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Título original
When We Were Orphans
Capa
Alceu Chiesorin Nunes
Ilustração de capa
Pedro de Kastro
Preparação
Cássio de Arantes Leite
Revisão
Beatriz de Freitas Moreira
Isabel Jorge Cury
00-4368 CDD-823.91
[2017]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone: (11) 3707-3500
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Para Lorna e Naomi
SUMÁRIO
***
Mas creio ter conseguido não dar mostras de minha irritação com o
coronel naquela noite. Não há dúvida de que quando ele embarcou num táxi
na South Audley Street e nos despedimos, estava de excelente humor. Foi
somente ao saber de sua morte, pouco mais de um ano depois, que senti
certa culpa por não ter sido mais expansivo com ele naquela noite no
Dorchester. Afinal, uma vez ele me fizera um grande favor, e por tudo o que
eu pudera observar, fora um homem muito íntegro. Mas suponho que o
papel por ele desempenhado em minha vida — o fato de estar tão
entranhadamente associado ao que aconteceu naquele momento — fará com
que ele permaneça para sempre em minha memória como um personagem
ambivalente.
***
Não levou mais do que alguns dias para deslindar o mistério da morte
de Charles Emery. O assunto não atraiu publicidade na magnitude de
algumas de minhas outras investigações, mas a profunda gratidão da família
Emery — aliás, de toda a comunidade de Shackton — tornou o caso tão
gratificante quanto qualquer outro até ali em minha carreira. Voltei para
Londres numa aura de bem-estar, e como resultado deixei de atribuir maior
importância a meu encontro com Sarah Hemmings no jardim murado,
naquele primeiro dia da investigação. Eu não chegaria ao ponto de afirmar
que esquecera por completo suas declaradas intenções quanto ao jantar da
Fundação Meredith, mas, como disse, estava em estado de graça e presumo
que preferi não me ocupar com aquelas coisas. Talvez bem no fundo
acreditasse que sua "ameaça" não tivesse sido mais do que uma tática
momentânea.
De todo modo, quando saltei de meu táxi na frente do Claridge's; na
noite passada, meus pensamentos estavam em outro lugar. Por um lado,
dizia a mim mesmo que meus triunfos recentes mais do que me habilitavam
ao convite recebido; que, longe de questionar minha presença na reunião,
era provável que outros convivas me pressionassem, ansiosos por
informações confidenciais referentes a meus casos. Também reafirmava
para mim mesmo minha decisão de não abandonar o evento
prematuramente, mesmo que isso significasse suportar o embaraço de ficar
plantado sozinho. Assim, quando adentrei aquele saguão imponente, a visão
de Sarah Hemmings à espera com um sorriso no rosto tomou-me
inteiramente de surpresa.
Estava admiravelmente vestida, num vestido escuro de seda
acompanhado de jóias discretas mas elegantes. Suas maneiras ao vir na
minha direção eram de absoluta segurança, tanto é que até encontrou tempo
de sorrir um cumprimento a um casal que passava a nosso lado.
"Ah, senhorita Hemmings!", disse eu, enquanto na minha cabeça
tentava às pressas relembrar tudo quanto se passara entre nós naquele dia na
Granja Studley. Naquele momento, confesso, parecia-me perfeitamente
possível que ela tivesse todo o direito de esperar que eu lhe oferecesse o
braço e a conduzisse para dentro. Sem dúvida, ela sentiu minha indecisão e
pareceu ganhar ainda mais confiança.
"Querido Christopher", disse, "você está com uma aparência esplêndida.
Estou de queixo caído! Oh, e não tive chance de cumprimentá-lo. Foi tão
maravilhoso, o que fez para os Emery! Você foi brilhante."
"Obrigado. O caso não era tão complicado assim."
Agora ela tomara meu braço e, se naquele instante se houvesse
aproximado do lacaio que conduzia os convidados do jantar até a escadaria,
estou seguro de que teria sido incapaz de fazer outra coisa senão obedecer a
suas determinações. Mas nisso, vejo agora, ela cometeu um erro. Talvez
quisesse saborear o momento; talvez sua audácia tivesse fraquejado por um
segundo. De todo modo, não fez menção de seguir escada acima; em vez
disso, olhando para os outros convidados que se enfileiravam no saguão,
disse-me:
"Sir Cecil ainda não chegou. Só espero ter uma chance de falar com ele.
Tão adequado ele ser o homenageado deste ano, não acha?".
"De fato."
"Sabe, Christopher, não acredito que se passem muitos anos até
estarmos todos aqui para homenagear você."
Ri. "Não me passa pela cabeça…"
"Não, não. Disso tenho certeza. Tudo bem, talvez seja preciso esperar
mais alguns anos. Mas o dia virá, você vai ver."
"E gentileza sua dizer isso, senhorita Hemmings."
Ela continuava segurando meu braço enquanto conversávamos. Não
raro, alguém que passava sorria ou dirigia uma saudação a um de nós dois.
E confesso ter constatado que me agradava bastante o que pudessem
imaginar todas aquelas pessoas — várias delas muito ilustres — ao me ver
de braço dado com Sarah Hemmings. Imaginei ter visto nos olhos delas,
inclusive ao cumprimentar-nos, a conclusão: "Oh, foi ele que ela agarrou
agora, é? Bom, não é de admirar". Longe de fazer-me sentir ridículo ou
humilhado de algum modo, a idéia me enchia de orgulho. Mas aí, de
repente — e não sei bem por que razão —, de forma totalmente inesperada,
comecei a sentir uma fúria enorme em relação a ela. Tenho certeza de que
não houve mudança perceptível em minha atitude naquele momento, e nos
minutos seguintes continuamos a conversar com amabilidade,
ocasionalmente cumprimentando com a cabeça convidados que passavam.
Mas ao desprender seu braço do meu e voltar-me para ela, minha
determinação era inflexível.
"Bem, senhorita Hemmings, foi muito bom vê-la outra vez. Mas agora
tenho de deixá-la e subir para a cerimônia."
Fiz uma ligeira mesura e comecei a me afastar. Aquilo a tomou
claramente de surpresa, e se porventura tivesse preparado alguma estratégia
para o caso de eu não cooperar, na hora foi incapaz de pô-la em prática. Só
quando eu já estava a uma distância de alguns passos, tendo, aliás, me
reunido a um casal idoso que me saudara, ela de pronto correu para mim.
"Christopher!", disse, num sussurro frenético. "Você não ousaria! Você
me prometeu!"
"Você sabe que não prometi coisa alguma."
"Você não ousaria! Christopher, não faça isso!"
"Tenha uma boa noite, senhorita Hemmings."
Afastando-me dela — e também, por sinal, de meus idosos
companheiros, que faziam o possível para não ouvir o que dizíamos —,
avancei a passos rápidos escadaria acima.
Mas não estou com vontade de recordar tio Philip agora. Houve um
momento, no início desta noite, em que estive convencido de ter
mencionado seu nome a Sarah Hemmings durante nosso passeio de ônibus
à tarde — de lhe ter dito mesmo uma ou duas coisas básicas sobre ele. Mas
repassando uma vez mais tudo o que aconteceu, tenho quase certeza, agora,
de que tio Philip não veio à tona em absoluto — e devo dizer que estou
aliviado. Talvez seja uma forma tola de pensar, mas sempre tive a sensação
de que tio Philip permanecerá uma entidade menos tangível enquanto
existir somente em minha memória.
Contei-lhe um pouco, porém, sobre Akira esta tarde, e agora que tive a
chance de pensar a respeito, realmente não me arrependo. Não lhe contei
muito, em todo caso, e de fato ela pareceu genuinamente interessada. Não
faço idéia do que me levou de repente a começar a lhe falar sobre tais
assuntos; por certo não tinha tal intenção ao embarcar naquele ônibus com
ela no Haymarket.
Eu fora convidado por David Corbett, um homem a quem conhecera
vagamente, para almoçar com ele e "alguns amigos" num restaurante na
Lower Regent Street. Sendo um lugar da moda, Corbett reservara uma mesa
longa nos fundos do ambiente para uma dúzia de nós. Fiquei satisfeito de
ver Sarah entre os convidados — e um pouco surpreso, pois não tinha
notícia de que ela fosse amiga de Corbett —, mas chegando um tanto
atrasado, fui incapaz de sentar perto o bastante para conversar com ela.
O tempo nublara naquela altura, e o garçom acendera para nós um par
de velas em nossa mesa. Um de nosso grupo, um sujeito chamado Hegley,
cuidou ser uma boa piada assoprar as velas e então chamar o garçom para
reacendê-las. Fez isso pelo menos umas três vezes no espaço de vinte
minutos — sempre que julgasse estar a tempestuosa atmosfera perdendo o
ânimo — e os demais pareciam achar isso bem engraçado. Do que podia
ver, Sarah estava se divertindo nessa altura, rindo com o restante deles.
Estávamos lá fazia talvez uma hora — alguns homens haviam se
desculpado para tornar a seus escritórios — quando a atenção voltou-se
para Emma Cameron, uma garota um tanto exaltada, sentada na ponta da
mesa em que estava Sarah. Que eu saiba, já estava ela conversando por
algum tempo com os mais próximos sobre seus problemas; porém foi nesse
instante que uma calmaria, espalhando-se pelo resto da mesa, subitamente
fez dela o foco de toda a reunião. Seguiu-se uma discussão meio séria, meio
irônica sobre a tumultuada relação de Emma Cameron com sua mãe — que
evidentemente atingia uma nova crise em razão do recente noivado de
Emma com um francês. Todo tipo de conselho lhe foi oferecido. O tal de
Hegley, por exemplo, propôs que todas as mães — "e tias também, claro"
— fossem mantidas em amplas instituições à maneira de zoológico, a serem
construídas ao lado da Serpentine. Outros fizeram comentários mais úteis,
baseados em suas próprias experiências, e Emma Cameron, saboreando
toda a atenção, manteve o tópico bem provido com anedotas cada vez mais
teatrais para ilustrar a natureza absolutamente exasperadora desse
específico parente. A discussão estava em curso por talvez quinze minutos
quando vi Sarah levantar-se e, sussurrando uma palavra no ouvido do
anfitrião, deixar o recinto. O toucador das senhoras localizava-se no saguão
do restaurante, e os outros — aqueles que nem sequer haviam notado sua
saída — sem dúvida supuseram que era para onde ela ia. Mas eu captara
algo em seu rosto enquanto ela se retirava, e após alguns minutos também
me levantei e saí atrás dela.
Encontrei-a na entrada do restaurante, olhando pelas janelas para a
Lower Regent Street. Ela não notou minha aproximação até tocar-lhe o
braço e perguntar:
"Está tudo bem?".
Ela teve um sobressalto, e notei pequenos traços de lágrimas em seus
olhos, que rapidamente ela tentou dissimular com um sorriso.
"Oh, sim, estou bem. Senti um pouco de falta de ar, só isso. Estou bem
agora." Deu uma risadinha e olhou perscrutadora para a rua. "Desculpe,
devo ter parecido extremamente rude. Eu realmente devia voltar lá para
dentro."
"Não vejo razão por que deva se não quer."
Ela estudou-me cuidadosamente, então perguntou: "Eles ainda estão
falando sobre o que estavam falando?".
"Estavam quando saí." E acrescentei: "Imagino que nenhum de nós é
capaz de contribuir muito com um simpósio sobre mães impertinentes".
De repente ela riu e enxugou as lágrimas, agora não mais tentando
escondê-las de mim. "Não", ela disse, "imagino que estamos
desqualificados." Então tornou a sorrir e disse: "Que bobagem a minha.
Afinal, só estão tendo um almoço agradável".
"Está esperando um carro?", perguntei, pois ela continuava a olhar
detidamente para o tráfego.
"O quê? Oh, não, não. Só estava olhando." Então disse: "Estive
pensando se passaria um ônibus. Veja, lá, do outro lado da rua. Tem um
ponto. Eu e minha mãe, nós costumávamos passar um tempão dentro dos
ônibus. Só por diversão. Quando eu era pequena, digo. Se não pudéssemos
pegar o banco da frente no andar de cima, descíamos na hora para esperar
por outro. E às vezes passávamos horas rodando por Londres, olhando tudo,
e falando, e apontando coisas uma para a outra. Eu gostava. Nunca anda de
ônibus, Christopher? Pois devia. Há tanta coisa que se pode ver lá de cima".
"Confesso que costumo ir a pé ou pegar um táxi. Tenho certo medo dos
ônibus londrinos. Estou convencido de que, se pegar um, acabo parando
nalgum lugar aonde não quero ir, e o resto do dia vou passar tentando
encontrar o caminho de volta."
"Posso lhe dizer uma coisa, Christopher?" Sua voz ficara bem calma. "É
uma coisa à-toa, mas me dei conta recentemente. Nunca me ocorrera antes.
Mas a minha mãe já devia estar com muitas dores. Não tinha força
suficiente para fazer outras coisas comigo. É por isso que passamos tanto
tempo nos ônibus. Era uma coisa que ainda podíamos fazer juntas."
"Estaria interessada em andar de ônibus agora?", perguntei.
Ela tornou a olhar para a rua. "Mas você não está muito ocupado?"
"Seria um prazer. Como disse, tenho certo receio de entrar em ônibus
sozinho. Já que é uma espécie de veterana, esta é a minha oportunidade."
"Muito bem." De repente ela sorriu exultante. "Vou lhe mostrar como é
que se anda num ônibus londrino."
Acabamos por tomar o ônibus não na Lower Regent Street — não
queríamos que o grupo do almoço saísse do restaurante e nos visse
esperando —, mas na paralela Haymarket. Ao subirmos ao piso superior,
ela mostrou um prazer pueril ao encontrar vago o seu banco da frente, e lá
sentamos balançando juntos enquanto o veículo se arrastava rumo à
Trafalgar Square.
Londres hoje estava muito cinza, e lá embaixo nas calçadas as pessoas
estavam bem preparadas com seus impermeáveis e guarda-chuvas. Calculo
que passamos meia hora naquele ônibus, talvez mais. Pegamos a Strand, a
Chancery Lane, a Clerkenwell. Às vezes ficávamos olhando a vista abaixo
de nós em silêncio; outras, falávamos, em geral de coisas inócuas. Seu
humor serenara consideravelmente desde o almoço, e ela não tornou a
mencionar sua mãe. Não sei direito como chegamos ao assunto, mas foi
logo depois que vários passageiros desembarcaram na High Holborn, e
enquanto descíamos a Gray's Inn Road, que dei por mim falando sobre
Akira. Creio que de início não fiz mais que mencioná-lo de passagem,
descrevendo-o como um "amigo de infância". Mas ela deve ter me sondado,
pois lembro-me de dizer-lhe, não muito depois, com uma risada:
"Sempre penso no dia em que roubamos uma coisa juntos".
"Oh!", exclamou ela. "Então é isso! O grande detetive tem um passado
criminal secreto! Eu sabia que esse garoto japonês era relevante. Mas me
fale sobre o seu roubo."
"Não foi bem um roubo. Tínhamos dez anos."
"Mas continua a atormentar sua consciência?"
"De jeito nenhum. Foi uma coisa de nada. Roubamos algo do quarto de
um criado."
"Mas que fascinante. E isso foi em Xangai?"
Imagino que tenha lhe contado então algumas coisas mais sobre o
passado. Não revelei nada de verdadeira relevância, mas depois que me
despedi dela esta tarde — saltamos por fim na New Oxford Street — fiquei
surpreso e ligeiramente alarmado por ter lhe contado alguma coisa, por
pouco que fosse. Afinal, não falara com ninguém sobre o passado durante
todo o tempo em que estive neste país, e, como disse, certamente não era
meu propósito começar a fazê-lo hoje.
Mas talvez algo do tipo estivesse no ar por algum tempo. Pois a verdade
é que, neste ano que passou, me tornei cada vez mais preocupado com as
minhas memórias, uma preocupação encorajada pela descoberta de que tais
memórias — de minha infância, de meus pais — começaram nos últimos
tempos a se esfumar. Inúmeras vezes, recentemente, dei comigo lutando
para lembrar algo que apenas há dois ou três anos julgava arraigado para
sempre em minha mente. Fui forçado a aceitar, noutras palavras, que a cada
ano que passa minha vida em Xangai fica menos nítida, até que um dia mais
não reste senão umas poucas imagens baralhadas. Mesmo esta noite, ao
sentar-me aqui e tentar reunir nalgum tipo de ordem essas coisas de que
ainda me lembro, mais uma vez me surpreendi ao constatar quanto, dessas
lembranças, perdera a nitidez. Tomando, por exemplo, o episódio que
acabei de contar a respeito de minha mãe e o inspetor de saúde: se estou
bastante seguro de que recordo sua essência com bastante precisão,
tornando a repassá-lo em minha cabeça me acho menos certo de alguns dos
detalhes. Por um lado, não tenho mais certeza de que ela realmente se
dirigiu ao inspetor com estas exatas palavras: "Como a sua consciência é
capaz de descansar enquanto o senhor deve sua existência a tão malsinada
riqueza?". Agora me parece que, mesmo com ânimo exaltado, ela teria se
dado conta da estranheza dessas palavras, do fato de que elas a expunham
ao ridículo. Não acredito que minha mãe jamais perdesse o controle da
situação a tal ponto. Por outro lado, é possível que eu lhe tenha atribuído
essas palavras precisamente porque essa era uma pergunta que ela deve ter
feito constantemente a si própria durante nossa vida em Xangai. O fato de
que "devíamos nossa existência" a uma companhia cujas atividades ela
identificava como um mal a ser fustigado deve ter sido para ela uma fonte
de verdadeiro tormento.
De fato, é possível mesmo que eu tenha me lembrado incorretamente do
contexto em que ela proferiu tais palavras; que não haja sido ao inspetor de
saúde a quem tenha se dirigido, mas a meu pai, numa manhã totalmente
diversa, durante aquela discussão na sala de jantar.
5.
Tio Philip não era um tio de verdade. Ele se instalara com meus pais
como um "hóspede da casa" ao chegar a Xangai algum tempo antes de meu
nascimento, nos dias em que ainda era funcionário da Morganbrook and
Byatt. Então, quando eu ainda era bem pequeno, demitira-se da companhia
devido ao que minha mãe sempre descrevia como "um profundo desacordo
com os seus patrões sobre como a China deveria amadurecer". Na época em
que eu tinha idade suficiente para me dar conta dele, dirigia uma
organização filantrópica chamada A Árvore Sagrada, que se dedicava a
melhorar as condições nas áreas chinesas da cidade. Sempre fora amigo da
família, mas como disse, tornou-se uma visita particularmente assídua nos
anos das campanhas antiópio de minha mãe.
Lembro-me muitas vezes de ir com minha mãe ao escritório de Philip.
Este localizava-se dentro das dependências de uma das igrejas no centro da
cidade — meu palpite agora é que era a Igreja da União na rua Suzhou.
Nosso tílburi entrava direto pelo jardim e parava ao lado de um vasto
gramado sombreado por árvores frutíferas. Ali, apesar dos ruídos da cidade
a nossa volta, a atmosfera era tranqüila, e minha mãe, saltando do tílburi,
detinha-se, erguia a cabeça e comentava: "O ar. É muito mais puro aqui".
Seu humor serenava a olhos vistos, e por vezes — caso estivéssemos um
pouco adiantados — minha mãe e eu nos entretínhamos alguns minutos
brincando na grama. Se brincássemos de pega-pega, correndo um atrás do
outro por entre as árvores frutíferas, minha mãe costumava rir e soltar
gritinhos com a mesma empolgação que eu. Lembro uma vez, no meio de
uma dessas brincadeiras, ela estacar subitamente ao ver um padre surgir da
igreja. Paramos quietos na beira do gramado e trocamos saudações com ele
enquanto passava. Mas mal saíra ele de nossa vista, minha mãe virou-se e,
curvando-se até mim, deu uma risadinha espremida de cumplicidade. É
possível mesmo que esse tipo de coisa tenha ocorrido mais de uma vez. De
todo modo, lembro-me de ter ficado fascinado com a idéia de minha mãe
participar de algo pelo qual, assim como eu, podia "levar uma bronca". E
foi talvez esse aspecto desses momentos de despreocupada brincadeira pelo
adro da igreja que fez parecê-los sempre um tanto especiais para mim.
Minha memória do escritório de tio Philip é que ele caía aos pedaços.
Havia caixotes de todos os tamanhos por tudo quanto era canto, pilhas de
papéis, mesmo gavetas jogadas, ainda com seus conteúdos, amontoadas
precariamente umas sobre as outras. Esperaria que minha mãe reprovasse
tal desleixo, mas ela só falava do escritório do tio Philip como sendo
"aconchegante" ou "movimentado".
Ele nunca deixava de fazer festa para mim nessas visitas, sacudindo-me
afetuosamente a cabeça, fazendo-me sentar e então jogando conversa fora
comigo por vários minutos, enquanto minha mãe observava a sorrir. Muitas
vezes me dava um presente, alguma coisa que fingia já ter à mão — embora
logo eu tenha notado que me presenteava com o que quer que lhe desse na
vista no momento. "Adivinha o que eu tenho para você, Puffin!", declarava,
enquanto vasculhava a sala em busca de algo adequado. Desse modo
adquiri uma vasta coleção de artigos de escritório, que eu guardava num
velho baú no meu quarto de brinquedos: um cinzeiro, um suporte de caneta
de marfim, um peso de chumbo. Houve uma ocasião em que, depois de
anunciar que tinha um presente para mim, seu olho não logrou pousar sobre
nada. Seguiu-se uma constrangedora pausa, antes de levantar-se num pulo e
começar a zanzar pelo escritório, murmurando: "E onde é que eu pus? Que
diabos fiz com ele?" — até que finalmente, talvez em desespero, foi até a
parede, retirou um mapa da região do Yang Tsé, rasgando um canto ao fazê-
lo, enrolou-o e ofertou-o a mim.
Naquele tempo eu confiava nele, tio Philip e eu estávamos sentados em
seu escritório, esperando minha mãe voltar de algum lugar. Ele me
convencera a sentar em sua própria cadeira atrás de sua mesa, enquanto ele
próprio andava a esmo pelo recinto. Desenrolava sua conversa fiada de
sempre, e em geral me punha rindo num piscar de olhos, mas naquela
ocasião — somente alguns dias após minha conversa com Akira — eu não
estava com disposição de espírito para tanto. Tio Philip logo reparou e
disse:
"Então, Puffin. Estamos com aquele humor, hoje".
Vi minha deixa e disse: "Tio Philip, estive pensando. Como imagina que
alguém possa se tornar mais inglês?".
"Mais inglês?" Parou o que quer que estivesse fazendo e olhou para
mim. Depois, com uma expressão pensativa, aproximou-se, puxou uma
cadeira para junto da mesa e sentou-se.
"Mas por que você ia querer ser mais inglês do que é, Puffin?"
"Só pensei… bem, só pensei que pudesse."
"Quem disse que você já não é suficientemente inglês?"
"Ninguém, na verdade." E acrescentei depois de um segundo: "Mas
acho que talvez meus pais achem isso".
"E o que você acha, Puffin? Acha que deveria ser mais inglês?"
"Realmente não sei dizer, senhor."
"Não. Imagino que não possa. Bem, é verdade, aqui você está crescendo
com gente da mais variada espécie ao redor. Chineses, franceses, alemães,
americanos, e por aí afora. Não seria de admirar se você ficasse um adulto
meio mestiço." Ele deu uma breve risada. Depois continuou. "Mas isso não
é ruim. Sabe de uma coisa, Puffin? Acho que não seria ruim se garotos
como você crescessem todos com um pouco de tudo. Quem sabe todos
trataríamos uns aos outros um bocado melhor então. Menos dessas guerras,
para início de conversa. Oh, sim. Talvez um dia todos esses conflitos
terminem, e não será por causa de grandes estadistas ou igrejas ou
organizações como esta. Será porque as pessoas mudaram. Elas serão como
você, Puffin. Mais para uma mistura. E por que então não se tornar um
mestiço? É saudável."
"Mas se fosse assim, tudo poderia…", interrompi-me.
"Tudo poderia o quê, Puffin?"
"Como aquela persiana ali" — apontei — "se o fio se rompesse. Tudo
poderia se espalhar."
Tio Philip fitou a persiana que indicara. Em seguida se levantou, foi até
a janela e tocou-a de leve.
"Tudo poderia se espalhar. Talvez você esteja certo. Imagino que seja
algo de que não podemos escapar facilmente. As pessoas precisam sentir
que fazem parte de alguma coisa. De uma nação, de uma raça. Senão, quem
sabe o que pode acontecer? Esta nossa civilização talvez simplesmente
desmorone. E tudo se espalhe, como você diz." Ele suspirou, como se eu
tivesse acabado de derrotá-lo numa discussão. "Então você quer ser mais
inglês. Pois muito bem, Puffin. E o que vamos fazer a respeito?"
"Eu pensei, se estivesse de acordo, senhor, se não se importasse muito.
Pensei se podia copiá-lo de vez em quando."
"Copiar a mim?"
"Sim, senhor. Só de vez em quando. Só para aprender a fazer as coisas
ao modo inglês."
"Isso me envaidece muito, amigão. Mas não acha que é a seu pai que
você deve esse grande privilégio? Mais inglês impossível, eu diria."
Desviei o olhar, e tio Philip deve imediatamente ter sentido que dissera
a coisa errada. Voltou a sua cadeira e tornou a sentar-se na minha frente.
"Olhe", ele disse calmamente. "Vou lhe dizer o que vamos fazer. Se
alguma vez você estiver preocupado em como lidar com as coisas, seja o
que for, se estiver preocupado sobre a maneira apropriada de lidar com
algo, então é só me procurar e nós teremos uma boa conversa a respeito.
Conversamos tudo tintim por tintim até que você saiba a quantas anda.
Então, sente-se melhor?"
"Sim, senhor. Acho que sim." Esbocei um sorriso. "Obrigado, senhor."
"Olhe aqui, Puffin. Você é um pestinha daqueles. Você sabe disso, é
claro. Mas levando em conta os outros pestinhas, você é um tipo bem
aceitável. Tenho certeza de que sua mãe e seu pai têm muito, muito orgulho
de você."
"Acha mesmo, senhor?"
"Acho. Acho, sim. Então, sente-se melhor?"
Com isso, ergueu-se num pulo para retomar as suas deambulações pelo
escritório. Retomando a seu tom jovial, desatou uma história absurda sobre
a senhora do escritório ao lado, que logo me pôs às gargalhadas.
Como eu gostava do tio Philip! E existe alguma razão legítima para
supor que ele não gostasse verdadeiramente de mim? É perfeitamente
possível que naquela altura ele não quisesse nada a não ser o meu bem, que
não suspeitasse mais que eu do curso que as coisas tomariam.
6.
Foi por volta daquela mesma época — naquele mesmo verão — que
certos aspectos do comportamento de Akira começaram a me aborrecer
seriamente. Em particular, havia sua eterna lengalenga sobre os feitos dos
japoneses. Ele sempre tendera a fazê-lo, mas naquele verão as coisas
pareceram atingir níveis obsessivos. Vira-e-mexe, meu amigo interrompia
algum jogo com o qual nos entretínhamos para instruir-me sobre o último
edifício japonês que estava sendo erguido no distrito comercial, ou da
iminente chegada de outra canhoneira japonesa ao porto. Obrigava-me
então a ouvir os mais ínfimos detalhes e, de minuto em minuto, sua
alegação de que o Japão tornara-se um "grande, grande país como
Inglaterra". O mais irritante de tudo eram aquelas ocasiões nas quais ele
tentava iniciar discussões sobre quem chorava mais fácil, se os japoneses ou
os ingleses. Caso eu balbuciasse a menor frase a favor dos ingleses, meu
amigo exigia imediatamente que puséssemos a questão à prova, o que
significava na prática ele me prender em suas terríveis chaves de braço até
que eu capitulasse ou cedesse às lágrimas.
Naquela época, creditei a obsessão de Akira com a bravura de sua raça
ao fato de que, no outono seguinte, ele começaria as aulas no Japão. Seus
pais lhe haviam arranjado instalar-se com parentes em Nagasaki, e embora
ele fosse voltar a Xangai nas férias escolares, percebemos que nos veríamos
bem menos, e a princípio a notícia nos lançara em desânimo. Mas à medida
que o verão se aproximava, Akira pareceu convencer-se da superioridade de
cada aspecto da vida no Japão e tornou-se cada vez mais empolgado com a
perspectiva de sua nova escola. Eu, de minha parte, fiquei tão farto da sua
persistente vanglória sobre tudo quanto era japonês que, ao final do verão,
já não via a hora de livrar-me dele. De fato, quando finalmente chegou o
dia, e na frente de sua casa fiquei acenando para o automóvel que o levaria
ao porto, acredito que não estivesse nem um pouco triste.
Em pouco tempo, porém, comecei a sentir falta dele. Não que não
tivesse outros amigos. Havia, por exemplo, os dois irmãos ingleses que
moravam perto, com quem costumava brincar e a quem passei a ver muito
mais depois da partida de Akira. Dava-me bem com eles, em especial
quando estávamos só nós três. Mas às vezes nos juntávamos a seus amigos
de escola — outros garotos da Escola Pública de Xangai — e então o
comportamento deles com relação a mim mudava, e por vezes eu me
tornava o alvo de certas brincadeiras. Não me importava em absoluto com
isso, claro, já que podia ver que todos eram essencialmente gente boa, sem
maldade real. Mesmo naquela época, podia ver que; se num grupo de cinco
ou seis garotos, todos menos um freqüentassem a mesma escola, o de fora
era sujeito de vez em quando a virar alvo de alguma caçoada inofensiva. O
que quero dizer é que não pensava mal de meus amigos ingleses; mas, ainda
assim, tais coisas impediram-me de criar com eles o mesmo nível de
intimidade que tivera com Akira, e à medida que os meses passavam,
imagino que comecei a sentir cada vez mais falta de sua companhia.
Mas aquele outono da ausência de Akira não foi particularmente infeliz,
de modo algum. Lembro-o antes como um período em que costumava não
ter o que fazer, de tardes vazias que se sucediam umas às outras, muitas das
quais se desvaneceram da minha memória. Contudo, alguns pequenos
acontecimentos ocorreram naquele período, que ulteriormente passei a
considerar como de particular relevância.
O gabinete de meu pai ficava no andar mais alto da casa, com uma vista
que dominava a parte dos fundos. Usualmente não me permitiam entrar
nele, e em geral era desaconselhado brincar nem que só fosse perto dele.
Havia, contudo, um estreito corredor que levava do patamar da escada à
porta do gabinete, ao longo do qual estava pendurada uma série de quadros
com pesadas molduras douradas. Cada um desses era pintura precisa, à
maneira de projetista, do porto de Xangai observado do ponto de vista de
alguém na costa em Putung; ou seja, todos os numerosos navios no porto
mostravam-se com os grandiosos prédios da Beira-Mar ao fundo. Os
quadros provavelmente datavam da década de 1880, se não mais antigos, e
meu palpite é que, tal como vários dos ornamentos e quadros da casa,
pertenciam à companhia. Agora eu próprio na verdade não me lembro
disso, mas minha mãe costumava me contar como, de bem pequeno, eu e
ela nos postávamos na frente desses quadros e nos entretínhamos dando
nomes divertidos a vários navios na água. Segundo minha mãe, eu
rapidamente caía na gargalhada e por vezes me recusava a abandonar o jogo
antes que tivéssemos nomeado cada um dos navios visíveis. Se assim foi —
se realmente tínhamos o hábito de rir com estardalhaço ao longo dessa
nossa brincadeira —, então quase certamente não teríamos subido para nos
divertir desse jeito enquanto meu pai trabalhava em seu gabinete. Mas ao
pensar melhor sobre as palavras de meu pai naquele dia junto ao coreto,
comecei a lembrar uma ocasião em que minha mãe e eu estávamos de fato
postados juntos lá naquele sótão, pelo que me consta jogando esse nosso
jogo, quando ela subitamente parou e ficou bem quieta.
A primeira coisa que me ocorreu é que eu estava prestes a ser
repreendido, talvez por algo que acabara de dizer e lhe desagradara. Não era
sequer excepcional que minha mãe mudasse de humor abruptamente em
meio a uma conversa harmoniosa e me repreendesse por alguma travessura
— lembrada subitamente — cometida antes naquele dia. Mas ao ficar em
silêncio, pronto para uma dessas explosões, percebi que ela estava atenta,
ouvindo. Então, no instante seguinte, ela escancarou com grande
brusquidão a porta do gabinete de meu pai.
Tive um vislumbre do interior da peça atrás da silhueta de minha mãe.
A imagem que me ficou é de meu pai debruçado em sua escrivaninha, o
rosto coberto de suor e contorcido de frustração. É possível que ele
estivesse soluçando, e que esse fora o ruído que captara a atenção de minha
mãe. Na frente dele, espalhados pela mesa, havia papéis, livros contábeis,
cadernetas. Notei — creio que segui o olhar de minha mãe — mais papéis e
cadernetas no chão, como se ele os tivesse atirado ali num acesso de fúria.
Ele nos olhava, sobressaltado, e no momento seguinte disse numa voz que
me chocou um pouco:
"Não podemos fazer! Nunca vamos voltar! Não podemos fazer! Está
pedindo demais, Diana. É demais!".
Minha mãe disse-lhe algo entre os dentes, sem dúvida alguma censura
para ele recompor-se. Meu pai, de fato, recobrou certo controle nesse
momento e, olhando por sobre minha mãe, fitou-me pela primeira vez. Mas
quase instantaneamente o seu rosto tornou a crispar-se de desespero e,
voltando-se para minha mãe, disse outra vez, abanando a cabeça
desamparado:
"Não podemos fazer, Diana. Vai ser a ruína de nós dois. Examinei tudo.
Nunca vamos voltar para a Inglaterra. Não podemos angariar o bastante.
Sem a empresa, estamos simplesmente perdidos".
Então pareceu perder novamente o controle, e quando minha mãe
começou a dizer algo mais — algo em sua voz contida, irada — meu pai
começou a gritar, não tanto para ela quanto para as paredes do seu gabinete:
"Não vou fazer, Diana! Deus do céu, por quem você me toma? Está
além das minhas forças, está ouvindo? Além das minhas forças! Não posso
fazer!".
Possivelmente nesse ponto minha mãe fechou a porta em sua cara e
levou-me para longe. Não tenho lembrança de como o episódio prosseguiu.
E é claro, não posso ter certeza dos exatos sentimentos, e muito menos das
exatas palavras, que meu pai proferiu naquele dia. Mas é assim,
confessadamente com certa percepção tardia, que moldei essa memória.
Naquela época foi apenas uma atordoante experiência para mim, e
embora provavelmente tenha achado interessante que meu pai, tal como eu,
tivesse momentos de prantos e gritos, não me perguntei muito qual o
sentido de tudo aquilo. Além disso, quando tornei a ver meu pai, ele voltara
a ser a mesma pessoa normal, e minha mãe, por sua vez, nunca aludiu ao
incidente. Se meu pai, anos mais tarde, não houvesse feito aquele curioso
discurso ao lado do coreto, provavelmente eu nunca teria evocado essa
reminiscência.
Mas como disse, à parte esses pequenos incidentes curiosos, há pouco
que pareça valer a pena recordar daquele outono e do monótono inverno
que se seguiu. Fiquei apático durante muito daquele período, e encantado
quando uma tarde Mei Li muito casualmente me deu a notícia de que Akira
regressara do Japão, de que naquele mesmo momento, na frente da casa ao
lado, sua bagagem estava sendo descarregada do automóvel.
7.
Ling Tien estivera com a família de Akira desde que eles haviam se
mudado para Xangai. Entre minhas primeiras memórias de ir à casa ao lado
para brincar estão aquelas do velho criado arrastando-se pelo imóvel com
sua vassoura. Ele parecia bem velho, sempre usava uma grossa bata escura
mesmo no verão, uma boina e um rabo-de-cavalo. Ao contrário dos demais
criados chineses na vizinhança, raramente sorria às crianças, mas tampouco
nos olhava feio ou gritava conosco, e não fosse pela atitude de Akira, é
improvável que eu jamais o tivesse considerado como um objeto de pavor.
Aliás, lembro-me de ficar a princípio mais do que tudo intrigado pela
inquietação que se apoderava de Akira sempre que o criado achegava-se a
nós. Se por exemplo Ling Tien passasse no corredor, meu amigo
interrompia o que quer que estivéssemos fazendo para postar-se
rigidamente numa parte do quarto fora do alcance da vista do velho e não se
movia até passado o perigo. Naqueles primeiros dias de nossa amizade,
ainda não me contagiara com o senso de pavor de Akira, supondo resultasse
isso de algo específico que ocorrera entre ele e Ling Tien. Como disse,
estava mais do que tudo intrigado, mas sempre que pedia a Akira para
explicar o seu comportamento, ele simplesmente me ignorava. Com o
tempo, passei a avaliar quão profundamente constrangido ele ficava com
sua incapacidade de controlar seu pavor por Ling Tien e aprendi a não dizer
nada sempre que nossas brincadeiras eram interrompidas dessa maneira.
Mas à medida que crescíamos, imagino que Akira tenha começado a
sentir necessidade de justificar seu medo. Quando já estávamos com sete ou
oito anos, a visão de Ling Tien não fazia mais com que meu amigo
congelasse; em vez disso, ele interrompia o que estivesse fazendo e me
olhava com um estranho esgar. Pondo então sua boca perto do meu ouvido,
recitava ele num curioso tom monótono — não diferente daquele dos
monges que de vez em quando ouvíamos cantar no mercado da rua Boone
— as mais aterradoras revelações sobre o velho criado.
Assim foi que tive notícia da temível paixão de Ling Tien por mãos.
Acontecera certa vez de Akira relancear os olhos pelo corredor dos criados
na direção do quarto de Ling Tien, numa rara ocasião em que o velho
deixara sua porta entreaberta, e vira empilhadas no chão as mãos decepadas
de homens, mulheres, crianças, macacos. Outra vez, tarde da noite, Akira
avistara o criado carregando um cesto para dentro de casa amontoado de
bracinhos desmembrados de macacos. Tínhamos sempre de estar de
sobreaviso, alertou-me Akira. Se lhe déssemos a menor oportunidade, Ling
Tien não hesitaria em cortar nossas mãos.
Quando após inúmeras dessas instruções indaguei por que Ling Tien
gostava tanto de mãos, Akira olhou-me atentamente, então perguntou se
podia confiar-me o segredo mais sombrio de sua família. Ao assegurar-lhe
que podia, ele pensou ainda um instante antes de dizer afinal:
"Então eu conto a você, meu chapa! Razão terrível! Por que Ling corta
mãos. Eu digo a você!".
Ling Tien, evidentemente, descobrira um método pelo qual podia
transformar mãos decepadas em aranhas. Em seu quarto havia várias tigelas
cheias de diferentes fluidos nos quais embebia por muitos meses
consecutivos as várias mãos coletadas. Devagar os dedos começavam a ter
movimento próprio — de início só pequenos espasmos, depois movimentos
coleantes; por fim cresciam pêlos escuros, e Ling Tien as retirava dos
fluidos e as soltava, como aranhas, por toda a vizinhança. Akira ouvira
muitas vezes o criado saindo furtivamente na calada da noite para fazer
justamente isso. Certa vez meu amigo vira mesmo no jardim, movendo-se
pelas moitas, uma Ling mutante retirada prematuramente de sua solução, a
qual ainda não se assemelhava por completo a uma aranha e podia ser
facilmente identificada como uma mão decepada.
Embora mesmo naquela idade eu não tenha acreditado nessas histórias,
elas certamente me transtornaram, e por algum tempo a mera visão de Ling
Tien bastava para provocar calafrios em mim. De fato, ao crescermos,
nenhum de nós se livrou direito de nosso horror a Ling Tien. Isso foi
sempre algo que atormentou o orgulho de Akira, e por volta da época em
que tínhamos oito anos, ele pareceu desenvolver uma necessidade de
desafiar constantemente esses antigos temores. Lembro dele muitas vezes
arrastando-me a algum ponto de sua casa onde podíamos espionar Ling
Tien varrendo a trilha ou fazendo outra coisa qualquer. Não me importava
muito com tais sessões de espionagem, mas o que passei a temer eram
aquelas ocasiões em que Akira desafiava-me com insistência a aproximar-
me do quarto de Ling Tien.
Até esse ponto havíamos nos mantido bem afastados daquele quarto, em
especial porque Akira sempre sustentara que os eflúvios dos líquidos de
Ling Tien eram capazes de nos hipnotizar e nos atrair para dentro pela
porta. Mas então a idéia de aproximar-se do quarto tornou-se como que uma
obsessão para o meu amigo. Podíamos estar conversando sobre algo bem
diverso, e de repente aquele estranho esgar aparecia no seu rosto e ele
começava a sussurrar: "Está com medo? Christopher, está com medo?".
Forçava-me aí a segui-lo pela casa, por aqueles ambientes
excentricamente decorados, até o arco de pesadas vigas que marcava o
início dos aposentos dos criados. Atravessando o arco, nos encontrávamos
num corredor sombrio de tábuas nuas polidas, na extremidade do qual, de
frente para nós, estava a porta do quarto de Ling Tien.
Primeiro, somente se exigia de mim que me postasse junto ao arco e
observasse Akira avançar a custo pelo corredor, pé ante pé, até haver
percorrido talvez metade da distância para aquele terrível quarto. Ainda
posso ver meu amigo, sua figura atarracada hirta de tensão, seu rosto,
sempre que se voltava para mim, luzente de suor, forçando-se a mais alguns
passos antes de virar e correr de volta com expressão triunfante. A seguir,
ele me provocava e incitava até eu finalmente criar coragem para igualar
sua façanha. Por um bom tempo, como disse, esses testes de coragem
referentes ao quarto de Ling Tien chegaram a obcecar Akira e tiraram muito
do prazer de ir brincar em sua casa.
Por algum tempo ainda, porém, permaneceria além das forças de um e
de outro caminhar direto até a porta, quanto mais cruzá-la. Quando
finalmente entramos no quarto de Ling Tien, os dois tínhamos dez anos, e
aquele foi — embora eu não soubesse então, claro — meu último ano em
Xangai. Foi quando Akira e eu cometemos o nosso pequeno furto — um ato
impulsivo cujas mais amplas repercussões, em nossa agitação, deixamos de
antecipar por completo.
Sempre soubemos que Ling Tien ausentava-se por seis dias no início de
agosto para visitar sua aldeia natal perto de Hangzhou, e falamos muitas
vezes sobre como aproveitaríamos a oportunidade para finalmente entrar
naquele quarto. E dito e feito, na primeira tarde depois da partida de Ling
Tien, apareci na casa de Akira e encontrei-o preocupadíssimo com o
assunto. A essa altura, devo dizer, eu era em geral uma pessoa muito mais
confiante do que até um ano antes, e se acaso ainda sentisse um pouco
daquele antigo pavor de Ling Tien, certamente não o teria demonstrado. De
fato, creio que estava muito mais calmo sobre a perspectiva de entrar no
quarto — algo que, tenho certeza, meu amigo notou e viu como um aspecto
adicional do desafio.
Mas acontece que, ao longo daquela tarde, a mãe de Akira estava
fazendo um vestido, o que por alguma razão exigia que ela se
movimentasse constantemente de um quarto para o outro, e Akira declarou
que a mera idéia de realizar nossa aventura era arriscada demais. Isso
certamente não me desagradou, mas tenho certeza de que foi Akira quem
ficou ainda mais grato com a desculpa.
O dia seguinte, contudo, era um sábado, e quando cheguei à casa de
Akira, a manhã já ia pela metade e seus pais haviam saído. Akira não tinha
uma ama, como eu, e quando éramos pequenos costumávamos discutir
quem era o mais afortunado. Ele sempre fora da posição de que crianças
japonesas não precisavam de uma ama porque eram mais "valentes" que as
crianças ocidentais. Certa vez lhe perguntara durante uma dessas discussões
quem se incumbiria de suas necessidades se a sua mãe estivesse fora e ele
quisesse, digamos, um pouco de água gelada, ou se se cortasse. Lembro-me
de ele dizer que as mães japonesas nunca saíam sem a permissão explícita
do filho — afirmação em que achei difícil acreditar, já que sabia ser um fato
as senhoras japonesas encontrarem-se em seus círculos, tal como as
senhoras européias, na Casa Astor ou no Salão de Chá Marceli na rua
Sechuan. Mas quando ele me fez notar que, na ausência de sua mãe, havia a
criada para se incumbir de todas as suas necessidades, enquanto ao mesmo
tempo ele estava livre para fazer o que bem quisesse sem nenhuma
restrição, comecei de fato a acreditar que eu era mesmo o injustiçado. Por
estranho que pareça, continuei a sustentar essa opinião, ainda que na
prática, naquelas ocasiões em que brincávamos em sua casa quando a sua
mãe estava fora, sempre se delegava a um ou outro criado vigiar cada um de
nossos passos. De fato, especialmente quando éramos mais jovens, isso se
traduzia em alguma figura sisuda, sem dúvida receosa de funestas
conseqüências caso nos ocorresse algum infortúnio, plantada a uma
inibidora proximidade enquanto fazíamos o possível para brincar.
Naturalmente, porém, naquele verão já nos era permitido uma liberdade
muito maior sem supervisão. Naquela manhã em que entramos no quarto de
Ling Tien, estávamos brincando num dos espaçosos quartos com tatame de
Akira, no terceiro andar, enquanto uma criada idosa — a única pessoa na
casa — ocupava-se em cerzir no quarto imediatamente abaixo. Lembro a
certa altura de Akira interromper o que estávamos fazendo, ir na ponta dos
pés até a sacada e debruçar-se todo na balaustrada, a ponto de eu temer que
caísse. Quando então ele voltou às pressas, notei que o estranho esgar
surgira-lhe no rosto. A criada, relatou num sussurro, adormecera como
esperado.
"Agora temos que entrar! Está com medo, Christopher? Está com
medo?"
Akira ficara de repente tão tenso que, por um instante, todos os meus
temores a respeito de Ling Tien voltaram à tona num assomo. Mas a essa
altura um recuo estava fora de cogitação para qualquer um dos dois, e
descemos o mais silenciosamente possível aos aposentos dos criados até
estarmos mais uma vez juntos naquele sombrio corredor com suas tábuas
nuas polidas.
O que lembro é que avançamos pelo corredor com pouca hesitação até
estarmos a quatro ou cinco metros da porta de Ling Tien. Então algo nos fez
estacar, e por um segundo nenhum de nós pareceu capaz de seguir adiante;
se naquele momento Akira tivesse virado e corrido, tenho certeza de que eu
teria feito o mesmo. Mas aí meu amigo pareceu encontrar não sei que
resolução extra, e estendendo-me o braço, disse: "Venha, meu chapa! Nós
vamos juntos!".
Demos os braços e assim avançamos os poucos passos finais. Então
Akira empurrou a porta e nós dois espiamos.
Vimos um quartinho esparso, arrumado, com um assoalho de tábuas
bem varridas. A janela estava coberta por uma veneziana, mas a luz vazava
radiante pelas bordas. Havia um leve aroma de incenso no ar, um altar no
canto oposto, uma cama baixa e estreita e uma cômoda surpreendentemente
grande, laqueada com graça, com puxadores adornados em cada uma das
pequenas gavetas.
Demos um passo para dentro, e por alguns segundos permanecemos
quietos, mal-e-mal respirávamos. Então Akira soltou um suspiro e voltou-se
para mim com um enorme sorriso, claramente satisfeito de ter vencido, por
fim, seu antigo medo. Mas no momento seguinte, seu senso de triunfo
pareceu rapidamente ser substituído pela preocupação de que a falta de
qualquer traço obviamente sinistro o faria parecer ridículo. Antes que eu
pudesse dizer alguma coisa, ele apontou rápido para a cômoda e sussurrou
com urgência:
"Ali! Ali dentro! Cuidado, cuidado, meu chapa! As aranhas, elas ali
dentro!".
Ele foi pouco convincente, e deve ter se dado conta disso. No entanto,
por um segundo ou dois, passou-me pela cabeça uma imagem daquelas
gavetinhas abrindo-se diante de nossos olhos enquanto criaturas — em
vários estágios entre mão e aranha — estendiam membros hesitantes. Mas
agora Akira indicava empolgado uma pequena garrafa sobre uma mesa
baixa ao lado da cama de Ling Tien.
"Loção!", ele sussurrou. "A loção mágica que ele usa! Ali está!"
Fui tentado a lançar no ridículo essa desesperada tentativa de preservar
uma fantasia para a qual estávamos na verdade bem crescidinhos, mas
naquele momento tive uma outra visão súbita das gavetas se abrindo, e um
resquício de meu antigo medo impediu-me de dizer algo. Além disso,
estava começando a ficar ansioso com uma eventualidade muito mais
provável, ou seja, que fôssemos descobertos naquele quarto pela criada ou
algum outro adulto inesperado. Não me decidia a imaginar a desgraça que
então se seguiria, os castigos, as longas discussões entre meus pais e os de
Akira. Não conseguia nem pensar em como começaríamos a explicar nossa
conduta.
Justamente então Akira deu um rápido passo adiante, apanhou a garrafa
e apertou-a contra o peito.
"Vai! Vai!", ele disse num sibilo, e de repente ambos fomos tomados
pelo pânico. Dando risinhos entre os dentes, saímos do quarto em
disparada, corredor afora.
De volta à segurança do quarto de cima — a criada permanecera
adormecida lá embaixo — Akira reafirmou sua alegação de que as gavetas
haviam sido atulhadas de mãos decepadas. Podia ver agora que estava
seriamente preocupado que eu ridicularizasse a nossa fantasia de longa data,
e de algum modo eu também senti a necessidade de preservá-la. Portanto
não disse nada para desmentir sua alegação, nem cheguei a sugerir que o
quarto de Ling Tien tivesse sido uma decepção ou que nossa coragem fora
criada sob premissas falsas. Pusemos a garrafa sobre um prato no meio do
assoalho, então nos sentamos para examiná-la.
Akira removeu cuidadosamente a rolha. Dentro havia um líquido pálido
com um vago aroma de anis. Até hoje não tenho idéia para que o velho
criado usava essa loção; meu palpite é que era algum remédio prático que
ele adquirira para combater algum estado crônico. Seja como for, sua
aparência indefinida serviu bem a nossos propósitos. Com todo cuidado,
mergulhamos gravetos na garrafa e os deixamos pingar sobre uns papéis.
Akira preveniu-me que não devíamos deixar nem uma gota tocar nossas
mãos, sob pena de acordarmos no dia seguinte com aranhas na extremidade
de nossos braços. Nenhum de nós realmente acreditava nisso, mas de novo
parecia importante para os sentimentos de Akira que fingíssemos fazê-lo, e
assim empreendemos a nossa tarefa com exagerado zelo.
Por fim, Akira repôs a rolha e guardou a garrafa na caixa que
mantínhamos para coisas especiais, dizendo que queria realizar mais alguns
experimentos com a loção antes de devolvê-la. No final das contas, quando
nos despedimos naquela manhã, estávamos ambos satisfeitos conosco.
Mas quando Akira veio a minha casa na manhã seguinte, vi
imediatamente que alguma dificuldade surgira; ele estava muito preocupado
e incapaz de concentrar-se em algo. Temendo ouvir que seus pais haviam de
algum modo descoberto nossos feitos do dia anterior, por algum tempo
evitei perguntar o que o estava incomodando. No fim, porém, não pude
mais me agüentar e pedi que me contasse o pior. Akira, porém, negou que
seus pais suspeitassem de algo, e tornou a mergulhar em seu desalento. Só
depois de muito pressionar ele finalmente cedeu e contou-me o que
acontecera.
Vendo-se incapaz de conter seu sentimento de triunfo, Akira revelara a
sua irmã Etsuko o que fizéramos. Para sua surpresa, Etsuko reagira com
horror. Digo surpresa porque Etsuko — que era quatro anos mais velha que
nós — jamais partilhara nossa visão da natureza sinistra de Ling Tien. Mas
agora, ao ouvir a história de Akira, fitara-o como quem esperava que ele se
crispasse e caísse morto diante de seus olhos. Então contara a Akira que
havíamos tido uma tremenda sorte; que ela pessoalmente conhecera criados
antes empregados na casa que se atreveram a fazer o que nós fizéramos, e
que como resultado haviam sumido — os seus restos encontrados semanas
mais tarde numa viela qualquer, fora dos limites da Colônia. Akira dissera a
sua irmã que ela estava simplesmente tentando assustá-lo, que em momento
algum acreditou nela. Mas ele ficara claramente abalado, e eu também senti
um calafrio correr pela espinha ao ouvir essa "confirmação" — e de
ninguém menos que uma autoridade como Etsuko — de nossos antigos
medos com relação a Ling Tien.
Foi então que avaliei o que tanto perturbava Akira: alguém tinha de
devolver a garrafa ao quarto de Ling Tien antes do regresso do velho criado
em três dias. E no entanto era manifesto que nossa fanfarrice do dia anterior
havia praticamente evaporado, e a perspectiva de entrar outra vez naquele
quarto parecia demais para nós.
Incapazes de nos concentrarmos em qualquer de nossas brincadeiras de
costume, decidimos caminhar até nosso retiro especial ao lado do canal. No
percurso inteiro até lá, discutimos nosso problema de todos os ângulos. O
que aconteceria se não devolvêssemos a garrafa? Talvez a loção fosse muito
valiosa e a polícia fosse chamada para investigar. Ou talvez Ling Tien não
contasse a ninguém do sumiço, mas decidiria pessoalmente lançar alguma
terrível vingança sobre nós. Lembro-me de que ficamos bem confusos sobre
quanto desejávamos manter nossas fantasias a respeito de Ling Tien e em
que medida queríamos considerar logicamente a melhor forma de evitar nos
metermos em sérios apuros. Recordo, por exemplo, considerarmos a certa
altura a possibilidade de a loção ser um remédio que Ling Tien comprara
após meses de economia, e que sem ela ficaria terrivelmente enfermo; mas
então, no instante seguinte, sem abandonar esse último pensamento,
cogitávamos outras hipóteses que supunham ser a loção o que sempre
havíamos dito que era.
Nosso retiro junto ao canal, uns quinze minutos a pé de nossas casas,
era atrás de alguns depósitos pertencentes à Companhia Jardine Matheson.
Nunca tínhamos certeza se estávamos na verdade invadindo propriedade
alheia; para chegar até ele, atravessávamos um portão que sempre era
deixado aberto e cruzávamos um pátio de concreto passando por alguns
operários chineses, que nos olhavam desconfiados, mas nunca nos
impediam. Contornávamos então o flanco de uma alquebrada casa de
barcos e seguíamos por um trecho do píer, antes de descer para nosso
pedacinho de terra negra batida, bem na margem do canal. Era um espaço
amplo o bastante só para nós dois sentarmos lado a lado de frente para a
água, mas mesmo nos dias mais quentes os depósitos atrás nos garantiam a
sombra, e cada vez que um barco ou junco passava, as águas lambiam
docemente nossos pés. Na margem contrária erguiam-se mais depósitos,
mas havia, lembro, quase bem em frente de nós, uma brecha entre dois
prédios pela qual podíamos ver uma rua ladeada de árvores. Akira e eu
íamos com freqüência ao retiro, embora tivéssemos cuidado de nunca
contar a nossos pais, com medo de que eles não confiassem em nós
brincando tão perto da beira da água.
Naquela tarde, uma vez sentados, tentamos por um momento esquecer
as preocupações. Lembro-me de Akira começar a perguntar-me, como
costumava fazer quando íamos a nosso retiro, se numa emergência
conseguiria nadar até este ou aquele navio que víamos além na água. Mas
não foi capaz de continuar, e subitamente, para espanto meu, desatou a
chorar.
Quase nunca via meu amigo chorar. De fato, hoje, essa é a única
recordação que guardo dele chorando. Mesmo quando um grande pedaço de
morteiro caiu em sua perna ao brincarmos atrás da Missão Americana,
apesar de haver ficado pálido feito um cadáver, ele não chorou. Mas
naquela tarde junto ao canal, Akira claramente chegara ao termo de suas
forças.
Lembro que ele tinha nas mãos um pedaço de madeira úmida da qual,
enquanto chorava, tirava lascas para atirar na água. Queria muito confortá-
lo, mas não encontrando palavras, lembro de me levantar para buscar mais
desses pedaços de madeira para lascar em pedaços e entregar-lhe, como se
isso fosse algum remédio urgente. Então acabou a madeira para ele atirar, e
Akira conteve suas lágrimas.
"Quando pais descobrem", ele disse finalmente, "eles ficar tão bravos.
Então eles não me deixam ficar aqui. Então vamos todos para Japão."
Eu ainda não sabia o que dizer. Então, olhando um barco que passava,
murmurou: "Não quero morar nunca mais no Japão".
E como isto era o que eu sempre dizia quando ele fazia essa afirmação,
eu ecoei: "E eu não quero ir jamais para a Inglaterra".
Com isso, nós dois ficamos em silêncio por mais uns instantes. Mas
continuando a olhar para a água, o procedimento para evitar todas essas
terríveis repercussões avultava cada vez mais em minha cabeça, e no fim
simplesmente lhe declarei que tudo o que tínhamos de fazer era repor a
garrafa a tempo, então tudo estaria bem.
Akira pareceu não me ouvir, assim repeti o argumento. Ele continuou a
ignorar-me, e foi então que percebi como era autêntico o medo de Ling Tien
que lhe crescera desde nossa aventura no dia anterior; de fato, podia ver que
era tão grande agora quanto sempre fora em nossos dias idos, exceto, claro,
que Akira era agora incapaz de admiti-lo. Podia ver sua dificuldade e
quebrei a cabeça para achar uma saída. No fim, disse serenamente:
"Akira-san. Vamos fazer de novo juntos. Igual da última vez. Vamos dar
os braços de novo, entrar, pôr a garrafa onde a encontramos. Se fizermos
juntos assim, então vamos estar a salvo, nada de mau pode nos acontecer.
Nada de nada. Então ninguém nunca vai descobrir nada sobre o que
fizemos".
Akira pensou a respeito. Depois virou-se e olhou para mim, e pude ver a
profunda e solene gratidão em seu rosto.
"Amanhã, de tarde, três horas", ele disse. "Mãe vai sair para parque. Se
criada cair no sono de novo, então temos chance."
Assegurei-lhe que a criada decerto cairia no sono outra vez, e repeti
que, se entrássemos no quarto juntos, não havia absolutamente nada a
temer.
"Fazemos juntos, meu chapa!", ele disse com um sorriso súbito e pôs-se
de pé.
No caminho de volta, finalizamos nossos planos. Prometi chegar à casa
de Akira no dia seguinte bem antes de sua mãe partir, e assim que ela saísse,
subiríamos ao andar de cima e esperaríamos juntos, a garrafa de Ling Tien à
mão, até que a criada adormecesse. O humor de Akira serenou
consideravelmente, mas lembro, quando nos despedimos naquela tarde, de
meu amigo virar-se para mim com uma indiferença pouco convincente e
advertir-me que não atrasasse no dia seguinte.
O dia seguinte foi outra vez quente e úmido. Ao longo dos anos repassei
muitas vezes tudo o que podia lembrar daquele dia, tentando ajustar os
vários detalhes numa certa ordem. Não consigo lembrar muita coisa sobre a
primeira parte da manhã. Guardo uma imagem de como disse adeus a meu
pai enquanto saía para o trabalho. Eu já estava lá fora, zanzando junto à
pista do tílburi, esperando que saísse. Por fim ele o fez, de terno branco e
chapéu, segurando uma pasta e uma bengala. Entrecerrou os olhos e mirou
na direção de nosso portão. Então, enquanto esperava que se aproximasse
de mim, minha mãe apareceu na soleira atrás dele e disse algo. Meu pai
voltou uns passos, trocou algumas palavras com ela, sorriu, beijou-a de leve
na face, e saiu a passadas largas para onde eu o esperava. Isso é tudo o que
lembro de como ele saiu naquele dia. Não lembro agora se apertamos as
mãos, se me deu tapinhas no ombro, se virou no portão para um último
aceno. No conjunto, minha memória é de que não houve nada em sua
despedida naquela manhã que destoasse da maneira como saía para o
trabalho todos os outros dias.
Tudo o que lembro do resto da manhã é que brinquei com meus
soldadinhos de chumbo no tapete de meu quarto, minha cabeça às voltas
com a atemorizante tarefa que nos aguardava mais tarde. Lembro-me de
minha mãe sair a certa altura e de eu almoçar com Mei Li na cozinha.
Depois do almoço, precisando matar tempo até as três horas, percorri a
breve distância pela nossa rua até o lugar onde havia dois grandes
carvalhos, recuados, e no entanto bem em frente do muro de jardim mais
próximo.
Talvez fosse porque eu já estava atiçando minha coragem, mas logrei
naquele dia trepar a uma nova altura num daqueles carvalhos. Encarapitado
triunfantemente em seus galhos, descobri que tinha ampla vista das sebes e
dos terrenos de todas as casas da vizinhança. Lembro de sentar-me ali por
algum tempo, o vento no rosto, cada vez mais ansioso com a tarefa que
tinha pela frente. Ocorreu-me que, apreensivo como eu estava, o pavor de
Akira ao quarto de Ling Tien era agora tanto maior, e dessa vez eu teria de
ser o "líder". Vi a responsabilidade que isso acarretava, e resolvi aparentar o
máximo de confiança possível quando me apresentasse em sua casa. Mas à
medida que continuava ali sentado na árvore, não paravam de ocorrer-me
inúmeros acasos que poderiam nos frustrar: a criada não adormeceria;
talvez até ela escolhesse justo aquele dia para limpar o corredor diante do
quarto de Ling Tien; ou então a mãe de Akira mudaria de idéia e não sairia
como esperado. E havia também, claro, os temores mais antigos, menos
racionais, que, por mais que eu tentasse, não conseguia arredar de minha
cabeça.
Por fim, desci do carvalho, com a intenção de ir para casa tomar um
copo d'água e dar uma olhada nas horas. Ao entrar pelo portão, vi dois
automóveis na pista do tílburi. Fiquei um pouco curioso sobre eles, mas a
essa altura estava preocupado demais para lhes dar muita atenção. Ao
atravessar então o vestíbulo, olhei pelas portas abertas da sala de estar e vi
os três homens, de pé com os chapéus na mão, falando com minha mãe.
Não havia nada tão inconveniente nisso — era perfeitamente possível que
tivessem vindo para discutir a campanha de minha mãe —, mas algo na
atmosfera me fez parar um instante ali. Ao fazê-lo, as vozes interromperam-
se e vi os seus rostos voltarem-se para mim. Reconheci um dos homens
como o sr. Simpson, o colega de meu pai na Byatt; os outros dois eram
estranhos. Então a minha mãe também assomou ao inclinar-se e olhar para
mim. Provavelmente eu senti então que algo fora do comum estava em
curso. Seja como for, no momento seguinte saí às pressas na direção da
cozinha.
Mal chegara à cozinha ouvi passos, e minha mãe entrou. Tentei muitas
vezes lembrar-lhe o rosto — a exata expressão que usava — naquele
momento, mas sem êxito. Talvez algum instinto me dissesse para não olhar.
O que me lembro é de sua presença, que parecia agigantar-se, como se
subitamente eu fosse outra vez muito pequeno, e da textura do pálido
vestido de verão que ela usava. Disse-me numa voz baixa, mas
perfeitamente controlada:
"Christopher, os cavalheiros com o senhor Simpson são da polícia.
Tenho de acabar de falar com eles. Logo depois quero então falar com você.
Você me espera na biblioteca?".
Estava a ponto de protestar, mas minha mãe fixou-me com um olhar que
me silenciou.
"Na biblioteca, então", ela disse, virando-se. "Vou assim que acabar
com os cavalheiros."
"Aconteceu alguma coisa com o papai?", perguntei.
Minha mãe voltou-se. "Seu pai não chegou ao escritório esta manhã.
Mas tenho certeza de que há uma explicação perfeitamente simples. Espere-
me na biblioteca. Não demoro."
Saí da cozinha atrás dela e dirigi-me à biblioteca. Lá me sentei à minha
mesa de lição de casa e aguardei, sem pensar no meu pai, mas em Akira, e
como eu já chegaria atrasado. Perguntei-me se ele teria a coragem de
devolver a garrafa sozinho; mesmo que tivesse, ainda assim ficaria muito
zangado comigo. Senti naquele momento uma tal urgência com a situação
de Akira que tive vontade de desobedecer a minha mãe e simplesmente sair.
Enquanto isso, a discussão na sala de estar parecia arrastarse
interminavelmente. Havia um relógio na parede da biblioteca, e fitei seus
ponteiros. A certa altura, saí para o vestíbulo, esperando captar a atenção de
minha mãe e pedir-lhe permissão para sair, mas dei agora com as portas da
sala de estar fechadas. Então, enquanto eu zanzava por ali, cogitando uma
vez mais numa escapadela, Mei Li apareceu e apontou-me austeramente a
biblioteca. Uma vez que eu entrara de volta, ela fechou a porta atrás de mim
e pude ouvi-la andando de um lado para o outro lá fora. Tornei a sentar e
continuei olhando o relógio. Quando os ponteiros passaram das três e meia,
baixou-me um desânimo, enfurecido tanto com minha mãe como com Mei
Li.
Então ouvi por fim os homens serem acompanhados à porta. Ouvi um
deles dizer:
"Faremos tudo o que pudermos, senhora Banks. Temos de esperar pelo
melhor e confiar em Deus".
Não pude ouvir a resposta de minha mãe.
Assim que os homens se foram, saí correndo e pedi permissão para ir à
casa de Akira. Mas minha mãe, para fúria minha, ignorou completamente
minha solicitação, dizendo: "Vamos voltar para a biblioteca".
Mesmo frustrado, obedeci à ordem, e foi ali na biblioteca que ela me
pôs sentado, agachou-se de frente para mim e contou-me, muito
calmamente, que o meu pai fora dado como desaparecido desde a manhã. A
polícia, alertada pelo seu escritório, estava procedendo à busca, até ali sem
proveito.
"Mas é bem possível que ele apareça para o jantar", disse ela com um
sorriso.
"Claro que vai", disse numa voz que eu esperava transmitisse minha
contrariedade com todo aquele estardalhaço. Então pulei da cadeira e pedi
novamente permissão para sair. Mas dessa vez o fiz com menor fervor, pois
pude ver pelo relógio que não havia mais propósito em ir à casa de Akira.
Sua mãe teria regressado; sua refeição noturna em breve seria servida. Senti
um enorme ressentimento de que minha mãe tivesse me retido
simplesmente para me dizer algo que eu mais ou menos vislumbrara na
cozinha uma hora e meia antes. Quando por fim ela me disse que podia ir,
simplesmente subi ao meu quarto, dispus meus soldadinhos de chumbo
sobre o tapete e fiz o que pude para não pensar em Akira ou em seus
sentimentos com relação a mim naquele instante. Mas não me saía da
cabeça tudo quanto havia sido dito junto ao canal e o olhar de gratidão que
ele me dera. Além disso, tanto quanto Akira, eu não desejava que ele
voltasse para o Japão.
Meu mau humor persistiu noite adentro, mas claro que isso foi
interpretado como minha reação à situação referente a meu pai. Ao longo da
tarde minha mãe disse-me coisas como: "Nada de desânimo. Com certeza
existe uma explicação bem simples". E Mei Li foi excepcionalmente gentil
comigo ao ajudar-me no banho. Mas lembro-me também, à medida que a
tarde avançava, de minha mãe ter inúmeros daqueles momentos "ausentes"
que eu bem conheceria nas semanas seguintes. De fato, creio que foi
naquela mesma noite, eu deitado na cama ainda preocupado com o que
dizer a Akira da próxima vez que o visse, que minha mãe murmurou,
fitando o quarto com um olhar vazio:
"Seja lá o que aconteça, você pode se orgulhar dele, Puffin. Sempre vai
poder se orgulhar do que ele fez".
8.
Não vi Akira nos dias que se seguiram. Então uma tarde ele veio até a
porta dos fundos, perguntando por mim a Mei Li, como de hábito. Estava
no meio de algo, mas larguei tudo e saí para ver meu amigo. Ele me
cumprimentou risonho, e ao conduzir-me para seu jardim, deu-me afetuosos
tapinhas nas costas. Eu estava ansioso, claro, para descobrir que fim dera ao
caso Ling Tien, mas estando mais interessado em não reabrir feridas, resisti
ao impulso de lhe perguntar o que fosse sobre o assunto.
Fomos para os fundos de seu jardim — para os arbustos cerrados que
chamávamos nossa "floresta" — e logo mergulhamos numa de nossas
narrativas dramáticas. Quer me parecer que representamos cenas do
Ivanhoé, que na época eu estava lendo — ou talvez tenha sido uma das
aventuras de samurais japoneses de Akira. Seja como for, após cerca de
uma hora o meu amigo estacou de repente e lançou-me um olhar estranho.
Então ele disse:
"Se você quiser, brincamos brincadeira nova?".
"Uma brincadeira nova?"
"Brincadeira nova. Sobre pai de Christopher. Se você quiser."
Fiquei perplexo, e não recordo o que disse em resposta. Ele aproximou-
se mais alguns passos na relva alta e vi que me olhava quase com ternura.
"Sim", ele disse. "Se você quiser, brincamos de detetive. Procuramos
pai. Resgatamos pai."
Percebi então que foi ouvir as notícias sobre meu pai — que sem dúvida
principiaram a correr pela vizinhança — o que trouxera Akira de volta até
minha porta. Compreendi também que sua presente proposta era sua
maneira de mostrar seu interesse e seu desejo de ajudar, e senti fluir minha
afeição por ele. Mas no final, eu disse bastante indiferente:
"Tudo bem. Se você quer brincar, podemos".
E foi assim que começou o que hoje em minha memória parece toda
uma era — embora na verdade só possa ter sido um período de dois meses
ou menos —, quando dia após dia inventamos e encenamos infinitas
variações sobre o tema do resgate de meu pai.
Nesse meio tempo, as verdadeiras investigações sobre o sumiço de meu
pai continuavam. Sabia disso pelas visitas que recebíamos dos homens que
seguravam seus chapéus nas mãos e falavam solenemente com minha mãe;
pelos olhares mudos trocados entre minha mãe e Mei Li quando minha mãe
chegava, de lábios apertados, no final da tarde; e houve, em especial, aquela
conversa que tive com ela ao pé da escada.
Não tenho memória exata do que nenhum de nós esteve fazendo antes
desse momento. Eu começara a correr escada acima, ávido para buscar algo
no quarto de brinquedos, quando notei que minha mãe aparecera no topo e
pusera-se a descer. Ela devia estar para sair, pois trajava seu vestido bege
especial, aquele que exalava um aroma peculiar, como de folhas em
decomposição. Suponho que eu tenha sentido algo em seus modos, pois
parei onde estava, no terceiro ou quarto degrau, e a esperei. Vindo em
minha direção, ela sorriu e estendeu uma das mãos. Fez isso enquanto ainda
estava vários degraus acima de mim, de maneira que por um momento
julguei que quisesse amparo ao descer o resto da escada, do modo como às
vezes fazia meu pai quando a esperava ao pé da escada. Mas resultou
simplesmente ela me envolver o ombro com o braço e descermos juntos os
últimos degraus. Então soltou-me e caminhou na direção do porta-chapéus
do outro lado do vestíbulo. Foi enquanto fazia isso que disse:
"Puffin, eu sei como esses últimos dias têm sido difíceis para você.
Deve ser como se o mundo inteiro estivesse ruindo. Bom, têm sido difíceis
para mim também. Mas tem de fazer como eu. Tem de continuar rezando
para Deus e manter as esperanças. Espero que esteja lembrando de suas
preces, não está, Puffin?".
"Estou, sim", respondi um tanto surpreso.
"É triste", ela prosseguiu, "que numa cidade como esta, de tempos em
tempos pessoas sejam seqüestradas. Aliás, acontece com bastante
freqüência, e muitas vezes, eu chegaria até a dizer a maioria das vezes, as
pessoas voltam perfeitamente a salvo. Temos então de ter paciência. Puffin,
está escutando o que eu digo?"
"Claro que estou." A essa altura eu havia virado de costas para ela e me
balançava, seguro pelos braços, na coluna da balaustrada.
"O que temos de levar em conta", disse minha mãe após uma pausa, "é
que os melhores detetives da cidade foram designados para o caso. Eu falei
com eles, e estão muito otimistas que uma solução logo será encontrada."
"Mas quanto ainda vai demorar?", perguntei amuado.
"Temos de ter esperança. Temos de confiar nos detetives. Talvez leve
algum tempo, mas temos de ter paciência. No final então as coisas acabam
direito, e tudo será do jeito que era antes. Temos de continuar a rezar para
Deus e sempre manter a esperança. Puffin, o que você está fazendo? Você
me ouviu?"
Não respondi de imediato, porque tentava ver quantos passos meus pés
conseguiam subir enquanto continuava agarrado à coluna da balaustrada.
Então perguntei:
"Mas e se os detetives estiverem ocupados demais? Com todas as outras
coisas que têm para resolver? Assassinatos e roubos. Eles não podem fazer
tudo".
Pude ouvir minha mãe recuar alguns passos em minha direção, e
quando tornou a falar, um tom cuidadoso, deliberado, tingia-lhe a voz.
"Puffin, está absolutamente fora de cogitação os detetives estarem
'ocupados demais'. Todo mundo em Xangai, as pessoas mais importantes
desta comunidade estão extremamente ansiosas sobre o papai e muito
interessadas em que a coisa se esclareça. Cavalheiros como o senhor
Forester, eu digo. E o senhor Carmichael. Mesmo o cônsul-geral em pessoa.
Sei que eles tomaram a peito fazer com que o papai retorne o mais breve
possível. Então, Puffin, não existe nenhuma outra chance senão os detetives
estarem dando o máximo de si. E é isso o que estão fazendo, agora, neste
exato instante. Você imagina, Puffin, que o inspetor Kung em pessoa foi
encarregado dessa investigação? É, isso mesmo: o inspetor Kung. Então,
temos todas as razões para ter esperanças."
Essa conversa sem dúvida teve lá o seu impacto, pois lembro de ter me
preocupado bem menos pelos vários dias que se seguiram. Mesmo à noite,
quando minhas ansiedades tendiam a voltar, costumava recolher-me
pensando nos detetives de Xangai movimentando-se por toda a cidade,
fechando cada vez mais o cerco aos seqüestradores. Às vezes, deitado no
escuro, dava comigo tecendo dramas bem elaborados antes de pegar no
sono, muitos dos quais serviam então como material para Akira e para mim
no dia seguinte.
Não quero sugerir, a propósito, que durante esse período Akira e eu não
brincássemos de outras coisas, sem nenhuma relação com meu pai; às vezes
nos perdíamos horas em uma ou mais fantasias tradicionais. Mas sempre
que meu amigo sentia que eu estava preocupado, ou que minha cabeça
estava noutra parte, dizia: "Meu chapa. Brincamos de resgatar pai".
Nossas narrativas a respeito de meu pai tinham, como disse, infinitas
variações, mas bem rápido estabelecemos um enredo básico recorrente.
Meu pai era mantido em cativeiro numa casa nalgum lugar além dos limites
da Colônia. Seus captores eram uma quadrilha com o intento de extorquir
um vultoso resgate. Vários detalhes menores evoluíram muito rapidamente
até virarem eles próprios parte da intriga. Sempre era o caso, por exemplo,
que, a despeito de cercada pelos horrores do bairro chinês, a casa na qual se
encontrava meu pai era confortável e limpa. De fato, ainda posso lembrar
como essa convenção específica foi estabelecida. Era talvez a segunda ou
terceira vez que ensaiávamos a brincadeira, e Akira e eu nos alternávamos
no papel do lendário inspetor Kung — cujas elegantes feições e o chapéu
usado à maneira dândi nós bem conhecíamos das fotografias de jornal.
Estávamos bastante absortos nos entusiasmos de nossa fantasia, quando
subitamente, na altura em que meu pai surgia pela primeira vez em nossa
história, Akira fez um sinal para mim — indicando que eu devia representá-
lo — e disse: "Você amarrado na cadeira".
Estávamos a todo o vapor, mas então estaquei.
"Não", eu disse. "O meu pai não está amarrado. Como é que ele pode
estar amarrado o tempo todo?"
Akira, que jamais gostava de ser contrariado ao desenvolver uma
narrativa, repetiu com impaciência que meu pai estava amarrado a uma
cadeira e que eu devia imitá-lo-ao pé de uma árvore sem mais demora.
Retruquei aos berros: "Não!", e saí orgulhoso. Não deixei, contudo, o
jardim de Akira. Lembro de postar-me no limite em que iniciava o gramado
— onde terminava nossa "floresta" — e mirar com olhar vazio uma
lagartixa subindo o tronco de um olmo. Depois de um instante, ouvi atrás de
mim os passos de Akira e preparei-me para uma franca discussão. Mas para
surpresa minha, ao virar-me para ele, vi o meu amigo fitando-me com um
olhar conciliador. Ele aproximou-se e disse brandamente:
"Você certo. Pai não amarrado. Ele muito confortável. Casa
seqüestradores confortável. Muito confortável".
Depois disso era sempre Akira que tomava grande cuidado para
assegurar o conforto e a dignidade de meu pai em todos os nossos dramas.
Os seqüestradores sempre se dirigiam a ele como se fossem seus criados,
levando-lhe comida, bebida e jornais tão logo ele os reclamasse. Assim
sendo, o caráter dos seqüestradores também abrandou; resultou que não
eram maus em absoluto, simplesmente homens com famílias famintas.
Lamentavam sinceramente ter de tomar tão drástica atitude, explicavam a
meu pai, mas não podiam suportar ver seus filhos morrerem de fome. O que
estavam fazendo era errado, sabiam, mas o que mais podiam fazer? Haviam
escolhido o sr. Banks justamente porque sua simpatia pelas agruras dos
chineses mais pobres era bem conhecida, e era provável que ele entendesse
a inconveniência à qual o expunham. A isso, meu pai — a quem eu sempre
representava — suspirava compreensivo, mas então ajuntava que, fossem
quais fossem os dissabores da vida, o crime não podia ser tolerado. Além
disso, era inevitável, o inspetor Kung cedo ou tarde chegaria com seus
homens para prendê-los, então eles seriam postos a ferros, talvez
executados. Que vantagem traria isso às famílias deles? Os seqüestradores
— representados por Akira — respondiam dizendo que, uma vez
descoberto o esconderijo pela polícia, se entregariam calmamente e fariam
votos de que o sr. Banks voltasse a salvo para junto de sua família. Mas até
lá, eram obrigados a esmerar-se para que seu plano desse certo.
Perguntavam então a meu pai o que desejaria para o jantar, e eu pedia em
seu nome um lauto repasto com seus pratos preferidos — lombo de boi
assado, pastinaca saltada na manteiga e hadoque aferventado sempre entre
eles. Como disse, era antes Akira do que eu próprio que tendia a ser tanto
mais insistente nessas opulências, e era ele que acrescentava muitos dos
outros detalhes miúdos, porém importantes: o quarto de meu pai tinha uma
bela vista do rio por sobre os telhados; a cama era uma que os seus captores
haviam roubado para ele do Hotel Palace, e portanto o supra-sumo do
conforto. Passado algum tempo, Akira e eu nos tornávamos os detetives —
embora às vezes representássemos a nós mesmos —, até que no fim, após
as perseguições, o corpo-a-corpo das lutas e os tiroteios pelas ruelas
labirínticas dos bairros chineses, quaisquer que fossem as nossas variações
e elaborações, as narrativas concluíam sempre com uma magnificente
cerimônia realizada no Parque Jessfield, uma cerimônia que nos via, um
após o outro, surgir num palanque especialmente erguido — minha mãe,
meu pai, Akira, o inspetor Kung e eu — para saudar as vastas multidões em
júbilo. Era esse, como disse, o nosso enredo básico, e suponho, aliás, ter
sido mais ou menos o mesmo que encenei tantas e tantas vezes durante
aqueles primeiros dias garoentos na Inglaterra, quando preenchia minhas
horas vagas errando por entre as samambaias perto do chalé de minha tia,
balbuciando as falas de Akira a meia voz.
Não foi talvez senão após um mês do sumiço de meu pai que eu
finalmente criei coragem para perguntar a Akira o que acontecera com a
garrafa de Ling Tien. Fazíamos uma pausa em nossa brincadeira, sentados
juntos à sombra do bordo no cimo de nossa corcova, bebendo a água gelada
que Mei Li nos trouxera em duas tigelas de chá. Para alívio meu, Akira não
revelou mais nenhum sinal de rancor.
"Etsuko leva garrafa de volta", ele disse.
De início sua irmã fora muito prestativa. Mas agora, sempre que
quisesse forçar Akira a fazer algo, ameaçava revelar o seu segredo aos pais.
Porém Akira não se perturbava em excesso com esse estratagema.
"Ela vai para quarto também. Assim ela tão má como eu. Ela não
conta."
"Então não houve nenhum problema?"
"Nenhum problema, meu chapa."
"Então não vai precisar ir morar no Japão?"
"Sem Japão." Virou-se para mim e sorriu. "Fico Xangai para sempre."
Então olhou-me solenemente e perguntou: "Se pai não encontrado. Você
tem que ir Inglaterra?".
Essa surpreendente idéia por alguma razão nunca me ocorrera antes.
Pensei a respeito e disse:
"Não. Mesmo se meu pai não for encontrado, viverei aqui para sempre.
Minha mãe não vai querer nunca voltar para a Inglaterra. Além disso, Mei
Li não ia querer ir. Ela é chinesa".
Por um momento, Akira continuou a pensar, fitando as pedras de gelo a
boiar em sua tigela. Então ergueu a vista para mim e abriu um sorriso.
"Meu chapa!", ele disse. "Nós vivemos aqui juntos, sempre!"
"Isso mesmo", eu disse. "Viveremos em Xangai para sempre."
"Meu chapa! Sempre!"
Agora é tarde — transcorreu uma boa hora desde que pus no papel essa
última sentença —, e no entanto aqui estou, ainda à minha escrivaninha.
Suponho que tenha ficado repassando essas reminiscências, algumas das
quais não trazia à tona havia muitos anos. Mas estive também pensando no
futuro, no dia em que finalmente voltarei a Xangai; em todas as coisas que
Akira e eu faremos juntos. Claro, a cidade terá sofrido várias mudanças.
Mas sei que não haverá nada de que Akira gostará mais do que me levar
para passear, exibindo todo o seu grande conhecimento dos recessos mais
íntimos da cidade. Ele saberá os lugares perfeitos para comer, para beber,
para dar uma volta; os melhores estabelecimentos aonde poderemos ir
depois de um dia duro, para sentar e falar até tarde da noite, trocando
histórias sobre tudo quanto aconteceu conosco desde nosso último encontro.
Mas agora tenho de dormir um pouco. Há muito trabalho a fazer de
manhã, e tenho de recuperar o tempo perdido esta tarde, rodando por
Londres com Sarah no andar de cima daquele ônibus.
PARTE TRÊS
Ontem, na hora em que a jovem Jennifer voltou das compras com a srta.
Givens, a luz em meu gabinete já estava baça. Essa casa alta e estreita,
comprada com minha herança recebida após a morte de minha tia, domina
uma praça que, embora moderadamente prestigiosa, apanha menos sol que
qualquer de suas vizinhas. Observei-a da janela do gabinete, na praça lá
embaixo, indo e vindo do táxi, enfileirando as sacolas contra a balaustrada,
enquanto a srta. Givens buscava em sua bolsa a quantia pela corrida.
Quando finalmente elas entraram, pude ouvi-las discutindo, e embora eu
tenha gritado uma saudação do patamar da escada, decidi não descer. Sua
discussão parecia trivial — algo sobre o que tinham e o que não tinham
comprado —, mas naquele momento eu ainda estava agitado pela carta
recebida de manhã — e pelas conclusões a que ela me levara — e não
queria ver interrompido meu humor triunfante.
Quando por fim desci, havia muito elas tinham cessado a discussão, e
encontrei Jennifer perambulando pela sala de estar com uma venda nos
olhos e as mãos estendidas a sua frente.
"Olá, Jenny", eu disse, como se não notasse nela nada de incomum.
"Comprou tudo de que precisava para o próximo trimestre?"
Ela se aproximava perigosamente da estante de vidro, mas resisti à
tentação de gritar. Ela parou no momento exato, baixou as mãos e soltou
uma risadinha.
"Oh, tio Christopher! Por que não me avisou?"
"Avisar? Sobre o quê?"
"Eu fiquei cega! Não percebeu? Estou cega! Olhe!"
"Ah, é. Está mesmo."
Deixei-a tateando pelos móveis e passei à cozinha, onde a srta. Givens
desempacotava uma sacola sobre a mesa. Ela me cumprimentou
educadamente, mas fez questão de que eu notasse seu olhar na direção dos
restos do meu almoço, abandonados na ponta da mesa. Desde a saída de
Polly, nossa criada, na semana anterior, a srta. Givens desprezou toda e
qualquer sugestão no sentido de que ela devesse, mesmo temporariamente,
tomar a cargo tais tarefas.
"Senhorita Givens", disse a ela, "tenho de lhe falar." Olhando então
sobre o ombro, baixei minha voz: "E algo que toca de perto a Jennifer".
"Claro, senhor Banks."
"Aliás, senhorita Givens, não sei se seria melhor passarmos ao jardim-
de-inverno. Como disse, o assunto é de alguma importância."
Mas bem nesse instante um ruído de algo se quebrando veio da sala de
estar. A srta. Givens, passando por mim às pressas, gritou da soleira:
"Jennifer, pare com isso! Eu disse que isso ia acabar acontecendo!".
"Mas eu estou cega", foi a resposta. "Não é culpa minha."
A srta. Givens, lembrando-se de que eu me dirigia a ela, pareceu
apanhada entre dois fogos. No fim, voltou e disse placidamente: "Desculpe,
senhor Banks. O senhor estava dizendo?".
"Na verdade, senhorita Givens, acho que seremos capazes de falar com
mais liberdade esta noite, depois que Jennifer for dormir."
"Pois não. Virei encontrá-lo."
Se a srta. Givens tinha qualquer pressentimento do que eu desejava
discutir, não o demonstrou em absoluto naquela hora. Deu-me um de seus
sorrisos opacos, antes de seguir com seus encargos na sala de estar.
Já se vão quase três anos desde a primeira vez em que ouvi falar de
Jennifer. Fora convidado para um jantar pelo meu antigo colega de escola,
Osbourne, a quem não via fazia algum tempo. Naqueles dias ele ainda
morava na Gloucester Road, e conheci pela primeira vez naquela noite a
jovem que, de lá para cá, se tornou sua esposa. Entre outros convidados
naquela noite estava Lady Beaton, a viúva do conhecido filantropo. Talvez
porque os convidados me fossem todos estranhos — eles passaram boa
parte da noite contando piadas sobre pessoas de quem eu nada sabia —, dei
comigo a conversar um bocado com Lady Beaton, tanto é que temi por
vezes estar me tornando um fardo para ela. De todo modo, foi logo após a
sopa ter sido servida que ela começou a contar-me sobre o triste caso com
que se deparara recentemente em sua condição de tesoureira de uma
sociedade beneficente ligada ao bem-estar de órfãos. Um casal morrera
afogado num acidente marítimo na Cornualha dois anos antes, e a filha
única deles, então uma menina de dez anos, vivia por ora no Canadá com a
avó. Essa velha senhora estava evidentemente com a saúde debilitada,
raramente saía ou recebia visitas.
"Quando estive em Toronto no mês passado", contou-me Lady Beaton,
"decidi lhes fazer eu mesma uma visita. A pobrezinha estava que era uma
tristeza, ela sente tanta falta da Inglaterra. E quanto à velha senhora, mal
consegue cuidar de si própria, que dirá de uma garota."
"Sua organização será capaz de ajudá-la?"
"Farei o que puder por ela. Mas temos tantos casos, sabe. E para falar a
verdade, ela não é uma prioridade. Afinal, tem um teto sobre a cabeça e
seus pais a deixaram razoavelmente bem provida. O grande segredo desse
tipo de trabalho é não levar muito para o lado pessoal. Mas após ter
encontrado a pobrezinha, não há como não se envolver. Que espírito o dela,
bastante incomum, ainda que estivesse claramente tão infeliz."
E possível que ela tenha me contado algumas outras coisas mais sobre
Jennifer enquanto continuávamos a refeição. Lembro de ouvir
educadamente, mas pouco dizer. Só muito mais tarde, lá fora no vestíbulo, à
medida que os convidados partiam e Osbourne nos rogava a todos que
ficássemos mais um pouco, que tomei Lady Beaton de parte.
"Espero que não ache isso uma inconveniência", eu disse. "Mas essa
garota de quem me falava antes. Essa Jennifer. Gostaria de fazer algo para
ajudá-la. Aliás, Lady Beaton, estaria até disposto a abrigá-la em casa."
Talvez não devesse levar a mal que sua primeira reação foi recuar com
um olhar de suspeita. Pelo menos assim me pareceu. Por fim ela disse:
"É muita bondade de sua parte, senhor Banks. Se me permite, entrarei
em contato com o senhor sobre o assunto".
"Eu falo sério, Lady Beaton. Recentemente entrei na posse de uma
herança, vou ter assim todas as condições de lhe prover o sustento."
"Tenho certeza de que sim, senhor Banks. Bom, voltaremos a falar a
respeito." Com isso, ela virou-se para alguns outros convidados para trocar
espalhafatosas despedidas.
Mas Lady Beaton acabou realmente entrando em contato comigo menos
de uma semana depois. É possível que estivesse averiguando meu caráter;
talvez fosse simplesmente porque tivera tempo de pensar nas coisas com
mais vagar; de todo modo, sua atitude mudou bastante. No almoço no Café
Royal, e durante nossos encontros ulteriores, ela não podia ser mais
calorosa comigo, e Jennifer chegou como combinado a minha casa apenas
quatro meses depois do jantar no apartamento de Osbourne.
Viera acompanhada por uma babá canadense chamada srta. Hunter, que
partiu de volta uma semana mais tarde, beijando alegremente a menina na
bochecha e lembrando-lhe que escrevesse para sua avó. Jennifer ponderou
com cuidado a escolha de três quartos que lhe ofereci, e decidiu-se pelo
menor, porque, disse ela, a pequena prateleira que corria ao longo de uma
das paredes seria perfeita para sua "coleção". Esta, logo descobri,
compreendia algumas conchas do mar cuidadosamente selecionadas,
castanhas, folhas secas, seixos e mais alguns desses itens que ela reunira ao
longo dos anos. Cuidadosamente, posicionou os objetos ao longo da
prateleira e chamou-me um dia para inspecionar.
"Dei nome a cada um", explicou-me. "Sei que é uma bobagem, mas eu
gosto tanto deles. Um dia, tio Christopher, quando não estiver tão ocupada,
vou contar a você a história de cada um deles. Diga por favor a Polly para
ter um cuidado a mais quando estiver limpando aqui."
Lady Beaton veio auxiliar-me nas entrevistas para uma babá, mas foi a
própria Jennifer, espiando os trâmites do quarto ao lado, que se revelou a
influência mais decisiva. Ela surgia após cada candidata haver saído para
proferir um veredicto condenatório. "Um completo horror", ela pronunciou
de uma mulher. "É óbvia conversa fiada esse negócio de a última criança
com quem trabalhou ter morrido de pneumonia. Ela a envenenou." De
outra, ela disse: "Fora de cogitação ficar com esta. Nervosa demais".
A srta. Givens pareceu-me sem graça e um tanto fria durante a
entrevista, mas por alguma razão foi ela quem imediatamente ganhou a
aprovação de Jennifer, e verdade seja dita, nos dois anos e meio desde
então, justificou amplamente a confiança de Jennifer nela depositada.
Quase todos a quem eu apresentava Jennifer comentavam como parecia
senhora de si para alguém que passara por uma tragédia como aquela. De
fato, tinha modos notavelmente seguros, e em particular uma capacidade de
não ligar para reveses que teriam levado às lágrimas outras garotas de sua
idade. Um bom exemplo disso foi sua reação a propósito de seu baú.
Durante algumas semanas depois de sua chegada, fez repetidas
referências a seu baú, que chegaria por mar do Canadá. Lembro, por
exemplo, de ela descrevendo-me certa vez com algum detalhe um carrossel
de madeira que alguém lhe fizera e que viria dentro do baú. Noutra ocasião,
quando a cumprimentei por um particular vestido que ela e a srta. Givens
haviam comprado na Selfridge's, olhara-me solenemente e dissera: "E eu
tenho uma fita de cabelo que combina perfeitamente com ele. Está vindo no
meu baú".
Contudo, recebi um dia uma carta da companhia mercante desculpando-
se pela perda do baú no mar e oferecendo ressarcimento. Quando contei
isso a Jennifer, ela primeiro simplesmente parou com o olhar fixo. Depois
deu uma ligeira risada e disse:
"Bom, nesse caso a senhorita Givens e eu vamos ter de nos entregar a
uma enorme orgia consumista".
Quando depois de dois ou três dias ainda não mostrara nenhum sinal de
mágoa pela perda, senti-me inclinado a ter uma conversa com ela, e certa
manhã depois do café, ao avistá-la zanzando pelo jardim, saí para me juntar
a seu lado.
Era uma manhã fresca, ensolarada. Meu jardim não é grande, mesmo
para os padrões da cidade — um retângulo verde cuja vista dá para qualquer
um de nossos vizinhos —, mas é bem cuidado e tem, a despeito de tudo,
uma agradável sensação de santuário. Quando desci para o gramado,
Jennifer estava vagando pelo jardim com um cavalo de brinquedo na mão,
perdida em sonhos a passear com ele pelo topo de sebes e arbustos. Lembro
de ter ficado bastante preocupado de que o brinquedo se estragasse pela
ação do orvalho e estava prestes a lhe fazer notar isso. Mas no fim,
aproximei-me e disse simplesmente:
"Foi um azar dos diabos com suas coisas. Você assimilou incrivelmente
bem, mas deve ter sido um choque e tanto".
"Oh…" E continuou a mover seu cavalo despreocupada. "Que foi uma
chateação, lá isso foi. Mas vou acabar podendo comprar mais coisas com o
dinheiro da indenização. A senhorita Givens disse que podemos sair para as
compras terça-feira."
"Mesmo assim. Olhe, eu acho você valente como o quê. Mas não há
necessidade, sabe, de bancar a durona, se é que me entende. Se quiser
baixar um pouquinho a guarda, baixe. Não vou contar para ninguém, nem,
tenho certeza, a senhorita Givens."
"Tudo bem. Não estou triste. Afinal de contas, são só coisas. Quando se
perdeu a mãe e o pai, não se pode dar muita importância para coisas,
pode?" Dito isso, ela deu sua ligeira risada.
Esse é um dos poucos exemplos que consigo recordar agora no qual ela
mencionou seus pais. Eu também ri, e dizendo: "Acho que não", comecei a
andar de volta para a casa. Mas então tornei a virar-me para ela e disse:
"Sabe, Jenny, não tenho tanta certeza. Você pode dizer uma coisa dessas
para um monte de pessoas e elas vão acreditar em você. Mas cá entre nós,
eu sei que não é verdade. Quando vim de Xangai, as coisas que vieram no
meu baú, aquelas coisas, elas eram importantes para mim. E ainda
continuam".
"Você pode mostrá-las para mim?"
"Mostrá-las para você? Bom, a maioria delas não significaria nada para
você."
"Mas eu adoro coisas chinesas. Gostaria de vê-las."
"A maioria não é chinesa propriamente dita", eu disse. "Bom, o que
estou tentando dizer é que para mim, meu baú era especial. Se ele tivesse se
perdido, eu ficaria chateado."
Ela encolheu os ombros e ergueu o cavalo até a face. "Eu fiquei
chateada. Mas não estou mais. É preciso olhar para o futuro."
"É. Quem quer que tenha dito isso a você tem bastante razão, num certo
sentido. Tudo bem, como você quiser. Esqueça seu baú por enquanto. Mas
lembre-se…" Perdi o fio da meada, sem saber o que pretendia dizer.
"O quê?"
"Oh, nada. Apenas se lembre, se houver algo que queira me contar, ou
algo que esteja incomodando você, estou sempre aqui."
"Tudo bem", ela disse radiante.
Ao subir a escada, voltando para casa, olhei de relance para trás e vi que
ela retomara sua perambulação pelo jardim, rompendo o ar com seu cavalo
em arcos sonhadores.
Não tornaria a ver Sarah antes de ela embarcar. Se tinha todo o direito
de censurar-me por minha procrastinação ao longo dos anos, quanto mais
merecedor de seu desapontamento seria eu caso deixasse agora de agir?
Pois é notório, qualquer que tenha sido o progresso realizado por Sir Cecil
em Xangai durante os meses decorridos, não há solução alguma à vista. As
tensões continuam a avultar mundo afora; pessoas cultas comparam nossa
civilização a um monte de feno no qual se atiram fósforos acesos. Enquanto
isso, cá estou, ainda definhando em Londres. Mas com a chegada da carta
de ontem, pode-se dizer que as últimas peças do quebra-cabeça juntaram-se.
Decerto chegou finalmente a hora de eu próprio ir para lá, para Xangai, de
ir para lá e — depois de todos esses anos — "matar a serpente", como disse
aquele honrado inspetor de West Country.
Mas isso terá o seu preço. Hoje de manhã, tal como ontem, Jennifer saiu
para fazer compras — em busca dos últimos itens que ela sustenta serem
imprescindíveis para o novo período letivo. Ao sair, pareceu empolgada e
feliz; nada sabe ainda de meus planos, nem das coisas que eu e a srta.
Givens discutimos na noite passada.
Chamei a srta. Givens à sala de estar e tive de convidá-la a sentar-se três
vezes antes que o fizesse. Talvez tivesse uma vaga idéia do que eu desejava
dizer, e sentiu que sentar comigo redundaria em alguma espécie de conluio.
Expus-lhe a situação o melhor que pude; tentei lhe fazer compreender a
vasta importância do caso; que era um daqueles, aliás, com que estivera
envolvido havia muitos e muitos anos. Ela ouviu impassivelmente, e
quando me interrompi, apenas perguntou: quanto tempo eu ficaria fora?
Creio que então falei por algum tempo, tentando lhe explicar por que era
impossível estabelecer um espaço de tempo inequívoco em um caso dessa
espécie. Tenho a impressão de que foi ela quem me interrompeu afinal para
indagar de algo, e depois disso passamos vários minutos discorrendo sobre
as várias implicações de minha ausência. Foi somente após discutirmos
esses assuntos à exaustão, e depois de ela levantarse para sair, que lhe disse:
"Senhorita Givens, tenho plena consciência de que, a curto prazo, por
mais que a senhorita se esforce, minha ausência trará dificuldades para
Jennifer. Mas me pergunto se, a longo prazo, a senhorita considerou ser
quase certamente em favor dos nossos melhores interesses, meus e de
Jennifer, que eu siga o curso que acabei de lhe esboçar. Afinal de contas,
como Jennifer será um dia capaz de amar e respeitar um tutor de quem ela
saberá ter virado as costas a sua mais solene tarefa quando o chamado
finalmente veio? Sejam quais forem os desejos dela agora, terá somente
desprezo por mim quando ficar mais velha. E de que isso valeria para nós
dois?".
A srta. Givens olhou-me fixamente, então disse: "Parece ter razão,
senhor Banks". E acrescentou: "Mas ela sentirá saudade, senhor Banks,
apesar de tudo".
"Sim. Sim, também diria que sim. Mas, senhorita Givens, não
compreende?" Talvez eu tivesse alterado a voz nessa altura. "Não
compreende como são urgentes as coisas agora? O crescente tumulto por
todo o mundo? Eu tenho de ir!"
"Claro, senhor Banks."
"Desculpe. Peço-lhe desculpas. Estou um tanto agitado esta noite. Foi
um dia daqueles."
"Quer que eu conte a ela?", perguntou a srta. Givens.
Pensei a respeito, então abanei a cabeça. "Não, eu falo com ela. Falo
com ela quando for a hora. Agradeceria se não lhe dissesse nada até termos
uma conversa."
Propusera-me ontem à noite falar com Jennifer ao longo do dia de hoje.
Mas ao pensar melhor, senti ser talvez prematuro fazê-lo; além do que, isso
talvez turve sem necessidade alguma sua atual disposição de ânimo, tão
expansiva, no tocante ao próximo período letivo. Será melhor, feitas as
contas, deixar por ora o assunto de lado, e serei capaz de ir vê-la na escola
uma vez que tenha concluído os meus preparativos. Jennifer é uma criança
de notável espírito, e não há razão para eu supor que ela se sentirá arrasada
só pelo fato de minha partida.
Não consigo deixar de recordar, porém, aquele dia de inverno dois anos
atrás, quando a visitei pela primeira vez em St. Margaret. Eu realizava uma
investigação não muito longe dali, e sendo ela ainda novata na escola,
decidi fazer uma visita para verificar se tudo corria bem.
A escola compreende um grande solar rodeado de vastas extensões de
terreno. Atrás do solar, o gramado inclina-se em declive para um lago.
Talvez em razão desse último, a cada uma das quatro ocasiões em que
visitei a escola, encontrei névoa envolvendo o local. Gansos passeiam à
solta, enquanto jardineiros taciturnos cuidam dos terrenos pantanosos. De
modo geral, é uma atmosfera bastante austera, embora as professoras, pelo
que vi, apresentem rostos mais calorosos. Nesse dia especificamente,
lembro-me de uma certa sra. Nutting, uma mulher afável na casa dos
cinqüenta, conduzindo-me pelos corredores gelados. A certa altura, estacou
junto a um nicho e, baixando a voz, disse-me:
"Consideradas as coisas, senhor Banks, ela está se adaptando tão bem
quanto se pode esperar. Afinal, sempre haverá algumas dificuldades para
ela no início, enquanto as outras garotas ainda a virem como novata. E uma
ou outra delas pode de fato ser um pouco cruel às vezes. Mas no próximo
trimestre, tudo terá passado, tenho certeza".
Jennifer aguardava por mim numa sala grande, de painéis de carvalho,
onde uma lenha ardia na lareira. A professora nos deixou, e Jennifer sorriu
um tanto tímida de onde se encontrava, de pé na frente do console da
lareira.
"Eles não mantêm as coisas aqui muito aquecidas", eu disse, esfregando
minhas mãos e dirigindo-me ao fogo.
"Oh, você devia ver o frio que faz em nosso dormitório. Pingentes de
gelo nos lençóis!" E deu uma risadinha.
Sentei-me numa cadeira perto do fogo, mas ela permaneceu de pé.
Receara que talvez se sentisse constrangida vendome nesse contexto
diferente, mas logo passou a conversar um tanto desenvolta, sobre o seu
badminton, as garotas de quem gostava, a comida, que de acordo com ela
era "ensopado, ensopado, ensopado".
"Às vezes é difícil", comentei a certa altura, "quando a pessoa é nova.
Elas não estão… formando panelinha ou coisa parecida, estão?"
"Oh, não", ela disse. "Bom, de vez em quando implicam comigo, mas
sem nenhuma maldade. São todas garotas simpáticas aqui."
Falávamos havia cerca de vinte minutos quando me pus de pé e
entreguei-lhe a caixa de papelão que trouxera em minha pasta.
"Oh, o que é isso?", ela exclamou excitada.
"Jenny, não é… não é um presente propriamente dito."
Ela captou a advertência em minha voz e olhou para a caixa em suas
mãos com súbita cautela. "Então o que é?", perguntou.
"Abra. Veja você mesma."
Observei-a remover a tampa da caixa — aproximadamente do tamanho
de uma caixa de sapatos — e olhar fixamente para dentro. Sua expressão, já
cautelosa, não se alterou em absoluto. Estendeu então uma das mãos e
tocou em algo.
"Receio", eu disse afável, "que isso seja tudo o que pude recuperar. Seu
baú, descobri, não se perdeu no mar, mas foi roubado junto com quatro
outros de um depósito de Londres. Fiz o possível, mas acho que os ladrões
simplesmente destruíram o que não puderam vender fácil. Não consegui
encontrar pistas das roupas e coisas assim. Só essas coisinhas."
Ela retirara um bracelete e o examinava atentamente, como se
verificasse estragos. Tornou a pô-lo de volta, tirou daí um par de
minúsculos sinos de prata e os examinou do mesmo modo. Tornou então a
pôr a tampa na caixa e olhou-me.
"Foi muita gentileza de sua parte, tio Christopher", disse calmamente.
"E você deve andar tão ocupado."
"Não foi incômodo algum. Só lamento não ter podido recuperar mais."
"Foi muita gentileza de sua parte."
"Bem, é melhor deixar você voltar a sua aula de geografia. Não cheguei
numa hora muito conveniente."
Ela não se mexeu, continuou lá de pé placidamente, fitando a caixa em
suas mãos. Então disse:
"Quando você está na escola, às vezes se esquece. Só às vezes. Você
conta os dias que faltam para as férias como as outras garotas, e então pensa
que vai rever sua mãe e seu pai".
Mesmo nessas circunstâncias, ainda assim foi uma surpresa ouvi-la
mencionar seus pais. Esperei que dissesse mais, mas não disse;
simplesmente me fitou como se tivesse acabado de me fazer uma pergunta.
No final, eu disse:
"É muito difícil às vezes, eu sei. É como se o mundo inteiro
desmoronasse ao seu redor. Mas vou lhe dizer uma coisa, Jenny. Você está
se saindo às maravilhas nessa tarefa de juntar outra vez os cacos. Está
mesmo. Sei que nunca vai poder ser bem a mesma coisa, mas sei que você é
capaz de seguir adiante agora e construir um futuro feliz para si própria. E
sempre estarei aqui para ajudar você, quero que saiba disso".
"Obrigada", ela disse. "E obrigada por isto aqui."
Pelo que recordo, foi assim que terminou nosso encontro naquele dia.
Saímos do relativo calor do fogo, atravessamos a sala com correntes de ar e
chegamos ao corredor, onde a observei afastar-se de volta para sua classe.
Naquela tarde de inverno dois anos atrás, não tinha idéia de que minhas
palavras para ela fossem outra coisa senão bem fundamentadas. Quando
tornar a visitá-la em St. Margaret, para lhe dizer adeus, é bem possível que
nos encontremos naquela mesma sala com correntes de ar, ao pé do mesmo
fogo. Se for assim, tanto mais difíceis serão para mim as coisas, pois há
remota possibilidade de que Jennifer não se lembre muito claramente de
nosso último encontro ali. Mas ela é uma garota inteligente, e sejam quais
forem as suas emoções imediatas, é bem possível que compreenda tudo
quanto lhe disser. Quem sabe até entenda, mais rápido que a sua babá na
noite passada, que quando for mais velha — quando esse caso tiver se
tornado uma triunfante memória — ela ficará sinceramente feliz de que eu
tenha aceitado o desafio de minhas responsabilidades.
PARTE QUATRO
Pessoas que viajam aos países árabes comentam muitas vezes a maneira
como um nativo posiciona seu rosto com desconcertante proximidade
durante a conversa. Isso, claro, é um simples costume local que por acaso
difere do nosso, e qualquer visitante de mente aberta dali a pouco não fará
caso disso. Ocorreu-me que eu devesse tentar encarar com semelhante
espírito algo que, ao longo dessas três semanas em que estou aqui em
Xangai, passou a ser uma eterna fonte de irritação: a saber, a maneira como
as pessoas aqui parecem determinadas em toda oportunidade a barrar-lhe a
visão. Mal se entra num recinto ou se salta de um carro, um sujeito ou outro
terá se postado sorridente bem na sua linha de visão, obstando o mais
elementar exame de seu entorno. Não raro, o responsável pelo incômodo é
seu próprio anfitrião ou o guia do momento; mas em havendo algum lapso
nesse sentido, nunca há escassez de circunstantes ávidos por reparar a
ausência. Até onde posso apurar, todos os grupos nacionais que aqui
compõem a comunidade — ingleses,franceses, americanos, japoneses,
russos — consentem nessa prática com igual zelo, e a inescapável
conclusão é de que este é um daqueles costumes que prosperaram
unicamente aqui no interior da Colônia Internacional de Xangai,
atravessando todas as barreiras de raça e classe.
Levei uns bons dias para atinar com essa excentricidade local e
reconhecer que isso era o que estava na raiz da desorientação que ameaçou
dominar-me por algum tempo ao chegar aqui. Agora, embora ainda dê por
mim ocasionalmente irritado a propósito, isso não é uma coisa de excessiva
preocupação. Ademais, descobri uma segunda prática, complementar, para
tornar a vida um pouco mais fácil em Xangai: parece ser bastante
admissível aqui empregar repelões surpreendentemente ríspidos para fazer
as pessoas saírem da frente. Embora eu ainda não tenha criado coragem
para tirar proveito dessa licença para mim próprio, já testemunhei em
inúmeras ocasiões senhoras requintadas em reuniões de sociedade
aplicarem os mais peremptórios empurrões sem provocar mais que um
murmúrio.
Quando em minha segunda noite aqui entrei no salão de baile na
cobertura do Hotel Palace, faltava-me ainda identificar uma e outra dessas
práticas, e em conseqüência vi muito dessa noite minada pela minha
frustração com o que tomei no instante como a natureza excessivamente
aglomerada da Colônia Internacional. Ao sair do elevador, mal vislumbrara
o suntuoso tapete que levava ao salão de baile — um renque de porteiros
chineses alinhados por toda a extensão — quando um de meus anfitriões
daquela noite, o sr. MacDonald do consulado britânico, interpôs o seu
corpanzil. Enquanto caminhávamos para a entrada, notei a maneira bastante
encantadora de cada porteiro, ao passarmos, curvar-se e, unindo-as, erguer
as suas mãos de luvas brancas. Mas mal havíamos passado o terceiro
homem — eram seis ou sete ao todo — quando mesmo essa visão foi
obstruída pelo meu outro anfitrião, um tal de sr. Grayson, representante do
Conselho Municipal de Xangai, que me tomou à parte para continuar fosse
lá o que estivesse dizendo enquanto subíamos de elevador. E nem bem
entrara na sala em que, segundo meus dois anfitriões, assistiríamos ao
"cabaré mais animado da cidade e à reunião da elite de Xangai", quando dei
por mim em meio a uma multidão errante. O teto alto acima de mim, com
seus elaborados lustres, levou-me a supor que as dimensões da sala fossem
bastante vastas, embora por algum tempo não tivesse meio de corroborá-lo.
Ao seguir os meus anfitriões pela turba, vi por toda a extensão de uma das
laterais da sala grandes janelas através das quais, naquele momento, o pôr-
dosol afluía. Vislumbrei também um palco na extremidade oposta, sobre o
qual vários músicos de smoking branco zanzavam conversando. Eles, tal
como todos os outros, pareciam estar aguardando algo — talvez
simplesmente o cair da noite. Havia uma inquietação no ar, com pessoas
empurrando e circundando umas às outras sem nenhum propósito claro.
Quase perdi de vista meus anfitriões, mas vi então MacDonald
acenando para mim, e ao final me achei sentado a uma mesinha com uma
toalha branca engomada à qual tinham avançado a custo meus
companheiros. Desse ponto de observação mais baixo pude ver que, de fato,
um bom espaço do recinto fora deixado vago — supostamente para o
cabaré — e que quase todos os presentes espremiam-se numa faixa
relativamente estreita ao longo da parte envidraçada da sala. A mesa à qual
nos sentávamos integrava uma longa fileira, embora quando tentei ver até
onde chegava a fileira, fui mais uma vez frustrado. Ninguém estava sentado
às mesas imediatamente vizinhas, provavelmente porque a multidão que se
acotovelava tornava isso impraticável. Em breve, aliás, nossa mesa
começou a parecer um barquinho acometido de todos os lados pelos
vagalhões da alta sociedade de Xangai. Minha chegada, além disso, não
passara despercebida; eu ouvia murmúrios ao meu redor a espalharem a
notícia, e cada vez mais olhares voltavam-se para nosso lado.
Apesar de tudo isso, até que as coisas ficassem um tanto insuportáveis,
recordo que tentei reatar a conversa iniciada com meus anfitriões no carro
que nos trouxera ao Hotel Palace. A certa altura, lembro de estar dizendo a
MacDonald:
"Agradeço muito sua sugestão, senhor. Mas na verdade estou satisfeito
em seguir minhas linhas de investigação sozinho. É como estou acostumado
a trabalhar".
"Como queira, meu velho", disse MacDonald. "Só achei que tivesse de
mencionar. Alguns desses sujeitos de que lhe falei, eles com certeza
conhecem esta cidade como a palma da mão. E os melhores deles não ficam
nada a dever aos da Scotland Yard. Só achei que podiam poupar ao senhor,
a todos nós, um tempo precioso."
"Mas há de lembrar o que lhe disse, senhor MacDonald. Só saí da
Inglaterra uma vez que formara uma visão clara do caso. Em outras
palavras, minha chegada aqui não é nenhum ponto de partida, mas a
culminação de vários anos de trabalho."
"Em outras palavras", Grayson interrompeu de súbito, "veio até nós
para destrinchar o caso de uma vez por todas. Que maravilha! Esplêndida
notícia!"
MacDonald lançou ao homem do Conselho Municipal um olhar de
desdém, então continuou como se este não houvesse falado.
"Não quero lançar nenhuma dúvida sobre suas capacidades, meu velho.
Seu currículo fala por si próprio. Só estava sugerindo um pouco de suporte
no sentido de pessoal. Estritamente sob o seu comando, naturalmente.
Apenas, sabe, para agilizar as coisas. Tendo acabado de chegar aqui, pode
não estar tão claro como nossa situação tornou-se urgente agora. Tudo
parece bem relaxado aqui, eu sei. Mas receio bastante que não tenhamos lá
muito tempo de sobra."
"Tenho plena noção da urgência, senhor MacDonald. Mas só posso
reafirmar, tenho toda a razão para acreditar que as coisas serão conduzidas a
uma conclusão satisfatória num período relativamente curto. Isto é,
contanto que me seja permitido proceder a minhas investigações sem
entraves."
"Esplêndida notícia!", exclamou Grayson, merecendo outro olhar frio
de MacDonald.
Por muito do tempo em que estivera em sua companhia nesse dia,
impacientara-me cada vez mais com a presunção de MacDonald de eu não
passar de um funcionário do consulado encarregado de questões de
protocolo. Não foi somente sua exagerada curiosidade a respeito de meus
planos — ou sua avidez de impingir-me "assistentes" — que o traiu; foi o ar
de refinada duplicidade aliada a seus modos lânguidos, bem-educados, que
prontamente o ressaltava como uma inteligência superior. A essa altura da
noite, devo ter ficado farto de ser indulgente com sua charada, pois lhe fiz
meu pedido como se a verdade já houvesse sido reconhecida pelos dois
havia muito.
"Já que falamos de assistência, senhor MacDonald", disselhe, "há de
fato algo que talvez possa fazer por mim, o que seria de imensa ajuda."
"É só dizer, meu velho."
"Como mencionei antes, tenho um interesse particular no que creio que
as forças policiais daqui estão chamando de assassinatos do Cobra
Amarela."
"Oh, sim?" Pude ver uma esquivança alastrar-se pelo rosto de
MacDonald. Grayson, por outro lado, pareceu não saber a que eu me
referia, e olhava de um para outro.
"De fato" — prossegui, olhando atentamente para MacDonald —, "foi
quando reuni indícios suficientes sobre esses chamados assassinatos do
Cobra Amarela que finalmente tomei a decisão de deslocar-me para cá."
"Entendo. Então está interessado na história do Cobra Amarela."
MacDonald correu seu olhar pela sala com indiferença. "História de
amargar. Mas em absoluto significativa, não creio, em termos mais
amplos."
"Pelo contrário. Acredito ser altamente relevante."
"Desculpe", Grayson logrou finalmente interromper. "Mas o que são
exatamente esses assassinatos do Cobra Amarela? Nunca ouvi falar deles."
"É como as pessoas andam chamando essas represálias comunistas",
MacDonald contou-lhe. "Comunas que matam parentes de um de seus
membros que virou informante." Então disse para mim: "Isso vem
ocorrendo de tempos em tempos. Os comunas são selvagens nesses
assuntos. Mas é um assunto entre os chineses. Chiang Kai-shek tem pleno
controle dos comunas e pretende continuar assim, com ou sem japoneses.
Tentamos ficar acima disso, sabe. Fico surpreso em estar tão interessado em
tudo isso, meu velho".
"Mas essa particular série de represálias", eu disse, "tais assassinatos do
Cobra Amarela. Já se estendem por um bom tempo. Vão e voltam pelos
últimos quatro anos. Tempo este durante o qual treze pessoas já foram
mortas até hoje."
"Sabe dos detalhes melhor que eu, meu velho. Mas do que ouvi, a razão
de as represálias serem desferidas é que os comunas não sabem quem é seu
traidor. Começam matando as pessoas erradas. Um pouco aproximada,
como vê, essa visão bolchevique da justiça. Cada vez que mudam de idéia
sobre quem possa ser esse tal de Cobra Amarela, voltam à carga e matam
outra família."
"Ajudaria imensamente as coisas, senhor MacDonald, se fôssemos
capazes de falar com tal informante. O homem a quem se referem como o
Cobra Amarela."
MacDonald encolheu os ombros. "Isso tudo é assunto dos chineses, meu
velho. Nenhum de nós nem sequer sabe quem é esse Cobra Amarela. A meu
ver, o governo chinês faria bem em anunciar sua identidade antes que mais
gente inocente seja confundida com os parentes dele. Mas sinceramente,
meu velho. É tudo assunto dos chineses. Melhor deixar como está."
"É importante entrar em contato com o informante."
"Bem, já que insiste tanto, darei uma palavrinha com algumas pessoas.
Mas não posso prometer muito. Esse sujeito parece bastante útil ao
governo. Os homens de Chiang o mantêm a sete chaves, imagino."
Eu tomara nota, a essa altura, de mais e mais pessoas comprimindo-se
de todos os lados, ávidas não somente por me ver em carne e osso, mas de
escutar algo de nossa conversa. Em tais circunstâncias, a custo podia
esperar que MacDonald falasse francamente, e decidi deixar por ora o
assunto de lado. De fato, fui tomado naquele momento por um forte
impulso de levantar-me e tomar um pouco de ar, mas antes que pudesse me
mexer, Grayson inclinou-se para a frente com um sorriso prazenteiro,
dizendo:
"Senhor Banks, reconheço que esta não seja a melhor hora. Mas só
queria trocar duas palavras. Sabe o que é, senhor, fui encarregado da ditosa
tarefa de organizar a cerimônia. Quero dizer, a cerimônia de boas-vindas".
"Senhor Grayson, não quero parecer mal-agradecido, mas como acabou
de dizer o senhor MacDonald aqui, o tempo urge. E já sinto terem me dado
as boas-vindas com hospitalidade tão pródiga…"
"Não, não, senhor", Grayson riu nervoso, "estava me referindo à
cerimônia de boas-vindas. Quero dizer, a que dará boasvindas a seus pais
depois dos anos de cativeiro."
Isso, admito, pegou-me um tanto de surpresa, e talvez por um segundo
não fiz mais que fitá-lo. Ele soltou outra risada nervosa e disse:
"Claro, é um pouco como pôr o carro na frente dos bois, reconheço.
Precisa primeiro fazer o seu trabalho. E é claro, não quero desafiar o
destino. Mesmo assim, sabe, não temos como não preparar. Assim que
anunciar a resolução do caso, todo o mundo voltará os olhos para nós, o
Conselho Municipal, para providenciar uma cerimônia à altura de tal
momento. Vão querer um evento especial, e vão querer sem demora. Mas
veja o senhor, organizar algo da escala de que estamos falando não é
assunto simples. Pois então, veja, pensei se não poderia lhe propor algumas
opções bem básicas. Minha primeira pergunta, senhor, antes de mais nada, é
se está satisfeito com o Parque Jessfield para a cerimônia. Vamos precisar,
sabe, de um senhor espaço…".
Enquanto Grayson falava, tomei nota regularmente do ruído — de
algum ponto atrás do bulício da multidão — de artilharia distante. Mas
então as palavras de Grayson foram subitamente interrompidas por um
estrondo que abalou o prédio. Ergui a vista alarmado, para ver então todos a
minha volta sorridentes, risonhos mesmo, os copos de coquetel ainda nas
mãos. Depois de um momento, pude discernir um movimento na multidão
rumo às janelas, algo como se uma partida de críquete houvesse reiniciado
lá fora. Decidi aproveitar a oportunidade para deixar a mesa, e, levantando,
juntei-me ao fluxo. Havia muita gente diante de mim para que visse algo, e
tentava insinuarme até a frente quando me dei conta de que uma senhora
grisalha junto a meu ombro falava comigo.
"Senhor Banks", dizia ela, "tem alguma idéia de como todos nós
estamos aliviados pelo senhor estar agora finalmente conosco? Claro, não
queríamos demonstrá-lo, mas estamos ficando extremamente preocupados
com… bem…" — ela gesticulou na direção dos ruídos da artilharia —
"meu marido, ele insiste que os japoneses jamais vão se atrever a atacar a
Colônia Internacional. Mas sabe como é, ele diz isso pelo menos vinte
vezes por dia, o que pouco me tranqüiliza. Vou lhe contar uma coisa, senhor
Banks, quando nos chegou a notícia que a sua chegada era iminente, essa
foi a primeira boa nova que tivemos aqui em meses. Meu marido até parou
de repetir aquele pequeno mantra dele sobre os japoneses, parou pelo
menos por alguns dias. Deus do céu!"
Outra explosão ensurdecedora sacudiu o prédio, provocando alguns
brindes irônicos. Notei então que um pouco além, na minha frente, algumas
portas-balcão haviam sido abertas, e as pessoas tinham avançado sobre uma
sacada.
"Não se preocupe, senhor Banks", disse um jovem, agarrando-me o
cotovelo. "Não há a menor chance de que isso venha para cá. Ambos os
lados estão agora extremamente cuidadosos após a Segunda-Feira
Sangrenta."
"Mas de onde está vindo isso?", perguntei-lhe.
"Oh, é o navio de guerra japonês no porto. As bombas na verdade fazem
um arco acima de nós e aterrissam do outro lado da enseada. Depois que
escurece, é uma visão e tanto. Um pouco como observar estrelas cadentes."
"E se uma bomba errar o alvo?"
Não apenas o jovem com quem conversava, mas várias outras pessoas
ao meu redor riram dessa idéia — pareceu-me que alto demais. Então disse
outra voz:
"Temos de confiar nos japoneses para que acertem. Afinal, se ficarem
desleixados, é bem provável que atirem uma atrás de suas próprias linhas".
"Senhor Banks, quer usar um pouco?"
Alguém estendia um binóculo de teatro. Quando o apanhei, foi como se
tivesse dado um sinal. A multidão cindiu-se a minha frente, e dei comigo
praticamente conduzido às portasbalcão.
Saí a uma pequena sacada. Podia sentir uma brisa morna, e o céu era de
um rosa intenso. Olhava de uma altura considerável, e o canal era visível
por sobre a fileira imediata de prédios. Para além da água havia uma massa
de barracões e entulho, da qual uma coluna de fumaça cinza erguia-se no
céu noturno.
Levei o binóculo aos olhos, mas o foco estava inteiramente errado para
mim, e não pude ver nada. Quando graduei o foco, percebi que mirava o
canal, e fiquei ligeiramente surpreso ao ver vários barcos ainda circulando
normalmente bem ao lado do combate. Avistei um barco em particular —
um navio semelhante a uma barcaça, com um remador solitário — que
estava tão abarrotado de caixotes e fardos que parecia impossível passar sob
a pouco elevada ponte do canal bem abaixo de mim. Enquanto eu
observava, o navio aproximou-se da ponte rapidamente, e tinha certeza de
que veria pelo menos um caixote ou dois cair de cima da pilha na água.
Pelos segundos seguintes, continuei a mirar o barco pelo binóculo, quase
que esquecido do combate. Notei com interesse o barqueiro, que estava
como eu profundamente absorto no destino de seu carregamento e alheio à
guerra nem a sessenta metros à sua direita. Então o barco desapareceu sob a
ponte, e quando o vi deslizar graciosamente do outro lado, os precários
fardos ainda incólumes, baixei o binóculo com um suspiro.
Reparei que uma volumosa multidão acumulara-se às minhas costas
enquanto estivera olhando para o canal. Passei o binóculo para alguém
próximo e disse para ninguém em particular: "Então essa é a guerra.
Interessantíssimo. Há muitas baixas, vocês acham?".
Isso desencadeou grande falatório. Uma voz disse: "Um monte de
mortes lá em Chapei. Mas daqui a alguns dias os japas levam a melhor, e
tudo volta à calmaria".
"Não teria tanta certeza", disse um outro. "O Kuomintang surpreendeu
todo mundo até agora, e meu palpite é que continuará a fazê-lo. Aposto que
eles ainda agüentam um bocado."
Então todos ao meu redor pareceram começar a discutir de uma vez.
Alguns dias, algumas semanas, que diferença isso faz? Os chineses teriam
de se render cedo ou tarde, então por que não o faziam agora? Ao que
muitas vozes objetaram que a conclusão estava muito longe de ser favas
contadas. As coisas mudavam dia a dia, e havia muitos fatores, cada qual
influenciando os outros.
"E além disso", alguém perguntou em voz alta, "o senhor Banks está
aqui ou não está?"
Essa pergunta, obviamente tencionada como retórica, pairou entretanto
no ar de maneira estranha, fazendo baixar um silêncio e todos os olhares
voltarem-se para mim outra vez. De fato, tive a impressão de que não só o
grupo ao redor da sacada, mas o salão de baile inteiro silenciara e esperava
minha resposta. Pareceu-me que este era um bom momento de fazer uma
proclamação — uma que talvez fosse esperada desde o momento em que eu
entrara no recinto —, e, limpando a garganta, declarei em voz alta:
"Senhoras e senhores. Bem posso ver que a situação aqui tornou-se
bastante espinhosa. E não desejo criar falsas expectativas numa hora dessas.
Mas permitam-me dizer que eu não estaria agora aqui se não fosse otimista
com relação a minhas chances de conduzir esse caso, num futuro bem
próximo, a um desenlace feliz. De fato, senhoras e senhores, diria estar
mais do que otimista. Rogo-lhes então por sua paciência nesta ou na
próxima semana. Depois disso, veremos o que nós alcançamos".
Ao proferir essas últimas palavras, a orquestra de jazz subitamente
começou a tocar no salão de baile. Não tenho idéia se isso foi uma simples
coincidência, mas em todo caso o efeito foi de dar um remate bastante
atraente a minha fala. Senti o foco da atenção deslocar-se de mim, e vi as
pessoas voltarem para dentro. Eu também voltei para dentro da sala, e
enquanto tratava de reencontrar minha mesa — por um instante perdera um
pouco a noção de espaço — notei que uma trupe de dançarinas tomara a
pista.
Havia talvez umas vinte dançarinas, muitas delas "eurasianas",
parcamente vestidas com trajes uniformes, com um motivo de pássaro.
Enquanto as dançarinas faziam as suas evoluções na pista, a sala pareceu
perder todo o interesse na batalha do lado de lá da água, embora os ruídos
ainda fossem claramente audíveis por trás da música animada. Era como se,
para essas pessoas, um divertimento houvesse terminado e outro,
começado. Senti, não pela primeira vez desde que chegara a Xangai, uma
onda de repulsa por elas. Não era simplesmente o fato de elas, de maneira
tão lúgubre, não terem ao longo dos anos se posto à altura do desafio do
caso, de terem permitido que as coisas chegassem aos espantosos níveis
atuais, com todas as suas enormes ramificações. O que me deixou
silenciosamente escandalizado, desde o momento em que cheguei, foi a
recusa de todos aqui em reconhecer a sua extrema culpabilidade. Durante
essa quinzena em que estive aqui, no meu convívio com esses cidadãos, de
origem alta ou baixa, não presenciei — nem uma única vez — nada que se
pareça à vergonha sincera. Aqui, em outras palavras, no âmago do turbilhão
que ameaça tragar o conjunto do mundo civilizado, existe uma lamentável
conspiração da recusa; uma recusa da responsabilidade, que desistiu de si
mesma e desencantou-se, manifestando-se no tipo de atitude defensiva com
que deparei tantas vezes. E lá estava ela então, a chamada elite de Xangai,
tratando com tanto desprezo o sofrimento de seus vizinhos chineses do
outro lado do canal.
Deslocava-me ao longo da fileira de costas que se havia formado para
assistir ao cabaré, tentando conter minha repugnância, quando percebi que
alguém me puxava pelo braço, e vireime para encontrar Sarah.
"Christopher", ela disse. "Tentei a noite inteira chegar até você. Não tem
tempo de dizer alô a seus velhos amigos do lar? Veja, Cecil está ali,
acenando."
Levei alguns instantes para avistar Cecil por entre a multidão; estava
sentado sozinho a uma mesa num canto extremo da sala, e de fato me
acenava. Acenei de volta, então olhei para Sarah.
Era nosso primeiro encontro desde a minha chegada. Minha impressão
sobre ela naquela noite era que parecia muito bem; o sol de Xangai
eliminara beneficamente sua costumeira palidez. Além disso, enquanto
trocávamos algumas palavras amistosas, seus modos permaneceram lépidos
e seguros. É só agora, depois dos sucessos da noite passada, que dou
comigo a pensar de novo naquele primeiro encontro, numa tentativa de
descobrir como pude ser iludido. Talvez seja somente a retrospectiva que
me faça recordar algo deliberado demais em seu sorriso, em especial
sempre que mencionava Sir Cecil. E embora tenhamos dito pouco mais que
amenidades, após a noite passada, uma frase que ela proferiu naquela noite
— que mesmo então me intrigou bastante — continuou a ecoar em minha
cabeça o dia inteiro.
Perguntara se ela e Sir Cecil haviam aproveitado o ano que passaram
ali. Assegurara-me ela que, embora Sir Cecil não houvesse conseguido o
avanço que esperara, fizera entretanto muito para merecer a gratidão da
comunidade. Foi então que perguntei, sem nenhuma segunda intenção:
"Então vocês não têm planos imediatos para sair de Xangai?".
Ao que Sarah riu, lançou outro olhar na direção do canto de Sir Cecil e
disse: "Não, por enquanto estamos bem acomodados. O Metropole é
bastante confortável. Não espero irmos a lugar algum tão cedo. A menos
que alguém venha em socorro, eu digo".
Ela disse tudo isso — inclusive esse último comentário sobre ser
socorrida — como quem conta uma piada, e embora eu não soubesse
exatamente a que ela se referia, respondi com uma ligeira risada para
acompanhar a sua. Falamos então, até onde recordo, sobre amigos em
comum na Inglaterra, até que a chegada de Grayson pôs termo definitivo a
uma conversa aparentemente sem complicações.
É só agora, como disse, depois da noite passada, que dou comigo a
repassar meus vários encontros com Sarah nessas três semanas, e é essa
única frase, acrescentada como uma espécie de ilação íntima a sua jovial
resposta, que continua a ecoar-me na cabeça.
13.
Pelos minutos seguintes, acompanhei o sr. Lin por todo o prédio. Apesar
da idade, o meu anfitrião revelava poucos sinais de debilidade; carregava o
seu corpanzil com firmeza, embora lentamente, quase nunca parando para
tomar fôlego. Segui para cima e para baixo sua bata escura e seus chinelos
rumorejantes por escadas estreitas e ao. longo de corredores iluminados
muitas vezes por uma única lanterna. Guiou-me ele por áreas vazias e
cobertas de teias, junto a inúmeros caixotes de madeira com vinho de arroz
metodicamente empilhados. Mais além, a casa tornou-se suntuosa; havia
belos biombos e adereços de parede, peças de porcelana exibidas em
nichos. A intervalos, ele abria uma porta, então se afastava para me ceder o
passo. Entrei em vários tipos de cômodos, mas — por algum tempo, pelo
menos — não vi nada que me fosse familiar.
Finalmente atravessei uma porta e senti algo me puxando pela memória.
Levei mais alguns segundos, mas então reconheci com uma onda de
emoção nossa antiga "biblioteca". Ela fora bastante alterada: o pé-direito
estava muito mais alto, uma parede fora derrubada para dar ao espaço um
formato em L; e onde antes houvera portas duplas, que davam para a sala de
jantar, havia agora uma divisória junto à qual estavam empilhados mais
caixotes de vinho de arroz. Mas era indubitavelmente o mesmo cômodo
onde, em criança, eu fizera muita lição de casa.
Avancei pelo recinto, olhando tudo ao meu redor. Após uns instantes
tomei consciência de que o sr. Lin me observava e lhe dei um acanhado
sorriso. Ao que ele disse:
"Sem dúvida muito foi alterado. Por favor, aceite minhas desculpas.
Mas há de entender, no curso de dezoito anos, que é o tempo pelo qual
estamos morando aqui, algumas alterações foram inevitáveis para atender
às necessidades de minha família e de meu negócio. E imagino que os
ocupantes antes de nós, e aqueles antes deles, realizaram amplas alterações.
Uma infelicidade, meu bom senhor, mas suponho que poucos poderiam ter
previsto que, um dia, o senhor e os seus pais…".
E interrompeu-se, talvez porque pensou que eu não estivesse ouvindo,
talvez porque, a exemplo da maioria dos chineses, não se sentia à vontade
com desculpas. Continuei a fitar ao meu redor por mais uns instantes,
depois lhe perguntei:
"Então esta casa, ela não é mais da propriedade da Morganbrook and
Byatt?".
Ele pareceu surpreso, então riu. "Senhor, eu sou o proprietário desta
casa."
Vi que o insultara e disse, ansioso: "Sim, claro. Eu lhe peço desculpas".
"Não se preocupe, meu bom senhor" — seu cordial sorriso logo voltara
—, "não foi uma pergunta sem propósito. Afinal, quando o senhor e seus
pais viviam aqui, essa era sem dúvida a situação. Mas creio que deixou de
sê-lo há tempos. Meu bom senhor, se considerasse quanto Xangai mudou
nos últimos anos. Tudo, tudo mudou e tornou a mudar. Tudo isto" — ele
suspirou e gesticulou a nossa volta — "em comparação são mudanças
pequenas. Há partes desta cidade que antes eu conhecia tão bem, lugares
pelos quais caminhava todos os dias, agora vou lá e não sei que direção
tomar. Mudança, mudança o tempo todo. E agora os japoneses querem pôr
em prática a mudança deles aqui. As mais terríveis mudanças ainda podem
estar por vir. Mas não se deve ser pessimista."
Por um momento, nós dois ficamos ali em silêncio, continuando a olhar
ao redor. Então ele disse calmamente:
"Minha família, claro, ficará triste em deixar esta casa. Meu pai morreu
aqui. Dois netos nasceram aqui. Mas quando minha mulher falou antes — e
deve desculpar a fraqueza dela, senhor Banks —, falou por todos nós.
Consideraremos uma grande honra e um privilégio restituir esta casa ao
senhor e a seus pais. Então, meu bom senhor, passemos adiante, sim?".
Creio que não foi muito depois disso que subimos uma escadaria
atapetada — uma que por certo não existia em minha época — e entramos
num quarto de dormir decorado com luxo. Havia ricos tecidos, e lanternas
vertiam um fulgor avermelhado.
"O quarto de minha mulher", disse o sr. Lin.
Podia ver que era um refúgio, um boudoir aconchegante onde a senhora
provavelmente passava a maior parte de seu dia. Sob a luz tépida da
lanterna, pude divisar uma mesa de jogo em que uma quantidade de
variadas espécies de jogos parecia estar em curso; uma escrivaninha com
uma coluna de minúsculas gavetas, ornadas com borlas douradas, que lhe
descia pelo lado; uma cama de baldaquino com camadas de drapeado à
maneira de véus. Noutra parte, meu olhar captou vários ornamentos
delicados e artigos de diversão cuja exata natureza não pude adivinhar.
"Madame deve gostar deste quarto", disse enfim. "Posso ver o mundo
dela aqui."
"Ele é condizente com ela. Mas o senhor não deve se preocupar com
ela, meu bom senhor. Encontraremos outro quarto que ela venha a amar por
igual."
Ele falara para tranqüilizar-me, mas algo de frágil insinuara-se em sua
voz. Então avançou pelo quarto, na direção de uma penteadeira, e ali ficou
absorto em algum pequeno objeto — talvez um broche. Depois de vários
instantes, disse brandamente:
"Ela era muito bonita quando jovem. A mais bela flor, meu bom senhor.
Nem pode imaginar. Nesse sentido, sou como um ocidental em meu íntimo.
Nunca quis outra esposa senão ela. Uma mulher, mais que o bastante. Claro,
tive outras. Sou um chinês, afinal de contas, ainda que tenha sempre vivido
aqui na cidade estrangeira. Senti-me obrigado a ter outras esposas. Mas ela
é a única com quem sinceramente me importava. As outras todas já se
foram agora, e sobrou ela. Sinto falta das outras, mas estou feliz, no íntimo
estou feliz que em nossa idade avançada seja novamente só nós dois". Por
alguns segundos, ele pareceu esquecer minha presença. Então virou-se para
mim e disse: "Este quarto. Fico pensando como o senhor o usará. Perdoe-
me, isso é muito impertinente. Mas acha que este quarto será para sua
própria boa esposa? Claro, tenho ciência de que para muitos estrangeiros,
embora abastados, marido e mulher dividem o mesmo quarto. Fico
pensando então se esse quarto irá para o senhor mesmo e a sua boa esposa.
Minha curiosidade, eu sei, é grande impertinência. Mas este quarto é muito
especial para mim. É minha esperança que o senhor faça dele uso especial".
"Sim…" Tornei a olhar ao redor com cuidado. Então eu disse: "Talvez
não minha esposa. Minha esposa, sabe, para ser sincero…". Notei que nessa
conversa sobre uma esposa vierame a imagem de Sarah. Encobrindo meu
embaraço, emendei rapidamente: "O que quero dizer, senhor, é que ainda
não sou casado. Não tenho esposa. Mas acho que este quarto convirá a
minha mãe".
"Ah, sim. Depois de todas as inconveniências pelas quais teve de passar,
este quarto será ideal para ela. E seu pai? Pergunto-me se o dividirá com ela
à maneira ocidental. Perdoe-me, por favor, minha grande intrusão."
"Intrusão nenhuma, senhor Lin. Afinal, ao me permitir que entrasse
aqui, foi o senhor que me concedeu grande intimidade. Tem todo o direito
de fazer essas perguntas. É só que tudo isto é um tanto repentino, e ainda
não tive tempo de dar remate a meus planos…"
Calei-me e continuei a contemplar o quarto. Então após um momento,
disse-lhe: "Senhor Lin, receio que isto o aborreça. Mas o senhor tem sido
mais aberto e generoso do que eu jamais poderia ter esperado, e sinto que
merece a minha sinceridade. O senhor mesmo acabou de dizer como é
inevitável que uma casa passe por alterações sempre que mudam seus
ocupantes. Bem, senhor, caros que lhe sejam esses aposentos, receio que,
uma vez morando aqui de novo, minha família efetuará nossas próprias
alterações. Este quarto, também, receio, ficará irreconhecível".
O sr. Lin fechou os olhos, e houve um carregado silêncio. Perguntei-me
se ele ficaria zangado, e por um segundo lamentei ter sido tão sincero com
ele. Mas ao abrir outra vez os olhos, ele me olhava afavelmente.
"Claro", disse ele, "nada mais natural. O senhor irá querer restaurar esta
casa como era quando o senhor era pequeno. Nada mais natural. Meu bom
senhor, compreendo perfeitamente."
Pensei a respeito por um momento, então disse: "Bem, na verdade,
senhor Lin, é provável que não a reconverteríamos exatamente ao que era
então. Primeiro, como lembro, porque havia várias coisas com que
estávamos descontentes. Minha mãe, por exemplo, nunca teve um escritório
só dela. Com todo o trabalho de campanha, um pequeno escritório no
quarto nunca foi adequado. Meu pai também queria uma pequena oficina
para seus trabalhos de madeira. O que quero dizer é que não há necessidade
de voltar os ponteiros do relógio só por fazê-lo".
"Muito sensato, senhor Banks. E embora ainda não tenha uma esposa,
talvez em breve chegue o dia em que terá necessidade de uma mulher e
filhos em quem pensar."
"Decerto é possível. Infelizmente, bem no momento, essa questão de
uma esposa, no meu caso, não obstante os costumes ocidentais…" Fiquei
muito confuso e parei. Mas o velho homem assentiu sabiamente com a
cabeça, dizendo:
"Claro, em questões do coração, as coisas jamais são simples". Então
perguntou: "Vai querer ter filhos, bom senhor? Pergunto-me quantos terá".
"A propósito, já tenho um. Uma garota. Apesar de na realidade não ser
minha filha como tal. Era uma órfã e agora está sob meus cuidados. E a
considero como uma filha."
Fazia algum tempo que eu não pensava em Jennifer, e mencioná-la
assim de maneira tão inesperada despertou um poderoso sentimento dentro
de mim. Imagens dela passaram-me pela cabeça; pensei nela na escola e
perguntei-me como andaria, e o que fizera naquele dia.
Talvez tenha me virado para dissimular minhas emoções. De todo
modo, quando tornei a olhar para ele, o sr. Lin assentia de novo com a
cabeça.
"Nós, chineses, estamos bem acostumados a tais arranjos", disse. "O
sangue é importante. Mas assim também o lar. Meu pai acolheu uma garota
órfã e ela cresceu conosco como se fosse a minha irmã. Como tal a
considerava, embora sempre tenha sabido de suas origens. Quando ela
morreu, na epidemia de cólera quando eu ainda era jovem, senti tanto pesar
como quando minhas irmãs de sangue faleceram."
"Se me permite dizê-lo, senhor Lin, é um grande prazer conversar com
o senhor. É raro encontrar alguém tão prontamente compreensivo."
Ele fez uma pequena mesura, unindo as pontas dos dedos a sua frente.
"Quando se viveu tanto quanto eu, e pelo tumulto desses anos, conhecem-se
muitas alegrias e tristezas. Espero que sua filha adotiva seja feliz aqui.
Pergunto-me qual dos quartos dará a ela. Mas claro, perdoe-me! Como o
senhor disse, irá fazer alterações."
"Por sinal, um dos quartos que vimos antes seria ideal para Jennifer.
Tinha uma pequena prateleira de madeira que corria ao longo da parede."
"Ela gosta de tal prateleira?"
"Gosta. Para as coisas dela. E, aliás, há mais uma pessoa que
acomodarei aqui nesta casa. Suponho que oficialmente ela era uma espécie
de criada, mas em nossa casa ela foi sempre muito mais. O nome dela é Mei
Li."
"Era sua ama, bom senhor?"
Assenti com a cabeça. "Agora ela estará mais velha e tenho certeza de
que estimaria um descanso do seu trabalho. As crianças podem ser muito
cansativas. Sempre foi a minha intenção que, estando mais velha, voltasse a
viver aqui conosco."
"É muita bondade sua. Muitas vezes se ouve dizer de famílias
estrangeiras que mandam embora a ama uma vez que as crianças crescem.
Essas mulheres costumam ser vistas terminando seus dias como pedintes."
Soltei uma risada. "Acho difícil que isso jamais acontecesse com Mei
Li. Aliás, a própria idéia já é bem absurda. Em todo caso, como disse, ela
estará morando aqui conosco. Assim que minha tarefa esteja cumprida, vou
concentrar esforços para localizá-la. Não imagino que seja tão difícil."
"E diga-me, bom senhor, dará a ela um quarto nos aposentos dos criados
ou junto com a família?"
"Junto com a família, certamente. Meus pais talvez não vejam com bons
olhos. Mas agora, afinal, o chefe da casa sou eu."
O sr. Lin sorriu. "Segundo seu costume, certamente será assim. Para
nós, chineses, e felizmente para mim, aos idosos se permite que dirijam a
casa até perderem o juízo."
O velho riu consigo e voltou-se para a porta. Estava prestes a segui-lo,
mas bem nesse momento — de forma um tanto repentina e bastante vívida
— descobri outra memória vindo à tona. Nela pensei desde então, e não
tenho idéia por que tenha sido essa particular reminiscência e não qualquer
outra. Foi quando eu tinha seis ou sete anos de idade, numa ocasião em que
eu e minha mãe havíamos corrido um atrás do outro ao longo de um trecho
do gramado. Não sei exatamente onde foi; suponho agora que estivéssemos
num dos parques — talvez o Parque Jessfield —, pois sou capaz de lembrar
uma cerca de treliça ao lado de onde corríamos, coberta de trepadeiras em
flor e heras. Estava um dia quente, mas não muito ensolarado. Num
impulso, desafiara minha mãe à corrida, até algum marco a pequena
distância de nós, como forma de lhe exibir meus progressos atléticos. Dava
como absolutamente certo que seria o mais rápido, e que então ela
expressaria, tal como costumava, sua extasiada surpresa com essa última
manifestação de minha destreza já bem madura. Mas para desgosto meu, ela
tomou-me a dianteira durante todo o trajeto, rindo enquanto avançava,
embora eu corresse com todas as minhas forças. Não lembro quem de nós
"venceu" de fato, mas ainda recordo a minha fúria contra ela e a sensação
de que sofrera uma grande injustiça. Foi esse incidente que me veio à
memória aquela noite, enquanto me encontrava no aconchegante resguardo
da atmosfera do dormitório da sra. Lin. Ou antes, um fragmento dele: a
lembrança de eu me arremessando contra o vento com toda minha força; a
presença risonha da minha mãe a meu lado; o farfalhar de sua saia e minha
crescente frustração.
"Senhor", disse a meu anfitrião, "não sei se posso lhe perguntar. O
senhor disse que viveu a sua vida inteira aqui na Colônia. Pergunto-me
então se durante esse período não veio a conhecer minha mãe."
"Nunca tive a sorte de conhecê-la pessoalmente", disse o sr. Lin. "Mas é
claro, sabia dela e de sua grande campanha. Eu a admirava, como todas as
pessoas íntegras. Tenho certeza de que é uma senhora digna. E ouvi dizer
que é muito bonita."
"Suponho que seja. Nunca se pensa que a própria mãe é bonita."
"Oh, ouvi dizer que ela é a mais bela inglesa em Xangai."
"Suponho que seja. Mas, claro, agora estará mais velha."
"Certos tipos de beleza nunca murcham. Minha mulher" — e gesticulou
para o quarto —, "ela é tão bela para mim agora quanto no dia em que nos
casamos."
Quando disse isso, subitamente me senti como um intruso, e dessa vez
fui eu que fiz menção de sair.
Não lembro de muito mais coisas sobre minha visita à casa naquela
noite. Talvez tenhamos ficado mais uma hora, conversando e comendo com
a família ao redor da mesa. De todo modo, sei que me despedi da família
Lin no melhor dos termos. Foi durante o percurso de volta, porém, que
Morgan e eu nos desentendemos.
Foi provavelmente culpa minha. A essa altura eu estava cansado e com
os nervos um pouco à flor da pele. Rodávamos por uns instantes em
silêncio pela noite, e minha cabeça talvez tenha começado a voltar à imensa
tarefa que eu tinha pela frente. Pois lembro de dizer a Morgan, sem mais
nem menos:
"Escute, você está aqui já faz alguns anos. Diga-me, topou alguma vez
com um tal de inspetor Kung?".
"Inspetor Kung? Policial ou coisa do tipo?"
"Quando era criança aqui, o inspetor Kung era uma espécie de lenda
viva. Aliás, ele era o funcionário originalmente encarregado do caso dos
meus pais."
Para surpresa minha, ouvi Morgan a meu lado soltar uma gargalhada.
Então ele disse:
"Kung? O velho Kung? Sim, claro, ele era um inspetor de polícia. Bem,
então não admira que nada tenha sido desvendado na época".
Seu tom deixou-me pasmo, e disse um tanto friamente: "Naqueles dias,
o inspetor Kung era o detetive mais reverenciado de Xangai, quando não de
toda a China".
"Bem, algum nome ele ainda tem, isso eu lhe digo. Velho Kung. Que
coisa."
"Fico contente em saber pelo menos que ele está na cidade. Tem alguma
idéia de onde posso encontrá-lo?"
"O jeito mais simples é zanzar pelo bairro francês uma noite qualquer
após escurecer. Na certa topa com ele, cedo ou tarde. Em geral ele é visto
numa pilha na calçada. Ou se deixarem que entre no antro de um bar, estará
roncando num canto escuro."
"Está insinuando que o inspetor Kung virou um bêbado?"
"Bebida. Ópio. Essa coisa de sempre dos chineses. Mas ele é uma
figura. Conta histórias sobre seus dias de glória e as pessoas lhe dão
moedas."
"Acho que está pensando na pessoa errada, amigão."
"Acho que não, meu chapa. Velho Kung. Então ele foi mesmo policial.
Sempre imaginei que inventasse tudo. A maioria das suas histórias são
absurdas — isso são. O que é que há, meu chapa?"
"O problema com você, Morgan, é que não pára de confundir as coisas.
Primeiro me confunde com Bigglesworth. Agora confunde o inspetor Kung
com um pé-rapado qualquer. Os ares daqui amoleceram seus miolos, meu
chapa."
"Ei, escute aqui, trate de baixar um pouco esse tom. O que eu acabei de
lhe dizer, você vai ouvir de qualquer um a quem perguntar. E fico bastante
ofendido com seus comentários. Não tem nada de mole em meus miolos."
Talvez tenhamos voltado a termos ligeiramente mais civilizados na
altura em que ele me deixou no Cathay, mas nossa despedida foi
nitidamente fria, e não vi mais Morgan desde então. Quanto ao inspetor
Kung, tem sido minha intenção depois daquela noite procurá-lo sem
demora, mas por uma razão ou outra — talvez temesse que Morgan
estivesse dizendo a verdade — nunca fiz disso uma prioridade — pelo
menos não até ontem, quando minha busca nos arquivos da polícia tornou a
aventar o nome do inspetor da maneira mais dramática.
Esta manhã, por sinal, quando mencionei o inspetor Kung de passagem
a MacDonald, sua reação não foi diversa da de Morgan naquela noite, e
suspeito que essa tenha sido mais uma razão de minha impaciência com
MacDonald enquanto nos encarávamos em seu escritoriozinho abafado, que
dominava os terrenos do consulado. Ainda assim, com um pouco mais de
esforço, sei que poderia ter tirado disso proveito bem maior. Meu principal
erro esta manhã foi permitir que ele me instigasse a perder o controle. A
certa altura, receio, praticamente gritava com ele.
"Senhor MacDonald, simplesmente não basta deixar as coisas ao que
insiste em chamar meus 'poderes'! Não tenho tais 'poderes'! Sou um mero
mortal, e só posso atingir meus objetivos se me for dado o tipo de
assistência que me permita desenvolver meu trabalho. Não pedi muito do
senhor. Não pedi quase nada! E o que pedi, expliquei-lhe muito claramente.
Quero falar com o informante comunista. Só falar com ele, uma breve
entrevista bastará. Fiz esse pedido ao senhor nos termos mais claros. Não
consigo entender por que medidas ainda não foram tomadas. Pode me dizer
por quê, senhor? Pode me dizer? O que diabo o estará impedindo?"
"Mas escute aqui, meu velho, isso está longe de ser assunto de minha
alçada. Se quiser, ponho-o em contato com o comissário de polícia. E note
que, mesmo assim, sabe, não estou nem um pouco certo se vai chegar a
algum lugar. Não são eles que têm o Cobra Amarela…"
"Tenho plena consciência de que é o governo chinês que tem o Cobra
Amarela sob a sua custódia. É por isso que vim ter com o senhor, não com a
polícia. Estou ciente de que, em assunto dessa magnitude, a polícia é
irrelevante."
"Vou ver o que posso fazer, meu velho. Mas tem de compreender que
isso não é uma colônia britânica. Não podemos sair dando ordens aos
chineses. Mas vou falar com alguém da repartição apropriada. Não vá
esperando que as coisas aconteçam muito rápido, porém. Chiang Kai-shek
teve informantes antes, mas nunca um com conhecimento tão extenso da
rede dos comunas. Chiang perderia um bom punhado de batalhas para os
japas antes de permitir que algo aconteça a esse tal de Cobra Amarela. No
que diz respeito a Chiang, sabe, o verdadeiro inimigo não são os japas, mas
os comunas."
Dei um sonoro suspiro. "Senhor MacDonald, não me importo com
Chiang Kai-shek nem com as prioridades dele. Neste momento, tenho um
caso para resolver e gostaria que fizesse o possível para conseguir uma
entrevista com esse informante. É um pedido pessoal que estou lhe fazendo,
e se todos os meus esforços derem em nada por esse simples pedido não ter
sido atendido, não hesitarei em tornar público que foi o senhor a quem
procurei para…"
"Ora vamos, meu velho, por favor! Não há necessidade de tomar esse
tipo de atitude! Necessidade nenhuma! Somos todos amigos aqui.
Desejamos todos que tenha sucesso. Palavra, realmente desejamos. Escute
aqui, eu disse que vou fazer tudo quanto puder. Vou falar com umas
pessoas, sabe, pessoas que tratam desse serviço. Vou falar com elas, contar-
lhes como é forte seu palpite. Mas tem de compreender, isso é o máximo
que podemos fazer com os chineses." Então se debruçou e disse confiante:
"Sabe, por que não tenta os franceses? Eles têm um monte de tratos com
Chiang. Do tipo confidencial, sabe. O tipo de coisa em que não meteríamos
a mão. Para isso os franceses são uma boa pedida".
Talvez não seja de todo má a sugestão de MacDonald. Talvez eu
consiga mesmo alguma ajuda das autoridades francesas. Mas para ser
sincero, desde hoje de manhã não parei muito para pensar nessa alternativa.
Está claro para mim que MacDonald, por razões que ainda permanecem
obscuras, está tergiversando e que, uma vez haja reconhecido a tremenda
importância de atender a meu pedido, fará o que for necessário.
Infelizmente, é possível que eu tenha lidado no encontro desta manhã com
tamanha incompetência que terei de me atracar com ele mais outra vez. Não
é uma perspectiva pela qual esteja particularmente ansioso, mas pelo menos
da próxima vez minha abordagem será diversa, e ele não achará tão fácil
despachar-me de mãos abanando.
PARTE SEIS
***
Uma vez atravessadas mais duas paredes e ainda não havendo sinal de
que estivéssemos sendo perseguidos, senti pela primeira vez uma espécie de
júbilo por finalmente reunir-me a meu antigo amigo. Dei por mim rindo
algumas vezes enquanto avançávamos juntos, aos trambolhões; então Akira
também deu uma risada, e os anos pareceram dissipar-se entre nós.
"Quanto tempo faz, Akira? Faz mesmo um tempão."
Ele movia-se arduamente a meu lado, mas conseguiu dizer: "Um
tempão, sim".
"Sabe, eu voltei. À casa velha. Suponho que a sua ainda seja a vizinha."
"Sim. Vizinha."
"Oh, você voltou também? Mas é claro, esteve aqui o tempo todo. Não
veria nela nada tão especial."
"Sim", ele tornou a dizer, com algum esforço. "Tempão. Vizinha."
Fiz uma pausa e sentei-o nos vestígios de uma parede. Retirando então
cuidadosamente a jaqueta rasgada de seu uniforme, tornei a examinar suas
feridas, usando a lanterna e minha lupa. Eu ainda não era capaz de afirmar
muita coisa; temera que a ferida sob o seu braço fosse gangrenosa, mas
então me pareceu que o cheiro fétido talvez viesse de algo lambuzado em
suas roupas, quem sabe de onde ele estivera deitado no chão. Por outro
lado, notei que estava alarmantemente quente e absolutamente banhado em
suor.
Tirando minha jaqueta, rasguei várias tiras do forro para servir de
bandagem. Fiz então o que pude para limpar a ferida com meu lenço.
Embora tenha tentado esfregar o pus da forma mais delicada possível, sua
respiração brusca dizia-me que estava lhe causando dor.
"Desculpe, Akira. Vou tratar de ser menos desastrado."
"Desastrado", ele disse, como se remoesse a palavra. Então deu uma
risada súbita e disse: "Você me ajuda. Obrigado".
"Claro que eu estou ajudando você. E muito em breve nós vamos
arrumar ajuda médica apropriada. Então ficará bom num piscar de olhos.
Mas antes que façamos isso, sou eu que vou precisar de sua ajuda. Há
primeiro uma tarefa muito urgente para nós, e você mais que ninguém
entenderá por que é tão urgente. Sabe, Akira, finalmente localizei. A casa
onde meus pais estão sendo mantidos cativos. Estamos bem próximos dela
neste momento. Sabe de uma coisa, meu chapa, estive pensando que teria
de entrar nessa casa sozinho. Coisa que eu teria feito, mas cá entre nós, teria
sido um risco dos diabos. Sabe-se lá quantos seqüestradores estão lá dentro.
De início considerei levar alguns soldados chineses para ajudar, mas foi
impossível. Pensei mesmo em pedir ajuda aos japoneses. Mas agora, nós
dois juntos, vamos dar conta do recado, isso com certeza."
Todo esse tempo estive tentando amarrar a improvisada atadura ao redor
de seu tronco e sua nuca, de forma a manter alguma pressão na ferida.
Akira observou-me atentamente, e quando parei de falar, sorriu e disse:
"Sim. Eu ajudo você. Você me ajuda. Bom".
"Mas Akira, tenho de confessar a você. Estou um tanto perdido. Estava
indo muito bem até um pouco antes de topar com você. Mas agora,
realmente não sei em que direção ir. Temos de procurar algo chamado
Fornalha do Leste. Uma coisa grande com uma chaminé em cima. Estive
pensando, meu chapa, você tem alguma idéia de onde encontrar essa tal
fornalha?"
Akira continuava a olhar para mim, seu peito arquejante. Quando lhe
pus os olhos assim, lembrei-me subitamente daqueles tempos em que tantas
vezes nos sentávamos juntos no topo da corcova em nosso jardim,
recuperando o fôlego. Estava a ponto de mencionar-lhe isso quando ele
disse:
"Eu sei. Eu sei esse lugar".
"Sabe como chegar até a Fornalha do Leste? Daqui?"
Ele assentiu com a cabeça. "Eu luto aqui, muitas semanas. Aqui, eu
conheço como" — e de repente abriu um sorriso — "como minha cidade
natal."
Também sorri, mas esse comentário intrigara-me. "Que cidade natal é
essa?", perguntei.
"Cidade natal. Onde eu nasço."
"Quer dizer a Colônia?"
Akira calou-se por um instante, então disse: "Certo. Sim. Colônia.
Colônia Internacional. Minha cidade natal".
"Sim", eu disse. "Suponho que seja minha cidade natal também."
Nós dois começamos a rir, e por alguns instantes continuamos a rir e a
espremer a risada juntos, talvez de maneira um pouco descontrolada.
Quando nos acalmamos um pouco, eu disse:
"Vou lhe dizer uma coisa estranha, Akira. Posso dizer isso a você. Todos
esses anos que morei na Inglaterra, nunca me senti de verdade em casa ali.
A Colônia Internacional. Essa sempre será minha casa".
"Mas Colônia Internacional…" Akira abanou a cabeça. "Muito frágil.
Amanhã, depois de amanhã…" Ele agitou uma das mãos no ar.
"Sei o que quer dizer", comentei. "E quando éramos crianças, ela
parecia tão sólida para nós. Mas como você mesmo acabou de dizer. É
nossa cidade natal. A única que temos."
Comecei a lhe vestir de novo o uniforme, tomando cuidado para não
machucá-lo sem necessidade.
"Melhorou alguma coisa, Akira? Lamento não poder fazer mais por
você agora. Vamos arranjar quem cuide direito de você em breve. Mas
agora temos um trabalho importante a fazer."
Nosso progresso era lento. Era difícil para mim manter a lanterna
apontada para nossa frente, e muitas vezes tropeçamos no escuro, a duras
penas para Akira. Aliás, mais de uma vez ele esteve perto de perder a
consciência naquela etapa de nossa jornada, e seu peso ao redor de meus
ombros tornou-se imenso. Tampouco eu estava sem meus próprios
machucados; para maior dos incômodos, o meu sapato direito fendera-se, e
o meu pé tinha um talho feio, suscitando uma dor lancinante a cada passo.
Por vezes estávamos tão exaustos que não éramos capazes de dar mais que
uma dúzia de passos sem parar novamente. Mas resolvemos nessas ocasiões
não sentar, e nos balançávamos juntos, recobrando fôlego, reequilibrando
nossos pesos na tentativa de aliviar uma dor à expensas de outra. O cheiro
rançoso de sua ferida piorou, e a contínua debandada dos ratos a nossa volta
era enervante, mas não ouvimos, nessa altura, nenhum ruído de combate.
Fiz quanto pude para manter alto nosso moral, fazendo comentários
bem-humorados sempre que tinha fôlego. Na verdade, porém, meus
sentimentos a respeito desse encontro foram, durante aqueles momentos, de
um matiz complexo. Não havia dúvidas da minha enorme gratidão a que o
destino nos reunisse bem a tempo de nossa grande empreitada. Mas ao
mesmo tempo, uma parte de mim estava entristecida que tal encontro —
com o qual sonhara por tanto tempo — devesse ocorrer em circunstâncias
tão lúgubres. Certamente estava longe das cenas que eu sempre evocara —
de nós dois sentados em algum confortável saguão de hotel ou talvez na
varanda da casa de Akira, com vista para um sereno jardim, conversando e
relembrando horas a fio.
Akira, enquanto isso, apesar de todas as suas dificuldades, mantinha um
claro sentido de direção. Freqüentemente ele nos guiava por algum caminho
que eu temia fosse dar num beco sem saída, para então aparecer um vão de
porta ou uma abertura. De tempos em tempos, topávamos com mais
habitantes, alguns não mais que presenças que sentíamos na escuridão;
outros, reunidos em volta do clarão de uma lanterna ou de um fogo, fitavam
Akira com tal hostilidade que receei fôssemos ser atacados novamente.
Porém na maior parte nos era permitido passar sem sermos molestados, e
uma vez consegui até persuadir uma senhora a nos dar água potável em
troca das últimas cédulas em meu bolso.
Então o terreno mudou perceptivelmente. Não havia mais bolsões de
domesticidade, e as únicas pessoas que encontrávamos eram indivíduos
com olhares desamparados, que murmuravam ou choravam de si para si.
Nem havia mais vãos de portas que restassem, mas somente os buracos
escavados do tipo que eu e o tenente havíamos transposto no início da
jornada. Cada um desses nos apresentava muita dificuldade, Akira sendo
incapaz de galgá-los — mesmo que eu o auxiliasse a cada movimento —
sem infligir agonias atrozes a si mesmo.
Havia muito tínhamos desistido da conversa, e simplesmente emitíamos
grunhidos em cadência com nossos passos, quando subitamente Akira nos
fez estacar e ergueu a cabeça. Então também pude ouvir uma voz, alguém
gritando ordens. Era difícil dizer a que distância — talvez duas ou três casas
além.
"Japoneses?", perguntei num sussurro.
Akira continuou a ouvir, então abanou a cabeça.
"Kuomintang. Christopher, nós agora muito perto do… do…"
"Do front?"
"Sim, front. Nós agora muito perto do front. Christopher, isso muito
perigoso."
"E absolutamente necessário atravessar essa área para chegar à casa?"
"Necessário, sim."
Houve uma súbita descarga de rifle, então de mais além, a resposta de
uma metralhadora. Instintivamente nos crispamos um ao outro, mas então
Akira desprendeu-se e sentou.
"Christopher", ele disse calmamente. "Nós descansamos agora."
"Mas temos de chegar à casa."
"Nós descansamos agora. Muito perigoso entrar na zona combate no
escuro. Nós mortos. Temos esperar manhã."
Vi razão naquilo, e em todo caso, estávamos ambos exaustos demais
para progredir muito além. Também me sentei e desliguei a lanterna.
Ficamos sentados no escuro por algum tempo, o silêncio quebrado
apenas pela nossa respiração. Então subitamente recomeçou o tiroteio, e por
talvez um minuto ou dois continuou de maneira feroz. Terminou
abruptamente; então após um momento de silêncio, um estranho ruído
ergueu-se pelos muros. Era um som prolongado, tênue, como o chamado de
um animal na selva, mas terminou num grito a plenos pulmões. A seguir
vieram guinchos e soluços, e então o homem ferido começou a berrar
verdadeiras frases. Soava ele notavelmente parecido ao soldado japonês
moribundo que escutara antes, e em meu estado de exaustão, supus que
fosse o mesmo homem; eu estava a ponto de comentar com Akira a singular
desgraça pela qual passava aquele indivíduo, quando percebi que ele gritava
em mandarim, não japonês. A percepção de que se tratava de dois homens
diferentes deixou-me um tanto gelado. Tão idênticos eram os seus
lamentáveis gemidos, a maneira que os seus berros davam lugar a súplicas
desesperadas, para então voltar aos berros, que me ocorreu ser aquilo pelo
que cada um de nós passaria a caminho da morte — que eses terríveis
ruídos eram tão universais quanto o choro dos recém-nascidos.
Depois de algum tempo, tomei ciência do fato de que, caso extravasasse
o combate para nosso recinto, estávamos sentados numa posição
completamente exposta. Estava prestes a sugerir a Akira que nos
mudássemos para algum lugar mais encoberto, mas notei então que ele
ferrara no sono. Tornei a ligar a lanterna e iluminei ao redor
cuidadosamente.
Mesmo pelos padrões recentes, a destruição à nossa volta era marcante.
Podia ver avaria de granada, buracos de bala por todo canto, tijolo
despedaçado e vigamento. Havia um búfalo morto deitado de lado no meio
do ambiente, a não mais que sete ou oito metros de nós; estava coberto de
pó e escombros, um chifre apontando para o teto. Segui lançando o facho ao
redor até fixar todos os pontos possíveis pelos quais os combatentes
poderiam ingressar em nosso recinto. Mais importante de tudo, descobri, na
extremidade do quarto, para além do búfalo, um pequeno nicho de tijolo,
que talvez servira antes de forno ou lareira. Pareceu-me ser o lugar mais
seguro para passarmos a noite. Sacudindo Akira, passei seu braço ao redor
da minha nuca e nós dois nos pusemos de pé a duras penas.
Quando alcançamos o nicho de tijolo, afastei algum entulho e limpei
uma área de tábuas lisas de madeira, suficiente para nós dois deitarmos.
Estendi minha jaqueta para Akira e deitei-o cuidadosamente do seu lado
são. Também eu deitei depois e aguardei pelo sono.
Mas por mais exausto que eu estivesse, os contínuos gritos dos
moribundos, meu temor de ser pego em fogo cruzado e meus pensamentos
sobre a tarefa crucial a nossa frente impediam-me de pegar no sono. Akira
também, podia sentir, permaneceu acordado, e quando afinal o ouvi sentar-
se, perguntei-lhe:
"Como vai sua ferida?".
"Minha ferida. Sem problema, sem problema."
"Deixe-me ver de novo…"
"Não, não. Sem problema. Mas obrigado. Você bom amigo."
Embora só estivéssemos a centímetros de distância, não nos podíamos
ver em absoluto. Após uma longa pausa, ouvi-o dizer:
"Christopher. Você tem que aprender a falar japonês".
"É, tenho."
"Não, eu digo agora. Você aprende a falar japonês agora."
"Bem, sinceramente, meu velho, está longe de ser a hora ideal para…"
"Não. Você tem que aprender. Se soldado japonês entra enquanto eu
dormindo, você tem que dizer a eles. Dizer a eles somos amigos. Tem que
dizer a eles senão eles atiram na escuridão."
"Sei. Entendi."
"Então você aprende. No caso eu dormir. Ou eu morto."
"Agora escute aqui, não quero saber mais dessa bobagem. Num piscar
de olhos você vai estar tinindo de forte."
Houve outra pausa, e lembrei de anos passados que Akira não me
seguia se eu utilizasse coloquialismos. Então eu disse, bem devagar:
"Você vai ficar perfeitamente bem. Compreende, Akira? Vou cuidar
disso. Você vai ficar bem".
"Muito gentil", ele disse. "Mas precaução é melhor. Você tem que
aprender a dizer. Em japonês. Se soldado japonês vier. Eu ensino palavra.
Você lembra."
E começou a dizer algo em sua idioma, mas era comprido demais e eu o
interrompi.
"Não, não, nunca vou aprender isso. Alguma coisa bem mais curta. Só
para deixar claro que não somos o inimigo."
Ele pensou um momento, então proferiu uma frase só ligeiramente
menor que a anterior. Fiz uma tentativa, mas quase imediatamente ele disse:
"Não, Christopher. Erro".
Depois de mais algumas tentativas, eu disse: "Olhe, não adianta. Só me
diga uma palavra. A palavra para 'amigo'. Mais que isso não consigo esta
noite".
"Tomodachi", ele disse. "Você diz. To-mo-da-chi."
Repeti essa palavra diversas vezes, com total precisão, pensei, mas
então percebi que ele ria na escuridão. Dei comigo rindo também, e então,
tal como fizéramos antes, nós dois começamos a rir descontroladamente.
Continuamos a rir por talvez um minuto inteiro, depois do qual acredito que
adormeci de forma bastante repentina.
Nosso sono, longe de nos revigorar, pareceu nos deixar ainda mais
exaustos. Quando nos levantamos e Akira apoiou seu peso em mim, a dor
que percorreu minha nuca e meus ombros obrigou-me a soltar um gemido.
Por algum tempo, até que nossos corpos tornassem a se habituar, andar
junto revelou-se uma torturante provação.
À parte nossa condição física, o terreno que atravessamos naquela
manhã era também de longe o mais difícil. Os estragos eram tão extensos
que muitas vezes tínhamos de parar, incapazes de encontrar um caminho
pelo entulho. E se era uma inegável ajuda ver onde botávamos os pés, toda
a atrocidade que ficara escondida na escuridão agora era visível para nós,
cobrando pesado tributo de nosso espírito. Em meio aos destroços,
podíamos ver sangue — de vez em quando carne, às vezes com semanas de
idade — no chão, nas paredes, espirrado na mobília quebrada. Pior ainda —
e nosso nariz nos avisava de sua presença bem antes que nossos olhos —,
com desconcertante regularidade topávamos com pilhas de intestinos
humanos em vários estágios de decomposição. Quando paramos certa vez,
comentei com Akira a respeito, e ele disse simplesmente:
"Baioneta. Soldado sempre enfia baioneta na barriga. Se enfiar aqui" —
ele indicou suas costelas — "baioneta não sai de novo. Então soldado
aprende. Sempre barriga."
"Pelo menos os corpos se foram. Pelo menos isso eles fazem."
Continuamos a ouvir tiroteios ocasionais, e cada vez que o fazíamos, eu
tinha a sensação de que chegáramos um pouco mais perto. Isso me
preocupou, mas Akira parecia agora mais certo do que nunca de nosso
rumo, e sempre que eu questionava suas decisões, ele balançava a cabeça
com impaciência.
Na altura em que topamos com os corpos de dois soldados chineses, o
sol da manhã incidia em possantes feixes pelos telhados quebrados. Não
passamos perto o bastante para examiná-los adequadamente, mas meu
palpite é que não estavam mortos por mais de umas poucas horas. Um deles
estava de bruços nos escombros; o outro morrera de joelhos, sua testa
apoiada na parede de tijolo, como se fora vencido pela melancolia.
Em dado ponto, minha convicção de que estávamos prestes a ingressar
em fogo cruzado assumiu dimensões tais que detive Akira, dizendo:
"Agora olhe aqui. Qual é a jogada? Para onde está nos levando?".
Ele não disse nada, mas permaneceu apoiado contra mim, cabisbaixo,
recobrando fôlego.
"Sabe realmente aonde estamos indo? Akira, me responda! Sabe aonde
estamos indo?"
Ele levantou a cabeça extenuado e apontou por sobre meu ombro.
Eu virei — tive de fazê-lo devagar, pois ele ainda estava apoiado em
mim — e vi através de um pedaço quebrado de uma parede, não mais do
que a uma dúzia de passos de nós, o que sem dúvida era a Fornalha do
Leste.
Não disse nada, mas conduzi nós dois até lá. Tal como seu par, a
Fornalha do Leste sobrevivera bem aos ataques. Estava coberta de pó, mas
parecia praticamente em condições de uso. Soltando Akira — ele
imediatamente sentou-se em algum entulho —, fui direto até a fornalha. Tal
como na última ocasião, podia ver a chaminé acima de mim apontando para
as nuvens. Voltei para onde Akira estava sentado e delicadamente toqueilhe
o ombro são.
"Akira, desculpe pelo meu tom ainda agora. Quero que saiba que sou
muito grato a você. Nunca poderia ter encontrado isto sozinho. Verdade,
Akira, sou muito grato."
"Tudo bem." Sua respiração agora estava um pouco mais branda. "Você
me ajuda. Eu ajudo você. Tudo bem."
"Mas, Akira, devemos estar bem perto da casa agora. Deixe-me ver. Por
ali" — indiquei — "a ruela cerre naquele sentido. Temos de seguir a ruela."
Akira pareceu relutante em levantar-se, mas suspendi-o e partimos de
novo. Comecei por seguir o que era claramente a estreita ruela que o
tenente apontara do telhado, mas quase que de imediato encontramos nosso
caminho completamente obstruído por destroços. Escalamos por um muro e
entramos numa casa vizinha, então seguimos no que eu imaginava ser uma
rota paralela, traçando nosso caminho por aposentos salpicados de
escombros.
Essas casas em que agora nos encontrávamos estavam menos avariadas
e haviam sido claramente mais respeitáveis do que aquelas pelas quais
havíamos recentemente passado. Havia cadeiras, penteadeiras, mesmo
alguns espelhos e vasos ainda intactos em meio aos destroços. Eu estava
ávido para seguir adiante, mas o corpo de Akira começou a vergar feio, e
fomos obrigados a parar outra vez. Sentamos numa viga caída, e foi
enquanto recobrávamos o fôlego que a minha vista pousou numa tabuleta
pintada à mão ali nos escombros a nossa frente.
Ela rachara bem no veio da madeira, mas as duas partes jaziam ali lado
a lado; podia ver também parte da treliça pela qual antes fora afixada à
entrada da frente. Não era de modo algum a primeira vez que topávamos
com coisa assim, mas algum instinto chamou minha atenção para tal objeto
em particular. Fui até ela e, livrando as duas peças de madeira dos
escombros, trouxe-as de volta para onde estávamos sentados.
"Akira", eu disse. "Consegue ler isto?" Segurei as peças juntas diante
dele.
Ele observou a escrita por um instante, então disse: "Meu chinês, não
bom. Um nome. O nome de alguém".
"Akira, ouça com atenção. Olhe para esses caracteres. Deve saber algo
sobre eles. Por favor, tente lê-los. É muito importante."
Ele continuou a contemplar a tabuleta, então abanou a cabeça.
"Akira, escute", eu disse. "É possível que isso diga Yeh Chen? Será que
esse pode ser o nome escrito aqui?"
"Yeh Chen… "Akira olhou pensativo. "Yeh Chen. Sim, possível. Esse
caractere aqui… Sim, possível. Isso diz Yeh Chen."
"Diz mesmo? Tem certeza?"
"Não certeza. Mas… possível. Muito possível. Sim" — ele assentiu com
a cabeça — "Yeh Chen. Acho que sim."
Baixei os dois pedaços da tabuleta e dirigi-me com cuidado pelos
escombros até a frente da casa em que estávamos. Havia uma fenda onde
antes havia sido o vão da porta, e, olhando por ela, pude ver a estreita ruela
que corria lá fora. Olhei para a casa bem a minha frente. As fachadas das
propriedades vizinhas estavam severamente danificadas, porém a casa para
a qual eu olhava sobrevivera estranhamente incólume. Mal havia sinais
evidentes de avaria: as persianas da janela, a tosca porta de correr de treliça
de madeira, mesmo o amuleto que pendia acima do vão da porta, todos
haviam permanecido intactos. Depois do que tínhamos visto, isso se
assemelhava a uma aparição de outro mundo mais civilizado. Fiquei ali a
contemplá-la por algum tempo. Então gesticulei para Akira.
"Olhe, venha aqui", disse num quase-sussurro. "Esta deve ser a casa.
Não pode ser outra."
Akira não se mexeu, porém deu um profundo suspiro. "Christopher.
Você amigo. Gosto muito de você."
"Fale baixo. Akira, chegamos. É esta, a casa. Estou com esse
pressentimento."
"Christopher…" Com um esforço ele levantou-se e cruzou devagar o
terreno. Ao chegar a meu lado, apontei-lhe a casa. O sol da manhã
incidindo na ruela fazia com que listras fulgentes lhe caíssem sobre a
fachada.
"Ali, Akira. Lá está ela."
Ele sentou-se junto a meu pé e deu outro suspiro. "Christopher. Meu
amigo. Você tem que pensar com muito cuidado. São muitos anos. Já
muitos e muitos anos…"
"Não é estranho", comentei, "como o combate mal tocou aquela casa? A
casa com meus pais dentro."
Ao proferir essas palavras, de repente quase me senti sufocado. Mas
contive-me e disse: "Então, Akira, temos de entrar. Os dois juntos, de
braços dados. Igual daquela outra vez, ao entrar no quarto de Ling Tien.
Lembra, Akira?".
"Christopher. Meu caro amigo. Você tem que pensar com muito
cuidado. São muitos e muitos anos. Meu amigo, por favor, você escute.
Talvez mãe e pai. Agora já faz muitos anos…"
"Vamos entrar juntos. Então assim que tivermos feito o que temos de
fazer, arrumamos ajuda médica adequada para você, prometo. Aliás, é
possível que haja alguma coisa, algum tipo de primeiros socorros nessa
casa. Pelo menos um pouco de água limpa, talvez bandagens. Minha mãe
vai poder dar uma olhada em sua ferida, talvez fazer um novo curativo para
você. Não se preocupe, daqui a pouco vai estar bem."
"Christopher. Você tem que pensar com muito cuidado. Tantos e tantos
anos passam…"
Ele calou-se no instante em que a porta do outro lado da ruela abriu-se
com um estrépito. Eu mal começara a tatear à cata do revólver quando a
garotinha chinesa apareceu.
Teria talvez seis anos. Seu rosto tinha uma expressão calma e era
bastante formoso. Seu cabelo fora cuidadosamente amarrado em marias-
chiquinhas. Seu casaco simples e sua calça folgada eram ligeiramente
grandes demais para ela.
Ela olhava ao redor, entrecerrando os olhos no sol, então mirou em
nossa direção. Vendo-nos sem dificuldade — nenhum de nós havia se
mexido —, veio em nossa direção com surpreendente destemor. Parou na
ruela, a alguns metros de distância, e disse algo em mandarim, gesticulando
para a casa.
"Akira, o que ela está dizendo?"
"Não entendo. Talvez nos convida entrar."
"Mas como pode estar envolvida? Você acha que ela tem alguma coisa a
ver com os seqüestradores? O que ela está dizendo?"
"Acho que pede para nós ajudar ela."
"Temos de dizer-lhe que se afaste", eu disse, sacando meu revólver.
"Temos de prever resistência."
"Sim, ela pede para nós ajudar. Ela diz cachorro está ferido. Acho que
diz cachorro. Meu chinês não bom."
Então, enquanto observávamos, de algum ponto próximo de onde
começava seu cabelo cuidadosamente amarrado, um filete de sangue
escorreu, passou pela testa e desceu pela face. A garotinha pareceu não
notar nada e tornou a falar conosco, gesticulando outra vez para a casa.
"Sim", Akira disse. "Ela diz cachorro. Cachorro está machucado."
"O cachorro? Ela é quem está machucada. Talvez seriamente."
Dei um passo na direção dela, pretendendo examinar sua ferida. Mas ela
interpretou meu movimento como anuência, e, voltando-se, saltitou de volta
pela ruela em direção à porta. Tornou a abri-la, olhou súplice para nós,
depois desapareceu casa adentro.
Fiquei ali um momento, hesitante. Depois estendi a mão para Akira.
"Akira, chegou a hora", falei. "Temos de entrar. Vamos entrar agora,
juntos."
21.
Foi assim que, pouco depois das onze horas na noite passada, me
encontrei rodando de carro pelas elegantes áreas residenciais da Concessão
Francesa, na companhia de dois oficiais da polícia secreta chinesa.
Passamos por avenidas ladeadas de árvores, por casarões, alguns deles
inteiramente encobertos por cercas vivas e muros altos. Atravessamos então
portões fortemente guardados por homens de batas e chapéus, e
estacionamos num pátio com cascalho. Uma casa sombria, de quatro ou
cindo andares, erguia-se a nossa frente.
Dentro, as luzes eram baças, e mais guardas espreitavam por todo canto
nas sombras. Ao seguir minha escolta escadaria acima, tive a impressão de
que a casa pertencera até recentemente a um europeu abastado, mas agora,
por alguma razão, caíra nas mãos das autoridades chinesas; podia ver avisos
e horários toscos pregados nas paredes, lado a lado com primorosas obras
de arte ocidentais e chinesas.
A julgar pela decoração, o quarto a que fui conduzido no segundo andar
contivera até recentemente uma mesa de bilhar. Havia agora um hiato no
centro do ambiente, ao redor do qual caminhei enquanto esperava. Após
cerca de vinte minutos, ouvi o ruído de mais carros chegando embaixo no
pátio, mas quando tentei olhar pelas janelas, descobri que davam para os
jardins ao lado da casa, e nada pude ver da frente.
Transcorreu talvez outra meia hora antes que finalmente viessem me
buscar. Escoltaram-me outro lance de escadas acima, depois por um
corredor ladeado de mais guardas. Então minha escolta parou, e um deles
apontou-me uma porta vários metros adiante. Percorri o último trecho
sozinho e entrei no que parecia ser um amplo gabinete. Havia um tapete
grosso debaixo de meus pés, e as paredes eram quase totalmente forradas de
livros. Na extremidade, onde pesadas cortinas resguardavam as janelas de
sacada, havia uma mesa com uma cadeira de cada lado. Um abajur na mesa
criava uma poça quente de luz, mas, de resto, boa parte do ambiente
achava-se às escuras. Enquanto examinava o meu entorno, uma figura
ergueu-se de trás da mesa e, contornando-a com cuidado, gesticulou para a
cadeira que acabara de vagar.
"Por que não senta, Puffin?", disse-me tio Philip. "Você se lembra, não
lembra? Sempre adorou sentar na cadeira atrás da minha mesa."
22.
Foi minha primeira viagem longa em muitos anos, e durante dois dias
depois de nossa chegada a Hong Kong, permaneci bastante fatigado. A
viagem aérea é incrivelmente rápida, mas tudo é muito apertado e
desnorteante. Minhas dores nos quadris voltaram com força redobrada, e
uma dor de cabeça prolongouse durante boa parte de minha estada, o que
sem dúvida distorceu minha visão daquela colônia. Sei de pessoas que
viajaram para lá e regressaram cheios de orgulho. "Um lugar de futuro",
sempre dizem. "E espantosamente bonito." Contudo, por boa parte daquela
semana, o céu permaneceu encoberto, as ruas opressivamente cheias.
Suponho que identifiquei aqui e ali — nos letreiros em chinês no exterior
das lojas ou mesmo no espetáculo dos chineses atarefados em seus negócios
no mercado — algum vago eco de Xangai. Mas ainda assim, tais ecos eram
o mais das vezes incômodos. Era como se eu houvesse topado, num
daqueles jantares maçantes a que compareço em Kensington ou Bayswater,
com uma prima distante ou uma mulher que amei outrora; cujos gestos,
expressões faciais, trejeitos de ombro cutucam a memória, mas que
permanece, no todo, uma paródia constrangedora, até grotesca, de uma
imagem tão acalentada.
No fim, fiquei satisfeito com a companhia de Jennifer. Quando ela
primeiro insinuara ir comigo, ignorara-a deliberadamente. Pois mesmo
naquela altura — falo de apenas cinco anos atrás — ela ainda tendia a
considerar-me uma espécie de inválido, em especial quando o passado, ou
então o Extremo Oriente, ressurgia em minha vida. Suponho que uma parte
de mim ressentira havia muito essa solicitude exagerada, e foi só quando
me ocorreu que ela genuinamente desejava escapar das coisas por uns
tempos — que tinha as suas próprias preocupações e que tal viagem talvez
lhe fizesse bem — que concordei em viajarmos juntos.
Fora sugestão de Jennifer que tentássemos estender nossa viagem a
Xangai, e suponho que tal não teria sido impossível. Poderia ter falado com
alguns velhos conhecidos, pessoas que ainda têm influência no Ministério
das Relações Exteriores, e estou certo de que poderia ter tido acesso ao
continente chinês sem excessiva dificuldade. Sei de outros que fizeram
justamente isso. Mas pelo que todos dizem, Xangai hoje é uma sombra
fantasmagórica da cidade que foi um dia. Os comunistas abstiveram-se de
pôr a cidade abaixo, tanto é que boa parte do que antes era a Colônia
Internacional permanece intacta. As ruas, embora com novos nomes, são
perfeitamente reconhecíveis, e dizem que qualquer um familiarizado com a
antiga Xangai saberia se orientar por lá. Mas os estrangeiros, claro, foram
todos banidos, e o que antes eram suntuosos hotéis e clubes noturnos são
agora os escritórios burocráticos do governo do presidente Mao. Em outras
palavras, é provável que a Xangai de hoje se revele uma parodia da cidade
antiga não menos dolorosa que Hong Kong.
Ouvi, aliás, que muito da pobreza — e também do vício de ópio contra
o qual minha mãe se bateu antes com tanto vigor — recuou
significativamente sob os comunistas. Até que ponto esses males foram
erradicados ainda resta ser visto, mas parece certamente que o comunismo
foi capaz de alcançar, num punhado de anos, o que a filantropia e o ardente
ativismo não puderam em décadas. Lembro de perguntar-me o que minha
mãe teria feito de uma tal reflexão naquela primeira noite que passamos em
Hong Kong, enquanto eu zanzava pelo quarto no Hotel Excelsior, cuidando
de meus quadris e tentando recobrar meu equilíbrio.
Não fui a Rosedale Manor senão em nosso terceiro dia. Havia muito
estava combinado que eu faria a viagem sozinho, e Jennifer, embora
observasse cada um de meus movimentos durante a manhã inteira,
despediu-se de mim sem excessivo espalhafato.
Naquela tarde o sol chegara a irromper, e enquanto eu subia as encostas
das colinas em meu táxi, gramados bem tratados de cada lado eram regados
e aparados por grupos de jardineiros apenas de camisetas. Por fim, o terreno
aplainou e o táxi encostou na frente de um casarão branco construído em
estilo colonial britânico, com extensos renques de venezianas e uma ala
adicional que lhe crescia de um dos lados. Deve ter sido outrora uma
esplêndida residência, com a vista que tinha do mar e de boa parte do lado
oeste da ilha. Ao parar na brisa e olhar na direção do porto, pude ver na
distância, para onde subia um teleférico, uma colina remota. Voltando-me
para a casa, contudo, vi que estava malcuidada; a pintura dos caixilhos das
janelas e dos batentes das portas, em particular, havia rachado e estava
descascada.
Dentro, no vestíbulo, havia um vago odor de peixe cozido, mas o lugar
parecia impecavelmente limpo. Uma freira chinesa conduziu-me por um
corredor ressoante até o escritório da irmã Belinda Heaney, uma mulher de
seus quarenta e cinco anos com uma expressão séria, ligeiramente
melancólica. E foi ali, naquele escritoriozinho apertado, que me foi dito que
a mulher conhecida por "Diana Roberts" chegara até elas mediante uma
organização coligada que trabalhava com estrangeiros em apuros na China
comunista. Tudo quanto as autoridades chinesas sabiam dela ao entregarem-
na era que vivia numa instituição para doentes mentais em Chunking desde
o término da guerra.
"É possível que tenha passado lá também boa parte da guerra", disse
irmã Belinda. "Mal vale a pena pensar, senhor Banks, que espécie de lugar
era aquele. Uma vez encarcerada em tal lugar, podia-se facilmente nunca
mais ter notícia da pessoa. Foi somente porque era uma mulher branca que
chegaram a notála. Os chineses não sabiam o que fazer com ela. Afinal,
querem todos os estrangeiros fora da China. Então acabou por ser
encaminhada para cá, e está conosco já faz quase dois anos. Quando chegou
aqui, era muito agitada. Mas após um mês ou dois, todos os usuais
benefícios de Rosedale Manor, a paz, a ordem, as preces, começaram a
surtir efeito. Não a reconheceria agora como a pobre criatura que chegou
aqui. Está tão mais calma. É um parente, o senhor disse?"
"Sou, é certamente possível", eu disse. "E já que estava em Hong Kong,
pensei que não custava nada fazer uma visita. É o mínimo que poderia
fazer."
"Bem, qualquer notícia de parentes, amigos próximos, de qualquer laço
com a Inglaterra, nós ficamos muito contentes em ouvir. Afora isso, uma
visita é sempre bem-vinda."
"Ela tem muitas?"
"Tem visitas regulares. Temos um ajuste com os alunos do St. Joseph's
College."
"Entendo. E ela se dá bem com as outras moradoras?"
"Oh, sim. E não nos dá trabalho nenhum. Se pudéssemos dizer a mesma
coisa de algumas outras!"
Irmã Belinda conduziu-me por outro corredor até um amplo ambiente
ensolarado — talvez tenha sido antes a sala de jantar —, onde cerca de
vinte mulheres, vestidas todas de batas beges, estavam sentadas ou
arrastando os pés de lá para cá. Portas envidraçadas abriam-se para os
jardins lá fora, e a luz do sol incidia pelas janelas no assoalho de parquê.
Não fosse pelo vasto número de vasos cheios de flores frescas, talvez
tivesse confundido o ambiente com um quarto de crianças; havia luzentes
aquarelas pregadas nas paredes, e em vários pontos, mesinhas com damas,
baralho, papel e creions. Irmã Belinda deixou-me na porta junto à entrada
enquanto foi até outra freira sentada a um piano de armário, e uma
quantidade de mulheres parou o que estava fazendo para observar-me.
Outras pareceram ganhar consciência e tentaram esconder-se. Quase todas
eram ocidentais, embora pudesse ver uma ou duas eurasianas. Então alguém
começou a chorar alto de algum lugar do prédio às minhas costas, e
curiosamente, isso teve por efeito deixar as mulheres à vontade. Uma
senhora a pouca distância, de cabelos eriçados, sorriu para mim e disse:
"Não se preocupe, amor, é só a Martha. Ela está riquinha da silva de
novo!".
Reconheci o sotaque de Yorkshire e me perguntava que golpe do
destino a trouxera para esse lugar, quando irmã Belinda regressou.
"Diana deve estar lá fora", disse ela. "Queira me acompanhar, senhor
Banks."
Atravessamos as portas envidraçadas na direção de terrenos bem
cuidados que subiam e mergulhavam em todos os rumos, lembrando-nos
que estávamos perto da crista de uma colina. Ao seguir irmã Belinda por
canteiros floridos com gerânios e tulipas, entrevi vistas panorâmicas por
sobre sebes podadas com esmero. Aqui e ali, senhoras de batas beges
sentavam-se ao sol, tricotando, conversando ou murmurando inofensivas de
si para si. A certa altura, irmã Belinda parou para olhar em volta, então
guiou-me por um declive gramado rumo a um portão branco, e entramos
num jardinzinho murado.
A única figura visível ali era uma senhora sentada ao sol na extremidade
da relva rala, jogando cartas numa mesa de ferro batido. Estava absorta em
seu jogo e não ergueu a vista ao nos aproximarmos. Irmã Belinda tocou-lhe
delicadamente o ombro e disse:
"Diana. Um cavalheiro está aqui para vê-la. Ele veio da Inglaterra".
Minha mãe sorriu para nós dois, então voltou a seu jogo de cartas.
"Diana nem sempre compreende o que lhe dizem", disse irmã Belinda.
"Se precisar que ela faça algo, é preciso repetir várias e várias vezes."
"Será que poderia falar a sós com ela?"
Irmã Belinda não se mostrou muito receptiva a essa idéia, e por um
momento pareceu tentar pensar numa razão pela qual isso não era possível.
Mas no fim disse: "Se assim prefere, senhor Banks, tenho certeza de que
não há problema. Estarei na sala de estar".
Tendo irmã Belinda partido, olhei atentamente minha mãe a distribuir as
cartas. Ela era muito menor que eu esperava, e seus ombros,
acentuadamente arqueados. Seu cabelo era prateado e fora apanhado num
coque. De vez em quando, como eu continuasse a observá-la, ela erguia os
olhos e sorria, mas pude ver um traço de medo que não estivera lá na
presença de irmã Belinda. Seu rosto não era muito enrugado, mas havia
dois grossos vincos abaixo dos seus olhos tão sulcados que mais pareciam
incisões. Sua nuca, talvez devido a algum ferimento ou moléstia,
retrocedera fundo para dentro do tronco, de modo que, quando ela fitava
suas cartas de um lado para outro, também era obrigada a mover seus
ombros. Havia uma gotícula pendente da ponta de seu nariz, e retirara meu
lenço para removê-la antes de perceber que, ao fazê-lo, talvez a assustasse
desnecessariamente. Por fim, disse com calma:
"Desculpe não poder lhe dar nenhum tipo de aviso. Sei que isto talvez
seja um choque e tanto para você". Interrompi-me, pois estava claro que ela
não escutava. Então eu disse: "Mãe, sou eu. Christopher".
Ela ergueu a vista, sorriu tal como antes, então tornou a suas cartas.
Supus que estivesse jogando paciência, mas ao observar, vi que seguia
algum estranho sistema próprio. A certa altura a brisa soprou algumas
cartas da mesa, mas ela pareceu não se importar. Quando apanhei as cartas
da grama e levei-as de volta, ela sorriu, dizendo:
"Muito obrigada. Mas não há necessidade de fazer isso, sabe. Eu mesma
gosto de deixar até que muito mais cartas se acumulem na grama. Só então
vou recolhê-las, todas de uma vez só, sabe. Afinal, elas não podem sair
voando todas juntas pela montanha, podem?".
Nos instantes seguintes, continuei a observá-la. Então minha mãe
começou a cantar. Ela cantava calmamente para si mesma, quase num
sussurro, enquanto as suas mãos continuavam a apanhar e depositar as
cartas. A voz era fraca — não pude distinguir a canção que cantava —, mas
naturalmente melodiosa. E como eu continuasse a observar e escutar, um
fragmento de memória ocorreu-me: de um dia de verão com vento em
nosso jardim, minha mãe no balanço, rindo e cantando a plenos pulmões, e
eu pulando de lá para cá na frente dela, dizendo que parasse.
Estendi o braço e toquei sua mão com delicadeza. No mesmo instante
ela a retirou e me encarou, furiosa.
"Mantenha as mãos longe de mim, senhor!", disse num sussurro
ofendido. "Mantenha as mãos bem longe de mim!"
"Desculpe." Afastei-me um pouco para tranqüilizá-la. Ela voltou a suas
cartas e quando ergueu outra vez a vista deu um sorriso como se nada
tivesse acontecido.
"Mãe", eu disse devagar, "sou eu. Eu vim da Inglaterra. Realmente sinto
muito que tenha demorado tanto. Sei que a decepcionei amargamente.
Amargamente mesmo. Tentei de tudo, mas, sabe, no fim, estava acima de
minhas possibilidades. Sei que é irremediavelmente tarde."
Devo ter começado a chorar, porque minha mãe ergueu os olhos e
encarou-me. Então ela disse:
"Está com dor de dente, meu jovem? Se está, é melhor falar com irmã
Agnes".
"Não, estou bem. Mas me pergunto se entendeu o que eu disse. Sou eu.
Christopher."
Ela assentiu com a cabeça e disse: "Não vale a pena adiar, meu jovem.
A irmã Agnes vai preencher a sua ficha".
Então ocorreu-me uma idéia. "Mãe", eu disse, "sou eu, Puffin. Puffin."
"Puffin." Subitamente ela ficou imóvel. "Puffin."
Durante um bom tempo minha mãe não disse nada, mas agora a
expressão em seu rosto mudara inteiramente. Ela tornou a erguer a vista,
mas seu olhar fixou-se em algo por sobre meu ombro, e um afável sorriso
lhe vincava o rosto.
"Puffin", repetiu calmamente consigo, e por um momento pareceu
perdida em felicidade. Então abanou a cabeça e disse: "Aquele garoto. É
uma preocupação e tanto para mim".
"Desculpe", eu disse. "Desculpe. Supondo que esse seu garoto, esse
Puffin. Supondo que você descobrisse que ele fez o possível, que tentou de
todas as maneiras encontrá-la, mesmo que no final não tenha conseguido.
Se você soubesse disso, imagina que… imagina que seria capaz de perdoá-
lo?"
Minha mãe continuou a mirar por sobre meu ombro, mas agora um
olhar intrigado veio-lhe ao rosto.
"Perdoar o Puffin? Disse perdoar o Puffin? Mas por que razão?" E
tornou a sorrir alegre. "Aquele garoto. Dizem que está indo bem. Mas com
aquele lá nunca se sabe. Oh, ele é uma preocupação e tanto para mim. Não
faz idéia."
Nesse mês que passou, enquanto vagava por esses dias cinzentos em
Londres, zanzando pelos Jardins de Kensington na companhia de turistas de
outono e funcionários de escritório em horário de almoço, de vez em
quando topando com um velho conhecido e talvez saindo com ele para
almoçar ou tomar um chá, muitas vezes dei comigo tornando a pensar em
minha conversa com Jennifer naquela manhã. Não há como negar que me
animou. Há toda razão para acreditar que agora ela atravessou o escuro
túnel de sua vida e surgiu do outro lado. O que lá a espera resta ser visto,
mas ela não é alguém que aceite facilmente a derrota. Aliás, é mais do que
possível que cumpra o programa delineado para mim — só meio de
brincadeira — enquanto observávamos o vale naquela manhã. E se dentro
de alguns anos as coisas tiverem mesmo saído de acordo com os seus
desejos, não está fora de cogitação que eu aceite sua sugestão de ir viver
com ela no campo. Claro, não seria muito do meu gosto seu chalé, mas
poderia alugar uma casa próxima. Sou grato a Jennifer. Entendemos as
nossas preocupações recíprocas instintivamente, e são conversas como a
que tivemos naquela manhã gelada que se revelaram tamanha fonte de
consolo para mim no curso dos anos.
Mas, de outro lado, a vida no campo talvez se revele calma demais, e
nos últimos tempos me apeguei bastante a Londres. Além disso, de vez em
quando, ainda sou abordado por pessoas que lembram meu nome de antes
da guerra e pedem meu conselho sobre algum assunto. Ainda na semana
passada, aliás, quando saí para jantar com os Osbourne, fui apresentado a
uma senhora que imediatamente agarrou minha mão, exclamando: "Quer
dizer que é o Christopher Banks? O detetive?".
Fiquei sabendo que ela passara grande parte de sua vida em Cingapura,
onde fora uma "amiga muito próxima" de Sarah. "Costumava falar do
senhor o tempo todo", disse-me ela. "Parece mesmo que já o conheço."
Os Osbourne haviam convidado várias outras pessoas, mas quando nos
sentamos para comer, encontrei-me ao lado dessa mesma senhora, e nossa
conversa voltou inevitavelmente a Sarah.
"Era um grande amigo dela, não era?", perguntou a certa altura. "Ela
sempre falava com admiração do senhor."
"Éramos bons amigos, certamente. Claro, perdemos bastante contato
quando foi para o Oriente."
"Ela falava muitas vezes do senhor. Tinha tantas histórias sobre o
famoso detetive, nos mantinha bem divertidas quando nos cansávamos de
jogar bridge. Sempre falava nos termos mais elogiosos do senhor."
"Fico tocado em pensar que me lembrasse tão bem. Como disse,
perdemos bastante contato, embora tenha recebido uma carta sua uma vez,
cerca de dois anos depois da guerra. Não tinha notícia até ali de como
passara a guerra. Ela não fez caso do período que passou como prisioneira
de guerra, mas tenho certeza de que não foi nenhuma brincadeira."
"Oh, nenhuma brincadeira mesmo. Eu e meu marido; nós poderíamos
facilmente ter tido o mesmo destino. Conseguimos escapar para a Austrália
em cima da hora. Mas Sarah e Monsieur de Villefort, eles sempre confiaram
tanto no destino. Eram o tipo de casal que saía para a noite sem planos,
felizes de ver com quem topavam. Uma atitude encantadora na maior parte
do tempo, mas não quando os japoneses batem à porta. Também chegou a
conhecê-lo?"
"Nunca tive o prazer de conhecer o conde. Soube que regressou à
Europa depois da morte de Sarah, mas nossos caminhos nunca se
cruzaram."
"Oh, do jeito que ela falava do senhor, pensei que fosse velho amigo dos
dois."
"Não. Sabe, realmente só conheci Sarah durante uma primeira parte de
sua vida. Queira me desculpar, talvez não haja como a senhora possa
responder a isto. Mas eles lhe pareceram um casal feliz, Sarah e esse
francês?"
"Um casal feliz?" Minha companheira pensou por um momento. "Claro,
nunca se pode saber ao certo, mas sinceramente, seria difícil acreditar no
contrário. Eles pareciam profundamente devotados um ao outro. Nunca
tiveram muito dinheiro, de modo que nunca puderam ser tão livres de
preocupação quanto talvez quisessem. Mas o conde sempre parecia, bem,
tão romântico. O senhor ri, senhor Banks, mas essa é a palavra exata. Ele
ficou tão arrasado com a morte dela. A causa foi a prisão, sabe. Como
tantas outras, ela nunca recobrou direito a saúde. Sinto saudade dela. Uma
companheira tão encantadora."
Desde esse encontro na semana passada, tornei a desdobrar e ler várias
vezes a carta de Sarah — a única que recebi desde que nos separamos em
Xangai, tantos anos antes. Está datada de 18 de maio de 1947 e foi escrita
de uma estação nas montanhas na Malásia. Talvez fosse minha expectativa
que, após minha conversa com sua amiga, descobriria naquelas linhas
bastante formais, quase brandamente amistosas, alguma dimensão até agora
encoberta. Mas o fato é que a carta continua a conceder pouco mais que os
ossos descarnados de sua vida desde sua partida de Xangai. Ela fala de
Macau, Hong Kong, Cingapura como sendo "encantadoras", "coloridas",
"fascinantes". Seu companheiro francês é mencionado várias vezes de
passagem, como se eu já soubesse tudo quanto houvesse para saber sobre
ele. Há uma jovial menção ao cárcere sob os japoneses, e ela declara seus
problemas de saúde "uma chatice danada". Pergunta a meu respeito de
forma educada e chama sua própria vida na Cingapura liberta "uma coisa
bem razoável para se ir tocando". É o tipo de carta que alguém no
estrangeiro escreve de impulso, numa tarde, a um amigo do qual se tem
vaga lembrança. Só uma vez, próximo ao fim, seu tom sugere a intimidade
que antes partilhamos.
"Não me importo em lhe dizer, querido Christopher", ela escreve, "que
naquela época eu fiquei, sim, decepcionada, para dizer pouco, com a
maneira como as coisas se deram entre nós. Mas não se preocupe, há muito
não estou mais zangada com você. E como poderia estar, se o Destino, no
final, escolheu sorrir tão gentilmente para mim? Além do mais, agora estou
convicta de que para você foi a decisão acertada não ir comigo naquele dia.
Você sempre sentiu ter uma missão a cumprir, e ouso dizer que nunca teria
sido capaz de dar seu coração para ninguém nem para nada até que o
fizesse. Só posso esperar que, agora, as suas tarefas sejam parte do passado
e que tenha sido capaz de encontrar aquele tipo de felicidade e
companheirismo que, nestes últimos tempos, quase tenho como um fato
espontâneo."
Há alguma coisa nessas passagens de sua carta — e nessas últimas
linhas em particular — que nunca soaram muito verdadeiro. Alguma nota
sutil que percorre a carta — aliás, seu próprio ato de me escrever naquele
momento — parece contradizer seu relato de dias cheios de "felicidade e
companheirismo". Será que a sua vida com seu conde francês era realmente
aquilo a que ela se propusera a encontrar naquele dia que saiu ao píer em
Xangai? De certa forma, eu duvido. Minha sensação é que ela pensa tanto
nela como em mim ao falar de um senso de missão e da inutilidade de tentar
fugir a ele. Talvez haja aqueles capazes de levar suas vidas livres de tais
preocupações. Mas para aqueles como nós, nosso destino é enfrentar o
mundo tal como órfãos, perseguindo por longos anos as sombras de pais
desaparecidos. Nada resta senão tentar levar a cabo nossas missões o
melhor que pudermos, pois até o fazermos, calma alguma nos será
permitida.
Não quero parecer presunçoso; mas vagando ao sabor dos dias aqui em
Londres, acredito que posso mesmo admitir um certo contentamento. Gosto
de meus passeios nos parques, visito as galerias; e cada vez mais, nos
últimos tempos, desenvolvi um orgulho tolo em examinar minuciosamente,
na sala de leitura do Museu Britânico, velhas reportagens de jornal sobre
meus casos. Esta cidade, em outras palavras, tornou-se o meu lar, e não me
importa se tiver de viver o resto de meus dias aqui. Contudo, há instantes
em que uma espécie de vazio me preenche as horas, e continuarei a pensar
seriamente no convite de Jennifer.