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Herança de Fogo
Primeiro volume da
Trilogia da Herança
Badana da capa:
Trilogia da Herança:
- Herança de Fogo
- Herança de Gelo
- Herança de Vergonha
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"O grande dom de Nora Roberts é a sua habilidade em arrebatar o leitor para a vida das
suas personagens... vivemos, amamos, sofremos e triunfamos com elas!"
— Rendezvous
“Nora Roberts é uma artista da palavra. Pinta a sua história e as suas personagens com
vitalidade e realismo."
— Los Angeles Daily New
Badana da contracapa:
Com mais de 130 milhões de cópias vendidas em todo o mundo, e mais de 60 best-
sellers na lista do New York Times, NORA ROBERTS é uma das autoras mais lidas,
acarinhadas e respeitadas do mundo. Foi a primeira autora a ser convidada para o
Romance Writers of América Hall of Fame. Nascida em Silver Spring, Maryland, Nora
Roberts é a mais nova de cinco filhos. Vive em Keedysville onde continua a escrever.
Contracapa:
Nora Roberts volta a arrebatar-nos com o primeiro volume de uma das suas mais
aclamadas séries: a Trilogia da Herança. No centro desta obra apaixonante encontramos
as irmãs Concannon, mulheres do nosso tempo, que vivem na mágica Irlanda, terra de
colinas suaves e lendas antigas.
Herança de Fogo é a história de Maggie Concannon. Talentosa e rebelde, Maggie é uma
artista que trabalha o vidro. As suas obras de arte são mais do que apenas objectos belos,
são reflexos da sua verdadeira natureza. Até que um dia, Rogan Sweeney, dono de uma
das galerias mais sofisticadas de Dublin, descobre o seu trabalho.
Se por um lado Rogan é um profissional e quer fazer dela uma artista conhecida e bem
sucedida, por outro o seu coração atraiçoa-o pois está completamente apaixonado por
aquela mulher rebelde e explosiva. Apesar de Maggie sentir o mesmo, uma relação entre
ambos nunca poderá ser fácil… ou não houvesse um passado negro a assombrar o
futuro.
Edições
CHÁ DAS CINCO
Livros com sexto sentido
Chá das Cinco é uma marca registada das Edições Saída de Emergência
Av. da República, 861, Bloco D, 1º Dtº, 2775-274 Parede, Portugal
Tel e Fax: 214 583 770
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Prezado Leitor,
Nora Roberts
À Amy Berkower,
Por uma década
a tratar dos negócios
CAPÍTULO UM
Ele estaria no pub, é claro. Onde mais é que se aqueceria um homem esperto numa tarde
gélida e ventosa? Em casa é que não seria, diante da própria lareira.
Não, Tom Concannon era um homem esperto, achava Maggie, e não estaria em casa.
O pai dela estaria no pub, no meio dos amigos e de risota. Era um homem que adorava
rir, e chorar, assim como fantasiar sonhos improváveis. Alguns poderiam chamar-lhe
tolo. Mas não a Maggie, isso nunca.
Ao levar a carrinha barulhenta a fazer a curva que ia dar à vila de Kilmihil, não se via
vivalma na rua. Não admirava, já que passava bastante da hora de almoço e o dia não
convidava a passear, uma vez que o Inverno se precipitava do Atlântico como um cão de
caça do Hades gelado. Confrontada com ele, a costa oeste da Irlanda tremia de frio e
sonhava com a Primavera.
Avistou o Fiat desgastado do pai, entre outros veículos que reconhecia. Tim O’Malley
tinha uma boa clientela naquele dia. Estacionou tão próximo quanto possível da entrada
do pub, que estava aninhado numa fila com várias lojas.
Ao descer a rua, o vento fustigava-lhe as costas, obrigando-a a encolher-se dentro do
casaco forrado e a puxar mais para baixo o gorro de lã preta. Uma coloração subia pelas
suas faces como um blush. Por baixo do frio sentia-se o cheiro da humidade, como uma
terrível ameaça. Ia nevar, pensou a filha do agricultor, antes de anoitecer.
Não se lembrava de uma noite de Janeiro mais agreste, ou de outra que parecesse tão
empenhada em soprar a sua rajada gélida sobre o Condado de Clare. O pequeno jardim,
defronte da loja, pelo qual passava apressada, sofrera bastante. O que restava dele fora
enegrecido pelo vento e pelo gelo, jazendo agora miseravelmente no chão ensopado.
Ela lamentava por ele, mas as notícias que guardava dentro de si eram tão luminosas,
que se perguntava como é que as flores não arrebitavam e floresciam como na
Primavera.
No O'Malley's estava bastante quente. Sentiu que a aconchegava assim que abriu a
porta. Conseguia cheirar a turfa a queimar na lareira, o seu coração vermelho
incandescente a brilhar de alegria e o guisado que a mulher do O'Malley, Deirdre,
servira ao almoço. E o tabaco, a cerveja, a névoa espessa que a fritura das batatas havia
deixado no ar.
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Viu primeiro Murphy, sentado a uma das mesas minúsculas, as botas esticadas, ao
mesmo tempo que do acordeão irlandês fazia brotar uma melodia que encontrava a
doçura da sua voz. Os outros fregueses do pub ouviam, elevando os sonhos além da
cerveja e do petisco. A música era triste, como eram as melhores da Irlanda, melancólica
e graciosa como os ouvidos de um apaixonado. Era uma canção que carregava o seu
nome e que falava sobre o envelhecimento.
Murphy viu-a, sorrindo um pouco. O cabelo negro caiu desalinhado sobre a
sobrancelha, obrigando-o a sacudir a cabeça para trás, afastando-o. Tim O'Malley estava
atrás do bar, um homem possante, cujo avental lhe dava a volta à cintura mesmo à justa.
Tinha um rosto largo e vincado, os olhos desaparecendo entre pregas de carne quando se
ria.
Estava a puxar o lustro aos copos. Ao ver Maggie, prosseguiu com a sua tarefa, sabendo
que ela faria o mais correcto, esperando para fazer o pedido quando a canção
terminasse.
Ela viu David Ryan, dando passas num dos cigarros americanos que o irmão lhe enviava
todos os meses de Boston, e a aprumada Sra. Logan, a tricotar com lã cor-de-rosa,
marcando com o pé o ritmo da melodia. Estava lá o velho Johnny Conroy, a rir sem
dentes, a mão nodosa a segurar a mão também artrítica da sua mulher de cinquenta
anos. Estavam sentados juntos, como recém-casados, perdidos na canção de Murphy.
A televisão por cima do bar estava sem som, mas a sua imagem brilhante e lustrosa
mostrava uma telenovela britânica. As pessoas muito elegantes e de cabelo lustroso
discutiam à volta de uma mesa imensa, iluminada por velas com castiçais de prata e fino
cristal.
A sua história cintilante estava além, superando a distância de um país deste pequeno
pub, com o seu bar gasto e as paredes enegrecidas pelo fumo.
O desdém que Maggie sentia pelas personagens deslumbrantes, exibindo-se na sua rica
sala, fora célere e automático como um reflexo do joelho. Tal como uma súbita ponta de
inveja.
Se algum dia fosse assim tão rica, pensava — é claro que, apesar disso, não queria
mesmo saber — era certo que saberia o destino a dar à fortuna.
Foi nessa altura que o viu, sentado sozinho a um canto. Não à parte, nada disso. Era uno
com a sala, tal como a cadeira em que estava sentado. Um dos braços pousado sobre as
costas dessa cadeira, enquanto a outra mão segurava uma chávena que ela sabia conter
chá forte traçado com uísque irlandês.
Era um homem imprevisível, cheio de hesitações e mudanças súbitas de humor, mas ela
conhecia-o. De todos os homens que conhecera, não amara nenhum de coração tão
aberto como amava Tom Concannon.
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Não disse nada, caminhou até ele, sentou-se e aninhou a cabeça no seu ombro.
Sentiu emergir o amor que sentia por ele, um fogo que ardia até à medula, e que jamais
esmorecia. O braço dele deixou a cadeira e abraçou-a com força. Os lábios tocavam a
têmpora dela.
Quando a canção terminou, ela pegou-lhe na mão e beijou-a. — Sabia que estavas aqui.
— Como é que sabias que estava a pensar em ti, Maggie, meu amor?
— Talvez estivesse a pensar em ti. — Reclinou-se para sorrir para ele. Era um homem
pequeno, mas bem constituído. Como um pequeno touro, descrevia-se assim várias
vezes, com uma das suas sonoras gargalhadas. Tinha rugas à volta dos olhos, que se
acentuavam ou alisavam quando sorria. Tornavam-no, aos olhos de Maggie, ainda mais
bonito. Outrora, o seu cabelo fora farto, de um ruivo glorioso. Com o passar do tempo
tornara-se mais fino, e o grisalho sobrepusera-se ao fogo, como fumo. Para Maggie, ele
era o homem mais maravilhoso do mundo.
Era o pai dela.
— Pai, — disse ela. — Tenho novidades.
— Pois claro, dá para ver na tua cara.
Pestanejando, tirou-lhe o gorro e o cabelo dela espalhou-se, num vermelho selvagem,
pelos ombros. Ele sempre gostara de os contemplar, de os ver brilhar e crepitar. Ainda
se lembrava de quando pegara nela pela primeira vez, o rosto enrugado pela fúria de
viver, os punhos minúsculos cerrados e agitados. O cabelo que brilhava como uma
moeda nova.
Não ficara desiludido por não ter um filho, tendo-se contentado com a dádiva de uma
filha.
— Traz uma bebida à minha menina, Tim.
— Prefiro um chá, — gritou ela. — Está um frio de rachar. — Agora que estava ali,
queria dar-se ao luxo de, aos poucos, dar as novidades, saboreando-as. — É por isso que
estás aqui a cantar e a beber, Murphy? Quem é que está a aquecer as tuas vacas?
— Elas mesmas, — ripostou ele. — E se este tempo continuar, vou ter mais vitelos na
próxima Primavera do que alguma vez pensei, uma vez que o gado faz o mesmo que o
resto do mundo numa longa noite de Inverno.
— Oh, sentam-se à lareira com um bom livro, é isso? — Disse Maggie, fazendo a sala
explodir em gargalhadas. Não era segredo nenhum, e apenas um ligeiro embaraço para
Murphy, já que toda a gente conhecia o seu amor pela leitura.
— Já tentei passar-lhes o gosto pela literatura, mas aquelas vacas preferem ver
televisão. — Bateu com o copo vazio. — Vim aqui à procura de paz e sossego, tu estás
sempre com aquela fornalha a rugir como um trovão noite e dia. Porque é que não estás
em casa, a brincar com o vidro?
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— Pai. — Quando Murphy se dirigiu para o bar, Maggie voltou a pegar na mão do pai.
— Tinha de te contar primeiro. Sabias que levei umas peças à loja do McGuiness, em
Ennis, esta manhã?
— Ai, levaste? — Tirou o cachimbo, batendo com ele. — Devias ter-me dito que lá ias.
Fazia-te companhia pelo caminho.
— Quis fazê-lo sozinha.
— Minha pequena eremita, — disse ele, fazendo um dedo escorregar pelo nariz dela
abaixo.
— Pai, ele comprou-as. — Os olhos dela, tão verdes quanto os do pai, brilhavam. — Ele
comprou quatro, todas as que levei. Pagou-mas logo na altura.
— Não me digas, Maggie, não me digas! — Levantou-se, arrastando-a com ele,
fazendo-a girar pela sala. — Ouçam isto, senhoras e senhores. A minha filha, a minha
Margaret Mary, vendeu os vidros dela em Ennis.
Seguiu-se um aplauso rápido e espontâneo e uma enxurrada de perguntas.
— No McGuiness, — disse ela, disparando respostas. — Quatro peças, e ele quer ver
mais. Duas jarras, uma taça, e um... acho que se pode chamar à última um pisa-papéis.
— Riu-se quando Tim pousou no balcão uísques para ela e para o pai.
— Então, está bem. — Ergueu o copo e fez um brinde. — Ao Tom Concannon, que
acreditou em mim.
— Oh, não, Maggie. — O pai dela abanou a cabeça e viam-se-lhe lágrimas nos olhos.
— A ti. Tudo graças a ti. — Tilintou o copo e deitou o uísque pela garganta abaixo. —
Dá gás a essa caixa que chamas acordeão, Murphy. Quero dançar com a minha filha.
Murphy acedeu com uma giga. Ao som de gritos e bater de palmas, Tom guiou a filha à
volta da sala. Deirdre voltou da cozinha, limpando as mãos ao avental. Com o rosto
afogueado de cozinhar, puxou o marido para uma dança. Da giga para a dança escocesa,
da dança escocesa para hornpipe, Maggie girava de parceiro em parceiro até lhe doerem
as pernas.
A medida que mais gente entrava no pub, atraída pela música ou pela ideia de
companhia, a notícia era divulgada. Ao cair da noite, toda a gente num raio de vinte
quilómetros sabia a novidade.
Ansiara bastante por este tipo de fama. Mantinha o segredo de desejar ainda mais.
— Oh, já chega. — Afundou-se na cadeira e bebeu o chá frio. — O meu coração está
prestes a explodir.
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Ela conseguia vê-la, tão nítida como a mão que usava para a descrever.
— Vês coisas lindas nessa tua cabeça.
— É fácil vê-las. — Lançou-lhe um sorriso. — O mais difícil é torná-las reais.
— Hás-de torná-las reais. — Deu umas palmadinhas na mão dela e caiu no silêncio.
Maggie seguia pela estrada sinuosa e estreita na direcção do mar. Lá longe, para oeste,
as nuvens corriam, os seus rastos chicoteados pelo vento e enegrecidas pela tempestade.
Retalhos mais límpidos eram engolidos, depois conseguindo libertar-se brilhando como
jóias por entre o peltre.
Viu uma taça, larga e profunda, salpicada por aquelas cores contrastantes, e começou a
imaginá-la na cabeça.
A estrada curvava, depois voltava a endireitar, enquanto ela conduzia a carrinha ruidosa
pelas sebes amarelecidas pelo Inverno e de altura superior à de um homem. Nas
imediações da vila, à beira da estrada, havia um altar dedicado a Maria. O rosto da
Virgem mostrava-se sereno perante o frio, os braços abertos num acolhimento generoso,
flores de um plástico aberrante aos seus pés.
Um suspiro do pai fê-la olhar para ele. Pareceu-lhe algo pálido, com olheiras profundas
debaixo dos olhos. — Pareces cansado, pai. Tens a certeza que não queres que te leve a
casa?
— Não, não. — Tirou o cachimbo, batendo com ele na palma da mão, ausente. —
Quero ver o mar. Vem aí tempestade, Maggie Mae. Vai haver espectáculo nos penhascos
em Loop Head.
— Vamos até lá.
Ao deixarem a vila, a estrada voltava a estreitar de forma alarmante, até que ela se viu a
tentar passar a carrinha como se fosse algodão pelo buraco de uma agulha. Um homem,
bastante encolhido do frio, arrastava-se na direcção deles, o cão fiel colado estoicamente
aos seus calcanhares. Tanto o homem quanto o cão passaram da estrada para a berma
assim que a carrinha passou, abrandando, a centímetros das botas do homem. Ele
acenou para Maggie e para Tom, cumprimentando-os.
— Sabes o que é que estive a pensar, pai?
— O quê?
— Se conseguisse vender mais umas peças... só mais umas... podia comprar outra
fornalha. Quero trabalhar com mais cores, percebes. Se conseguisse construir outra
fornalha, podia trabalhar com mais fusões. As de tijolo refractário não são assim tão
caras, a sério. Mas ia precisar de mais de duzentas libras.
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— Vamos de barco até Nova Iorque, Maggie, beber uma pint? — Disse ele, como
sempre.
— Eu pago a primeira rodada.
Ele riu-se. Sentiu-se invadir por uma certa ansiedade, quando ela estacionou a carrinha
no final da estrada, que dava lugar à relva e às pedras e, por fim, ao mar picado pelo
vento, que se espraiava até à América.
Saíram para um rugido de vento e água, que esmurrava furiosamente os dentes e os
punhos da pedra negra. De braço dado, baloiçaram como bêbedos, depois rindo,
começaram a andar.
— É de doidos vir aqui num dia destes.
— Pois, uma doidice pegada. Sente o ar, Maggie! Sente-o. Quer que levantemos voo
daqui até à cidade de Dublin. Lembras-te quando fomos a Dublin?
— Vimos um malabarista a atirar ao ar bolas coloridas. Gostei tanto que aprendeste a
fazê-lo.
A gargalhada dele explodiu como o próprio mar. — Oh, as maçãs que estraguei.
— Comemos tartes e bebemos cidra durante semanas.
— E eu pensava que podia ganhar uns trocos com a minha nova habilidade e fui até à
feira de Galway.
— E gastaste todo o dinheiro que ganhaste em presentes para mim e para a Brianna.
As cores voltaram ao seu rosto, reparou ela, e os olhos já brilhavam. De boa vontade,
ela acompanhou-o pela relva até se entregarem às garras do vento. Ali ficaram à beira
do poderoso Atlântico, com as suas ondas guerreiras a quebrarem implacáveis na rocha.
A água batia, depois afastava-se de novo, deixando dezenas de cascatas a escorrer pelas
fendas. Lá em cima, as gaivotas piavam e giravam, piavam e giravam, o som ecoando
sem destino de encontro ao ribombar das ondas.
A espuma subia bem alto, branca como a neve na base, límpida como cristal nas gotas
que flutuavam pelo ar gelado. Hoje nenhum barco cruzava a superfície do mar. As ondas
de espuma branca navegavam sozinhas.
Ela perguntava-se se o pai vinha aqui muitas vezes porque a união entre mar e rochas
simbolizava o casamento, como uma guerra aos olhos dele. E o casamento dele fora
sempre uma batalha, a constante amargura e raiva das amarras da sua mulher para
sempre no seu coração e, gradualmente, oh, tão gradualmente, a desgastá-lo.
— Porque é que ainda estás com ela, pai?
— O quê? — Ele desviou a atenção do mar e do céu.
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— Porque é que ainda estás com ela? — Repetiu Maggie. — Eu e a Brie já somos
crescidas. Porque é que ficas onde não és feliz?
— Ela é minha mulher, — respondeu, simplesmente.
— Achas que isso é resposta que se dê? — Exigiu ela. — Porque é que tem de ser
assim? Não existe amor entre vocês, nem se gostam, já chegou a esse ponto. Ela fez da
tua vida um inferno desde que me lembro.
— És demasiado dura com ela. — Também se convencera disto, pensava ele. Por amar
a filha tanto, não conseguira evitar o amor incondicional que ela sentia por ele. Um
amor, que ele sabia, não deixara espaço algum para compreender as desilusões da
mulher que a dera à luz. — O que se passa entre mim e a tua mãe é assunto nosso. Um
casamento é algo delicado, Maggie, um equilíbrio entre dois corações e duas expec-
tativas. Por vezes, o fardo é demasiado pesado só de um lado e o outro não o consegue
aliviar. Vais compreender quando tiveres o teu próprio casamento.
— Nunca me hei-de casar. — Exclamou ela, ríspida, como um voto perante Deus. —
Nunca darei a ninguém o direito de me fazer tão infeliz.
— Não digas isso. Não digas. — Ele apertou-a com força, preocupado. — Não há nada
mais precioso do que o casamento e a família. Nada no mundo.
— Se é assim, como é que pode ser uma prisão?
— Não devia ser. — A fraqueza tomou conta dele outra vez, e de uma só vez, sentiu o
frio mesmo até aos ossos. — Não te demos um bom exemplo, eu e a tua mãe, e lamento
por isso. Mais do que possas imaginar. Mas há uma coisa que sei, Maggie, minha
menina. Quando amas com todo o teu ser, não te arriscas só a ser infeliz. Arriscas-te a
chegar ao céu.
Ela encostou a cara ao casaco do pai, procurando conforto no seu cheiro. Não lhe podia
dizer que sabia, há anos que sabia, que ele nunca chegara ao céu. E que ele nunca teria
trancado a porta daquela prisão marital se não fosse por ela.
— Alguma vez a amaste?
— Amei. E foi tão intenso como uma das tuas fornalhas acesas. Foi aí que nasceste,
Maggie Mae. Nasceste do fogo, como uma das tuas estatuetas mais finas e arrojadas.
Por mais que esse fogo tenha arrefecido, pelo menos uma vez ardeu. Talvez se não
tivesse ardido com tanta intensidade, com tanto ardor, o tivéssemos feito durar.
Algo no tom de voz dele a fez erguer de novo o olhar, estudando o rosto dele. — Havia
outra pessoa.
Como uma lâmina açucarada, a memória era dolorosa e doce. Tom olhou de novo para o
mar, como se conseguisse ver através dele e encontrar a mulher que perdera. — Sim,
houve uma. Mas não estava destinado.
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Não era correcto. Deixa-me dizer-te, quando o amor aparece, quando a seta atinge o teu
coração, nada o pode parar. Até sangrar se torna um prazer. Por isso, nunca digas nunca,
Maggie. Quero para ti o que eu nunca tive.
Ela não lho disse, mas pensou. — Tenho vinte e três anos, pai, e a Brie é um ano mais
nova. Sei o que diz a igreja, mas raios me partam se acredito que existe um Deus no céu
que tem prazer em castigar um homem a vida toda por um erro.
— Um erro. — Ergueu o sobrolho. Tom enfiou o cachimbo entre os dentes. — O meu
casamento não foi um erro, Margaret Mary, e não és tu que o vais dizer agora, nem
nunca mais. Tu e a Brie são a prova disso. Um erro... não, um milagre. Já tinha mais de
quarenta anos quando tu nasceste, não tinha qualquer intenção de começar uma família.
Às vezes penso no que teria sido a minha vida sem vocês duas. Onde é que estaria
agora? Um homem à beira dos setenta, sozinho. Sozinho. — Segurou a cara dela com as
mãos em concha e fitou-lhe os olhos. — Dou graças a Deus todos os dias por ter
encontrado a tua mãe, e que nós dois tenhamos feito algo que vai perdurar. De tudo
aquilo que já fiz, e que ainda não fiz, tu e a Brianna são as minhas primeiras e
verdadeiras alegrias. Não vamos falar mais de erros e de infelicidade, estás a ouvir?
— Amo-te, pai.
O rosto dele suavizou-se. — Eu sei. Acho que até demais, mas não me posso queixar. —
Sentiu-se inundar de novo pela ansiedade, como um vento a sussurrar para que se
apresse. — Há uma coisa que te quero perguntar, Maggie.
— O que é?
Ele estudou o rosto dela, os dedos moldando-o como se de repente surgisse uma
necessidade de memorizar cada traço — o teimoso queixo pontiagudo, a curva suave da
maçã do rosto, os olhos tão verdes e inquietos como o mar que se quebrava lá em baixo.
— És forte, Maggie. Dura e forte, com um coração verdadeiro por baixo do aço. Sabe
Deus como és inteligente. Não consigo compreender tudo aquilo que sabes, ou como é
que o sabes. És a minha estrela cintilante, Maggie, tal como a Brie é a minha rosa
fresca. Quero muito que as duas sigam os vossos sonhos. Quero-o mais do que consigo
expressar. E quando os perseguirem, façam-no tanto por mim quanto por vocês.
O ruído do mar ribombava nos ouvidos dele, tal como a luz nos olhos. Por momentos, o
rosto de Maggie ficou enevoado e desvaneceu-se.
— O que é? — Alarmada, agarrou-o. Ele ficara cinzento como o céu, e, subitamente,
parecia horrivelmente envelhecido. — Estás doente, pai? Deixa-me levar-te para a
carrinha.
— Não. — Era vital, por razões que desconhecia, que ficasse ali, apenas ali no extremo
mais longínquo do seu país, e terminasse o que começara. — Estou bem. É só uma
ligeira pontada.
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— Estás gelado. — De facto, o seu corpo duro mais parecia um saco de ossos gelados
nas mãos dela.
— Ouve-me. — A voz dele era aguda. — Não deixes que nada te impeça de ires onde
tens de ir, de fazeres o que tens de fazer. Deixa a tua marca no mundo, mas que seja tão
profunda que perdure. Mas não...
— Pai! — Uma onda de pânico explodiu dentro dela ao mesmo tempo que ele,
cambaleando, se deixou cair de joelhos. — Oh, Deus, pai, o que se passa? É o teu
coração?
Não, não era o coração, pensava ele no meio de uma dor indistinta nebulosa. Conseguia
ouvir aquele bater bem forte e rápido nos ouvidos. Mas sentia algo dentro dele que se
quebrava, rebentava e se desvanecia.
— Não fiques seca, Maggie. Promete-me. Nunca vais perder o que trazes dentro de ti.
Vais tomar conta da tua irmã. E da tua mãe. Promete-me isso.
— Tens de te levantar. — Tentou puxá-lo, afastando o medo. O ribombar do mar parecia
agora uma tempestade que desabava, um pesadelo de tempestade que os arrastaria da
falésia abaixo até às rochas pontiagudas.
— Estás a ouvir, pai? Agora tens de te levantar.
— Promete-me.
— Sim, prometo. Juro perante Deus, vou tomar conta delas, sempre. — Os seus dentes
batiam; lágrimas cáusticas já corriam pelo rosto abaixo.
— Preciso de um padre, — arquejou ele.
— Não, não, só precisas de sair deste frio. — Mas ela sabia que, mesmo ao pronunciá-
lo, era mentira. Ele estava a escapar-se-lhe; não importava a força com que apertava o
seu corpo de encontro ao dela, o que trazia dentro dele estava a escapar-se-lhe. — Não
me deixes assim. Não assim. — Desesperada, perscrutou os campos, os caminhos
batidos onde as pessoas haviam caminhado ano após ano, para chegarem ali, onde eles
estavam agora. Mas não havia nada, ninguém, por isso desistiu de gritar por ajuda. —
Tenta, pai, tenta agora levantar-te. Levo-te a um médico.
Ele pousou a cabeça no ombro dela e suspirou. Agora já não havia dor, apenas
dormência. — Maggie, — disse ele. Depois murmurou outro nome, um nome
desconhecido, e pronto.
— Não. — Como se o quisesse proteger do vento que já não sentia, colocou os braços
com toda a força à volta dele, embalando, embalando, embalando entre soluços.
E o vento trombeteou até ao mar, trazendo consigo as primeiras agulhas da chuva
gelada.
21
CAPÍTULO DOIS
O velório de Thomas Concannon seria motivo de conversa durante anos. Havia boa
comida e boa música, uma vez que ele planeara a festa de homenagem à filha. A casa
onde passara os últimos anos de vida estava apinhada de gente.
Tom não fora um homem rico, poder-se-ia dizer, mas era um homem cuja fortuna
residia nos amigos.
Vieram da vila, e de outras vilas mais além. Das quintas, das lojas e das cabanas.
Trouxeram comida, como os vizinhos costumam fazer em ocasiões deste tipo, e a
cozinha ficou rapidamente atolada de pão, carnes e bolos. Beberam para celebrar a vida
dele e cantaram a sua morte.
As lareiras ardiam bem quentes para afastar a ventania que sacudia as janelas e o
desalento do luto.
Mas Maggie tinha a certeza que nunca mais se aqueceria. Sentou-se junto à lareira na
salinha arrumada, enquanto as pessoas enchiam a casa ao seu redor. Nas chamas via as
falésias, o mar fervilhante — e a si mesma, sozinha, amparando o pai moribundo.
— Maggie.
Alarmada, virou-se e viu Murphy agachado diante dela. Enfiou-lhe nas mãos uma
caneca fumegante.
— O que é?
— Quase só uísque, com um pouco de chá para aquecer. — Os seus olhos revelavam
generosidade e desgosto. — Agora bebe. Linda menina. Não queres comer nada? Fazia-
te bem.
— Não consigo, — respondeu ela, mas fez o que lhe pedia e bebeu. Quase podia jurar
que sentia cada gota ardente a descer garganta abaixo. — Não o devia ter levado até lá,
Murphy. Devia ter reparado que estava doente.
— Isso é um disparate e sabes bem disso. Ele parecia bem e em forma quando saiu do
pub. Afinal, tinha estado a dançar, ou não?
A dançar, pensava ela. Dançara com o pai no dia em que ele morreu. Será que, um dia,
iria encontrar algum consolo nisso? — Mas se não nos tivéssemos afastado tanto. Tão
isolados...
— O médico explicou-te tudo direitinho, Maggie. Não fazia diferença nenhuma. Foi o
aneurisma que o matou, e foi piedosamente rápido.
— Sim, foi rápido. — A mão dela tremia, por isso voltou a beber. O tempo que passou
depois é que demorou. O horrível tempo em que ela levara o seu corpo para longe do
mar, com a respiração ofegante presa na garganta e as mãos geladas no volante.
22
— Nunca vi um homem tão orgulhoso como ele era de ti. — Murphy hesitou, descendo
o olhar para as mãos. — Era como um segundo pai para mim, Maggie.
— Eu sei disso. — Esticou o braço, afastando o cabelo de Murphy do sobrolho. — Ele
também sabia.
Então, agora, já era o segundo pai que perdia, pensou Murphy. E pela segunda vez
sentia o peso do desgosto e da responsabilidade.
— Gostava que soubesses que se houver alguma coisa, seja o que for que precises, ou a
tua família, só tens de me dizer.
— É muito bom ouvir-te dizer isso e saber que és sincero.
Ele voltou a erguer o olhar; os olhos dele, de um azul celta selvagem, encontraram os
dela. — Sei que foi difícil quando ele teve de vender o terreno. E mais ainda porque fui
eu que o comprei.
— Não. — Maggie pousou a caneca ao lado e com as suas mãos agarrou as dele. — O
terreno não era importante para ele.
— A tua mãe...
— Ela até culparia um santo por o comprar, — disse Maggie, bruscamente. — Apesar
de o dinheiro da venda lhe ter colocado comida no prato. Acho que foi mais fácil por
teres sido tu. Eu e a Brie não invejamos nem um pedaço de relva teu, essa é que é a
verdade, Murphy. — Ela obrigou-se a sorrir para ele, porque ambos precisavam. —
Fizeste o que ele não foi capaz e o que simplesmente não quis fazer. Fizeste a terra dar
fruto. Nunca mais te quero ouvir falar nesses termos.
Depois, olhou em redor como se tivesse acabado de sair de uma sala vazia para entrar
noutra cheia. Alguém estava a tocar flauta e a filha de O'Malley, grávida do primeiro
filho, cantava uma melodia suave e sonhadora. Um murmúrio de risos alegres e livres
atravessava a sala. Um bebé chorava. Homens encolhidos aqui e acolá, falando de Tom
e do tempo, da égua doente de Jack Marley e do tecto da cabana dos Donovan que
pingava.
As mulheres também falavam de Tom e do tempo, dos filhos, dos casamentos e dos
velórios.
Ela viu uma mulher velha, uma prima idosa e afastada, com sapatos gastos e meias
remendadas, que desfiava uma história para um grupo de pessoas mais novas de olhos
esbugalhados, enquanto tricotava uma camisola.
— Ele adorava ter gente à volta dele, sabes. — Sentia-se o sofrimento, palpitante como
uma ferida na sua voz. — Se pudesse, todos os dias enchia a casa. Ficava sempre
admirado por eu preferir estar sozinha. — Respirou fundo e esperou que a voz lhe saísse
casual. — Alguma vez ouviste falar de alguém chamado Amanda?
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Maggie sorriu um pouco e disse o que se esperava dela, apesar de conhecer a história
toda. — E o que é que fez ao galo que o pai lhe vendeu, Sra. Mayo?
— Torci-lhe o maldito pescoço e fiz um belo guisado. E dei ao teu pai uma tigela dele,
ai pois dei. Ele disse que nunca tinha provado nenhum melhor em toda a vida. — Ela
riu-se com satisfação e obrigou Maggie a aceitar o prato.
— E estava mesmo bom?
— A carne era rija e dura como cabedal velho. Mas Tom limpou a tigela toda. Deus o
abençoe.
Por isso, Maggie comeu, por não haver mais nada que pudesse fazer a não ser viver e
seguir em frente. Ouvia as histórias e contava algumas também. Quando o Sol se pôs, e
a cozinha aos poucos foi ficando vazia, sentou-se e pegou no cãozinho ao colo.
— Ele era amado, — comentou Maggie.
— Pois era. — Brianna permanecia de pé, ao lado do fogão, com um pano na mão e o
olhar perdido. Já não havia mais ninguém para alimentar ou cuidar, nada que lhe
mantivesse a mente e as mãos ocupadas. O desgosto inundava-lhe o coração como
vespas iradas. Para aguentar um pouco mais, começou a arrumar os pratos.
Era esguia, mais parecendo um salgueiro, movendo-se de forma tranquila e controlada.
Se tivesse havido dinheiro ou essa possibilidade, ela podia ter sido bailarina. O cabelo,
de um dourado rosado e espesso, estava bem apanhado na nuca. Um avental branco
cobria-lhe o vestido preto liso.
Em contraste, o cabelo de Maggie era um emaranhado fogoso à volta do seu rosto.
Vestia uma saia que se esquecera de passar a ferro e uma camisola que precisava de ser
remendada.
— O tempo não vai abrir amanhã. — Brianna esquecera-se da louça nas mãos e olhava
pela janela para a fúria da noite.
— Não vai, não. Mas as pessoas hão-de vir, mesmo assim, como vieram hoje.
— Depois podemos recebê-las aqui. Temos tanta comida. Não sei o que lhe havemos de
fazer... — A voz de Brianna quebrou.
— Ela chegou a sair do quarto?
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— O quê? — Maggie voltou-se para a irmã. — O que é que se passa com a casa?
— Ouviste o que disseram na leitura do testamento, — começou Brianna, mas Maggie
abanou a cabeça.
— Não assimilei nada. Conversa de advogado. Nem sequer prestei atenção.
— Deixou-lha a ela. — Ainda trémula, Maeve levantou um dedo e abanou-o em jeito de
acusação. — Ele deixou-lhe a casa a ela. Tantos anos de sofrimento e sacrifício e ele até
isso me tira.
— Ela só vai ficar satisfeita quando souber que tem um tecto firme sobre a cabeça sem
ter de fazer nada para o manter, — disse Maggie, quando a mãe saiu do quarto.
Era bem verdade. E Brianna achava que conseguia manter a paz. Já tinha uma vida
inteira de experiência. — Fico com a casa e ela pode viver cá. Consigo tratar das duas.
— Santa Brianna, — murmurou Maggie, sem qualquer malícia. — Havemos de tratar
disso as duas. — A nova fornalha teria de esperar, pensou ela. Desde que McGuiness
continuasse a comprar, ganharia o suficiente para manter as duas casas.
— Andei a pensar... há pouco tempo conversei com o pai e estive a pensar... — Brianna
hesitou.
Maggie colocou de lado os seus próprios pensamentos. — Diz lá.
— Precisa de algumas obras, eu sei, e já tenho pouco dinheiro do que a avó me deixou,
e também há a hipoteca.
— Eu pago a hipoteca.
— Não, isso não é justo.
— É perfeitamente justo. — Maggie levantou-se para ir buscar o bule de chá. — Ele
fê--lo para eu poder ir para Veneza, não foi? Hipotecou a casa e aguentou o veneno que
a mãe lhe destilou para cima por causa disso. Graças a ele, tive três anos de
aprendizagem. E tenciono pagá-los.
— A casa é minha. — Brianna reafirmou o tom de voz. — E a hipoteca também.
A irmã revelava um semblante meigo, mas Maggie sabia que Brianna podia ser teimosa
como uma mula quando queria. — Bom, podemos discutir sobre isso até à eternidade.
Pagamo-la as duas. Já que não me deixas tratar disso por ti, Brie, deixa-me fazê-lo por
ele. Preciso de o fazer.
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— Haveremos de arranjar uma solução. — Brianna pegou na chávena de chá que
Maggie lhe servira.
— Diz-me qual é a tua ideia.
— Está bem. — Parecia idiota. Só esperava que não soasse também. — Quero fazer da
casa um B e B.
— Um hotel! — Abismada, Maggie ficou imóvel, fitando-a. — Queres ter hóspedes a
pagar para andarem a bisbilhotar por aí? Não vais ter privacidade nenhuma, Brianna, e
vais trabalhar de manhã até à noite.
— Gosto de ter gente por perto, — disse Brianna, calmamente. — Nem toda a gente
quer ser ermitã como tu. E acho que tenho jeito para deixar as pessoas à vontade.
Corre--me no sangue. — Espetou o queixo. — O avô era dono de um hotel, não era, e a
avó ficou a tomar conta depois dele morrer. Eu também sou capaz.
— Nunca disse que não eras capaz, só que não consigo imaginar porque o queres fazer.
Estranhos a entrar e a sair todos os dias. — Dava-lhe arrepios só de imaginar.
— Só tenho de esperar que apareçam. Os quartos lá de cima precisam de uma
remodelação, é claro. — Os olhos de Brianna enevoaram-se ao pensar nos detalhes. —
Alguma tinta, papel de parede. Um ou dois tapetes novos. E sabe Deus como a
canalização precisa de obras. A verdade é que íamos precisar de outra casa de banho,
mas acho que o armário lá em cima, ao fundo do corredor, ia servir. Podia arranjar aqui
um pequeno apartamento junto à cozinha, para a mãe, assim não a iam perturbar. E
aumentava um pouco o jardim, colocava um anúncio. Nada de muito grande, estás a ver.
Tudo pequeno, com gosto e confortável.
— Queres fazê-lo, — murmurou Maggie, vendo uma luz brilhar nos olhos da irmã. —
Queres mesmo.
— Quero sim. Quero muito.
— Então, trata disso. — Maggie segurou-lhe nas mãos. — Trata disso, Brie. Remodela
os quartos e manda arranjar a canalização. Pendura um anúncio com os preços. Ele
haveria de querer que o fizesses.
— Também acho que sim. Riu-se quando lhe falei nisso, daquela forma imensa que só
ele.
— Sim, tinha uma grande gargalhada.
— Deu-me um beijo e brincou, dizendo que eu era neta de estalajadeira e que seguia a
tradição. Se começasse com uma coisa pequena, podia abrir já este Verão. Os turistas
vêm especialmente aos condados ocidentais no Verão, e procuram um lugar confortável
e simpático onde passar a noite. Até podia... — Brianna fechou os olhos. — Oh, ouve só
esta conversa, para quem vai enterrar o pai amanhã.
— Era isso mesmo que ele gostaria de ouvir. — Maggie conseguiu voltar a sorrir. —
Um grande plano como esse, haveria de te incentivar!
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CAPÍTULO TRÊS
Ela estava sozinha — como mais gostava. Da porta da cabana observava a chuva a cair
nos campos do Murphy Muldoon, a bater furiosamente na relva e nas pedras ao mesmo
tempo que o Sol brilhava, esperançoso, teimando, atrás dela. Havia a possibilidade de
uma dúzia de climas diferentes no céu às camadas, todos breves e instáveis.
Era assim a Irlanda.
Mas, para Margaret Mary Concannon, a chuva era uma coisa boa. Muitas vezes,
preferia-a ao golpe quente do Sol e ao brilho límpido de céus azuis sem nuvens. A chuva
era uma cortina granulada suave, que a separava do mundo. Mais importante ainda, que
mantinha o mundo lá fora, além da vista dos montes e campos e das luzidias vacas
malhadas.
Apesar de a quinta, as vedações de pedra e a relva verde além do salpicado de brincos-
de-princesa já não pertencerem a Maggie nem à sua família, este canto com o pequeno
jardim selvagem e húmido ar primaveril era dela.
Verdade seja dita, era filha de um agricultor. Mas ela não era agricultora. Nos cinco anos
que passaram desde a morte do pai, ela dedicara-se a cuidar do cantinho dela — e da
marca que ele lhe pedira para deixar. Talvez ainda não estivesse profunda o suficiente,
mas continuava a vender o que fazia, agora em Galway e Cork, bem como em Ennis.
O que tinha, bastava-lhe. Talvez quisesse mais, mas sabia que os desejos, por mais
profundos e sedutores que fossem, não pagavam as contas. Também sabia que algumas
ambições, quando realizadas, traziam um preço elevado.
Se de tempos a tempos ficasse frustrada ou insatisfeita, apenas tinha de se lembrar que
estava onde era preciso e a fazer o que optara.
Mas em manhãs como esta, em que a chuva e o Sol guerreavam, pensava no pai, e nos
sonhos que ele nunca vira realizados.
Ele morrera sem fortuna, sem sucesso e sem a quinta que, há gerações, fora cultivada e
lavrada pelas mãos dos Concannon.
Ela não se ressentia por a maior parte da sua herança ter sido vendida para pagar
impostos e dívidas, bem como as fantasias inflamadas do seu pai. Talvez houvesse uma
certa emoção ou desgosto pelos montes e campos em que correra outrora, com a
arrogância e inocência da juventude. Mas isso era passado. De facto, ela não queria ter
de trabalhar as terras, ou preocupar-se com elas. Ela não nutria o amor pelas coisas que
crescem, que fascinava a sua irmã, Brianna. Era verdade, gostava do jardim, com as
grandes flores provocadoras e os aromas que delas emanavam. Mas as flores cresciam,
apesar dos seus períodos de negligência.
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Tinha a sua casa e tudo para além disso era exterior ao seu domínio, por isso,
normalmente, era também exterior à sua mente. Maggie preferia não precisar de
ninguém e, certamente, não precisar de nada que não pudesse ter.
Sabia que a dependência e a ânsia por algo mais do que se tem levava à infelicidade e à
insatisfação. Teve sempre o exemplo dos seus pais.
Demorando-se por instantes, passando a porta aberta para debaixo da chuva gelada,
inalou o ar, a sua doçura húmida impregnada de Primavera, devido aos espinheiros
negros em flor, que formavam uma sebe a leste, e às primeiras rosas que lutavam por
florir, a oeste. Ela era uma mulher pequena, proporcionada por baixo das calças de
ganga largas e da camisa de flanela. Em cima do cabelo pelos ombros, cor de fogo,
usava um chapéu mole, tão cinzento quanto a chuva. Por baixo da aba, os seus olhos
mostravam o verde temperamental e místico do mar.
A chuva molhava-lhe a cara, a curva macia da maçã do rosto e do queixo, a boca ampla
e melancólica. Humedecia a tez ruiva e cremosa, unindo as sardas douradas espalhadas
na curva do seu nariz.
Bebeu o chá forte do pequeno-almoço numa caneca de vidro desenhada por ela e
ignorou o telefone que começara a tocar na cozinha. Ignorar uma chamada era tanto
uma política quanto um hábito, particularmente quando a sua mente estava concentrada
no trabalho. Na sua cabeça uma escultura tomava forma, tão límpida como uma gota de
chuva, pensava ela. Pura e macia, o vidro a fundir-se no vidro, bem no seu âmago.
A visão chamava-a. Ignorando o telefone que tocava, debaixo de chuva, passou para a
oficina, penetrando no bramido reconfortante da fornalha do vidro.
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É claro que esse era um desafio já conquistado. Esta exposição em particular iria uma
vez mais assegurar que a Worldwide era uma galeria internacional de topo. Entretanto, a
mulher, a maldita teimosa mulher de Clare, moía-lhe o juízo. Apesar de ainda não a ter
encontrado cara a cara, ela e o seu génio ocupavam demasiado a sua cabeça.
A nova remessa iria, é claro, receber tanto do seu talento, energia e tempo quanto fosse
necessário. Mas um novo artista, em particular aqueles cujo trabalho captara totalmente
a sua imaginação, estimulavam-no a outro nível. A emoção da descoberta era tão vital
para Rogan quanto o desenvolvimento cauteloso, o marketing e a venda das obras de
um artista.
Ele queria a Concannon, em exclusivo, para as Galerias Worldwide. Tal como na
maioria dos seus desejos, todos ponderados de forma razoável, não descansaria até a
conseguir.
Fora educado para o sucesso — a terceira geração de mercadores prósperos que
descobriram um meio inteligente de transformar pences em libras. O negócio que o avô
fundara há sessenta anos florescia sob a sua direcção — uma vez que Rogan se recusava
a aceitar um não como resposta. Costumava atingir os seus objectivos debaixo de suor,
charme, tenacidade ou qualquer outro meio que lhe parecesse adequado.
Margaret Mary Concannon e o seu talento desenfreado eram o seu mais recente e mais
frustrante objectivo.
Não costumava ser um homem insensato e ficaria chocado e insultado por descobrir que
era descrito dessa forma por muitas das pessoas que o conheciam. Se exigia horas
esquecidas e trabalho duro dos seus funcionários, não exigia menos de si. Motivação e
dedicação não eram apenas virtudes de Rogan, eram necessidades que haviam sido
impregnadas nos seus ossos.
Podia muito bem ter entregado as rédeas da Worldwide a um gestor, vivendo
confortavelmente dos lucros. Depois, podia viajar, não a negócios mas por prazer,
gozando os frutos da sua herança sem suar a camisa.
Podia tê-lo feito, mas responsabilidade e sede de ambição eram-lhe direitos inatos.
E M. M. Concannon, artista vidreira, ermitã e excêntrica, era a sua obsessão.
Ia levar a cabo mudanças nas Galerias Worldwide, mudanças essas que se iriam reflectir
na sua própria visão, celebrando o seu próprio país. M. M. Concannon seria o primeiro
passo e raios o partissem se a teimosia dela o faria recuar.
Ela desconhecia — porque se recusava a ouvir, pensava Rogan, ameaçadoramente —
que ele tencionava torná-la na primeira estrela irlandesa nativa da Worldwide. No
passado, com o pai e o avô no leme, as galerias haviam-se especializado em arte
internacional. Rogan não queria limitar a paleta, mas pretendia mudar a ênfase e dar a
conhecer ao mundo o melhor da sua terra natal.
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A primeira peça, vislumbrada durante um chá obrigatório com a avó, iniciara-o nesta
odisseia de possuir — não, pensou ele, desconfortável com a palavra. De controlar,
corrigiu, queria controlar o destino daquela criação, bem como a carreira da artista.
Desde essa tarde, conseguira comprar apenas duas peças dela. Uma era tão delicada
como sonhar acordado, uma coluna esguia, muito leve, atravessada por arco-íris
luminosos e pouco maior que o alcance da sua mão, desde o pulso até à ponta do dedo.
A segunda, a que poderia admitir em privado o perseguira e enfeitiçara, era um pesadelo
violento, despoletado por uma mente apaixonada, num emaranhado turbulento de vidro.
Devia ser assimétrica, pensava agora ao estudar a peça na secretária. Devia ser feia, com
a sua guerra selvagem de cores e formas, as gavinhas sôfregas encurvadas e, como
garras, projectando-se da base bojuda.
Em vez disso, era fascinante e sexual, de forma inquietante. E fê-lo perguntar-se que
tipo de mulher conseguiria criar ambas as peças com igual destreza e pujança.
Desde que a comprara há pouco mais de dois meses que tentava, sem sucesso, contactar
a artista e abordar o mecenato.
Por duas vezes conseguira falar com ela pelo telefone, mas a conversa da parte dela fora
breve, roçando a grosseria. Não precisava de mecenas, muito menos de um homem de
negócios de Dublin com demasiada educação e pouco sentido de gosto.
Oh, aquilo doera.
Estava satisfeita, anunciara na sua pronúncia melodiosa do oeste, por criar ao seu
próprio ritmo e vender as obras quando e onde lhe aprouvesse. Não via necessidade nos
contratos dele, nem queria que ninguém lhe dissesse o que era para vender. As obras
eram dela, ou não, por isso porque é que ele não voltava para os seus registos, que
estava certa ele teria muitos, e a deixava em paz?
Que coisinha insolente, pensara ele, voltando ao ataque. Ali estava ele, a oferecer uma
mão amiga, uma mão que inúmeros artistas fariam tudo para ter, e ela queria mordê-la.
Ia deixá-la em paz, desejava Rogan. Deixá-la a criar na obscuridade. Tinha a certeza que
nem ele nem a Worldwide precisavam dela.
Mas, que raios, ele queria-a.
Num impulso, pegou no telefone e ligou para a secretária. — Eileen, cancela os meus
compromissos durante os próximos dois dias. Vou fazer uma viagem.
…
34
Era coisa rara Rogan ter negócios nos condados ocidentais. Lembrava-se de umas férias
em família na infância. Normalmente, os pais preferiam viagens a Paris ou Milão, ou
uma escapadela ocasional à vivenda que tinham no mediterrâneo francês. Já fizera
viagens que combinavam negócios e prazer. Nova Iorque, Londres, Bona, Veneza,
Boston. Mas uma vez, quando tinha nove ou dez anos, foram de carro até à zona de
Shannon para conhecerem o cenário selvagem e glorioso do oeste. Tinha recordações
dispersas, das paisagens estonteantes das Falésias de Mohr, dos panoramas fascinantes e
das águas cintilantes como jóias do Lago District, das vilas e do verde interminável das
quintas.
Era maravilhoso. Mas também era inconveniente. Já se estava a arrepender da decisão
precipitada de fazer a viagem, especialmente porque as indicações que lhe haviam dado
numa vila das redondezas o tinham levado a uma estrada inimaginável. O seu Aston
Martin portara-se à altura, até mesmo quando a terra se transformara em lama devido à
chuva incessante no caminho. O seu humor não se mostrava tão diplomata com as poças
de lama quanto o seu carro.
Apenas a teimosia o impediu de voltar para trás. A mulher haveria de ouvir a voz da
razão, por Deus. Ia assegurar-se disso. Se queria esconder-se no meio de tojos e
pilriteiros, era problema dela. Mas a sua arte era dele. Ou viria a ser.
Seguindo as indicações que lhe haviam dado na estação de correios local, tinha de
passar pelo bed-and-breakfast chamado Cabana Espinheiro Negro, com os seus jardins
gloriosos e elegantes postigos azuis. Mais à frente havia compartimentos de pedra,
abrigos para os animais, um celeiro, um telheiro com tecto de chapa onde um homem
trabalhava num tractor.
O homem levantou a mão cumprimentando, depois voltou ao trabalho enquanto Rogan
manobrava o carro pela curva apertada. O agricultor era o primeiro sinal de vida, à
excepção do gado, que vira desde que deixara a vila.
Como é que alguém sobrevivia neste lugar esquecido por Deus, gostava ele de saber.
Preferia as ruas e lojas apinhadas de gente de Dublin à chuva incessante e aos campos
sem fim, todos os dias da semana. Que se lixasse a paisagem.
Ela escondera-se bem, pensava ele. Mal conseguia ver o portão do jardim e da cabana
caiada a branco atrás dele, apesar das sebes transbordantes de alfeneiros e brincos-de-
princesa.
Rogan abrandou, apesar de já ir quase a passo de caracol. Havia uma pequena entrada
para carros, ocupada por uma carrinha azul desmaiado um pouco enferrujada.
Estacionou o Aston branco vistoso atrás dela e saiu.
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Deu a volta ao portão, andou pelo pequeno carreiro por entre flores fartas e brilhantes,
que baloiçavam à chuva. Bateu à porta, pintada de um magenta arrojado, com três
pancadas sonantes, depois mais três, até que a impaciência o obrigou a procurar uma
janela para espreitar lá para dentro.
Havia uma lareira a crepitar suavemente e uma poltrona bem junto dela. Um sofá curvo
tapado por um tecido estampado floral, que oscilava entre os vermelhos, azuis e
púrpuras, aninhava-se a um canto. Pensava que se tinha enganado na casa, se não
fossem as peças trabalhadas por ela espalhadas na pequena sala. Estatuetas e garrafas,
jarras e taças na vertical, apoiadas ou reclinadas em todas as superfícies livres.
Rogan limpou a humidade da janela e espreitou o candelabro com vários braços
colocado mesmo ao meio da lareira. Era feito de um vidro tão límpido, tão puro, que
bem podia ser água congelada. Os braços curvavam para cima de forma fluida, a base
era uma cascata. Sentiu a ânsia súbita, o clique interno que antecedia a aquisição.
Oh, sim, encontrara-a.
Agora só era preciso que atendesse a maldita porta.
Desistiu de tentar na frente da casa e deu a volta pela relva molhada, até às traseiras da
cabana. Mais flores, crescendo livres como ervas daninhas. Ou, corrigiu ele, crescendo
livres com ervas daninhas. Era óbvio que Miss Concannon não passava muito tempo a
tratar dos canteiros.
Havia um alpendre ao lado da porta debaixo do qual estavam empilhados pedaços de
relva. Uma bicicleta antiga com um pneu vazio estava aí encostada, juntamente com um
par de galochas enlameadas até aos tornozelos.
Tinha recomeçado a bater à porta quando um som atrás dele o fez virar-se na direcção
das sebes. O rumor, constante e baixo, mais parecia o mar. Conseguia ver o fumo a sair
da chaminé para o céu carregado.
O edifício tinha várias janelas e, apesar do dia húmido e gelado, algumas estavam
escancaradas. Não havia dúvidas que era a oficina dela, pensou Rogan, caminhando até
lá, satisfeito por tê-la encontrado e confiante no resultado do seu encontro.
Bateu à porta e, apesar de não ter qualquer resposta, abriu-a com um empurrão. Teve
alguns momentos para assimilar o choque de calor, os cheiros intensos e a pequena
mulher sentada numa grande cadeira de madeira, com um longo tubo entre as mãos.
Lembrou-se de fadas e feitiços.
— Feche a porta, maldito, olhe a corrente de ar.
Ele obedeceu automaticamente, irritado pela fúria incisiva da ordem. — Tem as janelas
abertas.
— Ventilação. Corrente de ar. Idiota. — Não disse mais nada, nem sequer lhe dispensou
um olhar. Encostou a boca ao tubo e soprou.
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Ele observou a bolha a formar-se, fascinado como nunca. Um processo tão simples,
pensava, apenas sopro e vidro fundido. Os dedos dela trabalhavam no tubo, virando-o e
voltando a virar, lutando contra a gravidade, usando-a, até ficar satisfeita com a forma.
Nem sequer se lembrava dele enquanto continuava a trabalhar. Afunilou a bolha,
utilizando pinças para recortar um pequeno orifício mesmo abaixo da ponta do tubo.
Ainda tinha muitos passos a dar, dezenas deles, mas já conseguia ver a peça concluída
tão nitidamente como se a segurasse fria e sólida na mão.
Na fornalha, ela empurrava a bolha abaixo da superfície do vidro derretido que ali se
mantinha aquecido, para fazer a segunda camada. De regresso à bancada, enrolava a
segunda camada num bloco de madeira para arrefecer o vidro e formar a «pele». O
tempo todo, o tubo não parava, movimentando-se, estável e controlado pelas mãos dela,
tal como as fases iniciais do trabalho haviam sido controladas pelo seu sopro.
Repetia o mesmo processo vezes sem conta, com uma paciência inesgotável,
completamente concentrada enquanto Rogan permanecia junto à porta, a observar. Ela
utilizava pedaços maiores para dar forma, à medida que os contornos cresciam. Visto
que com o passar do tempo ela não dissera uma palavra, ele despiu o casaco molhado e
esperou.
A sala estava repleta de calor da fornalha. Parecia que as roupas evaporavam no corpo.
De uma forma sublime, isso parecia não a afectar, concentrada no trabalho, agarrando
de vez em quando uma nova ferramenta enquanto uma mão girava constantemente o
tubo.
A cadeira onde estava sentada era obviamente artesanal, com um assento bem fundo e
braços longos, com ganchos presos aqui e acolá para pendurar as ferramentas. À mão
tinha baldes cheios de água ou areia ou então cera quente.
Pegou numa ferramenta, que parecia a Rogan um par de pinças gigantes pontiagudas, e
colocou-as na ponta da jarra que estava a criar. Era como se a atravessassem, o vidro
mais parecendo água, mas ela conseguia dar-lhe forma, alongando-o, adelgaçando-o.
Quando se levantou outra vez, ele começou a falar, mas um som emitido por ela, uma
espécie de rosnar, fê-lo erguer o sobrolho mantendo-se em silêncio.
Tudo bem, pensava ele. Sabia ser paciente. Uma hora, duas horas, o tempo que fosse
preciso. Se ela conseguia aguentar aquele calor infernal, então, por Cristo, ele também.
Ela nem sequer deu por nada, de tão imersa que estava. Juntou mais um pedaço, outra
camada de vidro fundido, na lateral da jarra que estava a criar. Quando o vidro quente
amoleceu a superfície, ela inseriu uma lima bicuda, coberta de cera, no vidro.
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Suave, suave.
As chamas faiscavam debaixo da mão dela devido à cera que queimava. Agora tinha de
trabalhar depressa para a ferramenta não ficar colada ao vidro. A pressão tinha de ser
exactamente a correcta para conseguir o efeito pretendido. A superfície interna entrou
em contacto com a externa, fundindo-se, criando a forma interior, o oscilar angelical.
Vidro dentro do vidro, transparente e fluido.
Ela quase sorria.
Com cuidado, voltou a soprar a forma antes de alisar a base com uma pá. Prendeu a
jarra a um pontel quente. Mergulhou a lima num balde de água, passando-a no contorno
do gargalo da jarra. Depois, com um golpe de mestre que atordoou Rogan, bateu com a
lima de encontro ao tubo de sopro. Com a jarra agora agarrada ao pontel, colocou-a
dentro da fornalha para aquecer o rebordo. Passando a jarra para o outro forno para
recozer, bateu no pontel com precisão com uma lima para quebrar o selo.
Regulou o tempo e a temperatura, dirigindo-se depois directamente para um pequeno
frigorífico.
Era rasteiro ao chão, por isso ela teve de se dobrar. Rogan inclinou a cabeça a observá-
la. As calças de ganga largas começavam a ficar justas em vários pontos interessantes.
Ela endireitou-se, virando-se e atirando uma das latas de refrigerante que tirara na
direcção dele.
Rogan apanhou o míssil por mero instinto antes que lhe batesse no nariz.
— Ainda aí? — Ela abriu a lata e bebeu longamente. — Deve estar a assar dentro desse
fato. — Agora que o trabalho lhe saíra da cabeça e que libertara os olhos das muitas
visões que lhe proporcionava, estudava-o.
Alto, magro, moreno. Bebeu outra vez. Cabelo com bom corte, tão negro como a asa de
um corvo e os olhos tão azuis como o lago Kerry. Era agradável de se ver, pensava ela,
batendo com o dedo na lata enquanto se entreolhavam. Ele tinha uma boca bonita, bem
esculpida e generosa. Mas ela achava que não a usava com frequência para sorrir. Não
com aqueles olhos. Azuis como eram, e atraentes, mostravam-se frios, calculistas e con-
fiantes.
Um rosto de feições duras, com bons ossos. Bons ossos, boa cepa, costumava dizer a
sua avó. E este, se não estava errada, tinha sangue azul por baixo do osso.
O fato tinha bom corte, provavelmente inglês. A gravata discreta. Conseguia distinguir
botões de punho de ouro. E parecia um soldado, do tipo que se enchera de medalhas.
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Sorriu para ele, satisfeita por se mostrar simpática agora que o trabalho correra bem. —
Está perdido?
— Não. — O sorriso fazia-a parecer uma fada, daquelas capazes de toda a espécie de
magias e travessuras. Ele preferia o sobrolho carregado que ostentara enquanto
trabalhava. — Vim de muito longe para falar consigo, Miss Concannon. Sou Rogan
Sweeney.
O sorriso dela esbateu-se alguns níveis para uma expressão trocista. Sweeney, pensava.
O homem que queria controlar o seu trabalho. — O convencido. — Ela usava o termo,
nada lisonjeiro, para originários de Dublin. — Bom, você é bem teimoso, Sr. Sweeney,
essa é que é a verdade. Espero que a condução tenha corrido bem para não perder a
viagem.
— A condução foi péssima.
— Que pena.
— Mas não me parece que tenha perdido a viagem. — Apesar de preferir uma chávena
de chá forte, abriu a lata de refrigerante. — Tem aqui um conjunto interessante.
Examinou a sala com a fornalha ruidosa, os fornos e bancadas, a salganhada de
ferramentas de metal e madeira, as varetas, os tubos e as prateleiras e armários que ele
imaginava conterem os químicos.
— Tenho-me safado bem, como acho que já lhe tinha dito por telefone.
— Aquela peça em que estava a trabalhar quando entrei. Era linda. — Aproximou-se de
uma mesa apinhada de esboços, lápis, carvão e giz. Pegou no esboço de uma escultura
de vidro agora a recozer. Era delicada, fluida.
— Vende os seus esboços?
— Sou uma artista vidreira, Sr. Sweeney, não sou pintora.
Ele disparou um olhar na direcção dela, voltando a pousar o esboço. — Se você
assinasse isto, era capaz de conseguir cem libras por ele.
Ela deixou escapar um rosnar de incredulidade e atirou a lata vazia para o caixote do
lixo.
— E a peça que acabou agora mesmo? Quanto é que vai pedir por ela?
— E porque é que você tem alguma coisa a ver com isso?
— Talvez a queira comprar.
Ela pensou, sentando-se na borda de um banco e balouçando os pés. Ninguém lhe sabia
dizer o valor do seu trabalho, nem mesmo ela própria. Mas um preço — tinha de ser
tabelado um preço. Sabia bem disso. Artista ou não, ela tinha de comer.
A fórmula que usava para calcular os preços era incerta e flexível. Ao contrário das
fórmulas que usava para fazer vidro e misturar as cores, tinha muito pouco que ver com
ciência. Conseguia calcular o tempo gasto a produzir a peça, o que sentia em relação a
ela e levar em consideração o juízo que fazia do comprador.
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— É justo. Arranjo-lhe uma exposição na minha galeria e vamos ver quantos é que dão
o salto.
Era atrevido, o maldito. Não se preparara para isso. — Para que um monte de snobes do
mundo das artes possa torcer o nariz às minhas obras enquanto beberica champanhe.
— Está com medo.
Soltou um assobio entre os dentes e deu passadas sonoras até à porta. — Vá-se embora.
Vá-se embora para eu poder pensar. Está a toldar-me as ideias.
— Voltamos a falar de manhã. — Foi buscar o casaco. — Talvez me possa recomendar
um sítio para passar a noite. Aqui perto.
— Cabana Espinheiro Negro, ao fim da rua.
— Sim, passei por lá. — Vestiu o casaco. — Lindo jardim, bem tratado.
— Bonito e tudo sempre num brinquinho. Vai achar as camas macias e a comida boa. A
proprietária é minha irmã e tem uma alma prática e caseira.
Ele ergueu o sobrolho pelo tom usado, mas não disse nada. — Parece-me então que
ficarei bastante confortável até de manhã.
— Agora, saia. — Ela abriu a porta, deixando antever a chuva. — De manhã ligo para a
cabana se quiser voltar a falar consigo.
— Foi um prazer conhecê-la, Miss Concannon. — Apesar de ela não mostrar sinais de o
fazer, ele pegou na mão dela, segurando-a ao mesmo tempo que a fitava nos olhos. —
Maior ainda foi vê-la a trabalhar. — Num impulso que surpreendeu ambos, levou a mão
dela aos lábios, demorando alguns instantes para sentir o sabor da pele dela. — Volto
amanhã.
— Espere que seja convidado, — retorquiu ela, fechando a porta de forma audaz atrás
dele.
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CAPÍTULO QUATRO
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— Então, ele está cá? — Maggie saiu da chuva e abrigou-se na cozinha quente e
cheirosa.
Brianna continuou a descascar batatas. Já esperava pela visita. — Ele quem?
— O Sweeney. — Passando para o balcão, Maggie agarrou uma cenoura descascada e
trincou-a. — Alto, moreno, bonito e rico como o diabo. Deves ter dado por ele.
— Na sala de estar. Podes levar uma chávena e fazer-lhe companhia no chá.
— Não quero falar com ele. — Maggie sentou-se em cima do balcão, cruzando os
tornozelos. — O que queria, Brie, meu amor, era a tua opinião acerca dele.
— É educado e bem falante.
Maggie revirou os olhos. — Um acólito na igreja também é.
— E hóspede na minha casa...
— Que paga.
— E não faço intenção nenhuma, — continuou Brianna sem fazer uma pausa, — de
dizer mal dele nas suas costas.
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— Percebo pela tua expressão que ela tem estado com aquele humor... e que tem
descarregado em ti. — Antes que Brianna pudesse falar, Maggie elevou a mão,
abanando-a. — Ela nunca vai ser feliz, Brianna. Não a podes fazer feliz. O bom Deus
sabe que eu também não. Ela nunca lhe vai perdoar por ele ter sido quem era.
— E o que é que ele era? — Exigiu Brianna, ao virar-se. — Exactamente, o que era o
nosso pai, Maggie?
— Humano. Com defeitos. — Pousou a cerveja e foi ter com a irmã. — Maravilhoso.
Lembras-te, Brie, quando ele comprou a mula e dizia que ia fazer uma fortuna com os
turistas a tirarem-lhe fotografias de gorro, com o nosso velho cão sentado às costas?
— Lembro. — Brie ter-se-ia afastado, mas Maggie agarrou-lhe as mãos. — E lembro-
me que ele gastou mais dinheiro a alimentar aquela maldita mula com mau feitio do que
chegou a ganhar com o estratagema.
— Oh, mas foi divertido. Fomos às Falésias de Mohr e estava um dia de Verão tão
lindo. Montes de turistas e a música a tocar. E o pai a segurar a estúpida da mula e o
coitado do cão, o Joe, com tanto medo da mula como teria de um leão feroz.
Brianna acalmou-se. Era mais forte do que ela. — Pobre Joe, sentado a tremer de medo
no lombo da mula. E depois, aquele alemão que apareceu, queria uma fotografia com o
Joe e a mula.
— E a mula deu um coice. — Maggie riu-se e voltou a pegar na cerveja para gesticular
um brinde. — E o alemão a gritar em três línguas diferentes enquanto corria ao pé-
coxinho. E o Joe, aterrorizado, saltou para o chão e aterrou mesmo em cima de uma
banca de golas de renda, e a mula desatou a correr, espantando os turistas. Oh, que
cenário. As pessoas a gritar e a correr, as senhoras a bradar. Estava lá um violinista,
lembras-te? Continuou a tocar uma melodia como se fôssemos todos desatar a dançar a
qualquer momento.
— E aquele rapaz simpático de Killarney que apanhou a corda da mula e a trouxe de
volta. O pai tentou vender-lhe a mula naquele mesmo instante.
— E quase conseguia. É uma boa recordação, Brie.
— Ele deixou muitas recordações divertidas. Mas não se pode viver apenas do riso.
— E não se pode viver sem rir, como ela. Ele estava vivo. Agora parece que esta família
está mais morta do que ele.
— Ela está doente, — disse Brianna, com brevidade.
— Tal como sempre, há mais de vinte anos. E vai continuar doente enquanto te tiver a ti
a tomar conta dela.
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Era verdade, mas por saber a verdade, no coração de Brianna não se alterava nada. —
Ela é tua mãe.
— Lá isso é. — Maggie bebeu mais cerveja e pousou-a ao lado. O gosto da levedura
contrastava com o amargo da língua. — Vendi outra peça. Arranjo-te dinheiro até ao
final do mês.
— Agradeço-te por isso. E ela também.
— O diabo é que agradece. — Maggie fitou o olhar da irmã com toda a paixão, raiva e
dor a ferverem-lhe bem lá dentro. — Não o faço por ela. Quando houver o suficiente,
contratas uma enfermeira e ela vai viver para casa dela.
— Não é preciso...
— É, sim senhor, — interrompeu Maggie. — Foi esse o acordo, Brie. Não vou ficar a
ver-te fazer o que ela quer para o resto da vida. Uma enfermeira e uma casa na vila.
— Se for essa a vontade dela.
— É o que lhe vai acontecer. — Maggie inclinou a cabeça. — Não dormiste ontem à
noite por causa dela.
— Estava agitada. — Envergonhada, Brianna virou costas para ir preparar a galinha. —
Outra das suas dores de cabeça.
— Ah, sim. — Maggie lembrava-se bem das dores de cabeça da mãe, e de como
costumavam ser oportunas. Um argumento que Maeve vinha a perder: dores de cabeça
instantâneas. Um passeio de família que não aprovava: lá começava o latejar.
— Eu sei como ela é, Maggie. — Agora era a cabeça de Brianna que começava a doer.
— Isso não faz dela menos minha mãe.
Santa Brianna, pensou Maggie de novo, mas com afecto. A irmã podia ser mais nova do
que ela, já com vinte e oito anos bem contados, mas fora sempre Brianna a assumir as
responsabilidades. — E não podes mudar o que és, Brie. — Maggie deu um abraço bem
forte à irmã. — O pai dizia sempre que tu serias o anjo bom e eu o mau. Finalmente,
acertou nalguma coisa. — Por momentos, fechou os olhos. — Diz ao Sr. Sweeney que
passe amanhã de manhã pela cabana. Quero falar com ele.
— Então vais aceitar que ele seja o teu agente?
A frase fez Maggie hesitar. — Vou falar com ele, — repetiu, regressando outra vez à
chuva.
Se Maggie tinha uma fraqueza, era a família. Essa fraqueza mantivera-a acordada até
muito tarde à noite e despertara-a na madrugada gélida e lúgubre. Para o mundo
exterior, ela preferia fingir que só era responsável por si e pela sua arte, mas, por baixo
dessa fachada, existia um amor constante pela família, bem como as obrigações
consequentes, por vezes até amargas, que tudo isso trazia.
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Em primeiro lugar, queria dizer que não a Rogan Sweeney, por princípio. Arte e
negócios, na cabeça dela, não podiam e não deviam misturar-se. Em segundo lugar,
queria dizer-lhe que não porque os do tipo dele — rico, confiante e de sangue azul — a
irritavam. Em terceiro lugar, e mais importante, queria dizer-lhe que não porque o
contrário seria admitir que não tinha destreza suficiente para tratar sozinha dos seus
assuntos. Oh, era um sapo que teria de engolir.
Não lhe diria que não. Algures durante a noite longa e agitada, tomara a decisão de
permitir que Rogan Sweeney fizesse dela uma mulher rica.
Não que não se conseguisse sustentar, e até bem, por sinal. Há mais de cinco anos que
fazia isso mesmo. O bed-and-breakfast de Brianna corria suficientemente bem para
conseguirem manter duas casas sem problemas de maior. Mas não tinham possibilidades
de manter uma terceira.
A meta de Maggie, na verdade o seu Santo Graal, era acomodar a mãe numa casa
independente. Se Rogan a conseguisse ajudar a limpar o caminho até essa meta, então
faria negócio com ele. Até faria negócio com o próprio diabo.
Mas o diabo podia vir a arrepender-se da bagatela.
Na sua cozinha, com a chuva a cair suave e firme lá fora, Maggie fez um chá. E
conspirou.
Tinha de lidar de forma inteligente com Rogan Sweeney, pensou. Com a dose certa de
desdém artístico e sedução feminina. O desdém não traria qualquer problema, mas o
outro ingrediente seria bem mais difícil.
Permitiu-se imaginar Brianna a cozinhar, a tratar do jardim, aninhada com um livro
junto à lareira — sem a voz lamuriosa e exigente da mãe delas para interromper a paz.
Brianna ia-se casar, ter filhos. Era um sonho que sabia que a irmã mantinha trancado no
seu coração. E assim permaneceria, enquanto Brianna tivesse a seu cargo uma
hipocondríaca crónica.
Ao mesmo tempo que Maggie não conseguia entender a necessidade que a irmã tinha de
se amarrar a um homem e a meia dúzia de filhos, faria o que fosse necessário para
ajudar Brianna a realizar esse sonho.
Era possível, possível mesmo, que Rogan Sweeney desempenhasse o papel de fada
madrinha.
A batidela na porta da frente da cabana fora ríspida e impaciente. A fada madrinha,
pensou Maggie ao atender a porta, não faria a sua entrada com pó de anjo e luzes
coloridas.
Depois de abrir a porta, sorriu um pouco. Ele estava molhado, tal como no dia anterior,
e tão elegante também. Ela perguntou-se se ele dormiria de fato e gravata.
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Ela não se moveu, assimilando a insinuação sexual, aceitando-a com um ligeiro aceno.
— Bom, haja algo em que ambos concordamos. Sexo e poder normalmente dependem
da mulher.
— Não foi nada disso que eu disse, ou quis dizer. O que a impele a criar algo assim?
— É difícil explicar a arte a um homem de negócios.
Quando ela poderia ter recuado, ele enrolou os dedos à volta do seu braço, apertando-o
ainda mais. — Experimente.
Sentiu-se invadir por uma certa irritação. — O que surge, surge. Não há nenhum
esquema, nenhum plano. Está relacionado com as emoções, com paixões e não com
questões práticas ou lucro. Caso contrário, estaria a fazer cisnezinhos de vidro para as
lojas de recordações. Jesus, que imagem.
O sorriso dele alastrou-se. — Horrível. Felizmente que não estou interessado em
cisnezinhos de vidro. Mas aquele chá vinha a calhar.
— Vamos tomá-lo na cozinha. — Ela tentou afastar-se, mas de novo foi impedida por
ele. Sentia que o mau génio lhe faiscava dos olhos, como raios. — Está a bloquear-me o
caminho, Sr. Sweeney.
— Não me parece. Estou prestes a libertá-lo para si. — Soltou-a, seguindo-a em silêncio
para a cozinha.
A cabana dela ficava a anos-luz do conforto do Espinheiro Negro. Não havia os aromas
ricos dos cozinhados pairando no ar, nem almofadas fofas ou móveis em madeira
lustrosos. Era espartano, utilitário e desarrumado. Segundo ele, era por essa razão que a
arte espalhada aqui ou acolá tinha um efeito tão marcante e arrasador.
Perguntava-se onde seria que ela dormia, e se a cama dela era tão macia e convidativa
quanto aquela onde ele passara a noite. Também se perguntava se a iria partilhar com
ela. Não, se, não, corrigiu-se. Quando.
Maggie pousou a chaleira em cima da mesa juntamente com duas grossas canecas de
cerâmica. — Que tal a estadia na Cabana Espinheiro Negro? — Perguntou, ao mesmo
tempo que servia.
— Gostei muito. A sua irmã é amorosa. E os cozinhados dela, memoráveis.
Maggie descontraiu-se, juntando três generosas colheres de açúcar ao chá. — Brie é
uma dona de casa de mão cheia. Hoje de manhã fez os bolinhos de passas?
— Comi dois.
Outra vez à vontade, Maggie riu-se e empoleirou um pé enfiado na bota em cima do
joelho. — O nosso pai costumava dizer que a Brie herdou o ouro todo e eu o latão.
Lamento, mas aqui não vai ter bolinhos com passas caseiros, Sweeney, mas é bem
provável que consiga desencantar uma lata de biscoitos.
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— Deixe estar.
— Provavelmente quer tratar já de negócios. — Amparando a caneca com ambas as
mãos, Maggie inclinou-se para a frente. — E se eu lhe dissesse sem rodeios que não
estou interessada na sua oferta?
Rogan pensou, bebericando o chá preto e forte. — Teria de lhe chamar mentirosa,
Maggie. — Riu-se ao observar o fogo que se acendia nos olhos dela. — É que se não
estivesse interessada, não teria concordado em falar comigo esta manhã. É claro que eu
não estaria aqui a beber chá na sua cozinha. — Levantou a mão antes que ela pudesse
falar. — No entanto, temos de admitir que você não se quer mostrar interessada.
Um homem inteligente, pensou ela, ligeiramente apaziguada. Os homens inteligentes
eram perigosos. — Não quero ser produzida, gerida ou orientada.
— Raramente queremos aquilo de que precisamos. — Ficou a observá-la pelo rebordo
da caneca, calculista até, ao mesmo tempo que apreciava o ligeiro rubor que parecia
amaciar a pele dela, aprofundando o verde dos seus olhos. — Permite que me explique
com mais clareza? A sua arte é domínio seu. Não tenho qualquer intenção de interferir
de alguma forma com o que faz no seu estúdio. Crie aquilo que a sua inspiração lhe
pedir, sempre que sentir essa inspiração para criar.
— E se o que eu criar não for do seu agrado?
— Já expus e vendi inúmeras peças que nunca teria em minha casa. O negócio é assim
mesmo, Maggie. E tal como não irei interferir na sua arte, você não vai interferir nos
meus negócios.
— Não terei voto na matéria quanto aos compradores?
— Nenhum, — respondeu, neutro. — Caso sinta uma ligação emocional a uma peça,
terá de ultrapassar o problema, ou então fica com ela para si. Assim que estiver nas
minhas mãos, é minha.
Ela cerrou o maxilar. — E qualquer pessoa com dinheiro pode comprá-las.
— Exactamente.
Maggie pousou a caneca com ruído e, levantando-se, deu alguns passos. Tirava partido
do corpo todo, um hábito que Rogan admirava. Pernas, braços, ombros, tudo em
movimentos ritmados e exaltados. Ele bebeu o resto do chá e recostou-se para apreciar o
espectáculo.
— Retiro algo de dentro de mim, crio-o, torno-o sólido, tangível, real e um idiota
qualquer de Kerry ou Dublin ou, ainda, valha-me Deus, de Londres, entra e compra-o
para o aniversário da mulher sem saber o que é, o que significa?
— Consegue desenvolver relações pessoais com toda a gente que compra as suas peças?
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— Pelo menos sei para onde vão, quem as vais comprar. — Normalmente. —
Acrescentou, em pensamento.
— Tenho de lhe lembrar que comprei duas peças suas antes de nos conhecermos.
— Sim. E vejam só onde isso me levou.
Mau génio, pensou ele com um suspiro. Desde que trabalhava com artistas que não
conseguia compreender. — Maggie, — começou, procurando o tom de voz mais
razoável. — O motivo por que precisa de um agente é para eliminar essas dificuldades.
Nem sequer vai ter de se preocupar com as vendas, só com a criação. E sim, se alguém
de Kerry ou Dublin, ou, valha-nos Deus, de Londres, entrar numa das minhas galerias e
se interessar por uma das suas peças, pode ficar com ela, desde que pague o preço. Sem
currículo, sem referências acerca da sua personalidade. Lá para o final do ano, com a
minha ajuda, será uma mulher rica.
— Acha que é isso que quero? — Insultada, furiosa, rodopiou à volta dele. — Acha,
Rogan Sweeney, que pego no meu tubo todos os dias a pensar no lucro que vou
encontrar na outra ponta?
— Não, não acho. É precisamente aí que eu entro. Você é uma artista excepcional,
Maggie. Correndo o risco de inflamar um ego que já me parece bastante titânico, tenho
de admitir que fiquei cativado na primeira vez que vi o seu trabalho.
— Talvez tenha bom gosto, — retorquiu ela com um encolher de ombros exaltado.
— Já me tinham dito. Quero dizer que o seu trabalho merece mais do que aquilo que
está a fazer agora. Você merece mais do que está disposta a dar-se.
Ela encostou-se ao balcão, fitando-o, acanhada. — E você vai-me ajudar a conseguir
mais devido a esse coração bondoso.
— O meu coração não tem nada a ver com isso. Vou ajudá-la porque o seu trabalho vai
trazer prestígio às minhas galerias.
— E ao seu caderninho de contas.
— Um dia vai ter de me explicar a raiz desse desdém pelo dinheiro. Entretanto, o seu
chá está a arrefecer.
Maggie deixou escapar um suspiro profundo. Não estava a fazer nada para lhe agradar,
recordou, regressando à mesa. — Rogan. — Permitiu-se sorrir. — Tenho a certeza que é
muito bom no que faz. As suas galerias têm reputação de qualidade e integridade, no
que tenho a certeza ser um reflexo da sua personalidade.
Ela era boa, pensou ele, passando a língua pelos dentes. Muito boa. — Gosto de pensar
que sim.
— Sem dúvida que qualquer artista ficaria radiante por você pensar nele. Mas eu estou
acostumada a tratar de tudo, a lidar com todos os aspectos do meu trabalho, desde fazer
o vidro a vender a peça acabada, ou pelo menos a colocá-la nas mãos de alguém que
conheço e confio para a vender. Mas a si, eu não conheço.
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Ele franziu o sobrolho, abanando a cabeça. — Isso é capaz de estragar alguns negócios.
Eu tive uma ideia para um unicórnio, com um toque de folha dourada no chifre e nos
cascos. De muito bom gosto.
Ela relinchou, depois desistiu e deu umas valentes gargalhadas. — Está bem, Rogan.
Talvez, por um qualquer milagre, consigamos trabalhar juntos. Como é que fazemos?
— Vou mandar redigir os contratos. A Worldwide vai querer direitos exclusivos sobre a
sua obra.
Aquilo fê-la vacilar. Parecia que estava a entregar uma parte de si. Talvez a melhor
parte. — Direitos exclusivos sobre as peças que eu optar por vender.
— É claro.
Desviou os olhos dele, fitando a janela na direcção dos campos, ao longe. Uma vez, há
muito tempo, eles, tal como a sua arte, haviam feito parte dela. Agora faziam apenas
parte de uma bela paisagem. — E que mais?
Ele hesitou. Ela parecia quase insuportavelmente triste. — Não vai mudar aquilo que
faz. Não vai mudar aquilo que você é.
— Está enganado, — murmurou ela. Com um esforço, afastou aquele sentimento e
voltou a pousar o olhar nele. — Continue. E que mais?
— Vou querer uma exposição, dentro de dois meses, na galeria de Dublin.
Naturalmente, vou ter de ver o que tiver acabado e tratarei do transporte. Também vou
precisar que me mantenha a par do que for terminando durante as próximas semanas.
Colocaremos um preço nas peças e, o que quer que reste do inventário depois da
exposição, será exibido em Dublin e nas nossas restantes galerias.
Ela respirou fundo, serenando. — Gostava muito que não se referisse ao meu trabalho
como inventário. Pelo menos, não na minha presença.
— Combinado. — Estalou os dedos. — É claro que vai receber uma lista detalhada das
peças vendidas. Se quiser, pode dar a sua opinião sobre as que devem ser fotografadas
para o catálogo. Ou então deixar isso connosco.
— E como e quando é que me pagam? — Indagou ela.
— Posso comprar as peças a pronto. Não levanto qualquer objecção, uma vez que
confio totalmente no seu trabalho.
Ela lembrou-se do que ele dissera antes, sobre conseguir o dobro do que lhe havia pago
pela escultura que terminara. Podia não ser uma mulher de negócios, mas não era parva.
— Qual é a outra opção?
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A afirmação surpreendeu e irritou-o. — Prefiro não misturar assuntos pessoais com
profissionais.
— Outra diferença entre nós. — Dava-lhe prazer verificar que arranhara a camada
exterior improvavelmente educada. — As minhas vidas pessoal e profissional estão
sempre a confundir-se. E faço a vontade a ambas quando me dá na veneta. A sorrir,
puxou a mão. — Tal ainda não aconteceu… falando em termos pessoais. Eu aviso-o se e
quando isso acontecer.
— Está a deitar-me a escada, Maggie?
Ela fez uma pausa como se pensasse no assunto. — Não, estou a tentar explicar. Agora
venha comigo até à estufa para pode escolher o que quer levar para Dublin. — Virou-se
para ir buscar um casaco ao cabide atrás da porta. — Talvez seja melhor levar o casaco.
Seria uma pena molhar esse fato todo catita.
Por momentos fitou-a nos olhos, imaginando um motivo para se sentir imensamente
insultado. Sem dizer uma palavra, deu meia volta e regressou à sala de estar, à procura
do casaco.
Maggie aproveitou para sair e arrefecer o sangue debaixo da chuva gelada. Era ridículo,
pensava, sentir impulsos sexuais só por lhe terem beijado a mão. Rogan Sweeney era
suave, demasiado suave. Era uma sorte ele viver no extremo oposto do país. Mais sorte
ainda ele não fazer o tipo dela.
Nada mesmo.
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CAPÍTULO CINCO
A relva alta ao lado da abadia em ruínas proporcionava uma belíssima última morada
para os mortos. Maggie lutara para que o pai fosse ali sepultado, em vez de no chão
limpo e frio ao lado da igreja da vila. Ela quisera paz e um toque de realeza para o pai.
Pela primeira vez, Brianna discutira com ela até a mãe aceitar manter a boca fechada e
lavar as mãos dos acontecimentos.
Maggie ia até lá só duas vezes por ano, no aniversário do pai e no dela. Para lhe
agradecer a dádiva da vida. Nunca ia no aniversário da morte dele, nem sequer se
permitia fazer esse luto em privado.
Também não trazia luto por ele agora, mas sentava-se na relva a seu lado, envolvendo
os joelhos com os braços. O Sol lutava por entre camadas de nuvens, iluminando as
campas, e o vento era fresco, cheirava a flores silvestres.
Não trouxera flores, nunca trazia. Brianna plantara relva por cima dele, assim, quando a
Primavera aquecia a terra, a sua sepultura florescia de cor e beleza.
Botões ternos formavam-se nas prímulas. As extremidades pontiagudas das columbinas,
como fadas, oscilavam suavemente no meio de delicados salpicos de esporas e
betónicas. Observou o voo de uma pega acima dos penedos, dirigindo-se para o campo.
Mal-me-quer, pensou, procurando no céu, sem resultado, por outra que pedisse bem-me-
quer.
Borboletas esvoaçavam por ali, finas asas batendo silenciosas. Ficou a observá-las por
instantes, reconfortando-se nas cores e no movimento. Não tinha arranjado forma de o
sepultar junto ao mar, mas disto, pensava ela, deste lugar, ele haveria de ter gostado.
Maggie encostou-se confortavelmente na parte lateral da lápide do pai e fechou os
olhos.
Quem me dera que ainda estivesses aqui, pensou, para te poder contar o que estou a
azer. Não que desse ouvidos aos teus conselhos. Mas seria bom ouvi-los.
Se Rogan Sweeney or um homem de palavra — e não me parece que seja outra coisa —
vou ser uma mulher rica. Como haverias de gostar disso. Teríamos o suficiente para
abrires o teu pub como sempre quiseste. Oh, que pobre agricultor eras, meu querido.
Mas o melhor dos pais. O melhor de todos.
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Ela estava a dar tudo por tudo para manter a promessa que lhe fizera, pensava. Tomar
conta da mãe e da irmã, e seguir o seu sonho.
— Maggie.
Abriu os olhos e, olhando para cima, viu Brianna. Aprumada como tudo, pensou,
estudando a irmã. O seu lindo cabelo muito bem apanhado, a roupa passada a ferro com
perícia. — Pareces uma professora, — comentou Maggie, rindo-se da expressão de
Brianna. — Daquelas bem bonitas.
— E tu pareces uma pedinte, — retorquiu Brianna, franzindo o sobrolho perante a
escolha que a irmã fizera de uns jeans rasgados e uma camisola andrajosa. — Daquelas
bem bonitas.
Brianna ajoelhou-se ao lado da irmã e entrelaçou as mãos. Não para rezar, mas só para
que não as sujasse.
Ficaram por momentos sentadas em silêncio, enquanto o vento soprava pela relva,
flutuando pelas pedras dispersas.
— Um lindo dia para nos sentarmos numa sepultura, — comentou Maggie. Pensou que
ele faria precisamente setenta e um anos. — As flores dele estão a florir muito bem.
— É preciso limpar as ervas daninhas. — E Brianna assim o fez. — Hoje de manhã
encontrei dinheiro no balcão da cozinha, Maggie. É demasiado.
— Fiz uma boa venda. Pões algum de parte.
— Preferia que o gozasses.
— E gozo, sabendo que estás cada vez mais perto de te livrares dela.
Brianna suspirou. — Para mim, ela não é um fardo. — Apanhando a expressão da irmã,
encolheu os ombros. — Não tanto quanto pensas. Só quando ela se sente mal.
— O que é a maior parte do tempo. Brie, adoro-te.
— Eu sei disso.
— O dinheiro é a melhor forma que arranjei de o demonstrar. O pai queria que eu te
ajudasse a tomar conta dela. E sabe Deus que eu não conseguia viver com ela como tu.
Haveria de me mandar para o manicómio, ou então ia parar à prisão acusada de a
assassinar durante o sono.
— Este negócio com Rogan Sweeney, fizeste-o por ela.
— Não fiz nada. — Maggie estremeceu só de pensar nisso. — Por causa dela, talvez,
que só por si é outra coisa completamente diferente. Quando ela estiver instalada e tu
tiveres a tua vida de volta, podes casar-te e dar-me um rol de sobrinhas e sobrinhos.
— Podes ter filhos teus.
— Não me quero casar. — Confortável, Maggie voltou a fechar os olhos. — Não, a
sério. Prefiro entrar e sair sempre que quiser e não ter de dar satisfações a ninguém. Vou
estragar os teus filhos com mimos e eles virão a correr para casa da tia Maggie sempre
que fores demasiado exigente com eles. — Abriu um olho. — Podias casar com o
Murphy.
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A gargalhada de Brianna ecoou lindamente pela erva alta. — Ele ia ficar chocado se
soubesse.
— Sempre foi um querido contigo.
— Era sim, quando eu tinha treze anos. Agora, é um homem amoroso e gosto tanto dele
como de um irmão. Mas ele não tem aquilo que procuro num marido.
— Então já tens tudo pensado?
— Não pensei em nada, — disse Brianna, formal, — e vamos mudar de assunto. Não
quero que faças negócio com o Sr. Sweeney porque sentes uma obrigação para comigo.
Até podia pensar que era a melhor coisa para o teu trabalho, mas não te quero ver infeliz
só porque achas que eu sou. Sabes que não sou.
— Quantas vezes tiveste de lhe dar a comida na cama este mês?
— Não costumo contar...
— Mas devias, — interrompeu Maggie. — Em qualquer dos casos, está feito. Assinei
contrato há uma semana. Agora sou gerida por Rogan Sweeney e pelas Galerias
Worldwide. Daqui a duas semanas vou ter uma exposição na galeria dele, em Dublin.
— Duas semanas. Tão rápido.
— Não me parece que ele seja homem que goste de perder tempo. Vem comigo,
Brianna. — Maggie agarrou nas mãos da irmã. — Obrigamos o Sweeney a pagar um
hotel de luxo, comemos nos restaurantes e fazemos compras idiotas.
Lojas. Comida que não fosse cozinhada por si. Uma cama que não tinha de ser feita.
Brianna ansiava por isso, mas só por momentos. — Gostava muito de estar contigo,
Maggie. Mas não a posso deixar assim.
— Uma treta, é que não podes. Jesus, ela consegue aguentar a própria companhia por
alguns dias.
— Não posso. — Brianna hesitou, para depois se recostar penosamente de cócoras. —
Caiu na semana passada.
— Magoou-se? — Os dedos de Maggie apertavam os da irmã. — Raios partam, Brie,
porque é que não me contaste? Como é que foi?
— Não te contei porque afinal não foi nada de mais. Ela tinha vindo à rua, saiu sozinha
enquanto eu estava lá em cima a arrumar os quartos. Pôs mal o pé, ao que parece.
Magoou-se na anca, esfolou o cotovelo.
— Ligaste ao Dr. Hogan?
— Claro que sim. Ele disse que não era nada de preocupante. Que ela perdeu o
equilíbrio, só isso. Se fizesse mais exercício, comesse melhor e tudo o resto, estaria
mais forte.
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— Quem é que não sabe disso? — Maldita mulher, pensou Maggie. E maldita era a
culpa constante e insistente que vivia no seu coração. — E lá voltou ela para a cama,
imagino. Claro que tem lá ficado desde então.
Os lábios de Brianna torceram-se num sorriso amarelo. — Ainda não consegui que se
mexesse. Teima que tem um problema no ouvido interno e que quer ir a Cork, ver um
especialista.
— Hah! — Maggie atirou a cabeça para trás e olhou o céu. — Típico! Nunca vi
ninguém que tivesse tantas queixas como a Maeve Concannon. E ela traz-te bem presa,
minha menina. — Agitou o dedo na direcção de Brianna.
— Não vou negar, mas não tenho coragem de cortar o mal pela raiz.
— Eu tenho. — Maggie levantou-se, esfregando os joelhos. — A resposta é o dinheiro,
Brie. É o que ela sempre quis. Sabe Deus como infernizou a vida dele só porque não era
apegado a ele. — Num gesto de protecção, Maggie pousou a mão na lápide do pai.
— Isso é verdade, tal como ele também lhe infernizou a dela. Nunca vi duas pessoas tão
desadequadas uma para a outra. Os casamentos nem sempre são feitos no céu, ou no
inferno. Por vezes ficam-se pelo purgatório.
— E às vezes as pessoas são demasiado idiotas ou correctas para deixarem tudo para
trás. — A mão na lápide esboçou uma carícia, caindo em seguida. — Prefiro idiotas a
mártires. Põe o dinheiro de parte, Brie. Em breve teremos mais. Vou tratar disso em
Dublin.
— Vais vê-la antes de partir?
— Vou, — respondeu Maggie, sinistra.
— Acho que vais gostar dela. — Rogan mergulhou o scone nas natas coalhadas e sorriu
para a avó. — É uma mulher interessante.
— Interessante. — Christine Rogan Sweeney levantou uma perspicaz sobrancelha
branca. Conhecia bem o neto, sabia interpretar cada nuance de tom e expressão.
Contudo, quando o assunto era Maggie Concannon, ele mostrava-se misterioso. — De
que forma?
Nem ele mesmo tinha a certeza e empatou um pouco enquanto mexia o chá. — Ela é
uma artista brilhante; a visão dela é extraordinária. Contudo, vive sozinha numa
pequena cabana em Clare, e a decoração é tudo menos original em termos estéticos. É
apaixonada pelo trabalho, mas tem relutância em mostrá-lo. Consegue ser uma pessoa
charmosa e rude... e ambas parecem ser fiéis à sua natureza.
— Uma mulher contraditória.
— Muito. — Recostou-se, um homem completamente satisfeito na graciosa saleta,
chávena Sèvres na mão, a cabeça encostada a uma almofada brocada de uma cadeira
Rainha Ana. O lume ardia silenciosamente na lareira. As flores e os scones bem frescos.
60
Ele apreciava estes chás ocasionais com a avó tanto quanto ela. A paz e a ordem da casa
dela eram apaziguadoras, assim como ela com a sua perpétua dignidade e beleza que se
desvanecia suavemente.
Ele sabia que a avó tinha setenta e três anos e um imenso orgulho no facto de parecer
dez anos mais nova. A sua pele era pálida como alabastro. Com rugas, é certo, mas as
marcas da idade apenas ajudavam aquela serenidade no rosto. Os seus olhos eram de um
azul brilhante, o cabelo macio e branco como a primeira queda de neve.
Ela tinha uma mente perspicaz, um bom gosto inquestionável, um coração generoso e
um espírito seco, por vezes mordaz. Ela era, como Rogan já lhe dissera muitas vezes, a
sua mulher ideal.
Era um sentimento que lisonjeava Christine tanto quanto a preocupava.
Ele só lhe falhara num aspecto: o de encontrar satisfação pessoal que fosse equivalente à
profissional.
— Como estão a correr os preparativos para a exposição? — Perguntou ela.
— Muito bem. Seria mais fácil se a nossa artista do momento atendesse o maldito
telefone. — Colocou a irritação de lado. — As peças que já chegaram são lindas. Tens
de passar pela galeria e ver com os teus próprios olhos.
— Talvez faça isso. — Mas ela estava mais interessada na artista do que na arte. —
Disseste que ela é uma jovem?
— Hmm?
— A Maggie Concannon. Mencionaste que ela era jovem?
— Oh, na casa dos vinte e muitos, acho eu. Jovem, certamente, à luz da temática do seu
trabalho.
Céus, era como se lhe arrancassem um dente. — E vistosa, dirias tu? Como a... como é
que ela se chamava... Miranda Whitfield-Fry, a que fazia esculturas de metal e usava
aquelas jóias todas e os cachecóis às cores?
— Não é nada parecida com a Miranda. — Graças a Deus. Lembrava—se, com um
arrepio na espinha, da forma implacável e embaraçosa com que a mulher o perseguira.
— A Maggie é mais do tipo botas e saia de algodão. O cabelo parece que foi golpeado
com uma tesoura da cozinha.
— Nada atraente, então.
— Não, muito atraente... mas de uma forma invulgar.
— Máscula?
— Não. — Ele lembrava-se, desconfortável, daquele impulso sexual perverso, o seu
aroma sensual, a sensação daquele tremor rápido e involuntário debaixo da mão dele. —
Longe disso.
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Ah, pensou Christine. Ia de certeza arranjar tempo para conhecer a mulher que pusera
aquele olhar carrancudo no rosto de Rogan. — Ela intriga-te.
— Certamente, caso contrário não a teria contratado. — Apanhou o olhar de Christine e
ergueu o sobrolho de forma idêntica. — São negócios, avó. Apenas negócios.
— Claro que sim. — Rindo para dentro, serviu-lhe mais chá. — Diz-me que mais é que
tens feito.
Rogan chegou à galeria no dia seguinte às oito da manhã. Desfrutara de uma noite no
teatro e de uma ceia tardia com uma companhia ocasional. Como sempre, achara a
Patrícia charmosa e encantadora. Viúva de um velho amigo, ela era, segundo a sua
opinião, mais uma prima distante do que um encontro. Discutiram a peça de Eugene
O'Neill enquanto degustavam salmão e champanhe, despedindo-se com um beijo
platónico logo depois da meia-noite.
E não pregara olho.
Não fora a gargalhada suave ou o perfume subtil de Patrícia que o mantivera agitado.
Maggie Concannon, pensava ele. Naturalmente, a mulher estava-lhe sempre no
pensamento, uma vez que a maior parte do seu tempo e esforços estava concentrada na
sua eminente exposição. Não era surpresa nenhuma que ele pensasse nela — em
especial porque era de todo impossível falar com ela.
A aversão que ela tinha ao telefone levara-o a recorrer aos telegramas, que «disparava»
para oeste com uma regularidade intensa.
A única resposta que teve dela fora breve e directa: PARE CHATEAR.
Imagine-se, pensava Rogan ao destrancar as elegantes portas de vidro da galeria. Ela
acusara-o de a chatear, como uma menina mimada e lamurienta. Ele era um homem de
negócios, por amor de Deus, que estava prestes a dar à carreira dela um empurrão
astronómico. E ela nem sequer se dignava a atender o raio do telefone e a ter com ele
uma conversa razoável.
Estava habituado a artistas. Santa Maria sabia que ele tivera de lidar com as suas
excentricidades, inseguranças e, muitas vezes, com as suas exigências infantis. Era esse
o trabalho dele, para o qual se considerava apto. Mas Maggie Concannon estava a testar
as suas capacidades, bem como a sua paciência.
Voltou a trancar as portas depois de entrar e inspirou o ar ligeiramente perfumado da
galeria. Construído pelo seu avô, o edifício era grande e majestoso, um testemunho
pungente à arte, de alvenaria gótica e balaustradas esculpidas.
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O interior consistia em dezenas de quartos, uns pequenos, outros grandes, todos fluindo
para o seguinte em largas arcadas. As escadas subiam em caracol de forma fluida para o
segundo andar, que albergava um aposento de dimensões de um salão de baile, que
incluía salinhas acolhedoras mobiladas com sofás antigos.
Seria ali que exibiria as obras de Maggie. No salão de baile ficaria uma pequena
orquestra. Enquanto os convidados apreciavam a música, o champanhe e os canapés,
podiam circular à volta das peças estrategicamente colocadas. Iria destacar as peças
maiores e mais arrojadas, exibindo as mais pequenas em cenários mais intimistas.
Na sua imaginação, registando as imagens mentalmente, caminhou ao longo da galeria
inferior na direcção do escritório e dos armazéns.
Encontrou o gerente da galeria, Joseph Donahoe, a servir café na kitchenette.
— Chegaste cedo. — Joseph sorriu, mostrando o reluzir de um dente de ouro. — Café?
— Aceito. Quis verificar o andar das coisas lá em cima antes de ir para o escritório.
— Está a evoluir bem. — Assegurou-lhe Joseph. Apesar de os dois homens já terem
uma certa idade, o cabelo branco de Joseph estava a ficar ralo no topo. Compensava a
perda deixando-o crescer o suficiente para o prender num longo rabo-de-cavalo. Partira
o nariz uma vez, devido ao impacto caprichoso de um taco de pólo, por isso tinha um
ligeiro desvio para a esquerda. O resultado era um certo ar de pirata enfiado num fato
Savile Row.
As mulheres adoravam-no.
— Pareces um pouco cansado.
— Insónias, — explicou Rogan, bebendo o café simples. — A remessa de ontem já foi
desembalada?
Joseph vacilou. — Estava com receio que perguntasses. — Ergueu a chávena e
murmurou para dentro dela. — Ainda não chegou.
— O quê?
Joseph revirou os olhos. Trabalhava para Rogan há mais de uma década e conhecia
aquele tom. — Não chegou ontem. Tenho a certeza que vai chegar esta manhã. Foi por
isso que vim hoje tão cedo.
— O que é que aquela mulher pretende? As instruções que lhe dei foram muito
específicas, muito simples. Devia ter enviado as últimas peças esta noite.
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O voo fora curto e não dera ao temperamento de Rogan tempo suficiente para se
acalmar. O facto de o céu exibir um azul glorioso, o ar balsâmico, não mudava nada.
Quando bateu com a porta do carro alugado e se dirigiu para o Aeroporto de Shannon,
ainda estava a amaldiçoar Maggie.
Quando chegou à cabana dela, estava a ferver em pouca água.
O atrevimento da mulher, pensava, ao mesmo tempo que estacava diante da porta dela.
Obrigara-o a largar o trabalho, as suas obrigações. Será que se achava a única artista que
ele representava?
Bateu à porta até lhe doer o punho. Ignorando as boas maneiras, empurrou a porta. —
Maggie! — Gritou, passando da sala de estar para a cozinha. — Maldita sejas. — Sem
parar, saiu pela porta das traseiras e dirigiu-se para a oficina.
Devia ter adivinhado que estaria ali.
Ela espreitou por cima de uma bancada de trabalho e de uma montanha de papel cortado
às tiras. — Óptimo. Bem preciso de uma ajuda com isto.
— Porque raio é que não atende a porcaria do telefone? Porque é que tem essa maldita
coisa se a ignora sempre?
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Ela valia tanto quanto a sua palavra. A mercadoria iniciava a sua viagem e ela mal teve
tempo para lançar uma mala para as traseiras do carro alugado do Rogan.
— Se me deres só mais uns dez minutos, — disse ela, quando Rogan começou a descer
a rua estreita, — tenho a certeza que a Brie tem chá ou café feitos.
Não bateu à porta, mas entrou e dirigiu-se logo à cozinha, nas traseiras. Brianna estava
lá, com um avental branco atado à volta da cintura e as mãos cobertas de farinha.
— Oh, Sr. Sweeney, olá Maggie. Desculpem a confusão. Temos hóspedes e estou a
fazer tartes para o jantar.
— Estou de partida para Dublin.
— Já? — Brianna foi buscar um pano da louça para tirar a farinha das mãos. — Pensei
que a exposição fosse na semana que vem.
— E é. Vou mais cedo. Ela está no quarto?
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O sorriso educado de Brianna endureceu um pouco nos cantos. — Está. Porque é que
não vou lá dizer-lhe que estás aqui?
— Eu mesma digo-lhe. Talvez possas servir um café a Rogan.
— Claro. — Lançou um olhar preocupado a Maggie enquanto esta saía da cozinha,
entrando nos aposentos ao lado. — Se quiser ficar à vontade na salinha, Sr. Sweeney,
trago-lhe já um café.
— Não se incomode. — A sua curiosidade adensou-se. — Tomo uma chávena aqui
mesmo, se não estiver a atrapalhar. — Acrescentou ele, com um sorriso fácil. — E, por
favor, chame-me Rogan.
— Toma-o simples, se bem me lembro.
— Tem boa memória. — E estás uma pilha de nervos, observou ele, vendo Brianna ir
buscar uma chávena e um pires.
— Tento lembrar-me dos gostos dos meus hóspedes. Quer uma fatia de bolo? É uma
delícia de chocolate que fiz ontem.
— A memória dos seus cozinhados dificulta qualquer recusa. — Sentou-se à mesa de
madeira gasta. — Faz tudo sozinha?
— Faço, eu... — Ouviu a primeira voz exaltada e atrapalhou-se. — Faço tudo. A lareira
está acesa na salinha. Tem a certeza que não fica lá mais confortável?
O troar de vozes na sala ao lado aumentou, trazendo um rubor de embaraço às faces de
Brianna. Rogan limitou-se a erguer a chávena. — Com quem é que ela está a gritar
desta vez?
Brianna procurou sorrir. — Com a nossa mãe. Não se dão lá muito bem.
— Será que a Maggie se dá bem com alguém?
— Só quando lhe convém. Mas tem um coração maravilhoso e generoso. Só que o
guarda com muita cautela. — Brianna suspirou. Se Rogan não se envergonhava com a
gritaria, ela também não. — Vou cortar o bolo.
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— Não. — Como sentia os olhos a picar, a voz de Maggie saiu ríspida como um
chicote. — Foi essa falha que herdei de ti. Só vim aqui hoje para te dizer que não vais
abusar da Brie enquanto estiver fora. Se souber que o fizeste, paro de enviar dinheiro.
— Tiravas-me a comida da boca?
Maggie debruçou-se para bater com a mão na caixa de chocolates. — Tirava. Podes crer
que sim.
— Honra o teu pai e a tua mãe. — Maeve apertou a Bíblia ainda mais. — Estás a violar
um mandamento, Margaret Mary, e a encomendar a tua alma ao inferno.
— Prefiro abdicar do meu lugar no céu a viver como uma hipócrita na terra.
— Margaret Mary! — Gritou Maeve quando Maggie chegou à porta. — Nunca hás-de
conseguir nada. És tal e qual como ele. Deus amaldiçoou-te, Maggie, por teres sido
concebida fora do sacramento do matrimónio.
— Em minha casa nunca vi sacramento de matrimónio nenhum, — retorquiu Maggie.
— Apenas a agonia causada por ele. E se alguém pecou na minha concepção, não fui eu.
Bateu com a porta, encostando-se para trás por instantes, acalmando-se.
Era sempre a mesma coisa, pensava. Não podiam estar juntas no mesmo quarto sem
desatarem aos insultos. Já sabia, desde os seus doze anos, porque é que a mãe não
gostava dela, porque a condenara. A sua mera existência era o motivo pelo qual a vida
de Maeve passara de um sonho para uma dura realidade.
Um casamento sem amor, um bebé de seis meses e uma quinta sem agricultor.
Fora isso que a mãe lhe atirara à cara quando Maggie alcançara a puberdade.
Fora isso que impossibilitara um perdão entre as duas.
Endireitando os ombros, voltou para a cozinha. Não sabia que nos olhos ainda mostrava
o brilho da ira, ou que o rosto estava pálido. Foi ter com a irmã e beijou-a intensamente
na face.
— Ligo-te de Dublin.
— Maggie. — Havia tanto a dizer e nada a dizer. Brianna apenas lhe apertou as mãos.
— Quem me dera poder ir contigo.
— Podias, se quisesses muito. Rogan, estás pronto?
— Estou. — Levantou-se. — Adeus, Brianna. Obrigado.
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— Acompanho-vos... — Brianna estacou assim que a mãe a chamou.
— Vai ver o que ela quer, — disse Maggie, saindo de casa à pressa. Com um puxão,
tentava a porta do carro de Rogan, quando ele lhe pousou a mão no ombro.
— Estás bem?
— Não, mas não quero falar sobre isso. — Num esforço final, conseguiu abrir a porta e
entrou.
Rapidamente, ele deu a volta pela frente do carro e entrou para o lugar do motorista. —
Maggie...
— Não digas nada. Nada mesmo. Não há nada que possas fazer ou dizer que mude
velhos hábitos. Limita-te a conduzir e deixa-me estar. Seria um grande favor que me
fazias. — Depois, começou a chorar, intensamente, com amargura, enquanto ele lutava
entre a ânsia de a reconfortar e o desejo de cumprir o pedido dela.
Acabou por conduzir, sem dizer nada, mas segurando-lhe na mão. Estavam a aproximar-
se do aeroporto quando ela deixou de soluçar e descontraiu os dedos tensos. Olhando de
soslaio, viu que ela dormia.
Não acordou quando ele a levou ao colo para o avião da empresa, nem quando a
acomodou no lugar. Nem sequer acordou durante todo o voo enquanto ele a observava.
E pensava.
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CAPÍTULO SEIS
Maggie acordou às escuras. A única coisa que sabia naqueles primeiros minutos ébrios
era que não estava na sua própria cama. O cheiro dos lençóis, a própria textura não
correspondia. Não era preciso dormir em finas roupas de cama de linho com frequência
para reconhecer a diferença, nem para reparar no aroma subtil e agradável a verbena que
emanava da almofada em que enterrara o rosto.
À medida que um pensamento desconfortável lhe zumbia na cabeça, esticou o braço
com cautela para se certificar que era a única ocupante da cama. O colchão oscilava, um
autêntico lago de lençóis macios e confortáveis cobertores. Um lago vazio, graças a
Deus, pensou ela, rolando para o meio da cama.
A última memória vívida que tinha era a de chorar até não poder mais no carro de
Rogan, e da sensação de vazio que a deixara a vaguear como um ramo partido num
riacho.
Uma boa expiação, decidira, uma vez que se sentia incrivelmente melhor — calma,
tranquila e limpa.
Era tentador deixar-se embalar pela escuridão em lençóis macios, com aromas suaves.
Mas decidira que era melhor descobrir onde estava e como chegara até ali. Depois de
escorregar até à borda da cama, às apalpadelas, procurou a madeira macia da mesa-de-
cabeceira, passando os dedos pelo fio até encontrar o candeeiro e o interruptor.
A luz tinha uma sombra suave, uma tonalidade dourada quente que iluminava de forma
subtil um enorme quarto com tecto trabalhado, elegante papel de parede botão de rosa e
a própria cama, imensa com quatro postes.
A autêntica rainha das camas, pensou com um sorriso. Que pena que estivera demasiado
cansada para a apreciar.
A lareira no extremo oposto do quarto estava apagada, mas permanecia limpa como uma
moeda nova, e pronta a acender. Rosas cor-de-rosa de pé alto, frescas como uma manhã
de Verão, enfeitavam uma jarra Waterford num ramo majestático ao lado de um
conjunto de escovas de prata e lindas garrafinhas às cores com rolhas de fantasia.
O espelho por cima reflectia Maggie, desgrenhada e de olhos inchados no meio dos
lençóis.
Pareces um pouco deslocada, minha menina, decidiu ela e, resmungando, puxou as
mangas da camisa de noite de algodão. Parecia que alguém tivera o bom senso de lhe
mudar a roupa antes de a meter na cama real.
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Talvez uma empregada, ou o próprio Rogan. Não interessava muito, pensou de forma
prática, uma vez que já estava consumado e ela certamente beneficiara disso. Segundo
todas as probabilidades, as suas roupas estariam penduradas de forma graciosa no
armário de pau-rosa entalhado. Estava tão deslocada ali, decidiu com um estalido da
língua, como estava no lago glorioso de lençóis de linho macios.
Se estivesse num hotel, era certamente o melhor em que algum mecenas a hospedara.
Levantou-se aos trambolhões, tropeçando até à porta mais próxima num farto tapete
Aubusson.
A casa de banho era tão sumptuosa quanto o quarto, toda em azulejos cor-de-rosa e
marfim brilhantes, uma imensa banheira apetrechada para imersão e um chuveiro à
parte, construído num bloco de vidro ondulado. Com um suspiro de pura avidez, despiu
a camisa de noite e ligou o chuveiro.
Era o céu, a água quente a bater na parte de trás do pescoço, dos ombros, como os dedos
firmes de um massagista experiente. Bem diferente das míseras pingas espremidas do
seu chuveiro em casa. O sabonete cheirava a limão e deslizava sobre a sua pele como
seda.
Viu com algum divertimento que os poucos produtos de toilette haviam sido dispostos
na generosa bancada ao lado dos lavatórios em forma de concha. O seu roupão, tal
como estava, pendia num cabide de metal ao lado da porta.
Bom, alguém tomara conta dela, apercebeu-se, e de momento não encontrava motivos
para se queixar.
Após cerca de quinze minutos debaixo da água bem quente esticou o braço, apanhando
uma das toalhas grossas dobradas por cima de um secador de toalhas. Era
suficientemente grande para se embrulhar do peito até à barriga das pernas.
Penteou o cabelo molhado para não cair para o rosto, usou o creme que estava num
frasco de cristal, depois trocou a toalha pelo roupão de flanela esfarrapado.
Descalça e curiosa, começou a explorar.
O quarto dela ficava ao fundo de um grande corredor. Luzes baixas lançavam sombras
pelo chão reluzente e pelo rodapé vermelho régio. Não ouviu som algum ao vaguear na
direcção das escadas que curvavam graciosamente para cima, levando a outro piso, e
para baixo. Ela escolheu ir para baixo, deixando que os dedos brincassem com o
corrimão polido.
Era óbvio que não era hóspede de um hotel de luxo, mas sim de uma casa privada. A
casa de Rogan, concluiu, com um vislumbre invejoso pela arte que adornava o foyer e o
corredor principal. O homem tinha um Van Gogh e um Matisse, apercebeu-se, ao ficar
com água na boca.
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Encontrou a sala de estar principal, com as janelas amplas abertas para a noite
tranquilizante, uma sala de espera, as cadeiras e sofás dispostos em grupos de conversa.
Do outro lado do corredor estava o que ela imaginava chamar-se a sala da música, uma
vez que era dominada por um grande piano e uma harpa dourada.
Era tudo lindo, com obras de arte suficientes para manter Maggie entretida durante dias.
Mas, de momento, tinha outra prioridade.
Perguntava-se quanto tempo teria de procurar até encontrar a cozinha.
A luz debaixo de uma porta chamou-lhe à atenção. Ao olhar lá para dentro, viu Rogan
sentado atrás de uma secretária, os papéis dispostos em pilhas arrumadas à sua frente.
Era uma sala com dois pisos, a secretária dele no primeiro e degraus que levavam a uma
pequena sala de estar. As paredes estavam repletas de livros.
Quilómetros deles, pensou ela num olhar rápido, numa sala que cheirava a cabedal e a
cera de abelha. A sala estava decorada a tons de vinho e madeiras escuras que
combinavam com o homem tanto quanto com a literatura.
Ela observou-o, interessada na forma como ele perscrutava a página à sua frente,
tomando notas breves e decisivas. Ele estava, pela primeira vez desde que se
conheciam, sem fato ou gravata. Claro que já os tivera vestidos, imaginou ela, mas
agora tinha o colarinho desabotoado, as mangas da camisa gomada enroladas até aos
cotovelos.
O cabelo, reluzindo em tons negros à luz do candeeiro, estava algo desalinhado. Como
se tivesse passado as mãos impacientes por ele enquanto trabalhava. Voltou a fazê-lo
enquanto ela o observava, passando os dedos, agitando um pouco.
Estava a trabalhar em algo que o absorvia plenamente, a um ritmo constante, sem
distracções o que, de certa forma estranha, a fascinava.
Não era homem para deixar a mente vaguear, pensou ela. O que escolhia fazer era
realizado com a máxima concentração e mestria.
Ela lembrava-se da forma como a beijara. Concentração e mestria, certamente.
Rogan leu a cláusula seguinte da proposta e franziu o sobrolho. A terminologia não era a
correcta. Uma modificação... fez uma pausa, pensando, riscando uma frase e escolhendo
novas palavras. A expansão da sua fábrica em Limerick era crucial para o seu plano
estratégico e tinha de ser implementada antes do final do ano.
Criaria centenas de empregos e, com a construção de apartamentos a preços razoáveis,
que estava nos planos de uma filial da Worldwide, muitas famílias poderiam também ter
uma casa.
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Uma sucursal da empresa podia subsidiar directamente uma outra, pensou ele. Seria
uma pequena mas importante contribuição para manter os irlandeses — infelizmente, a
maior exportação do seu país — na Irlanda.
A sua mente girava à volta da cláusula, quase a reduzindo a tábua rasa, quando deu por
si a dispersar. Algo chamava a atenção do seu cérebro, distraindo-o do assunto em mãos.
Rogan olhou na direcção da porta e viu que não era alguma coisa, mas antes alguém.
Ele deve tê-la sentido ali de pé, descalça e ensonada, de roupão cinzento maltrapilho. O
cabelo dela estava penteado para trás, um fogo vermelho brilhante, num estilo que devia
ser severo mas, em vez disso, era fulminante.
Descomposto e ao natural, o rosto dela parecia marfim com um rubor cor-de-rosa
emergente. As pestanas estavam húmidas à volta dos olhos sonolentos.
Ele teve uma reacção rápida, violenta e humana. Até mesmo quando se sentiu inundar
de calor, teve necessidade de o verificar, implacavelmente.
— Desculpa interromper. — Ela lançou-lhe um sorriso rápido e atrevido que torturava a
sua libido já activa. — Andava à procura da cozinha. Estou meia esfomeada.
— Não admira. — Obrigou-se a pigarrear. Tinha a voz rouca, de uma sensualidade tão
sonolenta quanto os olhos dela. — Quando foi a última vez que comeste?
— Não tenho a certeza. — Encostando-se preguiçosa à ombreira da porta, bocejou. —
Acho que foi ontem. Ainda estou um bocado perdida.
— Não, ontem dormiste. O dia todo, desde a altura em que saímos de casa da tua irmã, e
o resto do dia seguinte.
— Oh. — Encolheu os ombros. — Que horas são?
— Pouco depois das oito... de terça-feira.
— Bom. — Entrou na sala e enroscou-se numa grande poltrona de cabedal em frente da
secretária dele, como se já lhe fizesse companhia ali há anos.
— Costumas dormir sempre trinta horas seguidas?
— Só quando estou a pé tempo demais. — Esticou os braços bem alto para afastar a
dormência que começara a sentir. — Às vezes uma peça agarra-nos pelo pescoço e só
nos larga quando a tivermos acabado.
Decidido, desviou o olhar da pele que a abertura no roupão revelava, olhando para baixo
cegamente para os papéis à sua frente. Ficou chocado que pudesse reagir como um
adolescente num turbilhão hormonal. — É perigoso, na tua profissão.
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— Não, porque não fico cansada. É como se ficasse alerta de uma maneira
insustentável. Quando tu trabalhas tempo demais, perdes o controlo. Tens de parar,
descansar. Isto é diferente. Quando acabo, caio para o lado e deixo-me estar a dormir até
não querer mais. — Sorriu outra vez. — A cozinha, Rogan? Estou esfomeada.
Em vez de responder, ele foi buscar o telefone e marcou um número. — Miss
Concannon já acordou, — declarou. — Gostava de comer qualquer coisa. Na biblioteca,
por favor.
— Que máximo, — comentou ela, assim que ele pousou o auscultador. — Mas podia ter
ido fazer uns ovos mexidos e não incomodava os teus empregados.
— São pagos para se incomodarem.
— Claro. — A voz dela ficou seca como pó. — Que presunçoso deves ser, com tantos
empregados às tuas ordens a qualquer hora. — Agitou a mão antes que ele pudesse
responder. — É melhor não falarmos sobre isso de estômago vazio. Diz-me, Rogan,
como é que fui parar lá acima àquela cama enorme?
— Fui eu que te pus lá.
— A sério? — Se ele estava à espera que ela corasse ou gaguejasse, enganou-se. —
Então tenho de te agradecer.
— Estavas a dormir como uma pedra. A determinada altura até tive de te encostar um
espelho à boca para ver se estavas viva. — Agora estava certamente, viva e vibrante à
luz do candeeiro. — Queres um brandy?
— É melhor não, ainda não comi.
Ele levantou-se, foi ao aparador e serviu um copo solitário da garrafa de vidro. —
Estavas transtornada quando nos viemos embora.
Ela esticou o pescoço. — Aí está uma forma diplomática de abordar a questão. — A
choradeira não a envergonhara. Era simples emoção, paixão, tão real e humana quanto o
riso ou o desejo. Mas ela lembrava-se que ele lhe dera a mão e não desperdiçara
palavras ocas para acalmar a tempestade. — Desculpa se ficaste numa situação
desagradável.
Era verdade, mas ele encolheu os ombros. — Não querias falar no assunto.
— Não queria e não quero. — Respirou fundo devido à rispidez na voz. Ele não merecia
tamanha descortesia depois de tanta amabilidade. — Não tem nada a ver contigo,
Rogan, são só velhos desentendimentos familiares. Como hoje estou um pouco
lamechas, deixa-me dizer-te que foi reconfortante ter a tua mão na minha. Nunca pensei
que fosses do tipo generoso.
77
Os olhos dele saltaram de encontro aos dela. — Parece-me que não nos conhecemos
assim tão bem para generalizar.
— Sempre achei que fazia juízos rápidos e correctos, mas talvez tenhas razão. Então,
diz lá... — apoiou um cotovelo no braço da poltrona, apoiando o queixo no punho —
quem és tu, Rogan Sweeney?
Ficou aliviado, uma vez que a chegada do jantar dela adiara a resposta. Uma empregada
aprumada, de farda, trazia um carrinho de servir, parando-o à frente de Maggie num
ligeiro murmúrio, entre o tilintar de talheres de prata. Esboçou uma pequena vénia
quando Maggie lhe agradeceu, para depois desaparecer no momento em que Rogan lhe
disse que não precisava de mais nada.
— Ah, que cheirinho. — Maggie atacou a sopa primeiro, um caldo rico e consistente
onde nadavam pedaços de vegetais. — Queres provar?
— Não, já comi. — Em vez de dar a volta pela secretária, ele sentou-se na poltrona ao
lado da dela. Era estranhamente acolhedor, apercebeu-se, sentar-se ao lado dela
enquanto comia, tendo em seu redor a casa tão sossegada. — Visto que regressaste ao
mundo dos vivos, talvez te apeteça passar pela galeria de manhã.
— Umm. — Acenou, com a boca cheia de pão tostado. — Quando?
— Às oito... tenho compromissos a meio da manhã, mas posso levar--te e deixar um
carro à tua disposição.
— Um carro à minha disposição. — Divertida, tapou a boca com a mão enquanto ria. —
Oh, até me podia habituar a isso rapidamente. E o que é que faria com o carro à minha
disposição?
— O que quisesses. — Deus sabia porque é que a reacção dela o irritava tanto, mas era
um facto. — Ou então podes passear a pé por Dublin, se preferires.
— Estamos um bocadinho irritados esta noite, não? — Passou da sopa para a entrada de
galinha doce. — O teu cozinheiro é maravilhoso, Rogan. Achas que ele, ou ela, me dá a
receita para a Brie?
— Ele, — retorquiu Rogan. — Estás à vontade para tentar. Ele é francês, insolente e
com tendência para birras.
— Então, temos tudo em comum, excepto a nacionalidade. Conta--me, vou para um
hotel amanhã?
Ele pensara nisso, e bastante. Era óbvio que para ele seria mais confortável se ela
ficasse instalada numa suite em Westbury. Mais confortável, pensara, e mais enfadado.
— Podes ficar no quarto de hóspedes, se quiseres.
— Mas que bela ideia. — Ela estudou-o ao espetar uma pequena batata nova.
Apercebeu-se que ali, parecia descontraído. Muito mais o rei complacente do castelo. —
Vives sozinho nesta casa enorme?
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Maggie passou o dedo por um volume de James Joyce. — Não, quero ver se tu sabes o
nome da tua empregada. É um teste.
Ele abriu a boca, voltando a fechá-la, grato por Maggie se encontrar de costas. Que
diferença fazia que soubesse o nome de uma das suas empregadas? Coleen? Maureen?
Raios! Era o mordomo que tratava dos empregados domésticos. Bridgit? Não, maldição,
era...
— Nancy. — Achava ele... tinha quase a certeza. — É muito recente. Acho que está cá
há cinco meses. Queres que a chame outra vez para a apresentar?
— Não. — Casualmente, Maggie passou de Joyce para Keats. — Era só por
curiosidade, nada mais. Diz-me Rogan, tens aqui mais alguma coisa que não seja os
clássicos? Sabes, um bom policial com que possa passar umas horas?
A biblioteca que Rogan tinha de primeiras edições era considerada uma das melhores do
país, mas ela criticava-a por não ter um bom cordel. Com algum esforço, serenou as
ideias e a voz. — És capaz de encontrar algumas obras da Dame Agatha.
— Os britânicos. — Encolheu os ombros. — Regra geral, são pouco sanguinários... a
não ser quando estão a saquear castelos, como os malditos cromwelianos. O que é isto?
— Debruçou-se, espreitando. — Este Dante está em italiano.
— Parece que sim.
— Consegues ler, ou é só para te exibires?
— Safo-me bastante bem.
Passou por ele, na esperança de algo mais contemporâneo. — Em Veneza, não apanhei
tanto da língua quanto gostaria. Muito calão, pouco do socialmente correcto. —
Lançou-lhe uma olhadela por cima do ombro e sorriu. — Os artistas são um grupo
colorido em qualquer país.
— Já tinha reparado. — Levantou-se e foi até à outra estante com livros. — Aqui deves
encontrar o que procuras. — Estendeu a Maggie uma cópia do Dragão Vermelho, de
Thomas Harris. — Parece que um monte de gente é assassinada de forma horrível.
— Fantástico. — Meteu o livro debaixo do braço. — Então, dou já as boas-noites, para
que possas voltar ao trabalho. Agradeço-te a cama e a comida.
— Não tens de quê. — Voltou a sentar-se atrás da secretária, pegou numa caneta e
passou-a pelos dedos, enquanto a observava. — Gostava de sair às oito em ponto. A sala
de jantar fica ao fundo do corredor, à esquerda. O pequeno-almoço é servido a partir das
seis.
— Garanto-te que a essa hora não me vão servir, mas estarei pronta às oito. — Num
impulso, foi ter com ele, apoiou as mãos nos braços da sua poltrona e chegou o rosto
bem perto do dele. — Sabes, Rogan, somos precisamente o que não precisamos ou
queremos... a nível pessoal.
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— Não podia concordar mais. A nível pessoal. — A pele dela, macia, suave e branca,
onde a flanela se separara junto ao pescoço, cheirava a pecado.
— É por isso que, na minha opinião, vamos ter um relacionamento tão fascinante.
Quase sem chão para caminharmos, não achas?
— Só um pequeno nicho. — O olhar dele desceu até à boca dela, demorando-se,
voltando a subir. — E bastante instável.
— Gosto de escaladas perigosas. — Debruçou-se um pouco mais, só um milímetro, e
puxou-lhe o lábio inferior com os dentes.
Uma lança de fogo penetrou-lhe bem fundo nas entranhas. — Prefiro ter os pés bem
assentes na terra.
— Eu sei. — Ela chegou-se para trás, deixando-o com o lábio dormente e o estômago a
ferver. — Primeiro, vamos tentar à tua maneira. Boa-noite.
Ela saiu da sala com passos breves, sem olhar para trás. Rogan esperou até ter a certeza
que ela estava bem longe, antes de levantar as mãos e de as esfregar pela cara.
Cristo todo poderoso, a mulher estava a dar-lhe uma quantidade de nós, nós
escorregadios e emaranhados de pura luxúria. Não acreditava em agir por pura luxúria,
pelo menos não desde a adolescência. Afinal de contas, era um homem civilizado, de
bom gosto e berço.
Respeitava as mulheres, admirava-as. Certamente que desenvolvera relacionamentos
que haviam culminado na cama, mas tentara sempre esperar até que a relação se
desenvolvesse antes de fazerem amor. De forma razoável, mútua e discreta. Não era um
animal, para ser guiado apenas pelo instinto.
Nem tinha a certeza absoluta se gostava de Maggie Concannon como pessoa. Então, que
tipo de homem seria se fizesse aquilo por que mais ansiava neste momento? Se
desatasse a correr escada acima, abrisse a porta do quarto dela de par em par e a
possuísse forte e feio.
Um homem satisfeito, pensou, com um ar sinistro.
Pelo menos até de manhã, quando tivesse de a enfrentar, a si mesmo e aos negócios que
tinha de fechar.
Talvez fosse mais difícil seguir pelo caminho mais longo. Talvez sofresse, acalentando a
certeza que ela esperava que assim fosse. Mas quando chegasse a altura de a levar para
a cama, levaria a melhor.
Isso, sem dúvida, valia alguma coisa.
Até mesmo, pensava ele ao empurrar os papéis para o lado, uma miserável noite sem
dormir.
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…
Maggie dormira como um bebé. Apesar das imagens invocadas pelo romance que
Rogan lhe dera, caíra no sono logo depois da meia-noite e dormira divinalmente até
quase às sete.
Carregada de energia e antecipação, procurou a sala de jantar e rejubilou-se ao ver um
pequeno-almoço irlandês quente e completo no aparador.
— Bom dia, Miss. — Apressada, a mesma empregada que a servira na noite anterior
surgiu vinda da cozinha. — Posso trazer-lhe alguma coisa?
— Não, obrigada. Eu sirvo-me. — Maggie foi buscar um prato à mesa e dirigiu-se aos
aromas tentadores no aparador.
— Quer que sirva café ou chá, Miss?
— Chá seria óptimo. — Maggie levantou a tampa de uma salva de prata e cheirou
satisfeita as grossas tiras de bacon. — Nancy, não é?
— Não, Miss, sou a Noreen.
Falhaste o teste, Fidalgo Sweeney, pensou Maggie. — Se não se importa, Noreen, diga
ao cozinheiro que nunca na vida comi uma refeição tão boa como a da noite passada.
— Com todo o prazer, Miss.
Maggie passeou de travessa em travessa, enchendo o prato. Tinha por hábito saltar
refeições, de tão indiferente que era para com os próprios cozinhados. Mas quando tinha
disponível comida em tais quantidades, e comida de boa qualidade, ela aceitava o
desafio.
— O Sr. Sweeney vai fazer-me companhia ao pequeno-almoço? — Perguntou enquanto
levava o prato para a mesa.
— Ele já comeu, Miss. O Sr. Sweeney toma o pequeno-almoço todos os dias às seis e
meia, em ponto.
— Um animal de hábitos, não acha? — Maggie piscou o olho à empregada e barrou a
torrada quente com compota fresca.
— Sim, é, — respondeu Noreen, corando um pouco. — Fiquei de lembrá-la, Miss, que
ele estará pronto para partir às oito.
— Obrigada, Noreen, não me vou esquecer
— Se precisar de alguma coisa, basta tocar.
Silenciosa como um rato, Noreen afastou-se de volta para a cozinha. Maggie permitiu-
se um pequeno-almoço que achava ser digno de uma rainha e folheou um exemplar do
Irish Times, que fora impecavelmente dobrado ao lado do prato dela.
Que modo de vida mais confortável, achava ela, com empregados à distância de um
estalar de dedos. Mas será que Rogan não enlouquecia ao saber que eles andavam
sempre pela casa? Que nunca estava sozinho?
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A própria ideia fê-la estremecer. Ela enlouqueceria, decidira Maggie, sem solidão.
Olhou ao redor da sala com os lambris escuros e brilhantes, o reluzir dos dois lustres de
cristal, o faiscar das pratas no aparador antigo, o cintilar da porcelana e do vidro
Waterford.
Sim, até neste cenário luxuriante, ela se sentiria completa e furiosamente louca.
Demorou a tomar a segunda chávena de chá, leu o jornal de fio a pavio e limpou o prato
até à última migalha. Algures na casa, um relógio bateu as horas. Ainda pensou em
servir-se de mais bacon, mas achou-se uma glutona e resistiu.
Demorou alguns instantes a estudar a arte nas paredes. Havia uma aguarela que achava
particularmente delicada. Dando uma última volta, bem demorada, pela sala, encetou o
caminho até à porta, descendo depois o corredor.
Rogan estava no foyer, imaculado de fato cinzento e gravata azul-marinho. Olhou para
ela, olhou para o relógio. — Estás atrasada.
— Estou?
— Já passa das oito.
Ela ergueu as sobrancelhas, vendo que ele estava a falar a sério, para com alguma
legitimidade soltar um cacarejo. — Devia ser flagelada.
Ele olhou-a de cima a baixo, desde as botas a meio da perna com meias pretas à máscula
camisa branca que chegava a meio da coxa, apertada na cintura com dois cintos de
cabedal. Pedraria brilhante e translúcida reluzia-lhe nas orelhas e, desta vez, colocara
um pouco de maquilhagem. Contudo, não se incomodara a usar relógio.
— Se não usas relógio, como é que podes chegar a horas?
— Nisso tens razão. Talvez seja por isso que não tenho.
Ainda a observá-la, tirou um bloco de notas e a caneta.
— O que é que vais fazer?
— Vou tomar nota que temos de te arranjar um relógio, além de um atendedor de
chamadas e um calendário.
— Mas que generoso, Rogan. — Esperou que ele abrisse a porta e a guiasse lá para fora.
— Porquê?
— O relógio para seres pontual. O atendedor de chamadas para que eu consiga deixar
uma mísera mensagem quando ignorares o telefone, e o calendário para que saibas que
raio de dia é quando fizer uma encomenda.
Ele mordera a última palavra, como se fosse carne dura, pensou Maggie. — Já que estás
de humor tão refinado esta manhã, vou arriscar dizer-te que nada disso me vai fazer
mudar um milímetro. Sou irresponsável, Rogan. Basta perguntares a quem restar da
minha família. — Deu meia volta, ignorando o seu assobio de impaciência e
examinando a casa.
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Era fronteiriça a um lindo jardim, banhado pela sombra e dedicado a S. Estêvão, viria
ela a saber, edificada com orgulho, algo altiva, em contraste com um céu azul de
fantasia.
Apesar de a pedra ser antiga, as linhas eram graciosas como o corpo de uma mulher
jovem. Revelava uma combinação de dignidade e elegância que Maggie sabia ser
apanágio apenas dos ricos. Cada janela, das muitas existentes, brilhavam como
diamantes ao Sol. O relvado, macio e verde, abria alas para um acolhedor jardim
dianteiro, cuidado como uma igreja com o dobro da formalidade.
— Tens aqui um lindo lugar. Não sei se sabes, mas ao entrar nem reparei nele.
— Eu sei disso. Vais ter de esperar pela visita guiada, Margaret Mary. Não gosto de me
atrasar. — Deu-lhe o braço e quase a arrastou para o carro que os aguardava.
— Será que és repreendido por chegares atrasado? — Como ele não respondeu, ela riu-
se, recostando-se para apreciar a viagem. — Costumas acordar mal disposto, Rogan?
— Não estou mal-disposto, — disparou ele. Ou não estaria, pensou, se tivesse dormido
mais de duas horas. E a responsabilidade disso, malditas sejam todas as mulheres, recaía
somente nos ombros dela. — Tenho muito que fazer hoje.
— Oh, era só para confirmar. Impérios a construir, fortunas a conquistar.
Aquilo bastava. Não sabia porquê, mas o ligeiro tom de desdém despoletara a última
réstia de controlo. Guinou o volante para a berma da estrada, o que levou o condutor
que guiava atrás dele a buzinar de forma grosseira. Agarrando Maggie pelos colarinhos,
deixou-a pendurada no assento e colou a boca à dela.
Ela não esperara aquela reacção. Mas isso não significava que não a podia apreciar.
Ajustaria contas com ele quando não estivesse tão controlado, tão engenhoso. Até podia
sentir a cabeça a andar à roda, mas a sensação de poder mantinha-se. Não havia ali
qualquer sedução, apenas necessidades básicas, numa fricção como dois pólos positivos
que ameaçavam fazer faísca.
Ele empurrou-lhe a cabeça para trás e mergulhou na sua boca. Só uma vez, prometera a
si mesmo. Só uma vez para aliviar alguma da tensão traiçoeira que se aninhara no seu
interior, como uma cobra.
Mas beijá-la não trouxera alívio. Em vez disso, a completa e ansiosa resposta dela, o seu
imenso vigor, pressionara-o ainda mais até não conseguir respirar.
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Por momentos, foi como se fosse sugado para dentro de um túnel forrado a veludo, sem
ar. Ficou aterrorizado ao pensar que talvez nunca mais precisasse ou quisesse luz.
Afastou-se bruscamente, agarrando com força o volante. Voltou à estrada, como um
bêbedo a tentar seguir por uma linha recta.
— Presumo que isto foi resposta a alguma coisa. — A voz dela estava invulgarmente
calma. Não fora o beijo que a acalmara, mas sim a forma como terminara.
— Ou fazia isto ou esganava-te.
— Prefiro que me beijem a que me estrangulem. Mesmo assim, preferia que não
ficasses tão zangado por me quereres.
Estava mais calmo, concentrado na estrada e a compensar o tempo perdido por causa
dela naquela manhã. — Já me expliquei. A altura não é apropriada.
— Não é apropriada. E quem é que sabe o que é próprio?
— Prefiro conhecer a pessoa com quem durmo. Partilhar afecto e respeito.
Ela franziu os olhos. — Há uma grande distância entre um beijo na boca e uma
cambalhota nos lençóis, Sweeney. Vou provar-te que não sou do género de saltar para o
colchão num piscar de olhos.
— Nunca disse...
— Oh, não disseste? — Estava ainda mais insultada, por saber a rapidez com que teria
saltado para um colchão com ele. — Pelo que percebi, já decidiste que sou daquelas
fáceis. Bom, não te vou explicar o meu passado. E quanto a afecto e respeito, ainda serei
eu a ensinar-te o que isso é, rapaz.
— Óptimo. Então, estamos de acordo.
— Estamos de acordo que podes ir para o inferno. E o nome da tua empregada é
Noreen.
Isto distraíra-o o suficiente para desviar a atenção da estrada, de olhar perdido. — O
quê?
— A tua empregada, seu parvo, seu aristocrata de nariz empinado. Não se chama Nancy.
Chama-se Noreen. — Maggie cruzou os braços e, resoluta, olhou pela janela.
Rogan limitou-se a abanar a cabeça. — Agradeço-te muito por teres esclarecido isso.
Sabe Deus a vergonha que seria se tivesse de a apresentar aos vizinhos.
— Snobe de sangue azul, — rezingou ela.
— Víbora de língua bifurcada.
Acomodaram-se num silêncio magoado durante o resto da viagem.
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CAPÍTULO SETE
Era impossível não ficar impressionado com a Galeria Worldwide, em Dublin. A própria
arquitectura valia uma visita ao lugar. O certo é que já tinham aparecido fotografias do
edifício em dezenas de revistas e livros de arte por todo o mundo, como um exemplo
gritante do estilo georgiano que fazia parte do legado arquitectural de Dublin.
Apesar de Maggie já a ter visto reproduzida em páginas brilhantes, ao avistá-la, a sua
imensa grandeza a três dimensões, cortava-lhe a respiração.
Passara horas do seu tempo livre durante o estágio em Veneza à procura de galerias.
Mas nenhuma se comparava ao esplendor da de Rogan.
Contudo, não teceu qualquer comentário enquanto ele destrancava as imponentes portas
frontais e gesticulava para ela entrar.
Teve de resistir ao reflexo de esboçar um gesto cerimonioso, perante o sossego que mais
se assemelhava ao de uma igreja, o jogo de luzes, o ar perfumado na sala principal. A
exposição com o tema Nativos Americanos estava linda e meticulosamente montada —
as taças de cerâmica, os maravilhosos cestos, as máscaras rituais, chocalhos e contas dos
xamanes. Nas paredes viam-se desenhos à partida primitivos e sofisticados. A atenção e
admiração de Maggie prenderam-se num vestido de pele de gamo, de cor creme,
adornado com contas e pedras macias e brilhantes. Rogan pedira que o pendurassem
como uma tapeçaria. Os dedos de Maggie urgiam para lhe tocarem. — Impressionante
— foi tudo o que disse.
— Fico encantado por aprovares.
— Nunca vi obras nativas americanas sem ser em livros e coisas que tais. —
Debruçou--se sobre um jarro de água.
— Foi por isso mesmo que trouxe a exposição para a Irlanda. Demasiadas vezes damos
importância à história e cultura europeias e esquecemo-nos que o mundo é mais do que
isso.
— Custa a crer que as pessoas que criaram isto fossem os selvagens que vemos nos
filmes antigos do John Wayne. Mas afinal, — ela sorriu ao endireitar-se — os meus
antepassados também eram selvagens, andavam nus e pintavam-se de azul antes de
correrem aos gritos para a batalha. São essas as minhas origens. — Inclinou a cabeça
estudando-o, o homem de negócios perfeitamente polido. — De nós os dois.
— Pode dizer-se que estas tendências se tornam mais diluídas nalguns do que noutros
com o passar dos séculos. Há anos que não me dá vontade de me pintar de azul.
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Ela riu-se, mas ele já estava a olhar outra vez para o relógio.
— Vamos usar o segundo andar para as tuas obras. — Dirigiu-se para as escadas.
— Por alguma razão especial?
— Por várias razões especiais. — Com uma onda quente de impaciência a tremeluzir à
sua volta, fez uma pausa até que ela se juntou a ele na escadaria. — Prefiro que uma
exposição destas tenha um ambiente de ocasião especial. As pessoas tendem a apreciar
arte, ou pelo menos sentem-na mais acessível, se estiverem descontraídas, a divertirem-
se. — Parou no cimo das escadas, erguendo o sobrolho perante a expressão no rosto
dela. — Tens algum problema com isso?
— Gostava que as pessoas levassem o meu trabalho a sério, e que não achassem que faz
parte da festa.
— Asseguro-te que o vão levar a sério. — Em especial, com os preços que ele
tencionava praticar, com a estratégia que queria aplicar. — Se bem que o marketing do
teu trabalho é, no final de contas, a minha especialidade. — Virou-se, abrindo as portas
duplas, para depois recuar e deixar que Maggie entrasse primeiro.
Ela praticamente ficou sem voz. A sala linda e enorme estava inundada de luz que
entrava da clarabóia abobadada ao meio do tecto. Iluminava o chão escuro e polido,
devolvendo reflexos deslumbrantes, quase espelhados, das obras que Rogan escolhera
expor.
Em todos os seus sonhos, nas suas mais loucas e secretas expectativas, ela nunca
imaginara que as suas obras seriam expostas de forma tão sensível ou tão grandiosa.
Pedestais com bases imponentes, de um mármore branco cremoso, preenchiam a sala a
toda a volta, colocando o vidro ao nível do olhar. Rogan escolhera apenas doze peças
para decorar o espaço grandioso. Um golpe de mestre, apercebeu-se ela, uma vez que
tornava cada peça ainda mais única. Ali, bem no centro da sala, reluzindo como gelo a
derreter nas entranhas do fogo, estava a Rendição de Maggie.
Sentiu uma ligeira dor no coração ao examinar a escultura. Alguém a compraria, sabia
disso. Dentro de dias, alguém pagaria o preço que Rogan pedisse, roubando-a para
sempre, de forma definitiva da vida dela.
O preço a pagar por querer algo mais, pensou, aparentemente era perder o que já se
tinha. Ou talvez aquilo que se era.
Como ela não disse nada, limitando-se a caminhar pela sala a bater com as botas, Rogan
enfiou as mãos nos bolsos. — As peças mais pequenas estão expostas naquela que
chamamos as salas de estar superiores. É um espaço mais íntimo. — Fez uma pausa, à
espera de alguma resposta, emitindo um assobio entre dentes ao perceber que não a
teria. Maldita mulher, pensou. O que é que queria? — Vamos ter uma orquestra na
exposição. De cordas. É claro, também champanhe e canapés.
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— Tenho primos em Clare, do lado do meu pai e da minha mãe. São os Ryans.
— Conheço montes de Ryans. Oh. — Parou, suspirando, ao mesmo tempo que passava
por uma arcada e entrava numa salinha aprumada, adornada com uma lareira e uma
poltrona de dois lugares, para namorados. Várias das suas peças mais pequenas,
incluindo a que Rogan comprara no dia em que se conheceram, adornavam as mesas
antigas.
— Acho que é um cenário bastante elegante. — Joseph entrou para acender as luzes
escondidas em nichos. O vidro ganhou vida debaixo dos feixes, parecendo pulsar. — O
salão de baile causa uma impressão estonteante. Por sinal, bastante delicada.
— Sim. — Ela voltou a suspirar. — Importa-se que me sente um pouco, Joseph? A
verdade é que fiquei sem fôlego. — Acomodou-se na poltrona de namorados e fechou
os olhos. — Quando era pequena, o meu pai comprou um bode, com ideias de fazer
criação. Um dia de manhã, estava eu com ele no campo, distraí-me um bocado e ele
deu-me um coice. Acertou-me em cheio no traseiro e eu dei cá um voo. Senti-me
exactamente assim quando entrei naquela sala ali. Como se alguém me tivesse dado um
coice no traseiro, que até levantei voo.
— Está nervosa, não está?
Abriu os olhos e viu compreensão no rosto de Joseph. — Estou assustada de morte. E
raios me partam se vou deixar que ele se aperceba. É tão convencido, não acha?
— É seguro de si, o nosso Rogan. E tem razões para isso. Tem um sentido apuradíssimo
para comprar a peça certa ou para patrocinar o artista certo. — Um homem curioso, que
apreciava um bom mexerico, Joseph pôs-se mais confortável sentando-se ao lado dela.
Esticou as pernas, cruzando-as pelos tornozelos numa postura que convidava à
descontracção e à confidência. — Reparei que vocês os dois trocavam umas cabeçadas,
por assim dizer, quando os interrompi.
— Parece que não temos muito em comum. — Maggie esboçou um ligeiro sorriso. — É
abusador, o nosso Rogan.
— É verdade, mas normalmente é tão subtil que não percebemos que está a gozar
connosco.
Maggie assobiou entre dentes. — Comigo não foi nada subtil.
— Eu reparei. Interessante. Sabe, Maggie, não acho que esteja a cometer alguma
inconfidência empresarial se lhe dissesse que o Rogan estava determinado a assinar
contrato consigo pela Worldwide. Trabalho para ele há mais de dez anos e não me
lembro de o ver assim tão empenhado em relação a nenhum artista.
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Havia demasiadas pessoas em Dublin para o gosto de Maggie. Mal se podia dar um
passo sem esbarrar com alguém. Era uma cidade bonita, não podia negá-lo, com a sua
linda baía e os campanários pontiagudos. Conseguia apreciar a magnificência da sua
arquitectura, toda em tijolo vermelho e pedra cinzenta, o charme das fachadas das lojas
coloridas.
O motorista, Brian Duggin, dissera-lhe que os primeiros dublinenses tinham um sentido
de ordem e beleza tão apurado quanto o seu sentido de lucro. Por isso, achava ela, a
cidade era ideal para Rogan, tanto quanto ele era para ela.
Recostou-se no carro silencioso para admirar os estonteantes jardins fronteiriços e as
cúpulas de cobre, os jardins sobranceiros e o movimentado rio Liffey, que dividia a
cidade em duas.
Sentia o pulso acelerar ao ritmo do que se passava à sua volta, como reacção às
multidões e à pressa. Mas a correria excitava-a apenas de forma breve, antes de a
extenuar. O mero número de pessoas na O'Connell Street, onde toda a gente parecia ter
uma pressa desesperada de chegar a alguma parte, fê-la ansiar pelas ruas ociosas e
sossegadas do oeste.
Ainda assim, achou a vista da Ponte O'Connell espectacular, os barcos ancorados nos
cais, a cúpula majestosa dos Four Courts a brilhar ao Sol. O motorista parecia feliz por
obedecer ao pedido que ela fizera de apenas conduzir, ou de ficar estacionado à espera
enquanto ela passeava pelos parques e praças.
Parou na Grafton Street, no meio de lojas interessantes, e comprou um alfinete para a
Brianna, uma meia-lua simples de prata, com uma curvatura cravejada de pedrinhas de
granadas. Iria com certeza, pensou Maggie ao guardar a caixa no bolso, agradar ao
gosto tradicional da irmã.
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Para si, ponderou bastante a compra de um par de brincos, espirais compridas de ouro,
prata e cobre, no cimo e na ponta decorados com opalas cor de fogo. Não devia gastar
dinheiro em bugigangas tão frívolas. Não devia mesmo, lembrava-se, uma vez que não
tinha garantia nenhuma de vender mais peças.
No entanto, é claro que comprou os brincos e mandou o orçamento para o inferno.
Para terminar o dia, visitou museus, passeou junto ao rio e tomou chá numa pequena
loja na Praça Fitz William. Passou a última hora a contemplar a luz do Sol e os reflexos
na Ponte Half Penny, desenhando num bloco que comprara numa loja de arte.
Já passava das sete quando regressou a casa de Rogan. Ele saiu da saleta e impediu-a de
alcançar as escadas.
— Já me perguntava se não tinhas pedido ao Duggin que te levasse de volta para Clare.
— Passou-me pela cabeça uma ou duas vezes. — Puxou para trás o cabelo desalinhado.
— Há anos que não vinha a Dublin. — Pensou no malabarista que vira e, claro, no pai.
— Já me esquecera de como era barulhenta.
— Presumo que ainda não tenhas comido.
— Ainda não. — Sem contar com o biscoito que acompanhara o chá.
— O jantar vai ser servido às sete e meia, mas posso pedir que adiem para as oito, se
nos quiseres fazer companhia para uns cocktails.
— Nos?
— A minha avó. Está ansiosa por te conhecer.
— Oh. — O humor de Maggie caiu a pique. Mais alguém para conhecer, com quem
falar, com quem estar. — Não vos quero empatar.
— Não há problema. Se quiseres mudar de roupa, estamos na saleta.
— Mudar para quê? — Resignada, enfiou o bloco de desenho debaixo o braço. —
Lamento, mas deixei toda a minha roupa de cerimónia em casa. Mas se a minha
aparência te envergonha, posso levar um tabuleiro para o meu quarto.
— Não ponhas palavras na minha boca, Maggie. — Agarrando-a com firmeza pelo
braço, Rogan conduziu-a até à saleta. — Avó. — Dirigia-se à mulher sentada
regiamente na poltrona brocada de costas altas. — Gostaria de te apresentar Margaret
Mary Concannon. Maggie, Christine Sweeney.
— É um prazer imenso. — Christine ofereceu uma mão de ossos finos, adornada por
uma safira reluzente. Condizia com as que pendiam das suas orelhas. — Sou eu a
responsável pela sua vinda, minha querida, já que fui eu quem comprou a primeira peça
sua que intrigou o Rogan.
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— Não lhe faremos essa inconfidência. — Rogan puxou uma cadeira para Christine, e
depois para Maggie.
— Pois não, — concordou Maggie. — É que concordei em tentar trocar algumas
receitas da Brie pelas dele.
— A Brie é a irmã de Maggie, — explicou Rogan enquanto era servido o prato de sopa.
— Ela tem um B-e-B em Clare e, por experiência própria, posso assegurar que os
cozinhados dela são excelentes.
— Então, a sua irmã é uma artista na cozinha, em vez de no estúdio.
— Pois é, — concordou Maggie, encontrando-se muito mais confortável na companhia
de Christine Sweeney do que esperara. — É um toque mágico que a Brianna tem com o
fogão e com a casa.
— Em Clare, diz você. — Christine acenou enquanto Rogan lhe oferecia vinho. —
Conheço bem a zona. Eu própria sou de Galway.
— A sério? — Surpresa e prazer encheram o rosto de Maggie. Lembrava-a ainda mais
das saudades que tinha de casa. — De que zona?
— Da cidade de Galway. O meu pai era armador. Conheci o Michael através dos
negócios que tinha com o meu pai.
— A minha avó... do lado da minha mãe... era de Galway. — Apesar de na maioria das
vezes Maggie preferir comer a falar, estava a apreciar a combinação de comida e
conversa excelentes. — Viveu lá até casar. Deve ter sido há uns sessenta anos. Era filha
de um comerciante.
— Que engraçado. Como é que se chamava?
— Chamava-se Sharon Feeney antes de casar.
— Sharon Feeney. — Os olhos de Christine começaram a brilhar, de forma tão profunda
e cintilante quanto as suas safiras. — Filha de Colin e da Mary Feeney?
— Sim. Então, conhecia-a?
— Oh, sim. Vivíamos a cinco minutos uma da outra. Eu era um pouco mais nova do que
ela, mas passávamos tempo juntas. — Christine piscou o olho a Maggie, olhando depois
para Rogan, tentando que ele entrasse na conversa. — Estava loucamente apaixonada
pelo tio-avô da Maggie, Niall, e usava a Sharon descaradamente para estar perto dele.
— Tenho a certeza que não precisavas de fazer muito para teres a atenção de qualquer
homem, — comentou Rogan.
— Oh, as tuas palavras são muito doces. — Christine riu-se e deu umas palmadinhas na
mão dele. — Tenha cuidado ao pé dele, Maggie.
— Comigo não costuma gastar muito açúcar.
— Sabes que se dissolve com vinagre, — retorquiu Rogan num tom bastante
prazenteiro.
Decidida a ignorá-lo, Maggie voltou a atenção para Christine. — Há anos que não vejo
o meu tio, mas ouvi dizer que quando era novo, era um homem bem bonito, que tinha
muito jeito com as senhoras.
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— Era pois, e tinha com certeza. — Christine riu-se de novo, num tom jovem e alegre.
— Passei muitas noites a sonhar com o Niall Feeney quando era nova. A verdade é
que... — dirigiu o olhar brilhante para Rogan, com uma ponta de engano que Maggie
admirava — ...se o Michael não tivesse aparecido e não me tivesse arrebatado, tinha
lutado até à morte para casar com o Niall. Interessante, não é? Vocês dois podiam ser
primos se as coisas tivessem corrido de outra forma.
Rogan olhou de soslaio para Maggie, levantando o copo de vinho. Só conseguia pensar
no horror. No absoluto horror.
Maggie guinchou e mexeu a sopa. — Sabe que o Niall nunca se casou e vive solteiro em
Galway, Sra. Sweeney, você partiu-lhe o coração.
— Gosto de pensar que sim. — A beleza profunda, tão evidente no rosto de Christine
Sweeney, foi realçada por um rubor subtil. — Mas a triste verdade é que o Niall nunca
reparou em mim.
— Era cego, então? — Perguntou Rogan, ganhando um sorriso cintilante da avó.
— Não era cego. — Maggie suspirou devido ao aroma do prato de peixe que fora
colocado à sua frente. — Mas talvez fosse um homem mais tolo do que a maioria.
— E diz que nunca se casou? — A pergunta de Christine, reparou Rogan, com o
sobrolho ligeiramente carregado, parecia demasiado casual.
— Nunca. A minha irmã tem trocado correspondência com efe. — Uma faísca atrevida
brilhava no olhar de Maggie. — Vou-lhe pedir que a mencione na próxima carta. Vamos
ver se a memória dele está melhor do que as decisões da juventude.
Apesar de o sorriso dela ser algo sonhador, Christine abanou a cabeça. — Já passaram
cinquenta anos desde que troquei Galway por Dublin, e pelo Michael. Doce Mary.
A ideia dos anos a passar trouxe uma leve tristeza, a mesma que poderia sentir ao avistar
um navio a sair do porto. Ainda sentia falta do marido, apesar de ele ter morrido há mais
de doze anos. Num gesto automático que Maggie achou comovente, Christine pousou a
mão em cima da mão do Rogan.
— A Sharon casou-se com um hoteleiro, não foi?
— Foi, sim, e ficou viúva nos últimos dez anos da vida dela.
— Que pena. Mas tinha a filha para a consolar.
— A minha mãe. Mas não sei se foi de grande consolo. — Os restos de amargura
interferiram com o sabor delicado da truta na boca de Maggie. Lavou-os com o vinho.
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— Escrevemo-nos durante vários anos depois da Sharon casar. Ela tinha muito orgulho
na menina dela. Maeve, não é?
— Sim. — Maggie tentou imaginar a mãe uma menina, mas não conseguiu.
— Uma criança adorável, disse-me a Sharon, com um fantástico cabelo louro. Tinha um
temperamento dos diabos, segundo ela, e uma voz de anjo.
Maggie engoliu à pressa, engasgando-se. — Uma voz de anjo? A minha mãe?
— Sim. A Sharon dizia que ela cantava como uma santa e que queria ser profissional.
Acredito que chegou a ser, por uns tempos. — Christine fez uma pausa, para pensar,
enquanto Maggie se limitava a olhar. — Sim, sei que foi. Aliás, ela foi a Gort cantar,
mas eu não consegui ir vê-la. Tinha uns recortes que a Sharon me mandou, já devem ter
passado uns bons trinta anos. — Sorriu, curiosa. — Ela já não canta?
— Não. — Maggie deixou sair um ligeiro suspiro abafado. Nunca ouvira a mãe levantar
a voz para outra coisa que não fosse queixume ou crítica. Cantora? Profissional, com
uma voz de anjo? Deviam estar a falar de pessoas distintas.
— Bom, — prosseguiu Christine, — imagino que foi feliz ao constituir família?
Feliz? Decerto que era uma Maeve Feeney Concannon diferente da que a criara. —
Acho que sim, — disse Maggie, lentamente, — fez as opções dela.
— Como todos nós. Sharon fez as dela ao casar e partir de Galway. Devo dizer que senti
muito a falta dela, mas ela amava o seu Johnny e o hotel.
Com um esforço, Maggie deitou os pensamentos em relação à mãe para trás das costas.
Mais tarde haveria de os ir buscar, com cautela. — Lembro-me do hotel Gran’s da
minha infância. Eu e a Brie trabalhámos lá num Verão, éramos miúdas. Nas limpezas e a
fazer recados. Não gostei muito.
— Uma sorte para o mundo da arte.
Maggie reconheceu o elogio de Rogan. — Talvez, mas para mim foi de certeza um
alívio.
— Nunca te perguntei como é que te interessaste por vidro.
— A mãe do meu pai tinha uma jarra... de vidro veneziano, em forma de flûte, de um
verde pálido e esfumado. Da cor das folhas novas. Achei-a a coisa mais linda que já
tinha visto. Ela disse-me que fora feita com sopro e fogo. — Maggie sorriu ao
recordar--se, perdendo-se no momento, tanto que os olhos se tornaram tão nebulosos
quanto a jarra que descrevera. — Era como um conto de fadas. Através do sopro e do
fogo, criar algo que se podia segurar nas mãos. Então, ela deu-me um livro que tinha
fotografias de uma casa vidreira, dos trabalhadores, dos tubos, das fornalhas. Acho que,
a partir desse momento, não havia mais nada que eu quisesse tanto quanto fazer as
minhas peças.
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— Foi o mesmo com o Rogan, — murmurou Christine. — Muito jovem ainda, já estava
bastante seguro do que queria da vida. — Deixou que o olhar passeasse da Maggie para
o neto, e outra vez para ela. — E agora vocês encontraram-se.
— Parece que sim, — concordou Rogan, tocando para que trouxessem o prato seguinte.
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CAPÍTULO OITO
Maggie não conseguia ficar longe da galeria. Não parecia haver motivo nenhum para
ficar. Joseph e o resto da equipa eram bastante acolhedores, chegando até a pedir-lhe a
opinião sobre algumas exposições.
Por muito que lhe tivesse agradado, não conseguia superar o instinto que Rogan tinha
para os pormenores e o posicionamento. Deixou que os funcionários cumprissem as
ordens dele e acomodou-se discretamente, fazendo esboços das obras de arte nativas
americanas.
Sentia-se fascinada: os cestos e os adornos para a cabeça, as contas meticulosas, as
máscaras de rituais intrincadas. Ideias e visões assolavam-lhe a mente como gazelas,
saltando, voando, obrigando-a a passá-las para o papel.
Preferia embrenhar-se no trabalho a qualquer outra coisa. Sempre que levava tempo
demais a pensar, a mente dela voltava ao que Christine lhe contara sobre Maeve.
Quantas camadas, perguntava-se, estariam abaixo da superfície das vidas dos pais que
ela ignorava? A mãe com uma carreira, o pai que amava outra mulher. E os dois
encurralados, por causa dela, numa prisão que lhes negara os desejos mais íntimos.
Decidira não procurar mais e, contudo, tinha medo, medo que o que descobrisse só lhe
provasse ainda mais que não conhecera mesmo as pessoas que a haviam criado. Não os
conhecera de todo.
Por isso, ignorou essa necessidade e atacou a galeria. Como ninguém levantara
objecções, usou o escritório de Rogan como estúdio temporário. A luz era boa e como a
sala estava aninhada nas traseiras do edifício, raramente a perturbavam. Espaçosa é que
não era nada. Era óbvio que Rogan decidira usar todos os espaços que conseguisse
encontrar para expor arte.
Ela não poderia discutir com uma decisão daquelas.
Tapou a secretária de nogueira brilhante com uma folha de plástico e grossas folhas de
jornais. Os esboços a carvão e lápis que fizera eram apenas o começo. Trabalhava agora
juntando laivos de cor. Escolhera alguns acrílicos numa loja perto da galeria, mas
muitas vezes a sua impaciência com as imperfeições dos materiais obrigara-a a usar
outros que estivessem mais à mão, mergulhando o pincel em borras de café e cinzas das
beatas, ou a desenhar linhas mais ousadas com baton ou lápis para os olhos.
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Considerava os seus esboços um mero primeiro passo. Ao mesmo tempo que se achava
uma artesã bastante boa, Maggie nunca haveria de ser mestre na arte do pincel e da
tinta. Tratava-se apenas de uma forma de manter a visão viva da concepção à execução.
O facto de Rogan ter conseguido que vários dos seus esboços fossem emoldurados e
pendurados para a exposição, envergonhava-a mais do que lhe agradava.
Ainda assim, lembrava-se que as pessoas comprariam qualquer coisa se as
convencessem da sua qualidade e valor.
Tornara-se cínica, pensava, franzindo os olhos ao estudar o seu trabalho. E calculista
também, a amealhar lucros antes de os concretizar. Deus a ajudasse, deixara-se apanhar
na teia de sonhos que Rogan tecera, sabendo que ia odiar-se, ainda mais do que o odiava
a ele, se voltasse para casa fracassada.
Será que o fracasso lhe corria nas veias? Perguntava-se. Seria como o pai, falhando a
atingir um objectivo de extrema importância para ela? Estava tão embrenhada no
trabalho e nos seus pensamentos mais tenebrosos, que assobiou de surpresa e irritação
quando a porta do escritório se abriu.
— Saia! Saia! Será que tenho de trancar a maldita porta?
— Tiraste-me as palavras da boca. — Rogan fechou a porta atrás de si. — Que raio é
que estás a fazer?
— Uma experiência de física nuclear, — explodiu ela. — O que é que te parece? —
Frustrada pela interrupção, soprou a franja dos olhos e fitou-o. — O que é que estás a
fazer aqui?
— Parece que esta galeria, que inclui este escritório, me pertence.
— Como me poderia esquecer. — Maggie mergulhou o pincel numa mistura de tinta
que espalhara numa velha tábua. — Não, quando as primeiras palavras que saem da
boca de toda a gente aqui são Sr. Sweeney isto, e Sr. Sweeney aquilo. — Inspirada por
este pequeno prelúdio verbal, coloriu o papel grosso que prendera a outra tábua.
Enquanto o fazia, o olhar dele desceu do seu rosto para as mãos, deixando-o por
momentos sem palavras. — O que é que estás a magicar? — Abismado, debruçou-se. A
sua preciosa e bem-amada secretária estava coberta de jornais sujos de tinta, frascos
com pincéis e, a não ser que ele se tivesse enganado no cheiro intenso, garrafas de
aguarrás. — És louca. Tens noção que esta secretária é uma Jorge II?
— É uma peça robusta, — respondeu ela, sem respeito algum pelo rei inglês falecido.
— Estás a tapar-me a luz. — Distraída, acenou-lhe com a mão salpicada de tinta. Ele
evitou-a por instinto. — E está bem protegida, — acrescentou. — Pus uma folha de
plástico por baixo do jornal.
— Bom, assim já não há qualquer problema. — Agarrou uma mão cheia de cabelo dela
e apertou, ferozmente. — Se querias uma porcaria de um estirador, — disse, ao ficarem
nariz com nariz, — tinha-te arranjado um.
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— Senhora, — retorquiu Patrícia com o sorriso mais vago. — Mas, por favor, chame-
me Patrícia.
Como uma rosa única emoldurada, pensava Maggie, Patrícia Hennessy era encantadora,
delicada e perfeita. Achava também, ao estudar o seu rosto oval elegante, que era
infeliz. — Não vos quero empatar mais. Tenho a certeza que quer falar a sós com o
Rogan.
— Não se apressem por minha causa. — O sorriso da Patrícia esboçou-lhe uma curva
nos lábios, mas mal lhe tocou nos olhos.
— Estive lá em cima com o Joseph, a admirar o seu trabalho. Tem um talento incrível.
— Obrigada. — Maggie arrancou o lenço que Rogan tinha no bolso.
— Não... — A ordem morreu nos lábios dele enquanto ela mergulhava o linho irlandês
em aguarrás. Com algo que se assemelhava a um rosnar, ele tirou-lho e esfregou os
vestígios de tinta das mãos. — O meu escritório parece ter sido temporariamente
transformado nas águas-furtadas de um artista.
— Nunca na minha vida trabalhei numas águas-furtadas, — anunciou Maggie,
deliberadamente a acentuar o sotaque irlandês. — Irritei-o por ter conspurcado solo
consagrado, como pode ver. Se já conhece o Rogan há algum tempo, vai reconhecer que
ele é um homem picuinhas.
— Não sou picuinhas, — disse ele entre dentes.
— Oh, claro que não. — Respondeu Maggie, revirando os olhos. — É um homem
selvagem, tão imprevisível quanto as cores da aurora.
— Sentido de organização e controlo geralmente não é considerado um defeito.
Normalmente uma total falta dele é que é.
Haviam-se voltado um para o outro de novo, de forma efectiva, sem intenção, deixando
Patrícia de parte, apesar de estarem numa sala pequena. Sentia-se a tensão no ar, e isso
era óbvio para Patrícia. Não conseguia esquecer a altura em que ele a desejara
intensamente. Não conseguia esquecer porque estava apaixonada por Rogan Sweeney.
— Desculpa se vim em má altura. — Detestava que a sua voz parecesse rígida e formal.
— De maneira nenhuma. — O esgar de Rogan transformou-se facilmente num sorriso
sedutor quando se voltou para ela. — É sempre um prazer ver-te.
— Passei por cá pensando que estarias despachado do trabalho por hoje. Os Carneys
convidaram-me para beber um copo e gostava que te juntasses a nós.
— Desculpa, Patrícia. — Rogan desceu o olhar para o lenço estragado, para depois o
largar em cima das folhas de jornal espalhadas. — Com a exposição amanhã, tenho um
monte de pormenores a verificar.
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103
Ela era, pensou ele, exasperante, a mulher mais maldita. — Esta conversa é ridícula e
tenho muito trabalho à minha espera.
Foi algo cativante, a forma como a voz dele conseguiu adquirir um tom formal. — E a
culpada sou eu, por isso talvez seja melhor não te empatar mais. Vou espalhar estes
desenhos na cozinha a secar, se não te importares.
— Desde que não fiquem no meu caminho. — E quem os fez também, pensou.
Cometeu o erro de olhar para baixo, concentrando-se. — O que é que temos aqui?
— Uma certa confusão, como tu próprio disseste, mas vou limpar tudo num instante.
Sem dizer palavra, ele pegou num dos desenhos dela pelas extremidades. Conseguia ver
claramente o que a inspirara, como tencionava aplicar a arte nativa americana e
transformá-la em algo ousado e unicamente próprio dela.
Não importava o quanto ou como ela o exasperava, de todas as vezes ele ficava
abismado com o seu talento.
— Vejo que não perdes tempo.
— É uma das poucas coisas que temos em comum. Queres dar-me a tua opinião?
— Acho que compreendes o orgulho e a beleza muito bem.
— Um bom elogio, Rogan. — Ela sorriu, ao fazer o comentário. — Muito bom.
— O teu trabalho expõe-te, Maggie, tornando-te ainda mais confusa. Sensível e
arrogante, compassiva, impiedosa. Sensual e única.
— Se queres dizer que sou inconstante, não vou discutir. — Sentiu de novo aquele
impacto, rápido e doloroso. Perguntava-se se algum dia ele olharia para ela como olhava
para as suas obras. E no que surgiria entre os dois quando, e se, isso acontecesse. —
Não vejo isso como um defeito.
— Só torna mais difícil viver contigo.
— Ninguém tem de passar por isso, excepto eu mesma. — Ergueu uma mão,
desconcertando-o ao passá-la pelo rosto dele abaixo. — Estou a pensar em dormir
contigo, Rogan, e ambos sabemos disso. Mas eu não sou a tua certinha Sra. Hennessy, à
procura da orientação de um marido.
Ele enrolou os dedos à volta do pulso dela, surpreso e sombriamente satisfeito ao ver
que o pulso dela batia descompassado. — Andas à procura de quê?
Devia ter uma resposta. Devia tê-la na ponta da língua. Mas perdera-a algures entre a
pergunta e a batida forte e rápida do próprio coração.
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— Assim que descobrir, digo-te. — Inclinou-se para a frente, apoiada nos bicos de pés
para passar a boca pela dele. — Por agora isto basta.
Tirou-lhe o desenho e recolheu os restantes.
— Margaret Mary, — disse ele, quando ela se dirigiu para a porta.
— Se fosse a ti, limpava a tinta da cara.
Ela torceu o nariz, entortando os olhos para ver as manchas vermelhas. — Raios partam,
— rezingou, batendo com a porta ao sair.
A despedida pode ter amaciado o orgulho dele, mas não estava seguro e temia
amargamente que ela o conseguisse rejeitar com tão pouco esforço. Simplesmente não
havia tempo para as complicações que ela causaria na sua vida pessoal. Caso houvesse,
bastaria arrastá-la para uma qualquer sala silenciosa e despejar toda a frustração, luxúria
e fome louca para dentro dela, até atingir a purificação.
Era certo que já assumira o controlo dela por uma vez, ou pelo menos da situação, por
isso, agora voltaria a encontrar o equilíbrio.
Mas havia prioridades, sendo a primeira, por contrato legal e obrigação moral, a arte
dela.
Desceu o olhar até um dos desenhos que ela esquecera. Parecia feito à pressa, com uma
falta de cuidado brilhante, com pinceladas céleres e cores ousadas, exigindo atenção.
Como a própria artista, era impossível de ignorar.
Deliberadamente, ele voltou-lhe as costas e começou a caminhar para sair. Mas a
imagem permanecia, assolando-lhe o cérebro tal como o gosto dela permanecera,
assolando-lhe os sentidos. — Sr. Sweeney. Senhor.
Rogan parou na sala principal, soltando um suspiro. O homem magro e grisalho que ali
estava, segurando um portefólio desfeito, conhecia-o bem.
— Aiman. — Cumprimentou o homem mal vestido de forma tão educada, como se ele
fosse um cliente coberto de sedas. — Há muito tempo que não te via.
— Tenho andado a trabalhar. — Um tique nervoso apoderou-se do olho esquerdo de
Aiman. — Tenho muito trabalho novo, Sr. Sweeney.
Talvez tivesse andado a trabalhar, pensou Rogan. Era certo que estivera a beber. Os
sinais estavam todos lá, as maçãs do rosto ruborizadas, os olhos raiados de vermelho, as
mãos trémulas. Aiman mal chegara aos trinta anos, mas a bebida tornara-o velho, frágil
e desesperado.
Permaneceu do lado de dentro da porta, desviado para o lado, para que os visitantes da
galeria não se distraíssem com a sua presença. Os olhos suplicavam a Rogan. Enrolava e
desenrolava os dedos à volta do velho portefólio de cartão.
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— Gostaria muito que tivesse tempo de dar uma olhadela, Sr. Sweeney.
— Tenho uma exposição amanhã, Aiman. Das grandes.
— Eu sei. Li no jornal. — Nervoso, Aiman lambeu os lábios. Gastara o único dinheiro
que ganhara a vender na rua no pub, na noite anterior. Sabia que era de loucos. Pior
ainda, sabia que era estúpido. Agora, precisava desesperadamente de cem libras para a
renda, senão ia parar ao meio da rua dentro de uma semana.
— Posso deixá-los aqui, Sr. Sweeney. Volto na segunda-feira. Fiz... fiz algumas coisas
bem boas. Queria que fosse o primeiro a ver.
Rogan não perguntou se Aiman não tinha dinheiro. A resposta era óbvia e a pergunta só
iria humilhá-lo. Outrora, revelara-se uma esperança, recordava Rogan, antes de o medo
e de o uísque darem cabo dele.
— O meu escritório de momento está a rebentar pelas costuras, — disse Rogan, meigo.
— Vamos até lá acima para eu ver o que trazes aí.
— Obrigado. — Os olhos raiados de sangue de Aiman brilharam com um sorriso, de
esperança tão patética quanto as lágrimas. — Obrigado, Sr. Sweeney. Não lhe vou tomar
muito tempo. Prometo.
— Ia agora mesmo beber um chá. — Discretamente, Rogan deu o braço a Aiman para o
apoiar enquanto subiam as escadas. — Quer fazer-me companhia enquanto vemos o seu
trabalho?
— Teria muito gosto, Sr. Sweeney.
Maggie escondeu-se para que Rogan não a visse a observá-los, ao dar a curva das
escadas. Ela tivera a certeza, certeza absoluta, que ele ia escorraçar o desgraçado do
artista porta fora. Ou, pensou, pediria a algum dos seus subalternos para fazer o trabalho
sujo. Em vez disso, convidara o homem para tomar chá e guiara-o escada acima, como
um convidado bem-vindo.
Quem diria que Rogan Sweeney albergava tamanha bondade dentro dele?
Compraria alguns dos quadros também, percebeu ela. O suficiente para que o artista
mantivesse o seu orgulho, bem como uma ou duas refeições no estômago. O gesto foi
mais impressionante para ela, mais importante do que uma dúzia de concessões e
donativos que imaginava a Worldwide fazia anualmente.
Ele importava-se. Esta concretização envergonhava-a tanto quanto lhe agradava. Ele
importava-se da mesma forma com as mãos humanas que criavam a arte como com a
própria arte.
Regressou ao escritório dele para o arrumar, bem como tentar assimilar esta nova faceta
de Rogan com todas as outras.
…
106
Vinte e quatro horas depois, Maggie estava sentada à beira da cama no quarto de
hóspedes de Rogan. Tinha a cabeça entre os joelhos e amaldiçoava-se por estar
terrivelmente mal-disposta. Era humilhante admitir, até para si mesma, que os nervos a
podiam dominar. Mas era impossível negá-lo, com o horrível sabor do vómito ainda na
garganta e o corpo a tremer de arrepios.
Não importava, tentava convencer-se. Não importava nada o que eles iam pensar. O que
conta é o que eu penso.
Oh Deus, oh Deus, porque é que me deixei arrastar para isto?
Com respirações longas e profundas, levantou a cabeça. Uma onda de tonturas atingiu-
a, levando-a a ranger os dentes. No espelho alto giratório do outro lado do quarto, foi
confrontada com a sua própria imagem.
Apenas trazia vestida a roupa interior, a pele branca contrastando drasticamente por
baixo das rendas pretas que escolhera. O rosto ostentava um ar pastoso, os olhos raiados
de vermelho. Deixou escapar um gemido arrepiante ao voltar a baixar a cabeça.
Estava num estado lastimável. Só ia fazer figura de idiota. Era feliz em Clare, não era?
Era lá que pertencia, sozinha e livre. Apenas ela e os seus vidros, com os campos
silenciosos e as neblinas matinais. Era lá que estaria, se não fosse Rogan Sweeney cheio
de palavrinhas mansas convencendo-a a partir.
Era o demónio, pensava, esquecendo de forma bastante conveniente que começara a
mudar de ideias acerca dele. Era um monstro, que perseguia artistas inocentes para levar
a cabo as próprias ambições. Haveria de lhe chupar o tutano, para depois a deitar fora
como um tubo de tinta vazio.
Se tivesse forças para o enfrentar, já o tinha assassinado.
Quando um suave bater soou na porta, ela fechou os olhos com força. Vá-se embora,
gritou ela mentalmente. Vá-se embora e deixe-me morrer em paz.
Bateram outra vez, seguindo-se uma pergunta serena. — Maggie, querida, já está quase
pronta? — Era a Sra. Sweeney.
Maggie pressionou as palmas das mãos nos olhos doridos e abafou um grito. — Não,
não estou. — Lutou para que a voz soasse seca e decidida, mas saiu num gemido. —
Nem sequer vou sair.
Com a leveza da seda, Christine deslizou para dentro do quarto. — Oh, querida. —
Imediatamente maternal, foi ter com Maggie e pôs o braço por cima dos ombros dela.
— Está tudo bem, querida. São só nervos.
— Estou bem. — Mas Maggie deixou o orgulho de lado e virou o rosto para o ombro de
Christine. — Só não vou.
107
— Claro que vai. — Animada, Christine levantou o rosto de Maggie, colocando-o ao
nível do dela. Sabia exactamente que cordelinhos tinha de puxar, e assim fez,
impiedosamente. — Não quer que pensem que tem medo, pois não?
— Não tenho medo. — Maggie ergueu o queixo, mas a náusea subiu como azeite no
estômago. — Apenas não estou interessada.
Christine sorriu, afagou o cabelo de Maggie e esperou.
— Não os consigo encarar, Sra. Sweeney, — deixou sair. — Não consigo. Vou
humilhar-me e odeio isso mais do que tudo. Preferia que me enforcassem.
— Compreendo perfeitamente, mas não vai nada humilhar-se. — Pegou na mão gelada
de Maggie. — É verdade que você está tanto em exposição quanto o seu trabalho. É
essa a tolice do mundo das artes. Vão ficar intrigados consigo, falar de si e especular.
Deixá-los.
— Não é só isso... embora seja uma parte. Não estou habituada a que fiquem intrigados
comigo e não me parece que vá gostar, mas é o meu trabalho... — Apertou os lábios. —
É o que tenho de melhor, Sra. Sweeney. Se acharem que vale a pena. Se não for
suficientemente bom...
— O Rogan acha que é.
— Percebe lá ele, — murmurou Maggie.
— É verdade. Ele percebe. — Christine inclinou a cabeça. A pequena precisava de ser
apaparicada, decidiu. Apaparicar nem sempre era simpático. — Quer que desça e lhe
diga que está demasiado receosa, demasiado insegura para estar presente na exposição?
— Não! — Desamparada, Maggie tapou a cara com as mãos. — Ele encurralou-me.
Aquele homem víbora. — O ganancioso maldito... desculpe. — Começando a ficar
dura, Maggie baixou as mãos.
Christine obrigou-se a abafar o riso. — Não faz mal, — disse ela, sobriamente. —
Agora, espere aqui que vou lá abaixo dizer ao Rogan para começar sem nós. Já cavou
uma trincheira no corredor de tanto andar de um lado para o outro.
— Nunca vi ninguém tão obcecado com as horas.
— É uma mania dos Sweeney. O Michael enlouqueceu-me com isso, que Deus o tenha.
— Deu umas palmadinhas na mão de Maggie. — Volto já para a ajudar a vestir-se.
— Sra. Sweeney. — Desesperada, Maggie puxou a manga de Christine. — Não lhe
podia apenas dizer que morri? Podiam transformar a exposição num lindo velório.
Segundo a regra, um artista morto é mais lucrativo do que vivo.
— Está a ver? — Christine soltou os dedos de Maggie, que a apertavam. — Já se sente
bem melhor. Agora despache-se e vá lavar a cara.
108
— Mas...
— Hoje estou a substituir a sua avó, — disse Christine, com firmeza. — Acho que a
Sharon haveria de querer que assim fosse. E eu disse para ir lavar a cara, Margaret
Mary.
— Sim, senhora. Sra. Sweeney? — Sem sítio para onde fugir, Maggie levantou-se ainda
a tremer. — Não lhe vai contar... quero dizer, agradecia que não dissesse ao Rogan que
eu...
— Numa das noites mais importantes da sua vida, uma mulher tem direito a demorar a
vestir-se.
— Também acho. — Um sorriso vago desenhou-se nos lábios de Maggie. — Faz-me
parecer uma idiota frívola, mas antes isso do que a alternativa.
— Deixe o Rogan comigo.
— Só há mais uma coisa. — Viera a adiar isto, admitiu Maggie. Era melhor encará-lo
agora, que se sentia o mais em baixo possível. — Acha que consegue encontrar aqueles
recortes de que falou? Aqueles sobre a minha mãe?
— Acho que sim. Até já devia ter pensado nisso. Claro, havia de gostar de lê-los.
— Sim, gostaria. Agradeço-lhe imenso.
— Vou arranjá-los para si. Agora componha o rosto. Eu empato o Rogan. — Lançou um
sorriso arrasador a Maggie antes de fechar a porta.
Quando Christine o encontrou, Rogan ainda andava furiosamente de um lado para o
outro no foyer. — Onde diabo é que ela está? — Exigiu saber no momento em que
avistou a avó. — Há duas horas que está lá em cima a enfeitar-se.
— É claro que está. — Christine esboçou um gesto grandioso. — A impressão que
deixar esta noite é vital, não é?
— É importante, naturalmente. — Se desse uma impressão errada, os sonhos dele
escorreriam pelo cano abaixo juntamente com os de Maggie. Ele precisava dela ali,
agora, e pronta para arrasar. — Mas porque é que demora tanto? Só tem de se vestir e
arranjar o cabelo.
— És solteiro há demasiado tempo, meu querido, se acreditas piamente num disparate
desses. — Afectuosa, Christine esticou o braço para lhe ajeitar a gravata, já perfeita. —
Mas que bonito ficas de fato.
— Avó, estás a fazer tempo.
— Não, nada disso. — Radiante, limpou-lhe as lapelas impecáveis. — Só vim cá abaixo
dizer-te para ires andando sem nós. Assim que a Maggie estiver pronta, vamos lá ter.
— Ela já devia estar pronta.
— Mas não está. Além disso, que impacto teria se ela chegasse um pouco tarde e fizesse
uma entrada triunfal? Sei que gostas do drama desse tipo de acontecimento, Rogan.
109
Havia alguma verdade naquilo. — Então, está bem. — Olhou para o relógio,
praguejando um pouco. Se não saísse dentro de um minuto, era certo que chegaria
atrasado. Era responsabilidade sua aparecer, recordava-se, para tratar de pormenores de
última hora, por mais que quisesse esperar para ser ele a acompanhar Maggie até à
galeria. — Deixo-a nas tuas mãos mais do que habilitadas. O carro volta para vos
apanhar assim que eu chegar. Vê se ela chega dentro de uma hora, está bem?
— Podes contar comigo, querido.
— Conto sempre. — Beijou-a na face, recuando. — Já agora, Sra. Sweeney, ainda não
lhe disse o quanto está bonita.
— Pois não. Fiquei bastante decepcionada.
— Como sempre, serás a mulher mais linda na galeria.
— Apoiado. Agora, despacha-te e deixa a Maggie comigo.
— Com prazer. — Lançou um olhar escada acima ao dirigir-se para a porta. Não foi um
olhar gentil. — Desejo-te boa sorte com ela.
Enquanto a porta se fechava, Christine soltou um suspiro. Era possível que precisasse de
toda a sorte que conseguisse.
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CAPÍTULO NOVE
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— Não era bem essa a palavra que escolheria, mas sim, aprovo.
Nessa altura, ela sorriu. — Estavas com medo que viesse de botas e jeans rasgados.
— Não com a minha avó de guarda.
— Ela é a mulher mais maravilhosa do mundo. Tens muita sorte em tê-la.
A força emocional da afirmação, mais do que as palavras, levou Rogan a estudá-la com
curiosidade. — Eu sei disso.
— Não deves saber. A sério que não, uma vez que nunca te viste privado dela. —
Respirou fundo. — Bom. — Já se sentiam imensos olhos sobre ela, dúzias deles,
brilhando de curiosidade. — Tenho de entrar na boca do lobo, não é? Não te preocupes,
— disse ela, sem lhe dar oportunidade para falar. — Vou comportar-me. O meu futuro
depende disso.
— Isto é apenas o começo, Margaret Mary.
Enquanto ele a levava pela sala, no meio de luz e cor, ela já receava que ele tivesse
razão.
E ela comportou-se. A noite parecia correr bem, com apertar de mãos, aceitação de
elogios, respostas a perguntas. A primeira hora passara a correr como num sonho, entre
o glamour do vinho, o brilho das taças e o reluzir das jóias. Era fácil andar à deriva,
Maggie sentindo-se um pouco arredada da realidade, algo desligada, tanto quanto um
actor numa peça de produção sumptuosa.
— Esta, ah esta. — Um homem careca, com um bigode pendente e sotaque britânico
exagerado, comentava uma peça. Apresentava uma série de hastes azuis brilhantes
presas a um globo de vidro transparente. — Chamou-lhe Aprisionados. A sua
criatividade, a sua sexualidade, numa luta para se libertarem. A eterna contenda do
Homem, afinal de contas. É triunfante, assim como a sua melancolia.
— São os seis condados, — disse Maggie, com simplicidade.
O homem careca pestanejou. — Perdão?
— Os seis condados da Irlanda, — repetiu com um brilho rebelde e travesso no olhar.
— Aprisionados.
— Estou a ver.
Ao lado deste aspirante a crítico, Joseph abafou uma gargalhada. — Acho o uso da cor
aqui bastante impressionante, Lorde Whitfield. A sua transparência cria uma tensão por
resolver entre a delicadeza e a ousadia da peça.
— Exactamente. — Acenou Lorde Whitfield, pigarreando. — Realmente extraordinária.
Com a vossa licença.
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Maggie observou-o a bater em retirada com um largo sorriso. — Bom, acho que ele não
vai a correr comprá-la para a pôr no seu covil, não acha, Joseph?
— Que mulher malvada, Maggie Concannon.
— Sou irlandesa, Joseph. — Piscou-lhe o olho. — Das rebeldes.
Ele riu-se com prazer e, passando-lhe o braço pela cintura, acompanhou-a pela sala. —
Ah, Sra. Connelly. — Joseph apertou Maggie ligeiramente para lhe fazer sinal. —
Maravilhosa, como sempre.
— Joseph, tem sempre uma palavra doce. E aqui... — Anne Connelly desviou a atenção
de Joseph, que considerava ser um mero factoto de Maggie. — Aqui temos a força
criadora. Estou encantada em conhecê-la, minha querida. Sou a Sra. Dennis Connelly...
Anne. Penso que conheceu a minha filha, Patrícia, ontem.
— Sim, conheci. — Maggie achou o aperto de mão de Anne tão delicado e macio
quanto um pincel de cetim.
— Ela deve andar por aí com o Rogan. Fazem um lindo casal, não acha?
— Deveras. — Maggie ergueu o sobrolho. Conhecia um aviso quando o ouvia. — Mora
em Dublin, Sra. Connelly?
— É verdade. Apenas a algumas casas da mansão Sweeney. A minha família faz parte
da sociedade de Dublin há gerações. E você é dos condados do oeste?
— Sim, de Clare.
— Uma paisagem magnífica. Todas aquelas aldeias encantadoras e exóticas, com os
telhados de colmo. Ouvi dizer que na sua família são agricultores? — Anne ergueu a
sobrancelha, obviamente divertida.
— Eram.
— Isto deve ser muito excitante para si, em especial com as suas origens rurais. Tenho a
certeza que apreciou a sua visita a Dublin. Vai regressar em breve?
— Acho que em muito breve.
— Aposto que sente falta do campo. Dublin pode ser bastante confusa para quem não
está habituado à vida na cidade. Quase como uma terra estranha.
— Pelo menos percebo a língua, — disse Maggie, equavelmente. — Espero que tenha
uma noite agradável, Sra. Connelly. Dá-me licença?
Se Rogan pensava que ia vender àquela mulher alguma coisa criada por Maggie
Concannon, pensava Maggie ao afastar-se, estava muito enganado.
Que se lixassem os direitos exclusivos. Preferia partir tudo em bocados até ficar em pó a
ver alguma das peças nas mãos de Anne Connelly.
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Dirigira-se a ela como se fosse uma leiteira saloia com o cabelo cheio de palha.
Refreou o seu mau génio ao sair do salão de baile, na direcção de uma das salas de estar.
Todas estavam apinhadas de gente, a conversar, sentadas, rindo, trocando opiniões sobre
ela. A cabeça começou a palpitar enquanto descia as escadas. Ia até à cozinha buscar
uma cerveja, para ter alguns minutos de paz.
Entrou de rompante, estacando de imediato ao avistar um homem corpulento a fumar
um charuto e a embalar uma pilsner.
— Apanhado, — disse ele, com um sorriso tímido.
— Então já somos dois. Vim cá abaixo buscar uma cervejinha bem calma.
— Eu vou buscar uma. — Galante, aliviou o seu volume da cadeira e tirou uma garrafa.
— Não quer que apague o charuto, pois não?
A súplica na sua voz fê-la rir. — De todo. O meu pai costumava fumar o cachimbo mais
horrível do mundo. Um pivete que subia aos céus. Eu adorava.
— Só pode ser boa rapariga. — Foi buscar a cerveja e um copo. — Odeio estas coisas.
— Esticou o polegar na direcção do tecto. — A minha mulher é que me arrasta.
— Também odeio.
— Mas o trabalho parece-me muito bonito, — comentou ele, enquanto ela bebia. —
Como as cores e as formas. Não que eu perceba alguma coisa disso. A minha mulher é
que é a perita. Mas gostei do que vi, por isso, deve ser suficiente, acho eu.
— E eu também.
— Toda a gente tenta sempre explicar tudo nestes eventos da treta. No que o artista
estava a pensar e tal. Simbolismo. — Enrolou a língua com a palavra, como se fosse
uma iguaria estranha que ainda não estivesse pronto a provar. — Não faço ideia de que
diabo estão a falar.
Maggie decidiu que o homem estava meio bêbedo e que o adorava. — Nem eu.
— É isso! — Ergueu o copo e bebeu de um só trago. — Nem eles. São uns intrujões.
Mas se dissesse isso à Anne, a minha mulher, ela dava-me um daqueles olhares.
Franziu os olhos, baixando as sobrancelhas com ar mal-humorado. Maggie explodiu de
riso.
— Mas afinal, quem é que quer saber o que eles pensam? — Maggie apoiou o cotovelo
na mesa e o queixo no punho. — Até parece que a vida de alguém depende disto. — A
não ser a minha, pensou, afastando o pensamento. — Não acha que acontecimentos
destes são só uma desculpa para as pessoas se arranjarem todas e se armarem em
importantes?
116
— Completamente. — Tão assertivo fora o argumento dele que bateu com o copo com
força no dela. — Quanto a mim, sabe o que queria estar a fazer hoje à noite?
— O quê?
— Estar sentado na poltrona, com os pés na almofada e um uísque irlandês no copo, a
ver televisão. — Suspirou, arrependido. — Mas não podia desiludir a Anne, ou o
Rogan, por assim dizer.
— Então, conhece o Rogan?
— É como se fosse meu filho. Tornou-se num bom homem. Ainda não tinha vinte anos
quando o vi pela primeira vez. Eu e o pai dele tínhamos negócios em comum, e o rapaz
mal podia esperar para se juntar a nós. — Gesticulou vagamente para abarcar a galeria.
— Esperto como um alho.
— Em que negócios trabalha?
— Na banca.
— Desculpem. — Uma voz feminina interrompeu-os. Olharam para ver Patrícia de pé
junto à porta, com as mãos unidas, elegantemente.
— Ah, ali está o meu amor.
Enquanto Maggie observava, de olhos esbugalhados, o homem esforçou-se por sair da
cadeira, enrolando Patrícia num abraço que chegaria para uma mula. A reacção de
Patrícia, em vez de severa rejeição ou fria repulsa, foi uma gargalhada rápida e musical.
— Papá, vais-me partir ao meio.
— Papá? Pensou Maggie. Papá? Era o pai da Patrícia Hennessy? Marido da Anne? Este
homem maravilhoso era casado com aquela... aquela mulher bloco de gelo? Só provava
ainda mais, decidira, que as palavras até que a morte nos separe eram as sílabas mais
idiotas que os seres humanos algum dia foram obrigados a pronunciar.
— Apresento-lhe a minha menina. — Com orgulho óbvio, Dennis fez Patrícia girar. —
Uma beldade, não acha? A minha Patrícia.
— Sim, de facto. — Maggie levantou-se, sorrindo. — Que bom vê-la de novo.
— Igualmente. Parabéns pelo sucesso estrondoso da sua exposição.
— Da sua exposição? — Indagou Dennis, confuso.
— Não nos chegámos a apresentar. — Rindo agora, Maggie deu um passo em frente,
oferecendo a mão a Dennis. — Sou Maggie Concannon, Sr. Connelly.
— Oh. — Por momentos, não disse nada, enquanto moía o cérebro a tentar lembrar-se
se dissera algo insultuoso. — Foi um prazer, — conseguiu dizer, ao mesmo tempo que o
cérebro desistiu.
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— Foi mesmo. Obrigada pelos melhores dez minutos que passei desde que entrei por
aquela porta.
Dennis sorriu. Esta mulher parecia bastante humana, para uma artista. — Gosto muito
das cores e das formas, — comentou, esperançoso.
— Esse é o melhor elogio que já me fizeram a noite toda.
— Papá, a mãe anda à tua procura. — Patrícia limpou a cinza que caíra na lapela dele.
O gesto, que ela usara inúmeras vezes com o pai sem se dar conta, acertara em cheio no
coração de Maggie.
— É melhor ir ter com ela. — Olhou para trás para Maggie e quando ela se riu para ele,
ele devolveu o sorriso. — Espero que nos voltemos a encontrar, Miss Concannon.
— Eu também.
— Não quer subir connosco? — Perguntou Patrícia.
— Não, ainda não, — respondeu Maggie, não querendo socializar mais com a mãe de
Patrícia.
O brilho no olhar desvaneceu-se no momento em que os passos deles desapareceram no
chão polido. Sentou-se, sozinha, no chão da cozinha inundado de luz. Ali havia sossego,
tanto sossego que quase se convencia que o edifício estava completamente vazio, à
excepção dela.
Queria acreditar que estava sozinha. Mais do que isso, queria acreditar que a tristeza que
subitamente sentira era apenas porque sentia falta da solidão dos seus campos verdes e
das colinas silenciosas, as horas intermináveis de silêncio, apenas com o rumor da
fornalha e da sua própria imaginação que a guiava.
Mas não era só isso. Nesta noite, uma das mais maravilhosas da sua vida, não tinha
ninguém. Nenhuma das pessoas tagarelas e fabulosas que estavam lá em cima a
conhecia, se preocupava com ela, a compreendia. Não havia ninguém lá em cima à
espera de Maggie Concannon.
Tinha-se a si própria, pensou, levantando-se. E era só isso que era preciso. O seu
trabalho fora bem recebido. Não era difícil decifrar todas aquelas frases extravagantes e
pomposas. A tribo de Rogan gostava do que ela fazia, e isso era o primeiro passo.
Estava bem encaminhada, dizia de si para si enquanto saía da cozinha. Apressava-se a
calcorrear o caminho que levava à fama e fortuna, o caminho que escapara aos
Concannon nas últimas duas gerações. E faria tudo sozinha.
A luz e a música cintilavam pela escadaria abaixo como pozinhos de perlimpimpim ao
longo da curva de um arco-íris. Parou ao fundo da escada, a mão agarrando o corrimão
com força, o pé no primeiro degrau. Depois, com um trejeito, virou-se para sair
rapidamente, para a escuridão exterior.
118
…
Quando o relógio bateu a uma, Rogan deu um puxão na gravata preta elegante e
praguejou. Raio da mulher, pensou, ao caminhar pela saleta escura, merecia que a
matassem. Desvanecera-se como fumo no meio de uma festa apinhada de gente,
organizada em seu benefício. Havia-o deixado, lembrava-se com um ressentimento em
ebulição, a inventar desculpas idiotas.
Devia saber que não era de esperar que uma mulher com um temperamento daqueles se
comportasse de forma razoável. Era óbvio que não lhe deveria ter dado um destaque tão
proeminente nas suas próprias ambições, nas esperanças que almejava para o futuro dos
seus negócios.
Como raio esperaria construir uma galeria dedicada à arte irlandesa, quando a primeira
artista irlandesa que seleccionara pessoalmente, bem apresentada e exposta, fugira da
sua própria inauguração como uma criança irresponsável?
Agora já a noite ia a meio e ele não soubera nada dela. O sucesso maravilhoso da
exposição, a sua própria satisfação de um trabalho bem feito, estavam ensombrados
como o precioso céu do condado do oeste, de onde ela vinha. Agora, só podia esperar.
E preocupar-se.
Ela não conhecia Dublin. Com toda a sua beleza e encanto, também havia zonas
perigosas para uma mulher sozinha. E havia sempre a possibilidade de acontecer um
acidente — só de pensar nisso, abateu-se sobre ele uma dor de cabeça esmagadora, na
nuca.
Já fora duas vezes para junto do telefone, para ligar aos hospitais quando ouviu o trinco
da porta de entrada. Deu meia volta e apressou-se para o corredor.
Estava a salvo e, debaixo da luz do candelabro do foyer, conseguia ver que nada de mal
lhe tinha acontecido. Visões de assassinatos assolaram-lhe a cabeça a latejar.
— Onde raio é que andaste?
Ela esperava que ele tivesse ido sair para algum clube da alta-roda, brindar com uns
amigos. Mas como não o fizera, ofereceu-lhe um sorriso e encolheu os ombros. — Oh,
por aí. A tua Dublin é uma linda cidade à noite.
Enquanto a fitava, cerrou as mãos num punho firme. — Queres dizer que andaste a
fazer turismo até à uma da manhã?
— Já é assim tão tarde? Devo ter perdido a noção das horas. Bom, então talvez seja
melhor dar as boas-noites.
— Nem penses. — Avançou na direcção dela. — Vais é dar-me uma explicação sobre o
teu comportamento.
119
— Não me parece que tenha de me explicar a ninguém, mas se quiseres ser mais claro,
talvez abra uma excepção.
— Hoje à noite, juntaram-se quase duzentas pessoas em tua homenagem. Foste
incrivelmente mal-educada.
— Não fui nada. — Mais cansada do que queria admitir, passou por ele entrando na
saleta, descalçou os sapatos de salto alto miseravelmente desconfortáveis e apoiou os
pés exaustos no banco enfeitado com borlas. — A verdade é que fui tão incrivelmente
educada que os dentes quase me caíram da boca. Rezo a Deus para não ter de sorrir a
mais nenhuma maldita alma durante um mês. Agora não me importava de tomar um
daqueles brandies, Rogan. A esta hora da noite, está um frio danado lá fora.
Ele reparou pela primeira vez que ela não trazia nada por cima do fino vestido preto. —
Onde é que pára o teu agasalho?
— Não levei nenhum. Vais ter de anotar isso no teu bloco de notas. Comprar um
agasalho decente para a Maggie usar à noite. — Esticou o braço para pegar no copo que
ele lhe servira.
— Bolas, tens as mãos frias. Não tens juízo nenhum.
— Já aquecem. — Ela arqueou as sobrancelhas enquanto ele dava passadas largas até à
lareira, colocando-se de cócoras para a acender. — Então, hoje não tens empregados?
— Cala-te. A única coisa que não tolero hoje é sarcasmo da tua parte. Já tive mais do
que a minha dose.
As chamas ganharam vida, alimentando-se ávidas da madeira seca. Com a mudança de
luz, Maggie reparou que o rosto dele estava rígido de raiva. A melhor forma de enfrentar
o mau humor, sempre pensara, era igualá-lo.
— Não devo ter sido eu a dar-te essa dose. — Bebeu o brandy, teria suspirado pelo calor
bem-vindo da bebida se não estivesse a trocar olhares com Rogan. — Fui à tua
exposição, não fui? Com a roupa certa, com um sorriso idiota e correcto estampado na
cara.
— A exposição era tua, — ripostou ele. — Sua pirralha ingrata, egoísta e imprudente.
Por mais que sentisse o corpo estafado, não podia permitir que ele falasse assim com
ela. Levantou-se rígida e encarou-o. — Não te vou contrariar. Sou exactamente o que
dizes, e já mo disseram muitas vezes na vida. Felizmente para ambos, só tens de te
preocupar com o meu trabalho.
— Fazes alguma ideia do tempo, do esforço e da despesa que despendi para conseguir
montar esta exposição?
— É a tua obrigação. — A voz dela era firme como a sua postura.
120
— Como fazes questão de me lembrar sempre. E eu estive lá, fiquei mais de duas horas,
a trocar impressões com estranhos.
— É melhor aprenderes que um mecenas nunca é um estranho e que essa falta de
educação nunca é boa ideia.
O tom calmo e controlado atravessou-lhe a armadura protectora como uma espada. —
Nunca concordei em ficar a noite toda. Precisava de ficar sozinha, só isso.
— Para andares a vaguear pelas ruas toda a noite? Sou responsável por ti enquanto cá
estiveres, Maggie. Por amor de Deus, estive quase para chamar a polícia.
— Não és responsável por mim, eu é que sou. — Mas ela conseguia ver agora que não
era apenas a raiva que escurecia os olhos dele, mas também preocupação. — Peço
desculpa se te deixei preocupado. Só fui dar uma volta.
— Saíste para dar um passeio e foste-te embora da tua primeira grande exposição sem
água vai nem água vem?
— Sim. — O copo saltou da mão dela caindo com impacto no chão de pedra, antes que
se apercebesse. O vidro estilhaçado voou como balas. — Tinha de sair! Não conseguia
respirar. Não conseguia aguentar. Todas aquelas pessoas, a olhar para mim, para o meu
trabalho, e a música, as luzes. Estava tudo tão lindo, tão perfeito. Não sabia que ia ficar
tão assustada. Pensava que já tinha ultrapassado isso desde aquele dia em que me mos-
traste a sala, e as minhas peças dispostas como num sonho.
— Ficaste com medo.
— Sim, sim, maldito sejas. Estás satisfeito por ouvir isto? Fiquei aterrorizada quando
abriste a porta, olhei lá para dentro e vi o que tinhas feito. Mal conseguia falar. Foste tu
o responsável, — disse ela, furiosa. — Abriste a caixa de Pandora e deixaste sair todas
as minhas esperanças, medos e necessidades. Não podes saber como é ter necessidades,
terríveis, nem sequer pensas que devias tê-las.
Agora, ele estudava-a, marfim e fogo num vestido preto justo. — Oh, mas tenho, —
disse ele, baixinho. — Tenho. Devias ter-me dito, Maggie. — A voz dele agora era
meiga, ao mesmo tempo que avançava na direcção dela.
Ela lançou ambas as mãos ao ar para o repelir. — Não, não faças isso. Não ia suportar
que fosses carinhoso agora. Especialmente quando não sei se o mereço. Não fiz bem em
deixar-te daquela maneira. Fui egoísta e ingrata. — Deixou cair as mãos indefesas junto
ao corpo. — É que não tinha ninguém que me apoiasse no cimo daquelas escadas.
Ninguém. E fiquei destroçada.
De repente, ela parecia tão delicada, por isso ele fez o que ela lhe pedira e não lhe tocou.
Receava que, se o fizesse, mesmo com meiguice, ela se pudesse partir nas suas mãos. —
Se me tivesses dito como era importante para ti, Maggie, teria trazido a tua família.
121
— Não ias conseguir trazer a Brianna. Sabe Deus que não podes trazer o meu pai de
volta. — Quebrara-se-lhe a voz, envergonhando-a. Com um som estrangulado, tapou a
boca com a mão. — Estou exausta, só isso. — Lutou uma amarga batalha para controlar
a voz. — Demasiado desperta por causa de toda a excitação. Devo-te um pedido de
desculpas por ter saído daquela maneira, e também gratidão por todo o trabalho a que te
deste por minha causa.
Ele preferia quando ela estava enraivecida ou a chorar, a esta delicadeza afectada. Não
tinha outra opção senão responder à altura. — O mais importante é que a exposição foi
um sucesso.
— Sim. — Os seu olhos brilharam à luz da lareira. — Isso é o mais importante. Agora,
se me dás licença, vou-me deitar.
— Claro. Maggie? Só mais uma coisa.
Ela voltou-se. Ele estava de pé à frente da lareira, as chamas crepitantes douradas atrás
dele. — Sim?
— Eu estava lá para te apoiar, no cimo das escadas. Talvez da próxima vez te lembres
disso e fiques satisfeita.
Ela não respondeu. Ele ouviu apenas o roçar do seu vestido enquanto ela se apressava
pelo corredor, subindo as escadas, depois o trinco rápido da porta do seu quarto a
fechar-se.
Ele fitou a lareira, observando um toro que se partia, cortado pelas chamas e pelo calor.
O fumo subiu uma vez, atiçado pelo vento. Continuou a olhar enquanto uma chuva de
faúlhas batia no resguardo, espalhando-se na pedra, esmorecendo.
Ela era, apercebeu-se, tão caprichosa, birrenta e brilhante quanto aquela lareira. Tão
perigosa quanto elementar.
E ele estava, bastante desesperadamente, apaixonado por ela.
122
CAPÍTULO DEZ
Caro Rogan,
Imagino que fiques transtornado por me ir embora deforma tão abrupta. Preciso de estar
em casa e voltar ao trabalho, e não vou pedir desculpa por isso. Vou agradecer-te.
Aposto que vais começar a rogar-me pragas, mas aviso-te desde já que faço intenção de
as ignorar, pelo menos por algum tempo. Por favor, dá cumprimentos meus à tua avó. E
não me importava que pensasses em mim de vez em quando.
Maggie
Oh, só mais uma coisa. Talvez estejas interessado em saber que levo para casa meia
dúzia de receitas do Julien — é assim que se chama o teu cozinheiro, caso não saibas.
Ele acha que sou encantadora.
123
Rogan leu a carta outra vez antes de a pôr de lado. Foi melhor assim, decidiu. Seriam
ambos mais felizes e mais produtivos com a imensidão da Irlanda a dividi-los.
Certamente, ele seria. Era difícil ser produtivo perto de uma mulher por quem se está
apaixonado, quando ela se apresentava frustrante a todos os níveis.
Com sorte, por pouca que fosse, estas emoções que haviam crescido dentro dele iriam
acalmar e desvanecer com o tempo e a distância.
Por isso... ele dobrou a carta e pô-la de lado. Estava contente por ela ter voltado,
satisfeito por terem cumprido a primeira fase dos planos que tinha para a carreira dela,
feliz por ela lhe ter dado, inadvertidamente, tempo para lidar com as suas próprias
emoções confusas.
Que inferno, pensava ele. Já sentia a falta dela.
124
Um espanta-espíritos que ela fizera de restos de vidro tocava melodiosamente por cima
da sua cabeça.
Dublin, com as suas ruas movimentadas, parecia muito distante.
No serpentear da estrada lá em baixo no vale, ela avistou uma carrinha vermelha,
pequena e reluzente como um brinquedo, a avançar, virar num cruzamento e subir na
direcção de uma cabana.
Vai tomar chá a casa, pensou, deixando sair um suspiro de pura satisfação.
Primeiro ouviu o cão, aquele ladrar do fundo da garganta que ecoava, depois o roçar nas
ervas que lhe dizia que acabara de apanhar um pássaro. A voz da irmã flutuava no ar,
divertida, indulgente.
— Deixa o coitadinho em paz, Con, seu grande rufia.
O cão voltou a ladrar e, momentos depois, saltou o portão do jardim. A língua de fora,
de felicidade, quando viu Maggie.
— Sai já daí, — ordenou Brianna. — Queres que ela chegue a casa e veja que deste
cabo do portão do jardim, e... Oh. — Parou, pousando a mão sobre a cabeça enorme do
cão ao ver a irmã. — Não sabia que tinhas voltado para casa. — O sorriso entrou
primeiro, assim que ela abriu o portão.
— Acabei de chegar. — Maggie passou os minutos seguintes a ser cumprimentada pelo
Concobar, aos pulos e a receber as suas lambidelas excessivas, até ele responder à
ordem de Brianna para que se sentasse. E logo se sentou, com as patas da frente em
cima dos pés de Maggie, como se se quisesse assegurar que ela não saia dali.
— Fiquei com algum tempo livre, — começou Brianna. — Por isso, pensei em vir até
cá tratar do jardim.
— Parece-me estar bem assim.
— Pensas sempre isso. Trouxe pão que fiz esta manhã. Ia guardá-lo no teu congelador.
— Com uma sensação estranha, Brianna estendeu-lhe o cesto. Tinha acontecido alguma
coisa, percebeu. Havia algo por trás do olhar calmo e sereno da irmã. — Como estava
Dublin?
— Apinhada de gente. — Maggie pousou o cesto no banco a seu lado. O aroma que
emanava por baixo do pano impecável era tão tentador que ela o levantou e partiu um
naco quente de pão integral. — Barulhenta. — Arrancou um pedacinho de pão e atirou-
o. Concobar apanhou-o no ar, engolindo-o inteiro. — Mas que ganancioso me saíste,
não? — Atirou-lhe outro pedaço antes de se levantar. — Tenho uma coisa para ti.
Maggie entrou em casa, deixando Brianna de pé no carreiro. Quando voltou, entregou a
Brianna uma caixa e um envelope.
— Não te devias ter incomodado... — Começou Brianna, sem terminar. Apercebeu-se
que se sentia culpada. Nada mais do que uma imensa culpa. Aceitando-a, abriu a caixa.
— Oh, Maggie, é lindo. A coisa mais linda que já tive. — Segurou no alfinete à luz do
Sol e observou-o a brilhar. — Não devias ter gasto dinheiro.
125
— É meu para gastar, — disse Maggie, concisa. — Espero que lhe dês uso não só com o
avental.
— Não ando sempre de avental, — disse Brianna, calma. Voltou a guardar o alfinete
com cuidado dentro da caixa, guardando-a no bolso. — Obrigada. Maggie, gostava de...
— Ainda não viste o resto. — Maggie sabia o que a irmã gostava, e não queria ouvir.
Agora pouco importava arrepender-se por não ter ido a Dublin à inauguração.
Brianna estudou o rosto da irmã, sem encontrar sinais de meiguice. — Então, está bem.
— Abriu o envelope, tirando uma folha de papel. — Oh! Meu Deus! — Por mais lindo e
brilhante que fosse o alfinete, não era nada comparado com aquilo. Ambas sabiam disso.
— Receitas. Tantas. Soufflés e doces, e... oh, vejam só este frango. Deve ser
maravilhoso.
— Pois é. — Maggie abanou a cabeça perante a reacção de Brianna, quase suspirando.
— Já as provei. E essa sopa... o segredo são as ervas, segundo me disseram.
— Onde é que as arranjaste? — Brianna mordeu o lábio inferior, analisando as páginas
escritas à mão, como se fossem tesouros de outras eras.
— Foi o cozinheiro de Rogan. É francês.
— Receitas de um chef francês, — comentou Brianna, com respeito.
— Prometi-lhe que, em troca, lhe enviavas uma quantidade semelhante das tuas.
— Das minhas? — Brianna pestanejou, como se tivesse acordado de um sonho. — Mas
ele não deve querer as minhas.
— Quer sim, e muito. Fartei-me de elogiar o teu guisado irlandês e a tarte de frutos
silvestres. Dei-lhe a minha palavra de honra que lhas enviavas.
— Claro que envio, mas não consigo imaginar... obrigada, Maggie. É um presente
maravilhoso. — Brianna avançou para a abraçar, mas recuou, desencorajada pela frieza
da reacção de Maggie. — Não me queres contar como tudo correu? Bem tentei
imaginar, mas não consegui.
— Correu bastante bem. Estavam lá muitas pessoas. O Rogan parece saber como lhes
despertar o interesse. Havia uma orquestra e empregados vestidos de branco, que
serviam flûtes de champanhe e travessas de prata cheias de aperitivos chiques.
— Deve ter sido lindo. Estou tão orgulhosa de ti.
Os olhos de Maggie gelaram. — Estás?
126
Durante três dias, ninguém a incomodou. O telefone não tocou, ninguém veio bater à
porta. Mesmo se tivesse havido uma convocatória, ela tê-la-ia ignorado. Passava quase
todos os minutos acordada na vidreira, a refinar, a aperfeiçoar, dando forma às imagens
na sua cabeça e no bloco de esboços, transformando-as em vidro.
Apesar de Rogan atestar o valor que tinham, ela pendurara os esboços com molas ou
presos a ímanes, de forma que um canto do estúdio mais parecia uma câmara escura,
com fotografias a secar.
Já se queimara duas vezes com a pressa, uma delas de tal forma que a obrigara a parar
para aplicar os primeiros socorros. Agora, sentada na cadeira, com cuidado e
meticulosamente, transformava o esboço de um escudo apache na sua própria visão.
Era um trabalho duro e traiçoeiramente exigente. Sangrando a cor na cor, a forma na
forma tal como queria, exigia centenas de viagens à janela de inspecção do forno.
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Maggie não se perguntou o motivo, depois de ansiar pela solidão, que a levava agora a
procurar companhia. Estava em casa há três dias e não falara com ninguém, excepto
com Brianna. Mesmo nesse caso, fora breve e irada.
128
Maggie sentia-se arrependida agora, arrependida por não se ter esforçado mais por
compreender a situação de Brianna. A irmã encontrava-se sempre no meio, a
desafortunada segunda filha de um casamento falhado. Em vez de se lançar contra a
irmã, devia ter aceitado a imensa disponibilidade que ela revelava para a mãe de ambas.
Também devia ter contado a Brianna o que Christine Sweeney lhe confidenciara. Seria
interessante apreciar a reacção de Brianna perante as novidades acerca do passado da
mãe.
Mas isso teria de esperar. Queria desfrutar de uma hora bem passada com as pessoas que
conhecia, degustando uma refeição quente e uma cerveja gelada. Decerto que lhe
afastaria o pensamento do trabalho que a monopolizava há dias, bem como do facto de
ainda não ter tido notícias de Rogan.
Como a noite estava agradável e queria pôr de lado o mau humor, pegou na bicicleta e
começou a pedalar os cinco quilómetros que a separavam da vila.
Haviam começado os longos dias de Verão. O Sol estava brilhante e agradavelmente
quente, mantendo muitos agricultores ainda nos campos, muito depois da hora do jantar.
A estrada sinuosa e estreita era ladeada de ambos os lados por sebes altas que não
reconfortavam e que davam a Maggie a sensação de estar a descer um imenso túnel, de
aromas doces. Passou por um carro, acenou ao condutor e sentiu a brisa que ele
provocara a bater nos jeans.
Pedalando com força, mais por divertimento do que por estar com pressa, saiu do túnel
de sebes para surgir na pura beleza incomensurável do vale.
O Sol reflectia no telhado de zinco de um celeiro, encandeando-a. Agora a estrada
parecia mais suave, senão mais larga, mas ela abrandou, apenas para apreciar a brisa de
fim de tarde e os resquícios da luz do Sol.
Sentiu o aroma das madressilvas, do feno, da doce relva cortada. O seu humor, que
andara lunático e inquieto desde que chegara, começava a serenar.
Passou pelas casas com roupa estendida e crianças a brincar no pátio, pelas ruínas de
castelos, ainda majestáticos com as pedras cinzentas e lendas sobre espectros que os
habitavam, um testemunho do modo de vida que ainda perdurava.
Virou numa curva, sentindo o brilho intenso do rio que fluía pela erva alta, afastando-se
dele na direcção da vila.
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— Se estiverem com disposição para petiscos do pub — ela piscou o olho aos dois
filhos, que olhavam para ela como se tivesse saído de um OVNI cheio de luzes a piscar
— vão gostar do O'Malley's. Tenho a certeza. Os palitos que ele faz são tão bons quanto
os dos outros.
— Ela quer dizer batatas fritas, — traduziu a mulher. — Chegámos hoje de manhã, da
América, — contou ela a Maggie. — Lamento não sabermos muito sobre os costumes
locais. As crianças podem entrar nos bares... pubs?
— Estamos na Irlanda. As crianças são bem-vindas em qualquer lado, em todos me’mo.
O O'Malley's é ali. — Gesticulou na direcção do edifício baixo e torto com tons escuros.
— Eu própria vou 'té lá. Vão ficar contentes por lhe servir, e à sua família, uma
refeição.
— Obrigada. — O homem olhava esbugalhado para ela, as crianças fitavam-na e a
mulher esquecera-se de lhe tirar a câmara da cara. — Vamos experimentar.
— Espero que comam bem, e que apreciem o resto da estadia. — Maggie deu meia
volta e deambulou pelo passeio abaixo, entrando no O'Malley's. Estava escuro,
fumarento e cheirava a cebolas fritas e cerveja.
— Como tens passado, Tim? — Perguntou Maggie, sentando-se no bar.
— Vejam só quem haveria de aparecer. — Tim sorriu para ela enquanto virava uma pint
de Guinness. — E tu, como estás, Maggie?
— Bem, e esfomeada como um urso. — Trocou cumprimentos com um casal sentado a
uma mesa do tamanho de um selo, atrás dela, e com os dois homens que tiravam
cervejas no bar. — Arranjas-me uma das tuas bifanas, Tim, com uma dose de palitos, e
bebo uma pint de Harp enquanto espero.
O proprietário espetou a cabeça na direcção das traseiras do bar e gritou o pedido de
Maggie. — Então conta lá, como foi a Cidade de Dublin? — Perguntou ele, enquanto
lhe servia uma pint.
— Já te conto. — Apoiou os cotovelos em cima do bar e começou a descrever a viagem
aos clientes do bar. Ao mesmo tempo, a família americana entrou e arranjou uma mesa.
— Champanhe e fígado de ganso? — Tim abanou a cabeça. — Não é de espantar? E
toda aquela gente foi ver os teus vidros. O teu pai ia ficar muito orgulhoso de ti, menina
Maggie. Orgulhoso como um pavão.
— Espero que sim. — Fungou com força quando Tim lhe pôs o prato à frente. — Mas a
verdade é que prefiro as tuas bifanas a um quilo de fígado de ganso.
Ele riu-se com vontade. — Esta é a nossa menina.
— E descobri que a avó do homem que está a gerir as coisas por mim era amiga da
minha avó, a Vó O'Reilly.
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— Estás a falar a sério? — Suspirando, Tim esfregou a barriga. — O mundo é mesmo
pequeno.
— Pois é, — concordou Maggie, tornando o assunto casual. — Ela é de Galway e
conheceu a avó quando eram pequenas. Durante anos corresponderam-se, quando a avó
se mudou para aqui, para terem notícias, sabem?
— Que bom. Não há melhor amigo que um velho amigo.
— A avó escrevia-lhe a contar sobre o hotel, a família. Até mencionou que a minha mãe
costumava cantar.
— Oh, isso foi há muito tempo. — Recordando-se, Tim foi buscar um copo para limpar.
— Antes de nasceres, para ser exacto. A verdade é que, agora que penso nisso, ela
cantou aqui neste mesmo pub uma das últimas vezes antes de desistir.
— Aqui? Pediste-lhe que cantasse aqui?
— Pedi, sim. Ela tinha uma voz doce, a Maeve. Viajou pelo país inteiro. Quase não a vi
durante, oh, mais de dez anos, diria eu, depois veio passar uma temporada. Parece-me
que a Sra. O'Reilly estava doente. Por isso, perguntei à Maeve se ela não gostaria de
cantar uma ou duas noites, não que o nosso bar fosse tão bom como alguns de Dublin e
Cork, ou Donnegal, onde ela já actuara.
— Ela actuou? Durante dez anos?
— Bom, não sei se, a princípio, ela levava aquilo a sério. Maeve estava ansiosa por
partir, desde que me lembro. Não era feliz a fazer camas num hotel de uma vila como a
nossa, e não fazia segredo disso. — Piscou o olho para retirar a maldade das palavras.
— Mas as coisas corriam bem quando ela voltou e cantou aqui. Depois, ela e o Tom...
bom, só tinham olhos um para o outro no momento em que ele entrou e a ouviu cantar.
— E depois de casarem, — indagou Maggie, cautelosa, — ela não voltou a cantar?
— Já não queria. Nem sequer falava disso. Na verdade, já passou tanto tempo, agora
que falas nisso, que já me tinha esquecido.
Maggie duvidava que a mãe se tivesse esquecido, ou que pudesse fazê-lo. Como é que
ela se sentiria se a vida desse uma volta tal que ela tivesse de abdicar da arte,
perguntava-se. Zangada, triste, ressentida. Desceu o olhar para as mãos, pensou em
como seria se não as pudesse voltar a usar. No que é que se tornaria se, de repente,
agora que estava prestes a deixar a sua marca, lhe tirassem tudo?
Se abandonar a carreira não servia de desculpa para os anos amargos que passara com a
mãe, pelo menos era um motivo.
Maggie precisava de tempo para pensar, para falar com Brianna.
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Brincou com a cerveja e começou a juntar as peças da mulher que fora a sua mãe com a
personalidade da mulher em que se tornara.
Quanto de ambas, imaginava Maggie, teria Maeve passado para a filha?
— Vamos a comer essa bifana, — ordenou Tim, ao fazer deslizar outra pint pelo bar. —
Não é só para olhar.
— Vou comer. — Para mostrar que tinha razão, Maggie deu uma bela dentada. O pub
estava quente e reconfortante. Amanhã tinha tempo, decidira, para limpar o sótão dos
sonhos perdidos. — Arranjas-me outra pint, Tim?
— Isso posso fazer, — disse ele, levantando depois a mão quando a porta do pub se
abriu outra vez. — Bom, esta é a noite dos forasteiros. Por onde tens andado, Murphy?
— A sentir a tua falta, rapaz. — Ao ver Maggie, Murphy sorriu e juntou-se a ela no bar.
— Espero poder sentar-me com uma celebridade.
— Talvez deixe, — retorquiu ela. — Mas só desta vez. Então, Murphy, quando é que
vais fazer a corte à minha irmã?
Era uma velha piada, mas ainda arrancava gargalhadas aos clientes habituais do pub.
Murphy bebeu da caneca de Maggie e suspirou. — Minha querida, sabes que no meu
coração só tenho lugar para ti.
— Sei é que és um patife. — Arrancou-lhe a cerveja da mão.
Ele era um homem bonito ao jeito selvagem, em forma, forte e exposto aos elementos,
como um carvalho ao Sol e ao vento. O seu cabelo escuro enrolava-se junto ao
colarinho, por cima das orelhas, e os olhos eram azuis, como a garrafa de cobalto que
tinha na oficina.
Não era refinado como Rogan, pensou ela. Rude como um cigano, era o Murphy, mas
tinha um coração grande e doce como o vale que ela amava. Maggie nunca tivera um
irmão, mas Murphy era o que mais se aproximava de o ser.
— Casava contigo amanhã, — declarou ele, inundando o pub, à excepção dos
americanos que observavam avidamente, de sonoras gargalhadas. — Se me quisesses.
— Podes ficar descansado, então, já que não estou inclinada para o teu lado. Mas dou-te
um beijo para que o possas lamentar ainda mais.
Cumpriu à letra a sua promessa, beijando-o demorada e ardentemente, até que se
separaram, trocando sorrisos. — Tiveste saudades minhas? — Perguntou Maggie.
— Nem um bocadinho. Quero uma pint de Guinness, Tim, e o mesmo que a nossa
celebridade está a comer. — Roubou-lhe uma batata frita. — Ouvi que tinhas voltado.
— Oh. — A voz dela arrefeceu um pouco. — Viste a Brie?
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…
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— Podes fazer o que quiseres, Maggie. És demasiado teimosa para te ficares por menos.
Ela riu-se e virou-se para lhe dar um beijo molhado. — Oh, adoro-te, Murphy. Não
queres correr comigo pelos campos e dançar ao luar?
Ele sorriu, afagando-lhe o cabelo. — Porque é que não te vou guardar a bicicleta e te
ponho na cama?
— Eu faço isso sozinha. — Saltou da carrinha, mas ele foi mais rápido. Levantou a
bicicleta e pousou-a na estrada. — Obrigada por me trazer a casa, Sr. Muldoon.
— O prazer foi meu, Miss Concannon. Agora, ponha-se na cama.
Ela entrava no portão levando a bicicleta a pé, quando ele começou a cantar. Parando já
dentro do jardim, ficou a ouvir a voz dele, forte e doce como a de um tenor, que se
elevava na noite silenciosa e desaparecia.
— Só, tão só, junto à espuma perdida pelo mar, tão só num salão cheio de gente. O
salão está contente, as ondas sempre a rebentar e o meu coração que teima em andar
ausente.
Ela sorriu um pouco e terminou a canção mentalmente. — Voa para longe, noite e dia,
para os tempos de alegria que não voltam mais.
Slievenamon, assim se chamava a balada, ela sabia. Mulher da Montanha. Bom, ela não
estava no cimo da montanha, mas achava que compreendia a alma da canção. O salão
em Dublin alegrara-se, contudo, o seu coração andara ausente. Ficara sozinha.
Completamente sozinha.
Levou a bicicleta para as traseiras, mas, em vez de entrar, Maggie afastou-se da casa.
Era verdade que estava um pouco embriagada e a sua passada não estava lá muito firme,
mas não queria desperdiçar uma noite daquelas na cama. Sozinha na cama.
Bêbeda ou sóbria, de dia ou de noite, ela conseguia encontrar um caminho na terra que
outrora lhe pertencera.
Ouviu o piar da coruja e o ruído de algo que caçava ou se escondia na noite, nas ervas
altas a leste. Lá em cima, a lua, que estava agora cheia, brilhava como um lampião
aceso num imenso mar de estrelas. A noite partilhava segredos à sua volta. Um regato a
oeste murmurou em resposta.
Era isto em parte que ela desejava. Do que precisava tanto como respirar era da glória
da solidão. Campos verdes a dançar ao vento em seu redor, agora prateados pela luz da
lua e das estrelas, com apenas um brilho ténue ao longe, que era o candeeiro da cozinha
de Murphy.
Ela lembrava-se de caminhar por ali com o pai, a sua mão de menina aninhada e quente
na dele. Ele não falava de plantar ou cultivar, mas dos sonhos. Sempre, falava sempre
dos sonhos.
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CAPÍTULO ONZE
Foi a vaca que a acordou. Os enormes olhos líquidos estudavam a figura adormecida,
aninhada no pasto. As vacas pensam em muito pouco, além de na comida e em termos
de as mungir. Ela cheirou uma, duas vezes a face de Maggie, roncou e depois começou
a comer erva.
— Oh, valha-me Deus, que barulho é este?
Com a cabeça a latejar como se tocassem um enorme tambor, Maggie rebolou, indo
embater com força na pata dianteira da vaca, abrindo os olhos turvos e raiados de
sangue.
— Santo Jesus Cristo! — O guincho de Maggie ecoou na sua cabeça como um gongo,
obrigando-a a tapar os ouvidos como se estivessem prestes a explodir, enquanto se
afastava. A vaca, tão espantada quanto ela, mugiu e revirou os olhos. — O que é que
estás aqui a fazer? — Mantendo a cabeça entre as mãos, Maggie conseguiu pôr-se de
joelhos. — O que é que estou aqui a fazer? — Quando caiu para trás, batendo com os
quadris, ela e a vaca estudaram-se, curiosas. — Devo ter adormecido. Oh! — Numa
lamentável defesa contra a fúria da ressaca, passou as mãos dos ouvidos para os olhos.
— Oh, que preço a pagar por uma bebida a mais. Vou sentar-me aqui por uns minutos,
se não te importas, até ter forças para me levantar.
A vaca, a seguir a um derradeiro revirar de olhos, começou a pastar novamente.
A madrugada estava límpida e quente, repleta de sons. O zumbido do tractor, o ladrar do
cão, a melodia dos pássaros giravam na cabeça torturada de Maggie. A boca sabia como
se tivesse passado a noite a comer numa turfeira, as roupas ensopadas pela orvalhada
matinal.
— Bom, até é agradável apagarmo-nos num campo destes como um vagabundo bêbedo.
Pôs-se de pé, baloiçou um pouco e gemeu. A vaca agitava a cauda no que podia ser
interpretado como simpatia. Com cuidado, Maggie espreguiçou-se. Como não sentiu os
ossos a estalar, tratou ela do resto dos nós e deixou que os olhos examinassem o campo.
Mais vacas pastavam, desinteressadas pela visitante humana. No campo adjacente,
conseguia ver o círculo de pedras erguidas, antigas como o ar, que os locais chamavam
Marco dos Druidas. Lembrava-se agora de ter dado a Murphy um beijo de boa-noite e,
com a canção dele ecoando baixinho na cabeça, de vaguear ao luar.
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O sonho que tivera, ao dormir debaixo da luz prateada, voltou com tal nitidez, num tal
arrebatamento, que se esqueceu da dor de cabeça e da rigidez nas articulações.
A lua, a brilhar intensamente, pulsando como o bater de um coração, inundava o céu e a
terra cá em baixo de uma fria luz branca. Depois ardera, quente como uma tocha, até as
cores a preencherem, vermelhos e azuis de sangue, dourados tão maravilhosos que, até a
dormir, a haviam levado às lágrimas.
Ela subira, mais e mais, até conseguir tocá-la. Era macia, sólida e fria ao tomá-la nas
mãos em concha. Vira-se naquela esfera, e no fundo, bem lá no fundo daquelas cores
ondulantes, encontrara o seu coração.
A visão que girava na sua cabeça era mais do que uma consequência da ressaca.
Induzida por ela, correu campo fora, deixando as vacas plácidas a pastar e a madrugada
com o canto dos pássaros.
Numa hora estava no estúdio, desesperada por transformar a visão em realidade. Não
era necessário nenhum esboço, não com a imagem gravada de forma tão explícita na sua
mente. Não comera nada, nem precisava. Com a emoção da descoberta a cintilar sobre
ela como um manto, fez a primeira massa.
Alisou-a no mármore para arrefecer e concentrar. De seguida, soprou.
Quando aquecia e voltava a ficar moldável, ela passava a bolha por corantes em pó.
Voltava a entrar nas chamas até que a cor se derretesse na parede do recipiente.
Repetia o processo vezes sem conta, juntando vidro, fogo, sopro, cor. Girando e girando
o tubo contra ou a favor da gravidade, alisando a esfera brilhante com pás para manter a
forma.
Uma vez o recipiente transferido do tubo para o pontel, aquecia-o bastante na janela de
inspecção. Aí usava uma vara molhada, fazendo força com ela na boca da peça para que
a pressão do vapor alargasse a forma.
Todas as energias estavam ali concentradas. Ela sabia que a água na vara ia evaporar. A
pressão podia abrir fendas nas paredes do recipiente. Agora daria jeito um ajudante com
o pontel, alguém que facultasse outro par de mãos, para trazer as ferramentas, ir buscar
mais vidro, mas nunca contratara ninguém para essa tarefa.
Começou a falar sozinha, baixinho, uma vez que se via obrigada a fazer ela própria as
viagens, de volta para a fornalha, para a bancada, para a cadeira.
O Sol já ia mais alto, atravessando as janelas e coroando-a numa auréola de luz.
Foi assim que Rogan a viu assim que abriu a porta. Sentada na cadeira, com uma bola
de cor derretida debaixo das mãos e a luz do Sol a cercá-la.
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— Não tens que agradecer, — disse ele, assumindo que ela o fizera. Enquanto ela abria
a lata que ele lhe trouxera, examinou a sala. Não estivera parada, reparou. Havia várias
peças novas arrumadas a um canto, as interpretações que fizera da exposição nativa
americana. Examinou um prato pouco fundo e de boca larga, decorado com cores
escuras e baças.
— Que belo trabalho.
— Mmm. É uma experiência que acabou bem. Combinei vidro opaco e transparente. —
Voltou a bocejar, profundamente. — Depois, fumei-o.
— Fumaste-o? Esquece, — comentou ele, ao ver que ela estava prestes a embarcar
numa explicação complicada. — De qualquer forma, não ia compreender o que
dissesses. Química nunca foi o meu forte. Ficarei satisfeito só com o produto final.
— Era agora que devias dizer que o achas fascinante, tal como eu.
Olhou para trás de relance, fitando-a, e torceu os lábios. — Tens andado a ler as críticas,
não é? Que Deus nos ajude. Porque é que não vais descansar? Falamos depois. Eu
levo--te a jantar.
— Não fizeste este caminho todo para me levares a jantar.
— Seria um prazer, de qualquer forma.
Havia nele algo de diferente, decidiu ela. Uma ligeira alteração algures nas profundezas
daqueles maravilhosos olhos azuis. O que quer que fosse, ele trazia-o sob controlo.
Algumas horas com ela deviam tratar do assunto, concluíra Maggie, sorrindo para ele.
— Vamos até lá a casa, tomar um chá e comer qualquer coisa? Assim, já me podes dizer
porque vieste.
— Para começar, foi para te ver.
Alguma coisa no seu tom de voz lhe dizia para aguçar os seus instintos. — Bom, já me
viste.
— Pois é. — Foi buscar a pasta e abriu a porta. — Esse chá vinha a calhar.
— Óptimo, podes fazer a infusão. — Olhou por cima do ombro ao sair para a rua. — Se
souberes como.
— Acho que sim. O teu jardim está maravilhoso.
— A Brie tratou dele enquanto estive fora. O que é isto? — Bateu com o pé numa caixa
de cartão largada na porta das traseiras.
— Trouxe algumas coisas comigo. Os teus sapatos, por exemplo. Deixaste-os na saleta.
Entregou-lhe a pasta e levou a caixa para a cozinha. Depois de a largar em cima da
mesa, olhou à volta da cozinha.
— Onde está o chá?
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— No armário por cima do fogão.
Enquanto ele punha mãos à obra, ela abriu a caixa. Momentos depois estava sentada, a
segurar a barriga de tanto rir.
— Parece que nunca te esqueces de nada. Rogan, se não atendo o telefone, porque é que
achas que vou ouvir um atendedor de chamadas, idiota?
— Porque te mato se o não fizeres.
— Assunto arrumado. — Ela levantou-se outra vez e tirou um calendário de parede. —
Impressionistas franceses, — murmurou, estudando os quadros, um para cada mês. —
Bom, pelo menos é bonito.
— Usa-o. — Disse ele, simplesmente, colocando a chaleira ao lume. — E o atendedor, e
isto. — Ele próprio pôs a mão dentro da caixa e tirou um grande estojo de veludo. Sem
cerimónias, abriu-o, revelando um relógio de ouro fino, o mostrador de âmbar rodeado
de diamantes.
— Céus, não posso usar isso. É um relógio de senhora. Ia-me esquecer que o tinha posto
e tomava banho com ele.
— É à prova de água.
— Vou parti-lo.
— Então compro-te outro. — Pegou-lhe no braço, começando a desabotoar-lhe o punho
da camisa. — Mas que raio é isto? — Indagou ao ver uma ligadura. — O que é que
aconteceu?
— Queimei-me. — Ela ainda tinha o olhar fixo no relógio e não via a luz furiosa nos
olhos dele. — Descuidei-me um pouco.
— Raios partam, Maggie. Não tens o direito de te descuidares. Nenhum, mesmo. Será
que agora tenho de me preocupar que te possas queimar toda?
— Não sejas ridículo. Até parece que magoei a mão. — Ela teria afastado a mão, mas
ele agarrava-a com força. — Rogan, tem dó, uma artista vidreira queima-se de vez em
quando. Não é fatal.
— Claro que não, — disse ele, severo. Obrigou-se a ocultar a raiva que sentia pelo
descuido dela e apertou-lhe o relógio no pulso. — Não gosto de saber que não foste
cuidadosa. — Soltou-lhe a mão, enfiando as suas nos bolsos. — Então, não é nada
grave?
— Não. — Observou-o, ponderada, enquanto ele se dirigia para a chaleira a apitar. —
Queres que prepare umas sanduíches?
— Como quiseres.
— Não disseste quanto tempo ias ficar.
— Volto esta noite. Queria falar contigo pessoalmente em vez de tentar apanhar-te pelo
telefone. — De novo assumindo o controlo, acabou de fazer o chá e levou o bule para a
mesa. — Trouxe os recortes que pediste à minha avó.
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— Oh, os recortes. — Maggie não tirava os olhos da pasta. — Sim, foi muito simpático
da parte dela. Vou lê-los depois. — Quando estivesse sozinha.
— Está bem. Também havia outra coisa que te queria dar, pessoalmente.
— Outra coisa. — Ela cortou uma fatia de pão da Brianna. — Hoje é o dia dos
presentes.
— Isto não entra na categoria dos presentes. — Rogan abriu a pasta e tirou um
envelope. — És capaz de querer abrir isto agora.
— Então, está bem. — Sacudiu as mãos, para abrir o envelope. Teve de se apoiar nas
costas de uma cadeira para manter o equilíbrio, ao ler a quantia no cheque. — Maria,
mãe de Deus.
— Vendemos todas as peças em que pusemos preço. — Mais do que satisfeito pela
reacção dela, ficou a vê-la afundar-se na cadeira. — Diria que a exposição teve bastante
sucesso.
— Todas as peças, — repetiu ela. — Por tanto dinheiro.
Pensou na lua, nos sonhos, nas mudanças. Fraca, deitou a cabeça sobre a mesa.
— Não consigo respirar. Os meus pulmões sucumbiram. — De facto, ela mal conseguia
falar. — Não consigo recuperar o fôlego.
— Claro que consegues. — Ele foi por trás dela, para lhe massajar os ombros. —
Inspira e expira. Faz isso durante um minuto para recuperares.
— São quase duzentas mil libras.
— Mesmo quase. Com o interesse gerado pela tournée das tuas obras, colocando apenas
algumas no mercado, podemos aumentar o preço. — O som estrangulado que ela emitiu
fê-lo rir. — Inspira e expira, Maggie, querida. Sopra o ar e volta a inspirá-lo. Vou tratar
de enviar estas peças que acabaste. Vamos marcar a tournée para o Outono, porque já
tens muitas prontas. Podes querer tirar uns dias para te divertires. Tirar umas férias.
— Umas férias. — Ela voltou a sentar-se. — Ainda não consigo pensar nisso. Não
consigo pensar em nada.
— Tens tempo. — Fez-lhe uma festa na cabeça, depois andou à volta dela para servir o
chá. — Queres jantar comigo hoje, para comemorar?
— Sim, — murmurou ela. — Nem sei o que dizer, Rogan. Nunca imaginei sequer que...
nem consigo acreditar. — Pressionou as palmas das mãos de encontro à boca. Por
momentos, ele receou que ela começasse a chorar, mas a boca dela emitiu uma
gargalhada, selvagem e jubilante. — Estou rica! Sou uma mulher rica, Rogan Sweeney.
— Deu um salto da cadeira para o beijar, para rodopiar a seguir. — Oh, sei que para ti é
uma gota de água no oceano, mas para mim... para mim, é a liberdade. É o partir das
correntes, quer ela queira quer não.
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Respirava como um motor a vapor quando passou o muro de pedra que delimitava a
propriedade de Brianna. Nessa altura, já ficara sem fôlego muito antes de começar a
correr. Por pouco não pisou os amores-perfeitos da irmã — um pecado que ela pagaria
bem caro — e derrapou pelo estreito caminho de pedras que abria alas entre as flores
aveludadas.
Inspirou uma golfada de ar para gritar, mas acabou por não o desperdiçar, porque
avistou Brianna no carreiro verde a seguir ao jardim, a estender roupa no estendal.
Com molas na boca, lençóis molhados nas mãos, Brianna trazia o olhar perdido além da
dança das columbinas e das margaridas, enquanto Maggie premia as palmas das mãos,
de encontro ao peito. Sem dizer nada, Brianna pendurou o lençol com destreza e
começou a prendê-lo com molas.
Ainda se viam no rosto da irmã sinais de mágoa, observou Maggie. E de raiva. Tudo
bem temperado com a dose especial de orgulho e controlo de Brianna. O cão ladrou
alegremente e avançou, parando apenas quando Brianna lho ordenou. Voltou, lançando
a Maggie o que só poderia ser um olhar de lástima, para junto dos pés da dona. Ela tirou
mais um lençol do cesto a seu lado, sacudiu-o e pendurou-o impecavelmente a secar.
— Olá, Maggie.
Então, o vento soprava frio para estes lados, matutou Maggie, aninhando as mãos nos
bolsos de trás. — Olá, Brianna. Tens hóspedes?
— Sim. De momento, estamos cheios. Um casal americano, uma família inglesa e um
rapaz da Bélgica.
— Praticamente as Nações Unidas. — Fungou, elaboradamente. — Tens tartes no forno.
— Já estão feitas, estão a arrefecer no parapeito da janela. — Como odiava qualquer
tipo de confronto, Brianna manteve os olhos no que estava a fazer, ao mesmo tempo que
falava. — Pensei no que disseste, Maggie, e quero pedir desculpa. Devia ter lá estado
para te apoiar. Devia ter arranjado uma forma de ir.
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— O que é isso?
— É um cheque, ou és cega? Um cheque grande, gordo e lindo. Ele vendeu tudo, Brie.
Tudo o que pôs à venda.
— Por tanto dinheiro? — Brianna ficou de boca aberta a olhar para tantos zeros. — Por
tanto? Como é que pode ser?
— Sou um génio. — Maggie agarrou nos ombros de Brianna e fê-la girar. — Não lês as
minhas críticas? Tenho uma profundidade inexplorável de criatividade. — A rir, arrastou
Brianna para uma dança divertida. — Oh, e também disseram qualquer coisa sobre a
minha alma e a minha sexualidade. Ainda não decorei tudo.
— Maggie, espera. Tenho a cabeça a andar à roda.
— Ela que ande. Estamos ricas, não percebes? — Caíram as duas ao chão ao mesmo
tempo, Maggie a guinchar de riso e o Con a saltar em círculos frenéticos à volta delas.
— Posso comprar aquele torno para vidro que queria, e tu podes ter o fogão novo que
andas a fingir que não precisas. E vamos tirar umas férias. Em qualquer parte do mundo,
qualquer mesmo. Vou comprar uma cama nova. — Deitou-se de costas na relva para
lutar com o Con. — E tu podes construir uma ala nova no Espigueiro Negro, se
quiseres.
— Não ia dar conta do recado. Simplesmente não ia conseguir.
— Vamos procurar uma casa. — Levantando-se de novo, Maggie enganchou o braço à
volta do pescoço do Con. — Do tipo que ela quiser. Contratamos alguém para fazer
recados e tratar dela.
Brianna fechou os olhos e lutou contra o primeiro sinal de culpa pela alegria. — Ela
pode não querer...
— Vai ser como ela quiser. Ouve-me. — Maggie agarrou as mãos de Brianna,
apertando-as. — Ela há-de ir, Brie. E vão tomar bem conta dela. Terá aquilo que quiser.
Amanhã vamos a Ennis falar com o Pat O'Shea. Ele vende casas. Podemos instalá-la
com todas as condições possíveis, o mais rápido possível. Prometi ao pai que daria o
meu melhor por vocês duas, e é isso que vou fazer.
— Não terás consideração nenhuma? — Maeve apareceu no carreiro do jardim, com um
xaile sobre os ombros apesar do Sol quente. O vestido por baixo estava engomado e
passado a ferro, pelas mãos de Brianna, Maggie não duvidava. — Aqui na rua a gritar e
a guinchar enquanto uma pessoa tenta descansar? — Aconchegou o xaile e espetou o
dedo para a filha mais nova. — Levanta-te do chão. O que é que se passa contigo? Mais
pareces uma maria-rapaz, ainda por cima com hóspedes dentro de casa.
Brianna levantou-se com rigidez, sacudindo as calças. — Está um dia lindo. Talvez te
queiras sentar um pouco ao Sol.
— Fazia-me bem. Chama esse cão horroroso.
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— Senta-te, Con. — Protectora, Brianna pousou a mão na cabeça do cão. — Queres que
te traga um chá?
— Sim, e vê se fazes a infusão como deve ser, desta vez. — Maeve arrastou-se até à
cadeira e à mesa que Brianna pusera junto ao jardim. — Aquele rapaz, o belga, subiu as
escadas a correr duas vezes hoje. Tens de lhe dizer para ter cuidado com o barulho. É
isto que acontece quando os pais deixam os filhos a passear sozinhos pelo país fora.
— Vou já servir o chá. Maggie, ficas?
— Não para o chá. Mas quero falar com a mãe. — Lançou um olhar de aço, para evitar
algum argumento. — Consegues estar pronta para irmos a Ennis amanhã por volta das
dez, Brie?
— Eu... sim, estarei pronta.
— O que se passa? — Exigiu saber Maeve, assim que Brie se dirigiu para a porta da
cozinha. — O que é que vocês duas estão a planear?
— O teu futuro. — Maggie sentou-se na cadeira ao lado da mãe, esticando as pernas.
Quisera abordar o assunto de forma diferente. Depois do que já aprendera, esperava que
ela e a mãe conseguissem encontrar um caminho além das velhas mágoas. Mas as
angústias e culpas antigas já se faziam sentir dentro dela. Ao lembrar-se da lua da noite
anterior e do que pensava acerca dos sonhos perdidos, foi directa ao assunto. — Vamos
comprar-te uma casa.
Maeve emitiu um som de repulsa e puxou a franja do xaile. — Que disparate. Estou
bem aqui, com a Brianna a tomar conta de mim.
— Tenho a certeza que sim, mas isso vai acabar. Oh, vou contratar quem te faça
companhia. Não tens que ficar preocupada, porque não vais ter de aprender a tratar de ti.
Mas nunca mais vais usar a Brie.
— A Brianna compreende as responsabilidades de uma filha para com a mãe.
— Mais do que devia, — concordou Maggie. — Já fez tudo ao seu alcance para te ver
satisfeita, mãe. Não foi suficiente, e talvez eu tenha começado a perceber agora.
— Tu não percebes nada.
— Talvez, mas gostava de perceber. — Respirou fundo. Apesar de não conseguir tocar a
mãe, física ou emocionalmente, a voz dela serenou. — A sério que gostava. Desculpa
por tudo de que abdicaste. Só soube que cantavas há...
— Não fales disso. — A voz de Maeve gelou. A sua pele já pálida ficou ainda mais
branca, com o choque da dor que jamais esquecera, jamais perdoara. — Não te admito
que fales desses tempos.
— Só queria dizer que lamentava.
— Não quero a tua piedade. — Com os lábios apertados, Maeve desviou o olhar. Não
conseguia suportar que lhe atirassem o passado à cara, que sentissem pena porque ela
pecara e perdera o que era mais importante. — Não voltes a falar nesse assunto comigo.
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— Está bem. — Maggie inclinou-se para a frente até que o olhar de Maeve se prendeu
no dela. — Mas posso dizer isto. Culpas-me pelo que perdeste, e talvez isso te console
de alguma forma. Não posso desejar não ter nascido. Mas posso fazer o que estiver ao
meu alcance. Terás uma casa, das boas, e uma senhora respeitável e competente para
cuidar de ti, alguém que espero possa ser tua amiga e te faça companhia. Farei isto pelo
pai e pela Brie. E por ti.
— A única coisa que fizeste por mim na vida foi fazeres-me infeliz.
Então as coisas não seriam nada calmas, percebeu Maggie. Não encontrariam uma nova
abordagem. — Já me disseste vezes sem conta. Vamos arranjar um lugar que fique perto
o suficiente para que a Brie te possa ir visitar, porque ia querer fazê-lo. Eu também
tratava de mobilar a casa, ao teu gosto. Vais ter uma mesada... para comida, roupa, para
o que precisares. Mas Deus é minha testemunha que vais sair desta casa para a tua antes
do final do mês.
— Sonhos de papel. — A voz dela saiu brusca e depreciativa, mas Maggie sentiu um
certo frisson de medo. — Como o teu pai, estás cheia de sonhos vazios e de esquemas
parvos.
— Nem vazios, nem parvos. — De novo, Maggie tirou o cheque do bolso. Desta vez,
teve a satisfação de ver os olhos da mãe ficarem arregalados e vazios. — Sim, é
verdadeiro, e é meu. Ganhei-o. Ganhei-o porque o pai tinha fé em mim e me deixou
aprender, deixou-me tentar.
Os olhos de Maeve saltaram para os de Maggie, calculistas. — O que ele te deu também
me pertencia.
— O dinheiro de Veneza, para a escola e arranjar um tecto sobre a minha cabeça, tudo
bem. O mais que ele me deu não teve nada que ver contigo. E hás-de receber a tua parte.
— Maggie voltou a guardar o cheque. — Assim, fico sem te dever nada.
— Deves-me a tua vida, — cuspiu Maeve.
— A minha vida nada significava para ti. Posso saber o motivo, mas não muda a forma
como me sinto por dentro. Vê se percebes, vais sem queixumes, sem fazeres dos teus
últimos dias com a Brianna um inferno para ela.
— Não vou nada. — Maeve procurou no bolso um lencinho debruado a renda. — Uma
mãe precisa do consolo da sua filha.
— O teu amor pela Brianna é igual ao que sentes por mim. Ambas sabemos isso, mãe.
Ela pode achar o contrário, mas aqui, agora, pelo menos sejamos sinceras. Brincaste
com o coração dela, e sabe Deus como ela merece todo o amor que tiveres nesse
coração frio. — Após respirar fundo, jogou o trunfo que tinha guardado há cinco anos.
— Queres que lhe conte porque é que o Rory McAvery partiu para a América e lhe
desfez o coração?
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As mãos de Maeve gesticularam certos trejeitos. — Não sei do que é que estás a falar.
— Oh, sabes sim. Chamaste-o à parte quando viste que o namoro estava a ficar sério.
Disseste-lhe que, em boa consciência, não podias deixar que ele entregasse o coração à
tua filha. Não quando ela já dera o corpo a outro. Convenceste-o, e ele até era só um
rapaz, que ela andara a dormir com o Murphy.
— É mentira. — Maeve espetou o queixo, mas via-se o medo nos olhos. — És uma
filha má e mentirosa, Margaret Mary.
— Tu é que és mentirosa, e pior ainda, muito pior do que isso. Que espécie de mulher
rouba a felicidade aos do seu próprio sangue, por ela não sentir nenhuma? Foi o Murphy
que me contou, — disse Maggie, secamente. — Depois de ele e o Rory andarem à
pancada forte e feio. O Rory não acreditou quando ele negou. Porque haveria de
acreditar, se a própria mãe da Brianna lhe contara a história com lágrimas nos olhos?
— Ela era muito nova para casar, — retorquiu Maeve, com rapidez. — Não queria que
ela cometesse o mesmo erro que eu, que arruinasse a vida daquela forma. O rapaz não
era o certo para ela, acredita. Nunca haveria de chegar a lado nenhum.
— Ela amava-o.
— O amor não enche barriga. — Maeve cerrou os punhos, torcendo o lenço lá dentro.
— Porque é que não lhe contaste?
— Por achar que a ia magoar ainda mais. Pedi ao Murphy para não dizer nada,
conhecendo o orgulho da Brianna, e como ficaria dilacerada. Talvez tivesse ficado
zangada por ele acreditar em ti, que não a amasse o suficiente para descobrir a mentira.
Mas agora vou-lhe contar. Vou entrar naquela cozinha e contar-lhe agora. E se for
preciso, arrasto o desgraçado do Murphy até aqui para ser minha testemunha. Vais ficar
sem ninguém.
Ela não sabia que o sabor da vingança podia ser tão amargo. Permaneceu frio e
desagradável na língua de Maggie, enquanto prosseguia. — Se fizeres o que te digo, não
lhe conto nada. E prometo que não te faltarei com nada enquanto fores viva e que farei o
que puder para que estejas satisfeita. Não te posso devolver o que tiveste, ou quiseste ter
antes de engravidares de mim. Mas posso dar-te algo que te pode fazer mais feliz do que
alguma vez foste, desde essa altura. A tua própria casa. Só tens de aceitar a minha oferta
para teres tudo o que sempre quiseste — dinheiro, uma boa casa e uma empregada para
te servir.
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Maeve uniu os lábios com força. Oh, aquilo dilacerava-lhe o orgulho de regatear com a
rapariga. — Como é que sei que vais manter a tua palavra?
— Porque te garanto. Porque juro tudo o que já disse pela alma do meu pai. — Maggie
levantou-se. — Vais ter que te contentar com isso. Diz à Brianna que venho cá buscá-la
amanhã às dez. — E com estas palavras, Maggie deu meia volta e afastou-se.
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CAPÍTULO DOZE
Não teve pressa no regresso, preferindo outra vez ir pelos campos em vez de pela
estrada. Pelo caminho apanhou flores, as ulmeiras e as valerianas que se banhavam ao
Sol por entre a erva. As vacas bem alimentadas de Murphy, as tetas cheias e prontas
para serem mungidas, pastavam despreocupadas, enquanto ela saltava os muros de
pedra que separavam o pasto do campo arado e o campo do feno de Verão.
Depois, avistou o próprio Murphy, em cima do tractor, acompanhado dos jovens Brian
O'Shay e Dougal Finnian, a ceifarem o feno que baloiçava. Chamavam-lhe comhair, em
irlandês, mas Maggie sabia que, aqui no oeste, a palavra significava mais do que a sua
tradução literal, "ajuda". Significava comunidade. Aqui, homem nenhum estava
sozinho, não quando o assunto era a ceifa, ou abrir um canal na turfeira, ou até a
sementeira na Primavera.
Se hoje o O'Shay e o Finnian estavam a trabalhar a terra de Murphy, amanhã, ou depois
de amanhã, ele estaria a trabalhar a deles. Ninguém tinha de pedir. O tractor ou o arado,
ou até mesmo um bom par de mãos e costas fortes, haveriam de surgir e o trabalho
aparecia feito.
Os muros de pedra podiam separar os campos de um homem dos de outro, mas o amor
pela terra unia-os.
Ela levantou a mão para responder ao cumprimento dos três agricultores e, a colher
flores, continuou para casa.
Uma gralha esvoaçava acima da sua cabeça, num queixume intenso. Momentos depois,
Maggie viu o motivo, ao encontrar Con a abrir caminho pela borda do feno, com a
língua pendurada de felicidade.
— Outra vez a ajudar o Murphy, não é? — Baixou-se para lhe fazer uma festa no pêlo.
— Que belo agricultor me saíste. Vai lá, então.
Com uma sinfonia de latidos de quem se acha muito importante, Con correu de volta
para o tractor. Maggie ficou a olhar em volta, o dourado do feno, o verde do pasto com
as vacas ociosas e as sombras deixadas pelo Sol no círculo de pedras que gerações de
Concannons, e agora o Murphy, deixaram intacto por tempos insondáveis. Ela reparou
no castanho farto da terra onde haviam sido semeadas as batatas. Por cima de toda a
imensidão, um céu azul como uma centáurea azul em pleno esplendor.
Uma gargalhada rápida saltou-lhe da garganta e deu por si a correr o resto do percurso.
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Talvez fosse o puro prazer do dia, juntamente com a excitação vertiginosa do seu
primeiro grande sucesso, que lhe fizera o sangue bombear mais depressa. Ou até o som
dos pássaros a cantar, como se os seus corações se fossem partir, ou o aroma das flores
silvestres, colhidas pelas suas próprias mãos. Mas quando parou mesmo à porta de casa
e olhou para a cozinha, ficou sem fôlego mais rapidamente do que se trepasse pelos
campos acima.
Ele estava sentado à mesa, elegante no fato inglês e sapatos feitos à medida. A pasta
aberta, a caneta cá fora. Sorriu ao vê-lo trabalhar ali, no meio da confusão, numa rude
mesa de madeira que ele podia ter usado como lenha em casa.
O Sol penetrava pelas janelas e pela porta aberta, lançando raios dourados ao bater na
caneta, enquanto ele escrevia com a mão delicada. Depois, bateu com os dedos nas
teclas de uma calculadora, hesitando, voltando a bater. Conseguia ver-lhe o perfil, a
linha subtil de concentração entre as sobrancelhas negras espessas, o contorno firme da
boca.
Pegou no chá, bebendo enquanto estudava as contas. Voltou a pousá-lo. Escrevia, lia.
Estava muito elegante. E belo, pensava ela, numa forma tão unicamente masculina,
competente e preciso como a maquinazinha útil que ele usava para fazer contas. Não era
homem para correr pelos campos solarengos ou deitar-se a sonhar à luz da lua.
Mas ele era mais do que ela imaginara a princípio, muito mais, percebia agora.
Sentiu-se dominar por um desejo avassalador de desapertar aquele nó de gravata
cuidadoso, desabotoar o colarinho apertado e descobrir o homem no seu interior.
Maggie raramente repelia os seus desejos.
Entrou em silêncio. Assim que a sua sombra caiu sobre os papéis dele, já se sentava ao
seu colo, apertando a boca na dele.
Choque, prazer e luxúria trespassaram-no como uma seta de três pontas, todas aguçadas,
todas certeiras. A caneta deslizara-lhe dos dedos, levando as mãos ao cabelo dela, antes
de conseguir respirar. No turbilhão, sentiu o puxão na gravata.
— O que foi? — Conseguiu indagar numa espécie de lamúria. A urgência da dignidade
levou-o a pigarrear e a empurrá-la para trás. — O que se passa?
— Tu sabes... — Ela marcou as palavras pregando beijos leves por todo o seu rosto.
Apercebeu-se que ele cheirava a perfumes caros, a bons sabonetes e lençóis de linho
engomados. — Sempre achei que as gravatas eram um acessório idiota, uma espécie de
castigo para o homem por simplesmente ser homem. Não te sufoca?
153
Na verdade não, excepto agora que tinha o coração a sair pela boca. — Não. —
Afastou-lhe as mãos, mas já não havia nada a fazer. Por baixo dos dedos rápidos dela, a
gravata desapertou-se e o colarinho abriu-se. — O que é que estás a fazer, Maggie?
— Devia ser bastante óbvio, até para um dublinense. — Riu-se para ele, os olhos verdes
matreiros. — Trouxe-te flores.
As pobres estavam esmagadas entre eles. Rogan olhou para baixo, vendo as pétalas
amassadas. — Muito bonitas. Imagino que devam precisar de água.
Ela lançou a cabeça para trás, a rir. — Contigo, há que tratar sempre das prioridades,
não é? Mas Rogan, de onde estou sentada, parece evidente que não estás só a pensar em
ir buscar uma jarra.
Ele não podia negar a sua reacção óbvia e bastante humana. — Até conseguias excitar
um morto, — murmurou, fazendo força com as mãos sobre as ancas dela, para a
levantar. Ela aproximou-se ainda mais, torturando-o.
— Tenho a certeza que me fizeste um elogio. Mas não estás morto, pois não? — Voltou
a beijá-lo, tirando partido dos dentes para provar que tinha razão. — Estás a pensar que
tens trabalho a fazer e que não tens tempo a perder?
— Não. — Ainda tinha as mãos nas ancas dela, mas havia enterrado os dedos e
começara a massajar. Ela cheirava a flores silvestres e a fumo. Tudo o que via era o seu
rosto, a pele branca com o rubor cor-de-rosa, salpicos de sardas douradas, as
profundezas dos seus olhos verdes. Encetou um esforço heróico para nivelar a voz. —
Mas estou a pensar que isto é um erro. — Na sua garganta ouviu-se um gemido quando
ela lhe passou os lábios pela orelha. — Que existe uma altura e um lugar certos.
— E que deves ser tu a escolhê-los, — murmurou ela enquanto os dedos ágeis lhe
desabotoavam o resto da camisa.
— Sim... não. — Valha-me Deus, o que é que um homem devia pensar? — Que ambos
devemos escolhê-los, depois de estabelecermos algumas prioridades.
— Neste momento só tenho uma prioridade. — Ela cruzou as mãos sobre o peito dele,
esmagando-lhe pétalas de flores por toda a pele.
— Vou ter-te agora, Rogan. — O riso dela regressou, baixo e desafiador, antes de
mergulhar os lábios nos dele. — Força, vê se consegues repelir-me.
Ele não quisera tocar-lhe. Era o seu último pensamento coerente antes de subir as mãos
e de as encher com os seios dela. O gemido gutural dela espalhou-se pela sua boca
como vinho, rico e inebriante.
Nessa altura, já ele lhe arrancava a camisa e se afastava da mesa em simultâneo. — Que
se lixe, — murmurou com a boca colada na dela, ávida, levantando-a.
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Ela enrolou os braços e as pernas à volta dele como um cordão de seda, a camisa
pendurada por um braço, onde os botões ainda estavam apertados. Por baixo, trazia uma
camisola de algodão simples, tão erótica para ele quanto rendas de ébano.
Era pequena e leve, mas da forma como o sangue lhe latejava no cérebro, sabia que
podia até levantar uma montanha. A boca atarefada dela nunca parava, correndo da face
para o maxilar, para a orelha e regressando, enquanto ecoava gemidos sensuais na
garganta.
Ele saiu da cozinha, tropeçando num tapete solto e batendo com as costas dela na
ombreira da porta. Ela riu-se, agora sem fôlego, apertando as pernas ainda mais à volta
dele.
Os seus lábios voltaram a unir-se num beijo ávido e desesperado. Como a ombreira da
porta e as próprias pernas a seguravam, ele libertou a boca para a colar ao seio dela,
chupando voraz através do algodão.
O prazer que ela sentia, obscuro e adverso, trespassava-lhe o corpo como uma lança.
Isto era imenso, apercebeu-se ela assim que o sangue que lhe corria nas veias começou a
vibrar como um motor. Muito mais intenso do que ela esperara. Não se poderia ter
preparado para aquilo. Mas não havia volta possível.
Girando, ele afastou-se da parede.
— Depressa, — foi tudo o que ela conseguiu dizer, assim que ele começou a subir as
escadas. — Depressa.
As suas palavras pulsavam ao ritmo do sangue dentro das veias. Depressa. Depressa.
Encostado ao coração ribombante dele, o dela respondia furiosamente. Com Maggie
agarrada a ele como um ouriço, Rogan tinha de saltar os degraus, deixando um rasto de
flores partidas pelo caminho.
Virou infalivelmente à esquerda, na direcção do quarto, onde o Sol inundava tudo de
tons dourados e a brisa fragrante levantava as cortinas abertas. Caiu com ela em cima
dos lençóis já desalinhados.
Se foi a loucura que tomou conta dele, também a dominou a ela. Da parte de ambos, não
havia pensamento ou necessidade de carícias meigas, de palavras doces ou mãos
vagarosas. Lançaram-se um ao outro, imprudentes como animais, arrancando as roupas,
puxando, esticando, pontapeando os sapatos, na ânsia constante de alimentar beijos
violentos.
O corpo dela era como um motor, atestado para a competição. Contorceu-se, rolou e
deslizou, com a respiração golpeada por arquejos ardentes. Costuras rasgadas, ânsias
exploradas.
Ele tinha as mãos macias. Se a ocasião fosse outra, poderiam ter escorrido pelo corpo
dela como água. Mas, de momento, elas agarravam, magoavam e pilhavam, arrancando
um prazer incomensurável que trespassava o corpo dela, como os raios dilaceram o céu
tenebroso. Ele voltou a encher as mãos com os seios dela e agora, sem barreiras, levou
os mamilos duros à boca.
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Ela gritou, não de dor pelo roçar duro dos dentes e da língua dele, mas de glória
enquanto o primeiro orgasmo, severo e perverso, a atingia como um golpe.
Não esperara que a atingisse tão rápido e com tanta intensidade, nem experimentara o
abandono que lhe foi imediato, no rescaldo da tempestade. Antes de conseguir recuperar
do espanto, novas ânsias dilaceravam-na por dentro.
Falou em gaélico, quase recordando as palavras que não sabia reter dentro do coração.
Nunca acreditara, nunca, que o desejo a podia engolir, deixando-a trémula. Mas
estremeceu às mãos dele, sob a urgência selvagem da sua boca. Durante outro interlúdio
atordoante, ficou totalmente vulnerável, os ossos derretidos e a mente descontraída,
abismada pela rendição causada pelo assombro do seu próprio clímax.
Ele nem sentiu a mudança. Apenas sabia que ela vibrava debaixo dele como um arco
disparado. Estava húmida e quente, numa excitação insuportável. O corpo dela era
macio, suave, flexível, todas as reentrâncias e curvas eram dele para explorar. Conhecia
apenas o desejo desesperado de conquista, de posse, deleitando-se com o sabor da sua
carne até parecer que a essência dela corria pelas suas veias como o próprio sangue.
Agarrou-lhe na mão magoada e possuiu-a, até ela gritar outra vez o nome dele como um
gemido no ar.
O quarto girava como um carrossel à volta dela que, soltando as mãos das dele, lhe
entrelaçou os dedos no cabelo. De novo o desejo trespassava-a, vorazmente. Ergueu as
ancas.
— Agora! — A intimação saltara-lhe da garganta. — Rogan, por amor de Deus...
Mas ele já mergulhara dentro dela, fundo e intenso. Ela arqueara-se para trás, para cima,
numa recepção gloriosa enquanto o prazer aspergia pelo corpo num relâmpago
lancinante e em fusão. O corpo dela encontrou o dele, encompassando os ritmos, toque
por toque desesperado. Ele não sentiu as unhas dela a arranhar as costas.
Com a visão turva e nublada, observou-a, viu cada sensação avassaladora passar pelo
seu rosto. Não era suficiente, pensou ele, ainda tonto. Até mesmo quando o
arrependimento tentava espreitar pela armadura brilhante da paixão, ela abriu os olhos e
voltou a pronunciar o seu nome.
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Então, ele afogou-se naquele mar verde e, enterrando o rosto no fogo do cabelo dela,
rendeu-se. Com um último raio de desejo glorioso, esgotou-se dentro dela.
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— Não vou. — Percebeu que ela não tinha a cabeça apoiada e, colocando a mão em
concha debaixo dela, rolou para inverterem as posições. Quase os lançou para a outra
berma da cama. — Como é que consegues dormir numa cama deste tamanho? Mal cabe
aqui um gato.
— Oh, para mim chega bem. Mas estava a pensar em comprar outra, agora que tenho
dinheiro para gastar. Uma das grandes, como aquela em tua casa.
Ele pensou numa de quatro postes da Chippendale, naquela casa minúscula e sorriu.
Depois, os pensamentos regressaram e tiraram-lhe o sorriso do rosto. — Maggie. — A
expressão dela brilhava, os olhos semi-cerrados. No rosto trazia estampado um ligeiro
sorriso presunçoso.
— Rogan, — disse ela no mesmo tom curioso, rindo depois. — Oh, não vais começar a
dizer que lamentas ter devassado a minha honra ou alguma coisa desse género? Se a
honra de alguém foi devassada, afinal de contas, foi a tua. E não me arrependo nem um
bocadinho.
— Maggie, — repetiu ele, tirando-lhe o cabelo despenteado da cara. — Que mulher me
saíste. É difícil arrepender-me da desonra, ou por ser desonrado quando... — Não
aguentara. Levantara-lhe a mão enquanto falava, começara a beijar-lhe os dedos,
quando o olhar aterrou nas marcas escuras no braço dela. Espantado, começou. —
Magoei-te.
— Mmm. Agora que falas nisso, estou a começar a sentir. — Rodou o ombro. — Devo
ter batido com muita força na ombreira da porta. O que é que ias dizer?
Ele saiu de cima dela. — Lamento imenso, — disse, num tom de voz estranho. — Não
tenho desculpa. Pedi-la seria inadequado, tendo em conta o meu comportamento.
Ela inclinou a cabeça, olhando profundamente para ele. Era a educação, pensou ela de
novo. De que outra forma poderia um homem nu em pêlo, sentado numa cama
desalinhada parecer tão digno. — O teu comportamento? — Repetiu ela. — Diria antes
que foi mais o nosso comportamento, Rogan, e que ambos participámos bem nele. —
Rindo para ele, puxou-se para cima e prendeu os braços à volta do seu pescoço. —
Achas que algumas nódoas negras me farão murchar como uma rosa, Rogan? Não vão,
prometo, especialmente porque foram merecidas.
— A questão é que...
— A questão é que andámos às cambalhotas um com o outro. Agora, pára de agir como
se eu fosse uma florzinha frágil que não consegue admitir que gostou de uma boa e
quente sessão de sexo. É que gostei bastante e tu, meu querido amigo, também.
Ele passou a ponta do dedo pela subtil nódoa negra, acima do pulso dela. — Preferia
não te ter deixado marcada.
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De seguida não sentiu nada, a não ser o vento selvagem que a lançava alto, e mais alto,
exacerbando aquele pico lancinante. Desesperada, tentava respirar como uma mulher
que se afoga, expelindo em seguida um gemido longo e lânguido.
Depois, momentos depois, quando achou que já conseguia falar, aninhou-se nos braços
dele. — Já fizeste os telefonemas todos? Ele riu-se e levou-a para fora da cozinha.
Era muito cedo quando ele a deixou. Aguaceiros com Sol lançavam arco-íris ondulantes
no céu matinal. Sonolenta, oferecera-se para lhe fazer o chá da manhã, mas deixara-se
dormir de novo. Por isso, ele fora sozinho para a cozinha.
Encontrara no armário um frasco miserável com café instantâneo endurecido. Apesar de
ter hesitado, Rogan contentara-se com ele, e com o único ovo que ela tinha no
frigorífico.
Começava a arrumar, tentando pôr as coisas em ordem, os papéis espalhados, quando
ela entrou aos tropeções na cozinha. Trazia os olhos inchados e sonolentos, quase sem
conseguir cumprimentá-lo enquanto se dirigia para a chaleira.
Era uma vez, pensou ele, as despedidas dos amantes.
— Utilizei a que parecia ser a tua última toalha limpa.
Ela voltou a grunhir e serviu-se de um chá.
— E acabou a água quente a meio do duche.
Desta vez, limitou-se a bocejar.
— Já não tens ovos.
Ela resmungou, o que parecia algo como — As galinhas de Murphy.
Ele bateu com os papéis juntos e guardou-os na pasta. — Deixei os recortes que querias
em cima do balcão. Hoje à tarde vai passar por cá um camião para levar a encomenda.
Tens de a embalar antes da uma hora.
Percebendo que não ia ter resposta, fechou a pasta. — Tenho de ir. — Aborrecido,
avançou na direcção dela, pegou-lhe no queixo com firmeza e beijou-a. — Também vou
ter saudades tuas.
Já ele tinha saído porta fora quando ela teve noção do que acontecera e correu atrás
dele. — Rogan! Por amor dos santos, espera um minuto. Ainda mal abri os olhos.
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Ele virou-se ao mesmo tempo que ela lhe saltou para cima. Desequilibrado, quase
caíram ambos em cima do canteiro das flores. Depois, agarrando-a com força, roubaram
o fôlego um do outro com um beijo, debaixo da chuva macia e luminosa.
— Vou ter saudades tuas, bolas. — Apertou o rosto contra o ombro dele, suspirando.
— Vem comigo. Atira uma roupas para dentro da mala e vem comigo.
— Não posso. — Recuou, surpreendida pela pena que sentia em ter de recusar. —
Tenho de tratar de algumas coisas. E eu... não consigo trabalhar em Dublin.
— Não, — concordou ele, algum tempo depois. — Também acho que não.
— Podes voltar? Daqui a um ou dois dias?
— Agora não é possível. Dentro de umas duas semanas, talvez possa.
— Bom, não é assim tanto tempo. — Parecia uma eternidade. — Podemos ambos tratar
da nossa vida, e depois...
— E depois. — Atirou-lhe um beijo. — Pensa em mim, Margaret Mary.
— Vou pensar.
Ficou a vê-lo partir, levando a pasta para dentro do carro, a dar à ignição, a entrar na
estrada de marcha atrás.
Ali permaneceu bastante tempo, até depois de o ruído do carro ter desaparecido, até a
chuva parar e o Sol coroar a manhã.
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CAPÍTULO TREZE
Maggie atravessou a sala de estar vazia, olhando demoradamente pela janela principal,
para depois inverter o caminho que fizera. Era a quinta casa que levara em conta numa
semana, a única que não estava ocupada por vendedores esperançosos e a última que
tencionava visitar.
Ficava nos subúrbios de Ennis, um pouco mais afastada do que Brianna gostaria — e
não o suficiente para o gosto de Maggie. Era nova, o que trabalhava a seu favor, uma
casa tipo caixote com as divisões todas no mesmo piso.
Dois quartos, imaginou Maggie ao atravessá-la outra vez. Uma casa de banho, uma
cozinha com sala de jantar, uma área para sala de estar, com bastante luz e uma lareira
em tijolo impecável.
Deu uma última olhadela, com os punhos apoiados nas ancas. — É isto mesmo.
— Maggie, tem de certeza as dimensões certas para ela. — Brianna mordia o lábio
enquanto examinava a sala vazia. — Mas não devíamos escolher uma mais perto de
casa?
— Porquê? De qualquer forma, ela odeia o sítio onde mora.
— Mas...
— E esta fica perto de mais lojas. De mercearias, da farmácia, de lugares para ir comer
fora, caso lhe apeteça.
— Ela nunca sai.
— Já está na altura. E como tu não vais saltar de cada vez que ela estalar os dedos, vai
ter de ser, não achas?
— Eu não salto. — Com a coluna rígida, Brianna foi até à janela. — Para ser sincera,
ela vai-se recusar a mudar para cá de qualquer forma.
— Não se há-de recusar. — Não, pensava Maggie, com a espada que lhe vou apontar
entre ela e a parede. — Se por momentos abdicares dessa culpa que adoras deitar sobre
ti, tens de admitir que é o melhor para todos. Ela vai ser mais feliz na casa dela... ou tão
feliz quanto uma mulher da natureza dela pode ser. Podes deixá-la levar o que quiser lá
de casa, se isso te alivia a consciência, ou então dou-lhe dinheiro para comprar coisas
novas. Acho que ela ia preferir assim.
— Maggie, a casa não tem graça nenhuma.
— Tal como a nossa mãe. — Antes que Brianna pudesse retorquir, Maggie foi ter com
ela e passou o braço por cima dos seus ombros tensos.
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— Não sei a resposta. Algumas pessoas não se satisfazem com menos que isso.
— Não podemos mudar nada, — comentou Maggie, firme. — Mas podemos dar-lhe
isto, vamos todos dar-lhe isto.
Como o dinheiro se gastava num ápice, pensava Maggie alguns dias depois. Parecia que
quanto mais se tinha, mais se precisava. Mas a escritura da casa estava agora no nome
de Maeve, e os pormenores, as dezenas deles que implicavam montar uma casa,
estavam a ser tratados, um por um.
Era uma pena que os pormenores da sua própria vida parecessem ficar suspensos no
limbo.
Quase não falara com Rogan, pensava ao sentar-se na mesa da cozinha. Oh, ele enviara
mensagens através da Eileen e do Joseph, mas raras vezes se incomodara a contactá-la
directamente. Ou a regressar, como dissera que faria.
Bom, não havia problema, pensava ela. De qualquer forma, estava ocupada. Tinha uma
quantidade de esboços que estava a transpor para vidro. Se porventura se atrasou a
começar nessa manhã, era só porque ainda não decidira a que projecto se dedicaria
primeiro.
De certeza que não era por estar à espera que o raio do telefone tocasse.
Levantou-se e caminhava para a porta quando viu Brianna pela janela, com o cão
dedicado a segui-la.
— Óptimo. Ainda bem que te apanhei antes de começares a trabalhar. — Brianna pegou
no cesto que trazia debaixo do braço, ao entrar na cozinha.
— Vieste mesmo a tempo. Está tudo a correr bem?
— Bastante. — Rápida e eficiente, Brianna destapou os muffins a fumegar que trouxera
consigo. — Termos encontrado a Lottie Sullivan foi como uma dádiva de Deus. —
Sorriu, ao pensar na enfermeira reformada que haviam contratado para fazer companhia
a Maeve. — Ela é simplesmente maravilhosa, Maggie. Parece que já faz parte da
família. Ontem, quando eu estava a trabalhar nos canteiros da frente da casa, a mãe só
se queixava em como o ano já ia avançado para plantar e da tinta da fachada ter a cor
errada. Oh, só para ser do contra. A Lottie só se ria, discordando com tudo o que ela
dizia. Juro-te, as duas estavam a divertir-se à grande.
— Quem me dera ter assistido. — Maggie abriu um muffin ao meio. Só o aroma que
emanava, bem como a imagem que Brianna lhe colocara na cabeça, quase a fizeram
adiar o trabalho dessa manhã. — Descobriste um tesouro, Brie. A Lottie vai mantê-la na
linha.
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— É melhor do que isso. Ela gosta mesmo de o fazer. Sempre que a mãe diz alguma
coisa horrível, a Lottie desata a rir, pisca o olho, e depois vai à vida dela. Nunca pensei
dizê-lo, Maggie, mas acho mesmo que isto vai resultar.
— Claro que vai resultar. — Maggie atirou um pedaço de muffin ao Con, que esperava,
ansioso e paciente. — Perguntaste ao Murphy se ajudava na mudança da cama e das
outras coisas que ela quer?
— Nem foi preciso. Já se soube que lhe compraste uma casa perto de Ennis Por acaso,
já passaram lá por casa uma dúzia de pessoas nas últimas duas semanas. O Murphy já
ofereceu as costas e a carrinha.
— Então vamos mudá-la perfeitamente com a Lottie antes do final da próxima semana.
Comprei uma garrafa de champanhe, e vamos embebedar-nos quando tudo estiver
resolvido.
Brianna torceu os lábios, mas a voz parecia sóbria. — Não vejo motivo para
comemorar.
— Então apareço lá em casa, só por acaso, — retorquiu Maggie, com um sorriso
irónico. — Com uma garrafa de espumante debaixo do braço.
Apesar de Brianna retribuir o sorriso, o seu coração não fora sincero. — Maggie, tentei
abordar o assunto de ela cantar. — Lamentou ver a luz que se perdia no olhar da irmã.
— Achei que devia.
— Claro que devias. — Perdendo o apetite pelo muffin, Maggie atirou o resto ao Con.
— Tiveste mais sorte do que eu?
— Não. Ela não quis falar comigo, só se chateou. — Não valia a pena contar os
impropérios verbais um por um, pensou Brianna. Se o fizesse, apenas serviria para
disseminar mais rapidamente a infelicidade. — Fechou-se no quarto, mas levou os
recortes com ela.
— Bom, isso já é alguma coisa. Talvez a possam consolar. — Maggie deu um salto
quando o telefone tocou, levantando-se da cadeira tão depressa que Brianna ficou de
boca aberta. — Estou. Oh, Eileen, não é? — A desilusão na sua voz não deixava
margem para dúvidas. — Sim, tenho as fotografias que enviou para o catálogo.
Parecem-me bastante bem. Talvez devesse dizer pessoalmente ao Sr. Sweeney que... oh,
numa reunião. Não, não faz mal, pode transmitir-lhe que as aprovei. Não tem de quê.
Adeus.
— Atendeste o telefone, — comentou Brianna.
— Claro que atendi. Tocou, não tocou?
O tom agressivo na voz da irmã levou Brianna a arquear as sobrancelhas. — Estavas à
espera de um telefonema?
— Não. Porque é que achaste que sim?
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— Bom, pela forma como foste a correr, como se fosses tirar uma criança da frente de
um carro.
Oh, tê-lo-ia feito? Pensava Maggie. Teria feito aquilo? Era humilhante. — Não gosto
que o maldito aparelho se ponha a tocar-me aos ouvidos, só isso. Tenho de ir trabalhar.
— Em jeito de despedida, saiu apressada da cozinha.
Não se importava minimamente se ele telefonava ou não, convencia-se Maggie. Talvez
já tivessem passado três semanas desde que ele voltara para Dublin, talvez só tivesse
falado com ele duas vezes em todo aquele tempo, mas isso não lhe importava nada.
Estava demasiado ocupada para se incomodar com conversas da treta ao telefone, ou a
entretê-lo, se viesse fazer-lhe uma visita.
Tal com ele afirmara, para mal dos seus pecados, acrescentou ela em silêncio, batendo
com a porta da oficina.
Não precisava da companhia de Rogan Sweeney, nem de ninguém. Tinha-se a si mesma.
Maggie pegou no tubo e pôs mãos à obra.
A sala de jantar formal dos Connelly haveria de lembrar Maggie, se tivesse sido
convidada, de um cenário que vira na telenovela pirosa, que passara na televisão no dia
em que o pai morrera. Tudo brilhava, luzia e cintilava. Vinho vintage do melhor dava
uma tonalidade dourada aos copos de cristal, que projectavam arco-íris nas faces
laterais. Velas, finas e brancas, combinavam a elegância da luz espraiada do candelabro
de cinco fileiras.
As pessoas à volta da mesa adornada com uma toalha de renda pareciam tão polidas
quanto a sala. Anne, vestida de seda cor de safira e com os diamantes da avó, era a
imagem da anfitriã graciosa. Dennis, corado devido à farta refeição e à companhia ainda
melhor, cintilava ao olhar para a filha. Patrícia estava particularmente bonita, tão
delicada quanto as pérolas cor-de-rosa pastel e cremes que ostentava.
À sua frente, Rogan bebia o vinho e lutava por não deixar a mente vaguear para oeste,
na direcção de Maggie.
— É tão agradável desfrutar de uma refeição sossegada, em família. — Anne espetava a
porção miserável de faisão que tinha no prato. A balança avisara-a que engordara um
quilo no último mês, e isso não podia ser. — Espero que não estejas desiludido por não
termos convidado um grupo, Rogan.
— Claro que não. É um prazer, dos raros para mim, nos dias que correm, passar uma
noite calma com amigos.
— Era exactamente isso que dizia ao Dennis, — continuou Anne.
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— Estou certa que o Rogan te vai ajudar com a gestão do projecto, Patrícia. —
Prosseguiu Anne. — Afinal de contas, não tens experiência nenhuma.
— É minha filha, não é? — Observou Dennis, piscando o olho. — Então, há-de correr
tudo bem.
— Tenho a certeza que sim. — De novo, Anne esticou-se para tocar com o pé na canela
do marido.
Esperou até se encontrar na saleta com a filha, enquanto os homens se demoravam a
beber vinho do porto na sala de jantar — um costume que Anne se recusava a aceitar e
que estava ultrapassado. Dispensou a empregada que levara o carrinho com o café, para
encurralar a filha.
— Estás à espera de quê, Patrícia? Estás a deixar o homem escapar por entre os dedos.
— Por favor, não comeces. — Patrícia já sentia o martelar incessante de uma dor de
cabeça em curso.
— Imagino que queiras ficar viúva o resto da tua vida. — De olhos irados, Anne deitou
natas na chávena. — Digo-te que já passou tempo suficiente.
— Já me dizias isso assim que fez um ano que o Robert morreu.
— E é a pura verdade. — Anne suspirou. Odiara ver o sofrimento da filha, ela própria
chorara bastante, não só pela perda do genro que amava, mas pela dor que não
conseguira afastar dos olhos de Patrícia. — Querida, por mais que todos desejemos que
não seja assim, o Robert morreu.
— Eu sei disso. Já aceitei e estou a tentar seguir em frente.
— Inaugurando um centro de tempos livres para os filhos dos outros?
— Sim, em parte. Faço isso por mim, mãe. Por precisar de trabalhar, da satisfação que
isso me dá.
— Já desisti de tentar conversar contigo sobre isso. — Num gesto apaziguador, Anne
ergueu as mãos. — Se é isso que queres, de verdade, então é também o que eu quero.
— Obrigada pelo apoio. — O rosto da Patrícia serenou ao debruçar-se para beijar a face
da mãe. — Sei que só queres o melhor para mim.
— É verdade. Por isso mesmo é que quero o Rogan para ti. Não, não me vires a cara,
menina. Não podes afirmar que também não o queres.
— Gosto dele, — disse Patrícia, com cautela. — Muito. Sempre gostei.
— E ele de ti. Mas estás a retrair-te, com demasiada paciência, à espera que ele dê o
próximo passo. E enquanto esperas, ele tornou-se distraído. Até uma cega consegue ver
que ele não está só interessado na arte daquela mulher, a Miss Concannon. E ela não me
parece do tipo de esperar, — acrescentou Anne, abanando o dedo no ar. — Oh, não
mesmo. Encontra um homem com o berço e as posses do Rogan e agarra-o num abrir e
fechar de olhos.
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— Duvido muito que o Rogan se deixe apanhar, — disse Patrícia, secamente. — Ele
sabe o que faz.
— Em muitos assuntos, sim, — concordou Anne. — Mas os homens têm de ser
guiados, Patrícia. Seduzidos. Ainda não te dispuseste a seduzir Rogan Sweeney. Tens de
fazer com que ele te veja como mulher, não como a sua amiga viúva. Quere-lo, não
queres?
— Eu acho...
— Claro que queres. Agora, trata de ele te querer também.
Patrícia mal falou quando Rogan a levou a casa. Para a casa que partilhara com Robert,
a casa de que não podia abdicar. Já não entrava numa divisão à espera de o encontrar à
sua espera, ou sofria aqueles agudos golpes de dor em momentos estranhos, quando
subitamente se lembrava da vida que tiveram juntos.
Era apenas uma casa que guardava boas recordações.
Mas será que queria viver ali sozinha para o resto da vida? Será que queria passar os
dias a tomar conta dos filhos das outras mulheres, enquanto ela não tinha nenhuns para
lhe iluminarem a vida?
Se a mãe tivesse razão e Rogan fosse mesmo o que ela queria, então que mal podia fazer
um jogo de sedução?
— Não queres entrar um pouco? — Perguntou, enquanto ele a acompanhava até à porta.
— Ainda é cedo e não tenho sono nenhum.
Ele pensou na sua casa vazia e nas horas que faltavam para começar o dia de trabalho.
— Só se me arranjares um brandy.
— No terraço, — concordou ela, entrando.
A casa reflectia a elegância discreta e o bom gosto certeiro de quem lá vivia. Apesar de
sempre se ter sentido ali em casa, Rogan pensava na cabana minúscula e na cama
estreita e desalinhada de Maggie.
Até o copo de brandy o lembrava de Maggie. Pensou na forma como ela estilhaçara um
contra a lareira, num rasgo de paixão. E na encomenda que chegara dias depois, com o
que ela fizera para substituir o outro.
— Está uma noite linda, — comentou Patrícia, atraindo a atenção dele, que flutuava.
— O quê? Oh, sim. Pois está. — Girou o brandy no copo, mas não bebeu.
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Uma lua em quarto crescente dominava o céu, mistificada pelas nuvens, depois
brilhando branca e fina à medida que a brisa as dissipava. O ar estava quente e
fragrante, perturbado apenas pelo som abafado do trânsito além do parapeito.
— Conta-me mais sobre a escola, — começou ele. — Quem é o arquitecto que
escolheste? — Ela mencionou o nome de uma firma que ele aprovava. — O trabalho
deles é muito bom. Nós já trabalhámos com eles.
— Eu sei. Foi o Joseph que mos recomendou. Ele tem sido uma ajuda preciosa, apesar
de me sentir culpada por o distrair do trabalho.
— Ele consegue muito bem fazer meia dúzia de coisas ao mesmo tempo.
— Nunca se parece importar que eu passe pela galeria. — Testando-o, Patrícia
aproximou-se dele. — Tenho sentido a tua falta.
— As coisas têm andado frenéticas. — Ajeitou-lhe o cabelo atrás da orelha, um gesto
antigo, um velho hábito de que nem se dava conta. — Temos de recuperar o tempo
perdido. Há semanas que não vamos ao teatro, não é?
— Não. — Ela apanhou a mão dele, segurando-a. — Ainda bem que temos tempo
agora. Só para nós.
Um sinal de aviso ecoou-lhe na cabeça. Ignorou-o, achando ridículo e sorriu para ela. —
Temos de fazer mais coisas. Porque é que eu não passo pela propriedade que compraste,
para dar uma olhadela?
— Sabes como valorizo a tua opinião. — O coração batia-lhe no peito ligeiro, rápido.
— Como te valorizo.
Antes que pudesse mudar de opinião, inclinou-se para a frente e pressionou a boca de
encontro à dele. Se acaso houve algum alarme nos olhos dele, ela recusou-se a vê-lo.
Desta vez não fora nenhum beijo doce e platónico. Patrícia enrolou os dedos no cabelo
dele e deixou-se mergulhar. Ela queria, desesperadamente, voltar a sentir alguma coisa.
Mas os braços dele não a envolveram. Os seus lábios não aqueceram. Ali ficou ele,
imóvel como uma estátua. Não era prazer, nem era desejo que estremecia entre ambos.
Era o ar gelado do choque.
Ela recuou, viu o espanto e, pior, muito pior, o arrependimento no seu olhar. Magoada,
afastou-se dele.
Rogan pousou o brandy por beber. — Patrícia.
— Não. — Franziu os olhos com força. — Não digas nada.
— Claro que vou dizer. Tenho de o fazer. — As mãos hesitaram por cima dos ombros
dela e, por fim, reconfortaram-na. — Patrícia, sabes o quanto eu... — Que palavras
haveria a escolher? Pensou, aflito. Que palavras possíveis? — Gosto de ti, — disse,
odiando-se em seguida.
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— Fiquemos por aí. — Entrelaçou as mãos até lhe doerem os dedos. — Já me humilhei
o suficiente.
— Nunca pensei... — Voltou a condenar-se e, por se sentir tão miserável, condenou
Maggie por ter razão. — Patty, — disse, confuso. — Lamento.
— Tenho a certeza que sim. — A voz dela estava fria de novo, apesar de ele ter usado a
antiga alcunha dela. — E eu também, por te colocar nesta situação tão desagradável.
— A culpa é minha. Devia ter percebido.
— Por que razão? — Gelada, soltou-se das mãos dele, virando as costas. À luz das
estrelas, o rosto dela era frágil como o vidro, os olhos tão inexpressivos. — Estou
sempre lá, não estou? Vou aparecendo, sempre disponível para qualquer noite que
tenhas livre. Pobre Patrícia, sem ter o que fazer, a sonhar com os seus projectozinhos
para se manter ocupada. A jovem viúva que se satisfaz com uma festa na cabeça e um
sorriso indulgente.
— Isso não é verdade. Eu não sinto isso.
— Não sei o que tu sentes. — Levantou a voz, guinchou, assustando ambos. — Não sei
o que eu sinto. Só sei que quero que te vás embora, antes que digamos algo que nos
envergonhe a ambos, mais do que já estamos.
— Não te posso deixar assim. Por favor, vamos entrar e sentar-nos. Podemos conversar.
Não, pensou ela, ia desatar a chorar e pôr fim à sua mortificação. — Estou a falar a
sério, Rogan, — disse ela, determinada. — Quero que te vás embora. A única coisa que
temos a fazer é dar as boas-noites. Conheces o caminho. — Passou por ele, entrando em
casa.
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Bom, não seria parvo o suficiente para lançar os seus sentimentos aos pés de Maggie,
para que ela os esmagasse. Não agora. Não depois de também ele ter esmagado os de
alguém inadvertidamente. Podia ficar muito bem sozinho, obrigado.
Entrou na primeira sala de estar e franziu o sobrolho. Haviam colocado mais algumas
das peças dela em exposição. Um mero vislumbre do que iria em tournée nos próximos
doze meses. O globo que ela criara diante dos seus olhos brilhava na sua direcção,
parecendo conter todos os sonhos que ela alegara estarem lá aprisionados, sonhos que
agora zombavam dele, ao fitar as suas profundidades.
Sentia o mesmo quando ela não atendeu o telefone na noite anterior. Talvez precisasse
dela naquele momento, em que a culpa miserável em relação a Patrícia se apossava dele.
Precisara de ouvir a voz dela, para se sentir embalado. Em vez disso, ouvira a sua
própria voz, nítida e precisa no atendedor de chamadas. Ela recusara-se a fazer uma
gravação sua. Por isso, em vez de uma conversa tranquila, talvez até íntima, pela noite
dentro, deixara uma mensagem brusca que iria, sem dúvida, aborrecer Maggie tanto
quanto o aborrecera a ele.
Céus, como a queria.
— Ah, exactamente o homem que queria encontrar. — Alegre como um pisco, Joseph
entrou na sala. — Vendi a Carlotta. — O sorriso de satisfação de Joseph transformou-se
em curiosidade quando Rogan se voltou. — O dia corre mal?
— Já tive melhores. A Carlotta, dizes tu? A quem?
— A uma turista americana que entrou aqui esta manhã. Ela ficou absolutamente
maravilhada com a Carlotta. Vamos enviá-la... isto é, o quadro... para um lugar
chamado Tucson.
Joseph sentou-se no canto da poltrona de dois lugares e acendeu um cigarro, para
comemorar. — A americana disse que adora nus primitivos e a nossa Carlotta
certamente que era primitiva. Eu também aprecio bastante nus, mas a Carlotta nunca
fez o meu género. Demasiado larga de anca... e nas pinceladas. Bom, digamos que o
artista não era nada subtil.
— Era um óleo excelente, — comentou Rogan, distraído.
— No seu género. Mas como prefiro algo um pouco menos óbvio, não lamento nada ver
a Carlotta partir para Tucson. — Tirou um pequeno cinzeiro com tampa do bolso e
bateu com o cigarro. — Oh, e aquela série de aguarelas, do escocês? Chegou há uma
hora. É um trabalho magnífico, Rogan. Acho que descobriste outra estrela.
— Pura sorte. Se não tivesse ido àquela fábrica em Inverness, nunca teria visto os
quadros.
— Um artista de rua. — Joseph abanou a cabeça. — Bom, não por muito tempo, isso
posso garantir. Existe uma qualidade maravilhosamente mística no trabalho, algo frágil
e austero. — O dente brilhou, ao sorrir. — E também tem um nu, para compensar a
perda da Carlotta. Tenho de admitir que é mais do meu agrado. Ela é elegante, algo
delicada e com uma expressão algo triste. Apaixonei-me perdidamente.
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— Isso é absurdo...
— Pedi que me ouvisses, — disse, num tom que o obrigou a olhá-la com surpresa. — E
vais ouvir. Sempre estiveste por perto, desde quando eu tinha, o quê... catorze, quinze
anos? E depois apareceu o Robbie. Estava tão apaixonada que não precisava de pensar,
nem havia tempo para isso. Tudo girava à volta dele, e em montarmos casa juntos,
construir um lar. Quando o perdi, pensei que também ia morrer. Sabe Deus como o quis.
A única coisa que Rogan podia fazer era pegar-lhe na mão. — Eu também gostava dele.
— Eu sei que sim. E foste tu que me ajudaste a ultrapassar. Ajudaste-me no luto, e
depois a dar a volta por cima. Contigo podia falar do Robbie, e rir ou chorar. Para mim,
foste o melhor dos amigos, por isso era natural que te amasse. Pareceu-me sensato
esperar até que me visses como uma mulher, em vez de como uma velha amiga. Então,
não seria natural para ti apaixonares-te por mim, e pedir-me em casamento?
Ele movia os dedos inquietos debaixo dos dela. — Se tivesse prestado mais atenção...
— Mesmo assim não ias ver nada que eu não quisesse que visses, — acabou ela. — Por
motivos que prefiro não abordar, decidi que eu própria daria o próximo passo, a noite
passada. Quando te beijei, esperava sentir, oh, um monte de estrelas e feixes de luz.
Meti na cabeça que te ia beijar, porque pensava que era tudo por que ansiara, toda
aquela excitação e arrebatamento, maravilhoso e aterrador. Queria tanto senti-los de
novo. Mas não senti.
— Patrícia, não é que eu... — Interrompeu-se, franzindo o olhar. — Desculpa?
Ela riu-se, confundindo-o ainda mais. — Quando acabei o meu vale de lágrimas bem
merecido, pensei naquela situação toda. Não foste só tu quem foi apanhado de surpresa,
Rogan. Apercebi-me que não senti nada quando te beijei.
— Nada de nada, — repetiu ele, passados alguns instantes.
— Nada, a não ser embaraço por nos ter colocado a ambos numa situação bastante
caricata. Percebi que, apesar de te amar muito, não estou de maneira nenhuma
apaixonada por ti. Foi apenas como beijar o meu amigo mais íntimo.
— Estou a ver. — Era ridículo sentir-se como se a sua virilidade tivesse sido
impugnada. Mas ele era, afinal de contas, um homem. — Mas que sorte, não achas?
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Ela conhecia-o bem. Rindo, pressionou a mão dele no rosto. — Agora insultei-te.
— Não, nada disso. Estou aliviado por termos esclarecido tudo. — O seu olhar doce
levou-o a praguejar. — Está bem, raios partam, até me insultaste. Ou pelo menos
beliscaste o meu orgulho masculino. — Ele devolveu o sorriso. — Amigos?
— Sempre. — Ela deixou escapar um suspiro longo. — Nem imaginas como estou
aliviada, agora que isso ficou arrumado. Sabes, acho que vou fazer companhia ao
Joseph para o chá. Queres juntar-te a nós?
— Desculpa. Acabámos de receber uma encomenda de Inverness, a que quero dar uma
vista de olhos.
Ela levantou-se. — Sabes, tenho de concordar com a mãe numa coisa. Andas a trabalhar
demais, Rogan. Isso começa a ver-se. Tens de tirar uns dias para descansar.
— Daqui a um ou dois meses.
A abanar a cabeça, debruçou-se para o beijar. — Dizes sempre isso. Quem me dera
acreditar que desta vez o dizes com convicção. — Inclinou a cabeça, sorrindo. —
Parece-me que a tua vivenda no sul de França é um lugar excelente não só para
descansar, mas também para inspiração criativa. As cores e as texturas sem dúvida que
agradariam a um artista.
Ele abriu a boca, fechando-a logo em seguida. — Conheces-me mesmo bem demais, —
murmurou ele.
— Pois conheço. Pensa nisso. — Deixou-o a matutar e desceu até à cozinha. Uma vez
que Joseph estava na galeria principal com alguns clientes mais demorados, começou
ela mesma a tratar do chá.
Joseph entrou na altura exacta em que ela estava a servir a primeira chávena. —
Desculpa, — disse ele. — Eles não se despachavam, nem se deixaram seduzir a ponto
de largarem uma única libra. E eu a pensar que ia acabar o dia a vender aquela escultura
de cobre. Sabes, aquela parecida com azevinho, mas fugiram de mim.
— Bebe um chá e consola-te.
— É o que vou fazer. Já... — Ele parou quando ela se virou e viu o seu rosto bem
iluminado. — O que se passa? O que aconteceu?
— Nada. — Levou as chávenas para a mesa, quase deixando-as cair quando ele lhe
puxou o braço.
— Estiveste a chorar, — comentou, com a voz tensa. — E estás com olheiras.
Com um suspiro impaciente, ela pousou as chávenas a abanar. — Por que razão é que a
cosmética é tão cara, se não cumpre o seu objectivo? Uma mulher não se pode deleitar
num imenso vale de lágrimas se não puder depender da sua maquilhagem. — Começou
a sentar-se, mas as mãos dele permaneciam firmes nos ombros dela. Surpreendida,
ergueu o olhar para ele. Ficou atrapalhada com o que viu nos seus olhos. — Não é
nada... a sério. Uma parvoíce qualquer. Estou... agora estou bem.
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Ele não pensou. Claro que já a tivera nos braços. Já haviam dançado juntos. Mas agora
não havia música. Apenas ela. Lentamente, ele ergueu a mão, acariciando o polegar
suavemente sobre as sombras subtis debaixo dos olhos dela. — Ainda sentes a falta
dele. De Robbie.
— Sim, vou sentir sempre. — Mas o rosto do marido, tão amado, começava a
desvanecer-se. Só via Joseph. — Não estive a chorar por causa do Robbie. A sério que
não. Não sei exactamente porque é que estive a chorar.
Era adorável, pensou ele. Os olhos tão gentis e confusos. E a pele — antes nunca se
atrevera a tocá-la desta forma — era como seda. — Não deves chorar, Patty, — ouviu-
se a dizer. Depois, estava a beijá-la, a boca entrando na dela como uma seta, a mão
mergulhando naquela onda macia de cabelo.
Perdeu-se, afogando-se no perfume dela, ardendo quando ela abriu os lábios de
surpresa, permitindo que ele a provasse, intensa e de corpo inteiro.
O corpo dela cedeu, num ondular delicado de fragilidade que despertava carências
insustentáveis e conflituosas. Tomar, proteger, confortar e possuir.
Foi o suspiro dela, em parte de choque, em parte de deleite, que o despertou como um
balde de água fria.
— Eu... peço desculpa. — Mastigou as palavras, para depois ficar rígido de
arrependimento quando ela se limitou a olhar para ele. As emoções fervilhavam
insalubres dentro dele, ao mesmo tempo que recuava. — Não tenho desculpa possível.
Deu meia-volta e afastou-se antes que a cabeça dela parasse de andar à roda.
Ela foi atrás dele, com o seu nome nos lábios. Depois estacou, empurrando com a mão o
coração acelerado e deixando que as pernas trémulas a depositassem numa cadeira.
Joseph? A mão deslizou do seio para o rosto corado. Joseph, pensou de novo, abismada.
Mas era ridículo. Não passavam de amigos casuais que partilhavam o afecto por Rogan
e pela arte. Ele era... bom, o mais parecido do que sabia ser um boémio, decidira ela.
Encantador, certamente, como comprovaria qualquer mulher que entrasse na galeria.
E fora apenas um beijo. Só um beijo, convencia-se ela, ao estender o braço para pegar
na chávena. Mas a mão tremia-lhe e entornou chá em cima da mesa.
Um beijo, apercebeu-se num sobressalto, que lhe trouxera o monte de estrelas, os feixes
de luz, e a imensidão daquela excitação e arrebatamento, maravilhoso e aterrador por
que ansiara.
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Joseph, pensou novamente, correndo cozinha fora para ir ter com ele.
Conseguiu encontrá-lo lá fora e passou por Rogan a correr, quase sem falar.
— Joseph!
Ele parou, praguejando. Agora é que era, pensou ele amargamente. Ela ia descompô-lo
ao máximo e, — uma vez que ele não fora suficientemente rápido na saída — pior
ainda, em público. Resignado em enfrentar a fera, virou-se atirando as madeixas de
cabelo por cima do ombro.
Ela parou apenas a alguns milímetros à frente dele. — Eu... — esqueceu-se
completamente do que ia dizer.
— Tens todos os motivos para estares zangada, — disse ele. — Não importa nada eu
não querer... isto é, que só quis... bolas, o que é que estavas à espera? Entras aqui tão
linda e triste. Tão perdida. Deixei-me levar e peço desculpa por isso.
Ela sentira-se perdida, apercebia-se agora. Perguntava-se se ele compreenderia como
seria saber onde estava e acreditar que sabia para onde ia, mas estar perdida mesmo
assim. Ela achava que ele podia.
— Queres jantar comigo?
Ele pestanejou, recuando. — O quê?
— Queres jantar comigo? — Repetiu ela. Sentiu-se tonta, quase ousada. — Esta noite.
Agora.
— Queres ir jantar? — Falou lentamente, com uma pausa entre cada palavra. —
Comigo? Esta noite?
Parecia perplexo, tão desconfiado, que ela se riu. — Sim. Na verdade, não, não é nada
disso que quero fazer.
— Então está bem. — Ele acenou rigidamente e começou a descer a rua.
— Não quero ir jantar, — gritou ela, alto o suficiente para fazer voltar algumas cabeças.
Quase ousada? Pensou ela. Oh, não, completamente ousada. — Quero que me beijes
outra vez.
Aquilo fê-lo parar. Virando-se, ignorou o piscar de olho e o comentário aprovador de
um homem com uma camisa às flores. Como um cego que abre caminho às apalpadelas,
avançou na direcção dela. — Não sei se percebi bem.
— Então vou dizê-lo claramente. — Ela engoliu uma réstia de orgulho tolo. — Quero
que me leves para casa contigo, Joseph. E quero que me beijes outra vez. E a não ser
que esteja muito enganada em relação ao que ambos sentimos, quero que faças amor
comigo. — Deu o último passo na direcção dele. — Percebeste, e concordas com a
ideia?
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— Se concordo? — Segurou o rosto dela nas mãos, fitando intensamente os olhos dela.
— Perdeste o juízo. Graças a Deus. — Riu-se e tomou-a de encontro a ele. — Oh, se
concordo, querida Patty. E bastante.
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CAPÍTULO CATORZE
Maggie encontrava-se debruçada sobre a mesa da cozinha, a cabeça no meio dos braços
cruzados.
O dia da mudança tinha sido um inferno.
A mãe queixara-se constantemente, incansável, de tudo, desde a chuva que caía sem
parar até às cortinas que Brianna pendurara na grande janela da frente da casa nova.
Mas valera a pena aquele dia miserável para ver, finalmente, Maeve instalada em casa
própria. Maggie cumprira a palavra e Brianna estava livre.
No entanto, Maggie não antecipara a onda de culpabilização que a atingira quando
Maeve desatara a chorar — de costas dobradas, o rosto enterrado nas mãos e as lágrimas
quentes céleres a escorrer entre os dedos. Não, ela não esperara sentir-se culpada ou ter
tanta pena de uma mulher que ainda mal parara de a amaldiçoar quando desatou aos
soluços.
Acabara por ser Lottie, com uma vivacidade contagiante e imperturbável a tomar o
controlo da situação. Acompanhou Brianna e Maggie até à rua, dizendo-lhes que não se
preocupassem, não, que não se preocupassem com nada, uma vez que as lágrimas eram
tão naturais quanto a chuva. E que lugar adorável era aquele, continuara a conversa, ao
mesmo tempo que lhes fazia sinais com o cotovelo e as conduzia até lá fora. Como uma
casa de bonecas e igualmente cuidada. Ficariam bem. Confortáveis como gatos.
Quase que as enfiou dentro da carrinha de Maggie.
Estava feito, e fora o acertado. Mas nessa noite, não se abririam garrafas de champanhe.
Maggie deitara abaixo um copo de uísque e deixara-se abater por uma quantidade de
emoções extenuantes em cima da mesa, enquanto a chuva batia no telhado e o
crepúsculo lhe acentuava a melancolia.
O telefone não a acordou. Tocava, exigente, enquanto ela passava pelas brasas. Mas a
voz de Rogan atravessou-lhe a fadiga e sobressaltou-a, pondo termo ao sono.
— Espero ter notícias tuas pela manhã, visto não ter nem tempo nem paciência para te ir
aí buscar.
— O quê? — Atordoada, piscou o olho como uma coruja e olhou à volta da sala escura.
Podia jurar que ele estivera ali mesmo, a descompô-la.
Chateada por lhe terem interrompido a sesta, e por essa interrupção lhe recordar que
estava com fome e que em casa não havia comida suficiente para satisfazer um pisco,
levantou-se da mesa.
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Ia a casa de Brie, decidira. Atacar-lhe a cozinha. Talvez se pudessem animar
mutuamente. Tinha ido buscar um boné quando viu a luzinha vermelha, impaciente, no
atendedor de chamadas.
— Que chatice de um raio, — resmungou, mas fustigou os botões até rebobinar a
cassete, para a pôr a funcionar.
— Maggie. — De novo, a voz de Rogan enchia a sala. Fê-la sorrir ao perceber que tinha
sido ele a acordá-la, afinal de contas. — Porque raio é que nunca atendes esta coisa? É
meio-dia. Quero que telefones assim que chegues do estúdio. Estou a falar a sério.
Preciso de falar contigo sobre uma coisa. Por isso... tenho saudades tuas. Bolas, Maggie,
tenho saudades tuas.
A mensagem acabou, mas antes que pudesse sentir uma certa presunção, começou outra.
— Achas que não tenho mais nada que fazer senão perder tempo a falar com esta
maldita máquina?
— Não acho, — respondeu ela, — mas foste tu que a puseste cá.
— São agora quatro e meia e tenho de passar pela galeria. Talvez não me tenha
explicado bem. Tenho de falar contigo, hoje. Estou na galeria até às seis, depois podes
encontrar-me em casa. Não quero saber se estás cheia de trabalho. Raios te partam por
estares tão longe.
— O homem passa mais tempo a amaldiçoar-me do que a fazer outra coisa, —
murmurou ela. — E tu estás tão longe de mim quanto eu estou de ti, Sweeney.
Como se lhe respondesse, a voz dele ouviu-se outra vez. — Sua pirralha irresponsável,
idiota e insensível. Achas que devo ficar preocupado, a imaginar que te atiraste pelos
ares com os químicos e pegaste fogo ao cabelo? Graças à tua irmã, que atende o
telefone, sei perfeitamente que estás aí. São quase oito horas e tenho um jantar de
negócios. Agora, ouve-me bem, Margaret Mary. Vem para Dublin e traz o passaporte.
Não vou perder nem mais um minuto a explicar porquê, faz apenas o que te digo. Se
não conseguires arranjar voo, posso enviar o avião para te ir buscar. Espero ter notícias
tuas até de manhã, uma vez que não tenho nem tempo nem paciência para te ir buscar
pessoalmente.
— Vir-me buscar? Como se conseguisses. — Ali ficou por momentos, a franzir o
sobrolho para o atendedor. Então devia pôr-se a caminho de Dublin? Só porque ele
assim o exigia. Nem pediu por favor ou com bons modos, só que fizesse o que lhe
mandava.
O gelo abundaria no inferno antes de ela lhe dar essa satisfação.
Esquecendo a fome, saiu de rompante da sala e subiu as escadas. Ir para Dublin,
matutou. A lata do homem, a dar-me ordens.
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Com um safanão, arrancou a mala de dentro do armário e deitou-a para cima da cama.
Será que pensava que ela estava tão ansiosa por vê-lo que largaria qualquer coisa para
sair a correr quando ele quisesse? Havia de perceber que não era assim. Oh, sim,
decidira ela ao atirar a roupa para dentro da mala. Ela ia mostrar-lhe que não era assim
pessoalmente. Cara a cara.
Duvidava que ele lhe agradecesse por isso.
— Eileen, preciso que Limerick me envie por fax aqueles números corrigidos antes do
final do dia. — Atrás da secretária, Rogan verificava uma linha da lista, massajando a
tensão acumulada na base do pescoço. — E gostaria de ver o relatório sobre a
construção assim que chegar.
— Disseram que estaria cá ao meio-dia. — Eileen, uma morena elegante que geria o
escritório de forma tão competente quanto o marido e os três filhos, tomou nota. — Tem
uma reunião às duas horas com o Sr. Greenwald. É sobre as alterações no catálogo de
Londres.
— Sim, não me esqueci. Ele vai querer martínis.
— Vodka, — corrigiu Eileen. — Com duas azeitonas. Acha bem uma tábua de queijos
para não desfalecer?
— É melhor. — Rogan tamborilou os dedos na secretária. — Não ligaram de Clare?
— Nada de manhã. — Lançou-lhe um olhar rápido e curioso por cima dos óculos. —
Tratarei de o informar assim que Miss Concannon ligar.
Ele emitiu um som, o equivalente vocal de um encolher de ombros.
— Se não se importa, pode passar a chamada de Roma.
— É para já. Oh, e tenho na minha secretária o rascunho da carta para Inverness, caso a
queira aprovar.
— Óptimo. E é melhor ligarmos para Boston. Que horas são lá? — Começava a
verificar o relógio quando uma mancha colorida junto à porta o impediu. — Maggie.
— Sim. Maggie. — Com um trejeito, atirou a mala para o chão e apoiou os punhos
fechados sobre as ancas. — Tenho de lhe dar uma palavrinha, Sr. Sweeney. —
Amordaçou o mau génio o suficiente para acenar para a mulher que se levantava da
cadeira à frente da secretária de Rogan.
— Você deve ser a Eileen.
— Sim. É um prazer conhecê-la finalmente, Miss Concannon.
— É muito simpática. Deixe-me dizer-lhe que me parece muitíssimo bem, para alguém
que trabalha para um tirano. — Levantou a voz ao proferir a última palavra.
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— Acabado comigo? — Assim que ela lhe acertou com o punho fechado, ele já
esmagava a boca de encontro à dela. — Larga-me, seu brutamontes de mãos de
presunto.
— Tu gostas das minhas mãos. — E usou-as para lhe puxar a camisola para cima. —
Foste tu que me disseste.
— É mentira. Não vou permitir uma coisa destas, Rogan. — Mas a recusa terminou
num gemido, assim que os lábios dele a ferver lhe percorreram o pescoço. Depois, —
Vou deitar o tecto abaixo, de tanto gritar, — assim que recuperou o fôlego.
— À vontade. — Ele mordeu-a, não com muita meiguice. — Gosto quando gritas.
— Raios te partam, — murmurou ela e deixou-se ir quando ele a deitou no chão.
Fora rápido e excitante, uma união frenética que acabara mal começara. Mas a rapidez
não diminuíra a intensidade. Ficaram juntos por mais algum tempo, os membros ainda a
vibrar. Rogan virou a cabeça para lhe depositar um beijo no maxilar.
— Ainda bem que passaste por cá, Maggie.
Ela reuniu as forças necessárias para lhe bater com o punho no ombro. — Sai de cima
de mim, seu bruto. — Tê-lo-ia empurrado, mas ele já se movia, arrastando-a com ele até
ficar atravessada no colo dele.
— Está melhor?
— Do que o quê? — Ela sorriu, lembrando-se depois que estava furiosa com ele.
Empurrando-o, sentou-se no tapete e compôs a roupa. — Tens cá um descaramento,
Rogan Sweeney.
— Por te ter arrastado para o chão?
— Não. — Puxou os jeans. — Seria idiota dizer isso, quando é óbvio que gostei.
— Bastante óbvio.
Ela lançou-lhe um olhar glaciar enquanto ele se levantava e lhe oferecia ajuda,
estendendo a mão.
— Isso não faz sentido nenhum. Quem é que pensas que és, a dar-me ordens, a dizer-me
o que fazer sem modos nenhuns?
Ele dobrou-se e levantou-a do chão. — Estás aqui, não estás?
— Estou aqui, sua besta, para te dizer que não vou tolerar uma coisa destas. Já passou
quase um mês desde que saíste da minha porta todo contente,e...
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— Está bem. — Virou-se para ele, sentando-se à frente da secretária. Ele ficava perfeito
ali, pensou. Digno, competente, no comando. Não se parecia nada com um homem que
embarcava numa cambalhota selvagem no tapete do escritório. A ideia fê-la sorrir.
— O que foi?
— Estava só a imaginar o que a tua secretária deve estar a pensar, ali fora.
Ele ergueu a sobrancelha. — Tenho a certeza que presume que estamos a ter uma
conversa de negócios civilizada.
— Hah! Pareceu-me uma mulher sensível, mas tu preferes acreditar nisso. — Satisfeita
pela forma como os olhos dele se pregaram na porta, apoiou o tornozelo em cima do
joelho. — Então, sobre que negócios é que vamos conversar?
— Ah... o teu trabalho tem sido excepcional nas últimas semanas. Como sabes,
retivemos dez peças da primeira exposição com o objectivo de as levar em tournée no
próximo ano. Gostava de ficar com algumas das tuas peças mais recentes em Dublin,
mas o resto já está a caminho de Paris.
— Já me tinha dito a tua muito eficiente e muito sensível Eileen. — Começou a bater
com os dedos no tornozelo. — Não me fizeste vir de Dublin para te repetires, nem eu
acho que me chamaste aqui para uma sessão de sexo escaldante no tapete do escritório.
— Pois não. Preferia ter discutido os planos contigo ao telefone, mas tu nunca te dás ao
trabalho de devolver as minhas chamadas.
— Não estive em casa a maior parte do tempo. Podes ter direitos exclusivos sobre o
meu trabalho, mas não sobre mim, Rogan. Tenho vida própria, como já te expliquei.
— Inúmeras vezes. — Conseguia sentir-se invadir pelo mau génio. — Não estou a
interferir na tua vida. Estou a gerir a tua carreira. E com esse intuito, vou viajar para
Paris e supervisionar a exposição, e a inauguração.
Paris. Ainda nem sequer estava com ele há uma hora e já estava a falar em partir.
Perturbada pelo ribombar do próprio coração, falou com aspereza. — É de admirar
como é que manténs os negócios à tona, Rogan. Diria que podias contratar pessoas
capazes de lidar com pormenores como esse, sem teres de controlar o que eles andam a
fazer.
— Garanto-te que tenho pessoas muito competentes. Acontece que tenho imenso
interesse no meu trabalho e que gosto de tratar pessoalmente desses pormenores. Quero
que as coisas corram bem.
— O que significa que têm de ser feitas à tua maneira.
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Uma hora depois, ela entrou pela galeria adentro, mas parou e estremeceu de frustração
por ter de esperar que Joseph acabasse de atender uma cliente. Enquanto ele esbanjava
charme para uma mulher com idade para ser mãe dele, Maggie vagueou pela sala
principal, reparando que a exposição dos índios americanos havia sido substituída por
uma selecção de esculturas de metal. Intrigada pelas formas, perdeu o sentido de
urgência, ao admirar as peças.
— Um artista alemão, — disse Joseph, atrás dela. — Este trabalho em especial parece-
me ser tanto visceral quanto alegre. Uma celebração das forças elementares.
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— Terra, fogo, água e a sugestão do vento na plumagem do cobre. — Ela fez uso de um
sotaque afectado, para se assemelhar ao dele. — Bastante poderoso no escopro, mas
com um mistério latente que sugere a sátira.
— E pode ser teu por apenas duas mil libras.
— Uma pechincha. Que pena não ter onde cair morta. — Virou-se, a rir, e beijou-o. —
Estás com bom aspecto, Joseph. Quantos corações já partiste desde que te deixei?
— Nem um. Já sabes que o meu te pertence.
— Hah! Ainda bem para ambos que eu sei que és um tangas. — Tens um minuto?
— Para ti, dias. Semanas. — Beijou-lhe a mão. — Anos.
— Um minuto chega. Joseph, o que preciso de levar para Paris?
— Uma camisola preta justa, uma mini-saia e saltos bem altos.
— Há-de chegar o dia. A sério, estou de partida e não faço ideia do que vou precisar.
Tentei falar com a Sra. Sweeney, mas ela hoje não está.
— Então, sou a tua segunda escolha. Que grande desgosto. — Fez sinal a um dos
empregados para tomar conta da sala. — A única coisa que precisas em Paris, Maggie, é
de um coração romântico.
— Onde é que o posso comprar?
— Já tens o teu. Não consegues escondê-lo de mim, já vi o teu trabalho.
Ela fez uma careta, depois deu-lhe o braço. — Agora ouve, não ia confessar isto a
qualquer um, mas nunca viajei. Em Veneza só tinha de me preocupar com os estudos e
em não vestir nada que fosse inflamável. E em pagar a renda. Já que vou viajar para
Paris, não quero fazer figura de parva.
— Nem penses. Vais com o Rogan, presumo, e ele conhece Paris tão bem como os
locais. Só tens de ser um pouco arrogante, algo enfadada e vais-te adaptar lindamente.
— Vim ter contigo a pedir conselhos de moda. Oh, é humilhante admitir, mas não posso
ir com este aspecto. Não que me queira pintar como um manequim, mas também não
quero parecer a prima saloia do Rogan.
— Hmm. — Joseph levou o assunto a sério, passando-lhe a mão pelas costas para uma
análise demorada e atenta. — Acho que vais bem como estás, mas...
— Mas?
— Compra uma blusa de seda, bastante decotada, mas macia. Com cores vivas, minha
menina, os pastéis não te ficam bem. Calças do mesmo género. Usa a intuição para as
cores. Aposta nos contrastes. E aquela mini-saia é o máximo. Tens aquele vestido preto?
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— Hmm? O quê? Dá-me licença. — Correu para a porta em dois segundos. Ela viu
Patrícia voltar-se, corar, sorrir. Depois, caíram nos braços um do outro.
O coração romântico que Maggie renegava, inflamou-se. Esperou até Patrícia sair e
Joseph ficar imóvel a olhar para ela, como se tivesse sido atingido por um raio.
— Com que então, o teu coração pertence-me, não é?
O olhar esgazeado desapareceu. — Ela é linda, não é?
— Sem dúvida.
— Já estava apaixonado por ela há tanto tempo, antes mesmo de ela se casar com o
Robbie. Nunca pensei, nunca acreditei... — Riu-se um pouco, ainda tonto de amor. —
Pensei que gostava do Rogan.
— Também eu. Está na cara que a fazes feliz. — Deu-lhe um beijo na face. — Fico
contente por ti.
— É que... estamos a tentar manter segredo. Pelo menos até... por uns tempos. A família
dela... quase aposto que a mãe dela não me vai aprovar.
— A mãe dela que vá para o inferno.
— A Patrícia disse quase o mesmo. — Um sorriso assomou-lhe aos lábios só de se
lembrar. — Mas não quero ser motivo de problemas. Por isso, gostava que não
comentasses com ninguém.
— Nem com o Rogan?
— Trabalho para ele, Maggie. É meu amigo, sim, mas trabalho para ele. A Patrícia é
viúva de um dos seus maiores amigos, uma mulher com quem ele próprio já saiu. Muita
gente pensava que ela se casaria com ele.
— Não me parece que o Rogan fizesse parte desse grupo.
— Seja como for, prefiro ser eu a contar-lhe, quando chegar a altura certa.
— Tu é que sabes, Joseph. Tu e a Patrícia. Por isso, podemos trocar confidências.
— Fico-te muito agradecido.
— Não há necessidade disso. Se o Rogan for bota de elástico e desaprovar, é porque
merece ser enganado.
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CAPÍTULO QUINZE
Paris era quente, sufocante e apinhada de gente. O trânsito era abominável. Carros,
autocarros, motocicletas guinchavam, guinavam e aceleravam, os condutores
debruçados, num desafio mútuo para duelos rodoviários intermináveis. Ao longo dos
passeios, as pessoas andavam e ondulavam numa parada pedestre colorida. As mulheres
que vestiam aquelas mini-saias que Joseph parecia apreciar tanto eram esguias,
enfadadas e impossivelmente chiques. Os homens, igualmente na moda, observavam-
nas das pequenas mesas dos cafés, onde beberricavam vinho tinto ou café puro bem
forte.
Por todo o lado se viam flores — rosas, gladíolos, malmequeres, bocas-de-lobo,
begónias saltando das bancas dos vendedores, despontando nas margens, jorrando dos
braços de jovens raparigas, cujas pernas brilhavam como lâminas ao Sol.
Os rapazes passavam de patins com metros de pão dourado a espreitar das sacolas.
Amontoados de turistas apontavam máquinas fotográficas como se fossem
metralhadoras que desfizessem a vista do obturador sobre a vida parisiense.
E havia cães. A cidade parecia um autêntico canil, passeando presos por trelas, fugindo
pelos becos, correndo à frente das lojas. Até o rafeiro mais reles parecia exótico,
maravilhosamente estrangeiro e arrogantemente francês.
Maggie absorvia tudo aquilo a partir da sua janela sobre a Place de la Concorde.
Estava em Paris. O ar repleto de sons e aromas, de luzes fortes. E o seu amante dormia
como uma pedra na cama, atrás dela.
Ou assim pensava.
Há algum tempo que a via a estudar Paris. Ela debruçou-se da janela enorme, sem
reparar na camisa de noite de algodão que lhe deslizava pelo ombro. Mostrara-se
bastante indiferente para com a cidade quando chegaram na noite anterior. Os seus olhos
pasmaram-se perante o exuberante lobby do Hôtel de Crillon, mas não tecera qualquer
comentário quando fizeram o check-in.
Pouco mais dissera quando entraram na suite sumptuosa e sublime, afastando-se ao ver
Rogan dar uma gorjeta ao bagageiro.
Quando ele lhe perguntou se o quarto lhe agradava, limitou-se a encolher os ombros e a
dizer que servia bem.
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Algum tempo depois, ela saiu do chuveiro, embrulhando-se no luxuoso roupão branco
que estava pendurado atrás da porta. Deu com Rogan sentado à mesa junto à janela da
salinha, a servir café e a ler o jornal.
— O jornal está em francês. — Cheirou um cesto com croissants. — Lês francês e
italiano?
— Mmm. — As sobrancelhas estavam concentradas no suplemento financeiro. Estava a
pensar em ligar ao seu corretor.
— O que mais?
— O que mais o quê?
— O que mais é que lês... falas? Línguas, quero dizer.
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— Estou a começar a ficar afeiçoado a essa víbora que chamas de língua, — comentou
ele, agradavelmente. — Provavelmente estou a enlouquecer. E antes que me voltes a
morder, acho que ias gostar de conhecer um pouco da cidade. Sem dúvida que vais
gostar do Louvre. Por isso, deixei a manhã livre para um passeio, ou compras, ou o que
quiseres fazer. Depois, passamos pela galeria lá mais para o fim da tarde.
A ideia de penetrar no grande museu agradou-lhe. Voltou a encher a chávena de Rogan e
aqueceu a sua chávena de chá. — Acho que me apetece passear. Quanto às compras,
quero encontrar alguma coisa para oferecer à Brie.
— Também devias comprar alguma coisa para a Maggie.
— A Maggie não precisa de nada. Além disso, não tenho dinheiro.
— Isso é absurdo. Não deves negar-te a um ou dois presentes. Foste tu que o ganhaste.
— Já gastei o que ganhei. — Fez uma careta por cima da chávena. — Será que têm o
desplante de chamar chá a isto?
— Já o gastaste, como? — Pousou o garfo. — Há cerca de um mês passei-te um cheque
com seis algarismos. É impossível que já o tenhas esbanjado.
— Esbanjado? — Gesticulou perigosamente com a faca. — Pareço-te esbanjadora?
— Santo Deus, não.
— Então o que queres dizer com isso? Que não tenho gosto nem estilo para gastar bem
o meu dinheiro?
Ele levantou a mão, num gesto apaziguador. — Não quer dizer nada disso. Mas se já
gastaste o dinheiro que te dei, gostava de saber como.
— Não gastei nada, e para já não tens nada a ver com isso.
— Tenho a ver contigo. Se não conseguires gerir o teu dinheiro, posso fazê-lo por ti.
— Nem penses. Afinal, seu pomposo, forreta de um raio, o dinheiro é meu, não é? E já
se foi, pelo menos a maior parte. Por isso, trata de vender o meu trabalho e de me
arranjares mais.
— É precisamente isso que vou fazer. Agora, diz-me, onde o gastaste?
— Gastei-o. — Furiosa, envergonhada, afastou-se da mesa. — Tenho despesas, ou não?
Precisava de algum material e caí na patetice de comprar um vestido.
Ele entrelaçou as mãos. — Gastaste, num mês, quase duzentas mil libras em material e
num vestido.
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— Tinha de saldar uma dívida, — explodiu ela. — E porque é que tenho de ter dar
explicações? Na porcaria do contrato, não diz nada sobre dar-te explicações sobre onde
gasto o dinheiro.
— O contrato não tem nada a ver com isto, — disse ele, paciente, por conseguir
perceber que era mais mortificação do que raiva o que a movia. — Estou-te a perguntar
para onde foi o dinheiro. Mas é óbvio que não tens nenhuma obrigação legal de me
contar.
O tom sensato que adoptara apenas espicaçou mais a humilhação dela. — Comprei uma
casa à minha mãe, apesar de saber que nunca me vai agradecer por isso. E também tive
de a mobilar, ou não? Senão, ela ainda levava tudo e mais alguma coisa da casa da
Brianna. — Frustrada, passou ambas as mãos pelo cabelo e soltou-o em tufos selvagens.
— E tive de contratar a Lottie, e tratar de lhes arranjar um carro. E vou ter de lhe pagar
todas as semanas, por isso dei à Brie o suficiente para seis meses de ordenado, para a
comida, e coisas dessas. Depois, ainda paguei a hipoteca, apesar de saber que a Brie vai
ficar furiosa quando descobrir que a paguei. Mas era obrigação minha, uma vez que o
pai hipotecou a casa por minha causa. Por isso, está feito. Cumpri a promessa que lhe
fiz e não admito que me venhas dizer o que devo ou não fazer com o meu dinheiro.
Começara a andar apressada pelo quarto enquanto falava, parando agora junto à mesa
onde Rogan permanecia sentado, em silêncio, pacientemente.
— Posso resumir? — Perguntou ele. — Compraste uma casa à tua mãe, mobilaste-a,
compraste um carro e contrataste quem lhe fizesse companhia. Pagaste uma hipoteca, o
que vai desagradar à tua irmã, mas que achas ser responsabilidade tua. Deste à Brianna
o suficiente para sustentar a vossa mãe por seis meses, compraste materiais. E com o
que sobrou, compraste um vestido.
— Isso mesmo. Foi o que eu disse. Qual é o mal?
Ali ficou, a tremer de raiva, os olhos aguçados e brilhantes, prontos para a batalha. Ele
podia, imaginava, dizer-lhe que admirava a sua incrível generosidade, a sua lealdade
para com a família. Mas duvidava que ela apreciasse o esforço.
— Isso explica tudo. — Voltou a pegar no café. — Vou pedir que te façam um
adiantamento.
Não tinha a certeza de conseguir falar. Quando o fez, a voz saiu como num assobio
arriscado. — Não quero a porcaria do teu adiantamento. Não quero. Hei-de ganhar para
o meu sustento.
— Mas isso já tu fazes... e bem. Não se trata de caridade, Maggie, nem mesmo de um
empréstimo. É uma transacção de negócios pura e simples.
— Que se lixem os negócios. — Agora o seu rosto ficou cor-de-rosa, da vergonha. —
Só posso aceitar um tostão que tenha sido ganho. Acabei de pagar as dívidas, não posso
voltar a fazer o mesmo.
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— Nossa, — disse ele num tom que a fez colar o olhar ao dele, como um íman. —
Como estava destinado que fosse.
— Nossa, então. — Suspirou. — Como é que posso ficar zangada contigo? —
Perguntou ela, baixinho. — Como é que posso resistir ao efeito que exerces sobre mim?
— Não podes.
Ela receava que ele conseguisse resistir. Mas pelo menos podia marcar pontos quanto a
um assunto de somenos importância. — Agradeço-te por me ofereceres um
adiantamento, mas não quero. É importante para mim ficar apenas com o fruto do meu
trabalho, quando o terminar. O que tenho chega bem. Por agora, isso é suficiente. Já foi
feito o que era necessário. A partir de agora, o que vier será para mim.
— É apenas dinheiro, Maggie.
— É muito fácil falar quando tens mais do que alguma vez precisaste. — Os nervos na
voz dela, tão parecida com a da mãe, fizeram-na parar, gelada. Respirou fundo e deixou
sair o que guardava no coração. — Na minha casa, o dinheiro era como uma ferida
aberta... a falta dele, a habilidade que o meu pai tinha para o perder, a minha mãe
constantemente a exigir mais. Não quero depender de libras para ser feliz, Rogan.
Assusta-me e fico envergonhada ao pensar que isso pode acontecer.
Então, pensou ele enquanto a estudava, era por isso que lutara com ele este tempo todo.
— Não me disseste uma vez que não pegavas no tubo todos os dias a pensar no lucro
que te podia dar na outra extremidade?
— Sim, mas...
— Pensas nisso agora?
— Não. Rogan...
— Estás a lutar contra fantasmas, Maggie. — Levantou-se para ir ter com ela. — A
mulher que és já decidiu que o futuro será diferente do passado.
— Não posso andar para trás, — murmurou ela. — Mesmo se quisesse, não podia andar
para trás.
— Não, não podes. Vais sempre andar para a frente. — Beijou-a ao de leve na
sobrancelha. — Agora, vais-te vestir, Maggie? Deixa-me dar-te Paris.
Foi o que fez. Durante quase uma semana deu-lhe tudo o que a cidade tinha para
oferecer, desde a magnificência de Notre Dame até à intimidade dos cafés sombrios.
Comprou-lhe flores do vendedor ambulante pouco falador todas as manhãs, até a suite
cheirar a jardim. Passearam junto ao Sena, ao luar, Maggie de sapatos na mão e a brisa
do rio a afagar as faces. Dançaram em discotecas ao som de música americana pouco
comercial e jantaram manjares e vinhos gloriosos no Maxime.
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Maggie achava que estava a lidar com a segunda inauguração com muito mais ligeireza
do que lidara com a primeira. O estômago já não dava tantas voltas, o seu mau génio
estava menos vincado. Se uma ou duas vezes pensou em fugir, ocultou-o bem.
Se por acaso se consumia com algo que não podia ter, lembrava-se que por vezes o
sucesso tinha de ser suficiente, só por si.
— Maggie.
Virou-se de costas para as divagações de sotaque acentuado de um francês, cujos olhos
raramente haviam deixado o seu decote, para fitar estupefacta a irmã:
— Brianna?
— Podes crer. — A sorrir, Brianna envolveu a irmã espantada num abraço. — Já devia
cá estar há uma hora, mas houve um atraso no aeroporto.
— Mas como? Como é que vieste até aqui?
— O Rogan mandou o avião buscar-me.
— Rogan? — Assoberbada, Maggie examinou a sala até o encontrar. Ele apenas sorriu
para ela, depois para Brianna, antes de voltar a atenção para uma mulher enorme coberta
de rendas fúchsia. Maggie levou a irmã para um canto da sala. — Vieste no avião do
Rogan?
— Já achava que te ia decepcionar outra vez, Maggie. — Mais do que levemente
assoberbada pela visão do trabalho de Maggie a cintilar num salão cheio de estranhos
exóticos, Brianna deslizou a mão, pegando na da irmã. — Tentei imaginar como
conseguir vir cá ter. A mãe está bem com a Lottie, claro, e sabia que podia deixar o Con
com o Murphy. Até perguntei à Sra. McGee se não se importava de tomar conta do
Espinheiro Negro por um ou dois dias. Mas ainda faltava o meio de transporte.
— Quiseste vir, — disse Maggie, baixinho. — Quiseste vir.
— Claro que quis. Não queria mais nada a não ser estar contigo. Mas nunca imaginei
que fosse assim. — Brie fitava o empregado de casaco branco, que lhe oferecia
champanhe numa bandeja de prata. — Obrigada.
— Não pensei que fosse importante para ti. — Para limpar as emoções da garganta,
Maggie bebeu profundamente. — Estava mesmo agora aqui a pensar que gostava que te
importasses.
— Tenho orgulho em ti, Maggie, muito orgulho. Já te tinha dito.
— Não acreditei em ti. Oh Deus. — Sentiu as lágrimas a subirem e, pestanejando,
afastou-as furiosamente.
200
— Devias ter vergonha, com tão pouca consideração pelos meus sentimentos, —
brincou Brie.
— Nunca mostraste grande interesse, — ripostou Maggie.
— Mostrei todo o interesse que podia. Não percebo o que fazes, mas isso não significa
que não tenha orgulho por o fazeres. — Serena, Brianna inclinou a taça, bebendo. —
Oh, — murmurou, olhando para o vinho borbulhante, — mas é maravilhoso. Quem
haveria de pensar que algo teria este sabor?
Com uma gargalhada espontânea, Maggie beijou a irmã com força na boca. — Jesus nos
salve, Brie, o que é que estamos aqui a fazer? As duas a beber champanhe em Paris?
— Eu cá tenciono aproveitar bem. Tenho de agradecer ao Rogan. Achas que o posso
interromper por instantes?
— Só depois de me contares o resto. Quando é que lhe telefonaste?
— Não telefonei, foi ele que ligou. Há uma semana.
— Ele ligou-te?
— Sim, e antes de lhe conseguir dar os bons-dias, já ele me estava a dizer o que devia
fazer e como.
— O Rogan é assim.
— Disse que ia mandar o avião e que eu devia ir ter com o motorista dele ao aeroporto,
em Paris. Tentei dizer alguma coisa, mas ele enrolou-me. O motorista depois levava-me
para o hotel. Alguma vez tinhas visto um sítio assim, Maggie? Parece um palácio.
— Quase engoli a língua quando entrei. Continua.
— Depois, devia arranjar-me e o motorista trazia-me até aqui. E foi o que fez, apesar de
eu achar que me ia matar pelo caminho. E tinha isto no quarto do hotel, com um bilhete
dele a dizer que ia gostar muito se eu o vestisse. — Passou com a mão pelo fato de noite
de seda azul fumado, que trazia vestido. — Não ia aceitar, mas ele pediu de uma forma
tão especial que me ia sentir mal-educada se não aceitasse.
— Ele é bom nisso. E ficas linda com ele.
— Sinto-me linda dentro dele. Confesso que a minha cabeça ainda está às voltas dos
aviões e dos carros, e de tudo isto. Tudo isto, — repetiu, olhando à volta da sala. —
Estas pessoas, Maggie, estão todas aqui por tua causa.
— Ainda bem que tu estás. Queres dar uma volta para os poderes encantar, por mim?
— Já estão encantados, basta olhar para vocês duas. — Rogan chegou junto delas e
pegou na mão de Brianna. — É um prazer vê-la de novo.
— Obrigada por ter tratado de tudo. Nem sei como lhe hei-de agradecer.
201
— Acabou de o fazer. Não se importa que a apresente às pessoas? O Sr. LeClair... ali, o
homem de aspecto algo flamejante, junto ao Momentum da Maggie? Acaba de me
confessar que se apaixonou por si.
— É óbvio que se apaixona com facilidade, mas terei muito gosto em conhecê-lo.
Também gostava de dar uma olhadela por aí. Nunca vi o trabalho da Maggie exposto
desta forma.
Passaram apenas alguns minutos até Maggie conseguir chamar Rogan à parte outra vez.
— Não me digas que tenho de circular, — disse ela antes mesmo que ele o fizesse. —
Preciso de te dizer uma coisa.
— Desde que o digas depressa. Não me fica bem monopolizar a artista.
— Não vou demorar a dizer-te que este foi o gesto mais lindo que alguém já fez por
mim. Nunca o vou esquecer.
Ele ignorou a distracção do francês rápido que uma mulher proferia por cima do ombro
dele e levou a mão de Maggie aos lábios. — Não te queria ver infeliz de novo, e foi
muito simples tratar da vinda de Brianna até cá.
— Pode ter sido simples. — Lembrava-se do artista andrajoso com que ele subira a
escadaria elegante da galeria. Isso também havia sido simples. — Não é por isso que é
menos generoso. E para te mostrar o que significa para mim, não só vou ficar aqui a
noite toda, até o último convidado passar por aquela porta, mas também vou falar com
cada um deles.
— Com simpatia?
— Com simpatia. Não importa quantas vezes vou ouvir a palavra visceral.
— Linda menina. — Beijou-lhe a ponta do nariz. — Agora vai trabalhar.
202
CAPÍTULO DEZASSEIS
203
— Um dia lindo. Nem posso acreditar que passeei pela Margem Esquerda com a minha
irmã. As irmãs Concannon em Paris. — Ainda se ria só de pensar nisso. — Ela não se
vai esquecer, Rogan. — Colocando o lápis atrás da orelha, Maggie pegou na mão dele.
— E eu também não.
— Já me agradeceram, as duas. A verdade é que só fiz alguns telefonemas. Por falar
nisso, o que me monopolizou até agora era de Paris. — Esticando o braço, Rogan
escolheu uma uva cristalizada do cesto de frutas diante deles. — Recebi uma oferta,
Maggie, do Conde de Lorraine.
— De Lorraine? — Com os lábios cerrados, procurou na memória. — Ah, o velhote
magrinho, de bengala, que falava baixinho.
— Sim. — Rogan divertia-se ao ouvi-la descrever um dos homens mais ricos de França
como um velhote magrinho. — Ele gostaria de te encomendar um presente para o
casamento da neta, em Dezembro próximo.
Os quadris dela levantaram-se por instinto. — Não aceito encomendas, Rogan. Desde o
início que deixei isso bem claro.
— Pois foi. — Rogan tirou outra uva e colocou-a na boca de Maggie, para que se
calasse. — Mas a minha obrigação é informar-te dos pedidos que surjam. Não estou a
sugerir que concordes, apesar de ser uma grande mais valia para ti, e para a Worldwide.
Estou simplesmente a cumprir os meus deveres enquanto teu agente.
A fitá-lo, Maggie engoliu a uva. O seu tom de voz, reparara ela, estava tão coberto de
açúcar quanto a uva. — Não vou fazê-lo.
— A decisão é tua, naturalmente. — Com um gesto, fez menção de esquecer o assunto.
— Queres que toque a pedir algo fresco para bebe/? Talvez uma limonada, ou chá
gelado?
— Não. — Maggie tirou o lápis da orelha e bateu com ele no bloco. — Não estou
interessada em encomendas personalizadas.
— E porque estarias? — Respondeu ele, sensato. — A tua exposição de Paris teve tanto
êxito quanto a de Dublin. Tenho a certeza que assim vai continuar em Roma, e assim
por diante. Já estás bem lançada, Margaret Mary. — Baixou-se e beijou-a. — Não que o
pedido do conde tenha alguma coisa que ver com encomendas personalizadas. Ele está
disposto a deixar tudo nas tuas mãos.
Cautelosa, Maggie puxou os óculos para baixo e estudou-o por cima deles. — Estás a
tentar convencer-me com falinhas mansas.
— Nada disso. — Mas, é claro, que estava. — No entanto, é melhor acrescentar que o
conde, que por acaso é um connaisseur de arte bastante respeitado, está disposto a pagar
generosamente.
— Não estou interessada. — Voltou a colocar os óculos no sítio, praguejando em
seguida. — Generosamente, quanto?
— Mais ou menos o equivalente a cinquenta mil libras. Mas sei como és intransigente
em relação ao dinheiro, por isso não penses mais nisso. Disse-lhe que era improvável
que estivesses interessada. Queres ir até à praia? Dar um mergulho?
204
Antes que ele se levantasse, Maggie agarrou-o pelo colarinho. — Oh, saíste-me cá um
dissimulado, não é, Sweeney?
— Quando é preciso.
— E eu é que escolho o que fazer? O que me apetecer?
— Claro. — Passou o dedo pelo seu ombro nu, que estava a começar a adquirir a
tonalidade de um pêssego ao sol. — Excepto...
— Ah, lá vamos nós.
— Azul, — disse o Rogan, sorrindo. — Ele quer azul.
— Azul, dizes tu? — Uma gargalhada começou a estremecer dentro dela. — Algum tom
em especial?
— Igual aos olhos da neta dele. Ele alega que são de um azul igual a um céu de verão.
Parece que ela é a sua favorita e depois de ver o teu trabalho em Paris, só ia ficar
satisfeito se fizesses algo só para ela com as tuas próprias mãos maravilhosas.
— Essas palavras são dele ou tuas?
— Um pouco de ambos, — respondeu Rogan, beijando uma das suas mãos
maravilhosas.
— Vou pensar nisso.
— Tinha esperança que o fizesses. — Deixando de se preocupar em tapar-lhe a vista,
debruçou-se para lhe mordiscar os lábios. — Mas pensa nisso mais tarde, está bem?
— Excusez-moi, monsieur. — Um empregado de feições meigas apareceu na ponta do
terraço, as mãos caídas junto ao corpo e os olhos discretamente direccionados para o
mar.
— Oui, Henri?
— Vous et mademoiselle, voudriez-vous déjeuner sur Ia terrasse maintenant?
— Non, nous allons déjeuner plus tard.
— Três bien, monsieur. — Henri desapareceu, silencioso como uma sombra, para
dentro de casa.
— O que é que ele queria? — Perguntou Maggie.
— Queria saber se queríamos almoçar. Eu disse que comíamos mais tarde. — Quando
Rogan começou a inclinar-se outra vez, Maggie impediu-o com uma mão de encontro
ao peito dele. — Algum problema? — Murmurou Rogan. — Posso voltar a chamá-lo e
dizer que afinal podemos comer já.
— Não, não quero que o chames. — Ficava desconfortável ao pensar no Henri, ou em
quaisquer outros empregados, escondidos a um canto, à espera para servir.
Serpenteando, levantou-se da chaise. — Nunca queres estar sozinho?
205
— Nós estamos sozinhos. Foi exactamente por isso que te quis trazer para cá.
— Sozinhos? Deves ter seis pessoas em frenesim pela casa. Jardineiros e cozinheiros,
criadas e mordomos. Se estalasse os dedos agora mesmo, um deles ia aparecer a correr.
— É exactamente esse o objectivo de ter empregados.
— Bom, eu não os quero. Sabes que uma daquelas empregadinhas quis lavar a minha
roupa interior?
— Porque a função dela é cuidar de ti, não por querer bisbilhotar as tuas gavetas.
— Eu posso cuidar de mim. Rogan, quero que os mandes embora. A todos.
Ao ouvir aquilo, levantou-se. — Queres que despeça a criadagem?
— Não, por amor dos santos, não sou nenhum monstro, a despejar pessoas inocentes
para o meio da rua. Quero que os dispenses, só isso. De férias, ou o que lhe quiserem
chamar.
— É claro que posso dar um dia de folga ao pessoal, se é isso que queres.
— Um dia não, a semana toda. — Soprou, ao ver como ele estava confuso. — Para ti
não faz sentido nenhum, e porque é que faria? Estás tão habituado a eles que nem os
vês.
— Ele chama-se Henri, o cozinheiro é o Jacques, a criada que tão amavelmente se
ofereceu para lavar a tua lingerie é a Marie. — Ou, quem sabe, pensou ele, Monique.
— Não quero armar discussão. — Ela avançou, com as mãos a procurar as dele. — Não
consigo descontrair-me como tu, com todas estas pessoas a andar de um lado para o
outro. Não estou habituada a isto... nem me parece que o queira fazer. Faz isto por mim,
por favor, Rogan. Dá-lhes uns dias de folga.
— Espera aqui um instante.
Quando ele se afastou, ela ficou sozinha no terraço, a sentir-se idiota. Ali estava ela,
pensava, a espreguiçar-se num vivenda do Mediterrâneo com tudo aquilo que podia
desejar ao alcance da mão. E mesmo assim, não estava satisfeita.
Ela mudara, apercebera-se. Nos curtos meses em que conhecia Rogan, mudara. Agora
não só desejava mais, como cobiçava mais daquilo que não tinha. Queria a calma e o
prazer que o dinheiro trazia, e não só para a sua família. Queria para si também.
Usara diamantes e dançara em Paris.
206
207
Nos cinco dias que se seguiram, apanharam banhos de sol no terraço, passearam na
praia ou deram umas braçadas ociosas na piscina, que mais parecia uma lagoa,
embalados pela música das fontes. Comiam refeições mal confeccionadas na cozinha e
à tarde davam passeios pelo campo.
Também havia, segundo Maggie, demasiados telefones.
Deviam estar a desfrutar de umas férias, mas Rogan tinha sempre os negócios à
distância de um telefone ou de um fax. Primeiro era qualquer coisa sobre uma fábrica
em Limerick, depois algo sobre um leilão em Nova Iorque, e sussurros ininteligíveis
sobre uma propriedade que andava à procura para adicionar outra filial às Galerias
Worldwide.
Aquilo podia tê-la aborrecido, se não tivesse começado a ver o trabalho dele como parte
da sua identidade, tanto quanto o trabalho dela fazia parte de si. Diferenças à parte, ela
não podia reclamar por ele passar uma ou duas horas fechado no escritório, quando ele
aceitava facilmente que ela ficasse absorta nos seus esboços.
Se ela acreditasse que um homem e uma mulher podiam encontrar o tipo de harmonia
necessária para durar uma vida inteira, até podia acreditar que a encontrara com Rogan.
— Deixa-me ver o que fizeste.
Com um bocejo de satisfação, Maggie entregou-lhe o livro de esboços. O Sol estava a
pôr-se, as cores desmaiadas a varrer o céu ocidental. Entre eles, a garrafa de vinho que
ele escolhera na adega, aninhada num balde de prata cheio de gelo. Maggie ergueu o
copo, bebeu e recostou-se para apreciar a sua última noite em França.
— Vais andar ocupada quando chegares a casa, — comentou Rogan enquanto estudava
cada esboço. Como é que vais escolher aquele em que vais trabalhar primeiro?
— Será ele a escolher-me. Por mais que goste deste ócio todo, estou em pulgas para
voltar e acender a fornalha.
— Posso mandar emoldurar os que fizeste para a Brianna. Estão bastante bons, para
esboços simples a carvão. Gosto especialmente... — Hesitou, ao virar a página e
deparar-se com algo completamente diferente de um esboço do mar ou de uma
paisagem. — E o que é que temos aqui?
208
Quase demasiado preguiçosa para se mover, ela deu uma olhadela. — Oh, sim, esse.
Não costumo fazer retratos, mas esse foi irresistível.
Era ele, deitado em cima da cama, o braço pendurado como se estivesse à procura de
alguma coisa. À procura dela.
Tomado de surpresa e não muito satisfeito, franziu o sobrolho ao ver o esboço. —
Desenhaste isto quando eu estava a dormir.
— Bom, não te queria acordar e estragar o momento. — Escondeu o riso atrás do copo.
— Estavas a dormir tão bem. Talvez o queiras pendurar na galeria de Dublin.
— Estou despido.
— Nu é mais a palavra, deixa-me que te diga. Quando se trata de arte. E tens um ar
bastante artístico nu, Rogan. Assinei-o, como podes ver, para que possas pôr-lhe um
bom preço.
— Não me parece.
Ela espetou a língua na bochecha. — Como meu agente, tens a obrigação de colocar o
meu trabalho no mercado. É o que passas a vida a dizer. E este, se me dás licença, é um
dos meus melhores desenhos. Repara na luz e na forma como brinca nos músculos do
teu...
— Estou a ver, — disse ele, numa voz estrangulada. — Tal como o resto das pessoas ia
ver.
— Não é preciso tanta modéstia. Tens um corpo elegante. Acho que o registei ainda
melhor neste aqui.
O sangue dele limitou-se a gelar. — Há outro?
— Sim. Vamos ver. — Esticou-se para conseguir virar as páginas. — Ora cá está. Vê-se
um bocadinho mais... de contraste quando estás de pé, parece-me. E também vem ao de
cima mais um pouco daquela arrogância.
Ficou sem palavras. Ela desenhara-o de pé no terraço, com um braço apoiado no
parapeito atrás dele, o outro a segurar um copo de brandy. E um sorriso — um sorriso
especialmente presunçoso — no rosto. Era a única coisa que ostentava.
— Não posei para isto. E nunca estive nu no terraço a beber brandy.
— Liberdade artística, — disse ela, despreocupada, maravilhada por o ter desorientado
daquela forma. — Conheço o teu corpo o suficiente para o desenhar de cor. Teria
estragado o tema completamente, se tivesse incluído roupa.
— O tema? Qual é?
— O dono da casa. Pensei em dar-lhe esse título. Aos dois, para ser sincera. Podes
vendê-los em conjunto.
— Não os vou vender.
— E porque não? Já agora, gostava de saber? Já vendeste outros desenhos meus que não
estavam tão bons quanto estes. Os que não queria que vendesses, mas como os havia
assinado, vendeste-os à mesma. Quero que coloques estes no mercado. — Os olhos dela
dançaram. — Na verdade, insisto, porque acho ser um direito meu, em termos de
contrato.
209
— É isso que nós temos? — Pensativo, levou o fósforo ao pavio e, com um abanão,
apagou-o. — Luxúria.
A rir, ela estendeu os braços. — Se parasses de andar a passear no quarto e viesses para
aqui, eu mostrava-te exactamente o que nós temos.
Ela estava estonteante, à luz das velas, com as derradeiras cores do dia a jorrarem pelas
janelas, ao lado da cama. O cabelo de fogo, a pele beijada pelos dias ao Sol e os olhos
atentos, trocistas e inquestionavelmente sedutores.
Noutros dias e noutras noites, ele teria mergulhado naquele convite, aceitando-o,
entregando-se na tempestade de fogo que conseguiam fazer acontecer. Mas mudara de
humor. Caminhou devagar na direcção dela, pegando-lhe nas mãos antes que estas o
conseguissem puxar, ansiosas para a cama com ela, levando-as aos lábios, ao mesmo
tempo que olhava para ela.
— Não foi isso que combinámos, Margaret Mary. Eu devia fazer amor contigo. Já é
altura. — Manteve as mãos dela nas dele, guiando-lhe os braços para junto do corpo,
enquanto caía sobre ela para brincar com os seus lábios. — Está na altura de deixares
que o faça.
— Que parvoíce é essa? — A voz não lhe saíra firme. Ele beijava-a como já fizera
antes, devagar, carinhoso, e com a maior concentração. — Já te deixei fazer o que
querias montes de vezes.
— Não desta forma. — Sentiu as mãos dela dobrar de encontro às dele, o corpo dela a
retrair-se. — Tens assim tanto medo do afecto, Maggie?
— Claro que não. — Não conseguia respirar, contudo, conseguia-se ouvir, sentindo que
aflorava lenta e forte aos seus lábios. Todo o seu corpo estava dormente, apesar de ele
mal lhe tocar. Algo fugia ao seu controlo. — Rogan, não quero...
— Ser seduzida? — Apartou os lábios dos dela, deixando-os percorrer o rosto
lascivamente.
— Não, não quero. — Mas inclinou a cabeça para trás, assim que ele lhe deslizou a
boca pelo pescoço.
— Estás prestes a ser.
Ele soltou-lhe as mãos para a puxar para mais perto de si. Desta vez, não houve nenhum
beijo ardente, mas uma possessão inascapável. Os braços dela pareciam incredulamente
pesados, enquanto os enrolava à volta do pescoço dele. Apenas conseguia ficar a
segurar-se, ao mesmo tempo que ele lhe afagava o cabelo, o rosto, com dedos meigos
que mais pareciam um sussurro sustentado no ar.
A boca dele voltou para a dela num beijo sumptuoso, molhado e profundo, que parecia
interminável, até ela ficar maleável como cera nos seus braços.
211
Ele enganara ambos, apercebeu-se Rogan ao deitá-la na cama. Ao permitir que apenas o
fogo se apoderasse deles, impedira-os de sentir toda a plenitude do calor, do carinho.
Esta noite seria diferente.
Esta noite iria levá-la a atravessar um labirinto de sonhos que antecede as chamas.
O sabor dele penetrou nela, maravilhando, exaltando-lhe a sensibilidade. A avidez que
tanto fizera parte do seu acto de amor transformara-se numa paciência ociosa a que ela
não conseguia resistir nem recusar. Muito antes de ele lhe abrir a blusa e de passar as
pontas dos dedos macios e perspicazes pela pele, já ela flutuava.
Lentamente, ela desceu as mãos pelos ombros dele. Prendia e soltava a respiração à
medida que ele passava a língua por ela, procurando sabores ínfimos e secretos,
demorando-se neles. Saboreando. Perdendo-se naquela longa sensação de
arrebatamento, estava consciente de cada ponto sensível que ele despertava, da atracção
imensa e silenciosa ascendendo do seu interior. Tão diferente de uma explosão. Tão
mais devastador.
Ela murmurou o seu nome quando ele lhe colocou a mão em concha na cabeça,
erguendo o seu corpo que se derretia para o dele.
— És minha, Maggie. Mais ninguém te pode deixar assim.
Ela devia ter levantado objecções a esta nova exigência de exclusividade. Mas não
conseguia. A boca dele já viajava pela dela de novo, como se precisasse de anos,
décadas para concluir a exploração.
A luz das velas tremeluzia como num sonho no olhar dela, já pesado. Conseguia cheirar
as flores que apanhara ainda naquela manhã e que colocara junto à janela, num vaso
azul. Ouvia a brisa a anunciar a noite mediterrânica, com os aromas das flores em botão
e da água, na sua vigília. Sob os dedos e os lábios dele, a pele dela tornava-se mais
macia e os músculos estremeciam.
Como é que podia não ter percebido o quanto a queria desta forma? Todos os fogos se
extinguiram, deixando apenas brasas incandescentes e fumo disperso. Ela movia-se por
baixo das mãos dele, desamparada, incapaz de fazer alguma coisa que não fosse
absorver o que ele lhe dava, seguir para onde a levava. Até mesmo quando o sangue
bombeava na cabeça dele, nos quadris, manteve as carícias suaves, brincando, à espera
dela, a observá-la a contorcer-se de uma sensação avassaladora para a seguinte.
Quando ela estremeceu, quando um novo gemido suspirado escapou por entre os seus
lábios, ele voltou a pegar-lhe nas mãos, envolvendo-as com as dele, para se libertar e a
conduzir até ao limite.
212
Arqueando o corpo, ela pestanejou. Ele observava enquanto o primeiro golpe de veludo
lhe cortava a respiração. Depois, ela voltou a serenar, lânguida e esgotada. O prazer dela
revolvia-se dentro dele.
O Sol pusera-se. As velas derreteram-se. Ele voltou a levá-la mais alto, a um pico ainda
mais elevado que a fez gritar, perdendo as forças. O eco foi-se desvanecendo em
suspiros e murmúrios. Quando o coração dela estava tão preenchido que, também ele,
parecia chorar, ele mergulhou dentro dela, guiando-a ternamente enquanto a lua subia.
Talvez tenha adormecido. Ela sabia que tinha sonhado. Quando voltou a abrir os olhos,
a lua já ia alta e o quarto estava vazio. Lânguida como um gato, pensou em voltar a
aninhar-se. Mas enquanto se ajeitava na almofada, sabia que não ia conseguir dormir
sem ele.
Levantou-se, flutuando um pouco como se a sua mente estivesse inebriada pelo vinho.
Encontrou um roupão, um agasalho de seda fina que Rogan insistira em lhe oferecer.
Assentava com suavidade na sua pele, enquanto começava a procurá-lo.
— Já adivinhava que estarias aqui.
Ele estava na cozinha, de pé em tronco nu diante do fogão lustroso, na cozinha brilhante
preta e branca. — Tens o estômago a dar horas?
— Tal como o teu, minha menina. — Apagou o lume por baixo da caçarola antes de se
virar. — Ovos.
— E que mais havia de ser? — Era a única coisa que ambos conseguiam confeccionar
com competência. — Não me admirava nada que amanhã voltássemos para a Irlanda a
cacarejar. — Como ele se sentiu estranhamente desconfortável, ela passou a mão pelo
cabelo uma, duas vezes.
— Devias ter-me obrigado a levantar-me para os fazer.
— Obrigar-te? — Foi buscar pratos. — Seria a primeira vez.
— Quero dizer que eu podia tê-los feito. Afinal de contas, acho que não cumpri o meu
papel há pouco.
— Há pouco?
— Lá em cima. Na cama. Não cumpri a minha parte.
— Um acordo não se discute. — Deitou os ovos nos pratos. — E do meu ponto de vista,
saíste-te muito bem. Tive imenso prazer em ver-te desabrochar. — Um prazer que
tencionava sentir de novo, muito em breve. — Porque é que não te sentas a comer? A
lua ainda vai estar alta durante algum tempo.
— Imagino que sim. — Mais à vontade, ela fez-lhe companhia à mesa. — Com isto até
posso repor as energias. Sabes, — disse ela, com a boca cheia. — Não fazia ideia que o
sexo nos podia enfraquecer tanto.
213
214
CAPÍTULO DEZASSETE
215
— Não conheces. — Deixou transparecer a raiva e o pânico que não queria admitir,
deixando espaço para a tristeza. — Tenho motivos para manter o meu coração intacto,
Rogan, para não levar em conta a hipótese de casamento.
Num interesse apaziguador, compreendeu que não era casar com ele que a repugnava,
mas o casamento em si. — Quais são?
Ela desceu o olhar para a chávena. Após alguns momentos de hesitação, adicionou os
habituais três cubos de açúcar e mexeu. — Perdeste os teus pais.
— Sim. — Franziu o sobrolho. Certamente que este não era o golpe que esperava que
ela fosse desferir. — Há quase dez anos.
— É duro perder alguém da família. Rouba-nos um enorme escudo de segurança,
expõe-nos perante a fria inevitabilidade da morte. Amava-los?
— Muito. Maggie...
— Não, gostava que ouvisses o que tenho a dizer sobre isto. É importante. Eles
amavam-te?
— Sim, amavam.
— Como é que sabes? — Agora bebia, segurando na chávena com ambas as mãos. —
Porque te deram uma vida boa, um bom lar?
— Não tinha nada que ver com o conforto material. Sabia que me amavam porque o
sentia, porque o mostravam. E percebia que havia amor entre os dois também.
— Havia amor na tua casa. E riso? Havia riso, Rogan?
— Bastante. — Ele ainda se lembrava. — Fiquei destroçado quando eles morreram. Foi
tão imprevisível, tão brutalmente imprevisível... — A voz dele esmoreceu, para depois
voltar a ganhar força. — Mas a seguir, quando o pior havia passado, fiquei feliz por
terem partido juntos. Um deles ficaria moribundo com a morte do outro.
— Não fazes ideia da sorte que tens, do privilégio que tiveste por crescer num lar com
amor e feliz. Eu nunca soube o que isso era. Nunca saberei. Não havia amor entre os
meus pais. Só conheci raiva, censura, culpa e havia obrigação, mas nada de amor.
Consegues imaginar como foi, crescer numa casa em que as pessoas que te haviam dado
vida não se importavam uma com a outra? Que só ali estavam porque o casamento era
uma prisão que os amordaçava, por questões de consciência e religiosas?
— Não, não consigo. — Pôs a mão por cima da dela. — Lamento que tu consigas.
— Quando ainda era uma menina, jurei que nunca seria trancada numa prisão daquelas.
216
— O casamento não é só uma prisão, Maggie, — disse ele, meigo. — O dos meus pais
foi uma maravilha.
— E podes ter um assim, um dia. Mas eu não. Fazemos o que conhecemos, Rogan. Não
podes alterar as tuas origens. A minha mãe odeia-me.
Ele teria protestado, mas ela dissera-o de forma tão despreocupada, tão simples, que ele
não conseguiu.
— Antes de nascer, já ela me odiava. O facto de me trazer no ventre arruinou-lhe a vida,
e ela está sempre a lembrar-me disso. Estes anos todos nunca percebi muito bem as
consequências, até que a tua avó me contou que a minha mãe teve uma carreira.
— Uma carreira? — Tentou lembrar-se. — Quando cantava? O que é que isso tem que
ver contigo?
— Tudo. Que escolha tinha, senão abdicar da carreira? Que carreira lhe restava, sendo
uma mulher solteira, grávida num país como o nosso? Nenhuma. — Gelada, tremeu e
deixou escapar um suspiro trémulo. Doía dizê-lo em voz alta daquela forma, dizê-lo
bem alto. — Ela queria algo para si. Compreendo isso, Rogan. Sei o que é ter ambições.
E também posso imaginar, bem demais, como terá sido vê-las desfeitas. Percebes, é que
eles nunca se tinham casado se eu não tivesse sido concebida. Um momento de paixão,
de desejo, só isso. O meu pai já tinha mais de quarenta anos e ela passara dos trinta.
Acho que ela sonhava com o romance e ele viu aquela mulher amorosa. Naquela altura
era amorosa. Há fotografias. Era amorosa antes da amargura acabar com tudo. E eu fui a
causa de tudo, a bebé de sete meses que a humilhou e arruinou os seus sonhos. E os dele
também. Sim, os dele.
— Não te podes culpar por teres nascido, Maggie.
— Oh, eu sei. Achas que não sei disso? Aqui em cima? — Subitamente feroz, bateu na
cabeça. — Mas no coração... não percebes? Sei que a minha própria existência e cada
fôlego meu sobrecarregou as vidas de duas pessoas, mais do que é suportável. Sou o
produto de mera paixão, e sempre que ela olhava para mim, lembrava-se de que tinha
pecado.
— Isso não só é ridículo, é uma parvoíce.
— Talvez seja. O meu pai disse que a amou um dia, ao entrar no O'Malley's, ao ver
Maeve, ao ouvi-la, deixando voar o seu coração romântico.
Mas despenhara-se num ápice. Causando danos em ambos.
— Tinha doze anos quando ela me contou que tinha sido concebida fora do casamento.
É esta a expressão que usa. Talvez se estivesse a aperceber que eu começava a
transformar-me gradualmente de menina em mulher. Começava a olhar para os rapazes,
e assim. Já treinara técnicas de sedução com o Murphy e com um ou outro rapaz da vila.
Ela apanhou-me uma vez, em pé no celeiro com o Murphy, a experimentarmos um
beijo. Só um beijo, mais nada, junto ao feno numa tarde quente de verão, os dois jovens
e curiosos. Foi o meu primeiro beijo, e foi lindo... macio, tímido e inofensivo. E ela
descobriu-nos.
217
Ao fechar os olhos, Maggie reviveu a cena de forma bastante nítida. — Estava vestida
de branco, branco marfim, e gritava e esperneava, arrastando-me para dentro de casa.
Disse que era malvada, e pecadora, e como o meu pai não estava em casa para a
impedir, deu-me uma sova.
— Uma sova? — O choque obrigou-o a levantar-se da cadeira. — Estás a dizer que ela
te bateu porque beijaste um rapaz?
— Ela bateu-me, — disse Maggie, neutra. — Não se ficou pelas costas da mão a que já
me habituara. Pegou num cinto e deu-me com ele de tal forma que pensei que morria.
Enquanto o fazia, gritava as escrituras e bradava aos céus sobre as marcas do pecado.
— Não tinha o direito de te tratar assim. — Ajoelhou-se diante dela, envolvendo o seu
rosto com as mãos.
— Não, ninguém tem esse direito, mas isso não é impedimento. Naquela altura, pude
ver o ódio nela e o medo também. Acabei por perceber que tinha medo que eu acabasse
como ela, com um bebé no ventre e um coração vazio. Sempre soube que ela não me
amava como as mães devem amar os filhos. Sabia que ela era menos severa, mais meiga
com a Brie. Mas só naquele dia percebi porquê.
Já não conseguia ficar sentada. Levantando-se, foi até à porta que dava para um
pequeno pátio pavimentado com pedras, adornado com potefc de barro cheios de
sardinheiras.
— Não tens de continuar a falar desse assunto, — disse Rogan, atrás dela.
— Deixa-me acabar. — O céu estava repleto de estrelas, a brisa um murmúrio suave
atravessando as árvores. — Ela disse-me que eu estava marcada. E bateu-me para que
me apercebesse do fardo que uma mulher carrega por ser ela a ter filhos.
— Que maldade, Maggie. — Incapaz de ocultar as próprias emoções, fê-la girar, as
mãos apoiadas com força nos ombros dela, os olhos de um azul gelado e furioso. —
Eras só uma menina.
— Se era, deixei de ser nesse dia. É que percebi, Rogan, que ela queria dizer
exactamente aquilo.
— Foi uma mentira, e das piores.
— Não para ela. Para ela era a mais pura verdade. Dizia-me que era a sua cruz, que
Deus me enviara como castigo pela noite de pecado. Acreditava piamente nisso e
sempre que olhava para mim, lembrava-se. Que até a dor e o sofrimento de me ter dado
à luz não foram suficientes. Por minha causa, era prisioneira num casamento que
desprezava, ligada a um homem que não conseguia amar e mãe de uma criança que
nunca quis. E, como vim a descobrir recentemente, a desgraça para tudo o que sempre
quis. Talvez a desgraça de tudo aquilo que era.
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— Ela é que devia ter sido açoitada. Ninguém tem o direito de abusar de uma criança
dessa forma e, pior ainda, usar uma qualquer visão distorcida de Deus como
instrumento.
— Tem graça, o meu pai disse quase a mesma coisa quando chegou a casa e viu o que
ela tinha feito. Pensei que lhe ia bater. Foi a única vez na vida que o vi à beira de um
acto violento. Tiveram uma discussão horrível. Ficar ali a ouvir foi pior ainda do que a
sova em si. Subi para o quarto para fugir daquilo tudo e a Brie veio atrás de mim com
pomada. Tratou de mim como uma mãe pequenina, o tempo todo a dizer coisas sem
sentido, enquanto os gritos e os insultos ecoavam pelas escadas. — Tinha as mãos a
tremer.
Não levantou objecção quando Rogan a abraçou, mas os olhos permaneceram secos, a
voz calma. — Nessa altura pensei que ele se ia embora. Disseram tantas coisas horríveis
um ao outro, que pensei que ninguém ia conseguir viver debaixo do mesmo tecto depois
daquilo. Pensava que se ele nos levasse, se eu e a Brie pudéssemos ir embora com ele,
para qualquer sítio, tudo voltaria a ficar bem. Depois, ouvi-o dizer que também estava a
pagar algum castigo. Que estava a pagar por ter acreditado que a amava e a queria. Que
ia pagar até ao dia da sua morte. Claro que não se foi embora.
Maggie afastou-se novamente. Recuou. — Ficou mais de dez anos e ela nunca mais me
tocou. De forma nenhuma. Mas nunca mais ninguém se esqueceu daquele dia — acho
que nenhum de nós quis fazê-lo. Ele tentou compensar dando-me mais, amando-me
mais. Mas não conseguia. Se a tivesse deixado, se tivesse pegado em nós e ido embora,
as coisas teriam mudado. Mas ele não podia, por isso vivemos naquela casa, como
pecadores no inferno. Eu sabia que por mais que ele me amasse, havia alturas em que
deve ter pensado que se não fosse... se eu não tivesse existido, seria livre.
— Achas mesmo que a culpa é dos filhos, Maggie?
— Pelos pecados dos pais... — Abanou a cabeça. — É uma das expressões preferidas da
minha mãe. Não, Rogan, não culpo os filhos. Mas não muda as consequências. —
Respirou fundo. Sentia-se melhor por ter falado. — Nunca hei-de arriscar entrar numa
prisão dessas.
— És uma mulher demasiado esperta para achares que o que aconteceu aos teus pais vai
acontecer a toda a gente.
— A toda a gente, não. Um dia, agora que não está sujeita às exigências da minha mãe,
a Brie vai-se casar. É uma mulher que pretende constituir família.
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— E tu não.
— Não, — disse ela, mas as palavras soaram vazias. — Tenho o meu trabalho e preciso
de estar sozinha.
Ele agarrou-lhe o queixo. — Tens medo.
— Se tiver, tenho razões para isso. — Libertou-se dele. — Que espécie de esposa ou
mãe daria, tendo em conta as minhas origens?
— No entanto, acabaste de dizer que a tua irmã será as duas coisas.
— Afectou-a de forma diferente do que me afectou a mim. Ela tem tanta necessidade
das pessoas e de uma casa como eu tenho de passar sem elas. Tinhas razão quando
disseste que era teimosa, mal-educada e egoísta. Sou mesmo.
— Talvez fosses obrigada a isso. Mas és muito mais, Maggie. És compassiva, leal e
amorosa. Não me apaixonei apenas por essa parte de ti, mas sim por tudo. Quero passar
a minha vida contigo.
Algo tremia dentro dela, frágil como um cristal afagado por uma mão descuidada. —
Não ouviste nada do que eu disse?
— Cada palavra. Mas sei que não me amas apenas. Precisas de mim.
Ela arrastou ambas as mãos pelo cabelo, os dedos enterrados e a puxar, revelando
frustração. — Não preciso de ninguém.
— Claro que precisas. Tens é medo de o admitir, mas isso é compreensível. — Ele
lamentava, amargamente, a criança que ela fora. Mas não podia permitir que isso
mudasse os planos que tinha para ela. — Trancaste-te numa prisão, Maggie. Quando
admitires o que desejas, a porta há-de abrir-se.
— Estou satisfeita com as coisas como estão. Porque é que tens de as mudar?
— Porque quero mais do que apenas alguns dias ou um mês contigo. Quero uma vida
contigo, ter filhos teus. — Passou a mão pelo cabelo dela, envolvendo a parte de trás do
pescoço. — Porque és a primeira e a única mulher que já amei. Não te vou perder,
Maggie. E não vou deixar que me percas.
— Já dei tudo o que podia, Rogan. — A voz dela tremia, mas conseguiu controlar-se. —
É muito mais do que alguma vez dei a alguém. Contenta-te com aquilo que te posso dar,
porque, se não o fizeres, terei de terminar tudo.
— Eras capaz?
— Terei de o fazer.
Quando chegou à base do pescoço dela, ele apertou as mãos, soltando-as depois e
deixando-as cair. — Teimosa, — disse, com um rasto de divertimento a ocultar a dor. —
Bom, também eu sou. Posso esperar que venhas ter comigo. Não, não me digas que não
o farás, — continuou, assim que ela abriu a boca para protestar. — Se o fizeres, só vais
dificultar mais as coisas para ti. Vamos deixar tudo como está, Maggie. Com uma
modificação.
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Ela estava contente por chegar a casa. Em casa podia saborear a solidão, desfrutar da
sua própria companhia e dos dias longos, enormes em que a luz se agarrava ao céu até
às dez horas. Em casa, não tinha de pensar em nada, a não ser no trabalho. Para o
provar, ofereceu-se três dias na casa vidreira, três dias sem interrupções.
Estava produtiva, satisfeita com os resultados que via a arrefecer no forno para recozer.
E estava, pela primeira vez desde que se lembrava, sozinha.
Convencera-se disso, pensou ela ao observar o crepúsculo crescer e aprofundar-se,
assumindo de forma maravilhosa os tons da noite. Ele aliciara-a a apreciar a sua
companhia, a apreciar o bulício das cidades e das pessoas. Fizera com que ela quisesse
mais. Ela desejava-o demais.
Casamento. Estremecia só de pensar, enquanto ia à mesa da cozinha buscar o que
precisava. Pelo menos isso ele nunca a haveria de convencer a desejar. Tinha a certeza
que, com o passar do tempo, ele haveria de ver as coisas à sua maneira. Senão...
Foi até lá fora, fechando a porta. Era melhor não pensar em possibilidades. Acima de
tudo, Rogan era um homem sensível.
Seguiu o carreiro até casa de Brianna, bem devagar ao mesmo tempo que a noite se
instalava à sua volta. Uma bruma ténue rodeava os seus pés e a brisa sustinha um
arrepio de aviso murmurado através das árvores.
Como um lampião de boas-vindas, a luz na cozinha de Brianna brilhava em contraste
com a noite. Maggie segurava os esboços que emoldurara e acelerou o passo.
Ao aproximar-se, um rosnar baixo soou das sombras do sicómoro. Maggie chamou
baixinho e respondeu-lhe um ladrar contente. Con irrompeu das sombras, atravessando
a bruma, e teria saltado para cima dela para demonstrar o seu amor e devoção se ela não
tivesse estendido a mão para o impedir.
— Preferia que não me deitasses ao chão, obrigada. — Fez-lhe festas na cabeça, no
pescoço, ao mesmo tempo que a sua cauda oscilante rasgava o fino nevoeiro em
farrapos. — A guardar a princesa de noite, não é? Bom, vamos entrar e procurá-la.
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Assim que Maggie abriu a porta da cozinha, Con entrou disparado como uma mancha
de pêlo e músculos. Parou do outro lado da sala, junto à porta que ia dar ao corredor,
com a cauda a abanar.
— Será que está lá fora? — Maggie pousou os esboços e avançou na direcção da porta.
Do outro lado ouviu vozes, risos suaves, um sotaque britânico. — Ela tem hóspedes, —
disse a Con, desiludindo bastante o cão ao afastar-se da porta. — Não a vamos
incomodar, por isso vais ter de me aturar. — Mantendo uma réstia de esperança, foi até
ao armário onde Brianna guardava os biscoitos de Con. — Afinal, que truque é que vais
fazer para mim, rapaz?
Con fitava o biscoito que ela tinha na mão, mordendo o lábio. Com uma dignidade
contida, caminhou devagar na direcção de Maggie, sentou-se e levantou uma pata.
— Muito bem, meu lindo.
Com o petisco preso entre os dentes, Con correu para o tapete diante da lareira da
cozinha, percorreu três círculos e deitou-se com um suspiro de satisfação.
— Eu também já comia qualquer coisa.
Uma olhadela breve pela cozinha revelou um tesouro. Uma forma com pão de gengibre,
metade já comido, repousava debaixo de um pano protector. Maggie comeu uma fatia
enquanto a chaleira aquecia, sentando-se para comer outra a acompanhar uma chávena
de chá caseiro.
Quando Brianna entrou, Maggie estava a raspar as migalhas do prato.
— Já me perguntava quando é que ias aparecer. — Brianna baixou-se para fazer festas
ao cão, que se levantara para se encostar às pernas dela.
— Teria vindo mais cedo se soubesse que isto estava à minha espera. Já vi que tens
hóspedes.
— Sim, um casal de Londres, um estudante de Derry e duas senhoras amorosas de
Edimburgo. Como foram as férias?
— O lugar era lindo, quente, dias solarengos, noites quentes. Fiz-te alguns desenhos
para veres por ti. — Gesticulou na direcção deles.
Brie pegou nos quadros e o seu rosto iluminou-se de alegria. — Oh, são maravilhosos.
— Achei que ias gostar mais deles do que de um postal.
— Claro que sim. Obrigada, Maggie. Tenho ali uns recortes da tua exposição de Paris.
Maggie ficou surpreendida. — Oh, como é que os arranjaste?
— Pedi ao Rogan que os enviasse. Queres ver?
222
— Não, agora não. Só vou ficar com dores de estômago e o meu trabalho está a correr
tão bem.
— Vais a Roma quando a exposição for para lá?
— Não sei. Ainda não pensei nisso. Ainda parece tudo muito distante.
— Como num sonho. — Brianna suspirou ao sentar-se. — Ainda mal posso acreditar
que estive em Paris.
— Agora podes viajar mais, se quiseres.
— Mmm. — Talvez existissem lugares que gostasse de conhecer, mas a casa impedia-a.
— A Alice Quinn teve um menino. Vão chamar-lhe David. Foi baptizado ontem.
Chorou o tempo todo durante a cerimónia.
— E a Alice provavelmente entrou em alvoroço como um pássaro a esvoaçar.
— Não, pegou no pequeno David e acalmou-o, depois levou-o para o adormecer. O
casamento e a maternidade mudaram-na. Ias achar que não é a mesma Alice.
— O casamento muda sempre as pessoas.
— Muitas vezes para melhor. — Mas Brianna sabia no que Maggie estava a pensar. —
A mãe está boa.
— Não perguntei nada.
— Não, — retorquiu Brianna, calma. — Mas sou eu que te digo. A Lottie convenceu-a a
sentar-se no jardim todos os dias e a passear.
— A passear? — Apesar de tudo, o interesse de Maggie foi espicaçado. — A mãe, a
passear?
— Não sei como ela consegue, mas a Lottie sabe levá-la. Na minha última visita, a mãe
estava a segurar lã enquanto a Lottie a enrolava em novelos. Quando entrei, atirou-a ao
chão e começou a resmungar, queixando-se que a mulher ainda a havia de mandar para
a cova. Disse que despediu a Lottie duas vezes, mas que ela não se foi embora. A mãe
queixou-se o tempo todo, enquanto a Lottie se baloiçava na cadeira, a sorrir e a enrolar
o novelo de lã.
— Se a mulher conseguir afastar a Lottie...
— Não, deixa-me acabar. — Brianna debruçou-se, os olhos a dançar. — Ali fiquei, a
inventar desculpas e à espera do pior. Passado um bocado, a Lottie parou de se baloiçar.
— «Maeve», — disse ela, — «pára de atazanar a rapariga. Pareces uma gralha.» E ela
devolveu-lhe o novelo e disse-me que estava a ensinar a mãezinha a tricotar.
— Ensiná-la a... oh, esse dia ainda está para vir.
— O problema é que a mãe continuou a resmungar até não poder mais e a discutir com
a Lottie. Mas ela parecia estar a gostar. Tinhas razão quanto a ela ter a sua própria casa,
Maggie. Ela pode ainda não ter percebido, mas é mais feliz ali do que foi a maior parte
da sua vida.
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— O importante é que saiu daqui. — Inquieta, Maggie levantou-se para passear à volta
da cozinha. — Não quero que te iludas a pensar que o fiz por ter um coração bondoso.
— Mas fizeste-o, — retorquiu Brianna, baixinho. — Se não queres que mais ninguém
saiba além de mim, a decisão é tua.
— Não vim aqui para falar sobre ela, mas para ver como é que tens passado. Já te
mudaste para o quarto junto à cozinha?
— Já. Fico com mais um quarto livre lá em cima para os hóspedes.
— Tens mais privacidade.
— Isso também. Arranjei sítio para uma secretária para tratar da contabilidade e das
papeladas. Gosto de ter uma janela com vista para o jardim. O Murphy disse que me
podia pôr lá uma porta, se eu quisesse, para poder entrar e sair sem ter de passar pelo
resto da casa.
— Óptimo. — Maggie pegou num frasco de passas, voltando a pousá-lo. — Tens
dinheiro suficiente para a montar?
— Tenho. O Verão tem corrido bem. Maggie, não me queres dizer o que te preocupa?
— Não é nada, — respondeu Maggie abruptamente. — Tenho tido muito em que
pensar, só isso.
— Zangaste-te com o Rogan?
— Não. — Não podia dizer que estivessem zangados, pensou ela. — Porque é que
achaste que estaria a pensar nele?
— Porque vos vi juntos, vi o quanto gostam um do outro.
— Devia ser suficiente, não achas? — Exigiu saber Maggie. — Gosto dele e ele de
mim. Os negócios que temos juntos estão a ter sucesso e provavelmente assim vão
continuar. Devia ser suficiente.
— Não sei responder a isso. Estás apaixonada por ele?
— Não. Ele pensa que estou, mas não posso ser responsável pelo que o homem pensa.
Nem vou mudar a minha vida por causa dele, nem de ninguém. Ele já provocou
algumas mudanças. — Abraçou os próprios braços com força, sentindo um frio súbito.
— E, raios o partam, não posso voltar atrás.
— Atrás para onde?
— Voltar a ser quem era, ou que pensava que era. Ele fez-me querer mais. Sei que
sempre quis, mas ele obrigou-me a admiti-lo. Para mim não chega acreditar no meu
trabalho, preciso que ele acredite. Tornou-se uma parte dele e, se eu falhar, não o farei
sozinha. Quando tiver sucesso, a satisfação também não será só minha. E acho que me
comprometi por ter entregado parte de mim, o melhor de mim, nas mãos dele.
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— Estás a falar da tua arte, Maggie, ou do teu coração? — Brianna olhava com
intensidade para a irmã enquanto lhe fazia a pergunta.
Maggie sentou-se novamente, derrotada. — Não imagino um sem o outro. Por isso acho
que lhe dei um bocadinho de cada.
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— Ouvi dizer que correu muito bem em Paris. — Christine sentou-se a seu lado,
amaciando a saia do vestido de linho. — Na semana passada almocei com a Patrícia e
ela contou-me que foi um sucesso estrondoso.
— Pois foi. Apesar de não imaginar como a Patrícia soube. — Pensou na amiga com
uma pontinha de culpa. — Como está ela?
— Oh, bastante bem. Diria mesmo, esplendorosa. Acho que ela mencionou que o
Joseph lhe tinha contado como iam os negócios em Paris. Ela tem tido muito trabalho
no centro de tempos livres e o Joseph anda a dar-lhe uma ajuda.
— Óptimo. Tenho pena, mas esta última semana não passei muito tempo na galeria. A
verdade é que a expansão em Limerick está a canalizar quase todos os meus recursos.
— Como é que está a correr?
— Bastante bem. Tive algumas complicações, por isso vou ter de viajar até lá para as
resolver.
— Mas ainda mal voltaste.
— Não devo demorar mais de um ou dois dias. — Inclinou a cabeça, observando a avó
a alisar a saia, a passar a mão pelo cabelo. — Passa-se alguma coisa?
— Não. — Ela sorriu alegremente e obrigou as mãos a ficarem imóveis. — Nada
mesmo, apesar de querer falar contigo sobre uma coisa. É que... — Hesitou,
apelidando--se de cobarde miserável. — Como está a Maggie? Gostou da França?
— Pareceu-me que sim.
— É uma altura do ano fantástica para umas férias na vivenda. O tempo estava bom?
— Estava. Queres falar sobre o tempo, avó?
— Não, estava só... tens a certeza que não queres beber nada?
Uma gota de alarme deslizou-lhe pelas costas abaixo. — Se aconteceu alguma coisa,
quero que me contes.
— Não aconteceu nada, querido. Nada de mal.
Para seu espanto, ela corou como uma colegial. — Avó...
Foi interrompido por um ruído nas escadas e por um grito. — Chrissy? Afinal onde te
meteste, rapariga?
Rogan levantou-se devagar assim que um homem assomou à porta. Tinha o peito farto,
era careca como um ovo e vestia um fato pouco aprumado da cor de malmequeres. O
seu rosto era redondo e enrugado. Brilhava como a lua.
— Estás aí, minha linda menina. Pensava que te tinha perdido.
— Ia agora tocar para bebermos o chá. — O rubor de Christine acentuou-se assim que o
homem entrou na sala e lhe beijou ambas as mãos trémulas.
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CAPÍTULO DEZOITO
Foi um Rogan bastante deprimido que deixou a casa da avó e vagueou até à galeria,
mesmo antes de fechar. Não queria acreditar que vira o que sabia ter acabado de ver. Tal
como Maggie afirmara uma vez, quando um casal tem intimidade, emite sinais óbvios.
A sua avó, por amor de Deus, estava a namoriscar com o tio gorducho da Maggie, de
Galway.
Não, ao entrar na galeria, decidiu que não conseguia sequer pensar nisso. Tinha a
impressão de ter visto os sinais, mas sem dúvida que os lera de forma incorrecta. Afinal
de contas, a sua avó tinha mais de setenta anos, era uma mulher de gosto inquestionável,
carácter imaculado, estilo impecável.
E Niall Feeney era... era simplesmente indescritível, decidira Rogan.
Precisava de algumas horas de paz completa e de sossego no escritório da galeria —
longe das pessoas e dos telefones, e de tudo o que fosse remotamente pessoal.
Abanou a cabeça ao atravessar a sala. Estava a parecer-se demais com a Maggie.
As vozes exaltadas fizeram-no estacar antes de encostar a mão à maçaneta. Do outro
lado da porta, decorria uma discussão a todo o vapor. Enquanto as boas maneiras o
impeliam a bater em retirada, a curiosidade invertia a tendência.
Abriu a porta para ver Joseph e Patrícia no auge da discussão.
— Digo-te, não estás a usar a cabeça que Deus te deu, — gritava Joseph. — Não serei
causa de um desentendimento entre ti e a tua mãe.
— Estou-me a borrifar para o que a minha mãe pensa, — gritou Patrícia, ripostando,
obrigando Rogan a abrir a boca. — Isto não tem nada a ver com ela.
— O facto de o conseguires afirmar prova que tenho razão. Não estás a usar a cabeça.
Ela... Rogan. — O rosto furioso de Joseph ficou congelado como uma pedra. — Não
esperava ver-te aqui.
— Obviamente. — Rogan olhava cautelosamente de Joseph para Patrícia. — Parece que
estou a interromper.
— Talvez consigas fazê-lo ver como está a ser orgulhoso. — Com os olhos a brilhar de
emoção, Patrícia atirou o cabelo para trás. — Eu não consigo.
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— Isto não tem nada a ver com o Rogan. — Joseph mantinha a voz baixa, com a força
do aviso bem lá escondida.
— Oh, não, ninguém pode saber. — Saltou a primeira lágrima. Patrícia limpou-a. —
Temos de continuar às escondidas como... como adúlteros. Bom, para mim acabou-se,
Joseph. Estou apaixonada por ti e não me interessa quem sabe. — Virou-se para Rogan.
— Então? O que é que tens a dizer sobre isto?
Rogan ergueu uma mão, como se estivesse a recuperar o equilíbrio. — Acho que é
melhor deixar-vos a sós.
— Não é preciso. — Patrícia procurou a bolsa. — Ele não me vai ouvir. Foi erro meu
pensar que ouviria. Que ele era o único que conseguia fazê-lo.
— Patrícia.
— Não menciones o meu nome com esse tom, — perdeu a paciência com Joseph. —
Toda a vida me disseram o que havia de fazer e como fazê-lo. O que é adequado, o que
é aceitável, e estou farta de aturar isso. Tolerei as críticas quando decidi abrir a escola e
a crença dissimulada por parte dos meus amigos e da minha família no meu falhanço.
Mas não vou falhar. — Voltou-se outra vez para Rogan como se ele tivesse falado. —
Estão a ouvir, não vou falhar. Vou fazer exactamente aquilo que quero, e vou fazê-lo
bem. Não vou tolerar é as críticas em relação à minha escolha no que toca a namorados.
Nem de ti, nem da minha mãe, e obviamente que nem do namorado que escolhi.
De queixo erguido, olhou para trás para Joseph com os olhos cheios de lágrimas. — Se
não me queres, então sê honesto o suficiente para me dizeres. Mas não te atrevas a
dizer-me o que é melhor para mim.
Joseph avançou na direcção dela, mas ela já parecia um relâmpago na direcção da porta.
— Patty! Raios partam. — É melhor deixá-la ir, pensou Joseph. Era melhor para ela. —
Desculpa, Rogan, — disse ele, rígido. — Teria arranjado forma de evitar esta cena se
soubesse que vinhas para cá.
— Como não o fizeste, talvez consigas arranjar uma explicação. — Igualmente rígido,
Rogan rodeou a secretária e sentou-se, assumindo uma posição de autoridade. — Na
verdade, faço questão.
Joseph nem pestanejou quando Rogan mudou o registo de amigo para patrão. — É
óbvio que tenho saído com a Patrícia.
— Acho que o termo que ela usou foi andar às escondidas.
A cor voltou ao rosto de Joseph. — Nós... achei que era melhor se fôssemos discretos.
— Achaste? — Um fogo acendeu-se nos olhos de Rogan. — E tratares uma mulher
como a Patrícia como se fosse um dos teus casos habituais é a tua ideia de descrição?
229
— Já estava preparado para que desaprovasses, Rogan. — Por baixo do casaco feito à
medida, os ombros de Joseph estavam rígidos como aço. — Já esperava.
— E fizeste muito bem, — comentou Rogan, neutro.
— Pois fiz, porque já esperava a reacção da mãe dela quando a Patrícia me convenceu a
jantar com eles ontem à noite. — As mãos dele cerraram-se em punho. — Um gerente
de galeria sem uma pinga de sangue azul nas veias. Mais valia ter-me dito logo, porque
estava estampado nos olhos dela. A filha dela podia arranjar melhor. E Cristo sabe que
consegue. Mas não vou ficar aqui à espera que digas que o que se passa entre nós é um
caso passageiro. — Elevara a voz para um grito, ao terminar a frase.
— Então é o quê?
— Estou apaixonado por ela. Apaixonei-me desde a primeira vez que a vi, há quase dez
anos. Mas nessa altura havia o Robert... e havias tu.
— Eu nunca fui problema. — Perplexo, Rogan esfregou as mãos na cara. Estaria o
mundo a enlouquecer? Perguntava-se. A sua avó e o tio da Maggie, ele próprio e a
Maggie e agora Joseph com a Patrícia. — Quando é que isto aconteceu?
— Na semana antes de ires para Paris. — Joseph lembrava-se daquelas horas
vertiginosas, dos dias e noites maravilhosos antes de a realidade se instalar. — Não
planeei nada, mas isso não muda coisa nenhuma. Percebo que agora possas querer
tomar algumas medidas.
Rogan deixou cair as mãos. — Que medidas?
— Para gerir a galeria.
O que ele queria, pensava Rogan, era ir para casa e agarrar num frasco de aspirinas. —
Porquê? — Perguntou, exausto.
— Sou teu funcionário.
— Pois és e espero que assim continues. A tua vida privada não tem nada que ver com o
teu trabalho aqui. Valha-me Deus, pareço assim tanto um monstro que te conseguisse
despedir, por estares apaixonado por uma amiga minha? — Deu alguns momentos de
folga à cabeça latejante, pressionando as palmas das mãos nos olhos. — Chego aqui...
ao meu próprio escritório, deixa que te lembre, e encontro-vos aos dois a brigar como
dois terriers. Antes que conseguisse dizer alguma coisa, já a Patrícia me mostrava as
garras por não acreditar na sua capacidade de dirigir uma escola.
— Abanou a cabeça e deixou cair as mãos. — Nunca pensei que ela fosse incapaz de
fazer alguma coisa. É uma das mulheres mais inteligentes que conheço.
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— Levaste por tabela, — murmurou Joseph, cedendo à vontade imensa de fumar um
cigarro.
— Parece que sim. Tens o direito de achar que não tenho nada com isso, mas como
alguém que te conhece há dez anos, e à Patrícia ainda há mais tempo, tenho algum
interesse. Por que raio é que estavam a discutir?
Joseph exalou fumo. — Ela quer fugir.
— Fugir? — Se Joseph lhe tivesse dito que a Patrícia queria dançar nua na Praça de
Santo Estêvão, não teria ficado mais surpreendido. — A Patrícia?
— Engendrou um esquema doido qualquer em que íamos de carro até à Escócia. Parece
que teve uma discussão com a mãe e entrou por aqui adentro, de rompante.
— Nunca imaginei que a Patrícia entrasse de rompante onde quer que fosse. Imagino
que a mãe dela não concorde com a relação.
— Exactamente. — Revelou um sorriso desmaiado. — A verdade é que ela acha que a
Patrícia devia estar contigo.
Rogan não se espantou nada com o que ele disse. — Aí é que ela se engana, —
comentou ele. — Tenho outros planos. Se ajudar, posso esclarecê-los junto dela.
— Mal não deve fazer. — Joseph hesitou, depois sentou-se como de costume, ao canto
da secretária de Rogan. — Então, não te importas? Não te incomoda?
— Porque haveria de incomodar? No que diz respeito à Anne, o Dennis vai chamá-la à
razão.
— Foi isso que a Patrícia disse. — Joseph estudou o cigarro que se gastava entre os
dedos, agarrando depois no cinzeiro de tampa automática, apagando-o. — Acho que ela
pensava que se fugíssemos para casar, a mãe dela depressa se acostumaria à ideia como
se tivesse sido ela a lembrar-se.
— Quase aposto que sim. A princípio, também não gostou do Robbie.
— Não? — Joseph parecia um homem que começava a ver a luz.
— Não tinha a certeza absoluta que ele fosse homem suficientemente bom para a sua
querida filha. — A especular, Rogan balançou com a cadeira para trás. — Não foi
preciso muito para ela começar a ter um fraquinho por ele. É claro que ele não usava
brinco.
O sorriso de Joseph relampejou ao mesmo tempo que levou a mão à orelha. — A Patty
gosta.
— Hmm, — foi a única coisa que Rogan conseguiu articular. — Com a Anne vai ser um
bocado mais difícil. — Ignorou o ronco rude de Joseph. — Mas no final de contas, ela
só quer a felicidade da filha. Se fores a resposta a isso, a Anne vai querer-te também.
Sabes, nós safávamo-nos bem se fizesses uma viagem súbita à Escócia.
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O telegrama que chegou três dias depois, a informar Rogan que o Sr. e a Sra. Joseph
Donahoe estavam bem e felizes provava que ele não tinha um coração de pedra. Na
realidade, gostava de acreditar que fizera a sua parte em acelerar os dois enamorados no
caminho que iam percorrer.
Mas havia outros dois enamorados que ele daria tudo para ver separados. Para ser
sincero, ele fantasiava diariamente em dar um valente chuto a Niall Feeney, de volta
para Galway. Primeiro, Rogan tentou ignorar a situação. Quando havia passado mais de
uma semana e Niall ainda se mantinha confortavelmente instalado na casa da Christine
Sweeney, ele tentou ser paciente. Afinal de contas, convencia-se, quanto tempo é que
uma mulher com o gosto e a sensibilidade da sua avó ia aturar um espertalhão sem
charme, entediante e campónio?
Passadas duas semanas, ele decidiu que era altura de tentar chamá-la à razão.
Rogan esperou na saleta — a saleta, recordava ele, que reflectia o estilo e o berço de
uma mulher amorosa, sensível e generosa.
— Olá, Rogan. — Christine deslizou pela porta com um ar, pensou o neto, demasiado
atraente para uma mulher da idade dela. — Mas que bela surpresa. Pensei que estavas a
caminho de Limerick.
— E estou. Passei por aqui a caminho do aeroporto. — Deu-lhe um beijo, olhando por
cima do ombro dela, na direcção da porta. — Então... estás sozinha?
— Estou, o Niall foi à rua tratar de uns assuntos. Tens tempo para comer qualquer coisa
antes de partires? A cozinheira fez umas tartes maravilhosas. O Niall encantou-a tanto
que tem feito doces todos os dias.
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Deixou-se ir a um ritmo ocioso, a sonhar com as colheitas nos campos. Os brincos-de-
princesa continuavam a desabrochar em lágrimas vermelhas, apesar da ameaça da geada
matutina. A paisagem em breve iria mudar, quando o Inverno se instalasse, tornando-se
árida e varrida pelo vento agreste. Mas, mesmo assim, seria bela. As noites ficariam
mais compridas, prendendo as pessoas junto das lareiras. As chuvas viriam, varrendo o
Atlântico com o queixume do vento.
Estava ansiosa por essa altura, e pelo trabalho que faria nos meses frios que se
avizinhavam.
Perguntava-se se ia conseguir convencer Rogan a vir passar o Inverno ao oeste, e se
conseguisse, se ele acharia encantadoras as janelas a bater e as lareiras fumegantes. Ela
esperava que sim. E quando ele deixasse de a castigar, ela esperava que pudessem voltar
a ser como eram antes daquela última noite em França.
Ele haveria de ser razoável, convencia-se ela, debruçando-se sobre a bicicleta, de
encontro ao vento. Ela trataria disso. Até o ia perdoar por ser tão altivo, presunçoso e
déspota. No momento em que voltassem a encontrar-se, ela permaneceria calma e
serena, proferindo palavras doces. Iam pôr este desentendimento idiota atrás das costas,
e...
Por pouco não teve tempo de travar, galgando o passeio assim que um carro deu a
curva. Travões guincharam, o carro desviou-se, indo Maggie acabar com o traseiro em
cima dos espinheiros negros.
— Jesus, Maria e José, mas que espécie de estúpido, cego e ignorante é que tenta
atropelar uma pessoa inocente? — Ajeitou o boné para trás, que lhe caíra para a frente
dos olhos, fitando-o. — Oh, é claro. Só podias ser tu.
— Magoaste-te? — Rogan saiu do carro e colocou-se ao lado dela num instante. — Não
tentes mexer-te.
— Consigo mexer-me, maldito. — Sacudiu as mãos dele, que tentavam ajudá-la. — O
que é que esperavas, a conduzir àquela velocidade horrível? Isto não é uma pista de
competição.
O coração que se alojara bem firme na garganta libertava-se agora. — Não ia a conduzir
assim tão depressa. Estavas no meio da estrada, a sonhar acordada. Se tivesse dado a
curva um segundo antes, passava-te por cima como a um coelho.
— Não estava a sonhar acordada. Ia a pensar com os meus botões, sem pensar que um
idiota entrasse a grande velocidade no seu carro topo de gama. — Limpou a parte de
trás das calças, dando um pontapé na bicicleta. — Olha só o que fizeste. Tenho um pneu
em baixo.
— Tens sorte por ser o pneu que está em baixo, e não tu.
— O que é que estás a fazer? — Exigiu saber.
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— Estou a pôr esta amostra de transporte no carro. — Quando terminou, voltou-se para
ela. — Anda daí, vou levar-te a casa.
— Não ia para casa. Se tivesses algum sentido de orientação, reparavas que estava a ir
para a vila, onde ia comer qualquer coisa.
— Isso vai ter de esperar. — Pegou-lhe no braço com um sentimento de posse que ela se
esquecera que achava engraçado.
— Ai, vai? Então podes levar-me à vila ou a qualquer outro sítio, porque estou cheia de
fome.
— Vou levar-te a casa, — voltou a dizer. — Tenho um assunto para tratar contigo, em
privado. Se esta manhã tivesse conseguido falar contigo, podia ter-te avisado que vinha
a caminho, e já não ias andar de bicicleta no meio da estrada.
Com isto, bateu com a porta do carro atrás dela e desceu a capota.
— Se tivesses conseguido falar comigo hoje de manhã, e demonstrasses esta mesma
atitude, tinha-te dito para nem sequer te incomodares a vir até cá.
— Tive uma manhã difícil, Maggie. — Resistiu à vontade de massajar a cabeça que
latejava, bem na zona das têmporas. — Não abuses.
Mas ela insistiu, vendo depois que ele se limitara a dizer a verdade. Os seus olhos
espelhavam problemas. — Houve algum problema no trabalho?
— Não. Para ser sincero, tive algumas complicações com um projecto em Limerick.
Daqui sigo para lá.
— Então, não vais ficar.
— Não. — Olhou de soslaio para ela. — Não vou ficar. Mas não é da expansão da
fábrica que preciso de falar contigo. — Parou junto ao portão dela, desligando o carro.
— Se não tiveres nada para comer, vou num instante à vila e trago alguma coisa.
— Não há problema. Eu faço qualquer coisa. — Cedeu o suficiente para passar a mão
pela dele. — Fico contente por te ver, apesar de quase me teres atropelado.
— Também gosto de te ver. — Levou a mão aos lábios. — Apesar de quase teres
passado por cima de mim. Deixa-me tirar a bicicleta.
— Deixa-a aí à frente. — Depois de percorrer o passeio, virou-se. — Tens algum beijo
decente para me dar?
Foi difícil resistir àquele vislumbre de sorriso, ou à forma como ela se alongou para
entrelaçar as mãos atrás da cabeça dele. — Tenho um beijo para ti, decente ou não.
Era fácil encontrar o calor, deixar a energia entrar. Difícil era reprimir a ânsia, aquele
desejo instantâneo de a arrastar pela porta e querer tudo.
— Talvez estivesse a sonhar acordada um pouco, ainda agora, — afirmou ela,
mordiscando os lábios. — Estava a pensar em ti, a imaginar por quanto tempo mais me
ias castigar.
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— Como assim?
— Ficando longe de mim. — Falava etereamente, ao passar pela porta.
— Não estava a castigar-te.
— Então, mantiveste-te afastado.
— Distanciei-me, para teres tempo para pensar.
— E tempo para sentir saudades tuas.
— Para sentires saudades minhas. E para mudares de ideias.
— Senti a tua falta, mas não mudei de ideais nem coisa que se pareça. Porque é que não
te sentas? Tenho de ir buscar mais turfa para a lareira.
— Amo-te, Maggie.
Aquilo fê-la estacar, fechando os olhos por momentos antes de se virar. — Acredito que
sim, Rogan, e embora algo dentro de mim aqueça por sabê-lo, não muda nada. —
Apressou-se a sair.
Ele não viera até ali implorar, lembrou-se. Viera pedir que o ajudasse com um problema.
Apesar da reacção que ela tivera, ele acreditava que as coisas estavam a mudar mais do
que ela estava pronta a admitir.
Caminhou lentamente até à janela, ao sofá descaído, regressando depois.
— Não te queres sentar? — Exigiu ela, ao regressar com os braços cheios de pedaços de
turfa. — Vais gastar o chão. O que é que se passa em Limerick?
— Só algumas complicações, nada de mais. — Ficou a vê-la ajoelhar-se junto à lareira,
onde, com grande perícia, empilhava o combustível. Ocorreu-lhe que nunca vira
ninguém a preparar uma lareira alimentada a turfa. Era uma visão apaziguadora, pensou,
que aproximava ainda mais um homem da procura daquele núcleo quente e vermelho.
— Vamos expandir a fábrica.
— Oh, e o que é que fazem na fábrica?
— Porcelana. A maioria é do tipo barato que se usa em mementos.
— Mementos? — Parou o que estava a fazer, inclinando-se para trás e apoiando-se nas
ancas. — Lembranças, queres dizer? Aqueles sininhos e chávenas das lojas de turismo?
— São muito bem executados.
Ela atirou a cabeça para trás a rir. — Oh, que maravilha. Arranjei um homem que faz
pratinhos com trevos desenhados por todo o lado.
— Fazes ideia da percentagem da nossa economia que depende do turismo, da venda de
pratinhos com trevos desenhados, ou camisolas tricotadas à mão, linho, rendas, postais
idiotas?
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— Não. — Ocultou o riso com a mão. — Mas tenho a certeza que me sabes dizer, até ao
último tostão. Diz-me, Rogan, fazes bastante negócio com duendes de gesso, ou com
cacetes de plástico?
— Não vim aqui para te justificar os meus negócios, nem para discutir o facto de esta
expansão, que nos vai permitir fabricar da melhor porcelana produzida na Irlanda, ir
criar mais de uma centena de postos de trabalho numa zona do país que precisa deles
desesperadamente.
Ela acenou, fazendo-o parar. — Desculpa, insultei-te. Tenho a certeza que existe uma
necessidade crescente de dedais, cinzeiros e chávenas a dizer «Erin Go Bragh». Vê se
percebes, para mim é difícil imaginar um homem que veste fatos tão magníficos dono
de um lugar que fabrica essas coisas.
— É porque o faço que a Worldwide subsidia e oferece apoios a um grande número de
artistas, todos os anos. Até mesmo se forem snobes.
Ela esfregou as costas da mão no nariz. — Isso coloca-me no devido lugar. E como não
quero desperdiçar o tempo que temos a discutir, não se fala mais nisso. Vais-te sentar,
ou ficas aí em pé a olhar para mim? Não é que não me pareças bem, até mesmo com o
sobrolho carregado.
Num longo suspiro, rendeu-se. — O trabalho tem corrido bem?
— Muito bem. — Ela mudou de posição, cruzando as pernas em cima do tapete. —
Antes de te ires embora mostro-te as novidades, se tiveres tempo.
— Na galeria estamos um pouco atrasados. Talvez seja melhor informar-te que o Joseph
e a Patrícia fugiram.
— Sim, eu sei. Recebi um postal deles.
Ele inclinou a cabeça. — Não pareces nada surpreendida.
— Pois não. Estavam perdidamente apaixonados um pelo outro.
— Ainda me lembro de tu afirmares que a Patrícia estava perdidamente apaixonada por
mim.
— Nada disso. Eu disse que ela estava meia apaixonada por ti, e continuo a defender
isso. Imagino que queria estar apaixonada por ti, afinal de contas, era bastante
conveniente. Mas o tempo todo, era do Joseph que gostava. Não é isso que te está a
incomodar, pois não?
— Não. Admito que me apanhou de surpresa, mas não me incomoda. Acabei por
perceber que via como garantidas as funções do Joseph. Ela está de regresso amanhã, e
fico grato por isso.
— Então o que é?
— Recebeste alguma carta do teu tio Niall?
— A Brianna recebeu. É ela que as recebe, tal como é ela que se lembra de responder.
Ele escreveu-lhe a contar que ia até Dublin e que podia passar por aqui no regresso.
Estiveste com ele?
— Se estive? — Num tom de repulsa, Rogan levantou-se outra vez da cadeira. — Não
posso ir ter com a minha avó sem tropeçar nele. Está acomodadíssimo na casa dela há já
duas semanas. Temos de decidir o que fazer acerca disto.
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— Puritano?
— Ficaste ofendido com a ideia da tua avó ter uma vida sexual rica e preenchida.
Vacilou, assobiando entre dentes. — Oh, por favor. Nem quero imaginar.
— Nem devias tentar, porque é um assunto privado deles. — Torceu a boca. — Ainda
assim... é interessante.
— Não é nada. — Derrotado, voltou a afundar-se na cadeira. — Se existe uma imagem
que não quero ter na mente, é essa.
— Na verdade, também não percebo muito bem. Não era estranho se eles se casassem?
Nós dois seríamos como primos, afinal de contas. — A rir, ela bateu-lhe nas costas, ao
vê-lo engasgado. — Queres um uísque, querido?
— Quero. Maggie. — Respirou fundo algumas vezes. — Maggie, — disse novamente,
enquanto ela vagueava pela cozinha. — Não quero que ela se magoe.
— Eu sei. — Regressando, ela segurava dois copos. — É por saber isso que não te
esmurrei o nariz quando falaste daquela maneira do tio Niall. A tua avó é uma boa
mulher, Rogan, e sensata.
— Ela... — Por fim, proferiu-o em voz alta. — Ela é tudo o que resta da minha família.
Os olhos de Maggie tornaram-se mais ternurentos. — Não a vais perder.
Ele soltou um suspiro, com os olhos presos no copo. — Talvez aches que estou a ser
idiota.
— Não, não acho... exactamente. — Sorriu ao ver que os olhos dele encontravam os
dela. — Um homem pode ficar algo ansioso ao ver a avó com um novo namorado.
Rogan estremeceu. Ela riu-se.
— Porque não deixá-la ser feliz? Se isso te serena os ânimos, vou ver o que posso fazer
quando eles passarem por cá.
— Isso já é alguma coisa. — Tocou com o copo no dela, para depois beberem juntos o
uísque de um só trago. — Tenho de ir.
— Ainda agora chegaste. Vem comigo ao pub e podemos comer qualquer coisa juntos.
Ou... — passou os braços à volta dele, — podemos ficar aqui e passar fome.
Não, pensou ele ao baixar a boca para encontrar a dela. Não iam passar fome muito
tempo.
— Não posso ficar. — Colocou o copo vazio de lado para a agarrar pelos ombros. — Se
ficasse, íamos acabar na cama. Isso não ia resolver nada.
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— Não tem de haver alguma coisa para resolver. Porque é que tens de complicar tudo?
Ficamos bem juntos.
— Pois ficamos. — Emoldurou-lhe o rosto com as mãos. — Muito bem juntos. Esse é
apenas um dos motivos porque quero passar a minha vida contigo. Não, não me afastes.
Nada do que me disseste muda o que podemos ter. Quando perceberes isso, virás ter
comigo. Posso esperar.
— Vais-te embora, e ficas longe outra vez? Então, é casamento ou nada?
— É casamento. — Voltou a beijá-la. — E tudo. Fico em Limerick quase uma semana.
O escritório sabe onde me contactar.
— Não vou telefonar.
Passou com o polegar pelos lábios dela. — Mas vais ter vontade. Por agora, isso chega.
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CAPÍTULO DEZANOVE
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Embrulhou-a com cuidado, por se tratar de mais que uma simples escultura. Esta fora a
última peça que ela conseguira arrancar com sucesso do coração. Nada que tentara
desde então vingara. Dia após dia, só trabalhara a fundir e a voltar a fundir. Dia após
dia, aproximava-se mais da libertação do pânico que palpitava dentro dela.
A culpa era dele, convencia-se ela ao apertar a tampa da grade. Era culpa dele por a
tentar com fama e fortuna, por expor a sua vaidade a um sucesso tão esmagador e
rápido. Agora estava bloqueada, vazia. Tão oca quanto o tubo que ela transformara num
unicórnio.
Ele fizera-a querer demasiado. Querê-lo demasiado. Depois afastara-se para a deixar
ver, brutalmente, como era não ter nada.
Não ia desistir, nem entregaria as armas. Maggie fizera a promessa de que pelo menos
guardaria o seu orgulho. Enquanto a fornalha rugia de forma escarnecedora, ela
permanecia sentada na cadeira, sentido a familiaridade das suas formas.
Só podia ser por estar a trabalhar demasiado. Insistira para que fizesse um trabalho cada
vez melhor, a cada peça criada. A pressão de se agarrar ao sucesso bloqueara-a, nada
mais do que isso. Não conseguia ignorar a ideia de que à medida que a tournée saía de
Paris, o seu trabalho ia ser mais procurado. Que ela ia ser mais procurada.
Que nunca mais ia pegar no tubo só porque queria, apenas pelo prazer de o fazer. Rogan
mudara tudo isso. Tal como ela disse que o faria, ele havia-a mudado.
E como é que, pensava ela, fechando os olhos, como era possível que um homem se
fizesse amar afastando-se?
— Saíste-te muito bem, não foi, querida? — Niall, enfiado num dos seus fatos de tons
luminosos como uma salsicha feliz, cintilava para Brianna. — Sempre disse que eras
uma rapariga esperta. Sai à minha querida irmã, a Brianna, Chrissy.
— Tem uma casa encantadora. — Christine aceitou o copo que Brianna lhe oferecia. —
E os seus jardins são simplesmente arrebatadores.
— Obrigada. Dão-me bastante satisfação.
— O Rogan disse-me o quanto apreciou a sua breve estadia aqui. — Suspirou Christine,
satisfeita com o calor do lume e o brilho do candeeiro.
— Consigo perceber porquê.
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— Ela tem imenso jeito. — Niall apertou Brianna à volta dos ombros. — Está-lhe no
sangue, sabes. O sangue nunca erra.
— Parece que sim. Conheci a sua avó bastante bem.
— A Chrissy andou sempre no meu caminho. — Niall piscou o olho. — Pensava que
não tinha reparado nela. Mais tímido do que eu, era difícil.
— Nunca tiveste nada de tímido em toda a tua vida, — disse Christine, com uma
gargalhada. — Pensavas que eu era uma praga.
— Se pensei, já mudei de ideias. — Debruçou-se e, debaixo do olhar curioso de
Brianna, beijou Christine com firmeza na boca.
— Demoraste mais de cinquenta anos.
— Parece que foi ontem.
— Bom... — Desconcertada, Brianna pigarreou. — Acho melhor ir ver... parece que é a
mãe e a Lottie, — continuou, ao surgirem vozes elevadas vindas do fundo do corredor.
— Conduzes como se fosses cega, — queixava-se Maeve. — Prefiro voltar a pé para
Ennis a voltar a entrar naquele carro contigo.
— Se acha que consegue fazer melhor, talvez fosse boa ideia ir você a conduzir. Assim,
já ganhava alguma independência. — Obviamente despreocupada, Lottie arrastou-se até
à saleta, desenrolando um cachecol grosso do pescoço. — A noite está muito fria, —
anunciou, com as faces rosadas e a sorrir.
— E tu arrastaste-me para a rua, já sei que vou ficar uma semana de cama.
— Mãe. — De ombros direitos, servindo de escudo contra o embaraço, Brianna ajudou
Maeve a despir o casaco. — Quero apresentar-te a Sra. Sweeney. Sra. Sweeney, esta é a
minha mãe, Maeve Concannon, e a nossa amiga Lottie Sullivan.
— Fico encantada por as conhecer a ambas. — Christine levantou-se para oferecer a
mão às duas mulheres. — Era amiga da sua mãe, Sra. Concannon. Crescemos juntas em
Galway. Na altura chamava-me Christine Rogan.
— Ela falou-me de si, — respondeu Maeve, sucinta. — Muito prazer em conhecê-la. —
O seu olhar desconfiado saltou para o tio. — Bom, tio Niall, verdade? Há muito tempo
que não nos concede a honra de uma visita.
— A tua presença aquece-me o coração, Maeve. — Envolveu-a num abraço, dando
palmadinhas nas suas costas robustas com a mão carnuda. — Espero que os anos
tenham sido simpáticos contigo.
— Porque haveriam de ser? — Assim que se libertou, Maeve sentou-se na poltrona
junto à lareira. — Esta lareira está muito fraquinha, Brianna.
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Não estava, mas Brianna foi até lá fazer alguns ajustes na grelha.
— Deixa de ser chata, — ordenou Niall, acenando com a mão casualmente. — Está
muito bem. Todos sabemos que a Maeve vive a queixar-se.
— Não me diga? — Lottie falou com satisfação, ao mesmo tempo que tirava as agulhas
de tricotar do cesto que trouxera consigo. — Eu não ligo nenhuma a isso. Mas imagino
que deve ser consequência de criar quatro filhos.
Incerta sobre o chão que pisava, Christine centrou as atenções em Lottie. — Mas que
linda lã, Sra. Sullivan.
— Obrigada. Também gosto muito. Fizeram boa viagem de Dublin?
— Maravilhosa, sim. Já me tinha esquecido como esta zona do país é linda.
— É só campos e vacas, — atirou Maeve, aborrecida por a conversa extravasar o seu
círculo de controlo. — É bom viver em Dublin e dar um passeio num belo dia de
Outono. Se fosse Inverno, não ia achar tudo tão bonito. — Ela teria continuado no
mesmo tema, mas Maggie entrou.
— Vejam só o tio Niall, maior do que a vida. — Com uma gargalhada, caiu nos braços
dele.
— Pequena Maggie Mae, tão crescida.
— Há já algum tempo. — Recuou, rindo de novo. — Já o perdeste quase todo. —
Passou a mãe de forma carinhosa pela cabeça dele.
— Era uma cabeça bastante simpática, mas o Senhor deixou de ver necessidade em a
cobrir com cabelo. Já me contaram como as coisas te estão a correr bem, querida. Fico
muito orgulhoso.
— A Sra. Sweeney contou-te só para se poder gabar do neto. É muito bom vê-la, —
disse Maggie a Christine. — Espero que não deixe que ele a mate de tanto passear em
Galway.
— Eu consigo acompanhá-lo. Gostava muito, se não houver nenhum inconveniente, de
dar uma espreitadela à sua vidreira amanhã, antes de partirmos.
— Claro, terei muito prazer em lha mostrar. Olá, Lottie, como estás?
— Afinada como um violino. — As agulhas dela batiam melodiosamente. — Esperava
que passasses lá por casa para nos contares como foi a viagem a França.
Esta afirmação arrancou uma fungadela sonora a Maeve. Examinando as feições dela,
Maggie virou-se. — Mãe.
— Margaret Mary. Estou a ver que tens andado ocupada com os teus afazeres, como de
costume.
— Sim.
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— A Brianna arranja sempre tempo para me visitar duas vezes por semana, para ver se
preciso de alguma coisa.
Maggie acenou. — Então não é preciso que eu apareça a fazer o mesmo.
— Vou servir o jantar agora, se estivermos todos prontos, — interrompeu Brianna.
— Estou sempre pronto para uma refeição. — Niall mantinha a mão de Christine na
dele, usando a que tinha livre para apertar o ombro de Maggie, enquanto entravam na
sala de jantar.
Sobre a mesa havia uma toalha de linho, flores frescas, com o calor das velas a
tremeluzir no aparador. A comida tinha uma apresentação maravilhosa e farta. Tudo
fazia prever uma noite agradável e prazenteira. Mas, é claro, que não seria.
Maeve embirrava com a comida. Quando mais alegre era a disposição à mesa, mais
sombria se tornava a dela. Invejava Christine, o seu vestido fino de bom corte, o colar
de pérolas à volta do pescoço, o aroma suave e dispendioso que emanava da sua pele. E
a própria pele também, macia e acarinhada pela fortuna.
Era amiga da sua mãe, pensava Maeve. Companheira de brincadeiras, taco a taco. A
vida que Christine Sweeney levara devia ter sido a dela, pensava. Teria sido a dela, se
não fosse por um erro. Se não fosse a Maggie.
A raiva e a vergonha que sentia quase a impeliam a chorar. Pela perda irreparável que
sentia.
Em seu redor, a conversa fluía como um vinho caro, uma conversa fútil e idiota sobre
flores e os velhos tempos, sobre Paris e Dublin. Sobre crianças.
— Mas que bom para si ter uma família tão numerosa, — comentava Christine com
Lottie. — Eu sempre lamentei por eu e o Michael não termos tido mais filhos. Apesar de
termos tido sorte com o nosso filho, e depois com o Rogan.
— Um filho, murmurou Maeve. — Um filho nunca esquece a mãe.
— É verdade, é um laço muito especial. — Sorriu Christine, na esperança de suavizar a
aspereza que rodeava a boca de Maeve. — Mas confesso que sempre quis ter uma filha.
Você foi abençoada com duas, Sra. Concannon.
— Amaldiçoada, melhor dizendo.
— Prove os cogumelos, Maeve. — Deliberadamente, Lottie serviu alguns para o prato
de Maeve. — Estão mesmo no ponto. Tens umas mãos de fada, Brianna.
— Aprendi esta receita com a minha avó, — começou Brianna. — Estava sempre a
chateá-la para que me ensinasse a cozinhar.
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O sapo mais difícil de engolir era um pedido de desculpas. Maggie adiara ter de o fazer,
distraindo-se mostrando o estúdio a Christine e a Niall. À luz fria da manhã, a sordidez
da noite anterior mostrava-se algo enevoada. Conseguira acalmar-se explicando várias
ferramentas e técnicas, até mesmo quando Niall insistiu, tentando ensiná-lo a soprar a
sua primeira bolha.
— Não é um trompete. — Maggie agarrou com força no tubo assim que ele começou a
elevá-lo no ar. — Exibires-te dessa maneira só vais conseguir que o vidro quente
escorra todo para cima de ti.
— Talvez seja melhor ficar pelo golfe. — Piscou o olho e virou o tubo na direcção dela.
— Um artista na família já é suficiente.
— E faz mesmo o seu próprio vidro. — Christine vagueava pela oficina, de calças feitas
à medida e blusa de seda. — Com areia.
— E mais algumas coisas. Areia, sódio, cal. Feldspato, dolomite. Um pouco de
arsénico.
— Arsénico. — Christine arregalou os olhos.
— Entre outras coisas, — disse Maggie, com um sorriso. — Guardo as minhas fórmulas
a sete chaves, como uma feiticeira guarda um feitiço. Dependendo das cores que quero,
junto outros químicos. Vários corantes mudam em diferentes vidros base. Cobalto,
cobre, manganésio. Depois há os carbonatos e os óxidos. O arsénico é um óxido
excelente.
Christine olhava com ar desconfiado para os químicos que Maggie lhe mostrava. —
Pensava que seria mais simples derreter vidro usado ou comercial.
— Mas assim não seria meu, verdade?
— Não fazia ideia que, para além de artista, tinha de ser também química.
— A nossa Maggie sempre foi brilhante. — Niall passou um braço por cima do ombro
dela. — A Sarah escrevia sempre a contar como ela era brilhante na escola, como a
Brianna tinha um feitio doce.
— Era isso mesmo, — comentou Maggie, com uma gargalhada. — Eu era brilhante, a
Brianna era doce.
— Ela também disse que a Brie era brilhante, — retorquiu Niall, firme.
— Mas aposto que ela não disse que eu era doce. — Maggie virou-se para passar o rosto
no casaco dele. — Estou tão contente por te ver de novo. Não sabia que ia ficar tão
feliz.
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— Não te dei muita atenção desde que o Tom morreu, Maggie Mae.
— Não. Todos temos a nossa vida, e eu e a Brie ambas compreendemos que a mãe não
facilitou nada teres vindo fazer uma visita. Quanto a isso... — Recuou, respirando
fundo. — Gostava de pedir desculpa por ontem à noite. Não a devia ter provocado e
certamente que não me devia ter ido embora sem dar as boas-noites.
— Não tens que te desculpar, nem a Brianna, como hoje já tive oportunidade de lhe
dizer. — Niall deu uma palmadinha na face de Maggie. — A Maeve já estava de mau
humor quando chegou. Não provocaste nada. Não tens culpa pela forma como ela
escolheu passar pela vida, Maggie.
— Quer tenha ou não, lamento que a noite tenha sido desagradável.
— Eu cá intitulava-a de esclarecedora, — disse Christine, calmamente.
— Imagino que sim, — concordou Maggie. — Tio Niall, alguma vez a ouviste cantar?
— Ouvi. Maravilhosa como um rouxinol, para ser sincero. E inquieta, como aqueles
felinos que se vêem enjaulados no jardim zoológico. Ela nunca foi uma rapariga fácil,
Maggie, só estava feliz quando as pessoas se aquietavam para ouvir a sua música.
— E depois apareceu o meu pai.
— Depois apareceu o Tom. Pelo que sei, eles não viam nem ouviam mais nada a não ser
um ao outro. Talvez fossem cegos e surdos um para o outro também. — Passou a mão
enorme pelo cabelo dela. — Também é possível que nenhum dos dois visse o que
sentiam até ficarem ligados um ao outro. E quando isso aconteceu, o que viram era
diferente do que esperavam. Ela deixou que isso a amargurasse.
— Achas que se eles não se tivessem conhecido, ela teria sido diferente?
Ele esboçou um ligeiro sorriso e manteve a mão carinhosa. — Somos arrastados pelos
ventos do destino, Maggie Mae. Quando vamos parar a determinado sítio, fazemos o
que temos a fazer.
— Lamento por ela, — disse Maggie, baixinho. — Nunca pensei vir afazê-lo.
— E fizeste o que podias por ela. — Beijou a sobrancelha de Maggie. — Agora é altura
de tratares da tua vida.
— Estou a trabalhar nisso. — Voltou a sorrir. — Com muito afinco. Satisfeita por a
altura ser a correcta, Christine pronunciou-se. — Niall, queres ser um querido e deixar-
me a sós com a Maggie?
— Conversa de meninas, não é? — O seu rosto redondo enrugou-se num sorriso. —
Não tenham pressa, vou dar uma volta.
— Vamos lá, — começou Christine, assim que a porta se fechou atrás de Niall. —
Tenho uma confissão a fazer. Não entrei logo na saleta, ontem à noite. Voltei atrás,
porque pensava que podia acalmar os ânimos.
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CAPÍTULO VINTE
A meio da manhã, com a solidão já instalada em seu redor, Maggie voltou a pegar no
tubo. Duas horas depois, a peça que soprara voltou a ser lançada no vidro fundido, como
desperdício.
Deu uma vista de olhos aos esboços, rejeitando-os, tentando outros. Depois de olhar de
soslaio para o unicórnio que pousara na prateleira, virou-se para o trabalho de fogo, com
as tochas. Mal tirara um bordão de vidro quando a visão se lhe toldou. Ficou a ver a
ponta do bordão a pingar, a derreter, a começar a escorrer. Quase sem pensar no que
estava a fazer, começou a deitar pingos de vidro fundido num recipiente com água.
Alguns partiram-se, outros sobreviveram. Pegou num deles pela ponta para o examinar.
Apesar de ter sido formado pelo fogo, agora estava frio, revelando a forma de uma
lágrima. Uma lágrima de Príncipe Ruperto, pouco mais era do que uma criação de um
artista vidreiro, que poderia ter sido feita por uma criança.
Esfregando a gota entre os dedos, levou-a para o polariscópio. Através da lente os veios
internos da gota explodiam como um arco-íris colorido estonteante. Tanta coisa, pensou
ela, num núcleo tão pequeno.
Guardou a gota no bolso, e foi buscar outras mais ao balde. Movimentando-se com
extrema cautela, apagou as fornalhas. Dez minutos depois, vagueava pela cozinha da
irmã.
— Brianna. O que vês quando olhas para mim?
Soprando uma melena de cabelo dos olhos, Brianna ergueu o olhar e continuou a bater a
massa do pão. — A minha irmã, é claro.
— Não, não. Por uma vez, tenta não ser tão literal. O que é que vês em mim?
— Uma mulher que parece estar a congeminar alguma coisa, sempre. Que tem energia
suficiente para me cansar até à medula. E raiva. — Brianna voltou a fitar as mãos. —
Raiva que me entristece e dá pena.
— Egoísmo?
Espantada, Brianna voltou a olhar para cima. — Não, isso não. Nunca. É um defeito que
nunca vi que tivesses.
— E outros?
— Tens que cheguem. O que foi, queres ser perfeita?
O tom desdenhoso fez Maggie estremecer. — Ainda estás chateada comigo por causa da
noite passada.
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— Não estou nada. — Com um vigor renovado, Brianna começou a bater na massa. —
Comigo mesma, com as circunstâncias, com o destino, se preferires. Mas não contigo.
Não foste tu que começaste, e sabe Deus como me avisaste que não ia resultar. Mas
quem me dera que não tivesses saltado em minha defesa.
— É mais forte do que eu.
— Eu sei. — Brianna alisou a massa numa bola e colocou-a numa taça para fermentar
novamente. — Ela comportou-se melhor depois de teres saído. Acho que ficou um
pouco envergonhada. Antes de partir disse-me que tinha cozinhado muito bem. Não que
tenha comido alguma coisa, mas pelo menos elogiou.
— Já tivemos noites piores.
— Deus é nossa testemunha. Maggie, ela disse outra coisa.
— Ela diz imensas coisas. Não vim aqui para me contares tudo.
— Foi sobre os castiçais, — continuou Brianna, levando Maggie a erguer ambas as
sobrancelhas.
— Quais?
— Aqueles que eu tinha no aparador, os que fizeste para mim no ano passado. Ela
perguntou que trabalho bonito era aquele.
Com uma gargalhada, Maggie abanou a cabeça. — Devias estar a sonhar.
— Estava acordada e de pé, no meu próprio corredor. Olhou para mim e disse-me isso.
Ficou ali de pé, a olhar para mim até que percebi que não era capaz de to dizer a ti, mas
queria que soubesses.
— Porque haveria de querer? — Perguntou Maggie, desconfiada.
— Acho que foi uma espécie de pedido de desculpa, pelo que aconteceu entre vocês na
sala de jantar. Deu o seu melhor. Quando viu que eu tinha percebido, começou a
embirrar outra vez com a Lottie e, posto isto, as duas saíram como entraram. A discutir.
— Bom. — Maggie não fazia ideia como reagir, como se devia sentir. Inquieta, enfiou
os dedos no bolso para brincar com as gotas de vidro macias.
— É um pequeno passo, mas é um passo, sem dúvida. — Cheia de energia, Brianna
começou a peneirar as mãos com farinha, preparando-se para bater a massa seguinte. —
Está feliz na casa que lhe deste, mesmo que ainda não o saiba.
— És capaz de ter razão. — A respiração prendeu-se ligeiramente ao soltar um suspiro.
— Espero que sim. Mas não faças planos para mais refeições em família num futuro
próximo.
— Fica descansada.
— Brianna... — Maggie hesitou, acabando por olhar desamparada para a irmã. — Vou
hoje de carro para Dublin.
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O pior foi descobrir que ele não estava em casa — e saber que devia ter confirmado
antes de se fazer à estrada. Na galeria, dissera o mordomo, mas quando lá chegou,
amaldiçoando o trânsito de Dublin o caminho todo, ele já tinha saído e estava a caminho
do escritório.
Voltou a desencontrar-se dele, por pouco mais de cinco minutos, haviam-na informado.
Ele ia agora a caminho do aeroporto apanhar o avião para Roma. Será que queria que o
contactassem para o telefone que ele tinha no carro?
Não queria, decidira Maggie, tomar uma das maiores decisões da sua vida ao telefone.
Por fim, voltou a entrar na carrinha e encetou a longa e solitária viagem de regresso para
Clare.
Era fácil chamar-se de idiota. E convencer-se que tinha sido melhor não o encontrar de
todo. Exausta pela quantidade de horas a conduzir, dormiu o sono dos justos até ao
meio-dia do dia seguinte.
Depois, tentou trabalhar.
— Quero a Buscadora bem à frente e a Tríade exactamente ao centro.
Rogan estava de pé na sala de exposições banhada pelo Sol da Galeria Worldwide, em
Roma, a observar os funcionários a dispor as peças de Maggie. As esculturas
sobressaíam bastante na decoração rococó dourado. O pesado veludo vermelho que
escolhera para adornar os pedestais e as mesas dava um cunho real. Algo a que sabia
que Maggie seria desfavorável, mas que se adequava à clientela desta galeria em
particular.
Olhou para o relógio, murmurando entre dentes, só para si. Tinha uma reunião dentro de
vinte minutos. Não havia nada a fazer, pensava, ao supervisionar outra encomenda para
ajustes de última hora. Ia chegar atrasado. Influências da Maggie, imaginava ele. Ela
havia corrompido o seu sentido de pontualidade.
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Rogan passou trinta minutos com o director da sucursal de Roma, duas vezes numa
reunião do conselho de administração, depois concedendo duas entrevistas para
promover a tournée Concannon. Dedicou várias horas a estudar as propostas de
aquisições de Roma e em encontros com artistas.
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Planeara voar até Veneza nessa noite e deixar o trabalho de fundo para a próxima
paragem da tournée. Aproveitando o tempo, escapuliu-se para fazer uns telefonemas
para Dublin.
— Joseph.
— Rogan, como está Roma?
— Solarenga. Já terminei por aqui. Devo chegar a Veneza por volta das sete. Se tiver
tempo, passo pela galeria de lá ainda esta noite. Caso contrário, trato dos preliminares
amanhã.
— Tenho aqui a tua agenda. Voltas daqui a uma semana?
— Antes disso, se conseguir. Há alguma coisa que deva saber?
— O Aiman passou por cá. Comprei dois esboços que fez na rua. São bastante bons.
— Tudo bem. Parece-me que vamos vender mais obras dele depois do ano novo.
— Ai sim?
— Tenho um projecto para discutir contigo assim que voltar. Mais alguma coisa?
— Vi a tua avó com o amigo de partida para Galway.
Rogan rosnou. — Ela levou-o a conhecer a galeria, não foi?
— Ele queria ver algumas peças da Maggie... no ambiente propício. Ele é cá uma
personagem.
— Podes crer que é.
— Oh, e por falar na Maggie, ela passou por cá no início desta semana.
— Esteve aí? Em Dublin? A fazer o quê?
— Não disse. Apareceu tão depressa como desapareceu. Nem sequer falei pessoalmente
com ela. Enviou uma encomenda, com o que parece ser uma mensagem para ti.
— Qual mensagem?
— «É azul».
Os dedos do Rogan imobilizaram-se no bloco de notas. — A mensagem é azul?
— Não, não, a mensagem diz «É azul». É uma peça lindíssima, bastante delicada e
curvilínea. Aparentemente, ela pensava que sabias o que queria dizer.
— E sei. — Sorriu para dentro, esfregando a cana do nariz. — É para o Conde de
Lorraine, em Paris. É um presente de casamento para a neta dele. Talvez seja melhor
entrares em contacto com ele.
— Claro que sim. Oh, e parece que a Maggie passou pelo teu escritório e também por
tua casa. Acho que andava à tua procura pelo mesmo motivo.
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— És capaz de ter razão. — Pensou por instantes, agindo depois por instinto. — Joseph,
fazes-me um favor? Contacta a galeria em Veneza. Diz-lhes que me vou atrasar alguns
dias.
— Com todo o gosto. Algum motivo em especial?
— Depois conto-te. Dá cumprimentos meus à Patrícia. Darei notícias.
Maggie batia com os dedos numa mesa do O'Malley's, batendo com o pé, suspirando
alto. — Tim, fazes-me uma sanduíche bookmaker para acompanhar esta pint? Não
posso esperar a tarde toda pelo Murphy de estômago vazio.
— Com muito gosto. Tens um encontro, não é? — Lançou-lhe um riso irónico por cima
do bar, enrugando as sobrancelhas.
— Hah. No dia em que tiver um encontro com o Murphy Muldoon será o dia em que
vou perder o pouco juízo que ainda me resta. Ele disse que tinha uns assuntos a tratar na
vila e perguntou se me podia encontrar com ele aqui. — Bateu na caixa que estava no
chão, e trouxera com ela. — Tenho aqui o presente de aniversário dele para a mãe.
— Alguma coisa feita por ti?
— Sim. E se ele não chegar até eu acabar de comer, vai ter de ir buscá-la.
— Alice Muldoon, — disse o David Ryan, que estava sentado no bar a fumar um
cigarro. — Ela agora vive em Killarney, não é?
— Acho que sim, — concordou Maggie. — Já está por lá há dez anos ou mais.
— Nunca mais a vi por estas bandas. Casou outra vez, não foi, depois do Rory Muldoon
ter falecido?
— Casou. — Tim pegou na história enquanto tirava uma pint de Guinness. — Casou
com um médico rico chamado Colin Brennan.
— Da família do Daniel Brennan. — Outro cliente apanhou o fio da conversa, pensativo
sobre a sua tigela de guisado. — Sabes, aquele que tem uma mercearia em Clarecastle.
— Não, não. — Tim abanou a cabeça ao aproximar-se para dar a sanduíche a Maggie.
— Não é da família do Daniel Brennan, mas sim do Bobby Brennan de Newmarket, em
Fergus.
— Acho que estás enganado. — Afirmou David, apontando com a beata do cigarro.
— Aposto nisso duas libras.
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— Eu sou o O'Malley, Tim O'Malley. — Depois de limpar a mão ao avental, Tim pegou
na mão de Rogan e abanou-a. — Era muito amigo do pai da Maggie. Ele haveria de ter
muito gosto no que está a fazer por ela. Gosto e orgulho. Eu e a minha Deirdre
começámos a fazer um livro de recortes.
— Prometo-lhe que ainda vai ter muita coisa para lhe colar. Durante bastante tempo, Sr.
O'Malley.
— Se vieste saber se tenho mais trabalho para te mostrar, — afirmou Maggie, — não
tenho. E vou continuar a não ter se me vieres pressionar.
— Não vim ver o teu trabalho. — Com um aceno para Tim, Rogan foi ter com Maggie.
Sentou-se a seu lado, pegando-lhe no queixo e beijando-a ao de leve. Num beijo
demorado. — Vim cá para te ver.
Ela soltou um suspiro que já esquecera que estivera a conter. Um olhar de soslaio
lançado na direcção do bar desviou a atenção dos curiosos noutra direcção. Ou, pelo
menos, assim parecia.
— Demoraste bastante.
— O tempo suficiente para sentires saudades minhas.
— Quase não trabalhei desde que te foste embora. — Como era difícil admiti-lo,
manteve os olhos, treinados, fixos no copo. — Começava e parava, começava e parava.
Nada saía como eu queria. Não gosto desta sensação, Rogan. Não gosto mesmo nada.
— E que sensação era?
Ela disparou um olhar por baixo das pestanas. — Tenho sentido a tua falta. Fui a
Dublin.
— Eu sei. — Brincava com as pontas do cabelo dela. Crescera um pouco, reparou ele,
perguntando-se quanto tempo aguentaria até ela o esquartejar com a tesoura outra vez,
como afirmara que por vezes fazia? — Foi assim tão difícil vires ter comigo, Maggie?
— Sim, foi. Foi a coisa mais difícil que já fiz. Mas tu não estavas lá.
— Estou aqui agora.
Pois estava. E ela não tinha a certeza se podia falar pelo bater do seu coração. — Tenho
algumas coisas para te dizer. Não... — Interrompeu-se assim que a porta, abriu e o
Murphy entrou. — Oh, o sentido de oportunidade dele é perfeito.
Murphy fez sinal a Tim antes de se dirigir a Maggie. — Então, já almoçaste. — Num
gesto casual, foi buscar uma cadeira e roubou-lhe uma batata frita. — Trouxeste-a?
— Trouxe. Fizeste-me esperar aqui metade do dia.
— Ainda nem é uma hora. — Olhando para Rogan, Murphy comeu outra batata de
Maggie. — Você deve ser o Sweeney, certo?
— Certo.
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— É por causa do fato, — explicou Murphy. — A Maggie contou-me que você se vestia
como se fosse sempre domingo. Sou Murphy Muldoon, vizinho da Maggie.
O primeiro beijo, lembrou-se Rogan, apertando-lhe a mão de forma tão cautelosa quanto
o Murphy. — Muito prazer em conhecê-lo.
— Igualmente. — Murphy baloiçou a cadeira nas pernas traseiras, ao mesmo tempo que
o avaliava. — Quase se pode dizer que sou irmão da Maggie. Uma vez que ela não tem
um homem que olhe por ela.
— E não precisa de nenhum, — ripostou Maggie. Teria pontapeado a cadeira de
Murphy, fazendo-o cair, se ele não tivesse sido rápido o bastante para a voltar a
endireitar. — Sei cuidar muito bem de mim, obrigada.
— Ela já me disse isto vezes sem conta. — Rogan dirigia-se a Murphy. — Mas
precisando ou não, já tem um que trata disso.
A mensagem passou, de homem para homem. Depois de pensar por instantes, Murphy
acenou. — Então, está bem. Trouxeste-a ou não, Maggie?
— Já disse que sim. — Num gesto impaciente, debruçou-se para levantar a caixa do
chão, pousando-a na mesa entre eles. — Se não gostasse tanto da tua mãe, partia-ta em
cheio na cabeça.
— Ela vai agradecer-te por te conseguires controlar. — Enquanto Tim tirava outra
cerveja, Murphy abria a caixa. — Isto é maravilhoso, Maggie. Ela vai gostar muito.
Rogan imaginava que sim. A taça rosa pálido era tão fluida como água, as suas
extremidades oscilavam, terminando em cristas delicadas. O vidro era tão fino, tão
frágil, que conseguia ver a sombra das mãos de Murphy através dele.
— Deseja-lhe feliz aniversário da minha parte.
— Claro. — Murphy passou um dedo calejado pelo vidro antes de o voltar a guardar
dentro da caixa. — Cinquenta libras, não era?
— Sim. — Maggie estendeu a mão, com a palma voltada para cima. — Em dinheiro.
Revelando alguma relutância, Murphy coçou a cara. — Parece-me bastante dinheiro por
uma taça pequena, Maggie Mae... que nem sequer podemos usar para comer. Mas a
minha mãe gosta de coisas inúteis e idiotas.
— Continua a falar, Murphy, que o preço vai começar a crescer.
— Cinquenta libras. — Abanando a cabeça, Murphy tirou a carteira. Contou as notas na
mão que ela lhe estendia. — Sabes que lhe podia ter comprado um conjunto completo
de pratos por este preço. E talvez uma caçarola nova, das boas.
— E ela de certeza que te ia dar com ela na cabeça. — Satisfeita, Maggie guardou as
notas. — Mulher nenhuma quer uma caçarola como presente de aniversário e qualquer
homem que achar que sim merece arcar com as consequências.
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Com o vento agreste no cabelo e as folhas numa explosão de cores, foram de carro até
Loop Hea. Longe da estrada estreita, que deixava rasto como o próprio mar, ficavam os
campos ceifados e o verde profundo e doce tão especiais na Irlanda. Maggie observava
os barracões de pedra em ruínas, que não pareciam diferentes de quando havia
percorrido aquela mesma estrada, há quase cinco anos. A terra estava lá, bem como as
pessoas que a cultivavam, como sempre haviam feito. Como sempre fariam.
Ao ouvir o mar, ao sentir o seu cheiro intenso no ar, foi como se o coração se
despedaçasse. Fechou os olhos com força, voltando a abri-los. Leu o letreiro.
ÚLTIMO PUB ATÉ NOVA IORQUE.
Vamos de barco até Nova Iorque, Maggie, e bebemos lá uma pint?
Quando o carro parou, ela não disse nada, limitando-se a sair para deixar o vento
refrescar-lhe a pele. Procurando a mão de Rogan, segurou-a ao descerem o caminho de
terra batida na direcção do mar.
A guerra continuava, ondas de encontro às rochas num bater que ecoava e assobiava
eternamente. A bruma instalara-se, por isso não existiam fronteiras entre o mar e o céu,
apenas uma enorme taça de cinzento macio.
— Há quase cinco anos que não vinha aqui. Não sabia que alguma vez haveria de voltar
e ficar assim. — Apertou os lábios, desejando que o aperto no coração se soltasse, só
um pouco. — O meu pai morreu aqui. Tínhamos vindo dar uma volta juntos, só nós
dois. Era Inverno e estava um frio de rachar, mas ele adorava este sítio mais do que
qualquer outro. Tinha vendido umas peças nesse dia a um comerciante de Ennis e fomos
comemorar ao O'Malley s.
— Estavas sozinha com ele? — O horror da situação trespassou Rogan como uma
espada. A única coisa que podia fazer por ela era abraçá-la com força. — Lamento,
Maggie. Lamento muito.
Ela passou o rosto na lã macia do casaco de Rogan, sentindo o seu perfume. Deixou que
os olhos se fechassem. — Falámos sobre a minha mãe, sobre o casamento deles. Nunca
percebi porque razão ele tinha ficado. Talvez nunca venha a perceber. Mas havia algo
nele que revelava uma certa ânsia, que queria para mim e para a Brianna essa mesma
ânsia, fosse ela qual fosse. Acho que sinto a mesma ansiedade, mas também que tenho a
oportunidade de lhe deitar as mãos.
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Recuou para conseguir ver o rosto dele enquanto falava. — Tenho uma coisa para ti. —
Observando-o, pegou numa das gotas de vidro que tinha no bolso, segurando-a na
palma da mão.
— Parece uma lágrima.
— Sim. — Esperou até ele a segurar a contraluz, examinando-a.
Passou o polegar pelo vidro macio. — Estás a dar-me as tuas lágrimas, Maggie?
— Talvez esteja. — Tirou outra do bolso. — Ficam assim ao deitar-se vidro quente
dentro de água. Ao fazê-lo, algumas partem-se logo, mas outras resistem e ganham
forma. Ficam fortes. — Ela agachou-se e escolheu uma pedra. — Suficientemente fortes
para não se partirem com um martelo. — Levantou-se de novo, segurando a gota
intacta. — Permanece, como vês. Limita-se a soltar-se do sopro e a brilhar. Mas tem
aqui esta extremidade fina e basta um puxão descuidado. — Pegou na extremidade fina
entre os dedos. O vidro transformara-se em pó inofensivo. — Desapareceu, como vês.
Como se nunca tivesse existido.
— Uma lágrima nasce no coração, — comentou Rogan. — E nenhuma deve ser
negligenciada. Não vou despedaçar as tuas, Maggie, nem tu as minhas.
— Não. — Respirou fundo. — Mas vamos andar às marteladas algumas vezes. Somos
tão diferentes como a água e o vidro quente, Rogan.
— E tão capazes de construir algo tão forte entre nós.
— Acho que sim. No entanto, pergunto-me quanto tempo ias durar numa cabana em
Clare, ou eu numa casa cheia de empregados em Dublin.
— Podemos ir viver para os condados centrais, — disse ele, ficando a vê-la sorrir. —
Na verdade, já pensei um pouco nessa possibilidade. A ideia, Maggie, é encetarmos
negociações e chegarmos a um meio-termo.
— Ah, o empresário, até numa altura destas.
Ele ignorou o sarcasmo. — Tenho planos para abrir uma galeria em Clare com o foco
nos artistas irlandeses.
— Em Clare? — Puxando para trás o cabelo despenteado pelo vento, fitou-o nos olhos.
— Uma sucursal da Worldwide aqui em Clare? Fazias isso por mim?
— Fazia. Lamento ter de estragar a minha aura de herói ao confessar que já tinha
pensado nisso muito antes de te conhecer. A concepção não teve nada a ver contigo, mas
a localização sim. Ou, devo dizer, tem que ver connosco. — Enquanto o vento os
fustigava, ele apertou o casaco, abotoando-o. — Acredito que conseguia viver numa
cabana num condado do oeste durante a maior parte do ano, tal como tu podias viver
com empregados no resto do tempo.
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Herança de Gelo
O vento selvagem varria atormentado o Atlântico e batia com os punhos nos campos dos
condados do oeste. Balas de chuva rija, como agulhas batiam no chão e dilaceravam a
carne de um homem até aos ossos. Flores que haviam desabrochado primorosas desde a
Primavera até ao Outono enegreciam agora debaixo da geada letal.
Nas cabanas e pubs as pessoas reuniam-se à volta das lareiras e falavam das quintas e
dos telheiros, dos entes queridos que haviam emigrado para a Alemanha ou para os
Estados Unidos. Não importava que tivessem partido no dia anterior, ou há uma geração
atrás. A Irlanda estava a perder o seu povo, tal como perdera por completo o seu idioma.
Ocasionalmente, falava-se dos Problemas, da guerra interminável no norte. Mas Belfast
ficava longe da vila de Kilmihil, tanto em quilómetros como em emoções. As pessoas
preocupavam-se mais com as colheitas, os animais e os casamentos e velórios que
chegariam com o Inverno.
A alguns quilómetros do perímetro da vila, numa cozinha aquecida pelo calor e pelo
aroma dos cozinhados, Brianna Concannon olhava pela janela ao mesmo tempo que as
lâminas geladas da chuva atacavam o seu jardim.
— Acho que vou perder a columbina. E a dedaleira. — Partia-se-lhe o coração só de
pensar nisso, mas desenraizara o que pudera e guardara as plantas numa pequena cabine
nas traseiras. O temporal chegara muito depressa.
— Plantas mais na Primavera, — Maggie estudava o perfil da irmã. Brie preocupava-se
com as flores como uma mãe com os filhos. Com um suspiro, Maggie esfregou a sua
própria barriga saliente. Ainda ficava perplexa que tivesse sido ela a casar e a ficar
grávida, e não a irmã amorosa e caseira. — Vais adorar cada minuto.
— Acho que sim. Preciso é de uma estufa. Tenho andado a ver fotografias. Penso que é
possível arranjar uma. — E na Primavera já teria dinheiro para a comprar, se fosse
poupada. Um pouco a sonhar acordada com as plantas que floresceriam no novo
ambiente de estufa, tirou do forno um tabuleiro de muffins de arando acabados de fazer.
Maggie trouxera-lhe as bagas do mercado em Dublin. — Levas estes para casa.
— Levo, sim. — Maggie sorriu e roubou um do cesto, atirando-o de uma mão para a
outra, arrefecendo-o o suficiente para conseguir trincá-lo. — Depois de comer o que me
pertence. Juro-te que o Rogan passa a vida a pesar cada migalha que ponho na boca.
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CAPÍTULO UM
Era habitual Brianna ter um ou dois hóspedes na Cabana Espinheiro Negro durante as
piores fases das tempestades de Inverno. Mas Janeiro era sossegado e era frequente ter a
casa vazia. Não se importava com a solidão, nem com o assobio assombrado do vento,
nem mesmo com o céu carregado que despejava chuva e gelo dia amargo após dia.
Dava-lhe tempo para fazer planos.
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Gostava dos viajantes, esperados ou não. Do ponto de vista empresarial, cada libra e
pence contavam. Mas, para além disso, Brianna gostava da companhia, bem como da
oportunidade de servir e facultar um lar temporário aos que estavam de passagem.
Nos anos que haviam passado desde a morte do pai e da mudança da mãe, ela
transformara a casa no lar por que ansiara desde criança, com lareiras de turfa e cortinas
de renda, o aroma dos cozinhados emanando da cozinha. Ainda assim, fora Maggie, e a
arte de Maggie, que haviam possibilitado que Brianna se expandisse, aos poucos e
poucos. Não era algo que Brianna esquecesse.
Mas a casa era dela. O pai compreendera o amor e a necessidade que nutria por ela.
Cuidava do seu legado como se fosse um filho.
Talvez fosse o tempo que a levara a pensar no pai. Ele morrera num dia muito parecido
com aquele. De vez em quando, em momentos estranhos em que se encontrava sozinha,
descobria que ainda trazia pequenas bolsas de mágoa, com memórias, boas e más,
guardadas dentro delas.
Precisava era do trabalho, convencia-se, afastando-se da janela antes que ficasse a
matutar em demasia.
Devido à tromba de água, decidiu adiar a viagem à vila e, em vez disso, deitar mãos a
uma tarefa que vinha a adiar há muito tempo. Não esperava ninguém nesse dia e a única
reserva que tinha só chegava no final da semana. Com o cão a marchar atrás dela,
Brianna arrastou a vassoura, o balde, trapos e uma caixa de cartão vazia até ao sótão.
Fazia limpezas ali com regularidade. Em casa de Brianna não havia lugar para o pó
durante muito tempo. Mas havia caixas e arcas que ignorava na rotina do dia-a-dia. Isso
acabara, convencia-se, abrindo de par em par a porta do sótão. Desta vez faria uma
limpeza a fundo. E não daria hipótese a que as emoções a impedissem de tratar das
memórias esquecidas.
Se a divisão ficasse devidamente limpa de uma vez por todas, pensava, talvez pudesse
comprar os materiais e a mão-de-obra necessários para a remodelar. Ia transformar-se
num sótão acolhedor, pensou ela, apoiada na vassoura. Com uma daquelas janelas no
telhado e talvez uma lucerna. Tinta amarela suave para atrair a luz do Sol. Cera e um
dos seus tapetes curvos no chão.
Já conseguia ver tudo, a cama bonita coberta por uma colcha colorida, uma cadeira de
verga, uma pequena escrivaninha. E se ela tivesse...
Brianna abanou a cabeça e riu-se entre dentes. Já estava a dar um passo maior do que as
pernas.
— Sempre a sonhar, Con, — murmurou, fazendo uma festa na cabeça do cão. — O que
isto precisa é de muito trabalho e um tremendo afinco.
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Primeiro as caixas, decidira. Era altura de se livrar de papéis velhos, roupas velhas.
Trinta minutos depois, tinha feito pilhas arrumadas. Uma que ia levar para a igreja dar
aos pobres; outra seria para fazer trapos. A última ia guardar.
— Ah, olha para isto, Con. — Com reverência, pegou num pequeno vestido de
baptizado, sacudindo com suavidade as pregas. Ramos desmaiados de lavanda
espalharam-se pelo ar. Minúsculos botões e bainhas estreitas de renda decoravam o
linho. Brianna sabia tratar-se de trabalho manual da avó, e sorriu. — Ele guardou-o, —
murmurou. A avó nunca teria pensado em termos tão sentimentais nas gerações futuras.
— Eu e a Maggie usámos isto, estás a ver? E o pai guardou-o para os nossos filhos.
Surgiu uma angústia, tão familiar que quase nem a sentia. Não tinha nenhum bebé a
dormir num berço, nenhuma coisa fofa à espera que lhe pegassem ao colo, a
embalassem e amassem. Mas Maggie, pensava, haveria de querer ficar com ele. Com
cuidado, voltou a dobrar o vestido.
A caixa seguinte estava cheia de papéis que a fizeram suspirar. Teria de os ler, pelo
menos dar uma vista de olhos. O pai dela guardara toda a correspondência. Havia
também recortes de jornal. As ideias dele, como o próprio diria, para novos
empreendimentos.
Havia sempre um novo empreendimento. Colocou de lado vários artigos que ele
recortara sobre invenções, florestas, carpintaria, gerência de lojas. Nenhum era sobre
agricultura, reparou ela com um sorriso. Um agricultor que nunca o fora. Encontrou
cartas de parentes, de empresas a quem ele escrevera na América, na Austrália, no
Canadá. E ali estava a prova de compra da velha carrinha que tivera quando ela era
pequena. Um documento chamou-lhe a atenção, obrigando-a a franzir o sobrolho,
confusa. Parecia uma espécie de certificado de acções. Minas Triquarter, em Gales. Pela
data, parecia que as tinha comprado apenas algumas semanas antes de morrer.
Minas Triquarter? Outro empreendimento do pai, pensou ela, gastando o dinheiro que
nem sequer tinham. Bom, teria de escrever à empresa Triquarter para saber o que fazer.
Era pouco provável que as acções valessem mais do que o papel em que estavam
impressas. Sempre fora essa a sorte que Tom Concannon tivera ao fechar um qualquer
negócio.
O anel de bronze que ele sempre procurara nunca coubera na palma da sua mão.
Procurou mais fundo na caixa, divertindo-se com as cartas de primos, tios e tias. Eles
haviam-no amado. Toda a gente o havia amado. Quase toda, corrigiu ela, a pensar na
mãe.
Colocando aquele pensamento de lado, pegou em três cartas, atadas com uma fita
vermelha desmaiada. O endereço do remetente era de Nova Iorque, mas isso não a
surpreendia. Os Concannons tinham uma quantidade de amigos e conhecidos nos
Estados Unidos. Contudo, o nome era um mistério para ela. Amanda Dougherty.
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Brianna abriu a carta, passando os olhos pela letra impecável, refinada e educada. Ao
prender a respiração na garganta, voltou a ler, atentamente, palavra por palavra.
Cartas de amor, pensou ela, inerte. Para o pai. Escritas, podia ver, olhando para a data,
quando ela era pequena.
Gelaram-se-lhe as mãos. Como é que uma mulher, uma mulher adulta de vinte e oito
anos, devia reagir ao saber que o pai amara uma mulher que não era sua esposa? O pai
dela, com a gargalhada fácil, os esquemas inúteis. Aquelas eram palavras escritas
apenas para os olhos dele verem. Contudo, como é que ela podia deixar de as ler?
Com o coração a bater com força no peito, Brianna abriu a seguinte.
Sempre,
Amanda
273
Amor, pensava Brianna com os olhos rasos de lágrimas. Havia ali tanto amor, apesar de
tão pouco ser dito. Quem fora ela, esta Amanda? Como é que se conheceram? E com
que frequência é que o pai pensava nesta mulher? Quanto é que a desejara?
Limpando uma lágrima, Brianna abriu a última carta.
Meu querido,
Rezei inúmeras vezes antes de te escrever. Pedi à Santa Mãe que me ajude a discernir o
que é correcto. Não posso ter a certeza do que é mais justo para ti. Só posso esperar
que o que te vou dizer te traga alegria, e não sofrimento.
Lembro-me das horas que passámos juntos no meu quartinho da estalagem com vista
para o Shannon. Como foste doce e meigo, como nos deixámos cegar pelo amor que
nos arrebatou. Nunca conheci, nem nunca mais vou conhecer, um amor assim tão
profundo e completo. Por isso, sinto-me grata por, apesar de nunca podermos ficar
juntos, levar comigo essa coisa preciosa para me lembrar que fui amada. Estou grávida
de um filho teu, Tommy. Por favor, fica feliz por mim. Não estou sozinha e não tenho
medo. Talvez devesse sentir vergonha. Solteira, grávida do marido de outra. Talvez essa
vergonha ainda se revele, mas por agora, estou apenas imensamente feliz.
Tomei conhecimento há algumas semanas, mas ainda não tinha tido a coragem de te
contar. Consegui agora, ao sentir o primeiro sinal da vida que fizemos dentro de mim.
Tenho de te dizer o quanto esta criança vai ser amada? Já me imaginei a pegar no
nosso filho ao colo. Por favor, meu querido, por amor ao nosso filho, não guardes
nenhum sofrimento nem culpa no teu coração. E por amor ao nosso filho, vou partir.
Apesar de pensar em ti todos os dias, todas as noites, não voltarei a escrever. Vou amar-
te para o resto da minha vida e sempre que olhar para a vida que criámos juntos
naquelas horas mágicas junto ao Shannon, vou amar-te ainda mais. Entrega o que quer
que sintas por mim às tuas filhas. E sê feliz.
Sempre,
Amanda
274
Um filho. Com os olhos inundados de lágrimas, Brianna tapou a boca com a mão. Uma
irmã. Um irmão. Santo Deus. Algures, havia um homem ou uma mulher ligados a ela
por laços de sangue. Deviam ter quase a mesma idade. Talvez partilhassem o mesmo
tom de pele, as mesmas feições.
O que podia ela fazer? O que é que o pai teria feito há tantos anos atrás? Será que
procurara a mulher e o seu filho? Será que tentara esquecer?
Não. Suavemente, Brianna alisou as cartas. Ele não tentara esquecer. Guardara sempre
as cartas dela. Fechou os olhos no sótão pouco iluminado. E, pensava ela, ele amara a
sua Amanda. Sempre.
Precisava de pensar antes de contar à Maggie o que descobrira. Brianna pensava melhor
quando estava ocupada. Já não conseguia voltar ao sótão, mas havia outras coisas que
podia fazer. Esfregou, encerou e cozinhou no forno. A simplicidade caseira das
ocupações domésticas, o prazer dos aromas que emanavam, iluminavam-lhe o espírito.
Deitou mais turfa na lareira, fez chá e sentou-se para desenhar algumas ideias que tinha
para a estufa.
A solução chegaria, a seu tempo, dizia de si para si. Depois de mais de vinte e cinco
anos, alguns dias a pensar não fariam mal a ninguém. Se parte da demora se devia a
cobardia, uma necessidade fraca de evitar o golpe das emoções da irmã, ela reconhecia-
a.
Brianna nunca afirmara que era uma mulher corajosa. No seu jeito de ser prático,
escreveu uma carta educada, do tipo empresarial às Minas Triquarter em Gales,
colocando-a de lado para ir para o correio no dia seguinte.
Tinha uma lista de tarefas domésticas para fazer de manhã, fizesse chuva ou sol.
Quando abafou a lareira para passar a noite, ficou grata por Maggie ter andado
demasiado ocupada para aparecer. Dali a um dia, talvez dois, Brianna haveria de lhe
contar e também queria mostrar as cartas à irmã.
Mas esta noite ia descontrair-se, deixar a mente vazia. Estava mesmo a precisar de uma
indulgência, decidira Brianna. Na verdade, doía-lhe um pouco as costas por ter
exagerado nas limpezas. Um bom banho com os sais que Maggie lhe trouxera de Paris,
uma chávena de chá, um livro. Ia usar a banheira grande lá de cima e tratar-se como se
fosse um hóspede. Em vez da cama estreita do quarto ao lado da cozinha, ia dormir
esplendorosamente no que ela catalogava de suite nupcial.
275
— Esta noite somos reis, Con, — disse ao cão, ao mesmo tempo que deitava sais
lascivamente sob a água corrente. — Um tabuleiro com o jantar na cama, um livro
escrito pelo nosso convidado prestes a chegar. Lembra-te, é um ianque muito
importante, — acrescentou, enquanto Con batia com a cauda no chão.
Despiu a roupa e entrou na água quente e fragrante. Dos dedos dos pés arrancou um
suspiro. Uma história de amor podia ser mais apropriada para o momento, pensava, do
que um thriller com o título O Legado da Pedra de Sangue. Mas Brianna recostou-se na
banheira e deixou-se embrenhar na história de uma mulher perseguida pelo próprio
passado e ameaçada pelo presente.
Prendera-a. De tal forma que quando a água arrefeceu, segurou o livro numa mão, a ler,
ao mesmo tempo que se secava com a outra. A tremer, vestiu uma comprida camisa de
noite de flanela, soltando o cabelo. Apenas um hábito muito enraizado a levou a pousar
o livro o tempo suficiente para limpar a banheira. Mas não se incomodou com o
tabuleiro do jantar. Em vez disso, enfiou-se na cama, puxando a colcha bem para cima.
Mal ouvia o vento pontapear as janelas, a chuva a esquartejá-las. Devido à cortesia do
livro de Grayson Thane, Brianna encontrava-se no Verão abafado do sul dos Estados
Unidos, a ser perseguida por um assassino.
Já passava da meia-noite quando a fadiga a derrotou. Adormeceu com o livro ainda nas
mãos, o cão a ressonar aos pés da cama e o vento a gemer como uma mulher assustada.
Sonhou, é claro, com o terror.
Grayson Thane era um homem de impulsos. Como o admitia, normalmente encarava os
desastres que deles advinham de forma tão filosófica quanto os triunfos. De momento,
era obrigado a admitir que o impulso de conduzir de Dublin até Clare, no pico do
Inverno, no meio de uma das piores tempestades que já vivenciara, provavelmente fora
um erro.
Mas mesmo assim era uma aventura. E conduzia a sua vida de acordo com elas.
Ficou com um pneu em baixo nos arredores de Limerick. Com um furo, corrigiu Gray.
Em Roma, sê romano. Quando acabou de mudar o pneu, parecia e sentia-se como uma
ratazana afogada, apesar do impermeável que trouxera de Londres na semana anterior.
Perdeu-se duas vezes, dando por si a calcorrear estradas estreitas e sinuosas que mais
não eram do que valas. A pesquisa que fizera mostrara-lhe que perder-se na Irlanda fazia
parte do encanto.
Estava a fazer um esforço por não se esquecer disso.
Tinha fome, estava ensopado até aos ossos e tinha medo de ficar sem gasolina —
combustível — antes de encontrar algo vagamente parecido com uma estalagem ou uma
vila.
276
Na sua mente, percorreu o mapa. Visualizar era um talento com que nascera e
conseguia, com um ligeiro esforço, reproduzir cada linha do mapa pormenorizado que a
anfitriã lhe enviara.
O problema era que estava escuro como breu, e a chuva batia no pára-brisas como um
rio feroz, o vento golpeando o carro naquela imitação barata de estrada esquecida por
Deus, como se o Mercedes fosse um brinquedo. Desejava intensamente beber um café.
Numa bifurcação da estrada, Gray arriscou e seguiu pela da esquerda. Se não
encontrasse a estalagem ou algo parecido nos quinze quilómetros seguintes, ia dormir
no maldito carro e voltar a tentar de manhã.
Era uma pena que não pudesse ver nada do campo. Na escuridão desolada da
tempestade, tinha a sensação que seria exactamente aquilo que procurava. Queria que o
livro se passasse ali, no meio das falésias e dos campos da Irlanda ocidental, com a
ameaça do Atlântico feroz, e as vilas sossegadas aninhadas junto a ele. E podia fazer
com que o seu herói cansado e gasto pela vida chegasse na crista da tempestade.
Franziu os olhos para o horizonte. Seria uma luz? Por Cristo, esperava que fosse.
Conseguiu distinguir um letreiro, a baloiçar com violência ao vento. Gray fez marcha à
ré, apontou-lhe os faróis e sorriu.
O letreiro anunciava a Cabana Espinheiro Negro. Afinal de contas, o seu sentido de
orientação não o deixara ficar mal. Esperava que a anfitriã personificasse a lendária
hospitalidade irlandesa — afinal, chegava dois dias mais cedo. E eram duas da manhã.
Gray procurou uma entrada para o carro, mas só via sebes ensopadas. Encolhendo os
ombros, parou o carro na estrada, guardando as chaves no bolso. Tinha tudo o que
precisava para passar a noite numa mochila que estava em cima do banco, a seu lado.
Puxando-a para si, deixou o carro onde estava e enfrentou a tempestade.
Atingiu-o como uma mulher furiosa, afiando unhas e dentes. Cambaleou, quase
desbravando caminho entre as sebes molhadas de brincos-de-princesa, e com mais sorte
do que intenção, desatou a correr na direcção do portão do jardim. Gray abriu-o, lutando
depois para o voltar a fechar. Desejava conseguir ver a casa com mais nitidez. Tinha
apenas uma vaga impressão da sua forma e tamanho através da escuridão, com aquela
luz solitária a brilhar na janela do primeiro andar.
Usou-a como guia e começou a sonhar com café.
Ninguém atendeu quando bateu à porta. Com o vento a uivar, duvidava que alguém
ouvisse um rumor tão subtil. Demorou menos de dez segundos a decidir abrir a porta ele
mesmo.
277
De novo, apenas o envolviam sensações. A tempestade atrás dele, o calor lá dentro.
Havia os aromas — limão, cera, lavanda e rosmaninho. Perguntava-se se a velhota
irlandesa que geria a estalagem faria o seu próprio potpourri. Perguntava-se se ela ia
acordar e preparar-lhe uma refeição quente.
Depois ouviu o rosnar — profundo, selvagem — e ficou tenso. Esticou a cabeça, os
olhos franzidos. Depois a mente, por um momento assombroso, ficou em branco.
Depois, pensou que tinha entrado numa cena saída de um livro. Talvez de um dos seus.
A mulher linda, a camisa de noite branca e comprida ondulante, o cabelo solto como
ouro flamejante que lhe caía sobre os ombros. Tinha o rosto pálido diante da luz
desmaiada da vela que segurava numa mão. A outra mão agarrava a coleira de um cão
que parecia e rosnava como um lobo, um cão cujos ombros chegavam à cintura dela.
Desceu o olhar para ele do cimo das escadas, como uma visão que ele tivesse evocado.
Podia ter sido esculpida em mármore, ou gelo. Estava tão inerte, tão imensamente
perfeita.
Depois o cão tentou avançar. Com um movimento que lhe puxou o vestido, ela
controlou-o.
— Está a deixar entrar a chuva, — disse ela, numa voz que apenas ajudou à fantasia.
Suave, melodiosa, reveladora da Irlanda que ele viera descobrir.
— Desculpe. — Murmurou ele olhando para trás, ao fechar a porta, para que a
tempestade se transformasse apenas num cenário.
O coração dela ainda estava sobressaltado. O barulho e a reacção de Con despertaram-
na de um sonho de perseguição e terror. Agora, Brianna olhava para um homem, lá em
baixo, vestido de preto, sem formas definidas, à excepção do rosto, que estava
obscurecido. Quando ele se aproximou, ela manteve a mão trémula bem firme na coleira
de Con.
Um rosto longo e esguio, conseguia ver agora. Um rosto de poeta com olhos escuros e
curiosos e uma boca solene. Um rosto de pirata endurecido por ossos proeminentes e o
cabelo comprido, aclarado pelo Sol que o emoldurava em caracóis molhados.
Tola para sentir medo, censurou-se. Afinal de contas, ele era apenas um homem.
— Está perdido? — perguntou ela.
— Não. — Sorriu ele, lentamente, à vontade. — Já me encontrei. Esta é a Cabana
Espinheiro Negro?
— Sim, é.
— Sou Grayson Thane. Chegou dois dias mais cedo, mas Miss Concannon está à minha
espera.
— Oh. — Brianna murmurou algo ao cão que Gray não entendeu, mas teve o efeito de
descontrair os músculos caninos contraídos. — Estava à sua espera na próxima sexta-
feira, Sr. Thane. Mas seja bem-vindo. — Começou a descer as escadas, o cão a seu lado,
a vela a tremeluzir. — Sou Brianna Concannon. — Ofereceu-lhe a mão.
278
Por momentos, ficou a olhar para ela. Esperava uma mulher simpática, dona de casa,
com cabelo grisalho apanhado atrás num puxo. — Acordei-a, — disse ele, tolamente.
— Normalmente aqui dormimos durante a noite. Venha para junto da lareira. —
Dirigiu-se para a saleta, acendendo as luzes. Depois de pousar a vela, apagando-a,
virou-se para pegar no casaco dele molhado. — Está uma noite terrível para viajar.
— Também percebi.
O impermeável não lhe ocultava as formas. Apesar de não ser tão alto quanto a
imaginação irrequieta de Brianna o fizera, era esguio e seco. Como um boxista, pensava
ela, sorrindo depois para dentro. Poeta, pirata, boxista. O homem era escritor, e um
hóspede. — Aqueça-se, Sr. Thane. Vou fazer-lhe um chá, pode ser? Ou será que prefere
que eu... — Ia começar a oferecer-se para lhe mostrar o quarto, mas lembrou-se que
estava a dormir nele.
— Há cerca de uma hora que venho a sonhar com café. Se não for demasiado
incómodo.
— Não há problema. Não há problema nenhum. Ponha-se confortável. Era um cenário
demasiado belo para apreciar sozinho, decidira ele. —
Acompanho-a à cozinha. Já me sinto bastante mal por a ter arrancado da cama a esta
hora. — Estendeu uma mão para Con cheirar. — Mas que belo cão. Por momentos
pensei que era um lobo.
— Um cão lobo, é com certeza. — Tinha a mente ocupada com os pormenores. — Pode
sentar-se na cozinha. Então, tem fome?
Ele afagou a cabeça do Con e sorriu para ela. — Miss Concannon, creio que a amo.
Ela corou perante o elogio dele. — Bom, presumo que costuma dar o seu coração com
facilidade, em troca de um singelo prato de sopa.
— Pelo que ouvi dizer dos seus cozinhados, não é pouco.
— Oh? — Guiou o caminho até à cozinha e pendurou o casaco dele, a pingar, num
cabide atrás da porta.
— Uma amiga de uma prima do meu editor ficou aqui há coisa de um ano. Disse que a
anfitriã do Espinheiro Negro cozinhava como um anjo. — Não lhe haviam dito que ela
também parecia um.
— Mas que belo elogio. — Brianna colocou a chaleira ao lume, para depois deitar sopa
num tacho para aquecer. — Lamento, mas esta noite só lhe posso oferecer algo simples,
Sr. Thane, mas não irá para a cama com fome.
— Foi buscar pão de soda a uma caixa e cortou fatias generosas. — Já viajou muito
hoje?
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— Já saí tarde de Dublin. Tinha planeado ficar mais um dia, mas fiquei ansioso. —
Sorriu, pegando no pão que ela pousara na mesa e deu uma dentada na primeira fatia
antes que ela lhe conseguisse oferecer manteiga. — Era tempo de me fazer à estrada.
Gere este lugar sozinha?
— Sim. Lamento, mas nesta altura do ano não vai ter muita companhia. — Não vim por
causa da companhia, — disse ele, observando-a a medir a porção de café. A cozinha
começava a ter um aroma divinal.
— Para trabalhar, segundo disse. Deve ser maravilhoso conseguir contar histórias.
— Tem os seus momentos.
— Gosto das suas. — Disse-o com tal simplicidade, dirigindo-se ao armário para tirar
uma tigela de barro vidrada de azul escuro.
Ele ergueu a sobrancelha. Nesta altura, as pessoas normalmente começavam a fazer
dezenas de perguntas. Como é que escreve, onde é que vai buscar as ideias — a
pergunta mais odiada — como é que consegue ser editado? E às perguntas normalmente
seguia-se a eterna informação que o inquisidor tinha uma história para contar.
Mas ela não disse mais nada. Gray deu por si a sorrir de novo. — Obrigado. Por vezes
eu também. — Debruçou-se, inalando intensamente quando ela pousou a tigela de sopa
à sua frente. — O cheiro que emana não me parece nada simples.
— É de vegetais, com pedacinhos de carne. Se quiser, posso fazer-lhe uma sanduíche.
— Não, assim está óptimo. — Provou, suspirando. — Muito bom, mesmo. — Voltou a
estudá-la. Será que a pele dela sempre tivera aquele aspecto macio e corado?
Perguntava-se. Ou seria do sono? — Estou a tentar arrepender-me de a ter acordado, —
comentou, continuando a comer. — Mas isto está a dificultar as coisas.
— Uma boa estalagem está sempre aberta aos viajantes, Sr. Thane. — Colocou o café
dele a seu lado, fez sinal ao cão, que imediatamente se pôs de pé ao lado da mesa da
cozinha. — Sirva-se de mais uma tigela, se quiser. Vou tratar do seu quarto.
Apressada, acelerou o passo ao chegar às escadas. Tinha de mudar os lençóis da cama,
as toalhas da casa de banho. Não lhe ocorrera oferecer-lhe outro quarto. Como era o
único hóspede, tinha direito ao melhor que havia.
Trabalhara rápido e estava a colocar as almofadas nas fronhas com rebordos de renda
quando ouviu um ruído na porta.
A primeira reacção foi de aflição, assim que o viu de pé junto à porta. Depois,
resignação. Estava na sua casa, afinal de contas. Tinha o direito de usar qualquer divisão
dela.
280
Ainda estava a chover. A primeira coisa em que Gray reparou, ao abrir os olhos de
manhã, foi na escuridão. Podia ser qualquer hora entre a aurora e o crepúsculo. O velho
relógio em cima da lareira de pedra marcava nove e quinze. Estava bastante optimista
para afirmar que era da manhã.
281
Esta manhã ela apanhara o cabelo, reparou ele. Imaginava que ela achava prático
apanhá-lo no alto da cabeça. E talvez fosse, pensou, mas o facto de algumas madeixas
se soltarem, agitadas, encaracolando à volta do pescoço e das maçãs do rosto, tornavam
o prático bastante sedutor.
Provavelmente era má ideia ser seduzido pela senhoria.
Ela estava a cozinhar alguma coisa no forno, e o aroma fazia-lhe crescer água na boca.
De certo era o cheiro da comida e não a visão dela, de avental branco justo, que lhe
avivara as papilas gustativas.
Nessa altura, ela virou-se, os braços segurando uma tigela enorme, cujo conteúdo
continuou a bater com uma colher de madeira. Pestanejou uma vez, surpreendida,
sorrindo depois para o receber com prudência. — Bom dia. Vai tomar o pequeno-
almoço?
— Gostava de provar a causa deste cheiro.
— Mas não vai provar. — De forma competente que ele teve de admirar, deitou o
conteúdo da tigela numa forma. — Ainda não está pronto, e vai ser um bolo para o chá.
— Maçã, — disse ele, cheirando o ar. — Canela.
— O seu nariz tem razão. Acha que aguenta um pequeno-almoço irlandês, ou prefere
comer alguma coisa mais leve?
— Leve não era bem o que tinha em mente.
— Então, está bem, a sala de jantar fica mesmo depois daquela porta. Vou buscar café e
bolinhos para ir comendo.
— Posso comer aqui? — Lançou-lhe o sorriso mais charmoso, apoiando-se na ombreira
da porta. — Ou será que a incomoda ter alguém a vê-la cozinhar? — Ou apenas a
observá-la, pensou, sem fazer mais nada.
— De modo nenhum. — Alguns hóspedes até preferiam, apesar de bastantes gostarem
de ser servidos. Deitou-lhe o café que já estivera a aquecer. — Gosta dele simples?
— Exacto. — Provou-o ainda de pé, observando-a. — Cresceu nesta casa?
— Sim. — Cortou fatias de salsicha para dentro de uma frigideira.
— Bem me parecia que era mais uma casa do que uma estalagem.
— É essa a intenção. Tínhamos uma quinta, mas vendemos grande parte das terras.
Ficámos com a casa e a pequena cabana ao fundo da rua, onde a minha irmã vive com o
marido, de tempos a tempos.
— De tempos a tempos?
— Ele também tem uma casa em Dublin. É proprietário de galerias. Ela é artista.
— Oh, e faz o quê?
283
Ela sorriu um pouco enquanto tratava da comida. A maioria das pessoas pensava que
artista significava pintora, uma realidade que irritava sempre a Maggie. — Artista
vidreira. Ela sopra vidro. — Brianna gesticulou para a taça ao centro da mesa da
cozinha. Nela misturavam-se tons de pastel fundidos, o rebordo fluido, como pétalas
levadas pela chuva. — Essa foi ela que fez.
— Impressionante. — Curioso, aproximou-se, passando a ponta do dedo à volta do
rebordo curvilíneo. — Concannon, — murmurou, dando um subtil estalido com a
língua. — Diabos me levam, M. M. Concannon, a estrela irlandesa.
Os olhos de Brianna dançaram de prazer. — A sério que lhe chamam isso? Oh, ela vai
adorar. — O orgulho cintilava. — E reconheceu o trabalho dela.
— Claro que sim, acabei de comprar uma... não sei muito bem que raio é. Uma
escultura. Galerias Worldwide, em Londres, há duas semanas.
— E galeria do Rogan. O marido dela.
— Que oportuno. — Dirigiu-se ao fogão para voltar a encher ele mesmo a caneca. As
salsichas fritas cheiravam quase tão bem quanto a sua anfitriã.
— É uma peça magnífica. Vidro branco glaciar com esta vibração de fogo no interior.
Achei que parecia a Fortaleza da Solidão. — Perante o seu olhar vazio, ele riu-se. —
Parece-me que não está actualizada no que toca à banda desenhada americana. É o
refúgio privado do Super-Homem no Árctico, penso eu.
— Ela vai gostar disso, vai mesmo. A Maggie adora refúgios privados. — Num gesto
inconsciente e habitual, voltou a prender o cabelo solto nos ganchos. Estava um pouco
nervosa. Imaginava que se devia à forma como ele olhava para ela, aquela avaliação
franca e sincera que era desconfortavelmente íntima. Devia ser o escritor nele,
convencia-se ela, deitando batatas na gordura a salpicar.
— Vão construir uma galeria aqui em Clare, continuou. — Há-de abrir na Primavera.
Aqui tem papas de aveia para começar, enquanto preparo o resto.
Papas de aveia. Era perfeito. Uma manhã chuvosa numa cabana irlandesa com papas de
aveia numa grossa tigela castanha. Rindo entre dentes, sentou-se e começou a comer.
— Vai escrever um livro passado aqui, na Irlanda? — Ela olhou por cima do ombro. —
Não se importa que pergunte?
— Não. O plano é esse. Cenários campestres solitários, campos chuvosos, penhascos
altíssimos. — Encolheu os ombros. — Vilazinhas aprumadas. Postais. As imensas
paixões e ambições que se escondem atrás de tudo isso.
Agora, ela ria-se, virando o bacon. — Não sei se vai achar as paixões e ambições da
nossa vila suficientes para aquilo que pretende, Sr. Thane.
— Gray.
— Sim, Gray. — Pegou num ovo, abrindo-o com uma mão para dentro da caçarola a
fervilhar. — Agora, as minhas foram ao rubro quando uma vaca do Murphy rompeu a
vedação e pisou as minhas rosas, no Verão passado. E se bem me lembro, o Tommy
Duggin e o Joe Ryan envolveram-se numa cena de pancadaria sangrenta à porta do pub
do O'Malley s não há muito tempo.
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Herança de Gelo
chega à sua livraria em Abril de 2007
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