-se com
brusquidão do som. Ele estava agachado ao lado dela, os seus
olhos escuros a inspecionarem-na através das lentes dos óculos, o
livro agora nas suas mãos. Ela levantou-se e distanciou-se o mais
que pôde do livro.
— Lembras-te de alguma coisa? — exigiu saber o homem. — A
dor agitou alguma coisa no teu cerebrozinho?
Izzy tentou fugir. Pôs-se de pé num salto, mas, sem conseguir
pensar bem, correu para a janela, só se apercebendo, quando lá
chegou, de que não podia ir a lado nenhum. Deu meia-volta de
imediato e o homem estava mesmo atrás dela, a cercá-la,
demasiado perto para que ela conseguisse passar em segurança.
Ainda assim tinha de tentar… qualquer coisa era melhor do que a
dor…
— Já te lembras, mulher? — exigiu o homem de novo, agora
irritado.
Os olhos dela estavam cravados no livro, a horrível coisa roxa e
verde que era o fim do mundo. Ela não conseguia pensar com
clareza; tudo o que conseguia ver era o livro, tudo aquilo de que se
lembrava era da agonia.
— Alguma coisa? — insistiu o homem, erguendo a voz. — Ou
precisas de mais uma rodada para abanar o teu cérebro minúsculo?
— Não! — gritou ela.
Izzy deu um salto para a esquerda, a tentar passar pelo homem,
mas ele antecipou-se e avançou nessa direção. Ela tentou corrigir a
rota e guinar na direção oposta, mas ele também estava lá e não
havia para onde ir. Ela queria gritar, queria chorar, mas estava
encurralada.
— Ei!
Uma voz irrompeu na consciência de Izzy e Barbary virou-se
surpreendido, mesmo a tempo de se deparar com um punho
enorme a arremessar-se na sua direção. Os pés de Barbary
elevaram-se do chão, a sua cabeça saltou para o lado antes de os
seus pés se aperceberem de que ele se estava a mexer, e embateu
no televisor, caindo de cara para baixo e com os braços para trás.
Izzy olhou para o gigante, o homem que tinha vindo com o
japonês. Tinha sangue a escorrer-lhe de um lado da cara, de uma
ferida na têmpora. Ele olhou para Izzy por um momento, respirando
pesadamente. Depois olhou para o Dr. Barbary, como que à espera
de ver se ele se mexia, mas o careca estava imóvel. O gigante
levantou a mão e tocou com ela no seu próprio rosto. Estremeceu
ligeiramente e depois olhou para o sangue que tinha nos dedos.
— Corres perigo — disse o gigante, a sua voz profunda e
redonda. Para Izzy, a sua voz era como um abraço caloroso. — Nós
não somos da polícia. Isso era mentira. Mas aqui corres perigo. Há
de vir mais gente. — Apontou para o homem no chão. — Se ele não
estiver morto, vai continuar a vir atrás de ti.
— Eu não sei o que se está a passar! — lamentou-se ela.
O gigante acenou uma vez com a cabeça, aceitando a resposta.
— Vou-me embora agora — disse ele. — O homem que veio
comigo está morto.
Izzy anuiu com a cabeça, como se tudo fizesse sentido.
O gigante pareceu hesitar, mas depois disse:
— Se quiseres vir comigo, eu protejo-te. Há alguém a quem te
posso levar e que te vai manter em segurança.
Izzy pestanejou, ouvindo as palavras, mas sem as digerir
propriamente. Os seus olhos viraram-se para a forma no chão, para
o livro roxo e verde que tinha deslizado em direção à cozinha
quando o homem foi atingido.
— OK — disse ela, sem pensar seriamente nisso, apenas
desejando ser protegida.
O gigante assentiu e suspirou, um som mais de cansaço do que
de aborrecimento.
— Vai lavar-te e muda de roupa — disse ele. — Depois faz uma
mala como se não fosses voltar. E faz isso rapidamente, antes que
apareça mais alguém e tente matar-nos.
VELHOS AMIGOS
EM BRYANT PARK (2012)

S entaram-se debaixo das árvores em silêncio, ouvindo a chuva


que batia na terra e desfocava o sinal de néon na montra do
Matt’s All-American Burgers.
— Merda! — exclamou Drummond.
Ela olhou para ele, com as faces ainda húmidas das lágrimas, o
corpo exausto dos soluços.
— O que foi?
— Saímos a correr sem pagar — disse ele.
Ela observou-o surpreendida por instantes e depois soltou uma
gargalhada, numa mistura de descrença e divertimento.
— Estás a falar a sério?
— O que foi? — perguntou ele.
Ela abanou a cabeça.
— Estás preocupado por causa de uns dólares do almoço? E eu
e a Izzy tínhamos medo de que fosses perigoso.
— Não sou nenhum gatuno — explicou.
— Ainda podes voltar lá e pagar — disse ela, enxugando as
faces com as costas da mão.
— Não me parece que o meu cartão do futuro funcione aqui —
refletiu ele, com tristeza. — Se calhar devia ter pensado nisso antes
de fazer o pedido. — Ele lançou-lhe um olhar de soslaio. — Como é
que estás?
— Estou bem — disse ela, comovida pela sua pergunta, pela sua
preocupação. — Quero dizer, não estou. Mas hei de estar. Esta foi a
pior coisa de sempre, mas… mas também foi a melhor. Foi uma
mudança de vida. — Ela apontou para o restaurante, a abanar a
cabeça. — Eu falei com o meu avô. Posso voltar a falar com ele se
quiser, as vezes que quiser.
— Se tiveres o livro — disse Drummond, com a voz calma.
— Como é que serias capaz de o destruir? — suplicou Cassie.
— Deve haver outras formas de proteger os livros na tua biblioteca.
Queres destruir este livro para proteger outros livros… não faz
sentido!
Drummond pensou durante algum tempo, com os olhos
semicerrados a espreitar por entre a chuva. Depois perguntou:
— Posso mostrar-te uma coisa? Podes usar o livro e levar-nos
para outro sítio?
— Porquê?
— Eu disse que te ia mostrar aquilo que o Livro das Portas podia
fazer, o que já fiz. E depois disse que te ia mostrar porque tinha de
esconder a Biblioteca. Disse que te ia mostrar a ameaça. Se
estiveres disposta a isso, posso fazê-lo.
Cassie olhou-o nos olhos por um momento antes de anuir em
confirmação.

Era um verão quente em Nova Iorque, no mesmo ano em que


Cassie se encontrou com o avô, mas alguns meses antes. Cassie e
Drummond estavam sentados numa das mesas em Bryant Park, à
sombra das árvores e de frente para as traseiras da Biblioteca
Pública de Nova Iorque. O calor estava a ajudá-los a secar depois
da chuva do Oregon. Cassie estava a apreciar o calor. Como uma
cama quente num dia frio.
Era hora de almoço e os empregados de escritório dos edifícios
vizinhos estavam na rua a beber café e a comer sanduíches, a
apanhar sol na relva. Para Cassie, tudo o que via era familiar e
esquecido — um sítio que ela conhecia bem, mas com as vestes de
como tinha sido uma década antes. As roupas eram diferentes, as
formas dos veículos que passavam, até os cartazes e anúncios que
gritavam sobre programas de televisão e filmes há muito
esquecidos.
— Então, porque é que estamos aqui? — perguntou Cassie.
— Só quero voltar a ver os meus amigos — disse Drummond,
parecendo distraído. Ele soltou uma espécie de sorriso triste. —
Viste o teu avô. Eu só quero ver os meus amigos.
Permaneceram sentados em silêncio, porque Cassie percebeu
que Drummond não estava com vontade de falar, ainda não, e ela
contentou-se em ficar sentada e refletir sobre o encontro com o avô.
Já estava a começar a parecer intangível e onírico, como se não
tivesse realmente acontecido. Ela interrogava-se sobre o que ele
estaria a fazer agora, como estaria a lidar com o facto de ter
conhecido uma versão mais velha da sua neta. E perguntava-se
agora sobre todas as vezes que tinha estado com ele como a
Cassie mais jovem, todos aqueles dias depois daquele encontro no
restaurante. Teria ele olhado para ela de forma diferente? Teria
falado com ela de forma diferente, conhecendo a mulher em que ela
se viria a tornar? Desejava ter prestado mais atenção quando era
adolescente; talvez tivesse visto alguma coisa.
— Ali estão elas — disse Drummond, virando a cabeça para a
entrada do parque pela 42nd Street. Cassie viu duas mulheres a
caminharem para uma mesa à luz do sol e a sentarem-se. Uma das
mulheres era asiática, baixa e atarracada, e usava um vestido de
verão vermelho-vivo e ténis de corrida brancos. Estava a ouvir
atentamente a sua companheira, uma mulher alta com pele
castanho-clara e cabelo branco curto. Vestia um fato e uma blusa
azul-clara, com um lenço multicolorido ao pescoço, e usava uns
óculos de armação grossa. Ela sorria enquanto falava, como se
estivesse a contar uma história engraçada.
— Quem são elas? — perguntou Cassie.
— A Lily e a Yasmin — disse Drummond. — A Lily é de Hong
Kong. Era. Era de Hong Kong. — Ele franziu o sobrolho, enquanto
se fustigava a si próprio pelo seu erro. — Ela geria um pequeno
hotel de luxo na ilha de Hong Kong. A Yasmin era egípcia. Era
historiadora.
— Então, elas são o quê? São caçadoras de livros?
— Não — disse Drummond. — Não são caçadoras de livros. Os
caçadores de livros perseguem livros para lucrar, ou para usar os
livros para seus próprios fins. Mas a Lily e a Yasmin, elas eram
como eu. Interessadas nos livros, mas cautelosas com eles.
— Cautelosas em que sentido?
— Como se tivéssemos de ter cuidado com eles, tal como com
qualquer outro objeto precioso. A própria Lily tinha dois livros. E a
Yasmin tinha três. E ali, aquele homem… — Drummond apontou
para o outro lado do parque, de onde se aproximava um homem alto
e magro, com um rosto bem delineado e cabelo escuro espetado. —
Aquele é o Wagner, da Alemanha, o homem de que te falei antes. É
físico.
— Era — disse Cassie.
Drummond lançou-lhe um olhar ríspido.
— Exato, ele era físico.
— Desculpa, eu não queria dizer dessa maneira — disse Cassie,
arrependendo-se das suas palavras. — Não estava a tentar magoar-
te.
— Eu sei — disse Drummond, conseguindo esboçar um sorriso
sincero.
Wagner vestia uma camisa de verão clara, com os botões de
cima desapertados, e calças de bombazina verde-clara. Trazia uma
mochila num dos ombros.
— Ele também tinha dois livros — continuou Drummond.
O homem juntou-se às duas mulheres à mesa. Houve sorrisos,
abraços e gargalhadas, e Cassie conseguia ver que aquelas
pessoas eram amigas, que havia ali um verdadeiro afeto.
— O Wagner herdou os livros da família — disse Drummond,
observando o grupo. — Tal como eu. Foi assim que eu os conheci.
Em algum momento, todos eles vieram ter comigo com perguntas
sobre livros, e eu tinha falado com eles sobre alguns dos livros da
Biblioteca Fox. Acabámos por formar um pequeno grupo de pessoas
com os mesmos interesses. E, pelo menos uma vez por ano,
encontrávamo-nos todos para pôr a conversa em dia, para falar do
mundo dos livros especiais, das descobertas recentes. Todo esse
tipo de coisas.
— O quê, como uma convenção de magia? — disse Cassie em
tom de galhofa.
Drummond reconheceu a piada com um olhar.
— Mais ou menos — admitiu. — Passávamos horas a conversar
sobre os livros, a elaborar teorias. Sobre aquilo que os livros
poderiam fazer.
— Como viajar no tempo.
— Certo — concordou Drummond. — Tínhamos longos debates
sobre a origem dos livros, sobre a fonte da magia.
Cassie observava o grupo enquanto Drummond falava. O
homem, Wagner, estava agora a ouvir a história de Yasmin e,
passado um momento, tanto ele como Lily estavam a rir-se da
piada, entreolhando-se. Estavam felizes, a divertirem-se como
velhos amigos depois de muito tempo.
— É aqui que as coisas ficam desconfortáveis — murmurou,
então, Drummond. — Desconfortáveis e estranhas.
No extremo do parque, nas traseiras do edifício da Biblioteca
Pública, Cassie viu Drummond, um Drummond mais jovem, a
caminhar em direção à mesa. Era menos magro do que o homem
ao lado dela — o seu corpo parecia mais forte e mais robusto — e o
seu cabelo era castanho, sem madeixas cinzentas. Era bonito,
reparou Cassie, uma beleza que agora parecia surgir apenas
quando Drummond sorria.
O que quer que lhe tivesse acontecido na década anterior
escondera o seu bom aspeto natural.
— Lá vou eu — murmurou ele. — Meu Deus, aquele é o aspeto
que eu tenho quando caminho?
— Estás com bom aspeto — disse Cassie, e ele lançou-lhe um
olhar intrigado. — Não és como eu, toda magra e desajeitada.
— Tu também tens bom aspeto — murmurou ele distraidamente,
e as faces de Cassie aqueceram como se ela estivesse a corar. Mas
Drummond não estava a olhar para ela; estava a prestar atenção ao
que estava a acontecer no seu passado.
As três pessoas sentadas à mesa avistaram o Drummond mais
novo quando ele se aproximou. Puxaram cadeiras para trás e o
grupo levantou-se para o cumprimentar com abraços e palavras
carinhosas, antes de se voltarem a sentar. Conversaram entre si,
sorrindo e soltando gargalhadas.
— Eu queria ver isto novamente — murmurou Drummond. — A
sério. Tenho as minhas memórias, mas a realidade é sempre
melhor. Eu queria ver-nos felizes outra vez.
— Eu percebo — disse Cassie.
Passados alguns minutos, o grupo de amigos levantou-se e
caminhou ao longo da margem do parque em direção ao local onde
Cassie e Drummond estavam sentados. Eles baixaram ligeiramente
a cabeça à medida que o grupo passava, mas ninguém olhou para
eles, embrenhados nas suas conversas.
— Foi uma tarde maravilhosa — disse Drummond, seguindo o
grupo com os olhos enquanto saíam do parque pela saída sudeste.
— Andámos um bocado, só a conversar, a pôr a conversa em dia. O
Wagner estava a falar da mudança para uma nova universidade na
Holanda. A Lily falava de política, da China e de Hong Kong e de
como ia ser o futuro. A Yasmin falava sobre parar de trabalhar e
reformar-se. E sobre as filhas: uma das suas filhas ia casar-se,
penso eu. Era uma conversa normal.
— Parece porreiro — disse Cassie.
— Foi — Drummond concordou. — Foi e tenho saudades. Tenho
saudades dos meus amigos.
— Eu percebo… Eu tenho saudades do meu avô — retorquiu
Cassie, e entreolharam-se por alguns instantes, reconfortando-se
com o sentimento de perda que partilhavam. Depois, Drummond
voltou a olhar para os seus amigos.
— Fomos jantar a um restaurante no SoHo. Ficámos numa sala
privada nas traseiras. Comemos e conversámos, e contámos uns
aos outros histórias sobre livros de que tínhamos tomado
conhecimento. Falámos de caçadores de livros, e da Livreira…
— A Livreira?
Drummond acenou com a mão, como se a Livreira não
merecesse ser assunto.
— A Lottie — disse ele. — Está em Nova Orleães. Vende livros
para aqueles caçadores de livros que estão no jogo pelo lucro. É
uma espécie de intermediária. Ela leiloa-os. Ganha uma fortuna com
isso. Era um problema de longa data. É como aquelas pessoas que
negoceiam artefactos de valor incalculável no mercado negro.
Pergunta a qualquer arqueólogo e ele terá opiniões fortes sobre o
assunto. Por isso, queixámo-nos dela durante algum tempo.
Cassie esperou, pressentindo que o fim da história estava a
chegar.
— Já era tarde quando saímos do restaurante e voltámos juntos
para norte, em direção aos nossos hotéis. Íamos encontrar-nos
outra vez no dia seguinte e estávamos a discutir isso: o que íamos
fazer, onde iríamos. E depois… e depois chegámos ao parque de
Washington Square. Estava tudo silencioso, e o dia tornara-se
estranhamente frio. Não como agora. — Drummond apontou para o
céu azul por cima deles. — Lembro-me de uma névoa que se
abateu de repente, quase um tempo estranho. E eis que avistamos
uma mulher na outra extremidade do parque.
— Que mulher? — perguntou Cassie.
— Não sei o nome dela — admitiu Drummond. — Chamo-lhe
simplesmente «a Mulher». Nunca a tinha visto antes desse dia, não
fazia ideia de quem ela era. Ainda não faço. Mas ela sabia quem
nós éramos, e foi nesse dia que se deu a conhecer.
— Como? — perguntou Cassie. — Drummond não respondeu.
Ela não sabia se ele não tinha ouvido, ou se não queria dizer mais
nada. — Como? — perguntou ela novamente, colocando uma mão
no braço de Drummond para lhe chamar a atenção.
— Todos eles morrem hoje — declarou ele, com o rosto sério. —
O Wagner, a Lily e a Yasmin. A Mulher mata-os. Eu fui o único que
sobreviveu, e ela anda a caçar-me desde então.
Os olhos de Cassie arregalaram-se em choque.
— Porquê?
— Porque ela quer a Biblioteca Fox. Foi por isso que a escondi
nas Sombras. Depois deste dia, depois de ter visto a Mulher pela
primeira vez. Foi… — Ele pareceu esforçar-se por encontrar a
palavra certa. — Devastador — acabou por dizer.
— O que é que…? — Cassie hesitou, querendo saber mais, mas
não querendo saber. — O que é que ela fez?
— Posso mostrar-te, se quiseres? — perguntou Drummond, com
os olhos a escurecer. — Se queres mesmo saber porque é que eu
ando a fugir há dez anos, porque é que a Biblioteca Fox está nas
Sombras, porque é que temos de esconder o Livro das Portas,
posso mostrar-te.
— Como?
Drummond tirou um livro do bolso.
— O Livro das Memórias, Cassie — disse ele, estendendo-lho.
— Posso mostrar-te as minhas memórias deste dia. — Cassie ficou
a olhar para o livro estendido durante muito tempo, e sentiu como se
o mundo inteiro tivesse recuado para o fundo. Ela sabia que
Drummond queria que ela visse; era por isso que eles ali estavam.
Ela sabia que seria horrível, mas uma parte dela queria partilhar o
fardo de Drummond, para o ajudar a não estar sozinho.
Ela estendeu a mão e segurou no livro e, de repente, Bryant
Park tinha desaparecido e Cassie estava a olhar pelos olhos de
outra pessoa.
IZZY E LUND

— E uvídeo
lembro-me, mas não me lembro — disse Izzy, ao ver o
que mostrava Cassie à porta do apartamento delas,
com a rua de Veneza atrás dela. Ela encontrara-o quando verificara
os seus movimentos no telemóvel nos últimos dois dias. — É como
um sonho, sabes? Quando nos lembramos, mas não parece real?
— Abanou a cabeça, observando até a filmagem ser cortada pelo
som da sua própria voz. Ela pôs o vídeo a correr novamente e viu
mais uma vez. Era hipnótico. — Como é que isto funciona? —
perguntou. — É como ciência ou magia?
Não tendo recebido resposta à sua pergunta, levantou os olhos.
Lund estava sentado do outro lado da mesa, com uma tigela de
canja de galinha à frente, a colher a caminho da boca. Na outra
mão, segurava metade de um pãozinho. Parecia minúsculo.
— Voltarei a lembrar-me? Será que me vou lembrar de tudo? —
perguntou Izzy.
Lund engoliu a sopa e os seus olhos desviaram-se para Izzy e
depois para a tigela.
— Não sei — disse ele.
— Quero dizer, acho que me lembro de quase tudo — continuou
Izzy. — Aquilo que aquele homem fez, toda aquela dor… — Ela foi
sacudida por um estremecimento. — Isso fez com que algumas
coisas se soltassem. Eu sei o que aconteceu. Mas não me lembro
de ter passado por elas. Se é que isso faz algum sentido… — Izzy
olhava para o seu reflexo na janela. Sabia que estava a tagarelar.
Estava nervosa, talvez em choque, e não conseguia conter-se. Lá
fora, a manhã já ia avançada, a rua fervilhava com o trânsito e as
pessoas. Izzy e Lund encontravam-se num restaurante algures no
centro da cidade, um lugar grande e espaçoso na esquina de um
quarteirão, um local escolhido por Lund.
Duas horas depois de terem chegado, continuavam sentados na
mesma mesa e Lund estava a terminar a sua terceira refeição, a
tigela de canja de galinha, depois de um cheeseburger com batatas
fritas e uma omelete. Izzy não tinha fome, estava demasiado
abalada para comer, mas mesmo assim tinha pedido uma tosta de
queijo e um café. Na altura em que a comida foi servida, as
memórias já estavam a começar a regressar. Ela tinha deixado isso
decorrer naturalmente, sem forçar, sentindo que era todo um
processo de regresso à normalidade, de se sentir mais como ela
própria do que se tinha sentido durante todo o dia. O processo
ajudava-a a distanciar-se do que tinha acontecido, da dor, do
homem careca que a tinha torturado.
— Não falas muito, pois não? — perguntou Izzy, refletindo sobre
as poucas palavras que o gigante articulara desde que tinham saído
do apartamento.
Lund levantou a tigela e bebeu o resto da sopa.
— Não — concordou ele, limpando a boca com o guardanapo.
Enfiou na boca a metade do pãozinho que restava e mastigou,
observando Izzy sem expressão.
— Pareces uma vaca — observou Izzy, mas não havia crueldade
nas suas palavras. — Ele sorriu enquanto mastigava. — De que é
que estamos à espera? — perguntou Izzy, subitamente impaciente.
— Tu não estás à espera de nada — disse Lund. — Podes ir se
quiseres. Não te estou a obrigar a esperar.
— OK, de que é que tu estás à espera? — perguntou ela.
— De uma mensagem — disse Lund. Izzy esperou que ele
desenvolvesse, mas tal não aconteceu. Deixou-se cair para trás,
encostando-se às costas da cadeira, derrotada.
— Achas que a Cassie está bem? — perguntou ela.
Lund encolheu os ombros.
— Não sei. — O gigante estava a observar o mundo lá fora, o
trânsito que passava, os edifícios do outro lado da rua. Parecia
satisfeito por estar simplesmente à espera.
Izzy voltou a verificar o telemóvel. Não havia mensagens nem
chamadas.
— Não tenho tido notícias dela. Nem parece dela. E se aquele
homem a apanhou?
— Se aquele homem a tivesse, não teria ido ter contigo —
observou Lund.
Izzy aceitou essa garantia com gratidão.
— Sim — disse ela. — Tens razão. Espero que ela esteja bem.
Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo, e Izzy
lembrou-se de outra coisa, de um outro momento desenterrado: o
Ben’s Deli, com Cassie e um homem.
— Havia um homem — disse ela de repente. — Comigo e com a
Cassie… — Lund observou-a com interesse. — Acho que… Acho
que foi ele que me fez esquecer. — Lund esperou. — Tinha um
nome invulgar. — Ela murmurou para si mesma enquanto se
esforçava para se lembrar. — Drummond — disse ela finalmente,
aliviada. — Ele explicou que era apenas para me proteger —
continuou, à medida que as memórias avivavam. Lembrou-se de
Cassie a falar com ela, a dizer-lhe que a iria ajudar a lembrar-se, e o
seu amor por Cassie inundou-a como uma onda de água quente. —
Ela está bem — concluiu ela, sentindo-se subitamente mais alegre.
— Ela está com aquele homem.
Izzy bebeu um pouco do seu café, sentindo-se melhor com o
mundo agora que sabia que Cassie estava a salvo.
— Então, o que é que eu faço agora? — interrogou-se ela. —
Não posso voltar para minha casa. Mas eu hoje devia estar no
trabalho… Oh, meu Deus, o trabalho. Vão despedir-me. — Deixou
cair a cabeça nas mãos. Era tudo uma loucura, aparentemente, e
ela ansiava por uma normalidade aborrecida.
— Acho que já não precisas de te preocupar com o trabalho —
disse Lund.
— O quê? Porque não?
— Vais ficar rica — disse ele.
— O quê?
Lund tirou o telemóvel do bolso e verificou-o novamente, sem
responder diretamente. Anuiu com a cabeça, escreveu qualquer
coisa e voltou a guardar o telemóvel no bolso.
— Estamos à espera da Livreira — disse ele, como se isso
explicasse tudo. — O homem que estava comigo, o Azaki… ele
tinha um contacto que vende esses livros mágicos. Eu tenho o
número dessa pessoa. — Lund agitou o telemóvel entre os dedos.
— Eu disse-lhe que temos um livro e que quero conhecê-la. Estou à
espera de que ela responda.
— Não faço ideia do que estás a falar — exclamou Izzy.
Lund meteu a mão num bolso diferente e tirou um livro. Ao ver a
capa roxa e verde, Izzy estremeceu e o seu estômago deu uma
cambalhota. Ela desviou o olhar.
— Nós temos este livro — disse ele. — Estava no chão, onde
aquele homem o deixou cair. Por isso, peguei nele enquanto fazias
as malas. Não é o livro que o Azaki procurava, mas a Livreira vai
interessar-se por ele na mesma. Vendemo-lo a ela e ficamos ricos.
Izzy tentou compreender a explicação dele.
— Espera, o quê? Não estou a perceber. Porque é que eu havia
de ficar rica?
— Estes livros têm um valor incalculável. As pessoas pagam
muito dinheiro para os ter. Tipo, quantias ridículas! Porque é que
achas que o Azaki andava à procura deles? Um só livro pode
orientar-te para o resto da vida. Era disso que andávamos à
procura. — Lund refletiu por momentos, observando o livro. —
Provavelmente ele tinha outros livros — aventou. — Um homem
daqueles provavelmente tinha alguns nos bolsos. Talvez eu devesse
ter verificado. Mas ser ganancioso acaba por matar as pessoas.
— Lamento o que aconteceu ao teu amigo — disse Izzy,
recordando o japonês e apercebendo-se de que não tinha voltado a
pensar nele desde que pulara por cima do seu corpo para sair de
casa. — Meu Deus, ele ainda está lá deitado no meu apartamento.
E se as pessoas pensarem que eu o matei?
— Ele não era meu amigo — disse Lund. — Não propriamente.
Mas era um homem bom. Simpático.
— Podes guardar isso? — pediu Izzy, acenando com a cabeça
para o livro. — Está a deixar-me nauseada.
Lund voltou a guardar o livro no bolso e desviou os olhos para o
mundo lá fora, novamente à espera.
— Então porque é que eu havia de ficar rica? — perguntou Izzy
mais uma vez.
— O livro — disse Lund. — Vendemos o livro, ficas com metade
do dinheiro.
— Porque é que eu havia de ficar com metade do dinheiro?
Lund pestanejou, como se ela estivesse a ser propositadamente
obtusa.
— O livro veio de tua casa. Foi usado em ti. Não é o livro de que
o Azaki andava à procura. Eu estava apenas no sítio certo à hora
certa para o ver. É justo que fiques com uma parte do dinheiro.
Dividimo-lo. Metade para mim por te apresentar à Livreira. Metade
para ti.
— Estás a dizer tudo isto como se fosse totalmente razoável —
murmurou Izzy. — Porque é que não havias de levar tu o livro e ficar
com o dinheiro todo? Não é como se eu te pudesse impedir, pois
não? És do tamanho de uma casa.
— Eu disse que ia cuidar de ti — disse Lund, como se isso
explicasse tudo. — Ia dividir o dinheiro com o Azaki, de qualquer
forma. De quanto dinheiro é que eu preciso? Não tenho gostos
caros.
— Como é que… — Izzy hesitou. — De quanto dinheiro estamos
nós aqui a falar?
— Dinheiro suficiente para não teres de te preocupar mais com o
trabalho. Pensa nisso como uma compensação por tudo o que te
aconteceu.
Izzy abanou a cabeça como se não acreditasse.
— Além disso, tenho outra coisa — disse Lund, sacando de um
livro diferente. Este era preto, com um desenho complexo em finas
linhas douradas na capa. — Este era do Azaki — disse Lund. — O
Livro da Ilusão. Ele conseguia criar coisas a partir do nada.
Izzy franziu o sobrolho.
— O quê, como o distintivo da polícia que ele me mostrou?
Aquilo não era a sério, pois não?
— Não — confirmou Lund. — Ele limitou-se a segurar no livro
com uma mão no bolso e imaginou-o. Eu vi-o criar uma catedral no
deserto há alguns dias. Um distintivo não era nada para ele.
As sobrancelhas de Izzy arquearam-se em sinal de ceticismo,
mas antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Lund voltou a tirar o
telemóvel do bolso para ler uma mensagem de texto.
— Está na altura de nos encontrarmos com a Livreira e fazeres a
tua fortuna — informou. — Ela está na cidade.
AS MEMÓRIAS
DE DRUMMOND FOX (2012)

— D equando
onde é que veio esta névoa? — perguntou Drummond,
se aproximaram do parque de Washington Square.
Tinha consciência de que se estava a sentir um pouco tocado. Mas
estava bem-disposto; havia muito tempo que não saía de casa,
havia muito tempo que não estava em Nova Iorque e havia muito
tempo que não estava com os amigos.
— Tempo esquisito — disse Wagner, a caminhar ao lado dele.
Uns passos atrás, Lily e Yasmin discutiam sobre algum ponto
obscuro da história do Egito, mas Drummond tinha perdido o fio à
meada.
A refeição fora tão agradável, um evento demorado e faustoso
que nenhum deles queria que terminasse. Encontravam-se tão
raramente, mas Drummond perguntava-se se os encontros seriam
tão bons se acontecessem mais vezes. Gostariam eles tanto uns
dos outros se se encontrassem com mais frequência? Ele sabia que
estes eram os pensamentos incertos de um introvertido e afastou-os
numa tentativa de viver o momento.
— Qual é o plano para amanhã, cavalheiros? — perguntou
Yasmin, aparecendo entre Drummond e Wagner e entrelaçando os
braços nos deles enquanto atravessavam a rua.
Tinham mais um dia inteiro juntos, e o plano era trabalharem um
pouco, independentemente do que isso significasse. No passado,
tinham discutido a possibilidade de reunir todos os livros na
Biblioteca Fox, para criarem uma coleção conjunta, talvez em
instalações novas. Era uma ideia com que brincavam de vez em
quando, mas Drummond nunca falava muito nessas conversas, não
querendo dar a nenhum dos seus amigos a impressão de que
estava a tentar ficar com os livros deles para si.
— Acho que devíamos comer mais qualquer coisa — disse Lily.
— Conheço todos os sítios bons em Chinatown. Consigo arranjar-
nos um local à maneira.
Drummond sorriu ao ouvir essas palavras. Da forma como se
estava a sentir naquele momento, teria ficado contente só por
comer, falar e divertir-se com os amigos. Era bom distrair-se das
suas preocupações, das histórias que ouvia sobre os caçadores de
livros que se estavam a tornar mais violentos, mais agressivos.
Preocupava-se com o futuro, com os seus amigos e com o perigo de
os livros caírem nas mãos erradas. Às vezes, só queria esconder-se
na sua casa no meio do nada, fechar as portas e esquecer o mundo.
— Se calhar, devíamos tentar trabalhar um pouco — sugeriu
Wagner, quando entraram no parque de Washington Square. — Mas
eu estou a pensar em abrir um restaurante quando me reformar, por
isso, para mim, isso conta como trabalho.
— Muito bem visto — concordou Lily com seriedade.
— Estou a ficar demasiado velha para comer tanto — queixou-se
Yasmin. — Estou a ficar gorda.
— Por favor — balbuciou Lily. — Eu podia enfiar três de ti no
meu vestido.
A névoa parecia mais densa no parque, pensou Drummond,
como se a sua origem estivesse ali. A primeira comichão de
inquietação provocou-lhe irritação no fundo da mente, mas era um
pensamento distante, suavizado pelo álcool que tinha estado a
beber a noite toda, e distraiu-se com a pergunta de Lily.
— Ouviste os rumores sobre um livro que foi descoberto no
interior australiano?
— Não! — exclamou ele. — Onde? Que livro?
Lily encolheu os ombros e depois estremeceu, como se de
repente sentisse frio.
— Pensei que devia estar calor em Nova Iorque nesta altura do
ano. Devia ter trazido um casaco.
— Quem é aquela? — perguntou Yasmin.
Drummond olhou em frente e avistou uma mulher parada no
caminho deles, não muito longe. Ele viu que se tratava de uma
mulher bonita, jovem e magra, com um vestido branco de verão —
uma luz brilhante no meio daquele nevoeiro. A Mulher sorriu quando
todos olharam para ela, inclinando ligeiramente a cabeça.
— Sim? — perguntou Wagner, mas Drummond sentia a irritação
a ficar cada vez mais intensa.
Ele sabia, ele já sabia que algo estava errado.
A Mulher não disse nada, mas Drummond ficou com a sensação
de que a névoa se adensava à volta deles, engolindo-os e
separando-os da cidade fora do parque.
— É ela quem está a fazer isto? — perguntou Yasmin.
— O quê? — perguntou Lily.
— A névoa — disse Yasmin. — É a Mulher que está a criar esta
névoa?
— Sim — respondeu Drummond, porque o viu no rosto dela.
— Quem está aí? — perguntou Yasmin em voz alta. — E o que é
que quer?
A Mulher de branco sorriu e tudo ficou em silêncio por alguns
instantes na escuridão enevoada. Drummond ouvia o seu próprio
coração a bater nos ouvidos.
E depois, ação súbita e chocante.
A Mulher moveu-se tão rápido que se transformou num borrão e,
num segundo, estava ao lado de Lily, ao lado de Drummond. Antes
que Lily tivesse oportunidade de reagir, a Mulher apertou-lhe um
livro na mão e Lily caiu imediatamente no chão com um gemido de
dor.
— Lily! — arfou Drummond, chocado com o som da dor da
amiga.
A Mulher de branco olhou para Drummond, depois para Yasmin
ao seu lado e para Wagner logo a seguir, escolhendo um
adversário. Os cantos da sua boca encaracolaram-se para cima,
como se estivesse a divertir-se, e baixou ligeiramente a cabeça para
os olhar por baixo das sobrancelhas. Atrás dela, no chão, Lily
rebolou e começou a bater com a cabeça no asfalto, levantando-se
violentamente e atirando a cabeça para o chão outra vez.
— Lily! — disse Drummond de novo. A sua bela amiga parecia
saída de um pesadelo, com riachos de sangue a escorrerem-lhe
pelo rosto, os dentes brancos e brilhantes expostos em agonia.
Drummond deu um passo para o lado, tentando passar pela
Mulher para ajudar Lily. A Mulher ignorou-o enquanto Wagner e
Yasmin se afastavam.
— Quem é você? — exigiu saber Yasmin. — Sabe o que está a
fazer? Sabe quem é que nós somos?
Não houve resposta. Enquanto Drummond corria para Lily, viu
Yasmin acenar uma vez com a cabeça e fechar os olhos. Era assim
que ela usava o Livro da Luz. Um brilho amarelo brilhante surgiu
então, rodeando Yasmin como um contorno.
— Vou fazê-la cegar — disse ela, tanto como um aviso aos seus
amigos como uma promessa à Mulher. Quando Drummond se virou,
uma luz irrompeu atrás dele, como uma estrela a explodir. Ele
agachou-se junto de Lily, com o rosto agora danificado e partido, o
livro agarrado com força ao peito.
— Deixa-me ajudar — disse ele, estendendo o braço para o livro.
Lily rebolou para longe, com os olhos esbugalhados, buracos
brancos na cara vermelha, a boca um fosso em choque, horror e
dor. Ela abanava a cabeça durante a sua agonia.
— Por favor! — implorou Drummond, horrorizado com o
tormento da amiga e querendo desesperadamente ajudá-la.
Lily abanou a cabeça mais uma vez, uma mensagem severa:
Não me podes ajudar! O que quer que me esteja a acontecer
também te vai acontecer a ti.
Drummond apercebeu-se de que a luz atrás de si tinha diminuído
subitamente e, quando olhou, viu que o espaço onde Yasmin estava
era agora uma nuvem de nevoeiro denso e névoa, como se o clima
se tivesse reunido subitamente à volta dela e estivesse a conter a
luz quente e branca.
— Oh, meu Deus — murmurou ele, recuando rapidamente.
Um pouco mais longe, Wagner e a Mulher imitavam os passos
um do outro como se estivessem numa espécie de dança de salão.
Drummond conseguia ver a desconfiança de Wagner, sem dúvida
chocado pela rapidez e facilidade com que a Mulher tinha
incapacitado as suas duas amigas. A Mulher parecia descontraída,
com o mesmo sorriso tímido a brincar nos cantos dos lábios, as
mãos fechadas atrás das costas.
Drummond estava paralisado, querendo ajudar os amigos, mas
sem saber como. Nenhum deles era um combatente; eram
académicos e bibliotecários. Traziam consigo apenas livros que
podiam ser usados para se defenderem se necessário, não para
atacar. Drummond transportava apenas o Livro das Sombras, a
capacidade de desaparecer e escapulir-se.
Voltou a olhar para Lily. Os seus lamentos transformaram-se em
gemidos, toldados pelo sangue que tinha na boca, pela destruição
que provocara no próprio rosto enquanto continuava a bater com ele
no chão. Se Lily tinha um livro, Drummond não sabia onde estava.
Yasmin estava perdida na tempestade que a havia engolido, o Livro
da Luz lutava contra a escuridão. Ele conseguia vê-la a mexer-se, a
passarinhar e a tentar fugir, mas a nuvem movia-se com ela,
enrolando-se como uma cobra.
— Não sei o que fazer, não sei o que fazer — balbuciava ele,
desamparado e aterrorizado. Era uma criança sozinha no quarto
durante a visita noturna dos monstros; uma criança sem pais para
afugentar os monstros.
Os olhos de Wagner, em pânico, olharam para Drummond. Havia
neles uma mensagem, um ato de coragem: Protege os livros! E
depois Wagner voltou o seu olhar para a Mulher. Drummond pegou
no Livro das Sombras, pronto para desaparecer na noite. Antes que
pudesse fazer qualquer coisa, um grunhido perfurou o ar.
Drummond viu Wagner de joelhos, agarrado ao peito. A Mulher
estava imediatamente à sua frente, tendo-se movido num piscar de
olhos, com uma mão no ombro de Wagner. Este grunhiu de novo e
arfou, com o rosto em agonia, caiu para o lado e sacudiu-se
algumas vezes, como se estivesse a ter espasmos.
Depois ficou inerte.
— Não! — disse Drummond, com o estômago aos saltos. Virou-
se e vomitou, despejando no cimento o jantar meio digerido,
enquanto os gemidos de Lily ainda lhe ecoavam nos ouvidos.
Quando Drummond voltou a encarar a Mulher, ela ainda estava
de pé sobre Wagner, como se estivesse a observar o último
resquício de vida que lhe restava. A escuridão caiu sobre
Drummond como uma nuvem, o desespero e o terror a agarrarem-
no e a paralisarem-no.
A Mulher passou os olhos pelo parque — Lily agora deitada
inconsciente, mas ainda a tremer; a nuvem que engolia a luz de
Yasmin. Drummond viu uma expressão cruzar o rosto da Mulher, um
lampejo de raiva e ódio, como uma luz apagada e acesa de novo, e
o seu sangue pareceu hesitar nas veias por um segundo, o seu
coração gaguejou e depois acelerou. Sabia que tinha visto o mal, o
mal desumano absoluto, e envergava a pele de uma bela mulher.
A tempestade em que Yasmin se encontrava desmoronou-se
para dentro de si própria de repente, como uma explosão ao
contrário, e ouviu-se um grito de agonia, um horrível esmigalhar de
ossos como o de um talhante a cortar um animal com um cutelo, e
um esmagamento de sangue e tecidos, e depois o grito foi
subitamente cortado. A névoa dissipou-se, libertando o corpo
fragmentado de Yasmin. Ela caiu no chão como um líquido envolto
em pele, todos os seus ossos transformados em pó.
— Não! — Drummond gritou para o céu, sem se conseguir
travar, vendo o que tinha acontecido à sua brilhante e divertida
amiga. Aquela mulher, aquela encarnação do mal, transformara-a
em carne, tirara a Yasmin tudo o que a tornava brilhante. Os olhos
de Drummond encheram-se de lágrimas enquanto o seu estômago
se revirava e as suas entranhas tremiam de medo. Levou um punho
à boca e mordeu-o, tentando silenciar o grito que lhe subia ao peito.
A Mulher dirigiu-se para a confusão de pele e cartilagem que
tinha sido Yasmin, baixou-se e pegou no Livro da Luz. Inspecionou-
o por um momento, e depois virou-se para olhar para Drummond.
— Drummond Fox — disse ela, na sua voz baixa e rouca. Era
quase um sussurro, quase uma provocação.
Drummond queria gritar. Queria correr. Queria ficar perfeitamente
imóvel e esperar que ela não o visse, apesar de já estar a olhar para
ele. No seu bolso, um dedo trémulo procurava desesperadamente
uma página do Livro das Sombras.
— Entrega-me a Biblioteca Fox — disse a Mulher, caminhando
casualmente até onde Lily jazia numa poça do seu próprio sangue.
Olhou para a amiga de Drummond por instantes e depois deu um
salto no ar e aterrou pesadamente sobre o estômago de Lily com os
dois pés. O ar e o sangue explodiram da boca de Lily.
— Para! — gritou Drummond por reflexo, afastando-se,
horrorizado. — Foda-se!
A Mulher olhou para ele por cima do ombro, ainda de pé sobre o
estômago de Lily.
— Entrega-me a Biblioteca Fox — disse ela de novo, com um
tom que sugeria que estava a perder a paciência.
Drummond abanou a cabeça, com o olhar a percorrer o corpo de
Wagner, a confusão que tinha sido Yasmin, a forma ensanguentada
e partida de Lily. Aqueles eram os seus amigos, as pessoas que ele
amava. Eram pessoas que nunca tinham feito mal a ninguém na
vida. Eram brilhantes e divertidos e tão cheios de vida, e agora já
não existiam; eram pontos finais no fim de um belo poema.
Drummond recuou, odiando ter de deixar os seus amigos, mas
sabendo que eles iriam querer que ele sobrevivesse, que
mantivesse os livros bem distantes daquela mulher. No bolso, os
seus dedos encontraram finalmente uma página do Livro das
Sombras. À sua frente, a Mulher desceu de Lily e limpou os sapatos
no cimento. Depois, virou-se para o encarar.
— Dá-me os teus livros! — gritou-lhe ela, com o rosto
subitamente transformado numa máscara retorcida de fúria.
Drummond rasgou o canto da página e desapareceu nas
Sombras, no exato momento em que a Mulher se deslocou num
borrão para o local onde ele tinha estado momentos antes.
Ao sair a correr do parque para a rua, viu-a a olhar em redor à
procura dele.
Ele escapou, fugindo às imagens que o iriam assombrar para
sempre, a chorar nas Sombras pelos seus amigos e pelas coisas
horríveis que a Mulher lhes tinha feito.
A LIVREIRA (1)

E ncontraram-se com a Livreira no bar que ficava no átrio do Ace


Hotel, mesmo à saída da Broadway, na West 29th Street. Izzy já
tinha estado naquele bar, num encontro a dois, pouco depois de ter
chegado a Nova Iorque, e o local não mudara desde então. Era um
espaço grande, como se, em tempos, tivesse sido um banco, com
pilares brancos robustos a dividi-lo e a manter o teto alto equilibrado
sobre eles. As paredes eram revestidas a madeira e a sala estava
iluminada por candeeiros de mesa e lâmpadas suspensas muito
acima das suas cabeças. Quando Lund e Izzy entraram, a tarde
estava mesmo a começar e havia um burburinho baixo e confortável
de pessoas que simplesmente aproveitavam para pôr a conversa
em dia. Izzy esperou ao lado de Lund enquanto este perscrutava o
espaço, antes de se fixar numa figura sentada no canto mais
afastado.
— Espera aqui — disse ele.
— Não — contrapôs Izzy. Lund olhou para ela, avaliando-a, e
não discutiu. Dirigiu-se a uma mulher sentada sozinha numa das
extremidades de um sofá de pele. Ela levantou o rosto quando se
aproximaram e Izzy viu que ela era linda. Tinha a pele escura de
uma afro-americana, com olhos grandes e maçãs do rosto salientes.
Era careca e usava uns brincos pendentes grandes e coloridos.
Estava vestida com um fato cinzento caro e uma blusa carmesim,
abotoada apenas o suficiente para revelar o decote, e tinha uns
óculos presos numa corrente que trazia à volta do pescoço. Estava
sentada com as pernas cruzadas, e Izzy conseguiu ver os sapatos
de saltos altos elegantes, de uma cor semelhante à da blusa. Na
mesa à sua frente, um cocktail.
A mulher olhou para eles por alguns instantes.
— Posso ajudar-vos?
— O Azaki foi-se — disse Lund, simplesmente.
A mulher absorveu as palavras por um momento, os seus lábios
franziram-se ligeiramente.
— E tu és?
— Lund. Estava com ele. — Ele atirou o telemóvel de Azaki para
o sofá ao lado dela, e os olhos dela saltaram para o aparelho.
— O guarda-costas — disse a mulher.
— Um homem careca disparou contra ele e matou-o — informou
Lund.
— Um homem careca — repetiu Lottie.
— Também me tentou acertar — continuou Lund, apontando
para a ferida na cabeça. — Mas falhou. O que é incrível, tendo em
conta que sou muito maior do que o Azaki.
— Dr. Barbary — interveio Izzy. — Era o nome dele. Hugo
Barbary.
A mulher suspirou, e depois fez um gesto para os lugares à sua
frente. Izzy e Lund sentaram-se.
— Deves ser a Izzy — disse a mulher. Olhou para Lund, que
anuiu com a cabeça em resposta.
— Sim — disse Izzy, hesitante. — Como é que sabe?
— És uma mulher bonita, Izzy — comentou a Livreira, ignorando
a pergunta. — Devem estar sempre a dizer-te isso.
— Não com muita frequência — respondeu Izzy. Acenou com a
mão sobre a sua própria cabeça enquanto olhava para a cabeça
rapada da Livreira. — Gosto da carecada. Isso nunca me ficaria
bem.
A Livreira sorriu em resposta.
— Oh, eu gosto de ti — disse ela. — O que é bom, porque
prometi a alguém que te ia manter a salvo.
— Quem? — perguntou Izzy. — A quem é que prometeu?
— Não importa — respondeu a mulher. — Por enquanto. Não
vais ter de esperar muito tempo.
— Importa, sim, senhora — argumentou Izzy. — Quero saber o
que se está a passar.
— Tudo o que importa é que estejas a salvo. Foi isso que pedi
ao Azaki e, presumo, foi por isso que o Sr. Lund te trouxe até mim.
Izzy olhou interrogativamente para Lund.
— Não é a única razão pela qual nos estamos a encontrar —
disse Lund à Livreira.
Tirou o Livro da Dor do bolso e fê-lo deslizar para o outro lado da
mesa.
— Hum — murmurou a Livreira. Levantou os óculos e colocou-
os. — Este não é o Livro das Portas.
— Dor — redarguiu simplesmente Lund, e os olhos da mulher
arregalaram-se de surpresa.
— Adorável — disse ela. — Ouvi rumores sobre este e o Hugo
Barbary.
Lund não fez qualquer comentário. Izzy viu a mulher virar o livro
nas mãos e depois abri-lo.
Ela olhou para Lund.
— Então, tirou-o ao Hugo Barbary?
— Isso importa? — disse Lund.
— Normalmente, mas para irritar o Hugo, abro uma exceção.
— Consegue vendê-lo? — perguntou Lund.
— Claro — sorriu a Livreira. — Sempre. Mesmo com o mundo a
tornar-se uma merda, as pessoas continuam a querer comprar livros
especiais. É isso que quer?
— Sim — respondeu Lund. — Pode comprá-lo a nós, dar-nos o
dinheiro e depois vendê-lo.
— Não — disse a Livreira, afastando de si o livro em cima da
mesa. — Não é assim que as coisas funcionam. Eu não tomo posse
do livro. Eu ajo em vosso nome. Vendo-o por vocês. Têm de esperar
pelo dinheiro.
Lund olhou para Izzy e depois para a mulher.
— Ela ficará a salvo — disse a Livreira. — Se é por isso que está
tão interessado no dinheiro.
— Como é que a coisa funciona? — perguntou Lund.
— Vamos fazer um leilão — informou a Livreira. — Convidamos
caçadores de livros de todo o mundo. Será uma grande ocasião. Já
tenho o local e os preparativos em curso. Estava à espera de leiloar
o Livro das Portas, mas podemos certamente vender este.
— Quando? — perguntou Lund.
— À meia-noite, hoje.
— Tão cedo? — perguntou Lund.
— As pessoas arranjam tempo para os meus leilões —
respondeu a Livreira. — São eventos raros, Sr. Lund, mas de
grande valor. As pessoas hão de aparecer. Ninguém está a mais de
doze horas de distância, e podem enviar um representante se não
puderem vir pessoalmente. E, acredite, quanto mais depressa o
vender, melhor para si e para todos nós. Ter um livro destes chama
a atenção.
— Quanto? — perguntou Lund.
— Direito ao assunto, não é? Bem, obviamente, não posso
adivinhar o resultado do leilão, mas um livro como este… — Ela
balançou a cabeça para a frente e para trás. — Vinte, vinte e cinco,
facilmente.
Lund anuiu com a cabeça.
— Vinte quê? — perguntou Izzy.
— Milhões — esclareceu a Livreira.
Izzy começou a sentir o sangue a escorrer-lhe para os pés e o
mundo inclinou-se por uns segundos. Estendeu uma mão para se
apoiar na lateral da cadeira.
— A minha comissão é de quarenta por cento. Normalmente
aceitaria trinta, mas o Hugo Barbary torna isto mais perigoso. Isso é
aceitável?
Lund encolheu os ombros.
— Como queira.
A mulher levantou-se e alisou a roupa.
— É uma pena o que aconteceu ao Sr. Azaki — disse ela a
Lund. Pegou no seu cocktail e bebeu-o de uma só vez. — Gostava
bastante dele. — Lund anuiu em sinal de concordância. — Mas o
mundo avança, e vivemos tempos tumultuosos. Temos de nos
adaptar e perseverar. E isso é muito mais fácil de fazer quando se
tem muito dinheiro, acreditem.
— Acredito — disse Izzy.
— Agora, venham os dois comigo — instruiu a Livreira.
— O quê? — perguntou Izzy.
— Não é nada de sinistro. Mas se me vou dar ao trabalho
considerável de organizar um leilão, quero que a mercadoria esteja
segura. Se querem que eu venda o vosso livro, vão ficar comigo
durante as próximas vinte e quatro horas. Sem contacto com o
mundo exterior, sem mensagens secretas para potenciais licitantes.
Nada disso. Isto não tem diretamente que ver convosco, espero que
compreendam. Sou uma mulher cuidadosa.
Lund olhou para Izzy, exprimindo uma pergunta.
— Não sei — disse ela. Depois olhou para a Livreira. — Mas
acho que gosto dela. Gosto muito mais dela do que do careca. Não
me importo de ir com ela se isso significar que estaremos seguros.
— Mais seguros do que em qualquer outro lugar — garantiu-lhe
a Livreira. — Vamos lá.
Saíram juntos do hotel e entraram num carro que já os
aguardava.
À DERIVA

C assie arfou de terror e caiu da cadeira para o chão em Bryant


Park. Um casal jovem que passava virou-se na direção dela,
mas Drummond esboçou um sorriso em jeito de pedido de desculpa,
que era ao mesmo tempo tranquilizador.
— Ela está bem, só um pouco zonza.
Ele ajudou-a a voltar a sentar-se, e o casal continuou o seu
caminho.
— Estás a ver? — perguntou Drummond. — Vês porque é que
temos de esconder isto dela?
— Aquela pobre mulher, a Lily. O que é que ela lhe fez?
— Não sei — admitiu Drummond. — Mas se eu tivesse de
adivinhar, diria que foi o Livro do Desespero.
— O Livro do Desespero — repetiu Cassie.
Drummond assentiu.
— Era propriedade de uma família em São Petersburgo, na
Rússia. Estava guardado numa igreja, ainda por cima… Talvez por
as igrejas serem o lugar para onde as pessoas vão quando se
sentem desesperadas. Nós já tínhamos ouvido histórias, antes
dessa noite, antes de ela nos ter atacado; tínhamos ouvido histórias
de que a família havia desaparecido, e ninguém sabia o que tinha
acontecido ao livro. Eu não sabia se acreditava nessas histórias ou
não… havia sempre tantas histórias de livros que desapareciam,
livros que eram encontrados. Mas a Mulher levou-o e matou a
família. Não tenho a certeza disso. Mas sinto-o.
Cassie abanou a cabeça.
— A Lily era uma mulher tão animada e cheia de vida —
continuou Drummond. — Adorava comer e gostava de mostrar Hong
Kong, a sua ilha, a toda a gente. Quando se ria, ria-se com o corpo
todo. — Ele abanou a cabeça lentamente. — Fazer-lhe isso, levá-la
ao desespero a ponto de ela querer acabar com a própria vida da
forma mais horrível…
— Ela salvou-te — disse Cassie, com veemência. — Ela sabia
que se tentasses ajudá-la, também serias afetado pelo livro.
Drummond hesitou, inseguro. Cassie viu que ele queria que ela
tivesse razão, que era assim que ele queria lembrar-se de Lily.
— Eu acredito nisso, Drummond — insistiu ela. — Acredito que
ela te salvou. Consegui sentir a forma como te sentiste culpado por
não teres feito mais.
Ele desviou o olhar para o chão, como que envergonhado por
tantos dos seus pensamentos íntimos terem sido revelados nas
suas memórias.
Cassie pôs-lhe a mão no ombro.
— Não tens de te sentir culpado. A Lily não quis que morresses
como ela. Eu não a conhecia, mas sei isso. Eu vi isso.
Drummond anuiu, aceitando o facto.
— Obrigado — disse ele em voz baixa, evitando o olhar dela.
Uma súbita onda de emoção — terror e horror — tomou conta de
Cassie à medida que as memórias se insinuavam novamente na
sua mente; a imagem do mal a passar pelo rosto da Mulher
enquanto Drummond assistia, o esmagar brutal dos ossos antes de
os restos sangrentos de Yasmin caírem no solo gelado. Ela deixou
descair a cabeça entre os joelhos.
— Foi tão horrível — murmurou ela. — Quem me dera não ter
visto…
— Desculpa — disse Drummond. — Eu carrego essas memórias
comigo. Eu sei como são horríveis. Eu estava lá. Mas agora já
sabes porque é que eu quero manter a Biblioteca longe dela, porque
é que ela nunca pode ter acesso ao Livro das Portas.
— Mas destruí-lo? — perguntou Cassie, encarando-o. — É a
única maneira? — Ela conseguiu perceber que essa dúvida o
atormentava, como se ela tivesse dado voz a uma pergunta que
persistia na mente dele. — O que é que acontece se aquela mulher
chegar à Biblioteca Fox, se ficar com todos os livros?
Cassie abanou a cabeça, de olhos postos no chão.
— É o que ela quer — continuou Drummond. — Era disso que
ela andava à procura já naquela época. Ela vai estar mais forte
agora. Já passaram dez anos. E continua à procura, continua a
reunir livros. — Cassie olhou para ele. — Tenho ouvido histórias —
prosseguiu ele. — Ainda falo com pessoas do mundo dos livros, de
vez em quando. Ela tem andado sistematicamente a perseguir os
caçadores de livros e outros colecionadores, a tirar-lhes os livros.
Todos os que a encontram e que sobrevivem, e não são muitos,
dizem a mesma coisa. Ela pergunta onde estou. E pergunta pela
Biblioteca Fox. Toda a gente sabe que ela quer todos os livros, mas
ninguém sabe porquê. Ninguém sabe quem ela é ou de onde veio. E
ninguém sabe o que ela vai fazer quando os tiver todos.
— Então, porque não a deténs? — perguntou Cassie. — Em vez
de destruíres o meu livro, destrói-a a ela! Que tal usares os livros
que tens contra ela em vez de os esconderes?
Drummond recuou, como se tivesse sido picado. Abriu a boca,
como se tentasse dar uma resposta, e fechou-a de novo.
— Eu… — Ele debateu-se. — Eu não sou um lutador, Cassie. Eu
sento-me em edifícios sossegados e estudo livros. O que é que eu
sou para ela? Tu viste-a. Ela é letal.
Cassie abanou a cabeça, a discordar da sua avaliação.
— Enfrentaste aquele homem, o Barbary, no deli. Defendeste-me
a mim e à Izzy…
— Só fiz o que tinha de fazer… para fugir, para te proteger a ti e
à Izzy e para manter o livro afastado dele.
— Não é diferente. Temos de fazer frente à Mulher e manter os
livros a salvo dela.
Drummond tossiu uma gargalhada para o ar, discordando.
— É diferente. O Hugo Barbary é apenas um homem, e assusta-
me. Mas a Mulher… a Mulher é pior. Tu já viste.
Cassie digladiou-se com esse facto, sabendo que ele tinha
razão, mas sabendo que não podia deixar o Livro das Portas ser
destruído. Tinha de refletir. Tinha de descobrir o que fazer. Pôs-se
de pé.
— Temos de voltar, voltar ao nosso tempo — disse ela. — Ele
olhou para ela, desiludido. — Só quero ver a minha amiga,
Drummond — explicou ela. — Preciso de clarear a minha mente.
Não consigo… Não consigo lidar com isto agora. Quero certificar-me
de que ela está bem.
— OK — disse ele. — OK.
— Perdeste os teus amigos, e eu tenho muita pena de que isso
tenha acontecido — disse Cassie, com a voz mais suave. — Mas a
Izzy ainda está viva. Depois do que acabei de testemunhar, só
quero ver como é que ela está.
Drummond anuiu.
— Compreendo — disse ele. — Vamos certificar-nos de que ela
está bem.
Saíram de Bryant Park em silêncio, dirigindo-se para leste ao
longo da 42nd Street, esforçando-se por passar por entre a multidão
da hora de almoço. A cidade cheirava a metal quente e a betão e o
ar era denso e sujo. Encontraram um parque de estacionamento
subterrâneo e desceram a rampa, onde o ar estava mais fresco, à
procura de uma porta pouco exposta. Cassie deu-se conta de que
estava a ficar boa a encontrar o tipo certo de portas — as portas
silenciosas para as quais ninguém olhava nem reparava. Essas
pareciam ter sido feitas para o Livro das Portas. Encontrou uma
entrada para uma escada de incêndio interna.
— Esta serve — disse ela.
— Deixa a porta entreaberta — disse Drummond. — Só para o
caso de estar alguém lá. Precisamos de uma rota de fuga.
Cassie acenou-lhe com a cabeça e depois abriu a porta
revelando o corredor do seu apartamento.
— O que é aquilo? — perguntou Cassie, olhando para o chão
perto da porta da rua. — Aquilo é sangue?
Os dois deram alguns passos e olharam para as poças
vermelhas pegajosas que manchavam a madeira. O coração de
Cassie rufou de pânico.
— Sim — disse Drummond, num tom monocórdico. — Sangue.
— Izzy! — arfou Cassie.
Ela passou velozmente por Drummond e entrou na sala de estar.
À primeira vista, tudo parecia normal; porém, à medida que os olhos
de Cassie foram passando de um lado para o outro, reparou em
tudo o que não estava bem. Viu alguma desarrumação, o móvel da
televisão caído e partido. Pareceu-lhe até que sentia o cheiro de
urina no ar.
— Oh, meu Deus! — murmurou ela, dando meia-volta e levando
as mãos à cabeça.
Viu peças de mobiliário e objetos caídos e fora do sítio, uma
mancha nas almofadas do sofá, o homem escondido atrás da porta
a carregar na sua direção.
— Foda-se! — gritou Cassie, enquanto Hugo Barbary se lançava
sobre ela, com um esgar de raiva no rosto.
— O que é que foi? — perguntou Drummond, surpreendido, do
corredor.
Porém, Cassie não conseguiu responder, porque a enorme mão
de Hugo Barbary estava à volta do seu pescoço, a tirar-lhe a
respiração e qualquer pensamento racional. Ela tentou afastar a
mão, sem sucesso. Cassie não era baixa, mas era mais baixa do
que Hugo Barbary, e o braço dele era grosso e sólido como um
tronco de árvore. Ele puxou-a para junto de si e ela viu que um dos
lados do rosto do homem parecia inchado e vermelho.
— Eu fico com isto — murmurou ele perto do ouvido dela,
enquanto a sua mão livre mergulhava no bolso dela e retirava o
Livro das Portas. Cassie bateu com mais força no braço, mas o seu
cérebro gritava-lhe que não conseguia respirar, que o livro não era
assim tão importante.
— Muito agradecido — disse Hugo, no preciso instante em que
Drummond apareceu na porta.
— O qu…? — começou ele. — Ah, foda-se — concluiu.
— Sr. Fox — disse Hugo pomposamente, afastando-se alguns
passos da porta. — É um prazer voltar a vê-lo. Tenho a sua amiga e
o livro dela.
Para Cassie, ainda presa nas garras de Hugo, ainda a lutar para
respirar, as palavras do homem começaram a soar quase como um
sonho, como se fossem ouvidas por outra pessoa.
— O que é que vais fazer, Bibliotecário? — perguntou Hugo. —
Vais entrar nas Sombras e fugir, como da última vez? — Drummond
vacilou, com os olhos a oscilar entre Cassie e Hugo, a indecisão em
forma humana. — Cobarde — cuspiu Hugo.
E depois Cassie deu-lhe um pontapé no meio das pernas, com
toda a força e intensidade que conseguiu, esperando que fosse
suficiente.
O homem arquejou e guinchou e deixou-a cair, com a cara
vermelha, enquanto ela se afastava a cambalear.
Ela recuou em direção a Drummond e os dois saíram da sala
para o corredor, enquanto Hugo se recompunha e se forçava a
avançar, com os olhos fixos neles.
— Já tive dores que cheguem para um dia! — murmurou.
— Vamos — insistiu Drummond, dirigindo-se a Cassie, seguro
daquilo de que Hugo era capaz.
— O que é que fizeste à Izzy? — exigiu Cassie saber, num
sussurro rouco. — Onde está a minha amiga?
Estavam a mover-se na direção da porta do quarto de Cassie,
que continuava a ser uma porta para o passado, a rota de fuga que
haviam deixado. Hugo viu o que estava para lá da porta quando se
dirigiu na direção deles e os seus olhos iluminaram-se.
— É mesmo maravilhoso — disse ele. Depois olhou para Cassie.
— Talvez eu tenha matado a tua amiga porque ela me irritava.
— Não! — gritou Cassie, recusando-se a acreditar nele. Sabia
que acreditar nas palavras dele seria o seu próprio fim; ela
estilhaçar-se-ia como um cristal atirado ao chão.
— Ele está a mentir — advertiu Drummond.
— Estou? Porque é que havia eu de mentir?
— Porque faz o teu estilo — respondeu Drummond.
— Seja como for, isto é cansativo.
Cassie olhou para baixo e viu Hugo enfiar o Livro das Portas no
bolso e tirar um livro diferente.
— Contigo, ainda tenho coisas a tratar — disse Hugo a
Drummond. — Depois olhou para Cassie, no momento em que o
livro na sua mão ganhava vida, lançando faíscas roxas e vermelhas
no corredor sombrio. — E de ti, estou farto.
Cassie sentiu-se sacudida para cima e para trás, e caiu pela
porta do seu quarto em direção ao passado. Ouviu Drummond gritar
«Não!», e depois sentiu o cimento áspero enquanto rebolava pelo
chão do parque de estacionamento.
Aterrou desajeitadamente e com as pernas num emaranhado
pouco natural, e então Barbary surgiu na soleira da porta. Ele olhou
em redor, apreciando o facto de Cassie se encontrar agora num
lugar diferente, e depois sorriu-lhe.
— Adeusinho — disse ele, simplesmente, enquanto Cassie se
esforçava por se levantar, movendo-se muito lentamente.
Barbary fechou a porta, o som ecoou pelo parque de
estacionamento como um trovão, e Cassie ficou sozinha no passado
e sem o Livro das Portas.
Terceira Parte

ECOS NO PASSADO
SOZINHA NO PASSADO

C assie estava sozinha, uma figura solitária entre os turistas e o


trânsito da cidade de Nova Iorque, rodeada de barulho e luz.
Sentada no cimo das escadas vermelhas do TKTS, no coração
de Times Square, transpirava no calor da noite, com o sobretudo
dobrado no colo, o chapéu e o cachecol enfiados nos bolsos. Por
todos os lados, luzes elétricas gritavam-lhe, obrigando a sua mente
a refugiar-se dentro de si mesma e dando-lhe vontade de fugir para
um lugar escuro e sossegado. Mas ela não conseguia pensar em
mais nenhum sítio para onde ir. Estava presa no passado, sem
dinheiro, sem amigos e sem forma de regressar a casa. Times
Square permanecia iluminada toda a noite, e havia sempre turistas.
Era segura, pelo menos. Barulhenta, brilhante e perturbadora, mas
segura.
— Porque é que alguém havia de querer ir a Times Square? —
perguntou-se, lembrando-se de algo que Izzy tinha dito havia uma
vida inteira, antes de o mundo ter enlouquecido. — As únicas
pessoas interessadas em Times Square são os turistas e os
terroristas.
As lágrimas voltaram a cair, silenciosas e derrotadas, e as luzes
da cidade de Nova Iorque esbateram-se em frente aos seus olhos.
— Oh, meu Deus — lamentou-se ela.
Cassie tinha passado por momentos difíceis na sua vida. A
doença do avô e a sua morte, e as semanas sombrias que se
seguiram, em que se sentiu verdadeiramente sozinha no mundo
pela primeira vez. Mas, mesmo nesses dias, nunca se sentira tão só
como agora, tão desamparada.
— O que é que eu vou fazer? — perguntou-se, enxugando as
lágrimas com a manga do seu velho pulôver.
Depois de a porta do seu quarto se ter fechado, Cassie esperou
no parque de estacionamento durante algum tempo, na esperança
de que a porta se abrisse de novo, na esperança de que Drummond
viesse buscá-la. Mas à medida que os minutos e depois as horas
passaram, a sua esperança foi diminuindo. Ela nem sequer sabia se
Drummond conseguia usar o Livro das Portas. Talvez ninguém
conseguisse, além dela.
Estava demasiado entorpecida para entrar logo em pânico. Com
a esperança extinta, saíra do parque de estacionamento para
enfrentar a tarde quente de Nova Iorque. Caminhara sem rumo
durante algum tempo, com a mente estranhamente silenciosa, como
se tivesse acabado o turno e picado o ponto. As ruas, as pessoas e
o trânsito fustigaram-na, e depois deu por si num banco do Central
Park, a observar as pessoas que passeavam cães e as que corriam,
e tentou pensar racionalmente no seu problema para encontrar a
solução óbvia que estaria apenas a alguns passos lógicos de
distância.
Mas não havia solução. Ela não tinha dinheiro. Estava sozinha. A
identificação que trazia consigo era datada do futuro e
provavelmente seria inútil no passado.
O pânico borbulhava dentro dela como a água de uma
inundação a subir rapidamente, ameaçando afogá-la. Agarrara-se
ao braço do banco, tentando estabilizar-se, hiperventilando
enquanto toda a cidade de Nova Iorque se ocupava dos seus
afazeres e a ignorava.
Ela estava sozinha. Mais do que nunca.
Agora, várias horas mais tarde, enquanto as luzes de Times
Square tentavam conter a escuridão que se aproximava, a mente de
Cassie tinha saído do buraco para onde deslizara e tentava ajudá-la.
— Pensa nos aspetos positivos — disse a si própria, enquanto
um jovem casal japonês posava para fotografias à sua frente. Viu-os
a debater se lhe haviam de pedir para lhes tirar uma fotografia, mas
olharam para o seu rosto manchado de lágrimas e dirigiram-se a um
homem de meia-idade que estava a alguns passos de distância.
— Está quente — disse a si própria, anuindo com a cabeça. — É
verão. Não vais morrer de frio.
Deu uma palmadinha no casaco que tinha ao colo. Se fosse
preciso, podia ficar naqueles degraus toda a noite. Estaria em
segurança e estaria quente.
— Não corres perigo imediato.
Anuiu novamente com a cabeça, tentando enfatizar para si
própria os aspetos positivos.
— Ótimo. Então não vais morrer imediatamente.
Era só isso. Era tudo o que tinha.

Cassie passou a noite sentada nos degraus, com um temor


estranho de se mexer, como se mexer-se tornasse tudo real, como
se isso significasse que ela teria de lidar com tudo o que se estava a
passar. A cidade nunca adormecia realmente, muito menos em
Times Square. As luzes piscavam e zumbiam, e havia sempre táxis
a passar, havia sempre turistas, embora o seu número diminuísse
nas primeiras horas da madrugada. E depois tudo começou a
ganhar vida outra vez, o trânsito tornou-se mais denso, os ruídos
mais altos, e Cassie deu-se conta de que tinha adormecido ali
sentada. De repente, estava novamente acordada, em pânico, a
pestanejar e a tentar lembrar-se dos motivos por que se encontrava
em Times Square, sozinha.
Depois, viu o anúncio de um filme que já tinha dez anos, e
chegou tudo em catadupa — o pânico, o medo — e teve de se
levantar, de se mexer, só para evitar que o desespero a engolisse
outra vez. Precisava de ir à casa de banho e tinha a boca seca, por
isso desceu a Seventh Avenue até à Penn Station, deixando-se
empurrar pela maré de passageiros nas suas viagens do ou para o
trabalho. Dentro da estação, usou a casa de banho, esforçando-se
por ignorar as conversas gritadas e agressivas que pareciam ecoar
à sua volta, e afastando-se rapidamente assim que terminou, antes
que alguém tentasse falar com ela. Encontrou o bebedouro e bebeu
até ficar saciada, livrando-se do sabor do ar da cidade que lhe
permeara a boca.
Deambulou então pelos corredores da estação, sentindo o cheiro
do pão e dos cachorros-quentes, sem ainda sentir fome, mas
sabendo que ela iria chegar. Sabia que tinha de fazer alguma coisa
se quisesse sobreviver.
Viu uma mulher sem-abrigo, com um saco de plástico cheio em
cada mão e muitas camadas de roupa a cobrir-lhe o corpo, e
vislumbrou o seu próprio futuro. Viu-se a si própria a tornar-se
anónima e esquecida, uma das pessoas escondidas debaixo da
superfície de Nova Iorque, uma solitária que contava histórias
loucas sobre ser do futuro.
De repente, a Penn Station tornou-se sufocante, uma armadilha
da qual ela não conseguia escapar, e o pânico levou-a de volta para
o ar quente da manhã. Voltou a caminhar para norte, porque a sua
mente parecia entrar menos em pânico quando caminhava, e deu
por si no Bryant Park, onde ela e Drummond se tinham sentado no
dia anterior para observar um Drummond mais novo com os seus
amigos.
Cassie sentou-se à mesa e tentou descontrair-se. Tudo o que ela
queria era uma cama. O seu apartamento. E Izzy.
— Oh, não, Izzy — disse ela, lembrando-se do que Hugo
Barbary lhe tinha dito, antes de a empurrar pela porta: Talvez eu
tenha matado a tua amiga porque ela me irritava.
Deixou descair a cabeça nas mãos.
E se fosse verdade?
E se aquele homem tivesse mesmo matado Izzy?
As entranhas de Cassie eram um mar revolto, agitado e
tempestuoso; todo o seu ser se encontrava numa desordem como
ela nunca tinha conhecido. O mundo turvou-se novamente em seu
redor e as lágrimas borbulharam. Tentou enxugá-las, mas
continuavam a aparecer mais; a sua respiração foi ficando
entrecortada enquanto ela enxugava e enxugava, até as suas faces
ficarem esfoladas. Mas ainda havia mais lágrimas. As lágrimas eram
intermináveis.
Quando ficou esgotada, quando se tornou uma concha exausta e
sem qualquer esperança, perguntou a si própria quem a poderia
ajudar. Não conseguiria sobreviver sozinha. Pensou em quem
conhecia no passado.
O seu avô — a um continente de distância, e mesmo que ela
conseguisse chegar até ele, será que ele a iria ajudar? O que é que
ele poderia fazer? Ele tinha de cuidar da sua própria Cassie.
Izzy estaria algures em Nova Iorque, mas Cassie não sabia
onde. E a Izzy com menos dez anos não conhecia Cassie. Porque é
que havia de ajudá-la?
Depois, pensou em Drummond Fox. Tinha esperança de que o
Drummond Fox do futuro voltasse para a salvar, mas se assim
fosse, seguramente já teria aparecido… Ele sabia onde ela estava.
Cassie não podia contar com ele.
Mas e o Drummond Fox do passado? O Drummond Fox com
menos dez anos?
Parecia uma ideia, uma oportunidade. Pela primeira vez desde
que a porta do seu quarto se lhe tinha fechado, parecia um caminho
possível.
Cassie levantou-se e permitiu que os seus pés a fizessem
atravessar Bryant Park, enquanto perscrutava o seu interior e
alimentava essa ideia, essa esperança, como uma planta frágil.
Se conseguisse encontrar Drummond Fox, poderia falar-lhe
sobre o Livro das Portas e tudo o que acontecera no futuro… Ele
acreditaria nela, Cassie tinha a certeza disso.
Sentiu uma súbita descarga de adrenalina ao perceber que o
Drummond Fox do passado estava na cidade… Ela e o seu
Drummond tinham-no visto no dia anterior, em Bryant Park…
Porém, a sua esperança rapidamente caiu por um precipício
quando se recordou de que Drummond Fox tinha desaparecido. Na
noite anterior, ele tinha visto os seus amigos serem assassinados
pela Mulher. Cassie também o vira, ela tinha estado lá, nas
memórias de Drummond. Ele tinha fugido da Mulher e do massacre
dos seus amigos. Drummond Fox tinha começado o longo período
de dez anos que passaria a fugir e a esconder-se, a viver nas
Sombras. Cassie não tinha forma de saber onde ele estaria até dez
anos no futuro, quando ela e Izzy se cruzariam com ele no bar do
terraço do Library Hotel.
— Não — disse a si própria, à medida que estas verdades se
davam a conhecer. Parou de caminhar, obrigando quem passava
por si a contorná-la. Não ouviu as palavras irritadas; não viu os
olhares incomodados que lhe eram dirigidos. Estava perdida nos
seus próprios pensamentos.
Drummond Fox não a podia ajudar.
Esperou que a sua mente reagisse, que lhe surgisse uma
alternativa. Se não conseguia encontrar Drummond Fox, e não
havia mais ninguém no passado que a pudesse ajudar, tinha de se
ajudar a si própria. E só havia uma maneira de regressar ao seu
próprio tempo.
— Tenho de encontrar o Livro das Portas — declarou, com a voz
calma, quando se apercebeu de que esta era a resposta em que
devia ter pensado doze horas antes.
Mas por onde começar? Onde encontrar um livro daquele
género?
A resposta era simples: começar pelo homem que lho tinha
dado.
Ela tinha de encontrar o Sr. Webber.

Cassie esperou pelo Sr. Webber à porta do seu prédio. Era o fim de
tarde quando ele apareceu e, inicialmente, Cassie não percebeu
que era ele. Era um Sr. Webber com cabelo mais escuro e menos
anos em cima dos ossos.
Ela alcançou-o antes de ele chegar à esquina.
— Sr. Webber!
O homem deteve-se e olhou para ela. Cassie viu um sorriso
educado, curiosidade e cautela na sua expressão.
— Sr. Webber, é tão bom vê-lo — disse ela, com as suas
emoções subitamente a transbordar. — Nem faz ideia. Por favor,
preciso da sua ajuda. — As suas palavras eram uma torrente; doze
horas de medo, ansiedade e pânico jorravam para fora do seu ser
porque viu um rosto que conhecia, mesmo que esse rosto não a
conhecesse. — Lamento muito, sei que não me conhece, mas
preciso de ajuda e o senhor é a única pessoa que conheço.
O Sr. Webber franziu as sobrancelhas e os seus olhos
percorreram o rosto dela como se estivesse a tentar situá-la.
— Preciso do Livro das Portas. O senhor deu-mo no futuro. Não
sei porquê, mas deu-mo. Mas eu fiquei presa aqui no passado e
preciso dele para voltar para casa e não consigo pensar em mais
ninguém para me ajudar, oh, meu Deus… — Cassie levou uma mão
à cabeça. O seu cérebro disse-lhe que estava a divagar. Disse-lhe
para pensar em como um homem que não a conhecia a estaria a
ver. Ela obrigou-se a respirar, a acalmar-se. — Eu sei que isto
parece uma loucura. Eu sei o que deve estar a pensar de mim.
— Precisa de ajuda? — perguntou o Sr. Webber, a anuir
gentilmente com a cabeça.
— Sim! — exclamou Cassie. — Sim! Preciso de ajuda, por
favor… O Livro das Portas. Preciso de o usar, só uma vez.
O Sr. Webber anuiu de novo lentamente com a cabeça. Lançou
um olhar para o lado, para a azáfama e para o barulho da Second
Avenue.
— Desculpe, mas não sei o que é isso. Mas parece-me que
precisa de uma refeição quente e de beber alguma coisa, não é
verdade?
Cassie hesitou, sem saber ao certo onde é que a conversa ia
dar.
Viu o Sr. Webber tirar algumas notas do bolso e entregar-lhas,
pressionando-as na sua mão.
— Compre alguma comida e uma bebida. Há um abrigo para
mulheres no centro da cidade, acho eu. Lá podem dar-lhe alguma
ajuda. Tenho muita pena, mas não posso fazer mais nada.
Cassie viu o Sr. Webber a afastar-se apressadamente, enquanto
lançava um olhar preocupado por cima do ombro para ver se a
mulher louca o seguia ou não.
Cassie deixou-se ficar ali, parada, muda, durante alguns
minutos, com as notas apertadas na mão, enquanto a cidade,
indiferente, se agitava à sua volta.
A FABULOSA HISTÓRIA
DE CASSIE ANDREWS

C assie fez a única coisa que lhe ocorreu fazer: foi para um lugar
que lhe fosse familiar, um lugar onde pudesse pensar. Dirigiu-se
à Kellner Books. Depois das ruas quentes e peganhentas da cidade,
entrar pela porta da livraria foi um alívio. A loja parecia a mesma,
embora os livros fossem diferentes e ela não reconhecesse nenhum
dos funcionários. Era um lugar seguro, um lugar reconfortante.
Cassie encontrou a velha poltrona no canto de trás da sala e
sentou-se, com um livro qualquer na mão, como se estivesse a ler,
limitando-se a tentar aplacar a sua mente acelerada.
Permaneceu ali sentada durante algum tempo, enquanto a sua
mente abrandava, mas o desespero teimava em estar presente,
enumerando as suas falhas pessoais.
Porque é que tinha voltado ao apartamento?
Porque é que não tinha visto Hugo Barbary na sala de estar? Era
estúpida ou cega?
Porque é que tinha deixado Izzy para trás quando partira com
Drummond?
— Oh, não! — murmurou ela, e o estômago contorceu-se
quando se lembrou do sangue no chão. Onde estaria Izzy?
Alguém junto a uma estante próxima dela fitou-a ao ouvir o seu
desespero, e Cassie tentou afastar a preocupação com um sorriso.
Ela não podia ficar ali para sempre, tinha consciência disso. Sabia
que ia escurecer em breve, e não tinha onde ficar. A ideia de passar
mais uma noite em Times Square sozinha era desanimadora. Seria
essa a sua vida a partir daquele momento?
Pensou no abrigo que o Sr. Webber tinha mencionado. Seria
melhor ir para lá? Talvez houvesse uma cama, pelo menos. Comida.
Depois, lembrou-se das notas que ele lhe tinha depositado na
mão e, de repente, apercebeu-se do seu estômago vazio e
barulhento. Tinha caminhado quilómetros ao longo do dia — com
um único objetivo em mente: manter a calma — e não comia desde
o jantar com Drummond, quando se encontrara com o avô.
Precisava de comida. Sorriu debilmente ao lembrar-se de
Drummond a dizer-lhe a mesma coisa em Lyon, e deu-se conta de
que tinha saudades dele. Conhecia-o há apenas um dia, mas tinha
saudades dele.
Obrigou-se a pôr-se de pé. Arrumou o livro na prateleira e dirigiu-
se à cafetaria na parte da frente da loja. Comprou um queque de
chocolate grande e um café e depois sentou-se numa das mesas
vazias, subitamente consciente de que poderia estar a cheirar mal
depois da noite passada nas ruas da cidade, e teve esperança de
que os outros clientes não notassem.
Foi comendo o queque aos bocadinhos, tentando demorar-se,
saboreando cada pedacinho como se fosse a sua última refeição.
Com o estômago cheio e café nas veias, começou a sentir-se
novamente mais racional, capaz de reforçar as paredes da sua
mente para fazer face às suas emoções furiosas.
Deixou-se ficar ali sentada, a olhar para a parte da frente da loja
e para a rua, sem tentar resolver todos os seus problemas, sem
tentar resolver o impossível. Limitou-se a ficar sentada e manteve-
se calma e tranquila.
E então a porta da rua abriu-se e o Sr. Webber entrou na Kellner
Books.

Ele não reparou nela, pelo menos inicialmente, e ela não lhe
chamou a atenção. Dirigiu-se ao balcão, como sempre fazia, e pediu
a sua bebida. Cassie reparou que ele trazia agora um livro debaixo
do braço, um livro que não tinha quando o vira pouco antes na rua.
Ela viu o Sr. Webber sentar-se, a três mesas de distância, e
soube que a sua presença na Kellner Books era a sua última
oportunidade. Ele era o caminho para o Livro das Portas. Ela tinha
de o fazer acreditar.
Ela observou-o a ler e a beber a sua bebida durante alguns
minutos, tentando pensar na melhor abordagem, tentando pensar na
forma de o fazer acreditar nela, pelo menos o suficiente para terem
uma conversa.
Depois, levantou-se, levando a bebida consigo, e sentou-se à
frente dele. Quando ele levantou os olhos do seu livro, a sua
expressão passou por várias emoções: surpresa, choque,
desconfiança.
— Obrigada pelo dinheiro, Sr. Webber — disse ela. — Foi muito
simpático da sua parte.
Cassie percebeu que as suas palavras o desarmaram. A cautela
diminuiu.
— Consegui comprar uma bebida e alguma comida, e estava
mesmo a precisar disso. — Cassie sorriu. — Acho que estava um
pouco excitada quando falei consigo há pouco. Desculpe se o
alarmei.
Ele abanou a cabeça, começando, educadamente, a pôr um fim
à conversa antes que Cassie dissesse o que queria.
— Permita-me que lhe diga uma coisa — pediu ela. — E depois,
se quiser, deixo-o em paz, prometo. Só uma coisinha.
O Sr. Webber cerrou os lábios por breves momentos, pensando
no assunto.
— Admito que estou intrigado com o facto de a menina saber o
meu nome.
— Por favor — disse Cassie, sentindo os olhos fecharem-se com
o esforço de manter a calma. — Por favor, deixe-me dizer-lhe só
uma coisa.
— Muito bem — acedeu ele. — O que é que me quer dizer?
Cassie anuiu com a cabeça e sentiu mundos inteiros de
esperança e desespero ancorados num momento, numa frase.
— Quando esteve em Roma, quando era mais novo — começou
ela. — Ficou numa casa de hóspedes perto da Fonte de Trevi. A
dona do hotel entrou no quarto para lhe levar o café e encontrou-o
despido.
O Sr. Webber ouviu as palavras com uma expressão vazia, e
depois recostou-se na cadeira, com a testa franzida, e ficou a olhar
para Cassie durante muito tempo.
— Quem é você? — perguntou ele.
— Chamo-me Cassie.
— Nunca contei essa história a ninguém. A ninguém. Ninguém
poderia saber isso. Como é que a conhece?
— O senhor contou-ma. Nós somos amigos. É por isso que sei o
seu nome. É por isso que sei onde mora. Eu estava à sua espera há
pouco. É por isso que sei que vem aqui regularmente para se sentar
a ler os seus livros. Sei que adora O Conde de Monte Cristo.
— Mas como é que sabe essas coisas? — perguntou o Sr.
Webber, a abanar a cabeça. — Nós não nos conhecemos.
— Não — Cassie concordou. — Essa é a parte mais difícil, Sr.
Webber. Eu sou do futuro. Encontramo-nos no futuro e tornamo-nos
amigos. E não espero que acredite nisso porque… Bem, é de
loucos, não é?
O Sr. Webber ficou a observá-la e Cassie podia ver que ele
estava a ter uma espécie de debate interno, a digladiar-se com
factos contraditórios.
— Eu não sou perigosa, Sr. Webber — assegurou Cassie. — Só
estou aqui à deriva, sozinha, sem dinheiro e sem amigos que me
possam ajudar. O senhor é a única pessoa que conheço que talvez
me possa valer.
O Sr. Webber bebeu um gole da sua bebida.
— Não sei se acredito em si — disse ele. — O que está a dizer…
é demasiado fabuloso, demasiado louco.
Ela anuiu tristemente com a cabeça, baixando os olhos para a
mesa. É claro que ele não ia acreditar nela. Porque é que alguém
havia de acreditar?
Mas ele não a rechaçou. Quando ela voltou a levantar os olhos,
ele continuava a observá-la.
— Não consigo perceber como é que pode saber de Roma —
disse ele, mas estava a falar mais para si próprio. — Não contei
essa história a ninguém. Nunca a escrevi. Se isto é algum tipo de
esquema ou conto do vigário, não consigo perceber como é que
poderia saber isso. E eu já lhe dei dinheiro hoje. Que razão teria
para falar comigo?
— Não é nenhum esquema — asseverou Cassie, baixinho.
Permaneceram sentados em silêncio durante algum tempo.
A loja tinha agora menos movimento e havia só algumas
pessoas a ver os livros e um jovem casal sentado numa das outras
mesas com as cabeças juntas e a rir. O dia estava a passar, a tarde
a transformar-se em noite, e Cassie sentiu o seu coração afundar-se
ao pensar em ter de sair da familiaridade reconfortante da loja e
voltar para a noite solitária.
— Tem telefone? — perguntou o Sr. Webber, interrompendo os
seus pensamentos.
— O quê? — perguntou Cassie.
— Um telefone — disse ele. — Um telemóvel. Toda a gente anda
com um telemóvel hoje em dia.
— Sim — disse Cassie, batendo automaticamente nos bolsos do
casaco.
— Deixe-me vê-lo, por favor — pediu o Sr. Webber, estendendo
a mão.
— Porquê? — perguntou Cassie.
— Se quer que eu acredite em si, se não quer que eu me levante
e me vá embora neste preciso instante, deixe-me ver o seu
telemóvel.
Cassie contemplou o pedido por um momento e não viu qualquer
inconveniente. Pegou no telemóvel e passou-o ao Sr. Webber.
— Desbloqueie-o, por favor — pediu ele, entregando-lho outra
vez.
Cassie digitou o código de acesso, devolveu-o e aguardou
alguns instantes enquanto o Sr. Webber inspecionava o aparelho,
mexendo no ecrã, com os olhos a moverem-se enquanto lia. Depois,
pousou o telemóvel na mesa, com a mão em cima dele, e ficou a
olhar em silêncio para o tampo da mesa.
— O que foi? — perguntou Cassie, quando já não conseguia
aguentar mais.
— É do futuro — disse ele, com os olhos a olhar para ela. — Eu
não sou o ludita que gosto de fingir que sou. Tenho o meu próprio
telemóvel. — Ele levou a mão ao bolso e tirou o seu iPhone, um
antecessor muito mais antigo do telemóvel que Cassie tinha. — O
que tem aí é obviamente um modelo muito mais avançado.
— Nem sequer o vou conseguir carregar nos próximos cinco
anos — refletiu Cassie, infeliz.
— E o site que estava aberto no browser — continuou o Sr.
Webber, abanando lentamente a cabeça — estava datado de vários
anos no futuro. É impossível.
— Sim — concordou Cassie. — É.
O Sr. Webber suspirou então, um som pesado e cansado.
Depois, empurrou o telemóvel para Cassie e ela devolveu-o ao
bolso.
O Sr. Webber bebeu o seu café e recostou-se na cadeira.
— Passei a maior parte da minha vida sozinho — disse ele. —
Durante muito tempo, era só eu e a minha mãe, mas depois ela
morreu e eu fiquei sozinho. — As suas sobrancelhas franziram-se,
como se estivesse a debater-se com algo que se esforçava por
compreender. — Não sei bem porque é que estive sempre sozinho
— refletiu. — Gostava muito de ter tido mais amigos, alguém para
amar. Mas a minha vida profissional era passada em constantes
viagens e eu sempre trabalhei a desoras. Era difícil conhecer
pessoas e, para ser sincero, acho que se tornou mais fácil deixar de
tentar ao fim de algum tempo.
Cassie ouviu, perguntando-se qual seria o rumo da conversa.
— Por isso, acabei por passar a minha vida sozinho e, quando
estamos sozinhos, tornamo-nos muito bons a observar as pessoas.
Eu presto atenção. Não tenho conversas para me distrair, não me
preocupo com amigos nem com uma companheira, não tenho noites
de bebedeira das quais precise recuperar. Tornei-me muito bom a
ler as pessoas. E o problema que tenho é que não acho que esteja
louca, minha querida. Não acho que me esteja a tentar enganar,
apesar de tudo aquilo que diz ser ridículo. Não consigo conciliar
estas coisas.
— Peço desculpa — disse Cassie, e o Sr. Webber anuiu,
aceitando o pedido de desculpas. — Se ainda não o assustei, posso
pelo menos contar-lhe a minha história?
O Sr. Webber anuiu com a cabeça.
— Muito bem — disse ele. — Conte-me a sua história.
Então, Cassie contou a sua história, deixando de fora a morte
tranquila do Sr. Webber, e o Sr. Webber ouviu sem fazer
comentários, ocasionalmente bebendo um gole de café ou
remexendo-se no seu lugar.
Quando ela terminou, o Sr. Webber não disse nada durante
algum tempo. Os seus dedos compridos tocaram na chávena de
café vazia e os seus olhos pousaram na mesa entre eles.
— É uma loucura — disse ela, sentindo a necessidade de o
tranquilizar, pois sabia que tudo o que tinha acabado de dizer era
inacreditável. — Eu sei que é. Mas é tudo verdade.
— Não sei se é verdade ou não — disse o Sr. Webber. — Mas
tendo visto o seu telemóvel… e com o que disse saber sobre mim, é
mais fácil de acreditar do que seria de esperar. Mas se for
verdade…
— Sim?
— O problema reside num ponto crucial.
— Que ponto? — perguntou Cassie.
— Esse livro mágico que diz que lhe dei.
— O Livro das Portas?
— Não o tenho — disse ele. — Não faço ideia do que seja, e não
faço ideia de como lho poderei dar no futuro.
Cassie abanou a cabeça, esforçando-se por acreditar nele.
— Deve ir parar-lhe às mãos — insistiu ela. — Nos próximos dez
anos, deve ir parar-lhe às mãos. Caso contrário, não podia ter-mo
dado e nada disto poderia ter acontecido.
O Sr. Webber encolheu os ombros.
— Talvez. Mas neste momento não o tenho. E não a posso
ajudar a regressar ao seu futuro.
Cassie sentiu-se fisicamente encolhida pela derrota.
— Mas o que é que eu vou fazer? — lamentou-se ela, mais para
si própria do que para o Sr. Webber. — Não posso ficar aqui presa.
Os seus olhos voltaram a ser invadidos por lágrimas, lágrimas
horríveis e amargas.
— Bem, vai ter de esperar, minha querida — disse o Sr. Webber,
e ela viu preocupação no seu rosto, como se talvez ele pensasse
que as lágrimas tinham sido provocadas por ele.
— Mas eu não posso esperar — exclamou Cassie, enquanto o
pânico espumava dentro de si. — Preciso de voltar. Não tenho
dinheiro, não tenho casa. O que é que vou fazer aqui, presa no
passado?
O Sr. Webber pensou um pouco antes de responder.
— Está a tentar resolver tudo ao mesmo tempo. Porque não
resolve um problema de cada vez? Precisa de um sítio para dormir.
Depois de uma boa noite de sono, pensará com mais clareza.
— Onde é que eu vou dormir? — perguntou Cassie. — Num
albergue para sem-abrigos?
O Sr. Webber abanou a cabeça, suspirando. Desviou o olhar
para a rua. E depois voltou a olhar para Cassie. Cassie viu que
havia outro debate dentro dele; ele estava a ser puxado em
diferentes direções. Então, anuiu com a cabeça, tinha tomado uma
decisão.
— O meu apartamento não é muito longe daqui — disse ele, e
depois conteve-se. — Mas a menina já sabe isso, não sabe, minha
querida?
Cassie anuiu com a cabeça por entre as lágrimas.
— Tenho um quarto vago. Pode dormir lá até perceber a sua
situação. Não pode ficar muito tempo, mas talvez até decidir o que
fazer. Um dia, dois no máximo. Isso já ajuda?
Cassie pestanejou e enxugou algumas das suas lágrimas.
— Está a falar a sério? — perguntou ela.
— Não tenho a certeza se estou — admitiu o Sr. Webber. — Mas
seria errado deixá-la em tal aflição. Eu tenho os meios. Mas só por
uma ou duas noites; isto é uma medida provisória. Entendido?
— Prometo — disse Cassie, embora não fizesse ideia de como a
sua situação pudesse melhorar no espaço de dois dias.
O Sr. Webber terminou o café e, em silêncio, saíram juntos da
livraria.
A PASSAGEM DOS DIAS

D urante os dois primeiros dias, Cassie nunca se sentiu


confortável em casa do Sr. Webber. Esteve sempre com a
sensação de que ele era capaz de a expulsar a qualquer momento.
Ela tentou ser prestável, oferecendo-se para preparar bebidas, para
ir às compras, para o ajudar nas arrumações. Às vezes, ele aceitava
a oferta, mas ela via que isso o deixava desconfortável, como se
talvez ele estivesse preocupado com o facto de ela estar a tentar ser
tão prestável para evitar ser posta fora. E, durante esses dois dias,
ele pediu-lhe que contasse novamente a sua história e questionou-a
sobre pormenores, fazendo-lhe perguntas sobre factos que não
compreendia. Ele nunca parecia totalmente satisfeito com o que ela
dizia, mas Cassie não conseguia perceber se era porque não
acreditava na história, ou porque não estava a conseguir encontrar
pontos fracos nela.
Ao final do segundo dia após aquele encontro na Kellner Books,
o Sr. Webber saiu do seu quarto depois de uma sesta e encontrou
Cassie a passar os dedos por uma das estantes.
— Adoro a sua coleção de livros — disse ela. — Sempre quis ter
uma biblioteca como esta, um lugar onde me pudesse sentar
sozinha e ler.
O Sr. Webber sentou-se na sua cadeira e deixou os olhos
vaguearem pelos seus livros.
— Sim — disse ele. — Também eu. E agora tenho-a.
Ele sorriu para ela, como se tivesse detetado uma alma gémea.
E depois passaram o serão a falar de livros: os livros que tinham lido
e que queriam ler, os livros de que gostavam e aqueles de que não
gostavam. Cassie fez chá para os dois e, um pouco mais tarde,
preparou uma sanduíche para cada um, e continuaram a conversar.
O Sr. Webber gostava de falar de livros; fora assim que se tinham
conhecido quando Cassie começara a trabalhar na Kellner Books,
tantos anos antes.
No terceiro dia, o Sr. Webber não lhe pediu para se ir embora.
Não lhe disse que podia ficar, mas não lhe pediu para se ir embora.
Em vez disso, ao pequeno-almoço, perguntou-lhe:
— Como é que a posso ajudar a ir para casa? — Ela olhou para
ele com olhos incrédulos, e ele respondeu com um aceno de
cabeça. — Não estou a dizer que acredito. Mas tenho todo o gosto
em alinhar. O que posso fazer para a ajudar a regressar a casa?
Então, Cassie contou-lhe os pensamentos que tivera naquela
primeira e miserável noite passada sozinha em Nova Iorque. Falou-
lhe da tentativa de encontrar Drummond Fox, mas de como isso
seria impossível.
— Porque ele está escondido agora — disse o Sr. Webber. —
Dessa tal senhora que quer os livros.
— Exato. Foi por isso que vim ter consigo. Porque me deu o
Livro das Portas.
— Que eu não tenho.
— Não — disse ela, infelicíssima, enfiando a colher no iogurte
que era o seu pequeno-almoço.
— Bem, então, é isso que vamos fazer — disse o Sr. Webber. —
Vamos procurar o seu Livro das Portas. Talvez tenha sido assim que
eu acabei por tê-lo na minha posse? Porque a Cassie me fez andar
à procura dele?
Cassie pensou nisso, sentindo a esperança a despontar.
— Sim — disse ela, entusiasmando-se com a ideia. — Sim,
talvez tenha razão! Isso faria sentido! — Pensou no que Drummond
lhe tinha dito sobre as viagens no tempo quando estavam à espera
no restaurante: que não se pode mudar o passado, só se pode fazer
as coisas acontecerem. — Talvez seja exatamente assim que
consegue o livro! — concordou ela.
Começaram, então, a procurar juntos o Livro das Portas, e os
dias tornaram-se semanas e as semanas tornaram-se meses.

Durante aqueles primeiros meses com o Sr. Webber, quando estava


à procura do Livro das Portas, Cassie manteve uma rotina
confortável. Acordava primeiro, tomava um pequeno-almoço ligeiro
e, de manhã, caminhava pela cidade, à procura de pistas ou apenas
para esticar as pernas. Perdeu peso e ganhou condicionamento
físico, ficando mais em forma do que alguma vez estivera. Depois,
regressava a casa para almoçar, protegendo-se do calor da época
mais quente do ano, e ela e o Sr. Webber partilhavam café e bolos,
ou uma sanduíche, sentados à janela, rodeados pelos livros dele.
Discutiam estratégias para encontrar o livro, lojas de livros raros a
consultar, bibliotecas a visitar, e Cassie punha-o a par do que tinha
encontrado. Na maior parte dos dias, o Sr. Webber saía à tarde —
«É o meu passeio higiénico, minha querida; tenho de manter estes
ossos velhos em movimento, senão vou definhar» — e Cassie
aproveitava para limpar a casa ou ver televisão. Às vezes, deitava-
se no sofá e sonhava com a Biblioteca Fox, aquele lugar
maravilhoso e tranquilo que era tão reconfortante nas suas
memórias. E pensava em Drummond Fox, o homem que era bonito
quando sorria, e perguntava-se o que estaria ele a fazer no futuro.
Esperava que ele estivesse bem. Esperava voltar a vê-lo.
À noite, ela e o Sr. Webber jantavam juntos e depois liam em
silêncio ou conversavam sobre livros. Se o tempo estivesse
agradável, caminhavam até um restaurante ou café próximo. Às
vezes, apanhavam um táxi para o Central Park e passavam o final
da tarde à luz dourada do sol. Os meses foram passando e Cassie
deu por si a celebrar o Dia de Ação de Graças, o Natal e o Ano
Novo, apenas os dois, uma família simples e improvisada.
Durante todo esse tempo, o Sr. Webber foi uma companhia
incrível. Ele não pedia nada a Cassie, exceto companhia. Ouvia-a
sempre que ela queria falar, geralmente dando-lhe conselhos
sábios, e não se impunha com a sua própria conversa quando ela
não estava com disposição para isso. Ela ficou a saber tudo sobre
ele, sobre a sua infância solitária com uma mãe autoritária, sobre os
dotes musicais que lhe tinham sido reconhecidos em tenra idade —
«Eu fui um prodígio, sabias? Não fui precoce, mas fui decididamente
prodigioso!» — e depois sobre a sua carreira como pianista de
concertos e compositor. Ela ficou a saber que ele tinha feito fortuna
não a tocar piano em todo o mundo, mas a compor temas para um
punhado de séries de televisão populares na década de 1990.
— Era tão ridiculamente bem pago — contou-lhe ele, um dia,
enquanto passeavam pelo SoHo. — Especialmente quando os
programas eram vendidos diretamente a estações independentes. E
era a melodia mais ridiculamente simples. Apenas quatro notas,
como um toque de telemóvel. Algo reconhecível. Essas quatro notas
rendiam-me mais dinheiro do que todas as outras músicas que
compunha juntas e compraram-me aquele apartamento e muitos
dos meus livros.
Os meses transformaram-se em anos.
No verão, a cidade era, por vezes, insuportável, o ar denso de
poluição e o cheiro a lixo velho. O metro era um forno, com as
pessoas transpiradas, coradas e irritáveis. No outono, chegava o ar
fresco e as pessoas embrulhavam-se em cachecóis e casacos,
antecipando o frio amargo do inverno, aqueles ventos gélidos que
corriam ao longo dos desfiladeiros de betão. E depois o ciclo
recomeçava, com o calor a invadir as ruas da cidade, as flores e as
árvores a desabrochar, o preto-e-branco do inverno a transformar-se
no tecnicolor da primavera. E através destas mudanças de estação,
e de todo o esforço atrás do Livro das Portas, Cassie deu por si a
ser afetada por uma raiva latente, uma impaciência permanente da
qual não conseguia livrar-se. Sabia o que tinha pela frente e estava
desesperada para voltar a esse momento. Era um livro que não
tinha acabado de ler, uma refeição que tinha deixado a meio.
Contudo, no final do segundo ano, Cassie sentiu a chama da sua
impaciência a diminuir, à medida que sucumbia ao conforto e à
satisfação da sua rotina.
— Estou a começar a sentir-me confortável aqui — admitiu ela
ao Sr. Webber, certa noite. — Estou a começar a gostar disto. Não
sei se me estou a esconder dos meus problemas ou se estou
apenas à espera de que eles cheguem. Quero muito encontrar o
Livro das Portas, mas uma parte de mim não quer. Parte de mim
não quer voltar para todo aquele perigo.
Cassie continuava à procura do Livro das Portas, no entanto,
com menos empenho do que nos primeiros meses. Era quase um
passatempo agora, algo que ela fazia quando se sentia inclinada a
isso, uma atividade ocasional em vez de uma obsessão que
consumia tudo.
— Porque é que não pode ser as duas coisas? — perguntou o
Sr. Webber. Estavam sentados à mesa da cozinha a comer gelado,
e o Sr. Webber lambeu a colher e deixou-a cair na tigela — Ou
porque é que não pode ser nenhuma das duas coisas? Porque é
que tem de ser qualquer coisa?
Cassie encolheu os ombros, sem perceber.
— Deixa de tentar pensar nas coisas — disse o Sr. Webber. —
Eu sei que isto parece uma loucura. Sou firmemente da opinião de
que mais pessoas neste mundo podiam usar o cérebro com mais
frequência, mas, minha querida, se há alguém que precisa de
pensar menos nas coisas, és tu. Tudo o que fazes é pensares e
preocupares-te. Podíamos aquecer a casa com a energia que o teu
cérebro está constantemente a consumir. Tens de viver, estar no
momento. Ou encontras o Livro das Portas, ou não o encontras.
Seja como for, vais voltar para o sítio de onde vieste. O livro não tem
de preencher todos os momentos da tua vida até lá. Podes
simplesmente desfrutar da vida. Estás a encarar este período da tua
vida como uma agonia, mas podes escolher vê-lo como uma dádiva.
Ela refletiu nas palavras dele, desenhando linhas no gelado
derretido que se acumulava no fundo da tigela.
— Tenho de encontrar o livro. Tenho de regressar. Não sei o que
faria se não conseguisse.
— Sei eu, minha querida — disse o Sr. Webber. — Aguentarias.
És jovem, e o pior que vai acontecer é viajares para o futuro
vivendo-o. Aqui estás a salvo; não tens nada com que te preocupar.
Na pior das hipóteses, terás alguns anos para planear o que
acontecerá quando o tempo finalmente te trouxer de volta ao ponto
de partida. Esse não é o pior destino, pois não?
Cassie continuou a sua busca, mas andava a perseguir
fantasmas e memórias, mitos e mal-entendidos. Encontrou
migalhas, referências a livros mágicos, nomes sem explicação ou
descrição — o Livro dos Espelhos, o Livro das Consequências, o
Livro das Respostas — e não fazia ideia se eram livros verdadeiros
ou inventados. Tentou pesquisar todo o universo dos livros
especiais, mas tudo parecia tão escondido e misterioso, inútil até,
como tentar construir castelos de areia na praia quando a maré está
a subir.
Uma noite, deitada sozinha no pequeno quarto, depois de mais
um dia em que não encontrara nada, Cassie deu por si a olhar para
o velho roupeiro numa das paredes do quarto, para a pequena pilha
de livros no parapeito da janela, e foi assolada por uma súbita
recordação da primeira vez que estivera no apartamento do Sr.
Webber, no dia a seguir à sua morte.
Lembrou-se do armário de roupa que observava agora, dos
livros de bolso que estavam no parapeito da janela. Pensou que
podiam ter pertencido a uma amante ou a alguém da família. Mas
eram os livros dela e as roupas dela… sempre haviam sido.
Foi tão chocante aquela memória, aquela constatação, que se
sentou na cama, boquiaberta.
Naquele dia, tinha visto muitas roupas no guarda-roupa e mais
livros no parapeito da janela do que os que lá se encontravam
atualmente.
Cassie abanou a cabeça, pois compreendeu que ainda iria ficar
com o Sr. Webber durante algum tempo.
— Não vou encontrar o Livro das Portas — admitiu para si
própria.
Depois disso, simplesmente deixou de procurar.

Dias e semanas e meses e anos.


O tempo foi passando e, gradualmente, Cassie foi aceitando que
a única forma de regressar a casa era viajar para lá minuto a
minuto, dia a dia. Acomodou-se à sua vida e à sua rotina e deixou
que os dias passassem, sabendo que não regressaria mais cedo do
que o tempo lhe permitiria.
A OUTRA CASSIE

— E usevi-te hoje, minha querida — disse o Sr. Webber, enquanto


acomodava na sua poltrona. Para Cassie, ele parecia
preocupado, ou talvez distraído. — Não tu — esclareceu ele. —
Uma versão diferente de ti.
Tinham passado quase quatro anos desde que Cassie
conhecera o Sr. Webber na Kellner Books, desde que fora
empurrada através de uma passagem do futuro. Quatro invernos,
quatro primaveras, e agora mais um verão. Durante esses anos, o
Sr. Webber deixara-se levar pela história de Cassie, embora lhe
parecesse que ele nunca tinha acreditado inteiramente nela. A
expressão no seu rosto quando ele levantou os pés para os pousar
na banqueta sugeria que algo tinha mudado.
— Viu-me? — perguntou Cassie. Ela estava na cozinha, com um
pano da louça na mão. Estivera a limpar, uma das coisas que fazia
para sentir que contribuía. Há mais de três anos que vivia às custas
do Sr. Webber, e isso incomodava-a muito, mas esforçara-se por
encontrar uma forma de ganhar dinheiro como refugiada oriunda do
futuro.
— Estavas mais jovem — disse ele, desviando o olhar para a
janela. Foi no fim de verão, e o ar estava denso e quente. O Sr.
Webber tinha o rosto vermelho e transpirava por causa da sua
caminhada. A janela estava aberta, numa tentativa de renovar um
pouco o ar pesado do apartamento, mas isso fazia com que a sala
fosse invadida pelo ruído da rua. — Não é que já não sejas jovem,
claro. Mas parecias ainda mais novinha.
Cassie encostou-se à bancada, a pensar na sua vida e nos seus
movimentos. Ao longo dos anos, brincava regularmente com o Sr.
Webber, dizendo que ele veria que ela estava a dizer a verdade
quando encontrasse a sua versão mais jovem na Kellner Books. A
data do seu primeiro dia de trabalho tornara-se quase totémica de
tão importante. Mas Cassie esquecera-se de que passara algum
tempo na cidade antes de começar a trabalhar, e que tinha estado
muitas vezes na Kellner Books nessa altura.
— Na livraria? — perguntou ela.
O Sr. Webber assentiu. Como fazia frequentemente, o Sr.
Webber tinha saído para dar um passeio à tarde, um circuito à volta
de vários quarteirões da cidade que o levava a passar em frente à
livraria. Parava para tomar uma bebida — um café gelado nos dias
quentes — e para folhear ou ler qualquer livro que levasse consigo.
Cassie tinha uma rotina semelhante, uma ressaca dos dias em que
andara à procura do Livro das Portas, mas caminhava de manhã,
como se estivessem a revezar-se para sair do apartamento. Ela
percorria distâncias maiores do que o Sr. Webber. Muitas vezes,
apanhava o metro para uma parte distante da ilha, ou para Brooklyn,
e regressava fazendo o percurso a pé durante várias horas. A sua
mente estava cheia dos mesmos pensamentos, as mesmas ideias
inspecionadas e polidas como pedras preciosas raras. Como é que
conseguiria voltar para casa? Como é que podia ter sido tão
estúpida a ponto de ter ficado no passado? Quando é que o Livro
das Portas apareceria na vida do Sr. Webber se eles não o
procurassem? O que acontecera a Izzy, e como poderia ela proteger
a amiga? O que é que Drummond andaria a fazer e estaria ele
preocupado com ela?
— Mas é claro! — disse ela, lembrando-se da versão mais jovem
de si própria. — Vim para Nova Iorque por esta altura. Foi no início
do verão deste ano. — Ela foi até à janela e encostou-se, com a
anca no parapeito e os olhos na rua lá em baixo. — Fiquei
hospedada em hostels — contou ela, lembrando-se do dormitório de
seis camas no hostel em Chelsea, das instalações partilhadas e dos
outros turistas. — Eu odiava não ter o meu próprio espaço.
Olhou para o Sr. Webber e viu que ele a estudava atentamente,
como se fosse a primeira vez que a via.
— Quase tive um ataque cardíaco — disse ele, sem qualquer
traço de humor. — Eras tu, ali mesmo na livraria. Quase falei contigo
até te virares e eu ver que o teu cabelo estava diferente. Estava
muito mais curto.
Cassie soltou um sorriso amargo.
— Eu mantinha-o curto quando viajava. Não há nada pior do que
ter o cabelo comprido quando há o risco de apanhar piolhos.
— Sorriste-me quando passaste por mim hoje — disse ele. —
Lembras-te? Lembras-te de me ver?
Cassie procurou nas suas memórias os dias em que tinha
chegado à cidade pela primeira vez. Era uma confusão de imagens,
cheiros e ruídos, dias repletos de entusiasmo e potencial e o
otimismo da oportunidade.
— Não sei — disse ela. — Já foi há muito tempo…
— Foi hoje.
— … para um momento tão acidental.
— Nunca acreditei verdadeiramente em ti — disse ele,
semicerrando ligeiramente os olhos, levando uma mão ao peito
como que a verificar se o coração ainda batia. — Eu sei que já
falámos sobre isso, e eu fui ao teu encontro nessas conversas de
igual para igual. Mas todas as vezes, na minha cabeça, digo a mim
próprio que é óbvio que estás louca ou iludida. E fico à espera do
remate da piada, da revelação ou da verdade.
Ela observou-o, sem dizer nada, sem admitir que sabia de tudo
isso.
— Mas é verdade. É tudo verdade.
— Sim — disse ela simplesmente. — Sempre foi. Eu sou do
futuro, mas estou presa aqui até que o senhor obtenha o Livro das
Portas.
— O Livro das Portas. — Ele murmurou as palavras para si
próprio, com os olhos a deslizarem para o lado e a encontrarem o
mundo lá fora.
— Vamos beber um chá? — perguntou ela, porque o Sr. Webber
gostava sempre de beber chá quando regressava dos seus
passeios.
— Sim — aceitou ele, esboçando um sorriso. — Isso seria ótimo.
Cassie voltou para a cozinha sentindo-se um pouco mais leve,
sentindo que o Sr. Webber seria agora mais um aliado do que
apenas um anfitrião educado. Ainda assim, a sua mente também
estava perturbada com a ideia de a versão mais jovem de si mesma
se encontrar na mesma cidade. Enquanto preparava o chá,
perguntava-se o que aconteceria se se cruzassem. Perguntou-se
como é que ela pareceria a si própria. Perguntou-se se poderia ir ver
o seu «eu» mais jovem algures, para perceber o que as outras
pessoas viam quando olhavam para Cassie Andrews. Lembrou-se
de Drummond Fox ter visto a versão mais jovem de si próprio em
Bryant Park e de como ficara impressionado com a experiência.
— O que é que vais fazer agora, Cassie? — perguntou o Sr.
Webber, enquanto ela lhe levava o chá.
— Bem, agora vou beber chá consigo — disse ela, e ele sorriu
quando ela se voltou a sentar no parapeito da janela.
— Quero dizer, em geral — disse ele.
Ela encolheu os ombros.
— Vou fazer o que tenho feito nos últimos quatro anos. Vou viver
e esperar. Sei que vou ficar aqui durante algum tempo. Ou o Livro
das Portas aparece, ou hei de viver o suficiente para chegar de volta
ao futuro que deixei.
— Já não andas a procurar ativamente o livro, pois não? —
perguntou o Sr. Webber. Ela desviou o olhar, uma confissão. —
Porquê?
Ela hesitou.
— Acabei por perceber que vou ficar aqui durante algum tempo.
Algumas coisas começaram a fazer sentido.
O Sr. Webber anuiu como se compreendesse, mas ela conhecia-
o suficientemente bem para saber que ele via que ela estava a
esconder alguma coisa.
— Já pensaste no que acontece se não o encontrares? Se ele
não aparecer? — perguntou o Sr. Webber.
— Não tenho pensado em mais nada — murmurou Cassie. —
Isso mantém-me acordada à noite.
O Sr. Webber suspirou.
— Gosto de te ter aqui, Cassie — disse ele, olhando para a sua
chávena. — É bom não estar sozinho. É bom saber que há vida
neste velho apartamento. Depois daqueles primeiros dias, deixei de
me importar que fosses louca ou delirante.
— Tão querido — disse ela, a sorrir.
— Mas agora que sei que o que dizes é verdade — ele abanou a
cabeça —, não posso ficar de braços cruzados e aproveitar-me de ti
desta maneira.
— Não se está a aproveitar de mim — Cassie riu-se. — Sr.
Webber, não sei o que teria feito se não tivesse aparecido. Eu não
tinha onde cair morta.
— Mesmo assim… Estou a ganhar alguma coisa com isto. Estou
a usar-te como companhia.
— Acho que a palavra que está à procura é amizade — disse
Cassie.
— Não posso deixar que continues assim, presa neste lugar —
continuou ele, como se não a estivesse a ouvir. — Temos de
encontrar o teu livro. Esse livro louco e maravilhoso. Vou ajudar-te
como puder. Sem olhar a despesas. Começamos agora. Diz-me o
que devemos fazer, e assim farei se puder.
Ele sorriu-lhe alegremente e, no futuro, Cassie recordaria
sempre este momento, sentada no parapeito da janela com a
chávena de chá na mão, rodeada pelos sons da cidade, a ver o Sr.
Webber na sua cadeira, com a sua parede de livros como pano de
fundo. Era assim que ela iria sempre pensar nele: ansioso por
ajudar e radiante com o entusiasmo de um rapazinho.
— Está bem — disse ela. — Mas não creio que tentar encontrar
o livro seja aquilo que vai ajudar, agora.
— Bem, o que é que achas que vai ajudar?
Ela suspirou. Nos últimos tempos, a sua mente tinha viajado
numa direção diferente.
— Tenho de pensar no que fazer quando voltar ao sítio de onde
parti. Quer encontremos o livro ou não, tenho de estar preparada
para enfrentar o que lá vou encontrar. Para ajudar os meus amigos.
— Muito bem — disse o Sr. Webber, anuindo seriamente com a
cabeça. — E de que é que precisas?
A figura do Dr. Barbary surgiu nas memórias de Cassie,
intimidante e aterradora. O que é que ela poderia fazer contra um
homem daqueles, com os seus livros e os seus poderes? E a
Mulher nas memórias de Drummond, aquela figura aterradora e
bela? Se ela realmente conseguisse regressar, teria de estar
preparada.
E Izzy? Como é que ela poderia ajudar Izzy?
E Drummond… porque é que ela continuava a pensar nele?
— Não sei — Cassie admitiu. — Mas vou pensar nisso.

Quando a resposta chegou — uma resposta possível, em vez de


uma certeza — surgiu totalmente do nada. Cassie estava a dar um
dos seus passeios habituais. Era um dia nublado, algures no meio
do outono, vários meses depois da sua conversa com o Sr. Webber,
e ela tinha parado para tomar um café no Bryant Park. Enquanto
estava sentada a beber a sua bebida, lembrou-se da conversa que
tivera com Drummond enquanto assistiam ao encontro dos seus
amigos no dia em que iriam morrer. Cassie deu por si a analisar
essas conversas com Drummond, agora ocorridas havia tantos
anos, e lembrou-se de um pormenor de que se tinha esquecido, um
facto que lhe deu uma descarga de adrenalina e que a fez sentar-se
direita e entornar o café.
Ela refletiu nesse pormenor e na ideia que lentamente se
desenvolveu a partir dele, procurando falhas e fraquezas. Não viu
nenhuma. Viu apenas possibilidades.
Uma possível forma de se defrontar com o Dr. Barbary mais em
pé de igualdade.
Porém, isso deixou de importar, porque o Sr. Webber disse-lhe
que tinha encontrado o Livro das Portas.
O LIVRO DAS PORTAS
DESCOBERTO

— O quê?Tinha
— perguntou Cassie.
acabado de regressar de um passeio. Era outono,
quase inverno, e os dias estavam escuros e tempestuosos. Ela
estava postada mesmo à entrada da porta, a tirar o sobretudo, e o
Sr. Webber apressara-se a ir ter com ela, com os olhos brilhantes.
— Encontrei o Livro das Portas — disse ele. Estava quase a
saltar de excitação, mal conseguindo ficar parado.
— O quê? — perguntou Cassie novamente. Todos os
pensamentos na sua mente tinham parado, como um carro a
embater numa parede.
— Vem cá, senta-te — insistiu o Sr. Webber. Ele puxou-a para o
sofá e depois explicou. — Desde que vi aquela outra versão de ti, a
mais jovem, tenho andado à procura. Desde que comecei
verdadeiramente a acreditar.
— Hum-hum…
— Por isso, enviei e-mails a todos os meus contactos, a todos os
meus amigos dos livros.
— O senhor tem amigos dos livros — disse Cassie, uma
afirmação, não uma pergunta.
— Colecionadores de livros raros. Pessoas que vão a leilões de
livros. Eu gosto das primeiras edições.
Gesticulou para as prateleiras que os rodeavam.
— Hum-hum… — articulou Cassie novamente. Ela estava a
esforçar-se muito para não sentir nada. Para ser cética.
— Recebi esta manhã um e-mail do meu contacto Morgenstern.
É um colecionador, de Toronto.
— O que é que lhes contou? Quando enviou o e-mail? — A
mente de Cassie estava a acompanhar a conversa e a fazer
disparar sinais de alarme com a ideia de um e-mail enviado a
inúmeras pessoas, a falar de livros mágicos.
— Oh, nada de revelador — descansou-a o Sr. Webber. —
Limitei-me a descrever o livro tal como mo descreveste a mim. Disse
que, por vezes, lhe chamavam o Livro das Portas. Disse que tinha
rabiscos indecifráveis e esboços.
— Certo — disse Cassie. Ela estava consciente de que o seu
joelho oscilava nervosamente. — Então, o Morgenstern, de
Toronto…?
— Sim! — disse o Sr. Webber. — Ele disse que o encontrou. Ou
acha que encontrou. Ele estava na Europa de Leste de férias e,
claro, o que é que as pessoas que gostam de livros fazem? Vamos
a todas as livrarias, percorremos todas as feiras de aldeia. Estamos
sempre à procura de livros.
— Ele encontrou-o? — perguntou Cassie, incrédula.
— Olha! — disse ele. Ele pegou no portátil, que estava pousado
na mesa de centro, e virou-o para que ela pudesse ver o ecrã. Ele
abriu um anexo de um e-mail e exibiu uma imagem, e o coração de
Cassie gaguejou. — É isto? — perguntou ele.
Cassie aproximou-se da fotografia. Mostrava um livro na mão de
um homem. Ela só conseguia ver a capa do livro e a lombada.
— E isto — disse o Sr. Webber, passando para uma segunda
fotografia. Esta mostrava o interior do livro, páginas com rabiscos
feitos a tinta preta. A imagem não tinha a resolução necessária para
revelar o texto com suficiente pormenor, mas Cassie sentiu o seu
coração saltar e cantar vitória dentro do peito.
— Pode ser — disse ela, obrigando-se a manter a calma.
— Pode ser assim! — exclamou o Sr. Webber. — Pode ser
assim que eu consigo o Livro das Portas. Pode ser que seja agora
que podes ir para casa!
O Sr. Webber tratou de organizar a viagem do seu amigo para ele ir
a Manhattan nessa noite.
— É um voo curto — disse ele. — Eu pago. Instalo-o num bom
hotel. Ele há vir por isso. Ele adora as coisas boas da vida.
Cassie nem sequer estava a ouvir. Passarinhava pela sala,
incapaz de ficar quieta. Tinham passado mais de quatro anos desde
que ficara presa no tempo, e agora parecia que não tinha tempo
para se preparar.
— Tenho de encontrar a Izzy — disse ela, anuindo para si
própria. — Isso é tudo o que importa. Se eu conseguir o livro e voltar
mais cedo, talvez a tire do apartamento até mesmo antes de o Hugo
Barbary chegar.
Tinha consciência de que estava a divagar para si própria.
Passado um momento, parou e viu o Sr. Webber encostado à
bancada da cozinha, a observá-la. O seu rosto estava sério.
— O que foi? — perguntou ela.
Ele sorriu, mas com uma expressão de tristeza.
— Estou muito contente por ti — disse ele. — Espero
sinceramente que este seja o Livro das Portas e que possas ir para
casa.
— Mas…?
Ele suspirou. Ela percebeu que aquilo que ele estava prestes a
dizer era difícil de admitir.
— Vou ter saudades tuas, minha querida. Se fores para casa,
vais-te embora daqui.
Cassie não sabia o que responder a isso. Entreolharam-se
durante alguns momentos.
— Oh, Sr. Webber — murmurou ela. — Ela foi até à cozinha e
abraçou-o por trás. — Também vou ter saudades suas. Até nos
encontrarmos de novo.
O Sr. Webber batucou com as mãos dela no peito dele, e Cassie
sentiu-o a anuir com a cabeça.
— Acho que vou dormir uma sesta, até sairmos. Acorda-me, está
bem?
Ele afastou-se e dirigiu-se para o quarto, e Cassie pensou que
talvez ele tivesse vergonha de mostrar quão perturbado estava.
— Oh, Sr. Webber — disse ela novamente, em voz baixa.
Encontraram-se com Morgenstern no Champagne Bar do Plaza
Hotel. Era um homem corpulento, com cabelo comprido e
esvoaçante e óculos de armação grossa. Vestia um fato caro com
um plastrão.
— Morgy! — exclamou o Sr. Webber, agarrando na mão do
homem e apertando-a.
— Webber! — respondeu Morgenstern, e depois olhou
lentamente para Cassie, de cima a baixo.
— Ah, sim. Esta é a minha assistente de investigação, a menina
Andrews — apresentou o Sr. Webber.
Morgenstern anuiu e lançou um sorriso rápido a Cassie, mas não
lhe ofereceu a mão. Apontou para os lugares ao seu lado e
sentaram-se todos. O Champagne Bar encheu-se com o murmúrio
de conversas e o tilintar de uma leve música de piano ao fundo.
— É um prazer poder passar uma noite no Plaza Hotel — disse
Morgenstern a Webber. — Foi muito simpático da tua parte
hospedares-me aqui.
— Bem… — disse o Sr. Webber. — Era o mínimo que eu podia
fazer.
Os olhos de Cassie estavam cravados no pacote pousado em
cima da mesa. Parecia um livro embrulhado em papel pardo. Um
livro mais ou menos do tamanho do Livro das Portas.
— Hum — disse Morgenstern. — Faz-me pensar porque é que
este livro é tão importante. Trazes-me de avião para cá em cima da
hora. Instalas-me neste lugar adorável, adorável. — Ele gesticulou
para a sala em redor, no momento em que um empregado apareceu
junto ao seu ombro. — Champanhe para os meus amigos — disse
Morgenstern, e o empregado voltou a afastar-se.
— Bem… — disse o Sr. Webber — Não sabemos se este livro
tem alguma coisa de especial, pois não? É por isso que está aqui,
para podermos verificar se é o que eu procuro.
— E o que é que procuras? — perguntou Morgenstern.
— É isto? — perguntou Cassie, interrompendo o fluxo da
conversa e apontando para o embrulho em cima da mesa.
Morgenstern suspirou, um som de aborrecimento. Cassie olhou
para o Sr. Webber e este lançou-lhe um olhar de reprovação,
praticamente como quem diz: Deixa-me ser eu a fazer isto.
— Quem é esta rapariga? — perguntou Morgenstern.
— Então, Morgenstern — disse o Sr. Webber, sentando-se mais
direito na sua cadeira. — Estás aqui por minha conta, como meu
convidado. Não sejamos indelicados com a minha colega. Mostra-
nos o livro para podermos determinar se é ou não aquilo que
procuro. Se for, serás muito bem recompensado, asseguro-te.
Morgenstern fez questão de mostrar que estava a pensar no
assunto, fazendo um ligeiro beicinho enquanto bebia o seu
champanhe, e depois esperou enquanto o empregado pousava mais
dois copos na mesa e servia bebidas a Cassie e ao Sr. Webber.
Cassie só tinha vontade de gritar. Queria arrancar tudo da mesa
e atirar com tudo ao chão. Queria pegar no livro e arrancar-lhe o
papel. Ela queria o Livro das Portas.
— Muito bem — disse Morgenstern, amuado. Empurrou o livro
na direção do Sr. Webber com um dedo delicado.
— Onde é que disseste que o encontraste? — perguntou o Sr.
Webber, enquanto pegava no livro para o passar a Cassie.
— Na Roménia — respondeu Morgenstern, vendo o pacote a
mudar de mãos. Ele bebeu o seu champanhe, e Cassie
desembrulhou efusivamente o livro, atraindo os olhares de algumas
das pessoas sentadas perto deles.
Ao ver a capa de couro do livro, o seu coração palpitou e as suas
mãos tremeram. Parecia ser o Livro das Portas, e tudo à sua volta
se desvaneceu: o barulho, as pessoas, a conversa entre
Morgenstern e o Sr. Webber, que ia anuindo educadamente com a
cabeça enquanto observava o que ela estava a fazer.
Cassie rasgou mais papel, revelando a lombada, e continuava a
parecer o Livro das Portas.
— Será…? — murmurou para si própria.
Mais papel rasgado, e depois o papel caiu no chão entre as suas
pernas como folhas de outono, e Cassie estava a segurar um livro…
o livro…
Agarrou nas margens com mãos trémulas e abriu-o à pressa,
desesperada por ver aqueles esboços, as palavras rabiscadas.
Ela viu texto, uma confusão de tinta preta.
— Está cheio de disparates — ouviu Morgenstern dizer, com o
seu tom desdenhoso, e nunca teve tanta vontade de esbofetear
alguém.
E então os seus olhos fixaram-se no texto e deram-lhe sentido, e
a sua respiração parou no peito e o mundo inteiro pareceu ficar
paralisado.
Ela viu um texto que não entendeu, mas reconheceu as letras.
Viu frases que eram obviamente humanas, talvez em romeno ou
noutra língua europeia.
— Talvez… — murmurou ela, numa súplica desesperada.
Ela folheou mais páginas, à procura de imagens, esboços, à
procura de coisas que ela sabia que estavam dentro do Livro das
Portas.
E depois o seu coração despenhou-se quando a desilusão se
abriu como um vasto abismo à sua frente. Ela olhou fixamente para
o livro que não era o Livro das Portas e odiou tudo e todos no
mundo.
— Cassie? — perguntou o Sr. Webber, perfurando com a sua
voz os pensamentos dela como um alfinete num balão.
Quando ela olhou para ele e abanou a cabeça, tinha os olhos
marejados.

Cassie demorou dias a ultrapassar a desilusão. O Sr. Webber


desculpou-se várias vezes, mas ela não deu importância a isso,
porque ele não tinha nada de que se desculpar.
— Esperança — disse ela. — Deu-me esperança durante
algumas horas, e isso foi bom.
Ainda assim, o Sr. Webber parecia incomodado por Cassie
parecer tão em baixo. Quando falaram sobre o assunto alguns dias
mais tarde, durante o jantar em casa, ela disse-lhe porque é que ele
não se devia sentir mal.
— Foi devastador — disse ela. — Naquele momento. Mas fez-
me perceber o quanto eu quero voltar para casa. Fez-me perceber
que preciso de recomeçar a pensar nisso. Tive uma ideia, há
algumas semanas. Lembrei-me de uma coisa que o Drummond Fox
me disse. Quero trabalhar nisso.
— Uma forma de encontrar o Livro das Portas? — perguntou o
Sr. Webber.
Ela abanou a cabeça.
— Uma ideia sobre uma coisa que eu possa fazer para estar
pronta quando nos encontrarmos com o meu presente. Para estar
pronta para lidar com os perigos que me esperam.
O Sr. Webber anuiu lentamente com a cabeça
— Muito bem — disse ele.
Nos meses seguintes, iniciou um lento processo de investigação
da sua ideia, procurando uma pessoa em vez de procurar um livro.
Demorou quase seis meses a estabelecer o contacto que precisava
de fazer e, depois, mais alguns meses de discussão, enquanto duas
pessoas tentavam compreender-se, cautelosamente, uma à outra.
Ela discutia com frequência com o Sr. Webber, testando os seus
pensamentos e as suas ideias com ele.
Quase um ano depois da sua epifania em Bryant Park, quase
cinco anos depois de ter chegado ao passado, Cassie empreendeu
uma longa viagem sozinha. Teve uma reunião e uma discussão e
fez um acordo. E depois regressou a Nova Iorque e ao apartamento
que se tinha tornado a sua casa.
— Então? — perguntou o Sr. Webber, quando ela chegou.
Ela anuiu com a cabeça.
— Está feito. Agora só temos de esperar.
O ÚLTIMO ADEUS
AO SR. WEBBER

N o nono ano da sua vida com o Sr. Webber, Cassie pensou no


futuro inevitável que agora se aproximava. Durante tanto tempo
parecera muito distante e demasiado longo para esperar, mas agora
o tempo afigurava-se-lhe insuficiente para se preparar. O que tinha
parecido uma eternidade, ao olhar para o que estava à frente, era
um instante, ao olhar para trás.
O Sr. Webber tinha vindo a ficar cada vez mais fraco e frágil ao
longo dos anos, um processo tão gradual e sorrateiro que Cassie
nem reparara até um dia em que ele se esforçara por se levantar da
cadeira, sorrindo envergonhado dos seus joelhos frágeis. Cassie
olhou para ele e viu como estava magro, como a pele do seu
pescoço estava solta. O seu rosto ainda era suave e jovem, e o seu
cabelo farto e branco, mas as suas mãos estavam cada vez mais
fracas, as suas sestas mais longas, e Cassie sabia que o seu tempo
estava a acabar. O conhecimento de que aqueles eram os últimos
dias da sua vida, o seu último Dia de Ação de Graças, Natal e Ano
Novo, a sua última primavera, entristecia-a muito. Ela tinha de
esconder as suas emoções perto dele, apavorada com a
possibilidade de revelar algo que ele não deveria saber.
Deu por si a pensar novamente no avô e naquela conversa no
Matt’s. Ela tinha tentado falar-lhe da sua saúde, mas ele recusara-se
a ouvir. Ela não sabia se teria feito alguma diferença, mas olhando
para o Sr. Webber, ela sabia, de alguma forma, que não havia nada
que pudesse fazer para mudar o que lhe iria acontecer. Era um
homem que tinha vivido a sua vida até à sua conclusão natural.
— Oh, a luz está a apagar-se para mim, Cassie — disse-lhe ele,
certa noite, sem qualquer tristeza real. — Mas não faz mal. Acaba
por nos tocar a todos, e eu vivi uma vida encantada, tendo tudo em
consideração.
— Por favor, pare de falar assim — repreendeu-o ela. — O
senhor está bem. Ainda tem cabeça, ainda é capaz de sair, passear
e ir às livrarias. Ainda continua a ler, não continua?
— Não me estou a queixar, Cassie. Estou apenas a ser realista.
Cassie ocupou-se com tarefas na cozinha que não precisavam
de ser feitas, em vez de se envolver no tema.
O Sr. Webber tornara-se seu amigo, talvez o melhor amigo que
alguma vez tivera. Ele fora estabilidade e segurança e um alicerce
de bondade e compaixão quando ela mais precisara. Para ela, era
insuportável que ele deixasse de fazer parte da sua vida. Ela já tinha
sofrido por ele uma vez como um conhecido casual; receava que
tivesse de sofrer por ele novamente como um amigo querido.
No verão do ano da morte do Sr. Webber, o ano em que a outra
Cassie iria receber o Livro das Portas, Cassie percebeu que tinha de
deixar o Sr. Webber. Disse a si própria que era porque tinha de se
preparar para o que estava para vir, mas sabia que era porque não
conseguia suportar estar com ele.
Ela contou-lhe, uma noite, quando a cidade estava calma e
escura, quando estavam sentados na sala de estar, a ouvir a música
barroca de fundo que saía do rádio na cozinha.
— Tenho de ir — disse ela.
— Eu sei — disse ele, simplesmente. — O teu passado é quase
o teu presente outra vez. — Ele sorriu, apreciando o seu próprio
jogo de palavras.
Ela anuiu.
— Nunca cheguei a receber o Livro das Portas, pois não? —
disse ele. — Suponho que não importa agora recebê-lo ou não. Não
te serve muito poderes saltar alguns meses para a frente.
— Não — concordou Cassie.
A questão do Livro das Portas continuava a ser um enigma.
Como é que o Sr. Webber tinha acabado por ter acesso a ele para
lho dar?
Ela suspirou.
— O que é que se passa? — perguntou ele.
— Passou tão depressa. Dez anos. Parece que não passou
tempo nenhum. Mas lembro-me de ter chegado aqui naquela
primeira noite e de ter pensado que era tanto tempo, que era para
sempre.
— Posso dizer o mesmo da vida em geral. — Ele sorriu com
alguma tristeza. — Aceita um pequeno conselho meu. Não
desperdices a tua vida escondida na tua própria mente. Aproveita ao
máximo o tempo que tens; caso contrário, quando deres por ti, não
terás mais tempo.
— Eu sei — disse ela.
— E quero dizer mais uma coisa, já que estamos a ser muito
sensíveis. Quero agradecer-te por teres estado comigo nestes
últimos dez anos. — Ele estendeu-lhe a mão e ela segurou-a. —
Foram realmente os melhores dez anos da minha vida. — Ele sorria,
mas ela viu que havia lágrimas nos seus olhos. — Estou muito
contente por teres podido ser minha amiga; significou muito para
mim.
— Para mim também — retorquiu ela, com lágrimas nos olhos.
— Mas não te preocupes — disse ele, soltando-a e sentando-se
direito. — Eu vou continuar a olhar por ti na Kellner Books. Podemos
continuar a ser amigos; só não vais saber quão profunda é essa
amizade, pelo menos, por enquanto.
Cassie sorriu e anuiu com a cabeça, sabendo que ele não
estaria a olhar para ela durante muito mais tempo.
— Sabe aquela história do seu primeiro dia em Roma e da
mulher que entrou no seu quarto quando estava despido?
— Hum.
— Contou-me isso várias vezes ao longo dos anos quando o via
na livraria — disse ela. — Sempre pensei que o senhor se esquecia
muito das coisas, mas não era nada disso, de todo. Contou-me essa
história várias vezes porque queria que eu me lembrasse dela, não
era? Porque foi o que o fez acreditar em mim quando lha contei no
primeiro dia em que fiquei presa aqui.
Ele sorriu.
— Ela viu-me na minha plenitude, já sabes!

Cassie deixou a casa do Sr. Webber pela última vez no início do


inverno. Tinha uma conta bancária com algum dinheiro que ele lhe
dera, algumas das roupas que acumulara ao longo dos anos numa
mala e o telemóvel que trouxera consigo para o passado, acabado
de carregar com um carregador que comprara assim que ficara
disponível. Ela ainda não tinha ligado o telemóvel, sem saber se
isso iria interferir com a outra versão do telemóvel que a outra
Cassie trazia. Não queria que nada mudasse os acontecimentos
que a tinham levado até onde estava.
— Bem, chegou a minha hora — disse ela ao Sr. Webber, que
estava de pé junto à cozinha. Os dois assentiram, subitamente
constrangidos. Depois, ela aproximou-se e abraçou-o. — Obrigada.
— Não — disse ele. — Eu é que agradeço. — Passados alguns
instantes, libertaram-se um do outro. — Não te preocupes — disse
ele. — Vou dar um passeio hoje mais tarde. Vou passar pela Kellner
Books e ver a tua outra versão. E daqui a alguns meses, quando
isto acabar, talvez possas voltar a ver-me? Não há razão para a
amizade acabar, pois não? Nessa altura, estaremos a viver no teu
presente.
— Não — disse ela, tentando sorrir.
— Estou ansioso por ouvir todas as tuas aventuras — disse ele,
conduzindo-a até à porta. — Tudo sobre os teus livros mágicos.
Entretanto, vou-me mantendo ocupado. Tenho muitos livros para ler.
— Há sempre livros para ler — concordou ela, enquanto saía
para o corredor.
— Estou a pensar voltar a um velho favorito — disse ele. —
Talvez leia O Conde de Monte Cristo mais uma vez.
Cassie sorriu-lhe, enquanto o seu coração se partia um pouco.
— Um livro tão bom — disse ela.
— Sim. Sim, é mesmo. — Ela abraçou-o novamente, um abraço
que pareceu durar para sempre, mas que não foi suficientemente
longo. — Vai lá, agora. Vai fazer o que tens de fazer. Vemo-nos em
breve.
Deu-lhe um beijo na face e foi-se embora sem olhar para trás, o
seu último adeus ao Sr. Webber.
Do apartamento, caminhou pela cidade até à Penn Station. Tinha
um bilhete para uma viagem de comboio para sul e uma reunião
dentro de alguns dias. Seria uma reunião curta, ela sabia, e depois
voltaria diretamente para norte, para Nova Iorque.
A LIVREIRA (2)

P ela segunda vez na sua vida, Cassie encontrou-se com Lottie


Moore, a Livreira, em Nova Orleães. Reuniram-se, como tinham
combinado vários anos antes, às dez da noite no Café Du Monde,
em Jackson Square. Quando Cassie chegou, Lottie já estava
sentada numa das mesas exteriores, debaixo do toldo verde e
branco, com café e beignets na mesa à sua frente. O ar da noite era
denso e quente como um guisado rico, e Cassie estava a transpirar.
Quando entrou no café, ficou grata pelas ventoinhas que agitavam o
ar preguiçosamente.
— Já me tinha interrogado se iria aparecer — disse a Livreira,
enquanto Cassie se sentava ao lado dela. — Comecei a perguntar-
me se não teria imaginado tudo isto.
— Também não tinha a certeza se estaria aqui — replicou
Cassie. Havia outras pessoas sentadas às mesas, apesar do
adiantado da hora, jovens a fazer uma pausa na bebida e na festa,
turistas a terminar a noite com café e beignets. Na Decatur Street,
um negro já de idade avançada estava sentado num banco a tocar
uma tuba muito desgastada que rompia o ar denso da noite com as
suas notas estridentes. De vez em quando, a tuba parava e ele
cantava alguns versos com uma voz nasalada e áspera, cortando o
ruído de fundo como uma faca.
— É muito melhor a esta hora da noite — explicou Lottie,
enquanto Cassie olhava em redor. — Durante o dia, isto está cheio
de turistas. Prefiro quando está calmo, quando consigo sentar-me e
ninguém tenta apressar o meu café. Não posso viver sem este lugar.
Este café, estes bolos. Isto é vida.
Uma mulher chinesa de meia-idade aproximou-se da mesa e,
com o olhar severo, incitou Cassie a fazer um pedido. Cassie pediu
um café au lait.
— Então, acredita em mim? — perguntou Cassie, depois de a
empregada se ter afastado da mesa.
A Livreira anuiu com a cabeça.
— Bem, todas as coisas que disse que iam acontecer
aconteceram. Portanto, ou veio do futuro ou é vidente. Ou tem
imenso jeito para adivinhar. Seja como for, não se perdia nada em
termos outra conversa. E eu gostei de si quando nos conhecemos
há cinco anos. Tem uma energia que me agrada.
— Nunca tinha sido acusada de ter uma energia, mas aceito. —
A empregada regressou à mesa e pousou um café à frente de
Cassie.
A Livreira deu uma dentada num beignet, sujando-se com o
açúcar em pó, que sacudir de seguida.
— Devia comer um — instruiu ela. — Está demasiado magra.
— Também nunca fui acusada disso — disse Cassie, mas pegou
num dos bolos doces e comeu-o em poucas dentadas. Era
delicioso. Fez-lhe pensar em Drummond e nos croissants que
haviam comido em Lyon. Ela sabia que iria vê-lo novamente dali a
pouco tempo, e isso criou um zumbido de excitação no seu
estômago que ela não entendia muito bem.
Enquanto mastigava, observou um bando de raparigas quase
despidas que caminhavam pela rua em direção ao músico. Quando
se aproximaram dele, começaram a dançar na estrada ao som da
sua tuba, aos guinchos e a rir-se e provocando uma buzinadela de
um carro que tentava passar.
— Prometeu que me ajudaria — disse Cassie à Livreira,
enquanto lambia o açúcar dos dedos.
— Lembra-se do nosso acordo? — perguntou a Livreira.
— Lembro-me. Vai enviar alguém para proteger a minha amiga.
— A Izzy — disse a Livreira, e Cassie ficou impressionada com o
facto de a mulher não ter precisado de verificar os seus
apontamentos nem de ser incitada a lembrar-se do nome. — Eu
lembro-me.
— Ela é importante para mim — disse Cassie. — Quero
certificar-me de que fica em segurança.
— Eu percebo. Diga-me onde e quando.
Cassie bebeu um gole do seu café e sacudiu um pouco de
açúcar do colo.
— Depois, envio-lhe um e-mail, mais perto da hora, com os
pormenores. Dê-me um endereço. — A Livreira anuiu. — Deixei-a a
dormir na cama — explicou Cassie, voltando a olhar para a rua. —
Alguém tem de vigiá-la e certificar-se de que ela fica bem. E depois,
de manhã, quando ela se levantar, tem de levá-la para um lugar
onde seja mantida em segurança.
— Entendido.
— E preciso que me empreste qualquer livro que tenha para me
ajudar com o Dr. Barbary.
A Livreira não disse nada durante algum tempo, olhando para a
sua chávena de café, rodando-a no pires. Cassie ouvia a tuba, a
conversa dos turistas nas mesas vizinhas sobre o Garden District e
os cemitérios e que não tinham gostado nada do gumbo.
— O que está a pedir — disse Lottie, reclamando a atenção de
Cassie para si — não é uma coisinha de nada. Está a perceber?
Cassie encolheu os ombros.
— O que estou a dar também não é uma coisinha de nada.
— Se é que existe mesmo — disse a Livreira.
— Sabe bem que existe, senão não estaria aqui. Já
ultrapassámos essa fase, e eu tenho de regressar a Nova Iorque.
A Livreira sorriu nessa altura.
— Gosto mesmo da sua atitude, miúda — elogiou ela. — Cheia
de confiança.
— Essa é outra coisa da qual nunca fui acusada — murmurou
Cassie. Além do som da tuba e da conversa no café, Cassie ouviu
um sino a tocar algures atrás dela, talvez de um barco no largo
Mississípi. Ela não sabia se os barcos ainda estariam a passar
àquela hora da noite. Imaginou que devesse ser solitário, lá fora no
escuro.
— Então, diga-me uma coisa — perguntou a Livreira. — Se
conseguir recuperar o seu livro do Hugo Barbary, porque é que não
viaja no tempo e impede que ele a atire para o passado? Porque é
que não faz com que tudo isto não tenha acontecido?
Cassie sorriu. Ela e o Sr. Webber tinham passado muitas noites
a discutir as viagens no tempo.
— Não me parece que as viagens no tempo funcionem assim —
argumentou ela. — Houve uma pessoa que me disse um dia que
não se pode mudar o passado, só se pode criar o presente em que
se vive.
— Isso não faz sentido nenhum.
— Quando se viaja no tempo durante algum tempo, começa-se a
perceber — explicou Cassie. — As coisas acabam sempre por
acontecer da forma como aconteceram. Eu não acho que pudesse
ser capaz de impedir o que me aconteceu. Mas mais importante
ainda, não sei se agora iria querer impedir isso de acontecer.
— A sério? — perguntou a Livreira.
Cassie encolheu os ombros. Os primeiros meses presa no
passado tinham sido difíceis para ela. Nunca havia conhecido um
desespero como aquele. Mas depois disso, nos anos que se
seguiram, em todo o tempo que passou com o Sr. Webber, ela foi
feliz. Construíra uma amizade com o Sr. Webber, e fora uma altura
especial na sua vida. Não mudaria isso agora; não sacrificaria essas
memórias.
— Não importa — disse ela. — Não é por isso que aqui estou.
A Livreira levantou a mão e fez um gesto para um homem que
estava sentado do outro lado do café. Era um homem caucasiano,
alto e de pele clara. Aproximou-se e entregou uma pasta a Lottie.
— Este é o Elias — explicou ela. — É o meu guarda-livros. No
sentido de um homem que guarda os livros em segurança, não no
sentido de um contabilista.
Elias olhava para Cassie sem expressão. Havia algo de intenso
no olhar do homem, e sob uma luz diferente e sem a devida
apresentação, ele teria sido assustador.
Lottie pousou a pasta em cima da mesa, empurrando os copos e
os pratos para o lado, e depois abriu-a com uma chave presa a uma
corrente que trazia ao pescoço.
— Tenho um livro que nunca irei vender — disse ela. — Está na
minha família há três gerações. É o livro que me permite viver a vida
que vivo. Ao longo dos anos, tem-me mantido a salvo dos
caçadores de livros e de outras pessoas. Sem este livro, fico
exposta. Não é um risco que eu corra de ânimo leve.
— Devolvo-lho assim que tiver o Livro das Portas — disse
Cassie.
— Vai trazer-me os dois livros — afirmou Lottie.
Cassie aquiesceu, relutante.
— Foi o que combinámos.
— Se não fizer isso — avisou a Livreira —, não há nada neste
mundo que me impeça de a encontrar e matar. Está a perceber?
— Estou.
— Hum-hum. — A Livreira abanou o dedo a Cassie, como se
estivesse a repreendê-la. — Não diga isso por dizer. Eu não sou o
Hugo Barbary. Não sou um homem estúpido com um ego gigante.
Sou uma profissional, e as pessoas só se atravessam no meu
caminho uma vez.
— Eu compreendo — confirmou Cassie.
A Livreira olhou-a diretamente nos olhos por alguns instantes,
reiterando a mensagem. Depois, girou a pasta sobre a mesa.
O livro dentro da pasta era do mesmo tamanho que o Livro das
Portas — como todos os livros especiais, supôs Cassie —, mas
aquele livro tinha uma capa branca pura, como porcelana fina ou
algodão estaladiço.
— É lindo — disse Cassie, lembrando-se de como aqueles livros
especiais eram maravilhosos, apesar de toda a infelicidade que lhe
tinham trazido. — O que é que ele faz?
— Pegue nele — disse a Livreira.
Cassie retirou o livro da pasta e segurou-o entre as mãos. Era
tão leve, como se estivesse a segurar uma nuvem. A superfície
tinha uma textura muito ligeira, como a suavidade áspera de uma
ligadura.
— Este é o Livro da Segurança — disse a Livreira, com os olhos
cravados no volume que se encontrava entre os dedos de Cassie.
— Se o tiver consigo, nenhum mal lhe há de acontecer. Ninguém a
pode magoar. Não pode ser ferida. — A Livreira encolheu os
ombros. — Vai mantê-la segura.
Cassie respirou fundo e então abriu o livro, recordando a
emoção da descoberta, a emoção da magia em forma de livro.
Sorriu consoante os seus olhos percorriam o texto do Livro da
Segurança, porque sabia que Hugo Barbary não seria um problema.
Na rua, o músico parou de tocar a tuba e cantou as suas
palavras na noite densa e escura.
A MORTE TRANQUILA
DO SR. WEBBER (2)

C assie regressou a Nova Iorque, com o Livro da Segurança


guardado no bolso do casaco. Ficou instalada em hotéis
durante alguns dias, mantendo-se fora de vista, mantendo-se
sozinha.
Depois do anoitecer do terceiro dia, com um friozinho no ar,
Cassie saiu do hotel e caminhou pela cidade até chegar à Kellner
Books. A neve vinha aí — ela conseguia senti-la no ar — e puxou a
gola do casaco para cima para cobrir o pescoço. Ficou do outro lado
da rua, numa porta ao lado do restaurante de sushi, e observou a
sua versão mais jovem através da montra da Kellner Books.
Observou aquela Cassie mais jovem no dia em que a sua vida tinha
mudado.
Da rua, não conseguia ver as mesas baixas, no entanto, Cassie
sabia que o Sr. Webber já lá estava, a beber café e a ler O Conde
de Monte Cristo.
Depois, viu a outra Cassie a sair do balcão na parte da frente da
loja, com uma pilha de livros debaixo do braço. A neve começou a
cair, e algures na loja ela estaria a conversar com o Sr. Webber, a
falar sobre Dumas e Roma.
Cassie sentiu algo a fluir na face e pensou que se tratava de um
floco de neve, mas quando levou o dedo ao rosto, percebeu que
eram lágrimas.
A outra Cassie reapareceu na montra da loja e inclinou-se para
contemplar a noite com admiração, enquanto a neve começava a
cair. Algures atrás dela, o Sr. Webber morria em silêncio.
Pela segunda vez, ela encontrava-se com o Sr. Webber — ou
perto dele, pelo menos — no fim da vida dele. Ela desejava poder
estar com ele, a segurar-lhe a mão, a fazer-lhe companhia nos seus
últimos momentos. Tinha desejado o mesmo com o avô, mas
estivera a dormir, exausta de cuidar dele durante muitos dias. O
facto de ter perdido esse momento ainda lhe ardia no âmago.
Na montra da Kellner Books, a Cassie mais jovem endireitou-se
e correu para fora do seu campo de visão.
Cassie saiu da ombreira da porta e desceu a rua. Encontrou
outra porta para se abrigar e viu os paramédicos chegarem, e
depois os polícias, que saíram minutos mais tarde. Pouco depois, a
jovem Cassie saiu da loja e fechou a porta, engolida pelo seu
sobretudo e embrulhada no seu cachecol e gorro cor de vinho.
Caminhou ao longo da rua e parou mesmo em frente à porta onde a
Cassie mais velha estava a observar. Ela viu a mais jovem tirar o
Livro das Portas do bolso e abri-lo para o examinar brevemente.
Depois, a Cassie mais jovem abanou a cabeça, voltou a meter o
livro no bolso e foi-se embora para a sua vida de aventuras.
A Cassie mais velha enxugou as últimas lágrimas do rosto
enquanto via a mais jovem a ser engolida pela neve.
— Já chega de lágrimas — disse a si própria.
Essa foi a noite em que Cassie viajou pela primeira vez com o
Livro das Portas.
Dentro de alguns dias, regressaria ao seu apartamento na
companhia de Drummond Fox e encontraria o Dr. Barbary à sua
espera, à espera de a atirar de volta para o passado.
Desta vez, ela estaria à espera, dez anos mais velha e
preparada para o enfrentar.
Quarta Parte

UMA DANÇA NUM


LUGAR ESQUECIDO
UMA REUNIÃO NA BIBLIOTECA
FOX: SOBRE A NATUREZA
E A ORIGEM DA MAGIA (2011)

D urante aquele que viria a ser o seu último encontro na Biblioteca


Fox, no ano anterior à morte de três deles em Nova Iorque,
Drummond Fox e os seus amigos discutiram as origens da magia.
Era um dia de primavera, um mundo cheio de cor, e a luz do sol
penetrava na sala de jantar e reluzia nos copos e nos talheres.
Drummond e os amigos saboreavam um almoço sumptuoso que ele
tinha organizado para celebrar a presença deles.
— Então, vais contar-nos tudo o que aprendeste? — perguntou
Drummond, a olhar para Wagner.
Era esse o motivo da reunião naquele fim de semana. Wagner
tinha vindo devolver os livros que lhe haviam sido emprestados para
as suas experiências, os estudos de que os quatro tinham falado no
encontro anterior. Lily e Yasmin tinham viajado até à Escócia para
ouvir tudo sobre as experiências e os pormenores das descobertas
de Wagner.
— Ja — respondeu Wagner, enquanto cortava o seu borrego
assado com a faca. — Vou contar-vos tudo o que fiquei a saber —
disse ele. — Posso resumir-vos numa palavra: nada.
Os outros à volta da mesa olharam de relance uns para os
outros.
— Nada? — perguntou Drummond. — Nada mesmo?
— Nada — confirmou Wagner.
— Nada? — exigiu saber Lily. — Vim de Hong Kong para nada?
Sabes quanto custam os voos de Hong Kong, Wagner?
Wagner sorriu, sabendo que Lily estava a brincar.
— Segundo todas as medições científicas, os livros parecem
completamente normais.
— Tentaste usar um? — perguntou Yasmin. — Sabes, com a luz
e tudo.
Ela agitou os dedos, como se quisesse transmitir acontecimentos
mágicos.
— Ja. A luz não foi detetada. Não é visível a não ser aos olhos
humanos, ao que parece. Não havia partículas que eu pudesse
capturar, nada para pesar ou medir. É como se a magia não
estivesse sujeita a um interrogatório científico. — Ele levantou um
dedo. — Isto é muito invulgar.
— Isso é um eufemismo? — perguntou Yasmin.
— Ja — respondeu Wagner. — Deveras.
Comeram em silêncio durante algum tempo, digerindo aquela
notícia dececionante.
— Parece-me que a luz colorida que os livros produzem é a
fonte da magia — disse Lily. Ela espetou metade de uma batata
assada com o garfo e segurou-a à sua frente, como se a estivesse a
avaliar. — A cor é a magia, acho eu. Só aparece quando a magia
está a acontecer. O livro está sempre lá, mas a cor só está lá
quando há magia.
Wagner anuía com a cabeça enquanto Lily levava a batata à
boca.
— Ja — concordou. — Como uma força universal que ainda não
compreendemos.
— E que não conseguiste detetar com as tuas experiências? —
perguntou Drummond.
— Exatamente — disse Wagner. — Pode até não ser tão
misterioso, assim que conseguirmos compreender tudo
corretamente.
— Então, estás a dizer que é como a eletricidade ou a
gravidade? — perguntou Yasmin, franzindo o sobrolho.
Wagner encolheu os ombros, em tom de concordância.
— Podia ser. Também se pensava que essas coisas eram
mágicas, até serem bem compreendidas.
— A eletricidade teria parecido bastante espantosa a alguém que
não soubesse nada sobre ela — concordou Drummond. No exterior,
para lá das janelas altas ao fundo da sala de jantar, flores cor-de-
rosa e brancas esvoaçavam sobre a relva.
— Talvez não seja uma força deste Universo — continuou
Wagner. — Talvez seja algo que se infiltra de outra realidade. Uma
realidade diferente. É por isso que não a conseguimos entender. Ou
de alguma parte do Universo que está por trás do nosso. Algum
lugar subjacente que é a fonte de toda a matéria e realidade.
Pensaram sobre as suas palavras, a mastigarem as grandes
ideias enquanto mastigavam o almoço. Era isto que Drummond
mais apreciava nestas reuniões: não era o facto de as respostas
serem sempre encontradas, mas sim o facto de as perguntas serem
feitas, analisadas e apreciadas. Nenhuma ideia era desprezada ou
rejeitada; todos os pensamentos eram válidos. Os seus amigos
eram pessoas que sabiam mais do que ele, que compreendiam
coisas diferentes e, por vezes, parecia que só em conjunto, com
todas as suas diferentes perspetivas, conseguiriam chegar a alguma
conclusão.
— Mas porquê livros? — perguntou-se Lily ao fim de algum
tempo. — Porque é que são os livros, e estes livros em particular,
que conseguem canalizar ou conter esta força? A magia?
— Essa é uma boa pergunta — concordou Wagner. — Uma
pergunta para a qual eu não sei a resposta. — Wagner enfiou uma
garfada de borrego na boca e mastigou. — Este borrego é muito
bom, Drummond. Muito bom.
Drummond fez uma vénia com a cabeça, aceitando o elogio.
— Os livros são um objeto especificamente humano, certo? —
disse Yasmin. — Não é como se encontrássemos livros no mundo
natural. Cães e gatos não escrevem livros.
— Eu seria mulher para ler um livro escrito por um cão —
comentou Lily, e Wagner sorriu.
— Mas o que eu quero dizer… — continuou Yasmin. — Essa
magia, essa força que ainda não entendemos, deve ter sido inserida
nos livros de alguma forma. Ou se são fragmentos de outro
Universo, como sugere Wagner, como é que as paredes se partiram,
e porque é que esses fragmentos foram parar aos livros?
— Sempre pensei que fosse uma pessoa — admitiu Drummond.
— Talvez há muitos séculos; alguém que fosse capaz de criar estes
livros mágicos. Canalizaram algo ou encontraram qualquer coisa, e
depois, ao longo dos séculos, os livros viajaram e espalharam-se
pelo mundo.
— Uma pessoa fez tudo isto? — perguntou Wagner, franzindo o
sobrolho. — Uma pessoa fez todos estes livros?
— Alguém que gostasse de livros — disse Drummond, anuindo
com a cabeça, ciente de que se tratava de uma noção tola e
romântica, mas sem sentir qualquer constrangimento.
Lily assentia.
— Sim — disse ela. — Só uma pessoa que gostasse de livros
poderia criar estes livros especiais. São demasiado bonitos para
serem um acidente.
— Concordo — afirmou Yasmin. — Não é por acaso que a magia
está em livros. Não sei se foi uma pessoa que os criou, ou se essa
pessoa gostava de livros, mas a magia está nos livros por alguma
razão.
— Ja — concordou Wagner. — Estes livros partilham tantas
caraterísticas semelhantes, como se formassem um conjunto.
Parece que foram produzidos pelo mesmo processo. Talvez pela
mesma mão humana.
— Ou uma mão que não fosse humana? — perguntou Lily.
Drummond sorriu.
— O quê, um extraterrestre?
— Um deus? — sugeriu Lily. — A História está cheia de deuses,
tal como as histórias humanas estão cheias de magia. Talvez
também tenham existido deuses em tempos. Talvez estes livros
sejam relíquias ou artefactos de algum ser sobrenatural.
— São meras hipóteses — disse Wagner, encolhendo os
ombros. — Eu não sei. E talvez nunca venhamos a saber.
Certamente, «fazer ciência» com os livros não nos ajudou.
Lily sorriu perante a referência intencional de Wagner às suas
palavras do encontro anterior.
— O que eu sei é que tenho uma tarte Bakewell caseira para
comermos agora a seguir — disse Drummond. — E isso, só por si,
já é uma experiência sobrenatural.
O grupo riu-se e a conversa prosseguiu, com rumores sobre
livros recém-descobertos, sobre amigos comuns de quem não se
ouvia falar há algum tempo e sobre as histórias de uma mulher
belíssima que andava a viajar pelo mundo à procura de livros.
OS NOVOS LIVROS
DE BARBARY

— A quela mulher é mesmo uma cabra — disse Barbary em tom


de conversa, enquanto Drummond se levantava do chão.
Depois sorriu. — É sempre melhor quando são só os rapazes, não
é? Ninguém se ofende com uma piada inofensiva.
— O que fizeste, Hugo? — perguntou Drummond. —
Empurraste-a de volta pela porta? Ela vai ficar presa no passado!
Barbary sorriu diabolicamente.
— Parece que me estás a confundir com alguém que não se
está a cagar para isso.
Barbary agitou o pulso e Drummond sentiu-se imediatamente
puxado para o ar. Ele pairou hirto a trinta centímetros do chão. O
Livro do Controlo, empunhado por Barbary, efervesceu de luz.
— Tenho de te dizer que tive um dia muito mau — disse Barbary.
Acenou vagamente para o lado do rosto e Drummond reparou pela
primeira vez que parecia inchado. — Tenho o olho vermelho. Um
macaco de merda deu-me uma bofetada como se eu fosse a mulher
dele. E sabes que mais ele fez?
Drummond observava, incapaz de se mexer, com todas as
partes do corpo tensas. A sua mente movia-se velozmente, a tentar
perceber como escapar, a tentar perceber o que Cassie estaria a
fazer, a tentar perceber o que Barbary lhe iria fazer.
— Ele roubou-me o meu livro, foda-se! — gritou Barbary com
fúria, cuspindo perdigotos e atingindo Drummond na cara.
— Acabaste de roubar o livro da Cassie — observou Drummond,
a acenar com a cabeça para o Livro das Portas na outra mão de
Barbary. — Os teus padrões morais não são exatamente elevados,
Hugo.
Barbary levantou o Livro das Portas e inspecionou-o.
— Ah, sim, o Livro das Portas. — Ele folheou as páginas. —
Seria capaz de me divertir à brava com isso. Não é uma coisa com
um aspeto assim tão espetacular, pois não? — Estudou a capa do
livro antes de o deixar cair no chão aos seus pés. — Bastante
vulgar, até. Mas um prémio fabuloso.
Drummond moveu-se de repente, a tentar agarrar um braço ou o
pescoço de Barbary, mas o homem estava preparado. Barbary
sacudiu a mão e o braço de Drummond ficou paralisado no ar,
encontrando uma resistência tão firme quanto uma parede.
— Não vale a pena — disse Barbary, o seu tom quase solidário.
— Eu antecipo qualquer coisa que possas fazer. Mas lembraste-me
de que trazes aí contigo os teus próprios livros, não trazes?
Barbary agitou a mão duas vezes e os dois braços de
Drummond foram puxados para os lados, numa simulação de
crucificação. Barbary empurrou-o pelo ar para a sala de estar e
posicionou-o de forma que ficasse pendurado em frente à janela.
— Não é medonho? — perguntou Barbary então, gesticulando
para a sala de estar e para a cozinha atrás dele. — Parece uma
peça de teatro modernista deprimente dos anos noventa. Será que
as pessoas vivem mesmo assim? — Não esperou por uma
resposta. Enfiou a mão grande nos bolsos de Drummond,
remexendo-a como uma aranha até encontrar o Livro das Memórias.
— Muito bonito — disse ele, inspecionando o livro. — Este é o Livro
das Memórias, presumo. — Drummond não respondeu. Barbary
agarrou o livro pela contracapa e deixou as páginas abrirem-se para
que ele pudesse inspecioná-las. — Muito bom. — Pousou o livro no
chão e voltou a enfiar a mão nos bolsos de Drummond, mais dedos
a remexerem-se, e retirou o Livro da Sorte e o Livro das Sombras.
— Que adorável — disse ele, admirando a capa dourada do Livro da
Sorte. — Então e este qual é? — Drummond recusou-se a
responder, a olhar por cima da cabeça de Barbary. Este encolheu os
ombros. — Não importa. O tempo dirá. — Ele pousou os dois livros
no chão juntamente com o Livro das Memórias e o Livro das Portas.
Ao seu lado, o seu Livro do Controlo continuava a pulsar com cores.
— Que belo espólio — comentou ele. — Talvez eu possa começar a
construir a minha própria coleção para rivalizar com a da Mulher? O
que é que achas, Drummond? Que monstro preferes? Eu ou ela?
— Oh, tu, sem sombra de dúvida — disse Drummond.
Barbary inclinou a cabeça, interessado.
— E porquê?
— Porque ela é aterradora e tu és um parvo. Eu não perderia o
sono por tua causa, Hugo.
Barbary gargalhou como se aquela fosse uma resposta fabulosa.
— Bem, vamos ver se conseguimos fazer alguma coisa em
relação a isso, que tal? — Olhou para Drummond, como se
estivesse a tentar decidir qual a tortura a infligir-lhe. — É uma pena
que aquele gorila tenha roubado o meu Livro da Dor. Ia gostar de te
obrigar a contares-me todos os teus segredos. — Fez um estalido,
passando a língua pelos dentes, enquanto considerava as suas
opções. — Talvez ainda me possa divertir sem o livro… talvez te
possa fazer falar à moda antiga. O que é que achas? O que é que te
parece uma tortura ligeira?
Os pensamentos de Barbary foram interrompidos por um único
toque vindo do seu bolso. Ele tirou o telemóvel e estudou-o durante
uns segundos.
— Aquela cabra — murmurou ele.
— O que foi? — perguntou Drummond.
— Aquela puta preta careca.
— A Livreira? — perguntou Drummond.
— Ela está a vender o meu livro — disse Barbary. — Aquele tipo
japonês e o macaco deviam estar a trabalhar para ela. — Barbary
ficou parado por momentos, com as mãos nas ancas e os olhos
desviados de Drummond, como se estivesse a fazer planos ou a
pensar numa reação. — Bem, vou ter de a matar — anunciou ele,
como se esta fosse a conclusão óbvia.
— A Livreira? — perguntou Drummond novamente, com as
sobrancelhas erguidas com ceticismo.
— Ela e qualquer outro cabrão que tente levar os meus livros. Eu
ainda tenho o Livro do Controlo — disse ele, levantando o livro
brilhante e pulsante que segurava ao seu lado. — Não deve ser
difícil.
— Ela não autoriza a entrada de livros nos leilões — lembrou-lhe
Drummond. — Tu sabes disso.
— Não, eu não sei disso — murmurou Barbary. — Eu nunca fui a
um dos leilões dela. Mas isso só torna tudo mais fácil. Sem livros,
mais ninguém tem vantagem. Mato-os todos a tiro, nesse caso. —
Ele dobrou o sobretudo para trás, revelando a arma na anca. —
Talvez te mate primeiro, só para te calar.
Drummond tentou encolher os ombros, ainda que pendurado no
ar. Já não queria saber, na verdade. Era interessante como lhe
sobrava pouco espaço para o medo quando o seu corpo estava
sobrecarregado de exaustão.
— Então, despacha-te lá com isso, homem, por favor, pelo amor
de Deus.
Drummond ouviu então um ruído, o raspar de uma chave, a
porta da rua a abrir-se. Barbary ouviu uma fração de segundo
depois e virou-se para o corredor no momento em que uma mulher
entrava na sala de estar.
Não era uma mulher qualquer. Tratava-se de Cassie.
Uma Cassie diferente, mais velha, com um propósito nos olhos.
— Olá — disse ela. — Esperei muito tempo por isto.
O LIVRO DA SEGURANÇA

A sala ficou em silêncio por momentos, enquanto Barbary olhava


para ela. Atrás dele, Drummond pendia no ar como um homem
crucificado, iluminado pela janela. O estômago de Cassie revirou-se
de prazer e excitação quando o viu. Tinham passado dez anos e ele
parecia cansado e desgastado.
Concentra-te!
O livro de Barbary brilhava ao seu lado enquanto ele segurava
Drummond no alto.
— Tu — disse Barbary, semicerrando os olhos para a
inspecionar. — Estás diferente.
— Dá-me o meu livro — disse Cassie. Ela não estava
interessada numa conversa sobre o que lhe tinha acontecido.
Barbary riu-se.
— Vai-te foder, puta. Comecei a fazer a minha própria coleção.
Tenho o teu livro e tenho os dele. — Apontou para Drummond atrás
de si, e depois agachou-se para apanhar os livros aos seus pés,
metendo-os nos bolsos, um de cada vez.
Cassie deu alguns passos na direção dele, e as sobrancelhas de
Barbary saltaram de surpresa, com um sorriso de prazer a esboçar-
se no seu rosto.
— Sr. Fox — disse ele, falando por cima do ombro —, a sua
jovem tornou-se bastante ousada. O que é que vais fazer, querida?
Vais arranhar-me e puxar-me o cabelo?
— Cassie — disse Drummond, a palavra soou como um aviso.
— Não me podes fazer nada — afirmou ela.
— A sério? — disse Barbary. — Bem, mal posso esperar para
testar isso. — Ele mexeu o braço de repente e Cassie foi puxada
para a frente, para a mão estendida de Barbary, os dedos dele
curvaram-se em torno do pescoço dela enquanto ele a levantava do
chão, encostando o rosto ao dela. — Sabes, uma das piores coisas
que já aconteceu foi quando todas vocês, mulheres, começaram a
pensar que eram iguais a nós, homens. — Cassie podia sentir o
cheiro de carne condimentada e suor, o odor natural de Barbary, e
ficou nauseada. — Às vezes, gostava de viver nos anos setenta,
quando a ordem natural ainda estava em vigor. A vida era muito
mais simples naquela altura. Eu podia dar-te uma bofetada e
ordenar que me fizesses o jantar e ninguém sequer pestanejava. —
Ele sorriu para ela, mas depois a sua boca curvou-se subitamente
num esgar furioso. — Tens de levar uma lição, miúda, como nos
bons velhos tempos. — Atrás de Barbary, Drummond caiu no chão
como se tivesse sido esquecido. Quase ao mesmo tempo, Barbary
torceu-se pela cintura, como num passe de judo, e atirou Cassie ao
chão. O seu corpo bateu de forma audível, e ela sentiu as vibrações
no peito, mas não sentiu dor.
O Livro da Segurança estava a protegê-la; sentia o seu calor
através das roupas, e nenhum mal a atingiria. A realidade dessa
verdade era a luz do sol a romper as nuvens da sua alma.
— Puta estúpida — murmurou Barbary, enquanto passava por
cima dela e enfiava a cabeça no corredor, como que para se
certificar de que mais ninguém estava lá. Quando se virou
novamente, Cassie já estava de pé. Ele pestanejou de surpresa.
— Tens de fazer melhor do que isso — disse-lhe ela.
Então, Cassie levantou a arma que tinha tirado do coldre de
Hugo quando ele a puxou para junto de si. Ela nunca tinha
disparado uma arma antes, e esta pistola tinha um tubo comprido no
cano que ela supunha ser um silenciador, mas não achou que
pudesse ser difícil. Barbary tinha uma silhueta grande e estava
muito perto. Ela puxou o gatilho e houve um baque abafado e,
quase simultaneamente, ao que parecia, Barbary foi socado para
trás no ombro, em direção ao corredor.
— Agarra os livros — murmurou Drummond atrás dela,
apoiando-se num cotovelo.
Cassie aproximou-se do corredor quando Barbary se estava a
sentar, com uma mão no ombro.
— Tu disparaste contra mim! — exclamou ele, aparentemente
indignado.
— Dá-me o meu livro — exigiu Cassie.
— Vai-te foder — disse Barbary novamente. Ele sacudiu a mão e
Cassie disparou para cima, o topo da ombreira da porta acertou-lhe
na parte inferior das costas sem provocar qualquer dor.
— Não me podes magoar — avisou-o ela. — Mas eu consigo
magoar-te a ti.
Ela levantou a arma outra vez e apontou-a à cabeça dele.
Os dedos de Hugo estalaram e, desta vez, Cassie foi atirada de
costas para a cozinha, batendo contra o fogão.
— Talvez eu não te possa magoar — disse Barbary, voltando a
entrar na sala. — Mas consigo manter-te afastada de mim.
Cassie disparou novamente, e a bala passou ao largo do lado
esquerdo de Barbary.
— Consegues manter as balas afastadas de ti? — Ele hesitou,
debatendo-se consigo próprio enquanto ela se levantava, sem
nunca desviar os olhos dele. — Consegues travar uma saraivada de
balas? — perguntou ela. — Ou achas que, mais cedo ou mais tarde,
vou enfiar-te uma nas tripas?
Ele olhou para ela como que a cuspir veneno, apercebendo-se
do impasse. Ela conseguia ver a mente dele a trabalhar, a tentar
encontrar uma saída, mas não lhe queria dar tempo para formular
um plano.
— Dá-me o meu livro — exigiu ela com brusquidão —, antes que
eu meta uma bala nesse espaço da tua cabeça onde devia estar um
cérebro.
Drummond não se mexeu e ela percebeu que ele não queria dar-
lhe o que ela pedia. Estava a tentar furiosamente fazer tudo menos
isso.
Do nada, movendo-se com uma velocidade surpreendente, ele
saltou do chão, impulsionou-se do sofá com um pé, e investiu sobre
o flanco de Barbary enquanto este estava distraído. Os dois
embateram contra a parede junto à porta, num emaranhado de
braços e pernas e raiva, gritos e grunhidos, e o Livro do Controlo
escorregou das mãos de Barbary e voou pela sala. Lutaram por
alguns segundos, até que Barbary ficou por cima de Drummond a
esmurrar-lhe repetidamente a cara, resmoneando e murmurando
enquanto o fazia.
— Para — ordenou Cassie simplesmente, aproximando-se dele
por trás e colocando a extremidade do cano frio da pistola contra a
parte de trás do seu pescoço gordo.
Barbary ficou petrificado, com um punho no ar.
— Levanta-te — ordenou Cassie, empurrando a arma contra o
pescoço de Barbary. O homem levantou-se e Cassie recuou para
fora do seu alcance, esperando enquanto Drummond se levantava
do chão. O seu rosto estava cheio de sangue. Ele estendeu a mão e
apanhou o Livro do Controlo. Era um objeto cinzento e baço, com
uma superfície texturizada, como se fosse formada por uma trama
apertada.
— Dá-nos os outros livros — disse Drummond a Barbary,
enquanto limpava os olhos com a manga. — Todos.
Cassie manteve a arma apontada ao homem careca, enquanto
ele os olhava por baixo das sobrancelhas, com os lábios cerrados.
— Foi um dia mesmo mau para ti — disse Drummond. —
Perderes os teus dois livros. Nenhum dos livros nos teus bolsos
pode ajudar-te agora, não contra o Livro do Controlo e uma arma.
Devolve-mos e eu deixo-te viver.
Barbary exalou pesadamente pelo nariz e depois levou a mão
aos bolsos e retirou os livros um a um, atirando-os para o chão: o
Livro da Sorte, o Livro das Memórias, o Livro das Sombras e,
finalmente, o Livro das Portas.
— Mais vale matarem-me agora — disse ele. — Porque se eu
continuar vivo, hei de ir atrás de vocês. E hei de continuar a
perseguir-vos até vos encontrar.
— Não quero matar ninguém — disse Cassie, inclinando-se para
pegar no Livro das Portas, o seu coração a cantar quando o segurou
pela primeira vez em dez anos. — Mas também não quero ficar a
olhar por cima do ombro para ti o resto da minha vida.
Ela refletiu durante alguns instantes, enquanto Drummond abria
o Livro do Controlo e sorria sombriamente ao olhar para a primeira
página.
— «Controlo» — leu ele, virando o livro ao contrário para lhe
mostrar. A palavra «controlo» era a única coisa na página em
branco, em letras maiúsculas gravadas com tinta preta espessa. —
Não é exatamente poesia, pois não?
Cassie resmoneou e Barbary fitou-os furiosamente.
Drummond segurou no livro, com as sobrancelhas franzidas de
concentração. Então, o livro começou a brilhar nas suas mãos e, um
momento depois, o sofá afastou-se alguns centímetros da parede,
raspando no chão.
— Não é assim tão difícil — disse Drummond a Barbary,
enquanto o brilho diminuía e o ar clareava. Depois, para Cassie: —
O que é que queres fazer?
— Já sei o que quero fazer — disse ela. Entrou no corredor e
fechou a porta do seu quarto. — Põe-no aqui quando eu abrir a
porta.
Drummond anuiu com a cabeça uma única vez, compreendendo,
e o Livro do Controlo começou a brilhar novamente. Cassie abriu a
porta do seu quarto para revelar uma rua movimentada de Nova
Iorque, o tráfego a passar, pedestres com roupas que indicavam
outra época. Drummond moveu a mão e Barbary foi atirado para a
frente, atravessando a porta e caindo na escuridão.
Cassie observou pela abertura da porta enquanto ele se
levantava.
— Vamos ver se gostas mesmo de viver nos anos setenta! —
gritou-lhe ela, libertando dez anos de raiva e dor. Ela bateu-lhe com
a porta na cara enquanto ele olhava em redor e tomava consciência
do que lhe estava a acontecer.

Drummond deixou-se cair no sofá, exausto. Cassie deu-lhe algumas


folhas de papel de cozinha e esperou enquanto ele limpava o
sangue do seu rosto ferido.
— Pareces diferente — acabou ele por dizer, e ela pensou que
ele estava a tentar evitar o seu olhar. — Pareces estar diferente.
Ela não disse nada, mantendo-se em frente à janela com os
braços cruzados. Era tão estranho para ela, estar de volta ao antigo
apartamento depois de uma década.
— O que é que te aconteceu? — perguntou ele.
— Já passaram dez anos — disse ela. A sua voz era calma, não
estava zangada, não estava a gritar. Ela já não continha qualquer
fúria. — Drummond olhou para ela, chocado. — Dez anos — repetiu
ela, como que para se certificar de que ele tinha mesmo ouvido.
— Como é que… — começou Drummond, mas depois deteve-
se, como se talvez deduzisse que não havia razão para fazer
perguntas. Ele engoliu em seco uma vez e ela viu-o a reordenar os
seus pensamentos. — Esperaste dez anos?
Ela encolheu os ombros.
— Não havia outra forma.
Ele ficou a pensar nisso durante algum tempo, depois perguntou:
— Para onde o mandaste? O Barbary?
— Fiz-lhe o mesmo que ele me fez a mim. Mandei-o para o
passado. Ele queria tanto viver nos anos setenta, por isso meti-o lá
outra vez. Vamos ver se ele gosta.
— E se ele voltar? — perguntou Drummond. — Tu voltaste.
Cassie pensou nisso por um momento.
— Eu tive de aguentar dez anos a viver lá e isso já foi
suficientemente difícil. Ele teria de viver durante cinquenta anos.
Que idade é que ele teria agora? Noventa? — Drummond encolheu
os ombros. — Se ele viveu assim tanto tempo — disse Cassie —,
não acho que seja uma ameaça para nós.
Drummond limpou mais um pouco do rosto ferido.
— Desculpa — acabou por dizer.
Cassie anuiu.
— A culpa não foi tua — disse ela.
Ele olhou para ela.
— Tens a certeza?
Ela suspirou.
— Não sei, Drummond. Só sei que é bom ver-te depois de tanto
tempo.
Passado algum tempo, Drummond assentiu, aceitando esse
facto. Ele estudou Cassie em silêncio por alguns segundos, os seus
olhos a moverem-se lentamente sobre o seu rosto, obviamente
vendo como ela estava mudada.
— Não acredito que já passaram dez anos para ti — disse ele
calmamente. — Como é que sobreviveste? Como é que te
aguentaste?
— Tive ajuda — admitiu ela. — Um dia destes conto-te tudo. Mas
agora temos de ir ter com a Izzy. Já não a vejo há uma década e
quero mesmo, mesmo voltar a vê-la.
— Não sei onde está a Izzy — admitiu Drummond. — Não sei o
que lhe aconteceu. Tenho muita pena.
— Mas eu sei — disse Cassie.
Drummond olhou para ela com ar interrogativo.
— Fiz um acordo — disse ela. — Com a Livreira. Ela emprestou-
me o Livro da Segurança para que eu pudesse lidar com o Barbary.
E prometeu-me que ia enviar alguém para tomar conta da Izzy.
— O Barbary falou num japonês — disse Drummond. —
Provavelmente o Azaki. E quem quer que fosse que estivesse com
ele.
Cassie encolheu os ombros. Ela não sabia os pormenores.
— Em troca de quê? — perguntou Drummond. — Que acordo
fizeste?
Cassie segurou no Livro das Portas.
— Em troca disto. Lamento, Drummond, mas se queres o Livro
das Portas, vais ter de o comprar primeiro à Livreira. Prometi que
lho dava se ela mantivesse a Izzy em segurança.
O LUGAR ESQUECIDO

N um local esquecido da West 27th Street, Izzy observava os


caçadores de livros que chegavam para o leilão da Livreira,
enquanto os minutos do dia se aproximavam lentamente da meia-
noite.
Estava num mezanino, num espaço que outrora fora um bar, um
andar acima do átrio art déco do antigo Macintosh Hotel. Na parte
da frente do átrio, a imponente entrada estava agora coberta de
contraplacado, isolando-a do mundo. Uma única porta tinha sido
cortada nas tábuas e, quando se abriu, um homem velho e magro,
de cabelo branco e pele curtida como couro, entrou. Os seus olhos
eram cruéis e julgadores, pensou Izzy, e parecia que tudo o que ele
estava a ver era tão horrível como ele esperava que fosse. Era um
homem que gostava de ficar desiludido com as coisas.
— Quem é aquele? — perguntou Izzy.
— Aquele é o pastor Merlin Gillette e dois filhos horríveis —
disse a Livreira. — Não estou a dizer que só alguns dos filhos dele
são horríveis. São todos. Mas ele hoje só trouxe dois deles.
O homem tinha sido seguido até ao átrio por dois adultos mais
jovens que pareciam gémeos, um homem e uma mulher. Ambos
altos e magros e tinham um cabelo louro lustroso e caído solto.
— Parecem as figuras de um anúncio a um champô — observou
Izzy. — Para nazis.
Os três recém-chegados vestiam fatos cinzentos; os homens
usavam gravata, a filha tinha um crucifixo numa corrente ao
pescoço.
— Ele é pastor de quê? — perguntou Izzy.
— Oh, de uma igreja pentecostal rica e maluca da Carolina do
Sul — informou a Livreira. — Eles acham que os livros especiais
são obra do Demónio e que têm de ser destruídos. Porque o único
livro especial de que alguém precisa é a Bíblia. — A Livreira revirou
os olhos. — São pessoas horríveis, mas bastante inofensivas de um
modo geral. Pelo menos, em comparação com algumas das outras
pessoas que vão estar cá esta noite.
Observaram em silêncio enquanto o pastor e a sua prole eram
revistados e depois encaminhados para o átrio e para fora do campo
de visão, por baixo do mezanino.
— Para onde é que eles vão? — perguntou Izzy.
— Para o salão de baile — disse a Livreira. — Vou conduzir o
leilão lá. É suficientemente grande para que ninguém tenha de ficar
demasiado perto de ninguém. Isso costuma ser o melhor nestas
ocasiões.
A Livreira parecia distraída, ansiosa até, como alguém que tem
de tolerar conversa fiada antes de uma entrevista de emprego.
Tinham passado horas desde que Izzy a conhecera no átrio do
Ace Hotel. Depois do encontro, a Livreira levara Izzy e Lund para o
outro lado da cidade, para o nada espetacular edifício de tijolo
vermelho na West 27th Street. Da rua, o local parecia abandonado,
com uma parede coberta de graffiti a vedá-lo, como se estivesse a
ser renovado. A Livreira escoltara-os para dentro do edifício, pela
mesma porta pequena pela qual Merlin Gillette acabara de entrar,
conduzindo-os até ao enorme e sombrio átrio. Izzy tinha ficado
maravilhada com o espaço, uma catedral de ouro desbotado e pau-
rosa, tapetes pretos e brancos e letras art déco por cima do balcão
da receção. Espelhos enormes pendurados nas paredes, alguns
deles rachados ou totalmente partidos. Era um lugar esquecido, um
hotel do passado, a desmoronar-se na escuridão.
«Que sítio é este?», perguntara Izzy, dando uma volta lenta no
enorme átrio enquanto a Livreira acendia um interruptor para libertar
um débil sopro de luz elétrica.
«Já foi um hotel. A família que o construiu perdeu todo o seu
dinheiro depois da guerra. Estiveram a pagar a dívida durante
décadas, mantendo este lugar à base de naftalina numa esperança
louca de o poderem reabrir um dia. Comprei-lhes isto há vinte anos.
É útil ter a minha própria casa na cidade, um local não registado.»
A Livreira conduziu Izzy e Lund por uma escadaria grandiosa até
uma vasta sala no primeiro andar, um espaço que parecia ter sido
duas salas transformadas numa só e depois modernizadas em
comparação com o resto da propriedade. Havia sofás de pele e uma
grande televisão de ecrã plano, uma cozinha e uma casa de banho
com paredes forradas de pedra cinzenta dispendiosa e um chuveiro.
«Esperem aqui», dissera a Livreira. «Há comida e bebida na
cozinha. Podem passear-se à vontade. O sítio está vazio, mas é
seguro. Não me importo com o que fazem. Mas não saiam do
edifício. Não até que o leilão termine.»
Izzy tinha dormido durante algumas horas — os seus sonhos,
um cocktail de memórias esquecidas, terror e o ruído de fundo do
programa de televisão a que Lund assistia. Depois comeu noodles
que encontrara num armário, mas ficara impaciente e inquieta. Por
isso, foi dar um passeio pelo hotel, percorrendo corredores
compridos sombrios através de um ar estagnado onde ainda pairava
a memória do fumo dos cigarros e do perfume. O reboco das
paredes estava rachado em alguns sítios, os vitrais estavam baços
e sem vida na escuridão. Ela abriu as portas dos quartos ao acaso e
encontrou variações de um tema de decadência e abandono. Havia
poltronas velhas e desgastadas e cortinados pesados cobertos de
pó, cinzeiros de vidro com pontas de cigarro antigas, agora
encarquilhadas e ressequidas. Alguns quartos tinham camas, outros
estavam vazios. Nalguns, as carpetes tinham sido retiradas e os
cortinados removidos, deixando uma casca de madeira poeirenta,
enquanto outros pareciam quase congelados no tempo.
Depois de caminhar sem rumo durante algum tempo, Izzy
atravessou a grande escadaria que a Livreira lhes tinha feito subir
nesse dia, a coluna de espaço vazio inundada pela luz das
claraboias de vidro lá no alto, e chegou ao nível do mezanino e ao
bar. Era um espaço amplo, com poltronas e mesas tão antiquadas
que quase voltavam a estar na moda, e um balcão de madeira
comprido num dos lados com garrafas expostas na parede atrás.
Mais cinzeiros de vidro estavam empilhados num canto do bar,
como se tivessem sido recolhidos numa noite e deixados ali desde
então. Para Izzy, pareciam uma espécie de maquete de um edifício
futurista que um arquiteto caro poderia desenhar.
Ela estava agora a explorar a coleção de garrafas atrás do bar
quando a Livreira apareceu sem que ela notasse.
— O que é que estás a fazer?
Izzy assustou-se, surpreendida, vendo a Livreira a olhar
fixamente para ela.
— Estava aborrecida — disse ela. — Fui dar uma volta. Porque
não arranja este sítio? Ia valer uma fortuna.
— Demasiado trabalho — disse a Livreira. Dirigiu-se à
balaustrada para observar o átrio lá em baixo.
— Mais trabalho do que encontrar e vender livros mágicos? —
perguntou Izzy, cética.
A Livreira sorriu para si própria, mas não disse nada.
Izzy postou-se ao lado dela e observou um grupo de homens de
fato escuro, com armas nos coldres, reunido no átrio junto à porta
principal. Um homem alto, de cabelo pálido e com uma pasta na
mão, posicionara-se atrás de uma mesa mesmo à entrada da porta,
e depois chegou Merlin Gillette acompanhado dos seus terríveis
filhos.
Quando o pastor desapareceu do seu campo de visão, Izzy
apontou para o homem alto, de cabelo claro e pasta, que estava à
espera junto à porta.
— Quem é aquele?
— É o Elias. É o meu guarda-livros. Todos os livros especiais
são entregues à entrada. O Elias toma conta deles e devolve-os
quando as pessoas saem. É melhor para todos. Olha, tens a certeza
de que não queres esperar no quarto, ou assim? Não estou a
precisar de companhia neste momento.
— Não, estou bem — disse Izzy.
— Era mais uma ordem do que uma sugestão.
— Eu sei — respondeu Izzy. — Mas não sou sua empregada.
A Livreira suspirou, irritada, e apontou com o polegar, por cima
do ombro, para o bar atrás delas.
— Há alguma coisa ali que ainda se beba? — Izzy encolheu os
ombros. — Se insistes em ficar aqui, traz-me algo que pareça que
não me vá matar.
Izzy encontrou algumas garrafas de vodca ainda por abrir e
copos que limpou com a blusa. Abriu uma garrafa, cheirou-a com
cuidado e depois deitou dois dedos em cada copo.
— Vodca pura — disse ela, entregando à Livreira uma das
bebidas. Estendeu-lhe o seu copo, a Livreira tilintou o seu contra o
dela, e depois beberam. — Forte — comentou Izzy, contorcendo o
rosto ao sentir o sabor.
— Bebe-se — disse a Livreira. Ela engoliu-a como se fosse
água.
Ficaram a observar em silêncio e Izzy percebeu que a Livreira
estava a avaliar o seu público, como um artista prestes a trabalhar a
multidão. Izzy estudou as pessoas à medida que iam chegando, os
licitadores com todo o seu dinheiro. Todos eles desesperados por se
apoderarem da coisa que a tinha torturado apenas algumas horas
antes. Lembrou-se daqueles momentos de agonia, da impotência,
do desespero, e o seu estômago revirou-se. Perguntou-se o que é
que o vencedor da licitação faria com o livro. Infligiria essa
experiência a outros? Poderia ela aceitar milhões de dólares de
alguém que usasse o livro da mesma forma que tinha sido usado
contra ela? Começou a roer as unhas, nervosa, surpreendida com o
conflito interno que sentia.
— Aquele é o Okoro — disse a Livreira, apontando para um
negro grande que tinha acabado de entrar pela porta. — É muito
perigoso. É um mercenário e um assassino. Provavelmente também
dirige gangues de droga na África Ocidental.
O homem tirou um livro do bolso e entregou-o ao guarda-livros.
O livro desapareceu dentro da pasta.
— Que livro é aquele? — perguntou Izzy.
— Ele tem o Livro da Matéria.
— O que é que esse faz?
— Permite-lhe controlar a matéria. Transformar sólidos em
líquidos, líquidos em gases, esse tipo de coisas. Tenho a certeza de
que ele está ansioso por adicionar o Livro da Dor à sua coleção. O
Livro da Dor seria muito útil para um homem como o Okoro.
Izzy bebeu o último gole de vodca que tinha no copo e pensou
em servir-se de mais uma dose. Queria manter a cabeça fria, mas
também queria beber para suavizar as arestas daquele estranho
mundo em que agora se encontrava.
— Ah, os representantes do presidente da Bielorrússia — disse a
Livreira, apontando com a cabeça para dois velhos brancos que
entravam. Pareciam empregados de escritório cansados ao fim de
um longo dia. — O que eles fariam com o Livro da Dor… — Ela
estalou a língua e abanou a cabeça uma vez.
— Não lhe importa para quem vai? — perguntou Izzy.
— É um leilão — disse a Livreira. — Ganha quem fizer a oferta
mais elevada.
— Eu sei como funciona um leilão — murmurou Izzy,
incomodada. — Não é isso que quero dizer, e sabe disso.
— Miúda, se eu soubesse que ias ser tão faladora, tinha-te
trancado a porta. — Izzy esperou. — Não, não me importa nada
para quem é que vai — admitiu a Livreira, passado algum tempo. —
Não me posso importar. Pelo menos, se quiser levar a cabo um
leilão honesto. Não posso ter favoritos. — Izzy esperou mais um
pouco, sentindo que a resposta da Livreira ainda não estava
completa. — Mas sim, suponho que preferia que os livros fossem
para pessoas que não os usassem para tornar o mundo um lugar
pior. Em última análise, sou uma mulher de negócios; estou aqui
para ganhar dinheiro, e o dinheiro que me pagam para vender estes
livros… posso usá-lo para tornar o mundo um lugar melhor. É isso
que posso controlar.
— E como é que faz isso? Como é que faz do mundo um lugar
melhor com todo o dinheiro que ganha? — A Livreira olhou de
relance para Izzy, como se estivesse a avaliá-la, e depois voltou a
olhar para o átrio, sem responder. — Bem me parecia — murmurou
Izzy.
Chegavam cada vez mais pessoas, a maioria, capachos e
apoiantes das pessoas com dinheiro; e a maior parte das pessoas
com dinheiro não tinha os seus próprios livros para entregar. No
total, ao que parecia, apenas três livros tinham sido entregues a
Elias. Além do Livro da Matéria, de Okoro, uma mulher de meia-
idade, bem vestida, tinha entregado o Livro da Saúde («É a
Elizabeth Fraser. Inglesa. Tem mais de 120 anos», disse a Livreira.
«Aquele livro mantém-na jovem. Mas não a impede de ser uma
autêntica cabra.») e um homem hispânico de meia-idade, de fato
cinzento e camisa turquesa, entregou o Livro dos Rostos. («É o
Diego», disse a Livreira. «Espanhol ou português, acho eu.
Especializou-se em espionagem industrial, tanto quanto sei, mas
homicídios simples não estão fora da equação. Vive na Califórnia,
como uma estrela de cinema. O Livro dos Rostos pode fazê-lo
parecer-se com qualquer pessoa, homem ou mulher. Muito útil para
alguém no seu ramo de atividade.»)
— Então, só há três livros — observou Izzy. — Três livros para
toda esta gente?
— É essa a realidade dos livros especiais — explicou a Livreira.
— A maioria das pessoas que os conhece nunca sequer viu um.
São muitas mais as pessoas que os querem do que aquelas que os
podem ter. É o derradeiro bem raro e precioso. O artigo perfeito para
vender num leilão. — A Livreira consultou o relógio. — É melhor
ires. — disse ela a Izzy. — Vai procurar aquela montanha em forma
de homem e leva o Livro da Dor para o salão de baile lá em baixo.
Começaremos o leilão exatamente à meia-noite. Quero-vos aos dois
na sala, para que eu possa manter-vos debaixo de olho.
— Manter-nos em segurança, quer dizer?
— Sim — disse a Livreira, olhando para o copo vazio. — Foi isso
que quis dizer, claro.

Izzy regressou à divisão onde tinha passado a tarde e encontrou


Lund junto à bancada da cozinha com o Livro da Ilusão aberto à sua
frente. Ele olhou para cima com surpresa quando ela chegou, e a
sua mão moveu-se rapidamente para cobrir o livro.
— Estás a tentar esconder isso? — perguntou ela.
Ele encolheu os ombros.
— Parece-me que é melhor que as pessoas não saibam quando
se tem um destes livros.
Ela anuiu.
— Está a chegar muita gente. O leilão vai começar à meia-noite.
Ele assentiu.
— O que estás a fazer com o livro? — perguntou ela.
— Estou a tentar aprender a usá-lo — admitiu. — Mas parece
que não consigo perceber.
— Acho que a Cassie usou o Livro das Portas quase
imediatamente — disse Izzy. — Tipo, sem sequer tentar.
— Hum… — Lund pareceu desapontado.
— Porque é que queres criar ilusões?
Lund pensou na pergunta por breves instantes, depois
respondeu:
— Porque é que não havia de o fazer?
Izzy achou que era uma boa resposta.
— Posso tentar eu?
Lund encolheu os ombros.
— Vou à casa de banho.
Enquanto ele se afastava, Izzy levantou o livro com cuidado,
sentindo a textura do couro, a suavidade dos finos veios de ouro.
Percebeu que era ligeiramente quente, como se tivesse estado
sobre um radiador antes de lhe ter pegado. O livro era lindo, preto e
dourado e luxuoso. Podia ter sido produzido por Fabergé, ou outro
joalheiro de topo famoso, pelos pormenores intricados com metais
preciosos. Izzy abriu o livro e viu esboços a tinta preta, páginas de
rabiscos. O livro parecia estranho nas suas mãos, mais pesado do
que ela esperava. Fechou o livro e virou-o, inspecionando a capa
como se pudesse encontrar algo que explicasse o peso. Enquanto
fazia isso, Lund voltou da casa de banho e, quase simultaneamente,
a porta do corredor abriu-se de repente.
Izzy guardou o Livro da Ilusão no bolso, fora da vista, enquanto
um dos seguranças da Livreira os examinava com um ar sério, todo
ele volumoso e sólido com as suas roupas pretas.
— A Livreira pediu que se juntassem a ela — disse ele. — Têm o
artigo?
Lund tirou o Livro da Dor do bolso. Izzy evitou olhar para o
objeto.
— Ótimo — disse o segurança. — Vamos. O leilão está quase a
começar.
O SALÃO DE BAILE
DO MACINTOSH HOTEL

O salão de baile do Macintosh Hotel era um dos lugares


preferidos de Lottie. Era um espaço grande e quadrado, com
um lustre gigante art déco mesmo no centro do teto, como se
alguém tivesse capturado o Sol num bolo de casamento de vidro.
Espelhos altos e retangulares ladeavam as paredes, intercalados
com portas que davam para as casas de banho ou para as cozinhas
ou para os escritórios das traseiras, e candeeiros de parede. A
alcatifa à volta da sala parecia um diagrama de ligações elétricas,
com linhas pretas e brancas e padrões geométricos, e no centro da
sala havia uma grande pista de dança quadrada, a madeira agora
arranhada e deformada após anos de negligência. Continuava a ser
um espaço impressionante — Lottie adorara-o assim que comprara
o hotel — e conseguia facilmente imaginá-lo como teria sido há cem
anos, com pessoas brancas e ricas, envergando os seus fatos
cerimoniosos e vestidos elegantes a rodopiarem pela pista de dança
numa névoa de fumo de cigarros e álcool, uma banda de jazz a um
canto, notas de contrabaixo a ecoarem ritmicamente pelo ar.
O salão de baile estava desbotado agora, com o estuque
rachado e danos de infiltração no teto a um canto, mas ainda
transudava aquela atmosfera; ainda transmitia grandeza e
elegância, mesmo no seu estado desalinhado.
Quando Lottie atravessou as grandes portas duplas do átrio, os
seus clientes viraram-se para a observar, grupos de pessoas e
indivíduos espalhados pelo espaço. Por segundos, sentiu-se como a
noiva a chegar para a primeira dança, mas afastou a fantasia infantil
e concentrou-se em reconhecer a presença de toda a gente que
considerava importante, lançando um olhar ou um aceno de cabeça
àqueles que eram perigosos ou ricos, ou ambas as coisas.
Normalmente, ela costumava estar mais confiante nos leilões.
Costumava ter em sua posse o Livro da Segurança. Desta vez, teria
de aguentar firme, pelo menos até Cassie chegar.
Se ela chegar, disse Lottie a si própria.
Lottie não achava que Cassie fosse abandonar a sua amiga,
mas ela não tinha chegado até onde chegara na vida por pensar
sempre o melhor das pessoas.
Na extremidade do salão de baile, numa plataforma elevada
onde os anfitriões do casamento se sentariam, ou onde a banda
poderia tocar durante os bailes, tinha sido colocado um púlpito.
Lottie subiu e posicionou-se atrás dele, perscrutando a multidão. Viu
impaciência, calculismo, hostilidade pura e simples, e ignorou tudo
isso.
— Senhoras e senhores — disse ela —, bem-vindos a este
leilão.
— Chega deste circo — gritou Okoro, do lado esquerdo da sala.
— Tiraram-me o meu livro, apalparam-me e cutucaram-me. Até
quando terei de aguentar esta indignidade?
Lottie ficou a olhar para o homem sem que o seu rosto
transmitisse qualquer expressão. Não disse nada. Tinha medo de
Okoro, mas acreditava firmemente que lidar com pessoas como ele
era como treinar um cão. Tinha de se certificar de que ele sabia
quem mandava, mesmo que o animal pudesse arrancar-lhe a
cabeça à dentada.
— Não o obriguei a vir, Sr. Okoro — disse ela com firmeza. — É
livre de se ir embora. — Ela levantou uma mão e fez um gesto em
direção à porta ao fundo da sala. — Nós esperamos até que tenha
saído.
Era uma estratégia arriscada, tentar envergonhá-lo até à
submissão, mas Lottie sabia duas coisas. Em primeiro lugar, ela
sabia que Okoro queria muito o Livro da Dor. Reconheceu a fome na
expressão dele. E, em segundo lugar, sabia que, quando comprara
o Macintosh Hotel, fizera algumas modificações na estrutura do
prédio. O espelho na parede imediatamente atrás de Lottie era uma
porta para uma sala de pânico, que, por sua vez, levava a um
corredor secreto e a uma saída nas traseiras do edifício. Se
acontecesse alguma coisa que a dupla de seguranças não
conseguisse resolver, Lottie só tinha de recuar três passos através
do espelho e estaria a salvo. Teria preferido ter consigo o Livro da
Segurança, mas, mesmo sem ele, sentiu que controlava a situação.
Nem mesmo Okoro conseguiria alcançá-la antes que ela pudesse
fugir.
— Não? — perguntou ela a Okoro. — O homem cruzou os
braços e encarou-a, furioso. — Gostaria muito que ficasse
connosco, Sr. Okoro — disse ela, lançando-lhe um olhar de respeito.
— Quanto mais, melhor, certo?
— Ande lá com isso, então — murmurou Okoro.
— Sim, vá lá — gritou o reverendo Merlin Gillette, com a sua voz
nasalada e afiada como uma mota de motocrosse. — Despache lá
isso, mulher!
— Vamos despachar isto, sim — disse a Livreira, lançando um
olhar de aviso ao velho. — Quando eu quiser. Não vou aceitar mais
interrupções do plenário. Se quiserem falar, levantam a mão. Está
claro? — O público ficou a olhar fixamente em silêncio. — Senhoras
e senhores, para aqueles que têm os seus próprios livros especiais,
agradeço que os tenham entregado ao Elias. — A Livreira fez um
gesto para o fundo do salão, onde Elias estava à porta, com a pasta
na mão. — Como é habitual, o guarda-livros vai agora ausentar-se
para um local seguro noutro ponto do hotel. Ele voltará assim que o
leilão terminar, e quaisquer livros especiais ser-vos-ão devolvidos à
saída.
Elias anuiu com a cabeça e saiu da sala. Lottie não disse nada
durante uns instantes, deixando que a multidão o visse partir. Nesse
mesmo instante, o segurança que ela tinha mandado ir buscar Izzy
e Lund apareceu, seguido por eles. O segurança conduziu o gigante
e a rapariga até à extremidade da sala.
— Agora — disse ela — vamos ao que interessa. Estão aqui
esta noite para licitar a posse do Livro da Dor.
Ela apontou para Lund conforme o homem grande chegava à
frente do salão de baile e subia para a plataforma ao lado de Lottie,
muito mais alto que ela. Ele passou-lhe o livro e ela segurou-o no
alto, como um pregador com a Bíblia. Todos os olhares se fixaram
no objeto. Lund desceu novamente e voltou para a lateral do salão
de baile para ficar ao lado de Izzy.
— Este é o Livro da Dor. A capa é de cor púrpura e verde —
disse ela. — Posso confirmar a sua autenticidade e bom estado. —
Abriu o livro numa página ao acaso e levantou-o para que todos na
sala pudessem ver o conteúdo. — Quem possuir o Livro da Dor é
capaz de causar sofrimento e agonia consideráveis aos outros —
informou Lottie.
— Essa é a maior obra do Demónio que alguma vez vi! —
bramiu Merlin Gillette, ignorando a instrução de Lottie para levantar
a mão antes de falar.
Em resposta a este comentário, Elizabeth Fraser, a mulher que
tinha o Livro da Saúde, levantou a mão e Lottie indicou-lhe que
falasse.
— O Livro da Dor também removerá a dor dos outros — disse
ela, com uma voz em tom de contralto, surpreendente e agradável.
— É o poder do alívio, tanto quanto é o poder do sofrimento. Não se
trata de nenhuma obra do Diabo. Esse é o comentário de um
homem com uma mente supersticiosa e subdesenvolvida.
Alguns dos presentes riram-se. Merlin Gillette virou-se para
encarar a idosa que se encontrava uns meros metros atrás dele.
— Já te mostro uma mente subdesenvolvida, sua bruxa! —
gritou o pastor.
— Acabaste de o fazer, meu jovem — disse Elizabeth, baixinho.
A filha de Gillette conteve-o, sussurrando-lhe alguma coisa ao
ouvido, e o homem virou-se para a frente.
— Já chega! — gritou Lottie, parecendo mais severa do que se
sentia. Este tipo de fricção antes da licitação ajudava sempre. Era
como uma discussão antes do sexo. — Ou se comportam todos, ou
mando-vos embora.
Merlin Gillette lançou-lhe um olhar amotinado, mas não disse
nada.
— Deixe-nos testá-lo — gritou alguém do fundo da multidão.
O apelo foi secundado por Okoro.
— Sim, vamos experimentar em alguém para provar que é real.
— Não — respondeu a Livreira, num tom firme. — Ninguém vai
usar o Livro da Dor neste leilão. Ele é autêntico. Se não confiam em
mim, não têm de licitar e podem ir-se embora antes de começarmos.
— Ela esperou. Ninguém se mexeu. O salão manteve-se silencioso.
— Muito bem — disse ela. — Agora podemos continuar. A moeda é
o dólar americano, naturalmente. Levantem a mão para licitar.
Vamos assumir incrementos de quinhentos mil dólares, a menos
que especifiquem o contrário. A licitação continuará até termos um
licitante vencedor. O dinheiro será transferido imediatamente e, uma
vez recebido pelo meu banco, o Livro da Dor será entregue.
O público remexeu-se e preparou-se, as pessoas lançaram
olhares em redor e tentaram avaliar o apetite e a riqueza dos
adversários. Nos espelhos à volta do salão de baile, os reflexos da
audiência faziam o mesmo.
Então, Lottie perguntou:
— Quem é que vai abrir a licitação a quinze milhões de dólares?
Ninguém se mexeu, ninguém licitou. O acontecimento que todos
esperavam, o momento, tinha chegado. Como pugilistas cautelosos,
ninguém queria dar o primeiro murro.
— Quinze milhões de dólares!
O lance veio do fundo da sala, uma voz de mulher, estridente e
penetrante. Era uma das gémeas de Xangai. Havia rumores de que
eram antiquárias ou colecionadoras de arte. Também havia rumores
de que trabalhavam, na verdade, para o Partido Comunista.
— Obrigado, Sra. Li — disse a Livreira. — Está aberto o leilão.

O leilão prosseguiu, com as licitações a chegarem lentamente no


início, de modo cauteloso, mas depois a energia mudou, a confiança
e a determinação cresceram, e o preço do Livro da Dor aumentou
paulatinamente.
— Temos vinte e dois milhões — anunciou Lottie. — Alguém dá
mais?
Ela estava à espera de mais. Nenhuma das pessoas sérias tinha
licitado ainda; estavam à espera de que os amadores acabassem de
brincar.
— Vinte e cinco milhões.
Partiu de Okoro, de rosto carrancudo e braços cruzados.
Lottie anuiu, reconhecendo a oferta, e depois repetiu o valor para
a sala.
— Vinte e seis — gritou um homem, num inglês com um sotaque
carregado.
— Vinte e seis — disse Lottie — para o homem da Bielorrússia.
Alguém dá mais?
A licitação pareceu fazer uma pausa, a energia diminuiu
ligeiramente à medida que as pessoas respiravam, ponderando na
própria riqueza e comparando-a com o seu desejo pelo livro. Lottie
sabia que ainda não tinha acabado. Okoro estava a olhar de soslaio
para o bielorrusso. Diego, o espanhol, continuava encostado à
parede lateral como se estivesse aborrecido, mas Lottie via que ele
estava pronto para atacar no último minuto. As gémeas de Xangai
sussurravam entre si, e os filhos de Merlin Gillette sussurravam com
ele. As pessoas estavam a organizar as suas táticas.
— Alguém dá mais do que vinte e seis milhões de dólares? —
perguntou ela, apoiando-se no púlpito com os cotovelos.
— Isto está a demorar muito tempo — anunciou Diego de
repente, afastando-se da parede com um impulso. — Trinta milhões
de dólares, e vamos lá acabar com isto!
— Trinta milhões de dólares — anunciou Lottie, enquanto as
pessoas lançavam olhares assassinos para Diego. Antes que ela
pudesse procurar outras ofertas nos rostos reunidos, ouviu-se um
estrépito vindo de uma sala próxima, um estrondo trovejante que
abalou as paredes.
Todos viraram a cabeça para a origem do som. Lottie olhou
imediatamente para um dos membros da sua equipa de segurança.
Ele tinha uma mão na orelha e uma careta no rosto, como se não
estivesse a ouvir o que esperava ouvir. Olhou para ela e abanou a
cabeça uma vez: Não sabemos.
— Trinta milhões de dólares — disse Lottie novamente,
erguendo a voz. Ela estava determinada a finalizar o leilão. Mesmo
que Cassie não aparecesse com o Livro das Portas, ela poderia tirar
lucro suficiente do Livro da Dor para se manter fora de ação durante
algum tempo.
Ouviu-se outro estrondo, este mais próximo, e depois um
terceiro. As pessoas começaram a murmurar, a afastar-se das
paredes e a olhar em redor para ver o que os outros faziam.
— Por favor — apelou ela. — Deem-nos um momento.
Um vulto entrou pela porta do salão de baile, no lado oposto ao
de Lottie. Ela olhou, e outras pessoas viraram-se nessa direção
também.
— Pare! — gritou Lottie. — Quem é você?
Parecia um homem alto, vestido de forma desmazelada, com
uma gabardina velha e um chapéu de cowboy na cabeça. Avançou
para o salão de baile, caminhando lentamente e a coxear, como se
tivesse uma perna fraca.
— Quem é você? — perguntou Lottie, de novo, com a voz cheia
de indignação e autoridade. O homem parou mesmo no centro da
sala e levantou uma mão para tirar o chapéu e atirá-lo para o lado.
O rosto revelado estava murcho e desgastado, muitos anos mais
velho do que deveria ser, magro nas faces e flácido à volta da
papada, mas Lottie reconheceu-o.
— O meu nome é Hugo Barbary — gritou o homem, com uma
voz fina e rouca. Estendeu o braço e apontou-lhe uma pistola
automática, cujo cano era um enorme buraco de possibilidades
terríveis. — Agora devolve-me o meu livro, sua puta!
DOR NO SALÃO
DE BAILE ESQUECIDO

— N ão tens nada que estar aqui — disse Lottie, parecendo mais


calma do que se sentia. Ela estava chocada com a
aparência de Barbary, mas cobriu o que sentia com um escudo de
aborrecimento. — Não avisaste da tua presença.
— Tenho cara de quem está com vontade de enviar um e-mail,
foda-se? — gritou Barbary. — Roubaste o meu livro! Não estou aqui
para o comprar. Esperei cinquenta anos por isto!
— Só estás a envergonhar-te a ti próprio — respondeu Lottie,
confusa com as palavras dele, mas ignorando-as. Ela tinha
consciência de que as outras pessoas na sala estavam a olhar para
Barbary, a olhar para ela, tentando prever como seria o confronto. —
Vai-te embora agora, antes que te obrigue.
Barbary sorriu, com a pele mole e enrugada a esticar e a revelar
dentes manchados.
— Estou à espera há tanto tempo, Livreira. Escondido e à espera
deste dia. — Ele riu-se como uma criança. — Eu sei tudo sobre o
teu quarto secreto atrás do espelho, Livreira.
Lottie olhou para o responsável de segurança, o sinal de que ele
precisava. Ele e os outros dois membros da equipa, incluindo o que
tinha escoltado Lund e Izzy, correram para Barbary dos dois lados
do corredor. Nenhum foi suficientemente rápido. Hugo girou sobre o
calcanhar, disparou duas vezes, depois virou-se e disparou de novo,
e os três homens caíram no chão, com buracos de bala na testa.
— Não perdi o jeito! — Barbary soltou uma gargalhada para
Lottie. — Agora não tens homens com armas.
Lottie reparou na rapariga, Izzy, a arfar ao seu lado, dando
passos para trás como se estivesse a tentar fugir. Barbary também
se deu conta do movimento e voltou a sua atenção para essa
direção. Lottie viu Lund colocar-se à frente da rapariga e, nesse
momento, decidiu que gostava do homem grande.
— Tu — cuspiu Barbary. O seu rosto era um nó apertado de fúria
e ódio encanecidos. Ele coxeou para a frente, levantando a arma na
direção de Lund. — Tu roubaste o meu livro.
— Mas alguém vai fazer alguma coisa em relação a este idiota?
— gritou Gillette. — Que circo é este na sua casa, mulher?
Barbary moveu o braço e atingiu Gillette no centro da testa,
cuspindo gotas de sangue e matéria cerebral para o espelho atrás
dele, como lava expelida por um vulcão. Os dois filhos de Gillette
desataram aos gritos, deixando-se cair ao lado do seu corpo. Vendo
agora que ninguém estava a salvo daquela interrupção, outras
pessoas na sala começaram a mexer-se, afastando-se de Barbary
enquanto ele coxeava pelo chão. Lottie viu duas ou três pessoas a
correr para fora da sala, dirigindo-se para o átrio. Ela sabia que
muitos outros estariam a travar os seus próprios debates internos
entre a autopreservação e deitar as mãos ao Livro da Dor.
Enquanto isso, Barbary avançava em direção a Lund.
— Vou matar-te primeiro — murmurou Barbary. — Só para ficar
de bom humor.
Inexpressivo, Lund olhou para a figura que avançava, e a Livreira
interrogou-se porque é que ele não estava mais assustado.
Antes que Barbary pudesse chegar ao outro lado da sala, Okoro
investiu contra ele, com a cabeça baixa, mas Barbary percebeu o
movimento por um dos espelhos e girou desajeitadamente para se
desviar.
Okoro acertou em Barbary e os dois homens caíram no chão
num enredado de membros e fúria. A pistola disparou uma vez, e a
bala passou ao largo e partiu um dos espelhos na parede do lado
esquerdo, criando uma chuva de vidro. Lottie olhou de relance para
Lund.
— Tu — disse ela — tira-o dali.
Lund pestanejou uma vez e depois olhou para os dois homens
que lutavam. Deu alguns passos e tirou Okoro de cima do homem
mais velho.
— Larga-me, seu idiota! — gritou Okoro a Lund, sacudindo o seu
fato caro assim que se pôs de pé. Lund voltou a sua atenção para
Barbary e agarrou o pulso do velho, arrancando-lhe a arma dos
dedos ao mesmo tempo que o punha de pé.
A Livreira desceu da plataforma e aproximou-se deles. Barbary
olhou-a em tom de desafio, com a cara enrugada e as faces com
barba por fazer.
— O que é que te aconteceu? — perguntou ela, genuinamente
interessada.
— Têm o meu livro — cuspiu ele. — Roubaram-mo. — Sacudiu o
queixo na direção de Lund. — É isto que fazes agora, Livreira? —
perguntou ele. — Roubar livros por encomenda e depois vendê-los
para obteres o teu lucro?
— Isso não merece sequer uma resposta — respondeu Lottie,
mas conseguia sentir as pessoas a considerar a pergunta, os seus
clientes a observá-la com os olhos semicerrados. — E, francamente,
deves ter perdido o juízo para pensares que podes vir aqui e
perturbar um dos meus leilões desta maneira, sozinho, com uma
arma de fogo. — Ela tirou a arma a Lund e inspecionou-a como se
fosse uma piada. — Com isto? Achaste que eu não conseguia lidar
com um velhote armado?
Barbary sorriu enquanto olhava para ela por baixo das
sobrancelhas.
— O que foi? — perguntou a Livreira. — Porque estás a sorrir?
— Tens razão. Teria perdido a cabeça se fizesse uma coisa
dessas. Mas estou à espera deste momento há muito tempo. Tive
anos e anos para me preparar, Sra. Livreira. Anos e anos para
planear o que iria fazer. — Barbary fez uma pausa, certificando-se
de que o que estava prestes a dizer seria ouvido. — Tive tempo
para saber onde procurar o teu guarda-livros durante os leilões.
Tempo para saber como apanhar todos os livros que ele protegia.
Lottie sentiu, por momentos, o soalho do salão de baile a
inclinar-se, e Barbary exibiu os dentes num sorriso de escárnio.
— É isso mesmo! — disse ele.

Barbary pareceu cair de repente, como se tivesse perdido a força


nas pernas, e Lottie viu Lund soltá-lo. Mas o homem não tinha caído
no chão. Em vez disso, tocou na pista de dança com uma mão,
enquanto enfiava a outra mão no bolso grande do seu sobretudo.
Quase de imediato, Lottie sentiu o soalho amolecer. Olhou para
baixo, chocada, e afastou-se apressadamente alguns passos, vendo
Lund fazer o mesmo. Enquanto ela observava, a pista de dança de
madeira ondulava como a superfície de uma piscina à volta de
Barbary. O homem parecia estar agachado num círculo de solidez,
como se estivesse em cima de uma coluna submersa abaixo da
superfície. Outras pessoas também se afastaram, criando um
grande círculo à volta do velho.
— Sr. Okoro — gritou Barbary, tirando o Livro da Matéria do
bolso, que lançava faíscas e cores para o ar enquanto pulsava. — O
seu livro é fabulosamente divertido!
Antes que Okoro pudesse responder, antes que ele pudesse
correr para atacar mais uma vez, Barbary levantou e baixou a mão
rapidamente, e o chão líquido ergueu-se quase dois metros e
escorreu para a porta do salão de baile — uma onda a correr para a
costa — e todas as pessoas que ali se encontravam, bem como o
corpo de Merlin Gillette, foram içadas para cima e arremessadas
contra o teto. Quando o chão caiu por baixo deles tão rapidamente
como tinha subido, tornando-se sólido de novo, as pessoas e o
estuque tombaram novamente num tumulto de gemidos e barulho.
No meio da confusão, Barbary avançou a correr e arrancou a
arma da mão de Lottie.
— Eu fico com isto. — Lottie não ofereceu resistência, os seus
pensamentos estavam lentos com o choque e a surpresa. — Sabes,
eu sou muito, muito mais velho — disse Barbary. — Tive umas férias
no passado, cortesia daquela puta com o Livro das Portas, e tenho
mais cinquenta anos do que quando me roubaram o livro.
— A Cassie? — perguntou Izzy.
— Cala-te — disse Barbary abruptamente. Voltou a olhar para a
Livreira. — Tenho 94 anos, mas estou a começar a sentir-me muito
parecido com o meu antigo eu. Deve ser um daqueles outros livros
que tirei do teu homem. O Livro da Saúde, não é? O Livro da
Vitalidade e do Vigor? — Soltou uma gargalhada para si próprio,
encantado e triunfante. — Provavelmente nem teria conseguido
matar aqueles homens sem o benefício deste livro! Sinto-me como
não me sentia há anos!
Apontou a arma sem grande cuidado e disparou com júbilo,
levando o tiro a fazer ricochete nas paredes.
— Ótimo — disse Lottie de repente, e a expressão de Barbary
alterou-se com a surpresa. — Queres isto? — disse ela, mostrando-
lhe o Livro da Dor. Ela viu os olhos do velho ficarem presos ao livro,
como roupas em arame farpado. Observou a expressão dele a
transformar-se, deixando apenas uma fome nua, toda a raiva
sumida, toda a fúria.
Toda a dor, pensou ela, e depois lembrou-se daquilo que
Elizabeth Fraser tinha dito alguns minutos antes.
— Podes ficar com ele — disse Lottie, estendendo a mão e o
livro para Barbary. O livro que estava cheio de texto denso e irado,
imagens rabiscadas de rostos a gritar e armas afiadas. — O velho
estendeu a mão e agarrou no livro, mas antes de o largar, Lottie
disse: — Vou tirar-te toda a dor.
Os olhos de Barbary arregalaram-se de surpresa, e a cor saltou
de todos os lados do livro. Pouco depois, ele caiu de joelhos,
continuando a segurar no livro com uma mão, enquanto Lottie
continuava a segurar na outra ponta. Eram duas pessoas a segurar
num fogo de artifício entre elas; o livro, uma ligação, e, através dele,
Lottie conseguiu sentir toda a dor do homem. Conseguiu sentir o
seu trauma físico, a dor nos seus ossos e na sua perna esquerda,
as velhas feridas de bala que lhe haviam perfurado o corpo. Mas por
baixo e além disso, no fundo da piscina da consciência de Hugo
Barbary, ela conseguiu sentir a outra dor, a dor espiritual e
psicológica que fazia dele aquilo que era. Ela nadava lá nas
profundezas, enrolando-se e virando-se até se perder de vista.
Lottie pensou em afastar aquela dor de Barbary. Conseguia
sentir os seus fios e começou a puxar. Eram fibrosos e tenazes,
resistindo-lhe à medida que puxava, como um emaranhado de
cabelos num ralo de uma banheira. Ela fechou os olhos e
concentrou-se, trazendo a dor à tona, juntando-a e dando-lhe forma
para a remover, para limpar a ferida que era a alma dele.
Barbary estava de joelhos diante dela, a gritar, chocado com a
súbita reunião de toda a sua dor.
Lottie continuou a puxar, fios e fios de escuridão e agonia, de
fúria amarga, arrastando-os da alma daquele homem, trazendo-os
para cima para se dissiparem e desaparecerem na luz. Ela abriu os
olhos e viu o rosto de Barbary a encará-la, olhos amplos e claros, os
olhos de uma criança aterrorizada. De olhos fixos nos dele, Lottie
aguentou e continuou a puxar a escuridão para a superfície.
— Eu liberto-te da tua dor — disse ela, com os dentes cerrados.
A Livreira estava ciente do movimento, algo a surgir num canto
da sua visão periférica. E então, antes que ela conseguisse terminar
a cirurgia à alma de Barbary, o contacto foi rompido, e Barbary foi
lançado no chão: Okoro estava a lutar com ele.
Lottie arfou com o rompimento da ligação e tropeçou para trás.
Foi amparada por braços antes de cair e esticou o pescoço para ver
Lund a segurá-la.
— Sr. Okoro! — gritou ela. Algumas das pessoas, as mais jovens
e mais fortes, estavam a começar a levantar-se do chão, de onde a
onda de Barbary as havia derrubado. Outros jaziam mortos ou mais
gravemente feridos. Elizabeth Fraser, sem o seu Livro da Saúde,
entre elas. Mas Okoro tinha sido o primeiro a levantar-se. — Okoro,
pare!
Okoro e Barbary lutavam no chão, Okoro a dar murros brutais,
Barbary a levantar as mãos para se defender, obviamente ainda
atordoado pelo que Lottie lhe tinha feito.
— Leva-o! — cuspiu Barbary, tirando novamente o livro do bolso
e atirando-o para longe. — Leva a merda do teu livro!
O Livro da Matéria deslizou pela pista de dança e parou no
tapete gasto.
Imediatamente, Okoro pôs-se de pé, a perseguir a sua
preciosidade, esquecendo Barbary. Pegou no livro, limpou-lhe o pó
e meteu-o no bolso do peito. E depois encarou Lottie.
— Eu fico com o outro livro agora — disse ele, estendendo a
mão enquanto se dirigia para ela.
Lund meteu-se entre eles, olhando Okoro bem lá de cima. Ele
não disse nada. Limitou-se a ficar ali postado, imóvel, a fitar o
homem. Lottie não sabia porque é que o homem grande sentira a
necessidade de a proteger, mas naquele instante ficou grata por tê-
lo entre si e Okoro.
— Queres brincar comigo? — perguntou Okoro, imperturbável.
— Eu já matei homens grandes antes.
Lottie tinha consciência de que as coisas estavam
descontroladas, no entanto, ainda tinha o Livro da Dor na sua
posse. A atenção das pessoas parecia estar centrada no confronto
entre Lund e Okoro. Hugo Barbary estava deitado no chão, com os
olhos fixos no candelabro, como se estivesse atordoado, e Izzy
estava atrás de Lottie, encolhida contra a parede e a tentar parecer
pequena e insignificante. A Livreira pensou que talvez fosse altura
de sair. Podia realizar outro leilão, noutro dia.
Determinada, ela começou a afastar-se, dirigindo-se para o
espelho atrás do palanque.
Então a porta na parede mais distante abriu-se, atrás de Lund e
Okoro, e Cassie e Drummond Fox entraram no salão de baile. Atrás
deles, através da porta, havia um lugar completamente diferente,
uma sala num edifício diferente.
Vê-los chegar assim foi surpreendente, mesmo para Lottie.
Sentiu-se a ficar boquiaberta e reparou que toda a gente na sala,
até Okoro, suspendera qualquer movimento para os ver.
— É o Bibliotecário — disse alguém.
Cassie e Drummond ficaram ali imóveis, a absorverem a
confusão de corpos partidos e de sangue. Depois, os olhos de
Cassie fixaram-se em Izzy, e Lottie ouviu Izzy chamar o nome de
Cassie.
Nesse momento, Hugo Barbary levantou-se do chão.
— Hugo — murmurou Drummond, ao vê-lo. — Outra vez.
Lottie viu-o a lançar um olhar incisivo a Cassie.
Hugo girou a arma e apontou-a a Lottie e Izzy atrás dela.
— Devolve-me o meu Livro do Controlo, Bibliotecário — disse
Barbary. — Ou eu meto uma bala na cara bonita da tua amiga.
Barbary olhou então para Cassie.
— E vou levar também o Livro das Portas, para jogar pelo
seguro.
A CHEGADA
DO DEMASIADO TARDE

T odos os olhos se viraram para Cassie enquanto a audiência


absorvia o que tinha ouvido. Até Okoro se afastou de Lund e
lançou a Cassie um olhar calculista.
— Ouviste o que eu disse? — perguntou Barbary. — Dá-me os
livros, foda-se. — Mas depois o seu rosto mudou. Encolheu-se,
abatendo-se sobre si próprio numa tempestade de emoções e
dúvidas. A sua mão livre foi para a cabeça e ele resmoneou. — O
que é que me fizeste? — perguntou ele a Lottie, olhando para ela
com olhos repletos de dor.
Ele recompôs-se, voltou a empenhar-se na ameaça e apontou
novamente a arma.
Lottie viu Lund olhar na direção do homem, depois de novo para
Okoro à sua frente, e percebeu que ele estava a tentar calcular onde
residia o maior perigo. Ou talvez estivesse a tentar descobrir quem
proteger: Lottie ou Izzy.
— Eu tirei-te a dor — disse Lottie. — Ou a maior parte dela.
Antes de sermos interrompidos.
Barbary rabujou novamente, mas observou com os olhos
semicerrados enquanto Cassie caminhava num círculo largo à sua
volta, avançando em direção a Izzy.
— Eu vou matá-la! — gritou ele, mas Lottie ficou com a ideia de
que ele estava a tentar convencer-se a si próprio. Pareceu-lhe até
ver lágrimas nos olhos daquele velho. Perguntou-se se, ao tentar
repará-lo, não o teria danificado irremediavelmente.
— Baixa lá a arma — pediu Lottie, num tom doce.
Okoro deu um passo para o lado e Lund deu um passo para o
acompanhar, mantendo a sua posição entre o homem e Lottie.
— O que é que me fizeste? — perguntou Barbary outra vez,
desta feita um apelo e não tanto uma exigência. — Porque é que eu
não quero…?
Ele não conseguiu terminar a frase. Houve um borrão de
movimento que Lottie percebeu tarde demais, e Diego estava a
correr na direção dela, aproveitando a oportunidade da sua
distração para fazer pontaria ao Livro da Dor. Ele não conseguiu
chegar até junto dela. Antes de estar a dois metros de distância, foi
içado para o ar, como se tivesse sido puxado pela gola do seu
casaco caro, e atirado para trás contra a parede junto à porta do
salão. Outro espelho estilhaçou-se e Lottie viu Drummond a baixar a
mão e a cambalear para trás, como que chocado com o que
acabara de fazer, como que surpreendido com a facilidade com que
matara um homem ao arremessá-lo para o outro lado da sala.
Lottie esperava que Barbary respondesse, mas o homem parecia
perdido nos seus próprios pensamentos, preso num labirinto na sua
própria mente, com o braço que empunhava a arma flácido ao seu
lado.
— Cassie? — A voz da Izzy veio de trás de Lottie, incerta.
A Livreira percebeu que a atenção de Cassie estava voltada para
o centro da sala, onde Okoro e Lund persistiam no seu braço de
ferro e Barbary se mantinha de joelhos. Drummond observava as
outras pessoas que ainda se encontravam a deambular pela sala, à
espera de verem o que ia acontecer, à espera de que o leilão
recomeçasse.
Lottie ainda ponderava nisso: talvez o pior já tivesse passado.
Talvez ainda conseguisse fazer uma venda. Ou talvez duas, com o
Livro das Portas agora também presente.
— O que é que eu sou? — perguntou Barbary, erguendo os
olhos do chão. — O que é que eu era?
Olhou em redor, confuso, mas depois a certeza voltou aos seus
olhos e ele reergueu a arma.
— Drummond! — gritou Cassie. Ela correu de volta para a porta
pela qual eles haviam entrado momentos antes e abriu-a.
Drummond moveu a mão novamente e Barbary foi erguido no ar, a
arma caiu-lhe da mão e sapateou pelo chão de madeira. — Volta
para o passado, seu cabrão! — gritou Cassie, enquanto Drummond
o lançava para o outro lado da sala e o fazia atravessar a soleira da
porta. Lottie conseguiu ver outro lugar diferente para lá da porta,
uma rua soalheira, e depois Cassie voltou a fechar a porta,
encerrando a passagem com um estrondo. A sala pareceu expirar
num único sopro, tendo a ameaça desaparecido.
— Sr. Okoro — disse Lottie em voz alta. — Quer continuar com a
sua postura, ou vamos voltar ao leilão, agora que a nossa
interrupção já foi resolvida? — Okoro não reagiu. — A maior parte
dos outros licitantes estão incapacitados ou pior — prosseguiu
Lottie. Os olhos dele olharam para os dela, percebendo o que
estava subentendido: Provavelmente vai ganhar.
Okoro parecia querer realmente enfrentar Lund. Como se tivesse
algo a provar.
Os homens são tão infantis quando se olha lá bem no fundo,
pensou Lottie. Alguns deles, pelo menos.
— Muito bem — disse ele, puxando as mangas da camisa para
fora dos punhos do casaco. — Vamos continuar.
A multidão reorganizou-se em redor da sala, as pessoas olharam
umas para as outras nervosamente, enquanto Lottie subia de novo
para a plataforma. Drummond Fox estava de pé num dos lados,
perto da porta por onde ele e Cassie tinham entrado, e Cassie tinha
atravessado a sala para abraçar Izzy. As duas mulheres estavam
juntas contra a outra parede, a falarem em voz baixa. Lund ficou um
pouco à frente do palanque de Lottie, como se tivesse assumido o
papel da sua equipa de segurança. Enquanto ela observava, ele deu
um pontapé na arma que Barbary estivera a empunhar para a lateral
da sala, tirando-a do caminho.
— Vamos recomeçar. A última licitação foi do cavalheiro
espanhol — Lottie gesticulou para Diego, inconsciente ou morto, no
canto da sala —, que parece incapaz de continuar. Por isso, vamos
voltar à licitação anterior, que foi de vinte e seis para o homem da
Bielorrússia.
Seguiu-se uma série de licitações rápidas, como se as pessoas
estivessem desejosas de acabar com aquilo tudo. As gémeas de
Xangai licitaram vinte e sete, e depois Okoro aumentou para trinta.
O bielorrusso licitou trinta e um e Okoro ripostou com trinta e dois.
O panorama começava a animar para Lottie. À medida que as
licitações prosseguiam, ela debatia consigo própria se não seria a
altura certa para leiloar também o Livro das Portas. Isso significaria
que ela poderia acabar com tudo de uma vez por todas, pegar em
todo o dinheiro e sair do mundo dos livros especiais antes que fosse
tarde demais. Mas também se interrogava se estariam reunidas as
condições necessárias para obter o melhor preço pelo Livro das
Portas. Muitos dos licitantes mais ricos já não estavam vivos ou
capazes de licitar. Talvez um leilão separado, dentro de uma
semana ou duas, atraísse mais interesse e uma multidão maior.
— Trinta e quatro! — Era o homem indiano de Inglaterra. Ele
ainda não tinha licitado. A sua tática tinha sido, obviamente, esperar
até que o leilão estivesse no auge e depois entrar. Okoro olhou para
o homem com um ar irritado, como se ele não tivesse o direito de
entrar na licitação numa fase tão tardia.
— De onde vem o fumo?
A pergunta veio do outro lado da sala, de uma das gémeas de
Xangai. Lottie olhou para esse lado e viu que as pessoas ao longe
estavam menos nítidas, como se o ar fosse mais denso e estivesse
a obscurecer a sua visão.
— Não é fumo — disse Drummond, com um ar alarmado. Ele
impulsionou-se da parede lateral e atravessou a sala a correr em
direção a Cassie. — É névoa.
Lottie franziu o sobrolho, sem compreender.
— Dá-me o livro! — ordenou Drummond a Cassie. — Rápido.
— O que é que foi agora? — perguntou Okoro.
A outra extremidade da sala era agora uma parede cinzenta, as
pessoas ali presentes eram apenas formas indistintas a flutuar na
névoa.
E então a névoa abriu-se, como as cortinas de um palco, e
surgiu uma mulher — uma mulher lindíssima, com uma saia preta
em camadas, que faziam lembrar penas de corvo, e um corpete
branco. O seu cabelo era preto como o azeviche e estava penteado
para trás, e parecia estar a usar maquilhagem com efeito esfumado
à volta dos olhos. Trazia uma bolsa preta, pendurada por uma alça
na curva do cotovelo, e numa das mãos segurava um livro que
pulsava com uma luz cinzenta. Tinha a cabeça erguida e os olhos
percorriam os rostos que observavam a sua chegada.
— É a Mulher — disse alguém.
Lottie suspirou, já quase demasiado cansada para ter medo.
Fora sua intenção sair do negócio antes que fosse demasiado
tarde. Uma ou duas últimas vendas e depois fechava a loja.
Mas parecia que tinha esticado demasiado a sua sorte.
Parecia que o demasiado tarde tinha chegado.
MORTE NO SALÃO DE BAILE

E nquanto Lottie continuava o leilão, Cassie abraçou-se


furiosamente a Izzy, agarrando-se a ela como uma sobrevivente
de um naufrágio se agarra a uma rocha no vasto oceano.
— Tive tantas saudades tuas! — exclamou ela, com o coração
inchado e lágrimas nos olhos. Quando se afastou, Izzy pareceu
chocada com a emoção, e depois estudou o rosto de Cassie.
— O que… o que é que te aconteceu? — perguntou ela. —
Pareces… diferente.
Cassie abanou a cabeça, desconsiderando as suas palavras.
— Não tem importância. Eu depois conto-te, mas tive saudades
tuas. Pensei que tinhas morrido.
Izzy abanou a cabeça.
— Eu… bem… aconteceu muita coisa. — Ela acenou com a
cabeça para o homem alto que estava de pé no meio da sala. — O
Lund ajudou-me. Aquele homem… o Hugo… estava em nossa casa,
mas o Lund ajudou-me.
Cassie anuiu com a cabeça e depois voltou a abraçar Izzy.
Era demasiado. Tinham sido dez anos de agonia, incerteza e
vazio, mas Izzy estava ali. Cassie sentiu o cheiro do sabonete de
Izzy, um cheiro tão familiar que a fez sentir-se como se estivesse de
volta ao apartamento, a viverem as suas vidas pacatas e simples,
antes de toda a loucura. Naquele momento, Cassie ansiava por
essa vida simples com uma dor no âmago do seu ser.
— Lamento muito por tudo — murmurou Cassie ao ouvido de
Izzy. — Tenho imensa pena que tudo isto tenha acontecido. Eu
devia ter-te dado ouvidos. Nunca devia ter usado o livro.
Foram então interrompidas por Drummond Fox, que correu para
elas, fazendo-as estremecer de surpresa, com os olhos arregalados
e em pânico.
— Dá-me o livro! — disse ele a Cassie. — Rápido!
Cassie leu o medo nos olhos dele e olhou para trás enquanto a
Mulher emergia de uma nuvem de névoa como se fosse uma
espécie de deus ou demónio. Cassie já tinha visto aquela mulher
antes, nas memórias de Drummond. Já tinham passado mais de dez
anos desde que ela vivera essa memória, mas nunca se esquecera.
A sala pareceu ajustar-se em torno da aparição da Mulher, as
pessoas deslocaram-se em diferentes posições, misturaram-se e
sussurraram umas para as outras. E então o homem negro que
tinha estado a lutar com Hugo deu um passo em direção a ela no
meio da sala.
— Então é você a senhora branca maluca de quem todos têm
tanto medo? — perguntou ele, quebrando o silêncio e lançando um
olhar de desprezo à Mulher. — Não me pareces assim tão
assustadora, mulher.
— Sr. Okoro — disse a Livreira, uma advertência.
— Dá-me o livro — disse Drummond a Cassie, em voz baixa. —
Eu levo-o para as Sombras.
Cassie abanou a cabeça.
— Estou a devê-lo à Livreira — disse-lhe ela, mas mesmo
quando o disse, os seus sentimentos traíram-na. Ela não queria
abrir mão dele. Ela tinha acabado de recuperar o Livro das Portas
após dez anos. Não o ia entregar tão facilmente, a não ser que
fosse absolutamente necessário.
No centro da sala, os olhos da Mulher moviam-se de rosto em
rosto, e depois pareceram fixar-se em Drummond, onde este se
encontrava perto de Cassie e Izzy.
— Quem é aquela? — perguntou Izzy.
Cassie abanou a cabeça, sem tirar os olhos da Mulher.
— E se eu transformar o teu sangue em pedra? — Okoro
escarneceu da Mulher, sacando do seu Livro da Matéria e
segurando-o ao seu lado, com o corpo virado de lado para a Mulher
para proteger o livro. — E caíres morta aqui mesmo? Ou se
transformar o ar dos teus pulmões em líquido e te afogares?
Cassie viu os olhos da mulher deslizarem na direção de Okoro e
fixarem-se nele. O olhar que ela lhe lançou foi o de uma mãe a um
filho que se está a portar mal. A Mulher abanou a cabeça para ele
uma vez, e depois, num instante, a névoa regressou, voltando
rapidamente para dentro da sala para preencher o espaço, baixando
as cortinas entre cada pessoa.
— Mexe-te! — sibilou Drummond, com uma voz incorpórea perto
do ouvido de Cassie. Esta estava a segurar a mão de Izzy, um
aperto firme que as mantinha unidas através da névoa, e sentiu Izzy
a puxá-la para o outro lado da sala.
— Isso não vai funcionar comigo! — gritou Okoro algures atrás
deles, a sua voz a cortar o palavreado em pânico das outras
pessoas na sala. Quase no mesmo instante em que a névoa
apareceu, Cassie viu um pulsar de luz indistinto através do ar
cinzento, e a névoa transformou-se em água, uma parede líquida
que caiu no chão e se agitou contra os lados da sala.
À frente delas, Cassie viu que Lottie já se estava a retirar da
plataforma, o espelho atrás dela a abrir-se para revelar uma
passagem. Izzy olhou para Cassie enquanto corriam, apontando
para a rota de fuga, e Cassie concordou com a cabeça. Verificou
atrás de si e Drummond seguia a alguns metros de distância, com a
cara e o corpo encharcados da água que acabara de cair à sua
volta. Mais atrás, as pessoas, também elas molhadas, batiam em
retirada do salão de baile, lançando olhares nervosos por cima dos
ombros para a Mulher e para Okoro, que andavam lentamente em
círculo, a avaliarem-se um ao outro no centro da pista de dança.
Izzy puxou Cassie na direção oposta.
— Cassie, anda lá! — suplicou ela, dirigindo-se para a passagem
secreta da Livreira.
No meio da sala, Okoro gritou:
— Está na hora de morreres, bruxa!
Cassie não se conteve. Ela tinha de se virar para olhar, tinha de
ver se o homem conseguia matar a Mulher.
A Mulher fechou os olhos, e imediatamente houve uma explosão
de luz, cintilando nas poças e nos pingos de água nas paredes e
espelhos, e toda a gente que restava na sala recuou. Cassie
cambaleou para trás, libertando a mão de Izzy para proteger os
olhos.
— O Livro da Luz! — gritou Drummond, e Cassie lembrou-se da
mulher egípcia da memória de Drummond. A Mulher estava a usar o
livro da amiga de Drummond.
A luz parecia cegar, mesmo com a cabeça virada para o lado e
as mãos à frente dos olhos. Cassie caiu de lado contra a parede,
estendendo uma mão para sentir o estuque húmido, a frescura do
espelho.
— Izzy! — gritava ela, enquanto cambaleava para a frente,
usando a parede como guia.
Ouviu-se um grito desumano, um guincho agudo como o ar a ser
libertado de um pneu sob demasiada pressão. A luz pareceu ficar
mais intensa por um momento, e depois desapareceu, uma memória
apenas nos olhos de Cassie.
Ela pestanejou e olhou em redor, para afastar a distorção da sua
visão. No centro da sala, havia uma poça de sangue e ossos num
fato elegante. A Mulher estava próxima da poça, a olhar para a
bagunça que fora Okoro. Ela ergueu os olhos lentamente para
Cassie, o olhar de um gato que acabara de deixar um animal morto
na soleira da porta: Olha o que eu fiz.
O estômago de Cassie deu uma cambalhota e ela virou-se para
trás, espalhando vómito no tapete encharcado aos seus pés.
Quando olhou para o fundo da sala, viu Izzy a chegar à saída
secreta da Livreira, no exato momento em que o espelho se
fechava.
— Não! — gritou Izzy, batendo no espelho com o punho fechado.
Enquanto Cassie se recompunha, o homem grande que tinha
estado parado em frente à plataforma — Lund, como Izzy lhe
chamara — chegou junto de Izzy. Postou-se ao lado dela de forma
protetora, perscrutando a sala em busca de perigo.
Ele ama-a, pensou Cassie, a ideia surgiu do nada, mas parecia
real, e isso animou-a de alguma forma.
— Não! — gritou Izzy mais uma vez, ainda a bater no espelho.
Cassie viu o homem grande pegar na mão dela e puxá-la para
longe, ao longo do fundo da sala, para o outro lado da pista de
dança. E então Cassie sentiu-se puxada também, Drummond já
com o rosto dele colado ao seu.
— Dá-me o livro! — exigiu ele, mais em pânico do que zangado.
— Não a conseguimos deter!
Cassie olhou por cima do ombro de Drummond para o centro da
sala. A Mulher estava curvada pela cintura e a levar a mão à
amálgama vermelha que outrora fora Okoro. Cassie ouviu um som
húmido de esmagamento e o seu estômago deu outra cambalhota.
— Oh, Deus — murmurou ela. Era como um pesadelo. Mesmo
depois de ter confrontado Hugo Barbary no apartamento, ela não
estava preparada para aquilo.
Os despojos vermelhos no chão pulsavam debilmente, como se
alguns restos desesperados de vida ainda existissem ali. Quando a
Mulher retirou a mão, esta segurava um livro: o Livro da Matéria. Um
sorriso de satisfação espalhou-se pelas suas feições deslumbrantes.
Houve um estalido repentino, como madeira seca a estalar, e as
poucas pessoas que ainda estavam na sala gritaram de surpresa
com o som do tiro.
Atrás da Mulher, o espanhol que Drummond tinha arremessado
para o outro lado da sala apontava às costas dela a arma que Hugo
Barbary deixara cair.
— Dá-me os livros todos! — exigiu o homem. Disparou um
segundo tiro para o teto por cima dele e a Mulher virou a cabeça
para o ver por cima do ombro.
— Dá-me o livro! — exigiu Drummond a Cassie, sacudindo-lhe o
braço.
Cassie abanou a cabeça. Não podia. Olhou para a porta por
onde tinham entrado, no lado oposto da sala. E depois olhou ao
longo da parede e viu Lund a levar Izzy também nessa direção. Se
Cassie conseguisse chegar lá, todos eles poderiam fugir.
— Vamos embora! — disse ela a Drummond, afastando-se dele
com brusquidão e apontando para a porta. — Agora!
Outro tiro foi disparado no centro da sala e Cassie baixou-se por
reflexo, olhando para Izzy em pânico. Izzy olhou-a nos olhos e
Cassie viu medo. Cassie apontou para a porta e Izzy anuiu com a
cabeça e depois bateu no ombro de Lund para transmitir a
mensagem.
No centro da sala, a Mulher estava de frente para o homem com
a arma e Cassie viu o seu lábio superior a curvar-se em sinal de
irritação enquanto levantava o Livro da Matéria ao seu lado. Era o
seu novo brinquedo, percebeu Cassie, um entretenimento com o
qual podia brincar.
O homem com a arma viu alguma coisa nos olhos da Mulher e,
enquanto Cassie observava, pareceu-lhe que ele tinha decidido que,
afinal, talvez os livros não fossem assim tão importantes. Ele
recuou, com a arma em posição defensiva à sua frente, movendo-se
lentamente no início. Mas a Mulher avançou sobre ele, com o Livro
da Matéria a começar a brilhar-lhe na mão.
— Morre de uma vez, mulher! — gritou o homem, disparando de
novo enquanto se afastava. As balas pareceram atravessar a
Mulher, partindo um espelho na parede oposta, perto de onde Lund
e Izzy se encontravam enquanto se dirigiam sorrateiramente para a
porta.
Depois, a Mulher precipitou-se subitamente, atravessando a sala
em direção ao homem num borrão.
Outra bala fez um buraco na parede e o espanhol começou a
gritar quando a Mulher caiu sobre ele, a rosnar como um animal. A
porta, a rota de fuga, estava a poucos passos de distância. Izzy e
Lund estavam a apenas uns metros dela, tão perto. Cassie viu-os a
virarem-se instintivamente para a fonte do grito, quando este rasgou
o ar.
Cassie estava prestes a dizer qualquer coisa a Izzy, a gritar uma
direção, mas então uma bala perdida abriu um buraco no ombro de
Lund, e ele foi atirado para trás contra a parede com um som
gutural.
Depois, uma segunda bala fez explodir o crânio de Izzy,
espalhando uma parte do seu cérebro no espelho atrás dela e
fazendo-a cair no chão.
Cassie ouviu um grito angustiado, um pássaro de desespero a
levantar voo e, um momento depois, percebeu que era a sua própria
voz.
Caiu de joelhos na pista de dança. Izzy estava estendida por
baixo de uma mancha de sangue e miolos na parede, com a boca
aberta em choque, o único olho que lhe restava aberto, como se
estivesse surpreendida.
— Izzy! — gritou Cassie, com as cordas vocais a esticarem-se e
a rasgarem-se. Gritou novamente e as suas mãos foram para as
faces, as unhas a cravarem-se na pele, e o ruído que saía da sua
boca não formava uma única palavra, apenas um grito de agonia.
Sentiu mãos sobre ela, alguém a tentar puxá-la para se levantar,
mas não importava, nada importava; ela tinha resistido durante anos
para reencontrar a sua amiga, e agora Izzy estava morta. A sua
querida amiga, o seu calor, o seu humor e o seu amor, destruídos
num ápice. Um vasto e interminável nada onde momentos antes
tinha sido o tudo de Cassie.
Cassie voltou a gritar, incapaz de se libertar completamente da
agonia que a dominava.
A luz brilhante veio, um sol a explodir na sala, branco e
purificador. Cassie ouviu o estalido de um gatilho, o homem ainda a
tentar disparar a arma muito depois de todas as balas terem sido
gastas.
Cassie já não se importava; ela era agonia, perda e dor em
forma humana.
Izzy tinha morrido por causa dela, por causa das suas escolhas.
Cassie queria morrer, também. Ela não queria ter mais nada que
ver com aquele mundo horrível.
Deu por si a correr, a fugir em direção à porta na parede, tal
como sempre tinha fugido dos seus problemas, com as lágrimas a
escorrerem-lhe dos olhos e a luz mortal a persegui-la.
Então, desapareceu pela porta, querendo ser nada, querendo
não estar em lugar nenhum.
Quinta Parte

O NADA E O LUGAR
NENHUM
Ela não era nada e não se encontrava em lado nenhum. Era apenas
pensamentos e memória no silêncio para lá da realidade.
Nada existia aqui, em lado nenhum e em todo o lado; nada podia
existir. Nada que fosse vivo, muito menos qualquer coisa humana, e
os pensamentos e a consciência que tinham sido Cassie momentos
antes também não teriam existido, não fosse o facto de ela ter
levado o Livro da Segurança com ela. Alguma essência do livro
persistia, recusando-se a deixar Cassie dissipar-se no nada,
ligando-a à existência.
Ela não estava em lado nenhum e estava em todo o lado. Os
seus pensamentos estavam parados e estagnados, existindo, mas
apenas por um triz. Tudo o que havia era pensamento, um único
pensamento que se formava lentamente ao longo de uma época
sem fim. A ideia de ser. Mas esta coisa que era, esta coisa que tinha
sido Cassie, estava em choque e inanimada, persistindo sobre o
nada para lá da criação.
Depois, uma imagem: uma mulher.
Izzy.
Izzy!
O seu rosto horrorizado e despedaçado, vazio.
No nada e em lado nenhum, explodiram muitas cores, um arco-
íris a gritar, e uma nota grave e profunda vibrou e abalou toda a
consciência, uma enorme sirene de nevoeiro a explodir através da
irrealidade.
Depois disso, ficou tudo novamente em silêncio. O choque
daquela imagem de Izzy fez com que a consciência voltasse para a
escuridão como uma criatura assustada. A consciência tentou
esconder-se, para não existir mais. Mas era impossível existir sem
pensar. Mesmo o desejo de não pensar era pensar.
Formaram-se pensamentos à revelia, memórias, emoções e
imagens, todas as coisas que formam um ser humano.
A consciência afastou-se destas coisas, mas não tinha para
onde se virar nem nada atrás do qual se esconder. Só tinha
pensamento.
Esses pensamentos que perturbavam a consciência eram,
inicialmente, coisas distantes, como algo numa praia longínqua, algo
que está definitivamente presente, mas é incerto e indistinto. A
consciência ignorou essas coisas, mas depressa se sentiu atraída
por elas. Com o passar do tempo, foi perdendo o medo. Foi ter com
elas — essas memórias e emoções —, porque o pensamento
precisava de algo em que pensar.
Primeiro foram as sensações, e a consciência recordou as
sensações. Um tipo diferente de pensamento: um pensamento com
substância, uma porta para o mundo exterior.
Óleo e madeira, a humidade de um dia de chuva.
Depois os sons, o zumbido das máquinas, o raspar rítmico da
lixa. E depois a luz e a textura de uma imagem, uma memória: um
homem numa bancada de trabalho. Um homem alto, com peito
largo, com o rosto concentrado no trabalho. E a consciência
lembrou-se da sensação do tato: a sensação das páginas de um
livro entre os dedos. A flexibilidade voluptuosa de músculos jovens,
membros fortes.
O homem na bancada olhou para a consciência — para a coisa
que havia sido Cassie —, e a consciência sentiu outra coisa então:
um súbito desabrochar, como um vasto prado de flores a brotar para
uma vida vibrante todas de uma só vez. Isso era bonito e
reconfortante, tão colorido como o grito em forma de arco-íris
berrante, mas não era terrível e aterrador. Era alegria, e a
consciência estava deliciada com isso.
A consciência sentiu então qualquer coisa, algo para lá do
pensamento. Sentiu-se a si própria, a personalidade que havia sido
Cassie, as vontades e os desejos, os medos e os prazeres. E a
consciência queria mais como o prado da alegria.
Surgiu então outra imagem: um dia quente, com a luz do sol no
rosto e a brisa a fazer-lhe cócegas nas faces. Os seus olhos
estavam protegidos por um chapéu, com a aba a abanar ao vento, e
ela sentia no ar o cheiro do sal grosso do mar. Era de novo uma
jovem mulher, a olhar para o Mediterrâneo a partir de um penhasco
alto, com uma catedral branca atrás de si. Algures na brisa, uma
gaivota grasnou para o céu, e o ruído chegou até Cassie — porque
esse era o seu nome, ela sabia, Cassie — no lugar onde ela se
encontrava, no penhasco.
As cores reapareceram, a trama da realidade, o prado em flor,
um arco-íris no céu na sua visão, mas desta vez a sirene de
nevoeiro era um acorde maior, brilhante e vivo, em vez de um grito
estridente de dor.
Cassie lembrou-se da alegria que sentira naquele momento no
alto do penhasco, da liberdade e da oportunidade, e a sirene de
nevoeiro soou novamente o seu acorde maior. Isto não lhe dava
vontade de fugir. Era a vibração da emoção humana, da sensação,
da vida.
Uma recordação mais sombria irrompeu nos seus pensamentos,
como um intruso numa festa: um quarto sombrio com a figura
torturada do homem que tinha sido o seu avô, agora emaciado e
fraco, a desvanecer-se cada vez mais. A casa onde crescera, o
único lar que conhecera, transformada num lugar onde já não queria
estar. O que outrora fora acolhedor e caseiro era claustrofóbico e
sufocante, e as paredes e a roupa de cama tresandavam a suor,
sangue e dor. Era uma casa de morte, e foi ali que o seu avô
morreu, sozinho, enquanto Cassie dormia numa cadeira, exausta
pelos cuidados que tinha estado a prestar.
Cassie, em lado nenhum, lembrou-se do horror silencioso em
que a sua casa se tinha transformado, e a sirene de nevoeiro soou
mais uma vez, um som furioso, atonal e brutal, e a sua consciência
tremeu. O grito em forma de arco-íris também regressou, mais
vívido e terrível, a guinchar a agonia desta memória, e Cassie, a
consciência, afastou-se, encolhendo-se em si mesma para esquecer
e esconder-se.
Quando Cassie se atreveu a emergir, perante a sua consciência
incapaz de se impedir de flutuar para a superfície, as memórias e
emoções chegaram mais rapidamente. Cada vez mais depressa,
cada uma delas era uma erupção de luz e ruído, todas as emoções
e memórias humanas a irromperem no nada e em lado nenhum por
detrás da realidade. Cassie apercebeu-se de que estava a criar
coisas, a criar por estar a recordar e por existir; toda a realidade em
mudança. As memórias e a dor de Cassie, o seu desespero e a sua
alegria, a sua fuga e o seu medo fizeram a irrealidade tremer e
agitar-se. Todas essas emoções, todas essas lembranças, os blocos
de construção da personalidade e da humanidade, eram demais
para a consciência de Cassie conter.
Aqui fora, no nada e em lado nenhum, a flutuar como
pensamento, ela era poderosa. A consciência de Cassie, em lado
nenhum e em todo o lado, usou o grito em forma de arco-íris, usou
essa energia de criação, para esconder as suas emoções e
memórias, os fragmentos da sua vida que a tinham destruído e
construído e destruído novamente. Eram demasiado para ela, por
isso colocá-los-ia noutro lugar.
Onde mais poderia ela depositar todas essas coisas senão nos
livros? Onde mais poderia guardar todas as suas emoções senão no
lugar onde se encontrava toda a alegria e todo o prazer da vida, à
espera de serem encontrados? E à medida que criava esses livros,
esses livros especiais, nascidos em lado nenhum e em todo o lado,
cada um criado a partir das suas memórias e emoções, dos
fragmentos da sua realidade, Cassie lançou-os pelo mundo,
afastando-os dela, espalhando-os pela realidade e pelo tempo, as
suas páginas cheias de linguagens antigas e novas, conhecidas e
desconhecidas, imagens e palavras, a linguagem de todo o lado.
Ela fez isso ao longo de uma era, não havendo qualquer sentido
de tempo em lado nenhum e em todo o lado, e só depois de ter
esgotado todas as suas agonias e todos os seus prazeres, depois
de ter atirado para a realidade todos os seus livros especiais, depois
de estar vazia, é que descansou em paz.
A consciência que tinha sido Cassie, e que estava a tornar-se
Cassie novamente, dormiu — ou entrou no estado mais próximo do
sono na irrealidade. Quando acordou — ou entrou no estado mais
próximo da vigília em lado nenhum e em todo o lado —, havia mais
Cassie do que consciência. A Cassie em lado nenhum não entrou
em pânico; ela estava apenas consciente de que se encontrava
noutro lugar, num lugar que não era lugar nenhum.
Tinha chegado a este lugar através de uma porta que ela própria
abrira, tentando fugir à realidade e ao horror do que havia feito.
Quando agora se lembrava dos seus terrores, não havia grito em
forma de arco-íris nem prados floridos, não havia sirene de
nevoeiro. Só memória.
Ela sabia que tinha de regressar. A sua consciência não podia
existir neste lugar.
E tal como alguma essência do Livro da Segurança tinha
permanecido e a mantivera viva onde não deveria existir vida,
alguma essência do Livro das Portas permaneceu com ela. E
quando Cassie pensou em regressar, apareceu uma porta, um
retângulo sem caraterísticas especiais que se distinguia do nada por
ser alguma coisa.
O limiar era a única realidade, e atraiu-a para ele, atraiu-a para
algo que Cassie percebeu ser luz.
Trouxe-a de volta à realidade, e tirou-a de nenhures e de todo o
lado.
Sexta Parte

UM PLANO
EM CINCO PARTES
A MULHER,
DEPOIS DO LEILÃO

D epois do leilão em Nova Iorque, a Mulher regressou de carro a


casa, treze horas a conduzir durante a noite, por estradas que
começaram vazias e escuras, e que se tornavam mais
movimentadas à medida que a luz da manhã foi chegando e o dia
se arrastou para a hora do almoço e pela tarde fora.
Estava satisfeita, uma sensação que raramente sentia. Pelo
menos por algum tempo, estava saciada. Tinha levado outro livro
para acrescentar à sua coleção, o Livro da Matéria. Ia gostar de
fazer experiências com ele, como fazia com todos os seus livros,
testando o que podia fazer e como o podia usar noutras pessoas.
Conduziu com um relativo silêncio na sua mente, desfrutando da
satisfação, repetindo alguns dos momentos do leilão. A dor e o
sofrimento foram os que mais lhe agradaram. Ela gostava de ver a
agonia nos rostos das outras pessoas, e preferia quando a agonia
durava, quando era mais do que um momento fugaz.
Voltara a ver Drummond Fox, o que a alegrara, mas, mais uma
vez, ele escapara-lhe. Ela sabia que deveria ter ficado furiosa com
isso, mas não ficou. Pelo contrário, sentia-se revigorada. Tinha
provas, agora, de que o homem ainda vivia, e tinha mais livros. E
ela iria colecionar mais livros nos próximos anos. O tempo estava a
esgotar-se para Drummond Fox, ela sabia. Ela estava a aproximar-
se irrevogavelmente da Biblioteca Fox. Nada poderia impedir isso
agora. Até se poderia dizer que lhe agradava saber que a
experiência seria prolongada. Tinha esperança de aparecer nos
pesadelos dele.
Enquanto a Mulher se arrastava pela estrada até à sua cabana,
viu, para sua deceção, outro veículo estacionado no caminho de
gravilha. Era uma grande carrinha de caixa aberta, estacionada de
frente para a propriedade, com dois homens, um deles sentado no
capô e o outro de pé à sua frente. Havia música a soar da carrinha,
a expelir barulho insistentemente para a tranquilidade vespertina do
bosque. Estavam a rir-se quando ela se aproximou, mas depois
repararam no carro e interromperam a conversa para ficarem a olhar
fixamente. Os dois homens tinham latas de cerveja na mão, e um
deles, o que estava sentado no capô, bebeu um gole casual
enquanto via a Mulher parar o carro. Era alto e magro, com cabelo
claro, e vestia uma t-shirt dos Kiss que parecia ter sido lavada mais
vezes na vida do que ele. O outro homem era mais baixo e mais
gordo, como se só comesse dónutes ao pequeno-almoço, e vestia-
se como se tivesse acabado de sair do trabalho numa bomba de
gasolina ou planeasse ir trabalhar para uma mais tarde.
Os dois homens ficaram a ver a Mulher a sair. Ela perguntou-se
se eles já teriam ido ali antes. Ela estava sempre fora. Talvez fosse
o sítio para onde iam beber e conviver quando estavam aborrecidos.
Ela fechou a porta do carro e encarou-os, sentindo o ar fresco e
denso da tarde, a humidade do verde circundante. Eles fitaram-na,
ambos a avaliaram de cima a baixo, entreolhando-se. O mais alto, o
louro, tinha um olhar faminto e mau. Era o tipo de homem com o
qual a Mulher já se cruzara. Havia muitos do seu género em
pequenas cidades pelo mundo fora.
— Olá, doçura — disse ele.
Ela não comentou.
— Esta casa é tua? — perguntou, acenando com a cabeça para
a casa.
A Mulher anuiu com a cabeça, sem expressão.
— Não estamos a fazer nada de mal, estamos só a beber umas
cervejas — continuou ele. — Não é, George?
— Sim — concordou George, a anuir também com a cabeça,
mas menos seguro de si.
George estava apenas alinhar na conversa do amigo.
A Mulher olhou o mais alto diretamente nos olhos durante algum
tempo, sem dizer nada.
— Tens aí um belo vestido, sim, senhora — disse ele.
A Mulher dirigiu-se para casa sem responder. Destrancou a porta
da frente e abriu-a; as dobradiças chiaram como um pássaro. Olhou
para eles por cima do ombro e depois deixou a porta aberta
enquanto entrava. Era um convite.
Juntaram-se a ela sem demora, tendo desligado a carrinha e
entrado apressadamente em casa.
Foi esse o erro deles. Se se tivessem simplesmente ido embora,
ela não os teria perseguido.
A Mulher esperou por eles no interior da casa, postada numa
pose afetada, com a mala no braço, junto à porta da cave. Quando
eles chegaram, passando desajeitadamente a soleira da porta, com
expressões iguais às dos cães na hora de comer, ela abriu a porta
da cave e desceu à frente deles as velhas escadas de madeira.
Quando os homens se juntaram a ela no fundo das escadas, ambos
olharam em redor com cautela. O homem alto viu o colchão no
canto e deu uma cotovelada ao outro. Não anteviam nenhum perigo,
apenas uma oportunidade.
A Mulher decidiu que queria experimentar o livro que havia tirado
ao homem negro no leilão — o Livro da Matéria. Tinha de
experimentar para compreender o seu potencial. Que fortuito que
dois homens lhe tivessem caído no colo.
Ela fez um gesto para que o homem alto se adentrasse mais na
divisão. E depois fez-lhe um gesto para que se deitasse no chão.
— O quê, aqui? — perguntou ele, lançando um sorriso ao amigo.
— No chão?
A Mulher assentiu, e o homem obedeceu alegremente, caindo no
chão de cimento por baixo da lâmpada oscilante e deitando-se de
costas.
A Mulher olhou para o outro homem por cima do ombro e fez-lhe
um gesto em direção ao colchão no canto. Ele parecia assustado,
pensou ela, mas acedeu obedientemente.
— Espero que esteja pronta, menina — disse o homem no chão,
olhando-a de soslaio. — Nunca apanhou nada que se pareça
comigo!
Enquanto a Mulher olhava de cima para ele, o homem fez um
gesto com as duas mãos, encorajando-a a juntar-se a ele. Ela
agachou-se, com uma mão no cimento e enfiando a outra na mala
para pegar no Livro da Matéria. Dirigiu a sua vontade para o chão,
amolecendo-o até se transformar em matéria líquida por baixo do
homem. Depois pressionou-lhe o peito com a mão. Ele não se
apercebeu; ainda ficou a sorrir por um segundo ou dois,
perguntando-se o que estaria ela a fazer, olhando para os pés dela
como se estivesse a descalçar os sapatos. Depois reparou que se
estava a afundar. A sua expressão mudou, a incompreensão
começou a notar-se, e a Mulher adorou.
— Ei, espera aí…!
Ele debateu-se no betão pastoso, mas não encontrou nenhum
ponto de apoio, e os seus esforços só o fizeram afundar-se mais
depressa. Depois, o betão começou a subir à volta do seu rosto, a
cobrir-lhe as pernas, e ele ficou em silêncio enquanto entrava em
pânico e tentava libertar-se, lutando para sobreviver. Enquanto ela
observava, viu os olhos dele ficarem esbugalhados e brancos à
medida que o betão o engolia.
Até que os olhos do homem deixaram de se ver, e apenas os
lábios, as narinas e os dedos de uma mão se projetaram, e a Mulher
tornou o betão sólido novamente, endurecendo-o à volta do seu
corpo magro com um som crepitante. Ela observou com interesse
por alguns minutos enquanto os lábios do homem se mexiam e
davam estalidos e a lâmpada continuava a oscilar para a frente e
para trás por cima dele, sombras que cresciam e que diminuíam,
enquanto ele lutava por ar, enquanto os seus pulmões tentavam
insuflar para dentro do seu peito esmagado. Ela perguntava-se o
que lhe ocuparia os pensamentos, a sufocar na escuridão.
Depois, os estalidos pararam, as respirações irregulares
esgotaram-se e as partes visíveis do corpo do homem ficaram
imóveis.
No canto da cave, no colchão, o outro homem estava encolhido
numa bola e a choramingar. Quando a Mulher o encarou, ele calou-
se. Tinha as mãos fechadas à frente da boca como se se quisesse
esconder, os olhos arregalados e aterrorizados.
— Por favor — implorou ele, com lágrimas nos olhos. — Por
favor, não me mate. Eu faço qualquer coisa. Nós não lhe íamos
fazer nada.
A Mulher nem sequer ouviu as palavras que ele proferiu.
Aproximou-se dele, segurando no Livro da Matéria ao seu lado e
recordando o que o homem negro tinha dito, sobre encher-lhe os
pulmões de água ou transformar-lhe o sangue em pedra. A Mulher
estava interessada na ideia da transmutação de um ser vivo. Estava
interessada no terror que alguém poderia sentir quando a sua
própria matéria fosse transformada noutra coisa. Por isso,
experimentou. Decidiu tornar líquidas as células do homem.
Agachou-se de novo, avançando com a mão para a colocar
suavemente sobre a perna do homem. Na sua outra mão, o Livro da
Matéria começou a ficar pesado e a brilhar na escuridão, lançando
cores para os recantos da cave. A Mulher dirigiu a sua vontade
enquanto o homem no colchão observava, horrorizado. Ela queria
que as células dele se tornassem líquidas, e quase imediatamente
viu o seu rosto a ficar frouxo.
Ela ouviu um gorgolejo e depois a pele do homem começou a
escorrer-lhe dos ossos como se fosse xarope. Ele voltou a
gorgolejar e a Mulher apercebeu-se de que ele talvez estivesse a
tentar dizer alguma coisa, talvez estivesse a tentar gritar de terror.
Ela forçou ainda mais a sua vontade e os órgãos do homem, e
até os seus ossos, transformaram-se num líquido espesso,
colapsando sobre si próprios como uma escultura de chocolate a
derreter ao calor.
O que havia sido um homem era agora uma sopa cor-de-rosa,
espumosa, que se acumulava no velho colchão e escorria da borda
para o chão. A Mulher retirou a mão e limpou o resíduo no colchão,
enquanto à sua volta a cor se esvaía do mundo, o Livro da Matéria
novamente adormecido.
Levantou-se e inspecionou o que tinha feito, enquanto a sopa
tremia. Pareceu-lhe ouvir outro gorgolejo, talvez um último grito
desesperado de terror vindo da poça no colchão.
Depois, pensou ter ouvido outro ruído, ou detetar algo mais no
ar, e a mente da Mulher ficou subitamente silenciosa. Olhou para as
escadas, para o outro homem engolido pelo betão, procurando o
que poderia ter perturbado o ar. Tinha sido um momento estranho,
algo que ela nunca tinha sentido antes. Mas tão breve… e depois
passou.
Ela olhou em redor, atentamente à escuta. Mas não havia ali
nada. Apenas os dois homens mortos, ou o que restava deles.
A Mulher dirigiu-se ao cofre no canto. Destrancou-o e tirou os
livros da mala, os três que tinha levado consigo nessa manhã e o
Livro da Matéria, um novo prémio para acrescentar à sua coleção.
Depois, voltou a fechar o cofre e afastou-se. Puxou o fio para
apagar a luz e dirigiu-se ao quarto para se livrar do cheiro da cidade.
A REALIDADE, OUTRA VEZ

C assie caiu de novo na realidade, da luz do nada para a


escuridão de qualquer coisa.
Mas não era uma escuridão absoluta; havia ali uma sugestão de
luz. Quando ela levantou a cabeça e os seus olhos se reajustaram à
realidade, viu menos escuridão à sua direita, mais escuridão à sua
esquerda.
O chão era macio sob as suas mãos e joelhos… macio e
húmido.
— Alcatifa — disse ela, a palavra a cair no chão como um
pássaro morto na acústica plana da sala.
Encontrava-se num espaço grande… e a luz parecia agora mais
percetível, à sua direita. Havia uma porta e, para lá dela, eram
visíveis formas vagas.
Cassie levantou-se com as pernas trémulas e tropeçou para trás
contra um objeto sólido. Uma parede. Esticou a mão e sentiu uma
maçaneta, uma porta. Uma frescura suave… um espelho.
E então lembrou-se. Lembrou-se do salão de baile e do caos.
E de Izzy.
A memória deu-lhe um murro no estômago e fê-la arquejar, e ela
caiu de joelhos mais uma vez.
— Izzy — lamentou ela.
A amiga dela. A sua bela amiga, que bebia vinho de canecas e
dormia na cama de Cassie quando ela tinha frio. Foi-se. Tudo o que
ela fora, destruído num instante.
Cassie deitou-se no chão húmido e ficou vazia de tanto chorar.

Passado algum tempo, esgotadas as lágrimas e entorpecida pela


dor, dirigiu-se para a porta e conseguiu ver luz vinda de perto, uma
escadaria com claraboias no alto. Encontrou interruptores e
experimentou-os com a sua mão trémula, e as luzes acenderam-se
atrás dela no salão de baile.
Era como ela se lembrava dele. Grande e quadrado, com
espelhos e vidros do candelabro partidos e espalhados pelo chão.
Havia humidade no ar e ela lembrou-se da névoa que se tinha
transformado em água. Viu manchas negras de bolor ao longo da
parte de baixo da parede junto à alcatifa, mas não havia corpos.
Ansiara com terror o ato de acender a luz no caso de Izzy ainda lá
estar, deitada com o seu único olho branco e em choque. Mas
alguém tinha retirado os cadáveres. Cassie perguntou-se onde é
que Izzy estaria agora. Estaria ela numa sepultura anónima com os
outros corpos? Sozinha e esquecida para a eternidade?
Afastou esses pensamentos cruéis, incapaz de abrir a sua mente
a tais possibilidades.
Enquanto se dirigia para o lado mais distante do salão de baile,
para a porta que tinha acabado de atravessar atabalhoadamente,
interrogou-se inutilmente sobre quanto tempo teria passado. Parou e
olhou para a parede ao lado da porta. Fora nesse sítio que Izzy
tinha caído, ela sabia, mas não havia sangue na parede.
Cassie passou os olhos pelo resto da sala. Havia marcas noutras
zonas das paredes, sangue de outras vítimas, buracos de balas.
Quem quer que tivesse levado os corpos não tinha limpado a
divisão. A humidade na alcatifa era prova disso. Não tinha havido
qualquer esforço para arrumar a desordem e reparar os estragos.
Mas porque é que o sangue de Izzy tinha sido limpo?
Cassie esfregou a cabeça, perguntando-se se não estaria a
recordar-se mal. Uma semente de esperança surgiu na terra árida
do seu coração, mas ela recusou-se a irrigá-la. Sabia o que tinha
visto. Ninguém poderia sobreviver a um ferimento daqueles.
Saiu do salão de baile, deixando para trás o bolor, a humidade e
as memórias do caos, e deu por si num átrio. Atravessou-o até ao
que parecia ter sido outrora uma majestosa entrada, mas todas as
janelas e portas tinham sido entaipadas. Havia uma única porta
recortada na madeira, mas estava trancada do lado de fora,
aparentemente. Um cadeado, talvez, num ferrolho grosso. Cassie
abanou a porta, mas ela não se mexeu.
Ficou ali por instantes, rodeada de silêncio, sem saber o que
fazer. Estava a esforçar-se até para ter um pensamento consciente
e direcionado.
— Pensa, mulher — murmurou ela.
Deu então uma palmadinha no bolso e descobriu que ainda
trazia dois livros. Como se tudo o que havia levado vestido e nos
bolsos tivesse sobrevivido ao local onde tinha estado.
Parou, com o sobrolho franzido, enquanto contemplava aquele
lugar, pela primeira vez a pensar nele convenientemente.
Estava em lado nenhum, um lugar onde nenhuma pessoa
deveria existir. Estava algures fora da criação, num universo ou
realidade diferentes. Mas ao qual ela havia sobrevivido.
— Por causa dos livros — disse ela. — O Livro da Segurança.
Ela tinha sobrevivido e regressado, de um lugar diferente, de
uma realidade diferente. Era o lugar de onde os livros tinham vindo,
teve consciência disso. Era o lugar de onde vinha a magia.
Toda aquela magia, e a Izzy continua desaparecida, pensou ela
com amargura.
Nesse momento, Cassie lembrou-se da Livreira. Lembrou-se da
mulher que fugiu pelo espelho quando a violência começou,
bloqueando a fuga de Izzy.
— Cobarde! — murmurou para si própria.
E lembrou-se de Drummond a usar o Livro do Controlo para a
proteger, e o seu coração amargo animou-se ligeiramente.
Interrogou-se sobre o que lhe teria acontecido. Deu-se conta de que
estava preocupada com ele.
E lembrou-se da Mulher. A bela e monstruosa mulher que tinha
feito coisas terríveis com os livros.
Com os seus livros.
Porque Cassie sabia agora que os livros eram dela. Criados por
ela no nada e em lado nenhum.
Os livros eram dela. E ela não podia deixar que a Mulher
continuasse a usá-los. Não iria permitir tal coisa.

Cassie usou o Livro das Portas e atravessou uma das portas do


salão de baile para o seu quarto no apartamento que partilhava com
Izzy. Viu que estava um dia de sol, um dia claro e brilhante para lá
da janela ao lado da cama.
Há mais de dez anos que não entrava naquele quarto e, de certa
forma, parecia que tinha passado mais tempo do que isso enquanto
ela tinha estado no nada e em lugar nenhum.
Despiu-se, sem se importar com mais nada, e enfiou-se na
cama, fechando os olhos e puxando o edredão por cima da cabeça
para se isolar do mundo.
Dormiu.

Quando acordou, sentia-se mais próxima do seu antigo eu, o que


quer que isso significasse, e depois lembrou-se de que Izzy tinha
desaparecido, e as suas entranhas caíram num poço sem fundo.
— Oh, Izzy.
Sentou-se, sentindo-se mais pesada e vazia do que alguma vez
se lembrava de ter estado, com a roupa da cama amarfanhada junto
à cintura. Permaneceu ali sentada durante muito tempo, tentando
aceitar a ideia de que a luz e a vida de Izzy já não existiam no
mundo. Ficou a olhar para a janela. Parecia que tinham passado
algumas horas. Ainda havia luz do dia lá fora, mas a noite estava a
chegar. Conseguia ouvir os sons tranquilizadores e normais da
cidade: o trânsito, as buzinas dos carros, as pessoas a gritar. Tão
maravilhosamente mundano.
Os seus olhos deslocaram-se para a estante ao fundo da cama e
pousaram na edição do Sr. Webber d’O Conde de Monte Cristo.
Sorriu com pesar para si própria, recordando os tempos felizes da
última década.
Porque é que ela estava rodeada de tanta tristeza?
Obrigou-se a levantar-se, tomou um duche e vestiu roupas
lavadas, tirando alguns minutos para se divertir a remexer no
guarda-roupa e nas gavetas que não via há uma década. Era um
prazer estranhamente simples. Depois de vestida, guardou os dois
livros nos bolsos, para que estivessem sempre consigo.
Atravessou a casa até à porta do quarto de Izzy. Parou por
momentos antes de entrar, respirando fundo para acalmar as suas
emoções, e depois entrou. O quarto cheirava à sua amiga, uma
mistura de sabonete, champô e perfume, o cheiro a pairar no ar
como uma memória. Tudo o que restava de Izzy, e isso também
desapareceria lentamente com o tempo.
Cassie sentiu as suas emoções a fervilharem novamente quando
percorreu a sala. Os seus olhos fixaram-se nas fotografias e postais
colados na parede — fotografias de Izzy e Cassie ao longo dos
anos, de ambas na Kellner Books, naquela terrível viagem à Florida.
Havia postais dos pais de Izzy — mais por serem de sítios onde Izzy
queria ir do que por ela querer guardar as mensagens. E havia
recortes de revistas, imagens de modelos em roupas caras das
quais Izzy tinha gostado particularmente.
Cassie passou a mão pela parte de cima da cómoda da amiga,
onde ela guardava toda a maquilhagem e artigos de higiene
pessoal. Parecia vazia agora, como se algumas das suas coisas
tivessem sido levadas, e deu por si a perguntar-se novamente se
não estaria a recordar mal o que acontecera.
Demorou alguns instantes a abrir as gavetas de Izzy, o roupeiro
embutido e, durante todo esse tempo, tinha cada vez mais a certeza
de que faltavam alguns pertences de Izzy. Onde estava a camisola
de lã que Cassie lhe tinha comprado havia dois Natais? Onde
estavam as leggings preferidas dela? As calças de ganga pretas?
Onde estava a pequena caixa de joias que Izzy guardava nas
gavetas junto à cama? Teriam sido assaltadas?
Cassie regressou ao seu próprio quarto e remexeu nas roupas
que tinha despido antes. Encontrou o telemóvel e ligou-o.
Esperou impacientemente enquanto o telemóvel iniciava o
processo de arranque. Depois de ligado, Cassie suspirou ao ver três
coisas em rápida sucessão.
Primeiro, estava no início de março; tinham-se passado meses
desde os acontecimentos no salão de baile.
Em segundo lugar, tinha recebido uma mensagem de voz do
telemóvel de Izzy, nos dias que se seguiram à suposta morte da
amiga.
E, em terceiro lugar, nos últimos três meses, alguém tinha
andado a enviar mensagens a Cassie com poucos dias de intervalo,
cada mensagem contendo apenas a imagem de uma porta, e cada
porta diferente da anterior.
FOGUEIRAS NA PRAIA
À NOITE

N uma praia ao anoitecer, na costa oeste dos Estados Unidos,


Lund fez uma fogueira. Tinha comprado madeira e acendalhas
numa loja de ferragens da cidade, bem como um isqueiro de
plástico antiquado, que utilizou para acender o lume.
— Deixa-me ver isso — disse Izzy ao aproximar-se, com um
saco na mão. Ele atirou-lhe o isqueiro por cima da fogueira e ela
apanhou-o enquanto se sentava na areia. — Eu tive um destes
quando era mais nova. Tentei fumar durante algum tempo —
explicou ela. Parecia o início de uma história, mas ela não disse
mais nada e os seus olhos desviaram-se para o fogo.
O oceano Pacífico murmurava à frente de Lund, e o vento
afagava-lhe a face enquanto ele olhava para o céu escuro. Estavam
em março, mas era uma noite quente, com pouca frescura no ar.
Encontravam-se agora bastante a norte, fora da Califórnia e já
no Oregon, mas o tempo fora-lhes favorável durante a última
semana. Estavam em Pacific City, um aglomerado de casas de
férias e parques de caravanas que se estendiam por três ou quatro
ruas ao longo de uma faixa de areia dourada e de uma ampla baía.
Era um lugar de turistas, locais e estrangeiros, um lugar onde um
casal de viajantes podia passar despercebido facilmente.
— Trouxe batatas fritas e uma Coca-Cola — disse Izzy. Enfiou o
isqueiro no bolso e passou-lhe um pacote de batatas fritas. —
Espero que não haja problema.
— Sim — disse ele.
O fogo estava agora bem forte, a roçar nos troncos, e ele viu o
brilho refletido no rosto de Izzy enquanto ela observava as chamas.
Eles estavam a queimar tempo, ele tinha perfeita consciência
disso. Desde o salão de baile e de Nova Iorque, tinham andado de
um lado para o outro só para se manterem escondidos, a queimar
tempo até que algo acontecesse. Ele não sabia do que é que
estavam à espera, mas não se importava de continuar à espera.
Tinham viajado primeiro para sul e oeste, em autocarros Greyhound
de longo curso, decidindo para onde ir a seguir em cada paragem, e
acabaram por chegar à costa oeste, na Califórnia. Ficaram numa
cidade durante algumas semanas, até que ambos sentiram a
necessidade de se mudar, subitamente desconfiados de que algo os
perseguia, receosos de uma sombra no horizonte, cada vez mais
próxima. Nos últimos tempos, tinham vindo a arrastar-se lentamente
pela costa oeste, ao longo da Pacific Coast Highway, a pedirem
boleia à beira da estrada ou a cravarem boleia a pessoas que
conheciam em bares.
Ele olhou para Izzy. Ela estava sentada com os braços à volta
dos joelhos e o rosto virado para o Pacífico. Tinha o cabelo
apanhado num puxo, e a brisa brincava com os fios. Ela era linda, e
tão pouco consciente disso.
Lund tinha gostado dela assim que a viu, desde a piada que ela
dissera a Azaki sobre a falta de estilo da amiga. Ele desejava estar
com ela desde então, e ela parecia gostar de o ter por perto. Não
era mais do que isso, e ela parecia tão perdida nos seus próprios
pensamentos na maior parte do tempo que nunca se lhe afigurara
correto sugerir algo mais. Não que Lund estivesse à espera de
conseguir conquistar o afeto dela com falinhas mansas. Ele não
tinha as palavras certas para isso. Mas não se importava de
simplesmente estar com ela, de ser digno da sua confiança, e não
se importava de esperar para ver o que mais ela poderia querer, ou
não. Não tinha mais nenhum sítio onde estar.
Satisfeito com o facto de o fogo já se aguentar sozinho,
recostou-se na areia, esticando as pernas e apoiando-se num
cotovelo. Sentia o calor das chamas no rosto. A fogueira discursava
com crepitações, enquanto o mar sussurrava, e Izzy mantinha-se
em silêncio. Atrás deles, uma fila de apartamentos de férias erguia-
se à beira da praia, e ele conseguia ouvir o murmúrio das conversas
das pessoas sentadas nas varandas, a observarem a noite
segurando copos de vinho e aconchegadas com cobertores quentes
à volta dos ombros.
Lund estendeu a mão às batatas fritas e abriu o pacote. Comeu
durante algum tempo, estudando as estrelas espalhadas pelo céu.
— Bonito — disse ele, gesticulando vagamente para cima.
Izzy pareceu não o ouvir. Ele sabia que ela estava a pensar na
amiga. Era o que lhe ocupava a mente desde que tinham fugido de
Nova Iorque. A amiga tinha desaparecido por uma porta no salão de
baile e não se ouviu falar mais dela. Em algumas ocasiões, ele
tentara abordar com ela a possibilidade de a amiga ter desaparecido
para sempre, mas Izzy não se mostrara disposta ou capaz de
aceitar essa ideia, pelo que ele parou de dizer fosse o que fosse.
Agora, limitava-se a esperar. Ela tinha de perceber aquilo que lhe
faltava e o que tinha acontecido à amiga no seu próprio tempo.
— Come — disse ele, atirando-lhe o pacote de batatas fritas por
cima da areia.
Izzy baixou o olhar para ele e, conforme o fez, a cabeça dela
moveu-se e Lund viu um vulto mais à frente na praia. Havia outras
pessoas na areia, sentadas à volta de fogueiras como Izzy e Lund,
alguns casais a passear de mãos dadas e até um grupo de crianças
a correr e a gritar, mas o vulto destacava-se do ruído de fundo
porque estava sozinho e imóvel. E parecia estar a olhar na direção
deles.
Izzy pegou numa mancheia de batatas fritas e depois viu que os
olhos de Lund estavam a olhar para lá dela.
— O que foi? — perguntou ela, virando a cabeça.
A figura na praia moveu-se então, alguns passos na direção
deles, com o rosto iluminado por outra fogueira.
— Cassie? — perguntou Izzy, uma pergunta sussurrada.
Lund impulsionou-se da areia para se sentar direito.
A figura aproximou-se e Lund viu que Izzy tinha razão.
— Cassie! — gritou Izzy, saltando e atirando as batatas para o
lado. As duas mulheres correram uma para a outra e abraçaram-se.
Lund voltou a olhar para o fogo, pensando que a coisa por que
esperavam tinha finalmente chegado. Ficou surpreendido ao
descobrir que estava desiludido com isso.

— Pensei que tinhas morrido — disse Cassie. Ela sentou-se do


outro lado da fogueira, em frente a Lund, e as chamas pintaram
imagens no seu rosto. Izzy apresentara-os quando Cassie se
sentou.
— Obrigada por teres tomado conta dela — agradeceu-lhe
Cassie, enquanto lhe apertava a mão.
Ele encolheu os ombros, não disse nada, e depois ela anuiu
simplesmente com a cabeça e sentou-se do outro lado da fogueira.
As duas mulheres conversaram durante alguns minutos, parecendo
esquecer-se de que ele ali estava. Não era uma experiência invulgar
para ele; apesar do seu tamanho, Lund causava pouco impacto em
situações sociais. Desaparecia em segundo plano. Era um pária,
vivendo sempre um pouco à margem de todos os outros.
— Eu sei — disse Izzy. — Foi por isso que te deixei a
mensagem. Não suportava a ideia de que pensasses que eu tinha
morrido.
Ela estendeu a mão e segurou no braço da amiga.
— O que é que aconteceu? — perguntou Cassie. — Como é que
eu te vi morrer?
Izzy encolheu os ombros e olhou para Lund do outro lado da
fogueira. Tinham falado sobre isso muitas vezes, especialmente nos
primeiros dias. Ou Izzy tinha falado sobre isso, e Lund tinha ouvido,
oferecendo uma palavra ou duas de vez em quando.
— Não sei, para ser sincera — disse Izzy. — A melhor
explicação que conseguimos arranjar é que foi o Livro da Ilusão.
Cassie franziu o sobrolho.
— O Livro da Ilusão?
— Cria ilusões — esclareceu Izzy. — Faz com que as pessoas
vejam as coisas de forma diferente de como elas são efetivamente.
— Izzy virou-se para Lund, como se estivesse à procura de ajuda.
— A Izzy tinha o Livro da Ilusão no bolso — disse ele.
— Onde é que o arranjaste? — perguntou Cassie.
— Fui eu que lho dei — disse Lund. — Era de um amigo meu.
Estava a tentar usá-lo no hotel antes do leilão. Acabou por ficar com
a Izzy. Quando as coisas começaram a correr mal, com todas as
balas a voar e tudo o resto, a Izzy ficou aterrorizada. Achamos que,
se calhar, uma parte dela conseguiu usar o Livro da Ilusão para se
proteger depois de eu ter sido alvejado. Fê-la parecer morta para
que mais ninguém lhe fizesse nada.
O ombro de Lund continuava a doer, sobretudo quando estava
frio. Mas a bala que o tinha apanhado no salão de baile parecia ter
atravessado, mesmo por baixo da clavícula. Sangrou durante alguns
dias e doeu bastante durante algumas semanas, mas passados dois
ou três meses já conseguia passar o dia sem analgésicos. O braço
parecia-lhe mais fraco agora, em certos movimentos, mas não tinha
afetado a sua vida.
— Então, o quê, conjurou um ferimento e um cadáver? —
perguntou Cassie.
— Pensei que ia levar um tiro — disse Izzy, a olhar para o fogo.
— Depois de ver o Lund, só imaginava que ia levar com uma bala
no cérebro.
— Foi o que eu vi! — exclamou Cassie.
— Protegeu-a — disse Lund. — Depois de desapareceres pela
porta, a Mulher voltou a sua atenção para o homem que estava
contigo.
— O Drummond… — disse Cassie.
— Ele desapareceu, como se fosse fumo ou assim — disse
Lund. — Eu estava a ver. Estava ali deitado a fazer-me de morto, à
espera de que ela não reparasse em mim no meio de todos os
outros corpos. Depois de aquele homem… o Drummond… ter
desaparecido, ela nem sequer olhou para mim. Nem para a Izzy.
Nem para mais ninguém. Foi-se simplesmente embora.
— Ela não sabia que tinhas o Livro da Ilusão — disse Cassie a
Izzy. — Se soubesse, tinha-to tirado. Provavelmente matava-te.
Izzy assentiu. E sorriu com ar culpado.
— Devias ter visto a cara dele quando me sentei um minuto
depois. — Lund olhou para o fogo, permitindo que ela desfrutasse
do momento. — Foi como se tivesse visto um fantasma — troçou
Izzy. — Lund sorriu para si próprio. Ele tinha apenas ficado feliz por
ela estar viva. — Ele balbuciou disparates durante algum tempo, até
eu conseguir explicar-lhe que não era um fantasma. Que estava
viva.
Izzy contou-lhe como tinham saído do hotel depois disso. Como
tinham regressado ao apartamento que ela partilhava com Cassie,
porque não sabia para onde ir. Tinham tratado do ferimento dele o
melhor que conseguiram, e depois Izzy tinha reunido algumas
coisas e tinham-se ido embora, dirigindo-se para a estação de
autocarros para apanhar o primeiro que conseguissem para
qualquer outro lugar.
— Não sabíamos para onde estávamos a ir — disse ela. — Só
não queríamos ficar ali. Tinha medo de que ela viesse atrás de nós.
— Lund viu Cassie anuir com a cabeça. — E eu não sabia o que te
tinha acontecido — continuou Izzy. — Mas queria ter a certeza de
que nos encontravas. Por isso, sempre que parávamos, mandava-te
uma fotografia da porta. Não sabia se virias, mas a esperança
nunca desapareceu…
— Como é que nos encontraste aqui? — perguntou Lund. — Na
praia?
— Perguntei no motel. Disseram-me que ainda estavam lá
alojados. Por isso, comecei a seguir o barulho e a atividade. Onde
mais é poderiam estar numa cidade como esta, à noite?
— Estou tão contente por estares aqui — disse Izzy,
aproximando-se para abraçar Cassie novamente.
Lund bebeu a sua Coca-Cola, deixando-as ter o seu momento.

Lund ouviu durante algum tempo enquanto Cassie contava a Izzy


sobre os seus dez anos no passado. Parecia inacreditável, mas ele
já tinha visto tantas coisas inacreditáveis que já acreditava em tudo.
— Então, como é que é? — perguntou Izzy, franzindo o sobrolho.
— És agora oito anos mais velha do que eu?
— É verdade — disse Cassie. — Velha, flácida e grisalha. Eu
sou o vosso futuro.
— Para onde é que foste? — Lund perguntou, então,
estranhamente desejoso de cortar a felicidade delas. Ele não sabia
porque se sentia assim. — Quando saíste do salão de baile? Onde
é que estiveste este tempo todo?
Cassie não respondeu imediatamente. Os seus olhos ficaram
vidrados enquanto olhava para o fogo, e depois as suas
sobrancelhas franziram-se brevemente.
— Fui parar a outro sítio — contou ela. — Estava em lado
nenhum, num sítio aonde os seres humanos não vão.
— O que queres dizer com isso? — perguntou Izzy.
Cassie encolheu os ombros.
— É difícil de explicar. Quando pensei que tinhas morrido, só
queria fugir; queria ser nada e estar em lugar nenhum. Por isso, abri
uma porta e fui para lá. Para… o nada. — Ela abanou a cabeça. —
Eu nem sequer me lembro bem disso. É como estar a sonhar,
talvez… Sabes que tiveste um sonho, mas assim que acordas ele
desvanece-se. — Lund não conseguia encontrar sentido naquelas
palavras. Olhou para Izzy por entre as labaredas e viu-a a analisar
Cassie. — E depois, a dada altura, dei-me conta de que queria
voltar para casa. Apareceu uma porta e atravessei-a. E aqui estou
eu.
Izzy anuiu lentamente com a cabeça.
— Bem — disse ela —, independentemente de onde estiveste,
ainda bem que voltaste.
— Talvez um dia te fale mais sobre isso. Se eu própria alguma
vez compreender.
— O que é que vais fazer agora? — perguntou Izzy.
— Não sei — admitiu Cassie. — Mas não quero passar a minha
vida a fugir daquela mulher.
Izzy lançou um olhar a Lund. Era exatamente isso que tinham
andado a fazer.
— Quem é ela? — perguntou Izzy.
— Não faço ideia — respondeu a amiga. Izzy olhou para Lund e
ele encolheu os ombros.
— Vais tentar travá-la? — perguntou Lund, fazendo com que os
olhos de Cassie se focassem nele. Ela observou-o em silêncio por
instantes e depois encolheu os ombros também.
— Não sei. Ainda não tinha pensado tão à frente. Estava
concentrada em encontrar-vos primeiro.
— Nós ajudamos — disse Lund, e agora as duas mulheres
ficaram a olhar para ele. — O que quer que queiras fazer, nós
ajudamos.
— Desde quando é que falas por mim? — perguntou Izzy, mas
num tom divertido. Lund perguntou-se se ela teria gostado do que
ouviu.
— Desculpa — ofereceu ele. — Quero dizer, eu ajudo. Não
posso falar pela Izzy.
— Obrigada — disse Cassie, a sorrir para ele. — Agradeço.
— Não estás sozinha, Cassie — disse Izzy, estendendo
novamente a mão. — Agora estás com amigos.

Lund foi buscar mais bebidas e batatas fritas à loja que ficava a
algumas ruas da praia. Demorou algum tempo, deixando Izzy e
Cassie a sós. Quando regressou, a praia tornara-se mais calma e o
vento do oceano tinha um toque mais agreste. Dedicou alguma
atenção à fogueira, reanimando as chamas e o calor, e passou
cervejas a Izzy e a Cassie.
— Onde é que vais ficar a dormir? — perguntou Izzy.
— Vou arranjar um quarto no motel — disse a amiga. — Ou, se
não houver nenhum vago, vou para outro sítio. Tenho o livro.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, ouvindo apenas o som
das ondas e o crepitar do fogo.
— O que é que fizeste com o livro? — perguntou então Cassie,
com os olhos nas chamas. — O Livro da Ilusão?
Izzy olhou para Lund.
— Enterrámo-lo — respondeu ele.
— Não achámos que fosse seguro mantê-lo connosco —
esclareceu Izzy.
— Voltaste a usá-lo? — perguntou Cassie a Izzy. — Descobriste
como é que se criam ilusões?
Izzy disse que não com a cabeça.
— Talvez só consiga fazer magia em caso de morte iminente.
Lembras-te daquilo que o Drummond disse quando estávamos em
Lyon? Algumas pessoas conseguem aprender a usar os livros.
— Sim — disse Cassie.
— Talvez eu consiga aprender a usar o Livro da Ilusão — disse
Izzy. Ela olhou para o fogo. — Mas não sei se o quero fazer.
— Precisamos do livro — insistiu Cassie. — Se a Mulher pensou
que estavas morta, isso significa que as ilusões funcionam nela.
Talvez possamos usar uma ilusão para a derrotar.
— Podemos ir desenterrá-lo, então? — sugeriu Izzy.
— É longe? — perguntou Cassie.
— Sim — disse Lund. — É longe.
— A que distância?
— Demoramos alguns dias para chegar lá, a não ser que
arranjemos um carro.
— Não precisamos de um carro — disse Cassie. — Só
precisamos de uma porta lá perto.
Lund bebeu a sua cerveja e abanou a cabeça.
— Não há lá portas por perto — disse ele. — O teu livro só te
consegue levar até certo ponto. Nós pensámos nisso. Só para o
caso de alguém ter ficado com o teu livro.
Ele viu-a assentir, consciente do cuidado que tinham tido.
— Está a ficar frio — disse então Izzy. — E o resto das pessoas
está a ir-se embora. Vamos para dentro? Não gosto destes sítios
vazios quando não há mais ninguém por perto.
— Miúda da cidade lá bem no fundo — murmurou Cassie.
Lund pôs-se de pé num salto e apagou a fogueira, atirando areia
para cima dela.
— Vens? — perguntou Izzy a Cassie, enquanto Lund a puxava
para cima.
— Vou já a seguir — disse ela. — Preciso de pensar um bocado.
Izzy hesitou.
— Não vou voltar a desaparecer — assegurou Cassie. —
Prometo.
— Acho bem que não — murmurou Izzy. Ela acenou a Lund e
conduziu-o pela areia fora.
Lund olhou para trás uma vez e viu Cassie sentada sozinha, a
olhar para o céu escuro e para o oceano ao fundo.
A SOMBRA NA AREIA

— P odes sair
sozinhos.
agora — disse Cassie ao vento. — Estamos

Por momentos, nada aconteceu e Cassie começou a perguntar-


se se estaria enganada. Mas então Drummond materializou-se ao
lado dela, como se tivesse saído de uma bolsa de escuridão. Ele
estava praticamente igual — as mesmas roupas, ligeiramente
desgrenhado —, embora Cassie o achasse mais magro e os seus
olhos lhe parecessem mais escuros.
Aproximou-se dela, com as mãos nos bolsos, pontapeando a
areia à sua frente, e deixou-se cair ao seu lado.
— Olá — disse ele a Cassie, olhando-a nos olhos. — Ela sorriu-
lhe. — É bom voltar a ver-te — continuou ele. Retribuiu-lhe o sorriso
e depois olhou para o mar escuro. — Quanto tempo é que passou
desta vez?
— Desta vez pareceu-me rápido — disse ela. — Estavas a ouvir
a conversa?
Drummond anuiu.
— Foste para um sítio que não consegues explicar.
— Consigo explicar mais do que aquilo que contei à Izzy —
admitiu Cassie. — Era o sítio de onde vem a magia.
Drummond olhou para ela, com o interesse a brilhar-lhe nos
olhos como um fósforo numa sala escura.
— A sério? — perguntou ele.
Ela anuiu com a cabeça.
— Tenho a certeza. Eu sei. Não devia ter sido possível eu
sobreviver, mas o Livro da Segurança protegeu-me. Era outro lugar,
fora desta realidade. Mas às vezes havia cores, como quando os
livros estão a fazer a sua cena.
Drummond digeriu a informação, mordendo o lábio inferior
distraidamente.
— Gostava de ouvir tudo acerca disso, Cassie. Tudo aquilo de
que te lembrares.
Ela anuiu com a cabeça.
— Gostava de te contar. Tudo sobre o tal sítio… e outras coisas.
— Ela queria contar-lhe sobre os livros, sobre o facto de os ter
criado a todos, mas parecia demasiado grande, demasiado para
lidarem com isso naquele momento. — Há outras coisas que te
posso contar, a seu tempo.
Ele observou-a por alguns instantes, com as mãos nos joelhos,
talvez a tentar perceber onde é que ela queria chegar.
— Muito bem — disse ele. — Gostava de ouvir. Quando
quiseres.
Ela assentiu com a cabeça, o que pareceu ser uma promessa.
— Tens andado a segui-los este tempo todo?
Drummond anuiu.
— Eles não são muito bons a esconder-se — comentou.
— Para sermos justos, ele deve ter aí uns três metros de altura
— disse Cassie.
— E a Izzy não é a pessoa mais sossegada que já conheci —
disse Drummond, com um sorriso divertido a aflorar-lhe às faces. —
Eu sei que ela é tua amiga. Mas é barulhenta.
— É, sim — concordou Cassie, feliz.
— Mas gosto dela — disse Drummond, olhando para Cassie
com seriedade. — A Izzy é inteligente, é simpática e tem sido leal a
ti este tempo todo. Gosto muito dela, Cassie. — Cassie sentiu o seu
âmago aquecer com as palavras de Drummond e teve vontade de o
abraçar. — O Lund é mais difícil de interpretar — continuou
Drummond, alheio ao efeito que as suas palavras estavam a ter
sobre ela. — Mas ele parece dedicado à Izzy. Juntos, eles formam
um belo par.
— Ainda bem que ela tinha alguém — disse Cassie, olhando por
cima do ombro como se ainda conseguisse ver Izzy e Lund ao
longe. — Estou contente por ela não estar sozinha.
— É verdade.
— Como é que sobreviveste? — quis saber Cassie. — Estiveste
sozinho este tempo todo.
— Não é assim tão difícil. Estive sozinho durante dez anos.
Quando usas o Livro das Sombras tornas-te… insubstancial. Por
isso, posso ir a sítios; posso andar de carro ou na parte de trás das
camionetas e ninguém sabe que estou lá. E quando eles param,
encontro um quarto vazio por perto e durmo lá.
— Porquê?
Ele olhou para ela.
— Porque é que os seguiste? — clarificou ela.
— Porque eu sabia que, se e quando voltasses, irias diretamente
ter com ela. Ela é a tua âncora para a tua antiga vida. Perdeste-a
durante dez anos, não foi? Mal trocaram dez palavras naquele salão
de baile. A minha melhor hipótese de me reaproximar de ti era ficar
perto dela.
Cassie sentiu o estômago estranho enquanto Drummond a
observava, remexendo-se e irrequieto; sentia-se como uma
adolescente num primeiro encontro. Teve de desviar o olhar dele.
— Estou contente por teres estado com eles — conseguiu dizer,
com a voz a tremer ligeiramente. — E estou contente por teres
esperado o tempo suficiente para eu voltar a aparecer.
Deixaram-se estar naquele silêncio confortável, na escuridão,
com as estrelas a rodarem por cima deles e as ondas a baterem
ritmicamente. Algures atrás deles, ao fundo da rua em Pacific City,
uma mulher gritou de prazer e seguiu-se o riso profundo de um
homem. Pessoas a viverem vidas normais, vidas felizes.
— Consegues fazer isso com outras pessoas? — indagou
Cassie. — Segui-las como uma sombra?
— Suponho que sim. Porquê?
— Estava só a pensar…
— Vais tentar travá-la — disse Drummond, fazendo os olhos de
Cassie virarem-se para ele. — A Mulher.
— Acho que sim — disse Cassie.
— E o que é que «travá-la» significa realmente? — perguntou
Drummond. — Levá-la à polícia? Tirar-lhe os livros? Matá-la?
— Não sei — admitiu Cassie. — E não sei como é que o vou
fazer. Mas houve uma pessoa que uma vez me disse para imaginar
o que ela poderia fazer se tivesse todos os livros. — Drummond
resmoneou. — Uma vez disseste que querias destruir o Livro das
Portas para que ela não conseguisse chegar à tua biblioteca —
disse Cassie. — Se a conseguirmos travar, de alguma forma, então
a Biblioteca pode sair das Sombras. E talvez os livros ainda possam
fazer algo de bom?
Drummond não disse nada. O seu rosto não tinha qualquer
expressão enquanto olhava para o mar.
— Adoraria voltar à Biblioteca — disse Cassie, estendendo a
mão para o braço de Drummond. — Adoraria que ela saísse das
sombras para sempre. Mas preciso da tua ajuda. Porque não
consigo fazer isso sem ti.
Drummond sopesou as palavras dela durante algum tempo.
Depois, lançou-lhe um olhar de soslaio.
— Admite, só me queres pelas minhas montanhas.
Ela riu-se então, atirando a cabeça para trás e a sua diversão ao
vento, e sentiu-se livre e feliz pela primeira vez em vários anos.

Izzy e Lund cumprimentaram Drummond com frieza no início,


quando Cassie o levou ao quarto deles.
— Encontrei-o — disse Cassie — a vaguear pela rua.
As sobrancelhas de Izzy ergueram-se com ceticismo.
— A sério?
— Livro da Sorte — comentou Cassie. — Lembras-te de quando
nos cruzámos com ele no Ben’s Deli?
— Olá, Izzy — cumprimentou Drummond. — Da última vez que
falámos, disseste que me odiavas.
— Disse? — perguntou Izzy. Depois, de forma incisiva: — Não
que me consiga lembrar, não é?
— Sim, desculpa lá isso — desculpou-se Drummond,
aproximando-se dela. — A sério, sinceramente, só estava a tentar
manter-te em segurança.
— Não sei se resultou — murmurou Izzy.
— Ainda estás aqui — observou Lund.
Izzy olhou-o de soslaio, não tendo apreciado a sua interjeição.
A tensão pareceu aliviar-se, à medida que Cassie e Izzy foram
conversando. Lund ligou o televisor e deitou-se numa das duas
camas de casal, com as pernas penduradas na borda do colchão, a
assistir a um pivot jeitoso de um noticiário a falar sobre os
acontecimentos mundiais. Drummond deixou-se cair numa poltrona
junto à porta e ficou a olhar para o ecrã. Cassie reparou nisso e
achou que ele parecia grato pela distração.
— Alguém tem fome? — perguntou Cassie, passado algum
tempo. — Eu estou a morrer de fome.
— Podem encomendar uma piza — sugeriu Lund. — Há um
menu de takeaway na mesa.
Izzy telefonou para a pizaria e, quando perguntou se alguém
queria bebidas, Cassie disse:
— Entregam whisky?
Drummond olhou para ela com surpresa. Ela sorriu-lhe, incapaz
de se conter, e os cantos da boca dele contorceram-se e depois os
seus olhos enrugaram-se, divertidos.

Não havia whisky, mas pediram uma piza, refrigerantes e bolachas


e mantiveram-se em silêncio, à espera de que a comida chegasse.
Cassie e Izzy sentaram-se ao lado uma da outra na segunda cama,
de costas para a parede. Passado algum tempo, Izzy começou a
falar, perguntando-se como é que Cassie poderia encontrar a
Mulher, como é que ela lhe poderia tirar os livros ou derrotá-la.
Cassie juntou-se a ela e percebeu que Drummond estava a ouvir. A
piza chegou e pegaram nas fatias e nas bebidas e voltaram para os
seus lugares. A conversa continuou e Lund baixou o som do
televisor para poderem falar sem distrações. Falaram sobre a
Mulher e as capacidades que tinham visto, tentando enumerar os
livros que ela poderia ter.
— O que é que ela quer? — indagou Izzy.
— Ela quer os livros — disse Cassie.
— Ela quer a Biblioteca Fox — corrigiu Drummond. — Ela disse-
me. Na primeira vez que me cruzei com ela.
Ele pegou no chourição da sua fatia de piza e deitou-o para o
caixote de lixo perto do lugar onde estava sentado.
— Meu, não desperdices isso — murmurou Lund.
— O que é a Biblioteca Fox? — perguntou Izzy.
Então, Drummond explicou-lhe e contou-lhe como a mantinha
escondida.
— Tens dezassete livros?
Ele anuiu com a cabeça enquanto mastigava, e Cassie deu por
si a recordar a biblioteca que tinha visitado havia tantos anos.
Permaneceu na sua memória como um lugar especial, apesar do
tumulto e da incerteza daqueles dias, um lugar que ela queria visitar
novamente. Um lugar, talvez, onde ela gostaria de ficar.
— Será que podíamos usar a Biblioteca Fox como isco? —
interrogou Izzy. — Atraí-la até lá?
— Eu não quereria levá-la até lá, mesmo que isso fizesse parte
de um plano — disse Drummond cautelosamente. — É demasiado
perigoso.
— Bem, uma a fingir, então — sugeriu Izzy. — Atraí-la para lá e
prendê-la, ou algo do género?
— Atraí-la e prendê-la — ecoou Drummond, com o ceticismo a
pairar em cada palavra.
— Sei lá. Mas pelo menos estou a pensar.
— E que tal uma ilusão? — indagou Cassie. — Podemos aceder
ao Livro da Ilusão, certo? Será que conseguiríamos criar uma ilusão
da Biblioteca Fox, algo em que ela acreditasse?
— É verdade; ela acreditou na ilusão de eu ter sido alvejada no
salão de baile — concordou Izzy. — Portanto, as ilusões funcionam
com ela.
Cassie olhou para Izzy:
— Serias capaz de usar o Livro da Ilusão para criar uma
biblioteca?
Izzy zombou.
— Nem sequer sei como é que fiz aquela cena lá no salão de
baile. Não, acho que não seria capaz de fazer isso, mesmo que
quisesse.
Cassie olhou para Drummond.
— Pareces ser capaz de usar todos os livros que te aparecem à
frente. Conseguirias usar o Livro da Ilusão dessa forma?
Conseguirias fazê-la acreditar que estava na Biblioteca Fox?
— E depois? O que é que vais fazer se eu conseguir? —
perguntou Drummond. — Porque não acho que levá-la a algum lado
seja a parte mais difícil do trabalho. Podemos fazer com que ela vá
ter a algum lado. Mas ela vai continuar a ter os seus livros. Tens de
ser capaz de lidar com eles.
— É um começo — disse Cassie. — Houve uma pessoa que me
disse uma vez que eu não preciso de resolver todos os problemas
ao mesmo tempo. Vamos tratar de um de cada vez. Consegues criar
esse tipo de ilusão?
Drummond suspirou e refletiu no assunto, bebendo um gole de
cerveja.
— Nunca usei o Livro da Ilusão — disse ele. — Mesmo que o
conseguisse usar, não sei se ia querer apostar nele nestas
circunstâncias. E além disso, se vais enfrentar a Mulher,
provavelmente vais querer que eu esteja livre para fazer outras
coisas.
Cassie anuiu com a cabeça, sentindo-se desanimada.
— O Azaki conseguia — disse Lund, e todos olharam para ele.
— O quê? — perguntou Cassie.
— O Azaki conseguia. Eu vi-o criar uma catedral no deserto.
Tenho a certeza de que ele conseguiria criar uma biblioteca.
— Quem é o Azaki? — perguntou Cassie.
— Não importa — disse Lund. — Ele está morto.
— Quando? O que é que lhe aconteceu?
Lund explicou sobre a viagem com Azaki, sobre a ida para Nova
Iorque e sobre o que acontecera no apartamento de Cassie quando
Hugo Barbary disparara contra os dois. Cassie olhou para
Drummond, fazendo uma pergunta com os olhos.
— Eu estive no apartamento pouco depois disso — disse ela. —
Estivemos os dois. Não vi nenhum japonês morto.
— Não — concordou Drummond.
— Vi sangue no corredor, mas nenhum cadáver.
Lund pensou nisso durante alguns instantes, com uma
expressão vazia.
— Também pensaste que eu estava morta — observou Izzy. —
Se calhar, o Azaki também não está morto. Se calhar foi uma ilusão.
Lund franziu o sobrolho, o mais expressivo que Cassie o tinha
visto durante toda a noite.
— Conta-me tudo sobre o Sr. Azaki — disse ela. — Alguma vez,
de todas as vossas viagens, ele ficou sozinho?
— Porquê? — perguntou Lund, desconfiado.

Depois da piza, da cerveja e da conversa sobre Azaki, Cassie


apercebeu-se de que a sua relação com Izzy tinha mudado para
sempre quando foi para o seu próprio quarto de motel dormir, já a
altas horas da noite. Izzy disse que ia ficar no quarto que tinha com
Lund, mas acompanhou Cassie pelo parque de estacionamento até
ao lado oposto do motel.
— Estás a dar-te bem com ele — observou Cassie, tentando
tornar o comentário leve, apesar da dor que sentia.
— Ele é simpático — disse Izzy. — Eu sei que é difícil de dizer
porque ele é tão… Não sei… calado, não é? Mas ele estava lá
quando eu precisei dele. E não mente. Ele é o que é. Eu gosto de
estar com ele. Acho que ele também gosta de mim.
— Gosta, pois — confirmou Cassie. — Seria louco se não
gostasse.
Izzy sorriu.
— Está tudo bem connosco, não está? — perguntou ela,
pegando na mão de Cassie.
— Claro — disse Cassie, a sorrir. — Vai estar sempre tudo bem
entre nós, mesmo quando as coisas mudarem.
— Estiveste fora dez anos, para ti — disse Izzy, com uma
expressão séria.
— Mas não para ti — disse Cassie. — Foi apenas há algumas
semanas para ti.
— Como é que sobreviveste? — perguntou Izzy.
— Fiz um amigo — disse Cassie. — Estive bem. De uma forma
estranha, eu precisava daquilo.
— Pareces diferente — disse Izzy, estudando atentamente o
rosto de Cassie na escuridão. — Mais segura de ti mesma, talvez.
— Eu continuo a ser eu — afirmou Cassie. E, sabendo onde Izzy
queria chegar, acrescentou: — Nós continuamos a ser amigas e
sempre seremos. Eu sei que não mereço, por causa da forma como
arruinei a tua vida com esta… esta loucura…
— Oh, cala-te…
— Mas seremos sempre amigas, se quiseres.
— Quero — disse Izzy, simplesmente. Ela estendeu os braços
para Cassie e abraçou-a. Ficaram assim durante algum tempo e
Cassie sentiu-se em paz. A tensão que carregava consigo havia
vários anos libertou-a, ainda que por breves instantes. — Agora, vai
dormir um bocadinho e encontramo-nos para o pequeno-almoço.
Combinado?
— Combinado.
— Até podes trazer aquele escocês miserável, se quiseres.
Tinham deixado Drummond a dormir na poltrona do quarto de
Izzy.
— Ele não é assim tão mau — disse Cassie. — Ele tem estado a
olhar por vocês nestes últimos meses.
Izzy ficou surpreendida com isso.
— A sério?
— Sim. Ele andava a seguir-vos, para se certificar de que
estavam bem.
— Hum — disse Izzy, virando a cabeça para olhar trás na
direção do quarto, como se estivesse a reavaliar as coisas. —
Talvez lhe faça um café ou qualquer coisa assim. Só para ser
simpática.
— Faz isso.
Sorriram uma para a outra.
— Adoro-te, Cassie — disse Izzy, as palavras proferidas sem
qualquer embaraço ou constrangimento.
— Eu também te adoro, Izzy.
Izzy anuiu com a cabeça uma vez e voltou a atravessar o parque
de estacionamento para o seu quarto.
Quando entrou no seu próprio quarto, Cassie descobriu que
estava sozinha e carente de companhia. Por isso, abriu novamente
a porta e regressou à sua antiga casa, para ver o seu avô uma
última vez.
CASA (2013)

C assie foi para casa. Para o lugar, para a pessoa.


Retrocedeu muitos anos, foi quase um ano depois de se ter
encontrado com o avô no restaurante, com Drummond. Passou por
uma porta e entrou no alpendre da sua casa em Myrtle Creek. Era
final de verão, e ela conseguia ouvir o zumbido dos insetos. O ar
estava húmido e fresco e, pelo cheiro a terra húmida, percebeu que
tinha parado de chover recentemente.
Cassie caminhou ao longo do alpendre e sentou-se numa das
velhas cadeiras de madeira ao canto. Dali podia ver a oficina do
avô. A luz estava acesa, a janela da oficina brilhava como uma
lanterna na noite escura. Ela conseguia ouvir pancadas e
movimentos, era o seu avô a arrumar as coisas para dar o dia por
terminado, depois de Cassie ter ido para a cama. Ou ter ido para o
quarto, porque Cassie nem sempre ia dormir quando ia para o
quarto. Ficava acordada até tarde, a ler, muito depois de o avô se
ter ido deitar. Mas o quarto de Cassie ficava do outro lado da casa,
com uma janela que dava para as árvores. E essa outra Cassie,
mais jovem, estaria noutro mundo, envolvida na vida das
personagens de qualquer livro que estivesse a ler.
Passados alguns minutos, a luz da oficina apagou-se e o avô
saiu pela grande porta da frente. A oficina fora outrora uma
garagem, antes de o avô a ter convertido, mas continuava a ter a
mesma porta. O avô fechou a porta e atravessou o pátio em direção
à casa, de cabeça baixa e com o braço a balouçar ao lado do corpo.
Algures no bosque, um pássaro emitiu um chamamento na noite,
um som solitário, mas reconfortante, e o avô olhou nessa direção
quando subiu para o alpendre. E depois olhou para o outro lado,
para onde Cassie estava sentada, e estancou. Ela encarou-o e os
olhares de ambos cruzaram-se.
Ele estava mais magro do que quando o vira pela última vez,
tinha a certeza disso. Estava a cerca de um ano de receber o
diagnóstico. O cancro já se encontrava dentro dele, a mudá-lo. A
devorá-lo. Ela perguntou-se se ele o sentia. Se ele sabia.
Ele caminhou ao longo do alpendre, com a madeira a ranger sob
o seu peso, e sentou-se ao lado dela na outra cadeira. Havia uma
pequena mesa entre eles, e Cassie lembrou-se de como eles às
vezes se sentavam ali fora juntos e bebiam Coca-Cola,
especialmente no verão, quando o tempo estava quente e cheio de
luz. Mas agora estava escuro, e a única luz provinha da janela da
cozinha atrás deles.
— Pensei que fosses tu — disse o avô dela. — Quero dizer, a
tua outra versão. Pensei que tinhas saído da cama.
— Não — disse Cassie, em voz baixa. — Eu continuo lá.
Provavelmente a ler.
— Sim — disse o avô. Ele estava a estudá-la atentamente outra
vez. — Talvez seja apenas a luz, ou talvez sejam os meus olhos,
mas pareces mais velha.
— E estou — admitiu ela. — Já passaram dez anos desde que te
vi no Matt’s.
— Ena! — exclamou ele. Ele recostou-se na cadeira, que rangeu
sob o seu peso. Juntos olharam para o caminho de acesso à casa,
para a estrada principal a uma curta distância. Um camião passou
no silêncio, dirigindo-se para sul, em direção a Myrtle Creek. Depois
o avô voltou a falar. — Eu tinha decidido que tinha imaginado tudo
— disse ele. — O nosso encontro. Decidi que tinha de ser um
sonho, ou…
— Ou o quê?
— Não sei, não sei. Qualquer coisa. Porque qualquer coisa faria
mais sentido do que isto. Mas aqui estás tu outra vez.
— Não foi um sonho.
— Eu sei.
— Como estás? — perguntou Cassie. — Como te estás a sentir?
Ele demorou algum tempo a responder, e a sua resposta
pareceu, de alguma forma, reservada.
— Estou bem. O mesmo de sempre.
Ela queria dizer-lhe que ele parecia magro. Queria dizer-lhe para
ir ao médico, mas sabia que ele não queria saber. E sabia que não
podia mudar o passado. Demasiadas coisas que ela agora era e
agora sabia estavam ligadas ao que tinha acontecido ao seu avô.
Era uma corrente que não podia ser quebrada. As viagens no tempo
não funcionavam assim, tinha consciência disso.
— Porque é que aqui estás? — perguntou ele.
— Não sei — admitiu ela. — Só queria sentir que estava de novo
em casa. Que ainda tinha um lar. — Ele não fez qualquer
comentário. Depois, esticou o braço e pôs a mão sobre a dela. —
Tenho de fazer uma coisa difícil e assustadora — prosseguiu ela. —
Acho que se calhar só me queria lembrar de como era antes de
haver coisas difíceis e assustadoras no mundo, antes de a fazer.
— A vida está cheia de coisas difíceis e assustadoras — disse
ele. — Às vezes, sabemos que vamos enfrentar uma coisa difícil e
assustadora. — Anuiu com a cabeça, e Cassie pensou que ele
estava a falar tanto para si próprio como para ela. — Mas tens de
seguir em frente. Não adianta ficares a reclamar e a lamentares-te.
Faz o que tens a fazer.
Cassie sorriu com tristeza.
— Muito pragmático — disse ela.
— Que mais é que hás de fazer? — perguntou ele, e parecia
irritado, com ela, com o mundo. — Porque se pararmos, estamos a
admitir que as coisas más ganharam, não é? Tudo o que podemos
fazer é seguir em frente. Recusarmo-nos a aceitar a derrota, mesmo
quando estamos derrotados. As coisas más só ganham se as
deixarmos. Eu recuso-me a ser derrotado, Cassie. Recuso-me.
Apercebeu-se de que nunca o tinha visto assim. Este era o lado
que o avô sempre escondera dela. Era a amargura e a raiva por
tudo o que a vida lhe tinha feito.
— Recuso-me, e tu também te devias recusar. — Ele apontou-
lhe um dedo. — Seja o que for que precises de fazer, faz o que tens
a fazer e segue em frente. Põe isso para trás das costas e
sobrevive.
— Sim — disse ela. — Parece-me bem.
Deixaram-se ficar novamente em silêncio. Cassie estava
rodeada pelos sons e cheiros da sua infância, e isso reconfortava-a,
era o mais parecido que ela podia ter com o abraço de uma mãe.
— Fica aí um minuto — disse então o avô. Levantou-se da
cadeira com um resmonear e dirigiu-se para a porta da casa.
Desapareceu lá dentro, e Cassie conseguia ouvi-lo a mexer-se na
cozinha. Quando ele reapareceu pouco depois, trazia duas garrafas
de Coca-Cola. Passou-lhe uma e ela aceitou-a enquanto ele se
voltava a sentar ao lado dela. — Vamos beber um copo — disse. Ele
usou o tira-cápsulas que trazia sempre no porta-chaves para soltar
as caricas, alguns tsks rápidos na noite silenciosa, e então
brindaram com as garrafas e Cassie bebeu um gole. O gás e o
açúcar despertaram-na com um choque. — É a última vez que te
vejo? — perguntou o avô, a olhar para a sua garrafa.
— Espero que não. Espero voltar a ver-te.
Ele anuiu com a cabeça e depois sorriu para ela.
— Ótimo — disse ele. — É bom ver-te assim. Mais velha, quero
dizer. É bom falar com a minha neta como uma adulta, não como
uma criança.
— É bom falar contigo como adulta — concordou ela.
— Então, fala — disse ele, levantando a garrafa para beber um
gole. — Não há necessidade de apressar a bebida. Se és uma
viajante do tempo, podes voltar quando quiseres, certo?
— Certo — concordou ela, sorrindo.
— Então, aproveita a bebida e conta-me alguma coisa da tua
vida. Quero saber como é o futuro.
Cassie refletiu nisso por um momento, e mais dois carros
passaram na estrada em frente, a deslocarem-se em direções
opostas, um em direção ao outro, como cavaleiros medievais numa
justa, com os faróis a iluminarem a noite.
— Está bem — disse ela, e falou até acabar a bebida, contando
ao avô uma história sobre um livro mágico que podia abrir portas
para qualquer lugar, e o avô ouviu-a, com os olhos arregalados de
uma criança que ouve histórias antes de dormir.
UM PLANO
EM CINCO PARTES

N a manhã seguinte, depois da noite de piza, bebidas e conversa,


Drummond sentou-se no chão em frente ao seu quarto no
motel, virado para o parque de estacionamento, a pensar no tipo de
homem que era. Durante muito tempo tinha sido um homem que
andava a fugir e a esconder-se, porque era a coisa certa a fazer.
Ainda tinha a certeza disso: não teria conseguido lutar contra a
Mulher, nem dez anos antes, nem desde então.
Não sozinho.
Agora, parecia que tinha amigos outra vez, pessoas com quem
partilhava uma causa. Disse a si próprio que estava a tirar
demasiadas conclusões de uma noite de pizas e bebidas, mas
esperava não estar. Ele queria amigos. E queria pessoas que o
ajudassem. Porque era tudo demasiado complicado para aguentar
sozinho.
Estava um dia bonito, o céu azul e luminoso; já estava quente e
Drummond gostava da sensação do calor no rosto. Gostava de ver
as pessoas a entrar e a sair, do trânsito na rua principal. E depois
viu Cassie a sair da porta do seu quarto, do outro lado do parque de
estacionamento, e ela sorriu em sinal de reconhecimento e
caminhou na sua direção, e ele também gostou disso.
— O que é que estás a fazer? — perguntou ela, sentando-se no
chão ao lado dele.
— Estou a apreciar a paz e o sossego. A pensar no que temos
de fazer.
— Sim — concordou Cassie, semicerrando os olhos enquanto
olhava para o parque de estacionamento. Passou as mãos pelo
cabelo louro e puxou-o para trás num rabo de cavalo, prendendo-o
com um elástico.
— Acho que devíamos ir todos tomar o pequeno-almoço — disse
Drummond, e Cassie olhou para ele. — Tu e eu, a Izzy e o Lund.
Devíamos sentar-nos juntos e comer, tal como fizemos ontem à
noite.
— Porquê? — perguntou Cassie. — Não estou a discordar. Só
estou a pensar porque é que estás a sugerir isso.
— Por duas razões. Porque gosto disso. Gosto da companhia.
Gosto de todos vocês, e já passou muito tempo desde que gostei de
estar com outras pessoas.
— Certo — disse Cassie.
— E, em segundo lugar, porque precisamos de traçar um plano.
— Ele olhou para ela. — Tu já andas a pensar nisso — disse ele. —
Foi disso que se tratou a noite passada: as perguntas sobre o Azaki.
Ela encolheu os ombros. Sem discordar.
— Tornei-me muito boa a pensar no longo prazo quando estive
no passado — disse Cassie. — Tornei-me boa a planear as coisas.
— Eu sou bom a sobreviver. E conheço a Mulher melhor do que
qualquer um de vocês. E o Lund e a Izzy também sabem coisas.
— Sim.
— Se é para elaborar um plano, fazemo-lo juntos, ao pequeno-
almoço.
Ela sorriu, e Drummond ficou com a sensação de que estava
aliviada de alguma forma.
— Está bem — concordou ela. — Isso agrada-me.
Ficaram sentados lado a lado, em silêncio, a apreciarem o calor
da manhã. Ia ser um belo dia de primavera, um dia que faria uma
pessoa acreditar que não havia nada de errado no mundo. Era um
dia perfeito para afastar as dúvidas e os medos e para planear o
impossível.
Quando Izzy e Lund saíram do seu quarto pouco depois, viram
Drummond e Cassie sentados no chão.
— Eles têm cadeiras, sabem? — brincou Izzy.
Cassie levantou-se primeiro.
— Onde é que se come um bom pequeno-almoço por aqui? —
perguntou ela, enquanto Drummond se erguia com esforço. —
Vamos tomar o pequeno-almoço juntos e planear os nossos
próximos passos.
Izzy olhou de relance para Lund, que anuiu com a cabeça.
— Panquecas — disse ele.
— Excelente! — exclamou Drummond.

Izzy levou-os a uma casa de panquecas a uma curta distância a pé,


um celeiro enorme com grandes janelas que davam para a praia e
para o Pacífico, e mesas de madeira robustas com talheres enfiados
em canecas e alguns outros turistas espalhados pelo local. Pediram
panquecas, bacon e café, e Drummond interrompeu Izzy para se
certificar de que lhe serviam chá e não café, e depois beberam,
comeram e ouviram Cassie e Izzy a recordarem uma viagem que
tinham feito uma vez à Florida para visitar o primo de Izzy.
— Dois dias em autocarros Greyhound. A pior experiência da
minha vida! — riu-se Izzy.
— Mesmo depois de tudo o que passei nestes últimos dez anos
— disse Cassie, a sorrir —, aquela viagem continua a ser a pior
coisa que me aconteceu.
Era uma conversa boa e fácil, e Drummond sentiu-se como que
em casa. Mas havia decisões que tinham de ser tomadas e, quando
lhes sugeriu que deviam ir direito ao assunto, sentiu-se como o
adulto a dizer-lhes que tinham de ir fazer os trabalhos de casa.
Os pratos foram levantados, as bebidas foram servidas
novamente, e depois começaram a elaborar um plano. Cassie tinha
algumas ideias, pensamentos que andava a alimentar desde a noite
anterior. Ela expô-las e Drummond complementou-as, identificando
problemas e riscos. Izzy fazia perguntas e Lund escutava. E então
Lund fez uma pergunta, e eles perceberam que o plano não ia
funcionar, e começaram de novo.
Conversaram durante mais de uma hora, enquanto os turistas
entravam e saíam, enquanto o chá de Drummond arrefecia, e
depois falaram durante mais uma hora enquanto caminhavam pela
praia, aperfeiçoando e revendo o plano. Era complexo, um plano em
cinco partes, que envolvia a Livreira e Azaki (que talvez estivesse
morto) e uma viagem arriscada de Drummond para seguir a Mulher.
E tudo isto, se resultasse, culminaria com eles a enfrentarem a
Mulher.
— Por mais que tudo funcione, ela vai continuar a ser perigosa
— avisou Drummond; estavam sentados na praia, semicerrando os
olhos perante a luz do sol. As ondas rugiam à frente deles, os
pássaros entoavam chamamentos lá em cima. — Podemos estar a
planear a nossa própria morte.
Izzy não parecia contente com isso. Lund estava inescrutável
como sempre. Mas Cassie abanou a cabeça.
— Não me parece. Acho que a podemos vencer.
— O que é que vais fazer? — perguntou, então, Izzy. — Vais
matá-la?
Cassie hesitou.
— Não tinha pensado tão longe — admitiu ela. — Não sou uma
assassina.
— Pois não, não és — confirmou Izzy, com severidade. — Então
o que é que fazemos com ela se a apanharmos? Não a podemos
levar à polícia.
Drummond estava a olhar para o mar. Ele sabia a resposta à
pergunta. Já tinha decidido o que tinham de fazer naquela manhã,
antes de falar com qualquer um deles.
— Matamo-la — afirmou ele, e os três olharam para ele. — Ela é
maligna. Não se pode simplesmente negociar com ela. Ela não vai
parar. — Ele olhou para Cassie, sabendo que tinha de fazer com
que ela concordasse. — Tu viste o que ela fez aos meus amigos —
disse ele, e para sua surpresa ouviu a sua própria voz tremer de
emoção. Uma parte distante do seu cérebro disse: Uau, estás
mesmo no limite. — Tu viste nas minhas memórias.
Cassie assentiu.
— Viste o que ela fez no salão de baile. Ela não estava a matar
porque tinha de o fazer. Ela podia ter levado os livros, e ninguém a
teria impedido. Ela matou porque quis. E fê-lo das formas mais
horríveis porque se excita com isso. Diz-me que estou errado.
Cassie olhou para o horizonte distante. Um pouco mais abaixo
na praia, duas crianças soltavam gritos animados enquanto se
perseguiam à volta dos primórdios de um castelo de areia. Era tudo
tão normal, tão feliz.
— Matamo-la — disse Drummond. — Comprometemo-nos com
isso, ou nem sequer começamos. Porque não faz sentido. Não há
meio-termo. Fazemos isso como deve ser, e só então estaremos
livres. Só então tudo isto — gesticulou para as pessoas ao redor
deles — irá estar seguro.
— Estou de acordo com isso — disse Lund. — Matá-la.
Izzy olhou para Lund com surpresa, com o rosto a espelhar o
conflito. Depois, olhou para Cassie.
— Cassie? — perguntou ela.
E Cassie anuiu, sem tirar os olhos do horizonte.
— Sim — disse ela. — Fazemos isto como deve ser.
Izzy anuiu com a cabeça, ainda que com relutância.
— Está bem — acabou por dizer.
— Ótimo — disse Drummond. Ele aguardou alguns minutos,
deixando a decisão assentar, e depois continuou. — Vamos
começar, então, pode ser?
O PLANO, PRIMEIRA PARTE:
A HISTÓRIA DE AZAKI

Antofagasta, alguns meses antes

N ão pela primeira vez na sua vida, Azaki sentia-se uma merda. A


ilusão no deserto tinha sido tanto para ele como para a velhota.
Sentia-se como se a tivesse defraudado de alguma forma,
oferecendo-lhe algo que ela desejava, algo de que ela precisava,
mas que ele sabia que nunca seria capaz de lhe dar. As coisas que
fazia só para encontrar livros especiais começavam a pesar-lhe.
— Cerveja, por favor — disse ele, ao chegar ao bar. O
empregado acenou-lhe com a cabeça e tirou uma garrafa do
frigorífico atrás do balcão. Azaki deu o número do quarto para
debitarem a bebida e sentou-se num banco. O bar não estava muito
movimentado; apenas gente suficiente para gerar um ruído de fundo
que bastava para ser agradável. — À Sra. Pacheo — disse para si
próprio, batendo no ar com o gargalo da garrafa antes de beber um
gole.
Ele não sabia quanto tempo mais conseguiria continuar, mas não
podia parar. Sabia que estava com medo. Com medo da Mulher. Ela
andava a matar pessoas como ele e a tirar-lhes os livros. Ele tinha
ouvido falar dela através de conhecidos, outros caçadores de livros
que encontrava em bares. Contavam histórias sobre o massacre no
parque de Washington Square, sobre o desaparecimento de outros
proprietários de livros. Que tipo de pessoa poderia fazer isso de
forma tão cruel? Que tipo de pessoa cobiçava todos os livros?
Azaki só queria encontrar mais um livro. Ia vender o livro por
intermédio da Livreira, pegar nos seus milhões e esconder-se
algures. Afastar-se de tudo.
Bebeu mais um gole da cerveja, olhando para a sua própria cara
no espelho atrás do bar.
É claro que tinha um livro que podia vender. O seu próprio livro.
Abanou a cabeça para o seu reflexo: Nem sequer penses numa
coisa dessas.
O Livro da Ilusão era dele. Ele não o venderia. Jamais, em
tempo algum.
Sentiu uma pancada no ombro e viu Lund ao espelho, alto como
uma torre.
— Pensei que ias para o quarto — disse Azaki, sem se virar.
Ele gostava de Lund. O homem era calmo, não exigia muito. Era
o guarda-costas perfeito. Mas Azaki não precisava dele colado a si a
noite toda.
Uma voz de mulher respondeu:
— É um Lund diferente.
Virou-se e viu uma mulher loura e bonita ao lado de Lund. E
depois viu que Lund estava diferente. Tinha mudado de roupa, o
cabelo estava mais comprido.
— O que é que se está a passar aqui? — perguntou ele.
— É melhor falarmos num sítio mais privado — disse a mulher.
Azaki olhou para Lund e o homem gigantesco anuiu com a
cabeça.
Foram para uma mesa no canto da sala, longe de toda a gente.
— Então, o que é que se está a passar aqui? — perguntou
Azaki.
A mulher tirou um livro do bolso e colocou-o sobre a mesa. Por
breves instantes, Azaki perguntou-se se Lund teria encontrado um
livro, e o seu coração saltou com a possibilidade de fuga. Mas
percebeu quase de imediato que estava enganado.
— Muito bem — disse ele. — O que é isso?
— Tens de a ouvir — disse Lund.
— É o Livro das Portas — disse a mulher. — O meu nome é
Cassie. Nós viemos de alguns meses no futuro para te salvar a vida.
Azaki pestanejou, a absorver aquilo, e depois olhou para Lund.
— És do futuro?
Lund anuiu, e depois disse:
— Como eu disse, tens de a ouvir. Porque vai acontecer merda
pesada nos próximos meses.
— Tens de ir para Nova Iorque — disse a mulher. — A Livreira
vai telefonar-te nos próximos dias e dizer-te para lá ires, de qualquer
maneira.
— Porquê? — perguntou Azaki.
A mulher abanou a cabeça.
— É um bocado difícil de explicar. Porque eu lhe pedi. No
passado. Não importa.
Azaki sorriu, então, porque era ridículo.
— Para de sorrir — disse a mulher. — Isto é sério. Estou a tentar
salvar-te a vida.
— Porquê? — perguntou ele. — Porque é que queres salvar a
minha vida no futuro?
— Porque precisamos da tua ajuda — esclareceu Cassie. —
Para travarmos a Mulher.
Então, Azaki parou de sorrir porque já não parecia tão ridículo e
ouviu Cassie falar-lhe do seu futuro e do plano que tinha em mente.
— É possível? — perguntou ela.
Azaki considerou a questão por momentos.
— É possível — disse ele. — Difícil, mas possível. Vou precisar
de algum tempo para praticar.

Nova Iorque, alguns dias depois


Quando Azaki abriu a porta, tinha uma mão no bolso a segurar no
Livro da Ilusão, e criou a ilusão de que ele e Lund estavam quinze
centímetros à direita de onde realmente se encontravam.
Hugo Barbary estava ali à frente, tal como Cassie e o outro Lund
lhe tinham dito, mas Azaki ainda estava surpreendido com a
veracidade de tudo o que lhe fora contado. Ele estava a olhar
diretamente para o cano da arma de Barbary. Ou estaria, se
estivesse quinze centímetros à direita.
Barbary disparou e Azaki caiu no chão, mantendo a mão no
bolso e criando a ilusão de que estava morto enquanto se deixava
ficar de bruços, com uma ferida na cabeça a jorrar sangue. Barbary
disparou novamente e Lund caiu, tal como Azaki tinha sido avisado
de que aconteceria.
Manteve-se imóvel durante algum tempo, a ouvir Barbary a
torturar Izzy na outra sala. Se ele não soubesse que ela estava bem,
talvez tivesse tentado intervir. Ou talvez se tivesse levantado
calmamente e ido embora… não sabia. Não se considerava
qualquer espécie de herói, mas nunca lhe tinha sido exigido que se
pusesse à prova dessa forma. Como o pai lhe dissera uma vez em
criança: A melhor defesa contra qualquer murro é não estar lá.
Foge, rapaz. Não há vergonha em sobreviver.
Passados alguns minutos, ouviu Lund a levantar-se. O homem
gigantesco aproximou-se e verificou Azaki, mas viu apenas um
cadáver, a sangrar no chão. Azaki ouviu-o suspirar, como se
estivesse triste por o sentir morto e, na verdade, isso deixou-o
ligeiramente feliz. Depois, Lund pôs-se de pé outra vez,
surpreendentemente calmo, e alguns momentos depois Azaki ouviu
Barbary cair no chão quando o gigante o agrediu, e aplaudiu
interiormente. Em seguida, ouviu Lund a falar, e a mulher passou
por ele no corredor para entrar num dos quartos, pegando num saco
de roupa. Enquanto ela estava a fazer isso, Lund voltou para Azaki,
e essa foi a parte mais arriscada. Ou teria sido, se Azaki não tivesse
já sido informado pelo futuro Lund de que o gigante não tinha
reparado em nada quando tirou o Livro da Ilusão do bolso de Azaki.
Azaki tinha tirado a mão do bolso e enfiara-a debaixo do corpo,
deixando o bolso aberto. Lund acreditava que Azaki estava morto, e
estava a despachar-se; pelo que não reparou que o lado da cabeça
de Azaki tinha sarado milagrosamente.
Depois, Lund e a mulher saíram, apressando-se a abandonar o
apartamento antes que Barbary acordasse.
Azaki esperou um minuto ou dois, certificando-se de que eles
não regressavam, apesar de Lund ter sido muito claro nesse ponto,
e depois levantou-se e sacudiu-se.
Sentia-se estranho sem o Livro da Ilusão no bolso. Andava com
ele há mais de vinte anos. Era o seu bem mais precioso. Já estava
impaciente por tê-lo de volta.
Deu alguns passos ao longo do corredor e olhou para a sala de
estar. Barbary estava lá, estendido numa confusão contra a parede
mais distante. Lund batera-lhe com força.
— Foda-se, bem o mereceste — murmurou Azaki. — És um
cabrão de primeira.
Deixou o apartamento como estava, sabendo que tinha de se ir
embora antes de Cassie chegar com o Bibliotecário. Ele estava
elucidado quanto à cronologia.
Agora, só tinha de esperar.
Nessa noite, haveria um leilão, e a Mulher apareceria e causaria
o caos.
Lund e a amiga de Cassie conseguiriam escapar, levando o Livro
da Ilusão com eles. Viajariam para sul com o livro e escondê-lo-iam
pelo caminho.
Azaki sabia onde o iriam esconder. Tinham-lhe dito, no bar em
Antofagasta. Ele estaria lá para o recolher assim que os dois
partissem.

O deserto, a sul de Las Vegas


Azaki estava hospedado nas suites Rio em Las Vegas, apenas para
passar alguns dias. Tinha voado diretamente de Nova Iorque para
Las Vegas, uma viagem de cinco horas. Aterrou no Aeroporto
Internacional Harry Reid ainda antes do início do leilão em Nova
Iorque. Instalara-se no quarto e estava na cama em roupa interior, a
comer um hambúrguer exorbitantemente caro que pedira ao serviço
de quartos, enquanto as pessoas licitavam o Livro da Dor. Pouco
depois, Lund e Izzy — e o Livro da Ilusão — estariam a bordo de um
Greyhound em direção a sul. Azaki sabia que só chegariam à cidade
dentro de três dias, mas, quando chegassem, ficariam no quarto
mais barato que encontrassem no Circus Circus, à saída da Strip, e
na manhã seguinte iriam alugar um carro e conduzir para sul pela I-
15 durante meia hora até chegarem à SR 161. A partir daí, iriam
dirigir-se para oeste até encontrarem uma estrada de terra batida
que seguia para norte através do deserto, paralela às linhas da rede
elétrica. Lund pararia no terceiro poste da linha elétrica, daria dez
passos para oeste no deserto e depois enterraria o livro num saco
de plástico debaixo de um arbusto, usando o seu braço bom,
enquanto o outro braço estava preso ao peito numa ligadura.
— Os teus passos são maiores do que os meus — disse Azaki,
quando Lund descreveu o local onde tinha enterrado o livro durante
a conversa no bar no Chile.
— Conta quinze, então — disse Lund. — O arbusto é óbvio.
Estava isolado, mesmo em linha com o terceiro poste.
Azaki esperava que fosse assim tão fácil.
No dia em que Lund enterrou o livro, Azaki estava à espera no
Starbucks, mesmo à saída da interseção por baixo da I-15. Chegou
lá cedo e sentou-se à janela. Viu Lund e Izzy a passarem pouco
depois das dez da manhã, com Izzy ao volante. E Azaki estava
sentado no seu carro alugado, impacientemente à espera quando
eles regressaram na direção oposta, meia hora depois. Ele viu-os
seguirem pela estrada até à autoestrada e dirigirem-se para norte,
para Las Vegas. Iriam lá ficar mais duas noites, debatendo se
tinham ou não feito a coisa certa ao deixar o livro no deserto. Lund
tinha-lhe dito isto, como se se sentisse culpado por se ter livrado do
bem mais precioso de Azaki. Naquele momento, enquanto
acelerava pela autoestrada em direção à estrada junto à linha
elétrica, Azaki estava disposto a perdoar Lund. Partindo do princípio
de que encontrava o livro, claro.
Encontrou a estrada com a linha elétrica.
Encontrou o terceiro poste e estacionou o carro, vendo as
marcas do carro de Lund no mesmo sítio.
Até viu as pegadas das botas de Lund na areia, a afastarem-se
do carro. Seguiu-as e viu o arbusto de que Lund lhe falara dias
antes. Ajoelhou-se, com o sol quente a bater-lhe nas costas, e
escavou com as mãos até sentir o plástico frio.
Através do plástico, o livro parecia quente. Parecia-lhe familiar.
Parecia que estava em casa.
Desembrulhou o livro avidamente, como uma criança faria com
um chocolate, e sorriu quando viu a capa preta e dourada.
Era bonito, tão bonito como sempre tinha sido, mas mais bonito
porque tinha estado sem ele.
Levantou-se de novo e ficou parado de pé por uns momentos,
apenas a sentir o livro. Depois, olhou para o deserto, semicerrando
os olhos por causa da luminosidade. O vento soprava poeira e areia
contra as suas faces.
Fechou os olhos e, segurando no Livro da Ilusão, a luz e a cor
derramaram-se entre os seus dedos. Azaki pintou quadros no céu,
imensas esculturas de areia a rodopiarem e a aglomerarem-se à
sua volta, como se estivesse no centro de uma tempestade. E
depois a areia transformou-se em formas sólidas, criaturas sinuosas
que o rodeavam, assobiavam e gritavam. Ele sentia essas feras,
ouvia os seus gritos, a ilusão era absoluta.
Por vezes, Azaki gostava de exercitar os seus músculos só para
se divertir.
Pintou as criaturas sinuosas a cores, vermelhas, amarelas e
azuis, e depois estas transformaram-se de formas sinuosas e
contorcidas em luzes dançantes, uma das suas ilusões favoritas.
Luzes no deserto, um arco-íris sem chuva. Tudo isto conjurado por
Azaki, como um atleta que testa os seus músculos antes do início
de uma nova época.
O seu dom, o dom do Livro da Ilusão, ainda lá estava.
Deixou que as luzes se apagassem no céu, e as cores brilhantes
à volta do livro também se apagaram. E depois ficou só ele e o sol
quente e seco.
Regressou ao carro.
Sabia que tinha de voltar para norte.
Precisavam dele para ajudar a lidar com a Mulher.
Tinha-lhes dito que ajudaria, tinha prometido, porque lhe tinham
salvado a vida ao falarem-lhe de Barbary.
Uma voz na sua mente — a voz do seu pai, talvez? — disse-lhe
que devia fugir. Não havia vergonha em sobreviver. Isso incomodou-
o durante todo o caminho de regresso a Las Vegas, e incomodou-o
durante todo o caminho até ao aeroporto.
Quando estava no avião, a voz já se calara, e Azaki sentia-se
estranhamente em paz.
O PLANO, SEGUNDA PARTE:
A LIVREIRA

C assie encontrou-se com a Livreira pela segunda vez, a altas


horas da noite, no Café Du Monde, em Nova Orleães, mas
desta vez a Livreira não estava à sua espera.
Cassie tinha visitado o local três noites diferentes e em rápida
sucessão, abrindo a porta de um quarto de hotel do outro lado do
país e entrando no Café Du Monde. Na primeira noite, estava
quente e húmido. Cassie esperou uma hora depois da meia-noite,
mas a Livreira não apareceu. Na segunda noite, estava quente e
seco, e Cassie esperou durante mais tempo, mas a Livreira, mais
uma vez, não apareceu. Na terceira noite em Nova Orleães — a
mesma noite para Cassie — a Livreira já lá estava quando Cassie
chegou. Estava sentada à mesma mesa onde Cassie se reunira
com ela anteriormente, com café e beignets à sua frente e um olhar
distante nos olhos. A Livreira nem sequer reparou em Cassie até ela
puxar uma cadeira e se sentar à sua frente.
— Olá — disse Cassie.
A Livreira olhou-a sem expressão.
— Perguntei-me se te voltaria a ver — disse ela. Não havia raiva
nas suas palavras.
— Como tens estado? — perguntou Cassie, embora não se
importasse. Na linha temporal da Livreira, tinham passado pouco
mais de dois meses desde o leilão. Cassie tinha viajado para trás no
tempo.
— Tenho estado fantástica — disse a Livreira. — Considerando
que o meu leilão se transformou no sonho molhado de um
assassino em massa. Considerando que aquele animal do Barbary
matou o meu único amigo verdadeiro. Considerando que nem
sequer vendi a merda do Livro da Dor. Em suma, têm sido uns
meses maravilhosos. — Cassie ouviu sem fazer comentários. — O
que é que queres? — perguntou a Livreira.
— Bem, quero três coisas — respondeu Cassie. — Em primeiro
lugar, quero um café e um beignet, porque, certa vez, uma pessoa
disse-me que eram bons, e tinha razão. Em segundo lugar, quero o
Livro da Dor. E em terceiro lugar, quero a tua ajuda.
As sobrancelhas da Livreira ergueram-se em sinal de
incredulidade, mas ela esperou até que uma empregada de mesa
viesse anotar o pedido de Cassie antes de retorquir.
— Queres a minha ajuda? Tens a audácia de me pedir ajuda?
Cassie pestanejou, sem perceber.
— Porque é que dizes que tenho audácia, exatamente?
— Ainda tens o meu Livro da Segurança. Nunca mo devolveste.
Nem o Livro das Portas.
— Ah, bem — disse Cassie. — Eu não te consegui dar o Livro da
Segurança, pois não? Porque fugiste antes de eu ter oportunidade
de o fazer. — A boca da Livreira formou uma linha apertada de
irritação. — E não te vou dar o Livro das Portas, porque não
cumpriste a tua parte do acordo. Não terás visto, porque fugiste,
mas a Izzy levou com uma bala no cérebro disparada por um
homem qualquer quando ele tentava lutar contra aquela mulher.
A Livreira desviou o olhar, com os olhos a oscilar como se
estivesse a assistir a um jogo de ténis. A empregada voltou e Cassie
pegou no café e no prato de beignets.
— Relaxa — disse Cassie. — Ela não morreu. Mas tu não terias
como saber, porque fugiste.
— Muito bem — disse, abruptamente, a Livreira. — Já te fizeste
entender. Eu fugi. Fiz o que tinha de fazer para sobreviver. E se eu
não tivesse fugido, aquela mulher teria conseguido outro livro para a
sua coleção.
Cassie deu uma dentada num beignet. Era tão bom como se
lembrava.
— Não que ela precise de mais livros — disse a Livreira, falando
agora mais para si própria. — As coisas que fez… A velocidade. A
ferocidade. Viste o que ela fez ao Okoro? Quero dizer, aquele
homem não deu um único suspiro na vida que não tenha estragado
o dia de alguém, mas ninguém merece morrer assim.
— Ele não foi a única pessoa que morreu — replicou Cassie. —
No teu leilão.
— Achas que não sei isso? — respondeu a Livreira num tom
amargo. — Não tenho pensado em mais nada. Estava a tentar sair
do negócio, e acabei por provocar um desastre na minha própria
cabeça. Pois bem, acabou-se. Não quero ter mais nada que ver com
aqueles livros amaldiçoados.
— Tornaste-te religiosa? — perguntou Cassie, arqueando uma
sobrancelha com ceticismo.
— A tua pergunta pressupõe que eu nunca tenha sido. Não
fiques aí a julgar-me, minha menina. Não sabes nada sobre mim,
nada sobre a minha vida. Não vou pedir desculpa por nada do que
fiz.
— Eu não estou aqui para receber pedidos de desculpas —
disse Cassie. Bebeu um gole de café. Era escuro e amargo, um
parceiro de dança perfeito para o doce e amanteigado beignet.
— Sim, já tinhas dito. Café e beignets e ajuda. Que ajuda é que
achas que te posso dar?
— Onde é que está o Livro da Dor? — perguntou Cassie.
— Está num sítio seguro — afirmou a Livreira. — Devolvo-o
quando receber o Livro da Segurança.
Cassie anuiu com a cabeça para si própria. A oferta não foi uma
surpresa. Esperou enquanto um grupo de jovens barulhentos
passava, entoando uma canção desportiva qualquer e olhando de
soslaio para Cassie e para a Livreira, antes de se afastarem.
— Malditos turistas — murmurou a Livreira. — Estão a destruir
esta cidade. O Livro da Segurança é meu. Não tens o direito de ficar
com ele.
Cassie sorriu para si própria enquanto bebia mais um gole de
café, pensando que tinha todo o direito e que o Livro da Segurança
era mais dela do que alguma vez tinha sido da Livreira.
— Não quero escondê-lo de ti — disse Cassie. — Mas se o
queres, tens de me ajudar.
— Ajudar a quê?
— Vou travar a Mulher.
A Livreira olhou para ela por instantes, depois riu-se com
incredulidade. Cruzou os braços sobre o peito.
— Tens tomates, miúda, tenho de admitir. Queres travá-la? Tu e
o teu Livro das Portas?
— Eu não tenho só o Livro das Portas — disse Cassie. — E não
sou só eu. Mas há algumas coisas que eu não tenho que tu me
podes fornecer.
— Que tipo de coisas?
— Preciso de outro leilão. Tenho de atrair a atenção dela. Ela
veio da última vez que fizeste um leilão. Já pensaste como é que ela
soube?
A Livreira encolheu os ombros.
— Não é exatamente um segredo. Envio uma notificação a toda
a gente. Quanto mais pessoas souberem, mais virão.
— Ela não me pareceu ser do tipo de mulher que tem muitos
amigos.
— Hum, bem… Ela deve ter ficado com os telemóveis de
algumas das pessoas que matou. Ela teria recebido a notificação
nesses telemóveis quando a enviámos.
— Portanto, ela irá receber novamente uma notificação, se
houver outro leilão. Sobretudo se ela quiser os livros.
— Que livros? — perguntou a Livreira e, apesar de tudo o que
ela tinha dito, Cassie viu ali uma centelha de interesse.
— A Biblioteca Fox — disse Cassie, e as sobrancelhas da
Livreira arquearam-se de surpresa.
— Encontraste-a?
— Sei onde fica.
— E vais usar isso como isco? Estás maluquinha dessa tua
cabecinha branca? Vais dar-lhe a oportunidade de acrescentar isso
à coleção dela?
— É a única forma que tenho de ter a certeza de que ela vem —
disse Cassie. — É o maior prémio.
A Livreira abanou a cabeça.
— Estás a fazer-me perder o apetite pelos meus beignets.
— Não precisas de lá estar — descansou-a Cassie. — Só
precisas de marcar a hora e o local e enviar a notificação quando eu
te disser. Nós fazemos o resto.
— Nós? — perguntou a Livreira. — Quem faz parte do vosso
bando? A tua amiga Izzy, que não consegue fechar a matraca? Ou o
grandalhão? Ou o Drummond Fox, que seria capaz de fugir do seu
próprio reflexo?
— Tu pensas o pior das pessoas — disse Cassie.
— Já tive muita experiência com pessoas que me desiludiram —
replicou a Livreira.
— Pareces muito mais… frágil do que da última vez que falámos
— observou Cassie.
— Frágil — disse a Livreira. Depois esboçou um sorriso tenso. —
Nunca ninguém me acusou disso antes.
— Se me ajudares, devolvo-te o Livro da Segurança. Tens a
minha palavra.
— Ah, bem, se me dás a tua palavra…
Cassie comeu o seu segundo beignet, tirando um momento para
apreciar o ambiente. Havia mais algumas pessoas no café: um casal
de meia-idade que pareciam ser turistas, duas jovens que pareciam
estar exaustas, como se estivessem a tentar afastar uma ressaca
com café e açúcar. As empregadas de mesa estavam ao balcão, a
conversar umas com as outras em voz baixa.
— Está bem — disse a Livreira, por fim. — Quando é que
querem fazer este disparate? E onde?
— Ainda não sei quando — admitiu Cassie. — Mas sei onde.
Quero fazê-lo no mesmo sítio onde realizaste o último leilão.
— No meu hotel? — perguntou a Livreira. — Em Nova Iorque?
— Porque não? — disse Cassie. — É um hotel. Tem muitas
portas.
O PLANO, QUINTA PARTE (1)

N um local esquecido da cidade de Nova Iorque, Cassie esperou


pela Mulher.
O salão de baile ainda cheirava a humidade, apesar de terem
passado meses desde o leilão, e mais algumas semanas desde que
Cassie tinha saído do lugar onde havia estado, o lugar onde havia
criado os livros, e voltado a cair na realidade. E permanecia em
estado caótico, com espelhos e vidros partidos pelo chão, manchas
de sangue na parede. O candelabro no alto era um fragmento do
seu antigo ser, a luz que lançava era muito reduzida e esforçava-se
por alcançar os recantos da sala. Acenderam velas e colocaram-nas
à volta da divisão, só para dar um pouco mais de luminosidade, mas
a luz das velas dançava e tremeluzia. O salão de baile era agora um
lugar de sombras, de cantos escondidos e de ameaça, já não era o
domínio cintilante da dança e do riso.
Cassie sentou-se de pernas cruzadas na plataforma ao fundo da
sala, em frente ao espelho que dava acesso à sala de pânico e à
rota de fuga da Livreira, recordando os anos que passara com o Sr.
Webber, enquanto aguardava. No início, tinha parecido uma
provação, talvez um castigo, mas agora recordava esses dias com
carinho. Iria trazê-los sempre consigo como um tempo em que se
sentira segura e protegida, em que tinha podido desfrutar das coisas
simples. Perguntava-se então se as experiências eram sempre
melhores em retrospetiva, em reminiscência. Seria possível
desfrutar verdadeiramente de alguma coisa no momento?
Pensou em Izzy e em tudo aquilo por que a tinha feito passar.
Cassie sentia-se tão culpada por isso. Algumas horas antes,
enquanto esperavam que a Mulher chegasse, Cassie tinha-se
sentado com Izzy no bar do hotel, rodeada de copos e garrafas
vazias, os detritos dos seus últimos dias no hotel.
«Não te quero aqui», dissera Cassie a Izzy, sem a olhar nos
olhos. «Não posso pôr-te em risco.»
«Sei que agora és mais velha do que eu, mas não mandas em
mim», retorquira Izzy. «Eu vou para onde quiser. E quero estar
aqui.»
«Esta luta não é tua. Eu descarreguei tudo isto em cima de ti.
Foste tu que me avisaste para parar.»
Izzy encolhera os ombros.
«Tens razão. Mas mesmo assim não vou a lado nenhum. Não
sou tua amiga só porque fazes sempre aquilo que eu digo. E não
vou deixar de ser tua amiga por causa de tudo o que aconteceu.»
«Fazes para me ajudar, então?», perguntara Cassie, e Izzy
semicerrara os olhos, desconfiada, quando Cassie levara a mão ao
bolso e lhe passara um livro. «Tenho de me certificar de que ela não
fica com isto. Este é o Livro da Segurança. Se ela o tiver, nada a
conseguirá deter. Podes levá-lo para outro sítio e mantê-lo seguro?
Assim, pelo menos, se nos acontecer alguma coisa, sei que ela
nunca o irá ter.»
Izzy pegara no livro e passara a mão pela capa.
«Porque é que não me dás os outros livros também?»,
perguntara. «Se queres mantê-los a salvo dela, dá-me os livros
todos.»
«Precisamos deles», respondera Cassie.
«Não precisas de todos. Para a derrotar, não.»
Cassie não retorquira.
«Ou só me estás a dar isto para me manter em segurança?»,
perguntara Izzy.
Cassie aceitou que Izzy não a ia abandonar.
«Importas-te de simplesmente manter o livro contigo?»,
perguntara ela. «Por favor? Por mim? Nunca me iria perdoar se te
acontecesse alguma coisa. Por favor?»
Izzy acabara por aceder.
«Mas também não te vai acontecer nada a ti, está bem? Vamos
ultrapassar isto.»
Sentada no salão de baile, à espera da Mulher, Cassie tinha a
esperança de que Izzy tivesse razão.
Um ruído fez com que os seus pensamentos agitados se
concentrassem e ela levantou os olhos para olhar em frente, para o
extremo do salão de baile. O som que tinha ouvido era o de uma
porta a abrir e a fechar, tinha a certeza disso. O som de alguém a
chegar.
Cassie inspirou nervosamente, com o coração a bater acelerado.
— Está aqui alguém — disse ela para a sala.
Estavam todos ali com ela — Drummond e Izzy, Lund e Azaki —,
todos eles escondidos, feitos invisíveis por outra das ilusões de
Azaki. Cassie sentiu-se reconfortada por saber que não estava
sozinha. Tinha a esperança de que isso pudesse ajudar, se
chegasse a esse ponto.
Apoiou a cabeça na mão, assentando o cotovelo no joelho, o
rosto propositadamente sem expressão enquanto o estômago fazia
acrobacias.
Ela esperou e nada aconteceu durante alguns momentos. O
edifício ficou subitamente muito silencioso, como se as próprias
paredes estivessem a suster a respiração.
Depois, veio a névoa, com gavinhas a enrolarem-se e a
espetarem-se no salão de baile como serpentes. Giraram até
formarem uma parede de névoa, separando o salão de baile da sua
entrada, antes de se abrirem como cortinados, tal como da última
vez que a Mulher tinha chegado, e ela atravessou a abertura para
entrar na pista de dança. Mais uma vez, trazia a sua saia preta em
camadas e o seu corpete branco. A saia era comprida e ficava caída
à volta dos pés, criando a ilusão de que ela pairava numa poça de
sombras. Numa das mãos, trazia uma pequena bolsa presa pelas
alças, de forma que pendia ao lado da perna, e na outra mão
segurava o Livro das Brumas.
A Mulher passou os olhos pela sala e depois fixou-os em Cassie.
— Tens de arranjar um truque novo — disse Cassie, apontando
para a parede de névoa que se agitava atrás da Mulher.
A Mulher olhou fixamente para Cassie, sem expressão no rosto.
— A pensar onde estará toda a gente? — perguntou Cassie.
Ela saltou da plataforma e deu alguns passos em frente para
encarar a Mulher do outro lado da pista de dança.
— Não está mais ninguém aqui — garantiu-lhe Cassie. — Só eu
e tu. Ninguém aceitaria vir a outro leilão aqui, não depois da última
vez.
Ao ouvir isso, o queixo da Mulher ergueu-se ligeiramente, os
seus olhos semicerraram-se.
— Eu organizei o leilão para te trazer até aqui — disse Cassie.
A Mulher tinha a expressão atenta e desconfiada de um gato que
acabara de ver um cão que não conhecia.
— Não falas muito, pois não? — observou Cassie, e ficou
surpreendida por descobrir que estava zangada com aquela mulher,
apesar do seu medo. — Mas eu sei que tu sabes falar. É só uma
fachada, não é? Só para as pessoas pensarem que és
assustadora?
A boca da Mulher contorceu-se nos cantos, não exatamente num
sorriso, mas talvez um reconhecimento da análise de Cassie.
— Tudo à tua volta é afetado. Até aquela névoa quando entras
na sala. Como se fosses o Drácula ou algo do género.
A Mulher ajustou a sua postura, movendo o seu peso do pé
esquerdo para o direito.
— Tu és tudo o que há de errado neste mundo — continuou
Cassie. — Tens a magia disponível na ponta dos dedos e para que
é que a usas? Para causar dor e sofrimento. É tudo o que
consegues pensar em fazer, quando há tantas coisas incríveis e
maravilhosas que podias fazer.
Cassie quase conseguia sentir Drummond a querer que ela se
calasse, que continuasse com o plano, mas ela não conseguia
parar. Estava a libertar anos de frustração e desespero.
— Tenho pena de ti — atirou Cassie. — Tenho mesmo pena de
ti.
A expressão da Mulher pareceu descontrair nessa altura, toda a
emoção desapareceu, apenas uma máscara vazia.
— Como deve ser solitário, odiar tudo — disse Cassie, abanando
a cabeça lentamente.
A expressão da Mulher endureceu, a sua boca contraiu-se numa
linha e os músculos do maxilar cerraram-se.
— O que é que vais fazer? — perguntou Cassie. — Vais
esmagar-me, esfolar-me ou queimar-me com a tua luz?
A Mulher baixou a cabeça, uma predadora a preparar-se para
atacar.
— Força! — exclamou Cassie, embora o seu coração acelerasse
com adrenalina e medo. — Dá o teu melhor.
O PLANO, TERCEIRA PARTE:
DRUMMOND E CASSIE
NAS SOMBRAS

A parte mais difícil do plano, a parte que Drummond mais temia


(além da parte final), era seguir a Mulher para descobrirem de
que é que precisavam. Sozinho no hotel, passou as horas que se
antecederam a passarinhar no quarto, a debater-se, sem saber se o
que estavam a fazer era o mais acertado ou não. Sentia o momento
a aproximar-se dele, mas a sua indecisão mantinha-o preso ali,
frente a frente com algo que não tinha a certeza de querer fazer.
Foi Cassie quem o foi buscar, batendo à porta do seu quarto
alguns minutos antes de terem combinado encontrar-se no bar do
hotel. Quando ele abriu a porta, lá estava ela sozinha, bonita e
desgrenhada com o casaco grande e velho que usava sempre, e o
cabelo apanhado.
— Estás preparado?
— Não — admitiu ele.
Ela anuiu e os seus olhos desviaram-se para o lado.
— Eu também não.
Ficaram postados um em frente ao outro num silêncio
constrangedor durante alguns segundos, até que Drummond falou.
— É melhor começarmos, então, antes que percamos a
coragem.
Descobriu que queria ser mais corajoso do que era. De uma
forma tola e pueril, ele queria impressionar Cassie, aquela mulher
que passara por tanta coisa porque ele não tinha sido capaz de a
proteger quando Hugo Barbary atacara, ou quando a Mulher tinha
ido atrás deles no salão de baile meses antes.
— Sim — concordou ela.
Caminharam juntos pelo hotel até ao bar, onde Izzy, Lund e
Azaki estavam a conversar e a revelar sinais de impaciência com
uma energia nervosa.
— Sempre vão em frente, então? — perguntou Izzy, levantando-
se para os cumprimentar. Cassie anuiu com a cabeça. Drummond
ficou a observar as duas mulheres, que se entreolharam.
— Tem cuidado — disse Izzy a Cassie, abraçando-a. — Sei que
já és mais velha, mas tens de me dar ouvidos, ou dou-te uma coça.
Cassie sorriu por cima do ombro de Izzy, e depois separaram-se,
e Izzy olhou para Drummond.
— Também te dou uma coça a ti, se lhe acontecer alguma coisa.
— Eu sei — disse Drummond, esforçando-se por sorrir.
— Muito bem — disse Cassie, assentindo, numa tentativa de
esconder a sua apreensão. — Vamos lá fazer isto.
Caminharam até à primeira divisão ao longo do corredor do bar,
e Cassie usou o Livro das Portas para abrir a porta, revelando o que
parecia ser outro corredor no hotel.
— Por ali vamos dar mesmo aos momentos antes do leilão —
disse ela a Drummond. — Pouco antes de ela atacar.
Suficientemente longe do salão de baile para que ninguém nos veja.
— Certo — disse Drummond. Ele estendeu a mão e Cassie
olhou para ela confusa. — Vou levar-nos aos dois para as Sombras
agora — explicou ele. — Tens de me dar a mão.
— O quê? Eu não te dei a mão da última vez, quando nos levei à
tua biblioteca.
— Isso foi diferente — disse Drummond. — A própria Biblioteca
estava nas Sombras. Fomos para lá juntos. Agora estou a
transportar-me para as Sombras. Se vieres comigo, temos de dar as
mãos. E não podes largar. Entendes?
— O que é que acontece se largar? — perguntou Cassie.
— Cais para fora das sombras — disse Drummond. — Cais
novamente no mundo real. — Ele abanou a cabeça com seriedade.
— Por favor, não largues, não quando estivermos perto da Mulher.
— Dá-lhe a mão, Cassie — disse Izzy, por trás deles. — Segura-
a como se fosse o teu livro preferido.
— Cala-te! — murmurou Cassie.
Drummond viu-a hesitar, olhando para a mão dele como se fosse
algo estranho e ligeiramente assustador. Depois, estendeu a mão e
os seus dedos entrelaçaram-se. A mão dela era fria e suave e
Drummond sentiu-se estremecer de forma inesperada — mas
deliciada — com o contacto. Os seus olhos encontraram-se, e
Drummond achou que Cassie sentiu o mesmo. Ela parecia um
pouco embaraçada, tão embaraçada como Drummond se sentia.
— Vocês os dois são tão queridos — disse Izzy, atrás deles,
maliciosa e a sorrir.
— Eu disse-te para te calares! — rosnou Cassie.
— Estás preparada? — perguntou Drummond. — Cassie engoliu
em seco visivelmente e depois anuiu com a cabeça. — Lembra-te:
não podemos falar; não te vou conseguir ouvir. Mantém-te
simplesmente ao meu lado, aconteça o que acontecer.
Ela assentiu, indicando-lhe que compreendera.
Atravessaram a porta e entraram no passado, fechando a porta
atrás de si. Drummond arrastou ambos para as Sombras e, de
repente, tudo se tornou cinzento e onírico, e ele sentiu aquela
sensação familiar e agradável de flutuar na irrealidade.

Vaguearam pelo hotel, através de paredes insubstanciais e quartos


esquecidos, até ao piso térreo onde as pessoas deambulavam,
formas bulbosas e ruidosas num mundo irreal. Drummond estava
habituado a ver como eram os seres humanos nas Sombras, mas
lembrou-se de que Cassie não estava. Olhou para ela, ao seu lado,
e reparou nos seus olhos esbugalhados e espantados. Ele puxou-
lhe suavemente a mão e ela olhou para ele. Ele balançou o queixo:
Está tudo bem? Ela anuiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar
para a cena à sua frente.
Ficaram juntos, de mãos dadas, ao lado do salão de baile, e
assistiram aos acontecimentos de que se lembravam, mas desta
vez vistos como se estivessem debaixo de água, em tons
monocromáticos, e com os sons abafados e a ecoar. Viram pessoas
a gritar e a morrer, e viram a Livreira a fugir. Viram a Mulher destruir
Okoro, e depois Diego com a arma. Viram a ilusão de Izzy, e viram
Cassie gritar de choque e horror quando achou que a amiga tinha
morrido, e depois viram-na fugir pela porta. Drummond observou o
seu eu anterior, viu-o entrar em pânico, viu os seus olhos a voarem
de um lado para o outro, e depois esse Drummond anterior e
cobarde dissolveu-se no nada, nas suas próprias sombras.
Ele sentiu um puxão suave. Cassie apontou e ele seguiu o dedo
dela para ver a Mulher, o anjo devastador, a sair do salão de baile.
Drummond apressou-se a segui-la, com Cassie a correr ao seu
lado, a mão dela colada à sua; então, ele pôs a mão livre no ombro
da Mulher, agarrando-se a ela e deixando-se levar enquanto ela
atravessava o átrio. Já não precisavam de correr. Ele olhou para
Cassie e esta compreendeu, levantando os pés do chão. Foram
levados com a Mulher para a noite de Nova Iorque, arrastando-se
atrás dela como uma capa levada pelo vento.
Ela transportou-os para um carro. Drummond e Cassie
sentaram-se juntos no banco de trás, de mãos dadas como tímidos
amantes, enquanto a Mulher conduziu durante horas pela noite
dentro. A certa altura, Drummond olhou para o lado e viu que Cassie
tinha os olhos fechados, como se estivesse a dormir. Ela parecia tão
tranquila, pensou ele, mesmo quando viajavam com uma criatura
saída de um pesadelo. Ele deixou-a dormir, perguntando-se que tipo
de sonhos uma pessoa poderia ter nas Sombras, e ficou a ver o
mundo a passar. A viagem foi silenciosa. Não havia rádio, não havia
música. Apenas o ronco do motor e os olhos da Mulher no
retrovisor, que se levantavam de vez em quando para olhar através
de Drummond para a estrada atrás.

Quando o carro parou, Cassie estava acordada. Ela olhou para ele,
com os olhos arregalados e preocupados, nas Sombras, e ele
tentou apertar-lhe a mão, tentou tranquilizá-la, apesar de estar
arrepiado de medo.
Drummond colocou-se de lado e fluiu para fora do carro,
puxando Cassie com ele. Havia um bosque em redor, uma casa,
barulho e luz: outro veículo. Cassie e Drummond flutuavam atrás da
Mulher, observando em silêncio enquanto ela convidava os dois
homens a entrar em sua casa. Cassie puxou o braço de Drummond
para chamar a sua atenção e, quando ele olhou na sua direção, ela
gesticulou com urgência para os homens.
O que é que fazemos?
Drummond encolheu os ombros e depois abanou a cabeça com
tristeza.
Nada.
Cassie ficou tensa e levou as duas mãos ao rosto, puxando a
mão de Drummond com ela, até ele resistir. Ela lançou-lhe um olhar
feroz, e ele só conseguiu acenar com a cabeça: Eu sei.
Ele conduziu-a através das paredes da casa, seguindo os dois
homens enquanto desciam para uma cave.
Drummond posicionou-se com Cassie ao lado das escadas e
esperou, com o estômago cheio de pavor, como se tivesse acabado
de comer demasiado. Havia um zumbido nos seus ouvidos que ele
percebeu ser o seu próprio sangue a circular cada vez mais
depressa pelo seu corpo.
A Mulher dirigiu um dos homens para um colchão no canto e
instruiu o outro para se deitar no chão frio de cimento. Aquele
homem tinha olhos famintos, reparou Drummond, olhos famintos
que estavam cegos à ameaça. Achou que estava a controlar a
situação. Achou que aquela mulher pequena e bonita não
representava qualquer perigo para ele.
E depois a incompreensão, o pânico, quando o chão o engoliu.
Drummond obrigou-se a observar, obrigou-se a ver cada segundo
horrível em que o homem lutava e se debatia. Observou a Mulher e
a alegria nos seus olhos pelo sofrimento que produzia. Drummond
obrigou-se a ver porque era um baluarte contra quaisquer reservas
que ele pudesse ter em relação ao que tencionavam fazer. Aquilo
era quem ela era. Aquilo era o motivo pelo qual tinham de a travar.
Cassie puxou-lhe o braço como se quisesse fugir, mas ele
segurou-a, a olhar para ela e a abanar a cabeça com severidade:
Temos de saber. Ainda não acabámos o que viemos fazer!
Drummond Fox, a fazer o que tinha de ser feito, custasse o que
custasse.
Odiou-se quando Cassie tentou afastar-se, virando as costas ao
que se estava a passar.
Depois, o homem no chão não era mais do que lábios a dar
estalidos e narinas dilatadas a lutarem por oxigénio. Drummond viu
os lábios ficarem imóveis, enquanto o homem morria no seu túmulo
de betão, e segurou Cassie junto a si, com o rosto dela encostado
ao seu peito, as mãos ainda apertadas entre os seus corpos.
A Mulher aproximou-se do colchão e Drummond deu alguns
passos em frente para a observar. Não porque quisesse. Mas
porque tinha de o fazer.
Cassie levantou os olhos do peito dele e olhou naquela direção,
no preciso instante em que o homem no colchão estremeceu e se
derreteu num líquido espumoso, enquanto os seus gritos ecoavam
nas Sombras.
Cassie abanou a cabeça e afastou-se, usando a mão livre para
tentar arrancar os dedos de Drummond dos seus. Ela gritava
silenciosamente para as Sombras: Não! Não! Não! E Drummond era
capaz de ver o terror e o trauma que a dominavam, os seus olhos a
voltarem a centrar-se na Mulher, que inspecionava agora os
despojos líquidos que momentos antes haviam sido um homem.
Drummond tentou puxá-la para junto de si, tentou chamar a
atenção de Cassie, mas ela estava em pânico como um animal
aterrorizado, com os olhos arregalados e descontrolados. Começou
a bater no peito dele com o punho, desesperada por ser libertada.
Depois, a Mulher levantou-se.
E olhou diretamente para eles.
O coração de Drummond parou. E precisou de recorrer a todo o
seu autocontrolo para não largar a mão de Cassie e desatar ele
próprio a fugir.
Sentindo qualquer coisa, vendo a mudança em Drummond,
Cassie parou e seguiu os olhos dele até onde estava a Mulher. E, de
repente, também ela ficou imóvel, como se tivessem acabado de ver
um predador, o mundo inteiro petrificado, à espera de ver o que ia
acontecer.

O momento passou e a Mulher afastou-se. Drummond olhou para


Cassie e viu que ela estava a chorar, com lágrimas de sombra a
escorrerem-lhe dos olhos, mas o pânico parecia ter diminuído. Ela
observava a Mulher e evitava, intencionalmente, olhar para o
colchão.
Quando a Mulher se dirigiu para um canto da cave, Drummond
deu alguns passos para a seguir. As sombras e a escuridão
desapareceram o suficiente para ele perceber o que a Mulher
estava a fazer. Aquele canto acomodava um cofre. Eles observaram
a Mulher enquanto ela o abria e revelava quatro livros lá dentro.
Tirou mais livros da mala e colocou-os ao lado dos volumes que já lá
estavam. Drummond tentou espreitar através da escuridão para ver
que livros ela possuía.
Depois fechou o cofre, levantou-se e passou diretamente por
eles. O som dos seus saltos nas escadas enquanto subia de
regresso à sala de estar da casa era um metrónomo lento, e
pareceu uma eternidade antes de a Mulher desaparecer, tendo
fechado a porta da cave atrás de si.
Drummond olhou para Cassie. Ela estava a olhar especada para
o cofre. Quando ele lhe deu um puxãozinho na mão, demorou
alguns segundos até que ela virasse o rosto para ele. Parecia
traumatizada. Tinha a expressão de uma pessoa que aparece nas
notícias, uma testemunha ocular de um acontecimento horrível.
Drummond apontou para o cofre e fez um movimento com o
queixo, como que a perguntar: Chega?
Ela considerou a pergunta durante algum tempo, e depois anuiu.
Já tinha visto o suficiente. Mais do que o suficiente.
O PLANO, QUARTA PARTE: AZAKI E
OS LIVROS

— S abes qual é o problema do Lund — disse Azaki, a acenar


com o copo descontraidamente.
— Não — disse Izzy. — Mas conta.
— O problema do Lund é que ele acha que estar sempre calado
faz com que as pessoas pensem que ele é estúpido. — Azaki olhou
para Lund, que estava a observá-lo do outro lado da mesa. O seu
sobrolho ligeiramente descaído, o mais próximo de uma carranca
que Azaki alguma vez o vira fazer. — O que ele ainda não percebeu
é que as pessoas estúpidas não costumam ser silenciosas. As
pessoas estúpidas são normalmente as mais barulhentas da sala.
— Oh, meu Deus — murmurou Izzy. — O que é que isso diz
sobre mim?
Azaki olhou para ela por momentos e depois riu-se.
— Há sempre uma exceção à regra. Porque tu não tens nada de
estúpida.
— Mas faço barulho — disse Izzy, alegremente.
— Ah, isso fazes! — disse Azaki, brindando com o ar antes de
emborcar a sua bebida.
Estavam no bar do mezanino do Macintosh Hotel. O hotel dava
arrepios a Azaki. Ele odiava-o, especialmente à noite, quando
tentava dormir. Era um lugar vazio, quartos cheios de melancolia e
memórias. Mas de todos os lugares do hotel, o bar do mezanino era
aquele em que ele se sentia mais confortável. Desde que se
encontrara com Lund e os outros, alguns dias antes, sentia-se mais
descontraído quando estava sentado no bar com Lund e Izzy.
Tinha sido estranho reencontrar Lund e Cassie tanto tempo
depois de os ter visto no Chile. Para Lund e Cassie, quando ele os
encontrou em Bryant Park, tinham passado apenas algumas horas
desde o último encontro. Eles tinham atravessado uma porta no
Oregon para o Chile, retrocedendo depois de o terem persuadido do
seu futuro. E depois tinham atravessado outra porta, juntamente
com Izzy e Drummond Fox, para Nova Iorque, para se encontrarem
com Azaki, como prometido.
Tinham passado a primeira noite num hotel turístico insípido no
centro da cidade, e, enquanto lá estavam, Cassie tinha visitado a
Livreira no passado e convencera-a a deixá-los usar o Macintosh
Hotel, um local que aparentemente pertencia à Livreira. Azaki ficara
bastante entusiasmado quando ouvira falar do local, mas desiludido
quando atravessaram a cidade e tiveram de passar pelas tábuas
que o vedavam para lá entrar.
Porém, conhecer Izzy animara-o nos últimos dias. Ele gostava
de passar tempo com a mulher. Lund era uma companhia
confortável, como um quarto calmo e tranquilo onde se podia
relaxar. Izzy, pelo contrário, era a melhor festa a que alguma vez
tinha ido — vivaça, divertida e bonita — e ele adorava estar com ela.
Cassie também tinha um feitio amável, por detrás de toda a
preocupação e tranquilidade. E Drummond Fox foi uma revelação
para Azaki, muito mais caloroso do que ele alguma vez imaginara e
com um sentido de humor que se deixava ver quando ele se
permitia descontrair.
Naquela primeira noite no Macintosh Hotel, Azaki e Izzy tinham
saído para se irem abastecer. Principalmente de álcool, mas
também de alguma comida. Desde então, tinham passado a maior
parte do tempo no bar, simplesmente a conversar, a beber, a tentar
ignorar o nervosismo e os medos. Por vezes, Cassie juntava-se a
eles, muitas vezes, distraída e distante. Drummond chegava e bebia
em silêncio, mas obviamente ouvia as conversas, como se quisesse
estar perto das pessoas, mas sem necessidade de participar. Azaki
entendia isso.
— Não me tinha apercebido de que sabias que sou inteligente —
disse Lund, e Azaki olhou para ele com surpresa.
— Eu não disse que eras inteligente — disse ele.
— Exato — concordou Izzy. — Ele não disse que eras
inteligente.
— Eu só disse que não eras tão estúpido como queres que as
pessoas pensem que és.
Lund refletiu naquelas palavras por momentos, depois disse:
— Gostava de ser suficientemente inteligente para o saber
distinguir.
— És muito seco — disse Azaki, a olhar atentamente para ele.
— É impossível dizer se estás a brincar ou não.
Cassie e Drummond surgiram, e pouco depois todos os viram
desaparecer através da porta para o passado.
— Então, é isto — disse Izzy, quando eles se foram embora. —
Vai começar.
— Sim — concordou Azaki, e percebeu que estava nervoso. A
parte seguinte cabia-lhe a ele. Pousou o copo na mesa.
Cassie e Drummond regressaram quase de imediato. A porta
abriu-se, eles entraram aos trambolhões e Cassie voltou a fechar a
porta atrás deles. Azaki ficou alarmado com a expressão do rosto de
Cassie. Os olhos dela pareciam vazios, a pele, empalidecida.
— Então? — perguntou Azaki. Apercebeu-se de que estava a
apertar e a desapertar rapidamente a mão no bolso, um tique
nervoso que o acompanhava desde criança.
Cassie passou por ele e deixou-se cair num dos bancos do bar.
— Preciso de uma bebida — disse Drummond. — Onde é que
está o whisky?
— Atrás do bar — disse Izzy, mas seus olhos estavam retidos
em Cassie. Ela sentou-se ao lado da amiga no sofá.
— Traz-me um! — pediu Azaki, enquanto Drummond se dirigia
ao bar. Drummond levantou uma mão para mostrar que tinha
percebido o pedido.
Cassie parecia estar a ordenar os seus pensamentos.
— O que é que aconteceu? — perguntou Izzy, sentindo
obviamente que havia qualquer coisa de errado.
Azaki trocou um olhar com Lund, que levantou e baixou as
sobrancelhas uma vez.
— Não importa — disse Cassie. — Nós vimos a Mulher.
Seguimo-la até casa. Estivemos com ela e… ela matou dois homens
enquanto lá estávamos. — Abanou a cabeça. — Foi horrível, Izzy.
Izzy esboçou uma expressão de sofrimento e pegou na mão de
Cassie.
— O que é que ela fez? — perguntou Azaki. Não conseguiu
conter-se. Estava assustado e queria o máximo de informação
possível.
Cassie levantou o rosto para olhar para ele. Parecia estar a
quilómetros de distância.
— Ela transformou um homem em líquido — contou ela. — Eu
acho que… acho que ele estava a gritar enquanto ela o derretia.
Mas soou como um gorgolejo porque ele era todo líquido. Meu
Deus… — Deixou cair a cabeça nas mãos. Azaki cruzou os braços,
passarinhando pelo espaço, inquieto. — Nunca estive tão segura
daquilo que estamos a fazer — assegurou Cassie, a falar por entre
as mãos. — Ela é maligna. — Depois olhou para Azaki. — Mas
descobrimos onde guarda os livros. Num cofre na cave, numa casa
algures a sul daqui.
— Então consegues tirá-los? — perguntou Azaki.
— Acho que sim — disse Cassie. Ela olhou para Izzy. —
Lembras-te da primeira noite no Library Hotel? Estávamos a falar de
um ladrão a abrir um cofre?
— Sim — respondeu Izzy, com um breve sorriso.
Drummond regressou com uma garrafa de whisky numa mão e
cinco copos encostados ao peito apoiados com o outro braço.
Serviu bebidas a todos, brindaram em silêncio e beberam, até
mesmo Cassie.
— Vamos a isso — disse Cassie a Drummond. — Vamos buscar
os livros. — Depois olhou para Azaki. — Estás pronto?
Azaki assentiu, apesar de estar nervoso.
— Como é que isto funciona? — perguntou Lund. Ele apontou
para a porta pela qual Cassie e Drummond haviam entrado. — Esta
porta é maior do que uma porta de cofre.
— Não faço ideia — disse Cassie. — Mas vamos descobrir.
Cassie levantou-se, limpou a boca com a manga e dirigiu-se
novamente para a porta. Segurou no Livro das Portas ao seu lado
conforme ele brilhava e brilhava, e então estendeu a outra mão para
abrir a porta. Em vez de um corredor, viram uma parede preta
sólida, com o que parecia ser o interior de um cofre numa
reentrância com sessenta centímetros de lado, a cerca de trinta
centímetros do chão.
— É isto? — perguntou Izzy.
— Sim — disse Drummond. — Este é o cofre dela.
Azaki viu Cassie pegar nos livros e retirá-los. Ela mostrou-lhos,
um de cada vez, e Azaki estudou-os cuidadosamente.
— Consegues fazer versões destes?
Azaki anuiu com a cabeça. Ele sabia que conseguia, mas
também conhecia as limitações daquilo que o Livro da Ilusão podia
fazer.
— Mas a ilusão não vai durar para sempre. Horas, talvez. Um dia
e pouco, se tivermos sorte. E eu vou ter de estar concentrado o
tempo todo.
Azaki desejou não ter bebido tanto nas últimas horas.
— Por isso, temos de dar início ao leilão — concluiu Cassie. —
No espaço de doze horas.
— Ela demorou esse tempo todo a regressar — disse
Drummond. — Quando estávamos com a Mulher. Ela está a cerca
de doze, treze horas de distância, de carro. Se a Livreira convocar o
leilão, ela terá de partir quase de imediato.
— Então a ilusão só precisa de durar o tempo que ela demora a
pegar nos livros e ir-se embora — disse Lund a Azaki. — É fácil, não
é?
Azaki sorriu com ar sombrio, apesar de saber que Lund estava a
tentar ser solidário.
— Pois… fácil.
— Estamos prontos? — perguntou Cassie, olhando para cada
um deles. — Porque, quando eu convocar o leilão, não há volta a
dar.
— Porque é que não nos apoderamos simplesmente dos livros?
— perguntou Izzy. — Pega nos livros e esquece que ela existe.
Cassie abanou a cabeça.
— Já falámos sobre isto.
— Há mais livros por aí — concordou Drummond, servindo-se de
outro whisky. — Mais vale que ela desapareça de vez.
Azaki sentiu a tensão na sala, como uma corda de guitarra bem
afinada pronta a rebentar.
— OK — disse Cassie. — Azaki, cria as ilusões. E depois eu
telefono à Livreira.
— Deixem-lhe o Livro das Brumas — disse Drummond.
— Porquê? — perguntou Cassie.
— Ela gosta de fazer uma entrada em grande estilo, não é? —
disse Drummond. — Se ela tentar criar uma névoa e não funcionar,
irá saber que os livros desapareceram antes de termos a
oportunidade de tratar dela. Deixem-lhe esse. Simplesmente vamos
ter de lho tirar quando ela cá chegar.
Azaki concordou e Cassie devolveu o Livro das Brumas ao cofre.
Então, Azaki começou a trabalhar, enquanto o Livro da Ilusão
brilhava na sua mão com uma luz suave. Ele criou imitações
perfeitas de cada um dos livros que eles tinham tirado e colocou-os
no cofre. Deu a cada um deles peso e textura, uma ilusão de
substância, magia tanto para as mãos quanto para os olhos.
— Está feito — murmurou, mantendo a mente focada nos livros
imaginários no cofre. Afastou-se e instalou-se no sofá, de olhos
fechados para manter a concentração. Ele conseguia sentir os livros
ilusórios dentro do cofre da Mulher. Manteve o Livro da Ilusão nas
mãos, e cores suaves continuavam a sair das bordas das páginas.
Ouviu Cassie fechar a porta novamente, bem como o cofre da
Mulher.
— Estamos bem? — perguntou Cassie. Depois,
presumivelmente após uma série de cabeças a anuírem, disse: —
Vou telefonar à Livreira.
Está quase a acabar, Azaki pensou. De uma forma ou de outra.
O PLANO, QUINTA PARTE (2)

— F orça!A Mulher
— exclamou Cassie. — Dá o teu melhor.
observou-a por breves instantes e depois sorriu
para Cassie.
— É agora que queres que eu use os meus livros? — perguntou
a Mulher, inclinando ligeiramente a cabeça. — É agora que queres
que eu perceba que os meus livros desapareceram?
O cérebro de Cassie congelou quando o seu plano foi
subitamente posto fora dos eixos; o seu plano era um comboio a
descer uma encosta enquanto a Mulher a fitava calmamente.
Enquanto Cassie lambia os lábios, enquanto as suas entranhas
ferviam de medo, a Mulher espreitou para dentro da mala
pendurada no cotovelo. Retirou um livro e olhou para ele sem
expressão. Quase imediatamente o livro tornou-se insubstancial,
apenas uma sugestão de um livro no ar. E depois nada… apenas a
mão vazia da Mulher.
Os seus olhos viraram-se para Cassie.
— Pensaste que eu não ia perceber? — perguntou a Mulher,
enquanto tirava os outros livros, um após o outro, cada um deles a
dissipar-se em nada ao seu toque. — Eu conheço os livros — disse
a Mulher. — Sei qual é a sensação de lhes pegar.
Cassie ficou petrificada, a Mulher entre ela e a entrada do salão
de baile.
Ela só tem o Livro das Brumas!, gritou o cérebro de Cassie. Mas
Cassie lembrava-se do que a Mulher tinha feito a Yasmin, a amiga
de Drummond, com o Livro das Brumas.
— Mas a ti, eu não te conheço — disse a Mulher, com os olhos
cravados em Cassie. — Não sei quem és. Não sei como chegaste
aos meus livros. Mas vi-te com o Bibliotecário. Vi-te aqui, no último
leilão. — A Mulher deu alguns passos em frente. — Diz-me quem
és.
— Não importa quem eu sou — afirmou Cassie, com a voz
entrecortada, a mente acelerada e a tentar arranjar um plano.
— Oh, importa, sim — respondeu a Mulher. Ela avaliou Cassie
lentamente de cima a baixo. — Eu vou manter-te viva — disse ela.
— Mas vais desejar estar morta. Vou fazer-te cantar para mim a tua
dor. Vou deliciar-me com as tuas agonias durante semanas e
meses.
A Mulher deu mais um passo em frente.
— O Bibliotecário está por detrás disto — disse ela. — Diz-me,
lourinha, onde está o Bibliotecário? Qual era o plano dele? Ele
achava que me conseguia deter só por me tirar os livros?
Cassie engoliu em seco, sentindo o medo como uma grande
pedra áspera na garganta. Não se conseguia mexer. Não conseguia
raciocinar.
Então, a Mulher voltou a meter a mão na mala, mas desta vez
tirou uma pistola, um revólver, cuja extremidade do cano era um
enorme buraco negro na visão de Cassie.
— Achas que preciso de livros? — perguntou a Mulher. — Esta é
a arma com que matei o meu pai. Ele demorou muitos dias a morrer.
Arranquei-lhe a tiro várias partes do corpo e depois tratei-lhe das
feridas para o manter vivo. Naquela altura, não tinha livros, mas
mesmo assim consegui fazê-lo cantar para mim.
Cassie deu por si hipnotizada pelo cano, um olho negro que a
observava.
— Para.
Cassie olhou por cima do ombro da Mulher. Drummond estava
ali, surgido do nada, aparecendo por detrás do véu de invisibilidade
de Azaki. Azaki também lá estava, e Lund, e Izzy mais atrás. Cassie
sentiu-se aliviada.
— Já chega disto — disse Drummond. Os seus olhos desviaram-
se para Cassie, para verificarem se ela estava bem, e depois
regressaram à Mulher.
— O Bibliotecário — disse a Mulher. — E… mais outros.
Ela sorriu como se estivesse deliciada.
E nesse momento, Lund correu para a Mulher, e o seu
movimento repentino surpreendeu toda a gente. Cassie estremeceu
de choque, mas a Mulher foi demasiado rápida. Ela girou e disparou
e Lund foi atirado para trás como se tivesse levado um murro,
aterrando com força no chão.
Imediatamente, Cassie viu três coisas.
Viu Izzy gritar o nome de Lund e correr para ele.
Viu Azaki cintilar e desaparecer novamente.
E viu Drummond a correr em direção à Mulher, tal como Lund,
com o rosto fechado num esgar de determinação.
A Mulher apontou e disparou contra Drummond, tal como tinha
disparado contra Lund momentos antes.
Cassie hesitou, sem saber o que fazer e, quando decidiu agir e
correr para a Mulher do lado oposto ao de Drummond, era
demasiado tarde. A névoa já se estava a formar à sua volta.
Drummond não parou — e nenhuma bala parecia atingi-lo; e
mesmo com o adensar da névoa, Cassie viu os olhos da Mulher
semicerrarem-se de surpresa.
Tentou mexer-se, mas era como se estivesse a empurrar contra
lençóis, e depois almofadas, à medida que a névoa se tornava mais
espessa.
— Drummond! — chamou ela.
Depois, a névoa desapareceu, o ar ficou subitamente claro e
limpo e, à sua frente, Azaki estava a agarrar no pulso da Mulher,
aparecendo do nada para lhe roubar o livro. E enquanto ela olhava
para aquele lado, Drummond alcançara-a e agarrara na arma com
as duas mãos.
— É difícil matar alguém que traz o Livro da Sorte — disse-lhe
ele. — Para minha grande alegria.
A Mulher gritou, furiosa, a espumar de raiva, enquanto Azaki e
Drummond lhe arrancavam as armas das mãos, dois homens que
facilmente dominaram uma mulher de baixa estatura.
— O que és tu sem os teus livros? — perguntou Drummond,
enquanto ele e Azaki se afastavam alguns passos dela. — Como é
que és sem os teus poderes?
A Mulher não respondeu.
Do fundo da divisão, Izzy gritou.
— Cassie, ele está ferido. Levou um tiro!
— Estou bem — resmoneou Lund, com a voz débil.
— Afinal, não és nada de especial — disse Drummond,
continuando a olhar para a Mulher.
— És mais pequena do que eu pensava — observou Azaki. —
Não acredito que tive medo de ti todos estes anos. — Ele olhou para
o Livro das Brumas na sua mão.
— Mataste os meus amigos — continuou Drummond, com uma
expressão séria. — Há uma década que ando a fugir de ti. A minha
biblioteca… — A Mulher inclinou a cabeça, interessada. — Mantive-
me afastado da minha biblioteca durante tanto tempo, só para a
proteger de ti. — Drummond levantou a arma e apontou-a à testa da
Mulher. — Porque é que eu não te mato agora e torno o mundo um
lugar melhor?
— Não — disse Cassie, baixinho.
Ela aproximou-se e pôs uma mão no braço de Drummond,
obrigando-o a baixar a arma, obrigando-o a olhar para ela.
— Foi ela que trouxe a arma — protestou Drummond.
— Eu sei — disse Cassie. — Mas tu não és um assassino. Essa
não é a maneira de resolver isto.
Os três olharam para a Mulher em silêncio, e ela respondeu-lhes
com um olhar desafiador. Cassie conseguia ouvir Izzy a falar com
Lund, tranquilizando-o. Cassie estava ciente de que não dispunham
de muito tempo. Ela não sabia se Lund estaria muito ferido, mas
tinham de o ajudar.
— Está na altura de fazeres uma viagem — disse Cassie à
Mulher. — Quero mostrar-te o Livro das Portas. — Tirou o livro do
bolso, e a Mulher olhou para ele como se fosse um homem
esfomeado, e o livro, uma refeição. — Quero mostrar-te o nada e o
lugar nenhum. Quero mostrar-te de onde vêm os livros.
A Mulher arqueou as sobrancelhas ao ouvir essas palavras.
— Eu já lá estive — prosseguiu Cassie. Abanou a cabeça
lentamente. — Não vais sobreviver lá. É um lugar onde os humanos
não podem existir. Vai desfazer-te aos bocadinhos.
Drummond enfiou a arma no bolso e Azaki atirou o Livro das
Brumas para o chão, e os dois aproximaram-se da Mulher, um para
cada braço, tencionando levá-la até à porta na lateral da sala, onde
Cassie revelaria o nada e o lugar nenhum. Mas antes que
conseguissem agarrá-la, a Mulher pousou as mãos sobre a saia,
com as palmas viradas para baixo sobre as penas negras.
Azaki alcançou-a primeiro, agarrou-lhe no braço e ela baixou a
cabeça e sorriu-lhe por entre as sobrancelhas.
Azaki resmoneou. A sua boca abriu-se e ele soltou um grito
horrível que ecoou no salão de baile. Caiu de costas, no chão
alcatifado, enquanto levava as mãos ao rosto, e Cassie viu que a
saia da Mulher brilhava agora, pulsando com uma luz negra.
A Mulher estendeu um braço e agarrou Drummond antes que ele
conseguisse afastar-se, e então Drummond soltou um grito agudo e
horrorizado, e os seus olhos reviraram-se, e também ele caiu no
chão, com as duas mãos no rosto.
Cassie afastou-se.
Ela já tinha visto aquilo antes, nas memórias de Drummond.
— O Livro do Desespero — disse ela.
A Mulher virou-se sem sair do lugar, dando piruetas elegantes
como uma bailarina, com a cabeça para trás e os olhos para o teto,
como se Cassie não estivesse ali. Cassie olhou novamente para a
saia de penas de corvo e percebeu que não era tecido. As penas
eram as páginas de um livro costuradas de modo a formarem uma
peça de roupa.
Antes que Cassie conseguisse reagir, a Mulher lançou-se para a
frente, sem usar uma velocidade sobre-humana, mas ainda assim
mais rápida do que Cassie contava, e agarrou-a com ambas as
mãos, o seu rosto um grito contorcido de fúria, e Cassie encheu-se
de desespero.
DESESPERO

N a mente de Cassie, estava tudo perdido. Era o fim.


Não havia esperança. Tinham sido derrotados, e ela mal se
apercebeu do seu próprio corpo quando caiu no chão, quando toda
a força e intenção a abandonaram.
Não havia cor no mundo. A vida era monocromática e austera.
Havia a consciência e depois a morte, e a consciência era destruída
pela inevitabilidade da morte.
Morte.
O seu próprio avô, um esqueleto de pele solta com sangue nos
lábios devido à tosse. O ar estava espesso com suor e dor. Cassie
estava presa ali, num quarto sem porta, só dor e morte para sempre,
e gemeu, e aquele mundo de desespero deleitou-se com o som da
sua dor.
Depois viu o futuro, o seu desespero afastou um cortinado e
revelou-lhe o que significava o fracasso dela. O mundo inteiro
estava vazio, cidades silenciosas e campos áridos. Carcaças de
animais jaziam espalhadas por campos lamacentos onde não
cresciam colheitas. As árvores no horizonte assemelhavam-se a
mãos erguidas aos céus, horrorizadas com o que tinha acontecido
ao mundo.
Este era o mundo que a Mulher tinha criado, e aqui estava ela,
uma sombra no horizonte, a passear deliciada pela miséria. Ela era
uma mancha negra na paisagem que se aproximava, com os braços
bem abertos enquanto caminhava pela estrada. Mas a estrada não
era uma estrada, reparou Cassie. A Mulher caminhava num trilho
composto por pessoas, todas elas esmagadas sob os seus pés,
todas elas a gritar de boca aberta para o mundo cinzento. E o
mundo deixou de estar silencioso; ficou repleto de sons de dor e
agonia.
Este era o futuro reservado à humanidade, à raça humana. Por
causa da Mulher.
Por causa de Cassie.
Por causa dos livros que Cassie tinha criado em lado nenhum e
em todo o lado.
Cassie chorou, no salão de baile, e no mundo morto dentro da
sua mente, onde ela estava.
E a Mulher foi atraída pelo som. Olhos famintos varreram em
redor como holofotes e encontraram Cassie no sítio onde se
encolhia. O sorriso de prazer da Mulher transformou-se numa
expressão de escárnio.
Cassie baixou os olhos, sabendo que a Mulher estava a avançar
sobre ela. Ela sabia que a Mulher queria juntá-la à estrada de
corpos e ossos, ao caminho gritante que a levava através do
mundo. Cassie iria ficar presa ali, para a eternidade, apenas uma
entre milhões de outros.
Por cima, o céu era cinzento e insípido e, à medida que a Mulher
avançava, os pássaros caíam pesadamente no chão por todos os
lados, a guincharem e a baterem as asas enquanto a dor os
apertava. E por baixo dela, na lama, insetos e vermes contorciam-se
e subiam à superfície, atingidos pela agonia da Mulher que passava
por cima deles.
A Mulher estendeu a mão para Cassie, com a boca aberta num
grito de puro ódio.
Não podia existir vida sem dor e sofrimento.
Cassie gritou, a mão esquelética da Mulher aproximava-se dela,
a boca escancarada enquanto tentava rasgar Cassie com os seus
dentes negros.
Não havia nada além de desespero.
E depois surgiu o fogo, repentino, furioso, irado e belo porque
era algo, algo em vez de nada.
FOGO

I zzy estava no chão ao lado de Lund, a segurar-lhe no braço


enquanto o homem gemia e se contorcia. A bala atingira-o no
abdómen, nas entranhas, e Izzy receava que algum órgão tivesse
sido perfurado, que ele tivesse uma hemorragia interna.
— Lund! — disse ela. — Fala comigo.
O homem, todo ele uma rocha de músculos tensos, tinha os
olhos fechados.
— Eu estou… bem — murmurou ele, por entre dentes cerrados.
Izzy sabia que ele precisava de ajuda; ela tinha de o levar dali.
Olhou para cima para ver o que se estava a passar com a Mulher, e
viu Cassie, Drummond e Azaki no chão, todos a gemer. A Mulher
continuava de pé a alguns metros de distância, a rodopiar sem sair
do lugar, com o rosto virado para o teto. Parecia quase alegre
perante as agonias que a rodeavam.
— O que é isto? — perguntou Izzy. Ela não fazia ideia do que
estava a acontecer, do que a Mulher estava a fazer, mas viu que a
saia da Mulher brilhava.
Olhou novamente para Lund, os músculos do seu maxilar
estavam tão cerrados que ela pensou que ele ia partir os dentes.
Cassie gritou ainda mais ao fundo sala, e conseguia ouvir
Drummond a gemer. Azaki limitava-se a dizer «Não, não, não»
repetidamente. Enquanto Izzy observava, ele pôs-se de gatas e
começou a bater com a cabeça no chão alcatifado, como se
estivesse a tentar pôr-se a si próprio inconsciente.
A Mulher virou-se e os seus olhos arregalaram-se ao ver Izzy.
Ela avançou, e Izzy ficou petrificada, incapaz de se mexer, a ver o
monstro aproximar-se. Então, a Mulher passou uma mão pela face
de Izzy, com suavidade, e Izzy reagiu com um salto para trás. Mas
ela não sentiu nada, mesmo quando a Mulher se afastou, fazendo
piruetas como se estivesse a dançar ao som de uma música que só
ela conseguia ouvir.
Izzy apercebeu-se de que estava em segurança. O livro que
Cassie lhe tinha dado estava a protegê-la. Conseguia senti-lo,
quente e pesado no seu bolso, um escudo contra o que quer que
estivesse a afetar os seus amigos.
Izzy olhou novamente para a saia brilhante, enquanto a Mulher
dançava a alguns metros de distância. Ela olhou mais de perto para
as penas e deu-se conta de que não eram penas. Era por isso que a
saia estava a brilhar… era um dos livros. Toda a sua saia era
composta pelas páginas de um livro, cosidas umas às outras de
alguma forma.
A Mulher continuou a dançar à luz das velas, com os olhos
virados para cima.
Ela está-se completamente nas tintas para ti, disse Izzy a si
própria. Tu não és nada para ela.
Izzy odiava a Mulher. Ela não passava de uma rufia egoísta.
Nem melhor nem pior do que os miúdos que costumavam implicar
com ela no recreio da escola quando era mais nova.
Então, Izzy olhou para Lund, para Cassie, Drummond e Azaki.
Ela era a única que não tinha sido afetada. Ela era a única que
podia fazer alguma coisa.
Olhou novamente para a saia, viu papel grosseiro e seco em vez
de penas, o tremeluzir das velas mais ao longe. E lembrou-se de
uma coisa que Drummond lhe dissera uma manhã em Lyon, meses
antes. E recordou-se de estar sentada na praia com Lund, no
Oregon.
Izzy levantou-se e tirou do bolso o isqueiro que Lund tinha usado
para acender a fogueira na praia. Acendeu-o, avançou alguns
passos e chegou-o à bainha da saia, enquanto a Mulher se
afastava, olhando para Drummond e Cassie ao fundo da sala.
As chamas foram imediatas, alimentadas pelas páginas grossas
e secas do Livro do Desespero, e em poucos segundos toda a
vestimenta ficou em chamas — a Mulher trajava agora uma saia de
fogo.
Enquanto Izzy se afastava, voltando para junto de Lund, e
enquanto a Mulher se debatia, surpreendida e a gritar, viu Cassie a
sacudir-se para recuperar os sentidos e Drummond a sentar-se
direito novamente. Azaki deixou de bater com a cabeça no chão, e
até Lund abriu os olhos para ver o que estava a acontecer.
A Mulher gritava de fúria, batendo na saia com as mãos.
— Drummond! — gritou Cassie, e Izzy viu Cassie a correr para o
espelho ao fundo da sala, o espelho que escondia a passagem
secreta. O espelho que também era uma porta.
Do outro lado da sala, Drummond tinha um livro numa mão que
estava a brilhar. Fletiu o outro braço, e a Mulher foi erguida do chão,
uma bola de fogo e fúria no ar. Cassie abriu o espelho e puxou-o
para trás, revelando um buraco escuro na parede, um retângulo de
nada, e Drummond lançou o braço na direção dele. A Mulher
atravessou a sala, a um metro do chão, um rasto de fogo que se
movia com o uivo de um animal apanhado numa armadilha.
A Mulher desapareceu no retângulo de escuridão. Dando meia-
volta para os encarar, fitava-os como se estivesse a cair de um
edifício e eles estivessem no telhado a vê-la cair para o seu destino.
Ela lançou uma mão em direção a eles enquanto caía, como se se
estivesse a tentar agarrar, até que se desintegrou na escuridão, e o
seu uivo fragmentou-se em mil uivos, e, depois, nada.
Assim que Cassie fechou o espelho com força, o fogo e o
barulho desapareceram.
Ao lado de Izzy, Lund gemeu e fechou os olhos mais uma vez.
Izzy tirou o Livro da Segurança do bolso e colocou-o nas mãos
dele.
— Vá lá — disse ela, com lágrimas nos olhos. — Funciona.
Os seus amigos correram para junto de ambos, do outro lado da
sala, e Izzy desejou que não fosse demasiado tarde. Esperava que
Lund ficasse bem.
O ÚLTIMO ATO DE
HUGO BARBARY (2002)

N o passado, o homem que, durante muitos anos, fora conhecido


como Dr. Hugo Barbary estava sentado na borda do espelho de
água em frente ao Radio City Music Hall, na Sixth Avenue. Era de
noite na cidade quente, húmida e furiosa, e Hugo Barbary era um
homem dividido.
Tinha sido novamente atirado de volta ao passado por Cassie,
através de uma porta do salão de baile. Tanto quanto conseguia
perceber por entre a tempestade que se instalara na sua mente,
recuara muitos anos. Talvez vinte. Não tão longe quanto da última
vez, mas estava no passado de certeza.
Ele estremeceu e queixou-se, ao sentir a dor que se contorcia no
seu crânio.
Aquela mulher, a Livreira, fizera-lhe alguma coisa, ele tinha a
certeza disso. Ela usara o Livro da Dor e expulsara alguma coisa.
Ele não se sentia em condições desde então. Desatara a caminhar
sem rumo quando chegou ao passado, ciente de que para quem o
via parecia apenas mais um velho louco nas ruas de Manhattan.
Deu por si na Sixth Avenue e parou junto ao espelho de água, só
para tentar acalmar-se.
Sentia-se alternadamente furioso e exultante, entre a agonia e o
prazer. Ele era duas pessoas a digladiarem-se. O Livro da Dor tinha
libertado todo o seu tumulto, as memórias e experiências da sua
infância que o haviam transformado no homem monstruoso que daí
resultara. O Livro da Dor tinha criado a sua dor de novo, dando-lhe
uma vida e uma intenção próprias, e agora essa dor estava a lutar
com ele.
O resto de Hugo, as outras partes dele que já não estavam a
sofrer, parecia uma parte de si que se mantinha adormecida há
décadas. Ele tinha todas as suas lembranças, todas as suas
experiências, mas era uma pessoa diferente, um homem
horrorizado e aterrorizado pelas coisas que tinha feito antes de a
Livreira o ter transformado com o Livro da Dor.
Na noite barulhenta de Nova Iorque, com os olhos ofuscados
pelas luzes brilhantes e pelos faróis, Barbary atirou a cabeça para
trás e grunhiu, e dois turistas sentados perto dele à beira do espelho
de água lançaram-lhe um olhar nervoso e afastaram-se
discretamente.
A dor estava viva e tentava reconquistar Hugo, mas ele não
queria que isso acontecesse. A parte dele que fora em tempos uma
criança, a parte que fora inocente antes de ser ferida, resistiu.
Gritou com os dentes cerrados, a agarrar-se à beira de betão do
espelho de água com as duas mãos, com o pescoço tenso. O seu
grito morreu no céu, engolido pelas buzinadelas do trânsito e pelo
ruído das carruagens do metro por baixo da Sixth Avenue.
Pensou que tinha acabado, pensou que se sentia melhor por um
momento, e começou a descontrair, mas depois a dor voltou. Aquela
dor era uma coisa física. Mas Hugo Barbary trazia consigo o Livro
da Saúde, e pô-lo a fazer o seu trabalho, a removê-la de dentro dele
como se remove o veneno de uma ferida, ou uma farpa há muito
enterrada, e de repente a dor irrompeu do seu interior, uma coisa
tenebrosa e intangível que lhe saiu da boca e esvoaçou no ar,
escondendo-se na poluição e na escuridão da noite.
Hugo foi súbita e imediatamente libertado. A sua mente estava
limpa, as suas agonias tinham desaparecido e ele olhou em redor
com olhos arregalados e maravilhados. Pela primeira vez na sua
vida, viu realmente o mundo que o rodeava — as cores, a vida, a
atividade — e achou tudo maravilhoso.
Levantou-se bruscamente, de súbito tomado pela oportunidade e
pela possibilidade. Era um homem velho, mas trazia consigo o Livro
da Saúde e o Livro dos Rostos. Ainda lhe restavam muitos anos
pela frente e muitas maneiras de passar o seu tempo. Enquanto
caminhava para sul ao longo da Sixth Avenue, com os olhos a
brilhar e um sorriso no rosto, decidiu que já não era o Dr. Hugo
Barbary. Esse era um nome que outro homem tinha escolhido para
si próprio para transmitir certas ideias. Nunca tinha sido o seu
verdadeiro nome. O homem que fora Hugo Barbary durante a maior
parte da sua vida decidiu que agora ia adotar outro nome. Não sabia
qual, mas tinha muito tempo para decidir.

A dor de Hugo Barbary pairou no ar na noite quente de Nova Iorque.


Flutuou por cima do trânsito e das pessoas, sem que reparassem
nela. Mas essa dor tinha sido criada por um livro especial, era uma
dor que, embora não estivesse propriamente viva, tinha intenção e
vontade.
A dor esperou, mas sem saber do que estava à espera.
Esperou até passar uma jovem família, a família Belrose, de
férias em Nova Iorque pela primeira vez, a apreciar as vistas e as
luzes brilhantes. Sentaram-se à beira do espelho de água e
partilharam alguns M&M e uma Coca-Cola que tinham acabado de
comprar e depois a jovem filha do casal, Rachel, afastou-se da mãe
e do pai enquanto estes falavam de coisas aborrecidas de adultos e
vagueou ao longo da beira do espelho de água, a tentar equilibrar-
se, a brincar de forma provocadora com a possibilidade de cair e
ficar molhada.
Ficou ali postada, na esquina da Sixth Avenue com a 49th Street,
a olhar para o Rockefeller Center e para os outros edifícios
imponentes em redor. Rachel estava tão entusiasmada por estar
longe do campo, da velha cabana onde viviam. Ela achava que não
ia dormir quando voltassem para o hotel; ia ficar acordada à janela a
noite toda a contemplar as pessoas e o trânsito. Em casa, não
conseguia ver nada do seu quarto, apenas escuridão e árvores. Era
tão aborrecido.
Olhou, então, para os pais, que se levantavam, verificando se
não deixavam nada para trás.
— Anda, Rachel! — chamou o pai, a sorrir.
Ela deu uma última olhadela em redor e depois saltou da beira
da piscina e, quando saltou, foi apanhada pela dor de Hugo Barbary.
A dor engoliu-a, ou ela engoliu a dor, e a menina aterrou de mãos e
joelhos no passeio.
Ficou imóvel por alguns instantes, olhando apenas para o betão
entre os dedos.
De repente, sentiu-se cheia, desagradavelmente cheia, e a sua
cabeça pareceu-lhe estranha.
E sentiu-se… diferente.
— Querida! Rachel?
Sabia que era o seu pai, e o som da voz dele irritou-a
imediatamente de uma forma que nunca tinha acontecido antes.
Levantou-se e viu os pais à sua procura, como se ela não
conseguisse fazer nada sozinha.
Foi ter com eles e viu o alívio nos seus rostos, e desprezou-os
por isso.
Depois, outra parte dela — a parte dela que fora Rachel antes de
ter saltado uns momentos antes — perguntou a si própria porque é
que estava a pensar tais coisas.
A parte dela que era Rachel ignorou as sensações estranhas e
apressou-se a seguir os seus pais.
Porém, com o passar do tempo, depois de regressarem da
viagem a Nova Iorque, a parte que era Rachel foi ficando cada vez
mais silenciosa, cada vez mais consternada com o que estava a
acontecer. Ao fim de algum tempo, acabaria por recuar e ficar
trancada algures dentro de si.
A dor tomou conta dela. A dor passou a viver no corpo de
Rachel.
E a dor lembrava-se dos livros, dos livros que a tinham criado. E
cobiçava-os.
Sétima Parte

INÍCIOS E FINS
A BIBLIOTECA FOX

N a Biblioteca Fox, estava tudo escuro e insubstancial, incolor de


uma forma que fazia Cassie lembrar-se do que havia visto no
seu desespero. Ficaram em silêncio, um grupo de sombras num
espaço escuro, enquanto a forma que era Drummond arrancava
mais uma página do Livro das Sombras. E então a cor inundou-os,
tal como tinha acontecido da última vez que Cassie visitara a
Biblioteca. A Biblioteca Fox já não era a Casa das Sombras, mas
sim um edifício real e sólido, situado numa encosta no noroeste das
Terras Altas da Escócia.
— Uau! — exclamou Izzy, arquejando de espanto.
Seguiram Drummond até ao pátio em frente ao edifício, fazendo
crepitar a gravilha. Ao contrário da visita anterior de Cassie à
Biblioteca Fox, o céu estava azul e limpo, e a luz do sol, dourada e
quente, apesar do vento frio.
— É tão bom respirar ar fresco — murmurou Azaki, piscando os
olhos perante a luz do dia. — Ar que não cheira a mobília velha.
— Onde é que estamos? — perguntou Izzy, ao que Drummond
lhe contou.
Deixaram-se simplesmente ficar ali, em frente à casa, a apreciar
o ar e o silêncio. Lund manteve-se à margem, com o Livro da
Segurança na mão. Cassie deu um toquezinho a Izzy e acenou com
a cabeça na direção do gigante. Izzy aproximou-se dele e segurou-
lhe no braço.
— Como é que estás? — perguntou ela.
— Continuo bem — disse ele. — Acho eu.
O Livro da Segurança parecia ter travado o progresso de
qualquer ferimento que a bala tivesse causado a Lund, mas não
sabiam se era uma solução permanente ou não. No salão de baile,
Drummond dissera: «Eu tenho uma coisa que talvez possa ajudar
como deve ser. Na biblioteca.»
Então, Cassie abrira uma porta e todos eles atravessaram para
as Sombras.
Agora, à luz do dia, em frente à casa, Cassie estava a olhar para
o fundo do relvado e viu outro veado, a observá-la tal como da
última vez. Ou talvez fosse o mesmo veado. Depois, um segundo
veado apareceu ao lado do primeiro, a mastigar preguiçosamente
enquanto os observava.
— Olha — disse Cassie a Izzy, a apontar para os veados.
O rosto de Izzy iluminou-se quando os viu.
— Bambi!
— Que tal uma bebida? — perguntou Drummond. — Num lugar
confortável?
— Oh, sim, por favor — aceitou Azaki. — Alguma coisa forte.

Voltaram para dentro da casa e passaram pelo corredor, Azaki a


murmurar deliciado quando viu as estantes de livros que forravam
as paredes. Subiram as escadas, passaram pelo alto vitral e
Drummond conduziu-os à biblioteca principal.
Para Cassie, a sala parecia ainda mais grandiosa do que na sua
visita anterior. Talvez fosse a suave luz dourada do sol que entrava
pela janela, mas a divisão parecia maior, e as confortáveis cadeiras,
mais convidativas.
— Por fim, de volta a casa — disse Drummond, com um suspiro
de satisfação.
Ficou postado, um pouco sem jeito, por breves instantes, a ver
que todos encontravam um sítio para se sentarem ou um parapeito
onde se encostarem.
— Esta casa é um espetáculo! — disse Izzy, sentando-se no
braço da cadeira em que Lund se tinha deixado cair. — És dono
disto tudo? — perguntou ela.
— Ele é dono das montanhas — replicou Cassie, encostando-se
à janela e olhando para o lago a oeste da casa.
— E destes livros todos — comentou Azaki. Ele estava sentado
na cadeira em frente a Lund, a mexer na pilha de livros que se
encontrava sobre a mesa de centro baixa. — Presumo eu.
— Isto é a tua casa de sonho, Cassie — disse Izzy. — Todos
estes livros. Nenhuma colega de casa para te chatear. — Ela sorriu
com a sua provocação e Cassie retribuiu-lhe com uma careta. Os
olhares de Cassie e de Drummond cruzaram-se, e depois ambos os
desviaram ao mesmo tempo.
— Isto é lindo — disse Azaki, esticando o pescoço para apreciar
a vista da janela. Levantou-se com destreza e encaminhou-se para
Cassie, contemplando o dia. Havia algo na luz que lembrava Cassie
de ouro líquido. A luz banhava todo o vale, as montanhas e o lago.
Drummond sorriu e enfiou as mãos nos bolsos.
— Isso é porque está sol, coisa que quase nunca acontece.
Esperem até estar cinzento, enevoado e húmido, e então vão ver
que é ainda mais bonito. Vou buscar umas bebidas. Chá e café para
todos?
Drummond recebeu os pedidos e ausentou-se da sala. Cassie e
Azaki puseram-se a remexer nos livros das prateleiras, e Izzy
dirigiu-se à janela para ver a vista, avisando toda a gente sempre
que via um veado. Lund permaneceu no seu lugar, com a cabeça
para trás e os olhos fechados como se estivesse de ressaca, a
segurar no Livro da Segurança firmemente encostado ao estômago.
Quando Drummond regressou, trazia um tabuleiro carregado de
canecas. Reuniram-se à volta da mesa de centro, sentados em
cadeiras ou de pernas cruzadas no chão, e Drummond distribuiu as
canecas.
— Também trouxe bolachas de manteiga — disse ele, pousando
um prato de bolachas em cima da mesa. — Toda a gente devia
comer. Até tu, Lund. Todos precisamos de energia. Vai ajudar-te a
sentires-te melhor.
Cada um pegou numa bolacha e mastigaram em silêncio durante
alguns minutos.
— E agora? — perguntou Izzy a Cassie, segurando na caneca
de café entre as mãos.
— Não sei — admitiu Cassie. — De volta ao normal, acho eu?
Todos se calaram, meditando nessa ideia. Cassie ouviu um
tiquetaque vindo de outro lugar da casa, o ritmo de um relógio de pé
alto que preenchia o silêncio.
— Não tem de ser assim — disse Drummond, a olhar para o
chão enquanto falava. — Continuam a existir livros especiais por aí.
Continua a haver pessoas a usá-los e a abusar deles.
— Aquela mulher, a Livreira, ainda tem o Livro da Dor —
observou Izzy.
— O que é que estás a dizer? — perguntou Azaki a Drummond.
— Bem… — disse Drummond, e depois aclarou a garganta.
Cassie achou-o nervoso. — A Biblioteca Fox costumava ser um
lugar onde os amigos se reuniam para conversar sobre livros. Eu
gostava que ela voltasse a ter vida. Mas talvez precisemos de fazer
mais do que só falar sobre os livros? — Ele olhou para Azaki. — Tu
eras um caçador de livros. E o Lund ajudou-te durante algum tempo.
— Então, o quê… queres que continuemos a caçar livros? —
perguntou Azaki.
— Porque não? — respondeu Drummond. — Mas não o façam
pelo dinheiro. Façam-no pela Biblioteca. Façam-no para protegerem
e preservarem os livros.
Azaki refletiu sobre essa ideia, bebendo um gole da sua bebida.
— Deviam fazer isso — interveio Izzy. — Odeio estes livros e
preferia, sem dúvida, que estivessem aqui fechados do que à solta
pelo mundo.
— Tu também podias ajudar — disse Drummond, a olhar para
Izzy, e depois para Lund. — Os dois.
— O quê? — perguntou Izzy. — Eu não posso ajudar. Tenho um
emprego em Nova Iorque. Ou tinha. Quem sabe se ainda o tenho?
Mas tenho uma casa. Preciso de trabalhar para sobreviver.
— Eu pago-te — disse Drummond. — Eu contrato-te. A
Biblioteca Fox tem recursos consideráveis à sua disposição. E não
podemos deixar que outra pessoa, como aquela mulher ou o Hugo
Barbary, se apodere dos livros. Temos um dever. A Biblioteca Fox já
empregou pessoas antes. Não há razão para não as empregar
novamente. Vou contratar-vos aos três como investigadores.
Caçadores de livros. Assistentes de biblioteca. O que lhe quiserem
chamar. Preciso de pessoas com as intenções certas. Pessoas em
quem eu possa confiar.
— E essas pessoas somos nós? — perguntou Izzy com
ceticismo.
— Sim — afirmou Drummond, a olhá-la nos olhos. — Acho que
sim. Eu depositaria a minha confiança em todos vocês.
Izzy pareceu surpreendida com as palavras de Drummond, até
mesmo lisonjeada.
— Devias aceitar, Izzy — incentivou Cassie.
— Então e tu? — perguntou-lhe a amiga.
— A Cassie também — Drummond disse, olhando Cassie nos
olhos, sem desviar o olhar desta vez. — Todos vocês.
— OK, conta comigo — disse Azaki, tirando uma segunda
bolacha do prato. — Seria bom fazer algo positivo para variar. Que
mais posso fazer com a minha vida?
— Quanto é que pagas? — perguntou Izzy.
Drummond riu-se.
— Eu igualo o que te estão a pagar agora.
— Só isso? — perguntou ela.
— Ela aceita — disse Cassie. — Aceitamos as duas.
— Lund? — perguntou Izzy.
O gigante anuiu com a cabeça e levantou o polegar.
— Mas eu gostava mesmo de não ter uma bala no meu
estômago durante muito mais tempo.
— Ah… — disse Drummond. — Sim. Claro, claro. Tenho uma
coisa para isso. — Levantou-se e acenou para Azaki e Izzy: —
Vocês os dois vão acendendo a lareira e podemos falar sobre a
nova Biblioteca Fox.
— Nunca acendi uma lareira — disse Izzy.
— Lund — disse Drummond —, fica aí onde estás. Volto num
instante. — Ele olhou então para Cassie. — Podes ajudar-me? —
perguntou ele, a acenar com a cabeça para o lado da sala.

Drummond abriu a estante do outro lado da sala, revelando a


escada escondida, e depois ele e Cassie subiram até à sala no cimo
da torre, com os seus armários e papéis e a luz do sol a entrar pelas
janelas. Drummond tirou o mesmo porta-chaves do bolso e
contornou a parede até ao armário número oito.
— O Livro da Cura — disse ele a Cassie, enquanto tirava o livro
de dentro do armário. — Isto deve curar o Lund.
— Fantástico!
— Mas há outra coisa que te queria mostrar, Cassie — continuou
Drummond. Dirigiu-se ao armário número seis e destrancou-o.
Tirou o livro do armário e depositou-o em cima da mesa. Cassie
ficou surpreendida quando o viu.
— Esse é o Livro das Portas — disse ela, olhando para o mesmo
livro que trazia no bolso.
— Sim — disse Drummond. — Nós temo-lo na Biblioteca há
quase um século, mas não sabíamos o que era. Ninguém conseguia
usá-lo. Olha. — Ele abriu o livro na primeira página e Cassie viu que
não havia nenhum texto a descrever o Livro das Portas, como havia
na versão do livro que ela tinha. — Mas é o mesmo livro — disse
Drummond. — Foi por isso que fiquei tão surpreendido quando mo
mostraste naquele dia em Lyon. Percebi que já o tínhamos,
simplesmente não sabíamos. Foi por isso que me interessei tanto
por saber quem te tinha dado o livro.
— De onde é que ele veio? — perguntou Cassie.
— Do Egito.
Cassie abanou a cabeça lentamente e pegou no livro. Quando o
segurou nas mãos, sentiu-o quente e ele começou a brilhar de uma
forma que lhe era familiar, e depois viu a primeira página do livro
mudar, o texto a ganhar nitidez, as palavras familiares que ela
conhecia do seu próprio livro.
— «Qualquer porta poderá ser uma porta qualquer» — leu ela.
Drummond sorriu e depois riu-se.
— Continua a ser incrível, mesmo depois de todos estes anos —
murmurou para si próprio, a olhar para a página.
— Mas duas versões do mesmo livro — disse Cassie, a folhear
as páginas. Aquele livro de Drummond era idêntico ao seu. Era o
mesmo livro. — Como é que isso é possível?
— Viagens no tempo — respondeu Drummond. — É o mesmo
livro, apenas em dois pontos diferentes na sua própria linha
temporal. Assim como havia duas versões de ti no passado. Existe
apenas uma Cassie, mas a mais jovem e a mais velha existiram no
mesmo ponto no tempo em dado momento.
Ela franziu ainda mais o sobrolho quando pensou nisso.
— Quando te pedi para me trazeres aqui da primeira vez —
disse Drummond —, eu queria ver este livro outra vez. Queria
confirmar que era, de facto, o Livro das Portas. Esperei até que
estivesses a dormir e depois vim cá acima e verifiquei. — Cassie
anuiu distraidamente com a cabeça. — Pensei em destruí-lo —
murmurou Drummond, e Cassie olhou para ele então. Os olhos dele
estavam fixos no livro. — Mas não consegui. Simplesmente não
consegui fazer uma coisa dessas. E eu sabia que, se tinhas uma
versão posterior do mesmo livro, eu ainda poderia destruí-la, se
necessário, e esta versão do livro iria estar segura aqui na
Biblioteca, fora do alcance da Mulher.
— Não precisas de destruir nada agora — disse Cassie. — E
muito menos isto.
— Não — concordou Drummond. — Quero que fiques com ele.
Parece que o Livro das Portas foi sempre teu.
Ela sorriu, tocada pelo gesto. Naquele momento, queria contar-
lhe tudo — queria revelar que todos os livros eram dela —, mas
ainda parecia demasiado grande, e talvez agora demasiado
inacreditável. Seria possível que ela própria ainda acreditasse
nisso? A sua memória do nada e do lugar nenhum começava a
tornar-se cada vez mais vaga.
— Aceita, por favor — disse Drummond, como se achasse que
ela estava a hesitar em fazê-lo.
Cassie anuiu e passou o polegar sobre a capa do exemplar de
Drummond do Livro das Portas.
— Esta é a versão do livro que recebi em Nova Iorque há tantos
meses — disse ela, revisitando a cronologia na sua mente. — Tu
dás-mo agora e então… — Ela sorriu, porque percebeu o que tinha
de fazer. — Tenho de dar isto ao Sr. Webber — disse ela. — Para
que ele mo possa dar a mim.
— Se tu o dizes — disse Drummond.
Ela anuiu com a cabeça para si própria.
— Vamos voltar lá para baixo e tratar do Lund. E depois talvez
possamos falar sobre o futuro, todos nós.
Cassie sorriu.
— Isso agrada-me. E eu adoraria ficar aqui. Este lugar parece-
me um lar. Mas preciso de ir fazer umas coisas primeiro. — Ela
perscrutou a divisão, olhando para os armários numerados. —
Emprestas-me outro dos teus livros?
A ALEGRIA NO FINAL

O quarto estava às escuras e cheirava a suor, sangue e morte.


Esta era a casa de Cassie, um lugar que se tornara
estranho para ela. Ela tinha regressado ali usando o exemplar de
Drummond do Livro das Portas, porque precisava de provar a si
própria que funcionava, que era o mesmo livro que o seu.
O avô jazia na cama, uma figura esquelética, a gemer baixinho.
Uma outra Cassie, uma Cassie mais jovem, estava afundada na
poltrona do canto, exausta. Os cortinados já deixavam ver o
amanhecer a chegar, a luz insinuava-se no dia.
Cassie dirigiu-se à janela e afastou um dos cortinados. Viu a
oficina lá fora, as flores silvestres da primavera a crescerem no
relvado comprido, as cores mais vibrantes com a luz da manhã.
— Cassie.
A palavra foi toda ela agonia. Cassie virou-se de costas para a
janela e viu o avô a olhar para ela. Ele sorriu, com as faces
encovadas e o ricto de um cadáver. Ela sentou-se na cama e
segurou-lhe na mão.
— Esperava voltar a ver-te — disse ele.
Ela anuiu com a cabeça e sorriu.
— Eu queria estar aqui — disse ela. — Estava a dormir da
primeira vez.
Ela olhou por cima do ombro para a sua versão mais jovem. O
seu avô também olhou.
— Estás exausta. Não me importo.
— Mas importo-me eu.
O avô dela estremeceu nessa altura, com os olhos a revirarem-
se no crânio. Cassie lembrou-se de como nem a morfina ajudava,
no fim.
— Eu queria estar aqui e queria dar-te uma coisa — disse ela,
sem sequer saber ao certo se o avô ainda conseguia ouvir. Tirou da
mala o Livro da Alegria. A capa era uma colagem animada de
muitas cores alegres, como flores de primavera em pleno
desabrochar. Depositou-o nas mãos do avô, sentindo a humidade e
a ferocidade do aperto dele. — Quero dar-te alegria.
Assim que ele segurou no livro, o seu comportamento mudou, o
seu rosto relaxou à medida que a agonia o abandonava, e ele olhou
para ela com olhos claros. O Livro da Alegria cintilou brilhantemente,
como um fogo de artifício num céu escuro.
— Cassie…
Ele sorriu e virou a cabeça para o lado na almofada. Durante
alguns momentos, ficou a olhar para a janela.
— A minha oficina — continuou. — Tantas recordações. Adorava
ter-te ali sentada a ler enquanto eu trabalhava.
Cassie sentiu lágrimas nos olhos ao vê-lo recordar, enquanto a
alegria despontava no seu rosto como o mais belo nascer do sol.
— Olha para as flores — disse ele, as palavras quase como um
suspiro de prazer. — Olha para as cores. Tão… brilhantes e
coloridas. Não é lindo? Olha como esvoaçam ao sabor da brisa.
Ficou sentada com ele durante mais alguns minutos, enquanto a
manhã despontava num mundo belo e espantoso, enquanto ele se
afastava, deixando o mundo em alegria e não em sofrimento.
E depois foi-se embora, e as cores do Livro da Alegria morreram
com ele.
Cassie levantou-se, levando consigo o Livro da Alegria, e
contornou a cama para se dirigir novamente à porta. A sua outra
versão continuava a dormir na poltrona, mas dali a pouco tempo iria
acordar e ver que o seu avô tinha desaparecido, e esse momento
iria assombrá-la durante anos.
Mas agora já não, pensou Cassie.
Era um fim, mas era também um novo começo para ela, para
Cassie.
Abriu a porta e saiu de casa pela última vez. Tinha mais um sítio
aonde ir, antes de regressar à Biblioteca Fox, aos seus amigos e ao
seu futuro.
A MORTE TRANQUILA
DO SR. WEBBER (3)

N a Kellner Books, no Upper East Side de Nova Iorque, o Sr.


Webber estava sentado sozinho, a refletir sobre a conversa que
acabara de ter com a jovem Cassie. Sabia que a altura para lhe dar
o Livro das Portas estava a chegar, e perguntava-se como é que
esse objeto iria entrar na vida dele.
Levantou os olhos da mesa e viu Cassie a aparecer pela porta
da sala dos empregados que ficava nas traseiras da livraria.
Tratava-se de uma Cassie diferente… mais velha, era a sua Cassie.
Ela sorriu-lhe e levou um dedo aos lábios, e depois apontou por
cima do ombro dele para a parte da frente da loja, onde a Cassie
mais jovem estava sentada junto à montra.
Ele anuiu e retribui-lhe o sorriso, encantado por voltar a vê-la.
Ela parecia-lhe mais leve.
Cassie estendeu a mão e passou-lhe um livro, um pequeno
caderno com a capa em pele. Ele questionou-a com um olhar, e ela
assentiu.
O Sr. Webber pegou no livro e examinou-o, ignorando o facto de
o seu coração parecer estar a bater com uma força invulgar.
Ele olhou novamente para Cassie e ela anuiu mais uma vez com
a cabeça, olhando para a versão mais jovem de si própria, como se
dissesse: O senhor dá-me isto. Ele assentiu, percebendo a
mensagem. Então, levou a mão ao bolso e tirou a caneta. Cassie
observou-o enquanto ele escrevia uma nota cuidadosa para ela na
primeira página, por baixo das outras linhas de texto. Depois fechou
o livro e voltou a enfiar a caneta no bolso.
Quando voltou a olhar para Cassie, ela estava a observar a sua
versão mais jovem por cima do ombro dele. Ela olhou para ele e
pareceu triste.
Depois sentiu a dor, uma dor súbita e acutilante que o fez
suspirar em silêncio.
Ele agarrou-se ao peito, vagamente consciente de que Cassie
estava junto dele. Ele olhou para ela, em agonia, mas
compreendendo agora porque é que a expressão da amiga era tão
triste. Ela abraçou-o e, quando ele sentiu a consciência a esvair-se-
lhe, quando sentiu o abraço da escuridão a aproximar-se, ela
depositou-lhe um único beijo na testa, como uma bênção e um
agradecimento.
AGRADECIMENTOS

Agradecimentos, hã? Quem diria que alguma vez chegaria a este


ponto.
Estou a escrever isto quase um ano antes de O Livro das Portas
ser sequer publicado. Quem quer que seja que esteja a ler isto,
estou a falar consigo do passado. Ora viva! Como é que se está em
2024? Obrigado por ter comprado o livro e se ter dado ao trabalho
de ler estes agradecimentos.
Então, a quem agradecer?
Bem, em primeiro lugar, ao meu agente, Harry Illingworth, que
aceitou representar-me com base num romance louco e complexo
sobre a invenção das viagens no tempo. Esse livro morreu assim
que o apresentei e, quando atirei à parede uma série de ideias
diferentes sobre o que fazer a seguir, o Harry disse-me que este
livro — O Livro das Portas — era aquele que eu devia escrever.
Caramba, ele estava mais do que certo. As suas sugestões
editoriais em relação ao primeiro rascunho («Mais coisas
espantosas!», «Mete mais coisas espantosas lá dentro!», «Onde é
que está o fantástico?») também foram perfeitas. Obrigado, Harry, e
desculpa por te ter estragado as férias com todas as travessuras da
proposta.
Obrigado a Helen Edwards, pelo seu trabalho na venda do livro
noutros territórios e por me ter explicado os procedimentos relativos
às autorizações de residência e à documentação fiscal. Divertimo-
nos muito.
Aos meus editores — Simon Taylor, da Transworld, no Reino
Unido (possivelmente o homem mais encantador que alguma vez
conheci) e David Pomerico, da William Morrow, nos Estados Unidos
—, muito obrigado a ambos pelo vosso entusiasmo pel’O Livro das
Portas, e pela amabilidade e paciência que demonstraram em
relação às minhas perguntas de principiante. Tornaram a minha
primeira experiência de publicação um verdadeiro prazer. As
equipas de ambas as editoras, na sua totalidade, têm sido
fantásticas, transformando esta pequena história em algo
maravilhoso — obrigado a todos pelo vosso cuidado e pelas críticas
construtivas.
Ao longo dos anos, várias pessoas leram coisas que escrevi.
Agradeço a todos vocês, mas faço uma menção especial a Chris
Clews, Pamela Niven e Alison Kerr, que, num momento ou noutro,
se excederam no fornecimento de críticas detalhadas e construtivas.
Obrigado ao meu amigo Graeme O’Hara, da Bob’s Trainset
Productions. Há muitos anos, escrevi um guião de curta-metragem
para ele — sobre a invenção das viagens no tempo — e ele disse-
me: «Há aqui material que chegue para um romance». Ele tinha
razão. Escrevi esse romance e, alguns anos mais tarde, isso fez
com que um agente aceitasse representar-me. Sem esse guião, não
estaria aqui hoje a escrever estes agradecimentos. Devo-te uns
hambúrgueres e umas cervejas, no mínimo, mas tens de aceitar que
A Múmia é um filme objetivamente excelente. Além disso, hás de
ficar sem dúvida encantado com o regresso de Merlin Gillette nestas
páginas.
Deixo uma menção especial a Clem Flanagan, o Vigilante da
Caneta Vermelha, que deu um contributo editorial genial para o meu
romance sobre viagens no tempo e me fez acreditar que era
realmente bom e que valia a pena mostrá-lo a agentes. Mais uma
vez, sem ti, Clem, eu não estaria aqui. Espero que gostes d’O Livro
das Portas tanto quanto gostaste do TDWITT.
Há quase vinte e cinco anos, aceitei um emprego na função
pública do Reino Unido para pagar as contas enquanto me dedicava
à escrita. Desde então, tive o prazer de trabalhar com muitas
pessoas fabulosas e interessantes, todas elas (incluindo a maioria
dos políticos que conheci) empenhadas em tentar tornar o mundo
um lugar melhor. São demasiadas para eu as poder mencionar
individualmente, mas obrigado a todas com quem trabalhei ao longo
dos anos — tornaram a minha vida profissional muito mais
agradável do que poderia ter sido. Em particular, agradeço: ao
Clube da Banha e do Alho-Francês, desde os tempos da VQ; à
BODS (ainda a melhor equipa de sempre); e ao Clube Exclusivo da
Piza (Erin, Cheryl, Felicity, Alex e Fern) pelo apoio mútuo durante a
Covid e desde então. Obrigado, também, a Tasmin Sommerfield,
pelo seu entusiasmo em relação a O Livro das Portas e pelo seu
apoio relativamente a este disparate de querer publicar livros.
Obrigado aos meus pais, por me terem dado o melhor começo
de vida possível e, essencialmente, por terem criado as condições
que me permitiram tornar-me escritor. Obrigado ao meu irmão, por
me ter apresentado Tolkien quando eu pensava que era
provavelmente tudo um disparate antiquado.
Um agradecimento aos meus sogros e a toda a família alargada
e amigos na Malásia, que se mostraram interessados e me
apoiaram ao longo do caminho.
Finalmente, obrigado à minha mulher, May, pelo seu amor e
apoio constantes. Ela insiste que não faz muita coisa, mas além de
rever e melhorar a minha prosa, e das muitas discussões sobre o
aspeto que diferentes livros especiais poderiam ter, ou sobre como
uma mulher pode disfarçar as páginas de um livro especial na sua
pessoa, a May faz muito mais do que alguma vez irá saber. Ela é a
inspiração para personagens e diálogos, e a minha entusiasta
companheira nas viagens de investigação. A May acrescentou
experiências e memórias à minha vida que dão vida a tudo o que
escrevo e, sem ela, duvido que este livro tivesse sequer sido escrito.
Por todas estas razões, este livro é dedicado a ela, mas talvez
principalmente porque ela tem de me aturar a viver na minha própria
cabeça quase constantemente enquanto tento elaborar enredos. (A
sala dos sabonetes está para breve!)
Obrigado também ao Dougal e à Flora por me fazerem rir todos
os dias. Eles não vão ler isto, porque são cães, mas vão saber. Os
cães sabem sempre.
SOBRE ESTE LIVRO

QUALQUER PORTA PODERÁ


SER UMA PORTA QUALQUER…

Cassie Andrews trabalha numa livraria de Nova


Iorque e leva uma vida calma. Até que, certo dia,
recebe do seu cliente favorito um presente
peculiar: um livro recheado de estranhos escritos
e desenhos misteriosos. No frontispício, encontra
uma dedicatória manuscrita dirigida a si própria e
uma nota a explicar que está na posse do Livro
das Portas.

O que não lhe é explicado é que este é um livro


especial que confere poderes extraordinários a quem o possuir, mas
Cassie não tarda a percebê-lo. Na companhia da sua amiga Izzy,
começa a explorar as capacidades do livro, arrebatada pela
possibilidade de viajar para qualquer lugar que consiga imaginar.
Porém, as duas amigas rapidamente descobrem que o Livro das
Portas não é o único livro mágico no mundo e que existem outros
livros capazes de fazer coisas tão maravilhosas quanto terríveis...

De um momento para o outro, Cassie e Izzy veem-se perante


pessoas impiedosas, dispostas a tudo para conseguirem o que
querem, e o único que parece poder ajudá-las é Drummond Fox, um
homem que há muito foge dos seus próprios demónios e que possui
uma biblioteca de outros tantos livros com poderes especiais que
precisa de manter em segurança.

«Uma viagem arrebatadora que abre portas


para outros mundos, mas também para o âmago
da experiência humana.»
Kirkus Reviews
SOBRE O AUTOR

Garreth Brown nasceu em Falkirk, na Escócia, e desde cedo


alimentou o sonho de ser escritor. Escreveu o primeiro romance na
adolescência, ainda que não publicado, e vários contos durante a
faculdade. Nos últimos vinte anos, trabalhou na administração
pública e no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido,
aproveitando o tempo livre para escrever.

O seu primeiro livro, O Livro das Portas, recebeu excelentes críticas


dos seus pares e dos leitores e entrou diretamente para a lista dos
mais vendidos no Reino Unido.

Gareth Brown vive perto de Edimburgo com a mulher e dois Skye


terriers.

SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR:


www.garethbrownbooks.com
Instagram: garethjbrown13
Twitter: garethjohnbrown

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