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QUANDO ÉRAMOS ÓRFÃOS

Copyright © 2000 by Kazuo Ishiguro


Não é permitida a venda em Portugal

Título original
When We Were Orphans

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Ilustração de capa
Pedro de Kastro

Preparação
Cássio de Arantes Leite

Revisão
Beatriz de Freitas Moreira
Isabel Jorge Cury

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ishiguro, Kazuo
Quando éramos órfãos / Kazuo Ishiguro ; tradução José Marcos Macedo. — 2a ed. — São Paulo
: Companhia das Letras, 2017.

Título original : When We Were Orphans.


ISBN 978-85-359-3020-7

1. Ficção inglesa — Escritores japoneses. I. Título.

00-4368 CDD-823.91

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção : Século 20 : Literatura japonesa em inglês 823.91
2. Século 20 : Ficção : Literatura japonesa em inglês 823.91

[2017]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ S.A.
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Para Lorna e Naomi
SUMÁRIO

PARTE UM : Londres, 24 de julho de 1930


Capítulo 1.
Capítulo 2.
Capítulo 3.
PARTE DOIS : Londres, 15 de maio de 1931
Capítulo 4.
Capítulo 5.
Capítulo 6.
Capítulo 7.
Capítulo 8.
Capítulo 9.
PARTE TRÊS : Londres, 12 de abril de 1937
Capítulo 10.
Capítulo 11.
PARTE QUATRO : Hotel Cathay, Xangai, 20 de setembro de 1937
Capítulo 12.
Capítulo 13.
PARTE CINCO : Hotel Cathay, Xangai, 29 de setembro de 1937
Capítulo 14.
Capítulo 15.
PARTE SEIS : Hotel Cathay, Xangai, 20 de outubro de 1937
Capítulo 16.
Capítulo 17.
Capítulo 18.
Capítulo 19.
Capítulo 20.
Capítulo 21.
Capítulo 22.
PARTE SETE : Londres, 14 de novembro de 1958
Capítulo 23.
PARTE UM

Londres, 24 de julho de 1930


1.

Era o verão de 1923, o verão em que saí de Cambridge, quando, a


despeito dos pedidos de minha tia para que voltasse para Shropshire, decidi
que meu futuro estava na capital e aluguei um pequeno apartamento no
número 14b da Bedford Gardens, em Kensington. Lembro-me dele agora
como o mais maravilhoso dos verões. Depois de anos rodeado por colegas,
tanto no colégio como em Cambridge, retirei grande prazer de minha
própria companhia. Desfrutava os parques londrinos, o silêncio da sala de
leitura do Museu Britânico; abandonava-me tardes inteiras passeando pelas
ruas de Kensington, esboçando planos para o futuro, detendo-me de vez em
quando para admirar como, aqui na Inglaterra, mesmo no meio de uma
cidade tão grandiosa, trepadeiras e heras podem ser encontradas pendentes
das fachadas de casas finas.
Foi num desses passeios descontraídos que encontrei por acaso um
velho amigo de escola, James Osbourne, e ao descobrir que era meu vizinho
sugeri que me visitasse na próxima vez em que passasse por minha casa.
Embora àquela altura ainda não houvesse recebido uma única visita em
meus aposentos, proferi meu convite com confiança, pois escolhera as
dependências com certo cuidado. O aluguel não era caro, mas minha
senhoria mobiliara o local com um bom gosto que evocava um sereno
passado vitoriano; a sala de estar, que recebia bastante sol ao longo da
primeira metade do dia, continha um sofá avelhantado, bem como duas
poltronas cômodas, um aparador antigo e uma estante de livros repleta de
enciclopédias esfarelentas. Tudo isso, eu estava convencido, ganharia a
aprovação de qualquer visita. Ademais, quase imediatamente após alugar os
aposentos, eu dera um pulo até Knightsbridge e adquirira um serviço de chá
Queen Anne, vários pacotes de chás finos e uma grande lata de biscoitos.
Assim, quando, certa manhã, alguns dias depois, Osbourne deu de fato uma
passada, tive condições de servir os comes e bebes com uma segurança que
jamais lhe permitiu supor ser ele minha primeira visita.
Durante os primeiros quinze minutos ou coisa que o valha, Osbourne
moveu-se inquieto pela sala de estar, cumprimentando-me pelas instalações,
examinando isso e aquilo, olhando regularmente pelas janelas para
comentar toda e qualquer coisa que se passasse lá embaixo. Por fim,
deixou-se cair no sofá e pudemos trocar novidades — nossas próprias e as
de velhos colegas de escola. Lembro que passamos algum tempo discutindo
as atividades dos sindicatos trabalhistas antes de entabular um longo e
agradável debate sobre filosofia alemã, que nos permitiu, a cada um de nós,
exibir ao outro a destreza intelectual adquirida nas respectivas
universidades. Em seguida Osbourne se levantou e começou novamente o
seu vaivém, discorrendo ao mesmo tempo sobre seus vários planos para o
futuro.
"Estou inçlinado a entrar para o ramo editorial. Jornais, revistas, esse
tipo de coisa. Aliás, meu sonho é ter uma coluna própria. Sobre política,
questões sociais. Isso, como eu disse, se não decidir entrar eu mesmo para a
política. Diga, Banks, você realmente não faz idéia do que quer fazer? Olhe,
está tudo aí fora a nossa espera" — e indicou a janela. — "Com certeza
algum plano você tem."
"Acho que sim", falei, sorrindo. "Tenho uma ou duas coisas em mente.
No momento oportuno você ficará sabendo."
"O que você tem escondido na manga? Ande, deixe de história! Ainda
arranco isso de você!"
Mas não lhe revelei nada, e dali a pouco consegui reconduzi-lo para os
debates sobre filosofia ou poesia ou coisa assim. Então, por volta do meio-
dia, Osbourne lembrou-se subitamente de um almoço em Piccadilly e
começou a recolher seus pertences. Ao sair, virou-se no vão da porta e
disse:
"Olhe, meu chapa, eu estava mesmo querendo lhe dizer. Hoje à noite
vou a uma festança. Em homenagem a Leonard Evershott. O magnata, você
sabe. A festa é na casa de um tio meu. Meio em cima da hora, mas estive
pensando se você não gostaria de ir. Sério. Eu estava para convidar você faz
séculos, só que nunca encontrava tempo. Vai ser no Charingworth".
Como eu não respondesse imediatamente, deu um passo na minha
direção e disse:
"Pensei em você porque estive lembrando. Lembrando como você me
infernizava com perguntas pelo fato de eu ser 'bem relacionado'. Ah, o que é
isso! Não adianta fingir que esqueceu! Você me interrogava sem piedade.
'Bem relacionado? Que diabos quer dizer isso, bem relacionado?' Bom,
pensei, eis aí uma oportunidade para o velho Banks ver por si mesmo o que
é 'bem relacionado'". Aí ele abanou a cabeça, como evocando alguma coisa,
e disse: "Minha nossa, que esquisitão você era no colégio".
Creio que foi nessa altura que finalmente assenti a sua sugestão para a
noite — uma noite que, como explicarei, se revelaria bem mais expressiva
do que eu então pudesse imaginar — e o acompanhei até a porta sem trair
em nada o ressentimento que sentia com aquelas últimas palavras dele.
Meu desgosto só fez crescer quando tornei a sentar-me. Percebera
imediatamente, claro, a que Osbourne se referira. O fato era que, nos
tempos de escola, diziam o tempo todo que Osbourne era "bem
relacionado". A expressão surgia infalivelmente quando as pessoas falavam
dele, e acredito que eu também a usava sempre que parecesse pertinente.
Era de fato um conceito que me fascinava, essa idéia de que, de alguma
forma misteriosa, ele mantinha relações com várias das figuras mais
eminentes da sociedade, embora não parecesse nem agisse diferentemente
do resto de nós. Contudo, não consigo conceber que o "interrogasse sem
piedade", como ele afirmara. É verdade que pensava bastante sobre o
assunto quando tinha catorze ou quinze anos, mas Osbourne e eu não
éramos particularmente próximos na escola e, até onde me lembro, apenas
uma única vez o trouxera à tona com ele pessoalmente.
Foi numa manhã nevoenta de outono; nós dois estávamos sentados
numa mureta, na parte externa de uma estalagem campestre. Calculo que
estivéssemos na quinta série. Havíamos sido designados para indicar o
caminho numa corrida de cross-country e aguardávamos que os corredores
emergissem da neblina depois de cruzar um campo adjacente para apontar-
lhes a direção correta, trilha lamacenta abaixo. Os corredores ainda
demorariam algum tempo, e assim ficamos jogando conversa fora. Estou
seguro de que foi nessa ocasião que perguntei a Osbourne sobre o fato de
ele ser "bem relacionado". Osbourne, que apesar de todo o seu viço tinha
uma natureza modesta, tentou mudar de assunto. Mas insisti, e ele acabou
dizendo:
"Ah, pare com isso, Banks. É tudo besteira, não tem nada para analisar.
Simplesmente a pessoa conhece gente. A pessoa tem pais, tios, amigos de
família. Não tem nenhum mistério". Em seguida, dando-se conta
rapidamente do que dissera, ele se voltara e tocara meu braço. "Mil
desculpas, amigão. Tremenda falta de tato da minha parte."
Esse faux pas pareceu causar muito mais angústia a O sbourne do que a
mim. Aliás, não é impossível que tivesse permanecido em sua consciência
durante todos aqueles anos, de modo que, ao me convidar para acompanhá-
lo ao Clube Charingworth naquela noite, ele talvez tentasse remendar as
coisas de alguma maneira. De todo modo, como já falei, eu não ficara nem
um pouco magoado com seu comentário confessadamente desatento
naquela manhã nublada. Na verdade, tornara-se objeto de alguma irritação
para mim o fato de que meus amigos de escola, com toda a sua disposição
para debochar de praticamente toda e qualquer desgraça dos demais,
observassem grande solenidade à primeira menção da ausência de meus
pais. Na verdade, por estranho que pareça, o fato de eu não ter pais — nem,
aliás, outro parente próximo na Inglaterra além de minha tia, em Shropshire
— havia muito deixara de representar maior inconveniência para mim.
Como eu costumava explicar para meus companheiros, num internato como
o nosso todos havíamos aprendido a nos virar sem os pais, e minha situação
não era tão excepcional assim. No entanto, olhando agora para trás, parece
possível que pelo menos parte de meu fascínio com o fato de Osbourne ser
"bem relacionado" tivesse a ver com o que eu então percebia como minha
completa falta de conexão com o mundo para além de St. Dunstan. Que,
chegada a hora, eu forjaria para mim tais conexões e faria carreira, disso
não tinha dúvidas. Mas é possível que acreditasse que aprenderia alguma
coisa crucial com Osbourne, alguma coisa relativa à maneira como essas
coisas funcionavam.
Mas quando falei, antes, que as palavras de Osbourne ao deixar meu
apartamento haviam me ofendido de algum jeito, não me referia ao fato de
ele levantar a questão de eu "interrogálo" tantos anos antes. Na verdade o
que me incomodara fora sua opinião negligente de que eu era "um
esquisitão no colégio".
De fato, sempre achei intrigante Osbourne sair com uma afirmação
daquelas a meu respeito naquela manhã, uma vez que minha própria
memória me dizia que eu me harmonizava perfeitamente com a vida escolar
inglesa. Mesmo durante minhas primeiras semanas em St. Dunstan, não
creio ter feito nada que me causasse embaraço. Em meu primeiro dia de
aula, por exemplo, recordo ter observado um maneirismo que muitos
garotos adotavam quando conversavam de pé — o de enfiar a mão direita
no bolso do colete e mover o ombro esquerdo para cima e para baixo, gesto
destinado a sublinhar alguns de seus comentários. Lembro-me nitidamente
de ter reproduzido esse maneirismo naquele primeiro dia mesmo, com
suficiente perícia para que nem um único de meus colegas notasse nada de
estranho ou pensasse em fazer troça de mim.
No mesmo espírito arrojado, absorvi rapidamente os demais gestos, o
fraseado e as exclamações populares entre meus pares, e captei os hábitos e
normas de procedimento mais arraigados prevalecentes em meu novo meio.
Não há dúvida de que percebi com suficiente presteza que não seria de
bom-tom professar abertamente — como costumava fazer em Xangai —
minhas idéias sobre o crime e sua elucidação. Tanto é que quando, durante
meu terceiro ano, houve uma série de roubos e a escola inteira se divertiu
brincando de detetive, me abstive cuidadosamente de participar, só o
fazendo de forma nominal. E foi, sem dúvida, algum resquício desse
mesmo expediente que me fez revelar tão pouco de meus "planos" a
Osbourne naquela manhã em que ele me visitou.
Contudo, apesar de toda a minha cautela, ocorrem-me pelo menos duas
situações na escola que sugerem que, ao menos ocasionalmente, baixei a
guarda o suficiente para dar uma pista de minhas ambições. Nem na época
fui capaz de fornecer a explicação desses incidentes, e hoje continuo
incapaz de fazê-lo.
A primeira delas se deu por ocasião de meu aniversário de catorze anos.
Meus dois grandes amigos da época, Robert Thornton-Browne e Russell
Stanton, levaram-me a um salão de chá na vila, onde nos regalamos com
bolinhos e tortas de nata. Era uma tarde chuvosa de sábado e todas as outras
mesas estavam ocupadas. Isso significava que a cada poucos minutos mais
moradores locais ensopados de chuva entravam, olhavam em torno e
lançavam olhares reprovadores em nossa direção, como se devêssemos
desocupar imediatamente nossa mesa para eles. Mas a sra. Jordan, a
proprietária, sempre fora receptiva conosco, e naquela tarde de meu
aniversário sentíamos ter todo o direito de ocupar a melhor mesa, junto da
janela oitavada, com sua vista para a praça do vilarejo. Não me recordo
muito do que falamos naquele dia, mas depois de comermos até fartar-nos,
meus dois companheiros trocaram olhares e em seguida Thornton-Browne
enfiou o braço em sua sacola e me entregou um pacote embrulhado em
papel de presente.
Assim que comecei a abri-lo, percebi que o pacote fora embrulhado em
inúmeros papéis, e meus amigos soltavam risadas sonoras toda vez que eu
removia uma camada, só para ser confrontado com mais outra. Tudo levava
a crer, portanto, que eu encontraria algum objeto de galhofa no final daquilo
tudo. O que por fim desembrulhei foi um estojo surrado de couro e, quando
destravei a pequena presilha e ergui a tampa, dei com uma lupa.
Tenho-a diante de mim. Sua aparência pouco mudou no decorrer dos
anos: naquela tarde ela já era bem viajada. Lembro-me de ter percebido
isso, bem como o fato de que era poderosíssima, surpreendentemente
pesada, e que o cabo de marfim estava todo lascado num dos lados. Só mais
tarde fui perceber — é preciso uma segunda lupa para ler o entalhe — que
fora manufaturada em Zurique em 1887.
Minha primeira reação ao presente foi de grande empolgação.
Arranquei a lupa do estojo, afastando o amontoado de papel de embrulho
que cobria a superfície da mesa — desconfio que, em meu entusiasmo,
deixei algumas das folhas escorregarem para o chão —, e comecei
imediatamente a testá-la em algumas manchas de manteiga besuntadas na
toalha. Fiquei tão absorto que só vagamente me dei conta de meus amigos
rindo daquele jeito exagerado que indica um trote bem-sucedido. Quando
ergui a vista, finalmente constrangido, ambos haviam caído num silêncio
indeciso. Foi então que Thornton-Browne, com um sorriso amarelo, disse:
"Já que você vai ser detetive, achamos que ia precisar disso".
Nesse momento recobrei rapidamente o humor e, com grande empenho,
fingi que a coisa toda fora uma brincadeira muito divertida. Só que a essa
altura, imagino, meus dois amigos já não estavam tão seguros quanto a suas
intenções, e no tempo que ainda permanecemos no salão de chá não
chegamos a recuperar nossa boa disposição de antes.
Como disse, tenho a lupa aqui na minha frente. Usei-a ao investigar o
caso Mannering; usei-a de novo, ainda outro dia, durante o caso Trevor
Richardson. Uma lupa pode não ser exatamente o item fundamental do
equipamento como quer a mitologia popular, mas permanece uma
ferramenta útil para colher certos tipos de indícios e imagino que ainda vá
andar por aí algum tempo equipado com o presente de Robert Thornton-
Browne e Russell Stanton. Contemplando-a agora, ocorre-me este
pensamento: se a intenção de meus companheiros era de fato caçoar de
mim, bem, então agora o trote se voltou contra eles. Lamentavelmente não
tenho como determinar, hoje, quais eram as reais intenções dos dois, nem
como, aliás, apesar de toda a minha cautela, eles haviam chegado a
vislumbrar minha ambição secreta. Stanton, que mentiu sobre a idade para
lutar como voluntário, foi morto na terceira batalha de Ypres. Thornton-
Browne, ouvi dizer, morreu de tuberculose há dois anos. Seja como for, os
dois garotos deixaram St. Dunstan no quinto ano e desde então perdi
contato com eles, até saber de suas mortes. Ainda me lembro, porém, de
como fiquei desapontado quando Thornton-Browne saiu do colégio; ele
fora o único amigo de verdade que eu fizera depois de chegar à Inglaterra, e
senti muita falta dele durante a última parte de meus estudos em St.
Dunstan.
A segunda dessas duas situações que me vêm à cabeça ocorreu alguns
anos mais tarde — no início do sexto ano —, mas não guardo dela uma
memória tão detalhada. Na verdade, não consigo recordar em absoluto o
que veio antes e o que veio depois daquele momento específico. O que me
ficou foi a lembrança de entrar numa classe — a sala 15, no Mosteiro Velho
— em que o sol jorrava em feixes pelas janelas estreitas do convento,
revelando a poeira suspensa no ar. O professor ainda estava para chegar,
mas devo ter entrado com ligeiro atraso, pois me lembro de meus colegas
de classe já sentados, em grupos, sobre as carteiras, nos bancos e nos
parapeitos das janelas. Eu estava prestes a reunir-me a um desses grupos de
cinco ou seis rapazes quando os rostos deles voltaram-se todos para mim e
imediatamente percebi que era o tema da conversa. Aí, antes que eu
pudesse dizer alguma coisa, um do grupo, Roger Brenthurst, apontou em
minha direção e comentou:
"Mas com certeza ele é muito baixo para ser um Sherlock".
Alguns deles riram, sem maior maldade, e, que eu me lembre, a coisa
não passou disso. Nunca mais ouvi alguém comentar minhas aspirações de
ser um "Sherlock", mas por algum tempo fiquei com a pulga atrás da
orelha, pensando que meu segredo pudesse ter transpirado, virando tópico
de discussão pelas minhas costas.
Por sinal, a necessidade de usar de cautela acerca de todo esse tópico de
minha ambição me fora incutida antes mesmo de ingressar em St. Dunstan.
É que eu passara boa parte de minhas primeiras semanas na Inglaterra
zanzando pela propriedade comunal perto do chalé de minha tia, em
Shropshire, encenando, entre samambaias úmidas, os vários roteiros que
Akira e eu elaboráramos juntos em Xangai. Claro, agora que estava sozinho
eu era forçado a assumir os papéis dele também; além disso, ciente que
estava de poder ser visto do chalé, tinha o bom senso de representar aqueles
dramas com movimentos contidos, murmurando nossas falas — em
marcado contraste com a maneira desinibida como Akira e eu estávamos
acostumados a brincar.
Tais precauções, contudo, revelaram-se baldadas. É que certa manhã eu
ouvira por acaso, do quartinho no sótão que me fora dado, minha tia
conversando com alguns amigos na sala de estar, embaixo. Foi a súbita
diminuição do volume de suas vozes que primeiro despertou minha
curiosidade, e pouco depois eu rastejava para o patamar e me debruçava na
balaustrada.
"Faz horas que ele saiu", ouvi minha tia dizer. "Não é nada saudável,
um garoto da idade dele imerso em seu próprio mundo desse jeito. Ele
precisa começar a pensar no futuro."
"Mas nada mais natural, claro", alguém disse. "Depois de tudo o que
aconteceu com ele."
"Ele não tem nada a ganhar remoendo o assunto", disse minha tia. "Não
lhe falta nada, e nesse sentido ele tem tido sorte. É hora de pensar no futuro.
Quer dizer, de pôr um termo a toda essa introspecção."
Desse dia em diante parei de ir à propriedade comunal, e em geral tomei
medidas para evitar quaisquer outros sinais de "introspecção". Mas na
época eu ainda era muito jovem, e à noite, deitado naquele quarto do sótão,
ouvindo as tábuas rangerem enquanto minha tia se movimentava pelo chalé
dando corda em seus relógios e cuidando de seus gatos, muitas vezes eu
tornava a encenar, na imaginação, todas as nossas velhas histórias de
detetive do jeitinho que Akira e eu sempre fizéramos.
Mas deixem-me voltar àquele dia de verão em que Osbourne passou por
meu apartamento em Kensington. Não que aquele comentário dele sobre eu
ser "um esquisitão" tivesse me preocupado por mais do que alguns
momentos. Na realidade eu mesmo saí de casa pouco depois de Osbourne,
muito bem-disposto, e não demorou para que me encontrasse no St. James
Park, passeando entre os canteiros de flores, cada vez mais animado com a
noite que tinha pela frente.
Ao evocar aquela tarde, percebo que tinha todo o direito de estar um
pouco nervoso, e é absolutamente típico da arrogância tola que me
impulsionava naqueles primeiros dias de Londres o fato de que não o
estivesse. Eu não ignorava, claro, que aquela noite em particular estava num
nível muito diferente de tudo o que eu freqüentara na universidade; que
seria bem provável, além disso, que viesse a deparar com normas de
conduta com que ainda não estava familiarizado. Mas estava seguro de que
minha vigilância habitual me daria condições de transpor quaisquer dessas
dificuldades e de que no geral me sairia bem. Minhas preocupações,
vagando pelo parque, eram de ordem bem diversa. Quando Osbourne
mencionara convivas "bem relacionados", eu imediatamente supusera que
eles incluíssem pelo menos alguns dos detetives em voga. Imagino, assim,
ter passado boa parte daquela tarde planejando o que diria se fosse
apresentado a Matlock Stevenson, ou quem sabe ao prof. Charleville.
Ensaiei até cansar o modo como iria esboçar — modestamente, mas com
certa dignidade — minhas ambições; e fantasiei que um ou outro deles
assumiria um interesse paternal por mim, oferecendo-me todo tipo de
conselhos e insistindo para que no futuro não deixasse de procurá-lo em
busca de orientação.
Claro, a noite se revelou uma enorme decepção — ainda que, como
verão em breve, viesse a mostrar-se particularmente relevante por razões
bem diferentes. O que eu não sabia naquele momento era que neste país os
detetives tendem a não participar de reuniões sociais. E isso não por falta de
convites; minha própria experiência recente comprovará que os círculos
elegantes estão sempre tentando recrutar os detetives célebres do dia. Só
que essas mesmas pessoas tendem a ser indivíduos sérios, muitas vezes
reclusos, que se dedicam ao trabalho e têm pouca inclinação a manter
contatos sociais uns com os outros, quanto mais com a "sociedade" em
geral.
Como falei, isso não era uma coisa de que eu tivesse noção ao chegar ao
Clube Charingworth naquela tarde, seguindo o exemplo de Osbourne de
cumprimentar com efusão o porteiro esplendidamente uniformizado. Mas
perdi minhas ilusões minutos depois de entrarmos no recinto abarrotado do
primeiro andar. Não sei exatamente como isso ocorreu — pois não tivera
tempo de averiguar a identidade de nenhum dos presentes —, mas fui
tomado por uma espécie de revelação intuitiva que me fez sentir
profundamente tolo no que diz respeito a minha empolgação anterior. De
repente pareceu-me incrível eu ter alimentado a expectativa de encontrar
Matlock Stevenson ou o prof. Charleville ombro a ombro com os
financistas e ministros do governo que sabia ter em torno de mim. Aliás,
fiquei tão aturdido com a discrepância entre o evento a que chegara e aquele
sobre o qual meditara ao longo da tarde que perdi — ao menos
temporariamente — todo o aplomb, e durante meia hora mais ou menos,
para grande desgosto meu, não encontrei forças para sair do lado de
Osbourne.
Tenho certeza de que essa mesma disposição de espírito agitada
responde pelo fato de que, pensando agora sobre aquela noite, tantos
aspectos pareçam exagerados ou antinaturais. Por exemplo, quando tento
recriar o recinto, vejo-o excepcionalmente escuro; isso a despeito das
luminárias nas paredes, das velas nas mesas, dos lustres acima de nós —
nenhuma dessas coisas parece alterar a escuridão generalizada. O tapete é
muito espesso, de modo que para locomover-se pela sala é preciso arrastar
os pés, e por todo canto homens grisalhos de paletó preto fazem justamente
isso, alguns chegam até a vergar os ombros para a frente, como se
enfrentassem um vendaval. Os garçons também, com suas bandejas de
prata, curvam-se em ângulos peculiares para os grupos que conversam.
Quase não há senhoras presentes, e as que estão à vista parecem
estranhamente acanhadas, evaporando-se quase instantaneamente da visão
em meio à floresta de smokings pretos.
Repito, tenho certeza de que essas impressões são inexatas, mas é assim
que a noite permaneceu em minha memória. Lembro-me de ficar ali
plantado, rijo de constrangimento, bebericando de meu copo, enquanto
Osbourne, descontraído, batia papo com um conviva após outro, a maioria
dos quais uns bons trinta anos mais velhos do que nós. Uma ou duas vezes
tentei integrar-me a um grupo, mas minha voz soava conspicuamente pueril
e, fosse como fosse, as conversas quase sempre focalizavam pessoas ou
assuntos sobre os quais eu nada sabia.
Após uns instantes, fiquei com raiva — de mim, de Osbourne, de todas
as formalidades. Sentia que tinha todo o direito de desprezar as pessoas a
minha volta; que em sua maioria elas eram gananciosas e interesseiras,
carecendo de todo idealismo ou sentido de dever público. Instigado por esse
ódio, finalmente fui capaz de destacar-me de Osbourne e afastar-me no
escuro para outra parte do recinto.
Cheguei a uma área iluminada por um foco de luz mortiça lançado por
uma pequena luminária de parede. Ali a noncentração humana era menor;
um homem de uns setenta anos, de cabelo prateado, fumava de costas para
o ambiente. Depois de algum tempo percebi que ele olhava para um espelho
e que àquela altura ele já vira que eu estava olhando para ele. Eu já ia me
retirar quando ele disse, sem virar-se:
"Está se divertindo?".
"Oh, sim", falei com uma risadinha. "Obrigado. É uma ocasião
esplêndida."
"Mas um pouco perdido, hein?"
Hesitei, depois soltei outra risada. "Talvez um pouco. Sim, senhor."
O homem de cabelo prateado voltou-se para mim e me estudou
cuidadosamente. Depois disse: "Se quiser, digo-lhe quem são algumas
dessas pessoas. Se houver alguma em especial com quem queira falar, levo-
o até lá e o apresento. Que me diz disso?".
"Seria muita gentileza. Muita gentileza mesmo."
"Ótimo."
Ele se aproximou um passo e examinou o que avistávamos da sala. Em
seguida, curvando-se para mim, passou a apontar tal ou qual personalidade.
Mesmo quando o nome era ilustre, lembrava-se de acrescentar, em meu
proveito, "o financista", "o compositor", ou fosse lá o que fosse. Com os
menos conhecidos, resumia a carreira da pessoa de forma mais detalhada,
bem como a razão de sua importância. Creio que me falava de um clérigo
bem perto de nós quando se interrompeu de repente e disse:
"Ah. Vejo que a atenção foi desviada".
"Peço-lhe mil desculpas…"
"Tudo bem. Perfeitamente natural, aliás. Um jovem como você."
"Garanto-lhe, senhor…"
"Não é preciso desculpar-se." Deu uma risada e cutucou meu braço.
"Bonita, hein?"
Eu não sabia direito o que responder. Não tinha como negar que fora
distraído pela jovem vários metros a nossa esquerda que naquele momento
conversava com dois homens de meiaidade. Mas o certo é que, nessa
primeira vez em que a vi, não a achei nada bonita. É possível até que de
alguma maneira tenha sentido, ali, ao vê-la pela primeira vez, aquelas
qualidades que depois constatei serem tão intrinsecamente parte dela. O que
vi foi uma jovem baixa com jeito de duende, de cabelo escuro que lhe
chegava aos ombros. Embora naquele momento ela estivesse claramente
dedicada a encantar os homens com quem falava, percebi uma nuance em
seu sorriso que num instante podia transformá-lo em escárnio. Uma ligeira
curvatura dos ombros, como a das aves de rapina, dava a sua postura um
leve tom calculista. Acima de tudo, notei determinada característica em
seus olhos — uma espécie de severidade, uma exigência mesquinha — que,
vejo agora, retrospectivamente, ter sido, mais do que todo o resto, o que me
fez fitá-la com tamanho fascínio naquela noite.
Então, enquanto ainda estávamos a mirá-la, ela olhou em nossa direção
e, reconhecendo meu companheiro, enviou-lhe um sorriso rápido, frio. O
homem de cabelo prateado fez uma saudação e curvou respeitosamente a
cabeça.
"Uma jovem encantadora", murmurou, começando a guiarme para
longe. "Mas nem adianta um rapaz como você perder tempo atrás dela. Não
quero ser ofensivo, você até que é boapinta. Mas sabe como é, aquela é a
senhorita Hemmings. A senhorita Sarah Hemmings."
O nome nada significava para mim. Mas se antes meu guia fora tão
consciencioso ao fornecer-me os antecedentes daqueles a quem apontava,
proferiu o nome daquela mulher na clara expectativa de que ele me fosse
familiar. Foi assim que assenti com a cabeça e disse:
"Oh, sim. Então essa é a senhorita Hemmings".
O cavalheiro tornou a estacar e examinou o aposento a partir de nosso
novo ponto de observação.
"Deixe-me ver. Suponho que você esteja em busca de alguém que lhe dê
uma mãozinha na vida. Certo? Não se preocupe. Fiz muito disso quando era
jovem. Deixe-me ver. Quem temos aqui?" Depois voltou-se para mim de
repente e perguntou: "O que era mesmo que você disse que queria fazer da
vida?".
E claro, até aquele ponto eu não lhe dissera nada. Mas agora, após
ligeira hesitação, respondi simplesmente:
"Detetive, senhor".
"Detetive? Hum." Continuou a sondar o recinto. "Você quer dizer…
policial?"
"Mais um consultor privado."
Ele assentiu. "Naturalmente, naturalmente." Continuou a tragar seu
charuto, perdido em pensamentos. Depois disse: "Não está interessado em
museus, por acaso? Aquele camarada ali, conheço há anos. Museus.
Caveiras, relíquias, esse tipo de coisa. Não está interessado? Achava mesmo
que não". Continuou a sondar a sala, por vezes espichando o pescoço para
ver alguém. "Claro", disse por fim, "um monte de jovens sonha virar
detetive. Ouso dizer que eu também, em meus momentos mais
extravagantes. A pessoa se sente tão idealista, na sua idade. Almeja ser o
grande detetive do momento. Para erradicar sozinho todo o mal do mundo.
Louvável. Mas, cá entre nós, meu rapaz, também é bom ter, digamos, mais
de uma opção em vista. Porque daqui a um ou dois anos — sem ofensa —,
mas muito em breve você vai ter uma visão bem diversa das coisas. Está
interessado em móveis? Pergunto porque lá adiante está ninguém menos do
que Hamish Robertson em pessoa."
"Com todo o respeito, senhor. A ambição que acabei de lhe confessar
dificilmente é um capricho de momento. É uma vocação que senti a vida
inteira."
"Sua vida inteira? Mas quantos anos você tem? Vinte e um? Vinte e
dois? Bem, suponho que não deva desencorajá-lo. Afinal de contas, se
nossos jovens não alimentarem noções idealistas desse tipo, quem o fará? E,
sem dúvida, meu rapaz, você acredita que o mundo hoje é um lugar muito
mais perverso do que o de trinta anos atrás, não é mesmo? Que a civilização
está por um fio e tudo o mais?"
"Para falar a verdade, senhor", falei, lacônico, "acredito que esse seja o
caso."
"Lembro-me de quando também pensava assim." De repente seu
sarcasmo fora substituído por um tom mais afável, e acreditei mesmo ter
visto lágrimas encherem seus olhos. "Você acha que é assim por quê, meu
rapaz? Será que o mundo realmente está ficando mais perverso? Será que o
Homo sapiens está degenerando como espécie?"
"Disso não sei, senhor", retorqui, dessa vez mais delicadamente. "Tudo
o que posso dizer é que, para o observador isento, o criminoso moderno está
ficando cada vez mais inteligente. Ficou mais ambicioso, mais ousado, e a
ciência pôs a sua disposição todo um arsenal de ferramentas sofisticadas."
"Entendi. E sem sujeitos talentosos como você do nosso lado, o futuro é
negro, não é isso?" Abanou a cabeça tristemente. "É possível que você
tenha certa razão. Zombar é fácil para um velhote. Talvez você esteja certo,
meu rapaz. Talvez tenhamos perdido o pulso da coisa por muito tempo.
Ah."
O homem de cabelo prateado tornou a curvar a cabeça quando Sarah
Hemmings passou flutuando por nós. Ela se movia em meio às pessoas com
uma graça insolente, movimentando o olhar da direita para a esquerda, em
busca — assim me pareceu — de alguém que reputasse digno de sua
presença. Ao dar com meu companheiro, dirigiu-lhe o mesmo sorriso
rápido de antes, mas sem deter seu avanço. Por um segundo apenas seu
olhar pousou em mim, mas quase instantaneamente — antes que eu pudesse
ao menos sorrir — ela já me removera da cabeça e abria caminho na
direção de alguém que divisara do outro lado da sala.
Mais tarde naquela noite, com Osbourne e eu sentados num táxi que nos
levava velozmente de volta a Kensington, tratei de descobrir algo mais a
respeito de Sarah Hemmings. Osbourne, apesar do esforço para afetar que
achara a noite um tédio, estava feliz da vida e ansioso para me contar em
detalhes as muitas conversas que tivera com pessoas influentes. Assim, não
foi fácil encaminhá-lo para o assunto da srta. Hemmings sem parecer
indevidamente curioso. Por fim, contudo, consegui que dissesse:
"Senhorita Hemmings? Oh, sim, ela. Era noiva do Herriot-Lewis. Você
sabe, o regente. Então ele foi e deu aquele concerto de Schubert no Albert
Hall no outono passado. Está lembrado daquele desastre?".
Quando confessei minha ignorância, Osbourne prosseguiu:
"Não chegaram a atirar cadeiras, mas aposto que teriam feito isso
mesmo se as cadeiras não estivessem pregadas no chão. O cara do The
Times descreveu o espetáculo como 'rematada caricatura'. Ou será que foi
'profanação' que ele disse? Seja como for, não foi lá muito receptivo".
"E a senhorita Hemmings?"
"Largou-o na rua da amargura. Atirou-lhe de volta o anel de noivado,
parece. E manteve uma enorme distância do camarada desde então."
"Tudo por causa do tal concerto?"
"Bem, que foi uma coisa medonha, foi, em todos os sentidos. Causou
um rebuliço e tanto. Quer dizer, ela romper o noivado. Mas e esta noite,
Banks? Você viu a enormidade de chatos? Será que com aquela idade
também vamos ficar assim?"

Durante aquele primeiro ano depois de Cambridge, em boa parte graças


a minha amizade com Osbourne, vi-me freqüentando outros eventos sociais
sofisticados com razoável regularidade. Pensando retrospectivamente sobre
esse período de minha vida, hoje ele me parece singularmente frívolo.
Havia jantares, almoços, coquetéis oferecidos quase sempre em
apartamentos nas proximidades de Bloomsbury e Holborn. Eu estava
decidido a superar minha inépcia daquela noite no Charingworth, e meu
comportamento em eventos como aquele adquiriu uma segurança crescente.
De fato, por algum tempo, é razoável dizer que passei a ocupar um espaço
num dos "círculos" londrinos da moda.
A srta. Hemmings não era parte de meu círculo particular, mas descobri
que, onde quer que a mencionasse a amigos, tinham notícia dela. Ademais,
avistava-a de vez em quando em solenidades ou, mais freqüentemente, nos
salões de chá dos grandes hotéis. Seja como for, de um modo ou de outro,
terminei por acumular uma quantidade considerável de informações a
respeito de sua carreira na sociedade londrina.
Que curioso relembrar uma época em que essas vagas impressões de
segunda mão eram tudo o que eu sabia dela! Não tardou para que eu
constatasse que muita gente não a via com aprovação. Ainda antes da
história da ruptura do noivado com Anthony Herriot-Lewis, parece que ela
fizera inimigos por conta daquilo a que muitos se referiam como a sua
"franqueza". Amigos de Herriot-Lewis — cuja objetividade, para ser justo,
dificilmente podia ser levada em conta nesse particular — descreviam a
forma implacável como ela assediara o regente. Outros a acusavam de
manipular os amigos de Herriot-Lewis no intuito de aproximar-se dele. Seu
subseqüente abandono do maestro, depois de tantos esforços encarniçados,
foi visto por alguns como um enigma, por outros simplesmente como uma
evidência conclusiva de suas motivações cínicas. Por outro lado, topei com
muitos que falavam bastante bem da srta. Hemmings. Ela freqüentemente
era descrita como "inteligente", "fascinante", "complexa". As mulheres,
particularmente, defendiam seu direito de romper o noivado, quaisquer que
fossem as razões. Mesmo seus defensores, porém, concordavam que ela era
uma "tremenda esnobe de uma nova espécie"; que não considerava a pessoa
digna de respeito a menos que ele ou ela possuísse um nome famoso. E,
devo dizer, observando-a de longe como fiz naquele ano, pouco encontrei
para rebater tais argumentos. Aliás, de vez em quando eu tinha a impressão
de que ela era incapaz de respirar direito outra coisa senão o ar que
circundava as pessoas mais distintas. Durante algum tempo ela teve uma
ligação com Henry Quinn, o advogado, só para voltar a distanciar-se depois
do fracasso dele no caso Charles Browning. Depois surgiram boatos quanto
a sua crescente amizade com James Beacon, na época um jovem ministro
de Estado em ascensão. Seja como for, àquela altura ficara sobejamente
claro para mim aquilo que o homem de cabelo prateado quisera dizer
quando declarara pouco adiantar um "rapaz como eu" cortejar a srta.
Hemmings. É claro, na época eu não entendera direito suas palavras.
Quando o fiz, vi-me acompanhando as atividades da srta. Hemmings
naquele ano com peculiar interesse. Apesar disso, não falei propriamente
com ela a não ser uma tarde, quase dois anos após tê-la visto pela primeira
vez no Clube Charingworth.

Eu estava tomando chá no Hotel Waldorf com um conhecido quando ele


foi subitamente obrigado a retirar-se em razão de algum assunto. Assim, lá
estava eu sentado a sós no pavimento do Pátio das Palmeiras, deliciando-me
com biscoitos e geléia, quando notei a srta. Hemmings, também sentada
sozinha, lá em cima, numa das mesas da sacada. Como disse, não era em
absoluto a primeira vez que a avistava em lugares como aquele, mas nessa
tarde as coisas eram diferentes. É que mal decorrera um mês depois da
conclusão do caso Mannering, e eu ainda estava como que nas nuvens. Sem
dúvida, aquele período posterior a meu primeiro triunfo público foi
estonteante: muitas portas se abriram de repente para mim; convites
jorraram de fontes inteiramente novas; aqueles que antes não haviam sido
mais do que cordiais comigo exclamavam com grande entusiasmo quando
eu entrava num recinto. Não admira que tivesse perdido um pouco meu
prumo.
De todo modo, naquela tarde no Waldorf dei por mim levantando-me e
dirigindo-me à sacada. Não estou certo do que esperava. Mais uma vez, é
típico de minha presunção da época eu não parar para considerar se a srta.
Hemmings realmente ficaria assim tão encantada de travar conhecimento
comigo. Talvez uma sombra de dúvida houvesse, sim, me passado pela
cabeça enquanto meus passos deixavam o pianista para trás e se
aproximavam da mesa onde ela estava sentada, no alto, lendo seu livro. Mas
me recordo de ter ficado bastante satisfeito com a entonação de minha voz,
urbana e jocosa, ao dizer:
"Com licença, mas achei que estava na hora de me apresentar. Temos
tantos amigos em comum. Sou Christopher Banks".
Consegui pronunciar meu nome com um floreio, mas já a essa altura
minha segurança começava a titubear. A srta. Hemmings erguia para mim
um olhar frio, penetrante. E no silêncio que se seguiu, tornou a olhar de
relance para o livro, como se ele tivesse soltado um gemido de queixa.
Finalmente disse, numa voz repassada de contrariedade:
"Ah, sim? Como vai?".
"O caso Mannering", eu disse, ridiculamente. "Já deve ter lido a
respeito."
"Li. Você o investigou."
Foi essa declaração, feita de modo tão prosaico, que me fez balançar. É
que ela não falara com a mínima nota que fosse de reconhecimento; fora
uma simples afirmação manifestando o fato de que estava o tempo todo
bem a par de minha identidade, e de que ainda estava longe de atinar a
razão pela qual eu me achava ali de pé ao lado de sua mesa. De repente
senti evaporar-se a vertiginosa euforia das semanas anteriores. E creio ter
sido então, quando soltei uma risada nervosa, que me ocorreu que o caso
Mannering, apesar de todo o evidente brilhantismo de minha investigação,
apesar de todo o louvor de meus amigos, de algum modo não comportava
tanta importância para o mundo como eu supunha.
É bem possível que tenhamos tido uma conversa perfeitamente
civilizada antes de eu dar início à retirada para minha mesa, embaixo. E
parece-me hoje que a srta. Hemmings estava mais do que legitimada ao
responder como fez; foi um absurdo ter imaginado que algo como o caso
Mannering pudesse ser suficiente para impressioná-la! Mas me lembro,
uma vez que tornara a sentar, de sentir-me tão irritado quanto abatido.
Ocorreume a idéia de que não só fizera papel de palhaço perante a srta.
Hemmings, como que talvez o tivesse feito constantemente ao longo do
mês anterior; de que meus amigos, com todos os seus cumprimentos,
haviam estado rindo de mim.
No dia seguinte eu já aceitara ter sido plenamente merecido o tranco
recebido. É provável, contudo, que o episódio no Waldorf tenha despertado
em mim ressentimentos com relação à srta. Hemmings dos quais nunca me
livrei por completo — e que sem dúvida contribuíram para os infelizes
acontecimentos de ontem à noite. Na época, porém, tentei enxergar o
incidente todo como providencial. Ele me fizera ver, afinal, como era fácil
distrair-se das metas mais acalentadas. Minha intenção era combater o mal
— particularmente o mal do tipo insidioso, furtivo —, e em decorrência eu
pouco tinha a ver com o cortejo da popularidade nos círculos sociais.
Comecei a partir de então a me sociabilizar bem menos e mergulhei
mais profundamente em meu trabalho. Estudei casos notáveis do passado e
absorvi novas áreas de conhecimento que um dia poderiam revelar-se úteis.
Foi nessa época que também comecei a esmiuçar as carreiras de vários
detetives de renome, e descobri que era capaz de discernir uma linha entre
as reputações que repousavam em feitos sólidos e as que derivavam
essencialmente de uma posição em algum círculo influente; havia, concluí,
uma maneira verdadeira e outra falsa de um detetive adquirir renome. Em
suma, por mais que me tenham empolgado os votos de amizade a mim
manifestados na seqüência do caso Mannering, relembrei, após aquele
encontro no Waldorf, o exemplo dado por meus pais, e resolvi não permitir
que preocupações frívolas me distraíssem.
2.

Já que estou recordando aquele período de minha vida que se seguiu ao


caso Mannering, talvez valha a pena mencionar aqui minha inesperada
reunião com o coronel Chamberlain depois de todos aqueles anos. É talvez
surpreendente, dado o papel por ele desempenhado num momento tão
crítico de minha infância, que não tenhamos mantido contato mais próximo.
Mas por alguma razão deixamos de fazê-lo, e quando o encontrei
novamente — um mês ou dois após aquele encontro com a srta. Hemmings
no Waldorf —, foi por puro acaso.
Eu estava numa livraria da Charing Cross Road numa tarde chuvosa,
examinando uma edição ilustrada de Ivanhoé. Notara havia algum tempo
alguém rondando atrás de mim, e supondo que quisesse ter acesso àquela
parte da estante, dera um passo para o lado. Mas quando a pessoa continuou
andando à minha volta, acabei me virando.
Reconheci o coronel imediatamente, pois seus traços físicos mal haviam
mudado. Porém, para olhos adultos, pareceume mais dócil e mais acabado
do que o personagem de minha infância. Lá estava ele, de impermeável,
olhando timidamente para mim, e só quando exclamei: "Ah, coronel!", ele
sorriu e estendeu a mão.
"Como vai, meu rapaz? Eu tinha certeza de que era você. Minha nossa!
Como vai, meu rapaz?"
Embora lágrimas tivessem surgido em seus olhos, seus modos
permaneceram acanhados, como se receasse me aborrecer com aquela
lembrança do passado. Fiz de tudo para expressar prazer em revê-lo, e
como uma tromba-d'água começasse a cair lá fora, ficamos trocando dois
dedos de prosa na livraria apinhada. Descobri que ele ainda estava vivendo
em Worcestershire, que viera a Londres para um enterro e decidira "tirar
uns dias de folga". Quando indaguei onde estava hospedado, respondeu
com imprecisão, fazendo-me suspeitar que estava modestamente instalado.
Antes de me despedir, convidei-o para jantar comigo naquela noite,
sugestão que aceitou com entusiasmo, embora parecesse surpreso quando
mencionei o Dorchester. Contudo, insisti: "É o mínimo que posso fazer,
depois de toda a sua bondade no passado", aleguei, até que ele finalmente
consentiu.

Retrospectivamente, minha escolha do Dorchester pareceme o cúmulo


da falta de consideração. Eu já concluíra, afinal, que o coronel estava com o
dinheiro curto; também deveria ter imaginado que seria motivo de mágoa,
para ele, não pagar pelo menos sua metade da conta. Mas naqueles dias esse
tipo de coisa jamais me ocorria; imagino que estivesse preocupado demais
em impressionar o velho com a magnitude de minha transformação desde a
última vez em que me vira.
Nesse último propósito provavelmente fui muito bem-sucedido. Isso
porque, por volta daquela época, eu acabara de ser levado ao Dorchester em
duas ocasiões, de modo que na noite em que lá estive com o coronel
Chamberlain, o sommelier me cumprimentou com um "bom vê-lo outra
vez, senhor". Em seguida, depois de me presenciar trocando comentários
espirituosos com o maître enquanto começávamos nossa sopa, o coronel
irrompeu numa súbita risada.
"E pensar", disse ele, "que este é o mesmo pirralho que veio
choramingando a meu lado naquele navio!"
Deu mais outras risadas, depois se interrompeu bruscamente, talvez
achando que não devia ter tocado no assunto. Mas eu sorri, tranqüilo, e
disse:
"Devo ter sido um suplício para o senhor naquele navio, coronel".
O rosto do velho se toldou por um momento. Depois disse,
cerimonioso: "Considerando as circunstâncias, achei que você foi
extremamente corajoso, meu rapaz. Extremamente corajoso".
Nesse ponto recordo-me de um silêncio ligeiramente constrangedor,
rompido quando os dois comentamos o delicado sabor de nossa sopa. Na
mesa ao lado, uma senhora corpulenta com muitas jóias ria jovialmente, e o
coronel olhou de forma um tanto indiscreta para o lado dela. Aí pareceu
chegar a uma decisão.
"Sabe, é engraçado", disse. "Estive pensando sobre isso, antes de vir
para cá. Aquele dia em que eu e você nos encontramos. Fico imaginando se
você se lembra, meu rapaz. Acho que não. Afinal, estava com a cabeça
cheia de tantas outras coisas."
"Pelo contrário", eu disse, "tenho a mais viva memória da ocasião."
O que não era mentira. Mesmo agora, se fechasse os olhos por um
momento, podia facilmente transportar-me de volta para aquela manhã clara
em Xangai, no escritório do sr. Harold Anderson, o superior de meu pai na
grande companhia mercante Morganbrook and Byatt. Eu estava sentado
numa cadeira que cheirava a couro polido e carvalho, o tipo de cadeira que
costuma estar posicionada atrás de alguma escrivaninha impressionante,
mas que, na ocasião, fora arrastada para o centro do aposento. Eu percebia
que aquela era uma cadeira reservada para as personalidades mais
importantes, mas na ocasião, devido à gravidade das circunstâncias ou
talvez como uma espécie de consolo, era a mim que a haviam dado.
Lembro-me de que, por mais que tentasse, não encontrava modo digno de
sentar-me; mais especificamente, não conseguia descobrir uma posição que
me permitisse manter os dois cotovelos ao mesmo tempo em seus braços
finamente entalhados. Além disso, naquela manhã eu vestia uma jaqueta
novinha, feita de algum material grosseiro — de onde ela surgira, não sei
—, e estava plenamente consciente do fato de que o modo como me haviam
feito abotoá-la, quase até o pescoço, era muito feio.
O recinto propriamente dito tinha um pé-direito alto, um grande mapa
na parede e, atrás da escrivaninha do sr. Anderson, amplas janelas pelas
quais o sol batia e uma brisa soprava. Talvez houvesse ventiladores de teto
girando acima de mim, mas a bem da verdade não me lembro. Lembro-me,
porém, de estar sentado naquela cadeira no meio da sala, alvo de
circunspectas preocupações e discussões. Ao meu redor, adultos
conferenciavam, a maioria dos quais de pé; de vez em quando alguns se
deslocavam até as janelas, baixando a voz para discutir algum aspecto.
Lembro-me também de estranhar o modo como o próprio sr. Anderson, um
homem alto e grisalho dono de vasto bigode, portava-se em relação a mim,
como se fôssemos velhos amigos — tanto é que por um instante achei que
decerto nos conhecêramos quando eu era menor, que eu me esquecera dele.
Só muito mais tarde verifiquei que seria impossível nos termos encontrado
antes daquela manhã. Em todo caso, ele se arvorara no papel de tio,
sorrindo continuamente para mim, dando-me tapinhas no ombro,
cutucando-me com o cotovelo, dando piscadelas. Em certo momento me
ofereceu uma xícara de chá, dizendo: "Pronto, Christopher, isto vai alegrar
você", encurvando o corpo para me examinar, enquanto eu recebia a xícara
de sua mão. Em seguida, mais cochichos e deliberações no aposento. Aí o
sr. Anderson surgiu diante de mim, dizendo:
"Pois então, Christopher. Está tudo decidido. Este é o coronel
Chamberlain, que teve a grande bondade de aceitar levar você em
segurança para a Inglaterra".
Lembro-me de que a essa altura baixou um silêncio sobre o recinto. Na
verdade eu tinha a impressão de que todos os adultos haviam recuado até
alinhar-se junto às paredes, feito espectadores. O sr. Anderson também se
retirou com um sorriso final encorajador. Foi então que pus os olhos no
coronel Chamberlain pela primeira vez. Ele se aproximou de mim devagar,
curvou-se para me olhar no rosto, depois me estendeu a mão. Tive o
pressentimento de que devia levantar-me para apertá-la, mas ele a estendera
com tal rapidez, e eu me sentia tão pregado àquela cadeira, que segurei sua
mão ainda sentado. Em seguida, lembro-me de ele dizer:
"Pobre guri. Primeiro seu pai. Agora sua mãe. Deve ser como se o
mundo inteiro desabasse na sua cabeça. Mas vamos para a Inglaterra
amanhã, nós dois. Sua tia está esperando por você lá. Portanto, coragem.
Logo vai juntar os cacos outra vez".
Por um momento fui incapaz de encontrar voz. Quando afinal consegui,
disse: "E extrema gentileza sua, senhor. Sou muito grato por seu
oferecimento, e espero que não me ache muito rude. Mas se não se importa,
senhor, acho que não devemos partir para a Inglaterra justo agora". Então,
como o coronel não respondesse imediatamente, prossegui:
"Porque, veja bem, senhor, os detetives estão trabalhando duro para
encontrar minha mãe e meu pai. E são os melhores detetives de Xangai.
Acho que vão encontrá-los muito em breve".
O coronel assentia com a cabeça. "Tenho certeza de que as autoridades
estão fazendo todo o possível."
"Então, senhor, embora preze muito a sua bondade, acho que minha ida
à Inglaterra não será necessária, afinal de contas."
Lembro-me de que nesse momento um murmúrio atravessou o recinto.
O coronel continuou a assentir com a cabeça, como se pesasse as coisas
com cuidado.
"É bem possível que você esteja certo, meu rapaz", disse por fim.
"Sinceramente, espero que esteja. Mas só por cautela, por que não vem
comigo de todo modo? Aí, uma vez que seus pais sejam encontrados,
podem mandar buscá-lo. Ou, quem sabe, talvez eles decidam ir para a
Inglaterra também. Então, o que me diz? Vamos eu e você para a Inglaterra
amanhã. Aí podemos esperar e ver o que acontece."
"Mas entenda bem, senhor, queira me desculpar. Mas entenda bem, os
detetives em busca de meus pais. São os melhores detetives."
Não estou certo do que, exatamente, o coronel comentou a respeito.
Talvez tenha apenas continuado a assentir. De todo modo, no momento
seguinte ele se debruçou para ainda mais perto e pousou a mão em meu
ombro.
"Escute aqui. Entendo como deve se sentir. O mundo inteiro desabou na
sua cabeça. Mas você precisa ter coragem. Depois, sua tia, na Inglaterra.
Está a sua espera, não vê? Não podemos deixar a senhora na mão a esta
altura do campeonato, podemos?"
Quando, sentados diante de nossas sopas naquela noite, relatei-lhe
minha memória dessas suas últimas palavras, esperava que ele risse. Em
vez disso, ele falou solenemente:
"Tive pena de você, meu rapaz. Baita de uma pena". Depois, talvez
julgando ter feito falso juízo de meu humor, deu uma espécie de risada e
disse com mais leveza: "Lembro-me de nós dois esperando no porto. Eu
não parava de dizer: 'Olhe, vamos nos divertir à beça naquele navio, não
vamos? Vamos é fazer a festa'. E você não cansava de dizer: 'Sim, senhor.
Sim, senhor. Sim, senhor"'.
Permiti-lhe, nos minutos seguintes, que vagasse pelas reminiscências
acerca de vários de seus velhos conhecidos que haviam estado presentes no
escritório do sr. Anderson naquela manhã. Sem exceção, seus nomes não
me diziam nada. Aí o coronel se interrompeu e franziu o cenho.
"Quanto àquele tal de Anderson", disse por fim, "aquele sujeito sempre
me causou uma sensação desagradável. Alguma coisa de suspeito nele.
Tinha alguma coisa de suspeito em todo aquele bendito negócio, se quer
saber."
Nem bem dissera isso, ergueu a vista para mim com um sobressalto.
Então, antes que eu pudesse responder, começou a falar outra vez
rapidamente, passando ao que sem dúvida considerava um território mais
seguro, nossa viagem à Inglaterra. Dali a pouco estava dando risinhos para
si mesmo enquanto relatava memórias dos passageiros, dos oficiais do
navio, pequenos incidentes divertidos que havia muito eu esquecera ou que
nem sequer registrara. Estava se divertindo e eu o estimulei, muitas vezes
fingindo lembrar-me de alguma coisa só para agradá-lo. Contudo, à medida
que ele prosseguia com suas reminiscências, dei comigo a ficar um pouco
irritado. Porque aos poucos; por trás de suas histórias joviais, emergia uma
imagem minha naquela viagem à qual eu objetava. Sua repetida insinuação
era de que eu zanzara pelo navio, retraído e mal-humorado, prestes a
irromper em lágrimas ao menor pretexto. Sem dúvida o coronel tinha
interesse em atribuir-se o papel de protetor heróico, e depois de todo aquele
tempo vi que seria tão inútil quanto indelicado contradizê-lo. Mas, como
dizia, comecei a ficar cada vez mais irritado. Pois de acordo com minha
própria memória, bastante lúcida, adaptei-me com muita desenvoltura às
novas realidades de minhas circunstâncias. Lembro-me muito bem de que,
longe de mostrar-me infeliz naquela viagem, eu estava positivamente
empolgado com a vida a bordo, bem como com a perspectiva do futuro que
se abria diante de mim. Claro, por vezes sentia falta de meus pais, mas
posso lembrar-me de ter afirmado que sempre haveria outros adultos a
quem viria a amar e em quem confiaria. De fato, diversas das senhoras da
viagem ficaram sabendo do que acontecera comigo e, durante algum tempo,
vinham me paparicar com semblantes penalizados, e posso recordar ter
sentido por elas muito da mesma irritação que senti pelo coronel naquela
noite no Dorchester. O fato era que eu não estava nem de longe tão
angustiado quanto os adultos a meu redor pareciam supor. Até onde lembro,
houve somente um único caso durante toda aquela longa viagem no qual eu
pudesse concebivelmente ter merecido aquele título de "pirralho
choramingão", e mesmo isso ocorreu logo no primeiro dia de nossa viagem.
O céu naquela manhã estava encoberto, as águas a nossa volta muito
barrentas. Eu estava no convés do vapor olhando para o porto, para o
confuso litoral de barcos, pranchas de desembarque, cabanas-de barro,
píeres de madeira escura, atrás deles os amplos edifícios da avenida Beira-
Mar de Xangai, tudo se esfumando agora num único borrão.
"Como é, garoto?", a voz do coronel disse perto de mim. "Pensa voltar
algum dia?"
"Sim, senhor. Espero voltar."
"Vamos ver. Uma vez você instalado na Inglaterra, ouso dizer que
esquecerá tudo isso bem rápido. Xangai não é um lugar ruim. Mas oito anos
está mais que de bom tamanho, e espero que você também tenha tido a sua
cota. Muito mais do que isso e você vira chinês."
"Sim, senhor."
"Olhe aqui, meu velho. Você devia mesmo se alegrar. Afinal, está indo
para a Inglaterra. Está indo para casa."
Foi esse último comentário, a noção de que eu estava "indo para casa",
que fez minhas emoções levarem a melhor sobre mim — tenho certeza
disso — pela primeira e última vez naquela viagem. Mesmo então, minhas
lágrimas foram mais de raiva que de pesar. Pois me ressentira
profundamente com as palavras do coronel. A meu ver, rumava para um
país estranho onde não conhecia vivalma, enquanto a cidade recuando
continuamente diante de mim continha tudo o que eu conhecia. Sobretudo,
meus pais ainda estavam lá, em algum lugar além daquele porto, daquele
horizonte imponente da Beira-Mar, e enxugando os olhos, eu lançara um
último olhar para a costa, imaginando se ali mesmo eu não avistava minha
mãe — ou mesmo meu pai — correndo para o cais, acenando e gritando
que eu voltasse. Mas estava ciente mesmo então de que uma tal esperança
não passava de indulgência pueril. Enquanto via a cidade que fora meu lar
ficar cada vez mais indistinta, lembro-me de ter virado para o coronel com
um olhar alegre, dizendo: "Vamos atingir mar aberto muito em breve, não
acha, senhor?".

***

Mas creio ter conseguido não dar mostras de minha irritação com o
coronel naquela noite. Não há dúvida de que quando ele embarcou num táxi
na South Audley Street e nos despedimos, estava de excelente humor. Foi
somente ao saber de sua morte, pouco mais de um ano depois, que senti
certa culpa por não ter sido mais expansivo com ele naquela noite no
Dorchester. Afinal, uma vez ele me fizera um grande favor, e por tudo o que
eu pudera observar, fora um homem muito íntegro. Mas suponho que o
papel por ele desempenhado em minha vida — o fato de estar tão
entranhadamente associado ao que aconteceu naquele momento — fará com
que ele permaneça para sempre em minha memória como um personagem
ambivalente.

Por no mínimo três ou quatro anos após aquele episódio no Waldorf,


Sarah Hemmings e eu pouco nos cruzamos. Lembrome de tê-la visto uma
vez durante esse período por ocasião de um coquetel num apartamento em
Mayfair. O evento estava bastante cheio, mas eu não conhecia muitos dos
presentes e resolvera partir cedo. Abria caminho até a porta quando divisei
Sarah Hemmings falando com alguém, bem na minha direção. Meu
primeiro instinto foi virar-me e tomar outro caminho. Mas isso foi na época
de meu sucesso no caso Roger Parker, e ocorreu-me imaginar se a srta.
Hemmings ainda se atreveria a ser tão arrogante quanto o fora no Waldorf
alguns anos antes. Continuei, pois, esgueirando-me entre os hóspedes, e fiz
questão de passar bem na frente dela. Ao fazê-lo, vi seu olhar mover-se para
conferir minhas feições. Um ar de perplexidade cruzou-lhe o rosto enquanto
lutava para lembrar-se de quem eu era. Em seguida vi raiar o
reconhecimento; sem um sorriso, sem um aceno, ela tornou a pousar a vista
na pessoa com quem falava.
Mas eu mal dei importância ao incidente. Ele ocorreu num período em
que eu estava profundamente absorto em vários casos desafiadores. E
embora isso fosse ainda um bom ano antes que meu nome adquirisse parte
do prestígio que tem hoje, eu já estava começando a avaliar pela primeira
vez a escala de responsabilidade que compete a um detetive com algum tipo
de renome. Sempre entendera, claro, que a tarefa de erradicar o mal em suas
formas mais aberrantes, muitas vezes justamente quando está a ponto de
passar despercebido, é uma empreitada crucial e solene. Mas não foi senão
antes de minha experiência em tais casos, como o assassinato de Roger
Parker, que me dei conta de quanto significa para as pessoas — e não só
para os diretamente envolvidos, mas para o público em geral — ser purgado
de tal perversidade abusiva. Como resultado, tornei-me mais decidido do
que nunca a não me distrair pelas prioridades mais superficiais da vida
londrina. E comecei a entender, talvez, um pouco do que possibilitara a
meus pais assumir a posição que haviam assumido. De todo modo, gente
como Sarah Hemmings não se insinuava muito em meus pensamentos na
época, e é até possível que eu tivesse esquecido de vez sua existência não
fosse dar de cara com Joseph Turner naquele dia nos Jardins de Kensington.
Na época eu investigava um caso em Norfolk e regressara a Londres por
alguns dias com a intenção de estudar as extensas notas que fizera. Foi
enquanto estava passeando pelos Jardins de Kensington numa manhã
cinzenta, ponderando os vários detalhes curiosos que cercavam o
desaparecimento da vítima, que fui saudado de longe por uma figura a
quem logo reconheci como sendo Turner, um homem que conhecera
vagamente em meus círculos sociais. Ele veio ter comigo às pressas, e
depois de me perguntar por que aparecia tão raramente "nas redondezas
naqueles dias", convidou-me para um jantar que ele e um amigo estavam
oferecendo num restaurante naquela noite. Ao declinar educadamente em
razão de meu presente caso estar consumindo todo o meu tempo e toda a
minha atenção, ele disse:
"Pena. Sarah Hemmings vai estar presente, e ela quer tanto ter uma boa
conversa com você".
"A senhorita Hemmings?"
"Lembra-se dela, não? Ela certamente se lembra de você. Disse que se
conheceram por alto alguns anos atrás. Está sempre reclamando por você
ter sumido do mapa."
Resistindo ao impulso de fazer algum comentário, eu disse
simplesmente: "Bem, queira por favor transmitir-lhe minhas
recomendações".
Deixei Turner com muita presteza depois disso, mas ao voltar a minha
escrivaninha, confesso que me vi um tanto distraído por aquela notícia de a
srta. Hemmings querer me ver. No fim, concluí que, com toda a
probabilidade, Turner cometera algum engano; ou pelo menos exagerara a
questão no esforço de atrair-me para seu jantar. Mas depois, nos meses que
se seguiram, diversas notícias semelhantes chegaram a meus ouvidos.
Ouvira-se Sarah Hemmings expressar seu desgosto pelo fato de que,
embora antes tivéssemos sido amigos, agora se tornara impossível
encontrar-me. Ouvi de diversas fontes, além disso, que ela ameaçava "me
tirar da toca". Depois, finalmente, na semana passada, enquanto passava
algum tempo na vila de Shackton, em Oxfordshire, para investigar o caso
Granja Studley, a srta. Hemmings apareceu em pessoa, ao que tudo indica
com a intenção de fazer justamente isso.

***

Eu encontrara o jardim murado — contendo o lago em que o corpo de


Charles Emery fora descoberto — na parte mais baixa do terreno em que se
encontrava a casa. Quatro degraus de pedra me haviam conduzido a um
espaço retangular tão perversamente abrigado do sol que mesmo naquela
manhã clara tudo em torno estava sombrio. Os muros propriamente ditos
eram cobertos de hera, mas de algum modo não havia como evitar a
impressão de haver ingressado numa cela de prisão sem teto.
O lago dominava o lugar. Embora várias pessoas me houvessem dito
que ele continha peixes ornamentais, eu não conseguia ver sinal de vida;
aliás, era difícil imaginar como alguma coisa pudesse prosperar em água tão
inóspita — um lugar realmente adequado para encontrar um cadáver. Em
torno do lago havia um círculo de lajes quadradas, cobertas de musgo,
aninhadas na lama. Suponho que fiquei examinando a área por uns vinte
minutos — estava de bruços, vasculhando com lupa uma das lajes, que se
projetava sobre a água — quando tomei ciência de alguém me observando.
De início supus ser algum membro da família querendo amolar-me de novo
com perguntas. Como antes insistira em não ser interrompido, decidi, sob
pena de parecer rude, fingir que não notara nada.
Então por fim ouvi o som de um sapato raspando na pedra em algum
lugar perto da entrada do jardim. A essa altura começava a parecer artificial
permanecer de barriga no chão por tanto tempo, e, em todo caso, eu
esgotara as investigações que podia realizar naquela posição. Além disso,
não esquecera inteiramente que estava deitado quase no lugar exato em que
um assassinato fora cometido, e que o assassino ainda estava à solta. Um
calafrio me atravessou a espinha enquanto eu me erguia, e, sacudindo a
roupa, voltei-me para encarar o intruso.
A visão de Sarah Hemmings me surpreendeu bastante, claro, mas tenho
certeza de que nada de incomum transpareceu em meu rosto. Eu armara as
feições para transmitir enfado, e suponho ter sido isso o que ela viu, pois as
primeiras palavras que ela me dirigiu foram:
"Oh! Não era minha intenção espioná-lo. Mas achei que era uma
oportunidade boa demais. Assistir a um grande homem em seu trabalho,
digo".
Inspecionei seu rosto atentamente, mas não pude detectar sarcasmo
algum. No entanto, mantive a voz distante ao dizer: "Senhorita Hemmings.
Mas que surpresa".
"Ouvi dizer que estava aqui. Estou passando alguns dias com minha
amiga em Pemleigh. É aqui pertinho, subindo a estrada."
Interrompeu-se, sem dúvida esperando minha resposta. Quando
permaneci em silêncio, não deu sinal de perturbação, antes se aproximou de
mim.
"Sou bem íntima dos Emery, sabia?", continuou. "Negócio terrível, esse
assassinato."
"É, terrível."
"Ah. Então também acredita que seja assassinato. Bem, acho que isso
meio que encerra a discussão. Tem uma teoria, senhor Banks?"
Encolhi os ombros. "Formei algumas idéias, sim."
"É pena que os Emery não tenham pensado em pedir sua ajuda quando
tudo aconteceu, no último abril. Não é por nada, mas chamar Celwyn
Henderson para um caso como esse! Afinal o que esperavam? Aquele
homem devia ter se aposentado há muito tempo. Só para você ver como as
pessoas aqui perdem o pé nas coisas. Qualquer um, em Londres, poderia ter
contado a eles tudo a seu respeito, claro."
Esse último comentário, tenho de confessar, intrigou-me um pouco, de
modo que após alguma hesitação, dei comigo a lhe perguntar: "Desculpe,
mas contado o quê, exatamente?".
"Ora, que o senhor é a mente investigadora mais brilhante da Inglaterra,
claro. Todos nós poderíamos ter contado isso a eles na primavera passada,
mas os Emery… levaram esse tempo todo para pescar a coisa. Antes tarde
do que nunca, talvez, mas eu acho que as pistas já esfriaram bastante para o
senhor a esta altura."
"Para dizer a verdade, há algumas vantagens em chegar a um caso
depois de transcorrido algum tempo."
"Mesmo? Que fascinante. Sempre pensei que fosse essencial chegar
rápido, apanhar os rastros, entende?"
"Pelo contrário, nunca é tarde demais para, como diz, apanhar os
rastros."
"Mas não é deprimente como o crime carcomeu o espírito das pessoas
aqui? E não só os da casa. É Shackton inteira que começou a apodrecer. Isto
costumava ser um mercado alegre e próspero. Agora olhe para eles, mal se
olham de frente. Todo esse negócio os arrastou para um lamaçal de suspeita.
Vou lhe dizer só uma coisa, senhor Banks, se conseguir solucionar esse
caso, será lembrado para sempre."
"Acha mesmo? Seria curioso."
"Não tenha dúvida. Seriam eternamente gratos. É, vai ser falado aqui
durante gerações."
Soltei uma ligeira risada. "Parece conhecer bem a vila, senhorita
Hemmings. E eu que pensei que passasse todo o seu tempo em Londres!"
"Oh, só aturo Londres até certo ponto, depois preciso de um pouco de
ar. No fundo não sou uma garota da cidade, sabe."
"O que me surpreende. Sempre pensei que se sentisse muito atraída pela
vida na cidade."
"Tem toda a razão, senhor Banks." Um toque de ressentimento tingira
sua voz, como se eu a tivesse encostado contra a parede.
"Algo de fato me atrai à cidade. Ela tem seus… seus encantos para
mim." Pela primeira vez desviou o rosto e correu o olhar pelo jardim
murado. "O que me lembra de uma coisa", disse. "Bem, para ser sincera,
não me lembra de nada. Por que fingir? Estive pensando sobre isso o tempo
todo dessa nossa conversa. Queria lhe pedir um favor."
"E o que seria, senhorita Hemmings?"
"Fontes seguras me dizem que foi convidado para o jantar anual da
Fundação Meredith. É verdade?"
Hesitei ligeiramente antes de retrucar: "Sim. É isso mesmo".
"Um acontecimento, ser convidado na sua idade. Ouvi dizer que este
ano é em homenagem a Sir Cecil Medhurst."
"É, acho que é."
"Também ouvi dizer que Charles Wolfe talvez compareça."
"O violinista?"
Ela deu uma risada. "E ele faz outra coisa? E Thomas Byron também,
ao que parece."
Ficou visivelmente empolgada, mas em seguida tornou a desviar o rosto
e olhou ao redor com um ligeiro tremor.
"Disse desejar", perguntei afinal, "que eu lhe concedesse um favor?"
"Oh, sim, sim. Queria que… Desejaria que me convidasse para
acompanhá-lo. Ao jantar da Fundação Meredith."
Agora ela me imobilizava com um olhar intenso. Tive necessidade de
um momento para encontrar a resposta, mas quando o fiz, falei com
bastante calma.
"Gostaria de lhe fazer esse favor, senhorita Hemmings. Mas
infelizmente já respondi aos organizadores alguns dias atrás. Receio que
será um pouco tarde para informá-los de meu desejo de levar uma
convidada…"
"Bobagem!", ela atalhou, irritada. "Seu nome está agora na boca de todo
mundo. Se quiser levar uma acompanhante, mais satisfeitos eles não
ficariam. Senhor Banks, não me diga que vai recusar. Seria bem indigno do
senhor. Afinal, somos bons amigos já faz algum tempo."
Foi esse último comentário — lembrando-me da verdadeira história de
nossa "amizade" — que me trouxe à razão.
"Senhorita Hemmings", falei, resoluto, "esse é dificilmente um favor
que esteja a meu alcance conceder."
Mas agora havia uma expressão determinada nos olhos de Sarah
Hemmings.
"Sei de todos os detalhes, senhor Banks. No Hotel Claridge's. Próxima
quarta-feira à noite. Pretendo estar lá. Estou ansiosa por essa noite, e estarei
esperando pelo senhor no saguão."
"O saguão do Claridge's, que me conste, é aberto aos respeitáveis
membros do público. Se decidir estar lá na próxima quarta-feira à noite, não
há nada que eu possa fazer para impedi-la, senhorita Hemmings."
Ela olhou para mim muito atentamente, incerta quanto a minhas
intenções. Por fim, disse: "Então com toda a certeza me verá lá na próxima
quarta-feira, senhor Banks".
"Como eu disse, isso é problema seu, senhorita Hemmings. Se me dá
licença."
3.

Não levou mais do que alguns dias para deslindar o mistério da morte
de Charles Emery. O assunto não atraiu publicidade na magnitude de
algumas de minhas outras investigações, mas a profunda gratidão da família
Emery — aliás, de toda a comunidade de Shackton — tornou o caso tão
gratificante quanto qualquer outro até ali em minha carreira. Voltei para
Londres numa aura de bem-estar, e como resultado deixei de atribuir maior
importância a meu encontro com Sarah Hemmings no jardim murado,
naquele primeiro dia da investigação. Eu não chegaria ao ponto de afirmar
que esquecera por completo suas declaradas intenções quanto ao jantar da
Fundação Meredith, mas, como disse, estava em estado de graça e presumo
que preferi não me ocupar com aquelas coisas. Talvez bem no fundo
acreditasse que sua "ameaça" não tivesse sido mais do que uma tática
momentânea.
De todo modo, quando saltei de meu táxi na frente do Claridge's; na
noite passada, meus pensamentos estavam em outro lugar. Por um lado,
dizia a mim mesmo que meus triunfos recentes mais do que me habilitavam
ao convite recebido; que, longe de questionar minha presença na reunião,
era provável que outros convivas me pressionassem, ansiosos por
informações confidenciais referentes a meus casos. Também reafirmava
para mim mesmo minha decisão de não abandonar o evento
prematuramente, mesmo que isso significasse suportar o embaraço de ficar
plantado sozinho. Assim, quando adentrei aquele saguão imponente, a visão
de Sarah Hemmings à espera com um sorriso no rosto tomou-me
inteiramente de surpresa.
Estava admiravelmente vestida, num vestido escuro de seda
acompanhado de jóias discretas mas elegantes. Suas maneiras ao vir na
minha direção eram de absoluta segurança, tanto é que até encontrou tempo
de sorrir um cumprimento a um casal que passava a nosso lado.
"Ah, senhorita Hemmings!", disse eu, enquanto na minha cabeça
tentava às pressas relembrar tudo quanto se passara entre nós naquele dia na
Granja Studley. Naquele momento, confesso, parecia-me perfeitamente
possível que ela tivesse todo o direito de esperar que eu lhe oferecesse o
braço e a conduzisse para dentro. Sem dúvida, ela sentiu minha indecisão e
pareceu ganhar ainda mais confiança.
"Querido Christopher", disse, "você está com uma aparência esplêndida.
Estou de queixo caído! Oh, e não tive chance de cumprimentá-lo. Foi tão
maravilhoso, o que fez para os Emery! Você foi brilhante."
"Obrigado. O caso não era tão complicado assim."
Agora ela tomara meu braço e, se naquele instante se houvesse
aproximado do lacaio que conduzia os convidados do jantar até a escadaria,
estou seguro de que teria sido incapaz de fazer outra coisa senão obedecer a
suas determinações. Mas nisso, vejo agora, ela cometeu um erro. Talvez
quisesse saborear o momento; talvez sua audácia tivesse fraquejado por um
segundo. De todo modo, não fez menção de seguir escada acima; em vez
disso, olhando para os outros convidados que se enfileiravam no saguão,
disse-me:
"Sir Cecil ainda não chegou. Só espero ter uma chance de falar com ele.
Tão adequado ele ser o homenageado deste ano, não acha?".
"De fato."
"Sabe, Christopher, não acredito que se passem muitos anos até
estarmos todos aqui para homenagear você."
Ri. "Não me passa pela cabeça…"
"Não, não. Disso tenho certeza. Tudo bem, talvez seja preciso esperar
mais alguns anos. Mas o dia virá, você vai ver."
"E gentileza sua dizer isso, senhorita Hemmings."
Ela continuava segurando meu braço enquanto conversávamos. Não
raro, alguém que passava sorria ou dirigia uma saudação a um de nós dois.
E confesso ter constatado que me agradava bastante o que pudessem
imaginar todas aquelas pessoas — várias delas muito ilustres — ao me ver
de braço dado com Sarah Hemmings. Imaginei ter visto nos olhos delas,
inclusive ao cumprimentar-nos, a conclusão: "Oh, foi ele que ela agarrou
agora, é? Bom, não é de admirar". Longe de fazer-me sentir ridículo ou
humilhado de algum modo, a idéia me enchia de orgulho. Mas aí, de
repente — e não sei bem por que razão —, de forma totalmente inesperada,
comecei a sentir uma fúria enorme em relação a ela. Tenho certeza de que
não houve mudança perceptível em minha atitude naquele momento, e nos
minutos seguintes continuamos a conversar com amabilidade,
ocasionalmente cumprimentando com a cabeça convidados que passavam.
Mas ao desprender seu braço do meu e voltar-me para ela, minha
determinação era inflexível.
"Bem, senhorita Hemmings, foi muito bom vê-la outra vez. Mas agora
tenho de deixá-la e subir para a cerimônia."
Fiz uma ligeira mesura e comecei a me afastar. Aquilo a tomou
claramente de surpresa, e se porventura tivesse preparado alguma estratégia
para o caso de eu não cooperar, na hora foi incapaz de pô-la em prática. Só
quando eu já estava a uma distância de alguns passos, tendo, aliás, me
reunido a um casal idoso que me saudara, ela de pronto correu para mim.
"Christopher!", disse, num sussurro frenético. "Você não ousaria! Você
me prometeu!"
"Você sabe que não prometi coisa alguma."
"Você não ousaria! Christopher, não faça isso!"
"Tenha uma boa noite, senhorita Hemmings."
Afastando-me dela — e também, por sinal, de meus idosos
companheiros, que faziam o possível para não ouvir o que dizíamos —,
avancei a passos rápidos escadaria acima.

Chegando ao piso superior, fui conduzido a uma ante-sala profusamente


iluminada. Lá me juntei devidamente a uma fileira de convidados que
passava por uma escrivaninha atrás da qual estava sentado um homem
uniformizado, de rosto gélido, e que verificava os nomes das pessoas numa
lista. Chegada a minha vez, fiquei satisfeito ao ver um lampejo de
empolgação cruzar o rosto gélido do homem ao riscar meu nome. Assinei o
livro de convidados, depois segui adiante rumo à entrada que levava a um
aposento amplo, dentro do qual, como verifiquei, já havia um número
considerável de convidados. Ao transpor a soleira e ser tragado pelo
burburinho, um homem alto de espessa barba escura cumprimentou-me e
apertou minha mão. Supus que fosse um dos anfitriões da noite, mas deixei
de registrar muito do que ele me dizia porque, para ser sincero, naquele
momento achava difícil pensar em outra coisa a não ser no que acabara de
acontecer lá embaixo. Experimentava uma curiosa sensação de vazio, e
tinha de dizer para mim mesmo que de forma alguma armara uma cilada
para a srta. Hemmings; que se alguma humilhação a atingira, isso era de sua
inteira responsabilidade.
Quando me afastei do homem barbado e avancei pelo recinto, porém,
Sarah Hemmings continuava a dominar meus pensamentos. Percebi
vagamente um garçom se aproximando com uma bandeja de aperitivos;
várias pessoas virando-se para me cumprimentar. A certa altura passei a
conversar com um grupo de três ou quatro homens — todos eles cientistas,
como verifiquei, e que pareciam saber quem eu era. Depois, fazia talvez
quinze minutos que eu estava na sala, senti uma ligeira mudança na
atmosfera e, olhando ao redor, percebi pelos olhares e murmúrios à volta
que algum tipo de comoção estava em curso junto à entrada pela qual
ingressáramos.
Mal notara isso quando um pressentimento soturno tomou conta de
mim; meu primeiro impulso foi escapar sala adentro. Era, porém, como se
alguma força misteriosa me puxasse de novo para a entrada, e em pouco
tempo tornei a dar comigo ao lado do homem barbado — que naquele
momento estava de costas para a recepção, observando com expressão
contristada o drama que se desenrolava na ante-sala.
Seguindo a linha de seu olhar, constatei que a srta. Hemmings se
encontrava de fato no centro da balbúrdia. Interrompera a procissão de
convidados que assinavam seus nomes na escrivaninha. Não estava
exatamente gritando, mas parecia não se importar com o fato de que outros
escutassem o que dizia. Vi como ela se desprendeu de um funcionário do
hotel que tentava contê-la; depois, debruçando-se na escrivaninha de
maneira a encarar com ainda mais intensidade o homem de rosto gélido que
continuava sentado lá como antes, disse numa voz próxima de um soluço:
"Mas você não faz a menor idéia! Eu simplesmente preciso entrar, não
percebe? Tenho tantos amigos lá dentro, meu lugar é lá dentro, faço parte
do grupo! Oh, seja razoável!".
"Realmente, sinto muito, senhorita…", começou o homem de rosto
gélido, mas Sarah Hemmings, cujo cabelo tombara sobre um dos lados de
seu rosto, não o deixou concluir.
"De todo modo, tudo não passa do mais ridículo dos malentendidos, não
percebe? Simplesmente o mais ridículo dos mal-entendidos! E por uma
coisinha à-toa dessas, o senhor está sendo estúpido comigo, não consigo
acreditar! Simplesmente não consigo acreditar…"
Todos nós, que testemunhávamos a cena, parecíamos reunidos por um
momento num embaraço paralisante. O homem barbado recobrou a razão e
irrompeu a passos largos na ante-sala, com autoridade.
"O que está havendo?", disse, apaziguador. "Minha cara jovem, terá
havido algum erro? Pronto, pronto, vamos resolver tudo, tenho certeza.
Estou às ordens." Num sobressalto, exclamou: "Ora, a senhorita Hemmings,
não é mesmo?".
"Claro que sim! Sou eu! Não está vendo? Esse homem está sendo tão
estúpido comigo…"
"Mas, senhorita Hemmings, minha cara jovem, não há necessidade de
se alterar desse jeito. Vamos, venha por aqui um instante…"
"Não! Não! Não vai se livrar de mim! Não quero saber! Estou lhe
dizendo que preciso, que absolutamente preciso entrar! Sonhei com isso por
tanto tempo…"
"Certamente alguma coisa pode ser feita para a jovem", uma voz
masculina disse entre os circunstantes. "Por que ser tão mesquinho? Se ela
se deu ao trabalho de vir até aqui, por que não a deixam entrar?"
Aquilo provocou um murmúrio geral de assentimento, embora eu
também tivesse notado alguns semblantes reprovadores. O homem barbado
hesitou, depois pareceu decidir que a prioridade era pôr um termo à cena.
"Bem, talvez neste caso específico…" Depois, voltando-se para o
homem de rosto gélido atrás da escrivaninha, prosseguiu: "Tenho certeza de
que podemos encontrar um jeito de atender a senhorita Hemmings, não
acha, senhor Edwards?".
Eu teria ficado por ali mais um pouco, mas no decorrer da contenda fora
tomado pelo temor de que a qualquer momento a srta. Hemmings pudesse
me avistar, arrastando-me para o centro daquela cena desagradável com
uma acusação. Na verdade, quando eu dava início a meu movimento de
recuo, ela me fitou por um segundo. Mas não fez nada, e no momento
seguinte seus olhos angustiados fitavam novamente o homem barbado.
Aproveitei a oportunidade para escapulir.
Durante os vinte minutos que se seguiram, permaneci nas áreas do salão
mais afastadas da entrada. Um número surpreendente de convivas dava
mostras de estar desnecessariamente intimidado com a ocasião, tanto é que
a maioria das conversas — aquelas que eu podia ouvir ao meu redor, bem
como aquelas em que tomava parte — consistia quase que só de elogios
recíprocos. Esgotados os elogios, lançava-se mão do louvor ao convidado
de honra. A certa altura, depois de um desses discursos inventariando
exaustivamente os feitos de Sir Cecil Medhurst, eu disse ao senhor de idade
que acabara de pronunciá-lo:
"Será que Sir Cecil ainda não chegou?"
Meu companheiro indicou com o copo e vi um pouco adiante a figura
esguia do grande estadista conversando atenciosamente com duas senhoras
de meia-idade. E então, bem quando eu estava olhando para ele, vi Sarah
Hemmings emergir da multidão e rumar diretamente para ele.
Não restava traço da criatura lamentável da ante-sala. Ela estava
positivamente radiante. Enquanto eu a observava, abordou Sir Cecil, não
sem um toque de hesitação, e pousou a mão em seu braço.
O senhor de idade começou a apresentar-me para alguém, de modo que
por instantes fui obrigado a virar-me. Quando tornei a olhar na direção de
Sir Cecil, vi que as duas senhoras de meia-idade haviam ficado de lado,
olhando com sorrisos constrangidos, e que a srta. Hemmings conseguira
atrair toda a atenção de Sir Cecil. Vi quando ele inclinou a cabeça para trás
e soltou uma risada sonora com alguma coisa que ela lhe dizia.
Um pouco mais tarde fomos convidados a passar ao salão de jantar,
sentando-nos em torno de uma mesa comprida, imponente, sob candelabros
cintilantes. Fiquei aliviado ao constatar que a srta. Hemmings fora instalada
a uma certa distância de mim, e por alguns instantes até que me diverti com
a ocasião. Conversei sucessivamente com as senhoras sentadas a minha
direita e a minha esquerda — ambas, cada uma a seu modo, bastante
encantadoras — e a comida estava deliciosamente esplêndida. Mas, à
medida que prosseguia o jantar, dei comigo debruçando-me de quando em
quando para espiar a srta. Hemmings mais além na mesa, e comecei outra
vez a repassar na cabeça as razões que legitimavam meu modo de agir.
Talvez devido a essas preocupações, sou agora incapaz de lembrar
muito mais acerca do jantar em si. Lá pelo final houve discursos; várias
personalidades tomaram a palavra para cobrir Sir Cecil de elogios por sua
contribuição em questões internacionais, e em particular por seu papel na
criação da Liga das Nações. Depois, finalmente, o próprio Sir Cecil pôs-se
de pé.
Seu discurso, se bem me lembro, foi autocrítico e otimista. A seu ver, a
humanidade aprendera com os próprios erros, as estruturas estavam agora
solidamente assentadas para garantir que nunca mais este planeta voltasse a
passar por uma calamidade das proporções da Grande Guerra. A guerra, por
mais horrenda que tivesse sido, não representara mais do que "um lapso
canhestro na evolução do homem", quando, por alguns anos, nosso
progresso técnico se antecipara a nossas potencialidades organizacionais.
Todos nos surpreendêramos com o rápido desenvolvimento de nosso
poderio tecnológico e a conseqüente capacidade de fazer guerra com
armamento moderno, mas agora reparáramos o descompasso. Alertadas
para os horrores que poderiam ser desencadeados entre nós, as forças da
civilização haviam prevalecido e legislavam. Seu discurso girava em torno
disso, e todos aplaudimos efusivamente.
Após o jantar, as senhoras não se retiraram; em vez disso, todos foram
convidados a seguir para o salão de dança. Lá encontramos um quarteto de
cordas e garçons oferecendo licores, charutos e café. Os convidados
começaram imediatamente a circular, numa atmosfera bem mais
descontraída do que antes do jantar. A certa altura aconteceu de meu olhar
encontrar de longe o da srta. Hemmings, e fiquei surpreso ao vê-la sorrir
para mim. Meu primeiro pensamento foi o de que aquele era o sorriso de
um inimigo tramando alguma vingança terrível; mas continuei a observá-la
no decorrer da noite e concluí que estava errado quanto a isso. Percebi que a
srta. Hemmings estava absolutamente feliz. Depois de meses, talvez anos de
planejamento, conseguira estar naquela hora naquele lugar e, tendo
alcançado seu objetivo — como acontece, dizem, com a mulher que acaba
de dar à luz —, relegara ao esquecimento toda lembrança das dores sofridas
no processo. Vi-a perambular de grupo em grupo, conversando
afavelmente. Ocorreu-me que seria melhor ir ter com ela e fazer as pazes
enquanto estava bem-disposta, mas a idéia de que pudesse alterar-se de
repente e criar outra cena fez com que me mantivesse a boa distância.
Talvez meia hora depois de iniciada essa parte da festa fui finalmente
apresentado a Sir Cecil Medhurst. Eu não encetara nenhum esforço especial
para me aproximar dele, mas suponho que teria ficado um pouco
desapontado se deixasse a festividade sem ter trocado uma única palavra
com o ilustre estadista. A bem dizer, ele é que foi conduzido até mim — por
Lady Adams, com quem eu travara conhecimento vários meses antes,
durante uma investigação. Sir Cecil apertou-me a mão calorosamente,
dizendo: "Ah, meu jovem amigo! Aqui está você!".
Por alguns minutos, fomos deixados a sós no meio da sala. Tudo a nossa
volta, àquela altura, era um bulício muito animado; enquanto trocávamos as
brincadeiras de praxe, éramos forçados a nos curvar um para o outro e
altear as vozes. A certa altura, ele me cutucou e disse:
"Tudo o que falei antes, no jantar… Sobre este mundo ter ficado um
lugar mais seguro, mais civilizado. Acredito mesmo, sabe? Pelo menos…"
— Nesse ponto ele tomou minha mão e me dirigiu um olhar estranho. —
"Pelo menos eu gostaria de acreditar. Oh, sim, gostaria de todo o coração.
Mas não sei não, meu jovem amigo. Não sei se no final vamos ser capazes
de segurar as pontas. Vamos fazer o possível. Organizar, conferenciar. Fazer
com que os homens mais ilustres das nações mais ilustres pensem juntos e
discutam. Mas o mal sempre estará à espreita. Oh, sim! Neste momento
mesmo há gente conspirando para dar um fim à civilização. E gente esperta!
Esperta como o demônio. Homens e mulheres de bem podem fazer de tudo,
dedicar suas vidas a neutralizar essa gente, mas receio que não seja o
bastante, meu amigo. Receio que não seja o bastante. Os do mal são
espertos demais para o cidadão honrado. Dão um baile nele, corrompem-no,
viram-no contra os companheiros. Sou testemunha disso, agora sou
testemunha disso o tempo todo, e a coisa vai piorar. É por isso que temos de
confiar mais do que nunca em gente como você, meu jovem amigo. Nos
poucos do lado de cá que não perdem deles em matéria de esperteza. Nos
que logo entendem o jogo deles, nos que destroem o fungo antes que ele se
instale e se dissemine."
Talvez ele estivesse mais do que levemente embriagado; talvez a
homenagem o tivesse fragilizado. De todo modo, insistiu nessa toada por
algum tempo, apertando meu braço, emocionado, enquanto falava. E talvez
simplesmente porque aquele homem notável estivesse sendo tão efusivo —
ou talvez porque a noite inteira eu alimentara o desejo de perguntar-lhe algo
do tipo —, quando ele enfim se interrompeu, eu disse:
"Sir Cecil, parece-me que recentemente o senhor passou algum tempo
em Xangai".
"Xangai? Sem dúvida, meu amigo. Vou e volto. O que acontece na
China é crucial. Já não podemos olhar apenas para a Europa, entende? Se
quisermos conter o caos na Europa, agora temos de olhar para mais além."
"Pergunto, senhor, porque nasci em Xangai."
"É mesmo? Puxa vida."
"Estive pensando se o senhor não teria cruzado com um velho amigo
meu. Claro, não há nenhuma razão especial para que isso acontecesse. Mas
o nome dele é Yamashita. Akira Yamashita."
"Yamashita? Hum. Japonês, imagino. Japoneses aos montes em Xangai,
claro. A influência deles, lá, cresce diariamente. Yamashita, diz você."
"Akira Yamashita."
"Não sei dizer se cruzei com ele. Diplomata, ou algo assim?"
"Na verdade, senhor, eu não saberia dizer. Era um amigo de infância."
"Ah, entendo. Nesse caso, você tem certeza de que ele ainda está em
Xangai? Talvez seu amigo tenha voltado para o Japão."
"Não, não. Tenho certeza de que ainda está lá. Akira gostava muito de
Xangai. Além do mais, estava decidido a nunca mais voltar para o Japão.
Não, tenho certeza de que ainda está lá."
"Bem, não cruzei com ele. Vi bastante aquele sujeito, Saito. E alguns
dos militares. Mas ninguém com esse nome."
"Bem…" Dei uma risada para disfarçar a decepção. "Era mesmo
improvável. Foi só uma idéia."
Justo nesse momento, para certo alarme de minha parte, percebi que
Sarah Hemmings estava a meu lado.
"Então finalmente encurralou o grande detetive, Sir Cecil!", disse,
animada.
"De fato, minha cara", retrucou o velho cavalheiro, sorrindo para ela.
"Eu estava mesmo dizendo a ele como todos seremos levados a depender
dele nos anos que virão."
Sarah Hemmings sorriu para mim. "Tenho de dizer, Sir Cecil, que nem
sempre achei o senhor Banks absolutamente indispensável. Mas talvez ele
seja o melhor que temos."
Naquele momento decidi sair de perto deles o mais depressa possível;
fingindo avistar alguém do outro lado da sala, pedi licença e me afastei.

Só tornei a pôr os olhos na srta. Hemmings um pouco mais tarde.


Aquela altura, diversos convidados começavam a partir e o salão de dança
ficou menos abafado. Além disso, os garçons haviam aberto várias portas
que davam para as sacadas, de modo que uma brisa noturna refrescante
soprava pelo recinto. Apesar de tudo, a noite permanecera cálida, e em
busca de um pouco de ar, dirigi-me a uma das sacadas. Nem bem pusera o
pé para fora, notei que Sarah Hemmings já se encontrava ali, de pé, de
costas para a sala, um cigarro na piteira, contemplando o céu noturno.
Recuei, mas algo me disse, embora ela não tivesse se movido, que ela se
apercebera de minha presença. Assim, avancei pela sacada e falei:
"Então, senhorita Hemmings! Teve sua noite, afinal".
"Foi uma noite maravilhosa", ela disse sem se virar. Deu um suspiro
contido, deu uma tragada e me dirigiu um sorriso rápido por sobre o ombro
antes de voltar os olhos para o céu noturno. "Exatamente como pensei que
seria. Toda essa gente maravilhosa. Para onde quer que você olhe. Gente
maravilhosa. E Sir Cecil, um amor de pessoa, não acha? Tive uma conversa
incrível com Eric Mitchell sobre sua exposição. Ele vai me convidar para o
vernissage no mês que vem."
Não falei nada, e por alguns instantes continuamos simplesmente ali, de
pé, lado a lado, apoiados contra a balaustrada. Curiosamente — talvez
tivesse a ver com o quarteto de cordas, cuja valsa amena flutuava até nós
—, aquele silêncio não era tão incômodo quanto se poderia esperar. Por fim
ela disse:
"Suponho que esteja surpreso comigo".
"Surpreso?"
"Com minha determinação. De entrar aqui esta noite."
"Fiquei surpreso, sim." Depois perguntei: "Qual seria a razão, senhorita
Hemmings? De achar tão imperioso privar dessa companhia, esta noite?".
"Imperioso? Parece-lhe que foi imperioso para mim?"
"Eu diria que sim. E o que presenciei antes na entrada talvez possa
corroborar essa opinião."
Um tanto para surpresa minha, ela respondeu com uma leve risada,
depois sorriu para mim. "Mas por que não deveria, Christopher? Por que
não deveria querer estar em companhia como essa? Não é simplesmente…
o paraíso?"
Quando permaneci em silêncio, seu sorriso murchou.
"Imagino que no fundo me condene", disse ela, com voz bem diferente.
"Simplesmente reparei…"
"Tudo bem. Você tem todo o direito. Acha que tudo aquilo, na entrada,
foi constrangedor, e condena. Mas o que mais posso fazer? Não quero olhar
para minha vida, quando estiver velha, e ver uma coisa vazia. Quero ver
algo de que me orgulhe. Sabe, Christopher, sou ambiciosa."
"Não sei se a entendo bem. Em sua opinião, sua vida será mais
compensadora se conviver com pessoas famosas?"
"É realmente assim que me vê?"
Virou-se, talvez sinceramente magoada, e deu outra tragada. Vi-a
contemplar a rua deserta lá embaixo e as fachadas de estuque branco dos
prédios em frente. Depois, calmamente, ela afirmou:
"Entendo que seja possível ter essa impressão. Pelo menos alguém que
me observe com um olhar cínico".
"Espero não observá-la assim. Eu não gostaria de pensar que a observo
assim."
"Então tente ser mais compreensivo." Ela me encarou com uma
expressão resoluta, depois desviou novamente o olhar. "Se meus pais
estivessem vivos hoje", disse, "diriam que já é mais do que hora de que eu
me case. E talvez seja. Mas não vou fazer o que vi tantas garotas fazerem.
Não vou desperdiçar todo o meu amor, toda a minha energia, todo o meu
intelecto — por modesto que seja — em algum homem imprestável
dedicado ao golfe ou à venda de ações na City. Quando eu me casar, será
com alguém que realmente dê sua contribuição. Para a humanidade, quero
dizer, para um mundo melhor. Será que é ambição demais? Não venho a
lugares como este em busca de homens famosos, Christopher. Venho em
busca de homens notáveis. Que diferença faz, um pequeno constrangimento
aqui e ali?", disse, e mostrou o salão com um gesto. "Mas não concordo que
seja meu destino desperdiçar a vida com um homem agradável, gentil e
moralmente sem valor."
"Nesses termos", falei, "percebo que possa considerar-se, bem, quase
uma militante."
"De certa forma, Christopher, é assim que me vejo. Oh, que peça é essa
que estão tocando agora? É uma coisa que eu conheço… É Mozart?"
"Acredito que seja Haydn."
"Isso mesmo, tem razão. É, Haydn." Por alguns segundos ela olhou para
o céu e pareceu estar escutando a música.
"Senhorita Hemmings", eu disse, afinal, "não me orgulho da maneira
como me portei consigo antes. Na verdade, me arrependo muito. Desculpe-
me. Espero que me perdoe."
Ela continuou a olhar para o céu noturno, acariciando de leve o rosto
com a piteira. "Muito amável de sua parte, Christopher", disse, tranqüila.
"Mas sou eu quem deve pedir desculpas. Eu só estava tentando usá-lo,
afinal. Claro que estava. Tenho certeza de que fiz um triste papel na entrada,
mas não me importo. Mas me importo por tê-lo tratado mal. Você talvez
não acredite, mas é verdade."
Ri. "Bem, então vamos tentar perdoar um ao outro."
"Isso, vamos." Ela se voltou para mim e seu rosto de repente se abriu
num sorriso quase pueril em seu júbilo. Depois a lassidão o venceu
novamente e mais uma vez ela contemplou a noite. "Costumo tratar mal as
pessoas", disse. "Imagino que seja decorrência da ambição. E de não ter
muito tempo livre."
"Perdeu seus pais há muito tempo?", perguntei.
"Parece uma eternidade. Mas em outro sentido eles estão sempre
comigo."
"Bom, fico feliz que tenha aproveitado a noite, depois de tudo. Só posso
repetir que me arrependo de meu desempenho nela."
"Ah, veja, todo mundo está indo embora. Que pena! Eu gostaria de
conversar com você sobre todo tipo de coisa. Sobre seu amigo, por
exemplo."
"Meu amigo?"
"Aquele sobre quem estava perguntando a Sir Cecil. Aquele de
Xangai."
"Akira? Era só um amigo de infância."
"Mas percebi que era uma pessoa muito importante para você."
Aprumei-me e olhei atrás de nós. "Tem razão. Todo mundo está mesmo
indo embora."
"Então imagino que também devo ir", ela disse. "Senão minha saída
será tão notada quanto minha chegada."
Mas ela não fez menção de sair, e no fim eu é que pedi licença e voltei
ao salão. A certa altura, quando voltei o olhar, registrei a imagem de uma
figura solitária na sacada, fumando seu cigarro no ar noturno, com o salão
quase vazio atrás de si. Cheguei a considerar a idéia de voltar e me oferecer
para acompanhá-la até embaixo. Mas o fato de ela mencionar Akira me
alarmara um pouco, e decidi que já fizera o bastante, por uma noite, para
melhorar as relações entre mim e Sarah Hemmings.
PARTE DOIS

Londres, 15 de maio de 1931


4.

Nos fundos de nosso jardim em Xangai havia um promontório gramado


com um bordo solitário a crescer-lhe no topo. Quando Akira e eu tínhamos
uns seis anos, gostávamos de brincar naquele promontório e em torno dele,
e agora, sempre que penso em meu companheiro de infância, quase sempre
lembro de nós dois correndo de cima para baixo pelas encostas, às vezes
pulando dos barrancos mais altos.
De vez em quando, exaustos, sentávamos arquejantes no topo do
promontório com as costas apoiadas no tronco do bordo. Desse ponto de
observação tínhamos uma visão desimpedida do meu jardim e do casarão
branco ao fundo. Se fecho os olhos por um momento, sou capaz de trazer à
memória essa imagem muito vivamente: o gramado "inglês" cultivado com
esmero, as sombras da tarde projetadas pelo renque de olmos que
separavam meu jardim do de Akira; e a própria casa, um enorme edifício
branco com numerosas alas e sacadas com treliças. Suspeito que essa
memória da casa tenha muito da visão infantil, e que na realidade ela não
era tão grande. Por certo, mesmo na época eu tinha consciência de que ela
mal se comparava ao esplendor das residências da rua do Poço Borbulhante,
dobrando a esquina. Mas a casa era certamente mais do que adequada para
um lar que compreendia apenas meus pais, eu, Mei Li e os criados.
A propriedade era da Morganbrook and Byatt, o que significava haver
vários ornatos e quadros espalhados pelo local que eu estava proibido de
tocar. Significava também que, de vez em quando, estaríamos recebendo
um "hóspede da casa" — algum funcionário recém-chegado a Xangai que
ainda tinha de "tomar pé na situação". Não sei se meus pais objetaram a
esse arranjo. Não me importava em absoluto, de vez que em geral um
hóspede da casa era algum jovem que trazia consigo o ar das alamedas e
campinas inglesas que eu conhecia de O vento nos salgueiros, ou então as
ruas nevoentas dos mistérios de Conan Doyle. Esses jovens ingleses, sem
dúvida ávidos por criar uma boa impressão, inclinavam-se a condescender
com minhas cansativas perguntas e às vezes com meus pedidos insensatos.
A maioria deles, ocorre-me agora, provavelmente era mais jovem então do
que sou hoje, e estavam provavelmente todos atarantados tão longe de casa.
Mas para mim, na época, eles eram figuras para estudar de perto e imitar.
Mas, voltando a Akira: há um caso ilustrativo que agora me vem à
cabeça de uma dessas tardes, depois que nós dois estivéramos correndo
freneticamente para cima e para baixo daquele promontório a representar
um de nossos prolongados dramas. Por um momento nos sentamos contra o
bordo para recuperar o fôlego, e eu olhava por sobre o gramado na direção
da casa, esperando que meu peito parasse de arfar, quando Akira disse atrás
de mim:
"Cuidado, meu chipa. Centopéia. Perto do seu pé".
Ouvira-o claramente dizer "meu chipa", mas na hora não fiz muito caso.
Mas tendo uma vez usado a expressão, Akira pareceu bastante satisfeito
com ela, e por alguns minutos que se seguiram, uma vez recomeçada nossa
brincadeira, passou a se dirigir a mim desse modo repetidas vezes: "Por
aqui, meu chipa!", "Mais rápido, meu chipa!".
"De qualquer maneira, não é meu chipa", disse-lhe enfim, durante uma
de nossas polêmicas sobre como nossa brincadeira deveria ter seguimento.
"É meu chapa."
Akira, como eu sabia que faria, protestou com vigor. "De jeito nenhum.
De jeito nenhum. A senhora Brown. Ela me faz dizer muitas vezes. Meu
chipa. Meu chipa. Pronúncia correta. Ela diz meu chipa. Ela professora!"
Era inútil tentar convencê-lo; desde que começara as aulas de inglês, ele
tinha imenso orgulho de sua posição dentro da própria família como o
especialista em inglês. Mesmo assim, eu não estava disposto a admitir o
erro, e no fim a briga assumiu proporções tais que Akira saiu em fúria a
passadas largas, abandonando a nossa brincadeira, pela nossa "porta
secreta" — um vão na cerca que separava os dois jardins.
Nas ocasiões seguintes que brincamos juntos, ele não me chamou de
"meu chipa" nem fez nenhuma referência a esse bate-boca no promontório.
Quase nos tínhamos esquecido do assunto quando certa manhã umas
semanas depois ele subitamente veio à tona outra vez ao caminharmos
juntos de volta pela rua do Poço Borbulhante, ao longo de mansões e
vistosos gramados. Não me recordo exatamente do que acabara de falar-lhe.
Em todo caso, ele respondeu dizendo:
"Muita gentileza sua, meu chapa".
Lembro-me de resistir à tentação de fazer notar que ele dera o braço a
torcer. Pois a essa altura eu conhecia Akira bem o bastante para perceber
que ele não estava dizendo "meu chapa" a modo de uma súbita admissão de
que estivera previamente errado; antes, de algum modo peculiar que nós
dois entendíamos, ele estava insinuando que era ele — ele, não eu — quem
sempre alegara ser "meu chapa"; que ele estava agora meramente
reafirmando seu argumento, e minha falta de protesto só confirmava sua
vitória definitiva. De fato, pelo resto da tarde continuou a tratar-me de "meu
chapa" com uma expressão cada vez mais presunçosa, como a dizer:
"Largou mão de ser ridículo, então. Fico feliz que tenha deixado de
besteira".
Esse tipo de comportamento não era em absoluto atípico de Akira, e
embora eu o tenha sempre achado exasperante, por alguma razão raramente
fazia esforço para protestar. Aliás — e hoje acho isso difícil de explicar —,
sentia uma certa necessidade de preservar tais fantasias em favor de Akira,
e caso um adulto, digamos, tentasse arbitrar a discussão sobre o "meu
chipa", era bem provável que eu tomasse o partido de Akira.
Não quero insinuar com isso que Akira me dominava, ou que nossa
amizade era nalgum sentido desequilibrada. Tomava o mesmo tanto de
iniciativa em nossas brincadeiras, e pensando bem, adotava as decisões
mais cruciais. O fato era que me julgava intelectualmente superior, e em
certo grau é provável que Akira o aceitasse. Por outro lado, havia muitas
coisas que conferiam a meu amigo japonês grande autoridade a meus olhos.
Havia, por exemplo, suas chaves de braço — que ele ministrava com
freqüência se eu fizesse declarações que lhe desagradassem, ou se durante
uma de nossas dramatizações eu passasse a resistir à adoção de uma
específica viravolta no entrecho pela qual ele se entusiasmara.
Em termos mais gerais, embora ele fosse na verdade apenas um mês
mais velho, eu tinha em mente que ele era o mais experiente. Ele parecia
saber várias coisas que eu não sabia. Havia, sobretudo, sua alegação de ter
se aventurado em várias ocasiões para além dos limites da Colônia.
Surpreende-me ligeiramente, olhando hoje para trás, pensar a que ponto
se permitia a nós crianças ir e vir sem sermos supervisionados. Mas isso,
claro, sempre dentro da relativa segurança da Colônia Internacional. Quanto
a mim, estava terminantemente proibido de pôr os pés nas áreas chinesas da
cidade, e que eu saiba, os pais de Akira não eram menos severos nesse
particular. Lá fora, diziam-nos, grassava toda espécie de moléstias atrozes,
imundície e homens malvados. O mais próximo que eu já estivera de sair da
Colônia fora na vez em que um fiacre transportando a mim e a minha mãe
tomara uma rota inesperada ao longo daquela parte do córrego Suzhou que
margeava o bairro Chapei; eu podia ver o amontoado de telhados baixos do
outro lado do canal, e prendi meu fôlego quanto pude com medo de que a
pestilência transpusesse pelo ar a estreita faixa de água. Não admira, pois,
que a alegação de meu amigo, de ter empreendido uma série de incursões
em tais áreas, me impressionasse.
Lembro-me de interrogar Akira repetidamente sobre tais façanhas. A
verdade a respeito dos bairros chineses, disse-me, era muito pior que os
boatos. Não havia prédios, a bem dizer, só barraco sobre barraco erguidos
um bem perto do outro. Tudo era muito parecido, alegava, com o mercado
da rua Boone, exceto que famílias inteiras eram encontradas vivendo em
cada "boxe". Havia, além do mais, cadáveres empilhados por todo canto,
moscas zumbindo sobre eles, e ali ninguém ligava a mínima. Em dada
ocasião, Akira estivera passeando por uma viela abarrotada e vira um
homem — algum poderoso chefe militar, supunha — sendo transportado
numa liteira, acompanhado por um gigante carregando uma espada. O chefe
militar apontava para quem bem quisesse e o gigante então decepava a
cabeça do indivíduo. Naturalmente, as pessoas tratavam de se esconder o
melhor que podiam. Akira, porém, simplesmente ficara lá plantado, com
um olhar de desafio para o caudilho. Este último passara um momento
cogitando se mandava decepar Akira, mas então, obviamente surpreso com
a coragem de meu amigo, acabara por rir e, inclinando-se, lhe dera tapinhas
na cabeça. Depois a comitiva do chefe militar seguira adiante, deixando
muitas outras cabeças decepadas como saldo.
Não me lembro de jamais ter tentado desafiar Akira acerca de qualquer
dessas alegações. Uma vez mencionei de passagem a minha mãe algo sobre
as aventuras de meu amigo para além da Colônia, e lembro dela rindo e
dizendo algo para lançar dúvida no assunto. Fiquei furioso com ela, e dali
em diante creio que evitei cuidadosamente lhe revelar tudo o que fosse
íntimo a propósito de Akira.
Minha mãe, por sinal, era uma pessoa que Akira considerava com
peculiar respeito. Se, digamos, mesmo imobilizado por uma chave de braço,
eu ainda relutasse em me dar por vencido, podia sempre recorrer à
declaração de que ele teria de se entender com minha mãe. Claro, isso não
era algo que eu gostasse de fazer; feria-me bastante o orgulho ter de invocar
a autoridade de minha mãe naquela idade. Mas, nas ocasiões em que era
obrigado a fazê-lo, sempre me espantava com a transformação ocorrida —
como o inimigo inclemente, de braços fortes como tenazes, podia num
segundo virar uma criança em pânico. Nunca soube ao certo por que minha
mãe exercia um tal efeito em Akira; pois embora ele sempre fosse
extremamente educado, no geral se sentia intimidado pelos adultos. Não
lembrava, além disso, de minha mãe jamais ter lhe falado senão de modo
gentil e amigável. Lembro de ter ponderado essa questão na época, e várias
possibilidades me ocorreram.
Durante algum tempo, considerei a noção de que Akira prezava minha
mãe como fazia por ser ela "bonita". Que minha mãe fosse "bonita" foi algo
que aceitei, muito imparcialmente, como fato ao longo de meu crescimento.
Sempre diziam isso dela, e creio que eu reputava esse "bonita" como um
simples rótulo que se prendia por si a minha mãe, não mais significativo
que "alta" ou "baixa" ou "jovem". Ao mesmo tempo, não era alheio ao
efeito que sua beleza causava nos outros. Claro, naquela idade não tinha
real consciência das profundas implicações do encanto feminino. Mas ao
acompanhá-la de lá para cá como eu fazia, passei a aceitar como fato, por
exemplo, os olhares de admiração dos estranhos ao passearmos pelos
jardins públicos, ou o tratamento preferencial dos garçons no Café Italiano
da rua Nanquim, aonde íamos comer bolos nas manhãs de sábado. Sempre
que contemplo agora as fotografias que tenho dela — ao todo são sete, no
álbum que me acompanhou de Xangai — , ela me surpreende como uma
beleza de traços antigos, vitorianos. Hoje talvez fosse considerada
"simpática"; "atraente" decerto não é. Sou incapaz de imaginá-la, por
exemplo, detentora alguma vez na vida do repertório de pequenos meneios
coquetes de ombros e trejeitos de cabeça que esperamos de nossas jovens
de hoje. Nas fotografias — todas tiradas antes de eu nascer, quatro em
Xangai, duas em Hong Kong, uma na Suíça — ela está com certeza
elegante, aprumada, talvez até arrogante, mas não sem a brandura ao redor
dos olhos, da qual bem me recordo. De todo modo, quero dizer que me era
bastante natural suspeitar, pelo menos no início, que a estranha atitude de
Akira em relação a minha mãe decorria, como tantas outras coisas, de sua
beleza. Mas ao pensar na questão com mais cuidado, lembro de ter optado
por uma explicação mais provável: que Akira ficara incomumente
impressionado por aquilo que presenciara na manhã em que o inspetor de
saúde da companhia visitou a nossa casa.

Fazia parte da nossa vida ser visitados de tempos em tempos por um


oficial da Morganbrook and Byatt, um homem qualquer que passava mais
ou menos uma hora perambulando pela casa, anotando coisas em sua
caderneta, murmurando uma pergunta fortuita. Lembro de minha mãe
dizendo-me certa vez que, desde bem pequeno, eu gostava de brincar de
"ser" um inspetor de saúde da Byatt, e que ela muitas vezes tinha de me
dissuadir de passar longos períodos estudando a situação de nosso banheiro
com um lápis na mão. É bem possível que tenha sido assim, mas até onde
alcança minha memória, essas visitas quase nunca apresentavam novidades,
e anos a fio não liguei a mínima para elas. Posso ver agora, porém, que
essas inspeções, ao examinar não somente questões de higiene, mas
também sinais de doenças ou parasitas entre os membros da casa, eram
potencialmente muito constrangedoras, e sem dúvida os indivíduos
selecionados pela companhia para conduzi-las tendiam a ser aqueles com
talento para o tato e a delicadeza. Lembro certamente de uma série de
homens dóceis, a arrastarem os pés — em geral ingleses, mas vez por outra
franceses —, que eram sempre cuidadosamente deferentes não só com
minha mãe, mas também com Mei Li — uma peculiaridade que via sempre
com bons olhos. Mas o inspetor que apareceu naquela manhã — eu devia
então ter oito anos — não era em absoluto típico.
Hoje, lembro-me de duas coisas em particular sobre ele: que tinha um
bigode caído e que havia uma marca marrom — talvez uma nódoa de chá
— nas costas de seu chapéu, meio encoberta pela fita. Estava brincando
sozinho na frente da casa, na ilha esférica de gramado circundada pelo sulco
das rodas de nosso tílburi. Lembro de ser um dia nublado. Estava absorto na
minha brincadeira quando o homem apareceu no portão e veio caminhando
na direção da casa. Ao passar por mim, murmurou: "Olá, garoto. Mamãe
está?", e seguiu adiante sem aguardar minha resposta. Olhando para suas
costas foi que notei a nódoa em seu chapéu.
O que lembro a seguir deve ter ocorrido cerca de uma hora depois. A
essa altura, Akira havia chegado e estávamos ocupados no meu quarto de
brinquedos lá em cima. Foi o som de suas vozes — não exatamente
erguidas, mas cheias de crescente tensão — que nos fez alçar a vista de
nosso jogo e, a seguir, avançar furtivamente até o patamar da escada e nos
agachar ao lado da pesada estante de carvalho junto à porta do quarto de
brinquedos.
Nossa casa tinha uma escadaria bastante imponente, e de nosso ponto de
observação ao lado da estante de carvalho podíamos ver o corrimão
seguindo a curva dos degraus até o espaçoso vestíbulo. Ali, minha mãe e o
inspetor estavam de pé encarando um ao outro, ambos muito tensos e
retesados, perto do centro do piso, de modo que pareciam mais duas peças
contrárias de xadrez deixadas no tabuleiro. O inspetor, notei, estava
segurando contra o peito seu chapéu com a nódoa. Por sua vez, minha mãe
tinha suas mãos cruzadas bem debaixo do peito, do jeito que fazia antes de
irromper em canto naquelas tardes em que a sra. Lewis, a mulher do cura
americano, vinha tocar piano.
A altercação que se seguiu, embora de nenhum significado aparente em
si mesma, creio tenha vindo a significar algo especial para minha mãe,
representando talvez um momento-chave de triunfo moral. Lembro-me de
que se referia a ela regularmente à medida que eu crescia, como se fosse
algo que ela desejasse que eu levasse a sério; e lembro-me de muitas vezes
ouvi-la recontar a história inteira para visitas, concluindo em geral com uma
ligeira risada e a observação de que o inspetor fora removido de seu posto
pouco depois do encontro. Portanto, hoje não posso dizer ao certo quanto de
minha memória daquela manhã resulta daquilo que de fato presenciei do
patamar da escada e em que medida isso se fundiu, ao longo do tempo, com
os relatos de minha mãe sobre o episódio. Seja como for, minha impressão é
de que, quando Akira e eu espichamos a cabeça pelo canto da estante de
carvalho, o inspetor estava dizendo algo do tipo:
"Tenho todo o respeito por seus sentimentos, senhora Banks. Entretanto,
aqui neste lugar, todo cuidado nunca é demais. E a companhia
decididamente tem responsabilidade pelo bem-estar dos seus funcionários,
mesmo os mais aclimatados, como a senhora e o senhor Banks".
"Queira desculpar, senhor Wright", respondeu minha mãe, "mas suas
objeções ainda não ficaram claras para mim. Esses criados de quem fala
têm prestado excelente serviço no curso dos anos. Posso dar pleno
testemunho de seus padrões de higiene. E o senhor mesmo admitiu que eles
não apresentam nenhum sinal de moléstia contagiosa."
"Entretanto, minha senhora, eles são de Shantung. E a companhia é
obrigada a aconselhar todos os seus funcionários a não empregar nativos
dessa província em suas casas. Uma injunção, se me permite, derivada de
amarga experiência."
"Está falando sério? Quer mesmo que eu expulse esses nossos amigos
— pois há muito os consideramos amigos! — por nenhuma outra razão a
não ser que eles são oriundos de Shantung?"
Nisso as maneiras do inspetor ganharam certa pompa. Ele passou a
explicar a minha mãe que as objeções da companhia a criados de Shantung
eram baseadas em dúvidas não só sobre sua higiene e saúde, mas também
sobre sua honestidade. E com tantos itens de valor na casa pertencentes à
companhia — o inspetor gesticulou ao redor — ele era obrigado a reiterar
com toda a veemência sua recomendação. Quando minha mãe interrompeu
outra vez para perguntar com base em que essas espantosas generalizações
haviam sido feitas, o inspetor deu um suspiro cansado e disse:
"Numa palavra, minha senhora, ópio. O vício de ópio em Shantung
avançou a níveis tão deploráveis que vilas inteiras são encontradas
escravizadas ao cachimbo. Daí, senhora Banks, os baixos padrões de
higiene, a elevada incidência de contágio. E, inevitavelmente, aqueles que
vêm de Shantung para trabalhar em Xangai, ainda que na essência de
disposição honesta, tendem cedo ou tarde a recorrer ao furto, em benefício
de seus pais, irmãos, primos, tios e que tais, todos cujos desejos têm de
algum modo de ser saciados… Santo Deus, minha senhora! Estou
simplesmente tentando cumprir o meu dever…".
Não foi somente o inspetor que recuou nesse ponto; a meu lado, Akira
inspirou fundo, e quando me virei para ele, estava olhando boquiaberto para
minha mãe. É essa imagem dele naquele momento que me levou mais tarde
a acreditar que sua subseqüente reverência a minha mãe teve origem
naquela manhã.
Mas se o inspetor e Akira se sobressaltaram ambos com algo que minha
mãe fez naquele momento, de minha parte não vi nada de extraordinário.
Para mim, ela não pareceu mais que reunir um pouco de forças em
preparação para o que estava para declarar. Mas suponho que eu estivesse
então bem habituado a seus modos; é possível que para os menos
familiarizados com eles, certos olhares e posturas habituais de minha mãe
em tais situações se afigurassem, de fato, como algo alarmante.
Isso para não dizer que eu não estava totalmente alerta à explosão que
se seguiria. De fato, desde o instante em que o inspetor proferiu a palavra
"ópio", eu sabia estar o pobre homem liquidado.
Abruptamente ele se interrompera, sem dúvida esperando ser atalhado.
Mas lembro que minha mãe deixou pairar um silêncio fremente — ao longo
do qual seu olhar não desgrudou do inspetor — antes de finalmente
perguntar numa voz plácida, que no entanto ameaçava transbordar em fúria:
"O senhor se atreve a falar comigo, em favor justo dessa empresa, sobre
ópio?".
Seguiu-se uma invectiva de controlada ferocidade, em que ela expôs ao
inspetor o caso com o qual então eu já estava familiarizado e que ouviria
resumido muitas outras vezes: que os ingleses em geral, e a companhia
Morganbrook and Byatt em particular, ao importar ópio indiano para a
China em tão vastas quantidades, trouxera miséria e degradação imensas a
toda uma nação. Á medida que falava, a voz de minha mãe muitas vezes
ficava tensa, mas nunca perdia de vez sua qualidade rítmica. Finalmente,
ainda olhando fixo para o seu inimigo, ela lhe perguntou:
"O senhor não tem vergonha? Como cristão, como inglês, como homem
de escrúpulos? Não tem vergonha de estar a serviço de uma tal companhia?
Diga-me, como a sua consciência é capaz de descansar enquanto deve sua
existência a tão malsinada riqueza?".
Tivesse ele a temeridade de fazê-lo, o inspetor poderia ter feito notar a
impropriedade da minha mãe repreendê-lo em tais termos, das palavras
vindas de a mulher de um colega funcionário da companhia, que residia
numa casa da companhia. Mas nessa altura ele percebeu que aquilo estava
além do seu alcance e, balbuciando algumas frases batidas para preservar
sua dignidade, retirou-se da casa.
Naqueles dias ainda era uma surpresa para mim quando um adulto
qualquer demonstrava — como fizera o inspetor — ignorância das
campanhas de minha mãe contra o ópio. Ao longo de muito de meu
crescimento, mantive a convicção de que minha mãe era conhecida e
admirada por toda parte como a principal inimiga do Grande Dragão de
Ópio da China. O fenômeno do ópio, devo dizer, não era algo que os
adultos em Xangai faziam muito esforço para ocultar das crianças, mas
claro, quando eu era bem pequeno, entendia pouco do assunto. Estava
habituado a ver todos os dias, do tílburi que me levava para a escola, os
homens chineses nos vãos das portas ao longo da rua Nanquim, refestelados
no sol matinal, e por certo tempo, sempre que ouvia a respeito das
campanhas de minha mãe, imaginava-a dando assistência a tal grupo
específico de homens. Mais tarde, porém, à medida que crescia, tive mais
oportunidades de vislumbrar algo da complexidade que cercava a questão.
Reclamavam minha presença, por exemplo, nos almoços de minha mãe.
Esses ocorriam em minha casa, em geral durante a semana, quando meu
pai estivesse no escritório. De modo típico, quatro ou cinco senhoras
chegavam e eram conduzidas ao jardimde-inverno, onde uma mesa havia
sido posta em meio a trepadeiras e palmeiras. Eu ajudava distribuindo
xícaras, pires e pratos, e aguardava pelo momento que viria: ou seja, quando
minha mãe perguntava a suas visitas como, se "pusessem a mão na
consciência", encaravam a política de suas companhias. Nesse ponto
cessava o bate-papo descontraído e as senhoras escutavam em silêncio
minha mãe expressar seu profundo descontentamento com "as ações de
nossa companhia", que ela tinha por "anticristãs e antibritânicas". Como
lembro, tais almoços sempre ficavam quietos e constrangidos a partir desse
estágio, até o momento, não muito mais tarde, em que as senhoras
proferiam suas gélidas despedidas e retiravam-se para os coches e
automóveis que as aguardavam. Mas eu sabia, pelo que dizia minha mãe,
que ela havia "vencido a resistência" de inúmeras dessas esposas da
companhia, e as convertidas eram então convidadas aos seus encontros.
Estes últimos eram matéria muito mais séria, e não me era permitido
freqüentá-los. Ocorriam na sala de jantar a portas fechadas, e se por acaso
eu ainda estivesse em casa quando um encontro estava em curso,
mandavam-me circular em silêncio, na ponta dos pés. Vez por outra eu era
apresentado a uma personalidade que minha mãe tinha em alta estima —
um clérigo, digamos, ou um diplomata —, mas de modo geral Mei Li era
instruída a manter-me bem longe do caminho antes que as primeiras visitas
chegassem. Claro, tio Philip era um dos sempre presentes, e muitas vezes eu
procurava ficar à vista dos participantes para lhe chamar a atenção. Se me
avistasse, então invariavelmente se aproximava com um sorriso e trocava
duas palavras. Às vezes, se ele não tivesse nenhum compromisso urgente,
eu o chamava à parte para lhe mostrar os desenhos que fizera naquela
semana, ou então íamos e nos sentávamos juntos um pouco no terraço dos
fundos.
Tendo todos partido, a atmosfera da casa passava por uma completa
mudança. O humor de minha mãe invariavelmente serenava, como se o
encontro varresse cada um de seus cuidados. Ouvia-a cantarolar pela casa
enquanto arrumava as coisas, e tão logo a ouvisse, corria ao jardim para
esperá-la. Pois sabia que, uma vez que acabasse de pôr ordem, sairia a meu
encontro, e o tempo que restasse antes do almoço devotaria inteiramente a
mim.
Estando eu mais velho, era nesses períodos, logo após um encontro, que
minha mãe e eu saíamos para nossos passeios no Parque Jessfield. Mas
quando tinha meus seis ou sete anos, era costume nosso ficar em casa e
jogar um jogo de tabuleiro ou às vezes até brincar com os meus soldadinhos
de chumbo. Ainda me lembro de uma certa rotina que desenvolvemos
durante essa época. Naqueles dias havia um balanço em nosso gramado,
não distante do terraço. Minha mãe assomava da casa ainda cantando,
pisava na grama e sentava-se no balanço. Eu aguardava em minha corcova
nos fundos do quintal e vinha ter com ela correndo, fingindo estar furioso.
"Sai de cima, mãe! Senão vai quebrar!" Pulava de lá para cá diante do
balanço, agitando os braços. "Você é muito grande! Vai quebrar!"
E minha mãe, fingindo que não me via nem ouvia, balançava-se mais e
mais alto, sem deixar de cantar o tempo inteiro a plenos pulmões alguma
canção como "Daisy, Daisy, Give Me Your Answer Do". Frustrados todos
os meus apelos, eu plantava — a lógica disso me foge agora — uma
sucessão de bananeiras na grama a sua frente. Seu canto passava então a ser
pontuado por acessos de risada, até que por fim ela descia do balanço e ia
brincar comigo. Ainda hoje, não consigo pensar nos encontros de minha
mãe sem me lembrar daqueles momentos ansiosamente antecipados que se
seguiriam.
Alguns anos atrás passei uns dias na sala de leitura do Museu Britânico
pesquisando as discussões que grassavam sobre o tráfico de ópio na China
naqueles tempos. Ao vasculhar vários artigos de jornal, cartas e documentos
da época, um sem-número de questões que eu mitificara tornou-se muito
mais claro. Contudo — e posso igualmente admiti-lo — meu principal
motivo ao efetuar tal pesquisa era a esperança de deparar com reportagens
sobre a minha mãe. Afinal, como disse, de pequeno me fora dado acreditar
que ela era uma figura-chave nas campanhas antiópio. Logo, foi uma certa
decepção que não tenha uma única vez encontrado seu nome. Havia outros
repetidamente citados, elogiados, denegridos, mas em todo aquele material
que coligi; nem uma única vez encontrei o de minha mãe. Topei várias
vezes, porém, com menções a tio Philip. Uma vez, numa carta ao North
China Daily News, um missionário sueco, ao condenar uma quantidade de
companhias européias, referia-se a tio Philip como "esse admirável lume de
integridade". A ausência do nome de minha mãe era decepção suficiente,
mas isso já era uma cruel deturpação, e abandonei minhas pesquisas depois
disso.

Mas não estou com vontade de recordar tio Philip agora. Houve um
momento, no início desta noite, em que estive convencido de ter
mencionado seu nome a Sarah Hemmings durante nosso passeio de ônibus
à tarde — de lhe ter dito mesmo uma ou duas coisas básicas sobre ele. Mas
repassando uma vez mais tudo o que aconteceu, tenho quase certeza, agora,
de que tio Philip não veio à tona em absoluto — e devo dizer que estou
aliviado. Talvez seja uma forma tola de pensar, mas sempre tive a sensação
de que tio Philip permanecerá uma entidade menos tangível enquanto
existir somente em minha memória.
Contei-lhe um pouco, porém, sobre Akira esta tarde, e agora que tive a
chance de pensar a respeito, realmente não me arrependo. Não lhe contei
muito, em todo caso, e de fato ela pareceu genuinamente interessada. Não
faço idéia do que me levou de repente a começar a lhe falar sobre tais
assuntos; por certo não tinha tal intenção ao embarcar naquele ônibus com
ela no Haymarket.
Eu fora convidado por David Corbett, um homem a quem conhecera
vagamente, para almoçar com ele e "alguns amigos" num restaurante na
Lower Regent Street. Sendo um lugar da moda, Corbett reservara uma mesa
longa nos fundos do ambiente para uma dúzia de nós. Fiquei satisfeito de
ver Sarah entre os convidados — e um pouco surpreso, pois não tinha
notícia de que ela fosse amiga de Corbett —, mas chegando um tanto
atrasado, fui incapaz de sentar perto o bastante para conversar com ela.
O tempo nublara naquela altura, e o garçom acendera para nós um par
de velas em nossa mesa. Um de nosso grupo, um sujeito chamado Hegley,
cuidou ser uma boa piada assoprar as velas e então chamar o garçom para
reacendê-las. Fez isso pelo menos umas três vezes no espaço de vinte
minutos — sempre que julgasse estar a tempestuosa atmosfera perdendo o
ânimo — e os demais pareciam achar isso bem engraçado. Do que podia
ver, Sarah estava se divertindo nessa altura, rindo com o restante deles.
Estávamos lá fazia talvez uma hora — alguns homens haviam se
desculpado para tornar a seus escritórios — quando a atenção voltou-se
para Emma Cameron, uma garota um tanto exaltada, sentada na ponta da
mesa em que estava Sarah. Que eu saiba, já estava ela conversando por
algum tempo com os mais próximos sobre seus problemas; porém foi nesse
instante que uma calmaria, espalhando-se pelo resto da mesa, subitamente
fez dela o foco de toda a reunião. Seguiu-se uma discussão meio séria, meio
irônica sobre a tumultuada relação de Emma Cameron com sua mãe — que
evidentemente atingia uma nova crise em razão do recente noivado de
Emma com um francês. Todo tipo de conselho lhe foi oferecido. O tal de
Hegley, por exemplo, propôs que todas as mães — "e tias também, claro"
— fossem mantidas em amplas instituições à maneira de zoológico, a serem
construídas ao lado da Serpentine. Outros fizeram comentários mais úteis,
baseados em suas próprias experiências, e Emma Cameron, saboreando
toda a atenção, manteve o tópico bem provido com anedotas cada vez mais
teatrais para ilustrar a natureza absolutamente exasperadora desse
específico parente. A discussão estava em curso por talvez quinze minutos
quando vi Sarah levantar-se e, sussurrando uma palavra no ouvido do
anfitrião, deixar o recinto. O toucador das senhoras localizava-se no saguão
do restaurante, e os outros — aqueles que nem sequer haviam notado sua
saída — sem dúvida supuseram que era para onde ela ia. Mas eu captara
algo em seu rosto enquanto ela se retirava, e após alguns minutos também
me levantei e saí atrás dela.
Encontrei-a na entrada do restaurante, olhando pelas janelas para a
Lower Regent Street. Ela não notou minha aproximação até tocar-lhe o
braço e perguntar:
"Está tudo bem?".
Ela teve um sobressalto, e notei pequenos traços de lágrimas em seus
olhos, que rapidamente ela tentou dissimular com um sorriso.
"Oh, sim, estou bem. Senti um pouco de falta de ar, só isso. Estou bem
agora." Deu uma risadinha e olhou perscrutadora para a rua. "Desculpe,
devo ter parecido extremamente rude. Eu realmente devia voltar lá para
dentro."
"Não vejo razão por que deva se não quer."
Ela estudou-me cuidadosamente, então perguntou: "Eles ainda estão
falando sobre o que estavam falando?".
"Estavam quando saí." E acrescentei: "Imagino que nenhum de nós é
capaz de contribuir muito com um simpósio sobre mães impertinentes".
De repente ela riu e enxugou as lágrimas, agora não mais tentando
escondê-las de mim. "Não", ela disse, "imagino que estamos
desqualificados." Então tornou a sorrir e disse: "Que bobagem a minha.
Afinal, só estão tendo um almoço agradável".
"Está esperando um carro?", perguntei, pois ela continuava a olhar
detidamente para o tráfego.
"O quê? Oh, não, não. Só estava olhando." Então disse: "Estive
pensando se passaria um ônibus. Veja, lá, do outro lado da rua. Tem um
ponto. Eu e minha mãe, nós costumávamos passar um tempão dentro dos
ônibus. Só por diversão. Quando eu era pequena, digo. Se não pudéssemos
pegar o banco da frente no andar de cima, descíamos na hora para esperar
por outro. E às vezes passávamos horas rodando por Londres, olhando tudo,
e falando, e apontando coisas uma para a outra. Eu gostava. Nunca anda de
ônibus, Christopher? Pois devia. Há tanta coisa que se pode ver lá de cima".
"Confesso que costumo ir a pé ou pegar um táxi. Tenho certo medo dos
ônibus londrinos. Estou convencido de que, se pegar um, acabo parando
nalgum lugar aonde não quero ir, e o resto do dia vou passar tentando
encontrar o caminho de volta."
"Posso lhe dizer uma coisa, Christopher?" Sua voz ficara bem calma. "É
uma coisa à-toa, mas me dei conta recentemente. Nunca me ocorrera antes.
Mas a minha mãe já devia estar com muitas dores. Não tinha força
suficiente para fazer outras coisas comigo. É por isso que passamos tanto
tempo nos ônibus. Era uma coisa que ainda podíamos fazer juntas."
"Estaria interessada em andar de ônibus agora?", perguntei.
Ela tornou a olhar para a rua. "Mas você não está muito ocupado?"
"Seria um prazer. Como disse, tenho certo receio de entrar em ônibus
sozinho. Já que é uma espécie de veterana, esta é a minha oportunidade."
"Muito bem." De repente ela sorriu exultante. "Vou lhe mostrar como é
que se anda num ônibus londrino."
Acabamos por tomar o ônibus não na Lower Regent Street — não
queríamos que o grupo do almoço saísse do restaurante e nos visse
esperando —, mas na paralela Haymarket. Ao subirmos ao piso superior,
ela mostrou um prazer pueril ao encontrar vago o seu banco da frente, e lá
sentamos balançando juntos enquanto o veículo se arrastava rumo à
Trafalgar Square.
Londres hoje estava muito cinza, e lá embaixo nas calçadas as pessoas
estavam bem preparadas com seus impermeáveis e guarda-chuvas. Calculo
que passamos meia hora naquele ônibus, talvez mais. Pegamos a Strand, a
Chancery Lane, a Clerkenwell. Às vezes ficávamos olhando a vista abaixo
de nós em silêncio; outras, falávamos, em geral de coisas inócuas. Seu
humor serenara consideravelmente desde o almoço, e ela não tornou a
mencionar sua mãe. Não sei direito como chegamos ao assunto, mas foi
logo depois que vários passageiros desembarcaram na High Holborn, e
enquanto descíamos a Gray's Inn Road, que dei por mim falando sobre
Akira. Creio que de início não fiz mais que mencioná-lo de passagem,
descrevendo-o como um "amigo de infância". Mas ela deve ter me sondado,
pois lembro-me de dizer-lhe, não muito depois, com uma risada:
"Sempre penso no dia em que roubamos uma coisa juntos".
"Oh!", exclamou ela. "Então é isso! O grande detetive tem um passado
criminal secreto! Eu sabia que esse garoto japonês era relevante. Mas me
fale sobre o seu roubo."
"Não foi bem um roubo. Tínhamos dez anos."
"Mas continua a atormentar sua consciência?"
"De jeito nenhum. Foi uma coisa de nada. Roubamos algo do quarto de
um criado."
"Mas que fascinante. E isso foi em Xangai?"
Imagino que tenha lhe contado então algumas coisas mais sobre o
passado. Não revelei nada de verdadeira relevância, mas depois que me
despedi dela esta tarde — saltamos por fim na New Oxford Street — fiquei
surpreso e ligeiramente alarmado por ter lhe contado alguma coisa, por
pouco que fosse. Afinal, não falara com ninguém sobre o passado durante
todo o tempo em que estive neste país, e, como disse, certamente não era
meu propósito começar a fazê-lo hoje.
Mas talvez algo do tipo estivesse no ar por algum tempo. Pois a verdade
é que, neste ano que passou, me tornei cada vez mais preocupado com as
minhas memórias, uma preocupação encorajada pela descoberta de que tais
memórias — de minha infância, de meus pais — começaram nos últimos
tempos a se esfumar. Inúmeras vezes, recentemente, dei comigo lutando
para lembrar algo que apenas há dois ou três anos julgava arraigado para
sempre em minha mente. Fui forçado a aceitar, noutras palavras, que a cada
ano que passa minha vida em Xangai fica menos nítida, até que um dia mais
não reste senão umas poucas imagens baralhadas. Mesmo esta noite, ao
sentar-me aqui e tentar reunir nalgum tipo de ordem essas coisas de que
ainda me lembro, mais uma vez me surpreendi ao constatar quanto, dessas
lembranças, perdera a nitidez. Tomando, por exemplo, o episódio que
acabei de contar a respeito de minha mãe e o inspetor de saúde: se estou
bastante seguro de que recordo sua essência com bastante precisão,
tornando a repassá-lo em minha cabeça me acho menos certo de alguns dos
detalhes. Por um lado, não tenho mais certeza de que ela realmente se
dirigiu ao inspetor com estas exatas palavras: "Como a sua consciência é
capaz de descansar enquanto o senhor deve sua existência a tão malsinada
riqueza?". Agora me parece que, mesmo com ânimo exaltado, ela teria se
dado conta da estranheza dessas palavras, do fato de que elas a expunham
ao ridículo. Não acredito que minha mãe jamais perdesse o controle da
situação a tal ponto. Por outro lado, é possível que eu lhe tenha atribuído
essas palavras precisamente porque essa era uma pergunta que ela deve ter
feito constantemente a si própria durante nossa vida em Xangai. O fato de
que "devíamos nossa existência" a uma companhia cujas atividades ela
identificava como um mal a ser fustigado deve ter sido para ela uma fonte
de verdadeiro tormento.
De fato, é possível mesmo que eu tenha me lembrado incorretamente do
contexto em que ela proferiu tais palavras; que não haja sido ao inspetor de
saúde a quem tenha se dirigido, mas a meu pai, numa manhã totalmente
diversa, durante aquela discussão na sala de jantar.
5.

Não me lembro agora se o episódio da sala de jantar ocorreu antes ou


depois da visita do inspetor de saúde. Recordo é que estava chovendo forte
naquela tarde, tornando a casa inteira sombria, e que eu estava sentado na
biblioteca, vigiado por Mei Li enquanto estudava meus livros de aritmética.
Chamávamos de "biblioteca", mas imagino que fosse na verdade
somente uma ante-sala cujas paredes por acaso estavam cobertas de livros.
Havia apenas o espaço suficiente no centro do piso para uma mesa de
mogno, e era lá que eu sempre fazia minha lição de casa, de costas para as
portas duplas que davam para a sala de jantar. Mei Li, minha ama, via
minha educação como uma matéria de solene importância, e mesmo quando
eu estava estudando havia uma hora, nunca lhe ocorria, ao me observar
austeramente, de pé, apoiar o seu peso na estante atrás de si, ou então
sentar-se na cadeira de espaldar reto a minha frente. Os criados sabiam
havia muito que não deviam atrapalhar esses momentos de estudo, e mesmo
os meus pais aceitaram hão nos perturbar, salvo se absolutamente
necessário.
Foi então uma surpresa e tanto quando meu pai entrou com ímpeto na
biblioteca naquela tarde, esquecido de nossa presença, e passou à sala de
jantar, fechando firmemente as portas atrás de si. Essa intrusão foi seguida
dentro de minutos por outra, de minha mãe, que energicamente atravessou
também o recinto e desapareceu na sala de jantar. Durante os minutos que
se seguiram pude apanhar, mesmo pelas pesadas portas, uma ou outra
palavra ou frase que me diziam estarem meus pais em franca discussão.
Mas para frustração minha, sempre que tentava ouvir um pouco mais,
sempre que o meu lápis hesitava demais sobre as contas, sobrevinha a
inevitável censura de Mei Li.
Mas então — não me lembro bem como ocorreu — Mei Li foi
chamada, e subitamente fui deixado a sós na mesa da biblioteca. De início
simplesmente continuei a estudar, temeroso demais do que pudesse
acontecer se Mei Li voltasse e não me encontrasse na cadeira. Porém
quanto mais se prolongava sua ausência, mais crescia o meu impulso de
ouvir com maior clareza a abafada contenda. Por fim ergui-me e fui até a
porta, mas mesmo aí voltava apressado à mesa a cada poucos segundos,
convencido de ouvir os passos de minha ama. No final, tratei de permanecer
na porta só com uma régua na mão, de forma que, se surpreendido por Mei
Li, pudesse alegar estar medindo as dimensões do aposento.
Mesmo assim, só conseguia ouvir frases inteiras quando meus pais se
descontrolavam e erguiam a voz. Eu percebia na voz colérica de minha mãe
o mesmo tom íntegro que usara com o inspetor de saúde naquela manhã.
Ouvi-a repetir "Uma vergonha!" um sem-número de vezes, e referia-se com
freqüência ao que chamava "tráfico pecaminoso". A certa altura, disse:
"Você está nos tornando, a todos, cúmplices! A todos nós! É uma
vergonha!". Meu pai também parecia irritado, se bem que de uma forma
defensiva, desesperada. Não parava de dizer coisas como: "Não é tão
simples. Está longe de ser tão simples". E a certa altura ele gritou:
"É uma pena! Eu não sou Philip. Não sou assim. É uma pena, uma pena
mesmo!".
Havia algo em sua voz ao gritar isso, uma espécie de terrível
resignação, e subitamente fiquei furioso com Mei Li por ter me abandonado
em tal situação. E foi talvez aí, eu de pé junto à porta, minha régua na mão,
pego entre o impulso de continuar ouvindo e o desejo de fugir para o
santuário de meu quarto de brinquedo e meus soldadinhos de chumbo, que
ouvi minha mãe dizer estas palavras:
"Você realmente não tem vergonha de estar a serviço de tal companhia?
Como pode sua consciência descansar enquanto você deve sua existência a
tão malsinada riqueza?".

Não me lembro do que ocorreu depois disso: se Mei Li voltou; se eu


ainda estava ali na biblioteca quando meus pais apareceram. Recordo, no
entanto, que o episódio prenunciou um dos mais longos períodos de silêncio
entre meus pais — quer dizer, um que foi mantido por semanas, e não por
dias. Não digo, é claro, que os meus pais não se comunicassem em absoluto
durante esse período, apenas que todas as palavras atinham-se ao
estritamente funcional.
Eu estava bem acostumado a tais períodos e nunca me preocupei
excessivamente com eles. Em todo caso, era apenas nos menores detalhes
que eles em algum momento se insinuavam em minha vida. Por exemplo,
meu pai podia aparecer no café da manhã com um jovial: "Bom dia a
todos!", e bater as mãos uma na outra, para então ser confrontado pelo olhar
gélido de minha mãe. Em tais ocasiões, meu pai podia tentar encobrir seu
embaraço virando-se para mim e, ainda no mesmo tom festivo, perguntar:
"E quanto a você, Puffin? Algum sonho interessante na noite passada?".
Ao que, eu sabia, por experiência, devia responder emitindo um som
vago, continuando a comer. Fora isso, como disse, não me metia muito com
o que não era da minha conta. Mas imagino que tenha, ao menos às vezes,
parado para pensar a respeito, pois guardo na memória uma conversa em
particular que tive certa vez com Akira quando estávamos brincando em sua
casa.

Minha memória da casa de Akira é que, de um ponto de vista


arquitetônico, ela era muito semelhante à nossa; de fato, lembro de meu pai
dizer-me que as duas casas haviam sido construídas pela mesma empresa
britânica uns vinte anos antes. Mas o interior da casa de meu amigo era um
assunto à parte, e fonte de algum fascínio para mim. Não era tanto a
preponderância das pinturas e ornamentos orientais — em Xangai, naquele
estágio de minha vida, não teria visto nisso nada de incomum —, mas antes
as noções excêntricas de sua família a propósito do uso de vários itens do
mobiliário ocidental. Tapetes que esperava ver no chão pendiam das
paredes; cadeiras guardavam uma altura esquisita com relação às mesas;
luminárias vacilavam sob abajures demasiado grandes. Mais notáveis eram
o par de "réplicas" de quartos japoneses que os pais de Akira haviam criado
no andar de cima. Estes eram quartos pequenos mas desatravancados, com
tatames assentados no piso e painéis de papel fixados às paredes, de
maneira que uma vez dentro — pelo menos segundo Akira — não se podia
dizer que não se estava numa autêntica casa japonesa feita de madeira e
papel. Lembro-me de as portas desses quartos serem especialmente
curiosas; na parte de fora, a "ocidental", apresentavam painéis de carvalho e
luzentes maçanetas de latão; na parte de dentro, a "japonesa", delicado
papel com tauxias de goma-laca.
Seja como for, num dia sufocante, Akira e eu brincávamos num desses
quartos japoneses. Estava ele tentando ensinar-me um jogo que envolvia
pilhas de cartas com caracteres japoneses estampados. Eu conseguira
aprender os rudimentos, e estávamos jogando havia vários minutos quando
de repente lhe perguntei:
"Sua mãe de vez em quando pára de falar com seu pai?".
Ele me lançou um olhar vazio, provavelmente porque não me
compreendeu; seu inglês muitas vezes o deixava na mão se eu falasse assim
fora de contexto. Então, quando repeti minha pergunta, ele encolheu os
ombros e disse:
"Mãe não fala com pai quando ele no escritório. Mãe não fala com pai
quando ele no banheiro!".
Com isso ele prorrompeu numa risada teatral, jogou-se de costas no
chão e começou a chutar os pés no ar. Fui assim forçado a desistir do
assunto temporariamente. Mas, tendo-o levantado, estava decidido a saber o
que ele achava, e alguns minutos depois trouxe-o novamente à tona.
Dessa vez ele pareceu notar minha seriedade e, deixando de lado o jogo
de cartas, fez-me uma série de perguntas até eu ter lhe dito mais ou menos a
natureza de minhas preocupações. Então rolou de novo sobre as costas, mas
dessa vez fitou pensativo o ventilador de teto que girava acima de nós.
Depois de alguns momentos disse:
"Eu sei por que eles param. Eu sei por quê". E virando-se para mim,
disse: "Christopher. Você não inglês bastante".
Quando lhe pedi para explicar-se, mais uma vez olhou para o teto e
calou-se. Eu também rolei sobre as costas e segui seu exemplo de
contemplar o ventilador. Ele estava deitado um pouco além no quarto, e
quando tornou a falar, lembro que sua voz soou estranhamente descarnada.
"O mesmo comigo", ele disse. "Mãe e pai, eles param falar. Porque eu
não japonês bastante."
Como talvez já tenha dito, eu tendia a considerar Akira como uma
autoridade experiente em muitos aspectos da vida, e assim escutei-o aquele
dia com grande atenção. Meus pais paravam de falar um com o outro, disse-
me, sempre que ficavam profundamente infelizes com meu comportamento
— e no meu caso, isso se devia a eu não me comportar suficientemente
como um inglês. Se eu pensasse a respeito, disse ele, seria capaz de ligar
cada um dos silêncios de meus pais a alguma hipótese de meu fracasso
nesse sentido. De sua parte, ele sempre sabia quando renegava seu sangue
japonês, e nunca se surpreendia ao descobrir que seus pais haviam deixado
de falar um com o outro. Ao lhe perguntar por que não nos repreendiam
como de costume quando nos portávamos mal dessa forma, Akira explicou-
me que não era assim; referia-se a ofensas bem diversas das travessuras
usuais, pelas quais éramos, às vezes, castigados. Falava de momentos que
decepcionavam nossos pais tão profundamente que eles não conseguiam
sequer nos repreender.
"Mãe e pai muito, muito decepcionados", ele disse calmamente. "Então
param falar."
Depois sentou-se e apontou para uma persiana que naquele momento
pendia parcialmente fechada da janela. Nós crianças, disse, éramos como o
fio que mantinha as folhas da persiana unidas. Um monge japonês dissera-
lhe isso certa vez. Muitas vezes não o percebíamos, mas éramos nós, as
crianças, que dávamos coesão não só a uma família, mas ao mundo inteiro.
Se não fizéssemos nossa parte, as folhas cairiam e se espalhariam pelo
chão.
Não lembro nada mais de nossa conversa naquele dia, e ademais, como
disse, não perdi muito tempo às voltas com tais questões. Ainda assim,
lembro de mais de uma vez sentir-me tentado a perguntar a minha mãe
sobre o que meu amigo dissera. No final, acabei por não fazê-lo, porém
mencionei o assunto uma vez a tio Philip.

Tio Philip não era um tio de verdade. Ele se instalara com meus pais
como um "hóspede da casa" ao chegar a Xangai algum tempo antes de meu
nascimento, nos dias em que ainda era funcionário da Morganbrook and
Byatt. Então, quando eu ainda era bem pequeno, demitira-se da companhia
devido ao que minha mãe sempre descrevia como "um profundo desacordo
com os seus patrões sobre como a China deveria amadurecer". Na época em
que eu tinha idade suficiente para me dar conta dele, dirigia uma
organização filantrópica chamada A Árvore Sagrada, que se dedicava a
melhorar as condições nas áreas chinesas da cidade. Sempre fora amigo da
família, mas como disse, tornou-se uma visita particularmente assídua nos
anos das campanhas antiópio de minha mãe.
Lembro-me muitas vezes de ir com minha mãe ao escritório de Philip.
Este localizava-se dentro das dependências de uma das igrejas no centro da
cidade — meu palpite agora é que era a Igreja da União na rua Suzhou.
Nosso tílburi entrava direto pelo jardim e parava ao lado de um vasto
gramado sombreado por árvores frutíferas. Ali, apesar dos ruídos da cidade
a nossa volta, a atmosfera era tranqüila, e minha mãe, saltando do tílburi,
detinha-se, erguia a cabeça e comentava: "O ar. É muito mais puro aqui".
Seu humor serenava a olhos vistos, e por vezes — caso estivéssemos um
pouco adiantados — minha mãe e eu nos entretínhamos alguns minutos
brincando na grama. Se brincássemos de pega-pega, correndo um atrás do
outro por entre as árvores frutíferas, minha mãe costumava rir e soltar
gritinhos com a mesma empolgação que eu. Lembro uma vez, no meio de
uma dessas brincadeiras, ela estacar subitamente ao ver um padre surgir da
igreja. Paramos quietos na beira do gramado e trocamos saudações com ele
enquanto passava. Mas mal saíra ele de nossa vista, minha mãe virou-se e,
curvando-se até mim, deu uma risadinha espremida de cumplicidade. É
possível mesmo que esse tipo de coisa tenha ocorrido mais de uma vez. De
todo modo, lembro-me de ter ficado fascinado com a idéia de minha mãe
participar de algo pelo qual, assim como eu, podia "levar uma bronca". E
foi talvez esse aspecto desses momentos de despreocupada brincadeira pelo
adro da igreja que fez parecê-los sempre um tanto especiais para mim.
Minha memória do escritório de tio Philip é que ele caía aos pedaços.
Havia caixotes de todos os tamanhos por tudo quanto era canto, pilhas de
papéis, mesmo gavetas jogadas, ainda com seus conteúdos, amontoadas
precariamente umas sobre as outras. Esperaria que minha mãe reprovasse
tal desleixo, mas ela só falava do escritório do tio Philip como sendo
"aconchegante" ou "movimentado".
Ele nunca deixava de fazer festa para mim nessas visitas, sacudindo-me
afetuosamente a cabeça, fazendo-me sentar e então jogando conversa fora
comigo por vários minutos, enquanto minha mãe observava a sorrir. Muitas
vezes me dava um presente, alguma coisa que fingia já ter à mão — embora
logo eu tenha notado que me presenteava com o que quer que lhe desse na
vista no momento. "Adivinha o que eu tenho para você, Puffin!", declarava,
enquanto vasculhava a sala em busca de algo adequado. Desse modo
adquiri uma vasta coleção de artigos de escritório, que eu guardava num
velho baú no meu quarto de brinquedos: um cinzeiro, um suporte de caneta
de marfim, um peso de chumbo. Houve uma ocasião em que, depois de
anunciar que tinha um presente para mim, seu olho não logrou pousar sobre
nada. Seguiu-se uma constrangedora pausa, antes de levantar-se num pulo e
começar a zanzar pelo escritório, murmurando: "E onde é que eu pus? Que
diabos fiz com ele?" — até que finalmente, talvez em desespero, foi até a
parede, retirou um mapa da região do Yang Tsé, rasgando um canto ao fazê-
lo, enrolou-o e ofertou-o a mim.
Naquele tempo eu confiava nele, tio Philip e eu estávamos sentados em
seu escritório, esperando minha mãe voltar de algum lugar. Ele me
convencera a sentar em sua própria cadeira atrás de sua mesa, enquanto ele
próprio andava a esmo pelo recinto. Desenrolava sua conversa fiada de
sempre, e em geral me punha rindo num piscar de olhos, mas naquela
ocasião — somente alguns dias após minha conversa com Akira — eu não
estava com disposição de espírito para tanto. Tio Philip logo reparou e
disse:
"Então, Puffin. Estamos com aquele humor, hoje".
Vi minha deixa e disse: "Tio Philip, estive pensando. Como imagina que
alguém possa se tornar mais inglês?".
"Mais inglês?" Parou o que quer que estivesse fazendo e olhou para
mim. Depois, com uma expressão pensativa, aproximou-se, puxou uma
cadeira para junto da mesa e sentou-se.
"Mas por que você ia querer ser mais inglês do que é, Puffin?"
"Só pensei… bem, só pensei que pudesse."
"Quem disse que você já não é suficientemente inglês?"
"Ninguém, na verdade." E acrescentei depois de um segundo: "Mas
acho que talvez meus pais achem isso".
"E o que você acha, Puffin? Acha que deveria ser mais inglês?"
"Realmente não sei dizer, senhor."
"Não. Imagino que não possa. Bem, é verdade, aqui você está crescendo
com gente da mais variada espécie ao redor. Chineses, franceses, alemães,
americanos, e por aí afora. Não seria de admirar se você ficasse um adulto
meio mestiço." Ele deu uma breve risada. Depois continuou. "Mas isso não
é ruim. Sabe de uma coisa, Puffin? Acho que não seria ruim se garotos
como você crescessem todos com um pouco de tudo. Quem sabe todos
trataríamos uns aos outros um bocado melhor então. Menos dessas guerras,
para início de conversa. Oh, sim. Talvez um dia todos esses conflitos
terminem, e não será por causa de grandes estadistas ou igrejas ou
organizações como esta. Será porque as pessoas mudaram. Elas serão como
você, Puffin. Mais para uma mistura. E por que então não se tornar um
mestiço? É saudável."
"Mas se fosse assim, tudo poderia…", interrompi-me.
"Tudo poderia o quê, Puffin?"
"Como aquela persiana ali" — apontei — "se o fio se rompesse. Tudo
poderia se espalhar."
Tio Philip fitou a persiana que indicara. Em seguida se levantou, foi até
a janela e tocou-a de leve.
"Tudo poderia se espalhar. Talvez você esteja certo. Imagino que seja
algo de que não podemos escapar facilmente. As pessoas precisam sentir
que fazem parte de alguma coisa. De uma nação, de uma raça. Senão, quem
sabe o que pode acontecer? Esta nossa civilização talvez simplesmente
desmorone. E tudo se espalhe, como você diz." Ele suspirou, como se eu
tivesse acabado de derrotá-lo numa discussão. "Então você quer ser mais
inglês. Pois muito bem, Puffin. E o que vamos fazer a respeito?"
"Eu pensei, se estivesse de acordo, senhor, se não se importasse muito.
Pensei se podia copiá-lo de vez em quando."
"Copiar a mim?"
"Sim, senhor. Só de vez em quando. Só para aprender a fazer as coisas
ao modo inglês."
"Isso me envaidece muito, amigão. Mas não acha que é a seu pai que
você deve esse grande privilégio? Mais inglês impossível, eu diria."
Desviei o olhar, e tio Philip deve imediatamente ter sentido que dissera
a coisa errada. Voltou a sua cadeira e tornou a sentar-se na minha frente.
"Olhe", ele disse calmamente. "Vou lhe dizer o que vamos fazer. Se
alguma vez você estiver preocupado em como lidar com as coisas, seja o
que for, se estiver preocupado sobre a maneira apropriada de lidar com
algo, então é só me procurar e nós teremos uma boa conversa a respeito.
Conversamos tudo tintim por tintim até que você saiba a quantas anda.
Então, sente-se melhor?"
"Sim, senhor. Acho que sim." Esbocei um sorriso. "Obrigado, senhor."
"Olhe aqui, Puffin. Você é um pestinha daqueles. Você sabe disso, é
claro. Mas levando em conta os outros pestinhas, você é um tipo bem
aceitável. Tenho certeza de que sua mãe e seu pai têm muito, muito orgulho
de você."
"Acha mesmo, senhor?"
"Acho. Acho, sim. Então, sente-se melhor?"
Com isso, ergueu-se num pulo para retomar as suas deambulações pelo
escritório. Retomando a seu tom jovial, desatou uma história absurda sobre
a senhora do escritório ao lado, que logo me pôs às gargalhadas.
Como eu gostava do tio Philip! E existe alguma razão legítima para
supor que ele não gostasse verdadeiramente de mim? É perfeitamente
possível que naquela altura ele não quisesse nada a não ser o meu bem, que
não suspeitasse mais que eu do curso que as coisas tomariam.
6.

Foi por volta daquela mesma época — naquele mesmo verão — que
certos aspectos do comportamento de Akira começaram a me aborrecer
seriamente. Em particular, havia sua eterna lengalenga sobre os feitos dos
japoneses. Ele sempre tendera a fazê-lo, mas naquele verão as coisas
pareceram atingir níveis obsessivos. Vira-e-mexe, meu amigo interrompia
algum jogo com o qual nos entretínhamos para instruir-me sobre o último
edifício japonês que estava sendo erguido no distrito comercial, ou da
iminente chegada de outra canhoneira japonesa ao porto. Obrigava-me
então a ouvir os mais ínfimos detalhes e, de minuto em minuto, sua
alegação de que o Japão tornara-se um "grande, grande país como
Inglaterra". O mais irritante de tudo eram aquelas ocasiões nas quais ele
tentava iniciar discussões sobre quem chorava mais fácil, se os japoneses ou
os ingleses. Caso eu balbuciasse a menor frase a favor dos ingleses, meu
amigo exigia imediatamente que puséssemos a questão à prova, o que
significava na prática ele me prender em suas terríveis chaves de braço até
que eu capitulasse ou cedesse às lágrimas.
Naquela época, creditei a obsessão de Akira com a bravura de sua raça
ao fato de que, no outono seguinte, ele começaria as aulas no Japão. Seus
pais lhe haviam arranjado instalar-se com parentes em Nagasaki, e embora
ele fosse voltar a Xangai nas férias escolares, percebemos que nos veríamos
bem menos, e a princípio a notícia nos lançara em desânimo. Mas à medida
que o verão se aproximava, Akira pareceu convencer-se da superioridade de
cada aspecto da vida no Japão e tornou-se cada vez mais empolgado com a
perspectiva de sua nova escola. Eu, de minha parte, fiquei tão farto da sua
persistente vanglória sobre tudo quanto era japonês que, ao final do verão,
já não via a hora de livrar-me dele. De fato, quando finalmente chegou o
dia, e na frente de sua casa fiquei acenando para o automóvel que o levaria
ao porto, acredito que não estivesse nem um pouco triste.
Em pouco tempo, porém, comecei a sentir falta dele. Não que não
tivesse outros amigos. Havia, por exemplo, os dois irmãos ingleses que
moravam perto, com quem costumava brincar e a quem passei a ver muito
mais depois da partida de Akira. Dava-me bem com eles, em especial
quando estávamos só nós três. Mas às vezes nos juntávamos a seus amigos
de escola — outros garotos da Escola Pública de Xangai — e então o
comportamento deles com relação a mim mudava, e por vezes eu me
tornava o alvo de certas brincadeiras. Não me importava em absoluto com
isso, claro, já que podia ver que todos eram essencialmente gente boa, sem
maldade real. Mesmo naquela época, podia ver que; se num grupo de cinco
ou seis garotos, todos menos um freqüentassem a mesma escola, o de fora
era sujeito de vez em quando a virar alvo de alguma caçoada inofensiva. O
que quero dizer é que não pensava mal de meus amigos ingleses; mas, ainda
assim, tais coisas impediram-me de criar com eles o mesmo nível de
intimidade que tivera com Akira, e à medida que os meses passavam,
imagino que comecei a sentir cada vez mais falta de sua companhia.
Mas aquele outono da ausência de Akira não foi particularmente infeliz,
de modo algum. Lembro-o antes como um período em que costumava não
ter o que fazer, de tardes vazias que se sucediam umas às outras, muitas das
quais se desvaneceram da minha memória. Contudo, alguns pequenos
acontecimentos ocorreram naquele período, que ulteriormente passei a
considerar como de particular relevância.

Houve, por exemplo, o incidente envolvendo nosso passeio ao


hipódromo com tio Philip, o qual estou razoavelmente certo ocorreu após
um dos encontros de minha mãe nas manhãs de sábado. Como talvez já
tenha dito, apesar de todo estímulo de minha mãe para que eu me
misturasse a seus colegas de campanha na sala de estar onde primeiro se
reuniam, não me era permitido acesso à sala de jantar para os encontros
propriamente ditos. Lembro de uma vez ter-lhe perguntado se podia assistir
a um encontro, e para surpresa minha ela ponderara longamente. Afinal
disse:
"Desculpe, Puffin. Nem Lady Andrews nem a senhora Callow estimam
a companhia de crianças. É uma pena. Você bem que poderia aprender umas
coisas importantes".
Meu pai, claro, não era barrado nos encontros, mas parecia estar
subentendido que ele deveria abster-se de freqüentálos. É difícil para mim
agora dizer quem, se um ou outro, era responsável por tal circunstância;
mas certamente havia sempre uma atmosfera estranha no café da manhã
naquelas manhãs de sábado em que um encontro estava marcado. Minha
mãe na verdade não mencionava o encontro propriamente dito a meu pai,
mas o observava durante a refeição com um ar quase de repulsa. Por sua
parte, meu pai tornava-se contagiado por uma forçada jovialidade que
crescia no correr da manhã até que as visitas de minha mãe começassem a
chegar. Tio Philip estava sempre entre os primeiros, e ele e meu pai
conversavam por alguns minutos na sala de estar, rindo às pampas. Então, à
medida que mais visitas chegavam, minha mãe vinha e levava tio Philip
para um canto, onde palestravam solenemente sobre o encontro que logo
teria início. Era sempre por volta desse momento que meu pai ausentava-se,
em geral subindo para seu gabinete.
Naquele dia de que estou me lembrando, recordo ter ouvido os
convidados começarem a partir ao final do encontro, e saí para o jardim
para aguardar minha mãe — que, supunha eu, não tardaria a surgir, como de
hábito, para apoderar-se do balanço, cantando enquanto isso em seus tons
maravilhosamente melodiosos. Quando depois de algum tempo não houve
sinal dela, entrei na casa para investigar e, pondo os pés na biblioteca, vi
que as portas da sala de jantar estavam agora entreabertas; que o encontro
de fato dispersara-se, mas que tio Philip e minha mãe ainda estavam lá,
imersos em discussão junto à mesa, papéis espalhados diante deles. E então
meu pai apareceu atrás de mim, sem dúvida achando também que o assunto
da manhã estivesse encerrado. Ao ouvir as vozes vindas da sala de jantar,
parou e me disse:
"Oh, eles ainda estão aqui".
"Só o tio Philip."
Meu pai sorriu, então passou por mim e entrou na sala de jantar. Pelas
portas pude ver tio Philip pondo-se de pé, e então pude ouvir os dois
homens rindo juntos sonoramente. Um instante depois minha mãe surgiu
parecendo algo aborrecida, seus documentos reunidos debaixo do braço.
A essa altura já passava do meio-dia. Tio Philip ficou para o almoço e
houve mais risada bem-humorada. Aí, quando a refeição já estava no fim,
tio Philip fez sua sugestão: por que não íamos todos passar a tarde no
hipódromo? Minha mãe pensou a propósito e declarou excelente a idéia.
Meu pai também disse pensar ser boa idéia, mas tinha de desculpar-se em
razão do trabalho que o esperava em seu gabinete.
"Mas faço questão, querida", disse ele virando-se para minha mãe, "por
que não vai com Philip? Está com cara de que vai ser uma tarde das mais
esplêndidas."
"Bem, sabe, acho mesmo que devia", disse minha mãe. "Um pouco de
diversão pode nos fazer bem a todos. Inclusive a Christopher."
E naquele momento todos olharam para mim. Embora tivesse então
nove anos de idade, creio que li a situação com alguma acuidade. Sabia, é
claro, que me ofereciam uma escolha: irao hipódromo ou ficar em casa com
meu pai. Mas imagino que captei também as implicações mais profundas:
se escolhesse ficar, minha mãe recusaria ir ao hipódromo somente na
companhia de tio Philip. Em outras palavras, o passeio dependia de eu
acompanhá-los. Além disso, eu sabia — e o sabia com uma calma
convicção — que naquele momento meu pai queria desesperadamente que
não fôssemos, que se o fizéssemos lhe causaríamos grande dor. Não era
nada em seu jeito que me sugeria isso, mas antes o que eu absorvera —
talvez involuntariamente — nas semanas e nos meses precedentes. Claro,
havia muitas coisas que não entendia em absoluto naqueles dias, mas aquilo
tudo vi com grande clareza: naquele instante, meu pai dependia
inteiramente de mim para salvar a situação.
Mas talvez não tenha compreendido o bastante. Pois quando minha mãe
disse: "Vamos, Puffin. Corra e calce seus sapatos", obedeci com manifesto
entusiasmo, um entusiasmo que forjei para exibição. E posso lembrar até
hoje meu pai nos acompanhando até a porta, apertando a mão de Philip,
rindo e nos acenando enquanto o tílburi levava minha mãe, tio Philip e a
mim para nosso passeio vespertino.

As únicas outras memórias que permaneceram nítidas daquele outono


também dizem respeito a meu pai: a saber, aqueles curiosos exemplos de
sua "fanfarrice". Meu pai sempre foi modesto em suas maneiras, e achava a
fanfarronice dos outros constrangedora. Por isso, na época, achei muito
estranho ouvilo falar como falou em diversas ocasiões isoladas. Foram
todos pequenos exemplos que me causaram somente ligeira surpresa, mas
que ainda assim permaneceram em minha memória ao longo dos anos.
Houve o momento, por exemplo, em que à mesa de jantar ele disse de
repente a minha mãe:
"Eu lhe contei, querida? Aquele sujeito voltou para me ver, aquele
representante dos estivadores. Queria me agradecer por tudo o que fiz por
eles. E num inglês bem passável também. Claro que esses chineses sempre
são muito efusivos quando falam, esses discursos deles têm todos de ser
recebidos com a pulga atrás da orelha. Mas sabe, querida, tive a nítida
impressão de que ele falava sério. Disse que eu era o 'honrado herói' deles.
Que tal isso? Honrado herói!".
Meu pai riu, depois observou a minha mãe atentamente. Ela continuou a
comer por um momento, depois disse:
"Sim, querido. Você já me contou".
Meu pai pareceu um pouco consternado, mas no segundo seguinte
sorriu animadamente de novo e disse com outra risada: "Contei, então!".
Virando-se daí para mim, ele disse: "Mas o Puffin aqui não tinha ouvido.
Tinha, Puffin? Honrado herói. É disso que estão chamando o seu pai".
Não consigo lembrar do que se tratava tudo isso, e provavelmente não
dei muita atenção mesmo na época. Lembrei o episódio só porque, como
disse, era tão pouco característico de meu pai falar de si mesmo dessa
maneira.
Outro incidente desse tipo ocorreu uma tarde em que meus pais e eu
íamos aos Jardins Públicos para ouvir a banda de metais. Mal havíamos
saltado de nosso tílburi na ponta de cima da Beira-Mar, e minha mãe e eu
olhávamos no rumo do portão, para os jardins do outro lado do amplo
bulevar. Era uma tarde de domingo, e lembro-me das calçadas de ambos os
lados repletas de transeuntes vestidos com elegância, desfrutando a brisa
vinda do porto. A própria Beira-Mar estava movimentada com coches,
automóveis e riquixás, e minha mãe e eu preparávamonos para atravessar,
quando meu pai, tendo pago nosso condutor, achegou-se por trás e disse
subitamente e um tanto alto:
"Viu, querida, agora eles sabem, na empresa. Agora sabem que não sou
de dar para trás. Bentley sabe, por exemplo. Oh, sim, agora sabe
direitinho!".
Tal como naquela ocasião na mesa de jantar, minha mãe a princípio não
deu sinal de ter ouvido. Pegou minha mão e abrimos caminho pelo tráfego
em direção aos jardins. "Sabe, é?", foi tudo o que murmurou entre os dentes
ao chegarmos do outro lado.
Mas este não foi bem o fim do episódio. Entramos nos Jardins Públicos
e por um instante, como qualquer família que ia aos jardins numa tarde de
domingo, passeamos pelos gramados e canteiros de flores cumprimentando
amigos e conhecidos, parando ocasionalmente para uma breve conversa. Às
vezes via garotos a quem conhecia — da escola ou de minhas aulas de
piano na sra. Lewis —, mas eles, tal como eu, caminhavam ao lado de seus
pais em conduta exemplar, e reconhecíamos um ao outro apenas
timidamente, se tanto. A banda de metais começaria a tocar às cinco e meia
em ponto, e embora todos soubessem disso, a maioria aguardava até que os
clarins ecoassem pelos ares antes de tomar o rumo do coreto.
Sempre nos atrasávamos para sair, de modo que os assentos estavam
todos tomados na hora em que chegávamos. Não me importava muito com
isso, já que era em torno do coreto que a nós crianças se permitia trela mais
solta, e eu também às vezes me misturava e brincava ali com os outros
garotos. Naquela tarde em particular — o outono devia ir bem avançado,
pois o sol já estava baixo sobre a água atrás do coreto — minha mãe
afastara-se alguns passos para falar com algumas amigas que estavam perto,
e após vários minutos de espera pela música, pedi a meu pai permissão para
ir ter com alguns garotos americanos conhecidos meus que brincavam na
fímbria da multidão. Ele continuou a fitar a banda e não respondeu. Eu
estava prestes a pedir-lhe outra vez quando ele disse calmamente:
"Todas essas pessoas aqui, Puffin. Todas essas pessoas. Pergunte a elas
e todas professam ter princípios. Mas quando crescer você verá, muito
poucas delas realmente têm. Sua mãe, porém, ela é diferente. Ela nunca se
rebaixa. E sabe de uma coisa, Puffin, é por isso que ela afinal teve sucesso.
Ela fez do seu pai um homem melhor. Um homem muito melhor. Eu sei, ela
pode ser severa, não preciso dizer isso a você, ha-ha! Bom, ela tem sido tão
severa comigo quanto tem sido com você. E o resultado, puxa vida, é que
sou um ser humano melhor por isso. Levou um bom tempo, mas ela
conseguiu. Quero que saiba isso, Puffin, seu pai hoje não é mais a mesma
pessoa que você viu aquela vez, você sabe, aquela vez que você e sua mãe
me interromperam de supetão. Você se lembra, claro que sim. Aquele dia
em que eu estava no meu gabinete. Lamento muito que você tivesse de ver
seu pai daquele jeito. Bem, de todo modo, isso foi então. Hoje, graças a sua
mãe, eu sou alguém muito, muito mais forte. Alguém, ouso dizer, Puffin, de
quem algum dia você vai se orgulhar".
Entendi pouco do que ele dizia, e além disso, tinha a sensação de que se
minha mãe — que estava somente a alguns passos — apanhasse qualquer
dessas palavras, ficaria zangada. Assim foi que não respondi realmente a
meu pai. Tenho a sensação de que simplesmente lhe perguntei outra vez,
após alguns instantes, se podia juntar-me a meus amigos americanos, e isso
botou uma pedra em cima do assunto.
Mas nos dias que se seguiram, dei por mim pensando sobre esse curioso
discurso de meu pai, e em particular sua referência a certa ocasião em que
minha mãe e eu o "interrompemos de supetão" em seu gabinete. Por um
longo tempo, não tive idéia exata daquilo a que ele estava se referindo, e
tentei em vão combinar uma ou outra reminiscência com suas palavras. Dei
por fim com uma memória bem remota de minha vida, de quando eu não
poderia ter mais que quatro ou cinco anos — uma memória que mesmo
então, com nove anos de idade, já se esfumara em minha cabeça.

O gabinete de meu pai ficava no andar mais alto da casa, com uma vista
que dominava a parte dos fundos. Usualmente não me permitiam entrar
nele, e em geral era desaconselhado brincar nem que só fosse perto dele.
Havia, contudo, um estreito corredor que levava do patamar da escada à
porta do gabinete, ao longo do qual estava pendurada uma série de quadros
com pesadas molduras douradas. Cada um desses era pintura precisa, à
maneira de projetista, do porto de Xangai observado do ponto de vista de
alguém na costa em Putung; ou seja, todos os numerosos navios no porto
mostravam-se com os grandiosos prédios da Beira-Mar ao fundo. Os
quadros provavelmente datavam da década de 1880, se não mais antigos, e
meu palpite é que, tal como vários dos ornamentos e quadros da casa,
pertenciam à companhia. Agora eu próprio na verdade não me lembro
disso, mas minha mãe costumava me contar como, de bem pequeno, eu e
ela nos postávamos na frente desses quadros e nos entretínhamos dando
nomes divertidos a vários navios na água. Segundo minha mãe, eu
rapidamente caía na gargalhada e por vezes me recusava a abandonar o jogo
antes que tivéssemos nomeado cada um dos navios visíveis. Se assim foi —
se realmente tínhamos o hábito de rir com estardalhaço ao longo dessa
nossa brincadeira —, então quase certamente não teríamos subido para nos
divertir desse jeito enquanto meu pai trabalhava em seu gabinete. Mas ao
pensar melhor sobre as palavras de meu pai naquele dia junto ao coreto,
comecei a lembrar uma ocasião em que minha mãe e eu estávamos de fato
postados juntos lá naquele sótão, pelo que me consta jogando esse nosso
jogo, quando ela subitamente parou e ficou bem quieta.
A primeira coisa que me ocorreu é que eu estava prestes a ser
repreendido, talvez por algo que acabara de dizer e lhe desagradara. Não era
sequer excepcional que minha mãe mudasse de humor abruptamente em
meio a uma conversa harmoniosa e me repreendesse por alguma travessura
— lembrada subitamente — cometida antes naquele dia. Mas ao ficar em
silêncio, pronto para uma dessas explosões, percebi que ela estava atenta,
ouvindo. Então, no instante seguinte, ela escancarou com grande
brusquidão a porta do gabinete de meu pai.
Tive um vislumbre do interior da peça atrás da silhueta de minha mãe.
A imagem que me ficou é de meu pai debruçado em sua escrivaninha, o
rosto coberto de suor e contorcido de frustração. É possível que ele
estivesse soluçando, e que esse fora o ruído que captara a atenção de minha
mãe. Na frente dele, espalhados pela mesa, havia papéis, livros contábeis,
cadernetas. Notei — creio que segui o olhar de minha mãe — mais papéis e
cadernetas no chão, como se ele os tivesse atirado ali num acesso de fúria.
Ele nos olhava, sobressaltado, e no momento seguinte disse numa voz que
me chocou um pouco:
"Não podemos fazer! Nunca vamos voltar! Não podemos fazer! Está
pedindo demais, Diana. É demais!".
Minha mãe disse-lhe algo entre os dentes, sem dúvida alguma censura
para ele recompor-se. Meu pai, de fato, recobrou certo controle nesse
momento e, olhando por sobre minha mãe, fitou-me pela primeira vez. Mas
quase instantaneamente o seu rosto tornou a crispar-se de desespero e,
voltando-se para minha mãe, disse outra vez, abanando a cabeça
desamparado:
"Não podemos fazer, Diana. Vai ser a ruína de nós dois. Examinei tudo.
Nunca vamos voltar para a Inglaterra. Não podemos angariar o bastante.
Sem a empresa, estamos simplesmente perdidos".
Então pareceu perder novamente o controle, e quando minha mãe
começou a dizer algo mais — algo em sua voz contida, irada — meu pai
começou a gritar, não tanto para ela quanto para as paredes do seu gabinete:
"Não vou fazer, Diana! Deus do céu, por quem você me toma? Está
além das minhas forças, está ouvindo? Além das minhas forças! Não posso
fazer!".
Possivelmente nesse ponto minha mãe fechou a porta em sua cara e
levou-me para longe. Não tenho lembrança de como o episódio prosseguiu.
E é claro, não posso ter certeza dos exatos sentimentos, e muito menos das
exatas palavras, que meu pai proferiu naquele dia. Mas é assim,
confessadamente com certa percepção tardia, que moldei essa memória.
Naquela época foi apenas uma atordoante experiência para mim, e
embora provavelmente tenha achado interessante que meu pai, tal como eu,
tivesse momentos de prantos e gritos, não me perguntei muito qual o
sentido de tudo aquilo. Além disso, quando tornei a ver meu pai, ele voltara
a ser a mesma pessoa normal, e minha mãe, por sua vez, nunca aludiu ao
incidente. Se meu pai, anos mais tarde, não houvesse feito aquele curioso
discurso ao lado do coreto, provavelmente eu nunca teria evocado essa
reminiscência.
Mas como disse, à parte esses pequenos incidentes curiosos, há pouco
que pareça valer a pena recordar daquele outono e do monótono inverno
que se seguiu. Fiquei apático durante muito daquele período, e encantado
quando uma tarde Mei Li muito casualmente me deu a notícia de que Akira
regressara do Japão, de que naquele mesmo momento, na frente da casa ao
lado, sua bagagem estava sendo descarregada do automóvel.
7.

Akira, deliciei-me em saber, regressara a Xangai não só para uma visita,


mas para ficar sem volta marcada, com planos de retomar os estudos em seu
velho colégio na rua Sechuan do Norte no início do trimestre de verão. Não
consigo lembrar se nós dois celebramos sua volta de algum modo especial.
Tenho a impressão de que simplesmente retomamos nossa amizade no
ponto onde a interrompêramos no outono anterior, com o mínimo de alarde.
Eu estava bastante curioso para ouvir sobre as experiências de Akira no
Japão, mas ele persuadiu-me de que seria infantil — de alguma forma
indigno de nós — discutir tais assuntos, e fingimos continuar com nossas
antigas rotinas como se nada jamais as tivesse interrompido. Imaginei,
claro, que as coisas não haviam andado muito bem com ele no Japão, mas
não suspeitara nem a metade até aquele cálido dia de primavera em que ele
rasgou a manga do seu quimono.
Quando brincávamos fora, Akira vestia-se geralmente como eu — de
camiseta, calção e, nos dias mais quentes, boné. Mas naquela particular
manhã em que estávamos brincando na corcova nos fundos de nosso
jardim, ele usava um quimono — nada de especial, só um daqueles trajes
que costumava vestir dentro de casa. Estávamos correndo de cima para
baixo da corcova encenando algum drama quando ele de repente estacou
perto do topo e sentou-se franzindo o cenho. Pensei que tivesse se
machucado, mas quando subi para lhe falar, vi que ele examinava um
rasgão na manga do quimono. Fazia-o com máxima preocupação, e creio
que lhe disse algo como:
"Que foi? Sua criada ou alguém mais costura isso num segundo".
Ele não respondeu — parecia por instantes ter esquecido inteiramente
minha presença —, e notei que mergulhava em profundo desânimo diante
dos meus olhos. Continuou a examinar o rasgão por mais alguns segundos,
então, baixando o braço, mirou com olhar vazio o chão a sua frente como se
uma grande tragédia houvesse acabado de ocorrer.
"Esta é terceira vez", murmurou calmamente. "Terceira vez mesma
semana eu faço coisa errada."
Como eu continuasse a fitá-lo um tanto perplexo, ele disse: "Terceira
coisa errada. Agora mãe e pai, eles me fazem voltar Japão".
Eu não conseguia ver, é claro, como um pequeno rasgão num velho
quimono pudesse acarretar tais conseqüências, mas na hora fiquei
suficientemente alarmado por essa perspectiva para agachar-me a seu lado e
pedir com urgência uma explicação para suas palavras. Mas foi pouco o que
pude arrancar de meu amigo naquela manhã — ele foi ficando cada vez
mais esquivo e fechado — e acho que me lembro de não nos havermos
despedido nos melhores termos. Nas semanas seguintes, contudo, descobri
aos poucos o que se escondia atrás de seu estranho comportamento.'
Desde o seu primeiro dia no Japão, Akira sentira-se totalmente infeliz.
Embora ele nunca o admitisse explicitamente, deduzi que fora
impiedosamente discriminado por sua "estrangeirice"; suas maneiras, suas
atitudes, sua fala, uma centena de outras coisas haviam-no marcado como
diferente, e ele fora alvo de zombarias não só dos colegas, como também
dos professores e até mesmo — sugeriu-me isso mais de uma vez — dos
parentes em cuja casa estava morando. No fim, tão profunda era sua
infelicidade que seus pais foram obrigados a trazê-lo para casa no meio do
período letivo.
A idéia de que tivesse de voltar para o Japão assombrava meu amigo. O
fato era que seus pais sentiam enorme saudade do Japão e muitas vezes
falavam de a família regressar para lá. Com sua irmã mais velha, Etsuko,
nem um pouco avessa a morar no Japão, Akira percebeu que estava sozinho
em desejar que a família permanecesse em Xangai; que era somente sua
enérgica oposição à idéia que obstava seus pais de fazer as malas e
embarcar para Nagasaki, e não estava nem um pouco seguro de quanto
tempo ainda suas preferências podiam esperar ter primazia sobre aquelas de
sua irmã e de seus pais. As coisas estavam bem equilibradas, e qualquer
desagrado em que incorresse — qualquer travessura, qualquer queda na
qualidade dos seus deveres escolares — poderia inclinar a balança contra
ele. Daí sua suposição de que um pequeno rasgo na manga de seu quimono
podia facilmente produzir a mais grave das conseqüências.
O resultado foi que o quimono rasgado esteve longe de incorrer na ira
de seus pais nas dimensões que ele temia, e com certeza nada de grave
decorreu do assunto. Mas ao longo dos meses que se seguiram a seu
regresso, um ou outro pequeno revés tornava a mergulhar o meu amigo em
seu fosso de preocupação e desalento. O mais significativo deles, suponho,
foi o caso relativo a Ling Tien e nosso "roubo" — o "crime do meu
passado" que tanto instigou a curiosidade de Sarah durante nosso passeio
desta tarde.

Ling Tien estivera com a família de Akira desde que eles haviam se
mudado para Xangai. Entre minhas primeiras memórias de ir à casa ao lado
para brincar estão aquelas do velho criado arrastando-se pelo imóvel com
sua vassoura. Ele parecia bem velho, sempre usava uma grossa bata escura
mesmo no verão, uma boina e um rabo-de-cavalo. Ao contrário dos demais
criados chineses na vizinhança, raramente sorria às crianças, mas tampouco
nos olhava feio ou gritava conosco, e não fosse pela atitude de Akira, é
improvável que eu jamais o tivesse considerado como um objeto de pavor.
Aliás, lembro-me de ficar a princípio mais do que tudo intrigado pela
inquietação que se apoderava de Akira sempre que o criado achegava-se a
nós. Se por exemplo Ling Tien passasse no corredor, meu amigo
interrompia o que quer que estivéssemos fazendo para postar-se
rigidamente numa parte do quarto fora do alcance da vista do velho e não se
movia até passado o perigo. Naqueles primeiros dias de nossa amizade,
ainda não me contagiara com o senso de pavor de Akira, supondo resultasse
isso de algo específico que ocorrera entre ele e Ling Tien. Como disse,
estava mais do que tudo intrigado, mas sempre que pedia a Akira para
explicar o seu comportamento, ele simplesmente me ignorava. Com o
tempo, passei a avaliar quão profundamente constrangido ele ficava com
sua incapacidade de controlar seu pavor por Ling Tien e aprendi a não dizer
nada sempre que nossas brincadeiras eram interrompidas dessa maneira.
Mas à medida que crescíamos, imagino que Akira tenha começado a
sentir necessidade de justificar seu medo. Quando já estávamos com sete ou
oito anos, a visão de Ling Tien não fazia mais com que meu amigo
congelasse; em vez disso, ele interrompia o que estivesse fazendo e me
olhava com um estranho esgar. Pondo então sua boca perto do meu ouvido,
recitava ele num curioso tom monótono — não diferente daquele dos
monges que de vez em quando ouvíamos cantar no mercado da rua Boone
— as mais aterradoras revelações sobre o velho criado.
Assim foi que tive notícia da temível paixão de Ling Tien por mãos.
Acontecera certa vez de Akira relancear os olhos pelo corredor dos criados
na direção do quarto de Ling Tien, numa rara ocasião em que o velho
deixara sua porta entreaberta, e vira empilhadas no chão as mãos decepadas
de homens, mulheres, crianças, macacos. Outra vez, tarde da noite, Akira
avistara o criado carregando um cesto para dentro de casa amontoado de
bracinhos desmembrados de macacos. Tínhamos sempre de estar de
sobreaviso, alertou-me Akira. Se lhe déssemos a menor oportunidade, Ling
Tien não hesitaria em cortar nossas mãos.
Quando após inúmeras dessas instruções indaguei por que Ling Tien
gostava tanto de mãos, Akira olhou-me atentamente, então perguntou se
podia confiar-me o segredo mais sombrio de sua família. Ao assegurar-lhe
que podia, ele pensou ainda um instante antes de dizer afinal:
"Então eu conto a você, meu chapa! Razão terrível! Por que Ling corta
mãos. Eu digo a você!".
Ling Tien, evidentemente, descobrira um método pelo qual podia
transformar mãos decepadas em aranhas. Em seu quarto havia várias tigelas
cheias de diferentes fluidos nos quais embebia por muitos meses
consecutivos as várias mãos coletadas. Devagar os dedos começavam a ter
movimento próprio — de início só pequenos espasmos, depois movimentos
coleantes; por fim cresciam pêlos escuros, e Ling Tien as retirava dos
fluidos e as soltava, como aranhas, por toda a vizinhança. Akira ouvira
muitas vezes o criado saindo furtivamente na calada da noite para fazer
justamente isso. Certa vez meu amigo vira mesmo no jardim, movendo-se
pelas moitas, uma Ling mutante retirada prematuramente de sua solução, a
qual ainda não se assemelhava por completo a uma aranha e podia ser
facilmente identificada como uma mão decepada.
Embora mesmo naquela idade eu não tenha acreditado nessas histórias,
elas certamente me transtornaram, e por algum tempo a mera visão de Ling
Tien bastava para provocar calafrios em mim. De fato, ao crescermos,
nenhum de nós se livrou direito de nosso horror a Ling Tien. Isso foi
sempre algo que atormentou o orgulho de Akira, e por volta da época em
que tínhamos oito anos, ele pareceu desenvolver uma necessidade de
desafiar constantemente esses antigos temores. Lembro dele muitas vezes
arrastando-me a algum ponto de sua casa onde podíamos espionar Ling
Tien varrendo a trilha ou fazendo outra coisa qualquer. Não me importava
muito com tais sessões de espionagem, mas o que passei a temer eram
aquelas ocasiões em que Akira desafiava-me com insistência a aproximar-
me do quarto de Ling Tien.
Até esse ponto havíamos nos mantido bem afastados daquele quarto, em
especial porque Akira sempre sustentara que os eflúvios dos líquidos de
Ling Tien eram capazes de nos hipnotizar e nos atrair para dentro pela
porta. Mas então a idéia de aproximar-se do quarto tornou-se como que uma
obsessão para o meu amigo. Podíamos estar conversando sobre algo bem
diverso, e de repente aquele estranho esgar aparecia no seu rosto e ele
começava a sussurrar: "Está com medo? Christopher, está com medo?".
Forçava-me aí a segui-lo pela casa, por aqueles ambientes
excentricamente decorados, até o arco de pesadas vigas que marcava o
início dos aposentos dos criados. Atravessando o arco, nos encontrávamos
num corredor sombrio de tábuas nuas polidas, na extremidade do qual, de
frente para nós, estava a porta do quarto de Ling Tien.
Primeiro, somente se exigia de mim que me postasse junto ao arco e
observasse Akira avançar a custo pelo corredor, pé ante pé, até haver
percorrido talvez metade da distância para aquele terrível quarto. Ainda
posso ver meu amigo, sua figura atarracada hirta de tensão, seu rosto,
sempre que se voltava para mim, luzente de suor, forçando-se a mais alguns
passos antes de virar e correr de volta com expressão triunfante. A seguir,
ele me provocava e incitava até eu finalmente criar coragem para igualar
sua façanha. Por um bom tempo, como disse, esses testes de coragem
referentes ao quarto de Ling Tien chegaram a obcecar Akira e tiraram muito
do prazer de ir brincar em sua casa.
Por algum tempo ainda, porém, permaneceria além das forças de um e
de outro caminhar direto até a porta, quanto mais cruzá-la. Quando
finalmente entramos no quarto de Ling Tien, os dois tínhamos dez anos, e
aquele foi — embora eu não soubesse então, claro — meu último ano em
Xangai. Foi quando Akira e eu cometemos o nosso pequeno furto — um ato
impulsivo cujas mais amplas repercussões, em nossa agitação, deixamos de
antecipar por completo.

Sempre soubemos que Ling Tien ausentava-se por seis dias no início de
agosto para visitar sua aldeia natal perto de Hangzhou, e falamos muitas
vezes sobre como aproveitaríamos a oportunidade para finalmente entrar
naquele quarto. E dito e feito, na primeira tarde depois da partida de Ling
Tien, apareci na casa de Akira e encontrei-o preocupadíssimo com o
assunto. A essa altura, devo dizer, eu era em geral uma pessoa muito mais
confiante do que até um ano antes, e se acaso ainda sentisse um pouco
daquele antigo pavor de Ling Tien, certamente não o teria demonstrado. De
fato, creio que estava muito mais calmo sobre a perspectiva de entrar no
quarto — algo que, tenho certeza, meu amigo notou e viu como um aspecto
adicional do desafio.
Mas acontece que, ao longo daquela tarde, a mãe de Akira estava
fazendo um vestido, o que por alguma razão exigia que ela se
movimentasse constantemente de um quarto para o outro, e Akira declarou
que a mera idéia de realizar nossa aventura era arriscada demais. Isso
certamente não me desagradou, mas tenho certeza de que foi Akira quem
ficou ainda mais grato com a desculpa.
O dia seguinte, contudo, era um sábado, e quando cheguei à casa de
Akira, a manhã já ia pela metade e seus pais haviam saído. Akira não tinha
uma ama, como eu, e quando éramos pequenos costumávamos discutir
quem era o mais afortunado. Ele sempre fora da posição de que crianças
japonesas não precisavam de uma ama porque eram mais "valentes" que as
crianças ocidentais. Certa vez lhe perguntara durante uma dessas discussões
quem se incumbiria de suas necessidades se a sua mãe estivesse fora e ele
quisesse, digamos, um pouco de água gelada, ou se se cortasse. Lembro-me
de ele dizer que as mães japonesas nunca saíam sem a permissão explícita
do filho — afirmação em que achei difícil acreditar, já que sabia ser um fato
as senhoras japonesas encontrarem-se em seus círculos, tal como as
senhoras européias, na Casa Astor ou no Salão de Chá Marceli na rua
Sechuan. Mas quando ele me fez notar que, na ausência de sua mãe, havia a
criada para se incumbir de todas as suas necessidades, enquanto ao mesmo
tempo ele estava livre para fazer o que bem quisesse sem nenhuma
restrição, comecei de fato a acreditar que eu era mesmo o injustiçado. Por
estranho que pareça, continuei a sustentar essa opinião, ainda que na
prática, naquelas ocasiões em que brincávamos em sua casa quando a sua
mãe estava fora, sempre se delegava a um ou outro criado vigiar cada um de
nossos passos. De fato, especialmente quando éramos mais jovens, isso se
traduzia em alguma figura sisuda, sem dúvida receosa de funestas
conseqüências caso nos ocorresse algum infortúnio, plantada a uma
inibidora proximidade enquanto fazíamos o possível para brincar.
Naturalmente, porém, naquele verão já nos era permitido uma liberdade
muito maior sem supervisão. Naquela manhã em que entramos no quarto de
Ling Tien, estávamos brincando num dos espaçosos quartos com tatame de
Akira, no terceiro andar, enquanto uma criada idosa — a única pessoa na
casa — ocupava-se em cerzir no quarto imediatamente abaixo. Lembro a
certa altura de Akira interromper o que estávamos fazendo, ir na ponta dos
pés até a sacada e debruçar-se todo na balaustrada, a ponto de eu temer que
caísse. Quando então ele voltou às pressas, notei que o estranho esgar
surgira-lhe no rosto. A criada, relatou num sussurro, adormecera como
esperado.
"Agora temos que entrar! Está com medo, Christopher? Está com
medo?"
Akira ficara de repente tão tenso que, por um instante, todos os meus
temores a respeito de Ling Tien voltaram à tona num assomo. Mas a essa
altura um recuo estava fora de cogitação para qualquer um dos dois, e
descemos o mais silenciosamente possível aos aposentos dos criados até
estarmos mais uma vez juntos naquele sombrio corredor com suas tábuas
nuas polidas.
O que lembro é que avançamos pelo corredor com pouca hesitação até
estarmos a quatro ou cinco metros da porta de Ling Tien. Então algo nos fez
estacar, e por um segundo nenhum de nós pareceu capaz de seguir adiante;
se naquele momento Akira tivesse virado e corrido, tenho certeza de que eu
teria feito o mesmo. Mas aí meu amigo pareceu encontrar não sei que
resolução extra, e estendendo-me o braço, disse: "Venha, meu chapa! Nós
vamos juntos!".
Demos os braços e assim avançamos os poucos passos finais. Então
Akira empurrou a porta e nós dois espiamos.
Vimos um quartinho esparso, arrumado, com um assoalho de tábuas
bem varridas. A janela estava coberta por uma veneziana, mas a luz vazava
radiante pelas bordas. Havia um leve aroma de incenso no ar, um altar no
canto oposto, uma cama baixa e estreita e uma cômoda surpreendentemente
grande, laqueada com graça, com puxadores adornados em cada uma das
pequenas gavetas.
Demos um passo para dentro, e por alguns segundos permanecemos
quietos, mal-e-mal respirávamos. Então Akira soltou um suspiro e voltou-se
para mim com um enorme sorriso, claramente satisfeito de ter vencido, por
fim, seu antigo medo. Mas no momento seguinte, seu senso de triunfo
pareceu rapidamente ser substituído pela preocupação de que a falta de
qualquer traço obviamente sinistro o faria parecer ridículo. Antes que eu
pudesse dizer alguma coisa, ele apontou rápido para a cômoda e sussurrou
com urgência:
"Ali! Ali dentro! Cuidado, cuidado, meu chapa! As aranhas, elas ali
dentro!".
Ele foi pouco convincente, e deve ter se dado conta disso. No entanto,
por um segundo ou dois, passou-me pela cabeça uma imagem daquelas
gavetinhas abrindo-se diante de nossos olhos enquanto criaturas — em
vários estágios entre mão e aranha — estendiam membros hesitantes. Mas
agora Akira indicava empolgado uma pequena garrafa sobre uma mesa
baixa ao lado da cama de Ling Tien.
"Loção!", ele sussurrou. "A loção mágica que ele usa! Ali está!"
Fui tentado a lançar no ridículo essa desesperada tentativa de preservar
uma fantasia para a qual estávamos na verdade bem crescidinhos, mas
naquele momento tive uma outra visão súbita das gavetas se abrindo, e um
resquício de meu antigo medo impediu-me de dizer algo. Além disso,
estava começando a ficar ansioso com uma eventualidade muito mais
provável, ou seja, que fôssemos descobertos naquele quarto pela criada ou
algum outro adulto inesperado. Não me decidia a imaginar a desgraça que
então se seguiria, os castigos, as longas discussões entre meus pais e os de
Akira. Não conseguia nem pensar em como começaríamos a explicar nossa
conduta.
Justamente então Akira deu um rápido passo adiante, apanhou a garrafa
e apertou-a contra o peito.
"Vai! Vai!", ele disse num sibilo, e de repente ambos fomos tomados
pelo pânico. Dando risinhos entre os dentes, saímos do quarto em
disparada, corredor afora.
De volta à segurança do quarto de cima — a criada permanecera
adormecida lá embaixo — Akira reafirmou sua alegação de que as gavetas
haviam sido atulhadas de mãos decepadas. Podia ver agora que estava
seriamente preocupado que eu ridicularizasse a nossa fantasia de longa data,
e de algum modo eu também senti a necessidade de preservá-la. Portanto
não disse nada para desmentir sua alegação, nem cheguei a sugerir que o
quarto de Ling Tien tivesse sido uma decepção ou que nossa coragem fora
criada sob premissas falsas. Pusemos a garrafa sobre um prato no meio do
assoalho, então nos sentamos para examiná-la.
Akira removeu cuidadosamente a rolha. Dentro havia um líquido pálido
com um vago aroma de anis. Até hoje não tenho idéia para que o velho
criado usava essa loção; meu palpite é que era algum remédio prático que
ele adquirira para combater algum estado crônico. Seja como for, sua
aparência indefinida serviu bem a nossos propósitos. Com todo cuidado,
mergulhamos gravetos na garrafa e os deixamos pingar sobre uns papéis.
Akira preveniu-me que não devíamos deixar nem uma gota tocar nossas
mãos, sob pena de acordarmos no dia seguinte com aranhas na extremidade
de nossos braços. Nenhum de nós realmente acreditava nisso, mas de novo
parecia importante para os sentimentos de Akira que fingíssemos fazê-lo, e
assim empreendemos a nossa tarefa com exagerado zelo.
Por fim, Akira repôs a rolha e guardou a garrafa na caixa que
mantínhamos para coisas especiais, dizendo que queria realizar mais alguns
experimentos com a loção antes de devolvê-la. No final das contas, quando
nos despedimos naquela manhã, estávamos ambos satisfeitos conosco.
Mas quando Akira veio a minha casa na manhã seguinte, vi
imediatamente que alguma dificuldade surgira; ele estava muito preocupado
e incapaz de concentrar-se em algo. Temendo ouvir que seus pais haviam de
algum modo descoberto nossos feitos do dia anterior, por algum tempo
evitei perguntar o que o estava incomodando. No fim, porém, não pude
mais me agüentar e pedi que me contasse o pior. Akira, porém, negou que
seus pais suspeitassem de algo, e tornou a mergulhar em seu desalento. Só
depois de muito pressionar ele finalmente cedeu e contou-me o que
acontecera.
Vendo-se incapaz de conter seu sentimento de triunfo, Akira revelara a
sua irmã Etsuko o que fizéramos. Para sua surpresa, Etsuko reagira com
horror. Digo surpresa porque Etsuko — que era quatro anos mais velha que
nós — jamais partilhara nossa visão da natureza sinistra de Ling Tien. Mas
agora, ao ouvir a história de Akira, fitara-o como quem esperava que ele se
crispasse e caísse morto diante de seus olhos. Então contara a Akira que
havíamos tido uma tremenda sorte; que ela pessoalmente conhecera criados
antes empregados na casa que se atreveram a fazer o que nós fizéramos, e
que como resultado haviam sumido — os seus restos encontrados semanas
mais tarde numa viela qualquer, fora dos limites da Colônia. Akira dissera a
sua irmã que ela estava simplesmente tentando assustá-lo, que em momento
algum acreditou nela. Mas ele ficara claramente abalado, e eu também senti
um calafrio correr pela espinha ao ouvir essa "confirmação" — e de
ninguém menos que uma autoridade como Etsuko — de nossos antigos
medos com relação a Ling Tien.
Foi então que avaliei o que tanto perturbava Akira: alguém tinha de
devolver a garrafa ao quarto de Ling Tien antes do regresso do velho criado
em três dias. E no entanto era manifesto que nossa fanfarrice do dia anterior
havia praticamente evaporado, e a perspectiva de entrar outra vez naquele
quarto parecia demais para nós.
Incapazes de nos concentrarmos em qualquer de nossas brincadeiras de
costume, decidimos caminhar até nosso retiro especial ao lado do canal. No
percurso inteiro até lá, discutimos nosso problema de todos os ângulos. O
que aconteceria se não devolvêssemos a garrafa? Talvez a loção fosse muito
valiosa e a polícia fosse chamada para investigar. Ou talvez Ling Tien não
contasse a ninguém do sumiço, mas decidiria pessoalmente lançar alguma
terrível vingança sobre nós. Lembro-me de que ficamos bem confusos sobre
quanto desejávamos manter nossas fantasias a respeito de Ling Tien e em
que medida queríamos considerar logicamente a melhor forma de evitar nos
metermos em sérios apuros. Recordo, por exemplo, considerarmos a certa
altura a possibilidade de a loção ser um remédio que Ling Tien comprara
após meses de economia, e que sem ela ficaria terrivelmente enfermo; mas
então, no instante seguinte, sem abandonar esse último pensamento,
cogitávamos outras hipóteses que supunham ser a loção o que sempre
havíamos dito que era.
Nosso retiro junto ao canal, uns quinze minutos a pé de nossas casas,
era atrás de alguns depósitos pertencentes à Companhia Jardine Matheson.
Nunca tínhamos certeza se estávamos na verdade invadindo propriedade
alheia; para chegar até ele, atravessávamos um portão que sempre era
deixado aberto e cruzávamos um pátio de concreto passando por alguns
operários chineses, que nos olhavam desconfiados, mas nunca nos
impediam. Contornávamos então o flanco de uma alquebrada casa de
barcos e seguíamos por um trecho do píer, antes de descer para nosso
pedacinho de terra negra batida, bem na margem do canal. Era um espaço
amplo o bastante só para nós dois sentarmos lado a lado de frente para a
água, mas mesmo nos dias mais quentes os depósitos atrás nos garantiam a
sombra, e cada vez que um barco ou junco passava, as águas lambiam
docemente nossos pés. Na margem contrária erguiam-se mais depósitos,
mas havia, lembro, quase bem em frente de nós, uma brecha entre dois
prédios pela qual podíamos ver uma rua ladeada de árvores. Akira e eu
íamos com freqüência ao retiro, embora tivéssemos cuidado de nunca
contar a nossos pais, com medo de que eles não confiassem em nós
brincando tão perto da beira da água.
Naquela tarde, uma vez sentados, tentamos por um momento esquecer
as preocupações. Lembro-me de Akira começar a perguntar-me, como
costumava fazer quando íamos a nosso retiro, se numa emergência
conseguiria nadar até este ou aquele navio que víamos além na água. Mas
não foi capaz de continuar, e subitamente, para espanto meu, desatou a
chorar.
Quase nunca via meu amigo chorar. De fato, hoje, essa é a única
recordação que guardo dele chorando. Mesmo quando um grande pedaço de
morteiro caiu em sua perna ao brincarmos atrás da Missão Americana,
apesar de haver ficado pálido feito um cadáver, ele não chorou. Mas
naquela tarde junto ao canal, Akira claramente chegara ao termo de suas
forças.
Lembro que ele tinha nas mãos um pedaço de madeira úmida da qual,
enquanto chorava, tirava lascas para atirar na água. Queria muito confortá-
lo, mas não encontrando palavras, lembro de me levantar para buscar mais
desses pedaços de madeira para lascar em pedaços e entregar-lhe, como se
isso fosse algum remédio urgente. Então acabou a madeira para ele atirar, e
Akira conteve suas lágrimas.
"Quando pais descobrem", ele disse finalmente, "eles ficar tão bravos.
Então eles não me deixam ficar aqui. Então vamos todos para Japão."
Eu ainda não sabia o que dizer. Então, olhando um barco que passava,
murmurou: "Não quero morar nunca mais no Japão".
E como isto era o que eu sempre dizia quando ele fazia essa afirmação,
eu ecoei: "E eu não quero ir jamais para a Inglaterra".
Com isso, nós dois ficamos em silêncio por mais uns instantes. Mas
continuando a olhar para a água, o procedimento para evitar todas essas
terríveis repercussões avultava cada vez mais em minha cabeça, e no fim
simplesmente lhe declarei que tudo o que tínhamos de fazer era repor a
garrafa a tempo, então tudo estaria bem.
Akira pareceu não me ouvir, assim repeti o argumento. Ele continuou a
ignorar-me, e foi então que percebi como era autêntico o medo de Ling Tien
que lhe crescera desde nossa aventura no dia anterior; de fato, podia ver que
era tão grande agora quanto sempre fora em nossos dias idos, exceto, claro,
que Akira era agora incapaz de admiti-lo. Podia ver sua dificuldade e
quebrei a cabeça para achar uma saída. No fim, disse serenamente:
"Akira-san. Vamos fazer de novo juntos. Igual da última vez. Vamos dar
os braços de novo, entrar, pôr a garrafa onde a encontramos. Se fizermos
juntos assim, então vamos estar a salvo, nada de mau pode nos acontecer.
Nada de nada. Então ninguém nunca vai descobrir nada sobre o que
fizemos".
Akira pensou a respeito. Depois virou-se e olhou para mim, e pude ver a
profunda e solene gratidão em seu rosto.
"Amanhã, de tarde, três horas", ele disse. "Mãe vai sair para parque. Se
criada cair no sono de novo, então temos chance."
Assegurei-lhe que a criada decerto cairia no sono outra vez, e repeti
que, se entrássemos no quarto juntos, não havia absolutamente nada a
temer.
"Fazemos juntos, meu chapa!", ele disse com um sorriso súbito e pôs-se
de pé.
No caminho de volta, finalizamos nossos planos. Prometi chegar à casa
de Akira no dia seguinte bem antes de sua mãe partir, e assim que ela saísse,
subiríamos ao andar de cima e esperaríamos juntos, a garrafa de Ling Tien à
mão, até que a criada adormecesse. O humor de Akira serenou
consideravelmente, mas lembro, quando nos despedimos naquela tarde, de
meu amigo virar-se para mim com uma indiferença pouco convincente e
advertir-me que não atrasasse no dia seguinte.

O dia seguinte foi outra vez quente e úmido. Ao longo dos anos repassei
muitas vezes tudo o que podia lembrar daquele dia, tentando ajustar os
vários detalhes numa certa ordem. Não consigo lembrar muita coisa sobre a
primeira parte da manhã. Guardo uma imagem de como disse adeus a meu
pai enquanto saía para o trabalho. Eu já estava lá fora, zanzando junto à
pista do tílburi, esperando que saísse. Por fim ele o fez, de terno branco e
chapéu, segurando uma pasta e uma bengala. Entrecerrou os olhos e mirou
na direção de nosso portão. Então, enquanto esperava que se aproximasse
de mim, minha mãe apareceu na soleira atrás dele e disse algo. Meu pai
voltou uns passos, trocou algumas palavras com ela, sorriu, beijou-a de leve
na face, e saiu a passadas largas para onde eu o esperava. Isso é tudo o que
lembro de como ele saiu naquele dia. Não lembro agora se apertamos as
mãos, se me deu tapinhas no ombro, se virou no portão para um último
aceno. No conjunto, minha memória é de que não houve nada em sua
despedida naquela manhã que destoasse da maneira como saía para o
trabalho todos os outros dias.
Tudo o que lembro do resto da manhã é que brinquei com meus
soldadinhos de chumbo no tapete de meu quarto, minha cabeça às voltas
com a atemorizante tarefa que nos aguardava mais tarde. Lembro-me de
minha mãe sair a certa altura e de eu almoçar com Mei Li na cozinha.
Depois do almoço, precisando matar tempo até as três horas, percorri a
breve distância pela nossa rua até o lugar onde havia dois grandes
carvalhos, recuados, e no entanto bem em frente do muro de jardim mais
próximo.
Talvez fosse porque eu já estava atiçando minha coragem, mas logrei
naquele dia trepar a uma nova altura num daqueles carvalhos. Encarapitado
triunfantemente em seus galhos, descobri que tinha ampla vista das sebes e
dos terrenos de todas as casas da vizinhança. Lembro de sentar-me ali por
algum tempo, o vento no rosto, cada vez mais ansioso com a tarefa que
tinha pela frente. Ocorreu-me que, apreensivo como eu estava, o pavor de
Akira ao quarto de Ling Tien era agora tanto maior, e dessa vez eu teria de
ser o "líder". Vi a responsabilidade que isso acarretava, e resolvi aparentar o
máximo de confiança possível quando me apresentasse em sua casa. Mas à
medida que continuava ali sentado na árvore, não paravam de ocorrer-me
inúmeros acasos que poderiam nos frustrar: a criada não adormeceria;
talvez até ela escolhesse justo aquele dia para limpar o corredor diante do
quarto de Ling Tien; ou então a mãe de Akira mudaria de idéia e não sairia
como esperado. E havia também, claro, os temores mais antigos, menos
racionais, que, por mais que eu tentasse, não conseguia arredar de minha
cabeça.
Por fim, desci do carvalho, com a intenção de ir para casa tomar um
copo d'água e dar uma olhada nas horas. Ao entrar pelo portão, vi dois
automóveis na pista do tílburi. Fiquei um pouco curioso sobre eles, mas a
essa altura estava preocupado demais para lhes dar muita atenção. Ao
atravessar então o vestíbulo, olhei pelas portas abertas da sala de estar e vi
os três homens, de pé com os chapéus na mão, falando com minha mãe.
Não havia nada tão inconveniente nisso — era perfeitamente possível que
tivessem vindo para discutir a campanha de minha mãe —, mas algo na
atmosfera me fez parar um instante ali. Ao fazê-lo, as vozes interromperam-
se e vi os seus rostos voltarem-se para mim. Reconheci um dos homens
como o sr. Simpson, o colega de meu pai na Byatt; os outros dois eram
estranhos. Então a minha mãe também assomou ao inclinar-se e olhar para
mim. Provavelmente eu senti então que algo fora do comum estava em
curso. Seja como for, no momento seguinte saí às pressas na direção da
cozinha.
Mal chegara à cozinha ouvi passos, e minha mãe entrou. Tentei muitas
vezes lembrar-lhe o rosto — a exata expressão que usava — naquele
momento, mas sem êxito. Talvez algum instinto me dissesse para não olhar.
O que me lembro é de sua presença, que parecia agigantar-se, como se
subitamente eu fosse outra vez muito pequeno, e da textura do pálido
vestido de verão que ela usava. Disse-me numa voz baixa, mas
perfeitamente controlada:
"Christopher, os cavalheiros com o senhor Simpson são da polícia.
Tenho de acabar de falar com eles. Logo depois quero então falar com você.
Você me espera na biblioteca?".
Estava a ponto de protestar, mas minha mãe fixou-me com um olhar que
me silenciou.
"Na biblioteca, então", ela disse, virando-se. "Vou assim que acabar
com os cavalheiros."
"Aconteceu alguma coisa com o papai?", perguntei.
Minha mãe voltou-se. "Seu pai não chegou ao escritório esta manhã.
Mas tenho certeza de que há uma explicação perfeitamente simples. Espere-
me na biblioteca. Não demoro."
Saí da cozinha atrás dela e dirigi-me à biblioteca. Lá me sentei à minha
mesa de lição de casa e aguardei, sem pensar no meu pai, mas em Akira, e
como eu já chegaria atrasado. Perguntei-me se ele teria a coragem de
devolver a garrafa sozinho; mesmo que tivesse, ainda assim ficaria muito
zangado comigo. Senti naquele momento uma tal urgência com a situação
de Akira que tive vontade de desobedecer a minha mãe e simplesmente sair.
Enquanto isso, a discussão na sala de estar parecia arrastarse
interminavelmente. Havia um relógio na parede da biblioteca, e fitei seus
ponteiros. A certa altura, saí para o vestíbulo, esperando captar a atenção de
minha mãe e pedir-lhe permissão para sair, mas dei agora com as portas da
sala de estar fechadas. Então, enquanto eu zanzava por ali, cogitando uma
vez mais numa escapadela, Mei Li apareceu e apontou-me austeramente a
biblioteca. Uma vez que eu entrara de volta, ela fechou a porta atrás de mim
e pude ouvi-la andando de um lado para o outro lá fora. Tornei a sentar e
continuei olhando o relógio. Quando os ponteiros passaram das três e meia,
baixou-me um desânimo, enfurecido tanto com minha mãe como com Mei
Li.
Então ouvi por fim os homens serem acompanhados à porta. Ouvi um
deles dizer:
"Faremos tudo o que pudermos, senhora Banks. Temos de esperar pelo
melhor e confiar em Deus".
Não pude ouvir a resposta de minha mãe.
Assim que os homens se foram, saí correndo e pedi permissão para ir à
casa de Akira. Mas minha mãe, para fúria minha, ignorou completamente
minha solicitação, dizendo: "Vamos voltar para a biblioteca".
Mesmo frustrado, obedeci à ordem, e foi ali na biblioteca que ela me
pôs sentado, agachou-se de frente para mim e contou-me, muito
calmamente, que o meu pai fora dado como desaparecido desde a manhã. A
polícia, alertada pelo seu escritório, estava procedendo à busca, até ali sem
proveito.
"Mas é bem possível que ele apareça para o jantar", disse ela com um
sorriso.
"Claro que vai", disse numa voz que eu esperava transmitisse minha
contrariedade com todo aquele estardalhaço. Então pulei da cadeira e pedi
novamente permissão para sair. Mas dessa vez o fiz com menor fervor, pois
pude ver pelo relógio que não havia mais propósito em ir à casa de Akira.
Sua mãe teria regressado; sua refeição noturna em breve seria servida. Senti
um enorme ressentimento de que minha mãe tivesse me retido
simplesmente para me dizer algo que eu mais ou menos vislumbrara na
cozinha uma hora e meia antes. Quando por fim ela me disse que podia ir,
simplesmente subi ao meu quarto, dispus meus soldadinhos de chumbo
sobre o tapete e fiz o que pude para não pensar em Akira ou em seus
sentimentos com relação a mim naquele instante. Mas não me saía da
cabeça tudo quanto havia sido dito junto ao canal e o olhar de gratidão que
ele me dera. Além disso, tanto quanto Akira, eu não desejava que ele
voltasse para o Japão.
Meu mau humor persistiu noite adentro, mas claro que isso foi
interpretado como minha reação à situação referente a meu pai. Ao longo da
tarde minha mãe disse-me coisas como: "Nada de desânimo. Com certeza
existe uma explicação bem simples". E Mei Li foi excepcionalmente gentil
comigo ao ajudar-me no banho. Mas lembro-me também, à medida que a
tarde avançava, de minha mãe ter inúmeros daqueles momentos "ausentes"
que eu bem conheceria nas semanas seguintes. De fato, creio que foi
naquela mesma noite, eu deitado na cama ainda preocupado com o que
dizer a Akira da próxima vez que o visse, que minha mãe murmurou,
fitando o quarto com um olhar vazio:
"Seja lá o que aconteça, você pode se orgulhar dele, Puffin. Sempre vai
poder se orgulhar do que ele fez".
8.

Não lembro muita coisa dos dias imediatamente seguintes ao


desaparecimento de meu pai, a não ser que eu passava tanto tempo
preocupado com Akira — em especial, com o que diria da próxima vez que
o visse — que não conseguia me concentrar em nada. Contudo, dei por mim
adiando continuamente uma visita à casa ao lado, considerando mesmo, por
um instante, a idéia de que talvez nunca mais precisasse encará-lo — que
seus pais, furiosos com a nossa travessura, estavam naquele preciso
momento fazendo as malas para o Japão. Durante aqueles dias, qualquer
tipo de ruído alto lá fora punha-me a correr escada acima até as janelas da
frente, de onde podia perscrutar o jardim vizinho à cata de sinais de
bagagem empilhada.
Após se passarem então três ou quatro dias, numa manhã encoberta, eu
estava brincando sozinho na rotunda gramada em frente da nossa casa
quando me dei conta de ruídos que vinham do lado de lá da cerca. Notei
rápido que Akira estava dando voltas com a bicicleta de sua irmã na pista
do tílburi; já me cansara de observá-lo tentando andar nessa bicicleta, que
era grande demais para ele, e reconheci os ruídos rascantes que faziam as
rodas enquanto ele lutava por equilibrar-se. A certa altura ouvi um baque e
um grito enquanto ele se estatelava no chão. Ocorreu-me a possibilidade de
que Akira avistara-me brincando ali fora de sua janela do andar de cima e
saíra com a bicicleta expressamente para atrair minha atenção. Depois de
outros tantos momentos de hesitação — durante os quais Akira continuou a
espatifar-se ao lado — finalmente atravessei nosso portão, virei e olhei para
o jardim da frente de sua casa.
Akira estava de fato em cima da bicicleta, absorto em tentativas de
executar não sei que manobra circense que requeria tirasse ele as mãos do
guidão justo ao fazer uma curva fechada. Pareceu absorto demais para
notar-me, e mesmo quando caminhei até ele, não deu sinal de ter me visto.
Por fim, eu disse simplesmente:
"Desculpe não poder ter vindo aquele dia".
Akira lançou-me um olhar amuado, então tornou a suas manobras.
Estava prestes a lhe dar uma explicação por tê-lo desapontado, mas por
alguma razão descobri que não podia dizer mais nada. Fiquei ali
observando-o mais um pouco. Dando depois um passo em sua direção, eu
disse, baixando minha voz a um sussurro:
"O que aconteceu? Você pôs de volta?".
Meu amigo fulminou-me com um olhar que rejeitava a intimidade
implicada pelo meu tom e deu uma guinada com a bicicleta. Senti virem
lágrimas, mas lembrando a tempo nossa rixa eterna sobre quem chorava
mais fácil, os ingleses ou os japoneses, dei um jeito de reprimi-las. Pensei
outra vez em contar-lhe sobre o sumiço de meu pai, e subitamente isso
pareceu uma razão mais do que sólida não apenas para tê-lo desapontado,
mas pela enorme autocomiseração de minha parte. Imaginei o choque e a
vergonha que transformariam o rosto de Akira uma vez que eu proferisse as
palavras: "Não pude vir aquele dia porque… porque meu pai foi
seqüestrado!" — mas de uma forma ou de outra não pude dizê-lo. Em vez
disso, creio que simplesmente virei as costas e corri de volta para minha
casa.

Não vi Akira nos dias que se seguiram. Então uma tarde ele veio até a
porta dos fundos, perguntando por mim a Mei Li, como de hábito. Estava
no meio de algo, mas larguei tudo e saí para ver meu amigo. Ele me
cumprimentou risonho, e ao conduzir-me para seu jardim, deu-me afetuosos
tapinhas nas costas. Eu estava ansioso, claro, para descobrir que fim dera ao
caso Ling Tien, mas estando mais interessado em não reabrir feridas, resisti
ao impulso de lhe perguntar o que fosse sobre o assunto.
Fomos para os fundos de seu jardim — para os arbustos cerrados que
chamávamos nossa "floresta" — e logo mergulhamos numa de nossas
narrativas dramáticas. Quer me parecer que representamos cenas do
Ivanhoé, que na época eu estava lendo — ou talvez tenha sido uma das
aventuras de samurais japoneses de Akira. Seja como for, após cerca de
uma hora o meu amigo estacou de repente e lançou-me um olhar estranho.
Então ele disse:
"Se você quiser, brincamos brincadeira nova?".
"Uma brincadeira nova?"
"Brincadeira nova. Sobre pai de Christopher. Se você quiser."
Fiquei perplexo, e não recordo o que disse em resposta. Ele aproximou-
se mais alguns passos na relva alta e vi que me olhava quase com ternura.
"Sim", ele disse. "Se você quiser, brincamos de detetive. Procuramos
pai. Resgatamos pai."
Percebi então que foi ouvir as notícias sobre meu pai — que sem dúvida
principiaram a correr pela vizinhança — o que trouxera Akira de volta até
minha porta. Compreendi também que sua presente proposta era sua
maneira de mostrar seu interesse e seu desejo de ajudar, e senti fluir minha
afeição por ele. Mas no final, eu disse bastante indiferente:
"Tudo bem. Se você quer brincar, podemos".
E foi assim que começou o que hoje em minha memória parece toda
uma era — embora na verdade só possa ter sido um período de dois meses
ou menos —, quando dia após dia inventamos e encenamos infinitas
variações sobre o tema do resgate de meu pai.
Nesse meio tempo, as verdadeiras investigações sobre o sumiço de meu
pai continuavam. Sabia disso pelas visitas que recebíamos dos homens que
seguravam seus chapéus nas mãos e falavam solenemente com minha mãe;
pelos olhares mudos trocados entre minha mãe e Mei Li quando minha mãe
chegava, de lábios apertados, no final da tarde; e houve, em especial, aquela
conversa que tive com ela ao pé da escada.
Não tenho memória exata do que nenhum de nós esteve fazendo antes
desse momento. Eu começara a correr escada acima, ávido para buscar algo
no quarto de brinquedos, quando notei que minha mãe aparecera no topo e
pusera-se a descer. Ela devia estar para sair, pois trajava seu vestido bege
especial, aquele que exalava um aroma peculiar, como de folhas em
decomposição. Suponho que eu tenha sentido algo em seus modos, pois
parei onde estava, no terceiro ou quarto degrau, e a esperei. Vindo em
minha direção, ela sorriu e estendeu uma das mãos. Fez isso enquanto ainda
estava vários degraus acima de mim, de maneira que por um momento
julguei que quisesse amparo ao descer o resto da escada, do modo como às
vezes fazia meu pai quando a esperava ao pé da escada. Mas resultou
simplesmente ela me envolver o ombro com o braço e descermos juntos os
últimos degraus. Então soltou-me e caminhou na direção do porta-chapéus
do outro lado do vestíbulo. Foi enquanto fazia isso que disse:
"Puffin, eu sei como esses últimos dias têm sido difíceis para você.
Deve ser como se o mundo inteiro estivesse ruindo. Bom, têm sido difíceis
para mim também. Mas tem de fazer como eu. Tem de continuar rezando
para Deus e manter as esperanças. Espero que esteja lembrando de suas
preces, não está, Puffin?".
"Estou, sim", respondi um tanto surpreso.
"É triste", ela prosseguiu, "que numa cidade como esta, de tempos em
tempos pessoas sejam seqüestradas. Aliás, acontece com bastante
freqüência, e muitas vezes, eu chegaria até a dizer a maioria das vezes, as
pessoas voltam perfeitamente a salvo. Temos então de ter paciência. Puffin,
está escutando o que eu digo?"
"Claro que estou." A essa altura eu havia virado de costas para ela e me
balançava, seguro pelos braços, na coluna da balaustrada.
"O que temos de levar em conta", disse minha mãe após uma pausa, "é
que os melhores detetives da cidade foram designados para o caso. Eu falei
com eles, e estão muito otimistas que uma solução logo será encontrada."
"Mas quanto ainda vai demorar?", perguntei amuado.
"Temos de ter esperança. Temos de confiar nos detetives. Talvez leve
algum tempo, mas temos de ter paciência. No final então as coisas acabam
direito, e tudo será do jeito que era antes. Temos de continuar a rezar para
Deus e sempre manter a esperança. Puffin, o que você está fazendo? Você
me ouviu?"
Não respondi de imediato, porque tentava ver quantos passos meus pés
conseguiam subir enquanto continuava agarrado à coluna da balaustrada.
Então perguntei:
"Mas e se os detetives estiverem ocupados demais? Com todas as outras
coisas que têm para resolver? Assassinatos e roubos. Eles não podem fazer
tudo".
Pude ouvir minha mãe recuar alguns passos em minha direção, e
quando tornou a falar, um tom cuidadoso, deliberado, tingia-lhe a voz.
"Puffin, está absolutamente fora de cogitação os detetives estarem
'ocupados demais'. Todo mundo em Xangai, as pessoas mais importantes
desta comunidade estão extremamente ansiosas sobre o papai e muito
interessadas em que a coisa se esclareça. Cavalheiros como o senhor
Forester, eu digo. E o senhor Carmichael. Mesmo o cônsul-geral em pessoa.
Sei que eles tomaram a peito fazer com que o papai retorne o mais breve
possível. Então, Puffin, não existe nenhuma outra chance senão os detetives
estarem dando o máximo de si. E é isso o que estão fazendo, agora, neste
exato instante. Você imagina, Puffin, que o inspetor Kung em pessoa foi
encarregado dessa investigação? É, isso mesmo: o inspetor Kung. Então,
temos todas as razões para ter esperanças."
Essa conversa sem dúvida teve lá o seu impacto, pois lembro de ter me
preocupado bem menos pelos vários dias que se seguiram. Mesmo à noite,
quando minhas ansiedades tendiam a voltar, costumava recolher-me
pensando nos detetives de Xangai movimentando-se por toda a cidade,
fechando cada vez mais o cerco aos seqüestradores. Às vezes, deitado no
escuro, dava comigo tecendo dramas bem elaborados antes de pegar no
sono, muitos dos quais serviam então como material para Akira e para mim
no dia seguinte.
Não quero sugerir, a propósito, que durante esse período Akira e eu não
brincássemos de outras coisas, sem nenhuma relação com meu pai; às vezes
nos perdíamos horas em uma ou mais fantasias tradicionais. Mas sempre
que meu amigo sentia que eu estava preocupado, ou que minha cabeça
estava noutra parte, dizia: "Meu chapa. Brincamos de resgatar pai".
Nossas narrativas a respeito de meu pai tinham, como disse, infinitas
variações, mas bem rápido estabelecemos um enredo básico recorrente.
Meu pai era mantido em cativeiro numa casa nalgum lugar além dos limites
da Colônia. Seus captores eram uma quadrilha com o intento de extorquir
um vultoso resgate. Vários detalhes menores evoluíram muito rapidamente
até virarem eles próprios parte da intriga. Sempre era o caso, por exemplo,
que, a despeito de cercada pelos horrores do bairro chinês, a casa na qual se
encontrava meu pai era confortável e limpa. De fato, ainda posso lembrar
como essa convenção específica foi estabelecida. Era talvez a segunda ou
terceira vez que ensaiávamos a brincadeira, e Akira e eu nos alternávamos
no papel do lendário inspetor Kung — cujas elegantes feições e o chapéu
usado à maneira dândi nós bem conhecíamos das fotografias de jornal.
Estávamos bastante absortos nos entusiasmos de nossa fantasia, quando
subitamente, na altura em que meu pai surgia pela primeira vez em nossa
história, Akira fez um sinal para mim — indicando que eu devia representá-
lo — e disse: "Você amarrado na cadeira".
Estávamos a todo o vapor, mas então estaquei.
"Não", eu disse. "O meu pai não está amarrado. Como é que ele pode
estar amarrado o tempo todo?"
Akira, que jamais gostava de ser contrariado ao desenvolver uma
narrativa, repetiu com impaciência que meu pai estava amarrado a uma
cadeira e que eu devia imitá-lo-ao pé de uma árvore sem mais demora.
Retruquei aos berros: "Não!", e saí orgulhoso. Não deixei, contudo, o
jardim de Akira. Lembro de postar-me no limite em que iniciava o gramado
— onde terminava nossa "floresta" — e mirar com olhar vazio uma
lagartixa subindo o tronco de um olmo. Depois de um instante, ouvi atrás de
mim os passos de Akira e preparei-me para uma franca discussão. Mas para
surpresa minha, ao virar-me para ele, vi o meu amigo fitando-me com um
olhar conciliador. Ele aproximou-se e disse brandamente:
"Você certo. Pai não amarrado. Ele muito confortável. Casa
seqüestradores confortável. Muito confortável".
Depois disso era sempre Akira que tomava grande cuidado para
assegurar o conforto e a dignidade de meu pai em todos os nossos dramas.
Os seqüestradores sempre se dirigiam a ele como se fossem seus criados,
levando-lhe comida, bebida e jornais tão logo ele os reclamasse. Assim
sendo, o caráter dos seqüestradores também abrandou; resultou que não
eram maus em absoluto, simplesmente homens com famílias famintas.
Lamentavam sinceramente ter de tomar tão drástica atitude, explicavam a
meu pai, mas não podiam suportar ver seus filhos morrerem de fome. O que
estavam fazendo era errado, sabiam, mas o que mais podiam fazer? Haviam
escolhido o sr. Banks justamente porque sua simpatia pelas agruras dos
chineses mais pobres era bem conhecida, e era provável que ele entendesse
a inconveniência à qual o expunham. A isso, meu pai — a quem eu sempre
representava — suspirava compreensivo, mas então ajuntava que, fossem
quais fossem os dissabores da vida, o crime não podia ser tolerado. Além
disso, era inevitável, o inspetor Kung cedo ou tarde chegaria com seus
homens para prendê-los, então eles seriam postos a ferros, talvez
executados. Que vantagem traria isso às famílias deles? Os seqüestradores
— representados por Akira — respondiam dizendo que, uma vez
descoberto o esconderijo pela polícia, se entregariam calmamente e fariam
votos de que o sr. Banks voltasse a salvo para junto de sua família. Mas até
lá, eram obrigados a esmerar-se para que seu plano desse certo.
Perguntavam então a meu pai o que desejaria para o jantar, e eu pedia em
seu nome um lauto repasto com seus pratos preferidos — lombo de boi
assado, pastinaca saltada na manteiga e hadoque aferventado sempre entre
eles. Como disse, era antes Akira do que eu próprio que tendia a ser tanto
mais insistente nessas opulências, e era ele que acrescentava muitos dos
outros detalhes miúdos, porém importantes: o quarto de meu pai tinha uma
bela vista do rio por sobre os telhados; a cama era uma que os seus captores
haviam roubado para ele do Hotel Palace, e portanto o supra-sumo do
conforto. Passado algum tempo, Akira e eu nos tornávamos os detetives —
embora às vezes representássemos a nós mesmos —, até que no fim, após
as perseguições, o corpo-a-corpo das lutas e os tiroteios pelas ruelas
labirínticas dos bairros chineses, quaisquer que fossem as nossas variações
e elaborações, as narrativas concluíam sempre com uma magnificente
cerimônia realizada no Parque Jessfield, uma cerimônia que nos via, um
após o outro, surgir num palanque especialmente erguido — minha mãe,
meu pai, Akira, o inspetor Kung e eu — para saudar as vastas multidões em
júbilo. Era esse, como disse, o nosso enredo básico, e suponho, aliás, ter
sido mais ou menos o mesmo que encenei tantas e tantas vezes durante
aqueles primeiros dias garoentos na Inglaterra, quando preenchia minhas
horas vagas errando por entre as samambaias perto do chalé de minha tia,
balbuciando as falas de Akira a meia voz.

Não foi talvez senão após um mês do sumiço de meu pai que eu
finalmente criei coragem para perguntar a Akira o que acontecera com a
garrafa de Ling Tien. Fazíamos uma pausa em nossa brincadeira, sentados
juntos à sombra do bordo no cimo de nossa corcova, bebendo a água gelada
que Mei Li nos trouxera em duas tigelas de chá. Para alívio meu, Akira não
revelou mais nenhum sinal de rancor.
"Etsuko leva garrafa de volta", ele disse.
De início sua irmã fora muito prestativa. Mas agora, sempre que
quisesse forçar Akira a fazer algo, ameaçava revelar o seu segredo aos pais.
Porém Akira não se perturbava em excesso com esse estratagema.
"Ela vai para quarto também. Assim ela tão má como eu. Ela não
conta."
"Então não houve nenhum problema?"
"Nenhum problema, meu chapa."
"Então não vai precisar ir morar no Japão?"
"Sem Japão." Virou-se para mim e sorriu. "Fico Xangai para sempre."
Então olhou-me solenemente e perguntou: "Se pai não encontrado. Você
tem que ir Inglaterra?".
Essa surpreendente idéia por alguma razão nunca me ocorrera antes.
Pensei a respeito e disse:
"Não. Mesmo se meu pai não for encontrado, viverei aqui para sempre.
Minha mãe não vai querer nunca voltar para a Inglaterra. Além disso, Mei
Li não ia querer ir. Ela é chinesa".
Por um momento, Akira continuou a pensar, fitando as pedras de gelo a
boiar em sua tigela. Então ergueu a vista para mim e abriu um sorriso.
"Meu chapa!", ele disse. "Nós vivemos aqui juntos, sempre!"
"Isso mesmo", eu disse. "Viveremos em Xangai para sempre."
"Meu chapa! Sempre!"

Houve um outro pequeno incidente naquelas semanas seguintes ao


desaparecimento de meu pai que agora passei a considerar altamente
significativo. Nem sempre o reputei assim; de fato, praticamente o
esquecera por completo quando, alguns anos atrás, muito por acaso, ocorreu
algo que me fez não somente recordá-lo, mas avaliar pela primeira vez as
profundas implicações do que eu presenciara naquele dia.
Foi durante o período logo após o caso Mannering, quando estive
pesquisando um pouco sobre o pano de fundo daqueles anos que passei em
Xangai. Creio ter mencionado essa pesquisa antes, grande parte da qual
empreendi no Museu Britânico. Suponho que era, pelo menos parcialmente,
minha tentativa, como adulto, de apreender a natureza daquelas forças que,
como criança, não pude ter a oportunidade de compreender. Era também
minha intenção preparar o terreno para o dia que começasse a sério minhas
investigações sobre o caso todo envolvendo meus pais — que, a despeito
dos contínuos esforços da polícia de Xangai, permanecem sem solução até
hoje. Ainda é a minha intenção, por sinal, iniciar tal investigação num
futuro não muito distante. De fato, estou certo de que já o teria feito não
tivesse estado com o tempo tão implacavelmente ocupado.
De todo modo, como disse, passei uma boa quantidade de horas no
Museu Britânico uns anos atrás, reunindo material sobre a história do
tráfico de ópio na China, sobre os negócios da Morganbrook and Byatt,
sobre a complexa situação política em Xangai naquela época. Rascunhei
também, em várias ocasiões, cartas para a China buscando informação
inacessível para mim em Londres. Foi assim que recebi um dia um recorte
amarelado tirado do North China Daily News, datado de cerca de três anos
após minha saída de Xangai. Meu correspondente remetera-me um artigo
sobre mudanças de regulamentos comerciais nos portos de concessão —
mas foi a fotografia que por acaso estava no verso que imediatamente
captou minha atenção.
Guardei aquela velha fotografia de jornal na gaveta de minha
escrivaninha, dentro de uma caixa de charutos feita de lata, e de tempos em
tempos a retiro e a contemplo. Ela mostra três homens numa avenida
arborizada, de pé na frente de um vistoso automóvel. Os três são chineses.
Os dois da ponta vestem ternos ocidentais com colarinhos engomados e
empunham chapéus-cocos e bengalas. O gorducho do meio usa uma roupa
tradicional chinesa: uma bata escura, boina e rabo-de-cavalo. Como em
todas as fotografias de jornal da época, há um certo ar teatral, postiço, e a
tesoura de meu correspondente cortoulhe talvez toda uma quarta parte à
esquerda. Contudo, desde o momento em que lhe pus os olhos, a imagem
— mais precisamente, a figura do centro com a bata escura — tem sido uma
fonte de excepcional interesse para mim.
Junto com essa fotografia, na minha caixa de charutos na gaveta, guardo
a carta recebida do mesmo correspondente cerca de um mês depois em
resposta a indagações posteriores. Nela, informa-me que o gorducho de bata
e boina é Wang Ku, um chefe militar que, na época da fotografia, exercia
grande poder na província de Hunan, empregando um exército heterogêneo
de quase trezentos homens. Como a maioria de sua laia, perdeu muito do
seu poder após a ascensão de Chiang Kai-shek, mas corria o boato de que
ainda estava vivo e bem, definhando em razoável conforto nalguma parte de
Nanquim. Quanto a minha pergunta específica, meu correspondente declara
que havia sido incapaz de verificar se Wang Ku jamais tivera ou não
relações conhecidas com a Morganbrook and Byatt. Em sua própria
opinião, contudo, não há "razão para supor que a certa altura ele não
houvesse feito negócios com a supracitada companhia". Naqueles dias, faz
notar meu correspondente, qualquer carregamento de ópio — ou de
qualquer outra mercadoria desejável — navegando pelo Yang Tsé através
de Hunan ficaria vulnerável a investidas de bandidos e piratas que
aterrorizavam a região. Só os chefes militares através de cujos territórios os
carregamentos transitavam podiam oferecer alguma espécie de proteção
efetiva, e uma companhia como a Byatt quase certamente teria tentado
assegurar a amizade com tais homens. Na época de minha infância em
Xangai, Wang Ku, com o poder de que então dispunha, teria sido
considerado como um aliado particularmente desejável. A carta de meu
correspondente termina com suas desculpas por ter sido incapaz de
fornecer-me detalhes mais concretos.
Como disse, não solicitei essa informação a meu correspondente senão
cerca de cinco ou seis semanas após descobrir a foto do jornal. A razão para
minha demora foi que, irritantemente, embora eu tivesse certeza de que vira
o gorducho nalguma época do passado, por muito tempo nada consegui
lembrar sobre o contexto em que o fizera. O homem estava associado para
mim com alguma cena de constrangimento ou desconforto, mas além disso
minha memória não rendia nada. Então, certa manhã, um tanto
inesperadamente, enquanto caminhava pela Kensington High Street à
procura de um táxi, de repente tudo me acudiu à lembrança.

Eu não prestara muita atenção ao gorducho quando ele chegou a nossa


casa. Afinal, só fazia duas ou três semanas desde o desaparecimento de meu
pai, e um sem-número de estranhos ia e vinha: policiais, homens do
consulado britânico, homens da Byatt, senhoras que, ao entrarem em casa e
entreverem minha mãe, estendiam os braços com um grito de angústia. A
essas últimas, recordo, minha mãe sempre respondia com um sorriso
contido, e dirigindo-se à senhora, evitava explicitamente o abraço, dizendo
em vez disso, com a mais segara das vozes, algo como: "Agnes, que
prazer". Tomava então as mãos de sua visita — talvez ainda estendidas
constrangedoramente no ar — e a conduzia à sala de estar.
De todo modo, como disse, a chegada do chinês gorducho aquele dia
não despertou muito meu interesse. Lembro-me de olhar para fora da janela
do meu quarto de brinquedos e vê-lo saltar de seu automóvel. Sua aparência
naquela ocasião, creio eu, era bem semelhante à de minha foto do jornal:
bata escura, boina, rabo-de-cavalo. Notei que o carro era um vasto negócio
reluzente e que o chinês tinha dois homens para assessorá-lo além de seu
chofer, mas nem sequer isso era tão notável; naqueles dias que se seguiram
ao desaparecimento de meu pai, muitas visitas eminentes já haviam
aparecido na casa. Fiquei, porém, vagamente impressionado pelo modo
como tio Philip, que estava na casa fazia cerca de uma hora, saiu para
cumprimentar o gorducho. Trocaram eles as mais efusivas saudações —
como se fossem os mais íntimos amigos — e então tio Philip conduziu a
visita para dentro.
Não lembro do que fiquei fazendo nos instantes seguintes. Permaneci na
casa — embora não por conta do gorducho, que, como disse, não me
interessara muito. De fato, quando passei a ouvir a comoção lá embaixo,
lembro de ter ficado surpreso de a visita ainda estar conosco. Correndo de
volta para a janela do meu quarto de brinquedos, vi o automóvel ainda na
pista do tílburi e os três criados, que haviam ficado dentro do carro — que
também ouviram a balbúrdia —, saindo às pressas do veículo com olhares
de espanto. Então vi abaixo de mim o gorducho andando com toda a calma
em direção ao carro, acenando para que seus homens não se preocupassem.
O chofer manteve a porta aberta para o gorducho e, enquanto ele subia,
minha mãe pôs-se à vista. Aliás, tinha sido a sua voz que me fizera correr
até a janela. Estivera tentando convencer-me de que era a mesma voz usada
por ela quando zangada comigo ou com os criados, mas na hora em que a
figura de minha mãe surgiu embaixo, cada uma de suas palavras agora
claramente audível, o esforço se tornou vão. Havia algo nela que perdera o
controle, algo que eu jamais vira antes, e que de pronto registrei no entanto
como algo que eu teria de aceitar em razão do desaparecimento de meu pai.
Ela gritava com o gorducho, tendo na verdade de ser refreada por tio
Philip. Minha mãe estava dizendo ao gorducho que ele era um traidor de
sua própria raça, que era um agente do demônio, que ela não queria o
auxílio de sua laia, que se ele tornasse a pôr os pés em nossa casa ela "lhe
cuspiria como ao animal sujo que ele era".
O gorducho aceitou tudo isso muito tranqüilamente. Fez sinais para que
os seus homens entrassem no carro, e então, enquanto seu chofer girava a
manivela, sorriu pela janela quase em aprovação a minha mãe, como se ela
estivesse proferindo a mais afável das despedidas. Então o carro se foi, e tio
Philip persuadiu minha mãe a entrar.
Na altura em que entraram no vestíbulo, minha mãe ficara quieta. Pude
ouvir tio Philip dizer: "Mas temos de seguir todos os caminhos possíveis,
não entende?". Seus passos seguiram os de minha mãe à sala de estar, a
porta se fechou e não ouvi mais nada.
Claro, ver minha mãe comportando-se de tal maneira foi deveras
perturbador para mim. Mas se gritar com a sua visita foi um desafogo que
ela encontrou após semanas mantendo os seus sentimentos sob rédea curta,
eu também experimentei algo semelhante. Presenciar a sua explosão foi o
que me permitiu, afinal, depois de pelo menos duas ou três semanas,
reconhecer a natureza momentosa do que nos ocorrera, e isso redundou
numa tremenda sensação de alívio.
Terei de admitir, aliás, que não posso dizer com absoluta certeza que o
chinês gorducho que vi naquele dia era o mesmo homem da fotografia do
jornal — o homem agora identificado como o chefe militar Wang Ku. Tudo
o que posso dizer é que, no instante em que bati os olhos na fotografia,
aquele rosto — e foi o rosto, não a bata, a boina e o rabo-de-cavalo, que
podiam, claro, ser os de qualquer cavalheiro chinês — pareceu-me
inconfundivelmente com aquele que eu vira durante os dias logo após o
desaparecimento de meu pai. E quanto mais eu remoía na cabeça esse
particular incidente, mais convencido ficava de que o homem na fotografia
era aquele que visitara nossa casa naquele dia. Essa descoberta creio ser a
mais significativa — uma que talvez possa muito bem lançar luz no
presente paradeiro de meus pais e revelar-se crucial para aquelas
investigações que, como disse, pretendo em breve iniciar.
9.

Há mais outro aspecto desse incidente que acabo de descrever que


hesito em mencionar aqui, incerto como estou de que tenha alguma solidez.
Tem a ver com os modos de tio Philip naquele dia em que tentou sofrear a
minha mãe na frente de nossa casa; e depois, com algo em sua voz quando
disse ao entrarem: "Mas temos de seguir todos os caminhos possíveis, não
entende?". Não havia absolutamente nada concreto que eu pudesse indicar
com exatidão, mas às vezes uma criança é muito receptiva a essas coisas
menos tangíveis. De qualquer modo, minha sensação era de que havia algo
indiscutivelmente estranho em tio Philip naquele dia. Não sei por que, mas
tive a nítida impressão de que naquela hora tio Philip não estava do "nosso
lado"; que a intimidade partilhada com o chinês gorducho era maior do que
a partilhada conosco; até mesmo — e é muito possível tenha sido, isso sim,
meramente minha fantasia — que ele e o gorducho trocaram olhares
enquanto o carro arrancava. Como disse, não sou capaz de apontar nada
sólido para sustentar tais impressões, e é mais do que possível que eu esteja
projetando certas percepções à luz do que ocorreu afinal com tio Philip.
Mesmo hoje, descubro trazer-me alguma dor lembrar a maneira como
minha relação com tio Philip terminou. Como provavelmente deixei claro,
ele se tornara, no correr dos anos, uma figura idolátrica, tanto é que, nos
primeiros dias depois do desaparecimento de meu pai, cogitei a idéia de que
não precisava me importar muito, já que tio Philip podia sempre preencher
o lugar de meu pai. Admito ter sido essa uma idéia que achei no fim
curiosamente pouco convincente, mas o fato é que tio Philip era alguém
especial para mim, e não causa nenhum espanto que eu haja baixado a
guarda naquele dia e o tenha seguido.
Digo "baixado a guarda" porque, por algum tempo antes daquele
derradeiro dia, estive vigiando minha mãe com crescente ansiedade. Mesmo
quando ela pedia para ser deixada a sós, eu continuava cuidadosamente de
olho no quarto em que ela ingressara e nas portas e janelas pelas quais
seqüestradores pudessem entrar. De noite eu ficava acordado na cama,
ouvindo os seus movimentos pela casa, e sempre deixava à mão minha
arma — um bastão com uma ponta afiada que Akira me dera.
Porém, ao pensar mais a respeito, tenho a sensação de que no fundo
ainda não acreditava realmente, naquela altura, que meus temores pudessem
realizar-se. O próprio fato de eu considerar um bastão afiado um meio de
intimidação apropriado contra seqüestradores — de eu muitas vezes pegar
no sono fantasiando estar em renhido combate com dúzias de intrusos que
subiam a escada, a quem eu derrubava um por um com meu bastão —
comprova talvez o nível estranhamente irreal em que meus temores ainda
agiam naquela época.
Apesar de tudo isso, não há como duvidar da ansiedade que sentia pela
segurança de minha mãe e da minha perplexidade de que os demais adultos
não houvessem tomado medidas para protegê-la. Eu não gostava de perder
minha mãe de vista nessa época, e como disse, jamais teria baixado a
guarda naquele dia, tivesse sido alguém outro senão tio Philip.

Era uma manhã ensolarada, cheia de vento. Lembro de observar das


janelas do meu quarto de brinquedos as folhas sendo carregadas do jardim
da frente para a pista do tílburi. Tio Philip chegara logo após o café da
manhã e estava lá embaixo com minha mãe, e pude assim relaxar um
pouco, acreditando que nada poderia acontecer enquanto ele estivesse
presente.
A manhã já ia em meio quando ouvi tio Philip chamar-me. Saí ao
patamar da escada e, olhando para baixo por sobre a balaustrada, vi minha
mãe e Philip de pé no vestíbulo, fitando-me. Pela primeira vez em semanas,
senti neles algo jovial, como se tivessem acabado de ouvir uma piada. A
porta da frente estava entreaberta, e um longo feixe de sol incidia no
vestíbulo. Tio Philip disse:
"Escute aqui, Puffin. Você está sempre dizendo que quer um acordeão.
Bom, pretendo comprar um para você. Vi um modelo excelente numa
vitrine na rua Hankou ontem. O dono da loja obviamente não tem idéia de
quanto vale. Proponho nós dois irmos lá dar uma olhada. Se for do seu
agrado, é seu. Que tal?".
Isso me pôs a correr escada abaixo a grande velocidade. Pulei os
últimos quatro degraus e circundei os adultos, agitando meus braços para
imitar uma ave de rapina. Ao fazê-lo, para meu deleite, escutei minha mãe
rindo — rindo de um modo que havia tempos não a ouvia rir. De fato, é
possível que tenha sido essa própria atmosfera — essa sensação de que as
coisas estivessem talvez começando a voltar ao que eram — que
desempenhou papel significante para eu "baixar a guarda". Perguntei a tio
Philip quando podíamos ir, ao que ele levantou os ombros e disse:
"Agora, por que não? Se dormimos no ponto, alguém mais pode pôr os
olhos nele. Talvez alguém o esteja comprando neste mesmo momento,
enquanto a gente fala!".
Eu corri para a porta e novamente minha mãe riu. Então ela me disse
que eu teria de pôr sapatos convenientes e um casaco. Lembro de ter
pensado em protestar sobre o casaco, mas decidi não fazê-lo, temendo que
os adultos mudassem de idéia, não apenas sobre o acordeão, mas ainda
sobre toda essa atmosfera festiva que desfrutávamos.
Acenei de passagem para minha mãe enquanto tio Philip e eu
atravessávamos o jardim da frente. Então vários passos além, enquanto me
apressava na direção do fiacre à espera, tio Philip agarrou-me pelo ombro,
dizendo: "Olhe! Acene para sua mãe!", apesar de eu já tê-lo feito. Mas não
fiz caso disso na hora, e virando-me como ordenado, acenei mais uma vez
para a figura de minha mãe, elegantemente aprumada na soleira.
Por boa parte do caminho, o fiacre seguiu o rumo que a minha mãe e eu
costumávamos tomar para o centro. Tio Philip esteve quieto durante o
trajeto, o que me surpreendeu um pouco, mas nunca antes estivera sozinho
com ele num fiacre, e supus ser esse talvez seu hábito. Sempre que lhe
apontava algo pelo qual passávamos, ele retrucava com bastante alegria;
mas no momento seguinte tornava a fitar em silêncio a paisagem lá fora.
Bulevares arborizados deram lugar a ruas estreitas, apinhadas, e nosso
motorista desatou a gritar a riquixás e pedestres em nosso caminho.
Passamos pelas lojinhas de antiguidades na rua Nanquim, e lembro ter
espichado o pescoço para ver a vitrine da loja de brinquedos na esquina da
rua Kwangse. Mal começava a antecipar o odor de legumes em
decomposição ao nos aproximarmos do mercado de hortaliças, quando tio
Philip deu pancadas secas com sua bengala para fazer o fiacre parar.
"Daqui, vamos a pé", disse-me ele. "Conheço um bom atalho. Vai ser
bem mais rápido."
Isso fazia perfeito sentido. Sabia por experiência própria como as ruelas
que saíam da rua Nanquim podiam ficar tão atravancadas de gente que um
fiacre ou um automóvel costumavam ficar parados por cinco, até dez
minutos de cada vez. Concedi assim que ele me ajudasse a descer do fiacre
sem discutir. Mas foi então, recordo, que tive meu primeiro pressentimento
de que havia algo errado. Talvez fosse algo no toque de tio Philip ao me dar
a mão para descer; talvez fosse algo mais em seus modos. Mas então ele
sorriu e fez algum comentário que não entendi na bulha a nossa volta.
Apontou-me uma viela próxima e segui colado a ele enquanto abríamos
caminho pelo povo animado. Fomos do sol resplandecente para a sombra, e
então ele parou e virou-se para mim, bem ali no meio da multidão que se
acotovelava. Pousando sua mão em meu ombro, perguntou:
"Christopher, você sabe onde está agora? Tem idéia?".
Olhei ao meu redor. Apontando na direção de um arco de pedra sob o
qual se comprimiam multidões em torno de barracas de verduras, retruquei:
"Tenho. A rua Kiukiang é por ali".
"Ah. Então sabe exatamente onde está." E soltou ele uma estranha
risada. "Sabe se mexer muito bem por aqui."
Assenti com a cabeça e esperei, subindo-me da boca do estômago a
sensação de que algo de grande horror estava para se desdobrar. Talvez tio
Philip estivesse prestes a dizer algo mais — talvez houvesse planejado a
coisa toda de maneira bem diversa — , mas naquele momento, enquanto
estávamos ali recebendo encontrões de todos os lados, creio que ele viu no
meu rosto que acabara a brincadeira. Uma terrível confusão cruzoulhe as
feições, então ele disse, parcamente audível na balbúrdia:
"Bom garoto".
Tornou a agarrar-me o ombro e deixou seu olhar vagar ao redor. Então
pareceu chegar a uma decisão que eu já antecipara.
"Bom garoto!", disse, dessa vez mais alto, a voz embargada de emoção.
Daí acrescentou: "Não queria que você se machucasse. Entendeu bem? Não
queria que você se machucasse".
Com isso ele deu meia-volta e desapareceu na multidão. Fiz um esforço
desanimado para segui-lo, e depois de um momento entrevi sua jaqueta
branca insinuando-se pelo povo. Ele cruzou então o arco e perdi-o de vista.
Nos instantes seguintes, permaneci ali plantado na multidão, tentando
não seguir a lógica do que acabara de ocorrer. Então subitamente comecei a
mover-me, retomando a direção de onde viéramos, para voltar à rua em que
havíamos deixado o fiacre. Abandonando todo sentido de decoro, abri
caminho entre a multidão, às vezes empurrando com violência, às vezes
apertando-me pelas brechas, de modo que as pessoas riam ou châmavam-
me a atenção zangadas. Cheguei à rua para descobrir, claro, que o fiacre
havia muito seguira o seu caminho. Na confusão de alguns segundos, fiquei
parado no meio da rua, tentando visualizar um mapa de minha rota de volta
para casa. Desandei então a correr o mais rápido que podia.
Desci a rua Kiukiang desabaladamente, atravessei os paralelepípedos
duros e irregulares da rua Yunnan, abri caminho por mais multidões ao
longo da rua Nanquim. Quando por fim cheguei à rua do Poço Borbulhante,
meu fôlego já vinha aos arrancos, mas encorajava-me que tivesse agora pela
frente apenas essa longa avenida reta, relativamente livre de pessoas.
Talvez fosse porque tivesse consciência da natureza altamente particular
de meus medos — ou talvez alguma profunda mudança de atitude já
estivesse se dando dentro de mim —, mas não me ocorreu nem uma única
vez solicitar ajuda de nenhum dos adultos pelos quais passei, nem de tentar
chamar um fiacre ou automóvel que passasse. Desandei a correr por aquela
longa avenida, e ainda que logo tenha começado a resfolegar pateticamente,
ainda que o calor e o cansaço tenham às vezes reduzido meu ritmo a pouco
mais que passos lentos, creio que não cheguei a parar. Passei enfim pela
residência do cônsul americano, e então pela casa dos Robertson. Dobrei a
nossa rua vindo da rua do Poço Borbulhante, e uma segunda curva levou-
me à distância que restava para nosso portão.
Soube tão logo passei pelo portão — embora não houvesse nada óbvio a
dizê-lo — que eu chegara tarde demais, que a coisa terminara havia muito.
Encontrei a porta da frente aferrolhada. Corri para a porta dos fundos, que
se abriu para mim, e corri pela casa gritando por alguma razão não por
minha mãe, mas por Mei Li — talvez mesmo nessa altura eu não quisesse
reconhecer as implicações de gritar por minha mãe.
A casa parecia estar vazia. Enquanto então estava de pé, atônito, no
vestíbulo, ouvi uma risadinha abafada. Vinha da biblioteca, e ao virar-me e
dirigir-me para lá, vi pela porta semiaberta Mei Li sentada à minha mesa de
estudos. Sentada com muito aprumo, e quando apareci no umbral, olhou ela
para mim e deu outra risadinha abafada, como se se divertisse com uma
piada e tentasse sufocar uma gargalhada. Notei num lampejo que Mei Li
estava chorando, e soube, como soubera ao longo de toda aquela corrida
punitiva para casa, que minha mãe se fora. E dentro de mim subiu uma fúria
fria por Mei Li, que, apesar de todo o temor e respeito que exercera sobre
mim ao longo dos anos, eu percebia agora ser uma impostora: alguém nem
um pouco capaz de controlar aquele mundo desconcertante que se
desdobrava a meu redor; uma mulherzinha lastimável que se firmara a meus
olhos a partir de premissas inteiramente falsas, que não servia para nada
quando as grandes forças se confrontavam e combatiam. Parei no umbral e
fitei-a com extremo desdém.

Agora é tarde — transcorreu uma boa hora desde que pus no papel essa
última sentença —, e no entanto aqui estou, ainda à minha escrivaninha.
Suponho que tenha ficado repassando essas reminiscências, algumas das
quais não trazia à tona havia muitos anos. Mas estive também pensando no
futuro, no dia em que finalmente voltarei a Xangai; em todas as coisas que
Akira e eu faremos juntos. Claro, a cidade terá sofrido várias mudanças.
Mas sei que não haverá nada de que Akira gostará mais do que me levar
para passear, exibindo todo o seu grande conhecimento dos recessos mais
íntimos da cidade. Ele saberá os lugares perfeitos para comer, para beber,
para dar uma volta; os melhores estabelecimentos aonde poderemos ir
depois de um dia duro, para sentar e falar até tarde da noite, trocando
histórias sobre tudo quanto aconteceu conosco desde nosso último encontro.
Mas agora tenho de dormir um pouco. Há muito trabalho a fazer de
manhã, e tenho de recuperar o tempo perdido esta tarde, rodando por
Londres com Sarah no andar de cima daquele ônibus.
PARTE TRÊS

Londres, 12 de abril de 1937


10.

Ontem, na hora em que a jovem Jennifer voltou das compras com a srta.
Givens, a luz em meu gabinete já estava baça. Essa casa alta e estreita,
comprada com minha herança recebida após a morte de minha tia, domina
uma praça que, embora moderadamente prestigiosa, apanha menos sol que
qualquer de suas vizinhas. Observei-a da janela do gabinete, na praça lá
embaixo, indo e vindo do táxi, enfileirando as sacolas contra a balaustrada,
enquanto a srta. Givens buscava em sua bolsa a quantia pela corrida.
Quando finalmente elas entraram, pude ouvi-las discutindo, e embora eu
tenha gritado uma saudação do patamar da escada, decidi não descer. Sua
discussão parecia trivial — algo sobre o que tinham e o que não tinham
comprado —, mas naquele momento eu ainda estava agitado pela carta
recebida de manhã — e pelas conclusões a que ela me levara — e não
queria ver interrompido meu humor triunfante.
Quando por fim desci, havia muito elas tinham cessado a discussão, e
encontrei Jennifer perambulando pela sala de estar com uma venda nos
olhos e as mãos estendidas a sua frente.
"Olá, Jenny", eu disse, como se não notasse nela nada de incomum.
"Comprou tudo de que precisava para o próximo trimestre?"
Ela se aproximava perigosamente da estante de vidro, mas resisti à
tentação de gritar. Ela parou no momento exato, baixou as mãos e soltou
uma risadinha.
"Oh, tio Christopher! Por que não me avisou?"
"Avisar? Sobre o quê?"
"Eu fiquei cega! Não percebeu? Estou cega! Olhe!"
"Ah, é. Está mesmo."
Deixei-a tateando pelos móveis e passei à cozinha, onde a srta. Givens
desempacotava uma sacola sobre a mesa. Ela me cumprimentou
educadamente, mas fez questão de que eu notasse seu olhar na direção dos
restos do meu almoço, abandonados na ponta da mesa. Desde a saída de
Polly, nossa criada, na semana anterior, a srta. Givens desprezou toda e
qualquer sugestão no sentido de que ela devesse, mesmo temporariamente,
tomar a cargo tais tarefas.
"Senhorita Givens", disse a ela, "tenho de lhe falar." Olhando então
sobre o ombro, baixei minha voz: "E algo que toca de perto a Jennifer".
"Claro, senhor Banks."
"Aliás, senhorita Givens, não sei se seria melhor passarmos ao jardim-
de-inverno. Como disse, o assunto é de alguma importância."
Mas bem nesse instante um ruído de algo se quebrando veio da sala de
estar. A srta. Givens, passando por mim às pressas, gritou da soleira:
"Jennifer, pare com isso! Eu disse que isso ia acabar acontecendo!".
"Mas eu estou cega", foi a resposta. "Não é culpa minha."
A srta. Givens, lembrando-se de que eu me dirigia a ela, pareceu
apanhada entre dois fogos. No fim, voltou e disse placidamente: "Desculpe,
senhor Banks. O senhor estava dizendo?".
"Na verdade, senhorita Givens, acho que seremos capazes de falar com
mais liberdade esta noite, depois que Jennifer for dormir."
"Pois não. Virei encontrá-lo."
Se a srta. Givens tinha qualquer pressentimento do que eu desejava
discutir, não o demonstrou em absoluto naquela hora. Deu-me um de seus
sorrisos opacos, antes de seguir com seus encargos na sala de estar.

Já se vão quase três anos desde a primeira vez em que ouvi falar de
Jennifer. Fora convidado para um jantar pelo meu antigo colega de escola,
Osbourne, a quem não via fazia algum tempo. Naqueles dias ele ainda
morava na Gloucester Road, e conheci pela primeira vez naquela noite a
jovem que, de lá para cá, se tornou sua esposa. Entre outros convidados
naquela noite estava Lady Beaton, a viúva do conhecido filantropo. Talvez
porque os convidados me fossem todos estranhos — eles passaram boa
parte da noite contando piadas sobre pessoas de quem eu nada sabia —, dei
comigo a conversar um bocado com Lady Beaton, tanto é que temi por
vezes estar me tornando um fardo para ela. De todo modo, foi logo após a
sopa ter sido servida que ela começou a contar-me sobre o triste caso com
que se deparara recentemente em sua condição de tesoureira de uma
sociedade beneficente ligada ao bem-estar de órfãos. Um casal morrera
afogado num acidente marítimo na Cornualha dois anos antes, e a filha
única deles, então uma menina de dez anos, vivia por ora no Canadá com a
avó. Essa velha senhora estava evidentemente com a saúde debilitada,
raramente saía ou recebia visitas.
"Quando estive em Toronto no mês passado", contou-me Lady Beaton,
"decidi lhes fazer eu mesma uma visita. A pobrezinha estava que era uma
tristeza, ela sente tanta falta da Inglaterra. E quanto à velha senhora, mal
consegue cuidar de si própria, que dirá de uma garota."
"Sua organização será capaz de ajudá-la?"
"Farei o que puder por ela. Mas temos tantos casos, sabe. E para falar a
verdade, ela não é uma prioridade. Afinal, tem um teto sobre a cabeça e
seus pais a deixaram razoavelmente bem provida. O grande segredo desse
tipo de trabalho é não levar muito para o lado pessoal. Mas após ter
encontrado a pobrezinha, não há como não se envolver. Que espírito o dela,
bastante incomum, ainda que estivesse claramente tão infeliz."
E possível que ela tenha me contado algumas outras coisas mais sobre
Jennifer enquanto continuávamos a refeição. Lembro de ouvir
educadamente, mas pouco dizer. Só muito mais tarde, lá fora no vestíbulo, à
medida que os convidados partiam e Osbourne nos rogava a todos que
ficássemos mais um pouco, que tomei Lady Beaton de parte.
"Espero que não ache isso uma inconveniência", eu disse. "Mas essa
garota de quem me falava antes. Essa Jennifer. Gostaria de fazer algo para
ajudá-la. Aliás, Lady Beaton, estaria até disposto a abrigá-la em casa."
Talvez não devesse levar a mal que sua primeira reação foi recuar com
um olhar de suspeita. Pelo menos assim me pareceu. Por fim ela disse:
"É muita bondade de sua parte, senhor Banks. Se me permite, entrarei
em contato com o senhor sobre o assunto".
"Eu falo sério, Lady Beaton. Recentemente entrei na posse de uma
herança, vou ter assim todas as condições de lhe prover o sustento."
"Tenho certeza de que sim, senhor Banks. Bom, voltaremos a falar a
respeito." Com isso, ela virou-se para alguns outros convidados para trocar
espalhafatosas despedidas.
Mas Lady Beaton acabou realmente entrando em contato comigo menos
de uma semana depois. É possível que estivesse averiguando meu caráter;
talvez fosse simplesmente porque tivera tempo de pensar nas coisas com
mais vagar; de todo modo, sua atitude mudou bastante. No almoço no Café
Royal, e durante nossos encontros ulteriores, ela não podia ser mais
calorosa comigo, e Jennifer chegou como combinado a minha casa apenas
quatro meses depois do jantar no apartamento de Osbourne.
Viera acompanhada por uma babá canadense chamada srta. Hunter, que
partiu de volta uma semana mais tarde, beijando alegremente a menina na
bochecha e lembrando-lhe que escrevesse para sua avó. Jennifer ponderou
com cuidado a escolha de três quartos que lhe ofereci, e decidiu-se pelo
menor, porque, disse ela, a pequena prateleira que corria ao longo de uma
das paredes seria perfeita para sua "coleção". Esta, logo descobri,
compreendia algumas conchas do mar cuidadosamente selecionadas,
castanhas, folhas secas, seixos e mais alguns desses itens que ela reunira ao
longo dos anos. Cuidadosamente, posicionou os objetos ao longo da
prateleira e chamou-me um dia para inspecionar.
"Dei nome a cada um", explicou-me. "Sei que é uma bobagem, mas eu
gosto tanto deles. Um dia, tio Christopher, quando não estiver tão ocupada,
vou contar a você a história de cada um deles. Diga por favor a Polly para
ter um cuidado a mais quando estiver limpando aqui."
Lady Beaton veio auxiliar-me nas entrevistas para uma babá, mas foi a
própria Jennifer, espiando os trâmites do quarto ao lado, que se revelou a
influência mais decisiva. Ela surgia após cada candidata haver saído para
proferir um veredicto condenatório. "Um completo horror", ela pronunciou
de uma mulher. "É óbvia conversa fiada esse negócio de a última criança
com quem trabalhou ter morrido de pneumonia. Ela a envenenou." De
outra, ela disse: "Fora de cogitação ficar com esta. Nervosa demais".
A srta. Givens pareceu-me sem graça e um tanto fria durante a
entrevista, mas por alguma razão foi ela quem imediatamente ganhou a
aprovação de Jennifer, e verdade seja dita, nos dois anos e meio desde
então, justificou amplamente a confiança de Jennifer nela depositada.
Quase todos a quem eu apresentava Jennifer comentavam como parecia
senhora de si para alguém que passara por uma tragédia como aquela. De
fato, tinha modos notavelmente seguros, e em particular uma capacidade de
não ligar para reveses que teriam levado às lágrimas outras garotas de sua
idade. Um bom exemplo disso foi sua reação a propósito de seu baú.
Durante algumas semanas depois de sua chegada, fez repetidas
referências a seu baú, que chegaria por mar do Canadá. Lembro, por
exemplo, de ela descrevendo-me certa vez com algum detalhe um carrossel
de madeira que alguém lhe fizera e que viria dentro do baú. Noutra ocasião,
quando a cumprimentei por um particular vestido que ela e a srta. Givens
haviam comprado na Selfridge's, olhara-me solenemente e dissera: "E eu
tenho uma fita de cabelo que combina perfeitamente com ele. Está vindo no
meu baú".
Contudo, recebi um dia uma carta da companhia mercante desculpando-
se pela perda do baú no mar e oferecendo ressarcimento. Quando contei
isso a Jennifer, ela primeiro simplesmente parou com o olhar fixo. Depois
deu uma ligeira risada e disse:
"Bom, nesse caso a senhorita Givens e eu vamos ter de nos entregar a
uma enorme orgia consumista".
Quando depois de dois ou três dias ainda não mostrara nenhum sinal de
mágoa pela perda, senti-me inclinado a ter uma conversa com ela, e certa
manhã depois do café, ao avistá-la zanzando pelo jardim, saí para me juntar
a seu lado.
Era uma manhã fresca, ensolarada. Meu jardim não é grande, mesmo
para os padrões da cidade — um retângulo verde cuja vista dá para qualquer
um de nossos vizinhos —, mas é bem cuidado e tem, a despeito de tudo,
uma agradável sensação de santuário. Quando desci para o gramado,
Jennifer estava vagando pelo jardim com um cavalo de brinquedo na mão,
perdida em sonhos a passear com ele pelo topo de sebes e arbustos. Lembro
de ter ficado bastante preocupado de que o brinquedo se estragasse pela
ação do orvalho e estava prestes a lhe fazer notar isso. Mas no fim,
aproximei-me e disse simplesmente:
"Foi um azar dos diabos com suas coisas. Você assimilou incrivelmente
bem, mas deve ter sido um choque e tanto".
"Oh…" E continuou a mover seu cavalo despreocupada. "Que foi uma
chateação, lá isso foi. Mas vou acabar podendo comprar mais coisas com o
dinheiro da indenização. A senhorita Givens disse que podemos sair para as
compras terça-feira."
"Mesmo assim. Olhe, eu acho você valente como o quê. Mas não há
necessidade, sabe, de bancar a durona, se é que me entende. Se quiser
baixar um pouquinho a guarda, baixe. Não vou contar para ninguém, nem,
tenho certeza, a senhorita Givens."
"Tudo bem. Não estou triste. Afinal de contas, são só coisas. Quando se
perdeu a mãe e o pai, não se pode dar muita importância para coisas,
pode?" Dito isso, ela deu sua ligeira risada.
Esse é um dos poucos exemplos que consigo recordar agora no qual ela
mencionou seus pais. Eu também ri, e dizendo: "Acho que não", comecei a
andar de volta para a casa. Mas então tornei a virar-me para ela e disse:
"Sabe, Jenny, não tenho tanta certeza. Você pode dizer uma coisa dessas
para um monte de pessoas e elas vão acreditar em você. Mas cá entre nós,
eu sei que não é verdade. Quando vim de Xangai, as coisas que vieram no
meu baú, aquelas coisas, elas eram importantes para mim. E ainda
continuam".
"Você pode mostrá-las para mim?"
"Mostrá-las para você? Bom, a maioria delas não significaria nada para
você."
"Mas eu adoro coisas chinesas. Gostaria de vê-las."
"A maioria não é chinesa propriamente dita", eu disse. "Bom, o que
estou tentando dizer é que para mim, meu baú era especial. Se ele tivesse se
perdido, eu ficaria chateado."
Ela encolheu os ombros e ergueu o cavalo até a face. "Eu fiquei
chateada. Mas não estou mais. É preciso olhar para o futuro."
"É. Quem quer que tenha dito isso a você tem bastante razão, num certo
sentido. Tudo bem, como você quiser. Esqueça seu baú por enquanto. Mas
lembre-se…" Perdi o fio da meada, sem saber o que pretendia dizer.
"O quê?"
"Oh, nada. Apenas se lembre, se houver algo que queira me contar, ou
algo que esteja incomodando você, estou sempre aqui."
"Tudo bem", ela disse radiante.
Ao subir a escada, voltando para casa, olhei de relance para trás e vi que
ela retomara sua perambulação pelo jardim, rompendo o ar com seu cavalo
em arcos sonhadores.

Não fiz essas promessas a Jennifer levianamente. Naquela época, era


minha intenção cumpri-las à risca, e minha afeição por Jennifer só cresceu
nos dias que se seguiram. E no entanto aqui estou hoje, planejando desertá-
la; por quanto tempo, nem faço idéia. É possível, claro, que eu esteja
exagerando sua dependência de mim. Se tudo correr bem, além disso, é
possível que eu esteja de volta a Londres antes das próximas férias
escolares, e ela mal notará minha ausência. E no entanto, sou obrigado a
admitir, como o fiz com a srta. Givens quando ela me perguntou à queima-
roupa na noite passada, que talvez leve muito mais tempo. É essa
imprecisão mesma que trai minhas prioridades, e não tenho dúvidas de que
Jennifer não tardará em tirar as suas próprias conclusões. Por mais valente
que se mostre, sei que ela verá minha decisão como uma traição.
Não é fácil explicar como as coisas chegaram a isso. O que posso dizer
é que começou alguns anos atrás — bem antes da chegada de Jennifer —
como uma vaga sensação que eu tinha de tempos em tempos; uma sensação
de que fulano ou sicrano me reprovava e a custo lograva disfarçá-lo.
Curiosamente, esses momentos tendiam a ocorrer na companhia daquelas
mesmas pessoas de quem eu poderia ter esperado apreciarem em extremo
os meus feitos. Ao conversar com algum homem de Estado num jantar,
digamos, ou com um policial, ou mesmo com um cliente, de repente era
surpreendido pela frieza de um aperto de mão, por um breve comentário
inserido em meio a gracejos, por uma educada circunspecção onde poderia
ter esperado uma gratidão efusiva. A princípio, sempre que tais incidentes
ocorriam, buscava em minha memória alguma ofensa que inadvertidamente
pudesse ter causado àquele indivíduo em específico; mas por fim era
obrigado a concluir que tais reações tinham a ver com algo mais genérico
na imagem que as pessoas faziam de mim.
Como isso de que falo aqui é tão nebuloso, não é fácil recordar casos
que sirvam de claras ilustrações. Mas suponho ser um exemplo a estranha
conversa que tive no outono passado com o inspetor de polícia de Exeter
naquela ruela sombria nos subúrbios da vila de Coring, em Somerset.
Foi um dos crimes mais deprimentes que já investiguei. Só fui chegar à
vila depois de quatro dias que os corpos das crianças haviam sido
descobertos na ruela, e a chuva constante transformara o fosso em que
haviam sido encontradas num regato lamacento — fazendo da coleta de
indícios relevantes uma tarefa nada simples. Não obstante, ao ouvir
aproximarem-se os passos do inspetor, já formara uma imagem bastante
clara do que ocorrera.
"Um negócio dos diabos", disse-lhe, enquanto vinha em minha direção.
"De embrulhar o estômago, senhor Banks", disse o inspetor. "Realmente
de embrulhar o estômago."
Estava agachado examinando a sebe, mas então me pus de pé e nos
encaramos na garoa constante. Então ele disse:
"Sabe, senhor, neste exato instante, desejava de coração ter virado
carpinteiro. Era isso que o meu pai queria de mim. Desejava mesmo,
senhor. Hoje, depois disso, desejava mesmo".
"É atroz, eu concordo. Mas não se pode virar as costas. Temos de zelar
para que a justiça prevaleça."
Ele abanou a cabeça desconsolado. Então disse: "Vim aqui lhe
perguntar, senhor, se já formou uma opinião sobre o caso. Porque, sabe…".
Ele ergueu os olhos para as árvores gotejantes acima dele, depois
prosseguiu com um esforço: "Sabe, minhas próprias investigações me
levam a uma certa conclusão. Uma conclusão a que reluto um pouco em
chegar".
Olhei-o, severo, e assenti com a cabeça. "Receio que sua conclusão
esteja correta", falei solenemente. "Quatro dias atrás, esse parecia ser um
dos crimes mais horrendos que se possa imaginar. Mas agora, parece que a
verdade é ainda mais bárbara."
"Como pode ser, senhor?" O inspetor ficara muito pálido. "Como pode
ser possível uma coisa dessas? Mesmo depois de todos esses anos, não
consigo compreender tal…" Calou-se e desviou o olhar.
"Infelizmente, não vejo outra possibilidade", falei, sério. "É de fato
chocante. É como se olhássemos diretamente para as profundezas das
trevas."
"Algum louco que estivesse passando, algo do tipo eu teria aceitado.
Mas isso… isso eu ainda reluto em acreditar."
"Receio que seja necessário", eu disse. "Temos de aceitálo. Porque é o
que aconteceu."
"Tem certeza disso, senhor?"
"Tenho."
Por sobre os campos vizinhos, ele mirava a fileira de chalés na
distância.
"Em momentos como esse", eu disse, "posso entender muito bem que a
pessoa se sinta bastante desencorajada. Mas se me permite dizer, foi bom
que não tenha seguido o conselho de seu pai. Porque homens do seu calibre,
inspetor, são raros. E aquele de nós cuja tarefa é combater o mal, nós
somos… como posso dizer? Somos como o fio que mantém unidas as
folhas de uma persiana. Caso não seguremos firme, tudo se espalhará. É
muito importante, inspetor, que o senhor siga adiante."
Ele permaneceu calado mais alguns momentos. Quando então tornou a
falar, fiquei um tanto perplexo com a dureza de sua voz.
"Não passo de um zé-ninguém, senhor. Assim, vou ficar aqui e fazer o
que puder. Ficar aqui e fazer o que puder para combater a serpente. Mas ela
é uma fera de muitas cabeças. Você corta uma cabeça, três outras crescem
no lugar. Assim me parece, senhor. Está piorando. Está piorando a cada dia.
O que aconteceu aqui, essas pobres criancinhas…" Ele virou-se de frente e
agora pude ver fúria em seu rosto. "Não passo de um zé-ninguém. Se eu
fosse alguém" — e aqui, sem sombra de dúvida, fitou-me acusadoramente
nos olhos — "se fosse alguém, só lhe digo uma coisa, senhor, não hesitaria
mais um instante. Ia direto ao coração."
"Ao coração?"
"O coração da serpente. Ia direto a ele. Por que perder tempo precioso
se engalfinhando com as suas várias cabeças? Ia hoje mesmo aonde está o
coração da serpente e matava a coisa de uma vez por todas antes que…
antes que…"
Pareceu lhe faltarem palavras, e simplesmente ficou ali plantado,
encarando-me. Não me lembro bem do que disse em resposta.
Possivelmente balbuciei algo como:
"Bem, seria altamente louvável de sua parte", e virei as costas.

Depois houve ainda aquele incidente no verão passado, na ocasião em


que visitei a Royal Geographical Society para ouvir H. L. Mortimer proferir
sua palestra. Era uma noite muito quente. A audiência, de cerca de cem
pessoas, reunia personalidades especialmente convidadas de todas as
profissões; reconheci, entre outros, um par do Reino pertencente ao Partido
Liberal e um famoso historiador de Oxford. O prof. Mortimer falou por
pouco mais de uma hora, enquanto o auditório ficava cada vez mais
abafado. Sua palestra, intitulada "Será o nazismo uma ameaça à
cristandade?", foi na verdade uma polêmica para sustentar que o sufrágio
universal enfraquecera severamente o poderio britânico nos assuntos
internacionais. Quando no fim foi aberto espaço a perguntas, teve início
uma discussão bastante acalorada pelo recinto, não a respeito das idéias do
prof. Mortimer, mas quanto ao avanço do exército alemão na Renânia.
Ergueram-se vozes inflamadas tanto para justificar como para condenar a
ação alemã, mas eu estava exausto naquela noite depois de semanas de
trabalho intenso, e não fiz um esforço verdadeiro para acompanhar.
Enfim fomos conduzidos a uma sala contígua ao auditório, onde eram
servidos comes e bebes. A sala estava longe do tamanho adequado, de
modo que quando entrei — e de jeito algum estava entre os últimos — as
pessoas já se espremiam desconfortavelmente umas contra as outras. A
imagem que tenho dessa noite é de mulheres corpulentas, de avental,
acotovelando-se ferozes pela sala com suas bandejas de xerez, e de
professores grisalhos, com ar de passarinhos, conversando em pares, as
cabeças inclinadas para trás a fim de manter uma distância civilizada ao
falar. Percebi ser impossível permanecer em tal ambiente, e abria caminho
rumo à saída quando senti um toque em meu ombro. Virei para encontrar
sorrindo-me Canon Moorly, um clérigo que me fora de inestimável serviço
num caso recente, e não vi alternativa senão parar e cumprimentá-lo.
"Que noite mais fascinante está sendo", ele disse. "Tem me dado muito
o que pensar."
"Sim, muito interessante."
"Mas devo dizer, senhor Banks, quando o vi no auditório, esperei
bastante que dissesse algo."
"Receio que estivesse me sentindo um tanto cansado esta noite. Além
disso, praticamente todo mundo no auditório parecia saber tão mais sobre o
tema."
"Oh, bobagem, bobagem." Ele riu e bateu-me de leve no peito. Então
inclinou-se para perto — talvez alguém o houvesse empurrado por trás —,
de modo que seu rosto chegou a centímetros do meu, e disse: "Para ser bem
sincero, fiquei um pouco surpreso por não se sentir compelido a fazer uma
intervenção. Toda essa conversa sobre uma crise na Europa. Disse estar
cansado; talvez estivesse sendo educado. Seja como for, estou surpreso de
que tenha deixado escapar".
"Deixado escapar?"
"O que quero dizer, desculpe-me, é que é bastante natural para alguns
desses cavalheiros aqui esta noite considerar a Europa o centro do presente
turbilhão. Mas o senhor, senhor Banks. É claro, o senhor sabe da verdade.
Sabe que o verdadeiro coração de nossa crise está mais além."
Olhei-o atentamente, então disse: "Desculpe, senhor. Mas não estou
muito certo de aonde queira chegar".
"Ora, ora." Ele sorria com cumplicidade: "O senhor mais do que
ninguém."
"Realmente, senhor, não tenho idéia do motivo por que pensa que eu
deva ter algum conhecimento especial a respeito dessas coisas. É verdade,
investiguei muitos crimes ao longo dos anos, e talvez tenha formado uma
idéia geral de como certas formas do mal se manifestam. Mas sobre a
questão de como o equilíbrio do poder possa ser mantido, de como
podemos conter o violento conflito de aspirações na Europa, sobre tais
coisas receio que eu não tenha uma teoria propriamente dita."
"Não tem uma teoria? Talvez não." Canon Moorly continuou a rir para
mim. "Mas tem, digamos assim, uma relação especial com o que é, na
verdade, a fonte de todas as nossas atuais ansiedades. Ora, meu caro amigo!
Sabe perfeitamente bem a que estou me referindo! Sabe melhor do que
ninguém que o foco da tempestade não se encontra de maneira alguma na
Europa, mas no Extremo Oriente. Em Xangai, para ser preciso."
"Xangai", eu disse sem convencer. "Sim, suponho… suponho que haja
alguns problemas nessa cidade."
"Problemas mesmo. E o que antes era apenas um problema local,
deixaram que supurasse e crescesse. Que no correr dos anos difundisse seu
veneno pelo mundo, atingindo em cheio nossa civilização. Mas eu mal
preciso lembrá-lo disso, não ao senhor."
"Acho que descobrirá, senhor", eu disse, agora já sem tentar esconder a
minha irritação, "que trabalhei duro ao longo dos anos para conter a difusão
do crime e do mal onde quer que eles se manifestassem. Mas claro que só
fui capaz de fazê-lo dentro da minha limitada esfera. Quanto ao que ocorre
em paragens remotas, seguramente, senhor, é difícil poder esperar de mim
que…"
"Ora, ora! Vamos!"
É bem possível que eu tivesse perdido minha paciência, mas justo nesse
momento outro clérigo chegou espremendo-se pela multidão para
cumprimentá-lo. Canon Moorly apresentou-nos, mas eu rapidamente
aproveitei a oportunidade para safar-me.
Houve inúmeros desses incidentes que, se não foram tão manifestos,
estenderam-se por um período de modo a impelirme constantemente numa
certa direção. E houve também, é claro, o encontro com Sarah Hemmings
no casamento dos Draycoats.
11.

Isso já foi há mais de um ano. Eu estava sentado nos fundos da igreja —


a noiva tardaria ainda vários minutos — quando vi Sarah Hemmings entrar
com Sir Cecil Medhurst do outro lado da nave. Com certeza, Sir Cecil não
parecia estar sensivelmente mais velho do que quando o vi pela última vez
na noite do banquete da Fundação Meredith em sua homenagem; mas os
relatos de que ele fora imensamente rejuvenescido pelo seu casamento com
Sarah pareceram algo exagerados. Tinha ele um ar bastante alegre, não
obstante, ao dar joviais acenos a pessoas que reconhecia.
Não falei com Sarah senão após o ofício. Eu passeava pelo adro em
meio aos convidados a conversarem, e detivera-me para admirar um
canteiro de flores quando de súbito ela apareceu a meu lado.
"Então, Christopher", ela disse. "Você é praticamente a única pessoa
aqui que não me cumprimentou pelo meu chapéu. Celia Matheson fez para
mim."
"É esplêndido. Realmente magnífico. E como tem passado?"
Fazia algum tempo que não nos falávamos, e creio que conversamos
cordialmente por alguns instantes enquanto nos movíamos pelas fímbrias da
multidão. Quando então tornamos a parar, perguntei:
"E Sir Cecil vai bem? Que ele parece estar em excelente forma, isso
parece".
"Oh, está em esplêndida forma. Christopher, você pode me dizer. As
pessoas ficaram extremamente horrorizadas por eu ter me casado com ele?"
"Horrorizadas? Oh, não, não. Por que ficariam?"
"Por ele ser tão mais velho, eu digo. É claro, ninguém dirá isso para
nós. Mas me conte você. As pessoas ficaram horrorizadas, não ficaram?"
"Até onde sei, todos ficaram encantados. Claro, as pessoas foram pegas
de surpresa. Foi tudo tão de repente. Mas não, creio que todos ficaram
encantados."
"Bem, então isso só prova o que eu temia. Devem ter me visto como
uma solteirona. É por isso que não ficaram horrorizados. Alguns anos atrás,
tenho certeza de que ficariam."
"Imagine…"
Sarah riu de meu mal-estar e tocou-me o braço. "Christopher, você é tão
doce. Não se preocupe. Não se preocupe em absoluto com isso." E
acrescentou: "Sabe, você precisa nos fazer uma vista. Cecil lembra de tê-lo
encontrado, naquele banquete. Ele adoraria vê-lo de novo".
"Ficaria encantado."
"Oh, mas agora é provavelmente tarde demais. Estamos de partida,
sabe. Embarcamos para o Extremo Oriente em oito dias."
"Mesmo? Ficarão por muito tempo?"
"Quem sabe meses. Talvez até anos. Ainda assim, precisa vir nos ver
quando voltarmos."
Suspeito que fiquei um pouco sem palavras com essa notícia. Mas bem
nesse momento, a noiva e o noivo assomaram do outro lado do gramado, e
Sarah disse:
"Eles não parecem tão simpáticos juntos? E combinam tão bem". Por
um momento fitou-os perdida em sonhos. Então disse: "Ainda agora lhes
perguntei o que queriam do futuro. E Alison disse que só queriam um
pequeno chalé em Dorset, do qual nenhum dos dois precisasse sair por anos
a fio. Não enquanto não viessem os filhos e eles ficassem de cabelos
grisalhos e com rugas. Não acha isso maravilhoso? Desejo isso de coração
para eles. E é tão maravilhoso que tenham se conhecido assim por acaso".
Ela continuou a olhá-los como que hipnotizada. Por fim saiu de seu
transe, e acredito que passamos alguns minutos trocando notícias de amigos
em comum. Então chegaram outros para se juntar a nós, e depois de uns
instantes retirei-me.
Tornaria a encontrar Sarah mais tarde nesse mesmo dia, no hotel-
fazenda com vista para a South Downs onde ocorreu a recepção. Era por
volta do final daquela tarde, e o sol estava baixo no horizonte. Uma
quantidade incomum de bebida fora consumida até então, e lembro de
caminhar pelo hotel passando por desgrenhados grupos de convidados,
espalhados por sofás e escorados precariamente em caramanchões, até sair
para o terraço exposto ao vento, onde avistei Sarah encostada contra a
balaustrada, contemplando a paisagem. Dirigia-me a ela quando ouvi uma
voz atrás de mim e vi um homem troncudo, de rosto congestionado,
correndo pelo terraço no meu encalço. Ele agarrou-me o braço, depois ficou
ali recuperando o fôlego, encarando-me com uma expressão séria. Então
disse:
"Olhe, estive observando. Vi o que aconteceu, e os vi antes também. É
uma vergonha, e como irmão do noivo quero estender as minhas desculpas
a você. Aqueles bebuns, não sei quem são. Desculpe, meu chapa, deve ter
sido terrivelmente constrangedor".
"Oh, por favor, não se preocupe", eu disse com uma risada. "Não estou
nem um pouco ofendido. Eles tomaram umas e outras, só estavam se
divertindo."
"Um comportamento bárbaro. Você é um convidado, tal como eles, e se
não conseguem agir de forma civilizada, têm de se retirar."
"Veja bem, acho que está fazendo uma idéia totalmente equivocada.
Eles não fizeram por mal. Seja como for, não tomei como ofensa. A pessoa
tem de saber aceitar de vez em quando uma brincadeira ou outra."
"Mas a tarde inteira eles estão nessa. Eu os vi antes, ainda na igreja.
Este é o casamento do meu irmão. Não aceito uma conduta desse tipo.
Aliás, vou pôr a coisa toda em pratos limpos agora mesmo. Venha comigo,
meu velho. Vamos ver se eles ainda acham você tão divertido."
"Não, olhe, você não está entendendo. Não me ofendi, achei a
brincadeira tão engraçada quanto eles."
"Mas eu não admito! Coisas demais desse tipo estão acontecendo
ultimamente. Eles sempre se safam, sempre, mas hoje não. Não no
casamento do meu irmão. Venha, você vem comigo."
Ele dava puxões em meu braço e vi gotas de suor por todo o seu rosto.
Não sei o que eu faria em seguida, mas justo então, Sarah veio caminhando
até nós, um coquetel numa das mãos, e disse ao homem de rosto
congestionado:
"Oh, Roderick, você está mesmo fazendo uma idéia totalmente
equivocada. Aqueles são amigos de Christopher. Além disso, Christopher é
a última pessoa a quem você precisa proteger".
O homem de rosto congestionado olhou para nós dois, sucessivamente.
No fim perguntou a Sarah: "Tem certeza? Porque eu vi isso ocorrer o dia
todo. Sempre que o parceiro aqui chega perto deles…".
"Você se preocupa muito, Roderick. Aqueles são amigos de Christopher.
Se ele estivesse minimamente aborrecido, você logo ficaria sabendo tudo a
respeito. Christopher é mais do que capaz de lhes passar uma
descompostura por si próprio. De fato, Christopher aqui poderia pô-los
tremendo feito varas verdes, ou então fazê-los comer da sua mão, o que lhe
der na veneta, num piscar de olhos. Então deixe disso, Roderick. Deixe
disso e divirta-se."
O homem de rosto congestionado considerou-me com um novo
respeito, e em sua confusão estendeu-me a mão. "Sou o irmão de Jamie",
disse, enquanto eu a apertava. "Prazer em conhecê-lo. Se puder fazer
alguma coisa, bem, é só me procurar. Desculpe se houve algum mal-
entendido. Bom, divirta-se."
Observamos como ele cambaleava de volta para a casa. Então Sarah
disse:
"Vamos, Christopher. Por que não vem e conversa uns instantes
comigo?".
Ela bebeu um gole de seu copo e saiu caminhando. Segui-a pelo terraço
até chegarmos à balaustrada, que dominava a paisagem.
"Obrigado pela ajuda", eu disse afinal.
"Oh, faz parte do serviço. Christopher, o que ficou fazendo a tarde
inteira?"
"Oh, não muito. De fato, estive pensando. Sobre aquela noite alguns
anos atrás, aquele banquete para Sir Cecil. Estive pensando se, quando o
conheceu naquela noite, tinha alguma idéia de que um dia…"
"Oh, Christopher" — ela atalhou minhas palavras e notei que estava um
tanto bêbada —, "vou lhe contar, para você eu posso. Quando conheci Cecil
naquela noite, achei-o bem charmoso. Mas, de verdade, não pensei mais
nada dele. Só muito mais tarde, oh, um ano depois, talvez mais. Oh, sim,
vou lhe contar, você é um amigo tão querido. Eu estava nesse jantar e as
pessoas falavam de Mussolini, e alguns dos homens diziam que não era
mais nenhuma piada, poderia haver outra guerra, ainda pior que a última.
Foi quando então alguém mencionou o nome de Cecil. Disse que
precisávamos mais do que nunca de gente como ele numa hora dessas, e ele
realmente não devia ter se aposentado, com certeza ainda lhe restava muita
energia. Daí alguém disse, ele é o homem certo para empreender essa
grande missão, e alguém mais disse, não, isso não é justo com ele, já está
velho demais, não sobrou nenhum colega próximo, nem mulher mais ele
tem. E foi então que me ocorreu. Pensei, bom, mesmo um grande homem
desses, com todos os seus feitos, precisa de alguém, alguém que faça
diferença. Alguém para ajudá-lo, no final da sua carreira, para reunir o que
for preciso para uma última grande investida."
Calou-se por um momento, então eu disse: "E parece que Sir Cecil
enxergou também do mesmo modo".
"Posso ser persuasiva quando quero, Christopher. Além disso, ele diz ter
se apaixonado por mim à primeira vista, naquele banquete."
"Que esplêndido."
Abaixo de nós, na grama, a certa distância, vários convidados faziam
farra junto ao lago. Podia ver um homem, seu colarinho sobressaindo na
nuca, correndo atrás de alguns patos. Afinal eu disse:
"Esse negócio de Sir Cecil fazer uma derradeira investida. O feito que o
coroasse. O que exatamente você tinha em vista para ele? É por isso que
vão se afastar por meses?".
Sarah respirou fundo e seu olhar ficou sério e firme. "Christopher. A
resposta você deve saber."
"Se eu soubesse a resposta…"
"Oh, Deus do céu! Estamos indo para Xangai, claro."
E difícil descrever o que senti quando a escutei dizer isso. Talvez
houvesse ainda algum elemento de surpresa. Porém mais do que tudo,
recordo uma espécie de alívio; uma estranha sensação de que, desde o dia
em que primeiro lhe pusera os olhos todos aqueles anos antes no Clube
Charingworth, uma parte de mim esteve esperando por esse momento; que
de algum modo, toda minha amizade com Sarah sempre se deslocara para
esse ponto específico, e agora por fim ele chegara. As poucas palavras que
passamos a trocar então tinham um toque estranhamente familiar, como se
já as tivéssemos ensaiado muitas vezes em alguma parte.
"Cecil conhece bem o lugar", ela estava dizendo. "Sente que talvez seja
capaz de ajudar a resolver as coisas por lá, e sentiu que devia ir. E assim
vamos. Semana que vem. As nossas malas estão praticamente prontas."
"Bem, então desejo a Sir Cecil, desejo a vocês dois, tudo de bom para
que tenham êxito na sua missão em Xangai. Está ansiosa? Tenho impressão
de que está."
"Claro que estou. Claro que estou ansiosa. Esperei muito tempo por
algo assim. Estou tão cansada de Londres e… e de tudo isso" — ela acenou
para o hotel às nossas costas. "Não era mais nenhuma jovem, e pensava às
vezes que minha chance nunca viria. Mas cá estamos, vamos para Xangai.
Então, Christopher, qual o problema?"
"Suponho que isso possa soar um tanto ridículo para você", eu disse.
"Mas vou dizer mesmo assim. Sabe, sempre foi a minha intenção voltar
também a Xangai. Quero dizer, para… para resolver os problemas por lá.
Essa sempre foi minha intenção."
Por um instante, ela continuou a fitar o pôr-do-sol. Depois se virou e
sorriu para mim, e reparei que seu sorriso era cheio de tristeza e tingido de
censura. Estendeu uma das mãos e tocou-me de leve a face, depois tornou a
virar-se para a vista.
"Talvez Cecil resolva rapidamente as coisas em Xangai", disse. "Talvez
não. De todo modo, pode ser que fiquemos por lá um bom tempo. Se então
o que disse é verdade, Christopher, é bem possível que nos vejamos lá. Não
é?"
"Sim", eu disse. "Certamente."

Não tornaria a ver Sarah antes de ela embarcar. Se tinha todo o direito
de censurar-me por minha procrastinação ao longo dos anos, quanto mais
merecedor de seu desapontamento seria eu caso deixasse agora de agir?
Pois é notório, qualquer que tenha sido o progresso realizado por Sir Cecil
em Xangai durante os meses decorridos, não há solução alguma à vista. As
tensões continuam a avultar mundo afora; pessoas cultas comparam nossa
civilização a um monte de feno no qual se atiram fósforos acesos. Enquanto
isso, cá estou, ainda definhando em Londres. Mas com a chegada da carta
de ontem, pode-se dizer que as últimas peças do quebra-cabeça juntaram-se.
Decerto chegou finalmente a hora de eu próprio ir para lá, para Xangai, de
ir para lá e — depois de todos esses anos — "matar a serpente", como disse
aquele honrado inspetor de West Country.
Mas isso terá o seu preço. Hoje de manhã, tal como ontem, Jennifer saiu
para fazer compras — em busca dos últimos itens que ela sustenta serem
imprescindíveis para o novo período letivo. Ao sair, pareceu empolgada e
feliz; nada sabe ainda de meus planos, nem das coisas que eu e a srta.
Givens discutimos na noite passada.
Chamei a srta. Givens à sala de estar e tive de convidá-la a sentar-se três
vezes antes que o fizesse. Talvez tivesse uma vaga idéia do que eu desejava
dizer, e sentiu que sentar comigo redundaria em alguma espécie de conluio.
Expus-lhe a situação o melhor que pude; tentei lhe fazer compreender a
vasta importância do caso; que era um daqueles, aliás, com que estivera
envolvido havia muitos e muitos anos. Ela ouviu impassivelmente, e
quando me interrompi, apenas perguntou: quanto tempo eu ficaria fora?
Creio que então falei por algum tempo, tentando lhe explicar por que era
impossível estabelecer um espaço de tempo inequívoco em um caso dessa
espécie. Tenho a impressão de que foi ela quem me interrompeu afinal para
indagar de algo, e depois disso passamos vários minutos discorrendo sobre
as várias implicações de minha ausência. Foi somente após discutirmos
esses assuntos à exaustão, e depois de ela levantarse para sair, que lhe disse:
"Senhorita Givens, tenho plena consciência de que, a curto prazo, por
mais que a senhorita se esforce, minha ausência trará dificuldades para
Jennifer. Mas me pergunto se, a longo prazo, a senhorita considerou ser
quase certamente em favor dos nossos melhores interesses, meus e de
Jennifer, que eu siga o curso que acabei de lhe esboçar. Afinal de contas,
como Jennifer será um dia capaz de amar e respeitar um tutor de quem ela
saberá ter virado as costas a sua mais solene tarefa quando o chamado
finalmente veio? Sejam quais forem os desejos dela agora, terá somente
desprezo por mim quando ficar mais velha. E de que isso valeria para nós
dois?".
A srta. Givens olhou-me fixamente, então disse: "Parece ter razão,
senhor Banks". E acrescentou: "Mas ela sentirá saudade, senhor Banks,
apesar de tudo".
"Sim. Sim, também diria que sim. Mas, senhorita Givens, não
compreende?" Talvez eu tivesse alterado a voz nessa altura. "Não
compreende como são urgentes as coisas agora? O crescente tumulto por
todo o mundo? Eu tenho de ir!"
"Claro, senhor Banks."
"Desculpe. Peço-lhe desculpas. Estou um tanto agitado esta noite. Foi
um dia daqueles."
"Quer que eu conte a ela?", perguntou a srta. Givens.
Pensei a respeito, então abanei a cabeça. "Não, eu falo com ela. Falo
com ela quando for a hora. Agradeceria se não lhe dissesse nada até termos
uma conversa."
Propusera-me ontem à noite falar com Jennifer ao longo do dia de hoje.
Mas ao pensar melhor, senti ser talvez prematuro fazê-lo; além do que, isso
talvez turve sem necessidade alguma sua atual disposição de ânimo, tão
expansiva, no tocante ao próximo período letivo. Será melhor, feitas as
contas, deixar por ora o assunto de lado, e serei capaz de ir vê-la na escola
uma vez que tenha concluído os meus preparativos. Jennifer é uma criança
de notável espírito, e não há razão para eu supor que ela se sentirá arrasada
só pelo fato de minha partida.
Não consigo deixar de recordar, porém, aquele dia de inverno dois anos
atrás, quando a visitei pela primeira vez em St. Margaret. Eu realizava uma
investigação não muito longe dali, e sendo ela ainda novata na escola,
decidi fazer uma visita para verificar se tudo corria bem.
A escola compreende um grande solar rodeado de vastas extensões de
terreno. Atrás do solar, o gramado inclina-se em declive para um lago.
Talvez em razão desse último, a cada uma das quatro ocasiões em que
visitei a escola, encontrei névoa envolvendo o local. Gansos passeiam à
solta, enquanto jardineiros taciturnos cuidam dos terrenos pantanosos. De
modo geral, é uma atmosfera bastante austera, embora as professoras, pelo
que vi, apresentem rostos mais calorosos. Nesse dia especificamente,
lembro-me de uma certa sra. Nutting, uma mulher afável na casa dos
cinqüenta, conduzindo-me pelos corredores gelados. A certa altura, estacou
junto a um nicho e, baixando a voz, disse-me:
"Consideradas as coisas, senhor Banks, ela está se adaptando tão bem
quanto se pode esperar. Afinal, sempre haverá algumas dificuldades para
ela no início, enquanto as outras garotas ainda a virem como novata. E uma
ou outra delas pode de fato ser um pouco cruel às vezes. Mas no próximo
trimestre, tudo terá passado, tenho certeza".
Jennifer aguardava por mim numa sala grande, de painéis de carvalho,
onde uma lenha ardia na lareira. A professora nos deixou, e Jennifer sorriu
um tanto tímida de onde se encontrava, de pé na frente do console da
lareira.
"Eles não mantêm as coisas aqui muito aquecidas", eu disse, esfregando
minhas mãos e dirigindo-me ao fogo.
"Oh, você devia ver o frio que faz em nosso dormitório. Pingentes de
gelo nos lençóis!" E deu uma risadinha.
Sentei-me numa cadeira perto do fogo, mas ela permaneceu de pé.
Receara que talvez se sentisse constrangida vendome nesse contexto
diferente, mas logo passou a conversar um tanto desenvolta, sobre o seu
badminton, as garotas de quem gostava, a comida, que de acordo com ela
era "ensopado, ensopado, ensopado".
"Às vezes é difícil", comentei a certa altura, "quando a pessoa é nova.
Elas não estão… formando panelinha ou coisa parecida, estão?"
"Oh, não", ela disse. "Bom, de vez em quando implicam comigo, mas
sem nenhuma maldade. São todas garotas simpáticas aqui."
Falávamos havia cerca de vinte minutos quando me pus de pé e
entreguei-lhe a caixa de papelão que trouxera em minha pasta.
"Oh, o que é isso?", ela exclamou excitada.
"Jenny, não é… não é um presente propriamente dito."
Ela captou a advertência em minha voz e olhou para a caixa em suas
mãos com súbita cautela. "Então o que é?", perguntou.
"Abra. Veja você mesma."
Observei-a remover a tampa da caixa — aproximadamente do tamanho
de uma caixa de sapatos — e olhar fixamente para dentro. Sua expressão, já
cautelosa, não se alterou em absoluto. Estendeu então uma das mãos e
tocou em algo.
"Receio", eu disse afável, "que isso seja tudo o que pude recuperar. Seu
baú, descobri, não se perdeu no mar, mas foi roubado junto com quatro
outros de um depósito de Londres. Fiz o possível, mas acho que os ladrões
simplesmente destruíram o que não puderam vender fácil. Não consegui
encontrar pistas das roupas e coisas assim. Só essas coisinhas."
Ela retirara um bracelete e o examinava atentamente, como se
verificasse estragos. Tornou a pô-lo de volta, tirou daí um par de
minúsculos sinos de prata e os examinou do mesmo modo. Tornou então a
pôr a tampa na caixa e olhou-me.
"Foi muita gentileza de sua parte, tio Christopher", disse calmamente.
"E você deve andar tão ocupado."
"Não foi incômodo algum. Só lamento não ter podido recuperar mais."
"Foi muita gentileza de sua parte."
"Bem, é melhor deixar você voltar a sua aula de geografia. Não cheguei
numa hora muito conveniente."
Ela não se mexeu, continuou lá de pé placidamente, fitando a caixa em
suas mãos. Então disse:
"Quando você está na escola, às vezes se esquece. Só às vezes. Você
conta os dias que faltam para as férias como as outras garotas, e então pensa
que vai rever sua mãe e seu pai".
Mesmo nessas circunstâncias, ainda assim foi uma surpresa ouvi-la
mencionar seus pais. Esperei que dissesse mais, mas não disse;
simplesmente me fitou como se tivesse acabado de me fazer uma pergunta.
No final, eu disse:
"É muito difícil às vezes, eu sei. É como se o mundo inteiro
desmoronasse ao seu redor. Mas vou lhe dizer uma coisa, Jenny. Você está
se saindo às maravilhas nessa tarefa de juntar outra vez os cacos. Está
mesmo. Sei que nunca vai poder ser bem a mesma coisa, mas sei que você é
capaz de seguir adiante agora e construir um futuro feliz para si própria. E
sempre estarei aqui para ajudar você, quero que saiba disso".
"Obrigada", ela disse. "E obrigada por isto aqui."
Pelo que recordo, foi assim que terminou nosso encontro naquele dia.
Saímos do relativo calor do fogo, atravessamos a sala com correntes de ar e
chegamos ao corredor, onde a observei afastar-se de volta para sua classe.
Naquela tarde de inverno dois anos atrás, não tinha idéia de que minhas
palavras para ela fossem outra coisa senão bem fundamentadas. Quando
tornar a visitá-la em St. Margaret, para lhe dizer adeus, é bem possível que
nos encontremos naquela mesma sala com correntes de ar, ao pé do mesmo
fogo. Se for assim, tanto mais difíceis serão para mim as coisas, pois há
remota possibilidade de que Jennifer não se lembre muito claramente de
nosso último encontro ali. Mas ela é uma garota inteligente, e sejam quais
forem as suas emoções imediatas, é bem possível que compreenda tudo
quanto lhe disser. Quem sabe até entenda, mais rápido que a sua babá na
noite passada, que quando for mais velha — quando esse caso tiver se
tornado uma triunfante memória — ela ficará sinceramente feliz de que eu
tenha aceitado o desafio de minhas responsabilidades.
PARTE QUATRO

Hotel Cathay, Xangai, 20 de setembro de 1937


12.

Pessoas que viajam aos países árabes comentam muitas vezes a maneira
como um nativo posiciona seu rosto com desconcertante proximidade
durante a conversa. Isso, claro, é um simples costume local que por acaso
difere do nosso, e qualquer visitante de mente aberta dali a pouco não fará
caso disso. Ocorreu-me que eu devesse tentar encarar com semelhante
espírito algo que, ao longo dessas três semanas em que estou aqui em
Xangai, passou a ser uma eterna fonte de irritação: a saber, a maneira como
as pessoas aqui parecem determinadas em toda oportunidade a barrar-lhe a
visão. Mal se entra num recinto ou se salta de um carro, um sujeito ou outro
terá se postado sorridente bem na sua linha de visão, obstando o mais
elementar exame de seu entorno. Não raro, o responsável pelo incômodo é
seu próprio anfitrião ou o guia do momento; mas em havendo algum lapso
nesse sentido, nunca há escassez de circunstantes ávidos por reparar a
ausência. Até onde posso apurar, todos os grupos nacionais que aqui
compõem a comunidade — ingleses,franceses, americanos, japoneses,
russos — consentem nessa prática com igual zelo, e a inescapável
conclusão é de que este é um daqueles costumes que prosperaram
unicamente aqui no interior da Colônia Internacional de Xangai,
atravessando todas as barreiras de raça e classe.
Levei uns bons dias para atinar com essa excentricidade local e
reconhecer que isso era o que estava na raiz da desorientação que ameaçou
dominar-me por algum tempo ao chegar aqui. Agora, embora ainda dê por
mim ocasionalmente irritado a propósito, isso não é uma coisa de excessiva
preocupação. Ademais, descobri uma segunda prática, complementar, para
tornar a vida um pouco mais fácil em Xangai: parece ser bastante
admissível aqui empregar repelões surpreendentemente ríspidos para fazer
as pessoas saírem da frente. Embora eu ainda não tenha criado coragem
para tirar proveito dessa licença para mim próprio, já testemunhei em
inúmeras ocasiões senhoras requintadas em reuniões de sociedade
aplicarem os mais peremptórios empurrões sem provocar mais que um
murmúrio.
Quando em minha segunda noite aqui entrei no salão de baile na
cobertura do Hotel Palace, faltava-me ainda identificar uma e outra dessas
práticas, e em conseqüência vi muito dessa noite minada pela minha
frustração com o que tomei no instante como a natureza excessivamente
aglomerada da Colônia Internacional. Ao sair do elevador, mal vislumbrara
o suntuoso tapete que levava ao salão de baile — um renque de porteiros
chineses alinhados por toda a extensão — quando um de meus anfitriões
daquela noite, o sr. MacDonald do consulado britânico, interpôs o seu
corpanzil. Enquanto caminhávamos para a entrada, notei a maneira bastante
encantadora de cada porteiro, ao passarmos, curvar-se e, unindo-as, erguer
as suas mãos de luvas brancas. Mas mal havíamos passado o terceiro
homem — eram seis ou sete ao todo — quando mesmo essa visão foi
obstruída pelo meu outro anfitrião, um tal de sr. Grayson, representante do
Conselho Municipal de Xangai, que me tomou à parte para continuar fosse
lá o que estivesse dizendo enquanto subíamos de elevador. E nem bem
entrara na sala em que, segundo meus dois anfitriões, assistiríamos ao
"cabaré mais animado da cidade e à reunião da elite de Xangai", quando dei
por mim em meio a uma multidão errante. O teto alto acima de mim, com
seus elaborados lustres, levou-me a supor que as dimensões da sala fossem
bastante vastas, embora por algum tempo não tivesse meio de corroborá-lo.
Ao seguir os meus anfitriões pela turba, vi por toda a extensão de uma das
laterais da sala grandes janelas através das quais, naquele momento, o pôr-
dosol afluía. Vislumbrei também um palco na extremidade oposta, sobre o
qual vários músicos de smoking branco zanzavam conversando. Eles, tal
como todos os outros, pareciam estar aguardando algo — talvez
simplesmente o cair da noite. Havia uma inquietação no ar, com pessoas
empurrando e circundando umas às outras sem nenhum propósito claro.
Quase perdi de vista meus anfitriões, mas vi então MacDonald
acenando para mim, e ao final me achei sentado a uma mesinha com uma
toalha branca engomada à qual tinham avançado a custo meus
companheiros. Desse ponto de observação mais baixo pude ver que, de fato,
um bom espaço do recinto fora deixado vago — supostamente para o
cabaré — e que quase todos os presentes espremiam-se numa faixa
relativamente estreita ao longo da parte envidraçada da sala. A mesa à qual
nos sentávamos integrava uma longa fileira, embora quando tentei ver até
onde chegava a fileira, fui mais uma vez frustrado. Ninguém estava sentado
às mesas imediatamente vizinhas, provavelmente porque a multidão que se
acotovelava tornava isso impraticável. Em breve, aliás, nossa mesa
começou a parecer um barquinho acometido de todos os lados pelos
vagalhões da alta sociedade de Xangai. Minha chegada, além disso, não
passara despercebida; eu ouvia murmúrios ao meu redor a espalharem a
notícia, e cada vez mais olhares voltavam-se para nosso lado.
Apesar de tudo isso, até que as coisas ficassem um tanto insuportáveis,
recordo que tentei reatar a conversa iniciada com meus anfitriões no carro
que nos trouxera ao Hotel Palace. A certa altura, lembro de estar dizendo a
MacDonald:
"Agradeço muito sua sugestão, senhor. Mas na verdade estou satisfeito
em seguir minhas linhas de investigação sozinho. É como estou acostumado
a trabalhar".
"Como queira, meu velho", disse MacDonald. "Só achei que tivesse de
mencionar. Alguns desses sujeitos de que lhe falei, eles com certeza
conhecem esta cidade como a palma da mão. E os melhores deles não ficam
nada a dever aos da Scotland Yard. Só achei que podiam poupar ao senhor,
a todos nós, um tempo precioso."
"Mas há de lembrar o que lhe disse, senhor MacDonald. Só saí da
Inglaterra uma vez que formara uma visão clara do caso. Em outras
palavras, minha chegada aqui não é nenhum ponto de partida, mas a
culminação de vários anos de trabalho."
"Em outras palavras", Grayson interrompeu de súbito, "veio até nós
para destrinchar o caso de uma vez por todas. Que maravilha! Esplêndida
notícia!"
MacDonald lançou ao homem do Conselho Municipal um olhar de
desdém, então continuou como se este não houvesse falado.
"Não quero lançar nenhuma dúvida sobre suas capacidades, meu velho.
Seu currículo fala por si próprio. Só estava sugerindo um pouco de suporte
no sentido de pessoal. Estritamente sob o seu comando, naturalmente.
Apenas, sabe, para agilizar as coisas. Tendo acabado de chegar aqui, pode
não estar tão claro como nossa situação tornou-se urgente agora. Tudo
parece bem relaxado aqui, eu sei. Mas receio bastante que não tenhamos lá
muito tempo de sobra."
"Tenho plena noção da urgência, senhor MacDonald. Mas só posso
reafirmar, tenho toda a razão para acreditar que as coisas serão conduzidas a
uma conclusão satisfatória num período relativamente curto. Isto é,
contanto que me seja permitido proceder a minhas investigações sem
entraves."
"Esplêndida notícia!", exclamou Grayson, merecendo outro olhar frio
de MacDonald.
Por muito do tempo em que estivera em sua companhia nesse dia,
impacientara-me cada vez mais com a presunção de MacDonald de eu não
passar de um funcionário do consulado encarregado de questões de
protocolo. Não foi somente sua exagerada curiosidade a respeito de meus
planos — ou sua avidez de impingir-me "assistentes" — que o traiu; foi o ar
de refinada duplicidade aliada a seus modos lânguidos, bem-educados, que
prontamente o ressaltava como uma inteligência superior. A essa altura da
noite, devo ter ficado farto de ser indulgente com sua charada, pois lhe fiz
meu pedido como se a verdade já houvesse sido reconhecida pelos dois
havia muito.
"Já que falamos de assistência, senhor MacDonald", disselhe, "há de
fato algo que talvez possa fazer por mim, o que seria de imensa ajuda."
"É só dizer, meu velho."
"Como mencionei antes, tenho um interesse particular no que creio que
as forças policiais daqui estão chamando de assassinatos do Cobra
Amarela."
"Oh, sim?" Pude ver uma esquivança alastrar-se pelo rosto de
MacDonald. Grayson, por outro lado, pareceu não saber a que eu me
referia, e olhava de um para outro.
"De fato" — prossegui, olhando atentamente para MacDonald —, "foi
quando reuni indícios suficientes sobre esses chamados assassinatos do
Cobra Amarela que finalmente tomei a decisão de deslocar-me para cá."
"Entendo. Então está interessado na história do Cobra Amarela."
MacDonald correu seu olhar pela sala com indiferença. "História de
amargar. Mas em absoluto significativa, não creio, em termos mais
amplos."
"Pelo contrário. Acredito ser altamente relevante."
"Desculpe", Grayson logrou finalmente interromper. "Mas o que são
exatamente esses assassinatos do Cobra Amarela? Nunca ouvi falar deles."
"É como as pessoas andam chamando essas represálias comunistas",
MacDonald contou-lhe. "Comunas que matam parentes de um de seus
membros que virou informante." Então disse para mim: "Isso vem
ocorrendo de tempos em tempos. Os comunas são selvagens nesses
assuntos. Mas é um assunto entre os chineses. Chiang Kai-shek tem pleno
controle dos comunas e pretende continuar assim, com ou sem japoneses.
Tentamos ficar acima disso, sabe. Fico surpreso em estar tão interessado em
tudo isso, meu velho".
"Mas essa particular série de represálias", eu disse, "tais assassinatos do
Cobra Amarela. Já se estendem por um bom tempo. Vão e voltam pelos
últimos quatro anos. Tempo este durante o qual treze pessoas já foram
mortas até hoje."
"Sabe dos detalhes melhor que eu, meu velho. Mas do que ouvi, a razão
de as represálias serem desferidas é que os comunas não sabem quem é seu
traidor. Começam matando as pessoas erradas. Um pouco aproximada,
como vê, essa visão bolchevique da justiça. Cada vez que mudam de idéia
sobre quem possa ser esse tal de Cobra Amarela, voltam à carga e matam
outra família."
"Ajudaria imensamente as coisas, senhor MacDonald, se fôssemos
capazes de falar com tal informante. O homem a quem se referem como o
Cobra Amarela."
MacDonald encolheu os ombros. "Isso tudo é assunto dos chineses, meu
velho. Nenhum de nós nem sequer sabe quem é esse Cobra Amarela. A meu
ver, o governo chinês faria bem em anunciar sua identidade antes que mais
gente inocente seja confundida com os parentes dele. Mas sinceramente,
meu velho. É tudo assunto dos chineses. Melhor deixar como está."
"É importante entrar em contato com o informante."
"Bem, já que insiste tanto, darei uma palavrinha com algumas pessoas.
Mas não posso prometer muito. Esse sujeito parece bastante útil ao
governo. Os homens de Chiang o mantêm a sete chaves, imagino."
Eu tomara nota, a essa altura, de mais e mais pessoas comprimindo-se
de todos os lados, ávidas não somente por me ver em carne e osso, mas de
escutar algo de nossa conversa. Em tais circunstâncias, a custo podia
esperar que MacDonald falasse francamente, e decidi deixar por ora o
assunto de lado. De fato, fui tomado naquele momento por um forte
impulso de levantar-me e tomar um pouco de ar, mas antes que pudesse me
mexer, Grayson inclinou-se para a frente com um sorriso prazenteiro,
dizendo:
"Senhor Banks, reconheço que esta não seja a melhor hora. Mas só
queria trocar duas palavras. Sabe o que é, senhor, fui encarregado da ditosa
tarefa de organizar a cerimônia. Quero dizer, a cerimônia de boas-vindas".
"Senhor Grayson, não quero parecer mal-agradecido, mas como acabou
de dizer o senhor MacDonald aqui, o tempo urge. E já sinto terem me dado
as boas-vindas com hospitalidade tão pródiga…"
"Não, não, senhor", Grayson riu nervoso, "estava me referindo à
cerimônia de boas-vindas. Quero dizer, a que dará boasvindas a seus pais
depois dos anos de cativeiro."
Isso, admito, pegou-me um tanto de surpresa, e talvez por um segundo
não fiz mais que fitá-lo. Ele soltou outra risada nervosa e disse:
"Claro, é um pouco como pôr o carro na frente dos bois, reconheço.
Precisa primeiro fazer o seu trabalho. E é claro, não quero desafiar o
destino. Mesmo assim, sabe, não temos como não preparar. Assim que
anunciar a resolução do caso, todo o mundo voltará os olhos para nós, o
Conselho Municipal, para providenciar uma cerimônia à altura de tal
momento. Vão querer um evento especial, e vão querer sem demora. Mas
veja o senhor, organizar algo da escala de que estamos falando não é
assunto simples. Pois então, veja, pensei se não poderia lhe propor algumas
opções bem básicas. Minha primeira pergunta, senhor, antes de mais nada, é
se está satisfeito com o Parque Jessfield para a cerimônia. Vamos precisar,
sabe, de um senhor espaço…".
Enquanto Grayson falava, tomei nota regularmente do ruído — de
algum ponto atrás do bulício da multidão — de artilharia distante. Mas
então as palavras de Grayson foram subitamente interrompidas por um
estrondo que abalou o prédio. Ergui a vista alarmado, para ver então todos a
minha volta sorridentes, risonhos mesmo, os copos de coquetel ainda nas
mãos. Depois de um momento, pude discernir um movimento na multidão
rumo às janelas, algo como se uma partida de críquete houvesse reiniciado
lá fora. Decidi aproveitar a oportunidade para deixar a mesa, e, levantando,
juntei-me ao fluxo. Havia muita gente diante de mim para que visse algo, e
tentava insinuarme até a frente quando me dei conta de que uma senhora
grisalha junto a meu ombro falava comigo.
"Senhor Banks", dizia ela, "tem alguma idéia de como todos nós
estamos aliviados pelo senhor estar agora finalmente conosco? Claro, não
queríamos demonstrá-lo, mas estamos ficando extremamente preocupados
com… bem…" — ela gesticulou na direção dos ruídos da artilharia —
"meu marido, ele insiste que os japoneses jamais vão se atrever a atacar a
Colônia Internacional. Mas sabe como é, ele diz isso pelo menos vinte
vezes por dia, o que pouco me tranqüiliza. Vou lhe contar uma coisa, senhor
Banks, quando nos chegou a notícia que a sua chegada era iminente, essa
foi a primeira boa nova que tivemos aqui em meses. Meu marido até parou
de repetir aquele pequeno mantra dele sobre os japoneses, parou pelo
menos por alguns dias. Deus do céu!"
Outra explosão ensurdecedora sacudiu o prédio, provocando alguns
brindes irônicos. Notei então que um pouco além, na minha frente, algumas
portas-balcão haviam sido abertas, e as pessoas tinham avançado sobre uma
sacada.
"Não se preocupe, senhor Banks", disse um jovem, agarrando-me o
cotovelo. "Não há a menor chance de que isso venha para cá. Ambos os
lados estão agora extremamente cuidadosos após a Segunda-Feira
Sangrenta."
"Mas de onde está vindo isso?", perguntei-lhe.
"Oh, é o navio de guerra japonês no porto. As bombas na verdade fazem
um arco acima de nós e aterrissam do outro lado da enseada. Depois que
escurece, é uma visão e tanto. Um pouco como observar estrelas cadentes."
"E se uma bomba errar o alvo?"
Não apenas o jovem com quem conversava, mas várias outras pessoas
ao meu redor riram dessa idéia — pareceu-me que alto demais. Então disse
outra voz:
"Temos de confiar nos japoneses para que acertem. Afinal, se ficarem
desleixados, é bem provável que atirem uma atrás de suas próprias linhas".
"Senhor Banks, quer usar um pouco?"
Alguém estendia um binóculo de teatro. Quando o apanhei, foi como se
tivesse dado um sinal. A multidão cindiu-se a minha frente, e dei comigo
praticamente conduzido às portasbalcão.
Saí a uma pequena sacada. Podia sentir uma brisa morna, e o céu era de
um rosa intenso. Olhava de uma altura considerável, e o canal era visível
por sobre a fileira imediata de prédios. Para além da água havia uma massa
de barracões e entulho, da qual uma coluna de fumaça cinza erguia-se no
céu noturno.
Levei o binóculo aos olhos, mas o foco estava inteiramente errado para
mim, e não pude ver nada. Quando graduei o foco, percebi que mirava o
canal, e fiquei ligeiramente surpreso ao ver vários barcos ainda circulando
normalmente bem ao lado do combate. Avistei um barco em particular —
um navio semelhante a uma barcaça, com um remador solitário — que
estava tão abarrotado de caixotes e fardos que parecia impossível passar sob
a pouco elevada ponte do canal bem abaixo de mim. Enquanto eu
observava, o navio aproximou-se da ponte rapidamente, e tinha certeza de
que veria pelo menos um caixote ou dois cair de cima da pilha na água.
Pelos segundos seguintes, continuei a mirar o barco pelo binóculo, quase
que esquecido do combate. Notei com interesse o barqueiro, que estava
como eu profundamente absorto no destino de seu carregamento e alheio à
guerra nem a sessenta metros à sua direita. Então o barco desapareceu sob a
ponte, e quando o vi deslizar graciosamente do outro lado, os precários
fardos ainda incólumes, baixei o binóculo com um suspiro.
Reparei que uma volumosa multidão acumulara-se às minhas costas
enquanto estivera olhando para o canal. Passei o binóculo para alguém
próximo e disse para ninguém em particular: "Então essa é a guerra.
Interessantíssimo. Há muitas baixas, vocês acham?".
Isso desencadeou grande falatório. Uma voz disse: "Um monte de
mortes lá em Chapei. Mas daqui a alguns dias os japas levam a melhor, e
tudo volta à calmaria".
"Não teria tanta certeza", disse um outro. "O Kuomintang surpreendeu
todo mundo até agora, e meu palpite é que continuará a fazê-lo. Aposto que
eles ainda agüentam um bocado."
Então todos ao meu redor pareceram começar a discutir de uma vez.
Alguns dias, algumas semanas, que diferença isso faz? Os chineses teriam
de se render cedo ou tarde, então por que não o faziam agora? Ao que
muitas vozes objetaram que a conclusão estava muito longe de ser favas
contadas. As coisas mudavam dia a dia, e havia muitos fatores, cada qual
influenciando os outros.
"E além disso", alguém perguntou em voz alta, "o senhor Banks está
aqui ou não está?"
Essa pergunta, obviamente tencionada como retórica, pairou entretanto
no ar de maneira estranha, fazendo baixar um silêncio e todos os olhares
voltarem-se para mim outra vez. De fato, tive a impressão de que não só o
grupo ao redor da sacada, mas o salão de baile inteiro silenciara e esperava
minha resposta. Pareceu-me que este era um bom momento de fazer uma
proclamação — uma que talvez fosse esperada desde o momento em que eu
entrara no recinto —, e, limpando a garganta, declarei em voz alta:
"Senhoras e senhores. Bem posso ver que a situação aqui tornou-se
bastante espinhosa. E não desejo criar falsas expectativas numa hora dessas.
Mas permitam-me dizer que eu não estaria agora aqui se não fosse otimista
com relação a minhas chances de conduzir esse caso, num futuro bem
próximo, a um desenlace feliz. De fato, senhoras e senhores, diria estar
mais do que otimista. Rogo-lhes então por sua paciência nesta ou na
próxima semana. Depois disso, veremos o que nós alcançamos".
Ao proferir essas últimas palavras, a orquestra de jazz subitamente
começou a tocar no salão de baile. Não tenho idéia se isso foi uma simples
coincidência, mas em todo caso o efeito foi de dar um remate bastante
atraente a minha fala. Senti o foco da atenção deslocar-se de mim, e vi as
pessoas voltarem para dentro. Eu também voltei para dentro da sala, e
enquanto tratava de reencontrar minha mesa — por um instante perdera um
pouco a noção de espaço — notei que uma trupe de dançarinas tomara a
pista.
Havia talvez umas vinte dançarinas, muitas delas "eurasianas",
parcamente vestidas com trajes uniformes, com um motivo de pássaro.
Enquanto as dançarinas faziam as suas evoluções na pista, a sala pareceu
perder todo o interesse na batalha do lado de lá da água, embora os ruídos
ainda fossem claramente audíveis por trás da música animada. Era como se,
para essas pessoas, um divertimento houvesse terminado e outro,
começado. Senti, não pela primeira vez desde que chegara a Xangai, uma
onda de repulsa por elas. Não era simplesmente o fato de elas, de maneira
tão lúgubre, não terem ao longo dos anos se posto à altura do desafio do
caso, de terem permitido que as coisas chegassem aos espantosos níveis
atuais, com todas as suas enormes ramificações. O que me deixou
silenciosamente escandalizado, desde o momento em que cheguei, foi a
recusa de todos aqui em reconhecer a sua extrema culpabilidade. Durante
essa quinzena em que estive aqui, no meu convívio com esses cidadãos, de
origem alta ou baixa, não presenciei — nem uma única vez — nada que se
pareça à vergonha sincera. Aqui, em outras palavras, no âmago do turbilhão
que ameaça tragar o conjunto do mundo civilizado, existe uma lamentável
conspiração da recusa; uma recusa da responsabilidade, que desistiu de si
mesma e desencantou-se, manifestando-se no tipo de atitude defensiva com
que deparei tantas vezes. E lá estava ela então, a chamada elite de Xangai,
tratando com tanto desprezo o sofrimento de seus vizinhos chineses do
outro lado do canal.
Deslocava-me ao longo da fileira de costas que se havia formado para
assistir ao cabaré, tentando conter minha repugnância, quando percebi que
alguém me puxava pelo braço, e vireime para encontrar Sarah.
"Christopher", ela disse. "Tentei a noite inteira chegar até você. Não tem
tempo de dizer alô a seus velhos amigos do lar? Veja, Cecil está ali,
acenando."
Levei alguns instantes para avistar Cecil por entre a multidão; estava
sentado sozinho a uma mesa num canto extremo da sala, e de fato me
acenava. Acenei de volta, então olhei para Sarah.
Era nosso primeiro encontro desde a minha chegada. Minha impressão
sobre ela naquela noite era que parecia muito bem; o sol de Xangai
eliminara beneficamente sua costumeira palidez. Além disso, enquanto
trocávamos algumas palavras amistosas, seus modos permaneceram lépidos
e seguros. É só agora, depois dos sucessos da noite passada, que dou
comigo a pensar de novo naquele primeiro encontro, numa tentativa de
descobrir como pude ser iludido. Talvez seja somente a retrospectiva que
me faça recordar algo deliberado demais em seu sorriso, em especial
sempre que mencionava Sir Cecil. E embora tenhamos dito pouco mais que
amenidades, após a noite passada, uma frase que ela proferiu naquela noite
— que mesmo então me intrigou bastante — continuou a ecoar em minha
cabeça o dia inteiro.
Perguntara se ela e Sir Cecil haviam aproveitado o ano que passaram
ali. Assegurara-me ela que, embora Sir Cecil não houvesse conseguido o
avanço que esperara, fizera entretanto muito para merecer a gratidão da
comunidade. Foi então que perguntei, sem nenhuma segunda intenção:
"Então vocês não têm planos imediatos para sair de Xangai?".
Ao que Sarah riu, lançou outro olhar na direção do canto de Sir Cecil e
disse: "Não, por enquanto estamos bem acomodados. O Metropole é
bastante confortável. Não espero irmos a lugar algum tão cedo. A menos
que alguém venha em socorro, eu digo".
Ela disse tudo isso — inclusive esse último comentário sobre ser
socorrida — como quem conta uma piada, e embora eu não soubesse
exatamente a que ela se referia, respondi com uma ligeira risada para
acompanhar a sua. Falamos então, até onde recordo, sobre amigos em
comum na Inglaterra, até que a chegada de Grayson pôs termo definitivo a
uma conversa aparentemente sem complicações.
É só agora, como disse, depois da noite passada, que dou comigo a
repassar meus vários encontros com Sarah nessas três semanas, e é essa
única frase, acrescentada como uma espécie de ilação íntima a sua jovial
resposta, que continua a ecoar-me na cabeça.
13.

Passei boa parte da tarde de ontem dentro da escura e rangente casa de


barcos onde os três corpos foram descobertos. A polícia respeitou meu
desejo de realizar minhas investigações sem ser importunado, tanto que
perdi toda a noção de tempo e mal notei o sol se pôr lá fora. Na altura em
que atravessei a Beira-Mar e desci a pé a rua Nanquim, as luzes fúlgidas
haviam sido acesas e as calçadas encheram-se com as multidões noturnas.
Depois do dia longo, desalentador, senti necessidade de relaxar um pouco e
dirigi-me à esquina das ruas Nanquim e Kwangse, a um pequeno clube a
que fora levado nos dias seguintes a minha chegada. Não há nada de
especial no lugar; não passa de um porão calmo onde na maioria das noites
um pianista francês interpreta com melancolia peças de Bizet ou Gershwin.
Mas para mim está de bom tamanho, e lá regressei várias vezes nessas
semanas. Ontem à noite, passei talvez meia hora numa mesa de canto,
beliscando comida francesa e tomando notas daquilo que descobrira na casa
de barcos, enquanto as taxi-girls volteavam com seus clientes ao ritmo da
música.
Eu subira a escada de volta para a rua pretendendo regressar ao hotel,
quando por acaso me vi conversando com o porteiro russo. Ele é alguma
espécie de conde e fala excelente inglês, aprendido, assim me diz, com sua
governanta antes da Revolução. Tomei o hábito de trocar duas palavras com
ele sempre que visito o clube, e assim fazia na noite passada quando — não
lembro mais o que discutíamos — ele mencionou de passagem que Sir
Cecil e a sra. Medhurst haviam passado por lá antes.
"Imagino", comentei, "que tenham saído para aproveitar a noite."
Nisso, o conde pensou por um instante, então disse: "Casa da Boa Sorte.
Isso, acredito que Sir Cecil mencionou estarem a caminho de lá".
Não era um estabelecimento que eu conhecia, mas o conde passou sem
demora a dar-me as indicações, e como não fosse longe, toquei para lá.
Suas instruções eram claras o bastante, mas ainda não sei orientar-me
muito bem pelas ruelas secundárias em torno da rua Nanquim, e acabei por
ficar um pouco perdido. Isso não era algo com que me importasse muito. A
atmosfera nessa parte da cidade não é intimidante, mesmo depois de escuro,
e embora haja sido abordado por um estranho pedinte e a certa altura um
marujo bêbado tenha esbarrado comigo, dei por mim sendo levado com a
multidão noturna num estado de ânimo não distante da tranqüilidade. Após
o deprimente trabalho na casa de barcos, era um alívio estar em meio a
esses caçadores de prazer de todas as raças e classes; um alívio sentir os
aromas de comida e incenso vagarem até mim enquanto eu passava diante
de cada porta intensamente iluminada.
A noite anterior também, como tenho feito cada vez mais ultimamente,
creio que olhava ao redor, perscrutando os rostos da multidão que passava,
esperando divisar Akira. Pois o fato é que tenho quase certeza de ter visto o
meu velho amigo logo após minha chegada a Xangai — na minha segunda
ou terceira noite aqui. Foi a noite em que o sr. Keswick, da Jardine
Matheson, e mais outros cidadãos ilustres decidiram que eu devia "conhecer
a vida noturna". Ainda estava naquela altura meio desorientado, e achava o
circuito pelos bares dançantes e clubes cansativo. Estávamos na área de
entretenimento da Concessão Francesa — vejo agora que meus anfitriões
divertiam-se um bocado a chocar-me com alguns dos mais sinistros
estabelecimentos — e mal havíamos saído de um clube quando vi seu rosto
passar na multidão.
Ele compunha um grupo de japoneses vestidos com ternos elegantes,
evidentemente de fora da cidade. Claro, num vislumbre tão fugaz — as
figuras foram como silhuetas recortadas contra uma fileira de lanternas
penduradas numa porta —, não pude estar completamente seguro de que era
Akira. Talvez por essa razão, talvez por alguma outra, nada fiz para atrair a
atenção de meu velho amigo. Isso parece difícil de entender, mas só posso
dizer que assim foi. Imagino supusesse então que haveria muitas outras
dessas oportunidades; talvez tenha sentido que, encontrá-lo de tal maneira,
por acaso, quando cada um tinha outros companheiros, era inconveniente
— indigno, mesmo, da reunião que eu planejara por tanto tempo. De todo
modo, eu deixara passar a ocasião, e simplesmente segui o sr. Keswick e os
demais para a limusine a nossa espera.
Nessas últimas semanas, contudo, tenho tido motivo bastante para
lamentar minha inércia naquela noite. Pois embora, mesmo nas horas mais
agitadas, eu tenha insistido em esquadrinhar a multidão, nas ruas ou nos
saguões de hotel, enquanto dou prosseguimento aos meus assuntos, ainda
não tornei a avistá-lo. Estou ciente de que eu poderia ter tomado medidas
para localizá-lo; mas, a bem dizer, o caso deve por enquanto ter prioridade.
E Xangai não é um lugar tão vasto; cedo ou tarde vamos acabar topando um
com o outro.
Mas voltemos aos eventos da noite passada. As indicações do porteiro
levaram-me por fim a uma espécie de praça onde ia dar uma quantidade de
ruelas, e a multidão ali estava mais compacta que nunca. Havia pessoas
tentando vender coisas, outras tentando mendigar, enquanto outras ainda só
ficavam a conversar e observar. Um solitário riquixá que se aventurara na
turba ficara preso em seu meio, e enquanto eu passava, o homem do riquixá
discutia furioso com um circunstante. Pude ver a Casa da Boa Sorte na
esquina oposta, e em breve era conduzido por uma estreita escada acima,
coberta por um tapete vermelho.
Primeiro entrei numa sala do tamanho de um cômodo médio de hotel,
onde uma dúzia de chineses amontoava-se ao redor de uma mesa de jogo.
Quando perguntei se Sir Cecil achavase no recinto, dois dos funcionários
conferenciaram rapidamente, então um deles fez sinal para que o seguisse.
Subi outro lance de escadas, atravessei um corredor escuro e entrei
então numa sala cheia de fumaça, na qual um grupo de franceses jogava
cartas. Quando abanei a cabeça, o homem levantou os ombros e chamou-me
outra vez com um gesto. Dessa maneira, logo comprovei que o prédio era
um empório de jogo de certo tamanho, compreendendo vários cômodos
menores que o habitual, cada um dos quais com algum jogo ou outro em
curso. Mas exasperava-me com o modo como meu guia assentia convicto
cada vez que eu repetia o nome de Sarah ou de Sir Cecil, para dali em
seguida levar-me a outra sala enfumaçada onde só os fatigados olhos de
estranhos dirigiam-se a mim. Seja como for, quanto mais via do
estabelecimento, menos provável parecia que Sir Cecil fosse trazer Sarah a
tal lugar, e estava a ponto de desistir quando entrei por uma porta e
encontrei Sir Cecil sentado a uma mesa, fitando uma roleta.
Havia umas vinte pessoas presentes, na maioria homens. A sala não
estava tão enfumaçada quanto algumas outras, mas parecia mais quente. Sir
Cecil estava profundamente absorto e deu-me o mais sumário dos acenos
antes de tornar a fixar os olhos na roleta.
Situadas na periferia do ambiente havia algumas poltronas surradas,
forradas com um material avermelhado. Numa delas, um senhor chinês —
com um terno ocidental e empapado em suor — roncava à solta. Afora essa,
a única cadeira ocupada estava num canto escuro mais além da mesa de
jogo, onde Sarah descansava a cabeça sobre uma das mãos, os olhos
semicerrados.
Ela teve um sobressalto quando me sentei a seu lado. "Oh, Christopher.
O que você está fazendo aqui?"
"Eu só estava de passagem. Desculpe. Não queria assustá-la."
"Só estava de passagem? Nesse lugar? Não acredito. Você estava era
atrás de nós."
Falávamos em voz baixa para não perturbar os jogadores na mesa. De
algum ponto no prédio, podia ouvir indistintamente alguém ensaiando
trompete.
"Tenho de confessar", eu disse, "ouvi dizer que vocês tinham vindo para
cá. E já que eu estava de passagem…"
"Oh, Christopher, você estava se sentindo sozinho."
"Nada. Mas tive um dia daqueles, e senti vontade de relaxar um pouco,
só isso. Embora tenha de admitir, teria hesitado se soubesse que estavam
num lugar desses."
"Não seja cruel. Cecil e eu, nós gostamos do submundo. É divertido.
Tudo isto é a cara de Xangai. Agora me conte como foi seu dia. Está com
um ar desanimado. Nenhuma descoberta ainda no seu caso, suponho."
"Nenhuma descoberta, mas não estou desanimado. As coisas estão
começando a ganhar forma."
Quando então comecei a descrever-lhe como eu passara mais de duas
horas apoiado nas mãos e nos joelhos, dentro de um barco ordinário no qual
três corpos em decomposição haviam sido encontrados, ela fez uma careta e
interrompeu-me.
"É tudo tão medonho. Alguém estava dizendo hoje no Tênis Clube, os
corpos todos tinham braços e pernas decepados. É verdade?"
"Receio que sim."
Ela fez outra careta. "Para coisa tão medonha não há palavras. Mas
esses eram operários chineses, não eram? Decerto eles não têm muito a ver
com … com seus pais."
"Na verdade, acredito que esse crime tem ligação muito significativa
com o caso de meus pais."
"Mesmo? Estavam dizendo que as vítimas eram familiares do Rato
Amarelo."
"Cobra Amarela."
"Como?"
"O informante comunista. Cobra Amarela."
"Oh, sim. Bem, de qualquer forma, é tão medonho. O que esses
chineses estão fazendo, cortando o pescoço uns dos outros numa época
como esta? Seria de esperar que os comunas e o governo unissem forças
contra os japoneses, mesmo que só por um tempo."
"Imagino que o ódio entre comunistas e nacionalistas seja bem
profundo."
"É o que Cecil diz. Oh, olhe para ele, como consegue jogar desse jeito?"
Segui seu olhar e vi que Sir Cecil — que estava de costas para nós —
pendera para um dos lados, de modo que boa parte de seu peso estava sobre
a mesa. Parecia haver toda a possibilidade de que ele escorregasse de vez da
cadeira.
Sarah olhou-me um pouco constrangida. Levantando-se então, dirigiu-
se até ele, pousou as mãos em cada um de seus ombros e lhe falou
carinhosamente ao ouvido. Sir Cecil despertou e deu uma olhada à volta. É
possível que nesse instante eu tenha desviado o olhar por um segundo, pois
não estou nem um pouco certo sobre o que ocorreu exatamente a seguir. Vi
Sarah cambalear para trás, como que golpeada, e por um segundo pareceu
prestes a perder o equilíbrio, mas então recuperou-o. Sir Cecil, quando
examinei suas costas, estava novamente sentado ereto, concentrado no jogo,
e não sou capaz de dizer se fora ele o responsável pelo tropeção de Sarah.
Ela me viu a fitá-la e, sorridente, voltou e sentou-se outra vez a meu
lado.
"Ele está cansado", disse. "Tem tanta energia. Mas na idade dele,
realmente precisa descansar mais."
"Vocês dois costumam vir a este lugar?"
Ela assentiu com a cabeça. "E a alguns outros bem parecidos. Cecil não
é lá muito amigo daqueles lugares grandes, cintilantes. Não acha que seja
possível sair vencedor naqueles lugares."
"Sempre o acompanha nessas expedições?"
"Alguém tem de cuidar dele. Jovem ele não é mais, já se vê. Oh, não me
importo. É bem divertido. Tem a cara mesmo da cidade."
Um suspiro coletivo correu a mesa de jogo e os jogadores desataram a
conversar. Vi Sir Cecil tentar erguer-se, e só então percebi quanto estava
embriagado. Ele tornou bruscamente a cair na cadeira, mas numa segunda
tentativa logrou levantar-se e vir cambaleante até nós. Ergui-me, esperando
um aperto de mão, mas ele pousou sua mão no meu ombro, mais para
equilibrar-se do que qualquer outra coisa, dizendo:
"Meu caro rapaz, meu caro rapaz. Encantado em vê-lo".
"Teve agora alguma sorte, senhor?"
"Sorte? Oh, não, não. Tem sido uma noite do cão. Semana inteira
péssima, tem sido ruim, ruim, ruim. Mas nunca se sabe. Vou me erguer de
novo, ha-ha! Erguer das cinzas."
Sarah também estava de pé e estendeu a mão para apoiálo, mas ele a
repeliu sem olhar para ela. Depois me disse:
"Diga uma coisa. Aceita um coquetel? Tem um bar lá embaixo".
"É muita gentileza, senhor. Mas realmente tenho de voltar para o hotel.
Outro dia duro amanhã."
"Bom vê-lo dando duro. É claro, vim aqui para esta cidade querendo eu
próprio pôr um pouco de ordem nas coisas. Mas, sabe" — inclinou o rosto
até estar a dois ou três centímetros do meu —, "misterioso demais para
mim, meu rapaz. Misterioso demais, e como."
"Cecil, querido, agora vamos para casa."
"Casa? Chama de casa aquele antro de hotel? Tem uma vantagem sobre
mim, querida, sendo a vagabunda que é. É por isso que não se importa."
"Agora vamos embora, querido. Estou cansada."
"Está cansada. Minha vagabundinha está cansada. Banks, você tem um
carro lá fora?"
"Receio que não. Mas se quiser, tento achar um táxi."
"Táxi? Acha que está em Piccadilly? Imagina que pode chamar um táxi
na rua? Vão logo cortando sua garganta, esses chineses."
"Cecil, querido, sente por favor aqui enquanto Christopher encontra
Boris." Disse-me ela então: "Nosso motorista não deve estar longe. Seria
muito incômodo? O pobre Cecil está mais pra lá do que pra cá esta noite".
Fazendo o que podia para parecer bem-humorado, encaminhei-me para
fora do prédio, gravando na memória como voltar para a sala. A praça lá
fora estava densa de gente como nunca, mas um pouco além pude ver uma
rua em que riquixás e automóveis aguardavam em filas. Abri caminho até
lá, e depois de ir de carro em carro proferindo o nome de Sir Cecil aos
choferes de várias nacionalidades, finalmente obtive uma resposta.
Quando voltei à casa de jogo, Sarah e Sir Cecil já estavam lá fora. Ela o
sustentava com ambas as mãos, mas sua figura alta, recurva, parecia prestes
a esmagá-la a qualquer instante. Ao chegar correndo, pude ouvi-lo dizer:
"É de você que eles não gostam aqui, querida. Quando costumava
freqüentar este lugar sozinho, eles sempre me trataram feito um rei. Oh,
sim, feito um rei. Não gostam de mulher da sua laia. Só querem verdadeiras
senhoras, ou então putas. Você não é nenhuma das duas. Então, é por isso
que não gostam nem um pouco de você. Nunca tive nenhum problema aqui
até você insistir em não desgrudar do meu pé".
"Venha, querido. Aqui está Christopher. Bravo, Christopher. Olhe,
querido, ele encontrou Boris para nós."
O Metropole não ficava muito longe, mas o carro muitas vezes não
podia avançar mais que a passo de tartaruga por entre os pedestres e
riquixás. Ao longo do trajeto, Sarah continuou a segurar Sir Cecil pelo
braço e pelo ombro enquanto ele cabeceava. Sempre que tornava a acordar,
tentava repelir Sarah, mas ela ria e continuava a segurá-lo firme no veículo
sacolejante.
Foi a minha vez de auxiliá-lo ao suarmos para transpor a porta giratória
do Metropole, e então para tomar o elevador, enquanto Sarah trocava
cumprimentos joviais com os funcionários do saguão. Daí chegamos
finalmente à suíte dos Medhurst, e pude depositar Sir Cecil numa poltrona.
Cuidei que ele fosse cochilar, mas em vez disso tornou a ficar
subitamente alerta e passou a fazer-me algumas perguntas sem sentido, das
quais não compreendi patavina. Quando então Sarah surgiu do banheiro
com uma toalha de mão e começou a esfregar-lhe a testa, ele me disse:
"Banks, meu rapaz, pode ser franco comigo. Esta mulher aqui. Como
vê, ela é uns bons anos mais jovem que eu. Mas não é mais nenhum broto,
veja bem, ha-ha! Mesmo assim, uns bons anos mais jovem. Diga-me
sinceramente, meu rapaz, imagina que, num lugar como o de hoje à noite,
onde nos encontrou hoje à noite, num lugar como aquele, imagina que um
estranho que nos olhasse, a nós dois juntos… Bom, falemos abertamente! O
que lhe pergunto é o seguinte, imagina que as pessoas tomam minha esposa
por uma prostituta?".
A expressão de Sarah, até onde pude notar, não se alterou, embora uma
ligeira urgência tenha penetrado os seus gestos, como se esperasse que o
tratamento acarretasse uma mudança de humor. Sir Cecil agitou a cabeça
irritado, como quem espanta uma mosca, então disse:
"Vamos, meu rapaz. Fale com toda a sinceridade".
"Ora, ora, querido", disse Sarah calmamente. "Você está sendo
desagradável."
"Vou lhe contar um segredo, meu rapaz. Vou lhe contar um segredo.
Divirto-me à beça com isso. Gosto que as pessoas tomem minha esposa por
uma prostituta. É por isso que gosto de freqüentar lugares como o de hoje à
noite. Sai de cima! Me deixe em paz!" Empurrou Sarah para o lado e então
continuou: "Outra razão pela qual eu vou, claro, sem dúvida já imaginou, é
que devo um dinheirinho. Estou meio que em dívida, sabe. Nada que não
possa recuperar, claro".
"Querido, Christopher tem sido muito gentil. Não deve amolá-lo."
"O que a prostituta está dizendo? Ouviu o que ela disse, meu rapaz?
Bem, não ouça. Não dê ouvidos a ela. Não dê ouvidos a rameiras, é o que
eu digo. Elas levam você para o mau caminho. Particularmente em tempos
de guerra e conflito. Nunca dê ouvidos a uma rameira em tempos de
guerra."
Ele pôs-se de pé sem ajuda, e por um momento permaneceu oscilante
diante de nós no meio da sala, seu colarinho desabotoado sobressaindo na
nuca. Então passou ao quarto de dormir, fechando a porta atrás de si.
Sarah deu-me um sorriso, então foi atrás dele. Não fosse aquele sorriso
— ou antes, algo como um apelo que distingui atrás dele —, com certeza
teria me retirado naquela altura. Sendo assim, permaneci no recinto,
examinando distraído uma tigela chinesa numa mesinha perto da entrada.
Por uns instantes, pude ouvir Sir Cecil berrando alguma coisa; então fez-se
silêncio.
Sarah surgiu depois de talvez cinco minutos e pareceu surpresa de ainda
me encontrar ali.
"Ele está bem?", perguntei.
"Agora adormeceu. Vai ficar bem. Desculpe pelo transtorno,
Christopher. Longe do que você esperava quando nos procurou esta noite.
Vamos arranjar algo para retribuir. Levamos você para jantar fora em algum
lugar. A Casa Astor ainda tem boa comida."
Ela me conduzia para a saída da sala, mas na porta vireime e disse:
"Esse tipo de coisa. Acontece muitas vezes?".
Ela deu um suspiro. "Com bastante freqüência. Mas não deve pensar
que eu me importo. É só que me preocupo às vezes. Com o coração dele,
sabe. Por isso sempre vou com ele agora."
"Você cuida bem dele."
"Não deve ficar com a impressão errada. Cecil é um amor. Vamos levar
você para jantar muito em breve. Quando não estiver ocupado. Mas
suponho que esteja sempre ocupado."
"E assim que Sir Cecil costuma passar todas as suas noites?"
"A maioria delas. Alguns de seus dias também."
"Existe algo que eu possa fazer?"
"Algo que possa fazer?" Ela soltou uma ligeira risada. "Olhe,
Christopher, eu estou bem. Sério, não deve ficar com a impressão errada de
Cecil. Ele é um amor. Eu… eu o amo tanto."
"Bom, então boa noite."
Ela deu outro passo em minha direção e ergueu uma mão vacilante. Sem
pensar, segurei sua mão, e, sem saber direito o que fazer em seguida, beijei-
lhe o dorso. Em seguida, murmurando outro boa-noite, saí para o corredor.
"Não vá se preocupar comigo, Christopher", sussurrou ela da porta.
"Estou perfeitamente bem."
Essas foram suas palavras para mim na noite passada. Mas hoje, foram
aquelas outras palavras, proferidas três semanas atrás quando a vi pela
primeira vez no baile do Hotel Palace, que me ecoam na cabeça com
particular insistência. "Não espero irmos a lugar algum tão cedo", dissera
ela. "A menos que alguém venha em socorro." O que podia ter em mente ao
fazer tal comentário para mim naquela noite? Como disse, mesmo então
isso me intrigou, e é bastante provável que lhe tivesse sondado mais a
respeito não fosse por Grayson, que justo naquela hora surgiu da multidão a
minha procura.
PARTE CINCO

Hotel Cathay, Xangai, 29 de setembro de 1937


14.

Conduzi mal esta manhã o encontro com MacDonald no consulado


britânico, e recordá-lo hoje à noite só me enche de frustração. O fato é que
ele se preparara bem, e eu não. Vezes e mais vezes lhe permiti que me
guiasse por falsos caminhos, para gastar minha energia discutindo coisas
que ele decidira conceder-me desde o início. A bem dizer, eu estava em
melhor vantagem quatro semanas atrás, naquela noite no Hotel Palace,
quando lhe avancei a idéia de uma entrevista com o Cobra Amarela. Pegara
então MacDonald de surpresa, e ao menos lhe fizera admitir, com todas as
letras, seu verdadeiro papel aqui em Xangai. Esta manhã, contudo, nem
sequer o forcei a abrir mão de sua farsa de ser simplesmente um funcionário
incumbido de assuntos protocolares.
Suponho que o subestimei. Pensara ser uma simples questão de entrar e
repreendê-lo por seu moroso progresso em arranjar o que lhe requisitara.
Somente agora vejo como ele armou suas armadilhas, percebendo que, uma
vez ficasse eu zangado, faria ele gato-sapato de mim. Foi tolice mostrar
minha irritação daquele jeito; mas esses dias contínuos de trabalho intenso
deixaram-me exausto. E é claro, houve o inesperado encontro com Grayson,
o sujeito do Conselho Municipal, enquanto me dirigia ao escritório de
MacDonald. Aliás, diria que foi isso, mais que todo o resto, que me fez
vacilar esta manhã, na medida em que durante boa parte de minha posterior
discussão com MacDonald, minha cabeça estava na verdade em outra parte.
Fora obrigado a aguardar por vários minutos na pequena sala de espera
do segundo andar do consulado. A secretária finalmente veio informar-me
que MacDonald estava disponível, e eu atravessara o patamar de mármore e
me encontrava diante das portas do elevador quando Grayson desceu
correndo as escadas chamando por mim.
"Bom dia, senhor Banks! Desculpe, talvez esta não seja a melhor hora."
"Bom dia, senhor Grayson. De fato, não é uma hora ideal. Estava
prestes a subir para ver nosso amigo, o senhor MacDonald."
"Oh, então não lhe tomarei tempo. É só que eu estava aqui no prédio e
ouvi que o senhor também estava." Sua risada prazenteira ecoou pelas
paredes.
"Esplêndido vê-lo novamente, senhor Grayson. Mas só que agora…"
"Não vou lhe tomar um segundo, senhor. Mas se me permite, sabe, o
senhor tem sido um pouco difícil de achar nos últimos tempos."
"Bom, senhor Grayson, se a questão for de bastante brevidade."
"Oh, bastante brevidade. Sabe, senhor, percebo que possa parecer como
pôr a carroça na frente dos bois, mas uma certa dose de planejamento é
requerida nesses assuntos. Se as coisas não estiverem às mil maravilhas
num evento tão importante como este, se as coisas parecerem mesmo um
pouquinho malfeitas ou amadoras…"
"Senhor Grayson…"
"Desculpe. Só desejaria ter sua opinião a respeito de alguns detalhes
sobre a recepção de boas-vindas. Agora o local já está combinado, o Parque
Jessfield. Vamos erguer uma grande tenda com um palco e sistema de
som… Desculpe, vou direto ao ponto. Senhor Banks, realmente desejaria
discutir seu próprio papel na solenidade. Nossa idéia é de que seja uma
cerimônia simples. O que tinha em mente era que talvez o senhor dissesse
umas palavras sobre como chegou à resolução do caso. Quais pistas vitais
finalmente o levaram a seus pais, esse tipo de coisa. Só umas palavras, a
multidão ficaria tão encantada. E então, ao cabo de seu discurso, pensei que
eles pudessem sair ao palco."
"Eles, senhor Grayson?"
"Seus pais, senhor. Minha idéia era que saíssem à plataforma,
acenassem, agradecessem a aclamação, depois se retirassem. Mas é claro,
isso não passa de uma idéia. Tenho certeza de que o senhor terá outras
excelentes sugestões…"
"Não, não, senhor Grayson" — subitamente senti um grande cansaço
tomar conta de mim —, "tudo parece esplêndido, esplêndido. Se agora me
permite. Eu realmente preciso…"
"Só mais outra coisa, senhor. Uma questão à-toa, mas que pode
emprestar um toque dos mais eficazes, se bem manejada. Minha idéia é que,
no momento em que seus pais aparecerem na plataforma, a banda de música
entre a tocar. Talvez algo como 'Land of Hope and Glory'. Alguns dos meus
colegas já não se inclinam tanto por essa idéia, mas a meu ver…"
"Senhor Grayson, a sua idéia parece maravilhosa. E mais, estou
extremamente lisonjeado por sua total confiança na minha capacidade de
resolver esse caso. Mas agora, por favor, o senhor MacDonald está a minha
espera."
"Claro. Bem, muitíssimo obrigado pelo tempo que concedeu para falar
comigo."
Apertei o botão do elevador, e enquanto aguardava, Grayson continuou
a rondar. Eu na verdade lhe dera as costas para ficar de frente para as portas,
quando o ouvi dizer:
"A única outra coisa em que estive pensando, senhor Banks. Tem
alguma idéia onde ficarão instalados seus pais no dia da cerimônia? Sabe,
precisaremos assegurar que sejam transportados para o parque, e na volta
também, com o mínimo de incômodo pela multidão".
Não consigo lembrar o que disse em resposta. Talvez as portas do
elevador tenham se aberto naquele momento, e fui capaz de safar-me dele
com nada mais que uma resposta reticente. Mas foi essa última pergunta
que me ficou na cabeça ao longo de todo o meu encontro com MacDonald e
que, como disse, provavelmente foi a maior responsável por impedir-me de
pensar claramente sobre o assunto em questão. E hoje à noite, de novo,
agora que as injunções do dia ficaram para trás, surpreendo essa mesma
pergunta voltar-me à cabeça.
Não é que não tenha parado para pensar na questão de onde meus pais
devem afinal ser acomodados. É só que sempre me pareceu prematuro —
talvez mesmo "desafiar o destino" — contemplar tais questões enquanto as
enormes complexidades do caso ainda estão para ser deslindadas. Suponho
que a única ocasião, nestas últimas semanas, em que realmente parei para
pensar no assunto foi naquela noite em que me encontrei com um antigo
colega de escola, Anthony Morgan.
Não foi muito depois de minha chegada aqui — minha terceira ou
quarta noite. Eu sabia fazia algum tempo que Morgan estava morando em
Xangai, mas como nunca havíamos sido amigos muito próximos em St.
Dunstan — apesar de sempre termos sido da mesma classe —, não tomara
nenhuma iniciativa para encontrá-lo. Mas então recebi dele um telefonema
na manhã daquele terceiro dia. Pude sentir que estava um tanto magoado
que eu não houvesse entrado em contato, e por fim dei comigo concordando
encontrá-lo naquela tarde num hotel da Concessão Francesa.
Havia muito já escurecera quando o encontrei à espera no saguão
parcamente iluminado do hotel. Não o via desde os dias de escola, e fiquei
chocado ao vê-lo tão abatido e corpulento. Mas tentei afastar de minha voz
quaisquer dessas impressões ao trocarmos calorosas saudações.
"Engraçado", ele disse, dando-me tapinhas nas costas. "Não parece há
tanto tempo assim. Mas em outros aspectos, dá a impressão de ser outra
era."
"Dá mesmo."
"Sabe", ele continuou, "outro dia recebi uma carta de Emeric, o
Dinamarquês. Lembra dele? Emeric, o Dinamarquês! Não tinha notícias
dele fazia anos! Mora agora em Viena, parece. Velho Emeric. Lembra
dele?"
"Lembro, claro", eu disse, embora só pudesse evocar uma vaga
memória de tal garoto. "Bom e velho Emeric."
Por cerca de meia hora, Morgan tagarelou quase sem descanso. Ele fora
direto para Hong Kong depois de Oxford, então mudou-se para Xangai
onze anos atrás, após arranjar um emprego na Jardine Matheson. A certa
altura interrompeu então sua história para dizer:
"Você não imagina a dor de cabeça que ando tendo com choferes desde
que toda essa bagunça começou. O de confiança foi morto no primeiro dia
em que os japoneses começaram a bombardear. Encontrei outro, veio a ser
um bandido de alguma espécie. Vivia tendo que dar no pé para executar
suas tarefas no bando, nunca era encontrado quando se queria ir a algum
lugar. Pegou-me uma vez no Clube Americano com sangue por toda a
camisa. Não o próprio, logo vi. Não disse uma palavra como desculpa,
típico dos chineses. Aquilo foi a gota d'água. Então tive dois outros, não
sabiam absolutamente guiar. Um, aliás, bateu num condutor de riquixá,
deixou o pobre coitado em frangalhos. O motorista que tenho agora não é
muito melhor, vamos cruzar os dedos para que ele nos leve até lá a salvo".
Não tive idéia do que ele quis dizer com essa última frase, já que, até
onde me lembrava, não concordara em ir a mais nenhum lugar naquela
noite. Mas não tive vontade de lhe indagar a respeito, e então passou
rapidamente a contar-me sobre os cortes que afligiam o hotel. O saguão em
que estávamos, confidenciou, nem sempre tinha luz tão mortiça: a guerra
cortara o suprimento de lâmpadas das fábricas de Chapei; em algumas
outras partes do hotel, os hóspedes tinham de caminhar às escuras. Ele
indicou também que pelo menos três membros da banda na extremidade do
recinto não estavam tocando seus instrumentos.
"Isso é porque são na realidade porteiros. Os verdadeiros músicos ou
fugiram de Xangai ou foram mortos em combate. Mesmo assim, fazem uma
imitação bem passável, não acha?"
Agora que ele indicara, vi que suas imitações eram, na verdade, pobres
ao extremo. Um dos homens parecia profundamente entediado e mal se
importava em segurar o arco do violino perto do instrumento; outro, com
um clarinete praticamente esquecido nas mãos, mirava boquiaberto os
músicos de verdade que tocavam ao redor. Foi somente quando
cumprimentei Morgan pelo seu íntimo conhecimento do hotel que ele me
disse estar morando lá havia mais de um mês, tendo julgado o seu
apartamento em Hongkew "próximo demais" aos combates. Quando
murmurei algumas palavras de condolência por ele ter tido de abandonar
sua casa, seu humor de repente mudou, e pela primeira vez notei aquele ar
melancólico que me trouxe à memória o garoto infeliz e solitário que eu
conhecera na escola.
"Não era bem uma casa, mesmo", ele disse, os olhos no coquetel. "Só
eu, alguns criados que iam e viam. Lugarzinho miserável, esta é a verdade.
Em certo sentido, foram só uma desculpa, os combates. Me deram uma boa
razão para ir embora. Era um lugarzinho miserável. Toda minha mobília era
chinesa. Não podia sentar com conforto em nenhum lugar. Tive um
passarinho canoro uma vez, mas ele morreu. Para mim, é melhor aqui. Bem
mais perto dos lugares para eu molhar a garganta." Então consultou seu
relógio, esvaziou o copo e disse: "Bom, é melhor não os deixar esperando.
O carro está lá fora".
Havia algo nas maneiras de Morgan — uma espécie de indiferente
urgência — que tornava difícil erguer quaisquer objeções. Além disso,
aqueles ainda eram meus primeiros dias na cidade, quando era hábito meu
ser levado de cerimônia em cerimônia por vários anfitriões. Assim, segui
Morgan prédio afora, e em breve achava-me sentado com ele no banco de
trás de seu carro, rodando pelas agitadas ruas noturnas da Concessão
Francesa.
Quase de imediato, o motorista evitou por um triz um bonde vindo na
direção contrária, e pensei que isso faria com que Morgan tornasse a desfiar
seus problemas com choferes. Mas agora ele caíra em introspecção,
observando em silêncio as luzes de néon e as bandeirolas chinesas pela sua
janela. A certa altura, quando lhe fiz o comentário, numa tentativa de inferir
algo sobre o evento ao qual estávamos indo: "Acha que vamos chegar
atrasados?", ele tornou a consultar seu relógio e respondeu, distraído: "Eles
têm esperado por você todo esse tempo, não vão se importar com mais
alguns minutos". Então acrescentou: "Deve ser uma sensação tão estranha
para você".
Por uns instantes depois disso, seguimos viagem falando pouco. Em
certo momento, descemos uma viela cujas calçadas de ambos os lados
estavam cheias de figuras amontoadas. Podia vê-las sob a luz artificial,
sentadas, acocoradas, adormecidas algumas, enrodilhadas no chão,
espremidas umas às outras, de modo que só havia o exato espaço suficiente
no meio da rua para que o tráfego passasse. Eram de todas as idades —
podia ver bebês adormecidos nos braços das mães — e os seus pertences
todos em volta; trouxas esfarrapadas, gaiolas, um ou outro carrinho de mão
empilhado com bens até o alto. Agora me acostumei a tais espetáculos, mas
naquela noite, olhei consternado pela janela. Os rostos eram na maioria
chineses, mas quando nos aproximamos do final da rua, vi grupos de
crianças européias — russas, suponho.
"Refugiados vindos do norte do canal", disse Morgan brandamente, e
virou-se. Apesar de ele próprio ser um refugiado, não parecia sentir especial
empatia pelos seus irmãos mais pobres. Mesmo quando certa vez pensei
termos passado por cima de uma figura que dormia, virando-me para trás
alarmado, meu companheiro meramente murmurou: "Não se preocupe.
Provavelmente só alguma trouxa velha".
Então após vários minutos de silêncio, ele sobressaltou-me com uma
risada: "Tempos de escola", disse ele. "Tudo volta à memória. Eles não
foram tão ruins, imagino."
Fitei-o e notei lágrimas brotarem de seus olhos. Então ele disse:
"Sabe, devíamos ter nos associado. Os dois ermitões infelizes. Era isso
que devíamos ter feito. Você e eu, devíamos ter é nos associado. Não sei por
que não fizemos. Não teríamos nos sentido tão rejeitados se houvéssemos
feito isso".
Virei-me para ele atônito. Mas seu rosto, sob a luz cambiante, disse-me
que ele estava em algum lugar bem remoto.
Como disse, eu bem podia lembrar de Anthony Morgan sendo algo
como um "ermitão infeliz" na escola. Não que ele fosse alguém de quem o
resto de nós caçoasse ou com quem implicássemos em especial; antes,
como lembro, foi o próprio Morgan que desde muito cedo assumiu esse
papel. Era ele quem sempre escolhia andar sozinho, vários metros atrás do
grupo principal; que, em radiantes dias de verão, recusava tomar parte na
diversão e era encontrado sozinho em seu quarto, enchendo um caderno de
notas com rabiscos. Tudo isso eu recordo com bastante clareza. De fato,
assim que o avistara naquela noite no soturno saguão do hotel, o que me
viera instantaneamente à cabeça foi uma imagem de seu modo de andar
esquivo, solitário, atrás do resto de nós, enquanto cruzávamos o pátio entre
a sala de arte e as arcadas. Mas sua declaração de que eu fora igualmente
um "ermitão infeliz", um com quem ele poderia ter formado par, era tão
estarrecedora que levei algum tempo para notar que era um simples caso de
auto-ilusão da parte de Morgan — ao que tudo levava a crer, algo que
inventara anos antes para tornar mais palatáveis as memórias de um período
infeliz. Como disse, isso não me ocorreu instantaneamente, e ao pensar a
respeito agora, vejo que posso ter sido um pouco insensível em minha
resposta. Pois lembro de dizer algo como:
"Deve ter me confundido com algum outro, meu velho. Eu sempre fazia
parte da patota. Arrisco dizer que está pensando naquele outro, o
Bigglesworth. Adrian Bigglesworth. Ele sim era um ermitão e tanto".
"Bigglesworth?" Morgan refletiu a propósito, então abanou a cabeça.
"Lembro do sujeito. Meio atarracado, orelhas de abano? Velho
Bigglesworth. Que coisa. Mas não, não era nele em quem estive pensando."
"Bom, eu é que não era, meu velho."
"Extraordinário." Ele tornou a abanar a cabeça, então virou-se para sua
janela.
Eu também me virei, e pelos instantes seguintes observei as ruas
noturnas. Estávamos de novo rodando por uma área de agitada diversão, e
relanceava os olhos pelos rostos dos passantes, na esperança de vislumbrar
o de Akira. Então chegamos a um bairro residencial repleto de sebes e
árvores, e em breve o motorista estacionou o carro dentro do terreno de uma
casa ampla.
Morgan deixou o veículo às pressas. Também saltei — o chofer não fez
menção de ajudar — e o segui por uma trilha de cascalho que ladeava a
casa. Suponho que estivesse esperando uma grande recepção de algum tipo,
mas então pude ver que não era isso o que nos aguardava; a casa estava às
escuras em sua maior parte, e além de nosso carro havia somente um outro
no jardim.
Morgan, que estava claramente familiarizado com a casa, levou-nos a
uma porta lateral guarnecida de altos arbustos. Abriu-a sem tocar e
conduziu-me para dentro.
Deparamo-nos com um vestíbulo espaçoso iluminado por velas.
Examinando à volta, pude divisar pergaminhos bolorentos, enormes vasos
de porcelana, uma cômoda laqueada. O cheiro no ar — de incenso
mesclado com o de excremento — era estranhamente confortante.
Nenhum criado ou anfitrião apareceu. Meu companheiro continuou de
pé a meu lado, sem dizer palavra. Depois de um tempo, ocorreu-me fazer
algum comentário sobre nosso entorno. Então eu disse:
"Sei pouco sobre arte chinesa. Mas mesmo a meu olho, é nítido que
estamos cercados de alguns objetos de qualidade superior".
Morgan fitou-me perplexo. Então encolheu os ombros e disse: "Imagino
que você esteja certo. Bom, vamos entrar".
Ele conduziu-me para o interior da casa. Demos muitos passos no
escuro, e então ouvi vozes conversando em mandarim, vi luz vinda de um
vão de porta do qual pendiam fios de contas. Passamos pelas contas, então
por outra série de panos, e fomos dar num amplo recinto aquecido,
iluminado por velas e lanternas.
O que lembro agora do restante daquela noite? Ela já se esfumou um
pouco em minha cabeça, mas deixem-me tentar reconstituí-la o mais claro
que puder. Meu primeiro pensamento ao ingressar naquele recinto foi que
perturbáramos alguma celebração familiar. Olhei de relance para uma mesa
repleta de comida, e, sentadas em volta, oito ou nove pessoas. Todas eram
chinesas; as mais jovens — dois homens na casa dos vinte — trajavam
ternos ocidentais, mas o resto estava com roupas tradicionais. Uma senhora,
sentada numa das pontas da mesa, era auxiliada ao comer por uma criada.
Um cavalheiro entrado em anos — surpreendentemente alto e largo para um
oriental —, a quem tomei pelo chefe da casa, levantara de imediato ao
chegarmos, e então os outros homens na reunião seguiram-lhe o exemplo.
Mas nessa altura, minha impressão das pessoas permanecia vaga, pois
muito rápido foi o próprio recinto que começou a atrair toda a minha
atenção.
O pé-direito era alto, o teto cintilava. Para além dos comensais, bem ao
fundo, havia uma espécie de mezanino, do alto do qual pendia um par de
lanternas de papel. Fora esse segmento do recinto que atraíra meu olhar, e
continuei então a fitá-lo por sobre a mesa, mal-e-mal ouvindo as palavras de
boas-vindas de meu anfitrião. Pois o que reconheci num lampejo foi que
toda a metade posterior do recinto no qual me encontrava era na verdade o
que costumava ser o vestíbulo de nossa antiga casa de Xangai.
Obviamente vastas reformas haviam ocorrido ao longo dos anos. Eu não
podia atinar, por exemplo, como as áreas pelas quais eu e Morgan
acabáramos de passar ligavam-se com o nosso antigo vestíbulo. Mas o
mezanino ao fundo correspondia claramente à sacada no topo de nossa
majestosa escadaria em curva.
Dei um passo adiante, e provavelmente permaneci ali plantado por
algum tempo, fitando a galeria, traçando com o olho o caminho que a
escada antes tomara. E ao fazê-lo, encontrei uma velha memória vindo à
tona, de um período na minha infância em que criei o hábito de descer em
alta velocidade a longa curva das escadas e alçar vôo a dois ou três degraus
da base — geralmente agitando os braços — para aterrissar nas profundezas
de um sofá posicionado só um pouco além. Meu pai, sempre que
presenciava isso, desatava a rir; mas minha mãe e Mei Li reprovavam. Por
sinal, minha mãe, que nunca pôde explicar direito por que essa prática em
específico era errada, sempre ameaçava remover o sofá caso eu persistisse
no hábito. Então uma vez, quando tinha por volta de oito anos, ensaiei essa
proeza pela primeira vez em meses, descobrindo que o sofá não podia mais
suportar o impacto de meu peso. Uma extremidade da armação ruiu por
completo, e me espatifei no chão profundamente pasmo. No instante
seguinte, porém, lembrei que minha mãe descia as escadas atrás de mim, e
preparei-me para a mais terrível das broncas. Mas minha mãe, surgindo
sobre mim, prorrompera em riso: "Olhe só a sua cara, Puffin!", ela
exclamara. "Se você pudesse ver a sua cara!"
Não me machucara em absoluto, mas como minha mãe continuasse a rir
— e talvez porque eu ainda temesse uma repreensão —, comecei a tirar o
máximo de uma dor que pude sentir em meu tornozelo. Minha mãe então
parou de rir e ajudou-me a levantar delicadamente. Lembro-me então de ela
dar voltas e mais voltas comigo no vestíbulo, lentamente, um braço sobre
meus ombros, a dizer: "Então, está melhor, não está? É só andar que passa.
Então, não é nada".
Nunca fui repreendido por aquele incidente, e alguns dias depois vim a
descobrir que o sofá havia sido consertado; mas embora eu continuasse a
pular com freqüência do segundo ou do terceiro degrau, nunca mais tentei
mergulhar no sofá.
Dei alguns passos em volta do recinto, tentando deduzir o local exato
em que estaria o sofá. Ao fazê-lo, descobri que só podia evocar a mais
brumosa imagem de como na verdade ele se parecia — embora pudesse
recordar com bastante vividez a sensação de seu tecido sedoso.
Então finalmente tomei consciência dos outros no recinto e do fato de
que estavam todos a observar-me com sorrisos afáveis. Morgan e o chinês
entrado em anos palestravam calmamente. Vendo-me virar, Morgan deu um
passo adiante, limpou a garganta e deu início às apresentações.
Ele obviamente era amigo da família e desfiou os nomes sem hesitação.
Ao fazê-lo, cada qual fazia uma pequena mesura e sorria, unindo as mãos.
Só a senhora na ponta da mesa, a quem Morgan apresentou com uma
deferência a mais, continuou a fitar-me impassível. A família chamava-se
Lin — afora isso, não lembro agora nenhum dos nomes —, e foi o próprio
sr. Lin, o cavalheiro entrado em anos, corpulento, que tomou a
responsabilidade a partir desse ponto.
"Espero, meu bom senhor", disse ele num inglês só com ligeiro sotaque,
"que seja uma terna sensação estar aqui de volta."
"Sim, é." Dei uma leve risada. "Sim. E um pouco estranho também."
"Mas isso é natural", disse o sr. Lin. "Por favor, sinta-se à vontade. O
senhor Morgan conta-me que o senhor já jantou. Mas como vê, preparamos
comida para o senhor. Não sabíamos se gostava da cozinha chinesa. Então
tomamos emprestado o cozinheiro de nosso vizinho inglês."
"Mas talvez o senhor Banks não esteja com fome."
Isso foi dito por um dos jovens de terno. Virando-se então para mim,
continuou: "Meu avô é do tipo antiquado. Fica muito ofendido se uma visita
não aceita toda mostra de hospitalidade". O jovem deu um sorriso aberto
para o velho. "Por favor, não deixe que ele o importune, senhor Banks."
"Meu neto julga-me um chinês antiquado", o sr. Lin disse, achegando-se
a mim, o sorriso sempre estampado no rosto. "Mas a verdade é que nasci e
fui criado em Xangai, aqui na Colônia Internacional. Meus pais foram
obrigados a fugir das forças da imperatriz viúva e buscar refúgio aqui, na
cidade estrangeira, e cresci como um perfeito natural de Xangai. Meu neto
aqui não tem idéia de como é a vida na verdadeira China. E considera a
mim antiquado! Ignore-o, meu caro senhor. Não há necessidade de
preocupar-se com protocolo nesta casa. Se não quiser comer, não há
problema. Certamente não o importunarei."
"Mas vocês todos são tão gentis", eu disse, talvez um pouco distraído,
pois na verdade ainda tentava visualizar como a construção havia sido
alterada.
Então subitamente a senhora disse algo em mandarim. O jovem que se
dirigira a mim antes disse então:
"Minha avó diz ter pensado que o senhor nunca viria. Foi uma espera
tão longa. Mas agora ela o viu, está muito contente por o senhor estar aqui".
Mesmo antes que ele terminasse de traduzir, a senhora tornou a falar.
Dessa vez, quando ela acabou, o jovem permaneceu em silêncio por um
instante. Olhou para o avô como que para conselho, então pareceu chegar a
uma decisão.
"O senhor queira desculpar minha avó", ele disse. "Às vezes ela é um
pouco excêntrica."
A senhora, talvez entendendo o inglês, gesticulou impaciente por uma
tradução. Por fim o jovem suspirou e disse:
"Minha avó diz que até o senhor entrar aqui esta noite, ela se ressentia
do senhor. Quer dizer, ela estava zangada porque o senhor irá nos tomar a
casa".
Olhei para o jovem, bastante desconcertado, mas então a senhora tornou
a falar.
"Ela diz que por um bom tempo", traduziu seu neto, "esperou que o
senhor ficasse longe. Acreditava que esta casa pertencia agora a nossa
família. Mas hoje à noite, ao vê-lo em pessoa, vendo a emoção em seus
olhos, ela é capaz de compreender. Agora sente no coração que o acordo é
correto."
"O acordo? Mas certamente…"
Deixei que as palavras se esvaíssem em minha boca. Pois, perplexo que
eu estivesse, enquanto o jovem traduzia as palavras de sua avó, comecei a
localizar uma vaga reminiscência a propósito de um tal arranjo referente à
velha casa e a meu regresso definitivo a ela. Mas como disse, minha
memória a respeito era muito brumosa, e senti que abrir uma discussão
acerca do assunto só constrangeria a mim mesmo. De todo modo, bem
nesse momento o sr. Lin disse:
"Temo que estejamos sendo por demais desatenciosos com o senhor
Banks. Cá estamos, fazendo-o jogar conversa fora conosco, quando na
realidade ele deve estar ansioso para dar uma olhada nesta casa mais uma
vez". Então, virando-se para mim com um sorriso afável: "Venha comigo,
bom senhor. Haverá tempo de sobra para conversar com todos mais tarde.
Venha por aqui e lhe mostrarei a casa".
15.

Pelos minutos seguintes, acompanhei o sr. Lin por todo o prédio. Apesar
da idade, o meu anfitrião revelava poucos sinais de debilidade; carregava o
seu corpanzil com firmeza, embora lentamente, quase nunca parando para
tomar fôlego. Segui para cima e para baixo sua bata escura e seus chinelos
rumorejantes por escadas estreitas e ao. longo de corredores iluminados
muitas vezes por uma única lanterna. Guiou-me ele por áreas vazias e
cobertas de teias, junto a inúmeros caixotes de madeira com vinho de arroz
metodicamente empilhados. Mais além, a casa tornou-se suntuosa; havia
belos biombos e adereços de parede, peças de porcelana exibidas em
nichos. A intervalos, ele abria uma porta, então se afastava para me ceder o
passo. Entrei em vários tipos de cômodos, mas — por algum tempo, pelo
menos — não vi nada que me fosse familiar.
Finalmente atravessei uma porta e senti algo me puxando pela memória.
Levei mais alguns segundos, mas então reconheci com uma onda de
emoção nossa antiga "biblioteca". Ela fora bastante alterada: o pé-direito
estava muito mais alto, uma parede fora derrubada para dar ao espaço um
formato em L; e onde antes houvera portas duplas, que davam para a sala de
jantar, havia agora uma divisória junto à qual estavam empilhados mais
caixotes de vinho de arroz. Mas era indubitavelmente o mesmo cômodo
onde, em criança, eu fizera muita lição de casa.
Avancei pelo recinto, olhando tudo ao meu redor. Após uns instantes
tomei consciência de que o sr. Lin me observava e lhe dei um acanhado
sorriso. Ao que ele disse:
"Sem dúvida muito foi alterado. Por favor, aceite minhas desculpas.
Mas há de entender, no curso de dezoito anos, que é o tempo pelo qual
estamos morando aqui, algumas alterações foram inevitáveis para atender
às necessidades de minha família e de meu negócio. E imagino que os
ocupantes antes de nós, e aqueles antes deles, realizaram amplas alterações.
Uma infelicidade, meu bom senhor, mas suponho que poucos poderiam ter
previsto que, um dia, o senhor e os seus pais…".
E interrompeu-se, talvez porque pensou que eu não estivesse ouvindo,
talvez porque, a exemplo da maioria dos chineses, não se sentia à vontade
com desculpas. Continuei a fitar ao meu redor por mais uns instantes,
depois lhe perguntei:
"Então esta casa, ela não é mais da propriedade da Morganbrook and
Byatt?".
Ele pareceu surpreso, então riu. "Senhor, eu sou o proprietário desta
casa."
Vi que o insultara e disse, ansioso: "Sim, claro. Eu lhe peço desculpas".
"Não se preocupe, meu bom senhor" — seu cordial sorriso logo voltara
—, "não foi uma pergunta sem propósito. Afinal, quando o senhor e seus
pais viviam aqui, essa era sem dúvida a situação. Mas creio que deixou de
sê-lo há tempos. Meu bom senhor, se considerasse quanto Xangai mudou
nos últimos anos. Tudo, tudo mudou e tornou a mudar. Tudo isto" — ele
suspirou e gesticulou a nossa volta — "em comparação são mudanças
pequenas. Há partes desta cidade que antes eu conhecia tão bem, lugares
pelos quais caminhava todos os dias, agora vou lá e não sei que direção
tomar. Mudança, mudança o tempo todo. E agora os japoneses querem pôr
em prática a mudança deles aqui. As mais terríveis mudanças ainda podem
estar por vir. Mas não se deve ser pessimista."
Por um momento, nós dois ficamos ali em silêncio, continuando a olhar
ao redor. Então ele disse calmamente:
"Minha família, claro, ficará triste em deixar esta casa. Meu pai morreu
aqui. Dois netos nasceram aqui. Mas quando minha mulher falou antes — e
deve desculpar a fraqueza dela, senhor Banks —, falou por todos nós.
Consideraremos uma grande honra e um privilégio restituir esta casa ao
senhor e a seus pais. Então, meu bom senhor, passemos adiante, sim?".
Creio que não foi muito depois disso que subimos uma escadaria
atapetada — uma que por certo não existia em minha época — e entramos
num quarto de dormir decorado com luxo. Havia ricos tecidos, e lanternas
vertiam um fulgor avermelhado.
"O quarto de minha mulher", disse o sr. Lin.
Podia ver que era um refúgio, um boudoir aconchegante onde a senhora
provavelmente passava a maior parte de seu dia. Sob a luz tépida da
lanterna, pude divisar uma mesa de jogo em que uma quantidade de
variadas espécies de jogos parecia estar em curso; uma escrivaninha com
uma coluna de minúsculas gavetas, ornadas com borlas douradas, que lhe
descia pelo lado; uma cama de baldaquino com camadas de drapeado à
maneira de véus. Noutra parte, meu olhar captou vários ornamentos
delicados e artigos de diversão cuja exata natureza não pude adivinhar.
"Madame deve gostar deste quarto", disse enfim. "Posso ver o mundo
dela aqui."
"Ele é condizente com ela. Mas o senhor não deve se preocupar com
ela, meu bom senhor. Encontraremos outro quarto que ela venha a amar por
igual."
Ele falara para tranqüilizar-me, mas algo de frágil insinuara-se em sua
voz. Então avançou pelo quarto, na direção de uma penteadeira, e ali ficou
absorto em algum pequeno objeto — talvez um broche. Depois de vários
instantes, disse brandamente:
"Ela era muito bonita quando jovem. A mais bela flor, meu bom senhor.
Nem pode imaginar. Nesse sentido, sou como um ocidental em meu íntimo.
Nunca quis outra esposa senão ela. Uma mulher, mais que o bastante. Claro,
tive outras. Sou um chinês, afinal de contas, ainda que tenha sempre vivido
aqui na cidade estrangeira. Senti-me obrigado a ter outras esposas. Mas ela
é a única com quem sinceramente me importava. As outras todas já se
foram agora, e sobrou ela. Sinto falta das outras, mas estou feliz, no íntimo
estou feliz que em nossa idade avançada seja novamente só nós dois". Por
alguns segundos, ele pareceu esquecer minha presença. Então virou-se para
mim e disse: "Este quarto. Fico pensando como o senhor o usará. Perdoe-
me, isso é muito impertinente. Mas acha que este quarto será para sua
própria boa esposa? Claro, tenho ciência de que para muitos estrangeiros,
embora abastados, marido e mulher dividem o mesmo quarto. Fico
pensando então se esse quarto irá para o senhor mesmo e a sua boa esposa.
Minha curiosidade, eu sei, é grande impertinência. Mas este quarto é muito
especial para mim. É minha esperança que o senhor faça dele uso especial".
"Sim…" Tornei a olhar ao redor com cuidado. Então eu disse: "Talvez
não minha esposa. Minha esposa, sabe, para ser sincero…". Notei que nessa
conversa sobre uma esposa vierame a imagem de Sarah. Encobrindo meu
embaraço, emendei rapidamente: "O que quero dizer, senhor, é que ainda
não sou casado. Não tenho esposa. Mas acho que este quarto convirá a
minha mãe".
"Ah, sim. Depois de todas as inconveniências pelas quais teve de passar,
este quarto será ideal para ela. E seu pai? Pergunto-me se o dividirá com ela
à maneira ocidental. Perdoe-me, por favor, minha grande intrusão."
"Intrusão nenhuma, senhor Lin. Afinal, ao me permitir que entrasse
aqui, foi o senhor que me concedeu grande intimidade. Tem todo o direito
de fazer essas perguntas. É só que tudo isto é um tanto repentino, e ainda
não tive tempo de dar remate a meus planos…"
Calei-me e continuei a contemplar o quarto. Então após um momento,
disse-lhe: "Senhor Lin, receio que isto o aborreça. Mas o senhor tem sido
mais aberto e generoso do que eu jamais poderia ter esperado, e sinto que
merece a minha sinceridade. O senhor mesmo acabou de dizer como é
inevitável que uma casa passe por alterações sempre que mudam seus
ocupantes. Bem, senhor, caros que lhe sejam esses aposentos, receio que,
uma vez morando aqui de novo, minha família efetuará nossas próprias
alterações. Este quarto, também, receio, ficará irreconhecível".
O sr. Lin fechou os olhos, e houve um carregado silêncio. Perguntei-me
se ele ficaria zangado, e por um segundo lamentei ter sido tão sincero com
ele. Mas ao abrir outra vez os olhos, ele me olhava afavelmente.
"Claro", disse ele, "nada mais natural. O senhor irá querer restaurar esta
casa como era quando o senhor era pequeno. Nada mais natural. Meu bom
senhor, compreendo perfeitamente."
Pensei a respeito por um momento, então disse: "Bem, na verdade,
senhor Lin, é provável que não a reconverteríamos exatamente ao que era
então. Primeiro, como lembro, porque havia várias coisas com que
estávamos descontentes. Minha mãe, por exemplo, nunca teve um escritório
só dela. Com todo o trabalho de campanha, um pequeno escritório no
quarto nunca foi adequado. Meu pai também queria uma pequena oficina
para seus trabalhos de madeira. O que quero dizer é que não há necessidade
de voltar os ponteiros do relógio só por fazê-lo".
"Muito sensato, senhor Banks. E embora ainda não tenha uma esposa,
talvez em breve chegue o dia em que terá necessidade de uma mulher e
filhos em quem pensar."
"Decerto é possível. Infelizmente, bem no momento, essa questão de
uma esposa, no meu caso, não obstante os costumes ocidentais…" Fiquei
muito confuso e parei. Mas o velho homem assentiu sabiamente com a
cabeça, dizendo:
"Claro, em questões do coração, as coisas jamais são simples". Então
perguntou: "Vai querer ter filhos, bom senhor? Pergunto-me quantos terá".
"A propósito, já tenho um. Uma garota. Apesar de na realidade não ser
minha filha como tal. Era uma órfã e agora está sob meus cuidados. E a
considero como uma filha."
Fazia algum tempo que eu não pensava em Jennifer, e mencioná-la
assim de maneira tão inesperada despertou um poderoso sentimento dentro
de mim. Imagens dela passaram-me pela cabeça; pensei nela na escola e
perguntei-me como andaria, e o que fizera naquele dia.
Talvez tenha me virado para dissimular minhas emoções. De todo
modo, quando tornei a olhar para ele, o sr. Lin assentia de novo com a
cabeça.
"Nós, chineses, estamos bem acostumados a tais arranjos", disse. "O
sangue é importante. Mas assim também o lar. Meu pai acolheu uma garota
órfã e ela cresceu conosco como se fosse a minha irmã. Como tal a
considerava, embora sempre tenha sabido de suas origens. Quando ela
morreu, na epidemia de cólera quando eu ainda era jovem, senti tanto pesar
como quando minhas irmãs de sangue faleceram."
"Se me permite dizê-lo, senhor Lin, é um grande prazer conversar com
o senhor. É raro encontrar alguém tão prontamente compreensivo."
Ele fez uma pequena mesura, unindo as pontas dos dedos a sua frente.
"Quando se viveu tanto quanto eu, e pelo tumulto desses anos, conhecem-se
muitas alegrias e tristezas. Espero que sua filha adotiva seja feliz aqui.
Pergunto-me qual dos quartos dará a ela. Mas claro, perdoe-me! Como o
senhor disse, irá fazer alterações."
"Por sinal, um dos quartos que vimos antes seria ideal para Jennifer.
Tinha uma pequena prateleira de madeira que corria ao longo da parede."
"Ela gosta de tal prateleira?"
"Gosta. Para as coisas dela. E, aliás, há mais uma pessoa que
acomodarei aqui nesta casa. Suponho que oficialmente ela era uma espécie
de criada, mas em nossa casa ela foi sempre muito mais. O nome dela é Mei
Li."
"Era sua ama, bom senhor?"
Assenti com a cabeça. "Agora ela estará mais velha e tenho certeza de
que estimaria um descanso do seu trabalho. As crianças podem ser muito
cansativas. Sempre foi a minha intenção que, estando mais velha, voltasse a
viver aqui conosco."
"É muita bondade sua. Muitas vezes se ouve dizer de famílias
estrangeiras que mandam embora a ama uma vez que as crianças crescem.
Essas mulheres costumam ser vistas terminando seus dias como pedintes."
Soltei uma risada. "Acho difícil que isso jamais acontecesse com Mei
Li. Aliás, a própria idéia já é bem absurda. Em todo caso, como disse, ela
estará morando aqui conosco. Assim que minha tarefa esteja cumprida, vou
concentrar esforços para localizá-la. Não imagino que seja tão difícil."
"E diga-me, bom senhor, dará a ela um quarto nos aposentos dos criados
ou junto com a família?"
"Junto com a família, certamente. Meus pais talvez não vejam com bons
olhos. Mas agora, afinal, o chefe da casa sou eu."
O sr. Lin sorriu. "Segundo seu costume, certamente será assim. Para
nós, chineses, e felizmente para mim, aos idosos se permite que dirijam a
casa até perderem o juízo."
O velho riu consigo e voltou-se para a porta. Estava prestes a segui-lo,
mas bem nesse momento — de forma um tanto repentina e bastante vívida
— descobri outra memória vindo à tona. Nela pensei desde então, e não
tenho idéia por que tenha sido essa particular reminiscência e não qualquer
outra. Foi quando eu tinha seis ou sete anos de idade, numa ocasião em que
eu e minha mãe havíamos corrido um atrás do outro ao longo de um trecho
do gramado. Não sei exatamente onde foi; suponho agora que estivéssemos
num dos parques — talvez o Parque Jessfield —, pois sou capaz de lembrar
uma cerca de treliça ao lado de onde corríamos, coberta de trepadeiras em
flor e heras. Estava um dia quente, mas não muito ensolarado. Num
impulso, desafiara minha mãe à corrida, até algum marco a pequena
distância de nós, como forma de lhe exibir meus progressos atléticos. Dava
como absolutamente certo que seria o mais rápido, e que então ela
expressaria, tal como costumava, sua extasiada surpresa com essa última
manifestação de minha destreza já bem madura. Mas para desgosto meu, ela
tomou-me a dianteira durante todo o trajeto, rindo enquanto avançava,
embora eu corresse com todas as minhas forças. Não lembro quem de nós
"venceu" de fato, mas ainda recordo a minha fúria contra ela e a sensação
de que sofrera uma grande injustiça. Foi esse incidente que me veio à
memória aquela noite, enquanto me encontrava no aconchegante resguardo
da atmosfera do dormitório da sra. Lin. Ou antes, um fragmento dele: a
lembrança de eu me arremessando contra o vento com toda minha força; a
presença risonha da minha mãe a meu lado; o farfalhar de sua saia e minha
crescente frustração.
"Senhor", disse a meu anfitrião, "não sei se posso lhe perguntar. O
senhor disse que viveu a sua vida inteira aqui na Colônia. Pergunto-me
então se durante esse período não veio a conhecer minha mãe."
"Nunca tive a sorte de conhecê-la pessoalmente", disse o sr. Lin. "Mas é
claro, sabia dela e de sua grande campanha. Eu a admirava, como todas as
pessoas íntegras. Tenho certeza de que é uma senhora digna. E ouvi dizer
que é muito bonita."
"Suponho que seja. Nunca se pensa que a própria mãe é bonita."
"Oh, ouvi dizer que ela é a mais bela inglesa em Xangai."
"Suponho que seja. Mas, claro, agora estará mais velha."
"Certos tipos de beleza nunca murcham. Minha mulher" — e gesticulou
para o quarto —, "ela é tão bela para mim agora quanto no dia em que nos
casamos."
Quando disse isso, subitamente me senti como um intruso, e dessa vez
fui eu que fiz menção de sair.

Não lembro de muito mais coisas sobre minha visita à casa naquela
noite. Talvez tenhamos ficado mais uma hora, conversando e comendo com
a família ao redor da mesa. De todo modo, sei que me despedi da família
Lin no melhor dos termos. Foi durante o percurso de volta, porém, que
Morgan e eu nos desentendemos.
Foi provavelmente culpa minha. A essa altura eu estava cansado e com
os nervos um pouco à flor da pele. Rodávamos por uns instantes em
silêncio pela noite, e minha cabeça talvez tenha começado a voltar à imensa
tarefa que eu tinha pela frente. Pois lembro de dizer a Morgan, sem mais
nem menos:
"Escute, você está aqui já faz alguns anos. Diga-me, topou alguma vez
com um tal de inspetor Kung?".
"Inspetor Kung? Policial ou coisa do tipo?"
"Quando era criança aqui, o inspetor Kung era uma espécie de lenda
viva. Aliás, ele era o funcionário originalmente encarregado do caso dos
meus pais."
Para surpresa minha, ouvi Morgan a meu lado soltar uma gargalhada.
Então ele disse:
"Kung? O velho Kung? Sim, claro, ele era um inspetor de polícia. Bem,
então não admira que nada tenha sido desvendado na época".
Seu tom deixou-me pasmo, e disse um tanto friamente: "Naqueles dias,
o inspetor Kung era o detetive mais reverenciado de Xangai, quando não de
toda a China".
"Bem, algum nome ele ainda tem, isso eu lhe digo. Velho Kung. Que
coisa."
"Fico contente em saber pelo menos que ele está na cidade. Tem alguma
idéia de onde posso encontrá-lo?"
"O jeito mais simples é zanzar pelo bairro francês uma noite qualquer
após escurecer. Na certa topa com ele, cedo ou tarde. Em geral ele é visto
numa pilha na calçada. Ou se deixarem que entre no antro de um bar, estará
roncando num canto escuro."
"Está insinuando que o inspetor Kung virou um bêbado?"
"Bebida. Ópio. Essa coisa de sempre dos chineses. Mas ele é uma
figura. Conta histórias sobre seus dias de glória e as pessoas lhe dão
moedas."
"Acho que está pensando na pessoa errada, amigão."
"Acho que não, meu chapa. Velho Kung. Então ele foi mesmo policial.
Sempre imaginei que inventasse tudo. A maioria das suas histórias são
absurdas — isso são. O que é que há, meu chapa?"
"O problema com você, Morgan, é que não pára de confundir as coisas.
Primeiro me confunde com Bigglesworth. Agora confunde o inspetor Kung
com um pé-rapado qualquer. Os ares daqui amoleceram seus miolos, meu
chapa."
"Ei, escute aqui, trate de baixar um pouco esse tom. O que eu acabei de
lhe dizer, você vai ouvir de qualquer um a quem perguntar. E fico bastante
ofendido com seus comentários. Não tem nada de mole em meus miolos."
Talvez tenhamos voltado a termos ligeiramente mais civilizados na
altura em que ele me deixou no Cathay, mas nossa despedida foi
nitidamente fria, e não vi mais Morgan desde então. Quanto ao inspetor
Kung, tem sido minha intenção depois daquela noite procurá-lo sem
demora, mas por uma razão ou outra — talvez temesse que Morgan
estivesse dizendo a verdade — nunca fiz disso uma prioridade — pelo
menos não até ontem, quando minha busca nos arquivos da polícia tornou a
aventar o nome do inspetor da maneira mais dramática.
Esta manhã, por sinal, quando mencionei o inspetor Kung de passagem
a MacDonald, sua reação não foi diversa da de Morgan naquela noite, e
suspeito que essa tenha sido mais uma razão de minha impaciência com
MacDonald enquanto nos encarávamos em seu escritoriozinho abafado, que
dominava os terrenos do consulado. Ainda assim, com um pouco mais de
esforço, sei que poderia ter tirado disso proveito bem maior. Meu principal
erro esta manhã foi permitir que ele me instigasse a perder o controle. A
certa altura, receio, praticamente gritava com ele.
"Senhor MacDonald, simplesmente não basta deixar as coisas ao que
insiste em chamar meus 'poderes'! Não tenho tais 'poderes'! Sou um mero
mortal, e só posso atingir meus objetivos se me for dado o tipo de
assistência que me permita desenvolver meu trabalho. Não pedi muito do
senhor. Não pedi quase nada! E o que pedi, expliquei-lhe muito claramente.
Quero falar com o informante comunista. Só falar com ele, uma breve
entrevista bastará. Fiz esse pedido ao senhor nos termos mais claros. Não
consigo entender por que medidas ainda não foram tomadas. Pode me dizer
por quê, senhor? Pode me dizer? O que diabo o estará impedindo?"
"Mas escute aqui, meu velho, isso está longe de ser assunto de minha
alçada. Se quiser, ponho-o em contato com o comissário de polícia. E note
que, mesmo assim, sabe, não estou nem um pouco certo se vai chegar a
algum lugar. Não são eles que têm o Cobra Amarela…"
"Tenho plena consciência de que é o governo chinês que tem o Cobra
Amarela sob a sua custódia. É por isso que vim ter com o senhor, não com a
polícia. Estou ciente de que, em assunto dessa magnitude, a polícia é
irrelevante."
"Vou ver o que posso fazer, meu velho. Mas tem de compreender que
isso não é uma colônia britânica. Não podemos sair dando ordens aos
chineses. Mas vou falar com alguém da repartição apropriada. Não vá
esperando que as coisas aconteçam muito rápido, porém. Chiang Kai-shek
teve informantes antes, mas nunca um com conhecimento tão extenso da
rede dos comunas. Chiang perderia um bom punhado de batalhas para os
japas antes de permitir que algo aconteça a esse tal de Cobra Amarela. No
que diz respeito a Chiang, sabe, o verdadeiro inimigo não são os japas, mas
os comunas."
Dei um sonoro suspiro. "Senhor MacDonald, não me importo com
Chiang Kai-shek nem com as prioridades dele. Neste momento, tenho um
caso para resolver e gostaria que fizesse o possível para conseguir uma
entrevista com esse informante. É um pedido pessoal que estou lhe fazendo,
e se todos os meus esforços derem em nada por esse simples pedido não ter
sido atendido, não hesitarei em tornar público que foi o senhor a quem
procurei para…"
"Ora vamos, meu velho, por favor! Não há necessidade de tomar esse
tipo de atitude! Necessidade nenhuma! Somos todos amigos aqui.
Desejamos todos que tenha sucesso. Palavra, realmente desejamos. Escute
aqui, eu disse que vou fazer tudo quanto puder. Vou falar com umas
pessoas, sabe, pessoas que tratam desse serviço. Vou falar com elas, contar-
lhes como é forte seu palpite. Mas tem de compreender, isso é o máximo
que podemos fazer com os chineses." Então se debruçou e disse confiante:
"Sabe, por que não tenta os franceses? Eles têm um monte de tratos com
Chiang. Do tipo confidencial, sabe. O tipo de coisa em que não meteríamos
a mão. Para isso os franceses são uma boa pedida".
Talvez não seja de todo má a sugestão de MacDonald. Talvez eu
consiga mesmo alguma ajuda das autoridades francesas. Mas para ser
sincero, desde hoje de manhã não parei muito para pensar nessa alternativa.
Está claro para mim que MacDonald, por razões que ainda permanecem
obscuras, está tergiversando e que, uma vez haja reconhecido a tremenda
importância de atender a meu pedido, fará o que for necessário.
Infelizmente, é possível que eu tenha lidado no encontro desta manhã com
tamanha incompetência que terei de me atracar com ele mais outra vez. Não
é uma perspectiva pela qual esteja particularmente ansioso, mas pelo menos
da próxima vez minha abordagem será diversa, e ele não achará tão fácil
despachar-me de mãos abanando.
PARTE SEIS

Hotel Cathay, Xangai, 20 de outubro de 1937


16.

Sabia que estávamos em alguma parte da Concessão Francesa, não


distante do porto, mas quanto ao resto perdera o sentido de direção. O
chofer nos guiava havia algum tempo por vielas minúsculas, um tanto
inadequadas para um carro, tocando repetidamente sua buzina para fazer
com que os pedestres saíssem do caminho, e comecei a sentir-me ridículo,
como alguém que trouxera um cavalo para dentro de casa. Mas por fim o
carro parou, e o motorista, abrindo-me a porta, apontou a entrada da
estalagem Felicidade da Manhã.
Fui conduzido para dentro por um chinês miúdo e zarolho. O que me
resta hoje é uma impressão de pés-direitos baixos, madeira escura úmida e o
costumeiro odor de esgoto. Porém o estabelecimento parecia bastante
asseado; a certa altura contornamos três senhoras de joelhos, esfregando o
assoalho com diligência. Em alguma parte dos fundos do prédio, chegamos
a um corredor com uma longa fileira de portas. Lembraram-me estábulos,
ou mesmo uma prisão, mas esses cubículos, vim a saber, continham os
hóspedes da estalagem. O zarolho bateu numa das portas, então entrou antes
que qualquer resposta fosse dada.
Ingressei num pequeno ambiente apertado. Não havia janela, mas as
divisórias não alcançavam o teto — cerca dos últimos trinta centímetros
eram tela de arame —, permitindo assim que luz e ar circulassem. Apesar
disso, o cubículo era abafado e escuro, e mesmo quando o sol da tarde raiou
fulgurante lá fora, resultaram apenas estranhos desenhos lançados no chão
pela tela. A figura deitada na cama parecia adormecida, mas então moveu
as pernas quando tomei posição no intervalo entre a cama e a parede. O
zarolho murmurou algo e sumiu, fechando a porta atrás de si.
O antigo inspetor Kung parecia ser pouco mais que ossos. A pele do
rosto e da nuca era encarquilhada e manchada; a boca pendia frouxamente
aberta; uma perna nua, qual graveto, sobressaía do cobertor ordinário,
embora da cintura para cima ele vestisse uma camiseta surpreendentemente
branca. A princípio não fez nenhuma menção de sentar-se, e pareceu só
vagamente notar a minha presença. E no entanto, não parecia à primeira
vista sob o influxo de ópio ou álcool, e por fim, como eu continuasse a
declarar quem era e meu propósito em visitá-lo, ficou mais coerente e
começou a dar sinais de cortesia.
"Desculpe, senhor" — seu inglês, quando saiu, era fluente o bastante —
"não tenho chá." Começou a balbuciar algo em mandarim, remexendo as
pernas debaixo da coberta. Então pareceu voltar a si e disse: "Por favor,
perdoe-me. Não estou bem. Mas logo recupero minha saúde".
"É o que espero sinceramente", eu disse. "Afinal, o senhor foi um dos
melhores detetives que já serviu na Polícia Municipal de Xangai."
"Mesmo? Gentileza sua dizer isso, senhor. Sim, talvez eu tenha sido um
bom funcionário então." Com um repentino esforço, ergueu-se e colocou os
pés descalços cautelosamente no chão. Talvez por recato, talvez porque
estivesse com frio, manteve o cobertor enrolado na cintura. "Mas no fim",
prosseguiu, "esta cidade o derrota. Cada um trai o seu amigo. Você confia
em alguém, e ele se revela a soldo de um gângster. O governo são
gângsteres também. Como pode um detetive cumprir seu dever num lugar
como esse? Talvez tenha um cigarro para oferecer. Gostaria de um cigarro?"
"Não, obrigado. Senhor, só me permita dizer isto. Quando eu era
criança, seguia as suas proezas com grande admiração."
"Quando era criança?"
"Sim, senhor. O garoto vizinho e eu" — dei uma leve risada — "nós
costumávamos brincar de ser o senhor, O senhor era… era o nosso herói."
"É mesmo?" O velho abanou a cabeça e riu. "Que coisa. Bom, então
lamento tanto mais não poder lhe oferecer nada. Nada de chá. Nada de
cigarro."
"Na verdade, senhor, talvez seja capaz de oferecer-me algo muito mais
importante. Vim ter com o senhor hoje porque creio seja capaz de fornecer-
me uma pista vital. Na primavera de 1915, houve um caso que investigou,
um atentado a bala num restaurante chamado Wu Cheng Lou na rua
Fuzhou. Três pessoas morreram e várias outras saíram feridas. O senhor
prendeu dois responsáveis. Nos autos da polícia, o assunto é referido como
o Atentado à Bala no Wu Cheng Lou. Já faz muitos anos, eu sei, mas,
inspetor Kung, porventura se lembra desse caso?"
De trás de mim, talvez dois ou três quartos além, veio o ruído de tosse
convulsiva. O inspetor Kung ficou mergulhado em pensamento, então disse:
"Lembro do caso Wu Cheng Lou muito bem. Foi um dos meus momentos
de maior satisfação. Às vezes penso sobre o caso, mesmo nos dias de hoje,
deitado aqui nesta cama".
"Então talvez se lembre de ter interrogado um suspeito que
posteriormente o senhor assegurou não ter vínculo com o atentado. Segundo
os autos, o nome do sujeito era Chiang Wei. Interrogou-o a respeito do Wu
Cheng Lou, mas em vez disso ele fez outras confissões sem nenhuma
relação com o caso."
Embora o seu corpo permanecesse um saco de ossos bambos, os olhos
do velho detetive encheram-se então de vida. "Isso mesmo", ele disse. "Ele
não tinha nada a ver com o atentado. Mas estava com medo e começou a
falar. Confessou tudo. Confessou, lembro, ter sido membro de um bando de
seqüestradores alguns anos antes."
"Excelente, senhor! É exatamente o que se encontra registrado nos
autos. Então, inspetor Kung, isso é muito importante. Esse homem lhe deu
alguns endereços. Endereços das casas que o bando utilizara como
cativeiros."
O inspetor Kung observava as moscas zumbindo junto à tela de arame
perto do teto, mas então seus olhos voltaram lentamente para onde eu me
achava. "Isso mesmo", ele disse sereno. "Mas, senhor Banks, checamos de
cima a baixo todas aquelas casas. Os seqüestros dos quais ele falou haviam
ocorrido anos antes. Não encontramos nada suspeito naquelas casas."
"Eu sei, inspetor Kung, o senhor teria feito tudo que o dever lhe exigisse
com todo o zelo. Mas claro, o senhor estava investigando o atentado. Seria
perfeitamente natural se não gastasse sua energia em tal assunto marginal.
O que estou sugerindo é que, se gente poderosa mexesse os pauzinhos para
impedir que se desse busca numa dessas casas, o senhor talvez não teria
insistido."
O velho detetive estava novamente mergulhado em pensamentos. Afinal
ele disse: "Havia uma casa. Agora me lembro. Os meus homens me
trouxeram relatórios. De todas as outras casas, sete ao todo, recebi
relatórios. Lembro que isso me perturbou na época. Uma última casa,
nenhum relatório. Meus homens estavam sendo impedidos de algum modo.
Sim, lembro de ter ficado pensando nisso. Faro de detetive. Saberá o que
digo, senhor".
"E essa casa que sobrou. Nunca recebeu um relatório a respeito…"
"Correto, senhor. Mas como diz, não era a grande prioridade. Há de
compreender, o Wu Cheng Lou era um assunto de maior peso. Causou
muito escândalo. A caça aos assassinos durou semanas a fio."
"E creio que derrubou dois de seus colegas mais velhos."
O inspetor Kung sorriu. "Como disse, foi um dos momentos de maior
satisfação em minha carreira. Assumi o caso quando outros haviam
fracassado. A cidade não falava de outra coisa. Depois de alguns dias, fui
capaz de capturar os assassinos."
"Li os autos. Fiquei cheio de admiração."
Mas agora o velho fitava-me atentamente. Por fim, disse devagar:
"Aquela casa. A casa a que meus homens não foram. Aquela casa. Estava
dizendo…?".
"Então. É meu palpite que é onde meus pais estão sendo mantidos
cativos."
"Entendo." Ele emudeceu por um instante, digerindo essa colossal idéia.
"Está fora de cogitação qualquer negligência de sua parte", eu disse.
"Permita-me repetir, li os autos com grande admiração. Seus homens não
chegaram à casa porque foram obstruídos por gente dos escalões superiores
da força policial. Gente que, sabemos agora, estava a serviço das
organizações criminosas."
A tosse recomeçara. O inspetor Kung permaneceu calado por mais
alguns momentos, então ergueu a vista para mim e disse lentamente: "O
senhor veio me perguntar. Veio me perguntar se posso ajudá-lo a encontrar
essa casa".
"Infelizmente, os arquivos estão um caos. É uma vergonha como as
coisas têm andado nesta cidade. Papéis foram parar em fichários errados,
outros se perderam de vez. No final, decidi que faria melhor vir aqui vê-lo.
Perguntar-lhe, por improvável que seja, se acaso está lembrado. De algo,
seja lá o que for, sobre aquela casa."
"Aquela casa. Deixe-me pensar." O velho fechou os olhos em
concentração, mas depois de algum tempo, abanou a cabeça. "O atentado no
Wu Cheng Lou. Isso foi há mais de vinte anos. Desculpe. Não consigo
lembrar nada dessa casa."
"Por favor, tente lembrar de alguma coisa, senhor. Recorda pelo menos
em que bairro era? Se, por exemplo, era na Colônia Internacional?"
Ele pensou por mais um momento, então tornou a abanar a cabeça. "Já
faz muito tempo. Às vezes não me lembro de nada, nem do dia anterior.
Mas tentarei lembrar. Talvez amanhã, talvez depois de amanhã eu acorde e
lembre de algo. Senhor Banks, queira desculpar. Mas agora, neste instante,
não, não me lembro de nada."

Era noite quando regressei à Colônia Internacional. Creio que passei


cerca de uma hora em meu quarto, repassando as minhas notas, tentando
esquecer a decepção do meu encontro com o velho inspetor. Não desci para
o jantar senão depois das oito, quando ocupei minha habitual mesa de canto
naquela esplêndida sala de jantar. Lembro de não ter tido lá muito apetite
naquela noite, e estava prestes a abandonar meu prato principal e voltar a
meu trabalho quando o garçom trouxe o bilhete de Sarah.
Tenho-o aqui comigo. Não passa de um rabisco num papel sem pautas,
a margem de cima rasgada. É de duvidar que ela tenha pensado muito nas
palavras; simplesmente me pede para encontrá-la sem demora no patamar
intermédio entre o terceiro e quarto andares. Ao pensar nisso agora, a
relação dele com aquele pequeno incidente na casa do sr. Tony Keswick
uma semana antes parece mais que óbvio; quer dizer, Sarah provavelmente
não teria escrito o bilhete não fosse pelo que se deu então entre nós. Por
estranho que pareça, contudo, quando o garçom apresentou-o a mim, não
fiz nenhuma associação parecida e continuei lá sentado por alguns instantes,
um tanto aturdido com o porquê de ela convocar-me dessa maneira.
Devo dizer aqui que, nessa altura, a encontrara outras três vezes desde a
noite na Casa da Boa Sorte. Em duas dessas ocasiões, víramo-nos só de
passagem na presença de outros, e pouco se passara entre nós. Também na
terceira ocasião — a noite do jantar na casa do sr. Keswick, o presidente da
Jardine Matheson — suponho que estávamos novamente em público, e mal
trocamos uma palavra; ainda assim, em retrospecto, nosso encontro lá podia
muito bem ser visto como uma espécie de divisor de águas.
Eu aparecera um pouco atrasado naquela noite, e quando fui introduzido
no vasto jardim-de-inverno do sr. Keswick, mais de sessenta convidados já
se acomodavam nas várias mesas espalhadas entre a folhagem e as vinhas
rastejantes. Avistei Sarah na extremidade do recinto — Sir Cecil não estava
presente —, mas pude ver que ela também procurava seu lugar, e portanto
não fiz menção de aproximar-me.
Parece ser um costume de Xangai, em tais eventos para convidados, tão
logo a sobremesa seja servida — antes mesmo que tenham tido tempo hábil
para comê-la —, abandonar o plano de assento original e mesclar-se à
vontade. Sem dúvida, tinha em vista que, chegado o momento, iria até
Sarah trocar com ela algumas palavras. Contudo, quando finalmente veio a
sobremesa, fui incapaz de livrar-me de uma mulher sentada a meu lado, que
desejava explicar com certo detalhe a situação política na Indochina. E mal
me desvencilhara dela quando nosso anfitrião levantou-se para anunciar a
hora "dos números". Na seqüência ele apresentou a primeira atração — uma
senhora esbelta que, surgindo de uma mesa atrás de mim, caminhou até a
frente e começou a recitar um divertido poema, evidentemente composto
por ela mesma.
Foi seguida por um homem que cantou sem acompanhamento alguns
versos de Gilbert e Sullivan, e presumi que a maioria dos que estavam a
minha volta tinha vindo pronta para se apresentar. Convidados seguiam-se
uns aos outros, às vezes em dois ou em três; houve madrigais, números
cômicos. O tom era invariavelmente frívolo, às vezes obsceno mesmo.
Então um homem corpulento de rosto congesto — um diretor do Banco
de Hong Kong e Xangai, soube mais tarde — dirigiuse até a frente usando
uma espécie de túnica sobre seu smoking e começou a ler de um rolo de
papel um monólogo satirizando vários aspectos da vida de Xangai. Quase
todas as referências — a indivíduos, aos arranjos sanitários em certos
clubes, a incidentes que haviam ocorrido em recentes corridas de cross-
country — caíram inteiramente no vazio para mim, mas logo cada parte do
recinto eneheu-se de risada. A essa altura, olhei ao redor em busca de
Sarah, e a vi sentada num canto em meio a um grupo de senhoras, rindo
expansivamente como qualquer uma delas. A mulher a seu lado, que
claramente já bebera o seu tanto, gargalhava com abandono quase
indecente.
A apresentação do homem de rosto congesto já se estendia por talvez
cinco minutos — tempo durante o qual o nível de hilaridade só parecia
crescer — quando ele proferiu uma saraivada particularmente eficaz de três
ou quatro versos que quase rebentaram o ambiente de tanto riso. Foi nessa
altura que tornei a relancear os olhos para Sarah. A princípio a cena pareceu
em tudo como antes: lá estava Sarah, rindo à solta em meio a suas
companheiras. Se continuei a observá-la por vários segundos mais, foi
simplesmente porque estava um tanto surpreso de que, nem bem passado
um ano, ela já fosse tão íntima da sociedade de Xangai a ponto de essas
obscuras piadas reduzirem-na a tal estado. E foi então, enquanto a
contemplava ponderando a respeito, que notei subitamente não se tratar em
absoluto de risada; que ela não estava, como supusera, enxugando lágrimas
de riso, mas de fato chorava. Por um momento continuei a fitá-la, incapaz
de acreditar direito nos meus olhos. Então, como continuasse o alvoroço,
ergui-me calmamente e esgueirei-me pela multidão. Depois de algumas
manobras, encontrei-me de pé atrás dela, e agora não havia mais dúvidas.
Em meio a todo júbilo, Sarah chorava incontrolavelmente.
Aproximara-me por trás, de modo que ao lhe oferecer meu lenço, ela
teve um sobressalto. Erguendo-me então a vista, fitou-me — pelo espaço
talvez de quatro ou cinco segundos — com um olhar inquisitivo no qual
gratidão misturava-se com algo como uma pergunta. Inclinei minha cabeça
para ler melhor o seu olhar, mas então ela tomara meu lenço e virara-se para
o homem de rosto congesto. E quando a seguinte explosão de risada
arrebatou o ambiente, também Sarah, com uma impressionante força de
vontade, soltou uma risada, premendo ainda o lenço contra os olhos.
Ciente de que eu pudesse atrair indesejada atenção para ela, dirigi-me
de volta para meu lugar, e aliás, não tornei a aproximar-me naquela noite
senão para trocar boas-noites bastante formais com ela no vestíbulo, ao lado
de vários outros convidados a despedirem-se uns dos outros.
Mas suponho que, pelos dias que se seguiram, nutri uma vaga
expectativa de ouvir algo dela a respeito do ocorrido. É, pois, uma medida
de como ficara absorto em minhas investigações que, ao ser trazida para
mim aquela nota na sala de jantar do Hotel Cathay, não haja feito relação
alguma com o incidente anterior e tenha me lançado escadaria acima
perguntandome por que desejava me ver.
O que Sarah descreveu como o "patamar intermédio" é na verdade uma
considerável área semeada de poltronas, uma ou outra mesa e palmeiras em
vasos. Especialmente de manhã, com as grandes janelas abertas e os
ventiladores de teto rufiando, imagino que seja um local agradável o
bastante para um hóspede ler um jornal e tomar um café. De noite, porém,
tem uma atmosfera um tanto abandonada; talvez devido aos cortes, não há
outra luz senão a que vem das escadas e a que é filtrada da Beira-Mar lá
embaixo pelas janelas. Nessa noite em particular, a área estava deserta a não
ser por Sarah, cuja figura eu podia ver recortada contra as enormes
vidraças, contemplando o céu noturno. Ao dirigir-me para ela, esbarrei
numa cadeira, e o ruído a fez virar-se.
"Pensei que fosse ter lua", ela disse. "Mas não tem. Nem bombas estão
sendo lançadas hoje à noite."
"É. Tem estado calmo nas últimas noites."
"Cecil diz que os soldados de ambos os lados estão por ora exaustos."
"É bem possível."
"Christopher, venha até aqui. Está tudo bem. Não vou fazer nada a você.
Mas temos de conversar com mais calma."
Aproximei-me até estar a seu lado. Agora podia ver a Beira-Mar lá
embaixo e a linha de luzes que marcava o passeio da orla.
"Arranjei tudo", ela disse serenamente. "Não foi fácil, mas tudo está
feito agora."
"O que você fez exatamente?"
"Tudo. Papéis, navio, tudo. Não consigo mais ficar aqui. Tentei quanto
pude, e agora estou cansada. Estou indo embora."
"Entendo. E Cecil, ele sabe de suas intenções?"
"Não será totalmente uma surpresa para ele. Mas suponho que será um
choque, mesmo assim. E você, você está chocado, Christopher?"
"Não, diria que não. Pelo que observei, podia ver que algo do tipo era
bem provável. Mas antes de tomar uma decisão tão drástica, tem certeza de
que não haveria…?"
"Oh, já pensei em tudo o que há para pensar. Não adianta. Mesmo que
Cecil quisesse voltar amanhã para a Inglaterra. Além do que, ele perdeu
tanto dinheiro aqui. Está determinado a não ir embora enquanto não
recuperar cada centavo."
"Posso ver que essa viagem para cá ficou muito aquém de suas
expectativas. Lamento."
"Se fosse só a viagem para cá…" Ela deu uma risada, então calou-se.
Após um instante, disse: "Tentei amar Cecil. Tentei com todas as forças. Ele
não é uma pessoa ruim. Provavelmente você pensa que é, da maneira que o
viu aqui. Mas não é assim que ele sempre foi. E percebo que muito disso
tem a ver comigo. O que ele precisava nessa altura da vida era de um bom
descanso. Mas então eu apareci e ele sentiu que tinha de fazer um pouco
mais. A culpa foi minha. Quando chegamos aqui, a princípio ele tentou, fez
das tripas coração. Mas estava acima de suas forças, e acho que foi isso, foi
isso que o destruiu. Talvez eu indo embora, ele seja capaz de recompor-se".
"Mas para onde vai? Vai voltar para a Inglaterra?"
"No momento, não tenho dinheiro suficiente para voltar. Vou para
Macau. Então depois disso eu vejo. Tudo pode acontecer então. Aliás, por
isso queria falar com você. Christopher, vou confessar, estou tremendo de
medo. Não quero ir sozinha. Estive pensando se não iria comigo."
"Ir com você para Macau, você diz? Ir com você amanhã?"
"Sim. Ir comigo para Macau amanhã. Podemos decidir depois para onde
ir em seguida. Se quisesse, poderíamos apenas rodar um pouco pelo Mar
Meridional da China. Ou poderíamos ir para a América do Sul, fugir como
ladrões na noite. Não seria divertido?"
Suponho ter ficado surpreso quando a ouvi pronunciar essas palavras;
mas o que lembro agora, sobrepujando tudo o mais, foi uma sensação quase
tangível de alívio. Aliás, por um segundo ou dois experimentei o tipo de
vertigem que a pessoa pode sentir quando sai repentinamente à luz e ao ar
puro depois de preso por um bom tempo nalgum quarto escuro. Foi como se
essa sugestão dela — a qual, pelo que tudo indicava, ela lançara num
impulso — carregasse consigo uma enorme autoridade, algo que me trouxe
uma espécie de dispensa a que nunca me atrevera esperar.
Mal me varrera essa sensação, porém, e suponho que outra parte de
mim rapidamente ficou alerta à possibilidade de ser isso algum teste que ela
me preparara. Pois lembro que, quando finalmente respondi, foi para dizer:
"O impedimento é meu trabalho aqui. Terei de concluí-lo primeiro.
Afinal, o mundo inteiro está à beira da catástrofe. O que as pessoas
pensariam de mim se abandonasse a todos nesta altura? Diga, o que você
pensaria de mim?".
"Oh, Christopher, nós dois somos tão ruins quanto qualquer um. Temos
de parar de pensar assim. Do contrário não haverá nada para nenhum de
nós, a não ser mais do que tivemos todos estes anos. Só mais solidão, mais
dias com nada em nossas vidas, salvo um fulano qualquer nos dizendo que
ainda não fizemos o bastante. Temos de deixar tudo isso para trás agora.
Largue seu trabalho, Christopher. Já passou muito da sua vida com isso
tudo. Vamos partir amanhã, não vamos perder nem um único dia mais,
vamos antes que seja tarde demais para nós."
"Tarde demais para quê, exatamente?"
"Tarde demais para… oh, não sei. Tudo o que sei é que desperdicei
todos esses anos procurando alguma coisa, uma espécie de troféu que
obteria só se fizesse tudo, tudo para merecêlo. Mas não o quero mais, agora
quero uma coisa diferente, uma coisa quente e acolhedora, uma coisa a que
eu possa recorrer, a despeito do que faça, a despeito de quem me torne.
Uma coisa que simplesmente esteja presente, como o céu de amanhã. É isso
o que quero agora, e acho que você também devia querer. Mas em breve
será tarde demais, será mesmo. Ficaremos inflexíveis demais para mudar. E
se não aproveitarmos nossa oportunidade agora, talvez nunca surja outra
para nenhum de nós. Christopher, o que está fazendo com a pobre da
planta?"
De fato, notei que estava arrancando, distraído, as folhas de uma
palmeira perto de nós e depositando-as no tapete.
"Desculpe" — soltei uma risada. — "Um tanto destrutivo." Depois
falei: "Mesmo que você tenha razão nisso que acaba de dizer, mesmo assim,
não é tão fácil para mim. Porque, sabe, há a Jennifer".
Ao dizê-lo, veio-me à lembrança uma viva imagem da última vez em
que eu e ela nos faláramos, do dia em que nos despedimos na agradável sala
de estar nos fundos da escola, o sol de uma suave primavera inglesa
escorrendo pelas paredes de carvalho apainelado. Subitamente tornei a
lembrar de seu rosto quando assimilou o que lhe dizia, o aceno pensativo
que deu com a cabeça ao refletir a respeito, e então aquelas palavras um
tanto inesperadas com que se saiu.
"Sabe, há a Jennifer", disse mais uma vez, consciente de que corria o
risco de resvalar para o devaneio. "Agora mesmo, ela está esperando por
mim."
"Mas eu pensei nisso. Pensei em tudo muito cuidadosamente. Sei que eu
e ela podemos ser amigas. Mais que amigas. Nós três, nós podíamos, bem,
uma pequena família, como qualquer outra família. Pensei nisso,
Christopher, podia ser maravilhoso para todos nós. Podíamos mandar
buscá-la, assim que tivermos um plano. Podemos até voltar para a Europa,
para a Itália, digamos, e ela poderia se juntar a nós. Sei que poderia ser uma
mãe para ela, Christopher, tenho certeza de que poderia."
Continuei a pensar calmamente por um momento, então disse: "Muito
bem".
"O que quer dizer, Christopher, 'muito bem'?"
"Quero dizer, sim, irei com você. Irei com você, faremos o que você
disser. Sim, talvez esteja certa. Jennifer, nós, tudo, talvez dê certo."
Assim que o disse, pude sentir um peso enorme sair dos meus ombros,
tanto é que bem posso ter soltado um sonoro suspiro. Sarah, enquanto isso,
deu outro passo para perto, e por um segundo encarou-me nos olhos. Pensei
mesmo que fosse me beijar, mas pareceu reprimir-se no último instante, e
em vez disso falou:
"Então escute. Escute com atenção. Precisamos agir corretamente. Não
faça mais do que uma mala. E não envie baús. Haverá algum dinheiro a
nossa espera em Macau, para podermos comprar o que for preciso lá.
Mando alguém buscar você, um motorista, amanhã de tarde às três e meia.
Vou me certificar de que seja alguém de confiança, mas mesmo assim não
lhe conte nada que não seja necessário. Ele o levará para onde estarei
esperando. Christopher, está com cara de que alguma coisa pesada tivesse
acabado de lhe atingir a cabeça. Não vai me deixar na mão, vai?".
"Não, não. Estarei pronto. Às três e meia amanhã. Não se preocupe,
eu… eu vou seguir você a toda parte, aonde quer que queira ir no mundo."
Talvez tenha sido um simples impulso; talvez tenha sido a memória de
nossa despedida na noite em que trouxemos Sir Cecil da casa de jogo; seja
como for, estendi os braços de repente, apanhei uma de suas mãos nas
minhas e a beijei. Depois disso, creio que ergui a vista, ainda segurando sua
mão, incerto do que fazer em seguida; é possível mesmo que tenha soltado
uma risadinha constrangida. No fim, ela retirou cuidadosamente a mão e
tocou de leve meu rosto.
"Obrigada, Christopher", disse calmamente. "Obrigada por aceitar. De
repente tudo parece tão diferente. Mas é melhor ir agora, antes que alguém
nos veja aqui. Ande, vamos."
17.

Recolhi-me aquela noite algo preocupado, mas acordei na manhã


seguinte e descobri que uma espécie de tranqüilidade tomara posse de mim.
Era como se um pesado fardo houvesse sido removido, e quando, à medida
que me vestia, tornei a pensar na minha nova situação, percebi que estava
bastante empolgado.
Muito daquela manhã perdeu-se agora na bruma para mim. Recordo é
ter sido dominado pela idéia de que deveria completar, no tempo que me
restava, o máximo possível das tarefas que planejara para os dias seguintes;
que agir de outro modo seria falta de escrúpulos. A incoerência óbvia dessa
posição de alguma forma não me perturbava, e depois do café da manhã,
dei início a meu trabalho com grande urgência, lançando-me para cima e
para baixo das escadas e impelindo meus motoristas por entre abarrotadas
ruas da cidade. E embora hoje isso pouco faça sentido para mim, tenho de
dizer que senti considerável orgulho em ser capaz de sentar para o almoço
pouco depois das duas, tendo mais ou menos cumprido tudo a que me
propusera.
E ao mesmo tempo, no entanto, quando olho em retrospecto para aquele
dia, tenho a esmagadora impressão de que me mantive peculiarmente
indiferente a minhas atividades. Enquanto corria de lá para cá na Colônia
Internacional, conversando com os mais preeminentes habitantes da cidade,
havia uma parte de mim que praticamente ria da maneira séria como
tentavam responder a minhas perguntas, do jeito patético como tentavam
ser prestativos. Pois a verdade é que, quanto mais estivera em Xangai, mais
passara a desprezar os chamados líderes dessa comunidade. Quase todo dia
minhas investigações revelavam mais outro exemplo de negligência,
corrupção ou coisa pior da parte deles ao longo dos anos. E no entanto, em
todos aqueles dias de minha chegada, não me defrontara com um caso de
sincera ignomínia, uma única admissão de que, não fosse pelas
tergiversações, pela miopia, muitas vezes pela franca desonestidade dos
responsáveis, a situação jamais teria chegado ao presente estado de crise. A
certa altura naquela manhã, dei comigo no Clube de Xangai, num encontro
com três eminentes membros da "elite". E ao defrontar-me mais uma vez
com sua pomposidade vazia, sua perpétua recusa de sua própria
culpabilidade em todo o lamentável caso, senti um contentamento com a
perspectiva de livrar minha vida de uma vez por todas daquela gente. Aliás,
em tais momentos, sentia uma profunda certeza de que tomara a decisão
correta; que a suposição partilhada por praticamente todos aqui — que de
algum modo era minha inteira responsabilidade solucionar a crise — não
era somente infundada, mas digna do mais alto desprezo. Imaginei a
perplexidade que logo apareceria nesses mesmos rostos com a notícia de
minha partida — o ultraje e o pânico que rapidamente se sucederiam — , e
terei de admitir que tais pensamentos trouxeramme grande satisfação.
Então, enquanto continuava meu almoço, encontrei-me a pensar em
meu último encontro com Jennifer naquela tarde ensolarada na sua escola:
em nós dois, na sala do bedel, sentados constrangidos em nossas poltronas,
o sol brincando nos painéis de carvalho, a relva descendo em aclive até o
lago, visível pelas janelas atrás dela. Ela ouvira em silêncio enquanto eu
explicara, o melhor que podia, a necessidade de eu partir, a tremenda
importância da tarefa que me aguardava em Xangai. Eu me interrompera
em vários pontos, esperando que me fizesse perguntas, ou pelo menos
algum comentário. Mas a cada vez, ela assentia seriamente com a cabeça e
aguardava que eu continuasse. No final, quando percebi que começara a
repetir-me, parei e lhe disse:
"Então, Jenny. O que tem a dizer?".
Não sei o que eu esperava. Mas depois de encarar-me por mais alguns
momentos com um olhar livre de qualquer rancor, ela retrucou:
"Tio Christopher, percebo que não sou muito boa em nada. Mas isso é
porque ainda sou bastante jovem. Quando crescer, e talvez não leve tanto
tempo, vou ser capaz de ajudá-lo. Vou ser capaz de ajudá-lo, prometo que
vou. Então, enquanto estiver longe, você faria o favor de lembrar? Lembrar
que estou aqui, na Inglaterra, e que vou ajudá-lo quando voltar?".
Não era bem isso que eu esperava, e embora muitas vezes desde que
cheguei aqui tenha pensado nessas suas palavras, ainda não tenho certeza
do que ela pretendia me dizer naquele dia. Estaria sugerindo que, apesar de
tudo o que lhe acabara de dizer, era improvável que eu tivesse êxito em
minha missão em Xangai? Que eu teria de voltar à Inglaterra e continuar
meu trabalho por muitos anos ainda? É igualmente provável que essas
tenham sido simplesmente as palavras de uma criança confusa, fazendo de
tudo para não demonstrar seu transtorno, e é inútil submetê-las a qualquer
espécie de escrutínio. Apesar disso, dei comigo mais uma vez ponderando
nosso último encontro sentado diante de meu almoço naquela tarde no
jardim-de-inverno do hotel.
Foi enquanto eu terminava meu café que o porteiro veio dizer-me que
me chamavam com urgência ao telefone. Fui conduzido a uma cabine no
patamar da escada logo adiante, e após certa confusão com a telefonista,
ouvi uma voz que me era vagamente familiar.
"Senhor Banks? Senhor Banks? Senhor Banks, finalmente eu lembrei."
Permaneci calado, com medo de que, se dissesse algo, poria em risco
nossos planos. Mas então a voz disse:
"Senhor Banks? Está me ouvindo? Lembrei uma coisa importante.
Sobre a casa que não pudemos revistar".
Notei ser o inspetor Kung; sua voz, embora gutural, soava
admiravelmente rejuvenescida.
"Inspetor, desculpe-me. Apanhou-me de surpresa. Por favor, conte-me o
que lembrou."
"Senhor Banks. De vez em quando, sabe, quando me entrego a um
cachimbo, ajuda-me a lembrar. Muitas coisas que esqueci há tempos
passam na frente dos olhos. Então pensei, muito bem, uma última vez vou
voltar ao cachimbo. E me lembrei de uma coisa que o suspeito nos contou.
A casa que não pudemos revistar. É bem defronte da casa de um homem
chamado Yeh Chen."
"Yeh Chen? Quem é esse?"
"Não sei. Muitas das pessoas pobres, elas não usam endereços. Falam
em pontos de referência. A casa que não pudemos revistar. É defronte da
casa de Yeh Chen."
"Yeh Chen. Tem certeza de que o nome é esse?"
"Tenho, tenho certeza. Veio à memória com bastante clareza."
"É um nome comum? Quantas pessoas em Xangai têm provavelmente
esse nome?"
"Felizmente há mais outro detalhe que o suspeito nos deu. Esse tal de
Yeh Chen é cego. A casa que o senhor procura é na frente da de Yeh Chen,
o cego. Claro, é possível que ele tenha se mudado ou morrido. Mas o senhor
pode descobrir onde esse homem viveu na época de nossa investigação…"
"Claro, inspetor. Ora, isso é de imensa serventia."
"Fico contente. Achei mesmo que fosse achar isso."
"Inspetor, não sei como lhe agradecer."
Tomara ciência das horas, e quando desliguei o telefone, não voltei para
meu almoço, mas subi direto para o quarto para fazer a mala.
Recordo uma estranha sensação de irrealidade invadir-me enquanto
contemplava quais peças levar. A certa altura, senteime na cama e olhei
para o céu que se abria da minha janela. Pareceu-me extremamente curioso
que, apenas um dia antes, a informação que acabara de receber teria
constituído algo crucial em minha vida. Mas lá estava eu, remoendo-a ao
acaso, e já sentia que ela era algo confiado a uma era passada, algo de que
não precisava lembrar se não quisesse.
Devo ter terminado de arrumar a mala com tempo de sobra, pois quando
bateram na porta às três e meia em ponto, já esperava sentado em minha
cadeira havia um bom tempo. Abri a porta a um jovem chinês, talvez não
tivesse nem vinte anos, vestido com uma bata, o chapéu na mão.
"Sou seu motorista, senhor", anunciou suavemente. "Se tiver mala, eu
carrego."

***

Enquanto o jovem ao volante guiava-me para longe do Hotel Cathay, eu


contemplava a atarefada multidão na rua Nanquim sob o sol da tarde e senti
que a observava de uma vasta distância. Acomodei-me então no banco,
satisfeito de. deixar tudo nas mãos de meu motorista, que apesar da idade
parecia seguro e competente. Fiquei tentado a perguntar qual era sua ligação
com Sarah, mas então lembrei sua advertência para não falar mais que o
necessário. Permaneci, pois, em silêncio, e dali a pouco vi meus
pensamentos vagarem para Macau e algumas fotografias que vira do lugar
havia muitos anos no Museu Britânico.
Depois então de estarmos rodando por talvez dez minutos, subitamente
me inclinei para o jovem e disse: "Venha cá, com licença. Sei que é meio
como procurar agulha em palheiro. Mas por acaso conhece alguém
chamado Yeh Chen?".
O jovem não tirou os olhos do tráfego a sua frente e eu estava a ponto
de repetir a minha pergunta quando ele disse:
"Yeh Chen. Ator cego?"
"Esse. Bem, eu sei que ele é cego, mas não sabia que era ator."
"Não ator famoso. Yeh Chen. Foi ator antes, muitos anos atrás, quando
eu menino."
"Quer dizer então… que o conhece?"
"Não conhecer. Mas conhecer quem ele é. O senhor interesse em Yeh
Chen?"
"Não, não. Nada de especial. Alguém só mencionou de passagem o
nome dele para mim. Não tem importância alguma."
Não disse mais nada ao jovem pelo resto de nosso trajeto. Rodamos por
uma desnorteante série de ruelas, e eu já perdera toda noção de onde
estivéssemos quando ele encostou numa viela calma.
O jovem abriu-me a porta e entregou-me a mala.
"Aquela loja", ele disse apontando. "Com vitrola."
Do outro lado da rua havia uma pequena loja com uma vitrine
encardida, na qual estava exposta, de fato, uma vitrola. Pude ver também
uma tabuleta com os dizeres em inglês: "Discos de vinil. Rolos de piano.
Manuscritos". Olhando para um lado e para o outro da rua, vi que, à parte
os condutores de riquixá agachados ao lado de seus veículos e jogando
conversa fora, eu e o jovem estávamos sozinhos. Apanhei a mala e estava
prestes a atravessar a rua quando algo me fez dizer-lhe:
"Será que poderia aguardar aqui um minuto?".
O jovem olhou perplexo. "Senhora Medhurst diz somente trazer senhor
aqui."
"Sim, sim. Mas sou eu quem está lhe pedindo, sabe. Gostaria que
aguardasse aqui só por mais uns minutos, no caso de ainda precisar de seus
serviços. Claro, talvez não precise. Mas sabe como é, no caso de ainda
precisar. Tome aqui" — enfiei a mão na jaqueta e tirei algumas notas —
"tome, para que valha a pena."
O rosto do jovem corou de raiva, e ele apartou-se do dinheiro como se
eu lhe ofertasse algo bastante repulsivo. Voltou para o carro de cara fechada
e bateu a porta.
Vi que eu fizera algum erro de cálculo, mas naquele momento não podia
deixar que isso me importunasse. Além do mais, a despeito de toda a sua
raiva, o jovem não deu partida no carro. Tornei a meter o dinheiro na
jaqueta, apanhei novamente a mala e atravessei a rua.
Dentro, a loja estava bastante entulhada. O sol da tarde fluía para o
interior, mas de algum modo somente umas poucas manchas poeirentas
eram iluminadas por ele. De um lado havia um piano com teclas
descoloridas e vários discos de vinil exibidos sem as capas sobre a estante
de música. Eu podia ver não somente pó, mas teias de aranha sobre os
discos. Em outras partes havia estranhos retalhos de veludo grosso —
pareciam ser sobras de cortinas de teatro — costurados às paredes, junto
com fotografias de cantores de ópera e dançarinas. Talvez esperasse que
Sarah estivesse ali, mas a única pessoa presente era um europeu espigado
com um cavanhaque escuro, sentado atrás do balcão.
"Boa tarde", disse ele com um sotaque germânico, erguendo a vista de
um livro contábil aberto a sua frente. Medindo-me então de alto a baixo,
perguntou: "O senhor é inglês?".
"Sim, sou. Boa tarde."
"Temos alguns discos da Inglaterra. Por exemplo, temos uma gravação
de Mimi Johnson cantando 'I only have eyes for you'. Seria do seu agrado?"
Algo na maneira cautelosa com que ele falara sugeriu que isso era a
primeira parte de um código combinado. Mas embora eu buscasse na
memória alguma senha ou expressão que Sarah pudesse ter me dito, não me
lembrei de nada. Por fim, eu disse:
"Não tenho vitrola aqui comigo em Xangai. Mas gosto muito de Mimi
Johnson. Aliás, assisti a uma apresentação dela em Londres alguns anos
atrás".
"Mesmo? Mimi Johnson, claro."
Tive a nítida impressão de que o intrigara com a resposta errada. Então
eu disse: "Escute, meu nome é Banks. Christopher Banks".
"Banks. Senhor Banks." O homem disse meu nome com isenção, e
ajuntou: "Se gosta de Mimi Johnson, 'I only have eyes for you', ponho para
tocar para o senhor. Faço questão".
Ele abaixou-se sob o balcão, e aproveitei a oportunidade para olhar para
a rua pela vitrine da loja. Os dois condutores de riquixá ainda estavam rindo
e falando, e me senti reconfortado ao ver meu jovem ainda ali no carro.
Então, bem quando me perguntava se não teria havido algum enorme mal-
entendido, o som quente e lânguido de uma orquestra de jazz preencheu o
ambiente. Mimi Johnson entrou a cantar, e lembrei como a música fora a
coqueluche dos clubes londrinos alguns anos antes.
Depois de alguns momentos, dei-me conta de que o homem espigado
indicava um ponto na parede dos fundos, coberta de pesado drapejamento
escuro. Não notara antes que havia uma porta ali, mas quando empurrei,
encontrei-me dentro de um cômodo interno.
Sarah estava sentada num baú de madeira, trajando um casaco leve e
chapéu. Um cigarro estava aceso em sua piteira, e o quarto com cara de
despensa já estava cerrado de fumaça. Tudo em volta eram pilhas de discos
e partituras soltas, armazenadas numa variedade de caixas de papelão e
caixotes de chá. Não havia janela, mas pude ver uma porta dos fundos,
ligeiramente entreaberta naquele momento, que dava para fora.
"Bem, aqui estou", eu disse. "Trouxe uma única mala, como insistiu.
Mas vejo que você mesma trouxe três."
"Esta sacola aqui é só para Ethelbert. Meu ursinho de pelúcia. Ele está
comigo desde, bom, desde sempre, para falar a verdade. Tolice, não é?"
"Tolice? Não, em absoluto."
"Quando eu e Cecil viemos para cá, cometi o erro de colocar Ethelbert
com um monte de outras coisas. Então quando abri a mala, seu braço havia
caído. Encontrei-o num canto, enfiado num chinelo. Portanto, desta vez, uns
xales a mais ou a menos, ele tem uma sacola inteira só para ele. Que é
tolice, é."
"Não, não. Entendo perfeitamente. Ethelbert, claro."
Ela abaixou cuidadosamente sua piteira e levantou-se. Então nos
beijamos — tal qual, suponho, um casal na tela de cinema. Foi quase
exatamente como eu sempre imaginei que seria, exceto que havia algo
estranhamente deselegante em nosso abraço, e tentei mais de uma vez
ajustar a minha postura; mas o meu pé direito estava firme contra uma caixa
pesada, e eu não conseguiria dar o giro necessário sem arriscar perder o
equilíbrio. Então ela dera um passo para trás, ofegante, o tempo inteiro
olhando-me no rosto.
"Está tudo pronto?", perguntei.
Ela não respondeu de imediato, e pensei que estivesse para me beijar
outra vez. Mas no final, disse simplesmente:
"Tudo está em ordem. Só temos de aguardar mais alguns minutos. Então
sairemos por ali" — ela indicou a porta dos fundos — "desceremos até o
píer e uma sampana nos levará a nosso vapor, três quilômetros rio abaixo.
Depois disso é Macau".
"E Cecil, ele suspeita de alguma coisa?"
"Não o vi o dia inteiro. Ele saiu para um de seus buracos logo depois do
café, e espero que ainda esteja lá."
"É uma vergonha e tanto. Sério, alguém devia dizer a ele para compor-
se."
"Bem, isso não cabe mais a nós."
"Não, suponho que não." Soltei uma repentina risada. "Suponho que
não nos caiba fazer senão o que escolhemos."
"Isso mesmo. Christopher, alguma coisa está errada?"
"Não, não. Só estava tentando… só queria…"
Estendi-lhe os braços, pensando em iniciar outro abraço, mas ela ergueu
uma das mãos, dizendo:
"Christopher, acho que devia se sentar. Não se preocupe, haverá tempo
para fazer tudo, tudo, mais tarde".
"Sim, sim. Desculpe."
"Assim que chegarmos a Macau, poderemos pensar com calma sobre
nosso futuro. Pensar com calma onde será bom para nós. E onde será bom
para Jennifer. Espalharemos todos os nossos mapas pela cama, olharemos
para o mar pela janela do quarto e discutiremos tudo a respeito. Oh, tenho
certeza de que iremos, sim, discutir. Estou ansiosa até por nossas
discussões. Não quer se sentar? Olhe, sente-se aqui."
"Escute… Olhe, se temos de esperar alguns minutos, deixe-me sair e
fazer uma coisa."
"Uma coisa? O quê, exatamente?"
"Só… só uma coisa. Olhe, é sério, não demoro muito, só uns minutos.
Sabe, só tenho de perguntar uma coisa para alguém."
"Quem? Christopher, não acho que devamos falar com ninguém a esta
altura."
"Não é isso que eu quero dizer, exatamente. Tenho plena consciência da
necessidade de cautela e assim por diante. Não, não, não se preocupe. É só
aquele jovem. Aquele que você mandou, o que me trouxe até aqui. Só
preciso lhe perguntar uma coisa."
"Mas com certeza ele foi embora."
"Não, não foi. Ainda está lá fora. Olhe, vou num pulo e volto noutro."
Passei às pressas pela cortina de volta para a loja, onde o homem
espigado de cavanhaque ergueu-me a vista surpreso.
"Mimi Johnson foi do seu agrado?", ele perguntou.
"Foi, foi. Maravilhosa. Só preciso dar um pulinho lá fora."
"Permita que deixe claro, senhor, que sou suíço. Não há hostilidade
iminente entre o seu país e o meu."
"Ah, sim. Esplêndido. Volto num instante."
Atravessei a rua às pressas na direção do carro. O jovem, que me vira,
baixou o vidro e sorriu educadamente; parecia não haver traço de seu mau
humor de antes. Debruçando-me, eu disse calmamente:
"Escute aqui. Esse Yeh Chen. Tem alguma idéia de onde posso
encontrá-lo?".
"Yeh Chen? Mora bem perto daqui."
"Yeh Chen. Estou falando do Yeh Chen cego."
"Sim. Logo ali."
"A casa dele é logo ali?"
"Sim, senhor."
"Olhe aqui, parece que não está entendendo. Está dizendo que Yeh
Chen, o Yeh Chen cego, que a casa dele é logo ali?"
"Sim, senhor. Pode ir a pé, mas se quiser, levo de carro."
"Ouça bem, isto é muito importante. Sabe há quanto tempo Yeh Chen
mora nessa casa?"
O jovem pensou, então disse: "Ele sempre mora ali, senhor. Quando eu
garoto, ele mora ali".
"Tem certeza? Agora olhe, isso é de extrema importância. Tem certeza
de que esse é o Yeh Chen cego e que ele mora ali faz um bom tempo?"
"Já lhe disse, senhor. Ele ali quando eu garoto pequeno. Meu palpite, ele
mora ali muitos, muitos anos."
Aprumei-me, respirei fundo e pensei sobre todas as implicações do que
acabara de ouvir. Então inclinei-me de novo e disse: "Acho que deva me
levar até lá. De carro, digo. Temos de nos aproximar com cuidado. Quero
que me leve até lá, mas pare o carro um pouco distante. Nalgum lugar que
possamos ver claramente a casa defronte da de Yeh Chen. Compreendeu?".
Entrei no carro e o jovem deu a partida. Ele deu uma volta inteira no
quarteirão, depois tomou outra viela. Enquanto o fazíamos, muitos
pensamentos se atropelavam em minha cabeça. Pensei comigo se devia
contar ao jovem a importância da diligência que fazíamos, e considerei
mesmo perguntar se portava uma arma no carro — embora no fim tenha
decidido que tal pergunta talvez só fizesse deixá-lo em pânico.
Dobramos a esquina numa ruela ainda mais estreita que a anterior.
Então dobramos mais uma vez e paramos. Pensei por um segundo que
havíamos chegado a nosso destino, mas logo depois percebi o que nos
fizera parar. Em uma travessa a nossa frente, uma multidão de garotos
tentava controlar um búfalo desgarrado. Corria algum tipo de contenda
entre os garotos, e enquanto eu observava, um deles desferiu uma paulada
nas ventas do búfalo. Senti uma onda de alarme, ao lembrar as advertências
de minha mãe, ao longo de minha infância, de que esses animais eram tão
perigosos como qualquer touro quando provocados. A criatura nada fez,
contudo, e os garotos continuaram a discutir. O jovem buzinou diversas
vezes em vão, e finalmente, com um suspiro, começou a dar ré na direção
contrária à da qual havíamos chegado.
Tomamos uma outra ruela próxima, mas esse desvio pareceu confundir
meu motorista, pois algumas curvas após, ele parou e deu ré novamente,
embora dessa vez não houvesse obstrução alguma. A certa altura, fomos dar
a uma via de chão batido mais ampla, sulcada por marcas de rodas, com
arruinados barracões de madeira ao longo de uma das margens.
"Rápido, por favor", eu disse. "Tenho muito pouco tempo."
Bem nesse instante um enorme estrondo fez tremer o chão pelo qual
transitávamos. O jovem continuou a dirigir firme, mas olhou nervoso para a
distância.
"Combate", ele disse. "Combate começou de novo."
"Pareceu tremendamente perto", eu disse.
Nos minutos seguintes, contornamos mais esquinas estreitas e casinhas
de madeira, tocando a buzina para espantar crianças e cachorros. Então o
carro tornou a parar abruptamente, e ouvi o jovem soltar um ruído
exasperado. Olhando mais além, vi que o caminho à frente estava
bloqueado por uma barricada de sacos de areia e arame farpado.
"Temos dar toda a volta", ele disse. "Único jeito."
"Mas olhe, devemos estar bem perto agora."
"Bem perto, sim. Mas rua bloqueada, temos dar toda a volta. Tenha
calma, senhor. Logo chegamos lá."
Porém uma nítida mudança introduzira-se nas maneiras do jovem. Sua
antiga segurança dissipara-se, e agora ele me pareceu ridiculamente jovem
para estar dirigindo um carro, talvez não passasse dos quinze ou dezesseis
anos. Durante algum tempo, rodamos por ruas lamacentas, fétidas, por
vielas onde pensei que fôssemos mergulhar a qualquer momento nas valetas
abertas — mas de algum modo o jovem sempre lograva manter nossas
rodas justo à distância das beiradas. Durante tudo isso, podíamos ouvir o
ruído da artilharia ao longe e ver pessoas correndo para a segurança de suas
casas e abrigos. Mas havia ainda as crianças e os cachorros, que pelo visto
não pertenciam a ninguém, correndo de lá para cá a nossa frente, alheias a
qualquer senso de perigo. A certa altura, enquanto entrávamos aos
solavancos no pátio de alguma pequena fábrica, eu disse:
"Escute, por que não pára e pergunta o caminho?".
"Tenha calma, senhor."
"Calma? Mas você não tem mais do que eu noção de para onde estamos
indo."
"Logo chegamos lá, senhor."
"Bobagem. Por que insiste nessa farsa? Isso é típico de vocês, chineses.
Estão perdidos, mas não admitem. Estamos rodando já faz… bem, parece
uma eternidade."
Ele não disse nada e nos conduziu a uma rua de terra que subia a pique
entre enormes pilhas de refugo industrial. Aí sobreveio outro ensurdecedor
estrondo inquietantemente próximo, e o jovem reduziu a velocidade até
quase parar.
"Senhor. Acho nós voltar agora."
"Voltar? Voltar pra onde?"
"Combate muito próximo. Não seguro aqui."
"Como assim, o combate está muito próximo?" Tive então um lampejo.
"Estamos perto de Chapei?"
"Senhor. Nós em Chapei. Nós em Chapei faz algum tempo."
"O quê? Quer dizer que saímos da Colônia?"
"Nós em Chapei agora."
"Mas… Deus do céu! Estamos mesmo fora da Colônia? Em Chapei?
Escute aqui, você é um idiota, sabia? Um idiota! Você me disse que a casa
era bem perto. Agora estamos perdidos. É possível que estejamos
perigosamente próximos da zona de guerra. E deixamos a Colônia! Você é
o que chamo de rematado idiota. Sabe por quê? Vou lhe dizer. Finge saber
muito mais do que sabe. É orgulhoso demais para admitir as suas
limitações. Essa é exatamente a minha definição de idiota. Um perfeito
idiota! Está me ouvindo? Um perfeito e rematado idiota!"
Ele parou o carro. Então abriu sua porta e, sem olhar para trás, saiu
andando.
Levou algum tempo para me acalmar e avaliar a situação. Estávamos no
topo de uma colina, e o carro achava-se agora num ponto isolado, numa
estrada de terra circundada por montes de alvenaria em ruína, arames
retorcidos e o que parecia ser os vestígios retalhados de velhos pneus de
bicicleta. Podia ver a figura do jovem subindo em marcha uma trilha na
beira da colina.
Saltei e corri atrás dele. Ele deve ter me ouvido chegar, mas não apertou
o passo nem olhou para trás. Alcancei-o e o detive crispando-lhe a mão no
ombro.
"Olhe, me desculpe", eu disse um pouco arquejante. "Peço desculpas.
Eu não devia ter perdido a paciência. Peço desculpas, peço sinceramente.
Não há justificativa. Mas, sabe, você não faz idéia da importância disso
tudo. Então, por favor" — indiquei o carro — "vamos continuar."
O jovem não me dirigia a vista. "Chega de dirigir", ele disse.
"Mas olhe, eu disse que lamento. Então por favor, seja razoável."
"Chega de dirigir. Muito perigoso aqui. Combate muito próximo."
"Mas escute, é muito importante chegar a essa casa. Muito importante
mesmo. Agora me diga sério, por favor. Está perdido ou sabe realmente
onde é a casa?"
"Eu sei. Eu sei casa. Mas agora muito perigoso. Combate muito
próximo."
Como para sustentar seu argumento, descargas de metralhadoras
subitamente ecoaram ao nosso redor. Pareceram a considerável distância,
mas era impossível dizer de qual direção vinham, e nós dois olhamos a
nossa volta, sentindo-nos de repente expostos na colina.
"Vou lhe dizer uma coisa", eu disse, e tirei de meu bolso a minha
caderneta e um lápis. "Posso ver que não quer mais tomar parte em nada
disso, e consigo entender seu ponto de vista. E lamento novamente que eu
tenha sido indelicado com você antes. Mas gostaria que fizesse mais duas
coisas para mim antes de ir para casa. Primeiro, gostaria que por favor
escrevesse o endereço da casa de Yeh Chen."
"Não endereço, senhor. Não tem endereço."
"Muito bem, então desenhe um mapa. Escreva as referências. O que for.
Faça isso para mim, por favor. Então depois disso, gostaria que me levasse
à delegacia mais próxima. Claro, é o que eu deveria ter feito desde o início.
Vou precisar de homens treinados, armados. Por favor."
Entreguei-lhe a caderneta e o lápis. Várias páginas estavam cobertas de
notas das minhas investigações feitas pela manhã. Ele virou as pequeninas
páginas até dar com uma em branco. E disse então:
"Não inglês. Não sei escrever inglês, senhor".
"Então escreva no que souber. Desenhe um mapa. O que for. Rápido,
por favor."
Agora ele pareceu compreender a importância do que estava lhe
pedindo. Pensou com cuidado por alguns segundos, então passou a escrever
rapidamente. Encheu uma página, depois outra. Após quatro ou cinco
páginas, tornou a enfiar o lápis na lombada da caderneta e entregou-a para
mim. Corri a vista pelo que ele fizera, mas não decifrava a escrita chinesa.
No entanto, disse:
"Obrigado. Muito obrigado mesmo. Agora, por favor. Leve-me à
delegacia. Depois pode ir para casa".
"Delegacia por aqui, senhor." Deu vários passos na direção em que
vínhamos andando. Então, da crista da colina, apontou para o sopé da
encosta onde, talvez a duzentos metros, uma massa de prédios cinzentos
tinha início.
"Delegacia ali, senhor."
"Onde? Que prédio?"
"Ali. Com bandeira."
"Sim, estou vendo. Tem certeza de que é uma delegacia?"
"Certeza, senhor. Delegacia."
De onde eu estava, certamente parecia uma delegacia. Podia ver, além
disso, que não havia propósito em tentar dirigir até lá; o carro ficara do
outro lado da colina, e a trilha pela qual viéramos não era larga o suficiente
para o veículo; podia ver facilmente que nos perderíamos tentando achar
uma forma de contornar a colina. Pus a caderneta de volta no bolso e pensei
em presenteá-lo com algumas cédulas, antes de recordar como ele ficara
ofendido antes. Portanto disse apenas:
"Obrigado. Você foi de grande ajuda. Daqui em diante eu me arranjo".
O jovem fez um rápido aceno com a cabeça — ainda parecia zangado
comigo — e então, virou-se ladeira abaixo na direção do carro.
18.

A delegacia parecia abandonada. Enquanto descia a encosta, pude ver


janelas quebradas e uma das portas de entrada fora dos gonzos. Mas quando
me esgueirei pelo vidro quebrado e entrei na recepção, dei de cara com três
chineses, dois dos quais me apontavam fuzis, enquanto o terceiro brandia
uma pá de jardim. Um deles — que vestia um uniforme do exército chinês
— perguntou em inglês estropiado o que eu queria. Quando logrei
transmitir quem eu era, e que desejava falar com quem quer que fosse o
responsável, os homens começaram a discutir entre si. Por fim, o que
segurava a pá desapareceu num quarto dos fundos, e os outros mantiveram
suas armas apontadas enquanto aguardávamos seu regresso. Aproveitei a
oportunidade para relancear os olhos ao meu redor, e concluí que era
improvável que restasse algum policial na delegacia. Embora sobrassem
alguns cartazes e avisos, o local parecia ter sido abandonado havia algum
tempo. Fios pendiam soltos de uma das paredes, e a parte dos fundos do
recinto fora consumida pelo fogo.
Depois de talvez cinco minutos, o homem com a pá voltou. Seguiram-se
mais alguns diálogos no que imaginei ser o dialeto de Xangai, antes de
finalmente o soldado gesticular que eu deveria seguir o homem com a pá.
Fui com este último a um recinto dos fundos, que resultou também estar
guardado por homens armados. Mas estes nos abriram caminho, e logo me
vi descendo umas escadas bambas para os porões da delegacia.
Minha recordação é agora um pouco indistinta sobre como descemos ao
bunker. Havia talvez mais alguns cômodos; lembro que caminhamos por
uma espécie de túnel, curvandonos para evitar as vigas baixas; ali também
havia sentinelas, e cada vez que encontrávamos o vulto de uma de suas
figuras negras, eu era obrigado a estreitar-me contra a parede áspera a fim
de passar espremido.
Por fim, vi-me introduzido num quarto sem janelas que fora convertido
em alguma espécie de quartel-general improvisado. Era iluminado por duas
lâmpadas que pendiam lado a lado de uma viga central. As paredes eram de
tijolo aparente, e na parede à minha direita haviam escavado um buraco
amplo o bastante para uma pessoa passar. Havia um danificado aparelho de
rádio instalado no canto oposto, enquanto no meio do recinto erguia-se uma
grande escrivaninha — que, pude ver num relance, fora serrada ao meio e
depois toscamente rejuntada com cordas e pregos. Vários caixotes de
madeira emborcados constituíam os assentos disponíveis, sendo a única
cadeira autêntica ocupada por um homem inconsciente nela amarrado.
Vestia um uniforme dos fuzileiros navais japoneses, e um dos lados de seu
rosto era uma massa de hematomas.
Além dele, os únicos presentes eram dois oficiais do exército chinês,
ambos de pé, debruçados sobre algum mapa espalhado sobre a
escrivaninha. Ergueram a vista quando entrei, então um deles adiantou-se e
ofereceu a mão.
"Sou o tenente Zhou. Este é o capitão Ma. Estamos muito honrados de
ter uma visita como a sua, senhor Banks. Veio para nos prestar apoio
moral?"
"Bom, na verdade, tenente, vim aqui com um pedido específico.
Contudo, espero que, uma vez concluída minha tarefa, o moral será elevado
a mais não poder. O seu e o de todos os demais. Mas preciso de uma
pequena ajuda, e é por isso que vim vê-lo."
O tenente disse algo ao capitão, que evidentemente não compreendia
inglês; então ambos me olharam. Súbito o japonês inconsciente vomitou na
parte de frente de seu uniforme. Nós todos nos viramos para fitá-lo; então o
tenente disse:
"Diz precisar de ajuda, senhor Banks. De que tipo, precisamente?".
"Tenho aqui algumas referências, referências de uma casa específica. É
indispensável que eu chegue a esta casa sem mais demora. As referências
estão escritas em chinês, que não sou capaz de ler. Mas, veja, mesmo se
pudesse lê-las, precisaria de um guia, de alguém familiarizado com o local."
"Então deseja um guia?"
"Não somente isso, tenente. Vou precisar de quatro ou cinco homens
hábeis, se possível mais. Precisarão ser treinados e experientes, já que essa
é uma tarefa delicada."
O tenente deu uma risadinha; depois, assumindo novamente um ar
solene, disse: "Senhor, neste momento estamos com grande carência de tais
homens. Esta base é parte crucial de nossa força de defesa. E mesmo assim
o senhor viu como está mal defendida. Por sinal, os homens que viu a
caminho daqui estão feridos, doentes ou são voluntários inexperientes.
Todos os homens em condições de enfrentar combate prolongado foram
deslocados para a linha de frente".
"Reconheço, tenente, que está numa situação delicada. Mas terá de
entender, não estou falando somente de alguma busca aleatória que desejo
fazer. Quando digo que é indispensável chegar a esta casa… Bom, tenente,
vou lhe dizer, não há necessidade de manter segredo. O senhor e o capitão
Ma aqui podem ser os primeiros a saber. A casa que desejo encontrar, que
eu sei estar muito próxima de nós agora, não é outra senão aquela em que
os meus pais estão sendo mantidos em cativeiro. Isso mesmo, tenente! Falo
em nada menos que solucionar esse caso depois de todos esses anos.
Compreende agora por que julguei ser meu pedido, mesmo neste momento
assoberbado para o senhor, bastante justificado."
O rosto do tenente permaneceu fixo em mim. O capitão indagou algo
em mandarim, mas o tenente não respondeu. Então disse-me ele:
"Estamos esperando que alguns homens voltem de uma missão. Sete
saíram. Não sabemos se todos vão regressar. Era minha intenção que
fossem enviados a outra localidade imediatamente. Mas agora… Neste
caso, assumirei responsabilidade pessoal. Esses homens, seja lá quantos
voltem, acompanharão o senhor em sua missão".
Suspirei impaciente. "Eu lhe agradeço, tenente. Mas quanto tempo
teremos de aguardar por esses homens? Não será possível que eu leve
alguns dos homens lá fora, só por uns minutos? Afinal, a casa é em algum
lugar bem perto daqui. E, sabe, tenho alguém a minha espera…" De repente
me lembrei de Sarah, e uma espécie de pânico tomou conta de mim. Dei
mais um passo à frente e disse: "Aliás, tenente, será que poderia usar seu
telefone? Realmente tenho de falar com ela".
"Receio que não haja telefone aqui, senhor Banks. Isso é um rádio,
ligado somente a nossos quartéis-generais e a nossas demais bases."
"Bom, então é tanto mais indispensável que eu esclareça esse assunto
sem demora! Sabe, senhor, há uma senhora esperando, neste mesmo
momento! Posso sugerir levar três ou quatro dos homens lá fora que
guardam esta base…"
"Senhor Banks, por favor se acalme. Faremos tudo o que pudermos para
ajudá-lo. Mas como eu já disse, os homens lá fora não são aptos para tal
missão. Eles a porão em risco. Entendo que esperou muitos anos para
solucionar tal caso. Eu o aconselharia a não agir precipitadamente nesta
altura."
Havia bom senso nas palavras do tenente. Com um suspiro, sentei-me
num dos caixotes de chá emborcados.
"Os homens não devem demorar muito", disse o tenente. "Senhor
Banks, posso ver essas referências que o senhor tem?"
Relutava em separar-me de minha caderneta, ainda que por alguns
segundos. Mas no fim entreguei-a ao oficial, aberta nas páginas
apropriadas. Ele estudou as referências por um instante, então devolveu-me
a caderneta.
"Senhor Banks, devo lhe dizer. Essa casa. Não será fácil alcançá-la."
"Mas por acaso eu sei, senhor, é bem próxima daqui."
"É próxima, é verdade. No entanto, não será fácil. Aliás, senhor Banks,
talvez esteja atrás das linhas japonesas nesta altura."
"Linhas japonesas? Bom, suponho que eu poderia sempre argumentar
com os japoneses. Não tenho nenhuma disputa pessoal com eles."
"Senhor, se quiser me acompanhar, vou lhe mostrar, enquanto aguarda
os homens, nossa exata posição."
Por um momento, ele falou rapidamente com o capitão. Caminhou
depois até um armário de vassouras a um canto, descerrou a porta e entrou.
Demorei um instante para perceber que devia segui-lo, mas quando então
tentei também entrar no armário, quase dei de cara com os tacões das botas
do tenente — que agora estavam bem diante do meu rosto. Ouvi a sua voz
dizer da escuridão acima:
"Queira por favor me seguir, senhor Banks. São quarenta e oito degraus.
É melhor que fique pelo menos cinco degraus abaixo de mim".
Seus pés desapareceram. Avançando armário adentro, estendi as mãos e
encontrei alguns degraus de metal no tijolo a minha frente. Bem acima, na
escuridão, podia ver uma nesga de céu. Imaginei que estivéssemos na base
de uma chaminé ou de uma torre de observação usada pela polícia.
Nos primeiros degraus, senti-me desconfortável; não somente estava
nervoso que viesse a perder o apoio no escuro, como havia também a
preocupação de que o tenente escorregasse e caísse em cima de mim. Mas
afinal o retalho de céu cresceu em tamanho, e então vi a silhueta do tenente
trepando para fora da escada acima de mim. No minuto seguinte, juntara-
me a ele.
Estávamos num elevado telhado plano, cercado por todos os lados de
quilômetros de telhados densamente aglutinados. Ao longe, talvez um
quilômetro a leste, podia ver uma coluna de fumaça escura erguendo-se no
céu do fim de tarde.
"É estranho", eu disse, olhando em volta. "Como as pessoas se
movimentam lá embaixo? Parece que não há ruas."
"Certamente é como parece daqui de cima. Mas talvez queira olhar com
isso."
Ele me oferecia um binóculo. Levei-o até os olhos e passei algum
tempo ajustando-o até poder ver com nitidez, só para descobrir que
contemplava um grupo de chaminés alguns metros a minha frente. No fim,
porém, consegui focalizar a coluna de fumaça ao longe. A voz do tenente
disse, de algum ponto bem a meu lado:
"Agora está olhando para os cortiços, senhor Banks. Os operários
moram lá. Estou certo de que em toda sua infância aqui, nunca visitou os
cortiços".
"Os cortiços? Não, acho que não."
"Quase certamente não. Os estrangeiros raramente vêm a tais lugares, a
menos que sejam missionários. Ou talvez comunistas. Sou chinês, mas a
mim também, tal como a muitos dos meus semelhantes, nunca se permitiu
chegar perto de tais lugares. Eu não sabia quase nada sobre os cortiços até
32, a última vez em que lutamos contra os japoneses. O senhor não
acreditaria que seres humanos possam viver desse jeito. É como se fosse um
formigueiro. Aquelas casas foram projetadas para a gente mais pobre. Casas
com quartos minúsculos, uma atrás da outra, parede contra parede. Um
cortiço. Se olhar com atenção, talvez veja as ruelas. Pequenos becos, largos
o bastante para que as pessoas entrem em suas casas. Nos fundos, as
moradias não têm janela alguma. Os quartos dos fundos são buracos negros,
confinando com as casas de trás. Perdoe-me, estou lhe contando por uma
boa razão, como verá. Os cômodos foram feitos pequenos, porque eram
para os pobres. Houve tempo em que sete ou oito pessoas dividiam tal
cômodo. Então, com o passar dos anos, as famílias foram forçadas a erguer
biombos, mesmo dentro desses quartos minúsculos, para repartir o aluguel
com outra família. E se ainda assim não pudessem pagar aos senhorios,
tornavam a erguer mais biombos. Lembro-me de ter visto minúsculos
cômodos negros divididos quatro vezes, cada qual com uma família dentro.
Acredita nisso, senhor Banks, que seres humanos possam viver desse
jeito?"
"Parece mesmo inacreditável, mas se o senhor viu essas condições com
os próprios olhos, tenente…"
"Quando a luta contra os japoneses terminar, senhor Banks, vou
considerar oferecer meus serviços aos comunistas. Acha isso algo perigoso
de se dizer? Há vários oficiais que prefeririam lutar sob os comunistas a
lutar sob Chiang."
Desloquei o binóculo para a massa densa de telhados gastos. Podia ver
agora que muitos deles estavam avariados. Pude decifrar, além disso, os
becos que o tenente mencionara, passagens estreitas ziguezagueando por
entre as moradias.
"Mas isso não é uma favela", prosseguia a voz do tenente. "Mesmo que
os biombos erguidos pelos moradores sejam frágeis, a estrutura essencial, o
cortiço propriamente dito, é de alvenaria. Isso se revelou crucial em 32,
quando os japoneses atacaram, e ainda se revela agora."
"Posso ver que sim", eu disse. "Um cortiço sólido defendido por
soldados. Perspectiva nada fácil para os japoneses, mesmo com as suas
armas modernas."
"Justamente. Os armamentos japoneses, até seu próprio treinamento,
quase nada conta lá embaixo. O combate reduz-se a rifles, baionetas, facas,
pistolas, pás, cutelos de açougueiro. A linha japonesa, na semana passada,
foi na verdade rechaçada. Vê aquela fumaça, senhor Banks? Aquele ponto
era mantido pelo inimigo ainda na semana passada. Mas agora os
rechaçamos."
"Ainda há civis morando lá?"
"Sem dúvida. Pode não acreditar, mas mesmo perto da frente de batalha,
algumas casas do cortiço ainda estão ocupadas. O que torna ainda mais
difíceis as coisas para os japoneses. Eles não podem bombardear
indiscriminadamente. Sabem que as potências ocidentais estão de olho e
temem que a impiedade tenha o seu preço."
"Por quanto tempo as suas tropas podem agüentar?"
"Sabe-se lá. Chiang Kai-shek talvez nos envie reforços. Ou quem sabe
os japoneses decidam desistir e deslocar as tropas, concentrá-las em
Nanquim ou Chunking. Não é certo, em absoluto, que não sairemos
vitoriosos. Mas recentemente o combate nos custou caro. Se quiser deslocar
o binóculo para a esquerda, senhor Banks. Pronto, vê aquela rua? Vê?
Aquela rua é conhecida como Beco do Porco. Não parece uma rua
imponente, mas agora é muito importante para o desfecho. Como vê, aquela
é a rua que margeia o cortiço. Neste momento, nossas tropas a isolaram e
conseguiram manter os japoneses afastados. Se eles forem capazes de furar
o bloqueio, o cortiço pode ser invadido por todo aquele lado. Será inútil
tentar defender a posição. Teremos sido atacados pelos flancos. O senhor
pediu homens para acompanhá-lo à casa onde estão os seus pais. Os
homens que o acompanharão teriam sido enviados, em caso contrário, para
defender a barricada no topo do Beco do Porco. Nos últimos dias, o
combate ali ficou desesperado. Enquanto isso, claro, temos também de
manter nossas posições dentro do cortiço."
"Daqui de cima, ninguém diria que há tanta coisa ocorrendo lá
embaixo."
"Pois é. Mas posso lhe assegurar, dentro do cortiço as coisas não vão
nada bem. Digo-lhe isso, senhor Banks, já que pretende ir até lá."
Por alguns momentos, continuei a observar pelo binóculo em silêncio.
Então eu disse: "Tenente, aquela casa, a casa onde meus pais estão sendo
mantidos em cativeiro. Será que sou capaz de vê-la daqui de cima?".
Sua mão tocou-me o ombro de leve, embora eu não tenha tirado os
olhos do binóculo.
"Está vendo, senhor Banks, as ruínas daquela torre à esquerda? Parece
uma daquelas figuras da ilha de Páscoa. Isso, isso, aí mesmo. Se traçar uma
linha dali até as ruínas daquele grande edifício preto à direita, o antigo
armazém têxtil, aquela era, esta manhã, a linha a que nossos homens
haviam rechaçado os japoneses. A casa onde os seus pais estão sendo
mantidos cativos está mais ou menos próxima daquela chaminé alta à sua
esquerda. Se traçar uma linha bem paralela a ela através do cortiço, até
chegar um pouco à esquerda de onde estamos agora. Isso, isso…"
"Perto daquele telhado, aquele com os beirais apontando para cima
numa espécie de arco…"
"Isso, exatamente. Claro, não posso dizer com certeza. Mas segundo
aquelas referências que me mostrou, é mais ou menos onde fica a casa."
Observei pelo binóculo aquele telhado específico. Por algum tempo não
pude parar de observar, ainda que tivesse consciência de estar mantendo o
tenente afastado dos seus deveres. Após alguns instantes, foi o tenente
quem disse:
"Deve ser estranho. Pensar que pode estar olhando para a casa que
encerra seus pais".
"Sim. É mesmo um pouco estranho."
"Claro, pode não ser aquela casa. Aquela foi um simples palpite de
minha parte. Mas será em algum lugar bem próximo. Aquela chaminé alta
que lhe mostrei, senhor Banks. Os residentes locais se referem a ela como a
Fornalha do Leste. A chaminé que pode ver bem mais perto de nós, quase
diretamente em linha com a outra, pertence à Fornalha do Oeste. Antes do
combate, os habitantes costumavam incinerar seu lixo em um ou outro
desses lugares. Aconselharia ao senhor que usasse essas fornalhas como
marcos, uma vez no interior do cortiço. Do contrário, é difícil para alguém
de fora manter o sentido de direção. Olhe outra vez com atenção aquela
chaminé ao longe, senhor. Lembre, a casa que procura é só um pouco
afastada dela, numa linha direta exatamente ao sul."
Por fim baixei o binóculo. "Tenente, o senhor tem sido extremamente
gentil. Não tenho palavras para lhe agradecer. Aliás, se não for embaraço,
talvez me permita mencioná-lo pelo nome durante a cerimônia que ocorrerá
no Parque Jessfield para comemorar a libertação de meus pais."
"Ora, minha ajuda não foi tão significativa. Além disso, senhor Banks,
não deve supor que a sua tarefa esteja cumprida. Daqui de cima não parece
longe. Porém no interior do cortiço o combate corre solto. Embora o senhor
não seja um combatente, ainda assim será difícil deslocar-se de casa em
casa. E salvo as duas fornalhas, restaram poucos marcos claros. Terá então
de retirar os seus pais a salvo. Em outras palavras, ainda tem uma tarefa
colossal a sua frente. Mas agora, senhor Banks, sugiro que voltemos. Os
homens bem podem ter regressado a esta altura e estar aguardando minhas
ordens. E quanto ao senhor, senhor Banks, deve tentar voltar antes que
escureça. O cortiço já é bastante infernal à luz do dia. De noite, será como
vagar pelo pior dos pesadelos. Se for surpreendido pelas trevas, aconselho
que encontre algum lugar seguro e aguarde com os homens até o
amanhecer. Só ontem, dois dos meus homens mataram um ao outro, de tão
desorientados que estavam.
"Guardei atentamente tudo o que o senhor disse, tenente. Bem, então
vamos descer."

Lá embaixo, o capitão Ma conversava com um soldado com um


uniforme severamente rasgado. Este último não dava impressão de estar
ferido, mas parecia confuso e transtornado. O japonês na cadeira agora
roncava, como se tirasse um sossegado cochilo, embora eu tenha notado
que vomitara um pouco mais na parte da frente de suas roupas.
O tenente conferenciou rapidamente com o capitão, depois fez
perguntas ao soldado com o uniforme rasgado. Virou então para mim e
disse:
"Más notícias. Os outros não voltaram. Dois com certeza foram mortos.
Os demais ficaram encurralados, embora haja uma boa chance de que ainda
escapem. O inimigo, mesmo que temporariamente, fez um avanço, e bem
pode ser que a casa onde estão os seus pais esteja agora atrás da linha
deles".
"A despeito disso, tenente, ainda preciso seguir adiante, e sem mais
demora. Olhe, se os homens que me prometeu não voltaram, então talvez,
embora perceba ser pedir muito, talvez o senhor mesmo tivesse a bondade
de escoltar-me. Sinceramente, senhor, não consigo pensar numa pessoa
mais adequada para me auxiliar nesta altura."
O tenente pensou a respeito com uma expressão grave. "Muito bem,
senhor Banks", ele disse afinal. "Farei o que me pede. Mas devemos nos
apressar. Na verdade não deveria abandonar em absoluto este posto. Fazê-
lo, pelo tempo que seja, poderá acarretar as mais terríveis conseqüências."
Ele passou instruções rápidas ao capitão e, abrindo uma gaveta na
escrivaninha, começou a pôr vários objetos em seus bolsos e no cinto.
"É melhor que não carregue um rifle, senhor Banks. Mas tem uma
pistola? Não? Então tome esta. É alemã e bastante confiável. Deve mantê-la
escondida e, se encontrar o inimigo, não deve hesitar em declarar sua
neutralidade de forma clara e imediata. Então, queira me seguir."
Apanhando um rifle apoiado na escrivaninha, ele avançou a passos
largos até o buraco escavado na parede oposta e enfiouse nele lepidamente.
Meti a pistola em meu cinto, onde ficava mais ou menos encoberta pela
minha jaqueta, e corri atrás dele.
19.

É somente em retrospecto que aquela primeira parte do trajeto me


parece relativamente fácil. Na hora, enquanto tropeçava atrás da figura
destra do tenente, com certeza não senti assim. Meus pés logo começaram a
latejar de dor com o chão de entulho, e pareceram-me terrivelmente
incômodas as contorções exigidas para transpor os buracos a cada parede.
Dos últimos, parecia haver um número infindo, todos eles mais ou
menos semelhantes àquele na base de comando do porão. Alguns eram
menores, outros grandes o bastante para que dois homens atravessassem
espremidos ao mesmo tempo; mas todos haviam sido escavados com bordas
irregulares e requeriam um pequeno salto para transpô-los. Dali a pouco
encontrei-me próximo à exaustão; mal galgava um desses buracos e
avistava o tenente na dianteira, deixando lesto para trás a parede seguinte.
Nem todas as paredes ainda estavam de pé; por vezes abríamos caminho
por entre os escombros daquilo que deviam ter sido três ou quatro casas,
antes de encontrar outra parede. Os telhados estavam quase todos
destroçados, muitas vezes inexistiam por completo, de modo que tínhamos
bastante luz natural — embora aqui e ali sombras densas fossem um convite
ao passo em falso. Mais de uma vez, até que me habituasse ao terreno, meu
pé escorregou dolorosamente entre duas lajes denteadas ou afundou até o
tornozelo no entulho fragmentado.
Nada mais fácil, em tais circunstâncias, esquecer que passávamos pelo
que somente umas semanas antes fora o lar de centenas de pessoas. Aliás,
muitas vezes tinha a impressão de que nos movíamos não por uma favela,
mas por uma ampla mansão em ruínas, com infinitos aposentos. Ainda
assim, vez por outra me ocorria que entre os escombros debaixo de nossos
pés jaziam bens de família de valor sentimental, brinquedos de criança,
objetos simples porém muito estimados na vida familiar, e dava comigo
subitamente tomado por renovado ódio contra aqueles que haviam
permitido tal destino abater-se sobre tantas pessoas inocentes. Tornei a
pensar naqueles homens da Colônia Internacional, em todas as
tergiversações que eles devem ter empregado para escapar a suas
responsabilidades por tantos anos, e nesses momentos senti minha fúria
subir a intensidade tal que estive prestes a gritar para que o tenente se
detivesse, só para que desse vazão a ela.
O tenente, porém, parou a certa altura por decisão própria, e, quando o
alcançei, ele disse:
"Senhor Banks, queira por favor dar uma boa olhada nisso". Ele
apontava um pouco à nossa esquerda, para uma grande construção
semelhante a uma caldeira que, embora coberta com pó de alvenaria,
permanecera mais ou menos intacta. "Essa é a Fornalha do Oeste. Se olhar
para cima ali, verá a mais próxima das duas chaminés altas que vimos antes
do telhado. A Fornalha do Leste é semelhante a essa na aparência, e será
nosso próximo marco distinto. Quando chegarmos lá, saberemos que
estamos bem perto da casa".
Estudei a fornalha com atenção. Uma chaminé de considerável
circunferência emergia-lhe da crista, e quando dei alguns passos para perto
e ergui os olhos, pude ver a enorme chaminé atirando-se para o céu. Ainda
observava quando ouvi meu companheiro dizer:
"Por favor, senhor Banks. Temos de continuar. É importante que
completemos a nossa tarefa antes que os sol se ponha".
Foram vários minutos após a Fornalha do Oeste que as maneiras do
tenente tornaram-se visivelmente mais cautelosas. Seus passos ficaram mais
estudados, e a cada buraco ele primeiro espiava, seu rifle apontado,
aguçando os ouvidos, antes de transpô-lo. Também comecei a avistar cada
vez mais sacos de areia ou rolos de arame farpado deixados ao alcance dos
buracos. Quando ouvi pela primeira vez as metralhadoras, estaquei
abruptamente, acreditando que estivéssemos sob fogo. Mas então vi o
tenente ainda caminhando à minha frente, e, respirando fundo, segui no seu
encalço.
Por fim atravessei um buraco e encontrei-me num espaço muito mais
amplo. Aliás, em minha condição exausta, pensei que tivesse entrado nos
vestígios bombardeados de um daqueles grandes salões de baile a que fora
levado na Colônia. Notei então que nos achávamos numa área antes
ocupada por vários aposentos; as paredes divisórias haviam desaparecido
quase por inteiro, de modo que a parede seguinte estava a não menos de
vinte e cinco metros. Ali pude ver sete ou oito soldados alinhados, os rostos
contra o tijolo. A princípio tomei-os por prisioneiros, mas então vi como
cada homem estava de pé diante de um pequeno buraco através do qual
inserira o cano de seu rifle. O tenente já atravessara os escombros e
conversava com um homem agachado atrás de uma metralhadora montada
sobre um tripé. Essa metralhadora estava posicionada diante do buraco mais
largo — aquele que teríamos de transpor para seguir nosso percurso.
Chegando mais perto, ademais, vi que o perímetro do buraco fora coberto
com arame farpado, só permitindo espaço suficiente para que o cano da
arma manobrasse.
Supus a princípio que o tenente estivesse pedindo ao homem para
remover esse obstáculo do nosso caminho, mas então vi como todos os
presentes haviam ficado tensos. O homem atrás da metralhadora, o tempo
todo que o tenente lhe falava, não tirou os olhos do buraco à sua frente. Os
demais soldados também, dispostos ao longo da parede, permaneceram
estáticos e de prontidão, profundamente atentos ao que se passava do outro
lado.
Uma vez digeridas as implicações alarmantes dessa cena, senti-me
inclinado a transpor de volta o buraco precedente. Mas então vi o tenente
retornar na minha direção, e permaneci onde estava.
"Temos alguns problemas", ele disse. "Algumas horas atrás os
japoneses conseguiram avançar um pouco. Agora tornamos a rechaçá-los e
a linha foi restabelecida a onde se achava esta manhã. Contudo, parece que
vários soldados japoneses não bateram em retirada com os outros, e agora
ficaram presos atrás de nossa linha. Estão completamente isolados, e são
portanto muito perigosos. Meus homens acreditam que, neste momento,
estejam do outro lado da parede."
"Tenente, não está sugerindo, está, que nos detenhamos até que este
assunto se resolva por si só?"
"Receio que tenhamos de aguardar, certamente."
"Mas por quanto tempo?"
"É difícil prever. Esses soldados não têm para onde ir, e ou serão
capturados ou mortos no final. Mas enquanto isso, eles têm armas e são
muito perigosos."
"Quer dizer que podemos esperar durante horas? Ou mesmo dias?"
"É possível. Seria muito perigoso nesta altura nós dois continuarmos."
"Tenente, o senhor me surpreende. Eu tinha a impressão de que o
senhor, um homem instruído, tivesse plena consciência de como é urgente
nossa atual empreitada. Com certeza deve haver algum outro caminho que
possamos tomar para desviar desses soldados."
"Outros caminhos há. Mas ocorre que, seja lá por onde formos,
correremos considerável perigo. Infelizmente, senhor, não vejo alternativa
senão esperar. É possível que a situação se resolva em breve. Com licença."
Um dos soldados perto do muro começara a gesticular com insistência,
e o tenente começou a andar na direção dele por entre os escombros. Mas
bem nesse momento o metralhador desfechou uma salva de tiros
ensurdecedora, e quando ele cessou ouviu-se um grito prolongado vindo do
outro lado do muro. O grito começou a plenos pulmões, depois minguou até
virar um estranho gemido agudo. Era um som sinistro, e fiquei paralisado
ao ouvi-lo. Somente quando o tenente voltou correndo e me puxou para
baixo, para trás de alguns entulhos, percebi que balas ricocheteavam na
parede atrás de mim. Os homens da parede contígua também atiravam, e
nesse momento o metralhador desfechou outra saraivada. A autoridade de
sua arma parecia silenciar todas as outras, e depois disso, pelo que pareceu
um tempo desmedido, o único ruído que se ouvia era o do homem ferido do
outro lado da parede. Seus gemidos agudos continuaram por vários
instantes, depois ele começou a gritar sem parar alguma coisa em japonês; a
intervalos sua voz crescia até transformar-se num berro frenético, depois
tornava a esvair-se num gemido. Essa voz sem corpo ecoava, exasperante,
entre as ruínas, mas os soldados chineses a minha frente mantiveram uma
calma absoluta, sem se desconcentrarem do que podiam ver através da
parede. De repente o metralhador se virou e vomitou no chão, ao lado,
depois voltou imediatamente para o buraco coberto de arame farpado, em
frente. Da maneira que o fez, não era fácil saber se seu mal-estar estava
relacionado aos nervos, aos sons do homem moribundo ou simplesmente a
alguma indisposição estomacal.
Finalmente então, embora suas posturas mal se alterassem, os soldados
todos relaxaram perceptivelmente. Ouvi o tenente dizer a meu lado:
"Como pode ver agora, senhor Banks, não é coisa fácil avançar a partir
daqui".
Estávamos agachados de joelhos, e notei que meu leve terno de flanela
estava quase inteiramente coberto de pó e fuligem. Levei alguns segundos
para recobrar os meus pensamentos antes de dizer:
"Reconheço os riscos. Mas temos mesmo assim de continuar.
Especialmente com toda esta luta em curso, meus pais não devem ser
deixados naquela casa um momento a mais que o necessário. Permita
sugerir que levemos esses homens conosco? Pois se os soldados japoneses
nos atacarem, estaremos muito mais fortes".
"Na condição aqui de comandante, de modo algum eu poderia sancionar
tal idéia, senhor Banks. Se esses homens deixarem a sua posição, o quartel-
general ficaria totalmente vulnerável. Além disso, estaria expondo a vida de
meus homens a um risco desnecessário."
Dei um suspiro de irritação. "Devo dizer, tenente, que foi um serviço
bem desleixado da parte de seus homens ter permitido que esses japoneses
ficassem atrás de sua linha. Se sua gente tivesse cumprido à risca com o
dever, estou certo de que uma coisa dessas jamais teria ocorrido."
"Os meus homens lutaram com louvável bravura, senhor Banks. Está
longe de ser culpa deles que sua missão tenha encontrado até aqui esses
percalços."
"O que quer dizer com isso, tenente? O que está sugerindo?"
"Por favor se acalme, senhor Banks. Estou meramente fazendo notar
que não é culpa de meus homens se…"
"Então é culpa de quem, senhor? Percebo o que está insinuando! Oh,
sim! Sei que tem pensado nisso já faz algum tempo. Só me perguntava
quando o senhor finalmente desabafaria."
"Senhor, não tenho idéia do que…"
"Sei muito bem o que tem pensado todo esse tempo, tenente! Podia ver
nos seus olhos. Acredita que isso tudo é culpa minha, isso tudo, tintim por
tintim, todo esse terrível sofrimento, essa destruição aqui, pude ver nos seus
olhos quando estávamos andando sobre ela ainda agora. Mas isso é porque
não sabe nada, praticamente nada, senhor, a respeito desse assunto. É
possível que saiba uma coisa ou outra sobre o combate, mas lhe digo o
seguinte, coisa totalmente diversa é solucionar um caso complicado como
este. O senhor obviamente não tem a menor idéia do que está envolvido.
Tais coisas levam tempo, senhor! Um caso como esse exige enorme
delicadeza. Suponho que imagine poder simplesmente atacá-lo com
baionetas e rifles, não é? Levou tempo, admito, mas isso é da própria
natureza de um caso como esse. Mas eu não sei por que me importo em
dizer tudo isso. O que o senhor entenderia a propósito, um simples
soldado?"
"Senhor Banks, não há necessidade de brigarmos. Só faço os mais
sinceros votos de que o senhor tenha sucesso. Estou simplesmente lhe
dizendo o que é possível…"
"Estou ficando cada vez menos interessado em sua idéia do que é ou
não é possível, tenente. Se me permite dizer, o senhor está longe de ser um
bom exemplo para o exército chinês. Será que entendi bem que o senhor
está voltando atrás na sua palavra? Que reluta em me acompanhar além
deste ponto? Pois foi isso que entendi. Que eu estou sendo deixado a sós
para cumprir essa difícil tarefa. Muito bem, é o que vou fazer! Vou invadir a
casa sem ajuda!"
"Acho, senhor, que deveria acalmar-se antes de dizer qualquer coisa
mais…"
"E outra coisa, senhor! Pode dar como certo que não vou mais
mencioná-lo pelo nome na cerimônia no Parque Jessfield. E se o fizer, não
será de forma lisonjeira…"
"Senhor Banks, por favor, me escute. Se está determinado a prosseguir,
apesar do perigo, não posso detê-lo. Mas sem dúvida estará mais seguro
sozinho. Comigo, certamente correrá o risco de ser alvejado. O senhor, por
outro lado, é um branco com roupas civis. Contanto que seja muito
cuidadoso, e anuncie claramente quem é antes de qualquer encontro, é
possível que não venha a sofrer nenhum mal. Claro, repito minha
recomendação de que aguarde até que a situação aqui se resolva. Mas de
novo, como eu próprio sendo alguém com pais de idade, compreendo bem
seu sentido de urgência."
Pus-me de pé e sacudi tanta poeira quanto pude. "Bem, então já vou
indo", eu disse com frieza.
"Neste caso, senhor Banks, por favor leve isto consigo." Ele me
estendia uma pequena lanterna. "Meu conselho, como antes, é parar e
esperar caso não alcance seu destino até o escurecer. Mas posso ver pela sua
presente atitude que talvez esteja inclinado a seguir adiante. Neste caso,
certamente precisará da lanterna. As baterias não são novas, portanto não
use mais que o necessário."
Larguei a lanterna dentro do bolso de minha jaqueta, então lhe agradeci
com certa má vontade, já lamentando um pouco minha explosão de raiva. O
moribundo agora cessara de tentar falar e só gritava novamente. Começara
a caminhar na direção do ruído, quando o tenente disse:
"Não pode ir nessa direção, senhor Banks. Terá de seguir para o norte
por algum tempo, então tentar se orientar de volta para a rota mais tarde.
Venha por aqui, senhor."
Por alguns minutos, ele guiou-me por uma trilha perpendicular à que
havíamos tomado. Instantes depois, chegamos a outra parede com um
buraco nela escavado.
"Deve ir nessa direção por no mínimo um quilômetro antes de virar para
o leste outra vez. É provável que encontre com soldados, de ambos os
lados. Lembre do que lhe falei. Mantenha seu revólver escondido e sempre
anuncie sua neutralidade. Se encontrar algum dos habitantes, peça que o
oriente até a Fornalha do Leste. Desejo-lhe sorte, senhor, e lamento que não
possa auxiliá-lo além deste ponto."

Depois de deslocar-me no sentido norte por alguns minutos, notei que


as casas ficavam cada vez menos destruídas. Isso, contudo, não facilitou o
meu percurso; estarem os telhados mais intactos significava eu ter de virar-
me com uma luz bem mais soturna — decidira economizar a lanterna até o
cair da noite —, e muitas vezes tinha de tatear ao longo de uma parede por
certa distância até dar com uma abertura. Havia, por alguma razão, muito
mais vidro quebrado nessa vizinhança, e também vastas áreas submersas em
água estagnada. Ouvia freqüentemente o ruído de grandes bandos de ratos
em fuga, e certa vez pisei num cachorro morto, mas não pude ouvir nenhum
barulho de combate.
Foi por volta dessa altura do percurso que dei comigo pensando
novamente em Jennifer, sentada na sala do bedel naquela tarde ensolarada
em que nos despedimos — e em especial em seu rosto ao fazer aquele
curioso voto, proferido com tanta seriedade, de "ajudar-me" quando fosse
mais velha. Certa vez, enquanto avançava às apalpadelas, veio-me à cabeça
uma imagem absurda da pobre criança arrastando-se atrás de mim nesse
pavoroso terreno, determinada a fazer valer sua promessa, e subitamente
senti uma onda de emoção que quase me encheu os olhos de lágrimas.
Cheguei então a um buraco numa parede pelo qual não via mais que um
retinto negrume, mas do qual vinha o mais sufocante fedor de excremento.
Sabia que para manter o rumo teria de transpor esse aposento, mas
simplesmente não pude tolerar a idéia e segui adiante. Esse melindre
custou-me caro, pois não achei outra abertura por algum tempo, e daí em
diante tive a impressão de afastar-me cada vez mais de meu rumo.
Quando escureceu por completo e comecei a usar a lanterna, passei a
notar vários outros sinais de habitação. Era freqüente topar com uma
cômoda ou um altar apenas danificados, mesmo ambientes inteiros em que
o mobiliário mal fora desarranjado, dando a impressão de que a família
acabara de sair para passar o dia fora. Mas bem ao lado de tais lugares,
descobria outros recintos inteiramente destruídos ou alagados.
Havia também um número cada vez maior de cães perdidos — animais
esqueléticos que temi pudessem me atacar, mas que invariavelmente se
esquivavam rosnando quando lançava neles meu facho de luz. Uma vez
topei com três cães dilacerando algo selvagemente, e saquei minha pistola,
tão convicto que estava de que viriam no meu encalço; mas mesmo esses
animais olharam-me passar docilmente, como se em respeito à carnificina
que um homem era capaz de promover.
Não me surpreendi, pois, quando me deparei com a primeira família.
Encontrei-os sob o facho da lanterna, encolhidos num canto escuro: várias
crianças, três mulheres, um homem idoso. Ao redor havia as trouxas e os
utensílios de sua existência. Olharam-me apavorados, brandindo armas
improvisadas, que baixaram só levemente ao ouvir minhas palavras de
segurança. Tentei inquirir se estava perto da Fornalha do Leste, mas eles só
responderam com olhares de incompreensão. Topei com mais três ou quatro
dessas famílias nas casas vizinhas — cada vez mais, podia utilizar portas de
verdade, e não abertura nas paredes —, mas não as achei mais solícitas.
Entrei então num espaço amplo, cujo lado mais distante estava banhado
no avermelhado clarão de uma lanterna. Havia várias pessoas de pé nas
sombras — de novo, predominantemente mulheres e crianças com uns
poucos homens idosos entre elas. Começara a proferir minhas usuais
palavras de segurança, quando senti algo estranho na atmosfera, e
interrompendo-me, fiz menção de apanhar meu revólver.
Rostos voltaram-se para mim no clarão da lanterna. Mas então quase
imediatamente os olhares retornaram ao canto oposto, onde cerca de uma
dúzia de crianças amontoara-se ao redor de algo no chão. Algumas das
crianças cutucavam com paus o que quer que fosse aquilo, e então notei que
vários dos adultos empunhavam em riste pás afiadas, machadinhas e outras
armas improvisadas. Era como se eu tivesse perturbado algum ritual
sinistro, e minha primeira reação foi seguir adiante. Talvez tenha sido
porque ouvi um ruído, ou foi talvez algum sexto sentido; mas então dei
comigo, revólver ainda em punho, dirigindome ao círculo de crianças. Estas
pareciam relutantes em revelar o que tinham, mas aos poucos suas sombras
se abriram. Vi então no opaco clarão vermelho a figura de um soldado
japonês deitado de lado, imóvel. Suas mãos estavam amarradas atrás das
costas; os seus pés também haviam sido atados. Seus olhos estavam
fechados, e pude ver uma mancha escura que ensopava o uniforme debaixo
da axila mais afastada do solo. Seu rosto e cabelo estavam cobertos de pó e
salpicados de sangue. Apesar de tudo isso, reconheci Akira sem dificuldade.

As crianças começaram a ajuntar-se novamente, e um garoto espetou o


corpo de Akira com um pau. Ordenei-lhes que se afastassem, agitando o
revólver, e por fim as crianças recuaram um pouco, todas observando
atentamente.
Os olhos de Akira permaneceram fechados enquanto o observava. Seu
uniforme estava esfolado nas costas, a pele em carne viva, sugerindo que
fora arrastado pelo chão. A ferida próxima à axila foi causada
provavelmente por uma granada. Havia um inchaço e um corte atrás de sua
cabeça. Mas ele estava tão coberto de fuligem, e a luz era tão escassa, que
era difícil dizer quão sérios eram esses ferimentos. Quando lhe apontei a
lanterna, espessas sombras caíram por toda parte, tornando ainda mais
difícil ver nitidamente.
Então, quando já o examinava havia alguns momentos, ele abriu os
olhos.
"Akira!", eu disse, aproximando meu rosto. "Sou eu, Christopher!"
Ocorreu-me que, com a luz atrás de minha cabeça, eu não lhe pareceria
mais do que uma intimidante silhueta. Tornei assim a chamar seu nome,
dessa vez virando o facho da lanterna para meu rosto. É possível que tal
ação tenha servido apenas para me fazer semelhar alguma hedionda
aparição, pois Akira fez uma careta, então cuspiu-me com desdém. Incapaz
de reunir muita força, a saliva escorreu-lhe pela face.
"Akira! Sou eu! Que sorte encontrá-lo aqui assim. Agora posso ajudá-
lo."
Ele olhou para mim, então disse: "Deixe-me morrer".
"Não está morrendo, meu chapa. Perdeu algum sangue e passou por
maus bocados nesses últimos tempos. Mas vamos arrumar uma ajuda
adequada e ficará bem, você vai ver."
"Porco. Porco."
"Porco?"
"Você. Porco." De novo me cuspiu, e de novo o cuspe lhe escorreu da
boca sem forças.
"Akira. É claro que não está reconhecendo quem eu sou."
"Deixe-me morrer. Morrer como soldado."
"Akira, sou eu. Christopher."
"Não sei. Você porco."
"Escute, deixe-me desamarrar essas cordas. Então vai se sentir bem
melhor. Então logo vai voltar a si."
Olhei por sobre o ombro, pensando em pedir alguma ferramenta com
que cortar seus nós. Vi então que todas as pessoas no recinto haviam se
juntado numa multidão bem atrás de mim — muitos segurando armas de
um tipo ou de outro —, como se posando para uma sinistra foto em grupo.
Fiquei algo perplexo — por um instante esquecera-me deles — e apalpei
meu revólver, mas bem nesse instante, Akira disse com renovada energia:
"Se cortar cordão, eu mato você. Você avisado, certo, inglês?".
"Do que está falando? Olhe, cabeça-dura, sou eu, seu amigo. Vou ajudar
você."
"Você porco. Cortar cordão, eu mato você."
"Olhe, essas pessoas aqui vão matar é você com a mesma rapidez. Em
todo caso, as suas feridas logo vão infectar. Tem de me deixar ajudar você."
De repente duas mulheres chinesas começaram a berrar. Uma delas
parecia dirigir-se a mim, enquanto a outra gritava para a parte de trás do
grupo. Por um momento reinou a confusão, então um garoto de cerca de dez
anos surgiu segurando uma foice. Ao aproximar-se da luz, pude ver um
pedaço de pêlo de animal — talvez os restos de um roedor — pendendo da
ponta da lâmina. Pareceu-me que o garoto segurava a foice com tamanho
cuidado para não deixar cair a oferenda, mas então a mulher que gritara
comigo agarrou a foice e fosse lá o que fosse caiu no chão.
"Ei, olhem", levantei-me e gritei para a multidão. "Vocês cometeram um
erro. Esse é um bom homem. Meu amigo. Amigo."
A mulher tornou a gritar, indicando que eu devia abrir espaço.
"Mas ele não é inimigo de vocês", continuei. "É um amigo. Ele vai me
ajudar. Ajudar a resolver o caso."
Ergui o revólver e a mulher deu um passo para trás. Enquanto isso,
todos entraram a falar de uma só vez e uma criança começou a chorar.
Então um velho foi empurrado até a frente, uma menina segurando sua
mão.
"Eu falo inglês", ele disse.
"Bom, graças a Deus", eu disse. "Tenha a gentileza de dizer a todos os
presentes que esse homem aqui é meu amigo. Que ele vai me ajudar."
"Ele. Soldado japonês. Ele matar tia Yun."
"Tenho certeza de que não. Não ele pessoalmente."
"Ele matar e roubar."
"Mas não esse homem. Esse é Akira. Alguém o viu, esse homem
específico, matar ou roubar? Ande, pergunte a eles."
Com certa relutância, o velho virou-se e murmurou algo. Isso ensejou
mais discussão, e outra arma, uma pá afiada, correu de mão em mão e foi
apanhada por uma das outras mulheres da frente.
"Então?", perguntei ao velho. "Não estou certo? Ninguém viu Akira
pessoalmente fazer nenhum mal."
O velho abanou a cabeça, talvez para discordar, talvez para indicar que
não entendera. Atrás de mim, Akira fez um ruído e virei-me para ele.
"Olhe, está vendo? Foi uma sorte que eu estivesse passando. Eles
confundiram você com algum outro sujeito e querem matar você. Deus do
céu, ainda não sabe quem eu sou? Akira! Sou eu, Christopher!"
Tirei os olhos da multidão e, virando-me totalmente para ele, tornei a
apontar a lanterna para meu rosto. Quando então a desliguei, vi pela
primeira vez um esboço de reconhecimento em sua face.
"Christopher", ele disse, quase experimentalmente. "Christopher."
"Isso, sou eu. Puxa. Faz um bom tempo. E bem em cima da hora,
parece."
"Christopher. Meu amigo."
Erguendo-me, passei os olhos pela multidão, então gesticulei a um
jovem segurando uma faca de cozinha que se aproximasse. Quando lhe
tomei a faca, a mulher com a foice avançou para mim em tom de ameaça,
mas ergui o revólver e gritei-lhe que guardasse distância. Tornando então a
ajoelhar-me ao lado de Akira, passei a cortar-lhe os nós. Imaginara que
Akira dissera "cordão" por causa de seu inglês limitado, mas eu via agora
que, de fato, ele estava amarrado com barbante velho, que cedia facilmente
à lâmina.
"Conte a eles", eu disse ao velho, quando as mãos de Akira se soltaram,
"conte a eles que ele é meu amigo. E que vamos resolver o caso juntos.
Conte a eles que cometeram um grande erro. Ande, conte a eles!"
Ao voltar minha atenção para os pés de Akira, pude ouvir o velho
murmurar algo e novas discussões iniciarem na multidão. Então Akira
sentou-se cuidadosamente e olhou para mim.
"Meu amigo Christopher", ele disse. "Sim, nós amigos."
Senti a multidão aproximar-se e me pus de pé num pulo. Talvez em
minha ansiedade pelo meu amigo, gritei num tom desnecessariamente
estridente: "Nenhum de vocês se aproxime! Ou eu atiro, atiro mesmo!".
Virando-me então para o velho, berrei: "Diga para eles se afastarem! Diga
para se afastarem se souberem o que é melhor para eles!".
Não sei o que o velho traduziu. De todo modo, o efeito na multidão —
cuja beligerância, agora vejo, eu superestimara em muito — foi de total
confusão. Metade deles parecia acreditar que os queria encostados na
parede à nossa esquerda, enquanto o restante supôs que lhes ordenara
sentassem no chão. Todos estavam nitidamente alarmados com minha
conduta, e na ansiedade de obedecerem, tropeçavam uns nos outros e
gritavam em pânico.
Akira, percebendo que tinha de aproveitar essa chance, fez uma
tentativa de se pôr de pé. Suspendi-o pelo braço, e por um instante
oscilamos instavelmente. Fui forçado a enfiar o revólver de volta no cinto
para livrar minha outra mão, e ensaiamos então um ou dois passos juntos.
Um cheiro pútrido exalava de sua ferida, mas desviando meus pensamentos
disso, gritei sobre meu ombro, já sem me importar com quantos
compreenderiam:
"Logo vocês vão ver! Vão ver que cometeram um erro!".
"Christopher", Akira murmurou em meu ouvido. "Meu amigo.
Christopher."
"Olhe aqui", disse-lhe calmamente. "Temos de nos afastar dessa gente.
Aquela porta ali no canto. Acha que consegue?"
Akira, apoiando-se pesadamente no meu ombro, olhou para a escuridão.
"Certo. Vamos."
Suas pernas pareciam ilesas, e ele caminhou razoavelmente bem. Mas
dali a seis ou sete passos juntos, tropeçou, e por um momento, em nossos
esforços para não nos precipitar numa pilha de escombros, deve ter
parecido aos espectadores como se estivéssemos nos engalfinhando. Mas
logramos encontrar novo equilíbrio e recomeçamos nossa caminhada. Certa
hora, um garoto avançou para nos atirar um pouco de lama, mas foi
imediatamente arrastado de volta. Então Akira e eu chegamos ao vão da
porta — a porta propriamente dita desaparecera — e cambaleamos a casa
seguinte adentro.
20.

Uma vez atravessadas mais duas paredes e ainda não havendo sinal de
que estivéssemos sendo perseguidos, senti pela primeira vez uma espécie de
júbilo por finalmente reunir-me a meu antigo amigo. Dei por mim rindo
algumas vezes enquanto avançávamos juntos, aos trambolhões; então Akira
também deu uma risada, e os anos pareceram dissipar-se entre nós.
"Quanto tempo faz, Akira? Faz mesmo um tempão."
Ele movia-se arduamente a meu lado, mas conseguiu dizer: "Um
tempão, sim".
"Sabe, eu voltei. À casa velha. Suponho que a sua ainda seja a vizinha."
"Sim. Vizinha."
"Oh, você voltou também? Mas é claro, esteve aqui o tempo todo. Não
veria nela nada tão especial."
"Sim", ele tornou a dizer, com algum esforço. "Tempão. Vizinha."
Fiz uma pausa e sentei-o nos vestígios de uma parede. Retirando então
cuidadosamente a jaqueta rasgada de seu uniforme, tornei a examinar suas
feridas, usando a lanterna e minha lupa. Eu ainda não era capaz de afirmar
muita coisa; temera que a ferida sob o seu braço fosse gangrenosa, mas
então me pareceu que o cheiro fétido talvez viesse de algo lambuzado em
suas roupas, quem sabe de onde ele estivera deitado no chão. Por outro
lado, notei que estava alarmantemente quente e absolutamente banhado em
suor.
Tirando minha jaqueta, rasguei várias tiras do forro para servir de
bandagem. Fiz então o que pude para limpar a ferida com meu lenço.
Embora tenha tentado esfregar o pus da forma mais delicada possível, sua
respiração brusca dizia-me que estava lhe causando dor.
"Desculpe, Akira. Vou tratar de ser menos desastrado."
"Desastrado", ele disse, como se remoesse a palavra. Então deu uma
risada súbita e disse: "Você me ajuda. Obrigado".
"Claro que eu estou ajudando você. E muito em breve nós vamos
arrumar ajuda médica apropriada. Então ficará bom num piscar de olhos.
Mas antes que façamos isso, sou eu que vou precisar de sua ajuda. Há
primeiro uma tarefa muito urgente para nós, e você mais que ninguém
entenderá por que é tão urgente. Sabe, Akira, finalmente localizei. A casa
onde meus pais estão sendo mantidos cativos. Estamos bem próximos dela
neste momento. Sabe de uma coisa, meu chapa, estive pensando que teria
de entrar nessa casa sozinho. Coisa que eu teria feito, mas cá entre nós, teria
sido um risco dos diabos. Sabe-se lá quantos seqüestradores estão lá dentro.
De início considerei levar alguns soldados chineses para ajudar, mas foi
impossível. Pensei mesmo em pedir ajuda aos japoneses. Mas agora, nós
dois juntos, vamos dar conta do recado, isso com certeza."
Todo esse tempo estive tentando amarrar a improvisada atadura ao redor
de seu tronco e sua nuca, de forma a manter alguma pressão na ferida.
Akira observou-me atentamente, e quando parei de falar, sorriu e disse:
"Sim. Eu ajudo você. Você me ajuda. Bom".
"Mas Akira, tenho de confessar a você. Estou um tanto perdido. Estava
indo muito bem até um pouco antes de topar com você. Mas agora,
realmente não sei em que direção ir. Temos de procurar algo chamado
Fornalha do Leste. Uma coisa grande com uma chaminé em cima. Estive
pensando, meu chapa, você tem alguma idéia de onde encontrar essa tal
fornalha?"
Akira continuava a olhar para mim, seu peito arquejante. Quando lhe
pus os olhos assim, lembrei-me subitamente daqueles tempos em que tantas
vezes nos sentávamos juntos no topo da corcova em nosso jardim,
recuperando o fôlego. Estava a ponto de mencionar-lhe isso quando ele
disse:
"Eu sei. Eu sei esse lugar".
"Sabe como chegar até a Fornalha do Leste? Daqui?"
Ele assentiu com a cabeça. "Eu luto aqui, muitas semanas. Aqui, eu
conheço como" — e de repente abriu um sorriso — "como minha cidade
natal."
Também sorri, mas esse comentário intrigara-me. "Que cidade natal é
essa?", perguntei.
"Cidade natal. Onde eu nasço."
"Quer dizer a Colônia?"
Akira calou-se por um instante, então disse: "Certo. Sim. Colônia.
Colônia Internacional. Minha cidade natal".
"Sim", eu disse. "Suponho que seja minha cidade natal também."
Nós dois começamos a rir, e por alguns instantes continuamos a rir e a
espremer a risada juntos, talvez de maneira um pouco descontrolada.
Quando nos acalmamos um pouco, eu disse:
"Vou lhe dizer uma coisa estranha, Akira. Posso dizer isso a você. Todos
esses anos que morei na Inglaterra, nunca me senti de verdade em casa ali.
A Colônia Internacional. Essa sempre será minha casa".
"Mas Colônia Internacional…" Akira abanou a cabeça. "Muito frágil.
Amanhã, depois de amanhã…" Ele agitou uma das mãos no ar.
"Sei o que quer dizer", comentei. "E quando éramos crianças, ela
parecia tão sólida para nós. Mas como você mesmo acabou de dizer. É
nossa cidade natal. A única que temos."
Comecei a lhe vestir de novo o uniforme, tomando cuidado para não
machucá-lo sem necessidade.
"Melhorou alguma coisa, Akira? Lamento não poder fazer mais por
você agora. Vamos arranjar quem cuide direito de você em breve. Mas
agora temos um trabalho importante a fazer."
Nosso progresso era lento. Era difícil para mim manter a lanterna
apontada para nossa frente, e muitas vezes tropeçamos no escuro, a duras
penas para Akira. Aliás, mais de uma vez ele esteve perto de perder a
consciência naquela etapa de nossa jornada, e seu peso ao redor de meus
ombros tornou-se imenso. Tampouco eu estava sem meus próprios
machucados; para maior dos incômodos, o meu sapato direito fendera-se, e
o meu pé tinha um talho feio, suscitando uma dor lancinante a cada passo.
Por vezes estávamos tão exaustos que não éramos capazes de dar mais que
uma dúzia de passos sem parar novamente. Mas resolvemos nessas ocasiões
não sentar, e nos balançávamos juntos, recobrando fôlego, reequilibrando
nossos pesos na tentativa de aliviar uma dor à expensas de outra. O cheiro
rançoso de sua ferida piorou, e a contínua debandada dos ratos a nossa volta
era enervante, mas não ouvimos, nessa altura, nenhum ruído de combate.
Fiz quanto pude para manter alto nosso moral, fazendo comentários
bem-humorados sempre que tinha fôlego. Na verdade, porém, meus
sentimentos a respeito desse encontro foram, durante aqueles momentos, de
um matiz complexo. Não havia dúvidas da minha enorme gratidão a que o
destino nos reunisse bem a tempo de nossa grande empreitada. Mas ao
mesmo tempo, uma parte de mim estava entristecida que tal encontro —
com o qual sonhara por tanto tempo — devesse ocorrer em circunstâncias
tão lúgubres. Certamente estava longe das cenas que eu sempre evocara —
de nós dois sentados em algum confortável saguão de hotel ou talvez na
varanda da casa de Akira, com vista para um sereno jardim, conversando e
relembrando horas a fio.
Akira, enquanto isso, apesar de todas as suas dificuldades, mantinha um
claro sentido de direção. Freqüentemente ele nos guiava por algum caminho
que eu temia fosse dar num beco sem saída, para então aparecer um vão de
porta ou uma abertura. De tempos em tempos, topávamos com mais
habitantes, alguns não mais que presenças que sentíamos na escuridão;
outros, reunidos em volta do clarão de uma lanterna ou de um fogo, fitavam
Akira com tal hostilidade que receei fôssemos ser atacados novamente.
Porém na maior parte nos era permitido passar sem sermos molestados, e
uma vez consegui até persuadir uma senhora a nos dar água potável em
troca das últimas cédulas em meu bolso.
Então o terreno mudou perceptivelmente. Não havia mais bolsões de
domesticidade, e as únicas pessoas que encontrávamos eram indivíduos
com olhares desamparados, que murmuravam ou choravam de si para si.
Nem havia mais vãos de portas que restassem, mas somente os buracos
escavados do tipo que eu e o tenente havíamos transposto no início da
jornada. Cada um desses nos apresentava muita dificuldade, Akira sendo
incapaz de galgá-los — mesmo que eu o auxiliasse a cada movimento —
sem infligir agonias atrozes a si mesmo.
Havia muito tínhamos desistido da conversa, e simplesmente emitíamos
grunhidos em cadência com nossos passos, quando subitamente Akira nos
fez estacar e ergueu a cabeça. Então também pude ouvir uma voz, alguém
gritando ordens. Era difícil dizer a que distância — talvez duas ou três casas
além.
"Japoneses?", perguntei num sussurro.
Akira continuou a ouvir, então abanou a cabeça.
"Kuomintang. Christopher, nós agora muito perto do… do…"
"Do front?"
"Sim, front. Nós agora muito perto do front. Christopher, isso muito
perigoso."
"E absolutamente necessário atravessar essa área para chegar à casa?"
"Necessário, sim."
Houve uma súbita descarga de rifle, então de mais além, a resposta de
uma metralhadora. Instintivamente nos crispamos um ao outro, mas então
Akira desprendeu-se e sentou.
"Christopher", ele disse calmamente. "Nós descansamos agora."
"Mas temos de chegar à casa."
"Nós descansamos agora. Muito perigoso entrar na zona combate no
escuro. Nós mortos. Temos esperar manhã."
Vi razão naquilo, e em todo caso, estávamos ambos exaustos demais
para progredir muito além. Também me sentei e desliguei a lanterna.
Ficamos sentados no escuro por algum tempo, o silêncio quebrado
apenas pela nossa respiração. Então subitamente recomeçou o tiroteio, e por
talvez um minuto ou dois continuou de maneira feroz. Terminou
abruptamente; então após um momento de silêncio, um estranho ruído
ergueu-se pelos muros. Era um som prolongado, tênue, como o chamado de
um animal na selva, mas terminou num grito a plenos pulmões. A seguir
vieram guinchos e soluços, e então o homem ferido começou a berrar
verdadeiras frases. Soava ele notavelmente parecido ao soldado japonês
moribundo que escutara antes, e em meu estado de exaustão, supus que
fosse o mesmo homem; eu estava a ponto de comentar com Akira a singular
desgraça pela qual passava aquele indivíduo, quando percebi que ele gritava
em mandarim, não japonês. A percepção de que se tratava de dois homens
diferentes deixou-me um tanto gelado. Tão idênticos eram os seus
lamentáveis gemidos, a maneira que os seus berros davam lugar a súplicas
desesperadas, para então voltar aos berros, que me ocorreu ser aquilo pelo
que cada um de nós passaria a caminho da morte — que eses terríveis
ruídos eram tão universais quanto o choro dos recém-nascidos.
Depois de algum tempo, tomei ciência do fato de que, caso extravasasse
o combate para nosso recinto, estávamos sentados numa posição
completamente exposta. Estava prestes a sugerir a Akira que nos
mudássemos para algum lugar mais encoberto, mas notei então que ele
ferrara no sono. Tornei a ligar a lanterna e iluminei ao redor
cuidadosamente.
Mesmo pelos padrões recentes, a destruição à nossa volta era marcante.
Podia ver avaria de granada, buracos de bala por todo canto, tijolo
despedaçado e vigamento. Havia um búfalo morto deitado de lado no meio
do ambiente, a não mais que sete ou oito metros de nós; estava coberto de
pó e escombros, um chifre apontando para o teto. Segui lançando o facho ao
redor até fixar todos os pontos possíveis pelos quais os combatentes
poderiam ingressar em nosso recinto. Mais importante de tudo, descobri, na
extremidade do quarto, para além do búfalo, um pequeno nicho de tijolo,
que talvez servira antes de forno ou lareira. Pareceu-me ser o lugar mais
seguro para passarmos a noite. Sacudindo Akira, passei seu braço ao redor
da minha nuca e nós dois nos pusemos de pé a duras penas.
Quando alcançamos o nicho de tijolo, afastei algum entulho e limpei
uma área de tábuas lisas de madeira, suficiente para nós dois deitarmos.
Estendi minha jaqueta para Akira e deitei-o cuidadosamente do seu lado
são. Também eu deitei depois e aguardei pelo sono.
Mas por mais exausto que eu estivesse, os contínuos gritos dos
moribundos, meu temor de ser pego em fogo cruzado e meus pensamentos
sobre a tarefa crucial a nossa frente impediam-me de pegar no sono. Akira
também, podia sentir, permaneceu acordado, e quando afinal o ouvi sentar-
se, perguntei-lhe:
"Como vai sua ferida?".
"Minha ferida. Sem problema, sem problema."
"Deixe-me ver de novo…"
"Não, não. Sem problema. Mas obrigado. Você bom amigo."
Embora só estivéssemos a centímetros de distância, não nos podíamos
ver em absoluto. Após uma longa pausa, ouvi-o dizer:
"Christopher. Você tem que aprender a falar japonês".
"É, tenho."
"Não, eu digo agora. Você aprende a falar japonês agora."
"Bem, sinceramente, meu velho, está longe de ser a hora ideal para…"
"Não. Você tem que aprender. Se soldado japonês entra enquanto eu
dormindo, você tem que dizer a eles. Dizer a eles somos amigos. Tem que
dizer a eles senão eles atiram na escuridão."
"Sei. Entendi."
"Então você aprende. No caso eu dormir. Ou eu morto."
"Agora escute aqui, não quero saber mais dessa bobagem. Num piscar
de olhos você vai estar tinindo de forte."
Houve outra pausa, e lembrei de anos passados que Akira não me
seguia se eu utilizasse coloquialismos. Então eu disse, bem devagar:
"Você vai ficar perfeitamente bem. Compreende, Akira? Vou cuidar
disso. Você vai ficar bem".
"Muito gentil", ele disse. "Mas precaução é melhor. Você tem que
aprender a dizer. Em japonês. Se soldado japonês vier. Eu ensino palavra.
Você lembra."
E começou a dizer algo em sua idioma, mas era comprido demais e eu o
interrompi.
"Não, não, nunca vou aprender isso. Alguma coisa bem mais curta. Só
para deixar claro que não somos o inimigo."
Ele pensou um momento, então proferiu uma frase só ligeiramente
menor que a anterior. Fiz uma tentativa, mas quase imediatamente ele disse:
"Não, Christopher. Erro".
Depois de mais algumas tentativas, eu disse: "Olhe, não adianta. Só me
diga uma palavra. A palavra para 'amigo'. Mais que isso não consigo esta
noite".
"Tomodachi", ele disse. "Você diz. To-mo-da-chi."
Repeti essa palavra diversas vezes, com total precisão, pensei, mas
então percebi que ele ria na escuridão. Dei comigo rindo também, e então,
tal como fizéramos antes, nós dois começamos a rir descontroladamente.
Continuamos a rir por talvez um minuto inteiro, depois do qual acredito que
adormeci de forma bastante repentina.

Quando acordei, a primeira luz da alvorada rompia pelo ambiente. Era


uma luz pálida, azulada, como se apenas uma camada de escuridão
houvesse sido removida. O moribundo calara-se agora, e de alguma parte
vinha o canto de um pássaro. Agora podia ver que o teto acima de nós em
boa parte não existia mais, de maneira que, de onde eu estava deitado, o
meu ombro contra a alvenaria de tijolos, estrelas eram visíveis no céu
crepuscular.
Um movimento chamou-me a atenção e sentei-me alarmado. Vi então
três ou quatro ratos rodeando o búfalo, e por alguns instantes continuei
sentado, mirando-os. Só então me virei para Akira, temendo o que pudesse
encontrar. Ele estava deitado a meu lado bem quieto, e sua cor era muita
pálida, mas vi com alívio que respirava com cadência. Apanhei minha lupa
e comecei delicadamente a examinar sua ferida, mas não fiz mais que
despertá-lo.
"Sou eu, mais ninguém", sussurrei enquanto ele sentava-se devagar e
espiava ao redor. Ele parecia amedrontado e atônito, mas então pareceu
lembrar-se de tudo, e um ar de insensível dureza veio-lhe aos olhos.
"Esteve sonhando?", perguntei.
Ele assentiu com a cabeça. "Sim. Sonhando."
"Com um lugar melhor do que este, espero", eu disse com uma risada.
"Sim." Ele deu um suspiro, então acrescentou: "Eu sonho quando eu
garoto".
Silenciamos por um momento. Então eu disse:
"Deve ter sido um choque e tanto. Vir do mundo com que sonhava para
este aqui".
Ele fitava a cabeça do búfalo sobressaindo dos escombros.
"Sim", ele disse afinal. "Eu sonho quando eu menino. Minha mãe, meu
pai. Menino."
"Lembra, Akira? Todas as nossas brincadeiras. Na corcova, em nosso
jardim? Lembra, Akira?"
"Sim. Lembro."
"Essas são memórias boas."
"Sim. Memórias muito boas."
"Foram dias esplêndidos", eu disse. "Não sabíamos então, claro, quão
esplêndidos eles eram. As crianças nunca sabem, imagino."
"Eu tenho criança", disse Akira subitamente. "Menino. Cinco anos."
"Mesmo? Gostaria de conhecê-lo."
"Eu perco foto. Ontem. Anteontem. Quando me firo. Eu perco foto. De
filho."
"Agora olhe, meu chapa, não fique desanimado. Em breve vai tornar a
ver o seu filho."
Ele continuou a fitar o búfalo por algum tempo. Um rato fez um
movimento súbito e uma nuvem de moscas ergueu-se, depois tornou a
pousar no animal.
"Meu filho. Ele no Japão."
"Oh, você o mandou para o Japão? Isso me surpreende."
"Meu filho. No Japão. Se eu morro, você diz a ele, por favor."
"Dizer que você morreu? Desculpe, isso eu não posso fazer. Porque
morrer você não vai. Não por enquanto, pelo menos."
"Você diz a ele. Se morro pelo país. Diz a ele, obedece mãe. Protege. E
constrói mundo bom." Agora ele quase sussurrava, lutando para encontrar
as palavras em inglês, lutando para não chorar. "Constrói mundo bom",
tornou a dizer, movendo uma das mãos pelo ar como um pedreiro a rebocar
um muro. Seu olhar seguiu a mão como se fascinado. "Sim. Constrói
mundo bom."
"Quando éramos garotos", eu disse, "vivíamos num mundo bom. Essas
crianças, essas crianças com que topamos, que coisa terrível para elas
aprender tão cedo como são aterradoras as coisas na realidade."
"Meu filho", disse Akira. "Cinco anos. No Japão. Ele não sabe nada,
nada. Pensa que o mundo é lugar bom. Gente educada. Seus brinquedos.
Sua mãe, seu pai."
"Imagino que fomos assim também. Mas nem tudo é fácil, imagino." Eu
estava agora empenhado em combater o perigoso desânimo que se abatia
sobre o meu amigo. "Afinal, quando éramos crianças, quando as coisas
saíam errado, não havia muito que nós pudéssemos fazer para ajudar a
consertar. Mas agora somos adultos, agora podemos. Essa é a questão,
entende? Olhe para nós, Akira. Depois de todo esse tempo, podemos
finalmente pôr as coisas no lugar. Lembra, meu chapa, como brincávamos?
Muitas e muitas vezes? Como fingíamos que éramos detetives à procura de
meu pai? Agora crescemos, podemos enfim pôr as coisas no lugar."
Akira não falou por longo intervalo. Então disse: "Quando meu menino.
Ele descobre o mundo não é bom. Eu desejo…". E interrompeu-se, ou pela
dor ou porque não achasse a palavra em inglês. Disse algo em japonês,
então prosseguiu: "Desejo eu com ele. Para ajudar ele. Quando ele
descobrir".
"Escute, molengão", eu disse, "já estou por aqui com você assim todo
tristonho. Você vai ver seu filho de novo, vou cuidar disso. E toda essa
conversa de como o mundo era bom quando éramos garotos. Bem, é um
monte de bobagem em certo sentido. É só que os adultos nos levaram a
acreditar nisso. Não se deve ser muito nostálgico da infância."
"Nos-tál-gi-co", disse Akira, como se fosse uma palavra que estivesse
lutando para achar. Então disse uma palavra em japonês, talvez o
correspondente a "nostálgico". "Nostálgico. É bom ser nos-tál-gi-co. Muito
importante."
"Mesmo, meu velho?"
"Importante. Muito importante. Nostálgico. Quando nós nostálgicos,
nós lembramos. Um mundo melhor que esse mundo nós descobrimos
quando crescemos. Lembramos e desejamos bom mundo volte de novo.
Assim, muito importante. Agora mesmo, eu tive sonho. Eu era garoto. Mãe,
pai, perto de mim. Na nossa casa."
Ele calou-se e continuou a fitar os escombros.
"Akira", eu disse, sentindo que, quanto mais longe fosse essa conversa,
maior era algum perigo que eu não desejava inteiramente articular. "Está na
hora de seguir adiante. Temos muito a fazer."
Como se em resposta, sobreveio uma salva de metralhadora. Era mais
longe que na noite anterior, mas nós dois tivemos um sobressalto.
"Akira", eu disse. "Agora está longe da casa? Temos de tentar chegar lá
antes que a luta recomece a sério. Quanto falta agora?"
"Não falta muito. Mas nós vamos com cuidado. Soldado chinês muito
perto."

Nosso sono, longe de nos revigorar, pareceu nos deixar ainda mais
exaustos. Quando nos levantamos e Akira apoiou seu peso em mim, a dor
que percorreu minha nuca e meus ombros obrigou-me a soltar um gemido.
Por algum tempo, até que nossos corpos tornassem a se habituar, andar
junto revelou-se uma torturante provação.
À parte nossa condição física, o terreno que atravessamos naquela
manhã era também de longe o mais difícil. Os estragos eram tão extensos
que muitas vezes tínhamos de parar, incapazes de encontrar um caminho
pelo entulho. E se era uma inegável ajuda ver onde botávamos os pés, toda
a atrocidade que ficara escondida na escuridão agora era visível para nós,
cobrando pesado tributo de nosso espírito. Em meio aos destroços,
podíamos ver sangue — de vez em quando carne, às vezes com semanas de
idade — no chão, nas paredes, espirrado na mobília quebrada. Pior ainda —
e nosso nariz nos avisava de sua presença bem antes que nossos olhos —,
com desconcertante regularidade topávamos com pilhas de intestinos
humanos em vários estágios de decomposição. Quando paramos certa vez,
comentei com Akira a respeito, e ele disse simplesmente:
"Baioneta. Soldado sempre enfia baioneta na barriga. Se enfiar aqui" —
ele indicou suas costelas — "baioneta não sai de novo. Então soldado
aprende. Sempre barriga."
"Pelo menos os corpos se foram. Pelo menos isso eles fazem."
Continuamos a ouvir tiroteios ocasionais, e cada vez que o fazíamos, eu
tinha a sensação de que chegáramos um pouco mais perto. Isso me
preocupou, mas Akira parecia agora mais certo do que nunca de nosso
rumo, e sempre que eu questionava suas decisões, ele balançava a cabeça
com impaciência.
Na altura em que topamos com os corpos de dois soldados chineses, o
sol da manhã incidia em possantes feixes pelos telhados quebrados. Não
passamos perto o bastante para examiná-los adequadamente, mas meu
palpite é que não estavam mortos por mais de umas poucas horas. Um deles
estava de bruços nos escombros; o outro morrera de joelhos, sua testa
apoiada na parede de tijolo, como se fora vencido pela melancolia.
Em dado ponto, minha convicção de que estávamos prestes a ingressar
em fogo cruzado assumiu dimensões tais que detive Akira, dizendo:
"Agora olhe aqui. Qual é a jogada? Para onde está nos levando?".
Ele não disse nada, mas permaneceu apoiado contra mim, cabisbaixo,
recobrando fôlego.
"Sabe realmente aonde estamos indo? Akira, me responda! Sabe aonde
estamos indo?"
Ele levantou a cabeça extenuado e apontou por sobre meu ombro.
Eu virei — tive de fazê-lo devagar, pois ele ainda estava apoiado em
mim — e vi através de um pedaço quebrado de uma parede, não mais do
que a uma dúzia de passos de nós, o que sem dúvida era a Fornalha do
Leste.
Não disse nada, mas conduzi nós dois até lá. Tal como seu par, a
Fornalha do Leste sobrevivera bem aos ataques. Estava coberta de pó, mas
parecia praticamente em condições de uso. Soltando Akira — ele
imediatamente sentou-se em algum entulho —, fui direto até a fornalha. Tal
como na última ocasião, podia ver a chaminé acima de mim apontando para
as nuvens. Voltei para onde Akira estava sentado e delicadamente toqueilhe
o ombro são.
"Akira, desculpe pelo meu tom ainda agora. Quero que saiba que sou
muito grato a você. Nunca poderia ter encontrado isto sozinho. Verdade,
Akira, sou muito grato."
"Tudo bem." Sua respiração agora estava um pouco mais branda. "Você
me ajuda. Eu ajudo você. Tudo bem."
"Mas, Akira, devemos estar bem perto da casa agora. Deixe-me ver. Por
ali" — indiquei — "a ruela cerre naquele sentido. Temos de seguir a ruela."
Akira pareceu relutante em levantar-se, mas suspendi-o e partimos de
novo. Comecei por seguir o que era claramente a estreita ruela que o
tenente apontara do telhado, mas quase que de imediato encontramos nosso
caminho completamente obstruído por destroços. Escalamos por um muro e
entramos numa casa vizinha, então seguimos no que eu imaginava ser uma
rota paralela, traçando nosso caminho por aposentos salpicados de
escombros.
Essas casas em que agora nos encontrávamos estavam menos avariadas
e haviam sido claramente mais respeitáveis do que aquelas pelas quais
havíamos recentemente passado. Havia cadeiras, penteadeiras, mesmo
alguns espelhos e vasos ainda intactos em meio aos destroços. Eu estava
ávido para seguir adiante, mas o corpo de Akira começou a vergar feio, e
fomos obrigados a parar outra vez. Sentamos numa viga caída, e foi
enquanto recobrávamos o fôlego que a minha vista pousou numa tabuleta
pintada à mão ali nos escombros a nossa frente.
Ela rachara bem no veio da madeira, mas as duas partes jaziam ali lado
a lado; podia ver também parte da treliça pela qual antes fora afixada à
entrada da frente. Não era de modo algum a primeira vez que topávamos
com coisa assim, mas algum instinto chamou minha atenção para tal objeto
em particular. Fui até ela e, livrando as duas peças de madeira dos
escombros, trouxe-as de volta para onde estávamos sentados.
"Akira", eu disse. "Consegue ler isto?" Segurei as peças juntas diante
dele.
Ele observou a escrita por um instante, então disse: "Meu chinês, não
bom. Um nome. O nome de alguém".
"Akira, ouça com atenção. Olhe para esses caracteres. Deve saber algo
sobre eles. Por favor, tente lê-los. É muito importante."
Ele continuou a contemplar a tabuleta, então abanou a cabeça.
"Akira, escute", eu disse. "É possível que isso diga Yeh Chen? Será que
esse pode ser o nome escrito aqui?"
"Yeh Chen… "Akira olhou pensativo. "Yeh Chen. Sim, possível. Esse
caractere aqui… Sim, possível. Isso diz Yeh Chen."
"Diz mesmo? Tem certeza?"
"Não certeza. Mas… possível. Muito possível. Sim" — ele assentiu com
a cabeça — "Yeh Chen. Acho que sim."
Baixei os dois pedaços da tabuleta e dirigi-me com cuidado pelos
escombros até a frente da casa em que estávamos. Havia uma fenda onde
antes havia sido o vão da porta, e, olhando por ela, pude ver a estreita ruela
que corria lá fora. Olhei para a casa bem a minha frente. As fachadas das
propriedades vizinhas estavam severamente danificadas, porém a casa para
a qual eu olhava sobrevivera estranhamente incólume. Mal havia sinais
evidentes de avaria: as persianas da janela, a tosca porta de correr de treliça
de madeira, mesmo o amuleto que pendia acima do vão da porta, todos
haviam permanecido intactos. Depois do que tínhamos visto, isso se
assemelhava a uma aparição de outro mundo mais civilizado. Fiquei ali a
contemplá-la por algum tempo. Então gesticulei para Akira.
"Olhe, venha aqui", disse num quase-sussurro. "Esta deve ser a casa.
Não pode ser outra."
Akira não se mexeu, porém deu um profundo suspiro. "Christopher.
Você amigo. Gosto muito de você."
"Fale baixo. Akira, chegamos. É esta, a casa. Estou com esse
pressentimento."
"Christopher…" Com um esforço ele levantou-se e cruzou devagar o
terreno. Ao chegar a meu lado, apontei-lhe a casa. O sol da manhã
incidindo na ruela fazia com que listras fulgentes lhe caíssem sobre a
fachada.
"Ali, Akira. Lá está ela."
Ele sentou-se junto a meu pé e deu outro suspiro. "Christopher. Meu
amigo. Você tem que pensar com muito cuidado. São muitos anos. Já
muitos e muitos anos…"
"Não é estranho", comentei, "como o combate mal tocou aquela casa? A
casa com meus pais dentro."
Ao proferir essas palavras, de repente quase me senti sufocado. Mas
contive-me e disse: "Então, Akira, temos de entrar. Os dois juntos, de
braços dados. Igual daquela outra vez, ao entrar no quarto de Ling Tien.
Lembra, Akira?".
"Christopher. Meu caro amigo. Você tem que pensar com muito
cuidado. São muitos e muitos anos. Meu amigo, por favor, você escute.
Talvez mãe e pai. Agora já faz muitos anos…"
"Vamos entrar juntos. Então assim que tivermos feito o que temos de
fazer, arrumamos ajuda médica adequada para você, prometo. Aliás, é
possível que haja alguma coisa, algum tipo de primeiros socorros nessa
casa. Pelo menos um pouco de água limpa, talvez bandagens. Minha mãe
vai poder dar uma olhada em sua ferida, talvez fazer um novo curativo para
você. Não se preocupe, daqui a pouco vai estar bem."
"Christopher. Você tem que pensar com muito cuidado. Tantos e tantos
anos passam…"
Ele calou-se no instante em que a porta do outro lado da ruela abriu-se
com um estrépito. Eu mal começara a tatear à cata do revólver quando a
garotinha chinesa apareceu.
Teria talvez seis anos. Seu rosto tinha uma expressão calma e era
bastante formoso. Seu cabelo fora cuidadosamente amarrado em marias-
chiquinhas. Seu casaco simples e sua calça folgada eram ligeiramente
grandes demais para ela.
Ela olhava ao redor, entrecerrando os olhos no sol, então mirou em
nossa direção. Vendo-nos sem dificuldade — nenhum de nós havia se
mexido —, veio em nossa direção com surpreendente destemor. Parou na
ruela, a alguns metros de distância, e disse algo em mandarim, gesticulando
para a casa.
"Akira, o que ela está dizendo?"
"Não entendo. Talvez nos convida entrar."
"Mas como pode estar envolvida? Você acha que ela tem alguma coisa a
ver com os seqüestradores? O que ela está dizendo?"
"Acho que pede para nós ajudar ela."
"Temos de dizer-lhe que se afaste", eu disse, sacando meu revólver.
"Temos de prever resistência."
"Sim, ela pede para nós ajudar. Ela diz cachorro está ferido. Acho que
diz cachorro. Meu chinês não bom."
Então, enquanto observávamos, de algum ponto próximo de onde
começava seu cabelo cuidadosamente amarrado, um filete de sangue
escorreu, passou pela testa e desceu pela face. A garotinha pareceu não
notar nada e tornou a falar conosco, gesticulando outra vez para a casa.
"Sim", Akira disse. "Ela diz cachorro. Cachorro está machucado."
"O cachorro? Ela é quem está machucada. Talvez seriamente."
Dei um passo na direção dela, pretendendo examinar sua ferida. Mas ela
interpretou meu movimento como anuência, e, voltando-se, saltitou de volta
pela ruela em direção à porta. Tornou a abri-la, olhou súplice para nós,
depois desapareceu casa adentro.
Fiquei ali um momento, hesitante. Depois estendi a mão para Akira.
"Akira, chegou a hora", falei. "Temos de entrar. Vamos entrar agora,
juntos."
21.

Tentei manter o revólver em riste enquanto atravessávamos a ruela. Mas


o braço de Akira cingia-me a nuca e eu tinha de sustentar tanto do seu peso
que, imagino, nosso passo cambaleante ao entrar na casa estava longe de
impor respeito. Tomei vaga ciência de um vaso ornamental na entrada, e
creio que a decoração que vira oscilar do batente da porta tilintou de leve ao
roçarmos nela. Então ouvi a voz da garota e olhei a nosso redor.
Embora a frente da casa houvesse permanecido praticamente intacta, a
metade posterior inteira do aposento em que nos achávamos estava em
ruínas. Pensando nisso hoje, suponho que uma bomba houvesse entrado
pelo teto, botando abaixo o andar de cima e destruindo os fundos da casa,
junto com a propriedade adjacente. Mas naquele momento, procurava acima
de tudo meus pais, e não tenho certeza do que registrei exatamente. A
primeira idéia que me passou pela cabeça foi que os seqüestradores haviam
fugido. Então, quando vi os corpos, meu medo terrível foi que eles fossem
de minha mãe e meu pai — que os seqüestradores os tivessem executado
por causa de nossa aproximação. Tenho de confessar que minha emoção
seguinte foi de alívio, quando vi que os três cadáveres espalhados pelo
ambiente eram todos chineses.
Perto dos fundos, junto a uma parede, estava o corpo de uma mulher,
talvez o da mãe da garotinha. Possivelmente a explosão a arremessara até
ali, e ela jazia onde tinha caído. Havia uma expressão de choque em seu
rosto. Um braço havia sido decepado na altura do cotovelo, e agora ela
apontava o coto para o céu, talvez para indicar a direção de que viera a
bomba. Alguns metros além nos destroços, uma senhora também observava
o buraco no telhado. Um lado de seu rosto estava carbonizado, mas não
pude ver sangue nem alguma mutilação evidente. Enfim, mais perto de
onde estávamos — ele fora ocultado a princípio por uma estante caída —
jazia um menino pouco mais velho que a garotinha que seguíramos. Uma de
suas pernas havia sido seccionada na altura do quadril, de onde entranhas
surpreendentemente longas, qual os rabos decorativos de uma pipa,
despregavam-se pela esteira.
"Cachorro", Akira disse a meu lado.
Fitei-o, depois segui seu olhar. No centro dos destroços, não longe do
garoto morto, a garotinha havia se ajoelhado ao pé de um cão ferido,
deitado de lado, e delicadamente acariciava seu pêlo. O rabo do cachorro
moveu-se fragilmente em resposta. Enquanto a observávamos, ela ergueu os
olhos e disse algo, sua voz ainda calma e firme.
"O que ela está dizendo, Akira?"
"Eu acho que ela diz nós ajudamos cachorro", disse Akira. "Sim, ela diz
nós ajudamos cachorro." De repente, então, ele abandonou-se a uma
risadinha espremida.
A garotinha tornou a falar, dessa vez dirigindo-se apenas a mim, tendo
talvez descartado Akira como um lunático. Então achegou o seu rosto ao
cachorro e continuou a passar sua mão delicadamente em seu pêlo.
Dei um passo em sua direção, desvencilhando-me do braço de meu
amigo, e ao fazê-lo, Akira espatifou-se sobre alguma mobília quebrada.
Olhei para trás alarmado, mas ele persistia na sua risadinha espremida, e
além disso, a súplica da garota não cessara. Depositando meu revólver
sobre algo, fui até ela e toquei-lhe o ombro.
"Olhe aqui… Tudo isto" — gesticulei para a carnificina, à qual ela
parecia completamente alheia — "é um azar dos diabos. Mas olhe, você
sobreviveu, e sabe do que mais, você vai fazer bem bonito se… se mantiver
a coragem…" Voltei-me para Akira irritado e gritei: "Akira! Pare com esse
barulho! Deus do céu, não tem nada de engraçado nisso! Esta pobre
garota…".
Mas agora a menina me agarrara a manga. Ela voltou a falar, devagar e
cuidadosamente, olhando-me nos olhos.
"Olhe, de verdade", eu disse, "você tem sido valente como quê. Eu
prometo, quem quer que tenha feito isso tudo, quem quer que fez essa coisa
monstruosa, eles não vão escapar à justiça. Talvez não saiba quem eu sou,
mas acontece que eu… bom, sou justo a pessoa que está querendo. Vou
cuidar para que eles não fujam. Não se preocupe, eu vou… eu vou…"
Estivera apalpando a minha jaqueta, mas então encontrei minha lupa e
mostrei para ela. "Veja, entende?"
Chutei uma gaiola no meu caminho e fui até a mãe. Então, talvez mais
por hábito do que por qualquer outra coisa, curveime e comecei a examiná-
la através das lentes. Seu coto parecia peculiarmente limpo; o osso que
sobressaía das carnes era de um branco luzidio, quase como se alguém o
houvesse polido.
Minha memória desses momentos não é mais tão clara. Mas tenho a
sensação de que foi nesse ponto, bem depois de contemplar pelas lentes o
coto da mulher, que me aprumei de repente e comecei a buscar meus pais.
Só posso dizer, à maneira de explicação parcial do que se seguiu, que Akira
ainda dava suas risadinhas onde caíra, e que a garota continuava com suas
súplicas no mesmo tom uniforme, persistente. Em outras palavras, a
atmosfera tornara-se um tanto carregada, e isso talvez responda em alguma
medida pelo modo como passei a ir de lá para cá, revirando de cabeça para
baixo o que restara daquela pequena casa.
Havia um quarto minúsculo nos fundos, completamente destruído pelos
bombardeios, e foi ali que iniciei minha busca, arrancando tábuas de
assoalho partidas, arrombando com a perna de uma mesa as portas de um
armário virado para cima. Voltei então ao cômodo principal e comecei
afastando para os lados as pilhas de escombros, golpeando com a minha
perna de mesa tudo o que não cedesse prontamente a meus chutes e
manobras. Por fim, tomei consciência de que Akira cessara seus risinhos e
seguia-me de cá para lá, puxando-me pelo ombro e dizendo-me algo no
ouvido. Ignorei-o e dei seguimento a minha busca, mesmo sem parar
quando, por acidente, atirei para o lado um dos corpos. Akira continuou a
puxar-me pelo ombro, e depois de um tempo, incapaz de compreender por
que a pessoa mesma com quem eu contara para me ajudar estava em vez
disso empenhada em atrapalhar-me, virei para ele gritando algo como:
"Tire as mãos de mim! Tire as mãos! Se não quer ajudar, então dê o
fora! Vá para o canto e continue com suas risadinhas!".
"Soldados!", ele soprava-me. "Soldados a caminho!"
"Tire as mãos de mim! Minha mãe, meu pai! Onde eles estão? Não
estão aqui! Onde eles estão? Onde eles estão?"
"Soldados! Christopher, pare, tem que acalmar! Tem que acalmar senão
nós mortos! Christopher!"
Ele me sacudia, o seu rosto perto do meu. Percebi então que, de fato,
chegavam vozes de algum lugar próximo.
Permiti que Akira me puxasse para o fundo do recinto. A garotinha,
notei, agora calara-se e embalava meigamente a cabeça do cão. O rabo do
animal ainda fazia o ocasional movimento frágil.
"Christopher", Akira disse num cicio urgente. "Se soldado chinês, eu
preciso esconder." Ele apontou para o canto. "Soldado chinês não deve
encontrar. Mas se japonês, você deve dizer a palavra eu ensino."
"Não posso dizer nada. Olhe, meu velho, se não está disposto a me
ajudar…"
"Christopher! Soldado a caminho!"
Ele cambaleou pelo recinto e desapareceu dentro de um armário
enviesado num canto. A porta estava bastante danificada, de modo que toda
a sua canela e uma das botas eram claramente visíveis pela almofada da
porta. Era uma tentativa tão patética de se esconder que eu desatei a rir, e
estava prestes a gritar que podia vê-lo, quando os soldados assomaram no
vão da porta.
O primeiro soldado a entrar disparou em mim seu rifle, mas a bala
acertou a parede atrás de mim. Ele notou então as minhas mãos erguidas e o
fato de que eu era um civil estrangeiro, e gritou algo para os seus
camaradas, que se aglomeraram atrás dele. Eram japoneses, e a coisa
seguinte de que me lembro, três ou quatro deles começaram a discutir sobre
mim, o tempo inteiro a mirarem os seus rifles em minha direção. Entraram
mais soldados e começaram a revistar o lugar. Ouvi Akira gritar de seu
esconderijo algo em japonês, e, enquanto os soldados ajuntavam-se em
volta de seu armário, vi-o surgir. Notei que não parecia lá muito satisfeito
em vê-los, nem eles a ele. Outros homens reuniram-se em volta da
garotinha, também discutindo o que fazer. Entrou então um oficial, os
homens todos fizeram posição de sentido, e um silêncio baixou sobre o
ambiente.
O oficial — um jovem capitão — relanceou os olhos pelo quarto. Seu
olhar caiu na criança, depois em mim, depois pousou em Akira, agora
sustentado por dois soldados. Seguiu-se uma conversa em japonês, na qual
o próprio Akira não tomou parte. Uma expressão resignada, com traços de
medo, encheu-lhe os olhos. Ele tentou dizer algo ao capitão, mas o último
cortou-o imediatamente. Houve outro rápido diálogo, então os soldados
começaram a levar Akira embora. O medo agora era bem evidente em seu
rosto, mas ele não resistiu.
"Akira!", eu o chamei. "Akira, para onde eles estão levando você? O
que há de errado?"
Akira olhou para trás e me deu um sorriso rápido, afetuoso. Então se
foi, na direção da ruela, excluído da minha vista pelos soldados que o
acompanhavam.
O jovem capitão olhava para a criança. Depois virou-se para mim e
disse:
"O senhor é inglês?".
"Sim."
"Por obséquio, senhor, o que faz aqui?"
"Eu estava…" Olhei ao redor. "Eu estava procurando meus pais. Meu
nome é Banks, Christopher Banks. Sou um detetive conhecido. Talvez já
tenha…"
Não sabia direito como continuar, e além disso, percebi que soluçava
havia algum tempo, o que causava má impressão ao capitão. Enxuguei o
rosto e continuei: "Vim aqui para encontrar meus pais. Mas eles não estão
mais aqui. Cheguei tarde demais".
O capitão tornou a olhar para os destroços, os corpos, a garotinha com o
cão moribundo. Então disse algo ao soldado mais próximo, sem nunca tirar
os olhos de mim. Por fim, disse-me: "Por obséquio, senhor, venha comigo".
E me fez um gesto cortês, mas firme, para que o precedesse ao sair. Ele
não tornara a pôr sua pistola no coldre, mas tampouco a apontava para mim.
"Essa garotinha", eu disse. "O senhor a levará para algum lugar
seguro?"
Ele me voltou o olhar em silêncio. Então disse: "Por obséquio, senhor.
Agora saia".

No geral, fui tratado razoavelmente bem pelos japoneses. Mantiveram-


me num pequeno quarto dos fundos no interior de seu quartel-general —
um antigo posto de bombeiros —, onde fui alimentado e um médico cuidou
de diversos ferimentos que mal notara ter sofrido. Meu pé foi enfaixado e
forneceram-me até uma bota grande para acomodá-lo. Os soldados
encarregados de mim não falavam inglês, e pareciam em dúvida se eu era
um prisioneiro ou um convidado, mas eu estava exausto demais para me
importar; deitei na cama de armar que haviam instalado no meu quarto e
dormitei horas a fio. Eu não estava trancado; aliás, a porta que dava para o
escritório ao lado não fechava adequadamente, de modo que, sempre que
recobrava a consciência, podia ouvir vozes japonesas discutindo, ou então
gritando ao telefone, supostamente a meu respeito. Agora suspeito que
tenha sofrido de uma ligeira febre durante boa parte desse período; seja
como for, enquanto dormitava, os acontecimentos não apenas das horas
anteriores, mas das várias semanas anteriores circularam-me pela cabeça.
Daí aos poucos, uma por uma, as teias de aranha passaram a dissipar-se, de
modo que na altura em que despertei, por volta do final da tarde, com a
chegada do coronel Hasegawa, descobri que tinha uma visão inteiramente
nova de tudo quanto vinha me perturbando sobre o caso.
O coronel Hasegawa — um homem garboso na casa dos quarenta —
apresentou-se educadamente, dizendo: "Fico feliz em ver que está se
sentindo bem melhor, senhor Banks. Creio que esses homens aqui cuidaram
bem do senhor. Fico satisfeito em dizer que vim com instruções de escoltá-
lo ao consulado britânico. Posso lhe sugerir que partamos de imediato?".
"Na verdade, coronel", eu disse, pondo-me cuidadosamente de pé,
"preferiria se o senhor pudesse me levar a um lugar diverso. Sabe, é um
tanto urgente. Não tenho certeza do endereço preciso, mas não é muito
longe da rua Nanquim. Talvez o senhor conheça. É uma loja que vende
discos de vinil."
"Está tão ansioso assim para comprar discos de vinil?"
Não podia perder tempo em explicar, então disse apenas: "É importante
que eu chegue lá o mais rápido possível".
"Infelizmente, senhor, tenho instruções para confiá-lo ao consulado
britânico. Receio que causaremos grande inconveniência se fizermos o
contrário."
Dei um suspiro. "Suponho que esteja certo, coronel. Seja como for,
pensando nisso agora, imagino que eu esteja atrasado demais."
O coronel consultou o seu relógio de pulso. "Sim, receio que esteja.
Mas se permite uma sugestão… Se partirmos agora mesmo, tornará a
desfrutar de sua música com o mínimo de atraso."
Viajamos num veículo militar aberto, guiado pelo ordenança do coronel.
Era uma tarde amena e o sol descia sobre as ruínas de Chapei.
Avançávamos devagar, pois embora boa parte dos destroços tivesse sido
retirada de nosso caminho — havia enormes pilhas nas margens —, a rua
estava crivada de crateras. Vez por outra transitávamos por uma rua quase
sem sinais de avarias; mas então dobrávamos a esquina e as casas eram
pouco mais do que pilhas de escombros, e cada poste telegráfico
remanescente erguia-se em ângulos esquisitos entre cabos emaranhados.
Certa vez, enquanto cruzávamos uma dessas áreas, descobri que podia
enxergar a uma boa distância as ruínas aplainadas, e vislumbrei as chaminés
das duas fornalhas.
"A Inglaterra é um país esplêndido", dizia o coronel Hasegawa. "Calmo,
olímpico. Belos campos verdejantes. Ainda sonho com ela. E a sua
literatura. Dickens, Thackeray. O morro dos ventos uivantes. Tenho especial
predileção pelo seu Dickens."
"Coronel, desculpe-me por trazer isso à tona. Mas quando seus homens
me encontraram ontem, eu estava com alguém. Um soldado japonês. Por
acaso sabe que fim ele levou?"
"Aquele soldado. Não tenho certeza de que fim ele levou."
"Gostaria de saber onde posso tornar a encontrá-lo."
"Quer tornar a encontrá-lo?" O rosto do coronel ficou sério. "Senhor
Banks, aconselharia a não se preocupar mais com aquele soldado."
"Coronel, a seus olhos ele cometeu alguma ofensa?"
"Ofensa?" Ele olhou para as ruínas que passavam com um sorriso
brando. "Quase com certeza aquele soldado passou informação ao inimigo.
Foi provavelmente assim que conseguiu negociar a sua soltura do cativeiro.
Soube que o senhor mesmo disse em suas declarações que o encontrou
próximo das linhas do Kuomintang. Isso mais que sugere covardia e
traição."
Estava a ponto de protestar, mas percebi que não interessaria a Akira
nem a mim indispor-me com o coronel. Depois que silenciei por um
momento, ele disse:
"É prudente não se tornar muito sentimental".
Seu sotaque, que aliás era impressionante, vacilou nessa última palavra,
de modo que ela saiu como "sen-tchi-men-tol". O que me arranhou os
ouvidos, e virei-me sem responder. Mas um instante depois, ele perguntou
num tom simpático:
"Esse soldado. Conhecia-o antes, de algum lugar?".
"Pensei que tivesse. Pensei que fosse um amigo meu de infância. Mas
agora não estou tão certo. Estou começando a ver agora que muitas coisas
não são como supunha."
O coronel assentiu com a cabeça. "Nossa infância parece agora tão
distante. Tudo isto" — ele gesticulou para fora do veículo — "tanto
sofrimento. Uma das nossas poetisas japonesas, uma dama da corte de
muitos anos atrás, escreveu como isso era triste. Escreveu como a nossa
infância torna-se como um país estrangeiro, uma vez que crescemos."
"Bom, coronel, isso dificilmente é um país estrangeiro para mim. Em
vários sentidos, é aqui que continuei a viver por toda a minha vida. É só
agora que comecei a me distanciar daqui."
Passamos pelos postos de controle japoneses em direção a Hongkew, o
bairro do norte da Colônia. Nessa região também havia sinais de avarias de
guerra, bem como os de preparação militar. Vi várias pilhas de sacos de
areia e caminhões repletos de soldados. Ao nos aproximarmos do canal, o
coronel disse:
"A exemplo do senhor, senhor Banks, eu gosto muito de música. Em
especial Beethoven, Mendelssohn, Brahms. Chopin também. A terceira
sonata é maravilhosa".
"Um homem culto como o senhor, coronel", comentei, "deve lamentar
tudo isto. Toda esta carnificina causada pela invasão da China por seu país,
eu digo."
Temi que fosse se zangar, mas ele sorriu placidamente e disse:
"É lamentável, concordo. Mas se o Japão quiser se tornar uma grande
nação, como a sua, senhor Banks, ela é necessária. Tal como foi antes para a
Inglaterra".
Calamo-nos por alguns momentos. Então lhe perguntei:
"Estou certo de que ontem, em Chapei, o senhor viu coisas
desagradáveis, não?".
"Vi. Certamente vi."
De repente ele soltou uma estranha risada, que me sobressaltou.
"Senhor Banks", disse, "o senhor percebe, o senhor tem alguma idéia das
coisas desagradáveis que ainda estão por vir?"
"Se continuarem a invadir a China, tenho certeza…"
"Desculpe-me, senhor" — ele não estava muito animado — "não estou
falando somente da China. O globo inteiro, senhor Banks, em breve o globo
inteiro estará em pé de guerra. O que o senhor viu em Chapei não passa de
um grãozinho de poeira comparado ao que o mundo logo vai testemunhar!"
Ele disse isso num tom triunfante, mas então sacudiu tristemente a cabeça.
"Será terrível", ele disse calmamente. "Terrível. Não tem idéia, senhor."

Não me lembro claramente daquelas primeiras horas que se seguiram ao


meu regresso. Mas suponho que minha chegada às dependências do
consulado britânico, transportado por um veículo militar japonês e
parecendo mais um maltrapilho, pouco fez pelo moral de uma comunidade
ansiosa. Lembro-me vagamente dos oficiais correndo para nos encontrar, e
então, enquanto eu era levado para dentro do prédio, o olhar no rosto do
cônsul-geral ao descer afoito as escadas. Quais foram as suas primeiras
palavras para mim eu não sei, mas recordo de dizer-lhe, talvez antes mesmo
que qualquer saudação "houvesse saído de meus lábios:
"Senhor George, preciso pedir que me deixe falar com o tal de
MacDonald sem demora".
"MacDonald? John MacDonald? Mas por que quer falar bem com ele,
meu velho? Olhe, o que precisa é de descanso. Vamos pedir a um médico
que o examine…"
"Admito que estou parecendo um pouco estropiado. Não se preocupe,
vou me recompor um pouco. Mas por favor, marque uma reunião para já
com MacDonald. É muito importante."

Fui conduzido a um quarto de visitas no prédio do consulado, onde


consegui barbear-me e tomar um banho quente apesar de toda uma série de
pessoas batendo à minha porta. Um desses foi um cirurgião escocês que me
examinou por uma boa meia hora, convicto de que lhe escondia algum
ferimento sério. Outros vieram indagar de tal ou qual aspecto do meu bem-
estar, e mandei-os de volta com uma impaciente indagação a respeito de
MacDonald. Não recebi mais que vagas respostas sobre ele ainda não haver
sido localizado; e então, com o cair da noite, a exaustão — ou talvez algo
que o cirurgião me dera — embalou-me num sono profundo.
Só fui acordar quando a manhã seguinte já ia avançada. Trouxeram-me
café da manhã no quarto e troquei de roupas, que foram entregues pelo
Cathay enquanto eu dormia. Sentime então bem melhor, e decidi sair à
procura de MacDonald naquele mesmo instante.
Pensei que pudesse lembrar, do nosso último encontro, o caminho para
o escritório de MacDonald, mas o prédio do consulado era traiçoeiro, e fui
obrigado a perguntar a direção para inúmeras pessoas que encontrei. Eu
estava ainda meio perdido, descendo um lance de escadas, quando divisei a
figura de Sir Cecil Medhurst de pé, no patamar abaixo de mim.
O sol da manhã escoava pelas altas janelas do patamar, iluminando uma
ampla área de pedra cinza ao redor. No patamar não havia mais ninguém, e
Sir Cecil estava um pouco curvado para a frente, as mãos cruzadas nas
costas, observando os andares de baixo do consulado. Fui tentado a
retroceder pelas escadas, mas era uma parte calma do prédio, e havia a
possibilidade de que meus passos o fizessem olhar para cima a qualquer
momento. Continuei, pois, a descer, e ao aproximar-me, ele virouse como
se estivesse todo esse tempo ciente de minha presença.
"Olá, meu velho", ele disse. "Ouvi dizer que tinha voltado. Um pânico e
tanto quando foi dado por perdido, vou lhe dizer uma coisa. Está melhor?"
"Sim. Estou bem, obrigado. Só o pé incomoda um pouco. Está meio
apertado no sapato."
O sol em seu rosto o fazia parecer velho e cansado. Ele tornou a virar-se
para a janela e examinou o exterior; passando a seu lado, também olhei para
fora. Embaixo, três policiais sikhs corriam de lá para cá no gramado,
empilhando sacos de areia.
"Ouviu que ela se foi?", perguntou Sir Cecil.
"Ouvi."
"Claro, quando você foi dado por perdido ao mesmo tempo, tirei minhas
conclusões. E assim também algumas outras pessoas, imagino. É por isso
que vim até aqui esta manhã. Para lhe apresentar minhas desculpas. Mas me
disseram que estava dormindo. Então eu estava só… bom, estava só
desenferrujando as pernas por aqui."
"Não há necessidade alguma de desculpas, Sir Cecil."
"Oh, há sim. Imagino que saí dizendo umas coisinhas na noite passada.
Sabe como é. Tirando minhas conclusões. Claro, todo mundo sabe que eu
estava fazendo papel de bobo. Mas mesmo assim, achei melhor vir até aqui
e me explicar."
Lá embaixo no gramado, um cule chinês chegou com um carrinho de
mão contendo mais sacos de areia. Os policias sikhs começaram a
descarregá-lo.
"Ela deixou alguma carta?", perguntei, tentando soar indiferente.
"Não. Mas recebi um telegrama esta manhã. Ela está em Macau, sabe.
Diz que está segura e bem. Diz que está sozinha e que logo, logo escreve."
Em seguida ele se virou para mim e agarrou meu cotovelo. "Banks, sei que
também sente saudade dela. De certa forma, sabe, eu teria preferido que ela
tivesse fugido com você. Eu sei que ela… ela pensava bem demais de
você."
"Deve ter sido um grande choque", comentei, na falta do que dizer.
Sir Cecil desviou a cabeça e por algum tempo continuou a observar os
policiais embaixo. Então disse: "E o pior é que não foi, para lhe dizer a
verdade. Choque nenhum". E prosseguiu: "Sempre disse que devia ir, disse-
lhe que devia ir e buscar seu amor, sabe, seu verdadeiro amor. Ela merece,
não acha? É o que fez agora. Saiu em busca do verdadeiro amor. Talvez ela
acabe achando. Lá, no Mar Meridional da China, quem sabe? Talvez
encontre um viajante, num porto, num hotel, quem sabe? Ela virou uma
romântica, entende? Tinha de deixá-la ir". Agora lágrimas enchiam-lhe os
olhos.
"O que fará agora, senhor?", perguntei delicadamente.
"O que farei? Sabe-se lá. Devia ir para casa, imagino. Suponho que é
isso o que farei. Ir para casa. Assim que tiver saldado algumas dívidas aqui,
eu digo."
Tomara nota de alguns passos a descer as escadas atrás de nós, mas
então diminuíram até estacar, e nós dois nos viramos. Fiquei um tanto
desanimado ao ver Grayson, o funcionário do Conselho Municipal.
"Bom dia, senhor Banks. Bom dia, Sir Cecil. Senhor Banks, estamos
todos tão contentes por vê-lo de volta, são e salvo."
"Obrigado, senhor Grayson." E como ele continuasse ali no pé da
escada com um sorriso basbaque, acrescentei: "Espero que todos os acertos
para a cerimônia do Parque Jessfield estejam progredindo ao seu gosto".
"Oh, sim, sim." Ele deu uma vaga risada. "Mas no momento, senhor
Banks, vim procurá-lo porque ouvi que desejava falar com o senhor
MacDonald."
"Sim, isso mesmo. Aliás, estava a caminho de encontrá-lo."
"Ah. Bem, ele não estará em seu escritório de costume. Se quiser me
seguir, senhor, eu o levarei agora até ele."
Dei a Sir Cecil um delicado aperto no ombro — ele voltara-se para a
janela para esconder as lágrimas — e segui Grayson com passos ansiosos.
Ele guiou-me por uma parte deserta do prédio, e então chegamos a um
corredor com uma fileira de escritórios. Podia ouvir alguém falando ao
telefone, e um homem que assomou de uma das portas inclinou a cabeça
para Grayson, em cumprimento. Grayson abriu outra porta e acenou-me
para que entrasse na sua frente.
Fiz meu ingresso num escritório pequeno mas bem mobiliado,
dominado por uma grande escrivaninha. Parei na soleira porque não havia
ninguém no recinto, mas Grayson delicadamente cutucou-me para dentro e
fechou a porta. Contornou então a escrivaninha, sentou-se e gesticulou para
o assento vazio.
"Senhor Grayson", eu disse, "não tenho tempo para essas brincadeiras
estúpidas."
"Desculpe", disse Grayson, "sei que desejava ver MacDonald. Mas,
sabe, MacDonald é da alçada de protocolo. Desempenha muito bem suas
funções, mas seu território não se estende muito além."
Suspirei com impaciência, mas antes que pudesse falar, Grayson
continuou:
"Sabe, meu velho, quando disse que queria MacDonald, supus que
quisesse a mim. Sou eu a pessoa com quem precisa falar".
Notei então que havia algo diferente em Grayson. Seu ar subserviente
desaparecera, e ele me observava fixamente por sobre a escrivaninha.
Quando viu o lampejo de compreensão no meu rosto, gesticulou mais uma
vez para a cadeira.
"Por favor, fique à vontade, meu chapa. E lhe peço desculpas por tê-lo
meio que acossado desde que chegou aqui. Mas sabe, tinha de me certificar
de que não faria nada que arrumasse barulho com as outras potências. Pois
bem, deixe-me ver, suponho que queira um encontro com o Cobra
Amarela."
"Sim, senhor Grayson. Imagino que possa arranjar tal coisa."
"Por coincidência, finalmente recebemos resposta enquanto esteve fora.
Todas as partes parecem agora favoráveis em conceder-lhe seu pedido."
Inclinando-se então para a frente, ele disse: "Pois então, senhor Banks.
Sente que está fechando o cerco?".
"Sinto, senhor Grayson. Até que enfim, sinto que estou."

Foi assim que, pouco depois das onze horas na noite passada, me
encontrei rodando de carro pelas elegantes áreas residenciais da Concessão
Francesa, na companhia de dois oficiais da polícia secreta chinesa.
Passamos por avenidas ladeadas de árvores, por casarões, alguns deles
inteiramente encobertos por cercas vivas e muros altos. Atravessamos então
portões fortemente guardados por homens de batas e chapéus, e
estacionamos num pátio com cascalho. Uma casa sombria, de quatro ou
cindo andares, erguia-se a nossa frente.
Dentro, as luzes eram baças, e mais guardas espreitavam por todo canto
nas sombras. Ao seguir minha escolta escadaria acima, tive a impressão de
que a casa pertencera até recentemente a um europeu abastado, mas agora,
por alguma razão, caíra nas mãos das autoridades chinesas; podia ver avisos
e horários toscos pregados nas paredes, lado a lado com primorosas obras
de arte ocidentais e chinesas.
A julgar pela decoração, o quarto a que fui conduzido no segundo andar
contivera até recentemente uma mesa de bilhar. Havia agora um hiato no
centro do ambiente, ao redor do qual caminhei enquanto esperava. Após
cerca de vinte minutos, ouvi o ruído de mais carros chegando embaixo no
pátio, mas quando tentei olhar pelas janelas, descobri que davam para os
jardins ao lado da casa, e nada pude ver da frente.
Transcorreu talvez outra meia hora antes que finalmente viessem me
buscar. Escoltaram-me outro lance de escadas acima, depois por um
corredor ladeado de mais guardas. Então minha escolta parou, e um deles
apontou-me uma porta vários metros adiante. Percorri o último trecho
sozinho e entrei no que parecia ser um amplo gabinete. Havia um tapete
grosso debaixo de meus pés, e as paredes eram quase totalmente forradas de
livros. Na extremidade, onde pesadas cortinas resguardavam as janelas de
sacada, havia uma mesa com uma cadeira de cada lado. Um abajur na mesa
criava uma poça quente de luz, mas, de resto, boa parte do ambiente
achava-se às escuras. Enquanto examinava o meu entorno, uma figura
ergueu-se de trás da mesa e, contornando-a com cuidado, gesticulou para a
cadeira que acabara de vagar.
"Por que não senta, Puffin?", disse-me tio Philip. "Você se lembra, não
lembra? Sempre adorou sentar na cadeira atrás da minha mesa."
22.

Não esperava vê-lo, é perfeitamente possível que não tivesse


reconhecido tio Philip. Ele engordara com os anos, de maneira que, embora
não obeso, a sua nuca havia engrossado e as suas bochechas pendiam
flácidas. Seus cabelos estavam finos e brancos. Porém seus olhos eram
calmos e bem-humorados, tal como os lembrava.
Não sorri ao dirigir-me a ele; nem contornei a mesa até a cadeira que
me oferecera. "Vou sentar aqui", eu disse, parando ao lado da outra cadeira.
Tio Philip encolheu os ombros. "Bem, não é mesmo minha mesa. Aliás,
eu nunca pus os pés antes nesta casa. Alguma coisa a ver com você, este
lugar?"
"Também nunca estive aqui antes. Posso sugerir que nos sentemos?"
Ao fazermos, pudemos nos ver claramente pela primeira vez na luz do
abajur, e passamos um momento estudando atentamente as feições um do
outro.
"Não mudou muito, sabe, Puffin", ele disse. "Fácil ver o garoto em
você, mesmo agora."
"Gostaria que não me chamasse por esse nome."
"Desculpe. Um tanto insolente, admito. Então cá estamos nós, você
seguiu a minha pista até me achar. Recusei encontrálo antes. Mas no fim,
suponho que comecei a querer vê-lo outra vez. Devo uma explicação ou
duas a você, imagino. Mas eu não estava certo, sabe, de como você me via.
Amigo ou inimigo, esse tipo de coisa. Mas hoje em dia não estou certo
sobre a maioria das pessoas a tal respeito. Imagina que me falaram para ter
isto à mão, só por via das dúvidas?" Ele apanhou uma pequena pistola de
prata e segurou-a na luz. "Pode acreditar numa coisa dessas? Pensam que
você pode querer me atacar."
"Mas vejo que trouxe mesmo assim."
"Oh, mas a carrego por toda parte. Tantas pessoas que querem me fazer
mal estes dias. Sério, não trouxe por sua causa. Um daqueles homens lá
fora. Talvez tenha sido contratado para irromper aqui e me apunhalar. Vai
saber. É assim que tenho vivido, estou com medo. Desde que começou essa
patuscada do Cobra Amarela."
"Pois é. Parece que você é muito dado à traição."
"Isso é um pouco ríspido, se está sugerindo o que acho que está
sugerindo. No que toca aos comunistas, muito bem, sim, virei um traidor.
Mesmo aí, nunca foi minha intenção, sabe. Os homens de Chiang me
pegaram um dia e me ameaçaram de tortura. Admito, não imaginei que
chegassem a tanto, não imaginei nem um pouco. Mas no final, acabaram
fazendo uma coisa bem mais inteligente. Eles me engambelaram para que
traísse um dos meus. E então, sabe como é, foi o que bastou. Porque como
você pôde ver, ninguém pune vira-casacas mais barbaramente que meus
antigos camaradas. Não havia outro meio de permanecer vivo. Tive de
depender do governo para me proteger de meus camaradas."
"Segundo minhas investigações", eu disse, "muita gente perdeu a vida
por sua causa. E não somente aqueles que você traiu. Houve época, um ano
atrás, em que induziu os comunistas a pensar que o Cobra Amarela fosse
outra pessoa. Muitos dos membros de suas famílias, inclusive três crianças,
foram mortos na primeira onda de represálias."
"Não me considero admirável. Sou um covarde, e sei disso faz muito
tempo. Mas estou longe de ser responsável pela selvageria dos comunas.
Eles se revelaram em todos os detalhes tão perversos quanto Chiang Kai-
shek sempre foi, e não me resta nenhum respeito por eles. Mas olhe aqui,
não imagino que tenha vindo falar sobre isso tudo."
"Não, não vim."
"Então, Puffin. Desculpe. Christopher. Então, o que devo lhe contar?
Por onde começo?"
"Meus pais. Onde eles estão?"
"Seu pai receio que esteja morto. Morreu há muitos anos. Lamento."
Não disse nada e aguardei. Por fim ele disse:
"Diga-me, Christopher. O que acredita que aconteceu com o seu pai?".
"Por acaso é da sua conta o que acredito ou deixo de acreditar? Vim
aqui para ouvi-lo de você."
"Muito bem. Mas fiquei curioso em saber o que você havia
destrinchado. Afinal, fez um nome e tanto com essas coisas."
Isso me irritou, mas ocorreu-me que ele só seria prestativo a seu próprio
modo. Então por fim eu disse: "Minha hipótese é que meu pai opôs
resistência, corajosa resistência, a seus próprios empregadores a respeito
dos lucros do tráfico de ópio daqueles anos. Ao fazê-lo, suponho que se
chocou com enormes interesses, e portanto foi removido".
Tio Philip assentiu com a cabeça. "Supunha que acreditasse em algo
assim. Sua mãe e eu discutimos com cuidado o que fazer você acreditar. E
foi mais ou menos o que acabou de dizer. Então tivemos sucesso. A
verdade, receio, Puffin, foi muito mais prosaica. Seu pai fugiu um dia com a
amante. Viveu com ela durante um ano em Hong Kong, uma mulher
chamada Elizabeth Cornwallis. Mas Hong Kong é tremendamente formal e
britânica, sabe. Eles eram um escândalo, e no fim tiveram de fugir para
Malaca ou algum lugar assim. Então ele pegou febre tifóide e morreu, em
Cingapura. Isso foi dois anos depois que deixou vocês. Lamento, meu
velho, é duro ouvir tudo isso, eu sei. Mas coragem. Tenho muito mais para
contar antes que a noite acabe."
"Você diz que minha mãe sabia? Na época?"
"Sim. Não a princípio, veja bem. Não por um bom mês ou coisa que o
valha. O seu pai desfez muito bem as pistas. Sua mãe só descobriu porque
ele escreveu para ela. Eu e ela fomos os únicos que souberam da verdade."
"Mas os detetives. Como diabos os detetives não descobriram o que ele
fizera?"
"Os detetives?" Tio Philip soltou uma risada. "Aqueles pobres coitados
de policiais mal pagos e com trabalho até as orelhas não teriam encontrado
um elefante perdido na rua Nanquim." Como então eu permanecesse
calado, ele disse: "Ela teria acabado por contar a você. Queríamos protegê-
lo, porém. É por isso que fizemos com que acreditasse no que acreditou".
Comecei a me sentir desconfortável sentado tão próximo do abajur, mas
o espaldar reto não permitia que me recostasse. Depois então que me
mantive calado por mais alguns momentos, tio Philip disse:
"Deixe-me ser justo com seu pai. Foi difícil para ele. Sempre amou sua
mãe, amou intensamente. Tenho pia convicção de que nunca deixou de
amá-la até o final. De certa maneira, Puffin, esse foi o problema. Ele a
amava demais, a idealizava. E foi muito, para ele, tentar estar à altura do
que via como a marca dela. Ele tentou. Oh, sim, tentou, e isto quase o
despedaça. Ele bem poderia ter dito: 'Olhe aqui, isto é o máximo que posso
fazer e acabou, meu jeito é este'. Mas ele a adorava. Queria
desesperadamente parecer bom o bastante aos olhos dela, e quando viu que
isso não estava dentro dele, bom, então fugiu. Com alguém que não se
importava com ele ser o que era. Meu palpite é que só queria descanso. Por
tantos anos tentara com todas as forças, só queria descanso. Não pense tão
mal dele, Puffin. Não creio que algum dia tenha deixado de amar sua mãe".
"E minha mãe? O que aconteceu com ela?"
Tio Philip inclinou-se nos cotovelos e jogou a cabeça ligeiramente para
trás. "Quanto já sabe sobre ela?", perguntou.
A leveza que ele antes lograra infundir na sua voz evaporou-se de todo.
Agora parecia um velho assombrado, consumido pelo ódio de si mesmo.
Encarava-me atentamente, a despeito da cabeça inclinada, e a luz amarela
do abajur revelou pêlos brancos que lhe cresciam das narinas. De alguma
parte lá embaixo, pude ouvir uma vitrola tocando música marcial chinesa.
"Não quero aborrecê-lo", ele disse quando não respondi. "Não quero
ouvir a mim mesmo falar mais do que o necessário sobre isso. Então, o
quanto descobriu?"
"Até recentemente tinha a impressão de que meus pais estavam sendo
mantidos em cativeiro em Chapei. Como pode ver, não fui dos mais
inteligentes."
Esperei que falasse. Ele permaneceu em sua curiosa postura durante um
tempo, então recostou-se e disse:
"Você não vai se lembrar disso. Mas logo depois que seu pai se foi, eu
passei na sua casa para ver sua mãe. E um certo homem também apareceu
naquele dia. Um cavalheiro chinês".
"Refere-se ao chefe militar, Wang Ku."
"Ah. Então não tem sido tão bobo assim."
"Descobri seu nome. Mas depois disso, suspeito que estive muito
ocupado seguindo uma pista falsa."
Ele deu um suspiro e aguçou o ouvido. "Escute", ele disse. "Hinos do
Kuomintang. Eles tocam para me provocar. Para onde quer que me levem é
assim. Acontece muitas vezes para ser uma coincidência." Como eu não
dissesse nada, pôs-se de pé e vagou pelas trevas na direção das pesadas
cortinas.
"Sua mãe", disse por fim, "era devotada a nossa campanha. Para sustar
o tráfico de ópio na China. Várias companhias, incluindo a do seu pai,
auferiam tremendo lucro importando o ópio indiano para a China e
convertendo milhões de chineses em pobres viciados. Naqueles dias, eu era
um dos cabeças da campanha. Durante longo tempo, nossa estratégia foi um
tanto ingênua. Pensamos ser capazes de fazer com que tais companhias
pusessem a mão na consciência e desistissem de seus lucros com o ópio.
Escrevemos cartas, apresentamos as provas que mostravam o estrago que o
ópio causava no povo chinês. Pois é, pode rir, fomos bem ingênuos. Mas,
sabe, pensávamos estar lidando com irmãos cristãos. Bem, vimos
finalmente que não estávamos indo a lugar algum. Descobrimos que essas
pessoas, elas não só gostavam muito dos lucros, elas na verdade queriam
que os chineses ficassem imprestáveis. Gostavam que estivessem no caos,
viciados, incapazes de se governar adequadamente. Desse modo, o país
podia ser administrado praticamente como uma colônia, mas sem nenhuma
das obrigações de praxe. Então mudamos de tática. Ficamos mais
sofisticados. Naqueles dias, como ainda fazem, os carregamentos de ópio
seguiam pelo Yang Tsé. Os navios tinham de subir o rio em território fora-
da-lei. Sem proteção adequada, os carregamentos não iam muito além dos
desfiladeiros do Yang Tsé sem serem pilhados. Então todas essas
companhias, a Morganbrook and Byatt, a Jardine Matheson, todas elas,
costumavam fazer tratos com os chefes militares locais por cujos territórios
passavam os carregamentos. Esses chefes militares na verdade não
passavam de bandidos glorificados, mas tinham exércitos, tinham o poder
de zelar pelos carregamentos. Foi a seguinte, então, a nossa estratégia. Não
mais pleiteamos junto às companhias mercantes. Pleiteamos junto ao chefes
militares. Apelamos para seu orgulho racial. Fizemos notar que estava na
mão deles pôr termo à lucratividade do tráfico de ópio, reverter o único
grande obstáculo para os chineses assumirem o controle de seu próprio
destino, de sua própria terra. Claro, alguns tinham grande interesse nos
pagamentos que recebiam. Mas tínhamos alguns convertidos. Wang Ku era
nessa época um dos mais poderosos desses chefes bandoleiros. Seu
território cobria vários quilômetros quadrados no norte de Hunan. Um
sujeito bastante brutal, mas temido e respeitado o suficiente para torná-lo
valioso às companhias mercantes. Então Wang Ku ficou solidário a nossa
causa. Vinha muitas vezes a Xangai, gostava da vida da alta sociedade
daqui, e fomos capazes de persuadi-lo durante essas visitas. Puffin, você
está bem?"
"Sim, estou bem. Estou ouvindo."
"Talvez devesse ir agora, Puffin. Não precisa ouvir o que estou para lhe
contar."
"Conte-me. Estou ouvindo."
"Muito bem. Minha opinião é de que você deva ouvir se for capaz de
suportar. Porque… bom, porque você tem de encontrá-la. Ainda há uma
chance de que possa encontrá-la."
"Então minha mãe está viva?"
"Não tenho razão para supor o contrário."
"Então me conte. Continue o que estava dizendo."
Ele tornou à mesa e sentou-se mais uma vez a minha frente. "Esse dia
em que Wang Ku foi a sua casa", disse ele. "Vem a calhar que se lembre
desse dia. Tem toda razão de suspeitar que foi importante. Foi o dia em que
sua mãe descobriu que os motivos de Wang Ku estavam longe de ser puros.
Em duas palavras, planejava ele próprio se apoderar dos carregamentos de
ópio. Claro, fizera arranjos complicados, de modo que a coisa passasse por
três ou quatro pessoas diversas, bem chinês isso, mas no final, sim, era
nisso que redundava. A maioria de nós já sabia disso, mas sua mãe não. Ela
foi mantida no escuro, talvez sem cabimento, porque sentíamos que não
teria aceitado. O resto de nós, naturalmente tínhamos remorsos, mas
decidimos trabalhar com Wang Ku mesmo assim. Sim, ele venderia o ópio
para as mesmas pessoas às quais as companhias mercantes venderiam.
Porém o importante era deter as importações. Torná-las não lucrativas.
Infelizmente, no dia em que Wang Ku foi a sua casa, ele disse algo que pela
primeira vez deixou claro a sua mãe a realidade de sua relação conosco.
Meu palpite é que ela se sentiu tola. Talvez suspeitasse da coisa o tempo
todo, mas não quisera enxergar, e estava tão zangada consigo mesma e
comigo quanto com Wang. De todo modo, ela perdeu as estribeiras,
agrediu-o mesmo. Só de leve, entende, mas a sua mão chegou a tocar no
rosto dele. E é claro, ela lhe disse na cara tudo o que tinha a dizer. Eu sabia
então que algum preço terrível teria de ser pago. Tentei pôr as coisas em
pratos limpos ali mesmo. Expliquei a ele que seu pai acabara de partir, que
sua mãe estava realmente abalada, tentei lhe transmitir tudo isso enquanto
partia. Ele sorriu e disse para não me preocupar, mas eu me preocupei, oh,
sim, me preocupei mesmo. Eu sabia que o que sua mãe fizera não podia ser
desfeito tão facilmente. Ficaria aliviado, lhe digo uma coisa, se tudo o que
Wang fizesse em resposta fosse deixar de participar no nosso plano. Mas ele
queria o ópio, já fizera vários acordos. Além do mais, fora insultado por
uma mulher estrangeira, e queria acertar as contas."
Ao inclinar-me para ele no clarão do abajur, invadiu-me uma estranha
sensação de que, às minhas costas, as trevas haviam crescido mais e mais,
de modo que agora abrira-se ali um vasto espaço negro. Tio Philip parou
para enxugar algum suor na testa com a mão. Mas então olhou-me
atentamente e continuou:
"Fui ver Wang Ku mais tarde naquele mesmo dia no Metropole. Fiz o
que pude para tentar deter a calamidade que viria. Mas não adiantou. O que
me disse naquela tarde foi que, longe de estar zangado com sua mãe, achara
o espírito dela — foi isso o que ele disse, o 'espírito' dela — bastante
atraente. Tanto é que desejava levá-la de volta com ele como uma
concubina, para Hunan. Ele propôs 'domar' sua mãe, como faria com uma
égua selvagem. Você tem de entender, Puffin, o jeito como as coisas eram
então, em Xangai, na China, se um homem como Wang Ku se decidia por
uma coisa dessas, pouco havia que se pudesse fazer para detê-lo. É isso o
que tem de entender. Não teria eficácia alguma pedir à polícia ou a quem
quer que fosse para proteger a sua mãe. Talvez adiasse um pouco as coisas,
mais nada. Não havia ninguém que pudesse proteger sua mãe dos
propósitos de um homem como aquele. Mas sabe, Puffin, meu grande medo
era por você. Eu não tinha certeza do que ele pretendia fazer com você, e na
verdade foi por isso que intercedi. No final, chegamos a um acordo.
Arranjaria as coisas de maneira que sua mãe ficasse a sós, desprotegida, se
naquele mesmo momento pudesse tirar você de cena. Era tudo o que queria
fazer. Não queria que levasse você também. A sua mãe, isso era algo
inevitável. Mas quanto a você, havia algo a argumentar. E foi isso o que eu
fiz".
Houve uma pausa considerável. Então eu disse:
"Depois desse conveniente acordo, suponho que Wang Ku continuou a
colaborar com seu esquema".
"Não seja cínico, Puffin."
"Continuou ou não?"
"Por acaso, continuou. Tomar sua mãe o satisfez. Ele fez o que
desejávamos que fizesse, e ouso dizer que sua contribuição foi um fator na
derradeira decisão das companhias de pôr termo ao tráfico."
"Então minha mãe foi, pode-se dizer, sacrificada por uma causa maior."
"Olhe, Puffin, era uma situação em que nenhum de nós tinha alternativa.
Tem de entender isso."
"Alguma vez tornou a ver minha mãe? Depois que ela foi raptada por
esse homem?"
Vi-o hesitar. Mas então ele disse:
"Vi. A propósito, eu vi. Uma vez, sete anos atrás. Por acaso estava de
viagem por Hunan e aceitei o convite de Wang para ser seu hóspede. E lá,
na sua fortaleza, sim, eu vi a sua mãe uma última vez".
Sua voz era agora quase um sussurro. A vitrola lá embaixo não tocava
mais, de modo que um silêncio pairava sobre nós.
"E… e como ela estava?"
"Estava bem de saúde. Era, claro, uma das várias concubinas. Dadas as
circunstâncias, eu diria que se adaptara muito bem a sua nova vida."
"Como estava sendo tratada?"
Tio Philip desviou o olhar. Então disse calmamente: "Quando a vi,
perguntou por você, claro. Contei-lhe as notícias que tinha. Ela ficou
satisfeita. Sabe, até vê-la naquele dia, ela havia sido inteiramente isolada do
mundo exterior. Durante sete anos, só ouvia o que Wang Ku escolhia que
ouvisse. O que quero dizer é que ela não sabia ao certo se o acordo
financeiro estava funcionando. Então quando a vi, era isso que queria saber,
e eu pude lhe assegurar que estava. Após sete anos de dúvida aflitiva, sua
cabeça teve descanso. Nem lhe digo como ficou aliviada. 'É tudo o que eu
queria saber', ela não parava de dizer. 'É tudo o que eu queria saber.'".
Agora ele me olhava com muita atenção. Após outro momento, fiz-lhe a
pergunta pela qual esperava.
"Tio Philip, que acordo financeiro?"
Ele baixou a vista para o dorso de suas mãos e estudou-os por um
tempo. "Não fosse por você, pelo amor dela por você, Puffin, sua mãe, eu
sei, teria tirado a própria vida sem um instante de hesitação antes de
permitir que aquele crápula deitasse um dedo nela. Ela teria encontrado um
jeito, e o teria feito. Mas havia você a levar em consideração. Então, no fim,
ao ver que a situação era aquela, fez um acordo. Você seria sustentado
financeiramente em troca da… da submissão dela. Eu próprio providenciei
boa parte disso, arranjei através da companhia. Havia um sujeito lá na
Byatt, não tinha idéia do que se tratasse. Pensou que estivesse assegurando
passagem segura para seu ópio. Ha-ha! Um bestalhão, aquele sujeito!" Tio
Philip abanou a cabeça e sorriu. Então seu semblante tornou a nublar-se,
como se agora ele se resignasse ao curso que tomaria a conversa.
"Minha mesada", eu disse calmamente. "Minha herança…"
"Sua tia na Inglaterra. Ela nunca foi rica. Seu verdadeiro mantenedor,
todos esses anos, tem sido Wang Ku."
"Então todo esse tempo eu tenho vivido… tenho vivido à custa…" Não
pude continuar e simplesmente me interrompi.
Tio Philip assentiu com a cabeça. "Sua educação. Sua posição na
sociedade londrina. O fato de você ser hoje quem é. Deve isso a Wang Ku.
Ou melhor, ao sacrifício de sua mãe."
Ele tornou a levantar-se, e quando olhou para mim, vi algo novo em seu
rosto, algo quase como ódio. Mas então se virou e afastou-se para as
sombras, e não mais pude vê-lo.
"Aquela última vez em que vi sua mãe", disse. "Naquela fortaleza. Ela
perdera todo interesse pela campanha do ópio. Só vivia para você, só se
preocupava com você. Àquela altura, o tráfico se tornara ilegal. Mas mesmo
essa notícia já não significava nada para ela. Claro, eu estava amargurado
com aquilo, bem como os outros dentre nós que haviam dedicado anos à
campanha. Finalmente havíamos atingido nosso objetivo, pensamos.
Tráfico de ópio abolido. Levou um ano ou dois para ver o que a abolição
realmente significava. O tráfico simplesmente trocara de mãos, nada mais.
Agora era administrado pelo governo de Chiang. Mais viciados do que
nunca, mas agora o tráfico servia para custear o exército de Chiang Kai-
shek, para custear o seu poder. Foi quando me juntei aos comunas, Puffin.
Sua mãe, pensei que ficaria arrasada ao saber a que se resumira nossa
campanha, mas ela não se importava mais. Tudo o que queria era que
cuidassem de você. Queria apenas notícias suas. Sabe, Puffin" — a sua voz
de repente assumiu uma estranha aspereza — "quando a vi naquela época,
ela parecia bastante bem. Mas enquanto eu estava lá, pedi informações a
outros da casa, a gente que estaria a par. Eu queria descobrir a verdade,
descobrir como ela realmente estava sendo tratada, porque… porque eu
sabia que um dia esse momento, o encontro que estamos tendo agora, não
deixaria de vir. E eu descobri. Oh, sim, descobri. Tudo."
"Você está tentando me atormentar de propósito?"
"Não era só… só uma questão de entregar-se a ele na cama. Ele
regularmente a açoitava na frente dos seus convidados. Domar a mulher
branca, ele chamava. E isto não era tudo. Sabe…"
Eu já cobrira meus ouvidos, mas então gritei: "Chega! Por que me
torturar assim?".
"Por quê?" Sua voz agora estava irada. "Por quê? Porque quero que
você saiba a verdade! Todos estes anos, você pensou que eu fosse uma
criatura desprezível. Talvez eu seja, mas é o que este mundo faz com a
pessoa. Nunca pretendi ser assim. Pretendia fazer o bem neste mundo. A
meu modo, tomei decisões corajosas no passado. E olhe para mim agora.
Você me despreza. Me desprezou todos esses anos, Puffin, a coisa mais
próxima que eu tive de um filho, e continua e me desprezar. Mas vê agora
como o mundo é de verdade? Vê o que possibilitou sua confortável vida na
Inglaterra? Como foi capaz de se tornar um detetive célebre? Um detetive!
De que isso serve para alguém? Jóias roubadas, aristocratas mortos pelas
suas heranças. Imagina que isso seja tudo o que haja para combater? Sua
mãe, ela queria que você vivesse no seu mundo encantado para sempre.
Mas é impossível. No fim, tudo tem de se despedaçar. É um milagre que
isso tenha sobrevivido tanto tempo para você. Então, Puffin, tome. Vou lhe
dar essa chance."
Ele tornara a sacar sua pistola. Veio das trevas em minha direção, e
quando ergui a vista, ele avultava a minha frente, tal como fizera em minha
infância. Atirou para trás a sua jaqueta e pressionou a pistola contra o
colete, perto do coração.
"Tome", disse, inclinando-se e sussurrando, de modo que pude sentir
seu hálito rançoso. "Tome, garoto. Pode me matar. Como sempre quis. É
por isso que permaneci vivo tanto tempo. Ninguém mais deveria ter esse
privilégio. Eu me preservei, está vendo, para você. Puxe o gatilho. Aqui,
olhe. Vamos fazer parecer que eu ataquei você. Vou estar segurando a arma,
vou cair em cima de você. Quando entrarem, vão ver meu corpo estendido
sobre o seu, vai parecer autodefesa. Veja, aqui, estou segurando. Você puxa
o gatilho, Puffin."
Seu colete roçava-me o rosto, subindo e descendo com seu peito
arfante. Senti uma repulsa e tentei safar-me, mas sua mão livre — a pele
parecia indescritivelmente gretada — agarrou meu braço numa tentativa de
puxar-me para si. Ocorreu-me que ele puxaria o gatilho se minha mão mal
tocasse a pistola. Afastei-me violentamente, virando a cadeira, e cambaleei
para longe dele.
Por um segundo, ambos olhamos com culpa na direção da porta para
ver se o rebuliço faria entrar os guardas. Mas nada aconteceu, e por fim tio
Philip riu e, apanhando a cadeira, colocou-a cuidadosamente na frente da
mesa. Então sentou-se ele próprio nela, depôs a pistola na mesa e passou
algum tempo recuperando o fôlego. Dei mais alguns passos para longe da
mesa, porém não havia nada mais no quarto cavernoso, e simplesmente me
detive, ainda de costas para ele. Então o ouvi dizer:
"Certo. Muito bem". E tomou mais uns goles de ar. "Então vou lhe
contar. Vou fazer a você minha confissão mais sombria."
Mas no minuto que se seguiu, tudo o que pude ouvir atrás de mim foi a
sua respiração resfolegante. Então finalmente ele disse:
"Muito bem. Vou lhe confessar a verdade. Sobre por que permiti que
Wang Ku raptasse sua mãe naquele dia. O que disse antes, sim, é bastante
verdade. Tinha de salvaguardar você. Sim, sim, tudo o que disse antes é
mais ou menos justo. Mas se eu quisesse mesmo, se quisesse mesmo salvar
sua mãe, você sabe que eu teria encontrado um modo de fazê-lo. Vou lhe
dizer uma coisa, Puffin. Uma coisa que não fui capaz de confessar nem para
mim mesmo por muitos anos. Ajudei Wang Ku a levar sua mãe porque uma
parte de mim queria que ela virasse escrava dele. Para ser usada daquele
jeito, noite após noite. Porque, sabe, eu sempre a desejei, desde os dias em
que fui hóspede em sua casa. Oh, sim, eu a desejava, e quando seu pai fugiu
daquele jeito, acreditei que fosse minha chance, que eu fosse seu sucessor
natural. Mas… mas sua mãe nunca me olhou assim, percebi isso depois que
seu pai fugiu. Ela me respeitava como alguém estimado… Não, não, era
impossível. Nem em cem anos eu poderia me insinuar para ela, não daquele
jeito. E eu fiquei furioso. E como fiquei. E quando tudo aconteceu, com
Wang Ku, fiquei excitado. Está me ouvindo, Puffin? Fiquei excitado!
Depois de ele a levar embora, nas horas mais escuras da noite, eu ficava
excitado. Todos aqueles anos, vivi de modo vicário através de Wang. Era
quase como se a tivesse conquistado também. Eu me dava prazer, muitas e
muitas vezes, imaginando comigo o que estaria ocorrendo com ela. Então,
agora me mate! Por que me poupar? Você ouviu! Tome, atire como se eu
fosse um rato!".
Por longo tempo, continuei de pé na parte sombria do quarto, de costas
para ele, ouvindo sua respiração. Então tornei a me virar e disse, com
bastante calma:
"Você disse antes acreditar que minha mãe ainda esteja viva. Ela ainda
está com Wang Ku?".
"Wang morreu quatro anos atrás. Seu exército, de todo modo, foi
debelado por Chiang. Não sei onde ela está agora, Puffin. Sinceramente não
sei."
"Bem. Vou encontrá-la. Não vou desistir."
"Não vai ser fácil, garoto. A guerra está grassando pelo país. Logo vai
engolfar todo ele."
"Vai", eu disse. "Ouso dizer que logo vai engolfar o mundo inteiro. Mas
isso não é culpa minha. Aliás, não me preocupo mais. Pretendo começar de
novo, e desta vez encontrá-la. Existe mais alguma coisa que possa me
contar para ajudar na minha busca?"
"Receio que não, Puffin. Contei tudo a você."
"Então adeus, tio Philip. Lamento não poder servi-lo."
"Não se preocupe. O que não falta são pessoas querendo servir ao Cobra
Amarela." E deu uma breve risada. Então disse numa voz exausta: "Adeus,
Puffin. Espero que a encontre".
PARTE SETE

Londres, 14 de novembro de 1958


23.

Foi minha primeira viagem longa em muitos anos, e durante dois dias
depois de nossa chegada a Hong Kong, permaneci bastante fatigado. A
viagem aérea é incrivelmente rápida, mas tudo é muito apertado e
desnorteante. Minhas dores nos quadris voltaram com força redobrada, e
uma dor de cabeça prolongouse durante boa parte de minha estada, o que
sem dúvida distorceu minha visão daquela colônia. Sei de pessoas que
viajaram para lá e regressaram cheios de orgulho. "Um lugar de futuro",
sempre dizem. "E espantosamente bonito." Contudo, por boa parte daquela
semana, o céu permaneceu encoberto, as ruas opressivamente cheias.
Suponho que identifiquei aqui e ali — nos letreiros em chinês no exterior
das lojas ou mesmo no espetáculo dos chineses atarefados em seus negócios
no mercado — algum vago eco de Xangai. Mas ainda assim, tais ecos eram
o mais das vezes incômodos. Era como se eu houvesse topado, num
daqueles jantares maçantes a que compareço em Kensington ou Bayswater,
com uma prima distante ou uma mulher que amei outrora; cujos gestos,
expressões faciais, trejeitos de ombro cutucam a memória, mas que
permanece, no todo, uma paródia constrangedora, até grotesca, de uma
imagem tão acalentada.
No fim, fiquei satisfeito com a companhia de Jennifer. Quando ela
primeiro insinuara ir comigo, ignorara-a deliberadamente. Pois mesmo
naquela altura — falo de apenas cinco anos atrás — ela ainda tendia a
considerar-me uma espécie de inválido, em especial quando o passado, ou
então o Extremo Oriente, ressurgia em minha vida. Suponho que uma parte
de mim ressentira havia muito essa solicitude exagerada, e foi só quando
me ocorreu que ela genuinamente desejava escapar das coisas por uns
tempos — que tinha as suas próprias preocupações e que tal viagem talvez
lhe fizesse bem — que concordei em viajarmos juntos.
Fora sugestão de Jennifer que tentássemos estender nossa viagem a
Xangai, e suponho que tal não teria sido impossível. Poderia ter falado com
alguns velhos conhecidos, pessoas que ainda têm influência no Ministério
das Relações Exteriores, e estou certo de que poderia ter tido acesso ao
continente chinês sem excessiva dificuldade. Sei de outros que fizeram
justamente isso. Mas pelo que todos dizem, Xangai hoje é uma sombra
fantasmagórica da cidade que foi um dia. Os comunistas abstiveram-se de
pôr a cidade abaixo, tanto é que boa parte do que antes era a Colônia
Internacional permanece intacta. As ruas, embora com novos nomes, são
perfeitamente reconhecíveis, e dizem que qualquer um familiarizado com a
antiga Xangai saberia se orientar por lá. Mas os estrangeiros, claro, foram
todos banidos, e o que antes eram suntuosos hotéis e clubes noturnos são
agora os escritórios burocráticos do governo do presidente Mao. Em outras
palavras, é provável que a Xangai de hoje se revele uma parodia da cidade
antiga não menos dolorosa que Hong Kong.
Ouvi, aliás, que muito da pobreza — e também do vício de ópio contra
o qual minha mãe se bateu antes com tanto vigor — recuou
significativamente sob os comunistas. Até que ponto esses males foram
erradicados ainda resta ser visto, mas parece certamente que o comunismo
foi capaz de alcançar, num punhado de anos, o que a filantropia e o ardente
ativismo não puderam em décadas. Lembro de perguntar-me o que minha
mãe teria feito de uma tal reflexão naquela primeira noite que passamos em
Hong Kong, enquanto eu zanzava pelo quarto no Hotel Excelsior, cuidando
de meus quadris e tentando recobrar meu equilíbrio.
Não fui a Rosedale Manor senão em nosso terceiro dia. Havia muito
estava combinado que eu faria a viagem sozinho, e Jennifer, embora
observasse cada um de meus movimentos durante a manhã inteira,
despediu-se de mim sem excessivo espalhafato.
Naquela tarde o sol chegara a irromper, e enquanto eu subia as encostas
das colinas em meu táxi, gramados bem tratados de cada lado eram regados
e aparados por grupos de jardineiros apenas de camisetas. Por fim, o terreno
aplainou e o táxi encostou na frente de um casarão branco construído em
estilo colonial britânico, com extensos renques de venezianas e uma ala
adicional que lhe crescia de um dos lados. Deve ter sido outrora uma
esplêndida residência, com a vista que tinha do mar e de boa parte do lado
oeste da ilha. Ao parar na brisa e olhar na direção do porto, pude ver na
distância, para onde subia um teleférico, uma colina remota. Voltando-me
para a casa, contudo, vi que estava malcuidada; a pintura dos caixilhos das
janelas e dos batentes das portas, em particular, havia rachado e estava
descascada.
Dentro, no vestíbulo, havia um vago odor de peixe cozido, mas o lugar
parecia impecavelmente limpo. Uma freira chinesa conduziu-me por um
corredor ressoante até o escritório da irmã Belinda Heaney, uma mulher de
seus quarenta e cinco anos com uma expressão séria, ligeiramente
melancólica. E foi ali, naquele escritoriozinho apertado, que me foi dito que
a mulher conhecida por "Diana Roberts" chegara até elas mediante uma
organização coligada que trabalhava com estrangeiros em apuros na China
comunista. Tudo quanto as autoridades chinesas sabiam dela ao entregarem-
na era que vivia numa instituição para doentes mentais em Chunking desde
o término da guerra.
"É possível que tenha passado lá também boa parte da guerra", disse
irmã Belinda. "Mal vale a pena pensar, senhor Banks, que espécie de lugar
era aquele. Uma vez encarcerada em tal lugar, podia-se facilmente nunca
mais ter notícia da pessoa. Foi somente porque era uma mulher branca que
chegaram a notála. Os chineses não sabiam o que fazer com ela. Afinal,
querem todos os estrangeiros fora da China. Então acabou por ser
encaminhada para cá, e está conosco já faz quase dois anos. Quando chegou
aqui, era muito agitada. Mas após um mês ou dois, todos os usuais
benefícios de Rosedale Manor, a paz, a ordem, as preces, começaram a
surtir efeito. Não a reconheceria agora como a pobre criatura que chegou
aqui. Está tão mais calma. É um parente, o senhor disse?"
"Sou, é certamente possível", eu disse. "E já que estava em Hong Kong,
pensei que não custava nada fazer uma visita. É o mínimo que poderia
fazer."
"Bem, qualquer notícia de parentes, amigos próximos, de qualquer laço
com a Inglaterra, nós ficamos muito contentes em ouvir. Afora isso, uma
visita é sempre bem-vinda."
"Ela tem muitas?"
"Tem visitas regulares. Temos um ajuste com os alunos do St. Joseph's
College."
"Entendo. E ela se dá bem com as outras moradoras?"
"Oh, sim. E não nos dá trabalho nenhum. Se pudéssemos dizer a mesma
coisa de algumas outras!"
Irmã Belinda conduziu-me por outro corredor até um amplo ambiente
ensolarado — talvez tenha sido antes a sala de jantar —, onde cerca de
vinte mulheres, vestidas todas de batas beges, estavam sentadas ou
arrastando os pés de lá para cá. Portas envidraçadas abriam-se para os
jardins lá fora, e a luz do sol incidia pelas janelas no assoalho de parquê.
Não fosse pelo vasto número de vasos cheios de flores frescas, talvez
tivesse confundido o ambiente com um quarto de crianças; havia luzentes
aquarelas pregadas nas paredes, e em vários pontos, mesinhas com damas,
baralho, papel e creions. Irmã Belinda deixou-me na porta junto à entrada
enquanto foi até outra freira sentada a um piano de armário, e uma
quantidade de mulheres parou o que estava fazendo para observar-me.
Outras pareceram ganhar consciência e tentaram esconder-se. Quase todas
eram ocidentais, embora pudesse ver uma ou duas eurasianas. Então alguém
começou a chorar alto de algum lugar do prédio às minhas costas, e
curiosamente, isso teve por efeito deixar as mulheres à vontade. Uma
senhora a pouca distância, de cabelos eriçados, sorriu para mim e disse:
"Não se preocupe, amor, é só a Martha. Ela está riquinha da silva de
novo!".
Reconheci o sotaque de Yorkshire e me perguntava que golpe do
destino a trouxera para esse lugar, quando irmã Belinda regressou.
"Diana deve estar lá fora", disse ela. "Queira me acompanhar, senhor
Banks."
Atravessamos as portas envidraçadas na direção de terrenos bem
cuidados que subiam e mergulhavam em todos os rumos, lembrando-nos
que estávamos perto da crista de uma colina. Ao seguir irmã Belinda por
canteiros floridos com gerânios e tulipas, entrevi vistas panorâmicas por
sobre sebes podadas com esmero. Aqui e ali, senhoras de batas beges
sentavam-se ao sol, tricotando, conversando ou murmurando inofensivas de
si para si. A certa altura, irmã Belinda parou para olhar em volta, então
guiou-me por um declive gramado rumo a um portão branco, e entramos
num jardinzinho murado.
A única figura visível ali era uma senhora sentada ao sol na extremidade
da relva rala, jogando cartas numa mesa de ferro batido. Estava absorta em
seu jogo e não ergueu a vista ao nos aproximarmos. Irmã Belinda tocou-lhe
delicadamente o ombro e disse:
"Diana. Um cavalheiro está aqui para vê-la. Ele veio da Inglaterra".
Minha mãe sorriu para nós dois, então voltou a seu jogo de cartas.
"Diana nem sempre compreende o que lhe dizem", disse irmã Belinda.
"Se precisar que ela faça algo, é preciso repetir várias e várias vezes."
"Será que poderia falar a sós com ela?"
Irmã Belinda não se mostrou muito receptiva a essa idéia, e por um
momento pareceu tentar pensar numa razão pela qual isso não era possível.
Mas no fim disse: "Se assim prefere, senhor Banks, tenho certeza de que
não há problema. Estarei na sala de estar".
Tendo irmã Belinda partido, olhei atentamente minha mãe a distribuir as
cartas. Ela era muito menor que eu esperava, e seus ombros,
acentuadamente arqueados. Seu cabelo era prateado e fora apanhado num
coque. De vez em quando, como eu continuasse a observá-la, ela erguia os
olhos e sorria, mas pude ver um traço de medo que não estivera lá na
presença de irmã Belinda. Seu rosto não era muito enrugado, mas havia
dois grossos vincos abaixo dos seus olhos tão sulcados que mais pareciam
incisões. Sua nuca, talvez devido a algum ferimento ou moléstia,
retrocedera fundo para dentro do tronco, de modo que, quando ela fitava
suas cartas de um lado para outro, também era obrigada a mover seus
ombros. Havia uma gotícula pendente da ponta de seu nariz, e retirara meu
lenço para removê-la antes de perceber que, ao fazê-lo, talvez a assustasse
desnecessariamente. Por fim, disse com calma:
"Desculpe não poder lhe dar nenhum tipo de aviso. Sei que isto talvez
seja um choque e tanto para você". Interrompi-me, pois estava claro que ela
não escutava. Então eu disse: "Mãe, sou eu. Christopher".
Ela ergueu a vista, sorriu tal como antes, então tornou a suas cartas.
Supus que estivesse jogando paciência, mas ao observar, vi que seguia
algum estranho sistema próprio. A certa altura a brisa soprou algumas
cartas da mesa, mas ela pareceu não se importar. Quando apanhei as cartas
da grama e levei-as de volta, ela sorriu, dizendo:
"Muito obrigada. Mas não há necessidade de fazer isso, sabe. Eu mesma
gosto de deixar até que muito mais cartas se acumulem na grama. Só então
vou recolhê-las, todas de uma vez só, sabe. Afinal, elas não podem sair
voando todas juntas pela montanha, podem?".
Nos instantes seguintes, continuei a observá-la. Então minha mãe
começou a cantar. Ela cantava calmamente para si mesma, quase num
sussurro, enquanto as suas mãos continuavam a apanhar e depositar as
cartas. A voz era fraca — não pude distinguir a canção que cantava —, mas
naturalmente melodiosa. E como eu continuasse a observar e escutar, um
fragmento de memória ocorreu-me: de um dia de verão com vento em
nosso jardim, minha mãe no balanço, rindo e cantando a plenos pulmões, e
eu pulando de lá para cá na frente dela, dizendo que parasse.
Estendi o braço e toquei sua mão com delicadeza. No mesmo instante
ela a retirou e me encarou, furiosa.
"Mantenha as mãos longe de mim, senhor!", disse num sussurro
ofendido. "Mantenha as mãos bem longe de mim!"
"Desculpe." Afastei-me um pouco para tranqüilizá-la. Ela voltou a suas
cartas e quando ergueu outra vez a vista deu um sorriso como se nada
tivesse acontecido.
"Mãe", eu disse devagar, "sou eu. Eu vim da Inglaterra. Realmente sinto
muito que tenha demorado tanto. Sei que a decepcionei amargamente.
Amargamente mesmo. Tentei de tudo, mas, sabe, no fim, estava acima de
minhas possibilidades. Sei que é irremediavelmente tarde."
Devo ter começado a chorar, porque minha mãe ergueu os olhos e
encarou-me. Então ela disse:
"Está com dor de dente, meu jovem? Se está, é melhor falar com irmã
Agnes".
"Não, estou bem. Mas me pergunto se entendeu o que eu disse. Sou eu.
Christopher."
Ela assentiu com a cabeça e disse: "Não vale a pena adiar, meu jovem.
A irmã Agnes vai preencher a sua ficha".
Então ocorreu-me uma idéia. "Mãe", eu disse, "sou eu, Puffin. Puffin."
"Puffin." Subitamente ela ficou imóvel. "Puffin."
Durante um bom tempo minha mãe não disse nada, mas agora a
expressão em seu rosto mudara inteiramente. Ela tornou a erguer a vista,
mas seu olhar fixou-se em algo por sobre meu ombro, e um afável sorriso
lhe vincava o rosto.
"Puffin", repetiu calmamente consigo, e por um momento pareceu
perdida em felicidade. Então abanou a cabeça e disse: "Aquele garoto. É
uma preocupação e tanto para mim".
"Desculpe", eu disse. "Desculpe. Supondo que esse seu garoto, esse
Puffin. Supondo que você descobrisse que ele fez o possível, que tentou de
todas as maneiras encontrá-la, mesmo que no final não tenha conseguido.
Se você soubesse disso, imagina que… imagina que seria capaz de perdoá-
lo?"
Minha mãe continuou a mirar por sobre meu ombro, mas agora um
olhar intrigado veio-lhe ao rosto.
"Perdoar o Puffin? Disse perdoar o Puffin? Mas por que razão?" E
tornou a sorrir alegre. "Aquele garoto. Dizem que está indo bem. Mas com
aquele lá nunca se sabe. Oh, ele é uma preocupação e tanto para mim. Não
faz idéia."

"Pode parecer bobagem para você", disse a Jennifer quando voltamos a


conversar sobre a viagem no mês passado, "mas foi somente quando ela
disse isso, foi somente então que percebi. Percebi, digo, que nunca deixou
de me amar, apesar dos pesares. Tudo o que sempre quis foi que eu tivesse
uma vida boa. E todo o resto, todas minhas tentativas de encontrá-la, de
salvar o mundo das ruínas, isso não teria feito nenhuma diferença. Os
sentimentos dela por mim, eles sempre estiveram presentes, não dependiam
de nada. Imagino que isso não deva parecer lá muito surpreendente. Mas
levou todo aquele tempo para eu perceber."
"Você realmente imagina", perguntou Jennifer, "que ela não tivesse
idéia de quem você fosse?"
"Tenho certeza de que não. Mas foi sincera no que disse, e sabia o que
estava dizendo. Disse que nada havia a perdoar, e ficou genuinamente
intrigada com a sugestão de que houvesse. Se visse o rosto dela, quando eu
disse pela primeira vez aquele nome, também não teria dúvidas. Ela nunca
deixou de me amar, nem por um único instante."
"Tio Christopher, por que acha que não disse às freiras quem você
realmente era?"
"Não tenho certeza. Parece estranho, eu sei, mas acabei não dizendo.
Além do que, não vi razão para tirá-la de lá. Ela parecia mesmo, de algum
modo, satisfeita. Não exatamente feliz. Mas não ficaria melhor num asilo na
Inglaterra. Suponho que foi algo bem parecido à questão de onde devia
descansar. Depois que morreu, pensei em trazer os seus restos mortais para
cá. Mas aí também, ao pensar melhor, decidi que não. Ela vivera a vida
inteira no Oriente. Acho que preferiria repousar lá."
Era uma gelada manhã de outubro, e Jennifer e eu caminhávamos por
uma ruela serpenteante em Gloucestershire. Eu pernoitara numa pousada
não distante da pensão onde atualmente ela mora, e visitara-a logo depois
do café da manhã. Talvez não tenha dissimulado muito bem minha tristeza
ao ver a miséria de suas últimas moradias, pois insistiu rapidamente, apesar
do frio, em mostrar-me a vista de um adro próximo por sobre o vale
Windrush. Ao avançarmos pela ruela, pude ver na extremidade os portões
de uma fazenda; mas antes de lá chegarmos, ela tomou um desvio por uma
fenda na cerca viva.
"Tio Christopher, venha aqui dar uma olhada."
Abrimos caminho por um cerrado trecho de urtigas até chegarmos a um
parapeito. Pude ver então os campos precipitando-se pela encosta do vale.
"É uma vista maravilhosa", eu disse.
"Do adro se pode ver ainda mais longe. Já pensou em se mudar para cá
também? Londres está muito cheia agora."
"Não é como costumava ser, isso é verdade."
Ficamos ali por um momento, lado a lado, observando a vista.
"Desculpe", disse a ela. "Não tenho passado muito por aqui
recentemente. Imagino que já faça uns bons meses. Nem sei o que estive
fazendo."
"Oh, não deve se preocupar tanto comigo."
"Mas me preocupo. Claro que me preocupo."
"São águas passadas", ela disse, "tudo o que aconteceu no ano passado.
Nunca mais vou tentar uma besteira daquelas de novo. Já prometi isso para
você. Foi só uma época especialmente ruim, mais nada. Além disso, não era
mesmo meu propósito. Tinha me certificado de que a janela estava aberta."
"Mas ainda é uma jovem, Jenny. Com tanta coisa a sua frente. Fico
deprimido que tenha até mesmo cogitado uma coisa dessas."
"Uma jovem? Trinta e um anos, nada de filhos, nada de casamento.
Imagino que ainda haja tempo. Mas vou ter de encontrar forças, sabe, para
passar por tudo isso outra vez. Estou tão cansada agora, às vezes penso
seriamente em me resignar com uma vida calma, só para mim. Eu poderia
trabalhar numa loja em algum lugar, ir ao cinema uma vez por semana e não
fazer mal a ninguém. Nada de errado com uma vida dessas."
"Mas não vai se resignar com isso. Não tem a cara da Jennifer que eu
conheço."
Ela deu uma pequena risada. "Mas você não tem idéia de como é. Uma
mulher na minha idade, tentando encontrar um romance num lugar como
este. Senhorias e inquilinos sussurrando a seu respeito cada vez que você
põe o pé para fora do quarto. O que mais queriam que eu fizesse? Pusesse
anúncio no jornal? Isso, sim, deixaria todos em polvorosa, não que eu ligue
a mínima para eles."
"Mas você é uma mulher muito atraente, Jenny. Quero dizer, quando as
pessoas olham para você, podem ver seu espírito, sua gentileza, sua
delicadeza. Tenho certeza de que algo está a sua espera."
"Pensa que as pessoas vêem meu espírito? Tio Christopher, isto é só
porque você me olha e ainda vê a garotinha que conheceu antes."
Virei-me e olhei-a atentamente. "Oh, mas ela ainda está aí", eu disse.
"Posso vê-la. Ainda está aí, disfarçada, esperando. O mundo não mudou
você tanto quanto pensa, minha querida. E a propósito, existem, sim, alguns
homens respeitáveis neste mundo, fique sabendo disso. Só tem de parar de
fazer o possível para evitá-los."
"Tudo bem, tio Christopher. Vou tentar me sair melhor da próxima vez.
Se houver uma próxima vez."
Por um instante, continuamos a apreciar a vista, um vento leve soprando
em nossas faces. Afinal eu disse:
"Devia ter feito mais por você, Jenny. Desculpe".
"Mas o que você poderia ter feito? Se eu enfio nesta minha
cabecinha…"
"Não, eu quis dizer… eu quis dizer antes. Enquanto você crescia. Devia
ter passado mais tempo com você. Mas estive ocupado demais, tentando
resolver os problemas do mundo. Devia ter feito muito mais por você do
que fiz. Pronto. Sempre quis dizer isso."
"Como pode pedir desculpas, tio Christopher? Onde eu estaria agora
sem você? Eu era uma órfã, sem ninguém. Nunca peça desculpas. Devo
tudo a você."
Estendi o braço e toquei a úmida teia de aranha suspensa na balaustrada.
A teia se rompeu e ficou pendurada em meus dedos.
"Oh, eu detesto esta sensação!", ela exclamou. "Não consigo suportar!"
"Eu sempre gostei bastante. Quando era menino, costumava tirar as
luvas só para fazer isso."
"Oh, que horror!" Ela riu alto, e súbito pude ver a Jennifer de
antigamente. "E quanto a você, tio Christopher? Que tal você se casar?
Nunca pensa nisso?"
"Definitivamente já passei da idade."
"Oh, não sei não. Você se vira bastante bem morando sozinho. Mas
também não é muito conveniente para você. Não mesmo. Vai acabar
rabugento. Devia pensar a propósito. Está sempre mencionando as senhoras
suas amigas. Nenhuma delas aceita você?"
"Aceitam-me para jantar. Mas não para muito mais, receio." Então
acrescentei: "Houve alguém antes. No passado. Mas acabou seguindo o
curso de tudo o mais". Dei uma rápida risada. "Minha grande vocação se
pôs no caminho de um monte de coisas, no final das contas."
Devo ter desviado o rosto. Senti que ela me tocava o ombro, e quando
voltei o olhar, vi que me encarava ternamente.
"Não devia falar sempre com tanta amargura de sua carreira, tio
Christopher. Eu sempre o admirei tanto pelo que tentou fazer."
"Tentou é a palavra certa. Tudo se resumiu a muito pouco, no final. Seja
como for, são águas passadas. Minha maior ambição na vida hoje em dia é
manter esse reumatismo à distância."
Jennifer riu de repente e deslizou seu braço por entre os meus. "Sei o
que vamos fazer", ela disse. "Tenho um plano. Já decidi. Vou achar um
homem bem bacana com quem casar e vou ter três, não, quatro filhos. E
vamos viver nalgum lugar perto daqui, onde poderemos sempre vir e dar
uma olhada nesse vale. E você vai poder deixar seu pequeno apartamento
abafado em Londres e viver aqui conosco. Já que suas amigas não o
aceitam, pode aceitar o posto de tio para todas as minhas futuras crianças."
Devolvi-lhe o sorriso. "Parece um plano razoável. Embora eu não saiba
se seu marido iria gostar de me ver pela casa o tempo todo."
"Oh, então nós improvisamos um velho chalé ou coisa parecida para
você."
"Isso, sim, parece tentador. Mantenha o final de seu trato e eu penso a
respeito."
"Se isso é uma promessa, é melhor tomar cuidado. Porque vou me
certificar de que isso se realize. Então você terá de vir morar em seu chalé."

Nesse mês que passou, enquanto vagava por esses dias cinzentos em
Londres, zanzando pelos Jardins de Kensington na companhia de turistas de
outono e funcionários de escritório em horário de almoço, de vez em
quando topando com um velho conhecido e talvez saindo com ele para
almoçar ou tomar um chá, muitas vezes dei comigo tornando a pensar em
minha conversa com Jennifer naquela manhã. Não há como negar que me
animou. Há toda razão para acreditar que agora ela atravessou o escuro
túnel de sua vida e surgiu do outro lado. O que lá a espera resta ser visto,
mas ela não é alguém que aceite facilmente a derrota. Aliás, é mais do que
possível que cumpra o programa delineado para mim — só meio de
brincadeira — enquanto observávamos o vale naquela manhã. E se dentro
de alguns anos as coisas tiverem mesmo saído de acordo com os seus
desejos, não está fora de cogitação que eu aceite sua sugestão de ir viver
com ela no campo. Claro, não seria muito do meu gosto seu chalé, mas
poderia alugar uma casa próxima. Sou grato a Jennifer. Entendemos as
nossas preocupações recíprocas instintivamente, e são conversas como a
que tivemos naquela manhã gelada que se revelaram tamanha fonte de
consolo para mim no curso dos anos.
Mas, de outro lado, a vida no campo talvez se revele calma demais, e
nos últimos tempos me apeguei bastante a Londres. Além disso, de vez em
quando, ainda sou abordado por pessoas que lembram meu nome de antes
da guerra e pedem meu conselho sobre algum assunto. Ainda na semana
passada, aliás, quando saí para jantar com os Osbourne, fui apresentado a
uma senhora que imediatamente agarrou minha mão, exclamando: "Quer
dizer que é o Christopher Banks? O detetive?".
Fiquei sabendo que ela passara grande parte de sua vida em Cingapura,
onde fora uma "amiga muito próxima" de Sarah. "Costumava falar do
senhor o tempo todo", disse-me ela. "Parece mesmo que já o conheço."
Os Osbourne haviam convidado várias outras pessoas, mas quando nos
sentamos para comer, encontrei-me ao lado dessa mesma senhora, e nossa
conversa voltou inevitavelmente a Sarah.
"Era um grande amigo dela, não era?", perguntou a certa altura. "Ela
sempre falava com admiração do senhor."
"Éramos bons amigos, certamente. Claro, perdemos bastante contato
quando foi para o Oriente."
"Ela falava muitas vezes do senhor. Tinha tantas histórias sobre o
famoso detetive, nos mantinha bem divertidas quando nos cansávamos de
jogar bridge. Sempre falava nos termos mais elogiosos do senhor."
"Fico tocado em pensar que me lembrasse tão bem. Como disse,
perdemos bastante contato, embora tenha recebido uma carta sua uma vez,
cerca de dois anos depois da guerra. Não tinha notícia até ali de como
passara a guerra. Ela não fez caso do período que passou como prisioneira
de guerra, mas tenho certeza de que não foi nenhuma brincadeira."
"Oh, nenhuma brincadeira mesmo. Eu e meu marido; nós poderíamos
facilmente ter tido o mesmo destino. Conseguimos escapar para a Austrália
em cima da hora. Mas Sarah e Monsieur de Villefort, eles sempre confiaram
tanto no destino. Eram o tipo de casal que saía para a noite sem planos,
felizes de ver com quem topavam. Uma atitude encantadora na maior parte
do tempo, mas não quando os japoneses batem à porta. Também chegou a
conhecê-lo?"
"Nunca tive o prazer de conhecer o conde. Soube que regressou à
Europa depois da morte de Sarah, mas nossos caminhos nunca se
cruzaram."
"Oh, do jeito que ela falava do senhor, pensei que fosse velho amigo dos
dois."
"Não. Sabe, realmente só conheci Sarah durante uma primeira parte de
sua vida. Queira me desculpar, talvez não haja como a senhora possa
responder a isto. Mas eles lhe pareceram um casal feliz, Sarah e esse
francês?"
"Um casal feliz?" Minha companheira pensou por um momento. "Claro,
nunca se pode saber ao certo, mas sinceramente, seria difícil acreditar no
contrário. Eles pareciam profundamente devotados um ao outro. Nunca
tiveram muito dinheiro, de modo que nunca puderam ser tão livres de
preocupação quanto talvez quisessem. Mas o conde sempre parecia, bem,
tão romântico. O senhor ri, senhor Banks, mas essa é a palavra exata. Ele
ficou tão arrasado com a morte dela. A causa foi a prisão, sabe. Como
tantas outras, ela nunca recobrou direito a saúde. Sinto saudade dela. Uma
companheira tão encantadora."
Desde esse encontro na semana passada, tornei a desdobrar e ler várias
vezes a carta de Sarah — a única que recebi desde que nos separamos em
Xangai, tantos anos antes. Está datada de 18 de maio de 1947 e foi escrita
de uma estação nas montanhas na Malásia. Talvez fosse minha expectativa
que, após minha conversa com sua amiga, descobriria naquelas linhas
bastante formais, quase brandamente amistosas, alguma dimensão até agora
encoberta. Mas o fato é que a carta continua a conceder pouco mais que os
ossos descarnados de sua vida desde sua partida de Xangai. Ela fala de
Macau, Hong Kong, Cingapura como sendo "encantadoras", "coloridas",
"fascinantes". Seu companheiro francês é mencionado várias vezes de
passagem, como se eu já soubesse tudo quanto houvesse para saber sobre
ele. Há uma jovial menção ao cárcere sob os japoneses, e ela declara seus
problemas de saúde "uma chatice danada". Pergunta a meu respeito de
forma educada e chama sua própria vida na Cingapura liberta "uma coisa
bem razoável para se ir tocando". É o tipo de carta que alguém no
estrangeiro escreve de impulso, numa tarde, a um amigo do qual se tem
vaga lembrança. Só uma vez, próximo ao fim, seu tom sugere a intimidade
que antes partilhamos.
"Não me importo em lhe dizer, querido Christopher", ela escreve, "que
naquela época eu fiquei, sim, decepcionada, para dizer pouco, com a
maneira como as coisas se deram entre nós. Mas não se preocupe, há muito
não estou mais zangada com você. E como poderia estar, se o Destino, no
final, escolheu sorrir tão gentilmente para mim? Além do mais, agora estou
convicta de que para você foi a decisão acertada não ir comigo naquele dia.
Você sempre sentiu ter uma missão a cumprir, e ouso dizer que nunca teria
sido capaz de dar seu coração para ninguém nem para nada até que o
fizesse. Só posso esperar que, agora, as suas tarefas sejam parte do passado
e que tenha sido capaz de encontrar aquele tipo de felicidade e
companheirismo que, nestes últimos tempos, quase tenho como um fato
espontâneo."
Há alguma coisa nessas passagens de sua carta — e nessas últimas
linhas em particular — que nunca soaram muito verdadeiro. Alguma nota
sutil que percorre a carta — aliás, seu próprio ato de me escrever naquele
momento — parece contradizer seu relato de dias cheios de "felicidade e
companheirismo". Será que a sua vida com seu conde francês era realmente
aquilo a que ela se propusera a encontrar naquele dia que saiu ao píer em
Xangai? De certa forma, eu duvido. Minha sensação é que ela pensa tanto
nela como em mim ao falar de um senso de missão e da inutilidade de tentar
fugir a ele. Talvez haja aqueles capazes de levar suas vidas livres de tais
preocupações. Mas para aqueles como nós, nosso destino é enfrentar o
mundo tal como órfãos, perseguindo por longos anos as sombras de pais
desaparecidos. Nada resta senão tentar levar a cabo nossas missões o
melhor que pudermos, pois até o fazermos, calma alguma nos será
permitida.
Não quero parecer presunçoso; mas vagando ao sabor dos dias aqui em
Londres, acredito que posso mesmo admitir um certo contentamento. Gosto
de meus passeios nos parques, visito as galerias; e cada vez mais, nos
últimos tempos, desenvolvi um orgulho tolo em examinar minuciosamente,
na sala de leitura do Museu Britânico, velhas reportagens de jornal sobre
meus casos. Esta cidade, em outras palavras, tornou-se o meu lar, e não me
importa se tiver de viver o resto de meus dias aqui. Contudo, há instantes
em que uma espécie de vazio me preenche as horas, e continuarei a pensar
seriamente no convite de Jennifer.

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