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UM MORTO PULA A JANELA

UM MORTO PULA A JANELA

Nei Lisboa

Porto Alegre/Brasil
© Nei Tejera Lisbôa, 1999

Capa: concepção e produção de Parla Comunicação


Revisão: Henrique Erni Grawer

Editor: Luis Gomes

CIP – BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


Bibliotecária responsável: Rosemarie B. dos Santos – CRB 10/797

L769m Lisboa, Nei


Um morto pula a janela / Nei
Lisboa. – Porto Alegre : Sulina, 1999.
176 p.

ISBN 85-205-0232-6
1. Literatura Brasileira – Novela.
I.Título.
CDU 869.0(81)-32

Todos os direitos desta edição reservados à


ORGANIZAÇÃO SULINA DE REPRESENTAÇÕES S.A.

Editora e Distribuidora Sulina


Rua Cel. Genuíno, 290 – 90010-350
Fone/fax (051) 228.1966
sulina@sulina.com.br
Porto Alegre – RS
IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL
Muito especialmente para

E. S. Lisboa,
D. F. Adams e
A. N. Jeruzalinsky.

Veja só, quase uma família.


O título deste livro não deixa dúvidas: esta é uma obra
de ficção. Quando muito, qualquer semelhança com fatos e per-
sonagens reais pode ser creditada à incompetência do autor em
reconstruí-los de forma dissimulada e irreconhecível.
De fato, se a ruptura da narrativa em dois planos conduzir
o leitor até a desbragada percepção do envolvimento neurótico
de um autor em/com seus primeiros capítulos, então ótimo –
era aí mesmo que se queria chegar. Nem menos nem mais do
que diversão e caricatura, pisando sobre ovos de Freud.
Enfim, trata-se de um romance policial, ainda nesta edi-
ção e até que uma ramificação sborniana do gênero melhor o
defina. Deve ser avidamente degustado como tal, em busca de
assassinatos misteriosos e tramas de sedução, vingança ou de
esquartejamento por esporte. Sem garantias, é claro, de que a
conclusão final não nos aponte como verdadeiro criminoso o
nome impresso na capa do livro.
Devolução de dinheiro, só com atestado médico.
Boa viagem!

Nei Lisboa
Porto Alegre, setembro/92.
– Aonde é que você quer chegar com isso?
Não disse que quero chegar. Não disse nada. Posso sair.
Cair dentro da história. Se ela deixar. Se der licença. Não des-
gruda. Fica dando palpite. Não dá pra concentrar. Vou acabar
cometendo um crime. Mais um. Rá. Nem sonha. Não acerta uma.
Não sabe o que é literatura. Não sabe o que é chester.
– E isto aqui, o que é? Pode-se saber?
I

Havia muita sensualidade e até mesmo algo de devasso


naquilo tudo. Foi o que eu disse a Cherry, pelo menos, enquan-
to escorregávamos ao longo da Quinta Avenida, amaciados pelo
frescor e a luminosidade do dia – e pelo vinho consumido du-
rante o almoço.
– Uma mansão em Devonshire. Uma jovem madrasta ambi-
ciosa… Humm… – murmurei, sem olhar para o lado, adivinhan-
do que devolveria a malícia com um sorriso antes de me enlaçar
pela cintura e dizer “gato, deixa disso, vai”. Sempre dizia coisas
assim, nessas horas, ainda que eu estivesse prestes a desmasca-
rar o mais hediondo dos assassinos. Ergui o rosto pensando em
responder algo que a provocasse e divertisse um pouco mais, mas
percebi que havíamos chegado na esquina, e eu não poderia me
dar ao luxo de ser atropelado só porque uma jovem madrasta de
Devonshire planejava alguma coisa sórdida. Fechei o livro e, en-
quanto atravessávamos a rua, ela me alertou pela milésima vez.
– Você tem que perder essa mania.
Nos últimos tempos eu me habituara a ler enquanto cami-
nhávamos pela cidade, ou mesmo quando fazíamos compras
no supermercado, e aí as beterrabas, alfaces e lingüiças se mis-
turavam à neblina de alguma pequena localidade no interior
da Inglaterra ou a um misterioso assassinato em um quarto-
fechado- com-a-chave-pelo-lado-de-dentro, ou a um agente da
Scotland Yard disfarçado de rabino em um vagão do Orient Ex-
press e, claro, aos bigodes de Hercule Poirot – eu estava con-
victo de que Elizabeth II usurpara, sem nenhum pudor, o que
deveria ter pertencido a Agatha Christie.

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Algumas vezes acontecia de eu estar envolvido com um
dos casos brilhantemente solucionados por Miss Marple e, en-
tão, esbarrarmos em uma simpática velhinha na seção de lou-
ças. Era um sinal evidente e eu avisava Cherry de que algo muito
sério estava prestes a acontecer e de que ela se livrasse rapida-
mente de qualquer mercadoria clandestina que houvesse aco-
modado na bolsa. Duvido que ela sequer escutasse o que eu
dizia e, assim, invariavelmente chegávamos em casa com um
estoque ilegal de queijos, chocolates, sabonetes, ou um ousado
talher de prata oculto na liga por baixo da saia.
Morávamos em um apartamento de quarto e sala na cober-
tura de um prédio de três andares, antigo, sem elevador, cruzan-
do aqui e ali com raros e anônimos vizinhos, do sobe e desce das
largas escadas à entrada do edifício e ao movimento nenhum de
uma ladeira de pedras calçadas sombreada por plátanos, flambo-
yants e outras tantas árvores enfileiradas morro acima.
Eu dizia “a rua”, simplesmente, e acho mesmo que nunca
soubemos o nome verdadeiro, porque a placa da esquina já ha-
via sido arrancada quando nos mudamos pra lá e porque, de
qualquer forma, todo mundo conhecia como “a rua do arvore-
do” aquilo que Cherry chamaria de outro jeito, se fosse preciso,
assim como chamava de “Quinta Avenida” àquela profusão de
buracos e maus cheiros que era a rua do cais, e as quatro mesas
e um balcão engordurados aonde íamos comer mariscos com
cerveja eram o “Maxim’s”, e até eu já havia esquecido que se
chamava, na verdade, Olívia, mas detestava aquele nome, lega-
do da avó açoriana que ela própria se encarregou de transfor-
mar em “Cherry” no dia em que descobriu a palavra, escrita na
caixa de um batom – cereja, como os lábios de Olívia.

***
Nos conhecemos na casa de Gustavo, que era de Libra, ela
também de Libra, eu de Capricórnio, e – portanto – fomos fu-
mar e caminhar pelas pedras do costão, trincados de loucura e

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de frio, até que a praia se perdesse de vista. Aí ficamos, horas a
fio, os olhos injetados se esbugalhando junto com as ondas e
escorrendo com a espuma nos rochedos.
Eu estava me perguntando se já havíamos nos transmuta-
do em pedra quando ela se levantou, de repente, para apontar
uma escuna que passava ao largo no horizonte. Ficou excitada
com a idéia de navegar e desfilou uma tese sobre a insignifi-
cância humana, a relatividade do desejo e a reprodução dos
golfinhos. Depois falou em se mudar “para perto do mar e do
porto, na encosta do morro, talvez”. Jurou que não ficaria nem
mais uma semana com as gêmeas com quem dividia uma casa
na Lagoa, não por elas, que eram adoráveis, mas porque preci-
sava estar perto do mar, o que, afinal, não era tão estranho a
ponto de que ficássemos olhando pra ela “como dois sapos na
frente de um mosquiteiro”.
Disse aquilo tudo de um só fôlego e Gustavo soltou um
“qué pasó?” quando ela parou de falar, mas ficou sem resposta
porque já estávamos todos rindo feito idiotas enquanto despen-
cávamos dali pelo caminho de volta.
Isso foi uns dois anos antes de tudo, era inverno e eu ain-
da era um recém-chegado trabalhando na revisão do “Diário de
Ibiraí”. Morava na casa de um tio que também me arrumara o
emprego e que cuidava de refrescar a minha memória a esse
respeito cada vez que discutíamos, o que não era raro. Gustavo
era músico, e arranhava uns boleros durante os meses de féri-
as quando a cidade ficava repleta de turistas do Prata. O resto
do ano, sobrevivia como eletricista e encanador usando o pou-
co que aprendera da profissão do pai, em Montevidéu, para
inundar os banheiros das donas de casa do lugar.
Cherry tinha dezenove anos, nessa época, e usava os cabe-
los curtos. Eram ruivos, quase vermelhos, dos lados e amarelos
na franja e no alto da cabeça, de um jeito que eu nunca havia vis-
to igual. Tinha olhos verdes, que insistia em dizer que eram azuis
– acho mesmo que eles mudavam de cor de vez em quando.

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Era uma deusa, e se agitava pela avenida alguns passos a
nossa frente, virando, às vezes, para comentar qualquer coisa
interessante que tivesse visto. Fiquei observando aquele corpi-
nho lindo e pensando que, afinal de contas, eu andava mesmo
precisando me apaixonar por uma louca desatada. Ainda amar-
gava uma dor-de-cotovelo que trouxera na bagagem e não tinha
amigos naquele lugar à exceção de Gustavo, que mal acabara
de conhecer, empenhado em destruir a rede elétrica da casa do
meu tio e, nas horas vagas, em me apresentar um pouco da ci-
dade e suas manhas.
Eram duas cidades, na verdade, distintas em quase tudo,
mas partilhando o mesmo nome e a baía de águas calmas que
circundavam. Para o norte estendia-se a parte nova, edifícios e
casarões modernosos de reboco branco. Ao sul, a cidade velha
e o centro culminavam em um pequeno porto pesqueiro, o ca-
sario português debruçado entre as bananeiras do morro que
ali acompanhava a orla.
A “Quinta Avenida” era uma faixa estreita de asfalto es-
premida entre a encosta do morro e o cais de tal forma que, sa-
indo do costão, no extremo meridional, passava-se primeiro pelo
prédio e o atracadouro do Iate Clube, até que as lanchas e os
barcos de passeio dessem lugar ao cheiro de peixe, às baleeiras
e aos cargueiros de farinha, aos bares e armazéns do porto.
Por ali andávamos, naquele primeiro dia, quando avista-
mos a chegada de um barco, no cais, trazendo uma rede de ar-
rasto estufada de peixe até a borda. Cherry correu até lá, en-
grossando o caldo de curiosos e pescadores que se formara ao
redor. Gustavo aproveitou a deixa para me passar uma infor-
mação bilíngüe.
– Ella pinta – disse – Y qué quadros, loco, belíssimos.
Era já o cair da tarde, e a lembrança de alguma coisa bela
ecoava na silhueta de Cherry recortada por uma luz rala de in-
verno, a baía ao fundo. Fiquei admirando a graça com que se
movia de um lado para o outro, aflita como os peixes que se

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contorciam sobre a rede aberta no cais, puxando assunto com
um velho pescador. Saiu dali com um par de tainhotas enrola-
do em papel pardo, fascinada com o velho e vaidosa pelo pre-
sente. Parecia dona de uma leveza encantadora à qual apenas
ela era imune, esbofeteando o nosso silêncio extasiado com
assuntos mundanos e repentinos.
Quis subir a rua quando chegamos ao final do porto, atraí-
da pela quantidade de árvores que se destacavam do tapete de
bananeiras da encosta e a distinguiam dos outros caminhos morro
acima. Pediu que eu segurasse o pacote com os peixes e subiu
rapidamente pelo meio do calçamento. Parou depois de uns cin-
qüenta a cem metros e ficou examinando a vista da baía, intriga-
da com alguma coisa. Quando desceu, disse que as árvores a ti-
nham atrapalhado um pouco mas, ainda assim, sabia com estra-
nha certeza que aquele era o ponto exato onde gostaria de morar.
Seguimos pela avenida que, depois do porto e ladeada por
um pequeno comércio de bares e quinquilharias em geral, se
distanciava da orla costeando o morro em direção ao centro e à
Lagoa de Ibiraí. Gustavo quis improvisar uma festa à beira-mar
no sobrado do qual tomava conta, durante o ano, para uns co-
nhecidos uruguaios. Eu tinha que trabalhar, no entanto, e Cher-
ry parecia um tanto indecisa, o olhar subitamente distante e
meditativo.
Estávamos nisso quando o ônibus dela apontou na esquina.
Terminava de dar a volta na baía, desde o norte, e estava pres-
tes a entrar na avenida, no rumo que indicava o enorme letrei-
ro – “LAGOA” – iluminado. Ela soltou um gritinho em falsete e
num piscar de olhos já havia corrido até lá, seduzido o motoris-
ta à embarcá-la fora do ponto, e nos abanava do lado de dentro,
colando um sorriso de anjo no vidro da janela. Ficamos parados
à beira da avenida, prendendo a respiração até que o último fio
daqueles cabelos dourados sumisse de vista.
“Que linda”, pensei, ainda sem perceber que havia ficado
com um estúpido pacote suado de peixe na mão.

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Gustavo quebrou o silêncio.
– Qué loca – disse.

Eu pegava às sete, no jornal, e trabalhava até a meia-noite.


A revisão do “Diário de Ibiraí” era um cubículo, no canto da re-
dação, separado do resto da sala por dois tabiques de madeira.
Ali se enclausuravam, além de mim, Eliete e Marion – chefe do
setor –, ambas ex-professoras. Partilhávamos os mesmos lápis
e borrachas, as dúvidas e uma edição pré-histórica do “Aurélio”
mas, afora isso, não tínhamos nenhum assunto em comum.
Portanto, assim que terminava meu horário tratava de me des-
pedir e tomar o caminho de casa.
Era o que eu me preparava para fazer aquela noite, aboto-
ando a jaqueta enquanto cruzava a redação e pensando em to-
mar uns goles de vodca para espantar o frio antes de dormir.
Desci a escada e assinei o ponto no térreo. Quando saí para
a rua um vento gelado me atingiu em cheio, o rosto, e custei a
distinguir na penumbra a figura encasacada que sorria, senta-
da nos degraus do prédio.
Era Cherry, o amarelo dos cabelos e as maçãs do rosto, in-
cendiadas pelo frio, quase encobertos por um casaco de lã es-
curo que caía até os tornozelos.
– Pensei em telefonar, mas…
Ela se aproximou e me beijou na boca como a um velho
amigo, tapando minhas orelhas com as luvas. Senti um arre-
pio.
– Podia ter congelado, aqui fora. Devia ter mandado me
chamar.
– Cheguei há cinco minutos – ela disse. – E achei melhor
esperar. Não gostei da cara do porteiro, tem um jeito meio es-
quisito.
Já estaria demitido, se eu fosse o dono do jornal.
– Não é ele, é ela.
– Mas…

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– É, eu sei, a barba. Trabalhava num circo antes de vir pra
cá. Mas isso é uma longa história. Olha, acho bom sairmos des-
se frio.
Eu não estava sendo sincero. Caminharia descalço na neve
só pra sentir aquele corpo colado ao meu, pela maneira como
se aninhava enlaçando o braço que eu oferecia, orgulhoso, com
a mão firme no bolso, a jaqueta de couro vivendo seu dia de
glória. Tinha sonhado com isso desde o primeiro minuto e mais
ainda depois que fora à Lagoa, no outro dia, devolver um paco-
te de tainhotas e, porra, não é que me recebe com ais e boli-
nhos e “que bom que veio porque nem imagina”, ela voltara ao
porto naquela manhã e já havia achado um apartamento exata-
mente onde e como queria, e até fácil de alugar. Sim, Gustavo
havia me conseguido o endereço e, que é isso, não custou nada
vir até aqui e eu, não, não tinha pressa alguma, claro que podia
ficar pro almoço e dar uma volta na Lagoa que nessa época é tão
bonita porque fica deserta, é claro, mas também por causa das
estrelinhas de luz que repicam nas marolas quando o sol se in-
clina logo cedo de tarde, como repicam aquelas pedrinhas que
a gente fica jogando n’água quando não tem nada melhor pra
dizer.
– Hã? Desculpe, eu…
– Maxim’s – Ela repetiu o nome. – Um bar. Acho que é o
único por lá que fica aberto até tarde.
Não pensei que viesse, embora tivesse dito que sim, as-
sim que fizesse a mudança iria me procurar pra sairmos e pra
conhecer o apartamento, é claro. Talvez no jornal, que era mais
próximo do porto do que a minha casa e já que não se importa-
va de ficar um pouco até mais tarde, não dormia cedo, mesmo,
não como o resto da cidade que àquela hora existia apenas para
ressoar as nossas passadas e as palavras que me dizia ao pé do
ouvido, uma neblina de hálito doce flutuando sob as luzes ama-
relas da avenida e o silêncio do mar rangendo suas dores no
escuro, e talvez por isso recostasse a cabeça no meu ombro, como

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se quisesse escutá-lo através de uma concha embora estivesse
logo adiante, atrás das luzes e dos barcos atracados no cais.
– É ali – disse, quando avistamos duas portas de luz no
lado escuro da avenida, vendo surgir aos poucos uma casa anti-
ga de alvenaria como todas as outras ao pé do morro, mas recu-
ada alguns passos da calçada. O letreiro dizia: “Bar do Valter”.
Entramos. Era uma peça de bom tamanho, bem iluminada
e quase toda tomada por um balcão de madeira rústico, em “L”,
com cinco ou seis banquinhos espalhados em volta. À direita fi-
cava uma das mesas, encostada na parede perto da entrada. Jun-
to à parede da esquerda e ao longo do balcão havia mais três mesas
enfileiradas. As cadeiras tinham assento de palha trançada e, ao
fundo, uma abertura enfumaçada denunciava a cozinha.
Fazia quase tanto frio, ali, quanto na rua, então escolhe-
mos a última mesa, longe das portas e próximo ao calor do fo-
gão. O lugar estava quase vazio. Dois velhos pescadores, as tar-
rafas repousando no chão de cimento, um bêbado debruçado
no balcão e, por trás dele, a figura mitológica do dono que Cher-
ry cumprimentara com um sorriso, ao entrar, seguida pelo olhar
embevecido de todos.
– Vinho tinto – dissemos, quase ao mesmo tempo.
Ele nos olhava como quem olha peixinhos coloridos num
aquário. Tinha se movido lentamente até a altura da nossa mesa
e a cabeça, inclinada e inquisidora, parecia um enorme vaso
vermelho prestes a despencar sobre nós. Emitiu um grunhido
paleolítico depois que fizemos o pedido, e amassou a madeira
do balcão apoiando as mãos, como guindastes, para erguer o
tronco e a barriga que havia descarregado ali.
Eu não conseguia desgrudar os olhos.
– Ele deve ser um pouco menor que o abominável homem
das neves – murmurei, quando achei que era seguro.
Ela acomodara o casaco na guarda da cadeira e, ainda de
luvas, aquecia minhas mãos entre as dela sobre a mesa. Pensei
em esfregar os olhos, mas não ia me arriscar a tirar as mãos dali.

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– Que sorte, não? – comentei, inspirado pela minha pró-
pria. – Quero dizer, essa história toda do apartamento ter sido
tão fácil. Tão rápida, pelo menos.
Erro de cálculo. Ela soltou as mãos para gesticular enquanto
falava.
– Ah, não sei, até me assusto com o jeito que as coisas acon-
tecem comigo. Engraçado, é como se caíssem do céu, algumas
vezes. Fico pensando em São Paulo, lá tudo sempre foi mais rá-
pido ainda, claro, lá tudo é mais rápido. E sendo filha única, sei
lá, acho que não é uma coisa muito legal, eu gostaria de ter tido
irmãos, mas… Também tem algumas compensações práticas…
Não sei, às vezes fico com medo de mim, é uma coisa interna,
mesmo, não sei explicar, como se eu fosse fugir, desaparecer
de repente.
Eu dispensaria tanta análise, mas colei os olhos nos ver-
de-azuis dela. Pra desaparecer junto, se fosse o caso.
– Você deve ter uma ascendência nórdica, certamente. Um
bisavô viking, coisa assim – brinquei.
Novo erro. Percebi que a pergunta havia sido inoportuna
porque ela levou um tempo antes de responder, os olhos volta-
dos para baixo.
– Não exatamente. Meu avô materno era um imigrante
dinamarquês. Conheceu minha avó no navio, na vinda pra cá.
Meu pai era filho de alemães, parece, mas sei muito pouco dele
porque fugiu de casa logo depois que eu nasci.
– Ah. Entendo. Eu tamb…
Aquela coisa monstruosa apareceu do meu lado com um
garrafão de vinho e duas taças. Quase simpatizei com ele, na-
quela hora, porque a interrupção me deu um tempo para pen-
sar no que dizer a Cherry.
Serviu o vinho derramando pelas bordas. Depois limpou
com a mão o tanto que caíra na mesa.
– Vão verr que é uma chóia de vinho – disse, antes de se afas-
tar. Eu me preparei para retomar a conversa, mas fiquei na vontade.

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– Olá – disse Cherry, olhando por cima do meu ombro.
Virei para a porta da cozinha. Era quase um esqueleto com
um metro e meio de altura e um avental pendurado no pesco-
ço. Tinha os cabelos brancos, cacheados, e uns vivos olhos azuis
metidos no meio de rugas com que fez um rápido reconheci-
mento da área e, depois de dirigir um meio sorriso a Cherry,
desapareceu novamente.
– É Úrsula – ela apresentou – A mulher dele. São bem sim-
páticos. E a comida que ela faz é ótima.
“No mínimo”, pensei, enquanto procurava um cigarro no
bolso da jaqueta. Pra ela batizar aquilo de “Maxim’s”.
– Você ia dizer alguma coisa?
– Não. Nada em especial – respondi, deixando o assunto
de pais fugitivos para outra hora.
– Gustavo me disse que você escreve.
– Ah, sim… – confirmei, lembrando que eu mostrara a ele
toda a minha obra. Duas páginas de um conto inacabado. – Ele
apareceu?
– Apareceu ontem à tarde, veio ver o apartamento. Mas
ficou bem pouco porque deu o azar de cruzar com Andréa. Você
não chegou a conhecer, não é?
Não, eu ainda não conhecia as gêmeas.
– São idênticas, as duas, absolutamente iguais. E atrapa-
lhado do jeito que ele é…
– Sim, eu sei.
– Andréa é muito bobinha.
– Claro – concordei, solidário com o drama do bardo uru-
guaio, que eu já conhecia bem. Namorava Andréa, mas vivia
agarrando a irmã por engano. Adriana morria de rir. E a namo-
rada morria de ódio. Estavam separados pela milésima vez.
– Você escreve o quê? – ela perguntou.
– Na verdade – Soltei uma baforada, de um jeito que apren-
dera com Humphrey Bogart. – Estou escrevendo um conto so-
bre isso tudo. Sobre a história deles.

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– Ah… Jura…
Meu deus, que olhos.
– Bem, quase isso, quer dizer, como tudo que eu escrevo –
meu deus, que coragem –, tem um pé na realidade. Mas a par-
tir daí a história segue um curso próprio, por exemplo, elas não
precisam ser gêmeas, necessariamente. Podem ser duas An-
dréas. Ou duas Genovevas. Uma confusão de nomes. Ou am-
bas as coisas. Duas Beatrizes gêmeas.
Ela riu, depois esperou um minuto em silêncio.
– E como é que segue o conto?
Droga. Não sei mentir. Muito.
– Bem… Há dias que não escrevo. Escrevia no jornal, en-
tre uma matéria e outra que tivesse que revisar. Com a máqui-
na da Marion. É a minha chefe.
– Hmm. E por que parou?
Eu não queria contar. Mas não tinha outra saída.
– Ela não me empresta mais. É meio pernóstica, sabe como
é. Andei guardando umas tainhotas na gaveta da máquina.
Meu deus, que sorriso.
– Gato – Ela ainda ria. E era a primeira vez que me chama-
va desse jeito. – Não é possível, que tragédia. Me sinto meio
culpada.
– Valeu a pena.
– Ah… Sim? Espero que eu não tenha atrapalhado a carrei-
ra de um escritor famoso, milionário… Você já pensou nisso?
– Já. Não daria certo. Não gosto de caviar e champagne me
dá azia.
– Hmm. Pois eu sempre sonho com essas coisas. Uma casa
em St. Moritz… Férias em Ibisa… Um atelier em Nova Iorque…
Parecia estar falando sério, pensativa, olhando uma chu-
va fina que começara a cair. Lembrei das fotos que me mostrara
na Lagoa, uma exposição em São Paulo.
– Pelos quadros que eu vi, um atelier em Nova Iorque não
é algo tão distante assim – arrisquei uma canastrice.

Um morto pula a janela 17


Ela nem sequer ouviu, o rosto virado pra janela. Decerto
estava passando férias em St. Moritz.
– Olha – disse quando voltou a si. – O atelier… Isto é, trans-
formei em atelier a sala do apartamento… É uma peça enor-
me, chega a sobrar espaço. E talvez… Se você quiser usar pra
escrever…
– Não consigo escrever com tinta a óleo – lamentei.
Ela não achou graça.
– Tenho uma máquina que você pode usar. É pequena, mas
funciona. E eu só uso pra escrever cartas. Fica lá, parada, o dia
inteiro.
Eu não sabia o que dizer. Minha mãe não teria feito uma
oferta daquelas. Só faltava me convidar pra dormir com ela.
– E, com essa chuva… – continuou, séria – Acho que você
vai ter a honra de ser o meu primeiro hóspede.
Meu deus. Meu coração era uma escola de samba entran-
do na avenida.
– Ainda bem – Ela sorriu, enfim, e o samba-enredo virou
uma marcha-rancho – que comprei um sofá hoje de manhã.

18 Nei Lisboa
II

Às vezes ficava horas no sofá, fumando e pensando por


que diabos aquele quadro me chamava tanto a atenção, embo-
ra fosse óbvio que uma tela daquele tamanho e toda pintada
em amarelos não pudesse passar despercebida, ainda mais
quando ocupava um lugar de honra na parede do atelier. Mas
talvez também pensasse na primeira noite e nas outras em que
me fez dormir ali encolhido debaixo de um cobertor de penas,
filha da puta, porque sabia que me doía aquele jogo de gato e
rato, e cheguei a pensar que quisesse apenas um bibelô que
pudesse pôr pra dormir e dizer boa-noite depois de uns copos
de vinho no Maxim’s ou acordar de manhã com o café quase
pronto mas faltando apenas que eu descesse a rua pra buscar
um pão no mercadinho da avenida, e que não fosse muito quei-
mado, por favor, mas que tivesse a casquinha crocante em cima
que gostava tanto, sim, claro, e que depois pudesse pôr na rua,
não com uma ordem, porque nem precisaria, mas pela ausên-
cia, porque pintava desde cedo e o dia inteiro e, porra, como
pintava, como uma louca no hospício.
Eu devia ter perguntado quando me mostrou as fotos, ain-
da na Lagoa, mas então tive que coçar a orelha por outros tantos
dias até saber de onde tirava aqueles barcos que eram galeras e
galeões da marinha inglesa de sei lá que século, e soube depois
que me mostrou os livros de pintura que herdara da mãe junto
com o fascínio pelos barcos, mas só depois, porque na manhã do
primeiro dia quando sentou à janela para fazer o esboço já dava
pra perceber que não diria coisa alguma a não ser reclamar pela

Um morto pula a janela 19


falta de um pincel de marta redondo que afinal estaria no bolso
do avental e que de qualquer forma ela não queria usar, mas ape-
nas ter certeza de que estava sempre por perto.
Não era uma maneira de se comunicar senão com ela mes-
ma, ainda que durasse horas e que se pusesse a caminhar em volta
do cavalete e murmurar que bom que usara os meses na Lagoa para
preparar as telas e que o primer a óleo não houvera amarelado, e
não sei mais quantos cavacos de um ofício que eu só fui começar a
entender quando emergiu do primeiro mergulho. Mas então já
haviam se passado semanas e eu sabia que se quisesse aparecer
durante a tarde para escrever estaria tudo bem porque a porta fica-
va aberta, de qualquer jeito, e que não devia me dar ao trabalho de
perguntar se queria um café, ao entrar na cozinha e decidir por
minha conta, e que se passasse por lá na saída do jornal e a luz do
atelier estivesse acesa, então, sim, era só chamá-la da calçada e es-
perar que aparecesse na janela piscando os olhos cansados, e des-
ceríamos até o Maxim’s para tomar um vinho e comer alguma coi-
sa e conversar sobre tudo que não fosse óleo, telas, barcos.
Um dia já era setembro quando subi a rua, e demorou a
aparecer, não com o ar, os cabelos e o avental sujos de tinta da-
quelas semanas, mas brilhando um sorriso suave do jeito que
eu a conhecera. Pediu que eu subisse por um minuto enquanto
terminava de se aprontar. Então eu soube, porque até o estra-
nho silêncio e a penumbra das escadas estavam mais estranhos,
e não estava esperando na porta como nunca estivera mas po-
dia-se ouvir o ruído de água e o abre-e-fecha do armarinho do
banheiro, e o atelier não era mais o pandemônio de bisnagas e
potes e vidros de terebintina e pincéis e tintas por todo lado,
mas um reino pacificado e reverente ao seu gigante senhor, e
soube, então, que havia terminado.
Ali estava ele, a paisagem da janela como eu a tinha visto
surgir de um nada de tintas úmidas, a copa das árvores da rua
quase escapando logo abaixo da tela, a praia, a cidade nova, as
suaves pinceladas de prédios lisos e brancos indo de encontro

20 Nei Lisboa
ao infinito curvo de um céu agosto. E era sobre a cidade e des-
de o meio da praia que se encalhava o navio, galera gigantesca
e viva, canhoneira de velas arriadas estupidamente real, como
uma fotografia impossível desmentida pelo brilho dos detalhes
em empastos vigorosos e recentes.
– E então?
Ela se encostara no umbral da porta, os lábios novos de
batom vermelho. Eu não sabia há quanto tempo estava admi-
rando o quadro, apatetado, deslumbrado.
– Fantástico, Cherry. Tão absurdo quanto real… Esse na-
vio, assim, sobre a cidade…
– Cuidado – ela disse, um tanto sem graça e me puxando
pelo braço. – Eles engolem a gente. Vamos embora, gato, o
Maxim’s daqui a pouco fecha.

O Maxim’s não fechava antes das duas, mas a esta hora


exata o monstro Valter baixava as cortinas de ferro com uma
mão enquanto ia empilhando as cadeiras com a outra – o que
por si só já seria desagradável – e completava a gentileza suge-
rindo aos retardatários enclausurados que terminassem de be-
ber, pagassem a conta e depois pulassem a janela. E se porven-
tura o estado lastimável do freguês o impedisse de realizar tal
manobra olímpica, ele mesmo se encarregaria de despejá-lo do
lado de fora por sobre o peitoril.
– Não são gêmeas. Tem o mesmo nome, sobrenomes pare-
cidos e a mesma caligrafia. Por aí é que a confusão se estabele-
ce. Na troca de bilhetes e telefonemas. Até o momento em que
ele não distingue mais o que é fantasia ou não.
– Sei. E a primeira frase vai até a página oito.
– Pois é.
– Acho bem interessante. Ainda mais se você quer levar o
conto por esse caminho do fantástico. Quer dizer, às vezes tam-
bém gosto de frases curtas. De uma narrativa ágil. Aqueles li-
vrinhos da Brigitte Montfort, por exemplo.

Um morto pula a janela 21


– Claro. Tudo tem seu momento – concordei.
– Mas qual das duas mandava os bilhetes? – ela pergun-
tou, e eu achei que tinha jogado fora uma hora de explicação.
– Não se sabe. Nem eu sei, direito. Por enquanto acho que
ele vai ficar sem…
– Sim, gato – ela interrompeu. – Ele não sabe, mas você
diz que tudo que escreve tem um pé na realidade. Então, ou é o
direito, ou é o esquerdo.
Cínica. E que olhos.
– Bem… Talvez você tenha razão… Por trás de tudo pode
haver quase um relatório sobre o meu último ano antes de vir
pra cá.
– E qual é a conclusão do relatório? – Ela pegou a minha
mão. E não fazia frio.
– O importante é dar no pé na hora certa – afirmei, e ela se
deu por satisfeita, sorrindo até encarar a carranca do Valter, que
tamborilava uma marcha alemã encostado no balcão. Já tinha
fechado as portas e empilhado as cadeiras, e deixara aberta a
janela mais próxima da nossa mesa.
– Acho que ele quer fechar – comentei, e por via das dúvi-
das pagamos a conta antes de, literalmente, pular fora dali.

– Não tenho sono – ela disse, quando voltamos ao aparta-


mento. Tínhamos caminhado pela praia, na saída do Maxim’s,
deixando pra trás o porto e descendo a escada encravada nos
molhes que separavam a curva da avenida da areia. Seguimos
por um bom tempo em direção ao norte, cercando de longe uma
lua nova que mais parecia um pedaço de unha no céu, comen-
tando aqui e ali as construções que se multiplicavam ao longo
da orla onde em breve se veria chegar o verão e com ele uma
legião de turistas disputando cada centímetro da praia. Ali onde
o navio teria ocupado quarteirões inteiros, desmoronando a
pompa das mansões e as estrelas dos hotéis. Onde ficamos
imaginando as suítes presidenciais ao rés do chão defloradas

22 Nei Lisboa
por caranguejos e tatuíras e águas-vivas, onde a quilha do barco
seria um gigantesco biombo a dividir ao meio a volta da baía.
Aproximara-se da janela e eu a tinha abraçado por trás, e o
que víamos era ao mesmo tempo o caminho recém feito e uma
reprodução vulgar da pintura adormecida sobre o cavalete.
– Poderia começar a outra tela agora mesmo, se tivesse luz
suficiente, mas… Ela deu as costas à janela e apoiou o rosto no
meu ombro. – Gostaria que não existisse aquela árvore. Mas é
claro que não teria coragem de cortá-la, agora que já está ali.
Apontava para a outra janela do atelier, na parede lateral do
edifício, que daria vistas para o sul da baía não fosse a ramagem
de um plátano que subia desde o pátio de um apartamento tér-
reo, filtrando o sol da manh㠖 miseravelmente, no inverno.
– Bem – arrisquei – Pelo menos eu poderia ter uma vista
do porto, ao acordar. Isto é, se conseguisse dormir em pé, no
sofá.
Até que enfim, pensei que ela tivesse uma coleção de pin-
céis no lugar do coração.
– Desculpe, gato, era apenas um teste…
Bem, o sofá passara no teste, e eu adorava que me acarici-
asse o peito, que se enlaçasse no meu pescoço, que me fizesse
cafunés na nuca enquanto nos encharcávamos com um beijo
escandaloso, volúpia amanhecida, que só poderia terminar na
cama e em mais além do que se pudesse esperar de um sonho
interminável e um reconhecimento do céu palmo a palmo, pe-
dra sobre pedra em um castelo de prazer que pouco importava
se desmoronasse porque para isto fora feito e bastaria um dedo
correndo sobre a pele para que se erguesse em forma de nu-
vem e chovessem flocos por todo o tempo do mundo e mais
duas ou três eternidades de todos os santos, amém.

Talvez pensasse nisso, também, nos dias de puro deleite


depois da primeira vez que trepamos, nas caminhadas pela praia
ou pelo centro da cidade com Gustavo e as gêmeas incomodando

Um morto pula a janela 23


o trânsito das calçadas, ou nos dias em que o velho das tainhotas
passou a se chamar mestre Severo e em que no meio de uma con-
versa, sentados todos na beira do cais, ele puxasse do bolso um
palheiro gordo de fumo de primeira para explicar que se um pes-
cador dissesse que não sabia nadar significava apenas que não
conseguiria chegar à praia quando o barco virasse em alto-mar,
mas mesmo assim não acreditava que o Homem pudesse ter pi-
sado na lua, na “luma”, como chamava, porque sabe-se lá de que
matéria era feita que de tanto em tanto e depois de cheia desa-
guava os pedaços no oceano – onde quer que fosse ela daria o si-
nal e já estaríamos subindo a rua abraçados, rosnando um ao ou-
tro promessas de perversão, sevícia e cremes de leite sobre o sexo.
Sabíamos o quanto ia durar, exatamente até algum dia de
manhã, e sem querer fui me preparando para o salto dizendo
adeus à casa do meu tio, trazendo roupas, livros, organizando
os rescaldos de uma outra vida antes que ela aparecesse com
olhos estranhos numa meia-noite do jornal e que acordasse
dentro de um esboço à beira da janela do atelier, porque então
me restaria apenas terminar o conto, sabendo que me daria o
luxo de um amor agoniado durante as madrugadas e a delícia
de ver surgir navios sobre a paisagem da janela até que se li-
vrasse de um outro e prolongado mergulho.

Talvez pensasse sobre isso tudo, sentindo saudades daque-


la louca presente a desviar a proa dos barcos para que soçobras-
sem em nossa direção, elevando-os acima da baía e mar aden-
tro, e fumava, durante horas, torturando idéias para mais um
parágrafo de uma história que eu não sabia como terminar, que
apenas o verão veria pronta depois de meses burilada à volta
do apartamento imaginando por que bosta aquele quadro me
chamava tanto a atenção, se nem sequer era um quadro de Cher-
ry, se era apenas um borrão de mar amarelo que a mãe dela havia
pintado sabe-se lá quando, sabe-se lá por quê.

24 Nei Lisboa
III

No começo de janeiro daquele ano, tínhamos motivos de


sobra para festejar. Eu passava meu primeiro aniversário junto
a Cherry, ambos apaixonados novatos de uma vida em comum.
Mais do que isso, porém, vivíamos o entusiasmo de ver apron-
tar-se um trabalho de meses, a série de nove óleos sobre tela
que recebera o nome de “Holandeses Voadores”. Cherry abdi-
cara de comemorar o seu próprio aniversário e de uma ceia de
Natal na Lagoa, absorta às raias da obsessão no trabalho de pre-
encher metros e metros de tela antes que chegasse o ano-novo
e que se permitisse parar por um tempo – felizmente maior do
que eu poderia ter imaginado.
Tinha apenas esboçado os dois últimos quadros, é certo, mas
já se decidira sobre as molduras, que queria feitas a partir do
madeirame de um barco desativado no porto de Ibiraí. E planeja-
va o vernissage para alguma data no meio do ano, quando a seca-
gem das tintas se completasse. Prometia seguir à risca o termo,
ou seja, envernizar os quadros no próprio local e no dia de inau-
gurar a exposição. Até lá, teríamos o atelier transformado em ga-
leria de arte, com as telas expostas ao redor das paredes e a casa
inteira sujeita a um rígido controle de luz e de poeira no ar.
Passamos o reveillon à beira-mar na casa dos Trobo, de onde
Gustavo fora despejado com a chegada da família para as férias de
verão. Andava chateado, o boludo, mal acomodado em um minús-
culo quarto de fundos que o “Tigresa” oferecia aos músicos du-
rante a temporada de boleros do bar. E ainda lutava por uma re-
conciliação com Andréa, sinalizada durante a ceia de Natal.

Um morto pula a janela 25


Ele havia pedido que eu o acompanhasse à Lagoa, sem
muitas esperanças de retornar de lá com algo mais do que os
bigodes engordurados de peru e cerveja. Fôramos surpreendi-
dos, no entanto, pelo corte de cabelo punk com o qual Adriana
resolvera de uma vez por todas o problema de identificação
entre as duas gêmeas. E Andréa mostrara-se prudentemente
carinhosa, aceitando o convite dele para a festa na casa dos Tro-
bo. Reconciliaram-se durante o reveillon, de fato, e não foi difí-
cil, no calor do champagne, que o reencontro apaixonado se
transformasse numa oferta de abrigo temporário ao bardo mon-
tevideano na casa da Lagoa.
Cherry estava a cada dia mais próxima de Adriana, em
quem a magreza, o corpo moreno e os dezessete anos partilha-
dos com a irmã pareciam evoluir de forma mais madura. Diver-
tiam-se, quase sempre, comentando os interesses fúteis e o
desânimo característicos de Andréa. A meia-noite do ano-novo
as alcançou em animadas projeções sobre o futuro doméstico
ou libertário de cada uma delas, ao lado do anfitrião da festa.
Pablo Trobo era psicólogo, um nome de respeito, segundo
Gustavo, no meio clínico uruguaio e com alguma entrada em
Buenos Aires. Cinqüentão, óculos de aros grossos e lentes de
uma miopia cavalar, o cabelo ralo sempre desalinhado, falava
um português fluente amadurecido por vinte anos de férias
ibiraienses, e era capaz de encontrar o elo perdido da dialética
freudiana numa simples discussão sobre a temperatura da sa-
lada de maionese. Nem por isso se tornava desagradável, e me
alegrei em revê-los, ele e Laura Trobo, quando atenderam ao
convite para um vinho branco no meu aniversário.
Não me agradava a idéia de que Cherry financiasse essa
despesa, assim como não me senti à vontade quando acordei
com uma Remington novinha em folha e empacotada para pre-
sente ao lado da cama. Mas sabia que não eram exorbitâncias
inconseqüentes, na situação em que ela se encontrava, e que
o meu salário no jornal teria adiado infinitamente aquele ma-

26 Nei Lisboa
ravilhoso momento em que nos livramos, ambos, da agonia
da máquina antiga – onde a rebeldia de algumas teclas era
capaz de transformar “Remington empacotada” em “ e ing on
e paco ada”.
No fundo, vivia um misto de orgulho e inveja por aquela
figura de insólita beleza, capaz de construir para si um patri-
mônio em obras de arte antes mesmo de completar a maiorida-
de e de compreender que o ser humano não é uma espécie con-
fiável.
– Você é que sempre enxerga as coisas pelo pior lado.
– Não é isso.
– Claro que sim, e o que teria de mais, eu acho bárbaro que
possa fazer uma exposição aqui no Iate Clube, bem ao lado do
porto, acho até que devo isso a Matias. E além disso preciso de
mestre Severo por perto, quero umas fotos dele com Adriana
na inauguração e sei que ele não iria, se fosse noutro lugar.
Ela realmente não queria discutir o assunto, não no meu
aniversário. Eu não tinha nada contra o caso de Adriana com
mestre Severo, eles que se entendessem o tanto possível entre
um pescador de sessenta e cinco anos e uma adolescente punk
de última hora. Mas não suportava Matias, um mestiço atarra-
cado e metido a faceiro, secretário do clube, que todos os me-
ses batia à nossa porta para receber o aluguel de um apartamen-
to que dizia ser dele, mas sobre o qual não decidia nada sem
que antes tivesse de “consultar o sócio”. De tanto meter o nariz
porta adentro, terminara por sugerir à Cherry que montasse a
exposição na “galeria” do Iate Clube, um salão envidraçado onde
as ondas rebatidas do costão já haviam transformado em banho
de piscina um jantar solene do Rotary Club local.
– Já trocaram, não são os mesmos vidros. Ele me garantiu
que resistiriam a um maremoto, agora.
– Mas não é isso, é a cara do sujeito. Dá pra ver que vende-
ria a mãe, se achasse que a cotação valia a pena.
– Só porque ele é índio.

Um morto pula a janela 27


Ai, meu deus, nem ela acreditava numa bobagem dessas.
Eu precisava do socorro de alguém, mas era cedo demais para
que pudesse contar com os outros convidados. Pablo Trobo e a
esposa acabavam de dar a volta no atelier parando à frente de
cada uma das telas, ele quase encostando os fundos de garra-
fa nas pinturas e ela espichando um rabo de olho até a nossa
conversa.
– E o próprio apartamento. É muito estranho, esse cara.
Nunca vi alguém alugar um apartamento desse jeito, sem con-
trato, sem garantia, só pedindo pra olhar um documento.
– E daí? Vai ver gostou do meu nome.
– Hein?
O psicólogo se intrometeu na discussão. Bem a tempo,
porque eu estava prestes a lançar mão de um golpe baixo.
– Nada não – desconversei – Ela quer expor os barcos no
meio da baía, só isso. Muito real.
– E como é o seu sobrenome? – Ele se interessara por aquele
assunto perigoso.
– Ginsberg.
– Olívia. Olívia Ginsberg.
– Cherry Ginsberg – Ela me fuzilou com o olhar.
Ele ajeitou os óculos no nariz, e parecia ter pronto um dia-
gnóstico que iria revelar ao paciente omitindo as partes obsce-
nas. De repente, mudou de assunto.
– Este quadro, aqui ao lado da janela, é bem diferente dos
outros…
– Ah, não, claro, este não faz parte da série. Foi minha mãe
que pintou, há anos. Sou apaixonada por ele.
– Hum… Ela também é pintora, então.
– É. Foi ela que me ensinou. Todo o básico da pintura, pelo
menos. Mas agora já deixou de lado os trabalhos dela mesma.
Casou com um marchand e administra uma galeria em São Paulo.
– Ah, que interessante, não? No Uruguai é o que chama-
mos de…

28 Nei Lisboa
Laura Trobo examinava a pintura da mãe de Cherry, alheia
às especulações do marido. Era uma tela impressionante, de
fato, dois metros por um, talvez. Um pouco maior que as de
Cherry, embora estas produzissem um efeito longilíneo com o
comprimento perpendicular ao chão. Na verdade, me parecia
um desperdício de tinta.
– … Uma derivação do trabalho de Freud sobre…
– Curioso, parece meio manchada nas bordas, “mira, Pa-
blito, como se escurece acá, ahn”.
– É o verniz – esclareceu Cherry – Vai ficando encardido
com o tempo. E também algumas cores, que desbotam mais fá-
cil que outras. Parece que ficou exposto à luz em excesso logo
que ela pintou.
– E onde foi isso? – perguntou o psicólogo.
Cherry parecia incomodada.
– Não sei bem. É algum lugar no litoral de São Paulo, perto
de Ubatuba. Minha mãe já não lembra o nome, e é impossível
identificar a praia, aqui embaixo.
– Claro, como está “se parece todo la mar” – concordou
Laura Trobo.
– Hum. La mar – poetizou Pablito. – El barco sobre la mar.

Foi do mar que vivemos, ou quase isso, durante dois me-


ses e meio, e aí se poderia descontar as cervejas, os milhos cozi-
dos e, claro, as gloriosas baforadas de um Coronado que Gusta-
vo conseguisse contrabandear de algum patrício e que sabore-
ássemos estendidos na areia de barriga pra cima. E seria a última
coisa que nos lembraríamos de listar, até porque as espirais de
fumaça se desfaziam bem à frente de nossos narizes e estaría-
mos muito adiante disto, investigando na imensidão azul a
possibilidade de Úrsula fritar os peixes com óleo de baleia, por-
que então estaria completo, e bastaria que parássemos de co-
mer milho e de beber cerveja para que começassem a nos cres-
cer escamas pelo corpo, e se não me enganava podia avistar al-

Um morto pula a janela 29


gumas surgindo no rosto de Cherry quando se enquadrava na
minha visão do paraíso deixando pingar as gotas geladas que
trouxera do mar pelo prazer de incomodar uma felicidade im-
perfeita. E já não o seria mais, porque então seria o mar dos
olhos verde-azuis e mergulhar atrás de seios dourados de uma
sereia, dourados como todo o resto que era acordar e correr para
a praia e esperar que o sol curtisse a pele e as idéias até a hora
de voltar ao porto e jantar no Maxim’s começando com uma
porção de mariscos e terminando com o relógio que me empur-
rava para o jornal às dezoito horas e cinqüenta minutos.
Talvez nem tanto, porque também houve os dias de chu-
va e de um céu espesso, cinzento, que reservamos para os li-
vros e o cinema ou para uma sessão de cartas, as duas Reming-
ton tac-taqueando lado a lado. Sempre alguém receberia notíci-
as de que “es á udo be po aqui” e de que pensávamos em visitar
as famílias quem sabe em julho ou agosto, depois da exposição
de Cherry e quando eu pudesse tirar férias do jornal.
Eram as piores horas, as que tinha que passar corrigindo
os erros de uma redação quase alfabetizada porém caquética,
funcionários públicos e políticos aposentados sob a orientação
suspeita do dono do jornal, aliás, dono também de duas rádios,
uma emissora de televisão, uma rede de supermercados, uma
floricultura, duas casas noturnas, e da maior parte dos terre-
nos que vinham sendo loteados ao norte da praia.
Apesar disso, sempre que possível eu preferia estar do lado
de lá dos tabiques a ouvir os comentários desagradáveis de
Marion e Eliete sobre a “pornografia” em que estivesse se trans-
formando a novela das oito, ou sobre “o marido da fulana que
dorme com a vizinha da beltrana”, e mais mil babaquices do
gênero. Ao menos tiraram férias alternadas, durante o verão,
mas em março, quando se reencontraram, o ti-ti-ti moralista
atingiu o limite do insuportável, e passei a tomar oito cafezi-
nhos por dia procurando uma desculpa para arejar os ouvidos
no outro canto da sala.

30 Nei Lisboa
Foi durante uma dessas overdoses de cafeína que me tor-
nei amigo de Wilmar, editor-chefe e aparentemente a única
pessoa esclarecida naquele matutino de doidos. Fora galgado
ao posto por conta de uma experiência de anos em um jornal
do Rio de Janeiro, embora estivesse bem abaixo da média de
idade da redação, e era hábil em satisfazer os interesses do dono
da empresa ao mesmo tempo em que encontrava espaços para,
aqui e ali, expor as sacanagens locais e do resto do país.
Eu havia aproveitado um tempo livre para escrever um
artigo sobre a especulação imobiliária, a destruição ecológica e
outros males caricatos que o turismo desenfreado pro-
porcionava à cidade. Na primeira oportunidade, pedi a ele que
levasse pra casa, o artigo, e que me desse uma opinião, se pos-
sível não muito sincera. Achou graça, mas no outro dia man-
dou me chamar assim que cheguei no jornal.
– Pô, rapaisch, não sabia que você eschcrevia.
Disse a ele que eu também não sabia, mas era espírita, e
de vez em quando recebia o Paulo Francis.
– Pensei que só recebessem defuntuisch.
– Pois é.
Mandou que eu cortasse pela metade aquele calhamaço de
denúncias quixotesco e, então, quis publicar. A partir daí começou
a me passar pautas todas as semanas, em geral sobre algum assun-
to em que o ardor revolucionário que eu porventura imprimisse
ao texto pudesse servir como uma fachada liberal da qual o jornal
andava necessitado. Volta e meia descia comigo, às meias-noites,
pra um gole de cerveja antes de fechar a edição do dia seguinte.
– O home me disse que gostou muito do seu artigo.
– Filho da puta.
Acabou se cansando, por um lado, e de outro me con-
vencendo que o mundo era maior que uma bola de basquete e
que o Paulo Francis, no mínimo, era bastante vivo.
Numa segunda-feira de abril, quando eu já pensava em
amargar uma aposentadoria como revisor de jornal, me chamou

Um morto pula a janela 31


pra uma conversa séria. Um dos redatores da política tinha ba-
tido as botas. Dinamitara três pontes de safena com uma chur-
rascada de domingo.
– Você acha que segura a redação?
Eu seguraria com os dentes, se não tivesse dois braços.
Olhei pra mesa vazia do defunto, coitado, sempre escre-
via repercussão com cedilha. No outro segundo já estava jun-
tando minhas coisas detrás dos tabiques, pensando na Olivetti
98. Carrinho longo. Só minha.
Eliete e Marion comentavam a outra desgraça do fim de
semana, que rendera uma chamada de capa naquele dia. Um
negro matara a pauladas uma figura conhecida na cidade, gay,
“agitador cultural”, como a coluna social costumava se referir,
e quase sempre envolvido com cocaína.
– Pra mim foi bem feito – dizia a primeira. – Claro, o negro
também deve ter tido a sua culpa nessa história. Afinal, o que é
que ele estava fazendo na casa do outro?
– Se é negro, minha filha – respondeu Marion, remexen-
do o loiro oxigenado dos cabelos. – pode ter certeza de que boa
coisa não era.
Não deixei que elas tivessem o prazer de descobrir para
onde eu estava me transferindo, até que me acomodasse na
escrivaninha nova e passasse a examinar as matérias de arqui-
vo que Wilmar me alcançara. No final da noite já não estava tão
seguro da minha competência, mas era tarde para voltar atrás.
– Amanhã às duas. E vai com calma, rapaisch – Ele se des-
pediu.
Cherry ficou eufórica com a notícia, mais do que eu àque-
la altura, e foi um estímulo implacável durante as difíceis pri-
meiras semanas, chegando a interromper o mergulho nos dois
últimos quadros da exposição para assessorar um projeto de
jornalista em crise. Assim que as coisas se assentaram, contu-
do, ela retomou o trabalho e eu comecei a passar para o papel
uma história que ficara devendo aos tempos de revisão. Era um

32 Nei Lisboa
drama kafkiano repleto de palavrões e sodomia e espancamen-
tos, o desespero de um negro homossexual confrontado com
um parceiro que, de bom rapaz, se transformava em sádico as-
sassino. E com muita cocaína no meio.
Quando terminei, atravessei os tabiques com duas cópias
xerocadas na mão, que joguei sobre as mesas de Marion e Elie-
te antes de dar as costas e me divertir com os primeiros comen-
tários sussurrados entre as páginas do conto.
– Olha aqui… e ainda promovem…
– Eu é que não me importo. Qualquer dia desses… – Esca-
pei de ouvir, deixando a porta se decidir sozinha no vaivém das
molas.

O vernissage dos “Holandeses Voadores” de Cherry Gins-


berg, no Iate Clube de Ibiraí, foi descrito pela coluna social do
jornal como “o acontecimento forte da temporada”, mostrando
toda a “força e originalidade do trabalho da jovem artista” ao
unir sob o mesmo teto nomes importantes da sociedade e da
política, e “personagens típicos da nossa fauna nativa”.
A matéria vinha ilustrada pelas fotos de Cherry ao lado de
uma tela, de Matias junto com um senador da república, e de
Adriana abraçada a mestre Severo. A presença do velho pescador
dera o que falar, naquela noite, às rodas de convidados e socia-
lites escandalizadas, mas era parte do acordo com Matias, e Cherry
fez com que fosse cumprida. Ela era cabeça-dura nesse tipo de
coisas como, aliás, em todo o resto. Tentei, diversas vezes, que
ela revisse a decisão de montar a exposição no clube, poderia tê-
lo feito em São Paulo, se quisesse, ou ao menos que não deixasse
Matias intermediar a venda dos quadros. Não quis nem falar so-
bre o assunto, alegando que era um problema dela e que – o que
era verdade – nunca se metia no enredo dos meus contos.
Assim, numa tarde de sol do final do outono, os quadros
foram transferidos para o salão envidraçado do clube. Saí mais
cedo do jornal, ansioso de observar a chegada e a reação dos

Um morto pula a janela 33


convidados, e tive que dar razão a Cherry, derrotado pela bele-
za magnífica das telas amarelecidas pelo crepúsculo e das on-
das que dançavam detrás das vidraças. Não tardou a que sur-
gissem colares, longos, peles, relógios de ouro, o flash dos fotó-
grafos, o tilintar das taças. E assim o foi por toda a noite, Cherry
manejando os sprays de verniz, suavemente concentrada, in-
terrompendo o trabalho para escutar algum comentário deslum-
brado e banal ou para apertar a mão do senador que “infeliz-
mente teria de ir embora mas gostaria muito de conhecê-la”, e
até que o salão se esvaziasse e ficasse apenas um cheiro de su-
cesso e de perfumes no ar.
Andréa não pudera vir, abatida por uma gripe, e assim
Gustavo e eu fizemos uma dupla do funil, postados próximo à
entrada dos garçons. Ríamos muito, examinando a maneira aten-
ciosa como alguns convidados se despediam de Cherry em con-
traste com o nariz empinado com que se afastavam rapidamen-
te de mestre Severo. Este parecia decidido a afogar de uma só
vez as mágoas de uma vida que trazia riscadas no rosto. Bebeu
um estoque de cachaça, durante a noite, provocando a ira de
alguns com um falatório exaltado e merecidamente vaidoso
sobre as belas molduras que fabricara, restaurando tábuas ama-
relas de um antigo barco desmontado no porto.
Quando tudo terminou, fomos pra casa. Cherry estava
exausta mas alegre, até porque acreditava que o sucesso da
exposição revertesse em bons negócios com os quadros, que
Matias já devia ter encaminhados. A situação em São Paulo
não era das melhores, pela carta angustiada que recebera da
mãe dizendo que não viria para o vernissage. Passava por um
período crítico, prestes a desmanchar o segundo casamento e
abandonar a galeria de arte, sem meios de ajudar a filha com
algum dinheiro. E os quadros da primeira exposição, todos
vendidos em São Paulo, já haviam se transformado em mu-
danças, telas, tintas, molduras e, uma boa parte, nas cervejas
do verão no Maxim’s.

34 Nei Lisboa
De fato, no dia seguinte Matias apareceu para parabenizá-
la pela inauguração e apresentar o seu relatório com um sorri-
so de camelô. Disse que houvera feito alguns contatos, que sen-
tira interesse por parte de alguns convidados, mas que isto já
não importava mais. A boa notícia era que o clube se decidira a
comprar todos os quadros. Menos, é claro, os dois últimos da
série, que Cherry ainda não pudera envernizar e que queria con-
servar para si. De resto, o “sócio” o autorizara a arrematar por
um bom preço as outras sete telas da exposição e o que mais
ela tivesse pronto.
– Inclusive este.
Apontava para o quadro amarelo, no qual Cherry estivera
trabalhando desde cedo removendo o verniz encardido. Ela re-
trucou que isso era impossível, que o quadro sequer era dela,
que o houvera resgatado do sótão de casa, em São Paulo, soter-
rado por outras tantas tralhas, que o embarcara na mudança sem
que a mãe soubesse mas que esta já houvera reclamado pela
falta dele, e que pretendia devolvê-lo assim que o restaurasse.
Ele não se alterou.
– Bem, a oferta está de pé, no caso de ela querer se desfazer.
Manteve também a proposta de arrematar os quadros da
exposição, o que, naquele momento, era como perguntar a um
rato se aceitaria um pedaço de queijo. Cherry mal se preocu-
pou em questioná-lo sobre o destino das telas, contentando-se
com uma vaga explicação sobre a “motivação cultural das em-
presas do sócio” ou a possibilidade de recolocar algumas delas
no próprio e exíguo mercado de arte de Ibiraí. Atropelou a ofer-
ta de Matias sugerindo que parcelassem o montante em três
ou quatro pagamentos, que estaria tudo bem, que confiava nele
para acertar os detalhes. Este mal havia dado as costas e ela já
estava comemorando aos gritos um negócio que me parecia, para
dizer o mínimo, estranho.
É claro que eu me alegrava com a idéia de que tudo sairia
como planejado, de que partiríamos juntos no caminho das fé-

Um morto pula a janela 35


rias e de reencontrar as famílias. Wilmar me concedera trinta
dias, com data marcada e sem direito a recurso, e Cherry, com
dinheiro no bolso, vivia agora o prazer de confirmar a sua pró-
pria viagem. Um prazer que foi se desfazendo e revelando seus
temores internos à medida que ela pincelava o removedor so-
bre o quadro, retirando o verniz encardido e encardindo a pró-
pria aparência, entristecida, preocupada, preocupante.
Terminou no dia de irmos embora, com lentidão, como se
não quisesse ver o que quer que estivesse descobrindo e que
eu, por mais que me esforçasse, não conseguia distinguir. Para
mim parecia apenas que o quadro se valorizava, os tons claros
realçados resgatando as formas de um barco ancorado em meio
ao borrão de mar amarelo – e nada mais do que isso.
– Então, mas isso tudo não faz sentido… – balbuciava como
louca.
Lembrei do conto que havia escrito, sobre o negro homos-
sexual desesperado. Tinha de tudo um pouco. Menos consis-
tência.
– Às vezes não é tão importante que faça sentido – tentei.
Eu só queria ajudar. Pouco me interessava o borrão
– Só se for pra você… – suspirava.
Quando terminamos de arrumar as malas me pediu para
ajudá-la a levar o quadro até o Maxim’s. Exigiu de Valter que
fizesse segredo daquilo e que não entregasse o quadro sob pre-
texto algum
Voltamos ao apartamento para apanhar a bagagem e ela
afinal se dignou a atender aos meus pedidos de explicação.
– Gato, se você não percebeu ainda – A frase bateu no fun-
do da minha inteligência e ficou picando. Estava vazia – experi-
mente cortar a árvore.

36 Nei Lisboa
A árvore da família. Qualquer um saberia. Qualquer um
diria o mesmo. É psicotécnico. Não sei de onde tira essas coi-
sas. Não posso ligar. Não posso ligar pros palpites dela. Quer
consistência. Ação. Frases curtas. Tiroteio. Telenovela. Brigitte
Montfort. Chama isso de realismo. Quero ver quem analisa o
desespero de um psicólogo negro bissexual confrontado com
um parceiro bom rapaz que se transforma em sádico assassino.
Uma gilete cravada em cada olho. Rá. Não dá pra escrever com
ela. Sem ela. Caminhando pela casa. Não consigo achar os pon-
tos. Não consigo me controlar. A vizinhança me perturba. E é
real. Tão real quanto Cherry. A gostosa. Como é que eu fui dar
uma cagada dessas. Agora quer explicação. Quer que eu conte
toda a verdade. Rá. Não tenho que explicar nada. Preciso com-
prar um relógio. Pequeno. Um pouco maior que o Big Ben.
– Oi.
IV

Cortar a árvore. Era o que ela me dissera pra fazer, no dia


em que viajamos. Fiquei com aquilo martelando na cabeça du-
rante as férias. Um certo mau humor, uma estranha sensação
de irrealidade. Como o suor sobre uma toalha branca e bules
fumegantes de inverno. Como caminhar com os pés gelados até
a cozinha e enfiar a cara dentro de um saco de bolachas. Como
estar em casa e pedir licença. Como a família. E a lembrança
daquela frase. Cortar a árvore.
Fiz de cego enquanto foi possível. Mas depois já não tinha
onde esconder a certeza de que tudo era familiar demais para que
pudesse ser verdadeiro, uma imagem invertida num espelho.
Então comecei a preparar a mala e a reclamar do frio, quase sem
perceber, resmungando que talvez fosse bom voltar pra casa mais
cedo. Um ou dois dias, quem sabe, para pôr as coisas em ordem
antes do primeiro dia no jornal. Deixando adeus, até à vista, le-
vando quase nada. E a lembrança daquela frase. Cortar a árvore.
Foi bom estar na estrada de novo, voltar à cidade, rever o
porto, o apartamento, caminhar pelo atelier vazio. Sentir a pre-
sença de Cherry – reinventá-la, de certa forma. Como a perso-
nagem de um conto que se houvesse escrito e que pulasse fora
da página ainda fresca. Cheia de arestas. Sem revisão. Um ser
incompleto e nebuloso perdido dentro da realidade do autor.
Talvez não tivesse nome, ainda, e aí atenderia por todos eles e
qualquer um, Raquel, Dulcinéa, Patrícia, Maria Helena.
Teria de ser numa tarde de chuva como aquela. Então pas-
sei a dedilhar na máquina uma história parecida, entre goles

38 Nei Lisboa
de café, cigarros, pingos nas vidraças, até que as idéias come-
çassem a piscar e a estiada da noite me levasse ao Maxim’s.
Estava tonto, esfomeado, e ainda pensando naquela frase. Cor-
tar a árvore.
Valter saudou meu retorno das férias, perguntou por Cher-
ry, serviu uma tainha assada de primeira. Parecia quase huma-
no. Na hora de ir embora, me lembrei do quadro.
– Non, non posso entregarrr. É segrrredo.
Argumentei que eu soubera daquele segredo antes dele,
que Cherry era minha esposa – ou algo parecido, não importa –
que deixasse de bobagens e fosse buscar o quadro antes que a
chuva recomeçasse. Sumiu pela porta dos fundos, ao lado da
cozinha, e voltou carregando a tela. Meio a contragosto, em
dúvida sobre estar fazendo a coisa certa.
– Non sei non. Otra dia chá teve um chaponeis, aqui.
Contou que o japonês pedira uma tainhota crua com shoyu
por cima, e saquê. Puxara uma conversa estranha sobre barcos,
pinturas, loiras ruivas, jornalistas e quadros amarelos. Pagara a
conta com um cartão do Citibank.
– Non disse nada prrrele.
Não dei muita atenção àquela história, provavelmente fora
apenas uma série de coincidências. Fui pra casa e pendurei a
tela no seu lugar de honra, em frente ao sofá e junto à janela
lateral, antes de capotar num sono profundo.
O segundo dia repetiu o primeiro, a chuva, café e cigarros, o
conto, embora as marteladas da frase na cabeça houvessem au-
mentado de intensidade. Bati o ponto final da história já ao cair da
tarde e então quis investigar a árvore – o plátano das folhas ama-
relas, no outono, quase nu e esmaecido pelos rigores de julho.
A estiada da noite chegara um pouco mais cedo, desta vez.
As águas da baía e o costão sul, que eu intuía através da rama-
gem seca do plátano, se iluminavam com raios tímidos de sol,
filtrados entre as nuvens antes que ele sumisse às costas do
edifício, por trás do morro.

Um morto pula a janela 39


Teria tido a visão de um mar quase amarelo, de pedras re-
luzentes e douradas no costão, se pudesse cortar alguns galhos
do alto da…
Cortar a árvore… Então era isso…
Saltei para o meio da peça. Olhava a parede lateral do ate-
lier e o que via, agora, eram duas janelas abertas uma ao lado
da outra. Distanciadas no tempo, apenas.
Fui examinar o quadro de perto. Como pudera não perce-
ber antes… O que me parecera apenas um borrão amarelo pin-
tado pela mãe de Cherry, agora ganhava os contornos familia-
res do costão sul, à direita, desbotado, figurativo, impreciso, mas
absolutamente reconhecível. O que se pensara ser uma costa
litorânea rajada e encardida pelo verniz, correndo logo abaixo
da tela, não era mais do que a copa de um plátano, aquele plá-
tano, amarelo de algum outono e desfigurado pelo tempo trans-
corrido desde que se pintara o quadro. O tempo em que a árvo-
re crescera, até encobrir a paisagem da janela e nublar a evi-
dência de que a tela fora pintada naquele apartamento.
Sem dúvida. Não havia outra hipótese plausível. Outro
edifício, outra vista como aquela. A mãe de Cherry, de alguma
forma, havia estado ali. Não seria tão estranho, em se tratando
de alguém que havia vivido anos na cidade. Mas era estranho
que houvesse ocultado o fato. E Cherry avistara nisso algum
sinal de perigo, ao se preocupar em esconder o quadro no
Maxim’s.
Lembrei de Pablo Trobo. “La mar. El barco sobre la mar”. O
barco que havia ali. Um veleiro amarelo. Uma escuna.
– Uma escuna misteriosa.
A frase veio como um suspiro que eu mesmo houvesse
pronunciado, mas era ela, Cherry, que se recostara no sofá, igual-
mente mergulhada no quadro. Ainda tinha os sapatos penden-
do de uma mão, a prova de que se houvera intrometido sorra-
teiramente no apartamento. Planejando um flagrante, talvez,
ou uma surpresa agradável, um dia antes do previsto.

40 Nei Lisboa
Achei que aquele era um delito passível de condenação
imediata e sentenciei-a a quatro ou cinco horas, nua, debaixo
das cobertas, tomando o cuidado de colar-me nela para evitar
que fugisse.
Na noite alta, depois que os suspiros se acalmaram, nos
vestimos e fomos ao Maxim’s. Só então ela começou a falar.
– Eu era muito pequena, mas a imagem do quadro deve
ter ficado gravada na memória, sei lá. E minha avó vivia falan-
do em Ibiraí. Dizia que nunca teria ido embora daqui não fosse
a morte do meu avô. Aquele “dinamarquês cabeça-dura”, como
ela chamava.
Sei. É de família.
– E ele morreu de que, mesmo?
– De tuberculose, segundo eu sei. Mas o que interessa é
que depois o quadro foi parar no sótão, e ficou lá até a época
em que eu comecei a pintar. Eu tinha uns oito, nove anos. Foi
logo depois que morreu a minha avó.
– E ela morreu de que, mesmo?
– Do coração. Pô, gato, não incomoda.
Eu precisava lembrar. Poderia ser uma pista. Se é que exis-
tia algum mistério.
– Bem, por essa época a minha mãe andou tirando o qua-
dro do sótão, já manchado, irreconhecível. Foi aí que me disse
que era uma praia perto de Ubatuba. Eu sempre acreditei nessa
história, mas, no fundo, alguma coisa me puxava para aquela
paisagem do porto. Para o lugar verdadeiro.
– E por isso veio parar no apartamento.
– Claro. Quis passar um verão em Ibiraí, mais para conhe-
cer a Lagoa, onde a minha mãe nasceu. Acabei me apaixonando
pelo lugar, conhecendo as gêmeas e voltando pra morar com
elas no outro ano. Mas comecei a me fascinar pelo porto, por
essa rua, pela vista da baía naquele ponto da rua. Só não sabia
bem por quê. Agora já sei.
– Ótimo. Tudo certo, então.

Um morto pula a janela 41


– Pô, gato.
– Ah, sim. A tua mãe. O que foi que ela disse?
– Pois é. Disse que teve um amante, aqui, antes de mudar
pra São Paulo e se casar com meu pai. Disse que o meu avô era
ciumento demais dela. Tinham que se encontrar às escondidas,
por isso o tal amante alugou o apartamento. Disse que depois
se separaram, nunca mais se viram, mas que ganhara dele as
telas e o material de pintura com que pintou o quadro. Isso foi
o que ela disse.
Já era alguma coisa.
– Mas não sei – ela franziu a testa sobre o cálice de vinho.
– A minha mãe é uma pessoa estranha. Olha só, primeiro passa
a vida me dizendo que começou a pintar em São Paulo. Que
aprendeu com os livros que o meu pai deu pra ela. Aqueles,
com a dedicatória e as iniciais.
– P. J. – Fiz um esforço pra lembrar. – Como era mesmo o
nome dele?
– Paul Junker.
Claro. Sempre me lembrava, na hora do banho.
– Então – continuou –, agora vem com a história do aman-
te e de que já pintava em Ibiraí.
Pintava e bordava, pelo jeito.
– Assim como o quadro. Primeiro me dizia que não valia
nada, que por ela ficaria mofando no sótão. Depois fica apavo-
rada, neurótica, quando descobre que eu trouxe o quadro comi-
go. E agora, durante as férias, me diz que não importa, que eu
faça o favor de vender o quadro pra ela por aqui.
– Vender o quadro?
– E ainda tem a história do barco.
– Que história?
– Ela disse que era um barco qualquer ancorado na baía
nos dias em que ela pintou o quadro.
– E por que não seria? – perguntei.
– Acontece, gato – inclinou-se para a frente e apertou os

42 Nei Lisboa
olhinhos –, que eu conheço aquela escuna. E sou dona, de uma
pequena parte dela, pelo menos.
– Como assim?
Se continuasse a apertar os olhinhos daquele jeito ia aca-
bar ficando no escuro.
– As molduras das telas. Foram feitas com pedaços daque-
le barco, tenho certeza. Fui com Severo até um armazém do porto
para escolher as madeiras e vi, eu vi, gato, a proa daquela escu-
na. Ou um pedaço dela, quase intacto. Não existem muitas es-
cunas amarelas com uma proa daquelas no mundo. Quanto mais
no porto de Ibiraí.
– Sim, e daí? Mesmo supondo que fosse o mesmo barco…
– Acontece que resolvi perguntar a Severo sobre a escuna,
só por perguntar. Primeiro ele ficou fazendo mistério, disse que
havia uma história antiga relacionada com ela. Disse que ele
não podia contar. Achei que era fantasia dele, sabe como é o
Severo, estava gostando de brincar com o segredo. Mas depois
parou de falar no assunto. Isto é, depois da primeira vez que foi
lá em casa. Passou a me olhar de um jeito estranho. Ou seja,
posso apostar que ele reconheceu o quadro. E que há muito di-
nheiro envolvido nessa história.
Agora era eu que falava em fantasia. Aquilo já era ir longe
demais. Por via das dúvidas mudei de assunto. Perguntei como
fora a viagem de volta. Disse que um japonês enorme sentara
ao lado dela. Estranho. Repeti pra ela a história que Valter me
contara.
– Provavelmente – ela disse –, apenas uma série de coinci-
dências.
Perguntei se aquilo era uma ironia.
– Gato – desconversou –, vamos embora. Amanhã bem cedo
quero estar no clube pra rever a exposição. Você já voltou lá?
Falei a ela sobre a chuva, o conto. Não tinha dado tempo.
– Espero – comentou, enquanto pulava a janela –, que ain-
da esteja lá.

Um morto pula a janela 43


Não estava. Matias alegou que não tivera como esperar o
tempo combinado, antes de levantar a exposição. Problemas com
o transporte. A companhia aérea só aceitara a encomenda para
um dia específico, veja só. Mas garantiu que a visitação fora gran-
de, e guardara, bem guardadas, de fato, as duas telas não enver-
nizadas que ficariam com Cherry. As outras haviam seguido di-
reto para o escritório central das empresas do sócio, em Brasília.
– Ah, o sócio.
Acabávamos de descer a escada para apanhar os quadros
no depósito do porão do clube. Aquele assunto do sócio miste-
rioso me provocava comichões. Tinha vontade de abrir a barri-
ga de Matias pra ver se saía um sócio de dentro.
– Como é mesmo o nome dele?
– Tenho certeza de que estão por aqui, em algum lugar…
Ele fez que não ouviu a pergunta e seguiu procurando os
quadros. Cherry mordia os lábios de preocupação. Afinal achou.
– Ah, aqui estão.
– Como é mesmo o nome dele?
– Ok, agora podemos subir.
Sujeitinho irritante. Resolvi mudar a abordagem e pergun-
tar qual era o ramo de negócios do sócio. Explicou que ele fazia
investimentos nas mais diversas áreas, e era diretor-presiden-
te de uma holding multinacional distribuidora de shoyu que
agora começava a produzir televisão em cabo.
– Em cabo de guarda-chuva. Ideal para quem fica muito
tempo no ponto de ônibus. E as varetas servem como antena
parabólica.
Não dei muita atenção àquela história, provavelmente, sei
lá. Estávamos indo embora quando ele tropeçou nos calos de
Cherry.
– Bem, menina, sobre aquele quadro da sua mãe… Tenho
certeza de que podemos negociar um bom preço por ele.
Cherry raramente ficava furiosa. Mas eu não gostava de
estar por perto quando ficava.

44 Nei Lisboa
– Não – respondeu. Tinha a voz firme, as bochechinhas
vermelhas, os olhos colados nas fuças dele. – Não vou vender o
quadro da minha mãe. Afinal, nem sei por que tanto interesse
por um trabalho que é quase amador.
Ele desconversou, disse que não era o quadro em si, ape-
nas o sócio tinha uma certa urgência em ampliar o acervo cul-
tural das empresas. Mas se ela não queria vender, ponto final,
o assunto estava encerrado.
– Então, por favor, não volte a insistir.

Ele não voltou a insistir. Aliás, nem apareceu mais, pas-


sando a mandar um boy pra receber o aluguel. Da nossa parte
esquecemos o assunto por um bom tempo, Cherry ocupada com
os esboços de uma nova série que queria começar a pintar an-
tes do verão, e eu me dividindo entre copidescar matérias de
agência nas tardes do jornal e amassar folhas rebatidas à noite,
tentando encontrar uma idéia digna de um conto.
Por essa época, comecei a trocar o cafezinho da redação
por uma esticada de pernas até o boteco da esquina no meio da
tarde. Ganhava, com isso, a chance de adoçar a gosto o café e de
ouvir as histórias dos velhos jornalistas que se reuniam ao re-
dor do balcão – em especial de Melchíades, editor de polícia,
sempre pigarreando, ajeitando o casaco surrado e conferindo a
audiência por cima do ray-ban antes de começar a falar.
– Cinco tiros. E dezessete facadas. De-zes-se-te. Não era um
presunto, era uma peneira – costumava dizer, antes de mergu-
lhar o nariz num copo de Campari.
Numa dessas sessões satânicas, e por conta de um assas-
sinato misterioso que andava nas páginas dos jornais, ele aca-
bou puxando da memória o primeiro caso que lhe fora dado
investigar no Diário de Ibiraí, vinte anos antes. Era a história
de um corpo que viera dar na praia depois de vários dias no
mar e que nunca fora possível identificar com certeza. O laudo
apontara perfurações de bala, mas não havia testemunhas de

Um morto pula a janela 45


coisa nenhuma e o inquérito acabara sendo arquivado. De for-
ma suspeita, segundo ele, e antes de concluída a investigação.
Achei que aquela história renderia mais do que um conto, e
quis procurar as matérias sobre o caso no arquivo do jornal, nas
datas aproximadas que Melchíades me passara. Para minha sur-
presa, o japonês recém contratado para o arquivo informou que as
edições daquela época haviam se extraviado. Fui reclamar com o
editor-chefe, como era possível que uma coisa dessas acontecesse.
– Rapaisch, acontecem mais coisas entre o céu e a terra…
– Wilmar saiu com essa. Devia estar de mau humor.
Argumentei que estávamos mais próximos do inferno, já
que a revisão, com Marion e Eliete, era um purgatório de pri-
meira. Mandou que eu esquecesse o assunto e me concentrasse
na matéria sobre a implantação do pólo turístico.
Eu já vinha trabalhando naquilo há dias e não demorei a
aprontar. Era uma matéria para o caderno especial de domin-
go, sobre a repercussão em Brasília do projeto – cavalo de bata-
lha de um senador – que praticamente entregaria metade da
cidade e a orla marítima, embrulhadinhas pra presente, a uma
multinacional japonesa. Quando terminei, deixei na mesa dele
e fiquei aguardando o veredicto.
Mandou me chamar.
– Rapaisch, você não é nenhuma criança. Vou publicar as-
sinada e você vai arcar com as conseqüênciash.
– Mas o que é que tem demais? – perguntei.
– Olhe aqui. “Lacaios instituídos do imperialismo”, isso é
coisa que se eschcreva?

“O azar é do goleiro”, pensei, quando vi a matéria impressa


com todos os pontos e vírgulas, sem lembrar que eu havia sido
escalado para o gol. Era um lindo domingo de primavera que
eu não ia estragar pensando naquilo, ainda mais quando está-
vamos comemorando dois aniversários, o de Cherry e o de Gus-
tavo, no Maxim’s.

46 Nei Lisboa
– Gripada de novo? – perguntei, estranhando o motivo da
ausência de Andréa.
– Si, flaco – lamentou Gustavo – No sé que passa, pero ella
está siempre acamada.
– É o ar da Lagoa – ajudou Cherry. – Muita umidade.
– É – concordei –, deve ser o ar da Lagoa.
– Claro – aceitou Gustavo – Porque está siempre acamada
y febril.
– Lá é muito úmido – confirmou Cherry. – úmido demais.
Adriana não dizia nada.
– Vinte uno, entonces – Gustavo saudou o aniversário de
Cherry.
– Pois é. – Ela pescou a deixa para alegrar o ambiente. –
Acho que é a idade ideal pra se trocar de namorado.
– Umidade demais – tentei ajudar.
Adriana não se mexia.
– Pô, mulher – Cherry chamou a atenção dela. – Fala
logo, vai, desencana, o que foi que aconteceu? Tá parecendo
Andréa.
Parecendo não, era igual. Ela arregalou os olhos.
– Cherry – Começou a falar devagarinho, como se estives-
se saindo de um sono profundo. – Aquela história do quadro
da tua mãe, que você me contou…
– Sim, o que foi?
– Lembra que você me pediu pra investigar com Severo
sobre o barco, como é mesmo…
– A escuna.
– A escuna, pois é. E ele disse que não sabia de nada, quan-
do eu perguntei. Parecia sincero, disse que tinha feito um mis-
tério em torno da coisa só pra incomodar. Sabe como ele é, quan-
do toma umas.
– Você já me contou isso tudo.
E como. Tinham passado uma madrugada falando do as-
sunto.

Um morto pula a janela 47


– Eu sei, Cherry – ela se acendeu –, mas depois eu come-
cei a ligar umas coisas. O porre que ele tomou na exposição. E
como parecia perturbado no outro dia.
– É normal – expliquei. Já tinham falado disso, também. E
eu já tinha tomado um porre na vida.
– Sim, e daí?
– Daí que esta noite eu fiquei com ele no barraco, cheguei
tarde, e de manhã não conseguia saltar da cama. Severo, pra
variar, acordou às seis. Como não iam puxar rede no porto, hoje,
ficou na frente de casa trabalhando umas madeiras. De repen-
te chegaram umas pessoas. Eu fiquei ouvindo as vozes, dava
pra perceber que era Matias…
Matias. Sempre Matias. Só faltava ter aparecido um japo-
nês.
– … e o outro acho que era um japonês, pelo sotaque.
Ficaram falando do tempo, de peixe, sei lá que mais, até que
tocaram no assunto da escuna. Matias prensou Severo sobre
as molduras. Disse que o dono do barco não tinha gostado
muito, que queria reaver os pedaços do desmonte que ainda
rolam por aí, e que Severo sabia muito bem de quem ele esta-
va falando. Aí mencionou um senador. O “senador da Praia
Bonsai”.
– Senador… – disse Cherry. – Pode ser aquele que foi no
vernissage.
– Acho que sim – Adriana concordou. – Mas Severo não
quis me contar nada. Ficou apavorado com a visita. Disse pra
eu não me meter naquele assunto, que era problema dele, e
saiu pra beber.
Senador. Senti uma comichão desagradável na memória.
– De qualquer jeito – ela concluiu –, eu já sabia que a Praia
Bonsai era de um magnata qualquer que só vem nos fins de se-
mana. Só não sabia que era senador.
– E talvez o sócio de Matias – Cherry foi mais adiante. –
Mas não dá pra entrar lá pra saber.

48 Nei Lisboa
Lembrei de uma excursão pelo costão, uma trilha no mor-
ro, a prainha ao lado de Ibiraí. Cercas de arame, cachorros, man-
são, heliporto. Senador. A comichão desagradável.
– Matias vai ter que me explicar isso tudo – disse Cherry –
Tenho um palpite, gato, de que Brasília fica bem mais perto do
que a gente imaginava.

Eu não imaginava nada, eu sabia. Aquela comichão nunca


me enganou. Ou era caspa ou algo muito sério. Cheguei em casa
e fiquei dando voltas no atelier, matutando aonde estaria a peça
que faltava naquele quebra-cabeças.
Resolvi reler o artigo que escrevera para o caderno de do-
mingo. Tinha sido publicado na página dois, logo ao lado do
editorial. Jogo de contrastes. “Lacaios instituídos do imperia-
lismo”, aquilo não me parecia tão forte. Tinha escrito imperia-
lismo com “n”, pra ver se Marion deixava passar. Não deixara.
Safadinha. Lacaia instituída.
De repente, saltou aos meus olhos.
– Cherry, vem cá, correndo.
Ela entrou meio assustada no atelier, ainda ajeitando o
modess na calcinha.
– O que foi?
– Olha aqui – Passei o jornal pra ela.
– Eu já li a matéria. “Lacaios instituídos do imperialismo”,
meio forte, não? E imperialismo não é com “n”?
Ai, meu deus. Mas ela pintava como ninguém.
– Não é isso, deixa pra lá. Olha o nome do senador.
O senador envolvido com o projeto do pólo turístico. O
dono da Praia Bonsai. O dono da escuna. O sócio de Matias. O
dono do apartamento. O senador do vernissage.
– É, pode ser o mesmo.
– Olha o nome dele.
– Plínio Jochlander. O que tem…
Ela percebeu. E caiu pra trás no sofá.

Um morto pula a janela 49


– P. J. – balbuciou.
Fui devagar pra não machucar aquele coraçãozinho de cris-
tal.
– Paul Junker provavelmente nunca existiu. Ou então é
uma série de coincidências. E o senador deve ter sido o amante
da…
– Ou o filho da puta do meu pai – ela disse, antes de des-
maiar.

Voltei pra casa no começo da tarde, segunda-feira. Estava


preocupado com Cherry. Não pelo desmaio, que durara menos
de um minuto, mas pelo resto da noite em que se angustiara
com a idéia de descobrir, aos vinte e um anos, que o próprio pai
não era um fugitivo desconhecido dado como morto na Alema-
nha, mas alguém de quem já estivera bem próxima, de quem já
apertara a mão, alguém que se omitira durante todo esse tem-
po e cuja existência fora ocultada pela mãe, pela avó. Alguém
de quem provavelmente era filha ilegítima, bastarda, mas reco-
nhecível o suficiente para que ele se visse obrigado a patroci-
nar-lhe a carreira de uma forma estranha, grosseira, amedron-
tada, como se tivesse algo mais a ocultar além da mera existên-
cia da filha, ameaçado por ela na sua integridade estúpida de
homem público, político inescrupuloso, alguém que, além de
tudo, era um lacaio instituído do imperialismo.
Voltei pra casa no começo da tarde, segunda-feira.
– Tá melhor?
– Tô – Ela não tirava os olhos do esboço, sentada à janela.
Voltei pra casa no começo da tarde. Afinal se tocou.
– Ué, gato, você não devia tá no jornal?
Devia. Agora eles é que me devem, pelo menos.
– Fui pra rua.
Fez chazinho, cafuné, bolo de mel, massagem, me chamou
de burro.
– Também, você tava pedindo, né?

50 Nei Lisboa
Tava. Agora podia escrever o dia inteiro. Assistir um por-
nô às quatro da tarde. Ir à praia. Procurar emprego.
– Não é nem por mim. Mandaram o Wilmar embora tam-
bém.
– Pô, que chato.
Lembrei do sorriso dele.
– Se bem que ele nem se importou muito. Disse que já tava
de saco cheio do jornal. Vai receber uma puta indenização, pe-
gar uma praia no verão e depois voltar pro Rio.
– Pique de carioca. Gato, tá superquente. Vamos tomar uma
cerveja no Maxim’s.
Não precisava dizer duas vezes. Pensei em quanto tempo
aquilo ia durar.
– Será que as empresas do teu pai não financiam o meu
verão?
Não teve graça nenhuma.
– Não sei. Não sei de mais nada – ela disse – Primeiro pre-
ciso ter certeza.

Um morto pula a janela 51


V

As coisas se precipitaram, certamente mais do que poderí-


amos ter imaginado. Primeiro o encontro com o pai de Cherry,
depois a morte de Severo e afinal um tempo em que as angústi-
as se consolidaram de tal forma que se poderia cortar em peda-
ços, com uma faca, o mormaço de tristeza que nos envolveu ao
final do ano.
Mas era preciso ter certeza, e ver de perto o que isto repre-
sentava. Então Cherry se pôs a envernizar um “holandês voa-
dor”. Era uma tela monumental, talvez a mais bonita entre to-
das, pintada em azuis ultramares e cores de terra, a proa ergui-
da e desafiante do navio pairando sobre águas calmas da baía.
Pediu que eu levasse a Matias na manhã de uma sexta-feira jun-
to com um cartão de “feliz dia dos pais”. Matias estranhou o
presente.
– E esse cartão?
– Faz parte da homenagem. Ela disse que o seu sócio é como
se fosse um pai pra ela.
Adriana ficou encarregada de fazer plantão na encosta do
morro, próximo ao clube. Ao meio-dia de sábado ela nos alcan-
çou descendo a rua a caminho de um almoço no Maxim’s.
– Estão levando.
Voamos até a avenida, a tempo de ver erguer-se o helicóp-
tero do pátio do Iate Clube. Era uma cena habitual dos fins de
semana no porto, levianamente desprezada.
– Quase não conseguem acomodar a caixa. Não sei como
levaram as outras, se levaram.

52 Nei Lisboa
– Então era como eu pensava. E a essa altura ele já deve
saber do cartão… – Cherry suspirava.
– Ok, Adriana, você fica. – Tomei uma dianteira paternal.
– Tudo bem. Só não errem a trilha.
A trilha começava próximo ao barraco de Severo e serpen-
teava entre as bananeiras até o topo do morro. Ali se dividia em
riscos incertos sobre a grama rala, oferecendo uma visão supre-
ma da baía. Escolhemos o caminho que nos pareceu mais níti-
do e, já do outro lado, pudemos avistar o helicóptero pousan-
do. Era uma vista igualmente linda, a praia deserta, misteriosa,
quase aterrorizante.
– Estão tirando.
Ao sinal de Cherry descemos a encosta buscando a seqüên-
cia da trilha entre os arbustos da Praia Bonsai, até que uma cer-
ca de arame farpado se atravessasse no caminho. A partir dali,
todo cuidado era pouco. O descampado que se abria à frente,
contornando a enseada da praia, nos tornava presas fáceis para
a família de dobermans que fiscalizava as fronteiras do lugar.
– Devia ter trazido um osso de borracha – lamentei, trê-
mulo, quando ouvi os primeiros latidos.
– Gato, não se mexe, fica frio.
Frio. Até parece. Gélido, isso sim. Sete ou oito daquelas
gracinhas vinham galopando colina abaixo, e estancaram um
pouco antes de virarmos guisado de segunda. Pelos sorrisos sim-
páticos e pontiagudos, dava pra perceber que era hora do almo-
ço. Eu estava rezando pra que aparecesse o Jaspion.
– Origami. Nagasaki. Toshibá.
O japonês apareceu do nada e debandou com os rapazes
narigudos na mesma hora. Depois fez sinal para que o seguís-
semos por sobre a colina até a entrada da mansão do poderoso
senador Plínio Jochlander.
A mansão, de fato, era uma mansão. Não deu tempo de
contar as janelas antes que a porta se abrisse.
– Olívia, minha filha.

Um morto pula a janela 53


Era o que se poderia esperar de um senador da república,
embora não exatamente do pai de Cherry. Alto, claro, corpu-
lento, uma rigidez ariana impecavelmente trajada, parecia co-
berto de maquilagem e sempre prestes a entrar em cena desem-
penhando um papel de telenovela. Já o tinha observado dessa
forma no dia do vernissage. Agora estava quase chorando. Mas
podia-se sentir o cheiro de cebola cortada naquelas lágrimas
relutantes.
– Esperei tanto por este momento – tentava abraçar a fi-
lha, mas ela não estava ali. Era apenas uma estranha, magoada,
cética, reticente.
– Vamos entrar – ele recuou, admitindo a confusão daque-
las emoções suspeitas.
Nos levou a um salão escada acima onde a frieza do már-
more das paredes estava encoberta pelos quadros de Cherry,
sete telas, dispostas praticamente na ordem em que haviam sido
pintadas. Aqui as galeras soçobrando e erguendo-se acima da
cidade, mais adiante voltando-se e flutuando sobre o mar.
– Você deve compreender – ele começou, ainda solu-
çando. – Os compromissos, a minha esposa, Clarisse jamais
iria aceitar. E a sua mãe… Claro que nos apaixonamos, mas
ela foi sempre… Insinuante, digamos. Eu fiz tudo o que era
possível para que você crescesse a salvo de qualquer necessi-
dade. Haja vista a sua exposição, tudo correu maravilhosamen-
te bem. E eu instruíra pessoalmente a Matias para que fosse
assim. É claro que ele não sabe nada sobre, hã… Sobre a nos-
sa verdadeira relação.
Entrou um japonês com uma furadeira na mão e arrastan-
do o quadro de Cherry recém trazido pelo helicóptero.
– Não, não, Sushi, deixe esse troço pra depois.
Despachou o carpinteiro e voltou a se dirigir a Cherry.
– Eu, hã… Espero que você tenha gostado – Fez um gesto
amplo mostrando as telas expostas. – Eu estou orgulhoso. São
muito bonitos os seus quadros.

54 Nei Lisboa
– Tirou-os do mercado. Ninguém vai vê-los, aqui. Mas não
era bem o que você queria, não é? – ela retrucou, seca.
– Não, não, Olívia… Você tem que acreditar em mim. Eu
sou seu pai. Jamais faria alguma coisa que pudesse prejudicá-
la. É claro que, na minha posição, é indispensável que eu tome
alguns cuidados, algumas precauções… – Deu as costas pra nós
e caminhou até o meio do salão, a mão correndo sobre o enor-
me tampo de vidro de uma mesa. Depois virou-se novamente.
– Este rapaz… Eu suponho…
– É meu marido.
Eu ia procurar um documento no bolso da bermuda, mas
deixei pra lá.
– Claro, claro. Eu sei que posso confiar em vocês. Mas veja,
Olívia – Cherry respirava fundo cada vez que ele a chamava pelo
nome. – Eu tinha receios, eu confesso, não queria que você sou-
besse. É natural, eu tenho muitos inimigos. Inimigos do povo,
que gostariam de usar isso tudo contra mim. E a sua mãe soube
compreender muito bem. Aliás, foi ela quem me pediu que ad-
quirisse os seus quadros.
– Claro, e principalmente o quadro que ela pintou no seu
apartamento. E também que pressionasse Severo a respeito das
molduras. E que se preocupasse em sumir com os pedaços que
restavam da escuna.
Ele não se perturbou com a ironia de Cherry.
– Ora, ora, tudo isso não importa mais agora que você já sabe.
Aquele quadro da sua mãe… – Caminhou até a janela e apertou
uma campainha oculta por trás das cortinas. – Foi apenas uma
tolice sentimental. E as suas telas… Eu teria o maior prazer em
devolvê-las… À medida que formos nos conhecendo melhor…
– Pode ficar com elas.
– Sem prejuízo dos pagamentos que ainda faltam…
– Pode ficar com elas.
Entrou um japonês de smoking com uma bandeja de prata
na mão.

Um morto pula a janela 55


– Você… – Ele olhava fixo para Cherry, enrolando uma nota
de duzentos dólares. – Não devia dar tanta atenção ao que diz
um velho louco e bêbado.
– Severo não é um velho louco e bêbado.
– Bem… É claro que ele sabe de alguma coisa, ou não teria
feito essa brincadeira desagradável das molduras.
Ele estava jogando verde. Cherry não disse nada.
– Não tem muita importância, de fato, apenas eu não gos-
taria que relacionassem você àquele barco… E por conseqüên-
cia, a mim. – O japonês terminou de esticar três fileiras de co-
caína da grossura de uma salsicha e foi embora.
– Entenda, minha filha, não é nada pessoal.
Debruçou o nariz sobre a bandeja e aspirou meia salsicha
com a nota. Depois ofereceu, a mão trêmula.
– Eu sei que vocês, jovens…
– Não – disse Cherry.
– Não, obrigado. Já almocei – Me fiz de louco.
Ele não gostou daquilo. Decerto ia ter que jogar fora. Ou
dar pros cachorros.
– Bem, Olívia – Passou a mão sobre a careca loira. – Eu não
sei o que mais posso fazer por você. É claro que se o problema
for dinheiro…
Não sei se foi o nome ou a tentativa de suborno, mas a
paciência dela se esgotou.
– Não é dinheiro. Aliás, você nunca ia entender o que é.
Pensa que pode comprar tudo. Pode comprar a amante. A filha
que não devia ter nascido. O jornal que diz a verdade. Pois pode
socar o seu dinheiro onde quiser.
Ela se encaminhou para a porta e eu fui atrás, orgulhoso
pelo “jornal que diz a verdade”. Lacaio instituído do imperia-
lismo.
– Espere, minha filha, eu não sabia… O emprego do rapaz…
– Por mim pode socar junto – mandei, antes de abrir a por-
ta pra Cherry passar.

56 Nei Lisboa
Ela não passou. A porta estava tapada por metade do cor-
po de um japonês. E era uma porta dupla.
– Não vou dizer a ninguém – ela se dirigiu a ele uma últi-
ma vez – que sou sua filha.
Olhos nos olhos.
– Mishama, deixe-os passar – Ele ordenou ao japa.

Depois foram os dias quentes de novembro, duas ou três


cervejas numa tarde e aí duas, três, todas as tardes, até que pas-
sei a cumprir horário e levar a máquina para o bar. Não haveria
um outro jornal em Ibiraí, assim como não havia mais telas, tin-
tas, e os esboços de Cherry se acumulavam às dezenas, à espe-
ra de um futuro incerto. Os cheques enviados por Matias eram
devolvidos, com orgulho e alguma dor indispensável. E a mim
me restara o ânimo para escrever uma história, o consolo de
um dicionário novo, o dinheiro contado para as cervejas e os
ovos cozidos.
Era um hábito do Valter, levado ao extremo. Tinha sem-
pre cheios alguns potes de ovos em conserva, os quais pescava
com a unha comprida do dedo mínimo e engolia inteiros, du-
rante as tardes. No início achei que poderia passar impunemen-
te por aquela experiência, tomando apenas o cuidado de pes-
cá-los eu mesmo, com um garfo. Aos poucos descobri que era
preciso ter Olina no lugar do sangue, como Valter decerto o ti-
nha, para agüentar a fermentação combinada de ovos e cerveja
no estômago. E por último percebi que já tinha pronta a idéia
para um novo conto, nos gases que eu próprio exalava porta
afora do Maxim’s e nas lembranças da infância vivida numa
colônia italiana.
Eu estava decidido a cometer uma obra-prima da literatu-
ra barroca, e não admitiria que “inexorável” aparecesse duas
vezes na mesma página. Isso me custava horas de pesquisa,
entretanto, e o “Aurelinho” de bolso, ainda cheiroso da gráfica,
seguidamente me deixava na mão.

Um morto pula a janela 57


– Me dá um sinônimo de “imprescindível”.
– “Indispensável”.
– Já usei.
– Então não sei. Gato, puta merda, você peidou de novo…
Cherry não ajudava muito, se é que aparecia pelo bar, e
Valter não saberia soletrar “ovo”, se lhe pedissem. Acabei me
afundando em um emaranhado de sinônimos e tempos ver-
bais de tal forma que às vezes levava dias reescrevendo o mes-
mo parágrafo, a barriga inchando, envolto numa nuvem de
gases.
Afinal, desisti. Não conseguiria continuar a escrever aqui-
lo, daquele jeito, depois da tarde em que Cherry e Adriana apa-
receram juntas no Maxim’s.
– Severo morreu.
– Como é que se escreve “circunvoluções”?
– Gato. Severo morreu.
Fora na noite anterior, logo depois da janta. Adriana não
pudera avisar antes do amanhecer, envolvida com os familia-
res do velho, hospital e tudo mais. E eu dormira a manhã toda.
– Por que não me acordaram?
– Ah, não ia ajudar em nada, mesmo. – Ela tinha os olhos
inchados da noite em claro, chorando.
– Como foi? – perguntei, suavemente.
Já acontecera antes. O coração do velho disparava cada vez
que chegava ao gozo, ela sempre temera um enfarte. Ainda che-
gara vivo ao hospital, mas não puderam fazer nada. Pobre Seve-
ro. Grande Severo.
De repente me bateu uma idéia maligna.
– O que foi que ele comeu na janta?
– Pô, gato, nem interessa…
Adriana ficou pensativa por um minuto.
– Sopa de missô. E eu não quis tomar – disse.
– Não tem missô aqui no porto – estranhei.
– Comprei no centro, numa lojinha japonesa.

58 Nei Lisboa
Fomos ao centro no dia seguinte, depois do enterro. A loji-
nha tinha desaparecido. Agora era uma locadora, “Vídeo Shan-
gai”, dizia o letreiro.
– Provavelmente…
– É. Apenas uma série de coincidências – Cherry concor-
dou comigo.
Adriana não disse nada, mas no caminho de volta tomou
Cherry pelo braço e se pôs a confidenciar alguma coisa. Achei
que estivesse desabafando com a amiga, talvez relembrando pas-
sagens do namoro com Severo, ainda sem aceitar a morte do ve-
lho. Mas quando chegamos em casa vi que era algo mais sério.
– Vou levar pro quarto – disse Cherry, arrancando o qua-
dro amarelo da parede.
Ficaram trancadas lá dentro por algumas horas. Eu estava
começando a ficar preocupado, Cherry me falara sobre uma
experiência homossexual aos quinze anos. Mas não devia ser
nada do gênero, pela expressão dela ao sair. Estava trêmula. E
os olhos faiscavam de ódio.
– Não sei se teria coragem… Mas gostaria muito de…
– Calma, Cherry – disse Adriana – Quanto a Severo… Ain-
da me sinto culpada. E, afinal de contas, ele é teu…
– É um filho da puta – ela arrematou, batendo a porta do
apartamento depois que a outra se apressou a correr atrás dela.
Voltou de madrugada, sozinha, tropeçando na entrada do
quarto e quase caindo na cama por cima de mim. Estava bêbada.
– Desculpe, gato. Tô tonta. Esse troço todo…
– Cherry, o que foi…
– Nem vem… Deixa que eu resolvo… Faço ele desaparecer…
Patético. Eu não sabia o que dizer.
– Ok. Contanto que você não desapareça – pedi.

Um morto pula a janela 59


VI

Cherry sumiu na manhã de um sábado, logo depois do car-


naval. A cidade voltava aos poucos ao ritmo normal, com a che-
gada do mês de março e a fuga apressada dos turistas – sempre
deixando pra trás um amontoado de sujeira e de dólares nas
mãos de satisfeitos e exaustos comerciantes.
Para nós, era o final de um triste verão em que vivemos
duros como nunca, acumulando dívidas no Maxim’s e torcen-
do para que Gustavo e Wilmar aparecessem pela praia e, então,
tivéssemos cerveja e camarões por conta durante o dia. Teria
sido ainda pior, não fosse a coragem e a habilidade dela em es-
vaziar o supermercado dentro da bolsa e pagar um molho de
salsa no caixa – reclamando do preço.
Eu não via nenhuma saída à frente, e trocava o tanto possí-
vel aquela realidade insuportável pelas tramas e enredos de um
caixote de novelas policiais que trouxera da casa do meu tio, pre-
sente de despedida, intacto desde então, assaltado insaciavel-
mente a partir da morte de mestre Severo e do poço de angústi-
as que nos engolira ao final do ano. Eram pocket books de Co-
nan Doyle, Agatha Christie de banca de revistas, assassinatos
misteriosos, crimes insolúveis onde o culpado – não fosse o
mordomo – era sempre um membro da família interessado na
herança milionária do patriarca ou um ex-agregado cumprindo
uma vingança sordidamente arquitetada por mais de vinte anos.
Cherry me acompanhara em sessões de leitura, no
Maxim’s, durante as chuvas do Natal e da virada do ano. Abati-
da, magoada pela existência do pai enquanto bestial criatura,

60 Nei Lisboa
erguia os olhos da página lacrimejada do livro para suspirar ran-
cores e murmurar promessas ininteligíveis de vingança contra
o seu próprio destino.
Depois já se afastara dos livros, que eu continuei a carre-
gar comigo, quando o sol de janeiro nos chamou ao mar e o re-
encontro com os Trobo lhe transformou por inteiro a fisiono-
mia aflita dos últimos tempos.
Eu imaginava que ela estivesse precisando exatamente
disso, do ouvido isento e dos conselhos de um profissional ex-
periente como Pablo Trobo, por isso não estranhei que gastas-
sem horas e horas e lágrimas em emocionadas conferências,
caminhando pela praia até sumir de vista. Laura Trobo, no en-
tanto, não conseguia se pôr à vontade, sentindo-se talvez ame-
açada pela beleza e jovialidade de Cherry a improvisar uma psi-
coterapia com seu marido.
Tentei tranquilizá-la, algumas vezes, sugerindo que “O
Caso dos Dez Negrinhos” seria uma boa maneira de aproveitar
as horas de abandono, ao invés de queimar pestanas tentando
reconhecer, no horizonte, o calção listrado do psicólogo e o mi-
núsculo biquíni da paciente. Não tinha ouvidos para o bom sen-
so, no entanto, e seguidamente partia para casa sozinha, revol-
tada, recolhendo seus pertences e enveredando a passos lar-
gos entre os japoneses que, naquele ano, ocupavam cada
centímetro de areia.
Não tardou a que Cherry recebesse alta, ou coisa parecida, e
que passássemos a freqüentar outro ponto da praia para evitar
algum mal-entendido mais sério. Wilmar e Gustavo nos acompa-
nharam, este quase sempre comentando sobre o problema crôni-
co de Andréa. As gripes constantes a impediam de ir à praia, e
alimentavam-se, ao mesmo tempo, da umidade da casa da Lagoa.
Pensava em se mudar, assim que possível, e enquanto isso limi-
tava-se a assistir aos shows de bolero do namorado no Tigresa.
Adriana dividia conosco os finais de tarde no Maxim’s, a
princípio entristecida e cumprindo um luto insensato pela

Um morto pula a janela 61


morte de Severo. Aos poucos, no entanto, foi se deixando con-
tagiar pelo entusiasmo de Cherry, que, afinal, parecia decidida
a avistar bons ventos na tempestade daquele verão.
– Escrevi pra ela. Você vai ver. E vai dar tudo certo. E só
esperar – dizia.
– Não posso crer, Cherry. E acho tudo isso uma loucura…
Se você está esperando… – dizia a outra.
Eu não fazia idéia do que era que tanto esperavam, as duas,
e tampouco tinha alguma curiosidade disponível, fisgado pelo
caso da Condessa de Horbury. A honorável Condessa era, a meu
ver, entre todos os dezessete passageiros suspeitos, a provável
culpada do assassinato de uma dama de preto, morta com uma
zarabatana em pleno vôo transatlântico.
– Gato, recebi uma carta da minha mãe.
– Hmm. Não fala nada sobre uma zarabatana?
Cherry interrompera a correspondência com a mãe depois
de nossa visita à Praia Bonsai e da desagradável descoberta do
pai. Ressentira-se de que ela lhe houvesse ocultado a verdade
durante tanto tempo, vendo a mãe como uma espécie de cúm-
plice dos interesses escusos do senador. Mas agora parecia dis-
posta a perdoá-la e a reconhecer a difícil posição em que esta se
encontrara no passado.
Comentou o assunto numa tarde em que eu iniciava a lei-
tura de um novo livro, ainda perplexo com a solução do misté-
rio anterior em que – soubera ao final – o comissário de bordo
era o culpado.
– Ela não tinha alternativa. Plínio Jochlander pressionou
para que ela tirasse o filho ou fosse pra São Paulo. Ou seja, por
pouco eu nem chego a nascer. E ela temia que o meu avô… Gato,
cê tá me ouvindo?
Eu ouvia, é claro, mas nem sempre escutava. De alguma
forma aquele assunto me tocava mais do que a Cherry, e havia
criado uma couraça de etéreo envolvimento com enredos poli-
ciais justamente para me proteger dele. Além disso, não podia

62 Nei Lisboa
aceitar que ela alimentasse tão profundo desprezo por quem,
apesar de tudo, era seu pai. Ou que o culpasse pela morte de
Severo, o que para mim não fazia sentido. E muito menos que
estivesse ficando tão barriguda.
– Também, com tanta cerveja que a gente toma – Adriana
foi buscar uma explicação e três copos. Cherry lia o jornal, em
silêncio. De repente quase saltou sobre a mesa.
– Adriana. Olha aqui. Ele é candidato a governador.
A outra vinha voltando com os apetrechos embarrigantes.
Deu uma olhada na matéria e estranhou o entusiasmo de Cherry.
– Pra mim dá no mesmo. Você acha que isso facilita a nos-
sa vida?
– Claro que sim.
– Claro que não – me intrometi na conversa, depois de ler
o anúncio da candidatura de Plínio Jochlander ao governo do
estado. – A não ser que você sonhe que um lacaio como ele vá
fazer alguma coisa além de se instituir um pouco mais. Só uma
porcaria de jornal como esse pra sugerir isso. Desculpe, Cher-
ry. Eu sei que ele é seu pai. Mas não pude me conter.
Ficaram me olhando como se eu fosse um fantasma.
– Cherry, você não…
– Não – ela interrompeu. – Não adianta. Esse aí anda nas
nuvens. Não larga desses livros. Melhor esperar.
– É. Melhor esperar – dizia Adriana.

As últimas semanas se agitaram a nossa volta sem que eu


conseguisse perceber bem o porquê, envolvido com uma série
de assassinatos cometidos em ordem alfabética a partir do nome
das vítimas – uma história em que, como sempre, o motivo dos
crimes era uma herança de família.
Houvera o carnaval, é claro, quando a cidade se tornara
praticamente intransitável, as ruas, a praia e os bailes entupi-
dos de turistas, japonesas vestidas de baiana, gueixas de tanga,
ninjas velejando pelo porto.

Um morto pula a janela 63


Não se tratava disso, entretanto, e eu o soube com certeza
quando os dias de Momo se foram e permaneceu a sensação de
que algo estava para acontecer em breve. Quase não nos faláva-
mos, naqueles tempos, Cherry e eu. Ela, sempre acompanhada
por Adriana, confidenciando segredos para os quais eu já não
tinha a menor paciência. E eu dividindo meu tempo entre as
brilhantes deduções de Hercule Poirot e as lamúrias de Gusta-
vo, em completo desacerto com Andréa, a qual o abandonara à
própria sorte em pleno carnaval.
– Por causa de uma calcinha de seda que encontrou no
Tigresa? – perguntei, estranhando o motivo da separação.
– Sí, mira que tonta. Todo producto de la imaginación de
ella. Mejor así, que se yo. Vuelvo a dormir en el bar. Ella siem-
pre acamada, no soy enfermero, que mierda.
Sugeri que algumas sessões psicoterápicas talvez ajudas-
sem Andréa, tinham produzido bons resultados com Cherry.
Mas ele já não parecia interessado em resolver o assunto, e in-
formou que Pablo Trobo sequer estava na cidade.
Dias depois, quando as coisas pareciam estar voltando ao
normal, Cherry e Adriana entraram no apartamento com uns
tubos de tinta na mão. Não levei em conta o preço que aquilo
pudesse ter custado, alegre por vê-la disposta a pintar novamen-
te. Embora não soubesse bem o quê.
– E a tela?
Não era uma pergunta idiota. Mas me fizeram sentir como
tal, paradas na porta do atelier, olhando o caixote de livros po-
liciais que eu remexia como se fosse uma lata de lixo revirada.
– Gato, você vai catar conchinhas no costão até o anoitecer.
Fui. Não suportava aquele meio sorriso piedoso. Mas troquei
as conchinhas por uma visita ao Maxim’s. Matei um tempo e umas
cervejas até a tardinha, e na volta encontrei as duas examinando
a tela sobre o cavalete – o quadro amarelo da mãe de Cherry.
– Então, o que você acha? – ela perguntou, o pincel de marta
na mão.

64 Nei Lisboa
Era quase como se o quadro houvesse se tornado vivo, re-
cuperando os anos passados à semelhança da janela que repre-
sentava. O plátano, antes resumido à parte de baixo da tela,
agora espalhava seus galhos e folhas de amarelo-cádmio por
sobre a paisagem. Entrevia-se o mar, apenas, e a escuna de Plí-
nio Jochlander desaparecera sob os empastos ainda úmidos e
brilhantes enxertados na pintura.
– Agora é realmente um amarelão só – respondi. – Ficou
bom. Mas não entendo por que você fez isso.
– Por que não? Uma tela é tão real quanto o que ela repre-
senta. Pode mudar com o tempo, como mudou aquela janela.
Pode ser o passado dela se transformando. No mais, é só um
jogo… O jogo do amarelão, que tal? Talvez… Talvez alguém ain-
da se interesse por esse quadro, gato.
– Deixar isso aí… – disse Adriana. – Ainda acho que não
era preciso. Pode ser um jogo perigoso.
Tirar isso aí, eu diria. De resto, concordava com ela.
– Teu pai, Cherry… Acho que esse quadro não tem mais
nenhum valor pra ele. Ainda mais agora, sem a escuna. Mas você
não vai conseguir mudar o passado. Por mais que a janela mude,
ou que você pinte e repinte uma floresta amazônica por cima
dele. Sinceramente, acho que você devia enterrar esse assunto
de uma vez por todas.
Ela não deu atenção ao meu conselho.
– Tanto melhor, gato. E ele já está enterrado, pode ter certe-
za. Mas… Às vezes pode-se mudar a visão do passado. Como esse
quadro. Uma janela aberta, por onde tudo começou… Isso é uma
coisa pra você ficar pensando, gato. As vezes os mortos pulam
janelas. E esse quadro ainda pode nos levar muito longe…
Achei estranho. Ainda mais porque mordia as cerdas do
pincel molhado de tinta. Melhor não contrariar.

A tensão atingiu seu ponto máximo no dia em que desco-


bri que nossos últimos trocados já haviam se ido, e que dali para

Um morto pula a janela 65


a frente só nos restaria assaltar regularmente o supermercado,
deixando o resto por conta do Maxim’s e fechando os olhos para
a carranca desconfiada que Valter já nos apresentava.
Então Cherry vendeu um quadro, o último “holandês voa-
dor” que restara da série, pintado quase todo em tons do ver-
melho ao magenta. As velas infladas, ali, pareciam imensas
bolsas de vento, e o mar crepitava em labaredas altíssimas, como
se estivesse prestes a incendiar o casco do navio.
Eu gostava especialmente daquele quadro, e ela própria qui-
sera conservá-lo para si. Mas não pareceu se importar muito com o
fato de se desfazer dele e me disse, vagamente, que esperava recu-
perá-lo algum dia. Mandou um recado a Matias, que viesse nos en-
contrar no Maxim’s porque tinha um bom negócio a lhe oferecer.
– Então, mocinha, você devolve os meus cheques e agora
diz que tem um bom negócio para propor. Deve ser um ótimo
negócio – ele disse, logo que sentou a nossa frente.
Ela foi direto ao assunto.
– Mil dólares – disse, apontando a tela encostada no balcão.
– Hmm. Um bom preço. De qualquer forma é dinheiro que
eu lhe devo. Posso inteirar o valor dos pagamentos que falta-
ram, e você nem precisaria se desfazer dessa tela. Tenho certe-
za de que o meu sóc…
– Não – ela interrompeu – E diga ao seu sócio que este é
um presente especial para ele. O preço é simbólico. Um dia
desses eu apareço para cobrar o que ficou faltando.
Matias preencheu o cheque em silêncio, o cenho franzido.
Na hora de ir embora não resistiu a uma observação descarada.
– Você tem sorte de ter sido apadrinhada, mocinha. Não
devia jogar fora uma chance dessas. Só acontece uma vez na vida.
– Que pena – ela devolveu o cinismo.

De qualquer jeito, agora tínhamos mil dólares em caixa, o


suficiente para pagar as contas e viver sem muita folga por umas
boas semanas.

66 Nei Lisboa
Isso foi numa segunda-feira e, então, passamos o resto da
semana comemorando no Maxim’s com cerveja e mariscos. Val-
ter voltara a sorrir pra nós, depois de saldadas as nossas dívidas. E
ainda mais quando Cherry decidiu levar o amarelão para o bar, o
belo plátano e a vista da janela decorando a parede detrás do bal-
cão. Foram dias alegres e de muito calor, em que ela aproveitou as
manhãs para ir ao centro, onde dizia ter assuntos a resolver.
Na sexta-feira, depois de uma noite de chuva, o vento nor-
deste voltou a soprar espalhando as nuvens e antecipando um
luminoso e refrescante dia de outono. Saímos a caminhar de-
pois do almoço e Cherry insistiu para que fizéssemos a volta no
costão, pelas pedras, até onde isso era possível. Paramos na
borda de um pequeno precipício que interrompia a passagem,
as ondas se debatendo nas paredes da fenda, e me alegrei por
poder abrir o livro no ponto em que havia parado.
Nos últimos tempos eu me habituara a ler enquanto cami-
nhávamos, ou mesmo quando fazíamos compras no su-
permercado, mas não havia como realizar tal proeza pulando
sobre as rochas do costão. Tivera de aguardar que o caminho se
fechasse a nossa frente antes de sentar sobre uma pedra e reto-
mar a história com a qual começara a me envolver naquele dia.
Era um assassinato em “Devonshire” que parecia recheado de
sensualidade desde as primeiras páginas.
Não tive tempo de ler uma só frase, no entanto, antes que
o livro sumisse da minha mão e fosse parar, boiando feito uma
esponja, no fundo do precipício.
– Não vai precisar mais disso, gato – Ela se curvara e me
olhava fundo nos olhos, armada de um sorriso angelical. Eu esta-
va paralisado, a boca aberta e as mãos na mesma posição de an-
tes, segurando o vazio. Então ela começou a rir, desatinada. Pen-
sei em dar a ela o mesmo destino do livro, mas decidi que até os
tubarões sucumbiriam àquele rostinho apaixonante.
– Duvido que os peixes se interessem por literatura – su-
geri, quando ela se acalmou.

Um morto pula a janela 67


– Aquilo ali é literatura? – retrucou, sarcástica. – Não sabia.
Depois, não adianta você sonhar que é o herdeiro de um milioná-
rio assassinado. Na vida real, vai continuar na miséria. E… – Come-
çou a tirar a blusa devagar. – Se o que você quer é sensualidade…
Eu não sabia aonde ela queria chegar com aquilo.
– Tudo bem, Cherry. Era só um passatempo. Vou deixar de
lado e procurar emprego, sei lá, qualquer saída. Mas, olha, aqui
não vai dar. Tem uma japonesa espiando com um binóculo.
Era realmente estranho. Estava boiando num pneu, quase
em alto-mar.
– Não é ela, é ele, com uma peruca de trança. Faça de con-
ta que você não percebeu. Aliás, não percebeu mesmo. Há me-
ses que esses caras vem seguindo a gente.
Uma leve paranóia. Na idade dela, nada tão grave.
– Escuta, gato… – Ela fez uma pausa, me olhando como se
fosse revelar a verdade do juízo final ou contar que estava grá-
vida. – Não há saída possível quando já se está do lado de fora.
Não sei se você me entende. Não me agrada a idéia de passar a
vida lutando por migalhas, só isso. Não acho que dinheiro seja
o mais importante. Mas há outra coisa. Meu pai… Eu não teria
sossego enquanto estivesse por perto. Sempre sendo seguida,
sempre o medo dele de que eu conte a alguém que… Então, é
melhor resolver isso tudo de uma só vez, e cair fora. Escuta, o
que eu quero dizer… É que talvez eu desapareça por uns tem-
pos… Talvez por pouco tempo. Por favor, não se preocupe. E
não me procure. Escreva seus contos, vá ao Maxim’s, cuide do
amarelão pra mim. Olha… Se tudo der certo… Talvez você passe
umas férias em St. Moritz por minha conta, que tal?
Olhei o sol, a meio caminho na descida da tarde.
– Bem – disse, assim que recuperei a fala. – Se você vai se
casar com um marchand italiano, arrivedérci, espero que seja feliz.
Ela se agachou na minha frente.
– Gato – começou outra vez. Aquilo sempre me irritava,
quando discutíamos. Imaginei um focinho úmido no meio da

68 Nei Lisboa
minha cara. – Eu só quero que você não se surpreenda com nada.
Não tenho nada a perder. Mas não posso obrigar você a enlou-
quecer junto.
– E nem precisa. Já tenho carteirinha de freak, meu bem.
Só queria saber qual é a grande surpresa que me aguarda – Tive
que levantar a voz porque ela começara a caminhar depois de
encerrar o discurso. A pergunta ficou quicando nas pedras.
– Nem eu sei, direito – gritou, de longe.

Fiquei azedo o resto do dia. Cherry se separou de mim na


esquina da avenida, dizendo que precisava ir até a Lagoa mas
que estaria de volta antes do anoitecer. Tentei esfriar a cabeça
arrumando a casa, olhando um seriado na televisão, relendo as
páginas do conto que deixara pela metade. Inútil, não conse-
guia me concentrar em nada, nem tampouco me livrar da terrí-
vel sensação de desamparo que me alcançara.
Estava fumando um cigarrinho na janela do atelier, assis-
tindo ao entardecer da baía, quando ela entrou em casa. Che-
gou alegre, com um pacote de compras e uma garrafa de vinho.
Quis que preparássemos uma janta, e passou horas falando dos
problemas de Adriana e Andréa e de outras coisas mais, sem
tocar no assunto daquela tarde. Depois jantamos e bebemos na
cama, com a televisão resmungando um filme de terceira e um
disco rodando sem parar, o prato encalhado no repeat, e então
ela me comeu como há muito, talvez como a primeira vez.
No outro dia, acordei sozinho.

Um morto pula a janela 69


Duas horas. E nada. Não dá pra continuar assim. Não dá
pra aturar. Pensa que eu sou otário. Eu não pedi pra morar aqui.
Só queria liberdade pra escrever. Não se enxerga. Não sabe o
que é chester. Não sabe o que é literatura. Pensa que eu não
tenho um final. Fica procurando consistência. É só o que ela
conhece. Preciso me acalmar. Esses japoneses todos. Não con-
sigo me controlar. Não consigo controlar os nomes.
– Oi.
Não precisa dizer nada. Já sei. Já sei quem é. O idiota da
semana passada. Só pode ser. Tá na cara. Dá pra sentir o cheiro.
Aquele monte de bobagens. Ela se impressiona fácil. Pensa que
ele sabe muito. Rá. Queria explicação. Não tenho que explicar
nada. Agora quer a minha cabeça. Olho por olho.
– Posso ler?
Não, não pode. Não pra dar palpite. No mínimo decora tudo
e vai contar pra ele. Pra ele interpretar. Deve ter um xerox na
bolsa. Não dá pra aturar. Não dá pra escrever com ela. Sem Cher-
ry. A gostosa. Se soubesse pra onde foi já tinha ido atrás. Deixa-
va esse troço pra ela terminar. Pra decidir o final por conta dela.
Com os palpites do idiotinha. Rá. É o que ela quer. Mas não vai
levar. Já tenho tudo preparado. O final todinho. O relógio. Vai
levar uma rasteira. Vai cair do cavalo. Com ele junto. Lá vem.
Tava demorando.
– Pra onde é que ela foi?
Já disse. Se soubesse tinha ido junto. Azar dela se não ou-
viu. De mim não sai mais nada. Nem uma palavra. Nem que eu
exploda. Nem que isso tudo exploda feito um furúnculo. Feito
um botijão. Japonês pra tudo que é lado. Pensa que eu tenho que
aturar. Pensa que eu enlouqueci. Não sabe o que é trabalho. Já
desistiu. Vai tomar um banho. Vai tentar tomar um banho.
– Caiu a chave?
VII

O Maxim’s já se tornara o meu segundo lar, e a partir da-


quele dia passou a ser o primeiro. Continuei a usar o aparta-
mento para dormir e eventualmente tomar um banho, mas não
suportaria conviver com a ausência de Cherry passeando pela
casa, trabalhando no atelier, escutando discos atirada no sofá.
Chegava cedo, antes das dez, e esperava que Valter abris-
se o bar examinando as notas da noite anterior. Depois devora-
va o farto café da manhã de Úrsula, e aí começava o trabalho de
todo o dia – garimpar sinônimos no Aurelinho e procurar um
destino literário para o monstro comedor de ovos que Valter
me havia inspirado, vivendo no meu próprio intestino a agonia
da flatulência do personagem.
Sabia que não era uma tarefa fácil. Já havia desistido, me-
ses antes, de escrever aquele conto. Mas agora a realidade era
bem outra – se é que merecia esse nome – e chegar ao final
daquela história era como encontrar limites para os meus pró-
prios devaneios. Uma questão de honra e, sobretudo, de sani-
dade mental. De certa forma, era o conto quem estava me es-
crevendo.
As cervejas entravam em cena ao final da tarde, embara-
lhando aos poucos as idéias e os parágrafos que, em geral, ter-
minavam por formar uma pilha de folhas amassadas ao lado da
mesa. Passava por uma autocrítica compulsiva, destruidora,
vulcânica, e a partir daí me permitia imaginar a presença de
Cherry, vê-la entrar pela porta do bar, conversar com ela, ajudá-
la a pular a janela às duas da manhã.

72 Nei Lisboa
Era um encantamento frágil, no entanto, incapaz de su-
portar alguma madrugada insone no apartamento. Não dor-
mia mais, se porventura acordava no meio da noite, e me pu-
nha a pensar nas possibilidades do caso. Estava claro que de
alguma forma se relacionava com o pai dela, e talvez com a
morte de mestre Severo. Mas eu não sabia, ou não queria acei-
tar, que espécie de insanidade Cherry estava prestes a come-
ter. E muito menos por que não me confiara esse segredo,
como se temesse um julgamento moral que eu jamais faria
ou a hipótese absurda de que eu viesse a dar com a língua
nos dentes.
Era algo sagrado para mim, o silêncio que me pedissem
sobre algum assunto. Assim o fora depois de nossa visita à Praia
Bonsai, por exemplo. Ninguém além de Adriana sabia que Cher-
ry era filha de Jochlander. Mesmo a Gustavo, quase um irmão,
eu calaria a respeito.
Ele apareceu no bar durante aqueles dias.
– Que aroma, boludo, está podrido el aire, acá.
Expliquei a ele que o meu estômago era uma omelete boi-
ando num barril de cevada, e que às vezes vazava um pouco de
gás. Perguntou por Cherry.
– Foi pra São Paulo, matar as saudades da mãe.
– Ah, sí?
Contou que Andréa também viajara, e sem dizer pra onde.
Pouco lhe importava, já que não estavam mais juntos. Na ver-
dade fora até a Lagoa para encontrar Adriana, por quem andava
suspirando desde o carnaval. Afinal reconhecia que não con-
fundira as duas, noutros tempos, por mero acaso.
– Además, me gustam los punks.
Tentei sondá-lo sobre o sumiço de Cherry, Adriana deve-
ria ter comentado a viagem da amiga. Não funcionou. Tinham
falado muito pouco, ela estava ocupada com um concurso pú-
blico para o qual, como uma autêntica punk, ia ficar trancada
em casa estudando por mais algumas semanas. Pelo menos,

Um morto pula a janela 73


consolava-se o bardo, ele estava com a solidão melhor acomo-
dada. Os Trobo já haviam retornado ao Uruguai.
– Que furiosa que es esta Laura.
Disse que Cherry fora se despedir de Pablo Trobo no dia
em que viajaram, e que a esposa aprontara uma daquelas estú-
pidas cenas de ciúme. O psicólogo passara o carnaval longe dela,
reclamara, e “agora só le dá atención a esta chica”. Achei estra-
nho, Cherry não me contara nada sobre isso.
– Se olvidó, talvez – Ele me ajudou a desencanar.
Tomamos umas doze cervejas juntos a pretexto de come-
morar o final da temporada no Tigresa. Estava alegre de voltar
a lidar com canos e fios elétricos, embora já houvesse transfor-
mado um ar-condicionado em torradeira no primeiro dia de tra-
balho. A temporada fora um sufoco, tivera que abandonar os
boleros e decorar às pressas um repertório de samba japonês
para agradar à platéia daquele verão. Fizera a última apresenta-
ção na noite anterior.
– Estaba el tipo aquél del club, totalmente enborrachado.
Matias. Tinha sentado numa mesa de canto, sozinho, e
derrubado uma garrafa e meia de uísque. Queria ter visto essa,
devia ser engraçado.
– No, quedó triste, eso sí.
Foi-se embora, Gustavo, antes do Valter baixar as cortinas,
e não apareceu mais. Achei que eu havia exagerado nos gases e
passei a regular os ovos e as cervejas. Além disso, andava um
pouco assustado. Não era raro que esquecesse de alguma coisa
depois de cada porre, mas encontrara o apartamento completa-
mente revirado, uma noite, sem lembrar de quando e por que
fizera aquilo.

Matias apareceu como um relâmpago atropelando as ca-


deiras do Maxim’s, o rosto inchado, a mão trêmula sobre a mesa.
– Cadê a mocinha.
– Foi catar conchinhas no costão.

74 Nei Lisboa
Crispou os dedos, quase cravando as unhas na madeira.
– Escute aqui, rapaz, não tenho tempo para brincadeiras.
Onde é que ela se meteu.
Ora, ora. Quanto interesse.
– Não sei. Liga pra informações.
Ele recostou na cadeira, sem desviar os olhos.
– Está certo. Agora eu entendo – desatou uma gargalhada
histérica. – Ela não ia contar a um paspalho como você. Não,
aposto que nem imagina por onde ela anda.
Não, eu nem imaginava. Mas ele não tinha nada com isso.
De repente, ficou sério.
– Quanto? – perguntou.
– Hein?
– Quanto ela quer.
Ora, ora, que interessante. Resolvi entrar no jogo dele.
– Depende de quanto você acha que vale – respondi, fo-
lheando ao acaso as páginas do dicionário.
Ele inclinou o corpo sobre a mesa, as mãos nojentas em
cima da Remington.
– Pois eu acho que não vale nada. E já estou perdendo a
paciência – rosnou, empurrando a máquina ao se levantar. –
Ela sabe onde me encontrar, se quiser acertar as contas. Quan-
to a você, pouco me importa o que…
Não chegou a terminar a frase. Parecia ter visto um fantas-
ma, mas era apenas um japonês saindo do banheiro. Empalide-
ceu de repente e saiu do bar como tinha entrado, tropeçando
nas mesas.

Dias depois, foi a vez de Melchíades. Saudei a visita, não


tínhamos nos visto mais desde os tempos do jornal. Pediu um
campari com abacaxi.
– Perdeu o emprego, então.
– Pois é. Por causa de um lacaio instituído.
Estivera me procurando. E não era saudade.

Um morto pula a janela 75


– Conhece um sujeito chamado Matias?
– Claro. Um mestiço atarracado e metido a faceiro, arro-
gante e bebum. É secretário do Iate Clube.
– Era.
– Como assim?
– No Tigresa, ontem. Dormiu na mesa, e tentaram acordá-
lo na hora de fechar o bar. Estava gelado. Durinho. E com uma
ferroada de abelha no pescoço.
Não precisava explicar, eu sabia.
– Uma zarabatana.
– É. Engraçado você saber.
Falei sobre o romance policial que tinha lido no verão. Era
uma conclusão óbvia. Perguntei se o Tigresa não tinha um co-
missário de bordo.
– Ele foi visto com uma loira, no começo da noite. Bebe-
ram juntos, e parece que discutiram sobre dinheiro. Foi o que
disse o garçom.
Estranho. Uma loira.
– Uma loira ruiva?
– Talvez.
Claro, aquilo não significava nada pra mim. Tantas loiras
ruivas por aí. O livro da zarabatana. O único que Cherry havia
lido até o fim. A não ser que. Não, claro que não.
– Pois é, Melchíades, são aqueles crimes insolúveis. Às
vezes é até melhor deixar pra lá.
Ele me olhou por cima do ray-ban.
– Engraçado, você falar isso. Este é o segundo deles que
me traz ao porto. A primeira vez foi há vinte anos. Estava inves-
tigando sobre aquele corpo que veio dar na praia.
A história que eu não escrevera. Contei a ele sobre o extra-
vio do arquivo.
– Engraçado você contar isso. Naquela época cheguei a
conseguir um depoimento. Uns pivetes que viram a vítima, a
provável vítima, remando na baía. Mas a polícia não se inte-

76 Nei Lisboa
ressou, o inquérito já havia sido arquivado. E o jornal não quis
publicar.
E a mim já não interessava escrever aquele conto. Mas ti-
nha um outro por terminar, se ele me deixasse em paz, agora
que já tinha comido o abacaxi empapado de Campari.
Antes de ir embora, puxou um vidrinho do bolso.
– Conhece isso?
– Claro, é missô. Dá uma boa sopa.
– Engraçado você conhecer. Encontraram no bolso desse
tal de Matias. Pedi uma amostra. Pra minha gata siamês.
Muito interessante, Melchíades, mas eu tenho trabalho
pela frente.
– E aí, a gatinha gostou?
– Gostou num primeiro momento. Depois ouriçou todos
os pêlos. Parecia um porco-espinho. Aí esticou as quatro patas
no ar e estatelou no chão. Ou melhor, no céu.

Por último, alguém que eu já conhecia. Não, não conhecia.


Sim, já conhecia. Não, não conhecia. Sim, já, puta merda, sei lá.
– Oi.
– Oi. Não repara, tô terminando um trabalho.
Sentou na minha frente, o decote sumindo por baixo da
mesa. Deixei o trabalho pra depois.
– Acho que a gente se conhece de algum lugar, não? – pedi
a ajuda dela.
– Talvez.
Talvez? Na minha encarnação de sheik, quem sabe. Ou no
carnaval. Ah… Mas não era possível.
– Como é o seu nome?
– Clarisse. Clarisse Jochlander. Clarisse H. S. Jochlander.
Claro. A esposa do senador. A futura primeira-dama do
estado, se ele fosse eleito. A madrasta de Cherry.
– Ah, sim, eu vi uma foto sua no jornal. Na matéria sobre o
baile do Havaí. Muito boa a fantasia de odalisca.

Um morto pula a janela 77


A fantasia era horrível. A peruca loira pior ainda. Mas ela,
ao vivo, era muito boa. Devia ter uns quarenta. Poderia passar
por vinte, não fosse um pé-de-galinha no olho direito.
– Nem me fale, a fantasia era horrível. Só usei porque Plí-
nio insistiu. Aliás, é por causa dele que eu estou aqui.
Ora, ora. Jogo limpo, então.
– E por que pensa que eu conheço Plínio Jochlander, o se-
nador, dono da Praia Bonsai, lacaio instituído do imperialismo?
Ela não se ofendeu. Ainda bem, eu não tinha intenção.
– Sei de tudo. Ele me contou. Me mostrou uma foto de
Olívia que saiu no jornal ano passado. E vi vocês dois juntos na
praia, durante o verão. Sabe, eu quase não saio de Brasília. Mas
quando venho pra cá gosto de dar umas caminhadas por aí.
Papo estranho. Mas ela devia ser muito gostosa cami-
nhando.
– Você… – Ela juntou os cílios compridos, examinando as
folhas espalhadas sobre a mesa. – Está escrevendo cartas?
– Não. É um conto. Uma história sobre ovos – Eu quase
não conseguia mais falar, estava segurando um peido desde que
ela entrara no bar.
– Que pena – suspirou – Eu adoro receber cartas.
Resolvi abreviar o assunto.
– Ainda não me disse por que veio até aqui.
– Não é nada de mais. Eu estava passando e… – Ela abriu
um sorriso. E o decote se abriu junto. – Eu só queria que vocês
não vissem o Plínio como uma pessoa ruim. Sabe, ele se ma-
goou muito esses anos todos, escondendo Olívia de mim. Éra-
mos recém-casados quando… Bem, você sabe.
– Quando ele conheceu a mãe de Cherry.
– Pois é. E pensava que eu não iria aceitar. Até que eu vi
aqueles quadros todos, lindos, e adivinhei que havia um mis-
tério por trás daquilo. Sabe, eu gostaria tanto de encontrar Olí-
via… De dizer a ela que eu a amo como se fosse minha filha.
De vê-la amar o pai. Mas acho difícil que ela consiga perdoar…

78 Nei Lisboa
Ela sorriu de novo. E eu perdoei o pé-de-galinha.
– Vou falar com ela. Qualquer coisa, a gente aparece – E
leva um balde de carne moída, pensei, lembrando dos dober-
man.
Não deu mais pra segurar. O peido explodiu dentro das
calças e eu estremeci na cadeira.
– Bem, então estamos combinados – ela se despediu, sen-
tindo o ar baforado de enxofre. Segui-a com o olhar até a rua.
Aquelas coxas mereciam bem mais do que um senador corrupto.
– Drrroga.
O Valter, tentando pescar um ovo cozido no pote.
– Semprre me escorrega, esta aqui.

Um morto pula a janela 79


VIII

Os dias eram o conto, não havia outro jeito, tanto quanto


não havia um final. A ausência de Cherry ia tomando conta do
Maxim’s, do porto, dos meados de março, e minha única prote-
ção à vista era empurrar o enredo da história com a barriga in-
chada de cerveja, trabalhando da manhã à noite.
Corria riscos, eu sabia, de ser envolvido pela própria fan-
tasia que me servia de refúgio. De perder a chave num bueiro
da página vinte e dois e ficar trancado para sempre dentro de
um conto inacabado. Ou de ser ludibriado por piratas da reali-
dade, como no dia em que apareceu um japonês no bar tentan-
do vender uma balança digital pro Valter. Servi de cobaia, só
pra constatar que o brinquedinho do samurai não funcionava
direito.
– Está marcando vinte quilos a mais – denunciei.
O japonês quis discutir, e por pouco não me convence de
que a balança estava certa e eu é que era um marciano balofo.
Pelo menos o Valter não quis comprar a geringonça e me deu a
chance de despachar o vendedor.
– Tudo bem, Kung Fu, agora te manda que isso aqui não é
farmácia.
Voltei pra máquina com um ódio sanguinário e urgente
daquilo tudo, certo de que era preciso pôr um ponto final na
história antes que ela passasse a decidir as coisas por conta
própria. Perdi o duelo, naquele dia, mas ganhei a coragem de
fazer o que já devia ter feito havia mais de duas semanas – ir
até a Lagoa.

80 Nei Lisboa
Ninguém melhor do que Adriana poderia informar sobre
o paradeiro de Cherry, com o que, por que e de que forma esta
se envolvera. Afinal, as duas tinham gasto o verão em confe-
rências secretas e suspeitas, talvez fossem cúmplices de algu-
ma trama diabólica, e a idéia de que houvessem planejado o
assassinato de Matias me revoltava o estomago. Mas eu preci-
sava saber.
Dei sorte, ela estava em casa estudando como Gustavo ti-
nha dito.
– Oi, entra.
Parecia fanha.
– Gripada?
– Não, nunca me gripo, você sabe. É só um resfriadinho à
toa.
Fui direto ao assunto. Já fazia duas semanas, não tinha
procurado antes porque Cherry me pedira que não o fizesse.
Mas agora estava ficando preocupado. Podia ser coisa séria.
– Pois é, também não sei de nada – ela me surpreendeu.
– Mas eu pensei… Quer dizer, vocês passaram o verão todo
grudadas, falando em código, esperando alguma coisa.
– Ah, bobagens, não sei… Não lembro. Juro. Pode acredi-
tar. Só sei que ela passou por aqui, acho que foi numa sexta-
feira, e disse que talvez fosse viajar pra São Paulo. Ficou con-
versando com Andréa, que também foi viajar e nem me disse
pra onde. E deixou um bilhete pra eu entregar a Matias.
Então, aí estava. Um recadinho de Cherry pra Matias.
– E o que é que dizia o bilhete?
– Não sei, Cherry deixou num envelope fechado. Disse ter
certeza de que Matias ia aparecer por aqui. E ele apareceu, um
ou dois dias depois. Leu o bilhete e saiu chispando porta afora.
Meio louco, aquele cara. Deve ser por isso que acabou morrendo.
Ah, então ela sabia do assassinato.
– Pois é, que coisa. Esta semana esteve um jornalista aqui,
me fazendo perguntas…

Um morto pula a janela 81


Melchíades. Farejando, como sempre.
– … mas eu não sabia o que dizer pra ele. Perguntou se eu
tinha missô em casa.
– E você…
– Tinha, claro. Até fiz uma sopinha, mas ele não quis to-
mar.
Ai, meu deus. Ela ainda pensa que Severo morreu de gozo.
– Bem, Adriana, por via das dúvidas é bom você não co-
mentar nada com ninguém. Pode ser que Cherry esteja em apu-
ros. – Olhei a Remington antiga em cima da mesa. Cherry tinha
emprestado pra elas no verão. Deu saudade. – Tá ajudando, a
maquininha?
– Tá, apesar daquelas teclas. Tô treinando datilografia pro
concurso.
Me levou até a porta, tchau, aparece. Fiquei matutando no
ponto de ônibus, achando tudo muito estranho. Principalmen-
te os três japoneses debaixo de um guarda-chuva, num dia en-
solarado como aquele.

Passei a evitar o conto, procurando outra desculpa para não


abandonar a rotina do Maxim’s. Valter e Úrsula me tratavam
como parte da mobília, àquela altura, às vezes pedindo que eu
ajudasse a atender algum freguês. De resto, eu colecionava sus-
piros esperando ver Cherry entrar pela porta do bar. Cherry, ou
qualquer outra pessoa. Menos ele.
– Ué, Pablo Trobo. Que prazer.
Chegara de Montevidéu naquela tarde. Tinha cancelado
as consultas por duas semanas, queria esfriar a cabeça.
– Separei de Laura.
– Pô, que chato.
Disse que estava tudo bem, há tempos não se entendiam
mais, melhor assim. Comprara uma lancha no verão. Queria
aproveitar um pouco, e ensinar Gustavo a navegar. Ia ficar com
ele na casa da praia.

82 Nei Lisboa
Não perguntou por Cherry, achei estranho. Depois pensei
que era um bom momento pra desabafar com alguém.
– Cherry me deixou na mão. Sumiu.
– Hum – comentou, com paciência de psicólogo.
Expliquei que não era bem assim, eu tinha sido avisado,
mas não sabia onde ela andava e temia que estivesse envolvida
em um jogo perigoso. Falei sobre o assassinato de Matias, de
como ele era o provável culpado pela morte de Severo, e acabei
contando sobre Plínio Jochlander.
– É o pai dela – revelei.
– É, eu já sabia. Ela me contou no verão.
Durante a psicoterapia, não era difícil de imaginar.
– Só não consigo entender – prossegui – onde é que tudo
isso se encaixa. Mesmo supondo que Severo soubesse do pa-
rentesco de Cherry com o senador, não seria motivo o bastante
para ser assassinado. E não quero crer que Cherry fosse capaz
de vingar a morte dele por conta própria assassinando Matias.
Ele ajeitou os óculos no nariz.
– Bem – começou, pigarreando. – Não se pode concluir
muita coisa a partir daí. A não ser, talvez, que o avô de Cherry
tenha sido um imigrante dinamarquês cabeça-dura e que tenha
se instalado em Ibiraí há uns quarenta anos atrás, casando com
a avó de Cherry, uma açoriana que conhecera no navio. Eles vão
morar na lagoa, digamos, onde nasce a mãe de Cherry, uma
menina linda que cresce passeando pela praia e pelo porto de
Ibiraí. O dinamarquês morre de ciúmes da filha mas não conse-
gue evitar que ela namore e que, lá pelas tantas, engravide de
Plínio Jochlander. Nesta época, há uns vinte e poucos anos,
vamos supor, Jochlander é um jovem empresário bem-sucedi-
do, recém-casado, ingressando na política, que passa o verão e
os fins de semana por aqui, funda o Iate Clube com mais al-
guns amigos e começa a construir para si uma mansão na Praia
Bonsai. É claro que, como um jovem canalha exemplar, ele tem
um apartamento de cobertura no único edifício de Ibiraí para,

Um morto pula a janela 83


digamos, eventuais encontros amorosos. A mãe de Cherry é
apenas mais um desses casos, mas a coisa se complica quando
ela engravida e o avô dinamarquês fica sabendo que o filho é
de Jochlander. O avô, ciumento e cabeça-dura, já havia jurado
de morte quem quer que fizesse mal à moça. Espera, portanto,
que Jochlander venha passar um fim de semana velejando em
sua escuna amarela, aluga um bote e vai armado de uma faca
até a escuna. O dono do bote, mestre Severo, é apenas um po-
bre pescador e marceneiro que não consegue dissuadir o velho
nem quer se envolver com Jochlander. Mas percebe o que acon-
teceu quando o bote alugado vem dar no porto sem ninguém
dentro, porque, é claro, Jochlander mata o avô de Cherry com
um tiro antes que ele possa puxar a faca e joga o corpo na baía
com uma âncora amarrada no pescoço. Desgraça feita, Jochlan-
der sai atrás da mãe de Cherry e da avó açoriana ameaçando as
duas de morte se não calarem a boca, porque ele não quer sa-
ber de escândalo e sabe que, mais dia, menos dia, o corpo há de
vir à tona. Por segurança, esconde as duas no tal apartamento
de cobertura enquanto ajeita as coisas pra elas irem pra São
Paulo. Tem medo, além disso, que mais alguém saiba do que
aconteceu, e descobre que o bote em que o avô dinamarquês
foi até a escuna era de mestre Severo. Ora, a mãe de Cherry,
trancada no apartamento, aproveita para pintar um quadro com
a vista da janela e a escuna amarela de Jochlander ancorada na
baía. Havia ganho o material de pintura do próprio Jochlander,
digamos, quando eles eram amantes. Ele, enquanto isso, pro-
cura uma maneira de se aproximar de Severo. Quando vê o qua-
dro, já pronto, resolve levar pra ele pedindo que faça uma mol-
dura e aproveitando para observar as reações do pescador. Se-
vero fica firme, faz a moldura e não dá mostras de que saiba de
alguma coisa. Quando perguntam sobre o bote vazio, diz que
estava desamarrado e ficou à deriva na baía. Jochlander fica
satisfeito, aparentemente ninguém mais sabe de nada, e man-
da a avó e a mãe de Cherry pra São Paulo – com o filho na barri-

84 Nei Lisboa
ga, o quadro e tudo mais – em troca de silêncio e sob ameaças.
Dá um bom dinheiro pra elas e enterra o assunto, certo de que
está tudo resolvido. Tempos mais tarde, o corpo do avô vem
dar na praia. Instaura-se um inquérito, por causa dos ferimen-
tos à bala, mas não há testemunhas e, com uma pequena ajuda
dos amigos poderosos de Jochlander, o caso é arquivado. Co-
menta-se, sigilosamente, que a suposta vítima fora vista na baía
remando em direção à escuna amarela de Jochlander, mas nada
que chegue a assustar o bem protegido assassino. Ele tem ape-
nas o cuidado de sumir por uns tempos e, no auge do cinismo,
encarrega mestre Severo de desmontar a escuna no próprio
porto de Ibiraí, para evitar que aquela peça incriminadora des-
perte lembranças desagradáveis em alguém.
Parou pra tomar um gole. Eu estava um pouco impressio-
nado com a capacidade dedutiva dele.
– Onde foi que você aprendeu esse tipo de análise?
– Num seminário, em Buenos Aires, com o Ricardo Passa-
rinho.
Ricardo Passarinho, o psicanalista. Já tinha ouvido falar.
Dirigia uma clínica famosa no Rio de Janeiro.
Olhei o amarelão, na parede do bar. Então, aquela também
seria uma moldura de mestre Severo, feita vinte anos antes. É,
podia ser.
– Então – ele ajeitou novamente os óculos antes de pros-
seguir – digamos, Cherry nasce em São Paulo e recebe o mesmo
nome da avó, Olívia Ginsberg. Ela cresce pensando que o pai
fugira de casa antes que pudesse ser registrada como Olívia
Junker, ou coisa parecida. Depois, por tudo aquilo que ela pró-
pria já deve ter lhe explicado, vem parar em Ibiraí e morar jus-
tamente no apartamento do senador. Quer dizer, do pai dela.
Matias, é claro, não sabe de nada, é apenas um candango que
Jochlander arrumou para cuidar do serviço sujo e de seus ne-
gócios em Ibiraí. Ele tem instruções de não alugar o apartamen-
to para qualquer pessoa sem antes entrar em contato com o

Um morto pula a janela 85


chefe. Jochlander leva um susto quando ouve o nome de Olívia
Ginsberg. Percebe que só pode ser a filha dele, e diz a Matias
que alugue o apartamento pra garota de qualquer jeito. Teme
que estejam tentando chantageá-lo, agora que é ainda mais rico
e senador da república. Pressiona a mãe de Cherry, em São Pau-
lo. Ela jura que Cherry não sabe de nada, que tudo foi apenas
uma série de coincidências, mas Jochlander não se convence e
resolve segurar a filha em Ibiraí, mantê-la sob controle. Facilita
tudo para que ela faça a exposição no Iate Clube. No dia do ver-
nissage, já mais seguro, não resiste a um encontro. É a oportu-
nidade de conhecer Cherry e observar a reação dela, tirar a lim-
po o que ela sabe ou não. A princípio vai tudo bem, mas Matias
comenta sobre um quadro amarelo que Cherry tem no aparta-
mento e Severo, bêbado, começa a se vangloriar de ter feito as
molduras da exposição. Jochlander percebe que são pedaços da
escuna desmontada. Severo conheceu Cherry no porto e fez as
molduras sob medida, sem saber de nada. No dia em que preci-
sou ir até o apartamento tirar uma prova, reconheceu o quadro
amarelo. Perguntou o sobrenome de Cherry, e era o mesmo so-
brenome do velho assassinado. Quando vê Jochlander no ver-
nissage, compreende que se meteu onde não devia. É demais
pra ele, já vinha guardando aquele segredo há mais de vinte
anos. Ele toma um porre, fala demais e desperta as suspeitas
de Jochlander. Isso tudo, claro, é apenas suposição.
Não precisava continuar, eu sabia.
– Claro, e aí Severo acaba se revelando sem querer. Jochlan-
der, agora, suspeita que ele saiba do assassinato do avô dinamar-
quês embora tenha ficado quieto todos esses anos. Ao mesmo
tempo, tem medo que Cherry descubra alguma coisa através do
quadro amarelo. Num gesto desesperado, manda Matias arrema-
tar todos os quadros dela, inclusive aquele. Mais tarde pressio-
na a mãe de Cherry para que faça a filha vender o amarelão. En-
quanto isso, Cherry retira o verniz do quadro e descobre sobre a
escuna e o apartamento. Vai passar as férias em São Paulo. A mãe

86 Nei Lisboa
de Cherry, ainda antes da exposição, se apavora quando recebe
uma carta da filha em que ela conta que está com o quadro. Du-
rante as férias de Cherry, chega a contar uma história sobre um
amante, que não é de todo falsa. Depois segue as instruções de
Jochlander e diz a Cherry que venda o quadro na volta à Ibiraí.
Cherry não vende, e Jochlander resolve mudar de tática antes
que o interesse pelo quadro se torne por demais evidente.
– Pois é. É uma boa suposição – ele concordou.
Tomei um gole, antes de prosseguir.
– Ele então manda Matias arrecadar os pedaços que resta-
ram da escuna e investigar as reações de Severo. Matias não sabe
nada sobre o assunto, mas percebe que Severo esconde alguma
coisa. Ao mesmo tempo, juntando todos os indícios, Cherry
descobre que é filha de Plínio Jochlander. Ele não tem alterna-
tiva senão assumir a paternidade, pedir desculpas e tentar su-
borná-la. E aí resolve que é preciso apagar Severo antes que
Cherry descubra o resto da história.
– Pois é.
– Então encarrega Matias de armar a cilada do missô. E isso
tudo explica a morte de mestre Severo.
– Pois é.
– Mas não explica o assassinato de Matias.
– Pois é.
– E nem o sumiço de Cherry.
– Pois é.
Achei estranho, esperava que ele dissesse alguma coisa a
mais. Decerto estava com a pilha gasta. Ou tinha perdido um
pedaço do seminário.
– Já tentei ligar pra São Paulo – ajudei com um indício. –
Mas ninguém atende.
– Pois é. Olha, está ficando meio tarde. Outro dia eu passo
por aqui.
Foi embora. E sem pagar a conta.

Um morto pula a janela 87


Wilmar trouxe a confirmação, em duas doses.
– Diga aí, rapaisch. Trabalhando no comércio, então.
– Não, só ajudando – expliquei, detrás do balcão. – Vai uma
cerveja?
– Claro. Já eschtava tomando, agora há pouco, lá perto do
jornal. Fui saber das novidadisch.
Pelo olhar, devia ser uma grande novidade.
– Adivinhe quem é o novo editor-chefe.
Não tinha a menor idéia.
– Marion.
Não, não era possível. Da revisão direto pra editoria.
– Rapaisch, acontecem mais coisas entre o céu e a…
– É, essa cidade é foda – Não deixei ele terminar. – Você
não vai voltar pro Rio?
– Rapaisch, o coração tem caminhosch que…
Devia estar de mau humor. Mas não, parecia alegre e de
bem com a vida. Aproveitei pra pedir um favorzinho. Precisava
daquela matéria do arquivo pra escrever um conto. Se é que não
estava mesmo extraviada, como dissera o japonês.
– Bem, ainda tenho uma cópia da chave. Posso tentar uma
pesquisa de madrugada.
Grande Wilmar.
– Aproveita e vê se descobre alguma coisa sobre o assassi-
nato no Tigresa. Aquele com uma zarabatana. Vale uma cerveja.
– Que é isso, rapaisch, fique frio.

Voltou dois dias depois, na madrugada. O Maxim’s estava


quase fechando.
– Aí, rapaisch, sabia que ia encontrar você aqui a esta hora.
A qualquer hora, inclusive. Estranhei, parecia fanho.
– Gripado?
– Não, é só um resfriadinho à toa. Olha só.
Botou dois recortes de jornal em cima da mesa. Um deles an-
tigo, amarelado, um pedaço da página policial do Diário de Ibiraí.

88 Nei Lisboa
– Como foi?
– Entrar no arquivo foi fácil. Mas o porteiro incomodou um
pouco.
– A mulher barbada?
– Não, agora é um japoneisch. A mulher barbada pegou o
seu lugar na redação. É mole?
Não, era duro de acreditar. Do circo pra portaria. Da porta-
ria direto pra redação de política. Mas, enfim, há mais coisas
entre o céu… Olhei o artigo. Então, ali estava. A primeira maté-
ria de Melchíades no jornal, escrita vinte anos antes.
“A Delegacia de Homicídios está diante de mais um mis-
tério… o corpo de um homem branco, aparentando cinqüenta
anos… ferimentos a bala calibre 38… o cadáver, em adiantado
estado de decomposição, não pôde ser identificado… suspeita
tratar-se de Stephan Ginsberg, natural da Dinamarca, residen-
te em Ibiraí, cujo paradeiro é ignorado…”
Pronto. Não havia mais dúvidas.
– E aí, rapaisch, vai ajudar pro conto? – Pegou o artigo da
minha mão. – “Ginsberg”, não é o sobrenome de Cherry?
– É.
– E a família dela era daqui, não era?
– Era. Apenas uma série de coincidências. Escuta, você
descobriu alguma coisa sobre o assassinato da zarabatana?
– Não. A polícia não tem pistas. Esse tal de Matias, a víti-
ma, era do Iate Clube, não?
– Era. Por quê?
– Nada não. Ouvi alguém comentando que ele comia a fi-
lha do home.
– Quem?
– A filha do Sirinho. Clarisse Jochlander.
Essa eu não esperava.
– Clarisse Jochlander é filha do dono do Diário?
– É, ué. Você não sabia, rapaisch? Esposa do senador e fi-
lha do home. O nome dela é Clarisse Hipólito Sirinho Jochlan-

Um morto pula a janela 89


der. Mas veja lá, esse assunto aí fica entre nós. O home é religi-
oso, você sabe. Se descobre, é capaz de enfartar. E pode ser bo-
ato, apenas. Aliás, boato é o que não falta.
– É, boato é o que não falta – concordei.
Juntei o outro recorte de cima da mesa. Era uma página
inteira, dobrada, do Diário de Ibiraí.
– E isso aqui, o que é? – perguntei.
– A capa da edição de amanhã. Passei na gráfica antes de
sair do jornal. Tem uma notinha interessante sobre o senador.
– Aqui? – perguntei, localizando o nome de Jochlander ao
pé da página.
“O senador Plínio Jochlander abre, esta tarde, para visita-
ção pública, os salões de arte da mansão de sua propriedade na
Praia Bonsai, município de Ibiraí. A iniciativa, inédita entre…”
– Pelo amor de deus, Wilmar. Isso é mais do que interes-
sante, é fantástico. Te devo duas cervejas.
– Que é isso, rapaisch, fique frio. Nem vai dar pra gente
beber. Acho que ele quer fechar.
– Ah, pois é, não repara. Vamos sair pela janela.

90 Nei Lisboa
IX

Amanheceu um céu chumbo, um dia frio e úmido com o


qual eu não contava. Planejara levantar da cama logo cedo pela
manhã, mas a virada no tempo me fez abandonar a idéia e mer-
gulhar mais uma vez em perigosos devaneios de irrealidade.
Não conseguia fixar o mundo no qual, ou para o qual, estava
acordando, perturbado com a idéia de que pudesse ser o conto
inacabado. Ainda assim, com algum esforço, tentei analisar os
fatos e formular hipóteses prováveis antes de partir para a visi-
tação pública dos salões de arte da mansão de Plínio Jochlan-
der.
Era lógico supor que por trás desta benemérita atitude do
senador se ocultasse alguma jogada infame, provavelmente re-
lacionada com os assassinatos de Matias, de mestre Severo e,
em última instância, do avô de Cherry. E a ela, certamente, é
que se queria atrair ou sinalizar alguma coisa. Seria, talvez, um
gesto de boa vontade, um convite ao armistício. Ou uma arapu-
ca maligna. Não podia me decidir sobre isso sem conhecer a par-
te dela nesse jogo, o que estaria tramando – e o que já teria fei-
to. De qualquer jeito, tinha o alegre pressentimento de que es-
tava prestes a reencontrá-la. Quem sabe até ajudá-la de alguma
forma.
Desci a rua na primeira hora da tarde, e fui surpreendido
por uma fila dupla que ocupava os quarteirões da Quinta Ave-
nida até a encosta do morro e, acima deste, até a Praia Bonsai.
Velhos, mulheres e crianças, a grande maioria orientais, havi-
am se interessado pela oportunidade única de conhecer a praia

Um morto pula a janela 91


inexpugnável e as propriedades do pai de Cherry. Por sorte, ou
exata previsão, havia se instalado um sistema de roletas mag-
néticas no topo do morro, que dinamizava o afluxo dos visitan-
tes e que permitiu que, em poucos minutos, eu me visse pela
segunda vez na vida à frente da mansão de Plínio Jochlander.
Não pensei que fosse vê-lo de imediato, planejando aguar-
dar os acontecimentos antes de buscar um confronto com o la-
caio senador. Mas ele encabeçava a comitiva de recepção no
saguão de entrada, ao lado de ninguém menos que o meu ex-
patrão, o poderoso e octogenário jornalista Hipólito Sirinho. Não
me reconheceu, o velho, e pouco me importei com isso. Parecia
cego e esclerosado – ainda mais do que nas poucas vezes que o
vira circulando no jornal –, ocupado em desembaraçar o fio de
seu marcapasso cardíaco.
Jochlander tentou dissimular, a princípio, mas concedeu
um cumprimento formal, balançando a cabeça, quando perce-
beu que eu não desviava o olhar. Era o que bastava, naquele
momento, para avisá-lo de que eu estava atento a qualquer jo-
gada suja. Passei adiante, portanto, cruzando o salão principal
da mansão, no térreo, quase todo tomado por uma multidão
de visitantes e seguranças japoneses. Era quase impossível al-
cançar a escada, mas afinal consegui mergulhar na direção cer-
ta e fui levado por uma onda humana até o segundo andar e ao
lugar onde já havia estado antes – o salão com os quadros de
Cherry.
Então, ali estavam. Eram agora nove telas, ao todo, a cole-
ção completa dos “holandeses voadores”. Uma visão fantásti-
ca, ainda. Mas perdiam um pouco da sua beleza, expostos da-
quela forma, como anônimos enfeites de uma festa maluca pa-
trocinada pelo senador.
Havia mais espaço ali dentro, pelo menos mais do que no
resto da casa. Por isso não demorei a localizar Wilmar admiran-
do uma das telas, o copo de uísque na mão.
– Chegou cedo, então?

92 Nei Lisboa
– Aí, rapaisch, pois é. Que loucura, isso aqui. Foi um sufo-
co chegar até aqui em cima. Mas valeu a pena. Os quadros da
sua garota são um eschtouro. Ela não vai aparecer, não?
Tinha dito a ele, na noite anterior, que ia tentar avisar
Cherry a tempo dela voltar de São Paulo. Mas talvez ficasse di-
fícil, os vôos andavam lotados, etc… Ele não conhecia os qua-
dros, não vira a exposição no Iate Clube. E pensava que Plínio
Jochlander, afora um lacaio imperialista instituído, era de fato
um mecenas discreto que preferira arrematar as obras de Cher-
ry sob a identidade do misterioso sócio de Matias. Como, aliás,
também pensava Gustavo, o bardo.
– Ahá, dale pajeros. Ya se abracian con el uisque, enton-
ces.
Eu não o vira aproximar-se em companhia de Pablo Trobo.
Ainda estava abismado com a garçonete que me servira um copo
de uísque sem que eu pedisse, sequer, e que parecia ter saído
de um conto das mil e uma noites. Vestia uns panos e colares
indianos, mas cobria parte do rosto ao estilo das mulheres sau-
ditas.
– Qué passa, che.
– Nada. Achei a garçonete meio estranha, só isso. Como
foi que descobriram isso aqui?
Pablo Trobo lera a notinha no jornal, pela manhã. A pre-
sença do psicólogo, ali, era mais do que agradável. Seria indis-
pensável contar com as deduções dele no caso de surgirem in-
dícios do paradeiro de Cherry, durante a tarde, ou das inten-
ções de Plínio Jochlander ao promover aquela visitação pública.
Uma análise, é lógico, que reservaríamos para algum outro
momento, quando pudéssemos nos afastar discretamente de
Gustavo e Wilmar.
Resolvi preparar o espírito dele.
– Temos que reconhecer que Plínio Jochlander tem bom
gosto – comentei, me dirigindo aos três, porém lançando um
olhar cúmplice ao psicólogo.

Um morto pula a janela 93


– Claro – ele respondeu – A não ser que se diga que ele
comprou estes quadros todos por engano, na verdade tentando
arrematar uma única tela que lhe interessava para encobrir da
filha o fato de que havia assassinado o avô dela vinte e um anos
antes.
Eu não podia acreditar. Ele não podia estar dizendo aqui-
lo. Decerto eu parecia um estúpido. E com a boca aberta, ainda
mais.
– Surpreso? – ele completou, maquiavélico.
De repente, senti vontade de vomitar. Nem tanto pela fal-
ta de ética profissional do Dr. Pablo Trobo, espalhando aos qua-
tro ventos hipóteses – e apenas hipóteses, eu diria – que for-
mulara a partir do relato de uma paciente. E mais, informações
– hipóteses, eu diria – que poderiam colocar Cherry em perigo
de vida, se é que já não estava. Mas o problema não era esse. Eu
não havia comido nada desde o outro dia, e o uísque boiando
no estômago vazio estava a ponto de abrir um túnel extra até o
intestino.
– Com licença, eu vou até o banheiro – pedi.
Saí meio tonto pelo salão, quase derrubando uma banqui-
nha de pastel que um japonês instalara na entrada. Não sabia
pra que lado ir, muito menos atrás de qual das quatrocentas
portas da mansão haveria um banheiro desocupado. Terminei
entrando por um labirinto de corredores numa ala deserta que,
afinal descobri, não estava tão deserta assim.
– Vem – ela disse, me puxando pelo braço para dentro do
quarto.
Era Clarisse Jochlander. Clarisse H. S. Jochlander.
– Desculpe o mau jeito.
Pelo menos reconhecia que quase me arrancara o braço
fora.
– Eu… Temia que alguém nos visse juntos. Mas precisava
falar com você. E com Olívia.
Podia ter escolhido uma hora melhor.

94 Nei Lisboa
– Duvido que Cherry apareça pra festa de um assassino.
Do assassino do avô dela. Do assassino de um pescador inocen-
te e pobre. – desabafei.
Agora tanto fazia. O mundo todo já devia saber. O Uruguai
todo, pelo menos.
– Ah… Então você já sabe… – ela suspirou – Claro, Olívia
teve que lhe contar, afinal…
Olívia. Ainda tenho que ouvir isso. Ela pensa que eu sou o
Popeye. Só falta começar a chorar. Começou.
– Eu também demorei a saber – disse, sentando na cama e
enxugando as lágrimas – Plínio… Aquele… Aquele verme, é isso
o que ele é. Se ao menos tivesse tido a coragem de assumir pe-
rante ela, perante mim… Mas no ponto em que as coisas che-
garam, a pobrezinha não viu outra alternativa senão…
Desatou uma choradeira infernal. Depois se acalmou um
pouco.
– Nós temos que fazer alguma coisa para impedir que o
pior aconteça.
– Que tal procurar um banheiro?
O quarto não tinha um. Estranho. Afora isso, tinha tudo
para ser a suíte do casal. Cama redonda. Frigobar. Equipamen-
to de vídeo e áudio digital. Vibrador em cima do bidê.
– Eu sei que… Não posso esperar que você confie em mim,
a essa altura – choramingou – Mas eu juro que quero apenas
ajudar.
Se eu não fosse confiar nela pra achar o banheiro do caste-
lo, não confiaria em mais ninguém.
– Posso voltar a confiar, se você me contar o que sabe. Com
todos os detalhes – Incluindo o banheiro, pensei.
– Bem… Nada além do que você já deve saber – Ela pare-
cia mais calma. Tomou a minha mão e fez com que eu sentasse
ao lado dela na cama. – O plano… Quero dizer, a vingança de
Olívia. Posso entender as razões dela. Mas é uma temeridade
optar dessa maneira pela violência. E aquele pobre funcionário

Um morto pula a janela 95


de Plínio… Não acredito que ele estivesse sequer envolvido com
as crueldades do meu… Do meu ex-marido. Já me decidi a aban-
doná-lo, depois disso tudo.
O funcionário de Plínio. Matias, só podia ser.
– O que é que a morte de Matias tem a ver… – tentei.
– Bem – ela interrompeu, confirmando. – Não está nada
provado, você sabe. Mas tudo indica… Quero dizer, ela própria
andou fazendo ameaças, insinuando coisas… E a polícia já sabe
que foi uma loira. Talvez uma loira ruiva.
Daqui a pouco vão querer investigar o apartamento. Me-
lhor queimar aquele livro da zarabatana.
– Você… Parece perturbado. Talvez queira tomar alguma
coisa. Um uísque, quem sabe.
– Não. Tudo bem. Pode prosseguir.
Ela chegou um pouco mais perto.
– É claro que é contra o próprio Plínio que a pobrezinha
vai se voltar com toda a força. Com todo o ódio do mundo. Deve
estar planejando uma morte terrível para ele.
Eu não podia aceitar aquilo calado.
– Cherry não mataria o próprio pai – atirei. Pelo menos
assim eu vomitava alguma coisa.
– Claro, claro. Eu tenho certeza que não – ela se aproxi-
mou um pouco mais. – Mas você há de convir que ela teria
motivos. E talvez sob a influência de alguém… Se não me en-
gano…
Ela se aproximou um pouco mais. Eu não sabia aonde ela
queria chegar. Talvez no meu colo.
– Bem… No verão, você sabe, eu a vi na praia caminhan-
do, algumas vezes… Sempre muito bem acompanhada. Não
estou querendo insinuar nada, eu sei que vocês são muito uni-
dos e que tudo isso deve ser um sofrimento terrível para um
coração apaixonado como o seu. Mas um homem maduro da-
queles… Também me pareceu muito elegante… Você deve sa-
ber como as mulheres reagem…

96 Nei Lisboa
– Não há homem nenhum.
– Ora… Eu não quis dizer isso. Era apenas um companheiro
dela, talvez seja seu amigo, também. Um senhor de óculos, com
ar de estrangeiro… E com pessoas assim, tão finas, a gente às
vezes se permite certas liberdades…
Ela se afastou. Também, não dava pra chegar mais perto.
E tripudiou das minhas falsas ilusões.
– Pra falar a verdade, acho sim que esse homem deve estar
induzindo-a a fazer o que ela vai fazer, se ninguém impedi-la. A
matar Plínio. A matar papai. Sim, papai, por ter mandado você
embora do jornal. Mas principalmente Plínio, que é o verdadei-
ro responsável por isso, também. E de quem pode exigir uma
parte da herança quando provar que é filha dele. Quando pro-
var isto sobre o cadáver dele, antes de fugir com este outro ho-
mem. É claro que ela ainda ama você, um pouco, pelo menos.
Mas não teria coragem de arrastá-lo para um abismo desses. Um
abismo, sim. Porque acontece que Plínio já sabe de tudo. E está
atrás dela. E preparou esta emboscada, achando que ela não re-
sistiria à oportunidade de rever os seus quadros e acabar com o
pai ao mesmo tempo. Na própria casa dele, aproveitando a situ-
ação de tumulto que surgiria com essa multidão de visitantes.
Acho sim. Acho, não, tenho certeza. E você já devia saber disso.
Assim como sabe que ela está por perto e precisando de ajuda,
da ajuda de um homem leal, forte, sincero como você. Não dos
conselhos de um aventureiro qualquer. Eu arriscaria a minha
vida para socorrer Olívia. E só eu posso interferir no plano de
Plínio para matá-la antes que ela o mate. Mas precisaria de algu-
ma coisa a mais, alguma forma de pressioná-lo. Por isso você
precisa me ajudar. Precisa me ajudar a ajudá-la. Precisa me aju-
dar a ajudá-la a ajudar a si própria. Precisa me dizer onde ela está.
O vômito já havia passado pelo meu esôfago e ameaçava
sair pelas orelhas se eu continuasse apertando os lábios.
– Eu não sei – consegui pronunciar.
– Não sabe… Mas… Como é que você descobriu sobre o

Um morto pula a janela 97


assassinato do avô de Olívia… Da primeira vez que nos fala-
mos… Você não sabia de nada, não é? Ou escondeu de mim?
Desta vez ela batera um recorde. Tinha se aproximado tan-
to que eu terminara deitando na cama, ela por cima. Pelo vão
do decote dava pra avistar a calcinha, bem ao fundo. E, se não
me cuidasse, ia acabar vomitando dentro do vestido.
– Só soube. Esta semana – Tinha que usar frases curtas,
sem mexer demais a boca. Era um curso grátis de ventri-
loquismo. – Uma carta. Uma carta do avô. Do pescador. O avô
deixou. Severo. O pescador. Deixou. Deixou lá em casa.
– Uma carta que o avô de Olívia deixou com Severo, o pes-
cador, e que você encontrou na sua casa?
Fiz que sim com a cabeça.
– Incriminando Plínio? Prevendo que seria morto por ele?
Ainda bem que ela tinha imaginação para inventar o resto
da história. Balancei a cabeça de novo.
– Mas então… É disto que nós precisávamos… É a arma
que faltava para convencer Plínio a não matar Olívia. A não sa-
crificá-la. A não trucidá-la de forma sanguinolenta. Você sabe
que ele não teria pudores quanto a isso. Você… Tem esta carta
bem guardada… É claro.
Não era uma pergunta. Era uma ameaça com os mamilos.
E a mão dela cobria o flanco inferior. O vômito começava a es-
correr pelos cantos da boca.
– Não tenho. Certeza. Talvez. Quem sabe. Guardei. No lixo.
Joguei. Em casa. Não me. Lembro.
– Você não se lembra… Não sabe se guardou ou jogou
fora… Eu entendo, meu bem, toda essa tensão… Mas você pre-
cisa se lembrar… É a única maneira de ajudar… Hmm, você
está tão durinho… Talvez uma massagem faça você se sentir
melhor… Calma, meu amor… Relaxe, eu só…
A porta se abriu. Era a garçonete que me servira o uísque.
– Pelo amor de deus, Deva Shira, quantas vezes eu já falei
pra você não ir entrando desse jeito porta adentro. Isto aqui não

98 Nei Lisboa
é um barraco lá da sua vila. Será possível que já não se encontra
uma serviçal que preste nesta cidade? Você não recebeu educa-
ção? Não sei mais…
Eu não resistiria nem mais um segundo. Botei a mão na
boca e saí correndo porta afora.
– Com. Licença.
Se fosse o caso, depois eu voltava pra sala de massagem.
Mas agora o único e imediato desejo possível era de que a porta
no final do corredor fosse um banheiro. Tinha de ser um ba-
nheiro. Só podia ser um banheiro. Azar do carpete se não fosse
um banheiro. Abri. Era um banheiro.
O jorro se espalhou na direção certa, e cheguei a pensar
que tinha acertado em cheio o vaso quando abri os olhos pra
conferir o estrago. Não era bem isso. Tinha coberto de vômito o
corpo sentado em cima dele. Desovado ali. O corpo do velho e
poderoso jornalista Hipólito Sirinho, branquinho da Silva, en-
forcado no fio do próprio marcapasso.

Eu já esperava por ele há dois dias.


– Olá.
– Boa tarde, Dr. Pablo Trobo.
Dois dias tomando água mineral. A minha mão estava tre-
mendo. Dois dias sem dormir. Dois dias repassando os fatos.
As teses. A dialética na ponta da língua. A minha língua estava
tremendo.
– Algum problema?
– Nenhum.
Ele teria que fazer a abertura. Eu jogava com as pretas des-
ta vez, parceiro.
– Você sumiu durante a visitação.
– Tive que sair às pressas. Ligar pro Rio de Janeiro.
Até aí, apenas o trivial. Um cavalo. Um peão avançado.
– É pena. Ficamos esperando por você. Eu queria conversar
sobre algumas coisas.

Um morto pula a janela 99


– Pois é.
Ele queria que eu saísse com a dama. Ia morrer esperando.
– Os motivos de Jochlander em abrir a sua mansão ao pú-
blico. Uma hipótese sobre o paradeiro de Cherry. A morte de
Hipólito Sirinho.
Desse jeito ele ia congestionar todo o quadrado do meio
de uma vez só. Pouco me importava.
– Pois é.
– Mas você não parece muito interessado.
– Pois é.
Consegui. Ele teve que recuar.
– Bem – começou, ajeitando os óculos – De qualquer for-
ma, eu estive pensando. Não dá para concluir muita coisa a
partir desses fatos. A não ser, talvez, que o avô dinamarquês
de Cherry tenha sido um homem prevenido, além de cabeça-
dura. Digamos que ele houvesse escrito uma carta incriminan-
do Plínio Jochlander antes de ir armado de uma faca até a es-
cuna do senador disposto a matá-lo, vinte e poucos anos atrás.
Ele sabe que está arriscando a vida nesta empreitada, digamos,
então escreve a tal carta onde acusa Jochlander de ter engra-
vidado a filha dele, mãe de Cherry, e de ser o responsável pelo
assassinato dele próprio – do autor da carta. Depois, digamos,
resolve deixar a carta com mestre Severo, o pescador de quem
aluga um bote para remar até a escuna. Pede que Severo en-
tregue aquela carta à justiça no caso de ele não voltar com o
bote e aparecer morto, que é o que de fato acontece. Severo lê
a carta e fica em dúvida sobre o que fazer. Tem pena do velho
dinamarquês, mas não quer se envolver num assunto desses
e muito menos com o rico e poderoso Plinio Jochlander. Até
que um dia Jochlander aparece com um quadro amarelo, pe-
dindo que ele faça uma moldura. Severo, então, decide deixar
que o destino faça a sua parte e coloca a carta no próprio qua-
dro, ou seja, escondida num pequeno vão entalhado por ele
na parte interna da moldura, na esperança de que algum dia

100 Nei Lisboa


ela caia nas mãos de uma pessoa honesta e a justiça seja feita.
Vinte anos mais tarde, como já sabemos, Cherry vem morar
em Ibiraí e traz o quadro amarelo com ela. Por circunstâncias
que você já conhece, Severo é assassinado com uma dose com-
binada de missô e estricnina. Antes de morrer, entretanto,
enquanto agoniza no hospital, ele finalmente revela a Adria-
na o segredo que guardara todos esses anos. Adriana conta a
Cherry, e as duas encontram a carta no lugar indicado por Se-
vero. A princípio Cherry se deixa tomar pelo ódio e pensa em
matar Jochlander, ou seja, o próprio pai dela, para vingar a
morte do avô e a de Severo. Mais tarde, porém, graças a um
tratamento psicoterapêutico bem-sucedido – e aqui eu devo
reconhecer a minha humilde contribuição – ela resolve usar a
carta para extorquir de Jochlander aquilo que lhe é de direito,
ou seja, dinheiro para levar uma vida mansa em alguma praia
do mediterrâneo por uns bons anos. Espera, então, o final do
verão, até que o plano esteja pronto em todos os seus deta-
lhes, e some da cidade depois de enviar a Jochlander um en-
velope contendo uma cópia da carta incriminadora do avô e
os termos da chantagem. Nesse primeiro contato, ela diz a Jo-
chlander que, embora seja pai dela, ele é um grande filho da
puta. Diz que o mundo inteiro vai saber disso se ele não cola-
borar, que ela está sozinha nessa jogada, que tem o original
da carta do avô muito bem guardado, que ele não tente en-
contrá-la ou envolver alguém mais no caso senão ela entrega
a carta para um concorrente que adoraria arrasar com a cam-
panha dele para governador do estado. Diz que ele tem três
semanas para juntar um milhão de dólares e que espera um
sinal dele dentro desse prazo – um anúncio no Diário de Ibi-
raí de que a mansão da Praia Bonsai estaria aberta à visitação
pública durante uma tarde, com os quadros dela expostos. Isso
feito, ele receberia segundas instruções. Jochlander cumpre a
exigência. Depois, é claro, de mandar revirar o apartamento
atrás da carta e procurar por Cherry na casa da Lagoa, deixan-

Um morto pula a janela 101


do Adriana sob estreita vigilância. Bem. Cherry, de alguma
forma, faz o segundo contato. Um envelope postado por um
psicólogo no dia da visitação, digamos, em que ela diz a Jo-
chlander que traga o milhão de dólares aqui, no Maxim’s, num
dia determinado. Digamos, hoje.
Ficou me olhando, antes de concluir. Eu não me pertur-
bei.
– Na madrugada de hoje para amanhã. A uma hora e qua-
renta e cinco minutos de amanhã. Digamos. Estamos apenas
supondo. Diz a ele, também, que venha sozinho no helicóptero
dele. Que ela quer todos os quadros dela de volta encaixotados
dentro de um contêiner. Um microcontêiner de fabricação ja-
ponesa. E que, se não tentar nenhuma bobagem, ele vai rece-
ber o original da carta do avô e se ver livre dela pelos próximos
cinqüenta anos. Isso tudo, claro, é apenas suposição.
Suposição ou não, era muito fraco. Deu nojo. Vontade de
virar um tabuleiro de xadrez na cabeça dele.
– Muito bem, Dr. Pablo Trobo. Muito bom. Muito interes-
sante. Mas isso tudo não explica a morte de Hipólito Sirinho.
Não explica a morte de Matias. E principalmente não explica a
sua verdadeira participação nessa história. Cherry seria inca-
paz de tomar uma atitude imoral como essa, de chantagear o
próprio pai, de compactuar com os assassinatos dos quais ele é
culpado, de deixá-lo ir em liberdade em troca de dinheiro. Não,
não seria. Mas talvez fosse capaz de matar. De vingar a morte
do avô. De fazer justiça com as próprias mãos. Desde que, é cla-
ro, estivesse sob forte e continua influência de uma mente
maligna. E eu não estou falando de meia dúzia de sessões pseu-
doterapêuticas e pornográficas na beira da praia. Estou falando
de informações absolutamente seguras de que ela esteve por
perto esse tempo todo. De que corre perigo. De que precisa da
ajuda de um homem forte, sincero e leal. Não dos conselhos de
um aventureiro qualquer. Estou falando do bilhete que ela dei-
xou para Matias na casa da Lagoa. Da reação de Matias, do pa-

102 Nei Lisboa


vor de Matias pouco antes de morrer, procurando por ela. Da
loira ruiva que foi vista junto com ele na noite do crime. Do
método usado, uma zarabatana, que ela conhecia tão bem. Es-
tou falando do ódio por Hipólito Sirinho. Do ódio que Cherry
nutria em silêncio, solidariamente revoltada com aqueles que
me tiraram o emprego, o sustento digno. Do ódio pelo pai dela,
acima de tudo. Não, Dr. Pablo Trobo. Não se muda a moral de
uma pessoa de uma hora para outra. Pode-se, isso sim, atiçar a
fome de vingança que ela porventura carregue consigo. As pul-
sões de morte. Reconhecer os desejos, não é isto que recomen-
da a seus clientes? Pois muito bem, reconheça os seus, agora.
Reconheça que é o verdadeiro mentor dessa farsa. Reconheça
que está ocultando Cherry. Levando-a a praticar esses crimes.
A matar Matias. A enforcar Hipólito Sirinho. A matar o próprio
pai, provavelmente esta madrugada, enquanto eu estaria espe-
rando sentado neste bar que ela aparecesse para executar a
chantagem da sua história ridícula. Reconheça que o seu ver-
dadeiro objetivo é a herança de Plínio Jochlander, a parte da
herança que Cherry receberia ao provar a sua condição de filha
sobre o cadáver dele. Reconheça que está comendo a minha na-
morada.
Ele estava visivelmente abalado. Cercado. Movimentando
o rei de um quadrado para o outro.
– Você está completamente equivocado a meu respeito. E
a respeito de todo o resto, também.
Lógico. Ele não iria entregar o jogo tão fácil. Adivinhei que
tentaria uma saída desesperada. Talvez propor um empate.
– Clarisse Jochlander matou Matias. E Hipólito Sirinho.
– Ah, sim… – bocejei, decepcionado com a imaginação dele.
– Pelo menos é o que se pode concluir a partir dos fatos.
Ela é a legítima herdeira da fortuna de Sirinho, já que os três
filhos homens do velho nasceram com síndrome de down and
out. E era amante de Matias. Hipólito Sirinho sustentava a cam-
panha de Jochlander através do jornal, dando toda a cobertura

Um morto pula a janela 103


para a criação do pólo turístico. O pólo que, na verdade, é ape-
nas uma fachada para um acerto feito entre Jochlander e Hipó-
lito Sirinho, de um lado, e do outro uma multinacional japone-
sa que produz, entre outras coisas, japoneses.
– Uma fábrica japonesa de japoneses – Fingi um ar de sur-
presa. Era quase sincero. Não esperava tanto daquele conto da
carochinha. – Muito bom. Muito bom mesmo. Gostei.
– Se você prefere, podemos voltar ao terreno das hipóte-
ses.
– O que você quer dizer com voltar?
Ele não estava em condições de aceitar uma ironia.
– Então, digamos. A idéia de Jochlander é trazer a fábrica
para Ibiraí, depois de eleito governador, e transformar o estado
em um subexportador de chips. Em troca de todo esse acerto,
vamos supor, ele e Sirinho estão levando por fora uma ilha no
Pacífico com setecentas nisseis e um campo de golfe. Ora, uma
transação suja como essa não poderia aparecer no testamento
do velho. Clarisse Jochlander, portanto, não herdaria nem um
centavo dessa história. Ou melhor, nem uma bola de golfe.
Muito menos uma nissei. Então, digamos, ela descobre a tra-
móia. Por puro acaso. Escutando a conversa dos dois detrás de
uma porta. É claro que fica furiosa, ainda mais porque planeja
para breve o assassinato do velho, pensando em fugir com Ma-
tias e a herança para bem longe. E a ilha seria um ótimo lugar.
Ao mesmo tempo, descobre por Matias que Jochlander está sen-
do pressionado por Cherry, de alguma forma que eles não sa-
bem bem qual é. Matias, aliás, não sabe e nunca soube de nada.
Nem do parentesco de Cherry com o senador, nem do assassi-
nato do avô. Matou Severo sem saber por quê. É apenas um can-
dango burro a serviço de Jochlander. Mas conta a Clarisse que
Jochlander mandou-o investigar sobre o paradeiro de Cherry na
casa da Lagoa. Clarisse sabe e sempre soube de tudo sobre Cher-
ry e o assassinato do dinamarquês. Conclui que, se Jochlander
está sendo pressionado por Cherry, ela deve ter alguma prova

104 Nei Lisboa


em mãos que incrimine o senador, e passa a se interessar pela
carta do avô, ou o que quer que fosse, como uma maneira de
exigir do marido que legalize a negociata da ilha para que passe
a constar do testamento do velho. Depois mata Matias. E o ve-
lho, Hipólito Sirinho. O próprio pai dela.
Eu já estava quase rindo. E ele quase perdendo a elegância.
– Ora, meu caro doutor, sinceramente eu não sei onde foi
que conseguiu o seu diploma. Tenho as minhas dúvidas. Então,
quer dizer que Clarisse mata Matias. Simplesmente mata. As-
sim, sem motivo algum. Mata o amante por quem seria apaixo-
nada a ponto de fugir com ele depois de enriquecer com outro
assassinato, o do pai. Esse enredo é bastante familiar, não acha?
E se encaixa melhor nas possibilidades de Cherry. Muito embo-
ra ela não esteja apaixonada por você, é claro. Mas é bem capaz
de se voltar contra quem a induziu a mergulhar nesse abismo
sem volta. Quanto a Matias, o motivo é bem claro. Cherry não
deixaria passar em branco a morte de Severo. De um pobre pes-
cador, amante de sua melhor amiga. E Matias, seja como for, foi
o responsável direto pela morte dele. Aliás, diga-se de passagem,
se a sua fantasia sobre uma chantagem pudesse ser levada a
sério, Cherry não dispensaria o envolvimento de Adriana e faria
questão de repartir o dinheiro com ela. Mas não, deixou a amiga
estudando para um concurso público. A caminho de se tornar
uma barnabé punk. Por quê? Por um único motivo. O mesmo
motivo pelo qual não me contou nada. Jamais iria nos envolver
em um assassinato. Muito menos em três assassinatos.
Mais um pouco e eu ia sentir pena dele. Já tinha perdido a
elegância e começava a perder a razão. Ou o contrário.
– O bilhete. Tem que estar no bilhete – repetia, revirando
os olhos por trás dos óculos.
– Mas vamos até o final – prossegui. O empate já estava
fora de questão. Mas eu não ia deixar nenhum peão dele de pé.
– Você diz que Clarisse Jochlander matou Sirinho por causa da
herança. E que está atrás da carta, a suposta carta do avô de

Um morto pula a janela 105


Cherry, para pressionar Jochlander a legalizar e, em última ins-
tância, incluir a ilha no testamento do velho. Ora, neste caso
não faria sentido ela matar o pai antes de conseguir a carta. Teria
de ser na ordem inversa. E isto você não vai conseguir me ex-
plicar nunca.
– Não sei – Ele começou a admitir. – Talvez ela não tenha
matado o velho. Mas matou Matias. Eu sei. Ela era amante dele.
E quer a carta para pressionar Jochlander.
– Assim como queria fugir para uma ilha com um candan-
go burro que não chega aos pés de uma mulher como ela.
– Um candango índio.
– Sim, e daí?
– Você já deve ter ouvido falar sobre pau de índio…
Ora, não era possível. A psicologia pedindo socorro ao ane-
dotário popular. Fiquei um pouco perturbado.
– Também conheço uma lenda a respeito de pau de psicó-
logo.
– Você tem que acreditar em mim. Eu só não posso expli-
car agora. Por enquanto.
Não conseguiria explicar muitas coisas mais.
– Em primeiro lugar, eu sei que Clarisse não matou o ve-
lho. Pela simples razão de que eu estava com ela no momento
do crime. Não importa em que condições. Em segundo lugar,
você pode achar que é piada. Mas essa história da carta eu in-
ventei primeiro. Exatamente do jeito que me contou. Chego a
pensar que o seu diploma é de parapsicólogo.
– Talvez seja apenas uma série de coincidências – ele dis-
se. E eu passei a ter certeza sobre o diploma.
– Por último, você ainda não me explicou onde aprendeu
esse tipo de análise.
Era a minha grande carta na manga. O mate triplo. Ele ia
sair dali chorando. Talvez o levasse direto pra delegacia.
– Mas eu já expliquei no capítulo oito. Foi num seminário,
em Buenos Aires, com o Ricardo…

106 Nei Lisboa


Eu não precisava ouvir até o fim. E nem precisaria contar
toda a verdade. A metade, talvez, de um telefonema para o Rio
de Janeiro.
– Ricardo Passarinho nunca esteve em Buenos Aires. Só
conhece Bariloche.
E me ofereceu um consórcio de psicanálise. Uma cura por
sorteio. Duas por lance, todos os meses. Mas não, fiz bem em
omitir esta parte. O coração dele não ia resistir.
– Você não entendeu. Eu estou falando de Ricardo Paço
Ariños, grande psicanalista argentino. Meu mestre.
Filho da puta. Queria botar o rei no bolso e ir pra casa. Ia
me fazer gastar um DDI para a Argentina. Fiquei um pouco mais
perturbado.
– Não importa. Essa história da carta fui eu que inventei.
Isto você não vai conseguir me explicar nunca.
– Talvez tenha emergido do seu inconsciente. Das lem-
branças da sua infância. Ou de algumas semanas atrás. O fato é
que corresponde à mais pura realidade. E talvez seja melhor
deixar que Cherry lhe explique tudo hoje à noite.
Ele queria apenas me confundir.
– Ah, sim. Hoje à noite. Na hora em que os dois aparecerem
para a festa. Você de Robin Hood e ela de freira. Aí vai me expli-
car tudo que não quis explicar antes. Vai me explicar por que
escolheu pra mim o papel de otário nisso tudo. O papel de guar-
da-malas, de cuidar das coisas dela e desta merda desse quadro
até que esteja pronta para fugir pra Europa.
– Isso eu posso lhe explicar agora.
Ele tinha uma boa reserva de cinismo.
– Alguém teria de ser o guardião da carta. Sem saber. Sem ter
consciência disto. Caso contrário, seria um alvo fácil para qualquer
investida de Jochlander. Acabaria denunciado pelo próprio temor.
Pela responsabilidade desse papel. Cherry, é claro, não poderia
operar a chantagem e carregar a carta com ela ao mesmo tempo.
Seria uma atitude ingênua. Uma operação dessas exige segurança.

Um morto pula a janela 107


Eu ia retrucar com uma piada de fanho. Ele não me deu
tempo.
– Eu não posso dizer mais nada. Só espero que você pense
bem antes de fazer alguma bobagem.
Foi embora. E sem pagar a conta.

Seis horas. Eu não tinha muito tempo. Dali a pouco come-


çaria a escurecer. Talvez fosse loucura contar com Clarisse. Pro-
vavelmente não. Mas ela devia estar com as mãos atadas àque-
la altura. A polícia no pé. Os pés atados. Não havia mais nin-
guém. O Valter não iria nem acreditar. Gustavo e Wilmar já
deviam ter passado pela lavagem cerebral. A mãe de Cherry se
mudara há semanas. Eu havia gasto mais um interurbano por
nada. Meia hora na fila da telefônica. Quinze ligações para Tó-
quio na minha frente. Não, não, eu sou a nova inquilina. A se-
nhora Ginsberg não deixou nenhum contato. O Valter não con-
seguia nem pescar um ovo no pote.

Seis e meia. Alguma coisa estava me deixando maluco.


Alguém estava querendo me deixar maluco. Alguma coisa que
eu havia esquecido. Alguém que pudesse ajudar. Melchíades.
Não, ele não. Ele não conseguiria pescar um ovo no pote. Não
conseguia nem pescar um peixe no anzol.
– Mas você estava lá.
O diálogo do dia anterior. Era inacreditável que pudesse
tomar Campari com caju. Um caju inteiro dentro do copo.
– Saí cedo. Antes de encontrarem o velho. Já lhe disse tudo
que eu sei, Melchíades. Tudo que eu não sei. Já disse à polícia,
também. Estiveram aqui há pouco.
– Estão fazendo uma análise do vômito.
Pouco me importava. Deviam era fazer uma investigação
psicológica. Crítica. Dialética. Diurética. Alguma coisa estava me
deixando maluco.

108 Nei Lisboa


Sete horas. Eu não tinha muito tempo. Menos tempo ain-
da. Ele devia estar escondendo a carta nos óculos. Um pequeno
vão entalhado na armação dos óculos por um pescador uruguaio.
Não, não havia carta alguma. Ele queria apenas me confundir.
Decerto comia ela de óculos. Citando Freud. Devia ser engraça-
do. Engraçado um caralho. Engraçado era a sensação de estar
num conto. Uma freira na mesa do canto bebendo uma taça de
vinho. Queria ter tanto tempo quanto ela. Poder voltar atrás.
Pular uma janela para o passado. Voltar ao tempo daquele qua-
dro de merda. Virar o jogo com um drible parapsicológico. Falar
com o avô. Não, meu senhor, pense bem antes de tentar algu-
ma bobagem. Não vá morrer por causa de uma gravidez. Sexo é
bom. Não pode querer que a sua filha vire uma freira. E a sua
neta pode sofrer por causa disso. Deixe Jochlander em paz. Mate
um psicólogo.

Sete e meia. Já estava escuro. Eu não tinha muito tempo.


Não tinha mais tempo nenhum. Alguma coisa que eu havia es-
quecido. A freira na terceira taça de vinho. Decerto era uma sei-
ta siciliana. Eu tinha que lembrar. Queria pescar um ovo no pote.
Mas não conseguia fincar o garfo. Não, melhor era deixar ele
ali. Tirar dali. Deixar. Tirar. Deixar. Alguma coisa que Adriana
dissera, semanas antes.
– Deixar isso aí, Cherry… Ainda acho que não era preciso.
Pode ser um jogo perigoso.
Não era possível. Um vão entalhado na parte interna da
moldura. Não, não havia carta alguma. Ele queria apenas me
confundir. Ela não deixaria a carta no mesmo lugar. Não ia jo-
gar com a sorte daquele jeito. Não havia carta alguma. Eu não
podia ter certeza com a freira me olhando daquele jeito. Eu não
teria tanta sorte. Não era possível. Tudo era possível. Talvez
pudesse contar com Clarisse. Talvez houvesse uma chance.
Talvez houvesse alguma carta. Talvez o jogo fosse esse. Ela pe-
dira que eu cuidasse do quadro. Deixara em aberto a possibili-

Um morto pula a janela 109


dade de ser salva por mim. O jogo do amarelão. Ninguém pen-
saria em procurar a carta ali. No mesmo lugar. Eu não podia ter
certeza. Teria que esperar a freira ir embora.

Oito horas. A freira tinha ido embora, afinal. Devia ser por
causa do Jornal Nacional. O Valter também ia entrar. Sempre
entrava a essa hora. Ouvia as manchetes e voltava pro bar. Eu
tinha cinco minutos. Não mais do que isso. Não havia carta al-
guma, ele queria apenas me confundir. Mas não custava dar uma
olhada no quadro. Uma pequena pressão nos cantos da tela. Já
tinha visto Cherry fazendo isto. A moldura solta. Um vão enta-
lhado. Onde poderia haver um vão? Bem no canto. Um vão.
Coberto por um taquinho de madeira. Uma obra-prima do arte-
sanato. Ninguém descobriria sem saber. Um envelope. Um en-
velope fechado. Um envelope com vinte anos de mofo. Não era
possível. Tudo era possível.
Subi a rua como se estivesse correndo ladeira abaixo. Quase
atropelei a freira na entrada do edifício. Também, o que é que a
freira estava fazendo na entrada do edifício. A chave, meu deus,
o que é que havia com a chave. Não abria. Como nos velhos tem-
pos, quando Cherry deixava a porta aberta e eu não me dava
conta. A porta aberta. Não era possível. Tudo era possível. E ela
estava de costas, vestida de preto, olhando a vista da janela do
atelier.
Era Cherry.
Não, não era. Era Clarisse Jochlander.
– Desculpe entrar assim desse jeito… Eu precisava falar
com você. E roubei a chave de Plínio.
O filho da mãe tinha uma cópia da chave.
– Lamento muito o que aconteceu ao seu pai – Eu não la-
mentava tanto assim. Mas tinha que respeitar o luto dela.
– Tudo bem. Eu já estava preparada – Ela soluçou um pou-
co. – Sabia que ia acontecer. Só não sabia quando. Mas agora,
mais do que nunca, é preciso que você se lembre de…

110 Nei Lisboa


Ela pegou a minha mão. E viu o envelope.
– Não… Não me diga que você encontrou… Mas só pode
ser… Meu deus, eu estava rezando para que isto acontecesse…
Que maravilha… Eu sabia que você…
Ela chegava um pouco mais perto a cada frase. E eu recua-
va na direção do sofá. Mais um pouco ia acontecer. Aconteceu.
– Você já deve saber que hoje é o dia – Eu tinha acabado de
perceber. Ela estava por cima de mim de novo. E ainda segura-
va a minha mão. – Hoje à noite ela vai tentar assassinar Plínio.
E ele vai perpetrar o mais terrível crime de que já se teve notí-
cia. Vai cortá-la em dezoito pedacinhos e distribuir entre os ca-
chorros dele. Um pedacinho para cada um. Ninguém vai ficar
sabendo. Não vai se ter nem notícia.
– Eu sei, mas…
– Então você não pode vacilar um segundo – Não me dei-
xou falar. Estava possuída pela compaixão. Devia ser a morte
do pai. – O destino de Olívia está em suas mãos. Em suas mãos
másculas. Redentoras. Carinhosas. Donas do meu coração.
Fez com que eu sentisse o coração dela por baixo do vesti-
do. Era um vestido de luto justo, todo tramado e quase transpa-
rente. O coração estava pulsando. Tudo nela estava pulsando.
– Mas eu nem abri… – tentei de novo.
– Você não precisa se intimidar. Olívia há de reconhecer o
seu gesto, quando chegar a hora. O importante agora é que esta
carta esteja a salvo. E tudo que você tem a fazer é… Assim…
Pode puxar um pouco mais a calcinha…
A calcinha era de seda. E eu não era de ferro. Mas não ia
largar a carta, se pudesse.
– Pronto – ela disse, depois de jogar a cabeça para trás e
movimentar a laringe como se estivesse engolindo um compri-
mido.
Eu não podia acreditar. O envelope tinha sumido. Fora
sugado. Aquilo era um conto. Uma vulva atômica. Uma atração
de circo. Tinha de haver um pau de índio envolvido naquilo.

Um morto pula a janela 111


Um barulho na porta.
Os passos firmes atelier adentro.
– Fora daqui, perua.
Era a freira.
Não, era Cherry.
Não, era o conto.
Não, era a freira.
Não,

112 Nei Lisboa


Era Cherry.

– Oi.
Ela vai tropeçar no relógio. Não. Vai ficar parada esperan-
do que eu responda. Deve estar fazendo beicinho. Vai dar meia-
volta. Tomar água na cozinha. Procurar o peru na geladeira.
– Não tem mais peru?
Nunca teve. Não na geladeira. Ela é que é fixada em peru.
Não enxerga nada além disso. Nunca enxerga o relógio. Não se
enxerga. Não sabe o que é chester. Não vai encontrar nada pra
comer. Pensa que eu vivo de vento. O dia inteiro aqui dentro
comendo vento. Vento à bolognesa. Vento gratinado. Um san-
duíche de vendaval na madrugada. Vai desistir. Vai sair da cozi-
nha sem apagar a luz.
– Não tem mais fio dental?
Tem. Tem o meu. No bolso do meu casaco de onde não sai
por nada deste mundo. Só do outro mundo. Se aparecer uma
mulher do outro mundo. Com seis lados em cada dente. Seis
dentes de cada lado. Pensa que eu enlouqueci. Que eu não vou
terminar nunca. Que não tenho um final. Ela vai tomar um ba-
nho. Vai tentar tomar um banho.
– Caiu a chave?
Caiu. Sempre cai o disjuntor quando alguém toma um ba-
nho de quarenta minutos antes de sair pra noite. Numa noite
de inverno. Ela pensa que a resistência é francesa. E os france-
ses tomam dois banhos por semana. Ela toma dois numa noite

Um morto pula a janela 113


de inverno. Sou até capaz de descer três andares pra ligar o
disjuntor pra coitadinha. Vejamos. Pela coleção de originais do
Hemingway. Com dedicatória. Pelas presas de marfim do Ho-
mem Elefante. Por um concerto do João Gilberto na sala de jan-
tar. E primeiro tem que me dar a sala de jantar. Desistiu. Vai
entrar no quarto. Até que enfim. Vai tropeçar no relógio.
– Por que é que agora todo dia você põe essa merda de des-
pertador na entrada do quarto?
Pode chutar que tem garantia. E é só olhar a hora que ela
entende. Quatro e meia. Não é das piores. Teve uma noite que
não era mais noite. Não era mais manhã. Era meio-dia e trinta e
sete. E ainda quer comer peru.

Era Cherry.
Não, era a freira.
Era a freira disfarçada de Cherry.
Não, era

– Oi.
Eu sabia. Sexta-feira é infalível. Pelo menos não é ele. Esse
é novo. Cara de otário. Vendedor de seguro. Candidato a verea-
dor. Figurante de monólogo.
– Gordo, esse é o…
– Tudo bem, xará? Não leva a mal o horário.
Gordo é a mãe. Xará é a puta que te pariu. O horário é per-
feito. Três da manhã. Melhor hora pra uma visitinha.
– Quietão, hein?
– Deixa ele. É assim mesmo. Não larga desse computador.
Tá escrevendo um romance policial adolescente.
Rá. Pensa que é pra ela. Por ela eu escrevia um livrinho
infantil. Vão ficar falando lá da sala. Ali da sala. Como sempre.
Vou começar a escrever de fones. Não agüento isso.
– Cherry? Cereja em inglês?
– É. Ou ameixa, sei lá. Na verdade o nome mesmo é Olí-

114 Nei Lisboa


via. Mas ela não gosta e inventou esse apelido. Deve ser por
causa da impressora dele, é uma Olívia e tá sempre estragando.
Sempre, não. No máximo quatro vezes por semana. Essa
jogada de impressoras com nome de mulher deve ser do Jece
Valadão. Só funcionam na porrada. Vou convidar o Jece Vala-
dão pra aparecer aqui em casa. Preciso de umas dicas. Não acre-
dito. Ela vai despachar o cara.
– A gente se vê.
– Tudo bem. Dá um abraço aí no… Cereja… Rá.
Não lembro onde eu guardei aquele canivete. Se achar logo
ainda pego ele na calçada. Posso usar todos os lados. O saca-
rolhas. A lixa de unhas. Deixar cravado na testa do otário. Ela ia
ter que explicar pra polícia. Não dá mais. Ela vem vindo pro
quarto. Não deu tempo de botar o relógio.
– Por que é que você não fala mais comigo?
Eu falo. Ela é que não ouve. Pega as folhas e leva pra sala.
Fica dando palpite. Nunca acerta uma. E quer que o mundo in-
teiro saiba. Que não sobre ninguém pra comprar o livro.
– Posso ler?
Não, não pode. Se já levou por que pergunta? Daqui a pou-
co começa. Mas desta vez vai ser divertido. Levou o capítulo
oito. Vai pensar que ele é herói. Vai dizer pra ele. Ele vai ficar
babando no colarinho. Vão se danar. Vão cair do cavalo.
– Você se inspirou no Antônio pra fazer esse psicólogo?
O psicólogo já estava aí. Sempre esteve. Estava aí desde o
começo. Não preciso de inspiração. Só de uma cafeteira. Ela vai
cair do cavalo. Ele também. Ele é o cavalo. Não disse que é um
burro. Pode até ser um cavalo de raça.
– Como é que o psicólogo sabe isso tudo?
Fez um seminário com o Antônio. Numa estrebaria em
Buenos Aires. Ela pensa que eu vou contar o final pra ela. Es-
crever uma sinopse pro Antônio examinar. Pra dar uma nota.
Usar na monografia dele. Mostrar pros coleguinhas. Ela já deve
estar no fim do capítulo. Ela não lê. Só registra. Depois vai cor-

Um morto pula a janela 115


rendo contar pro Antônio pra ver o que ele diz. E ainda fica dan-
do palpite. Daqui a pouco larga uma. Não posso esquecer de
botar o relógio.
– Não tem mais fio dental?

Era Cherry.
– Gato, virei freira.

– Oi.
Não vou sair num sábado. É o pior dia. Todo mundo sai no
sábado. Um saco. Ninguém sai nos outros dias. Os outros dias
também são piores.
– Oi. Você tá ouvindo?
Pra quê. Já sei o que ela vai dizer. Vai dizer que me ama.
Que vai deixar Jochlander pra lá. Que o psicólogo é bicha. Que
a vida sem mim não vale a pena ser vivida.
– Vou sair com o Antônio.
Era o que eu pensava. Já sabia. Dava pra sentir o cheiro.
Pouco importa. Já tenho tudo preparado. Um quilo e meio de
chester. As meias Kendall. Suave compressão. Vai ser uma noite
divertida. Talvez até consiga escrever o dez. Não. Não posso.
Não enquanto ela não ler o nove. Não enquanto ela não cair do
cavalo. Há semanas que eu espero outra chance. A primeira foi
quando ele apareceu. A única vez. Nunca mais teve coragem.
Leu o cinco. Ficou dando palpite. Falando de cereja. Freud. La-
can. Shakespeare. Do Motel da Barra. Devia ter acabado com
ele naquela hora. Ela se impressiona fácil. Pensa que ele sabe
muito. Pensa que eu enlouqueci. Não sabe o que é trabalho.
Pensa que a vida é virar a noite dançando lambada com um
estudante de psicologia. Deu pra isso, a balzaca. Não se enxer-
ga. Eu disse que queria liberdade pra escrever. Ela achou um
apartamento na Liberdade. Chama isso de consistência. O vi-
zinho de cima é nissei. O do lado sansei. O de baixo nem sei.
Deu nisso. Japonês entrando por tudo que é lado. Não impor-

116 Nei Lisboa


ta. Já tenho tudo preparado. Só não sei o que eu faço com essa
freira. Vou aceitar um palpite dela. Rá. É tudo que ela queria.
Pensa que é minha mãe. Vou deixar o relógio desde agora. O
nove na geladeira. Não. Preciso me acalmar. Pensa que eu sou
otário. Não sabe que eu tenho um caso com a balconista do
chester. Puxei assunto um dia. Me deu um vidrinho de curry
de presente. Chester com curry. Deu Cherry. Não tem história
nenhuma de cereja. Muito menos de ameixa. Pensa que eu vou
agüentar muito tempo. Vou terminar esse troço e me mudar
pro interior com a balconista. Criar chester. Não sou veado pra
agüentar todos os casos dela enquanto eu encho a geladeira.
Ligo o disjuntor. Escondo o fio dental. Já estou cansando. Vou
botar o relógio. E a meia.

Era Cherry.
Não, era a balconista.
De fio dental.
Não, era o Antônio.
– Oi. Virei freira.

Não adianta. Não vai dar. Vou dormir. Vou tirar o relógio.
Já parou, mesmo. Parou às oito. Deve ser quase meio-dia. Sei
por causa do sol atrás da tela. Odeio esse sol. Odeio domingo.
Odeio esse silêncio.

Não, era

– Oi.
– Oi.
São duas. Às três da tarde. Um recorde. Pouco me importa.
Já tenho tudo preparado. Odeio esse silêncio. Silêncio de fute-
bol. Lá no fundo. Mal deu pra dormir umas horas. Não lembro
o nome da outra. É igual a ela. Vão ficar falando ali da sala. Es-
queci de comprar os fones.

Um morto pula a janela 117


– Agora inventou um psicólogo que explica tudo.
– Ah, é? Por causa do Antônio?
O psicólogo já estava lá. Sempre esteve. Estava lá desde o
começo. Não preciso nem de cafeteira. Não preciso que me ex-
plique onde passou a noite. Com quem. Fazendo o quê.
– Pois é. O Antônio disse que ele deve estar transferindo
alguma coisa. Dá pra entender. Disse que é regressão a serviço
do ego.
Não. Não acredito. Ele não pode ter sido tão estúpido. Tão
caricato. Vai dar pena. Vai cair do cavalo e ser pisoteado por ele.
Por ele próprio. Pensa que é herói. Que eu sou paciente dele. É
capaz de aparecer pra me cobrar os honorários. E ela ainda se
impressiona. Dá nojo. Vai cair do cavalo e ser atropelada por
uma manada de búfalos.
– Nossa, quanto peru.
É só no que ela pensa. Não enxerga nada além disso. Não
sabe o que é chester. Não vai dizer nada. Vai achar a meia na
geladeira e não vai dizer nada. Vai voltar pra sala sem dizer nada.
Rá. Pensa que o quilo e meio de chester caiu do céu. Junto com
uma meia Kendall. Melhor assim. Não tenho que explicar nada.
Vou rir sozinho. Em silêncio. Odeio esse silêncio. Odeio a Gal
Costa. Como é que alguém que nasceu depois de Cristo pode
ouvir a Gal Costa? Por que é que ela tem que botar a Gal Costa a
todo volume? Deve estar furiosa. Vem pedir explicações. Não
tenho que explicar nada.
– Posso ler?
Não, não pode. Deixei o nove em cima da cama pra nin-
guém ler. Vai levar pra sala e ficar dando palpite junto com a
outra. Vai ser engraçado. Não. Não vai. Vai ler na cama. Lógico.
Não quer nem saber. Vai deixar a outra sozinha estourando os
tímpanos de Gal Costa. Quer é procurar o outro pé da meia. É
claro que achou o primeiro na geladeira. Mas não ia dizer nada.
Claro que não. Nem pode. Não tenho que dar explicação. Ela é
que tem que se explicar.

118 Nei Lisboa


– Gordo, essa história tá errada. Marcapasso não tem fio.
Tava demorando. Marcapasso não tem fio. E daí? Que di-
ferença faz? Ela só quer consistência. É só o que ela enxerga.
Não sabe o que é literatura. Que diferença faz? Eu não pedi ne-
nhum palpite. Marcapasso não tem fio. E daí? E daí?

Era a freira.
– Oi. Vim trazer o fio do marcapasso.

Não é possível. Como é que eu fui dar um cagada dessas.


Enforquei o velho num fio que não existe. Não acredito. Ela não
vai sair Deve estar com cólicas. Despachou a outra. Vai ficar len-
do na cama. Procurando a meia. Já deve estar no final do capí-
tulo. Já passou pelo velho enforcado e não disse nada. Não en-
xerga nada. Só enxerga a meia que não consegue achar. Da pri-
meira vez foi sério.
Há três meses. A balconista tinha uma folga. Esqueceu as
meias na cama. Como é que eu fui dar uma cagada dessas. Ago-
ra tenho que aturar um aluninho de psicologia. Não tenho que
aturar nada. Ela vai cair do cavalo. Já deve estar com um pé fora
do estribo. Já está no fim. Não vai dizer nada. Não tem coragem.
Primeiro tem que ir correndo contar pra ele.
– Que história é essa aqui, “mas eu já expliquei no capítulo
oito”. Como é que um personagem pode falar uma coisa dessas?
Não sei. Não pode. Eu também não posso. Não posso ter
escrito isso. Não acredito. Ela deve estar blefando. Não é possí-
vel. Não vou agüentar. Como é que eu dou uma cagada dessas.
Ela já estava escorregando da sela. Não vou agüentar mais. Não
vou deixar isso assim. Odeio esse silêncio.
– É metalinguagem.
Pronto. Saiu. Estraguei tudo. Caguei de vez. A primeira
palavra em semanas. Agora ela vai querer que eu faça um dis-
curso. Vai levantar da cama. Vai querer me encarar. Aquele sor-
riso estúpido de vitória. Com um pedaço de pão no dente da

Um morto pula a janela 119


frente. Vou oferecer o fio dental. Vou jogar a impressora na ca-
beça dela. Vou sair pra noite. Vou fazer o discurso que ela quer.
Vou deixar assim. Não tenho que dar explicação.
– Ah, é? E esta meia aqui, também é metalinguagem? Ou
foi a Cereja que esqueceu, de novo?

Era a freira.
Não, era Maria da Saúde.

– Gordo, o que é isso?


Catchalan-sqriiie-sqriiie-catchalan-sqriiie-sqriiie-sqriiie-
tchrispof-qrrrrc. É apenas um teste. Apenas o começo. Não se
intimide, baby. Pode voltar a dormir. E, antes que eu me esque-
ça, gordo é a mãe. A tua mãe. Uma pipa. Uma porca de gorda.
Catchalan-sqriiie-sqriiie-
– Vai tirar uma cópia a essa hora?
– Vou. E não precisa gritar. Não sou surdo.
– De tudo?
– Tudo.
Olha só quem falando de horário. É cedinho. Ainda nem
amanheceu. Adoro esse silêncio. Sqriiie-sqriiie-sqriiie-tchacalun-
– Posso saber por quê?
– Troquei um nome.
Um nome insignificante. Um nome coadjuvante. Pode vol-
tar a dormir, baby. Não se incomode comigo. Não se levante.
Não venha aqui xeretar. Não dê palpite. Catchalan-sqriiie-
– Maria da Saúde. Pelo amor de deus. Só porque eu falei
aquilo?
– Que é isso. Foi inspiração. Casa melhor com uma freira.
Tchelun-sqrille-sqrliie-calarchan-sqrllie-latchin-quirrispof-
spof-spriii-pif.
– Estragou.
E não ia. Não ia estragar com esse olho balofo dela. Mas
essa ela não leva. Já conheço a manha. Uma porradinha do lado

120 Nei Lisboa


direito e três ave-marias. Pronto. Catchalan-sqriiie-sqriiie-catcha-
lan-sqriiie-sqriiie-
– Quer saber duma coisa? Não vou conseguir dormir com
esse barulho.
Não me diga. Por que será? É tão inofensivo. É música para
os meus ouvidos. Rock’n roll iraniano.
– Quer saber de outra coisa? Não vai adiantar nada. O pro-
blema não é o nome dela.
Não sei por que me olha assim. Não sei do que ela está
falando. Nem ela sabe.
– É o sobrenome.
Eu sei do que ela está falando. Um ato falho. Um palpite
de um estudante de psicologia xereta. O preço do chester. A
culpa de gerações. A maçã de Burroughs. Um cemitério de Pe-
rus. Woodstock. A Fenavinho de setenta e oito. A moralidade
explícita. A imoralidade compulsiva. A amoralidade conveni-
ente. Um quarto-e-sala. Um computador. Três meses dentro de
um útero. Dois aluguéis atrasados. Um par de meias Kendall.
Todas as perguntas ao nada. Todas as respostas ao vento. E os
cacos todos por ela. Viver por ela.
– Não sei do que você está falando.
– Claro que sabe. Um ato falho. Um palpite de um estu-
dante de psicologia xereta. O preço do chester. A culpa de gera-
ções. A maçã de Burroughs. Um cemitério de Perus. Woodsto-
ck. A Fenavinho de setenta e oito. A moralidade explícita. A
imoralidade compulsiva. A amoralidade conveniente. Um quar-
to-e-sala. Um computador. Três meses dentro de um útero. Dois
aluguéis atrasados. Um par de meias Kendall. Todas as pergun-
tas ao nada. Todas as respostas ao vento. E os cacos todos…
Ela é impressionante. Mas ficou faltando o final. Vou des-
ligar esta merda. Catchelun-spriii-pof. Tudo bem. Agora quero
ver. Quero ver por que não me olha assim sempre. Quero ver
se sabe do que eu não estou falando. Quero ver se acerta o pro-
nome. Quero ver. Ela só tem uma chance.

Um morto pula a janela 121


– Tá. Vá lá. Viver por você também. Quase isso. Às vezes.
Mas é piegas. E vê se sai desse computador de vez em quando.
Eu adoro ela. Adoro a impressora. Adoro a Gal Costa. Ado-
ro esse silêncio. Eu sou uma freira. Quero me confessar.
– Era a balconista do peru. Só aquela vez.
…
– E aquela outra. Só. Juro. Foi despedida. O gerente desco-
briu que ela me deu um vidro de curry. Essa meia eu comprei
ontem de manhã.
– Eu sabia. Mas logo na geladeira. Tudo bem. Também já
enchi do Antônio. Fica explicando tudo.
Ela é demais. Ela é o máximo. Ela é fantástica.
– Me empresta o fio dental?

122 Nei Lisboa


X

Era a freira.
– Desculpe incomodar. Estou recolhendo donativos para
o Orfanato Maria da Saú…
– Fora daqui, perua.
Era Cherry, logo atrás dela.
A freira saiu, de cabeça baixa.
– E quanto a vocês… Mal posso crer…
A situação era mais do que constrangedora.
– Poupe o seu sermão, mocinha – disse Clarisse, correndo
para a porta – Já tenho o que queria. E ninguém vai tirá-lo de
mim. Adeus.
– Cherry, eu…
– Não importa.
– Mas Cherry… Ela está com a carta…
– Que carta?
– A carta que você deixou no quadro. A carta que…
– Não importa – ela repetiu, trancando a porta antes que
eu pudesse descer as escadas atrás de Clarisse. – Acredite, gato,
eu sei o que eu estou fazendo.
Eu não tinha tanta certeza.
– Se a carta não tem importância… Então é como eu pen-
sava. Você vai tentar matar o seu pai hoje a…
– Matar o meu pai coisa nenhuma. Você já ouviu a história
inteira. Apenas fez questão de não acreditar.
A história do psicólogo. A chantagem e tudo mais. Não era
possível.

Um morto pula a janela 123


– Incluindo a ilha, a fábrica de japoneses, o pau de índio?
– Bem… Quase tudo.
Nesse caso, ela teria muito o que explicar.
– Onde é que você estava?
– No Uruguai. Com a minha mãe.
– Fazendo o quê?
A pergunta não era essa. Eu estava um pouco perturbado.
E a barriga dela estava enorme. Decerto era a cerveja uruguaia.
Ou a comida de bordo.
– Cheguei de ônibus, agora há pouco – ela corrigiu, enquan-
to apagava as luzes do apartamento, livrando-se dos óculos es-
curos. Um disfarce, certamente. – Pablo Trobo foi me apanhar
na rodoviária. Está no Maxim’s, com Gustavo. Pedi a ele uns
minutos pra ficarmos à sós.
– Mas e a morte de Matias? A loira ruiva? A zarabatana? O
bilhete que você deixou pra ele?
Ela enroscou os braços no meu pescoço.
– Daqui a pouco você vai ficar sabendo de tudo. Mas não
quero falar sobre essas coisas agora… Nós temos tão pouco tem-
po… Nada disso importa tanto quanto… Gato, que saudade…
Nada mais importava, de fato. Nada além de tê-la perto de
mim, morna, suspirante, roçando o macio dos seios no meu
peito, os lábios úmidos de paixão.
– Cherry, meu bem… Você me deixa louco…

– Mas como é que vai ser, agora, sem a carta? E você


não disse que era imoral ela chantagear o pai? E quem é
que matou o Hipólito Sirinho?
Agora não sai do meu lado. Quer escrever junto.
Quer saber tudo de uma vez só. Tudo bem. Ela merece.
– Calma, Bete. Dá uma folga pra eles. O mundo foi
feito em uma semana. Um capítulo desses leva muito
mais. Toma o fio dental.

124 Nei Lisboa


As luzes da cidade pipocavam além da janela do atelier, por
sobre a copa das árvores da rua, traçando a meia lua da baía de-
baixo de um céu carregado de nuvens ameaçadoras. Eu me sen-
tia seguro, no entanto, confiando meus temores ao calor dos abra-
ços de Cherry, vivendo aqueles poucos minutos como flocos ca-
dentes na neve da eternidade. Não tardou a que os passos ecoando
na escada do edifício nos trouxessem de volta à realidade.
– São eles – ela suspirou, abandonando a eternidade para
abrir a porta.
A silhueta de Pablo Trobo surgiu na penumbra do aparta-
mento, seguida pela de Gustavo. Trocaram cochichos com Cher-
ry, ainda na entrada, e depois passaram para o atelier trazendo
algumas cadeiras extras. O psicólogo distribuía instruções.
– Conservem as luzes apagadas. Duvido que ele arrisque
alguma coisa, a essa altura, mas só vamos ter certeza quando
Adriana chegar. Gustavo, você cuida a janela.
– Gato – Cherry fez um sinal para que eu sentasse junto
dela, no sofá. – Prepare o seu coração. Nós temos muito o que
conversar.

– Sim – ele concordou, ajeitando os óculos, depois que apre-


sentei os meus motivos. – Você certamente tinha boas razões
para acreditar em Clarisse. E eu já tinha isto em mente hoje à
tarde, quando discutimos. Os assassinatos, os indícios, seria
muito difícil lhe explicar tudo, contar toda a verdade, sem que
isso provocasse alguma reação imprevisível, talvez até violenta,
da sua parte. Mesmo porque, eu próprio desconhecia alguns
detalhes. A morte de Matias, por exemplo. Estava claro que de
alguma forma se relacionava com o bilhete de Cherry. Mas como?
De que forma um bilhete inocente como aquele poderia provo-
car o terror que Matias demonstrara pouco antes de morrer?
– O que é que dizia o bilhete? – perguntei.
– Bem… – disse Cherry – Era só um bilhete para garantir a
segurança de… De Adriana. Escrevi no último dia antes de via-

Um morto pula a janela 125


jar, lá mesmo, na Lagoa. Dizia “Ela não sabe de nada. Deixe-a
em paz seja onde for. Dê a resposta p/sócio.”
– Só isso? Não entendo por que…
– Veja bem – disse o psicólogo – Há um detalhe importan-
te que Cherry acaba de mencionar. O bilhete foi escrito lá mes-
mo, na Lagoa. Ora, Gustavo me disse agora há pouco que a má-
quina de Adriana e Andréa tem algumas teclas…
– Ah, sim. A Remington antiga que Cherry emprestou pra
elas. Aquela onde faltam o “m”, o “j”, o “r” e o “t”.
– Exatamente. Agora pense um pouco.
Fiz um esforço, juntando as letras que sobravam. Mesmo
assim não fazia sentido. A não ser que…
– Cherry, você escreveu “paz” com “s”? “Dê” sem acento?
– E não é? – ela duvidou.
Ai, meu deus.
– Já entendi o que ficou. “Ela não sabe de nada. Deixe-a e
passe aonde fode a esposa p/ sócio”.
– Exatamente – confirmou o psicólogo. – Junte-se a isso o
fato de que Matias era pouco inteligente, uma mente facilmen-
te impressionável colocada sob forte tensão emocional, e as
coisas começam a ficar claras. Matias era amante de Clarisse.
Encontravam-se às escondidas no quartinho dos fundos do Ti-
gresa. Ali onde Gustavo e Andréa acharam uma calcinha de seda,
durante o carnaval. Uma calcinha que provavelmente era de
Clarisse.
– De Clarisse. Sim, é bem possível, por que não?
– Então – ele prosseguiu – veja bem, Plínio Jochlander re-
cebe a primeira carta de Cherry, com os termos da chantagem.
É claro que ele não deixaria de tentar alguma coisa, alguma for-
ma de pressão, apesar de ter sido instruído a não envolver nin-
guém mais no caso. Você provavelmente está a salvo, mas ele
tem informações de que Cherry e Adriana estiveram juntas
durante todo o verão, tramando alguma coisa. Matias, portan-
to, recebe a missão de investigar o paradeiro de Cherry através

126 Nei Lisboa


de Adriana. Ele não sabe por que está fazendo isso, mas vai até
a Lagoa, onde recebe o bilhete deixado por ela. E chega à terrí-
vel conclusão de que Cherry está a par de seu romance com Cla-
risse, que espera encontrar com ele no Tigresa, que trata-se cer-
tamente de uma chantagem dirigida a ele, já que supõe – com
alguma razão – que Jochlander o mataria se soubesse que ele é
amante de Clarisse. Pior, o fato de o próprio Jochlander mandá-
lo investigar o paradeiro de Cherry lhe dá a certeza de que não
tem muito tempo, de que o senador já sabe ou ao menos sus-
peita de alguma coisa. Está claro até aqui?
– Claríssimo.
Tudo menos o apartamento, às escuras. Gustavo parecia
agitado, no seu posto de observação, tentando avistar alguma
coisa entre as árvores da rua.
– Wilmar. Y Andréa – anunciou, afinal – Ella quedó en el
carro, todo como el combinado.
– Andréa? Pensei que ainda estivesse viajando.
– Calma, gato, vamos por partes.
– Bem – retomou Pablo Trobo, enquanto Cherry se prepa-
rava para abrir a porta. – Matias, então, vai ao Tigresa todas as
noites, esperando inutilmente encontrar com Cherry. Tenta
saber dela através de você, numa conversa que serve apenas
para confirmar as fantasias dele. Desesperado, mergulhado no
álcool, ele decide que é preciso acabar com Cherry. E então co-
mete o seu maior erro. Conta tudo a Clarisse.
– Você quer dizer…
Era difícil de aceitar que eu próprio houvesse sido apenas
um joguete nas mãos de uma fria assassina.
– Veja bem, eu não estou dizendo que Clarisse matou Ma-
tias. Talvez não conseguisse fazê-lo, frente a frente com o aman-
te. E certamente não o fez, já que não estava na cidade na noite
do crime. Mas provocou a morte dele. Clarisse sempre esteve
ao lado de Jochlander, conivente com as piores tramóias deste.
Sempre soube de tudo. Do assassinato do avô de Cherry. Da

Um morto pula a janela 127


preocupação do senador quando Cherry veio morar em Ibiraí.
Da chantagem, avisada desde o primeiro dia, assim como Siri-
nho. Matias era apenas um brinquedo, algo que lhe trazia pra-
zer, mas não trocaria por nada deste mundo o que Jochlander,
e o pai, de certa forma, podiam lhe dar. Dinheiro. Poder. Cocaí-
na. Em abundância, facilitada por certas ligações com o narco-
tráfico. Uma vida de fúteis e infinitas satisfações que a ajuda-
vam a afogar as mágoas do passado. Não, Matias não poderia
pôr em risco os sonhos de primeira-dama de Clarisse. Não po-
deria acabar com Cherry. Não enquanto a carta não estivesse
nas mãos de Jochlander. Nas mãos dela. Eles teriam que jogar o
jogo prevendo que alguém mais estaria envolvido e disposto a
divulgar a carta, entregá-la a um inimigo político, no caso de
Cherry ser assassinada. Matias não podia se intrometer nisso.
Não podia andar por aí falando bobagens, desesperado, uma
denúncia viva do seu caso extraconjugal. Não poderia saber da
verdade sobre a chantagem. E não poderia continuar vivo, se
insistia em acabar com Cherry. E é isso tudo que Clarisse diz ao
pai dela. A Hipólito Sirinho.
– Sirinho… Mas ele não é uma loira ruiva. Quero dizer…
– Aí, rapaisch, grande sacada.
Wilmar se acomodou numa das cadeiras e Cherry voltou
ao sofá depois de trancar a porta.
– Sim – concordou o psicólogo. – E esse detalhe me fez
pensar, até o capítulo nove…
– O que você quer dizer com “capítulo nove”? – estranhei.
– Ah, sim, esqueci de lhe dizer. Dividimos o plano em ca-
pítulos, desde o momento em que ele começou a ser traçado
até agora. Então, naquele momento, no dia da visitação, eu de-
veria receber as informações necessárias e esclarecer as coisas
para você e os outros, que até então não sabiam de nada. O que
teria sido bem fácil, já que quase todos compareceram à man-
são de Jochlander. E Deva Shira fez um serviço perfeito…
Deva Shira. Uma espiã. Andréa, certamente.

128 Nei Lisboa


– … interceptando telefonemas, seguindo os passos de
Clarisse e de Sirinho, e descobrindo os planos de Jochlander
para esta noite. Mas foi Wilmar quem soube esclarecer, de fato,
o assassinato de Matias. Você conseguiu…
– Pode ter certeza – Wilmar se antecipou à pergunta, pu-
xando do bolso um pedacinho de bambu, quase irreconhecível
na penumbra do atelier. – A bruxa nem se preocupou em es-
conder. Fiz uma visitinha à redação hoje à tarde. Parece que ela
sumiu da cidade há dois dias. Depois da morte do home.
– Uma zarabatana… – exclamei, quando ela passou a mi-
nha mão. – Onde é que você achou?
– Na gaveta da mesa dela. De Marion. É mole?
– Marion? Não é possível que…
– Adriana – anunciou Gustavo, da janela – Está apurada,
la chica.
– Pois é, rapaisch, eu falei pra você. Acontecem mais coi-
sasch entre o céu e a…
– Há meses – interrompeu Pablo Trobo, para meu alívio. –
Wilmar vem investigando a vida de Marion, com a ajuda de uma
ex-companheira de trabalho sua, Eliete, você deve se lembrar.
Suspeitava, com razão, que a demissão dele houvesse sido pro-
vocada por alguém que ambicionasse a editoria do jornal. Des-
cobriu, então, que Marion tornou-se amante de Sirinho depois
que você foi promovido a redator. Sob a influência dela, e em-
bora o alvo inicial fosse você, apenas, Wilmar foi demitido, subs-
tituído provisoriamente até que Marion pudesse reivindicar o
cargo para si. E veja, aqui tudo se encaixa. Matias liga para Cla-
risse, no auge do seu desespero. Clarisse, em Brasília, liga para
Sirinho assim que Matias bate o telefone. Confessa ao pai que
tem um amante, que está arrependida, mas principalmente
assustada com a intenção de Matias de assassinar Cherry. Su-
gere que eles devam livrar-se de Matias e que, isso feito, ela
própria se encarregaria de procurar por Cherry e pela carta. Ela
pensa, como pensava o amante, que Cherry está por perto, que

Um morto pula a janela 129


você talvez saiba de alguma coisa, mas não pode passar estas
informações a Jochlander sem revelar que o traía com Matias.
Sirinho aceita o jogo, passando por cima de alguns princípios
religiosos em nome do dinheiro e do poder. E eis que alguém
se apresenta para cometer o crime, sem maiores perguntas, em
troca apenas de uma nomeação para a editoria. Marion. Uma
mulher loira. Não uma loira ruiva, como você sugere a Melchía-
des e ele passa a acreditar, mas apenas uma loira. Ela vai ao
Tigresa, naquela noite, aproxima-se de Matias, faz com que ele
beba além da conta e até o último tostão, discute com ele, insis-
te em pagar ainda mais uns drinques, e quando ele já está dor-
mindo na mesa mata Matias com a zarabatana. Talvez sopran-
do o espinho envenenado da porta do bar, um segundo antes
de ir embora.
– É inacreditável…

Incrível. Cinco páginas e nenhum palpite. Pudera.


Gastou metros de fio dental. Lá vem. Acabou a alegria.
– Mas e a carta? E quem é que matou o Hipólito Siri-
nho?

– Minha filha, abra a porta e na volta veja se você encontra


um palito de dentes pra mim na cozinha – ele se dirigiu a Cher-
ry, um tanto paternal, antes de prosseguir. – Então, veja, Claris-
se volta a Ibiraí no dia seguinte à morte de Matias, o que é bas-
tante conveniente para ela, é claro. E passa a tentar descobrir
sobre a carta e o paradeiro de Cherry através de você. E é isso
que…
– Sim, tudo certo. Ele deu folga pra todo mundo, menos o
caseiro. Uff, não agüentava mais essa peruca.
Era Deva Shira, entrando no atelier e livrando-se afobada-
mente do disfarce enquanto respondia às perguntas de Cherry.
– Adriana? Mas eu pensei…
– Esse aí não sabe de nada, ainda?

130 Nei Lisboa


– Gato, acho que nós vamos ter que voltar ao começo…
– Muito bem – disse Pablo Trobo, consultando o relógio –
Desde que seja rápido. Temos pouco mais de quatro horas.

– Gato – ela começou. Parecia emocionada, a voz embarga-


da e gesticulando a cada palavra. – No começo, quando acha-
mos a carta… Eu não quis comentar nada com você nem com
ninguém, porque sentia tanto ódio por Plínio Jochlander que
estava planejando matá-lo. Queria vingar a morte do meu avô…
– E a de Severo, eu imagino. Quero dizer, Matias apenas
cumpria ordens de Jochlander
– Matias não matou Severo – interrompeu o psicólogo.
– Como assim? E o missô com estricnina que…
– Era apenas uma suposição. A perícia nunca confirmou o
veneno.
– Mas a gatinha de Melchíades…
– Isso ainda não sabemos explicar. Mas é provável que você
possa perguntar a ele próprio, ainda esta noite.
– Severo morreu de gozo, mesmo, embora Jochlander pla-
nejasse matá-lo, com certeza. Também, Adriana fez o velho dar
três aquela noite – explicou Cherry, lançando um olhar de cen-
sura para a amiga. – Mas isso não vem ao caso. O que importa é
que eu estava escondendo as coisas de você, até o momento
em que soube que… Que não havia razão em cultivar tanto ódio,
que melhor seria usar a carta para podermos viver uma vida
mansa em algum outro lugar do planeta. Isso foi no começo do
verão, você sabe, quando…
– Durante a psicoterapia.
– Pois é. Foi ali que começamos a cogitar de uma chanta-
gem e planejar tudo. Adriana sabia, e Pablo Trobo também. Es-
crevi pra minha mãe perguntando e ela respondeu dizendo
que… Que aceitaria conversar sobre o assunto. Então, durante
o carnaval, ele foi a São Paulo e nós continuamos a planejar as
coisas por aqui, eu e Adriana. Nessa hora eu quis lhe explicar

Um morto pula a janela 131


tudo, mas você não largava daqueles livros policiais. Vivia com
a cabeça nas nuvens, tanta coisa acontecendo e você não se dava
conta de nada. E achamos que seria bom esperar as notícias de
São Paulo, antes de você saber. Mas decidimos, desde aquela
hora, que eu assumiria as ameaças a Jochlander me colocando
fora do alcance dele, no Uruguai. Pablo e mamãe preparariam a
fuga, os passaportes e tudo mais. Ele ainda poderia fazer uma
ponte, vir a Ibiraí quando fosse necessário e explicar tudo aos
outros quando chegasse a hora. Mas ninguém mais seria envol-
vido de forma a que pudesse correr perigo. Ninguém exceto
Adriana, que já estava envolvida. Com aqueles japoneses todos
de Jochlander nos seguindo, era inevitável que ela fosse pres-
sionada. Ao mesmo tempo precisávamos de alguém que pudes-
se se infiltrar na mansão de Jochlander e saber dos planos dele,
que surpresas ele prepararia para esta noite. Ora, Jochlander,
Matias e os informantes todos conheciam Adriana, mas não
conheciam Andréa.
– Claro, ella siempre en casa, acamada y febril… – Gusta-
vo não deixou passar.
– Atchim.
– Gripado? – estranhei.
– Não, rapaisch, que é isso, é só um resfriadinho à toa.
– Então – Cherry continuou – Foi fácil convencê-la a cortar
o cabelo e passar por Adriana, como se fosse ela quem estava
na Lagoa estudando para um concurso. Mas era Andréa. Foi com
Andréa que você falou quando foi lá. Como, de fato, ela não sa-
bia o que estava acontecendo, não correria tanto perigo assim.
Um bilhete e algumas recomendações bastariam para garantir
a segurança dela. E a de Adriana ao mesmo tempo, já que Jo-
chlander não poderia suspeitar que Deva Shira fosse ela. Para
ele, Adriana estava na Lagoa sob estreita vigilância dos japone-
ses, à espera de que ela entrasse em contato comigo, o que ob-
viamente nunca aconteceu. O único movimento de Andréa foi
agora há pouco, quando foi com Wilmar até o aeroporto para

132 Nei Lisboa


despistá-los da minha chegada. E tudo correu como deveria.
Deva Shira foi imediatamente contratada, no mesmo dia em que
eu fui para Montevidéu. Sabíamos que Jochlander não resisti-
ria a uma camareira oriental. Ele é maníaco por orientais. E o
nome, você deve saber, eu tirei daquele livro que você…
– Ah, mas é claro. Devonshire. Deva Shira. Como eu pude
não perceber… O livro que você jogou fora…
– É. Desculpe. Mas eu estava um pouco tensa, por causa
da sua cabeça nas nuvens e por não poder lhe contar…
– Mas por quê? Isso é que eu não entendo. Por que não
quis me contar tudo? Você sabe que eu estaria sempre do seu
lado, que jamais arriscaria um julgamento moral. Nunca censu-
rei sequer os rabanetes que você afanava no supermercado.
Quanto mais uma chantagem de um milhão de dólares.

Lá vem outra. Posso sentir o cheiro.


– Um milhão de dólares é muito pouco.
Não se contenta nunca com o que tem. Quer comer
peru todos os dias.
– Ainda mais se é pra dividir entre não sei quantos.
E fugir pra Europa. Só se for pro Paraguai.
Tá certo. Ela tem razão Ela merece.
– Era só pra passar umas férias. Mas tudo bem, eu
mudo.

– Cinco milhões de dólares – corrigiu Pablo Trobo.


– Você me falou em um milhão.
– Era preciso.
A minha boa vontade também tinha os seus limites.
– Escute, doutor. Você me falou muitas coisas mais, esta
tarde, boa parte delas tão difíceis de acreditar que eu seria in-
ternado em um manicômio se andasse repetindo por aí. Ten-
tou me convencer que Clarisse havia assassinado Matias, em-
bora soubesse que ela nem sequer estava na cidade na noite do

Um morto pula a janela 133


crime. Agora me apresenta uma versão inteiramente nova dos
fatos, querendo que eu aceite isso tudo como um absurdo in-
dispensável. Pois muito bem, então me explique por que é que
só agora eu estou autorizado a saber da verdade. E não venha
me dizer que se tratava de garantir a segurança da operação. Eu
não estava garantindo nada, e a prova disto é que a carta foi
parar na… Nas mãos de Clarisse. Daquela piranha assassina.
Muito bem, agora me explique. Vamos lá. Estou esperando.
Eu não tinha intenção de ser rude. Muito menos de pro-
vocar constrangimento. Mas o silêncio tomou conta da roda que
se formara em torno do sofá, Wilmar, Adriana e Gustavo, que
abandonara seu posto, trocando olhares incertos na escuridão.
Cherry se aproximara de mim, a mão úmida de incógnitos re-
ceios, sobressaltando-se ao mais leve ranger das cadeiras. O
psicólogo inclinou-se na minha direção, sem desviar os olhos.
– Você é filho adotivo.
Disse aquilo num tom inflexível, quase acusatório.
– Sim, é claro. Todos aqui sabem disso. Mas…
– Foi criado por freiras do Orfanato Maria da Saúde.
Que péssimo momento para uma terapia de grupo.
– Sim, até os três anos. Mas não sei onde você quer chegar
com…
– Nunca soube quem eram seus verdadeiros pais.
Sabia apenas que era desagradável. Um assunto desagra-
dável.
– Não, nunca soube. O orfanato não revela. É de praxe. Mas
isto nunca me preocupou. Não acho que seja relevante. E não
entendo por que este súbito interesse seu em me torturar revi-
rando feridas latejantes do passado. Questões há muito resol-
vidas internamente.
Ele amaciou o tom de voz. Pelo menos isso.
– Pois bem – começou, ajeitando os óculos no nariz. – Já
que são questões resolvidas, vou lhe contar uma pequena his-
tória. Que você pode interpretar como quiser. Começa com

134 Nei Lisboa


uma viagem a São Paulo. Um psicólogo, digamos, que tem as-
suntos a tratar por lá, e que na volta resolve viajar de ônibus
para que possa meditar sobre seus planos mais imediatos. Uma
viagem razoavelmente longa em que ele se depara, na poltro-
na ao lado, com uma simpática freira que tem por destino a
mesma cidade que ele. Você sabe como as freiras preferem
viajar de ônibus. E como são reveladoras essas viagens. Há
relatos de divórcios, crimes, negociatas, casamentos de longa
data surgidos de uma situação como esta. Filhos com o nome
de Itapemirim. Muito bem. A princípio os dois viajantes se
esmeram em passar o tempo da forma mais agradável possí-
vel, trocando cordialidades banais e revelando interesse pe-
los respectivos trabalhos. A psicologia clínica, no caso dele, o
assistencialismo barato, no caso dela. A meio do caminho,
entretanto, a religiosa passa a oferecer um quadro um pouco
diverso das atividades do orfanato onde reside, estimulada por
uma transferência inevitável dentro de uma sessão psicanalí-
tico-rodoviária de dois turnos e inquirida a respeito da quan-
tidade de sacolas abarrotadas de compras que traz consigo.
Confessa que discorda, embora não conteste abertamente, de
certos métodos de adoção utilizados pela madre superiora da
instituição, que indiretamente propiciam às freiras – e ao en-
cargo dela – os prazeres mundanos arrecadados nos shoppin-
gs de São Paulo. Não lhe parece correto, embora seja fascina-
da por pizza. E cita, então, como exemplo, um caso a respeito
do qual espera poder contar com o silêncio e a ética profissio-
nais do psicólogo – este, diga-se de passagem, sem receber um
níquel pela sessão, mandando às favas a ética e as bobagens
que tivesse que ouvir. Ainda mais vindas de uma freira. En-
fim, há coisa de uns vinte a trinta anos, diz ela, já ordenada e
residindo no orfanato, chega-lhe às mãos uma criança trazida
pelo avô, pessoa influente e distinta, de hábitos religiosos,
dono de um incipiente império de comunicação e…
– Não.

Um morto pula a janela 135


– … muito bem relacionado com o poder político e o em-
presariado local. Apresenta-se, tal senhor, aos olhos das demais
freiras, como emérito benfeitor de uma criança pobre e recém-
nascida a qual teria sido abandonada na porta de uma de suas
estações de rádio. A esta irmã, entretanto, e por conta de uma
viagem inaugural que resultaria em um estoque de lingerie
importada repartido entre elas duas, a madre superiora faz sa-
ber que se trata verdadeiramente do neto rejeitado, filho inde-
sejável e subtraído à própria mãe, herdeira…
– Não.
– … do tal império e providencialmente imobilizada em
uma cama de hospital em virtude de algum acidente sério no
qual, ilude-se, o bebê teria passado desta para uma melhor. Nada
mais deseja o avô do que livrar-se de contaminar a posição de
sua família com o sangue plebeu ou a genética imprópria os-
tentada pelo pai da criança – detalhe que ao orfanato não cabe
examinar, cuidando apenas de cumprir com seus deveres mo-
násticos e entregar o órfão aos cuidados de alguém que possa
propiciar-lhe o bem-estar de uma educação religiosa, omitindo
ao adotante outras informações que não a data do nascimento
da criança. A elas também é dado esquecer, na proporção dos
donativos que engordam o saldo bancário da instituição, a ori-
gem e o próprio destino do rebento, embora recebam periodi-
camente informações a respeito através de um tio…
– Não pode ser.
– … convertido a este parentesco após a adoção e que re-
side na cidade. Ora, há coisa de dois ou três anos, diz ela, o tal
tio aparece no orfanato com uma solicitação incômoda. A crian-
ça, agora já um homem feito, deseja transferir-se para cá, e tal-
vez os bons relacionamentos das freiras pudessem ajudá-lo a
conseguir um emprego. Para elas, mais do que uma tentativa
de atender à solicitação, é um dever informar a Hipólito Siri-
nho que o neto vem morar em Ibiraí, que ele abra o olho por-
que afinal nunca se sabe, mas que Clarisse jamais descobriria

136 Nei Lisboa


coisa alguma através delas, tão satisfeitas que estão com o sú-
bito interesse do velho em triplicar o suborno mensal com o
qual vão se entupir de pizza e lingerie. Ainda melhor, o velho
decide arrumar um emprego para você na revisão do jornal, ali-
viando a consciência de todos ao mesmo tempo. Sem imaginar,
é claro, que fosse promovê-lo a redator, tempos depois, por su-
gestão de Wilmar e conciliando os próprios interesses morais e
de política editorial. Ou que o seu texto passasse a alvejar a can-
didatura de Jochlander em nome da qual demite você quando
se torna por demais inconveniente. Sim, Jochlander a quem
deve apoio, a quem entrega Clarisse ainda adolescente e deses-
truturada por sabe-se lá que desastre e a perda de um filho re-
cém-nascido, com quem partilha o segredo da sua existência e
a promessa de que Clarisse jamais saberá, e a quem não julga
necessário reportar sobre o seu retorno a Ibiraí – na ilusão de
que as freiras manteriam o assunto no seu devido esquecimen-
to para todo o sempre. Menos ainda poderia esperar que você
namorasse, que fosse morar justamente com a filha ilegítima
do senador, numa estúpida e desagradável coincidência. Tam-
bém não sonharia, jamais, que a sua namorada fosse se envol-
ver em uma sórdida chantagem, que isto implicasse em vê-lo
seduzido pela própria mãe, que tivesse que renunciar a frágeis
princípios religiosos ao cometer um assassinato pela mão de
Marion, e que acabasse morrendo daquela forma, privado da
dignidade em cima de uma privada, por culpa de um gesto in-
conseqüente do próprio…
– Chega. Chega, por favor…
– Desculpe.
Eu estava arrasado. O rosto apoiado sobre a palma das
mãos, as lágrimas vertendo por entre os dedos trêmulos, o co-
ração partido em pedaços ao rés do chão.
– Gato, meu bem, não fique assim…
– Não pode. Não pode ser verdade… Minha mãe, uma pi-
ranha assassina…

Um morto pula a janela 137


Não vem. Não vem. Não agora. Fica aí na sala. Não
vem. Puta que o pariu. Puta que o pariu.
– O que é isso? Cê tá brincando. A Clarisse é a mãe
dele?
– É.
Todo mundo tem mãe. Até o Antônio, eu acho.
– Sei não. Tá parecendo novela mexicana.
Ótimo. Vão publicar no México. “La Madresita Piraña
y Mortífera”.
– Você devia pedir umas dicas pro…
Vou pedir. Vou pedir pro Jece Valadão. Deve ter o
número na lista.
– Cê tá me ouvindo?
– Não.

– Gato, escuta… Eu já passei por isso, também, você lem-


bra? Eu sei que é difícil de aceitar… Mas agora acho que dá pra
você entender por que não lhe contamos nada antes. Quando
Pablo voltou de São Paulo, quando eu fiquei sabendo, percebi
que não poderia envolvê-lo numa chantagem contra a sua pró-
pria mãe…
– E contra o seu próprio pai – frisei. Não era apenas uma
questão de repartir as mágoas. Ela parecia não se dar conta, agia
com estranha frieza em relação a isso. E muita dependência do
psicólogo.
– Bem… Papai…
– Veja bem – ele saiu em socorro dela, ao primeiro olhar
de súplica. – Não estamos falando em preservar os sentimen-
tos de quem quer que seja. Essas são questões individuais, e
como tal devem ser tratadas, no momento oportuno. O impor-
tante, agora, como o tem sido desde o início, é a segurança dos
envolvidos nesta operação. A garantia de que não iremos parar
na prisão ou amarrados numa pedra, no fundo da baía, como o
avô de Cherry. Por isto não pudemos lhe contar nada antes. Já

138 Nei Lisboa


era tarde para recuarmos, e tínhamos, Cherry em especial, uma
posição muito firme a respeito do nosso próprio envolvimen-
to. Você poderia pôr tudo a perder reagindo de forma emocio-
nal, procurando por Clarisse ou boicotando nossos planos de
alguma outra forma. E provavelmente iria nos odiar ainda mais,
no futuro, se o levássemos a participar da chantagem sem reve-
lar que Clarisse era sua mãe. A única saída que restava era colo-
cá-lo numa posição passiva, a sua presença na cidade e igno-
rância dos fatos funcionando como um falso indício, para Jo-
chlander, de que Cherry realmente estava sozinha neste jogo.
Você talvez corresse algum risco, sofrendo alguma pressão até
que acreditassem que estava inocente. Mas teria, então, o cam-
po livre para decidir-se a ficar ou partir conosco, quando che-
gasse a hora. Aqui as coisas não correram exatamente como
imaginávamos. Sirinho procurou de todas as formas desviar a
atenção de Jochlander e Clarisse sobre você, temeroso de que a
sua condição de filho fosse descoberta. Ela não se convenceu,
entretanto, e a partir da visitação passou a ter certeza de que
você sabia de alguma coisa e de que poderia levá-la até a carta,
ainda que não estivesse inteiramente envolvido.
– E afinal, conseguiu o que queria. Lamento, Cherry, mas
eu não tinha como…
– Não, gato. Não conseguiu. Clarisse não está com a carta.
Não com a carta do meu avô. Lembra-se de quando eu pintei a
árvore sobre a escuna de Jochlander? De quando lhe falei aque-
las coisas sobre o quadro… sobre o passado… sobre os mortos
pularem janelas? Pois bem, naquele dia a carta verdadeira já
estava a salvo, em outro lugar. O que eu deixei ali, no quadro,
era uma carta escrita por mim, contando a verdade sobre Cla-
risse e a operação. Nosso plano era de que você ficaria sabendo
de tudo bem próximo do final, quando não pudesse mais atra-
palhar… Você sabe, com alguma reação imprevisível. Mas ha-
via a possibilidade de você não acreditar no que lhe dissessem.
E também de que alguma coisa desse errado, que eu tivesse que

Um morto pula a janela 139


ficar em Montevidéu pelo resto da vida, sei lá. Então deixei tudo
dito ali, no mesmo lugar e no mesmo envelope onde achei a
carta do meu avô. Bastaria um sinal qualquer, um telegrama,
indicando o lugar. Cheguei a pensar que você fosse descobrir
por conta própria, depois que Adriana deixou escapar uma pis-
ta, dizendo que aquele era um jogo perigoso. Para mim, não era.
Mas nunca pensei que Clarisse fosse seduzir você. Simplesmen-
te não passou pela minha cabeça.
– Nem pela minha – O psicólogo tomou a palavra. – Muito
embora tenha passado pela cabeça de Freud, cem anos atrás.
Por falar nisso, tentei completar o quadro do seu triângulo edi-
piano descobrindo alguma coisa sobre seu pai. Mas a freira não
sabia de nada. A essas víboras só interessam o dinheiro e as pi-
zzas. Cherry me disse que encontrou uma delas aqui, ao che-
gar. Devem estar procurando uma maneira de perpetuar os su-
bornos de Sirinho, desesperadas com a morte do velho. Bem,
acho que chegou a hora de você saber a verdade sobre isto, tam-
bém. Sobre a morte de Hipólito Sirinho. A morte do seu avô.

– Onde é que você vai? Logo agora?


Acalme-se, baby. Você esperou meses. Não vai mor-
rer por causa de um cafezinho. E uma fatia de chester.
– Já sei. Foi a Marion que matou. Tem um testamen-
to do Sirinho no nome dela. Só pode ser.
Rá. Rá. Quá. Rá.

Eu já havia notado, ainda pairava algum constrangimento


no ar. Alguma coisa oculta e terrível, revelada apenas no estra-
nho silêncio de Gustavo, Wilmar e Adriana. Nos olhares incer-
tos trocados na escuridão, mais uma vez.
– Você comentou alguma coisa, esta tarde, sobre o velho
ter sido enforcado.
– É claro. Eu vi, com meus olhos. Enforcado no fio do pró-
prio marcapasso.

140 Nei Lisboa


Ele sorriu, enquanto ajeitava os óculos no nariz.
– Ora, mas isso é muito interessante. Gostaria de usar essa
relação que você estabeleceu nas minhas pesquisas teóricas, se
me permite. Mas, por hora, devo lhe esclarecer uma coisa. Este
tipo de aparelho cardíaco não tem fio. Funciona por freqüência
modulada. E mais. Seu avô não morreu enforcado. Todos sa-
bem disso. Só você levantou esta hipótese. E não deve tê-la
mencionado, no interrogatório policial e na conversa com Mel-
chíades, ou teria denunciado a sua presença no local do crime.
Teria denunciado a si mesmo. Sim, porque você matou Hipóli-
to Sirinho. Você matou o seu avô.
– O quê? O que é que você está dizendo? – gritei, horrori-
zado, levantando de um salto do sofá.
– Gato, calma, senta aqui, por favor, não fique assim…
– Ele já estava morto. Enforcado. Eu vi. Eu juro.
– Sim, de certa forma você tem razão. Ele já estava quase
morto, segundo o relato de Deva Shira. Veja, o velho vinha so-
frendo duros golpes, com o seu retorno a Ibiraí, a chantagem,
as questões políticas, negociatas, a morte de Matias. O coração
dele não resistiria muito tempo, isso é certo. Mas também é certo
que naquele dia, depois de uma discussão acirrada com Claris-
se – em que pediu a ela, sem detalhar os motivos, que deixasse
de investigar sobre a carta através de você –, discussão esta que
prosseguiu até o momento em que Deva Shira foi solicitada a
acompanhar o velho ao banheiro, quase flagrada com o ouvido
colado à porta do quarto, também é certo que o velho estava
bem vivo. Também é certo que continuava vivo quando a nossa
informante fechou a porta do banheiro, avistando a distância o
seu vulto sendo puxado por Clarisse para dentro do quarto e
apressando-se em voltar a seu posto de escuta clandestina. Tam-
bém é certo que, além de vivo, estava bastante preocupado, e
rezava, veja bem, rezava fervorosas ladainhas sobre o rosário
de Nossa Senhora que lhe pendia do pescoço, erguendo-o…
– Não pode ser.

Um morto pula a janela 141


– … entre as mãos até a altura dos lábios depois que Deva
Shira cumpriu o triste ofício de ajudá-lo a baixar as calças, a
palidez mórbida do velho assentada pela última vez sobre uma
privada. Ainda mais certo é o fato de que, depois de Adriana
interromper a conversa entre você e Clarisse, despencando
quarto adentro na tentativa desastrada de afundar o ouvido na
porta e decifrar os murmúrios vindos lá de dentro, você deu ao
velho uma última e terrífica visão deste mundo. Mais do que
isso, a concretude de todos os temores, a personificação dos
remorsos a que vinha se submetendo por ocultar da filha a sua
existência, por mentir, por matar, por infringir todos os códi-
gos da fé cristã. Para ele, certamente, você foi um enviado dos
céus, o castigo justo, merecido e implacável ao qual ele estava
sujeito.
– Não pode ser.
– Ou, se você ainda duvida, tente imaginar-se como um
cardíaco octogenário cagando no banheiro no momento em que
um desvairado irrompe pela porta, embalado por um pique de
cinqüenta metros de corredor, e lhe despeja por cima um vô-
mito de ovos cozidos com tamanha pressão a ponto de colar um
rosário sagrado em volta do pescoço. Não há marcapasso que
agüente.
– Não pode. Não pode ser verdade…
– Infelizmente é.
Eu estava ainda mais arrasado. As lágrimas vertendo so-
bre a palma das mãos, o coração apoiado entre os dedos trêmu-
los, o rosto partido em pedaços ao rés do chão.
– Gato, meu bem, não fique assim…
– Não pode. Não pode ser verdade… Eu, assassino do meu
avô… Filho de uma piranha assassina…
– Você não deveria julgar Clarisse dessa forma. Não deve-
ria julgar-se dessa forma. Veja, todas essas mortes… Todas elas
têm um forte componente jungiano, uma visível interferência
do acaso, do inconsciente coletivo. Jung era um farsante. Mas

142 Nei Lisboa


isso não altera o fato de que “colectivo”, em Montevidéu, quer
dizer “ônibus”. E isto, associado à presença daquela freira na
viagem de São Paulo a Ibiraí, produz um significante explícito
da maior importância no que se refere a sua elaboração dos fa-
tos. Pretendo fazer um seminário em Bruxelas, dentro de dois
meses, que deve esclarecer esse ponto. Bem, acho que você já
deve ter concluído o porquê de todas aquelas mentiras que eu
lhe contei esta tarde. Nada neste mundo o faria duvidar da pa-
lavra de Clarisse, se eu tentasse lhe contar a verdade por intei-
ro. Ainda mais se soubesse que ela era a sua mãe. Você negaria
tudo, certamente. Tudo que pudesse ameaçar o seu equilíbrio,
já um tanto abalado. Era preciso confirmar algumas de suas fan-
tasias, apresentando uma versão confusa sustentada por uma
argumentação inconsistente.
– Como aquela coisa toda sobre uma ilha, uma fábrica de
japoneses…
– Não, não. Esta parte era absolutamente verdadeira, ex-
ceto pelo fato de que não havia disputa entre Clarisse, o pai e
Jochlander a respeito da ilha. Clarisse nunca planejou matar o
velho, nunca se preocupou com a herança, nunca pensou em
fugir com Matias. Mas os japoneses estão aí, você já deve ter
visto e até multiplicado a presença deles, em função do seu
abalo emocional. Vêm sendo trazidos aos poucos, os primeiros
protótipos, para trabalhar na construção da fábrica. São man-
sos, estes, instalados ao norte da praia, em terrenos cedidos por
Sirinho. E há os sete de Jochlander, alguns dos quais você co-
nhece pessoalmente. Estes cuidam da segurança e informação.
Andróides indestrutíveis, verdadeiros milagres da engenharia
genética. Pode-se reconhecê-los pelos nomes, quase todos ex-
traídos de um cardápio. Sushi. Tenpura. Shabu-shabu. Misha-
ma é o chefe deles.
Olhei para Cherry. Depois para Adriana. Wilmar. Gustavo.
Nenhum sinal. Nenhum sinal de que aquilo fosse uma brinca-
deira de mau gosto.

Um morto pula a janela 143


– Sei não, sei não. Tá parecendo…
Ótimo. Já reconhece que não sabe nada.

– Não adianta você ficar assim, eu sei que por vezes a re-
alidade extrapola a imaginação. Mas não posso fazer nada a
esse respeito. Já o fiz, hoje à tarde, ocultando o fato de que
você era o responsável pela morte de Sirinho. Reduzindo o
valor da chantagem, para que lhe parecesse mais factível. Ou
menos, tanto faz. Era preciso, naquela hora. Era preciso suge-
rir a você que a carta estava no Maxim’s, para que você duvi-
dasse disso, quando na verdade a carta estava no Maxim’s. E
ainda está.
– A carta verdadeira? A carta do avô de Cherry, no Maxim’s?
Como assim?
Ele não deu atenção a minha pergunta.
– Mas cometi um erro. Não imaginei que você fosse en-
contrar a carta de Cherry, a tempo de que ela passasse às mãos
de Clarisse. Para a operação, de fato, isto não tem tanta impor-
tância. A questão é saber-se qual será a reação de Clarisse ao
descobrir que foi enganada durante anos e anos a respeito da
morte do filho. Que espécie de relações irá estabelecer, ao lado
de quem e contra quem se colocará. E há outra coisa que você
deve saber. A polícia pode ter acreditado no seu depoimento,
mas Melchíades não. E ele não perderia uma chance de se an-
tecipar à investigação. De defender sozinho, forjando-se um
herói, aquilo que ele chama de justiça. Acho que podemos con-
tar com ele para esta noite. Deve estar farejando por aí. De qual-
quer forma, mais cedo ou mais tarde eles devem chegar a você.
Estão fazendo uma análise do vômito, segundo eu sei. E isto
nos traz à questão central desta conversa.
Ele fez uma pausa, consultando o relógio. A roda foi se
desfazendo, Wilmar passando para a cozinha, Gustavo e Adria-
na voltando a controlar a janela. Cherry segurava minha mão,
tensa, em absoluto silêncio.

144 Nei Lisboa


– Você tem uma decisão a tomar, antes que possamos pas-
sar para o próximo capítulo e lhe revelar nossos planos para
esta noite. Uma difícil decisão, sem dúvida. Por um lado, jun-
tando-se a nós, participando da operação, você deve ter em
mente que estará arriscando a vida numa chantagem em que a
sua própria mãe está envolvida. Deve ter certeza de que é ca-
paz de controlar as suas emoções. Não hesitaríamos em sacrifi-
cá-lo, caso você se tornasse um obstáculo, para chegarmos a sal-
vo em St. Moritz. Não estamos brincando. Já fomos longe de-
mais para voltar atrás. E cinco milhões de dólares é dinheiro o
bastante para justificar qualquer atitude. Por outro lado, deci-
dindo-se por ficar, você estará livre de qualquer envolvimento
com a operação. Temos maneiras de garantir que Jochlander não
irá incomodá-lo. Mas terá de se sujeitar à investigação sobre a
morte de Hipólito Sirinho. Terá que abdicar do seu romance com
Cherry. Terá que abrir mão de uma vida mansa e milionária,
champagnes e lagostas ao sol de Ibisa. Eu não gostaria de influ-
enciá-lo. A decisão é sua. Mas que seja rápida.
Era um momento crucial. Definitivo. Minha vida, nossas
vidas postas sobre a mesa, à espera de um sim ou não.
– Cherry, você…
– Eu… Eu vou juntar as minhas coisas… – ela se esqui-
vou, mal podendo conter as lágrimas, antes de correr para o
quarto.
Então era isso. Era verdade. A decisão dela já estava toma-
da. Eu seria apenas parte do passado se me decidisse por ficar,
um passado esquecido em bolhas de champagne e cozido ao
bafo junto com a lagosta.
– Quanto tempo eu tenho? – indaguei, ao levantar do sofá.
– Os próximos noventa segundos – ele respondeu, consul-
tando novamente o relógio.
Passei a dar voltas no atelier, buscando um ponto fixo no
carrossel de imagens e dúvidas atrozes onde giravam meus
pensamentos. Minha mãe. O vômito sobre a privada. Meu avô.

Um morto pula a janela 145


O pai de Cherry. A omissão dela. A frieza. Cinco milhões de
dólares. Dinheiro o bastante para justificar tudo. O meu sacri-
fício. A impunidade de Jochlander. A inconsistência moral. A
morte de todos os princípios. Não, eu não poderia. Não pode-
ria ir com eles.
Parei em frente à janela lateral do atelier, o plátano anoi-
tecido com seus primeiros amarelos anunciando o longo outo-
no que teria pela frente. Solitário. Pobre. Repleto de saudades.
Cicatrizes. Mas consistente. Pleno de significado. Límpido, nos
seus compromissos com a vida. As ambições acalentadas no
berço de um sono tranqüilo. Justo. Uma questão de princípios.
A minha mãe. O pai de Cherry. Uma lagosta. O vômito sobre a
privada. Cinco milhões de dólares. A consistência moral. Cinco
milhões de dólares. Cinco milhões de dólares.
– Muito bem – comuniquei a todos, enquanto corria para
o quarto – Vou arrumar a mala.

146 Nei Lisboa


XI

– Ué. Pensei que ele ia ficar.


Rá. Só ela. Bem capaz.
– E o que é que vem agora?
Pelo amor de deus.
– Em geral é a primeira frase.
– Tá bem. Desculpe.

O céu estremeceu com uma trovoada aterrorizante na hora


em que deixamos o apartamento. Raios ligeiros iluminavam as
águas revoltas da baía. Acertamos os relógios. Passavam vinte
minutos da uma hora da manhã. Cada um de nós sabia exata-
mente o que fazer – e era tarde para recuar.
Wilmar foi o primeiro a sair, ao sinal de luz de Andréa.
Correu para o carro, oculto na penumbra das árvores acima da
rua, e deixou que ele escorregasse silenciosamente até a porta
do edifício.
Saímos, um a um, colocando a bagagem no porta-malas.
Pablo Trobo acomodou-se no banco de trás.
– Então já sabem. Três minutos, antes de descerem a rua.
Qualquer movimento suspeito no porto, nós retornamos.
– Tome cuidado… Por favor – pediu Cherry.
– Não se preocupe. O caseiro deve estar no quinto sono,
abraçado aos dólares do suborno que recebeu de Adriana. E os
cachorros, bem… Algum dia eu teria que colocar em prática
meus projetos de psicanálise veterinária. A hora chegou. É pena
que sejam dezoito. Vou ter que formar dois grupos.

Um morto pula a janela 147


– Cuidado com a contratransferência – adverti. – E, dou-
tor… Acho que eu lhe devo algumas desculpas, por…
– Deixe disso. Posso entender. Alguns de nós são realmente
xeretas e inescrupulosos. Estudantezinhos com explicação para
tudo. E ética nenhuma. Isto não se aprende na escola – com-
pletou, antes de fechar a porta e partir.

– Tinha que sobrar uma pro Antônio.


Que é isso. Nem doeu. Tadinho.

Da esquina da rua podíamos avistar as luzes do Maxim’s,


refletidas na calçada uns cinqüenta metros para a esquerda. A
frente, do outro lado da avenida, os armazéns e os fachos ama-
relos do porto deserto. E à direita o carro de Wilmar voltando
lentamente desde o final da avenida até encostar no meio-fio,
bem próximo de nós. Os faróis piscaram duas vezes. Tudo cer-
to. Pablo Trobo estava a caminho da Praia Bonsai.
– Ok. Vamos lá.
Tomei a frente, seguido por Gustavo, Cherry e Adriana logo
atrás. Pouco antes de entrarmos no bar ele me apontou a lan-
cha ancorada entre dois armazéns do cais.
– Vou estar en alto-mar en segundos, con aquella. Que
motor, che. Tiene que ver.
Eu queria ver outras coisas, antes disso. Em primeiro lu-
gar, o Maxim’s, que felizmente estava vazio. Era o mais prová-
vel, àquela hora.
– Valter, precisamos ter uma conversinha – disse Adriana,
puxando o barman para um canto.
– Muito bem – cobrei de Cherry. – Se querem que eu faça a
minha parte é melhor você me contar logo.
Ela gastou mais um sorrisinho de suspense.
– Vem cá, gato – disse, chegando junto do balcão. Pegou
um pote de ovos cozidos e enfiou a mão, tirando um ovo como
todos os outros, um pouquinho mais branco, talvez.

148 Nei Lisboa


– Ah, Clarrro. Assim é fácil. Querrro ver tirar com o unha –
mugiu o Valter, lá do canto.
– Não é possível… O ovo que sempre escorreg…
– É possível – ela interrompeu, enquanto desatarracha-
va o ovo em duas metades. Tirou de dentro um papel dobrado
e cheio de mofo. A carta do avô. A carta de cinco milhões de
dólares.
– Un uevo de poliuretano pentacarbonado hexacidulante
maliable. Un milagre de la engenharia petroquímica uruguaya
– explicou Gustavo, com indisfarçável orgulho.
Eu não podia acreditar. Um ovo cozido falso. Que coisa ri-
dícula.
– Tudo bem – aceitei. – Dá pra cá. E aproveitem pra carre-
gar o quadro. Já é hora…
– Si – concordou Gustavo. – Ya me voy.
Passou detrás do balcão antes de sair do bar carregando o
amarelão com ele.
– Buena suerte, pajeros.
Cruzou a avenida e desapareceu na escuridão por trás do
porto. Pouco depois ouvia-se o barulho do motor da lancha avan-
çando sobre as águas da baía. Cherry e eu ficamos na porta do
bar, ansiosos, fiscalizando o céu acima da Praia Bonsai.
– Ele não vai atrapalhar. Prometeu.
Adriana, voltando da conversa com Valter.
– Espero que não. E espero que o canalha venha. Faltam
seis minutos pra hora marcada – consultei o relógio.
O céu clareou com um relâmpago.
– Lá – gritou Cherry, descendo para a calçada.
O helicóptero de Jochlander surgia por trás do morro, pis-
cando suas luzes vermelhas em direção ao meio da baía. Quase
imperceptível, um caixote pendia do aparelho, preso por um
cabo de aço.
– O contêiner… Como é pequeno… – estranhei. – Parece
incrível que possa acomodar os japoneses dele. Só o Mishama…

Um morto pula a janela 149


– Parecem pequenos por fora – explicou Adriana. – Por
dentro são espaçosos e elásticos. Tem vários, lá na mansão. Se-
parei um pra Pablo Trobo encaixotar os quadros.
– Está baixando – avisei, adivinhando o encontro do heli-
cóptero com a lancha de Gustavo. – Espero que o boludo jogue
o contêiner na costa da África. O canalha vai se danar, pensan-
do que os japoneses vão tomar conta do barco. Um truque sujo
desses não merece outra coisa.
– Bem – suspirou Cherry –, agora é tudo ou nada.
Plínio Jochlander pousou o helicóptero com perfeição en-
tre os dois armazéns do cais quase à frente do Maxim’s. Cherry
e Adriana já haviam cruzado a avenida, em diagonal, postando-
se a uma mesma distância aproximada entre o bar e a esquina
da rua. Eu mantinha a minha posição, dentro do Maxim’s, en-
costado na parede a um passo da entrada.
As hélices ainda giravam quando ele desceu do aparelho,
carregando uma valise cromada e passando os olhos de águia
pelo cenário a sua volta.
– Para uma chantagem em que ninguém mais estava en-
volvido… – Abriu o jogo com uma ironia. – Você está muito bem
acompanhada.
– Ora, obrigada – agradeceu Cherry, apontando uma pisto-
la calibre 22 na direção dele. – Mas você não é convidado. Pode
ficar onde está. Nem mais um passo.
Senti um calafrio na espinha. Ela não me falara nada so-
bre estar armada.
– Que drrroga é esse… – Valter se aproximou da porta.
– Tá tudo bem, Valter. Volta lá pra dentro. E segura isso
aqui pra mim, por enquanto.
Jochlander recuara alguns passos na direção do helicóptero.
– Não seja tola – advertiu. – Você não sairia livre disso…
Pensei que tínhamos um acerto…
– Não se preocupe. É só uma garantia de que você vai se
comportar direitinho… papai. Vai ter a sua carta, quando che-

150 Nei Lisboa


gar a hora. Por enquanto, quero lhe agradecer por cumprir a sua
parte até agora. Gostei muito de expor na sua praia particular.
E de receber os quadros de volta.
– Ah, sim… Os quadros… – Espichou um olho até o cais,
procurando a lancha com os japoneses. Nem sinal. – Já estão
no barco, você deve ter avistado daqui. Mas quero que saiba que
isto tudo é uma loucura completa. Você está sendo usada. Não
pode julgar o passado por um pedaço de papel. Estou apenas
lhe fazendo um favor. Se você não fosse minha filha… Não pen-
se que pode me corromper. Não devo nada a ninguém. Ainda
está em tempo de você…
– Não me venha com abobrinhas – disse Cherry, um tanto
nervosa. – E vamos acabar logo com isso. Adriana, pode contar.
Adriana caminhou apressada na direção do senador, que
abriu a valise contra o peito expondo a pacotama de dólares. A
contagem não demorou mais de um minuto. Pura encenação,
já que Deva Shira informara-se, dias antes, de que ele traria o
dinheiro. Em notas quentes.
– Tudo certo – ela confirmou, voltando rapidamente para
junto de Cherry. – Cinqüenta pacotes de cem mil.
– Muito bem, governador – comandou Cherry. – Agora
quero ver você deixar essa valise bem ali, em cima da calçada, e
voltar pro seu lugar. Sem truques.
Apontava para a calçada a minha frente. Jochlander fez o
que ela mandava, cruzou a avenida lentamente e depositou a
valise quase na porta do bar, parando um segundo para me en-
carar com olhos pouco amistosos.
Eu suava frio, encostado na parede, a mão direita fechada
dentro do bolso. Por via das dúvidas, preferia que ele pensasse
que eu tinha um canhão engatilhado.
– Agora – ele disse, enquanto recuava até o outro lado da rua
– acho que posso contar com a sua boa vontade, minha cara Olívia.
Parecia não ter muita pressa, investigando o cais, ainda
aguardando o desembarque dos japoneses.

Um morto pula a janela 151


– Gato, é a sua vez – Ela deu o sinal.
– Valter, passa pra cá.
– A quê? – arrotou o monstro, apoiado no balcão.
– O ovo que eu te dei. Passa pra cá – repeti, aflito, os olhos
grudados na rua.
Ele me alcançou o ovo com a carta. Desci até a calçada, pas-
so a passo, desafiando o olhar atento de Jochlander. Apanhei
calmamente a valise e voltei, sem desviar os olhos, de costas
para o bar.
– Muito bem, lacaio – atirei, depois de botar os pés em ter-
ra firme dentro do Maxim’s. – Se é isto que você queria… Va-
mos ver se agarra, agora, tão bem quanto se agarra ao poder.
O ovo tomou efeito sobre a avenida e descreveu um pará-
bola no ar antes de se espatifar contra o peito do senador. Ficou
com um purê amarelo grudado, um pedaço de clara pendendo
do colarinho, um nojo.
– Gato, o que é isso que você…
– Porra, Valter, que merda é…
– Cherry, cuidado…
– Cadê a merda que eu te…
– O merda?
– Adriana, o que é que eu fa…
– Agora chega. Chega dessa palhaçada. Vocês pediram.
Mãos pro alto. Ninguém se mexe. Isto só vai abreviar as coisas
antes que os meus homens cheguem. Só uma estúpida como
você, Olívia, poderia pensar em me enganar com um plano idi-
ota desses. Com uma pistolinha ridícula… Pode jogar pra cá. Se
é que você quer viver por mais alguns instantes. Eu não estou
brincando. Isto aqui é uma Magnum sete cinco dois.

– Sete cinco dois é o sapato do…


E daí? E daí? Ela só quer consistência. Era melhor
quando passava as noites fora. Agora não me deixa em paz.

152 Nei Lisboa


– É o último modelo da Magnum. Uma obra perfeita. Um mila-
gre da engenharia bélica – ele acrescentou, sarcástico. – Pode abrir
um belo rombo nessa sua barriga. Vamos lá, eu não tenho a vida toda.
Cherry jogou a pistola aos pés dele. Depois virou o rosto,
tensa, procurando o carro de Wilmar estacionado na esquina,
fora do meu ângulo de visão.
– Vai ser um prazer cuidar de todos vocês, daqui a pou-
co… Mas por enquanto…
Ele veio na minha direção, cruzando a rua, subindo a cal-
çada, e ao mesmo tempo cobrindo os movimentos de Cherry e
Adriana com lampejos de olhar enfurecidos. Eu recuava para o
fundo do bar, ainda segurando a valise e rangendo uma última
esperança pro estúpido no balcão.
– Puta que o pariu, Valter, cadê o ovo que eu te dei…
– Ah. Aquela. Comi.
Tudo acabado. Minha vida. O comprimento do bar.
– Faz alguma coisa, pelo amor de…
– Mas non posso atrrrapalhar…
Um imbecil programado. Talvez. Talvez essa fosse a saída.
– Duas horas – gritei pra ele. – Duas horas, ouviu?
Ele ouviu. E fechou o bar. Mas era tarde demais. Jochlan-
der já estava do lado de dentro, e o estrondo das cortinas de
ferro se misturou ao estampido do revólver, um após o outro
reverberando nas paredes da peça.
Senti as pernas bambas, o corpo escorregando contra a
parede da cozinha. A porta ao lado se abriu. Era Úrsula, que acor-
dara com o barulho, ainda de camisola.
– Que porrcaria é essa, Valterr? – cobrou a responsabilida-
de do marido, colocando uma mão na cintura.
Olhei pra onde ela apontava. Jochlander estava caído de
bruços no chão do bar, em meio a uma poça de sangue. Apalpei
o meu próprio corpo. Não, eu não fora baleado. O tiro acertara o
senador pelas costas. Um suicídio de contorcionista. Ou algu-
ma outra coisa. Pouco me importava.

Um morto pula a janela 153


– Até amanhã. Boa noite – desejei, voando com a valise
para a janela mais próxima.
– Non pagou.
Adriana tomara um guaraná. Era só o que faltava.
– Vão cobrar de um psicólogo – mandei, lembrando que
Pablo Trobo nunca pagava as contas. – Tem um brincando com
cachorrinhos na praia ao lado. Eu não tenho trocado, lamento.
Ora, que merda.
Pulei.
Não tinha dado dois passos do lado de fora quando ouvi a
voz dela.
– Você não existe.
Era Clarisse. Clarisse H. S. Jochlander.
– Você está morto.
Estava visivelmente bêbada. Tropicava na calçada desde a
frente do Maxim’s, tentando me enquadrar na mira de um re-
vólver igual ao do marido. Atrás dela, na avenida, podia avistar
Cherry paralisada e Adriana fazendo sinais desesperados na
direção da esquina. Deixei pender o corpo até apoiar na parede
de cimento do bar, ao lado de uma janela fechada.
– Minha mãe…
– Não. Não é verdade. Você não é meu filho. Você morreu
junto com seu pai. Você… Vocês todos estão mentindo. Todos.
Todos sempre quiseram me enganar. Pensam… Pensavam que eu
era uma idiota. Uma vagabunda. Isso. Uma vagabunda. Uma qual-
quer. Você… Você não vai viver. Vocês todos… Me tiraram tudo o
que eu tinha, tudo. Tudo. Não vão mais me fazer de bêbada… De
vagabunda. Não vão mais. Eu vou… Vou matar todos que…
– Cinco de janeiro.
Disse, disse calmamente, disse em alto e bom som. Mas
não estava procurando salvação. Eu não me importava mais.
Que puxasse o gatilho, que fosse até o fim expiando as culpas
do mundo inteiro, que matasse quem quisesse, que tentasse,
ao menos. Não conseguiria apagar o meu cansaço.

154 Nei Lisboa


Não poderia perfurar o vazio, sangrar o nada, perpetrar mila-
gres sem um corpo que eu já deixara há milênios. Tudo era apenas
uma emoção desconexa, o nascimento, a morte, a ressurreição em
um só tempo. Disse, ou alguém disse por mim. Alguém que ainda
esperava que ela fizesse o que fez, baixar aos poucos a arma e acei-
tar por um instante a realidade ao reconhecer o aniversário do filho.
A janela abriu.
– Non paga, também non vai ficarrr. Vai pro fora junto com
os outrras caloteirros.
O Valter, despejando o corpo inerte do ex-senador Plínio
Jochlander. Do pai de Cherry. Ficou como um resto de açougue
jogado a meia distância entre eu e Clarisse, um alvo vermelho
nas costas e a Magnum ainda pendendo de uma mão. Os olhos
estalados. Um filete duro de sangue no canto da boca. Feio,
muito feio. A janela voltou a fechar.
– Plínio… Eu não queria… – Ela estava banhada em lágri-
mas, falando com o cadáver. – Mas você me escondeu… Você
não podia ter feito isso… Você e papai… Vocês…
Virou pra mim.
– Você não… Você está morto…
Não havia diálogo possível. E nem tempo pra isso. Tudo
bem, eu estava morto.
– Mas ele não está – gritei, tentando avisar.
Tarde demais. O pulso de Jochlander ergueu-se a altura
suficiente, um estertor de ódio e vingança disparados através
do cano do revólver contra o corpo de Clarisse, segundos antes
de voltar de vez e para sempre à sua morte presumida.
Ela recebeu o impacto da bala na altura do ventre. Foi ar-
remessada feito um boneco de pano até abaixo da calçada, do-
brada sobre si própria, ajoelhando-se no asfalto e desabando
sobre o meio-fio com uma expressão de horror congelada por
trás dos cabelos desgrenhados.
Senti a náusea subindo desde o estômago, desde o infer-
no, um gosto metálico colando os dentes e a garganta. Não me

Um morto pula a janela 155


mexia. Não ia chegar a lugar nenhum. Tudo era um mundo pa-
ralelo, acontecendo dentro de um véu amarelado pelas luzes
do porto. Não havia sons, apenas os movimentos em câmara
lenta. Cherry correndo até lá, Adriana fazendo sinais, um outro
eu deslizando junto à parede do Maxim’s, ganhando a calçada
e aproximando-se.
– Meu filho…
O olhar dela era a entrega, a renúncia, a certeza do último
instante. Teria dito, mesmo que não lhe pedisse.
– Quem foi…
– Seu pai… Seu pai foi um grande escritor…

– Não tem mais peru?


O melhor dela é a sensibilidade. A noção de oportu-
nidade. Sabe escolher os momentos. Puta que o pariu.

– … Um revolucionário… Um intelectual da contracultu-


ra… Eu tinha apenas quinze anos… Era uma criança… Nos
apaixonamos. Fiquei grávida de você… Fugi de casa. Fomos vi-
ver no campo, fazendo experiências com alucinógenos… To-
mamos tudo que havia… Mas sobrevivemos àquilo… Um dia
nossa cabeça virou… Fomos para o Araguaia. Aderimos a um
foco guerrilheiro maoísta… Cercados pelo exército… Vimos
nossos companheiros caírem… Um a um, mortos, presos, tor-
turados… Todos os horrores… Nosso acampamento foi inva-
dido… Mas conseguimos fugir… Vagamos sem rumo pela sel-
va durante dias até chegar a uma aldeia indígena. Nos deram
abrigo, comida, passamos a viver com os índios… Aprendemos
a caçar, pescar, fazer amor como eles… Foi lá que você nasceu.
Seu nome era Tapé. Éramos felizes, vivíamos em uma choupa-
na comunitária… Você tinha seis meses quando… Um satélite
soviético… Caiu sobre… Não foi noticiado… Poucos sobrevi-
veram… Fui trazida para cá… Meses no hospital… Disseram
que você… Não tinham encontrado… Mentiram…

156 Nei Lisboa


Eu já a havia visto chorar falsas lágrimas. Mas não agora.
Mordia os lábios de dor, fechando os olhos, o rosto úmido e bran-
co como papel. Sabia que não tinha mais tempo. Cherry tenta-
va estancar o sangue que lhe encharcava o vestido. O carro de
Wilmar movia-se, afinal, atendendo ao desespero de Adriana.
A lancha de Gustavo se aproximava do cais.
– … Papai… Plínio… Me obrigaram a viver no mundo de-
les… Eu não tinha mais nada… Todos os ideais mortos… Sem
sentido… Uma vida sem… Só aquela droga… Uma neve…
Como neve em cartões de Natal… Caricaturas de gente… Fú-
til… Colonizada… Os delírios de Plínio… Aquela ilha… A hi-
pocrisia de papai… Meu filho… Eu vou…
– Não…
Apoiei a cabeça dela com as mãos, na ilusão de que pudes-
se erguer uma vida a se esvair pelo céu, pelas águas da baía.
Tornou-se serena, uma beatitude no olhar imóvel sobre a vali-
se posta à beira da calçada.
– Isto… Isto que vocês…
– Mamãe…
– Não vale… Não é… Nada… Nada…
Um suspiro, o fim.
– Mamãe…
– Mamãe coisa nenhuma.
– Mamãe…
– Mamãe porra nenhuma. Isso aí é uma piranha assassina.
– Mamãe… Mamãe…
Paf. A bofetada explodiu no meu rosto.
– Desculpe, gato, mas você estava hist…
– Mamãe…
Paf. Paf.

– Tô gostando dessa parte.


Rá. E não ia. Não perde por esperar.

Um morto pula a janela 157


Paf. Paf. Paf-paf. Paf.
– Gato…
– Desculpe, Cherry. Mas você é que estava histérica. Você é
que não está enxergando a realidade. Que não tem um mínimo
de sensibilidade. Que não é capaz de perceber que é seu pai quem
está estirado ali. A minha mãe, aqui. E nem é isso que importa.
São, eram seres humanos. Tão assassinos quanto eu. Quanto você.
Tão imorais quanto qualquer um de nós. Tão piranha quanto…
– Gato…
– Exatamente isso. Um pouco melhor, até. Ela pelo menos
cumpriu o papel por inteiro. Foi até o final. Assumiu tudo sozinha,
sem um psicólogo pra facilitar. Pra justificar as coisas. Soube com-
preender a hipocrisia, a nossa hipocrisia que você quer que eu
guarde debaixo de um tapete roto. De uma moral arranjada para…
Eu não ia calar a boca. Mas ela não ficou pra ouvir. O carro
de Wilmar finalmente se aproximara, e agora era ele quem ia
ouvir umas coisas. Bela cobertura, nos dera.
Ele desceu. As mãos pra cima. Andréa também. E o tercei-
ro saiu do banco de trás.
– Melchíades…
– Rapaisch, esse aí não tem jeito…
– Quietinho – ele ordenou, roçando o cano do revólver nas
costas de Wilmar. – Não estou brincando. Acabou a festinha.
Isto aqui é uma Magnum sete quatro sete. Um avião de pistola.
Um milagre da engenharia aeronáutica.
Os olhos dele tremiam por trás do ray-ban. Estava comple-
tamente perturbado. Excitado com o papel de xerife. Uma ridí-
cula versão provinciana da nona cavalaria.
– Fiquem sabendo que a lei já foi avisada. Está a caminho.
Estou apenas garantindo a presença de vocês. Você aí – falou
para Adriana. – Diga pro rapaz da lancha descer. Vão ser um
prato cheio para a justiça. Assassinatos. Extorsão. E você…
Apontou o revólver pro meu lado. Eu estava começando a
ficar cheio daquilo.

158 Nei Lisboa


– Tem um mandado de prisão pronto. Não pense que eu
me deixei enganar. Estava apenas aguardando a perícia. Já te-
nho os motivos…
Era a gota d’água. Falei sem pensar, a natureza humana
em sua própria lucidez.
– Muito bem, Melchíades. Ótimo. Pode me prender. Posso
ir agora, se quiser. Com o maior prazer, sob os cuidados de um
defensor da ordem. Um cidadão exemplar. Uma conduta impe-
cável. A consciência limpa, não é, Melchíades? E a perícia tudo
comprova. Mas há uma coisa que eu quero saber, Melchíades.
Um pequeno detalhe que a sua gloriosa perícia não explicou. A
sua gatinha siamês, Melchíades.
– Não lhe devo explicações. Você é que…
– A sua gatinha, Melchíades.
– Matias planejava…
– A gatinha, Melchíades
Achei que era uma lágrima, rolando por trás do ray-ban.
– Não sei. Não sei explicar.
– Muito bem… E com o que é que você misturou o missô
que deu pra ela?
– Eu gostava tanto dela… Não ia fazer ela engolir um tro-
ço amargo daqueles…
– Com o quê, Melchíades?
– Com Campari.
Eu sabia. Eu sabia.
– Então, você me dá Campari pra uma gata siamês…
– Nem enchi o pratinho… E ela já estava acostumada…
Pronto. Era o fim dele. Chorava feito uma criança, o re-
vólver caído no chão. Wilmar já começava a transportar as
malas para a lancha. Cherry abriu a valise e tirou um maço de
dólares.
– Toma, Melchíades. Bebe um Campari por nós. Agora va-
mos embora, gato.
Bateu uma curiosidade.

Um morto pula a janela 159


– Melchíades… Marion, você deve saber, era amante de
Sirinho. Tem um japonês no arquivo que era espião de Jochlan-
der… Mas a mulher barbada, por que é que foi promovida para
a redação de política?
– Descobriram que ela tinha um belo texto. Sabia tudo do ramo.
– Ah.
– Agora vamos embora.
Já estava dentro da lancha, quando descobri o óbvio.
– Peraí… Vocês…
Wilmar e Andréa, abraçados no cais. Por isso ele andava
gripado, ultimamente.
– Alguém tinha que ficar, rapaisch. E eu lhe falei, o cora-
ção tem caminhosch… Vamos morar no Rio, eu e a Déia. Vou
escrever uma matéria sobre isso tudo, pode ter certeza. Agora
vão embora daqui antes…
– Vamos embora, gato.
Gustavo deu a partida. O cais, o porto, a cidade sumindo
por trás de nós. Depois a escuridão, o mar, o futuro.

A Déia. Que amor. Dois pombinhos ranhentos. E ela


vai fazer um concurso pro Banerj.
– Caiu a chave?
Não, não tem mais peru. Comi a última fatia antes do
Melchíades aparecer. Um quilo e meio de chester. O do-
bro de café. O estômago tá tão embrulhado que dava pra
pôr numa caixa de correio. Ela não gostou. Já vi pela cara.
– Você disse que era imoral ela chantagear o pai.
Eu não disse nada. Ele disse. E ele é um otário. Um
alter-otário.
– Não sei… É muito irreal…
Tá assim porque não conseguiu tomar um banho.
Quer que eu vá ligar o disjuntor. Posso ir. Se me trouxer
uma fatia do Pão de Açúcar. Uma apólice de Porto Segu-
ro. Se me der um iate de presente.

160 Nei Lisboa


XII

St. Moritz pode se tornar enfadonho, depois de um certo


tempo. Por isso resolvi escrever esta história que, para o bem
ou para o mal, não tem moral alguma. Ainda que se diga que,
em seus detalhes, o que aqui é narrado não corresponde aos
fatos. Quem se atreveria a censurar? A própria História é a coi-
sa mais imoral que existe. E se me entrego a divagações desse
porte é apenas porque o azul do Mediterrâneo se encrespa à
minha frente, respingando mistérios da existência no copo de
bourbon cada vez que Gustavo arrisca uma manobra diversio-
nista com o iate.
– Podríamos instalar a un motor turbo en esta mierda, que
piensa vos?
É um iate razoável. Dá pra jogar um voleizinho no deck.
Mas, se ele quer um conselho, o melhor é não mexer mais e
trocar por um zero. A hidromassagem virou um abajur de mesa
depois do último conserto. Milagres que só ele sabe fazer. Como
daquela vez. Na lancha. Na noite da fuga.
– Não vamos conseguir.
Foi uma noite terrível. Mas conseguimos, é claro. Ou não
seria o bardo montevideano ao leme, cofiando a barba, quem
se prepara para soar a campana saudando o barco de Stephy?
Stephanie de Mônaco. Costuma passear por essas águas. Sema-
na passada veio a bordo. Amanhecemos jogando pôquer. Mas
isso é uma outra e longa história. Como esta, que já estaria toda
contada não fosse por aquela noite. Na lancha. A noite da fuga.
– Não vamos conseguir.

Um morto pula a janela 161


Era uma noite terrível. Raios ligeiros atravessavam o céu
iluminando as águas da baía e de fora da baía. Já havíamos dei-
xado para trás a Praia Bonsai, onde Pablo Trobo embarcara jun-
to com os quadros de Cherry encaixotados em um novo micro-
contêiner. Tinha feito um bom trabalho com os dobermans, pela
maneira como miavam e faziam festinha à sua volta. Um mila-
gre da engenharia regressiva. Mas nossos piores momentos es-
preitavam logo à frente.
– Não vamos conseguir.
A rota traçada pelo psicólogo era bastante segura e apa-
rentemente fácil de seguir. Trinta milhas marítimas abaixo da
costa atracaríamos junto a uma pista de pouso abandonada, de
onde um pequeno jato alugado nos levaria ao aeroporto de
Montevidéu. Entretanto, tão logo nos vimos a caminho, o céu
desabou com um estrondo sobre nossas cabeças. Não era uma
chuva. Não era um temporal. Não era nem um dilúvio. Noé te-
ria desistido da viagem.
– Não vamos conseguir.
A lancha mal terminava de sobrevoar os vagalhões imen-
sos que se formavam e éramos chicoteados por cortinas suces-
sivas da água que caía, que surgia de todos os lados, que nos
cortava a frente como se fora, literalmente, uma chuva de cani-
vetes. Os faróis haviam se apagado, e Pablo Trobo assumira o
volante enquanto Gustavo tentava um conserto de emergência.
Cherry e Adriana estavam agachadas no fundo do barco. Eu me
agarrava ao contêiner, de costas para a proa, horrorizado com o
que via.
– Não vamos conseguir.
– Pô, gato, não fica agourando.
– Ahá, está hecho. Uno solo más.
Eles não podiam saber. Nenhum deles. Gustavo também
estava agachado na proa, terminando de ligar um emaranhado
de fios. E eu não ia contar. Melhor que nem soubessem. Não ia
adiantar nada. Eram sete contra os cinco de nós. Os sete japo-

162 Nei Lisboa


neses de Jochlander. Vinham se aproximando pela popa como
mísseis teleguiados, dezenas de metros por segundo, batendo
todos os recordes olímpicos de nado borboleta. Não eram hu-
manos, como eu já sabia. Mas as barbatanas pareciam postiças.
De qualquer forma a intenção deles era clara. Formavam em
duas baterias de três, Mishama à frente, e as pontas começa-
vam a se adiantar para cercar a lancha pelos lados. Já dava para
avistar os sabres apertados entre os dentes. Nada nos salvaria.
Nada. Só um milagre.
– Acendió?
Gustavo ligou o último fio. Os faróis, é claro, não acende-
ram. Mas passaram a emitir um apito contínuo, uma espécie
de sirene submarina, alguma coisa que eu já havia visto num
filme. Na televisão. Um filme do Jacques Costeau. Sobre balei-
as. Sobre o acasalamento das baleias. Os sons com que elas se
comunicavam. Era igual. O mesmo apito. E talvez… Não, mas
não era possível. Um milagre. Sim, era possível. Tudo era pos-
sível.
– Cherry, olha lá – gritei.
Ela precisava ver. Mesmo que fosse a última visão das nos-
sas vidas. A forma quadrangular e monumental do rosto de um
cachalote-fêmea se agigantava em meio à tempestade, sorven-
do boa parte do oceano atrás de nós com uma boca aberta que
mais parecia um hangar mucoso e rosado. A lancha começou a
ser arrastada para trás junto com os japoneses que já desapare-
ciam pela goela adentro do réptil. Tudo era possível. Sim, um
milagre.

– Gordo. Baleia é mamífero. Cachalote, por aqui, nem com


benzedura. E, a propósito, St. Moritz é uma estação de esqui.
Isso aí tá virando Barão de Münchausen. Você ainda vai apa-
nhar por causa desse livro. Eu já cansei. Vou dormir.
Vai. Vai dormir. Vai sonhar com consistência. Pelo menos
não incomoda mais. Não sabe o que é literatura. Desdobramen-

Um morto pula a janela 163


to do enredo. Realismo fantástico. Agatha Christie não faria
melhor. E que eu saiba ninguém nunca bateu na velhinha. Vai
perder a melhor parte. Ela quer substância moral mas não re-
siste. Não tem fibra. Não se contém. Não tem equilíbrio.

– Qué passa? – disse Gustavo, tentando inutilmente se


equilibrar de pé no barco. Tinha puxado um fio ao se levantar,
e a sirene já não soava mais. O mamífero reptiloso se retirou
para as profundezas do oceano, decepcionado com o alarme
falso de um encontro amoroso e consolando-se, decerto, em
mastigar os japoneses de barbatana. Era muita sorte. Era um
milagre. Até a chuva estava mais calma. Cherry tinha ido dor-
mir. Não, tinha desmaiado.
– Uff – disse, ao acordar, socorrida por Pablo Trobo. – Que
susto. Pensei que você ia ser avô antes do tempo.
Pablo Trobo, avô? Que assunto era esse?
– Pô, gato. De onde é que você acha que eu tirei esta barri-
ga de cinco meses. Nem bebo mais cerveja.
Não, não era possível. Um filho. Era isso que ela tanto es-
perava, no verão. Um filho meu.
– Por que não me…
– Não íamos lhe contar até embarcarmos no avião. Se al-
guma coisa desse errada… Melhor que você nem ficasse saben-
do… – disse o avô.
Avô?
– Papai… – explicou Cherry, olhando para o psicólogo –
Era o verdadeiro amante da minha mãe. Conheceram-se no ve-
rão antes do meu avô morrer, e mamãe nunca mais procurou
por ele… Não teve coragem… Plínio Jochlander apenas a for-
çou, uma vez… Mas ela não podia contar a verdade ao meu avô
dinamarquês. Não queria ver o amante morto. Disse que Jo-
chlander a engravidara. E foi o que todos ficaram pensando. Até
que papai me falou sobre o caso deles, neste verão, dizendo que
ainda era apaixonado por ela, mesmo depois de vinte anos. Pas-

164 Nei Lisboa


sei a suspeitar que eu talvez não fosse filha do senador. Então
escrevi aquela carta para a minha mãe. Ela respondeu confes-
sando que Pablo Trobo era meu verdadeiro pai e que ainda era
apaixonada por ele. E aceitou fugir conosco para St. Moritz, quan-
do papai foi encontrar com ela em São Paulo. Laura Trobo per-
cebeu tudo desde o começo, sabia de uma paixão antiga de pa-
pai. Relutou, mas acabou aceitando a separação. Eu ia contar
pra você, mas… Você só queria saber daqueles livros policiais…
Nem percebeu que eu estava grávida… Agora já sabe. E isso é
tudo.
Tudo, não.
– Mas… E as iniciais nos livros de pintura… P e J… Jo-
chlander não daria presentes pra ela, se a forçou… E Pablo Tro-
bo não confere…
– Pablo José Trobo – disse o psicólogo. – Muito prazer.
Eu não podia acreditar.
– Qué passa? – repetiu Gustavo, ainda tentando se equili-
brar de pé.
– Nada não – esclareci – Só o batalhão dos japoneses de
Jochlander, usando barbatanas. E um cachalote-fêmea. Um fi-
lho meu numa barriga de cinco meses. Um pai de última hora.
O último quilo de explicações. E não tem ninguém pilotando
essa lancha.
Ele não chegou a ouvir o final. Despencou por cima da bor-
da, felizmente a tempo de que o puxássemos de volta pelos pés.
Estava empapado, ainda tonto e com uma enorme esponja na
mão.
– Que é isso? – perguntei.
– No sé. Me agarré nesso dentro d’água, quando…
– Cherry… Olha aqui… O livro… O livro que você jogou
no mar, há semanas… O assassinato em Devonshire… Deve
ter se conservado dentro da baleia…
– Ah, meu deus. Não pode ser. Que droga… Tudo bem.
Você lê em St. Moritz, gato. Agora vamos embora.

Um morto pula a janela 165


– Acabou?
Rá.
– Cê não vem pra cama?
Rá. Rá.
– Deixa pra amanhã.
Rá. Rá. Rá.
– Falta muito?
– Só uma meia página de moral.
E mais o capítulo de St. Moritz. E o pós-anticlímax. E o epí-
logo. E um cafezinho novo.

166 Nei Lisboa


XIII

Às vezes é solitário, o deck. As gaivotas não deixam mar-


cas, não pedem passagem. Apenas pousam. E se vão. Pablo sobe
ao entardecer, para uma happy-hour. Gustavo vem ajustar a
parabólica. Adriana arrisca um salto ornamental. E a mãe de
Cherry passeia, tão silenciosa no seu croché que a cada vez se
repete o susto do aeroporto de Montevidéu. Sempre penso que
é Cherry, vinte anos mais velha. Tem os olhos verde-azuis da
filha. E o cabelo loiro-ruivo. Como o de Severinho.
– Paiê, me dá um computador novo?
Pra quê. Essa geração só pensa nisso. O dele tem novecen-
tos mega de memória. Mas não gostou porque eu comprei usa-
do. Da Nasa.
– Pede pra tua mãe, meu filho.
– Ahá, pra mim, é?
Flagrante delito. Nunca pensei, ela não sai mais do atelier
dois. Aquele envidraçado. Isso quando não está azucrinando os
ouvidos da babá. Isso quando não passa as noites fora com…
– Gordo, vem pra cabine um pouquinho.
Gordo? Quem ela pensa que eu sou?

– Gato, vem dormir.


Gato? Quem ela pensa que é?
– Não posso. Falta um parágrafo.
…
– Uma frase.
…

Um morto pula a janela 167


– Tem que entrar. Do Borges.
– Que frase?
– “Às vezes uma banana é apenas uma banana.”
– A frase é do Freud. E não é banana, é charuto. E se você
não largar essa merda, agora, vai ver com quantos charutos se
dá um nó numa banana.
Rá. Quá. Espirituosa.
– Vou ligar pro Antônio.
Ops.
– Peraí, peraí. Tá legal. Só uma palavrinha.

FIM

168 Nei Lisboa


Um morto pula a janela
foi composto por Aleph Editorial para a
Editora Sulina e impresso na La Salle Gráfica Editora
Porto Alegre, agosto de 1999.

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