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PEDRO GUERRA

Para Segundina Peruzzato, minha avó que não cheguei a conhecer

Dias atrás, estive vasculhando algumas memórias e encontrei uma caderneta escrita por ti,
minha avó. Agora sei de quem herdei o cuidado com detalhes tão presente em minha escrita.
Obrigado por ter deixado de presente para mim o trio de Rainha e princesas mais belo que já
existiu - minha mãe, Viviane, e minhas tias, Cinára e Paula.
PREFÁCIO

NAQÇUELANOITE

COROAÇÃO

CHÁ PARAA SENHORITA

BEM-VINDO, SANGUE

CRUZAMENTO

MANCHETE

EU SINTO MUITO

ASPETTO INGANNA

ESCONDE-ESCONDE

FRASCOS PARA OS FRACOS

RESTA UM

RE-UNIÃO

O_UERÊNCIA AMADA

(Teixeirinha)
Da perfeição das moças à imperfeição dos crimes

Há pelo menos uma dezena de nomes promissores na literatura recente em Caxias do


Sul. Entre eles, o de Pedro Guerra chama atenção pela precocidade: lançou seu primeiro
livro Você pode guardar um segredo? em 2012, aos 20 anos, e retoma às livrarias pouco
depois com esta sua segunda obra, A Rainha está Morta, que o coloca em outro patamar
interessante: além de jovem, Pedro Guerra surpreende por emprestar um olhar a mitos
basálticos de uma região que, embora tenha as suas vozes despontando na cena literária,
raramente é cenário dos contos e romances produzidos por esses talentos em flerte com a
universalidade dos temas.

A Festa Nacional da Uva, cuja história em alguns momentos se confunde com a de


um Brasil em desenvolvimento - a primeira transmissão televisiva em cores foi feita durante
a abertura do evento, em 1972 - está no imaginário de gerações, principalmente por manter o
tradicional concurso de rainha e princesas (pano de fundo deste romance policial) 80 anos
depois do primeiro certame. Se pensarmos brevemente nas mudanças que marcaram esse
período de oito décadas, ficará mais fácil entender os motivos que tomam a escolha de uma
corte para representar a festa (resquício de ideais de nobreza?) um tanto polêmica nos dias
atuais, dividindo as jovens entre as que sonham com o título e as que o desdenham.

Questões delicadas como essas não intimidam o jovem Pedro, que faz do humor bem
dosado - presente desde o título - o seu escudo para ultrapassar a ala das torcidas e adentrar
por camarins e bastidores do poder para sugerir, com um assassinato fictício, crimes ainda
maiores que a inveja das rivais: quem sabe o dos estereótipos sufocantes ou o da submissão
feminina que bem cabem na assepsia da perfeição de uma soberana. Mas Pedro, cujo texto
possibilita a crítica ao estabelecido, coloca-se, antes de tudo, como entusiasta dos romances
policiais e um ufanista. Faz de sua paisagem natal, mais que um cenário, um motivo de
reverência, dialogando em especial com duas das culturas que se sobrepõem no Sul do
Brasil: a da imigração italiana e a do tradicionalismo rio-grandense.

Os leitores circunscritos no território em que nasce este trabalho, certamente terão a


gratificação de se identificar com tipos, lugares e comportamentos presentes no livro. Os
demais, que certamente serão alcançados pela obra em algum momento, serão seduzidos por
aromas da culinária típica e o romantismo do frio, entre outros aspectos bem regionais
contemplados por Pedro. Para ambos, gaúchos e "estrangeiros", A Rainha está Morta terá
sua medida de universalidade ao dialogar com temas humanos pertinentes e atemporais, seja
a vaidade dos que almejam a perfeição ou a (felizmente) incontestável imperfeição dos
crimes.

Alessandra Rech

Jornalista, doutora em Literatura Brasileira.


Uma corrente de ar frio saracoteava pelas esquinas de Caxias do Sul na noite de 4
de setembro de 1998. Amaior parte das ruas centrais se encontrava em silêncio absoluto,
repousando à luz dourada dos postes enfeitados com cartazes que anunciavam o maior dos
acontecimentos locais: faltavam poucos meses para o início da 23a Festa da Uva.

Já era de se esperar. Nas ruas, mesmo naquele início de noite, pouca vida circulava.
Era o final de um inverno rigoroso como todos os outros, onde os termômetros ainda não
superavam a marca dos cinco graus quando a escuridão chegava por volta das seis da tarde.
Na Praça Dante Alighieri, o único movimento correspondia aos reboques fantasiados de
barraca de cachorro quente. Neles, os seus donos tentavam se esquentar, enfiados em
casacos e enrolados em mantas, o ar frio saindo dos pulmões.

Um que outro cliente até aparecia, e quem resolvia comer um lanche na rua ficava
trocando conversa com o proprietário que tinha uma pequena tevê instalada no automóvel.
Nos prédios em volta - e mesmo nos bairros mais afastados - a maioria dos televisores
estava sintonizada na transmissão do evento que precedia a famosa festa da cidade. Naquela
noite, seria escolhido o trio de garotas que representaria a celebração da produção
agroindustrial regional.

Aquele começo de mês tão aguardado era especial para dezoito garotas que
compartilhavam, além da beleza, a possível execução de um sonho de infância: tomar-se uma
Rainha. A coroa que seria entregue para a candidata mais bem preparada cintilava no palco
montado no grande parque de eventos da cidade - os colossais Pavilhões da Festa da Uva,
um conjunto de estrutura metálica inaugurado em 1975. Desta vez, a passarela que serviria
de caminho para o desfile das embaixatrizes tinha sido erguida com a incrível marca de 200
metros, um trajeto que abrigaria lágrimas de emoção e passos marcadamente bambos.

Extasiante poderia ser a palavra para se rotular a população caxiense naquele dia,
que servia como um aperitivo para o grande evento que viria a se realizar apenas seis meses
mais tarde - de fevereiro a março do ano seguinte, 15 dias estavam reservados para a festa
em si.

A clássica escolha de Rainha e princesas mobilizava bairros e entidades, crianças e


avós. Era possível enxergar por trás do olhar de cada um dos presentes naquele evento uma
emoção tão expressiva quanto a das dezoito candidatas. Eram pais orgulhosos, mães
apreensivas, a família inteira de rosto pintado e usando um chapéu de palha na cabeça. O
coração de Caxias funcionava dentro dos pavilhões naquela noite.

O Parque de Eventos recebia mais de dez mil pessoas, separadas em mesas - um


espaço destinado a autoridades e alguns familiares das candidatas - e torcidas organizadas,
abrigadas em arquibancadas iluminadas por diversos focos de luzes coloridas. Mesmo antes
do início da cerimônia em si, os presentes já se agitavam em seus lugares, repassavam as
coreografias ensaiadas para o momento em que a sua candidata favorita desfilasse, abriam
sorrisos sem nenhuma dificuldade. E, como sempre, diversas novidades: alguns grupos
estavam fantasiados, outros haviam contratado uma banda, e havia até quem usasse peruca.

A escolha do trio soberano funcionava, então, com dois polos extremamente opostos
que acabavam por se completar: enquanto o glamour, a nobreza e a elegância desfilavam
para que a competência individual de belas jovens fosse testada, o barulho, a agitação, a
euforia e o caos serviam de combustível para que a expectativa fosse criada naturalmente, e
que o momento fosse não só de angústia, como também de comemoração e excitação.

Para Benjamin Lisboa, um promissor detetive que há pouco havia dado início a sua
carreira profissional, porém, que já acumulava méritos (ele foi o responsável pela prisão do
maior criminoso da Serra Gaúcha, o temido Pavão, e também havia desmantelado uma
quadrilha perigosa), a noite era de desprendimento. Depois de uma semana de muito trabalho
- quando se mostra o ouro, nos fazem retomar à mina diversas vezes -, o objetivo da noite
era esquecer qualquer nome de eventuais criminosos desgraçados, papelada ou lista de
afazeres, para que pudesse se focar no desfile de Caroline, a sua irmã caçula.

Lisboa era um típico detetive atípico: não andava de chapéu Panamá e muito menos
gostava de charutos. Com trinta e oito anos comportava-se como se tivesse mais, e isso se
restringia apenas ao modo de falar. As suas características físicas eram simples:
ligeiramente alto, olhos castanhos comuns, cabelos curtos e escuros sem muita preocupação,
e uma barba rala que instigava qualquer garotinha louca por homens de meia idade - ou
mesmo mulheres de meia idade - a cair de amores por um cara como ele, um galante
reprimido.

Solteiro (e muito bem com isso, obrigado), Benjamin era, no fim das contas, só mais
um dos homens gaúchos que resguardavam um pouco do tradicionalismo: falava bah e tchê a
ponto de não beirar o enjoativo, era apreciador de uma boa picanha assada na brasa e
crescera enfiado semanalmente dentro de um CTG', ouvindo músicas gaúchas e observando
os longos vestidos das prendas rodarem a cada passo. Filho de pais que vieram do campo
com uma história de vida sofrida e irmão de uma guria tão bonita a ponto de arrancar
quaisquer olhos desprevenidos, conservava uma mania em especial: frequentemente
assoviava qualquer música que lhe viesse à cabeça.

Nos últimos meses, o detetive estava trabalhando com um novo companheiro: o


inspetor Enrico Pagliatti, migrante da Capital. Pagliatti, por sua vez, de inspetor não parecia
ter nada. Jovem de vinte e dois anos, rosto liso como o de um bebê, olhos azuis que o
salvavam de passar despercebido - tuna vez que seu cabelo bagunçado era pouco volumoso
e comum. A qualquer olhar de fora, Enrico parecia um estudante de Ensino Médio daqueles
que sentam no fundo da sala: corpo em forma e zombeteiro ao extremo. Porém, apesar da
pouca idade, estava trabalhando com o que gostava e a cada vez se expandiam as
oportunidades, considerando que o seu pai, chefe de polícia, havia conseguido um lugar ao
sol para o filho. E ele fazia por merecer. Há dois meses estava em Caxias, tinha deixado
Porto Alegre porque em uma cidade um pouco menor ele cresceria muito mais.

Não eram nem oito horas daquela noite de sábado e as orelhas do detetive já
estavam coloridas de roxo devido ao frio, o que serviu de piada para o seu companheiro:

-Aposto que com um peteleco as suas orelhas são capazes de cair!

Benjamin olhou para o lado, encarando Enrico Pagliatti. O seu ajudante, de rosto
magro, ria entusiasmado. Era a sua primeira Festa da Uva, então, para ele, tudo se tratava de
novidade. Nunca tinha visto um povo tão conservador e apaixonado.

-Diga-me, meu jovem Pagliatti - o detetive ignorou a brincadeira -, a quantas anda a


sua excitação para esta noite?

Enrico não compreendia por que Benjamin sempre falava daquele jeito. Parecia um
velho, quando ainda nem havia soprado a vela que simbolizaria as suas quatro décadas.
Mesmo o seu blazer marrom, provavelmente adquirido em um brechó no Centro, denunciava
a velhice forçadamente adiantada. E ele ainda vinha acompanhado de uma camisa bege
cheirando a naftalina.
-Toda essa agitação e dezoito gurias desfilando perto dos meus olhos? Sério?! - seu
olhar entusiasmado sacudia uma euforia juvenil. - Ben, isso vai ser fo...

-Excelentíssimo! - Benjamin interrompeu o jovem ao avistar João Sparin, então


prefeito de Caxias do Sul.

Apertaram-se as mãos. De cara fechada proposital e ironicamente, a figura política


rejeitou a presença do investigador:

-Lisboa, você por aqui? - aproximou o seu rosto para cochichar - Não venha me
dizer que um destes caras vestidos de colono é um serial killer - brincou.

Benjamin forçou o riso.

-Absolutamente, senhor Sparin. Estou aqui para regozijar a minha semana.

-Rego...

-Regozijar - repetiu - Encher de alegria!

-Em que ano você vive, Ben? - quem questionou foi o jovem inspetor.

João Sparin lançou um olhar para o garoto de gel no cabelo, enfiado dentro de um
terno que era o dobro de seu tamanho. A gravata borboleta o deixava mais caricato ainda.

-Acredito que não fomos apresentados.

-Enrico Pagliatti, senhor - animou-se - Investigador policial e ajudante do detetive


Lisboa. Muito prazer! - Ele limpou a mão no terno preto e a estendeu. 0 prefeito não se
intimidou em cumprimentá-lo.

João Sparin era um prefeito que fazia jus à gastronomia italiana: a sua
circunferência avantajada indicava um sobrepeso com o qual a mulher se preocupava e
insistia para que o marido a cuidasse antes que qualquer problema do coração pudesse
atrapalhar o seu caminho glorioso como político local.

Quando reeleito, três anos antes, Sparin investira muito do que tinha, juntamente
com a coligação, em uma campanha esperta para arrecadar a quantia de votos necessária
para sua eleição. A concorrência pelo cargo mais significativo de Caxias do Sul havia sido
acirrada: um político de aparência nova exibia um frescor que a cidade precisava -, era o
mote utilizado pelo próprio. Porém, João Sparin não se intimidara: apostou na certeza de que
os mais de 350 mil habitantes precisavam dar continuidade ao `crescimento espetacular' que
vinham dando à cidade. Na escolha entre o certo ou o duvidoso, a população divergiu-se
mais do que o esperado. Mas, no fim, Sparin acabou levando a melhor.

A sua reeleição contou com carros de som e bandeiraço na praça. Microfones e


alto-falantes captavam o seu discurso programado que agradecia aos caxienses pelo voto de
confiança e prometiam uma Caxias tão hospitaleira e em ascensão como vinha sendo. Em
meio a gritos de vitória, uma multidão trajada em vermelho - as cores do partido - brindava
o novo mandato.

-Ah, entendo perfeitamente - observou o prefeito. - Você e o senhor Lisboa são


como o Tico e o Teco, ãh? - ironizou.

Pagliatti riu na mesma hora. Benjamin Lisboa continuou a observar a cena com um
sorriso fechado. Ao fundo, o som dos tambores nas torcidas fazia com que as vozes subissem
um tom.

-Eu diria Pink e o Cérebro2, senhor! - zombou Enrico. E você pode imaginar quem é
o Cérebro! - Piscou e apontou para o prefeito. No mesmo minuto, Benjamin fechou os olhos
e respirou devagar.

-Estou certo de que estamos falando de você, senhor Pagliatti - Sparin parecia
cuspir ao falar. Pois bem, cuide para que o seu companheiro não cause problemas esta noite,
sim? - retribuiu a piscadela. - Agora, cavalheiros, se me permitem...

-Perfeitamente - finalizou o detetive com as mãos nos bolsos da calça e uma


expressão bondosa e pouco crível.

João Sparin mal conseguiu dar dois passos e já foi abordado por uma equipe de
reportagem que trazia a câmera e um facho de luz forte diretamente sobre o seu rosto.

-Mas que diabos, Enri! - exclamou Lisboa. - Ele é a droga do prefeito da cidade,
tchê! - Pagliatti riu.
-Tranquilo, amico mio!

-E agora essa! - Indignou-se mais ainda. - De onde tirou esse italiano?

O jovem sentou-se em sua cadeira, aproximando-a da mesa arrumada que ficava na


parte interna da passarela, junto com as outras. Do outro lado do trajeto estavam as torcidas
em polvorosa. Com o auxílio de um palito, Enrico espetou um pedaço de queijo. De boca
cheia, respondeu:

-Você esqueceu quem é o Cérebro por aqui?

O holofote que fazia brilhar a careca do prefeito não o amedrontava. João Sparin,
acima de qualquer acontecimento, deveria mostrar simpatia, firmeza e satisfação naquela
noite. Ele estava se saindo muito bem com todos os amigos, companheiros políticos e
empresários ali presentes, e até mesmo a imprensa estava sendo justa. Mas, como para tudo
há uma exceção, esta atendia pelo nome de Érica Zunardi.

-Prefeito, como o senhor explica o escândalo que aconteceu nesta semana na


Câmara de Vereadores? Algum dos membros deve ser advertido nos próximos dias quanto
ao ocorrido?

De aparência frágil, a ardorosa jornalista caminhava rapidamente para seguir o seu


entrevistado.

-Este é um fato já controlado que não cabe ao dia de hoje - divergiu Sparin. -
Devemos aproveitar cada ângulo desta linda pré-celebração de nossa festa.

A resposta não deixou Érica satisfeita, que prosseguiu:

-Todos sabem que a Festa da Uva atrai um número expressivo de visitantes, muitos
deles provindos de outros estados do país. A que o senhor atribui a decaída dos últimos
anos?

Era fato que aquelas perguntas o incomodavam. Mesmo para um prefeito, que
sempre parecia ter uma carta na manga, aquilo era inconveniente, o que, afinal, nunca é bem
aceito. Então, por mais que abusasse do jogo de cintura em determinadas situações, Sparin
acabava fazendo o mesmo que qualquer autoridade política: protelava o principal e aplicava
uma desculpa aceitável.

-A Festa da Uva é uma celebração que se alastra pelo Brasil inteiro. Em anos onde a
data conflui com o Carnaval, este número cai, mas não chega a ser expressivo. O fato é que a
cada ano conseguimos crescer e propagar ainda mais a nossa festa.

Frases de efeito eram o que circulava pela mente da pequena profissional da notícia.
Sempre finalize com frases de efeito. Tão típico!

-Prefeito, e quanto às denúncias de que a escolha da Rainha já está decidida, o que


o senhor tem a dizer?

Ele estagnou.

-Caríssima - olhou-a nos olhos, conhecia-os tão bem -, a escolha terá início dentro
de alguns minutos. Esteja certa de que você e o seu companheiro - apontou para o homem
que segurava a câmera - têm um lugar adequado para assisti-la do início ao fim. É quando os
nossos jurados irão escolher, de fato, o trio de soberanas.

João Sparin encerrou a sua cota de paciência e afastou-se do holofote, apertando


logo em seguida a mão de qualquer pessoa que encontrou pelo caminho apenas como
pretexto para se afastar da jornalista.

Logo em seguida, o prefeito cumprimentou Jorge Agamatti e sua esposa Maristela.


Ambos eram nomes de peso na bancada de júris daquela noite, a qual todos os membros
estavam identificados com um broche dourado em forma de uva cravejada com pequenas
pedras brilhantes. Junto ao amigo, o prefeito posou para fotógrafos que o circulavam
incessantemente.

O cinegrafista Nei Casso continuou a perseguir o prefeito, porém não por muito
tempo. Érica Zunardi lhe atribuiu um tapa no braço, a fim de que o foco retomasse para ela.
Quando os seus olhos verdes brilharam debaixo da luz, com um sorriso notoriamente falso
ela finalizou a sua entrada ao vivo:
-Nós acabamos de conversar com o prefeito de Caxias do Sul, senhor João
Francisco Sparin, que preferiu não comentar sobre os escândalos ocorridos nessa semana,
como a discussão de dois vereadores que acabou em pancadaria. Ainda sobre o fato de
Isabel Radaelli ser fortemente apontada como Rainha, e de rumores sobre a compra do título
terem surgido, Sparin preferiu também não opinar. Dentro de instantes nós estaremos de
volta com a transmissão ao vivo da Escolha de Rainha e Princesas da 23a Festa da Uva.

A luz se apagou. Os fios negros do cabelo da repórter, que chegavam ao fim nos
seus ombros em estilo Chanel, escureceram-se mais ainda. Érica estava mais elétrica do que
o de costume: movia-se com pressa, sempre à procura de algum acontecimento que pudesse
fazê-la subir de degrau. O cargo de editora-chefe do jornal que fazia parte do maior veículo
de comunicação da Serra Gaúcha ainda estava longe, difícil de ser alcançado. Mas ela não
desistiria.

Em treze anos Érica Zunardi havia progredido pouco, assim como qualquer
jornalista que leva tempos para conseguir uma carreira consolidada. A pequena mulher
virava madrugadas, envolvia-se nos casos mais sinistros, adentrava qualquer bairro
parcialmente suspeito a fim de trazer uma grande notícia inédita. Por mais irritante e
incansável, ninguém poderia reclamar dela, muito menos o seu chefe ou colegas de
profissão. Érica era uma profissional exímia, porém, estava próxima ao desespero
existencial - e profissional: faria de tudo pela notabilidade e renome.

-Docinho, ele te odeia! - o cinegrafista de cabelos brancos quis deixar claro o


óbvio.

Armada com o microfone, a jornalista de baixa estatura e grande determinação bateu


uma mão contra a outra, dando de ombros.

-É recíproco, meu caro. Estes filhos da mãe que fogem do assunto não me agradam.
- Lançou um olhar para Sparin. - Covardes, covardes! - gritou. - Mas sabe de uma coisa?

Nei abaixou a câmera e aguardou.

-Nós estaremos lá no ano que vem, meu amigo. - proferiu. - Alguém vai ver o seu
mandato chegando ao fim. - Ela deu dois tapinhas no ombro do colega. - E nós estaremos lá.
Isabel Radaelli se olhou no espelho mais uma vez. As bochechas decoradas com
blush e os olhos marcados levemente compunham o visual que ainda contava com o traje
típico de cor violeta, inspirado nas primeiras edições da Festa, e potencialmente o mais
inovador: contava com um corpete branco decorado com pedras transparentes que acabava
na cintura em um caprichado cinturão preto que desenhava melhor a sua silhueta. A saia que
vinha logo abaixo desabava pelo corpo como uma cachoeira tranquila e lhe permitia um
movimento recatado e sensual.

Isabel estava tão nervosa. As suas mãos tremiam um pouco, deslizavam pelo tecido
grosso do vestido e ela tentava se controlar ao máximo para não roer as unhas pintadas de
cor vermelha em um salão, horas mais cedo. Debaixo daquele cabelo armado e impecável,
escondia-se uma guria que recém encontrara os prazeres e desprazeres da vida adulta. Isabel
passava boa parte de seus dias estudando para o curso de Medicina, e, mesmo com tanta
demanda, resolvera acrescentar os livros sobre a história de Caxias do Sul à sua lista de
leitura quando decidira se candidatar ao trono. Era quase questão de orgulho, uma vez que a
sua avó havia sido princesa e tanto lhe ensinara durante a vida. Ela não podia decepcionar
ninguém.

Atrás de Isabel, outras 17 moças andavam de um lado para o outro no camarim


reservado para as candidatas, e todas se encontravam tão perdidas quanto os seus ancestrais
deviam ter ficado ao chegarem pelas terras gaúchas no século XIX.

Por detrás das paredes daquela saleta, era possível se escutar o que acontecia: a
escolha de Rainha e Princesas estava começando. De súbito, todas elas fizeram silêncio e
amontoaram-se em um canto onde, por um pequeno aparelho televisor, podiam acompanhar o
evento. Isabel juntou-se às amigas.

No palco, de fundo preto com uma grande armação contendo o logotipo da festa, o
púlpito servia de apoio para Paola Andreon, apresentadora da rede de televisão local, e
Marcelo Bonani, responsável pela coluna social de um jornal de Caxias. Ambos
discursavam sobre a importância daquele acontecimento para a cidade e anunciavam as
atrações da noite. Simultaneamente, diversas câmeras instaladas em pontos estratégicos dos
Pavilhões espalhavam a cerimônia para Caxias inteira. Em seguida, o prefeito foi convidado
a se pronunciar.

Enrico Pagliatti se divertia com as taças de vinho que lhe eram servidas, enquanto
Benjamin se restringia à água com gás.

-Qual é o seu problema com as uvas, Ben?

-Nenhum - respondeu o detetive. - Uvas, uvas. Como não amá-las morando em


Caxias, não é mesmo?

Ele se levantou.

-Vá com calma neste vinho, sim?

Lisboa se afastou do local à procura de um banheiro. Havia tomado tanta água - boa
parte era para acalmar o nervosismo quanto ao desfile da irmã - que precisava se livrar da
bexiga cheia antes dos desfiles começarem.

Durante o trajeto, precisou desviar de crianças que corriam de um lado para outro.
Seguiu as indicações que o levariam até os sanitários móveis e encontrou uma fila de
pessoas vestidas com camisetas que estampavam o rosto de várias das candidatas. Muitas
das pessoas traziam apitos em tomo dos pescoços e pompons nas mãos. A escolha das
soberanas acabava funcionando como um Carnaval fora de época para Caxias do Sul.

Aguardando impaciente - certamente um de seus maiores defeitos -, Benjamin


encontrou naquela fila o rosto de uma garotinha de não mais do que nove anos que brincava
com um dos apitos. Os seus olhos inocentes brilhavam de alegria toda vez que ela o
assoprava e silenciava qualquer outro som ali perto. Era como se apenas o barulho de seu
apito existisse.

Lisboa piscou para a garotinha que o encarou com receio, assim como qualquer
criança faria. Mas ela sorriu no minuto seguinte. Naquele momento, um som alto ecoou por
dentre os pavilhões, vindo do palco principal. Anunciava-se o começo do primeiro desfile.
Aquilo assustou a menina, que deixou o seu apito cair no chão, fazendo-o quicar.
Prontamente, de maneira mais educada impossível, o detetive se abaixou para apanhar o
brinquedo.
-Trate de lav...

Ele não conseguiu terminar a frase. A garotinha havia desaparecido. Benjamin olhou
para os dois lados, procurando por qualquer criança loira, porém, nenhuma tinha os olhos
tímidos como aquela em especial. Guardou o apito no bolso e esperou pela sua vez.

Um minuto se passou e aporta do banheiro se abriu. Dele saiu a garotinha loira.

-Ei! - ele a chamou. Retirou o apito do bolso e entregou. - Acredito que seja seu,
você deixou cair. Trate de lavá-lo, certo?

A menina olhou para o apito, e então para Benjamin.

-Pode ficar - respondeu. - Eu sou muito grande pra brincar com isso.

E então ela saiu em disparada.

O desfile ocorreu com tranquilidade para os espectadores, o que não se adequou


obviamente a cada moça que pisava no palco. A logística era simples: ao ser chamada, a
candidata dirigia-se até um microfone central e lá dizia o seu nome, entidade que estava
representando, e uma mensagem caso houvesse interesse. O que vinha depois era a
caminhada que levava cerca de cinco minutos, em que acenava e sorria para os visitantes,
amigos e familiares. As músicas que serviam para embalar cada desfile individual haviam
sido escolhidas pelas próprias moças, e quase sempre tinham a ver com o que desejavam
retratar.

Quando Caroline Lisboa apareceu em meio a muitos gritos - a sua família compunha
uma das maiores torcidas -, os dedos do detetive se cruzaram, e em sua mente a frase era a
mesma que provavelmente circulava em repetição no íntimo da irmã: não tropece, não
tropece. Aquele vestido vermelho escuro, com tantos detalhes em dourado, era comprido,
sendo o salto alto um péssimo aliado. Caroline nunca soube se equilibrar direito em
qualquer coisa - Benjamin se lembrava de tentar ensiná-la inutilmente a andar de bicicleta.

Porém, naquela noite, ela se saía bem. Ao som de uma música que ambos escutavam
muito na casa da falecida avó todos os finais de semana, a garota de cabelos loiros
arrumados em um topete (era uma tradição aderi-los para se criar a ilusão de que a
candidata era mais alta) distribuía os seus sorrisos de modo pacífico.

-Você disse que ela é solteira? - questionou Enrico.

Benjamin lançou um olhar de reprovação para o companheiro.

-Solteira e inteligente - retrucou. - Logo podemos crer que...

Ele não finalizou. Enri deu de ombros e voltou a comer pedaços de queijo enquanto
assistia ao desfile. Desta vez, tomava um encorpado suco de uva.

Todas as apresentações seguiram o ritual, porém foi com a entrada de Isabel


Radaelli que o público veio à loucura, e isto em todos os sentidos. A torcida organizada da
candidata colocou em cena a coreografia ensaiada, e um show de luzes acompanhou cada
movimento. Na passarela, a morena de cabelos ondulados acenava e agradecia ao público,
juntando as mãos ao peito. Certamente podia se notar que se tratava de uma das candidatas
mais fortes, uma vez que os seus passos eram precisos e seguros, o sorriso era natural e a
sua beleza ímpar. Porém, também existia uma porção de pessoas que permaneciam em
silêncio, como se demonstrassem a oposição ao monopólio que ela havia conquistado antes
mesmo daquela noite.

Passado o desfile, as candidatas voltaram a se reunir na pequena saleta do camarim,


a qual era vigiada por Radamés, um segurança brutamontes, e somente o pessoal autorizado
tinha acesso. Para todas elas, aquele momento era o pior de todos, pois a espera trazia o
questionamento, a dúvida do desempenho e a certeza de que não se podia voltar atrás. E,
naquela noite, a espera durou mais do que o comum. Uma banda entreteve o público
enquanto os jurados tomavam as suas decisões e, em seguida, ocorreu o tradicional concurso
de torcidas que premiaria a mais original, animada e organizada.

Nos bastidores, a ansiedade tomava conta. Algumas candidatas se apoiavam em


outras, algumas preferiam ficar caladas. Havia até aquelas que chegavam a passar mal e
precisavam ser atendidas pelos socorristas de plantão. Não era fácil lidar com o peso de
poder representar uma cultura.

Eis que chegou o momento do grande anúncio. A equipe de organização alertou as


candidatas que dentro de cinco minutos seriam chamadas ao palco. Os nervos das candidatas
afloraram todos os sentimentos: o medo, a angústia, a apreensão, que se misturaram para
tomar conta daqueles bastidores. A agitação crescia enquanto os apresentadores esperavam
o retomo dos jurados para a respectiva bancada.

-Convidamos agora as dezoito candidatas a título de Rainha e Princesas da 23a


edição da Festa da Uva - anunciou Paola Andreon, esbelta em um vestido turquesa,
contrastando com o cabelo escuro arrumado em um coque.

As moças subiram ao palco, colocando-se lado a lado conforme a ordem alfabética


que tanto haviam repetido durante o pré-concurso (toda uma preparação havia sido feita até
então).

De onde estava, Benjamin Lisboa foi possivelmente o primeiro no local a reparar


que a cena não estava completa. O seu pensamento rápido fez questão de enumerar cada uma
das moças.

-Céus!

Pagliatti encarou o homem e a sua interjeição.

-São apenas 16! - constatou o detetive.

-Mas não eram 18?

Ambos recontaram as candidatas e confirmaram. Mesmo estando o ambiente escuro


e todas as luzes direcionadas em exagero para o palco, podiase enxergar, ao fundo, uma
agitação nada corriqueira. Um dos membros da comissão organizadora encaminhou-se
abaixado até os mestres de cerimônia e cochichou algumas palavras. Paola Andreon e
Marcelo Bonani trocaram olhares curiosos.

-Antes de anunciarmos os nomes que formarão o trio de soberanas, convidamos as


nossas belas candidatas para um último desfile conjunto! -, foi o melhor que Paola, muito
esperta e convincente, pôde fazer.

-Mas de novo?! - rejeitou Enrico.

Benjamin sabia que aquilo não estava nos planos. Até mesmo as candidatas
trocaram olhares, como se questionassem o porquê daquela nova ordem. Apesar do
nervosismo, algumas delas conseguiram reparar que Isabel Radaelli e Lana Mendez não se
encontravam no palco. Nas torcidas das duas candidatas, o boca a boca se alastrava.
Suspeitas eram criadas antes mesmo de qualquer fato.

-Isso não está certo, - averiguou Lisboa, colocando-se em pé.

-Ben, para onde você vai?!

-Sugiro que você venha comigo, Enri. Se você quiser descobrir o porquê do sumiço
de duas das candidatas, venha comigo.

O inspetor não precisou de mais nada, pois já estava convencido e elétrico.


Caminhando a passos largos ao lado de seu superior, questionou um bocado de coisas, das
quais não obteve resposta. Benjamin estava pensando. E, principalmente, desejando com que
nada tivesse acontecido.

Ao alcançarem os bastidores, se depararam com a figura de um homem negro, com


cara amarrada e braços cruzados, que impedia as suas entradas.

-Detetive Benjamin Lisboa - falou ao apresentar o seu distintivo cintilante.

-Enrico Pagliatti - o jovem fez o mesmo. - Inspetor, por enquanto!

Os traços de preocupação atingiram a face séria e enrugada de Benjamin, que


andava depressa. Atrás de si, o seu companheiro reclamava e pedia para que ele fosse mais
devagar. Não dando ouvidos, o detetive encontrou no final daquele mesmo corredor mal
iluminado, cujas paredes eram de pedras sem reboco, um integrante da equipe organizadora
falando ao celular. Enquanto se encaminhava até o homem, Lisboa conseguia escutar a
música alegre e alta que embalaria o novo desfile das dezesseis candidatas que, muito
lentamente, tomavam a passarela. Tentou sobrepô-la, assoviando mais alto uma cantiga
qualquer.

Antes que pudesse atingir o homem que talvez lhe explicasse o que acontecia, Ben
foi atingido por uma moça em disparada que apareceu em um piscar de olhos. Chocaram-se
bruscamente, o que fez com que a garota deixasse cair no chão a sua pequena coroa de
embaixatriz. Nos olhos, as lágrimas corriam desgovernadas e atingiam o vestido volumoso.
Ela tentava falar por dentre o choro e gesticulava ao mesmo tempo.

Benjamin a reconheceu de imediato: tratava-se de Lana Mendez.

Ao suportá-la nos braços, ele pediu para que ela se acalmasse, mesmo sabendo da
imbecilidade do seu pedido. Naquele momento, sabia exatamente o que havia acontecido.

-Está morta! - ela gritou - o choro invadindo os seus lábios marcados de batom
vermelho. - Isabel está morta!
O detetive havia pedido para aquele membro da equipe organizadora que chamasse
às pressas o prefeito e o presidente. Também já havia dado um jeito em Lana Mendez.
Enquanto esperava as autoridades, parou em frente à porta do banheiro. Uma figura feminina
estava desenhada em uma pequena plaquinha ali afixada. Enrico faria qualquer piadinha
sobre entrarem naquele local, porém não era o momento apropriado, uma vez que a
'senhorita - prantos' havia indicado que a candidata morta se encontrava ali dentro. Ele
soube se conter, mas não permaneceu totalmente calado:

-Não deveríamos esperar e usar luvas? - questionou. - Você sabe, as digitais.

Benjamin não o olhou para responder:

-Você pode imaginar quantas pessoas entraram neste banheiro apenas hoje? -
Esperou alguns segundos, encarando o rosto confuso do mais novo. - Pois é.

Abriu a porta e nada encontrou de imediato. O ambiente era grande e branco, com
azulejos no chão e em boa parte da parede. Em frente às pias - uma delas estava com a
torneira aberta -, um espelho estava fixado na horizontal, cobrindo toda a parede. As cabines
de sanitários estavam todas com as portas entreabertas.

O inspetor se aproximou para fechar a torneira, enquanto Benjamin foi averiguar os


sanitários. Abriu com calma um a um, porém, só no último ele encontrou o que Lana Mendez
havia encontrado: o corpo de Isabel Radaelli jazia estirado por sobre a privada. O rosto da
vítima estava virado em direção ao detetive, que o encarava em silêncio total. Como era
possível uma beleza tão singular como aquela ser desperdiçada daquela maneira?

Aproximando-se o máximo que pode, Lisboa checou rapidamente as condições do


corpo, sem tocá-lo. Alguns sinais estavam expressiva e literalmente estampados no rosto de
Radaelli, o que já lhe permitia julgar previamente alguns fatores. Porém, aquilo não era
trabalho seu.

Quando Enrico se aproximou da cena, Benjamin puxou a porta do sanitário,


escondendo a moça.

- que aconteceu com ela?


-Más notícias, inspetor - balançou a cabeça. - Más notícias.

-Não me diga que...

-Sim - assentiu. - Isabel Radaelli foi assassinada.

A expressão oferecida pelo jovem inspetor foi cômica. No caminho até ali havia
pensado na possibilidade de um ataque cardíaco, uma vez que a emoção dos acontecimentos
daquela noite era alta. Porém, a ideia de que Isabel havia chegado ao seu fim por desejo de
outrem não lhe havia parecido possível. Quem seria capaz de promover tamanha tragédia?

Benjamin sacou o celular do bolso, discou com pressa alguns números. Quando o
delegado atendeu - pelo som ao fundo, provavelmente estava em algum bar enchendo a cara
e escutando música sertaneja - repassou a notícia.

Levou algum tempo para que o delegado García acreditasse na veracidade das
informações. Uma candidata à Rainha da Festa da Uva morta em um banheiro, e ainda por
cima assassinada? Aquilo estava mais para um filme puramente ficcional.

Após escutar algumas ordens meio embaraçadas, o detetive rumou até a porta para
sair do banheiro tão rápido quanto entrara.

-Você não vem? - perguntou ao amigo.

O inspetor olhou para a porta entreaberta do sanitário, e depois voltou o olhar para
o seu supervisor.

-Nós vamos abandonar o cadáver?

Relaxado por fora, mas com uma turbulência de grau alto em seu interior, o detetive
respondeu:

-Pediremos para aquele brutamonte cuidar da porta, Pagliatti. Estou certo de que a
senhorita Radaelli não irá a lugar algum. Quanto ao nosso assassino, não se pode dizer o
mesmo.
Ao sair do banheiro, Benjamin assoviou para conquistar a atenção de Radamés, o
segurança negro de braços largos. Inventou qualquer história para o brutamonte, pedindo
para que impedisse a entrada de qualquer pessoa - até mesmo do pessoal autorizado -
naquele banheiro. Questionou se ele poderia chamar reforço, mas o segurança alegou que
havia acabado de derrubar o seu walk talkie no chão e o quebrado.

Antes mesmo de ir de encontro aos senhores que entravam no corredor, Lisboa


reparou que em frente ao banheiro feminino havia outra porta, identificada com uma figura
masculina. Mas o que chamou a atenção do detetive foi um pequenino objeto brilhante
perdido no chão, em frente ao banheiro. Sem muito analisar, recolheu e o guardou no bolso.

-Lisboa! - gritou o presidente da Festa. - Onde está a garota?!

Fernando Henrique Tomiollo, um velho de cabelos ralos sem cor e com rugas em
demasia, aproximou-se, intimidando o detetive. Para olhares de terceiros, era como se os
dois estivessem brigando. Havia preocupação e desespero naqueles olhos indagadores.
Quanto ao prefeito, que acompanhava o senhor rabugento, fazia o mesmo - queria saber o
que estava acontecendo.

-Isabel Radaelli está morta, senhores - anunciou depressa.

Houve um silêncio. Até mesmo a música vinda do palco pareceu diminuir.

-Santo Deus! Do que estás falando?!

O detetive mantinha a calma de uma manhã de domingo.

-Lana Mendez encontrou a colega morta há poucos minutos neste banheiro - ele
apontou. - Estamos falando de assassinato.

Em total desespero, o presidente ergueu as mãos para o alto e olhou para todos os
lados possíveis. João Sparin, por sua vez, tentou falar qualquer coisa, porém nenhuma
palavra saía de si. Escolheu chiar:
-Eu lhe avisei para não arranjar problemas, Lisboa! - irritou-se como se a culpa
fosse do detetive.

Quando o prefeito conseguiu se controlar rapidamente, ignorou aquele surtado


Fernando Tomiollo ao seu lado e fez, um pouco mais prudente, algumas perguntas:

-Quem sabe disso?

-Além de nós, Lana Mendez e o inspetor Pagliatti - apontou para o sujeito ao seu
lado, que levantou as sobrancelhas -, acredito que mais ninguém, senhor.

-E onde está Mendez?! - perguntou o presidente, esbaforindo, ainda alterado.

-Pedi para que me fizesse um favor - respondeu simplesmente.

Observando que os cavalheiros o incitavam com olhares, continuou:

-Questionei rapidamente a senhorita Mendez o quanto desejava ser Rainha. Como


esperava, ela demonstrou em meio ao choro que a resposta para a minha indagação era
`muito'. Então a mandei correr para a passarela e acenar ao público.

-Você o quê?! - ambos gritaram na mesma hora.

Lisboa assentiu.

-Não me culpem por fazer tudo parecer o mais verossímil possível, senhores. As
candidatas tinham acabado de iniciar o trajeto da passarela, Lana ainda tinha tempo para
alcançá-las, mesmo fora de ordem.

-Escute, Lisboa, - aproximou-se o presidente, - conversaremos sobre o seu


comportamento mais tardar - tentava encontrar ar para respirar. Em uma comparação
esdrúxula, ele era o colecionador e as candidatas eram as suas Barbies bem cuidadas. - Por
hora, me diga como uma garota que encontrou um cadáver conseguiu subir naquele palco e
fingir que nada estava acontecendo! - a raiva lhe saltou da boca.

-Ah!, - deu de ombros o detetive. - Você não sabe como essas garotas conseguem
passar do choro ao sorriso em questão de minutos. Realmente, é um caso a se estudar! -
parecia satisfeito. - Estou certo de que a senhorita Mendez poderá nos ajudar com todas
essas questões assim que a noite de hoje acabar sem grandes problemas - parou e pensou no
discurso. Apressou-se em corrigir: - sem maiores problemas. Por hora, precisamos fazer
com que o público não note a ausência de Isabel.

O presidente riu com os dentes cerrados. Benjamin sabia exatamente o porquê de


Lana ter subido de volta ao palco, porém aquilo permaneceria guardado para si por
enquanto.

-Isso é impossível! - gritou Tomiollo. Ele se aproximou do ouvido do detetive e


sussurrou: - Ela é a nossa Rainha. É a escolhida.

Após um breve momento, Lisboa rebateu:

-Eu sei, senhor - falou sem medo algum. - Mas acontece que a Rainha está morta, e
você sabe melhor do que eu como proceder neste caso.

Com um pouco mais de calma, o presidente consentiu, observado pelo prefeito:

-Eleve um degrau - sibilou.

-Exato. Quem era princesa, toma-se Rainha. E uma das moças que teria de se
contentar como embaixatriz, terá a chance de estar no trio principal. Há muitas
possibilidades de se beneficiar desta maneira, não?

Fernando Tomiollo sabia que era inútil lidar com a tranquilidade com a qual o
detetive estava carregando. Por conta disso, distanciou-se até desaparecer na primeira
esquina do corredor.

-Senhores - pediu licença o prefeito, que, provavelmente, corria para iniciar os


trabalhos.

Quem permaneceu incrivelmente mudo por aqueles minutos foi Enrico, que, enfim,
abriu a boca:

-Um assassinato acontece e o trio soberano muda de figuras. É um bom motivo para
se matar alguém.

Lisboa repousou a mão no ombro do rapaz.


-Estamos falando de xadrez para principiantes, meu amigo. Mude as peças de lugar -
explicou -, é bem simples. Admito que o nosso criminoso merece um prêmio.

-Que tal uma... coroa? - sugeriu o inspetor de modo irônico.

-Era isso mesmo que eu estava pensando. No entanto, por hora, é melhor irmos com
calma.

A solução adotada às pressas e com muita discrição pelo presidente da Festa,


juntamente com os demais jurados, foi colocada em prática. Depois que o trio de soberanas
da edição anterior da Festa subiu para o seu último desfile - o público já se encontrava
deveras entediado e já passava da lh da manhã -, recaiu sobre o palco montado nos
Pavilhões um silêncio grotesco. Havia chegado a hora de conhecer os nomes que
divulgariam a Festa país afora.

-O primeiro nome a integrar o trio de soberanas e que receberá a faixa e coroa de


primeira princesa da Festa da Uva é... - Marcelo Bonani arrumou os seus óculos enquanto
fez mistério. - Patrícia Frandini!

Foram entregues flores antes de colocarem no corpo esbelto de Patricia a faixa


branca de escritos prateados. Logo em seguida, Bonani continuou fazendo o mesmo mistério,
e então o nome da segunda princesa foi divulgado:

-Manoela Rangalli!

As torcidas faziam barulho durante a coroação, porém, ninguém escondia o fato de


que o nome mais importante a ser dito vinha em seguida. Custaram exatos três minutos para
que ele fosse anunciado. O suspense extrapolou, e quando não podia se forçar mais, foi
Paola Andreon quem, com sua voz timbrada, anunciou:

-E a Rainha da 2Y Edição da Festa da Uva é... - repetiu uma última vez o mesmo
discurso. Nas arquibancadas, pode-se escutar o nome de Isabel ser dito tão alto como se
estivessem de fato anunciando o seu reinado. Porém, o que se ouviu não foi o esperado: -
Caroline Marques Lisboa!

Neste momento, Benjamin, que ainda se encontrava nos bastidores, interrompeu


qualquer pensamento e fitou o pequeno espaço em sua frente que dava visão a uma parcela
do palco. O nome de sua irmã havia sido anunciado. Ela era a nova Rainha da Festa da Uva.

Mal podia acreditar. Tanto ele, quanto as pessoas ali presentes e a própria Caroline.
O silêncio que se escutou na arquibancada com a torcida organizada de Isabel - a qual teria
de se contentar com a premiação de mais original - foi expressivo, enquanto no hemisfério
oposto um colorido alvoroço cobria o espaço destinado à torcida da nova Rainha. A grande
massa ali presente não conseguia engolir o fato de que todas as apostas para Isabel haviam
caído por terra. Ela nem mesmo havia figurado entre o trio de soberanas. E foi neste
momento que todos ali presentes se deram conta -, pelo menos aqueles mais atrasados -, de
que nem mesmo no palco Isabel estava.

Durante a coroação de Caroline, as então embaixatrizes permaneceram em seus


lugares, lidando individualmente com o resultado. Porém, uma delas desabou em choro,
atraindo a atenção das demais, que se reuniram para abraçála. Lana Mendez, não que fosse
novidade, estava em prantos.

A ordem do detetive repassada ao inspetor foi clara: retirar imediatamente as


embaixatrizes do palco, a começar por Lana Mendez - esta deveria ser isolada e, de maneira
alguma, ser informada sobre a morte se tratar de assassinato -, e deixar a cargo do novo trio
de soberanas preencher qualquer lacuna que tivesse sido aberta. Os pais de Isabel Radaelli
deviam ser encontrados às pressas e reclusos em um dos camarins.

A equipe organizadora não foi comunicada sobre o assassinato naquele primeiro


momento, excluindo o chefe de comissão, que ordenou para que o seu pessoal encaminhasse
todas as embaixatrizes de volta à saleta que antes ocuparam. Consternadas com a derrota, as
garotas de cabeça baixa ainda sorriam com o canto da boca, engolindo a conformação. Ao
mesmo tempo, elas seguiam em fila até a saleta, sem nem mesmo reparar na agitação que
tomava conta dos bastidores.
O detetive, que observava o caminhar lento das embaixatrizes que mais pareciam
dirigir-se a um abatedouro, entrou junto à saleta e varreu com seu olhar as 14 moças: muitos
panos, brilho no rosto, maquiagem a ponto de borrar e pequenas coroas enfiadas nos cabelos
imóveis. O aposento cheirava a laquê misturado com uma miscelânea de perfumes
divergentes e exagerados.

Muito pouco podia se estabelecer logo de cara quanto às moçoilas: eram


praticamente uma a copia da outra, destoando apenas em altura e cor dos cabelos, porém,
uma delas chamava a atenção: a herdeira dos Vertino era a mais alta de todas, e o seu jeito
brusco não remetia em nada às princesas e Rainhas.

Junto à porta, uma jovem vestida com o uniforme da comissão organizadora parecia
ter algo a dizer. Benjamin se aproximou. Trocou algumas palavras e descobriu que fora ela
quem tinha mandado as candidatas ao palco quando chamadas. Carla Serafin, responsável
naquela noite pelo grupo de embaixatrizes, percebeu que Isabel e Lana ainda não haviam
retornado do banheiro e foi buscá-las enquanto o grande grupo subia ao palco. Abriu a porta
do banheiro feminino e não encontrou ninguém, e então repassou as informações para os seus
superiores.

Quanto a isso, nada fazia sentido no fato de Carla entrar no banheiro e não encontrar
ninguém. A sua versão batia de frente com a de Lana Mendez.

Pagliatti apareceu na porta e chamou o amigo.

-As senhoritas serão informadas do ocorrido? - questionou.

-Negativo, meu amigo - Ben respondeu. - Elas saberão, sim. Mas não por nós.

No palco, Caroline era ovacionada pelas câmeras e microfones que procuravam


captar os primeiros momentos de seu reinado. Em meio a um choro alegre de difícil
controle, repetia o tamanho de sua felicidade e prometia, junto as suas princesas, fazer o
melhor para a divulgação da Festa e para a integração do povo caxiense. Obviamente, no
meio do bolo de jornalistas, quem gritava uma pergunta atrás da outra era Érica Zunardi.
Minutos mais tarde, escutaram-se sirenes de polícia que entravam pelos portões
laterais dos pavilhões, a fim de contornar a saída massiva do público que as observava.

-Por que esses gênios não estouram fogos de artificio para anunciarem ainda mais a
sua chegada? - questionou Benjamin ao amigo, que desta vez ficou quieto.

Logo um cerco de policiais tomou conta dos bastidores. Quem não sabia do
ocorrido, apenas estranhava. Eram homens e homens vagando de um lado para o outro, e
dentre eles surgiu García.

-Lisboa! - gritou o baixinho gorducho meio cambaleante.

-Delegado.

-Desembuche, homem!

Benjamin informou as condições do corpo e de como ele havia sido encontrado.


Anunciou a reclusão de Lana Mendez e dos pais da vítima. Aproveitou para questionar como
deveria proceder: quem deveria e quem não deveria ser informado quanto ao assassinato,
bem como o que fazer com as 14 garotas.

Decidiu-se que todas as demais deveriam ser liberadas e somente dariam as suas
versões individuais quando o inquérito tivesse início, até porque todas elas - excluindo
Mendez - encontravam-se dentro do camarim durante o momento do crime. Logo, muito não
teriam a contribuir. Quanto à imprensa, que provavelmente cairia em cima na busca por
respostas em relação à presença inesperada da polícia, a ordem era ignorar em um primeiro
momento.

O presidente da Festa da Uva havia se reunido com o prefeito e o corpo de jurados


para comunicar, de fato, o que havia acontecido. O delegado recebia os peritos criminais
que chegavam para fotografias do corpo e análises da cena do crime. Um grupo de médicos
legistas tomou conta do banheiro para a remoção do corpo da jovem, que foi envolvida em
um saco plástico branco e levada para o Instituto Médico Legal (IML) sem muita demora.
Enquanto isso, do lado de fora, a grande multidão já havia liberado o estacionamento e os
últimos visitantes deixavam os Pavilhões da Festa da Uva.

Érica Zunardi, por sua vez, estava ajudando o seu cinegrafista a guardar o
equipamento utilizado para a transmissão do evento. O ar frio da noite era motivo suficiente
para que qualquer um desejasse se refugiar em suas casas para se recolher debaixo das
cobertas ou de um bem pensado lençol térmico. Porém, para a jornalista, faltava alguma
coisa. Algo estava errado. Aquela era a sua sexta cobertura da Festa da Uva, e muitas coisas
haviam saído de modo diferente.

-Vamos? - perguntou Nei Casso ao fechar o porta-malas.

-Não.

Ele parou em frente à porta do carro. Encarou a pequena mulher e sua negação.

-Como assim, não?

Érica deu dois passos para um lado, depois virou para o outro. Estava pensativa.

-Você não achou estranho aquele batalhão de pais querendo ver as filhas e todas elas
retidas?

-Isso é comum, florzinha - respondeu. - É normal elas serem retiradas por algumas
horas para que possam dar entrevistas e tudo mais.

A jornalista deu um leve soco na barriga do colega.

-Acorda, imbecil! Se elas tivessem sido confinadas para entrevistas, a nossa entrada
seria permitida. Nós somos a imprensa. Com quem elas estavam falando até minutos atrás,
senão com o maior veículo de comunicação da cidade?

Naquele momento, um homem fardado que carregava um walkie talkie passou


correndo por ali perto. Foi o suficiente.

-Pegue a droga da câmera- ordenou a jornalista. - Anoite ainda não terminou.


Benjamin fez questão de acompanhar tudo e, após receber a permissão do delegado,
encaminhou-se para escutar o testemunho da única candidata que seria interrogada por ele
naquela noite. Lana Mendez precisava entregar algumas informações de relevância para um
melhor entendimento.

Segundo ele, era preciso escutá-la o quanto antes, de preferência no calor do


momento. Seria quando, por ventura, deixaria algum detalhe ou outro escapar. Não que
Lisboa afirmasse que a embaixatriz fosse a responsável pela morte da colega, porém era
indiscutível que todas as suspeitas caíam sobre ela.

O manda-chuva do corpo de jurados, Jorge Agamatti, entregou ao detetive uma pasta


com o logotipo da Festa impresso. Nela, uma ficha de informações sobre Lana Mendez que
havia servido para que o júri pudesse avaliá-la durante o pré-concurso. Ali estavam
reunidos diversos dados que o ajudariam a conhecê-la melhor e guiar os seus
questionamentos.

Uma sala pequena e improvisada que havia servido de camarim para a banda que se
apresentara no evento foi utilizada para colher o depoimento da jovem. Havia ali um sofá de
couro e uma poltrona da cor vermelha, que o inspetor mudou de lugar. Em frente, uma
mesinha de centro a separava de duas cadeiras de madeira velha, as quais foram contestadas
por Pagliatti:

-Por que temos de ficar com essas velharias sem conforto?

Benjamin sorriu.

-Temos de deixar a testemunha bem acomodada para que ela se sinta livre para
falar, meu caro.

Ainda em descontrole, a candidata de cabelos encaracolados e olhos turvos


apareceu na porta. De suas bochechas desciam dois traços verticais da cor preta - o lápis de
olho havia escorrido devido ao choro. O seu topete, no entanto, permanecia intacto. Pagliatti
se aproximou para ajudá-la.

-Senhorita, sente-se, por favor-pediu o inspetor. Quando acomodada, lembrou da


garrafa térmica que havia deixado ali e ofereceu: - Chá?

Lana balançou a cabeça em negação. Os olhos baixos encaravam as mãos trêmulas.


Lisboa assoviou uma música qualquer e deu uma rápida analisada no perfil da moça -
cursava Letras, pretendia ser professora, amava ler. Tinha ingressado no concurso porque se
identificava com Caxias, tendo morado na cidade desde o nascimento e visitado todas as
edições da Festa.

-Certo, Lana - começou ele, sentado em uma das cadeiras e inclinado para a frente,
estando os seus cotovelos apoiados nos joelhos. Ao seu lado, o inspetor se acomodara e
puxara um bloco para tomar nota. - Nós precisamos que a senhorita nos ajude o máximo que
puder, será de extrema importância. Quem sabe você não possa começar nos contando o que
aconteceu?

Ela assentiu. Vagarosamente, levantou os olhos misericordiosos e projetou as


palavras:

-Faltava pouco para nos chamarem ao palco - começou sem pressa-, e Isabel
perguntou para Carla se ainda dava tempo de ir ao banheiro. Ela nos liberou, contanto que
fossemos rápidas.

-Espere -, interrompeu o detetive. - Ela questionou isso de que modo?

Lana trocou de expressão.

-Eu não entendi a pergunta, senhor.

-De fato, expressei-me mal. O que eu quero saber, senhorita Mendez, é se Isabel
disse em bom tom que precisava ir ao banheiro.

-Sim - assinalou. - Todas as garotas escutaram, e Carla até perguntou se mais alguém
desejava ir ao banheiro. Eu fui a única que a acompanhou. Todas as outras não queriam
arriscar.

Arriscar.

A palavra ecoou na mente do detetive.


-Anote tudo, sim? - ele cochichou ao inspetor. - Bom tom, anote.

Mesmo sem compreender o real significado, Pagliatti apenas tomou nota. Lisboa
continuou com as perguntas:

-As senhoritas foram acompanhadas até o banheiro?

Ela negou.

-O banheiro fica exatamente ao lado direito do nosso camarim. Isabel foi na frente, e
eu logo atrás. Ela até brincou sobre ter tomado suco demais e que não conseguiria esperar.
Não queria escutar o resultado do concurso e correr o risco de dar um vexame no palco.

-As outras garotas permaneceram no camarim?

-Sim. Todas ficaram lá até o momento em que as chamaram para o palco.

Benjamin analisou o rosto da garota: já estava mais calmo e aos poucos controlava
a respiração, antes acelerada.

-A senhorita lembra de ter visto alguém no corredor quando vocês saíram para ir ao
banheiro?

Lisboa esperava uma negação, porém surpreendeu-se. Lana assentiu positivamente.

-Radamés estava cuidando da porta de nosso camarim. Foi ele quem nos cuidou
praticamente o pré-concurso inteiro. Hoje ele estava ali do lado de fora, parado no lado
esquerdo quando saímos para o banheiro.

Pagliatti rabiscava um esboço do corredor no seu bloco.

-Mais ninguém?

-Não. Além da equipe de organização, que nessa hora devia estar no outro lado dos
fundos do palco, quase ninguém passava por ali. A entrada é muito restrita - choramingava.

Benjamin se recostou na cadeira e cruzou as pernas. Até o momento, a partir das


informações recolhidas, tudo estava muito óbvio: Lana era a única alternativa para ser
considerada assassina. No entanto, o óbvio nunca lhe agradara. Tinha de existir algo a mais,
não podia ser tudo tão simples. Suspirando, continuou:

-O que aconteceu quando as senhoritas entraram no banheiro?

-Para ser sincera - a frase fez com que o inspetor levantasse os olhos do bloco de
notas e reparasse na garota - eu não quis ir ao banheiro para urinar. - Tomando fôlego, ela
continuou: - Eu precisava me olhar no espelho uma última vez antes de pisar no palco.

Pagliatti tossiu. O homem de blazer marrom continuou:

-A senhorita está ciente de que se olhar no espelho não faria diferença alguma, uma
vez que a decisão naquela hora já havia sido tomada, certo?

Lana ruborizou.

-O meu pai fala que sou muito vaidosa, senhor.

-Um requisito em qualquer concurso de beleza, senhorita - Ben tentou não soar rude.
- Pode continuar a nos descrever o que aconteceu, por favor?

Lana descruzou as mãos pela primeira vez. Havia um cheiro de morte no ar,
rondando desde que vira a colega sem vida naquele banheiro.

-Enquanto eu me olhava no espelho, Isabel foi para uma das cabines porque ela
precisava urinar. Acho que estava nervosa, foi ao banheiro a noite toda. Na verdade, todas
nós estávamos. Mas para Isabel era diferente.

-Diferente?

-Ela era a favorita - falou melancólica.

O que se ouviu foi a caneta do inspetor contra o papel.

-E depois que Isabel entrou na cabine? 0 que aconteceu?

Ela balançou a cabeça, voltando a olhar para baixo.

-Foi tudo muito estranho, senhor. Eu não estava de olho nela pelo espelho porque
estava arrumando meus cílios, mas eu continuei a conversar com ela. Eu estava falando
sobre quase ter tropeçado durante o meu desfile, e como sempre eu estava falando demais.
Só parei de falar quando...

Então ela voltou a chorar de modo descontrolado.

O inspetor havia rabiscado no papel a seguinte frase: Por que as mulheres se


importam com cílios?!, e a tinha mostrado ao detetive. Este que se levantou e pegou um
pouco de chá, oferecendo à garota. Puxou a sua cadeira e se sentou mais perto dela.

-Lana, isto é muito importante para nós. Por favor, nos ajude. - Retomou a fala da
moça: - Você só parou de falar quando...

-Eu escutei um barulho - ela falou rápido por dentre as lágrimas, e então esperou um
pouco antes de continuar. - Um som alto e rápido. Foi como se...

-Foi como se um saco pesado de farinha caísse ao chão - completou o detetive de


modo especulativo.

Lana levantou os olhos até encontrar os de Lisboa. Pagliatti observou a cena atônito.

-Foi. Exatamente isso. - ela falou devagar.

Bingo.

-E o que a senhorita fez depois?

Ela fungou e limpou as lágrimas, espalhando a maquiagem, borrando-a mais ainda.


A voz miada, parecendo um gato manhoso, continuou:

-Eu parei de arrumar os meus cílios e olhei pelo espelho, depois de um leve susto
por causa do barulho. Eu ia chamar o seu nome, mas escutei o som da descarga.

-A descarga?! - Lisboa espantou-se e pensou como um cadáver poderia acionar uma


descarga.

-Sim. E aí pensei que estava tudo certo, então voltei a olhar para os meus cílios.
Estavam como eu queria. Lavei as mãos uma última vez. Mas eu percebi que Isabel não saiu
da cabine, daí eu a chamei pelo nome, mas ela não respondeu. Fui até perto da porta do
banheiro, onde peguei duas toalhas de papel para secar as mãos. Voltei a chamá-la e a
perguntar se estava tudo bem, mas não tive resposta. Caminhei devagar até a cabine, chamei
o seu nome outra vez. Como a porta não estava trancada, eu abri e a vi.

Mais choro. Aquilo já estava soando falso.

Benjamin colocou-se em pé e andou de um lado para o outro. Algumas coisas não se


encaixavam naquela situação toda, porém sabia que Lana não estava mentindo. A jovem não
tivera tempo para inventar tudo aquilo. A menos que...

A menos que tivesse planejado cada passo antes. E, estando em um local como
aqueles, a ação incrivelmente funcionara sem maiores problemas.

-Lembra-se de ter esquecido a torneira aberta depois de usá-la, senhorita? - quem


questionou de modo esperto foi o inspetor.

Ben também esperou pela resposta, ansioso. Aquilo serviria.

-Não sei, - balançou a cabeça -, não me lembro.

O desejo do inspetor Pagliatti era o de calar a boca daquela garota. Como algumas
mulheres conseguem ter um choro pior do que o de um bebê?

Lisboa voltou a questioná-la:

-Senhorita, sei que não é uma tarefa simples, mas preciso saber como você
encontrou o corpo de Isabel naquela cabine.

Após uma balançada de cabeça, descreveu:

-Ela... Ela estava debruçada no vaso sanitário, olhando para mim.

A afirmação de Lana Mendez confirmava o modo com que o detetive havia


encontrado o corpo.

-Deixe-me fazer uma pergunta muito pessoal, senhorita Mendez. Você pode se sentir
a vontade e responder do modo que achar melhor. Estamos de acordo?
Ela concordou temerosa.

-Como você acha que a senhorita Radaelli faleceu? - ele questionou ao lembrar-se
de que ela não havia sido informada que a morte se tratava de assassinato.

-Eu não sei - ela não levou tempo para pensar. - Já ouvi falar em ataques cardíacos
e esses faniquitos, mas... Realmente, senhor, foi tudo muito rápido, e eu não soube como
aquilo aconteceu. Queria tanto poder ter ajudado a minha amiga.

-Vocês eram próximas, senhorita Mendez?

-Todas somos. Há mais de três meses convivemos quase todos os dias durante o
pré-concurso. Não há como não ficarmos unidas. É claro que algumas garotas criam mais
vínculo do que as outras, e têm aquelas que preferem não se aproximar tanto. Mas nós todas
somos amigas, companheiras. E Isabel era muito humana. Estava sempre sorrindo,
conversando com todas, até mesmo quem não gostava dela.

Se Lisboa fosse um cão farejador, naquele momento as suas orelhas teriam se


levantado.

-Algum nome em especial, senhorita?

A vermelhidão lhe caiu sobre as bochechas.

-Lorena Vertino e ela tiveram uma briga na semana passada.

Benjamin demonstrou um sorriso discreto. Com a ficha de Lana em mãos, ele


comentou:

-A senhorita trabalha em uma distribuidora, certo?

Ela concordou.

-Preciso conseguir dinheiro para pagar o curso. Quero ser professora depois de me
formar.

-Está bem, senhorita Mendez. Creio que já temos o suficiente para o momento.
Procure se acalmar, certo? - pediu. - O inspetor Pagliatti irá lhe acompanhar até a porta.
O detetive se serviu de um pouco de chá, mas logo o rejeitou por lembrar-se de que
não gostava de chá. Soube, então, que tudo estava completamente em desordem na sua mente;
mal conseguia ter noção do que estava fazendo.

-E então? - quis saber o inspetor ao se encontrarem a sós.

-Pelos meus cálculos, a ação de nosso assassino não levou mais do que 4 quatro
minutos. - Fechou a pasta de Lana. - Mas existem mais coisas em 240 segundos do que
conseguimos enxergar. Por enquanto, meu companheiro. Por enquanto.

-Muitas coisas não fazem sentido nisso, Ben. Você está certo de que Isabel foi
assassinada? Quer dizer, pelo relato da senhorita Mendez, Isabel entrou no banheiro e
minutos depois estava morta. Lana viu a vítima, alegou que o banheiro estava vazio. Aonde
entra o nosso assassino nessa história toda?

-Ainda não parei para pensar nisso, meu caro. Talvez apenas o depoimento da
senhorita Mendez seja o suficiente, e caso eu pare para organizar os fatos descritos por ela,
tudo faça sentido e voilá! - explodiu em gestos. - Teremos quem procuramos.

Coçou a sua barba. Continuou:

-Mas temos de fazer o que é correto e aguardar o inquérito. Por mais que eu creia
que a maioria das garotas não nos será útil em nada. Quase 100% delas serão perda de
tempo.

-A não ser por Lorena Vertino - sorriu o inspetor que também havia reparado na
moça diferenciada.

-Pois é, meu caro. Algo nessa moça me fascina, e ainda não sei se é de modo
negativo ou positivo. Ela destoa do grupo todo, anda com o nariz para cima como se
farejasse problemas.

Enrico se entusiasmava rapidamente com as teorias criadas.

-Mas não podemos garantir até o momento que Lana está falando a verdade. Por
enquanto, o mais óbvio a se pensar é que ela teve aqueles quatro minutos inteiros para entrar
naquela cabine e...
-Estrangular Isabel Radaelli - interrompeu o detetive em complemento.

-Estrangular?! - espantou-se.

-Não quis falar isso para você antes de ouvirmos Lana Mendez.

-Mas por quê?

-Queria que tivéssemos visões diferentes do caso. Então, agora me diga, Pagliatti,
como o senhor analisou Lana Mendez?

O jovem passou as folhas de seu bloquinho de notas, verificando tudo rapidamente.


Havia anotado tantas coisas que poderia se perder facilmente.

-Emocionalmente conturbada, despreparada e incapacitada de matar alguém.

-Não pode estar blefando? - incitou o mais velho.

Pagliatti negou.

-A meu ver, Lana Mendez é uma jovem fraca, senhor.

A mão direita de Benjamin tocou o ombro de seu amigo num estranho gesto de
satisfação.

-Estupendo, inspetor. Era exatamente o que eu desejava escutar.

-Era?

-Pode apostar! - disse. - Eu e você compartilhamos exatamente da mesma visão.


Lana Mendez é sim muito fraca para ser a nossa assassina. Isso em todos os sentidos.

-Mas e então, quem estava lá para matar Isabel?

Lisboa riu, pois tudo era muito intrigante. Logo Enrico emendou outra pergunta,
excitado e sorridente:

-Que tal me descrever o corpo da senhorita Radaelli de uma vez?


Na mente de Benjamin, o lindo rosto póstumo de Isabel apareceu.

-Petéquias3 na face, coloração azul-arroxeada da pele, ligeira otorragia4.

-Asfixia por estrangulamento - constatou o inspetor. - Puta merda, é incrível!

-A que você e o seu palavrão se referem, meu caro?

-À coragem do nosso assassino - esclareceu. - Se Lana Mendez não matou aquela


moça, alguém matou. Como procedeu, como escapou, como não foi vista, não sabemos
ainda. Mas foi preciso muita coragem e cara de pau!

Abrindo a porta para deixar a pequena sala, Benjamin se divertiu com o novo
mistério em mãos. Apesar da recente e desgraçada morte de Isabel, ele estava de novo
trabalhando com o que gostava. Assassinatos sempre instigam qualquer mente com déficit de
especulação.

-Certamente - concordou. - Foi preciso muita cara de pau.


Antes mesmo que pudesse procurar quaisquer pistas, o detetive foi chamado às
pressas para uma sala, exatamente um andar abaixo de onde estava localizado o local do
crime, afim de que resolvesse um pequeno contratempo - fora a palavra usada pelo chefe da
comissão organizadora ao avisá-lo.

A sala do júri estava instalada ao fim de um discreto lance de escadas em uma


espécie de subsolo. A sala era grande, confortável, decorada com muita luz artificial, vasos
de flores e sofás espaçosos. O pé-direito não era alto, deixando assim o ambiente acolhedor.
No centro, uma mesa circular de cedro pesado reunia todos os membros ali presentes, os
quais estavam assustados com uma figura em pé, do outro lado do aposento, que gritava um
bocado de asneiras.

A figura em questão se tratava de um homem de porte avantajado e com um excesso


de músculos e afins. Tinha pouco cabelo, muito pouco cabelo, estes raspados
propositalmente. Os pelos da barba contornavam discretamente o seu rosto em fúria e os
olhos ameaçadores na verdade transbordavam um descontrole tradicionalmente encontrado
em qualquer playboy daquela idade (vinte e poucos anos).

Benjamin entrou na sala, observado pelo corpo de jurados. Ali estavam: o prefeito,
João Sparin, o presidente da Festa, Fernando Tomiollo, o dono da maior indústria metal-
mecânica da cidade, Jorge Agamatti, a relações públicas e esposa de Jorge, Maristela
Agamatti, o cônsul da Itália no Rio Grande do Sul, Tadeu Bagioli, o publicitário e radialista
Rodrigo Rolan, a empresária Martina Binetti; a Rainha da Festa da Uva de 1989; o
secretário estadual do Turismo, Rogério Cerlini, e a colunista Giórgia Concetti.

-Boa noite, senhoras e senhores. - cumprimentou a todos. - Meu jovem rapaz! -


aproximou-se do baderneiro. - A que devemos a honra?

-Eu quero ver a minha namorada! - ele gritou.

-Hm, vejamos. - o detetive cruzou os braços e coçou a barba. - A senhora Maristela


é casada, assim como a nossa incrível Martina - falou olhando para aquelas mulheres
sentadas à mesa. - Restam Delis e Giórgia. Senhoritas, este cavalheiro lhes pertence? -
soltou um risinho de desdém.
Todos estavam sérios. 0 homem se aproximou do detetive.

-Onde está Isabel?! - tomou a gritar.

-Céus... A senhorita Radaelli tinha um namorado. - Pensou baixo na obviedade do


fato. Tamanha beleza não podia viver sozinha.

-Tinha?

-Meu jovem, procuremos nos acalmar em primeira instância, sim? - Benjamin o


segurou pelo ombro, o homem era mais alto. - Desculpe-me pelo equívoco, pensei que o
senhor havia errado de sala. Mas creio que temos algo a conversar. Pode ser gentil e me
dizer o seu nome?

-Cara, quem é você'?! - rejeitou o rapaz. - Será que ninguém pode me dizer onde
está Isabel?

Os jurados continuaram contidos. Se aquele homem estava exaltado naquele


momento, o que faria ao descobrir a verdade?

As senhoras voltaram os seus olhares para a mesa, os senhores cruzaram as mãos


engolindo o constrangimento. Benjamin, por sua vez, deu um fim à palhaçada:

-A essas horas - olhou para o relógio e falou tão baixo que só ele pôde ouvir: - está
deitada na mesa da necropsia, creio eu. - Ele encarou o jovem incrédulo e continuou: -
Isabel Radaelli foi morta horas atrás, meu rapaz. Sinto em lhe informar que a sua namorada
foi assassinada.

Depois de alguns segundos a encarar o detetive, o jovem que atendia pelo nome de
Guilherme Zarraro soltou um riso frouxo.

-Você só pode estar brincando.

-Gostaria! - exclamou Lisboa. - Porém alguém tinha motivos para matar a sua
namorada.

Alguém alto e forte assim como você, pensou ele.


O rapaz deu voltas no mesmo lugar, levou as mãos à cabeça e a balançou. Aquilo
não podia estar acontecendo.

-Mas...

-Caro jovem, creio que este não sej ao melhor lugar para você permanecer. Se me
acompanhar, prometo lhe explicar o que aconteceu com a sua namorada.

Guilherme o encarou mudo por alguns instantes e então explodiu. Encontrou o


primeiro vaso de flor no canto da sala e chutou, fazendo-o espatifar no chão em diversos
pedaços. Agarrou dois abajures e os lançou contra o piso enquanto urrava. Benjamin desviou
da bagunça, enquanto as mulheres na mesa soltavam exclamações e punham à mostra as suas
feições amedrontadas.

Em questão de segundos, dois seguranças invadiram o local e contiveram o rapaz. O


detetive pediu para que o levassem até uma sala qualquer no andar superior e o vigiassem
até a sua chegada. Depois, reparou que um caco de vidro havia atingido a lateral de sua mão.
Jorge Agamatti se aproximou muito solícito, com um lenço para ajudar o detetive, que
agradeceu e disse estar bem.

Antes de sair dali, Benjamin olhou uma última vez para aquelas senhoras agarradas
aos maridos em meio ao cenário de guerra que havia sido criado.

-Ah, o amor! - disse ele, apontando para a confusão. - Tão explosivo!

Lisboa largou sobre a mesa a pasta que continha todas as informações sobre Isabel
Radaelli - profissionais, pessoais, dados médicos e históricos diversos. Sentado em sua
frente estava Guilherme Zarraro, ainda desolado com a notícia, e logo ao fundo da sala um
dos policiais olhava para a parede oposta, de braços cruzados, a fim de controlar qualquer
excitação que voltasse a acontecer.

-Há quanto tempo o senhor e a senhorita Isabel estavam namorando? - perguntou o


detetive ao se sentar em frente ao interrogado.
Zarraro estampou um sorriso irônico no rosto.

-Eu não preciso responder nada.

-Quer um advogado? - provocou. - Aliás, você precisa de um advogado?

-Eu já tenho um advogado. Sei muito bem que não tenho o dever de responder
qualquer coisa.

-Ou talvez você não queira responder qualquer coisa.

Guilherme suspirou.

-Dois anos - vomitou as palavras. - Namoramos há dois anos. Namorávamos, sei lá!
- Encheu os pulmões de ar novamente. - Os nossos pais se conhecem há muito tempo, foi
assim que começamos a nossa relação.

-Planos para um noivado?

Guilherme encarou o detetive.

-Muito cedo.

Lisboa percorreu os olhos por sobre a ficha de Isabel Radaelli. Cursava Medicina e
fazia trabalhos voluntários esporadicamente. Havia sido Garota Verão anos antes; 1.67m,
55kg, olhos verdes, 26 anos. Filha única de Adélia e Mário Radaelli. Representava três
entidades naquela noite e há um ano se preparava para o concurso.

-Como ela foi assassinada?

O detetive desprendeu-se da ficha da falecida e fechou a pasta que a envolvia.


Tomou um pouco de ar e não escondeu a verdade:

-A senhorita Isabel foi estrangulada, meu jovem.

Guilherme balançou a cabeça e passou a mão pelos cabelos ralos.

-Será que você poderia me relatar o que fez nesta noite?


Rindo, o rapaz se exaltou:

-Você não está achando que eu matei a minha namorada, né?

Benjamin não trocou de feições. Apenas aproveitou o momento para estudar os


trejeitos e reações daquele herdeiro de uma grande e movimentada casa de comidas típicas
italianas no centro da cidade. Ele trazia o olhar inquieto e a respiração acelerada. As mãos
estavam sempre atreladas a alguma coisa: aos poucos fios de cabelo, aos joelhos, ou até
mesmo uma na outra. Guilherme estava desassossegado, porém a morte da namorada não
parecia ser o único motivo para tamanho desconforto e impaciência.

-Eu não acho nada, jovem. Aliás, lhe fiz uma pergunta, gostaria que respondesse.

Suspirando, ele falou:

-Assisti o desfile assim como todas as outras pessoas. Deixei o meu lugar uma ou
duas vezes para ir ao banheiro ou comprar alguma bebida. - Alguém lhe acompanhou?

-Não.

Benjamin ajeitou o seu blazer. Ligeiramente inquieto, assim como o rapaz em sua
frente, colocou-se em pé.

-O senhor estava em uma das mesas ou na torcida?

-Na torcida - respondeu. - Os meus pais e os pais da Bel dividiram uma mesa.
Como só tinha quatro lugares, fui para a torcida.

Aquilo não era um álibi, pensou o detetive.

-Senhor Zarraro, quero que seja franco - ele parou em frente ao rapaz. Repousou as
mãos no encosto da sua cadeira e o encarou. - Você amava a senhorita Radaelli?

Arfando e lançando olhares alarmantes, o rapaz aumentou o tom de sua voz:

-Quem é você, afinal?!

-Benjamin Lisboa - esticou a mão -, detetive. - Finalizou sereno: - Muito prazer!


Após alguns segundos sem resposta, recolheu a mão e continuou:

-SenhorZarraro, tente me ajudar. Por que alguém mataria Isabel Radaelli?

-Responda você! - gritou. - Você não é a porra do detetive?

Benjamin riu.

-Vejo que o senhor tem um jeito muito interessante de fugir de cada uma das minhas
perguntas. Já é a terceira.

Guilherme jogou a cabeça para trás. Depois, colocou as mãos por sobre a mesa. 0
seu rosto era jovialmente efusivo, banhado pela luz discreta e difusa.

-Eu não sei, ok? Se eu soubesse que alguém queria matar a minha namorada,
provavelmente nem a deixaria participar dessa merda.

Assentiu.

-Isabel tinha alguma desavença em particular que o senhor possa apontar?

-Não - respondeu seco e direto. - Todos a amavam.

-Oh! Então já temos a resposta para a minha pergunta de anteriormente. Você amava
Isabel Radaelli.

O interrogado frustrou-se. Tentou entender qual era o problema daquele sujeito


estranho e que provavelmente tinha algum distúrbio mental. Certamente era o único detetive
a mão naquela cidadezinha, pensou.

-Mas é óbvio que eu a amava!

-Não seja ingênuo, meu rapaz. O amor não é óbvio. Arrisco a dizer que metade dos
casais que estão juntos, não se amam - especulou com o dedo indicador no ar.

-Então são estúpidos!

-Ah, sim - sorriu. - De fato, o amor também envolve estupidez.


Na mente do detetive, uma nova ideia: Poderia ser esta a causa do crime? Pura e
simplesmente o amor? Mas... Fraternal, passional? Cáspita!

O rumo daquela noite estava sendo o mesmo que o de um jogo de tabuleiro. A cada
novo jogador que aparecia, as possibilidades e caminhos se expandiam. Todos amavam
Isabel Radaelli. No entanto, aparentemente, qualquer um poderia tê-la matado. E cada um
teria um motivo diferente para matá-la.

As perguntas a serem respondidas, então, eram muitas: quem teria tido coragem para
tirar-lhe a vida? Por que o assassino não escolhera um modo mais simples de matá-la?
Como Isabel havia morrido sem que Lana Mendez percebesse a presença de um terceiro
indivíduo no banheiro? Lana era a assassina?

Quanto à última pergunta, o detetive preferia não crer. Na verdade, não queria que o
caso fosse tão simples assim. Ademais, se Lana quisesse matar a colega, teria tido todos os
meses anteriores para fazê-lo, então não faria sentido esperar até a grande noite para lhe
tirar a vida de modo tão arriscado.

-Vou lhe perguntar de novo, senhor Zarraro, e quero que me responda dessa vez. Por
que alguém mataria a sua namorada?

Levou algum tempo para o detetive obter resposta, porém, quando a teve, julgou ser
de fundamental importância:

-Inveja, talvez.

Enrico Pagliatti estava com uma espécie de energético em mãos. Balançou a lata e a
analisou: uma embalagem escandalosa onde um raio estampado rasgava a arte visual.
Aparentemente, aquilo serviria para mantê-lo acordado.

Na espera pelo seu companheiro, o inspetor caminhava pelos corredores sem muita
pressa, cansado daqueles policiais. Eram homens fardados por todos os lados.
Tudo muito igual até ele ver uma moça de vestido aparecer de súbito em sua frente.
Os seus cabelos loiros caíam por sobre o colo de maneira atraente, porém recatada. O tom
dos fios combinava com os olhos claros e inchados devido ao excesso de choro que acabara
por borrar a maquiagem parcialmente. Porém, de qualquer forma, aquela era a mais bonita
de todas as moças que havia visto naquela noite. De fato uma figura fantástica com um
detalhe em especial: Caroline Lisboa era a única com a poderosa coroa reluzente na cabeça.

A nova Rainha corria pelo corredor, como se procurasse por alguém, e Enrico
decidiu não deixá-la escapar.

-Senhorita, desculpe-me, mas você não pode permanecer aqui.

Agarota assentiu, deixando uma lágrima se isentar de seu olhar convergente.

-Eu preciso encontrar o meu irmão, sibilou.

Pagliatti sorriu, mais jovem do que nunca.

-Eu posso dizer o mesmo - brincou.

Ela não entendeu, porém nem precisou questionar. Antes de encarar aquele rapaz de
cabelos bagunçados, enxergou o irmão no final do corredor.

-Ben!

O detetive, saindo da sala em que estava com Zarraro, olhou para a irmã. Estava
destruída e linda. Ela correu para abraçá-lo enquanto se desfazia em prantos que ele não
sabia se poderia suportar.

-Ei, por que o choro? - questionou. - Você é uma Rainha agora.

A garota soluçava.

-Eu consegui Ben, eu consegui! - Ela deixava as lágrimas entrarem na boca. - O que
são todos estes policiais?

Benjamin não podia contar.


-Deixe isso para depois, certo? - Ele pausou a sua respiração por um segundo
quando olhou para a manga branca do vestido da irmã. Falou devagar: - Essa é a sua noite.

Caroline aos poucos se acalmava. Com o rosto colado no peito do irmão que não
era muito adepto aos abraços, emocionou-se:

-Eu consegui. - quase cochichava. - Eu sou a Rainha.

Benjamin ainda encarava em silêncio a gotícula minúscula, quase imperceptível,


que manchara a manga do vestido de sua irmã. Já era a hora de algum vestígio de sangue
entrar em cena.

Deu as boas-vindas.
Aquilo estava errado, muito errado. Caroline não havia matado ninguém, ela não
seria capaz. Benjamin podia se lembrar do rosto infantil que trazia o sorriso sempre frágil da
irmã. Ela brincara de bonecas no tapete da sala durante toda a sua infância. Até mesmo
batizara a sua boneca favorita com o seu próprio nome. Ele se lembrava das vezes em que a
família era convocada para sentar no sofá da sala e acompanhar o desfile que a irmã fazia
com as suas bonecas. Nenhuma delas recebia um vestido bonito e tanta atenção quanto
àquela que tinha o seu nome.

E agora, na passarela, Caroline Lisboa!, - ela dizia.

A mão da pequena garotinha controlava o andar da boneca sem vida. Ao fim do


desfile, sempre uma coroação, onde a boneca favorita nunca deixara de levar a coroa. A
Rainha da Festa da Uva.

Não! - gritou o subconsciente do detetive.

Benjamin balançou a cabeça e olhou para o relógio. Já passava das 4h da manhã,


estava cansado e com fome. Podia mensurar o rombo em seu estômago e, se possível,
sonhava com um sonho inexistente. Queria tanto dormir.

A otorragia encontrada no cadáver de Isabel Radaelli indicava que um pouco de


sangue fizera parte do assassinato. Mas, quanto a pensar que o sangue na manga de Caroline
estava vinculado a isso, Lisboa apenas não quis. Não podia. Não devia.

Grande parte do desespero criado naquela noite foi responsabilidade do presidente


da festa. Em uma sala onde policiais entravam e saíam, Fernando Tomiollo estava sentado
em uma das cadeiras dispostas ao redor de uma mesa simples. Enquanto conversava com o
delegado, prospectava em sua cabeça a visão de um império chegando ao fim. A Festa da
Uva tomaria novas proporções quando aquele caso viesse à tona, e, a princípio, nada seria
positivo.
-Estamos ferrados! - jogou-se contra o assento.

-Vá com calma - pediu García -, podemos abafar o caso.

-Abafar?! - o velho alterou o tom da voz. - O que você quer dizer com abafar? -
questionou indignado. - Uma moça morreu no maior evento dessa cidade, bem debaixo de
nossos olhos! E nós estamos falando de um evento que atrai um milhão de pessoas até aqui,
que tem repercussão nacional e tradição. Me diga, diacho, de que maneira você pensa que
conseguiremos abafar o fato de que uma das candidatas foi brutalmente assassinada no
banheiro, minutos antes de ser coroada?

-É como dizem. - O detetive apareceu na porta tomando a fala para si. Deu duas
batidinhas na madeira e continuou: - Você até pode esconder uma agulha no palheiro, mas
não pode esperar que nunca a encontrem.

Tanto o delegado quanto o presidente da festa desviaram os seus olhares para a


entrada da sala. O detetive ajeitava o seu blazer marrom e entrava devagar, sorrindo.

-E quem disse essa pérola, Lisboa?

A indagação do presidente ainda indignado obrigou Benjamin a ser sincero:

-Eu mesmo - respondeu. - Inventei agora.

Ambos os senhores colocaram-se em pé. Encarando o detetive, esperavam por


notícias.

-Vocês fizeram uma boa seleção de moças este ano - Ben apontou para Fernando
Tomiollo -, todas perfeitamente no mesmo patamar. A não ser pela jovem Vertino.

-Um concurso como este precisa ter um padrão.

Era uma pena que para um detetive isso fosse uma desgraça. Quando todos estão no
mesmo ritmo, fica mais dificil apontar um suspeito. Alguém precisa se destacar.

-Lorena foge do padrão de candidatas do concurso, ela é ótima - defendeu Tomiollo.

-Que entidade ela representa? -, quis saber o prefeito.


-O maior time de futebol da cidade.

Benjamin riu com seu modo exagerado.

-Isso é piada - retrucou.

Uma nova presença apareceu na porta. Pedindo licença, a cabeça do inspetor


espremeu-se entre o vão. Nessas horas, o gel no cabelo de Pagliatti já nem mais fazia efeito.

-Inspetor! - bradou Benjamin. - Por favor, junte-se a nós.

Um caminhar tímido marcou a sua entrada na sala extensa. Enrico fez gesto de
capitão de navio para o prefeito, cumprimentando-o outra vez na mesma noite. Estendeu a
mão para o presidente, que a apertou sem muita força.

-Foi ótimo você ter aparecido, Enri. Só me resta uma última questão para fazer aos
cavalheiros antes que possamos ir para casa dormir. Foi uma longa noite!

Espalhou-se pela sala, rebatendo em todas as paredes, o sarcasmo pontual daquele


homem.

-Sem mais delongas: quando tudo será divulgado?

De pronto não houve resposta porque ninguém de fato havia pensado em uma.

O salto alto de Lorena Vertino ecoava pelo asfalto do estacionamento dos Pavilhões
da Festa da Uva. Perto das quatro horas da manhã ela já caminhava um pouco mais
confortável, uma vez que havia se livrado daquele vestido pesado. Enquanto caminhava com
pressa para repelir o ar congelante da madrugada, remexeu sem nenhuma delicadeza a sua
bolsa presa ao ombro. Encontrou as chaves do carro e o localizou sem muita dificuldade.
Naquela hora, poucos veículos ainda estavam estacionados por ali.

Lorena abriu a porta e jogou a bolsa no banco do caroneiro. Tomou o seu lugar e
esticou as mãos no volante, respirando fundo pela primeira vez dentre horas. De olho em seu
reflexo no espelho retrovisor, observou o caos que Isabel Radaelli lhe deixara: os seus
cachos estavam bagunçados e nem mesmo a maquiagem conseguia mais encobrir as suas
olheiras profundas e violáceas.

Ligou o rádio. De imediato, uma música alegre cantada em dialeto italiano começou
a tocar.

-Ah, faça-me o favor! - rejeitou e trocou depressa de estação.

Em silêncio outra vez, a moça deu partida no carro e arrancou sem muita paciência.
Dirigiu por sobre as vagas, cruzando o estacionamento, e deixou enfim aquele local. Já
estava enjoada de estar ali.

Durante o curto trajeto, Lorena procurou não pensar em nada. Piscou os olhos todas
as vezes que algumas luzes fortes cruzaram o seu caminho, e cerca de cinco minutos depois
estacionou com certa falta de destreza em frente a um bar fechado, em uma esquina qualquer.
Esperou ali por cerca de dez minutos até que outro carro se aproximou no lado oposto ao
cruzamento. A luz nauseante do farol do Vectra cinza piscou uma única vez, alertando-a.
Lorena retribuiu da mesma forma e voltou a ligar o seu carro. Dirigiu em linha reta, e desta
vez o Vectra a seguia propositalmente.

Pouco tempo levou para que ela chegasse a sua casa, um apartamento de classe alta
na subida da lomba íngreme no bairro Exposição. Ambos os carros entraram na garagem e,
após estacionarem, a garota observou o homem que saía do outro veículo aproximar-se dela.

Tomaram o elevador e ela abriu a porta do apartamento. Largou as chaves em cima


de uma pequena mesa de apoio logo na entrada e procurou não ligar muitas luzes. A sua casa,
de 150 metros quadrados, tinha janelas largas na maioria das paredes, e a decoração era tão
sóbria quanto a sua dona. Um sofá espaçoso de couro marrom tomava conta da sala de estar
logo na entrada, porém Lorena preferiu se jogar em sua cama de colchão macio.

Encarou o teto.

O homem também entrara no quarto, afrouxando a gravata em tomo do pescoço.


Sentou-se ao lado da moça de corpo esguio esticado na cama.

-Essa noite foi...


-Corrosiva -, ela completou a frase.

Ouviu-se um estalar de dedos por parte dele. Lorena ainda encarava o teto branco.
As luzes estavam apagadas, porém pela fresta da janela um pouco de claridade entrava para
aborrecer ainda mais o seu olhar exausto.

Vagarosamente os dedos longos do rapaz levantaram a blusa de Lorena, que em


nenhum momento reclamou. Os lábios secos dele encontraram a sua barriga, beijando-a.

-Pare!, - ela ordenou.

Aqueles lábios subiram até o seu ouvido.

-Você não quer que eu pare.

Ainda estagnada no teto, com a respiração tão lenta que poderia ser considerada
morta, Lorena assassinou a resistência e permitiu que os dois lábios se cumprimentassem
sem muita educação. Rolaram feito cães adestrados pela cama que abrigava uma intolerância
já domada havia alguns meses. A jovem Vertino não se importava nem um pouco com a
circunstância toda - ao contrário, aquilo a excitava.

Como sempre, ela ficou por cima da situação. Sentada no colo daquele rapaz
deitado, esticou-se para agarrar o maço de cigarros e acendeu um. Pausadamente soltou a
fumaça e levou o cigarro até a boca do homem, que também tragou. Largou-o depois na
cigarreira e deslizou sem pressa alguma a sua mão direita pelo peito nu de seu amante,
marcando-o com as unhas compridas. Ele não rejeitou. Naquele momento, soube que
conseguiria controlar qualquer coisa que precisasse e quisesse. Até mesmo aquele excitado
Guilherme Zarraro.
Arfando e com o corpo quente, Lorena se esparramou no colchão, envolta em
inúmeros lençóis. Puxou mais um cigarro e acendeu. A fumaça saía de sua boca como
bambolês soltos no ar. Ao seu lado, a respiração acelerada de Guilherme Zarraro. Ele estava
mais quieto do que o de costume.

-Você não se preocupou com o desaparecimento dela - a moça falou olhando para
frente.

Revirando-se nu na cama, ele soube que devia contar:

-Isabel está morta.

Lorena olhou para o rapaz. Percebendo que não mentia, ela apagou o cigarro no
cinzeiro e levantou-se da cama. Foi até a pequena mesa na entrada do apartamento, serviu
um copo pequeno com uísque e gelo e dirigiu-se outra vez para o quarto. Bebeu um gole,
ajeitou o travesseiro e encontrou o olhar indiferente de Guilherme outra vez.

-Me conte direito - pediu.

Por mais exausto que estivesse, Benjamin tirou o blazer marrom e o ajeitou em uma
das cadeiras da sala de seu apartamento, um imóvel discreto de quatro pavimentos
encontrado em um bairro próximo ao Centro. Alinhou-o perfeitamente a fim de não amassá-
lo e, só então, desintegrou-se na cama. Pela janela, de modo tímido o sol aparecia para
trazer a certeza de que o tempo é a única coisa que não podemos controlar. Porém, o detetive
se permitiria um pouco de sono, o que contribuiria para o trabalho ser melhor realizado nas
próximas horas.

O seu corpo cansado e longínquo atingiu o colchão e ele fechou os olhos. Encontrou
a escuridão. Logo os abriu novamente porque o telefone começara a tocar. Xingando uma
porção de pessoas, arrastou os pés descalços pelo carpete do apartamento até alcançar o
aparelho.
-Alô - a voz sonolenta.

-O que você faz dormindo, detetive? - o timbre inconveniente era fácil de ser
reconhecido.

Logo pela manhã, ele recebia a ligação do prefeito.

-Senhor, eu estava indo dormir...

-Como assim indo dormir? Já são sete horas da manhã, levante o seu traseiro e corra
para...

-Sete horas?! - ele interrompeu. Contornou o balcão da cozinha e lançou um olhar


para o relógio preso na parede, logo acima do refrigerador. Ele havia, em um piscar de
olhos, dormido por três horas.

-Sete horas e uma desgraça. Você já olhou a capa do jornal, meu caro? - Antes de
receber uma resposta, Sparin continuou: - Ah, mas é óbvio que não, você deve ainda estar
com aqueles pijamas cafonas de detetive. Então, Lisboa, trate de correr porque já está todo
mundo sabendo. É hoje que essa cidade ficará marcada no mapa para sempre.

Logo cedo, uma questão que já ficaria pelo resto do dia na cabeça de Lisboa: o que
diabos Sparin quis dizer com pijamas cafonas de detetive?

-Vou dar um jeito nisso, senhor - prometeu e desligou o telefone.

Ainda incrédulo com o fato de mal ter percebido que dormira por algumas horas -
provavelmente precisaria de mais umas oito, no mínimo, para sentir-se bem, - Benjamin se
despiu enquanto a água do chuveiro esquentava. Encarou a si no espelho do banheiro: a
barba já havia crescido um pouco mais e os olhos estavam pesados e pendendo para o chão.
Balançou a cabeça e entrou debaixo da ducha que espirrava água e vapor quente.

Cambaleando pelo apartamento, tratou de se vestir depressa e agarrou todos os itens


necessários no caminho até a porta.

Já está todo mundo sabendo - a frase voltou à cabeça do detetive.

Antes de sair, lembrou-se do que estava esquecendo e voltou até o seu quarto. De
dentro da calça que usara na noite anterior, agarrou aquele pequeno e brilhante objeto e o
guardou no bolso do novo paletó.

Já era de praxe: todos os domingos pela manhã Benjamin Lisboa acordava cedo
para tomar uma imensa xícara de café com leite em uma pequena lancheria, daquelas que
mais parecem um boteco.

A lancheria do Piazzo, em especial, resguardava no balcão sempre um quinteto de


senhores de cabelos brancos que comentavam sobre o campeonato de futebol ou sobre as
obras realizadas em tal rua e aquelas que deveriam ser feitas na outra.

-Lisboa! - saudou o dono da lanchonete perto da chapa quente, enfiado em um


avental que um dia fora branco. - Dois cacetinhos com copa e queijo colonial?

-Só um pingado hoje, Piazzo!

Ben cumprimentou com a cabeça os senhores ali presentes no balcão enquanto


assoviava, e logo teve uma prévia do que seria aquele dia, a partir dos dizeres da velha
guarda:

-Gastam tanto com o desfile, mas se esquecem da segurança, tchê! - rejeitou um dos
homens com o sotaque tipicamente forçado.

-Isso ainda vai render muito, senhores! - avisou Piazzo.

Naquela manhã, o detetive não teria tempo para se sentar e desfrutar de seu café
enquanto lia o jornal. Não, não. Ele tinha de ser rápido. Todo mundo, de alguma maneira
ainda desconhecida, já estava sabendo do ocorrido.

Lisboa esgueirou-se por sobre o balcão e esticou o olhar a fim de dar uma espiada
no jornal em frente ao velho do seu lado. Sem muito esforço, ele conseguiu enxergar a
notícia escancarada logo na capa. Desta vez não era a foto da escolha ou do trio soberano
que tomava conta de mais da metade da página inicial, e sim uma frase em letras garrafais e
grifadas que gritavam a manchete:
CANDIDATAA TÍTULO DE RAINHA DA FESTA DA UVA É ASSASSINADA

Logo abaixo, uma foto muito bonita de Isabel Radaelli ilustrava a notícia.
Congelada naquela imagem, com um sorriso disfarçadamente doce e inocente, a jovem
mantinha um olhar cativante, com a leve inclinação para a direita de seu queixo.

Em um dos cantos inferiores da página, enfim um retrato singelo do novo trio de


soberanas com mais alguns dizeres aparecia.

Alguém havia descoberto o causo. Alguém esperto e ágil o bastante para escancarar
aquilo no jornal até mesmo horas depois. Alguém com sorte pelo fato de, no domingo, a
distribuição do periódico ser mais tardia.

Preso à fivela de seu cinto, o celular do detetive começou a tocar.

-Alô?

-Detetive Lisboa?

-Sim.

-Aqui quem fala é Nero Sanzani, do Instituto Médico Legal.

-Por favor, Nero - ele salivou os lábios -, diga que você tem boas notícias a me dar.

Alguém tem de ter, pensou.

-Boas não seria a palavra certa, creio eu - a voz do especialista era mansa. - Eu
diria que surpreendentes.

Esboçou um sorriso. Deu um gole em seu café quente e o rejeitou.

-O surpreendente sempre é bom, meu amigo!

Naquela hora os olhares curiosos dos cavalheiros na lancheria já observavam


atentamente o detetive.

-Escute, Lisboa - pediu Nero. - Se eu fosse você, viria o quanto antes para cá.
E foi o que ele fez. Lisboa só receou antes de sair do Piazzo's porque na pequena e
velha tevê, instalada em cima do refrigerador de bebidas, um plantão de notícias entrava no
ar. Nele, o assassinato era espalhado, fato que só viria a aumentar nas próximas horas.

Benjamin depositou uma nota dobrada por debaixo do pires e deixou o


estabelecimento cercado por olhares interessados.

A redação do jornal estava com um número de funcionários elevado de plantão


naquele domingo. A cada pouco, novas - porém escassas - informações surgiam a respeito da
morte de Isabel Radaelli. Estando o jornal impresso atrelado ao mesmo grupo de
comunicação que detinha uma estação de rádio e tevê, Érica Zunardi não arredara o pé de
sua mesa desde a descoberta do assassinato. Ela nem mesmo dormira.

O grande copo de café preto em suas mãos preenchia a espécie de requisito para se
considerar jornalista. Lia os e-mails que não paravam de chegar à sua caixa de entrada e,
sob a sua mesa, mil papéis em desordem e várias fitas de vídeo cassete.

-Sim - ela falava ao telefone -, assinei a reportagem. Como repórter especial, isso,
isso.

Do outro lado da linha, um veículo de comunicação de nível nacional se interessava


pela história que já havia aparecido nas principais emissoras do Brasil em forma de plantão.

-É claro que podemos conversar com mais detalhes! -, a sua voz trazia alegria
extravasada.

Érica precisou encerrar a ligação quando avistou, do outro lado do vidro que
separava a sua sala, uma figura importante sendo observada por todos e se dirigindo até ela.

-Capriche nas perguntas e me ligue em meia hora - pediu. - É Érica com C!

João Sparin entrou, fechou a porta e observou a bagunça em cima da mesa. Não
disse nada. Tratou de fechar as persianas para bloquear os olhares de fora e voltou a encarar
a mulher sentada em sua mesa.
-Senhor prefeito! - Ela levantou e contornou a mesa para cumprimentá-lo. - Vou
pegar um café novo para nós.

O homem sério que trazia um dos exemplares do jornal em mãos o abriu e encontrou
a parte que desejava ler em voz alta:

-Além do responsável pelo crime, resta saber se a negligência da prefeitura em


relação à segurança será colocada em julgamento da mesma forma - citou.

De cara amarrada, fechou o jornal e analisou a pequena mulher. Pontuou:

-Ótima escolha de palavras para finalizar uma reportagem especial - ironizou as


últimas duas palavras. - Érica, parece que você conseguiu o lugar que queria. Não estou
certo?

Ajomalista juntou as mãos uma na outra para responder comomesmo sarcasmo:

-Venho batalhando todos os dias, Sparin.

O som ambiente era o de todos os telefones do lado de fora daquela sala tocando.
Jornalistas andavam de um lado para outro, quando não corriam.

-Como você descobriu que Isabel estava morta?

Uma pequena cafeteira em um canto da sala mantinha quente a bebida de cor escura.
Érica serviu duas pequenas xícaras e entregou uma ao prefeito. Quando viu que ele não a
quis, deixou por sobre a sua mesa.

-Como eu disse - bebeu um pouco do seu café -, venho batalhando todos os dias
para me tomar alguém nesse lugar. Por enquanto, o que consegui foi essa sala - gesticulou. -
Digamos que ontem eu tive uma... oportunidade melhor.

A mulher sentou na ponta de sua mesa. Continuou:

-A favorita ao título desapareceu, uma penca de policiais surgiu do nada, o corpo de


jurados não deu entrevistas - lembrou. - Qual é, Sparin, não se pode esconder o óbvio!

O excelentíssimo caminhou de um lado para o outro olhando para os pés.


-E aí, depois de saber do assassinato, de modo muito esperto você ligou para o
chefe de edição e pediu a capa e três páginas, mesmo tendo informações beirando o zero e
não tendo sido confirmadas.

A gargalhada de Érica tomou conta do ambiente. Ela largou o seu café sobre a mesa
e aproximou-se do prefeito, que permanecia em pé com cara de idiota.

-Sparin, Sparin - suspirou. - Sempre soube que você não era muito inteligente, mas
você acaba de se superar. Você realmente acha que eu - pousou a palma da mão no peito -,
Érica Zunardi, passaria mais de uma década em uma redação de jornal para, numa hora
dessas, botar tudo a perder? - Voltou a rir.

-Não, não!, - balançou a cabeça -, ganhei a capa e as três páginas porque tinha
informações concretas e fotos que tiramos da agitação policial de longe. Se tivesse lido a
reportagem atentamente, se é que a leu, veria que eu citei não só a morte de Isabel
unicamente, e sim que foi assassinada, bem como o modo.

-Mas como? - ele quase cuspiu as palavras. - Quem te deu essas informações?!

Com um sorriso no rosto, ela voltou a contornar a sua mesa e sentou espaçosa em
sua cadeira.

-Por que esse tom de ameaça, Sparin? - questionou. - Ao que parece você está
irritado porque o povo sabe do ocorrido. Mas isso não faz sentido. Quer dizer, um prefeito
esconder a verdade da população. Espera! - Esticou a palma da mão. - Você é o prefeito que
me pagou cinco mil para cobrir exaustivamente a sua reeleição!

Ela riu e se lançou na cadeira outra vez, finalizando:

-Acho que você também quer que a população não saiba disso. - Voltou a suspirar e
cruzou os braços depois de ajeitar os cabelos. - Sorte que temos pessoas simples e
verdadeiras por aí. Ou trouxas, como você preferir rotular.

João Sparin se aproximou da mesa e bateu no tampo com o punho cerrado, fazendo
alguns papéis remexerem.

-Quem? - gritou.
Devagar, ela se esticou para frente, chegando mais perto.

-Fernando Tomiollo - respondeu sem pressa. - Uma fonte definitivamente segura,


não?! Pois é, Sparin. Acho que a velhice nos obriga a fazer as coisas certas.

Em meio à fúria que lhe percorria em aceleração, o prefeito deu as costas e saiu
rápido do local. Érica foi atrás para poder gritar:

-Ou nos obriga a sermos sinceros!

A agenda de Caroline não seria interrompida apesar do ocorrido. A princípio, todas


as atividades marcadas para o trio de soberanas continuavam de pé, porém o empecilho
seria ter de responder as questões atreladas ao assassinato.

Pela tevê de seu quarto, ainda atônita, acompanhava as notícias. Naquela manhã de
sol deveras acanhado, a nova Rainha da Festa da Uva estava se preparando na casa onde
morava com os pais. Uma cabeleireira contratada a acompanhava desde a fase do pré-
concurso, e o dever de deixá-la impecável sempre era bem realizado. Sentada em frente a
uma penteadeira ao lado de sua cama, Caroline tinha os cabelos penteados pela profissional,
e pelo espelho em sua frente podia perceber o reflexo da mãe ao fundo.

A senhora Lisboa nunca sentira tanto orgulho de seus filhos. Um grande detetive com
a carreira em ascensão e uma filha tão bela que representaria pelos próximos meses a maior
festa da cidade. Os seus olhos enrugados se enchiam de micro gotículas que procurava
inutilmente esconder.

-Mamãe - a Rainha quebrou o silêncio de modo proposital -, você pode me trazer o


telefone?

Ela precisava fazer uma ligação. Em cima de sua cama, uma nécessaire que
pertencia à Lorena Vertino, a qual havia sido pega por ela por engano na noite anterior,
quando deixara os Pavilhões.

A senhora Lisboa apareceu na porta com o telefone e o passou para as mãos da


filha, que discou e aguardou. Quatro ou cinco toques foram necessários para que alguém
atendesse no apartamento de Lorena.

-Alô?

Aquela não era a voz que ela esperava encontrar.

-Oi... - estranhou. - A Lorena se encontra?

-Não. Liga depois.

Quando a linha ficou muda, Caroline tentou enganar a própria mente de que aquilo
não era o que ela estava pensando. Aquela voz masculina lhe era tão familiar.

Ao sair do carro, Benjamin logo encontrou o inspetor que o esperava em frente ao


IML. Pôde reparar que, se submetidos a uma competição, ambos os homens lutariam
bravamente para ver qual dos dois trazia a expressão mais sonolenta. Pagliatti estava com os
olhos miúdos e bocejava.

-Noite ruim, inspetor?

-Noite, Ben? - iniciou sarcástico. - Eu não chamaria 2h de sono de noite!

Lisboa riu sem mostrar os dentes.

-Você já sabe o que encontraram na necropsia? - Pagliatti questionou.

-Não. - O detetive sorriu. - Mas é o que vamos descobrir, meu caro!

Entraram no prédio e pediram por Nero Sanzani. Foram encaminhados a uma sala no
fim de um corredor com diversas curvas.

-Senhores! - o especialista os cumprimentou.

A sala era totalmente branca e fria - do modo literal e metafórico. Logo no centro,
uma maca de ferro suportava o corpo encoberto por um saco de cor preta. O cheiro era forte,
Enrico o rejeitou logo ao entrar.

-Não há tempo para rodeios, Sanzani. Desembuche tudo que souber!

Ali o silêncio era relativo: existia sempre, porém era quebrado a cada nova visita.
Quando apenas os especialistas estavam presentes e trabalhavam no corpo, o que se podia
escutar era unicamente o som dos órgãos sendo revirados e de uma tristeza tendo de ser
escondida para que se pudesse realizar o trabalho.

Nero estava receando quanto aos fatos. Caminhou até o extremo oposto da sala,
onde apanhou uma prancheta com diversas folhas presas. Rodou os olhos por tantas
averiguações e começou a falar:

-Muito bem, vamos por partes. Antes mesmo de verificarmos o corpo


meticulosamente, o pessoal da perícia encontrou isto.

Ele esticou duas fotos para o detetive. Benjamin analisou com cuidado e repassou
para o seu companheiro. Na primeira das imagens, um colar de ouro com um pequeno
pingente em formato de cruz na ponta. Já na segunda, um ínfimo pedaço de tecido vermelho.

-Trata-se do colar que a vítima usava na hora do crime - explicou. - Este pequeno
pedaço de tecido foi encontrado preso junto a ele. A perícia enviou para análise. Pode não
ser nada, pode nos dizer tudo.

Enquanto forçava o pensamento a fim de conseguir qualquer coisa, o detetive


observou Nero trazer para perto deles uma mesinha também metálica e com rodinhas. Em
cima dela, uma bandeja coberta por um pano branco. Ali estava o colar de Isabel e outros
pertences, como brincos, anéis e pulseiras.

-A causa mortis foi confirmada como estrangulamento?

Enrico abaixou as fotografias para que pudesse observar o detetive e sua pergunta
sem muito sentido. Aquilo era óbvio, não?

-Sim - respondeu o médico. - Mas é aí que entramos na parte crítica e curiosa do


caso.
Sanzani remexeu as folhas na prancheta. Benjamin estava impaciente, a ponto de
começar a martelar a sola do sapato no chão de pedra branca.

-Isabel Radaelli foi de fato estrangulada, isso por volta da lh da manhã. Os sinais
comprovam que alguém a agarrou por trás e obstruiu a passagem de ar por suas vias
respiratórias. Foram encontradas diversas lesões no pescoço, e internamente encontramos
infiltração hemorrágica na pele.

-Porém - incitou Benjamin.

Nero revirou os olhos até abaixá-los.

-A senhorita Radaelli teria falecido de qualquer jeito - vomitou a sentença. - Mesmo


se não fosse estrangulada.

Antes de qualquer interjeição, o celular do detetive tocou.

-Céus! - resmungou. Ao olhar a tela, percebeu que devia atender. - Segure a palavra,
Sanzani.

Lisboa se encaminhou até o canto da sala para atender.

-Ben, provavelmente eu estou te incomodando, mas...

A voz de sua irmã denunciava apreensão.

-Precisei ligar para Lorena Vertino minutos atrás, mas ela não me atendeu.

O nome daquela jovem sempre trazia um mau pressentimento ao detetive, que de


nada entendia.

-Precisa falar com ela?

-Isso não importa agora, Ben. Eu só queria falar, mesmo não sabendo se isso é
importante ou não, que quem atendeu o telefone foi um homem. E eu tenho quase certeza de
que era o namorado de Isabel.

-Céus! - assustou-se. Abaixou a voz para confirmar: - Guilherme Zarraro?


-Passei muito tempo com Bel antes da escolha, saímos para jantar várias vezes e o
tal do Guilherme sempre ia junto. Eu reconheci a voz dele, Ben.

Lisboa fechou os olhos e os forçou, fazendo entrar na mente mais aquela ideia.
Depois, pediu uwn favor que nada tinha a ver com aquela nova descoberta:

-Eu preciso que você me faça uma lista.

-Uma lista?

-Sei que você não vai ter muito tempo no dia de hoje, mas você precisa encontrar
quaisquer 15 minutos para fazer essa lista e me entregar o quanto antes. Isso vai nos ajudar.

-Ben, eu não estou entendendo nada. - a sua voz era tão inocente. - Que tipo de lista
você precisa que eu faça?

Ele vacilou um pouco, mas falou ainda sussurrando:

-Eu preciso que você faça uma lista de todas as pessoas que te abraçaram depois do
seu desfile individual na noite de ontem, até o momento em que você foi coroada. Por favor,
irmãzinha, não esqueça de ninguém.

A linha parecia muda, mas ele sabia que ela ainda estava lá, apenas em silêncio
tentando compreender a ideia estranha.

-Uma lista de quem me abraçou? Mas, Ben...

-Foram muitas pessoas, imagino eu. Você precisa colocar o nome de todas elas em
um papel. De preferência, em ordem. Por favor, não esqueça de ninguém.

Depois de aceitar a ideia, ele desligou. Voltou até os senhores. Encontrou um


Pagliatti que, de tão ansioso pela continuação do especialista, remexia os ombros sem parar.

-Você disse que Isabel morreria de qualquer jeito - Lisboa retomou o assunto.

-Sim, Isabel estava fadada a morte, não teria como escapar. Digo isso porque
encontramos uma quantidade exagerada de estricnina em seu estômago.
-Uau! - surpreendeu-se o inspetor.

-O senhor disse estricnina?

-Sim, senhores. Estricnina se trata de um veneno comum que já foi muito utilizado
para se matar ratos, e hoje em dia a sua venda é proibida. Não acredito que a jovem tenha
ingerido propositalmente, determinada a situação. Isso só pode significar que alguém quis
envenená-la e esse alguém desconhecia o efeito da estricnina. Isso porque a quantia
encontrada no corpo de Isabel era mais do que suficiente para matá-la, porém, a ação do
veneno leva cerca de dez minutos.

Pagliatti estava com a boca no chão. Lisboa encarava o doutor como ponto de fuga,
pois o seu consciente apenas recebia as informações e as assimilava, tentando organizá-las
de algum modo.

-O nosso assassino queria muito matar Isabel, hein?! - observou o inspetor, ainda em
espanto. - Aplicou o veneno e provavelmente não podia esperar até que fizesse efeito, então
estrangulou a moça de uma vez.

Benjamin balançou a cabeça. Tudo estava errado.


Ambos os parceiros deixaram o IML perto do final da manhã após darem uma
rápida olhada no corpo pálido e maltratado de Isabel. A conversa com Sanzani havia se
espichado a fim de que se pudesse compreender melhor o efeito da estricnina no corpo, e
mais algumas informações importantes e impactantes haviam sido repassadas - desta vez,
somente para Benjamin.

Ao entrarem no carro do detetive, Pagliatti perguntou, ainda aturdido com as


informações:

-E o que fazemos agora?

Lisboa sorriu como de uso.

-Não é óbvio?

Para o jovem, não.

-É quase meio dia, meu rapaz! - entusiasmou-se. - Nós vamos fazer o que qualquer
pessoa em nossa situação faria - deu a partida no carro. - Nós vamos almoçar!

Poucos minutos e muitos assovios depois, o veículo foi estacionado em frente a um


restaurante de renome. Benj amin havia escolhido o estabelecimento da família Zarraro não
só pela fama do local.

Diversos pratos compuseram a mesa em que haviam escolhido para se sentar: pão,
polenta frita, massa com molho vermelho, batata frita, bife à milanesa, maionese, variadas
saladas, arroz e bucho, tudo precedido por uma típica sopa de agnolini. Isso tudo,
obviamente, era só para preencher a mesa, pois a todo tempo muitos garçons circulavam de
um lado para o outro, desfilando com espetos das mais variadas carnes.

-Sinta e aprecie o cheiro do churrasco, Pagliatti!

Ben e seu companheiro despenderam uma hora para desfrutar da exímia comida
italiana. Durante este tempo, centenas de pessoas entravam e saíam do grande restaurante,
sempre lotado.
Largando os talheres como se levantasse o pano branco, Enrico se rendeu. O seu
estômago estava cheio, sentia-se pesado o suficiente para não conseguir fazer qualquer
coisa.

-Acho que eu não posso comer mais nada, vou explodir!

Benjamin, por sua vez, depois de beber mais um gole de seu suco de uva, largou o
copo na mesa, tão gelado que tinha feito o vidro transpirar. Desta vez, havia renunciado a
sua água com gás em um ineditismo espetacular a fim de realizar um experimento curioso
com aquela bebida encorpada.

Deu mais um gole no suco. Depois, colocou a língua para fora, o que fez o inspetor
rir e não entender.

Dirigiram-se ao caixa, onde um homem já com seus sessenta anos cobrava as contas
de cada cliente. Benjamin se escorou no balcão, observou a pesada jaqueta preta que o
vestia e o seu sorriso já sem alguns dentes. Perto dali havia uma tevê, e nela a imagem de
Érica Zunardi era transmitida. Desta vez, ela não estava segurando nenhum microfone. A
jornalista estava sendo entrevistada.

Ben sacou uma nota da carteira para pagar o almoço e colocou em prática o seu
intuito de detetive:

-Mas que barbaridade esse crime, hein?!

-Nem me diga! - resmungou o senhor, ainda olhando para o televisor. - Isabel era a
namorada do meu filho, o guri tá com o coração quebrado!

Lisboa simulou expressão de descontentamento.

-Posso imaginar. Nem mesmo Caxias do Sul é perfeitamente segura atualmente!

Zarraro balançou a cabeça.

-Isso nem é o problema. - revirou os olhos. - Quem matou Radaelli fez porque quis.
E quando a gente quer alguma coisa...

-A gente consegue - completou.


Com um copo de café em mãos para que pudesse se manter acordado, o detetive
retomou aos Pavilhões da Festa da Uva no começo da tarde, desta vez sozinho. Pagliatti
estava encarregado de ir até o escritório de Tomiollo, a pedido do mesmo.

O local do crime ainda estava cercado por seguranças e alguns carros de imprensa
haviam montado acampamento. O circo estava armado. Lisboa apresentou o seu distintivo e
encarou a fita amarelada que obstruía a passagem direta para dentro do banheiro feminino,
ignorando-a logo em seguida. Um silêncio sepulcral imperava por todos os cantos daquele
aposento. Para a sua surpresa, as portas de todas as cabines haviam sido removidas,
provavelmente a fim de se analisar os trilhões de digitais ali presentes.

Perda de tempo, pensou.

Forçando os olhos como se isso fizesse engrandecer o seu senso de percepção, Ben
procurou se autoquestionar: O que ele estava deixando escapar?

Olhou para as janelas e logo as rejeitou. Eram do formato basculante e muito


pequenas para alguém tê-las utilizado, ainda mais quando havia Lana Mendez na jogada. Por
falar da moça, ele havia retomado ao local para verificar com mais precisão o seu
depoimento. Segundo o relato da jovem, Isabel só poderia ter morrido devido a presença de
um terceiro elemento naquele lugar. Mas como? Benjamin também descartava a hipótese de
Lana ser a assassina. Ela não seria tão estúpida para um crime naquele momento, de modo
tão perigoso e complicado. Mendez não saberia articular um plano daqueles, ainda mais,
sozinha.

Perguntas, perguntas. Elas sempre aparecem para nos rondar. E, quando se é


detetive, a verdade é que elas nunca chegam a desaparecer.

Circulando pelo banheiro, o detetive se colocou na mesma posição que Lana


Mendez afirmou ter tomado na noite anterior: em frente ao espelho. Curvou-se um pouco
para frente, por sobre a pia, como se estivesse olhando para os seus cílios, assim como a
garota tinha feito. Por mais que Lana tivesse olhado, de fato, unicamente para o seu reflexo,
naquela posição ela ainda obtinha uma boa visão periférica das cabines atrás de si.
Lisboa aproveitou para refazer todos os passos da candidata - andou até o porta
papéis junto à entrada, voltou devagar e caminhou até a última das cabines. Entrou naquela
destinada a deficientes e então a lembrança ligeiramente picotada de um rosto póstumo
interpolou a sua mente. Porém, naquele momento, nada mais estava ali.

A cabine era bastante espaçosa. Isabel tinha sido esperta ao escolhêla para ficar
mais a vontade, porém, se tivesse ido até qualquer outra, naquele momento ela seria uma
Rainha. Viva.

Ben analisou o cubículo uma última vez, e então algo lhe chamou a atenção.
Encaminhou-se rapidamente para a porta de entrada do banheiro, onde fez o caminho que
Isabel certamente teria feito. Depois, saiu da cabine outra vez e foi até o espelho. Olhou o
seu reflexo, virou-se no mesmo lugar, abaixou-se e investigou uma pequenina ideia que lhe
pipocara o consciente.

Um detetive devia, sim, especular. E aquela era a oportunidade perfeita para se


cruzar fatos e criar hipóteses. Sim, sim, inúmeras hipóteses. Porém, naquele caso, Lisboa
não precisou de muitas. Uma delas, a princípio, funcionou perfeitamente.

Ligeiramente atônito, o detetive exclamou para si:

-Incrível, incrível!

Deixou o local com pressa sem saber que, do outro lado do corredor, iria se deparar
com outra surpresa: logo ali estava o banheiro masculino. Benjamin já havia reparado antes
naquela outra porta, porém, depois de suas novas especulações, agora tudo fazia mais
sentido.

Entrou no banheiro para homens, porém nada esperava encontrar por ali. Encarando
os azulejos do chão, procurou pensar ainda um pouco mais. Colocou as mãos nos bolsos da
calça, e instantaneamente se lembrou da presença de algo que já havia esquecido.

Tirou de um dos bolsos o pequeno objeto que havia guardado horas antes e o
encarou.
O finalzinho de cada tarde sempre foi muito bonito em Caxias do Sul. No céu o sol
vai descendo sem pressa, algumas nuvens correm como se tivessem de acompanhá-lo e,
antes da escuridão chegar, tudo é pintado de vermelho-alaranjado com alguns traços de
amarelo e violeta. Porém, no começo da noite de domingo, o céu estava manchado. Azul
escuro e cinza fúnebre mesclavam-se e anunciavam uma provável tempestade.

Os ventos haviam mudado, ecoavam dentre as casas, faziam cabelos dançarem no


Parque dos Macaquinhos, e nas ruas os passos eram acelerados para que se chegasse logo
em casa. Naquele exato momento, outra intempérie: o velório de Isabel Radaelli iria
começar.

Em uma capela de piso de mármore escolhida a dedo, os pais da moça estavam


inconsoláveis, mesmo com cada novo abraço que aparecia com o intuito de transmitir um
pouco de conforto. A senhora Radaelli, sentada perto do caixão de madeira nobre, segurava
a mão da filha coberta por flores até o pescoço - a necropsia a liberara, porém não estava
em plenas condições para um velório tão rápido. Aquela mãe olhava para a filha com um rio
dentro dos olhos, sendo que a correnteza fazia as lágrimas caírem no chão. Ela usava uma
malha pesada que nada combinava com o resto das roupas, mas nessas horas isso é o que
menos importa.

Mesmo assim, sempre há quem se arrume para um velório. E foi o caso das
embaixatrizes que chegaram sozinhas ou agarradas em seus namorados, usando óculos
escuros e roupas pretas de muito bom gosto, porém não totalmente apropriadas. A capela
cheirava ao couro de suas botas, que ecoavam na pedra do chão e se aproximavam para
cumprimentar o senhor Radaelli.

Eu sinto muito.

Meus pêsames.

Ela está em um lugar melhor.

Quem sabe o que dizer em uma hora como essas?


Benjamin certamente não sabia, e por isso mesmo apenas colocou-se junto de seu
companheiro em um canto da capela, no outro lado de onde se encontrava o caixão. Usava
paletó escuro assim como Enrico, que desta vez tinha abandonado o gel no cabelo para
aderir aos fios bagunçados.

Do lado de fora a tempestade começou, metafórica e literalmente. As nuvens se


abriram para que a chuva torrencial desabasse, e o vento fazia remexer as árvores como se
elas fossem tombar. Nas poças de água acumuladas junto ao meio-fio, em frente ao local, a
tempestade de jornalistas montava acampamento dentro de seus furgões, a espera de uma
deixa para cobrir o acontecimento.

Pela porta da capela, pessoas encharcadas entravam correndo e logo tinham de


parar ao observar a cena encontrada: o lugar só não estava em um silêncio colossal por
causa do barulho da chuva. Nem mesmo o choro ali podia ser escutado.

Dentre as moças que chegavam, nem as duas princesas conseguiram se destacar


tanto quanto Lorena Vertino, que apareceu vestindo um longo casaco de lã vermelho
escarlate e botas de couro pretas de salto fino que subiam até os seus joelhos. Ao entrar,
automaticamente os olhares acabaram se voltando para ela, que pareceu não se importar e
até manteve o nariz ligeiramente inclinado para cima.

Quem apareceu também foi o presidente da Festa que tratou de ficar longe de João
Sparin. Pagliatti havia contado ao detetive que fora chamado ao escritório de Tomiollo para
tomar as rédeas da discussão entre os dois. O prefeito não estava muito contente pelo fato do
presidente ter aberto o bico para a imprensa sem o seu consentimento. Quanto a isso, o velho
preferiu dar de ombros.

-Por que nós temos que continuar aqui? - cochichou o inspetor.

Ben quis sorrir, mas seria inadequado.

-Observar é uma arte, Enri - respondeu. - Ainda mais observar um velório.

Passado um curto tempo, Benjamin encontrou a sua vítima. Era hora de iniciar a
caçada. Virou-se para o inspetor e o convidou:

-Se fosse você, não perderia essa.


Lisboa caminhou até uma antessala que ficava escondida depois de uma pequena
porta na lateral da capela. Ao ver que a sua presa tinha passado por ali, decidiu ir atrás para
que pudesse abordá-la e eliminar de vez mais uma das dúvidas criadas em sua mente.

Encontrou Guilherme Zarraro se servindo de café em uma máquina monstruosa


instalada naquela salinha com alguns sofás. O rapaz estava de costas e, portanto, só percebeu
a presença dos senhores ao se virar com o copo em mãos; vacilou, quase deixando tudo cair
no chão.

-Senhor Zarraro! - o detetive quis parecer íntimo. Guilherme dividiu os olhares


entre os dois homens. - Se o senhor não se importar, gostaria de lhe fazer uma pergunta.

Depois de uma curta risada, o jovem engatou:

-Não será a primeira - deu um gole no café quente.

-Pois bem - Lisboa estava com as mãos nos bolsos da calça. - Vou ser curto e direto:
O senhor teve relações sexuais com a senhorita Radaelli na noite do dia 3, sexta-feira?

Ao seu lado, Pagliatti tossiu em seco. Nenhum dos dois jovens compreendeu o
questionamento.

Zarraro por pouco não cuspiu o café. Em vez disso, tomou algum tempo para
analisar a cena e então caminhou até o detetive para falar baixo, sereno ao pé de seu ouvido:

-Tô cansado de ti, seu filho da puta.

Desta vez, Benjamin sorriu.

-Vejo que está fugindo de outra pergunta, meu jovem.

Guilherme arremessou o copo de café contra a parede e agarrou o colarinho da


camisa clara do detetive. Em mais uma cena de fúria, sufocou-o.

-Talvez porque eu não seja o teu jovem - balbuciou entre os dentes cerrados. As
expressões marcavam o seu rosto em traços diagonais.

-Você teve relações sexuais com a senhorita Radaelli na noite de sexta-feira? -


insistiu o detetive com a voz pacífica, porém engasgada devido à pressão do colarinho de
sua camisa.

Apertando a gola da roupa ainda mais, Guilherme não desviou os olhos de Lisboa.
Sua boca parecia que iria espumar a qualquer momento. Pagliatti não sabia como agir.

-Sim, nós éramos namorados, o que você esperava?

-Então vocês dois transaram.

Guilherme largou o colarinho e deu uma volta no lugar, ficando de costas para o
detetive. Passou a mão na cabeça e virou de súbito, com o punho cerrado, pronto para
acertar o rosto daquele homem de perguntas inconvenientes. Porém, Enrico foi mais rápido e
segurou o braço do rapaz ainda no ar.

Pairou o silêncio momentâneo que logo fora quebrado:

-Se nos permite, meu jovem - enfatizou Lisboa novamente -, nós já estamos de saída.
Pagliatti?

Levaram alguns segundos para que o inspetor se certificasse que Guilherme não
tentaria mais nada e enfim soltasse o seu braço.

Abandonaram o rapaz naquela antessala e cruzaram a capela sem receber muitos


olhares. Antes de deixarem o local, ambos os cavalheiros usaram os seus paletós como
capas protetoras à chuva e atravessaram a rua a passos largos, até que chegassem ao carro
do detetive. Do lado de dentro, Benjamin recebeu a pergunta que já esperava:

-O que foi aquilo?

Ligando o carro, respondeu:

-Uma pergunta necessária, meu caro.

Na primeira sinaleira fechada, Lisboa continuou e explicou-lhe melhor, antes mesmo


que o inspetor voltasse a questionar. Antes disso, lançoulhe um olhar engraçado, confiante e
irônico.
-Quando estávamos na sala da necropsia, Nero me passou uma informação muito
curiosa. - Voltou o olhar para o sinal vermelho e depois encarou o inspetor mais uma vez. -
Na noite de sexta-feira, um dia antes de sua morte, Isabel teve relações sexuais com dois
homens diferentes.
5Aspetto Inganna: expressão no dialeto italiano que significa `as aparências enganam'.

Cinco copos de vidro cheios de água em temperatura ambiente repousavam por


sobre uma bancada de madeira robusta e retangular montada nos pavilhões da Festa da Uva.
Em frente à estrutura erguida às pressas, cerca de cem cadeiras haviam sido distribuídas em
fileiras, e aos poucos os jornalistas começavam a preenchê-las. Vinham de todos os lugares:
tinha emissora de tevê até do interior do Paraná. Era uma péssima ocasião para uma ótima
mistura de culturas.

A coletiva marcada para esclarecer e noticiar oficialmente o caso estava marcada


para as 9h daquela fria segunda-feira. Todos estavam presentes, a não ser por João Sparin,
que chegaria 30 minutos depois.

Perto de completar uma hora de atraso, os cinco senhores tomaram seus assentos na
bancada: o prefeito, o presidente, o delegado, o detetive e o inspetor. As lentes das câmeras
de redes de televisão nacionais cobriam a coletiva ao vivo, transmitindo tudo durante sua
programação matinal. Eram repórteres por todos os lados, munidos de seus microfones e
alguns papéis em mãos - muitos ainda nem tinham tido tempo para entender direito do que
tratava a Festa da Uva.

Quem deu início à coletiva foi o Delegado García, apresentandose e anunciando que
os depoimentos que comporiam o inquérito policial começariam a ser colhidos naquela
mesma tarde. Passando diretamente a palavra para o prefeito da cidade, Sparin lamentou o
ocorrido, quis deixar claro que a prefeitura havia colocado em campo toda uma completa
equipe de segurança, e prometeu que o melhor serviço seria feito a fim de trazer a alegria de
volta para o povo caxiense que, naquele momento, deveria manter-se unido.

-Bla, bla, bla... - rejeitou Érica Zunardi sentada em uma das cadeiras da plateia. Ao
seu lado, um colega jornalista do interior de Santa Catarina encarou o seu desdém. Ela
ignorou e olhou para Nei Casso, que comandava a câmera instalada em um local estratégico.
Entregou-lhe gestos irônicos, como se zombasse do prefeito. 0 cinegrafista riu discreto.

Logo depois, o presidente tomou a palavra e surpreendeu a todos ao fazer um


discurso delicado em que apontou a importância de ser representante de uma Festa daquele
cunho. Tratou cada moça que já se candidatara a soberana como filha, destacando o sonho
que toda garota tem de um dia ser uma Rainha. Pediu aos pais para que cuidassem sempre de
suas filhas, pois elas são o maior tesouro, e pediu também que a população caxiense orasse
por Isabel Radaelli, um exemplo de bom coração.

Tomiollo acrescentou que, "para as moças que nascem em Caxias do Sul, o concurso
de Rainha e Princesas da Festa da Uva é a chance da realização de um sonho que está muito
próximo de qualquer uma. Além de carregar o título, as meninas coroadas podem ainda
representar uma tradição que lhes é passada desde a infância, e isso é um dos pontos mais
positivos de uma cidade tão feliz quanto a nossa."

Algumas lágrimas rolaram pelas bochechas caídas do presidente, e naquele


momento não foi preciso pedir um minuto de silêncio. Não só todos os presentes naquela
coletiva, como também a população caxiense e parte de um país, emudeciam-se em luto.

A tarde estava pegando fogo, apesar das temperaturas ainda baixas. Na delegacia,
os depoimentos começaram a ser colhidos, sempre mediados pelo delegado García.
Benjamin havia decidido que só gastaria o seu tempo para escutar estritamente o essencial.
E, como Lorena Vertino era a primeira a ser ouvida, ele estava presente.

Era uma sala pequena demais para tamanha presença. A jovem, com o seu cabelo
cor de chocolate que acompanhava o mesmo tom de seus olhos sérios, desta vez não tinha um
vestido de longos panos para esconder quaisquer segredos. Lorena estava,
surpreendentemente, de jeans escuro colado nas pernas e uma jaqueta de couro nada
discreta.

-Senhorita Vertino - cumprimentou o delegado -, por favor, sente-se.

Sem nada dizer, a mulher tomou a cadeira, provavelmente analisando a fraca


iluminação e condições do local.

-Quanto tempo isso irá levar? - cuspiu uma pergunta inesperada.


-Menos do que a senhorita imagina, mais do que gostaríamos - quem pontuou foi
Lisboa. - A senhorita matou Isabel Radaelli?

-O quê?! - foi a sua reação imediata.

Por debaixo da mesa, García pisou no pé de seu companheiro.

-A senhorita matou Isabel Radaelli? - repetiu ele claramente.

Lorena cuspiu um riso e olhou para os dois homens, provavelmente os julgando


babacas. García estava desconfortável em seu lugar, quiçá mais que a própria moça, que
respondeu:

-Não.

Benjamin olhou para a ficha da candidata. Solteira, 1.79m, acadêmica do curso de


Educação Física, sete multas por excesso de velocidade no trânsito, representante do maior
time de futebol de Caxias do Sul. De todos os apontamentos, ele escolheu um:

-A senhorita é um pouco alta, não?

Ela riu mais uma vez.

-Meu Deus, o que isso tem a ver? - mostrou desdém.

-Senhorita Vertino - chamou o detetive -, a sua colega de concurso foi assassinada.


Alguém a estrangulou. Suponhamos que alguma de suas concorrentes seja a assassina,
podemos descartar todas que forem de baixa estatura e magras demais. É preciso de força
para asfixiar até a morte alguém do porte de Isabel Radaelli. A senhorita concorda?

Lorena não tirou o sorriso dúbio do rosto. García esparramou-se em sua cadeira,
convencido de que o seu papel naquela hora seria reduzido como em todas as vezes em que
Benjamin estava presente. Bocejou.

-O senhor está me acusando, detetive?

-De maneira alguma.


-Ah, melhor assim. Conheço as leis o suficiente, a ponto de usá-las quando for
preciso. Seria um insulto da sua parte acusar injustamente uma candidata como eu apenas
pela minha altura, certo?

Benjamin suspirou e estalou os dedos.

-Se a senhorita me permite, gostaria de saber da briga travada entre você e Isabel.

Naquele momento, o seu sorriso feminino se transformou em um riso seco e


carregado.

-Quem contou isso a vocês? - quis saber. - Mendez, não foi?

Ele não respondeu.

-Isabel e eu discutimos, sim. Discutimos durante o pré-concurso inteiro, para falar a


verdade! - admitiu. - É claro que discutimos, isso é o que as garotas fazem, não?

-E a razão dessas discussões? - García voltou à cena.

-Inveja - respondeu breve.

-E por quais motivos exatamente Isabel sentia inveja da senhorita?

Outro riso. Lorena se ajeitou-na cadeira.

-Ah, não. Não era Isabel quem sentia inveja de mim. - Cruzou as pernas. - Eu é que
sentia inveja dela.

A confissão fez com que García desviasse o olhar para o seu colega, que também
estranhara a sinceridade.

-Isabel estava bem cotada em todas as pesquisas para se tomar Rainha. A sua
torcida era a maior. O vestido, o mais bonito. Ela se destacava mais do que as outras
candidatas. Convenhamos. Quem seria a estúpida a negar que não sentia inveja dela?

Benjamin não pode deixar de pensar que ela estava absolutamente certa e, até então,
não escondia nada. Mas ele insistiu:
-E por que as outras candidatas não chegaram a brigar com Isabel?

-Porque são tolas. Medrosas - recostou-se. - Eu fui a única que teve a coragem de
deixar claro qual era o lugar de Isabel.

Lisboa sorria por dentro. O delegado incitou:

-E qual era o lugar dela, senhorita?

-Junto com todas as outras.

Benjamin sabia que lidar com mulheres era um tanto quanto difícil. Por isso mesmo,
era solteiro.

-Poderia detalhar um pouco da briga que tiveram? - insistiu no assunto.

-Ah, me poupe, detetive. Lana Mendez taxou aquilo como briga porque ela faz
Letras. Ela lê romances policiais, então isso está sendo uma puta diversão pra ela. Quer
dizer, ela gosta de cenas, histórias. Dramatização é a palavra. Era óbvio que ela ia
engrandecer a coisa toda. Eu e Isabel nunca brigamos. Nós só usávamos bastante... ironias -
pontuou. - Todas nós percebíamos que até mesmo os jurados a tratavam com diferença, e o
que eu fazia era retrucar. Isabel respondia, sempre de acordo com a sua boa educação, e eu
não ficava quieta. Mas era só isso. Alguém tinha que abrir a boca.

Benjamin pigarreou um pouco antes de lançar a sua próxima pergunta:

-Senhorita Vertino, por favor, tente seguir o meu pensamento: se não fosse o
assassinato, a senhorita concorda que Isabel Radaelli seria coroada como nova Rainha?

-Isso é um fato indiscutível - respondeu.

-Então, continuando a lógica, o assassinato não teria sido proposital, a fim de


alguém tomar o lugar de Isabel?

Ela balançou a cabeça positivamente.

-Entendo aonde você quer chegar, detetive - ela utilizava a palavra fazendo pouco
caso. - Mas eu não matei Isabel. E, diferentemente das outras, a sua morte não me
impressionou tanto porque, convivendo durante esse tempo, eu pude perceber o quanto cada
uma dessas garotas seria capaz para conseguir o reinado. Qualquer uma iria mais longe do
que a outra.

-E a senhorita não seria capaz de tal feito também?

Lorena sorriu e deixou no ar:

-Eu não estou me excluindo da lista.

O silêncio bateu na porta e entrou sem permissão. Circulou em tomo dos dois
homens abismados com o caráter da mulher logo ali em frente e assentou-se.

-Porém, - ela continuou - como eu j á disse, não matei Isabel Radaelli.

-Não valeria a pena para roubar o lugar dela? - García questionou com firmeza.

-É burrice. Matando a Rainha, sobram ainda dezessete garotas com as mesmas


possibilidades de ocupar o seu lugar. É matemática pura, uma questão de probabilidade. Os
riscos são imensos em se matar uma inocente. E, no fim das contas, Isabel não tinha culpa
por ser... perfeita - receou, dando o braço a torcer. Provavelmente aquela frase lhe custara
muito.

O interrogatório tinha saído completamente do rumo que Benjamin havia


prospectado. Apresença de Lorena naquela sala, a partir de seu julgamento, teria sido de
extrema importância, uma vez que o seu perfil diferenciado se destacava. Porém, aspetto
inganna, como dizia a avó do detetive. E, desde a noite do crime, tudo estava realmente
sendo o que não era.

Lorena Vertino deixou a pequena sala após algum tempo satisfeita com suas
respostas, diferentemente do detetive e suas perguntas.

Quando Lisboa pediu para que Pagliatti acompanhasse os policiais na visita ao


quarto de Isabel Radaelli, a conversa foi mais ou menos assim:
-Vá, vá! - ordenou. - Ficarei para escutar os depoimentos relevantes. Mas você
precisa entrar naquele quarto e vasculhar tudo, sim? Precisamos conhecer mais Isabel
Radaelli.

Pagliatti o analisou e quis brincar:

-Senhor, ela está morta.

-Céus, não me diga! - devolveu a piada. - Ainda se pode conhecer as pessoas


mesmo depois de mortas, meu caro. E é incrível o que podemos descobrir. Lembre-se de
tomar muito cuidado com o que você fizer em vida para não deixar muito após a sua morte.

O jovem assentiu depressa.

-Anotarei no meu bloco a sua dica. Antes de ir, queria que você me ajudasse com
um detalhe que ainda não entendi, Ben.

Lisboa repousou a mão no ombro de seu parceiro.

-Meu amigo, eu sou todo ouvidos - encarou o seu ajudante cabisbaixo. - Estou
esperando.

-Bem... - começou o jovem. - O que diabos Isabel estava fazendo no banheiro para
deficientes fisicos?

Benjamin soltou uma gargalhada amedrontadora. Enrico Pagliatti não conseguiu


compreender o que estava acontecendo. Depois da cena, Lisboa fez questão de explicar:

-Meu amigo, eis que agora crio mais orgulho ainda de você!

-Senhor?

-Nem o Delegado com seus mil anos de experiência, nem ninguém conseguiu reparar
neste detalhe tão escancarado. Pensei que eu tivesse sido o único a me fazer esta pergunta,
mas vejo que me enganei. Você disse que precisa de ajuda com a resposta, sim?

-Por favor.
-Vejamos, Enri. Arquitete o óbvio: você não acha aqueles trajes que estas garotas
têm de usar um tanto quanto... exagerados?

-Certamente, senhor.

-Tente imaginar quantas camadas de tecido não os compõe. Deve dar uma
trabalheira para encontrar um meio de se usar o banheiro enquanto se está vestindo aquilo.

-Deveria ser melhor controlar a bexiga, no caso - observou.

-Sim, deveria. Certamente seria mais fácil. Mas se Isabel usou o banheiro, foi
porque de fato precisou. E ela tinha de dar um jeito com o vestido, não? Provavelmente
precisaria de muito espaço.

-A cabine para deficientes tem, no mínimo, o dobro do tamanho das outras - o


inspetor atingiu o ponto esperado. - O suficiente para não encontrar problemas em domar o
vestido.

-E sabe o que é melhor, meu amigo? - O detetive fez uma pausa proposital. - Aquela
cabine tem espaço o suficiente para acomodar duas pessoas.
Elá estava Enrico Pagliatti na casa dos Radaelli. Recepcionado por um casal ainda
choroso, deixou que um dos policiais cuidasse do sentimentalismo e subiu um lance de
escadas que levava diretamente a uma porta fechada. Desde a sua morte, o quarto de Isabel
permanecera fechado.

Encontrou um ambiente leve: nada de muita decoração, paredes pintadas ou objetos


em abundância. Isabel dormia em um quarto branco com uma cama que suportava uma
porção de cobertores grossos. Em um dos cantos, uma penteadeira, e ao lado uma estante
com muitos livros. O seu armário de madeira estava fechado em frente à cama.

Usando luvas brancas, o inspetor averiguou os quatro cantos junto de outro policial.
Durante duas horas que passaram rápido demais, nada de muito relevante encontrou. Alguns
livros de Medicina, retratos de família e um bocado de arquivos no computador que se
resumiam a artigos e resumos para estudo.

Pagliatti sentou na cama de Isabel e pensou um pouco. Havia vasculhado tudo o que
podia. Até o armário tinha sido revirado. Aparentemente, a vítima não havia deixado muito
para o seu post-mortem6.

-Café, Jeremias! - falou com o policial. - Precisamos de café!

Gentilmente o outro homem se ofereceu para buscar a bebida. Enquanto isso, Enrico
levantou da cama para ir até a janela, porém, ao ficar em pé, parou e voltou a sentar.
Levantou outra vez e depois sentou. Havia algo de errado.

Quando se levantou pela última vez, olhou para a cama e não pensou duas vezes.
Puxou o colchão para cima e ali estava escondida uma pequena agenda de capa preta dura.

-Cara, você é mesmo muito bom - falou para si.

A sola da bota de Lorena estava batendo impaciente contra o chão do lado de fora
da delegacia. Após ser liberada, esperava por uma carona que a levaria para casa, tendo o
seu pai pedido o carro emprestado.

-Esperando, senhorita?

Ela se virou diante da voz que apareceu de súbito e encontrou o rosto do detetive
que surgia pela porta principal.

-Carona - falou seca.

Com as mãos nos bolsos, Benjamin fitava o horizonte naquele dia ensolarado.
Diversas pessoas perambulavam de um lado para o outro nas ruas centrais, os pescoços
encobertos por golas de lã que as protegiam do frio.

-Você está esperando um Vectra prata, por acaso?

A marca do veículo de Guilherme Zarraro fez com que ela olhasse amedrontada
para o homem de temo.

-Teria sido mais fácil você me dizer que houve discussões entre a senhorita e Isabel
porque ela descobriu que você e o namorado dela estavam tendo um caso, do que criar toda
uma história diferente. Esconder nunca é bom.

Ele conseguiu deixar até mesmo aquela moça irredutível sem palavras.

-Eu não...

-Olhe - ele apontou para o final daquela quadra. Um Vectra apareceu em meio a
outros carros. - O seu chofer acaba de estacionar.

Benjamin se virou para entrar na delegacia novamente.

-Ah, sim! - Lembrou-se de algo e voltou. - Mande lembranças para o meu jovem
Zarraro.

Entrou rindo.
Naquela mesma tarde, Benjamin quis estar presente no depoimento de outra moça.
Essa, em especial, ele conhecia muito bem: Caroline Lisboa estava em um misto de
felicidade e dor.

-Você notou algo de estranho naquela noite? - perguntou o delegado.

Negando com a cabeça, ela respondeu:

-Não. Estava tudo perfeito, todas nós estávamos aproveitando ao máximo cada
momento - uma ligeira tristeza devido à recordação se esparramou pela sala -, não
imaginaria que uma coisa dessas pudesse acontecer.

-Será que a senhorita poderia me descrever como estava o clima antes de vocês
subirem ao palco para o anúncio oficial?

Caroline esforçou-se para recordar. Tanto havia acontecido nas últimas horas que
mal podia alinhar os fatos.

-Nós esperamos durante todo o tempo dentro do camarim. Acho que Isabel saiu com
uma das garotas para ir ao banheiro.

-Lana Mendez.

-Isso. Mas foi só. Os jurados passaram para nos cumprimentar pelo desfile, mas foi
muito rápido. Aposto que todas tentaram descobrir a decisão final em seus olhares, mas eles
nem mesmo falaram direito conosco. Depois nós esperamos, todos estávamos nervosos e
impacientes.

-Ninguém de estranho entrou no camarim`?

Ela negou.

Benjamin, acomodado, estava em absoluto silêncio, não tendo feito nenhuma


pergunta.

-Senhorita Lisboa, qual era a sua relação com Isabel`?

-Nós éramos muito unidas. Eu e ela nos aproximamos muito por sermos bastante
parecidas. Tínhamos assuntos em comum, e Isabel era como uma irmã mais velha para mim -
desabafou. - Lana também esteve por perto nas últimas semanas, nós nos dávamos bem, nós
três. Não entendo porque alguém mataria Bel.

Caroline, da felicidade de soberana à tristeza de uma amiga desolada, tirou do bolso


um lenço e deu duas batidas contra o canto dos olhos, mirando o chão.

-O que você fez na sexta-feira à noite?

A Rainha levantou o olhar e encontrou o rosto cansado do irmão que tinha enfim
feito a sua primeira pergunta. Ela não levou muito tempo para recordar.

-Nós todas fomos até os pavilhões para um último ensaio de passarela - a voz
falhava.

Benjamin olhou para as suas mãos e estalou os dedos. Suspirou.

-Menos Isabel.

Ao completar a frase, Caroline soube que talvez tivesse entregado uma informação
de suma importância. A julgar pelo olhar do irmão, que correu para encontrar o dela, aquilo
significava alguma coisa.

As rodas do carro impecavelmente lustro do detetive varriam as ruas de Caxias do


Sul tarde da noite. Desta vez, quem dirigia era o inspetor que, emocionado o bastante por
poder dirigir, quis até ligar o rádio, mas foi impedido pelo amigo.

Benjamin, como de costume, assoviava qualquer música enquanto lia a lista que a
irmã havia feito a seu pedido. Os nomes de todas as pessoas que abraçaram Caroline
naquela noite eram muitos.

-Onde estamos indo mesmo? - questionou Lisboa.

Pagliatti, satisfeito pelos assovios terem parado, respondeu:


-Isabel já não tinha idade para um diário, mas a sua agenda pode nos ajudar muito.
Eu descobri onde ela estava na noite de sexta-feira.

-Céus! - Ben desviou o olhar da listagem direto para o motorista. - E vai fazer
suspense até chegarmos lá?

Enrico negou com a cabeça.

-Se eu soubesse onde estamos indo, eu diria agora mesmo.

-Explique melhor.

Olhando para os dois lados a fim de verificar que nenhum outro carro vinha pela
Rua Jacob Luchesi, o rapaz acelerou e ultrapassou o sinal vermelho.

-Você disse que a sua irmã alegou em seu depoimento que na sextafeira à noite todas
as candidatas estiveram nos Pavilhões para um último ensaio de passarela.

-Certo.

-Bem, todas estavam presentes, a não ser por Isabel.

-Certo.

-Encontrei em sua agenda um endereço rabiscado no dia 3, seguido da palavra


reunião.

Finalmente chegaram ao destino. Pagliatti estacionou o carro do outro lado da rua e


desligou os faróis. Tinha sido um bom condutor.

Analisando sem muita demora o endereço descrito, o mesmo correspondia a uma


casa de dois andares e muito requinte. Construída em tijolos de alvenaria e com um adorável
quintal antes da porta de entrada, a residência ainda contava com uma garagem acoplada.

-Devemos entrar? - o inspetor estava em dúvida.

-Negativo - Benjamin olhava com cuidado para a casa. - Temos tempo. Podemos
esperar.
E foi o que fizeram. Permaneceram no carro por quase uma hora.

Por volta de meia noite, uma das luzes da casa se acendeu. No banco do motorista,
Enrico tinha pegado no sono e roncava. Porém, Benjamin Lisboa estava acordado o
suficiente para encontrar o sujeito que tivera uma reunião que ele rotulou como íntima
naquela sexta-feira à noite, vinte e quatro horas antes do concurso.

A conclusão que o detetive formulou foi rápida: Isabel tinha ido até aquela casa sem
ter a mínima ideia de que poderia ser estuprada.
O dia seguinte amanheceu tímido e traiçoeiro: uma cerração cobria as ruas da
cidade logo nas primeiras horas do dia. De acordo com os provérbios gauchescos, cerração
baixa, é sol que racha. E foi isso mesmo: ao aproximarse o fim da manhã, um sol poderoso
fez brilhar os quatro extremos de Caxias.

Benjamin havia decidido não acompanhar os depoimentos das outras candidatas e


pediu para que García o mantivesse informado em caso de uma nova descoberta. Enquanto
isso preferiu colocar em prática os planos que havia traçado na dificultosa noite de sono, ou
da falta dele, que tivera.

Na casa dos Lisboa, a mesa da sala de jantar havia sido preparada com muita
dedicação pela mãe da Rainha e do detetive. Para aquele almoço, todos estavam reunidos a
fim de que a imprensa fotografasse a família da nova soberana da Festa da Uva. Caroline,
desta vez sem o seu longo vestido, estava o mais simples possível, e essa era a intenção - a
representante da festa devia ter a cara da mulher caxiense.

Benjamin cumprimentou Érica Zunardi, que mais uma vez assinaria uma reportagem
de destaque a respeito do mesmo assunto. Ele queria ir embora dali de uma vez, havia um
assassino a solta que não podia esperar. Mesmo estando em casa, precisava de um lugar
tranquilo para pensar. Afinal, tudo o que precisava era colocar em ordem os fatos. Lisboa,
diferentemente da maioria dos detetives, precisava de papel. Nunca conseguira organizar
todas as hipóteses em sua cabeça e, por isso, precisava arquitetar todos os caminhos e
possibilidades em uma grande folha.

Mas naquele momento ele precisava fingir. Sorriu forçado para os diques dos
fotógrafos e depois permaneceu no celular conversando com Pagliatti e García enquanto a
pequena jornalista entrevistava a sua irmã.

A senhora Lisboa convidou toda equipe de imprensa para o almoço, e então o circo
todo estava reunido em tomo da mesa. Zunardi sentou propositalmente perto do detetive, e o
seu objetivo era muito claro.

-Desista, senhorita - ele agarrou um pedaço de pão -, este detetive aqui não sabe de
nada - falou de si em terceira pessoa.
-Isso quer dizer que nenhuma pista a respeito do assassino foi encontrada? - Érica
cochichou para não parecer inconveniente, mesmo sendo.

Ben sorriu.

-Muitas.

-Muitas?

-Muitas delícias nesta mesa! - falou em voz alta. - Você não concorda?

Todos os olhares haviam se voltado para os dois, exatamente como ele quisera.
Assim, o senhor Lisboa engatou um assunto qualquer que envolveu a todos, o que não deixou
chances para que Érica se intrometesse mais ainda na investigação policial.

De estômago cheio, o detetive se desculpou e deixou a mesa enquanto a jornalista o


observava desaparecer pelo corredor principal da casa. Benjamin não foi ao banheiro e
muito menos ao seu antigo quarto - que agora servia de escritório para o pai -. A sua
escolha, no entanto, foi objetiva: entrou no quarto da irmã.

Lá ele abriu as portas do armário e remexeu algumas gavetas da cômoda. Nada.


Olhou debaixo do travesseiro, atrás da porta, e só foi encontrar o que procurava quando se
aproximou da penteadeira abarrotada de produtos. Quase imperceptível, perdida entre tantos
perfumes e frascos, estava a nécessaire de Lorena Vertino.

Voilá.

Pegou a pequena bolsinha em mãos e se assustou quando a irmã entrou pela porta.
Ela olhou para o rosto preocupado de Lisboa e depois para a nécessaire.

-Vou levar isso comigo - ele disse.

Em silêncio e esboçando a mesma preocupação, Caroline assentiu.

Liberado do almoço, Benjamin entrou em seu carro morto de curiosidade. Antes


mesmo de dar a partida, olhou para a nécessaire vermelha e abriu o zíper que figurava em
tomo. Encontrou ali alguns pincéis de maquiagem, pequenos vidrinhos com corretivo, base e
pó, esmalte e lixa de unha. Porém, um objeto diferenciado também havia sido colocado ali:
um frasco de vidro com um pó branco estava perdido em meio à maquiagem.

Lembrou imediatamente da estricnina.

-Filha da mãe!

Ligou o carro e pisou sem recear no acelerador. No caminho até a delegacia, onde
deixaria o frasco para análise, diversos punhados de informações explodiam em sua mente.
Era aquilo, isso, mais um pouco daquilo. Muitas hipóteses e fatos que, aparentemente, só ele
havia descoberto - ou percebido - e que poderiam gritar caso ganhassem voz. Eram teorias e
mais teorias, todas em disparada assim como o seu veículo pelas ruas.

O ponteiro do velocímetro se movia rápido, e o mesmo só chegou a reduzir


bruscamente quando o detetive pisou no freio. O som dos pneus rasgando naquela rua, por
sorte vazia, foi alto, mas não o suficiente para sobrepor a última das hipóteses a pular em
seu pensamento.

Será?

Marcas dos pneus coloriram o asfalto, o motor estava superaquecido. Benj amin só
voltou a dirigir quando um segundo carro, parado atrás de si, passou a buzinar. Arrancou
sem pressa e, ao mesmo tempo, agarrou o seu celular.

-Pagliatti, meu amigo, preciso de um favor.

Dobrou na primeira esquina.

-Dê um jeito de descobrir o que Maristela Agamatti fez na noite de sexta-feira.


Creio que ela estava nos Pavilhões, mas precisamos confirmar isso.

A voz de Enrico gaguejou um pouco:

-Maristela Agamatti? A jurada e esposa de Jorge?

Benjamin estacionou em frente à delegacia e pegou o frasco de pó branco em suas


mãos outra vez.

-Ela mesma.
A semana passou rápido demais. Como o esperado, García estava perdendo tempo
com o recolhimento dos depoimentos das outras embaixatrizes e pessoal presente nos
Pavilhões durante a noite do crime. O senhor e a senhora Radaelli também apareceram para
falar um pouco mais da filha, porém logo foram liberados. Radamés e Carla também foram
ouvidos. Na delegacia, diversos painéis haviam sido montados com o rosto de todas as
garotas e as suas fichas abaixo. Um segundo reunia as fotos dos componentes da comissão
organizadora, e um terceiro reunia seguranças, funcionários da limpeza e dos próprios
Pavilhões. Aquele assassinato estava se complicando cada vez mais, e não era só García
quem desacreditava em uma solução.

Na quarta e na quinta-feira, Tomiollo e Sparin voltaram a discutir. Um queria o fim


de tudo aquilo mais rápido do que o outro. Ambos discutiam e, ao mesmo tempo, gritavam
umas e outras nos ouvidos de Lisboa, García e Pagliatti. Para as duas autoridades, aquilo
tudo estava muito claro: Lana Mendez havia estrangulado a colega e ponto final. Quanto à
estricnina, as apostas eram de que Isabel havia ingerido por conta própria, uma vez que era
estudante de Medicina.

-Calem-se, cavalheiros!, - era o que gritava Benjamin Lisboa.

Tudo então estava descarrilando. A alternativa sugerida era a de contar com o apoio
de uma delegacia estadual, porém, o detetive pediu mais alguns dias. Para todos, a situação
estava saindo de controle. Para ele, quase tudo estava muito claro.

A vista do alto das escadarias do Monumento ao Imigrante era muito bonita.


Escorado no corrimão, Benjamin fitava o horizonte em que podia enxergar toda Caxias do
Sul. Logo abaixo, a BR - 116 trazia carros em disparada que pareciam andar movidos pelo
vento forte.

Lisboa estava utilizando aquele tempo para pensar. Perambulando desta vez por sua
consciência, uma palavra em especial: estricnina. Ele sabia que já havia escutado falar
naquele veneno antes, o que só não conseguia era se lembrar de onde, quando, por quê.
-Uau, isso tudo já tem mais de quarenta anos! -, suspirou o inspetor, que se
aproximou admirado. Trazia um livro em mãos.

Pagliatti olhou para trás, analisando mais uma vez a escultura em bronze
representando um casal de agricultores em frente a um obelisco.

Benjamin se virou para o amigo e logo levou a mão até a testa, protegendo-se do
sol.

-Ben...

-O que houve?

Enrico apontou para a estátua, onde o homem fazia o mesmo gesto, segurando uma
enxada.

-Hm - ele abaixou o braço. - Certamente não estou desbravando novas terras, assim
como este senhor bem esculpido, meu amigo. Mas estou desbravando alguns pensamentos
próprios.

-E dividí-los seria...

-Prematuro demais, certamente. Suposições são suposições!

Lisboa voltou a olhar para a estrada. O sol se punha naquela sextafeira pouco
animada.

-Ah, Ben, um detetive é formado por suposições e intuições. Mas entendo o seu
sigilo.

O inspetor continuou falando qualquer coisa, mas Benjamin estava prestando


atenção no livro que o seu amigo segurava.

-Ben?

Ele despertou de súbito:

-Olá!
-Eu perguntei se você tem algo em mente ou podemos ficar mais um pouco. Quero
dar uma olhada na cripta - apontou para a base do Monumento.

-Sim! - gritou. - Sim, sim!

Ele coçou a sua barba com pressa.

-Sim, meu amigo. Sim, sim! - estava estupefato. - Me recordo agora!

-Ben, onde foi que aconteceu a distribuição de vinho? E quanto você tomou?

Descartando a piada, Lisboa colocou a mão no ombro de Enrico.

-Esqueça a cripta, você terá muito tempo para visitá-la. Nós temos que sair daqui e
correr até a Universidade.

-A Universidade? - questionou. - 0 que nós vamos fazer lá?

Ambos desciam as escadas do Monumento com rapidez.

-Nós vamos visitar a biblioteca!

Benjamin entrou na biblioteca da Universidade e encontrou um senhor de colete


sentado junto à porta. Identificou-se, questionou quem poderia ajudálo em uma situação
como aquela, e parou de falar quando percebeu que o velhaco não havia entendido metade
do que ele estava falando. Tentou explicar tudo com mais calma, e o homem apontou para um
balcão ao fundo. Lisboa e o seu companheiro correram, porém foram barrados nas catracas e
tiveram de esperar que o senhor as liberasse.

No balcão de atendimento principal, quem se aproximou foi uma figura que,


felizmente, era o inverso do senhor da entrada: uma mulher grávida de não mais que 25 anos.
Por sua vez, ela compreendeu o apelo do homem que se identificara. Mesmo não entendendo
o propósito daquele detetive, Andresa liberou o sistema para que ele tivesse acesso ao
cadastro de alunos.
Lisboa se posicionou em frente ao computador. Navegou em uma janela, digitou
alguns endereços e entusiasmou-se. Tinha de estar certo.

-Responda-me, Pagliatti - chamou a atenção do jovem ao seu lado. - Não é uma


maravilha este Windows 98?!

Os dedos de Benjamin percorriam as teclas do computador com rapidez. Enquanto


pesquisava a pequena ideia que havia invadido a sua mente, o detetive assoviava uma
cantiga infantil com ritmo acelerado. Pela lista alfabética de alunos pesquisados no
computador, o seu olhar corria em disparada e jamais piscava. Ao encontrar o nome
desejado, deu um dique e logo em seguida o histórico de retiradas foi mostrado. Bingo,
estava ali.

Benjamin parou de assoviar.

Andresa anotou em um pequeno papel alguns números que não faziam o menor
sentido e quis saber se o detetive precisava de ajuda para encontrar o livro que ele insistiu
em retirar. Benjamin negou e agradeceu mais uma vez por ela ter permitido que o livro
saísse dali mesmo aquilo sendo contra as normas, mas a jovem bibliotecária não poderia ir
contra as investigações da polícia, afinal, aquele livro resolveria boa parte do crime. Pelo
menos fora o que ele disse a ela.

-Essa história de o livro ajudar na resolução do assassinato é verdadeira, Ben?

Lisboa sorriu.

-Você pode apostar, meu caro. E quer saber? - Ele parou em frente aos vários
corredores com estantes de livros. - Este crime se torna mais interessante a cada minuto!

Alguns olhares de estudantes sentados em tomo às mesas da biblioteca se voltaram


para os dois cavalheiros que perceberam que deveriam reduzir suas vozes.

Sem muita dificuldade, o detetive se aproximou da estante em questão e a perfurou,


afundando-se numa imensidão de livros. Percorreu o seu olhar pelas obras de ficção em
busca do título desejado.

-Romance policial? - questionou Enrico.

-Sim, meu amigo. Não é demais?

Alguns assovios não podiam deixar de faltar na cena, o que deixou o inspetor ainda
mais aflito em saber logo o que estava acontecendo. Depois de mais alguns minutos,
encontraram o livro em questão. Era normal e pequeno, não mais que duzentas páginas.
Lisboa sorria mais do que nunca, enquanto o seu companheiro balançava a cabeça em
negação:

-Você só pode estar brincando!

Dentro de seu carro, Benjamin tinha voltado a assoviar, e desta vez era uma nova
cantiga que o inspetor não soube identificar. Até porque estava muito ocupado, insistindo
para que o seu superior abrisse o bico e lhe colocasse a par de tudo.

-O que posso lhe falar, meu caro, é pouco. Os meus fatos podem ser confirmados a
qualquer momento. Mas, responda-me Enri, você chegou a conhecer aquele jogo chamado
Resta Um?

Enrico olhou para a rua em frente. Depois, voltou a olhar para o detetive.

-Sim, Ben, mas o que isso tem a ver?

Lisboa estacionou o carro em frente a uma farmácia.

-Tudo! - respondeu sorrindo. - Absolutamente tudo. - Abriu a porta do carro e olhou


para o amigo. - Vamos?

-Mas, uma farmácia?

Pagliatti já não entendia mais nada.


Entraram no estabelecimento de iluminação precária - a lâmpada estava piscando de
modo irritante. As prateleiras tomadas por produtos subiam até o teto, e no balcão de vidro
não havia ninguém. Ambos os cavalheiros se aproximaram e foi o detetive quem enxergou a
pequena sineta. Tocou-a.

Em questão de um minuto, uma jovem muito nova - parecia até menor de idade -
apareceu, vestida com o seu jaleco branco. Com cabelos negros amarrados em um rabo de
cavalo, ela sorriu gentilmente e perguntou se podia ajudar em alguma coisa.

-Ajuda é o que precisamos, senhorita! - exclamou Benjamin.

Ele deu uma olhada em todos os cantos da farmácia e depois voltou para aqueles
olhos juvenis.

-Senhorita, por favor nos traga uma caixinha de Serophene.

Ela o olhou sem graça. Depois, sumiu por detrás das prateleiras e voltou no minuto
seguinte com a caixinha. Entregou ao homem, que logo buscou pela bula e correu os olhos.

Sim, sim, pensou. Bingo outra vez.

-Vamos levá-la!

Encaminharam-se até o caixa, onde a moça ofereceu um saco de papel que foi
recusado. Benjamin estava muito ocupado encarando o medicamento, tanto que deu a sua
carteira para que o inspetor pagasse a moça. Ele queria ler por completo a bula daquele
indutor de ovulação.

-Um indutor de ovulação? - questionou Pagliatti. - Por que diabos você comprou
isso?

-Alguém estava querendo engravidar, meu amigo.

Dentro do carro, ele ainda analisava aquela caixinha de Serophene.


-Falando em engravidar, eu sonhei que tive dois filhos com a sua irmã, Ben! Todos
bem loirinhos, correndo pra cima e pra baixo, deixando nós dois loucos. Certo que eles
achariam que você é um tipo de super-herói, Ben. Ah, sim. O tio Ben que é detetive e salva o
mundo contra o mal - o rapaz não parava de falar. - Sabe, acho que eu e a sua irmã
formaríamos um bom casal. Você não acha?

Lisboa estava mudo. Encarava o amigo sem reação nenhuma.

-Mas o que eu queria mesmo era uma filha, bem loirinha, de olhos claros.

-Uma criança loirinha... - munnurou para si o detetive.

-Sim, seria demais!

Benjamin estava preso aos seus pensamentos outra vez. Naquele momento, o que lhe
vinha à mente era o rosto da pequena criança que encontrara na fila dos banheiros móveis
durante a noite do crime. Aquela menina com apito que sumira em um piscar de olhos,
exatamente quando ele se abaixara, e depois aparecera.

-Ben? Você ficou bravo comigo? - perguntou o inspetor. - Ben, eu...

-Cale a boca, Enri - pediu ao despertar. - Eu não estou puto com você.

-Ben! - o jovem quase gritou seu nome. - Você disse um palavrão!

Benjamin grudou as mãos no volante e olhou através do vidro. Já era noite.

-Eu provavelmente te daria um tapa na cabeça por ter tido sonhos assim com a
minha irmã, mas não temos tempo para isso.

Pagliatti respirou aliviado, enquanto relaxava no banco.

-Menos mal! -, deitou a cabeça no estofado. - E qual é o próximo passo na nossa


investigação, senhor detetive?

Benjamin balançou a cabeça.

-Não há mais investigação, Enri. - Ele ligou o motor do carro, que roncou e cuspiu
fumaça pelo carburador e deu a ré. - Eu já sei quem matou Isabel Radaelli.
Havia um evento marcado para aquela noite: a comissão de jurados resolvera
presentear todas as embaixatrizes, princesas e a Rainha da Festa da Uva com um jantar no
restaurante da família Zarraro. Para isso, uma grande mesa de aproximadamente trinta
lugares havia sido montada em um dos cantos do estabelecimento, e nela as belas moças
riam ao relembrar de histórias do pré-concurso. Ninguém ousava trazer à ocasião o
assassinato de Isabel.

Também marcava presença o presidente da Festa, que há mais de quarenta minutos


não parava de comer. Nem mesmo largava os talheres para conversar. Sentado em sua frente,
Jorge Agamatti discutia assuntos políticos com João Sparin, outro convidado especial. Ao
seu lado, entediada, a sua esposa, Maristela, havia procurado na colunista Giórgia Concetti
algum assunto de comum interesse para que não ficasse isolada.

Lorena Vertino ria de um modo estranho, estando solícita e aberta a quaisquer


conversas que as outras embaixatrizes iniciassem. Naquela noite ela não estava fazendo jus
ao seu comportamento fechado e prepotente.

Perto das onze da noite, aquela se tomou a única mesa com clientes em todo o
gigantesco restaurante. Algumas moças já falavam em ir embora, outras combinavam de
estender a noite e ir para alguma festa, enquanto o prefeito, o presidente, e o corpo de
jurados já se levantavam para deixar o local.

-Senhores!

Todos os rostos se viraram em sintonia para a porta de entrada, de onde veio a voz
de Benjamin Lisboa. O detetive estava acompanhado do inspetor e do delegado. Do lado de
fora do restaurante, podia se enxergar luzes azuis e avermelhadas piscando, instaladas no
teto dos carros de polícia estacionados na Rua Coronel Flores.

-Peço para que todos voltem aos seus lugares e aguardem um momento, sim? -
pediu. - Não iremos tomar muito tempo.

Sparin foi o único a não se sentar. Caminhou rápido até onde estava o detetive e
cochichou algumas perguntas que Ben ignorou.
-Deixem-me começar de uma vez - ele remexia as mãos dentro dos bolsos de sua
calça. Tinha esperado tanto por aquele momento. - Apesar de não termos sido convidados
para o jantar, eu e os meus amigos resolvemos fazer uma parada para comunicar que o caso
de Isabel Radaelli está encerrado.

No fundo do restaurante, a família Zarraro apareceu. Para a sorte do detetive,


Guilherme também estava ali. Neste momento, até mesmo os cozinheiros e garçons espiaram
a cena.

-Grazie a Dio! - exclamou o presidente, que estava com o guardanapo de pano


enfiado no colarinho de sua blusa. Ele se levantou, puxando-o para fora e jogando por sobre
a mesa. - Lisboa, você descobriu quem matou a moça?

Observando o sotaque carregado de Fernando Tomiollo, ele assentiu. Na mesa,


interjeições de espanto apareceram por parte de todos.

-Sem mais delongas, preciso começar dizendo que Isabel iria morrer de qualquer
jeito na noite de sábado - desabafou e continuou a observar os olhos que duplicavam de
tamanho. - Se não tivesse sido estrangulada, Radaelli teria morrido devido a uma grande
quantidade de estricnina que ingeriu. Para quem não sabe, trata-se de um veneno muito forte
para matar ratos, proibido hoje em dia.

Aquele restaurante nunca estivera tão silencioso.

-Mas comecemos pelo estrangulamento. - Benjamin deu três passos a frente. - Eu e


meu parceiro, o inspetor Enrico Pagliatti, verificamos o local do crime e observamos que
seria praticamente impossível Isabel ter sido estrangulada em uma das cabines sem que Lana
Mendez percebesse. Logo, a senhorita Mendez se tomou a nossa suspeita mais óbvia.

A moça se espremeu em sua cadeira, mordendo os lábios e recebendo alguns


olhares que chegaram de todos os lados.

-Porém, Lana Mendez não estrangulou Isabel.

Ela soltou o ar preso em seus pulmões aos poucos.

-Apesar de curioso e com poucas probabilidades de ser bem executado, o crime


partiu de outra pessoa. Ao chegarmos naquele banheiro feminino, Pagliatti e eu observamos
um detalhe muito explícito: o cadáver estava na cabine para deficientes. Ora, mas por quê?
Bem, lhes explico. Isabel escolheu aquela cabine por ter o dobro do tamanho das comuns.
Conversando com minha irmã, Caroline - ele apontou para a moça - ela me confirmou que
durante o pré-concurso, ou em quaisquer ocasiões que as candidatas usavam vestido,
acabavam escolhendo o banheiro para deficientes por haver mais espaço. Ao perceber isso,
me dei conta de que o certo seria apostar em uma das candidatas como provável assassina,
mas a hipótese ainda não me convencia, até porque todas estavam no camarim durante o
assassinato. Foi aí que recebi a informação de que, na noite anterior ao crime, Isabel teve
relações sexuais com dois homens diferentes.

Alguns rostos ruborizaram.

-Antes que pensem qualquer coisa, deixem-me colocar em pratos limpos: a


senhorita Radaelli envolveu-se com o namorado, o senhor Guilherme Zarraro - ele apontou
para o fundo do estabelecimento, onde todos olharam para o rapaz - e com Jorge Agamatti.

Mais interjeições de susto e descrença. Encarado por um bando de pessoas, a


principal figura do corpo de jurados não falou nada. Em compensação, Maristela Agamatti
se pôs em pé e rejeitou a sentença:

-Isso é um absurdo! - gritou. - Você está errado!

Lisboa recolheu grande quantidade de ar para poder falar algo.

-Minha senhora, sente-se por favor, eu não terminei - soou maldoso. - Acontece que,
em uma visita ao IML, o médico-legista nos apresentou um pequeno pedaço de tecido
vermelho encontrado preso junto ao colar da vítima. Instantaneamente recordei que, naquela
noite, machuquei a mão durante uma visita à sala dos jurados - ele lembrou do temperamento
explosivo de Guilherme - e o senhor Agamatti me ofereceu um lenço seu, da mesma cor, que
logo rejeitei. Porém, naquele momento, nada fez sentido. Por que Jorge teria matado Isabel?

O detetive não aguentou e passou a circular, andando de um lado para o outro da


mesa.

-Bem, eis que entrou em cena uma espetacular ajuda de meu amigo inspetor - o
jovem acenou discreto. - Pagliatti encontrou a agenda pessoal de Isabel quando revistou o
seu quarto. Na data de 3 de setembro, sexta-feira, a vítima rabiscou o endereço da casa do
senhor Bonani. Nesta mesma noite, a senhora Maristela, cumprindo o seu papel de jurada e
relações públicas, estava nos Pavilhões para os últimos detalhes do Concurso. Porém, tanto
o seu marido quanto Isabel, não estiveram presentes. Acontece que a senhorita Radaelli se
dirigiu até a casa de Jorge pensando tratar-se de uma reunião, conforme também
especificado em sua agenda. E por que havia uma candidata de duvidar de um jurado tão
bom quanto Jorge? Principalmente pelo fato de ele tê-la tratado tão bem durante o pré-
concurso.

Ao chegar ao outro extremo da mesa, ele apenas continuou:

-Senhoras e senhores, os exames poderão confirmar, mas afirmo que Isabel Radaelli
foi estuprada por Jorge Agamatti.

Cochichos e burburinhos se espalharam pela mesa, enquanto o homem julgado


permanecia imóvel, a ponto de se pensar que nem mesmo respirava.

-Analisando um pouco mais da agenda de Isabel, encontrei em algumas folhas


anteriores isto - ele retirou um papel de dentro do seu casaco preto, mostrando uma das
folhas arrancadas. - O princípio de uma carta, destinada à Fernando Tomiollo, que
provavelmente foi escrita pela vítima na manhã de sábado. A intenção de Isabel era clara:
iria contar para o presidente que havia sido abusada sexualmente. Como eu creio que ela só
faria isso após o concurso, e até mesmo por tratar-se de um dia cheio, a senhorita Radaelli
abandonou a carta por hora.

-Agamatti, isto tudo é verdade?! - quis saber o presidente.

-Shh, Tomiollo. Deixe-me concluir, sim? - pediu Lisboa. - E agora me respondam


vocês: o que poderia o senhor Agamatti fazer naquela situação? Havia cometido um erro,
sugado pela beleza de Isabel e cego pelo seu poder de jurado, mas tinha a plena certeza de
que, mesmo se coroada, a moça não ficaria quieta. Teria muito a perder, então. Uma empresa
que move milhões anualmente e um casamento de vinte anos. - Esperou um segundo e
engatou: - A única e desesperada opção foi matar Isabel.

Voltou a caminhar pelo salão afundado em silêncio.

-Porém, creio que Jorge não faria aquilo naquela noite. Era muito arriscado, não
haveria tempo e nem mesmo tinha arquitetado um plano. Quem sabe, posteriormente, até
contrataria algum serviço para executar a sua vontade, imagino eu - confabulou. - Acontece
que o senhor Agamatti apenas encontrou a ocasião perfeita para dar um fim ao seu novo
problema. Conforme o relato de Caroline Lisboa durante o seu depoimento policial, os
jurados passaram rapidamente no camarim para cumprimentar as candidatas. Foi quando
Jorge escutou Isabel pedindo, em bom tom, se poderia ir ao banheiro. Bingo! - exclamou
aumentando a voz. - Jorge tomou a frente e deixou o camarim, sabendo que se encontrasse
Isabel sozinha no banheiro teria uma ótima oportunidade. Ao sair do camarim, no entanto,
ele se deparou com Radamés, o segurança. Neste momento o senhor Bonani poderia apenas
dispensá-lo, baseando-se no seu poder, porém nem mesmo foi preciso. O walk talkie que
Jorge carregava dentro do paletó gerou interferência ao aproximarse do aparelho que
Radamés tinha em mãos. O próprio segurança me falou que, minutos antes do crime, havia
deixado o seu walk takie cair no chão e o espatifado. Foi exatamente neste momento,
caríssimos, neste piscar de olhos em que o segurança abaixou-se para recolher os cacos do
frágil aparelho quebrado, que Jorge deixou o camarim e entrou no banheiro feminino. Ali no
chão, ocupado com o aparelho, Radamés nem se importou com alguém que simplesmente
entrava no banheiro.

Lisboa trouxe à memória a cena da garotinha na fila de espera do banheiro móvel na


mesma noite. Ela deixara o apito cair e, enquanto ele se abaixara para recolhê-lo, a criança
desapareceu. Entrou no banheiro sem que ele pudesse perceber.

-Por não ter visto quem estava no corredor, pode até ter pensado que a pessoa
entrara no banheiro masculino, que fica logo em frente ao feminino. Mas, bem, apressando a
minha história: Jorge entrou no local e escondeu-se na cabine mais óbvia. Como jurado,
certamente ele havia escutado o fato curioso de que as cabines para deficientes são mais
espaçosas. Se ele errasse e Isabel ocupasse qualquer outra cabine, era só prorrogar o
assassinato para o dia seguinte. Mas tudo deu incrivelmente certo neste caso, e foi o que
mais me intrigou.

Outra voz tomou partido:

-Mas eu teria visto ele - a senhorita Mendez falou para si mesma. Porém, estando o
ambiente em pleno silêncio, todos escutaram.

-Impossível, senhorita. Como eu disse, este caso foi uma exceção. Os passos de
Jorge poderiam ter dado completamente errados, porém ele tinha a desculpa de ser um
jurado e poder estar em qualquer lugar, à hora que quisesse, então não havia muito a perder.
Mas tudo saiu de um modo certo, sem ele nem mesmo ter projetado isso. As coisas apenas
aconteceram. - Circulou mais uma vez pela mesa. - Jorge se enfiou na cabine de deficientes e
se escondeu atrás da porta. Certamente escutou a voz da senhorita Mendez, mas arriscou do
mesmo modo. Quando Isabel empurrou a porta da cabine e a fechou, Agamatti atacou-a por
trás, prensando a moça contra o seu corpo e a estrangulando. Foi nesse momento que Lana
escutou um barulho, que nada mais foi do que o corpo de Isabel caindo por sobre a privada.

Como um saco pesado de farinha caindo ao chão, lembrou-se Mendez.

-Mas eu escutei a descarga! - ela se intrometeu mais uma vez.

-Sim, que foi acionada por Jorge. Ele precisava de um som alto e demorado para
dar o fora dali sem que você reparasse, senhorita.

-Mas ninguém saiu da cabine!

Ela não entendia mais nada.

-Pela porta, não - explicou Ben. - Mas, pelo vão entre uma cabine e outra, sim. O
que Jorge fez foi se abaixar e esgueirar pelo chão, passando para a outra cabine. Desse
modo, quando a senhorita encontrou o corpo, não o veria por ali.

Lisboa lembrou-se da sua visita ao local do crime no dia seguinte. Havia se


abaixado e observado o vão entre as cabines. Tudo era incrivelmente fantástico. Por isso
mesmo, antes de completar parte de seu discurso, elogiou:

-Devo admitir que o senhor teve muita coragem e esperteza na execução do crime,
Agamatti.

E muita cara de pau, lembrou Pagliatti.

-E devo lhe devolver isto - ele se aproximou e tirou do bolso da calça um pequeno
objeto brilhante, entregando-o ao jurado constrangido. - Este pingente de cristais em formato
de uva foi usado por todos os jurados naquela noite. Encontrei-o na saída do banheiro
feminino. Provavelmente o broche afrouxou durante o crime, no contato corpo a corpo, e só
caiu de fato do paletó quando o senhor Agamatti deixou o local - explicou. - Para
acrescentar, devo dizer que pedi à minha irmã que fizesse uma lista de todas as pessoas que
a abraçaram durante a noite de sábado, e constatei que Jorge estava relacionado. Pedi isto
porque percebi uma pequena gota de sangue no vestido de Caroline, e a única explicação
que encontrei para isto foi que o casaco de Jorge foi manchado com um pouco de sangue
devido à otorragia no momento do assassinato. Ao abraçar a nova Rainha, sem nem
perceber, ele a sujou.

Aquele restaurante estava mais silencioso do que o velório da vítima.

-Onde entra a estri-alguma - coisa`? - Sparin, em pé, questionou.

-Estricnina. Sente-se que responderei, pois agora entramos na segunda parte do


assassinato. E, meus caros, se tudo já andava inesperadamente assustador e incrível até o
momento, esperem até eu lhes contar que existe um segundo assassino.

Uma chuva de suspiros caiu sobre o ambiente.

-Mas é óbvio que tínhamos de ter um segundo assassino! - deu início. - Alguém que
tenha colocado o pó branco em algum líquido que Isabel bebeu minutos antes de ser
estrangulada. Essa parte foi um pouco mais fácil de se resolver, até porque quem me deu as
pistas foi a própria assassina.

-Assassina? - espantou-se Tomiollo.

-Sim, sim. Assassina - confirmou. - Respondam-me, moças. Pode ser qualquer uma
de vocês. Que bebida estava à disposição das senhoritas dentro da saleta-camarim na noite
do crime?

-Suco de uva - quase todas acabaram respondendo.

-Sim, sim! Um encorpado suco de uva que seria possível de amenizar o gosto forte
da estricnina. E, como a própria assassina me disse, Isabel brincou que havia tomado suco
demais quando disse que precisava ir ao banheiro.

Aos poucos, a assassina foi recebendo olhares desconfiados.

-Encontramos uma dose grande de estricnina no estômago de Isabel, o que nos leva
a crer que quem aplicou o veneno não sabia exatamente como usá-lo. E quem mais dentro do
camarim poderia tê-lo comprado? Bastaria analisar com mais calma as fichas pessoais de
cada uma de vocês, mas eu não tive tempo para isso. Só me dei conta de quem se tratava
quando lembrei onde eu havia ouvido falar em estricnina pela primeira vez na minha vida.
Pagliatti?

O inspetor se aproximou e entregou um livro para o amigo, que mostrou-o a todos.


Na capa, os dizeres: O Misterioso Caso de Styles, de Agatha Christie.

-Por Deus, Lisboa, o que esse livro tem a ver?! - exaltou - se o prefeito.

-Tudo, Sparin. Simplesmente tudo - respondeu. - Foi lendo ele que conheci
estricnina, e acredito que o mesmo se aplicou à nossa assassina. Ao me lembrar de que este
livro explica de maneira muito clara o modo que o veneno pode matar alguém, percebi que a
nossa assassina poderia ter lido a obra e agido da mesma maneira. Eu sei, parece uma
loucura. Mas acabou sendo real. - Abaixou o livro. - Para confirmar minhas suspeitas, o
inspetor e eu fomos até a biblioteca da Universidade, onde checamos as retiradas de livros
de cada uma das candidatas matriculadas, e bingo outra vez!

Ele deixou, como se fosse uma recompensa pelo árduo esforço, que Pagliatti
soltasse o nome da assassina:

-A senhorita Lana Mendez é uma aluna de Letras muito aplicada.

Mais olhares, exclamações e burburinhos. A jovem não sabia o que fazer, e então
abaixou o olhar para o seu prato.

-Uma questão chave que escutei em diversos depoimentos foi a inveja. Oh, sim, um
pecado nada original e abusado em demasia. E, como dito de modo confiante e corajoso pela
senhorita Lorena Vertino, todas sentiam inveja de Isabel Radaelli. Isso porque ela era
perfeita - enfatizou. - Lana Mendez se aproximou de Isabel e Caroline nos últimos meses de
pré-concurso e, envolta pela ideia de assassinato encontrada neste livro - apontou mais uma
vez para a obra - decidiu dar um fim àquela moça que roubava a atenção toda para si.
Voltando ao que disse antes, eu poderia ter reparado na ficha da senhorita Mendez que ela
trabalha em uma distribuidora de medicamentos, o que certamente facilitou na compra do
veneno. Mas, meus caros, o diabo mora nos detalhes.
Ele entregou o livro de volta à Pagliatti.

-Ainda não averiguamos o modo exatamente, porém a senhorita Mendez deve ter
colocado muito discretamente a estricnina no suco de Isabel e a observado tomar. Quando a
vítima quis ir ao banheiro, creio que além de urinar, já sentia-se um pouco mal, devido ao
veneno. E, meus caros, outro motivo que levou Isabel a querer ir necessariamente até o
toalete, foi o fato de ela estar tomando isto - tirou do outro bolso do paletó uma caixinha de
remédios. - Serophene é um indutor de ovulação famoso. Isabel Radaelli estava querendo
engravidar, provavelmente não queria perder o senhor Zarraro de jeito nenhum, hein? -
brincou olhando para o jovem no fundo do salão e depois para Lorena, que engoliu em seco.
- Também posso apontar que um dos efeitos colaterais do Serophene é o aumento da
frequência urinária. Como este medicamento também estava indicado na ficha de concurso
da vítima, Jorge teve acesso à informação. Voltando à estricnina, como ela leva cerca de dez
minutos para agir, Jorge Agamatti entrou no caminho antes da bomba estourar e finalizou o
crime com as próprias mãos, sem saber que Lana já o tinha feito. É engraçado pensar que, se
tivesse esperado pelo dia seguinte, o senhor Agamatti não teria sido culpado pelo
assassinato de Isabel Radaelli e teríamos somente a senhorita Mendez como assassina. Esta
que soube mentir muito bem. Uma vez imersa na sua própria recriação da literatura de
Agacha Christie, observou o corpo de Isabel caído e percebeu que o seu plano havia
funcionado. Chorou, fingiu, beirou o ridículo para crermos em sua história. Mas algo estava
errado quando Lana, mesmo depois de ter visto o cadáver da amiga, retomou ao palco,
atendendo ao meu pedido. Se ela não fosse responsável pela morte, provavelmente estaria
desestabilizada o suficiente para não conseguir desfilar, sorrir e acenar como se nada tivesse
acontecido.

Ben estava chegando ao fim:

-Quando Lana leu no jornal que Isabel morrera estrangulada, tudo passou a não fazer
sentido. Imagino que agora eu tenha esclarecido as suas dúvidas da semana, senhorita
Mendez.

Ele olhou para a moça assim como todos os outros. Não havia mais o que dizer.
Logo alguns policiais entraram no restaurante e algemaram o casal de assassinos, que trocou
um último olhar de ódio. Lana Mendez deveria ter esperado o dia seguinte, assim como
Jorge Agamatti. Afinal, o dia seguinte sempre começa com alguma surpresa.
Uma grande agitação havia tomado conta do restaurante. As viaturas da polícia
chamaram a atenção dos vizinhos, o que chamou a atenção da imprensa. Érica Zunardi
chegou atrasada, porém conseguiu gravar imagens de Lana Mendez e Jorge Agamatti sendo
levados em veículos com a sirene ligada. A entrada ao vivo rendeu picos de audiência para
o canal local.

Ainda no estabelecimento, Benjamin deixou o grupo de homens com quem


conversava para cruzar o salão e encontrar Lorena Vertino.

-Senhorita.

-Detetive.

-Creio que devo agradecê-la pela sinceridade e postura. Admito tê-la julgado de
maneira errônea.

Ela deu de ombros.

-É o que todos fazem.

Lisboa analisou o seu rosto maquiado e sereno. Ela sempre esteve tranquila no fim
das contas. Porém, havia um detalhe que ele não podia deixar escapar. Quando observou que
Guilherme Zarraro se dirigia até eles, questionou rápido:

-A senhorita o ama?

Ela riu.

-Eu não amo ninguém.

Nada surpreendente, pensou o detetive.

-Então livre-se dele - pediu. - Fiz o favor de ignorar o frasco de cocaína que
encontrei em sua nécessaire por acreditar que más influências podem ser afastadas - ele se
lembrou do resultado da análise. O pó branco não se tratava de estricnina, e sim de algo
pior. Quanto ao frasco, ele escolhera não dizer onde havia encontrado. - Você sabe com
quem está lidando, e sinceramente creio que a senhorita é esperta demais para um erro
desses.

Benjamin soube naquela hora que a moça, que não correspondia em nada ao
estereótipo de candidatas àquele concurso, só havia se candidatado para estar no mesmo
patamar que a namorada de seu amante. Ah, sim. Ela não poderia perder espaço para uma
futura Rainha.

Guilherme Zarraro os alcançou.

-Meu rapaz - cumprimentou o detetive que deixou, enfim, o local.


Cerca de seis meses haviam se passado desde o ocorrido. Era um domingo de sol
forte, o verão já havia dado as caras e logo já iria embora. Porém, naquela tarde de março
de 1999, milhares de olhares curiosos se divertiam com movimentos, formas e cores
encontrados no corso alegórico da 23a Edição da Festa da Uva que tomava conta de uma
parcela da Rua Sinimbu, próxima a Praça Dante Alighieri.

Entre os blocos em que o desfile estava dividido, alas coreografadas se uniam aos
carros que traziam encenações. Um dos veículos abrigou todas as embaixatrizes, que
acenavam para o público debaixo do sol escaldante.

-Ben, - o inspetor sentado na arquibancada ao lado do detetive, encarou-o de súbito.


- Olhando para tudo isso é impossível não lembrar do que aconteceu. E até agora eu não sei
direito como você conseguiu unir tudo tão rápido e chegar à solução do crime com tanta
precisão. Foi tudo tão fora do comum, eu nunca tinha visto nada parecido. Eu nunca soube
exatamente como você conseguiu descobrir a parada. Na verdade, ninguém sabe, cara! - as
expressões joviais estavam de volta. - Acho que só você poderia ter resolvido a história
toda - parabenizou o superior entrelinhas. - Jorge Agamatti, hein? Quem diria.

-Pois é - suspirou Lisboa antes de tomar um gole do seu chimarrão. - A dor e a


delícia de ser quem se é.

-Mas, ande, me diga como faço para ser que nem você?

Era um dia quente demais para se tomar chimarrão, mas Benjamin não se importava.

-Perdão?

-É, Ben. Você foi brilhante! - elogiou o jovem. - Como você consegue?

-Ah, meu caro. - suspirou. - Não me perguntes onde fica o Alegrete - ele sorriu ao
citar uma música. - Mas, se for preciso atribuir alguma resposta, ou até mesmo lhe dar uma
dica, eu completaria com o verso seguinte da canção.

-Segue o rumo do teu próprio coração - cantarolou o rapaz enquanto o detetive,


sorrindo, assentia:
-Vejo que alguém anda escutando música gaúcha.

-É o que se faz quando se quer conquistar uma prenda.

Lisboa soltou uma de suas gargalhadas chamativas. Algumas pessoas na


arquibancada do desfile chegaram a se assustar.

-Tu ainda não desistiu, meu amigo. Estou certo?

Pagliatti corou.

-Corra atrás da dama de uma vez, Dio Cristo!

Novamente o inspetor nada mais pode fazer a não ser seguir as ordens. Afinal,
tratava-se de seu superior.

Enrico se levantou e esticou a mão direita.

-Foi bom trabalhar com você, Ben. Caxias tinha que ter mais assassinatos para
repetirmos a parceria.

Vários olhares curiosos se voltaram para o jovem e sua frase inadequada ao local.
Benjamin não se incomodou desta vez. Levantou-se e agarrou a mão do rapaz.

-Esse lugar está crescendo, meu jovem. Não faltarão corpos estrangulados,
mutilados ou dissecados para aparecer - ele exagerou mais ainda para fomentar os olhares
curiosos propositalmente. - Agora, vá!

Pagliatti sorriu e cambaleou entre as pessoas na arquibancada de madeira que rangia


com os seus passos rápidos. Lisboa voltou a sentar em seu lugar e deu um gole no chimarrão.
Uma mulher amedrontada com o diálogo o encarava ali perto. Não se importando, ele ergueu
a cuia para ela e sorriu.

-Ah, Caxias! - murmurou.

O desfile chegava ao fim e no céu de anil do Rio Grande gigante uma sucessão de
fogos de artificio veio para anunciar mais uma conquista, tanto para Caxias do Sul, por ter,
ao fim das contas, contornado a situação, quanto para o detetive, que merecia o crédito por
ter sido aquele quem, de fato, contornou a situação.

Debaixo do céu que cobria a QuerênciaAmada, Benj amin acompanhou o inspetor,


que fazia parte da geração mais nova, aproximar-se da Rainha que descia do carro ao final
do desfile. Enrico lutava com outros jornalistas para conseguir a atenção da Rainha, esta que
não deixava o sorriso de lado.

Desta vez, Érica Zunardi não estava imersa no bolo de repórteres. Isto porque, após
a partida de sua antiga chefe para a Capital, ela conseguira preencher o espaço vago,
atingindo enfim a sua grande meta profissional.

Sentada confortável no camarote que tinha direito como nova editora chefe do jornal
da cidade, ao telefone ela repetia o seu bordão já conhecido por todos:

É Érica com C.

Após uma curta resistência, Pagliatti alcançou a Rainha da Festa da Uva. Havia
muita gente em torno dela, mas foi ao dizer quaisquer palavras bonitas e ensaiadas, como se
fosse um poeta bem macho e guapo, que Caroline Marques Lisboa se encontrou nos olhos
esperançosos de Enrico. E, aparentemente, a investida funcionara. Os braços da mulher
gaúcha, Rainha e beleza daquela terra, puxavam-no para um abraço. Os flashes das câmeras
dos fotógrafos eternizavam o momento.

Observando tudo diretamente da arquibancada, o detetive quis confirmar para si que


estava muito bem. Definitivamente, os romances não eram para ele, que procurava crer que
um amor é sinônimo de acomodação. Dividir conquistas, ter dois filhos com roupas novas
todo mês, fazer as compras sempre no mesmo mercado, todo um blábláblá sem sentido
algum. Essas coisas não serviam para Benjamin Lisboa. Acomodar-se não era palavra para
ele.

De acomodados nos bastam os cadáveres, brincou mentalmente.

Assistiu então a queima de fogos que cobria o casal jovial e feliz. Pleno pela nova
conquista, coçou a barba e suspirou:

-Ah, o amor! - Tomou um pouco mais do seu chimarrão até a bomba chiar. - Tão
explosivo!
Cresci em Caxias do Sul. E quem não gostaria de ter crescido?

Cresci em uma Caxias de povo receoso, conservador, mas o mais simpático que já
encontrei. Cresci em meio a avós que, enquanto preparavam o bigoli, conversavam em um
dialeto italiano que não imagino o que poderia significar. Em vez de questionar, enchendo
assim a boca de perguntas, preferi encher a boca de tortéi (e evitei o bucho). Exagerei na
polenta brustolada com queijo, já de olho no sagu com creme.

Corri na rua até tarde, coloquei papel celofane em frente à televisão para que ela
ganhasse cores sem saber que, anos depois, eu estaria comprando aparelhos mais finos que
um dedo. Vi ruas serem transformadas em avenidas, o comércio local ganhar alguns
shoppings, mas também houve aqueles botecos com pastel e pingadinho que permaneceram
iguais. Ainda bem!

Cresci em uma Caxias com um Parque que um dia chegou a ter alguns Macaquinhos,
e que hoje serve para receber os mais diversos eventos culturais e um bocado de sorrisos
aos finais de semana. Cresci em uma Caxias onde a Praça Dante ainda era recheada de
árvores e pouco cuidada, mas que, com o passar dos anos, ganhou a devida repaginação e
reconhecimento por já ter abrigado tantos Carnavais e até mesmo pavilhões itinerários onde
foram realizadas as primeiras edições da Festa da Uva. Quem diria que por debaixo da mais
famosa praça da cidade passa um rio?

Cresci em uma Caxias de inverno tão rigoroso que já soltei uns quantos palavrões,
mas que não trocaria por lugar nenhum. Eu não seria louco de perder cada manhã de grama
pintada com o branco da geada e o pinhão preparado na chapa do fogão à lenha para comer
em família. Família! Família que se reúne todos os domingos pra assar uma carne no espeto
e pra assistir o clássico entre Juventude e Caxias. Família que divide o lençol térmico, que
ainda vai à missa de domingo e que observa junta esta cidade aumentar de tamanho.

Cresci em uma Caxias que é terra, pão e vinho. Que é churrasco e bom chimarrão,
fandango, trago e mulher - e guria! Cresci na querência amada dos parreirais, onde a uva
vira vinho, o povo me dá carinho e bondade nunca é demais. Cresci em Caxias do Sul e
Caxias do Sul cresceu comigo. Aonde iremos chegar eu ainda não sei. Mas, por enquanto, eu
estou colhendo o que há de bom por aqui. E posso confessar: eu não poderia ser guri de alma
mais rica se morasse em outro lugar.
Todos os nomes encontrados neste livro foram criados de modo aleatório. Certo,
não completamente. Alguns -- como Isabel Radaelli e Benjamin Lisboa - foram planejados
com um propósito, logo depois que comecei a ler diversos livros a fim de pesquisar e
mergulhar de vez na história da Festa da Uva.

Isabel foi o primeiro tipo de uva que os colonizadores italianos cultivaram ao


chegarem à Serra Gaúcha, e Radaelli é o sobrenome de Tomaso, sujeito que adquiriu
algumas mudas para o cultivo na região. Já o sobrenome de nosso sarcástico detetive surgiu
como uma homenagem a Joaquim Pedro Lisboa, difusor da cultura local a partir da sua
idealização da Festa da Uva em 1931.

Excluindo alguns sobrenomes comuns, porém fortes e significativos, procurei


aproximaro leitor da realidade, mas aomesmo tempo não criar coincidências. Todos os
personagens são meras caricaturas.

Houve, durante todo o tempo nesta obra, uma grande invenção: em 1999 não ocorreu
a 2Y Edição da Festa da Uva, e sim em 2000. Em 1998 também não existiu escolha de trio
soberano. Sendo assim, decidi elaborar datas fictícias para, novamente, não criar conflitos.
Gostaria de deixar claro a veracidade, conflabilidade e credibilidade do concurso de Rainha
e princesas, bem como explicitar que todos os fatos aqui surgiram da mente de um jovem
escritor apaixonado por literatura policial, que procurou aplicar as suas ideias de um crime
incomum no cotidiano Caxiense.

Por fim, deixo uma citação do escritor mexicano Juan Rulfo, que muito se enquadra
nesta nota:

`Todo escritor que cria é um mentiroso: a literatura é mentira, mas dessa mentira sai
uma recriação da realidade.

Recriar a realidade é, pois, um dos princípios fundamentais da criação.'


Após ter dedicado este livro a quatro mulheres fundamentais, estou certo de que o
meu primeiro agradecimento deve ser feito ao meu pai, Fernando Luiz Guerra. Pai, existem
tantos motivos para se agradecer alguém, quanto mais tu, porém eu queria que todos
soubessem por aqui daquela manhã chuvosa do início de março, quando eu te liguei com a
voz um pouco alterada (ansiosa como sempre) e te pedi um favor. Eu queria que tu me
levasses à casa do Claudio Troian durante o nosso horário de almoço, a fim de que ele nos
ajudasse com o projeto do livro, a ser entregue ao Financiarte. Imediatamente - sabendo das
dificuldades em que eu me encontrava para organizar toda a papelada -, você se ofereceu
para ir comigo. E fez isso mais umas três vezes, mesmo com a sua rotina agitada. Mesmo
chovendo em todos os dias. Mesmo eu ficando nervoso e achando que não ia dar tempo
(coisas de Pedro). Muito, muito obrigado. Tu és o meu mentor.

Em segundo lugar, ao já citado Troian, produtor cultural e mente criativa que


apostou e reergueu um projeto simples (e por vezes errôneo), o qual foi aprovado e permitiu
que eu conseguisse publicar esta história. Você faz parte do meu segundo sonho que está se
realizando, Troya, e eu acho que nunca te contei que saí sempre da tua casa espirrando
porque você tem muitos gatos e eu tenho uma rinite dos infernos.

Ao amor das minhas vidas, por ficar mais feliz do que eu quando soube que eu
conseguiria publicar este livro. Obrigado por aparecer, obrigado pelo sorriso mais puro de
todos, obrigado por sentir orgulho e estar ao meu lado - por nunca me deixar cair. Por me
aturar fazendo contagem regressiva para este lançamento, mesmo quando ainda faltavam uns
113 dias. Obrigado por fazer de mim o cara mais feliz da Terra - mesmo nas segundas-feiras.

Muita gratidão ao Adan Lucius Marini, pela paciência e por esta capa incrível. O
mesmo vale a todo o pessoal da Editora Belas Letras. Um agradecimento especial à minha
prima, Francine, por ter me emprestado uma pilha de livros sobre a Festa da Uva, o que
possibilitou o embasamento necessário para que esta história não descarrilasse. E também
devo agradecer, de todo coração, à Marília Serafini, por ter protocolado o meu projeto no
último dia de inscrições abertas, debaixo de um temporal Caxiense.

Aos meus amigos e família. Cito ambos ao mesmo tempo porque, para mim, não há
distinção. Lembro de todos os elogios e incentivos recebidos quando me deparo com uma
página em branco que ainda não preenchi com palavras. Muito obrigado. Mesmo.
Por fim, para que eu não esqueça de ninguém, gostaria de agradecer à todos aqueles
que estiveram envolvidos na trajetória de lançamento do meu primeiro livro, Você Pode
Guardar um Segredo?, e que estarão comigo nesta nova fase. Um obrigado gigantesco a
todos aqueles que me acompanham através da internet - seja no meu blog, Santa Cretinice, ou
nas redes sociais. Sou muito grato por compartilharem os meus textos e espero que vocês
continuem gostando das minhas palavras - são nelas que escondo o meu mundo. Então... nos
vemos no terceiro?

www.santacretinice.com

'CTG - Centro de Tradições Gaúchas

ZPiiilc e Cérebro - famoso desenho animado dos anos 90

6Post-rnortern, expressão que vem do Latim e significa pós-morte. Tratam-se de fotos


tiradas de pessoas mortas.

3Petéquias: pequenas hemorragias de vasos sanguíneos que aparecem em fonna de pontos


vermelhos na pele.

4Otorragia: hemorragia interna que se exterioriza pelo canal olfativo.

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