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Nei Lisboa
Porto Alegre/Brasil
© Nei Tejera Lisbôa, 1999
ISBN 85-205-0232-6
1. Literatura Brasileira Novela.
I.Título.
CDU 869.0(81)-32
E. S. Lisboa,
D. F. Adams e
A. N. Jeruzalinsky.
Nei Lisboa
Porto Alegre, setembro/92.
Aonde é que você quer chegar com isso?
Não disse que quero chegar. Não disse nada. Posso sair.
Cair dentro da história. Se ela deixar. Se der licença. Não des-
gruda. Fica dando palpite. Não dá pra concentrar. Vou acabar
cometendo um crime. Mais um. Rá. Nem sonha. Não acerta uma.
Não sabe o que é literatura. Não sabe o que é chester.
E isto aqui, o que é? Pode-se saber?
I
***
Nos conhecemos na casa de Gustavo, que era de Libra, ela
também de Libra, eu de Capricórnio, e portanto fomos fu-
mar e caminhar pelas pedras do costão, trincados de loucura e
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de frio, até que a praia se perdesse de vista. Aí ficamos, horas a
fio, os olhos injetados se esbugalhando junto com as ondas e
escorrendo com a espuma nos rochedos.
Eu estava me perguntando se já havíamos nos transmuta-
do em pedra quando ela se levantou, de repente, para apontar
uma escuna que passava ao largo no horizonte. Ficou excitada
com a idéia de navegar e desfilou uma tese sobre a insignifi-
cância humana, a relatividade do desejo e a reprodução dos
golfinhos. Depois falou em se mudar para perto do mar e do
porto, na encosta do morro, talvez. Jurou que não ficaria nem
mais uma semana com as gêmeas com quem dividia uma casa
na Lagoa, não por elas, que eram adoráveis, mas porque preci-
sava estar perto do mar, o que, afinal, não era tão estranho a
ponto de que ficássemos olhando pra ela como dois sapos na
frente de um mosquiteiro.
Disse aquilo tudo de um só fôlego e Gustavo soltou um
qué pasó? quando ela parou de falar, mas ficou sem resposta
porque já estávamos todos rindo feito idiotas enquanto despen-
cávamos dali pelo caminho de volta.
Isso foi uns dois anos antes de tudo, era inverno e eu ain-
da era um recém-chegado trabalhando na revisão do Diário de
Ibiraí. Morava na casa de um tio que também me arrumara o
emprego e que cuidava de refrescar a minha memória a esse
respeito cada vez que discutíamos, o que não era raro. Gustavo
era músico, e arranhava uns boleros durante os meses de féri-
as quando a cidade ficava repleta de turistas do Prata. O resto
do ano, sobrevivia como eletricista e encanador usando o pou-
co que aprendera da profissão do pai, em Montevidéu, para
inundar os banheiros das donas de casa do lugar.
Cherry tinha dezenove anos, nessa época, e usava os cabe-
los curtos. Eram ruivos, quase vermelhos, dos lados e amarelos
na franja e no alto da cabeça, de um jeito que eu nunca havia vis-
to igual. Tinha olhos verdes, que insistia em dizer que eram azuis
acho mesmo que eles mudavam de cor de vez em quando.
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contorciam sobre a rede aberta no cais, puxando assunto com
um velho pescador. Saiu dali com um par de tainhotas enrola-
do em papel pardo, fascinada com o velho e vaidosa pelo pre-
sente. Parecia dona de uma leveza encantadora à qual apenas
ela era imune, esbofeteando o nosso silêncio extasiado com
assuntos mundanos e repentinos.
Quis subir a rua quando chegamos ao final do porto, atraí-
da pela quantidade de árvores que se destacavam do tapete de
bananeiras da encosta e a distinguiam dos outros caminhos morro
acima. Pediu que eu segurasse o pacote com os peixes e subiu
rapidamente pelo meio do calçamento. Parou depois de uns cin-
qüenta a cem metros e ficou examinando a vista da baía, intriga-
da com alguma coisa. Quando desceu, disse que as árvores a ti-
nham atrapalhado um pouco mas, ainda assim, sabia com estra-
nha certeza que aquele era o ponto exato onde gostaria de morar.
Seguimos pela avenida que, depois do porto e ladeada por
um pequeno comércio de bares e quinquilharias em geral, se
distanciava da orla costeando o morro em direção ao centro e à
Lagoa de Ibiraí. Gustavo quis improvisar uma festa à beira-mar
no sobrado do qual tomava conta, durante o ano, para uns co-
nhecidos uruguaios. Eu tinha que trabalhar, no entanto, e Cher-
ry parecia um tanto indecisa, o olhar subitamente distante e
meditativo.
Estávamos nisso quando o ônibus dela apontou na esquina.
Terminava de dar a volta na baía, desde o norte, e estava pres-
tes a entrar na avenida, no rumo que indicava o enorme letrei-
ro LAGOA iluminado. Ela soltou um gritinho em falsete e
num piscar de olhos já havia corrido até lá, seduzido o motoris-
ta à embarcá-la fora do ponto, e nos abanava do lado de dentro,
colando um sorriso de anjo no vidro da janela. Ficamos parados
à beira da avenida, prendendo a respiração até que o último fio
daqueles cabelos dourados sumisse de vista.
Que linda, pensei, ainda sem perceber que havia ficado
com um estúpido pacote suado de peixe na mão.
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É, eu sei, a barba. Trabalhava num circo antes de vir pra
cá. Mas isso é uma longa história. Olha, acho bom sairmos des-
se frio.
Eu não estava sendo sincero. Caminharia descalço na neve
só pra sentir aquele corpo colado ao meu, pela maneira como
se aninhava enlaçando o braço que eu oferecia, orgulhoso, com
a mão firme no bolso, a jaqueta de couro vivendo seu dia de
glória. Tinha sonhado com isso desde o primeiro minuto e mais
ainda depois que fora à Lagoa, no outro dia, devolver um paco-
te de tainhotas e, porra, não é que me recebe com ais e boli-
nhos e que bom que veio porque nem imagina, ela voltara ao
porto naquela manhã e já havia achado um apartamento exata-
mente onde e como queria, e até fácil de alugar. Sim, Gustavo
havia me conseguido o endereço e, que é isso, não custou nada
vir até aqui e eu, não, não tinha pressa alguma, claro que podia
ficar pro almoço e dar uma volta na Lagoa que nessa época é tão
bonita porque fica deserta, é claro, mas também por causa das
estrelinhas de luz que repicam nas marolas quando o sol se in-
clina logo cedo de tarde, como repicam aquelas pedrinhas que
a gente fica jogando nágua quando não tem nada melhor pra
dizer.
Hã? Desculpe, eu
Maxims Ela repetiu o nome. Um bar. Acho que é o
único por lá que fica aberto até tarde.
Não pensei que viesse, embora tivesse dito que sim, as-
sim que fizesse a mudança iria me procurar pra sairmos e pra
conhecer o apartamento, é claro. Talvez no jornal, que era mais
próximo do porto do que a minha casa e já que não se importa-
va de ficar um pouco até mais tarde, não dormia cedo, mesmo,
não como o resto da cidade que àquela hora existia apenas para
ressoar as nossas passadas e as palavras que me dizia ao pé do
ouvido, uma neblina de hálito doce flutuando sob as luzes ama-
relas da avenida e o silêncio do mar rangendo suas dores no
escuro, e talvez por isso recostasse a cabeça no meu ombro, como
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Que sorte, não? comentei, inspirado pela minha pró-
pria. Quero dizer, essa história toda do apartamento ter sido
tão fácil. Tão rápida, pelo menos.
Erro de cálculo. Ela soltou as mãos para gesticular enquanto
falava.
Ah, não sei, até me assusto com o jeito que as coisas acon-
tecem comigo. Engraçado, é como se caíssem do céu, algumas
vezes. Fico pensando em São Paulo, lá tudo sempre foi mais rá-
pido ainda, claro, lá tudo é mais rápido. E sendo filha única, sei
lá, acho que não é uma coisa muito legal, eu gostaria de ter tido
irmãos, mas
Também tem algumas compensações práticas
Não sei, às vezes fico com medo de mim, é uma coisa interna,
mesmo, não sei explicar, como se eu fosse fugir, desaparecer
de repente.
Eu dispensaria tanta análise, mas colei os olhos nos ver-
de-azuis dela. Pra desaparecer junto, se fosse o caso.
Você deve ter uma ascendência nórdica, certamente. Um
bisavô viking, coisa assim brinquei.
Novo erro. Percebi que a pergunta havia sido inoportuna
porque ela levou um tempo antes de responder, os olhos volta-
dos para baixo.
Não exatamente. Meu avô materno era um imigrante
dinamarquês. Conheceu minha avó no navio, na vinda pra cá.
Meu pai era filho de alemães, parece, mas sei muito pouco dele
porque fugiu de casa logo depois que eu nasci.
Ah. Entendo. Eu tamb
Aquela coisa monstruosa apareceu do meu lado com um
garrafão de vinho e duas taças. Quase simpatizei com ele, na-
quela hora, porque a interrupção me deu um tempo para pen-
sar no que dizer a Cherry.
Serviu o vinho derramando pelas bordas. Depois limpou
com a mão o tanto que caíra na mesa.
Vão verr que é uma chóia de vinho disse, antes de se afas-
tar. Eu me preparei para retomar a conversa, mas fiquei na vontade.
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Ah
Jura
Meu deus, que olhos.
Bem, quase isso, quer dizer, como tudo que eu escrevo
meu deus, que coragem , tem um pé na realidade. Mas a par-
tir daí a história segue um curso próprio, por exemplo, elas não
precisam ser gêmeas, necessariamente. Podem ser duas An-
dréas. Ou duas Genovevas. Uma confusão de nomes. Ou am-
bas as coisas. Duas Beatrizes gêmeas.
Ela riu, depois esperou um minuto em silêncio.
E como é que segue o conto?
Droga. Não sei mentir. Muito.
Bem
Há dias que não escrevo. Escrevia no jornal, en-
tre uma matéria e outra que tivesse que revisar. Com a máqui-
na da Marion. É a minha chefe.
Hmm. E por que parou?
Eu não queria contar. Mas não tinha outra saída.
Ela não me empresta mais. É meio pernóstica, sabe como
é. Andei guardando umas tainhotas na gaveta da máquina.
Meu deus, que sorriso.
Gato Ela ainda ria. E era a primeira vez que me chama-
va desse jeito. Não é possível, que tragédia. Me sinto meio
culpada.
Valeu a pena.
Ah
Sim? Espero que eu não tenha atrapalhado a carrei-
ra de um escritor famoso, milionário
Você já pensou nisso?
Já. Não daria certo. Não gosto de caviar e champagne me
dá azia.
Hmm. Pois eu sempre sonho com essas coisas. Uma casa
em St. Moritz
Férias em Ibisa
Um atelier em Nova Iorque
Parecia estar falando sério, pensativa, olhando uma chu-
va fina que começara a cair. Lembrei das fotos que me mostrara
na Lagoa, uma exposição em São Paulo.
Pelos quadros que eu vi, um atelier em Nova Iorque não
é algo tão distante assim arrisquei uma canastrice.
18 Nei Lisboa
II
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ao infinito curvo de um céu agosto. E era sobre a cidade e des-
de o meio da praia que se encalhava o navio, galera gigantesca
e viva, canhoneira de velas arriadas estupidamente real, como
uma fotografia impossível desmentida pelo brilho dos detalhes
em empastos vigorosos e recentes.
E então?
Ela se encostara no umbral da porta, os lábios novos de
batom vermelho. Eu não sabia há quanto tempo estava admi-
rando o quadro, apatetado, deslumbrado.
Fantástico, Cherry. Tão absurdo quanto real
Esse na-
vio, assim, sobre a cidade
Cuidado ela disse, um tanto sem graça e me puxando
pelo braço. Eles engolem a gente. Vamos embora, gato, o
Maxims daqui a pouco fecha.
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por caranguejos e tatuíras e águas-vivas, onde a quilha do barco
seria um gigantesco biombo a dividir ao meio a volta da baía.
Aproximara-se da janela e eu a tinha abraçado por trás, e o
que víamos era ao mesmo tempo o caminho recém feito e uma
reprodução vulgar da pintura adormecida sobre o cavalete.
Poderia começar a outra tela agora mesmo, se tivesse luz
suficiente, mas
Ela deu as costas à janela e apoiou o rosto no
meu ombro. Gostaria que não existisse aquela árvore. Mas é
claro que não teria coragem de cortá-la, agora que já está ali.
Apontava para a outra janela do atelier, na parede lateral do
edifício, que daria vistas para o sul da baía não fosse a ramagem
de um plátano que subia desde o pátio de um apartamento tér-
reo, filtrando o sol da manhã miseravelmente, no inverno.
Bem arrisquei Pelo menos eu poderia ter uma vista
do porto, ao acordar. Isto é, se conseguisse dormir em pé, no
sofá.
Até que enfim, pensei que ela tivesse uma coleção de pin-
céis no lugar do coração.
Desculpe, gato, era apenas um teste
Bem, o sofá passara no teste, e eu adorava que me acarici-
asse o peito, que se enlaçasse no meu pescoço, que me fizesse
cafunés na nuca enquanto nos encharcávamos com um beijo
escandaloso, volúpia amanhecida, que só poderia terminar na
cama e em mais além do que se pudesse esperar de um sonho
interminável e um reconhecimento do céu palmo a palmo, pe-
dra sobre pedra em um castelo de prazer que pouco importava
se desmoronasse porque para isto fora feito e bastaria um dedo
correndo sobre a pele para que se erguesse em forma de nu-
vem e chovessem flocos por todo o tempo do mundo e mais
duas ou três eternidades de todos os santos, amém.
24 Nei Lisboa
III
26 Nei Lisboa
ravilhoso momento em que nos livramos, ambos, da agonia
da máquina antiga onde a rebeldia de algumas teclas era
capaz de transformar Remington empacotada em e ing on
e paco ada.
No fundo, vivia um misto de orgulho e inveja por aquela
figura de insólita beleza, capaz de construir para si um patri-
mônio em obras de arte antes mesmo de completar a maiorida-
de e de compreender que o ser humano não é uma espécie con-
fiável.
Você é que sempre enxerga as coisas pelo pior lado.
Não é isso.
Claro que sim, e o que teria de mais, eu acho bárbaro que
possa fazer uma exposição aqui no Iate Clube, bem ao lado do
porto, acho até que devo isso a Matias. E além disso preciso de
mestre Severo por perto, quero umas fotos dele com Adriana
na inauguração e sei que ele não iria, se fosse noutro lugar.
Ela realmente não queria discutir o assunto, não no meu
aniversário. Eu não tinha nada contra o caso de Adriana com
mestre Severo, eles que se entendessem o tanto possível entre
um pescador de sessenta e cinco anos e uma adolescente punk
de última hora. Mas não suportava Matias, um mestiço atarra-
cado e metido a faceiro, secretário do clube, que todos os me-
ses batia à nossa porta para receber o aluguel de um apartamen-
to que dizia ser dele, mas sobre o qual não decidia nada sem
que antes tivesse de consultar o sócio. De tanto meter o nariz
porta adentro, terminara por sugerir à Cherry que montasse a
exposição na galeria do Iate Clube, um salão envidraçado onde
as ondas rebatidas do costão já haviam transformado em banho
de piscina um jantar solene do Rotary Club local.
Já trocaram, não são os mesmos vidros. Ele me garantiu
que resistiriam a um maremoto, agora.
Mas não é isso, é a cara do sujeito. Dá pra ver que vende-
ria a mãe, se achasse que a cotação valia a pena.
Só porque ele é índio.
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Laura Trobo examinava a pintura da mãe de Cherry, alheia
às especulações do marido. Era uma tela impressionante, de
fato, dois metros por um, talvez. Um pouco maior que as de
Cherry, embora estas produzissem um efeito longilíneo com o
comprimento perpendicular ao chão. Na verdade, me parecia
um desperdício de tinta.
Uma derivação do trabalho de Freud sobre
Curioso, parece meio manchada nas bordas, mira, Pa-
blito, como se escurece acá, ahn.
É o verniz esclareceu Cherry Vai ficando encardido
com o tempo. E também algumas cores, que desbotam mais fá-
cil que outras. Parece que ficou exposto à luz em excesso logo
que ela pintou.
E onde foi isso? perguntou o psicólogo.
Cherry parecia incomodada.
Não sei bem. É algum lugar no litoral de São Paulo, perto
de Ubatuba. Minha mãe já não lembra o nome, e é impossível
identificar a praia, aqui embaixo.
Claro, como está se parece todo la mar concordou
Laura Trobo.
Hum. La mar poetizou Pablito. El barco sobre la mar.
30 Nei Lisboa
Foi durante uma dessas overdoses de cafeína que me tor-
nei amigo de Wilmar, editor-chefe e aparentemente a única
pessoa esclarecida naquele matutino de doidos. Fora galgado
ao posto por conta de uma experiência de anos em um jornal
do Rio de Janeiro, embora estivesse bem abaixo da média de
idade da redação, e era hábil em satisfazer os interesses do dono
da empresa ao mesmo tempo em que encontrava espaços para,
aqui e ali, expor as sacanagens locais e do resto do país.
Eu havia aproveitado um tempo livre para escrever um
artigo sobre a especulação imobiliária, a destruição ecológica e
outros males caricatos que o turismo desenfreado pro-
porcionava à cidade. Na primeira oportunidade, pedi a ele que
levasse pra casa, o artigo, e que me desse uma opinião, se pos-
sível não muito sincera. Achou graça, mas no outro dia man-
dou me chamar assim que cheguei no jornal.
Pô, rapaisch, não sabia que você eschcrevia.
Disse a ele que eu também não sabia, mas era espírita, e
de vez em quando recebia o Paulo Francis.
Pensei que só recebessem defuntuisch.
Pois é.
Mandou que eu cortasse pela metade aquele calhamaço de
denúncias quixotesco e, então, quis publicar. A partir daí começou
a me passar pautas todas as semanas, em geral sobre algum assun-
to em que o ardor revolucionário que eu porventura imprimisse
ao texto pudesse servir como uma fachada liberal da qual o jornal
andava necessitado. Volta e meia descia comigo, às meias-noites,
pra um gole de cerveja antes de fechar a edição do dia seguinte.
O home me disse que gostou muito do seu artigo.
Filho da puta.
Acabou se cansando, por um lado, e de outro me con-
vencendo que o mundo era maior que uma bola de basquete e
que o Paulo Francis, no mínimo, era bastante vivo.
Numa segunda-feira de abril, quando eu já pensava em
amargar uma aposentadoria como revisor de jornal, me chamou
32 Nei Lisboa
drama kafkiano repleto de palavrões e sodomia e espancamen-
tos, o desespero de um negro homossexual confrontado com
um parceiro que, de bom rapaz, se transformava em sádico as-
sassino. E com muita cocaína no meio.
Quando terminei, atravessei os tabiques com duas cópias
xerocadas na mão, que joguei sobre as mesas de Marion e Elie-
te antes de dar as costas e me divertir com os primeiros comen-
tários sussurrados entre as páginas do conto.
Olha aqui
e ainda promovem
Eu é que não me importo. Qualquer dia desses
Esca-
pei de ouvir, deixando a porta se decidir sozinha no vaivém das
molas.
34 Nei Lisboa
De fato, no dia seguinte Matias apareceu para parabenizá-
la pela inauguração e apresentar o seu relatório com um sorri-
so de camelô. Disse que houvera feito alguns contatos, que sen-
tira interesse por parte de alguns convidados, mas que isto já
não importava mais. A boa notícia era que o clube se decidira a
comprar todos os quadros. Menos, é claro, os dois últimos da
série, que Cherry ainda não pudera envernizar e que queria con-
servar para si. De resto, o sócio o autorizara a arrematar por
um bom preço as outras sete telas da exposição e o que mais
ela tivesse pronto.
Inclusive este.
Apontava para o quadro amarelo, no qual Cherry estivera
trabalhando desde cedo removendo o verniz encardido. Ela re-
trucou que isso era impossível, que o quadro sequer era dela,
que o houvera resgatado do sótão de casa, em São Paulo, soter-
rado por outras tantas tralhas, que o embarcara na mudança sem
que a mãe soubesse mas que esta já houvera reclamado pela
falta dele, e que pretendia devolvê-lo assim que o restaurasse.
Ele não se alterou.
Bem, a oferta está de pé, no caso de ela querer se desfazer.
Manteve também a proposta de arrematar os quadros da
exposição, o que, naquele momento, era como perguntar a um
rato se aceitaria um pedaço de queijo. Cherry mal se preocu-
pou em questioná-lo sobre o destino das telas, contentando-se
com uma vaga explicação sobre a motivação cultural das em-
presas do sócio ou a possibilidade de recolocar algumas delas
no próprio e exíguo mercado de arte de Ibiraí. Atropelou a ofer-
ta de Matias sugerindo que parcelassem o montante em três
ou quatro pagamentos, que estaria tudo bem, que confiava nele
para acertar os detalhes. Este mal havia dado as costas e ela já
estava comemorando aos gritos um negócio que me parecia, para
dizer o mínimo, estranho.
É claro que eu me alegrava com a idéia de que tudo sairia
como planejado, de que partiríamos juntos no caminho das fé-
36 Nei Lisboa
A árvore da família. Qualquer um saberia. Qualquer um
diria o mesmo. É psicotécnico. Não sei de onde tira essas coi-
sas. Não posso ligar. Não posso ligar pros palpites dela. Quer
consistência. Ação. Frases curtas. Tiroteio. Telenovela. Brigitte
Montfort. Chama isso de realismo. Quero ver quem analisa o
desespero de um psicólogo negro bissexual confrontado com
um parceiro bom rapaz que se transforma em sádico assassino.
Uma gilete cravada em cada olho. Rá. Não dá pra escrever com
ela. Sem ela. Caminhando pela casa. Não consigo achar os pon-
tos. Não consigo me controlar. A vizinhança me perturba. E é
real. Tão real quanto Cherry. A gostosa. Como é que eu fui dar
uma cagada dessas. Agora quer explicação. Quer que eu conte
toda a verdade. Rá. Não tenho que explicar nada. Preciso com-
prar um relógio. Pequeno. Um pouco maior que o Big Ben.
Oi.
IV
38 Nei Lisboa
de café, cigarros, pingos nas vidraças, até que as idéias come-
çassem a piscar e a estiada da noite me levasse ao Maxims.
Estava tonto, esfomeado, e ainda pensando naquela frase. Cor-
tar a árvore.
Valter saudou meu retorno das férias, perguntou por Cher-
ry, serviu uma tainha assada de primeira. Parecia quase huma-
no. Na hora de ir embora, me lembrei do quadro.
Non, non posso entregarrr. É segrrredo.
Argumentei que eu soubera daquele segredo antes dele,
que Cherry era minha esposa ou algo parecido, não importa
que deixasse de bobagens e fosse buscar o quadro antes que a
chuva recomeçasse. Sumiu pela porta dos fundos, ao lado da
cozinha, e voltou carregando a tela. Meio a contragosto, em
dúvida sobre estar fazendo a coisa certa.
Non sei non. Otra dia chá teve um chaponeis, aqui.
Contou que o japonês pedira uma tainhota crua com shoyu
por cima, e saquê. Puxara uma conversa estranha sobre barcos,
pinturas, loiras ruivas, jornalistas e quadros amarelos. Pagara a
conta com um cartão do Citibank.
Non disse nada prrrele.
Não dei muita atenção àquela história, provavelmente fora
apenas uma série de coincidências. Fui pra casa e pendurei a
tela no seu lugar de honra, em frente ao sofá e junto à janela
lateral, antes de capotar num sono profundo.
O segundo dia repetiu o primeiro, a chuva, café e cigarros, o
conto, embora as marteladas da frase na cabeça houvessem au-
mentado de intensidade. Bati o ponto final da história já ao cair da
tarde e então quis investigar a árvore o plátano das folhas ama-
relas, no outono, quase nu e esmaecido pelos rigores de julho.
A estiada da noite chegara um pouco mais cedo, desta vez.
As águas da baía e o costão sul, que eu intuía através da rama-
gem seca do plátano, se iluminavam com raios tímidos de sol,
filtrados entre as nuvens antes que ele sumisse às costas do
edifício, por trás do morro.
40 Nei Lisboa
Achei que aquele era um delito passível de condenação
imediata e sentenciei-a a quatro ou cinco horas, nua, debaixo
das cobertas, tomando o cuidado de colar-me nela para evitar
que fugisse.
Na noite alta, depois que os suspiros se acalmaram, nos
vestimos e fomos ao Maxims. Só então ela começou a falar.
Eu era muito pequena, mas a imagem do quadro deve
ter ficado gravada na memória, sei lá. E minha avó vivia falan-
do em Ibiraí. Dizia que nunca teria ido embora daqui não fosse
a morte do meu avô. Aquele dinamarquês cabeça-dura, como
ela chamava.
Sei. É de família.
E ele morreu de que, mesmo?
De tuberculose, segundo eu sei. Mas o que interessa é
que depois o quadro foi parar no sótão, e ficou lá até a época
em que eu comecei a pintar. Eu tinha uns oito, nove anos. Foi
logo depois que morreu a minha avó.
E ela morreu de que, mesmo?
Do coração. Pô, gato, não incomoda.
Eu precisava lembrar. Poderia ser uma pista. Se é que exis-
tia algum mistério.
Bem, por essa época a minha mãe andou tirando o qua-
dro do sótão, já manchado, irreconhecível. Foi aí que me disse
que era uma praia perto de Ubatuba. Eu sempre acreditei nessa
história, mas, no fundo, alguma coisa me puxava para aquela
paisagem do porto. Para o lugar verdadeiro.
E por isso veio parar no apartamento.
Claro. Quis passar um verão em Ibiraí, mais para conhe-
cer a Lagoa, onde a minha mãe nasceu. Acabei me apaixonando
pelo lugar, conhecendo as gêmeas e voltando pra morar com
elas no outro ano. Mas comecei a me fascinar pelo porto, por
essa rua, pela vista da baía naquele ponto da rua. Só não sabia
bem por quê. Agora já sei.
Ótimo. Tudo certo, então.
42 Nei Lisboa
olhinhos , que eu conheço aquela escuna. E sou dona, de uma
pequena parte dela, pelo menos.
Como assim?
Se continuasse a apertar os olhinhos daquele jeito ia aca-
bar ficando no escuro.
As molduras das telas. Foram feitas com pedaços daque-
le barco, tenho certeza. Fui com Severo até um armazém do porto
para escolher as madeiras e vi, eu vi, gato, a proa daquela escu-
na. Ou um pedaço dela, quase intacto. Não existem muitas es-
cunas amarelas com uma proa daquelas no mundo. Quanto mais
no porto de Ibiraí.
Sim, e daí? Mesmo supondo que fosse o mesmo barco
Acontece que resolvi perguntar a Severo sobre a escuna,
só por perguntar. Primeiro ele ficou fazendo mistério, disse que
havia uma história antiga relacionada com ela. Disse que ele
não podia contar. Achei que era fantasia dele, sabe como é o
Severo, estava gostando de brincar com o segredo. Mas depois
parou de falar no assunto. Isto é, depois da primeira vez que foi
lá em casa. Passou a me olhar de um jeito estranho. Ou seja,
posso apostar que ele reconheceu o quadro. E que há muito di-
nheiro envolvido nessa história.
Agora era eu que falava em fantasia. Aquilo já era ir longe
demais. Por via das dúvidas mudei de assunto. Perguntei como
fora a viagem de volta. Disse que um japonês enorme sentara
ao lado dela. Estranho. Repeti pra ela a história que Valter me
contara.
Provavelmente ela disse , apenas uma série de coinci-
dências.
Perguntei se aquilo era uma ironia.
Gato desconversou , vamos embora. Amanhã bem cedo
quero estar no clube pra rever a exposição. Você já voltou lá?
Falei a ela sobre a chuva, o conto. Não tinha dado tempo.
Espero comentou, enquanto pulava a janela , que ain-
da esteja lá.
44 Nei Lisboa
Não respondeu. Tinha a voz firme, as bochechinhas
vermelhas, os olhos colados nas fuças dele. Não vou vender o
quadro da minha mãe. Afinal, nem sei por que tanto interesse
por um trabalho que é quase amador.
Ele desconversou, disse que não era o quadro em si, ape-
nas o sócio tinha uma certa urgência em ampliar o acervo cul-
tural das empresas. Mas se ela não queria vender, ponto final,
o assunto estava encerrado.
Então, por favor, não volte a insistir.
46 Nei Lisboa
Gripada de novo? perguntei, estranhando o motivo da
ausência de Andréa.
Si, flaco lamentou Gustavo No sé que passa, pero ella
está siempre acamada.
É o ar da Lagoa ajudou Cherry. Muita umidade.
É concordei , deve ser o ar da Lagoa.
Claro aceitou Gustavo Porque está siempre acamada
y febril.
Lá é muito úmido confirmou Cherry. úmido demais.
Adriana não dizia nada.
Vinte uno, entonces Gustavo saudou o aniversário de
Cherry.
Pois é. Ela pescou a deixa para alegrar o ambiente.
Acho que é a idade ideal pra se trocar de namorado.
Umidade demais tentei ajudar.
Adriana não se mexia.
Pô, mulher Cherry chamou a atenção dela. Fala
logo, vai, desencana, o que foi que aconteceu? Tá parecendo
Andréa.
Parecendo não, era igual. Ela arregalou os olhos.
Cherry Começou a falar devagarinho, como se estives-
se saindo de um sono profundo. Aquela história do quadro
da tua mãe, que você me contou
Sim, o que foi?
Lembra que você me pediu pra investigar com Severo
sobre o barco, como é mesmo
A escuna.
A escuna, pois é. E ele disse que não sabia de nada, quan-
do eu perguntei. Parecia sincero, disse que tinha feito um mis-
tério em torno da coisa só pra incomodar. Sabe como ele é, quan-
do toma umas.
Você já me contou isso tudo.
E como. Tinham passado uma madrugada falando do as-
sunto.
48 Nei Lisboa
Lembrei de uma excursão pelo costão, uma trilha no mor-
ro, a prainha ao lado de Ibiraí. Cercas de arame, cachorros, man-
são, heliporto. Senador. A comichão desagradável.
Matias vai ter que me explicar isso tudo disse Cherry
Tenho um palpite, gato, de que Brasília fica bem mais perto do
que a gente imaginava.
50 Nei Lisboa
Tava. Agora podia escrever o dia inteiro. Assistir um por-
nô às quatro da tarde. Ir à praia. Procurar emprego.
Não é nem por mim. Mandaram o Wilmar embora tam-
bém.
Pô, que chato.
Lembrei do sorriso dele.
Se bem que ele nem se importou muito. Disse que já tava
de saco cheio do jornal. Vai receber uma puta indenização, pe-
gar uma praia no verão e depois voltar pro Rio.
Pique de carioca. Gato, tá superquente. Vamos tomar uma
cerveja no Maxims.
Não precisava dizer duas vezes. Pensei em quanto tempo
aquilo ia durar.
Será que as empresas do teu pai não financiam o meu
verão?
Não teve graça nenhuma.
Não sei. Não sei de mais nada ela disse Primeiro pre-
ciso ter certeza.
52 Nei Lisboa
Então era como eu pensava. E a essa altura ele já deve
saber do cartão
Cherry suspirava.
Ok, Adriana, você fica. Tomei uma dianteira paternal.
Tudo bem. Só não errem a trilha.
A trilha começava próximo ao barraco de Severo e serpen-
teava entre as bananeiras até o topo do morro. Ali se dividia em
riscos incertos sobre a grama rala, oferecendo uma visão supre-
ma da baía. Escolhemos o caminho que nos pareceu mais níti-
do e, já do outro lado, pudemos avistar o helicóptero pousan-
do. Era uma vista igualmente linda, a praia deserta, misteriosa,
quase aterrorizante.
Estão tirando.
Ao sinal de Cherry descemos a encosta buscando a seqüên-
cia da trilha entre os arbustos da Praia Bonsai, até que uma cer-
ca de arame farpado se atravessasse no caminho. A partir dali,
todo cuidado era pouco. O descampado que se abria à frente,
contornando a enseada da praia, nos tornava presas fáceis para
a família de dobermans que fiscalizava as fronteiras do lugar.
Devia ter trazido um osso de borracha lamentei, trê-
mulo, quando ouvi os primeiros latidos.
Gato, não se mexe, fica frio.
Frio. Até parece. Gélido, isso sim. Sete ou oito daquelas
gracinhas vinham galopando colina abaixo, e estancaram um
pouco antes de virarmos guisado de segunda. Pelos sorrisos sim-
páticos e pontiagudos, dava pra perceber que era hora do almo-
ço. Eu estava rezando pra que aparecesse o Jaspion.
Origami. Nagasaki. Toshibá.
O japonês apareceu do nada e debandou com os rapazes
narigudos na mesma hora. Depois fez sinal para que o seguís-
semos por sobre a colina até a entrada da mansão do poderoso
senador Plínio Jochlander.
A mansão, de fato, era uma mansão. Não deu tempo de
contar as janelas antes que a porta se abrisse.
Olívia, minha filha.
54 Nei Lisboa
Tirou-os do mercado. Ninguém vai vê-los, aqui. Mas não
era bem o que você queria, não é? ela retrucou, seca.
Não, não, Olívia
Você tem que acreditar em mim. Eu
sou seu pai. Jamais faria alguma coisa que pudesse prejudicá-
la. É claro que, na minha posição, é indispensável que eu tome
alguns cuidados, algumas precauções
Deu as costas pra nós
e caminhou até o meio do salão, a mão correndo sobre o enor-
me tampo de vidro de uma mesa. Depois virou-se novamente.
Este rapaz
Eu suponho
É meu marido.
Eu ia procurar um documento no bolso da bermuda, mas
deixei pra lá.
Claro, claro. Eu sei que posso confiar em vocês. Mas veja,
Olívia Cherry respirava fundo cada vez que ele a chamava pelo
nome. Eu tinha receios, eu confesso, não queria que você sou-
besse. É natural, eu tenho muitos inimigos. Inimigos do povo,
que gostariam de usar isso tudo contra mim. E a sua mãe soube
compreender muito bem. Aliás, foi ela quem me pediu que ad-
quirisse os seus quadros.
Claro, e principalmente o quadro que ela pintou no seu
apartamento. E também que pressionasse Severo a respeito das
molduras. E que se preocupasse em sumir com os pedaços que
restavam da escuna.
Ele não se perturbou com a ironia de Cherry.
Ora, ora, tudo isso não importa mais agora que você já sabe.
Aquele quadro da sua mãe
Caminhou até a janela e apertou
uma campainha oculta por trás das cortinas. Foi apenas uma
tolice sentimental. E as suas telas
Eu teria o maior prazer em
devolvê-las
À medida que formos nos conhecendo melhor
Pode ficar com elas.
Sem prejuízo dos pagamentos que ainda faltam
Pode ficar com elas.
Entrou um japonês de smoking com uma bandeja de prata
na mão.
56 Nei Lisboa
Ela não passou. A porta estava tapada por metade do cor-
po de um japonês. E era uma porta dupla.
Não vou dizer a ninguém ela se dirigiu a ele uma últi-
ma vez que sou sua filha.
Olhos nos olhos.
Mishama, deixe-os passar Ele ordenou ao japa.
58 Nei Lisboa
Fomos ao centro no dia seguinte, depois do enterro. A loji-
nha tinha desaparecido. Agora era uma locadora, Vídeo Shan-
gai, dizia o letreiro.
Provavelmente
É. Apenas uma série de coincidências Cherry concor-
dou comigo.
Adriana não disse nada, mas no caminho de volta tomou
Cherry pelo braço e se pôs a confidenciar alguma coisa. Achei
que estivesse desabafando com a amiga, talvez relembrando pas-
sagens do namoro com Severo, ainda sem aceitar a morte do ve-
lho. Mas quando chegamos em casa vi que era algo mais sério.
Vou levar pro quarto disse Cherry, arrancando o qua-
dro amarelo da parede.
Ficaram trancadas lá dentro por algumas horas. Eu estava
começando a ficar preocupado, Cherry me falara sobre uma
experiência homossexual aos quinze anos. Mas não devia ser
nada do gênero, pela expressão dela ao sair. Estava trêmula. E
os olhos faiscavam de ódio.
Não sei se teria coragem
Mas gostaria muito de
Calma, Cherry disse Adriana Quanto a Severo
Ain-
da me sinto culpada. E, afinal de contas, ele é teu
É um filho da puta ela arrematou, batendo a porta do
apartamento depois que a outra se apressou a correr atrás dela.
Voltou de madrugada, sozinha, tropeçando na entrada do
quarto e quase caindo na cama por cima de mim. Estava bêbada.
Desculpe, gato. Tô tonta. Esse troço todo
Cherry, o que foi
Nem vem
Deixa que eu resolvo
Faço ele desaparecer
Patético. Eu não sabia o que dizer.
Ok. Contanto que você não desapareça pedi.
60 Nei Lisboa
erguia os olhos da página lacrimejada do livro para suspirar ran-
cores e murmurar promessas ininteligíveis de vingança contra
o seu próprio destino.
Depois já se afastara dos livros, que eu continuei a carre-
gar comigo, quando o sol de janeiro nos chamou ao mar e o re-
encontro com os Trobo lhe transformou por inteiro a fisiono-
mia aflita dos últimos tempos.
Eu imaginava que ela estivesse precisando exatamente
disso, do ouvido isento e dos conselhos de um profissional ex-
periente como Pablo Trobo, por isso não estranhei que gastas-
sem horas e horas e lágrimas em emocionadas conferências,
caminhando pela praia até sumir de vista. Laura Trobo, no en-
tanto, não conseguia se pôr à vontade, sentindo-se talvez ame-
açada pela beleza e jovialidade de Cherry a improvisar uma psi-
coterapia com seu marido.
Tentei tranquilizá-la, algumas vezes, sugerindo que O
Caso dos Dez Negrinhos seria uma boa maneira de aproveitar
as horas de abandono, ao invés de queimar pestanas tentando
reconhecer, no horizonte, o calção listrado do psicólogo e o mi-
núsculo biquíni da paciente. Não tinha ouvidos para o bom sen-
so, no entanto, e seguidamente partia para casa sozinha, revol-
tada, recolhendo seus pertences e enveredando a passos lar-
gos entre os japoneses que, naquele ano, ocupavam cada
centímetro de areia.
Não tardou a que Cherry recebesse alta, ou coisa parecida, e
que passássemos a freqüentar outro ponto da praia para evitar
algum mal-entendido mais sério. Wilmar e Gustavo nos acompa-
nharam, este quase sempre comentando sobre o problema crôni-
co de Andréa. As gripes constantes a impediam de ir à praia, e
alimentavam-se, ao mesmo tempo, da umidade da casa da Lagoa.
Pensava em se mudar, assim que possível, e enquanto isso limi-
tava-se a assistir aos shows de bolero do namorado no Tigresa.
Adriana dividia conosco os finais de tarde no Maxims, a
princípio entristecida e cumprindo um luto insensato pela
62 Nei Lisboa
aceitar que ela alimentasse tão profundo desprezo por quem,
apesar de tudo, era seu pai. Ou que o culpasse pela morte de
Severo, o que para mim não fazia sentido. E muito menos que
estivesse ficando tão barriguda.
Também, com tanta cerveja que a gente toma Adriana
foi buscar uma explicação e três copos. Cherry lia o jornal, em
silêncio. De repente quase saltou sobre a mesa.
Adriana. Olha aqui. Ele é candidato a governador.
A outra vinha voltando com os apetrechos embarrigantes.
Deu uma olhada na matéria e estranhou o entusiasmo de Cherry.
Pra mim dá no mesmo. Você acha que isso facilita a nos-
sa vida?
Claro que sim.
Claro que não me intrometi na conversa, depois de ler
o anúncio da candidatura de Plínio Jochlander ao governo do
estado. A não ser que você sonhe que um lacaio como ele vá
fazer alguma coisa além de se instituir um pouco mais. Só uma
porcaria de jornal como esse pra sugerir isso. Desculpe, Cher-
ry. Eu sei que ele é seu pai. Mas não pude me conter.
Ficaram me olhando como se eu fosse um fantasma.
Cherry, você não
Não ela interrompeu. Não adianta. Esse aí anda nas
nuvens. Não larga desses livros. Melhor esperar.
É. Melhor esperar dizia Adriana.
64 Nei Lisboa
Era quase como se o quadro houvesse se tornado vivo, re-
cuperando os anos passados à semelhança da janela que repre-
sentava. O plátano, antes resumido à parte de baixo da tela,
agora espalhava seus galhos e folhas de amarelo-cádmio por
sobre a paisagem. Entrevia-se o mar, apenas, e a escuna de Plí-
nio Jochlander desaparecera sob os empastos ainda úmidos e
brilhantes enxertados na pintura.
Agora é realmente um amarelão só respondi. Ficou
bom. Mas não entendo por que você fez isso.
Por que não? Uma tela é tão real quanto o que ela repre-
senta. Pode mudar com o tempo, como mudou aquela janela.
Pode ser o passado dela se transformando. No mais, é só um
jogo
O jogo do amarelão, que tal? Talvez
Talvez alguém ain-
da se interesse por esse quadro, gato.
Deixar isso aí
disse Adriana. Ainda acho que não
era preciso. Pode ser um jogo perigoso.
Tirar isso aí, eu diria. De resto, concordava com ela.
Teu pai, Cherry
Acho que esse quadro não tem mais
nenhum valor pra ele. Ainda mais agora, sem a escuna. Mas você
não vai conseguir mudar o passado. Por mais que a janela mude,
ou que você pinte e repinte uma floresta amazônica por cima
dele. Sinceramente, acho que você devia enterrar esse assunto
de uma vez por todas.
Ela não deu atenção ao meu conselho.
Tanto melhor, gato. E ele já está enterrado, pode ter certe-
za. Mas
Às vezes pode-se mudar a visão do passado. Como esse
quadro. Uma janela aberta, por onde tudo começou
Isso é uma
coisa pra você ficar pensando, gato. As vezes os mortos pulam
janelas. E esse quadro ainda pode nos levar muito longe
Achei estranho. Ainda mais porque mordia as cerdas do
pincel molhado de tinta. Melhor não contrariar.
66 Nei Lisboa
Isso foi numa segunda-feira e, então, passamos o resto da
semana comemorando no Maxims com cerveja e mariscos. Val-
ter voltara a sorrir pra nós, depois de saldadas as nossas dívidas. E
ainda mais quando Cherry decidiu levar o amarelão para o bar, o
belo plátano e a vista da janela decorando a parede detrás do bal-
cão. Foram dias alegres e de muito calor, em que ela aproveitou as
manhãs para ir ao centro, onde dizia ter assuntos a resolver.
Na sexta-feira, depois de uma noite de chuva, o vento nor-
deste voltou a soprar espalhando as nuvens e antecipando um
luminoso e refrescante dia de outono. Saímos a caminhar de-
pois do almoço e Cherry insistiu para que fizéssemos a volta no
costão, pelas pedras, até onde isso era possível. Paramos na
borda de um pequeno precipício que interrompia a passagem,
as ondas se debatendo nas paredes da fenda, e me alegrei por
poder abrir o livro no ponto em que havia parado.
Nos últimos tempos eu me habituara a ler enquanto cami-
nhávamos, ou mesmo quando fazíamos compras no su-
permercado, mas não havia como realizar tal proeza pulando
sobre as rochas do costão. Tivera de aguardar que o caminho se
fechasse a nossa frente antes de sentar sobre uma pedra e reto-
mar a história com a qual começara a me envolver naquele dia.
Era um assassinato em Devonshire que parecia recheado de
sensualidade desde as primeiras páginas.
Não tive tempo de ler uma só frase, no entanto, antes que
o livro sumisse da minha mão e fosse parar, boiando feito uma
esponja, no fundo do precipício.
Não vai precisar mais disso, gato Ela se curvara e me
olhava fundo nos olhos, armada de um sorriso angelical. Eu esta-
va paralisado, a boca aberta e as mãos na mesma posição de an-
tes, segurando o vazio. Então ela começou a rir, desatinada. Pen-
sei em dar a ela o mesmo destino do livro, mas decidi que até os
tubarões sucumbiriam àquele rostinho apaixonante.
Duvido que os peixes se interessem por literatura su-
geri, quando ela se acalmou.
68 Nei Lisboa
minha cara. Eu só quero que você não se surpreenda com nada.
Não tenho nada a perder. Mas não posso obrigar você a enlou-
quecer junto.
E nem precisa. Já tenho carteirinha de freak, meu bem.
Só queria saber qual é a grande surpresa que me aguarda Tive
que levantar a voz porque ela começara a caminhar depois de
encerrar o discurso. A pergunta ficou quicando nas pedras.
Nem eu sei, direito gritou, de longe.
72 Nei Lisboa
Era um encantamento frágil, no entanto, incapaz de su-
portar alguma madrugada insone no apartamento. Não dor-
mia mais, se porventura acordava no meio da noite, e me pu-
nha a pensar nas possibilidades do caso. Estava claro que de
alguma forma se relacionava com o pai dela, e talvez com a
morte de mestre Severo. Mas eu não sabia, ou não queria acei-
tar, que espécie de insanidade Cherry estava prestes a come-
ter. E muito menos por que não me confiara esse segredo,
como se temesse um julgamento moral que eu jamais faria
ou a hipótese absurda de que eu viesse a dar com a língua
nos dentes.
Era algo sagrado para mim, o silêncio que me pedissem
sobre algum assunto. Assim o fora depois de nossa visita à Praia
Bonsai, por exemplo. Ninguém além de Adriana sabia que Cher-
ry era filha de Jochlander. Mesmo a Gustavo, quase um irmão,
eu calaria a respeito.
Ele apareceu no bar durante aqueles dias.
Que aroma, boludo, está podrido el aire, acá.
Expliquei a ele que o meu estômago era uma omelete boi-
ando num barril de cevada, e que às vezes vazava um pouco de
gás. Perguntou por Cherry.
Foi pra São Paulo, matar as saudades da mãe.
Ah, sí?
Contou que Andréa também viajara, e sem dizer pra onde.
Pouco lhe importava, já que não estavam mais juntos. Na ver-
dade fora até a Lagoa para encontrar Adriana, por quem andava
suspirando desde o carnaval. Afinal reconhecia que não con-
fundira as duas, noutros tempos, por mero acaso.
Además, me gustam los punks.
Tentei sondá-lo sobre o sumiço de Cherry, Adriana deve-
ria ter comentado a viagem da amiga. Não funcionou. Tinham
falado muito pouco, ela estava ocupada com um concurso pú-
blico para o qual, como uma autêntica punk, ia ficar trancada
em casa estudando por mais algumas semanas. Pelo menos,
74 Nei Lisboa
Crispou os dedos, quase cravando as unhas na madeira.
Escute aqui, rapaz, não tenho tempo para brincadeiras.
Onde é que ela se meteu.
Ora, ora. Quanto interesse.
Não sei. Liga pra informações.
Ele recostou na cadeira, sem desviar os olhos.
Está certo. Agora eu entendo desatou uma gargalhada
histérica. Ela não ia contar a um paspalho como você. Não,
aposto que nem imagina por onde ela anda.
Não, eu nem imaginava. Mas ele não tinha nada com isso.
De repente, ficou sério.
Quanto? perguntou.
Hein?
Quanto ela quer.
Ora, ora, que interessante. Resolvi entrar no jogo dele.
Depende de quanto você acha que vale respondi, fo-
lheando ao acaso as páginas do dicionário.
Ele inclinou o corpo sobre a mesa, as mãos nojentas em
cima da Remington.
Pois eu acho que não vale nada. E já estou perdendo a
paciência rosnou, empurrando a máquina ao se levantar.
Ela sabe onde me encontrar, se quiser acertar as contas. Quan-
to a você, pouco me importa o que
Não chegou a terminar a frase. Parecia ter visto um fantas-
ma, mas era apenas um japonês saindo do banheiro. Empalide-
ceu de repente e saiu do bar como tinha entrado, tropeçando
nas mesas.
76 Nei Lisboa
ressou, o inquérito já havia sido arquivado. E o jornal não quis
publicar.
E a mim já não interessava escrever aquele conto. Mas ti-
nha um outro por terminar, se ele me deixasse em paz, agora
que já tinha comido o abacaxi empapado de Campari.
Antes de ir embora, puxou um vidrinho do bolso.
Conhece isso?
Claro, é missô. Dá uma boa sopa.
Engraçado você conhecer. Encontraram no bolso desse
tal de Matias. Pedi uma amostra. Pra minha gata siamês.
Muito interessante, Melchíades, mas eu tenho trabalho
pela frente.
E aí, a gatinha gostou?
Gostou num primeiro momento. Depois ouriçou todos
os pêlos. Parecia um porco-espinho. Aí esticou as quatro patas
no ar e estatelou no chão. Ou melhor, no céu.
78 Nei Lisboa
Ela sorriu de novo. E eu perdoei o pé-de-galinha.
Vou falar com ela. Qualquer coisa, a gente aparece E
leva um balde de carne moída, pensei, lembrando dos dober-
man.
Não deu mais pra segurar. O peido explodiu dentro das
calças e eu estremeci na cadeira.
Bem, então estamos combinados ela se despediu, sen-
tindo o ar baforado de enxofre. Segui-a com o olhar até a rua.
Aquelas coxas mereciam bem mais do que um senador corrupto.
Drrroga.
O Valter, tentando pescar um ovo cozido no pote.
Semprre me escorrega, esta aqui.
80 Nei Lisboa
Ninguém melhor do que Adriana poderia informar sobre
o paradeiro de Cherry, com o que, por que e de que forma esta
se envolvera. Afinal, as duas tinham gasto o verão em confe-
rências secretas e suspeitas, talvez fossem cúmplices de algu-
ma trama diabólica, e a idéia de que houvessem planejado o
assassinato de Matias me revoltava o estomago. Mas eu preci-
sava saber.
Dei sorte, ela estava em casa estudando como Gustavo ti-
nha dito.
Oi, entra.
Parecia fanha.
Gripada?
Não, nunca me gripo, você sabe. É só um resfriadinho à
toa.
Fui direto ao assunto. Já fazia duas semanas, não tinha
procurado antes porque Cherry me pedira que não o fizesse.
Mas agora estava ficando preocupado. Podia ser coisa séria.
Pois é, também não sei de nada ela me surpreendeu.
Mas eu pensei
Quer dizer, vocês passaram o verão todo
grudadas, falando em código, esperando alguma coisa.
Ah, bobagens, não sei
Não lembro. Juro. Pode acredi-
tar. Só sei que ela passou por aqui, acho que foi numa sexta-
feira, e disse que talvez fosse viajar pra São Paulo. Ficou con-
versando com Andréa, que também foi viajar e nem me disse
pra onde. E deixou um bilhete pra eu entregar a Matias.
Então, aí estava. Um recadinho de Cherry pra Matias.
E o que é que dizia o bilhete?
Não sei, Cherry deixou num envelope fechado. Disse ter
certeza de que Matias ia aparecer por aqui. E ele apareceu, um
ou dois dias depois. Leu o bilhete e saiu chispando porta afora.
Meio louco, aquele cara. Deve ser por isso que acabou morrendo.
Ah, então ela sabia do assassinato.
Pois é, que coisa. Esta semana esteve um jornalista aqui,
me fazendo perguntas
82 Nei Lisboa
Não perguntou por Cherry, achei estranho. Depois pensei
que era um bom momento pra desabafar com alguém.
Cherry me deixou na mão. Sumiu.
Hum comentou, com paciência de psicólogo.
Expliquei que não era bem assim, eu tinha sido avisado,
mas não sabia onde ela andava e temia que estivesse envolvida
em um jogo perigoso. Falei sobre o assassinato de Matias, de
como ele era o provável culpado pela morte de Severo, e acabei
contando sobre Plínio Jochlander.
É o pai dela revelei.
É, eu já sabia. Ela me contou no verão.
Durante a psicoterapia, não era difícil de imaginar.
Só não consigo entender prossegui onde é que tudo
isso se encaixa. Mesmo supondo que Severo soubesse do pa-
rentesco de Cherry com o senador, não seria motivo o bastante
para ser assassinado. E não quero crer que Cherry fosse capaz
de vingar a morte dele por conta própria assassinando Matias.
Ele ajeitou os óculos no nariz.
Bem começou, pigarreando. Não se pode concluir
muita coisa a partir daí. A não ser, talvez, que o avô de Cherry
tenha sido um imigrante dinamarquês cabeça-dura e que tenha
se instalado em Ibiraí há uns quarenta anos atrás, casando com
a avó de Cherry, uma açoriana que conhecera no navio. Eles vão
morar na lagoa, digamos, onde nasce a mãe de Cherry, uma
menina linda que cresce passeando pela praia e pelo porto de
Ibiraí. O dinamarquês morre de ciúmes da filha mas não conse-
gue evitar que ela namore e que, lá pelas tantas, engravide de
Plínio Jochlander. Nesta época, há uns vinte e poucos anos,
vamos supor, Jochlander é um jovem empresário bem-sucedi-
do, recém-casado, ingressando na política, que passa o verão e
os fins de semana por aqui, funda o Iate Clube com mais al-
guns amigos e começa a construir para si uma mansão na Praia
Bonsai. É claro que, como um jovem canalha exemplar, ele tem
um apartamento de cobertura no único edifício de Ibiraí para,
84 Nei Lisboa
ga, o quadro e tudo mais em troca de silêncio e sob ameaças.
Dá um bom dinheiro pra elas e enterra o assunto, certo de que
está tudo resolvido. Tempos mais tarde, o corpo do avô vem
dar na praia. Instaura-se um inquérito, por causa dos ferimen-
tos à bala, mas não há testemunhas e, com uma pequena ajuda
dos amigos poderosos de Jochlander, o caso é arquivado. Co-
menta-se, sigilosamente, que a suposta vítima fora vista na baía
remando em direção à escuna amarela de Jochlander, mas nada
que chegue a assustar o bem protegido assassino. Ele tem ape-
nas o cuidado de sumir por uns tempos e, no auge do cinismo,
encarrega mestre Severo de desmontar a escuna no próprio
porto de Ibiraí, para evitar que aquela peça incriminadora des-
perte lembranças desagradáveis em alguém.
Parou pra tomar um gole. Eu estava um pouco impressio-
nado com a capacidade dedutiva dele.
Onde foi que você aprendeu esse tipo de análise?
Num seminário, em Buenos Aires, com o Ricardo Passa-
rinho.
Ricardo Passarinho, o psicanalista. Já tinha ouvido falar.
Dirigia uma clínica famosa no Rio de Janeiro.
Olhei o amarelão, na parede do bar. Então, aquela também
seria uma moldura de mestre Severo, feita vinte anos antes. É,
podia ser.
Então ele ajeitou novamente os óculos antes de pros-
seguir digamos, Cherry nasce em São Paulo e recebe o mesmo
nome da avó, Olívia Ginsberg. Ela cresce pensando que o pai
fugira de casa antes que pudesse ser registrada como Olívia
Junker, ou coisa parecida. Depois, por tudo aquilo que ela pró-
pria já deve ter lhe explicado, vem parar em Ibiraí e morar jus-
tamente no apartamento do senador. Quer dizer, do pai dela.
Matias, é claro, não sabe de nada, é apenas um candango que
Jochlander arrumou para cuidar do serviço sujo e de seus ne-
gócios em Ibiraí. Ele tem instruções de não alugar o apartamen-
to para qualquer pessoa sem antes entrar em contato com o
86 Nei Lisboa
de Cherry, ainda antes da exposição, se apavora quando recebe
uma carta da filha em que ela conta que está com o quadro. Du-
rante as férias de Cherry, chega a contar uma história sobre um
amante, que não é de todo falsa. Depois segue as instruções de
Jochlander e diz a Cherry que venda o quadro na volta à Ibiraí.
Cherry não vende, e Jochlander resolve mudar de tática antes
que o interesse pelo quadro se torne por demais evidente.
Pois é. É uma boa suposição ele concordou.
Tomei um gole, antes de prosseguir.
Ele então manda Matias arrecadar os pedaços que resta-
ram da escuna e investigar as reações de Severo. Matias não sabe
nada sobre o assunto, mas percebe que Severo esconde alguma
coisa. Ao mesmo tempo, juntando todos os indícios, Cherry
descobre que é filha de Plínio Jochlander. Ele não tem alterna-
tiva senão assumir a paternidade, pedir desculpas e tentar su-
borná-la. E aí resolve que é preciso apagar Severo antes que
Cherry descubra o resto da história.
Pois é.
Então encarrega Matias de armar a cilada do missô. E isso
tudo explica a morte de mestre Severo.
Pois é.
Mas não explica o assassinato de Matias.
Pois é.
E nem o sumiço de Cherry.
Pois é.
Achei estranho, esperava que ele dissesse alguma coisa a
mais. Decerto estava com a pilha gasta. Ou tinha perdido um
pedaço do seminário.
Já tentei ligar pra São Paulo ajudei com um indício.
Mas ninguém atende.
Pois é. Olha, está ficando meio tarde. Outro dia eu passo
por aqui.
Foi embora. E sem pagar a conta.
88 Nei Lisboa
Como foi?
Entrar no arquivo foi fácil. Mas o porteiro incomodou um
pouco.
A mulher barbada?
Não, agora é um japoneisch. A mulher barbada pegou o
seu lugar na redação. É mole?
Não, era duro de acreditar. Do circo pra portaria. Da porta-
ria direto pra redação de política. Mas, enfim, há mais coisas
entre o céu
Olhei o artigo. Então, ali estava. A primeira maté-
ria de Melchíades no jornal, escrita vinte anos antes.
A Delegacia de Homicídios está diante de mais um mis-
tério
o corpo de um homem branco, aparentando cinqüenta
anos
ferimentos a bala calibre 38
o cadáver, em adiantado
estado de decomposição, não pôde ser identificado
suspeita
tratar-se de Stephan Ginsberg, natural da Dinamarca, residen-
te em Ibiraí, cujo paradeiro é ignorado
Pronto. Não havia mais dúvidas.
E aí, rapaisch, vai ajudar pro conto? Pegou o artigo da
minha mão. Ginsberg, não é o sobrenome de Cherry?
É.
E a família dela era daqui, não era?
Era. Apenas uma série de coincidências. Escuta, você
descobriu alguma coisa sobre o assassinato da zarabatana?
Não. A polícia não tem pistas. Esse tal de Matias, a víti-
ma, era do Iate Clube, não?
Era. Por quê?
Nada não. Ouvi alguém comentando que ele comia a fi-
lha do home.
Quem?
A filha do Sirinho. Clarisse Jochlander.
Essa eu não esperava.
Clarisse Jochlander é filha do dono do Diário?
É, ué. Você não sabia, rapaisch? Esposa do senador e fi-
lha do home. O nome dela é Clarisse Hipólito Sirinho Jochlan-
90 Nei Lisboa
IX
92 Nei Lisboa
Aí, rapaisch, pois é. Que loucura, isso aqui. Foi um sufo-
co chegar até aqui em cima. Mas valeu a pena. Os quadros da
sua garota são um eschtouro. Ela não vai aparecer, não?
Tinha dito a ele, na noite anterior, que ia tentar avisar
Cherry a tempo dela voltar de São Paulo. Mas talvez ficasse di-
fícil, os vôos andavam lotados, etc
Ele não conhecia os qua-
dros, não vira a exposição no Iate Clube. E pensava que Plínio
Jochlander, afora um lacaio imperialista instituído, era de fato
um mecenas discreto que preferira arrematar as obras de Cher-
ry sob a identidade do misterioso sócio de Matias. Como, aliás,
também pensava Gustavo, o bardo.
Ahá, dale pajeros. Ya se abracian con el uisque, enton-
ces.
Eu não o vira aproximar-se em companhia de Pablo Trobo.
Ainda estava abismado com a garçonete que me servira um copo
de uísque sem que eu pedisse, sequer, e que parecia ter saído
de um conto das mil e uma noites. Vestia uns panos e colares
indianos, mas cobria parte do rosto ao estilo das mulheres sau-
ditas.
Qué passa, che.
Nada. Achei a garçonete meio estranha, só isso. Como
foi que descobriram isso aqui?
Pablo Trobo lera a notinha no jornal, pela manhã. A pre-
sença do psicólogo, ali, era mais do que agradável. Seria indis-
pensável contar com as deduções dele no caso de surgirem in-
dícios do paradeiro de Cherry, durante a tarde, ou das inten-
ções de Plínio Jochlander ao promover aquela visitação pública.
Uma análise, é lógico, que reservaríamos para algum outro
momento, quando pudéssemos nos afastar discretamente de
Gustavo e Wilmar.
Resolvi preparar o espírito dele.
Temos que reconhecer que Plínio Jochlander tem bom
gosto comentei, me dirigindo aos três, porém lançando um
olhar cúmplice ao psicólogo.
94 Nei Lisboa
Duvido que Cherry apareça pra festa de um assassino.
Do assassino do avô dela. Do assassino de um pescador inocen-
te e pobre. desabafei.
Agora tanto fazia. O mundo todo já devia saber. O Uruguai
todo, pelo menos.
Ah
Então você já sabe
ela suspirou Claro, Olívia
teve que lhe contar, afinal
Olívia. Ainda tenho que ouvir isso. Ela pensa que eu sou o
Popeye. Só falta começar a chorar. Começou.
Eu também demorei a saber disse, sentando na cama e
enxugando as lágrimas Plínio
Aquele
Aquele verme, é isso
o que ele é. Se ao menos tivesse tido a coragem de assumir pe-
rante ela, perante mim
Mas no ponto em que as coisas che-
garam, a pobrezinha não viu outra alternativa senão
Desatou uma choradeira infernal. Depois se acalmou um
pouco.
Nós temos que fazer alguma coisa para impedir que o
pior aconteça.
Que tal procurar um banheiro?
O quarto não tinha um. Estranho. Afora isso, tinha tudo
para ser a suíte do casal. Cama redonda. Frigobar. Equipamen-
to de vídeo e áudio digital. Vibrador em cima do bidê.
Eu sei que
Não posso esperar que você confie em mim,
a essa altura choramingou Mas eu juro que quero apenas
ajudar.
Se eu não fosse confiar nela pra achar o banheiro do caste-
lo, não confiaria em mais ninguém.
Posso voltar a confiar, se você me contar o que sabe. Com
todos os detalhes Incluindo o banheiro, pensei.
Bem
Nada além do que você já deve saber Ela pare-
cia mais calma. Tomou a minha mão e fez com que eu sentasse
ao lado dela na cama. O plano
Quero dizer, a vingança de
Olívia. Posso entender as razões dela. Mas é uma temeridade
optar dessa maneira pela violência. E aquele pobre funcionário
96 Nei Lisboa
Não há homem nenhum.
Ora
Eu não quis dizer isso. Era apenas um companheiro
dela, talvez seja seu amigo, também. Um senhor de óculos, com
ar de estrangeiro
E com pessoas assim, tão finas, a gente às
vezes se permite certas liberdades
Ela se afastou. Também, não dava pra chegar mais perto.
E tripudiou das minhas falsas ilusões.
Pra falar a verdade, acho sim que esse homem deve estar
induzindo-a a fazer o que ela vai fazer, se ninguém impedi-la. A
matar Plínio. A matar papai. Sim, papai, por ter mandado você
embora do jornal. Mas principalmente Plínio, que é o verdadei-
ro responsável por isso, também. E de quem pode exigir uma
parte da herança quando provar que é filha dele. Quando pro-
var isto sobre o cadáver dele, antes de fugir com este outro ho-
mem. É claro que ela ainda ama você, um pouco, pelo menos.
Mas não teria coragem de arrastá-lo para um abismo desses. Um
abismo, sim. Porque acontece que Plínio já sabe de tudo. E está
atrás dela. E preparou esta emboscada, achando que ela não re-
sistiria à oportunidade de rever os seus quadros e acabar com o
pai ao mesmo tempo. Na própria casa dele, aproveitando a situ-
ação de tumulto que surgiria com essa multidão de visitantes.
Acho sim. Acho, não, tenho certeza. E você já devia saber disso.
Assim como sabe que ela está por perto e precisando de ajuda,
da ajuda de um homem leal, forte, sincero como você. Não dos
conselhos de um aventureiro qualquer. Eu arriscaria a minha
vida para socorrer Olívia. E só eu posso interferir no plano de
Plínio para matá-la antes que ela o mate. Mas precisaria de algu-
ma coisa a mais, alguma forma de pressioná-lo. Por isso você
precisa me ajudar. Precisa me ajudar a ajudá-la. Precisa me aju-
dar a ajudá-la a ajudar a si própria. Precisa me dizer onde ela está.
O vômito já havia passado pelo meu esôfago e ameaçava
sair pelas orelhas se eu continuasse apertando os lábios.
Eu não sei consegui pronunciar.
Não sabe
Mas
Como é que você descobriu sobre o
98 Nei Lisboa
é um barraco lá da sua vila. Será possível que já não se encontra
uma serviçal que preste nesta cidade? Você não recebeu educa-
ção? Não sei mais
Eu não resistiria nem mais um segundo. Botei a mão na
boca e saí correndo porta afora.
Com. Licença.
Se fosse o caso, depois eu voltava pra sala de massagem.
Mas agora o único e imediato desejo possível era de que a porta
no final do corredor fosse um banheiro. Tinha de ser um ba-
nheiro. Só podia ser um banheiro. Azar do carpete se não fosse
um banheiro. Abri. Era um banheiro.
O jorro se espalhou na direção certa, e cheguei a pensar
que tinha acertado em cheio o vaso quando abri os olhos pra
conferir o estrago. Não era bem isso. Tinha coberto de vômito o
corpo sentado em cima dele. Desovado ali. O corpo do velho e
poderoso jornalista Hipólito Sirinho, branquinho da Silva, en-
forcado no fio do próprio marcapasso.
Oito horas. A freira tinha ido embora, afinal. Devia ser por
causa do Jornal Nacional. O Valter também ia entrar. Sempre
entrava a essa hora. Ouvia as manchetes e voltava pro bar. Eu
tinha cinco minutos. Não mais do que isso. Não havia carta al-
guma, ele queria apenas me confundir. Mas não custava dar uma
olhada no quadro. Uma pequena pressão nos cantos da tela. Já
tinha visto Cherry fazendo isto. A moldura solta. Um vão enta-
lhado. Onde poderia haver um vão? Bem no canto. Um vão.
Coberto por um taquinho de madeira. Uma obra-prima do arte-
sanato. Ninguém descobriria sem saber. Um envelope. Um en-
velope fechado. Um envelope com vinte anos de mofo. Não era
possível. Tudo era possível.
Subi a rua como se estivesse correndo ladeira abaixo. Quase
atropelei a freira na entrada do edifício. Também, o que é que a
freira estava fazendo na entrada do edifício. A chave, meu deus,
o que é que havia com a chave. Não abria. Como nos velhos tem-
pos, quando Cherry deixava a porta aberta e eu não me dava
conta. A porta aberta. Não era possível. Tudo era possível. E ela
estava de costas, vestida de preto, olhando a vista da janela do
atelier.
Era Cherry.
Não, não era. Era Clarisse Jochlander.
Desculpe entrar assim desse jeito
Eu precisava falar
com você. E roubei a chave de Plínio.
O filho da mãe tinha uma cópia da chave.
Lamento muito o que aconteceu ao seu pai Eu não la-
mentava tanto assim. Mas tinha que respeitar o luto dela.
Tudo bem. Eu já estava preparada Ela soluçou um pou-
co. Sabia que ia acontecer. Só não sabia quando. Mas agora,
mais do que nunca, é preciso que você se lembre de
Oi.
Ela vai tropeçar no relógio. Não. Vai ficar parada esperan-
do que eu responda. Deve estar fazendo beicinho. Vai dar meia-
volta. Tomar água na cozinha. Procurar o peru na geladeira.
Não tem mais peru?
Nunca teve. Não na geladeira. Ela é que é fixada em peru.
Não enxerga nada além disso. Nunca enxerga o relógio. Não se
enxerga. Não sabe o que é chester. Não vai encontrar nada pra
comer. Pensa que eu vivo de vento. O dia inteiro aqui dentro
comendo vento. Vento à bolognesa. Vento gratinado. Um san-
duíche de vendaval na madrugada. Vai desistir. Vai sair da cozi-
nha sem apagar a luz.
Não tem mais fio dental?
Tem. Tem o meu. No bolso do meu casaco de onde não sai
por nada deste mundo. Só do outro mundo. Se aparecer uma
mulher do outro mundo. Com seis lados em cada dente. Seis
dentes de cada lado. Pensa que eu enlouqueci. Que eu não vou
terminar nunca. Que não tenho um final. Ela vai tomar um ba-
nho. Vai tentar tomar um banho.
Caiu a chave?
Caiu. Sempre cai o disjuntor quando alguém toma um ba-
nho de quarenta minutos antes de sair pra noite. Numa noite
de inverno. Ela pensa que a resistência é francesa. E os france-
ses tomam dois banhos por semana. Ela toma dois numa noite
Era Cherry.
Não, era a freira.
Era a freira disfarçada de Cherry.
Não, era
Oi.
Eu sabia. Sexta-feira é infalível. Pelo menos não é ele. Esse
é novo. Cara de otário. Vendedor de seguro. Candidato a verea-
dor. Figurante de monólogo.
Gordo, esse é o
Tudo bem, xará? Não leva a mal o horário.
Gordo é a mãe. Xará é a puta que te pariu. O horário é per-
feito. Três da manhã. Melhor hora pra uma visitinha.
Quietão, hein?
Deixa ele. É assim mesmo. Não larga desse computador.
Tá escrevendo um romance policial adolescente.
Rá. Pensa que é pra ela. Por ela eu escrevia um livrinho
infantil. Vão ficar falando lá da sala. Ali da sala. Como sempre.
Vou começar a escrever de fones. Não agüento isso.
Cherry? Cereja em inglês?
É. Ou ameixa, sei lá. Na verdade o nome mesmo é Olí-
Era Cherry.
Gato, virei freira.
Oi.
Não vou sair num sábado. É o pior dia. Todo mundo sai no
sábado. Um saco. Ninguém sai nos outros dias. Os outros dias
também são piores.
Oi. Você tá ouvindo?
Pra quê. Já sei o que ela vai dizer. Vai dizer que me ama.
Que vai deixar Jochlander pra lá. Que o psicólogo é bicha. Que
a vida sem mim não vale a pena ser vivida.
Vou sair com o Antônio.
Era o que eu pensava. Já sabia. Dava pra sentir o cheiro.
Pouco importa. Já tenho tudo preparado. Um quilo e meio de
chester. As meias Kendall. Suave compressão. Vai ser uma noite
divertida. Talvez até consiga escrever o dez. Não. Não posso.
Não enquanto ela não ler o nove. Não enquanto ela não cair do
cavalo. Há semanas que eu espero outra chance. A primeira foi
quando ele apareceu. A única vez. Nunca mais teve coragem.
Leu o cinco. Ficou dando palpite. Falando de cereja. Freud. La-
can. Shakespeare. Do Motel da Barra. Devia ter acabado com
ele naquela hora. Ela se impressiona fácil. Pensa que ele sabe
muito. Pensa que eu enlouqueci. Não sabe o que é trabalho.
Pensa que a vida é virar a noite dançando lambada com um
estudante de psicologia. Deu pra isso, a balzaca. Não se enxer-
ga. Eu disse que queria liberdade pra escrever. Ela achou um
apartamento na Liberdade. Chama isso de consistência. O vi-
zinho de cima é nissei. O do lado sansei. O de baixo nem sei.
Deu nisso. Japonês entrando por tudo que é lado. Não impor-
Era Cherry.
Não, era a balconista.
De fio dental.
Não, era o Antônio.
Oi. Virei freira.
Não adianta. Não vai dar. Vou dormir. Vou tirar o relógio.
Já parou, mesmo. Parou às oito. Deve ser quase meio-dia. Sei
por causa do sol atrás da tela. Odeio esse sol. Odeio domingo.
Odeio esse silêncio.
Não, era
Oi.
Oi.
São duas. Às três da tarde. Um recorde. Pouco me importa.
Já tenho tudo preparado. Odeio esse silêncio. Silêncio de fute-
bol. Lá no fundo. Mal deu pra dormir umas horas. Não lembro
o nome da outra. É igual a ela. Vão ficar falando ali da sala. Es-
queci de comprar os fones.
Era a freira.
Oi. Vim trazer o fio do marcapasso.
Era a freira.
Não, era Maria da Saúde.
Era a freira.
Desculpe incomodar. Estou recolhendo donativos para
o Orfanato Maria da Saú
Fora daqui, perua.
Era Cherry, logo atrás dela.
A freira saiu, de cabeça baixa.
E quanto a vocês
Mal posso crer
A situação era mais do que constrangedora.
Poupe o seu sermão, mocinha disse Clarisse, correndo
para a porta Já tenho o que queria. E ninguém vai tirá-lo de
mim. Adeus.
Cherry, eu
Não importa.
Mas Cherry
Ela está com a carta
Que carta?
A carta que você deixou no quadro. A carta que
Não importa ela repetiu, trancando a porta antes que
eu pudesse descer as escadas atrás de Clarisse. Acredite, gato,
eu sei o que eu estou fazendo.
Eu não tinha tanta certeza.
Se a carta não tem importância
Então é como eu pen-
sava. Você vai tentar matar o seu pai hoje a
Matar o meu pai coisa nenhuma. Você já ouviu a história
inteira. Apenas fez questão de não acreditar.
A história do psicólogo. A chantagem e tudo mais. Não era
possível.
Não adianta você ficar assim, eu sei que por vezes a re-
alidade extrapola a imaginação. Mas não posso fazer nada a
esse respeito. Já o fiz, hoje à tarde, ocultando o fato de que
você era o responsável pela morte de Sirinho. Reduzindo o
valor da chantagem, para que lhe parecesse mais factível. Ou
menos, tanto faz. Era preciso, naquela hora. Era preciso suge-
rir a você que a carta estava no Maxims, para que você duvi-
dasse disso, quando na verdade a carta estava no Maxims. E
ainda está.
A carta verdadeira? A carta do avô de Cherry, no Maxims?
Como assim?
Ele não deu atenção a minha pergunta.
Mas cometi um erro. Não imaginei que você fosse en-
contrar a carta de Cherry, a tempo de que ela passasse às mãos
de Clarisse. Para a operação, de fato, isto não tem tanta impor-
tância. A questão é saber-se qual será a reação de Clarisse ao
descobrir que foi enganada durante anos e anos a respeito da
morte do filho. Que espécie de relações irá estabelecer, ao lado
de quem e contra quem se colocará. E há outra coisa que você
deve saber. A polícia pode ter acreditado no seu depoimento,
mas Melchíades não. E ele não perderia uma chance de se an-
tecipar à investigação. De defender sozinho, forjando-se um
herói, aquilo que ele chama de justiça. Acho que podemos con-
tar com ele para esta noite. Deve estar farejando por aí. De qual-
quer forma, mais cedo ou mais tarde eles devem chegar a você.
Estão fazendo uma análise do vômito, segundo eu sei. E isto
nos traz à questão central desta conversa.
Ele fez uma pausa, consultando o relógio. A roda foi se
desfazendo, Wilmar passando para a cozinha, Gustavo e Adria-
na voltando a controlar a janela. Cherry segurava minha mão,
tensa, em absoluto silêncio.
FIM