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A CASA GRANDE

Taylor Caldwell
Só uma mulher que fosse ao mesmo tempo exímia romancista seria capaz de descrever com tanta perícia e profundidade os abismos de uma
alma negra de mulher.
Um homem teria falhado na tarefa ingente de penetrar os motivos, descobrir os sentimentos, analisar as reações e dissecar os atos para expor
em todos os seus matizes e contrastes essa mulher que pairava sobre uma família e sobre várias vidas como um anjo mau.
Um de seus filhos, dotado de agudo senso crítico, pensou, um dia, ao ver-lhe as mãos, que eram “as mãos de uma assassina”.
Levara à tristeza e à morte prematura o marido, um jovem alegre com a alma cheia de esperanças e de música, e fora uma força
implacavelmente metódica de destruição e de morte na vida de seus filhos. Desviou-se para a embriaguez e o desejo de suicídio, para a
ambição que enregelava a alma, para a negação da própria personalidade a fim de servir aos seus caprichos, desejos e cobiças.
Entretanto, suas vítimas a amavam e só ela e talvez Satanás pudessem saber por quê.
O retrato vivo dessa má mulher é pintado pela autora magistralmente contra o fundo turbulento da vida dos Estados Unidos no século passado
antes da Guerra Civil do Norte contra o Sul e durante esse agitado período.
Um romance grandioso pela magnitude do cenário no tempo e no espaço, pela verdade autêntica dos personagens e pelo seu tratamento,
presente sempre, do velho e insolúvel problema do mal.
Título original norteamericano:
THE WIDE HOUSE
Copyright (C) 1945 by Janet Reback
O contrato celebrado com a autora proíbe a exportação deste livro para Portugal Continental e Ultramarino.
Direitos exclusivos em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S. A. Av.
Erasmo Braga, 255 — 8º andar — Rio de Janeiro, RJ que se reserva a propriedade literária desta tradução.
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The Flash
“É melhor morar num canto do sótão
do que numa casa grande com
uma mulher brigona”
PROVÉRBIOS, XXI, 9
à
BELLA e ROCKY
com amor
LIVRO I
TESOUROS ADQUIRIDOS
LIVRO II
OS FILHOS À PORTA
LIVRO III
Ó ESTRELA DA MANHÃ
LIVRO I
Tesouros Adquiridos
“Tesouros adquiridos pela mentira: vaidade passageira para os que procuram a morte”
PROVÉRBIOS, XXI, 6
CAPÍTULO 1
Janie Driscoll Cauder, em seus últimos anos de vida, costumava dizer, com o sorriso e a inclinação de cabeça, que Laurie, filha dela, não podia
tolerar sem cravar as unhas nas palmas das mãos:
— Quando aqui cheguei, era uma jovem viúva com vinte malas e bolsas, três garotos e uma garotinha, sem ninguém para cuidar de mim e só a
ajuda de Deus para me sustentar. Ah, se não tivesse sido o bom Deus, que seria de mim, uma jovem viúva, desembarcando sozinha em terra
estranha, sem casa e sem parentes para me darem abrigo?
É verdade que Janie, diante de uma assistência cheia de servil admiração, deixava de mencionar que, além de “vinte malas e bolsas, três
garotos e uma garotinha”, estava de posse também de quinze mil libras esterlinas, que lhe tinham sido dadas pela mãe irlandesa que a
adorava. Se ela falasse nas quinze mil libras, isso enfraqueceria consideravelmente a imagem patética da jovem viúva pondo os pés delicados
com tanto destemor e tanta bravura nas insensíveis praias de uma “terra estranha”, rodeada pelos filhos e pela vasta bagagem. Janie sempre
fazia ver as circunstâncias em torno dela como imensas e avassaladoras, a fim de que os que a ouviam pudessem perceber bem o contraste
com a sua figura tão pequena, tão frágil, tão infantil e tão destemida contra o sombrio fundo cinzento de Nova York em março de 1850, como
uma criaturinha irrequieta, de queixo erguido bem acima das fitas do chapéu e os olhos alegres iluminados por um humor cheio de vivacidade.
Nova York sofrera uma tempestade de neve no dia anterior e a neve estava acumulada em montões estriados de fuligem no cais de madeira.
Contra um céu de chumbo, os mastros do grande navio se destacavam emaranhados de cordas e entre eles pousavam as largas chaminés que
tinham vomitado fumaça vigorosa, mas intermitentemente através do Atlântico revolto. Centenas de imigrantes, cercados de crianças que
gritavam e choravam, tentando aquecer as mãos avermelhadas sob aventais e xales finos, irrompiam no cais, arrastando trouxas de roupas de
cama resgatadas dos porões úmidos do navio, malas de pano de tapete puído e vários embrulhos cheios de protuberâncias. Janie, com a capa
de marta, o elegante vestido de lã cinza e o pequeno chapéu enfeitado de violetas de veludo, era uma visão radiosa. Tinha viajado naturalmente
na primeira classe e ganhara, como de costume, uma chusma de amigos cheios de admiração e de amor, que a ajudaram a desembarcar a
bagagem e chegaram a arrebatar algumas das malas menores das mãos dos camaroteiros. Esses amigos eram todos homens, pois as
mulheres não se mostravam muito cordiais com Janie depois de um ou dois dias de conhecimento. E assim, o pequeno chapéu francês de
Janie se agitava animadamente entre chapéus altos e largos sobretudos de gola de pele, e seu riso, emocionantemente alto e jovial, ressoava
escachoante. Às vezes, a mãozinha enluvada emergia do fundo do regalo de marta para atingir fortemente no peito ou no braço algum
cavalheiro mais insistente, como se o censurasse, e às vezes puxava graciosamente uma grossa manta escocesa dos ombros de outro.
Os filhos estavam um pouco longe dela, bem vestidos, simpáticos e calados. O mais velho, Angus Driscoll Cauder, segurava a mão da
irmãzinha com firmeza, embora a mão estivesse um pouco fria. Era o menos bem-dotado dos filhos de Janie. Era excepcionalmente alto,
moreno e sério, com os seus treze anos de idade. Tinha uma expressão reservada, fria e sem animação. Era pálido e as feições eram magras
e pequenas, o nariz breve e afilado, de narinas apertadas e estreitas, a boca de lábios finos e repuxados. Tinha, porém, um bom queixo, bem
feito e com uma covinha, e se alguém se desse ao trabalho de olhá-lo bem depois de um primeiro relance, perceberia olhos cinzentos muito
claros, cor de fumaça.
A irmãzinha, que se agarrava tão firmemente a ele, era uma bela criança de cerca de seis anos. Sob o chapéu de castor, com as largas fitas
marrons, derramava-se uma cascata de cabelos louros tão brilhantes que formavam como que uma gola de ouro pálido acima da gola
debruada de peles do casaquinho bojudo. Os olhos grandes e sorridentes eram de um azul translúcido, sombreados por cílios dourados. Tinha
um suave rostinho redondo cor de leite e rosa-chá e um grande sorriso róseo que tremia fácil por entre uma porção de covinhas. O fato de que
o vento cortante que soprava do mar lhe avermelhasse o nariz arrebitado não lhe diminuía a emocionante beleza nem o ar de alegria tímida,
mas ansiosa.
Embora as quatro crianças estivessem reunidas num círculo, um olhar vivo perceberia que na realidade formavam dois grupos distintos. Um
deles era constituído de Angus e da irmã e o outro, de Bertram (Bertie) Coleman Cauder e Rob Roy (Robbie) Duncan Cauder. As pessoas
estranhas podiam sentir-se tomadas de simpatia por Bertie, que era o predileto da mãe. O garoto de onze anos era quase tão alto quanto
Angus, mas era mais bem feito de corpo, consideravelmente sólido e extremamente belo. Tinha um grande rosto redondo, muito vivo, corado e
risonho, com grandes dentes brancos que se mostravam em sorrisos constantes e inocentemente maliciosos, e luminosos olhos azuis, um tanto
pequenos. A cabeça era grande, redonda e forte, coberta de cabelos castanhos ondulados e com reflexos dourados e os seus modos eram
ágeis, vivos e irrequietos.
Robbie era o “preto”, como Janie dizia com sincero desprazer. Era pequeno. Tinha herdado a pequenez e a magreza de Janie. Parecia pouco
mais velho que Laurie, sua irmã. Apesar disso, nada havia de infantil ou capaz de despertar compaixão em seu corpo magro e compacto.
Havia ocasiões em que Robbie parecia um vigoroso gnomo.
Enquanto Janie continuava a tratar com os seus admiradores e sua voz, tão rouca e alegre, tão aguda e cordial, continuava a ressoar acima da
confusão das outras vozes, até Bertie, o efervescente, caiu num silêncio descontente. O vento aumentava de intensidade e o céu ficava mais
carregado. Eram quase cinco horas da tarde e as sombras da noite corriam em grandes ondas do mar e se estendiam sobre a cidade atrás do
cais. Um ronco surdo subia do oceano. O vento assobiava por entre os mastros dos navios e os tripulantes corriam pelas cobertas. A multidão
começava pouco a pouco a dispersar-se. Nas margens baixas e irregulares de Nova York, começaram a piscar luzes amarelas. O cais de
madeira curvava-se e ressoava com os passos apressados.
Um homem jovem, alto e esbelto, vestido com um longo sobretudo castanho-claro com gola de marta e trazendo à cabeça um chapéu alto
inclinado num ângulo elegante, passou por entre a multidão. O seu andar era gracioso e ele era todo elegância e distinção. As calças
castanhas justas eram presas por tiras sob os sapatos pretos finos e bem engraxados. Levava na mão uma fina bengala de ébano com castão
de ouro com a qual afastava levemente do caminho garotos, mulheres trêmulas e até homens. O sobretudo estava aberto e se balançava,
mostrando um colete de seda florida e folhos brancos engomados. Tinha um rosto moreno e cheio, simpático e vivo, com uma boca sutil e
sorridente e olhos pretos, muito grandes e penetrantes. Os cabelos pretos, penteados para trás, frisavam-se nas pontas de maneira muito
atraente. O ar era displicente, calmo e arrogante. Levava entre os dedos de uma das mãos enluvadas um longo charuto. Era sem dúvida um
grande cavalheiro, como pensavam muitas mulheres que se encolhiam para deixá-lo passar.
Parou perto dos quatro filhos de Janie Driscoll Cauder e examinou-os. Levou o charuto à boca e tirou uma baforada calma.
— Deus do Céu! — disse então.
Voltou a caminhar, mais depressa dessa vez. Aproximou-se das crianças, sorriu para elas com os dentes brancos a brilharem entre os lábios e
perguntou gentilmente, percorrendo com os olhos os rostos, um por um:
— São vocês os garotos de Janie?
Os quatro olharam para ele do fundo de seu frio desconforto. Só Robbie respondeu, avançando com cortesia e calma, ao mesmo tempo que
tirava o chapéu:
— É o nosso Primo Stuart? — perguntou ele com sua voz leve, sem inflexão.
— Claro que sou —, disse o homem, com um cumprimento de cabeça, sorridente. — Ou, melhor, sou primo da mãe de vocês, Stuart Coleman.
A pequena Laurie fez automaticamente uma cortesia, enquanto os outros três cumprimentavam brevemente. Bertie havia recuperado a sua
espontânea alegria. Aproximou-se de Stuart, pegou-o pelo braço e disse:
— Estamos quase mortos de frio. Quer livrar mamãe daqueles homens?
O sorriso desapareceu do rosto de Stuart. Olhou pensativamente para Bertie. Bateu bondosamente na mão firme em seu braço e disse:
— É o que eu vou fazer.
Voltou então sua atenção para Laurie, que o estava observando com os grandes olhos azuis, cheios de curiosidade e de calma.
— Alô, minha linda —, disse Stuart docemente.
Estendeu a mão e fez um carinho no rostinho redondo e frio. Ela sorriu radiosamente para ele, mas depois ficou vermelha e escondeu o rosto
no braço de Angus.
— Como é que vocês se chamam? — perguntou Stuart.
Como de hábito, Robbie assumiu o comando da situação. Apontou para o irmão mais velho e disse numa voz controlada:
— Aquele ali é Angus. — Apontou Bertie, que estava ainda agarrado afetuosamente ao braço de Stuart. — Esse é Bertie, Bertram. Eu sou Rob
Roy, Robbie. E aquela é Laurie, nossa irmã.
— Quatro, hem? — murmurou Stuart, pensativamente. — Não sabia que vocês eram quatro. — Sorriu um pouco. — Janie foi um tanto
descuidada. Pensei que só ia trazer dois no máximo. Só mencionou Bertie e Laurie.
Robbie encolheu os ombros com indiferença e Stuart o olhou com alertada presteza. Virou-se em seguida e olhou Janie que ainda ria com um
grupo de homens, já então isolada com eles num canto do cais.
— Janie como sempre —, comentou em voz baixa.
Sorriu para as crianças tranquilizando-as e partiu na direção da prima e de seu grupo de admiradores. Ficou nas proximidades, sacudindo a
bengala e fumando. Disse então de repente e em voz bem alta:
— Pelo amor de Deus, Janie!
Os homens pularam como cabritos assustados e se separaram instintivamente, mostrando entre eles a mulher pequena e vivaz. Ela olhou para
Stuart e então correu em passinhos rápidos ao encontro do primo, soltando exclamações, estendendo uma das mãos enluvadas e segurando
com a outra o grande regalo de marta. A capa de marta se ergueu atrás dela, as pequenas sandálias francesas crepitaram sob a saia cinza e o
véu lilás foi levantado pelo vento das violetas de veludo do chapéu. Atirou-se nos braços do sorridente Stuart enquanto os homens que a tinham
rodeado juntaram-se e sorriram constrangidamente. Ela se derramou em beijos extravagantes, gritinhos roucos e abraços perfumados.
— Stuart, meu querido! — exclamou ela, enquanto as lágrimas fáceis lhe rolavam pelas faces. — Onde foi que você esteve todo esse tempo?
— Deixe-me olhar para você —, disse ele, afastando-se um pouco. — É a mesma velha Janie, embora não a veja desde o dia de seu
casamento.
Stuart Coleman estava com vinte e oito anos e tinha apenas quatorze anos quando vira a prima pela última vez. Mas se lembrava muito bem do
rostinho triangular, da pele um pouco pálida e do forte sortimento de sardas castanhas num nariz francamente grande e romano. Lembrava-se
da boca rasgada com o seu sorriso esperto, audaz e alegre e dos dentinhos brancos e quadrados, brilhantes e perfeitos. Lembrava-se dos
cintilantes olhos verdes, impiedosos, astutos e sempre a tremer de um riso incipiente sob as finas sobrancelhas castanhas e com uns fortes
toques de âmbar que davam àqueles olhos uma qualidade felina e indomável. E se lembrava também dos flamantes cabelos ruivos que eram
naturalmente lisos e sempre se mostravam tortuosamente enrolados em cachos que lhe contornavam o rosto vivo e desciam até aos ombros.
Janie não havia mudado muito. Tinha trinta e dois anos e não possuía a menor beleza, apesar da esbelteza do corpo, do seu bom gosto em
vestir-se e do uso sem reservas de ruge e de pó.
Stuart Coleman, que não era tolo, sabia tudo a respeito de Janie. Mas ela o divertia e encantava. Beijou-a cordialmente enquanto ela o
abraçava, mas sabia que eram hipócritas as lágrimas de alegria de Janie. Uma criatura falsa, pensou ele. Mas uma alma alegre. Ficou
sabendo no mesmo instante por que ela tinha na realidade ido para os Estados Unidos. Queria casar-se com ele. Riu consigo mesmo.
— Venha. Tenho uma carruagem aí à espera e vou levá-los a todos para o hotel —, disse ele, fazendo-lhe um carinho no queixo. — Essa é sua
bagagem? Tudo isso? Meu Deus!
Apontou com a bengala as malas e bolsas. Olhou de lado para os homens desconcertados e separados que começavam a desaparecer no
crepúsculo como cachorros escorraçados.
Janie se pendurava toda no seu braço e não tirava dele os verdes olhos dançarinos. De repente, relaxou o corpo todo e se mostrou muito
feminina. Deu um suspiro, levou o lenço aos olhos secos e perguntou com voz chorosa:
— Que seria de mim sem você, meu amor?
Stuart sorriu e respondeu:
— Sério que não sei, querida. Mas vamos que a carruagem está esperando. Reúna seus lindos filhos e vamos.
CAPÍTULO 2
Quando queria impressionar alguém, como queria impressionar naquele momento seu primo Stuart Coleman, Janie não deixava de ter algumas
apreensões. A mãe dela fora prima do pai já falecido de Stuart e Gordon Coleman nunca tinha simpatizado com Janie. Sendo assim, pensou
ela observando Stuart cautelosamente, que teria o jovem ouvido dela?
Stuart tinha ouvido muita coisa, mas, sendo um homem de juízo, deixara Janie “deitar-se na cama que fizera”, como dizia com alguma secura.
Sabia de tudo a respeito de Janie. Continuou a olhar pelas janelas salpicadas de lama da grande diligência que os levava todos para sua casa
em Grandeville, no estado de Nova York, e fingia estar muito interessado na paisagem plana e sem atrativos diante da qual passava o
sacolejante veículo.
O pai dele tinha sido um homem que falava demais e com impertinência. Simpatizava muito com sua prima Bridget Murphy, mãe de Janie, e
ficara furioso com o casamento dela com aquele “horrível escocês, Duncan Driscoll”. Gordon Coleman era um “irlandês maluco” na opinião da
família, que não previa um bom fim para ele. Casara-se com a mãe de Stuart, já então morta, e fora com ela para os Estados Unidos a fim de
tentar a vida quando Stuart tinha quatorze anos. A família, dando graças ao céu, tinha contribuído generosamente para o fundo que fizera o exílio
possível. Embora todos gostassem muito do jovem Stuart, tinham tido prazer em livrar-se de parentes que eram um ônus constante para suas
bolsas relutantes. Quando tiveram notícia do espantoso êxito de Gordon, não mudaram de opinião a respeito dele. Preferiram dizer
invejosamente que isso só fora possível porque até os mais broncos idiotas podiam ganhar dinheiro na América. Graças às rancorosas
diatribes de Gordon Coleman é que Stuart ficara sabendo de tanta coisa a respeito de Janie e da família dela.
O pai de Janie, Duncan Driscoll, um “homem das planícies” de Barhead, na Escócia, comprara, graças à considerável herança recebida de um
tio, uma fazenda excepcionalmente extensa logo depois da fronteira inglesa. Já era bastante censurável que ele tivesse comprado terras na
Inglaterra, mas ainda era pior que ele, sendo marítimo, fizesse da fazenda um retumbante sucesso. Isso bastava para fazer qualquer escocês
de respeito fremir de indignação. Que podia ele entender de bois, carneiros e outros animais? Duncan, sem dúvida, entendia muito e, como era
um homem de resolução e inteligência, prosperou desde o início. Mas quando se casou com a viçosa irlandesa chamada Bridget Murphy, até a
família o abandonou de maneira completa e rápida.
Duncan, com a inabalável serenidade de um escocês próspero, não se mostrou de modo algum preocupado com essa situação. Era amistoso
com todos, embora não gostasse particularmente de ninguém, e se mostrava agradável e cordial com os parentes da mulher. Permitia até que
o primo dela, Gordon Coleman, ocupasse uma casinha nas terras dele com a mulher e o filho. Gordon era porteiro da propriedade e exercia o
seu pendor irlandês de proprietário, sendo uma espécie de capataz para os outros trabalhadores da fazenda. Faltava-lhe, porém, o bom humor
e o espírito afável dos irlandeses, sendo por isso odiado pelos trabalhadores.
A mulher de Duncan deu-lhe dezessete filhos, dos quais Janie era a caçula. Embora Gordon Coleman, que odiava mais a Duncan do que a
qualquer outra pessoa, sem dúvida porque recebera dele benefícios sem conta, antipatizasse com todos os filhos de Bridget com irredutível e
profunda aversão, detestava particularmente Janie. O filho dele, Stuart, que nascera cerca de cinco anos depois de Janie, revelou desde cedo
um revoltante apego à menina e ela a ele. Ela descia correndo da grande casa cinzenta do morro e invadia a casinha ao lado dos portões, com
os cabelos vermelhos flutuando ao vento, os olhos verdes dançando e um sorriso escancarado na boca.
Janie chegou a se tornar uma obsessão para aquele homem sombrio e frustrado. Desde que o ódio tem uma memória tão ilimitada quanto o
amor, ele compilou um verdadeiro prontuário a respeito de Janie. Mesmo nos Estados Unidos, muito anos depois, enriqueceu de fatos novos
esse prontuário e revelou tudo ao filho. O que Stuart não soube do contato direto com Janie, ficou sabendo por intermédio do pai.
Janie fora mimada pelo pai e pelos irmãos mais velhos, ainda que todos ficassem compreendendo tudo a respeito dela desde que balbuciara
as primeiras palavras. A mãe tinha, porém, verdadeira adoração por essa filha de sua velhice e nada era caro demais ou de qualquer modo
excessivo para a arteira criaturinha. Bridget, gorda, velha e quase analfabeta, nada via de mais fascinante no mundo do que aquele último fruto
que lhe saíra do ventre e nada do que Janie fizesse poderia ser repreensível aos seus olhos encantados. Janie ganhara capa de peles, com
estola, chapéu e regalo quando tinha apenas cinco anos de idade. Janie tinha tido pôneis das Shetland, jardim particular, criada de quarto,
relógio de ouro e um estojo de joias cheio de anéis, correntes e berloques. O veludo e a seda de seus vestidos eram importados da França, do
mesmo modo que as delicadas rendas de suas roupas íntimas de cambraia. Os seus sapatos vinham de Londres. Desde cedo, aprendeu a
usar loções para a pele, que, apesar de todos os esforços ansiosos das empregadas, sempre foi distintamente amarelada. Ainda que evitasse
por todos os meios o contato do sol em sua pele, o grande nariz predatório sempre conseguia colher uma safra de sardas castanhas pela
primavera, por mais que ela as banhasse com soro de leite.
Os empregados odiavam e temiam a pequena Janie, desde a mais humilde servente da cozinha ao professor de Oxford contratado
especialmente para ensinar-lhe. Era fértil em travessuras cruéis que negava veementemente quando a mãe em lágrimas lhe chamava
delicadamente a atenção. Janie tinha a capacidade de olhar a pessoa diretamente nos olhos e, sem a menor vacilação, declarar firmemente
que não fizera aquilo de que era acusada. Uma vez, depois de uma diabrura especialmente perigosa, quando um empregado da fazenda
quase morrera atacado por um touro ao qual Janie abrira furtivamente a porteira, Duncan deu uma surra em regra na filha. O resultado foi que
Bridget passou um mês sem lhe dirigir a palavra e só voltou às boas depois que o homem aflito deu de presente a Janie três cortes de veludo e
um manto de arminho.
Apesar disso, suas maneiras eram tão encantadoras quando ela desejava e sabia mostrar-se tão doce e meiga que podia “dobrar” qualquer
pessoa que quisesse. Tinha pequenas delicadezas e podia até dominar o tom rouco e um pouco áspero de sua voz que se tornava quase
suave. Podia amarrar com nós cegos as fitas da touca de Bridget quando ela cochilava na sua cadeira diante da lareira ou colocar alfinetes na
almofada de veludo vermelho predileta da mãe, fazendo Bridget levantar-se com um grito de angústia e com as mãos nas volumosas nádegas.
Podia fazer qualquer dessas ruindades, mas era sempre perdoada quando conseguia fazer uma grande lágrima rolar-lhe pelo rosto e os lábios
tremerem.
Mal tinha ela dez anos, a mãe cheia de cuidados começou a procurar ansiosamente entre os fazendeiros da vizinhança um marido conveniente
para a filha. As irmãs dela tinham-se casado todas antes de terem dezessete anos com rapazes sérios e robustos da vizinhança e estavam
bem instaladas em excelentes propriedades. Com aflição cada vez maior para Bridget, Janie não mostrou interesse, durante a sua
adolescência, pelos rapazes casadouros do lugar. Só aos dezenove anos foi que seu olhar cobiçoso caiu sobre o jovem Robin Cauder e o seu
desejo se fixou nele.
Desde que Janie era profundamente ambiciosa, a preferência dela em relação a Robin Cauder era inexplicável. Na verdade, Robin tinha
apenas a roupa do corpo e nas calças justas e surradas uma pequena coleção de shillings e pence. Nascera nas sombrias e violentas
montanhas da Escócia, sendo um dos muitos filhos de um pastor que pouco tinha para comer. Desde tenra idade, Robin fora destinado a ser
também pastor e através das profundas neves das montanhas negras levava o seu rebanho para procurar a magra vegetação que havia em
baixo da neve. Era então que cantava em honra da estrela da manhã isolada no céu e com uma voz tão dourada, tão forte e tão segura que até
parecia que os rochedos ásperos e as árvores retorcidas o escutavam. Até os carneiros levantavam as cabeças, como se estivessem
fascinados. Cantava as baladas escocesas, cheias de rude melancolia, cheias de morte, de moças apaixonadas e de jovens infelizes, cheias
de guerra, de glória e de ódio à Inglaterra. Envolvia-se nas mantas, indiferente aos terríveis ventos que lhe torciam o saiote escocês em torno
das jovens pernas avermelhadas, erguia o rosto para o céu pálido da manhã e cantava como um verdadeiro anjo.
Era também angélica a sua beleza. Alto, robusto, cheio de graça, tinha uma pele morena clara, belos olhos negros, o nariz hebraico do
verdadeiro escocês das montanhas e uma negra massa de cabelos encaracolados. As moças logo o amavam. Mas Robin só amava as suas
montanhas selvagens e a música de seu canto. Tinha apenas dezesseis anos quando deixou as montanhas e se foi a cantar, como um
menestrel, pelas vilas e aldeias da Escócia. Embora sem estudos, a voz de Robin encantava e inebriava seus pobres ouvintes a tal ponto que
lhe davam muitos pence e até shillings. Gostavam de ouvir-lhe o riso, rico e jovial, cheio da alegria de viver.
Percorreu assim a Escócia, como um jovem cantor ambulante, durante um ano inteiro, vivendo alegremente com estranhos que lhe davam
pousada, ainda que se tratasse apenas de um lugar diante da lareira acesa fracamente num fojo no chão ou num estábulo com o gado. Tinha
dezessete anos quando chegou a Barhead, na Escócia, e estendeu os olhos curiosos para o lado inglês da fronteira. Sabia que os ingleses
eram mais pródigos em matéria de dinheiro que os seus cautelosos compatriotas. Transpôs a fronteira e cantou nas tavernas inglesas até que
mesmo os prosaicos lavradores ingleses levantavam a cabeça da cerveja aquecida que bebiam e escutavam boquiabertos. Foi numa dessas
tavernas que um amigo do ministro local o ouviu cantar e o convenceu a ir visitar o presbitério. O ministro, entusiasmado por tão magnífica voz,
conseguiu que Robin aprendesse os monótonos hinos da respeitabilidade e cantasse na sua capela. Robin achou tudo isso muito aborrecido
porque não lhe agradava ficar parado no mesmo lugar. Resolveu só continuar ali até que tivesse dez libras no bolso. Enquanto isso, dormia no
sótão da casa do ministro, onde os lençóis eram limpos e adequados.
Janie o ouviu cantar na capela. Olhou-o do banco da família. Desde o primeiro dia, desejou-o com voracidade. Decidiu que se casaria com o
jovem de dezessete anos e com ninguém mais. Deu calmamente essa espantosa notícia aos pais, que se viram lançados em desesperada
perplexidade. Duncan se enfureceu e deblaterou. Bridget derramou baldes de lágrimas. Os irmãos e as irmãs sentaram-se, com os calções ou
os vestidos de lã, e ergueram as mãos em clamoroso horror. Janie se manteve firme. Ficaria solteirona e seria alvo das zombarias dos vizinhos
se não tivesse o seu Robin.
Enquanto isso, Robin estava, para sua felicidade, ignorante da fúria que lavrava por Stronghold, a fazenda da família Driscoll. Havia notado
Janie no banco da capela com o corpozinho frágil coberto de veludos, sedas e peles, coberta de joias como uma Jezabel, e com uma cor bem
suspeita nas faces pálidas. Embora percebesse que ela o observava firmemente com os olhares compridos de seus olhos verdes e sorria
embevecida quando ele cantava, nunca se sentira atraído por ela. Nunca tivera amor pelo dinheiro. Desejava apenas era passar a vida
cantando, despreocupado, irrequieto e cheio de alegria. A posição de Janie não o impressionava nem um pouco.
Foi só quando ela achou meios de abordá-lo no caminho para a casa do ministro que começou a olhá-la com interesse. Não era homem capaz
de recusar qualquer prazer em perspectiva. Mas Janie era esperta. Tinha de ser casamento ou nada. Vestia-se com o que tinha de melhor e se
mostrava tão alegre, tão divertida, tão cheia de seu riso rouco que, por fim, o rapaz é que a esperava na estrada. Janie compreendeu sem
demora que as peles, as sedas e seus melhores chapéus de castor nada representavam para ele. Sutil como sempre, logo descobriu o
caminho para aquele coração esquivo. Murmurava entre suspiros que não passava de um pobre passarinho preso numa gaiola de ouro e que
nada desejava mais do que correr mundo, pois seu espírito estava sufocado em Stronghold. Quando Robin falava de lugares remotos e
recordava as suas montanhas, Janie conseguia fazer os olhos cintilarem banhados em sua luz verde ou encherem-se de lágrimas e externava
então o desejo de um dia ver aquelas montanhas.
Mas tudo isso poderia ter dado em nada se Duncan um dia não tivesse procurado, tomado de verdadeira fúria, a casa do intimidado e trêmulo
ministro, dizendo aos gritos que queria ver imediatamente o tal sujeito, pois do contrário poria a casa abaixo com as próprias mãos do telhado
aos alicerces. Robin, ouvindo a algazarra, desceu do seu sótão com negligência e graça. Não se deixou intimidar por Duncan. Quando afinal,
por entre as imprecações e as ameaças, percebeu o sentido das palavras do velho, jogou a cabeça para trás e deu boas gargalhadas.
Apesar disso, ficou também ofendido, porque, além de teimoso, era orgulhoso. Com que então ele não servia para Janie? Tinha de partir
imediatamente dali, com o bolso cheio de libras, não era? Riu ainda mais. Na primeira vez em que se encontrou com Janie na estrada,
perguntou se ela se queria casar com ele.
O casamento levou dois meses para se realizar, pois Janie ficou presa dentro de casa, desde que Duncan tinha conseguido finalmente superar
as lágrimas e as súplicas de Bridget. Janie entrou em “crise”. Deixou de comer e de beber, disposta a chorar até que tivesse seu Robin. Os
chorosos pedidos da mãe não tiveram qualquer resultado. Janie trancou-se dentro de seu quarto. Lá fora, os ventos pardacentos do outono
faziam dançar folhas mortas de encontro às janelas fechadas. Soluçava bem alto e então prestava atenção. Se, ao fim de algum tempo, não
ouvia os passos alarmados ou os suspiros profundos da mãe diante da porta, Janie entregava-se a um acesso de fúria, gemendo e gritando
como uma alma penada, deixando-se cair violentamente no chão e batendo os pés como uma possessa no assoalho polido.
Duncan, que era excepcionalmente duro, cedeu afinal.
— Pode ficar com seu vagabundo e os dois que se vão estourar nas profundas do inferno! — gritou ele uma bela manhã diante da porta
fechada de Janie.
Depois disso, saiu da casa batendo as portas, montou no seu cavalo e galopou até à primeira taverna que encontrou. Quando voltou, dentro de
uma névoa dourada de atordoamento, Janie estava sentada diante da lareira tomando leite e conhaque, enquanto Bridget adejava de um lado
para outro em torno da filha recuperada.
Alguns dias depois, Robin foi procurado por dois dos irmãos mais velhos de Janie. Declararam, com uma raiva contida, que tinham ido
comunicar que o pai deles dava seu consentimento ao casamento de Robin com Janie.
Ora, Robin não via Janie havia quase duas semanas e, para dizer a verdade, já a tinha quase esquecido. Encarou cheio de assombro os
irmãos dela e então seu rosto moreno se tingiu de intenso rubor. Praguejou intimamente contra a loucura insensata e obstinada que o havia
levado àquela situação. Nada disse aos jovens lavradores, mas logo que eles saíram, resolveu fugir. Casar-se com uma pequena e ficar
amarrado a um lugar? Não, isso não era para ele!
Tentou fugir na manhã seguinte. Mas, na estrada de volta para a Escócia, encontrou a cavalo o mais velho e mais forte dos irmãos de Janie.
Robin olhou para o rosto do homem com os olhos implacáveis e deu uma gargalhada. Ajeitou a mochila nos ombros, virou-se e voltou
assobiando para a casa do ministro.
Casou-se com Janie seis semanas depois. Gordon Coleman não compareceu. Mas a mulher dele e Stuart estavam presentes. Stuart havia
acompanhado as peripécias do namoro de Janie com uma grande curiosidade de colegial. Na verdade, ficou radiante com o triunfo astucioso
da prima e a julgava uma criatura audaciosa e aventureira cuja vida seria interessante observar e seguir. Nunca mais ele e Janie correriam
pelos bosques caçando borboletas, sentindo sob os pés a relva macia e vendo os raios oblíquos do sol da tarde coarem-se por entre as
colunas das árvores. Nunca mais olharia ao lado de Janie a luz branca da primavera no céu crepuscular, nem correriam juntos para o rio a fim
de patinar no gelo escuro e cintilante sob o sol de inverno. Lembrava-se de Janie a subir pelo tronco inclinado de uma velha árvore e, então,
agarrar-se a um galho baixo e balançar-se no espaço, sustentada pelas mãos. Como as saias dela se enfunavam ao frio vento da floresta e
como as pernas pareciam magras e nervosas na ponta das longas calças cheias de rendas e de folhos! Na verdade, Janie era tão irrequieta
como um inseto, tão barulhenta quanto um grilo e tão audaciosa quanto um esquilo. Ninguém podia sentir-se entediado ao lado dela, por mais
arteira e maliciosa que fosse. E demonstrava por Stuart uma tumultuosa afeição, apesar de sua tendência a atormentá-lo e de suas cruéis
provocações e malícias.
Lembrando-se de como ela andava interminavelmente em companhia dele, de como o agredia num momento e o adulava no momento
seguinte, lembrando-se do riso rouco e jovial, que ecoava pelos bosques em tons quase obscenos, lembrando-se de sua avareza e de suas
repentinas generosidades, sentiu a tristeza invadir-lhe a alma.
Foi num dia pardacento e frio de outono que Robin e Janie se casaram. Pelas janelas de vidraças estreitas escorria uma água plúmbea. A
grande casa cinzenta, escura como sempre, salvo na cozinha, onde as panelas de cobre rebrilhavam ao fogo, tinha um cheiro frio de umidade.
Abaixo das janelas dos fundos, havia um grande banco e Stuart se sentou ali, bocejando e esperando com os outros o aparecimento de Janie e
do noivo. As janelas davam para uma horta cercada por um muro de pedra. No centro da horta meio maltratada, havia uma árvore nodosa e
retorcida. Poças de água apareciam no meio da vegetação emaranhada e molhada e a água das poças tremia e se enrugava ao vento frio
como lagos em miniatura açoitados por um temporal. Tudo isso tinha um aspecto desolado, cheio de tristeza e de infinita melancolia. Um
cachorro latia desesperadamente. Ao longe, o gado mugia surdamente de volta aos estábulos. E, enquanto Stuart olhava, uma névoa tênue
começou a elevar-se da horta malcuidada, enroscando-se em torno das plantas, estendendo-se no ar como uma écharpe ou enovelando-se em
rolos como cogumelos.
Não era um dia de bons presságios. O fogo tinha sido aceso no grande salão, que era raramente usado, salvo em grandes ocasiões como o
Natal (embora Duncan, o escocês, fosse contrário à comemoração “papista” da festa), os casamentos ou os enterros. Em consequência disso,
as paredes recobertas de lambris escuro tinham uma camada de umidade e, nos lugares mais afastados da lareira, a água escorria em muitos
pontos sobre a madeira envernizada. Os móveis de mogno, escorregadios com o seu estofamento de crina, de tapeçaria ou de veludo,
brilhavam foscamente à luz da lareira, enquanto um largo tapete turco se estendia pesadamente de parede a parede. Os numerosos
convidados sentiam essa atmosfera lúgubre e se amontoavam, empunhando os seus copos de uísque, nas proximidades da grande lareira de
mármore negro. Os homens tinham-se fortalecido prodigiosamente e suas rudes vozes camponesas se estavam tornando extremamente altas.
As mulheres, com suas grandes saias de veludo e suas capas debruadas de peles, tinham-se afastado decorosamente dos homens e
conversavam na voz baixa que é de bom-tom usar em casamentos ou enterros. As lâmpadas, ainda não acesas por economia, estavam à
espera do toque de uma vela. A escuridão se adensava nos cantos.
Perto da parede do norte, estava sentada a filha mais velha do ministro, uma jovem magra e doentia, vestida de marrom-escuro, cujo rosto
pálido e magro era parcialmente escondido pelo chapéu. Ao lado dela, estava um pequeno órgão e, junto desse órgão, se postava com ar
muito infeliz o filho único do ministro, um garoto muito gordo de cerca de dez anos, encarregado de abastecer o instrumento de ar quando
chegasse a hora de tocar a marcha nupcial. Ninguém dava a menor atenção a essas pobres criaturas abandonadas, embora o garoto fungasse
sem parar e passasse disfarçadamente pelo nariz a manga do casaco, o que provocava da irmã alguns ruídos discretos de censura e a
apresentação de um lenço.
Um dos irmãos, descontente com a escuridão crescente, tomou a liberdade de acender uma lâmpada num canto afastado, mas essa luz só
serviu para intensificar a escuridão. O fogo da lareira não era suficiente para aquecer a sala. Quando o ministro velho e triste entrou, com o
casaco molhado e manchado e de chapéu na mão, todos o olharam sem simpatia como se ele não fosse vítima de sua cupidez pessoal, mas
um servo venal punido justamente pelo céu com a mais tremenda pobreza.
Ninguém tinha ainda visto o noivo, o rude rapaz moreno de dezessete anos, e à medida que o tempo passava e havia sons preliminares no
andar de cima, os presentes começaram a ficar nervosos e alguns dos homens foram até às janelas a fim de olhar para a noite que caía.
— Parece que o gajo deu no pé —, disse um dos mais jovens entredentes para um amigo. — Palavra que dou até razão a ele.
O ministro, aventurando-se a dizer alguma coisa numa voz gaguejada, anunciou que Robin tinha vindo em companhia dele e ia aparecer
imediatamente.
Robin entrou nesse momento, com um bem talhado casaco cinza-pérola e calças de um cinza mais claro, indumentária essa que fez todos
olharem-no cheios de espanto. Levava no braço um chapéu alto de castor cinza e em torno do pescoço jovem os folhos da camisa cintilavam
bem engomados. Estava cercado de tal auréola de esplendor, frescura e juventude que pareceu iluminar a sala. Movia-se entre aqueles
criadores de cavalos e lavradores com leveza e espontânea graça. Embora o rosto estivesse mais sério que de costume e um tanto
apreensivo, nada conseguia atenuar-lhe o ar natural de brilhante vivacidade. As senhoras se moveram muito empertigadas nas cadeiras e os
rostos mais carrancudos das velhas mais rabugentas desabrocharam quase num sorriso à vista dele. Os homens resmungaram, murmuraram
cumprimentos e arregalaram os olhos. Mas o ministro ficou ao lado do moço a quem tinha chegado a querer bem e sorriu-lhe gentilmente.
Todos tiveram um sobressalto quando a filha do ministro atacou pesadamente o órgão. Ouviram-se então passos na escada envernizada.
Todos se levantaram, as senhoras com um grande farfalhar de panos e deixando as fitas dos chapéus caírem sobre os amplos bustos. Duncan
entrou no salão levando a filha pelo braço, com uma expressão muito séria e sombria. Logo atrás, vinha a gorda Bridget, que chorava
copiosamente e estava em companhia das outras filhas.
Nada poderia dar beleza a Janie, embora ela tivesse esfregado vigorosamente as faces com um pedaço de flanela vermelha molhada até que
elas brilharam suspeitamente e tivesse esfregado os largos lábios com o mesmo material até ficarem doloridos. Parecia excepcionalmente
infantil levada pelo braço do pai enorme e parecia encolher o corpo, cheia de meiguice e modéstia como se achasse esmagadora a
convergência de tantas emoções. Desde que os vestidos novos de Janie eram sempre avidamente observados, todos os olhos femininos se
fixaram nela e as bocas se entreabriram de inveja e de espanto. O vestido de noiva de Janie, trazido às pressas de Londres pela última
diligência, fora importado da França. Janie sempre tivera chique e se adaptara bem às modas. O corpo pequeno, mas bem feito fazia plena
justiça à criação do costureiro, que era toda de cetim branco e rendas. Da delgada cintura, a saia descia até aos pés como um enorme sino
inclinado, com uma cauda de renda na qual estavam cosidas pequenas pérolas. O corpete, brilhante como o luar visto através de nuvens
tênues, era aportado ao corpo com botões de cristal. Os cabelos ruivos desapareciam por completo sob uma névoa das mais finas rendas,
coroada de flores de laranjeira artificiais. Nos braços finos, enrugavam-se as luvas brancas de pelica.
Mas, de repente, toda essa glória se desmoronou. Duncan parou de súbito e com tal violência quase no limiar do salão, de tal modo que Janie
falseou o pé e caiu sobre ele. Duncan correu os olhos pelo salão, com o rosto rubro de cólera.
— Por que diabo ainda não acenderam essas malditas luzes? — perguntou ele aos gritos, batendo repetidamente com o pé no chão.
Houve um murmúrio confuso entre os convidados e os parentes. Bridget parou de chorar e as filhas ficaram intensamente vermelhas. Entrou
então às carreiras no salão uma criada de touca e avental, com as saias enfunadas pelo vento. Levava uma vela na mão e correu para o fogo,
tratando todos de abrir caminho para ela. Acendeu a vela no fogo da lareira e saiu como uma flecha de mesa em mesa. Todos tinham os olhos
voltados para ela. A filha do ministro ficou tão desconcertada pela explosão de Duncan e pela confusão resultante que começou a chorar. O
garotinho se esqueceu de tocar o fole do órgão. A música morreu num último gemido e ele deu um grito de terror.
Nesse mesmo instante, o som mais estranho se elevou no silêncio funéreo e atônito. Era o riso de Robin, um pouco rude, mas bem alto e
alegre. O rapaz estava encostado a uma mesa e a sua alegria o sacudia tanto que ele teve de apoiar-se na mesa, com a cabeça jogada para
trás e a boca tão escancarada que se viam todos os seus dentes. A atenção estupefata dos presentes voltou-se então para o rapaz. As
lâmpadas acesas mostravam os olhos arregalados e fitos nele. Ao lado da mãe, Stuart começou a sorrir.
Por fim, tão subitamente como quando começara a rir, Robin parou e ficou muito pálido. Aprumou o corpo e olhou vaziamente à frente para
nada em particular. Uma das irmãs de Janie deu um beliscão na chorosa filha do ministro e ela começou a bater nas teclas do órgão com febril
energia. O garoto tocou o fole. Tudo estava resolvido e seguia o seu curso normal, mas Janie tremia de raiva e Duncan tinha o olhar parado de
um homem que acaba de levar uma surra.
Depois disso, tudo perdeu o interesse. Stuart desconfiou de que Janie nunca perdoaria ao marido aquela explosão de alegria rude e
incontrolável. A cerimônia foi efetuada de maneira suficientemente respeitável e o jantar foi muito substancial e agradável, consistindo em
presunto, carne fria, cerveja e uísque, tudo isso convenientemente apreciado pelos homens. Mas nada erradicou do espírito de Janie a rude
humilhação que havia sofrido. Sorriu, riu, aceitou beijos e apertos de mão, com os olhos verdes muito brilhantes, mas quando via Robin, muito
pálido e afastado de todos, o seu olhar era virulento.
Ela o fez pagar por isso. Pelo espaço de dois meses, durante os quais ele começou a odiá-la, ela o privou da única alegria que ele teve com o
casamento.
CAPÍTULO 3
Logo depois do casamento de Janie com seu Robin, Stuart foi levado para os Estados Unidos pelos pais. Depois disso, soube de todas as
histórias por intermédio do pai. Gordon, incentivado pelo ódio, correspondia-se com sua prima Bridget, mãe de Janie, e foi daquela pobre
mulher apenas alfabetizada que as notícias atravessavam o longo oceano verde para se fixarem no cérebro rancoroso de Gordon.
Parece que Duncan Driscoll teve alguma surda simpatia pelo jovem precipitado tão involuntariamente no seio de sua família. De qualquer
maneira, levou algum tempo sem fazer pressão sobre Robin para assumir o lugar que lhe cabia na casa e aprender a arte de ser um senhor
rural. Robin vagueava incessantemente saindo da grande casa de pedra, passando o tempo nas tavernas e às vezes, com estranha
obediência, seguindo o sogro através das terras e ouvindo abstratamente as explicações que dava sobre a administração da fazenda em geral.
Duncan não insistiu. Robin continuou a passar muito tempo fora de casa, voltando quase sempre um pouco tonto e se mostrando de dia para
dia menos inclinado a conversar. Mas foi ao fim do primeiro ano de casamento que se notou que Robin passara a cantar muito raramente e,
quando o fazia, era baixo e em tom melancólico.
Foi então que ele começou a desenvolver outra característica que tinha ficado escondida sob sua displicente juventude. Quando ele e Janie
estavam casados havia dois anos, mostrou-se sujeito a sombrios acessos de violenta depressão, durante os quais se enfurecia e gritava
ferozmente. Depois disso, ficava repentina e sombriamente calado durante muitos dias. O rosto jovem de Robin se tornou mais pesado e ainda
mais pálido. O clarão de seus olhos negros não era mais um fogo alegre, mas uma raiva apaixonada e maléfica. A culpa não era toda de Janie.
Ela havia tomado aquele jovem falcão selvagem em suas mãos predatórias e, embora o retivesse, atônita e magoada com as suas lutas,
tentando mimá-lo e agradar-lhe, ela merecia alguma piedade pelos ferimentos que ele lhe infligia com o seu bico dilacerante, que o desespero
tornara mais acerado. Não era só ela que ele odiava. Odiava aquela fazenda próspera e confortável, aquele campo tranquilo, a terra de prados
verdes e de sol, e a desesperança daquela paz. Tudo aquilo o havia capturado e aprisionado. Tinha ódio da prisão e da carcereira. No
começo, tentara ser paciente e até dócil, com uma indiferente resignação escocesa. Mas era demais para ele que ainda era muito moço.
— Ele vai desaparecer qualquer dia destes, minha querida. Preste atenção ao que lhe estou dizendo —, dizia Duncan à mulher, com uma nota
de esperança na voz.
Mas Robin ficou, embora nem os seus irritados cunhados, que o desprezavam pelas suas maneiras rudes e pelo desprezo do dinheiro que
mostrava, nem a pobre, gorda e amorosa Bridget, nem Janie soubessem por quê. Só Duncan compreendia. Robin poderia partir quando
quisesse, mas nunca mais seria livre. A lembrança da prisão acompanhá-lo-ia para sempre. As suas asas tinham sido quebradas. Duncan
sabia que as criaturas selvagens nunca podem conhecer uma prisão. A memória delas é muito longa. Os escoceses nunca esquecem injúrias,
dificuldades, sofrimentos, injustiças ou desespero, por mais longe que tudo isso lhes esteja no passado.
O primeiro filho apareceu treze meses depois do casamento. Foi o moreno, fraco e pequeno Angus, de pernas compridas. Robin olhou-o
apaticamente e, logo em seguida, afastou-se. Mas depois, comovido em sua própria juventude por aquele entezinho indefeso, começou a
brincar com ele, porque era tão pequeno e parecia tão indefeso. Quando Angus tinha dois anos, Robin era muito apegado a ele e o levava nos
braços para bem longe da casa até à floresta mais próxima e ficava horas sem voltar para casa. Dizia-se na aldeia que, nessas ocasiões,
Robin cantava no meio da floresta e às vezes subia numa montanha próxima com o filho nos braços e enchia o ar frio e vazio com os seus
bravos cantos. Janie não se importava com isso. Não gostava muito do pequeno Angus e, desde que já então odiava Robin, fingia achar que o
menino se parecia com ele. Ela também tinha um menino nos braços, seu querido, seu predileto, o rosado Bertie de olhos azuis sorridentes.
Dois anos tinham passado e Robin ainda nada fazia para ajudar Duncan. E isso não lhe era solicitado. Era bastante para ele levar o filho para a
floresta e para as montanhas. Nunca perdera a sua negra melancolia, mas alguma coisa que parecia paz descera sobre ele naqueles tempos.
Quando Rob Roy nasceu, Robin não pareceu tomar conhecimento do fato. Mais tarde, quando percebeu que tinha um terceiro filho, pareceu
espantado e ficou muito calado. Mal tinha vinte e três anos e a vida lhe desaparecera para sempre do rosto. Mostrava a delicadeza patética e
confusa dos seres selvagens que foram aprisionados, mas não domesticados. As suas furiosas brigas com Janie tinham passado a ser muito
raras. Falava com ela muito pouco, mesmo quando estavam na cama. Passavam dias sem que ele dirigisse uma só palavra à família de sua
mulher. Já então, a família o tinha dado por um “caso perdido” e não pensava mais nele.
Duncan já estava bem velho quando Laurie nasceu e se irritava com a algazarra das crianças. Janie se tornara implicante e discutia
desabaladamente com o pai. Bridget, como sempre, vivia em adoração e uma ou outra das crianças estava sempre nos seus braços.
Pela segunda vez, quando Laurie apareceu, Robin se mostrou interessado. A linda menina com os cabelos dourados e os olhos como o céu de
inverno do norte fascinou-o, fixando-lhe a atenção. Angus, que já estava com quase oito anos, era o companheiro constante e silencioso do pai
e caminhava ao lado dele através dos prados, enquanto Robin carregava Laurie, cantando baixinho para ela.
Só Angus e Laurie sabiam o que Robin cantava para eles ou com que alegria brincava com eles, quando estava sozinho com os filhos. Eram
vistos às vezes de longe. Robin corria e as crianças o seguiam, cheias de risos e de alegria. Os cabelos dourados de Laurie se agitavam ao
vento, as pernas magras de Angus eram céleres e os anéis negros de cabelos de Robin lhe caíam pelo rosto.
Fosse por que fosse, Robin jamais cantava para os filhos suas baladas escocesas. Cantava outras coisas, belas, terríveis, ricas e majestosas.
Só depois de ser uma mulher foi que Laurie compreendeu que esses cantos nasciam do coração de Robin e não de qualquer folclore ou da
pena de algum compositor. Cada uma das crianças tinha uma canção predileta. A de Angus era Ó Estrela da Manhã! A de Laurie era O Amor é
Maior do que a Vida!
Laurie tinha quatro anos de idade quando Robin morreu. Foi atacado de um “resfriado reumático” e morreu em dois dias. A doença não era
grave e os médicos ficaram atônitos quando ele de repente deixou de falar e se descobriu que ele deixara a sua prisão para sempre. Nem os
dois filhos a quem amava conseguiram retê-lo. Pouco antes de morrer, mandou chamar o pequeno Angus, que tinha esperado durante horas à
porta do pai no trágico silêncio sem lágrimas do sofrimento profundo. Robin disse apenas, segurando a mão magra do filho:
— Você não esquecerá nossos cantos, meu rapaz, e ajudará sua irmãzinha a se lembrar, não é mesmo?
Angus, sem poder falar, tinha feito um sinal afirmativo com a cabeça e se inclinou para beijar Robin, que sorria. Quando Angus levantou a
cabeça e tentou falar, Robin ainda sorria e olhava para ele. Mas já estava morto.
Só Duncan sabia de que ele tinha morrido. Só Duncan, olhando o rosto jovem e vívido, naquele momento estranhamente selvagem, livre e feliz,
ficou contente. Só Duncan chorou, embora Janie tivesse feito copioso uso de uma cebola para provocar lágrimas.
Na verdade, Janie não estava descontente com a morte do odioso rapaz com quem se havia casado. Ele tinha sido para ela durante anos um
fardo, uma vergonha e uma fonte de mágoa. Estava livre dele. Com o seu vigor característico, principiou a planejar sua vida nova.
Viveu ainda dois anos com os velhos pais, mas seu espírito aquisitivo e ávido não estava tranquilo. Era uma aventureira inata. A inquietação e o
mau humor cresceram à medida que o seu vigor aumentava. Nada a satisfazia. Duncan sugeriu francamente que havia uma fortuna à
disposição do homem que tivesse coragem bastante para casar-se com sua filha mais moça. Muitos se candidataram. Mas Janie não queria
mais saber de uma vida tranquila.
Ainda chegavam cartas dos Estados Unidos de Stuart. Os pais dele tinham morrido. Dizia pouco sobre sua maneira de viver, e só uma ou duas
vezes mencionou uma “casa de negócios” que, conforme declarava, ia muito bem na cidade movimentada e vital de Grandeville, situada em
alguma estranha massa de água chamada de “Grandes Lagos”. Uma casa de negócios? perguntou a família, descontente. Quem já ouvira dizer
que se pudesse ganhar muito dinheiro numa casa de negócios? Mas quando Stuart mencionou de passagem que fizera mais de dez mil
dólares no ano anterior (dez mil dólares num cálculo apressado equivaliam a duas mil libras!), os parentes ficaram espantados. Janie tinha
muito orgulho das cartas de Stuart. Carregava-as na bolsa durante vários dias. Lembrava-se de Stuart com agrado. Quando, num Natal, ele lhe
mandara uma miniatura de si mesmo, ficou encantada com a sua beleza e com a malícia de seus negros olhos irlandeses.
Foi numa tempestuosa manhã de janeiro que Janie comunicou que pegaria os filhos e partiria para os Estados Unidos.
Bridget ficou prostrada de tristeza. Mas Duncan recebeu a notícia com azedo interesse e uma esperança nascente. Janie tinha transformado a
casa naqueles últimos anos num verdadeiro inferno com as suas implicâncias, seus gritos, seu mau humor, seus truques e sua avidez. Tinha
enchido a casa do velho de crianças que estavam sempre gritando, pedindo ou reclamando. Duncan rezava a seus deuses para que Janie
estivesse falando sério e, pela primeira vez em muitos anos, foi terno para com a filha e começou a discutir com ela vastos e complexos planos.
Janie dissimulou a sua raiva e a sua decepção. Tinha decidido a princípio deixar com os pais todos os seus filhos, menos seu querido Bertie.
Quatro crianças nos Estados Unidos! Tinha esperado que, ao menos, a mãe se opusesse e pedisse que as crianças ficassem com ela para
alegrar-lhe a velhice. Mas Bridget tinha sido advertida com alguma rudeza por Duncan de que não concordaria absolutamente com isso e que
Janie teria de ir para os Estados Unidos com todos os filhos ou ficar em casa com todos eles. Deu largas a uma raiva senil, mas violenta ao
discutir o assunto com Bridget.
— Ela não vai deixar os filhos em minha casa! — exclamou ele. — Quer livrar-se das suas responsabilidades, mas não vai ser assim! Estou
farto dos caprichos dela, está ouvindo, minha cara? Quero morrer em paz na minha cama sem ver a cara dela!
Diante do ultimato do pai, Janie quase desistiu de seus alegres planos. Tinha, porém, escrito a Stuart e recebeu a resposta dele, cheia de bom
humor e de recomendações para que ela fosse. Janie anunciou então que nada a faria separar-se dos filhos e que iria partir como uma viúva
sozinha que não tinha um lar.
Bridget entregou-lhe as quinze mil libras que o pai lhe deixara de herança. E Janie foi para os Estados Unidos com as bênçãos sinceras dos
pais.
CAPÍTULO 4
Durante as suas primeiras horas na diligência, Janie enchera os ouvidos do primo de histórias terríveis sobre os sofrimentos por que tinha
passado a bordo durante a travessia. Passara muito mal! Tinha ficado no beliche duro, atirada de um lado para outro durante noites escuras e
tempestuosas! Que comida horrível lhe tinham dado e como os camaroteiros a haviam esquecido, deixando-a desolada e às portas da morte
durante horas seguidas! Pintou um quadro sinistro para Stuart, todo cheio de sombras e sofrimento, em que ela sobressaía, a mulher corajosa
que ela era, que suportara coisas incríveis sem uma queixa e com gentil paciência. Um camaroteiro, que se insinuara traiçoeiramente em sua
confiança, lhe roubara um anel precioso. As crianças tinham ficado a bordo sem ter quem as olhasse, enquanto a pobre mãe delas gemia e
soluçava no beliche, espantada com o tratamento que lhe era dispensado, pensando na insensibilidade de seus pais e suportando a saudade e
o abandono com meiga resignação.
Stuart assumiu uma expressão de simpatia e fez uma leve pressão na mão de Janie. Dissimulou como pôde a incredulidade que se lhe
espelhava nos olhos. Janie era muito divertida. Mas os filhos dela eram ainda mais divertidos. Enquanto Janie contava a sua história triste,
tocando de vez em quando os olhos secos com um lenço perfumado, Stuart observava as reações de Angus, Bertie, Robbie e Laurie. Angus
saíra da sua peculiar letargia e olhava para a mãe, com as finas sobrancelhas pretas erguidas em severa perplexidade, mordendo os lábios
com os dentes brancos e com as mãos apertadas nervosamente sobre a manta. Bertie sorria. Robbie, porém, olhava a mãe com indiferente
desprezo e encolhendo os ombros. Quando seus olhos se encontraram com os de Stuart, sorriu de leve, com divertido desdém, voltando-se
imediatamente depois para olhar através das janelas empoeiradas e sacolejantes. A pequena Laurie se limitou a olhar para a mãe, piscando
rapidamente os olhos azuis cheios de preocupação e confusão, apesar de sua pouca idade.
Quando Janie parou a fim de tomar fôlego, completamente dominada pelas emoções do que contava, Angus murmurou timidamente:
— Mas, Mamãe, você não passou tão mal assim. Foi só na primeira noite. Depois, você dançou. Não se lembra, Mamãe? Todos os homens
iam para a porta de seu camarote discutindo quem era que ia dançar primeiro com você. E, Mamãe —, continuou ele, encolhendo-se ao sentir
o olhar cheio de ódio da mãe —, você se vestia tão bem, com tantos anéis e tantas joias e só voltava quando já estava quase amanhecendo.
Lembro-me até —, disse ele com nervosa precipitação, ao sentir que o olhar de Janie aumentava de virulência sobre ele —, de que muitas
vezes já era dia claro. Uma vez, você chegou cantando e a mulher do camarote vizinho bateu na parede e você disse coisas para ela e deu
gargalhadas. Os homens que estavam à porta deram gargalhadas também. E o anel não foi roubado. Você o achou hoje de manhã.
— Ora, cale essa boca —, disse Robbie, aborrecido, sem tirar os olhos das janelas pelas quais contemplava a paisagem de inverno lá fora.
Bertie riu, bateu com o pé na canela do irmão mais velho e piscou-lhe o olho numa bem-humorada advertência.
Mas o pobre Angus, evidentemente convencido de que Janie estava apenas inocentemente esquecida dos fatos e cometia erros de cuja
correção lhe seria grato, continuou olhando ansiosamente para a mãe:
— Não se lembra, Mamãe? E os camaroteiros foram muito bons conosco, levando-nos o café da manhã quando você se esquecia de nos levar
para o salão, pois estava dormindo a sono solto. E você deu gorjeta a todos e eles choraram no último dia e você os beijou e agradeceu a
todos. Todos disseram que você era a Rainha de Bordo e o comandante lhe mandou uma cesta de frutas com os seus cumprimentos.
Aí está, pensou Stuart contendo o riso, um inocente que nunca aprenderá coisa alguma em toda sua vida. Olhou com pena para o rosto ansioso
do garoto, para os aflitos olhos cinzentos e para a boca trêmula. Viu como as mãos com os dedos entrelaçados se apertavam convulsivamente
sobre a manta. Era uma atitude estarrecedora.
Mas Janie olhava para ele com raiva, mostrando no rosto rubor e tensão. Não podia nem falar e o que lhe saía da garganta era um arquejo
áspero como um rugido animal. Em seguida, sem o menor aviso, curvando-se do lugar onde estava sentada ao lado de Stuart, bateu
violentamente na cabeça do pobre Angus com o punho fechado. Ele tentou esquivar-se, chorando, e protegeu a cabeça com os braços magros,
mas Janie encontrou falhas em sua guarda e continuou a bater. Os olhos estavam cheios de uma verde alucinação sob os cachos vermelhos e
as dançantes violetas do chapéu. Mordia os lábios e emitia horríveis sons ofegantes nos seus frenéticos esforços. As saias se sacudiam e
balançavam com a agitação. Conseguia manter os pés firmes no chão da diligência em movimento, a qual felizmente não tinha outros
passageiros além dos Cauders e de Stuart. A agilidade de Janie era notável. Batia, negaceava, avançava, atacava com tamanha velocidade,
tamanha destreza, tantos golpes certeiros e enérgicos que era difícil seguir-lhe os movimentos, só se podendo ver o esvoaçar de suas saias, o
delirante balanço de seu chapéu e a dança dos pequenos pés.
Durante tudo isso, os dois outros garotos, com grande presteza, levantaram os pés do chão da diligência e os puseram em cima do banco,
encolhidos com os joelhos sob o queixo. A pequena Laurie, sentada ao lado do irmão atacado, não se havia movido. Estava parada e muito
branca, olhando para a mãe agitada. No seu rosto havia horror, um frio e espantado horror em que não havia medo e estava muito perto do
ódio. Quanto a Angus, não chorou, nem encolheu o corpo, tentando expor pontos menos vulneráveis às pancadas da mãe. Limitou-se a esboçar
uma defesa tímida com os braços em volta da cabeça e sua atitude trágica e humilde, cheia de desespero e resignação, fez o coração de
Stuart bater numa veemente raiva contra Janie. Apesar disso, talvez nada tivesse feito se não visse no rosto da pequena Laurie a lembrança
viva de muitas outras cenas semelhantes.
Foi então que agarrou Janie pelas saias e puxou-a violentamente para o banco da diligência. Nesse mesmo instante, as rodas do veículo
encontraram na estrada uma pedra particularmente resistente e os passageiros foram sacudidos como bonecos dentro de uma caixa. Em
consequência disso, Janie foi atirada para o lado com muita rudeza, mas isso não lhe fez passar a raiva. Ao contrário, certa sem dúvida de que
Stuart era culpado do balanço da diligência, voltou-se para ele, tomada de uma fúria insensata e cega e lhe deu uma pancada firme e forte no
rosto. Irritado com isso, Stuart agiu instintivamente, levantando a mão e atingindo violentamente a prima na altura das orelhas, afastando-a
depois dele, com uma exclamação de aborrecimento.
O chapéu de Janie lhe caiu sobre o rosto, de modo que só a boca trêmula foi visível, e ficou ali preso. Ela havia caído num canto do banco da
diligência onde estava sentada e ali procurou firmar-se e segurar a aba do chapéu que lhe fazia pressão sobre o nariz. Fez acompanhar as
suas lutas de movimentos espasmódicos das pernas esticadas e de alguns gritinhos roucos. As saias tinham subido até os joelhos, mostrando
as pernas pequenas, mas bem-feitas elegantemente calçadas de meias de seda branca e Stuart, voltando a si de sua raiva, olhou-as por um
momento com automática admiração. Depois, o espetáculo daquela mulher que se debatia enraivecida em luta com o chapéu obstinado lhe
pareceu estranhamente engraçado e deu uma risada. Pegou as saias de Janie e as baixou, empurrou o chapéu para cima e mostrou o rosto
alterado pela raiva, no qual os olhos verdes brilhavam cheios de malignidade.
— Você já é bem crescida, Janie —, disse ele com bom humor.
— Não deve levantar as saias, ao menos em público. E agradeça a esse seu nariz avantajado, senão teria ficado sufocada pelo chapéu.
— Tocou-lhe a face e sorriu. — Você é uma menina sem modos e, de vez em quando, precisa de levar umas palmadas.
Janie ficou em seu canto, toda ofegante e cheia do mais louco ódio pelo primo. Este sorriu para ela e disse, sacudindo a cabeça:
— Você precisa também de tomar providências urgentes com essa pele. Esse tom amarelado não combina bem com a cor de seus cabelos.
Janie abria a boca retorcida e proferia uma série de nomes feios. Stuart, apesar de tudo, sentia-se escandalizado e cobriu-lhe a boca. Janie
imediatamente lhe mordeu a mão. Stuart retirou a mão com um grito e instintivamente esboçou o gesto de bater nela. Desistiu, porém, e
murmurou alguma coisa que só ela ouviu. Em seguida, com o rosto fechado e os olhos aportados, afastou-se tanto quanto possível dela e olhou
para a frente.
Janie se debulhou em lágrimas, desatadas e confrangedoras. Brigas não eram novidade para ela. Brigara sempre com os irmãos e com as
irmãs, que mais se aproximavam dela pela idade. Triunfava invariavelmente sobre eles, intimidando-os ou reduzindo-os a abjeta submissão.
Nunca encontrara pessoa alguma que se afastasse dela com desprezo como Stuart ou que fosse capaz de ouvir-lhe os soluços com aborrecida
indiferença. Chorou mais alto. Stuart nem voltou a cabeça. Estava olhando para Angus e Laurie.
Bertie e Robbie, que haviam observado a refrega entre a mãe e o primo com profundo e absorvente interesse, não pareciam absolutamente
perturbados. Tinham visto muitas vezes a mãe bater em seus tios e tias, sempre que a contrariavam ou tentavam dar-lhe conselhos.
Não eram Bertie e Bobbie que interessavam a Stuart, portanto. Eram Angus e Laurie. Angus se encolhera, de modo que seu corpo comprido e
magro parecia muito menor. Estava derreado no banco de couro da diligência numa atitude de trágica prostração. O rosto moreno e magro
estava lívido à luz espectral que vinha das janelas. Os olhos cinza estavam semicerrados. Mal parecia respirar. As mãos estavam estendidas
flacidamente ao lado dele, com as palmas para cima. Parecia quase inconsciente. Corria no nariz um filete de sangue de que ele parecia não
tomar o menor conhecimento. Janie devia tê-lo arranhado ferozmente no lado direito do rosto, pois também ali havia sangue. Via-se ainda uma
mancha escura e feia no lado direito das têmporas. Cheio de uma piedade que era estranha nele, Stuart chegou à conclusão de que o
abatimento do rapaz decorria mais de vergonha por aquela demonstração de mau gênio da mãe do que da violência física exercida contra ele.
A pequena Laurie, toda trêmula, com o lábio inferior preso entre os dentinhos brancos, ajoelhou-se ao lado do irmão e tentou estancar o sangue
com seu lencinho. O chapéu de castor lhe caíra para os ombros e o sol poente, aparecendo por trás de uma grossa camada de nuvens
cinzentas, nimbava-lhe os longos cabelos dourados. Ela era muito calma e todos os seus movimentos eram ternos e gentis. Limpou o sangue
de Angus e comprimiu o lenço contra a base do nariz, deixando-o ali. Stuart ficou surpreso e comovido. Quando Angus abriu os olhos e viu a
irmãzinha, esta lhe sorriu corajosamente e beijou-lhe gentilmente o rosto, mas sem diminuir a pressão sob o nariz. Angus deu um suspiro.
Aproximou-se mais da irmã e tornou a fechar os olhos. Laurie murmurou suave e repetidamente alguma coisa.
Tudo isso comoveu ainda mais Stuart e o encheu de ternura pela pequena Laurie.
Percebeu que os soluços e gemidos de Janie aumentavam de ferocidade e que ela começava a torcer o corpo no banco, fazendo tudo o que
era possível para atrair-lhe a atenção. Virou-se para ela com um gesto violento e ameaçador, dizendo:
— Fique quieta, ouviu?
Janie ficou tão surpresa com essa reação tão estranha ao seu acesso de raiva e nervosismo que ficou imediatamente em silêncio. Quer dizer,
pensou ela astutamente, que não é essa a maneira de conquistar Stuart. Procurou assumir uma atitude humilde e meiga. Deixou que lágrimas
de verdade lhe rolassem pateticamente pelas faces e uma delas tremia espasmodicamente. Olhou para Stuart com suplicante humildade. Fez a
boca tremer. Baixou a cabeça e chorou mansamente. Do seu canto, Stuart olhava-a atentamente, com os olhos faiscantes e os lábios cerrados.
— Ah, Stuart, meu amor, você não faz nem uma ideia do que eu tenho tido de suportar desse hipócrita e mentiroso! Só Deus sabe! Não sei o
que foi que eu fiz para ser castigada desse jeito. Não é de admirar que eu tenha perdido a cabeça. Já tolero isso há treze anos. Ele fez o
próprio pai que já morreu virar-se contra mim e me intrigou com minha mãe e meu pai com suas mentiras, para me afligir e me humilhar.
A voz rouca de Janie procurou ser muito queixosa e meiga. Estendeu timidamente a mão para o braço de Stuart. Ele teve um movimento
instintivo de repulsa, mas não lhe afastou a mão.
— Ele mente como você não pode nem imaginar, Stuart —, continuou ela. — E é um mentiroso que nunca se esquece de ir para a igreja aos
domingos, com seu livro de preces debaixo do braço. Sempre rezando, sempre espionando e sempre mentindo com esses olhos falsos,
afastando todos de mim com suas falsas delicadezas e seus choros! '
Voltou-se para Bertie, seu predileto, e disse:
— Meu querido, diga a seu primo que eu estou dizendo a verdade e que essa serpente, que é seu irmão, faz de minha vida um inferno com
suas mentiras. Diga a seu primo, Bertie!
Bertie sorria ao ouvir a mãe e disse com um sorriso ainda maior:
— Bem, ele a contraria...
— Contraria? O que ele faz comigo é mais do que a sensibilidade de uma mulher pode suportar! Juro diante do céu! Eu, que tenho sido a mais
extremosa das mães para meus pobres órfãos, que tenho rezado sozinha por eles, com o coração a estalar dentro do peito, pensando na
melhor maneira de protegê-los de um mundo cruel e insensível, acabei descobrindo que criei uma víbora em meu seio!
A voz dela, rouca e áspera, se tornou mais densa com o rude sotaque de seus antepassados, e Stuart, ouvindo-a, lembrou-se da jovem Janie e
das montanhas de sua terra, o que lhe atenuou um pouco a raiva e a repulsa. Aborreceu-se com isso. Queria odiar Janie, mas ouvindo-a falar,
sentia de novo o cheiro dos fogos de turfa, via o céu do crepúsculo em que aparecia como uma joia a primeira estrela e ouvia o chocalho das
vacas tangidas para os estábulos e os risos dos lavradores que voltavam dos campos. Foi a nostalgia que o fez abrandar-se em relação a
Janie e dar um breve suspiro.
Janie ouviu o suspiro e sentiu um baque no coração murcho. Olhou-o ternamente através dos cílios.
— Fique quieta —, disse Stuart, esforçando-se por ser severo. — Ainda que seja verdade tudo o que você diz, foi dura demais com o menino.
— Pode ficar certo que é verdade, Stuart! Mas reconheço que perdi a cabeça. Tenho um gênio impossível, Deus me perdoe, e não me posso
conter quando ouço mentiras. “Quem diz a verdade envergonha o diabo”, costuma dizer meu querido pai. Detesto mentiras e amo a verdade,
meu caro Stuart. Sei que é uma fraqueza minha, mas não me posso conter quando ouço uma mentira. “Janie sempre diz a verdade, sejam
quais forem as consequências”, costuma dizer minha querida mamãe. “Ainda que isso lhe custe a vida, a menina é capaz de enfrentar qualquer
um, dizendo a verdade. Nada de mentiras com ela!” Ah, Mamãe, Mamãe! — exclamou Janie com a voz descontrolada pela emoção, levando as
mãos ao peito e erguendo os olhos para o céu. — Pensar que sua filha foi reduzida a isto, numa terra estranha, entre desconhecidos,
praticamente órfã, tangida de sua casa para procurar um novo lar para seus filhinhos em terra alheia, sem amigos e sem atenções, viúva e
indefesa!
— Ora, deixe disso —, murmurou Stuart, batendo na mão de Janie. — Parece mesmo que fez uma viagem difícil. Agora, deixe de lamentar-se e
tome meu lenço para enxugar as lágrimas. O seu já está ensopado.
O único desejo de Stuart no momento era atenuar ou impedir qualquer castigo particular que pudesse ser infligido às duas pobres crianças. Se
ele se mantivesse irredutível e frio, Janie poderia descarregar o seu ódio e a sua frustração sobre Angus e Laurie. Disso, ele não tinha dúvida.
— Você quase matou o garoto, Janie —, disse ele, aproximando-se da prima e enxugando-lhe as lágrimas com falsa ternura. — Bem sei que
tudo isso que me contou é bem duro para você. Mas tem de prometer que terá mais calma com o pobre garoto. Prometa, vamos. Se tiver mais
um desses acessos, fecharei as portas e deixarei você sozinha na neve, com a graça de Deus. Olhe para seu filho. Parece uma raposa depois
de encontrada pelos cães. Neste país, enforcam mulheres por muito menos, Janie.
A astuciosa Janie, ainda chorando, deu uma demonstração de seu admirável talento teatral. Fez uso de muita sutileza. Meio atordoada, deixou
que os olhos se arregalassem de completo espanto ao voltá-los para o massacrado Angus e para Laurie. Fingiu um violento sobressalto. Levou
de novo as mãos ao peito e disse num murmúrio estrangulado:
— Não! Não! Não posso acreditar! Não fui eu que fiz isso, meu Deus! Diga que não fui eu!
Agarrou Stuart febrilmente pelo braço e se jogou contra ele, desatada em lágrimas e em angústia, e lhe implorou com os olhos verdes cheios
nesse momento de um horror habilmente simulado:
— Será que me pode perdoar, Stuart? Ajude-me, meu amor, ajude-me! — Prorrompeu em soluços que até para ela pareciam sinceros e levou
a sua habilidade ao ponto de ficar realmente mais pálida do que de costume, enquanto o rosto se contraía convulsivamente. — Tudo meu gênio,
meu horroroso gênio! Como é que pude fazer isso com meu filhinho, com meu pobre órfão? Oh! Diga-me que não fui eu!
Por mais que Stuart apreciasse a pequena cena e em silêncio desse parabéns a Janie pelo excelente desempenho, não deixava de sentir-se
embaraçado diante do olhar zombeteiro de Bertie e do frio desprezo que havia nos olhos de Robbie. Gostaria de dizer: “Pare com isso,
menina. Chega. Não está enganando ninguém.” Mas não teve coragem. Disse, portanto, com voz grave:
— Foi você mesmo que fez isso e me deu uma grande vergonha. Agora, poupe suas lágrimas para seus filhos e trate de ir consolá-los.
Embora ainda se lembrasse da presteza com que Janie costumava agir, ficou espantado quando a viu dar um salto e cair de joelhos diante dos
dois filhos a quem maltratara, sem se esquecer de ajeitar o vestido para que caísse graciosamente às suas costas e de dar, com a mesma
intenção, um toque nos cabelos. Foi um detalhe que Stuart achou muito interessante.
Abriu os braços para Angus e Laurie, soluçando ruidosamente. Apertou depois Angus de encontro ao seio. Abraçou-o freneticamente,
acalentando nos ombros a pobre cabeça ensanguentada, afagando-o, beijando-o ternamente, murmurando desculpas cheia de desespero e
contrição e implorando o perdão do céu, a chorar incoerentemente.
Stuart observou de novo Robbie e Bertie. Este sorria ironicamente. Robbie franziu um pouco a testa e encolheu os ombros. Mas a pequena
Laurie tinha-se afastado o mais possível da mãe, indo encolher-se no canto do banco. Ficou ali visivelmente trêmula, com o rostinho muito
pálido e os olhos azuis a brilharem intensamente na meia luz da diligência, enquanto os cabelos dourados lhe caíam em desordem pelos
ombros e pelo pescoço.
Stuart sentiu-se mais uma vez tomado de profunda compaixão por ela.
Voltou então a sua atenção para Janie e Angus. O menino estava deitado nos braços delirantes da mãe. Deixava-a tratá-lo à sua maneira
áspera e febril. Tolerava-lhe os beijos.
Então, com grande espanto para Stuart, o menino começou a chorar também e a retribuir os carinhos da mãe com desesperado abandono.
— Oh, Mamãe! — exclamava ele. — Oh, Mamãe!
CAPÍTULO 5
Embora Janie soubesse que os Estados Unidos eram bem maiores do que a Inglaterra e a Escócia juntas, ficou atônita com as suas distâncias
manifestamente intermináveis, à medida que os dias iam passando em várias carruagens e desconfortos diversos. O espírito insular não podia
aceitar horizontes remotos, ilimitados e em constante e eterna mudança.
Ao quinto dia de uma horrorosa viagem, tinha começado a desprezar todos os americanos que, sem dúvida alguma, não eram cavalheiros.
Quanto às mulheres, eram monótonas e desinteressantes, de voz afetada e rouca e capazes de suportar todos os desconfortos com piedosa
resignação. Sentavam-se com as mãos calçadas de mitenes no colo, com os chapéus pretos ou castanhos enfiados sem nenhuma elegância
na cabeça, os rostos pálidos muito sérios e tristes, enquanto seus maridos, sem dúvida julgando sufocante a companhia das esposas,
recorriam firmemente à garrafa em todas as tavernas e hotéis pelos quais passavam as diligências. Acabavam, porém, notando com
encantada surpresa a pitoresca e sedutora Janie, com sua falsa suavidade e seus cintilantes olhos verdes e, então, bebiam menos, olhando-a,
fascinados. Lançavam-lhe olhares tímidos e desajeitados, apesar da presença de seus quatro filhos e de Stuart, que achava tudo muito
divertido.
Ela passara a se mostrar cheia de ternura e de suavidade com os filhos, compreendendo que Stuart ficava satisfeito com isso. Quando Angus a
“contrariava”, pois parecia que era uma coisa de que ele não se podia abster, ela dizia docemente, erguendo para ele o dedo enluvado:
— Não, meu querido. Talvez Mamãe esteja enganada, mas é muito feio o filhinho dela dizer que não.
Quando deparava com Laurie a olhá-la fixamente, à sua estranha maneira tão pouco infantil, não gritava mais, como era seu costume: “Se
continuar a me olhar com essa cara, vai levar uma surra, sua sapinha!” Limitava-se a sorrir ternamente para Laurie e perguntar-lhe se estava
sentindo alguma coisa.
O seu prazer sensual de viver sobreviveu sem risco a todos esses dias terríveis e desde que ela sentia uma profunda curiosidade por todas as
coisas, raramente o tédio a afligia. E a viagem não lhe foi exaustiva, pois, apesar de sua pequenez e de sua magreza, era dotada de excelente
constituição. Até seus ataques de “bílis” atestavam a sua energia e, embora sua pele sofresse com isso e se tornasse extremamente
amarelada e embora isso talvez explicasse os seus ataques de mau gênio, a sua resistência era notável. Enquanto outras senhoras sentiam
desmaios e ficavam exaustas, tendo de interromper temporariamente a viagem, ou chegavam a ter o rosto verde quando os homens faziam uso
de charutos, de cachimbos ou de uísque, Janie parecia mais viçosa com tudo isso. A admiração de Stuart aumentou.
Enquanto isso, a paisagem que tinha começado a mostrar-se triste, monótona e morta, cheia da lama de março e sulcada por uma água oleosa
e cor de chumbo, tornou-se cada vez mais desolada vista das janelas das carruagens. Enquanto seguiam rumo ao norte, a terra era plana e
rasa e nela as lufadas erguiam torvelinhos de neve, O sopé das montanhas era negro como carvão e também deserto e nu, vendo-se apenas
aqui e ali um pinheiro enfezado que lutava para viver e manter-se ereto sob os céus inclementes. As casas das fazendas se encolhiam à beira
da estrada como se procurassem proteção e as suas cercas pareciam tremer ao impacto dos ventos soluçantes. A fumaça pairava acima dos
telhados, fugindo em rolos finos das chaminés. As carruagens passavam por pequenos lagos congelados, onde a água já começava a apontar
através do gelo cinzento. Bosques retorcidos e nodosos, despojados de todas as folhas, desfilavam lentamente atrás deles. Por outro lado, o ar
estava cada vez mais frio, de modo que os passageiros das diligências tremiam e as senhoras, de passagem pelos hotéis, reclamavam tijolos
aquecidos a fim de minorar-lhes os sofrimentos. As estradas eram piores, cheias de sulcos congelados ou de espessa lama, e as crianças,
que tinham atravessado o Atlântico sem sentir coisa alguma, vomitavam angustiadamente nos cantos. Os veículos jogavam e se balançavam,
acompanhados pelos gritos e pragas dos cocheiros, havendo dias em que não se faziam mais de quinze quilômetros. Os dias eram ruins, mas
as noites eram ainda piores, sem lua e sem estrelas, inundadas de plúmbeas sombras crepusculares, fazendo os passageiros perderem toda a
noção do tempo e dando-lhes a impressão de que estavam sendo ainda sacolejados para sempre dentro da escuridão, do frio e da angústia.
A região se tornou mais selvagem quando tocaram as fronteiras da Pensilvânia. À luz nevoenta do dia, os viajantes podiam ver a massa
distante das montanhas estriadas de neve, sob a qual pairavam densas nuvens cinzentas. A estrada foi subindo e alguns passageiros ficaram
de coração pequeno ao divisar lá embaixo os estreitos vales tortuosos ou os lagos gelados espectrais que brilhavam às vezes como metal sob
os raios do sol esquivo. Em certas ocasiões, ao crepúsculo, uma névoa amarelada caía sobre a paisagem desolada e gigantesca dando a tudo
um ar fantástico e terrível de solidão e imensidade, ao mesmo tempo que o poente decalcava em fogo as montanhas distantes. Todos os sinais
de habitações tinham desaparecido e só se via a erma e tremenda grandeza da terra branca gelada, das imensas montanhas negras e dos
grandes rios parados e, ao pôr-do-sol, a ingente conflagração cósmica, reduzindo o mundo a um pálido nevoeiro purpúreo e a um caos informe.
Janie, que raramente tomava conhecimento de alguma coisa salvo do que era quente, confortável e imediato, tinha longos momentos de
silêncio, enquanto olhava a paisagem com um toque de medo no rosto afilado e insolente. A sua alma de insular das planícies era tomada por
um horror trêmulo e sem nome. Lembrando as doces colinas de sua terra, sentia-se aterrada com aquela gigantesca imensidão. Foi com voz
abafada que disse a Stuart a seu lado:
— Isso é de tirar o fôlego.
Stuart lançou os olhos pela janela e disse com o ar superior do viajante experimentado:
— Ora, isso não é nada. Uns montinhos apenas. Já passei pelas Montanhas Rochosas, quando fui à Califórnia há coisa de um ano. Tenho feito
também um pouco de pioneirismo.
— Tudo tão grande! — exclamou Janie. — Será que esta terra não tem fim?
— Minha querida, você só está vendo uma pontinha —, disse Stuart com um sorriso de indulgência. — Isto aqui é mais largo do que o Atlântico.
Você não faz nem ideia.
Esperava com isso provocar o espanto e o interesse de Janie, mas ela se embrulhou mais na capa de peles e deu um suspiro que pareceu
tirar-lhe todo o fôlego do corpo. A luz ensanguentada do poente acentuou-lhe o perfil estreito, o grande nariz predatório e a boca rasgada e fina
com sua expressão de crueldade. Murmurou:
— Lá em nossa terra, os campos são coalhados de margaridas e os carneiros pastam nas colinas.
Ao ouvir isso, Stuart sentiu uma súbita e violenta saudade dos claros crepúsculos da Inglaterra pela primavera. Tão nitidamente como se as
estivesse contemplando com seus olhos materiais, reviu as suaves colinas verdes sob o silêncio lírico do céu de heliotrópio. Viu os vales
tranquilos com suas casas brancas e baixas. Sentiu o cheiro dos espinheiros e dos campos ceifados e ouviu a música distante dos chocalhos
dos bois. Escutou o débil balido dos carneiros e a resposta melancólica das ovelhas a ecoar no silêncio cheio de ternura. Ah, Inglaterra,
Inglaterra! pensou o jovem irlandês que nunca vira a terra de seus antepassados.
Será que as crianças se lembram também e sentem-se tristes? Laurie estava dormindo com a cabeça no ombro de Angus, que lançava o olhar
tristemente pelas janelas da diligência. Stuart sentiu-se de repente alarmado. O rosto pequeno e parado do menino tinha a expressão mais
remota e abstrata, como se ele nada estivesse vendo da cena selvagem e desolada lá fora. Era o rosto de um sonhador e não de uma criança,
carregado de tristeza.
Bertie dormia, com um sorriso gentil a encurvar-lhe os lábios. Stuart não pôde deixar de sorrir. Já gostava de Bertie, que ria muito e nunca se
queixava, por mais cansado que estivesse. O garoto achava motivo para rir em tudo e seu bom humor nunca falhava. Os cabelos ruivos
estavam desgrenhados na bela cabeça. Havia várias covinhas profundas que lhe tremiam perto dos lábios, embora estivesse dormindo
inconscientemente.
Quando Stuart olhou para Robbie, seu sorriso foi ainda mais amplo. Robbie estava tentando ler à luz deficiente. O garoto estava sempre lendo.
Lia fria e metodicamente, fechado dentro de si mesmo. Mas não dava a impressão de ser um intelectual. Havia em sua leitura uma absorção,
uma concentração desagradável. Esticou o pescoço para ver se conseguia ler o título do livro. Ficou então surpreso. O título era: Casos
Famosos nos Tribunais de Old Bailey.
Direito! Stuart riu intimamente, mas olhou Robbie com mais interesse e uma curiosa e cautelosa aversão. Um pedacinho de gente como
aquele! Sua aversão aumentou.
CAPÍTULO 6
Na manhã do penúltimo dia, as montanhas pareceram mais baixas como muros a distância, mas o frio se tornou mais intenso. A terra em torno
deles passara a ser plana, nua, negra e imóvel como a morte. As povoações foram mais extensas, formando pequenas aldeias ou vilas.
Assegurada de que a longa viagem estava quase no fim, Janie se mostrou muito interessada. Até então, não havia feito muitas perguntas a
Stuart sobre o lugar onde ele morava ou sobre seus negócios. Estivera muito empenhada em insinuar-se nas boas graças dele, procurando
diverti-lo e fasciná-lo. Começou então a olhá-lo com furtiva especulação, embora, quando ele se voltava de súbito, a encontrasse a rir
encantadoramente.
Tinha de saber tudo a respeito dele. Que espécie de cidade seria Grandeville? Stuart explicou que era mais uma aldeia grande em
desenvolvimento que uma verdadeira cidade. Mas era uma localidade dinâmica e em rápida expansão, situada às margens das águas revoltas
do lago Erie. Ali é que tinha nascido o famoso Expresso Wells-Fargo. (Dezoito malas de Janie já tinham sido despachadas à frente para
Grandeville por esse expresso, com grande admiração de Janie.) Era uma cidade bem movimentada essa Grandeville, ponto de comunicação
entre o Leste e o insondável Oeste. Havia comerciantes ali e muita gente que ia até ali para conseguir passagem e embarque para as suas
pessoas e suas mercadorias para os Grandes Lagos. Stuart respondeu a uma das perguntas de Janie que sim, que era possível ver por lá
índios que passavam em silêncio e que do outro lado de algum rio enorme, podia avistar-se o Canadá. Isso tranquilizou um pouco a Janie. O
Canadá era um posto avançado da Inglaterra, sobre o qual flutuava a velha Union Jack! Isso era bom, muito bom. Stuart prometeu que alugaria
um barco e a levaria até ao Canadá na primeira oportunidade.
Avisou-lhe, porém, de que não iria encontrar em Grandeville a qualidade requintada e polida das cidades inglesas. Era um lugar rude e
primitivo, cheio de algazarra, de tumulto e da movimentação do comércio e que, de algum modo, crescia selvagemente. As ruas ainda não
eram calçadas. Viviam cheias de lama e os passeios eram de tábuas lascadas e fora do lugar. Quase todas as casas eram de madeira e
terrivelmente feias, disse Stuart francamente. Só algumas casas eram de tijolos e pedra e a dele estava entre elas, tendo “uma bela vista para o
rio”, conforme acrescentou.
Mas Janie, com o coração a bater mais depressa com essa antevisão de Grandeville, com homens rudes que lutavam pelo ouro novo naquela
terra nova, com saloons onde circulavam mulheres de má fama e bebidas fortes, cheia de luta, de energia e de estranheza, não se sentia
absolutamente deprimida com a descrição que Stuart lhe fazia. Tinha alma de aventureira sem delicadeza, nem escrúpulos. O sangue lhe corria
mais depressa nas veias. Escutou com prazer as histórias que Stuart lhe contava a respeito da casa onde morava. Disse que a mobília era de
mogno e que havia belos tapetes do Oriente, e que ela iria encontrar ali “um lar”.
— E não somos inteiramente desprovidos de civilização. Não somos exatamente um posto de fronteira. Grandeville é velha para esta parte do
mundo. Os ingleses a incendiaram em 1812 e já naquele tempo a cidade era velha.
Quando falava do selvagem e ainda indomado Oeste, assumia um ar de superioridade. Grandeville era uma cidade muito cosmopolita. Janie
iria encontrar por lá alemães, ao lado dos índios, dois ou três judeus e pessoas estranhas da Europa Oriental, que mascateavam e tinham lojas,
que eram alfaiates e artesãos. Todos trabalhavam entusiasticamente para fazer de Grandeville um trepidante centro de comércio.
Falou-lhe de dois amigos seus, um padre católico, chamado padre “Grundy” Houlihan, e Sam Berkowitz, um judeu alemão, e um comerciante
seu rival. Janie arqueou as sobrancelhas claras, olhando o primo com um sorriso superior de admiração.
— Um papista e um judeu! Coitadinho de meu Stuart!
Stuart ficou aborrecido com essa observação.
— Deixe disso! Você tem sangue irlandês e não se esqueça de que sua mãe era papista e meu pai, também.
Quanto a Sam Berkowitz, era um verdadeiro gênio e um demônio no pôquer, podendo bater o padre Houlihan 80% das vezes. Os três se
reuniam todas as noites e passavam horas muito agradáveis. Esses seus amigos eram homens de bom senso e grande argúcia. Stuart
passaria uma vida muito vazia sem eles, pois não teria uma pessoa inteligente com quem pudesse passar as horas de descanso.
Sim, admitiu com uma ponta de raiva, que havia “gente distinta” em Grandeville, mas eram todos tão chatos e tão mortos como arenques
defumados. Havia, por exemplo, Joshua Allstairs, um imundo usurário a quem quase todas as propriedades de Grandeville estavam
hipotecadas. Era inglês. Podia-se esperar coisa melhor de um inglês? Stuart tinha o rosto vermelho quando se referiu a Allstairs, a quem devia
dez mil dólares.
— Não há mulheres elegantes e que se vistam na moda? — perguntou Janie.
Stuart não respondeu logo. Ainda estava com o rosto muito vermelho. Por fim, seus olhos brilharam e ele piscou para Janie.
— Ah, sim! Várias. Há uma casa cheia delas e todas muito alegres e bonitas.
Pigarreou significativamente. Janie esboçou um sorriso, levou a mão ao rosto, olhou-o por cima dos dedos com maliciosa modéstia, deu-lhe
uma cotovelada e murmurou:
— Cachorro!
Janie perguntou em seguida se havia bailes em Grandeville e Stuart lhe assegurou que muitas soirées eram efetuadas, com excelente música e
as toaletes das mulheres verdadeiramente notáveis.
— Temos uma aristocracia, sabe? As mulheres importam os vestidos diretamente de Paris!
Disse também que Grandeville era uma cidade do “movimento subterrâneo”, na qual eram acolhidos os escravos que fugiam das fazendas do
Sul para serem encaminhados ao Canadá.
— É uma atividade florescente —, disse ele, com algum pesar. A fim de impressionar Janie, falou-lhe dos cavalheiros da Virgínia, dos gentis
aristocratas e das casas majestosas e belas do Sul.
— Iremos até lá um dia para fazer uma visita —, disse ele e acrescentou misteriosamente: — Tenho alguns planos em vista.
Foi só há um mês que Sam me fez a sugestão... É claro que nada está assentado ainda, mas a ideia é muito interessante. Sam vive cheio de
ideias.
Ficou então curiosamente calado e observou Janie, pensativamente. Sorria às vezes e seus olhos negros brilhavam maliciosamente. De algum
modo, transmitiu os seus pensamentos a Janie, porque ela perguntou com alguma displicência:
— E ainda não encontrou uma mulher de seu agrado, meu amor?
Stuart tossiu para disfarçar. Fingindo timidez, desviou os olhos da prima.
— Ainda não —, murmurou com voz pausada. — É bem verdade que Marvina Allstairs, filha única do velho Joshua, se mostre muito
impressionada com minha pessoa. E o menos que se pode dizer é que é uma moça de muito dinheiro.
Isso lançou Janie em abismos de consternação. Olhou Stuart à procura de algum indício positivo. Mas o patife se limitou a cantarolar baixinho.
Desde que tinha muita consideração por Janie, sentiu-se de súbito muito deprimido. Tinha previsto aquele momento com malicioso prazer.
Seria muito interessante ver a cara de Janie quando ele falasse de Marvina Allstairs. Mas, naquele momento, a coisa não lhe parecia tão
interessante assim. Janie tinha vindo de muito longe à procura dele. Trouxera em sua companhia os quatro pobres garotos através de
intermináveis milhas de oceano. Irritou-se então com ela, numa medida de legítima defesa. Ela não podia ter sinceramente acreditado que um
homem sete ou oito anos mais moço fosse querer casar-se com ela, apesar de todos os anos que tinham passado juntos na infância e na
mocidade! Ela não poderia ter pensado a sério que as relações da infância e uma fortuna atualmente considerável poderiam fazer esquecer-lhe
a idade, os filhos e seu estado não virginal! Era muita pretensão de Janie e era até vergonhoso que ela pensasse assim! Havia também em
tudo isso insensibilidade e atrevimento! Janie era uma idiota.
Mas Janie fez ouvir sua voz rouca e manhosamente suave.
— E essa tal Marvina é bonita?
Stuart assumiu uma pose séria e meditativa. Não olhou para Janie quando respondeu:
— Sim, é de uma beleza rara. E, além disso, uma moça de posição e muito prendada!
Stuart pensou no odioso Joshua Allstairs, que não tinha visto com bons olhos as pretensões de Stuart à filha. Joshua era um inglês que odiava
todos os estrangeiros, particularmente os irlandeses, a quem considerava com desprezo um pouco abaixo dos negros e dos índios. Havia
permitido a entrada de Stuart em sua casa porque se tratava de um moço agressivo com uma rara capacidade de ganhar dinheiro e porque,
apesar de sua raça, não era papista. Além disso, o velho Joshua gostava de jogar whist e Stuart era um excelente jogador e, ainda, sabia
distinguir um bom uísque e não era um adversário desprezível no xadrez. Stuart, procurando ganhar-lhe as simpatias, inventara uma longa série
de antepassados ilustres escoceses e irlandeses, falando até de uma sede de condado que era o tronco da família. Allstairs, que não tinha
antepassados que não tivessem sido lojistas e artesãos em Londres, ficou impressionado, principalmente com a “sede do condado”.
— Meu pai era da Irlanda do Norte —, dissera Stuart, mentindo à grande. — Era descendente indireto de Lord MacIlleney. Meu primo, o atual
detentor do título, ia quase sempre visitar meus pais na Inglaterra. É casado com Amélia Courtney, cujo pai, Lord Devonshire, tem muito
prestígio na Câmara dos Lordes. — E acrescentara, fiel ao princípio de que tanto vale ser preso por mil quanto por um milhão: — Dick, isto é,
meu primo Lord MacIlleney, prometeu que viria até aqui fazer-me uma visita. Tenho certeza de que vai gostar muito dele.
Apesar disso, o velho Joshua, que guardava zelosamente a sua bela Marvina, não se mostrava bem disposto a respeito das pretensões de
noivado de Stuart. Não era possível esquecer o fato lamentável de que Stuart era irlandês e era incontestável que os irlandeses eram uma raça
inferior, constituída de patifes, mentirosos, assassinos, ladrões e vagabundos. Pior ainda, viviam ainda sob a influência de uma igreja
abominável e adoravam “imagens gravadas”. (Joshua era um presbiteriano fervoroso.) Apesar de todas as vantagens de Stuart como noivo, de
sua perícia no whist e no xadrez, de sua fortuna em ascensão, de sua elegância, de suas boas maneiras e de seu espírito, Joshua hesitava.
Tinha feito uma boa fortuna naquela detestada América, em consequência do fato de que era pessoalmente um ladrão, um charlatão, um
explorador e um patife sem escrúpulos. A sua intenção era voltar para a Inglaterra com a filha e casá-la com um nobre ou, pelo menos, com
algum homem de posição.
Stuart pensou em todas essas coisas e seu rosto sempre tão alegre e vivo se tornou sombrio. Janie percebeu isso e seu coração que estava
bem pequeno recomeçou a animar-se. O aperto que sentia no estômago se atenuou. Umedeceu os lábios e observou atentamente o primo.
Tudo foi então sol brilhante e rosas desabrochadas. Enquanto há vida, há esperança, pensou ela, sorrindo intimamente. Stuart não havia falado
muito de Joshua Allstairs e a sutil e inteligente Janie tinha percebido pela sua expressão que o velho usurário não via com bons olhos a
hipótese de um noivado. O espírito de Janie continuou a tecer a sua teia de aranha e um sorriso sonhador lhe tocou os lábios.
Mudou simpaticamente de assunto. Mostrou-se toda cheia de afabilidade e de pilhérias equívocas, dispensando a Stuart tapas vigorosos e
olhares brejeiros, até que o fez rir de novo e sentir prazer com o riso dela.
Mais tarde, naquela noite, através das finas paredes de tábuas que dividiam os quartos do hotel, Stuart ouviu a voz irada e praguejante de
Janie, as pancadas que caíam sobre alguma vítima silenciosa e, por fim, o grito estridente e aterrado de Laurie:
— Não, Mamãe! Não bata mais nele!
Stuart compreendia tudo. Fervendo de raiva impotente, podia apenas desprezar-se pelo sofrimento infligido ao pequeno Angus e à irmã em
consequência de uma coisa que o culpado era ele, Stuart. Teve de conter-se uma dúzia de vezes para não invadir os aposentos de Janie e
espancá-la violentamente, salvando as crianças. Encolheu então os ombros no seu desespero. Não adiantava coisa alguma. Nada havia que
ele pudesse fazer.
Mas murmurou repetidamente, entre os dentes cerrados:
— Megera! Cadela!
Toda a sua compaixão por Janie tinha desaparecido. Passara a odiá-la virulentamente.
CAPÍTULO 7
Muito antes do amanhecer, no último dia, Stuart acordou inquietamente de seu cochilo e acomodou-se no banco da carruagem. Ansioso por
voltar para casa, decidira, depois de consultar Janie, não parar para pousar em qualquer hospedaria na noite anterior e prosseguir viagem a
fim de chegar a Grandeville antes da noite.
O ar abafado e cheio de pó da carruagem era de um frio cortante. Apesar das mantas que tinha a envolver-lhe as pernas, Stuart sentia-se
enregelado e angustiado. Havia no céu negro uma delgada fatia de lua e cintilantes estrelas. Podia ver a essa débil luz, os vultos encolhidos de
Robbie, Angus e Laurie, deitados sob suas mantas no banco em frente. As crianças dormiam em atitudes de completo abandono e exaustão.
Stuart não podia ver-lhes os rostos mergulhados na penumbra, mas, ainda assim, uma longa madeixa solta dos cabelos de Laurie rebrilhava.
Janie dormia ao lado de Stuart e encostada nele, tendo ao lado seu predileto, Bertie.
Não havia som senão o que a carruagem fazia sobre a estrada irregular. Até os cocheiros cochilavam na boleia, embalados pela escuridão,
pelo rolar das rodas de madeira e pelo leve bater dos cascos dos cavalos. De vez em quando, os arreios tilintavam levemente. A carruagem
jogava como um barco e as janelas se balançavam nos caixilhos, enquanto as portas rangiam.
Stuart sentia-se terrivelmente deprimido. Tinha uma natureza volátil que ou se elevava aos píncaros da exultação ou descia a profundezas
escuras, sem meio termo. Embora já estivesse habituado a essas curvas de exaltação e de mau humor, pensava que cada um desses estados
era permanente, sempre que se via dominado por ele. Naquele momento, tinha certeza de que aquela pesada melancolia iria acompanhá-lo
pelo resto da vida. Moveu-se com alguma dificuldade e tentou olhar através da janela salpicada de lama. Nada viu além do céu escuro com
suas estrelas e da escuridão amorfa e plana da terra. Deu um suspiro, afastou-se de Janie que resmungou sem acordar e se encostou no lado
da carruagem.
O doentio e vago desespero dos celtas se abatia sobre ele como um peso esmagador. Havia muito aprendera que era inútil procurar uma
causa ou, pelo menos, uma causa relevante. As menores coisas bastavam quase sempre para fazê-lo mergulhar em profundo abatimento. Os
acontecimentos importantes em geral causavam-lhe exaltação porque eram assuntos que ele quase sempre podia enfrentar e dominar. Nunca
o deprimiam. Era o zumbir de um inseto, uma sensação breve de picada no corpo, o jeito do vento, o aspecto do céu, uma palavra, um olhar e,
às vezes, até o movimento de uma saia de mulher que tinham o poder de engolfá-lo no misterioso horror da depressão completa, inexplicável e
absurda. Havia ocasiões em que pensava que ia ficar louco.
Sem ser reticente, queixara-se de passagem desses estados de espírito a seus dois amigos, padre Houlihan e Sam Berkowitz.
— Weltschmerz —, dissera Sam com um suspiro. Explicara em seguida a palavra a Stuart, que havia dado uma risada, achando a ideia
ridícula. “Dor do mundo”? Por quê? Pessimismo sentimental? Que era que isso tinha a ver com Stuart Coleman? Amava o mundo demais e o
achava cheio de prazer e não de dor.
— Na alma que está dentro de você —, dissera o padre Houlihan.
Stuart rira também e não com menos desdém do que tinha rido de Sam. Alma? Pelo amor de Deus, não tinha senão o seu corpo vigoroso e
cheio de disposição. Se estava bem escondida no fundo dele, como uma semente ou um caroço de fruta e, pelo que lhe interessava, podia
assim continuar.
— Não tenho nada de que me arrependa, porque nunca faço nada de que me possa arrependa —, tinha dito ele ao padre, sentindo-se com
isso muito lúcido e inteligente.
Já então terrivelmente acordado, passou em revista os acontecimentos dos últimos dias. Viu os cabelos dourados de Laurie, os rostos dos
meninos e cerrou os punhos. Janie é que era a culpada de tudo.
Nunca penso bem nas coisas, refletiu ele. Meto-me nas situações mais difíceis e depois fico sem saber como foi que se verificaram. Sou um
verdadeiro imbecil! Que é que eu vou fazer com ela? Durante toda minha vida, sempre me esquivei de assumir responsabilidades para com os
outros. Sempre fugi a qualquer perspectiva de casamento. Sempre consegui livrar-me honrosamente da menor ameaça de ingerência com os
outros e com os seus problemas. Entretanto, aqui estou com essa mulher estranha e com seus filhos. Que é que eu vou fazer? Nunca pensei
que ela me levasse a sério.
Sentia-se confuso e furioso ao lembrar-se de que ficara muito satisfeito quando Janie lhe escrevera dizendo que estava com vontade de ir para
os Estados Unidos, como se ir para os Estados Unidos fosse um simples passeio que se dava numa carruagem para, depois de uma rejeição
ou duas, voltar para casa! Não tinha visto senão a possibilidade da presença de Janie. Não pensara um só instante nos filhos.
Devagar, pensou ele, fazendo uma parada súbita em suas meditações sobre o assunto. Janie tinha dinheiro. Quinze mil libras esterlinas em
dinheiro. Não havia pensado nisso e sentiu por um momento justificada complacência. Apertou os lábios como se fosse assobiar. A fortuna de
Janie equivalia mais ou menos a setenta e cinco mil dólares! Não lhe seria muito difícil conseguir um pequeno empréstimo de dez mil dólares e
pagar àquele sanguessuga de Joshua Allstairs. Depois de reembolsado do dinheiro, Joshua teria muito mais respeito pelo pretendente da filha.
Stuart ficou muito interessado. O sangue se lhe aqueceu. Entrevia de repente todas as possibilidades de setenta e cinco mil dólares.
No seu júbilo e exaltação, Stuart deixou de lado o pensamento cauteloso de que Janie talvez não estivesse disposta a emprestar-lhe o dinheiro,
se isso fosse na realidade meio caminho andado para seu casamento com a bela Marvina. Mas ele saberia manobrar Janie. Teria a fortuna
dela bem segura antes que se tornasse noivo oficial de Marvina. Bastava no momento que ele soubesse ganhar a confiança da cadela de olhos
verdes, adulando e lisonjeando a prima para que ela acreditasse sabe Deus em quê. Pensou em Janie sem o menor escrúpulo. Não fora ela
para os Estados Unidos com o propósito deliberado de forçá-lo a casar-se com ela? Ele nada lhe devia. Se ele, por sua vez, usasse de um
truque para com ela, neste caso ganharia quem fosse mais esperto. Além disso, ele se encarregaria de duplicar-lhe a fortuna e isso, ao fim de
tudo, seria bom demais para aquela bisca.
Stuart estava exultante. A sua crise de depressão tinha passado. Sentia-se de novo entusiástico, enérgico e forte. Olhou para a janela, ansioso
por que o dia nascesse. Estava impaciente para entrar em ação.
Para os lados do nascente, o céu já se ia alterando. Estava do azul claro mais puro, com tonalidade de anil mais no alto. Ao longo da linha
escura da terra, havia uma faixa de fogo imóvel, mas que se tornava mais forte de momento a momento. Bem no meio do translúcido azul, havia
a cintilação radiosa e pura da estrela da manhã. Acima dela, brilhava a tira recurva e prateada da lua, que empalidecia visivelmente. Como
estava tranquila a terra adormecida, como era escura e caótica em suas formas indefinidas, como era silenciosa! Era como se ainda fosse
nascer e não estivesse com pressa. O silêncio do amanhecer tinha uma intensidade mais profunda do que a serenidade da noite ou a
imobilidade do sono. Havia nele uma presciência, uma expectativa imponderável, que deixava de ser irrefletida e estava preparada para a vida,
para o mundo que lhe daria forma e ser.
A majestade inefável do dia empolgou a atenção volúvel de Stuart e a alma do celta foi estranhamente comovida e dominada. Sentia-se
humilhada e indizivelmente triste. De súbito, pareceu a Stuart que nada tinha importância e, menos do que o resto, ele próprio. Não rezava
desde os tempos de criança. Mas naquele momento houve uma agitação nele, como se as mãos pesadas ansiassem por levantar-se em
prece. Palavras esquecidas vieram-lhe do fundo da infância: “Quando contemplo Teus céus, a obra de Tuas mãos, a lua e as estrelas que
ordenaste, que é o homem?”
A tristeza de Stuart chegou ao ponto máximo e então sua sadia resistência acudiu em ajuda e ele encolheu os ombros. Ouviu alguém mover-se
dentro da carruagem. Angus e Laurie tinham acordado e as duas crianças olhavam com os rostos pálidos e embevecidos para o céu do
amanhecer, Stuart olhou-os furtivamente. Viu o perfil puro de Laurie, com a boca entreaberta e os olhos azuis dilatados à luz pálida da manhã.
Viu o rosto vincado e triste de Angus, tão jovem e tão timidamente trágico. As duas crianças estavam de mãos firmemente dadas. Os cabelos
de ouro de Laurie caíam-lhe pelos ombros, desgrenhados e escachoantes. Era ainda uma criança, mas já tinha jeito de mulher.
Janie bocejava e resmungava, começando a acordar. Bertie já estava acordado e esfregava os olhos vigorosamente. Mas Angus e Laurie não
tomavam conhecimento senão da manhã, inclinando-se para a janela com a triste ansiedade dos exilados que divisam os contornos escuros
das praias natais.
Stuart teve então um sobressalto. Laurie tinha começado a cantar baixinho, mas com pura firmeza. Tinha a mais doce e inocente voz, mas
estranhamente forte e afinada para uma criança como ela. Cantava como para si mesma uma estranha canção gaélica. Era como se estivesse
repetindo alguma coisa que lhe haviam ensinado. Stuart tinha esquecido quase todo o gaélico que sabia, mas conseguiu pegar algumas
palavras. Era um hino à estrela da manhã.
A doce e bela voz jovem encheu a carruagem como o som delicado de uma harpa. A própria Janie escutou ainda tonta de sono, mas com uma
impaciência contida. Stuart não tomou conhecimento dela. Via apenas a menina que cantava como se estivesse sozinha e meditasse. Angus
escutava com os olhos fitos na estrela e na lua.
Angus tinha naquele momento uma estranha visão. Via montanhas negras e amontoadas, tocadas pela primeira luz da manhã. Via as
montanhas desertas e desoladas envoltas em véus brancos e nuvens de neve. Via aquele céu, com a estrela e a lua, acima deles, cheios de
silêncio e de imponência. E via a pessoa que cantava, não Laurie, mas um jovem forte e esbelto, que louvava a estrela da manhã com o rosto
erguido, os olhos negros exaltados, cheios da humildade e do êxtase de uma adoração ilimitada. De repente, Angus começou a chorar em
silêncio, com as lágrimas a rolar-lhe pelas faces. Não sentia exaltação; sentia-se apenas privado e exilado, dentro de uma imensa dor. Era
apenas uma criança e não tinha palavras para exprimir o seu sofrimento. Sabia apenas que tinha o coração repleto de agonia.
Laurie terminou o seu canto e encostou a cabeça no ombro de Angus. Bocejando sem parar, Janie disse de mau humor:
— É melhor mesmo parar com seus miados tão cedo assim, menina. Fez um barulho de acordar os mortos.
Stuart inclinou-se para Laurie. Tinha uma vontade enorme de tocar na menina, mas alguma coisa o impedia. Disse então com muita ternura:
— Que belo canto foi esse, querida?
Laurie virou o rosto para ele. A luz mais clara da manhã nascente caía sobre o lindo rostinho. Os olhos azuis estavam parados como se vissem
alguma coisa além do primo da mãe e, embora ela sorrisse vagamente, Stuart sabia que ela não o estava realmente vendo.
— Foi um canto que Papai nos ensinou —, murmurou ela. — Era a canção de Papai que ele fez para Angus. Fez uma para mim também.
— Foi mesmo? — perguntou Stuart com maior delicadeza ainda. — E qual foi a canção que ele fez para você?
Laurie hesitou e um leve rubor lhe tocou as faces. Baixou os olhos e disse:
— Chama-se O Amor é Maior do que a Vida.
Stuart franziu as sobrancelhas.
— É uma canção muito estranha para uma menina. Não sabe o que quer dizer isso, sabe?
Foi a voz estridente de Janie que lhe respondeu:
— Robin mimava muito essas crianças. Era um verdadeiro absurdo. Ele nunca foi um pai às direitas para a família que tinha. Agora, Laurie,
penteie esses cabelos e se comporte como uma mocinha. E você, Angus, pare de olhar pela janela e chorar como uma criança. Onde está seu
lenço?
Stuart nunca tinha dado muita atenção a Robbie desde a partida de Nova York, mas naquele momento seus olhos se encontraram
involuntariamente com os do garoto. Robbie tinha nos lábios o seu sorriso triste e contorcido, sarcástico e irreverente. Era uma cara de gnomo
que olhava para Stuart, velha, irônica e impessoalmente cruel, como se ele achasse Stuart muito interessante, muito ingênuo e talvez um pouco
bronco.
Bertie bocejava amplamente, com os anéis ruivos desgrenhados e o rosto belo e simpático sorridente como sempre. Olhou para os irmãos e,
por um momento intangível, a sua expressão se tornou sombria, como se fosse tocada pela compaixão. Era incrível. Stuart mal pôde acreditar.
Sentiu-se desorientado como se tivesse chegado a um estranho país povoado das mais esquisitas criaturas.
O dia foi correndo e o cansaço dos viajantes aumentou à medida que se aproximaram de Grandeville. O céu estava ficando muito carregado
para os lados do nordeste. Os silêncios eram maiores, como se estivessem exaustos até de falar. Até a loquaz Janie se trancava num pesado
mutismo.
Sentado num canto da carruagem, Stuart franzia a testa, pensando. Não era dado a longas meditações. Mas, naquele momento, o seu espírito
estava curiosamente empenhado no esforço de desembaraçar-se da vacilante desorientação de suas impressões. E, estranhamente, não era
tanto da linda Laurie, de Janie, de Angus ou de Bertie que pensava, quanto de Robbie. Não podia esquecer a expressão singular do garoto
quando o olhara naquela manhã, nem as sensações humilhantes que experimentara.
Irritado com aquela obsessão mental em relação a Robbie, lembrou-se de que tinha falado bem poucas vezes com o garoto durante a viagem.
Robbie vivia tão calado, tão metido consigo mesmo, tão pensativo e reservado, que não era de estranhar que não se desse muita atenção a
ele. Para isso contribuíam ainda a sua estatura pequena e magra, a sua falta de pitoresco e a sua reserva. Nunca procurava afirmar-se em
coisa alguma. Sentava-se calado na carruagem durante dias inteiros e nunca se unia aos outros. Nunca se queixava, nem agia de maneira
infantil, adulando para conseguir favores como Bertie, metido desoladamente dentro de si mesmo como Angus ou dentro de tímida confusão,
como Laurie.
Perdendo rapidamente o equilíbrio e o bom senso, Stuart não podia desviar os olhos daquele vulto esguio e silencioso no fundo da carruagem.
Janie costumava chamar o garoto de “preto”. Era preto de fato. Dos cabelos aos olhos repletos de uma espantosa expressão de ferocidade
impessoal e fria, da pele bem morena à boca dura, calma e bem feita. Tinha mãos pequenas e delicadas, mas dotadas de estranha firmeza.
Não parecia uma criança. Era muito compacto, consciente e calmamente enérgico. Com certeza, o coração também é preto, pensou
rancorosamente Stuart.
Que era que ele via naquele absurdo livro? Sem dúvida, era tudo puro fingimento. Queria impressionar os outros com o seu gosto pela leitura.
Foi só ao escurecer que Stuart se dispôs a falar sobre o assunto que o obcecava e aborrecia.
— Escute aqui, Robbie —, disse ele com um sorriso e um tom zombeteiro. — Que é que acha de tão interessante nesse livro enorme, grande
demais para um garotinho como você?
Robbie levantou os olhos pretos sem muito interesse e fixou-os em Stuart. Ficou por um momento em silêncio, enquanto um leve rubor lhe subia
às faces. Disse, por fim:
— O livro é muito interessante, primo Stuart. Creio que já lhe falei uma vez sobre ele. Trata dos julgamentos dos crimes de morte em Old Bayley,
em Londres.
— Crimes de morte? — exclamou Stuart, arqueando as sobrancelhas e procurando mostrar um espanto divertido e indulgente. — Que é que
pode haver nisso de interessante para você, um garoto que mal saiu das fraldas?
Esperava embaraçar Robbie, reduzindo-o à sua condição de menino indefeso. Mas Robbie se limitou a olhá-lo com a sua gravidade
impenetrável que Stuart achava extremamente irritante. Um leve sorriso lhe aflorou aos lábios e ele encolheu os ombros quase
imperceptivelmente, como se julgasse Stuart aborrecido e imaturo.
— Pois esses assuntos me interessam e muito! Espero ser advogado um dia e gosto de ler sobre os julgamentos dos crimes de morte. Os
juízes e os advogados são em geral tão pouco inteligentes! Ora, veja! Era mais que evidente que Jervis tinha assassinado a mulher. Entretanto,
foi absolvido por falta de provas! Qualquer pessoa pode ver como ele enganou os jurados!
Stuart não deu mais resposta. Recostou-se no seu canto um pouco desconcertado, enquanto Robbie voltava à leitura de seu livro. Janie riu
zombeteiramente, como se tivesse orgulho da precocidade de seu detestável rebento. Ela não gostava absolutamente de Robbie, mas tinha
uma espécie de admiração por ele e pelos seus modos eficientes que de certo modo a eximiam de muitas responsabilidades.
— Ele é vivo, hem? — exclamou ela.
Mas Stuart estava de novo confuso, desorientado e cheio de súbito ódio pelo pequeno Robbie. O fato o fez ficar calado e amuado por mais
meia hora.
Bertie, o garoto de boa natureza e modos gentis, sentia-se um pouco entediado. Implicou durante algum tempo com a mãe e, depois, quando
ela lhe deu um tapa e disse um nome feio, desistiu e bocejou. Foi então que seus luminosos olhos azuis pousaram em Robbie, como se fossem
uma mosca irrequieta. Estendeu a mão e arrebatou o livro aberto no colo do irmão e jogou-o no chão empoeirado da carruagem. Robbie
levantou-se com um grito de raiva e atacou o irmão. Janie começou a gritar e a bater indiscriminadamente nos dois, enquanto eles rolavam pelo
chão engalfinhados, levantando uma nuvem de poeira, e se esmurravam furiosamente. Stuart ajudou Janie a desapartar a mistura de braços,
pernas e roupas amarrotadas.
— Chega! Chega! — gritava ele, afastando Robbie de Bertie, que estava começando a levar desvantagem. Jogou Robbie violentamente para o
seu canto do banco, enquanto Janie, que sustinha Bertie com muita moderação o fazia sentar-se ao lado dela e lhe limpava as roupas
empoeiradas.
Robbie estava sentado e arquejante, limpando as roupas com uma fúria silenciosa. Olhava para o irmão com uma raiva feroz. Passou as mãos
pela cabeça para ajeitar os cabelos desgrenhados. Tremia dos pés à cabeça.
Bertie, convenientemente contido por Janie, mas ainda rindo descontroladamente, olhou para Robbie. Os dois se encararam por um momento.
Então, com surpresa para Stuart, Robbie começou a sorrir. Tirou das calças a última mancha de poeira com muita displicência e seu sorriso se
alargou. Os olhos pretos dançavam nas órbitas.
— Um dia destes lhe darei uma surra de que você não vai mais se esquecer —, murmurou ele. E sua voz era de uma criança.
Mas não voltou a ler. Ele e Bertie começaram a se dizer coisas e trocar ameaças nos tons insignificantes e ferozes da infância.
CAPÍTULO 8
Janie deixara de se queixar, fossem quais fossem os seus pensamentos. Desde que passara a ter alguma coisa a ganhar era toda afabilidade
e bom humor. Reduzia a nada os desconfortos, zombava deles e aceitava tudo.
Desde o princípio, detestara os Estados Unidos, não com paixão ou vingança, mas de maneira objetiva e sem prevenção pessoal. Apesar
disso, habituou-se em breve ao país e começou a procurar as vantagens que poderia tirar dele.
Tivera uma agradável surpresa com a casa de Stuart, onde estava hospedada com os filhos.
— Deve valer alguma coisa —, murmurou Stuart com relutância ante as manifestações de admiração da prima. — Tomei dez mil dólares
emprestados ao velho Allstairs para construí-la.
Janie, que sentia um desprezo atônito por quem precisava de tomar dinheiro emprestado para construir uma casa, não fez comentário algum
sobre isso. Dentro de seus princípios, podia compreender muito bem que alguém tomasse dinheiro emprestado para comprar terras ou criar
negócios, mas tomar dinheiro emprestado para comprar “bugigangas” era positivamente ofender a Deus. Havia alguma coisa
fundamentalmente errada num homem que gostava de coisas bonitas a ponto de assumir compromissos para comprá-las. Graças ao seu
desprezo secreto por Stuart, sentia cada vez mais o seu domínio sobre ele e confiança em si mesma. Passara muitas horas difíceis na viagem
de Nova York até ali. Mas todas as suas apreensões estavam quase dissipadas. Era de novo mais velha do que Stuart, a mimá-lo, a tratá-lo
afetuosamente e a trocar piadas livres com ele.
Era na verdade uma casa estranhamente bela aquela, construída de pedra clara e de frente para o rio. Era também extremamente grande, o
que espantou Janie, e de belas proporções, possuindo dezesseis peças, cada qual mais atraente e repousante do que a outra. Havia três altos
andares. As janelas eram todas altas, estreitas e protegidas de grades. Tinha o aspecto de um templo grego, com as suas oito colunas que se
erguiam por toda a altura da casa, sustentando no alto uma graciosa sacada. A pedra tinha sido levada para Grandeville numa barcaça pelo
canal. Stuart nunca se cansava de contar a história da árdua jornada. Os blocos se juntavam tão bem que era preciso olhar com muito cuidado
para ver os pontos de junção e eram tão polidos e rebrilhantes que pareciam feitos do mais puro mármore branco. Quando se entrava no
vestíbulo central, via-se a curva graciosa de uma escadaria que ia até à terceira galeria. Do teto pendia um grande lustre, resplandecente de
cristal e dourados. À noite, todas as suas velas eram acesas, quer se estivessem esperando visitas, quer não. Janie achou isso uma
extravagância, mas Stuart replicou, irritado:
— Construí esta casa para meu prazer e não para ser admirada pelos outros.
O chão de grande vestíbulo era espantoso, sendo construído de uma peça aparentemente inteiriça de granito preto brilhantemente polido que,
como o exterior da casa, tinha a aparência do mármore. Muitas das relações de Stuart ficavam mal impressionadas com o efeito assombroso
da casa, deliberadamente feita em preto e branco e se revoltavam com uma ideia tão estranha. Era fantástico. Só um irlandês, diziam, poderia
pensar em coisa tão fora do comum. O madeirame era puro e cintilantemente branco, as lareiras eram de pedra preta polida, sendo imensas,
mas curiosamente delicadas na sua estrutura e forma. Os altos tetos eram de estuque branco moldado, discretamente tocado de um friso
dourado. O grande salão, frio, mas belo, tinha um parquete marchetado, parcialmente coberto por um grande tapete Aubusson dos mais suaves
matizes de azul, rosa e vermelho-claro. Os móveis, também belos, eram de linhas austeramente perfeitas. Os graciosos sofás e poltronas eram
forrados de seda adamascada, tapeçarias e veludos em tonalidades correspondentes às do tapete.
Em todas as mesas trabalhadas, havia lâmpadas de cristal e estranhas caixas rebrilhantes. Nas paredes brancas, viam-se quadros de flores e
de cenas rurais.
— Não há retratos de antepassados ilustres —, disse Stuart, rindo. — Mas estou pensando em comprar alguns em Londres para impressionar
a gente do lugar.
O grande salão de jantar tinha lambris de madeira clara e era de tom vermelho e azul-claro. Os móveis, na melhor tradição de Chippendale,
eram impecáveis. Havia uma biblioteca também, com as paredes cobertas de livros impressionantes, que Stuart sinceramente confessou que
não eram para ser lidos, pois ele nada tinha de “intelectual”. As lombadas, vermelhas e azuis, correspondiam também às cores do tapete e dos
reposteiros. Ali, havia uma lareira sempre acesa, mesmo no verão.
— O clima aqui é muito frio —, explicou Stuart —, e terrivelmente úmido.
Havia oito grandes quartos, quase todos de frente para o rio. Quatro deles, com seus quartos de vestir, ficavam no segundo andar; os outros
quatro, no terceiro andar. Dois dos quartos maiores tinham também salas de estar. Todos tinham lareiras, mas, em vista dos verões breves e
dos longos invernos inclementes naquela terra do norte, havia também estufas. Os móveis dos quartos eram também de irrepreensível gosto,
tendo grandes camas com dossel, tapetes e cortinas, tudo levado, com os outros móveis, da Inglaterra e do continente.
Infelizmente, os ambiciosos planos de Stuart para a sua casa não se tinham estendido a terrenos vastos. O dinheiro havia desaparecido da
maneira mais desconcertante. Conseguira comprar apenas menos de um hectare de Joshua Allstairs, depois de calculado o preço da casa e
dos móveis. Entretanto, no reduzido terreno, Stuart tinha demonstrado um bom gosto exigente e inesperado. Não permitiu que as árvores ou os
matos escondessem a vista do rio, que corria abaixo da ribanceira que descia da casa. Da porta partia um caminho que se curvava
graciosamente e era feito de lajes brancas, dando a impressão de que o rio fazia parte da casa e de seus terrenos, sendo uma delicada
extensão dos mesmos. Mas, dos dois lados e nos fundos da casa, cresciam altos e nobres álamos e castanheiros, árvores que davam à casa
um ar de permanência e segurança. Stuart havia aproveitado ao máximo o terreno dos fundos, de modo que os jardins, as alamedas e as
grutas pareciam maiores do que realmente eram. Depois, desde que a casa ficava num ponto isolado, a alguma distância do centro da cidade,
e os terrenos vizinhos ainda estavam baldios e em estado natural, Stuart nunca informou aos conhecidos que aquelas extensões de bosques e
matos não lhe pertenciam. Gozava-os serenamente e tinha até planos para incorporá-los de futuro à sua propriedade. Caçava neles de
consciência tranquila e, de vez em quando, levava seus convidados a passeio por aqueles trechos de mata virgem, muito embora Joshua
tivesse mandado colocar ali cartazes que proibiam a entrada de estranhos.
Chegara ao extremo de mandar fazer as estrebarias nos limites de suas terras, ultrapassando-os até um pouco. Gostava muito de cavalos e
tinha oito de boa linha de sangue e boa criação. Tinha também quatro carruagens muito bem trabalhadas. Perto das estrebarias, havia uma
pequena construção onde se alojavam os seus cinco empregados.
Stuart pouco ligava à opinião de quem não o pudesse ajudar, nem prejudicar e revelava ingenuamente o preço da casa e de seus móveis a
quem quer que tivesse a indelicadeza de perguntar-lhe. Por isso, quando Janie sugeriu habilmente que todo aquele esplendor devia ter custado
mais de duas mil libras, concordou prontamente.
— Eu tinha dez mil dólares meus —, disse ele. — Tomei mais dez mil emprestados ao velho Joshua, aquele patife. Foi a primeira hipoteca
sobre a velha loja.
Janie teve tato bastante para não dar opinião. Lembrou-se, entretanto, do que o pai dissera certa vez a respeito de um vizinho que não tinha
antecedentes, nem família discerníveis: “Um mendigo sempre levanta um palácio quando pode tomar emprestado algumas libras.”
Era para Stuart uma alegria constante e também uma justificação saber que possuía a casa mais bela e mais espetacular da região. Quando,
aos domingos, belas carruagens passavam pela estrada à beira do rio e os que passavam procuravam não olhar para as belas montanhas
além da casa, ele exclamava:
— Não querem olhar os idiotas, mas a casa lhes enche os olhos!
Quando lhe chegavam aos ouvidos comentários desfavoráveis, no sentido de que ele era um louco, que dentro em breve pediria falência e iria
acabar pedindo esmola, não se aborrecia. Isso só lhe dava prazer. Mas quando lhe foram dizer que o velho Joshua comentara que o vestíbulo
de granito preto não lhe agradava e que ele mandaria reformá-lo, logo que a casa passasse a ser de sua propriedade, rangera os dentes de
raiva. Amava tão apaixonadamente a casa que construíra que jurou intimamente que tocaria fogo nela de preferência a vê-la nas mãos de
Joshua Allstairs.
— Farei isso com o coração sangrando —, murmurava no escuro, deitado em sua cama —, mas farei.
Mas, no íntimo, não acreditava que sua amada casa pudesse ser-lhe tirada das mãos. Lutaria até à morte por ela. Era o seu tesouro, o tesouro
do seu coração. Confortava-o como uma mulher; enchia-lhe a vida como uma dúzia de filhos. Era a sua razão de viver e o seu motivo de
trabalhar. Era a expressão de sua alma. Nunca se cansava de passear de peça em peça, alegrando-se com o que via, passando a mão pelas
madeiras e exultando com os móveis. De certo modo, a casa era sua religião, que o consolava das canseiras e lhe satisfazia os instintos mais
profundos. E, de uma estranha maneira, sentia-a tão completa que não tinha necessidade de uma mulher com quem a partilhasse. Havia
ocasiões em que ficava diante dos grandes espelhos dourados durante muitos minutos e sorria para si mesmo, com lágrimas nos olhos.
Janie, que suspeitava de grande parte disso, divertia-se crua e intensamente com essa loucura, essa devoção de um homem a uma casa e
acabou reconhecendo que devia haver por trás desse esplendor e dessa beleza mais do que uma simples revolta contra uma infância pobre.
De certo modo, a casa era a alma de Stuart, parte da fantasia que ele tinha na alma, parte da sua natureza sonhadora e mística. Stuart podia
ser áspero e ávido em seu desejo de ganhar dinheiro. Mas a aspereza e a avidez eram dedicadas a uma beleza viva.
Stuart havia herdado a loja do pai. Superficial e displicente por natureza, ter-se-ia contentado em fazer alguns lucros pequenos e fáceis, em
perder o seu dinheiro jogando com companheiros felizes, em fazer incursões periódicas pelo país ou em gastá-lo com as mulheres. Não era,
por temperamento, um homem de negócios hábil ou empreendedor. A casa lhe modificara a natureza, dando-lhe uma ambição inquieta,
nervosa e cruel. A casa não era mais dele. Ele é que pertencia a ela.
Os melhores quartos tinham sido dados a Janie e seus filhos. A presença deles revoltou e deprimiu tremendamente Stuart. Estremecia
intimamente quando uma das crianças arrastava os pés ou corria por um dos assoalhos envernizados. Sofria verdadeiras torturas mentais
quando as crianças invadiam o salão ou o seu escritório. Sentia suores frios quando as via sentadas nas cadeiras. Convencia-se então de que
tinha de livrar-se delas, depois, é claro, que houvesse conseguido de Janie o empréstimo que pretendia. Até lá, guardava para si mesmo suas
ideias e seus sentimentos.
Grandeville era uma cidade feia de cerca de vinte e cinco mil habitantes. Constava de uma comprida rua no meio, chamada de rua Principal,
com ramificações menores e sem plano de um lado e do outro. A parte “velha” da cidade se estendia também à beira do rio, mas a cerca de
cinco quilômetros da casa de Stuart e ali viviam as “velhas” famílias, que se haviam enriquecido rapidamente com os curtumes, os matadouros,
as estrebarias onde se vendiam cavalos e as casas comerciais da comunidade. Como o velho Joshua, havia também quem fizesse grandes
fortunas por meios misteriosos. Outros eram comerciantes e possuíam barcaças e barcos que transportavam mercadorias entre as cidades
dos Lagos. Os homens das famílias “velhas” não eram mais aventureiros. Formavam a burguesia, confortável e contente, mas gananciosa,
cobiçosa e, ainda por cima, oportunista.
Viviam nas casas mais feias, altas e estreitas, com paredes de tijolos vermelhos, todas enfeitadas de cúpulas e torreões, com largas varandas
sombrias e estrebarias ao lado de jardins por trás de gradis de ferro. Pelas ruas calçadas de pedras, moviam-se as suas carruagens
imponentes e brunidas, com suas mulheres altivas e contrafeitas. Os passeios eram de tábuas ou de pedras e eram conservados em estado
razoável de limpeza. O único toque de beleza era dado pelos velhos álamos e castanheiros que marginavam as ruas e enchiam o verão do
norte de sonoros murmúrios. Entretanto, escureciam um cenário já sombrio e davam aquela parte da cidade um ar desolado, hostil e repulsivo.
As casas eram mobiliadas com um gosto execrável que bem combinava com o seu exterior. As preferências dos donos das casas recaíam em
móveis pesados e pretos de nogueira e mogno, estofados de crina e de pelúcia vermelha, de enfeites horrorosos e tapetes de Bruxelas, em
cortinas de renda engomada de Nottingham e veludo.
— Querem ser como os ingleses de Manchester, nem que morram sufocados —, dissera Stuart uma vez, rindo com desprezo das portas e
janelas de vitrais, tão estreitas como seteiras, cujos reposteiros vedavam os escassos raios de sol que conseguiam escoar-se através da
densa folhagem das árvores.
Tremia só de lembrar-se das salas de jantar apaineladas, das salas estreitas e sombrias como criptas, de escadarias de carvalho quadradas,
e de estreitos corredores espectrais. Lembrava-se do frio que sentira em muitas daquelas casas em ásperas noites de inverno, curvando o
corpo para magros fogos escondidos no fundo de lareiras de mármore. Até os jardins eram úmidos mesmo nos mais quentes dias de verão,
cheirando a mofo e a terra podre, bem como a imensa respeitabilidade.
A maior e mais feia casa de tijolos vermelhos na melhor rua (que era chamada Estrada do Rio) era a mansão de Joshua Allstairs e todo o
horror das casas vizinhas podia ser encontrado ali em maior escala. Stuart jurava a seus amigos que, quando saía daquela casa, tinha de correr
imediatamente para sua casa a fim de trocar a roupa que ficara verde e embolorada na sala de Joshua.
— Até uma hora depois, ainda fico tirando larvas dos cabelos —, dizia ele.
Longe desse bairro imponente, do outro lado da rua Principal, ficava a cidade “nova”, composta de pequenas casas de tijolos vermelhos e, na
maioria dos casos, de chalés e cabanas de madeira. Ali, viviam os elementos novos, os detestados alemães, os turbulentos e bebedores
irlandeses e as outras raças anônimas e desprezadas. Havia ali nomes estranhos, revoltantes e intoleráveis para os exigentes descendentes
de aventureiros ingleses ou escoceses que ali haviam chegado mais de sessenta anos antes. Ali estavam os operários humildes que
labutavam nos curtumes e matadouros vis, nas duas pequenas fundições de ferro e nas oficinas, que cuidavam das estrebarias e limpavam as
ruas e os esgotos, que trabalhavam no cais durante os meses de verão em que os lagos estavam livres de gelo, que forneciam as empregadas
domésticas para os moradores das grandes casas e que se empregavam em muitas outras ocupações. Como ainda eram recém-chegados da
Europa, mantinham em relação a seus altivos patrões aquela mistura de servilismo e dedicação tão própria de sua classe, e, quando esses
elementos se combinavam com uma grande dose de medo e a ameaça de iminente fome em função do simples capricho dos patrões, podia
contar-se com a sua docilidade. Ali também, naquela parte da cidade, ficavam as florescentes tavernas (de propriedade dos grandes) onde um
homem, e às vezes uma mulher, podia receber um gole de anestesia que lhe tornasse a vida suportável. Joshua era dono de muitas dessas
tavernas.
A única beleza existente naquele bairro triste era a pequena igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança. Embora não fosse católico, Stuart,
num de seus gestos supremamente arrojados e generosos, tinha abastecido a pequena e assustada comunidade católica para a sua igreja da
mesma pedra branca de que fora construída sua casa. Uma das razões para esse gesto fora a sua nova amizade com o padre Houlihan, mas a
maior de todas as razões fora o fato de que ele odiava os moradores da cidade “velha” e a opressão que exerciam sobre a populaça fraca e
silenciosa da cidade “nova”, pela qual tinha, entretanto, o mesmo desprezo. Embriagado com sua própria magnanimidade gastou seu dinheiro
impensadamente na construção da igreja, contribuindo com a metade das despesas. O padre Houlihan, muito atarantado, muito surpreso e
muito cheio de emoção, não pôde senão formular fracos protestos ante a extravagância de seu jovem amigo.
Mandaram-se buscar mosaicos na Itália e belas rendas e um órgão excelente e pequeno foram remetidos de Nova Orleans. Foi só quando
Stuart sugeriu cheio de entusiasmo que se mandasse buscar mármore de Carrara para pavimentar o chão foi que o padre Houlihan despertou
de seu torpor e recusou categoricamente com lágrimas nos olhos. Stuart ainda tentou comprar a terra onde a igreja era construída a Joshua
Allstairs, recebendo uma recusa formal. Apesar disso, Allstairs concordou finalmente em arrendar o terreno mediante o pagamento de uma
certa quantia, que Stuart prontamente garantiu.
Mais tarde, Joshua perguntou a Stuart, olhando-o de soslaio:
— Por que se mostra tão interessado nesses papistas pagãos?
Stuart tinha encolhido os ombros displicentemente, mas não pôde impedir que uma certa vermelhidão lhe chegasse ao rosto.
— Palavra que não sei. O padre deles é meu amigo e um sujeito muito decente. E o pobre-diabo não tem um lugar onde possa reunir a sua
gente.
Não podia confessar que já estava arrependido de sua insensata generosidade e, como sempre procurou, cheio de assombro, analisar a
cegueira impulsiva de seu gesto. Tinha mais do que uma leve suspeita de que o seu motivo era um insolente e desdenhoso desafio à gente da
cidade “velha”, que mal o aceitara e ainda evidentemente o desprezava. Quando o padre havia sugerido que a verdadeira razão de qualquer
ato, bom ou mau, ficava tão no fundo da alma que não poderia ser analisada, Stuart troçou dele, embora secretamente ficasse um pouco
surpreso e satisfeito. Esperava, mais que acreditava, que o verdadeiro impulso que o levara a gastar furiosamente o seu dinheiro em benefício
dos “papistas pagãos” fosse meritório e viesse de alguma insuspeitada profundeza de sua alma. Perdeu essa pequena esperança quando
verificou o saldo de sua conta no banco e se arrependeu de tudo. Não sabia na verdade por que fazia certas coisas.
Apesar disso, não se passava um domingo sem que passasse lentamente com a sua carruagem pela igreja na hora da missa. Fazia parar os
cavalos perto da porta e ficava sentado com um estranho sorriso nos lábios, escutando as vozes cristalinas do coro e a nobre grandeza da
música que vinha do órgão que ele havia doado. Contemplava a luz do sol incidindo na cruz dourada e incendiando os pequenos vitrais das
janelas. Mas, embora o padre Houlihan lhe tivesse informado de que havia uma placa numa das paredes em que seu nome estava inscrito
como doador, nada poderia convencê-lo a entrar na igreja. Por que era assim, ele não sabia absolutamente. Sabia apenas que a beleza de joia
da igrejinha lhe inspirava a mesma afetuosa paixão —embora em grau menor — que sua bela casa. Era sua criação, seu monumento.
Os arrependimentos de Stuart não duravam muito. Quando equilibrou de novo sua situação financeira, pagou as imagens de Nossa Senhora e
de S. José feitas na Itália. Era bastante para ele que a igreja fosse bela e cintilasse como uma pedra preciosa no meio da lama.
Não podia ser também insensível ao fato de que a sua generosidade tivera como resultado a prosperidade de sua casa de negócio. As
pessoas a quem tinha auxiliado passaram a ser fregueses exclusivos de seu estabelecimento. Mas, para fazer-lhe justiça, ele não havia
pensado nisso a princípio, embora aceitasse com um sorriso contido de falsa modéstia os elogios feitos à sua sagacidade por muitos de seus
colegas e até pelo -temível Joshua. Ah, pensavam então que ele era um comerciante esperto?
As últimas casas da rua Principal consistiam quase exclusivamente em lojas e tavernas. Havia lojas de arreios e lojas de roupas, lojas de
forragem e lojas de comestíveis, lojas de calçados, armazéns e açougues. Mas todos esses estabelecimentos eram pigmeus quando
comparados com a casa de Stuart, que tinha como gerente Sam Berkowitz.
Chamava-se o “Empório Supremo de Grandeville”.
CAPÍTULO 9
Não tinha sido no começo o “Empório Supremo de Grandeville”. Tinha sido apenas a “Loja de Sam” ou, sem preconceito, a “Loja do Judeu”.
Quinze anos antes, Sam Berkowitz tinha chegado a Grandeville com sua mãe velha e uma mala de mascate às costas. Já naquela época,
Grandeville tinha um ar de dinamismo e vitalidade e Sam, exausto, tinha decidido ficar por ali. Alugara uma pequena loja de arreios e ali
expusera à venda as suas escassas mercadorias. Não havia exatamente prosperado porque, embora fosse cheio de teorias brilhantes que
Stuart iria explorar depois, Sam não era homem de negócios. Não era que ele não tivesse queda para o comércio. O que acontecia era que o
comércio, no seu aspecto mais sórdido de comprar pelo preço mais baixo possível e vender por um preço correspondente às posses dos
fregueses, não tinha interesse para ele. Além disso, era espiritualmente muito velho para dar grande importância a lucros. Um teto sobre sua
cabeça, paz, pão e um pouco de carne eram o que lhe bastava. A sua exaustão crônica vinha mais do espírito que do corpo. E sua velha mãe
não podia mais ajudá-lo.
Não havia uma razão visível para explicar a chegada da família Coleman a Grandeville. Havia cidades maiores e mais florescentes do que
aquela. Mas ali estavam eles: Gordon, com menos de trezentos dólares, um jovem filho e uma esposa. Gordon poderia nunca ter conhecido
Sam Berkowitz se, num dia quente de verão, não tivesse andado pelos cais do canal para ver a descarga de um grande barco que vinha do
centro do Estado. Em dado momento, tomou conhecimento de uma discussão perto dele. Era um homem alto e magro, de cabelos ruivos, que
estava empenhado numa conversa um tanto áspera com um homenzinho vivo e sabido ao lado de uma pilha de mercadorias descarregadas.
Gordon franziu a testa. O homem magro e ruivo, tão mal vestido, estava falando com sotaque estrangeiro e voz incerta. Tinha todo o aspecto de
um judeu e não era competidor para o outro sujeito que fumava um charuto e soprava a fumaça na cara do judeu, ao mesmo tempo que dizia
displicentemente:
— Os preços subiram e eu não posso fazer nada. Se quiser pagar, muito bem. Se não quiser, tanto faz para mim.
Sam levantara os braços e os ombros numa atitude de resignado desespero. Olhou para as mercadorias e sacudiu a cabeça, dizendo:
— Não posso pagar.
O homenzinho sorriu, mudou o chapéu alto de ângulo e disse com os olhos brilhantes:
— Ande logo com isso! Vocês, judeus, andam sempre cheios de dinheiro! Como se eu não soubesse...
Sam nada mais disse. Levantou a cabeça, passou a mão pelo rosto e começou a afastar-se. Havia em seus apertados olhos castanhos um ar
de sofrimento, de impotência e de antiga resignação.
Gordon Coleman era um homem taciturno e sem amigos, cheio de mau humor e de desconfiança. Se o homenzinho tivesse um jeito menos
esperto e cruel, se o seu acento inglês fosse menos pronunciado, se a sua aparência fosse menos ardilosa e segura, Gordon ter-se-ia afastado
também com indiferença. Mas, sendo o homenzinho o que era, odiou-o no mesmo instante. Durante toda a sua vida, tinha odiado os homens
sabidos e arrogantes, cruéis e prósperos. Foi esse ódio que o fez aproximar-se e perguntar severamente:
— Que é que está havendo por aqui?
Sam, que já ia passar por ele, parou e olhou-o timidamente. Tocou o gorro de pano que tinha à cabeça e disse com gentileza:
— As mercadorias que encomendei combinei com ele por cinquenta dólares. Agora, o preço subiu para setenta e cinco. Não posso pagar.
Tenho apenas cinquenta dólares.
Havia em Sam Berkowitz alguma coisa delicada e simples que conquistou as simpatias involuntárias de Gordon Coleman. Não era um homem
impulsivo, mas detestou o homenzinho que os olhava com um sorriso astuto.
— Que mercadorias? Que são elas? — perguntou ele.
Foi apenas uma curiosidade enraivecida que o fez falar, ao mesmo tempo que lançava ao homenzinho um olhar carregado de má vontade.
Sam levantou as mãos eloquentemente e deixou-as cair.
— Tenho uma pequena loja. Vendo coisas para as cozinhas das senhoras. Panelas. Frigideiras. Também linha, chitas. Coisas assim. Agora,
não tenho mais mercadorias e vou fechar a loja.
Gordon ficou sombriamente calado. Tinha menos de duzentos dólares. Não tinha perspectivas de negócios e sentiu seu interesse despertado.
Se emprestasse vinte e cinco dólares a Sam Berkowitz, poderia ter algum lucro com isso. Hesitou. Depois, meteu a mão no bolso e tirou algum
dinheiro. Contou lenta e deliberadamente aquele abominável dinheiro americano. Sam contemplava-o, espantado. O homenzinho se aproximou
como um pequeno rato compacto e bem vestido, todo cheio de vivacidade e interesse.
— Assim é que se fala! Assim é que se fala! — exclamou ele. — Sempre se deve ajudar um companheiro e ganhar alguma coisa com isso!
Qual é sua próxima encomenda, meu caro Sr. Berkowitz?
Gordon conteve a vontade de dar-lhe um vigoroso pontapé. Sentiu a pele arrepiar-se por todo o corpo, até à raiz dos cabelos.
Tencionava, a princípio, ficar em Grandeville apenas o tempo suficiente para que Sam lhe pagasse o dinheiro, com os juros corretos. Mas fazia
várias visitas à loja porque se sentia muito sozinho e cheio de nostalgia. Sam era seu único amigo. Sentava-se junto ao velho balcão na lojinha
mal cuidada, tão cheia de poeira e desesperança e olhava as pequenas transações com as donas de casa que chegavam com as suas toucas
e as suas cestas. Desde que Gordon tinha raiva de quase todo o mundo, detestou aquelas mulheres de rostos magros e olhos maus. Ia até ali
para gozar o seu ódio. Mas a Sam Berkowitz ele não odiava.
Isso era uma coisa muito estranha. Talvez fosse porque o gentil e delicado Sam não era homem para enfrentar aquelas mulheres mesquinhas e
duras. Talvez fosse a lembrança que tinha de ser explorado por aqueles que o desprezavam. Fosse por que fosse, começou a interessar-se
pela loja. Era tranquilizador conversar com Sam, que tinha uma gratidão ilimitada por ele e o considerava um cavalheiro muito superior. Discutiu
com Sam, mostrando que ele quase sempre era logrado e tinha de vender os seus artigos abaixo do custo. O seu egocentrismo, havia tanto
espezinhado, cresceu e floresceu com as atenções de Sam. E então, um belo dia, empurrou Sam para os fundos da loja e enfrentou
pessoalmente as primeiras mulheres que apareceram para fazer compras. Estavam habituadas à tímida depressão de Sam que se acovardava
diante delas. Mas o que viam naquela hora era um irlandês truculento de rosto vermelho e um brilho belicoso nos olhos. Ao fim do dia, Gordon
estava exultante. O sucesso o embriagava. Tinha enfrentado o mundo, tinha lutado com ele e tinha vencido. Além disso, tinha conseguido pelas
mercadorias quase duas vezes mais que Sam.
Passou a ser sócio de Sam e este não se podia sentir mais feliz. Agora que estava livre da ingrata necessidade de tratar com o público, estava
cheio das ideias mais magníficas. Suas ideias eram intermináveis. Depois de fechada a loja, ele e Gordon se sentavam na pequena sala atrás
da porta dos fundos e conversavam. A velha Sra. Berkowitz mexia num caldeirão de ferro no fogão e olhava a ambos com amor.
Dentro de alguns meses, Gordon se havia mudado com a família da hospedaria onde estavam pessimamente alojados para um pequeno chalé
perto da loja. O jovem Stuart foi colocado em serviço ao balcão e na entrega das compras maiores. Nessa época, todas as prateleiras ficaram
cheias e a qualidade e variedade das mercadorias aumentaram. Stuart e seu pai vendiam os artigos. Sam comprava-os, examinando os
catálogos e as notas que eram mandadas pelos fabricantes e negociantes de outras cidades.
Ao fim de um ano, o jovem Stuart foi forçado a frequentar uma escola de primeira classe em Grandeville, onde travou conhecimento com a bem
nutrida progênie da cidade “velha”. Foi então que encontrou pela primeira vez a distinção entre as classes e o ódio racial pelo qual os Estados
Unidos seriam conhecidos no futuro. Chamavam-lhe de “irlandês sujo”, de “papista imundo” e de “rato de sarjeta”. Mesmo depois de convencer
os seus perseguidores de que não era “papista”, não podia negar o seu sangue irlandês. Entretanto, quando com os seus punhos e as suas
imprecações mais fortes, tornou conhecido geralmente o fato de que nascera na Escócia de mãe escocesa, a vida se lhe tornou mais tolerável.
Mas ele sabia e seus inimigos também sabiam que o pai dele pagava por sua educação o dobro da mensalidade paga pelos pais dos outros.
Não sendo tímido por natureza, chegou a ser agressivo e provocador por simples atitude defensiva. Era maior e mais pesado que os seus
contemporâneos. Tinha-se feito respeitar pela força dos braços e dos nomes feios. Não tinha a maior vontade de fazer amizade com esses
jovens nobres cuja riqueza provinha de curtumes, matadouros e pura venalidade. Mas Gordon, obcecado pela ideia de que o filho se tornasse
um gentleman, obrigava-o a frequentar a escola.
Quando Stuart completou dezoito anos e se viu livre da escola, onde, pelo menos, conseguira alguma proeminência em latim, literatura e belas-
artes, a loja se transformara no Empório Supremo de Grandeville. Além disso, tinha absorvido duas lojas vizinhas e estava prosperando. Tinha
até um segundo andar, o que era uma grande inovação. Gordon era um vendedor difícil, mas honesto. Sam era um hábil e bem inspirado
comprador. Tinha sido de Sam a ideia de que talvez as senhoras de Grandeville estivessem dispostas a comprar para as suas casas mais
artigos de qualidade do que até então tinham sido encontrados na cidade. Por que iriam as senhoras mandar buscar coisas em Chicago, Nova
York e Filadélfia, quando poderiam encontrá-las por um preço melhor ali mesmo em Grandeville? Além disso, muitas senhoras compravam
coisas nesses lugares distantes sem sequer vê-las. Ali, poderiam examiná-las, discutir o preço e pensar.
Em consequência disso, finas cortinas de rendas apareceram na loja. Poucas. Foram vendidas em dois dias. Mais tarde, o arrojado Sam
apresentou alguns excelentes tapetes orientais e alguns aparelhos de porcelana francesa importada. As senhoras ficaram entusiasmadas e a
loja passou a viver repleta. Além disso, havia ao balcão um moço elegante e belo ao lado do carrancudo Gordon, que nunca aprendera a bajular
ninguém. As carruagens enchiam a rua diante da loja e as senhoras diziam coisas muito vivas umas às outras quando se acotovelavam para
comprar. Um dia, a própria mulher do prefeito chegou com toda a sua pompa e saiu triunfalmente levando um aparelho de porcelana de
Limoges e um trinchante de prata, com uma raiva contida para as outras senhoras derrotadas.
Foi Stuart quem sugeriu que a loja poderia ser totalmente irresistível se perdesse o seu ar antipático e descuidado de velhice. Era um jovem de
muita imaginação, impulso e pitoresco. Além disso, como as senhoras tinham observado com aprovação, possuía um corpo muito elegante e
maneiras encantadoras. E foi assim que, mesmo sob os protestos irados do pai, estendeu um tapete de Bruxelas pelo andar térreo da loja e
colocou algumas cadeiras para o conforto das freguesas. Ele mesmo conservava as vitrinas das lojas rebrilhantes como espelhos. Chegou a
sugerir que se servisse chá às freguesas em determinadas horas, mas foi derrotado nisso pelo pai furioso, sendo abandonado até pelo seu
amigo mais leal, Sam Berkowitz. Desistiu da ideia, mas não de todo.
Quando Stuart tinha vinte e dois anos a loja era enorme e a mulher do prefeito dizia às amigas: “É quase tão grande quanto as lojas de
Filadélfia e, mesmo ali, duvido muito de que se encontre uma freguesia mais distinta.” A loja se estendia por três andares e tinha sido
consideravelmente ampliada. Blocos para descer das carruagens foram colocados junto aos passeios e havia sempre um boy, embora não
com o uniforme que o delirante Stuart havia projetado, para ajudar as senhoras a descerem.
Stuart não era completamente desajuizado. Sabia que o que dava sangue e vida a uma casa de negócio era a freguesia dos lavradores e dos
habitantes mais pobres da cidade. Por isso, ao lado da loja resplandecente e elegante, havia outra loja grande e limpa, mas mais simples,
onde se vendiam por preços módicos chitas e artigos domésticos. Ali, as mulheres dos lavradores e as senhoras mais humildes podiam fazer
suas compras, com seus xales e chapéus rústicos sem se sentirem intimidadas pela presença das pessoas mais ricas.
Stuart não era um cínico. Tivera a princípio um pouco de receio da sua ideia de fazer distinções de classes entre as freguesas. Não ficariam as
mulheres dos lavradores e as senhoras mais humildes zangadas com a sugestão implícita de que não eram dignas de misturar-se às mais
elegantes e que poderiam ser mais bem recebidas em outro lugar? Mas, com espanto e alguma decepção íntima, viu que a loja mais humilde
foi recebida com gratidão e prazer pelas freguesas. Viu então que seu gesto era apreciado e considerado muito conveniente por aquelas que
tinham sido sutilmente insultadas. Eram, portanto, os oprimidos que criavam os opressores, aceitando a opressão com um sentimento de
conveniência. Eram os oprimidos que faziam a distinção de classes, que se humilhavam diante dos “superiores” e se deixavam ser tratados
como seres humanos menores.
Cheio de compaixão e de desprezo, Stuart, nas horas de menor movimento na loja elegante, ia para o balcão da loja mais pobre. Mostrava-se
ali cheio de gentileza e cortesia, com um leve toque de requintada benevolência. Providenciava, porém, para que as mercadorias mais baratas
oferecidas fossem da melhor qualidade possível na sua espécie e para que os preços fossem razoáveis.
Ao tempo em que o pai de Stuart morreu, tinha o jovem vinte e cinco anos e o Empório Supremo de Grandeville estava absorvendo quase todo
o comércio das zonas rurais adjacentes. Havia departamentos em lojas subsidiárias, onde os lavradores podiam comprar arreios e
ferramentas, zuarte e botas, forragem e fumo. O Empório tinha devorado os pequenos estabelecimentos individuais que lhe haviam surgido
pelo caminho. A primeira loja, de departamentos tinha aparecido, embora ainda não tivesse esse nome. “Tudo Para a Mansão e Para a
Cabana” era seu lema, saído da cabeça de Stuart Coleman, competentemente ajudado e secundado por Sam Berkowitz, que era comprador e
tesoureiro.
Livre da inibição da presença de Gordon, que profetizava sempre os mais sinistros resultados das expansões e inovações, Sam mostrou
realmente todo o seu valor. Chegou a haver uma loja onde se vendiam exclusivamente estufas e equipamento para lareiras. Sam e Stuart foram
as alturas ainda mais vertiginosas. Numa pequena loja filial, havia artigos exclusivamente para crianças, do mais fino nanzuque a peças de
fazenda que podiam ser cortadas no tamanho apropriado para fraldas. Havia pequenos gorros e luvas de peles, feitos das mais finas peles
brancas, mantas para carrinhos de tamanho conveniente, berços de vime pintados de branco, brinquedos de madeira e as mais finas rendas
francesas.
Já então, o Empório Supremo de Grandeville tinha absorvido todo um quarteirão de lojas e armazéns e se estendia de frente para várias ruas,
magnífico e sem competidores.
Anos depois, outras grandes lojas iriam apresentar-se como os inovadores da loja de departamentos, mas na realidade o Empório Supremo
de Grandeville foi o primeiro de seu gênero e sua fama se estendeu até à própria Nova York.
Tudo isso não foi conseguido sem gigantescas tensões e aflitivas dívidas. Desde que Stuart e Sam aplicavam os seus lucros na expansão e
em mais arrojadas inovações, eram obrigados a tomar dinheiro emprestado. E como Joshua Allstairs controlava o Primeiro Banco Nacional e
era categoricamente contrário ao Empório Supremo de Grandeville, sem apresentar argumentos claros salvo o de achar o estabelecimento
“pretensioso” e ridículo, Stuart era obrigado a pagar juros exorbitantes. Mas o sucesso fantástico do Empório, graças à variedade de seu
sortimento e às suas inovações, sempre dissipou quaisquer dúvidas que Stuart pudesse ter. Quando tinha vinte e seis anos, um ano depois da
morte de seu pai, construiu a sua magnífica mansão, tendo contraído um empréstimo de dez mil dólares para poder fazê-la. Teve então um
motivo para a sua expansão e o seu sucesso. Extraía as ideias do cérebro inesgotável de Sam como um mágico tira coelhos de uma cartola.
Muitas vezes, os coelhos saíam de sua cartola também. Ele e Sam raramente discordavam.
Embora Stuart continuasse a ser “aquele irlandês” e não fosse plenamente aceito na sociedade mais alta de Grandeville, era bastante elegante
e rico para ser considerado um bom partido pelas moças das melhores famílias. Mas Stuart tinha a sua casa e isso lhe bastava. Os seus
desejos mais vigorosos eram perfeitamente satisfeitos numa certa casa discreta dos arredores da cidade, onde com frequência se encontrava
com os austeros maridos e pais da melhor sociedade. Ali, podia também beber e jogar num ambiente elegante. Joshua Allstairs, como era
natural, participava também dos lucros desse estabelecimento.
Dois anos antes da chegada de Janie a Grandeville, Stuart tinha tido permissão para travar conhecimento com Marvina Allstairs. Ela voltava de
uma escola para moças perto de Filadélfia e era dona de um guarda-roupa e joias notáveis. Era o tesouro do coração do pai e, de certo modo,
representava para o velho Joshua o que a casa representava para Stuart Era a razão de sua rapacidade e de sua cobiça, sua inflexibilidade e
sua ruindade, sua posse de bordéis e de bancos, seus vapores e seus negócios, seus investimentos e sua patifaria.
Joshua guardava-a zelosamente. Examinava cuidadosamente todos os convites que chegavam à casa e acompanhava-a aonde quer que ela
fosse. Era velho, egoísta e quase inválido, mas conseguia achar forças para que ela não fosse a lugar algum sem a companhia dele. Havia,
porém, poucas casas aonde ela pudesse ir e o pai não se cansava de desviar-lhe os pensamentos de Grandeville para Nova York, Boston e
Filadélfia e, melhor ainda, para a Inglaterra, onde estava na realidade o destino dela. Residia temporariamente em Grandeville, mas não viveria
para sempre naquela pequena cidade.
Stuart poderia nunca ter conhecido essa pérola de mulher se não tivesse feito uma noite uma visita inesperada ao velho Joshua na casa deste
a fim de pleitear um empréstimo urgente para sua casa.
Marvina estava sentada com o pai no enorme e sombrio salão da horrível casa quando Stuart chegou e foi-lhe apresentado.
Foi Marvina, e não Stuart, quem resolveu que ia ficar em Grandeville e casar-se com ele.
CAPÍTULO 10
Stuart fora levado cerimoniosamente ao salão onde o velho Joshua pairava como uma aranha cinzenta e magra sobre a mosca luminosa da
filha. Nada havia na cabeça em ebulição de Stuart além dos planos de sua casa. Como muitos homens de temperamento violento e veemente,
só podia pensar numa coisa a cada tempo e essa coisa, no momento, era a bela mansão que estava projetando perto do rio. Na verdade,
quando viu à luz fraca das lâmpadas um vulto feminino, sua primeira sensação foi de irritado aborrecimento e frustração. Ficou ciente de que se
tratava da filha de Joshua e de que a presença dela iria dificultar-lhe as argumentações persistentes que já havia mentalmente elaborado.
Um empregado acendeu discretamente mais duas lâmpadas e as sombras recuaram um pouco, mostrando ainda melhor a hediondez do salão
guarnecido de vermelho-escuro e de mogno, com suas extensões de veludos e tapetes de Bruxelas, os lambris de carvalho e o escasso fogo
no fundo da lareira de mármore preto. Stuart deu um profundo suspiro. Aquele salão, repleto dos mais pesados e mais horrendos móveis de
mogno, atravancado de mesinhas redondas cobertas de panos de veludo bordados a ouro e com pequenas borlas e juncadas de abajures de
bronze e de porcelana e de uma profusão de enfeites e de objects d’art, sempre o sufocava e lhe dava uma sensação de infinita tristeza. Desde
que o ar jamais entrava naquela casa, havia um cheiro penetrante de mofo, cera e umidade. Era uma atmosfera hostil e repulsiva, acentuada
pelos retratos escuros espalhados pelas paredes. Percebia-se instintivamente que ali só havia desconfiança e ódio em relação a todos os que
eram de fora. Era um lugar odioso, não menos odioso do que o dono da casa e quem entrava ali não podia deixar de ter consciência da má
vontade, da rapacidade e da ruindade do homem. Até a criadagem se ajustava perfeitamente à maneira de ser do patrão e demonstrava pelos
olhares furtivos e inamistosos que aquilo era uma antecâmara do inferno servida por demônios menores.
Stuart, que já conhecia o ambiente da terrível casa, se fortalecera previamente com uma boa dose de uísque. Apesar disso, não pôde deixar de
sentir um arrepio e o sangue congelar-se. Não seria surpresa se a respiração lhe saísse dos lábios numa nuvem de vapor.
O velho Joshua não se moveu da sua poltrona de alto espaldar ao lado da lareira. Limitou-se a apertar as mãos nodosas no castão da bengala
e a contemplar Stuart com os olhos apertados. Mas a filha, surpresa com aquela visita inesperada, levantou-se numa onda de gentil confusão e
incerteza. Sabia que o pai não queria que ela se mostrasse gentil com qualquer pessoa de Grandeville e a sua primeira ideia foi fugir. Mas
Stuart apareceu perto da porta do salão e ela não pôde conter uma pequena exclamação de surpresa.
Na verdade, Stuart, com as suas calças justas, tão esticadas ao longo das pernas que pareciam outra pele, com botas estreitas bem polidas,
elegantemente vestido num casaco marrom, com colete florido e camisa de folhos, os dedos rutilantes de anéis e uma corrente de ouro a brilhar
no colete, era a coisa mais bela que ela já havia visto em matéria de homens jovens. Era tão alto, de ombros tão largos, de rosto tão moreno,
jovem e cintilante, de presença tão insinuante que a moça ficou parada, como que fascinada e boquiaberta de espanto.
Desde que Joshua sempre se havia referido a Stuart, nas poucas vezes em que o mencionara com desprezo à filha, como “aquele irlandês
estúpido”, Marvina ficou por um momento sem poder acreditar que aquele fosse o jovem Sr. Coleman. E assim só pôde ficar parada junto à
lareira como uma ave bela e tímida prestes a levantar voo e olhar para Stuart na mais completa estupefação.
Dominado pela ideia de convencer o velho Joshua a emprestar-lhe dez mil dólares e passando em revista todos os seus argumentos, ao
mesmo tempo que tentava respirar naquela atmosfera sufocante e úmida, Stuart não concentrou logo a sua atenção em Marvina. Só depois que
o velho Joshua resmungou “boa noite” e apontou para a moça numa espécie de apresentação contrafeita é que Stuart tomou conhecimento por
inteiro da presença dela. Cumprimentou-a com indiferença e, então, empertigou-se todo, pois a vira e havia ficado atônito.
Nunca vira beleza mais perfeita, tanta esbelteza de corpo e perfeição de rosto, tanta graça e leveza. Marvina tinha apenas dezesseis anos, mas
a altura e o porte faziam-na parecer alguns anos mais velha. Usava um vestido de cetim cinza, justo até à delgada cintura, de onde descia até o
chão num enorme sino cintilante e drapejado, colhendo a luz em centenas de ondas prateadas. Os ombros de marfim estavam quase de todo
nus e possuíam uma forma delicada e perfeita, parecendo à luz da lâmpada brilhar como se tivessem sido polidos e amaciados pela mão
enternecida de um artista. Os braços estavam nus também e mostravam a mesma qualidade delicada e perfeita. Stuart pôde ver de relance o
jovem seio suave e que pulsava delicadamente na sua doçura de marfim. Tinha ao pescoço um colar de pérolas que brilhavam com vida
própria sobre a carne não menos perfeita.
Se o corpo era belo, o rosto não o era menos e Stuart o olhou, completamente estarrecido. Era oval e cinzelado em planos frágeis de extrema
delicadeza e perfeição, na sua palidez. Mas a boca cheia, embora não fosse grande, era como uma doce ameixa escura e os grandes olhos
brilhantes eram de um espantoso tom dourado, vivido e radiante, que escurecia e se expandia por entre espessos cílios pretos como um fogo
de ouro. O nariz era pequeno e quase translúcido, com narinas que pulsavam encantadoramente. Os cabelos fartos, negros, cintilantes e lisos,
penteados para trás da testa baixa e larga, passavam pelas orelhas onde brilhava uma pérola e iam terminar num chignon espesso na base do
pescoço branco.
Tão ofuscante era a sua beleza que escondia, como uma luz forte, qualquer indício de sua natureza. Era impossível dizer que espécie de
espírito vivia por trás de toda aquela beleza e perfeição. Era estática. Nem mesmo o fogo líquido dos olhos dava o menor indício. Era como a
cintilação distante e fria das estrelas. E era assim que para quase todos, até para seu pai, ela possuía uma qualidade de mistério e distância.
O velho Joshua viu a estupefação de Stuart. Isso não lhe desagradou. Sorriu sob seu longo nariz de abutre. Seu egoísmo e a paixão que tinha
pela filha eram invariavelmente exaltados quando via o efeito da beleza dela sobre os outros, como se ela fosse uma obra de arte que ele
tivesse trazido de lugares distantes para exibi-la ali. Quando os criados olhavam para ela com intimidada admiração, não se sentia afrontado.
Esperava, quase exigia, para ela, dos mais altos e dos mais baixos, uma assombrada adoração.
Por isso, ficou ali sentado em sua poltrona, curvado e entrevado, quase paralítico, como uma emaciada aranha cinzenta, as mãos nodosas
sobre o castão da bengala e os olhos maus rebrilhantes de satisfação ao perceber as manifestações de atônita incredulidade de Stuart Era um
homem baixo, mal chegando aos ombros da filha e estava tão atacado de reumatismo, vivendo tão aflito pelas dores da carne e dos ossos
encolhidos, que não podia caminhar sem a bengala e, ainda assim, de maneira rastejante e oblíqua, todo encurvado. Fazia um barulho
arrastado e intermitente quando andava e esse barulho, quando ouvido nos corredores dos bancos ou das casas a que ia de raro em raro em
companhia da filha, infundia um estranho e trêmulo terror no coração dos que o ouviam, tinha um rosto estreito, como de um “linguado cinzento”,
segundo dizia Stuart, mas encimado por um espantoso crânio redondo e grande, que parecia feito de pedra polida. A sua expressão sarcástica
e perversa se animava às vezes de temível alacridade sempre que se enfurecia ou achava uma graça perversa em alguma coisa, quando
projetava novos lucros ou uma patifaria nova ou quando via as lutas inúteis de suas vítimas, que eram muitas.
Joshua Allstairs tinha-se casado já com mais de cinquenta anos com uma moça tímida e muito bela, natural de Filadélfia e filha de um homem
irremediavelmente endividado com Joshua. A pobre moça tinha vivido apenas um mês depois do nascimento de sua filhinha e tinha expirado
num último alento satisfeito de libertação. Agora, Joshua tinha mais de setenta anos e a idade só servira para aumentar a maldade de sua alma
e as suas sinistras maquinações.
Vestia-se de cinza com toques de prata o que lhe acentuava os atributos de corpo e de espírito que o fariam parecer uma aranha. A sua terrível
casa era como uma enorme e imóvel concha de pedra em cujo centro ele vivia como uma palpitação vigilante de malignidade, constantemente
alerta e ameaçadora, sem a menor piedade.
Ali estava o alto poder de Grandeville. Até as cidades de Nova York, Boston, Filadélfia e Chicago sabiam de sua existência, odiavam-no e
temiam-no.
— Sente-se, Sr. Coleman, sente-se —, disse, num tom irascível depois de ter-se rejubilado com o mudo espanto de Stuart. Olhou para a filha,
hesitou e, então, tornou a olhar para Stuart O seu olhar era como uma faca rebrilhante arremessada. Tinha o costume de mandar Marvina sair
sempre que apareciam pessoas estranhas. Mas estava com disposição a divertir-se naquela noite. Seria interessante observar Stuart
completamente escravizado. Tocou então a filha de leve, mas firmemente com a mão ressequida e ela tornou a sentar-se, sem dizer uma
palavra. Stuart, movendo-se como se estivesse atordoado, sentou-se também na poltrona que Joshua lhe apontou. Os dois jovens continuaram
a olhar um para o outro como se estivessem enfeitiçados.
Joshua levantou tanto os ombros que eles quase lhe chegaram às orelhas. Descansou o queixo nas mãos entrelaçadas no castão da bengala.
Olhou Stuart quase com maliciosa afeição.
— Então, como é que vai sua magnífica loja? — perguntou ele com a voz fina, mas maligna, cheia de zombeteira indulgência.
— Muito bem —, murmurou Stuart com voz rouca, sem afastar os olhos de Marvina.
Que beleza! Que beleza arrasadora! Não sentia o coração atingido. Estava apenas deslumbrado. Não sentia suas paixões e seus desejos
despertados pela moça, do mesmo modo que não o seriam por um retrato de comovente doçura.
Os seus pensamentos eram confusos. A imaginação lhe representou uma escadaria branca que se curvava para o alto como uma fica de
mármore e por essa escada deslizava Marvina com vestido prateado como o luar, com todos os seus movimentos e gestos luminosos e leves
como prata líquida. A imagem era tão cheia de encantamento que lhe deu um baque no coração. O sangue começou a correr-lhe
aceleradamente nas veias e ele pensou, na sua confusão, que aquela imagem seria realidade algum dia. Nada poderia impedi-lo. Era uma
coisa decidida e firme. As suas pulsações estavam começando a fazer-lhe mal na sua rapidez e violência. Mas o coração ainda estava
incólume, e o desejo também, mas firmou-se na determinação de ter a sua casa com aquela escadaria por onde teria de deslizar Marvina.
Joshua apertou ainda mais os olhos. Então aquele grosseiro e audacioso moço tinha sido flechado, hem? Aquele demônio ímpio e profano,
com suas roupas elegante e suas dívidas, sua ânsia pelo jogo e suas mulheres, nunca! Joshua passou furtivamente a língua pelos lábios e
ergueu ainda mais os ombros ossudos. Se quisesse, podia olhar para Marvina. Daí não passaria.
— Quer um pouco de chá ou de cidra fresca? — perguntou ele. — Como deve saber, meu caro Stuart, não se serve álcool nesta casa, nem
mesmo vinho.
Stuart voltou-se para ele, como se estivesse sonhando. Olhou para Joshua durante algum tempo e pôde afinal murmurar com voz rouca:
— Não, muito obrigado.
Era visível a luta que se travava dentro dele. Aprumou o corpo na poltrona e comprimiu fortemente os lábios, que ficaram um pouco descorados.
A sua expressão era sombria, mas havia no fundo dela firmeza e determinação.
Joshua olhou para a filha e então franziu a testa e se moveu inquietamente na poltrona. Que era que tinha havido com a menina? Estava
olhando firmemente para Stuart, com os lábios entreabertos e os olhos banhados de uma luz embevecida. Que diabo!
Bem. Não era de admirar essa atitude dela. Nunca vira tanto brilho e vigor em toda sua vida. Menina boba. Era preciso mostrar-lhe sem demora
que, por trás de toda aquela vitalidade, boa aparência e energia, estava o espírito mais infantil que era possível e talvez também o mais
inconsequente e imbecil. Tinha de abrir-lhe os olhos e mostrar o idiota que ele era, fantástico e inconsciente. Mais tarde, ela também zombaria
dele deliciosamente com o pai.
Stuart estava decidido a não olhar para Marvina de novo até cumprir o propósito que levara até ali. Na verdade, não tinha coragem de olhar.
Levantou a cabeça num desafio e olhou para o velho.
Joshua olhou sorridente para a filha que sonhava.
— Querida, você deve um dia visitar a loja do Sr. Coleman ou melhor, as lojas. É tudo muito notável. Sentimos verdadeiro orgulho do Empório
Supremo de Grandeville, orgulho e espanto!
A moça voltou lentamente a cabeça para o pai. Parecia estar dormindo embora estivesse com os olhos bem abertos.
— Está bem —, murmurou ela, com as mãos brancas entrelaçadas no colo.
— Não sei se ainda se lembra, querida, mas passamos por... essas lojas quando voltávamos da igreja ontem. Achou tudo muito divertido,
lembra-se?
A moça ficou em silêncio. Olhava apenas para Stuart e este olhava apenas para Joshua. O rosto dele estava ainda mais carrancudo. Tinha
gotas de suor na fronte, embora a frigidez da sala não houvesse diminuído.
— Espantoso, tudo espantoso —, murmurou Joshua, com um breve riso no fundo da garganta seca. Em seguida, levantou o dedo nodoso e
balançou-o para Stuart, sorrindo. — Mas há um limite para o espantoso, não acha? Às vezes, é preciso espantar menos e refletir mais.
As espessas sobrancelhas grisalhas em tão vivo contraste com a expansão polida do crânio se arquearam diabolicamente sobre os olhos
malévolos. Olhando-o, Stuart sentiu as pulsações tomarem um ritmo doentio. Não podia olhar para aquele homem sem ódio e sem um
inexplicável medo.
— Será que se está referindo à hipoteca que tem sobre as três lojas mais novas? Não está recebendo pontualmente os juros devidos?
Joshua encolheu os ombros, levantou uma das mãos da bengala e deixou-a cair.
— Sem dúvida alguma. Não recebi a menor queixa do banco. Nada tenho de que reclamar, caro Stuart. Mas deve perdoar o meu interesse, por
assim dizer, paternal. Sempre me interessei muito por seus arrojados empreendimentos e nunca deixei de admirá-los. Não obstante, tenho tido
momentos de inquietação em que me pergunto: “Será que esse jovem se está expandindo além da sua capacidade de absorver o
investimento?” Até agora, muito bem. Orgulho-me de você, meu jovem. Perdoa as preocupações de um velho, não é mesmo?
Stuart ficou em silêncio durante alguns momentos, olhando Joshua com aquele perigoso, mas invencível ódio. Ficou mais carrancudo do que
nunca e disse sem qualquer entonação na voz:
— Muito obrigado, Sr. Allstairs.
Joshua inclinou a cabeça humildemente.
— Posso estar errado e até parecer às vezes intrometido, mas o bem-estar de meus jovens amigos está sempre em meu coração.
— E o seu dinheiro também, Sr. Allstairs —, disse Stuart, sem poder conter as palavras rudes e insolentes.
Joshua ficou encantado com isso. Olhou de relance para a filha Um pouco de cor tingia o marfim pálido do rosto de Marvina. Ótimo! Ela então
havia ficado indignada com aquilo?
— Dinheiro... — murmurou o velho, inclinando a cabeça para o lado. — É a raiz de todo o mal, segundo diz a Bíblia. Mas eu tenho obrigações
para com os meus depositantes.
Miserável, porco e explorador hipócrita, pensou Stuart, apaixonadamente. Mas, dessa vez, refreou a língua. Tinha consciência dos olhos de
Marvina voltados para ele como uma corrente elétrica, mas não se voltou para ela.
— Há muito tempo, descobri qual é a coisa mais difícil nesta nossa vida melancólica —, disse Joshua Allstairs, num tom tristonho e meditativo
—, é conciliar as exigências do mundo com nossa consciência. É preciso transigir, sempre transigir. Deve-se dar a César o que é de César e a
Deus o que é de Deus.
Como, por exemplo, os lucros que você tira dos bordéis, pensou Stuart. Apertou ainda mais os lábios. Mas, apesar de seu silêncio, havia nela
uma sombria e profunda tensão que Joshua, que era muito arguto, sentiu e compreendeu. Isso lhe agradava cada vez mais. Talvez fosse
possível incitar o idiota a dizer alguma coisa que o desmoralizasse de todo...
— Não obstante, é difícil —, murmurou ele, deixando cair a mão com um gesto patético. — Às vezes, é preciso ser firme em face das mais
urgentes súplicas, como acontece no caso de uma renovação de crédito a certos lavradores e negociantes. Fica-se entre as comoventes
súplicas dos que não podem saldar os seus compromissos, de um lado, e a confiança dos depositantes, do outro. Que se pode fazer? Como
se pode chegar a uma conciliação?
— Espero —, disse Stuart, com venenosa ironia —, que eu nunca o venha forçar a tão aflitiva decisão.
— Espero que não, espero que não —, disse Joshua, quase num sussurro. — Eu não saberia o que fazer. Teria de levar o problema aos pés
de Deus e esperar humildemente uma solução.
Stuart sentiu-se quase sufocado de raiva e de desprezo. Cerrou os punhos com força e por um momento esqueceu a presença de Marvina no
seu desejo de esmagar aquele abominável santarrão.
Joshua olhou-o com fingida ternura e disse:
— Você me compreende, não é assim, Stuart? Só um crente poderia fazer o que você está fazendo, ajudando o nosso prezado Sr. Houlihan a
construir uma igreja.
— Ele se chama padre Houlihan, Sr. Allstairs —, disse Stuart com voz contida.
Joshua tornou a entrelaçar as mãos e descansá-las no castão da bengala.
— Perdoe, meu jovem amigo, mas me julgo na obrigação de instar mais uma vez para que visite minha igreja, partilhando das consolações do
serviço e das verdades do Evangelho.
Stuart respirou fundo e seus olhos brilharam.
— Sr. Allstairs, estou disposto a acompanhá-lo a qualquer parte, até ao inferno, se escutar e consentir na proposta que lhe vou fazer.
Diante dessas palavras espantosas e imprudentes, Joshua olhou para a filha. Ainda olhando para ela, disse com uma voz cheia de tristeza e
censura:
— Devo lembrar-lhe, meu caro senhor, que há uma jovem presente e eu não permito que se fale dessa maneira na presença dela.
Marvina tinha ficado muito pálida. Baixara a cabeça e o pai não podia ver-lhe o rosto. Mas podia perceber que ela estava tremendo. Para ele
bastava.
Stuart levantou-se e disse, cheio de agitação e de fúria:
— Apresento minhas desculpas a sua filha, Sr. Allstairs. Se ela quiser, levá-la-ei para fora desta sala. Mas não tenho mais tempo a perder.
Joshua levantou a mão.
— Tenho certeza de que minha filha o perdoa, meu jovem. Não vamos falar mais nisso. Tenho certeza também de que ela compreende. Ela já
perdoou seu sangue irlandês e suas relações com pagão papista, não é assim, querida?
Marvina produziu um leve murmúrio. Em seguida, levantou a cabeça e, desviando-a dos dois homens, olhou fixamente para o fogo.
— Não julgo a ninguém —, disse Joshua numa voz branda, mas carregado de intenção. — Essa não é minha província. Deixo isso aos
cuidados de Deus.
— Muito nobre de sua parte —, disse Stuart, já completamente desorientado. — Creio que o Onipotente deve ser grato por tanta
condescendência.
Era um homem inteligente e se arrependeu, como de costume. Via com bastante clareza que tinha feito inocentemente o jogo daquele
demônio. Mas isso era coisa que naquele momento não lhe importava muito. Exclamou:
— Quer ou não quer que eu lhe exponha um assunto da maior urgência?
Joshua olhou para Stuart com um sorriso de simpatia e disse:
— Sente-se, meu caro jovem. Deixa-me nervoso assim de pé com as mãos nas costas da cadeira. Mas veja, vivo muito sozinho. É raro para
mim ter oportunidade de discutir com um amigo assuntos que me são caros.
Quase cego de desgosto e raiva, Stuart sentou-se de novo, com o corpo empertigado e um pouco ofegante. A vontade que sentia era dizer
alguns desaforos bem contundentes a Joshua, mas se conteve, ainda que tardiamente. Disse, entretanto, com violência e o calor ainda a
dominá-lo:
— Devo entrar logo no assunto, sem fazê-lo mais perder tempo. Sr. Allstairs?
— Pode falar, meu caro Stuart —, disse Joshua, com um gesto condescendente da mão.
— Quero um empréstimo de dez mil dólares.
CAPÍTULO 11
Uma coisa era provocar Stuart para que seu temperamento irlandês quente e irrefletido se manifestasse para sua humilhação e ruína. Outra,
bem diferente, era discutir negócios com ele, quando Joshua poderia ver-se forçado a demonstrar sua avidez e frieza para espanto e talvez
aflição da filha.
Joshua nunca dissera à filha uma só palavra a respeito de seus negócios. Ela não devia saber que o dinheiro que lhe comprava as mais finas
pérolas, peles, fazendas e carruagens, joias e escolas tinha a sua origem nos bordéis, nas fazendas tomadas aos lavradores no vencimento
das hipotecas, nas lojas e pequenas indústrias arruinadas e nos pardieiros da cidade em expansão. Aproveitava-se, para isso, da velha ideia
convencional de que as mulheres não têm capacidade para compreender as complexidades financeiras e não tinham interesses além dos seus
vestidos, de suas casas e de suas famílias.
Em vista disso, sorriu para Stuart com doçura quase paternal e disse suavemente:
— Dez mil dólares? Como é precipitado, meu jovem! Bem, teremos de discutir isso, não acha?
Virou-se para a filha e disse gentilmente:
— Querida, posso pedir-lhe que se retire para que o Sr. Coleman e eu possamos ter uma enfadonha conversa de negócios?
Stuart compreendeu e não reprimiu o seu sorriso contrafeito. Levantou-se prontamente e cumprimentou a moça incerta. Ela se levantou tão
graciosamente quanto uma ave se levanta no ar, com um forte rubor nas faces, e olhou para o pai, que também se levantou com muita
dificuldade. Marvina estava evidentemente muito confusa. Curvou-se e beijou o rosto de Joshua, enquanto suas belas mãos se agitavam um
pouco. Joshua lhe retribuiu o beijo e afagou-lhe o rosto.
— Boa noite, meu bem —, disse ele e, naquele momento, uma luz estranha lhe brilhou nos olhos maus.
Ela se voltou para a porta. Stuart se dirigiu prontamente para onde ela estava e levou-a até à porta. Cumprimentou-a então de novo. Ela era
muito alta. Os olhos dela estavam apenas um pouco mais baixos do que os dele, quando ela os levantou lentamente, movendo os negros cílios.
Stuart estava bem perto dela e podia ver-lhe a perfeição translúcida da pele e o vermelho dos lábios. Foi então que pela primeira vez a desejou.
A luz dourada daqueles olhos deslumbrou-o. Sentiu um calor pelo corpo e um zumbido nos ouvidos. Olhou profundamente para dentro do ouro
liquido dos olhos e para a leve separação entre os seios que o decote mostrava. Pensou que era a inocência que o olhava do fundo daquela
confusão e daquele silêncio. Não sabia ainda que era apenas o vazio.
Ela se ruborizou de novo, a tal ponto que até as orelhas ficaram carminadas. Depois, cumprimentou brevemente e afastou-se. Ele ficou a olhá-
la. Viu-a subir como um pássaro, alada e sinuosa, a enorme escadaria de carvalho e de mármore, apoiando-se no corrimão, com as saias
prateadas flutuando atrás dela. Passou por uma lâmpada e a luz brilhou no macio negror de seus cabelos. Ela não olhou para trás, mas se
moveu muito devagar, com uma graça infinita e indescritível, sabendo que ele a olhava. Só depois que ela desapareceu por completo de sua
vista foi que ele pôde voltar-se.
Voltou lentamente para a sala. A frieza e a umidade tinham deixado de agir sobre ele. Sentia todo o corpo aquecido e vibrante. Ocorreu-lhe de
súbito que não ouvira absolutamente a voz de Marvina salvo no breve murmúrio com que ela havia respondido ao pai. Pouco importava.
Desejava com imensa paixão aquela criatura tão bela.
— Bela menina, hem? — perguntou Joshua com voz quase suplicante, ao mesmo tempo que olhava atentamente Stuart.
Este nada disse. Olhou para o fogo, cujo calor lhe parecia agora insuportável. Tornou a sentar-se e respirou fortemente. Joshua, que já estava
decidido a informar que a filha estava destinada a uma vida muito longe de Grandeville, resolveu ficar calado. O idiota que se emaranhasse à
vontade em sonhos e desejos inúteis. Seriam maiores assim seus sofrimentos e humilhações posteriores.
— Dez mil dólares? — murmurou Joshua, sacudindo a cabeça com um ar de amável censura. — É muito dinheiro, Stuart! Não se esqueça de
que ainda me deve doze mil dólares.
Esfregou as palmas das mãos produzindo um som como o de uma cobra que passasse por cima de folhas secas. Riu benignamente.
Stuart recuperou a sua presença de espírito com dificuldade. Por fim, lembrando-se da casa que queria construir e que seria um cenário tão
apropriado para aquela divina criatura que lhe deslumbrara os sentidos e encantara o espírito, sentiu que a determinação e o ardor lhe voltavam
impetuosamente. Quase gritou em resposta:
— Não tem motivo algum de queixa! Tem recebido regularmente as amortizações e os juros!
— É a pura verdade, é a pura verdade —, disse Joshua com voz cheia e assentindo benevolamente. — Não me arrependo de emprestar-lhe o
dinheiro, Stuart. Dinheiro é como ferramenta e enferruja com a falta de uso. O seu crédito comigo é muito alto. Mas creio que não se
incomodará se, em nome de meus depositantes — o que é para mim um mandato sagrado, Stuart — eu procurar satisfazer-me com algumas
perguntas, não é mesmo?
— Pode fazer as perguntas.
— Posso saber então qual é o novo plano que lhe exige esses dez mil dólares, que você vem pedir com tanta calma?
Stuart inclinou-se para ele e aproximou a cadeira. Apesar do exíguo calor da lareira, tinha as faces em fogo e os olhos lhe ardiam.
— Quero uma casa, uma boa casa, uma casa tal como não existe em Grandeville, atualmente. Deve ser alguma coisa fora do comum, uma
casa feita não para se viver temporariamente, mas para sempre. Tenho os planos todos na cabeça e quero tudo do bom e do melhor. Os dez
mil dólares — acrescentou de imprudentemente no seu entusiasmo — serão apenas um começo.
— Ah —, murmurou Joshua, estreitando os olhos voltados atentamente para o outro.
— Tenho oito mil dólares em dinheiro para começar e gostaria de ter mais. Mas Sam e eu empregamos nas lojas tudo o que ganhamos. Temos
uma encomenda a chegar pela qual já pagamos quatorze mil dólares. Mas os oito mil dólares chegarão para começar. Já comprei a pedra pela
qual pagarei cinco mil dólares que sairão dos oito mil de que disponho. Mas isso é apenas o começo e é por esse motivo que eu preciso dos
dez mil dólares.
O rosto de Joshua nada revelou sobre seus pensamentos. Limitou-se a perguntar:
— Onde pretende construir?
Stuart hesitou por um momento e então se abriu.
— Quero comprar algumas terras que lhe pertencem. Tem um grande terreno perto do rio. Dois hectares, se não estou enganado. Ou talvez
mais. É o que eu desejo comprar.
— Dois hectares! — exclamou Joshua, pigarreando para ganhar tempo. — Para lhe dizer a verdade, eu mesmo estava pensando em construir
ali. Tenho também outros planos, como, por exemplo, uma seção de cais naquele local. Talvez a estrada de ferro, que não tardará a chegar a
Grandeville, venha a precisar daqueles terrenos por um bom preço. — Sacudiu a cabeça. — Não, Stuart. Escolha e compre outro lugar para sua
casa. Eu teria de pedir um preço acima de suas forças e isso seria muito ruim para nós dois.
— Quanto? — perguntou Stuart, encarando-o cheio de ódio.
— Aquele terreno — disse Joshua — fica no ponto mais estreito do rio. Já ouvi dizer que se pretende estabelecer um novo serviço de barcas e
haverá necessidade de construir cais, barracões, etc.
— Quanto? — tornou a perguntar Stuart, com o rosto franzido de tensão.
Joshua examinou os dedos e olhou afetadamente para Stuart, dizendo então:
— Mil e seiscentos dólares o hectare.
— Mil e seiscentos? — exclamou Stuart. Ficou durante alguns momentos sem poder falar. Murmurou afinal em voz contida: — Ora, ora!
Comprou todas aquelas terras, cerca de cem hectares, por 1.000 dólares. Isso aconteceu há menos de cinco anos. Pagou dez dólares por
hectare e tem coragem de pedir agora 1.600 dólares pelo que lhe saiu quase de graça?
— Isso foi há cinco anos —, disse Joshua sorrindo em lugar de ficar zangado. — Grandeville cresceu consideravelmente de lá para cá, meu
jovem. E justamente a expansão da cidade vai seguindo o caminho do rio. Daqui a mais cinco anos, aquelas terras valerão o dobro do que lhe
estou pedindo. Vou-lhe dizer uma coisa. Ainda na semana passada, um negociante de cereais quis comprar-me parte daqueles terrenos para
construir depósitos. Ofereceu-me dois mil dólares por hectare e eu não aceitei. O preço de mil e seiscentos que lhe estou propondo é na
realidade uma concessão que eu lhe faço.
— Não há nesta região terreno algum que valha mil e seiscentos dólares o hectare e você sabe muito bem disso, seu... seu...
Joshua encolheu os ombros com paciência cristã.
— Está bem, Stuart. Não vejo necessidade alguma de discutirmos. Mil e seiscentos dólares é o meu preço e eu realmente não tenho a menor
vontade de vender. Por que não constrói sua casa em outro lugar? Tenho bons terrenos que poderão interessar-lhe a oitenta dólares o hectare.
— Onde?
Joshua pareceu imerso em profunda concentração e ergueu os olhos para o teto cheio de sombras.
— Deixe ver... Ah, já sei! Tenho um terreno ótimo para você, Stuart! Fica bem perto da casa de seu grande amigo o Sr. Houlihan... perdão, o
“padre” Houlihan. Fica na zona sul da cidade. Reconheço que em alguns pontos aquela zona não é muito desejável. Mas há nas bordas, vamos
dizer, um terreno verdadeiramente excelente. Quatro hectares. Posso vendê-lo a cem dólares por hectare.
— Junto da pedreira e das olarias?
— É claro. Estou vendo que conhece bem o local. Seria ótimo quando quisesse visitar seu amigo. Fica apenas a alguns passos da casa dele.
E, desde que são tão bons amigos, a presença dos paroquianos dele deve dar-lhe considerável prazer.
Stuart encarou-o com os olhos fuzilantes.
— Minha casa! Acha que eu iria construir minha casa perto daqueles suínos alemães e daqueles estivadores e varredores de ruas irlandeses?
O velho ódio dos celtas pelos teutos congestionou-lhe o rosto a ponto de parecer que ele ia sufocar. Levantou as mãos num gesto violento.
— Meu caro amigo, meu caro e jovem amigo! — exclamou Joshua, abrindo os braços em fingido horror. — Você me surpreende! Não são
todos esses homens nossos irmãos aos olhos de Deus? E não estamos numa república onde todos os homens são iguais? Além disso, não se
esqueça de que é irlandês.
Stuart não se pôde mais conter e levantou-se num repelão. Olhou para Joshua com tanta raiva que o velho estendeu involuntariamente a mão
para a corda da campainha a fim de chamar os empregados. Mas não chegou a puxá-la. O olhar de Stuart paralisava-o e ele se limitou a voltar
para o jovem com olhos esgazeados nos quais se estampava o medo.
— Perto de seus bordéis? Perto de suas tavernas? Perto de seus matadouros, olarias e curtumes imundos? — perguntou Stuart, cerrando e
descerrando as mãos com incontrolada fúria. — Onde eu poderia ter o espetáculo de suas prostitutas desfilando diante de minha casa à noite e
ver os bêbedos atirados na sarjeta pelos seus empregados? Meu Deus! Palavra que eu devia matá-lo pelo desaforo!
— Calma, calma —, murmurou Joshua, lançando um olhar inquieto e sinceramente alarmado para a porta. Continuou a falar, tentando
dissimular o seu medo. — Sente-se, meu caro Stuart, faça o favor. Deixe de me olhar como um touro enraivecido. Se o ofendi dizendo que não
é melhor do que as pessoas que moram naquela parte da cidade, peço-lhe desculpas. Mas repare que você mesmo, em vista das suas
ligações com aquele degradado papista Houlihan e com o judeu Berkowitz, perdeu quase qualquer direito a consideração por parte da
sociedade. Cavalheiros que têm pretensões a alguma distinção não se ligam a criaturas assim. “Pelos seus amigos serão conhecidos”,
podemos dizer parafraseando as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo.
— E você se atreve a mencionar o nome do padre Houlihan em relação a você? — gritou Stuart, quase fora de si. — Acredita por um momento
sequer que se pode comparar a Sam Berkowitz? Você que nunca teve um pensamento honesto nessa cabeça imunda, que nunca fez caridade
a ninguém, que nunca teve um gesto de bondade em toda a sua vida?
Joshua recostou-se na poltrona, embora o seu corpo anquilosado estivesse retesado pelo medo. Assumiu um ar de complacente
superioridade. Olhou para Stuart com profunda e agitada tristeza.
— Meu caro jovem, estou surpreso e até magoado com sua extraordinária exaltação. Nunca tive má intenção. Nunca alimentei em meu coração
sentimentos baixos de raiva ou de vingança. Fui eu que lhe pedi que viesse a minha casa esta noite e me pedisse um empréstimo de dez mil
dólares? Eu lhe disse por acaso: “Sr. Coleman, tenha a bondade de entrar em minha casa e iniciar negociações para a transferência de dez mil
dólares de meu bolso para o seu?” Foi por minha vontade que veio e é por minha vontade que me está insultando?
Stuart ficou em silêncio. Sentia-se de repente terrivelmente mal. Arrependeu-se de ter deixado à solta a sua língua, que era como um cavalo
fogoso e incontrolável. Tinha perdido a casa, tinha perdido Marvina. Para sempre. Pior ainda, julgava-se um rematado idiota.
Joshua olhou-o atentamente. Viu Stuart empalidecer. Não sentiu a menor piedade pelo jovem impetuoso e de sangue quente a quem humilhara
tanto. Era insignificante, desprezível, menos que um cão, menos que poeira! Era um patife irlandês!
Entretanto, nenhum desses pensamentos malévolos se estampou no rosto do velho. Ao invés disso, numa voz repassada de gravidade e
gentileza, murmurou:
— Sente-se, Stuart. Sinto muito não poder aceitar as suas condições. Mas ouça o que vou fazer. Estou disposto a vender-lhe meio hectare
daquelas terras por setecentos dólares. São seiscentos dólares menos do que me ofereceu o homem dos cereais. Que é que eu posso fazer
mais para demonstrar a minha boa vontade?
Abriu as mãos num gesto tímido e indefeso. Stuart não se deixou iludir por isso. Mas sentiu-se tomado de uma imensa onda de alívio, tão
intensa que lhe deu uma sensação de fraqueza. Isso queria dizer que nem a casa, nem Marvina estavam irremediavelmente perdidas! Não via
que não tinha passado de um joguete nas mãos de Joshua. Só depois iria compreender isso. Sentia no momento apenas uma trêmula gratidão
pelo fato de que não tivesse sido posto para fora da casa antes que sua missão estivesse cumprida.
Tornou a sentar-se e Joshua olhou-o com agrado.
— É melhor assim, muito melhor. Nós nos entenderemos muito melhor sem raiva e sem insultos. Somos homens educados, não é verdade,
Stuart?
— Como é que quer os setecentos dólares? — perguntou Stuart, dominando as suas emoções em conflito.
— À vista, meu caro Stuart. É uma transação muito pequena para ser objeto de um empréstimo.
— Está muito bem. E... os dez mil dólares?
— Isso é outro assunto —, disse Joshua com alguma hesitação. — Deixe-me pensar um pouco.
Curvou a cabeça sobre as mãos entrelaçadas na bengala, como se estivesse rezando. Nada poderia ser mais patético que sua atitude, que
parecia sugerir que estava em luta com as tendências mais interesseiras de seu espírito, enquanto a alma e o coração eram de todo favoráveis
a seu jovem amigo. E Stuart o olhava com um ódio profundo e tumultuoso que não podia ocultar. O fogo estalava lugubremente. As sombras
pareciam rastejar pelas bordas do salão.
Por fim, Joshua levantou a cabeça com o rosto cinzento e enrugado todo radiante. Deu uma palmada no joelho e riu.
— Já sei, meu jovem! Quando você tiver lançado os alicerces de sua casa e começar a construir com seus oito mil dólares, eu lhe emprestarei
dez mil dólares. Vou mandar-lhe um contrato nesse sentido amanhã mesmo. Que tal? Não acha excelente?
Stuart olhou-o carrancudamente e perguntou:
— E mais?
— Presumo que quer saber dos juros, não é? — perguntou Joshua, recostando-se na poltrona e pensando de novo. — Compreenda, Stuart,
que eu estou numa posição um tanto delicada. Você já me deve uma vasta soma de dinheiro. Não me pode dar outra hipoteca sobre suas lojas.
Tenho deveres para com os meus depositantes. Tenho de proteger por todos os meios a confiança daqueles que dependem de mim. Não
reclamo disso. Ao contrário, alegro-me, pois, essa é que é a atitude cristã. Meu único recurso, portanto, é aceitar uma primeira hipoteca sobre
sua casa.
— Compreendo, estou disposto a aceitar isso, mas acho que, neste caso, poderia aumentar o montante do empréstimo. Que juros vai cobrar?
— Deixe ver —, murmurou Joshua. — Uma casa como você pretende construir é um investimento arriscado. Quem iria em Grandeville comprar
uma casa que vai custar no mínimo vinte mil dólares? Quem é o homem que tem o dinheiro ou é suficientemente imprudente para cometer essa
extravagância? Seria um elefante branco. Assim sendo, se você deixasse de pagar, não por culpa sua é claro, eu teria em minhas mãos uma
casa sem possibilidades de ter um comprador. Estaria ameaçado de perder meus dez mil dólares. Ou, melhor, o prejuízo seria de meus
depositantes. Seria sobrecarregar muito esses laboriosos lavradores, esses pequenos comerciantes que confiam em mim. Pense também nos
dólares depositados em meu banco pelos trabalhadores humildes, que arrancaram cada dólar com o suor do trabalho honesto. Tenho de
proteger todos esses homens. Nenhum deles jamais dirá que Joshua Allstairs lhes fez perder um centavo que fosse ou pôs em risco um
dinheiro tão penosamente conseguido.
— Quais são os juros? — perguntou Stuart.
— Para fazer justiça àqueles que confiam em mim, eu devia pedir 12%. Mas, em vista da consideração paternal que tenho por você, só vou
querer 10%.
— Dez por cento! — exclamou Stuart, quase dando um pulo da cadeira. — Mas isso é criminoso! E também é ilegal!
— Ilegal? — perguntou Joshua, com voz magoada. — Levando em conta o risco que vou assumir? Outro qualquer não se contentaria com
menos de 15%. Além disso, você não tem obrigação de espécie alguma de aceitar. Se quiser, poderemos dar o assunto por encerrado.
Stuart se levantou. O corpo todo lhe tremia e ele sentia muito frio. Por mais audacioso que fosse, a enormidade da proposta apavorava-o. O
bom-senso lhe impunha retirar-se imediatamente antes de se deixar acorrentar àquele demônio.
Mas passou-lhe de novo pela imaginação o sonho de sua casa e de Marvina, como uma ave de plumagem branca, a flutuar pela escadaria e
ele se sentiu inteiramente vencido.
Apertou com as mãos as costas da cadeira, contemplou Joshua com olhos que cintilavam estranhamente e disse:
— Feito.
Joshua olhou para ele com um sorriso simpático.
— Feito —, disse ele. — E seja muito feliz em sua casa, Stuart. Escute aqui, está pensando em contrair laços matrimoniais? É para isso que
quer uma casa?
Mas Stuart não respondeu. Continuou a fitar Joshua com aquele olhar estranho e Joshua, intimidado, só pôde retribuir o olhar dentro de um
profundo silêncio.
CAPÍTULO 12
Joshua Allstairs raramente recebia ao mesmo tempo mais de três ou quatro convidados em casa e, ainda assim, sem muita frequência. Tinha
como desculpas válidas a doença, a idade e a falta de uma dona de casa. É verdade que tinha a filha, mas esta era jovem e inexperiente, não
sendo correto ainda que ela assumisse os deveres de dona de casa. Além disso, ele não tinha outras parentas mais velhas em Grandeville.
Apesar disso, seus amigos e companheiros de transações muitas vezes apareciam para jantar, como acontecia com aqueles que lhe deviam
dinheiro. As visitas destes últimos eram quase sempre feitas a convite de Joshua, que queria ter certeza por meios sutis de que seu dinheiro
não corria risco. Stuart estava neste caso.
Embora não fosse muito dado a investigar os motivos dos outros, Stuart era suficientemente astuto e intuitivo, como só um celta pode ser, e
desde cedo descobriu as verdadeiras intenções de Joshua. Tivera um malicioso prazer em recusar os convites, salvo quando estes se
tornavam peremptórios ou quando não podia pagar um título no dia exato. Mas quando se sentia seguro e tudo corria bem, recusava
cerimoniosamente, sem se dar sequer ao trabalho de inventar uma desculpa.
Mas passou a atender a todos os convites, ostensivamente para informar o velho amigo dos progressos na construção de sua mansão. Ele
tinha dois motivos sendo o primeiro e temporariamente mais importante a oportunidade de insinuar-se nas boas graças de Marvina e namorá-
la furtivamente. O segundo era a necessidade que sentia de falar de sua casa e das maravilhas que tinha encomendado para ela. Nesse último
motivo, havia muito do gabola, muito da ostentação vaidosa do galo e também a vontade de impressionar a moça e de inspirar-lhe o desejo de
ser dona de todo esse esplendor. Era assim que, duas vezes por semana pelo menos, ia jantar com Joshua e com a filha dele na horrível e
enorme cripta de um salão de jantar, onde se-serviam batatas aguadas, peixe frio e ovos brancos dentro de um molho misterioso e numa
baixela de prata cara, mas horrenda. Era uma fonte interminável de perplexidade para Stuart a origem da louça e da prataria de Joshua, porque
eram excepcionais e ninguém em Grandeville tinha jamais visto, em lojas próximas ou distantes, peças mais feias. Na opinião de Stuart, eram
feitas de encomenda e, sendo excrescências da alma hedionda de Joshua, de acordo com os planos dele.
Em geral, antes de ir para a casa de Joshua, ele se forrava com boas doses de uísque e um bife bem suculento. Depois disso, cheio de
energia e de audácia, atravessava as ruas da cidade em sua mais bela carruagem puxada por dois cavalos pretos e descia à porta do
banqueiro da maneira mais grandiosa e arrogante. Só mediante tais preparativos podia ele suportar jantar com Joshua e evitar náuseas diante
dos pratos insípidos. Fortalecido, bem alimentado e exuberante, podia declinar a comida que lhe era oferecida, suportar a frigidez úmida do
salão de jantar e enfrentar com segurança e equilíbrio o velho implacável.
Nesses jantares frequentes, ele e Joshua conversavam sobre muitos assuntos. Joshua, que era um tanto ilustrado e culto e se interessava
profundamente por política e história, debatia muitos temas. Em seu estado normal, Stuart ter-se-ia confessado com um sorriso ignorante de
todos esses assuntos, mas, deliciosamente inebriado tanto pelo uísque quanto pelos olhos dourados de Marvina, não havia tópico em que ele
não demonstrasse ao menos um conhecimento para conversar. Desde que era naturalmente inteligente e cheio de imaginação, surpreendia
muitas vezes Joshua com suas observações que, embora proferidas em linguagem simples e sem afetação, possuíam quase sempre a sutileza
antiga de um homem cujo cérebro é bem arrumado. Em certa ocasião em que Joshua declarou que a história e a geografia eram inseparáveis,
o espírito de Stuart captou imediatamente a ideia e discutiu voluvelmente o assunto, provocando com isso a raiva sombria de Joshua. Mais
tarde, Stuart não pôde lembrar-se exatamente de seus argumentos, mas compreendeu que tinham sido brilhantes e sentiu-se vaidoso com isso.
Mas seu espírito continuou belamente inocente do que tinham sido, em momentos mais delirantes, observações agudas.
Ele se excedia na presença de Marvina e, embora os seus argumentos às vezes fossem ingênuos, eram ditos com tanta segurança e tamanha
sugestão de significados mais profundos que aturdiam provavelmente a moça, cuja inteligência não era lá grande coisa.
Ao fim de quatro meses, Stuart não tinha mais conhecimento do espírito de Marvina do que tivera na primeira noite, salvo o fato de que ela tinha
uma voz cheia e doce como um rio lento de mel, mas que era muito raramente empregada. Bastava, porém, a Stuart que ela sorrisse como um
anjo, que ela corasse quando ele a olhava com mais firmeza e que fosse manifestamente dócil, bem-educada e de modo algum muito
inteligente. Era também uma exímia harpista e, depois do jantar, cantava para ele coisas doces e inócuas totalmente sem expressão, mas
criando uma imagem maravilhosa de beleza quando as mãos brancas tangiam as cordas e o seio se erguia. O jovem apaixonado ficava então
inteiramente deslumbrado e a olhava com o ar orgulhoso e encantado de um proprietário.
Sabia que Marvina não era insensível a ele. Podia olhá-la e fixar-lhe o olhar, sentindo-se então como a serpente que fascina um pássaro
indefeso e esvoaçante. Sentia pena por essa fascinação daquela bela e inocente criatura! Tinha compaixão dela porque era incapaz de
resistir-lhe, mas, na verdade, qual era a mulher que podia opor-lhe resistência? Não sabia, porém, que Joshua observava tudo isso com
malicioso prazer e esfregava as mãos numa alegre antecipação.
Na verdade, Joshua, como Stuart e quase todas as outras pessoas que entravam em contato com a arrebatadora Marvina, nada sabia da filha.
Desde a infância, ela tinha sido calada, embora não secreta. Tinha sido sempre dócil e moldável, sorrindo quando lhe dirigiam a palavra,
procedendo com um sentimento de absoluta obediência e jamais se arriscando a dar uma opinião pessoal. A verdade era que Marvina,
embora pudesse escrever com boa caligrafia, fosse capaz de ler com alguma expressão, soubesse aritmética e geografia suficientemente
para passar nos exames mais simples e pudesse bordar com exatidão, mas sem inspiração, tocar piano e harpa e dançar como uma fada,
tendo ainda condições para conversar sobre os temas próprios de uma moça elegante e de boa família, era quase analfabeta. A alma era
quase sem personalidade, o coração vivia quase imune a qualquer sentimento e bem raras tinham sido as ocasiões em que um pensamento
mais profundo havia toldado a placidez rasa do lago de seu espírito.
Marvina era, pois, uma primitiva e obtinha o que desejava. Poucas coisas desejava ardentemente. Uma delas era Stuart.
Posteriormente, o padre Houlihan diria, cheio de medo, que nunca teria acreditado que uma criatura humana pudesse nascer e viver sem alma
se não tivesse conhecido Marvina. Para ele, ela se tornou um belo horror sorridente que ia acordar nas profundezas de sua superstição céltica,
velhas histórias de criaturas que andavam, sorriam, falavam e viviam como as outras criaturas humanas, mas que na realidade não existiam e
que, quando passavam da percepção dos outros para a ilusão da morte, desapareciam para sempre como um sopro de névoa, sem deixar
traço, nem lembrança. Desde que não tinham alma, nem verdade, o próprio Deus não sabia que tivessem vivido, pois não tinham tido meios de
comunicarem-se com Ele. O inferno não tinha também conhecimento deles, pois eram incapazes de praticar o mal.
Dizer que Stuart a amava teria sido um grande exagero. Tinha ele a crença beata de que um homem não podia nunca amar uma mulher com
tudo o que o amor implicava: amizade, comunhão, camaradagem, ternura perceptiva e dedicação profunda. Uma esposa era uma mulher com
quem se dormia e procriava e tinha de ser, durante o dia, uma dona de casa e uma mãe.
Levava-lhe flores e livros. Ela recebia os presentes com evidente prazer, tomando as flores nos belos braços ou segurando os livros entre os
dedos brancos. Mas as flores não a impressionavam. Os livros eram para ela como se fossem fechados em mármore. Tinha os olhos tão cegos
quanto o espírito. Movia-se e sorria instintivamente, como se concordasse inconscientemente.
Tão estonteado ficou Stuart que chegou a acompanhar Marvina e seu sinistro pai todos os domingos à igreja. Livrava-se do tédio do estéril
culto protestante olhando para a moça e imaginando toda a espécie de prazeres. Ela se sentava muito séria, de chapéu, capote, vestido e
mãos enluvadas, sem tirar corretamente os olhos do enfadonho ministro, enquanto o seu perfil perfeito brilhava na penumbra da igreja como
marfim trabalhado. Nunca parecia tomar conhecimento da presença de Stuart durante as suas devoções. Enchia o ar desolado da igreja de um
resplendor e de uma glória que eram positivamente indecentes, na opinião das senhoras mais feias.
Se Stuart bebia mais do que de costume nas tardes e nas noites de domingo, não sabia por quê. Disse uma vez ao padre Houlihan que tinha
de tirar a poeira de um domingo protestante que lhe ficara na garganta. Mas era a poeira do vazio, da associação com o vazio que o
desorientava, impelindo-o para o uísque.
Um domingo protestante em Grandeville era uma coisa tremendamente triste. “Escondem-se debaixo da cama e cobrem a cabeça com os
urinóis”, dizia Stuart. E era sem dúvida verdade que Grandeville se tornava durante vinte e quatro horas uma cidade morta, cinzenta e fria, na
qual só os sinos das igrejas ressoavam pelas ruas desertas. De vez em quando, uma carruagem discreta passava quase em silêncio pelas
calçadas durante as horas em que não havia serviços nas igrejas e, dentro de algumas das casas, os homens empanturrados de almoços
substanciais, dissipavam dormindo as horas vazias e opressivas. Só de raro em raro se via um garoto quase morto de tédio a palmilhar
preguiçosamente os passeios, ou um grupo de família que tomava um pouco de ar. De um modo geral, Grandeville se encolhia sob as suas
árvores num pesado silêncio, enquanto o rio faiscante se dourava aos raios do crepúsculo, observado apenas por poucos olhos.
Stuart sempre tivera o costume de fugir dos limites do protestantismo de Grandeville aos domingos e ir para a zona pobre da cidade chamada
pelos que a odiavam de “Cidade do Papa”. Ali, podia encontrar-se um pouco de vida. Nas ruas sujas, os rapazes jogavam bola ou se reuniam
nas esquinas para conversar animadamente e olhar as esbeltas moças que passavam em companhia das mães e dos irmãos. Viam-se ali
rostos estrangeiros, que ainda traziam viva a lembrança dos domingos europeus, que tinham sido cheios de alegria e despreocupação. As
crianças corriam gritando pelos passeios de tábuas e as mães, com xales nos ombros, conversavam às portas. O padre Houlihan fazia visitas
aos seus paroquianos e as crianças o seguiam num afetuoso cortejo. Tinha sempre os bolsos cheios de nozes, maçãs e balas para elas, que o
estimavam muito.
Stuart se dirigia, portanto, para o bairro de má reputação, mas onde havia vida, felicidade simples e alegria sem entraves. Às vezes, se
empenhava em jogar malha com outras almas degradadas ou em discutir política acaloradamente, sem entender nada de nada, com grandes
irlandeses jovens de rosto vermelho. Ia acabar sempre indo tomar uma cerveja fria na modesta casa do padre Houlihan, acompanhada de fatias
de carne fria e bom pão. Era então que Sam Berkowitz aparecia e os três entravam pela noite num animado jogo de cartas ou numa discussão
entrecortada de risadas.
— O domingo foi feito para o homem e não o homem para o domingo —, dizia o padre Houlihan. — Que alegria tem essa pobre gente durante
seis dias da semana? Nenhuma. Só conhecem o trabalho, o suor e um sono pesado de exaustão. O bom Deus fez o domingo para que seus
filhos pudessem ser alegres e felizes durante algumas horas, esquecendo como a vida e os patrões são duros.
Essas opiniões não eram aceitas pela Grandeville protestante, onde os domingos eram cinzentos, áridos, frios, amargos e completamente
mortos. Na realidade, havia muito, tinham tentado fazer aprovar certas leis segundo as quais seria um delito praticar jogos nas ruas, conversar
em voz alta, rir em praça pública ou jogar cartas e entregar-se a outros prazeres inocentes durante o domingo.
— É cruel e errado fazer do domingo um dia de tristeza —, dizia o padre Houlihan, abanando melancolicamente a cabeça. — Se aprovarem
essas leis, quero ser o primeiro a ir para a cadeia, em sinal de protesto contra essa tentativa de fazer do domingo um dia de servidão penal e
de abatimento.
As leis não foram aprovadas. Grandeville teve de contentar-se com as táticas de fria censura, ostracismo e exemplo para combater a alegria
dominical dos habitantes da “Cidade do Papa” pagã. Não tiveram muito sucesso, embora os guardas passassem de vez em quando pelas ruas
sujas e malcuidadas pedindo aos grupos que riam e discutiam que fossem para outro lugar e advertindo as crianças para que fizessem menos
barulho. Mas nada diziam ao padre Houlihan que os observava pesarosamente.
A igreja do padre era pequena e pobre antes que Stuart lhe construísse a esplêndida capela. Os desordeiros de outros bairros da cidade
adquiriram prontamente o hábito de quebrar os vitrais, dilapidar as imagens e danificar o interior. Stuart contratou então uma guarda para
proteger a capela com pistolas e cassetetes. O padre Houlihan protestou, mas a guarda continuou.
— Deus nos protegerá —, dissera o padre.
— Só estamos ajudando Deus —, retrucara Stuart.
— Mas temos também a lei do nosso lado, Stuart.
— A lei vive no bolso dos políticos e os políticos vivem no bolso dos ricos.
Enquanto isso, a casa de Stuart se ia levantando perto do rio. Era cada vez maior o número de curiosos que iam até lá para ver o andamento
das obras. Até os homens que tangiam os animais no caminho de sirga paravam a fim de ouvir e as barcaças quase se imobilizavam nas
águas túrgidas do canal e a fumaça das chaminés dos que viviam nos barcos subia ao ar numa coluna reta.
Stuart levava muitas vezes Marvina e o pai para verem a casa. A moça passava com seu passo delicado e gracioso por entre montões de
pedras brancas, ajudada pelo dedicado Stuart que depois tratava de ajudar-lhe o pai. Os dias de inverno se transformaram em primavera e o
rio corria azul sob céus luminosamente azuis. O verão chegou, todo ouro e ventos suaves. Então, foi inverno de novo, o rio foi tomado pelos
gelos e a margem canadense se tornou uma mancha escura contra os poentes em chamas.
Já então, Stuart estava dominado de verdadeira paixão pela casa e se dedicava inteiramente a ela. Era para ele uma coisa viva, bela e
perfeita, num prolongamento de seus sonhos. Quando a construção terminou finalmente em fevereiro do segundo ano, Stuart se mudou para lá
e entregou-se todo ao seu êxtase.
Então, num domingo, depois que Marvina se havia retirado, ele a pediu em casamento ao pai.
CAPÍTULO 13
Esse acontecimento se verificou cerca de quatro meses antes de Janie chegar. Stuart estava escrevendo à prima suas habituais cartas
animadoras e imprudentes, enquanto ela exprimia a determinação de “começar a vida de novo” na América. Para dizer a verdade, Stuart pouco
acreditava nisso. Tinha na cabeça nessa ocasião coisas mais importantes. A Inglaterra estava muito distante e as pessoas que ali viviam mal
existiam em sua consciência.
Naquele domingo em que, com o sangue acelerado e uma aparência tão calma como sempre, abordou Joshua Allstairs para pedir-lhe a mão
da filha, Stuart não estava pensando absolutamente em Janie.
O almoço foi execrável como sempre. Stuart naquela manhã se fortalecera além do habitual com frequentes libações. Reprimiu a exaltação e o
álcool o fez atravessar as cerimônias da igreja dentro de um magnífico alheamento. Durante as preces e os hinos prolongados e enfadonhos,
acompanhados do sermão, viu apenas Marvina linda no seu vestido de veludo e peles, com o rosto emoldurado por um chapéu de castor
guarnecido de renda de seda. Ela lhe sentia sem dúvida o encantamento porque de vez em quando olhava para ele, com uma luz profunda
refletida nos olhos fulvos. Stuart não sabia que era apenas o reflexo do tumulto que lavrava nele.
De vez em quando, havia confiado a Sam Berkowitz os seus planos sobre Marvina. Sam se limitara a olhá-lo sem nada dizer. Numa dessas
ocasiões, Stuart disse exaltadamente:
— Pense só no que nós podemos fazer com cem mil dólares, Sam!
— Você acha que o pai dela vai concordar? — perguntara calmamente Sam.
— Naturalmente! Há algum pretendente por aqui melhor do que eu? Por que não?
— Pois eu acho que o pai vai dizer que não.
Desde que Stuart tinha também algumas dúvidas secretas a esse respeito, a observação de Sam o fez ficar furioso.
— E eu acho que o pai vai dizer sim, está ouvindo. Por que não? Só porque eu lhe devo alguns miseráveis dólares? Ele sabe muito bem que eu
vou pagar tudo. Que motivo teria para não concordar?
Sam olhou-o com triste desânimo e disse:
— Apenas porque Allstairs não presta.
Sam nada mais dissera. Tinha voltado para as lojas e passeara por elas como um fantasma inquieto. O movimento não tinha sido tão bom
ultimamente, talvez porque Stuart estivesse ausente a maior parte do tempo, ocupado em dar os retoques finais em sua bendita casa e em
rejubilar-se com ela. Sam tivera de entrar com uma boa soma de seu dinheiro para pagar a última nota da casa. Stuart não tinha a rigor
qualquer fundo de reserva. Cheio de vergonha e irritação, propusera pagar a Sam juros muito altos pelo adiantamento feito, mostrando-se muito
insistente nisso. Mas Sam o olhara com eloquente afeição e sofrimento e o assunto fora deixado de lado.
— Aceita então uma hipoteca de mil dólares sobre a casa?
Sam quis dar uma gargalhada, mas receou que Stuart ficasse ofendido. Pôs a mão no ombro dele e disse:
— O que é meu é seu, meu amigo. Além disso, você não disse que vai reservar um canto da casa para mim? Pois eu estou pagando por esse
canto. Nada mais justo.
— Sabe o que foi que houve, Sam? Foi aquele altar na igreja do padre. Custou mais do que eu esperava. Mas o outro era feio demais e não
servia. Por que será que as igrejas custam tão caro?
Sam olhou-o com profundo afeto. Stuart era uma verdadeira criança! Sincero e imprudente, ávido e displicente, tudo ao mesmo tempo! Um
homem como ele não devia ser contaminado pelo sangue dos Allstairs. Seria uma coisa criminosa e revoltante. E aquela moça então com
aqueles olhos vazios e aquele corpo sem alma! Era uma ideia intolerável a união dos dois. Mas não era possível discutir com aquele jovem
cego que nem desconfiava de que ia atirar-se nos braços do mal. As portas do inferno são guardadas por criaturas que não têm alma e
contemplam com olhos mortos de estátuas os que para lá descem.
E então Sam murmurou em hebraico uma frase sonora: “Salva minha alma das destruições e meu amado dos leões.”
— Que foi que você disse? — perguntou Stuart, franzindo a testa, mas Sam afastou-se. — Você e seu Talmude!
E assim, o uísque, a embriaguez da presença de Marvina, a determinação de possuí-la e a sua fortuna e a turbulência negra e inquieta que
havia dentro dele levaram Stuart a Joshua Allstairs naquela tarde de domingo, poucos meses antes da chegada de Janie.
Fosse por que fosse, Joshua estava naquela tarde excepcionalmente afável e bem-humorado. Isso alegrou muito a Stuart Não sabia que
Joshua estava plenamente consciente do que ele ia dizer e se regozijava de antemão.
Quando Stuart levou um charuto à boca com as mãos trêmulas, Joshua não o contrariou, lembrando-lhe que estavam no dia do Senhor e que o
fumo não era permitido em sua casa. Ficou a olhá-lo das profundezas de sua poltrona, encantoado na sua malignidade cinzenta.
Stuart levou algum tempo para conseguir acender o charuto e praguejou entre dentes. A testa estava banhada de suor e o rosto se mostrava
muito vermelho. Quando afinal conseguiu acender o charuto e tirou a primeira baforada, virou-se abruptamente para Joshua.
— Sr. Allstairs —, disse ele sem preâmbulos, esquecendo por completo as frases bonitas e floreadas que havia preparado e que havia
projetado proferir com uma mistura de dignidade e respeito —, desejo sua permissão para aspirar à mão da Srta. Marvina.
Calou-se então. Não sabia que estava visivelmente arquejando. Fixou em Joshua os olhos pretos numa mistura de desafio, súplica e
arrogância. Retesou os músculos, preparando-se para a batalha.
Mas Joshua continuou a olhá-lo com benevolência. Riu até um pouco, bem-humoradamente, esfregando as mãos no castão da bengala. Nada
podia haver de mais indulgente e afetuoso do que sua expressão.
— Eu já desconfiava disso —, murmurou de. — Ama então minha filha?
— Adoro-a! — exclamou Stuart. Engoliu em seco e acrescentou: — Espero então que não seja contrário.
— A menina nem tem dezoito anos ainda —, murmurou mansamente Joshua.
Stuart, perdendo inteiramente a cabeça diante da calma do outro, exclamou impetuosamente:
— Muitas moças são esposas e até mães com essa idade, Sr. Allstairs!
— Ela lhe deu algum estímulo, Stuart?
Stuart franziu a testa e respondeu:
— Moças bem-educadas não costumam dar o que chama de estímulo, Sr. Allstairs. Mas tenho motivos para acreditar que a Srta. Marvina não é
indiferente à minha pessoa.
Ora, Joshua tinha já completado os seus planos para levar Marvina para a Inglaterra antes do fim do ano e podia sem perigo naquela ocasião
divertir-se às custas de Stuart. Preparou-se para gozar plenamente a sua maldade e o seu ódio.
— Ora, Stuart —, disse ele —, vamos ser sensatos. Que tem você para oferecer a minha filha, criada, como sabe, em circunstâncias de
requinte e luxo? Suas lojas? Eu as acho maravilhosas e não tenho dúvida de que um dia você será um homem muito rico e empreendedor. Mas
ainda não é. Que tem para oferecer? Está endividado. Na minha opinião, você se está expandindo além de suas reservas. Em última análise,
meu caro, você não passa de um lojista. Meus projetos para Marvina são muito mais altos.
Stuart ficou muito vermelho e apertou os lábios.
— Por outro lado, você é irlandês —, disse — Joshua, baixando a voz quase a um sussurro. — Faça-me a justiça de compreender que eu não
tenho preconceitos. E estamos na América, onde as criaturas mais estranhas podem tornar-se muito poderosas. Perdoe a um velho que só tem
um tesouro, Stuart, mas a verdade é que acho seu sangue irlandês repugnante...
— Minha mãe era escocesa —, murmurou Stuart, tendo raiva de si mesmo logo depois de ter dito isso.
Joshua sacudiu a cabeça.
— Vamos deixar de lado por um momento seus antecedentes, Stuart. Afinal de contas, estou sendo tolerante, não acha? Quem é você
realmente, Stuart? Tem falado de parentes ilustres na Escócia e na Inglaterra, bem como na Irlanda, mas eu ainda não vi nenhum deles. Às
vezes, tenho pensado que você... exagera um pouco. Perdoe-me se o estou ofendendo sem querer. Mas eu gostaria de ter algumas provas
indiscutíveis desses parentes seus.
— Pois vai tê-las! — exclamou Stuart e se lembrou de repente de Janie. — Ah, sim! Já me ia esquecendo! A Sra. Cauder, minha prima, vem
fazer-me uma visita aqui. É uma senhora rica e de muito boa família.
— Hum —, murmurou Joshua, desagradavelmente surpreso. — Posso perguntar-lhe quem é a Sra. Cauder?
— Minha prima. O pai dela tem extensas propriedades e Janie tem considerável fortuna pessoal. — A imaginação de Stuart começou então a
funcionar. — Sir Angus Fraser é primo dela pelo lado paterno. Deve ter ouvido falar nele. Tem vários quadros na Academia Real.
Ficou irritado consigo mesmo por não poder lembrar-se dos outros antepassados e parentes ilustres de que tinha discorrido tão
confiantemente a Joshua no passado e que havia inventado no impulso do momento para impressionar o velho demônio. Mas seu espírito só
tropeçou momentaneamente nesse obstáculo. Esperou fervorosamente que Joshua tivesse esquecido os nomes augustos que inventara. Janie
era, porém, tangível. Existia e era rica. Stuart esperava que ela o apoiasse nas coisas que inventara e sua confiança se restabeleceu.
Joshua olhava-o atentamente. Se fosse verdade, era uma circunstância inesperada e desagradável.
— Lembra-se de Sir Angus Fraser? — perguntou Stuart, deixando-se levar pela imaginação. — O retrato que ele fez da Duquesa de York é
considerado uma das obras-primas da Academia.
Joshua estava perturbado.
— Sir Angus Fraser? Sem dúvida que me lembro do quadro... — Fez uma pausa e perguntou: — E a Sra. Cauder? Tem filhos que estão
viajando com ela, não é verdade?
— Sem dúvida —, disse Stuart com entusiasmo, embora não tivesse pensado até então nos filhos de Janie. — Creio que o filho mais velho,
Angus, herdará o título, visto que Sir Angus não tem descendência masculina.
Estava um tanto confuso a respeito das leis inglesas de herança, mas calculou astutamente que Joshua sabia delas tão pouco quanto ele.
— Não há possibilidade alguma de que você venha a herdar o título? — perguntou Joshua, confirmando com isso as suas suspeitas.
Stuart pensou um instante. Aí estava uma admirável possibilidade, mas o caminho era arriscado demais até para os poderes de sua
imaginação. Sacudiu tristemente a cabeça.
— Infelizmente, não. Só os herdeiros em linha reta, se não estou enganado.
Joshua mostrou um súbito interesse.
— E qual é a idade desse filho da Sra. Cauder?
— É um garotinho ainda. Doze ou treze anos, no máximo.
Joshua ficou profundamente desapontado. Mas logo reagiu. Afinal de contas, uma diferença de alguns anos não tinha a menor importância.
Marvina podia esperar. Procurou mostrar o seu desprendimento anterior.
— Está bem, Stuart, parece que tem mesmo parentes ilustres. Neste caso, passemos a outro assunto. Você está pesadamente endividado,
Stuart, não apenas comigo, mas também com outros, graças a consideráveis encomendas de mercadorias.
Stuart franziu a testa. As suas dívidas eram um assunto delicado. Disse com altivez:
— Nunca falhei uma só vez no pagamento do capital ou dos juros. Meus negócios correm admiravelmente bem. Espero dentro de um ano estar
completamente livre de dívidas, inclusive da sua. Só lhe devo seis mil dólares do empréstimo original e os dez mil dólares da casa. Considero
esses dez mil dólares como um assunto particular, sem qualquer relação com as minhas lojas.
Joshua meditou. Aquele idiota havia assinado um acordo mediante o qual a falta de um só pagamento dos dez mil dólares daria a ele, Joshua,
a posse da casa. Olhou Stuart distraidamente e murmurou:
— É claro, é claro...
Agora, se a tal Sra. Cauder pudesse livrar Stuart dessa dívida de dez mil dólares, isso seria muito desagradável e até uma verdadeira
infelicidade. Entretanto, não havia dúvida de que ela podia fazer isso. O rosto de Joshua se tornou uma máscara de ruindade frustrada,
contraída e horrenda.
De qualquer maneira, uma mulher que tinha como primo o ilustre Sir Angus Fraser, pintor de retratos da família real e de outras figuras notáveis,
não podia ser desprezada, especialmente quando tinha um filho poucos anos mais moço que Marvina.
— Espere um momento, espere um momento —, disse Joshua, franzindo a testa e encolhendo os lábios. Fixou em Stuart os olhos de ofídio.
Não seria conveniente contrariar essa exaltada Sra. Cauder. O melhor era contemporizar para ver.
Joshua bateu nos lábios pensativamente com o castão da bengala. Tinha de passar muitas coisas em revista. Estreitou os olhos, fazendo sair
deles um brilho mau. Disse então:
— Meu caro Stuart, não lhe posso dar desde já uma resposta a respeito de minha filha. Ela ainda é muito moça e inexperiente, apesar da
idade. Vamos dizer, portanto, o seguinte apenas: não sou contrário às suas pretensões. Está bem?
A exultação de Stuart não pôde ser contida. O seu temperamento impetuoso varreu todas as inquietações. Iria conseguir tudo o que queria!
Levantou-se com o rosto radiante e exclamou:
— Tenho então sua permissão para falar com a Srta. Marvina?
— Calma, calma —, disse Joshua, sacudindo a cabeça, mas sorrindo e pensando que precisava de ficar algumas horas sozinho para refletir
sobre tudo aquilo. — Não foi isso que eu falei. Disse apenas que, no momento, não me oponho. Mas há muitas coisas que devem ser levadas
em conta.
— Construí minha casa para ela! — disse Stuart com entusiasmo.
— Escute, eu disse que há muitas coisas que devem ser levadas em conta. Deve permitir que um velho pense bem antes de abrir mão do seu
tesouro.
Depois que Stuart partiu, numa onda de entusiasmo e embriaguez, Joshua ficou sentado sozinho por muito tempo, até que o fogo se apagou na
lareira. Levantou-se então resmungando e subiu para os aposentos da filha.
CAPÍTULO 14
Marvina estava sentada diante da lareira na saleta de seus aposentos. Vestia um robe folgado de veludo carmesim debruado de peles. Os
cabelos negros lhe desciam pelos ombros. Quando o pai entrou, estava olhando para o fogo, tão imóvel quanto uma estátua pintada. Virou-se
para ele com um sorriso amável e estendeu o rosto para ser beijada. As suas maneiras eram serenas, tranquilas e sem interesse.
Joshua sentou-se ao lado dela e olhou-a com apaixonada intensidade. A luz da lareira brilhava sobre suas feições perfeitas e destituídas de
qualquer expressão.
— Está pensando, querida? — perguntou ele gentilmente.
— Estou, sim, Papai —, respondeu ela com sua voz cheia e lenta.
— Coisas agradáveis, sem dúvida?
— Sim, Papai.
— Está contente, meu amor?
— Estou sim, Papai.
— Não a estou atrapalhando?
— Não, Papai.
Joshua ficou em silêncio. A filha tinha falado com docilidade e calma, como se fosse um eco sem pressa da voz dele. Pela primeira vez desde
que ela tinha nascido, Joshua sentiu um frio no coração. Os olhos, que o contemplavam quase fixamente, eram belos, mas vazios. Pensou pela
primeira vez: Que haverá por trás desse rosto? Era como uma boneca bela e grande, que esperava inerte que alguém a segurasse e
manobrasse.
Quase com irritação, perguntou abruptamente:
— Em que era que você estava pensando?
Ela o olhou sem expressão e até sem a menor surpresa no olhar.
— Ora, Papai, em muitas coisas. Como é bom que a primavera venha aí. Na capa de peles que você me comprou há uma semana. Na festa da
semana que vem. É errado pensar nessas coisas num domingo, Papai?
Disse isso placidamente e se voltou de novo para o fogo.
— Pensamentos frívolos, sem dúvida, meu amor —, disse Joshua com uma severidade da qual não estava excluída a simpatia.
Mas Marvina nada disse em resposta. Continuou a olhar para o fogo e mostrou um sorriso vazio, mas de infinita doçura. O pai teve de súbito a
ideia desagradável de que ela se havia esquecido da presença dele. Mas, quando pigarreou, ela voltou de novo os olhos obedientemente para
ele.
— O Sr. Coleman acaba de sair, meu amor. Pediu-me que lhe apresentasse os seus cumprimentos.
— Sim, Papai.
Tinha havido alguma alteração naquele belo rosto? Havia um tom mais vivo naqueles lábios? Mas as maneiras da moça permaneceram
imutáveis.
— É um moço fascinante, não acha?
— É essa a opinião geral, Papai.
— Mas qual é sua opinião? — perguntou Joshua, insistentemente.
— O Sr. Coleman é muito gentil, Papai. Um cavalheiro perfeito e a conversa dele é muito inteligente.
— Humm —, murmurou Joshua, cujos olhos quase saíam das órbitas, tamanha era a intensidade com que observava a filha.
— Não o acha antipático?
— Não, Papai —, disse ela, olhando para ele com os olhos dourados bem abertos e à espera.
— Gosta dele?
— Gosto, Papai.
— Acha a conversa dele agradável, Marvina? — perguntou o pai com a voz estranhamente rouca.
A cabeça dela estava inclinada e uma madeixa dos cabelos escondia-lhe o perfil.
— Ele é muito educado, Papai.
Ah, é apenas uma mocinha reservada, pensou Joshua, suspirando, como se se livrasse de uma pressão intolerável.
— Marvina, meu amor, ele me pediu permissão para fazer-lhe a corte.
Joshua viu que ela estava tremendo e que baixara ainda mais a cabeça.
— Sim, Papai? — disse ela, com voz quase inaudível.
— Você não vai recusar, segundo creio? — perguntou ele em voz alta e áspera.
Ela levantou a cabeça e mostrou os olhos cheios de lágrimas.
— Não, Papai, desde que seja de seu gosto.
Joshua ficou em silêncio, com os seus pensamentos em completa confusão. Poucas horas antes, tivera a intenção de recusar a pretensão de
Stuart com risos e zombarias, indo depois contar tudo à filha para rir com ela da presunção daquele irlandês desprezível e insignificante.
Chegara a imaginar antecipadamente as gargalhadas de Marvina.
Mas naquele momento não podia senão ficar ali, sumido em silêncio. Muitas coisas tinham mudado. Sentira poucos momentos antes a horrível
presença de um incubo. Fora libertado dessa ideia lúgubre pelo rubor, pelas lágrimas e pela agitação de Marvina. Não estava entendendo mais
nada!
Sem dúvida alguma, não tinha pensado em Stuart como um marido para Marvina. Entretanto, estava ali naquele momento quase impondo-o à
filha. Sentiu-se de súbito triste, desalentado e muito velho.
Levantou-se e encaminhou-se para a porta, apoiado na bengala. Chegando à porta, parou e olhou para trás. A filha o estava olhando com
silenciosa ansiedade.
— Vamos ver, vamos ver! — exclamou ele. — Enquanto isso, você não deve dar o menor estímulo a ele, Marvina!
Joshua esperou. Se ela dissesse: “Não, Papai”, ele poderia prorromper em exclamações incoerentes e deixá-la abruptamente. Mas, para seu
espantado alívio, ela se limitou a sorrir e o fogo da lareira lhe iluminou as faces ruborizadas.
CAPÍTULO 15
Por fim, Janie tinha chegado com suas malas, sua fortuna e seus filhos.
Durante a viagem até Grandeville, Stuart tinha pensado com mais coerência e energia do que até então fizera. Era cada vez mais evidente que
Janie não se ajustava bem ao papel de parenta “ilustre” que esperavam Joshua Allstairs e os outros a quem ele tinha efervescentemente
anunciado a sua próxima chegada. Janie era grosseira e inculta de maneiras e de conversas. Falava sempre muito alto e sem o menor respeito
pelas conveniências. Mas tinha dinheiro. E possuía um guarda-roupa excelente, que superava até em qualidade e variedade o de Marvina.
Não obstante, Stuart tinha sérias dúvidas de que as recatadas e rígidas senhoras de Grandeville fossem aceitar Janie Cauder. A prima
detestava as pessoas piedosas, severas e afetadas e não podia deixar de escandalizá-las. Praguejava como um granadeiro e as opiniões que
tinha sobre as coisas sagradas fariam empalidecer até um homem tolerante como o padre Houlihan. Se alguém soubesse que Janie não era
inimiga de um bom uísque, gostava de levantar as saias quase até à cintura para aquecer-se diante do fogo e beber o seu grogue sem água e
Stuart estaria completamente arrumado.
Teve, porém, algum conforto lembrando-se das histórias que o pai lhe havia contado a respeito da aristocracia inglesa. Duquesas que
praguejavam, que montavam a cavalo como homens, que gostavam de cerveja, de uísque e de cachorros, eram muito comuns. Talvez ele
pudesse fazer Janie passar por uma delas. De qualquer maneira, que eram os “aristocratas” americanos?
O quadro se tornou um pouco mais suave em seu tom, perdendo os seus tons escarlates originais. Imaginava-se dizendo com grande e
divertida indulgência a certas senhoras: “Faço questão de que conheça a Sra. Cauder, minha querida prima. Trata-se de uma pessoa muito
excêntrica, verdadeiramente representativa da aristocracia inglesa. Desde que um aristocrata não tem o menor receio de que alguém lhe ponha
em dúvida a família, os títulos ou a posição, pode ser perfeitamente natural, sem afetação, nem fingimentos. Já teve ocasião de observar que
uma senhora ou um cavalheiro da mais elegante e irrepreensível família não precisa de fingir coisa alguma e em geral não teme a opinião das
classes inferiores ou até de sua própria classe?”
Ensaiava essas frases, mas as suas apreensões não se atenuavam. Janie já estava com ele havia uma semana. Não poderia mais prendê-la
dentro de quatro paredes. A qualquer momento, as senhoras, em grupo, começariam a visitá-la. Janie deixaria assim de ser o seu terrível
segredo.
A natureza acudiu em seu socorro sob a forma de doenças.
Sete dias depois de ter chegado a Grandeville, Janie teve gentilmente um resfriado e Bertie e Robbie seguiram-lhe o exemplo. No oitavo dia,
tiveram de ficar de cama. O médico manifestou a sua preocupação e Stuart respirou aliviado. Tivera um prazo de graça. Animou-se novamente
e, desde que o problema tinha tido um adiamento de duas semanas no mínimo, deixou de pensar nele.
Pôde até fazer uma visita às suas lojas e conversar alegremente com as freguesas, sem precisar de observar se alguma delas tinha ouvido
qualquer coisa desagradável a respeito de Janie,-por intermédio da criadagem. Conseguiu até visitar Joshua e Marvina com a maior
despreocupação e comentar pesarosamente os sofrimentos de Janie, lamentando que a festa que pretendia dar em honra dela tivesse de ser
adiada. Pôde ainda ser bondoso para com os outros filhos de Janie, Angus e Laurie.
Via que os dois estavam em dificuldades. Os criados não simpatizavam com eles. A mãe detestava-os. Vagueavam pelos terrenos da casa e
pelas suas salas proibidas como pequenos fantasmas. O próprio Stuart displicente não podia ser insensível à miséria em que os dois viviam.
Estava-se no começo de abril. O rio estava entupido de pedaços de gelo que vinham dos Lagos. Esses blocos se quebravam e comprimiam
junto às margens, rebrilhando ao sol novo. Entre eles, a água azul-escura espumava. Deles subia um frio penetrante e vivo, que varava até as
roupas quentes capazes de resistir às mais duras nevadas do inverno. O gelo se estendia interminavelmente para a frente e para trás, branco e
quebrado, marchando como uma avalancha para as cataratas. Mas as árvores mostravam os seus primeiros brotos e, quando o vento
amainava, o ar tinha uma suavidade e uma frescura que animavam o coração. O céu, de um azul límpido e luminoso, se curvava sobre a terra
como uma pura cúpula de luz. A terra ainda estava nua e pardacenta, empapada de água, mas dela subia um odor forte e fecundo. As
primeiras barcaças do Canal e os primeiros vapores dos Lagos não tinham conseguido ainda romper os gelos, mas já circulavam rumores
deles. Um viajante anunciou que a primeira barcaça do Canal tinha sido avistada em Utica. Dentro de duas ou três semanas, deveria chegar a
Grandeville. Através de toda a região do norte, havia um murmúrio de grande atividade e esperança, sendo fácil esquecer a massa de gelo que
descia trovejantemente para o Niágara e a parede de ar gelado que se elevava quase constantemente dela.
Os crepúsculos raramente agora eram frios e escarlates. Viam-se nesses dias no poente os mais puros lagos de um verde muito claro e os
últimos raios de sol que caíam sobre as águas escuras e os blocos de gelo eram quentes e rubros, embora isolados ainda e silenciosos.
Algumas crianças tinham encontrado açafrão nos bosques e os tordos tinham voltado enchendo o ar puro da tarde com o seu canto argentino e
triste que caía da altura como se fossem gotas redondas de água clara. É verdade que as bordas dos tanques e das poças de água se
cobriam à noite de uma camada de gelo e que, às vezes, lufadas de neve caíam sobre a paisagem pardacenta e sobre os blocos de gelo. Mas
o meio-dia era sempre gentil e festivo e o fogo surdo já não lavrava aos crepúsculos. À noite, as estrelas eram menos duras e cintilantes e a lua
mostrava uma face mais suave.
Numa noite, mais doce e perfumosa que as outras, Stuart voltou das lojas, indagou polidamente e sem muita esperança do estado de saúde de
Janie e encontrou Angus e Laurie que, no jardim pardo e molhado, escutavam os tordos. Encaminhou-se para eles e, quando se aproximou, o
olhar tímido e retraído que lhe lançaram fez o coração dele confranger-se.
— Ora, ora —, disse de com uma cordialidade não muito tranquila. — Vocês dois não têm medo do sereno da noite?
Angus murmurou alguma coisa e Laurie lhe fez uma reverência. Stuart olhou a menina atenta e involuntariamente. Todas as suas belas cores
tinham desaparecido. O rostinho, emoldurado pelos cachos dourados e pelo grande chapéu, estava muito pálido. Tremia visivelmente dentro do
seu casaco marrom com gola de peles. Pobrezinha! Desde que chegara, não ouvira de Stuart senão repreensões quando corria pela preciosa
casa ou deixava as marcas das unhas nas balaustradas. Não era de admirar que os olhos estivessem tão compridos e tão sumidos entre
sombras pálidas. Lembrou-se de seus primeiros e comoventes encontros com a criaturinha na carruagem. Tinha tido então verdadeira simpatia
por ela. Não lhe pôde tolerar a expressão de timidez, tristeza e medo, nem a maneira pela qual se aproximou mais do pálido Angus e segurou-
lhe a mão. As duas crianças sabiam que não eram queridas e nem sequer toleradas e só podiam olhar o mundo, cheias de triste confusão.
— Que estão fazendo aqui? — perguntou ele, aproximando-se e tentando sorrir amavelmente.
— Estamos escutando os passarinhos —, disse Angus em voz baixa.
As crianças sorriram por delicadeza e ficaram em silêncio, olhando para Stuart com os olhos bem abertos e incertos. Ele sentiu um aperto na
garganta e olhou para o céu com afetada naturalidade.
— Vai ser uma noite ótima. Querem dar um passeio até à beira do rio comigo?
Laurie olhou timidamente para o irmão, que lhe apertou a mão com mais força, dizendo então cortesmente:
— Seria muito bom, primo Stuart.
Tentou caminhar ao lado deles, mas os dois procuraram ficar um pouco atrás, ainda incertos e receosos. Seguiu então à frente, balançando um
pouco o corpo, cheio de pena e intranquilidade. As crianças olhavam-no pelas costas com toda a sua altura, o casaco marrom com gola de
peles, o chapéu alto luzidio, a bengala, as polainas e as calças claras. Julgavam-no uma figura magnífica!
No verão, a longa rampa até o rio ficava coberta de uma grama nova, verde e fresca. Mas a grama ainda estava pardacenta e filetes de água
escura corriam por ela. Stuart observou com tristeza que a lama que ali havia não iria melhorar a aparência de suas botinas polidas. Parou um
instante. Mas as crianças patinhavam alegremente na lama atrás dele, e em vista disso, continuou. Arrependeu-se automaticamente do impulso
que o fizera descer até o rio, de cujos blocos de gelo vinha um vento bem frio. Ora, aqueles pobres-diabos estavam habituados à lama inglesa
e a lama americana em comparação com ela era até uma brincadeira. Levantou a gola do casaco e continuou.
— Pronto! — exclamou, parando a alguns metros de distância da margem do turbulento Niágara. A água escura fervia por entre os blocos de
gelo, arrastados em massa para as cataratas, mas aqui e ali os blocos se afastavam por um momento e podia ver-se que a água era da cor de
uma cintilante turquesa. Além da implacável agitação dos gelos, ficava a mancha escura da margem canadense e, acima dela, havia uma faixa
de céu tão clara que até fazia mal aos olhos. Mais acima dessa faixa, estendia-se um lago de puro verde, tranquilo e sem nuvens. Podia-se
quase imaginar velas navegando nesse lago, tão perfeita era a ilusão. Bem mais acima, o céu já estava escuro e nele brilhava solitária a estrela
da tarde.
Via-se dali perfeitamente no alto da encosta a casa branca de Stuart, que, no ar límpido do crepúsculo primaveril, brilhava como um templo
grego de mármore e parecia elevar-se no ar. Para os lados do lugar onde Stuart e as crianças estavam, as margens se desagregavam em
pedras e lama. As terras em torno da casa eram bem tratadas, mas de um lado e do outro estendiam-se os bosques cerrados.
O silêncio era grande e o rio impetuoso, o lago verde a oeste, o vento frio que se elevava dos gelos, a mancha distante da margem canadense,
a beleza da estrela solitária, tudo isso dava à cena uma certa solenidade desolada e selvagem. Até o surdo trovejar do gelo arrastado pelas
águas intensificava o silêncio. Esquecendo as crianças, Stuart olhou para o rio e para o céu e sentiu a alma cheia de melancolia e ansiedade.
Começou a tremer.
Ouviu então a voz calma e tímida de Angus.
— Tudo isso é muito estranho e muito belo, não é, primo Stuart?
Stuart sorriu para o garoto, que tinha o rosto quase entorpecido de frio, e disse:
— Sem dúvida, meu caro Angus, mas extremamente desagradável nesta época do ano. Espere até ver isto aqui no verão.
Angus sorriu polidamente. A pequena Laurie olhou para o rio e depois para o céu. Alguns débeis raios do sol no ocaso brilharam no seu
rostinho. O vento frio lhe havia dado alguma cor às faces infantis e os olhos azuis estavam radiosos. O vento lhe agitava os cabelos de ouro,
espalhando-lhe pelos ombros as madeixas luminosas. Stuart olhava-a dentro de um encantamento. A beleza de Laurie lhe feria o coração com
uma espécie de indescritível e dolorosa doçura. Quase com timidez, ele lhe tocou o rosto com a mão enluvada e lhe afagou o queixo. Ela virou o
rosto lentamente para ele e sorriu. Era o mais belo sorriso que ele já tinha visto, tímido e inocente, confiante e compreensivo.
Sem saber ao certo o que fazia, curvou-se e beijou-lhe o rosto com grande emoção e uma espécie de obscura ternura. Ela não se esquivou,
nem pareceu amedrontada. Mas, com muita timidez e num gesto comovente, colocou a mão sobre a mão de Stuart e ficou ali, entre o irmão e o
primo, tranquila e segura.
O pobre Angus de olhos assustados e rosto magro, viu isso e teve de disfarçar as lágrimas, voltando os olhos para o rio. Tremia violentamente
no seu casaco preto fino e o vento lhe agitava as calças em torno das pernas magras, dando-lhe um aspecto cômico de espantalho. Usava um
chapéu alto de castor, que tinha de manter na cabeça com a mão livre. O perfil, muito magro e severo para um garoto de sua idade, ficou rígido
com o esforço que fazia para manter a sua compostura. Mas, de repente, seu coração se abriu para Stuart com ansiosa intensidade.
Embora contida, Stuart a sentiu e olhou para o menino com furtiva compaixão. Deus do céu! Como podia ele ter sido cruel e negligente com
aquelas pobres crianças que, embora fossem hóspedes mal recebidos em sua casa, não o eram por sua culpa! Sentiu um ímpeto de cólera e
de piedade dentro do coração. Com a sua habitual impetuosidade, jurou que faria alguma coisa para que os dois se sentissem felizes.
— Está gostando dos Estados Unidos, Angus? — perguntou com uma voz cheia de calma ternura.
O menino olhou firmemente para o rio tentando controlar-se e disse:
— Não tenho visto muita coisa, primo Stuart. Mas o pouco que tenho visto é muito belo, como isto aqui. — Olhou para Stuart com os seus olhos
velados e acrescentou: — Sua casa é muito bela também. Muito mais do que a de Vovô.
— Sente falta de seu avô? — perguntou Stuart. — E da Inglaterra?
Angus hesitou. Tinha receio de ofender Stuart, que estava sendo tão bom para eles. Disse então:
— Bem, aqui tudo é estranho. Lá, nós conhecíamos todos os carneiros, os bois e os cavalos. Conhecíamos a igreja, a casa paroquial, os
campos e as montanhas. Das pessoas então, nem se fala. Conhecíamos todas pela voz.
— Compreendo isso muito bem, Angus. Foi o mesmo que senti quando vim para cá. Sabe qual foi a casa em que eu morei, não sabe?
— Sei, sim. Quem mora nela agora é o Sr. Kirkland. É o gerente de Vovô. Vovô está ficando velho. O Sr. Kirkland tem três filhas e um garoto
mais velho. Brincávamos muito com eles e a casa é bem bonita.
— Você gostaria de voltar, Angus?
Angus hesitou um pouco antes de responder:
— Nós nunca mais vamos voltar, primo Stuart.
— Ora, não deve falar assim. Tenho a impressão de que sua mãe não gosta dos Estados Unidos. Tem estado de cama desde que chegou e,
ao que me dizem os empregados, não faz segredo de sua vontade de voltar com todos vocês.
Diante dessa menção da mãe, o rosto de Angus se alterou e ele deu um suspiro. Um instante depois, repetiu:
— Nós nunca mais vamos voltar.
Stuart mordeu os lábios. Em seguida, disse com falsa animação:
— Neste caso, acho que deve aproveitar ao máximo isto aqui. Irá para a escola, a mesma escola em que eu estudei. Fará amigos por lá. E
poderá ir de novo à igreja. Isto aqui não é um mau lugar. Angus.
— Eu gostaria de ir à igreja —, murmurou Angus.
Stuart franziu a testa, lembrando-se do que Janie tinha dito, um mentiroso que gostava de ir à igreja. Não sabia se ela tinha razão. Não tinha
pessoalmente grande respeito pela verdade, considerando-a bem enfadonha às vezes e uma coisa que devia ser usada com muita moderação
como os temperos na comida. Tinha observado que as pessoas que professavam um violento amor à verdade eram singularmente
desagradáveis e em geral evitadas pelas pessoas mais civilizadas. Apesar disso, devia-se ensinar os jovens a dizerem a verdade, quer os
mais velhos gostassem disso, quer não.
— Por que você quer ir à igreja? — perguntou. — Parece-me um lugar bem aborrecido.
Angus disse então na mais estranha voz:
— Na igreja, há paz e a presença de Deus, que é bondade.
Stuart olhou-o em inquieto silêncio. Passou os nós dos dedos no rosto entorpecido pelo frio. Parecia-lhe uma coisa terrível que uma criança
sofresse da falta de bondade e, não podendo encontrá-la nos homens, fosse procurá-la numa igreja.
— Sabe, Angus, você deve conhecer meu bom amigo, o padre Houlihan. É um homem muito bom, Angus, e gosta muito dos jovens.
Sentiu a tensão dentro dele relaxar-se. Era a solução! O padre devia conhecer aquelas criaturas tristes e desoladas. Tinha o dom sagrado da
bondade.
Mas Angus levantou para ele os olhos arregalados e solenes.
— Mas ele é papista, primo Stuart. Os papistas adoram deuses e ídolos estranhos. Vovô diz que são todos pagãos. Não sei se gostaria de
conhecer o padre Houlihan.
Stuart ficou furioso e exclamou:
— Quanta tolice! Seu avô não sabe o que diz! O padre Houlihan é um dos bons homens de Deus e tem um coração de ouro. Deve dar-se por
muito feliz de o conhecer, se chegar mesmo a conhecê-lo!
— Desculpe, primo Stuart. Não tive a intenção de ofendê-lo. Nunca conheci um papista. Talvez Vovô esteja errado.
Stuart se arrependeu imediatamente da sua reação. Sorriu, embora ainda estivesse com o rosto muito vermelho.
— Escute, não ligue ao que eu digo. É que eu fico sempre furioso diante do preconceito. — Fez uma pausa e apontou para o rio, acima dos
blocos de gelo. — Olhe à direita, rio abaixo. Que é que está vendo?
Angus apurou os olhos nas sombras que se adensavam. Cerca de três quilômetros rio abaixo, havia um vulto escuro entre os gelos em
movimento.
— Parece uma ilha, Primo Stuart.
— E é uma ilha. Chama-se Ilha do Rio. É um bom pedaço de terra, cheio de matas, de prados e de terra fértil. Poucas pessoas vivem ali, dois
ou três fazendeiros e alguns posseiros. É uma ilha inteiramente subdesenvolvida.
Fez uma pausa e continuou:
— Já me ouviu falar sem dúvida de meu amigo e sócio Sam Berkowitz?
Angus murmurou o seu assentimento.
— Pois bem, Angus, vou-lhe contar alguma coisa a respeito do mundo, especialmente aquele a que chamamos o Velho Mundo. Parece que em
alguns países um homem é odiado quando tem um formato de nariz diferente do dos outros homens que o cercam, ou quando tem o cabelo de
cor diferente, tem costumes estranhos ou reza a Deus de outra maneira.
Angus interrompeu-o ansiosamente, desejando ser agradável a Stuart com a revelação de seus conhecimentos.
— Eu sei! Vovô me contou como os papistas costumavam queimar os protestantes e como nas cruzadas os sarracenos eram mortos e
enforcados.
Stuart franziu a testa:
— Bem, é isso que eu quero dizer. Até certo ponto. Tudo isso, na minha opinião, é imbecilidade e está acima da compreensão humana. Todos
nós matamos aquilo de que temos medo e costumamos ter medo de um homem um pouco diferente de nós. Por que não sei. Talvez seja o
pecado original.
“Ora, muito bem, Sam Berkowitz veio de um pais onde ele e sua gente eram odiados porque rendiam culto a Deus de uma maneira antiga e
diferente. Era um país onde os ricos e poderosos oprimiam o povo e queriam mantê-lo oprimido em proveito próprio e para continuar com as
suas casas ricas e cheias de prata. Tinham medo do povo e de que um dia o povo começasse a pensar: “Por que nossas casas também não
devem ter tetos sem goteiras, por que nossas mesas não devem ter pão, vinho e carne em abundância? Não são nossas mãos que lavram os
campos, não é nosso trabalho que constrói essas ricas casas, não é nosso suor que rega o trigo?”
Enquanto dizia essas palavras em voz retumbante, Stuart via o padre Houlihan a proferir essas mesmas coisas.
Angus olhava-o ansiosamente. Até a pequena Laurie erguera o rosto dentro do crepúsculo que descia e escutava com a boca entreaberta.
— Bem —, continuou Stuart —, assim é que eram as coisas na terra de Berkowitz. O povo ali começou a pensar e a ficar inquieto, olhando em
derredor e murmurando coisas. Os seus corações se inflamaram com a certeza da crueldade, da injustiça e do desespero. E, assim, as suas
vozes se tornaram mais fortes e mais ameaçadoras e os homens ricos e poderosos tiveram ainda mais medo.
“Procuraram então algum meio de satisfazer o povo que vivia tão miserável, tão faminto e tão oprimido. Eram ambiciosos e cruéis demais para
dar ao povo pão, liberdade e esperança. Para fazer isso, teriam de tirar dinheiro do bolso. Foi então que voltaram os olhos para os homens da
raça de Sam, que eram mais pobres e mais oprimidos do que os outros. Os homens da raça de Sam não eram amados no país dele porque
não acreditavam na fé predominante e porque pessoas cruéis haviam divulgado toda a espécie de histórias cruéis e mentirosas a respeito
deles.
“Em vista disso, os ricos tiveram uma ideia muito hábil. Por que não dizer ao povo que a fome e o frio que sofriam eram culpa dos pobres-
homens da raça de Sam?
— Mas o povo não poderia acreditar numa coisa tão boba! — exclamou Angus, deixando-se levar pela força do seu entusiasmo juvenil. — Os
ricos não poderiam enganar o povo dessa maneira!
— Mas foi isso exatamente o que aconteceu —, disse Stuart tristemente. — Na verdade, meu caro Angus, o povo é capaz de acreditar em
qualquer coisa desde que esteja sofrendo. O povo é cego e sem inteligência e, quando está reunido, pode ser ainda mais cruel e feroz do que
os animais selvagens. O povo acreditou, talvez porque quisesse mesmo acreditar. Teve assim um pretexto para matar e saquear os homens da
raça indefesa de Sam. Além disso, havia mais segurança nessa atitude do que na revolta contra os verdadeiros causadores de seus
sofrimentos, que eram seus senhores. Alguns dos homens do povo seriam sacrificados se eles voltassem a sua cólera contra aqueles que os
oprimiam. Na verdade, tiveram a aprovação de seus senhores.
Quase não podia mais ver o rosto de Angus no escuro, mas sentia as emoções exacerbadas do garoto, a sua incredulidade e o seu terror, o
seu desordenado pavor em face desse primeiro conhecimento com a monstruosidade do mundo dos homens. Alguma coisa dentro dele foi
profundamente abalada e despedaçada.
Stuart disse então:
— O mundo não é o que você acredita que seja, Angus. É um lugar mau, cheio de gente má. Cada homem tem o dever de contribuir para a luta
contra o mal. — Sentia o coração exultante com o entusiasmo que lhe despertavam as suas próprias palavras. — Podemos errar, podemos
desviar-nos do caminho certo, mas temos fé em que o mal pode ser destruído e em que acabaremos vencendo. Talvez não agora e nem
mesmo daqui a quinhentos anos. Mas um dia, quando Deus determinar.
Angus ficou em silêncio e Stuart continuou:
— Mas tenho de lhe contar minha história. Já é quase noite e este ventinho está ficando cada vez mais forte. Levante a gola do casaco, Angus.
“Ora, o povo na terra de Sam se levantou, na sua dor, na sua fome e na sua cegueira, contra a raça de Sam e os ricos cruzaram os braços
sorrindo, muito confortáveis e seguros nas suas casas bem aquecidas e fartas, diante de suas lareiras acesas e de suas mesas com boa
comida servida em pratos de prata. A raiva do povo foi desviada dos verdadeiros ladrões e assassinos. Em vista disso, Sam saiu da terra dele
e veio para cá, de bolsos vazios, trazendo apenas os braços para trabalhar e a sua fé....
— Em Deus! — exclamou Angus.
— Está bem, em Deus, se você quiser. Mas o que eu quis dizer foi que ele tinha fé em que devia haver em algum lugar do mundo segurança
para os oprimidos. Pensou que havia encontrado esse lugar nos Estados Unidos, onde acreditamos, ou dizemos acreditar, que todos os
homens são iguais. Exceto os negros, é claro. E Sam veio para Grandeville.
“Um dia, ele olhou para a ilha do Rio, que ali está e teve uma ideia magnífica. Por que aquela ilha grande e abandonada não podia ser
transformada numa colônia para outras pessoas de sua raça que sairiam dos países onde viviam e se livrariam para sempre das turbas
assassinas e dos senhores cruéis? Na verdade, Angus, você deve saber que o que aconteceu na terra de Sam aconteceu em muitos outros
países também, ainda acontece hoje em dia e continuará a acontecer no futuro.
“Sam ficou muito entusiasmado com sua ideia. Tornou-se um sonho para ele, um sonho maravilhoso. Falou comigo e com o padre Houlihan
sobre isso e o padre Houlihan também achou a ideia maravilhosa. Ele e Sam foram procurar o prefeito para conversar sobre o assunto. Ora,
veja, aquela ilha é terra americana e é de propriedade de algumas pessoas que estariam dispostas a vendê-la por um preço conveniente. Sam
e o padre Houlihan foram falar com essas pessoas depois de conversarem com o prefeito e um preço foi fixado. Sam está trabalhando
duramente para conseguir esse dinheiro. E espera qualquer destes dias dar a ilha a seu povo para que viva nela.
Estava tão escuro já que Stuart mal podia divisar os rostos das crianças. Mas sentia a trêmula ansiedade de Angus.
— O Sr. Berkowitz é judeu, não é, primo Stuart?
— É, sim.
Angus ficou em silêncio, mas as suas emoções pareciam crescer e vibrar. Deu então um profundo suspiro e disse com a voz a fremir de
emoção:
— Muito obrigado, primo Stuart.
Stuart sentiu-se profundamente emocionado, embora não soubesse por quê. Apertou o ombro de Angus e o garoto voltou os olhos para o rio.
— Mas por que o Sr. Berkowitz quer aquela ilha, primo Stuart? Nos Estados Unidos, há liberdade para todos os homens, não há? Ele não está
em segurança em qualquer lugar aqui, com toda a sua gente?
Stuart disse então ironicamente:
— Sem dúvida alguma! Aqui é a terra dos livres e a casa dos bravos. Não temos ódio aqui de ninguém, a não ser dos católicos, dos judeus e
dos pobres negros escravos. O país assegura liberdade a todos, desde que sejam da mesma espécie dos que já estão aqui. O padre Houlihan
poderia contar-lhe uma história muito interessante.
Teve pena de ter abalado as últimas esperanças do pobre garoto. Mas a verdade era necessária. Ora, a verdade...
— Vamos voltar para casa —, disse ele.
Sentia-se terrivelmente cansado e deprimido. Queria apenas era jantar sozinho na sua bela sala e cochilar diante do fogo, enquanto pensava na
vida. Mas teve um súbito impulso e disse:
— Você e a pequena Laurie querem jantar comigo, Angus?
CAPÍTULO 16
Foi um jantar muito agradável e Stuart, depois de seus primeiros receios de que Laurie derramasse leite no seu tapete de Aubusson ou
manchasse o fino damasco, sentiu-se muito feliz com a presença das duas crianças. Alguma coisa infantil, veemente e simples dele mesmo foi
satisfeita e exaltada.
Laurie comeu como uma perfeita mocinha, dando muita atenção às suas maneiras e sorrindo durante quase todo o tempo, com o rostinho
encantador cercado pelos lindos cabelos dourados. Quando Stuart ou o irmão adorado diziam alguma coisa, voltava para quem falava o azul
deslumbrante de seus olhos e escutava atentamente, quer entendesse, quer não. Quanto ao pobre Angus, a sua expressão de sofrimento havia
desaparecido e até as faces pareciam mais cheias na radiosa luz que lhe enchia o rosto. Os olhos estavam bem abertos e límpidos e ele de
vez em quando ria a alguma pilhéria de Stuart.
Um estranho garoto, pensou Stuart de Angus, com uma mistura de pena e admiração. Mesmo contra a sua vontade, tinha acreditado em
algumas histórias de Janie, segundo as quais Angus era bronco e sem inteligência, manhoso e furtivo, choramingas, beato cantador de salmos
e incorrigivelmente mentiroso. Não se dera ao trabalho de investigar essas afirmações de Janie, porque não se interessara por Angus e pelas
outras crianças senão para desejar que se fossem quanto antes de sua preciosa casa. Agora, começava a duvidar e a detestar Janie com
redobrado ardor.
E então, com horror e indignação, começou a compreender que Angus era cega, terrível e incrivelmente dedicado à mãe.
A princípio, Stuart não pôde acreditar nesse revoltante fato. Um rapaz, com a inteligência e a agudeza de Angus, não podia deixar de saber o
que Janie realmente era! Tinha experiência pessoal dela, de sua ruindade, de sua disposição traiçoeira e cruel, de suas mentiras.
Entretanto, Angus falava dela com simplicidade e simpatia, com a mais comovente expressão de ternura. O garoto amava a mãe. Isso era
bastante para ele. Mas por que ele a amava? Durante o jantar, Stuart tentou aprofundar esse problema. Chegou, pouco a pouco, à conclusão de
que o rapaz era cego de muitas maneiras. Só se lembrava dos raros momentos de bondade de Janie, de seu riso, de seu espírito e de sua
alegria. Lembrava-se da frivolidade dela, que devia parecer ao garoto uma coisa adorável. Não lhe via os pecados. Quando ela era cruel para
com ele e sua irmãzinha, acreditava-se culpado de uma maneira ou de outra ou julgava não compreender. O que ela dizia era infalível, em todas
as suas opiniões e todos os seus preconceitos.
Stuart sentiu-se cada vez mais revoltado ao ouvir o que Angus dizia e cada vez mais entristecido. Viu, num clarão de intuição, que Janie
corromperia um dia aquele rapaz bom e simples, apesar de sua integridade e de sua inocência, e que essa corrupção seria uma coisa terrível.
Entretanto, que poderia ele, Stuart, fazer? Percebeu que, se começasse a abrir os olhos de Angus, inspirar-lhe-ia desconfiança,
despedaçando-lhe o coração. Angus era uma dessas pessoas que têm necessidade de amar e de crer e que, quando veem a sua crença e o
amor traídos, se desagregam por completo e passam talvez a ser más também.
Além disso, Janie era tudo o que ele tinha. Stuart não tinha ilusões de que Angus acabasse por impressionar a mãe com sua nobreza e sua
integridade. Ao contrário, ela é que o poluiria e arruinaria, como não podia deixar de acontecer em face da sua força maior e do conhecimento
que tinha das coisas perversas.
Angus não sabia que a mãe o odiava. Iria sabê-lo algum dia, mas ainda não fazia a menor ideia disso.
Enquanto falava a Stuart sem qualquer constrangimento, apoiado em sua confiança nova, mostrou-se interessado nas lojas. Nada era mais
agradável para Stuart do que falar dos empreendimentos que lhe eram tão caros. Discorreu longamente, enquanto Angus o ouvia fascinado.
Disse por fim, pensativamente:
— Deve ser um homem muito rico, primo Stuart.
Stuart franziu a testa. Por algum motivo, a referência de Angus ao dinheiro não lhe agradou. Estava em desacordo com a natureza do garoto.
— Que importância tem isso? — perguntou ele displicentemente. — Você gosta de dinheiro, Angus?
Angus hesitou. Olhou para o prato de manjar branco que o criado colocara diante dele e murmurou:
— Não sei. Nunca tive muito dinheiro, nem nunca senti necessidade dele. Mas Mamãe diz que quando alguém afirma que o dinheiro não é nada
é porque não tem necessidade dele ou não tem esperança de vir a tê-lo.
Stuart franziu de novo a testa.
— Sua mãe tem o dinheiro em alta conta, não é, Angus?
O menino levantou o rosto e sorriu, satisfeito.
— É, sim. Mamãe diz que quem não tem dinheiro é como se estivesse morto e enterrado. E que é preciso fazer tudo para ter dinheiro, muito
dinheiro. Do contrário, a pessoa será odiada, não terá sossego dentro de sua casa e que até Deus despreza o homem que não tem energia
para trabalhar e ganhar dinheiro.
— Por que é que Deus vai desprezar um homem assim?
Mas Angus estava verdadeiramente inspirado.
— Quanto a isso, há a história dos talentos. Lembra-se, primo Stuart? Um homem tinha quatro talentos e enterrou-os. Outro tinha dois ou três e
devolveu-os sem acréscimo ao patrão. Mas outro tinha apenas um talento e esforçou-se para produzir mais com ele. Deus amou esse homem e
lançou os outros nas trevas exteriores porque não procuraram aumentar o que tinham.
Stuart se mostrou muito irritado.
— Não creio que esses “talentos” tivessem alguma relação com dinheiro. Não me consta que Deus jamais fosse banqueiro.
Angus sacudiu a cabeça modestamente.
— Eram dinheiro, sim, primo Stuart. O talento era uma moeda dos hebreus.
Stuart teve uma inspiração. Era preciso fazer alguma coisa para colocar o garoto no caminho certo e salvá-lo da marcha para a destruição.
— Escute aqui, Angus, essa história dos talentos tem de ser entendida como uma alegoria, uma parábola. O que com ela se quer fazer claro é
que cada qual deve aumentar os dons que recebeu de Deus, tais como inteligência, bondade, fé e caridade.
Mas Angus insistiu na sua interpretação muito literal da Bíblia.
— Os talentos eram uma moeda dos hebreus, primo Stuart
Stuart sentiu-se extremamente confuso. Tinha pessoalmente o maior respeito pelo dinheiro e julgava-o a suprema bênção dos céus para os
homens. Havia muito decidira que nada o impediria de consegui-lo de qualquer maneira possível e vinha cumprindo essa decisão. Apesar
disso, alguma coisa dentro dele se revoltava e enfurecia diante do espetáculo da incipiente corrupção daquele garoto.
Disse então sombriamente, sentindo-se muito pueril:
— O dinheiro é uma coisa explosiva, Angus. Pode fazer as coisas mais terríveis. Pode devastar e destruir.
Angus sorriu para ele e Stuart teve confirmada a sua suspeita de que estava sendo pueril. A verdade era que aquele sorriso era singularmente
adulto e indulgente. Stuart ficou aborrecido e se levantou abruptamente da mesa, muito agastado com Angus.
As crianças seguiram-no docilmente para a sala-de-estar. Não havia contado com isso. Sentia-se muito cansado. Mas não podia ser grosseiro
e mandá-las embora. Desejavam-lhe a companhia como quem está com frio deseja um fogo aceso. Laurie até aproximou-se dele e deu-lhe a
mão confiantemente.
Deu um suspiro e sentou-se na sua poltrona. Em seguida, depois de olhar para o rosto lindo e resplandecente da menina, fê-la sentar-se
impulsivamente em seus joelhos e começou a brincar com os seus cachos dourados. Beijou-a e disse:
— Um dia destes você vai começar a destroçar corações, minha linda.
Angus sentou-se perto dele num tamborete. A luz do fogo da lareira caía quente e vermelha sobre ele. Fios de luz vermelha dançavam nas
bordas dos belos sofás e cadeiras e formavam poças rebrilhantes nas mesas envernizadas. Os reposteiros tinham sido abertos nas janelas e
suas dobras brilhavam. O vento do começo da noite se tornara um rugido profundo, que falava de lugares e terras estranhas.
Stuart ouvia o vento. A sua alma de celta se sentia inquieta e vária. Via o vento correr para o mar e seu sangue antigo se agitava.
Foi isso que o fez dizer a Laurie com grande ternura e fitando-lhe os olhos:
— Quer que eu lhe conte uma história, meu bem?
— Quero, sim! — exclamou ela, com tímida ansiedade, adorando-o.
Stuart, recuperando plena consciência, ficou aborrecido. O vento, por um instante, não foi mais do que um ruído incômodo nas janelas e entre
as árvores. Então, aquela voz ruidosa penetrou de novo em todas as células de seu corpo.
Stuart pensou. Que história era uma que sua avó lhe havia uma vez contado, numa época em que ele não devia ser mais velho que Laurie? Era
apenas um fantasma, um jeito de-história, mas ele não a esquecera de todo e sabia que havia nela estranhos sentidos ocultos. Não sabia
exatamente quais eram os sentidos, mas podia senti-los. Angus, profundamente interessado e ardente, olhava para ele à espera.
Stuart viu, com súbita nitidez interior, a avó sentada no seu canto quente da lareira, com o xale sobre os ombros e o cachimbo fumegante na
boca murcha. Viu os reflexos escuros do fogo nos ladrilhos vermelhos, o negror encardido das paredes de madeira e a cintilação dos cobres
polidos da lareira. Viu as vidraças em losango da janelinha no alto que tremiam ao impacto da ventania lá fora e como, às vezes, a luz da vela
tremia ao ser agitada, e ia brilhar em cada vidraça, enquanto a janela resplandecia momentaneamente como um pequeno espelho. Era noite
fechada lá fora, noite velha e morta, com uma turbulência entre as árvores que as faria gemer.
Na lembrança de Stuart, aquela sala com a mulher velha tinha assumido uma qualidade intemporal e oculta, que fazia tudo parecer mais um
conto de fadas do que uma lembrança real. E foi assim que ele contou a história a Laurie vendo diante dos olhos a avó e a lareira e com o vento
a ressoar-lhe nos ouvidos.
A história nada era, afinal de contas, senão impressões e sonhos.
— Era uma vez uma menina que vagueava sem pouso e depois de muito caminhar durante muitos dias, exausta de fome, de abandono e de
tristeza, deparou com o muro alto de um estranho jardim. Podia ver acima do muro os galhos das árvores mais esquisitas, pois as folhas eram
lisas e brilhantes como metal e entre elas pendiam frutas redondas e douradas bem diferentes das outras frutas. Havia passarinhos pousados
nos galhos, mas imóveis como se estivessem sonhando, com as suas penas amarelas, vermelhas, azuis e roxas. A menina teve vontade de
comer uma fruta e olhou em volta à procura do portão de entrada. Encontrou-o afinal escondido entre as pedras. Cheia de medo, empurrou o
portão que se abriu sem fazer barulho. A menina entrou no jardim. Não havia som algum e a luz do sol era uma claridade turva e tênue, como se
tudo fosse um sonho. Nenhuma folha se balançava. Não havia vento. Os pássaros pousados nas árvores dormiam. Havia muitas flores que
pendiam na claridade fantástica, parecida com a que precede o nascer do sol. A menina viu rosas e amores-perfeitos e grandes lírios de
cálices listrados de amarelo e grandes folhas pendentes. Havia caminhos por entre as flores, calçados de pedras esparsas, por entre as quais
a grama crescia.
O ar, pesado e sonolento, estava cheio do perfume das flores e das moitas a tal ponto que a menina mal podia respirar. Havia também o velho
e encantado cheiro das flores do sabugueiro, mais doce e mais embriagador do que todos os outros. A menina andou pelos caminhos e olhou
para os relógios de sol, ficando vagamente surpresa de ver que, embora a luz fosse suave e transparente, os relógios de sol não marcavam a
hora. Não havia sombras neles. Na verdade, não havia sombras de espécie alguma naquele jardim. Tudo ficava parado e sem barulho naquele
jardim fora do tempo. Tudo dormia. Mas o aroma do sabugueiro de vez em quando se desprendia em breves lufadas cheirosas como se
alguma coisa o tivesse agitado. Nenhum pássaro dava um pio ou quebrava o silêncio com o bater de uma asa.
“A menina chegou a um pequeno lago no fundo da relva espessa. Era como um escudo redondo de metal cintilante e nada encrespava o
espelho de suas águas, nem sequer a sombra de um peixe ou o voo de um inseto. Dois cisnes, brancos e parados, dormiam na superfície que
refletia o azul claro do céu. Além do lago, as árvores eram grandes, escuras e velhas, com as copas curvas nas quais se viam os frutos
dourados, que brilhavam à meia luz como pequenos sóis amarelos.
“Então, a menina teve medo. Sabia que tinha de sair quanto antes daquele jardim enfeitiçado e descobrir o caminho para o portão escondido e
para a estrada. Talvez seu anjo da guarda lhe dissesse ao ouvido que andasse depressa. Ela disse então chorando que estava muito cansada
e com muita sede e muita fome. Ia comer um dos frutos dourados e descansar um pouco. Depois disso, continuaria sua viagem à procura de
um lar.
“Subiu aos galhos da árvore mais próxima, colheu uma fruta e cravou nela os dentinhos brancos. Ficou sentada ali nos galhos, enquanto os
pássaros continuavam a dormir, imóveis, ao lado dela, como se também fossem frutos. O fruto era muito doce, sumarento e delicioso. Tinha
gosto de mel e de vinho e a sua polpa era tão satisfatória quanto o pão. E abaixo da menina se estendia o jardim vasto e cheio de flores, o
lago, os cisnes e as árvores, tudo banhado numa tênue e leve luminosidade feita de pérola e de sol, com o odor doce e embriagador do
sabugueiro impregnando tudo.
“Satisfeita e descansada, a menina desceu da árvore e ficou ao pé dela, dizendo em voz alta que estava na hora de partir dali. Mas quase não
ouviu sua voz que pareceu afogar-se no ar. Sentiu então muito sono, tanto sono que não pôde resistir. Deitou-se na relva macia e adormeceu.
“Não devia ter dormido muito ou, então, outro dia tinha chegado porque, quando acordou, o jardim continuava na mesma. Levantou-se. Olhou
em torno, alheada. Tinha esquecido quem era, de onde vinha e para onde ia. De nada mais se lembrava senão do jardim encantado e onde o
tempo estava parado.”
Laurie e Angus tinham escutado a história quase sem respirar. Os olhos azuis de Laurie eram como um fogo tranquilo na meia luz da sala.
— E a menina nunca mais saiu do jardim? — perguntou Laurie, sentindo lágrimas de piedade pela menina que só se lembrava de seu
encantamento e de seus sonhos.
— Saiu, sim —, disse Stuart. — A menina viveu muito tempo no jardim, mas não sabia os dias, desde que não havia noites. Só havia aquela
névoa cor de pérola que se filtrava entre as árvores. Essa menina era muito feliz dentro de seu sonho. Comia os frutos das árvores, dormia,
falava com as flores e com os cisnes silenciosos e sentia o cheiro do sabugueiro. Olhava para as corolas dos lírios, afagava as rosas, que não
tinham espinhos e nunca murchavam. Andava pelos caminhos e olhava para os pássaros.
“Um dia, porém, encontrou o velho portão e teve uma grande surpresa ao vê-lo. Não se lembrava dele. Empurrou-o e ele se abriu sem fazer
barulho. Saiu e se viu na estrada esburacada. Olhou para trás e quase não pôde ver mais o jardim. A névoa cor de pérola tinha caído sobre de
como uma nuvem translúcida. E então, pela primeira vez em muitas eras, a menina ouviu o vento do céu. Era um barulho forte e trovejante que
lhe encheu o coração de medo. Quis voltar correndo para o jardim quente e silencioso, mas o portão se afastou da mão dela e se fechou. Por
mais esforços desesperados que fizesse, não conseguiu mais abri-lo. Tentou escalá-lo, mas ele parecia tornar-se cada vez mais alto e cheio
de arestas finas e cortantes. Por fim, deixou-se cair no chão, cansada e a memória lhe voltou. Chorou então longa e sentidamente até ficar
exausta.
“Descobriu então que não era mais uma menina, mas uma mulher crescida. Levantou-se e começou a caminhar pela estrada. Era no inverno,
fazia muito frio e a neve começou a cair por entre as árvores descarnadas onde não se via um só pássaro.
— Ela encontrou uma casa e alguém que gostasse dela? — perguntou Laurie, muito pálida e ansiosa.
Stuart hesitou. Era uma história muito estranha e que não lhe parecia muito clara. Duvidou, numa misteriosa intuição, de que devesse contar o
resto às crianças.
— Não —, disse ele, olhando para os olhos marejados de Laurie —, ela nunca pôde encontrar uma casa. Nunca encontrou ninguém que
realmente gostasse dela, ao menos como ela queria que gostassem. O pior de tudo foi que, depois de ter estado no jardim, o mundo pareceu
muito feio, barulhento, cruel e frio para a menina. Não pôde mais habituar-se a ele. E, um dia, tentou voltar para o jardim, para o cheiro do
sabugueiro e para os frutos dourados. Mas não conseguiu. E morreu de pesar no meio da neve.
Olhou então para os olhos de Laurie e teve o mais estranho pensamento. Julgou que o jardim dos sonhos se refletia nos olhos dela.
Angus ficou em silêncio e não fez qualquer comentário sobre a história. Stuart se sentiu de repente muito cansado e errado. Colocou
delicadamente Laurie no chão.
— Está na hora de dormir, meu bem —, disse ele, beijando-lhe o rosto.
CAPÍTULO 17
Janie se recuperou da gripe mais depressa que seus filhos Bertie e Robbie. Enquanto os dois garotos ainda estavam de cama, tossindo sem
parar e ameaçados de febre, Janie se levantou bem-disposta e se sentou à janela de seu quarto, de onde podia ver a encosta que reverdecia e
o rio ainda cheio de blocos de gelo. A vista não lhe parecia muito risonha, mas seu espírito naturalmente enérgico não permitia qualquer ideia
de desolação.
Vestida com um belo peignoir de veludo negro, guarnecido de pelica branca, com os pés apoiados numa almofada branca, Janie voltava para
a água os irrequietos olhos verdes e se abandonava a toda espécie de planos. Tinha de novo torturado os cabelos ruivos em complicados
cachinhos e aplicara ruge e pó no rosto pálido e sardento. Apesar da magreza resultante da gripe, parecia mais ávida e animada do que nunca.
O sol de abril entrava pelas janelas e lhe pousava agradavelmente nos ombros. Ouvia o vento forte quase ártico daquela primavera do norte,
mas estava confortavelmente isolada dele. Esperava com um leve sorriso a pairar na boca pintada e móvel.
Stuart lhe havia solicitado alguns minutos e ela pegou o espelho e examinou o rosto. Não era belo, pensou ela, mas era animado e vivo, como
sua querida mãe tantas vezes lhe havia dito. E bem cheio de inteligência e interesse. Ah, se não fossem aquelas sardas e aquele grande nariz
romano com as narinas ávidas! Inclinou a cabeça numa atitude própria para disfarçar o nariz. Tinha-se perfumado fartamente e o cheiro forte
impregnava quase todo o quarto grande e bem preparado, com as paredes brancas, os candelabros de ferro, as portas e a lareira brancas, a
cômoda e o armário de mogno delicados, o macio tapete redondo, a grande cama com dossel e as cadeiras estofadas de damasco azul e
rosa. O seu amor ao luxo, que era bem desenvolvido, sentia-se plenamente satisfeito com tudo o que ela via.
Sem dúvida, Stuart estava em boas condições de prosperidade. Animou-se ainda mais ao pensar nele e sorriu astutamente. Era um bom rapaz
e daria muito certo com ela. Viveriam muito bem juntos. O coração murcho vibrou com alguma coisa que parecia quente afeição e prazer.
Pensou de repente no pobre Robin selvagem com sua voz estranha e comovente, seu rosto iluminado e seus gestos exuberantes. Franziu a
boca num cruel desprezo e apertou os olhos cintilantes. Tinha sido um idiota apático, uma cotovia ridícula, que não sabia senão cantar. Teve um
riso breve e nada simpático. Nada recebera de Robin a não ser quatro filhos incômodos e indesejados. Quando era bem jovem, uma moça
queria um homem na cama. Quando ficava mais velha, queria dinheiro no banco. Mas isso só vinha com o juízo.
A porta de seu armário estava entreaberta e Janie olhou a fila comprida de seus vestidos, os veludos, as pelicas, as capas de marta e arminho,
os mantos de seda. Na prateleira de cima, estavam as caixas com seus belos chapéus, cada qual mais encantador do que o outro, e seus
regalos. Naquela rude cidade de fronteira, ela seria indiscutivelmente a mulher mais elegante e bem vestida. Ensinaria àquela gente rústica e
bárbara os requintes da sociedade polida, as normas sutis da boa educação. Viu-se, levada langorosamente pelo braço de Stuart, entrando
num salão obscuro, onde todas as mulheres malvestidas lhe invejariam a toalete maravilhosa, enquanto os homens ficariam literalmente
arrasados.
Tão empenhada estava ela na escolha do vestido com que devia aparecer pela primeira vez na sociedade de Grandeville que não ouviu Stuart
bater à porta. Só depois que ele fez ouvir a voz forte foi que ela ergueu os olhos num sobressalto.
Stuart apareceu à porta com um amplo sorriso. Estava muito nervoso, mas disfarçava isso com um bom humor afetado. Atravessou o quarto
ensolarado e, inclinando-se, beijou-lhe gentilmente o rosto.
— Muito bem! Como fico contente de vê-la completamente restabelecida, meu amor! — exclamou ele.
Correu em seguida os olhos pelo quarto para ver se não tinha havido algum estrago durante a doença de Janie e se as empregadas haviam
deixado alguma partícula de pó nas superfícies cintilantes. Ah! Seria a marca de um copo na mesinha de cabeceira? Curvou-se e examinou a
marca, inclinando a cabeça de um lado e de outro, passando, por fim, os dedos na superfície da mesa. A sua testa se desfranziu. Era apenas o
jeito da própria madeira. Satisfeito, levantou a cabeça, olhou para o fogo na lareira e voltou para junto de Janie ainda com mais afabilidade.
Janie observara-o com os olhos apertados e um leve sorriso. Mas se acalmou quando o viu voltar com toda a sua jovialidade e beleza. Stuart
apoiou a mão nas costas da cadeira onde ela estava sentada com um sorriso ao mesmo tempo alheado e pensativo.
Ele tinha alguma coisa em mente e devia usar uma certa dose de duplicidade. Julgava-se às vezes um homem muito hábil, astuto e esperto e
desejava ansiosamente que todos fizessem esse juízo dele. Entretanto, bem no fundo do coração, odiava as pessoas sabidas e tinha medo
delas, embora lhes invejasse a serenidade e a paz de espírito. Na opinião dele, paz de espírito era uma coisa que só mereciam os imbecis e
os maus, uns porque eram tão rasos que nem consciência tinham e os outros, porque tinham tido a vantagem de nascer sem consciência.
O olhar de Janie era muito firme ao seu jeito curioso e começou a afligi-lo. Afagou-lhe o rosto, sentou-se ao lado dela e tomou-lhe a magra mão
sardenta.
— Está-se sentindo bem agora, querida?
— Perfeitamente —, disse ela com sua voz alta e rouca. Mostrou-se então gentil com ele. — Como você foi delicado e atencioso comigo
enquanto estive doente, meu querido Stuart. Fique sabendo que me deixou arrasada.
— Ora, minha filha —, disse ele, recostando-se na cadeira e cruzando as pernas —, não tem nada que agradecer. Quis que nada lhe faltasse
durante sua doença. Era meu dever. E seus filhos foram bem cuidados também. Tomei as providências necessárias. E agora podemos tratar
de outros assuntos, não acha?
Ficou então em silêncio, olhando-a atentamente. Poderia fazê-la passar por uma parenta ilustre? Sem dúvida alguma, seus vestidos, suas joias,
seus perfumes (e seu dinheiro) eram impressionantes. E se ele pudesse convencê-la a refrear a língua e a não dar gargalhadas tão
inconvenientes, tudo estaria bem! Sorriu desajeitadamente.
— A esposa do prefeito, Sra. Cummings, mandou fazer-lhe visitas, Janie. Deseja saber quando você estará com a saúde restabelecida para
comparecer a uma festa que ela vai dar em sua honra. Não sei se sabe, mas Cummings e eu somos bons amigos.
Janie disfarçou um pouco a sua agradável surpresa.
— O prefeito, Stuart? Que interessante! Tenha a bondade de informar a essa senhora que estarei suficientemente recuperada para atender ao
seu gentil convite em qualquer dia da semana que vem. Que tal ela, Stuart? É bonita? Jovem? Elegante?
Stuart pensou em Alicia Cummings, baixa, gorda, de rosto redondo e rosado, vivos olhos azuis, o sorriso mais doce deste mundo e uma inteira
despreocupação em matéria de linha ou elegância.
— É uma senhora —, disse ele com calor, como se a estivesse defendendo de todas as Janies. — Todos gostam dela. Não, não é jovem. Mas
é muito boa. Faz obras de caridade, sem fanatismo, nem falsa piedade. A companhia dela é muito agradável, pois ela é muito delicada,
bondosa e sinceramente interessada. Além disso, é muito inteligente e culta.
— É muito fácil uma mulher ser boa e interessada quando há homens simpáticos presentes —, disse Janie, passando a língua pelos lábios.
Fizera de repente a Sra. Cummings parecer uma velha lasciva, cheia de desejos obscenos pelos rapazes e manchada de todas as ruindades.
Stuart sentiu-se revoltado. Tirou a Sra. Cummings do pensamento como se até isso naquele momento fosse capaz de ofendê-la.
Dominou-se, porém. Apenas, franziu um pouco irritadamente a boca. Disse então numa voz mais ou menos contida:
— A Sra. Cummings é boa para todo o mundo. É a confidente natural de todas as moças de seu círculo de relações e de qualquer pessoa que
precise de amizade na hora da aflição. Nunca ouvi falar mal dela.
A vontade que tinha era levantar-se e sair do quarto. Não podia mais suportar o sorriso malicioso de Janie, que lhe descerrava entre os lábios
pintados os dentes agudos. Nesse instante, ela lhe pareceu horrível e odiosa.
Ela disse então num tom terrivelmente falso:
— Tenho certeza de que a Sra. Cummings é muito agradável e terei enorme prazer em aceitar-lhe o convite. Tenha a bondade de apresentar-
lhe os meus respeitos e agradecimentos por sua gentileza.
— Está bem —, disse Stuart secamente, mas em seguida acrescentou: — Gostaria de sair de carro comigo e ir fazer uma visita às minhas
lojas? O dia está bonito e vai fazer-lhe bem. Mas é bom se agasalhar. O tempo é muito frio aqui até quase o mês de maio. Esse sol quente
engana muito.
— É claro que vou gostar muito disso, Stuart —, disse ela, levantando-se e demonstrando sincero prazer. — É muita gentileza sua, meu
querido!
Ele se levantou, um pouco inquieto e disse:
— Antes de vir para cá, passei pelo quarto para ver Bertie e Robbie. Bertie ainda está um pouco caído, mas Robbie já está às voltas com o seu
livro de crimes. Está até tomando notas e fazendo desenhos. É um verdadeiro diabrete!
— Um garoto inteligente é que ele é —, murmurou Janie. — Vamos fazer dele um bom advogado.
Stuart hesitou e então olhou para ela e disse, muito sério:
— Estive conversando com Angus também. Tem quase quatorze anos e já está bem grande. Sabe o que foi que ele me disse outro dia? Que o
avô tinha prometido que ele ia ser médico. Ele deveria ir para Edimburgo a fim de estudar com o Dr. Macintosh, o famoso cirurgião. Quase lhe
prometi que ele iria estudar com um bom médico aqui nos Estados Unidos.
Janie franziu antipaticamente o rosto e perguntou:
— Médico?
— Tem queda para isso, Janie. Tem alma de médico, altruísta e abnegado. Sei disso, pois sei ver sempre a verdadeira bondade. Ele tem até
uma tendência a ser mártir.
— É um hipócrita! — exclamou Janie, exaltadamente. — O que ele aprecia mesmo é se meter na igreja e é para lá que ele irá, se você não tiver
cuidado, deixando de lado as lições.
— E que mal há nisso? — perguntou Stuart, esquecendo-se das suas intenções ao entrar no quarto. — Pretendo levá-lo ao padre Houlihan a
fim de que ele lhe dê conselhos e orientação.
— Isso é que não! — exclamou Janie dando um pulo da cadeira e com os olhos verdes a fuzilarem de raiva. — Você não vai fazer de meu filho
um maldito papista! Não quero que ele adore ídolos como um pagão e saia por aí queimando gente viva!
— Ora, vá para o inferno! — gritou Stuart, rubro de cólera. — Está falando como uma imbecil! Meu amigo, o padre Houlihan, não vai fazer mal
algum ao garoto! Nem por sonho procurará convertê-lo! O padre Houlihan tem tato e inteligência, compreende? Será que você não pode ter um
pensamento bom para ninguém?
Janie não se abalou. Era uma coisa que sempre a animava e lhe dava redobrada energia ser tratada com violência.
— Você não o pode levar para ver um padre! — gritou ela. — Vou dar ordens expressas a Angus nesse sentido!
O punho cerrado de Stuart se abriu. Tinha vontade de esbofeteá-la. A vontade que sentia era muito grande. Involuntariamente, os músculos se
contraíram e ele levantou o braço.
Janie teve outra ideia. Tinha visto o gesto involuntário de Stuart e isso excitava a sua natureza de leoa.
— Conselhos? Orientação? — exclamou com o mais absoluto desprezo. — Que conselhos, seu idiota? Que orientação meu filho precisa além
da minha?
Não podia resistir à tentação de provocar uma explosão de violência de Stuart contra ela.
— Porque ele tem como mãe uma megera! — exclamou Stuart com voz ainda mais alta. — Porque você faz da vida dele um inferno,
atormentando-o e espancando-o, amedrontando o pobre garoto com essa natureza negra que você tem, ruim como é!
Então, de repente, ficaram ambos sombriamente calados. A respiração entrecortada dos dois era perfeitamente audível no silêncio ensolarado
do quarto. Janie estava pensando irritadamente na loucura que fizera em contrariar Stuart quando era de seu interesse amaciá-lo a fim de o
encaminhar para o casamento. E Stuart pensava que tinha posto tudo a perder e que nada mais poderia apaziguar Janie para fazê-la servir aos
seus planos. Ambos estavam arrependidos e praguejavam intimamente.
Stuart foi o primeiro a se recuperar. Forçou um sorriso. O rosto ainda estava vermelho e banhado de suor. Disse então com a voz ligeiramente
rouca:
— Não sei por que ainda discutimos e gritamos um com o outro, como no tempo em que éramos crianças, Janie. Isso me faz até ter saudade
dos velhos tempos.
Imensamente tranquilizada, Janie riu e disse:
— Os velhos tempos! Sinto até vontade de chorar quando penso neles, Stuart!
E desde que estava tão excitada e estimulada, as lágrimas lhe saíram aos borbotões.
Embora a odiasse, Stuart não podia ser insensível às lágrimas de uma mulher. Havia nele um fundo de irredutível brandura. Além disso, sentia-
se tão aliviado com o término da discussão que chegou a tremer. Aproximou-se dela, passou o braço pelos ombros dela e beijou-lhe os
cabelos.
— Deixe disso, minha querida! Você me está partindo o coração! Pode-me perdoar, Janie? Ficarei inconsolável se não me perdoar.
Janie podia sempre perceber a duplicidade. Mas viu que Stuart estava sendo sincero e a sua animação cresceu. Chorou abraçada a ele, disse
que não prestava mesmo e não merecia qualquer gentileza da parte dele, embora ele tivesse sido tão gentil e atencioso com ela. O que ele
devia fazer era mandá-la arrumar as malas, pondo-a para fora da casa dele e fazendo-a voltar para a Inglaterra.
— Não, não —, murmurou Stuart, com pena dela e, ao mesmo tempo, vendo-a no ponto que desejava, como uma viúva indefesa largada com
quatro filhos num mundo insensível. — Eu é que estava errado. Esta é minha casa e nela você é uma hóspede querida, a minha velha e adorada
Janie. Perdão, meu bem.
Rebolcaram-se em sentimentalismo. Stuart, ao menos, era sincero. Janie ria intimamente, com o rosto escondido no ombro dele.
Pouco depois, estavam de novo sentados juntos e de mãos dadas. Janie era toda ardor e estímulo. Stuart se sentia meio tonto e fraco. Mas se
mostrava muito bondoso para com a prima. Achou que já podia entrar no assunto de seus antecedentes ilustres. Teve muito tato, na sua nova
duplicidade.
— Isto aqui é uma sociedade vulgar e nova —, começou ele. — A gente daqui nada sabe de maneiras elegantes ou da verdadeira aristocracia.
Em vista disso, são todos aqui extremamente exigentes. Acreditam que uma pessoa fina deve ser muito requintada na sua maneira de falar,
com uma linguagem cheia de sublimidade e apuro. Seriam capazes de perder os sentidos se ouvissem alguma palavra mais áspera. Nunca
observaram de perto uma pessoa realmente distinta e a criam de acordo com a sua imaginação. Desde que são de origem baixa, julgam que
devem tratar as pessoas inferiores como se estas fossem servos e eles tivessem nascido na mais alta nobreza. Alguns pensam até em
promover caçadas com casacos vermelhos e matilhas de cães, mas há um pronunciado preconceito nos Estados Unidos contra os costumes
ingleses, muito embora a quase totalidade da população seja de origem inglesa. Mas todos adoram o jeito inglês, invejam-no e procuram
furtivamente imitá-lo.
— Mas tudo isso é imensamente divertido! — exclamou Janie, cheia de desdenhoso riso para com esses plebeus.
— Mas é uma coisa muito comovente —, disse Stuart. — Essas criaturas malnascidas e pior criadas têm de recorrer a essas afetações e a
esses desejos ocultos para ter um consolo da vida sórdida que levam, exclusivamente devotada ao dinheiro. Cada qual tem direito ao seu
consolo particular. Não devemos esquecer, porém, que esses simuladores são poderosos nos Estados Unidos. São tão poderosos que podem
manter a escravidão nos Estados do Sul e explorar os operários nas suas fábricas no Norte. Intimidam, perseguem, asfixiam e oprimem, de
acordo com a sua natureza de pessoas malnascidas. É na verdade uma coisa muito triste. Alguém devia ensinar-lhes a verdadeira gentileza e
a bondade simples dos que são autenticamente bem-nascidos. Alguém devia convencê-los de que as pessoas verdadeiramente nobres não
vivem preocupadas com o dinheiro. Seria uma verdadeira revolução para os americanos.
Janie sorriu irresistivelmente. Como era simplório o querido Stuart com aquela cara séria e aquelas palavras tristonhas! Mas resolveu aceitar a
disposição dele.
— Compreendo —, murmurou ela gravemente, com o seu espírito ágil prevendo já onde ele queria chegar.
Stuart deu um suspiro de alívio.
— Ótimo, Janie! Então, quando for apresentada a eles, se você se mostrar simples, natural, bem-nascida, sem afetações, nem arrebiques, será
fatalmente condenada por não ser uma aristocrata. Será então olhada com má vontade. Se você se expressar de uma maneira forte, como é de
seu costume, ficarão horrorizados. Se você disser que não tem antecedentes ilustres e se abstiver de gabar-se e exagerar, será tida como
inferior. Você é uma lady. Mas deve exercer toda a força de sua imaginação para convencer essa gente de que é mesmo. Deve corresponder à
ideia que fazem de pessoas nobres.
Janie, que era naturalmente atriz, ficou encantada.
— Você vai ver como eu vou falar, corar e tomar atitudes da maneira mais estupenda possível! Serei tão sensível que desmaiarei se alguém
disser uma palavra menos inocente e cairei para trás se um homem assoar o nariz em minha presença! E inventarei os antepassados mais
ilustres, com castelos cheios de retratos e fantasmas, fossos e pontes levadiças! Vamos ver: Lady Constance Vere de Vere era minha bisavó
materna e todo mundo sabe que o tom mais alto de uma voz bastava para fazê-la desmaiar.
— Esplêndido —, disse Stuart, embora com algumas dúvidas. Não tinha falado em nenhuma Lady Vere de Vere. Devia falar com Janie a
respeito de Sir Angus Fraser. Com um sorriso um tanto contrafeito, falou a Janie de suas invenções anteriores.
Ela riu abandonadamente e chegou a dar palmadas no joelho de Stuart de tão satisfeita que ficou. Ele se sentiu envergonhado tanto por si
mesmo, quanto por ela. Mas, de qualquer maneira, era um alívio que Janie o compreendesse de maneira tão completa e estivesse disposta a
desempenhar o seu papel.
— Só quero é que eles a apreciem e não a interpretem mal, nem a reprovem, minha querida —, disse ele de maneira não muito convincente. —
Quero que lhe façam justiça.
Janie piscou o olho.
— Quanto a isso, não tenha dúvida alguma, meu caro Stuart. Vão me adorar!
— Nada de anedotas, nem de bater no braço dos homens com o leque, nada de tropeçar, nem de mostrar os tornozelos, nem de praguejar ou
dizer coisas apimentadas, ouviu?
— Nada disso! — exclamou Janie, sentando-se na poltrona com a atitude mais elegante, semicerrando os olhos e fingindo que se abanava
com o lenço. — Serei a viúva mais delicada e distinta, do mais puro sangue azul, com uma voz de anjo e com cílios dançantes. Você vai ver!
Vai sentir-se orgulhoso de mim!
Stuart tinha sérias dúvidas. Mas suspirou com alivio e levantou-se. Janie olhou para ele e teve outra ideia.
— Esse Allstairs de que você falou, meu bem, também faz parte da aristocracia local, juntamente com sua encantadora filha, Marvina?
Stuart, recorrendo de novo à sua fácil duplicidade, sorriu amplamente e encarou-a firmemente, dizendo:
— Claro, meu amor. Ele é o homem mais rico de Grandeville e um dos mais ricos de todo o Estado. É um homem terrível. Você vai conhecê-lo.
A Srta. Marvina? Bem, confesso que houve um tempo em que me senti interessado pelo seu rostinho bonito. Mas, meu Deus, como é vazia!
Parece uma boneca de cera pintada. Não há nada lá dentro. Seja boa com ela, minha querida Janie. A pobrezinha não tem o juízo nem de uma
criança recém-nascida. Não se divirta às custas dela.
— Você não tem por acaso algum compromisso com esse tesouro, Stuart? Algum compromisso que possa ser mal interpretado por um pai
tirano?
— Não, não há nada! Como já disse, me interessei, como muitos outros homens em Grandeville. Mas cheguei à conclusão de que a vida com
uma boneca vazia seria uma coisa lamentável.
Criou novo ânimo. Tinha-se saído muito bem! Janie ficara quase convencida. Os penetrantes olhos verdes dela estavam quase suaves.
— Mas você não disse que pretendia pedir a mão dela, meu bem? — perguntou ela.
Ele riu, ficou vermelho e bateu no ombro dela.
— Não posso ter mudado de ideia?
Janie estava profundamente interessada em tudo aquilo. Acreditara sempre que Stuart era uma alma simples, incapaz de dissimular com algum
sucesso e que, certamente, nunca poderia enganar uma pessoa tão esperta quanto Janie Cauder. O pobrezinho não passava de uma criança,
de um simplório, de um bobalhão.
Olhou para ele significativamente e esperou. Ele sabia o que ela queria e todo o seu corpo recuou, cheio de repulsa.
Mas curvou-se deliberadamente e beijou-a nos lábios com ardor.
Ele havia dado o primeiro passo. O outro seria dado mais tarde naquele mesmo dia. Valia a pena. Mas, quando saiu do quarto, não podia
acreditar nisso, no fundo de seu coração revoltado.
Quando ficou sozinha, Janie se dirigiu para a cômoda, abriu a última gaveta e tirou de baixo de finas roupas íntimas de rendas e linho uma
garrafa de uísque quase vazia. Levantou-a, deixando que a luz do sol incidisse sobre o líquido dourado. “Ah, ah”, disse ela, estalando os lábios
e rindo de prazer. Levou a garrafa aos lábios e bebeu um grande gole. “Ah”, murmurou de novo, numa prolongada respiração cheia de
satisfação. Arrolhou a garrafa e tornou a escondê-la em gestos lentos e enternecidos. “Uma gota é uma boa coisa para a alma do homem”,
tinha dito muitas vezes o pai dela, contando como o pai dele costumava beber um copo cheio de uísque três vezes ao dia com seu mingau, seu
haggis e seu carneiro assado. O velho tinha vivido até alcançar a bela idade de cento e dez anos e nunca tinha havido uma manhã em que ele
não saísse de manta e kilt para subir as montanhas nevadas para ver os carneiros e passear, vigoroso e feliz, com toda a sua altura e a sua
magnífica saúde.
Jane concordava manifestamente com o pai em que uma boa gota era o elixir da longa vida. O efeito era excelente sobre ela, depois que
trancou a gaveta e guardou a chave no seio. Começou a cantarolar baixinho e, de repente, se pôs a dançar pelo quarto, em verdadeiras
cabriolas, exultando e rindo como se nada a pudesse conter, com as saias a voar em torno das pernas magras, os cachos ruivos agitados pelo
movimento e o rosto contorcido numa alegre máscara de prazer perverso.
CAPÍTULO 18
Stuart levou a sua melhor carruagem, puxada por dois luzidios cavalos pretos, para o caminho ensaibrado ao lado da casa. Arreios e rodas
rebrilhavam ao sol da primavera. O cocheiro puxou as rédeas e saltou. Stuart pretendia guiar. Ficou ao lado do veículo, passando
delicadamente a mão pela carroçaria preta bem envernizada, soprando as lâmpadas de prata e polindo-as cuidadosamente com o lenço.
Bateu carinhosamente nas ancas pretas dos cavalos bem lavados, que o olharam de lado, mostrando o branco dos olhos. Stuart fingiu então
examinar os arreios de prata. Depois, satisfeito com tudo, aspirou fortemente o ar, resplandecente de sol e ficou à espera de Janie.
Ela apareceu na porta lateral e Stuart olhou-a ansiosamente, preocupado com a sua aparência nos lugares públicos de Grandeville. Mas no
mesmo instante se tranquilizou. Janie, como se soubesse em que carruagem ia sair, estava toda de veludo preto e lilás. O vestido,
elegantemente drapejado e preso, assentava-lhe perfeitamente. Várias correntes de prata lhe pendiam do pescoço. Usava sobre essa
elegância uma capa de marta e luvas de pelica preta. O grande chapéu de veludo preto tinha violetas na aba, realçando-lhe os cabelos ruivos.
Desceu vagarosamente os degraus para o caminho e Stuart, satisfeito, estendeu-lhe galantemente a mão. Era a imagem da pequena viúva
delicada e inteligente, toda fragilidade e modéstia. Ela havia até usado de reserva em matéria de ruge e, sob o mais leve toque de pó, as suas
sardas eram evidentes e mais tocantes na sua simplicidade. Só quando ela sorriu maliciosamente para Stuart, mostrando os dentes pequenos
e brancos de animal de rapina, a imagem se distorceu.
Ela deixou que ele a ajudasse a embarcar na carruagem, onde se sentou com os olhos modestamente baixos, as mãos enluvadas metidas em
seu regalo. Stuart subiu então e se sentou ao lado dela. Começou então a rir.
— Não exagere. Procure ser um pouco mais natural.
Ela o olhou, com os olhos verdes fuzilando maliciosamente e, por um instante, mostrou-lhe a ponta da língua. Isso agradou muito a Stuart. Ali
estava a velha Janie alegre a quem ele tinha amado e cujas travessuras ele tinha achado tão fascinantes.
— Não se esqueça! Nada de nomes feios e uma voz muito baixa e suave —, disse ele, com simpatia.
Stuart estava também muito elegante com seu capote de muitas golas, o chapéu alto de castor, os folhos da camisa e as luvas. Guiou os
impetuosos cavalos pela rampa até à estrada lamacenta que ia para a cidade. Sentia-se despreocupado. Ao lado dele, Janie se mostrava
muito quieta e graciosa, mas Stuart podia sentir-lhe a vitalidade contida, como uma onda de eletricidade. Se ela continuar a se comportar
assim, pensou ele, tudo estará bem.
Evitando deliberadamente as ruas mais pobres, levou a carruagem pelos bairros mais sossegados, onde as árvores ainda estavam sem folhas
e as sebes se mostravam ressequidas. A água corria por entre as pedras das ruas. Os passeios de tábuas ainda estavam molhados. As casas
tinham um ar desolado com as fachadas de tijolos vermelhos ou de madeira manchadas das chuvas de inverno e da fuligem das chaminés.
Mas o vento que vinha dos Lagos e do rio era forte com um cheiro agradável. O sol era luminoso e claro num céu de um azul translúcido. Stuart
tinha avisado Janie de que a viagem seria longa. Mas ela não estava enfadada com a jornada. Olhava para tudo com um interesse superior.
Achava a cidade feia e lamacenta, com uma rude falta de simetria e de beleza. As casas altas e estreitas por trás dos gramados cheios de
lama eram de fato excessivamente horrendas, com suas cúpulas, seus enfeites de madeira e suas longas e sombrias varandas. Aqui e ali, uma
mulher malvestida com um grande chapéu e uma capa de cor escura caminhava lentamente pelos passeios ou as crianças brincavam,
desforrando-se da longa prisão do inverno. Passavam outras carruagens e os seus ocupantes esticavam o pescoço a fim de olhar a bela
carruagem de Stuart, trocar cumprimentos com ele (Stuart levava delicadamente o chicote até à altura do chapéu) e ver a elegante senhora,
sentada ao lado dele tão bem abrigada sob seus vestidos e as mantas do veículo.
Stuart lhe informou que aquela era a Rua Niágara, assim chamada porque acompanhava o curso do rio por alguma distância. Era a rua da
classe média, onde moravam os homens das profissões liberais e onde ficavam as lojas. Sentava-se com o corpo muito ereto, controlando os
cavalos e conversando displicentemente com Janie, explicando os pontos de interesse e apontando-os com o chicote. Sem interromper as
suas explicações, cumprimentava constantemente as carruagens que passavam e sorria, com os dentes fortes brilhando ao sol da manhã. Por
fim, virou para a Rua Principal e apontou:
— Minhas lojas.
Janie inclinou-se para olhar com sincero interesse para a fonte de renda de Stuart, que lhe tinha provocado tantos dias de absorventes
conjeturas. Ficou então profundamente impressionada. As lojas ocupavam todo um extenso quarteirão e embora elas fossem desiguais, tendo
sido construídas em épocas diferentes por diversos proprietários, tinham um ar grandioso e compacto, com as vitrinas limpas e cintilantes e
numerosas carruagens paradas à porta. Tudo era movimento, com entradas e saídas, vendo-se empregados solícitos que acompanhavam até
às carruagens senhoras bem vestidas, com os braços cheios de caixas e embrulhos. Quando passaram lentamente pelas primeiras lojas, Janie
ficou impressionada com os interiores repletos, a atividade dos caixeiros, as freguesas ali reunidas e o movimento constante pelas portas.
Olhou para os grandes cartazes dourados que diziam "Empório Supremo de Grandeville” e para a bandeira das tiras e das estrelas hasteada
num mastro diante da loja principal.
Stuart estava um pouco corado de orgulho e um crescente constrangimento. As senhoras nos passeios paravam a fim de olhar para a elegante
equipagem. Reuniram-se em grupos. Viram Stuart oferecendo grandiosamente a mão à senhora estranha que desceu, mostrando
modestamente a ponta das sandálias e baixando o chapéu, de modo a esconder o rosto. Cochicharam entre elas, furtivamente. Devia ser a
elegante parenta inglesa do Sr. Coleman! Que peles, que veludos, que elegância e que maneiras! Esticaram o pescoço para examinar-lhe as
roupas e a invejaram. Tentaram ver-lhe o rosto, mas só enxergaram de relance alguns cachos ruivos. Ficaram satisfeitas porque era coisa
sabida que uma mulher ruiva nunca podia ser bonita.
Stuart fingiu completo desconhecimento das pessoas que os observavam. Parecia ternamente ocupado com a elegante criatura que apoiava
timidamente a mão em seu braço e entrava a passos lentos na rica loja com a saia de veludo a dançar graciosamente em torno dela e o regalo
junto ao rosto, como para proteger do vento a pele delicada. Entraram na loja principal com um passo majestoso, medido e cerimonioso, como
se fossem dançar no ritmo de um minueto. Um garoto de rua, que observava absorto o espetáculo, prorrompeu em aplausos irônicos enquanto
Stuart e Janie desapareciam dentro da loja. As senhoras, que tinham por princípio jamais reconhecer a existência das classes inferiores,
concederam ao garoto perspicaz o reconhecimento gracioso de sua manifestação e ficaram muito satisfeitas com ele. Continuaram no passeio
discutindo a recém-chegada e falavam em vozes inconscientemente afetadas, como se estivessem antecipadamente apurando a sua
gramática e a sua correção de linguagem.
Janie ficou espantada, apesar dos sorrisos superiores que tinha planejado, com o interior realmente elegante e luxuoso da loja principal, com
seus tapetes turcos vermelhos, as poltronas confortáveis de pelúcia vermelha, os balcões de mogno polido, as prateleiras largas e bem
arrumadas com o seu sortimento verdadeiramente notável de sedas, linhos, veludos e damascos, os aparelhos de excelente porcelana de
Limoges e Haviland, as pratas, os ornamentos sortidos de Dresden e de mármore, as rendas, as fitas e os perfumes e todos os outros artigos
especialmente destinados a seduzir o coração feminino.
Janie ficou satisfeita com o ar de prosperidade da grande loja. Havia três caixeiros em atividade, todos de terno preto, camisa branca de folhos
e botinas bem lustradas que serviam às senhoras ansiosas e curiosas. Havia peças de seda, de veludo ou de linho abertas nos balcões e era
constante o som de tesouras que cortavam. As saias-balão flutuavam, com muito farfalhar, de um balcão para outro, enquanto os chapéus se
inclinavam uns para os outros em consulta e os regalos eram levados ao rosto para esconder sussurros e avaliações. Os boys corriam de um
lado para outro, levando as compras para as carruagens. A campainha era tocada constantemente no meio da agitação. A porcelana
examinada tilintava e eram muitas as senhoras que regateavam um preço com um caixeiro atencioso. O sol da primavera rolava como uma
catarata pelas vitrinas, orladas de veludo azul escuro. Havia um perfume discreto de sachê e água de rosas e o rico cheiro dos tecidos caros.
As senhoras tinham deixado os seus agasalhos nas costas de algumas cadeiras e os forros vermelhos, azuis e roxos davam toques de cor à
movimentada cena.
Janie tinha esperado fazer uma entrada grandiosa e dominante, capaz de intimidar por completo aquela gente bárbara, mas durante algum
tempo ela e Stuart passaram inteiramente despercebidos em meio àquela atividade. Stuart sentia-se crescer de complacência e importância.
Batia de leve na pequena mão enluvada que lhe pousava no ombro em eloquente e encantada comunicação.
Uma senhora robusta de meia-idade vestida de seda preta, capa de peles e um grande chapéu preto, virou-se, chamou o boy que a esperava e
mandou-o apanhar algumas compras novas que fizera. Tinha um rosto cheio, mas muito inteligente com faces rubicundas, olhos azuis
faiscantes e um canto da boca permanentemente erguido de maneira levemente irônica e uma sobrancelha escura também levantada. Os
cabelos lisos eram bem grisalhos e isso realçava pelo contraste a juventude de seu rosto. Os seus movimentos eram firmes e seguros e as
outras senhoras lhe sorriam respeitosamente enquanto ela se preparava para partir.
Stuart olhou para ela e fez-lhe uma profunda reverência. Impeliu delicadamente Janie para a frente. A senhora esperava, com o canto da boca e
a sobrancelha mais levantados do que nunca, enquanto olhava para Janie com simpatia e franqueza.
— Como está, prezada Sra. Cummings? — perguntou gentilmente Stuart. — Permita-me apresentar-lhe minha cara prima, a Sra. Cauder. É
uma grande honra! Janie, minha querida, esta é a Sra. Howard Cummings, esposa do Prefeito da cidade.
As duas senhoras fizeram uma breve cortesia. Em seguida, a Sra. Cummings estendeu a mão a Janie, que a tomou entre os dedos estreitos.
Odiou no mesmo instante a Sra. Cummings, cuja mão era gorda, quente e forte. Odiou os espertos olhos bondosos que a examinavam, o canto
da boca erguido e a sobrancelha arqueada. Quanto à Sra. Cummings, o seu rosto sincero tomou uma expressão sutilmente suave, ao mesmo
tempo que houve o rápido estreitamento de uma pálpebra.
— Magnífico! — exclamou a Sra. Cummings. — Minha querida, espero que goste de nossa Grandeville. Recebeu minhas visitas durante sua
doença? Stuart lhe transmitiu o meu convite para um jantar?
A voz naturalmente rouca e retumbante de Janie se transformou num discreto murmúrio.
— Estou verdadeiramente encantada em conhecê-la, Sra. Cummings! Stuart falou tanto de seus queridos amigos. Foi muita bondade sua
lembrar-se de mim, uma estranha em terra alheia, tão longe de minha mãe, de meu pai e de meus irmãos. — Fez uma breve pausa para deixar
o ar de tristeza invadir-lhe o rosto. Era toda meiguice e fragilidade. Ergueu então a cabeça para olhar corajosamente para a Sra. Cummings e
deixou que um sorriso lhe aflorasse ao rosto. — Mas não vou ser infeliz aqui! Seria impossível diante de tanta bondade e gentileza dos amigos
de Stuart! Tenho certeza de que não serei ingrata!
A Sra. Cummings sorriu, mas nada disse. Olhava fixamente para Janie, mas não com má vontade. Por fim, disse:
— Sei que tem quatro filhos, Sra. Cauder. Devem ser-lhe um consolo.
Janie suspirou, tocou os lábios com o lenço e murmurou:
— Não pode nem imaginar o que eles representam para mim, minha cara Sra. Cummings! Não sei se suportaria a vida sem meus queridos.
— Creio que merece inveja —, disse a Sra. Cummings, que deu um suspiro e tornou a sorrir. — Tenho apenas uma filha, minha pequena Alice,
que tem dez anos de idade, é um pouco frágil, segundo creio. Será muito agradável para ela conhecer seus filhos, Sra. Cauder.
De repente, a bondosa mulher se mostrou nervosa e um pouco ofegante, o que era surpreendente, pois ela era famosa por sua calma e
equilíbrio. Disse apressadamente:
— Tenho de ir agora. Não se esqueça de meu jantar, sim, Sra. Cauder? Nem você, Stuart!
Voltou-se para Stuart ao dizer-lhe o nome e olhou estranhamente para ele, com o canto da boca e a sobrancelha em posição normal. A sua cor
havia também desaparecido inexplicavelmente.
Stuart fez uma reverência, exprimindo sua profunda gratidão. Enquanto ele falava, o estranho olhar da Sra. Cummings se aprofundou. Ela lhe
tocou rapidamente o braço com os dedos e se afastou. Stuart abriu-lhe gentilmente a porta. Ela sorria para ele de maneira breve e perturbada e
saiu, seguida pelo boy que levava os embrulhos. Depois de um momento de hesitação e esquecendo Janie por completo, Stuart acompanhou a
Sra. Cummings, afastou-lhe o cocheiro e ajudou-a a subir à carruagem. Ela se fingiu muito ocupada em ajeitar a capa e o chapéu, enquanto o
boy deixava as compras na carruagem. A intuição céltica de Stuart murmurava alguma coisa. Com a testa franzida pensativamente, voltou em
passos lentos para a loja. Que era que havia perturbado tanto a Sra. Cummings? Para ser justo, não podia culpar Janie de nada, pois ela fora
toda gentileza e discrição. Talvez a Sra. Cummings tivesse sentido alguma pontada súbita, uma dor de cabeça repentina. Isso devia explicar
tudo. Com isso, seu ânimo volúvel tornou a melhorar e foi com um passo firme que ele entrou na loja, fechou a porta e foi outra vez para junto de
Janie.
Ela lhe deu no braço um beliscão secreto, mas violento. Ele torceu o corpo e proferiu uma exclamação. Mas ela o estava olhando
maliciosamente e disse:
— Então é essa a nossa querida Sra. Cummings? Como ela parece gostar de você, meu caro Stuart!
— Ela é uma de minhas melhores freguesas! — exclamou Stuart acaloradamente, como se estivesse defendendo a Sra. Cummings. — Eu lhe
asseguro que a freguesia dela me é muito valiosa, Janie! Preferiria magoar todas as outras senhoras da cidade, menos ela!
Janie interrompeu-o, dizendo com suavidade:
— Mas eu não a magoei, meu bem! Não fui toda delicadeza e respeitabilidade?
Stuart não soube o que responder.
Outra senhora, tendo acabado de fazer as suas compras, apareceu. Era uma mulher enorme e gorda, vestida de veludo vermelho com a capa
guarnecida de pele preta de foca, com um regalo imenso e um chapéu carmesim que era talvez o maior que se via na loja. Era monumental e
informe; dominava tudo com o seu simples volume. O chapéu cobria um rosto rosado de feitio indiscutivelmente porcino, com olhos pretos
miúdos que completavam a impressão repulsiva que ela dava. A boca era grossa e franzida num jeito cronicamente arrogante e belicoso, ao
passo que o nariz curto e grosso era igual a um focinho. Brincava com pulseiras cheias de berloques e tinha as faces e a testa banhadas de
suor. Desprendia um cheiro sufocante de almíscar. Os cabelos eram espessos, amarelados e ásperos. Devia ter perto de quarenta anos e
dava a impressão de completa insensibilidade, desconfiança, grosseria e brutalidade.
Stuart fez-lhe uma profunda reverência e sorriu, embora a detestasse pela sua arrogância e irredutível rusticidade, pelo seu jeito dominante e
pelas suas pretensões à distinção.
— Minha cara Sra. Schnitzel! — exclamou amavelmente. — Não a tenho visto ultimamente. Espero que não tenha estado doente.
A Sra. Schnitzel olhou-o com toda a sua altivez suína, como se desconfiasse de alguma intenção oculta em suas palavras amáveis. Deu a
impressão de que todo o seu corpo inchava e se eriçava. Por fim, dignou-se dar um sorriso de suprema condescendência.
— Estive em Nova York, Sr. Coleman —, disse ela com uma voz profunda e ressoante em que havia um sotaque teutônico bem carregado.
Levantou impressionantemente a grande cabeça e virou-se para olhar fixamente Janie, a quem desprezou imediatamente por ser pequena e
graciosa. A antipatia lhe brilhou nos olhos miúdos.
— Ah, sim —, disse Stuart, ficando vermelho. — Sra. Schnitzel, esta é minha prima, a Sra. Cauder, que acaba de chegar da Inglaterra. Janie,
apresento-lhe a Sra. Otto Schnitzel, esposa do proprietário de um dos nossos maiores matadouros.
A senhora cumprimentou cheia de majestade, como uma imperatriz que toma conhecimento da presença audaciosa de uma pessoa inferior.
Janie levantou os olhos para aquele rosto suíno.
— Sra. Schnitzel! — murmurou ela, numa mistura de incredulidade e zombaria, mas se dominou prontamente.
Fez uma cortesia. A Sra. Schnitzel não correspondeu ao cumprimento. Pareceu inflar-se ainda mais de importância e condescendência.
Afastou-se como um barco de velas cheias, num remoinho das saias de veludo vermelho e com a capa esvoaçando em sua esteira. Stuart
abriu a porta para ela, fazendo-lhe uma reverência e ficou olhando o majestoso e agitado afastamento da dama teutônica. Voltou a Janie, que
quase não podia conter o riso.
— Meu querido Stuart! — sussurrou ela, quase a tremer de alegria e com os olhos a brilhar incontidamente. — Que mulher detestável! Schnitzel!
Pelo amor de Deus, que quer dizer esse nome? Schnitzel...
Stuart não pôde deixar de sorrir. Sua alma céltica não podia deixar de detestar os teutônicos.
— É um nome alemão —, disse ele, falando também em voz baixa. — Há muitos alemães em Grandeville. É uma gente horrível, muito
abrutalhada. São donos de matadouros, curtumes e fábricas de salsichas. Está de acordo com a natureza deles. Só alguns são aceitos em
nossa melhor sociedade, entre eles os Schnitzels, que são muito ricos e muito pretensiosos.
— Schnitzel! — exclamou Janie. — Que nome horrível! Todos eles têm nomes assim?
— Alguns são piores, como, por exemplo, os Schnickelburgers. Psiu! Estamos falando alto demais. Gostaria de ver as outras lojas?
Janie sacudiu a cabeça, ainda rindo.
— Por que a América permite essa gente aqui? Que nomes! Que caras! Que...
— São uns porcos! — disse Stuart e seu rosto se tornou carrancudo.
Lembrava-se, com raiva, de que Otto Schnitzel tinha aconselhado o Prefeito por entre ameaças a proibir a construção de mais qualquer igreja
católica em Grandeville e a impedir a vinda de freiras para a cidade. Fora também Emil Schnkkelburger quem insultara publicamente o pobre
padre Houlihan, salpicando-o de lama com as rodas de sua carruagem. Outro alemão, Gustav Zimmermann, tinha ordenado a Sam Berkowitz
que descesse do passeio para dentro da lama e, como Sam se negara a obedecer, resolvera recuar, mas de bengala erguida e dizendo
retumbantes insultos em alemão.
Stuart tinha ficado tão perturbado que resolveu não apresentar mais Janie às outras senhoras, que a olhavam furtivamente, visivelmente
interessadas. Saiu com Janie impetuosamente e levou-a para conhecer as outras lojas.
À medida que iam de uma para outra, mais impressionada Janie se sentia. Bateu as pálpebras pensativamente. A sua maneira de tratar Stuart
se tornou mais íntima, mais terna e mais deliciada. A prosperidade do primo era manifesta e isso queria dizer que suas quinze mil libras
estavam a salvo de suas ambições. Aquele vasto e próspero estabelecimento não podia deixar de ser uma fonte de considerável renda. Stuart,
apesar da opinião que ela fizera dele, devia ser dotado de muito tino comercial e de notável espírito empreendedor. Via que ele tinha muitos
empregados. Via as suas excelentes carruagens. Via a intensa atividade. Ouvia o tilintar do dinheiro. Havia um movimento de colmeia em torno
das lojas e Stuart lhe assegurou que, aos sábados, as ruas em frente às lojas ficavam intransitáveis. Todas as barcaças que subiam o Canal
vinham carregadas de mercadorias encomendadas por ele. Duas vezes por ano, ele ia a Nova York, onde negociava a importação dos mais
finos artigos da Inglaterra e da França e até da Itália e do Oriente. Dizia que não havia limite para o que ele podia fazer. Sugeriu que tinha
planos magníficos, mas estes tinham de esperar um pouco. Não havia encerrado ainda a sua expansão.
Ela via claramente que isso não era fanfarronada e que tudo se baseava na mais hábil intuição comercial. Aquilo era uma terra para
sonhadores, para empreendedores e audaciosos, para aventureiros com imaginação que arriscavam muito e ganhavam em grande escala. A
alma insular de Janie sentia-se abalada.
— Você deve economizar muito dinheiro, meu amor —, murmurou ela, sondando-o e umedecendo avidamente os lábios.
Stuart hesitou. Sorriu para ela com ar superior e disse:
— Não é esse o meio de ganhar dinheiro na América, meu bem. Isto aqui não é a Inglaterra, onde se trabalha penosamente para juntar um
penny a outro penny. “Muitos poucos fazem um muito”, costuma dizer seu estimado pai. Mas aqui a mentalidade é muito diferente. Na Inglaterra,
deposita-se o dinheiro no banco e fica-se esperando que ele vá lentamente crescendo. Nos Estados Unidos, empregamos tudo o que
ganhamos em nossas empresas e trabalhamos para que ele gere consideráveis fortunas. Isto é uma terra de enormes distâncias e não uma
ilhazinha estreita. Não é possível fazer cálculos muito exatos aqui. Para ganhar dinheiro aqui, é preciso arriscar e não com pequenas quantias,
mas com fortunas.
Janie era também inteligente e intuitiva. Sentiu-se abalada nas suas fundações. Via todas as possibilidades. De repente, as suas quinze mil
libras se transformaram numa migalha, numa simples gota de água num poço de ouro sem fundo. Tinha-se julgado uma herdeira rica. Não
passava de uma pobre viúva com um óbolo. O coração ardeu-lhe de cobiça. Não faria nenhum favor com suas escassas libras a Stuart, que
tinha em vista centenas de milhares de libras.
Aproximou-se mais dele enquanto iam de loja em loja. Stuart tinha querido impressioná-la. Tinha esperado, na melhor das hipóteses, colocá-la
num estado de espírito em que ela pudesse mostrar-se disposta a um empréstimo de dez mil dólares. Se soubesse a que ponto ela estava
impressionada, daria pulos de prazer.
Janie encontrou-se com Sam Berkowitz numa das lojas e olhou-o sem muita simpatia. Desconhecendo toda a extensão do papel por ele
desempenhado naquela deslumbrante prosperidade, considerou-o um simples agregado, que era ali mantido graças à nobre generosidade de
Stuart. Mostrou-se muito fria e reservada com ele, como devia ser uma cristã, enquanto ele a olhava em silêncio com os olhos castanhos e a
cumprimentava gentilmente. Janie não soube que, quando ela se afastou, ele a acompanhou com o olhar, abanando um pouco a cabeça.
CAPÍTULO 19
Janie jantou sozinha com Stuart naquela noite pela primeira vez desde a sua doença. A bela sala de jantar estava toda dourada à luz das velas.
Stuart ordenara um jantar muito bem cuidado. Tratou Janie com excelentes vinhos. Pouco a pouco, a frieza dela se aqueceu e uma luz dourada
se difundiu por toda ela. Ria cada vez mais, com seu melhor vestido de veludo azul e suas pérolas, enquanto os cachos ruivos lhe brilhavam
sobre os ombros magros. Contava com sua voz áspera as piadas mais arrojadas e seu copo nunca ficava vazio. Nunca ela se sentira mais
deliciosamente livre, mais fascinante, mais cheia de espírito e de controle, mais inteligente e brilhante. Estava afinal no lugar que lhe cabia. A
velha casa fora inteiramente esquecida. Os filhos não existiam. Não tinha pais, nem recordações. Era uma senhora elegante, rainha dos salões,
das valsas, da música e dos belos vestidos, empenhada em fascinar um belo e querido companheiro com quem se ia casar. Graças a essa
exaltação, parecia interessante até a Stuart. Como podia de ter esquecido a alegre companhia que era Janie? Como tinha esquecido que era
quase impossível ficar entediado na presença dela e que as suas frases efervescentes e cheias de malícia eram tão inteligentes?
Numa onda de riso incontrolável, passaram à sala-de-estar, onde havia um grande fogo aceso na lareira e um variado sortimento de licores.
Beberam repetidamente à saúde um do outro. Sentiam-se tomados da mais terna afeição excitada. As gargalhadas de Janie podiam ser
ouvidas em cantos bem afastados da casa. De repente, ela se levantou e começou a valsar sozinha. Nos rodopios, as saias se levantaram,
mostrando-lhe as pernas e até as coxas de maneira bastante licenciosa. Stuart aplaudia freneticamente. Janie se esmerou na sua
demonstração, piruetando e saltando ainda mais, enquanto Stuart batia palmas e gritava: “Bravo! Bravo!” No alto, as crianças, já deitadas,
escutavam. Na sua camisa de dormir, Bertie se levantou e foi até ao alto da escada. Estalou os dedos e disse a Robbie, que se mostrava
inteiramente indiferente: “Mamãe está de novo fazendo das dela.” Angus suspirou e fechou a porta do quarto da irmãzinha assustada, depois
de se certificar de que ela tinha feito as suas orações. Os empregados espiaram a festa e se afastaram com sorrisos dúbios.
Janie, afinal, não pôde mais e se deixou cair, exausta do esforço e dos risos, num sofá de damasco. Deixou que Stuart a tomasse pela mão e a
levantasse. Ele a beijou de pura exuberância. Ela colou o corpo ao dele com uma ferocidade de leoa, num ardor tão grande que isso foi uma
súbita advertência para ele. Conseguiu afastar-se e se sentou perto dela, enquanto Janie, ainda rindo, ajeitava os cabelos e compunha as
saias.
— Nunca me diverti tanto em toda minha vida! — exclamou ela, agitando os braços. — Você é um verdadeiro demônio, Stuart!
Sentado, com as mãos nos joelhos, Stuart ria descontroladamente. Olhou-a demoradamente, pensando que Janie era de fato um pedacinho
lindo de mulher. Sentia o sangue correr-lhe aceleradamente pelas veias. Que diabo! Ela não era nenhuma criança, mas uma mulher mais velha
do que ele, sabida e experiente. Uma noite com ela podia ser bem agradável e ninguém precisava saber disso.
Ela lhe notou os olhos e sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo. Ora, havia muitas maneiras de esfolar um gato, como se dizia em sua terra. Não
havia dúvida alguma de que Stuart a estava achando desejável. Ela sabia muito a respeito de homens e tinha certeza de que, uma vez
envolvido com ela, ele não poderia mais recuar, ainda mais porque tinha um coração ingênuo e bondoso.
Levantou os braços com deliberado langor e arrumou os cabelos. A cintura era delgada e fina, acentuada pelo espartilho. Lamentou que não
tivesse um busto mais cheio. Stuart se agitou na sua poltrona.
Mas havia uma coisa que Janie não sabia a respeito de Stuart. Ele era tenaz e astuto. Sabia quase sempre o que tinha de fazer. Mais tarde,
levaria outras coisas em consideração. Não tinha escrúpulos.
Foi até o sofá e sentou-se ao lado dela. Tomou-lhe a mão e beijou-a amorosamente. Depois, embora ainda sentisse os vapores do vinho, tinha
o espírito lúcido. Janie o olhava ansiosamente e muito calada. Stuart imprimiu ao rosto uma expressão de seriedade, de gravidade até.
— Janie, meu amor —, começou ele em voz pausada e bem ponderada —, você me disse que tem quinze mil libras. Isso, em dinheiro
americano, vem a ser setenta e cinco mil dólares mais ou menos. — Abanou a cabeça judiciosamente. — É muito pouco para os Estados
Unidos e a sua situação me vem preocupando muito. Ainda que você torne a se casar, esse dinheiro não representa grande coisa. Gostaria de
ver você com bem mais do que isso. Acho que é o menos que posso fazer por você.
Janie estava em silêncio, com os olhos brilhando à luz da lareira. Passou a língua pelos lábios num gesto que nela era um sinal de cobiça.
Apertou mais a mão dele e disse suavemente:
— Sim.
— É o menos que posso fazer, sim —, disse ele em voz mais alta como se estivesse respondendo às advertências de um interlocutor invisível.
— Pensei então numa maneira de aumentar o seu dinheiro. Veja bem que vou enfrentar muitas dificuldades. Mas estou preparado para
discussões, discordâncias e protestos. Temos uma sociedade comercial fechada e uma coisa dessas nunca nos passou pela cabeça...
Fez uma pausa, deu um suspiro, franziu a testa e virou a cabeça para o lado.
— Continue, Stuart —, disse Janie, cheia de interesse. — Afinal de contas, somos primos, não somos?
Stuart suspirou e levou algum tempo sem responder. Continuou, por fim, numa voz mais baixa e relutante:
— Janie, seu dinheiro poderia ficar em segurança nos bancos, mas os juros são muito baixos. Se você decidisse não se casar de novo, não
poderia viver só com esses juros, da maneira confortável a que está habituada. Isso não lhe seria possível aqui nos Estados Unidos e, ainda
mais, com seus quatro filhos. Dinheiro não cresce por si mesmo. Você se veria obrigada a lançar mão de seu capital. Seu dinheiro sumiria sem
demora. Quem se casaria então com uma viúva pobre, com quatro filhos?
Janie olhou-o, sentindo o medo que as palavras dele inspiravam. Piscou os olhos e mordeu os lábios.
Stuart parecia muito perturbado.
— Não pense que é fácil para mim dizer-lhe isso, Janie. Quero fazer alguma coisa por você. Já falei com outra pessoa... mas houve protestos...
— O judeu! — exclamou Janie furiosamente, batendo no sofá com os punhos fechados.
Stuart teve um sobressalto.
— Não diga isso, Janie! A verdade não é bem assim. Compreenda que um homem tem de proteger os seus interesses. Além disso, pensei em
outro meio!
— Diga, Stuart! Diga! — exclamou Janie, com o rosto aceso de ansiedade.
Ele se voltou para ela e segurou-lhe os ombros. As mãos eram fortes. O rosto estava cheio de entusiasmo. Ele era também um excelente ator.
— Escute, Janie, está disposta a investir vinte mil dólares nas minhas lojas?
Uma onda de frieza se abateu sobre Janie, produto de uma velha cautela e desconfiança bem escocesas. Afastou-se um pouco de Stuart, mas
ele continuou a agarrá-la. Ela lhe estudou o rosto, já então em seu juízo perfeito. Mas não pôde ver nele nada que não fosse interesse e
generosa afeição por ela.
— Continue —, disse ela com voz grossa.
Stuart não pôde mais conter o seu entusiasmo. Levantou-se e começou a passear de um lado para outro na sala. Acentuava as suas palavras
batendo o punho fechado na palma da outra mão. A representação dele foi tão convincente que todas as suspeitas de Janie se dissiparam. O
seu interesse aumentou e ela se sentou na beira do sofá para ouvi-lo.
— Janie, vou-lhe dizer uma coisa que ninguém sabe, exceto naturalmente os bancos! Sam e eu temos uma renda de mais de cinquenta mil
dólares por ano daquelas lojas! Isso é um segredo e eu lhe estou falando numa base rigorosamente confidencial. Se você investir vinte mil
dólares nas lojas, terá uma bela renda líquida anual de cinco mil dólares! Se investir mais, a sua renda será proporcionalmente maior! E tudo
isso sem tocar no seu capital! Será sócia do Empório Supremo de Grandeville, cujas possibilidades são ilimitadas! Não é possível prever qual
será depois a sua renda! Já lhe disse que pretendemos expandir-nos e você já viu tudo com seus próprios olhos!
Ele a olhou, com olhos acesos e rosto congestionado.
— Está compreendendo, Janie! Sabe o que lhe estou oferecendo a fim de protegê-la?
Janie enrolou um cacho num dos seus dedos trêmulos. Estava muito pálida e Stuart tornou a sentar-se ao lado dela, rindo intimamente e com
evidente alegria.
— Acho que posso convencer a Sam, Janie! Creio que ele acabará compreendendo que é meu dever para com você, que é minha prima. Se
conseguir, terei os papéis prontos amanhã, meu amor. E então, não terá mais preocupações na vida. Terá apenas de ficar com essa graça e
essa beleza, sentadinha vendo sua renda crescer e podendo prever lucros cada vez maiores à medida que nós nos expandirmos!
Janie disse então com voz rouca:
— Mas, Stuart, você disse que foi obrigado a pedir emprestado dez mil dólares ao Sr. Allstairs para construir sua casa. Por que não tirou esse
dinheiro de seu negócio?
Stuart foi tomado de surpresa ante essa pergunta direta. Enrugou a testa e arrependeu-se de sua língua solta. Era muito dele aquela tendência
idiota a falar sem pensar. Riu como se estivesse confuso e esfregou afetuosamente os nós dos dedos no rosto de Janie.
— Falei demais, querida. Você não deve dizer isso a ninguém. Compreenda que quase todo o meu dinheiro está metido no negócio. Sam e eu
também aplicamos na empresa os nossos lucros. Talvez isso seja um tanto complicado demais para a sua cabecinha feminina, mas vou tentar
explicar-lhe. Se eu tivesse retirado dez mil dólares do negócio, teria de reduzir os lucros. E isso eu não quero. De maneira alguma! Nada deve
prejudicar ou retardar a nossa expansão! O dinheiro que tomei a Allstairs foi um empréstimo particular. Não tem qualquer relação com as lojas.
Dizia as suas mentiras de maneira tão simples, com um ar tão pueril de confusão que a astuta Janie foi completamente envolvida. De certo
modo, foi seduzida também pelo juízo que Stuart fazia da acuidade dela. Era bom que ele soubesse mesmo que era difícil embair alguém como
Janie Cauder.
— Compreendo —, murmurou ela, para ajudá-lo habilmente. Sacudiu a cabeça, censurando-o. — Você não está nada bem, meu amor. Mas
não importa. — Deu um profundo suspiro e os olhos lhe brilharam de novo. — Quer aprontar os papéis amanhã, Stuart?
Ele quase perdeu a cabeça com a sua vitória. Isso queria dizer que no dia seguinte poderia jogar na cara diabólica de Joshua Allstairs os dez
mil dólares que lhe devia. Em seguida, faria um rápido casamento com Marvina e com a fortuna dela. Os planos lhe fervilhavam na cabeça.
Teria de ser de certo modo uma espécie de rapto. Antes que Janie se desiludisse e sem o conhecimento do velho Joshua. Marvina tinha idade
suficiente para se casar e era o ídolo do pai. Ele ficaria furioso e faria as piores ameaças. Mas nada poderia fazer. Ao fim de algum tempo,
haveria a reconciliação e então, no devido tempo, a grande fortuna dele lhe cairia nas mãos. Quase não se podia conter na sua exaltação e no
seu delírio. Não tinha sonhado que tudo seria tão fácil quanto fora. A opinião que tinha de si mesmo subiu a alturas vertiginosas: Como ele era
diabolicamente hábil! Que brilhante sujeito era ele! Teve visões que lhe deram a volta à cabeça.
Tomou Janie nos braços e beijou-a violentamente. Ela se abraçou a ele, com uma boca faminta e tumultuosa. Stuart não estava pensando nela.
Acariciava-a mecanicamente, enquanto o coração lhe batia fortemente.
E então, lentamente a princípio, mas cada vez com mais rapidez, teve consciência da paixão desenfreada que tinha nos braços. Os seus
sentidos fizeram-no dar um recuo brusco. Mas os braços de Janie apertaram-no com mais força. Ela lhe puxou a cabeça e colou a boca na
dele, enquanto os dedos se lhe embaraçavam nos cabelos. O sangue subiu-lhe impetuosamente à cabeça.
Mais tarde, enquanto Stuart esperava no quarto dela às escuras, Janie estava contente de não haver acendido as velas. Não queria que Stuart
visse como o corpo dela era magro, apesar da flama lasciva que lavrava nela como um incêndio.
CAPÍTULO 20
Stuart Coleman não teve oportunidade no dia seguinte de “jogar os dez mil dólares na cara de Allstairs” pela simples razão de que tanto Joshua
quanto sua adorada Marvina tinham caído de cama dois dias antes, atacados da gripe de mudança de estação. Stuart acordou no dia seguinte
com a melhor das disposições. Não sentia remorsos, nem escrúpulos. Era muito sadio e muito realista para dar guarida a tais sentimentos.
Esperava, na sua generosidade, que a “indiscrição amiga” tivesse sido gozada por Janie tanto quanto o fora por ele. Janie não era uma
mocinha indefesa, uma frágil hóspede cuja virtude ele tinha de respeitar. Janie não tinha o menor respeito pela própria virtude e era
suficientemente forte e sadia para saber que virtude era coisa que ela não possuía. Se tinha havido alguma sedução em todo o caso, pensou
Stuart rindo, o seduzido fora ele e não Janie.
Fez a primeira refeição sozinho e saiu bem cedo para entender-se com Sam Berkowitz e convencê-lo de qualquer maneira. Não podia ser
outra a disposição de Stuart. Sam às vezes se mostrava difícil e muito obstinado. A notícia de que ele e Stuart tinham mais um sócio devia, no
mínimo, estarrecê-lo. Stuart foi formulando as frases com que iniciaria a conversa enquanto seguia pelas ruas silenciosas e tocadas de sol,
jogando a bengala para o ar e assobiando exuberantemente. Comprou um jornal, correu os olhos pelos títulos e continuou. A vida era sem
dúvida muito feliz e tranquila! É certo que havia rumores um tanto alarmantes no Sul e ameaças imprudentes e muito francas contra um Norte,
que não compreendia o problema da escravidão. Mas isso não tinha a menor importância. Os exaltados trocariam impropérios e insultos, mas
a paz prevaleceria. Pelo menos, era o que Stuart esperava. Quanto à Europa, havia muito que se desinteressava dela.
Foi só quando chegou à casinha bem cuidada de Sam num bairro pouco elegante que lhe surgiram as primeiras dúvidas. Franziu a testa,
aborrecido. Não queria e não ia recuar. Sam devia ser convencido disso desde o início. Mas era certo que haveria algumas discussões
desagradáveis e era isso que aborrecia Stuart.
A porta foi-lhe aberta por uma empregada. A velha mãe de Sam quase não saía mais da cama, entrevada pelo reumatismo, e havia muito que
não descia de manhã. Mas Sam não tardou a aparecer na sala, alto, magro e encurvado, com os cabelos precocemente grisalhos. Estava em
mangas de camisa e os olhos se mostravam vivos e curiosos. Mas, como sempre, estava sereno e tranquilo, com o rosto moreno cheio de
afeto e gentileza.
— É bem cedo para você, Stuart, não é? — exclamou com o seu sotaque carregado e simpático. Se sentia alguma inquietação, não a deixava
transparecer. — Quer tomar café comigo?
— Não, Sam, muito obrigado. Já tomei café em casa. — Com um sorriso ostensivo, Stuart levantou as abas do fraque, sentou-se numa poltrona
forrada de veludo e descansou a bengala entre os joelhos. — Há um pequeno assunto de negócios que eu achei que devia vir discutir com você
antes da abertura dos bancos.
Sam mostrou-se ansioso no mesmo instante. Sentou-se com movimentos lentos e olhou para Stuart com os olhos míopes.
— Dinheiro? Dinheiro outra vez, Stuart? Está precisando de dinheiro?
— Que é que você quer dizer com isso? — perguntou Stuart irritadamente, aproximando a sua cadeira. — Será que eu vivo precisando de
dinheiro?
— Quase sempre —, respondeu Sam com um sorriso.
— Será um mendigo? Está querendo dizer que eu sou um mendigo, Sam Berkowitz?
— Não —, disse Sam, sem se perturbar. — Estou querendo dizer apenas que você vive precisando sempre de dinheiro.
Stuart não pôde deixar de sorrir.
— Quem é que não vive precisando de dinheiro? Além disso, uma firma deve ter apenas um sócio solvente. Bem, o assunto que quero
conversar com você é mesmo dinheiro. Mas não é dinheiro de que eu esteja precisando. É dinheiro que vai cair em nossas mãos.
Com isso, Sam ficou verdadeiramente alarmado. Conhecia Stuart muito bem. Quando ele adotava essa atitude displicente, as coisas andavam
muito mal. Sentiu-se então invadido por um alarma muito maior. Iria Stuart anunciar-lhe o seu noivado com Marvina Allstairs?
— Não fique com essa cara, Sam —, disse Stuart, rindo. — O que lhe quero dizer é que posso entrar imediatamente na posse de vinte mil
dólares.
Sam franziu os lábios com uma expressão de profunda preocupação.
— Quando um homem diz que vai conseguir vinte mil dólares com essa facilidade toda, creio que está na hora de chamar a polícia. Mas
desculpe a interrupção, Stuart. Pode falar.
— É o que eu estou tentando fazer, ora essa! Vinte mil dólares imediatamente. E não há necessidade de chamar a polícia. Não sou ladrão de
bancos, embora reconheça que essa linha não deixa de ter suas atrações. Não, trata-se de minha prima, a Sra. Cauder. Ela concordou em me
emprestar vinte mil dólares, imediatamente.
Sam olhou-o em silêncio. Tudo estava muito claro. Stuart era belo, insinuante e muito amável. Não lhe seria difícil conseguir de uma mulher
suscetível uma importância tão grande. Sam ficou ao mesmo tempo tranquilizado e contristado. Não esperava isso de Stuart.
— É muita bondade dela, Stuart —, disse Sam, lentamente. — Será que, pelo fato de ser sua prima, não exige garantias?
Stuart tossiu. Tinha chegado ao ponto difícil. Olhou para o castão dourado da bengala com grande concentração. Disse então com voz branda.
— Ela não pediu garantias. Eu é que as dei.
Sam não pôde deixar de dizer:
— Sua casa, Stuart, que já está tão hipotecada a Joshua Allstairs?
— Não estou gostando de seu tom, fique sabendo disso, Sam! É desnecessário e inamistoso o seu procedimento. Acha que eu sou tão
canalha a ponto de enganar uma pobre viúva desamparada, como ela diz que é? Acha que vou roubar o pão dos órfãos e, ainda por cima, dar-
lhes um pontapé no traseiro? Pensei que fizesse melhor juízo de mim, Sam!
— Calma —, disse Sam com um sorriso. — Você bem sabe que tenho a melhor opinião possível a respeito de meus amigos. Não se zangue,
meu caro Stuart. Afinal de contas, eu nada disse demais. Acha que foi impertinência minha querer saber quais foram as garantias que você
deu?
— Claro que não. Foi justamente isso que lhe vim dizer. Ofereci a Janie uma espécie de sociedade nas lojas.
Sam ficou atônito. Levantou-se vagarosamente e olhou incredulamente para Stuart sem poder falar.
— Não fique assim com essa cara de enforcado, Sam. Vou explicar tudo, resumidamente.
“Disse a ela — e não menti — que um investimento de vinte mil dólares nas lojas lhe asseguraria uma renda anual de mais ou menos cinco mil
dólares. Posso garantir-lhe que isso atiçou por completo a cobiça de minha prima. Os lábios lhe tremiam avidamente. Foi para mim uma coisa
muito edificante essa cupidez feminina. Cada um de nós retira atualmente da firma duas vezes mais, até porque o nosso investimento é
consideravelmente maior. Outra sócia, uma mulher que não terá voz ativa na administração da firma, põe vinte mil dólares à nossa disposição.
Acho que isso deve ser recebido com exclamações de alegria. Concorda comigo? Não, vejo que não concorda. Não faz mal. Ouça.
“Pense no que nós podemos fazer com vinte mil dólares, Sam. Lembra-se do estoque daquela firma falida em Nova York que podemos
conseguir quase de graça? Vou efetuar a compra imediatamente. Não deve estar esquecido de como discutimos-isso com pesar um dia
destes e chegamos a pensar em contrair um empréstimo para comprar esse estoque. Agora, podemos comprá-lo. Estou esperando os gritos
de alegria.
Sam sentou-se vagarosamente. Seus olhos castanhos estavam penetrantes e sombrios. Stuart esperou o comentário de Sam, mas este disse
apenas com muita calma:
— Você não me está dizendo tudo, Stuart.
— Não, de fato não estou —, disse Stuart mordendo os lábios e sem olhar diretamente para Sam. — Preciso de dez mil dólares desse dinheiro
urgentemente, Sam. Quero pagar imediatamente àquele velho patife, Allstairs.
“A minha ideia é colocar os vinte mil dólares na firma e tomar emprestado dez mil dólares, que pagarei em parcelas mensais, deduzidas de
minhas retiradas. Uma vez livre dos juros escorchantes que pago àquele agiota, poderei fazer com a maior facilidade esses pagamentos. Janie
receberá uma soma determinada em intervalos regulares, como a renda de seu investimento. Vou tratar dos papéis hoje mesmo.
Sam olhou-o firmemente e disse:
— Vou ofendê-lo, Stuart, mas é necessário. Você paga regularmente a Joshua Allstairs porque tem receio de perder sua casa. E sabe que não
é só a casa que perderá, mas também o seu prestígio. Mas, libertado disso, não vai pagar regularmente à firma. Entretanto, a firma terá de
pagar regularmente à Sra. Cauder, quer os negócios sejam bons, quer sejam maus. Você e eu podemos esperar, Stuart, podemos ter calma e
paciência. Não nos será difícil apertar os cintos. Mas a Sra. Cauder não poderá apertar o cinto. É uma viúva e tem quatro filhos.
— Espere aí! Você me está chamando um ladrão irresponsável! — exclamou Stuart muito vermelho, encobrindo com gritos a sua confusão. —
O que você está dizendo é que eu pretendo falhar nos meus pagamentos à firma! Está sugerindo que eu vou lesá-lo nos seus malditos lucros!
Sam levantou a mão e disse em tom claro e firme:
— Já lhe disse mais de uma vez, meu caro Stuart, que tudo o que eu tenho é seu, quando você precisar. Não estou magoado com o seu tom,
não estou zangado. Estou apenas com medo e por sua causa.
“Ainda não acabei. Tenha a bondade de me escutar. Você e eu podemos esperar. Mas a Sra. Cauder não pode. É para protegê-la que eu
estou falando e você sabe muito bem disso. Você está muito endividado, Stuart. Tem dívidas por toda a parte. No mês passado, perdeu quase
mil dólares com jogo e com mulheres. Foi você mesmo que me disse. No ano passado, comprou aquele colar para aquela mulher em Saratoga.
Já o pagou, Stuart? Aí estão mais dois mil dólares. E as corridas de cavalos, Stuart? Você não pode resistir aos cavalos. Sei de tudo isso.
Pode se zangar comigo, mas sabe muito bem que estou dizendo a verdade.
— Assinarei promissórias! — exclamou Stuart, furiosamente. — Assinarei todas as promissórias que você quiser! Poderá descontá-las com
seus usurários! Pode me vender e vá para o inferno!
Mas Sam se limitou a sorrir tristemente. Abanou repetidamente a cabeça.
— Você sabe que está falando sem pensar, Stuart. Se você falir, o mesmo acontecerá comigo e eu o acompanharei sem me lamentar. Para
que eu preciso de dinheiro senão para executar os planos que tenho para meu povo? O que eu tenho é seu. Mas não posso ver você se
arruinar. E não posso cruzar os braços enquanto você marcha para o desastre.
Stuart levantou-se num repelão e disse veementemente:
— Juro por Deus que você está enganado a meu respeito, Sam. Pagarei tudo o mais depressa possível. Dou-lhe minha palavra de honra. Não
é a primeira vez que você me chama a atenção e eu não me importo com isso. Não contrairei mais dívidas pessoais até que tudo esteja pago.
E há mais uma coisa que garantirá os pagamentos. Pretendo casar-me com Marvina Allstairs o mais depressa possível, com ou sem o
consentimento do pai.
Se Sam estava perturbado, ficou inteiramente arrasado ao ouvir isso. Mas nada disse. Torceu nervosamente as mãos e olhou para Stuart com
uma expressão de desespero.
Stuart tinha recuperado a sua animação e continuou jubilosamente sem notar a expressão de Sam:
—“Ainda que o velho patife seja contrário, há outros meios. Marvina deverá herdar uma considerável fortuna pessoal quando completar vinte e
um anos, de seu avô, pai de sua mãe, que era de Pittsburgh. Acredito que esse dinheiro ande por volta dos cem mil dólares. Você e eu
podemos administrar bem as lojas durante mais três anos, ainda que os negócios corram mal, coisa em que não acredito. As lojas vão cada
vez melhor, segundo você mesmo acha.
Mas Sam disse em voz baixa e trêmula, com os olhos voltados para o chão:
— Vai-se casar com essa moça, Stuart, porque gosta dela e não para conseguir benefícios para as lojas?
— Certamente, Sam. Sinto-me muito atraído por ela. Não chego ao ponto de dizer que me casaria ainda que ela não tivesse um centavo. Mas
eu a preferiria com uma pequena fortuna a outra com uma fortuna maior. A não ser, é claro, que a fortuna da outra fosse realmente notável.
Tornou a sentar-se, cheio de bom humor e energia.
— O velho patife não resistirá por muito tempo. Adora a filha e eu serei um marido modelo. Dentro em breve, ele se abrandará, tenho certeza
disso!
O desespero de Sam aumentou. Aquela mulher fria, que parecia morta. Aquela golem de cara bonita. Ela conseguiria congelar o coração
ardente e vigoroso de Stuart, destruindo-lhe a alma! Era uma coisa intolerável, mas nada ele poderia fazer. Quando os homens estão
empenhados na própria destruição, a voz dos amigos é sufocada pelos ventos da paixão.
Stuart pousou a mão no joelho do amigo e sacudiu-o afetuosamente.
— Por que me está olhando assim, Sam? Será que você não compreende? Tudo está indo maravilhosamente! Desculpe ter sido um pouco
rude com você. Mas deve compreender, Sam, que eu não iria magoá-lo por nada deste mundo. O que acontece é que eu sempre falo demais.
Mas, no fundo do coração, sei perfeitamente quem é você e lhe quero um grande bem.
Sam cobriu com os dedos frios a mão de Stuart. Ainda assim, nada disse.
— Você me perdoa, não é, Sam?
Sam levantou-se e passou as mãos pelo rosto.
— Não há nada o que perdoar, Stuart. Pode esperar um pouco por mim? Iremos juntos ao banco e ao escritório de nosso advogado.
Mas, outra vez, depois de todas essas providências, Stuart foi frustrado em seus planos de ir procurar Joshua Allstairs e entregar-lhe o cheque
de dez mil dólares. Depois de melhorarem da gripe, pai e filha foram passar três semanas nas montanhas a fim de se recuperarem num ar
mais alto e mais doce do que o que circulava pelas ruas frias de Grandeville.
Enquanto estava nas montanhas, Joshua aperfeiçoou os planos de levar a filha para a Inglaterra naquele verão e ali deixá-la sob a guarda e a
proteção de pessoas já escolhidas.
Stuart ficou satisfeito com o adiamento, embora momentaneamente decepcionado. Havia também formulado seus planos e bem audaciosos
eram eles.
Janie Cauder passara a ser sócia capitalista do Empório Supremo de Grandeville e considerava-se muito feliz. Não tinha mais dúvidas de que
Stuart se casaria com ela. Mostrava-se cheio de delicadeza e afeição para com ela. Era bondoso com os filhos dela, que mostravam gostar
muito de Stuart, exceto Robbie, que o considerava particularmente um simplório. Quando Stuart sugeriu que os três garotos ingressassem na
mesma escola que ele havia frequentado, Janie ficou muito contente. Era muita generosidade do querido Stuart interessar-se assim pelo futuro
dos filhos dela!
A pequena Laurie parecia ser a predileta de Stuart. Passeava com ela à tardinha pela beira do rio e, de suas janelas, Janie podia ver os dois a
caminharem de mãos dadas ao lado das águas turbulentas.
CAPÍTULO 21
Angus olhou com tímida curiosidade e incerta cautela a casa do Padre Houlihan. Não era absolutamente um “covil de iniquidade”, como ele fora
levado a acreditar que fossem as casas de todos os padres, de acordo com as opiniões do avô, que tinha ódio azedo ao “papismo”. Era uma
casinha branca, média, cercada de uma grade de madeira branca e tendo à frente um gramado que reverdecia ao sol de maio. Perto da casa,
havia roseiras em flor. As vidraças das pequenas janelas estavam bem limpas, com cortinas baratas. A porta branca apresentava uma aldrava
de cobre bem polido com o feitio de uma cabeça feroz de urso. A casa era vizinha da bela igrejinha branca e parecia colocar-se sob sua
proteção.
O interior da casa era tão simples, arrumado e despretensioso quanto o seu exterior. Um tapete turco vermelho se estendia sobre o assoalho
encerado e os móveis eram todos de carvalho sólido e de couro, vendo-se aqui e ali um quadro religioso nas paredes revestidas de carvalho.
Havia até um pequeno órgão, algumas mesinhas de carvalho e um fogo aceso na lareira de ladrilhos azuis. (Stuart tinha oferecido quase todos
os móveis da casa.). Em algumas mesas, havia vasos com narcisos e tulipas, orgulho do jardim do Padre Houlihan que ele cultivava
pessoalmente, sujando a batina de lama e ficando de vez em quando apoplético.
Sobre a cornija da lareira, havia um crucifixo de ébano e marfim, também presente de Stuart, belamente esculpido. Angus olhou para o crucifixo
espantado e então, para irritação de Stuart, desviou os olhos como de alguma coisa indecente. Mas o garoto se mostrou muito polido e quando
Stuart lhe indicou uma cadeira, sentou-se na beira, com o chapéu nos joelhos.
Stuart olhava Angus com um esforço para manter-se severo. Mas o que o preocupava realmente era a maneira de incutir no menino a
necessidade de guardar segredo a respeito daquela visita para com Janie. Era uma tarde de domingo e Stuart ia encontrar-se ali com Sam
Berkowitz para o habitual jogo de cartas depois das Vésperas. Teriam à sua espera cerveja, o bom presunto cozido da Sra. O’Keefe e um pão
bem gostoso. Como de costume, Stuart arrependia-se do impulso que o fizera levar Angus à casa do padre. Tinha encontrado Angus no meio
da tarde com uma cara tão triste que irrefletidamente o convidara para fazer uma visita com ele à casa de um amigo. O menino aceitara o
convite pressurosa e gratamente, Stuart não havia revelado a identidade do amigo até o momento em que estavam quase chegando à porta da
casa. Não sabia mais por que tinha levado Angus, mas suspeitava de que tinha sido por algum sentimento de piedade. O instinto lhe dizia que
Angus precisava de um amigo que fosse compassivo, simples e bom e não havia ninguém com essas qualidades que pudesse comparar-se
ao padre.
Sorriu incontidamente. Talvez algum dia viesse a contar a Angus como conhecera o Padre Houlihan, mas isso só poderia acontecer daí a
muitos anos.
O encontro se havia verificado em circunstâncias extremamente desagradáveis. Parecia que dois paroquianos do Padre Houlihan eram ricos, o
que era por si só uma coisa surpreendente. Cada uma das duas famílias tinha um filho único e mimado pelos pais, que lhes deixavam nas mãos
muito dinheiro. Numa noite de sábado, os dois tinham ido parar no bordel mais caro e luxuoso da cidade (naturalmente de propriedade de
Joshua Allstairs). Stuart estava lá também. As mulheres estavam quase nuas e eram jovens e alegres e os rapazes começaram a divertir-se na
sala do bordel, com uma mulher ao colo e um copo de uísque na mão. Stuart estava em posição semelhante.
Os pais deviam ter sido informados dessa excursão noturna de seus rebentos pelos domínios da Vênus venal. Como, ao que parecia, os pais
eram muito conhecidos na casa, apelaram para o padre, não querendo evidentemente solicitar a intervenção da polícia. O Padre Houlihan,
alma intrépida, havia invadido o bordel, armado apenas com a sua indignação e o seu pesar. Não tinha a intenção de censurar a dona da casa
ou as mulheres. Só queria era salvar os garotos desencaminhados. Se ele tivesse pensando um momento ou dois, refletiu Stuart depois, teria
agido menos impulsivamente e com mais respeito pela sua batina. Mas, celta como ele era, agira primeiro para arrepender-se depois. Como
ele conseguira passar pelos cérberos que guardavam a porta do bordel, nunca ninguém soube e, muito menos, o exaltado Padre Houlihan.
De qualquer maneira, havia irrompido impetuosamente na sala, aos gritos e com o rosto muito vermelho de vergonha e de raiva. Os dois
garotos ficaram muito pálidos, fizeram as mulheres saírem do colo deles e deixaram os copos caírem no chão. O Padre Houlihan, cada vez
mais envergonhado e encolerizado, tinha dado um pescoção em cada um dos garotos e mandou-os sair da casa, proferindo imprecações num
sotaque carregadíssimo.
Na confusão reinante, uma das mulheres tinha perguntado em voz estridente:
— Quem é, afinal de contas, esse camarada?
Stuart, que ria descontroladamente, olhou para a longa batina preta que dançava em torno das pernas do padre e disse:
— Não conhece? É a famosa Sra. Grundy. (Personagem de uma peça inglesa do século XVIII, de Thomas Morton, que se tornou símbolo das
mulheres de espírito estreito e convencional. N. T.)
Desde que o Padre Houlihan estava cada vez mais envergonhado e exibia sintomas da mais completa exasperação contra os dois pobres
garotos, Stuart resolveu intervir, sem deixar de dar gargalhadas. O vigoroso vocabulário do padre lhe despertara intensa admiração e isso,
combinado com a sua confusão envergonhada, e a sua energia, tinham provocado em Stuart uma sincera compaixão. Fez os dois garotos
saírem rapidamente da casa e voltou para o padre que estava ofegante e enxugava o suor do rosto com um grande lenço branco. Stuart
segurou-o pelo braço. O padre resistiu e na linguagem menos clerical possível mandara-o para o inferno. Os dois saíram da casa juntos.
Uma vez do lado de fora, o padre se voltara ferozmente contra ele.
— É uma vergonha e um crime você trazer dois garotos como esses para o vício e para a perdição!
— Não fui eu que os levei coisa nenhuma! — exclamou Stuart ainda rindo e, então, explicou ao padre o que havia realmente dirigido os passos
dos garotos até ali. O padre fizera uma cara de espanto e de horror e, de repente, começara a rir, mesmo contra a sua vontade. Stuart
observou-lhe então que era extremamente inconveniente para um padre entrar num bordel, mesmo para salvar garotos desencaminhados.
— Eu nunca penso —, murmurou o padre, tristemente. — Acha que fui visto?
— Sem dúvida alguma —, disse Stuart.
Tornou-se amigo do Padre Houlihan a partir desse momento. Aquele “eu nunca penso” era coisa muito conhecida dele. Foi até à casa do padre
com seu novo amigo. Naquele tempo, a casa não era branca. Era mais uma miserável cabana de madeira com as tábuas lascadas. Durante a
caminhada, o Padre Houlihan lamentou o seu temperamento impulsivo e disse que teria de fazer muita penitência por causa disso. A sua
atitude era tão séria, tão vigorosa e tão pueril que Stuart se sentiu ainda mais encantado.
Quando chegaram diante da triste cabana, o Padre Houlihan olhou para Stuart e deu um suspiro.
— Não compreendo como um homem decente assim, tendo mulher e tudo mais, vai a um antro de perdição como aquele!
— Não tenho mulher, nem tudo mais —, disse Stuart. O Padre Houlihan pareceu mais conformado, mas, ainda assim, levantou o dedo para ele
e disse:
— Apesar disso, não deixa de ser um homem decente!
Tinha sido esse o começo de uma amizade que iria acompanhá-los pelo resto da vida, uma bela amizade que as frequentes discussões e
discordâncias reforçavam. Pelo menos uma vez por mês, Stuart saía da casa do padre furiosamente, acompanhado pela voz do padre que lhe
dizia coisas vigorosas e muito pouco edificantes. Começavam então a escrever um para o outro cartas em que se pediam humildemente
desculpas e no próximo domingo estavam de novo juntos.
Stuart ainda estava à procura das palavras com que devia advertir Angus quando o Padre Houlihan apareceu, enchendo a pequena sala de
vitalidade, saúde e entusiasmo. Era essa a sua disposição habitual e a sua energia nunca era amortecida desde que acreditava na bondade
essencial da humanidade, apesar de todo o seu conhecimento em contrário.
— Ora, muito bem! — exclamou ele com a sua voz forte e olhou para Angus com amistosa curiosidade e simpatia. Stuart já lhe falara do garoto
e ele estava preparado, como sempre, a amar os jovens e desprotegidos.
Angus se levantou com desconfiança, agarrando a aba do chapéu, com o rosto magro e pálido um pouco vermelho. Não podia olhar
diretamente para o padre e o coração lhe batia com força. Tinha esperado um jesuíta sombrio, magro e sutil, com um rosto a transpirar
maldade e diante de quem ele devia manter-se em rigorosa vigilância. Mas aquele homem baixo, gordo e completamente calvo de cerca de
quarenta anos parecia mais o Frei Tuck bonachão das histórias de Robin Hood do que qualquer dialético latino emaranhado em complexas
maquinações. Quase não chegava à altura dos ombros de Stuart e sua batina se estendia sobre a grande barriga e os ombros largos tão justa
que chegava a estar esticada. Tinha mãos pequenas e gordas, muito brancas, expressivas e bem tratadas, pois eram a sua única vaidade.
Tudo nele era expressivo, volátil e dinâmico. Transpirava a alegria de viver e um ardente afeto por tudo, mesmo quando estava triste, o que era
muito raro.
Tinha uma grande cabeça redonda e a calva reluzia, suarenta e rosada. Só acima das orelhas e da nuca roliça, havia alguns cabelos dourados,
relíquias de uma vasta cabeleira. As orelhas eram enormes e rosadas e se projetavam da cabeça num jeito de agradável surpresa, de alerta e
de escuta. O rosto era muito redondo e largo, rosado e limpo, com uma série de papadas. A sua corpulência era uma fonte de grande
desespero e era objeto de muitas meditações tristonhas, mas a verdade é que ele não podia resistir à boa comida e à cerveja, apesar de
todas as preces que fazia para ter ajuda e mortificar a carne.
Tinha espessas sobrancelhas douradas sobre olhos azuis que eram sempre vivos e bem-humorados. O nariz era grande e abatatado. Mas a
boca era delicada, sempre cercada de covinhas comoventes e com um sorriso a tremer nos cantos.
Era uma alma simples. Mas era também extremamente intelectual, um fato que não lhe perturbava a simples fé. Tinha dito uma vez a Stuart que
não acreditava em muito conhecimento. Achava que o conhecimento excessivo entorpece e ofusca a alma e reduz ao silêncio a intuição do
coração. Não obstante, a sabedoria não o entorpecera, nem ofuscara e a intuição de seu coração era tão pura na sua lucidez, na sua
presciência e na sua bondade como se ele fosse um recém-nascido. Desconfiava de todos os homens sutis, de todos os dialéticos, de todos
os realistas e de todos os sofistas, fossem da religião ou fossem do século, e era por isso talvez que não era favorito das autoridades
eclesiásticas e nunca deixara de ser um padre humilde. Talvez fosse por demais honesto, direto, vigoroso, simples e pragmático para fazer
carreira nos altos escalões eclesiásticos. Estava acima da hipocrisia. Falava muitas vezes desse vício, mas nunca pôde realmente
compreendê-lo e ficava sempre apavorado e desconcertado quando o encontrava nos outros. Era também um mau homem de negócios e
muito vago a respeito de contas, o que também o prejudicava aos olhos do bispo. Nunca tratava de fazer prosélitos, coisa pela qual era
frequentemente censurado. Sabia apenas, na sua sincera perplexidade, que amava Deus e que outros homens sem dúvida amavam também a
Deus, de várias maneiras. Mas nunca levava vantagem de espécie alguma nas conversas que tinha com o seu severo bispo e, embora se
mantivesse humilde diante daquele augusto personagem, saía do palácio episcopal mais confuso do que nunca, murmurando novos
argumentos e a sacudir a cabeça desconsoladamente. Muitas vezes, deixava-se ficar parado no passeio do palácio, a olhá-lo veementemente,
num estado de espírito muito envergonhado e confuso, firmemente disposto a sair-se melhor, embora não fizesse a menor ideia de como isso
seria possível.
O seu amor a Deus dava-lhe uma grande e bela dignidade, que nem a sua corpulência, nem o seu prazer de viver conseguiam atenuar. A sua fé
era como uma luz no grande rosto rosado e nos vivos olhos azuis. Tinha também um mau gênio terrível e uma língua sem freios. Reagia de
maneira violenta quando se convencia de alguma canalhice ou crueldade.
Desde que era tão sem afetação e tão sincero, sempre olhava de maneira firme e direta para os outros, mas com tal bondade que isso
raramente ofendia. Olhou assim e com muito interesse para o jovem Angus, mas este, corando e pouco à vontade, olhava-o de vez em quando
timidamente e logo desviava o olhar. Houve um pouco de silêncio na sala. Stuart estava um pouco à parte, olhando e sorrindo. O Padre
Houlihan continuou a observar Angus à sua maneira simples e direta. Por fim, pouco a pouco, mas de maneira clara, uma sombra de tristeza e
afeição passou pelo rosto do padre, enevoando-lhe brevemente os olhos azuis. Desde que não havia reflexos em sua visão espiritual, ele via
sem distorção.
— Ora, muito bem —, disse ele de novo, mas quase num murmúrio indistinto dessa vez. O quente crepúsculo de maio se adensava. O Padre
Houlihan apanhou uma vela de cera na cornija da lareira, acendeu-a no fogo e saiu pela sala a acender as lâmpadas, levantando-as
cuidadosamente para que a claridade suave enchesse todos os cantos,
Stuart estava aborrecido com Angus. O garoto havia murmurado um cumprimento inarticulado e permanecera de pé, amedrontado, rígido e
contrafeito, sabe Deus com que ideias na cabeça. Stuart lhe havia recomendado que tratasse seu amigo como “Padre” e ele bem sabia como
a palavra era dura de passar por aquela jovem garganta presbiteriana. Teria sido um erro de sua parte levar o camaradinha até ali para causar
problemas para seu amigo Grundy?
Angus observava furtivamente o padre enquanto este ia de lâmpada em lâmpada. O garoto parecia confuso. A visão que tinha das coisas se
mostrava toda deformada. Quando se aproximou da última lâmpada, o Padre Houlihan se queixou de que sua irmã se esquecera de enchê-la.
Acendeu-a e sorriu. Ainda havia querosene que chegasse.
— Como é que vai passando hoje, Stuart? — perguntou.
— Bem, como de costume. E você?
— Magnificamente. Sempre vou magnificamente.
Estava de pé com a vela na mão e a luz dourada lhe caía no rosto quando ele se voltou para Angus. Era um rosto simpático, apesar da
vermelhidão, da gordura e da sua energia camponesa. Sorriu então para Angus. Era um belo sorriso de bondade, de gentileza e de simpatia.
Soprou a vela e sacudiu-a de um lado para outro na mão.
— É esse então o nosso Angus, o rapaz que quer ser um bom médico, não é?
Angus ficou muito vermelho. Mas conseguiu mostrar um sorriso tímido e mudou a posição dos pés.
O Padre Houlihan tornou a colocar a vela em cima da lareira, depois de esmagar com as unhas a ponta enegrecida. Voltou-se para Angus e
deu um suspiro de inveja.
— Era médico que eu queria ser quando estava na velha terra.
Sacudiu a cabeça e encaminhou-se para onde estava Angus. Desde que o garoto era alto e o Padre Houlihan era bem baixo, os olhos dos dois
estavam quase no mesmo nível. O padre encarou aqueles jovens olhos tão cheios de medo e de ansiedade e viu neles a apreensão e a
desconfiança que inspirava.
— Os olhos dele lembram a névoa das montanhas da Escócia —, murmurou ele, delicadamente. — Passei muitos anos na Escócia, perto de
Inverness, onde eu tinha um primo. Ele tinha carneiros. Ainda me lembro das madrugadas escocesas, pouco antes do amanhecer, com a
estrela da manhã acima das montanhas.
A sua voz forte estava nesse momento repassada de ternura. Angus levantou de repente a cabeça e olhou o padre sem medo e com
ansiedade.
— Meu pai fez um canto dedicado à estrela da manhã! — exclamou ele e, em seguida, ficou mais vermelho do que nunca. Os olhos se lhe
encheram de lágrimas e ele virou a cabeça para o lado. O padre olhou para o garoto e seu rosto se encheu de tristeza.
— Talvez ele esteja agora no céu cantando para os anjos —, disse ele, com grande ternura.
Angus nada disse, mas havia soluços em sua garganta. O Padre Houlihan passou o braço pelos ombros do garoto não com violência, a fim de
não alarmá-lo, mas com muita lentidão e delicadeza.
— Vou rezar uma oração por seu papai, amanhã —, disse ele.
Angus se moveu inquietantemente, mas, sentindo o calor do braço passado pelos seus ombros, não pôde resistir na sua fome de carinho e
ficou parado. Mas olhou para o Padre Houlihan com uma severidade incerta, dizendo com resolução:
— Não podemos rezar pelos mortos. Estão nas mãos de Deus e não precisam mais de nossas orações, que não os podem mais ajudar, nem
prejudicar.
As lágrimas lhe corriam livremente pelas faces.
O Padre Houlihan ficou em silêncio por um momento e então disse, batendo gentilmente no ombro do garoto:
— Eu gostaria de saber que meus amigos se lembram de mim, mandando-me o seu carinho em forma de orações que Deus ouve em meu
benefício. Não posso deixar de pensar que eles sabem e que Deus ouve quando rezamos com amor e tristeza.
— Mas não podemos modificar o destino de ninguém, que é fixado no momento em que a pessoa nasce —, declarou Angus obstinadamente.
— Antes mesmo do nascimento. Predestinação.
O Padre Houlihan não era homem para discutir questões de dogma com ninguém, especialmente com um garoto que sofria. Mas disse com
voz quente e terna:
— Não sei, mas creio que seria uma crueldade de Deus condenar uma pessoa antes mesmo de nascer. Não posso acreditar que Deus seja
menos misericordioso do que os homens. Ora! — disse ele, dando um suspiro. — É claro que não podemos saber ainda dessas coisas. O que
temos de fazer é confiar na eterna bondade e no amor de Deus. É só o que podemos saber.
Tornou a apertar o ombro de Angus. Tirou então a mão e teve um sorriso cordial.
— Vai ser então médico? E um bom médico, não tenho dúvida alguma. Os bons médicos já nascem, como os sacerdotes, trazendo a vocação
na alma.
Angus ainda estava obstinado, mas a sua resolução se atenuava. Olhava já o Padre Houlihan com menos severidade e menos timidez. Sentia
alguma coisa quente e doce invadir-lhe a alma, como uma consolação. Lembrou-se então de que o avô lhe tinha dito muitas vezes que os
sequazes de Roma eram como serpentes, insinuantes e macias, procurando a quem podiam devorar com palavras sedutoras e gestos ternos.
— Obrigado, Sr. — começou ele desajeitadamente e percebeu então o olhar de Stuart voltado para ele. — Reverendo... — corrigiu ele por
entre os dentes.
O pobre garoto esperava que isso satisfizesse o primo de sua mãe. Os padres deviam ser reverendos também...
O Padre Houlihan olhou, todo sorridente, para ele.
— Como é, Angus? Está gostando dos Estados Unidos?
— Muito, obrigado —, respondeu Angus cortesmente.
As mãos já lhe doíam de tanto agarrar as abas do chapéu. Como se tivesse compreendido isso, o Padre Houlihan tomou-lhe o chapéu e
colocou-o ao lado do de Stuart, em cima de uma mesa. Angus ficou olhando para o chapéu, meio aflito e incerto, mas nada havia que ele
pudesse fazer.
O padre voltou-se para Stuart e disse:
— Sam já está aí. Está lá na sala dos fundos com as cortinas descidas. Não vai jogar, como de costume?
— Que é que acha que eu vim fazer aqui, Grundy? — perguntou Stuart ruidosamente.
Podia sentir os olhos escandalizados e amedrontados de Angus fitos nele e teve o impulso momentâneo de sacudir um pouco o garoto e botar-
lhe um pouco de juízo na cabeça. Mas evitou olhar para ele.
O Padre Houlihan hesitou e olhou para Angus.
— Que é que nosso amigo vai fazer enquanto nós jogamos? — murmurou ele.
Angus meteu no bolso os dedos trêmulos e disse, quase incoerentemente:
— Sempre trago comigo aos domingos meu Novo Testamento.
Tirou do bolso um livrinho encadernado em preto e colocou-o de encontro ao peito, como se quisesse protegê-lo.
— Muito bem! — exclamou o Padre Houlihan.
Stuart mostrou uma expressão de paciência dificilmente contida e olhou para o padre com um gesto de aquiescência. O Padre Houlihan
encolheu os ombros e saiu da sala, seguido de Stuart e de Angus que fechava a retaguarda com o passo temeroso de quem vai entrar em
catacumbas onde se poderiam encontrar todas as espécies de blasfemos horrores. Em dado momento, o padre voltou-se e tocou o braço de
Stuart
— Pobre garoto, pobre garoto —, murmurou ele, com uma súplica na voz.
Passaram por um pequeno corredor sombrio e foram dar numa sala muito confortável, onde o fogo estava aceso na lareira. Dois cachorros se
levantaram ao vê-los e começaram a latir de alegria. Eram spaniels pretos e peludos, que começaram a dar pulos em torno do padre. Voltaram
então as suas demonstrações de alegria para Stuart, que lhes afagou as cabeças. Depois, voltaram-se, com a língua de fora, para Angus, cujo
rosto se encheu de tímida satisfação. Reconhecendo um amigo, os cachorros começaram a fazer-lhe festas, com latidos de satisfação. O
garoto pegou um deles nos braços e começou a rir. O riso era relutante e fraco, talvez por falta de uso, mas muito infantil. O cachorro lambeu
alegremente o rosto de Angus, enquanto o seu companheiro, enciumado, tentava subir pelas pernas do garoto. Angus lutou com o animal que
tinha nas mãos, tentando livrar-se das lambidelas sem largar o corpozinho gordo e irrequieto. Riu de novo cheio de satisfação e voltou-se para
o Padre Houlihan, que olhava a cena sorridente e compassivamente.
— Gostaria muito de ter um cachorro! — exclamou Angus num assomo de sinceridade. — Mas Mamãe não deixa.
Não havia nesse momento na voz dele nem tensão, nem cautela.
Colocou o cachorro no chão e ele se uniu imediatamente ao companheiro na tentativa de escalar as pernas de Angus. Foi então que ele viu que
havia outra pessoa na sala, que se levantava lentamente de uma pequena mesa coberta com um pano verde e na qual havia dois baralhos e
uma caixa de madeira.
Angus teve uma surpresa e no mesmo instante voltou a sentir-se tímido e reservado. Devia ser o Sr. Sam Berkowitz, de quem Stuart lhe havia
falado. Angus ficou mais uma vez cheio de desconfiança e reticência. Era a primeira vez na vida que via um judeu e, do que havia sabido a
respeito da raça hebraica, estava preparado para ver alguém que se parecesse muito com o Fagin da famosa história de Dickens.
Mas o garoto observou confusamente que aquele homem não era Fagin. Era um homem alto, muito magro e encurvado, com abundantes
cabelos brancos, embora o rosto simpático e inteligente fosse ainda moço. Olhou para Angus, com timidez e reserva também, mas com um
leve sorriso. Era evidente que o Sr. Berkowitz não ligava à elegância, pois as roupas enrugadas lhe caíam muito mal no corpo. Tinha nas mãos
cartas que baralhava distraidamente.
—•Meu jovem primo, Angus —, disse Stuart displicentemente, indo até à lareira e esfregando as mãos. — Angus, este é o Sr. Berkowitz.
Sam inclinou levemente a cabeça e sorriu para o garoto.
— Muito prazer —, disse ele no seu sotaque carregado e olhou pensativamente para Angus.
— Muito prazer —, murmurou Angus.
Sentia-se de novo contrafeito e amedrontado. Mas o Padre Houlihan estava atiçando o fogo e puxou uma cadeira para perto do seu calor.
Angus sentou-se, murmurando os seus agradecimentos. Os cachorros se interessaram de novo por ele e tentaram subir-lhe para o colo. Angus
esqueceu o seu medo e ajudou-os. Os animais se ajeitaram nos seus joelhos e demonstraram efusivamente o seu entusiasmo. Angus começou
a sorrir e abraçou-os enternecidamente. O Padre Houlihan foi até a mesa, onde Stuart já estava sentado, e sentou-se. Piscou o olho para
Stuart. As costas largas da batina brilhavam à luz da lareira.
— Muito bem! — exclamou ele. — Quem é que acham que vai ganhar hoje?
— Quem sempre ganha —, disse Stuart, de cara fechada. — Não sei se sabe, mas há uma lei contra os trapaceiros. Eu poderia massacrá-lo
que seria absolvido sem a menor dificuldade. — Bateu na caixa de madeira, em cujo alto se via uma abertura e a inscrição: “Para os Pobres”.
— Eu gostaria de saber quanto dinheiro você tira dessa caixa depois que Sam e eu saímos.
O Padre Houlihan deu uma gargalhada.
— Eu sei que, se você estivesse no meu lugar, seria muito capaz de fazer isso. Mas eu, não. Só abro a caixa uma vez por mês e dou tudo aos
pobres. Da última vez, havia cento e noventa dólares.
Os três amigos tinham o costume de reunir-se ali às quartas e aos domingos à noite para jogar. Mas quem ganhava era obrigado a depositar
nos domingos todos os seus lucros na caixa dos pobres.
— É uma coisa muito curiosa —, disse Stuart, enquanto baralhava as cartas e começava a dá-las —, mas você sempre ganha nas quartas-
feiras, enquanto Sam e eu ganhamos invariavelmente nos domingos. Isso se deve às suas orações, não é mesmo?
— Deus sempre recompensa quem ajuda os pobres, rindo. — Olhou as cinco cartas que Stuart lhe tinha dado e deu um suspiro. — Você pode
me acusar de trapaça, mas que é que eu vou dizer dessas cartas que você me deu?
— Nada, hem? — perguntou Stuart. — Nem um parzinho?
— De qualquer maneira, não dá para abrir —, disse o padre, largando as cartas em cima da mesa. Olhou para Stuart e para Sam, na
expectativa.
— Eu abro —, disse Sam, colocando duas fichas azuis na mesa.
— Pois eu aumento para quatro —, disse Stuart, depois que o Padre Houlihan abanou a cabeça tristemente e largou as cartas com um gesto
expressivo.
— Nós dois, como sempre —, resmungou Stuart. — Grundy está de fora, como sempre.
O Padre Houlihan descansou os braços gordos em cima da mesa e ficou apreciando a jogada com vivo interesse. Dentro em pouco, havia
cinco dólares em fichas na mesa.
— Trinca de reis —, disse Stuart, mostrando o jogo.
— Ganhou, Stuart —, disse Sam, sorrindo e encolhendo os ombros.
Enquanto isso, Angus estava tomando conhecimento da abominação que se praticava a poucos passos dele, ao calor da lareira. Estava muito
pálido e rígido com o choque. Os olhos estavam arregalados. Já não dava atenção às festas dos cachorros. Tinha razão então. Aquilo era
mesmo um covil de iniquidade, em que Stuart, seu ímpio parente, violava o Dia do Senhor em companhia de um padre mau e perverso e de um
judeu que, desde que nascera, fora lançado nas trevas exteriores. Sentia pena e terror por Stuart, que era tão inocente e tão bom que não
percebia a natureza diabólica daqueles dois que o estavam arrastando para a perdição. Sentiu lágrimas nos olhos e teve vontade de implorar a
Stuart que fugisse daquele lugar demoníaco antes que fosse tarde demais. A sua agitação era extrema a tal ponto que a boca lhe tremia e o
terror mais completo lhe enchia os olhos.
Os cachorros sensíveis perceberam-lhe a emoção e ficaram parados a olhá-lo, ganindo baixinho. Afagou-os automaticamente e os animais se
acomodaram.
“Vovô tinha razão”, pensava Angus com o coração cheio de medo. Olhou para as costas rebrilhantes da batina do padre, para a base da
grande calva vermelha e para o rosto misterioso de Sam com o seu sorriso calmo. Aqueles dois iriam devorar o pobre Stuart e arrastá-lo para o
poço com eles. Angus apertou nas mãos a sua Bíblia como se fosse um talismã contra todas as artimanhas do demônio. Sentia as pernas frias
e paralisadas. A boca e a garganta estavam ressecadas.
Stuart havia-o esquecido. Estava mergulhado no jogo com o rosto carrancudo e atento. De vez em quando, murmurava entre os dentes nomes
feios.
— Que coisa! Não me vem um jogo que preste! — exclamou. Pegou de repente as cartas com que o padre tinha passado, olhou-as de má
vontade e disse: — Não, suas cartas estão igualzinhas às minhas!
— Pensou que eu estava fugindo de propósito, hem? — perguntou o padre complacentemente.
— Não posso compreender! Como é que você só recebe boas cartas às quartas-feiras?
O padre sorriu e disse piedosamente:
— Deus protege os seus pobres...
Pouco depois, Stuart pediu uma carta e soltou uma exclamação. Sam largou as suas cartas.
— Um royal straight flushl — exclamou Stuart. — O primeiro que faço em minha vida, talvez o último e logo num domingo!
Os outros começaram a rir. O Padre Houlihan inclinou-se para ver o milagre. Depois, contou as fichas na mesa.
— Vinte dólares!
Mas Stuart estava fora de si, compreendendo toda a extensão da calamidade. Deu murros na mesa.
— Um royal straight flush! Pela primeira vez em mil anos! O que eu poderia fazer com esse dinheiro! E isso tinha de acontecer neste antro do
vício num domingo, quando tenho de entregar tudo para a caixa dos pobres!
Sam e o padre davam gargalhadas com o furor de Stuart. Agarraram-se um ao outro, como se corressem o risco de cair das cadeiras. As
lágrimas jorravam dos olhos do padre de tanto rir. Enxugou os olhos e abandonou-se a novos paroxismos. Até o judeu silencioso não se podia
conter. Baixou a cabeça para a mesa e riu fracamente.
Stuart continuou a lamentar a sua sorte ou falta de sorte e, diante da alegria dos outros, a sua exasperação aumentava. Os cachorros
começaram a latir. Pularam do colo de Angus e começaram a correr pela sala na maior agitação.
Só algum tempo depois foi que o jogo pôde prosseguir.
CAPÍTULO 22
Uma calma relativa prevaleceu durante algum tempo, embora de quando em quando Stuart se lamentasse e praguejasse. Nessa agitação,
tinham todos esquecido o garoto calado e pálido que estendia para eles os olhos arregalados do seu canto ao pé da lareira.
Uma chuva miúda de primavera começou a cair, sussurrando nas vidraças. O fogo crepitava na lareira e a sua luz piscava além do guarda-fogo
de cobre. Os cachorrinhos dormiam no tapete e resmungavam de vez em quando, em seus sonhos. Da lâmpada se derramava uma luz suave.
A salinha confortável estava meio enevoada com a fumaça dos charutos de Stuart e do padre e do cachimbo de Sam. Numa das paredes,
havia várias prateleiras de livros, cujas lombadas vermelhas e azuis estavam bojudas de tanto uso. Era tudo muito agradável e cheio de
cordialidade e conforto para todos os que estavam na sala, exceto Angus.
Muito tempo havia passado, cheio do barulho da chuva, do fogo, dos resmungos dos cachorros, do bater das cartas e do tatalar das fichas, das
pragas de Stuart e dos risos dos outros. Angus estava sentado havia uma hora num estado de tensão e rigidez, como num transe cataléptico, a
segurar o Novo Testamento como se seus dedos fossem de ferro. Não afastava os olhos dos jogadores. As pálpebras lhe ardiam e estavam
vermelhas da fumaça e da tensão. De quando em quando, o frio lhe inteiriçava o jovem corpo emaciado.
Por fim, a natureza veio em seu socorro com um protesto contra a constrição de seus músculos e ele foi forçado a relaxar o corpo. Dores
agudas lhe percorreram os braços e as pernas. As costas pareciam distendidas. Contra a sua vontade, recostou-se no espaldar da confortável
poltrona em que estava sentado, pela primeira vez. Mas o coração tremia e a cabeça latejava. A sua visão se nublou e ele fechou os olhos.
Longas lágrimas lentas se lhe acumularam sob as pálpebras fechadas. Era pouco mais que uma sombra no fundo da poltrona, a mão lhe
pendia vulneravelmente sobre o braço da poltrona e a sua palidez era a brancura da morte.
Não estava mais amedrontado. Não sabia ao certo quais eram as suas emoções. Sabia apenas que estava perdido e sozinho, mais sozinho
do que de costume. Estava ainda terrivelmente cansado. O Novo Testamento permanecia fechado em seus joelhos. Mais uma hora passou.
Houve um rápido movimento à porta e Angus, quase adormecido em sua exaustão, teve um sobressalto. Uma senhora baixa e gorda estava
entrando. Tinha cabelos prateados, duas romãs nas faces e um avental branco sobre a saia preta.
— Já querem jantar, pecadores? — exclamou ela.
— Um momento, O’Keefe —, disse Stuart, sem tirar os olhos das cartas.
Sam fez menção de levantar-se e cumprimentou cortesmente a senhora. O Padre Houlihan estava muito interessado no seu jogo e disse:
— Um momento, Sara. Não, Stuart. É você quem fala.
— Isto aqui está mais quente do que aquele lugar ruim —, disse a Sra. O’Keefe, tirando os óculos para limpá-los. — E nada de ar! Não sei
como foi que ainda não ficaram sufocados!
Encaminhou-se para a janela e, quando passou por Angus, parou e olhou-o, muito espantada.
— E quem é que temos aqui?
Angus se levantou, embora todas as juntas lhe estalassem e doessem. Olhou-a, preparado para ficar de novo amedrontado, mas aquela
senhora sorridente e de vivos olhos azuis nada tinha de alarmante. Retribuiu-lhe o sorriso e cumprimentou-a, com uma rápida inclinação de
cabeça.
Stuart olhou por cima do ombro e encarou Angus como se ele fosse uma aparição. Esquecera o garoto por completo. Disse então:
— O’Keefe, este é Angus Cauder, filho de minha prima. Esta é a Sra. O’Keefe, Angus, irmã do Padre Houlihan.
A voz de Stuart parecia arrependida e contrafeita. Afastou uma madeixa de cabelos da testa banhada de suor.
— Ih! Estou com o corpo todo molhado de suor. Desculpe que eu tivesse deixado de lhe dar atenção todo esse tempo, Angus.
Mas Angus e a Sra. O’Keefe se estavam olhando em silêncio. Pobrezinho, pensava a mulher, é de comida que ele precisa e não é pouca. Deu
umas palmadinhas carinhosas no braço magro. Virou a cabeça para o lado, fez um ar de censura e disse:
— Não é uma vergonha que ele tivesse deixado você aqui sozinho enquanto eu estava lá em cima, ansiosa por uma companhia? Deviam ter
levado logo você para mim.
Angus tentou lembrar-se friamente de que estava diante de outra papista, condenada inevitavelmente a horríveis tormentos eternos. Mas não
podia ser indiferente a tanta bondade e amabilidade.
— Muito obrigado, senhora. Não teve importância. Eu... eu estava descansando...
A Sra. O’Keefe respondeu rindo:
— Ora, Angus! Na sua idade, não se precisa de descansar e, sim, de rir e brincar.
O Padre Houlihan, sentindo-se culpado de não ter dado a atenção devida a um hóspede dentro de sua casa, ficou sem saber o que dizer para
justificar-se. Tinha muito medo da irmã e respeitava-lhe a língua. Começou a pigarrear, mas a Sra. O’Keefe deixou-o firmemente de lado e
disse a Angus:
— Não quer esticar as pernas um pouco e me ajudar a botar a mesa do jantar para esses pecadores?
Angus, numa agonia de renovada timidez, seguiu a Sra. O’Keefe até a cozinha mais alegre e mais simpática que já vira, toda de ladrilhos
vermelhos e de cobres, de grandes janelas com bancos laterais cheios de vasos de flores e, encostado à parede, um grande fogão de onde a
fumaça subia. Havia pratos de presunto cozido, de maçãs assadas, de carne fria, conservas, pão branco e cerveja fria.
— Meu amor, ponha a toalha na mesa e depois os guardanapos. O que tem a argola é do padre. O dobrado ao comprido é do Sr. Berkowitz e
o dobrado ao quadrado, do Sr. Coleman. Eles gostariam de guardanapos limpos todas as vezes, mas isso é uma extravagância. Aqui, meu
querido, este prato e este guardanapo são para você. E pensar que aqueles sujeitos não me falaram de você. Gosta de presunto?
— Gosto... Gosto muito, obrigado.
Angus deu um suspiro. O calor e a simpatia lhe invadiam os membros frios. Olhou para as costas do corpo grande e ativo da Sra. O’Keefe e,
sem saber por que, a maneira pela qual o avental branco estava amarrado num grande laço de panos engomados lhe deu de novo vontade de
chorar. Piscou os olhos através das lágrimas e disse quase num gemido:
— Eles jogam cartas assim todos os domingos, Sra. O’Keefe?
— Jogam, sim, esses excomungados —, disse ela com prazer. Mas alguma coisa na voz do garoto lhe chamou tardiamente a atenção e ela se
voltou imediatamente, cravando nele os vivos olhos azuis. — Por que, meu filho?
Angus ficou muito vermelho e os pratos quase lhe caíram das mãos.
— Por nada. É apenas que na Escócia não fazemos essas coisas. O domingo é um dia de descanso...
— E é mesmo, Angus! Os pobres queridos estão descansando. — Olhou-o com simpatia cada vez maior e perguntou: — Você não gosta
disso, não é?
— Não, não é isso... É que me parece estranho...
A Sra. O’Keefe observou-o durante algum tempo num bondoso silêncio. Disse então com uma voz gentil e maternal.
— Meu filho, há uma coisa que você deve aprender desde já. Só o que um homem tem dentro do coração é que é bom ou mau. Se a pessoa é
ruim, perversa, mal-intencionada, cruel e egoísta, pode ir à igreja à vontade e rezar quanto quiser que isso não adianta nada. Nada mesmo.
Essa é que é a verdade de Deus, meu filho.
Ela havia falado com muita energia e sinceridade. Angus olhava-a, piscando os olhos e tentando conciliar essas ideias com o que lhe haviam
ensinado. Balbuciou:
— Acha então que eles são bons apesar de tudo e que Deus os perdoará por profanarem o Dia do Senhor?
— Profanaram o Dia do Senhor? Mas, meu Deus, não estão fazendo nada ao Dia do Senhor. Procuram apenas ser um pouco felizes. E foi
para isso que Deus fez o domingo e os outros dias: para que fôssemos felizes. Acha, meu querido, que Deus quer que nos sintamos infelizes?
Angus olhou para ela. Uma expressão curiosa lhe passou pelo rosto e ele disse, quase incoerentemente:
— Sim, era o que pensava. Não sabia de nada disso antes, mas era o que eu pensava.
A Sra. O’Keefe, que era uma mulher impulsiva, aproximou-se dele, beijou-o carinhosamente e tomou-o nos braços gordos, tão reconfortantes e
seguros. Ele se deixou ficar afastando os pratos e experimentando uma curiosa sensação de doçura e consolação. Foi inteiramente dominado
por sua emoção sentimental. Eram os braços de sua avó Driscoll que sentia a envolverem-no com o mesmo cheiro nostálgico de carne limpa e
macia, maternal e substancial, ajuda nos momentos difíceis, ternura nas horas de aflição. Era tão apaixonada a sua fome de amor que quase
não pôde suportar a emoção que lhe crescia no peito.
Levou os pratos e voltou prontamente à cozinha. Viu a Sra. O’Keefe cortar um bolo em fatias e perguntou:
— Os católicos odeiam os protestantes, Sra. O’Keefe?
Ela olhou para ele e sorriu:
— Não tenho dúvida de que há muitos que odeiam. E há protestantes que odeiam os católicos. É sempre assim com gente que não tem juízo.
Sentem-se na obrigação de odiar alguma coisa. Talvez seja o pecado original, não sei. É uma dessas coisas que a gente tem de aceitar no
mundo, como aceita a doença, as aflições, os desastres e a morte.
O espírito de Angus estava em confusão. Aproximou-se da Sra. O’Keefe e esta, compreendendo a angustiosa necessidade do garoto, parou o
que estava fazendo e olhou-o com compassiva gentileza. Sabia do tumulto que lavrava naquele pobre coração despreparado e agradeceu
humildemente a oportunidade que lhe era dada de aliviá-lo de certo modo.
— Tenho ouvido tantas coisas, sabe? — murmurou ele timidamente. — Tudo me parecia tão simples. Os bons de um lado, os maus do outro...
— E o lado dos bons era naturalmente o lado de seu papai, de sua mamãe, de seu avô, da Inglaterra também e de sua igreja, não era?
— Bem, de certo modo, sim —, disse ele, lutando com as palavras como se fossem objetos estranhos. — Nunca me pareceu necessário fazer
perguntas sobre isso. É muito difícil fazer perguntas e muito triste também porque pode acontecer que nosso lado não esteja certo e se possa
dizer alguma coisa de bom sobre o outro lado também. Mas isso faz com que as coisas deixem de ser simples e eu gosto de tudo bem
simples, sabe?
Olhou para ela com desesperada intensidade e disse:
— Tenho lido os livros também, Sra. O’Keefe, e sei como os católicos queimaram e enforcaram os protestantes, sei do massacre da Noite de
S. Bartolomeu e das perseguições aos huguenotes na França. Como... o Reverendo Houlihan explica isso? Essas coisas não são mentiras. É
o que Filipe da Espanha fez aos holandeses, com o apoio dos padres.
A Sra. O’Keefe tomou a mão magra de Angus e disse em voz pausada e com o rosto muito grave:
— Pode ser verdade o que você diz, meu filho. Mas os protestantes fizeram o mesmo aos católicos, sabe? Fizeram isso também uns com os
outros, na sua ignorância e na sua loucura. Que é que o Padre diz? Ele sabe de todas essas coisas, de tudo o que a Igreja fez e os seus cruéis
padres. Mas os padres eram humanos. Não eram melhores do que os outros homens, apesar de todos os seus paramentos. O Padre sabe de
tudo isso mas tem fé não apenas em Deus, mas também na humanidade, sabendo que um dia toda ela será boa e cheia de amor e
misericórdia. Ainda na semana passada, ele disse a nosso querido Stuart: “Já me têm perguntado por que sou sacerdote numa igreja que tem
uma história tão triste de sangue, perseguição e intolerância. Agora, eu lhe pergunto: por que você pertence ao Partido Republicano e é agora
cidadão dos Estados Unidos? Será que o Partido Republicano não tem defeitos? Estarão as mãos dos Estados Unidos limpas de agressão,
de conquista, de guerra e de outras coisas horríveis? Se um homem não ingressar num partido, numa igreja ou num país porque encontra
nesses grupos qualquer defeito ou mancha, ficará fora deles e sozinho no mundo! Não, não podemos ser tão loucos a esse ponto. O que nos
cabe é auxiliar o bem e combater o mal. Graças à nossa fé e aos nossos atos quotidianos, poderemos tornar a história mais branda e
concorrer para a libertação da humanidade nas idades futuras”.
Angus tinha ouvido, fitando os olhos ternos da boa mulher. A sua mão se aqueceu pouco a pouco na dela. Ficaram assim durante vários
momentos, sorrindo um para o outro.
Por fim, Angus murmurou:
— Padre... Houlihan é um homem muito bom. Estou contente de que Stuart me tenha trazido aqui esta noite. Estou muito contente de conhecê-
la também, Sra. O’Keefe.
Uma expressão de paz e de serenidade se mostrou no rosto do pobre rapaz. Tornou a sorrir e deu um suspiro. Carregou os pratos de comida
para a outra sala, movendo-se como dentro de um sonho. A Sra. O’Keefe olhava-o com lágrimas nos olhos.
Stuart estava depositando de má vontade tudo o que ganhara na caixa dos pobres, fazendo amargos protestos. Mas, além do dinheiro que
ganhara, depositou furtivamente algumas moedas de ouro. Disse então:
— Grundy, fique sabendo que um dia vou fiscalizar o que você faz desse dinheiro. Ninguém me tira da cabeça que tudo vai acabar é em sua
algibeira.
— Deixe de reclamar, ouviu? — replicou o padre. — É bem possível que sua sorte indecente se repita na próxima quarta-feira, meu caro Stuart,
e que você venha a fazer outro royal.
Todos se sentaram então para comer à luz da lareira. O fogo cintilava sobre as pratas e sobre a alvura da toalha. Sam Berkowitz serviu-se de
algumas fatias de carne fria. O Padre Houlihan piscou o olho para Stuart e disse a Sam:
— Por que você é tão intolerante, meu caro Sam? Por que não prova este delicioso presunto que Sara preparou com tanto gosto para nós?
Sam sorriu e uma expressão de sombrio humor se lhe espalhou no rosto.
— Vou deixar de ser intolerante, Padre. Na próxima sexta-feira da Quaresma, virei comer um bom prato de presunto em sua companhia.
O Padre Houlihan riu desesperadamente, batendo com o garfo na mesa.
— Ganhou, Sam! Mas, se quiser mesmo, venha, que eu conseguirei uma dispensa especial. Vale bem a pena!
A conversa continuou animada, às vezes acalorada, às vezes até violenta, ora pontilhada de gargalhadas, ora solene e séria. Angus a tudo
escutava numa espécie de entorpecimento. Havia entrado numa terra estranha e quente, que era assombrosa, mas sumamente reconfortante.
Viu os três homens e a Sra. O’Keefe tomarem cerveja e isso não lhe pareceu mais monstruoso numa noite de domingo, mas natural e inocente.
Ouviu as discussões políticas e, quando começaram a falar da escravidão, parou de comer para prestar atenção.
O Padre Houlihan disse, apontando o talher para Stuart, que acabara de discordar violentamente dele:
— Vou-lhe dizer uma coisa, Stuart. Vamos ter uma terrível guerra em torno dessa questão. Sei disso como se já estivesse vendo. Nada pode
impedi-lo. Os homens estão muito exaltados e muito violentos. Há grandes interesses no Norte que não podem competir nos mercados de
trabalho contra o Sul, com o seu trabalho escravo. A causa da abolição é sagrada. Depois que a guerra for travada, não como uma cruzada
santa, como o povo acreditará, mas por motivos econômicos, a escravidão será abolida. Graças à cobiça dos homens, uma grande injustiça
será corrigida. Tenho de discordar das Escrituras Sagradas nesse ponto. Um espinheiro pode às vezes dar bom fruto e as pedras podem
transformar-se em pão.
— Ainda não creio que cheguemos a lutar por causa dos negros —, disse Stuart, pensando de novo, com pesar, que poderia ter ganho uma
fortuna no movimento subterrâneo de fuga de escravos para o Canadá. — Eu, da minha parte, sei que não vou lutar para libertar os negros.
Tenho mais o que fazer.
O Padre Houlihan sacudiu a cabeça sorrindo e disse:
— Duvido muito que possa resistir a uma luta, meu caro.
O rosto de Stuart mostrou então uma expressão estranha. Olhou furtivamente para Sam. Alguma coisa o vinha afligindo ultimamente. Disse
então jovialmente:
— Por falar nisso, Sam, esqueci-me de lhe dizer uma coisa que vai interessar-lhe muito.
Sam olhou para ele meio desconfiado. Quando Stuart assumia esse ar de jovialidade, de despreocupação, havia alguma artimanha em
marcha.
— Que é que há desta vez, Stuart? — perguntou ele, inquieto.
— Já vi que está desconfiado, Sam —, disse Stuart, franzindo a testa.
— E não é só ele —, disse sorrindo o Padre Houlihan. — Eu também estou desconfiado. Como vê, Stuart, você não consegue enganar seus
velhos amigos.
Stuart recostou-se na cadeira e correu os olhos pela mesa com um ar de exasperação.
— Nunca vi amigos que tivessem tão pouca fé num homem! Parece que o melhor é não dizer nada a ninguém.
Mas Sam estava perturbado e disse:
— Pode falar, Stuart.
— Ora, não é nada demais! Apenas uma chance para um excelente negócio. Você bem sabe, Sam, que fui eu que tive a ideia de anunciar em
todo o país que estávamos dispostos a comprar grandes partidas de mercadorias recusadas pelos retalhistas por um motivo ou outro, inclusive
de massas falidas. Você mesmo reconheceu que foi uma excelente ideia. Foi assim que conseguimos aquela partida de porcelana recusada
em Utica e que nos deu ótimos lucros. Pagamos à vista e conseguimos as mercadorias quase de graça. A notícia naturalmente se espalhou e
há muita inveja entre os retalhistas por não terem pensado nisso antes. Mas estão corrigindo os seus erros agora que mostramos o caminho.
— Sim, sei disso muito bem. Continue, Stuart —, disse Sam, ao mesmo tempo que o Padre Houlihan escutava com toda a atenção.
Stuart tinha começado a falar rapidamente e com uma ponta de irritação.
— Ora, embora tenhamos constantemente maior número de imitadores, ainda estamos à frente de todos os outros. Oferecemos bons preços.
Nossos anúncios são mais bem redigidos e atraem mais ofertas de carregamentos recusados ou sobras do estoque. Os outros têm fé em nós.
“Ora, há três dias, fui procurado em casa por um homem. Duas semanas antes, eu tinha recebido uma carta de um fabricante de armas e
pólvora num lugar da Pensilvânia chamado Windsor. Nessa carta, solicitavam-me que eu recebesse um dos sócios da firma, um tal Raoul
Bouchard, que queria tratar comigo de um assunto confidencial e muito importante. Pensei então: “Que é que eu tenho com essa firma
chamada Barbour & Bouchard?” É verdade que vendemos pólvora, fuzis e outras armas de fogo quando podemos comprar esses artigos em
grandes quantidades e vendê-los por um preço compensador. Mas por que uma firma que fabrica esses artigos poderia ter um assunto
confidencial e importante a discutir comigo, isto é, conosco? Eu sabia que eles fabricavam um excelente tipo de armas chamado de
“Sessions”. Lembra-se, Sam? Nós compramos uma partida dessas armas remetida para uma firma que faliu em Syracuse. A mercadoria era
ótima e nós a vendemos com um bom lucro. Mas nada disso explicava por que esse tal Bouchard queria falar comigo debaixo de tanto
segredo.
Sam nada disse. As compridas mãos estavam pousadas na mesa, entrelaçadas. Os olhos castanhos estavam apertados e receosos. Stuart
evitava olhar diretamente para de.
— Como disse, o tal Bouchard me procurou em casa há três dias. Era um francês todo risonho, de cabelos pretos frisados e olhos buliçosos
como os de um demônio feliz. Trazia uma carta do presidente da firma, um tal Ernest Barbour. Ele me fez prometer que o assunto de que íamos
tratar não seria discutido fora de nossa firma. Fiz naturalmente a promessa e a estou cumprindo.
O Padre Houlihan não pôde deixar de sorrir, mas nada disse. Depois, a sua expressão voltou a ser grave e pensativa.
— Bem —, continuou Stuart —, o Sr. Bouchard me fez uma proposta muito interessante. De acordo com ela, devo anunciar discretamente a
compra de grandes partidas de fuzis de qualquer espécie e adquiri-los até o máximo de dez mil fuzis.
— Dez mil fuzis! — exclamou Sam. — Para que esse cavalheiro precisa de dez mil fuzis? E por que não os fabrica ele mesmo, já que o produto
dele é tão bom?
Stuart ficou confuso e murmurou:
— Como é que vou saber? Talvez ele queira dispor imediatamente de uma boa porção de fuzis baratos para vender a baixo preço e, como a
firma dele tem um certo prestígio, não quer que esse artigo inferior tenha a sua marca. Deve ser para proteger também esse prestígio que ele
não quer anunciar por si mesmo, nem aparecer nessa transação. Ninguém deve saber, segundo me disse, que Barbour & Bouchard estão
envolvidos nisso.
Sam e o padre trocaram um longo olhar aflito. Sam disse então:
— Esse tal Bouchard lhe disse todas essas coisas com toda essa franqueza?
— Claro que sim! Que importância tem isso? Querem esses fuzis, comprados discretamente. Querem que eu remeta as armas, depois da
compra, para uma certa cidade da fronteira no Kentucky, não em grandes quantidades, mas em pequenas partidas. Deram-me um certo nome.
Sempre que comprar os fuzis, devo dar instruções para a remessa para essa cidade e pagar à vista. É claro que eu nem verei os fuzis, que
jamais chegarão a Grandeville. Minha parte é a publicidade, a compra e a remessa. Só.
Bateu no bolso e continuou:
— Tenho aqui o nome do homem e do depósito para onde os fuzis têm de ser mandados. O nome do homem me é completamente
desconhecido. Tudo é muito confidencial. E eu devo receber exatamente o dobro do preço dos fuzis como meu lucro.
Mas Sam estava olhando alarmado para o Padre Houlihan e disse:
— Dez mil fuzis remetidos a um homem desconhecido numa cidade obscura do Sul. Por quê? Isso é que eu quero saber!
— Mas, meu Deus —, disse Stuart batendo com o punho na mesa —, não acha que os sulistas precisam de fuzis para caçar e para outras
coisas?
Mas Sam não se deixou intimidar. Olhou diretamente para Stuart e disse:
— Por que então Barbour & Bouchard não podiam comprar diretamente esses fuzis ou fabricá-los, o que seria ainda mais barato, embolsando
os lucros? Tenho conhecimento dessa firma e sei que a produção deles é muito grande. Mas reconheço que podem ter necessidade imediata
desses fuzis.
— É isso naturalmente —, murmurou Stuart
— Por que então o segredo, a confidência, a necessidade de que o nome deles não apareça?
— Isso eu não sei e, na verdade, não me interessa. Só estou interessado é nos lucros!
— Segredo, armas, remessas obscuras. Isso não me agrada nada. Não gosto desses Barbour & Bouchard. São homens maus. Cheiram mal a
léguas de distância. Dez mil fuzis expedidos debaixo do mais profundo segredo. Tudo isso é muito suspeito e creio que posso dizer por quê.
Stuart arrependeu-se, como de costume, de ter falado demais. Disse então:
— Não temos nada com isso. Nossa participação é apenas anunciar, comprar e remeter.
Mas Sam não lhe deu atenção e disse ao padre:
— Não faz nem três semanas que li nos jornais que essa firma recebeu uma encomenda do Governo Federal de vinte e cinco mil fuzis novos,
que devem ser fabricados imediatamente. É evidente que eles não desejam esses dez mil fuzis para o governo dos Estados Unidos. Desejam
todo o segredo e querem que esses fuzis sejam mandados para uma cidade do Sul. Qual é a conclusão que tira de tudo isso, meu caro amigo?
— A evidente, meu caro Sam —, disse o padre, visivelmente aflito. Voltou-se para Stuart e perguntou: — Compreende tudo, não é mesmo, meu
filho?
— Não! — exclamou Stuart violentamente. — Não uso minha imaginação! Aceito o que os outros me dizem e não me ponho a bisbilhotar o que
não é de minha conta!
— Não vê então, meu Stuart? Esses homens não podem envolver-se pessoalmente nisso. Negariam a pé firme qualquer participação no caso
de uma investigação do governo. O perigo será seu juntamente com os lucros. Se você, na hora do perigo, declarar que eles foram os
instigadores e que você recebeu deles uma visita e uma proposta, dirão que só entraram em contato com você como retalhista, para vender os
produtos deles. Têm poder e prestígio e eles é que mereceriam crédito e não você.
Stuart ficou momentaneamente convencido. Mas disse com voz pausada:
— Preciso desse dinheiro. Preciso desses lucros. E vou fazer esse negócio.
— Sou seu sócio —, disse Sam com voz forte. — E não vou concordar com isso.
— Empregarei então meu dinheiro! Tomarei dinheiro emprestado! Sei onde posso tomar dinheiro com facilidade!
O rosto dele estava congestionado e Stuart correu os olhos pelos amigos como se os desafiasse.
— Vai servir de instrumento ao crime, à guerra fratricida? — perguntou severamente o padre.
Stuart sorriu sombriamente para ele. Estava ofegante.
— Não disse que a causa da Abolição era sagrada? Pois estou disposto a ajudar tão nobre causa!
O padre estava muito pálido e disse com os olhos muito sérios:
— Ajudar o Sul a armar-se não é servir a uma causa sagrada.
Sam não era homem de muito falar. Era muito raro que discutisse os negócios das lojas a não ser com Stuart. Mas estava tão alarmado que
não se pôde mais conter. Disse então numa voz que o próprio Stuart nunca tinha ouvido:
— Você fala de sua necessidade de dinheiro, Stuart. Sei que você precisa de dinheiro... nunca deixa de precisar. Você não se conforma em
viver modestamente até conseguir uma fortuna. Você vive imprudentemente dia a dia. Quando os homens são imprudentes, precisam de muito
dinheiro e o conseguem, sofra quem sofrer. Não é a cobiça que o faz desejar isso; é a necessidade. Muito tenho recomendado que economize,
que guarde o seu dinheiro até poder gastá-lo do jeito que lhe agrade. Mas você não me ouve. Os homens são impelidos a coisas reprováveis
pela necessidade, pela extravagância.
— Você está mesmo decidido a fazer isso? — perguntou o Padre Houlihan com grande ansiedade. — Seria para mim intolerável se eu
pensasse que o que você tem feito por mim fez você contrair tantas dívidas que agora é forçado a empenhar-se em atividades reprováveis para
recuperar seus prejuízos.
O irrequieto Stuart se comoveu com essa simples aflição. Apertou a mão do padre e disse, deixando de lado Sam e suas observações
desagradáveis:
— Não se preocupe, Grundy. O que fiz por você me custou muito pouco. Não, preciso de muito dinheiro, preciso sempre! E não vou esperar até
ficar entrevado e murcho como o velho patife que é Allstairs para comprar aquilo que desejo. Pode ser que então eu não deseje mais nada.
Sinceramente, estou em dificuldades. Vejo um meio de ganhar um bom dinheiro. Seria um louco se recusasse. Se eu recusar a proposta,
outros vão agarrá-la. Recusando, terei apenas a consciência limpa e consciência limpa nunca pagou hipotecas, nunca serviu para comprar um
homem ou uma mulher, nunca preparou uma casa e nunca sequer comprou pão.
Sam nada disse. Sacudiu a cabeça de um lado para outro, cheio de tristeza e de medo. Stuart, recuperando o seu bom humor, brincou com ele.
— Posso contar com você para me pagar a fiança e me tirar da prisão, Sam? Na pior das hipóteses, levará ao infeliz prisioneiro uma cesta
com frutas e talvez uma serra e um bom pedaço de corda?
O rosto simpático de Stuart estava muito vermelho. Todos tinham esquecido Angus, que a tudo ouvia cheio de espanto e medo. A Sra. O’Keefe,
sem dar atenção à discussão entre os homens, continuava a encher os copos e tinha dado a Stuart o copo de uísque sempre reclamado por
ele.
Sam e o padre olhavam Stuart em silêncio. Gostavam muito dele e viam-no como uma criança irrefletida e não como uma pessoa
fundamentalmente má. Se ele fosse naturalmente ruim e predatório, não seria amigo deles, nem o prezariam tanto. Julgavam-no um menino
perpétuo, imaturo e violento, que tinha de ser protegido de seus próprios atos impensados.
— Ficarei rezando para que você não faça isso, para bem de sua alma —, disse afinal o Padre Houlihan numa voz cansada.
Stuart deu uma gargalhada.
— Minha alma? Ora, eu não tenho alma. Mas, de qualquer maneira, eu lhe agradeço, Grundy. Se eu sentir alguma coisa dentro do peito,
correrei imediatamente para você a gritar: Eureka!
Foi então que tomou conhecimento da presença de Angus, que o olhava, imerso em angústia.
— Já está pronto, Angus? Daqui a pouco iremos saindo. Já é tarde e sua cara mamãe deve estar preocupada.
— Conversaremos sobre tudo isso, amanhã —, disse Sam.
— Não adianta, Sam. Já aceitei e já comecei a gastar o adiantamento que me deram. Está fechada a transação.
Com esforço e com um rosto triste que tentava sorrir, o Padre Houlihan olhou gentilmente para o pálido Angus.
— Quer então ser médico, meu filho? Por quê?
Angus olhou-o ansiosamente e disse:
— Foi sempre minha vontade... Padre Houlihan. É tão terrível ver os outros sofrerem. Creia que não penso em ganhar dinheiro. Só quero é
ajudar os outros, encontrar cura para as doenças e aliviar a dor.
Stuart deu uma gargalhada zombeteira.
— Não foi você mesmo que há poucos dias tentou convencer-me de que o dinheiro era tudo na vida?
— Se eu não puder ser médico, vou precisar de muito dinheiro,•— disse Angus com simplicidade. — Mas, se eu for médico, não vou precisar
de dinheiro.
Stuart riu ainda mais. Mas o padre olhou para o garoto com grave intensidade e disse:
— Compreendo perfeitamente. Quando um homem não pode ter a sua alma, precisa de dinheiro.
E, nas profundezas de seu coração, fez uma prece.
— Que sofisma danado! — exclamou Stuart. — Palavra que não posso acompanhar o raciocínio do garoto.
Mas o padre pôs a mão firmemente no ombro de Angus e disse a Stuart:
— Muito lhe será perdoado, meu filho, se você proteger este menino e lhe der a oportunidade de ser médico.
— Isso compete à mãe dele, Grundy. E eu tenho a impressão de que ela não me deixará interferir. Além disso, ser médico para quê? Não se
ganha dinheiro com isso. E segundo ele mesmo me disse, o que esse pequeno escocês quer é dinheiro!
Mas o padre insistiu:
— Você vai ajudá-lo, Stuart? Quero que assuma esse compromisso comigo!
— Não me dê mais compromissos! Já tenho compromissos de sobra! Farei o que puder. Mas tudo isso não tem pé nem cabeça.
Apontou para Sam, com quem estava aborrecido, e disse:
— Veja Sam. Economiza todos os centavos. Para quê?
Sam levantou a cabeça e disse, olhando diretamente para ele:
— Você bem sabe que eu desejo comprar a Ilha do Rio para meu povo, Stuart. Sempre acreditei que a América foi a Terra da Promissão que
Moisés viu do alto da montanha, para todos os homens sofredores, perseguidos e oprimidos. Creio que ele a viu através dos oceanos e
através do tempo. Trago esse sonho dentro do meu coração, Stuart, e tenho de fazer tudo para torná-lo realidade.
Stuart riu, talvez um pouco alto demais.
— E aqui estamos nós três! Você, Sam, é dedicado a seu sonho, Grundy a seu Deus e eu, a minha casa. No fundo, vem tudo dar no mesmo!
— Deus abençoou esta terra —, disse Sam. — É maior do que qualquer outra terra, pois tem o seu sonho. Nada pode destruir um homem ou
uma nação quando há um sonho.
Stuart sorriu contrafeito. O Padre Houlihan sorriu com apaixonada ternura. Angus escutara, com o coração a bater da maneira mais estranha.
CAPÍTULO 23
Stuart olhou sombriamente para Joshua Allstairs. O coração dele estava atacado de uma fria raiva.
— Que é que quer mais? — perguntou com voz contida. — Já lhe paguei seus dez mil dólares. Tenho um contrato que me renderá no mínimo
trinta mil dólares, pelo qual já recebi substancial adiantamento.
“Minhas lojas estão em situação próspera. Tenho planos de expansão que começarei a executar neste verão. Dentro em breve, dominarei todo
o comércio retalhista em Grandeville. Dentro de alguns meses, um ramal da estrada de ferro chegará a esta cidade. Quando isso acontecer,
poderei fazer as compras com mais rapidez e ampliar o campo de meus negócios. Não há nada que me possa deter. Tenho a melhor casa de
Grandeville, de que a Srta. Marvina terá orgulho em ser a dona. Terei uma boa fortuna no mais breve tempo possível.
Joshua sorriu. Aquilo lhe era imensamente agradável. Juntou as pontas dos dedos descarnados e olhou Stuart com perversa benignidade.
— Meus antecedentes —, continuou Stuart —, são no mínimo tão bons quanto os seus. Já conhece minha prima, a Sra. Cauder, que é uma
senhora de fortuna. Ouviu dela mesma a história de alguns de nossos parentes, como Lady Vere de Vere e Sir Angus Fraser. Há nomes assim
em sua árvore genealógica? Que mais quer?
Joshua deu um suspiro, mas continuou a sorrir sob o seu nariz de abutre.
— Stuart —, disse ele com fingida suavidade —, ainda que você pertencesse à Casa Real da Inglaterra, ainda que fosse milionário, eu
continuaria a negar a mão de minha filha a um irlandês vagabundo.
“E você é um vagabundo, meu caro Stuart, e sabe muito bem disso. Você não tem fé, nem religião. Você é ímpio e blasfemo. Deus é uma
palavra que nada representa para você. É também um bêbedo e um homem que aprecia a companhia de meretrizes. Seus maiores amigos
são um judeu e um padre negro. Você não é aceito na melhor sociedade por esses e muitos outros motivos. Você não é nem honesto. Tenho
conhecimento de muitas das suas transações. Você não tem escrúpulos...
Stuart esqueceu que era um suplicante e que era de seu interesse aplacar aquele sujo patife. Levantou-se impetuosamente e exclamou:
— E você é um dono de tavernas, dono de bordéis, usurário, explorador e ladrão! É assim que ganha o seu imundo dinheiro e mais de fábricas
de bebidas, que diz hipocritamente detestar! Você rouba os miseráveis escravos que fogem para o Canadá! Você tem financiado as coisas
mais nefandas! Tenho feito algumas coisas sujas, não nego, mas nunca explorei o corpo de uma mulher, nunca roubei um escravo faminto e
nunca explorei a miséria de fazendeiros arruinados!
“Você é um canalha imundo! — continuou a gritar, enquanto Joshua se encolhia na sua cadeira. — Canalha desprezível e monstruoso!
Explorador de mulheres e de bêbedos! E tem a audácia de me censurar com essa cara de santo como se suas mãos fossem limpas e o seu
corpo entrevado estivesse puro como a neve!
— Você é mesmo um irlandês desprezível! — disse Joshua com a mão no cordão da campainha e o rosto mortalmente pálido. Vem-me insultar
dentro de minha casa só porque recuso a mão de minha filha! Saia, saia antes que eu chame a polícia!
Mas Stuart estava exaltado demais para ligar a isso. Continuou diante de Joshua com os punhos cerrados e os olhos esbugalhados.
— Não há ninguém nesta cidade que não saiba de todas as suas sujeiras e não o odeie por isso! Você é uma abominação! Chamou-me de
blasfemo. Mas toda a palavra que lhe sai da boca é uma blasfêmia, patife hipócrita!
“Escute aqui, se eu fosse menos homem do que sou e mais parecido com você, trataria de seduzir sua filha em vez de vir procurá-lo
decentemente e pedir-lhe a mão. E ainda não sei se não é isso o que vou fazer para lhe servir de lição, seu porco! Acha que sinto muita alegria
quando penso que meus filhos podem sair como você, com seu sangue nas veias? Ou que uma filha minha seja uma vagabunda, com a alma
igual à sua?
Joshua puxou a corda da campainha com tanta violência que ela se partiu em suas mãos. Mas o mordomo, um homem alto e magro com um
sorriso servil, apareceu à porta. Joshua o viu com alívio, pois tremia dos pés à cabeça.
— Mostre a esse cachorro a porta da rua! E nunca mais o deixe entrar aqui!
Stuart deu uma gargalhada feroz.
— Entrar aqui, neste antro de um ladrão? Nesta antecâmara dos bordéis? Neste poço de serpentes de um usurário? Mas não pense que está
tudo encerrado entre nós! Ainda temos contas a ajustar!
Fortalecido pela presença do mordomo e pelo seu ódio, Joshua gritou:
— Ainda nos veremos nos tribunais, quando eu requerer a sua falência, cachorro!
Stuart se acalmou de repente. A raiva desapareceu, deixando-o apenas com o riso e o desprezo.
— Isso é mais fácil de dizer do que de fazer, por mais ladrão que você seja. Ainda há juízes neste país. A história ainda não está acabada. Isto
é apenas um capítulo.
Olhou para Joshua como se ele fosse uma obscenidade intolerável e saiu num repelão, arrogante e exultante com a sua mocidade, a sua saúde
e o seu desprezo. A raiva o embriagava como se fosse uísque. Nunca se sentira tão enérgico e invulnerável. O mordomo, ainda com um sorriso
profissional, acompanhou-o até ao hall espectral, iluminado por uma luz pálida, O homem deu a Stuart o chapéu, a bengala e as luvas, fazendo
uma reverência constrangida.
Havia alguma coisa na maneira de ser do homem que fez Stuart parar e olhá-lo atentamente. Estava mais calmo, embora suas emoções ainda
estivessem exacerbadas. Lembrou-se de que os ladrões são sempre dedicados aos seus patrões muito mais do que um homem decente
poderia ser a um patrão honesto. Aquele mordomo estava sem dúvida dentro da tradição. Entretanto, desde que nada tinha a perder, Stuart
resolveu ver se conseguia transpor as defesas do homem.
Olhou rapidamente para a porta da sala onde ficara Joshua. Voltou-se então para o mordomo que continuava a olhá-lo com o seu sorriso
permanente. Os seus olhos, encarando os de Stuart, exprimiam um vigilante interesse. Embora o julgasse detestável, Stuart se aproximou dele
e disse em voz baixa:
— Estou todas as noites em casa às dez horas até o fim desta semana.
O homem nada disse. Cumprimentou de novo e abriu a porta. Stuart saiu para o ar frio da manhã de maio e olhou para trás. A porta fora
prontamente fechada.
Nesse momento, a sua segurança desapareceu de súbito. Saiu pela rua no seu passo firme habitual, mas estava mais calmo. Os vapores da
cólera e do triunfo começaram a abandoná-lo. Havia anos que ele desejava dizer umas coisas a Joshua Allstairs. O ódio que lhe tinha era como
um veneno em seu sangue. Aquilo tinha sido uma libertação. Entretanto, sentia-se consideravelmente deprimido.
Refletiu, porém, que, se tivesse continuado a tratar Joshua com todo o respeito e deferência, ganharia com isso apenas novos insultos untuosos
e benignos. De qualquer maneira, o velho não lhe teria cedido a filha. As respeitosas importunações de Stuart, as suas súplicas contidas só
serviriam para provocar a malignidade do velho, que se regozijaria com as humilhações impostas. Sendo assim, Stuart nada perdera e livrara o
organismo de uma considerável carga de veneno.
A sua depressão era muito grande. Mas a efervescência natural de seu espírito não o deixaria ainda dessa vez cair muito. Dirigiu-se para as
lojas e ao tempo em que lá chegou sorria de novo e cumprimentava as senhoras com o máximo de deferência e afabilidade. As freguesas
adoravam-no, condescendiam em tudo com ele e até as mais velhas olhavam-lhe os ombros largos e a cintura delgada com pensativo
enternecimento.
Mas Sam Berkowitz, sutil e sensível como sempre, logo percebeu que havia alguma coisa fora dos eixos em Stuart apesar das suas conversas
e amabilidades com as freguesas. Stuart costumava dizer que não podia guardar segredos do amigo, que devia ser um feiticeiro e saber tudo
por artes mágicas. De qualquer maneira, Sam observou atentamente Stuart e, ao fim de algum tempo, ficou mais tranquilizado. Não era
dinheiro evidentemente dessa vez. Quando precisava de dinheiro ou estava em dificuldades financeiras depois de alguma terrível
extravagância, Stuart ficava com uma expressão irritadiça e preocupada e se mostrava apressado, um tanto brusco e confuso. Naquele dia,
não estava mostrando nenhum desses sintomas. Apesar disso, parecia estar pensando profundamente. Estava inquieto e franzia os lábios de
maneira muito significativa. Estava fazendo planos sem dúvida, pensou Sam, mais ou menos tranquilizado. Mas, se não era dinheiro, que podia
ser?
Não sendo dinheiro, só podia ser mulher. Só dinheiro e mulheres podiam desviar a atenção de Stuart de suas amadas lojas. De repente, Sam
compreendeu. Stuart devia ter ido pedir a mão de Marvina Allstairs em casamento e fora recusado. A tranquilidade de Sam aumentou
notavelmente. Tinha sido uma boa coisa, uma coisa muito boa, graças a Deus!
Às cinco horas daquela tarde, Janie apareceu luxuosamente vestida e na melhor carruagem de Stuart. Entrou majestosamente na loja principal,
toda vestida em veludo lilás e em arminho. Ao vê-la, o rosto de Stuart ficou vermelho, mas ele se aproximou gentilmente e conduziu a prima a
uma cadeira vazia. As poucas senhoras que estavam naquela ocasião na loja cumprimentaram com a cabeça a viúva e lhe sorriram. Até então,
Janie tinha sido um grande sucesso social e conseguira as boas graças até das pessoas para quem Stuart não era favorito e que só com
relutância o aceitavam. A meiguice, a amabilidade de Janie, sua proclamada gratidão pela bondade dos novos amigos que vinha encontrar em
“terra estranha”, a sua admiração por tudo, a sua conversa fascinante e a sua cuidadosa dicção tinham impressionado a todos muito
favoravelmente. Além disso, era evidente que ela era uma senhora rica, dona de joias notáveis e com o mais elegante ar europeu.
Sam tinha ido para o escritório dos fundos da loja a fim de começar a fazer a escrita do dia. Ficou surpreso quando viu Stuart entrar de repente,
fechar a porta e dizer no maior nervosismo:
— Escute aqui, você tem de ir até a loja e me dizer diante de Janie que eu não me posso esquecer de nosso jantar desta noite.
— Mas nós não vamos jantar juntos —, disse Sam.
— Quem foi que disse que vamos? Mas não estou com nenhuma disposição de jantar sozinho com Janie esta noite. Se jantar, ela vai querer
complemento e eu estou num estado que não posso tolerar isso. Sua mãe poderá preparar alguma coisa para mim, se eu aparecer por lá. Se
você achar que não, irei para alguma taverna.
— Compreendo —, murmurou Sam, pensativamente.
Era uma coisa triste Stuart viver sempre envolvido com mulheres. Sam ainda se lembrava de uma senhora casada de pouco juízo que durante
vários meses aparecera na loja todos os dias só para ver Stuart e das cenas aflitivas que tinha havido a portas fechadas ali naquele mesmo
escritório.
Stuart saiu do escritório para atender as freguesas que rareavam pois já se ia aproximando a hora do jantar. Janie o esperava calmamente,
cheia de modéstia e compostura. Ele quase não olhava para ela e desenvolvia toda a sua gentileza junto às freguesas retardatárias. Janie
sorria e de vez em quando mordia os lábios para avivar-lhes a cor. A porta do escritório permanecia fechada, embora Stuart com frequência
lançasse para lá olhares furiosos. A última freguesa se preparava para sair. Os caixeiros dobravam as peças de seda e veludo e conversavam,
descansando de um dia de árduo trabalho.
Stuart levou a última senhora até à carruagem e ainda se demorou um pouco em conversa com ela ao mesmo tempo que a sua cólera
aumentava. Que era que Sam estava esperando? Afinal, não teve outro recurso senão voltar para a loja e dizer a Janie:
— Bem, vamos indo, meu amor?
Janie se levantou, sorrindo gentilmente. Foi exatamente nesse momento exasperante que Sam abriu a porta do escritório e entrou na loja.
Stuart olhou-o, tranquilizado. Sam aparentou surpresa diante da presença de Janie e cumprimentou-a:
— Boa tarde, Sra. Cauder.
— Boa tarde, Sr. Berkowitz —, disse Janie de maneira um tanto reservada, mas polida. Em seguida, pôs a mão no braço de Stuart. — Já está
ficando tarde, querido. Vamos?
Sam tossiu nervosamente. Fingiu olhar para Stuart todo confuso, mas a sua perplexidade era sincera. Disse então em voz baixa e hesitante:
— Mas, Stuart, você não combinou ir jantar hoje lá em casa para discutirmos alguns assuntos financeiros urgentes?
— É verdade! — exclamou Stuart. — Mas não podemos deixar isso para amanhã à noite? Janie veio-me buscar e eu tinha alguma coisa em
vista para esta noite.
Sam, pouco habituado a essas manobras, ficou calado, sem saber o que devia fazer. Mas Stuart piscou o olho significativamente e ele sacudiu
a cabeça, tristemente, dizendo:
— Infelizmente, não... Os contadores dos bancos estarão aqui amanhã e esses casos terão de estar resolvidos.
— É o diabo, mas que é que se vai fazer? — exclamou Stuart. Voltou-se para Janie e tomou-lhe a mão. — Está vendo como é minha vida, meu
amor? Negócios, sempre negócios. E Sam então não me dá um momento de folga. Mas é claro que ele está certo.
Janie olhou com ódio para Sam e este ficou ainda mais confuso. Murmurou alguma coisa ininteligível e fez um movimento expressivo com as
mãos. Tinha medo de Janie, como tinha medo de todas as pessoas cruéis e sem coração.
— Parece que nada se pode fazer —, disse Janie com rudeza. — Mas não posso deixar de deplorar, Stuart, que você esteja sempre à
disposição de coisas ou pessoas insensíveis.
Stuart ficou vermelho e olhou receosamente para Sam, mas este não esboçou a menor reação.
— Senhora —, disse Stuart, todo formalizado —, há coisas que as mulheres não podem compreender. Posso levá-la até sua carruagem?
Levou Janie com toda a cerimônia até a rua. O céu crepuscular de maio ainda guardava as últimas claridades do sol. O ar frio do Norte corria
pelas ruas como uma parede de água fresca. Stuart ajudou Janie a subir na carruagem. Ela estava furiosa e decepcionada. Mas conseguiu dar
a Stuart um sorriso sedutor e lânguido, ao mesmo tempo que lhe perguntava num sussurro:
— Volta cedo?
— Se puder —, respondeu ele, também num sussurro e com um sorriso.
Ficou olhando a carruagem que se afastava pela rua calçada. Janie lhe acenou com o lenço e ele deu adeus em resposta.
Estava bem aborrecido quando voltou para a loja. Já estava cansado de Janie e de seus jeitos experientes, havendo nele uma decência
fundamental que se revoltava. Bateu a porta com raiva. Os caixeiros já tinham saído. Sam estava esperando e Stuart pôde sentir-lhe nos olhos
uma censura muda, mas firme.
— Pensei que nunca mais ia ver-me livre dela —, exclamou Stuart, colocando uma cadeira no lugar. — Não sei como é que me meto em tão
horríveis confusões! Que é que eu faço para isso? Nada! Eu lhe juro, Sam, nada. Mas as mulheres vivem em volta de mim sem me dar um
minuto de descanso!
Sam sorriu.
— Você vai-se casar com a Sra. Cauder, Stuart?
Ante essa revoltante sugestão, Stuart esqueceu o seu embaraço e deu uma estrondosa gargalhada.
— Casar-me com ela? Pelo amor de Deus, Sam! Acha que sou um idiota? Já lhe dei algum dia a impressão de ser um imbecil?
— Já, sim.
Stuart olhou-o espantado e Sam continuou a falar com a mesma firmeza:
— Nos seus casos com as mulheres, meu Stuart, você não exibe o menor sinal de inteligência. E não aprende. Todo o homem está sujeito a
perder a cabeça, mas um homem inteligente não perde a cabeça mais de uma vez. Era preciso perder a cabeça com essa Sra. Cauder em
sua casa?
Stuart ficou muito vermelho. Mas acabou rindo e murmurou:
— Até que não foi tão mal assim perder a cabeça. Mas uma vez chega e sobra. O mal com as mulheres é esse. Para elas, nunca chega.
Recebem os botões de rosa, mas insistem em guardá-los até que ficam murchos e então não perdem ocasião de jogá-los na cara dos homens.
Não quero saber mais delas.
Sam disse com um suspiro:
— Você prometeu ao Padre Houlihan olhar favoravelmente para a sobrinha dele. O casamento pode ser uma boa coisa para você, meu amigo.
— Acho que tem razão, Sam —, disse Stuart, consultando o relógio. — Vamos, Sam? Muito obrigado por ter-me livrado desta vez.
— Está bem. Mas vou ter agora de convidá-lo para jantar todas as noites?
— Quem sabe? Que era que eu faria sem você, Sam?
— Já se esqueceu de que a Sra. Cauder é agora nossa sócia? Essas cenas podem repetir-se.
— Ora, o futuro que dê seu jeito. Enquanto isso, tenho o que fazer. Vamos?
Assobiava alegremente enquanto saía da loja e fechava as portas. Sam sentiu-se de repente cheio de inquietação.
CAPÍTULO 24
Naquela noite, às nove e meia, Stuart entrou furtivamente em casa. Era horrível chegar assim à sua querida casa como se não tivesse o direito
de ali estar e tudo isso por culpa de uma sujeita de lascivos olhos verdes. Subiu as escadas na ponta dos pés e espiou para o corredor. A porta
de Janie estava entreaberta. Era uma simples fresta, mas havia luz no quarto. Praguejou contra ela em silêncio, voltou e chamou um criado.
— Pode ser que alguém me procure esta noite. Quero que vá ficar à porta e espere até dez e meia no mínimo. Não quero que a campainha da
porta seja tocada. É um assunto muito importante e muito reservado.
O criado suspeitou imediatamente que se tratasse de uma mulher, o que não era um caso excepcional. Assentiu em silêncio e saiu, rindo
sozinho no corredor.
Stuart arrependeu-se do que tinha feito. Não devia ter sugerido que o mordomo de Allstairs fosse a sua casa. Janie iria na certa bisbilhotar se
ouvisse vozes. Nunca penso nas coisas, foi a sua conclusão. Dirigiu-se ao grande vestíbulo branco, onde o criado já estava à espera.
— É um homem que estou esperando. Se vier, leve-o para a varanda onde vou esperá-lo.
Afastou-se e tornou a arrepender-se do que tinha feito. Os criados da cidade conheciam-se decerto muito bem. Em breve, espalhar-se-ia o
boato de que o mordomo do Sr. Allstairs fizera uma visita secreta ao Sr. Coleman. Nada restava a fazer senão agir depressa.
A varanda estava deserta e fria. Stuart sentou-se e olhou para o seu relógio. Quinze minutos para as dez. Cruzou os braços e franziu a testa.
Teve a certeza de que o homem não ia aparecer naquela noite, nem em qualquer outra. Fora um louco em pensar o contrário. Cruzou as
pernas.
Sentia-se terrivelmente deprimido. Havia sem dúvida outras maneiras pelas quais poderia aproximar-se de Marvina. Mas dentro de uma
semana ou talvez menos ela teria partido de Grandeville. O desespero que sentia subiu a um alto grau. Seria então frustrado? Nunca! Nunca
fora frustrado em coisa alguma na vida e não ia começar naquela ocasião.
Ouviu passos leves nos tapetes do corredor. O coração começou a bater apressadamente. O criado entrou em companhia do mordomo de
Allstairs, alto e magro, com o chapéu apertado com as duas mãos de encontro ao peito, e a calva brilhando à luz das velas. Sorrindo
respeitosamente, cumprimentou Stuart, que dispensou o criado. Olhou demoradamente o mordomo.
Que abutre era ele, digno servo de tal patrão. O rosto cadavérico era comprido, sumido e lívido, com um nariz de ave de rapina e olhos que
ardiam de cobiça.
— Como se chama? — perguntou Stuart com condescendência.
— Grimshaw, às suas ordens, meu chefe.
— Excelente. Pode sentar-se, Grimshaw.
Grimshaw sentou-se na beira de uma cadeira forrada de damasco rosa, com o chapéu nos joelhos. A sua atitude era de inteira humildade.
— Deve estar curioso em saber por que o convidei para vir até aqui —, disse Stuart.
— Bem, pensei que talvez quisesse fazer alguma mudança.
— Isso não —, murmurou Stuart com um sorriso. — Estou satisfeito com o meu pessoal. Estou pensando é em coisa mais importante,
Grimshaw. É uma coisa que seria de extrema vantagem para você, além de meros ordenados.
— É mesmo, senhor? Quanta bondade sua —, murmurou o homem sem que o seu rosto expressasse coisa alguma além de respeitosa
surpresa.
Que diabo, pensou Stuart, você sabe muito bem o que veio fazer aqui. Mas sorriu com condescendência e continuou:
— Acha que mil dólares lhe fariam um bom arranjo, Grimshaw?
— Mil dólares? — exclamou o homem, visivelmente abalado. Mas logo sacudiu a cabeça. — Não, não é bastante.
Stuart olhou para ele, empalidecendo, e perguntou em voz baixa:
— Sabe então por que lhe pedi que viesse até aqui?
— De certo modo, sei. Mas vale mais de mil dólares. Posso perder meu emprego e jamais conseguirei outra colocação em Grandeville se a
coisa vier a ser sabida. Cada um tem de pensar no seu futuro.
Stuart sentiu-se tomado de ódio e de raiva, mas disse impetuosamente:
— Garanto que protegerei os seus interesses. Nada se saberá por meu intermédio. Ninguém jamais saberá.
O mordomo deu um suspiro e disse:
— Mas o Sr. Allstairs é um homem muito esperto. Nada lhe passa despercebido. Ele vai juntar os fatos. Com sua licença por falar assim, mas é
um homem muito perigoso. Terei de sair imediatamente de Grandeville para fugir à raiva dele. Deve compreender, portanto, que mil dólares
não serão suficientes. Tenho pensado muito em abrir uma pequena loja numa cidade muito distante daqui.
Que cachorro imundo, pensou Stuart, com essas insinuações a respeito de uma loja. Foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que fez um
bolo subir à garganta de Stuart e seus punhos se cerrarem. Mas havia tanta coisa em jogo que não podia abandonar-se a uma explosão. Disse
então:
— Está bem. Ofereço-lhe mil e duzentos dólares.
O homem suspirou tristemente e fez menção de levantar-se para sair.
— Quanto então, com mil diabos? — perguntou Stuart, muito vermelho.
— Três mil dólares, meu chefe.
Stuart levantou-se de um salto, inteiramente desorientado.
— Três mil dólares! Mas você é um patife consumado, um cachorro sem vergonha!
O homem se levantou rapidamente e deu um passo atrás. Tinha o rosto deformado pelo medo. Olhou para o encolerizado Stuart e recuou mais
um pouco.
— Posso retirar-me?
— Sim, pode! — gritou Stuart. — Saia logo de minha casa antes que eu o leve a pontapés até à casa daquele demônio!
O homem recuou ainda mais. Mas era astuto. Quando se viu protegido pela porta, murmurou num tom confidencial:
— A Srta. Marvina está bem protegida, chefe. Nunca mais a verá. Será daqui por diante ainda mais guardada.
Stuart, que já ia avançar sobre ele, estacou. Tudo estava perdido. Estendeu a mão à procura de uma cadeira e deixou-se cair nela. Olhou para
Grimshaw e disse com voz abafada:
— Sente-se.
O homem, sem tirar os olhos de cima dele, procurou também uma cadeira e sentou-se na borda.
Mesmo com o sangue a correr-lhe impetuosamente pelas veias, Stuart sentiu que o cérebro começava a funcionar. Onde iria arranjar três mil
dólares no momento? O saldo de sua conta era menos que isso. Teria de pedir um empréstimo a Sam para fazer os pagamentos relativos aos
dez mil dólares que tomara das lojas. Mas pensou nessas coisas muito rapidamente. Meteu a mão no bolso e tirou um maço de notas. Contou
quinhentos dólares com os dedos trêmulos. Jogou as notas para Grimshaw, que se abaixou avidamente e apanhou-as. Contou o dinheiro,
fazendo estalos com a língua. Depois, dobrou as notas e guardou-as no bolso do casaco.
— Quinhentos dólares... — murmurou ele.
— Receberá mais cem dólares toda a vez que me trouxer um bilhete escrito com a letra da Srta. Marvina, que eu conheço muito bem. E no dia
em que a Srta. Marvina sair de casa para se casar comigo, receberá o resto.
O homem ficou alguns minutos em silêncio. Depois, deu um suspiro e sorriu.
— Pode dar-me promissórias assinadas e um contrato nesse sentido, senhor? Amanhã.
Stuart sentiu uma onda de náuseas. O homem coçou o queixo pensativamente.
— Se me permite dizer-lhe isso, a moça chora todas as noites em seu quarto. Sei disso por intermédio da criada de quarto. Está sofrendo por
sua causa.
Stuart nada disse. Franziu o rosto, mas escutou.
— Eu não sugeriria coisa alguma e diria que não havia esperança, se não tivesse conhecimento dos sentimentos da moça. Mas eu a ouvi dizer,
banhada em lágrimas, a seu respeitado pai que só se casaria com o senhor e com ninguém mais. Ouvi tudo. Com a minha ajuda, o senhor não
pode falhar.
Stuart continuou calado e o homem prosseguiu:
— Conheço um pequeno ministro em La Grange que poderá fazer o casamento com a maior facilidade.
— Estará presente para me servir de testemunha?
— Sem dúvida alguma. Deixarei o serviço do Sr. Allstairs nesse mesmo dia.
— Quando aparecer com a Srta. Marvina, eu lhe darei o resto. Um acordo nesse sentido lhe será entregue amanhã.
Olhou para Grimshaw carrancudamente e acrescentou:
— Não sonhe sequer em me enganar. Se você falhar ou me enganar, não encontrará lugar onde possa esconder-se de mim. Isso eu juro, está
compreendendo?
Foi mais tarde para o seu quarto com as botinas na mão. Ainda havia luz no quarto de Janie. Ouviu o folhear das páginas de um livro. Quando
afinal entrou em seu quarto e fechou a porta, viu que estava tremendo.
CAPÍTULO 25
O ar cortante do começo da noite do norte soprava fortemente através das ruas de Grandeville, derramando-se do lago e do rio. Luzes
amarelas brilhavam nas casas compactas. Os lampiões da rua ardiam vivamente. Havia ainda uma ponta de frio à noite, embora já fosse maio,
as estrelas cintilavam e a lua crescente singrava majestosamente o céu. As ruas estavam cheias de silêncio e de paz.
As rodas de uma carruagem ressoaram no silêncio e as ferraduras dos cavalos tiraram faíscas das pedras da calçada. A carruagem desceu a
encosta que dava para o rio e se dirigiu para a casa de Stuart. Parou diante da porta da frente e Stuart desceu, estendendo a mão para uma
senhora que vinha na carruagem. Ela se apoiou na mão e desceu. Era alta e esbelta, tinha uma capa pesada e usava um chapéu com um
espesso véu. Segurando-lhe ainda a mão, Stuart foi até à porta e tocou a campainha. A carruagem rolou para as cocheiras.
O dia tinha sido febril e agitado. Stuart estava exausto e muito nervoso. Não era homem para meditar muito sobre o futuro, por mais imediato
que fosse. Deixara o mau momento para quando se verificasse e o mau momento era chegado. Dentro de poucos segundos, estaria dentro de
sua casa e teria de enfrentar Janie com sua nova esposa.
A moça ao lado dele estava muito calma e dócil. Desde a hora do casamento naquela tarde, pouco havia falado, limitando-se a sorrir doce e
placidamente com a mão na de Stuart. Ele estava muito satisfeito com isso. No seu encantamento por ela, julgava que essa serenidade era
força e sabedoria e desejava corresponder à opinião que ela fazia dele e era sem dúvida excelente. Ainda não sabia que ela não tinha opinião
de qualquer espécie.
O que tinha de fazer, pensou ele enquanto esperava que abrissem a porta, era consumar sem demora o casamento. Uma filha que não era
mais virgem não valia a pena salvar. Só no caso de poder essa filha ser retirada do leito nupcial com sua virgindade intacta era que a
expedição teria algum sentido. Stuart resolveu excluir essa possibilidade com a maior rapidez. O pensamento lhe era muito agradável. Voltou-
se para a moça com um sorriso e seus olhos pretos brilharam na escuridão. Ela lhe retribuiu o olhar com serena satisfação.
A porta se abriu e seu empregado apareceu. Quando viu a moça, não pôde dissimular o seu espanto, pois tinha visto muitas vezes Marvina
Allstairs na rua. O homem se afastou e Marvina e Stuart entraram. Ela se movia como um sonho de beleza, cheia de flutuante graça e com os
olhos fulvos cintilantes. Esperou como uma estátua perfeita a próxima ordem de seu senhor, seu Pigmaleão, com as mãos enluvadas cruzadas
à frente do corpo. Stuart tirou-lhe gentilmente. a capa. Ela lhe deu o chapéu. Ele a tomou pela mão e levou-a para a magnífica sala de estar e
chamou o empregado, que os seguia todo confuso.
— Briggs —, disse Stuart num tom de autoridade —, essa é sua nova patroa, a Sra. Coleman.
Numa voz mais alta e mais displicente, acrescentou:
— A Sra. Cauder está em casa? Tenha a bondade de apresentar-lhe meus cumprimentos e de dizer-lhe que estou pedindo que venha ficar
alguns momentos comigo na sala de estar. E mais uma coisa, Briggs. Não lhe diga nada desta surpresa.
Voltou-se então para Marvina.
— Quer-se sentar perto do fogo, meu amor? A noite está bem fria.
— Sim, Stuart —, murmurou ela, sentando-se num farfalhar de sedas. Os cabelos negros lhe brilhavam à luz da lareira. No rosto de marfim e nos
olhos dourados não havia qualquer expressão. Até quando sorria, o sorriso era vazio. Obedecia apenas. Se ele lhe dissesse que se levantasse
e começasse a dançar, ela faria isso mesmo com calma e sem surpresa. A boca, semelhante a uma ameixa madura, produzia sorrisos
automaticamente.
Era muito bom ter uma esposa calada, pensou Stuart distraidamente. Seria horrível ter em casa uma dessas mulheres que falam sem parar.
Mas não era realmente nisso que estava pensando ativamente. Prestava atenção aos passos de Janie nas escadas. Qual seria a reação de
Janie? Podia fazer uma ideia e era isso que lhe dava aquele desagradável arrepio na raiz dos cabelos e um amolecimento na espinha. Rezou
aos seus deuses profanos para que ela mostrasse ao menos alguns resquícios de comportamento civilizado. Não queria que aquela inocente
criança ficasse apavorada, aquela moça de dezoito anos que, embora tivesse idade legal, tinha vivido como emparedada. Não queria que seus
ouvidos virginais fossem manchados pelas blasfêmias da grosseira e vulgar Janie, que sabia ser realmente suja quando se enfurecia.
Ouviu a porta do quarto de Janie se abrir e os seus passos leves no andar de cima. Levantou-se e ficou ao lado de sua esposa, com a mão no
ombro dela.
— Meu amor —, disse ele apressadamente, encarando o brilho dourado de seus olhos obedientes —, minha prima Janie é às vezes um pouco
esquisita, como já lhe disse. Não vai ficar alarmada com ela?
— Oh, não —, disse ela suavemente. E, de maneira muito estranha, os olhos dela se encheram de um brilho que ele nunca tinha visto. — Não
sei se sabe, Stuart, mas já conheço a Sra. Cauder e a acho muito educada.
“Muito educada”, pensou Stuart, sentindo quase vontade de rir. Ela ainda não sabia o que eram furacões, tempestades e feras soltas.
Mas Janie estava entrando, vestida de foulard branco enfeitado de amores-perfeitos, com os ombros nus cobertos por um xale de renda branca
sobre o qual iam cair os cachos ruivos laboriosamente arrumados. Entrou na sala com um passo rápido, estuante de vitalidade e alegria,
exclamando:
— Por onde andou, Stuart? Deixou seu jantar ficar esfriando, seu cachorro!
Parou de repente, como que petrificada, e olhou para Marvina. O rosto pequeno e estreito ficou muito pálido e as sardas do nariz grande quase
pularam.
Marvina, com um vestido de seda marrom e gola de renda branca, levantou-se num movimento majestoso, sorriu e esperou. Nada poderia ser
mais decente e sereno. O mau momento havia chegado. Stuart estava banhado de suor, embora estivesse sorrindo.
Avançou um passo ou dois, colocando-se involuntariamente entre a mulher e a prima. Tentou falar, mas a garganta seca não lhe permitiu
articular som algum. Quanto a Janie, continuava petrificada, com o rosto contorcido, irado e malévolo como o pecado. Os ombros se
encurvaram um pouco, como se fosse pular. Quando Stuart, angustiado, pigarreou, ela se voltou para ele, com os olhos cheios de ferocidade.
— Então? Que é que está acontecendo aqui?
Num tremendo esforço, Stuart encontrou a voz e começou a dizer:
— Como se atreve a falar nesse tom, como se eu não estivesse dentro de minha casa?
— Vá para o diabo, Stuart! — exclamou ela com selvagem desprezo. — Pare com essa tolice e me diga o que é que esta sujeitinha está
fazendo nesta casa, nesta casa que você praticamente me prometeu que seria minha!
Bateu os pés. A sua voz subiu a um grito estridente de raiva. Compreendia tudo. Uma moça como Marvina nunca entraria naquela casa sozinha
se o incrível, o impossível, o terrível não tivesse acontecido.
— Por que traz suas mulheres para esta casa, Stuart Coleman? Sempre julguei que o teto sob o qual se abrigaram meus indefesos filhos fosse
respeitável e sagrado!
Stuart ficou de certo modo satisfeito com essa explosão feroz. Isso lhe dava a oportunidade de reagir no mesmo tom, com rudeza semelhante.
Tivera naquela tarde uma visão desagradável de Janie desmaiada, de Janie em agonia, de Janie em lágrimas. Talvez assim ele não a pudesse
enfrentar com êxito. Tudo teria degenerado num impasse terrível. Mas uma Janie furiosa, que gritava e insultava era mais fácil de enfrentar pois
não havia necessidade de piedade, de escrúpulos ou de remorsos.
Disse então em voz enérgica:
— Veja como fala! Esta é minha esposa, a dona desta casa e eu exijo que seja tratada com a delicadeza e a cortesia que merece!
— Sua esposa? — murmurou ela em voz baixa e talvez mais terrível ainda. — Essa criatura é sua esposa?
— Sim, senhora, minha esposa. Casamo-nos esta tarde em La Grange, um lugar a cerca de três léguas daqui. Pode parecer-lhe uma surpresa,
mas há muito que estamos planejando isso.
Olhou receoso para Marvina e ficou espantado. Não estava de modo algum perturbada. O sorriso fixo não se havia dissipado. Podia estar
sozinha naquela sala, de tão alheia e desprendida que parecia. Olhava Janie com os olhos arregalados e vazios de uma criança que ainda não
aprendeu a ter muitas emoções. Era evidente que não estava horrorizada, nem amedrontada.
No súbito intervalo que se seguiu às palavras de Stuart, Marvina disse com a sua voz rica e tranquila, ao mesmo tempo que fazia uma cortesia:
— Boa noite, senhora.
Stuart e Janie olharam para ela, com os rostos incrédulos vazios de qualquer expressão. Aquela atitude depois de toda a agitação, de todos os
gritos e de todas as ameaças!
Stuart começou então a rir, sem poder controlar-se. Riu até que as lágrimas lhe chegaram aos olhos. Olhou então para o rosto sereno de
Marvina, que nem com o seu riso se surpreendia, e para o rosto espantado de Janie e entregou-se a novo paroxismo de riso. Por fim,
conseguiu conter-se, sem olhar para as duas mulheres.
Janie recobrou-se do seu espanto, mas ficou em silêncio. Sabia que qualquer palavra que dissesse naquele momento lançaria Stuart em novo
acesso de hilaridade, fazendo-a parecer mais ridícula. Virou-se então para Marvina, que a olhava com o mesmo sorriso, como se nada tivesse
acontecido e aquela situação fosse a mais normal possível.
— Então —, disse ela com uma voz carregada de vitríolo —, casou-se com meu primo, não foi, vagabunda?
Se ela esperava provocar Marvina e quebrar aquela calma sorridente e impassível, estava muito enganada. Marvina sorriu ainda mais
radiantemente e de novo com aquele estranho brilho nos olhos.
— É verdade —, disse ela. — O casamento foi hoje à tarde. O querido Stuart foi um pouco precipitado, não acha? Devíamos tê-la convidado e
eu disse isso mesmo a Stuart, mas ele foi contrário, dizendo que estava indisposta. — O sorriso foi ainda mais amplo. — O ministro foi tão
gentil, mas eu teria preferido o Sr. Hawkins, de nossa igreja.
Janie a olhou com o rosto rígido e completamente transtornado pela raiva e pela maldade.
— Tinha porventura conhecimento, minha senhora —, perguntou Janie —, de que meu primo me prometeu casamento, aproveitando-se de meu
estado indefeso e dando-me provas materiais de sua intenção?
Pela primeira vez, alguma estranheza transpareceu nos olhos de Marvina. Olhou para Stuart e voltou-se placidamente para Janie.
— Não sei de nada disso. Só sei é que Stuart se referiu a sua pessoa da maneira mais simpática. Tem certeza de que não está enganada?
— Enganada? — exclamou Janie, exaltando-se de novo. — Será que não entende o que eu quero dizer quando afirmo que ele se aproveitou de
meu estado indefeso? Compreende, idiota, que ele dormiu comigo depois de me fazer promessas?
Parou, prendendo o fôlego na sua raiva, esperando que a moça desse um grito de horror, escondesse o rosto entre as mãos de vergonha ou
procurasse fugir da sala. Mas Marvina se limitou a olhar para ela tranquilamente e a dizer:
— Isso foi muito errado.
Não houve nem uma entonação diferente da voz quando ela disse isso. Depois de falar, ficou polidamente à espera do que Janie tinha para
dizer.
Mas Janie, confusa, não sabia mais o que dizer. Encarou Marvina, arregalando os olhos, sem acreditar que alguém pudesse ser assim,
julgando-se na realidade vítima de um pesadelo. Olhou para o belo rosto, para a boca passiva e para os olhos dourados que a contemplavam
com uma desinteressada simpatia. Não era possível acreditar naquilo!
E então toda sua frustração, seu ódio, sua raiva, sua decepção, sua lascívia, sua angústia feroz se tornaram intoleráveis. Avançou para Marvina
com os dedos perigosamente encurvados como garras, com os dentes arreganhados e os olhos alucinados, produzindo horríveis sons
inarticulados. Os movimentos dela foram rápidos, mas Marvina recuou instintivamente diante de toda essa fúria e levantou o braço para
proteger o rosto contra o qual era desfechado o feroz ataque de Janie. As garras foram cravar-se na seda grossa da manga e, embora a
fazenda se rasgasse, a pele nem foi arranhada. Não obstante, a moça recuou sob o assalto e começou a chorar baixo, como um gatinho.
Stuart ouviu o choro e se voltou. Viu Janie preparada para atacar de novo. Viu a manga rasgada do vestido de Marvina e o seu espanto. Num
instante, agarrou Janie pelo braço e afastou-a da moça. Levantou o braço e bateu-lhe violentamente no rosto, primeiro de um lado e, depois, do
outro, com as costas da mão. Ela então se virou contra ele como uma gata selvagem, tentando atingir-lhe os olhos e as faces. Houve um
momento em que as unhas atingiram mesmo o rosto de Stuart e o sangue começou a escorrer.
Ela era pequena e ele, grande, mas Janie tinha a força de dez demônios. Conseguiu desvencilhar-se dele e tentou aproximar-se de novo de
Marvina, que estava extremamente pálida e amedrontada e começava a soluçar. Os seus cabelos se haviam desfeito e lhe caíam sobre os
ombros.
— Stuart! Stuart! — chamava ela em voz chorosa.
Mas Stuart, praguejando entre os dentes cerrados, estava ocupado demais para dar-lhe atenção naquele momento. Tentou agarrar os braços
de Janie e prendê-los junto ao corpo. Sacudia-a violentamente até que os dentes dela tremeram. Mas ela estava quase acima de suas forças.
Sentiu-se empolgado por uma espécie de horror. O rosto dela estava abaixo do dele e era o rosto de um demônio, branco e furioso, cheio de
insensatez e de loucura. Nunca ele havia enfrentado nada assim em toda sua vida. Era como se estivesse em luta com um ser sobrenatural e
obsceno, que lhe inspirava repulsa e pavor. Não poderia suportar que ela o tocasse. O rosto lhe ardia como se lhe houvessem derramado
veneno nele. Sentiu-se mal, quase alucinado.
Odiava-a, abominava-a. Por fim, conseguiu pegar-lhe ambos os braços e prendê-los à sua frente. Ainda assim, ela conseguia virar os dedos e
arranhar-lhe os pulsos. Ele não podia nem olhar-lhe o rosto, de tão deformado que estava.
— Cadela! — vociferava ele. — Cadela!
O horror que sentia dela levava-o quase à loucura. Torceu-lhe os braços até que ela começou a gritar e os criados se juntaram à porta e
olharam para tudo, trêmulos. Ela jogou a cabeça para trás e gritava como uma demente. As crianças, que estavam jantando nos alojamentos
dos criados, ouviram e se juntaram na escada. Até o equilibrado Robbie chorava. Angus tinha a irmã nos braços e lhe cobria os ouvidos com as
mãos.
Cada vez mais horrorizado, Stuart tampou com a mão a boca de Janie. Ela tossiu e arquejou, ao mesmo tempo que tentava mordê-lo. Mas ele
foi inexorável. Queria fazer cessar aqueles gritos fantásticos que o estavam alucinando. Embora trêmulo, apertou-a mais com o braço e
aumentou a pressão com a outra mão. Só as pernas dela estavam livres e ela lhe dava repetidos pontapés. Não os sentia. Fechou os olhos,
empenhado que estava apenas em fazer cessar aquele barulho alucinante.
Foi nesse momento, diante dessa cena edificante, que Joshua entrou, acompanhado do Xerife.
Viu os criados, que não tinham ouvido os seus repetidos toques de campainha e não lhe tinham aberto a porta. Viu as crianças agrupadas nos
degraus da escada. Viu Stuart em luta com uma mulher enfurecida. Viu sua filha a alguma distância, com os olhos arregalados, o rosto confuso
e pálido, os cabelos desgrenhados e o vestido rasgado.
Olhou para tudo isso incredulamente e ficou parado, apoiado em sua bengala. Só o Xerife se moveu, Stuart era seu velho amigo e ele se sentia
muito confuso diante de tudo aquilo. Mas sabia o que lhe competia fazer diante da violência. Colocou fortemente a mão no braço de Stuart e
segurou Janie com a outra. Apartou-os. Vendo-se livre, Janie percebeu apenas outro antagonista à sua frente e atacou-o. Ele lhe deu uma
pancada seca no rosto e a fez recuar de costas até ir cair sentada numa cadeira.
— Que quer dizer isso? — perguntou energicamente. — Querem explicar o que está havendo? Fale, homem!
Mas Stuart não podia falar. Tirou o lenço do bolso e passou-o no rosto que sangrava. Janie, em sua cadeira, vendo o que estava acontecendo,
chorava ruidosamente. Apontou o dedo trêmulo para o primo e exclamou:
— Ele tentou me matar! Quis estrangular-me!
Pálido e mudo como um fantasma, Stuart continuou a limpar o sangue do rosto. O Xerife, que nada compreendia, olhou-o compassivamente.
Voltou-se então para os criados.
— Vão buscar uísque! — ordenou com tom autoritário. Voltou-se para Stuart — Sente-se, homem. Reaja. Aqui está uma cadeira.
Stuart sentou-se. Parecia estar passando muito mal. Com o braço sobre o joelho, descansou a cabeça na mão. O Xerife deu um suspiro.
— Tenho um mandado de prisão contra você, sob a acusação de rapto. Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?
Stuart conseguiu falar e disse:
— Diga àquela mulher que pare com esses gritos —, implorou ele apaticamente.
Os gemidos de Janie aumentavam de intensidade. O Xerife se voltou para ela e exclamou:
— Pare com isso! Que é que está havendo aqui afinal de contas? — Um criado apareceu com um copo de uísque. O Xerife tomou o copo e
colocou-o na mão de Stuart. — Tome. Beba isto.
Enquanto isso, Joshua se arrastara até junto da filha. Olhou-a inexpressivamente e disse:
— Volte para casa imediatamente, querida. Isto aqui não é lugar para você. Onde é que estão sua capa e seu chapéu? Venha, querida. Papai
a receberá.
Mas Marvina nem pareceu tomar conhecimento da presença dele. Olhava apenas para Stuart, que estava tomando o uísque. Levantou as mãos
e ajeitou mecanicamente os cabelos.
— Você não quer que ele seja preso, quer meu amor? — perguntou Joshua com voz branda. — Ele passará a noite na cadeia se você não vier
imediatamente para casa. Quer viver aqui com essas terríveis criaturas? Venha e seu pai nunca mais falará no que aconteceu. Papai e a
filhinha dele irão para longe, para muito longe para esquecer tudo isso.
Compreendia muito bem o que havia acontecido. Olhou para Janie e teve um riso irônico. Lady Vere de Vere e Sir Angus Fraser... Pois sim!
Aquilo tinha sido uma maravilha. Nada poderia ter sido melhor para ele.
— Essa mulher vivia com ele, minha querida. Foi onde a sua inocência a fez cair, nesta abominável casa! Foi esse o patife que convenceu você
a deixar seu pai para vir para este antro de iniquidade. Mas papai veio salvá-la e nós vamos esquecer toda essa miséria. Isso nunca
aconteceu. Enquanto isso, ele vai ter o castigo que merece.
Stuart entregou o copo ao Xerife, que o olhava com pesar e compaixão.
— Muito obrigado, Bob. — Respirou fundo e disse: — Não ia matá-la, Bob, embora vontade não me faltasse. Ela atacou minha esposa.
— Escute, Stuart, Você se casou com a Srta. Marvina?
— Casei-me, sim. Esta tarde.
Stuart tomou então conhecimento de sua mulher. Levantou-se, vacilante. Voltou-se para ela e estendeu-lhe a mão. No rosto dela se esboçou um
leve sorriso. Marvina deixou imediatamente o pai e se encaminhou para ele sem a menor hesitação. A sua serenidade tinha voltado. Deu-lhe a
mão e sorriu para ele.
O Xerife olhou para ambos e voltou-se então para Joshua.
— Disse-me que ele a havia raptado e a estava forçando a casar-se com ele, Sr. Allstairs.
Joshua fez uma careta malévola e exclamou:
— Ela ainda não tem idade! E não acredito que ele se tenha casado com ela! Queria apenas trazê-la para esta casa!
— Pode provar o que afirma, Stuart? — perguntou o Xerife.
— Sem dúvida. Tenho a certidão aqui no bolso. Casamo-nos hoje à tarde perante um ministro metodista em La Grange. Aqui estão os nomes
das testemunhas. E a moça não é menor. Tem quase dezenove anos. É uma mulher e não uma criança.
O Xerife examinou cuidadosamente o documento. O seu embaraço aumentou. Olhou para Stuart ali de pé ao lado de sua jovem esposa. Havia
nele uma calma dignidade, apesar do desalinho de suas roupas e do rosto ferido, uma espécie de esplendor que era uma das suas mais fortes
e magnéticas características físicas. Houve na sala um súbito silêncio, quebrado apenas pelos soluços de Janie e pelos seus apelos de justiça
ao Onipotente.
— Tudo parece correto, Sr. Allstairs —, disse o Xerife, que era um homem honesto e detestava Joshua. — Sua filha tem mais de dezoito anos,
que é a idade legal para o casamento. Não foi raptada, tendo ido para Stuart por sua livre e espontânea vontade. Casou-se com Stuart e agora
nada há que possamos fazer.
Joshua se arrastou para o Xerife e para Stuart, tremendo dos pés à cabeça. E exclamou:
— Não há então justiça para a sedução de minha filha, que sempre foi guardada em sua inocência e protegida desses patifes? Não há punição
para um homem que entra na casa de outro e lhe rouba o seu maior tesouro? Se a menina não tivesse sido tão protegida, nada disso teria
acontecido. Ela pode ter idade legal, contando pelos anos, mas tem ainda o espírito de uma criança. Exijo justiça!
O Xerife franziu o rosto.
— Sr. Allstairs, a lei não considera rapto quando se trata de uma moça de idade legal fisicamente e consente em se casar com o seu
pretendente, independentemente da idade mental que lhe é atribuída pelo pai. Não quer dizer que sua filha é incapaz e débil mental, de acordo
com a lei?
Joshua rangeu os dentes. A filha olhou para ele e deu-lhe aquele sorriso vazio que era o seu comentário para todas as coisas.
— Querido Papai —, murmurou ela, ternamente como se tudo aquilo fosse muito natural e o pai tivesse dito as coisas mais triviais do mundo.
Joshua brandiu a bengala no ar e gritou furiosamente:
— Exijo justiça! Há uma lei moral acima da que está escrita nos livros. Esse homem é um ladrão, um patife, um libertino desclassificado cujo
nome é um escárnio nos lugares de má fama, um miserável mentiroso e trapaceiro! Casou-se com minha filha de pura ambição pela fortuna
dela. Está em situação financeira difícil e usa essa criança inocente para obter meu dinheiro! Foi esse o seu único objetivo em seduzir minha
filha e tirá-la de casa!
— Tenha cuidado —, disse severamente o Xerife. — De acordo com a lei, pode estar dando motivo a Stuart de acioná-lo pelas coisas que está
dizendo. Dou-lhe essa informação graciosamente.
Mas Joshua já não se continha de frustração, de ódio e de mágoa.
— Ele subornou meu empregado! Convenceu aquele homem com suas artimanhas a entregar-lhe minha filha, que nada sabe de homens!
Subornou aquele homem! Só soube isso há duas horas, graças à criada que merecia a confiança do miserável! Não há justiça então para um
pai roubado, para uma casa violada, para uma moça infelicitada?
Batia a bengala no chão com incontrolada raiva. As lágrimas lhe corriam pelas faces murchas. Apontou com a bengala a chorosa Janie.
— Veja aquela mulher, a mulher que se diz prima dele. Ele a atacou criminosamente, com intenção homicida! Isso se verificou quando ele
trouxe minha filha para esta casa infame! Pergunte-lhe por que foi ela atacada, embora seja uma viúva indefesa com filhos pequenos!
O Xerife voltou-se automaticamente para Janie ao ouvir o que Joshua dizia.
— Isso não altera a situação. Mas vou interrogá-la. Sra. Cauder, quer parar de chorar e responder a algumas perguntas?
Janie estava bem a par de tudo o que se estava passando, embora não cessasse de chorar e de fazer imprecações. Nesse momento,
abandonou-se a novos paroxismos de angústia, jogando-se para trás na poltrona, cobrindo o rosto com as mãos e rezando em longas
exclamações estridentes. Muito aborrecido, o Xerife voltou-se para uma empregada e ordenou-lhe que fosse buscar um vidro de sais. Enquanto
esperava que Janie se acalmasse, voltou-se para Stuart e disse, sacudindo a cabeça em sombria censura:
— Em que dificuldade se meteu, Stuart!
Stuart riu, mas estava extremamente inquieto. Passou o braço pelos ombros da esposa e disse:
— Embora isso possa parecer pouco gentil da minha parte, a verdade me obriga a dizer que minha prima, a Sra. Cauder, nem sempre é fiel
aos fatos nas alegações que faz. Peço-lhe, Bob, que leve isso em conta quando ela puder recuperar o fôlego e estiver em condições de dizer
desaforos e mentir com a sua habitual facilidade.
Tendo chegado à conclusão de que já havia exibido bastante agonia, Janie jogou para trás os cachos embaraçados, enxugou o rosto, baixou a
cabeça e se tornou de repente um símbolo de vergonha e desolação, de mulher espezinhada e indefesa. O Xerife se aproximou dela.
— Sra. Cauder, peço-lhe que mantenha a calma e responda a algumas perguntas. Declarou que o Sr. Coleman tentou contra sua vida. Por
quê?
A cabeça de Janie baixou ainda mais. O peito lhe arfou e ela exclamou com voz chorosa:
— Ó meu Deus, não posso nem pensar que tenha vindo para uma terra estranha sem um protetor natural, para passar por isso! Sou apenas
uma pobre viúva com quatro filhos indefesos e tive a infelicidade de dar ouvido aos insistentes convites de meu primo para que eu viesse para
os Estados Unidos!
O Xerife interrompeu-a, perguntando incredulamente:
— Ele lhe prometeu casamento, Sra. Cauder?
Janie levantou a cabeça. Era uma excelente atriz. Mostrou um bravo rosto branco, emocionado e puro, banhado de lágrimas. Olhou
humildemente para o Xerife e fez os cílios baterem e os lábios tremerem. Disse então:
— É verdade, prometeu-me casamento várias vezes e eu acreditei nele, desde que não tenho prática das coisas do mundo e sempre fui
protegida de tudo por meu caro pai e por minha cara mãe.
Deixou que novas lágrimas lhe rolassem pelas faces e continuou:
— Acreditei tanto nele que cheguei a dar-lhe vinte mil dólares do dinheiro que minha mãe me deu quando saí da Inglaterra!
— Que canalha, que sujeito sem escrúpulos, que monstro! — exclamou Joshua. — Ladrão e assassino! Explorador de viúvas e crianças,
sedutor de moças puras!
— Vinte mil dólares! — exclamou o Xerife, aflito. Olhou para Stuart, que tinha ficado muito vermelho.
— Deixe-me explicar, Bob. Ela não me “deu” o dinheiro. Sabia que a fortuna dela, de cerca de setenta e cinco mil dólares, não poderia durar
muito com quatro filhos para sustentar. Propus-lhe então sociedade nas minhas lojas, embora meu sócio fizesse grande oposição a isso. Agi
impelido pelos motivos mais nobres, desde que sou o único parente dela nos Estados Unidos. Há um contrato, redigido em termos claros, de
que ela possui uma cópia. Há outra cópia, depositada em meu banco, onde pode ser consultada a qualquer momento.
Continuou, cada vez mais animado:
— Quanto às minhas promessas de casamento, isso é uma mentira. Ela sabe muito bem disso! Pergunto-lhe em que condições eu fiz tais
promessas! Foi sob sedução? Estará ela pronta a confessar que coabitou comigo nesta casa? Estará ela disposta a comprometer sua
reputação em troca de uma mentira? Para conseguir uma vantagem duvidosa, estará ela pronta a ficar desmoralizada nesta cidade e em
posição insustentável?
Janie abriu a boca para falar, mas viu de repente os olhos apertados e cintilantes de Stuart, o seu sorriso equívoco. As palavras dele lhe
ressoaram nos ouvidos.
A expressão desagradável se acentuou no rosto de Stuart e ele teve um riso breve.
— Como vê, Bob, minha prima é uma senhora virtuosa e, embora esteja um tanto desorientada pelo insucesso de seus planos, não pode, no
seu próprio interesse, declarar falsamente que foi seduzida por mim em minha própria casa, para a qual veio por sua livre vontade e desejo.
Por mais nervosa e decepcionada que ela possa estar agora, é fácil ver que ela é toda virtude e modéstia e que só disse o que disse sob o
domínio de uma emoção descontrolada.
O Xerife olhou Stuart desconfiadamente. Compreendeu e franziu a testa. Sacudiu a cabeça, dizendo entredentes:
— Você deve ter mais cuidado! Um dia, pode ter muito mau resultado.
Já então triunfante, dominado pelas toxinas da exaltação, Stuart voltou-se para Joshua, que piscava os olhos, imerso em confusão.
— Quanto a você, só o fato de que é agora meu sogro me impede qualquer ação decisiva contra a sua pessoa. Deve dar graças a Deus por
isso. Chamou-me ladrão e eu poderia acioná-lo por isso e reclamar uma boa quantia. Fez contra mim falsas acusações, pelas quais eu poderia
dar-lhe impunemente um tiro. — Fez um gesto grandioso e sorriu desagradavelmente. — Mas eu me sinto dominado esta noite pelo espírito
cristão. Agradeça a minha boa natureza deixar eu de processá-lo e dar-lhe o que merece.
Janie estava tão cheia de ódio, de loucura e de frustração que não podia senão encolher-se em sua poltrona e olhar para Stuart com uma
expressão que lembrava um raio pela ameaça e pela destruição que encerrava. Era um olhar que podia matar.
Stuart estava ficando cada vez mais à altura da situação. Continuou a falar a Joshua:
— Devo-lhe já muito pouco. Dentro de quatro semanas, vou receber uma grande soma procedente de uma transação comercial. Pagar-lhe-ei
então todas as minhas dívidas. Disse que me casei com sua filha pelo dinheiro dela. Dentro em pouco, poderei ter muitas vezes mais dinheiro
que você!
— Que patife nojento! Mentiroso e sem-vergonha! — murmurou Janie, torcendo as mãos.
Mas Joshua, que tinha ouvido Stuart em silêncio, começou a falar em voz baixa:
— Neste momento, você ganhou. Mas isto não é o fim. Chegará o dia do ajuste de contas e, com a ajuda de Deus, procurarei apressar esse
dia.
Voltou-se para a filha e falou com uma voz sinceramente comovida:
— Minha querida, você mesma viu o que tem acontecido dentro desta casa. Já estou velho e você é meu único tesouro que tenho amado e
guardado. Você me abandonou não por vontade própria, mas em virtude de sua inocência. Peço-lhe pela última vez que deixe esse mau
homem que vai destruí-la e arruiná-la e volte para sua casa, onde ficará protegida dele. Venha para casa com Papai, querida!
Stuart fez mais pressão com o braço sobre os ombros de Marvina. Ela se encostou mais a ele e sorriu amavelmente para o pai.
— Papai querido —, murmurou ela com sua voz de mel. — Boa noite, Papai.
Stuart, glorioso como o sol ao meio-dia, cumprimentou o Xerife.
— Agora, Bob, quer fazer o favor de desembaraçar minha casa? Estou cansado e tenho de fazer um curativo nesses arranhões que tenho no
rosto para livrar-me de hidrofobia. Quanto a essa mulher e seus filhos, podem ficar em minha casa por mais vinte e quatro horas. Depois disso,
devem mudar-se. É essa a minha ordem, que estou disposto a fazer cumprir.
Tomou a mão de Marvina e saiu com ela da sala, passando pelos criados e pelo Xerife, por Janie e por Joshua. Viram-na sair, viram a graça
elegante de seu vestido, o seu sorriso encantador e o olhar de adoração em que envolvia o marido. Não olhou para trás, nem mesmo para o
pai, que tinha um aspecto de quem fora ferido pela morte.
As crianças ainda estavam na escada. Afastaram-se para o lado em mudo e triste silêncio, enquanto Stuart e Marvina subiam lentamente.
Olharam para Stuart com o rosto pálido e os olhos dilatados. Stuart sorriu para elas com indiferença. Chegou ao degrau onde Angus e Laurie
estavam de pé, abraçados. O rosto da menina rebrilhava de lágrimas. Mas os seus olhos azuis se fixaram com firmeza em Stuart
Ele nunca soube o que o fez parar ali ao lado da criança. Sabia apenas que alguma coisa o prendia e faria ficar ali olhando para ela, olhando-a
com um curioso pulsar do coração. Curvou-se então e beijou o rostinho pálido.
— Boa noite, meu amor —, disse ele, tocando-lhe delicadamente os cabelos dourados.
Quanto a Marvina, ficou olhando as crianças com seu sorriso fixo e inexpressivo, fez um gesto de despedida e continuou, seguido por Stuart.
Chegaram à porta dos aposentos de Stuart. Este sentia o sangue pulsar violentamente. Parou à porta e tomou a mão de Marvina. Olhou para
ela com intensa paixão. Ela sorriu placidamente e disse:
— Que lindas crianças, Stuart! Tenho certeza de que vou gostar muito delas.
Stuart não pôde falar. Pela primeira vez, compreendia que sua mulher era idiota, profundamente idiota.
LIVRO II
Os Filhos à Porta
“Seus filhos são privados de qualquer socorro, são pisados à porta, ninguém os defende.”
JÓ, V, 4.
CAPÍTULO 26
Angus Cauder pegou os seus livros de medicina embaixo do balcão e colocou-os em cima dele. Passou as mãos magras pelo rosto e deu um
suspiro. Toda a vida parecia extraída dele, de modo que ele se sentia seco e frágil. Até o espírito estava ressecado, carregado com a poeira
acumulada do velho desespero, da falta de esperança e da aquiescência. Passou a língua por dentro da boca a fim de atenuar a sensação de
secura que lhe vinha da alma.
Os últimos fregueses tinham saído. Até os caixeiros se haviam retirado, fechando as portas. Angus correu o dedo pelo alto dos livros e suspirou
de novo. Em seguida, num gesto dramático, empurrou os livros para o lado e foi até à sala dos fundos, que servia de escritório às lojas.
Caminhava um tanto encurvado, porque, além de não ser forte, era muito alto e magro. Os seus movimentos não mostravam a energia e
agilidade da juventude. Caminhava como um velho, oprimido pelo peso dos anos e anquilosado por velhas decepções.
Stuart, que examinava a escrita, levantou a vista e viu o rapaz. Sorriu, recostando-se na cadeira. Estava também muito cansado. Alisou com as
mãos os cabelos, onde já havia alguns fios brancos.
— Já acabou, Angus? Mas é claro, que são quase sete horas. Que é que está fazendo aqui até tão tarde?
— Era preciso dobrar algumas peças do novo foulard, Stuart.
A lâmpada em cima da mesa lançava a sua luz pálida sobre os livros de escrituração e sobre as novas paredes apaineladas, porque, mesmo
ali, Stuart não dispensava o seu senso de elegância e o seu gosto pelo luxo. Angus ficou em silêncio dentro do círculo de iluminação, com os
grandes olhos cinzentos ocultos, o rosto pálido e sofredor enrugado, ainda que ele fosse tão moço, cheio de reticências crônicas e de orgulho.
A boca, sempre reservada e magra, era uma linha firme de cantos rígidos, como se fosse um portão de ferro implacavelmente fechado ao
espírito interior e à alegria exterior. Os finos cabelos castanhos, macios e compridos, escorriam pelo crânio estreito e duas ou três madeixas
caiam sobre a testa com seus nobres contornos e fortes protuberâncias.
Stuart olhou-o com furtiva inquietação. Acendeu um charuto e franziu a testa.
— Você já está aqui há seis meses, Angus. Que tal acha as lojas e tudo mais?
— Muito bem, Stuart É muito interessante, não é?
— É mesmo? Você acha interessante, Angus?
Angus hesitou. Moveu os longos pés. Vestia casimira preta e camisa branca do mesmo modo que os outros caixeiros e isso lhe dava ao corpo
emaciado um aspecto fúnebre. Emergindo da roupa preta, as mãos magras e bem modeladas pareciam muito brancas e sem vida.
— As pessoas são sempre interessantes, Stuart — disse ele.
— São mesmo? — perguntou Stuart fechando a cara e olhando para o charuto. — Para mim, só servem para atrapalhar, na sua grande
maioria. Entretanto, fico contente de que você não esteja insatisfeito aqui dentro.
Sabia que o jovem tinha ido procurá-lo para um determinado fim, mas não podia saber o que era. Angus nunca facilitava a comunicação entre
eles. Nos seus contatos com Stuart a atitude de Angus era sempre reservada e negativa.
Quando Angus ficou calado, Stuart olhou diretamente para ele.
— Você está satisfeito, não está, Angus?
Angus baixou a cabeça e disse:
— Perdoe-me, Stuart, mas não estou. Acontece que Mamãe acha que eu devo ter um pequeno aumento.
— Acha, não é? E que é que sua mãe sugere?
Percebendo a nota de raiva na voz de Stuart Angus ficou vermelho. Levantou a cabeça e olhou para Stuart arrogantemente, embora houvesse
um leve tremor em suas feições magras.
— Mamãe diz que, desde que ela é sócia das lojas e desde que eu trabalho aqui, devia ganhar um pouco mais do que os outros caixeiros. Diz
ela que eu devia receber no mínimo três dólares por semana.
— E você o que é que acha disso, Angus?
— Acho que me deve pagar cinco dólares por semana.
Stuart voltou de repente a sua atenção para o charuto.
— O fumo que se consegue hoje em dia é uma vergonha! Olhe só para este charuto!
Tirou a manga de vidro da lâmpada e encostou a ponta do charuto à chama que tremeu e se enegreceu.
— É preciso provocar um verdadeiro incêndio para acender um charuto!
Recolocou a manga, tirou algumas baforadas e então olhou para Angus e sorriu:
— Muito bem, então. Prefiro sua opinião à de sua mãe. Você vai receber cinco dólares a partir do próximo sábado. Que tal?
— Muito obrigado, Stuart —, disse Angus, friamente.
Fez menção de sair, mas Stuart, impetuosamente como sempre, resolveu falar-lhe.
— Quer-se sentar um momento, Angus? Quero falar com você.
— Mas já é tarde, Stuart. Você sabe que jantamos às sete e meia. Mamãe ficará aborrecida se eu a atrasar.
— Oh, é claro que não devemos aborrecer Mamãe. Mas estou esperando minha carruagem e levá-lo-ei para casa. Dentro de cinco minutos. A
pé, você não iria mais depressa. Não o vou prender muito.
Angus pensou por um momento e então disse com uma ponta de orgulho na voz independente:
— Está muito bem.
Sentou-se na borda de uma cadeira e olhou para Stuart com uma expressão vagamente hostil. Stuart notou isso e a sua indecisão cresceu. E a
sua compaixão também.
— Talvez você pense que isso não é de minha conta, Angus. Mas você e eu fomos amigos há muito tempo. Ainda sou. Sempre gostei muito de
você. Sabe disso, não sabe?
Angus ficou em silêncio, mas os cantos de sua boca se repuxaram num sorriso de antipatia, frio e descrente.
— Você deu ouvidos a falsas histórias a meu respeito, Angus! É evidente. Tem de acreditar que eu sempre gostei muito de você.
O rapaz moveu-se, como se fosse levantar-se e sair. Mas nada disse. Continuou a olhar Stuart e a esperar. Stuart estava ficando nervoso e
pensou desconsoladamente que isso era ruim para o seu fígado. Ora, o fígado que fosse para o inferno! Não podia deixar de fazer uma
tentativa de salvar aquele jovem maluco e quebrar-lhe as ridículas defesas.
— Quando você tinha quatorze anos, Angus, me disse que queria ser médico. Um amigo meu me impôs a obrigação de cuidar de você, de
animá-lo e de ajudá-lo. Fiquei aborrecido porque isso para mim não era uma obrigação. De qualquer maneira, nunca me esqueci disso não só
em atenção a esse amigo, mas também em atenção a você. Em junho passado, você concluiu o seu curso no ginásio. Tive uma surpresa
quando sua mãe solicitou que você começasse a trabalhar nas lojas.
“Você tem feito um bom serviço aqui, Angus. Tem um espírito atilado e compreensivo. Já tem ajudado na escrita e eu tenho a ideia de
encarregá-lo de uma participação maior nesse setor, ao menos para ajudar Sam, que não é mais o mesmo depois da febre que teve em março
último. Mas vai custar um pouco até você poder encarregar-se de toda a escrita.
“Sim, não resta dúvida que você está indo muito bem e que um dia poderá ir excelentemente. Mas não era isso o que eu esperava de você. Já
terminou o curso secundário e eu tinha toda a esperança de que fosse começar a estudar com um bom médico, por exemplo, com o Dr. Dexter.
Conversei com ele na primavera passada e ele concordou em aceitá-lo como aluno. Você sabe disso. Por que mudou de ideia? Não está mais
interessado em estudar medicina?
Angus respondeu numa voz sem inflexões:
— Pouco importa que eu esteja interessado ou não, o que eu tenha planejado ou o que eu queira, Stuart. Mamãe não me pode manter na
ociosidade e eu estou na obrigação de ajudá-la.
— Isso é um verdadeiro absurdo! — exclamou Stuart, furioso. — Sua mãe está recebendo quase seis mil dólares por ano como produto de seu
investimento nas lojas. Ainda no ano passado, se não estou enganado, ela recebeu mais do que isso. Não tocou de modo algum no seu capital.
E há dois anos, quando o pai dela morreu, ela recebeu mais dez mil dólares como sua parte da herança. Ela está com todo o dinheiro
guardado nos seus cofres. Ela está muito em condições de deixar você fazer aquilo com que sempre sonhou.
Angus se ajeitou na cadeira com os olhos faiscantes como se tivesse recebido uma afronta pessoal.
— Stuart, você não está a par de todos os negócios de minha mãe e considero um pouco apressado de sua parte criticá-la. Esquece que há
mais três filhos e que ela não me pode exatamente mimar, Bertie tem apenas dezessete anos, Robbie não tem dezesseis e Laurie agora é que
tem onze. Os meninos ainda não acabaram o curso secundário e Mamãe às vezes passa dificuldades. Tenho de ajudá-la. E meu dever. Seria
imoral se eu me queixasse. Devemos deixar de lado as nossas esperanças quando elas entram em conflito com o nosso dever. Não podemos
pedir aos outros que sofram e se sacrifiquem por nós. Esse egoísmo é pecaminoso e cruel.
— Você considera pecaminoso e cruel resistir às exigências absurdas e insensíveis de uma mulher ávida por dinheiro só porque ela é sua
mãe?
Angus se levantou e disse com a voz entrecortada pela emoção.
— Muito boa noite, Primo Stuart.
Mas Stuart se levantou também e foi colocar-se diante da porta.
— Pelo amor de Deus, Angus! É a última vez que falo com você e tento fazê-lo ver o que sua mãe está fazendo com você. Vou dizer o que acho
que devo dizer e depois você poderá ir-se embora e seja o que Deus quiser!
“Sua mãe nunca pôde gostar de você. Na sua dedicação a ela, você nunca quis ver isso! Ela está empenhada em arruinar sua vida. Já
conseguiu fazer de você um pequenino e mesquinho ganhador de dinheiro. Mas você está revoltado até às profundezas da alma com o que
está fazendo! Tenho observado você a trabalhar nas lojas desta porta e tenho visto o seu sofrimento. Você está morrendo, Angus. Se fosse só
no corpo, não teria tanta importância. Mas é sua alma que está morrendo, Angus! Está deixando que uma mulher que o odeia, que tem prazer
em contrariá-lo e torturá-lo, faça isso com você! Ela está destruindo essa coisa idiota que você chama sua alma! Ela está usando os seus
melhores instintos, a sua dedicação e a sua noção do cumprimento do dever para destruí-lo!
Parou, sentindo que o fôlego lhe faltava. O seu traiçoeiro coração lhe batia fortemente no peito, causando-lhe grande dor. Que coisa! Teria de
abster-se do seu uísque naquela noite. Levou a mão ao peito e fez instintivamente pressão.
Angus tinha-se afastado dele para o outro lado da mesa e, naquele momento, só a parte inferior do seu corpo estava iluminada. O rosto estava
mergulhado na sombra. Mas, mesmo na sombra, o aço cinzento de seu olhar brilhava com desprezo e mágoa.
Stuart tremia. Respirou fundo, tentou dominar a veemência de sua voz e disse:
— Você fala do seu dever, mas esquece o dever que tem para com sua própria alma. Um homem tem de guardar e proteger a sua alma até ao
momento de sua morte. Concorda comigo nisso, não concorda? E para guardar e proteger sua alma, o homem tem de ceder ao seu instinto.
Você sempre quis ser médico. Seus sentimentos são de um homem dedicado e abnegado. Essa é que é a tendência de sua alma!
“Mas está permitindo que aquela mulher destrua sua alma para transformá-lo num animal cobiçoso e ávido, um avarento empenhado apenas
em ganhar dinheiro. Já começou a ver com um sorriso que é quase de amor às moedas de ouro que lhe passam pelas mãos no balcão.
Observei-o daqui. Mas não era um sorriso belo. Era horrível. Eram os estertores de sua alma que está morrendo, Angus!
Teve de parar pois o fôlego lhe faltava de novo. Mas os olhos, habitualmente tão displicentes e egoístas, ardiam de ansiedade e de súplica.
Ouviu então a voz firme de Angus.
— Está falando em alma, Primo Stuart. Mas não acredita nem na alma, nem em Deus. É um homem mau e sabe muito bem disso, Primo Stuart.
Não posso dar atenção ao que me diz. As suas palavras nada significam para mim.
Fez uma pausa enquanto Stuart o olhava com incrédulo desespero.
— Tenho cumprido o meu dever aqui, Primo Stuart. Continuarei a proceder assim, se consentir que eu continue depois disto. Pode sempre
confiar em mim. Quero aprender os negócios da firma, desde que minha mãe é sócia da mesma. Pretendo passar a vida nas lojas. É assim
que eu quero. E não posso escutar ninguém, e muito menos você, que me queira desviar do que Deus e eu sabemos que é o meu dever.
Exortações bem-intencionadas nunca podem partir de uma pessoa sem princípios. Não creio que possa dar bons conselhos ou orientação
acertada a ninguém. Quais são seus motivos não sei. Desconfio de que só me esteja dizendo isso para contrariar e espezinhar minha pobre
mãe, que dedicou a vida a seus filhos órfãos. Está me aconselhando a abandonar o meu dever para satisfazer meus desejos frívolos e
profanos.
Ao ouvir essas imbecilidades, Stuart não sentiu nova cólera, mas foi invadido de um triste desespero. Levantou a mão como se quisesse
afugentar uma nuvem de insetos que zumbissem em torno dele. Disse então com voz pausada:
— Angus, se sua mãe não deixar que você estude medicina e você tem medo de ficar sem dinheiro e ser expulso de casa, venha morar
comigo. Recebê-lo-ei com prazer e lhe darei toda a ajuda necessária. Poderá morar em minha casa e estudar com o Dr. Dexter.
“Sou seu amigo. Nunca insisti em fazer o bem com ninguém senão com você. Tudo isso é muito desagradável para mim. Cada qual tem o
direito de escolher a vida que quer levar. Mas estou vendo você tão escorraçado, tão confuso, tão iludido, que acho que precisa de ajuda e lhe
estou oferecendo essa ajuda, Angus. Do fundo de meu coração.
Mas Angus exclamou numa voz fina e trêmula:
— Você não tem coração, Stuart! Você é um homem mau e sem fé! É um pecado ouvir o que você diz!
Depois de dizer isso, pegou o chapéu e se dirigiu para a porta. Stuart se afastou instintivamente para deixá-lo passar. O rapaz abriu a porta e
saiu precipitadamente.
Stuart ouviu-lhe os passos que se afastavam na loja. Voltou vagarosamente para a mesa e deixou-se cair na sua cadeira. Enxugou o rosto
banhado de suor. Como tantas vezes antes, arrependeu-se do seu impulso insensato. Sentia-se fraco e mal depois daquele encontro
malsucedido com o jovem cego a quem tinha tentado ajudar.
Abriu uma gaveta da mesa e tirou uma garrafa de uísque. Bebeu longa e copiosamente. Precisava daquilo. Largou afinal a garrafa e praguejou
com raiva e desespero. Que idiotazinho, que perfeito imbecil! Que fosse para o inferno com a maldita mãe dele. Não merecia coisa melhor.
Fechou a gaveta. E ficou furioso com o fato de que a mão lhe estivesse tremendo.
CAPÍTULO 27
Stuart saiu para o calmo e parado silêncio da noite de novembro. Um leve nevoeiro tinha flutuado do lago e cada lampião de rua estava
cercado de uma aura irisada. Os passeios estavam escorregadios e molhados e as pedras da calçada tinham um brilho esmaecido. Em todas
as casas, apareciam retângulos de luz alaranjada. Ouviam-se ao longe rumores de carros e vagões, além de leves ecos. Não se via uma só
pessoa.
Depois de fechar a porta, Stuart olhou para o seu quarteirão de lojas com a profunda satisfação de sempre. Naqueles últimos cinco anos, tinha
demolido a sequência irregular de prédios caóticos e reconstruíra tudo uniformemente, com três andares de altura, de modo que tudo parecia
uma só construção sólida e esplêndida. Além disso, tinha mandado abrir portas nas paredes internas, de modo que era possível ir da loja
central até à última sem passar pela rua. Podia-se passar do luxuoso estabelecimento para as senhoras, para a loja de calçados, onde as
senhoras podiam escolher o couro para os seus sapatos sob medida em companhia dos filhos e dos maridos; dali, podiam passar para uma
loja de chapéus, uma excelente inovação pois as senhoras de Grandeville costumavam ter chapeleiras prediletas, que em geral passavam fome
entre as encomendas. Stuart havia dado um emprego permanente a essas mulheres, pagando-lhes salários para elas miraculosos e fazendo
jus com isso à eterna dedicação e gratidão das mesmas. Agora, era possível encontrar ali chapéus para todos os gostos e grandes
quantidades de fitas, flores artificiais e penas. Além dessas lojas de luxo, havia lojas de ferragens, lojas de arreios, casas de forragem, artigos
de copa e até comestíveis. Uma das lojas maiores era organizada como um antigo “armazém geral”, onde um lavrador podia encontrar quase
tudo e encomendar o que não encontrasse, baseando-se no catálogo compilado por Stuart e Sam Berkowitz. Em suma, uma família podia
entrar por uma porta e sair pela outra, completamente equipada e atendida, além de carregada de embrulhos.
Em lugares evidentes, emoldurados em ouro, havia recortes de grandes jornais mandados a Stuart de vários distantes centros metropolitanos,
que lhe louvavam as inovações e o gênio comercial.
Stuart empregava no momento cerca de vinte caixeiros, homens e mulheres, uma inovação que fizera Grandeville arregalar os olhos de
espanto. Todos eram bem adestrados e elegantes, conscientes de suas responsabilidades como empregados da maior e mais bela loja do
país. Comportavam-se com a maior finura e distinção. Trabalhar para Stuart era não só receber salários acima de todos os sonhos da avareza,
mas também gozar de um certo relevo social. Não eram “degradados” pelo trabalho que faziam. E o amor que tinham a Stuart não era apenas
uma consequência de seus salários. Achavam-no bondoso, compreensivo, tolerante e atencioso. Quando ele passava pelas lojas, era seguido
pelos olhares de admiração dos empregados. Conhecia-os a todos e a suas famílias. Nunca estava tão ocupado que não pudesse perguntar
por uma pessoa da família doente, mandar lembranças ou ouvir com sincero interesse os problemas.
Como era natural, Stuart era odiado pelos outros patrões. Era um “revolucionário”, um traidor da sua classe. Dava aos trabalhadores, que
tinham nascido apenas pela graça de um Deus sábio para servir a seus patrões, uma falsa ideia de sua importância no plano social. Alguns
ministros declararam que era sacrílego pagar a um caixeiro quinze dólares por semana, quando o salário justo era o habitual de seis ou sete
dólares. Estava incutindo em seus empregados o orgulho, dando-lhes ideias estranhas e suscitando neles sentimentos incompatíveis com a
sua posição social.
Mas, apesar dessas condenações e das ameaças de boicote, Stuart prosperava. Tinha introduzido outra ideia no comércio: O Freguês Tem
Sempre Razão. Até então, em Grandeville, entre os outros negociantes, a ideia predominante era caveat emptor — o comprador que se cuide.
Mas Stuart tinha uma ideia inteiramente diferente. Vendia um bom artigo por um bom preço e recebia um bom lucro, embora modesto. Se o
artigo tinha algum defeito, trocava-o sem hesitação pedindo desculpas ou devolvia o dinheiro. O povo de Grandeville, a princípio estupefato,
terminou confiando implicitamente nele.
Mas Stuart era também muito astuto. Só vendia à vista. Por mais importante e rica que fosse a pessoa, pagava no balcão do mesmo modo que
o pequeno operário ou o lavrador. Não havia crédito para ninguém. Os lavradores, habituados a ter conta corrente, poderiam queixar-se
ferozmente se não soubessem que a senhora vestida de arminho, que viajava na sua bela carruagem, tinha de abrir a bolsa e pagar como eles.
“Sem contas, não há discussões e não se perdem fregueses’’, costumava dizer Stuart. “Além disso, os fregueses sabem que quem vende à
vista pode vender mais barato, recebendo um lucro menor e oferecendo um artigo melhor”.
Por sugestões de Sam, foi instituída outra inovação. Um fazendeiro, depois da colheita, podia depositar nas lojas de Stuart uma certa quantia
que, na sua opinião, poderia cobrir as suas compras durante o ano. Depois, esse sistema foi estendido a outros fregueses urbanos. No fim do
ano, faziam-se as contas e, se houvesse saldo, este era transferido para o ano seguinte ou pago em dinheiro.
De um modo geral, a grande expansão do Empório Supremo de Grandeville decorreu dos cem mil dólares que a Sra. Coleman tinha herdado
ao completar vinte e um anos.
Stuart tinha passado a ser um homem rico. E, em proporção à sua renda, as suas despesas tinham crescido desordenadamente. Em vista
disso, só raramente tinha uma grande soma de dinheiro em caixa. Os lucros eram empregados nas lojas e uma parte considerável era gasta à
sua maneira peculiar.
A estrada de ferro tinha chegado a Grandeville e Stuart a utilizava no mínimo duas vezes por ano para visitar Nova York, para tratar ali da
remessa de novas mercadorias, correr as lojas à procura de novas ideias e divertir-se. Essa última atividade lhe custava uma pequena fortuna.
Era muito apreciado pelas senhoras mais luxuosas e mais alegres de Nova York. Chicago, a dinâmica cidade que crescia nos Lagos, também
o conhecia como acontecia com Saratoga e o seu prado de corridas de cavalos, de que ele gostava muito. Nova Orleans e outras cidades do
Sul viam-no também de vez em quando. Num verão, sem a companhia da Sra. Coleman, tinha ido a Paris.
Vivia luxuosamente com sua esposa e com sua filha única, Mary Rose, que já tinha cinco anos e a quem ele adorava. Não se privava de nada.
Por isso, aos trinta e quatro anos, estava gordo demais, seu rosto vermelho passara a ficar manchado, o fígado dava sinais violentos de sua
existência e já tivera dois ou três ataques de gota. Mas continuava a ser “uma bela figura de homem” e era imponente agora graças à nova
corpulência e ao variado guarda-roupa, com um esplendor que seus numerosos inimigos não lhe perdoavam. A sua generosidade, a sua
magnanimidade, as suas temerárias extravagâncias não contribuíam para torná-lo simpático aos conservadores e aos piedosos.
Stuart havia construído o pequeno e confortável convento atrás da igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança e criara uma escola paroquial
ao lado do convento. Ali, os filhos dos pobres podiam ser adequadamente educados e aprendiam ofícios e trabalhos de agulha, outras ideias
revolucionárias que escandalizaram a comunidade durante algum tempo. Stuart propôs a construção de uma escola semelhante para os filhos
dos protestantes pobres e só depois de três longos anos a proposta foi aceita e, ainda assim, depois de grande esforço da parte do Prefeito
Cummings. “Dentro em pouco, ele vai abrir escolas para os negros”, diziam com indignação.
Tinha ideias para um hospital público, mas a inovação provou tanta oposição e tanto horror que ele desistiu momentaneamente de levá-la
avante. Discutia-a, porém, frequentemente, com o Padre Houlihan, que tinha entusiasmo por ela. O padre prometeu que as freiras do convento
iriam servir no hospital e Stuart sem dúvida levou em consideração a ideia, incorporando-a aos seus planos para o hospital numa determinação
que não esmorecia.
Só o Padre Houlihan e Sam Berkowitz compreendiam aquele homem impetuoso e contraditório, aquele homem de grandes e pitorescas
incoerências, cóleras e blasfêmias, de compaixão, de bondade e de fúria, de egoísmo, incompreensões e brutalidade. Sabiam que os seus
grandes defeitos vinham do excesso de suas virtudes, que lhe era intolerável qualquer sofrimento e que era essencial para a sua paz de espírito
procurar aliviá-lo.
Apesar de tudo isso, era uma eterna criança. Era esse traço infantil que o fazia ficar, como naquela noite de novembro, diante de suas lojas e
olhar, cheio de incansável admiração, para aquele fruto de seu trabalho.
Tinha esquecido momentaneamente Angus. Mas, quando viu a carruagem que esperava, praguejou em voz baixa e se dirigiu para ela a golpear
raivosamente o passeio com sua bengala de castão de ouro. O seu temperamento não melhorou com a dificuldade que encontrou em abotoar
o botão do meio da sua capa de muitas golas. Tinha bebido e comido com moderação nos últimos tempos, mas, apesar disso, continuava a
engordar. Sentiu com apreensão a onda de calor que lhe percorria o corpo. Devia ter sido o uísque que tomara demais e tudo por culpa
daquele garoto insolente. Quando passou sob a luz do lampião, mostrou o rosto excessivamente vermelho e abatido. Nas dobras das faces,
bem como nas papadas do queixo, o vermelho tinha quase um tom arroxeado. Era um rosto de plenitude e dissipação, temerário e violento. A
vida dissipada fazia um pouco difícil para ele subir à carruagem com a velha agilidade e a sua raiva contra si mesmo e contra Angus aumentou.
Tinha havido um alarmante latejar no seu pé direito gotoso. Naquele momento, estava melhorando. Quando a carruagem começou a rodar
pelas ruas vazias, Stuart teve consciência de um sadio apetite. Devia realmente começar a fazer aquele trajeto de poucos quilômetros a pé,
como lhe recomendara o médico. Iria começar no dia seguinte. Naquela noite, não beberia mais nada. No jantar, comeria apenas uma vez um
bom prato de rosbife. Sentiu-se então, depois dessas resoluções, um homem muito virtuoso e enérgico. Era uma vida triste para um homem
cheio de vida, especialmente na parte da proibição de muitos contatos com as mulheres. Entretanto, o médico lhe havia assegurado que,
depois de viver como um monge durante seis meses, ele poderia voltar a uma vida mais normal.
Tinha uma visita a fazer antes de ir para casa. A carruagem começou a entrar em ruas modestas, na parte sul da cidade. Cerca de meia hora
depois, chegou à bela casa branca do Padre Houlihan.
O padre fora atacado ultimamente de uma complicação intestinal que o deixara muito exausto. Naquele verão, tinha havido na cidade muitos
casos de tifo. O padre estava em convalescença, mas naquela época as suas funções eram exercidas por seu coadjutor, o jovem Padre
Billingsley, que vivia com ele na mesma casa. Stuart não gostava do Padre Billingsley, que era jovem, intolerante, fanático, muito empenhado
em conseguir conversões e muito severo e piedoso. Por sua vez, o Padre Billingsley também não gostava de Stuart, que o intimidava e até
amedrontava.
“Uma promessa danada de jesuíta, sou capaz de apostar!” tinha dito Stuart dele e em sua presença. Era raro que se dirigisse diretamente ao
jovem padre, tratando-o sempre pela terceira pessoa e com a maior rudeza. O Padre Billingsley era alto e emaciado na sua batina preta e tinha
um rosto longo, magro e pálido cheio de fervor religioso, no qual brilhavam olhos vivos e irrequietos quanto os de Stuart.
Quando Stuart entrou na casa do padre naquela noite, num estado de espírito não muito favorável, não procurou disfarçar a sua careta de
desagrado ao ver o Padre Billingsley sentado ao lado do Padre Houlihan, diante da lareira. O padre mais velho, de robe, xale verde e chinelos,
estava ainda muito pálido e abatido, revelando nos olhos azuis cansados, mas ainda ativos os efeitos da doença. Recebeu Stuart com um
prazer simples, estendendo-lhe as duas mãos. O Padre Billingsley, com uma expressão de censura no rosto jovem e pálido, mostrava em
silêncio que estava “aborrecendo” o seu superior, segundo pensou Stuart. Sabia apenas que, agora, quando vinha ver o Padre Houlihan, este
lhe parecia cansado e exausto, embora paciente e delicado como sempre. Stuart fechou a cara para o padre mais moço, não tomou
conhecimento de seu cumprimento e perguntou zangado por que seu amigo estava parecendo mais uma vez um rabanete descascado.
— Ora, meu caro Stuart —, disse o Padre Houlihan —, a verdade é que estou recuperando rapidamente as forças. Talvez tenha lido demais
hoje à tarde.
— Pois saiba —, disse Stuart —, que o seu aspecto é o da barriga de um linguado pescado há uma semana. Será que o Dr. Malone não vem
vê-lo todos os dias, como eu recomendei àquele carniceiro!
— Ora, Stuart, bem sabe que não deve chamar o Dr. Malone assim só porque ele acha que a cirurgia deve estender-se ao abdômen, em
contrário à opinião geral dos médicos. Carniceiro, ora essa! Foi você mesmo que sugeriu que o Dr. Malone devia dirigir o hospital —, disse o
Padre Houlihan, sem poder conter um sorriso.
— Ele não vai dirigir coisa nenhuma se não tratar melhor de você! Não permitirei que ninguém, seja lá quem for, se descuide de você ou o
aborreça!
Olhou de novo ferozmente para o Padre Billingsley, que, embora com medo, levantou a cabeça e tentou parecer severo e importante.
O Padre Houlihan segurou a mão do outro padre, sorriu para ele e disse:
— Com este amigo a meu lado, é muito difícil que alguém deixe de cuidar de mim ou me aborreça, como você diz, Stuart.
Encolhendo rudemente os ombros, Stuart olhou para o fogo. A sua atitude sugeria que nada no momento lhe seria mais agradável do que a
ausência do Padre Billingsley. Mas o jovem padre que, por uma questão de consciência, não deixava passar a menor oportunidade de resistir a
Stuart, não se retirou da sala, apesar da grande vontade que tinha. Sentou-se vagarosamente e a sua mocidade se revelou no seu olhar de
aflição e melancolia.
Num esforço para restaurar a paz na sala, o Padre Houlihan disse:
— O Dr. Malone me permitiu sair um pouco em sua carruagem, Stuart, a partir de amanhã, se isso não lhe vai causar nenhum transtorno.
— O Dr. Malone me permitiu sair um pouco em sua carruagem, Stuart, a partir de amanhã, se isso não lhe vai causar nenhum transtorno.
— A carruagem estará aqui pontualmente às duas horas! — disse Stuart e acrescentou, rindo: — Será bom vê-lo de novo na rua, velho pirata! E
daqui, a pouco, poderemos recomeçar o nosso joguinho às quartas e domingos.
Desde que o Padre Billingsley não parecia aprovar qualquer jogo de cartas aos domingos, o Padre Houlihan olhou para ele com o ar de quem
pede desculpas e murmurou:
— Assim poderemos encher de novo a caixa dos pobres. Será muito bom...
Há homens que podem insultar delicadamente. Stuart não pertencia a essa classe superior. A sua maneira de insultar o Padre Billingsley era
desconhecer por completo a presença dele, falando e agindo como se ele não estivesse na sala. Olhou para o fogo e disse:
— Talvez seja um consolo para você, Grundy, saber que me deu a gota de novo e pôs em polvorosa este meu maldito fígado.
— Eu? Como assim? Que foi que eu fiz, meu caro Stuart?
— Ih! Não me venha com essa cara de fantasma assustado! — exclamou Stuart. Apertou a mão do padre e acrescentou: — Eu não devia ter
falado assim, porque na verdade você está inocente. Quero dizer apenas que tomei seu conselho e conversei com aquele sujeitinho chamado
Angus.
— E então? Que foi que ele disse?
— Bem, só faltou me mandar para o inferno com armas e bagagens. Está claro que empreguei todos os argumentos que você gentilmente
elaborou para mim. Não adiantou nada. Disse que eu era um homem mau e ímpio, sem fé e sem coração. Estava querendo apenas transviar o
pobre cordeirinho querendo afastá-lo de sua querida mamãe. Que megera é aquela mulher! E o pobrezinho é orgulhoso como Lúcifer, insolente
e estagnado e morto como água de sarjeta! Fique sabendo que não quer saber de mais nada conosco e tudo isso é obra daquela cadela! Ela
me odeia terrivelmente, embora vivamos nestes últimos anos numa espécie de paz armada e tudo seja doçura e amabilidade entre nós. Ela
não podia deixar de fazer isso, pois do contrário não receberia mais um convite para qualquer coisa de nenhum de meus amigos.
— Espere aí, Stuart. Fale-me de Angus.
Stuart contou então todo o desagradável caso, com muitos gestos e nomes feios. O Padre Houlihan percebeu então que ele ficara
profundamente magoado, muito mais do que confessaria, mesmo a si próprio.
— Que diabo, eu gostava do garoto! Você sabe muito bem disso, Grundy! Dele e da pobre Laurie! Queria muito bem à pobre menina. Não faz
ainda uma semana que a vi nas lojas com a mãe. Que coisa linda! Vai ser uma beleza, uma mulher notável! Mas não adianta nada, Grundy.
Janie envenenou as crianças contra mim e eu não posso fazer mais nada por elas...
— Os filhos à porta —, murmurou o padre com profunda tristeza.
— Como?
— Nada, meu amigo. É uma coisa muito triste. Não pode continuar insistindo com ele?
— Não. Estou convencido de que, se eu fizer isso, ele deixará as lojas apesar do aumento de salário. Ele é assim. Orgulhoso, teimoso, cego e
cheio de razões. Tenho receio de que não haja mais salvação para ele, Grundy! Devia ver como está olhando para o dinheiro que entra nas
caixas! Parece a alegria de um demônio!
O Padre Billingsley tossiu timidamente e murmurou olhando para Stuart:
— Nunca se deve desistir de salvar uma alma.
Stuart olhou para o Padre Houlihan e disse com pesado sarcasmo:
— Acho, Grundy, que a salvação das almas é uma missão reservada a quem tem capacidade.
O Padre Billingsley ficou vermelho e já ia replicar, quando o Padre Houlihan se lhe antecipou e disse:
— Gostaria muito de que você fizesse mais pelo rapaz, Stuart. Não lhe sei dizer como deverá agir. Você conhece todas as circunstâncias muito
melhor do que eu. Posso apenas rezar. Mas sei que, algum dia, minhas preces serão atendidas. Enquanto isso, faça o que puder, ainda que
seja bem pouco.
Stuart se levantou e disse com uma insinuação bem grosseira:
— Não sou intrometido. Deixo cada homem salvar ou perder a alma à vontade. Isso é da conta dele, exclusivamente dele e, quem se meter, não
passa de uma comadre mexeriqueira, seja lá quem for!
O Padre Houlihan viu, com compaixão, que o outro padre estava todo trêmulo. Recostou-se na sua cadeira, fechou os olhos e disse:
— Muito bem! Vamos ver o que as preces podem fazer. Apesar do que diz, Stuart, sei que não vai abandonar o rapaz. Agora, outro assunto,
Stuart. Descobriu alguma coisa sobre a organização que se chama “Nada Sabe”?
— Bem, já falei sobre isso com outras pessoas e andei fazendo algumas indagações. Só sei até agora que, como você já disse, é uma
organização anticatólica e antiestrangeira. É um ajuntamento brutal e repulsivo de desordeiros, mentirosos, ignorantes e cretinos. Talvez não
acredite, mas os chefes são elementos de nosso clero. Tem havido alguns sermões bem exaltados aqui em Grandeville.
— Não sei de muito a respeito dessa organização — continuou. — Mas sei que, quando um país está agitado como este está agora em torno
da questão da escravidão, há fanáticos que tentam desviar o sentimento nacional contra uma vítima fácil, que possa ser assassinada,
enforcada ou espancada sem risco de derramamento de sangue para os atacantes ou de intervenção da lei. O país está exaltado a respeito da
escravidão e o conflito não tardará a se verificar. Os poderosos sabem que não querem a guerra, nem qualquer outra espécie de conflito com o
Sul. Imaginaram então fazer dos católicos bodes expiatórios para que o Norte e o Sul tenham em quem descarregar impunemente a sua raiva.
A intolerância, como você mesmo diz, é uma sanguessuga numa ferida; chupa todo o sangue. Os poderosos imaginaram a organização “Nada
Sabe” como uma sanguessuga a fim de impedir o povo de fazer a guerra para libertar os negros.
— É claro —, disse o padre, angustiado. — É um velho estratagema dos opressores desviar a justa indignação do povo para caminhos
indiferentes ainda que sangrentos, encontrando uma vítima cujos sofrimentos não tenham importância para eles. É o que se faz na Rússia. —
Sorriu tristemente e acrescentou: — Stuart, você é um bom homem. Deus o proteja. Faça o que puder.
Depois que Stuart saiu, Houlihan se voltou para o Padre Billingsley e disse severamente:
— Nossas mãos não estão limpas, Padre. Deus sabe que não estão. Stuart teve alguma razão em dizer o que disse. Devemos ouvi-lo pelo
bem de nossas almas, pelo bem de nossas vidas. Há lugar para todos nós aqui, para todos os homens com o coração cheio de boa vontade,
para todos os oprimidos e sofredores! Não nos devemos odiar, nem incitar uns contra os outros só porque temos crenças e costumes
diferentes. Quem é presunçoso ao ponto de dizer que está certo e os outros estão errados? Fujamos do ódio, que poderá voltar-se um dia
contra nós!
CAPÍTULO 28
Não estava na natureza de Stuart ser intrometido. Detestava todos os que vivem em constante ansiedade a respeito do bem-estar dos outros.
Para ele, isso era presunção. Além disso, julgava que aqueles que não têm capacidade de tratar da própria vida são de algum modo
desprezíveis e fracos. Ajudá-los era agravar-lhes a irresponsabilidade.
Mas as admoestações do Padre Houlihan fizeram-no chegar ao ponto em que resolveu fazer uma visita a Janie para convencê-la a desistir de
exercer pressão sobre o filho. Depois dessa decisão, ficou tão furioso que se tornou insuportável. Só Deus sabia as dificuldades com que
lutava, financeiras e particulares. Não era casado com o pior exemplo de debilidade mental congênita de toda a humanidade? Não tinha uma
filha querida cuja frágil saúde não melhorava apesar das águas de Saratoga e de longas temporadas nas montanhas? Não eram as mulheres
umas mercenárias infernais, exigentes e insaciáveis? Não tinha de cuidar de seu fígado e de um sócio que vivia a examinar a escrita e a
recomendar menos empréstimos e menos extravagâncias? Era uma vida infernal. Seus planos nunca davam certo. Joshua Allstairs não se
havia absolutamente abrandado. Stuart raramente o via e, ainda assim, de longe. Não tivera quaisquer notícias sinistras dele, mas podia vê-lo
como uma aranha, encolhida no fundo de sua horrível casa, dando tempo ao tempo, planejando a sua vingança e o momento em que pudesse
arrasar Stuart para sempre. Era enervante pensar nele dentro daquela casa em silêncio, observando e esperando. Havia ocasiões em que isso
era tão intolerável que Stuart tinha vontade de ir até lá e dizer ao odioso velho que entrasse logo em ação, que fizesse quanto antes o que tinha
de fazer!
— Você tem apenas de ser calmo e cauteloso, deixar de gastar como um louco e ficar vigilante —, dizia Sam. — Nada poderá ofendê-lo se não
partir de você mesmo, Stuart.
Era inútil explicar a qualquer pessoa e, muito menos, a Sam, com seu sonho organizado, que para uma pessoa como Stuart ser cauteloso e
vigilante, ser econômico e previdente era pior do que morrer e que ele morreria asfixiado se tivesse de contar centavos e controlar as suas
despesas. Quando pensava apenas que a compra de uma pulseira de brilhantes para uma favorita podia ser uma extravagância ou que a
compra de um velho espelho francês ou de um tapete antigo tinha de ser adiada, isso o lançava em verdadeiros abismos de depressão e
melancolia, a tal ponto que a vida lhe parecia uma prisão onde ele estava condenado a passar a pão e água. Enchia cada vez mais sua casa
de coisas magníficas e belas, amontoando-as febrilmente como um homem perseguido empilha móveis de encontro à porta para impedir que
os seus perseguidores entrem e se apoderem dele. Só o Padre Houlihan e Sam sabiam que essa era a atitude de um homem que tem medo
da pobreza e da vida, que tem um medo terrível dos outros homens.
Às vezes, ficava completa e ingenuamente surpreso ao descobrir que havia outras coisas para temer além da pobreza e da fome. Era com
incredulidade que tomava conhecimento de que outros homens temiam a perda de prestígio, de amor, da saúde, da família, dos amigos, da
posição e do poder. Espantou-se de saber que havia homens que temiam até a perda do amor de Deus!
Odiava os que não tinham dinheiro, pois de certo modo representavam uma ameaça para ele e pareciam dizer-lhe: “Como vê, é possível viver
sem dignidade, sem esperança, sem orgulho e sem salvação, sob o domínio do homem mais imundo que tenha dinheiro nos bolsos.” Desse
ódio, nascera o seu sentimento de compaixão e sem qualquer paradoxo.
Quanto mais dinheiro obtinha, maiores eram as suas extravagâncias, pois ele precisava de ter uma segurança constante de sua
invulnerabilidade. Com essa necessidade de bêbedo, seu terror místico de Joshua, a imbecilidade de sua esposa e a saúde frágil de sua
filhinha e com as constantes e ansiosas advertências de Sam, Stuart podia verdadeiramente dizer que tinha tantos problemas seus que não
precisava absolutamente de interessar-se pelos dos outros.
Apesar disso, num domingo enevoado de dezembro, foi a casa de Janie.
Tinha partido com calma suficiente na sua carruagem, resmungando e mordendo os lábios, mas capaz, em dados momentos, de cumprimentar
um conhecido que passava ou de piscar o olho para alguma bela mocinha que passava em outra carruagem ao lado de sua distraída mamãe.
Mas à medida que se aproximava da casa de Janie, mais furioso e mais confuso ficava. Passou por um bar que era um de seus preferidos.
Desde que era domingo, estava naturalmente fechado. Mas para os fregueses regulares e especiais, havia sempre uma porta dos fundos que
se abria discretamente. Ainda era cedo, quatro horas da tarde, e Stuart tinha seguido com relutância a recomendação do médico de que não
bebesse coisa alguma senão na hora do jantar. Entretanto, ao ver o bar, chegou à conclusão de que precisava de um drinque ou de mais de um
antes de enfrentar Janie.
Saltou da carruagem, deu a volta até à porta dos fundos e bateu nela três vezes com a bengala. Abriram imediatamente e ele entrou para a sala
dos fundos. Estava cheia de conhecidos seus que o acolheram com prazer.
Tranquilizado, feliz e lisonjeado, como só um homem simples pode ficar ante as demonstrações de amizade dos companheiros de bar, Stuart
sentou-se a uma mesa redonda e pediu bebidas para si e para os cinco homens que o cercavam. Travava-se uma violenta discussão política e
Stuart começou a participar exuberantemente dela.
Fora um ardoroso whig, mas entrara para o novo Partido Republicano desde que o mesmo fora formado em 1854. Fizera uma campanha
entusiástica em favor do primeiro candidato republicano, que fora derrotado havia um mês por James Buchanan, democrata e décimo quinto
presidente dos Estados Unidos. Stuart se considerava pessoalmente insultado com o resultado dessas eleições e sugeriu sombriamente que
sabia de confidências sinistras acerca do pleito.
— Prestem bem atenção ao que estou dizendo —, exclamava ele —, mas a verdade é que houve sujeira. Não estou autorizado a revelar o que
me foi dito em confiança por uma pessoa ilustre, mas me fizeram compreender que o Sul teve muita ingerência, e não de maneira honesta, na
eleição de um democrata. A camarilha escravocrata entrou em ação, podem ter certeza disso. E o pior de tudo não é isso. Essa pessoa, um
amigo íntimo meu, que mantém sempre estreito contato com a Wall Street, me assegurou que no ano que vem o país sofrerá um pânico
financeiro. Isso é aliás o que sempre acontece quando um democrata é eleito.
— Quer dizer —, murmurou um de seus amigos —, que os democratas vão ter de enfrentar uma crise preparada por seus amigos, os whigs, e
vão levar a culpa de tudo?
A discussão se acalorou. Buchanan, com suas simpatias pelos sulistas, iria atiçar a má vontade já existente entre os Estados do Norte e os do
Sul. Não tinham os escravocratas saqueado a cidade de Lawrence, no Kansas? Um louco chamado John Brown não tinha massacrado cinco
homens favoráveis à escravidão perto do rio Pottawatomie? Como é que fatos dessa natureza poderiam continuar a acontecer sem que as
chamas se ateassem a todo o país? E os democratas eram sem dúvida culpados de tudo.
— Nada disso. São os republicanos que gostam dos negros que estão causando tudo isso —, disse um dos homens.
— Eu não gosto de negros! — disse Stuart depois de tomar um grande gole de uísque. — Mas não quero a guerra e só poderemos evitá-la se
ficarmos com a cabeça no lugar.
— E que é que me dizem da decisão Dred Scott? Vai lançar todo o país em confusão. Vocês vão ver —, disse outro homem.
— Eu, por mim, só quero é ganhar dinheiro em paz! — disse Stuart, dando um soco na mesa. — Não quero ser embrulhado em nenhum
sentimentalismo meloso a respeito dos Direitos do Homem, de escravidão e de princípios. Já há problemas de sobra no mundo sem ser
preciso ir procurá-los com espadas e bandeiras, tudo em nome de Deus e da Justiça!
Mas um homem jovem, com o rosto sério e firme, exclamou:
— É esse o credo de todos os homens egoístas e enfatuados através do mundo! Sou o guardião de meu irmão?, perguntam eles, debruçados
no seu dinheiro. “Vão-se embora, não me amolem. Tenho meus negócios, minha loja, minha fábrica, minha usina de que cuidar e minhas contas
para pagar. Deus? Justiça? Misericórdia? Dignidade? Que coisas são essas? Fazem-me ganhar dinheiro, aumentam o meu saldo no banco,
são bens tangíveis? Não? Então não quero saber de nada disso!”
Olhou para os outros homens da mesa, inclusive para Stuart, que sorria ironicamente e disse:
— E então vem o caos, a ruína e a morte, como justa punição para tanto egoísmo e cobiça. Não pensem nem por um momento, meus amigos,
que quando o dia chegar, como infalivelmente chegará, algum de vocês vá escapar!
A ideia era tão acabrunhante que Stuart pediu outra rodada. Declarou:
— Não quero a guerra. Quem é que quer? Por que certas pessoas gostam de falar demais? Não estou interessado na escravidão. Nunca
pensei muito nisso, exceto como um tema de discussão. Mas tenho uma ideia! Por que os abolicionistas não pagam a cada fazendeiro um
preço justo pelos seus escravos e não libertam os negros? Afinal de contas, os fazendeiros têm um grande patrimônio investido em seus
escravos. É injusto e inconcebível que se possa sugerir que eles os libertem sem uma justa compensação. É claro que isso é inconstitucional!
— Vejam só esse patriota americano de quatro costados! — exclamou outro homem. — Há quanto tempo você está neste país, Coleman? Que
é que você sabe sobre os Estados Unidos? Afinal de contas, você é irlandês!
Diante dessa insinuação contra o seu americanismo, Stuart se levantou da cadeira com os punhos cerrados e o rosto congestionado. Dois de
seus amigos se levantaram com ele e seguraram-no. Outras pessoas na sala, percebendo com prazer a possibilidade de uma briga,
arregalaram os olhos e viraram as suas cadeiras. Esse Coleman! Esse irlandês! Não podia estar cinco minutos num lugar sem puxar uma
briga. Era muito divertido.
Stuart, debatendo-se nos braços dos que o seguravam e lhe recomendavam calma, correu os olhos furiosos pelo bar. De repente, ficou
rigidamente imóvel, como se estivesse petrificado.
Sentado a uma mesa afastada, alheio a tudo, mergulhado num atordoamento de bêbedo, um rapaz muito moço estava com a cabeça baixa
diante de uma garrafa e de um copo vazio. A luz da lâmpada lhe brilhava sobre a cabeça de fartos cabelos castanhos, sobre o rosto corado e
jovem com os olhos fechados. Era um jovem grande, vestido no rigor da moda, com calças fulvas bem justas, casaco mais escuro e camisa de
folhos. Ao lado da garrafa, viam-se o seu chapéu de castor, a sua bengala e as suas luvas. Num dedo, brilhava um anel com uma pedra
preciosa.
Stuart olhou para ele e empalideceu, enquanto os amigos o largavam ainda sem muita tranquilidade e lhe seguiam a direção dos olhos. Um
deles começou a rir sem muita vontade.
— Passa quase todo o tempo aqui, bebendo —, disse ele. — Muito moço ainda, mas talvez seja quem mais bebe aqui. Gasta uma verdadeira
fortuna em bebidas e sempre sozinho. Nunca o viu antes por aqui, Stuart?
Mas Stuart deixou a mesa onde estava e se dirigiu para a mesa do jovem. As outras pessoas na sala, percebendo-lhe a consternação e o
silêncio acabrunhado, observavam com intenso interesse. Stuart não tomava conhecimento de mais ninguém. Quem estava diante dele era
Bertie Cauder, o predileto de Janie, que dormia o sono pesado e estupidificante da embriaguez.
Stuart puxou uma cadeira e sentou-se. Sentia-se mal. Nunca tinha prestado muita atenção a Bertie, mas nos seus raros encontros com o jovem,
tinha gostado de seu jeito jovial, de seus olhos azuis cintilantes, de sua atitude que parecia implicar que a vida não passava de uma pilhéria,
mas muito agradável. Nada parecia afligi-lo. Stuart nunca o vira sem um amplo sorriso e um riso muito fácil. Era muito estimado na escola e
tinha muitos amigos. As suas maneiras eram insinuantes e encantadoras e todos simpatizavam com ele até as pessoas mais azedas e
desconfiadas. Ria das raivas da mãe e ria de Angus, da sua solenidade, do seu orgulho amargo e dos seus silêncios. Ria de Robbie, que era
seu irmão favorito, e de suas ambições. Ria de tudo. Era como um espelho liso de prata a dançar ao sol.
E estava ali agora no seu sono de bêbedo. Não era evidentemente a primeira vez que isso acontecia. Não era de admirar, pensou Stuart,
amargamente. Não tinha qualquer ocupação e não tinha ambições. Era um fraco e um tolo, como tantas pessoas sorridentes e encantadoras, a
quem todos estimavam.
Não obstante, o violento coração de Stuart estava abalado. Sentia ao mesmo tempo cólera, piedade e desgosto.
Pegou a garrafa vazia e jogou-a longe, fazendo-a quebrar-se. Olhou de novo para Bertie Cauder e, de repente, deixou de sentir raiva. Era um
rosto jovem, que se mostrava ali vulnerável e trágico perdido naquele sono de ébrio.
Colocou a mão no ombro de Bertie e disse em voz baixa:
— Vamos, Bertie! Acorde que eu vou levá-lo para casa!
Mas Bertie se balançou vagarosamente na cadeira e teria caído no chão sujo do bar se Stuart não o agarrasse pelos braços. A cabeça
descansou no peito de Stuart, como se fosse a de uma criança adormecida. Stuart olhou-o e soltou uma praga que foi quase um soluço.
Percebeu que alguém estava ao lado dele e, levantando a vista, viu que o irmão de Bertie, Robbie, estava ali, sério e reservado, com uma
tranquilidade perfeitamente indiferente. Robbie ainda era pequeno, embora tivesse já dezessete anos, com um rosto maduro ainda que magro
e muito moreno, e olhos pretos e vivos que tudo viam e com coisa alguma se perturbavam. Tudo em seu rosto era atenuado e delicado, cheio
de uma aristocracia peculiar, de um requinte trabalhado. A sua expressão era reservada, mas sem o áspero orgulho e a melancolia de Angus.
A boca delicada, fina e móvel sorria levemente. Não seguia a moda predominante dos cabelos compridos. Os seus cabelos pretos e lisos eram
cortados rente e brilhavam como o pelo de uma foca. Nas suas roupas, havia também reserva e distinção. As calças e o casaco eram da
melhor casimira preta, a camisa severa e branca e sem folhos e a gravata preta de plastron não tinha alfinete.
— Outra vez —, murmurou ele. — Quase sempre, tenho de vir buscá-lo aqui. Há um quarto aí ao lado, Stuart, onde ele costuma “descansar” até
que eu possa levá-lo para casa. Quer fazer o favor de ajudar-me?
Um fluxo de ódio se espalhou pelo rosto de Stuart. Como sempre, Robbie fazia-o sentir-se inadequado, pesado, espalhafatoso e absurdo.
— Se não é a primeira vez que isso acontece, por que sua querida mamãe ainda não tomou alguma providência? E você mesmo? Ele não é
seu irmão predileto? Por que nunca fez nada?
Robbie olhou-o com indiferente gravidade e disse com uma nota de censura na voz:
— É justamente o que estou procurando fazer. Quer ter a bondade?
Pegou um dos braços de Bertie enquanto Stuart pegava o outro e, juntos, puseram de pé o inconsciente Bertie. Um pouco arrastando-o e um
pouco carregando-o, abriram uma porta e chegaram a uma pequena sala escura onde havia várias cadeiras, uma mesa e um sofá vergado no
meio. Robbie estava perfeitamente calmo. Não olhou uma só vez para as outras pessoas no bar. Era como se às considerasse criaturas sem
importância, que só tinham existência quando alguém lhes queria concedê-la. Fechou a porta calmamente depois de passar. Todos os seus
gestos eram repassados de autoridade e decisão.
Sentaram Bertie no sofá, encostando-o à parede. Vinham-lhe da boca golfadas de uísque azedo. A cabeça lhe descambou para o peito e ele
deu um suspiro. As mãos pendiam inertes ao lado dele. Eram grandes mãos brancas, cheias de joias e bem tratadas como as de uma mulher.
Stuart ficou parado ao lado do sofá, sentindo crescerem-lhe a raiva e o desgosto. Irritavam-no também as maneiras de Robbie. Tudo isso se
acumulou e o fez levantar a mão e bater em Bertie primeiro numa das faces e depois na outra.
— Acorde, idiota! — exclamou ele. — Cretino miserável e indigno! Acorde e se envergonhe de si mesmo!
Robbie sentou-se numa cadeira ao lado e começou a olhar Stuart com um leve sorriso, ao mesmo tempo que brincava com a corrente do
relógio estendida de um para outro lado do colete de seda preta florida.
— Ele já vai acordar, Stuart —, disse ele calmamente. — Não é preciso agitar-se tanto, por favor. Se quiser ficar sentado durante algum tempo,
a não ser, é claro, que tenha outros e mais urgentes compromissos, vai ter o prazer de ser ouvido por ele.
Stuart afastou rudemente uma cadeira da mesa, plantou-a a considerável distância de Robbie e olhou o jovem com raiva.
— Seu irmão predileto! E você nem cuida dele!
Robbie olhou calmamente para o irmão. Por um instante, os vivos olhos pretos se suavizaram e o sorriso desapareceu. Disse então, olhando
ainda para Bertie:
— Gosto muito dele de fato. E ele se sente feliz assim. Quem sou eu para interferir com a sua felicidade?
— Como é que pode dizer uma coisa dessas? Acha então que esse torpor de embriaguez possa ser felicidade? Acha que, quando um homem
faz esse papel vergonhoso e cai nessa degradação, ninguém deve fazer nada para impedi-lo?
Robbie ficou durante algum tempo em silêncio, como se meditasse. Disse por fim:
— É evidente que você não compreende, Stuart. Você acha que se pode impedir isso, que se pode fazê-lo sentir a vergonha disso, que é
possível salvá-lo por meio de exortações e eu lhe digo que nada pode ser feito.
Continuou brincando distraidamente com a corrente do relógio:
— Por exemplo, você bebe, Stuart. Mas não é um bêbedo apesar das quantidades sem dúvida consideráveis de álcool que ingere. Como vê,
há uma diferença entre você e Bertie, entre você, que bebe, e Bertie, que é um bêbedo. Acha muito sutil a distinção?
— Está falando como um jovem paspalhão presunçoso —, disse Stuart com rudeza;
Robbie sorriu e sacudiu polidamente a cabeça.
— Talvez eu não me tenha expressado de maneira bem clara, Primo Stuart. Estudei esses assuntos e tive uma longa conversa com meu
médico, o Dr. Gibson. Há toda uma bibliografia sobre o assunto, que eu tive ocasião de consultar.
“Por exemplo, como disse e sem nenhuma intenção de ofender, você é um bebedor. Mas você tem sempre um motivo para beber. Está com
raiva e bebe alguns copos. Você está deprimido e sempre por uma razão boa e suficiente bebe uma certa quantidade. O uísque é para você
um anestésico que entorpece as sensações muito agudas que o afligem. Quando estas estão entorpecidas, você pára de beber. Bebe com os
amigos pelo convívio e pelo companheirismo. Em suma, você bebe, mas sempre por algum motivo. Mas Bertie bebe sem motivo, sem qualquer
motivo. Por isso é que é bêbedo.
Stuart continuou a olhar Robbie com superioridade, mas também com alguma confusão. Sentia-se com o seu corpo enorme desajeitado diante
daquela elegância jovem, precisa e esclarecida.
Robbie continuou calmamente:
— Há outra distinção entre você e Bertie e que não é tão sutil assim. Você gosta do sabor da bebida e a aprecia, não apenas pelos efeitos que
produz ou porque lhe permite gozar uma boa companhia. Ora, nenhum bêbedo gosta da bebida. Detesta a bebida, fica sufocado com ela. Um
homem que gosta da bebida sempre se controla. Mas o homem que bebe e bebe sozinho, sem qualquer motivo aparente, é um homem que
não pode parar.
Tudo isso era demais para o simples Stuart. Olhou fixamente para Robbie e disse com elaborado e inútil sarcasmo:
— Com toda a certeza, nenhum de vocês jamais exortou esse jovem idiota a ser um homem, não é mesmo?
— O problema é justamente esse, Stuart. Bertie não quer ser um homem.
— Como assim?
— É exatamente isso, Primo Stuart. Ele não quer ser um homem. De vez em quando, sente a pressão para ser um homem dentro de si mesmo.
Mas resiste. A resistência dele é beber. Quando bebe, torna-se completamente irresponsável, incapaz de ser um homem e libertado dessa
necessidade. Torna-se de novo uma criança que deve ser cuidada, guardada, amada e protegida. Ninguém espera que ele cuide de si mesmo.
Vem a ser de novo a criança negligente.
Robbie cruzou as mãos lentamente no colo e contemplou Stuart pensativamente.
“Quem pode dar força a Bertie? Nasceu com esse núcleo essencial de fraqueza. Nada pode fortalecê-lo. Nada pode dar consistência a esse
núcleo gelatinoso. Não temos o poder de ajudá-lo. Só ele poderá ajudar-se e eu duvido até disso. O homem inerentemente fraco não tem
vontade, nem quer ter. Não quer enfrentar os trabalhos, as adversidades, os deveres e as responsabilidades da vida adulta. Nada pode fazê-lo
enfrentá-los. É inútil. Podemos apenas conservá-lo feliz até que ele morra dessa aflição.
— Você é um demoniozinho cruel! — exclamou Stuart.
— Não, Primo Stuart. Sou realista. Não pense que sou insensível ao sofrimento de nosso insuficiente Bertie. Mas nada posso fazer. Posso
apenas observar e assisti-lo quando a sua infantilidade o leva a situações como esta.
Stuart olhou para Robbie em silêncio, sentindo alguma coisa que se parecia com um medo humilde e em que havia muito ódio impotente.
Robbie olhou para o irmão com frieza e disse:
— Ele deve ter bebido muito desta vez. Saiu de casa de manhã cedo. Essa bebedeira começou há quatro dias. Em geral, quatro dias são
suficientes. Mas este já é o quinto dia e ele ainda está bebendo. Acho que vou ter de esperar até que ele possa andar.
Stuart se levantou, sentindo-se terrivelmente deprimido.
— Estou com minha carruagem aí fora. Ia mesmo fazer uma visita a sua mãe. Podemos levar Bertie.
— Ah, muito obrigado, Stuart. Isso vai facilitar muito as coisas. Quer-me ajudar? Creio que nós dois poderemos levá-lo.
— E sua mãe, Robbie? Que é que ela pensa de tudo isso?
— Bem, às vezes, ela pensa que ele é um ótimo rapaz. É quando está bem-humorada. Ela admira um homem que bebe. Acha isso viril ou, pelo
menos, creio que é essa a sua opinião. Mas, quando não está bem-humorada, briga, insulta-o e até bate nele. Isso denota apenas
incompreensão da parte dela.
— Ela dá dinheiro demais a ele.
Robbie sorriu como se isso fosse a observação absurda de alguma criança.
— Fique certo de que Bertie, se não tivesse dinheiro, venderia qualquer coisa ou roubaria alguém a fim de poder beber. Mamãe tem algum
respeito por minha opinião. Consegui convencê-la de que deixar de dar dinheiro a Bertie não seria bom nem para a reputação da família, nem
para o próprio Bertie. Não seria conveniente reduzir-lhe a mesada ou privá-lo completamente de dinheiro. Isso só serviria para criar problemas
maiores para ele e para todos nós. É muito melhor para ele ter o dinheiro para comprar todo o uísque que quiser. Pode ficar certo, Stuart, de
que ele precisa desesperadamente disso. Levo sempre uma garrafa para casa para ele, pois, do contrário, morreria ou ficaria louco.
— Já teve uma dessas suas conversas de ministro com ele? — perguntou Stuart, que não queria aceitar a fria e terrível sentença de Robbie
sobre o irmão.
Robbie apertou os lábios para não sorrir de novo.
CAPÍTULO 29
Angus tinha o costume de ler para sua mãe nas tardes de domingo. Não concordava com os livros que ela escolhia, mas tinha o dom de trancar
resolutamente a consciência a tudo o que lhe desagradava ou era reprovável. Podia ler em voz alta durante horas, numa voz excelente, grave e
bem modulada sem guardar uma simples frase ou o menor conceito de tudo o que tinha lido. As cenas voluptuosas descritas nos romances
amorosos passavam por ele como nuvens que não mereciam atenção. Os mais ardorosos encontros de alcova não lhe faziam sequer corar o
rosto pálido. Os diálogos brilhantes e espirituosos não lhe despertavam absolutamente o senso de humor. Janie observava-o às vezes com
divertido interesse enquanto ele lia, não compreendendo a sua falta de desconcerto ou emoção. Ficava deitada na sua chaise-longue, com uma
mantilha ou um xale de rendas sobre os ombros magros, provando de vez em quando um bombom ou um gole de chá e escutando atentamente
e com evidente prazer.
Tinha já quase quarenta anos e precisava de óculos para ler. Mas a sua vaidade e o ódio e o medo que tinha de envelhecer não lhe permitiam
confessar essa necessidade.
Por isso, reclinava-se confortavelmente e fazia Angus ler para ela. Ele não reclamava, embora sugerisse às vezes trechos da Bíblia ou páginas
mais apropriadas para o domingo. A reação pronta, violenta e muitas vezes blasfema de Janie a tais sugestões fizera-o desistir. Havia
ocasiões em que Janie o olhava fazendo conjecturas fantasiosas ou cínicas enquanto ele, sentado numa cadeira sem braços, levantava o livro
nas mãos e lia sem que o seu jovem rosto sério refletisse qualquer expressão provocada pelas coisas da leitura.
Naquele domingo, Janie estava de muito bom humor. Lá fora, o céu era como estanho polido, rebrilhante da luz difusa do sol. Os galhos negros
das árvores se entrelaçavam do lado de fora das vidraças, perto das quais estava ela na sua chaise-longue. Podia olhar para o sossego
dominical da rua lá embaixo e ver de vez em quando as carruagens que passavam pela calçada. Ao longe, a cruz no campanário de uma igreja
brilhava à luz refletida. O som dos sinos anunciava o serviço vespertino. O fogo crepitava na lareira de mármore e lançava longos reflexos
rosados sobre a sólida mobília preta, que era toda conforto e mau gosto. A cama com dossel onde ela dormia era branca e coberta de colchas
de rendas e pequenas almofadas. As cortinas das janelas eram de seda rosa e muito ricas e pesadas, de acordo com o gosto de Janie. Numa
mesinha ao lado dela, estava a bandeja do chá com todos os seus acompanhamentos, inclusive scones que ela ensinara a cozinheira a fazer.
O chá fumegava no bule de Limoges, o fogo crepitava, o céu cor de estanho estava sem nuvens, os sinos enchiam o ar de um suave murmúrio e
a casa estava em silêncio. Só a voz de Angus se elevava, fluida, eloquente e clara. Era preciso apenas um leve esforço de imaginação para
que ela se julgasse na Inglaterra e não em terra estranha.
Comprara aquela alta e estreita casa de tijolos logo depois de sair da fabulosa mansão de Stuart. Num espírito de contrição, ela conseguira
comprar a casa bem abaixo do seu preço original. Era feia, com os seus três andares de altura, os seus corredores escuros, as suas escadas
inesperadamente estreitas e os seus quartos quadrados e de pé direito alto. Mas era também muito confortável, quente no inverno, fresca no
verão e espantosamente seca para Grandeville. Sombria, inexpressiva e triste, com uma varanda de madeira, janelas estreitas, enfeites de
madeira e pequenas excrescências de pedras que fingiam sacadas, a casa era respeitável e ficava na segunda rua da cidade e era cercada
de outras casas semelhantes. O gramado em frente à casa era estreito, marginado de sebes, pardacentas naquele inverno, e grandes árvores.
Mas o terreno era bem grande. Havia um jardim nos fundos, uma boa cocheira e outras construções. A rua era chamada Avenida Porter e
ficava bem perto do rio. Ficava perto também do quartel, onde havia uma guarnição de soldados penosamente conscientes da proximidade do
Canadá. Janie ouvia todas as noites com muita clareza o toque de recolher e às vezes também a alvorada. Isso nunca deixava de interessar-lhe
e de fazê-la vibrar. De vez em quando, os soldados marchavam pelas ruas perto do rio, muito alinhados e sérios, ao som de tambores e clarins,
com as bandeiras desfraldadas e os oficiais muito garbosos nos seus cavalos pretos. Havia especialmente um, de grandes bigodes e ombros
excelentes, que nunca deixava de fazer-lhe continência quando ela corria à janela para ver. Era tudo muito romântico.
Tinha apenas duas empregadas e fazia ela mesma grande parte do trabalho, polindo as pratas, remendando e bordando com muita perícia.
Gostava de ordem e de limpeza e não tinha a menor dúvida em ajudar para que tudo saísse a seu contento. O seu vigor natural, que não havia
absolutamente diminuído com os anos, encontrava uma afortunada vazão nesse trabalho.
De um modo geral, vivia bem contente. Tinha o dom feliz de ajustar-se às circunstâncias e sentir prazer onde quer que estivesse. Era muito
admirada em Grandeville, especialmente pelos homens, e desde que era hospitaleira, divertida e alegre, os seus convites para jantar eram
pressurosamente aceitos. Pela primeira vez na vida, tivera o cuidado de cultivar a amizade das mulheres e tinha muitas amigas sinceramente
dedicadas, não tendo quase inimigas. Janie não era mulher para dar murros em faca de ponta. Como o vinho, enchia os cálices do meio em
que vivia e cintilava convidativamente neles.
A princípio, tinha pensado em casar-se. Mas nenhum marido possível lhe havia agradado entre aqueles gordos negociantes, curtidores,
negociantes de cavalos, açougueiros, banqueiros e vendedores de terrenos. Além disso, o ar de Grandeville parecia favorecer a longevidade
das mulheres e os viúvos eram poucos.
Suportou muito bem sua velha humilhação. Depois de um breve intervalo, tinha convidado Stuart com sua nova esposa para jantar e deu uma
festa para eles. Durante esse jantar, tinha sido uma hostess perfeita, inundando-os de olhares repassados de carinho, falando muito em “minha
cara Marvina” e repreendendo afetuosamente Stuart por ter-se esquecido dos parentes durante o período embevecido da lua-de-mel,
perdoando-o num tom gentilmente malicioso, implorando aos outros convidados que o amassem e perdoassem com olhares muito comovidos.
De um modo geral, saiu-se excelentemente e Stuart, ruborizado e confuso, ficou-lhe muito grato por isso.
Ela chegara a enganar Stuart, que chegou a visitá-la sozinho, acreditando ingenuamente na reforma de Janie. As primeiras visitas dele tinham
sido recebidas com insultos, recriminações e pragas. Tinha jurado nunca mais ir vê-la. Mas Janie, estreitando maliciosamente os olhos verdes,
dera gargalhadas e gritara: “Duvido que tenha essa coragem, cachorro!” Entretanto, embora ele continuasse a visitá-la sozinho, as suas visitas
eram, para manter as aparências, poucas e bem espaçadas. Posteriormente, uma paz precária começou a reinar entre eles e, então, Janie
passou a apreciar a companhia dele. Com ele, ela podia ser natural. Sabia que ele tinha medo dela e a odiava, mas sabia também que podia
diverti-lo.
Ia fazer visitas a ele e a Marvina, mostrando-se tão simpática e afetuosa com a moça que Marvina a adorava. Levava sempre em sua
companhia um de seus filhos e às vezes mais de um.
A prosperidade das lojas lhe assegurava uma boa renda que ela administrava sabiamente porque possuía naturalmente bom tino comercial. O
resto de seu dinheiro estava depositado num dos bancos de Joshua e lhe rendia juros bastante agradáveis. Tinha mesmo comprado alguns
terrenos a conselho de Stuart e os revendera com bom lucro.
Havia, portanto, muita razão para o seu contentamento. Se seu espírito vivia a fazer planos, não havia ainda qualquer sinal deles. A grande
saúde e a vitalidade de que dispunha faziam-na gozar a vida, gozá-la dia a dia de uma maneira que não estava ao alcance de uma mulher
“verdadeiramente virtuosa”.
Gostava muito daquelas tardes de domingo quando Angus lia para ela durante horas depois de um almoço farto, bem servido e bem feito.
Cochilava às vezes. Inclinava a cabeça ruiva nas almofadas e sorria suavemente nas fronteiras do sono.
Não cochilava naquele domingo. O romance era muito interessante e a incongruência de Angus ler aquelas passagens quentes era muito
divertida para que ela deixasse de gozá-la.
Ela o olhava, sorrindo, enquanto ele lia:
“E então, preparada para dormir com um vaporoso robe branco que lhe revelava toda a inocente e provocante formosura, Lady Isobelle foi até à
janela e olhou para os jardins banhados pelo luar. Os cabelos negros lhe desciam pelos ombros de mármore em ondas de ébano. Abriu a
vidraça e o luar se derramou numa chuva de prata sobre a gentil forma redonda dos seios mal ocultos. Ela levantou os olhos para as estrelas e
implorou em voz alta: “Não deixeis que ele venha procurar-me esta noite, queridas que guardais minha pureza e minha honra, porque decerto
não poderei resistir-lhe mais.
“Mas houve um toque rápido e furtivo na porta do quarto e esta foi instantaneamente aberta, porque a bela e inocente criatura se esquecera de
trancar a última barreira que a protegia da lascívia de seu pretendente, o qual, desprezando a sua situação indefesa e sabendo que nenhum
grito dela poderia acordar a irmã que dormia e compreendendo que nunca, nunca ela permitiria que a irmã soubesse que o marido a quem
adorava perseguia licenciosamente a gentil e desprotegida Lady Isobelle, se aproveitava audaciosamente de todas essas coisas. Ele a viu
entre os reposteiros da janela banhada pelo luar, palpitante como uma corça acuada, com todo o seu corpo brilhando através das dobras
diáfanas do robe, a cabeça inclinada para trás, o seio perfeito à mostra e o rosto branco como a neve. Com um gemido selvagem, ele avançou
para ela, comprimindo os lábios ardentes nos lábios, no pescoço, no seio da moça, enquanto ela se quedava em seus braços, soluçando e
incapaz de resistir-lhe. Quando ele a levantou num ímpeto e a carregou para a cama, ela não soube de mais nada.”
Angus fez uma pausa para virar a página. Os seus movimentos eram calmos e alheados. Pigarreou automaticamente pois já fazia horas que
estava lendo da perseguição e sedução da desesperada e indefesa Lady Isobelle. A sua fisionomia austera e pálida era como a de uma
estátua, imutavelmente reservada e séria, com o olhar sem pressa. O longo corpo magro no fúnebre terno preto despertou o senso de humor de
Janie e ela começou a rir.
Ele olhou para ela com fria surpresa.
— Foi o fim do capítulo, Mamãe. Quer que eu comece outro?
Mas Janie estava convulsionada pelo riso. Angus olhava-a, espantado.
— Em que é que está achando tanta graça, Mamãe?
Janie parecia quase jovem quando ria sem reservas. Os anos lhe haviam avivado as feições. Mas os olhos conservavam a sua vivacidade, os
cabelos ainda estavam com a cor natural, embora secretamente ajudados, e seus ares e sua graça persistiam. Usava um peignoir de veludo
verde-escuro, com um xale de renda branco passado pelos ombros e seu pescoço e suas mãos resplandeciam de joias.
— Ora essa, Angus, você parece feito de pedra! — exclamou ela afinal, quando pôde ter fôlego. — Meu Deus, você já tem mais de dezenove
anos e não sabe mais do que um pinto na casca. Por favor, veja meus sais! Você quase me fez sufocar!
Angus, confuso, entregou-lhe o vaso cinzelado de sais que foi apanhar em cima da penteadeira. Ela aspirou os fortes vapores perfumados duas
ou três vezes, riu, sacudiu a cabeça e arrolhou o vaso. Tornou a cair nas almofadas, exausta de tanto rir, e olhou firmemente para o filho.
— Sente-se, Angus —, disse ela de repente numa voz calma e cheia de intenções.
Ele se sentou obedientemente, porque a obediência era o seu pecado capital.
Olhou atentamente para a mãe. A inexplicável dedicação que tinha por ela aumentara com o correr dos anos em lugar de diminuir. O seu severo
e austero egotismo impossibilitava-o ainda de pensar qualquer mal daqueles sobre quem lançara o seu amor como um manto rutilante.
O pobre e infeliz jovem sabia tudo sobre o “pecado”, mas nada sabia sobre o mundo dos homens e sobre a imortal perversidade destes.
Estava a ponto de ser um grande apóstolo ou um grande vilão. A intenção de Janie era de que ele fosse vilão pois assim poderia servi-la. Ela
era muito hábil. Sabia da dedicação que ele tinha por ela e isso, embora a divertisse, enchia-a de escárnio. Mas compreendia que se tratava
de uma arma que podia ser usada contra Angus e contra aqueles a quem ela odiava.
— Como vão as lojas, meu bem? — perguntou ela, com uma súbita mudança de tom.
— Muito bem, Mamãe. Quase não temos tempo de atender a todas as encomendas.
Passou então a língua furtivamente pelos lábios, ao mesmo tempo que seus olhos cinzentos brilhavam. Janie sorriu consigo mesma, satisfeita.
— Você teve muita razão em falar com Stuart como falou, meu bem —, disse ela, pensativamente. — Orgulho-me de você. É incrível pensar que
ele tenha tido a audácia de tentar convencê-lo a desobedecer a sua pobre mamãe, que tanto tem sofrido há tantos anos! Mas não vamos falar
mais nisso. Não guardo dele o menor rancor. É tão aborrecido guardar rancor, Angus! E, além do mais, é preciso ter muito boa memória...
“Você sabe que o meu desejo secreto é de que um dia você seja o proprietário das lojas. A maneira de conseguir isso temos de deixar nas
mãos de Deus. Espero poder um destes dias comprar um interesse maior nas lojas e, como é natural, meu interesse será de meus filhos.
Deu um suspiro. Angus estava rígido em sua cadeira e olhava-a com apaixonada intensidade.
— Meu amor —, disse Janie com voz firme, depois de alguns momentos de silêncio —, sempre lhe disse que o dinheiro é tudo neste mundo
velho e mau. Você acredita em sua mãe, não é? Afinal, sua mãe já viveu bem mais do que você e tem maior experiência da vida. Obrigada,
meu bem, vejo que você me compreende. E é por isso que devo, embora possa ser acusada de indelicadeza, puxar o assunto de Gretchen
Schnitzel.
Ao ouvir isso, Angus se tornou ainda mais pálido. Murmurou então com voz débil e constrangida:
— Mas, Mamãe, embora a Srta. Schnitzel seja sem dúvida uma moça exemplar e muito digna, não tem o menor interesse para mim.
Janie, escandalizada com essa atitude, levantou o corpo na cadeira, deixando o xale escorregar-lhe dos ombros, e exclamou:
— Não lhe interessa? Que coisa odiosa, indelicada e imprópria você disse! Que quer dizer com isso? Responda-me imediatamente!
Angus se encolheu na cadeira. As longas mãos brancas que mostravam os dedos de um cirurgião tremeram. Passou a língua pelos lábios
secos e murmurou:
— Tenha calma, por favor, Mamãe. Olhe seu coração. Não gosto de Gretchen Schnitzel, Mamãe. Desculpe, mas a acho repulsiva. É gorda e
branca como uma manta de toucinho e baixa como um barril. Os cabelos são claros, mas ásperos e os olhinhos azuis parecem de um porco.
Depois, ela é alemã, Mamãe, e eu nunca pude gostar de alemães.
Janie então replicou tranquilamente:
— Eu gosto de todo o mundo que tem dinheiro. Será que já se esqueceu com tanta rapidez de minhas lições? Já consultei com você a Bíblia
que nos assegura que Deus ama o homem de riqueza e de posses e despreza o pobre. Isso não o convence? Quem tem dinheiro, seja um
cachorro, seja um alemão, é respeitado por Deus e pelo mundo. Não vou repetir tudo isso para você. Você sabe de tudo isso e, se já se
esqueceu, é um idiota.
Deu de repente uma risada cujo som não foi nada agradável.
“Gretchen é a herdeira do pai, herdeira dos curtumes, das contas de banco e das propriedades dele. Ela é o grande partido de Grandeville. Só
Deus sabe por que ela voltou os olhos para você, Angus! E só Deus sabe por que os dignos papai e mamãe dela não puseram você pela porta
a fora, sempre que você foi visitar a família! Não costumo discutir os ditames da sorte. Gretchen lhe é favorável; o papai e a mamãe dela lhe
são favoráveis. Parece-me que isso basta.
Deu então um soluço convulsivo e cobriu o rosto com as mãos cheias de joias. Angus se levantou e deu um passo na direção dela. Ela tirou as
mãos do rosto e mostrou as faces autenticamente banhadas de lágrimas.
— Você iria destruir todas as minhas esperanças, você, meu filho? Acha que dinheiro se tira do ar? Não pensa um só instante na subsistência
de sua pobre mãe? Devem seus irmãos passar fome? Temos de ser o alvo da chacota dos imbecis e dos patifes? Como poderemos elevar-
nos acima de nossos inimigos sem dinheiro?
“Não compreende então que para que minhas ambições sobre meus filhos se realizem, precisamos de dinheiro, não algumas miseráveis libras,
mas muitos milhares delas? As lojas! Como poderemos herdá-las e apossar-nos dela, se não tivermos dinheiro? E o dinheiro está à sua
disposição na pessoa de Gretchen Schnitzel! E você ainda tem a coragem de me dizer que não se interessa por ela!
— Mamãe!
Mas ela o olhou com franca aversão e deliberadamente se afastou dele.
— Não me toque, Angus! Você é um filho ingrato, a quem eu criei com ternura e amor, fundando em você todas as esperanças, rezando pelo
dia em que você nos vingaria de todas as humilhações que nos foram impostas! Pode ir-se embora, Angus! Afaste-se da vista de sua aflita
mãe, cujo amor e cuja devoção você tem inteira liberdade de desprezar! Pode rir das tristezas e dos sonhos desta pobre infeliz. Pode dar as
costas a Gretchen Schnitzel e ao dinheiro dela que nos poderiam salvar!
Ele olhou para ela com um desespero tão profundo que outra mulher menos resoluta teria ficado abalada. Mas ela, percebendo esse
desespero, falou com maior tristeza ainda e inconsolável dor. Encolheu-se no fundo da sua cadeira, como se estivesse completamente
abandonada. Sacudiu a cabeça, suspirou e fechou os olhos.
— Pode ir, Angus, é um favor que lhe peço —, murmurou ela em voz débil. — Mande Daisy falar comigo. Não, mande Laurie, minha filha, minha
pobre filhinha. Deve haver nesta casa alguém que não seja insensível aos meus sofrimentos.
Mas Angus sentou-se na beira de sua cadeira, com as mãos abertas sobre os joelhos. Estremeceu violentamente e seu coração se abalou.
Pensou então em Gretchen Schnitzel e um profundo sentimento de repulsa o sacudiu. Mas ele o dominou com fanática energia, represando a
náusea que lhe subia à boca.
Foi então que, de repente, por uma das mais estranhas e misteriosas razões, ouviu o eco distante de um canto heroico e num relance viu o
selvagem rosto branco e os olhos ardentes de um homem que lhe haviam ensinado durante muitos anos a odiar. Fazia muitos anos que não
ouvia aquele canto, nem via aquele rosto e seu coração se abriu para ele espontaneamente, como um pássaro que voa da escuridão para a luz.
E então, de tal modo estava desorientado, destorcido e deformado que esse rosto e essa voz lhe pareceram maus e essa visão lhe surgiu
como uma advertência. Devia ser isso, pensou ele. Não havia outra explicação. A última vez em que tivera essa visão de seu pai foi quando
fizera o último apelo à mãe para que esta o deixasse estudar medicina. Como nessa época a voz tinha sido forte, perversa e exultante! Fugira
da mãe enfurecida para ir conversar com o ministro, que lhe dissera solenemente que seu primeiro dever era obedecer à mãe, que sabia mais
e tanto se havia sacrificado por ele. Era a vontade de Deus que os pais fossem honrados e obedecidos. Qualquer opinião em contrário só
podia ser inspirada pelo demônio.
Aquela exaltação espontânea do coração tinha sido então esmagada por ele com piedoso entusiasmo. E nunca mais se repetira até aquele
dia.
Aprumou o corpo na cadeira. O rosto e a voz se desvaneceram, num último brilho, num derradeiro eco, mergulhando nos abismos do
desesperado esquecimento. Vencera mais uma vez o seu eu pecaminoso.
— Mamãe —, disse ele com voz clara —, por favor, escute. Você está certa e eu estou errado. Perdoe-me.
Mas Janie não se moveu logo. Continuou como se estivesse sucumbida e perdida. Mas abriu lentamente os olhos e olhou para Angus. Viu o
rosto tenso e pálido, os olhos ardentes. Viu a sua humildade, a sua exaltação, o seu amor por ela, a conquista dos seus mais profundos
instintos, a violação de si mesmo. Viu a sua inocência que, estranhamente para Janie, agora lhe parecia uma coisa terrível e patética.
Janie não tinha consciência. Mas houve naquele momento nela uma incômoda e curiosa efervescência que ela não pôde de pronto controlar.
Nunca tinha amado Angus. Desprezara-o e ridicularizara-o sempre. Não obstante, ao olhá-lo naquele momento, a efervescência lhe encheu o
coração e lhe fez chegar um aperto à garganta. Sentiu até um ridículo impulso de gritar: “Vá-se embora daqui idiota, e nunca mais olhe para
aquela gorducha ridícula, está bem?”
Mas, felizmente, ao mesmo tempo que essas incríveis palavras lhe tremeram na ponta da língua, a razão e o bom-senso tomaram a assumir o
comando dentro dela. Fingiu um sorriso de ternura e de perdão e estendeu languidamente a mão para ele.
— Meu filho querido, perdoe sua mãe se ela foi muito severa ou se deixou levar demais por suas emoções. Eu devia saber que meu amor
sempre acabaria vendo o caminho do dever.
Ela estava tremendo e pela primeira vez o tremor não era fingido. Era genuíno. Como ela estivera perto de ser derrotada! Como tinha sido bom
que ela se tivesse calado antes que as palavras insensatas e terríveis lhe saíssem dos lábios! Que era que tinha havido com ela? Que loucura,
que estupidez!
Angus se levantou prontamente e tomou-lhe a mão.
— Oh, Mamãe! Quem deve pedir perdão sou eu! — Deu um profundo suspiro e acrescentou: — Amanhã mesmo pedirei ao Sr. Schnitzel que
leve em consideração as minhas pretensões à Srta. Gretchen.
Ela sorriu para ele com a vivacidade que lhe era tão peculiar e fascinante. Bateu carinhosamente na mão dele e disse com uma alegria de
antecipação:
— Você vai ver! Faremos com eles o mesmo que fizeram conosco! Vão amaldiçoar o dia em que nos espezinharam! Vão ver!
Levantou-se e começou a mover-se como se fosse uma mocinha. Andava no quarto de um lado para outro, rindo e sacudindo os cachos ruivos.
Era toda energia e vida e o robe lhe rodava em torno das sandálias que lhe cobriam os pés pequenos e às vezes se levantava nos volteios,
mostrando as pernas magras, calçadas de meias de seda. Parecia quase bela na sua alegre veemência e Angus a contemplava.
Ela se havia esquecido dele. Mas quando afinal o viu, quase o amou pelo triunfo que lhe ia proporcionar. Parou diante dele, bateu-lhe
carinhosamente no braço e riu alto.
— Você é um bom rapaz, meu querido. Que faria eu, uma viúva sozinha e abandonada como eu sou, se não tivesse um homem como você
dentro de casa?
De repente, o rosto dela ficou inquieto e preocupado. Correu os olhos em torno, como se estivesse procurando alguma coisa.
— Onde está Bertie? Por onde tem andado ele? Há dias que não o vejo!
O rosto de Angus se fechou. Tinha-se tornado muito hábil em proteger a mãe do conhecimento das bebedeiras do irmão até o último dia em
que ele entrava em colapso. Era assim que Janie ainda não sabia que o colapso era o final de muitos dias de bebida. Por mais incrível que
fosse, acreditava ainda que o dia do colapso era o primeiro dia e que o que acontecia apenas era que Bertie ainda não sabia aguentar a
bebida como um homem.
Quando Angus hesitou, procurando um meio-termo entre a verdade e as evasivas, ela perguntou estridentemente:
— Onde está ele? Não me diga que está bebendo de novo!
— Não tenho certeza, mas creio que ele falou em ir fazer uma visita a Alice Cummings.
Janie se acalmou e sorriu.
— Então é isso, hem? Mas ela é ainda muito criança. Que idade tem ela, Angus?
— Quinze anos, se não estou enganado, Mamãe.
— É verdade, é verdade. A mãe dela me disse, mas eu me havia esquecido. Não é mais tão criança assim. E, afinal de contas, a escolha de
Bertie não é má. Ali há dinheiro! — Deu uma risada. — Eu sabia que Bertie ia usar a cabeça, o cachorro! — Pensou no filho predileto e um
assomo de ternura lhe suavizou os olhos. — E vai indo bem nos estudos também. Como, não sei, porque nunca o vejo pegar num livro, mas o
Sr. Braithe me disse que foi um dos alunos mais brilhantes que já passaram pela escola.
— É, sim —, disse Angus mecanicamente.
— No ano que vem —, disse Janie toda feliz —, ele irá trabalhar nas lojas. Bertie sabe o que quer.
Angus olhou para as mãos e não disse nada. Janie olhou para ele com impaciência e fez um gesto de encerramento da conversa.
— Estou com dor de cabeça, Angus. Mande Laurie vir escovar-me os cabelos. Ela nunca se lembra por si mesma. Como é horrível ter uma filha
negligente!
Angus se encaminhou em silêncio para a porta, muito rígido e emaciado no seu terno preto. “Parece um agente funerário”, pensou Janie,
sentindo vontade de rir. Talvez tivesse sido melhor botá-lo para trabalhar como coveiro. Seu Bertie e até o antipático Robbie a serviriam bem
melhor nas lojas. Mas não, refletiu ela, nenhum de seus dois outros filhos tinha aquele instinto inerente de rapacidade e cobiça que transparecia
com tanta força sob o exterior piedoso e gentil de Angus. Que era que Stuart lhe havia dito sobre ele e que a surpreendera tanto pela sua
inesperada sutileza? “Ele substituiu o amor de Deus e dos homens pelo sentimento do dever.” A sua rigidez de caráter escocesa estava intacta,
embora Stuart a tivesse chamado de terrível. Bem, o rapaz era obstinado, mas era fraco. Os virtuosos e os duros eram os piores patifes,
pensou ela com um sorriso.
Jogou-se na cadeira e entregou-se a agradáveis meditações. A tarde de dezembro ia descambando para a noite. A luz da lareira era mais viva
dentro do quarto. Podia sentir-lhe o calor nos pés. Cantarolou um pouco bem baixinho, com a sua voz rouca.
Tinha prosperado. Disso ela sabia. Tinha vindo de longe para uma terra estranha, sem a ajuda de ninguém. Estava gozando a vida e tinha bons
planos para o futuro. Sentia-se poderosa e invencível e essas sensações eram bem agradáveis.
CAPÍTULO 30
Angus desceu o estreito corredor a caminho do quarto da irmã. O corredor era muito escuro e úmido, cheirando à cera e à fria falta de
ventilação. As empregadas dormiam nos seus alojamentos no terceiro andar, descansando do árduo trabalho do grande almoço do domingo.
Dentro em pouco, acordariam para preparar o chá da tarde. Mas, naquele momento, a casa estava em silêncio, salvo quando longos sons
reverberavam através dela como num longo túnel vazio.
Angus ouvia esses ecos desencarnados que percorriam corredores e quartos sem que tivessem manifestamente origem humana. Cresciam e
diminuíam, acentuando a melancolia fria e crepuscular do dia e da casa. Angus parou de repente e se apoiou com a mão na parede. Sentiu a
umidade do papel que a cobria. A tessitura do papel se impregnou com curiosa intensidade na palma de sua mão, de tal modo que ali, na
penumbra do corredor, ele se sentiu cercado de entidades vivas que o miravam do fundo de sua imobilidade. Era uma coisa que sempre lhe
sucedia. Desde a infância, sentia-se, de vez em quando, subitamente dominado por um estranho e aflitivo sentimento de consciência nos
objetos mais comuns que o cercavam e isso lhe convulsionava de terror o coração. Era apenas uma leve mudança no plano das coisas, mas
isso bastava para dar-lhe uma sensação de desorientação, de medo anônimo, de desgarramento e ele voltava para as coisas os olhos de um
estranho apavorado e perdido. Nunca pôde compreender o terrível abatimento que desabava sobre ele, o desespero e o peso de ferro que lhe
substituíam o lento e calmo bater do coração.
Naquele momento, esfregou a mão no papel de parede e olhou em torno tão opresso que não podia nem suspirar. Não podia ver o desenho de
rosas vermelhas do papel, nem as suas folhas verdes enroscadas. Nada via senão a fraca luz que se coava pela pequena janela ao fim do
corredor, onde este se dobrava em ângulo reto para o ponto onde ele estava. Nada podia ouvir senão os longos ecos que percorriam os
corredores como fantasmas errantes. Nada podia sentir senão a agonia daquele desânimo, daquele temor e daquela angústia não identificada
e a trama do papel sob sua mão fria.
Mas, de repente, desejou a morte com avassaladora intensidade. Esse desejo também era seu conhecido. Trazia uma negra pressão, uma
vontade de fuga. Era uma agonia que lhe esfriava os lábios e comprimia os pulmões. Já então, o terror o dominava, embora o seu desânimo
não fosse menor. Uma batalha se travava dentro dele; de um lado, o desespero e a angústia; do outro, o medo e a vontade de viver.
Durante todo esse tempo, ficou silencioso e imóvel como se fosse um fantasma ali no corredor sombrio onde a janelinha era um retângulo de
luz pálida. Olhava firmemente para a janela, cuja débil iluminação lhe caía sobre as feições rígidas e brancas e sobre os olhos vazios e
arregalados. Não podia mover-se. O braço inteiriçado, com a mão encostada à parede, lhe servia de ponto de apoio. Estava petrificado pelo
sofrimento.
Por fim, como se estivesse a libertar-se de grilhões, moveu-se e disse apenas em voz alta:
— Meu Deus!
Dantes, tinham sido sempre essas as palavras que o libertavam do terrível encantamento. Mas dessa vez não o libertaram. Foram como uma
pedra pesada lançada em negros abismos insondáveis que desaparecia sem deixar vestígio e nem sequer um eco de sua passagem. Repetiu
a frase e foi de novo como uma pedra a cair, fria e informe, sem sentido.
Parecia-lhe que já estava ali havia mais de uma hora, varrido por escuras vagas de angústia em que não brilhava uma só estrela. Mas devia ter
sido apenas um breve instante. Quando pôde prosseguir na sua marcha pelo corredor, sentia-se fraco e abatido como se estivesse a levantar-
se da cama depois de longa doença e a dor que o invadia era como um fogo lento que lhe consumia todo o corpo cansado. Sofria como se
estivesse acometido de uma interminável tristeza.
Chegou à janelinha e parou involuntariamente. Olhou para os jardins dois andares abaixo. Viu os tijolos molhados das alamedas sinuosas sobre
as quais se inclinavam os galhos frios das árvores descarnadas. Viu os muros brancos além e os canteiros de flores devastados. Viu o estanho
pálido do céu de dezembro, tão silencioso quanto a própria morte. Não havia um só pardal a saltitar pela relva pardacenta ou pousado num
galho. Não havia vento, embora aquela fosse uma terra de ventos quase constantes. Tudo estava frígido, sem movimentos e sem vida.
Agarrou os caixilhos da janela e disse simplesmente em voz alta:
— Não posso mais.
Disse isso repetidamente, com uma veemência apática e pesada que não tinha ainda nem paixão, nem sentido. Não se perguntou: Que é que
eu não posso mais aguentar? Sabia instintivamente que a resposta seria terrível demais e lhe tornaria impossível a vida. Só escutava o som de
sua voz, na sua inflexão obstinada, e esse som, ao mesmo tempo que expressava a sua tremenda agonia, também a atenuava. Era uma
espécie de magia. Depois de escutar suas palavras durante alguns momentos, no seu frio delírio sem sentido, podia recuperar-se e seguir
mais fraco do que dantes, mais atordoado do que delirante, quase como tinha sido anteriormente.
Não obstante, seu rosto estava entanguido, fixado nos planos e nas rugas de um tormento sem voz. Bateu na porta de Laurie e, ao ouvir o som
da voz clara e jovem da irmã, abriu a porta, olhou e sorriu. Era o sorriso de um velho.
Laurie estava sentada à beira da lareira, lendo à sua luz incerta e vermelha. O pequeno quarto estava imerso em sombra e a luz da lareira era
um pequeno lago espraiado no tapete. Laurie usava um vestido de lã preta sobre o qual estava passado o seu avental com franzidos de
musselina branca. Os longos cabelos dourados que lhe desciam até abaixo da cintura estavam presos na cabeça por uma fita vermelha. Olhou
para o irmão. O rostinho era sereno e cheio de dignidade. Levantou-se, jogando para trás os cabelos, e o seu sorriso se tornou mais amplo.
Era uma menina alta, de quase doze anos já. Havia nela um ar de calma e gentil autoridade e uma maturidade superior à sua idade.
— Está na hora do chá, Angus? — perguntou ela.
Mas ele não passou da porta e se limitava a olhá-la com uma agudeza pungente, que era a consequência do abatimento em que se encontrava.
Laurie era afável, jovem e vivaz. Era a antítese da melancolia e do desespero em que estava o irmão. Era a voz normal que o chamava da
escuridão que o havia quase engolfado. Era a voz que o fazia despertar do pesadelo. A simples presença de Laurie fazia a crise por que ele
passara bater precipitadamente em retirada.
Angus entrou no quarto, sentindo que acabava de voltar de uma jornada que levara séculos. Esfregou as mãos e disse:
— Está frio.
Aproximou-se do fogo e curvou-se ansiosamente sobre ele. Laurie olhava-o em silêncio e seu rosto, que dia a dia ficava mais belo, parecia
mais fluido à luz da lareira e cheio de sofrimento amadurecido.
Angus pegou a pá de carvão e jogou mais um pouco nas brasas escarlates. O fogo crepitou, lançando fagulhas radiantes e ressoando pela
chaminé. Angus se voltou para a irmã e sorriu.
— Que era que você estava lendo, Laurie?
— Estava lendo Bleak House, de Dickens.
— Um romance, Laurie? No Dia do Senhor? Onde estão os seus livros de catecismo e a sua Bíblia?
Laurie encolheu de leve os ombros.
— Já estudei meu catecismo, Angus. E já li os textos.
— Mas não meditou sobre eles?
— Meditei, sim. Mas não posso passar o dia inteiro nisso.
— Dar um dia a Deus nos sete que tem a semana é muito pouco, Laurie.
Mas ela nada disse. Angus olhou para a mesinha de cabeceira e a Bíblia. Disse então na voz monótona da apatia completa:
— Quer que eu lhe tome a lição, Laurie?
— Não, muito obrigada.
Se havia alguma ironia na presteza da resposta, Angus sentiu-a mais do que a ouviu. Laurie alisou os cabelos com as palmas das grandes
mãos belas, tão brancas e tão perfeitas, olhando-o impassivelmente.
— Onde encontrou esse romance, Laurie? — perguntou Angus, sem compreender a dor que sentia no coração.
Um leve sorriso de ironia e desinteresse se mostrou nos lábios de Laurie.
— Foi o primo Stuart quem me deu. Foi um dos quatro livros de Dickens que ele me deu pelo Natal. São muito interessantes. Você devia lê-los,
Angus.
— Não tenho tempo para perder com tolices —, disse ele com orgulhosa severidade. — Você também não devia perder tempo com isso,
Laurie. O mundo é grave e sério e nele não há lugar para frivolidades.
A menina ia responder com rispidez. A resposta já se mostrava pronta e viva em seus olhos azuis. Mas as palavras não chegaram a ser
articuladas. No lugar delas, um sorriso terno, quase maternal, se lhe mostrou nos lábios. Aproximou-se de Angus e lhe tomou a mão
delicadamente.
— Não se incomode, Angus. Já estudei minhas lições. Não chega?
Angus fez um movimento como se quisesse tirar a mão, empenhado em mostrar o seu desprazer. Mas a expressão dela era tão gentil e terna
que ele acabou sorrindo. Passou a mão pelos cabelos da irmã e disse:
— São tão bonitos seus cabelos, Laurie. — Foi então que se lembrou e acrescentou: — Ah, sim. Mamãe quer que você vá escovar-lhe os
cabelos. Ela está com dor de cabeça.
No mesmo instante, o rosto da menina se fechou e ela voltou a ser distante e reservada. Mas disse com indiferença:
— Está bem. Já vou.
Ajeitou o avental e o vestido e saiu prontamente do quarto, com um andar firme, fácil e macio que um dia encantaria milhares de pessoas.
Angus continuou no quarto e, depois que ela saiu, teve a impressão de que tudo fora invadido por um frio de morte e que até o fogo podia
apagar-se.
Angus viu o reprovável romance no chão e apanhou-o com verdadeira repugnância. Abriu uma página ao acaso e leu:
“Ela é como a manhã. Com aqueles cabelos dourados, aqueles olhos azuis e aquelas faces em flor, é como a manhã de verão. Os pássaros
aqui se confundirão.”
Angus levantou os olhos do livro e voltou-se para a porta pela qual sua irmã tinha saído. Sentiu a mais estranha emoção. Era como se fosse
uma dor voluptuosa em que se misturavam alegria e uma avassaladora ternura. Esqueceu-se de que era o Dia do Senhor e de que aquele era
o livro repreensível de Dickens. “Ela é como a manhã!” As belas palavras eram como um clarão deslumbrante ante seus olhos enevoados. A
dourada Laurie, sua querida. O livro lhe tremeu nas mãos. Quem cuidava de Laurie senão ele? Quem a amava senão ele? Ela era seu tesouro,
sua responsabilidade, tudo o que ele tinha.
Sentou-se no banco perto do fogo, sentindo um peso nas pálpebras como de lágrimas. Uma tristeza informe e imensa voltava a dominá-lo.
Sabia que Laurie o amava. Mas ela vinha mudando muito ultimamente. Falara sempre pouco, mas nunca deixara de sorrir. Mas só acontecera
até algumas semanas antes. Que tinha havido com sua Laurie? Passara a haver nela uma dura frieza, que nunca se desarmava e era sempre
fechada e impenetrável. A mãe dizia que ela era “uma atrevida egoísta e sem coração”. Não! Havia um coração no peito de Laurie, mas esse
coração estava morrendo!
Que era que estava matando a doçura e o coração de Laurie? Que era que a estava tornando tão fria e impassível como uma estátua? Que era
que estava matando o coração de Laurie, o coração de uma criança?
Ela raramente cantava agora. O piano no grande salão quase não enchia mais a casa com suas notas suaves, acompanhando Laurie a cantar.
Angus podia ouvir os ecos de sua voz cheia e bela, uma voz que era tão forte, tão clara, tão majestosa que nem parecia a voz de uma criança!
A voz fora um pouco educada na escola, mas os métodos e as regras de suas professoras não tinham prejudicado ou tolhido as suas
qualidades naturais e espontâneas. Era como uma torrente dourada que nada podia deter. Enchia toda a casa quando ela cantava. Era a voz
de um anjo, tranquila, mas triunfante, que ressoava sem esforço em todos os cantos. Podia cantar a balada mais fútil e ela se transformava
numa rapsódia celestial. Podia modular alguns exercícios e eles pareciam um movimento de sinfonia. Até as criadas deixavam o que
estivessem fazendo e ficavam a escutar, enlevadas.
Havia quanto tempo Laurie não cantava? Angus não se lembrava mais. Com o coração de Laurie, também a sua voz estava morrendo. Tinha
silenciado como um regato murmuroso que se congelasse com o frio do inverno.
— Oh, Laurie, Laurie! — murmurou ele angustiado e o livro de Dickens lhe caiu das mãos. Levantou-se e começou a andar de um lado para
outro no pequeno quarto, pensando. Que havia acontecido a Laurie? Por que tinha sido ele tão cego e tão surdo? Como pudera ele ser tão
insensível ao silêncio, ao congelamento, à indiferença da irmã? Muitas vezes tinham passeado juntos nos domingos à tarde. Desde quando?
Não se lembrava mais. Só sabia era que no negro desespero sem voz em que vivia se havia afastado dela e a esquecera. A voz dela não tinha
tido forças para segui-lo. Ou talvez ela se tivesse deixado espontaneamente ficar para trás.
Lembrou-se então do último domingo em que tinham passeado juntos pela beira do rio. A lembrança lhe veio penetrante e clara como um raio
de luz. Tinha sido num domingo de primavera, nos fins de maio. O dia era muito luminoso, polido e frio, típico das terras do Norte. Embora o
vento fosse como uma parede de gelo inviável, a lembrança dos sete meses de inverno fazia o dia parecer festivo, brilhante e alegre. Era uma
libertação de meses intermináveis de neve e de temporais que varriam a terra negra como milhares de cortantes cimitarras. As margens do rio
estavam enlameadas. A relva, que reverdecia lentamente, era ainda curta e incerta. Mas o céu estava puro e imenso, pleno de radiosa luz e as
águas tumultuosas do rio estavam quase aniladas na sua intensidade de cor. Tão claro e translúcido era naquele dia o ar que se viam
perfeitamente as casas e as árvores verdes da margem canadense. Aqui e ali, um bloco de gelo ainda descia a corrente, brilhando
ofuscantemente à luz do sol. Havia no ar uma amplitude e uma promessa, um murmúrio de vida palpitante e embora o vento avermelhasse as
faces de Laurie e a fizesse segurar o grande chapéu de castor ou prender as saias, ela ria de prazer com o desaparecimento do inverno.
Estava ao lado de Angus e ainda que ele fosse oito anos mais velho do que ela, a cabeça de Laurie lhe chegava à altura dos olhos.
Um bando de gaivotas brancas tinha passado no alto, colhendo nas asas à luz do sol. Os seus pios melancólicos ecoaram no silêncio, unindo-
se à voz constante do vento. As pedras da margem, embranquecidas pelo inverno, brilhavam ao sol, beijadas pelas águas verdes do rio. Angus
e Laurie caminhavam cuidadosamente por entre essas pedras, bem perto da água, olhando para o lado canadense, para as gaivotas e para o
rio. Atrás deles, ficavam os densos bosques, cheios do canto dos pássaros. De vez em quando, ouviam-se ao longe os sinos da manhã de
domingo. Era tudo muito tranquilo, luminoso e frio.
Angus tinha encontrado algumas violetas nos bosques, onde a luz primaveril era branca e nevoenta. Essas violetas tinham sido presas ao peito
da capa de Laurie. A doce cor das flores era menos vívida que a de seus olhos. A sua boca era de um vermelho vivo.
Ela começara então a cantar suavemente, como se estivesse sozinha e cantasse para si mesma. A voz dela parecia fazer parte do luminoso
cenário. Angus se pusera a escutar reverentemente. A voz se elevou, poderosa, mas pura e fácil como ouro liquido, de modo que todo o ar
parecia tomado por ela. Cantava o que o pai deles costumava cantar e que ele já havia quase esquecido: ó, Estrela da Manhã! E Angus
escutara, com o coração num momento exaltado enormemente e, no outro, invadido por súbita e arrasadora angústia.
Queria pedir a Laurie que não cantasse mais aquilo, que era para ele uma agonia, um desespero amorfo. Era o canto de um homem cuja
memória ele estava convencido de que representava para ele uma potência do mal, encaminhando-lhe os pensamentos para as coisas alegres
e pagãs e afastando-o daquilo que ele sabia que era seu dever. Mas não pôde falar. Limitou-se a escutar.
Não sabia quando ela havia parado de cantar. Só pouco a pouco tomara conhecimento de que ela estava em silêncio e que as vozes do vento,
do rio e das gaivotas tinham voltado com renovada intensidade. Angus sentiu o corpo todo petrificado pelo frio e estremeceu.
Olhara para Laurie com os lábios entorpecidos e os olhos a arder. E vira que ela o estava olhando com tanta seriedade que chegara a assustá-
lo.
— O canto de Papai —, havia ela murmurado.
Ele não pudera desviar os olhos da estranha tristeza que cobria o rosto da irmã. Ela parecia acusá-lo, não com raiva ou desdém, mas com uma
infinita mágoa.
— O canto de Papai —, repetiu ela. — Lembra-se, Angus?
Mas ele não podia falar. Podia apenas soltar a mão dela e afastar-se para o lado. Não via mais da luz do sol senão a desolação, nada do rio
senão uma ameaça de morte.
— Angus —, dissera Laurie —, você não vai mais à igreja comigo.
— Não.
— Por quê?
— Não sei —, dissera ele na sua voz inerte e neutra. — Parece que nada há mais ali para mim. Além disso, Mamãe precisa de mim aos
domingos.
Laurie nada dissera logo. Quando ele a tinha olhado furtivamente, tinha visto que ela sorria com uma amargura nova e que sob os cílios os olhos
dela faiscavam.
Dissera então a Angus:
— Nunca houve nada para ninguém na igreja. Deus não pode ser tão duro e severo como diz o ministro. Quando eu tiver idade bastante e
puder fazer o que quiser, também não irei mais à igreja.
— Oh, Laurie, isso é lá coisa que se diga? Você é muito menina e não pode julgar essas coisas!
— Mas você julgou, não foi?
Mas ele não dera resposta a isso e voltara os olhos para o rio.
— Mas você não esqueceu o seu presbiterianismo, não foi? — perguntara ela com voz suave e levemente irônica.
— Você não deve falar assim, Laurie! Você é muito moça e não sabe! É quase uma criança!
— A mãe de minha avó tinha apenas dois anos mais do que eu quando se casou. Não sou tão criança assim. Agora, escute, Angus. Quando eu
era pequena, você me falava muito em ser médico. Agora, não fala mais nisso. Por quê?
Depois de um longo silêncio, ele havia respondido muito friamente:
— Tudo isso era tolice, Laurie. Estou agora trabalhando nas lojas. Mamãe me convenceu de que meu desejo era ridículo e de que ela precisava
de mim lá para proteger o investimento dela.
Ficara espantado ao ouvi-la rir. Não era uma gargalhada, mas um riso irônico e bastante desagradável.
— As coisas que Mamãe não quer passam a ser ridículas —, dissera ela. — Ela não quer que Robbie seja advogado, mas Robbie vai ser
advogado. Ela quer que Bertie vá para as lojas com você. Mas Bertie não irá para as lojas. Você queria ser médico. E foi para as lojas.
— Laurie! — exclamara ele num grito de dor e de raiva.
Mas ela o olhara desdenhosamente, abanando a cabeça.
— Mamãe quer de mim apenas que seja uma boa moça bem prendada e faça um bom casamento. Mas eu não vou ser uma boa moça e não
quero fazer um bom casamento. Farei o que eu bem quiser. Só você que é uma tigela de mingau, Angus.
Ela se havia afastado abruptamente dele e seguia por entre as pedras, levantando a saia. Ele correra atrás dela e a pegara pelo braço.
— Você é cruel, Laurie, e não sabe o que diz.
Ela puxara o braço e o olhara com faiscante desdém. Mas dissera apenas:
— Posso achar meu caminho sozinha, Angus.
E agora ali, diante da lareira, lembrava-se daquele domingo e das palavras de Laurie. Pareciam-lhe enormemente significativas e ele disse em
voz alta:
— Não compreendo.
Contudo, quando tentava compreender, sentia-se cheio de medo e de completa desolação.
Laurie nunca mais havia cantado e nunca mais havia passeado com ele ou sequer falado muito com ele. Nunca lhe passara pela cabeça que
ela o estivesse evitando. Mas, já agora, acreditava nisso.
Era incrível que isso estivesse acontecendo com Laurie, que sempre fora sua irmãzinha querida. Experimentou então um terrível medo e um
tremendo sentimento de culpa. “Posso achar meu caminho sozinha”, dissera ela. A frase era cheia de significação, de tristeza e de repúdio.
Passeou pelo quarto, olhando para os poucos objetos de Laurie. Mas era o quarto de uma pessoa estranha, que não gostava mais dele e
queria que ele saísse. Uma das fitas dela estava esquecida em cima da cama. Apanhou-a distraidamente e a fita lhe escorregou entre os
dedos, como se quisesse fugir dele. Mas Angus enrolou-a nos dedos, sentindo a macieza da seda e pensando nos cabelos dourados que ela
amarrara. Sem saber por que fazia isso, guardou a fita no bolso.
Em seguida, como se estivesse com muita pressa, saiu do quarto e voltou para os aposentos da mãe.
CAPÍTULO 31
— Cuidado! — exclamou Janie irritadamente, afastando a cabeça da escova empunhada por Laurie. — Você é incrivelmente desajeitada,
Laurie. E descuidada como o diabo. Já se esqueceu de que tem de levantar um punhado de cabelos da cabeça e escová-los delicadamente?
Chega! Dê-me essa escova!
Laurie entregou calmamente a escova. Com a mesma calma, acendeu as lâmpadas do quarto, indo da mesa até à lareira com absoluta
serenidade e dignidade. Apagou então a vela de cera com que acendera as lâmpadas e colocou-a junto com as outras num vaso em cima da
cornija da lareira. Bocejou, limpou o avental dos cabelos ruivos da mãe que nele tinham ficado. Janie a observava e disse afinal:
— Você não serve mesmo para nada, Laurie. Nem mesmo na escola você procura estudar. Não sei para que estou pagando cem libras por
ano para que você estude lá. Você não merece isso. É inteiramente desajeitada. Disseram-me que você nunca aprenderá a dançar com graça,
nem que estude mil anos. Não tem boas maneiras. Resiste a todos os esforços de suas professoras. Seu francês é abominável. Tinha algumas
esperanças de você no piano, mas a Srta. Humphrey me disse que você não mostra o menor interesse e toca piano como se estivesse fazendo
um favor. Nem seu canto está melhorando. Soube que sua voz dia a dia fica pior por falta de um estudo consciencioso. Quanto aos seus
trabalhos de agulha, parecem feitos por uma criancinha. Você não mostra interesse em coisa alguma. Os exercícios de ginástica não
concorrem absolutamente para melhorar sua postura, porque você é sem inteligência e sem jeito como um animal. Onde é que você foi arranjar
esse tamanho todo? Todas as mulheres de minha família sempre foram pequenas e graciosas. Você é graciosa como uma vaca, Laurie, e é
uma vergonha para mim.
Diante do silêncio de Laurie, continuou ainda com maior entusiasmo:
— Sei muito bem que você não tem culpa das suas deficiências de aparência, desses pés e dessas mãos grandes e dessa altura horrível que
você tem. Você nunca poderá atrair os homens, porque os homens não admiram moças mais altas do que eles e que, ainda por cima, têm de
calçar sapatos grandes como os de um cavalariço. Mas você poderia ao menos fazer algum esforço para se distinguir em seus estudos. Fiquei
sabendo que não mudará de classe este ano e fará companhia a meninas pequenas, alguns anos mais moças do que você. Não posso
acreditar que uma filha minha seja tão sem inteligência! Se você fizesse ao menos um pequeno esforço, poderia aprender um pouco de línguas
e de música ou, quando nada, aprender a andar como uma senhora!
Impassível, sem demonstrar no rosto a menor reação, Laurie olhava para a mãe, de pé junto à lareira. Tinha os pés separados numa posição
particularmente desgraciosa, com as mãos para as costas. Janie podia ver os tornozelos fortes da filha, a sua vitalidade escocesa e a sua
impassibilidade. Continuou a exclamar com sua voz áspera:
— Aí está você parada como uma vaca, sem qualquer graça ou feminilidade! Você é grande e imbecil! Sua única ocupação é ler romances e
sonhar! Anda por esta casa com seu andar pesado e sem graça, sem se dar ao trabalho nem de arrumar seu quarto. É por acaso amiga das
outras moças da boa sociedade aqui? Não, você as acha muito água com açúcar, como já disse. Convida-as para tomar chá aqui, como eu lhe
sugeri? Nada disso! São muito insípidas para minha filha grandalhona e sabida! Prefere os cavalos da cocheira, os cavalariços, os romances e
os passeios pela beira do rio pulando por entre as pedras como se fosse um garoto! Mostra você algum interesse pelo seu guarda-roupa? Não,
meu amor de filha se aborrece e bate os pés e se impacienta com as modistas, fazendo-as desistir, desesperadas. Naturalmente, prefere um
vestido de baetilha em feitio de saco, desde que lhe cubra o corpo.
Janie jogou longe a escova num acesso de raiva.
— Meu Deus! Que castigo é ter uma filha assim inteiramente sem distinção, com pés enormes e uma cara sem graça e sem brilho! Que é que
vai ser de você? Quem é que a vai querer? A única ambição decente para uma moça é fazer um bom casamento para recompensar seus pais
e torná-los orgulhosos. Montar a sua casa e tomar o seu lugar no mundo da moda, da sociedade e do prestígio. Mas parece que eu terei de
carregar pelo resto da vida o fardo de sua feiura, de sua obstinação, de seus pés enormes e de sua imprestabilidade.
Laurie disse então com absoluta calma:
— Está absolutamente certa, Mamãe. Jamais conseguirei um bom casamento. Sei disso. Os rapazes não me admiram. É desagradável, mas é
um fato. Não sei ainda o que vou fazer, mas escolherei o meu caminho.
Janie olhou para ela, furiosamente.
— Diz que vai escolher seu caminho? Como? Que é que você pode fazer?
Laurie sorriu e disse:
— Acho que deve haver maneiras mais agradáveis de viver do que dirigir a casa da mãe da gente.
Ao ouvir esse absurdo, atirou-se na cadeira e deu uma gargalhada horrível, ressumante de ódio.
— Não vai dirigir casa nenhuma para mim, idiota! É incapaz disso, como de tudo mais! Algum dia já foi à cozinha para olhar as panelas? Já
mostrou algum interesse pelas compras? Já chamou a atenção de alguma empregada para varrer embaixo das camas? Já contou a roupa de
cama e mesa e as pratas? Deus bem sabe que você tem idade suficiente para fazer tudo isso, mas não faz, preferindo ficar trancada no quarto
a ler romances! Você não cuida nem do que é seu e ainda tem a coragem de sugerir que poderia dirigir a casa por mim!
— Parece mesmo que sou completamente inútil —, murmurou Laurie.
Mas isso só serviu para enfurecer ainda mais Janie, que deu um salto na cadeira como se fosse levantar-se e bater em Laurie. Esta a olhou
serenamente, apenas com um brilho intenso nos olhos azuis.
— É claro, Mamãe, que eu posso sempre ser uma governanta ou uma professora de crianças.
Janie ficou tão insultada com isso que nem pôde falar. Laurie não tomou conhecimento disso e continuou:
— Mas, desde que não tenho cabeça para estudar, nem capacidade para tomar conta de uma casa, não posso ser nem professora, nem
governanta e não há esperança para mim.
Janie falou então numa explosão de raiva:
— É bom ficar sabendo desde já que não poderá viver a vida toda nas minhas costas! Não pretendo manter uma moça sadia como você na
ociosidade pelo resto da vida! Tem um ano ou dois para procurar algum homem inferior que a queira, ainda assim não como um ornamento!
Homens de dinheiro e de posição querem mulheres de fortuna ou de beleza que sejam uma graça para o seu lar e não uma desajeitada e
cretina como você!
Laurie ficou calada e sem o menor sinal de perturbação. A sua impassibilidade era para a mãe uma das coisas mais odiosas. Correu os olhos
com indiferença pelo quarto e se olhou despreocupadamente no espelho em frente. Viu o rosto belo e forte, com os olhos luminosos e
inteligentes e a boca enérgica. Viu a largura dos ombros jovens, que eram quadrados e não caídos como era a moda admirada, e a coluna
grega do pescoço com a sua pele cremosa. Reconheceu vagamente que tudo nela era em escala majestosa, muito grande, mas isso era uma
coisa que não a contristava. Certo dia, num momento raro de afeição, Janie a chamara de braw lassie (moça de bom aspecto). Sim, ela
reconhecia que era de fato muito braw. A saúde lhe coloria os lábios e as faces, a energia se derramava de seus olhos azuis. Até o nariz, bem
formado, reto e branco, era grande demais, apesar de seu feitio clássico. Era uma criatura feita para as charnecas e os morros, para as
montanhas e os penhascos, para os mares ululantes. Nunca aprenderia a arte gentil de desmaiar, de falar com voz tímida, de revirar os olhos.
Pensava em tudo isso com a sua habitual e fria indiferença.
Levantou os braços de criança e sentiu o macio fluir dos bons músculos. A carne estuava de força. Deixou cair os braços e levou de novo as
mãos às costas. Abriu ainda mais os pés.
Angus abriu a porta. Estava ofegante e vermelho. Laurie olhou para ele e houve uma imperceptível contração em seu rosto. Olhou depois para a
mãe. Angus disse então a Janie na sua maneira habitualmente abrupta e sem tato:
— Mamãe, lembrei-me agora de que Laurie não está mais cantando.
Janie olhou para ele, atônita. Teria ficado maluco o pobrezinho? Murmurou uma praga e deixou-se cair com raiva nas almofadas da cadeira.
Quanto a Laurie, voltou-se lentamente e contemplou o irmão com fria desatenção.
Mas Angus, exaltado, ainda sob o domínio de seu sofrimento, aproximou-se de Janie e disse com balbuciante ansiedade:
— Todas as professoras disseram que nunca tinham ouvido uma voz como a dela, Mamãe. Há... pode haver muito dinheiro nisso.
Só Deus sabe que intenção sutil havia nas suas maneiras e nas suas palavras trêmulas, mas ele conseguiu fazer Janie cessar as suas pragas
e olhar para ele, passando a língua nos lábios.
— É verdade, Mamãe. Laurie pode ser uma grande cantora. Ela pode ir a toda a parte e ganhar muito dinheiro. É um crime desperdiçar um
talento assim.
— Que quer dizer com isso? — perguntou Janie, cobrindo os pés com a manta.
— Mamãe, deve ter ouvido falar em grandes cantoras que são famosas em Nova York, Paris e Londres. Você mesma me contou que ouviu
Jenny Lind cantar em Londres em 1847 e que aplausos prodigiosos ela ganhou. Não se lembra? Ela fez o papel de Alice em Roberto do Diabo
de Meyerbeer. Mais tarde, ela se apresentou em óperas em Manchester e Liverpool. Depois, esteve em Berlim, em Paris e em toda a Europa,
recebendo por toda a parte onde ia e cantava a admiração e até a adulação de todas as cabeças coroadas. Ouvi dizer também que ela cantou
aqui nos Estados Unidos e ganhou um dinheirão.
Mas Janie prorrompeu numa gargalhada, cheia de maldade e de ódio. Apontou para a imóvel Laurie, que a tudo escutava com um brilho
peculiar no rosto.
— Está querendo dizer que aquela massa bruta que está ali pode vir a ser outra Jenny Lind? — perguntou ela, quando pôde tomar fôlego. —
Olhe para ela! Parece uma vaca num pasto! Só mesmo da sua cabeça, Angus!
Mas Angus era obstinado e estava exaltado.
— Você sabe que eu estou certo, Mamãe! Sabe o que disseram as professoras dela. Já a ouviu cantar. Observei-a nessas ocasiões e vi que
você ficou encantada. Nós todos ficamos. Escute, Mamãe. Leve-a para um bom professor. Leve-a para Nova York. Deixe outras pessoas
julgarem.
Janie tornou a dar uma gargalhada. Mas parou de súbito e olhou para a filha.
— Que é que suas professoras na escola dizem sobre sua voz agora? Diga para seu irmão desmiolado ficar sabendo.
Mas Laurie se conservou calada, ainda olhando para Angus de um jeito duro e vigilante.
— Eu posso dizer o que é que elas dizem! — continuou Janie. — Dizem que ela não canta nunca e, quando é forçada a isso, assassina as
mais doces baladas e parece um bezerro desmamado. Está entendendo, seu bobo?
— Que é que essas mulheres podem saber? Nunca ouviram uma voz de verdade. Pensam que uma voz de mulher deve ser doce e vazia como
um chocalho de vaca. Como podem julgar uma voz rica, pura e forte como a de Laurie? Essas professoras já ouviram alguma ópera? Já
ouviram Jenny Lind como você, Mamãe? Que é que elas sabem de volume, de grandeza e de presença? A voz de Laurie tem volume, grandeza
e pureza. Foi feita para o palco...
— Está por acaso sugerindo que eu faça de minha filha uma atriz?
— Estou apenas sugerindo que permita que alguma pessoa competente ouça Laurie e que, se essa pessoa achar que ela tem uma grande voz,
você a mande para uma das melhores escolas de música de Nova York...
— E com que é que eu vou fazer isso, meu fabricante de projetos e sonhos? — exclamou Janie, enfurecida como sempre ficava quando alguém
sugeria que ela gastasse dinheiro.
— Estarei disposto a pagar por isso, Mamãe —, disse Angus com dignidade.
Janie deu outra gargalhada. O riso mau a fez rolar a cabeça nas almofadas. Angus, muito pálido, esperou que o riso se acalmasse e disse,
com muita calma:
— Tenho o suficiente para levá-la a um bom professor. Depois disso, tudo estará em suas mãos. Mais tarde, eu poderei ajudar, mas talvez
então seja tarde demais.
Foi então que Laurie interveio. A sua voz, lenta, calma, rica e cheia de ressonâncias, encheu o quarto.
— Mamãe tem razão, Angus —, disse ela. — Sua ideia é inteiramente absurda. Não tenho voz nenhuma, mas lhes agradeço o elogio. — Fez
uma pausa e o seu tom de voz se tornou mais alto e mais firme: — Não estou mais cantando e nunca mais vou cantar!
— Ela tem mais juízo do que você, Angus —, disse Janie.
Mas os seus olhos ainda estavam apertados e pensativos. A imaginação dela era suficientemente vigorosa para fazê-la ouvir de novo a
magnífica voz de Jenny Lind no teatro de Londres. E então seu coração, seu pequeno coração emurchecido, começou a bater com força.
Mas Laurie deu dois passos na direção de Angus. O seu rosto jovem estava de novo animado, belamente violento e emocionado. Os olhos
azuis faiscavam como fogo.
— Eu lhe ficarei muito grata se cuidar de sua vida e guardar para si mesmo suas tolas opiniões.
Por um momento, Angus ficou como que petrificado. Nunca tinha visto veemência igual na doce Laurie silenciosa a quem tanto amava. Era
como se fosse uma pessoa estranha e inimiga que o repudiava, que o olhava cheia de desprezo e ódio, de acusação e de repulsa.
— Laurie —, murmurou ele, estendendo as mãos tomado de medo.
Mas ela se afastou dele, com um gesto violento. Nesse momento, ouviu-se embaixo um confuso rumor de vozes de homens, de portas que
batiam, de pés arrastados e, por fim, o riso leve e claro de Robbie.
Janie levantou-se, puxou o xale para os ombros, correu para a porta do quarto e abriu-a, ao mesmo tempo que gritava irritadamente:
— Que é isso aí embaixo? Que é que está havendo?
Ouviu-se então a voz forte de Stuart que dizia:
— Trouxemos para casa seu filho bêbedo! Quer descer para vê-lo?
CAPÍTULO 32
Janie desceu as escadas voando, com as saias enfunadas atrás dela. Fechava com as mãos o peito de seu peignoir. Stuart viu-a chegar.
Bertie estava esparramado nos últimos degraus da escada, com um sorriso idiota e sonolento no rosto congestionado. Os cabelos vermelhos
estavam úmidos e desgrenhados. Robbie estava ao lado dele, com uma expressão quase de indiferença. Uma empregada acendera a
lâmpada na base do corrimão e a sua luz mostrava perfeitamente a cena.
Mas Janie não via ninguém a não ser seu filho predileto. Correu até ele, mas de repente parou e olhou-o em silêncio. Stuart ia dizer coisas
ásperas e violentas, mas não pôde falar. Nunca tinha visto Janie assim, com o rosto devastado pela tragédia. Ficou ali, com os pés calçados
de sandálias no mesmo degrau em que descansava a cabeça do filho, imóvel como uma estátua. Os lábios tremiam, o pescoço magro e
sardento pulsava, as mãos que prendiam o robe de veludo tremiam. Era uma velha de olhos arrasados.
O coração de Stuart fez, como sempre, a cólera transformar-se em piedade. Murmurou:
— Tivemos de trazê-lo para casa, Janie. Não se aflija. Ele é ainda um garoto e os garotos fazem muitas coisas impensadas.
Olhou para Robbie e disse irritadamente:
— Não fique aí parado. Dê-me uma mão aqui. Pegue-o por baixo do braço, assim. Cuidado! Vamos, Bertie. Você tem pernas e pode ficar de
pé. Passe o braço por meus ombros. — Viu Angus no alto da escada e gritou furiosamente: — Venha cá! Venha nos ajudar a levar seu irmão
para o quarto dele!
Angus desceu lentamente as escadas, altivo e em silêncio. Olhou para o irmão, que pendia inerte entre Stuart e Robbie. Viu a cabeça
pendente, os lábios franzidos no riso imbecil e os olhos semicerrados da embriaguez. Estremeceu. Virou-se então para a mãe e pousou a mão
nos ombros trêmulos de Janie.
— Por favor, suba, Mamãe, e vá ficar com Laurie. Ela não deve vê-lo assim. Isso não tem importância, Mamãe. Como você sempre disse,
Bertie tem muita alegria de viver.
Janie evidentemente não o ouviu, mas afastou-lhe o braço com rígida violência. Apoiou-se ao corrimão e cobriu o rosto com as mãos.
— Vamos! — gritou Stuart para Angus. -— Segure-lhe as pernas. Ele não se aguenta em pé e eu não vou carregá-lo sozinho por estas
escadas. Sim, segure-lhe as pernas. Devagar!
Trabalhosamente, vacilando e lutando, levaram Bertie pela escada acima. No meio do caminho, ele começou a cantar incoerentemente e entre
soluços. Era uma canção alegre e libertina. Duas ou três vezes tomou conhecimento dos que o carregavam e beijou Stuart e depois Robbie
com exagerado entusiasmo. “Sou forte, sabem?”, murmurou. “Mas não sei o que é que há com minhas pernas. Não tenho culpa...” Recomeçou
a cantar, jogando a cabeça para trás por entre acessos de riso. Era pesado, bem nutrido e parecia ter só carne e ossos. As pernas, nos braços
de Angus, pareciam de chumbo e a luz das lâmpadas se refletia nas botas bem polidas. Quase chegando ao alto da escada, pareceu
reconhecer Angus e, ao ver-lhe o rosto carrancudo e pálido, desatou numa gargalhada tão violenta que quase desequilibrou Stuart e Robbie
que tiveram de parar, a fim de não rolar pela escada.
Janie continuava embaixo, encostada ao corrimão e ainda com as mãos sobre o rosto.
Levaram Bertie para o quarto dele e jogaram-no de qualquer maneira em cima da cama. Era o quarto mais belo da casa, com muitas janelas,
tapetes macios, quadros finos emoldurados nas paredes brancas e um agradável fogo que ardia na lareira de mármore preto. Robbie acendeu
uma lâmpada.
Stuart enxugou o rosto suarento com o lenço. Tirou o chapéu alto e jogou-o em cima de uma mesa. Passou o dedo em torno do plastron que o
apertava. Exclamou:
— Será um verdadeiro assombro se, ao fim de tudo isso, eu não tiver um ataque de coração ou não rebentar um vaso! Esse patifezinho precisa
de um pontapé no traseiro ou de um bom soco no queixo!
Mas essas rudes palavras escondiam, como sempre, a sua inquietação. Não podia esquecer Janie, largada lá embaixo nas escadas. Olhou
furiosamente para Bertie e empurrou com violência uma perna gorda que pendia fora da cama. Fez uma careta quando viu a seda de seu
colete listrado manchada pela baba de Bertie. “Garoto sujo”, murmurou entredentes, limpando o colete com o lenço. Ficou ao lado da cama e
xingou Bertie com todo o vigor. Mas tudo isso era para esquecer a cara de Janie lá embaixo na escada.
Robbie o observava com frio interesse. De pé ao lado da cama, Angus olhava o irmão bêbado com amarga taciturnidade. Stuart olhou para os
dois rapazes e apertou os lábios. Antipatizava imensamente com ambos. Eram os dois muito magros e estavam vestidos com o mesmo terno
fúnebre de casimira preta. Mas Robbie tinha distinção. A roupa preta lhe realçava a elegância e a segurança aristocrática. Ao contrário, Angus
parecia um coveiro, pensou Stuart com raiva.
— Que é que se vai fazer agora com esse patife? — perguntou ele a Robbie.
— Vamos despi-lo, naturalmente —, disse Robbie, calmamente. Voltou-se então para o irmão e disse: — É a primeira vez que lhe peço isso,
Angus, mas gostaria de uma pequena ajuda sua.
— Não conte comigo desta vez —, disse Stuart. — Já estou bastante sujo. Tenham cuidado, que eu acho que ele vai vomitar.
Robbie abaixou-se, pegou o urinol embaixo da cama e colocou-o ao lado da cabeça balouçante de Bertie, no chão. Em seguida-, ele e Angus
tiraram as calças de Bertie e jogaram numa cadeira a roupa elegante e enxovalhada. Depois, Robbie pegou as roupas, fez uma espécie de
trouxa com elas e guardou-as no armário. Era todo serenidade e eficiência. Dava instruções a Angus, que obedecia no seu fechado silêncio.
Todos os atos de Angus eram remotos. Reprimia severamente qualquer manifestação pessoal, mas estava extremamente pálido.
Puseram Bertie sob os cobertores, depois de vestir-lhe uma camisa de dormir de linho com folhos. Ele ali ficou com os belos cabelos ruivos
pousados no travesseiro de fronha bordada, ainda com o sorriso idiota no rosto. Mas os olhos estavam bem abertos e se fixaram na luz da
lâmpada.
— Ih, já é noite! — exclamou ele com uma surpresa satisfeita.
— Virou os olhos e viu Robbie. — Robbie velho. Bom amigo. Que foi feito do dia inteiro, Robbie?
— Sumiu dentro de sua garrafa —, disse Robbie, com o seu sorriso frio. — Como vai? A cabeça está doendo?
— Terrivelmente —, disse Bertie, depois de pensar um pouco.
— E o estômago então... Parece até que estou a bordo. Daqui a pouco, vou botar cargas ao mar...
Robbie pegou prontamente o vaso de louça que tinha flores pintadas e colocou-o junto da boca do irmão. Foi bem na hora. Stuart foi até uma
janela e abriu-a, deixando entrar o ar frio de dezembro. Procurou fechar o nariz com nauseado desgosto. Esticou a cabeça para fora da janela,
a fim de ver se não ouvia os vômitos dentro do quarto. Olhou para a rua e viu os lampiões acesos, que iluminavam as calçadas de pedra. As
árvores negras estavam prateadas pelo luar. Mas ainda não podia tirar da lembrança o rosto de Janie.
Voltou-se para o quarto. Robbie tinha saído com o vaso. Angus continuava ao lado da cama, no mesmo lugar onde Stuart o havia deixado.
Olhava para o irmão com o seu rosto fechado, que não dizia absolutamente nada. Bertie estava deitado, com a cabeça no travesseiro e
arquejava, muito pálido, com lábios arroxeados e olhos encovados. O quarto cheirava a vômito e a uísque azedo.
— Não fique com essa cara de reprovação, Angus! Isso não é um caso de vida e morte. Devemos dar o desconto da juventude e da
impetuosidade do garoto. Ele tem um bom coração e, com isso, mostrou apenas sua virilidade...
Mas Angus continuou a olhar para o irmão amargamente e disse:
— Ele é um libertino e um bêbado. E perdulário e perverso. Traz vergonha para esta casa, sofrimento para a mãe e desmoralização para a
irmã. O que há no coração dele é iniquidade e impiedade.
Stuart olhou-o com repugnância e raiva.
— Está falando como um idiota! Ou como um maldito ministro! Meu pai dizia que todo o escocês era ou advogado ou bêbado ou ministro! E eu
acho que tinha toda a razão! Quem é você para julgar este rapaz, seu ministro de meia cara? Que sabe você dos motivos que levam um homem
a beber?
Angus levantou os olhos para Stuart.
— Por que Bertie bebe? Que é que o leva a isso? Ele é o predileto de nossa mãe. O dinheiro que tem no bolso é ilimitado. Tem tudo o que
deseja e nada lhe é negado.
Durante todo esse tempo, Bertie arquejava ruidosamente na cama. Ao ouvir as palavras de Angus, sorriu com uma afabilidade infantil.
Murmurou então na sua voz pastosa de bêbado.
— E isso mesmo... Tudo o que ele quer. Nada lhe é negado. Isso mesmo. Todos gostam de Bertie. Bertie tem um coração de ouro. Bertie não
precisa de nada.
De repente, começou a rir, agitando-se na cama, enchendo o quarto com a sua gargalhada nervosa.
Nesse intervalo, Robbie tinha voltado para o quarto e recolocara o vaso no chão, perto da cama. Limpou as mãos cuidadosamente com o lenço
e olhou para Bertie, perguntando com a sua gentileza impessoal:
— Está melhor?
Bertie parou de rir no mesmo instante. Os seus olhos se enterneceram ao voltarem-se para Robbie e, quase imediatamente, se encheram de
lágrimas. Estendeu a mão e Robbie a tomou entre as suas palmas secas.
— Robbie —, murmurou Bertie —, você é meu irmão de verdade, não é?
— Claro que sou. Agora, fique bonzinho e tente dormir.
— Você não me vai abandonar não é, Robbie? Apesar da bebida e de tudo mais? É um demônio que está dentro de mim. Não tenho razão
nenhuma para fazer isso. Você compreende, não é, Robbie?
— É claro, é claro. Agora, descanse, Bertie, que isso só lhe pode fazer bem.
Mas Bertie continuava exaltado. Começou a soluçar, desesperadamente agarrado às mãos de Robbie. Delirava. Acusou-se. Chorou
copiosamente. A sua agitação cresceu, enquanto Stuart o olhava alarmado, vendo a sua extrema palidez e os seus lábios arroxeados.
Foi então que Janie entrou no quarto, puxando o xale contra o corpo, como se estivesse sentindo muito frio. Mas o rosto lívido estava ao mesmo
tempo abatido e cheio de virulência. Olhou desconfiadamente para Stuart, para Angus e para Robbie. Aproximou-se da cama e sentou-se à
esquerda de Bertie. Tirou a mão dele da de Robbie, levou-a ao peito e olhou para todos ferozmente como uma leoa que protegesse o filhote.
— Saiam todos! — exclamou. — Deixem-me com meu filho. Não lhe estão fazendo bem algum com suas pilhérias e brincadeiras. Coitadinho!
Quer é ficar sozinho com a mãe dele!
A primeira reação de Stuart foi de cólera, mas logo depois viu o desespero, a atitude defensiva, a vergonha e o medo de Janie.
— Calma, Janie. Fizemos o que foi possível por ele.
Hesitou. Tinha muita pena dela, daquela nova Janie, tão desesperada e arrasada. Com a forte intuição de sua natureza primitiva, sabia que
Janie havia afinal compreendido aquilo em que dera o filho e que não lhe era mais possível esconder de si mesma esse penoso conhecimento.
Disse então impulsivamente:
— Quero ajudá-la, Janie. Farei tudo o que puder...
Mas ela gritou, cheia de ódio e de frustração:
— Não queremos ajuda sua, Stuart Coleman! Você teve coragem de deixar uma pobre viúva para enfrentar o mundo sozinha com os filhos!
— Ora, Mamãe —, disse Robbie, com voz calma, mas cheia de autoridade —, devia ser grata a Stuart que encontrou Bertie e o trouxe para
casa.
Mas a vergonha de Janie se tornou mais violenta diante disso. Estendeu o braço ameaçadoramente na direção do primo e gritou
estridentemente:
— Saia!
Houve um conflito de desgosto, indignação e pena dentro de Stuart. Apanhou, por fim, o chapéu. Robbie olhou para ele sacudindo de leve a
cabeça, como a pedir-lhe desculpas. Angus continuava sumido no seu tipo especial de inconsciência. Era como um fantasma que a ninguém
via e não era visto por ninguém.
Mas a indignação acabou levando a melhor dentro de Stuart. Apontou para Bertie e disse a Janie com os olhos faiscantes:
— Aí está seu filho e não culpe a ninguém senão a você mesma do estado vergonhoso em que ele se encontra! Você o mimou tanto que o
privou de toda a virilidade, dignidade e controle! A culpa é sua, minha cara, e de ninguém mais, diga você o que quiser com esse mau gênio
que tem!
Fez uma pausa. A sua voz com a raiva se tinha tornado mais forte.
“Trouxe seu filho para casa em minha carruagem, carregando-o do antro onde estava como se fosse um saco de batatas. Seu filho vomitou em
cima de mim e me causou a maior repugnância. Eu tinha pensado em vir a sua casa hoje para conseguir a libertação de seu filho Angus de
suas ordens, para que você lhe permitisse estudar medicina. Tinha pensado em lhe pedir que me deixasse ajudá-lo e assegurar a boa vontade
que certas pessoas têm para com ele. Entretanto, em troca de tudo isso, só recebo insultos!
Angus se movera de repente ao ouvir as palavras de Stuart. Levantou para ele os grandes olhos cinzentos e contemplou-o de maneira estranha.
À luz vacilante da lâmpada de querosene, seu rosto pareceu diminuir e encolher-se.
Janie olhava para Stuart e nada podia ser mais carregado de ódio e de raiva do que seu olhar. Ainda estava sentada ao lado de Bertie e com a
mão do filho de encontro ao seio.
Bertie murmurava coisas no seu delírio de bêbado. E então, no silêncio que se seguiu às palavras de Stuart, começou a falar com voz alta e
clara, tocada de jovialidade.
— Sou um homem inteligente! Sou o homem mais inteligente do mundo! Vocês todos querem alguma coisa, estão sempre querendo alguma
coisa! Mas Bertie Cauder não! Inteligente como é, não quer nada, nada mesmo!
Todos ficaram em silêncio a ouvi-lo. Depois de falar, porém, ele mergulhou num sono profundo. A respiração era entrecortada, mas ele estava
sorrindo.
De súbito, a raiva de Stuart desapareceu. Sentia-se cansado e pesado, mas olhou para todos eles apenas com frustração. Viu o frio Robbie,
que o olhava com um leve sorriso. Viu o sombrio e reservado Angus. Viu Janie, que o odiava no mais violento silêncio. Viu Bertie que dormia.
Sentiu hostilidade no ambiente, sentiu que era repelido com desprezo.
Disse então com um tom incerto:
— Vocês, escoceses, são uma raça fria, sombria e secreta. — Apontou para Angus: — Vocês estão sempre endurecendo a espinha moral
com a terrível religião que seguem e vivem fazendo danos em suas salas frias contra gente melhor do que vocês. — Voltou-se de novo para
Janie e Robbie. — Há em vocês alguma coisa terrível, alguma coisa que é demais para quem é como eu.
Saiu do quarto. Desceu o corredor. Uma porta se abriu e nela apareceu a jovem Laurie, com os seus cabelos dourados e os seus tranquilos
olhos azuis. Olharam-se no corredor mal iluminado. Stuart quis dizer alguma coisa, mas não pôde. Começou a descer a escada. Estava quase
no último degrau quando sentiu que lhe tocavam o braço. Estava tão certo de que era Laurie que se espantou quando se voltou e viu que era
apenas Robbie.
— Não se aborreça —, disse ele. —Mamãe está muito nervosa. Não lhe estou pedindo desculpas pela indelicadeza dela. Mas você conhece
Mamãe, Stuart. Quanto a Angus...
— Você acha tudo isso muito divertido, não é? Com seus sorrisos e sua frieza, o que acontece é que você não tem coração.
— Não pense que eu acho nada disso particularmente divertido. E muito raro que eu ache graça em alguma coisa. Como o filósofo de Éfeso,
só acho graça mesmo é quando vejo um burro comendo um espinheiro no meio da grama.
Stuart o encarou, franzindo a testa. Mas saiu sem dizer mais uma só palavra.
CAPÍTULO 33
Angus era um dos oito guarda-livros e empregados de escritório que trabalhavam para o Empório Supremo de Grandeville, depois que fizera o
seu aprendizado nas lojas. O escritório primitivo, nos fundos da loja principal, tinha sido ampliado para comportar várias estantes e mesas
altas, onde, à luz dos candeeiros de querosene suspensos do teto, os empregados trabalhavam nos livros ou escreviam cartas. Angus ainda
não ocupava um posto de direção, embora Stuart o estivesse preparando para isso. Ele trabalhava com afinco, dentro de um silêncio remoto e
cortês, sendo muito temido, antipatizado e respeitado por seus companheiros menos rígidos. Não tinha a menor importância para ele trabalhar
até às nove ou dez horas da noite, sozinho, com a cabeça castanha e pequena inclinada sobre os livros, com a pena a fazer somas e
subtrações rápidas, ao mesmo tempo que virava as páginas metodicamente. Se o seu rosto severo e austero apresentava sinais de exaustão,
isso só servia para aumentar-lhe a tranquila energia. Sam Berkowitz, cujo escritório era ao lado, muitas vezes, ao passar, ficava perto do jovem
empregado sem ser visto, com a testa franzida e os olhos cheios de tristeza.
O Natal chegou e passou. Era um dos períodos em que Stuart e Janie “estavam sem se falar”. Como todos os outros períodos semelhantes,
continuaria até que um encontro fortuito em casa de um amigo comum ou na rua ou nas lojas os colocasse diante um do outro, fazendo com que
se falassem polidamente. Cumprimentavam-se imperturbavelmente e com sorrisos sinceros de prazer seguia-se uma conversa amável que
apagava as coisas desagradáveis que tinha havido.
Stuart ia então fazer uma visita à prima ou ela ia até à casa dele e tudo era perdoado e esquecido até à próxima vez.
Stuart tinha expressamente proibido que o nome dele fosse incluído nos presentes de Natal de sua esposa a Janie, mas permitiu que ela e a
filha fossem visitar a família Cauder no dia de Ano Novo, que era a festa tradicional dos escoceses. Quando Marvina voltou, toda cheia de
sorrisos plácidos, Stuart interrogou-a demoradamente sobre o comportamento da prima, pois sempre se esquecia de que a mulher era uma
pobre idiota, que nunca percebia nada de desagradável ou chocante. Mas Marvina se limitava a olhar para ele e dizer que Janie tinha sido
muito delicada e gentil com ela.
Stuart não transmitia aos filhos de Janie as raivas que tinha dela. Se se encontrava acidentalmente com Robbie ou via Angus nas lojas ou nos
escritórios, podia mostrar-se um pouco formalizado e distante. Mas não mencionava a mãe deles, nem mostrava de qualquer maneira o seu
desprazer.
Entretanto, tinha ficado profundamente magoado dessa vez e passou várias semanas sem falar com Angus, nem tomar conhecimento de sua
existência. A “briga”, nessa ocasião, não se limitara a ele e Janie. Os filhos dela tinham participado, o que era excepcional. Tinham visto como
ele fora expulso da casa dela como se fosse um vagabundo e tinham ouvido os seus protestos mútuos de nunca mais se falarem. Ao menos por
uma questão de dignidade, Stuart tinha de se mostrar frio e distante em relação a Angus, com quem, de qualquer maneira, passara a
antipatizar.
O terrível inverno do Norte caíra de novo sobre Grandeville e deveria prolongar-se até abril ou talvez maio. Muros de neve, às vezes de dois
metros de altura, marginavam os passeios, laboriosamente desembaraçados com as pás. Uma camada de gelo misturado com neve cobria as
pedras da calçada, numa altura que em muitos casos chegava a trinta centímetros. Todos os telhados ficavam inteiramente cobertos de neve,
sobre a qual flutuava a fumaça azul das escondidas chaminés. Um frio cortante e um vento violento e quase constante varriam a cidade. Com
intervalos de alguns dias, desabava uma nevasca, enchendo o ar de partículas de neve como areia branca, que fustigava impiedosamente
aqueles que tinham a infelicidade de andar na rua. Grandes dunas, que também pareciam de areia, se empilhavam juntos às cercas e às
paredes das casas, bem como nos espaços vários, e os ventos lhes davam formas estranhas e rugas. Vinha então um intervalo de tremendo
frio, completamente calmo e silencioso, com os céus inteiramente parados e a neve tão ofuscante que não se podia olhar para ela sem que as
lágrimas viessem aos olhos. Todas as casas ficavam emparedadas e petrificadas em montões de brancura, as vidraças cobertas de geada e
apenas os penachos de fumaça das chaminés a darem notícia de que havia vida dentro daquelas tocas. Mas, nos dias luminosos e frios, os
trenós apareciam e desciam o leito irregular das ruas com as campainhas tilintando e os seus ocupantes embrulhados em peles até ao
pescoço. A cidade se movimentava de sob o seu túmulo de gelo e neve e emergia, tremendo de frio, para cuidar de sua vida. Para quem vinha
de fora, esses invernos eram intoleráveis. Viviam tão longe do rio cinzento e ossificado quanto possível, porque de sua superfície desolada os
ventos partiam como alfanjes afiados sobre a pele.
Era quase inacreditável para alguém que o verão já tivesse um dia sorrido sobre aquela terra e, quando os primeiros dias de primavera
surgiam, trazendo sol quente e ruas por onde corria a neve derretida, uma espécie de nervosismo dominava todos os habitantes. Durante
quase sete meses, tinham sofrido agonias de frio, de temporais incessantes, de nevascas e noites negras; de lutas constantes para conseguir
um pouco de calor dentro de suas casas. Então, nos fins de abril, se o destino se mostrava amável, a geada desaparecia das vidraças, a lama
aparecia entre montões de neve suja e quem tinha boa vista podia ver até os brotos irrompendo dos galhos negros das árvores. O
aparecimento de um tordo merecia duas colunas nos jornais locais. Os céus se suavizavam, ficavam enevoados e até ternamente doces e
embora ainda houvesse ocasionais tempestades de neve trazidas por nuvens negras e ameaçadoras e embora uma camada de geada
voltasse a cobrir as vidraças, todos podiam afirmar confiantemente que o inverno estava quase acabado. Em maio, a neve já havia
desaparecido por completo, salvo algumas placas escuras nas paredes das casas voltadas para o norte. No dia primeiro de junho, podia-se ter
certeza de que não haveria mais neve até chegar outubro. As pessoas saíam então das casas e faziam planos febris para o verão.
Os invernos eram tão melancólicos, tão terrivelmente deprimentes e cheios de dura desesperança, que quaisquer brigas, mal-entendidos ou
inimizades que começavam nos sete meses de desolação tinham inevitavelmente de esperar o degelo para que fossem esquecidos. Por isso,
foi só no fim de fevereiro, por ocasião do primeiro enganoso degelo, que Stuart tomou conhecimento de Angus Cauder. E, ainda assim, isso só
aconteceu porque Angus entrou no seu escritório.
Stuart estava mal-humorado. Voltara pouco antes de Nova York, onde tinha ido examinar uma nova partida de rendas, veludos, penas e bric-à-
brac vinda da França. A mercadoria estava em ordem e os fretes não tinham sido muito altos. Mas, pouco antes de partir para Nova York,
Stuart havia jurado a si mesmo e a Sam que seria tão econômico quanto possível nas suas despesas pessoais, que só trataria de negócios e
voltaria sem demora. Nada de mulheres, de bailes, de festas, de joias, de extravagâncias. Sam havia aprovado gravemente essas resoluções,
embora sem muita esperança. Esse pessimismo era justificado, embora Stuart não lhe tivesse dado pessoalmente as más notícias. Mas a
dignidade reservada de Stuart, a sua recusa a comentar a viagem, as suas maneiras pomposas e o seu jeito de trancar-se durante horas no
escritório haviam confirmado as piores previsões de Sam. Por outro lado, o rosto de Stuart estava mais vermelho do que de costume e
mostrava marcas de forte dissipação nas olheiras fundas e nas rugas nos cantos da boca. Além disso, mancava um pouco e, de vez em
quando, praguejava violentamente por trás da sua porta fechada. Angus não poderia ter escolhido um momento menos oportuno para invadir o
escritório de Stuart.
Mas viu logo que era uma má ocasião porque Stuart o olhava, com uma cólera impessoal. O pé direito descalço estava estendido em cima de
uma cadeira. O peito da camisa estava aberto como se ele estivesse sentindo falta de ar. O colete florido estava também desabotoado. Havia
no escritório uma atmosfera de sofrimento, calor e desordem. Angus, que nada sabia das extravagâncias de Stuart em Nova York, acreditou, no
seu habitual egotismo de homem estreito e concentrado, que o olhar de aborrecimento e de irritação que Stuart lhe lançou era causado
exclusivamente pela sua presença.
— Que é? — exclamou Stuart.
Contraiu o rosto espasmodicamente ao sentir uma pontada de dor no pé. Angus interpretou erradamente o fato e ficou alarmado.
— Gostaria de falar com você durante alguns momentos, Primo Stuart —, disse ele com altiva dignidade.
— Quer, não é? — exclamou Stuart, com franca irascibilidade. — Então fale.
Mas Angus sentiu a garganta seca e apertada. Tinha sempre dificuldade em falar fosse com quem fosse. Olhando-o zangadamente, Stuart
chegou à conclusão de que cada vez gostava menos de Angus. Grundy achava que ele devia ter pena dele. Era mais uma das ideias absurdas
do padre!
— Bem, fale logo, que eu sou um homem ocupado. Escute aqui, se é mais dinheiro que está querendo, nem precisa falar. Não é possível. E não
se fala mais nisso!
Uma expressão de tormento se mostrou no rosto de Angus. Stuart o olhou iradamente. Mas o seu instinto sutil fora despertado. Que era que
havia com aquele idiota? Por que estava ali com aquela cara de condenado à morte?
— Bem, fale logo! — exclamou ele. — Dê o seu recado e vá saindo. Se você não tem o que fazer, eu tenho!
Angus apoiou as mãos na mesa de Stuart. Sem saber por que, esse gesto comoveu Stuart. Aquelas mãos apertadas na borda da mesa
sugeriam sofrimento, angústia e repressão.
— Primo Stuart, creio que lhe devo desculpas. Não o compreendi bem. Foi um erro de minha parte e uma indelicadeza.
— Desculpas, hem? Muito bem. É muito gentil de sua parte, sem dúvida. Mas de que é que está pedindo desculpas? Refere-se por acaso à
minha sugestão de que fosse estudar com o Dr. Dexter, à sua impertinente recusa e aos seus insultos? Neste caso, fique sabendo que já
esqueci tudo isso. Basta para você?
O pé gotoso doía terrivelmente. O seu rosto se contorceu de dor. O seu olhar para Angus foi fuzilante.
— Não mudou de ideia, hem? Desejo informar-lhe que não estou mais interessado no caso. Pode voltar para sua querida mamãe.
Angus ficou vermelho. Estendeu a mão com um orgulho amargo e disse:
— Não, Primo Stuart, não é por minha causa que estou aqui a ouvir as suas frases pouco generosas. Perdoe-me o que acabei de dizer. Não foi
nada delicado. Sei que é o mais generoso dos homens e o mais bondoso. Não me esqueci de suas gentilezas no passado comigo e com
minha irmã. Tem havido alguns mal-entendidos, mas não é disso que eu quero falar.
Stuart compreendia que torturas deviam ter custado aquelas palavras a um homem tão rigoroso. Para um temperamento assim, pedir
desculpas e reconhecer os seus erros era quase pior do que a morte. Angus acreditava que só agia da maneira mais justa e certa.
— Está muito bem —, disse Stuart, sentindo-se abrandado, apesar das dores que sentia e da sua antipatia por Angus. — Aceito as suas
desculpas. É só isso o que você deseja?
— Não, Primo Stuart. Queria falar-lhe era sobre minha irmã Laurie.
— Laurie? Que é que há com a menina? — exclamou Stuart; esquecendo-se imediatamente do pé que latejava e concentrando o seu interesse
em Angus.
— Bem, não há nada com ela.
Sempre em luta com a dificuldade de falar, Angus procurava as palavras exatas que devia empregar. Stuart percebeu essa luta, como se Angus
fosse um cego a procura de palavras como seixos num cesto cheio e a rejeitar uma por uma, pois as arestas lhe feriam os dedos.
Compreendeu que devia fazer sugestões, pois, do contrário, poderia ficar sem saber o que Angus queria.
— Bem, se Laurie não está doente e se não há nada com ela, você não tem motivos para se preocupar. A não ser que ache que há alguma
coisa de anormal com a menina.
— É exatamente isso. Nem tudo vai bem com da.
— Ela se sente infeliz, então? — perguntou Stuart, franzindo a testa.
— Sim, ela se sente infeliz.
— Mas por quê? Goza de boa saúde. Talvez seja um pouco alta demais para a idade dela. Mas tem um rosto lindo. — Stuart fez uma pausa e
acrescentou com voz mais suave: — Um rosto lindo.
Ficou sem saber por que motivo sentia aquele baque no coração e aquela ternura ao pensar em Laurie. Com mais gentileza do que até então,
perguntou:
— Por que está aflito a respeito de Laurie, Angus? Sempre foram tão amigos um do outro. Ela confiava tanto em você.
Angus não pôde compreender. Baixou a cabeça a ponto de Stuart não lhe poder ver o rosto. Mas deu um suspiro.
— Ela não confia mais em você? — perguntou Stuart. — É isso que o aflige?
— É, sim...
— Sabe por que ela não confia mais em você?
Angus levantou o rosto cheio de angústia, mas disse com firmeza:
— Faço uma ideia. Creio que ela acha que eu devia estudar medicina em vez de vir trabalhar nas lojas. Quando eu era menino, falava muito
com ela sobre isso e fazia meus planos. Laurie não sabe que às vezes... as circunstâncias nos impedem de levar avante nossos sonhos e
esperanças.
— Não vou mais insistir com você nesse ponto, Angus. Você deve saber o que deseja melhor do que eu.
— Muito obrigado. Mas Laurie é ainda muito jovem e não compreende. E eu não sei o que devo dizer a ela. Laurie é um pouco... obstinada e
não compreenderia ainda que eu explicasse. Creio que às vezes Laurie é um pouco egoísta. Sei que ela gosta de mim e é justamente por isso
que é egoísta... por minha causa...
— Compreendo —, disse Stuart, pensativamente. — É uma criaturinha intolerante, não é? — Olhou para Angus com compassiva curiosidade e
continuou: — Por conseguinte, desde que Laurie julga que você traiu... a si mesmo... não confia mais em você. Está zangada com você.
Sempre suspeitei de que Laurie fosse inflexível. Há em você alguma coisa dela, Angus. Vocês, escoceses, parecem feitos de ferro. Não leve a
mal, mas acho que ceder aos inflexíveis é acrescentar o rigor à tirania que exercem. Você deve agir como quiser, Angus.
Sentia mais curiosidade do que nunca e esperou que Angus falasse. Mas o jovem se limitou a olhar para ele com sombria tristeza.
Stuart, deixando-se guiar pela sua intuição, continuou:
— Bem, Laurie não confia mais em você porque julga que você traiu a si mesmo. Mas o pior de tudo é que a natureza dela está mudando em
consequência da falta de confiança e de seu afastamento de você. É isso?
— É sim! — exclamou Angus, abandonando por um momento a sua reserva. — Disse exatamente a verdade, Primo Stuart!
Stuart estava realmente interessado. Chegou a colocar no chão o pé doente e não sentiu coisa alguma.
— E isso não é nada bom para Laurie. Compreendo muito bem. Mas que poderia você fazer de bom por Laurie que ela não ressentisse por vir
de você em quem não confia mais?
Angus tremia. Afastou-se da mesa e sentou-se numa cadeira ao lado de Stuart. Parecia vibrar de uma paixão contida e inarticulada.
— Já ouviu Laurie cantar, Primo Stuart?
Stuart franziu a testa, procurando lembrar-se. Sorriu, por fim.
— Já, sim! É uma bela voz! Muito forte e muito pura para uma menina da idade dela! Mas ela deve ter na escola professoras que lhe estão
desenvolvendo a voz.
— Mas Laurie não quer cantar na escola e as professoras desistiram. Também não quer cantar em casa. Laurie deixou de cantar!
— Deixou de cantar, hem? E não canta porque se sente infeliz. E ela se sente infeliz por sua causa, Angus. Acha que eu estou certo?
— Está, sim, Primo Stuart. Sei que está.
— Mas você não pode ceder à obstinação e à incompreensão infantil de Laurie. Sendo assim, que é que você quer que eu faça?
Angus baixou a cabeça e começou a falar numa voz muito triste e cansada:
— Laurie não encontra amor dentro de nossa casa, Primo Stuart. Ninguém a ama senão eu. E ela não quer mais saber de mim. Ela vai ficar
cada dia mais dura, obstinada e reservada, Stuart. E isso será uma morte para ela, pois a natureza de Laurie é feita de amor.
Levantou para Stuart os olhos desesperados
“Será a morte também da bela voz de Laurie, Stuart. E é uma voz que deve ser dada ao mundo para o bem de Laurie e do mundo. Não posso
ver uma coisa tão admirável em Laurie morrer assim.
“Bem sabe que Laurie sempre gostou muito de você, Stuart. Nunca falou muito de você em casa por causa de... Mamãe. Mas sei que ela gosta
de você e o admira muito. Você poderia ter influência com Laurie. Ela o escutaria. Se você pudesse conseguir que ela aceitasse sua ajuda,
assegurando que isso lhe daria prazer, tenho certeza de que ela faria o que você lhe pedisse.
— E que era que eu deveria pedir, Angus?
— Pediria que ela cantasse para algum grande professor que você arranjaria para ela e, se na opinião desse professor Laurie tivesse uma bela
voz, digna de ser cultivada, você pediria a ela que estudasse com esse professor ou fosse para qualquer escola que ele sugerisse.
Stuart estava atônito. Recostou-se na sua cadeira e franziu a testa.
Mas Angus continuou, sem nenhuma dificuldade mais com as palavras que lhe jorravam dos lábios.
— Não acho que a voz de Laurie deva ser cultivada apenas para dar prazer à família e aos amigos. Acho que deve ser cultivada para o mundo.
Laurie pode ser outra Jenny Lind, talvez até maior que Jenny Lind!
A cabeça de Stuart rodava e ele levantou a mão.
— Um momento, Angus! Está sugerindo que Laurie poderia ser uma atriz? Aparecer num palco iluminado? Nunca poderia esperar isso de
você, Angus! Onde está sua piedade, sua religião? — Sorriu zombeteiramente. Não podia evitar essa farpa, mas logo se arrependeu ao ver a
cara compungida de Angus. Continuou: — Estou surpreso, Angus. Mas não ligue ao que eu digo. O fato é que você está sugerindo que Laurie
seja uma atriz e você sabe o que é que o mundo pensa das atrizes. Tenho visto e conhecido muitas em Nova York.
— Não, Primo Stuart. Não estou sugerindo que Laurie seja uma “atriz”. Jenny Lind não é uma atriz. Canta em belas óperas e é uma grande
artista. É isso o que eu desejo para Laurie.
Stuart estava mais confuso do que nunca. Tentou sorrir.
— Você não pode julgar, Angus. Você não pode saber se Laurie tem uma voz como a de Jenny Lind.
— Mas você pode saber, Primo Stuart. Você é um homem do mundo.
Stuart, na sua simplicidade, sentiu-se lisonjeado.
— Não vamos discutir isso, por enquanto, Angus.
Ficou em silêncio, procurando ver se se lembrava plenamente da voz de Laurie. Era ridículo sem dúvida. Havia muitas moças que tinham boas
vozes. Teria de confessar a Angus que nunca ouvira Jenny Lind cantar. O seu gosto pessoal se cifrava em music halls e alegres soubrettes
cujas vozes nem sempre eram das melhores. Era forçado a comparar a voz pura e forte de Laurie com as desafinações roucas de mulheres
vestidas com toilettes provocantes. Não sabia também exatamente o que era uma ópera. Talvez as óperas preferissem vozes como as de
Laurie. E as cantoras de ópera usariam também aquelas toilettes? Franziu a testa. Se Laurie tivesse de vestir-se assim e atrair a atenção de
homens dissolutos, ele teria de protegê-la.
Quebraria a cabeça de qualquer homem que achasse as pernas de Laurie bonitas.
Disse então com uma ponta de irritação:
— Não posso compreender você, Angus. Gostaria de ver sua irmã com roupas leves exibindo-se ao mundo inteiro?
— Não! Mas Mamãe não falou em roupas leves quando se referiu a Jenny Lind. Falou apenas da voz, da beleza e da fascinação dela.
Stuart percebeu que a sua reputação como homem do mundo corria sério perigo. Acomodou-se na cadeira com uma expressão majestosa e
disse:
— Ah, Jenny Lind! Tinha-me esquecido de Jenny Lind. Sem dúvida, essa bela senhora não usa roupas leves. Isso estaria abaixo da dignidade
dela. De modo que é como outra Jenny Lind que você quer ver Laurie? Sem roupas leves?
— Acho que sim.
Stuart lembrou-se de alguma coisa e disse:
— Parece que você já discutiu isso com sua mãe. Ela não ficou revoltada com a ideia de ver sua irmã... cantando óperas num palco?
— Primo Stuart, Mamãe compreende que Jenny Lind ganha uma fortuna. Tem cantado para as cabeças coroadas da Europa e para o
Presidente dos Estados Unidos. Tem uma comitiva quase real. Mamãe me escutou com muita atenção.
Stuart sorriu.
— Neste caso, você não tem de se incomodar. Sua mãe conseguirá um professor em condições para julgar a voz de Laurie.
Angus torceu as mãos. E então contou a Stuart a cena que se passara entre sua mãe, sua irmã e ele. Stuart escutou, com absorvente interesse.
Quando Angus terminou, disse depois de pensar um pouco:
— Esse caso é todo muito delicado, Angus. Laurie disse que você fosse cuidar de sua vida. Sua mãe mostrou interesse. Isso é de esperar,
pois ela não pode deixar de levar em conta a fortuna que Jenny Lind está acumulando. Não é indiferente também à fama e à glória. Entretanto,
não está inteiramente convencida. A dúvida dela é agravada pela obstinação de Laurie e pela repulsa dela em relação a você.
“Se eu fizer as enormes despesas de mandar buscar um professor em Nova York para vir até aqui ouvir Laurie, há sempre a probabilidade de
que Laurie se negue a cantar ou não aceite o veredicto, se for favorável.
Angus estendeu as mãos para Stuart num gesto infinitamente patético.
— Ela não recusará, Primo Stuart, contanto que você lhe peça. Ela gosta de você. Mas não deve absolutamente mencionar meu nome, pois
isso seria fatal.
Stuart olhou para o rosto comovido e trêmulo de Angus. Mordeu os lábios pensativamente.
— Acha então que eu posso ter influência sobre Laurie? Talvez esteja certo. Mas imagine que a opinião do professor seja favorável,
entusiástica até? Laurie precisaria de anos de estudos, talvez em Nova York. Você acha que sua mãe estaria disposta a arcar com essas
despesas?
Angus ficou em silêncio durante alguns momentos. Disse por fim:
— Não, não estaria. Sei disso. Ainda que ela estivesse convencida de que Laurie iria ganhar uma fortuna com sua voz. Quase acredito que ela
gostaria de frustrar Laurie. Não quero dizer com isso que Mamãe seja cruel ou mesquinha! Nada disso! Mas Mamãe é uma mulher e talvez não
possa compreender as óperas. Poderia achar isso... imoral para Laurie.
— Deixe de ser bobo! — exclamou Stuart. — Você sabe muito bem que ela se oporia a qualquer coisa que favorecesse Laurie porque não
gosta da menina! Você está farto de saber que ela não gosta de nenhum de vocês a não ser daquele bêbado que é Bertie! Não seja idiota e
não minta para si mesmo! Quando veio falar comigo, pensei que fosse para ter uma conversa leal e honesta, de homem para homem! Mas se
pensa que pode me embair com suas piedosas mentiras e sua revoltante lealdade com sua mãe, pode sair neste momento e nunca mais me
incomodar!
Angus levantou-se. Afastou-se alguns passos de Stuart. Quase lhe deu as costas e saiu correndo do escritório. Mas parou a tempo. Stuart olhou
para ele e deu uma risada.
— Sua delicada mamãe pode achar isso “imoral’’, não é? Que é que você sabe de sua mãe, meu jovem imbecil? Formou na cabeça uma
imagem fantástica dela como num vitral e agrada à sua vaidade acreditar que essa imagem corresponde à realidade!
Levantou-se com esforço e continuou:
“Leve a sua história fantástica para longe de mim e seja muito feliz! “Imoral”... Pois sim! Não posso tolerar um homem que mente para si
mesmo! Vamos ser honestos, com todos os diabos! Se você não sabe quem é sua mãe, ainda posso perdoá-lo. Mas você não é criança. Sabe
muito bem quem ela é ou então procura iludir-se. Posso ter pena da ignorância, mas não tolero a cegueira voluntária!
Esperava que Angus saísse depois disso. Mas o jovem continuou onde estava, cheio de desespero, de agonia e de vergonha.
— Tenho pena de você pelo que é, Angus. Quer muito bem a sua irmã, pois do contrário não ficaria aí ouvindo as verdades que estou dizendo
sobre sua mãe. Sim, tenho pena de você.
Parou para tomar fôlego. O coração traiçoeiro o estava mais uma vez dominando. Sentia-se cheio de piedade e de amolecedora tristeza.
Tentou imprimir severidade à voz quando disse:
— Você veio pedir-me que ajude Laurie. Não disse que não a ajudaria. Perguntei apenas se sua mãe estaria disposta a ajudar sua irmã. Você
disse que não. Vamos supor então que eu trouxesse um professor para ouvir sua irmã e a opinião dele fosse favorável. Vamos supor ainda
que, neste caso, eu me oferecesse para mandar Laurie para uma escola de música e canto em Nova York e sua mãe não quisesse deixá-la ir.
Que deveríamos fazer neste caso, de acordo com as suas sugestões?
— Quando Mamãe se convencer de que Laurie poderá fazer uma fortuna com sua voz, ouvindo isso do professor, não fará mais qualquer
oposição. Haveria tanto dinheiro...
— Ah — exclamou Stuart.
— Mas Mamãe não adiantaria o dinheiro. Diria que não tem. Mas consentiria em que você gastasse o seu, Stuart.
— Sem dúvida, sem dúvida —, disse Stuart. Tamborilou com os dedos na mesa e acrescentou: — O que me pede não é fácil, Angus. Faz
alguma ideia do que isso me poderá custar?
Angus olhou para ele muito pálido e cheio de orgulho.
— Não seria por muito tempo, Primo Stuart. No fim, eu lhe pagaria tudo. Não sei se sabe, mas vou-me casar com a Srta. Gretchen Schnitzel
quando ela completar dezessete anos, isto é, daqui a um ano e meio. O pai dela já deu consentimento.
Incrédulo, Stuart deixou-se cair na sua cadeira. Ficou muito pálido de surpresa e consternação.
— Que história mais maluca é essa, Angus?
— É verdade, Primo Stuart! O noivado vai ser anunciado em junho quando Gretchen completar dezesseis anos. Nós nos casaremos um ano
depois. Poderei pagar-lhe então todas as despesas que fizer com Laurie.
Mas Stuart tinha ficado furioso de novo.
— Pretende mesmo casar-se com aquela moça repulsiva, Angus Cauder? Vai-se casar com aquela horrível alemã e com os nojentos pais dela,
os donos do curtume?
Angus ficou em silêncio, mas não desviou o olhar do rosto de Stuart.
— Onde está seu orgulho? — perguntou Stuart, ainda sem querer acreditar e terrivelmente preocupado. A ideia lhe era francamente intolerável.
— Onde está o seu sentimento de honra, o seu respeito próprio? Que é que essa moça tem senão dinheiro? Não tem graça, nem prendas, nem
qualquer espécie de encanto. É feia, horrorosa! É a digna filha dos pais que tem. Meu Deus! Se ela tivesse alguma beleza, seria possível talvez
fechar os olhos aos pais e aos curtumes, mas ela não tem nada, nada mesmo! Meu Deus, Angus! Olhe para mim, Angus! Bem nos olhos! Diga-
me que é uma brincadeira, uma mentira! Não posso tolerar isso! Afinal de contas, você é meu parente!
Mas Angus encarou firmemente o primo.
— Não é mentira, Primo Stuart! E devo dizer que me ofende com as coisas que diz sobre a Srta. Schnitzel!
Stuart ficou ali parado, balançou tristemente a cabeça e perguntou:
— Você... ama essa moça?
Angus apertou os lábios pálidos e respondeu:
— Pretendo casar-me com ela, Stuart.
— Mas por quê? Em nome de Deus, por quê?
Angus ficou em silêncio. Stuart teve então um pensamento. Agarrou Angus pelos ombros e perguntou com uma expressão terrível:
— Foi sua mãe, não foi?
— Não me agradam suas perguntas, Stuart. Além do mais, isso não é de sua conta.
Stuart deixou cair as mãos e voltou mancando para a sua cadeira. Sentou-se, levou a mão ao rosto para cobrir os olhos e disse:
— Vejo que nada mais adianta. Pode ir, Angus. Quanto a Laurie, vou mandar buscar um professor para ouvi-la. Teremos de esperar a decisão
dele.
Deixou cair a mão do rosto e viu que Angus ainda estava ali.
— Meu Deus! — exclamou Stuart Que Deus tenha piedade de você, jovem idiota! Saia, pelo amor de Deus! Não vê que estou passando mal?
Depois que Angus saiu, Stuart ficou sozinho com os seus desvairados pensamentos. Bateu então na mesa com os punhos fechados e gritou:
— Que megera! Que cadela de coração negro! Cadela imunda!
CAPÍTULO 34
Quase sempre, nas noites de sexta-feira, Stuart ia à casa de Sam Berkowitz. Quando isso acontecia, era porque se sentia mortalmente
aborrecido, confuso, vagamente amedrontado ou perdido. Ou quando estava estourando de raiva e queria um ouvido amigo e um interesse
simpático. Nessas ocasiões, não achava a companhia do Padre Houlihan especialmente tranquilizadora porque o padre tinha tanta certeza da
eterna bondade, sabedoria e misericórdia de Deus que irritava em vez de tranquilizar um homem como Stuart que via muitos exemplos em
contrário.
Preferia, portanto, quando se sentia dominado por uma raiva impotente, ir à casa de Sam, onde a melancolia vivia e onde a paciência era
levedada com tristeza, inteligência e perguntas cépticas. Sam escutava as suas furiosas e incoerentes diatribes, ora sorrindo, ora penalizado e
assentia em silêncio fumando e olhando para algum ponto logo à direita da cabeça de Stuart. Então, quando Stuart se calava por absoluta falta
de fôlego, Sam abria as suas Escrituras e lia. Stuart nem sempre compreendia ou recebia explicações, mas se sentia tranquilizado pelos
clamores dos profetas, pelas lamentações de Jó, pelas veemências de Elias e pelas severidades de Isaias. Ali havia sabedoria, dor, tristeza e
rebelião que vinham do coração dos velhos profetas e estavam mais perto do turbulento coração de um celta do que a doce esperança dos
santos do Novo Testamento.
A Sra. Berkowitz, velha e atacada de artrite, insistia em ser carregada para baixo nas noites de sexta-feira, a fim de “presidir” a mesa e
acender as velas. Antes disso, orientava de seu quarto nas complicações da cozinha judaica a empregadinha alemã que trabalhava na cozinha.
A Sra. Berkowitz se mostrava particularmente insistente nas noites em que Stuart aparecia. Ele a olhava por trás de seus candelabros, trêmula
da doença e da velhice, tão pequena e tão frágil. Ouvia-a murmurar as suas preces e as suas bênçãos, o rosto coberto pelas mãos nodosas,
por entre cujos dedos escorria às vezes uma lágrima. As velas ardiam na escuridão da pequena sala quente e a voz trêmula e débil da Sra.
Berkowitz se elevava em estranhas palavras de prece sobre as luzes amarelas. O ritual antigo e misterioso acendia outra luz no coração
inquieto e violento do irlandês e o seu sangue celta se agitava incontroladamente, como numa recordação sem nome.
A forte imaginação celta fazia-o ver luzes semelhantes a brilhar em casas cheias de paz, de tristeza ou de medo através do mundo
acompanhando a luz do sol do ocaso, levando a sua luz para a escuridão enquanto a terra girava. O rastro das velas acesas era como uma
corrente de esperança eterna e de fé, cheia de sentido sob as estrelas despertas. Muitos milhares de noites negras podiam vir, carregadas de
opressão, medo, terror e loucura, mas as velas continuariam acesas, frágeis e intrépidas, como vozes de conforto de irmãos para irmãos
através das fronteiras de todas as terras, afirmando a sua fé em Deus, a lembrança do Seu amor e da Sua misericórdia e a crença na paz e na
fraternidade finais.
Embora não tivesse fé, e realmente não tivesse crença nem esperança em coisa alguma, Stuart achava um conforto profundo e místico nas
velas acesas, que eram não apenas uma afirmação de Deus, mas uma alegria para o coração e para os olhos dos que se sentavam às mesas.
Havia uma toalha branca bem engomada na mesa dos Berkowitz, com pratas polidas e copos de cristal de vinho. Havia pratos ricos e
estranhos e pão fresco e branco à luz das velas. O fogo na lareira, as velas, o aroma convidativo da galinha assada, da sopa quente amarela e
do vinho tinto velho davam a Stuart uma sensação de intemporalidade e força e ele olhava para a sala fechada com satisfação cansada de
quem afinal encontrou refúgio.
A Sr. Berkowitz, com o lenço na cabeça, os miúdos olhos pretos muito vivos e o enrugado rosto sorridente, sabia pouco inglês. Mas escutava
com grande atenção a voz grave do filho e as palavras ardorosas e zangadas do amigo.
Stuart sabia que não devia falar, por mais perturbado que estivesse, enquanto o jantar não terminasse. Quando isso acontecia, grande parte da
sua agitação se havia dissipado e ele podia discutir as coisas com mais calma e menos incoerência. Olhava para o rosto moreno e sulcado de
Sam, com os lábios comprimidos, os bondosos olhos castanhos, e as suas exclamações mais furiosas lhe morriam na garganta. Parecia-lhe
então que tinha sido muito precipitado e tinha dado importância à coisas que realmente não a tinham.
Chegou naquela noite de sexta-feira ainda furioso e ressentido da conversa que tivera com Angus. Sam, depois de ver-lhe o rosto alterado,
levou-o para a pequena sala de jantar sem dizer uma palavra. Foi então buscar a mãe, carregando-a nos braços pela escada enquanto ela
olhava ansiosamente para Stuart.
Falaram apenas nas trivialidades habituais durante a refeição, enquanto a Sra. Berkowitz servia ansiosamente Stuart várias vezes de macarrão
e galinha. Ela tinha a firme convicção de que ele tinha pouco apetite e precisava de ser bem alimentado. Só quando Stuart não podia mais, ela
parava com um tímido sorriso de satisfação.
Ela estava muito cansada naquela noite e Sam levou-a de novo para cima enquanto ela lançava bênçãos sobre o hóspede por cima do ombro
do filho. A empregada levou os pratos e limpou a toalha. Uma tempestade se estava formando. Stuart ouvia os uivos do vento contra as janelas.
As cortinas se balançavam ao vento e de alguma fenda sob uma porta vinha um cortante sussurro de vento gelado. Stuart afastou uma cortina e
olhou para fora. À vacilante luz de um lampião, viu o torvelinho de flocos brancos que giravam além do círculo amarelo de luz plantado na
escuridão. Depois, até esse pequeno círculo foi obliterado pelos flocos de neve. Era uma noite feia. Dentro de uma ou duas horas, as ruas
estariam cobertas de dunas brancas e o ar cortaria a carne como o gume de uma faca. Não se via uma só pessoa. A rua era apenas
desolação.
Stuart voltou para junto da lareira, praguejando displicentemente contra o rigor do inverno do Norte e lembrando-se do calor de seu capote
forrado de peles. Ouviu o apito distante de um trem, logo sufocado pelo uivar do vento que varria os lagos congelados.
Sam voltou e serviu conhaque velho em pequenos cálices. Sentou-se ao lado de Stuart diante da lareira e provou o conhaque num silêncio
amistoso. Mas observava Stuart com furtiva atenção. Sentia fortemente a inquietação e a confusão do amigo.
— Uma noite horrível —, comentou Sam, ouvindo o vento que sacudia as vidraças.
— Por aqui, as noites sempre são horríveis durante oito meses do ano —, murmurou Stuart sombriamente.
Passou a mão pelos espessos cabelos pretos e se lembrou de que tinha notado naquela manhã mais fios brancos entre eles.
— As noites são sempre horríveis —, murmurou Stuart —, e eu já estou cansado disso.
— Acho que estamos cansados é das coisas dentro de nós —, disse Sam. — Ou das coisas que julgamos ver dentro de nós. É a crença que
temos nelas que nos enche de cansaço. Se não acreditarmos...
Abriu as mãos e levantou os ombros no gesto imemorial de sua raça que era uma mistura de humor e de tristeza.
— Isso é um verdadeiro absurdo! — exclamou Stuart. — Quer dizer que se eu não acreditar em Janie ou na imbecilidade dos filhos dela, nada
disso existe!
— Se você pensa que o que você acredita em relação àquela mulher não é verdade, é bem possível que deixe de ser verdade mesmo. Para
você, é claro. Para você, meu amigo. Se você pensar que ela é boa e os filhos também, todos eles passarão a ser bons... para você.
— Absurdo! Pense eu o que pensar, ela continuará a ser uma megera e os filhos, uns idiotas!
Sam recostou-se em sua cadeira e falou pensativamente:
— Conheci em outros tempos um homem. Não prestava. Era cruel e duro e, no fundo do coração, um assassino. Era isso o que os outros
sabiam dele ou julgavam saber. O mal que ele fazia transparecia de toda a sua pessoa. Era o que todos viam. Mas esse homem tinha mulher e
filhos, que o julgavam o mais bondoso e o mais justo dos homens. Para eles, o homem era isso. Quem, então, estava certo?
— Você está ficando como o velho Grundy, Sam, e tenta embrulhar-me com essas sutilezas metafísicas.
— Não, tudo é uma questão de ponto de vista. O homem que está na montanha diz que o vale é baixo. O homem que está no vale diz que a
montanha é alta. O homem que está no sopé da montanha vê uma altura que não pode escalar. Mas o homem que está de longe vê apenas
uma pequena elevação.
— Ora, pare com isso, Sam! — exclamou Stuart, irritado. — Você não me está ajudando em nada!
Sam sorriu. Quando ele sorria, as rugas de seu rosto cansado se atenuavam e sua expressão era de divertida doçura. Até os olhos dançavam.
— Talvez você saiba melhor, Stuart. Quanto mais se pensa, mais se perdem de vista os contornos da realidade. Você é como uma criança,
Stuart. Vê apenas, sem pensar. Talvez por isso saiba melhor.
— Escute, Sam, vamos aos fatos. Não tem notado o que está acontecendo? Nossas vendas estão caindo. Os fazendeiros vêm menos à cidade
fazer compras. Os fregueses estão mais cautelosos e procuram comprar artigos mais baratos e em menor quantidade. Que é que há? Onde é
que está o dinheiro? Não há menos dinheiro nesta terra! Deve estar sendo guardado. Por quê?
— É melhor perguntar: Por que foi que o povo perdeu a confiança? Alguma coisa afetou evidentemente a confiança do povo. Que foi? Quando
se puder resolver esse problema em cada nova queda de confiança, poder-se-á resolver todo o complexo problema do pânico. Às vezes, é
apenas um boato. Alguém diz que a safra foi prejudicada por isso ou por aquilo e será bem menor. Outras vezes, suspeita-se do partido político
que está no poder. Deixe-me dizer-lhe de novo que tudo é como o caso da montanha que, vista de longe, parece pequena e, vista de perto,
parece grande. O dinheiro é uma coisa intangível. É uma coisa imaginária. É fácil e pronto quando há confiança, mas se perde quando essa
confiança desaparece. Pode ser que eu esteja errado, mas acho que estou certo.
— Você ainda está dizendo coisas absurdas ou, pelo menos, incompreensíveis. Só sei é que nossas dívidas e compromissos são enormes e
que nossas vendas estão caindo. Essa é que é a realidade que temos de enfrentar e não as suas montanhas “intangíveis”! A filosofia nunca
entrou na coluna do ativo e nunca fez desaparecer a do passivo. Você pode olhar calmamente para as coisas e falar por meio de enigmas. Mas
eu não sou calmo e o que estou vendo é a falência se as coisas continuarem desse jeito!
Sam estava muito sério e disse:
— Tem toda a razão, Stuart. Já estão começando a falar em pânico. Na Wall Street, se diz que é uma coisa inevitável. Mas eu não sou
financista, nem estudioso de economia. Sou apenas um negociante e não sei de nada. Fez uma pausa e continuou, quase no tom de quem
pede desculpas: — Sabe o que é que devemos fazer? Cortar despesas, restringir, economizar. Vender o que temos e só comprar sortimentos
novos à vista. Temos de operar num círculo mais estreito e mais cauteloso. Enquanto isso, devemos tratar de saldar os nossos compromissos
o mais depressa possível. Em suma, temos de apertar os cintos.
Sam sabia, antes mesmo que houvesse no rosto de Stuart uma expressão de pavor e de raiva, que iria encontrar uma furiosa resistência da
parte do amigo. Apressou-se em dizer:
— É preciso que você me compreenda. Não tendo dívidas, poderemos muito bem contentar-nos com lucros menores. Ainda havendo pânico,
as pessoas têm de viver. Podem comprar menos e coisas mais baratas, mas não deixarão de comprar. O negociante capaz de resistir à
tempestade é aquele que não tem dívidas, que vende o que é possível, que vive frugalmente com pequenos lucros até que o mau tempo passe.
Será marcar passo sem dúvida, mas por algum tempo apenas, porque as crises econômicas têm de passar inevitavelmente. Muitos naufragam.
Mas quem se apressou em fazer-se solvente nunca é um dos náufragos.
— Está falando como um covarde, Sam! É gente como você que produz os pânicos. Você não tem confiança!
Mas Sam disse gravemente:
— Tenho confiança de que a tempestade passará. Mas não poderei ter confiança se não tomar as cautelas necessárias para que não seja um
dos náufragos! Quero tomar precauções. Quero trancar bem portas e janelas para que a tempestade, quando passar, cause o menor dano
possível. Se eu deixar portas e janelas abertas, estarei fazendo um convite à destruição.
Stuart sentiu-se tomado da velha sensação de enjoo que sempre o acometia ante qualquer sugestão de economia ou cautela. Exclamou:
— Que alma pequenina tem você, Sam! Que alma amedrontada, furtiva, miserável! É assim que se fazem e crescem as grandes empresas?
Acha que alguém poderá prosperar se tiver medo de comprar dois metros de chita quando não tiver a certeza de vendê-los imediatamente? Só
se faz alguma coisa de grande com a confiança implícita de que haverá fregueses com dinheiro suficiente para comprarem o que se tiver para
vender!
Mas Sam se tornou mais severo e disse pausadamente:
— Você não me compreende. É você agora que está falando absurdos. Se um freguês não tiver a confiança implícita, como diz você, de que
amanhã terá mais dois dólares, não gastará dois dólares hoje. É justamente isso que está acontecendo. Os fregueses não acreditam que
amanhã vão ter os dois dólares, de modo que hoje só gastam um dólar ou nada. Isso é um fato que temos de compreender. Não sei por que
estão com medo de amanhã não ter os dois dólares. Já lhe disse que não sou estudioso de assuntos financeiros. Só sei é que estou diante da
mulher apavorada que tem receio de que amanhã não tenha os dois dólares e prefere guardar o seu dinheiro para comprar pão para a família
quando os dólares se acabarem.
Stuart, dominado pelo seu antigo medo, levantou-se e começou a passear de um lado para outro na sala, alisando os cabelos e esfregando as
mãos.
— Você está com medo —, continuou Sam. — Você sabe, ao fundo do coração, que as mulheres estão gastando nas lojas cinquenta centavos
e não dois dólares porque já têm receio de amanhã precisar do dinheiro para comprar pão. Mas você não quer escutar. Não se contenta em
comprar uma peça de chita apenas porque não acredita que amanhã não vai conseguir vender duas. Entretanto, pode ser que não consiga
vender nem meia peça. É por isso que lhe estou dizendo que compre só uma peça hoje a dinheiro e pague, se puder, as muitas peças que
comprou ontem. E isso o mais depressa possível.
:— São uns imbecis! — exclamou Stuart. — Não compreendem que, para usar sua metáfora, se não comprarem duas peças hoje, talvez não
possam comprar meia peça amanhã?
— Talvez as pobres mulheres não entendam nada de economia, Stuart. E, desde que você tem de tratar com as pobres mulheres, não pode
deixar de aceitar os receios delas.
— Está bem, está bem! Qual é a solução, então?
— Tenho pensado muito nisso —, disse Sam depois de um longo silêncio. — Devo confessar que estava mesmo à espera de que você viesse
falar comigo. Já lhe dei o meu conselho. Agora, não vou usar metáforas. Vou falar direta e claramente. Mas, antes, quero fazer-lhe uma
pergunta: Qual é seu saldo nos bancos?
Stuart mordeu os lábios muito vermelho e disse furiosamente:
— Posso levantar...
— Não lhe perguntei quanto você pode levantar. Quero saber qual é o seu saldo em dinheiro nos bancos.
— Deve andar em dez mil dólares!
Sam sacudiu a cabeça e disse lentamente:
— E suas dívidas sobem a mais de cem mil dólares...
Deu um suspiro. Pegou o cálice de conhaque, levou-o aos lábios e tornou a pousá-lo na mesinha, sem provar uma só gota.
— Das lojas, dos últimos seis meses de movimento, você terá apenas cinco mil dólares, Stuart. Com isso, não poderá pagar as suas dívidas,
pois, infelizmente, você tem de viver além de pagar suas dívidas.
— Já sei! — exclamou Stuart. — Você está com medo de ser arruinado por mim, juntamente comigo!
Sam olhou cheio de mágoa para Stuart, que logo ficou de rosto vermelho.
— Você sempre me acusa de coisas feias —, disse o judeu tristemente. — Mas tem consciência de que essas acusações são injustas.
— Tenho sempre de pedir desculpas a você, Sam. Mas desta vez não vou pedir. Você bem sabe que eu tenho a língua solta. Mas de qualquer
maneira, posso sempre tomar dinheiro emprestado. Minha casa está quase paga. Além disso, não temos nas mãos uma porção de ações que
devem valer alguma coisa?
— Mas é justamente isso que estou dizendo! Temos de vender o que temos e pagar todas as dívidas. Comprar um pouco mais e só à vista
quando pudermos. Será uma maneira de apertar o cinto até que a mesa seja posta de novo.
— Mas você se esquece de que temos uma encomenda que está para chegar no valor de vinte e cinco mil dólares!
Sam sacudiu a cabeça.
— Não podemos aceitá-la. As lojas de Nova York vão comprá-la decerto ainda no cais. Estava para lhe dizer isso. Não podemos aceitar essa
encomenda.
Stuart olhou para ele, sombriamente.
— Você tem o dinheiro, Sam.
— Tenho o dinheiro, sim. Para meu povo. Não posso gastar esse dinheiro para comprar mercadorias que não conseguiremos vender talvez por
muito tempo. Não posso lançar mão desse dinheiro que pertence a meu povo.
— Você não será capaz de me emprestar esse dinheiro para me salvar? No último caso, para salvar a você mesmo.
Pela primeira vez em muitos anos, Stuart viu um assomo de cólera nos olhos do amigo.
— Você fala de salvar a você e a mim, Stuart! Mas ninguém estaria falando agora de salvação se você não tivesse sido imprudente e
desajuizado com o seu dinheiro! Nunca deixei de avisá-lo e você nunca me quis escutar. Você tinha de gastar. Você tinha de gastar numa casa
cheia de tesouros inúteis, em mulheres, em joias, em cavalos e em outros desperdícios. E agora me diz que eu tenho de salvá-lo! Quer que eu
gaste com você o dinheiro que não me pertence, que foi lenta e penosamente acumulado para aqueles que não têm esperança, nem mesmo de
vida, se eu não usar esse dinheiro em benefício deles!
— Não se esqueça de que, se eu cair, você cairá também! Talvez me compre pelo preço que lhe convier! E pode ser até que me bote
simplesmente para fora!
Mas Sam se limitou a olhá-lo, com uma mistura de raiva, desprezo e compaixão. Foi até uma mesa num canto e apanhou uma folha de papel.
— Aqui estão os números, meu caro Stuart. Simples números que podem ser compreendidos com facilidade. Não será preciso muito tempo
para explicá-los. Depois, você pode esquecê-los à vontade!
“Na conta das lojas, temos dezessete mil dólares nos bancos. Só. Nossas dívidas são de oitenta e dois mil dólares. Temos investidos em
nosso estoque nas lojas noventa mil dólares. Esse estoque se está movendo lentamente, como um rio congelado no inverno antes da chegada
da primavera. É preciso pagar os empregados e fazer regularmente os pagamentos relativos às dívidas. No mês que vem, Stuart, a sua
retirada será de quatrocentos dólares apenas. A minha também. Entretanto, você tem suas dívidas pessoais a atender nos bancos. Tem as
suas hipotecas e as suas despesas. E há sempre os empregados, que vivem dos salários que lhes pagamos. É neles que estou pensando
agora.
Stuart olhou para ele em silêncio e deixou-se cair pesadamente na sua poltrona. Sam continuou a falar:
— Você falou dos fundos particulares que eu tenho depositado nos bancos para o meu povo. Já lhe disse mais de uma vez que se você
precisasse de meu dinheiro, ele seria seu. Eu tenho um fundo pessoal — de cerca de sete mil dólares — fora do que economizei para meu
povo e que não é meu. Esse fundo é seu, Stuart, se você quiser e precisar dele.
Stuart nada disse e Sam continuou num tom mais animado:
— Esses sete mil dólares e os seus dez mil dólares, Stuart, poderão ajudá-lo. Mas só se não comprarmos, se economizarmos, se vivermos
frugalmente, se vendermos o que temos e não comprarmos mais. Até que o rio degele na primavera e volte a rolar as suas águas. Todos os
nossos lucros, Stuart, têm de ser usados para pagar as dívidas das lojas. Não devemos tirar coisa alguma. Seus dez mil dólares e meus sete
mil devem servir para nossas despesas particulares até que o rio corra de novo.
— Meu Deus! — exclamou Stuart. — Gasto dez mil dólares por mês comigo. Quanto tempo esse dinheiro me vai durar?
— Tem de reduzir as suas despesas, meu amigo.
— Mas como?
Sam hesitou, deu um suspiro e olhou severamente para o amigo.
— Você me mostrou o colar e os brincos de brilhantes que comprou para uma certa senhora de Chicago. Terá de devolver essas joias, meu
caro Stuart. Haverá um pouco de prejuízo, sem dúvida. Se não me engano, deu doze mil dólares por elas. O joalheiro com toda certeza só lhe
dará onze mil dólares por elas. Ou quem sabe se não devolverá o dinheiro integralmente?
— Dei apenas dois mil dólares de entrada pelas joias —, disse Stuart, desviando o olhar.
— Ainda assim, devolva. Receberá talvez mil e quinhentos dólares de seu dinheiro. De qualquer maneira, será uma dívida a menos.
Stuart ponderou sombriamente o caso. Então, o medo, como um animal, saltou-lhe de novo ao pescoço, e, na enormidade de seu pânico,
levantou-se de um salto.
— Não posso! Não posso! Viver assim como um mendigo, economizando, será uma morte para mim! Você não sabe nada disso! Nada! Como
pode você compreender um homem como eu?
Sam olhou-o calmamente e perguntou:
— De que é que você está com medo, Stuart? Que é que o apavora tanto?
Stuart disse então das profundezas subconscientes de seu ser:
— Tenho medo do mundo... Sentou-se de novo e olhou para o fogo. Disse quase inaudivelmente, como se estivesse falando em sonho: — Há
mais alguma coisa de que você se esqueceu ou que, pelo menos, não mencionou. Eu lhe devo ainda quatorze mil dólares do dinheiro que você
me emprestou. Eram dezessete mil, mas eu já lhe paguei três mil. Não falou disso. Será que se esqueceu?
— Algum dia lhe pedi alguma coisa, Stuart?
Stuart passou as mãos pelo rosto.
— Não, Sam. Sei que você não faria isso.
— Escute, Stuart. Você diz que tem medo do mundo. Medo por quê?
— Eu sei o que é o mundo, Sam.
— Eu também sei, Stuart. Mas não tenho medo do mundo. Sei tudo o que ele pode fazer de pior e, ainda assim, não tenho medo. Quando se
sabe do máximo, do pior que pode acontecer, então há uma certa tranquilidade que nada mais pode abalar.
Stuart parecia não o ter ouvido. Começou a falar com uma voz mecânica, como se o seu subconsciente apenas estivesse falando, sem
intervenção do seu eu consciente.
— Nunca fui um mau rapaz. Era mais ou menos como um cachorrinho. A minha vontade era ser amigo de todo mundo. Se alguém me falava
amavelmente, meu coração logo se abria cheio de amor. O mundo me parecia um lugar cheio de beleza e de interesse, de boa vontade, de
aventura e de bondade. Isso era quando eu era um rapazinho. Mesmo quando via coisas más, bocas retorcidas ou olhos inamistosos, isso me
parecia uma coisa acidental. Era uma coisa desagradável e possível, mas não universal. Lia e acreditava nas mentiras dos homens bons que
tinham morrido havia muito tempo. Para mim, a “dignidade humana”, a “fraternidade universal” e a “bondade paternal de Deus” não eram
simples frases. Julgava que todos as conheciam e viviam de acordo com elas. Às vezes, sem dúvida, cometiam-se erros, mas por culpa de
alguns poucos que desconheciam essas coisas ou não as compreendiam. Os que erravam eram criminosos, odiados e repelidos pelo mundo
inteiro. Acreditei em tudo isso até quase ter vinte anos de idade.
“Eu compreendia a mentira. Fui um jovem mentiroso fora do comum. Mas minhas mentiras eram inofensivas e nunca tinham a intenção de
prejudicar a ninguém. Compreendia essas mentiras. Para mim, davam graças à vida, quer fossem ditas por bondade ou por brincadeira, não
sendo de esperar que ninguém fosse acreditar nelas. Mas as mentiras ditas com malícia, com a intenção de prejudicar, de causar sofrimento ou
destruição ou proferidas por simples crueldade, nessas eu não podia acreditar! E não acreditei até aos vinte anos de idade!
Sam ouvia pacientemente e Stuart continuou:
“Compreendia as pequenas maldades, as manifestações de mau humor e as antipatias entre as pessoas. Mas não acreditava que houvesse
grandes maldades sem causa, capazes de fazer os homens levantarem-se uns contra os outros até à morte. Não acreditava que houvesse
crueldade que só se verificavam porque um homem era mais forte de que seu vizinho e desejava destruir esse vizinho de pura e irracional
ruindade. Não compreendia que a crueldade e a maldade eram atributos humanos tão naturais quanto a cor dos olhos ou o formato do nariz.
Acreditei até aos vinte anos que houvesse boa vontade entre os homens!
Sam murmurou alguma coisa, mas Stuart não o ouviu. Estava dominado por grande exaltação e torcia os dedos como se estivesse sofrendo.
Continuou:
“Mas havia uma coisa que eu só soube ao chegar à idade adulta. Não sabia que havia o ódio. É claro que havia alguns rapazes de minha idade
de quem eu não gostava e a quem evitava mesmo na Inglaterra e, depois, quando vim para os Estados Unidos. Tive minhas brigas com esses
rapazes quando me chamavam de “irlandês sujo” e de outras coisas. Apesar disso, não acreditava no ódio. Mas agora sei que há apenas no
mundo ódio, crueldade, cobiça assassina e hostilidade. Sei que cada homem se levanta contra seu vizinho, como uma fera alucinada, e que
não há decoro, nem honestidade em lugar algum!
Sam teve a impressão de que estava diante de um homem em delírio, que não seria capaz de ouvi-lo. Ainda assim, disse:
— Meu Stuart, está esquecendo o Padre Houlihan? Acha que ele é assim também?
— O Padre Houlihan? Sim, acredito que ele é um bom homem. Mas é bom para mim. Será também para os outros? Você me falou da
montanha que parece diferente para homens colocados em pontos de observação diferentes. Penso que você também é um bom homem, mas
como é que eu posso saber? Que é que os outros pensam de você? De qualquer maneira, você e Grundy são apenas dois homens e eu não
conheci outros que fossem bons como vocês.
Sam sentia na própria carne o sofrimento de Stuart. O coração dele estava pesado de tristeza.
“E foi assim. Foi horrível para mim quando cheguei a compreender. Depois, tive medo. Você não pode compreender o medo que eu senti.
Comecei então a ver que um homem tinha apenas uma defesa contra os outros homens: dinheiro. Quanto mais dinheiro um homem tivesse,
mais alta era a muralha que o protegia dos outros homens. Foi por isso que compreendi que eu devia ter dinheiro, muito dinheiro. Por isso é
que devo ter propriedades: para mostrar aos outros homens que minha muralha é bem alta e que eles nunca poderão escalá-la para atingir-me
e destruir-me.
Voltou-se para Sam e sorriu. Era um sorriso triste e mau.
“Já disse um pouco dessas coisas a Grundy e ele tentou convencer-me com algumas de suas banalidades. Falou-me em “cristandade”. Como
se tivesse havido em qualquer tempo uma cristandade no mundo! Li já, não sei onde, que só houve um cristão e foi crucificado. Mas eu sei que
só houve um cristão e foi um judeu. E, se é verdade a história, só houve um cristão e foi Deus. Nunca poderia ter sido um homem. Não, não
poderia ter sido um homem, mesmo na carne. Se realmente existiu, coisa de que eu duvido. Há ocasiões em que sei, no fundo de meu
coração, que Ele não passou de um belo mito. Alguém O inventou, como foram inventados os profetas mais antigos. Saiu do espírito dos
judeus, que são grandes inventores. Tenho visto em você também essa capacidade de invenção.
Sam disse então numa voz clara, cheia de misterioso desafogo:
— Sempre soube, meu pobre Stuart, que você é um bom homem.
Stuart voltou para ele o olhar vazio. Sacudiu então a cabeça, como se tivesse ouvido palavras numa língua estranha, sem qualquer significação
para ele.
Sam levantou-se. Foi até onde estava o amigo, pousou a mão no ombro dele e disse calmamente:
— Stuart, você deve escutar-me. Eu disse que você é um bom homem. Pode não parecer assim a outros, mas só a alguns. Você é apenas
parte da carne de outros homens; não está separado deles. O que está em seu espírito e em seu coração está no espírito e no coração dos
outros homens. Ninguém é feito de uma substância diferente dos outros homens. Desse modo, o que acontece com um acontece, em escala
maior ou menor, com todos.
“Se há bondade em seus pensamentos, e eu sei que há, se há bondade em suas intenções, se há bondade em seu coração, delicadeza e
alguma justiça, há essas qualidades também nos outros, maiores ou menores. Uma pedra num campo não é diferente das outras. Vêm todas
da mesma terra, embora algumas sejam de tamanho ou feitio diferentes. Assim sendo, você não é um estranho neste mundo, olhando para
criaturas estranhas de carne diferente.
Stuart franziu a testa como se tentasse compreender. Mas sorriu tristemente para o amigo.
Sam continuou:
— Não há apenas ruindade, no mundo, meu pobre amigo. Olhemos um pouco em torno de nós. Inventamos um pouco de lei e de ordem. Temos
justiça. Temos alguma misericórdia. Temos alguma confiança nos outros e em sua palavra. Temos hospitais e asilos, do mesmo modo que
temos prisões e forcas. Grandes livros são escritos e os homens os leem e meditam. Entre dez mil mentirosos, há alguns homens honestos. Os
homens têm esperança de um mundo melhor e, mesmo no coração dos assassinos e dos mentirosos, há a crença oculta num mundo melhor.
Tudo ainda é imperfeito. Tudo é ainda confusão e treva. Mas se todos os homens fossem maus e se só houvesse mal no mundo, não haveria
nem o pouco de lei e de ordem que existe e a vida seria impossível. Se todos os homens fossem apenas maus, as Escrituras não teriam
sobrevivido até hoje.
Tirou a mão do ombro de Stuart, mas continuou ao lado dele. Levantou a cabeça grisalha e sorriu.
— Você fala de seu medo. Mas eu não tenho medo. Sei que os outros homens são como eu, ainda que sejam melhores ou piores. Somos
todos os mesmos. Isso é uma coisa que devemos aprender. Quando aprendermos isso, compreenderemos que nada temos a temer um do
outro e que ninguém fará mal a outro a não ser por medo. É o medo que é a escuridão, a crueldade e o crime. Quando cada homem disser a si
mesmo: “Por que vou temer meu irmão?” então o mundo com que sonhamos terá chegado.
Stuart nada disse. Mas sacudia repetidamente a cabeça. Sam sorriu como para alguma coisa invisível.
— Acredito na América e acredito que o medo terá fim. Haverá então paz, bondade e a paternidade de Deus. Sim, creio nisso e na América.
Esse dia chegará. Talvez ainda leve muitos e muitos anos. Mas chegará.
As velas que a Sra. Berkowitz acendera tinham-se queimado até ao fim. Mas de repente deram uma última explosão de luz que iluminou toda a
sala. Havia uma nota triunfante nessa luz final.
Mas Stuart só viu a escuridão que se seguiu.
— Não acredito na América. Não acredito em coisa alguma. Você fala como o velho Grundy, Sam. Só sei é que tenho medo. Mas vamos falar
das lojas.
Sam disse então confiantemente:
— Talvez as coisas não venham a ser tão más quanto eu julgo, Stuart. Mas há sempre uma maneira e nós a vamos encontrar. Não, nada é
nunca tão ruim quanto pensamos.
CAPÍTULO 35
Janie estava sentada na sua cozinha bem aquecida e separava cuidadosamente uma pilha de vestidos usados, mas ainda luxuosos. Depois de
meticuloso exame, punha de lado os que se destinavam à filha de sua cozinheira, Sra. Gordon. Hesitava às vezes, mas logo, com um gesto
rápido, juntava à pilha um vestido ainda em bom estado de veludo ou de foulard. Essa pilha, toda vermelha, púrpura, azul e violeta, crescia aos
seus pés.
Havia poucas pessoas de sua classe em quem Janie confiasse. Mas, com um estranho sentimento democrático, confiava em suas
empregadas, que a adoravam, especialmente a Sra. Gordon. Na verdade, ela era muito generosa com elas, ria muito com elas e se mostrava
sempre cheia de pilhérias e de alegrias, salvo nos seus momentos de rabugice. Mas as empregadas achavam a sua rabugice fascinante e
admiravam a riqueza do seu vocabulário de nomes feios. Janie não tinha a menor dúvida, quando encontrava uma empregada polindo as
argolas e as varetas de metal da passadeira de uma escada, em sentar-se alguns degraus acima e empenhar-se com ela numa conversa
animada e alegre. Separavam-se depois para continuar os trabalhos do dia, com a amizade e a admiração renovadas de parte a parte. Os
jardineiros e os cavalariços tinham sempre grande prazer em vê-la porque havia nela tal despreocupação, tamanho bom humor repassado de
malícia e piadas que sabiam que podiam contar ao menos com meia hora de alegria e risadas. Ela pagava bons salários e era generosa de
outras maneiras, como na concessão de férias e no interesse pelos seus casos pessoais. Não obstante, tomavam poucas liberdades com ela,
pois não desconheciam os seus acessos de mau gênio e de violência, que não passavam com facilidade.
Ela gostava da companhia dessa gente, por mais incultos que todos fossem. Eram quase sempre simples, rudes e sinceramente licenciosos,
com observações atiladas ainda que livres. Na presença deles, ela nunca tinha de fingir que era uma senhora distinta. Podia ser uma daquelas
pessoas e uma certa rudeza essencial nela era satisfeita e estimulada. Entretanto, nenhum de seus filhos ouvia jamais essas conversas com os
empregados, porque estas se distinguiam por uma falta de reserva e pela sua alta impropriedade. Mas, às vezes, Laurie ou Angus ouviam as
retumbantes gargalhadas da mãe na cozinha, acompanhadas do riso desatado da Sra. Gordon. A porta era então fechada de repente.
As empregadas eram muito amigas de outras empregadas da cidade e, quando voltavam de seus dias de folga, tinham sempre boatos e
mexericos para despejar nos ouvidos interessados e maliciosos da patroa. Essa bolsa de escândalos constituía a luz e o interesse da vida de
Janie e, quando um boato era particularmente interessante e escandaloso, a empregada era muitas vezes gratificada com uma peliça de
veludo, uma moeda de prata de meio dólar ou uma noite extra de folga.
A cozinha era o lugar predileto de Janie em toda a casa. Era uma cozinha bem grande, uma das maiores peças da casa com o seu chão de
ladrilhos vermelhos e as suas paredes de estuque branco. Tinha uma grande janela que dava para os jardins dos fundos e nela havia bancos
espaçosos e cheios de almofadas. Numa das paredes, estavam penduradas as panelas rebrilhantes de cobre e, na outra, estendia-se o
grande fogão de ferro e tijolos, onde o fogo estava sempre aceso e as panelas fumegavam. Havia na cozinha três confortáveis cadeiras de
balanço e uma delas era a favorita de Janie porque era pequena e bem acolchoada e seus pés podiam tocar o chão.
Estava-se no verão, o breve e não muito quente verão do Norte e pela janela aberta entrava uma brisa suave e o chilrear dos pássaros. As
árvores brilhavam ao sol e a grama estava bem verde e viçosa. As rosas subiam pelo muro branco do jardim e outras flores se abriam em
explosões de cor através dos canteiros. Um salgueiro chorão era como uma fonte verde e frágil no centro do jardim e os seus galhos se
moviam docemente no ar radioso, perto de um nobre álamo de galhos dourados. Os pombos voavam sobre o teto de ardósia cinzenta da casa
e sobre os telhados vermelhos das cocheiras, destacando-se contra um céu de turquesa.
Tudo era tranquilo e pacífico. As panelas crepitavam no fogão e as cortinas das janelas flutuavam mansamente. A Sra. Gordon se movia
pesadamente, mas com rapidez. Era uma mulher grande e gorda, cabeluda e de rosto alegre, cujos olhos azuis cintilavam de espírito, malícia e
contentamento. Era a melhor amiga de Janie e tinha sempre uma porção de histórias para contar que muito divertiam a sua patroa. As suas
histórias nunca eram bondosas. Tinham sempre um fundo de licenciosidade e escândalo. A Sra. Gordon pensava o pior possível de todo
mundo e o pior era sempre biológico.
Janie estava separando roupas para a filha dela que era casada com “um espirro de gente”. E, como sempre acontecia às mulheres casadas
com tais criaturas, tinha muitos filhos. A Sra. Gordon não gostava nem um pouco dos netos. Para ela eram “pirralhos” ou “bastardos”, muito
embora a filha fosse legitimamente casada com o marido cronicamente doente.
Comentava sem a menor piedade:
— Seria de esperar que um camarada que passa o tempo todo na cama só se levantando para fazer as suas necessidades, tivesse um pouco
mais de juízo na cabeça. Mas não! Não se levanta da cama, mas de dez em dez meses, regular como um relógio, lá está a pobre de minha filha
de barriga de novo e sem poder parar de lavar roupa para sustentar aquele excomungado! É um inferno, Sra. Cauder, sabe?
— Sempre achei que aquilo é a última parte do homem que morre e, mesmo assim, não se pode ter certeza —, disse Janie, rindo.
Estava muito bem arrumada e simpática naquela manhã. Bem-humorada, sorria ainda ao lembrar-se de algumas histórias bem apimentadas
que a cozinheira lhe havia contado.
Disse em dado momento:
— Gostei muito do que me contou sobre o Prefeito! Já ocupa o cargo há não sei quantos anos e ainda belisca o traseiro das empregadas às
escondidas! Quem iria pensar isso de um homem tão solene como o Sr. Cummings?
— E se faz passar por um homem muito religioso! — exclamou a cozinheira. — Com uma mulher tão boa e uma filha tão bonita!
— Bem, a verdade é que não se pode culpar muito quem é casado com uma mulher como Alicia. Toda metida a importante, com aqueles ares
de quem acha que tudo está fedendo! Nunca pude simpatizar com ela. Cheguei a pensar na filha dela, Alice, para meu Bertie. Mas o rapaz não
quis sabor dela. Quem está suspirando agora por ela é Robbie. Não sei se devo dizer que está suspirando, pois Robbie é sempre tão frio. E
Alicia ainda faz cara feia como se meus filhos não fossem bons demais para aquela lambisgoia! Quem devia fazer cara feia era eu porque
quem são os Cummings, afinal de contas? O pai dele não passava de um taverneiro e vendedor de cavalos. Nós, na Inglaterra, temos ideias
diferentes, sabe? Meu Bertie tem bom gosto e essa história de vender cavalos não lhe cheira bem.
A cozinheira já conhecia bem a patroa. Sorriu, fixou nela os olhos astutos e disse:
— Bem, a menina é bonita e o pai tem dinheiro. Talvez o Sr. Robbie não pudesse encontrar coisa muito melhor por aqui. A verdade é que aqui
em Grandeville não há muito o que escolher e seus rapazes poderiam ter mais sucesso numa cidade maior.
Janie suspirou. Fingiu-se deprimida, mas a Sra. Gordon sabia que era pura conversa.
— E aí está o meu pobre Angus que se vai casar em novembro com um barril de banha. Como é horrível aquela Gretchen Schnitzel! E os
curtumes do pai dela que cheiram mal a léguas de distância! É como se ele se casasse dentro de um chiqueiro!
— Bem, mas é um chiqueiro rico...
— Sem dúvida. Meu Angus irá longe com esse dinheiro. Sabe onde tem a cabeça. Foi muito bem educado e já tem os seus planos. Só vai
precisar é de ficar com o lenço no nariz.
— Talvez ele vá trabalhar nos curtumes.
— Isso não! Schnitzel (que nome, meu Deus!) tem outros filhos, como você sabe. E Angus tem outras ideias. E a mamãe dele também. Angus
se casará com a moça, Gordon, embora eu não a possa tolerar. Que horror! Dentro de alguns anos, estará maior do que uma pipa!
— Talvez o Sr. Angus aumente um pouco o tamanho dela —, disse a cozinheira, rindo.
— Tenho minhas dúvidas, Gordon, tenho minhas dúvidas. Acho que lhe falta capacidade. E talvez ele pense que isso é pecado. Para Angus,
tudo é pecado. Não tem ido à igreja ultimamente, mas não importa. Parece pensar que a maneira própria de povoar a terra é encarregar de
tudo as abelhas, como acontece com as flores.
Ela e a Sra. Gordon iniciaram uma verdadeira tempestade de gargalhadas. Tentaram imaginar a noite de núpcias de Angus, com os gritos de
Gretchen e as torturas e a vergonha de Angus. Depois disso, ficaram durante vários momentos sem fôlego.
— Meu Robbie, não —, disse Janie, quando pôde falar de novo. — Será muito racional e criterioso com sua Alice. Antes do ato, entrará numa
discussão muito séria e lógica do assunto. Enquanto ela esperar de camisola na cama, ele passeará de um lado para outro no quarto, com as
mãos nas costas no melhor estilo napoleônico, e perguntará o que ela pensa. Terá chegado a alguma conclusão válida sobre o caso? Com
meu Robbie será assim.
Riram de novo. A Sra. Gordon sentou-se em outra cadeira de balanço que simbolizava o leito nupcial e tratou de imitar a pobre Alice Cummings
que esperava, ruborizada e com o dedo na boca. Por fim, levantou o avental para cobrir o rosto.
— Ah! Isso terminaria no mesmo instante a discussão! — exclamou Janie, com novas gargalhadas.
A cozinheira voltou às suas panelas e perguntou:
— Quando é que o Sr. Bertie vai voltar da cura de repouso que está fazendo em Saratoga?
O rosto de Janie se entristeceu e foi com voz bem branda que ela respondeu:
— Na semana que vem, eu acho. Coitadinho! Tão bonito e tão forte, quem podia desconfiar de que ele tivesse uma fraqueza nos pulmões? E,
ainda por cima, uma doença de estômago. Se alguém me tivesse dito que isso iria acontecer a Bertie, eu nunca poderia acreditar. Com Angus
ou mesmo com Robbie, não digo nada. Mas com Bertie, tão forte, tão bonito, tão alegre, nunca! Ele me escreveu dizendo que está quase bom
e ansioso para voltar.
— Que foi que o Sr. Robbie disse depois da visita que fez a ele?
— Oh, Robbie acha que Bertie vai indo muito bem. Ficou muito animado. — Deu um suspiro e acrescentou: — Quem poderia esperar uma
coisa dessas? Meu querido Bertie, sempre tão alegre e bem-humorado, sem o menor problema no mundo...
A voz áspera se adoçou de amor e de tristeza. As mãos tremeram e ela bateu as pálpebras para dissipar as lágrimas que a cegavam. A
cozinheira, que gostava realmente dela, olhou-a furtivamente com muita pena. Aquele beberrão imprestável! Como era que afligia assim o
coração da mãe? Mas, afinal de contas, ele era mesmo um amor e, quando estava em casa, enchia tudo de alegria. Acabou suspirando
também.
Durante algum tempo, houve um pesado silêncio na cozinha. Então, ao longe, ouviram-se as notas de um piano. Logo em seguida, elevou-se o
som de uma voz jovem, pura, cheia e forte, que parecia a meditação de um anjo. A Sra. Gordon ergueu a cabeça e um olhar de ternura lhe
apareceu no rosto gordo.
— Ah! Laurie está estudando.
Janie franziu a testa.
— Mas será que é preciso ela gritar desse jeito a estas horas da manhã?
Mas a cozinheira não ouviu a observação. Ouviu apenas aquela voz perfeita e celestial, que subia e descia solfejando uma escala, mas faria
desse solfejo uma coisa bela, cheia de glória, de doçura e de seriedade. As lágrimas vieram aos olhos da Sra. Gordon. A brisa cessou. Os
pombos ficaram em silêncio. Era como se toda a terra estivesse escutando.
E então a voz se tornou grave e lenta, como notas de órgão que murmurassem uma prece angélica. A própria Janie foi obrigada a escutar, mas
murmurou:
— A menina tem uma boa voz. O que eu duvido é que ela tenha mesmo a ambição de aproveitar essa voz. Só aceitou o tal professor para
agradar a Stuart! Não foi porque tivesse alguma vontade. Só Stuart é que consegue alguma coisa com aquela malcriada! Pois eu não a ouvi
dizer a ele que só aceitaria o professor e só estudaria porque queria que ele achasse a voz dela bonita! Sujeitinha assanhada! Se ela fosse
dois anos mais velha, eu não teria dúvida em prendê-la num quarto escuro por isso e trataria de vigiá-la bem, vestindo-lhe calças bem justas!
Parecia uma gata toda melosa quando disse isso!
Levantou-se de repente e bateu a porta com toda força, exclamando:
— Onde já se viu gritar assim de manhã cedo?
Mas a cozinheira não se deu por vencida.
— Ouça bem o que eu estou dizendo, Sra. Cauder! Ainda vai ter muito orgulho dessa menina! Uma voz assim vale ouro!
— Também espero, com todo esse dinheiro que se está gastando com ela, ainda que o dinheiro não seja meu! Se aquele idiota quer gastar
dois mil dólares por ano para pagar um professor para ela, que lhe faça muito bom proveito. Ele sempre foi gastador e quixotesco. Só não sei
ainda é por que ele está fazendo isso. Se pensa que depois vai ter lucro às custas de minha filha, está muito enganado. Tomei minhas
providências. Obriguei-o a assinar um contrato pelo qual ele abria mão de qualquer dinheiro que ela viesse a ganhar e ele teve de assinar antes
que ela cantasse uma nota que fosse para o tal professor de Nova York!
— E ele ainda hospeda em casa dele o Sr. Berry, sem deixar de lhe pagar os dois mil dólares. Por que é que ele está fazendo isso por sua
filha?
— Isso é que eu não sei. Quando era menino, tratava dos passarinhos de pata quebrada. Não importunou o meu Angus a pretexto de querer
ajudá-lo até que o rapaz foi forçado a dizer-lhe bem na cara que não se metesse na vida dele? Não ficou todo nervoso a respeito de Bertie até
que eu deixei meu querido ir para Saratoga? E não é ele que paga todas as contas? Se o idiota quer gastar o dinheiro dele com meus filhos,
que é que eu vou fazer? É melhor que sejam meus filhos do que todas as mulheres da cidade. Agora por que ele faz isso não sei. Talvez seja
um intrometido, que não pode viver sem se meter na vida dos outros.
— Talvez tenha bom coração —, sugeriu a Sra. Gordon.
— Nada disso, Gordon. É apenas um imbecil. Não pode deixar de querer ajudar os outros. Vai acabar pedindo esmola que é como acabam
todos os que querem fazer o bem neste mundo. E eu vou ficar muito contente com isso!
Levantou-se então e disse:
— Pronto. Cinco vestidos meus e seis de Laurie para sua filha.
Meteu a mão no bolso, tirou um rolo de notas e escolheu uma.
— Tome, leve isto para sua filha. Com o novo filho, ela vai precisar.
CAPÍTULO 36
Bertie e Robbie Cauder passeavam naquela manhã de domingo pela margem do rio do lado canadense. Tinham atravessado na barca cerca
de uma hora antes e estavam a caminho do Frenchman’s Creek, onde pretendiam alugar um barco para remar durante algumas horas. Era um
esporte favorito deles. Bertie levava uma mochila com sanduíches de carne fria e uma garrafa de vinho.
Era uma resplandecente manhã de outono. O rio, à direita, era de um anil brilhante sob um céu dificilmente menos colorido. As margens
gramadas desciam para a água, mosqueadas pela sombra dos álamos e dos bordos. As árvores se estavam transformando em grandes
manchas avermelhadas que se destacavam contra o céu azul. Havia no ar o chilrear dos pássaros e o derradeiro zumbido das abelhas. A
margem americana do outro lado das águas se desenhava nitidamente em verde.
Um clarim ressoou estridente e musical no ar tranquilo. Um pouco adiante, no caminho cheio de sulcos e poeira, ficava o quartel da guarnição
canadense. No alto, flutuava a bandeira inglesa, a Union Jack, ostentando todas as suas cores. Os dois rapazes avistaram os velhos muros
cinzentos do quartel, sobre os quais se estendia o sol e a sombra das árvores, mas não viam ninguém. Quando se aproximaram do quartel e de
Fort Erie, as casas brancas foram mais frequentes e o silêncio compacto do domingo se tornou ainda mais acentuado pelo mugir do gado,
pelos latidos dos cães ou pelo cacarejar das galinhas. Alguns jardins se voltavam para o caminho, por trás de cercas brancas e neles viçavam
as últimas rosas, zínias e papoulas do verão. Ouviam às vezes a batida de uma bomba, o ranger de um portão ou uma voz ininteligível. Mas não
viam ninguém.
Passaram pelo quartel. Na poeira amarela do pátio, três ou quatro soldados canadenses conversavam, apoiados em seus fuzis. Os jovens
rostos bigodudos se voltaram com tranquila curiosidade para os dois rapazes. Robbie e Bertie tiraram o chapéu e sorriram. Os soldados
fizeram continência e olharam os dois até desaparecerem de vista. Atrás deles, a Union Jack se desfraldava ao vento.
— Sabe de uma coisa, Robbie? Fiquei emocionado quando vi ali nossa velha bandeira. Um sentimento curioso, não acha?
Mas Robbie disse friamente:
— Curioso? Nem tanto. O patriotismo é uma velha emoção primitiva. Está enraizada na raça. Atavismo profundo. É uma sobrevivência do
instinto do rebanho. Não é fácil nos libertarmos desses instintos primitivos, Bertie. Haverá necessidade de muitas gerações de educação e
pensamento racional. De qualquer maneira, não é coisa para nosso tempo.
Bertie, como sempre, ficou vagamente confuso e desanimado com a lógica de Robbie e a sua maneira fácil de abolir as emoções. Disse
então:
— Não sei se entendo o que você quer dizer, Rob. Só quis dizer foi que quando vi ali a velha bandeira, compreendi como estava longe de
minha terra.
Robbie olhou para o irmão com um sorriso em que havia afeição, cepticismo e tristeza.
— Você sempre vai viver longe de sua terra, Bertie. Mas não vamos falar mais disso. Saímos para dar um passeio e isso é que importa.
Sentia muito que tivesse deprimido Bertie. Mas não tolerava qualquer espécie de sentimentalismo. Acreditava firmemente que haveria um dia
paz e felicidade para toda a humanidade, mas só quando os homens começassem a pensar racionalmente. Com todas aquelas tolices, todos
aqueles fetiches, não era de admirar que o espírito humano ainda vagueasse pelas sombrias florestas subterrâneas da história primitiva, como
um peixe cego a mexer em detritos vegetais. Que era que o espírito descobria naquela desolação submarina? Sereias e cavalos-marinhos,
monstros verdes e brilhos de matéria fosforescente em decomposição.
Os dois rapazes vestiam roupas domingueiras. Bertie estava resplandecente e belo com calça cinza de casimira e casaco de tom cinza mais
escuro. Havia nele alguma coisa do esplendor de Stuart Coleman, embora ele fosse mais magro e um pouco mais baixo do que o primo. Os
cabelos ruivos apareciam sob o chapéu alto cinzento. Levava na mão uma bengala de castão de prata. A camisa de folhos estava imaculada e
bem engomada. Tinha evidentemente recuperado a sua boa saúde, embora houvesse manchas escuras sob os alegres olhos azuis e uma
certa palidez em torno da boca móvel e quase constantemente sorridente. Desde que lhe faltava a violência e o ímpeto de Stuart, o seu olhar
nunca era rápido ou furioso, mas sempre se mostrava cintilante, interessado ou terno.
Quanto a Robbie, usava o seu terno habitual de casimira preta, com uma camisa de linho simples e limpa. Caminhava ao lado do irmão,
elegante e sério, como um símbolo de aristocracia e certeza judiciosa. Até suas luvas e o chapéu eram pretos. Levava uma bengala de ébano
com castão de ouro.
Chegaram à boca do Frenchman’s Creek, onde dois velhos pescadores alugavam barcos com material de pesca. Estavam ambos dormindo
em sua velha cabana. Robbie bateu na porta com a bengala e, depois de alguma insistência, um dos velhos apareceu. Robbie sorriu para ele.
— Alô, Bob. Pode alugar um barco para mim e para o Sr. Bertie? Alguns caniços e iscas também, sim?
Sentaram-se os dois no banco em frente da cabana, enquanto o velho, resmungando, se preparava para atendê-los. Pegou uma pá e começou
a cavar a terra à procura de minhocas para servirem de iscas. Um velho cachorro magro saiu da cabana e se aproximou dos dois rapazes,
sentindo-lhes o faro. Robbie encolheu o corpo para evitar qualquer possível contato com o animal. Mas o sorridente Bertie coçou a cabeça do
cachorro com as mãos brancas e cheias de anéis. O animal pôs as patas nos joelhos dele e olhou-o com adoração. Os olhos quase vidrados
brilharam de alegria e o animal esfregou a cabeça nos joelhos de Bertie, com imenso desgosto para Robbie.
— Pobre cachorro —, murmurou Bertie, na sua voz enternecida. — Um belo animal no fim da vida.
— Você vai ficar cheio de pulgas! — exclamou Robbie. — E talvez de mais alguma coisa. Suas calças já estão cheias de pelos.
Mas Bertie continuou a fazer festas ao cachorro, evitando, porém, a língua com que ele queria lamber-lhe o rosto para manifestar a sua
amizade.
Robbie disse então com uma raiva que não podia definir:
— Largue esse cachorro, Bert! Pode ter alguma doença. Não se esqueça do que lhe apareceu na pele no verão passado. Quer ficar doente?
De repente e com uma violência que não lhe era muito comum, pegou o cachorro pelo pescoço e afastou-o do irmão. Então, com um pontapé,
fê-lo rolar pelo chão, levantando poeira e ganindo. O cachorro levantou-se, olhou para o seu adorado Bertie e deu alguns passos em sua
direção. Mas Robbie levantou a bengala ameaçadoramente. O cachorro parou, arquejante e com os olhos torturados.
— Passa fora, sujeira! — gritou Robbie.
O cachorro olhou para ele e recuou. Depois, baixando a velha cabeça e o rabo quase sem pelos, foi para os fundos da cabana, ganindo
baixinho.
Bertie voltou-se para o irmão, cujo rosto pálido e moreno estava avermelhado, e sacudiu a cabeça.
— Não devia ter feito isso, Robbie...
Ainda sorria. Mas os olhos azuis tinham uma fixidez estranha.
— Você não tem um pingo de juízo, Bert —, disse Robbie, encolhendo os ombros. — Não me surpreenderei se você pegar alguma doença.
Mas Bertie, ainda sorrindo, continuou a sacudir a cabeça.
Robbie estava muito irritado e foi inspecionar o trabalho do velho. Disse então friamente, tocando o ombro do velho com a bengala:
— Menos terra e mais minhocas, está ouvindo? Não queremos lama para nada, Bob.
O pescador disse um nome feio, sem interromper o seu trabalho. Bertie continuava sentado no banco a olhar para o rio e para a distante
margem americana. Havia nele um ar de desolação.
Mas estava de novo muito alegre quando os dois embarcaram e começaram a subir o pequeno rio a remos. Às vezes, cantava, inclinando para
trás a bela cabeça. Tinha tirado o casaco e abrira a gola da camisa. A luz do sol cintilava nos brilhantes de seus dedos. Cantava e a sua voz
ecoava alegremente na água.
Robbie, que reservava os seus esforços para a viagem de volta rio abaixo, reclinava-se na popa do barco e olhava displicentemente em torno.
Era estranha a diferença entre o cenário que os dois irmãos viam. Robbie sentia o calor do sol do outono, era agradável em sua cabeça e em
seus ombros, que as águas eram azuis e o céu muito claro. Mas era só o que seus sentidos percebiam. Estava às voltas com os seus
pensamentos abstratos.
Mas Bertie via coisa inteiramente diferente. O barco subia o afluente e, à medida que deixava o rio turbulento, as águas se tornavam mais
estreitas e mais quietas. As margens ainda gramadas desciam em rampa para a água verde e transparente e as longas frondes dos salgueiros
chorões varriam a superfície com os dedos frágeis, lançando sombras delicadas, aéreas e intangíveis. O verde-garrafa das folhas dos
nenúfares flutuava na superfície tranquila e as belas flores surgiam como estrelas, tocadas de um puro aroma. As libélulas deslizavam pelo ar
como joias e no fundo do mato os pássaros cantavam. Através dos galhos dos salgueiros, divisavam-se fragmentos do céu azul. Houve um
ponto em que o rio se alargou de súbito para dar lugar a uma ilhazinha, onde uma garça branca estava imóvel, com as penas levemente
coloridas pelo sol e a destacarem-se contra a folhagem sombria. E tudo era coberto pelo claro e espectral silêncio.
Bertie estava calado, embora os lábios se mostrassem franzidos, como se ele fosse assobiar. Tinha o rosto muito sério. Ele via coisas que
Robbie não via ou não queria dar-se ao trabalho de ver.
Chegaram ao seu lugar predileto. Havia uma abertura entre as árvores, a ribanceira era menos pronunciada e bem coberta de grama.
Encostaram o barco, apanharam a mochila e subiram a margem. Sentaram-se sob um grupo de árvores a alguma distância do rio, apoiando as
costas nos troncos. Estavam cercados de uma paz imóvel e farfalhante, na qual só se ouviam os cantos dos pássaros no alto. Acenderam
charutos e sorriram um para o outro.
— Muito agradável aqui —, disse Robbie. Abriu a mochila e tirou dois livros. Um deles eram os seus Comentários de Direito Penal e o outro
era o Keats de Bertie. Olhou para este pequeno volume e jogou-o displicentemente para o irmão. — Por que você lê essas tolices poéticas eu
não sei —, disse ele, mas afetuosamente. Abriu seu livro e olhou para o relógio. — Comeremos daqui a uma hora. É o tempo de ler dois ou três
capítulos. O Juiz Taylor vai me fazer amanhã perguntas sobre eles.
Bertie pegou seu livro, suspirou e sorriu.
— Vou sentir muita falta de você quando for estudar em Harvard, Robbie.
— Ora, só irei pelo Natal e de vez em quando estarei em casa. O inverno passará bem depressa.
— Para mim, não —, disse Bertie, abrindo o livro. E repetiu em voz mais baixa: — Para mim, não.
— Bem, eu sei o que são os invernos aqui —, disse Robbie. — Daqui a menos de um mês, teremos neve. Mas você estará decerto muito
interessado em seu trabalho de retratos.
— Ah, sim...
— Você poderia ir estudar em Nova York.
— Eu não —, disse Bertie. — Nova York não me interessa.
Robbie o olhou tristemente e pensou que o irmão não se interessava por Nova York ou por qualquer coisa. Não se interessava por si, pela vida
ou fosse por que fosse no mundo.
Mas Bertie parecia em paz e muito feliz quando começou a ler seus versos. Não havia em seu corpo ou nas suas atitudes uma só linha que não
fosse bela e perfeita. Robbie não podia compreender o que era que o atormentava. Começou a ler, mas, a princípio, não pôde captar o sentido.
Mas, valendo-se do seu rigoroso senso de disciplina, logo se embrenhou nas complexidades do direito penal, “tal como era praticado no
Estado soberano de Nova York”.
Mas, apesar de tudo, com grande irritação, Robbie começou a descobrir que o livro não lhe interessava muito. Os pensamentos do que lia não
se lhe fixavam na cabeça, o que era uma coisa fora do comum. Começou a pensar cada vez mais no irmão e afinal deixou de ver a página
impressa que tinha à sua frente.
Pensava em Bertie com a tristeza e a opressão com que se pensa nos mortos ou nos que estão inexoravelmente para morrer. Mas eram
pensamentos sem palavras. Exprimiam apenas uma vaga inquietação, uma angústia informe. Nada havia que ele pudesse fazer por Bertie. E
Bertie nada podia fazer por si mesmo. Dentro daquela bela cabeça, não havia vontade, nem desejo. Era como uma folha iluminada pelo sol
que, quando o sol sumia, não tinha luz própria, nem procurava a luz. Limitava-se a esperar.
Tinha conhecido mulheres, mas só como se conhece a comida e se esquece para só pensar de novo nela quando a fome volta. Era incapaz de
amar. Robbie duvidava até de que o irmão tivesse por ele mais que uma afeição infantil, talvez um pouco mais forte do que poderia sentir por
alguém ou por alguma coisa.
Então, Robbie se lembrou de repente da cena com o cachorro velho. Das profundezas frias e sem cor de seu coração, subiu um grito
silencioso, como uma explosão de angústia. Bertie! Bertie! Há alguma coisa que você nunca me disse! Há alguma coisa que você me poderia
dizer e que eu poderia tentar compreender!
Bertie sentiu a intensidade de seu olhar, levantou a vista e sorriu.
— Escute, Robbie. Eu sei que você detesta poesia mas quero que escute isso. São dois trechos que eu marquei e que você tem de escutar!
Esperou que Robbie protestasse violentamente. Mas, com leve surpresa, ouviu Robbie dizer com excepcional gentileza:
— Está bem. Leia.
Bertie começou a ler numa voz que Robbie nunca tinha ouvido:
“Escuto nas trevas e muitas vezes / tenho amado um pouco a repousante Morte / chamando-lhe doces nomes em muitas rimas sonhadoras /
para dispersar no ar meu hálito calmo; / agora, mais que nunca, parece grande morrer / cessar à meia-noite sem dor...”
A bela voz dele se calou e ele olhou para Robbie. Este não falou. Fitava com os olhos pretos o rosto do irmão. Mas sentia em si mesmo uma
imobilidade gelada como a própria morte.
Bertie voltou de novo os olhos para o livro e disse.
— Aqui está o outro trecho:
“As melodias que se ouvem são doces, mas as que não se ouvem / são mais doces; tocai, pois, gaitas suaves, tocai; / não para o ouvido
sensível, mas, mais cativantes, / cantai para o espírito músicas sem tom; / belo jovem, sob as árvores, não podes deixar / teu canto como não
podem as árvores perder as folhas...”
Robbie não ouviu a voz de Bertie parar. Ouviu apenas:
“Belo jovem, sob as árvores, não podes deixar / teu canto como não podem as árvores perder as folhas...”
Ficou sabendo então que Bertie tinha um canto, mas não era um canto que ele pudesse jamais dizer a alguém no mundo. Não tinha palavras
para ele; tinha apenas dor, uma dor que ele enfrentava com o sorriso brilhante e os olhos alegres.
Robbie sabia também, com a misteriosa presciência que tão raramente lhe ocorria, que sempre veria seu irmão, como o jovem do poema, a
cantar seu canto irreal sob árvores perpetuamente cobertas de folhas, imutáveis para sempre, enquanto ele estaria morto.
Voltou a si com um sobressalto. Tinha ouvido um som estranho.
Bertie tinha baixado a cabeça para os joelhos e estava chorando.
CAPÍTULO 37
Angus tinha o costume de acompanhar sua irmã Laurie até à casa de Stuart todos os domingos à tarde a fim de que a menina pudesse tocar
durante uma hora ou pouco mais para seu benfeitor.
Mas naquele primeiro domingo de novembro, Angus tinha ido para a cama com um forte resfriado febril e Janie pediu ao filho mais moço,
Robbie, que levasse Laurie à casa de Stuart. Robbie, exausto e aborrecido, não viu isso com muito agrado, mas não estava na sua natureza
discutir iradamente e já era suficientemente adulto para não recusar um favor ou desobedecer a uma ordem, quando isso não lhe era muito
inconveniente. Não havia, portanto, razão bastante para que ele não acompanhasse sua jovem irmã pelas ruas de Grandeville, num domingo.
Robbie não tinha predileção particular para Laurie, embora simpatizasse displicentemente com ela porque, em certas coisas, se parecia com
Bertie. Tinha os mesmos olhos azuis de Bertie, os cabelos eram um pouco mais dourados e possuía também a boa cor e a estatura clássica do
irmão. Mas ela e Robbie conversavam pouco, porque ele a achava um “tanto chata”, apesar de toda a sua beleza. Além disso, embora tivesse
apenas treze anos, ela era quase tão alta quanto ele e, desde que a sua baixa estatura o aborrecia um pouco, a companhia dela não lhe era
muito agradável.
Entretanto, estava disposto a ser gentil com ela, por mais desinteressante que fosse a sua conversa, durante a caminhada um pouco longa até
a casa de Stuart. Por outro lado, ele desejava conversar em particular com Stuart. Recomendou, portanto, a Laurie que se agasalhasse bem e
não se esquecesse do seu regalo. De fato, as ruas já estavam cheias de neve e gelo e um vento firme, ártico e enregelante, varria as ruas
desoladas, sob um céu carregado e feio.
O interminável inverno do Norte tinha desabado em fins de outubro. Até meados de maio do ano seguinte, a cidade ficaria presa entre as
garras geladas dos lagos e do rio. Robbie odiava esse clima e via os próximos sete meses de rigoroso inverno com pesar e desgosto.
Embora uma expressão sentimental como “coração confrangido” fosse exagerada em relação a Robbie, ele estava sofrendo no momento um
estado de espírito bem semelhante. Analítico e lógico tal como era, para poder experimentar uma emoção verdadeira, Robbie se aborrecia
com aquela opressão no peito que lhe entorpecia os movimentos. Entretanto, por mais disciplinado que fosse, não conseguia livrar-se daquele
mal-estar, daquela desesperança profunda. Já tomei a minha decisão, dizia ele severamente a si mesmo, e, portanto, não pensarei mais no
caso. Mas as emoções negadas e contidas, embora ele se recusasse a reconhecer a sua existência, não aceitavam a decisão tomada pela
razão.
Pensando em tudo isso, atravessou com a irmã as ruas desertas e desoladas. Já tinham feito mais de metade do caminho quando ele
percebeu que não tinha trocado uma só palavra com Laurie. Era muito polido e civilizado para não sentir algum desconforto com isso. Por isso,
olhou de lado para ela, enquanto segurava o chapéu alto, sorriu friamente e disse:
— Tempo horrível, não é, Laurie?
Ela voltou o rosto para ele e retribuiu o sorriso, fazendo-o notar distraidamente que era um belo rosto.
— É, sim —, murmurou ela.
— Não estou sendo um companheiro muito interessante para você, Laurie. É uma pena que Angus esteja resfriado. Você teria muito mais o
que conversar com ele.
— Angus e eu não temos mais nada que conversar —, disse ela, com fria tranquilidade.
Robbie se mostrou polidamente surpreso. Olhou para Laurie e viu que o rosto dela estava rígido e sério sob o chapéu de castor, com uma
expressão inteiramente amadurecida. Sentiu então uma ponta de interesse.
— Mas vocês sempre foram tão amigos, Laurie.
Ela não respondeu. Limitou-se a andar um pouco mais depressa, forçando-o humilhantemente a quase correr para não se distanciar dela.
Estava quase convencido de que a pequenina Alice Cummings é que era a mulher para ele, abandonando de chofre a sua admiração pelas
mulheres de formas monumentais. Laurie seria gigantesca, pensou ele irritadamente.
— Angus foi sempre seu protetor —, disse ele, aborrecido com sua leve falta de fôlego. — Vocês dois eram muito unidos.
— Angus mudou —, disse ela.
— Sim? — exclamou Robbie, com redobrado interesse.
Ficou um pouco desconcertado quando a irmã olhou para ele com seu estranho sorriso, como se o julgasse ingênuo.
— Angus mudou. Só isso.
— Todos nós mudamos —, disse Robbie friamente. — Você esperava que ele ficasse criança a vida toda?
— Não. O que eu não esperava era que um homem virasse criança.
Robbie ficou espantado. Pensou que era uma coisa fora do comum para ser dita por uma menina que ainda não tinha quatorze anos. Teria
ouvido bem? Se tinha, então suas noções preconcebidas a respeito de Laurie estavam erradas e ele seria forçado a fazer uma revisão. Isso
provocaria uma certa confusão mental e exigiria tempo. Preferia analisar, catalogar e arquivar suas conclusões permanentemente.
— Não compreendo, minha filha.
— Por que está tão interessado, Robbie? Você e Angus nunca se entenderam muito bem. Ou é apenas curiosidade?
— Curiosidade? — exclamou Robbie. — Ora essa! Estou apenas puxando conversa.
— Não gosto de conversar —, disse Laurie. — Acho que é uma perda de tempo.
Antes que pudesse dominar-se, Robbie teve consciência de sua profunda antipatia pela irmã e de um sentimento renovado de humilhação.
— Parece que sua educação tem sido tristemente negligenciada —, murmurou ele. — Não sabe que a boa conversa é uma necessidade numa
sociedade civilizada?
Laurie deu uma risada, tocou no braço de Robbie e disse:
— Neste caso, parece que sua educação também foi negligenciada.
Robbie não pôde deixar de achar graça e disse:
— Creio que tem razão, Laurie. Eu estava apenas falando como acho que se deve falar a uma irmã mais moça. Mas, na verdade, nós, os
Cauder, não somos muito civilizados, não acha? Mas que é que se pode esperar quando se tem uma mãe deliciosamente pouco civilizada?
Laurie estava sorrindo. Mas, ao ouvir essas últimas palavras, fechou o rosto, apertou os lábios e caminhou um pouco mais depressa.
Robbie sentiu imediatamente uma intensificação do seu mal-estar. Laurie lhe parecera de súbito Bertie. O andar, a cor dos cabelos, as linhas
do perfil, tudo isso era de Bertie. Como a pessoa se apega ao retrato de alguém que morreu ou está ausente para sempre, Robbie desejou
apegar-se a Laurie.
— Laurie, você sabe que se parece muito com Bertie? — perguntou ele, surpreso com as palavras que havia proferido quase
involuntariamente.
Ela diminuiu o passo. Voltou-se para ele e, nos seus olhos azuis, Robbie viu compaixão e uma ternura nova.
— Acha, Robbie querido? — perguntou ela, estendendo-lhe a mão. Continuaram a caminhar de mãos dadas.
— Sim, minha querida. Acho que se parece muito. E eu gosto muito de Bertie.
— Eu sei —, disse Laurie. — E fico satisfeita de me parecer com Bertie.
Não se falaram de novo até chegarem à casa de Stuart. Ali estava o que se chamava a “Loucura do Irlandês”. Parecia um templo isolado de
beleza, incongruente naquele cenário rude e selvagem.
Laurie e Robbie subiram o caminho calçado de lajes de pedra e abriram o portão de ferro trabalhado. Quando levantaram a aldrava da porta, o
som ressoou muito forte no imenso e desolado silêncio.
Mas o rebrilhante vestíbulo preto e branco estava bem aquecido e cheio de um aroma doce e langoroso e iluminado pelas lâmpadas. Uma
empregada ajudou Laurie a tirar a capa e o chapéu. Enquanto Robbie era semelhantemente atendido, Laurie alisou os cabelos dourados e
olhou para o seu vestido de lã vermelha. Depois, encaminhou-se com Robbie para o grande e belo salão de cabeça erguida e de novo serena
e séria.
Stuart, Marvina e a filhinha deles já os esperavam. Estava também presente o Sr. Richard Berry, o professor de Nova York, um homem baixo e
moreno de barba negra cheia e olhos muito vivos. Aproximou-se, com os pés voltados para fora como um dançarino, e fez uma profunda
reverência. Embora fosse um homem da Nova Inglaterra, afetava ares europeus, apropriados a um professor de canto. Poderia até ter beijado
a mão da jovem Laurie se ela lhe desse a oportunidade. Olhou inquietamente para Robbie e, quando Stuart se aproximou e fez as
apresentações, curvou-se em nova reverência. Não gostava de homens pequenos e antipatizou com os olhos finos e irônicos de Robbie.
Marvina, uma visão radiosa em veludo azul, se aproximou pisando graciosamente o tapete Aubusson para cumprimentar Laurie e o irmão.
Beijou o rosto da menina e voltou para Robbie o seu sorriso vazio. A vida conjugal e a maternidade tinham feito bem a Marvina que estava mais
cheia de corpo e com formas esculturais. Mas não havia maturidade em seu rosto inexpressivo, nem nos olhos dourados. Teria para sempre o
rosto de uma criança.
— Mas, minha querida, suas mãos estão frias! — disse ela na sua voz sem expressão. — E quem a trouxe hoje foi o caro Robbie e não Angus.
Por quê?
— Angus está resfriado —, disse Robbie, polidamente. Não gostava de gente imbecil. Mas até uma pessoa imbecil era melhor do que aquela
mulher encantadora que nem imbecil era, de tão vazia. Ela o inquietava. Era como se estivesse falando com uma estátua. Era uma surpresa
quando ela dava resposta a alguma coisa, pois a impressão que se tinha era de que ela não ouvia o que se lhe dizia e era capaz de qualquer
reação por trás do mármore perfeito daquela fronte.
Olhou com curiosidade para Stuart, tão calmo e sorridente ao lado da mulher, e ficou mais uma vez sem saber como aquele homem violento e
tempestuoso suportava a companhia daquela mulher vazia, que nada mais era do que uma grande boneca na qual ecoavam os pensamentos e
as palavras dos outros. Mas, pensou ele, talvez uma mulher assim fosse tranquilizante.
A pequena Mary Rose se aproximou então, sorrindo, de Laurie, de quem ela gostava muito. A menina pegou a mão de Laurie e olhou para ela.
Era uma criaturinha muito frágil, com um rostinho triangular, pálido e magro. A boca era rasgada e sensível e uma massa de cabelos pretos
sem brilho lhe caía sobre os ombros débeis. O narizinho reto tinha narinas trêmulas. Mas os olhos, enormes, pretos e cheios de tristeza, eram
também plenos de doçura e vibrantes de luz. Era tão frágil e terna que o próprio Robbie não foi insensível ao seu encanto e sorriu, tocando-lhe a
face com os dedos.
O grande salão estava bem aquecido e iluminado. O fogo crepitava na lareira de mármore. No piano, havia um vaso com rosas de estufa.
Viam-se rosas por toda a parte, provenientes da extensa estufa de Stuart. Robbie olhou para tudo com aprovação. Havia bom gosto em tudo.
Como sempre acontecia quando entrava naquela casa, o respeito que sentia por Stuart crescia consideravelmente.
Stuart insistia em estar presente às lições de Laurie. Sentou-se com a filha no colo. A menina se aninhou entre seus braços, encostando a
cabecinha ao peito do pai. De vez em quando, erguia os olhos e contemplava-o em tímida e completa adoração. Marvina se sentou ao lado
dele com a graça inconsciente de uma atriz, com o lustroso veludo azul a cair elegantemente ao longo das coxas e das pernas e o colo branco
a resplandecer à luz das lâmpadas. O sorriso vazio e lindo que lhe era habitual já estava estampado no rosto. Robbie se sentou na sua poltrona
forrada de cetim francês e se preparou para uma hora de tédio absoluto. Não compreendia música e não se interessava por ela. Mas voltou os
olhos polidamente para Laurie, que estava de pé junto ao piano, enquanto o Sr. Berry tocava alguns acordes floreados. Em torno, brilhavam as
luzes, acentuando as cores delicadas dos móveis, dos reposteiros e dos tapetes, tocando a madeira clara trabalhada com filamentos de luz
rósea e misturando-se com as lanças vermelhas que dardejavam do fogo.
Laurie não tinha começado a cantar ainda. Robbie correu os olhos pelo salão. O rosto de Stuart estava carrancudo e sombrio. Brincava
distraidamente com um anel dos cabelos da filha, a quem de vez em quando acariciava o rosto. Tinha sido um ano bem difícil para ele, pensou
Robbie, com involuntária simpatia. E o ano ruim ainda não estava terminado. Robbie sabia muito a esse respeito em vista das observações
malévolas da mãe. O “pânico” não fizera bem algum a Stuart e poderia prejudicá-lo mais ainda se ele não tivesse cuidado. Era sem dúvida
nisso que ele estava pensando. Havia rugas profundas e zangadas em torno da boca sombria. Os olhos estavam encovados e anuviados. Era
um homem impetuoso e leviano, pensou Robbie continuando as suas reflexões. E muito turbulento. Mas havia alguma coisa nele...
O Sr. Berry se virou do piano para os presentes e anunciou dramaticamente:
— Quem é Sílvia, de Schubert! A Srta. Laurie vem praticando esta peça há algum tempo e vai nos dar agora uma elegante execução, para
vosso prazer!
Robbie viu um sorriso irreprimível aflorar aos lábios de Laurie. Estava ao lado do professor, alta, séria e incrivelmente calma! Robbie achou
tudo isso muito interessante. Havia em Laurie um ar de tranquilo alheamento, que indicava uma maturidade muito superior à sua idade.
Abriu a boca então e emitiu a voz pura e sem esforço, cheia de suave força e melancolia. O alheamento havia desaparecido. Todo o seu corpo
participava de sua voz e parecia vibrar. Tudo nela passara a ser vivo, arrebatado, intenso e veemente. Ela havia esquecido os que a
escutavam. Tinha a cabeça voltada para trás e o rosto estava iluminado de êxtase forte de sua paixão. Os cabelos rolavam-lhe pelas costas; o
seio jovem arfava. Levantou as mãos e elas ficaram diante dela, erguidas, com as palmas para cima, como em súplica. Não era mais uma
menina; era uma mulher. Voltou a cabeça como que impelida por uma atração irresistível e desvairada e olhou para Stuart, enquanto a voz se
derramava dela como um rio de ouro.
Stuart olhou para ela também. A mão que se movia lentamente parou e descansou passivamente no ombro da filha. Através do salão iluminado,
os olhos dele e de Laurie se encontraram. E houve nele visível tensão, apesar de toda a sua imobilidade.
Robbie tinha ouvido Laurie cantar de longe em casa, mas não se interessara e nem mesmo tomara pleno conhecimento disso. O seu coração
exato e bem ordenado, tão cuidadosamente isento de emoções, nunca fora tocado pela música, pois carecia dos órgãos necessários para
perceber uma arte tão nobre e tão puramente instintiva e emocional. Mas, naquele momento, o seu espírito frio se sentia enormemente
conturbado e experimentava a presença de uma paixão avassaladora, cheia de exaltação e de terror, na voz e no jovem rosto de Laurie.
Pensou consigo mesmo que o dinheiro não tinha sido desperdiçado. Ela podia verdadeiramente cantar. Mas o pensamento era mecânico.
Havia naquele salão alguma coisa mais do que aquela voz, por mais gloriosa, perfeita, plena e heroica. Havia ali alguma coisa abandonada e
terrível, uma coisa alheia a toda a razão e que poderia arrastar a razão numa torrente de fogo, lançando-lhe os fragmentos num mar ululante.
Olhou para Laurie, como se o sentido de tudo aquilo estivesse com ela. Viu que o rosto dela estava branco e apaixonado, com os olhos azuis
dilatados. Viu que ela só olhava para Stuart. Olhou então para o dono da casa. Viu a mão parada nos cabelos pretos da filha. Não podia ver o
perfil de Stuart, pois estava um pouco afastado dele. Mas pressentiu a paixão de Stuart que respondia ao rosto e à voz de Laurie.
Robbie franziu a testa. Ora, a menina mal tinha quatorze anos. Só iria completar quatorze anos daí a um mês. Achou muito estranho que se
tivesse lembrado disso com precisão. Até então, nunca tomara conhecimento da idade de Laurie. Mas não era uma criança que estava ali
cantando. Era uma mulher, que não sentia vergonha, e suplicava, humilhando-se, numa fome e num arrebatamento que não admitiam recusa.
Robbie apertou os lábios. Aquilo tudo era insensatez, sem dúvida. Aquele canto nunca ia terminar? Olhou para Marvina, que continuava com o
seu sorriso vazio e balançava levemente a cabeça ao compasso da música. De vez em quando, levava aos lábios um lenço perfumado. Batia o
compasso também com a ponta do sapato, sob a barra de seu vestido de veludo azul.
Quando Robbie viu Marvina assim, chegou à conclusão de que não era senão uma idiota. Por fim, Laurie parou de cantar. Sorriu para o Sr.
Berry que, com uma judiciosa inclinação da cabeça, começou a criticar o desempenho.
— Um pouco de tensão em algumas notas agudas —, disse ele, ilustrando a sua observação com algumas notas tocadas no piano. — Atenuou
um pouco esta passagem.
Repetiu o trecho no piano e fez Laurie cantá-lo de novo.
Nesse ponto, nada havia de anormal na atmosfera do salão. Tudo voltara a ser calmo e comum. A repetição das notas aborreceu Robbie. Tirou
do bolso o lenço para enxugar as mãos que estavam ridiculamente úmidas.
Stuart voltara a afagar os cabelos de Mary Rose. Parecia subitamente exausto. Marvina bocejou, percebeu o que estava fazendo e sorriu ainda
mais como se pedisse desculpas. O Sr. Berry estava apontando um trecho com alguma irritação a Laurie, que se inclinava atenciosamente
para ele. Uma madeixa dos cabelos dourados lhe caiu sobre o rosto atento. Ela emitiu algumas notas, fazendo sinais afirmativos com a
cabeça. Tudo se tornara muito enfadonho e Robbie não pôde deixar de bocejar.
Olhou furtivamente o seu relógio. Através dos reposteiros meio corridos, viu que estava nevando de novo. Flocos torvelinhantes vinham bater
nas vidraças polidas. O fogo crepitava na lareira e subia, alaranjado, pela chaminé, como se fosse tocado por um forte vento. Então, para
Robbie, o salão, toda a casa pareceu vazia e fria apesar de todo o seu esplendor e beleza.
Lembrou-se então de que tinha de falar com Stuart. Esquecera-se disso, na ridícula confusão de seus pensamentos. Stuart estava dizendo
alguma coisa a Mary Rose, que ria. Marvina tornou a bocejar. O Sr. Berry fechou o piano e perguntou a Stuart:
— Gostou do canto, Sr. Coleman?
— Muito. Muito mesmo. Laurie está indo muito bem, não está?
O Sr. Berry adotou uma pose de imensa gravidade.
Olhou para o teto, projetando com isso a barba preta e disse:
— Sim, está melhorando. Vai crescendo. Mas vai precisar de muito mais ainda antes de poder ser aceita em nossa escola de Nova York.
Sugiro mais um ano de rigorosa aplicação. Eu disse rigorosa aplicação. Nada de frivolidades, nem de displicências. Há necessidade de uma
séria dedicação, que é difícil de encontrar nos jovens. Uma dedicação religiosa, por assim dizer, Sr. Coleman. Uma determinação inflexível.
Mas eu creio que a Srta. Laurie tem em si tudo isso.
Informou então a Laurie que teria o prazer de dar-lhe aula na terça-feira. Os estudos se estendiam pela semana e aos domingos os resultados
eram apresentados a Stuart e sua família.
Uma empregada entrou com uma bandeja de chá. Marvina, toda graça e sorrisos, sentou-se diante da bandeja e começou a servir o chá,
acompanhado de torradas e biscoitos. Todos se sentaram perto dela e em volta do fogo. Stuart parecia ter-se esquecido de tudo menos da
filha, que ainda estava sentada no seu colo. Pegou um pedaço de torrada e pediu-lhe que comesse. Recusou a princípio, mas acabou cedendo
à insistência do pai e para fazer-lhe a vontade, mas seu apetite era bem pequeno.
O Sr. Berry havia embarcado entusiasticamente no assunto das óperas que ouvira em Berlim, Paris e Londres. Enquanto falava, gesticulava
febrilmente tendo um pedaço de bolo na mão e deixava cair migalhas no tapete e na roupa. Stuart escutava com muita atenção, pois o assunto
lhe interessava pessoalmente. Marvina tagarelava amistosamente com Laurie, que lhe dava uma atenção polida. Às vezes, ela olhava Marvina
com a testa franzida como se estivesse imersa em graves e profundos pensamentos. Era jovem de novo, pouco mais que uma criança, e comia
com prazer, jogando de vez em quando para trás os cabelos dourados. Robbie tomava chá, que ele detestava, e comia bolos sem qualquer
interesse.
— Sim, é uma voz indiscutivelmente wagneriana!— exclamava Berry, continuando a sua conversa com Stuart. — Posso já ouvir a Srta. Laurie
em Lohengrin! Que magnífica Elsa ela será! Tem presença natural para o papel. Não precisará nem de usar peruca. Os cabelos são perfeitos!
E tem indiscutivelmente a estatura! Será uma sensação, Sr. Coleman, uma positiva sensação! Receberá ovações em todas as grandes
capitais do mundo! Será recebida pelas cabeças coroadas! Quanto aos Estados Unidos —, abriu as mãos num gesto significativo —, quem
aprecia as artes nos Estados Unidos? Este é um país bárbaro, Sr. Coleman, um país bárbaro! Nunca haverá nada aqui!
O rosto de Stuart se fechou imediatamente. Mudou a filha de um joelho para outro e perguntou:
— Que é que há de errado com os Estados Unidos? É um país jovem, sem dúvida. Mas não se esqueça de que os países jovens são capazes
de tudo! Quando os Estados Unidos adquirirem a consciência plena de sua força e atingirem a maioridade, mostrarão o seu gênio próprio.
Como será, não sei. Mas tenho certeza de que o vai mostrar ao mundo. Nada é impossível aqui!
O Sr. Berry ficou um pouco desconcertado com isso. Murmurou apenas:
— Não duvido. Mas ainda não vejo sinais.
— O gênio deste país não será igual ao da Europa —, disse Stuart, com crescente irritação. — Será com certeza alguma coisa nova. Veem-se
os sinais por toda a parte. Os Estados Unidos têm vigor. Pode achar isso feio. Mas o que eu vejo nisso é força. Já esqueceu a história? Houve
um tempo em que Roma era uma nação jovem e bárbara. A Grécia zombava dela. Mas Roma teve depois o seu esplendor.
— Mas foi um esplendor bárbaro! — exclamou o Sr. Berry, ansioso por mostrar a sua erudição. — Não se esqueça de que Roma nunca se
aproximou da glória da Grécia. Roma nunca produziu as artes e as ciências da Grécia, e na filosofia, então, nem é bom falar...
— Eu sei —, exclamou Stuart, interrompendo-o rudemente. — Foi outro tipo de gênio! Não sei por que certas pessoas acham que só um tipo
de atividade tem valor. É insensato esperar que todos os homens tenham olhos azuis, só porque se admiram olhos azuis. Será que é incapaz
de ver a variedade, a mudança, a policromia? Para ser admirada e apreciada, a paisagem do mundo tem de ser uniforme e monótona? Onde
está a sua apreciação das diferenças, da individualidade?
Robbie estava um pouco surpreso. Não podia deixar de reconhecer que a argumentação de Stuart era boa. Mas por que estava ele tão
exaltado? Essa exaltação fazia as suas palavras parecerem pueris e ridículas. Quando um homem falava exaltadamente e dizia o que tinha
para dizer numa voz tartamudeante e atropelada, os outros deixavam de ouvi-lo e sorriam apenas superiormente de sua veemência.
Um sorriso furtivo tocou os lábios do Sr. Berry e ele inclinou um pouco a cabeça, a fim de dissimulá-lo. Robbie, no mesmo instante, antipatizou
com ele e resolveu entrar na discussão, dizendo com sua voz fria e neutra:
— Concordo com você, Stuart. Mas os homens não gostam de ser originais. O que uma vez lhes agradou e lhes despertou a admiração,
sempre lhes parece o melhor. Reprovam em proporção direta à diferença. Um homem com uma nova filosofia, um músico com um ritmo novo,
um planejador com uma nova ideia, um arquiteto com um projeto novo, todos eles são sempre objeto de desprezo para o mundo asnático, que
tem ideias preconcebidas e se aferra ao passado. Isso decorre de timidez e de um medo de mudar inerente na natureza humana. Aceitar uma
nova ideia ameaça a segurança precária sempre num universo em constante mudança.
Stuart tinha escutado, franzindo a testa. Disse então com impaciência:
— É isso mesmo o que eu quero dizer. Muito obrigado. É por isso que eu digo que o gênio dos Estados Unidos é diferente. Ainda se está
desenvolvendo. Está em movimento. Não podemos ainda ver os contornos. É tudo tão novo!
Olhou para a mulher. Pareceu de repente exausto e desanimado. Disse então numa voz calma e delicada:
— Quer chamar a babá, minha cara? A menina estava muito cansada e dormiu.
Marvina, sem deixar de sorrir, estendeu a mão e puxou a faixa da campainha perto dela. Depois, voltou os olhos para a filha. O sorriso não
aumentou de ternura. Continuou parado, como se fosse o sorriso pintado de um retrato.
A babá chegou e levou a criança adormecida. Marvina seguiu-a com os olhos. Robbie comparou-a a uma gata irracional, que acompanhava
involuntariamente com o olhar vadio qualquer movimento que lhe atraísse a atenção. Quando a porta se fechou depois da saída da babá,
Marvina se voltou graciosamente para as pessoas reunidas em torno do fogo e lhes ofereceu chá de novo.
Robbie disse a Laurie, que estava com os olhos fitos no fogo:
— Vamos, Laurie? Está nevando forte e nós temos muito que andar.
Marvina disse amavelmente:
— Podemos mandar a carruagem levá-la para casa, minha cara.
Mas não havia interesse na voz dela.
O Sr. Berry saiu da sala com muitas reverências e depois de dar ainda algumas instruções em voz baixa a Laurie. Esta saiu para o hall,
seguida pela graciosa Marvina, que se lembrou afinal de cumprimentá-la pelo canto. Stuart e Robbie ficaram sozinhos. Stuart abriu uma caixa
de prata e tirou um charuto. Acendeu-o com uma vela. Depois, encostou o cotovelo à cornija da lareira e ficou a olhar para o fogo. Parecia ter
esquecido Robbie.
Este se aproximou dele e disse em voz baixa:
— Eu queria falar com você, Stuart
Stuart levantou a cabeça e olhou em silêncio para ele.
— Não sei se alguém já lhe agradeceu devidamente o que você está fazendo por Laurie. Se não, eu lhe agradeço agora. É muita bondade sua.
Stuart franziu a testa e encolheu os ombros.
— Bem, a menina tem voz. Você reconhece isso, não é mesmo? E como sua mãe disse que não podia pagar um professor...
Robbie riu, com um riso bem desagradável.
— Ela sabia perfeitamente que Laurie tem uma boa voz. Bastava que você esperasse discretamente um pouco para que ela largasse o
dinheiro para o professor. Mas você não esperou. Ela esperou porque é muito sabida.
— Duvido muito de que ela tivesse “largado” o dinheiro, como você diz. Ela não gosta da menina. E eu, pelo meu lado, não gosto de esperar.
— Minha mãe é ambiciosa. Uma vez certa de que Laurie poderia cantar, teria gasto qualquer dinheiro. Sei disso e acho uma pena.
Stuart nada disse e Robbie continuou:
— Outra coisa. Sei que sugeriu a minha mãe mandar de novo Bertie para Saratoga. Vim-lhe pedir que não faça isso, Stuart, por favor!
Stuart olhou-o com surpresa e perguntou:
— Por quê? Acha que dessa vez sua mãe poderá “largar” o dinheiro?
— Não, tenho certeza de que ela não vai fazer isso. Eu a convenci de que não adiantava.
Stuart tirou o braço da lareira. Olhou para Robbie com curiosidade.
— Você a convenceu? Por quê? O último tratamento não fez bem a ele? Depois disso, levou seis meses afastado da garrafa. Será que já
voltou?
— Já, sim. Não adianta. — Pareceu de repente muito cansado e repetiu: — Não adianta. Houve um tempo em que eu tinha uma ideia diferente
a respeito de Bertie. Essa ideia ainda é parcialmente certa. Mas a razão é mais profunda do que eu havia pensado. Sei agora que se ele tem
desejo de alguma coisa é da morte.
— Por que diz isso? Está falando como um idiota!
— Não, sei que estou certo e que nada é capaz de dar a Bertie o desejo de viver. Não é que ele esteja cansado de viver. O que acontece é que
a vida não tem atrativos para ele.
Olhou para Stuart sombriamente e disse:
— Já viu um espelho numa parede, Stuart? Fica ali pendurado sempre. Às vezes, o sol brilha nele. Às vezes, abandona-o. Fica então na
escuridão. Limita-se a refletir. Não tem vida própria. É perfeitamente estático. Talvez, se pudesse exprimir uma opinião própria, pediria que o
tirassem da parede. Talvez dissesse que está cansado de ficar ali parado, refletindo o sol ou a escuridão.
Stuart olhou para ele. A sua intuição compreendia. Mas a sua razão se negava violentamente a aceitar uma coisa tão terrível.
— Não sei o que é que você está dizendo! Espelho? Que é que tem seu irmão a ver com espelhos? Escute aqui! De vez em quando, fico farto
da vida e de seus problemas e chego a desejar momentaneamente a morte! Mas isso passa. No fundo, não quero mesmo morrer. Só sinto
mesmo essa vontade absurda de morrer porque estou vivo. Mas isso passa, como uma dor de barriga. É preciso continuar vivendo!
— Mas Bertie não quer continuar vivendo —, disse calmamente Robbie. Hesitou e disse então alguma coisa realmente extraordinária para
quem era tão racional. — Há algumas coisas que não podem ser ditas com palavras. Têm de ser sentidas. E o que sinto a respeito de Bertie.
Tive uma conversa com ele há cerca de dois meses. Ele não disse muito. Foi mais o jeito dele. Percebi então que não adiantava. Nada poderia
dar a Bertie o desejo de viver. Não é um vazio, Stuart. É mais do que isso.
— Mas que é que ele pode querer? — perguntou Stuart num protesto contra o que sentia em seu quente e tempestuoso coração.
— Já lhe disse, Stuart. Ele nada quer. E não pode suportar a vida, sabendo que não quer nada. Não lhe posso explicar direito. Estou-me
expressando muito mal. Mas sei que isso está no espírito dele, como um pesadelo!
— Mas por que se sente ele assim? — perguntou Stuart
— Não sei, Stuart, não sei. Talvez tivesse nascido assim. Bertie é flexível. Concorda com tudo. É encantador e simpático. Mostra-se sempre
agradável e consente em tudo. Por quê? Na minha opinião, é porque ele acha que nada é suficientemente importante para merecer oposição,
combate ou recusa. Já o vi concordar com duas opiniões inteiramente diferentes, meneando afirmativamente a cabeça, como se estivesse
convencido. Mas não estava. Não estava nem interessado. Trata-se de alguma coisa ainda mais negativa.
Stuart pensou no terrível caso durante alguns momentos e perguntou:
— Como está ele agora?
— Já há algumas semanas, bebe quase ininterruptamente. Desde que tivemos a conversa de que lhe falei. Está terrivelmente doente. Quase
não come. Fica estendido na cama e bebe. Minha mãe quis afinal impedi-lo de conseguir bebida. Eu disse a ela que não adiantava. Ele
acharia um meio de conseguir bebida, ainda que fosse preciso levantar-se da cama e roubar. Nada o faria recuar. É como um homem viciado
em drogas ou hipnotizado, que procura a única coisa capaz de mantê-lo vivo. Só nos cabe deixá-lo beber e morrer. É isso o que ele quer.
Quem somos nós para dizer que é melhor para ele viver? Como podemos compreender o que ele é?
— Você o deixaria cometer suicídio?
Robbie encolheu os ombros.
— É isso o que ele quer. Poderíamos afastá-lo da bebida durante algum tempo. Mas ele voltaria. E isso só serviria para lhe prolongar a agonia.
— Deu um suspiro e continuou: — É essa a situação. Não posso deixá-lo agora. Como sabe, eu devia ir para a Universidade de Harvard
depois do Natal. Desisti dessa ideia, ao menos temporariamente. Vou ficar com Bertie.
Stuart se mostrou profundamente preocupado.
— Por que é que vai fazer isso? Já não tinha planejado tudo? Não tem necessidade de ir?
— Creio que sim. Mas isso pode esperar. Posso continuar a estudar com o Juiz Taylor. Creio que realmente não tenho necessidade de ir. Ao
menos, não é absolutamente necessário. Há alguns cursos de Filosofia que eu gostaria de fazer além de estudar Direito. Mas posso ser
advogado sem ir para Harvard. Segundo o Juiz Taylor, dentro de dois anos, poderei começar a trabalhar no foro de Grandeville sem maiores
formalidades.
Stuart olhou-o com renovado interesse. Afinal de contas, o rapaz era humano. Mas não pôde deixar de dizer ironicamente:
— Você diz respeitar tanto a razão. Mas isso que pretende fazer não é contrário a toda a razão?
— Sem dúvida. Mas, às vezes, há coisas mais fortes do que a razão.
Stuart sentiu um ímpeto de simpatia para ele e colocou-o a mão afetuosamente no ombro do rapaz.
— Que idade tem você, Robbie? Dezoito anos? Ora, tem ainda tempo de sobra pela frente. Escute aqui, se precisar de alguma coisa, quer
fazer o favor de me procurar?
Robbie olhou-o com firmeza e perguntou:
— Stuart, por que é que você tem sempre tanto trabalho conosco?
Stuart apertou com mais força o ombro de Robbie e de repente afastou a mão.
— Palavra que eu não sei —, murmurou ele com um sorriso. — Talvez eu seja mesmo intrometido porque a verdade é que eu não gosto de
nenhum de vocês, não gosto mesmo!
Robbie riu.
Quando ele se dirigiu para a porta, Stuart acompanhou-o e disse:
— Escute, Robbie, é melhor você parar com essas suas ideias a respeito de Bertie. Acho que elas não lhe farão bem algum!
CAPÍTULO 38
Joshua Allstairs se curvou sobre sua bengala e olhou longa e pensativamente para o seu visitante.
Os últimos sete anos não tinham aumentado a benevolência do velho, embora tivessem tido um efeito salutar sobre a sua piedade. O tempo
havia também encolhido ainda mais o seu corpo entanguido e ele cada vez se parecia mais com uma velha aranha. Tudo nele era sombrio,
exceto os olhos vivos e predatórios fixos inexoravelmente em Sam Berkowitz.
— Ah, sim —, murmurou ele, sorrindo benignamente. — Pode fumar, se quiser, Sr. Berkowitz. Embora eu não use a erva nociva, por motivos
morais e de outra natureza, não faço objeção a que outros queiram pôr em perigo as suas almas imortais.
Sam acendeu o cachimbo lenta e gravemente. Recostou-se na cadeira e olhou Allstairs, pensativamente. Joshua, por sua vez, observou
atentamente o outro. Por que estaria aquela abominável criatura a visitá-lo, por que lhe escrevera pedindo que ele lhe desse alguns momentos
de seu tempo? Joshua passou a língua pelos lábios e preparou-se para o prazer que ia ter.
Sam deu um pequeno suspiro. Em seguida, sorriu e pareceu um tanto confuso ao dizer:
— É um pequeno assunto de negócios. Não ocuparei muito o seu tempo, Sr. Allstairs.
— Não pretendo ir aos bancos hoje —, disse Joshua.
— Apesar disso, não tomarei seu tempo. O que lhe vou dizer pode parecer estranho, Sr. Allstairs. Mas quero fazer-lhe uma pergunta. É verdade
que tem em seu poder várias notas emitidas em favor do Banco First National, do Banco de Broadway e do Banco American de Nova York por
meu sócio, Sr. Coleman, na importância de 21.000 dólares?
Disse isso calmamente com os olhos bem concentrados sobre Joshua.
O outro foi tomado de surpresa. O seu rosto se encolheu até parecer a polpa seca de uma noz mumificada. Olhou para Berkowitz de modo
inamistoso e disse pomposamente:
— Sr. Berkowitz, acaba de me fazer a mais extraordinária pergunta. E, segundo concordará, muito assombrosa também. Não sei onde
consegui essa informação. Não posso compreender! Afinal de contas, as transações comerciais não costumam ser coisas de conhecimento
comum de partes não interessadas.
— Mas eu sou uma parte interessada —, disse Sam Berkowitz.
— Bem, é claro. Tenha a bondade de perdoar minhas palavras impetuosas. Compreendo que tudo o que diz respeito a seu sócio de certo
modo lhe diz respeito também. Mas creio que está agindo dentro de uma presunção errada. Não a respeito das notas que parece acreditar que
estão em meu poder, mas quanto à ideia de que eu lhe vá dizer seja o que for sobre elas.
Sam tirou uma baforada lenta do cachimbo e não respondeu logo. Balançou uma das pernas cruzadas sobre a outra. Não estava perturbado.
Joshua o observava com intenções maléficas, curvando as garras sobre o castão da bengala.
— Tenho razões para acreditar que possui estas notas, Sr. Allstairs. Não me pergunte quem foi que me informou porque não lhe direi. Mas eu
sei que as possui. A única pessoa que não sabe disso é Stuart.
Os olhos de Joshua fuzilaram. Repuxou os lábios para dentro da boca murcha. Enterrou ainda mais a cabeça nos ombros encurvados. Era a
própria imagem do mal.
Sam sorriu e continuou:
— Sei também que comprou essas notas com abatimento, porque os bancos que as tinham em carteira estavam muito alarmados durante o
pânico e fizeram a operação com desconto para ter dinheiro em caixa. Sei também que as comprou embora não estivessem vencidas.
— Vão-se vencer daqui a quinze dias! — exclamou Joshua, antes de refletir no que estava dizendo.
— Sei disso. E sei que sem dúvida vai reclamar o pagamento.
Joshua não respondeu, mas seu rosto se encheu de um clarão maligno.
— Estou disposto a comprar-lhe essas notas, dando-lhe uma boa margem de lucro, Sr. Allstairs.
Joshua deu um salto da cadeira.
— Comprá-las de mim? Ninguém as comprará nem pelo dobro do dinheiro! Acha então, judeu imundo, que eu vou abrir mão da chance que há
tanto espero de me vingar daquele patife ímpio? Acha que esperei tanto para me ver frustrado agora?
Nem os olhos faiscantes, nem a agitação, nem os insultos tiveram qualquer efeito visível sobre Sam. Continuou a olhá-lo calmamente como se
aquilo fosse de fato uma simples conversa de negócios.
Mas a sua calma e o seu jeito de tranquila espera é que fizeram efeito sobre Joshua. Respirou profundamente três ou quatro vezes e então
parou de repente.
— Quer comprar essas notas? — perguntou ele a Sam.
— Foi o que me trouxe aqui. Sou sócio de Stuart. Ou já se esqueceu disso?
— Não —, disse Joshua, sorrindo. — Não me esqueci. E compreendo tudo. Está por acaso insinuando que se cansou da maneira de proceder
do Sr. Coleman? Das dívidas que contrai e dos crimes que comete, fazendo a firma viver em perigo constante?
— Pode presumir isso mesmo, Sr. Allstairs —, disse Sam, impassível.
Joshua o observou e então começou a rir, balançando-se para a frente e para trás na sua cadeira.
— Eu sabia! Eu sabia! Eu bem que avisei aquele sujeito há muito tempo! Um judeu é sempre um sócio perigoso! Não é que eu o esteja
condenando, Sr. Berkowitz! Claro que não. Muito ao contrário, estou admirando-o. Como eu, você estava à procura de sua oportunidade, não é
mesmo?
— Pode presumir isso também —, disse Sam, sorrindo. — Mas não se esqueça, Sr. Allstairs, de que tudo isso deve ficar entre nós.
Joshua assentiu radiante. Aproximou-se mais de Sam e disse:
— Sei de muitas coisas de que não faz nem ideia, Berkowitz! Sei de todas as transações e de todas as dívidas do Empório Supremo de
Grandeville. Sei que ainda não se livraram por completo das consequências do pânico. Sei também qual é a quantia exata que está depositada
em seu nome nos bancos. Berkowitz, tenho admiração pela sua pessoa. Sei que é um homem cauteloso, expedito e econômico. Sem dúvida
alguma, as extravagâncias e as negligências criminosas de Coleman o enfurecem.
— Sem dúvida —, disse Sam, com um suspiro.
— E deseja ver-se livre dele?
Sam inclinou a cabeça.
— Precisa é de um sócio, Berkowitz, um sócio capitalista que não se imiscua nos assuntos da firma.
Sam refletiu brevemente que um sócio assim seria de fato muito bom.
— Quando, Berkowitz, quando Coleman estiver definitivamente afastado?
Sam nada disse e seus olhos se apertaram astutamente.
Joshua sorriu, cheio de admiração.
— Berkowitz, há muito que admiro o seu tino comercial. Sei que foi você que fez do Empório o que ele é e sei o que poderá fazer dele se tirar
Coleman de seu caminho. E é por isso que lhe estou perguntando se pode aceitar um sócio capitalista.
— Eu poderia pensar num sócio assim —, murmurou Sam. A sua voz era séria, talvez ansiosa, mas muito cautelosa também.
Joshua esfregou as mãos.
— Vai ser tudo muito fácil. Apresentará minhas notas a nosso admirável e imprudente amigo e, com isso, forçarei a saída dele do Empório
Supremo de Grandeville. Passarei a ser então seu sócio capitalista.
Olhou para Sam com um ar de encantada e afetuosa cumplicidade e disse:
— Creio que isso resolve o problema para nossa mútua satisfação.
Sam nada disse. Continuou a fumar o seu cachimbo com os olhos impassíveis.
Joshua ficou impaciente.
— Está tudo resolvido, Berkowitz. Compreendo, é claro, que tem de parar e pensar no caso. Sei que tinha pensado em apresentar essas notas
a Coleman a fim de forçá-lo a sair da firma, deixando-lhe o campo livre, sem qualquer sócio, não é assim?
Sam olhou para o lado e pareceu confuso. Joshua apontou o dedo para ele e riu no fundo da garganta.
— É muito esperto, sabe? Mas eu o admiro, palavra que o admiro. Tenho a impressão de que não me quer como sócio. Quero uma
participação no Empório Supremo de Grandeville. Se tem receio de que eu vá interferir com a administração de sua firma, pode ficar
descansado. Tenho pensado muito no assunto. Quando comprei as notas foi com a ideia de ser seu sócio. Confio no seu critério. Confio
implicitamente em você. — Riu com mais prazer. — Ele pensou que podia confiar também em você. Mas aquele libertino desavergonhado não
se pode comparar com Joshua Allstairs!
A sua fisionomia se alterou de novo, tornando-se carregada de ódio. Continuou:
— Ele me tomou minha filha, a única pessoa que eu tinha neste mundo! Foi um bom marido para ela? Deu-lhe uma boa vida? Não! Despedaça
o coração da pobre, ostentando os seus casos com outras mulheres! Todo o mundo sabe disso! Agora, eu lhe pergunto: isso era coisa que se
fizesse com uma pobre moça que confiou nele e colocou a vida nas mãos dele?
Sam suspirou profundamente. Olhou para Joshua e disse com toda a sinceridade:
— Sei disso também e não lhe posso dizer quanto sinto.
Joshua se exaltou. Brandiu a bengala e disse:
— Não descansarei enquanto não o derrubar, enquanto não o vir rastejando pelo chão a implorar misericórdia pelos seus crimes contra Deus e
contra os homens! Foi um juramento que eu fiz. Planejei e esperei. Ninguém me fará recuar! Só quando eu o vir como um mendigo em farrapos,
esmolando um pedaço de pão para matar a fome, ficarei satisfeito! Quando ele estiver arruinado, minha filha estiver de novo comigo e a filha
dela abrigada em meus braços, poderei pensar em perdão!
— Compreendo —, murmurou Sam. — Não seria de esperar outra coisa.
Exausto, Joshua deixou-se recostar na cadeira, olhou fixamente para Sam e murmurou:
— É um homem que tem coração e perspicácia, pois me compreende.
— Compreendo, concordo. Apesar disso, quero que me venda essas notas.
Joshua se exaltou instantaneamente. Exclamou tremendo dos pés à cabeça:
— Não lhe vou vender as notas! Não lhe disse com bastante clareza o que eu quero? Acha que vou transferir para suas mãos a minha
vingança?
— Acho —, disse brevemente Sam.
— Então é um perfeito idiota e eu estava inteiramente enganado a seu respeito!
Sam cruzou os braços no peito e perguntou:
— Já se esqueceu de que eu posso ter também uma pequena vingança a exercer?
— Como assim?
— Stuart me deve dezoito mil dólares em notas pessoais assinadas. Sei que nunca receberei esse dinheiro. Há outros motivos também. É por
isso que eu preciso dessas notas.
— Não percebe então, obtusa criatura, que teremos uma vingança mútua? — exclamou Joshua. — Isso não lhe basta?
— Não —, disse Sam, pensativamente. — Não basta.
— É verdade então o que sempre ouvi dizer que a vingança de um judeu é insondável e inexorável?
Os olhos de Sam faiscaram estranhamente, mas ele nada disse.
— Ele tem sido seu amigo. Ele confiou em você. Entregou-se indefesamente em suas mãos —, murmurou Joshua com evidente prazer. — Ele
confiava em você mais que em qualquer outra pessoa. Entregou-se a você sem reservas. E você é capaz de fazer isso com ele.
— Sim, quero comprar as notas dele com uma boa margem de lucro para a sua pessoa.
— Por mais que eu o admire pelo seu espírito de vingança, isso não é possível, Berkowitz. Acho que nossa vingança deve ser mútua. Posso
assegurar-lhe que as coisas não serão mais fáceis para ele. Gostarei de ver-lhe a cara quando ele compreender que seu melhor amigo o traiu!
Quero ver-lhe a cara. Tenho de estar presente. É minha única condição.
Sam moveu-se um pouco na sua cadeira e disse com voz clara:
— Pagar-lhe-ei vinte e quatro mil dólares. Não há juros vencidos porque sei que Stuart pagou pontualmente todos os juros. Terá, portanto, um
lucro líquido de três mil dólares. Na realidade, mais que isso. Comprou essas notas por dezessete mil dólares. Assim sendo, o seu lucro será
de sete mil dólares, o que não é pouco, Sr. Allstairs.
— É bem teimoso, sabe? — exclamou Joshua num assomo de raiva. — Quantas vezes quer que lhe diga que não lhe venderei essas notas?
Ainda que perca três mil dólares de lucros imediatos.
— Deve vender —, disse Sam, com a maior gentileza. — Asseguro-lhe que deve vender... Porque, se não vender, informarei as autoridades
competentes de seu pequeno tráfico no Movimento Subterrâneo. Informarei as autoridades de que neste momento há vinte infelizes negros num
certo prédio de sua propriedade e que você extraiu muito dinheiro desses pobres coitados para fazê-los passar para o Canadá. Direi também
da fortuna que já ganhou nessas condições. Os seus cúmplices são conhecidos.
— Chantagista! — gritou Joshua, inteiramente fora de si.
— Infelizmente, creio que não passo mesmo de um chantagista —, murmurou Sam.
Joshua nada disse. O fogo morria na lareira escura. O vento de abril sacudia as vidraças. O velho podia ter expirado naquele momento na sua
cadeira, pois estava imóvel e havia em seus olhos um brilho de morte. Afinal, começou a murmurar de novo. Era um som como o sussurro das
folhas secas, como a passagem de um rato pela palha. Sam o ouviu, mas durante vários momentos não pôde compreender as palavras.
— Fui traído. Fui entregue a meus amigos infiéis. Fui preso na armadilha de um ímpio judeu, de um dos matadores de Cristo! Eu, um cristão, fui
entregue às mãos do sarraceno, do abominável, de um dos assassinos do amado do Cordeiro!
Diante dessas terríveis e odiosas palavras, Sam não ficou perturbado, embora seus olhos se tornassem mais claros e firmes, voltados para
Joshua. Talvez estivesse apenas um pouco mais pálido.
— Devo ter essas notas. Agora —, disse ele, com a sua habitual delicadeza.
Joshua pareceu ter enlouquecido. Começou a gritar. Levantou a bengala para bater em Sam, mas este se limitou a afastar a cadeira para longe
do seu alcance. Joshua começou a dizer coisas incoerentes. O seu rosto estava horrivelmente contorcido e havia perdido qualquer aparência
humana.
— Terei minha vingança também por isso! — exclamou. — Você não viverá no país pelo qual meus pais morreram, não poderá mais poluir esta
terra sagrada! Eu sei o que eu sei! Você vai morrer como o cão judeu que é!
— Quero as notas agora! — disse Sam.
Levantou-se calmamente. Tirou o relógio e disse:
— Já lhe tomei muito tempo. Dê-me as notas agora.
Puxou o seu talão de cheques. Correu os olhos à procura de pena e tinta. Apontou então para a faixa da campainha ao lado de Joshua.
— Chame seu empregado e peça tinta e uma caneta. Vou-lhe fazer um cheque de vinte e quatro mil dólares agora.
CAPÍTULO 39
Sam abriu em silêncio a porta do escritório de Stuart e ficou parado no limiar.
Stuart não o ouvira entrar. Na realidade, não ouviria ainda que Sam tivesse feito barulho. Estava olhando para a parede à frente de sua mesa
com os olhos cegos e secos de um homem mergulhado em extremo desespero. Tinha entre os dedos flácidos um charuto apagado.
Sam ficou a olhá-lo durante muito tempo. Viu o perfil fatigado e parado. Viu os fios brancos cada vez mais abundantes na cabeça de Stuart.
Tossiu delicadamente. Stuart teve um sobressalto e virou a cabeça. Um sorriso triste lhe aflorou aos lábios, sem chegar aos olhos.
— Entre, Sam —, disse com voz débil e rouca.
Apontou uma cadeira. Sam sentou-se e olhou o amigo com profunda tristeza e compreensão.
— Sabe que neste mês não terá das lojas mais de duzentos dólares? — perguntou ele em voz baixa. — Acabo de verificar a escrita.
Stuart nada disse. Tinha virado de novo a cabeça para a parede em frente. Sam deixou cair as mãos e os ombros no seu gesto antigo e
expressivo.
— Você não tomou meus conselhos, Stuart.
Stuart resmungou alguma coisa. Levou as mãos ao rosto. Houve silêncio no escritório. Do outro lado da porta havia o pesado e ressoante
silêncio das lojas sem movimento. Sam ouvia os murmúrios dos caixeiros inquietos e o arrastar de seus pés a limpar balcões já limpos mais
uma vez. Olhavam para as vitrinas e notavam cada pessoa que passava na esperança frustrada de vê-la entrar.
— Não adianta —, disse Stuart, com voz pesada. — O povo não tem dinheiro ou não tem confiança. A nossa freguesia não pára de cair.
— Não está pior do que no mês passado. E está sem dúvida melhor do que há três meses —, disse Sam. — Estamos começando a ver a luz.
— Ver a luz? — exclamou Stuart. — Mas isso não basta para me salvar. Nem mesmo se os negócios se recuperassem por completo dentro de
seis, de cinco ou de quatro meses!
Stuart se levantou bruscamente, empurrando a cadeira com o pé. Começou a andar no escritório de um lado para outro com passos
irregulares, passando repetidamente as mãos pelos cabelos que de vez em quando puxava. De repente, parou diante do amigo e exclamou:
— Sei muito bem que isso não lhe interessa! Por que lhe iria interessar? Mas também não vejo necessidade alguma de ficar aí parado a me
olhar como uma estátua! Veio gozar a minha desgraça, foi?
Sam disse então com estranha calma:
— Já lhe disse que nos estamos recuperando, Stuart. Muito lentamente sem dúvida, mas nos estamos recuperando. Estamos pagando as
nossas dívidas. Todos os meses, as dívidas são pagas regularmente, ainda que com imenso trabalho. Não estamos contraindo novas dívidas.
Dentro de dois meses, estaremos quites. Será que isso não lhe dá alguma alegria?
Stuart parou diante de Sam num estado de violenta exaltação. Em seguida, com movimentos tateantes, procurou sua cadeira e deixou-se cair
nela:
— Sim, o que você diz é verdade —, murmurou ele. — A respeito das lojas. Mas não é verdade a respeito de minhas dívidas particulares. Eu
devo dinheiro. Você deve ter adivinhado isso.
Sam voltou os olhos para o chão e esperou.
Stuart começou a rir desagradavelmente.
— Pensou que eu estava vivendo do dinheiro das lojas? Se pensou, é um idiota. Aliás, você sempre foi um idiota, Sam!
Sam levantou os olhos cheios de raiva, empurrou a cadeira para trás num gesto instintivo e exclamou severamente:
— Estou cansado disso! Estou cansado de ser chamado de idiota! Não vou tolerar mais isso! Está acabado! Chega!
Tinha-se levantado também e encarava Stuart, que empalideceu e disse com voz arrastada:
— Perdão! Não sei mais o que estou dizendo. Mas é que você não sabe...
Caiu de novo em sua cadeira. Cobriu o rosto com as mãos.
Sam foi para junto dele e começou a falar numa voz calma, mas, apesar disso, estranhamente exaltada:
— Pedem sempre perdão depois que nos dizem tudo o que querem. Sempre, quando nos tomam o dinheiro, o sangue, o trabalho e até a vida.
Sempre quando nos ofendem, nos degradam e nos usam, quando nos infligem sofrimento, quando nos impelem para as trevas, para o exílio e
para a dor. Sempre, quando nos ferem na face e espezinham nossos filhos. Sempre, quando devemos submeter-nos à loucura e ao ódio, às
superstições e à cobiça, à crueldade e às abominações! Sempre, quando se saciam em nós, quando se cansam e se apavoram da própria
maldade, voltam-se então para nós e nos pedem perdão!
Stuart olhou para Sam e viu o amigo como nunca o vira, cheio de uma estranha exaltação, mas, apesar disso, controlado e severo.
Sam levantou a mão como numa invocação e exclamou:
— Pedem perdão e nós sempre pedimos ao Pai que lhes perdoe porque eles não sabem o que fazem! Mas eu digo que sabem muito bem o
que fazem! Sabem porque não se cansam de levantar a mão contra nós e fazer-nos morrer!
“Mas vai chegar o dia em que deixaremos de perdoar! Algum dia, quando o fardo que pesa sobre nós for além de nossas forças, clamaremos a
Deus e em nossos corações haverá cólera e não mais paciência! E então Deus nos ouvirá, olhará para a nossa aflição e fará justiça!”
Stuart arregalou os olhos para ele. Ficou então muito vermelho e baixou os olhos. Murmurou então:
— Não há nada disso, Sam. Mas estou envergonhado. E não lhe vou pedir perdão, pois isso seria um insulto.
Depois de uma longa pausa, Sam sentou-se ao lado dele. Estava cansado e muito pálido. Tirou alguns papéis do bolso e colocou-os na mesa
diante de Stuart.
— É isso que o está preocupando? — perguntou ele severamente.
Stuart olhou abstratamente as notas que estavam diante dele. De repente, empertigou o corpo e ficou muito pálido.
— Onde conseguiu isso?
Sam respondeu friamente:
— Com nosso amigo Joshua Allstairs.
Stuart voltou-se violentamente para o amigo.
— Com Allstairs? Com Allstairs?
— Sim, com Allstairs. Comprei-as dele ontem. Por vinte e quatro mil dólares. Ele as havia comprado dos bancos por muito menos.
— Ele as comprou —, murmurou Stuart desvairadamente. — Comprou para me arruinar. Era o que ele estava planejando.
— Sem dúvida.
— E teria feito isso.
— Sem dúvida.
Stuart olhou para as notas, estupefato. Apanhou-as e examinou-as, como se fosse tudo um sonho e ele não pudesse acreditar. Deixou-as
depois cair na mesa e se voltou para Sam. Tentou falar e não pôde.
Sam apanhou as notas com gestos comedidos, rasgou-as metodicamente e, depois, foi até à lareira e jogou os fragmentos dentro do fogo.
Stuart olhou para as costas de Sam. Tremia descontroladamente.
— Sam —, murmurou ele.
Mas Sam não se voltou.
Stuart passou as mãos trêmulas pelo rosto. Quando as tirou, os olhos estavam cheios de lágrimas.
— Era o dinheiro da ilha, Sam. O dinheiro de seu povo!
— Era.
— E você fez isso por mim!
Sam voltou-se da lareira. Tinha um leve sorriso nos lábios, embora o rosto parecesse triste.
— Sim, fiz isso por você. Você é um idiota, Stuart!
Olharam-se. O sorriso cansado de Sam aumentou. Stuart sacudiu a cabeça e murmurou:
— Perdoe-me.
Em seguida, sentou-se e baixou a cabeça sobre os braços estendidos na mesa.
Sam hesitou. Olhou para o homem a quem salvara da completa ruína à custa de um sacrifício tão terrível para sua vida. Quis dizer alguma coisa,
mas não pôde.
Virou-se então e saiu da sala.
CAPÍTULO 40
A Ilha do Rio parecia incendiada de carmesim, âmbar, escarlate, ouro e bronze sob um céu de um luminoso verde-azul que parecia pintado por
um pincel enorme e grosso na grande abóbada. As poucas nuvens brancas eram muito nítidas e com as bordas debruadas de luz. O rio, de um
cintilante verde de jade, translúcido e suave, batia delicadamente nas margens gramadas. A própria ilha resplandecia de cor naquele princípio
de novembro. O inverno estava atrasado. A terra estava banhada de um verão temporão dourado e o ar suave, impregnado do cheiro de
madeiras que ardiam, estava tomado por uma névoa sonhadora, que esfumava as distâncias do rio, deixando apenas ouvir-se a sua voz
murmurosa. Havia também em tudo uma paz envolvente. O sol de outono transmitia um calor gentil, embora o vento fosse um pouco frio. Às
vezes, a névoa se dissipava um pouco e viam-se as águas verdes a rolar para as Cataratas. A margem americana à esquerda e a margem
canadense à direita eram manchas indistintas de escarlate e verde além das águas que circundavam a ilha.
As árvores farfalhavam lentamente e, de vez em quando, uma folha cor de cobre flutuava no ar. No mato, coelhos e esquilos corriam sobre as
folhas já caídas. Castanheiros-da-índia tinham juncado o chão de castanhas. Trepadeiras de flores vermelhas se emaranhavam pelos rochedos
e florinhas do campo amarelas viçavam nos lugares mais quentes. Não se viam mais os tordos e os outros pássaros do verão, mas as gaivotas
sobrevoavam o rio com os seus gritos e os pardais estavam em grande atividade entre as árvores abrasadas. Às vezes, trazidos de longe pelo
vento e pela água, ouviam-se o longo apito da barca ou o barulho de suas máquinas.
Sam Berkowitz e o Padre Houlihan estavam passeando na ilha naquela tarde de domingo. Caminhavam sozinhos. A ilha era muito grande.
Duas ou três vezes, viram as paredes de madeira de uma fazenda solitária, ouviram o latido de um cachorro distante ou o ranger das rodas de
um carro de madeira. Mas até esses sinais de vida desapareceram quando se internaram nos bosques e foram sair no lado norte da ilha, onde
nada havia para ser visto ou ouvido salvo a margem canadense e a água do rio. Sentaram-se ali numa pequena elevação do terreno.
Havia profunda compreensão entre aqueles dois amigos e de poucas palavras eles precisavam. Ambos podiam querer bem a Stuart com um
afeto paternal e desejar protegê-lo. Mas entre si mantinham uma velha amizade completa e igual, como homens.
O padre tirou o grande chapéu preto e começou a abanar-se com ele. A sua corpulência não havia diminuído com a passagem dos anos. Os
joanetes também lhe doíam. Coçou-os sem constrangimento e olhou para as botinas empoeiradas. A cabeça calva rebrilhava à luz refletida
entre as árvores. O grande rosto rosado gotejava de suor. Mas havia paz e meditação em seus olhos azuis.
Sam, num terno marrom empoeirado, estirou as pernas e se reclinou apoiado nos cotovelos. O rosto magro estava cansado, mas muito calmo.
O vento lhe agitava os cabelos brancos. Um esquilo passou correndo por perto com uma castanha na boca. Parou um instante para mirar com
os olhos assustados os dois homens sentados sob as árvores.
— Quatro horas —, disse o Padre Houlihan depois de consultar o grande relógio de prata. — Até quando o homem do barco vai esperar por
nós?
— Até às cinco, Padre.
— Muito bem. Isso quer dizer que ainda temos quase uma hora. Isto aqui é muito agradável.
Mas, de repente, ficou triste. Olhou para Sam, que estava calado, com os olhos voltados para a água. Ele e o Padre Houlihan iam com
frequência passear ali na ilha, cheios de planos. Mas nunca falavam muito. Entendiam-se sem falar e quase sempre voltavam da ilha renovados
e mais confiantes ainda na sua amizade.
Mas naquele domingo o Padre Houlihan estava muito triste. Queria falar com Sam e procurava desajeitadamente as palavras. Mas não as
encontrava e, como possuía grande delicadeza, hesitava em falar do que sentia em seu coração dolorido e simples.
Olhou então para o rio, apertando os lábios e rezando um pouco. Olhava às vezes furtivamente para o amigo, em cujo rosto cansado se via
grande resignação. O Padre Houlihan suspirou repetidamente, apertando os olhos, lutando consigo mesmo e rezando ao santo de sua devoção
para que pudesse encontrar as frases corretas para falar ao outro homem que nada tinha dito da grande pena que o afligia.
Por fim, o padre disse:
— Sabe que do Velho Testamento prefiro os salmos?
Sam olhou para ele com delicadeza, mas sem interesse.
O padre pôs as mãos nos joelhos, olhou para o rio e disse:
— Há um salmo que sempre me faz pensar em você, Sam.
— Qual é?
O padre sorriu, com um ar tímido e infantil.
— Você se importa se eu o disser? Deve conhecê-lo muito bem.
“Senhor, quem há de morar em vosso tabernáculo?
Quem habitará em vossa montanha sagrada?
O que vive na inocência e pratica a justiça,
O que pensa o que é reto no seu coração,
Cuja língua não calunia.
O que não faz mal a seu próximo E não ultraja seu semelhante.
O que tem por desprezível o malvado,
Mas sabe honrar os que temem a Deus.
O que não retrata juramento mesmo com dano seu,
Não empresta dinheiro com usura,
Nem recebe presente para condenar o inocente,
Aquele que assim proceder jamais será abalado.”
Proferiu lentamente as solenes palavras, com profunda e contida paixão, como se estivesse orando. No fim, seus olhos estavam úmidos de
lágrimas. Estendeu a mão e tocou no ombro do amigo.
Sam não olhou para o padre. Sorriu cansadamente e disse:
— É muita bondade de sua parte, Padre. Mas não é verdade. Não existe no mundo inteiro um homem assim. A não ser você.
O Padre Houlihan ficou muito vermelho e disse:
— Não, não! Não faça esse juízo de mim! Sou na realidade um homem mau e pecador. Não consigo dominar meu coração, nem meus
pensamentos. Há momentos em que tenho vontade de matar. Não acredita? Há ocasiões em que eu seria capaz de fazer coisas terríveis!
Quando vejo como o homem pode ser cruel com seu irmão, implacável e cego! Não, Sam, não faça bom juízo a meu respeito. Sou um homem
fraco e vulnerável, nunca penso como devo antes de agir e tenho uma língua que corta como faca.
Sam riu e olhou o amigo com afetuoso interesse.
— Vivo tão ocupado fazendo penitências pelos meus pecados —, disse o Padre Houlihan —, que na verdade não tenho tempo de analisar
minha alma ou de tentar compreender mesmo um pouco a Deus.
Houve de novo silêncio entre eles e o Padre Houlihan ficou outra vez sem saber o que dizer. Que poderia fazer para consolar seu amigo? Nada.
O santo de sua devoção devia estar muito ocupado no momento e não lhe podia dar atenção. Isso o fazia sentir-se muito humilde e deprimido.
O tempo passou.
Limpando a batina, o Padre Houlihan sentiu que levava um livrinho no bolso. Tirou-o e sorriu, olhando para Sam. Talvez alguns trechos do livro
pudessem dar outra direção aos sombrios pensamentos de Sam.
— Já leu alguma coisa de Thoreau, Sam? É um filósofo maravilhoso. É um dos meus favoritos, pois o considero imbuído da vida e da energia
deste país e do espírito que o anima. Incomoda-se que eu leia um pouco?
— Claro que não —, disse Sam e, embora não sentisse muita disposição, voltou-se para escutar.
O Padre Houlihan tinha uma voz boa e flexível, forte e cheia de sinceridade. Estendeu a mão para a água e para as árvores e disse:
— Thoreau falou disso. Ouça: “Quando caminhamos, tomamos naturalmente a direção dos campos e dos bosques. Que seria de nós se
tivéssemos de passear sempre por um jardim ou uma alameda? Até algumas seitas de filósofos sentiram a necessidade de transportar os
bosques para si, desde que não podiam ir aos bosques.”
Fez uma pausa e murmurou:
— Penso às vezes que num sentido espiritual mais profundo que qualquer outro esse trecho se refere aos Estados Unidos, terra de amplidões,
de florestas, de águas e de céus gloriosos. Ouça o que diz Thoreau: “Os céus da América parecem infinitamente mais altos e mais azuis, o ar é
mais fresco, o frio é mais intenso, a lua parece maior, as estrelas são mais brilhantes, o trovão é mais forte, o relâmpago é mais vivido, o vento
é mais forte, a chuva é mais pesada, as montanhas são mais altas, os rios são mais longos, as florestas são maiores e as planícies são mais
amplas.”
— Sim —, disse o padre, com o rosto ardendo de entusiasmo —, e o coração é maior, a alma é mais forte, o espírito é mais livre, a esperança
não tem fronteiras e a fé é mais nobre. Não há fim para o que é esta terra! Você mesmo, Sam, disse que era a Terra da Promissão para todos
os homens!
Ficaram de novo em silêncio. Sam voltara ao seu abatimento. Aborrecido com o santo de sua devoção, o Padre Houlihan deixou de lado todo o
tato e disse impulsivamente:
— Stuart me disse o que você fez por ele e tudo o que isso representou para você!
— Ele fala demais —, murmurou Sam, depois de alguns momentos de aborrecimento e impaciência.
— Não se importou de que ele me tivesse dito?
— Não, decerto. Mas acho...
— Acha que ele poderia ter sido mais reservado? — perguntou o Padre Houlihan, rindo. — Nem Stuart nem eu pertencemos a uma raça
reservada. Falamos impetuosamente e dizemos tudo o que o coração ou o diabo nos manda. Explodimos, gritamos, praguejamos,
lamentamos, amamos ou elogiamos, com a voz a todo pano. Somos uma raça barulhenta. Falamos muito, mas nunca fazemos planos, nem
tramas. Talvez por isso Deus nos venha a perdoar as línguas barulhentas.
Sam sorriu apenas delicadamente e o padre continuou:
— Foi uma coisa boa que você fez! Foi uma coisa muito boa! E Stuart não foi insensível ao preço que isso lhe custou!
Sam franziu as sobrancelhas brancas, como se estivesse impaciente. Apoiou as mãos na terra da ilha e um lampejo de dor lhe passou pelos
olhos. Podia ver na sua imaginação aquela bela ilha colonizada, cheia de casas brancas cercadas de jardins e de campos arados, de pomares
fartos e de pastos cheios de nédio gado. Podia ver o teto de uma sinagoga, ali entre os pinheiros altaneiros. Podia ver as paredes de uma
escola. Podia ouvir os risos das crianças, as vozes felizes das mulheres, os tons mais profundos de homens libertados que erguiam os olhos
para um céu livre e pacífico. E a dor, a pungente agonia interior, se lhe refletiu no rosto.
Exclamou então:
— Diz que foi uma coisa boa que eu fiz! Não pense que me deu algum prazer ter pago os colares de brilhantes que Stuart deu às mulheres, as
carruagens e as capas de peles que o fizeram contrair pesadas dívidas! Paguei tudo isso com a vida de homens torturados e com as lágrimas
das crianças!
O padre olhou para Sam com profunda tristeza e compreensão. Apertou a mão de Sam que se curvava sobre o solo da ilha que não iria mais
ser um refúgio para os exilados e os oprimidos.
— Não tenho palavras com que o possa confortar ou animar, Sam. Qualquer coisa que eu pudesse dizer não faria sentido. Só posso dizer é
que nunca soube de coisa mais bondosa e generosa. E sei que Deus não se esquecerá disso. Deus compreenderá. Seja lá como for, Deus vai
ajudá-lo.
Mas Sam se limitou a sorrir debilmente e as rugas em torno de sua boca ficaram mais fundas.
O Padre Houlihan disse então:
— Foi por Stuart que você fez isso e não pelas mulheres dele! Fez isso porque gostava dele. Ele é seu amigo. Acha que a coisa é mais fácil
para ele? Acha que ele é inteiramente insensível?
— Escute —, disse Sam com voz pesada —, se isso serviu para lhe dar uma lição, creio que o dinheiro não foi desperdiçado. Mas não acredito
que isso lhe sirva de lição.
O padre sacudiu tristemente a cabeça.
— Stuart é o que é. Com todos os seus defeitos, é um dos homens melhores deste mundo. Do contrário, não gostaríamos tanto dele. Também
ele tem seus trabalhos e não são menores pelo fato de que ele os toma nos próprios ombros. É uma criança. Nunca poderá tolerar a crueldade
e a perversidade dos outros.
— Não, é uma coisa que ele nunca será capaz de compreender! — disse gravemente Sam.
Levantaram-se e começaram a caminhar na direção da pequena ponte onde o barco esperava. O dia de outono se tornara bronzeado com a
aproximação do crepúsculo. A névoa era mais densa e o rio mais verde e mais trovejante. O cheiro das fogueiras vinha com mais força no
vento que refrescava.
Pararam por um momento na ponte onde o homem do barco esperava, a fumar calmamente. O Padre Houlihan disse então com exultação:
— Não precisamos de ilhas ou de lugares remotos para abrigar os sofredores e os oprimidos! Toda esta terra está aberta para eles, de uma
fronteira a outra, de mar a mar! Tudo está aqui à espera com a promessa de Deus, com a esperança de Deus, sob a asa de Deus! Esta é a
Terra Prometida!
Naquela mesma hora, milhares de homens ansiosos estavam lendo o livro A Crise Iminente, de Hinton Rowman Helper. Já podiam então
escutar o distante rolar das rodas de aço que se precipitavam sobre uma terra que seria dilacerada numa sangrenta agonia.
CAPÍTULO 41
Janie estava sentada ao lado da cama de Bertie. O dia sombrio e espectral de dezembro pairava lá fora como a própria morte. Montões e
dunas de neve se encurvavam e desciam dos gramados mortos para as ruas e os galhos das árvores vazias estavam carregados de pesada
brancura. Tinha começado a nevar de novo e os flocos esvoaçavam diante das vidraças num lúgubre silêncio. Envolta em seu xale, Janie tremia
e voltava os pés para o fogo baixo.
Tinha havido dois meses de paz naquela casa da Avenida Porter, durante os quais Bertie se mostrara alegre de novo, recusando gentilmente
até um copo de vinho ao jantar e vendo os amigos e parentes que o visitavam tomarem o seu uísque ou o seu conhaque com absoluto
desinteresse e indiferença. Mas ninguém percebia os prenúncios da tempestade dentro dele, os primeiros relâmpagos, os primeiros trovões
distantes, as primeiras rajadas do temporal. Um dia, fugia para o seu torvelinho de destruição e o velho Bertie desaparecia durante muito
tempo. Quando afinal emergia, depois de dias e até semanas de completo aniquilamento, era como um viajante cansado que voltava de
lugares terríveis e distantes, trazendo nos olhos e no aspecto a lembrança de coisas tremendas e indizíveis.
Seguiam-se então o longo tratamento, o desespero, a angústia, até que o viajante pudesse de novo sorrir e reiniciar a longa jornada para a
saúde e para a tranquilidade.
Naquele dia Bertie estava passando muito mal. Voltara para a família havia apenas uma semana de suas excursões secretas e torvas. De cada
vez que voltava, a penosa ascensão para a saúde e para a normalidade era mais longa, mais difícil e mais perigosa. Os médicos nada podiam
receitar-lhe senão repouso, sossego, boa alimentação e calmantes. Era então que Janie tratava dele incansavelmente, preparando-lhe as
comidas de que ele gostava, adulando-o para comer, lendo para ele, rindo com ele e montando-lhe guarda ao leito enquanto ele dormia
agitadamente.
Mas ela era muito realista, quando se via forçada a pensar, para acreditar que houvesse alguma salvação para seu querido.
Um candeeiro brilhava num canto do belo quarto de Bertie, lançando breves sombras trêmulas sobre as paredes brancas. Janie olhava o rosto
adormecido de Bertie. Via a magreza daquele rosto, os olhos encovados, a boca retraída, as faces cavadas. Tinha uma expressão estranha,
mais remota que pacífica, severa e austera, uma expressão que ele nunca tinha quando estava consciente. Ela não conhecia esse Bertie.
Quem ela conhecia era o Bertie que ria, cantava, assobiava, fazia brincadeiras e dançava, falava sem parar, provocava todo o mundo e enchia
a casa de uma presença que era como a luz do sol. Os cabelos ruivos no travesseiro eram a única coisa que ela reconhecia e, ao olhá-los,
sentia um aperto na garganta e um ardor intolerável nos olhos.
O frio do quarto lhe pareceu amargo. Levantou-se e atiçou os carvões vermelhos da lareira e ficou olhando para eles com a angústia a oprimir-
lhe o exíguo coração. O fogo reativado lhe reluzia no rosto sardento e nos olhos verdes.
Foi até à cama onde Bertie estava estendido como um morto. Só a leve respiração e o débil tremor das narinas mostravam que ele ainda vivia.
Curvou-se sobre ele e tocou-lhe de leve os cabelos.
Sentou-se de novo ao lado dele. Olhou para o perfil emaciado e começou a pensar.
Meu bom Deus, disse ela consigo mesma, que é que está errado, que foi que aconteceu ao meu Bertie? Que foi que eu fiz? Que foi que alguém
fez? Por que faz ele essas coisas?
Ela já sabia a essa altura que não era apenas excesso de energia, exaltação de espírito, imprudência ou falta de juízo que causavam as
tentativas inconscientes de suicídio que levavam Bertie para o país negro dos relâmpagos e das fúrias. Alguma coisa impelia Bertie para a
destruição. Que era?
Sentada ali no quarto, enquanto o dia se transformava lentamente em noite, rebuscou o coração e a memória com a dolorosa e triste
honestidade de uma mãe sentada junto ao leito de morte do filho. Onde foi, perguntou ela humildemente, que eu falhei a Bertie?
O espírito confuso e torturado percorreu lentamente de novo, como abatido e choroso penitente, os anos da vida de Bertie, parando diante de
cada vago marco da estrada, na ânsia de descobrir se, entre a relva morta e os sinais dos anos desaparecidos, havia algum indício que
pudesse ser visto. Foi recuando, recuando até os dias do nascimento de Bertie, quando o bebê rosado e quente, com a sua coroa de cabelos
ruivos, lhe repousava nos braços.
Os marcos passavam lentamente em turva procissão pelo seu espírito. Bertie aos três anos caminhando atrás do moreno e encolhido Robbie
de quem ele gostava. Bertie no jardim com os braços cheios de flores. Bertie encantado com a irmãzinha recém-nascida. Bertie rindo do
zangado e tímido Angus. Bertie sempre rindo e brincando, generoso e afável. Bertie, de quem todos gostavam pela doçura de sua natureza e
pela sua beleza. Só seu jovem e rude pai não o notava, nem acarinhava. Robin, com os olhos negros, o rosto contorcido e a voz estridente,
poderia ser um indício?
Janie ajeitou o xale nos ombros, passou a língua pelos lábios secos e arregalou os olhos para as sombras. Podia ver Robin claramente de
novo, tão jovem, tão inquieto, levantando a cabeça como um potro selvagem aterrado com a presença de estranhos. Via-o de novo
veementemente, sempre brigando, furioso e amargurado. E o pequeno Bertie de quatro anos ficava ao lado do pai, olhando-o com os
zombeteiros olhos azuis, mas silencioso como nunca fora antes.
Podia até ouvir a voz de Robin, que parecia esquecida através de tantos anos, a soar de novo forte e clara naquele quarto onde o filho dele
estava prostrado na mais terrível inconsciência, dizendo:
— Você arranca o coração de um homem! O coração e a alma! Arranca e esmaga tudo para fazer a sua vontade!
Robin desapareceu, voltando para a sua sepultura, e no silêncio do quarto só se ouviam os carvões que rolavam na lareira.
Não, gritou ela para si mesma, não arranquei, nem esmaguei o coração e a alma de Bertie! Dei-lhe tudo o que ele quis! Não lhe neguei nada!
Por ele, teria sacrificado a vida de todos os outros!
Ele deve ter compreendido que ninguém e nada no mundo tinha valor para mim senão ele!
No restolho dos anos mortos, havia um indício que brilhava debilmente.
Continuou. Outro marco da estrada. Bertie tinha então quatorze anos. Fora uma noite, com seu jeito sorridente e carinhoso, para dar um beijo
nela antes de ir dormir. Ficara ao lado dela, silhuetado junto à janela no céu azul do verão. Havia uma lua crescente nesse céu e uma estrela
que piscava. O ar estava cheio do aroma doce das plantas e do orvalho. Ele a beijara. Depois, encostara-se à cadeira e dissera de repente:
— Mamãe, eu gostaria de ir para o mar!
Como tinham sido vivos e claros seus olhos! Ela nunca os vira assim. Segurara a jovem mão forte e batera nela indulgentemente.
— Para o mar?! Para fazer o quê, rapaz?
Ele havia tremido nessa ocasião ou ela imaginava apenas que ele havia tremido? Mas Bertie dissera com uma espécie de desespero contido
na voz:
— Quero ir para o mar! Sempre gostei do mar! Lembra-se de que sempre lhe pedia livros com histórias do mar e sempre adorei a água? Creio
que é no mar que eu me realizarei, Mamãe!
Ela o olhara, espantada com a sua veemência e, então, começara a rir. Estaria imaginando que ele a olhara da maneira mais estranha? Ele
havia exclamado então, puxando a mão que ela segurava:
— Não me diga, Mamãe, como sempre faz, que isso é uma tolice! Não me diga que é uma coisa tola e boba! Tenho de acreditar em alguma
coisa, seja lá onde for!
Ela se mostrara muito terna e gentil com ele. Troçara amistosamente da ideia dele. Ele, seu querido e belo Bertie, queria mesmo ser um
marinheiro malcheiroso e horrendo? Quem dá atenção a marinheiros? Que era que ele podia lucrar em ser um marinheiro? Que coisa mais
ridícula! Ela mesma, sua mamãe que o adorava, mal podia conter o riso ante essa ideia de ver seu Bertie partir para o mar! E que queria ele
dizer com aquela história de ter de acreditar em alguma coisa?
Bertie nada mais dissera. Tornara a beijá-la delicadamente e saíra. Mas saíra de cabeça baixa, como se estivesse atordoado e perdido.
Janie sacudiu a cabeça repetidamente, tremendo sob seu xale. Estaria aí outro indício? Tivera mesmo o tolo tanta vontade assim de ir para o
mar? Fora levado a beber em consequência dessa frustração? Não podia ser. Se ele realmente quisesse, poderia ter ido. Ela acabaria
concordando porque não lhe podia negar nada. Mas... ele não tivera coragem.
Reconheceu isso com um tremendo baque de angústia. Faltara coragem a Bertie. Na verdade, nunca quisera profundamente coisa alguma.
Entretanto, naquela noite ele tinha querido partir para o mar. Quisera isso como jamais antes ou depois quisera coisa alguma. E assim fora
porque ele sentira que poderia descobrir no mar alguma coisa em que acreditar. Mas, depois, não quisera mais isso.
Torturada pelos seus pensamentos, Janie se levantou e foi até à cama. Ficou ali, curvada sobre o filho, dominada pela maior dor de toda sua
vida.
Sabia agora que tinha decidido, quase desde o instante em que Bertie nascera, que ele nunca deveria deixá-la, nem ter qualquer interesse na
vida senão o amor dela. E fora assim que sempre que ele havia demonstrado qualquer desejo capaz de afastá-lo por pouco que fosse da
influência dela, ou qualquer vontade de ficar livre num mundo onde os homens têm de tomar as suas decisões e seguir os seus caminhos e no
qual ele seria um homem emancipado e com vida independente, ela se opusera, não com violência ou obstinação, mas com risos e carinhos.
Tinha-o feito ver como os desejos dele eram absurdos. Havia despojado de todo o valor, finalidade e dignidade qualquer vida ou qualquer
sonho para que se tivessem voltado os olhos jovens de Bertie com ansiedade e esperança.
Ela o tinha conservado, sem dúvida. Ele não a deixara. Mas o que restava dele ao seu lado era uma ruína, que não possuía verdade alguma,
que não acreditava em nada de importante, de belo ou de digno, e que estava morrendo em consequência disso.
Seria tarde demais? perguntou ela a si mesma com terrível e dilacerante angústia. Poderia alguma coisa convencer Bertie de que havia na vida
valor, sentido, finalidade, força e verdade? Pessoalmente, ela não acreditava nessas coisas. Mas ela era forte. Podia viver e gozar a vida com
entusiasmo e paixão, porque tinha prazer em cada momento que passava e que esse prazer se bastava a ri mesmo e era por si mesmo uma
razão. Bertie era “fraco”. Tinha de acreditar na grandeza, na validade e no sentido oculto da vida. Quando deixara de acreditar, a vida perdera
todo sentido para ele.
Teria Bertie perdido toda a capacidade de acreditar nas amáveis mentiras que os homens fracos tinham inventado para ocultar a verdade?
Tinha de descobrir se ainda havia alguma esperança para ele, se ainda era possível incutir-lhe a falsidade de que a vida tem valor e Deus está
no Seu céu, seriamente interessado pelos assuntos da humanidade.
Enxugou os olhos, suspirando profundamente. Virou-se e viu Robbie perto dela a observá-la. Não o tinha ouvido entrar. Quase não podia mais
vê-lo na densa escuridão do quarto, com a qual ele se fundia com o seu terno preto.
Como ela tinha sempre odiado aquele “preto”, de quem Bertie gostava! Quantos ciúmes havia tido dele no seu amor por Bertie! Não gostava
nada de Robbie, mas via nele a única esperança para Bertie. Estendeu a mão e apertou com força o braço magro do filho, dizendo:
— Quero falar com você, Robbie —, disse ela.
Saiu do quarto depois de um último olhar para Bertie e Robbie seguiu-a. Foi para seus aposentos e Robbie acendeu as lâmpadas e atiçou o
fogo. Janie deixou-se cair numa poltrona e embrulhou-se no xale. Parecia velha, cansada e deprimida. Mas seus olhos verdes brilhavam
determinadamente.
Robbie sentou-se perto dela e esperou, cruzando as pernas. Ela o olhou fixamente. Sim, sempre o odiara. Mas, por outro lado, sempre o
admirara também. De todos os seus filhos, aquele era o único inteligente e equilibrado, o único que não se deixava perturbar pelas suas
emoções ou ser arrastado pelas suas paixões. Via as coisas completas e com clareza. Era por isso que nunca se mostrava perturbado ou
agitado. Era o forte.
— Bertie não está melhor —, disse ela.
— Não está dormindo bem?
— Está. Mas, quando se levantar, vai beber de novo, algumas semanas depois.
— Sei perfeitamente disso.
— Escute, Robbie. Você sempre viveu em muita intimidade com ele. É a primeira vez que lhe pergunto isso. Há alguma coisa que possamos
fazer?
— Não, acho que não. Talvez não compreenda, mas a verdade é que Bertie não quer coisa alguma. Bebe porque acha que nada tem valor e
porque nada há que ele deseje.
Com grande surpresa para Robbie, a mãe baixou a cabeça e disse:
— Eu sei. Seu irmão é um fraco, Robbie.
A surpresa foi tão grande que durante alguns momentos ele nada pôde dizer e olhou para a mãe com um respeito novo. Disse por fim:
— Sim, tem razão, Bertie é um fraco. Nunca teve o espírito ou a coragem de descrer de você, Mamãe. Nunca procurou saber das coisas por si
mesmo. Confiou em você. Nunca chegou a compreender que não se pode confiar em ninguém, quando se trata de si mesmo. Talvez ele nunca
tivesse querido deixar de confiar em você. Era mais fácil acreditar.
Esperava que ela reagisse com incontida fúria. Mas ela disse com calma e sinceridade:
— Tem toda a razão, Robbie. Sabemos agora que Bertie é fraco e nada quer. Não é necessário que eu explique as coisas para você. Você é o
único de meus filhos que tem bom senso. Sabe o que eu quero dizer?
— Sei, Mamãe —, respondeu Robbie, sentindo de repente muita pena dela.
— Que é que vamos fazer, Robbie? — perguntou Janie, abrindo as mãos num gesto que para ela era infinitamente patético.
Ele se levantou e começou a andar de um lado para outro no quarto, com a cabeça baixa em meditação.
— Tenho pensado muito no caso, Mamãe —, disse ele, parando em dado momento diante da mãe e olhando para ela com o respeito e a
consideração que se concedem a uma pessoa da mesma categoria mental. — Há anos que penso nisso. Sinceramente, não creio que
possamos fazer coisa alguma. Ainda que você tivesse cedido a Bertie em todos os seus desejos, não sei se isso teria dado algum resultado.
As pessoas fracas, quando têm liberdade de fazer o que querem, terminam quase invariavelmente em confusão, correndo como coelhos de um
montão de comida para outro, sem decidir por onde devem começar a comer. Acabam cheias de insatisfação, de fome e de desorientação,
constituindo um encargo, uma despesa e uma fonte de preocupação para os outros.
Janie deu um suspiro.
— Você me convenceu a não o mandar para Saratoga de novo. Isso o teria ajudado um pouco, prolongando-lhe a vida e a saúde. Mas você
disse que eu não devia.
— E estava certo, Mamãe. Para que prolongar-lhe a infelicidade?
— Disse uma coisa muito cruel, Robbie.
— Devemos dar-lhe conforto e proteção, Mamãe. Nada mais podemos fazer.
Robbie viu de repente Bertie sentado sob uma árvore, com o rosto banhado pela luz verde e líquida. A árvore já perdera as folhas duas vezes,
mas a imagem de sonho permanecia com Bertie “perpetuamente moço”.
E toda a razão de Robbie foi levada numa torrente impetuosa de dor. Exclamou:
— Deixe-o em paz, Mamãe! Deixe-o ir! Não sei o que quero dizer e não posso fazê-la compreender, porque não compreendo também! Mas sei
que devemos deixá-lo ir. É o que ele quer. É a única coisa que ele quer e vai ser a última.
CAPÍTULO 42
Angus Cauder se casou com Gretchen Schnitzel cinco dias antes do Natal num ambiente de grande pompa. O casamento se realizou na Igreja
Luterana de Bethlehem, com a presença de uma grande reunião teutônica, que pareceu muito estranha à alma celta dos Cauders e dos
Colemans. Os Schnitzels tinham um verdadeiro exército de primos, tios, todos grandes, belicosos e abrutalhados, mais ou menos parecidos até
na sua má vontade. Eram todos empregados de maior ou menor categoria de Otto Schnitzel e era evidente que antipatizavam com Angus,
vagamente receosos de que de viesse a comandá-los. Dividiam-se entre o impulso de adulá-lo, como um futuro chefe, e o de tratá-lo com
condescendência, como novato e inferior. Em consequência, eram afligidos pela confusão que tanto assalta o teuto, no impulso igual e
contraditório de oprimir e de humilhar-se.
Os três irmãos de Gretchen, Heinrich, Adolph e Hans, estavam presentes, tão brancos, tão gordos e tão baixos quando ela, num estado visível
de descontentamento. Tinham feito tudo para impedir aquele casamento, mas o pai deles tinha dado o seu consentimento. Ocupavam de cara
fechada, com as gordas esposas e os filhos, os bancos reservados à família da noiva.
Entre os convidados, estavam os Schnickelburgers e os Zimmermanns que, curiosamente, muito se pareciam com os Schnitzels. Janie,
olhando para eles, comentava consigo mesmo que fora dar num chiqueiro de porcos e não se surpreenderia muito se, de repente, todos
começassem a grunhir, abafando a música do órgão, e mostrassem os cascos das patas por baixo das calças e dos vestidos. Era sem dúvida
muito apropriado que se dedicassem ao negócio de matadouros, curtumes e salsichas. Só lhe provocavam desprezo e aborrecimento.
Ficou satisfeita quando a cerimônia terminou. Para ela, aquilo tudo tinha o ar do sacrifício de um inocente a Moloque.
O jovem casal foi morar na residência dos pais da noiva na Rua Franklin, uma monstruosidade de torreões, umidade, corredores sombrios,
salas quadradas e lareiras de mármore preto. O terceiro andar tinha sido preparado para os noivos, com as paredes revestidas de nogueira
preta, o chão atravancado de pesados móveis de mogno, veludo e crina e reposteiros de veludo vermelho. Angus desapareceu naquela casa
como numa cripta e não foi visto durante três semanas, tempo durante o qual estava sem dúvida gozando a sua lua-de-mel. Todas as noites,
durante essas três semanas, Janie divertiu-se com conjecturas altamente impróprias sobre o que estava acontecendo. Quando tornou a ver o
filho, procurou descobrir-lhe no rosto quaisquer alterações de natureza catastrófica. Mas Angus parecia o mesmo, calma e timidamente
arrogante, silencioso e reservado, cheio de austero orgulho e de frieza. Janie não sabia se devia ficar decepcionada ou tranquilizada. De
qualquer maneira, a sua curiosidade foi insatisfeita.
Stuart, como patrão de Angus, foi também convidado, mas tinha recusado com grande energia. Não queria saber de sentir o cheiro dos
curtumes e de ter qualquer contato com os grandes animais a quem temia e detestava. O Padre Houlihan tinha achado que isso não era gentil
da parte dele.
— Escute, Grundy, já se esqueceu de que foi Otto Schnitzel quem trouxe para Grandeville a organização “Nada Sabe” e que foi ele que mandou
os desordeiros quebrarem a pedradas os vitrais de sua igreja na hora da missa? Esses vitrais me custaram cinco mil dólares e agora você
acha que devo sentar-me à mesa daquele porco e ouvir os insultos que ele queria dizer sobre você?
— Ora, Stuart, isso é apenas produto de ignorância —, disse o Padre Houlihan. — Não resta dúvida de que foi uma coisa muito feia quebrarem
os vitrais, principalmente os do lado leste, que eram os de que eu mais gostava! Mas isso é apenas ignorância, Stuart, e vai acabar passando.
— Grundy, eu lhe quero muito bem, mas você é um idiota! — havia exclamado Stuart, irritado.
O Padre Houlihan se aborreceu com essa opinião, até porque coincidia com as suas desconfianças.
— Você é danado para insultar os outros, Stuart! Será que não respeita minha batina? Quem é que é idiota?
Stuart quase não viu mudança no trabalho de Angus nas lojas, salvo o fato de que ele se tornara ainda mais rígido, mais frio e mais calado. Não
sabia se era imaginação sua, mas notou que, com o correr das semanas, Angus se tornava mais magro, mais pálido e mais sombrio.
Esses escoceses são assim mesmo, pensou Stuart. Podem ser esquartejados ou queimados vivos e se limitam a proferir textos da Bíblia ou
palavras vazias. Irritou-se de ainda estar insensatamente interessado pelo jovem homem, com quem sinceramente antipatizava.
No fim do verão de 1860, menos de um ano depois do casamento de Angus, Stuart recebeu um bilhete um pouco incoerente do Padre
Houlihan, em que este lhe pedia que fosse até à casa dele.
Quando lá chegou, o Padre Houlihan se mostrou ao mesmo tempo alegre, nervoso e misterioso. Agravou a impaciência de Stuart insistindo em
que a irmã servisse à visita chá com um pedaço de bolo. Acompanhou-o, cheio de satisfação. Stuart resignou-se e esperou.
— Ande logo, Grundy! — exclamou, quando não aguentou mais. — Que é que me está escondendo com esse mistério todo? Pare de balançar
a cabeça como um boneco e diga logo!
O Padre Houlihan, depois do chá com uma boa fatia de bolo, recostou-se na cadeira e cruzou as mãos sobre a barriga redonda. Olhou Stuart
cheio de prazer e exclamou:
— Você não é nem capaz de imaginar de que se trata, Stuart, de tão incrível que é a coisa!
— Diga logo para eu ver se é mesmo.
O Padre Houlihan tirou do prato com extrema habilidade um punhado de migalhas e jogou-as na boca.
— Ninguém se compara a Sarah em matéria de cozinha! Vou dizer a ela que embrulhe uma fatia desse bolo para você levar!
— Diga logo, Grundy. Que é que há?
Mas o padre queria aumentar a sensação da notícia que ia dar e não havia pressa no mundo que pudesse fazê-lo desistir desse prazer.
Começou a contar uma história muito comprida a respeito do novo hospital que Stuart havia financiado, o Hospital das Irmãs de Caridade,
anexo à Igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança. Tinha chegado o equipamento que Stuart comprara e o Dr. Malone, o chefe dos médicos,
estava muito satisfeito e se dissera muito grato a Stuart. E a Madre Mary Elizabeth pedira ao padre que agradecesse a Stuart e lhe
manifestasse a esperança de que ele pudesse fazer em breve outra visita ao hospital para ver os resultados de sua generosidade.
— E para uma pessoa reservada como ela é, mostrou-se extremamente entusiástica —, disse o Padre Houlihan.
— É muita bondade dela —, disse Stuart. — Mas não foi para falar dela e do velho Malone que você me chamou, foi?
— De certo modo, foi —, disse o irritante padre, sorrindo. Em seguida, não se pôde mais controlar e exclamou: — Stuart, acho que nossas
preces estão prestes a ser atendidas!
— E que era que estávamos pedindo em nossas preces? — perguntou Stuart com infinita paciência.
— Não são preces novas, Stuart. São muito antigas. Referem-se a Angus Cauder.
— Angus? Que é que há com aquele camarada?
O Padre Houlihan sentou-se na borda da cadeira com os olhos faiscantes.
— Você nem vai acreditar, Stuart! Angus esteve no hospital pela primeira vez há cerca de um mês e perguntou ao Dr. Malone com o seu jeito
tímido se podia assistir a algumas operações e observar tudo!
— Não! — exclamou Stuart, subitamente interessado.
O padre fez repetidos sinais afirmativos, encantado com o interesse de Stuart.
— É verdade, sim. Desde então, tem aparecido no hospital três noites por semana e fica durante uma hora, inclusive aos domingos. Toma
emprestado os livros de medicina do Dr. Malone. Já esteve presente a várias operações. Faz visitas aos doentes. E como sabe! O Dr. Malone
diz que é espantoso o que ele sabe de medicina. Podia quase começar a clinicar por conta própria. Tem tido várias conversas com os outros
médicos e estes custaram a se convencer de que ele não fosse médico também. Creia que não estou exagerando. O Dr. Malone ficou tão
impressionado que sugeriu que Angus estudasse com ele, pois poderia em pouco tempo receber o diploma!
— E que foi que Angus disse?
O Padre Houlihan pareceu meio desconcertado e disse:
— Nesse ponto é que as coisas não são tão boas assim, Stuart. Parece que ele ficou com medo ou coisa que o valha. Fosse como fosse,
depois disso, passou mais de uma semana sem aparecer no hospital. O Dr. Malone é muito inteligente e não tornou a fazer a sugestão. Apesar
disso, permite a Angus examinar os doentes e apresentar timidamente as suas sugestões. O Dr. Malone diz que ele tem muito jeito com os
doentes e que as sugestões dele são muito acertadas e revelam profundo conhecimento. Segundo o Dr. Malone, Angus é muito delicado e
interessado, especialmente nos casos graves, e basta a sua presença para infundir ânimo e esperança nos doentes. É quase um milagre na
opinião do Dr. Malone. Os doentes o procuram e chamam-lhe “Doutor”. Dizem que ninguém pode reconhecer Angus dentro do hospital. Parece
outro homem, todo interessado, amável e seguro.
— Que coisa! — exclamou Stuart. — Bem, eu tenho notado que ele anda sempre às voltas com uma porção de livros, mas, desde que nossas
relações não são lá muito boas, nunca lhe fiz qualquer pergunta. O caso é esse então! Que é que vamos fazer agora, Grundy?
— Nada, Stuart. Nada mesmo. Ele deve achar seu caminho, apenas com a ajuda de Deus. Qualquer coisa que você dissesse só poderia
assustá-lo e levá-lo a uma resistência que poderia ser permanente. Deixe-o em paz com Deus. Com Deus, nada se perde.
Stuart tinha sérias dúvidas a esse respeito, mas ficou calado. Começou a pensar, a apresentar sugestões. Que tal se ele, Stuart, fosse falar
com Janie? Não, isso não serviria de nada. Falar com Angus era impossível. E Robbie, por quem Stuart havia ganho muito respeito? Não, seria
inútil ir falar com Robbie, que desprezava o irmão mais velho e quase nunca era visto em sua companhia.
— Entregue tudo a Deus —, repetia o Padre Houlihan, que tinha, na opinião de Stuart, uma fé um tanto enervante e pouco prática.
Stuart, que era um homem de ação, ficou exasperado com tudo aquilo. Começou a andar na sala de um lado para outro, enquanto o Padre
Houlihan o olhava ansiosamente, insistindo em que Angus devia achar o seu caminho com a ajuda de Deus; Qualquer interferência poderia
estragar tudo. O segredo devia ser bem guardado. Se os Schnitzels descobrissem que o genro alimentava sonhos particulares e odiosos,
poderiam destruir qualquer esperança que se tivesse em relação a Angus. Ninguém devia saber. E o próprio Angus não devia ter conhecimento
de que seus amigos sabiam do que ele andava fazendo.
— Que luta deve estar havendo dentro dele! — exclamou sombriamente Stuart.
— Sim, ele deve estar sofrendo, Stuart! Mas qual é o homem que pode resistir ao apelo de Deus? Quando Deus quer, o homem obedece
consciente ou inconscientemente.
No dia seguinte, Stuart viu Angus nas lojas e olhou-o com discreta curiosidade. Como estava pálido e magro o pobre-diabo! Mas ninguém
poderia ser mais rígido, mais frio e mais altivo do que ele com aquele rosto descarnado e aqueles olhos cinzentos. Aproximou-se dele e
perguntou:
— Tem recebido notícias de Laurie, Angus?
— Não, Stuart. E você?
— Recebi uma carta dela no sábado. Diz que está muito contente na escola, em companhia das outras alunas. Está aprendendo com muito
afinco francês, alemão e italiano e diz que a voz dela também está melhorando muito. Recebi também uma carta do Professor Morelli, que diz
que ela está fazendo progressos notáveis e poderá ir para a Itália e para a Alemanha dentro de alguns meses. Boas notícias para uma pessoa
tão jovem, não acha?
— Ela daqui a pouco vai fazer dezesseis anos —, murmurou Angus com os olhos voltados para o chão. Tinha no rosto uma expressão de
tristeza e abatimento. Acrescentou: — Ela nunca me escreve. Só escreve para Mamãe e, às vezes, para Robbie querendo saber de Bertie.
— Pois ela procede muito mal com isso —, disse Stuart sem muita habilidade. —• Afinal de contas, foi graças a você que ela teve essa chance.
Será que ela não sabe disso?
— Ela só é grata a você, Stuart. E é por você, porque você assim o deseja, que ela está fazendo tudo isso. Deve achar descabida a
participação que tive nisso.
Acrescentou então, sem poder suportar o olhar de pena de Stuart e reassumindo a sua velha posição de orgulho e arrogância:
— Não pense que me esqueci de quanto você tem feito por Laurie, Stuart. Algum dia, pagar-lhe-ei tudo. E, por falar nisso, creio que lhe poderei
fazer um pagamento no mês que vem. De cem dólares. Depois disso, passarei a fazer pagamentos regulares. Gostaria de que você me
apresentasse uma conta completa.
— Ora, vá para o diabo! — exclamou Stuart, dominado de súbita raiva. — Fique com seu maldito dinheiro! Nada tem para me dizer senão
insultos?
Olhou para Angus, cujo rosto ficara levemente vermelho.
— Acha então que ela iria aceitar seu dinheiro, sujeitinho presunçoso? Basta ela saber que você está pagando os estudos dela para que Laurie
abandone tudo no mesmo instante.
— Mas você não vai dizer nada a ela, não é, Stuart? — perguntou ansiosamente Angus.
— Faria isso no mesmo instante. Está muito bem, faça o que quiser. Não posso impedi-lo. Mas na mesma hora em que receber seu primeiro
pagamento, escreverei a Laurie.
E rodou nos calcanhares, deixando Angus sumido em desespero e sofrimento.
CAPÍTULO 43
Mas, apesar das esperanças inocentemente benévolas do Padre Houlihan, as visitas sub-reptícias de Angus ao Hospital das Irmãs de
Caridade cessaram de repente, sem qualquer motivo compreensível. O Dr. Malone deu essa notícia com muito pesar.
O Padre Houlihan tinha uma natureza muito impulsiva e apaixonada e não podia suspirar com resignação e dar as costas a um problema,
deixando os acontecimentos a cargo de Deus. Embora tivesse uma fé simples e profunda em Deus, tinha a firme convicção de que não havia
mal algum em ajudar a Deus por métodos diretos, o que era uma maneira piedosa de chamar a atenção de Deus. Por atos, pela oração, pela
concentração e por uma humilde insistência, acreditava firmemente que poderia chamar a atenção de Deus e que, muitas vezes, o Senhor era
compelido a fazer milagres diante da simples tenacidade dos suplicantes.
Quando informou Stuart dos seus planos para perturbar a paz do Onipotente, Stuart deu uma gargalhada.
— Grundy, você é um sujeito danado de intrometido! Não me surpreenderia nada que o santo de sua devoção acabasse puxando-lhe as
orelhas. Deixe Angus em paz. Como nós dizemos, vamos deixar o demônio ser cozinhado no seu próprio molho.
— Você diz isso porque desconhece a eficácia da oração, Stuart.
— Está bem. Reze então. Quanto a mim, lavei já as mãos em relação àquele camarada. Virou um porco cheio de cobiça. Você devia ver o
prazer com que ele pega em dinheiro. Deixe de atormentar seu santo e deixe Angus deslizar calmamente para o inferno.
O Padre Houlihan muitas vezes caminhava desconsoladamente nos arredores do hospital e nos seus corredores, com muita satisfação para
Madre Mary Elizabeth. Ela considerava particularmente o padre um homem muito desleixado e não aprovava as suas frequentes e retumbantes
risadas. Naquela ocasião, empenhou-se com ela em conversas piedosas, excessivamente sérias, sentindo-se muito intimidado e deprimido
pela fé intelectual e severa da freira. Persuadiu-a, porém, a rezar por Angus e, tendo assim recrutado os seus serviços para atormentar o
Senhor, sentiu considerável satisfação.
Numa tarde de domingo, o Padre Houlihan fez uma visita ao hospital e teve uma de suas discussões profundamente depressivas com Madre
Mary Elizabeth. Sentia, às vezes, que isso era de certo modo um sacrifício e era essa a sua única satisfação. Madre Mary Elizabeth era de uma
velha família da Nova Inglaterra e pessoa de grande inteligência e esmagadora erudição. Lia e escrevia fluentemente em seis línguas e como o
Padre Houlihan só podia falar com fluência uma língua e era deploravelmente incerto em matéria de latim, salvo nas orações e na celebração
da missa, era sempre com desânimo que se retirava da presença dela, julgando-se simplório e ignorante e certo de que ela só podia ter
desprezo pela sua escassa ilustração. E desde que ele era enormemente gordo e baixo, ao passo que Madre Mary Elizabeth era
aristocraticamente alta e esbelta, o seu sentimento de inferioridade não podia ser atenuado senão em particular quando dava vazão e muitas a
eloquentes pragas, pelas quais fazia depois aflita penitência.
Chegou a acreditar que sua fé era muito primitiva, simples e revoltantemente infantil. Madre Mary Elizabeth poderia discorrer com facilidade e
eloquência sobre muitos assuntos obscuros e era, além disso, muito mística. O Padre Houlihan via-se envolvido em discussões que tinham uma
semelhança precária com o velho problema de saber quantos anjos poderiam dançar na ponta de uma agulha. Desde que se tratava de
problemas que estavam inteiramente acima de sua compreensão, ele se afastava da augusta presença da freira sentindo-se tremendamente
pueril e indigno.
O Padre Houlihan recordava as freiras simples e ignorantes de sua infância, de rostos bondosos e mãos calosas, e acabava julgando que
Madre Mary Elizabeth era um grande erro e isso lhe inspirava sombrias meditações sobre a educação das mulheres. Antipatizava muito com a
freira e saía sempre da presença dela magoado e envergonhado.
Por tudo isso, naquele domingo, estava num estado de espírito muito baixo. Tinha-se afastado apenas alguns metros do hospital quando foi
quase atropelado por uma carruagem preta com rebrilhantes arreios de prata. Os cavalos pretos refugaram de súbito e ficaram durante alguns
momentos com as patas dianteiras erguidas enquanto o cocheiro os puxava pelas rédeas. O Padre Houlihan retirou-se apressadamente para o
passeio e apanhou o chapéu que caíra ao chão. Isso foi para ele a gota de água que lhe fez transbordar a paciência. Começou a praguejar de
maneira bastante audível e a olhar com má vontade os ocupantes da carruagem.
— Por que não olham por onde andam? — exclamou ele. — Querem mesmo atropelar os outros? Pensam que são donos da rua?
A carruagem não seguiu. O cocheiro sorria desdenhosamente. Mas o homem que estava ao lado da moça na carruagem pareceu muito
confuso e perturbado e desceu para o passeio. Com a vermelhidão a cobrir-lhe o rosto, o Padre Houlihan reconheceu Angus Cauder e sorriu
desajeitadamente.
— Ah, é você, Angus —, murmurou, ele. — Eu não sabia!
Angus hesitou, mas, depois, tirou o chapéu e disse formalmente:
— Como está, Padre Houlihan? Desculpe, mas desceu do passeio um pouco inesperadamente. Desculpe.
— A culpa foi minha —, disse o padre, olhando para Angus com muita ansiedade.
Não tinha visto Angus desde o casamento dele, havia já um ano. Achou-o triste, pálido e muito magro. Fazia pena de ver, mas estava mais
altivo do que nunca e calmamente arrogante. Olhava seu velho amigo com distante polidez e uma secreta aversão.
— Quer que o levemos a algum lugar, Padre? — perguntou Angus apontando para a carruagem com a mão enluvada.
Ora, pensou o Padre Houlihan sentindo o coração dilatar-se, isso pode bem ser uma oportunidade que S. Francisco me dispensa. Mas olhou
de novo para a carruagem e perdeu toda a animação.
A moça sustentou o olhar do Padre Houlihan com desprezo e repulsa. Estava ali sentada com sua capa de peles e seu enorme chapéu, como
um montão letárgico de deplorável obesidade jovem, com as mãos metidas no regalo. O rosto era de lua cheia, branco como toucinho e com a
mesma falta de expressão. Tinha, entretanto, a rude boniteza de uma camponesa ignorante e evidentemente se considerava uma pessoa de
grande distinção. Enquanto o Padre Houlihan a olhava com surpresa e pesar, encolheu os ombros ostensivamente, tirou uma das mãos do
regalo para mostrar os anéis e virou a cabeça para outro lado, fitando as costas do cocheiro sem dar mais atenção ao padre.
É essa então a mulher do rapaz, pensou o padre. Deus o proteja.
Voltou-se para Angus e disse com um penoso sorriso:
— Muito obrigado, Angus. Mas estou fazendo visitas por aqui. — Teve alguns segundos de hesitação e acrescentou: — Tenho sentido muito
sua falta. Por que não aparece um dia para conversarmos um pouco?
Desde que Angus não visitava a casa do padre havia muitos anos, o convite era surpreendente. As sobrancelhas de Angus se arquearam um
pouco, mas ele disse apenas:
— Muito obrigado.
Olhou para a esposa. Era evidente que ela desejava ir-se embora. Mas era evidente também que sentia a pressão da mais elementar gentileza
e estava pensando em apresentar seu velho amigo a Gretchen. Mas a atitude dela logo o dissuadiu desse intento.
O Padre Houlihan colocou a mão no ombro do rapaz. Angus recuou um pouco, mas se conteve.
— Irá ver-me em breve, Angus? Estou ansioso por isso. Há tanto tempo que não conversamos.
Angus disse então com relutante cerimônia:
— Há muito tempo mesmo. Como vai passando?
— Muito bem, mas a verdade é que não estou ficando mais moço, sabe?
— Bem, foi um prazer vê-lo, Padre Houlihan —, disse Angus sorrindo. Mas o sorriso foi uma pálida contorção sem sentido. Antes de subir de
novo para a carruagem, disse: — Lembranças à Sra. O’Keefe, sim?
— Está bem —, murmurou o padre.
Mas a carruagem seguia já pela rua, rebrilhando ao pálido sol de dezembro. O padre ficou a olhá-la, até que a viu dobrar uma esquina.
Continuou a caminhar com o coração pesado e o passo lento e fraco. Os seus lábios se moviam em prece.
Entrou humildemente em sua bela igrejinha e se ajoelhou diante de um dos altares. As paredes lisas e arqueadas da igreja brilhavam como
neve. O chão branco era banhado pela luz crepuscular e refletia vagamente os bancos, enquanto as colunas altas e esguias se erguiam como
troncos de árvores para o teto belamente cheio de nervuras. Os altares resplandeciam à luz das velas e o ar estava impregnado do aroma das
rosas trazidas das estufas de Stuart. Ali havia paz, silêncio e sagrada meditação, aqui e ali interrompidos por uma tosse ou um arrastar de pés.
O Padre Houlihan, cujo espírito nunca era profundo, nem tortuoso, e que não tinha em bom conceito nem a dialética, nem a obscuridade,
acreditava, como Emerson, na “farinha na barrica; o leite na panela; a balada na rua; as notícias do navio; o relance dos olhos; a forma e o
comportamento do corpo; mostrem-me a razão essencial dessas coisas e o mundo não é mais um depósito monótono e confuso de coisas,
mas passa a ter forma e ordem; não há coisas ínfimas, não há enigmas, mas um plano une e anima os mais altos pináculos e as mais baixas
covas”. Era essa sua crença. Os filósofos que discutissem suas obscuras e sábias filosofias. Os padres cultos podiam discutir os assuntos
dialéticos até se perderem numa nuvem de palavras e ficarem com os pés muito acima da terra comum. Um milhão de anjos podiam dançar na
ponta das agulhas na sua essência incógnita. Deus podia ser discutido, comentado, dissecado até tornar-se tênue e dissipado para finalmente
desaparecer e explodir em mil fragmentos intangíveis e deixar de existir. Isso não interessava ao Padre Houlihan que só queria saber era de
“farinha na barrica e o leite na panela” que tudo explicavam.
Mas naquele momento, com súbita confusão, as coisas deixaram de ser tão simples.
Pela primeira vez na vida, o Padre Houlihan teve a noção horrível e sinistra de que o mundo era complicado demais para o homem e talvez para
Deus também. O espírito inocente do padre foi invadido por pensamentos terríveis, que muito o afligiam. Via-se num universo cheio de seres
estranhos, entre os quais não podia descobrir um só rosto conhecido. Aqueles poucos momentos com Angus tinham sido como uma porta para
uma sala confortável, repleta de afeição e cordialidade. Mas a porta se abrira de repente, mostrando-lhe a interminável e desolada região que
havia além dela e de cuja existência ele nunca havia suspeitado. Estava no limiar, atordoado e trêmulo, sentindo os ventos tempestuosos a
açoitarem-lhe o rosto e vendo estrelas que não eram as estrelas que ele conhecia. Não podia explicar essas coisas. Podia apenas sofrer,
temer e assombrar-se.
Tinha pensado que a alma humana fosse tão despida de complicações quanto a sua, ansiosa pela luz e pronta a abandonar as suas penas
ante a palavra de um Deus que esperava, disposta a eximir-se de pecados e erros se lhe mostrassem o caminho. Mas via naquela hora que a
alma humana, nos seus aspectos desconhecidos e terríveis, era como a lua. Mostrava ao mundo um lado iluminado artificialmente pelas
circunstâncias, exigências e convenções, enquanto o lado escuro sugeria intensamente o pavor e o mistério que o cercavam, mas nunca era
avistado.
“A farinha na barrica, o leite na panela.” Não, não era mais possível uma explicação tão bondosa e chã para o mundo dos homens e para o céu
de Deus. Ao mesmo tempo que sofria, o Padre Houlihan sentia uma tremenda humilhação e desespero por ter sido tão inocente. Talvez Deus
tivesse desprezo também pela filosofia elementar em que até então acreditara.
Estava tão cheio de dor e de angústia que não podia rezar. Com as mãos humildemente postas, continuou ajoelhado diante do altar, deixando
que o inundasse a luz eterna que vinha dele, remota como a luz das últimas estrelas. De repente, a sua visão se desfez, deixando-lhe os olhos
molhados.
Durante muitos anos, tinha procurado a explicação das guerras, das crueldades, das loucuras, das traições e da insensibilidade de coração.
Tinha visto todas essas coisas e elas o atormentavam. Mas tinha julgado que fossem erros, cometidos apenas pelos cegos e desorientados e
ignorantes e, ao lado da raiva que lhe provocavam, tinha havido o desejo ansioso de ensinar e de guiar. Sei agora, pensava ele, que tenho sido
um idiota. Há na alma humana terríveis abismos e regiões pavorosas, de que nunca soube e em que nunca acreditei.
Um grande terror arrebatou o padre. Tudo o que o cercava era estranho. Exclamou em voz alta:
— Meu Deus! Meu Deus!
A sua voz era um grito de agonia e as poucas pessoas que estavam na igreja levaram um susto e voltaram os olhos para ele na penumbra.
CAPÍTULO 44
Sem saber do insondável desespero a que tinha lançado seu velho e inocente amigo, ainda que inadvertidamente, Angus continuou na
carruagem ao lado de sua esposa, que em solteira se chamava Gretchen Schnitzel. Ia ao lado dela em silêncio, tão imóvel como uma estátua, a
olhar fixamente para a frente. Tão bem disciplinados eram os seus pensamentos naqueles últimos anos que quase nunca se via mais
atormentado pela sua velha inquietação espiritual, pelo seu velho abatimento e terror. Quando sentia as trevas crescerem na sua direção como
uma invisível e temível maré, afastava dela a consciência resoluta e severamente. Tinha agora um meio de incutir em seu espírito pensamentos
claros e comuns, como se acendem as lâmpadas de uma casa quando a terra rola inexoravelmente para a noite desconhecida e apavorante. E,
como se correm as cortinas das janelas para excluir o frio e a escuridão da noite, Angus corria as cortinas da disciplina sobre os assomos do
seu subconsciente.
Uma das coisas que ele não se permitia era fazer reflexões sobre sua mulher. Estava ali; casara-se com ela; era bastante. Ela lhe pusera nas
mãos uma fortuna em potencial. Morava com ela na casa dos sogros na Rua Franklin e, embora a casa fosse repulsiva e muito úmida, era pelo
menos bem confortável. O Sr. e a Sra. Schnitzel eram cansativos em suas conversas e rudes de maneiras, mas eram pessoas dignas e ele
esperava que cada vez tivessem mais consideração por ele.
Era já subgerente das lojas e recebia cinquenta dólares por semana. Desse dinheiro, tirava escrupulosamente vinte e cinco dólares por semana
para pagar sua “pensão” e a de Gretchen na mansão Schnitzel. A princípio, o sogro tinha resmungado uma recusa, mas, quando Angus
insistira, o proprietário dos matadouros tinha-o olhado com um respeito obtuso.
Nunca perguntava a si mesmo se gostava ou não de sua mulher. Dava a Gretchen delicadeza e respeito. Não queria jamais saber se ela era
inteligente, tinha distinção ou era capaz de ter ideias próprias ou que espécie de criatura ela era. Eram gentis um com o outro e
manifestamente indiferentes.
Janie podia interessar-se pelas intimidades que se desenrolavam por trás da porta daquele quarto enorme, vermelho e completamente
horroroso. Conhecendo e amando a vida com todo o seu entusiasmo, Janie poderia ter ficado espantada. Na verdade, a paixão, no seu sentido
mais exultante, com sua intensa consumação, seu amor, seu ardor e sua ternura, não desempenhava papel algum na atmosfera conjugal
daquele quarto. Só se pode dizer é que Angus e Gretchen se uniam, com tão pouco abandono e delírio quanto é possível imaginar e que eram
apenas suficientes para que o ato fosse executado.
Angus passara a ter uma paixão apenas e com a ideia fixa de seu espírito disciplinado e estéril tinha dirigido o desejo árido que ainda o
possuía para essa paixão. E essa paixão era o dinheiro. Mas não o desejava da mesma maneira de Stuart, pelo prazer, pela segurança e pela
paz de espírito que podia trazer. Desejava-o por ele mesmo, como princípio e fim.
O espírito de Angus era um castelo de torres sem ventilação e sem sol, ordenado, silencioso e desabitado, sem ecos nos salões altaneiros,
nem suspiros nos corredores vários. O que restava de sua mocidade estava acorrentado em negras masmorras sob o chão compacto de
pedra que não deixava passar qualquer gemido que ainda dali partisse.
Mas havia um quarto, cuja porta, como a do quarto do Barba Azul, nunca se abria e nele estava sua irmã Laurie. Ele não tinha coragem de
colocar a chave na fechadura, nem de abrir a porta. Não tinha coragem de vê-la, reconstituída pela memória. Tinha, conforme dizia
pomposamente a si mesmo, “cumprido o seu dever” para com ela e assegurara o seu futuro. Fechava então a porta sobre os olhos e a voz de
Laurie.
Em relação às outras pessoas de seu conhecimento e de sua família, Angus não chegava a ter nem uma atitude tão positiva. Considerava
Stuart um imbecil libertino e rude, privado de moral e de decência, um homem que não devia ser levado a sério, que só merecia desprezo e de
quem era preciso sempre desconfiar. Não obstante, ainda temia Stuart, embora negasse isso. Tinha igual desprezo por Sam e desconfiava
ainda mais dele do que do primo, embora reconhecesse a capacidade, a cautela e o espírito de economia de Sam. Acabaria por afastar a
ambos do Empório Supremo de Grandeville, não com espírito de vingança, mas com uma indiferença quase impessoal.
Angus sentia por Bertie apenas um frio e remoto desgosto. Representava uma coisa indescritivelmente indecente e desprezível, que não
merecia a atenção de qualquer homem inteligente e civilizado. Tanto quanto isso interessava a Angus, Bertie já estava morto ou à morte em
consequência de sua corrupção e ele desviava resolutamente os olhos desse espetáculo odioso. Desejava apenas que Bertie nunca
impusesse a sua existência à consciência de seu irmão mais velho e, enquanto isso acontecesse, Angus lhe faria a honra de esquecê-lo.
Robbie era um pouco diferente e isso de certo modo enfurecia Angus. Por mais que ele procurasse não tomar conhecimento do irmão mais
moço, por mais que o encarasse com gelado desinteresse, a personalidade de Robbie se lhe impunha desagradavelmente. Tinha sempre a
enervante desconfiança de que Robbie se divertia com ele e não o considerava uma pessoa de real importância. Sentia que Robbie o
analisava com científica objetividade, com uma curiosidade puramente intelectual. Angus sentia que Robbie o via como um “espécime”, um
objeto, um fenômeno comum, sem qualquer laço pessoal com ele.
Em resumo, Robbie não se impressionava com Angus.
Angus não se sentia humilhado. Sentia apenas desdém pelo fato de que o irmão fosse tão obtuso e pouco observador. Julgava que a frieza e a
correção de Robbie eram não produto de uma disciplina pessoal, mas manifestações naturais do seu temperamento. Procurava convencer-se
de que desprezava Robbie e de que o irmão não passava de um verme, calmo e despreocupado em meio aos acontecimentos. Quando
Robbie dissera certa vez em conversa que o dinheiro era apenas um meio para um fim e que, quando a pessoa não desejava particularmente
fim algum, o dinheiro perdia todo e qualquer valor, Angus sentira uma espécie de exultação gelada ao ver assim confirmado o desdém que
tinha pelo irmão. O fato de que Robbie tivesse sido admitido ao foro local e de que o velho Juiz Taylor proclamasse entusiasticamente que o
jovem homem subiria em breve à magistratura quase não impressionara Angus. Algum dia, pensava ele compenetradamente, poderia dar a
Robbie o lugar de consultor jurídico das lojas. Isso lhe dava um sentimento muito grande de virtude e magnanimidade.
Era, portanto, uma estátua de gelo que fazia companhia a Gretchen na carruagem naquele dia azul de outubro. Estava rígido como uma barra
de aço e tão intransigente e inerte quanto uma pedra. Tinha esquecido por completo a existência da mulher. Naquele momento, apesar de sua
imobilidade, os cativos nas masmorras tinham começado a agitar-se e a gemer. Apaziguou-os. Calaram-se, mas ele continuou a sentir o
tristonho olhar dos prisioneiros. Uma débil luz se mostrava por trás da porta que escondia Laurie.
De repente, foi acometido de um curioso fenômeno físico. Havia mais ou menos um ano, quando era provocado daquela maneira, uma dor
terrível lhe atravessava às vezes a cabeça, intermitentemente, com intervalos de cerca de dez segundos. Começava na têmpora direita, corria
pela parte anterior do crânio como uma faca fulgurante e parecia ir sair na têmpora esquerda. As primeiras dores eram suportáveis, mas a
quinta, a sexta e as que se seguiam estavam quase acima da sua capacidade de resistência. Cerrava os punhos, fechava os olhos, apertava
os dentes e esperava num ofegante silêncio, sem uma só exclamação mesmo quando estava só. Na verdade, a dor era tão intensa que não
permitia um grito abafado ou um movimento sequer. A última dor parecia dilacerar-lhe o cérebro em fragmentos luminosos como um ovo
esmagado e ele sentia por todo o corpo impulsos trêmulos de dissolução. Por fim, abria os olhos e via um mundo fluido, irreal e destorcido, ao
mesmo tempo que o rosto estava lívido e banhado de suor, o coração disparava e a respiração era entrecortada.
Tinha ido consultar um médico, que lhe receitara óculos para “ver de perto”, sono, repouso e cuidado com a alimentação. Nada disso tinha
dado resultado.
Durante esses acessos, a consciência se afastava como se ele tivesse morrido. Desse modo, só quando abriu os olhos e viu as ancas dos
cavalos e o céu vesperal de outubro e quando disfarçadamente enxugou com o lenço o suor do rosto, tomou conhecimento de que Gretchen lhe
estava falando e olhando para ele.
— Está de novo com dor de cabeça, Angus? Que coisa! Parece que as pílulas do Dr. Schultz já deviam ter dado resultado!
Angus respirou fundo e aprumou o corpo.
— Nada dá resultado, meu amor. Mas o Dr. Schultz me garantiu que não é nada de grave. Apenas uma manifestação de meu temperamento
nervoso.
— Pois você não me parece um homem nervoso. E há uma coisa que eu acho muito estranha. Você quase que só tem esses ataques quando
nós estamos assim juntos e não há absolutamente motivo para você ficar nervoso. Será que sou eu que o aborreço, Angus?
— Que tolice, Gretchen! — replicou ele com magnanimidade. Havia ainda um tremor violento no seu sangue. Mas ele sabia que isso passaria
dentro em pouco. — Não há razão evidentemente para esses acessos. Vão acabar passando.
Ela olhou sem nenhuma simpatia para o rosto pálido e para os olhos muito parados do marido. Disse então com desdém, voltando os
pensamentos para outro assunto.
— Aquele padre horroroso! Como teve coragem de falar com você, Angus? Parecia um mendigo!
— Foi muito atrevimento —, murmurou Angus. Tirou do bolso o relógio de ouro, presente do sogro, e exclamou: — Quase cinco horas,
Gretchen! Acho que temos de voltar. O chá hoje é às seis horas, não se esqueça.
Deu uma ordem ao cocheiro que tocou o chapéu com o chicote e deu a volta com a carruagem.
Gretchen tinha começado a sorrir com satisfação.
— Papai me disse que na última reunião dos “Nada Sabe” foi aprovada uma resolução que coloca fora da lei a Igreja Católica Romana. Como
isso será agradável e como é necessário! Mas Papai me disse que você não foi à reunião, Angus.
— Já se esqueceu, minha cara? Eu estava nas lojas trabalhando na escrita.
— Afinal de contas —, continuou Gretchen —, todos devem compreender que este é realmente um país alemão!
Angus olhou para ela. O coração que estava começando a acalmar-se bateu de novo depressa e o sangue lhe subiu ao rosto. Disse então:
— Sou então um homem muito mal informado. Sempre soube que os fundadores dos Estados Unidos foram ingleses com alguns escoceses e
irlandeses. Talvez, Gretchen, você ache errado que se fale inglês aqui e que as leis dos Estados Unidos se baseiem no direito inglês.
— Ora, os ingleses são na realidade alemães. E não me consta que houvesse muitos escoceses e irlandeses, que são criaturas odiosas!
Mas Angus sentiu-se de repente exausto. Encolheu-se no fundo da carruagem e nada mais disse até chegarem à hedionda mansão da Rua
Franklin.
CAPÍTULO 45
O hall da casa de Otto Schnitzel era alto, sombrio e cavernoso, execravelmente decorado com tapetes vermelhos, cadeiras douradas e de
pelúcia tortuosamente trabalhadas e reposteiros escarlates. Cheirava fortemente a cera de abelhas e a friagem, mesmo naquela tarde quente
de outubro. Uma criada alemã tomou o capote, o chapéu e a bengala de Angus e ajudou Gretchen a tirar a capa e o chapéu. Anunciou então
que “Herr Schnitzel e Frau Schnitzel” estavam esperando a filha e seu marido no salão e que o jantar seria servido dentro de uma hora.
Angus agradeceu-lhe gravemente. Olhou para a mulher e viu-lhe o grande rosto branco rebrilhar no escuro. O alto de sua cabeça com os
cabelos da cor de linho áspero só chegava à altura do queixo dele. O corpo era gordo e desajeitado e as grandes mãos rechonchudas estavam
pesadas de anéis. O vestido de veludo marrom com os enormes arcos da saia-balão lhe acentuava a obesidade e o corpo disforme. A cabeça
era plantada quase diretamente nos ombros roliços e o pescoço era indicado apenas por uma pequena gola de renda presa por um broche de
camafeu orlado de pérolas. Acima da gola havia mais que uma sugestão de um avantajado queixo duplo. O busto era, como os ombros,
enorme e amatronado e caía pelo próprio peso. Os braços quase faziam estourar o veludo do vestido. Quando ela passava, o soalho rangia,
embora fosse sólido e resistente.
Olhou para Angus com o seu jeito cansado e belicoso, que era também indolentemente desafiador.
— Vamos para onde estão Mamãe e Papai, Angus? — perguntou ela no tom de quem dava uma ordem.
Encaminhou-se para as portas que separavam o hall do salão. Angus, seguindo-a, parecia cadavérico e rígido no seu terno preto, pairando
acima dela como uma árvore congelada, com o seu passo lento e silencioso.
O longo salão estreito se estendia por todo o comprimento da casa e era aberto em janelas de grande altura e estreitas como seteiras, envoltas
nas ubíquas cortinas vermelhas. Um tapete florido de cores esmaecidas cobria o chão. Os pesados móveis de nogueira preta eram estofados
de crina e de pelúcia lilás ou escarlate. Mesas pesadas com panos de veludo de franjas douradas sustentavam lâmpadas de cristal com bases
complicadas de ouro ou prata. O fogo brilhava na lareira de mármore preto por trás de um guarda-fogo de metal dourado e polido que refletia o
salão horrendo e opressivo.
Otto Schnitzel, dono de matadouros e cidadão respeitável e rico burguês, estava sentado diante do fogo, lendo o jornal local, The Commercial,
e fazendo de vez em quando comentários mal-humorados para a mulher numa voz áspera e zangada. Era um homem baixo e extremamente
gordo, com uma grande calva e orelhas vermelhas e protuberantes. Era de esperar naquela cabeça quadrada um rosto em grande escala. Mas
o rosto era excepcionalmente pequeno, com as feições rudes e pequenas muito avermelhadas, os lábios comprimidos numa expressão cruel e
desconfiada e os pequenos olhos azul-claros a brilhar antipaticamente por trás dos óculos grossos, que viviam a escorregar pelo nariz curto,
gordo e arrebitado.
Frau Schnitzel parecia gigantesca em comparação com ele. Tinha um aspecto abrutalhado e impiedoso, arrogante e insensível.
Quando Angus e Gretchen entraram, a Sra. Schnitzel olhou-os com o seu ar habitual dominador e desconfiado e disse irritadamente:
— Estão com meia hora de atraso. Onde estavam?
O Sr. Schnitzel largou o jornal e comentou, arregalando os olhos:
— Atrasados.
As barbatanas do espartilho de Gretchen estalaram quando ela se curvou para beijar a mãe. Teve um risinho desagradável e disse com má
vontade:
— A culpa não foi minha, cara Mamãe. Mas aquele velho padre horrível, Sr. Houlihan, fez Angus parar e conversar demoradamente com ele.
Quase o atropelamos. Foi uma pena que isso não tivesse acontecido.
O Sr. Schnitzel e sua afável mulher olharam acusadoramente para Angus e ficaram esperando num silêncio exasperado as explicações e as
desculpas que ele tinha para dar.
Mas Angus olhou para eles com cerimoniosa reserva e com altivez.
— Sinto muito que nos tivéssemos atrasado —, disse ele. — O Padre Houlihan devia estar preocupado com alguma coisa e quis atravessar a
rua à frente de nossa carruagem. Fui forçado a pedir-lhe desculpas, embora a culpa fosse dele. Tivemos uma breve conversa e, depois,
seguimos nosso caminho.
O Sr. Schnitzel resmungou alguma coisa e plantou os pés no jornal caído ao chão. A Sra. Schnitzel encolheu os ombros e perguntou
maliciosamente:
— Ele tentou convertê-lo, Angus?
Angus apertou os lábios e olhou para a sogra com uma frieza que muitas vezes a fazia recuar.
— O Padre Houlihan nunca tentou converter-me. Ele é amigo íntimo de Stuart e foi muito bom para mim quando eu era garoto.
A Sra. Schnitzel riu desdenhosamente e sacudiu a cabeça. Mas o marido disse rispidamente:
— Foi bom para você, hem? Essa gente vive procurando converter os outros. Não quero nada disso em minha família!
Tenho de controlar-me, pensou Angus. O Padre Houlihan nada significa para mim. Nem ao menos gosto dele. Mas alguma coisa começou a
latejar-lhe no pescoço e um fio de dor lhe chegou às têmporas. Disse desdenhosamente:
— Não me parece que eu já tenha demonstrado alguma simpatia pelo catolicismo.
— Ele pediu que você fosse à casa dele, Angus —, disse Gretchen, aproximando-se da mãe. Os pais dela, ouvindo isso, olharam Angus cheios
de acusação e cautela.
— É verdade —, disse ele, conservando-se a alguma distância deles e olhando firmemente para a frente.
— Pretende ir? — perguntou o Sr. Schnitzel num tom de intimidação.
Angus voltou lentamente os olhos para ele e pareceu meditar por longo tempo, durante o qual o Sr. Schnitzel ficou rubro de raiva contida. Por
fim, Angus disse:
— Não, acho que não. Pode ser que vá. Mas, no momento, é coisa que não penso fazer.
Como sempre, o teuto se deixou intimidar por uma resistência fria e firme. O Sr. Schnitzel, depois de um olhar furibundo para o genro, baixou a
vista e murmurou:
— Está bem. Não vamos pensar mais nisso.
— Café, Angus? — perguntou com precipitação a afável Sra. Schnitzel.
— Por favor —, disse Angus.
A Sra. Schnitzel começou a mexer nas xícaras, enquanto Gretchen colocava açúcar e creme no café. O Sr. Schnitzel empurrou para perto do
genro um prato de bolinhos. Respeitava Angus. Admirava os seus modos distintos e a sua integridade. Temia também o seu olhar frio e a sua
resistência à intimidação. Sorriu para ele e disse:
— Acabo de ler no Commercial que a festa de noivado de seu irmão Robbie com Alice Cummings será realizada com um jantar na casa do
Prefeito no mês que vem —, disse ele num tom pesadamente amistoso. — Muito bom para ele. Há dinheiro ali. Quando será o casamento?
— Não tenho certeza, mas acho que será em novembro. Por falar nisso, soube que Robbie será nomeado juiz substituto em janeiro. Foi o que
nos informou o Juiz Taylor. Depois, no ano que vem, quando o Juiz Taylor se aposentar, ele se candidatará ao cargo.
— Ótimo, ótimo —, disse o Sr. Schnitzel.
Mas a Sra. Schnitzel não se mostrou satisfeita e disse:
— Mas ele é muito moço, moço demais. E nada tem de simpático. É muito presunçoso apesar de seu jeito calmo. Desculpe, Angus, mas nunca
simpatizei com ele. Não tem traquejo social e nem procura ser delicado. Quanto a Alice Cummings, é uma mocinha muito sem graça, muito
artificial e excessivamente doce. Acho que essa doçura é pura hipocrisia.
Angus disse calmamente:
— A Srta. Cummings é considerada um excelente partido e todos acham que Robbie é muito feliz em consegui-la.
— Nunca votei em Cummings —, disse o Sr. Schnitzel belicosamente, lançando de novo um olhar provocador para Angus. — Na minha opinião,
é muito maneiroso e eu sempre o julguei um mentiroso. Por exemplo, a biblioteca que ele abriu para o público. Imagine! As mãos sujas de
trabalhadores pegando em livros. Para que querem livros esses porcos? Basta que façam bem o seu trabalho e depois vão para os seus
barracos onde ninguém mais os veja! É o que eu acho e assim é que deve ser. Livros para porcos e cachorros! Pura tolice! Tudo isso é coisa
de Cummings com suas ideias absurdas de educação pública. E seu primo, Stuart Coleman, que deu dois mil dólares para a biblioteca e foi
escolhido para a diretoria, apesar de suas dívidas escandalosas!
— Escandalosas mesmo! — exclamou a Sra. Schnitzel.
— É anarquismo isso! — exclamou o Sr. Schnitzel, com um violento repelão na cadeira.
— E um ato anticristão! — disse Gretchen estridentemente.
Angus olhou para todos com o rosto muito pálido e parado.
Tenho de controlar-me, pensou ele. Disse então em voz baixa:
— Não tenho condições para julgar da conveniência da biblioteca.
O Sr. Schnitzel estava quase fora de si, com o rosto apoplético. Sacudiu o dedo gordo na direção de Angus e gritou:
— Cummings não vale nada! E seu Stuart não é melhor! Ele me acusa de alojar meus trabalhadores em chiqueiros! São meus barracos, não
são? É minha terra perto dos matadouros, não é? Isto é um país livre ou não é? Agitadores miseráveis! Chamando-me aos tribunais para
forçar-me a limpar o que é meu quando o gado, de qualquer maneira, está satisfeito com as coisas como são!
— É sempre assim quando as pessoas se misturam com judeus,— disse a Sra. Schnitzel com alguma obscuridade.
— E vai fazer a limpeza, Sr. Schnitzel? — perguntou Angus, sentindo a dor queimar-lhe a testa.
O Sr. Schnitzel ficou em silêncio durante alguns momentos, esparramado na cadeira como um montão de carne enfurecida.
— Só quando tiverem um mandado judicial —, disse por fim.
— Nunca antes.
— Vão ter. Robbie está preparando tudo —, informou Angus com um sorriso frio.
O Sr. Schnitzel cerrou os punhos gordos e disse um nome feio. Gretchen levou as mãos aos ouvidos e riu. A Sra. Schnitzel deu um grito.
— Vou lutar! — Vou lutar com a ajuda de Deus! — gritava o Sr. Schnitzel agitando no ar os punhos cerrados. — Vamos ver quem tem mais
prestígio e mais dinheiro!
Angus tomou um gole de café e disse:
— Tem toda a razão. Eu o ajudarei na luta, se me for possível.
— Ótimo, ótimo. Você tem bom senso, Angus. Afinal de contas, um dia você terá parte também naquelas propriedades.
Angus fez um sinal de aquiescência com dignidade. A Sra. Schnitzel olhou-o com aprovação e Gretchen lhe deu um olhar quase de carinho.
— Não posso ver qualquer sentido em tentar elevar as pessoas comuns acima de seus instintos e de sua natureza —, disse Angus,
gravemente. — É uma insensatez.
O Sr. Schnitzel teve outro pensamento. Olhou para o jornal a seus pés e pisou-o como se fosse uma coisa viva.
— E outra coisa. Parece que aquele sujeito do interior, o tal Abraham Lincoln, será o próximo presidente. Sou inteiramente desfavorável a isso.
Acho um desaforo um homem do povo aspirar à presidência! Isso em minha terra nunca seria permitido. Nós lá temos respeito à família, à raça
e à tradição. Se ele for eleito, a guerra com o Sul será inevitável. Os homens do Sul são cavalheiros e não vão tolerar uma coisa dessas!
— Talvez ele seja derrotado —, disse Angus. — Não posso crer que o povo americano seja tão destituído de senso e de espírito de proporção
para eleger para a presidência um lavrador e advogado do interior.
O Sr. Schnitzel estava agitado.
— Esses negros! Fiquem sabendo que ainda vamos ter muitos problemas com esses negros!
— É este horrível país! — exclamou a Sra. Schnitzel. — Aqui não se dá atenção ao sangue, à raça e à educação. É um país de imbecis e de
rústicos!
Gretchen emitiu o seu risinho ácido e olhou maliciosamente para Angus.
— Sabe o que foi que Angus disse hoje, Papai? Disse que este é um país inglês.
— Tolice! — exclamou o Sr. Schnitzel dando um murro no braço da poltrona. — Temos muitos alemães aqui também! É virão mais, muito mais!
Vamos dar jeito neste país, fazendo dele terra alemã e ensinando ao povo boas maneiras e bom governo. É o destino! Nada pode impedir que
isso aconteça! Acabaremos com toda essa confusão e colocaremos todo o mundo em seu lugar!
Angus acabou de tomar o café e limpou cuidadosamente os dedos no guardanapo.
— Teremos este maldito país nas palmas das mãos! — exclamou o Sr. Schnitzel ainda mais violentamente.
— Cuidado com seu coração, Otto —, disse a Sra. Schnitzel, com um olhar ameaçador para Angus.
Angus perguntou calmamente:
— Sr. Schnitzel, sua família na Alemanha pertencia à classe militar? Aos Junkers talvez? Ou à velha nobreza alemã?
O Sr. Schnitzel resfolegou, abriu a boca e tornou a fechá-la. O seu olhar para Angus foi homicida.
Angus olhou-o com o seu sorriso breve e frio. Virou-se para Gretchen.
— Creio que está na hora de vestir-se para o jantar, meu amor.
— Outra coisa —, disse a Sra. Schnitzel. — Ninguém se vai opor à construção desse colégio católico na Rua Principal? Canisius, acho que é
assim que se vai chamar. Será que ninguém tem amor a este país para impedir uma coisa assim?
— E onde foi que arranjaram o dinheiro? — exclamou o Sr. Schnitzel. — Tiraram-no da boca do povo que passa fome! Conseguiram-no com as
suas manobras criminosas! E soube que seu parente, o honrado Sr. Coleman, vai dar cinco mil dólares! E também o amigo judeu dele,
Berkowitz, e Cummings, se não estou enganado.
Angus se levantou e disse com calma autoridade:
— Vamos, Gretchen. — Voltou-se para o Sr. Schnitzel. — Nada sei a respeito do colégio. Mas compraram o terreno e o resto não é de minha
conta. Se acha que pode impedir a construção, tem toda a liberdade de assim proceder. Mas, como o Sr. mesmo disse, este é um país livre.
Gretchen saiu do salão com ele sem muita vontade, depois de um sorriso de desculpa para os pais.
A Sra. Schnitzel se acomodou na sua poltrona e disse:
— Muitas vezes fico sem saber quais são os verdadeiros sentimentos de Angus. É quase sempre muito cáustico e não respeita os seus
sentimentos, Otto.
Mas o Sr. Schnitzel, que na realidade gostava muito de Angus e tinha orgulho dele, disse desdenhosamente:
— Que é que vocês, mulheres, entendem dessas coisas? Eu conheço Angus. Sejam quais forem as suas ideias, ele nunca permitirá que isso o
atrapalhe.
CAPÍTULO 46
Se alguém fosse dizer a Stuart Coleman, felizmente ignorante de tudo, quais eram os pensamentos que se formavam metodicamente no
espírito de Angus Cauder, seu parente e subordinado, ficaria espantado e, em seguida, estouraria em incrédulas gargalhadas. É verdade que
ele sentia uma zangada inquietação na presença de Angus e traduzia isso num tratamento desdenhoso, tendo o cuidado de exagerar um
desprezo que dificilmente sentia e deixando deliberadamente de tomar conhecimento dele nas ocasiões próprias. “O rapaz perdeu todas as
emoções menos o amor ao dinheiro”, dizia ele consigo mesmo, cheio de aborrecimento. “Ainda há poucos anos, era humano. Agora, é apenas
uma imagem de pedra de si mesmo.”
Mas o fato de que ele, Stuart, e Sam Berkowitz estivessem já postos de lado como inferiores no espírito de Angus teria parecido a Stuart o
sonho de um demente. Poderia ter tido um indício desses sentimentos se tivesse visto o sorriso levemente irônico de Angus quando olhava os
livros de escrituração e via as grandes quantias que Stuart retirava em adiantamento sobre lucros futuros.
Poderia também ter sentido alguma inquietação se soubesse que Joshua Allstairs e Angus tinham-se tornado amigos discretos e distantes e
que Joshua fazia questão de ter longas e derramadas conversas com seu cliente sobre assuntos que só de leve se referiam às lojas e às suas
contas e dívidas. Se soubesse, teria exclamado: “Onde estão a lealdade e a gratidão desse jovem patife?” Mas Stuart nunca teria
compreendido um homem que não via qualquer deslealdade ou ingratidão nas suas tramas, mas apenas retidão. Nunca poderia ter
compreendido quem acreditava que um homem de virtude devia dispor do poder de destruir e alijar aqueles que não tinham “virtude” e
estavam, portanto, fora do âmbito da dignidade como seres humanos e fora da consideração, da tolerância e da justiça de homens “melhores”.
De fato, Angus acreditava que os favoritos do céu eram destinados a ordenar os assuntos daqueles que não gozavam da aprovação de Deus e
dirigi-los arbitrariamente sem piedade, sem dúvida e sem indulgência. Homens mais sábios poderiam ter dito a Stuart que se poderia achar
alguma cordialidade e generosidade em homens que eram abertamente canalhas, mas que não se encontraria senão inflexibilidade, crueldade
e dureza de coração naqueles que acreditavam que tinham a aprovação de Deus, o direito e a justiça, para as suas opressões e crimes contra
seus semelhantes.
Infelizmente, o ingênuo Stuart sabia apenas que o seu jovem subgerente era muito competente e inteligente. Stuart, que detestava dar ordens,
delegava esse dever desagradável a Angus, que tinha inspirado aos caixeiros e aos outros empregados ódio e profundo respeito. Um certo
ambiente de displicência e entusiasmo havia desaparecido das lojas, fenômeno que afligia o observador Sam Berkowitz, sendo substituído por
uma atenção rigorosa ao trabalho e uma operosidade automática. Angus era temido, ainda que abominado, e, em consequência disso, a
ordem predominava, as contas eram rigorosamente feitas e ninguém merecia confiança. Em consequência disso, a amizade desaparecera
entre os empregados e cada qual procurava ganhar vantagens para promoção às custas dos companheiros que dantes só lhe mereciam
camaradagem e simpatia. Angus tinha introduzido nas lojas o vírus da desconfiança e da exigência ambiciosa e, embora a disciplina e a ordem
reinassem, a luz da devoção se apagara para sempre e fora substituída pela cobiça.
Sam via tudo isso. Vivia deprimido e triste. Mas sabia que não adiantaria nada conversar com Stuart, que não compreenderia e ainda o olharia
com indignação.
Angus era pródigo tanto nos prêmios quanto nas punições. E incentivava a espionagem. Tinha agora o seu escritório, pequeno, arrumado e
austero nos fundos da terceira loja. Quase todas as decisões relativas ao pessoal das lojas eram tomadas ali sem que Stuart ou Sam Berkowitz
fossem consultados.
— Há agora uma certa falsidade nas lojas, apesar do desejo superficial de agradar e servir —, dissera a Sra. Cummings a seu marido, o
Prefeito. — Não posso explicar bem o que há. Os caixeiros continuam a ser atenciosos e amáveis, solícitos em servir. Não posso explicar,
Frank, mas os sorrisos desaparecem no instante em que a gente dá as costas e o freguês não é mais um amigo, a quem é um prazer atender,
mas apenas uma fonte de dinheiro. E o pior é que eu acho que o pobre Stuart não sabe de nada disso.
— Mas você tem de reconhecer que não há mais uma certa displicência e morosidade —, respondera o marido. — Foi você mesma, quem
disse. O serviço é pronto e eficiente.
— É verdade, Frank. Mas falta uma coisa mais valiosa. Dantes, era um prazer fazer compras ali. Encontravam-se as amigas em volta dos
balcões e podia-se levar horas a conversar nas cadeiras, discutindo os artigos que queríamos comprar. Agora, somos servidas com rapidez e,
se a gente pára a fim de conversar, as sedas são retiradas e as cadeiras são ostensivamente arrumadas, dando a impressão de que não se
tem mais nada que fazer ali, que a nossa ausência seria bem vista e que a única coisa que interessa é abrirmos a bolsa para pagar.
— Bem, tudo isso é mais comercial, Alicia —, disse o Sr. Cummings sem muita convicção.
— Talvez, mas é muito menos agradável. Nada mudou nas lojas a não ser a boa vontade e a amabilidade. E eu, pessoalmente, gosto mais
disso do que de um serviço rápido e eficiente.
Stuart, que era uma alma cordial, via apenas que suas freguesas se mostravam ansiosas por terminar as compras e sair quando ele as
encontrava e olhavam-no quase como se pedissem desculpas pela sua demora. Isso o deixava apreensivo, mas ele continuava a não
compreender. Via que as confortáveis cadeiras das lojas quase não eram mais ocupadas e temia vagamente que ninguém mais se
interessasse em ficar ali conversando e espalhando perfume e risos.
— Por que foi que essa gente mudou? — murmurava ele zangado. — Por que não continua a ser o que era?
Era nisso que estava pensando uma manhã quando Angus bateu na porta e entrou no seu escritório. Stuart, que estava esperando Sam, ergueu
a cabeça com um sorriso de satisfação. Quando viu Angus, o sorriso se desvaneceu e ele resmungou:
— Oh, é você. Que é que há agora?
Angus não se sentiu bem com essa acolhida pouco amável. Sentou-se deliberadamente perto do primo e cruzou as pernas. O seu olhar gelado
contemplou Stuart desapaixonadamente e com severidade, embora com o respeito que todo o homem civilizado concede ao seu superior, por
mais reprovável que ele seja. Observou atentamente o rosto vermelho e abatido de Stuart, a papada sob o queixo, as rugas fundas da
dissipação em torno dos olhos pretos e irascíveis. Sabia que Stuart era quase sempre obrigado a andar apoiado na bengala por causa do pé
atacado de gota e foi com satisfação que viu as manchas esbranquiçadas nas têmporas de seu patrão. Sim, na verdade, Stuart estava
envelhecendo embora tivesse pouco mais de quarenta anos. Está quase acabado, refletiu Angus.
Intuitivo como sempre, Stuart notou esse exame e exclamou de repente:
— Que diabo. Angus! Cada vez que vejo você, está mais um pouco mudado. Houve um tempo em que era um rapaz bem direito, mas agora....
— Espero —, disse Angus friamente —, que eu não tenha mudado para pior e que não esteja vendo nada de errado ou de insatisfatório em
meu trabalho.
Stuart olhou para ele piscando os olhos. Por fim, exclamou:
— Vamos deixar isso para lá. Que é que você quer?
Angus não desviou o olhar quando disse com calma e firmeza:
— Não se trata das lojas, Primo Stuart. É de certo modo um assunto mais pessoal. Venho falar-lhe de uma petição, assinada por você e por
outros, a respeito de certas propriedades de meu sogro.
— E daí? — perguntou Stuart com uma voz enganosamente mansa. Os dedos carregados de anéis tamborilavam impacientemente na mesa.
— Creio, Primo Stuart, que não está inteiramente a par dos fatos. Se estivesse, tenho certeza de que mandaria retirar seu nome dessa petição.
— E posso saber quais são os fatos? — perguntou Stuart, ainda com voz cordata.
— Os fatos, Primo Stuart, consistem em que tudo isso é uma ideia absurda, revolucionária e injusta para com o Sr. Schnitzel. Posso até dizer
que é inconstitucional, pois infringe, os direitos de propriedade.
— Ah! Quer dizer que estamos agora enamorados dos direitos de propriedade? Pois eu pensei que de vez em quando passassem por cima
desses direitos. Mas continue que eu estou interessado.
Angus teve um rictus de desprezo nos lábios e começou a falar em palavras lentas e precisas, como se estivesse explicando tudo a uma
pessoa de poucas luzes.
— O Sr. Schnitzel comprou os terrenos em volta de seus matadouros há cerca de trinta e cinco anos. Construiu... pequenas casas no local, bem
arrumadas, limpas e utilitárias. Três peças em cada casa. Eram pegadas umas nas outras, é verdade, sem espaço para um jardim ou para um
gramado, mas eram limpas. Os seus trabalhadores ficaram muito contentes com elas...
— Desde que na sua maioria tinham vindo dos buracos de ratos da Europa —, disse Stuart —, até um chiqueiro de três peças parecia o céu.
— Não estou dizendo, Primo Stuart, que essas casas sejam palácios. Mas no começo, segundo estou informado, eram pelo menos limpas.
Infelizmente, as pessoas que nelas moram são por sua própria natureza imundas, inferiores e baixas. Se essas... casas estão agora num
estado deplorável, a culpa não é o do Sr. Schnitzel. A culpa é das pessoas desleixadas e pouco civilizadas que nelas moram. São elas que
acumularam no local o lixo e a sujeira e lhe deram o aspecto de ruína e abandono.
— Já esteve lá, Angus?
Uma expressão de ódio transpareceu involuntariamente nas feições de Angus. Mas disse numa voz controlada:
— Já estive, sim. Reconheço que estão imundas. Mas é assim que aqueles trabalhadores e suas famílias desejam viver. Não se sentiriam à
vontade em qualquer outro ambiente.
— Como é que você sabe? Perguntou a eles?
— Não é da minha competência interrogar os empregados do Sr. Schnitzel. Mas, pelo que tenho sabido, os trabalhadores não reclamam
absolutamente da sujeira e do mau cheiro.
— E isso os relega a uma condição inferior à dos porcos —, murmurou Stuart.
— Na verdade, as pessoas dessa classe não são melhores que animais —, disse Angus, sem perceber a ironia do primo.
Stuart olhou para ele, exasperado. Insolente, obtuso e burro! Disse então:
— Bem, tenho também alguns fatos para você, Angus. As pessoas que moram ali não gostam absolutamente da sujeira e do mau cheiro.
Algumas delas têm até procurado desesperadamente limpar os buracos onde moram. Mas, com uma regularidade impressionante, seu amável
sogro manda jogar montões de vísceras e de lixo nos fundos daqueles imundos barracos. E tudo fica lá durante semanas, impregnando tudo
com o seu fedor, -até que os moradores são forçados a levar tudo para longe ou enterrar.
"Desde que estão ligados por um contrato de trabalho odioso a Herr Schnitzel, que os obriga a viver naqueles antros perto dos nauseabundos
matadouros, não se podem mudar sem incorrer em penalidades muito onerosas. Creio que há também alguma espécie de intimidação
exercida pelos agentes de Schnitzel. Muitos dos trabalhadores acreditam, e talvez seja verdade, que se eles romperem o contrato com
Schnitzel, terão de enfrentar multas, prisão e deportação para os canis de onde vieram. Não examinei bem o assunto e talvez essas pessoas
estejam erradas. De qualquer maneira, os agentes, nas suas relações com os trabalhadores, afirmam que essa é a verdade.
“As privadas não se limpam há anos. Os barracos nunca são consertados, salvo quando os próprios moradores conseguem pedir ou roubar
alguma madeira ou um pedaço de vidro. Os telhados estão esburacados, os pavimentos também. Cada aguaceiro enche as casas de água. O
lixo e a sujeira se acumulam incessantemente. O mau cheiro é horrível. A água das casas é poluída. Moscas, baratas, ratos e todas as espécies
de insetos e vermes pululam ali em todas as estações. Todo aquele distrito é um foco de doenças. É uma vergonha para a cidade e um insulto
às pessoas decentes!
— Reconheço a razão de muitas de suas acusações, Primo Stuart —, disse Angus. — Mas isso não invalida o fato de que aquelas pessoas
não desejam nada melhor. Se as casas fossem demolidas e se construíssem melhores habitações, o aspecto do lugar seria exatamente o
mesmo em menos de dois anos.
Stuart recostou-se na sua cadeira. Olhou para Angus pensativamente.
— Os trabalhadores —, continuou Angus, enchendo-se de coragem diante do silêncio de Stuart —, viveriam muito contentes ali se não fossem
os agitadores que lhes dizem que são explorados e que merecem mais de seus patrões.
Stuart continuou a tamborilar com os dedos na mesa, mas sorriu um pouco.
— Escute, Angus, vou-lhe dizer mais uma coisa. Não tem havido agitadores de fora. Foram os próprios moradores que, no seu desespero,
organizaram um comitê que conseguiu chegar até ao Prefeito e pediu providências para que fosse atenuada a desgraça em que vivem.
Levantou-se, dominando com a sua altura Angus, que o olhava com gelada firmeza.
— Angus, estou-lhe falando com antecedência, mas preste atenção. Leve este recado a seu amável sogro. Se aqueles barracos não forem
imediatamente limpos, com os piores demolidos e todas as vísceras removidas permanentemente, as privadas limpas, o abastecimento de
água purificado, novos telhados colocados nas casas que precisarem disso e todas as concessões que os moradores pedem atendidas — e
tudo isso dentro de três meses — o caso será levado à justiça sob o patrocínio dos melhores advogados deste país. Nesse caso, não só o Sr.
Schnitzel será obrigado a fazer tudo isso, mas também os seus contratos com os trabalhadores serão revogados. Neste momento, esses
excelentes advogados de quem lhe falei, estão examinando todo o caso em Washington. Devem estar chegando à conclusão de que o Sr.
Schnitzel e os que agem como ele estão praticando a servidão nos Estados Unidos, numa espécie de virtual escravidão branca que constitui
uma flagrante violação das leis deste país.
Fez uma pausa e sorriu para Angus, que julgou esse sorriso perverso e negro.
— Tenha a bondade de dizer ao Sr. Schnitzel, Angus, que ele deve limpar e consertar tudo imediatamente. Diga-lhe também que cancele os
seus contratos. Se não proceder assim, nós o arruinaremos. Não faremos outra coisa.
Angus se levantou prontamente e encarou Stuart com o rosto branco e rígido.
— Você é um homem sem lei, Primo Stuart —, disse ele, com voz dura. — Você não tem respeito pela lei e pela ordem, bem como pelos
direitos dos cidadãos como o Sr. Schnitzel. Você é um revolucionário, um agitador, um niilista. Você não é um verdadeiro americano, Primo
Stuart Os direitos de propriedade nada significam para você, os direitos sagrados de propriedade que são assegurados pela Constituição e
afirmados pelas Santas Escrituras. Você profana os direitos estabelecidos por Deus Onipotente e atenta contra o trabalho de séculos. É um
blasfemo, Primo Stuart.
Stuart olhou para os olhos de Angus, cheio de incredulidade. Era hipocrisia e cinismo que havia naqueles olhos? Não, não era. Aqueles olhos
ardiam de indignação, com profunda convicção. Stuart não podia acreditar numa coisa dessas.
— Mas você é um imbecil! — exclamou ele, inteiramente atônito. Olhou para Angus, pálido e veemente como um anjo afrontado. O camarada
acreditava no que dizia! Acreditava inabalavelmente que tinha a sanção de Deus e o apoio da justiça dos homens. Stuart se horrorizava com
isso e começou a gritar num frenesi de confusão e de raiva: — Saia daqui antes que eu o bote para fora a pontapés, cretino! Vá dizer a seu
amo o que eu lhe disse! Falei em três meses? Pois agora são dois meses e vá para o inferno, seu idiota e seu porco!
Agarrou Angus pelos ombros e arrastou-o literalmente até à porta, onde lhe bateu no rosto. Abriu a porta e empurrou o primo violentamente
para as lojas. Os caixeiros arregalaram os olhos e as freguesas ficaram boquiabertas. Stuart bateu então a porta e foi sentar-se na sua cadeira,
ofegando.
CAPÍTULO 47
Stuart estava sentado com o Padre Houlihan à sombra da pereira no velho jardim do padre. As frutas pendiam em glóbulos róseos e dourados
acima de suas cabeças, cheirando bem ao quente sol de outono. O jardim era longo e estreito, com caminhos tortuosos calçados de tijolos que
passavam por entre canteiros exuberantes e mal cuidados de flores amarelas e vermelhas que cresciam ali com um viço que não se encontrava
em nenhum outro lugar. Entre os tijolos afundados e irregulares, brotavam grama e musgo. Perto do muro, erguiam-se os caules de rosas-
trepadeiras de uma espécie desconhecida na região salvo naquele jardim onde floresciam em abundância. O Padre Houlihan tinha um jeito
especial com as flores. O jardim era uma festa de flores vermelhas, brancas, douradas e róseas, havendo até algumas que pareciam roxas ou
quase pretas. Aqui e ali, à beira dos caminhos, havia pequenas imagens de pedra branca de Nossa Senhora. Um tanque no centro do jardim
estava cheio de pássaros, que repousavam um instante nas suas migrações outonais. A algazarra era grande nos galinheiros colocados ao fim
do jardim. O Padre Houlihan tinha também um pombal onde os pombos arrulhavam e abriam as asas para receber o sol nas penas. Era
espantoso o que continha aquele pequeno jardim. Além da pereira, havia três macieiras carregadas de frutas e um bordo que ardia como uma
moita sagrada. Desordenado, mas amável e cheio de cor e de plenitude, o jardim parecia a Stuart um lugar repleto de paz e que poderia,
enquanto ele se sentava ali com o amigo, dissipar um pouco da tristeza que lhe ia na alma.
Ele e o padre observavam com carinho a pequena Mary Rose que passeava entre as roseiras cortando flores que depositava num pequeno
cesto. A criança, com o rostinho triangular banhado de uma cor que era rara nele, parava de vez em quando para conversar com esquilos
nervosos ou para examinar alguma rosa extraordinariamente bela. Fazia parte do jardim com o vestidinho branco esvoaçante coberto por um
manto azul, um chapeuzinho azul sobre os densos cabelos pretos e os pezinhos calçados de sandálias a percorrer os caminhos entre os
canteiros. Tinha nove anos, mas era tão pequena e esguia que parecia muito mais jovem, como se o tempo tivesse parado para ela aos seis
anos e ela não tivesse crescido mais. Estava preocupada com seus tímidos e fugitivos pensamentos e tinha esquecido o pai e o velho amigo.
Havia tirado o chapéu e o vento lhe agitava os longos cabelos, embaraçando-os no rosto. Ela achava graça com seu riso doce e gentil e jogava
os cabelos para trás com as mãozinhas.
— A menina parece bem melhor —, disse o Padre Houlihan com satisfação.
— Está, sim. E está tossindo menos. Mas terei de mandá-la com a mãe para longe daqui antes do inverno —, disse Stuart, com a testa
franzida. — O inverno daqui é rigoroso demais para ela. Não há sol. Nas montanhas, ela estará muito melhor.
Mary Rose começou a tossir, num súbito acesso. Levou as mãos à garganta e dobrou o corpo. O rostinho ficou contorcido e congestionado.
Stuart fez menção de levantar-se para ir socorrê-la. Mas o espasmo desapareceu com a rapidez com que tinha surgido. A menina tirou um
lenço do bolso e enxugou a testa molhada de suor, sacudindo os cabelos para trás. Deu um suspiro. Os dois homens ouviram comovidamente
esse suspiro. Os olhos dela tinham ficado um pouco avermelhados. Depois, um esquilo mais atrevido lhe atraiu a atenção e ela riu, continuando
no seu passeio por entre as flores.
O Padre Houlihan estendeu a mão para Stuart ao lado dele no banco e bateu-lhe na mão com profunda emoção e amizade. Disse
animadamente:
— Tem razão. A tosse está muito melhor, mais breve e menos forte. Quando crescer um pouco mais, não sentirá mais nada.
Acima deles, o céu era de um vívido azul, imaculado e luminoso. Tudo resplandecia de cor, nos últimos arrancos do verão. Mas a depressão de
Stuart aumentara de repente.
— Grundy, qualquer destes dias você vai ter de me visitar na cadeia.
— Que é que quer dizer com isso, Stuart? — perguntou o Padre Houlihan, alarmado.
Stuart riu e esgaravatou a terra entre os tijolos com a ponteira da bengala.
— Acontece que botei para fora de meu escritório ontem aquela vara seca de Angus. Esbofeteei-o também. Se eu o conheço bem, não me
perdoará isso. E muito bom que ele seja meu empregado e meu parente. Do contrário, eu já estaria sendo processado por agressão e tentativa
de morte.
— Mas por que, Stuart? — perguntou ansiosamente o Padre Houlihan.
Stuart contou-lhe tudo em palavras rápidas e divertidas. Mas era evidente que ele não estava contente com a violência de que usara.
Acrescentou:
— Se não fosse você, Grundy, falar tanto sobre os chiqueiros de Schnitzel e insistir para que eu o ajudasse, nunca me teria importado com isso.
Meu Deus, por que você tem de se meter em todo? Você já tem a sua paróquia. Não basta?
— Mas, Stuart, alguns dos meus paroquianos moram naqueles chiqueiros malcheirosos. Já os vi morrer, Stuart. Já vi os filhos deles morrerem
vitimados por doenças causadas por aquela sujeira. Pediram-me que os ajudasse. Você sabe muito bem, Stuart, que está tão interessado no
caso quanto eu. Contei-lhe tudo e você visitou as casas de Schnitzel. Desculpe. Se eu soubesse que lhe ia causar tantos aborrecimentos...
Mas Stuart riu.
— Deixe disso, Grundy. Você tem razão. Como sempre. Mas acho que um dia vou ter de salvá-lo das mãos de uma multidão enfurecida. Você
está fazendo Schnitzel ficar furioso e, conhecendo a humanidade como conheço, não seria grande surpresa para mim que ele consiga
convencer as próprias pessoas que você está querendo salvar a atacarem-no ou tocarem fogo na sua casa.
Esperava que o Padre Houlihan se insurgisse contra a ideia, baseado na sua firme crença na bondade essencial da natureza humana. Mas,
para sua surpresa, o Padre Houlihan pareceu minguar dentro da batina. Suspirou profundamente.
— Tem recebido mais ameaças? — perguntou Stuart.
O padre abanou a cabeça, passou as mãos pelo rosto e tentou sorrir.
— Não mais do que de costume, Stuart. — Acrescentou abstratamente: — Pelo que vejo, estão acabando nosso Angus. Estão matando a alma
dele.
— Ora, a alma dele! Foi coisa que ele nunca teve ou então, se teve, foi uma coisa que nunca valeu nada! Grundy, você é um bobo em falar em
almas. E mais bobo ainda em se meter na vida.de gente que está muito contente como está.
— Recebi ontem a visita do Padre Hauser, da igreja de S. Luís —, disse o padre. — É um homem muito elegante. Sentou-se na minha sala
como se fosse um manequim e me informou que eu estava “criando dificuldades” para os outros padres com as minhas “cruzadas” em
benefício do povo. Deu a entender que eu era “turbulento”. Ao menos, foi essa a impressão que me deu. Sendo muito educado, não pôde ser
abertamente insultuoso. Usa alfazema no lenço e olhou para minha sala com um sorriso significativo. Sugeriu que eu era um homem pobre e
que isso talvez acontecesse porque eu era “incorrigível” e não contava com o apoio de meus paroquianos mais ricos, os quais podiam sentir
repulsa pelas minhas ideias “radicais”. Sugeriu de maneira delicada que eu estava prejudicando a Santa Madre Igreja nestes dias difíceis,
inspirando desconfiança e antagonismo contra ela. Disse-me que outros padres eram da mesma opinião dele. Sugeria, portanto, que eu me
cingisse exclusivamente ao meu ministério para as almas, fechando os olhos aos males, injustiças e explorações que se poderiam atenuar.
Stuart exclamou explosivamente:
— Deve ser um grande idiota esse padre! Não compreende ele então que todo homem, religioso ou leigo, tem o dever de lutar pelo bem-estar,
pela saúde e pela paz de uma comunidade?
O Padre Houlihan riu e seus olhos azuis faiscaram. Colocou a mão no ombro do amigo e disse:
— Você mesmo respondeu à sua pergunta, meu caro Stuart!
— Você agora me armou uma cilada, Grundy —, disse Stuart, rindo. — Está muito bem. Faça o que quiser. Do jeito que estão as coisas, os
chiqueiros de Schnitzel vão sofrer uma limpeza em regra dentro em pouco. Que é que você quer atacar depois disso? E a quem? É só dizer.
Estou às suas ordens e já vou começar a afiar o machado de guerra!
Riram juntos afetuosamente. Mas Stuart notou que as preocupações não haviam abandonado de todo o rosto do amigo. Havia nele um
cansaço, uma abstração que não lhe eram habituais.
O padre começou então a falar dos tempos conturbados que atravessavam.
— Não há a menor dúvida de que Abraham Lincoln será eleito. É um homem bom e nobre, segundo todos dizem, e todo o Norte o apoiará. E o
Sul? A Carolina do Sul já ameaçou separar-se da União se ele for eleito. Estamos vivendo em tempos muito difíceis, Stuart.
— Se todo o Sul quiser, que se separe, ora essa —, murmurou Stuart, que estava observando a pequena Mary Rose. A menina tinha parado de
brincar e estava deitada à sombra de uma árvore, com os olhos fechados.
Mas o Padre Houlihan continuava a comentar a situação.
— Será que você não compreende, Stuart? Vamos supor que muitos Estados do Sul se separem e formem uma união à parte. Teremos então,
em vez de uma nação forte e unida, duas nações pequenas, fracas e vulneráveis aos ataques de seus inimigos. Como acontece na Europa. Só
uma federação única pode manter a liberdade neste país, desafiando todo um mundo invejoso que pretenda destruí-lo. Conheço um pouco de
história, Stuart. Os Estados Unidos divididos estarão enfraquecidos e à mercê de qualquer nação ambiciosa que os cobice. A Europa está à
espera da divisão e planejando futuros ataques.
— Neste caso, somos uns imbecis completos, tanto no Norte quanto no Sul, por permitirmos essa divisão e esse perigo —, exclamou Stuart,
olhando inquietamente para a filha. Estaria dormindo? Deveria ir vê-la. — Além disso, por que temos de brigar uns com os outros por causa
dos negros?
— Os negros são homens —, disse o padre. — A escravização de qualquer homem por outro é um crime não só contra o escravo, mas contra
todos os outros homens. Sempre que um homem é oprimido, todo o mundo dos homens é oprimido nessa opressão. Sempre que se comete
um crime em qualquer ponto do mundo, todos os homens são culpados.
— Com toda a certeza, é isso que você diz a seus paroquianos —, disse Stuart, sorrindo. — E é por isso que Schnitzel e os amigos dele estão
chamando você de agitador. Grundy, não me posso interessar pelos negros. Talvez seja porque só vi dois ou três. Para mim, o mais importante
de tudo é a unidade dos Estados Unidos. Se o negro tiver de ser sacrificado para manter essa unidade, que seja sacrificado. O tempo
resolverá tudo, fique sabendo.
— A indiferença dos homens de coração duro e cruel! — exclamou o padre, indignado. — Você não sabe o que está dizendo, Stuart. Você não
é assim. Está apenas repetindo as insinuações de homens menores e venais. O povo do Sul, no fundo de seu coração, sabe que a escravidão
é hedionda e injusta, constituindo um crime aos olhos de Deus.
— Creio que o que mais preocupa a gente do Sul não é exatamente isso, mas a ameaça de usurpação de seus direitos civis. Se o Sul se
separar, Grundy, estará agindo de acordo com os dispositivos da Constituição. É um direito que lhe assiste.
— Há direitos, Stuart, que devem ser cancelados em benefício da segurança e da paz de todos.
— Agora, você está ficando sutil demais para mim, Grundy. O que eu sei é que não deve haver guerra. O que acontecerá ao comércio? Não
poderei resistir a outro pânico, meu caro Grundy. Estou cheio de dívidas até ao pescoço. Só paguei a Sam três mil dólares nestes últimos
quatro anos. Que é que vai haver se as remessas da Europa cessarem, como não pode deixar de ser, no caso de uma guerra? Ficarei
arruinado.
Apesar de seu interesse, o Padre Houlihan esquivou-se de dizer a Stuart que seus infortúnios eram uma consequência de suas extravagâncias,
que não tinham diminuído. Olhou para Stuart com compaixão e disse, tentando consolá-lo:
— Talvez não haja guerra. É possível que as divergências sejam resolvidas amistosamente e em paz.'
Stuart disse um instante depois:
— Sabia que Laurie vai para a Europa em abril? Vai iniciar dois anos de estudos, segundo creio. Ela é formidável! As notícias que recebo dela
são excelentes. Virá fazer uma visita em casa antes de partir e eu lhe darei alguns conselhos, como um homem do mundo.
O Padre Houlihan, que observava o amigo, sentiu-se perturbado por um motivo que não pôde precisar. Mas vira o rosto de Stuart ao mencionar
Laurie, animar-se de uma luz secreta e intensa. Disse então:
— Laurie não precisa de conselhos. É uma pessoa blindada contra o mundo em consequência de sua amargura, de sua dureza e de seu
desdém.
— Tolice, Grundy. Que amargura, que dureza ou que desdém pode haver numa mocinha de dezessete anos? Ela não aprendeu tudo isso em
Nova York.
— Não. Creio que, infelizmente, aprendeu tudo isso ainda no berço. Como é belo o rosto dela! Parece um anjo. Mas só o amor e Deus
poderiam tocar-lhe o coração, que é de ouro, mas frio e duro também.
Stuart se agitou nervosamente no banco. Os olhos dele estavam cheios de uma dor que ele não compreendia. Via Laurie diante dele e uma
forte angústia lhe atingiu o coração. Tirou dois charutos do bolso do colete e passou um ao padre. Riscou um fósforo e acendeu os dois
charutos. A mão lhe tremia um pouco. A fumaça azul dos charutos flutuou no ar quente.
— Há alguma coisa fora do normal com você, Grundy —, disse de repente Stuart. — Estou sentindo isso. Que é que há?
Esperava que o amigo negasse, mas o rosto do padre se tornou velho e flácido e ele disse apenas:
— Estou com medo, Stuart.
— Medo de quê?
Mas o padre não respondeu. Estava olhando Mary Rose, que se levantava da grama, limpando o vestido. Pegando o seu cesto de rosas e
sorrindo, aproximou-se do pai e do padre. O sorriso do Padre Houlihan era como o sol, quente e afável.
— Está cansada, minha linda? — perguntou ele.
A criança parou diante dos dois homens. A cor lhe havia desaparecido do rosto e os olhos estavam anuviados. Mas ela sorria timidamente
para eles. Olhou para as flores do cesto e disse:
— São tão bonitas. Mais bonitas, do que as nossas, Padre Houlihan.
Tirou uma rosa do cesto e cheirou-a.
— Cuidado com os espinhos —, disse o padre.
— Mas, Padre Houlihan, eu não olho para os espinhos. Só olho para as rosas.
Stuart riu com encantada indulgência. Mas o padre curvou-se para a menina e perguntou ansiosamente:
— Que foi que você disse, minha filha?
Mary Rose não se perturbou e disse calmamente:
— Sei que há os espinhos, Padre Houlihan. Por baixo das folhas e nos talos. Às vezes, há bichos nas rosas também. Mas não olho para nada
disso. Vejo só os botões bonitos, frescos e cheirosos. Sei que foi Deus que fez as rosas. Não quis os bichos e os espinhos, mas só o cheiro e
as pétalas. Por isso, a gente só deve olhar as rosas e esquecer o resto.
O padre murmurou quase inaudivelmente:
— Os espinhos e os bichos estão presentes, mas as rosas também estão. Se olharmos apenas para os espinhos e para os bichos, nunca
veremos as rosas, nem saberemos da existência delas. No fim, o mundo ficará cheio de espinhos e de bichos e só haverá para nós trevas,
podridão e dor.
Passou o braço pelos ombros da menina e, por um instante, escondeu o rosto na sua massa de cabelos negros. Mary Rose sorriu e passou os
bracinhos pelo pescoço de seu velho amigo.
Stuart ficou perplexo. Que era que estava havendo com o velho Grundy? Por que estava com a cabeça curvada assim e por que o peito lhe
arquejava, como se soluçasse? O padre olhou então para ele. Estava muito pálido, mas os olhos lhe brilhavam de paz e alegria.
— Stuart —, disse ele —, sua filha me salvou a fé e talvez a razão. A verdade é que eu estava começando a ver apenas os espinhos e os
bichos.
— Oh! — exclamou Stuart, ainda inteiramente confuso.
Mas o padre disse, fervorosamente:
— Tinha-me esquecido de uma coisa que aprendi em minha mocidade. Há uma passagem de Rupert, Abade de Deutz, que me tocou o
coração com o conhecimento de sua verdade e da eterna beleza. Disse ele: “Os céus, a terra e o mar e tudo o que há neles são obra do
Senhor, mas o homem é Sua obra de modo especial, porque, para fazê-lo, o Senhor usou as mãos. Bastou que o Senhor falasse para que as
outras coisas fossem feitas, mas para fazer o homem Ele tomou o barro e modelou-o com as mãos”. Tinha-me esquecido disso, Stuart. Tinha-
me esquecido de que o que o Senhor fez com as mãos não pode ser inteiramente mau, corrupto e cheio de vileza.
Stuart olhou-o vagamente durante alguns momentos. Então, a sua intuição, sempre maior que a sua razão ou a sua inteligência, compreendeu.
Riu afetuosamente:
— Quer dizer que você também, Grundy, vem tendo suas lutas! Começou a ferir os dedos nos espinhos e a sentir o cheiro mau dos bichos!
Quem poderia esperar uma coisa dessas?
Levantou-se, ainda rindo. Colocou a mão na cabeça da filha.
— Dê um beijo no Padre Houlihan, Mary Rose. Vamos para casa.
O Padre Houlihan continuou sentado no banco muito tempo depois que seu amigo e a filha saíram. Estava muito parado com as mãos juntas
entre os joelhos. Mas em seu rosto cansado e rústico havia pela primeira vez em muitas semanas um ar de luminosa paz.
CAPÍTULO 48
Robbie estava sentado no quarto de Bertie em companhia do irmão. Era um dia cinzento e feio de novembro, com o ar cortante e frio e o vento
a uivar em estertores de encontro às vidraças. A. chuva caía além das vidraças de mistura com pesados flocos de neve. O fogo crepitava na
lareira. Robbie acendera dois candeeiros, mas a luz deles quase não dissipava a prematura escuridão. Tirou da boca o cachimbo que havia
começado a usar e disse:
— De novo o maldito inverno.
Bertie estava sentado ao lado dele na sua poltrona favorita, vestido com um robe e com uma manta sobre os ombros. Virou a cabeça e disse:
— É horrível. Detesto o inverno. E ele nunca termina aqui.
Estava muito magro, quase emaciado, com o rosto encovado e macilento. Mas os cabelos ainda estavam bastos e os olhos azuis cintilavam.
Tossia um pouco de vez em quando. Depois das suas últimas bebedeiras, em outubro, caíra de cama com uma febre pulmonar e correra
perigo de vida. Estava em fase de recuperação. Mas as forças lhe voltavam lentamente. Viu Robbie servir-se de um copo de xerez e franziu a
boca num gesto de repulsa. Virou a cabeça e olhou para o fogo. O seu rosto, em que pairava sempre a sombra de um sorriso, estava sereno e
tranquilo, mas não perdera a sua expressão infantil de amistoso interesse e espera potencialmente ansiosa. As suas mãos descansavam
calmamente nos braços da poltrona. Eram mãos belas, mas sem significação. Nada exprimiam. Eram mãos mortas, pensava Robbie, mas sem
paz e até sem necessidade de paz.
Robbie olhou para o Commercial, que estava lendo, e disse:
— Bem, Lincoln foi eleito e agora o diabo está solto. Vai haver guerra, com toda certeza.
— Não seja tão pessimista —, disse Bertie sorrindo, mas com uma voz desinteressada. — Daqui a uma semana, Robbie, você será um
homem casado. Vou sentir falta de você.
Robbie largou o copo de xerez, limpou os lábios com o guardanapo e disse:
— Deixe de conversa, Bertie. Você não vai sentir minha falta. Não sente falta de ninguém.
— Sentirei sua falta, sim, Robbie. Irei visitá-lo até que você me bote pela porta a fora, como um chato.
Não, pensou Robbie, você continuará a viver dentro do seu vácuo de vidro brilhante e sorrirá para mim e para o mundo, sem que nunca haja
nada dentro desse vidro senão suas negras e insondáveis tempestades. Mas disse:
— Espero que você possa ser padrinho de meu casamento, como prometeu. Mas se acha que isso o vai aborrecer muito, não vá.
— Ora essa, nunca me aborreço.
Você nunca se aborrece porque é indiferente, pensou Robbie.
— Juiz Cauder —, murmurou Bertie rindo como se estivesse realmente divertido com a ideia. — O pequeno Robbie, juiz! Já lhe disse que me
orgulho de você?
— É mesmo, Bertie? — perguntou Robbie, com súbita seriedade.
— É claro. Sinto muito que estivesse passando mal e não pudesse comparecer às cerimônias. Mas estava presente em espírito.
Você não tem espírito, pensou Robbie, e o pensamento foi uma dor lancinante para ele. Você se move, bebe, dorme e sorri, mas nada há
dentro de você. Se houve, já morreu e as cinzas foram levadas pelo vento.
Tinha vontade, como já tivera milhares de vezes, de aproximar-se de Bertie e forçar a compreensão dentro daqueles olhos serenos e vazios,
para despertar neles o reconhecimento das coisas, o sofrimento e a vida. Se ao menos ele morresse, pensou ele. Nunca terei paz enquanto ele
não morrer, enquanto ele não voltar para o vácuo e o nada de onde veio. Nunca poderei sentir coisa alguma até que ele morra. Nunca serei um
ser humano, uma criatura de vitalidade e plenitude, enquanto ele estiver vivo.
Desprezou-se por essa confissão terrível, por sua impotência e por seu sofrimento. Não podia compreender por que nunca seria completo
enquanto Bertie vivesse. A pequena Alice o esperava. Amava-a sem dúvida. Mas nada podia sentir e nada podia dar a ninguém, enquanto
Bertie fosse vivo.
Disse abruptamente:
— Bertie, você se lembra de Agnes Clayton, prima de Alice? Ela se interessava muito por você e eu pensei durante algum tempo que você
gostasse dela. Pelo menos, você chegou a namorar com ela e, depois que ela voltou para Syracuse, vocês se escreveram. Que foi que houve?
Bertie riu baixinho e fez um gesto vago.
— Ela foi muito gentil comigo —, murmurou.
— Mas você não gostava dela?
— Claro que gostava. É uma boa moça e muito encantadora.
Mas não havia na voz de Bertie qualquer inflexão de pesar ou de tristeza.
— E então?
— Escute, estou muito contente com a vida como ela é. Por que iria eu complicá-la? Além disso, eu lhe disse que ela foi muito gentil comigo.
Que tenho eu para oferecer a uma moça tão distinta?
— Você poderia oferecer-lhe alguma coisa, se você quisesse —, disse Robbie e então compreendeu de repente que era inútil.
— Não quero oferecer nada a ninguém, Robbie —, disse Bertie com um sorriso.
Robbie começou a falar aborrecido, querendo lutar com o impossível e, então, viu os olhos de Bertie. Era apenas imaginação ou havia alguma
coisa estranha e fixa naquelas profundezas azuis, alguma coisa que denotava uma dor pungente?
Se ao menos houvesse! Se ao menos houvesse! Mas Bertie sorria de novo e em seus olhos nada havia senão vacuidade.
Abalado pelo que tinha visto ou imaginado, Robbie disse ansiosamente:
— Você fala como um danado idiota, Bertie! Que quer dizer com isso de não querer oferecer nada a ninguém? Você é um danado egoísta,
Bertie! Não quer por nada desfazer o caso de amor que tem consigo mesmo!
Bertie riu com prazer.
— Como você é inteligente, Robbie! Não há ninguém para trabalhar um epigrama como você!
Mas Robbie estava profundamente transtornado, apesar de sua fria razão. Agora ou nunca, pensava ele. Tinha de quebrar aquela brilhante
redoma que cercava seu irmão. Tinha de despertar aquela coisa estranha e viva que vira no fundo dos olhos dele.
— Há muito tempo que quero falar com você, Bertie —, disse ele com voz calma e neutra, mas estranhamente penetrante.
— Sobre que, Robbie?
— Não lhe vou perguntar se você me tem amizade, Bertie. Você sempre diz que tem. Mas agora tente pensar, Bertie, tente compreender.
Temos sido muito unidos. Tenho procurado viver muito ligado a você. Temos sido amigos, Bertie. Isso não significa nada para você?
— É claro que sim, Robbie, —disse Bertie prontamente. — Mas onde você quer chegar?
Robbie não respondeu logo. Mordeu os lábios e encarou o irmão com uma atitude próxima do desespero.
— Vou-me casar, Bertie. Isso quer dizer que nós dois vamos viver separados. Continuaremos a ver-nos com frequência, mas não seremos
mais íntimos como éramos. Terei de me interessar cada vez mais pelo meu trabalho.
Ficou sabendo de repente que não adiantava nada o esforço que estava fazendo. Era impossível quebrar aquela redoma de vidro. Nada havia
dentro dela ou, se havia, estava irremediavelmente afastado dele. Levantou-se e foi atiçar o fogo no silêncio que se seguiu às suas palavras.
Jogou mais carvão na lareira. Tomou a sentar-se e olhou sombriamente o fogo. Era inútil, inteiramente inútil. Podia sentir Bertie perto dele,
tranquilo, intangível, inabordável.
Ouviu então Bertie falar muito calmamente e levou alguns momentos para perceber a significação do que estava ouvindo.
— Deixe-me em paz, Robbie.
Robbie teve um sobressalto. Virou-se e viu o sorriso nos lábios de Bertie. Mas viu também com um choque a inexorável advertência, a coisa
que era quase uma severa ameaça. Prendeu a respiração. Os dois irmãos se olharam num terrível silêncio.
— Deixe-me em paz, Robbie —, repetiu Bertie. — Não toque em mim, Robbie. Vá-se embora e me esqueça.
E então, para o espanto angustiado de Robbie, ele viu que as mãos de Bertie apertavam convulsivamente os braços da poltrona.
— Ó meu Deus! — murmurou Robbie.
Bertie inclinou gravemente a cabeça e disse:
— “Ó meu Deus” sim.
Robbie sentiu um aperto no coração. Baixou a cabeça e disse:
— Não posso! Não posso ir-me embora!
— Mas tem de ir, Robbie. Tem de me deixar em paz. Talvez não demore muito. Mas tem de me deixar sozinho.
Nesse momento, a maçaneta da porta foi girada e ouviu-se a voz rouca e autoritária de Janie. Robbie levantou-se, sentindo-se muito fraco e
trêmulo. Olhou para o irmão. O rosto de Bertie estava novamente vazio, voltado para a porta num sorriso de acolhida.
CAPÍTULO 49
O Prefeito e a Sra. Cummings moravam numa mansão branca em estilo clássico na Avenida Delaware, perto da Rua Norte. Ficava no alto de
uma majestosa elevação de terra verde, embelezada por numerosas árvores e canteiros de flores bem cuidados. Todas as peças da casa
eram altas, amplas e graciosas com belas escadarias e imensas lareiras. A Sra. Cummings (em solteira Alicia Clayton) tinha sido filha única de
um flibusteiro excessivamente rico e que, desde que a maioria da classe alta de Grandeville era composta de curtidores, fabricantes de
salsichas, proprietários de matadouros, negociantes do Lago, criadores e traficantes de cavalos, homens de pedreiras e lojistas, o falecido Sr.
Clayton havia adquirido uma espécie de realeza pelo fato de ser um aventureiro. Tinha dado de presente à filha aquele terreno e aquela casa
perfeita por ocasião de seu casamento com um de seus companheiros, que não levava mais a auréola esplêndida de flibusteiro. De fato,
ninguém poderia ter um ar mais respeitável que aquele homem baixo, rotundo e esperto, de olhos sérios e palavra comedida, que tinha
verdadeira paixão pela justiça e pela honestidade. Era moreno e com feições aquilinas, passando, na opinião dos maliciosos, por ter sangue
índio.
Estava cumprindo o seu terceiro período como prefeito e, como era em geral prezado pelos cidadãos mais corretos, acreditava-se que seria
eleito para um quarto período. Apesar da sua baixa estatura, tinha uma certa dignidade e uma placidez que lhe conferiam alguma grandeza. Era
de esperar que fosse virulentamente odiado por muitos e respeitado por todos.
Alice, a filha, parecia-se com ele, tendo herdado os olhos castanhos e um certo jeito aristocrático de feições. Mas tinha também cabelos
brilhantes da cor das castanhas novas e uma pele clara. Tinha um porte refinado e elegante. Mostrava um riso leve, muito musical e bem-
humorado e a inteligência rápida e reservada do pai. Eram muitas as suas prendas, pois a mãe era uma mulher de sensibilidade e inteligência,
que educara Alice num ambiente livresco, mas alerta que a distinguia vivamente das moças apáticas de suas relações. Tinha também um
coração compreensivo e simples, um senso de humor brilhante, uma percepção inteligente das coisas e a serena graça de uma senhora de
alta distinção. A paixão do pai dela era o direito e Alice se tornara tão versada na matéria que o Prefeito lamentava às vezes que ela fosse
mulher. Entre pai e filha havia a mais perfeita compreensão e amizade e ele pensava que uma das coisas mais belas do mundo era ver as
mudanças rápidas do espírito vivaz da filha se refletirem no lindo rosto oval, como sombras trêmulas de folhas na água batida de sol. A Sra.
Cummings costumava dizer um tanto aborrecida que dera à luz a Alice, mas que na verdade ela era filha do pai.
Desde que o Prefeito a adorava e a tinha em tão alta conta, exercia rigorosa vigilância em torno de seus pretendentes e só depois do
aparecimento de Robbie sentiu completo alívio e satisfação. Julgava Alice uma pessoa de grande sensibilidade e cabeça equilibrada, mas,
ainda assim, pensava que as mulheres eram imprevisíveis quando se tratava de coisas do coração. A moça chegara quase aos dezenove anos
sem mostrar qualquer sinal de irrefletido interesse por homens inconvenientes. Não obstante, foi uma grande tranquilidade para o Prefeito o fato
de que ela tivesse finalmente escolhido Robbie Cauder.
O casamento se realizou em fins de novembro. A mansão dos Cummings, toda decorada de flores, samambaias e vasos de plantas, se encheu
de vida e de festa e daquela efervescência simples da mocidade tão cara ao coração do tranquilo Prefeito. Chegaram amigas de Alice de
Nova York e até de Boston para assistirem à cerimônia. Houve quase duzentos convidados e, como disse o redator do Commercial, foi “o
acontecimento mais importante da temporada social de 1860”.
Entretanto, mesmo na alegre mansão profusamente iluminada e feliz, pairava a sombra espectral daquele ano conturbado. Os homens, que
deviam dedicar-se quase exclusivamente à apreciação do bom ponche, reuniam-se em grupos e discutiam gravemente a “situação”. Onde só
se deviam ouvir risos, vozes discordantes e exaltadas se levantavam zangadamente. A Sra. Cummings, aflita e irritada, espicaçava o Prefeito a
ir de grupo em grupo, lembrando que aquilo era um casamento e não uma reunião política.
O fogo crepitava nas lareiras. Grandes espelhos refletiam as luzes, as faces sorridentes dos convidados e as elegantes toaletes das mulheres.
Stuart passara três meses em grande atividade importando rendas, veludos, sedas, plumas e perfumes para a festa e as modistas não tinham
tido mãos a medir. O vestido da noiva, de cetim branco e faille, tinha sido importado da França, sendo uma criação do próprio Worth, e o véu
era uma nuvem de rendas francesas. No delicado pescoço da noiva, via-se um colar de pérolas, presente de casamento de Robbie, e no braço
direito cintilava o presente do pai, uma pulseira de brilhantes e rubis. Acima do grande balão da saia, o corpo esbelto se erguia como o caule
de uma flor e o belo busto pequeno era coberto de renda recamada de pérolas.
A mãe do noivo, num belo vestido de veludo carmesim guarnecido de arminho enfeitado de rosas de veludo azul, encimado por um chapéu de
veludo azul, estava resplandecente e magnífica, no rigor da moda. Os cabelos cor de cenoura de Janie estavam naturalmente entremeados de
branco, pois ela já passava dos quarenta e cinco anos. Entretanto, esses fios indiscretos tinham sido pintados (por ela mesma, no segredo de
seu quarto) e a pele fora submetida também a uma série de hábeis manipulações. Era a senhora mais vivaz da festa e o seu riso rouco e
entusiástico podia ser ouvido por toda a mansão. Estava excessivamente satisfeita com o casamento e, embora nada tivesse que ver com
isso, afirmava que tinha sido muito hábil em sugerir a Robbie que deixasse crescer a barba.
Stuart, que ainda conservava certo esplendor apesar de todas as suas dissipações, estava presente em companhia da esposa, a
perfeitamente bela Marvina Allstairs em solteira. Quando aquela beleza impecável aparecia, os grupos mais animados ficavam em silêncio e
cheios de admiração, embora todos sentissem que o olhar dourado da Sra. Coleman acompanhado daquele gracioso sorriso não significava
absolutamente nada.
Naturalmente, os odiosos Schnitzels estavam presentes com todos os seus amigos e agregados alemães. Angus, que fazia parte da tribo,
estava perto deles. O corpo alto e magro, o rosto pálido, os olhos que pareciam fechados mesmo quando estavam arregalados, distinguiam-no
daqueles corpulentos e desajeitados estrangeiros, que não paravam de resmungar, de grunhir, de sorrir e de olhar para tudo com inveja.
Laurie, segundo Janie comunicou, embora extremamente sentida de não poder estar presente ao casamento do irmão, mandara seus
melhores votos e felicitações. Janie dissera à Sra. Cummings com orgulho que Laurie estava inteiramente dedicada a seus estudos de canto e
tinha de trabalhar muito para poder prosseguir os seus estudos na Europa no verão.
Nenhum dos homens presentes ao casamento era mais belo, mais alegre, mais cheio de riso e de fascinação que o padrinho, Bertie Cauder.
As moças sentiam-se arrasadas ao vê-lo. Agnes Clayton, sobrinha da Sra. Cummings, olhava para ele embevecidamente e com frequentes
suspiros. Até as senhoras mais velhas eram dominadas pelo encanto envolvente de Bertie. Mostrava-se ele muito afetuoso com Robbie e,
depois da cerimônia, quase não saia de perto dele, com a mão pousada no ombro do irmão.
Foi uma festa de casamento muito feliz. As oito horas, os noivos partiram para a estação no meio de muita confusão, parabéns, risos e carinho.
Iam passar a lua-de-mel em Nova York e era ali que se encontrariam com Laurie e passariam algum tempo com ela.
Ninguém percebeu as calmas despedidas de Robbie e do irmão. Robbie tinha tomado providências para ter algumas palavras em particular
com Bertie num hall perto da escadaria. Os dois irmãos se olharam, Robbie pálido e grave e Bertie, como sempre, com seu sorriso fixo e
intraduzível. O murmúrio da festa lhes chegava aos ouvidos, vindo das outras salas.
Por fim, depois de longo silêncio, Robbie disse:
— Gostaria muito de saber que você ficará bem durante a minha ausência, Bertie.
— Ora, não se preocupe! Estarei muito bem —, disse Bertie, batendo afetuosamente no ombro do irmão. Mas o rosto de Robbie ficou mais
carrancudo. Já devia estar convencido de que tudo era inútil, mas insistia.
— Cuide-se bem, Bertie. Teremos muito que conversar quando eu voltar.
— É claro! — exclamou Bertie com entusiasmo. — Não desistiremos de nossos passeios!
— Na primavera, passearemos de novo pela margem canadense e veremos seu amigo, o Capitão Willoughby.
— O velho e querido Joe —, murmurou Bertie, afetuosamente.
— Iremos ao Frenchman’s Creek —, disse Robbie, já em desespero.
Bertie concordou com alegria.
— E não poderemos esquecer as nossas pescarias!
Houve de novo silêncio entre eles! Bertie olhou para o irmão e seu rosto sofreu uma leve alteração. Deixou cair a mão do ombro de Robbie.
— Seja feliz, Robbie —, disse ele.
Havia uma súplica na voz dele? Robbie escutou com emocionada atenção.
— Seja feliz, Robbie —, repetiu Bertie, com um tom mais urgente. — Você vai entrar numa vida nova. É sua, toda sua. Não deve pensar em
nada mais. Prometa-me que é isso que vai fazer!
— Não posso separar-me da minha antiga vida, como se ela nunca tivesse existido —, disse Robbie, sentindo um aperto na garganta.
Tocou no braço do irmão. Mas Bertie, num movimento impulsivo embora delicado, recuou dois ou três passos. Olhou então para Robbie como
de uma distância imensa e intransponível.
— É o que você deve fazer, Robbie. Você tem a sua vida pela frente e nada mais. Lembre-se da mulher de Ló. Virou uma estátua de sal porque
foi olhar para trás. Não olhe para trás, Robbie! Nunca!
Levantou a mão até à altura da cabeça num adeus, girou nos calcanhares e saiu.
Robbie ficou sozinho durante algum tempo depois que Bertie voltou para a festa. Sentia uma desolação tão completa como nunca em sua vida.
Podia sentir na boca o gosto amargo da solidão e no coração a dor pungente da privação e do desespero. O desespero o dominava. Tudo em
torno dele estava silencioso e vazio, sem ao menos uma sombra para lhe quebrar a inóspita extensão. Ali não penetravam nem voz, nem
movimento.
A tristeza e a solidão estavam acima de suas forças. Nunca se sentira tão sozinho, tão abandonado, tão à deriva num universo sem ecos.
Nesses momentos, não pensou absolutamente na noiva.
CAPÍTULO 50
A jovem esposa de Robbie olhou com distraída aprovação para o espelho e levantou a cabeça para deixar os cabelos castanhos rolarem numa
brilhante massa até aos ombros. Examinou o belo rosto oval e um sorriso lhe chegou aos lábios vermelhos fazendo todas as covinhas do rosto
florescerem. Os olhos, sempre vivos e brilhantes, estavam solenes apesar do sorriso. Achou graça nesse exame que fazia de si mesma e riu
intimamente. Começou a escovar os cabelos.
O robe de veludo azul-claro lhe caía sobre as coxas e os joelhos chegando até aos pés e flutuava, seguindo-lhe os movimentos. Podia ver pelo
espelho os dourados, os cristais e a pelúcia no apartamento nupcial do hotel de luxo. A luz do sol entrava pelas amplas janelas que davam para
a Quinta Avenida. Tudo era perfumado, sossegado e tranquilo naquele quarto. O silêncio só era quebrado pelo roçar da escova de Alice e pelo
farfalhar do jornal que Robbie lia.
Alice podia ver o marido pelo espelho, sentado perto da janela, com as pernas cruzadas e o rosto quase de todo escondido pelas folhas do
jornal.
Alice pensou: Eu o amo. Ninguém pode saber quanto eu o amo. Sempre o amei. Ele é meu coração e minha alma. Nunca disse isso a ninguém
e não posso dizer a ele. Mas ele vive fechado e longe de mim. Sempre. Por quê? Será que nunca vou saber?
Robbie virou outra página do jornal e passou os olhos por ela. Um carvão se inflamou na lareira. Os rumores do tráfego lá embaixo invadiam o
silêncio.
Alice murmurou em voz doce e baixa:
— Robbie...
Ele olhou para ela, viu-lhe pelo espelho o jovem rosto lindo, tão sério e sorriu afetuosamente:
— Que é, meu amor?
— Robbie, você me ama?
— Mas é claro! Que pergunta mais tola! Não me casei com você?
Ela levantou a mão e continuou a escovar os cabelos. A mão dela tremia. Ficou calada por alguns momentos, durante os quais ele a observou
com aquela sua curiosidade reservada, embora sentindo uma ponta de inquietação. Alice largou de repente a escova, voltou-se no banco
estofado e olhou para ele. Robbie largou o jornal e contemplou-a em silêncio.
— Robbie, sabe que você nunca disse que me ama?
— E era preciso? Pensei que uma moça compreendia isso tacitamente quando um homem lhe pedia a mão.
— Não, Robbie, não compreendi. Devo confessar que não pensei nisso. Só depois que nos casamos. Só depois que chegamos aqui.
— Por que só agora? Fiz alguma coisa que não lhe agradou?
Ela sacudiu a cabeça.
— Você é uma criancinha querida —, disse ele, rindo.
— Escute, Robbie. Há alguma coisa estranha... É verdade que nunca fui casada, mas sinto que há entre nós dois uma espécie de estranheza,
alguma coisa incompleta.
Ela esperou impacientemente que ele voltasse a sorrir. Mas não sorriu. Tinha baixado a cabeça e olhava para o chão. Disse então suavemente:
— Minha querida, não deve ficar alarmada. Meu temperamento é assim .mesmo. Não sou muito demonstrativo e você tem de me aceitar como
eu sou.
— Não é isso, Robbie. Sei tudo a seu respeito. Nunca esperei, e talvez não quisesse, muito carinho de sua parte. Você é muito parecido nisso
com Papai, que também não é carinhoso. Ele e Mamãe são muito felizes e se amam muito, mas nunca os vi se beijarem ou dizerem uma
palavra mais terna um para o outro. Não é isso, Robbie, pois eu sei como Papai e Mamãe se amam. Há entre eles uma amizade que se pode
sentir de tão intensa e tão clara.
Robbie murmurou então numa voz tão baixa que ela quase não pôde ouvir:
— Tem de me dar tempo, querida.
— Tempo? Por que, Robbie?
Ele deu um suspiro e disse:
— Sou um marido ainda novo, Alice. Temos de crescer juntos. Essas coisas não acontecem da noite para o dia. Podem levar anos.
Ela agarrou com força o banco em que estava sentada e perguntou:
— Por que você se casou comigo, Robbie?
Ele se levantou e ela teve a terrível impressão de que ele ia deixá-la. Mas ele ficou parado no mesmo lugar e disse num tom pausado e medido:
— Casei-me com você porque a queria, Alice. Amo você tanto quanto me é possível amar alguém.
— Não —, disse ela, sacudindo a cabeça. — Você não me ama, Robbie. Faz o possível para isso. Sinto o seu esforço. Você quer amar-me.
Mas alguma coisa o detém, impedindo que você me ame tanto quanto deseja. Que é, Robbie?
Ele descerrou os lábios como se fosse falar. Mas virou-se para a janela e disse calmamente:
— Tudo isso é fantasia sua, Alice. Seu temperamento feminino exige demais e é muito trabalhado pela imaginação.
— Você me quis, Robbie, porque pensou que eu pudesse representar um meio de você fugir de alguma coisa. Que coisa é essa, Robbie?
Quando ele não respondeu, ela se levantou com o corpo todo a tremer. Tinha a garganta seca e os olhos lhe ardiam. O terror a dominava.
— Tenho apenas dezenove anos, Robbie, mas compreendo muitas coisas. Sinto-as no coração. E é por isso que lhe pergunto: Que coisa ou
que pessoa é essa que afasta você de mim?
Ele se virou lentamente para ela, contra a sua vontade. Queria ir para ela. Alguma coisa lhe inspirava a vontade de correr para ela, de tomá-la
nos braços, de apagar o terror que toldava aqueles lindos olhos. Mas não pôde. Era como se uma tonelada de pedra tivesse caído sobre ele,
imobilizando-o.
— Houve alguém que você amasse antes de mim, Robbie? Alguém que você não pode esquecer?
— Querida, nunca amei nenhuma mulher antes de você. Acredita em mim?
— Sim, Robbie, acredito em você. Mas por que você não me pode amar com todo o seu coração?
— Talvez não esteja em mim amar com todo o meu coração... Não sei. Talvez eu seja diferente, Alice. Você tem de me aceitar como eu sou. Eu
me esforçarei ao máximo. Você merece isso. É a coisa mais doce deste mundo. Nunca houve ninguém como você.
Ele fez uma pausa e ela baixou a cabeça em silêncio com os cabelos a esconderem-lhe o rosto.
— Compreenda —, disse ele, estendendo as mãos para ela.— Tenho vivido absorvido por muitas coisas. Houve os estudos, o trabalho... E
também meu irmão Bertie. Tenho tido de tomar conta dele...
Ao dizer o nome do irmão, sentiu-se mal e terrivelmente abalado. Encostou-se na janela.
Alice levantou lentamente a cabeça. Foi invadida então pelo terrível conhecimento, graças à sua sensibilidade perceptiva sem a ajuda da razão
abalada. Os olhos se arregalaram, abandonando Nova York e chegando a Grandeville, através de todos os anos em que tinha conhecido e
amado Robbie. Bertie... Bertie estava sempre ao lado dele. Bertie, rindo, bebendo, afável, alegre, sem jamais exigir coisa alguma e até às
vezes um pouco aborrecido da absorção de Robbie por ele e até em certas ocasiões procurando fugir dele. Robbie raramente estava sozinho,
salvo quando visitava a mansão dos Cummings e, às vezes, nem mesmo nessas ocasiões. Sempre Bertie, sempre. Por que ela nunca tinha
sabido disso antes? Não, de certo modo tinha sabido e se sentira até emocionada por tamanha dedicação num homem tão frio e reservado.
Tinha julgado isso admirável.
— É Bertie, não é, Robbie? — perguntou ela.
— Sim, acho que sim, Alice —, respondeu ele, ao fim de algum tempo. — Sempre fomos muito unidos. Creio que nunca me interessei por
ninguém de minha família a não ser Bertie. Sempre fomos muito amigos e eu tive de tomar conta dele desde os nossos tempos de criança. De
certo modo, ele sempre esteve sob os meus cuidados. Ninguém o compreendia senão eu, nem mesmo minha mãe que sempre o adorou. E até
eu nunca o compreendi bem. Ninguém pode compreendê-lo. Tenho tido alguns momentos de intuição e só lhe posso dizer que foram terríveis.
Ele é como uma criança. Alguém tem de tomar conta dele. Talvez... talvez eu seja como sou, Alice, porque ainda não me libertei da obrigação
de tomar conta de Bertie.
Exclamou então, como se as palavras lhe fossem arrancadas do fundo do coração:
— Nunca me libertarei dele enquanto ele não morrer!
Ela o olhou durante muito tempo.
Houve então um grande choque no seu coração, que se dilatou e derramou fragorosamente. O amor cresceu nela como uma avalancha a
esmagá-la e se misturava com uma imensa compaixão, um desejo intenso de proteger, de resguardar e de salvar.
Abriu os braços e correu para ele. Abraçou-o, encostando ao dele o seu jovem corpo e fazendo a cabeça dele descansar no seu seio. Abraçou-
o como uma mãe abraça um filho ameaçado, embalando-o com palavras de carinho e beijando-o.
Ele a cingiu nos braços. Pousou a cabeça no seio jovem e palpitante. Ela lhe sentiu o cansaço, a solidão, o desespero.
Mas havia nela uma triunfante e obstinada alegria. Sorriu e pensou. Posso esperar. Ele precisa tanto de mim, o pobre querido.
LIVRO III
Ó Estrela da Manhã!
CAPÍTULO 51
No dia 20 de dezembro de 1860, a Carolina do Sul separou-se da União e, embora houvesse em muitos outros Estados profundas apreensões
e tristezas, as comemorações espontâneas realizadas na Carolina do Sul foram uma demonstração incômoda de que a secessão
representava a vontade popular. Atormentado, acossado e provocado durante anos pelos Estados do Norte, o Sul se erguia em desafio diante
de Washington e havia a ameaça de outras secessões. Ao menos temporariamente, a ameaça de bancarrota que tinha pairado sobre os
fazendeiros de algodão em vista do ritmo crescente do abolicionismo no Norte passara, e uma atmosfera geral de vitalidade otimista e
entusiasmo galvanizava o Sul. Muita gente acreditava que não haveria guerra, mas que o Norte acataria a vontade soberana dos Estados que
resolvessem deixar a União, de acordo com a Constituição.
— É verdade —, dizia tristemente o Padre Houlihan, .— o Sul tem o “direito” de deixar a União e a liberdade de decidir se deve ou não lealdade
ao governo central, mas no exercício desse “direito”, o Sul já pôs em perigo o resto do país, talvez para sempre.
Para consternação, desânimo e desespero dos homens sensatos não apenas no Norte, mas também no Sul, outros Estados seguiram o
exemplo da Carolina do Sul num desfile majestoso e trêmulo. Um por um, os Estados belos e floridos se erguiam e davam as costas a
Washington, enquanto na Casa Branca o rosto bondoso e feio de Lincoln se anuviava na sua impotência, mesmo que houvesse nele
apaixonada determinação. A Casa da América era abandonada pelas suas mais belas filhas, rumo à ameaça, o perigo e a um terrível futuro,
enquanto a Europa observava, sorridente e malévola. A Constituição dos Estados Unidos era a porta ampla pela qual as filhas partiam e junto a
essa porta Abraham Lincoln se postava em silêncio. Esperava em silêncio e nada tinha dito ainda. Mas observava o esvaziamento da casa e
olhava para a Europa.
— Foi um dia sinistro para o povo a eleição desse homem como Presidente —, dizia Stuart, desesperadamente preocupado.
— Um dia só é sinistro para um povo quando Deus não lhe aponta um chefe na hora da aflição —, replicava o Padre Houlihan.
Os senadores sulistas se retiraram de Washington. Os Estados do Sul apreenderam os bens dos Estados Unidos nos seus respectivos
territórios. Arsenais e fortes foram ocupados. Embora não houvesse ainda ameaça de guerra, apareceu e foi distribuído um grande e
misterioso suprimento de armas. Stuart, lembrando-se de um homem sorridente chamado Raoul Bouchard, sentiu a vergonha nas faces e um
aperto no coração. Depósitos do Exército e outros bens federais foram confiscados em San Antonio, e os estaleiros da Marinha em Norfolk e
Pensacola passaram para as mãos dos “sulistas”.
Em março de 1861, os Estados separados formaram a sua união — a Confederação do Sul.
O Sul, embriagado pelos seus brilhantes êxitos, com a sua convicção de que só fizera o que lhe era permitido pela Constituição, com a sua
cólera aristocrática e desdenhosa diante dos duros ianques que haviam “provocado aquela catástrofe para o país” e da firmeza e da dignidade
simples do novo Presidente, se retirara para dentro de si mesmo entre uma massa de bandeiras e uma espécie de delírio feliz e alegre
resolução. Não receberia mais os insultos e as ameaças dos industriais do Norte que viam o inevitável êxodo das indústrias para as regiões de
trabalho escravo do Sul. O Sul não seria mais atingido pelas acusações de “barbaria e práticas pagãs”. Só alguns homens do Sul ouviam os
murmúrios de uma Europa ávida e predatória e a agitação nas capitais do continente a cinco mil quilômetros de distância.
“Com o correr dos anos”, disse um eminente aristocrata sulista, “os caminhos do Norte e do Sul tendem cada vez mais a afastar-se. O Norte,
que se tornará cada vez mais poliglota e estrangeiro, será para nós uma nação estranha, fora da nossa raça protestante e anglo-saxônica e de
nossa tradição aristocrática britânica. É em defesa de nossa raça, de nossa religião, de nossas tradições, que devemos afastar-nos do Norte.”
A atmosfera de todo país estava eletricamente carregada de cólera, desânimo, desespero e traição. Mas ninguém acreditava ainda no advento
da guerra.
O próprio Lincoln dizia que a crise era apenas artificial, que nada havia propriamente de errado e que mal algum sobreviria a ninguém.
Recomendava ao povo que “conservasse a calma”. E, sozinho, no seu grande quarto na Casa Branca, ficava sem dormir com a cabeça no
travesseiro e escutava as grandes rodas que rolavam do céu sobre seu país.
Grandeville recebia as notícias com a apatia e a indiferença que iriam marcar toda a sua história. Alguns homens estavam terrivelmente
perturbados e receosos. Mas a massa do povo e os lavradores que cercavam a cidade tinham uma atitude de inércia. Não acreditavam na
possibilidade de guerra ou não se incomodavam com isso. As questões em jogo não tinham qualquer importância para os habitantes dos
pardieiros e para os trabalhadores. Olhavam para as notícias dos jornais e se esqueciam delas. Quando surgiu o boato de que o Presidente
Lincoln visitaria Grandeville pessoalmente durante a sua excursão por Albany, Poughkeepsie, Trenton, Nova York, Filadélfia e Harrisburg,
poucas pessoas se interessaram fora da “sociedade elegante”. Sabiam vagamente que alguém em algum lugar estava armando uma tremenda
confusão “por causa dos negros”, mas como raramente tinham visto um negro e de escravidão só conheciam a disfarçada que sofriam em
Grandeville e a também disfarçada que tinham sofrido na Europa, a questão era para eles tão remota quanto a lua. Menos de quinhentas
pessoas em Grandeville tinham lido A Cabana do Pai Tomás. Menos de quinhentas pessoas falavam nos salões ou nas tavernas do terror que
se avizinhava. Menos de oito mil pessoas tinham votado nas últimas eleições. Menos de um terço da população sabia sequer o nome do
Presidente dos Estados Unidos. Afundados numa espécie de rústica letargia, que de nada sabia senão da labuta pesada e incessante, da
embriaguez alucinada intermitente e da constante procriação, viviam tão absorvidos pelos seus interesses insignificantes, pelos seus escassos
prazeres insípidos e pelo trabalho embrutecedor como se fossem os animais das fazendas em torno da cidade. E essa atitude de indiferença
não era exclusivamente encontrada nos estrangeiros. Os lavradores, operários, estivadores e carregadores de cereais ianques mostravam
pouco ou nenhum interesse pelo estado do país. Se alguém mais sabido falava nisso, as suas palavras eram ouvidas com aborrecimento ou
indiferença.
O fato de que, se a guerra viesse, milhares deles seriam forçados a empenhar-se pessoalmente nela, ainda não lhes penetrara os corações
insulares nem lhes fizera bater mais depressa os pulsos.
Entretanto, alguns trabalhadores falavam da situação com preocupação, receio e compreensão. E esses poucos eram os alemães que tinham
saído da Alemanha em 1848, cheios de ódio e de desgosto. Acostumados aos alarmas e calamidades, à ameaça e à insegurança ao
desespero e à revolta, sentiam de longe os primeiros sinais do pavor que se aproximava. Era paradoxal então que os filhos desses amantes da
liberdade se despreocupassem da iminente luta e, quando emitissem alguma opinião, esta fosse desdenhosa, indiferente ou desleal. Os pais
alemães, lembrando-se de Bismarck e de uma Alemanha dilacerada e arquejante, ficavam desolados com o fato de que seus filhos não
sentissem entusiasmo pela América livre, embora tivessem sido criados nos Estados Unidos e os pais lhes tivessem incutido a sua resolução e
a sua inabalável fé nos direitos do homem.
— Ah —, dizia o padre, sacudindo a cabeça —, creio que infelizmente sempre haverá entre nós quem odeie o bem e a liberdade e só anseie
pela cobiça, pela loucura e pelo crime. Que faremos com eles? Há alguma previsão sinistra para o país nessa ideia.
No Sul, havia regozijo, resolução, coragem, entusiasmo e um patriotismo apaixonado. Em muitas grandes Cidades do Norte, havia apenas
ressentimento, apatia, ignorância, inconsciência ou frio desinteresse. Entretanto, os lojistas, os industriais, os comerciantes e outros cujos
lucros dependiam da paz e do comércio estavam alarmados. Levavam em conta a ameaça da guerra e temiam-na. Murmuravam
zangadamente entre si e culpavam Lincoln, culpavam os abolicionistas, culpavam os loucos perturbadores de uma paz que lhes havia enchido
as bolsas. Enquanto o patriotismo lavrava como um incêndio nas cidades do Sul, as cidades do Norte se quedavam em soturna apatia.
Lincoln sabia disso. Vira os rostos hostis que o tinham cercado durante a sua excursão pelas cidades do Norte. Vira as fisionomias
ressentidas, a confusão e a desconfiança. Como lhe seria possível chegar ao coração daquelas pessoas retraídas e fazê-las compreender que
o destino do país e todas as esperanças do futuro dependiam delas? O seu coração se confrangia de desespero. Aquele povo não tinha visão,
paixão de justiça, patriotismo, orgulho, coragem ou sonho. Havia apenas rapacidade. A rapacidade devia ser então o caminho para chegar
àquelas almas de pedra. Se compreendessem que, no caso da vitória do Sul, o império industrial do Norte em ascensão poderia deslocar-se
para o Sul, para as zonas de trabalho escravo e barato, o seu interesse monetário poderia ser despertado como o seu patriotismo nunca o fora
pela visão de uma bandeira ou o toque de um clarim. Uma ameaça à bolsa de um ianque seria levada em consideração. A economia
inexorável falava uma linguagem que ele podia compreender.
Lincoln levou alguns meses para compreender que um fenômeno estranho e horrível estava começando a tomar forma no Norte e, quando
compreendeu, ficou estarrecido. Até então, os ódios raciais e religiosos não haviam manchado a história da República. Agora, no Norte, esses
ódios erguiam a cabeça de serpente dos pantanais sombrios da alma humana. A princípio, sentiu incredulidade. Quem, entre tantas raças,
entre tantas religiões diversas, tinha conjurado as serpentes e lhes fizera ondular as mortíferas cabeças? Quem era o traidor? Quais eram seus
pianos? A destruição ameaçava a República e ela precisava de todas as mãos, de todos os corações firmes, de todas as vozes enérgicas,
pois, do contrário, não conseguiria sobreviver. Entretanto, em algum lugar, nas sombrias profundezas do espírito dos homens, uma língua
pérfida pregava a desunião, a dissidência, o ódio, a violência e a crueldade às vésperas da tempestade que ia desabar sobre a nação. Que
queria o traidor? Não compreendia que essa desunião ameaçava a existência do país? Seria possível que soubesse muito bem disso?
Lincoln se convenceu lenta, mas implacavelmente de que o traidor sabia muito bem disso. Uma nação nos paroxismos de uma guerra perdê-la-
ia prontamente se fosse desviada para ódios e violências regionais. Era esse, pois, o plano. Viviam nas cidades nortistas, odiavam o seu país
e queriam ver os Estados Unidos morrerem. E era assim que planejavam dispersar a força do país, confundi-lo e enfraquecê-lo nas contendas
regionais para que ele fosse destruído. Destruído pelo Sul? Não. O Sul contrairia inevitavelmente a terrível doença e marcharia como o seu
irmão do Norte para o aniquilamento. Era contra os Estados Unidos então que o plano se formava, contra o Sul como contra o Norte.
Lincoln via a sombra do espectro. Podia sentir-lhe os eflúvios mortíferos. Mas desaparecia nas trevas quando ele estendia as mãos enfurecidas
e resolutas para aprisioná-lo. O seu sussurro letal estava em toda a parte, mas o sussurro se desvanecia em silêncio quando alguém que
pesquisava se aproximava. Os olhos vermelhos espionavam de cada beco, de cada rua, de cada esquina e até da sombra dos álamos nas
fazendas distantes. Mas se alguém chegava ansiosamente a procurar, os olhos se cerravam e iam reaparecer em outro lugar.
Sabia Lincoln que a tolerância pelo estranho de raça e credo era mais ativa numa nação homogênea. Do solo homogêneo da Inglaterra brotara
a Magna Carta, o Parlamento e a crença nos direitos de todos os homens. Era a nação heterogênea que corria constante perigo em
consequência de seus grupos internos e isolados que odiavam todos os outros grupos. O Norte era heterogêneo. Os românticos haviam
acreditado muito tempo que, se homens diversos vivessem juntos, acabariam por compreender que todos os homens são iguais e não diferem
radicalmente de maneira alguma. Essa crença se despedaçara nas cidades do Norte. A ligação estreita com estranhos estimulava o ódio
natural pelos seus semelhantes que existe eternamente em todos os homens. E algumas pessoas estavam utilizando esse ódio natural do
homem pelo homem para destruir os Estados Unidos.
Algumas pessoas que traziam no coração o ódio da América, tinham formado a organização denominada “Nada Sabe”, cuja força propulsora
era ostensivamente o ódio à Igreja Católica. Mas, quando o círculo crescia, eram abrangidos nesse ódio todos os homens que tinham nome
estrangeiro, naturalidade estrangeira ou religião estrangeira.
Enquanto o Norte e o Sul se olhavam de um lado e do outro da fronteira com olhos alarmados pela suspeita e pelo medo, havia nas cidades do
Norte desordens anticatólicas e antiestrangeiras. Os que odiavam o país lhe preparavam a morte. Preparavam-lhe a morte como através de
toda a história tinham preparado a morte de tudo o que era belo e nobre, grande e heroico, sábio, bondoso e justo.
Para conseguir isso, estimulavam ódios falsos e cruéis, inventavam perigosas mentiras, incentivavam o Norte a permanecer confuso, inerte e
ressentido, caluniavam Lincoln e espalhavam coisas horríveis sobre ele. Usavam até as palavras sagradas do patriotismo para alcançar os
seus objetivos. Falavam de “salvar a América para os americanos”, de expulsar “os estranhos de nosso meio”. Pela primeira vez, a expressão
“elemento estranho” foi ouvida através dos espaços livres da República.
Esses conspiradores contra a República usavam os próprios lemas dos patriotas, dos que amavam os Estados Unidos.
Os conspiradores rastejavam no rumo do Sul, levando a morte no coração. Em meio às bandeiras, aos heroísmos, aos clarins, às mobilizações
e às resoluções, o rumor circulava e o Sul, parando de vez em quando atordoado, ouvia a voz da destruição.
CAPÍTULO 52
É confortador ver, pensou Laurie olhando pelas janelas do trem, como a natureza repudia as paixões e os ódios dos homens. Todas as coisas
vivem na natureza e fazem parte delas, menos o homem. Ele é o eterno pária, o proscrito, o forasteiro e um estranho neste planeta, cercado de
criaturas desconfiadas que lhe são hostis, que o odeiam e fogem dele mal lhe sentem o cheiro da carne ou o som dos passos. Dizem que é o
“instinto do rebanho” que o faz unir-se aos seus semelhantes, ainda que os odeie. Mas é coisa mais profunda que o instinto do rebanho que o
impele a construir suas terríveis cidades de pedra e esconder-se nelas, como um assassino acuado, um criminoso perseguido, afastado do
coração profundo e vivo da terra. Sabe que a natureza o rejeitou e não lhe fala na linguagem universal dos outros seres, negando-lhe o direito
de ser contado entre seus filhos.
Somos o que é mau, sombrio e horrendo. Sei que não fomos criados assim. Mas foi isso que nos tornamos com nossas guerras, nossos
horrores, nossos ódios, nossa permanente inimizade por todas as coisas que vivem, nossas traições e nossas cobiças, nossas
monstruosidades. Somos os destruidores, a enormidade perversa e inominável que a terra amaldiçoou e Deus esqueceu. Somos Caim e
fomos expulsos do Jardim do Éden.
Laurie estremeceu e, embora o vagão particular fosse aquecido, fechou mais de encontro ao corpo a capa de peles. O trem percorria com
barulhenta rapidez a calma paisagem primaveril. Como tudo era belo! A terra reverdescente e florescente se estendia em suaves ondulações
até ao horizonte, onde montes de ametista, trêmulos de luz, se destacavam contra um céu do mais puro azul. Aqui e ali, em retalhos de sombra,
erguiam-se árvores, ainda vazias, mas já começando a pulsar de vida através dos galhos. Nas verdes extensões da terra, apareciam poças de
água onde floresciam íris selvagens. Pássaros silenciosos cruzavam o céu. Se havia casas de fazenda por ali, Laurie não as estava vendo.
Uma paz intensa e quieta pairava sobre a terra.
Quando estamos calmos, quando não estamos presentes, pensou Laurie, a terra é paz e esquece a existência do homem. Encerra-se na sua
beleza, sonhando e planejando, com infinita paciência, criando e cheia de alegria porque não ouve a voz do homem.
A jovem Sra. Rhinelander olhou o perfil de Laurie contra a luz pura que vinha da janela. Refletiu como era estático e imutável o rosto de Laurie, o
que fazia pensar que ela era privada de qualquer calor emocional, de qualquer paixão, de qualquer veemência. Conhecia Laurie havia quatro
anos, porque o falecido marido da Sra. Rhinelander tinha sido um dos principais patronos da música em Nova York. Uma forte amizade se
estabelecera entre as duas jovens mulheres, embora a Sra. Rhinelander nunca tivesse analisado por que se sentira atraída por aquela moça fria
e fechada que nunca procurara aproximar-se dela. Ainda que Laurie não pudesse ser chamada de secreta, não esclarecia ninguém sobre seus
pensamentos, desejos ou sentimentos. Até os aplausos calorosos que havia recebido na semana anterior no Teatro de Opera Astor, onde
fizera sua estreia nos Estados Unidos depois de voltar da Europa, não a tinham emocionado. É verdade que tinha sorrido, mas fora um sorriso
de remoto tédio e ela não mostrara muito empenho em agradecer a ovação do público ou as felicitações dos amigos. Quando alguns rapazes
cheios de entusiasmo tinham insistido em desatrelar os cavalos da sua carruagem e puxar o veículo pelas ruas repletas enquanto outros jovens
os acompanhavam com archotes acesos e aclamações, Laurie parecera francamente aborrecida. Não era absolutamente uma pose. Mas
justamente essa atitude de reserva e alheamento aumentou o fervor dos seus admiradores. Quando afinal ela havia descido sem pressa à porta
do hotel não se dignara sequer olhar para a multidão que lhe tributava uma última ovação e se mostrara indiferente aos montões de flores que a
esperavam em seu apartamento. A jovem Sra. Rhinelander e seu irmão, Dick Thimbleton, tinham-na acompanhado até ao apartamento, mas
ela, mal havia tirado as luvas, murmurara com a sua habitual indiferença:
— Estou tão cansada, queridos, que se vocês não se incomodarem ...
A Sra. Rhinelander tivera um sorriso contrafeito, mas o arrebatado Dick dissera prontamente:
— É claro. Vamos sair imediatamente. Boa noite, querida.
Mas Laurie não era a querida de Dick. Elissa duvidava de que ela viesse a ser algum dia a querida de alguém. Havia nela alguma coisa que
parecia terrivelmente granítica. Elissa nunca vira a sua cor se alterar, nem notara nela qualquer expressão de ternura ou gentileza. Tinha apenas
dezenove anos e sua beleza e sua incrível voz prenunciavam-lhe uma carreira esplêndida através do mundo. Mas quando se falava dessas
coisas com Laurie, ela se limitava a encolher os ombros impassivelmente.
Estava no momento de posse de um contrato cuja munificência era desconhecida no país, mesmo no caso de Jenny Lind, cuja voz. todos o
julgavam, tinha sido superada pela daquela jovem americana. Laurie tinha cantado Tannhäuser em Munique, onde recebera aplausos mais
delirantes que os de Nova York. O grande Wagner se inclinara diante dela e beijara-lhe as mãos em sinal de gratidão. Laurie tinha cantado
aquela ópera também em Dresde, e o público, embora preparado para reagir com insultos e menosprezo, fora reduzido ao silêncio pelo puro
esplendor de sua Elizabeth. No fim, fora tomado de verdadeiro delírio. A primeira apresentação em Paris, com outro cantor, tinha sido um caso
escandaloso acompanhado de estridentes vaias. Mas a extraordinária beleza de Laurie, bem como a sua voz, tinham conquistado também os
parisienses. A Princesa Metternich, a grande amiga de Wagner, tinha convidado Laurie para o seu castelo, mas ela só aceitara o convite
depois de insistentes rogos do próprio compositor. Mais tarde, fora convidada também do Rei Luís da Baviera e fascinara por completo o
monarca.
Naquela oportunidade, Laurie devia cantar Tannhäuser e interpretar o papel de Elsa em Lohengrin, nos Estados Unidos. Quando assinara o
fabuloso contrato para as suas apresentações no Astor, tinha mostrado o mesmo tédio com que recebera os aplausos do público. Tinha-se
levantado da cadeira dourada no seu apartamento e dissera aos cavalheiros entusiasmados ali reunidos que estava muito cansada e pedia
desculpas. Na realidade, sua amiga Elissa Rhinelander sabia muito bem que ela nunca ficava cansada. A sua fria vitalidade era inesgotável.
Ela não experimentava mais fadiga do que uma montanha ou um penhasco.
Elissa tinha chegado à estupefata conclusão de que Laurie não dava a menor importância à sua música, aos seus triunfos ou às suas
conquistas e de que, embora cantasse com a maior paixão e profundo sentimento, isso era automático e produto de seus estudos e não uma
coisa que lhe viesse do coração e da alma. Era uma atriz maravilhosa, mas as suas paixões nunca participavam de seu desempenho ou não
pareciam dele participar, pensava Elissa enquanto o trem corria pelos campos.
Laurie estava tão impassível e impenetrável quanto se fosse feita de ouro, ainda que brilhasse como ouro. Entretanto, Elissa não podia
esquecer a tumultuosa paixão que vibrava no seu canto e o olhar estranho e enigmático que às vezes lhe ensombrava o rosto.
Elissa, olhando para o rosto da amiga e vendo esse estranho olhar de novo quando o vulto de uma montanha passou pela janela, perguntou:
— Está cansada, Laurie?
Laurie voltou lentamente a cabeça. Um raio de sol entrou pela janela e lhe iluminou o belo rosto.
— Não, Elissa. Por quê?
— Está tão calada.
A porta do vagão particular se abriu e Dick Thimbleton entrou. Tinha estado na plataforma, fumando um dos seus “horrorosos charutos”, como
dizia Elissa. Como sempre, o primeiro olhar dele foi para Laurie e ela o olhou simpaticamente. Ele se aproximou dela ansiosamente, com um
sorriso que era uma pergunta. Mas quando ela apenas o olhou com imutável gentileza, o rosto dele ficou novamente carrancudo. Era um homem
bem apessoado e elegante de trinta anos, solteiro e muito rico, bem-educado e distinto. Conhecia Laurie havia dois anos e estava
completamente apaixonado por ela. Tinha-a acompanhado através da Europa, pedindo-a em casamento, como ele dizia, “todos os sábados à
noite, infalivelmente”. Para um homem jovem, educado e reservado, tinha sido singularmente persistente, conseguindo afinal de Laurie uma
aquiescência muito vaga. Ao menos, ela não o proibia mais irritadamente de falar-lhe em casamento, mas Elissa suspeitava de que isso não
representava qualquer enfraquecimento da parte de Laurie, mas o desejo de livrar-se de uma recusa mais ativa. Continuava inerte, mas não
cedia.
Quando Laurie anunciara a intenção de fazer uma visita à família em Grandeville (“onde fica Grandeville, pelo amor de Deus?” perguntara Dick),
Elissa tinha sugerido que ela e o irmão a acompanhassem. Pensara que talvez, vendo-se ausente de Nova York e da sua agitação, Laurie
pudesse ver como Dick era bom, sincero, atencioso e superior. Na atmosfera de uma rude cidade de fronteira, as qualidades dele seriam
plenamente realçadas. Na presença de homens rústicos e sem refinamento, Dick se destacaria em todo o seu esplendor aristocrático. Elissa
astutamente suspeitava de que Laurie, apesar de sua letargia, não era inteiramente insensível ao dinheiro, especialmente quando este era
profuso. Acreditava também que Laurie gostava de Dick Thimbleton e começara a confiar na amizade dele.
Era no vagão particular dele, todo de veludo e pelúcia, com cortinas azuis nas janelas e fofos tapetes no chão, que estavam viajando para
Grandeville. Afastara as objeções friamente irritadas de Laurie.
Depois que Elissa e Dick tinham vencido as suas teimosas objeções, Laurie tinha escrito a Janie, informando-a dos hóspedes que levaria com
ela. Tinha esperado uma carta furiosa da mãe, com a afirmação de que não tinha tempo, nem lugar em casa para essas pessoas estranhas.
Mas tinha esquecido o espírito engenhoso da mãe e foi com surpresa que recebeu uma carta entusiástica de Janie, na qual ela dizia que
hospedaria Elissa e Dick com muito prazer. Laurie não sabia que Janie tinha feito muitas e muito indiscretas perguntas a respeito da família
Thimbleton e estava de fogos acesos com as implicações dessa visita. Laurie, que estava preparada para mostrar aos amigos uma carta bem
diferente da mãe, ficou bastante aborrecida.
Os triunfos de Laurie em Nova York e na Europa eram bem conhecidos dos cidadãos de Grandeville. Em vista disso, a Rua Principal fora
decorada com bandeiras, festões de papel colorido e grandes cartazes. A própria guerra, que já durava havia um ano, passara para segundo
lugar no interesse da população. O Teatro Elmwood, recém-construído, tinha sido preparado na esperança de que Laurie desse ao menos um
recital para deleite de Grandeville. Felizmente, Laurie ainda não sabia de nada disso.
A hábil e vivaz Elissa não tinha conseguido arrancar de Laurie muitas informações sobre a família dela. Laurie dissera apenas as coisas mais
gerais e mais indiferentes. A mãe era viúva e escocesa. Um irmão era juiz e outro se casara com uma alemã rica e era subgerente de algumas
lojas em que a família tinha um vago interesse. Havia ainda outro irmão. Nesse ponto, o rosto de Laurie se havia alterado quase
imperceptivelmente. Bertie. Bertie nada fazia senão encher a mãe de encanto. Era um gentleman. Laurie franzira um pouco a boca ao dizer isso
e ficara então calada. Mas Elissa, bem inteligente, percebera que os laços que prendiam Laurie à família eram muito frouxos e até
desdenhosos. Era evidente que ela não tinha afeição por eles. Por que então estava voltando a Grandeville para “descansar”? O “cansaço” nela
não passava de uma atitude.
Laurie devia estar pensando também nessas coisas, pois Elissa lhe surpreendeu um olhar rápido, curioso e cruel. Perturbada, Elissa sacudiu
os cabelos pretos e olhou para outro lado. Não tinha ainda trinta anos, estava viúva havia dois anos e era extremamente elegante. Não podia
absolutamente ser chamada de bonita, com o rosto comprido e muito estreito, a boca malfeita, o nariz muito aquilino e o corpo muito magro.
Mas tudo isso era de certo modo compensado pelos olhos grandes e luminosos, cheios de vivacidade e espírito. Além disso, era cercada de
uma auréola de riqueza, cultura e elegância inata em sua pessoa.
Os três estavam sozinhos. As criadas de Laurie e de Elissa viajavam na classe pública à frente do vagão. Numa das extremidades do vagão,
estavam os leitos das duas amigas por trás de uma pesada cortina. O leito de Dick Thimbleton ficava perto da plataforma, na frente. Pesadas
mesas de mogno, presas ao chão, estavam espalhadas do outro lado do vagão, cada qual com um abajur de filigrana. Um lustre de cristal
pendia do teto curvo. Havia também uma estante com livros e uma caixa de música envernizada. Quando a tarde foi caindo, uma das criadas
entrou e acendeu as luzes. A paisagem desapareceu das janelas. Elissa podia ver os rostos do irmão e de Laurie refletidos nas vidraças, onde
os reflexos das lâmpadas se superpunham ao cenário de montanhas, prados e vales.
Elisa sentiu, de repente, antipatia por Laurie. Tinha de vez em quando esses momentos de antipatia. Nessas ocasiões, gostava de pensar que
Laurie era pouco inteligente e apática. Mas a sua honestidade inata reagia contra isso. Que era que Laurie queria? Aparentemente, nada.
Laurie era um enigma. Pobre Dick, pensou Elissa, ele não se devia absolutamente envolver com aquela estranha criatura. De fato, naqueles
momentos de penetração, Laurie lhe parecia uma pessoa remota e inteiramente inacessível.
Laurie reclinou-se na sua cadeira e Elissa, que cada vez mais antipatizava com ela, admirando-a com igual energia, sentiu-se fascinada pela
graça da amiga. Não havia uma só linha imperfeita na curva do jovem busto cheio, na linha do pescoço bem modelado ou na cintura acima das
enfunadas saias de tafetá azul. Os cabelos dourados eram reluzentes como se fossem feitos de metal. Havia uma imensa serenidade em torno
dela, quando voltou lentamente a cabeça para o ardente Dick, que se inclinava da sua cadeira para dizer-lhe alguma coisa. Wagner, o
admirável e terrível Wagner, exclamara ao ver Laurie pela primeira vez: “Brünnhilde! Walküre!” Tinha sido sem dúvida uma extravagância, coisa
que não era de admirar, tratando-se de estrangeiros. Mas Elissa tinha de reconhecer que havia motivo para esse entusiasmo de Wagner.
Que era que absorvia tanto Dick naquele momento na conversa lenta e lânguida de Laurie? Esta nunca se distinguira pela originalidade ou pelo
espírito. Entretanto, Dick a ouvia com uma luz de interesse no rosto. Elissa aproximou-se também para ouvir.
— Acho que se vão aborrecer muito em Grandeville —, dizia Laurie. — Lavradores de chapéu redondo cheirando a cocheiras e multidões de
estranhas criaturas vindas dos mais remotos cantos da Europa, matadouros, fábricas de salsichas, elevadores de cereais e vapores no Lago.
É uma cidade horrível e completamente grosseira. Quanto à minha família, nunca se distinguiu pela sua finura ou pela variedade de seus
interesses, com exceção talvez de Robbie. É casado com uma moça encantadora, filha do Prefeito, mas até ele tem os contornos ásperos do
provinciano.
Em seguida, uma estranha inquietação caiu sobre ela e Laurie desviou os olhos de Dick.
— Que guerra terrível! Todos achavam que estaria terminada dentro de seis meses. Que exuberante insensatez! Agora é que o povo começa a
compreender que uma guerra é uma coisa terrível, apesar das bandeiras, dos clarins e dos belos uniformes, e a inquietação se generaliza. É
verdade, Dick, que muitas pessoas morreram nas desordens provocadas pelo recrutamento em Nova York?
A expressão de Dick se tornou grave. Falou rapidamente. Se a guerra continuasse ainda por muito tempo, ele se candidataria a ser
comissionado como oficial. Disse então:
— As pessoas amam em geral os belos ideais e se emocionam com eles. Mas quando chega o momento de sacrificarem-se, de lutar e até de
morrer por esses ideais, começam a acusar, a recuar e a protestar. Pensam que o amor da pátria deve viver confinado nos livros escolares e o
amor da justiça e de Deus nas páginas da Bíblia? Não compreendem que se uma coisa não é digna de se lutar e morrer por ela não tem motivo
para existir, ainda que seja em palavras?
Laurie nada disse e Dick continuou com veemência:
— Esta República não foi fundada por homens que colocavam o seu conforto e a sua segurança acima da justiça e da liberdade. Foi fundada
por homens de visão, que acreditavam nos direitos do homem e na paternidade de Deus, que odiavam a tirania, a injustiça e a opressão. Onde
estão agora os filhos desses homens? Onde estão suas vozes nesta triste e insubmissa República?
Podia ver apenas o perfil de Laurie que nada lhe dizia. Pegou na mão dela e perguntou:
— Sentirá minha falta, se eu for para o Exército?
Ela retirou calmamente a mão. Sorriu. Mas sua voz atenuou um pouco a qualidade cáustica do sorriso.
— Claro que sentirei sua falta, Dick. Só espero é que não seja precipitado.
O rosto dele se fechou e ele se recostou na sua cadeira.
Ele está falando a uma criatura sem sensibilidade, pensou Elissa, irritada. Que interesse tem Laurie pelo país? Que interesse tem ela por
alguma coisa? Ela não tem coração. Por que então gosto dela? Sou mulher e a beleza dela não me impressiona absolutamente, salvo
despertando de vez em quando uma ponta de inveja. Ela não faz qualquer esforço para ser agradável, mesmo comigo. Apesar disso, gosto
dela.
Laurie voltou-se para ela e disse:
— Espero, Elissa, que se sinta à vontade em casa de minha mãe. Não espere nada de grandioso. É tudo rústico e sem conforto. Mas acho que
vai apreciar Mamãe!
CAPÍTULO 53
Tinha nevado durante a noite, não a neve ligeira de abril das regiões mais ao sul, que simplesmente realçava e refrescava a verdura nova da
terra. Era a neve de abril do Norte, acompanhada de céus sombrios, com a torva insistência do inverno.
Eram apenas três horas da tarde, mas tinha sido preciso acender as luzes. O fogo crepitava como em pleno inverno, vigoroso e quente nas
lareiras. Em torno da casa, o vento uivava e os céus se enegreciam rapidamente. Laurie levantou a vista da costura e olhou indiferentemente
pela vidraça. Estava habituada às primaveras do Norte e não lhes dava muita importância. Mas a pobre Elissa tivera de ir para a cama com um
resfriado e o irmão estava solicitamente ao lado dela. Dois dias em Grandeville tinham sido mais que suficientes para Elissa. As compressas
de terebintina no peito, o nariz inflamado e vermelho, o espetáculo de desolação lá fora e o quarto estreito e alto onde estava deitada, tudo isso
a convencia de que quanto mais depressa se fosse embora dali, melhor. Laurie sorria sozinha, com a cabeça mais inclinada para a costura que
fazia.
Janie estava sentada ao lado, perto do fogo. Tinham tido uma conversa desconexa, toda ela referente a Nova York, à Europa e os sucessos de
Laurie. Janie olhava para a filha. Todas aquelas grandiosas referências à Princesa Metternich, ao Rei Luís, à Rainha Vitória e à gentileza do
Presidente Lincoln! E aquelas displicentes histórias sobre os aplausos delirantes recebidos nos teatros! Janie mordia os lábios azedamente.
Bem que gostaria de acreditar que a filha estava exagerando e de que tudo não passava de vaidade pueril. Mas Laurie tinha falado de tudo
com indiferença e desinteresse e, ainda assim, por insistência da mãe. Não obstante, seu sorriso tinha sido estranho e Laurie já não era tão
taciturna quanto Janie sempre a conhecera. Tinha até dado voluntariamente informações sobre si mesma e sobre seus sucessos. Teria havido
uma satisfação malévola naqueles frios olhos azuis e uma curiosa zombaria na voz pausada e simpática?
Laurie estava sentada perto do fogo, alta, grande, muito fria, muito remota, com o vestido de caxemira azul-marinho com uma gola grossa de
rufos cor de creme e uma saia de arcos muito exagerados que devia ser a última palavra da moda parisiense. Usava ao pescoço um grande
adereço de brilhantes, pérolas e rubis que, segundo ela declarara distraidamente depois de interrogada por Janie, tinha sido um presente do
Rei Luís. Tinha no braço uma larga pulseira com as mesmas pedras e trazia nas orelhas os brincos que completavam o conjunto. Janie
umedeceu os lábios. O Rei Luís, nada menos! Laurie tinha dito displicentemente sem um sorriso sequer que ele era muito “bom” e que ela tinha
sido hóspede do palácio real. Janie sacudiu a cabeça como que em obstinada contestação. Não era possível. Tais coisas não podiam
acontecer a Laurie Cauder, filha de Janie Driscoll e Robin Cauder, de uma obscura família rural e de selvagem sangue escocês! Laurie tinha
mostrado à mãe outras joias também, uma medalha de ouro que lhe fora pessoalmente entregue pela Rainha Vitória, um colar de pérolas da
Princesa Metternich e fabulosos anéis, pulseiras e tiaras e broches das “cabeças coroadas da Europa”. Janie ouvia e olhava tudo, pensando
que não devia esquecer um só detalhe para comunicar no dia seguinte as espantosas notícias ao Courier de Grandeville. Se Janie não tivesse
visto pessoalmente os contratos que Laurie assinara em Nova York, talvez não tivesse acreditado em nada disso. Tinha arregalado os olhos
diante das cartas de personagens ilustres, embora não pudesse compreender uma só palavra, desde que estavam escritas em francês,
alemão ou russo. Mas compreendia os brasões que lhes serviam de timbre e as assinaturas. Ficara assombrada, abalada, atordoada, pois
não havia acreditado muito nas notícias dos jornais de Nova York, convencida de que “naquele país” a imprensa sempre exagerava muito. Mas
os recortes dos jornais de Londres tinham sido uma surpresa para ela.
Laurie não se mostrara absolutamente reservada quando era solicitada a contar esses fatos. Por quê? Ela sempre fora enigmática e secreta.
Que era que agora lhe desatava a língua? Bem, pensou Janie, ela me odeia. E me joga essas coisas na cara não para que eu tenha orgulho,
mas para que me sinta perturbada e humilhada.
Disse então numa voz majestosa:
— Mas, afinal de contas, está contente de estar em sua casa, não é?
Laurie a olhara calmamente e respondera:
— É claro. Do contrário, não estaria aqui.
— Não nos esqueceu então, apesar de tantas grandezas, de tantos palácios, nobres, duques e reis?
— Não, não me esqueci, Mamãe —, disse Laurie, com seu peculiar sorriso.
— É mesmo, Laurie. Os outros podem curvar-se diante de você e dar-lhe flores e presentes, mas eu ainda sou sua mãe e ainda vejo em você
minha filhinha a quem eu castigava quando procedia mal. Para o resto do mundo você pode ser a maravilhosa Laurie Cauder, mas para mim
continua a ser minha filhinha a quem procurei botar no bom caminho.
Laurie olhou a mãe em silêncio. Mas seu olhar assustou Janie que exclamou:
— Não me olhe assim. Até parece que você me odeia!
Laurie voltou os olhos para a sua costura e disse:
— Não odeio ninguém. Não acho ninguém de suficiente importância para merecer ódio.
Janie teve um choque. Olhou para Laurie e viu que ela a olhava com distância e desprezo. Se a odiava, era com o ódio que pode ter uma deusa
por um verme. Por sua vez, Laurie observava a mãe.
Janie tinha mais de quarenta e cinco anos, mas ainda estava cheia de vida. Os cabelos ruivos habilmente pintados se arrumavam em cachos
cor de cenoura em torno das faces pálidas e empastadas de ruge que se enrugavam. Estava mais magra do que nunca, mas ainda tinha muita
classe a tal ponto que a própria Elissa se sentiu impressionada. Até o espírito meio rude e esfuziante de Janie havia encantado Elissa, como
Laurie esperara, e Dick se mostrara divertido e encantado por ela.
Tentando sustentar firmemente o olhar de Laurie, Janie sentiu-se diminuir. Não tinha qualquer poder sobre Laurie e compreendeu, com furiosa
convicção, que nunca tivera. Aquela mulher alta e dourada não era sua filha, nunca fora sua filha. Não dava a menor importância a Janie e esta
se sentiu quase sufocar de raiva, ódio e humilhação.
Tudo isso era muito difícil de suportar para Janie e ela fervia por dentro. Deixou-se invadir por uma onda de pena de si mesma. Era essa a
paga que tinha pelos cuidados de mãe que tivera com aquela criatura, pelos seus sacrifícios, pelas suas “noites sem dormir”, pelas suas
“preces”, pelas suas “ambições”? Como podia aquela mulher desligar-se assim da mãe que lhe dera a vida? Se Laurie era famosa, isso
acontecia graças ao “bom sangue” que corria nas veias de Janie e, por intermédio de Janie, nas dela. Janie começava a julgar-se a verdadeira
fonte da fama e da gloriosa voz de Laurie e que, portanto, era indignamente espoliada e espezinhada.
Mas Laurie, estreitando os olhos, encarava a mãe, adivinhando-lhe os pensamentos. Franziu os lábios num sorriso cruel e desviou a vista para
outro lado.
Apesar do seu desapontamento, do seu ódio e da sua raiva, Janie tinha na cabeça uma questão que lhe dominava todo o interesse. Laurie iria
casar-se com aquele magnífico Richard Thimbleton, tão rico e aristocrático, e que era amigo íntimo de todos os poderosos dos Estados Unidos
e da Europa?
Janie sorria intimamente, cheia de orgulho e de excitação. Ela tivera a ideia de precipitar um entendimento entre, segundo julgava, uma Laurie
importuna e obscura e um grão-senhor hesitante. Entretanto, era Laurie quem se mostrava indiferente e repelia, enquanto o grão-senhor era
humildemente ardente e suplicante.
— Você tem quase dezenove anos, Laurie —, disse ela —, e já está em tempo de se casar. Tem pensado nisso?
— Casar para quê? — perguntou Laurie, sorrindo.
— Por que não? — exclamou Janie, espantada.
— Por que é que uma mulher se casa? — perguntou Laurie com frio e sorridente desinteresse. — Em primeiro lugar, para ter casa, roupa e
comida. Para fugir de um ambiente familiar desagradável. Para ter o seu lar. Para não morrer de fome ou para livrar-se da humilhação de um
cantinho de caridade na casa de um irmão. Para ter uma posição na sociedade. Para ter dinheiro. Para viver em companhia do homem a quem
ama. Ora, nenhuma dessas razões me impele ao casamento.
Tudo isso para Janie era escandalosa heresia e insensatez. Mas não teve uma resposta imediata para dar. O que Laurie tinha dito era
verdade. Ela não tinha necessidade de se casar. Afinal, disse com alguma aspereza:
— E você acha bonito andar por este mundo para cima e para baixo solteira, como uma mulher desprotegida, sujeita a ouvir propostas
equívocas, indefesa e vulnerável?
Laurie sentiu a vitalidade de seu corpo grande e belo e não pôde conter uma gargalhada.
— Ora, Mamãe, tenho a força e os músculos de um homem e sou perfeitamente capaz de enfrentar qualquer cavalheiro que tenha ideias
impróprias a meu respeito. Quanto a andar pelo mundo solteira, acho a situação eminentemente agradável, desde que não vivo sujeita aos
caprichos, às mesquinharias e aos ciúmes de nenhum homem. Sou uma mulher livre.
Janie olhou para ela ao mesmo tempo com ódio e com inveja. Ah, isso é que era vida, cheia de beleza, conquista, riqueza e liberdade! Por que
não fora ela escolhida para uma vida assim em lugar daquela montanha de insensibilidade?
— Por que então esse camarada segue você até dentro de sua casa, choroso como um bezerro desmamado e com os olhos derretidos? —
perguntou Janie, ardendo de inveja.
— Ele veio porque quis. Não lhe dei o menor estímulo para isso —, disse Laurie tranquilamente.
Largou o trabalho que estava fazendo. Recostou-se na poltrona, com os finos e longos tornozelos surgindo da barra da saia-balão e com os
braços cruzados atrás da radiosa cabeça. Começou a cantarolar baixinho com os olhos voltados para o fogo.
Criatura preguiçosa e abrutalhada!, pensou Janie. Se não fosse a exímia criada francesa que a acompanhava e estava hospedada no
alojamento dos empregados no terceiro e no quarto andar, os cabelos de Laurie viveriam maltratados e despenteados, os vestidos seriam
amarfanhados, as sandálias acalcanhadas e as meias tortas, como ela sempre vivera quando era menina dentro daquela casa. Ela aceitava a
vida, pensou Janie com amargura e virulência, como uma grande gata indolente que às vezes lambia um pires de leite, indiferente aos desejos
ou à presença dos outros. Só quando a contrariavam ou aborreciam, alguma paixão se mostrava naquele rosto de pedra. Quando fora recebida
na estação pelo comitê entusiástico e vira a Rua Principal toda enfeitada em homenagem a ela, tinha fechado a cara como se considerasse
aquilo uma afronta. Houve quem atribuísse essa reação à sua modéstia natural, mas Janie sabia que se tratava de uma vaidade injusta e que
Laurie devia ter demonstrado alguma gratidão por essas manifestações de admiração.
E tudo isso, Janie sabia com sua penetrante intuição, vinha do grande ódio frio de Laurie pelo mundo e por tudo o que havia nele.
Janie teve de repente medo daquela mulher a quem dera a vida.
Laurie perguntou então num tom comum:
— Que foi que aconteceu com Angus? Está achando por fim intolerável aquela montanha de toucinho alemão? Está com um aspecto
verdadeiramente cadavérico!
Em circunstâncias normais, Janie teria embarcado com prazer em maliciosos mexericos a respeito do filho, mas a atitude de Laurie não podia
deixar de intimidá-la. Laurie era perigosa, Janie sabia disso agora. Disse, portanto, fingindo o aborrecimento de uma mãe extremosa:
— Que maneira mais absurda de falar, Laurie! Angus está muito cansado pois trabalha demais. Quanto a Gretchen, parece que está
esperando. Só se pode dizer é que demorou demais.
Laurie ficou em silêncio. Janie exclamou irritadamente:
— Você e Angus sempre foram tão amigos! Não sei por que fala agora dele com tanto desprezo!
— Ele não merece senão desprezo —, replicou Laurie calmamente.
— Por quê? Está subindo no mundo. Vai indo muito bem, goza de muito respeito e já tem uma pequena fortuna.
Um leve sorriso se esboçou nos lábios de Laurie.
— Como vai ele das dores de cabeça?
Janie franziu a testa.
— Está usando óculos para ler. Foram os olhos sem dúvida alguma. Ele foi sempre tão estudioso. Deve ter forçado muito a vista. — Teve um
momento de hesitação. — Sofreu um colapso um tanto forte há coisa de três meses.
— Um colapso? Que foi que houve?
— As dores de cabeça. Angus passou dois meses de cama e, durante algumas semanas, mal pôde andar. O Sr. Schnitzel, que é muito bom e
dedicado a Angus como um pai, mandou chamar em Chicago um médico famoso para tratar dele. Mas não era nada grave. O médico ficou um
pouco perplexo e chegou à conclusão de que era nervosismo e mais os olhos de Angus.
— Nervosismo —, murmurou Laurie, rindo depois. Passou a mão pelos cabelos e disse: — Robbie está indo bem, não está?
— Com a ajuda do velho Cummings, naturalmente —, disse Janie com má vontade. — E aquela porcariazinha de Alice está esperando
também, embora com aquele corpinho de nada dela vá ter um parto muito difícil. Creio que é só o prestígio do velho Cummings que faz todos
ajudarem tanto Robbie.
— Não concordo com você, Mamãe. Robbie teve sempre uma inteligência muito brilhante. Não precisava do Sr. Cummings para vencer.
Poderia talvez demorar mais um pouco, mas alcançaria os seus objetivos mais cedo ou mais tarde. É verdade o que eu soube ontem, que ele
se vai candidatar este ano ao Congresso?
— Bem, fala-se muito nisso. Mas vai dar em nada. Pode ficar certa de que Robbie não tem personalidade para ser político. Não tem chance
alguma.
— Pois eu tenho certeza de que vai vencer, Mamãe. Robbie nunca falha. Desejo de todo coração que ele vença e lhe darei toda a ajuda que
puder.
Janie sentiu nova onda de ódio pela filha. Odiava-a pelo que dissera a respeito de Robbie e odiava a bela e rica voz que enchia de
ressonâncias musicais o quarto sombrio e quente. Odiava-a pelo que sentia em Laurie de ódio, de força, de perigo latente e de implacável
crueldade.
— Uma coisa que não compreendo —, murmurou Laurie —, é que Bertie ainda esteja vivo apesar de todos os seus excessos. Parece um
cadáver em pé.
O coração de Janie começou a bater com a mais intensa dor. Olhou para a filha com uma revolta mortífera. Como se atrevia aquela criatura a
ligar Bertie à ideia de morte e com aquela intenção malévola? Que mal lhe fizera Bertie? Como era que ela podia olhar para a mãe com aquele
jeito sorridente, como se compreendesse e gozasse a angústia na alma de Janie?
Falou com voz trêmula e com as mãos apertadas espasmodicamente.
— Você nunca pôde gostar do pobre Bertie, nem compreender o que ele sofre. Sei que não lhe vou dar prazer dizendo que ele não tem...
bebido uma gota há seis meses e que está ficando mais forte de dia para dia.
— Ao contrário, Mamãe. Fico muito satisfeita com isso por sua causa.
Laurie reprimiu um bocejo, ajeitou a saia. Janie continuava a olhá-la, com o corpo todo a tremer, como se tivesse recebido um golpe traiçoeiro
e violento.
Laurie perguntou então no seu tom neutro de voz:
— Como vão indo as lojas?
Janie precisou apenas de um instante para recuperar as forças e responder. Mas o assunto era da maior importância para ela. Respondeu
então com voz dura e exultante:
— Vão muito mal. É claro que eu recebo regularmente meu dinheiro. Stuart não tem coragem de deixar de me pagar, ainda que o dinheiro saia
do bolso dele ou do bolso daquele detestável judeu. Mas Stuart está cheio de dívidas. A guerra não o ajudou em nada. O seu sortimento de
fazendas de algodão foi naturalmente cortado. Não me surpreenderia nada se dentro de muito pouco tempo requeressem a falência dele.
Na alegria com que deu essas notícias, não notou que Laurie aprumara o corpo na poltrona e ficara muito pálida. Ouviu apenas Laurie dizer:
— Por que tudo isso lhe dá tanto prazer? Você não tem dinheiro investido nas lojas?
Janie riu, agitando os cachos ruivos.
— Quer saber por que é que isso me agrada? Porque quando Stuart entrar em falência, coisa que não deve tardar muito, Angus comprará a
firma dele e daquele judeu. Forçará a saída deles. Embora você tenha tanto desprezo por sua família, Laurie, nós não deixamos de ter amigos
que teriam prazer em ajudar Angus. O dia que há tanto espero está próximo. As dívidas e as extravagâncias daquele canalha, juntamente com a
guerra, acabaram por arruiná-lo. Tudo agora é uma questão de poucos meses.
Num movimento rápido e enérgico, Laurie levantou-se e foi até à janela com aquele seu passo largo e tão pouco feminino. Afastou as cortinas e
olhou para a escura tempestade de abril. Ouvia atrás dela a voz exultante de Janie num crescente delírio. Sentia-lhe o ódio venenoso na voz, a
alegria perversa. Agarrou uma ponta das cortinas e torceu-a com raiva.
Stuart estava então arruinado. Não o vira desde a sua volta dois dias antes. Fora preciso cancelar todos os planos em vista da doença de
Elissa. Laurie respirou fundo e as narinas se dilataram, ao mesmo tempo que os lábios se apertavam. Ao fim de algum tempo, sorriu, mas o
seu sorriso, refletido na vidraça, não era uma coisa agradável de ver.
— Há muito tempo que espero —, dizia Janie em voz ainda mais estridente. — Há muito tempo que espero vingar-me dos seus insultos e da
crueldade com que abandonou uma pobre viúva com quatro filhos nas costas. Tenho esperado o dia de vingar-me de todas as
desconsiderações dele por Angus e por minha família.
Laurie interrompeu-a, perguntando:
— Onde está Marvina? E como está a pequena Mary Rose?
Janie sofreou a sua exaltação e respondeu com desprezo:
— Marvina, aquela cretina? Foi para as montanhas como de costume com aquela filha doente deles. Não me admiraria nada se a menina
desta vez levasse à breca. Tosse cada vez mais enquanto Stuart roda em volta dela como um besouro tonto. E seria uma boa coisa ela morrer.
Stuart gasta um bom dinheiro com a doença dela, tirando isso dos lucros das lojas e me prejudicando, evidentemente.
— Stuart está então sozinho naquela casa? — perguntou Laurie, afetando indiferença.
Janie deu uma gargalhada estridente e venenosa.
— Aquela preciosa casa! Ora, não vai ser dele mais por muito tempo. Tenho uma certa vontade de tomá-la para mim e o Sr. Allstairs não se
mostra contrário aos meus desejos! Aquela casa cheia de tesouros que ele não sabe apreciar! Gostarei muito de ver a cara dele quando a
casa lhe for tomada depois da falência! Será um dia de glória para mim, fique sabendo! — Os olhos dela se estreitaram de repente. — Ele
nunca lhe pediu que você pagasse o que ele gastou com você? Isso, da parte dele, não me surpreenderia de modo algum.
— Não, não me pediu —, disse Laurie.
Nada poderia ser mais indiferente e entediado do que a voz dela. Saiu da janela e voltou para perto do fogo.
— Que é que se pensa da guerra aqui em Grandeville, Mamãe? Quando saí de Nova York, havia muita exaltação a esse respeito e esperavam-
se desordens. Mas isso não quer dizer nada. Nova York vive perpetuamente exaltada.
Janie encolheu os ombros. Ainda estava toda arrebatada pelo seu triunfo e não era com prazer que mudava de assunto. Gostaria de continuar
no seu canto de vitória.
— Ora a guerra... Os fazendeiros estão naturalmente enriquecendo e o Sr. Schnitzel e seus amigos estão fazendo bom dinheiro. Têm contratos
com o Exército para toda a carne e todas as salsichas que puderem produzir. O apelo de Lincoln por voluntários não encontrou nenhum eco em
Grandeville. O Sr. Schnitzel e os outros industriais e negociantes advertiram seus homens de que, se atendessem ao apelo, perderiam o
emprego quando a guerra acabasse. Agora, veio o recrutamento e há muita disposição a resistir. Muita gente da alta classe está tratando de
comprar substitutos e faz muito bem.
— Que belo espírito patriótico! — murmurou Laurie com desdém. — Gostaria de saber se no Sul há a mesma felicidade.
Fez um gesto de desalento, abrindo lentamente os braços, e bocejou.
— Já está quase na hora do jantar, não está? Vou-me preparar. Creio que Elissa vai poder descer. Está muito melhor.
Janie teve outra ideia e perguntou:
— A guerra está afetando a sua situação, Laurie?
— De modo algum, Mamãe. Nova York está cheia de dinheiro e de gente que se diverte com os lucros da guerra. Os teatros têm sempre casas
cheias. Nunca se viu tanta alegria, tanta elegância, tanta riqueza, tanta despreocupação. Além disso, pretendo ir para a Europa, logo que
acabar o meu contrato. A guerra não significa absolutamente nada para mim.
Subiu para o seu velho quarto. Sentou-se à mesa de pau-rosa. Pousou na mesa a mão grande, branca, bem feita e cheia de anéis que
cintilavam à luz das lâmpadas. Por fim, pegou uma folha de papel timbrada com seu nome e escreveu:
“Tenho muita necessidade de vê-lo amanhã. É da maior importância. Chegarei a sua casa pontualmente às quatro horas. Por favor, não pense
que haja nada de extraordinário em meu pedido. Não me escreva, pois é impossível. Estarei lá. Laurie.”
Tocou a campainha. Uma criadinha apareceu quase imediatamente. Laurie pôs a carta num envelope e lacrou-o com uma vela, selando-o com
seu anel. Voltou-se então para a criada, que a estava olhando cheia da admiração. Laurie sorriu e, tirando de uma bolsa de contas uma moeda
de ouro, colocou-a na mão da empregada.
— Leve imediatamente esta carta ao Sr. Stuart Coleman. Não quero que ninguém a veja sair ou entrar. Tenho certeza de que poderá conseguir
isso.
Esperou durante todo o tempo, cheia de tensão sob os sorrisos, os risos fáceis, as brincadeiras com Dick, a agradável conversa com Elissa.
De vez em quando, olhava para o relógio. Mas ninguém apareceu com um recado para ela. As dez horas, foi para seu quarto e sorriu para si
mesma.
CAPÍTULO 54
Com a inconstância sempre imprevisível e curiosa do Norte, o tempo mudou durante a noite. Laurie, ao acordar, viu que a neve se havia
reduzido a pequenos montões cintilantes de inocentes alvura, como lã espalhada sobre a brilhante verdura da relva nova. O céu, de um cobalto
puro e polido, estava inundado de luz. Os abetos e outras árvores sempre verdes em torno da casa dos Cauders mostravam as pontas de seus
galhos cheios de vida.
— Tenho de reconhecer —, disse Elissa Rhinelander, ao sentar-se, bem agasalhada em peles, na carruagem dos Cauders —, que este clima
nunca pode ser enfadonho. Ainda ontem, a impressão que se tinha era de que isto aqui era o Polo Norte. Eu quase esperava ver esquimós ao
olhar de minha janela. Hoje, tudo está brilhante e muito belo!
Laurie olhou para as ruas que atravessavam e disse:
— Você devia passar um inverno aqui Aposto que chegaria a duvidar da existência do verão.
Havia um tom rosado sob a sua pele clara e ela estava mais animada do que Elissa jamais a vira. Parecia conter a custo a animação que a
dominava. Quando Dick Thimbleton, que acompanhava ambas, fez uma observação engraçada, o riso dela estrugiu espontaneamente, como
que impelido por alguma exaltação secreta. Ela nunca lhe parecera uma pessoa jovem, apesar de sua mocidade. Mas naquele momento era
uma moça em flor, alegre e resplandecente, disposta a ser amável e atenciosa. Resolveu falar-lhe mais uma vez de casamento naquela tarde,
pois havia em seus olhos um ar de consentimento e de ternura.
Mas, quando procurara por ela depois de deixar a irmã, descobriu que ela havia desaparecido. A Sra. Cauder saíra também na sua carruagem
e o desconsolado Dick chegou à conclusão de que Laurie devia ter saído com a mãe.
Mas Laurie, envolta numa capa negra com capuz, estava naquele momento atravessando as ruas já vazias das multidões do dia, inclinando um
pouco a cabeça com a capa e as saias enfunadas pelo vento ao compasso de seu passo enérgico. O capuz quase lhe ocultava inteiramente o
rosto. Uma loura madeixa de cabelos lhe caía pela testa.
Esperou impacientemente na Rua Niágara a passagem de um bonde puxado a burro, acompanhados de carretas e carruagens. Batia com o
pé na borda do passeio. Quando houve uma abertura no tráfego, passou rapidamente para o outro lado e seguiu o seu caminho rumo ao rio. O
vento lhe batia com força no rosto e no pescoço, balançando-lhe a saia armada. Sentia o ar fresco dos Lagos e do rio e ouvia o murmúrio das
águas agitadas do Canal. O rio, àquela hora da tarde, tinha perdido a sua cintilação e parecia pardacento e fosco. A margem canadense mal
se distinguia contra um céu de heliotrópio. Laurie parou por um instante para respirar o ar puro e vivo. Estava junto aos rochedos da margem do
rio. O capuz lhe caiu da cabeça mostrando o ouro vivo e revolto dos cabelos, enquanto o rosto voltado para o céu tinha aquela rude energia,
simples e inocente, tocada de indomada selvajaria, que fizera o grande Wagner exclamar ao vê-la: “Die Walküre”.
Laurie não ouviu, nem viu a aproximação de um homem velho, baixo e enormemente gordo, que se movia pesadamente na direção dela pela
margem do rio. Logo a percebeu e parou, fascinado pela sua aparência. Pareceu-lhe ao coração simples que ela não era uma criatura deste
mundo, mas um ser caído de um planeta mais heroico e altivo, uma criatura que não era toda bondade e gentileza, mas possuía uma brava
solidão, uma indizível implacabilidade e uma terrível beleza. O seu coração, sempre inclinado à superstição, começou a bater com um estranho
medo e ele quase chegou a persignar-se. Reconheceu-a, então, embora já fizesse vários anos que não a via. Sem compreender o alívio que
sentia, correu para ela sorrindo e de mão estendida.
— É Laurie! — exclamou, com a voz quase perdida no estrépito do vento e da água.
Ela voltou a cabeça para ele e teve um sorriso gracioso e contente.
— Padre Houlihan! — disse, estendendo-lhe a grande mão branca, naquele momento nua de joias.
Ela o olhou, ainda sorrindo. Pobre homem, como envelheceu, pensou ela. Os olhos azuis estavam cheios de tristeza e bem esmaecidos e o
grande rosto corado estava sulcado de rugas como as que produzem uma tristeza profunda e crônica. Sob as abas do chapéu preto redondo, a
pequena franja de cabelos era branca e esparsa. Os fortes ombros estavam caídos, como se tivessem de carregar um peso superior às suas
forças. Mas o sorriso, amplo e infantil, ainda possuía a simplicidade, o amor e a bondade de que ela se lembrava e que nada poderia destruir.
— Quase não reconheci você, Laurie —, disse ele, olhando-a com admiração quase ingênua. — Como você está bonita e que orgulho sinto de
você! Stuart me disse que você tinha chegado, mas eu ainda não a tinha visto nem de longe. É da casa dele que venho.
O mundo está duro demais para ele, pensou Laurie, mas ele ainda não sabe disso. Nunca tivera grande amizade pelo padre e nem mesmo
muito convívio com ele. Tinha sempre havido nos olhos dele uma expressão que a perturbava, mesmo na infância. Ele estava a olhá-la naquele
momento com a mesma expressão honesta e franca.
— E como vai Stuart? — perguntou ela naquela sua voz neutra que nada revelava. — Vou agora mesmo fazer-lhe uma visita.
O padre Houlihan ficou espantado e era um homem tão simples que não conseguiu esconder a sua súbita perturbação. Tinha passado a última
meia hora com Stuart e este lhe parecera agitado e inquieto, mas nada dissera de uma visita que esperasse de Laurie. Na verdade, parecera
ansioso pela saída do amigo, coisa que o padre não chegara a compreender, saindo um pouco depois, um tanto magoado. Generoso como
sempre nos seus pensamentos, atribuíra tudo ao cansaço e às preocupações de Stuart, que com certeza queria descansar. Agora, estava
esperando sozinho naquela casa vazia e aquela jovem mulher ia sozinha ao encontro dele.
Olhou ansiosamente para Laurie e viu que ela o olhava com um sorriso frio que o repelia.
Disse então:
— Quer que eu a acompanhe, Laurie? O caminho da beira do rio é um pouco difícil e eu ainda tenho uma coisa para dizer a Stuart de que me
esqueci.
— Não, Padre, muito obrigada —, disse ela calmamente.
Mas ele não se afastou, embora houvesse nela uma impaciência bem visível.
— Tenho sabido de coisas maravilhosas a seu respeito —, disse ele. — Quase não posso acreditar que a pequena Laurie tenha sido capaz de
tudo isso! É verdade que vai cantar no Auditório no sábado? Pode ter certeza de que estarei lá, feliz e orgulhoso!
— Espero não o decepcionar, Padre —, disse ela e a sensibilidade pronta do padre logo percebeu a ironia em sua voz. Teve imediatamente
pena não dela, mas de Stuart. Entretanto, isso era ridículo.
— Boa tarde, Padre —, disse ela, friamente. — Espero vê-lo ainda antes de voltar para Nova York.
— Tem certeza de que não quer que eu a acompanhe, ao menos durante parte do caminho, Laurie? Pode haver algum desordeiro na margem
do rio. Nunca se sabe...
— Sei muito bem tomar conta de mim mesma, Padre. De qualquer maneira, muito obrigada.
Em seguida, ela inclinou a cabeça e se afastou dele com o seu passo rápido. O Padre Houlihan ficou ali a olhá-la até que um bosque de abetos
a escondeu, numa curva do rio. O padre ficou sozinho, fustigado pelo vento, cercado pela interminável desolação do rio, do céu e das árvores.
Teria ela estado realmente ali? Não deixara uma impressão sensível no ar e nenhuma aura de sua presença. Depois, o padre fez
involuntariamente o sinal-da-cruz e sentiu o coração cheio de tristeza.
Embora ele não soubesse disso, Laurie se escondera no bosque de abetos e esperava impacientemente para ver se ele ia segui-la. Com todo
o poder de sua inexorável vontade, desejou que ele se fosse. Depois de longos minutos, saiu de seu esconderijo e olhou para o lugar onde o
havia deixado. O padre desaparecera. Laurie continuou o seu caminho, sorrindo um pouco.
Chegou por fim à casa de Stuart que se erguia à luz vesperal como um templo grego, flutuando no ar claro e trêmulo, com as suas colunas
rebrilhando e as vidraças azuis do reflexo do céu. Era a imaginação que a fazia parecer abandonada e deserta, isolada num círculo irreal de
desespero? Empurrou o portão resolutamente e entrou. Subiu lentamente os degraus de pedra e bateu a aldrava da porta cujos ecos
repercutiram desoladamente em torno dela.
Foi Stuart quem abriu a porta. Estendeu a mão e puxou-a para o pavimento polido preto e branco do vestíbulo. À luz esmaecente da tarde que
chegava ao vestíbulo, Laurie viu diante dela, fatigado e devastado, mas sorridente e ainda imponente, o esplendor intenso e violento que ele
tivera. Havia manchas grisalhas nas têmporas e uma grande mecha branca se estendia da fronte para as ondas dos cabelos. O rosto estava
muito vermelho e muito marcado pelas dissipações e pelas canseiras e a boca cheia e sensual estava mais murcha apesar do sorriso. Mas
quando ela olhou para ele (e era tão alta que os seus olhos estavam quase no mesmo nível dos dele), o coração lhe bateu
descompassadamente e uma longa onda de emoção, sensual e perturbadora, lhe percorreu todo o corpo. Sentiu-se fraca e tomada de uma
terrível e trêmula alegria.
Olharam-se em silêncio, com as mãos juntas como se estivessem soldadas por fortes impulsos elétricos, e se limitavam a sorrir. Depois do que
pareceu um tempo enorme, Stuart tirou-lhe a capa e jogou-a sobre uma cadeira do vestíbulo. Tornou a tomar-lhe a mão e levou-a para o salão
silencioso e deserto. Ela olhou em torno, quase aturdida. Ali estavam as belas poltronas, os reposteiros, os tapetes de que nunca se havia
esquecido, a profusão de flores, o fogo rosado que tremia no fundo da lareira de mármore. O ar estava cheio de perfume das rosas da estufa e
do cheiro mais quente do carvão que ardia. Não havia um som, um murmúrio que fosse na grande casa. Estavam inteiramente a sós.
Pararam ali de novo e se olharam. O vestido preto de Laurie lhe realçava a beleza dourada. Stuart a olhava em silêncio, com os cantos da boca
trêmulos.
Ela se afastou um pouco dele, com o seu enigmático sorriso.
— Vamo-nos sentar? — disse ela e foram essas as primeiras palavras que ela lhe disse.
Ela se sentou sem pressa diante do fogo e, um momento depois, ele se sentou ao lado em outra cadeira. Ele se curvou para ela com as mãos
entrelaçadas entre os joelhos, a cabeça para a frente e os olhos fitos quase rudemente no rosto dela. Ela tinha nas mãos um lenço de rendas e
o olhava serenamente, embora o busto arfasse imperceptivelmente.
— Laurie —, murmurou ele ternamente.
Ela agitou o lenço diante do rosto, deixando-o ver apenas de relance os olhos e a boca sorridente.
— Como vai, Stuart? — perguntou ela tranquilamente.
Ele apertou os lábios sem responder. Ficaram de novo em silêncio. A queda dos carvões na lareira e o leve movimento do lenço de Laurie
eram os únicos ruídos no salão, Laurie sentiu de novo a curiosa impressão de abandono e vazio da casa. Até os móveis pareciam ter-se
afastado, de modo que o salão parecia maior do que lhe havia ficado na lembrança e mais frio. Stuart parecia sentir também o ambiente
estranho da casa, pois dava a impressão de retrair-se dela e fundir-se na frieza geral. Moveu-se um pouco e esse movimento bastou para que
os olhos dele se voltassem para ela, ansiosos e à espera.
— Ainda não me deu parabéns pelos meus sucessos, Stuart —, disse ela, afastando resolutamente da consciência a fria luz que se coava
pelas vidraças. — Afinal de contas, sejam eles o que forem, só você os tornou possíveis.
— Tive muita vontade de ir assistir à sua estreia na Ópera, mas Mary Rose estava muito doente. Fui forçado a levá-la com a mãe para as
montanhas, onde vão passar o verão. Mas tenho na verdade muito orgulho de você, Laurie. Deve saber muito bem disso.
Mas ela viu que o momento mágico tinha passado e que ele estava de novo emaranhado em suas preocupações, a ponto de quase esquecê-
la.
— Sinto muito a doença de Mary Rose —, disse ela, tentando controlar a sua impaciência. — Mas pensei que ela estivesse melhor. Foi o que
você me disse numa carta que recebi na Europa.
Ele se voltou para ela, tentando sorrir.
— Ela estava melhor. Mas teve um ataque violento neste inverno e o médico recomendou a ida para as montanhas. A última carta que recebi foi
muito animadora. Talvez eu me esteja preocupando à toa.
Olhou para ela apaticamente.
— Você agora é uma mulher muito bela, Laurie. Tenho orgulho de você. Mas não deve esquecer-se de nós aqui.
Ela estava indignada. Que tinha acontecido de errado? Olhou-o fixamente, sentindo a vibração no corpo que lhe doía de novo. E ele a olhava,
com os olhos velados de tristeza e de dor impotente. Era a casa, aquela que agora lhe parecia horrível. Ele estava preso dentro dela e não
podia vê-la entre as suas paredes.
— A guerra lhe está criando muitos problemas, Stuart? — perguntou ela mecanicamente.
Talvez fosse inteiramente errado ter dito isso, porque ele se levantou com uma impetuosidade que bem lhe traía os receios e os tormentos.
— Terríveis problemas! — exclamou ele. — Se isso continuar ainda por muito tempo, estarei arruinado.
Ela se levantou também, decidida a tirá-lo daquela casa e das lembranças que a enchiam.
— Isto aqui dentro está tão abafado, Stuart. Vamos para o ar livre?
— Está bem, Laurie.
Saíram para o vestíbulo e Stuart tornou a colocar-lhe a capa sobre os ombros. Pegou o seu capote e o chapéu de castor e abriu a porta. Saíram
juntos lado a lado, em silêncio.
Tinha havido de novo uma mudança de tempo. O vento havia caído. O céu era um claro azul ultramarino no qual o brilhante crescente da lua era
visto entre os galhos descarnados de um álamo, como uma luz de abajur através de uma filigrana delicada como uma renda. Pássaros se
chamavam de árvore para árvore num silêncio solene como o de uma catedral. Abaixo dos gramados que desciam quase até à margem, o rio
rolava sombrio e turbulento. Nada se podia ver na margem canadense a não ser algumas luzes que piscavam. A cena era imponente em sua
solidão e tinha uma religiosa tranquilidade, triste e melancólica.
Enquanto Laurie e Stuart desciam para o rio, a lua crescente se destacou das árvores. A cabeça de Laurie estava descoberta e o vento lhe
agitava docemente os cabelos. Mil pensamentos lhe corriam pela cabeça impaciente, à procura de uma chance para o que ela queria dizer.
Laurie tinha uma inteligência pronta e flexível de que poucos suspeitavam. Tinha chegado até ali, através de oceanos e de grandes extensões
de terra para aquele momento. Tinha-se encaminhado para ele através de toda sua vida. Por que então lhe faltavam as palavras e por que
estava ali ao lado de um Stuart quase inconsciente da presença dela? Que tinha acontecido?
Tinha consciência de sua humilhante incapacidade. De repente, não pôde mais esperar. Foi seu próprio desespero que a fez voltar-se
impetuosamente para Stuart e tocar-lhe o braço com a mão. Sentiu com prazer os músculos dele contraírem-se involuntariamente e viu os olhos
cheios de assombro voltarem-se para ela.
— Stuart —, disse ela, sentindo a voz forte tremer —, nunca agradeci sua ajuda...
Os olhos cansados se iluminaram, cheios de afeto.
— Nunca desejei seus agradecimentos, Laurie. Bastou-me a alegria de poder ajudar. Não lhe posso dizer o orgulho que tenho de você. Parece
impossível que minha pequena Laurie se tivesse tornado tão...
Ela replicou numa explosão:
— Nada disso me interessa, Stuart! Nunca quis nada disso, nunca me interessei! Só fiz isso porque era esse seu desejo, porque eu sabia que
você ficaria contente, porque você desejava! Deve saber disso, Stuart!
Ele ficou de repente imóvel como se fosse de pedra. Ela se aproximou dele e todo o longo controle e inércia de sua vida foi varrido como palha
pelo fogo. Ela exclamou:
— Não compreende, Stuart? Tenho amado você toda a minha vida! Fiz tudo o que você queria porque pensei que era essa a maneira de
chegar até você! Amei você desde a primeira vez que o vi no cais de Nova York! Toda a minha vida, Stuart! Nada significa para mim senão
você!
Em seguida, ela começou a chorar. As lágrimas lhe rolavam pelas faces. Ela ainda segurava o braço de Stuart e se aproximou tanto que seus
corpos se tocaram.
Ele voltou a cabeça para ela e murmurou:
— Você não sabe o que está dizendo, Laurie. Sou quase vinte e dois anos mais velho do que você e tenho idade bastante para ser seu pai.
Você é muito jovem ainda. Pensa que me ama, mas o que sente é apenas gratidão, Laurie. Não fale comigo assim. Você não me conhece,
Laurie. Não sabe a que se está expondo em vista de sua ignorância e de seu romantismo imaturo. Não me tente, Laurie. Você não sabe o que
está fazendo.
— Stuart —, disse ela com férvida ansiedade —, amo você, sempre amei. Por que acha que voltei? Não havia nada que me fizesse vir até aqui
senão você. Meus estudos em Nova York, meu canto na Europa, tudo isso foi um caminho para voltar para você — Olhou para o rosto
congestionado e duro e suplicou: — Beije-me, Stuart!
Ele afastou as mãos dela. Todos os movimentos dele eram delicados. Mas tremia dos pés à cabeça. Ele estava diante dela e derramava para
ele numa vaga irresistível de desejo. Ela o ouviu dizer:
— Não, Laurie! Pelo amor de Deus! Você tem de me escutar. Nada tenho para lhe dar, nem para lhe oferecer. Sou um homem arruinado,
Laurie. E não posso nem me casar com você.
— Você pensa que eu ainda sou uma criança? — exclamou ela. — Quem falou de casamento? Sou uma mulher, Stuart, e amo você. Não o
deixarei mais. Ficarei com você para sempre!
Os olhos de Stuart se voltaram para ela, como se ele a estivesse vendo pela primeira vez. Não era mais a jovem Laurie que ele tinha
conhecido. Acreditava nela agora. O rosto dela flutuava diante dele, ardente e cheio de desejos e os olhos eram luminosos e doces como o céu
da manhã. Ela havia colocado as mãos nos ombros dele e o seu contato atravessava o pano, queimando-lhe a carne.
Entretanto, algum senso de honestidade o fez parar. Que era que sabia aquela menina de dezenove anos? Como poderia ela saber o que
estava fazendo com ele, um homem de mais de quarenta anos, com uma vida conspurcada de anos, aventuras e desejos? Era fantástico,
terrível. Ele poderia possuí-la com a maior facilidade e conhecer o êxtase, o arrebatamento e o prazer. Mas, pensou atordoadamente, ele a
amava. Sim, sempre a tinha amado. Pela primeira vez na vida, amava uma mulher e era tarde demais.
Tinha vivido toda a sua vida sem controle. Tinha sempre feito tudo o que desejava com violência, luxúria e brutalidade. Tinha-se apoderado de
tudo o que desejara. Ainda que algumas vezes o resultado fosse calamitoso, sempre se sentira satisfeito. Nunca sentira compaixão, nunca se
detivera diante de qualquer consideração de ordem moral sempre que desejava uma coisa, fosse uma mulher, dinheiro ou qualquer luxo.
Mas aquela era Laurie, a pequena Laurie, e ele a amava. Não era apenas uma mulher, mas alguma coisa terna, querida e indefesa. Via agora
que sempre a tinha amado desde o início, desde a infância. Ela era infinitamente cara e preciosa para ele. Estava atordoado com o seu desejo
e o seu desespero, enquanto o coração lhe batia aceleradamente.
Ela não sabia o que estava fazendo ou o que aquilo significava. Tinha de mostrar-lhe e fazê-la recuar com horror e cólera. Não se atrevia a
olhar-lhe a boca. Estendeu a mão e agarrou-lhe brutalmente o seio esquerdo. Empurrou-lhe a cabeça para trás com a outra mão e beijou-a,
separando-lhe os lábios, com o que lhe pareceu tremenda ferocidade. Sentiu, de repente, um impulso de ternura e de pena. E, então, não
estava mais tentando apavorá-la, nem horrorizá-la.
Só muito tempo depois, dentro do seu delírio, foi que ele percebeu que Laurie não havia fugido dele, não chorara, não protestara, nem se
esquivara. Tinha os braços passados pelo pescoço dele, retribuía-lhe os beijos com igual frenesi e murmurava coisas estranhas e incoerentes.
De repente, ele a levantou nos braços e tomou o caminho da casa. Ela descansou a cabeça no ombro dele. Chegaram ao vestíbulo e Laurie
não achou mais a casa desolada e abandonada, mas quente, encantada e cheia de cores que dançavam.
Quando Stuart subiu a bela escadaria, ela lhe procurou a boca, cheia de extático desejo e triunfante alegria.
CAPÍTULO 55
Janie bateu com força na porta do quarto de Laurie e entrou logo em seguida, sem esperar permissão.
Tinha feito muito calor durante a noite para o mês de abril e a luz do sol se derramava, cascateante, pela cama de Laurie. Ela se sentou na
cama ao ver a mãe irromper de cara fechada no quarto. Janie já ia abrir a boca para uma série de palavras iradas, mas parou, estupefata.
Laurie estava sentada na cama inteiramente nua, sem a menor vergonha ou, evidentemente, qualquer consciência de sua nudez.
— Que é, Mamãe?
Janie, atônita, olhou para a filha, cujos ombros dourados e seios pontudos estavam parcialmente ocultos por longas massas de cabelos. Não
via Laurie nua desde que a menina tinha seis anos de idade e diante da súbita realidade daquela mulher feita e voluptuosa compreendia afinal
que tinha uma estranha dentro de casa. Por mais libertina e experimentada que fosse, Janie sentiu-se chocada e estranhamente amedrontada.
Recobrou por fim o fôlego e perguntou:
— Quer-me dizer o que significa essa lamentável exibição? Por que está assim nua na cama?
Laurie olhou para si mesma sem se perturbar e até um pouco surpresa. Sorriu então, sem fazer o menor esforço de cobrir-se.
— Ora, Mamãe, durmo sempre assim. Não suporto camisolas.
Estendeu os braços longos e belos e puxou o cordão da campainha. Recostou-se nos travesseiros e bocejou sem constrangimento e
indolentemente como uma gata. Sacudiu os cabelos dourados, passou as mãos por eles e deixou-os cair sobre o corpo. Olhou Janie com
curiosidade, mas sem cinismo.
Janie deixou-se cair numa cadeira. Estava tão pálida que as sardas se lhe destacavam no rosto. O seu choque era cada vez maior. Evitava
olhar para os seios de Laurie e não podia também encará-la nos olhos. Na sua confusão, fixou o olhar na testa calma de Laurie.
— Presumo —, disse ela com voz rouca e trêmula —, que você não vê nada de vergonhoso, nem de indecente nisso? Sem dúvida, isso faz
parte de seu procedimento geral.
Laurie riu.
— Mas vergonhoso e indecente por quê? Durmo sozinha. E quando não durmo, tenho certeza de que a outra pessoa não se opõe.
— Que é que está dizendo?
— Escute, Mamãe, que importância tem a minha maneira de dormir? Gosto assim e creio que é só isso que interessa. — Fez uma pausa e
acrescentou: — Que era que me queria dizer?
Numa voz trêmula de ódio e de raiva, Janie retrucou:
— Tocou a campainha pedindo seu café, não foi? Quer que a empregada veja você nesse... nesse estado? Por favor, cubra-se, se isso não for
um esforço muito grande. Esta casa sempre foi respeitável e eu não quero que as empregadas saiam por aí contando coisas.
Laurie encolheu os ombros. Estendeu para fora da cama as pernas longas e perfeitas. Fascinada, Janie foi incapaz de desviar os olhos. Viu
Laurie cobrir displicentemente com um peignoir azul o esplendor de sua nudez. Laurie apanhou uma escova em cima da penteadeira e passou-
a rapidamente pela riqueza dos cabelos, sem olhar para o espelho. Era tão inconsciente de sua beleza ou tão indiferente a ela quanto uma
árvore em flor. Começou a cantarolar e sua voz plena e poderosa encheu o quarto. Janie sentiu uma opressão peculiar no peito magro; todos
os seus nervos vibravam com intolerável malignidade. Como eram horrivelmente injustos o mundo e o destino! Dar tudo aquilo a uma mulher
desinteressada e desavergonhada e nada a outras!
Exclamou então do fundo da sua malevolência e inveja:
— Quer parar com esses miados e me escutar?
Laurie olhou-a por cima do ombro com sincera surpresa. Tinha esquecido a presença da mãe.
— Desculpe, Mamãe. Pode falar.
Tremendo com os esforços que fazia para controlar-se, Janie quase gritou:
— Posso perguntar a Vossa Alteza se sabe que horas são?
— Não. Que horas são? — disse Laurie. Olhou para o céu e riu: — Já deve ser quase meio-dia.
— Quase meio-dia, hem? E isso não significa nada mais para você, não é? Pois fique sabendo que para mim significa muito. Significa que
você só entrou nesta casa respeitável quase ao amanhecer. Significa que eu passei a noite sem dormir, cheia de preocupação, em companhia
de seus belos amigos, um dos quais, pelo menos, andou o tempo todo de um lado para outro, na ansiedade que sentia por você, só Deus sabe
por quê! Os homens são tão cegos e idiotas! Quando afinal me deixaram, fiquei esperando sozinha. E então, ouvi as rodas de uma carruagem
no fim da rua, quase atrás da carroça do leite. Ouvi a carruagem parar. Não se aproximou mais. Logo depois, você apareceu, evitando a luz
dos lampiões como uma prostituta e entrou furtivamente pela porta dos fundos.
Levantou-se de um salto, com o rosto pálido a esfuziar de fúria.
— Quer ter a bondade de esclarecer-me quanto a esses reprováveis fatos?
Laurie voltou-se para a mãe e disse muito calmamente:
— O que eu faço é exclusivamente de minha conta. Nestes últimos seis meses, mandei-lhe dois mil dólares e numerosos presentes. Se quiser,
deixarei esta casa imediatamente.
Janie ficou estarrecida e sem poder falar diante de tanto atrevimento. Não estava mais representando. Pegou o espaldar da cadeira. Esta lhe
escorregou das mãos e caiu no chão, virando-se. Olhou em torno de si cegamente, com o corpo oscilando um pouco. Deixou-se então cair na
cama quente e perfumada de que Laurie se levantara pouco antes. E Laurie a olhou durante todo esse tempo impassivelmente. Disse então:
— Não sou nada para você e você não é nada para mim. Tem de compreender isso.
— Como é que pode dizer isso a mim que sou sua mãe, Laurie? — perguntou Janie com voz fraca e trêmula. — Que foi que eu fiz para merecer
tamanha crueldade? Crueldade —, repetiu, cheia de amarga surpresa por não ter sabido antes que Laurie era cruel. Com isso, seu medo
aumentou e também sua desolação.
— O que estou querendo dizer apenas, Mamãe, é que não se deve meter em minha vida. Não estou querendo ser insolente, nem insensível.
Mas não sou mais uma criança. Sou uma mulher e tive a experiência de uma mulher. Tenho alguma fama e não dependo absolutamente para
proteção e para abrigo de você ou de meus irmãos.
— Para que voltou, então, Laurie, se sua mãe e seus irmãos nada representam para você?
— Bem, reconheço que empreguei mal as palavras. Não devia ter dito talvez que você nada é para mim e não devia ter dado a entender que
também assim considero meus irmãos. Tenho minhas simpatias. Não teria voltado a Grandeville se nada houvesse aqui para mim. Nunca me
deixei levar pelo sentimentalismo, nem por aqueles que estabeleceram padrões de sentimentalismo para serem seguidos por outros entes
humanos.
Mas Janie olhou fixamente para a filha e Laurie compreendeu que a mãe não era tola e não se deixava enganar com palavras bonitas.
— Que veio fazer aqui, Laurie? — perguntou ela.
Aquilo se estava tornando cansativo. E também perigoso. Laurie se sentia secretamente exasperada e impaciente. A sua posição era firme e
segura, acima de qualquer escândalo, mas era preciso levar em conta a pessoa de Stuart.
— Já não lhe disse, Mamãe? Afinal de contas, tenho o direito de ser também um pouco sentimental.
— Veio então jogar o seu triunfo em nossa cara, não foi?
— Talvez —, disse Laurie, rindo. — Eu também sou humana...
Bateram discretamente na porta e a empregada a quem Laurie tinha dado a moeda de ouro entrou com a bandeja do café. Laurie fez sinal com
um sorriso para que ela deixasse a bandeja na mesinha de cabeceira. Sentou-se indolentemente na cama e examinou o mingau fumegante, os
ovos e o bacon com sadio interesse. O robe azul se entreabriu, revelando-lhe as coxas redondas e perfeitas. A empregadinha ficou vermelha,
mas não pôde afastar a vista.
Mas Janie olhou para a empregada e se lembrou de outra coisa. Ali estava alguém sobre quem ela podia lançar o vitríolo de sua raiva e de sua
humilhação sem o menor perigo de reação ou de derrota. Gritou:
— Berta! Acabo de saber que você saiu sem pedir licença na noite de quinta-feira, embora fosse a hora do jantar e a outra empregada
estivesse doente, e que só voltou quase no momento em que se ia servir o jantar. Qual é a explicação que tem para me dar? Era por acaso a
sua noite de folga ou teve a impressão de que era?
Berta, amedrontada, torcia as mãos à frente do avental e lançou um olhar suplicante a Laurie. Esta levantou a cobertura de prata de um prato e
disse amistosamente:
— Não brigue com Berta, Mamãe. A culpa foi minha. Tinha alguns assuntos legais para discutir com Robbie e mandei Berta levar uma carta a
Alice, perguntando se eu podia vê-los ontem à noite para uma longa conversa e uma consulta. Parece que perturbei imperdoavelmente a ordem
desta casa. Primeiro, afastei Berta de seus deveres e, depois, fiz minha cara Mamãe ficar metade da noite acordada, esperando a minha volta.
Creio que adquiri hábitos cosmopolitas que, infelizmente, não se aplicam a Grandeville.
A expressão de Laurie era amistosa, mas ela estava intimamente irritada. Era odiosa e humilhante aquela contingência de mentir e usar de
subterfúgios, tão necessária numa cidade pequena e, ainda mais, no seio de sua família! Era intolerável.
Janie olhou para a filha e a sua fisionomia se abrandou um pouco. Voltou-se então para Berta e disse com voz menos áspera:
— Vá trabalhar. Estou vendo que não teve culpa. Deve naturalmente obedecer à Srta. Laurie em tudo o que ela deseje, mas veja lá como anda.
Laurie franziu levemente o cenho. Nesse momento, entrou sua empregada pessoal lamentando não ter ouvido a campainha e preparada para
uma explosão de Laurie. Mas, com surpresa para Laurette, Laurie recebeu-a afavelmente.
— Tenha a bondade de encher de novo o bule de chá para mim, Laurette —, disse Laurie. — Talvez a Sra. Cauder queira tomar uma xícara
comigo.
As duas empregadas saíram e Janie e Laurie ficaram de novo sozinhas. Laurie comia com prazer embora estivesse muito aborrecida e Janie a
olhava em silêncio. Laurette voltou com o bule de chá e serviu Janie com extrema solicitude. A atitude dela abrandou Janie, que lhe agradeceu
gentilmente. Ah, as empregadas de Nova York tinham um jeito que nunca se podia encontrar entre as rústicas de Grandeville. Invejava Laurie
por ter uma empregada assim. Laurette retirou-se discretamente para o quarto de vestir de Laurie, a fim de preparar os vestidos de sua patroa
para o dia.
Janie tomou o chá enquanto Laurie devorava os ovos, o bacon, os bolinhos. Como era pouco distinto ter um apetite assim, pensou Janie, sem
se envergonhar absolutamente disso. Laurie lhe lembrava uma camponesa, cheia de vitalidade, de grosseria e de fome. Esses pensamentos a
aplacaram um pouco.
Laurie recostou-se nos travesseiros e suspirou voluptuosamente.
— Como maravilhosamente! — exclamou ela. — Nem em Nova York ou Londres há ovos tão frescos assim! Quanto a Paris, nem é bom falar!
Só se arranja um pãozinho duro e uma xícara de um café abominável. Parabéns pela sua cozinheira, Mamãe!
Janie sorriu de orgulho.
— Gordon é preciosa. Uma comida substancial sem requintes, mas o que pode haver de melhor.
Laurie olhou pela janela e murmurou:
— É difícil imaginar um dia bonito assim em Grandeville no mês de abril. Amanhã, vamos ter neve de novo, com certeza. —. Olhou para a mãe
e disse: — Sempre fico mal-humorada antes do café, Mamãe. Peço-lhe perdão. Estou tão habituada a entrar e sair como bem me agrada que
nunca me ocorreu que lhe devia uma explicação. Sinto muito que lhe tenha dado aflição.
O tom de Laurie era tão gentil e tão contrito que o ânimo de Janie se recuperou por completo. Franziu os lábios com severidade maternal:
— Temos de pensar nos vizinhos, Laurie, para não falar da minha ansiedade natural. É uma coisa que uma mãe tem de aprender a suportar
com a maior filosofia possível, o egoísmo dos filhos. E não acho bom uma mulher andar sozinha à noite pela rua. Nunca se sabe.
— Ora, Robbie me trouxe até em casa na carruagem dele —, disse Laurie, de novo aborrecida com a necessidade de informar Robbie de que
ele a levara para casa naquela madrugada. Era horroroso isso. — E não estava andando pela rua. Pedi que a carruagem parasse na esquina
para não incomodá-la, porque sei que seu sono é muito leve.
Mas já estava aborrecida. Naqueles últimos três anos, não tivera necessidade de anular ou apaziguar ninguém. Esse papel cabia aos outros.
Excessivamente horrível. Laurette apareceu para perguntar qual era o vestido que Laurie pretendia usar no recital daquela noite no Auditório.
Laurie franziu a testa. Tinha-se esquecido.
— Qualquer coisa, Laurette! Mas nada de muito exagerado. Talvez o de cetim verde com rendas.
Olhou para a mãe e começou a tirar o robe. Janie ficou meio confusa, alegou os serviços de casa de que tinha de cuidar e saiu do quarto.
Laurie esperou que a porta se fechasse e tirou o robe. A luz do sol, dourada como a sua carne, banhou-lhe o corpo.
Laurie sorriu e começou a cantar baixinho. Laurette escutou-a, encantada. Mademoiselle estava muito contente naquela manhã. E aquele canto
era o canto de uma mulher que amava, de uma mulher que tinha um amante. Laurette nunca ouvira Mademoiselle cantar assim. Era muito
interessante. Será que Mademoiselle havia afinal cedido àquele adorável Monsieur Thimbleton?
CAPÍTULO 56
Laurie ficou irritada quando um mensageiro lhe levou o programa apressadamente feito para o recital daquela noite. Com ingenuidade e
inocência, a comissão encarregada do espetáculo fazia extensos comentários sobre a raça de Laurie e anunciava que ela cantaria “uma
seleção de cantos escoceses, sempre caros ao coração dessa americana de origem celta. Embora a Srta. Cauder seja famosa pelas suas
magníficas interpretações de várias óperas, especialmente as de Robert (!) Wagner, um músico alemão de considerável competência, e
embora ela tenha concordado em cantar essas óperas para a sociedade elegante e refinada de Nova York, vai apresentar ao compreensivo
público de Grandeville as árias e baladas simples tão apreciadas pelos corações simples e tão caras aos que preferem a sinceridade a árias
cantadas em línguas estrangeiras e compostas por músicos que desconhecem a honestidade e a simplicidade do povo americano. Os
acompanhamentos ao piano serão feitos pela Srta. Rachel Ellicott, descendente do fundador desta florescente cidade.”
Apesar de tudo, Laurie não pôde deixar de rir quando leu esse programa impresso. Cantos escoceses, pois sim! Aqueles imbecis com sua
“honestidade e simplicidade”! Talvez aquela gente não tivesse pensado que ela teria necessidade de ensaiar as “árias e baladas” com a Srta.
Ellicott, que provavelmente fungava, tinha pés grandes e mãos piores. Nada havia a fazer senão ir ao Auditório, pegar a Srta. Ellicott entre seus
lenços e espirros e ensaiar de qualquer maneira os “cantos escoceses” com ela antes do recital.
Como se atreviam a mortificá-la com a sua adoração! Que presunção a deles de que estivessem fazendo honra a ela, que tinha sido
homenageada pela Rainha Vitória, pelo Rei da Baviera, pelos Bonapartes! Julgavam sem dúvida que estavam sendo condescendentes com o
seu culto amável e deviam estar dispostos a fazer críticas rústicas à sua arte. Em Nova York, dariam gargalhadas quando ela dissesse isso.
Era uma mortificação por mais ridícula que fosse.
Reagiu então com o seu senso de humor sempre vigoroso. Passou em revista o seu repertório. Não havia uma só ária ou balada escocesa.
Entretanto, a Srta. Ellicott devia ter várias entre as suas músicas.
Não lhe faria mal algum dar àqueles rústicos um pouco de prazer, refletiu ela. Encontrou duas músicas e ficou muito quieta, olhando para elas.
Tinham sido escritas para ela em Paris por um amigo, um músico de grande competência um tal Bizet, que ainda iria escrever uma ópera
famosa. Tinha feito um arranjo muito hábil da música, mas sem obscurecer a pura beleza e simplicidade dos cantos naturais. Ficou de repente
com os olhos fixos e muito pálida sentindo no coração uma indizível angústia.
Pensava: daqui a cinco dias, tenho de voltar para Nova York. Durante esse tempo, tenho de ligá-lo a mim de uma maneira que ele nunca mais
esqueça. Temos uma vida no futuro, juntos. Nada até hoje me derrotou. Nada me derrotará agora. Ele é meu e eu sou dele e tenho de fazê-lo
ver que isso será para sempre.
Mostrou o programa do Auditório de Grandeville a Elissa Rhinelander e Dick Thimbleton e se alegrou com o riso deles. O riso de Elissa foi um
tanto cruel. Dick pareceu comovido e isso aborreceu Laurie mais do que nunca.
— Eles têm amor por você —, dissera ele. — Afinal de contas, são seus velhos amigos e têm orgulho de você.
— Insultam-me com esse orgulho —, dissera ela altivamente.
Dick a olhara com obscura tristeza. Havia ocasiões, pensou ele, em que Laurie era inteiramente vulgar e insensível. Entretanto, essas
qualidades faziam dela o que ela era: exuberantemente sadia, indomável e robusta, cheia de energia e poder. Laurie estava sustentando o
olhar dele. Não gostava de vê-la estreitar os olhos daquele jeito. Mostravam um brilho frio e calculista. Ele amava Laurie, sim. Mas não aquela
Laurie que absolutamente não lhe agradava.
Olhou para a irmã e disse:
— Elissa, minha querida, sinto muito, mas acho que temos de voltar para Nova York antes que Laurie parta de Grandeville. Por favor, creia em
mim. Há necessidade disso.
Elissa sentiu-se confusa. Volveu os olhos do irmão para Laurie, que estava sorrindo indiferentemente. Elissa encolheu os ombros. Não entendia
nada, mas era de presumir que Dick soubesse o que estava fazendo.
Laurie deixou-os, voltando para seu quarto. Os dois irmãos ficaram sozinhos e Elissa disse, arqueando as sobrancelhas:
— Bem, acho que está na hora de me dar explicações.
Dick deu um suspiro.
— Sei perfeitamente quando recebo ordem de despedida. De um modo geral, sempre soube que nada adiantava com Laurie. Aconteceu
alguma coisa com ela aqui. O que foi não sei, mas a verdade é que ela me pôs de lado como se eu tivesse perdido toda a importância. Ela vai
ficar satisfeita quando eu me for embora. É tudo o que posso fazer por ela agora.
Em seu quarto, Laurie estava escrevendo às pressas o seguinte bilhete:
“Vou encontrar-me com você amanhã, às quatro horas, na beira do rio, defronte de sua casa. Tenho muito o que lhe dizer e não tive
oportunidade ontem.” Releu o que tinha escrito e teve a impressão de que havia em suas palavras um tom imperioso, quase de uma ordem.
Rasgou o bilhete e escreveu o seguinte: “Preciso vê-lo outra vez, perto do rio, defronte de sua casa, às quatro horas. Tenho uma coisa para lhe
dizer, querido, para a qual não tive oportunidade ontem. Com todo o coração e toda a alma, sua Laurie.”
Por que era preciso sempre levar em conta a sensibilidade dos outros? A maneira direta, que chegava logo ao âmago das coisas, sempre
ofendia. Lacrou e selou a carta e guardou-a no seio. Entregá-la-ia a Stuart naquela noite, quando tivesse oportunidade. Levantou-se, sentindo-
se renovada e dominando todas as circunstâncias, inexoravelmente. Mas o coração estava constrangido e perturbado, o sangue corria muito
depressa. Olhou pela vidraça. O enganoso tempo primaveril tinha mudado. O céu para os lados do norte já estava escurecendo e havia no ar
um jeito de neve. Apesar disso, abriu a janela e deixou que o vento frio lhe refrescasse o rosto ardente.
Lembrou-se dos escrúpulos de Stuart, de sua delicadeza, dos seus receios por ela. Essas recordações só lhe inspiravam um desdém cheio de
amor. Ele quase não acreditara quando ela havia declarado a sua paixão por ele, a sua obsessão por ele, o longo caminho percorrido para
chegar a ele. Ele tinha pensado que tudo isso era o ardor extravagante e inocente de uma mocinha de quem ele se estava aproveitando em
detrimento dela. É verdade que durante algum tempo a reação dela ao desejo e a impetuosidade dele tinham-no quase convencido, mas
haviam-no também desorientado. Ele tinha querido protegê-la. Laurie apertou com força o peitoril da janela. Que era que ele sabia dela? Como
poderia compreender o longo desejo e a devoção que a tinham feito empreender uma carreira apenas porque acreditara que isso poderia
enchê-lo de admiração e de orgulho?
Era difícil para ele, sem dúvida, compreender. Laurie, que já não era ingênua, não se sentia inteiramente ofuscada pela sua paixão. Sabia muito
bem que Stuart era um negociante provinciano, à beira da ruína. Era extravagante, violento e inescrupuloso, pródigo e dissoluto. Os seus
apetites seriam sempre superiores às suas posses e acabariam por destruí-lo. Não tinha um espírito muito brilhante, embora a sua intuição
fosse sutil e capaz de discernimento. Era desordenado e impetuoso e seria sempre incapaz de refinamento, tangido apenas pelos seus
desejos, pelos seus impulsos e pelos seus anseios tempestuosos.
Por que então ela o amava? Que era que a tinha levado para os seus braços, para o seu desespero e para a sua ruína naquela cidadezinha
abominável que ela detestava? Na verdade, não sabia. Sabia apenas que sempre o desejara com todas as fibras de seu corpo e com todas as
gotas de seu sangue. Quando pensava nele, alguma coisa se fundia em sua alma e ela se tornava de novo pura, terna e resplandecente.
Que importância tinha a ruína dele? Que mal fazia que ele perdesse aquelas ridículas lojas? Ela tinha muito dinheiro. E ia ter muito mais. Não
havia limite para o que ela podia fazer. Via-se em companhia de Stuart indo de uma bela cidade para outra, hóspedes dos poderosos que a
cultuavam. Todos aceitariam Stuart, por ordem sua. Todos esperavam que uma cantora famosa tivesse amantes. Stuart ficaria no brilhante
fundo da vida dela, sempre confortando-a, sempre admirando-a, sempre orgulhoso dela, sempre amoroso e apaixonado. Ela voltaria para os
braços dele depois de cada triunfo e repousaria neles, de novo uma menina, carinhosa e simples, vivendo nesses momentos exclusivamente
para ele.
Quando lhe passou pela cabeça a incômoda ideia de que talvez Stuart não quisesse ser o beneficiário da fortuna dela, sacudiu a cabeça com
impaciência. Ele não poderia ser tão idiota a esse ponto. Dinheiro era dinheiro e ele não poderia ser insensível à fortuna dela. Sem que
soubesse conscientemente, contava principalmente com a ponta de fraqueza que notara nele anos antes. Ele é que a tinha feito; nada mais
justo que aceitasse as compensações pelo que fizera.
Para ela, a vida dele ou as circunstâncias dessa vida não constituíam um impedimento. A filha, aquela insignificante criaturinha doente? A boca
de Laurie se contraiu cruelmente. Odiava Mary Rose com virulenta intensidade, só porque Stuart a amava. Ela, Laurie, acabaria com esse
sentimentalismo. Sentia dentro de si mesma a força e a resolução, que nada poderia derrotar. Ela faria planos para a vida de Stuart e dela e a
energia dela a fazia vê-lo aceitando tudo, cedendo em tudo. Em troca, ele a teria inteiramente, fundida em seus braços, dando-lhe toda sua vida
e toda sua alma. Como poderia qualquer homem resistir a perspectivas tão grandiosas, a futuro tão radioso?
Aborrecida e irritada quase além do que seria tolerável, Laurie voltou ao miserável camarim nos fundos do palco cheio de correntes de ar do
Auditório de Grandeville. Uma hora de ensaio com a lacrimejante Srta. Ellicott a havia enfurecido. Tinha tiranizado e maltratado a pobre criatura
até fazê-la dar uma execução ao menos aceitável das “simples árias e baladas”. Isso, ao menos, era algum consolo. A Srta. Ellicott com toda a
certeza estava odiando-a, mas ela também havia intimidado a sujeitinha. Laurie sentia-se de novo humilhada pelo fato de se ver sujeita a tal
situação, contra sua vontade e sem consulta prévia. Só desejava era que a mulherzinha não estivesse tão desmoralizada por ela que fosse
falhar nos acompanhamentos.
Quando abriu a porta do camarim, encontrou Robbie e Alice que a esperavam. Alice usava um amplo vestido de rendas com um xale de
caxemira passado pelos ombros delicados. O seu estado era evidente, coisa que absolutamente não a perturbava. Abraçou Laurie com gentil
efusão.
— Recebemos sua carta, minha querida —, explicou ela —, mas só agora pudemos vir.
Laurie aceitou calmamente o beijo que o irmão lhe deu no rosto. Ainda estava cheia de raiva e mortificação, mas sorriu amavelmente.
Não via o casal desde que recebera a visita deles em Nova York seis meses antes. Olhou para Alice e perguntou com um sorriso:
— Quando?
Alice ficou um pouco vermelha, olhou timidamente para Laurie e respondeu:
— Daqui a três meses.
Estendeu a mãozinha branca para Robbie, que a tomou carinhosamente, ao mesmo tempo que olhava para a irmã como curiosidade e afeto.
Respeitava-a muito e com seu espírito sutil via muita coisa no seu rosto enérgico e belo.
— De tudo o que sei, você vai indo excelentemente, Laurie —, disse ele.
— Ao que sei, você também vai indo muito bem —, disse Laurie, dando-lhe um de seus encantadores sorrisos.
Sentara-se no banco diante do espelho gretado do camarim e era toda esplendor e majestade. O vestido de cetim verde-claro se enfunava
diante dela graças aos arcos enormes da saia, cobertos por verdadeiras cascatas de rendas e botões de rosa. O corpete de rendas mal lhe
escondia os belos seios. Os ombros estavam inteiramente nus e eram perfeitos. Os cabelos dourados, penteados com simplicidade, estavam
presos atrás num lustroso coque. Levava ao pescoço um colar de rubis cujos reflexos escarlates se difundiam sobre a pele macia. Pulseiras do
mesmo conjunto do colar se mostravam nos longos braços nus. Naquele camarim mal cuidado e frio, ela era uma visão incrível de beleza. A um
canto, via-se um montão de rosas e samambaias das estufas de Stuart.
Alice sentia-se virtualmente intimidada pela presença de Laurie, apesar da gentileza com que era tratada.
Laurie disse de repente, olhando pare Robbie:
— É muito desagradável para mim o que vou dizer, mas pedi que viessem até aqui com um objetivo especial. Robbie, às quatro horas da tarde
de ontem, estive em sua casa para fazer uma visita a você e a Alice. Queria debater alguns assuntos legais com você e passar horas
agradáveis com sua gentil esposa e com você. Você me levou para casa quase ao amanhecer. Foi uma longa visita porque já fazia algum
tempo que eu não o via e porque os assuntos que eu tinha para discutir com você, a respeito de minhas propriedades em Nova York, eram um
tanto complicados.
Alice olhou para ela, toda confusa, e murmurou:
— Mas, Laurie, esta é a primeira vez que estamos com você desde que chegou...
Laurie lançou-lhe um olhar de impaciência e se virou para Robbie, que sorria calmamente e murmurou:
— Acho que está enganada, Alice...
Laurie levantou-se. Robbie podia sentir sua energia, o profundo desprezo que ela sentia por aquele subterfúgio.
— Que cidadezinha horrível é esta! — exclamou ela. — Aqui, todas essas mentiras e truques parecem necessários. Nossa querida Mamãe
poderá fazer-lhe perguntas. Além disso, posso ter de fazer-lhe algumas visitas nos próximos cinco dias.
Olhou para Alice, que parecia completamente estupefata.
Robbie franzia pensativamente a testa. Não tinha críticas a fazer a Laurie. Não tinha perguntas. Sabia que ela era imperiosa e forte. Ela sempre
havia de saber o que estava fazendo.
— Laurie —, disse Alice, falando com resolução apesar de sua confusão e de sua timidez —, não sei o que quer dizer tudo isso. Não sei a
necessidade que você tem desses... estratagemas, tão abaixo de você. Mas pode confiar em nós.
— Sei que posso confiar em você, Alice. Mas não vou fazer confidências. Só lhes estou pedindo esse favor e um pouco de compreensão. Mas
meus casos são meus. Não consulto a ninguém. E você, Robbie? Não vai assumir o papel severo do irmão mais velho?
É ridículo, pensou Robbie, achando graça. Ela é mais alta e bem mais forte do que eu. Poderia derrubar-me com um dedo apenas. “Irmão mais
velho”... O seu forte senso do ridículo fê-lo sorrir involuntariamente. Que estaria Laurie fazendo? Havia um homem metido nisso ou ele não
conhecia a humanidade. Quem seria o homem? O aristocrata hospedado na casa da mãe? Havia lido as insinuações dos jornais locais. Mas
que necessidade tinha ela de ir furtivamente com ele para os matos? Tudo poderia ser feito com mais conforto dentro de casa. Mas talvez o
cavalheiro fosse escrupuloso e não quisesse violar a “santidade” do lar de Laurie.
Mas não se sentia absolutamente escandalizado, como poderia sentir-se com uma irmã mais fraca e mais obscura.
Recostou-se na cadeira pouco confortável do camarim e disse calmamente, como se estivesse discutindo um assunto de interesse muito
remoto:
— Laurie, é evidente que você adquiriu uma tendência a, como se diz, pegar o boi pelos chifres. Deve ter aprendido com Euclides que a linha
reta é o caminho mais curto entre dois pontos dados. Infelizmente, para pessoas como você, uma proposição axiomática não admite
absolutamente as extravagâncias da natureza humana e os caprichos alheios que poderiam levar a mal você cobrir triunfalmente o caminho
mais curto, com o vento a seu favor. Será que você está seguindo minha linha de raciocínio?
A pequena Alice, que era bastante perspicaz, olhou, entretanto, para o marido com espanto, achando que o que ele dizia não se aplicava ao
caso. Mas Laurie olhava para o irmão com muita seriedade e um leve rubor lhe apareceu nas faces. Começou a tamborilar com os dedos na
mesa do camarim e, dentro em pouco, batia também o pé. Disse então:
— Vejo que continua a mesma criatura racional, Robbie. Mas se abrandou um pouco. Houve um tempo em que você só tinha censuras para os
que levavam em conta as sensibilidades humanas quando escolhiam o caminho mais curto entre dois pontos. Devo dar-lhe parabéns por uma
sabedoria que veio com o correr dos anos ou lamentar que tivesse perdido o seu realismo?
A testa de Robbie, em geral tão serena e calma, se enrugou um pouco. Olhou Laurie firmemente e disse:
— Acho melhor dizer que agora é que eu sou realista.
Levantou-se sob o olhar irônico da irmã e disse:
— Pode parecer sem importância para você, Laurie, mas eu me lembro agora de uma frase de Hesíodo: “Para os animais da terra e para as
aves do ar, Deus ordenou uma lei, segundo a qual devem atacar-se uns aos outros; mas para os homens, ele ordenou a justiça, que é muito
melhor.” Em circunstâncias que só posso encarar com preocupação, você aprendeu a atacar. Aprendeu também a não levar mais ninguém em
conta. Estabeleceu seu rumo de acordo com seus desejos. Isso é triste para você, Laurie, porque a fará sofrer. De certo modo, tenho muita
pena de você.
Ela o havia escutado com sorridente desdém e disse:
— Não compreendo muito bem suas referências clássicas, Robbie, mas admiro humildemente sua cultura. É verdade que aprendi muitas
coisas, mas isso não interessa agora. Acontece que voltei a Grandeville com um objetivo determinado, que é o objetivo de minha vida. Dentro
em pouco, estarei de novo ausente. Qual é esse objetivo, isso é meu caso pessoal. Foi muito desagradável para você o meu pedido de ajuda?
Ele ficou diante dela em silêncio. Mas Laurie viu os olhos dele fitos nela e percebeu que estavam cheios de bondade, de uma bondade como
nunca vira neles. Alguma coisa se moveu no coração dela. As linhas duras de sua fisionomia se suavizaram. Robbie disse então:
— Não, Laurie, não há nada de desagradável. Você não é mais uma criança, é evidente. Se pudermos ajudá-la, é só dizer.
Estendeu a mão para Alice, cujo rosto se iluminou todo ante esse gesto de ternura. Levantou-se imediatamente e deu infantilmente a mão ao
marido. Das alturas de seu amor, contemplou radiantemente a pobre Laurie, a quem ninguém amava apesar de sua beleza, de sua fama e de
suas grandes qualidades. Laurie disse então:
— Muito obrigada, Robbie. Agora, tenho de me preparar para comparecer diante do distinto público.
O gerente do Auditório entrou logo depois de Robbie e sua mulher terem saído. Estava muito nervoso e quando encontrou o olhar duro de
Laurie Cauder, ficou ainda pior. Pedia desculpas, mas talvez ela não tivesse compreendido bem o programa. Haveria quatro números
interpretados pelo coro da Primeira Igreja Presbiteriana antes do recital dela. Era um coro muito bom, gaguejou ele diante da cara fechada de
Laurie ao saber dessa afronta. Depois do coro, o ministro daquela igreja diria algumas palavras. Seria então a vez dela.
— Isso vai levar pelo menos uma hora! — exclamou Laurie. — Vou ficar esse tempo todo neste camarim frio e sem conforto, enquanto um coro
de basbaques grita lá fora?
O gerente fugiu. Laurie, perigosamente perto do ponto de explosão, passeou de um lado para outro durante vários momentos. Começou então
a rir estrondosamente.
CAPÍTULO 57
Tinham sido reservadas cadeiras especiais perto do palco para a família Cauder. Janie estava sentada do lado direito com Bertie, um Bertie
esquelético e pálido, mas que sorria tão afavelmente quanto sempre, causando o desespero das moças próximas que tentavam atrair-lhe o
olhar. Entretanto, quando ele não estava sorrindo, o rosto se mostrava tragicamente abatido e envelhecido e as mãos tremiam quase sem
parar. Era a primeira vez que aparecia em público desde muitos meses e as pessoas por perto trocavam cochichos sobre ele. Bertie parecia
não tomar conhecimento disso e dispensava a todos a quem olhava o seu sorriso ausente e fulgurante. Isso fazia com que se calassem,
embora não fosse absolutamente essa a sua intenção.
A esquerda de Janie, estavam sentados Angus, sua mulher Gretchen, e os pais dela disfarçadamente despeitados e invejosos. Angus estava
tão rígido como um cadáver escorado, com o rosto pálido e severo fixo e sem expressão e os olhos cinzentos frios e foscos como pedras.
Robbie, naturalmente, estava sentado ao lado de seu irmão Bertie e empenhava-se com ele numa conversa amistosa e esparsa, enquanto
Alice lhe segurava a mão mais ou menos inerte.
Atrás do grupo Cauder, estavam sentados Stuart e seus dois amigos, Padre Houlihan e Sam Berkowitz. Sam estava muito calado porque
perdera recentemente a mãe e o padre parecia cheio de tensão e de cansaço, embora não houvesse qualquer razão manifesta para isso.
Stuart é que se mostrava muito alegre e animado, com uma exuberância que os dois amigos havia anos não viam nele. Notavam também nele
uma espécie de febril inquietação. Embora falassem de vez em quando com ele durante os números do coro e o sermão floreado do ministro,
ele mal respondia e os seus gestos eram puramente mecânicos.
A assistência, como disseram derramadamente os jornais na segunda-feira, era extremamente selecionada e elegante e se reunia com a
melhor das disposições para homenagear a ilustre conterrânea. Falaram também os jornais da profusão de flores no palco, dos festões e
bandeiras que engalanavam a sala, das fardas dos oficiais em licença que enchiam a plateia e das belíssimas toaletes das senhoras que
enchiam o salão em alegre expectativa.
Na realidade, a sala era fria, cheia de corrente de ar e superlotada. As verbas municipais tinham minguado a tal ponto na construção do
auditório que o teto não era forrado e havia no alto uma confusa e ameaçadora mistura de ripas, vigas, andaimes e teias de aranha. O pano de
boca, de um veludo vermelho barato, tinha sido aproveitado de um teatro mais antigo e estava esfiapado e empoeirado. Das vigas, pendia um
lustre com bicos de gás, cujo mau cheiro dominava todos os perfumes usados pelas senhoras, mas era uma inovação e, como tal, merecia
olhares de admiração e de orgulho. As paredes estavam pintadas de um marrom sujo e delas escorriam gotas de umidade. O chão era de
tábuas mal aplainadas e sujas. Os bancos eram uma mistura reunida às pressas de várias igrejas e salas de reunião abandonadas, não
apresentando o menor conforto.
Mas sob aquela luz incerta, as senhoras se abanavam com os leques de penas, inclinavam as cabeças com os chapéus, agitavam os lenços e
conversavam afetadamente com os cavalheiros que as acompanhavam, certas de que se tratava de um espetáculo distinto para um público
ainda mais distinto. Não tinham a menor dúvida de que Laurie ficaria impressionada com o aspecto cosmopolita do Auditório e com a
elegância das pessoas presentes. Tinham firmemente decidido que não se deixariam impressionar excessivamente por ela e que os seus
aplausos seriam comedidos para dar-lhe uma lição de humildade que ela não tivera nos salões dourados de Nova York ou da Europa. Muitas
das senhoras já começavam a exibir um tédio de bom-tom, cheiravam sais languidamente e conversavam sobre o horror que era tudo aquilo
com as pessoas vizinhas. Laurie não tinha ainda aparecido e muitas senhoras insinuavam que talvez tivessem de retirar-se antes que ela
surgisse timidamente no palco, para cuidar da casa e das crianças, pois as criadas estavam impossíveis desde que começara a guerra e
corriam para as fábricas a fim de costurar fardas e roupa de cama para os soldados. Ninguém sabia onde era que o mundo ia parar.
A “orquestra” de três figuras, composta de um piano, um violino e uma caixa insistente, começou a tocar triunfalmente e, como que em resposta,
o lustre sibilou, lançando clarões ameaçadores. O pano, que havia caído depois da saída do ministro, subiu aos arrancos para mostrar Laurie
Cauder no palco empoeirado, diante de um pano de fundo que mostrava uma cena de jardim, espalhafatosamente pintada com violetas,
amarelos, vermelhos e azuis gritantes. O público a recebeu com aplausos moderados, que ela agradeceu ironicamente com uma leve
inclinação da cabeça. Aos seus pés, as gambiarras ardiam espasmodicamente. Laurie sentia o cheiro do gás, da poeira, da umidade.
Avançou um pouco mais para a ribalta e a Srta. Ellicott levantou a vista para a artista famosa com um ódio mesclado de medo e nervosismo.
Laurie olhou para a assistência e esta, cheia de dignidade, olhou para Laurie. Sorriu intimamente, mas não pôde deixar de sentir-se
mortificada. Com a sensibilidade de uma artista, percebeu imediatamente a disposição do público. Viu claramente que aqueles provincianos
julgavam que lhe estavam fazendo uma “honra” — aqueles fabricantes de salsichas, pequenos industriais, negociantes de cereais, lojistas,
criadores e negociantes de cavalos, proprietários de matadouros, donos de pedreiras e fabricantes de tijolos. As mulheres olhavam para Laurie
com binóculos de teatro e inclinavam majestosamente a cabeça. Na verdade, murmuravam entre si, a moça é grande demais, tem um andar
pouco distinto e o jeito dela é muito pouco feminino.
Laurie abriu a boca. E a assistência ficou imediatamente atordoada. Todos tinham esperado uma voz doce e gorjeante, bonita, leve e atraente,
uma voz semelhante à da Srta. Ducey, que era muito apreciada nas festas particulares. Bem, tinham concedido antes de Laurie aparecer, talvez
fosse um pouco melhor que a da Srta. Ducey, com melhor timbre e mais volume, à qual estavam preparados para aplaudir. A Srta. Cauder não
iria encontrar um público de basbaques sem discernimento.
Mas a voz que se derramava dos lábios de Laurie era como uma catarata de ouro puro, líquido e cintilante, sem esforço e de um vigor
extraordinário. Era como uma grande ave de ouro que voava e subia contra um céu dourado com as fortes asas abertas e refulgentes de
ofuscante luz. Elevava-se, batia nas vigas do teto, ricocheteava das estreitas paredes num volume assombroso de som fantástico que fez o
público emudecer de estupefação. Era incrível que toda aquela música vigorosa e perfeita pudesse sair da garganta de uma só mulher e que
ela não se despedaçasse com o simples dinamismo dela. Fez desaparecer a fraca “orquestra” e parecia cantar sozinha. Só nas suas pausas é
que se podia perceber o acompanhamento, com o atraso de um compasso ou dois. Era como a retaguarda trêmula de um exército de
bandeiras desfraldadas.
Stuart, que no começo tinha sorrido, estava muito parado, com o cotovelo apoiado nas costas da cadeira de Janie. Estava pálido e imóvel.
Escutava a voz que tinha emocionado reis, príncipes, duques e rainhas, que tinha levado ao delírio dezenas de milhares de pessoas distantes.
Parecia-lhe que Laurie cantava só para ele. Não ouviu o sussurro atônito do Padre Houlihan, que murmurava “Meu Deus!”, nem a exclamação
surda de Sam. Aquela voz que vibrava triunfalmente e que dominava a sala com o seu vigor selvagem e belo enchia-o de êxtase, de orgulho e
de arrasadora paixão. Laurie! Laurie! Ela olhava para ele e sorria enquanto cantava e ele via atordoadamente o seio arfar com o canto como as
ondas do mar.
Um pouco da magia de sua voz se comunicou misteriosamente à sua carne, de modo que ela pareceu cingida de luz, com o rosto
incandescente e os poucos gestos que fazia irradiantes de claridade. A assistência, petrificada e muda, a olhava fixamente, deslumbrada pela
“mais gloriosa Elizabeth do mundo”, como dela dissera entusiasticamente Wagner.
Então ela ficou em silêncio e a trêmula orquestra parou também.
Não se ouvia o menor som, salvo o sibilar do lustre de gás. Laurie cumprimentou, sorrindo de novo ironicamente, arqueando as sobrancelhas. A
plateia a olhava, congelada em completa imobilidade, incapaz de levantar sequer as mãos.
Laurie disse então:
— Agora, caros amigos, vou executar um canto, em sinal de reconhecimento. Não o encontrarão em loja alguma. Foi composto e cantado por
meu pai nas montanhas da Escócia.
Algumas pessoas na plateia bateram palmas fracamente, numa recuperação tardia. Mas todos os outros ainda estavam mudos e estupefatos,
salvo um homem cuja mulher, sentada ao lado dele, não notou o seu gesto convulsivo ao ouvir as palavras de Laurie e não viu a transformação
que se lhe operou no rosto.
Laurie abriu o pequeno rolo de música que tinha na mão e se voltou gentilmente para a orquestra atarantada.
— Não tenho música de acompanhamento para este canto —, disse ela. — Vou cantar sozinha.
Voltou-se de novo para a plateia. Levantou a cabeça, a luz incerta do gás lhe brilhou nos olhos e as órbitas se encheram de intensa chama azul.
Não olhava mais para Stuart. Procurava o rosto do irmão, o rosto de Angus, e fitou-o fixamente.
Entoou então o canto do pai, Ó Estrela da Manhã! Proferiu as palavras simples e pungentes, modulou a música pura, terna e apaixonada. A voz
dela tremia. Era uma torrente de cristal cintilante ou de lágrimas. Erguia-se numa súplica ardente como a um céu matinal sombrio, no qual uma
estrela brilhava com exultante fogo. Aquela voz era como um levantar de mãos em prece, como um rosto voltado com humildade e dignidade
para os céus iluminados. Era o apelo de uma alma, que adorava, suplicava e se unia a Deus, cheia do orgulho que lhe dava a consciência de
conhecê-Lo. Eram asas de anjos que se transfiguravam em luz ao toque do amanhecer. Era o mais doce e mais reverente êxtase, translúcido e
severo.
Ninguém viu Angus inclinar-se para a frente a fim de ouvi-la, nem lhe notou à luz do gás o rosto banhado de suor. Ninguém o viu levar as mãos à
cabeça num gesto de angústia. Ninguém percebeu que ele olhava apenas para a irmã e que ela olhava apenas para ele, clamando por ele com
todo o poder e a antiga ternura de sua voz, como se, naquele momento, ela se tivesse lembrado dele e estendesse as mãos para ele numa
derradeira súplica.
— Por Deus! — exclamou Bertie, quando a última nota se extinguiu dramaticamente. — Ela tem uma voz maravilhosa! Se Papai a pudesse ter
ouvido!
Janie estava enxugando sentimentalmente os olhos. Robbie sorria muito comovido para sua mulherzinha pálida.
— Ah, é uma grande coisa saber que se deu uma voz assim ao mundo —, murmurou Janie entre suspiros.
Mas Angus estava sentado na cadeira como um morto e comprimia as têmporas que latejavam com uma dor terrível.
Laurie estava cumprimentando, sorrindo e recuando, ao mesmo tempo que varria o chão com a saia. Por fim, desapareceu, deixando no palco
uma espécie de leve e trêmula aura.
A plateia, voltando afinal a si, começou a murmurar incoerentemente, como se despertasse de um torpor. Foi então que se ouviu Gretchen gritar
cheia de medo:
— Angus! Meu marido está sentindo alguma coisa!
CAPÍTULO 58
Gretchen, de rosto intumescido, abriu a porta do quarto escurecido de Angus para Laurie e a mãe dela. Os grossos reposteiros vermelhos
estavam cerrados para não deixar entrar o sol de abril e o fogo aceso fazia o ambiente do quarto fechado muito sufocante. Os odores dos
lugares sem ventilação pairavam compactamente no ar imóvel. Janie ofegou um pouco e levou ao nariz o lenço perfumado de alfazema. Mas
Laurie se aproximou da cama e ficou olhando para o irmão em frio silêncio. No fundo do quarto, Gretchen chorava baixinho e torcia as mãos,
lançando olhares furtivos e hostis a Laurie.
Angus estava com a cabeça reclinada nos travesseiros brancos, com os olhos fechados. Mas as mãos magras se moviam incessantemente,
como se tateassem.
Vendo isso, Janie exclamou estridentemente:
— Meu Deus! Vejam o que ele está fazendo!
Começou a chorar. Gretchen, esquecendo a sua antipatia por Laurie, correu para a cama e se curvou sobre o marido, ao mesmo tempo que o
seu choro se transformava em gritos de dor. Procurou os sinais de morte iminente, mas quando viu que Angus não estava fazendo nada de
diferente do que fazia desde a noite anterior, o seu terror se dissolveu em ressentimento contra Janie, fazendo-a olhar furiosamente para a
sogra.
— Isso que ele está fazendo com os dedos não é nada demais —, disse ela com voz rouca. — Está dormindo e com um pesadelo.
— Sim, ele está tendo um pesadelo —, disse Laurie, friamente.
Sentou-se, sem tirar o chapéu e a capa, na cadeira ao lado da cama. Um candeeiro de querosene ardia tristemente no quarto. Laurie olhava o
irmão sem emoção visível. Depois, olhou divertidamente para a afogueada Janie e a gorda e esbranquiçada Gretchen, as quais trocavam
olhares acerados como baionetas.
Laurie achava Gretchen mais desagradável do que nunca. O folgado robe violeta encrespado de rendas não contribuía no mínimo para
disfarçar o seu “estado”, realçando-o ao contrário. Era uma terrível criatura, meditou Laurie, revoltada. Mas era também digna de compaixão.
Era evidente que adorava Angus, o qual estava ali deitado, preocupado demais com os seus horrores e desesperos íntimos.
Não havia em Laurie muita margem para a piedade. Não obstante, ao contemplar Gretchen com a sua frieza e a sua objetividade habituais, não
pôde deixar de sentir alguma coisa que parecia compaixão. Havia nela naqueles dias um abrandamento e um calor por onde podiam penetrar
emoções mais humanas. Sorriu para a jovem mulher, que tinha completado o seu estudo mal intencionado de Janie.
— Não parece tão mal assim —, disse ela. — Que é que os médicos dizem?
Gretchen, tomada de certo modo de surpresa por essa gentileza e pelo brilho claro dos olhos de Laurie, se derreteu em pena de si mesma e no
afastamento dos seus receios.
— Dizem que é um dos ataques que ele costuma ter. Só que esse foi o pior de todos. É na cabeça, sabe? Ele é sujeito a essas dores de
cabeça. Mas já há algum tempo que não sofria disso e nós tínhamos esperança de que estivesse curado.
— O que ele precisa é de um pouco de ar e de luz —, disse Janie em voz alta. — Isto aqui dentro está sufocante.
Marchou para as janelas, afastou os reposteiros e abriu uma vidraça. A luz do sol irrompeu pelo quarto nas asas do vento. A luz do candeeiro
empalideceu. Uma faixa de sol tocou o rosto de Angus e ele se agitou e murmurou.
— Oh! — exclamou Gretchen, correndo desajeitadamente para as janelas. — Não pode fazer isso! Os médicos recomendaram sossego e
escuro!
Mas parou, acovardando-se diante dos olhos verdes fuzilantes de Janie.
— Você está é matando meu filho! É de ar e de luz que ele precisa e vai ter isso, ao menos enquanto a mãe dele estiver aqui!
— É uma imprudência —, murmurou Gretchen, dominada. — Ele vai piorar.
Laurie, vendo que Angus estava a ponto de acordar, disse:
— Por que não param de discutir? Isso o perturba mais do que o ar e a luz.
Angus movia a cabeça nos travesseiros, como se estivesse em grande sofrimento. Por fim, muito lentamente, abriu os olhos. Não houve
qualquer sinal de reconhecimento quando olhou para a irmã, sentada ao lado dele. Olhou-a com o cansaço vazio e distante de uma criança
doente, ainda imersa em seus sonhos febris. Ela se curvou para ele e disse gentilmente:
— Sou eu, Angus, Laurie. Está melhor?
Mas ele não respondeu. Continuou a olhá-la, imóvel, como se tentasse ver-lhe o rosto através de densa névoa. Mas, por fim, houve em seus
olhos uma breve fagulha de reconhecimento e os seus lábios se descerraram num suspiro. Tentou sorrir e moveu a mão. Laurie hesitou. Tocou-
lhe de leve a mão e sorriu.
— Estou vendo que está melhor. Soubemos de sua doença súbita e aqui estamos para fazer-lhe uma visita. Sei que não é nada de grave. Você
deve repousar.
A mão sob a dela estava fria, úmida e fraca. Teve ímpeto de afastar-se. Mas a piedade incerta rompeu as barreiras e inundou-a. Apertou a mão
com força, tentando transmitir-lhe a sua força e saúde. Uma ponta de dor se lhe agitou no frio coração. Sentiu os olhos arderem e uma tristeza
avassalante lhe invadiu a alma.
Depois de muito esforço, ele conseguiu murmurar:
— Aquele canto, Laurie. O canto de Papai.
A voz era simples, quase infantil, e a dor cresceu no peito de Laurie. Curvou-se mais para ele e murmurou:
— Foi para você que eu cantei, Angus.
De repente, com surpresa para ela ou talvez sem surpresa, o rosto dele se fechou, pleno de acusação e de amargura. Afastou a mão e
murmurou com voz mais forte:
— Foi uma coisa cruel que você fez, Laurie.
Ela ficou a olhá-lo e, afinal, exclamou:
— Não foi cruel, Angus. Pensei que podia chegar a você pela última vez. Pensei que pudesse chegar a você por mim, também.
Janie e Gretchen tinham-se aproximado da cama. Estavam escutando com espanto, trocando olhares perplexos, com a inimizade entre elas
esquecida. Gretchen disse:
— Você o está afligindo, Laurie.
Laurie levantou-se. Olhou para o .irmão com raiva nos olhos, mas com súplica também.
— Não adianta, Angus? — perguntou.
Ele não respondeu. Virou a cabeça para o outro lado e encolheu os ombros.
Ela hesitou. A vontade que tinha era de deixá-lo imediatamente. Mas alguma coisa a fez dizer com um tremor na voz:
— Já me esqueceu inteiramente, Angus? Sou ainda Laurie.
Ele suspirou profundamente e murmurou sem voltar a cabeça para ela:
— Não, não é Laurie.
O rosto de Laurie se endureceu ainda que a dor a devorasse e ela disse:
— Então, você também não é mais Angus.
Esperou um pouco, mas ele não tornou a falar. Ela olhou para a mãe e fez-lhe um sinal. Janie curvou-se para o filho e beijou-lhe o rosto com os
lábios pintados. Ele não fez o menor sinal de reconhecimento. As duas mulheres saíram juntas do quarto. No mesmo instante, Gretchen correu
para as janelas, fechou as vidraças e correu os reposteiros, vedando de novo o ar e a luz. Voltou na ponta dos pés para junto do marido. Ele
parecia dormir.
CAPÍTULO 59
O rio rolava escuro e cor de vinho, com um som distante, sob um alto céu cinzento que escurecia fantasticamente. Todas as cores da terra
estavam esmaecidas, de modo que a relva próxima, as árvores e os canteiros de flores tinham um ar pardacento e indistinto como se
pertencessem a um mundo de sonhos ou a algum estranho planeta. Não havia rumor de pássaros ou de vento e a atmosfera parecia
singularmente oca, indo nela perder-se todos os ecos. Até a casa branca de Stuart no alto parecia irreal, como que formada de névoa flutuante.
Era um cenário que deprimia e inquietava Laurie. Fazia-a lembrar-se da história do jardim de sonho que Stuart lhe contara havia muito tempo.
Ela e Stuart caminharam até à margem do rio num pesado silêncio que eles não puderam durante algum tempo quebrar, sentindo-se dentro de
um vácuo numa paisagem de contornos débeis e que podia dissolver-se a qualquer instante. Ficaram por um momento de mãos dadas,
olhando o rio. A margem canadense se dissolvera num nevoeiro cinzento, de modo que as águas não tinham um limite visível. Embora fosse
quase a hora do crepúsculo, não havia qualquer resplendor avermelhado para os lados do poente, mas apenas uma sombra purpúrea que
escurecia perceptivelmente.
Sentaram-se num rochedo e Stuart acendeu um charuto. Laurie viu a fumaça subir no ar, quase tão cinzenta e preguiçosa como a névoa que os
envolvia. Tinha os olhos cansados e imersos em seus pensamentos. A sua mão na de Stuart era só o que havia de quente em toda aquela
sombria desolação.
Stuart disse então:
— Há muito tempo, cheguei à conclusão de que não adianta fazer coisa alguma em relação a Angus. Você se está afligindo inutilmente, meu
amor.
A expressão de Laurie se tornou mais triste, mais sombria.
— Foi loucura minha ter tentado. Angus mudou há anos e eu nada pude fazer senão vê-lo mudar. Não sei o que foi que me deu naquela noite.
Talvez fosse porque nunca me conformei com a derrota e julguei que poderia abrir caminho até ele.
Ela jogou a cabeça para trás e levantou a mão nua. Os cabelos dourados refulgiam ao crepúsculo, mas no rosto não havia cor. Esqueceu Stuart
nos seus pensamentos sombrios e ele olhou atentamente para o heroico perfil de Laurie, todo em planos fortes e claros e ângulos delicados.
Que mulher era ela! Nunca havia conhecido uma mulher honesta, dotada de energia, propósito e resolução e que, apesar disso, pudesse ser
tão terna e tão docemente apaixonada. Ela o fazia sentir-se fraco, exausto e irresoluto e, mais uma vez, ficou sem saber por que ela o amava.
Seria alguma ilusão que ela mantinha e lhe obscurecia o julgamento? Não, ela não estava iludida. Tinha sido em alguns momentos muito franca
e concordava com ele quanto ao fato de que ele estragara e aviltara a sua vida.
Ela vai partir dentro em breve, pensou ele, e queira Deus que me esqueça. O pensamento desprendido dava-lhe estranha força e coragem
ainda que o enchesse de sofrimento e desolação. Nada tinha para ela, nada lhe podia dar, nem sequer esperança. Não estava ao seu alcance
dar-lhe nem a duvidosa honra de seu nome. Mas é claro, pensava ele, que ela me vai esquecer! Quem sou eu em comparação com os homens
que já conheceu e vai conhecer?
Mas era uma maravilha, que o enchia de humildade, o fato de que ela tivesse feito tanto para estar ao lado dele, que tivesse marchado através
das sombras para a realidade dele! Que tenacidade! Que ilusão! A compaixão se misturou à tristeza e desolação que sentia e ele levou a mão
dela aos lábios.
Ela sorriu abstratamente para ele. Tinha ainda os olhos cheios de dor e inquietação. Continuava a pensar em Angus.
— Angus e eu costumávamos passear aqui pela beira do rio. Sempre tínhamos tanto que dizer um ao outro. Como posso esquecê-lo,
abandoná-lo? Ele faz parte de minha infância. Era meu amigo. Nós nos amávamos. Então, ele mudou. Odiei minha mãe por tê-lo influenciado
para a sua destruição. Agora, não tenho mais tanta certeza. Só um fraco se deixa levar por outra criatura humana para a ruína e para o
desespero.
Com inesperada impetuosidade, retirou a mão que Stuart segurava e disse:
-— Não sei por que cantei aquilo! A razão talvez esteja no fundo de meu espírito, porque obedeci cegamente ao impulso. Vi o rosto dele. Vi o
cadáver vivo que ele se havia tornado e me pareceu terrível que fosse Angus, meu irmão, o homem que estava ali sentado ao lado daquela
mulher imbecil, com toda a sua vida destruída! Ouvi meu pai cantar e cantei com ele para Angus. Eram as mãos de meu pai que se estendiam
para Angus por meu intermédio. Eu ouvia a voz dele na minha.
Olhou para Stuart com os olhos cheios de lágrimas e continuou:
— Sei que parece ridículo. Mas vi meu pai estender as mãos para Angus, tentando salvá-lo. Acredito que há ocasiões em que os “mortos”
chamam os outros e estendem as mãos para eles por intermédio da voz e do corpo de outra pessoa. Sei que foi isso que aconteceu ontem à
noite com meu pai.
Stuart colocou a grande mão quente sobre um dos joelhos dela e disse:
— Talvez você tenha razão. Há dois ou três anos, sonhei com minha mãe. Era uma pobre criatura, boa e modesta. Julguei que ela me
apareceu, me tomou pela mão e me fez sair da cama. Disse-me então: “Stuart, você sempre acreditou que tinha inimigos. E talvez um grande
inimigo, maior que todos. Você tem razão. Tem um terrível inimigo. Venha comigo através de sua vida e eu lhe mostrarei o rosto dele, para que
você possa conhecê-lo e nunca mais esquecê-lo.”
Laurie tentou sorrir, tentou falar, mas ficou calada. Por fim, desde que Stuart não disse mais nada e ficou olhando as águas do rio com uma
expressão trágica, perguntou:
— E então, Stuart? Ela lhe mostrou o rosto de seu inimigo?
— Mostrou, sim —, disse ele, sem olhar para ela. — Levou-me através da selva mais emaranhada e terrível que se pode imaginar. Era cheia de
uivos, de fétidos, de poços, de trepadeiras com horrendas flores vermelhas. Era noite e havia uma lua avermelhada acima das árvores. Levou-
me afinal para uma poça de água no meio da selva e me disse: “Aí está seu inimigo. Fique prevenido dele a tempo.” Olhei para a poça e vi meu
rosto. Estava certa, sabe? E acho que ela me apareceu naquela noite.
Laurie estava muito parada no rochedo onde se sentavam. Toda a vitalidade parecia havê-la abandonado. Ao fim de muito tempo, disse:
— Tentei chegar a Angus. Foi um erro. Só fiz foi causar-lhe sofrimento e ele agora me odeia.
— Como é que você pode saber o que realmente fez por ele? — perguntou prontamente Stuart. — Talvez ele ainda venha a compreender. Eu,
também, lutei muito com Angus e acabei desistindo. Mas talvez eu tenha plantado dentro dele alguma coisa que pode brotar um dia quando
menos se esperar. Ao menos, essa ideia é agradável à minha vaidade.
Laurie tomou a mão dele entre as suas. Ele passou o outro braço pelas costas dela e Laurie descansou a cabeça em seu ombro. Disse então
ternamente:
— Quando é que você irá a Nova York de novo, Stuart?
— Não sei, querida. Não tenho motivo algum para ir. As remessas das mercadorias que encomendei na França e na Inglaterra foram
“indefinidamente adiadas”, segundo diz o Departamento da Guerra. Os embarques de algodão do Sul cessaram por completo. É claro que eu
poderia negociar com contrabando, mas não quero. Teria de pagar preços muito altos por essa mercadoria ilegal.
— Mas os tecidos de algodão são fabricados na Nova Inglaterra, não são?
— Eu costumava importar meu algodão e remetê-lo para as fábricas da Nova Inglaterra, onde as fazendas eram tecidas de acordo com os
padrões que eu escolhia por um preço bem razoável. Isso não é mais possível. É claro que posso comprar às fábricas tecidos de padrões
comuns, mas os preços subiram tanto que não estão mais ao alcance da maior parte de minha freguesia. As fábricas estão ganhando muito
dinheiro com esta guerra. Posso comprar o que quiser por um preço acima de qualquer limite e explorar minha freguesia na mesma proporção.
Na verdade, é isso o que me têm cinicamente aconselhado. O fato é que o Norte está atravessando um surto de prosperidade enquanto o Sul
passa fome. Mas não é essa prosperidade, comprada com o sangue dos soldados e o suor das mulheres e das crianças pagas
miseravelmente, que eu desejo. Não quero negócios com esses patifes. Além disso, eles exigem dinheiro.
— As coisas vão mal então para você, Stuart?
— Muito mal. Não quero nem pensar até que ponto. Passei a viver de dia para dia. Se puder conservar minha casa, nada mais terá
importância.
Deixou cair os braços em desânimo e continuou:
— Não posso mais pagar as minhas contas em dia. Em alguns casos, estou com seis meses de atraso. Só o fato de que Sam quase não retira
um centavo da firma é que nos mantém em atividade. Se a guerra terminar neste ano, conseguirei sobreviver. Do contrário, irei à guerra. Mas a
guerra não pode deixar de terminar neste ano.
— Sendo assim, que é que você vende?
— Vendo o que tenho e compro o que posso. Muitas das minhas prateleiras estão vazias. Tive de despedir quase a metade de meus
empregados e isso, para mim, foi o pior de tudo. Felizmente, muitos deles se alistaram e outros conseguiram outros empregos. Nenhum deles
está sofrendo. Preciso de quinhentos dólares por mês! Não posso viver com menos. Por isso, não olho mais os livros agora. Quando se passa
mais um dia sem termos chegado à ruína, respiro fundo e espero o dia seguinte.
Que maneira mais insensata de viver, pensou Laurie. Disse então:
— Mas Angus lida com os livros. Sem dúvida, ele lhe informaria se o ponto de perigo estivesse próximo.
— Sem dúvida.
Sem dúvida, ela repetiu para si mesma, com uma ironia apreensiva e sombria.
Mas a apreensão de Laurie aumentou e ela viu o rosto de Angus. Claro que Stuart podia confiar nele! Claro que ele se lembraria de que Stuart
é que lhe dera as suas oportunidades, tinha confiado nele, tinha-lhe estendido a mão com a maior bondade e lhe dera uma consideração e uma
amizade que ele nunca havia encontrado antes. Tentou lembrar-se de que Angus tinha ao menos um elevado sentimento de honra e de
integridade e pensou que ele nunca mentia nem enganava e que sua triste religião o refrearia de procedimentos indignos. Abanou a cabeça
repetidamente, como se quisesse negar a possibilidade. Janie poderia fazer planos sinistros, mas Angus era de uma rígida integridade. Tudo
ele poderia ter perdido, menos isso!
— Lembra-se da Ilha do Rio, Laurie? — perguntou Stuart. — Sam me disse que economizou agora dez mil dólares. A ilha é propriedade
municipal e está à venda. Ninguém a quer particularmente ou se ofereceu para comprá-la, a não ser aquela aranha velha, Joshua Allstairs. Sabe
que já está com mais de oitenta anos e continua ruim como sempre? Allstairs acha que pode lotear a ilha para sítios, embora haja dificuldade
de transportes. De qualquer maneira, já ofereceu sete mil dólares por ela. Sam oferece dez mil. Ainda não desistiu de seu sonho e vê agora
uma oportunidade de realizá-lo. Vem-se privando nestes últimos anos até das necessidades mínimas da vida a fim de economizar esse
dinheiro. Acontece que há quatro anos houve um grande pogrom na Polônia e ele receia que em breve haverá outro, logo que isso for
conveniente aos proprietários de terras e ao clero. Quer trazer para cá pelo menos quatro mil judeus aterrados e estabelecê-los na ilha. E eu
não consigo esquecer que se ele não tivesse pago algumas dívidas pessoais minhas, essas infortunadas pessoas já poderiam estar livres da
morte e da tortura. De certo modo, sinto-me culpado. Há cerca de um mês, ele me ofereceu esse dinheiro, mas eu não poderia aceitar. Seria
um crime! Até hoje, me arrependo do dinheiro que ele gastou comigo e de que eu só paguei quatro mil dólares.
— Sam algum dia lhe cobrou esse dinheiro, Stuart?
— Nunca! Ele não seria capaz de uma coisa dessas! Foi preciso insistir muito para que ele recebesse os quatro mil dólares que já paguei.
Houve então os pogroms e eu compreendi o que minha insensatez lhe havia custado. O pobre homem envelheceu dez anos em alguns dias
quando os jornais publicaram as notícias. Quando fiquei aflito e me atribuí toda a culpa, ele me disse: “Se eu não tivesse prezado você acima
de tudo mais, não lhe teria dado esse dinheiro, meu amigo. Não pense mais nisso. Não fiz mais do que você teria feito por mim.”
Laurie umedeceu os lábios. Olhou firmemente para a frente e disse:
— Vamos ser honestos e lógicos, Stuart. Quanto foi que você gastou comigo?
Ele se afastou imediatamente dela, como se tivesse sido insultado. Ela exclamou, enchendo-se de energia:
— Não me olhe assim como se estivesse louco, Stuart! Pensou que eu pretendia aceitar a sua generosidade sem pagá-la, quando pudesse?
Acha que posso ser objeto de caridade, uma criatura desprezível, sem orgulho, nem respeito próprio? É verdade que você é meu primo, mas o
parentesco é distante. Nunca se admirou de não lhe perguntarem quem foi que me ajudou e por quê? Posso assegurar-lhe que essas
perguntas têm sido feitas e que a resposta que eu tenho dado a essas pessoas curiosas é que esse dinheiro me foi emprestado e vai ser
pago.
Stuart estava com o rosto congestionado e a ponto de explodir. Ela pousou a mão no braço dele.
— Sou agora uma mulher rica, Stuart. Peço-lhe que me permita pagar-lhe para que eu não perca meu respeito próprio e minha dignidade. —
Riu secamente e acrescentou: — Se eu fosse homem, isso nem se discutiria entre nós. Ficaria tacitamente entendido.
Ele se levantou como se fosse deixá-la. Ela se levantou também.
— Sente-se ofendido em seu orgulho, Stuart? Mas pense que eu também tenho o meu.
Stuart tentou falar calmamente, mas a voz saiu um tanto áspera.
— Você não deve nunca mais falar disso, Laurie. O caso é muito menos simples do que você pensa. Só lhe direi uma coisa: nossas palavras
enfraqueceram o respeito próprio, a segurança, o domínio das circunstâncias que eu ainda possuo. Permita que eu me orgulhe de uma coisa
ao menos!
Olharam-se firmemente durante alguns momentos. Laurie viu como ele estava abalado, exasperado e atormentado. Aproximou-se então e com
extrema delicadeza beijou-lhe o rosto, dizendo:
— Muito bem, Stuart. Não falarei mais nisso, se é o que você quer. Sinto muito que você não me deixe ter o meu orgulho, querido. Ainda acho,
porém, que nesta emergência você poderia deixar-me restituir o dinheiro que de direito lhe pertence.
Tentou fazê-lo voltar à disposição anterior, mas o havia magoado de alguma maneira inexplicável e embora ele se mostrasse cheio de
gentilezas quando continuaram o seu passeio pela beira do rio, estava muito calado e abstrato. Ela disse afinal:
— Tudo o que fiz, Stuart, foi porque você o desejou para mim e não porque eu mesma o desejasse. Eu era uma menina bronca, cheia de
indiferença e indolência. Mas quando você falou de meu “futuro”, pude ver que esse futuro lhe daria orgulho de mim. Fiz tudo por sua causa.
O egoísmo lacerado de Stuart ficou sinceramente satisfeito com essas palavras e ele apertou a mão pousada em seu braço com uma ternura
que despertava. E disse:
— Mas quem sou eu em comparação com você, meu amor querido?
— Sem você, eu não seria nada —, respondeu ela.
Stuart começou a falar então de suas ansiedades e ela o ouviu com o mais profundo interesse. Duas semanas antes, o Padre Houlihan, quando
voltava tarde da noite da cabeceira de um doente a quem fora prestar assistência espiritual, fora atacado por alguns desordeiros que o haviam
espancado e insultado. Duas freiras, quando iam para a missa no domingo anterior, tinham sido abordadas por dois homens que lhes tinham
dito coisas horríveis, num espírito de zombaria obscena. Outro vitral da igreja tinha sido quebrado a pedradas e na porta do convento tinham
aparecido palavras imorais. De puro medo, muitos fiéis estavam deixando de ir à missa e as crianças católicas, quando voltavam da escola
para casa, tinham sido ameaçadas. Sam Berkowitz e os outros judeus da cidade, em número de cerca de cem, tinham recebido ameaças de
violência física e de expulsão de Grandeville. O sentimento “antiestrangeiro” estava aumentando perigosamente.
— E nós estamos empenhados numa luta de morte pela salvação da República! — exclamou Stuart exaltadamente. — Há aqui uma trama
sinistra e muito grave, mas que é difícil de ser desvendada.
Laurie tentou acalmá-lo embora não sentisse interesse pessoal pelo caso.
— Mas, segundo soube, Stuart, Grandeville já deu 14.000 homens para o exército da União. Isso mostra que, se há uma trama, não faz sucesso
aqui.
— Há uma trama, sim, Laurie, e não apenas em Grandeville! O sentimento contra os “estrangeiros” se alastra tanto no Norte quanto no Sul. A
coisa é tão alarmante que o próprio Presidente já dirigiu mensagem ao Congresso sobre o assunto. Qual é o objetivo disso? Por que surgiu
numa ocasião como esta? E quem é que, neste país, tem competência para julgar quem é “estrangeiro” e prejudicial e quem não é? Não
somos todos, nascidos no estrangeiro ou aqui, estranhos neste país? Não somos todos filhos de europeus? Falam dos Estados Unidos como
um país “novo”. Mas não é. A terra é nova talvez, mas o povo que a habita descende de várias raças europeias. Os americanos não brotaram
do solo do Novo Mundo como se fossem uma nova raça. A terra é nova, mas o povo é velho e está amarrado para sempre aos seus
antepassados europeus por laços raciais. Mas os espíritos é que não devem estar amarrados. Devemos compreender que, embora nós,
americanos, sejamos um povo europeu de cem raças, temos juntos um destino diferente e devemos ser um só povo, seja qual for o nosso
sangue.
Estava muito emocionado e continuou impetuosamente:
— Não devemos ter lealdade a qualquer potentado, príncipe ou nação, mas só aos Estados Unidos! No momento em que nos chamamos
“irlandeses”, “ingleses”, “alemães” ou seja o que for, nós não somos mais americanos. Somos estranhos, ainda que nossos antepassados
tenham vivido há duzentos anos aqui! Ou somos apenas americanos ou não somos absolutamente americanos! Durante quase duzentos anos,
o povo compreendeu isso. Agora, está esquecendo. Alguns homens perversos estão falando de velhas lealdades, velhas traições, velhas
tiranias, velhas opressões e velhos ódios e só têm um objetivo, a destruição da República e a morte dos Estados Unidos.
Laurie nunca o vira tão exaltado e tão sério assim. Espantou-se com isso e ficou calada. Pensou consigo mesma que os Estados Unidos nunca
haviam representado coisa alguma para ela. Nem qualquer outro pais. Ela era apenas um ser humano.
Stuart continuava a falar, cada vez mais furioso.
— Sabe o que os alemães desta cidade estão fazendo, Laurie? Dizem a seus homens que, se eles se alistarem no Exército, não encontrarão
mais os seus empregos quando voltarem depois da guerra! É claro que têm sido muito hábeis e discretos na sua traição e na sua deslealdade.
Não falam abertamente, mas fazem sugestões muito claras. Por isso, muitos homens que gostariam de alistar-se desistiram com receio do que
lhes pudesse acontecer às famílias. Entretanto, o recrutamento começou agora. Não é horrível que este país, concebido com o sangue de
homens resolutos e martirizados, nutrido pelos seus corações e pelos seus ideais, abençoado pelas suas preces e pela sua fé, tenha de
recorrer ao recrutamento para preencher as fileiras de um exército que deveria ter três vezes o seu efetivo com homens dedicados? É horrível
que o país tenha chegado a esse extremo e que nem mesmo uma ameaça mortal à sua existência faça bater o pulso indolente e reanime a
alma morta de seu povo. Se eu não amasse tanto este país, gostaria de que ele morresse mesmo para arrastar esses indignos na sua morte!
Laurie se sentiu envergonhada e alarmada. Olhou para o rio e para a terra a seus pés. Era aquela sua terra. Nunca a conhecera, nem fizera
questão disso. Havia uma aceleração no seu sangue, um rubor em suas faces.
— Tentei alistar-me —, disse Stuart sombriamente. — Mas não me aceitaram. Eu poderia ter tido uma comissão como oficial, mas disseram
que minha saúde é precária. Conversa! Sou um homem sadio, de sangue e de força. É verdade que sofro de gota e que meu coração não é lá
muito certo, mas minha resolução superaria isso, tenho certeza.
Olhou para ela e perguntou:
— Seus irmãos falaram por acaso em alistar-se?
— Não. Segundo soube, todos eles compraram substitutos —, disse ela.
— Substitutos! — exclamou Stuart. — Pagar a um miserável para morrer em nosso lugar, enquanto nós engordamos com os lucros da guerra!
Comprar a própria segurança com a vida de outra pessoa, para que se possa continuar a dormir num colchão de penas e gerar outros fracos,
covardes e traidores à sua imagem e semelhança!
Laurie franziu um pouco a testa. Tinha muito pouco sentimento de família, mas as palavras de Stuart tinham sido ofensivas. Não era nada
agradável ser parente de “fracos, covardes e traidores”.
— Talvez você não esteja a par de todas as circunstâncias, Stuart —, disse ela.
— Circunstâncias? Neste momento, só há uma circunstância que deve ser levada em conta. É o perigo que corre a República!
Voltaram para a casa. Stuart, com sua sutil intuição, sentiu que Laurie se tornara fria e alheada. Arrependeu-se do que tinha dito. Passou o
braço pelos ombros dela e perguntou com triste ardor:
— Será que a magoei, meu amor?
Ela hesitou. Como poderia ele magoá-la? O homem amado nunca poderia magoar sem merecer imediatamente perdão e esquecimento.
Abraçou-o apaixonadamente.
— Magoar-me? Como seria possível? Não há nada que você possa fazer, Stuart, que eu não seja capaz de perdoar, de esquecer e de
compreender.
CAPÍTULO 60
O Prefeito Cummings estava sentado a tomar o seu cálice de vinho do Porto depois do jantar em companhia de Robbie Cauder.
Gostavam muito um do outro e tinha sido essa simpatia mútua que fizera Robbie concordar em ocupar o segundo andar da bela mansão da
Avenida Delaware. O Prefeito achava que tinha realmente encontrado um filho naquele escocês pequeno e sutil que, embora fosse muito
reservado, tinha uma espécie de integridade cética muito do agrado de seu sogro. Robbie se tornara seu confidente e o Prefeito achava
indizivelmente tranquilizante discutir com ele os problemas e atribulações de seu cargo.
O Prefeito falava naquele momento da poderosa camarilha dos ricaços de Grandeville e era evidente que não gostava deles.
— Vêm sistematicamente fazendo oposição à vinda de várias indústrias para a cidade —, dizia ele. — Veja o que está acontecendo em
Chicago e Detroit. São cidades que estão crescendo rapidamente e ostentam um progresso notável. Mas com Grandeville não pode ser assim.
A cidade cresce, mas contra tremendos obstáculos. Temos aqui um grupo de velhos idiotas que gostam de ruas sujas e calçadas de pedras,
de casas feias e do que eles chamam de “paz”. Pairam numa esfera própria. As “massas”, como eles dizem, não existem para a refinada
consciência deles.
O Prefeito sorriu com desdém e continuou:
“Numa sociedade feudal, que esses grão-senhores oriundos das fábricas de salsichas, dos matadouros e dos curtumes adorariam, essa
camarilha pode funcionar com segurança. Mas aqui não temos cossacos, nem espiões da polícia, nem clero submisso, nem guarda pretoriana,
nem casta militar, para manter o povo oprimido e calado. Temos uma sociedade republicana e os insensatos que se isolam do crescimento de
uma república ou de uma cidade correm o risco de perder não apenas os seus bens, mas também a vida. Estagnam uma cidade e lhe
destroem as possibilidades. O povo numa república deve crescer ou morrerá. Dezenas de indústrias poderiam vir para Grandeville, mas os
sorridentes homens dos matadouros e dos fétidos curtumes dizem: “Isso nunca! Temos de conservar a querida Grandeville como era em
nossos tempos de criança!” E, assim, a indústria se move para oeste, com satisfação para Detroit e Chicago!
O Prefeito tirou uma baforada do charuto.
“Eu poderia ainda perdoá-los se eles tivessem uma tradição aristocrática autêntica. Mas as almas deles cheiram a curtumes e a vísceras.
Poderia rir deles, mas quando vejo que Grandeville poderia tornar-se a porta do Oeste e um vasto centro de prosperidade e de esperança, não
me rio mais e lhes desprezo as pessoas e as pretensões.
Levantou-se, pôs as mãos para trás e começou a passear de um lado para outro no agradável salão de jantar, do qual as senhoras se haviam
retirado.
— Mais que tudo isso, preocupam-me as situações que estão criando. É verdade que há desordens anticatólicas e antiestrangeiras em todo o
país, mas em Grandeville são especialmente graves. Por quê? Talvez porque o povo se ofenda com o fato de viver desprezado e constrangido,
com oportunidades limitadas e numa situação desesperada. Está na natureza da humanidade odiar sempre alguma coisa. Mas, em vez de
odiarem as injustiças e tragédias que deram causa a essa guerra e os homens que se vêm beneficiando com essas coisas, têm de odiar
alguma coisa mais imediata. Um homem não pode sentir um ódio abstrato embora deva tentá-lo para o bem de sua alma. Não pode odiar as
crueldades feitas a outros homens e a intolerância, embora também deva tentá-lo. Não pode ser uma criatura humana completa, se não possuir
esse ódio salutar. Mas é mais fácil odiar o vizinho e oprimi-lo, particularmente se esse vizinho é mais fraco e indefeso do que ele.
O Prefeito sentou-se e olhou ansiosamente para Robbie.
“Falando objetivamente, estou preocupado, por exemplo, com o velho Houlihan. Foi forçado a vir pedir-me proteção. No mês passado, fez um
sermão entusiástico na sua igreja sobre o patriotismo. Disse que o país se levantara sobre os ossos de homens dedicados, que o nutriram com
seu sangue e sua fé. Disse que o país merecia todas as pulsações do coração de todos os homens, do suor das mãos e dos anseios da alma
de todos. Se seus filhos o abandonassem, o país morreria e a culpa recairia sobre todos. Fez um apelo a todos os seus fiéis para que não
esperassem o recrutamento e se alistassem quanto antes. Condenou os gananciosos e os traidores, os evasionistas e os indiferentes. Falou
das desordens provocadas em Nova York pelo recrutamento e declarou que eram uma vergonha e um crime diante de Deus. Disse que um
crime contra os Estados Unidos era um crime contra toda a humanidade, porque os Estados Unidos eram a esperança do mundo. Quem traía
os Estados Unidos, traía os mártires de todos os tempos.
“Sem dúvida, foi um sermão apaixonado! Tão apaixonado e entusiástico que ele foi atacado numa noite numa rua escura e rudemente
espancado. Por quem? Por aqueles que odeiam este país, é claro. Desordeiros empregados por nossos Schnitzels, Schnickelburgers e
Zimmermanns, que odeiam a liberdade, a tolerância e a justiça, que odeiam o homem comum e sua esperança de vida e de dignidade. Esses
desordeiros podem também ter sido armados pelos nossos Kents, Hamiltons ou Brewsters e toda a camarilha “aristocrática” que quer adquirir
bens e servos para cultivarem e ampliarem esses bens. Para mim, o pior de tudo é que esses desordeiros fazem parte da massa dos
oprimidos! Quando um homem fala de salvar a América para os americanos, o que ele tem em vista é salvar a América para a sua exploração
pessoal, a sua cobiça e o seu ódio!
— Pobre Padre Houlihan —, murmurou Robbie. — Transformado em agitador... Devo dizer que nunca dei muita atenção a essas coisas de
patriotismo. Mas quando se encontra um patriota como ele, é preciso pensar. E é um homem de coragem. Pode dar-lhe alguma proteção?
— Tenho tentado. Mas há forças em ação aqui que me apavoram. Bem sabe que eu não sou muito simpatizado, Robbie, embora tenha
conseguido reeleger-me algumas vezes. O pobre padre é alvo do ódio não só daqueles a quem ataca, mas também daqueles a quem defende!
É a história dos mártires, mas nunca deixa de me surpreender pela sua colossal imbecilidade e incrível cegueira. Soube que alguns dos seus
paroquianos mais ricos foram pedir ao bispo que ele fosse removido. Essa gente prefere um Billingsley, que é um sujeito inteiramente vazio,
mas tem um respeito sadio pelos direitos adquiridos. Quanto ao Padre Houlihan — Deus lhe abençoe a alma ingênua — só reconhece como
direitos adquiridos Deus e o povo, um erro pelo qual tem sofrido muito e continuará a sofrer. Ah! Se eu não tivesse um pouco de consciência e
alguma admiração pelos inocentes de cabeça quente como o Padre Houlihan, poderia ser um homem feliz.
A noite de julho estava quente e abafada. Relâmpagos se acendiam de vez em quando no horizonte ocidental, enquanto as árvores sacudiam
incessantemente as plumas escuras num ritmo desordenado.
O Prefeito chegou à porta que dava para a varanda e disse, respirando fortemente o vento fresco:
— E Stuart. Estou preocupado também com ele. As coisas vão mal em todo o país. A súbita prosperidade está declinando. O povo começa a
mostrar sinais de cansaço e irritação. Era muito ruim para Stuart o tempo em que as lojas viviam cheias de fregueses. É muito pior agora que a
economia nacional se está tornando mais difícil com o prosseguimento da guerra.
— Talvez a guerra acabe dentro em pouco —, disse Robbie, olhando com carinho para o sogro, que também começava a mostrar “sinais de
cansaço e irritação”. Era o mal de ter consciência. Era uma coisa que produzia sempre inquietação e tormento espiritual. — Não pode durar
muito mais. Já tomamos Vicksburg e os homens do Sul já devem ver que estão numa situação desesperada. Ocupamos Port Hudson e o
Presidente Lincoln disse: “A Confederação agora está partida ao meio. O Mississippi rola livremente até ao mar.” Quanto a Stuart, não se
preocupe. Ele sempre se salva no último momento tanto de si mesmo quanto da falência.
O Prefeito olhou para Robbie por cima dos óculos, coçou o queixo e disse:
— Escute aqui, tem tido notícias de Laurie?
— Está às voltas com os ensaios. Deve estrear em novembro no Teatro Astor com uma ópera chamada Tannhäuser, escrita por um velho
alemão incrível de nome Wagner. Ela nos mandou alguns jornais de Nova York e parece que há por lá grande interesse pela estreia dela. É
possível que vamos até Nova York para ouvi-la. Mas é uma coisa em que ainda temos de pensar muito, pois a distância é muito grande.
Olhou atentamente o sogro, pois ele estava visivelmente inquieto com alguma coisa.
— Laurie vai longe —, murmurou o Prefeito. — Que sensação ela fez em Grandeville! Ainda discutem o acontecimento com toda a malícia de
que são capazes. Laurie violou todas as convenções a respeito das mulheres quando mostrou a voz que tem. As suas maneiras são também
um tanto bruscas.
Ele ainda estava inquieto e Robbie o olhou, cheio de cautela. Mas Cummings limitou-se a olhar com ansiedade para o genro.
— Laurie fará sempre o que for melhor para ela. Pode ter certeza disso —, murmurou Robbie.
O Prefeito perguntou finalmente:
— Onde está Stuart agora, Robbie? Em Nova York?
— Não está por acaso querendo dizer que se fala de alguma coisa entre Stuart e Laurie, não é?
Cummings ficou muito vermelho. Depois, enxugou o rosto com o lenço e disse:
— É isso mesmo que estou querendo dizer, Robbie. Por favor, não me interprete mal! Eu sei que não há nada de errado. Mas andam falando
que eles foram vistos muitas vezes sozinhos na beira do rio quando ela esteve aqui e que na véspera da partida dela os dois foram juntos até
às Cataratas do Niágara e passaram a noite no hotel. Sei que isso é um boato vil e tenho combatido o escândalo tanto quanto me é possível,
inclusive dizendo que sua mãe estava em companhia deles.
Robbie sorriu com uma ironia que o Prefeito não percebeu e disse:
— Laurie está acima de qualquer escândalo. Infelizmente, Grandeville é provinciana demais para compreender isso. Afinal de contas, Stuart
tem sido um pai para todos nós. É primo de nossa mãe e foi com a ajuda dele que Laurie fez seus estudos de canto. Foi ele quem deu a Angus
o emprego que tem e quem mais trabalhou para a minha eleição como juiz. Tem dedicado também muito tempo a Bertie. Entretanto, o povo
não vê nada disso e só quer falar.
— É claro, é claro —, murmurou o Prefeito. — Mas têm sido recebidas aqui cartas de Nova York que dizem que Stuart é visto por toda a parte
na cidade com Laurie e com toda a aparência de amantes. Dizem as cartas que Nova York está deliciada com o fato. Mas Grandeville não está
deliciada, posso assegurar-lhe. Stuart tem de viver aqui, onde vivem a mulher e a filha e onde estão seus negócios. Tudo isso pode ser muito
desagradável para ele.
— Já conversou com Stuart sobre isso? — perguntou Robbie.
— Não. Deixei isso para a família dele... para você.
— Eu? — exclamou Robbie, rindo. — Ele seria capaz de me botar pela porta afora a pontapés. Já que é tão amigo dele, por que não trata do
caso pessoalmente?
O Prefeito encolheu os ombros e Robbie continuou:
— Não acha melhor deixar isso a critério de Stuart e afirmar que o caso é absolutamente inocente, como de fato é? Creio que é essa a melhor
defesa tanto para Stuart quanto para Laurie. Se falarmos disso abertamente com prazer e naturalidade, como se fosse a coisa mais normal do
mundo um parente de meia-idade estar interessado nos assuntos de sua prima jovem a quem sempre deu proteção, parece que ninguém terá
muito o que dizer. Se eu insistir em dizer em nossa festa da semana que vem que Laurie escreveu dizendo que Stuart a escolta por toda a parte
em Nova York e se sente muito orgulhoso dela, enquanto ela por sua vez lhe é particularmente grata por tanta dedicação, creio que o escândalo
será consideravelmente atenuado. Escute, só me falou isso pensando em Alice, não foi?
— É claro, meu filho. Acho que neste momento nada a deve perturbar.
— Alice é muito mais resistente do que o senhor pensa. Há muito que ela sabe que Stuart e Laurie... se gostam.
A voz dele tremeu um pouco quando se referiu à esposa e o seu cenho se franziu.
— Escute, Robbie, quero sua opinião sobre outro assunto. É a respeito da Ilha do Rio. Aprovei a venda a Sam Berkowitz. Mas não sabia a
tempestade que isso iria provocar. Deve saber o que aconteceu. Imprimiram e distribuíram prospectos em que meu ato era condenado e em
que os piores insultos eram feitos a Sam. Tenho receio de que as coisas não parem nisso. O velho Allstairs queria também a ilha, mas a
proposta dele era de apenas oito mil dólares, ao passo que Sam, depois da aprovação do Conselho, vai pagar onze mil dólares. O Conselho
não poderá deixar de aprovar a venda, pois do contrário não terá justificação alguma. É claro que é Joshua Allstairs quem está promovendo
toda essa agitação. Nunca em minha vida e em minha terra ouvi um homem ser insultado pelo fato de ser judeu. Estou ouvindo agora. Allstairs
influenciou vários ministros para que trovejem do púlpito como se fossem dementes. É claro que Joshua só está querendo tirar vantagem
monetária da campanha, mas o fato é que está havendo na cidade uma revolta popular contra Sam. Que é que eu devo fazer?
— É claro que deve manter a sua decisão, apesar de Joshua Allstairs e de seus amigos dementes. Sei que Allstairs deseja comprar a ilha por
oito mil dólares a fim de revendê-la a Sam por vinte mil. É só por isso que está criando toda essa agitação. Depois que ele tiver feito a
transação, Sam passará de novo a ser uma criatura muito boa para o velho cantor de salmos.
— A ruindade humana ultrapassa minha compreensão! — exclamou o Prefeito, exaltadamente.
— Pois a ruindade humana está inteiramente de acordo com as minhas expectativas —, murmurou Robbie.
— Vou exercer pressão sobre o Conselho para que a venda seja aprovada. A ilha será de Sam, seja lá como for. Nunca pude tolerar Joshua
Allstairs. É uma influência perniciosa em Grandeville e, embora minha cidade tenha seus defeitos, eu gosto disto aqui.
Alice e a mãe estavam à espera deles na sala de estar. A Sra. Cummings estava placidamente cosendo o enxoval do esperado neto. Mas
Alice, embora sorrisse ao ver o pai e o marido aparecerem, se mostrava muito pálida e cansada. Abanava-se apaticamente com o leque.
Robbie aproximou-se dela e examinou-a ansiosamente.
— É o calor, meu bem —, disse ela, respondendo à pergunta que não fora feita.
Estava quase na época do nascimento e Robbie acariciou ternamente os cabelos da mulher, notando que ela transpirava excessivamente.
A Sra. Cummings cosia. O Prefeito lia o jornal. Robbie sentou-se ao lado de Alice e conversou gentilmente com ela. A voz dele era suave e
terna e Alice o escutava embevecida. Dizia muito pouco, embora o seu coração tivesse vontade de gritar: Quando afinal você será todo meu,
querido? Fala comigo com toda essa doçura, mas eu sei que você mantém fora de meu alcance alguma coisa que deveria ser minha também.
Estava tão cansada naquela noite quente que não podia pensar muito em coisa alguma senão em quanto amava o marido. A mão dele, ainda
que pequena, tinha a força e a firmeza de que ela precisava.
Uma tempestade se avizinhava. O vento sacudia com maior violência as árvores do lado de fora e ouviam-se alguns trovões distantes. O calor
na sala estava maior. O Prefeito levantou-se com o rosto afogueado. Robbie que tinha começado a examinar alguns papéis, levantou-se
também por deferência.
— Vamos dar uma volta pelo jardim? — disse Cummings, convidando a família.
Alice sacudiu a cabeça.
— Estou muito cansada. Mas você, Robbie, se quiser, pode ir tomar um pouco de ar com Papai. Mamãe ficará comigo.
Os dois homens saíram da casa e começaram a andar pelos jardins escuros.
— Vamos precisar dessa chuva que vem aí —, disse o Prefeito. — A terra aqui está ficando muito seca.
Falaram de assuntos jurídicos e Robbie discutiu dois ou três casos com o sogro. Os relâmpagos riscavam quase incessantemente o horizonte,
mas embora o vento aumentasse, a chuva não caía.
De repente, Robbie parou e perguntou:
— Ouviu um grito?
O Prefeito parou também e prestou atenção. Sim, havia alguma agitação na casa. Os dois homens voltaram com Robbie correndo à frente.
Foram recebidos pela Sra. Cummings, que estava muito pálida, mas sorria.
— Creio que já começou —, disse ela. — Vou mandar a carruagem buscar o médico. E agora, querem me ajudar a levar Alice?
Carregaram para a cama Alice que gemia, mas tentava sorrir, com a cabeça pousada no ombro de Robbie durante a jornada para o andar de
cima. Na sua agitação, o pai falava sem parar:
— Calma, calma. Não tenha receio, minha querida. Estamos todos aqui. Tomaremos conta de você. Não, não chore. Vamos ver.
Mas Alice só olhava para o marido, embora a dor lhe dilatasse os olhos.
Deitaram-na na cama e saíram, enquanto uma criada a ajudava a trocar de roupa. O Prefeito e Robbie desceram. O Prefeito passou o braço
pelos ombros do genro e disse em tom paternal, embora na realidade estivesse mais agitado do que ele:
— Não se preocupe, meu filho. Dentro em pouco, tudo estará resolvido. Já passei por isso e sei. Sente-se e acalme-se!
Enquanto isso, começou a passear de um lado para outro da sala. Robbie o observava, com secreta e afetuosa ironia. O Prefeito continuou a
falar:
— Nada na natureza masculina está à altura de uma situação como esta. Temos de confiar em Deus e na natureza!
— Estou perfeitamente preparado para isso —, murmurou Robbie.
Mas o Prefeito não o ouviu. Tocaram a campainha da porta e ele foi abrir impacientemente, sem esperar uma empregada.
— Deve ser o médico! — exclamou.
Era, porém, uma criada da casa de Janie que queria falar com o Sr. Cauder. Robbie chegou à porta e ela exclamou:
— É o Sr. Bertie! A Sra. Cauder está muito preocupada e pede que o senhor vá até lá imediatamente! O Sr. Bertie não aparece em casa há
dois dias e ela está inteiramente fora de si!
O Prefeito disse impacientemente:
— Diga a sua patroa que sentimos muito, mas que o Sr. Cauder não pode ir no momento, pois há um assunto da maior importância...
Mas Robbie se aproximou da empregada e disse, muito pálido:
— Irei imediatamente.
O Prefeito olhou-o, estupefato e murmurou:
— Mas Alice precisa se você. O médico deve chegar a qualquer instante. Não pode sequer pensar em sair, Robbie!
— Tenho de ir —, disse Robbie com voz tranquila e firme. — Alice está bem cuidada. Além disso, voltarei dentro em breve.
O Prefeito olhou para o rosto fixo e branco do genro e teve dificuldade em reconhecê-lo. Com o coração a ferver de indignação e incredulidade,
exclamou:
— Não pode abandonar sua mulher neste momento. Sua mulher, minha filha, precisa de você. Seu irmão é um bêbado e um desclassificado e
deve estar entregue a uma de suas bebedeiras. É capaz de deixar minha filha e sua mulher e ir levantá-lo mais uma vez da sarjeta onde deve
estar caído?
— O Sr. não compreende —, disse Robbie. — Meu irmão nunca ficou ausente de casa tanto tempo. Deve ser alguma coisa terrível. Talvez
esteja morto. Tenho de ir procurá-lo. Não poderia ficar aqui pensando no que lhe terá acontecido. Ainda faltam algumas horas para que Alice...
Tenho de ir. Mas voltarei imediatamente, logo que tiver alguma notícia de Bertie.
Encaminhou-se para a porta. Mas o Prefeito, recuperando-se em parte de sua estupefação, agarrou-o pelo braço. Estava com o rosto muito
vermelho e os olhos fuzilantes.
— Não pode ir! Eu o proíbo! Proíbo esse abandono criminoso e cruel de sua mulher! Não deve estar em seu juízo perfeito!
— Tenho de ir! Pode dizer a Alice o que quiser. Ela compreenderá. É uma questão de vida e morte para mim!
— Vida e morte! — exclamou o Prefeito, amparando-se à parede para não cair. — É minha filha que está enfrentando a vida ou a morte! Sua
mulher. Entretanto, por causa de seu irmão, vai abandoná-la na hora de sua maior necessidade! Fique sabendo que, se a deixar agora, eu
nunca lhe perdoarei isso, nunca!
— Nada posso fazer —, disse Robbie. — Mas Alice me perdoará. Ela sabe.
Transtornado, ainda sem acreditar, o Prefeito viu-o sair da casa e desaparecer dentro da noite.
CAPÍTULO 61
O vento, os relâmpagos e a trovoada aumentaram furiosamente enquanto Robbie seguia na carruagem que a mãe mandara para buscá-lo.
Sentava-se na beira do banco, como se estivesse pronto para saltar no momento em que o veículo parasse. Não tomava absolutamente
conhecimento da criada sentada à sua frente, embrulhada num xale.
Tinha os maxilares cerrados e olhava fixamente à frente. Não se moveu durante toda a viagem. Mas sentia um aperto no estômago e uma dor
lancinante na cabeça. Tinha esquecido por completo sua jovem esposa que naquele momento se contorcia nos trabalhos de parto. Pensava
apenas em Bertie com frenética intensidade. Já está desaparecido há dois dias e uma noite, sem dar qualquer notícia ou deixar qualquer
vestígio. Está morto, pensou Robbie com uma sensação quase avassaladora de abatimento. O coração lhe batia tão apressadamente que ele
mal podia respirar. Os músculos estavam retesados e doloridos. Que tinha acontecido a Bertie? Para onde teria ido? Seria possível que, num
de seus delírios, se tivesse jogado no rio? Robbie tentou acalmar-se. A negação da vida nem sempre queria dizer que o portador de tal
negação desejasse a morte. Quem não tinha amor à vida raramente ansiava pela extinção. A não ser, a não ser que fossem arrastados para a
morte pelo fato de não fazerem qualquer esforço para a sobrevivência diante de uma ameaça. Poderia ter caminhado na sua embriaguez até à
beira do rio, ter caído no rio e, então, com um último sorriso, se deixara morrer de maneira tão apática e tão indiferente quanto havia vivido.
Eu nunca o deveria ter deixado, pensou Robbie. Se ele morreu, eu sou culpado dessa morte. Devia ter ficado ao lado dele. Ele não tinha um
afeto muito grande por mim, mas tinha confiança. Ia para onde eu queria, fazia o que eu pedia, concordava com tudo o que eu sugeria. Sem
dúvida, gostava um pouco de mim e me tinha alguma consideração. É claro que não iria fazer uma coisa capaz de me causar tamanha
angústia!
Toda a sua tranquila razão se desmoronou ao choque dessa agonia. Gritou do fundo de seu coração: Bertie! Espere por mim, Bertie! Já estou
chegando. Sentiu que a ânsia o deixava como um grito de súplica que transpunha o espaço e salvava o irmão das trevas derradeiras. Sentiu
um ardor intenso nos olhos. Não podia alcançar Bertie com sua voz e tinha as mãos vazias. Bertie sempre fugira dele com um sorriso e, quando
tentava segurá-lo, Bertie lhe lançava um estranho olhar de advertência, que o fazia largá-lo.
Pela primeira vez na vida, Robbie se perguntou: Por que tenho tanto amor por ele? E não encontrou resposta. Não havia resposta nos livros que
tratavam das afeições normais e não havia resposta nos livros sombrios dos homens que estavam começando a explorar o oculto e enevoado
continente da mente humana. É uma obsessão, pensou Robbie. Mas por que tenho essa obsessão?
A casa da Avenida Porter estava acesa de alto a baixo. Robbie saltou da carruagem antes que ela parasse e subiu correndo os degraus da
entrada. Deparou no vestíbulo com Janie desgrenhada e a chorar desabaladamente. Abraçou-se com Robbie, murmurando coisas incoerentes.
Ele a levou para a sala de estar e então perguntou:
— Já teve alguma notícia? Já avisou a polícia? Onde ele foi visto pela última vez? Desde quando desapareceu? Disse alguma coisa?
Ela tentou falar por entre as suas lágrimas e Robbie, na impaciência em que estava, sacudiu-a violentamente. Chocada, mesmo no meio de
sua dor e de seu medo, por essa veemência, Janie o olhou assustada. Por fim, recuou alguns passos e disse:
— Você está quase alucinado, Robbie. Acalme-se.
Sem tirar os olhos dele, ela procurou com as mãos uma cadeira e sentou-se. Tremia apesar do forte calor e tornou a dizer:
— Acalme-se. Você parece um louco, Robbie. Não me olhe desse jeito. Seja homem. Sente-se e vamos conversar.
Mas ele continuou de pé diante dela e Janie nunca o vira tão agitado assim. Procurou falar com voz pausada e calma porque ele a enchia de
medo. Disse que Bertie, dois dias antes, lhe havia dito que ia sair para comprar umas gravatas. Deviam ser onze horas da manhã e ele parecia
perfeitamente normal. Dera-lhe um beijo naquele dia, como sempre fizera, sem que houvesse qualquer coisa estranha em suas maneiras. Fazia
apenas dois meses de sua última bebedeira e não estava na época de outra, ao menos por mais um mês ainda. Ela lhe tinha dado dinheiro e
lhe pedira que passasse pelas lojas para dizer a Angus que a procurasse naquele dia pois ela queria discutir com ele alguns assuntos urgentes
de negócios. Ele havia concordado com isso e dissera ainda que estaria de volta na hora do chá e também que passaria pela casa da Sra.
Hathaway a fim de pegar um livro que Janie havia emprestado à mesma. Desde que o dia estava muito bonito, ele não mandara preparar a
carruagem e tinha saído assobiando, evidentemente satisfeito consigo e com o mundo. Não tinha mostrado o menor sinal da inquietação, do
silêncio e da abstração que precediam sempre de dois ou três dias as suas bebedeiras.
Robbie escutava com fremente atenção, sem afastar os olhos um só momento do rosto da mãe. Perguntou então, quando ela fez uma pausa:
— Ele não beijou você... como se fosse partir para uma longa viagem ou coisa parecida? Não levou nada com ele? Não correu os olhos pela
casa... como se a estivesse vendo pela última vez?
— Que quer dizer com isso? — exclamou Janie, desesperadamente. — Claro que não! Meu filho querido! Eu teria sabido no fundo de meu
coração se houvesse alguma coisa de anormal com ele, se ele tivesse qualquer intenção oculta! Procedeu como sempre, da maneira mais
comum possível. Nem sequer olhou para trás quando desceu a rua. Que é que você está querendo dizer, Robbie?
Mas Robbie começou a andar na sala de um lado para outro, ao mesmo tempo que lhe fazia perguntas. Ela respondia da melhor maneira
possível, por entre as suas lágrimas. Sim, a polícia fora avisada. Todos os bares que Bertie costumava frequentar tinham sido procurados. Não
fora visto em nenhum deles. Tanto quanto se sabia, não bebera uma só gota. Algumas pessoas disseram que o tinham visto descer
assobiando a Avenida Dalaware ou a Rua Principal. Mas não estivera nas lojas. Nem Angus, nem Stuart o tinham visto.
Bertie havia desaparecido como se a terra se houvesse aberto aos seus pés. A última pessoa que o vira? Um jovem tenente do Exército. Bertie
fora visto em conversa com o oficial na esquina da Rua Niágara com a Rua Hudson, por volta das quatro horas da tarde. A Sra. Fiske o vira ao
passar na sua carruagem e fora cumprimentada por ele, com sua habitual cortesia. Não, ela não conhecia o oficial. Não era nada fora do
comum para Bertie travar conhecimento com estranhos, conversar afavelmente com eles e até dar alguns passos em companhia deles.
— E esse tenente foi encontrado e interrogado? — perguntou Robbie.
— A polícia foi encontrá-lo no centro de alistamento da Rua Niágara. Trata-se de John Girard, de Nova York. Lembrou-se imediatamente de
Bertie e disse que tinha conversado amistosamente com Bertie na Rua Niágara e que lhe tinha perguntado por que ele não estava no Exército.
Bertie respondera que era “quase um inválido” e mudara de assunto. Tinham dado milho aos pombos juntos e tinham discutido a guerra com
muito interesse. John ficara encantado com seu novo amigo. Tinha-o convidado para jantar num restaurante próximo, mas Bertie recusara
polidamente, explicando que tinha alguns “negócios” para resolver.
Robbie voltou-se para a mãe ao ouvir isso e um pouco da tensão em seu rosto se atenuou. O seu receio mais terrível estava parcialmente
abrandado.
— Não foi perto do rio então! — exclamou ele.
De repente, ouviram a porta abrir-se. Janie se levantou com um grito e correu para o vestíbulo acompanhada de Robbie. Mas era apenas
Angus de rosto pálido e rígido, que ali estava com seu terno preto e fez uma exclamação involuntária escapar-se dos lábios de Janie.
Angus lançou a Robbie o olhar frio e distante de hábito. Depois, colocou o braço nos ombros da mãe e disse:
— Quer dizer que ele não voltou ainda? É terrível. Uma ação insensata e cruel. Mas outra coisa não se poderia esperar de um bêbado, patife e
cretino!
Num movimento impetuoso, Janie separou-se dele e gritou:
— Retire-se imediatamente desta casa! Como se atreve a falar assim de meu querido Bertie? Quem quer você aqui, cadáver ambulante,
fantasma de homem? Saia já de minha casa!
Ela estava furiosa e Angus se afastou dela, ainda mais pálido e com os olhos cheios de sofrimento. Ela bateu os pés para ele, gritou, insultou-o
com espuma nos lábios. Os anos de ódio dela explodiam em palavras obscenas. Tinha os olhos desvairados de ódio, desespero, terror e
agonia. Angus a ouvia, com os braços caídos e um olhar que nem o cético Robbie pôde suportar. Fosse Angus o que fosse, não merecia
aquela monstruosa avalancha de ódio e repulsa. Sempre amara a mãe, sempre lhe obedecera e a servira, dando-lhe a única dedicação que
ela tivera na vida.
Quando Janie parou a fim de tomar fôlego, Angus perguntou com voz suave:
— Você me odeia mesmo, não é Mamãe?
— Se eu o odeio? — exclamou Janie. — Odeio você desde que nasceu, com suas preces, sua igreja, seus salmos, suas conversas cretinas de
dever, honra e obediência! Odeio sua presença, o som de sua voz, seu andar furtivo, seu jeito piedoso, seus sermões, seu ar de ministro. Você
nunca foi um homem! É um pedaço de pau, um cadáver e tem sido um idiota toda a sua vida, ganindo como um cachorrinho a meus pés,
querendo que eu gostasse de você. Gostar de você? Quero é que vá estourar no inferno, sujeitinho abjeto!
Estava inteiramente alucinada. E Angus se limitava a ouvir, com a cabeça um pouco inclinada para a frente, e os olhos fitos nela.
— Já desejei sua morte mil vezes! — exclamou ela com redobrada fúria. — Por que não está dentro de uma sepultura ou no fundo do rio? Você
tem sido dentro de minha casa como uma doença terrível, como uma peste! Foi um dia de alegria para mim o dia em que você saiu daqui e eu
desejei do fundo do coração nunca mais pôr os olhos em cima de você! Por que não foi você que desapareceu sem deixar vestígios? Por que
é que você está aqui e não meu filho querido?
Angus deu um profundo suspiro e para Robbie foi um som horrível, como de um coração que se estivesse despedaçando. Dava a impressão
de que seu corpo se estava encolhendo dentro do terno preto. Levantou as mãos e apertou as têmporas. Tornou a suspirar.
Robbie sentiu-se invadido por uma onda de profunda compaixão. Era absurdo ter pena de Angus, mas não havia outro jeito. Durante toda sua
vida, ele tinha procurado alguém para amar e que também o amasse. Mas tinha sido repelido por todos. Era odiado e desprezado por Janie,
rejeitado desdenhosamente por Laurie, deixado de lado por Bertie, alvo da ironia de Robbie, devorado pela esposa. Entretanto, só queria ser
amado e servir. Afinal, tinha sido rejeitado não só pelas pobres e desvaliosas criaturas que o cercavam, mas pelo próprio Deus.
Robbie achou que devia intervir. Tocou no braço de Angus e disse calmamente:
— Não dê atenção ao que Mamãe está dizendo. Ela está naturalmente desorientada com o desaparecimento de Bertie. Vamos para a sala.
Angus afastou mecanicamente a mão do irmão, mas se dirigiu para a sala. Movia-se como se estivesse em transe. Os olhos estavam
anuviados por tremendo sofrimento. Chegando à sala, encostou-se à lareira apagada e ficou de olhos voltados para o chão. Robbie levou para
uma poltrona a mãe que chorava copiosamente.
Robbie começou a falar então calmamente, explicando ao irmão que Bertie ainda não fora encontrado, mas que não havia motivo para temer
que tivesse havido qualquer violência. Angus nada dizia. Era impossível dizer se estava escutando ou não. Só os movimentos ocasionais das
pálpebras mostravam que havia alguma vida nele.
— Vamos continuar a busca —, disse Robbie, acendendo um charuto. A sua agitação tinha desaparecido diante daquela nova situação. —
Dentro em pouco, haverá notícias. Não tenho a menor dúvida disso. Bertie não esteve em nenhum bar, nem perto do rio e todas as pessoas
que o viram disseram que ele parecia perfeitamente normal.
Olhou para Angus e este se moveu, mas como se o movimento lhe custasse um tremendo esforço. Levantou os olhos parados para Robbie,
mas continuou calado. Janie estava chorando com menos intensidade depois das palavras de Robbie. Estendeu as mãos trêmulas para ele e
disse:
— Você é agora meu consolo único, meu filho.
Robbie olhou para as mãos dela e pensou: São as mãos de uma assassina. Foram elas que tangeram Angus para a morte em vida, que
transformaram Laurie numa vagabunda dominadora, dura e inescrupulosa, que impeliram Bertie para a negação de sua vida e talvez para a
sepultura. Mas, embora fossem as mãos de uma assassina, olhou para elas e para o rosto da mãe sem sentir a menor emoção.
Janie olhou para ele e, de repente, seus olhos verdes se estreitaram de compreensão e brilharam de ódio por ele. Mas não disse uma só
palavra.
Nesse terrível silêncio, repleto de emoções amargas e congeladas, mortíferas e irremediáveis, ninguém ouviu a entrada sossegada de outro
homem, que envergava o uniforme de oficial do Exército dos Estados Unidos. Parou à porta, olhando para as três pessoas petrificadas na sala,
sorrindo um pouco. O corpo magro, mas ereto vestia a farda azul da União e o quepe lhe escondia um pouco o brilhante azul dos olhos.
Foi Robbie quem, desviando da mãe o olhar penetrante, viu primeiro o soldado. Tão intensos eram os seus pensamentos que por um momento
o olhou confusamente, julgando que se tratava do amigo de Bertie. Viu então que não era um estranho quem estava ali tão calado e sorridente,
mas o próprio Bertie.
Os dois irmãos se olharam através da sala, antes que Angus ou Janie tomassem conhecimento do recém-chegado.
No mesmo instante, Robbie sentiu no coração um afluxo de sangue, que era ao mesmo tempo, dor, alegria e medo. Atravessou em silêncio a
sala e estendeu a mão para o irmão. Bertie apertou-lhe a mão, não com lentidão e indiferença, mas com força, firmeza e calor. Não sorriram um
para o outro.
Ouviram então um gemido abafado. Janie se levantava com dificuldade da cadeira. O xale lhe escorregou dos ombros e ela, na sua
estupefação, murmurou coisas ininteligíveis. Deu então um grito e correu com os braços abertos, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelo rosto.
Robbie largou a mão do irmão, sentindo ainda na carne a pressão daquele aperto. Janie abraçou-se com o filho, apertou o rosto de encontro
ao peito dele e começou a murmurar coisas incoerentes, correndo as mãos pelo corpo dele como para certificar-se de que estava vivo. Deu
graças a Deus na mesma voz com que insultara tão desabridamente Angus momentos antes.
Robbie afastou-se. Não podia deixar de ter pena da mãe, embora a alegria dela tivesse um elemento de violência e excesso que lhe era muito
desagradável. Deu alguns passos na direção de Angus. Este olhava para a mãe e o irmão com um rosto sombrio, sem fazer qualquer menção
de aproximar-se dos dois ou de dizer alguma coisa.
Bertie, sorrindo, tentou acalmar a mãe e a levou para uma cadeira. Mas ela não queria deixá-lo. Beijava-lhe repetidamente as mãos. Alisava os
braços dele. Levou alguns momentos para perceber que o braço estava vestido com uma manga diferente. Quando percebeu, os choros e
exclamações cessaram instantaneamente e ela olhou para o uniforme, inteiramente atônita.
Robbie foi para junto de Bertie e colocou a mão no ombro do irmão. Bertie estava falando com a sua calma e a sua amabilidade naturais.
— Esperei toda a tarde que me atendessem no posto de alistamento e entrei pela noite. Mas havia muita gente à minha frente e eu tinha receio
de sair para mandar um recado aqui para casa e perder o lugar. Só às dez horas é que eu fui atendido e o oficial e eu começamos a conversar
tão animadamente que só fui dar acordo de mim quando já era meia-noite. O oficial me convidou para dormir no alojamento dele nos fundos do
posto e eu aceitei, não querendo incomodar ninguém aqui em casa. Resolvi então só voltar depois que todo o processo de alistamento
estivesse terminado. Mas isso demorou mais do que eu supunha...
Fez uma pausa e olhou para Robbie. Este viu que os olhos de Bertie não estavam mais ausentes e vazios, mas calmos e cintilantes. Entretanto,
havia ainda neles uma advertência, não de repúdio, mas de súplica.
— O trabalho de alistamento se estendeu por todo o dia e eu fui submetido a muitos exames. Não queria ser comissionado como oficial. Queria
apenas alistar-me como um soldado comum, mas acabaram por me convencer. Tenho de partir esta noite para o campo de treinamento.
Robbie nunca soube o que o fez aproximar-se da mãe e apertar-lhe o ombro com força. Ela abrira a boca, talvez para protestar, mas, ao sentir
a mão de Robbie, ficou em silêncio, embora empalidecesse um pouco mais. Olhou para Bertie com intensa penetração e suas feições se
tornaram austeras e até cheias de dignidade graças à emoção contida e à advertência de Robbie.
— Bertie —, disse Robbie, encarando o irmão —, você quis mesmo fazer isso?
— Quis, sim —, disse Bertie, sorrindo.
Robbie ficou em silêncio. Bertie sentira realmente o desejo de fazer aquilo? Haveria de fato nele os impulsos e as paixões do patriotismo?
Teria mesmo aquela guerra algum sentido para ele? Robbie não se podia lembrar de que em dois anos de guerra tivesse discutido o assunto
com ele ou com qualquer outra pessoa. Tinha lido os jornais, fazendo um comentário displicente sobre alguma batalha e, então, bocejava e
virava a página. Robbie não podia acreditar que Bertie tivesse escondido durante tanto tempo um interesse oculto, um desejo secreto e uma
resolução.
Bertie continuava a ser um enigma. Respondera polidamente à pergunta do irmão. A resposta fora convencional. Mas que haveria no fundo
dessa resposta? Que significavam os Estados Unidos para Bertie, que nunca vivera na realidade neste mundo?
— Isso é maravilhoso, Bertie —, disse Robbie. — Devo dar-lhe parabéns.
Estendeu de novo a mão para o irmão, pensando: Siga o seu caminho, Bertie. Procure encontrar-se seja lá onde for e como for.
Os seus pensamentos se lhe estampavam no rosto e foram percebidos por Bertie que apertou significativamente a mão de Robbie.
Janie devia ter tido também seus pensamentos. Continuava a chorar, mas sem agitação. Levantou-se e beijou o rosto de Bertie, dizendo:
— Meu bravo filho! Meu filho soldado! Orgulho-me de você!
Bertie olhou-a com grata surpresa. Beijou-a também e deixou que ela tornasse a abraçá-lo.
Tiveram todos um sobressalto quando Angus começou a falar, pois haviam-no esquecido.
— É isso então tudo o que você pode fazer, enchendo sua mãe de preocupação e fazendo-a acreditar que tinha morrido bêbado em alguma
sarjeta ou se tinha jogado no rio, para voltar agora fantasiado de herói, com um uniforme que não tem o direito de usar! Esse uniforme não tem
o menor sentido para nós, nem para você. Você é um patife barato e irresponsável e eu o desprezo e repudio!
A sua voz trêmula de paixão, com dominante e desesperada emoção, cheia de ciúme e angústia, encheu toda a sala. Apontou implacavelmente
o dedo para o irmão com tamanho ódio no rosto que até Bertie perdeu o seu constante sorriso e se tornou grave e silencioso.
— Toda a sua vida você foi um fardo e uma vergonha para sua mãe, uma desmoralização pra sua irmã, uma ignomínia para seus irmãos! Você
sempre pairou sobre esta família como uma nuvem negra que nos humilhava perante os inferiores e nos manchava o nome e a honra. Acha que
com o que acaba de fazer pode inspirar-nos admiração por sua loucura? Mas eu lhe digo que isso é o seu ato máximo para nossa mortificação
e que só fez isso para colocar-nos diante de nossos iguais, de nossos inferiores e de nossos superiores numa posição do mais completo e
desastroso ridículo!
O rosto severo e estreito de Angus, sempre tão pálido e sem expressão tinha-se tornado a cara de um demônio selvagem e odiento. Parecia
possesso e vibrava com as suas emoções. Olhava apenas para Bertie, que nada dizia.
E então, antes que Janie pudesse voltar a si do seu assombro, saiu da sala e da casa, cambaleando um pouco, como se estivesse bêbado.
Robbie estava sentado ao lado de Alice à pálida luz do amanhecer. Alice dormia e seu rosto jovem estava abatido, mas em descanso. Duas
horas antes, tinha dado à luz uma filha, que estava no berço no quarto do outro lado do corredor.
Havia duas horas que Robbie estava assim sentado ao lado da esposa. Mas não pensava nela, nem na filha. Pensava era no irmão. E dizia a si
mesmo: Nunca mais o verei. Ele se foi para sempre.
Havia nele uma ampla e vazia desolação na qual a dor vagueava como um espectro. Olhava para o rosto da mulher que dormia e via apenas
Bertie. Não era a mão de Alice que segurava, mas a do irmão. Quando ela suspirou um pouco em seu sono profundo, o suspiro que ele ouviu
foi de Bertie.
Sentia que estava não num quarto onde a vida tinha entrado, mas num quarto onde a morte esperava.
CAPÍTULO 62
— Não quer, não é? — perguntou Stuart, cheio de raiva. — Pois fique sabendo, Grundy, que vai tê-los, queira ou não queira! Quem os está
pagando sou eu e não você!
— Vou-me queixar à polícia! — exclamou o Padre Houlihan, furiosamente. — Não quero desordeiros e valentões atrás de mim! Você pode
acabar na cadeia por isso, sabe?
— Pois eu acho que deve dar atenção a Stuart, Padre —, disse pausadamente Sam Berkowitz.
— Dar atenção a Stuart?— gritou o padre. — Ele me está fazendo seguir de um pelotão de ferrabrases e arruaceiros como se eu fosse um
criminoso! Deus é que é meu protetor! Não preciso de assassinos com cacetes e pistolas!
— Deus não impediu que lhe quebrassem já três vezes a cabeça! — retorquiu Stuart. — Ou quem sabe se não ficou com esses olhos roxos por
ter batido sem ver numa porta fechada? E como foi que quebrou esse braço? Foi quando estava diante do altar e fazia a elevação da hóstia?
— Blasfemo indigno! — exclamou o Padre Houlihan, querendo levantar-se da cadeira com os punhos cerrados. — Não consinto que um
blasfemo e um ímpio fique nem mais um minuto dentro de minha casa! Saia antes que eu o ponha para fora a pontapés!
Mas Stuart se limitou a rir porque o Padre Houlihan com os seus vigorosos movimentos tinha repuxado vários músculos doloridos de seu último
espancamento por um grupo de desordeiros mascarados. O padre se deixou cair na cadeira com um gemido, mas seu olhar ainda era
furibundo.
— Creio — disse o Padre Billingsley com sua voz neutra e explícita —, que o Padre Houlihan tem toda a razão nas suas objeções. Ninguém
precisa senão da proteção de Deus.
— Pensa assim, não é? — exclamou Stuart desdenhosamente e olhando o padre mais moço com visível má vontade. — Todas as provas da
história dizem o contrário, Padre. Ou talvez não conheça bem a história?
Stuart sabia muito bem que o Padre Billingsley era muito versado em história e escrevera um livro bem fundamentado sobre Napoleão e outro
sobre Gustavo Adolfo, que tinham despertado muito interesse nos dois continentes. O Padre Houlihan, esquecido por um momento de seus
problemas, exclamou:
— Ora, aí está uma coisa muito impensada que você disse! Você que é incapaz de saber a diferença entre o Monte Etna e Santa Helena! Ou
quem sabe se não acha que tem competência para dar uma lição de história ao Padre Billingsley?
Stuart ficou de repente exasperado.
— Eu bem que poderia ensinar a ele e a você também, não tenha dúvida, muito boa lição sobre a natureza humana e uma grande lição sobre
as distrações do Onipotente quando devia estar protegendo bobos e crianças como vocês! Você vai ter esses... esses cavalheiros para
protegê-lo, quer você queira, quer não. Além do mais, são bons irlandeses católicos e você não pode fazer nada para impedir que eles o
acompanhem até à sua igreja. Portanto, conforme-se!
— Não consentirei! — gritou o padre.
— Já consentiu —, replicou Stuart, rindo.
Olhou para os dois grandes e jovens irlandeses que se conservavam respeitosamente perto da porta da sala do padre. O Padre Houlihan olhou
também para eles e perguntou:
— Posso saber por que dois rapagões como esses não estão no Exército em vez de atormentarem um pobre padre como eu?
Já estiveram no Exército, Grundy, e deram baixa em consequência de ferimentos recebidos em combate. Walsh perdeu o olho direito e Cullen
levou uma bala no quadril. Mas ainda têm uma musculatura esplêndida, sabem com que lado de uma pistola é que se atira e costumam atirar
primeiro e fazer perguntas depois.
— Quer dizer que eu vou ser guardado por assassinos? Por onde eu andar, irei deixando um rastro de cadáveres! Não, não quero!
— Vai querer, sim —, murmurou Stuart, gentilmente.
O padre teve uma exclamação de raiva seguida de um olhar feroz. Tentou reprimir os sorrisos de seus guarda-costas. Eles lhe retribuíram o
olhar com olhos inocentes e respeitosos. Sam sorriu e disse:
— Stuart tem razão, Padre. Tem necessidade de proteção e Stuart não tem tempo de se estar preocupando a todo instante com sua pessoa.
Deve ter alguma consideração por ele.
— E Cullen me disse que há três anos que não se confessa —, disse Stuart, sorrindo. — E Walsh não vai à missa há quase quatro anos. Pode
agir com eles à vontade!
— E ainda por cima hereges! — exclamou o Padre Houlihan.
Olhou os dois homens com a testa franzida e começou a censurá-los pelo não cumprimento de seus deveres religiosos. Os dois escutaram
tudo humildemente, fazendo sinais de aquiescência à medida que a indignação do padre contra eles aumentava. De repente, começou a rir. O
braço que até pouco antes estivera na tipoia doeu e ele o esfregou distraidamente.
— E escute aqui —, disse o padre a Stuart, tentando não dar a impressão de que estava perdoando coisa alguma —, quem é que vai dar casa
e comida a esses dois latagões?
— Já me entendi a esse respeito com a Sra. Murphy, que mora a duas portas daqui. Vão se revezar montando guarda à sua pessoa, um
durante o dia, o outro à noite. Por exemplo, Cullen, que é ligeiro no gatilho, passará a noite encolhido à porta de seu quarto como se fosse um
cachorro fiel. Amanhã, Walsh lhe seguirá humildemente os passos. Pode dar-lhe um terço e um livro de missa e tratar de assuntos religiosos
com ele enquanto cuidar de seus deveres. Ele bem que precisa de ser educado de novo.
O padre olhou para Stuart tentando manter a sua expressão furiosa. Mas era inútil. Deu um suspiro e sorriu. A voz lhe tremia um pouco ao dizer:
— Stuart, você é um patife teimoso, mas gosto de você.
Estendeu a mão ao amigo, que a apertou afetuosamente. Os olhos do padre tinham uma obscura tristeza ao contemplá-lo.
Stuart disse:
— As coisas vão muito mal quando um homem de Deus tem de ser protegido neste país. É uma triste coisa de ver numa república livre pobres
freiras inofensivas não poderem sair de seu convento sem se sujeitarem a imundos insultos e ameaças e crianças que não podem sair das
escolas sem serem aterrorizadas. É uma coisa lamentável ver um homem de bem como Sam ser insultado em plena rua e receber
comunicados em que sua vida é ameaçada. É uma coisa que tira do coração toda a esperança na humanidade e no progresso da raça
humana.
Mas o Padre Houlihan disse com indignação:
— A humanidade sobe dois degraus e desce um. Mas partimos de muito baixo e, com a ajuda de Deus, subiremos ainda mais. Estamos num
tempo de tensão e as paixões estão exaltadas. Mas isso vai passar.
— Ah, você com seu amor por este país é incorrigível, Grundy! E me faz repetir suas palavras por toda a parte como um papagaio —, disse
Stuart. — Sim, isso vai passar. Mas as sementes do ódio e da crueldade têm vida longa e o que for espalhado ao vento hoje poderá encontrar
um lugar onde germine amanhã. Não pense que as sementes que estão sendo lançadas agora no solo do país vão morrer. Podem dormir
durante muito tempo. Mas podem brotar e crescer daqui a vinte, trinta, cinquenta ou cem anos. Sinto isso, infelizmente, no meu coração.
— As sementes do mal sempre crescem —, disse o Padre Houlihan. — Mas a fé, o amor, a misericórdia e a justiça sempre acabarão por
destruí-las. Nunca tive medo. Reconheci um dos meus atacantes, mas não apresentei queixa contra ele. Não foi ele quem deu origem à doença.
Foi um homem que vive numa dessas casas ricas que tem medo de que minhas palavras ameacem a sua cama macia, a sua casa com seus
numerosos ocupantes, seus bons vinhos, suas belas carruagens, suas fartas contas de banco e seus títulos.
— E há outra coisa, Grundy —, disse Stuart. — Quando você falou em Union Hall e recomendou aos operários dos matadouros de Schnitzel
que exigissem melhores salários e organizassem um sindicato para sua proteção, fez uma coisa muito perigosa. Ganhou com isso um inimigo
de morte. É verdade que Schnitzel teve de aumentar os salários, mas foi uma vitória sinistra. Você fez também discursos semelhantes aos
operários da fábrica de salsichas de Zimmermann, aos trabalhadores das docas e dos vapores, aos operários das usinas siderúrgicas e de
outros lugares. Com isso, você tornou Grandeville um lugar perigoso para a sua segurança.
— Não, fiz foi de Grandeville um lugar mais decente para os que trabalham! Parece até que você pensa que não faz parte do trabalho de um
padre proteger o seu povo e tornar-lhe a vida mais suportável além de cuidar-lhe das almas. Tenho pena dos homens de Deus que julgam que o
trabalho de um padre termina no altar, onde deve falar apenas de coisas transcendentais. Um homem tem de estar de barriga cheia para
pensar em sua alma. Se não houver justiça, a própria religião não poderá sobreviver.
Stuart sorriu afetuosamente.
— Está bem, Grundy. Concordo com você. Mas acho que nem cem operários valem seu dedo mínimo. Não se esqueça de que são os
primeiros que se voltam contra você, os primeiros que acreditam nas mentiras a seu respeito, enquanto se alimentam da comida melhor que
você lhes proporcionou e têm nos bolsos o dinheiro a mais que você lhes conseguiu. Moram em casas mais higiênicas e dormem em camas
mais confortáveis, tudo conseguido por você, mas pensam nos boatos que ouviram a seu respeito e o odeiam.
— Não posso acreditar nisso —, disse o padre. Mas o sofrimento estampado em seu rosto cansado lhe desmentia as palavras.
— Ainda que seja assim, tenho de fazer o que me for possível. Há de haver um tempo em que saberão e compreenderão.
Stuart se levantou. Mas a Sra. O’Keefe entrou nesse momento com a notícia de que estava servida uma refeição leve. Olhou para os dois
guarda-costas com satisfação e disse que havia um bom prato e uma cerveja para eles na cozinha. Piscou o olho para Stuart, que sorriu. O
Padre Billingsley levantou-se muito sério e pediu permissão ao Padre Houlihan para retirar-se. Depois que ele saiu, o Padre Houlihan disse a
Stuart:
— Um homem muito bom e uma alma excelente. Mas vive tão fora da terra...
— Por falar nisso, já fez as pazes com Madre Mary Elizabeth? — perguntou Stuart.
O Padre Houlihan riu.
— Ah! É também uma criatura excepcional, muito culta e muito santa. Acho que devo ser uma grande decepção para ela. Acredita decerto que
minha conversa é muito vulgar e, de minha parte, confesso que não entendo quase nada do que ela diz.
— Você sabe alguma coisa muito melhor, Grundy.
Foram para a saleta dos fundos onde a Sra. O’Keefe havia servido um excelente jantar. Mas o apetite do Padre Houlihan, sempre muito
vigoroso, estava bem fraco naquela noite. Examinou furtivamente Stuart. Havia decerto uma mudança nele. Estava mais magro e um tanto
nervoso, com os olhos inquietos e febris. Parecia mais moço, mais alerta e vivo, é verdade, quase como era dez anos antes. Mas não podia
parar; estava nervoso e intenso. As amplas mechas de cabelos grisalhos haviam desaparecido misteriosamente. O padre pensava que isso
era o mais triste e revelador de tudo. Ainda, um certo espalhafato na maneira de vestir-se de Stuart estava atenuado e o seu traje mostrava
agora uma elegância tranquila que nunca fora de seu gosto natural. Bebia mais que nunca, mas a bebida não o tornava exuberante como
dantes, mas ainda mais nervoso, mergulhando-o em momentos de profunda abstração. Vários dos seus anéis mais espetaculares tinham
desaparecido e a corrente do relógio cheia de pedrarias fora substituída por outra, mais discreta e passada por sobre coletes que
impressionavam pela sua reserva distinta.
O Padre Houlihan perguntou por Marvina e Mary Rose. A expressão de Stuart sofreu uma mudança sutil. Brincou com os talheres ao lado de
seu prato e disse que a mulher e a filha estavam em Saratoga. Os médicos asseguravam que Mary Rose estava muito melhor. Mas precisava
das águas. Dentro de duas semanas, ela e a mãe iriam de novo para as montanhas durante algumas semanas, a fim de completar o
tratamento. Estariam ambas de volta em novembro.
O padre pigarreou e perguntou como estava Nova York naqueles tempos de guerra. A situação estava afetando a cidade de alguma maneira?
Stuart cortou cuidadosamente uma fatia de presunto, embora já tivesse duas fatias em seu prato. Sam Berkowitz olhou ansiosamente em
silêncio para o amigo e para o padre. Stuart disse que o povo em Nova York já não estava tão bem vestido; havia menos dinheiro. As ruas
estavam cheias de soldados em licença, os quais promoviam desordens com as suas bebedeiras. Mas, afora isso, a cidade continuava muito
alegre. Não havia muito para comprar desde que o bloqueio e os corsários do Sul tinham reduzido o movimento marítimo. Entretanto, as
mulheres ainda se vestiam muito bem e ele, Stuart, nunca vira tantas joias.
— Pretende ir assistir à estreia de Laurie nessa nova ópera? — perguntou o Padre Houlihan com o que julgava imenso fato.
Stuart pegou outro pedaço de pão e disse que certamente iria ouvi-la. Nova York estava muito interessada pelo espetáculo, embora se
estivesse ainda em setembro. Seria ótimo se Sam e Grundy pudessem ir também. Seria uma coisa maravilhosa. A mão de Stuart tremia um
pouco e as faces estavam coradas. O olhar dele tinha a vivacidade de um homem sob a influência do álcool.
E então, mudou repentinamente de assunto.
O padre refletiu que não era difícil ajudar um homem a seguir o caminho certo quando se podia mostrar que o outro caminho era errado ou
quando o homem era mau. Mas Stuart não era mau. Era um bom homem. Os seus únicos defeitos eram os excessos de suas qualidades.
Podia ser pródigo, mas a sua prodigalidade em coisas sem mérito nascia de sua generosidade, de sua bondade, de suas paixões exaltadas
e.de sua capacidade de amor. A mesma chuva e o mesmo sol que produziam as flores, as árvores, a relva, as frutas e os alimentos da terra em
profusão estimulavam também o crescimento de ervas daninhas, das selvas emaranhadas e perigosas, dos espinheiros e das bagas
venenosas.
Que poderia ele dizer a Stuart? Que ele era um adúltero e, como tal, sujeito ao fogo do inferno? Que ele tinha seduzido uma moça e poderia
levá-la à destruição? O padre sorriu tristemente consigo mesmo. Stuart tinha sido um “adúltero” havia muitos e muitos anos e o Padre Houlihan
duvidava muito de que ele corresse o risco do fogo do inferno. Estava pessoalmente convencido de que o fogo do inferno era especialmente
preparado e reservado para os homens virtuosos que não tinham caridade, nem bondade em seus corações, que rezavam fervorosamente com
os lábios e odiavam seus semelhantes no fundo da sua alma, que frequentavam ativamente as igrejas e davam dinheiro para os seus cofres, ao
mesmo tempo que só guardavam maldade no seu frio coração. O Padre Houlihan não estava convencido, porém, de que esses homens
fossem hipócritas, como lhes chamaria Stuart. Tinham intensa fé, muito mais fé do que possuíam os homens fáceis e sem virtude que dariam a
vida com prazer para ajudar a humanidade a ter um futuro melhor e uma existência mais nobre.
Além disso, o padre não tinha a menor dúvida de que, se tinha havido alguma sedução, Stuart fora o seduzido e não o sedutor. De uma coisa
tinha certeza: Stuart estava amando uma mulher pela primeira vez em sua vida. Como poderia então dizer a Stuart que o que ele estava
fazendo era mau? É claro que sou muito pouco ortodoxo, estou completamente em erro e meu bispo ficaria escandalizado, pensou
humildemente o Padre Houlihan, mas não vejo mal algum no amor, quando é verdadeiramente amor, e para mim esse amor não é pecado, seja
santificado ou não pelo casamento. O poder de amar e o próprio amor vêm de Deus e nenhum mal pode vir Dele.
Depois que Stuart e Sam saíram, ele ficou em meditação durante muito tempo, rezando pela paz de seu amigo e pela proteção de Deus para
ele. Em dado momento, percebeu com ingênua surpresa que tinha rezado mais por Stuart do que por qualquer outra pessoa deste mundo!
Ainda dominado por essa surpresa, subiu para seu quarto. Descobriu que sua competente irmã tinha ido desencavar, ele não sabia onde, uma
cama de campanha e nessa cama o homem chamado Cullen repousava sobre um rolo de cobertores e bem acordado. Franziu a testa para o
homem que se levantou imediatamente e fez continência.
— Pretende mesmo dormir diante de minha porta? — perguntou o padre.
— Sim, Padre. É meu serviço.
— Seria muito melhor que estivesse dormindo em sua casa como um bom cristão —, disse severamente o padre. — Que tolice!
Depois que entrou e fechou a porta, o padre ouviu o homem arrastar a cama para a frente de sua porta.
Quanto drama! Stuart tinha sem dúvida a veia histriônica. Como se fosse possível alguém entrar naquela casa com intuitos homicidas! Não
podia haver nada mais ridículo.
CAPÍTULO 63
Stuart e Sam Berkowitz caminhavam lentamente dentro da noite suave e clara de setembro. A lua cheia difundia por todo o céu a sua claridade
leitosa. O ar doce e embalsamado pairava sobre a cidade. Os lampiões brilhavam nas ruas desertas, cujo silêncio só era quebrado de quando
em quando por vozes, rumor de passos ou rodar de carruagem. Os andares superiores das casas estavam acesos mostrando que as famílias
se estavam preparando para dormir.
Os dois homens caminhavam em amistoso silêncio. Sam fumava o seu cachimbo de costume e Stuart tirava baforadas de um charuto.
Passaram por alguns oficiais alegres que saíam de uma festa. Stuart olhou-lhes rapidamente os rostos. Talvez um deles fosse Bertie Cauder.
Mas Bertie não estava entre eles. A família não tinha notícias dele havia quase seis semanas. O treinamento dele não podia estar concluído
ainda. Mas a vasta máquina da guerra estava rolando com mais rapidez e ninguém podia saber.
Stuart, olhou para o homem de meia-idade cansado e magro ao lado dele. Sentia que Sam parecesse tão velho, com os cabelos tão brancos e
o rosto tão encarquilhado. Mas a expressão de Sam era perfeitamente pacífica. Sentiu o olhar de Stuart e se voltou para o amigo com um
sorriso.
— Os negócios foram um pouco melhores nesta semana —, murmurou ele.
— Por favor, Sam, não vamos falar de negócios. Você bem sabe que eu não gosto. Nós ambos sabemos que eu estou à beira de um
precipício, mas eu, de uma maneira vaga, creio que, se não tomar conhecimento do precipício, não terei medo e poderei talvez afastar-me dele
e escapar, sem que nada me aconteça.
Não, pensou Sam, desta vez, nem você, nem eu conseguiremos escapar. Stuart nem olhava mais os livros. Passava a maior parte do tempo
nas lojas, conversando amavelmente com as freguesas, fechando vendas difíceis. Vivia numa espécie de transe febril, num sonho de que não
queria ser despertado, para livrar-se do inevitável terror. Sam sacudiu tristemente a cabeça. Estavam no fim. Só um milagre poderia salvar as
lojas.
Pensou de repente em Angus Cauder e cerrou os maxilares. Que adiantava dizer a Stuart se era tarde demais?
Ele, Sam, tinha chegado ao fim. O seu trabalho nas lojas estava terminado. Dentro em breve, o dinheiro lhe sairia das mãos e a Ilha do Rio
seria sua. Apressou o passo. Sentia-se menos cansado. Os olhos lhe brilhavam sob a aba do chapéu alto. O velho sonho se tornara realidade
por obra de Deus e, dentro de um ano, duas mil pessoas acossadas e atormentadas achariam um refúgio final na segurança cheia de árvores
da Ilha do Rio para ali empregar os braços contundidos e cansados nas tarefas da vida.
Disse então:
— Vou pagar minha ilha amanhã, Stuart. Minha ilha. Tudo está aprovado e não haverá mais demoras.
— Ótimo, Sam! Você não me poderia dar melhor notícia!
Sam sorriu.
— Será uma boa notícia também para os que esperam apenas sofrimento e morte. Já escrevi para eles e em breve estarão aí, homens,
mulheres e crianças.
— Tem certeza de que tudo está resolvido?
— Absoluta. O contrato foi assinado hoje e eu farei o pagamento amanhã. Vou tirar o dinheiro do banco. Hoje, fui ao banco para regularizar tudo
e encontrei-me com Joshua Allstairs. Há anos que não nos falamos. Mas ele foi muito amável comigo e me disse: “Sam, é muito perigoso neste
momento você fazer isso. Espere um pouco. Comprarei a ilha em meu nome e você poderá comprá-la a mim dentro de alguns meses ou de um
ano, pagando apenas os juros. Farei isso por você como um depositante, um cliente.”
Stuart parou na rua e exclamou, cerrando os punhos:
— Que cachorro! Que cachorro imundo e infame!
— Calma, Stuart —, disse Sam, com a mão no braço do amigo. — Você assim vai acordar toda a rua. Mas Allstairs foi muito amável. É um
velho, pensei eu, e deve estar esquecido ou arrependido do mal. Talvez seja sincero. Não sei. Talvez pense no povo desta cidade que prefere
atormentar pessoas indefesas a ir lutar pelo país. Não sei. Já desisti de pensar. Quando se fica velho, sabe-se que há coisas que escaparão
sempre ao nosso conhecimento. Só os moços querem saber o porquê das coisas. Pouco tempo me resta de vida e eu não vou perdê-lo em
perguntas. Limitei-me, portanto, a dizer com toda a gentileza: “Não, Sr. Allstairs. Tenho de fazer isso agora. Mas agradeço muito sua bondade.”
— Você disse isso mesmo, seu maluco?
— Claro que sim. Dizem que as palavras amáveis talvez não evitem um golpe nem façam um homem mudar de ideia, mas, ao menos, não
provocam nem o golpe, nem a reação de um homem justo. Quanto aos injustos, já têm os seus planos formados e não vão mudar de ideia.
Depois, eu acho que Joshua já está velho demais para pensar em maldades.
— Você é um idiota incorrigível, Sam! Você sabe muito bem quem é que está fazendo essa agitação toda para contrariar seus planos sobre a
ilha! Isso foi apurado numa investigação. Foi ele quem pagou os cartazes que diziam: “Não queremos um Gueto em Grandeville! Abaixo os
Judeus!” Foram desordeiros contratados por ele que atacaram o velho Grundy e ameaçaram atacar você. Foi a mão de Joshua, por intermédio
de outros, quem arremessou pedras contra as portas e as janelas de sua casa. E você ainda acha que ele talvez se tenha esquecido de suas
maldades. Não sabe que ele é maligno? Não dorme. Vive em Grandeville como uma lepra que se estende cada vez mais e ameaça cobrir toda
a cidade!
— Ele nada pode fazer nem a mim, nem a meus planos —, disse Sam. — Tudo o que ele tem tentado fazer tem sido inútil. Por isso, não me
preocupo e não penso mais nele. Há mais uma coisa que me esqueci de lhe dizer. Irei amanhã a Nova York, para discutir muitos assuntos com
um rabino, meu amigo. Você tem de ficar com as chaves de meu cofre particular.
Stuart refletiu que devia haver bem pouco no cofre e Sam continuou:
— Há também papéis no cofre relativos a alguns negócios que têm de ser feitos nos próximos dias. Peço-lhe que cuide disso por mim. Tudo se
refere à ilha e às discussões que planejei com os lavradores que já estão estabelecidos lá. Peço-lhe que leia meus apontamentos. É possível
que você tenha sugestões a fazer sobre alguns pontos que me passassem despercebidos.
— Esses lavradores são proprietários das terras?
— Não. São apenas arrendatários. Mas tenho certeza de que poderemos chegar a um acordo amigável. Não quero que saiam de lá. Quero
apenas explicar-lhes meu plano e conseguir a aquiescência deles.
Chegaram à casa isolada onde Sam vivia. Ele a olhou tristemente. Sentia falta da mãe, mas ela deveria estar alegre naquela noite se pudesse
saber que o filho havia afinal conseguido realizar o seu sonho.
Stuart olhou para o rosto do amigo à luz mortiça do lampião da rua. Estava sereno, cheio de determinação e paz. Brilhava-lhe nos olhos
cansados o sonho majestoso de toda uma vida.
Stuart despediu-se dele e seguiu o seu caminho, cantarolando distraidamente. Sam se encaminhou para o lado da casa e meteu a mão no
bolso para tirar a chave. Havia ali muitos canteiros e arbustos, que tinham feito a alegria da falecida Sra. Berkowitz. Sam já ia colocar a chave
na fechadura quando ouviu um rumor de passos à suas costas e voltou-se para ver dois homens enormes que se aproximavam.
Sentiu um arrepio pelo corpo, mas encarou-os com calma resolução e perguntou:
— Que desejam?
Um dos homens deu um passo à frente e perguntou:
— Você é o judeu Berkowitz?
— Sou.
Num último relance, viu o cacete erguido e o rosto bestial. Em seguida, o universo explodiu numa torrente de fogo e de estrelas que se
despedaçavam.
CAPÍTULO 64
Stuart tinha-se afastado apenas algumas ruas quando se lembrou de que Sam não lhe dera as chaves de que havia falado. Isso queria dizer
que no dia seguinte o amigo seria obrigado a atrasar a sua viagem para lhe entregar as chaves. Voltou rapidamente sobre seus passos.
Ficou surpreso de ver de longe que a casa de Sam ainda estava às escuras. Não era possível que em apenas dez minutos se tivesse
preparado para dormir e já estivesse deitado. Além disso, conhecia bem os hábitos de Sam. Nunca se deitava sem ler antes um pouco e,
muitas vezes, entrava pela madrugada com um livro na mão. Por tudo isso, era inexplicável que não houvesse uma só luz acesa dentro da casa.
A intuição de Stuart acelerou-lhe o coração em súbito pavor. Parou no passeio diante da casa, tentando controlar-se e acalmar o tumulto que
lhe ia na cabeça. Mas segurou a bengala com involuntária firmeza. Que tolice a sua! A noite estava linda e talvez no último momento Sam
tivesse resolvido passear um pouco antes de entrar e ler.
De qualquer maneira, resolveu ir até ao lado da casa, a fim de tentar a porta. Não havia som algum salvo o farfalhar das folhas e o murmúrio do
vento. Os arbustos lançavam sombras nas lajes do caminho. Uma janela, escura e vazia, escancarava-se à sua passagem como um olho
sinistro. Insetos esvoaçavam, batendo-lhe no rosto. Esmagava com os pés folhas secas pelo chão. Começou a mover-se cautelosamente,
penetrado por um medo sem causa.
Tropeçou de repente em alguma coisa. Recuou, trêmulo e com o suor a escorrer-lhe do rosto em estranha premonição. Tirou os fósforos do
bolso e riscou um deles. Viu Sam estendido a seus pés, com a cabeça despedaçada, o rosto ensanguentado e os olhos fechados.
O fósforo chegou ao fim e caiu da mão de Stuart. Deu um grito e caiu de joelhos ao lado do amigo. Levantou-o nos braços, chamando-o
desesperadamente pelo nome. Depois, gritou alucinadamente por socorro. Janelas se abriram por toda a rua e ouviram-se vozes estridentes.
— Assassinos! — gritou Stuart. — Polícia! Assassinos!
Tudo escureceu e rodou em torno dele. Sentia os braços fracos e flácidos. Abraçava Sam de encontro ao peito e falava incoerentemente com
ele, pedindo que dissesse ao menos uma palavra. Pela primeira vez desde a infância, chorou. Sentiu o ardor quente das lágrimas nas
pálpebras e começou a gemer e a soltar terríveis imprecações. Não sabia que estava cercado de homens ansiosos com lanternas nas mãos,
que estavam vestidos às pressas, gritavam e emitiam exclamações de medo e de espanto. Não sabia que tinha as mãos molhadas do sangue
de Sam. Não sentiu que o agarravam, que o sacudiam, que lhe pediam ajuda para carregar Sam para a casa.
Só sabia era que Sam estava gemendo e se movia fracamente em seus braços. Cingiu o amigo com mais força, enxugando o sangue que lhe
escorria pelo rosto.
— Sam! Sam! Quem foi? Diga-me quem foi!
A luz das lanternas vacilava sobre o rosto do homem que morria nos braços desesperados de Stuart.
Sam se moveu de novo, abriu os olhos e voltou-os através das névoas escuras para o amigo. Murmurou afinal:
— Stuart... Stuart...
— Sim, sou eu, Stuart! Quem foi que fez isso, Sam?
A cabeça de Sam caiu para trás. Os olhos tornaram a fechar-se. Mas os lábios sussurraram fracamente:
— Allstairs... Não queria que eu...
Os braços de Stuart enfraqueceram. Olhou para as pessoas em torno e viu-as pela primeira vez. E elas recuaram involuntariamente diante da
terrível expressão que havia no rosto dele. Mas ele disse apenas:
— Ajudem-me. Temos de levá-lo para dentro. E chamem imediatamente um médico.
CAPÍTULO 65
A realidade tinha tomado a consistência, as sombras e o horror de um pesadelo. Às vezes, seguindo às pressas pelas ruas silenciosas, Stuart
parava trêmulo, olhava para o céu e exclamava: “É um sonho! É apenas um sonho!” Olhava para o alto, via as estrelas, as copas escuras das
árvores, os lampiões acesos, as casas escuras e um intenso tremor lhe percorria o corpo, numa náusea mortal e num furor insano e ele
desejava que pudesse acordar e sentir-se em segurança na sua cama. Dentro das casas, as pessoas ouviam as suas maldições, suas
desvairadas exclamações e blasfêmias e se viravam, murmurando coisas contra o “bêbado” que lhes estava perturbando o sono. Ouviam-lhe
então os passos apressados que ressoavam e se perdiam no silêncio da noite.
Dois soldados passaram por ele numa esquina, viram-lhe o rosto à luz do lampião e recuaram instintivamente. Viram o vulto rápido
desaparecer na escuridão e um deles tocou com a mão na cabeça.
— Não, não está maluco —, disse o outro. — Está com cara de quem vai procurar alguém. E Deus ajude quem for.
Mas Stuart nada via à sua frente senão a cara de Joshua Allstairs. Era como se caminhasse através de um longo túnel escuro, em cuja
extremidade Joshua o esperava, encolhido e incapaz de mover-se. Chegou à casa às escuras de Joshua e bateu a aldrava da porta. Tornou a
bater uma, duas, três vezes até que o barulho repercutiu em toda a rua. Começou então a bater na porta com o castão da bengala. Gritou:
— Deixe-me entrar! Você não pode mais se esconder de mim!
Ouviu afinal algumas exclamações fracas do outro lado da porta. Esta se entreabriu e ele viu o rosto amedrontado do mordomo de Joshua que
o espiava.
— O que você quer? Vá-se embora daqui! Está louco? Quem é você?
Stuart meteu a mão na porta e empurrou-a. O velho caiu para trás com um grito e recuou.
— Policia! — exclamou ele com voz fraca. — Socorro!
Stuart agarrou-o pelo pescoço com a mão esquerda e levantou a bengala. Por um instante, o velho mordomo lhe viu o rosto e fechou os olhos
murmurando uma prece incoerente. As pernas lhe falharam. Stuart jogou-o de lado como se fosse um boneco de pano e subiu a escada. Os
degraus estavam orlados de fogo. Toda a escadaria tremia diante dele e ondulava como uma serpente. Mas subiu firmemente com a bengala
erguida na mão.
No andar de cima, todos os quartos estavam às escuras. Mas atrás de uma porta havia exclamações lamurientas e, então, uma luz se acendeu
lá dentro.
— Que é? — exclamou Joshua. — Judson? Judson? Quem é a uma hora destas?
Stuart agarrou a maçaneta, mas a porta estava trancada. Meteu o ombro contra a madeira forte. A porta resistiu. Não se jogou contra ela.
Fechou os olhos e fez força com o ombro implacavelmente. Com os músculos retesados, disse:
— Vou entrar, Joshua. Vou entrar para matá-lo.
Joshua começou a gritar. Stuart ouviu o arrastar de seus velhos pés quando ele se dirigiu para a janela, abriu-a e gritou:
— Socorro! Assassino! Policia!
Stuart fez mais força contra a porta. Esta começou a estalar e a ceder.
— Vamos, vamos —, murmurava Stuart na alucinação de que estava possuído. -— Mais um pouco, só um pouquinho mais.
Dentro do quarto, Joshua gritava como um desesperado, debruçado da janela. Ouviam-se sons na rua, passos apressados. Stuart não os
escutava. Só ouvia a voz de Joshua e, quando afinal a porta cedeu, deu uma gargalhada.
A porta se estilhaçou fragorosamente e se inclinou, pendente das dobradiças, para dentro do quarto. Stuart entrou correndo no quarto como um
touro furioso. Tropeçou e teve de parar a fim de não cair. Joshua estava encolhido junto à janela, tremendo e gemendo. O seu rosto de velho era
uma máscara de morte, de terror, de um medo abjeto e obsceno. Os olhos mortiços estavam distendidos à luz do candeeiro e a comprida
camisa de dormir branca lhe pendia do corpo como uma mortalha. Olhou para Stuart e, então, não pôde mais nem gemer. Abria e fechava a
boca seca sem emitir qualquer som e as suas narinas de animal predatório murcharam.
Stuart olhou para seu inimigo, para o homem que matara seu amigo. Disse então:
— Reze, Joshua, porque eu vim matá-lo.
O vulto encolhido junto à janela estremeceu. Abriu a boca e pôde murmurar:
— Será enforcado por isso, Stuart. Subirá ao cadafalso e lhe porão uma corda no pescoço.
Stuart sorriu.
— Mas você não vai ver isso, Joshua. Já estará no fundo da sepultura.
Levantou a bengala e deu um passo na direção de Joshua, que voltou a gritar alucinadamente. Stuart parou.
— Você matou Sam Berkowitz esta noite, Joshua. Contratou assassinos profissionais para matá-lo. Ele nunca lhe fez mal. Você o odiava sem
motivo. Você é um velho, Joshua, mas sua cobiça não tem idade. Nunca se contentou com tudo o que você tem e, porque nunca se contentou,
matou meu amigo. Ele morreu nos meus braços. Olhe para mim, Joshua. Está vendo esse sangue em minhas mãos, em minhas roupas? E o
sangue de Sam. Ele não morreu logo, porém. Os assassinos que você contratou pensaram que ele estivesse morto, mas não estava. E antes
de morrer, ele me disse...
Joshua murmurou numa voz que era um gemido:
— É mentira, uma mentira infame. Não mandei ninguém matá-lo. Mentiram. Acredite que eles mentiram, Stuart. Não tenho culpa nenhuma
disso. Você não me vai matar, não é, Stuart? Sou o pai de sua mulher. Sou o avô de sua filha. Você será enforcado se me matar, Stuart!
Deu um grito quando Stuart avançou para ele, com o corpo encurvado e a cabeça estendida para a frente. Mas foi a expressão do rosto de
Stuart e não o seu avanço que lhe inspirou o grito inumano de terror.
Juntou as mãos. Começou a escorregar encostado às paredes, empurrando futilmente alguns móveis pequenos para o espaço que o separava
de Stuart — uma mesinha, uma cadeira, uma pequena cômoda. As mãos se contorciam sobre cada móvel. Encolhia-se atrás deles e pensava
que, se pudesse chegar à grande cama, teria tempo de escorregar por baixo dela e livrar-se das mãos assassinas de Stuart. Enquanto isso,
continuava a gritar. A luz do candeeiro iluminava aquela cena de horror — o velho que fugia e o homem mais moço que avançava em silêncio e
sem pressa. As longas sombras trêmulas de ambos os acompanhavam pelas paredes, pelo alto teto branco e pelo chão.
O alucinado terror da morte pairava sobre Joshua. Entre seus gritos, fazia súplicas dementes a Stuart, ao mesmo tempo continuava a empurrar
móveis no caminho de Stuart e a escorregar pelas paredes em direção à cama. Bateu numa estante cheia de raros e velhos objetos de arte. A
estante caiu, num estrépito de vidros e porcelanas que se quebravam. Os fragmentos brilharam à luz do candeeiro. E sobre eles, esmagando-
os, vinha Stuart inexoravelmente, cada vez mais perto.
Percebeu, de repente, o que Joshua pretendia fazer. Parou e riu. Ao ouvir o som horrível dessa gargalhada, Joshua ficou como que petrificado.
Encolheu-se contra a parede. Levantou os braços magros e abriu-os. As pernas fracas se vergaram. Ficou numa atitude de crucificação, com a
cabeça pendida para a frente e os olhos cheios de medo fixos em Stuart Era um homem velho e mau e estava condenado à morte.
Sabia agora que não tinha mais esperança. Caiu de joelhos. Tornou-se um montão de ossos coberto por uma camisa de dormir. Não podia
nem mais gemer. Estava reduzido ao silêncio. Levantou para a cabeça os braços esqueléticos e ficou à espera do golpe que o mataria.
Stuart chegou junto dele e disse:
— Está rezando, Joshua? Ou não tem coragem de rezar com receio de que Deus o escute? Assassino, demônio, cão danado!
Joshua nada disse. Limitou-se a apertar com mais força os braços sobre a cabeça. Mas um longo tremor lhe percorreu o corpo, a tal ponto que
parecia que a camisa de dormir era sacudida pelo vento.
Sentiu então Stuart agarrá-lo pela nuca e levantá-lo no ar. Pela última vez, gritou freneticamente, cheio de indizível terror. Viu Stuart levantar a
bengala e fechou os olhos. Perdeu os sentidos antes de levar uma só pancada.
Stuart olhou para o esqueleto em camisa de dormir que tinha em seu poder. A cabeça descaía sobre sua mão como se o pescoço estivesse
quebrado. A baba escorria dos lábios frouxos. Os braços e as pernas pendiam inertes.
Houve então um rápido tropel de passos na escada, gritos e a luz vacilante das lanternas. Stuart ouviu e viu tudo e então arremessou Joshua
violentamente. O corpo do velho escorregou pelo chão e foi bater na outra parede, onde ficou, num montão silencioso, obsceno e repulsivo de
carne e ossos velhos.
CAPÍTULO 66
— É aqui, Padre —, disse o carcereiro, abrindo a porta. — Só dez minutos, sim?
O Padre Houlihan hesitou na soleira da úmida célula de pedra. Havia uma janelinha gradeada no alto da parede molhada. Raios tênues de sol
entravam na prisão, indo cair sobre o estreito catre no qual Stuart estava sentado com a cabeça entre as mãos. Os cabelos desgrenhados
estavam embaraçados entre os dedos manchados de sangue. As roupas, amarfanhadas e manchadas, não tinham sido tiradas durante a noite.
A gravata de plastron pendia desamarrada sobre o colete. Paradoxalmente, o brilhante do anel lhe cintilava na mão direita.
O Padre Houlihan entrou na célula. Olhou para o amigo, mas Stuart não fez o menor movimento. Não percebera a entrada de alguém, nem
mesmo depois que a pesada porta fora batida depois da passagem do padre. Num tamborete ao lado, estava a comida de pão, água e carne
gordurosa em que ele não havia tocado. Não usara também o jarro de água e a toalha esgarçada que lhe tinham deixado. Estava sentado no
catre como se fosse de pedra e dava a impressão de que nem estava respirando.
O padre deu um suspiro profundo, que lhe veio do fundo do coração. Tirou do tamborete a bandeja suja e sentou-se perto do amigo. Disse
então, numa voz entrecortada:
— Stuart, meu velho e querido amigo, por que não olha para mim?
Stuart não se moveu. Os olhos avermelhados e cansados do padre se encheram de lágrimas. Colocou a mão no ombro do amigo e disse:
— Olhe para mim, Stuart! Tenha pena de mim!
Um longo tremor percorreu o corpo de Stuart e o padre o sentiu na mão sobre o ombro. Depois, Stuart deixou cair as mãos, mas não levantou a
cabeça. O Padre Houlihan viu-lhe o rosto sombrio e entorpecido. Os olhos de Stuart estavam cercados de uma orla arroxeada. O sangue lhe
escorria de uma das faces e havia uma terrível equimose na testa.
Disse então numa voz rouca e inumana:
— Sam está morto. Foi assassinado. Mas eu não matei o assassino. Ele morreu antes que eu pudesse matá-lo. — A sua voz se elevou e ele
gritou cheio de desespero e raiva: — Maldito seja Deus! Maldito seja tudo! Ele morreu antes que eu pudesse matá-lo! Fui logrado. Sam foi
logrado! Maldito seja Deus!
O padre segurou-o pelos ombros e sacudiu-o com firmeza, dizendo:
— Olhe para mim, Stuart! Quem está aqui é seu amigo Grundy! Está-me ouvindo, Stuart?
Stuart ficou durante algum tempo em silêncio. De repente, a sua expressão se transformou e ele afastou dos ombros as mãos do amigo.
— Que está fazendo aqui? Veio dizer-me suas palavras mentirosas? Veio consolar-me com suas frases ridículas e vazias?
Levantou-se de súbito e começou a andar de um lado para outro nos estreitos limites da prisão. Estava inteiramente transtornado. Gritava.
Amaldiçoava. Chorava. Batia com os punhos nas paredes como se estivesse alucinado. Quando o seu olhar desvairado caía sobre o padre,
arrasava-o com indignadas maldições. Onde estava o seu Deus? perguntava com a voz alta e engrolada da loucura. Onde estava seu Deus,
que consentira que Sam fosse assassinado tão brutalmente, o pobre Sam que nunca fizera mal a ninguém? Onde estava seu precioso Jesus na
hora em que Sam tinha morrido? Quem o ajudara? Quem o defendera? Não tinha havido ninguém para lhe ouvir o último grito, o grito de um
homem inocente que fora tão imundamente morto por dinheiro. Que tinha feito Sam para inspirar tamanho ódio? Nada. Diante de Deus, nada!
Mas Deus nada fizera para salvá-lo! Sam tinha morrido nos braços dele e era o sangue de Sam que estava em suas mãos. Stuart estendeu as
mãos ensanguentadas para o padre, mas este não olhou para as mãos que quase lhe tocavam o rosto. Olhava apenas para Stuart.
— Não gosta de ver sangue, não é, padre? Você é um homem de paz e de perdão! Perdoa os assassinos de Sam, não perdoa? Sam era
apenas um judeu e os assassinos dele eram “cristãos”. Cristãos... Sabe disso, não sabe? Um cristão pode fazer o que quiser, pode cometer
qualquer crime, pode assassinar por dinheiro qualquer homem bom que sempre será perdoado! Pode ser lavado no sangue do Cordeiro e ser
levado depois para o conforto do céu a fim de tocar hinos numa harpa de ouro! Ele foi batizado com uma água suja! O seu crime contra um
judeu pode ser perdoado porque não foi de modo algum um crime! Pode descansar aos pés de Deus e ser felicitado, como foi felicitado pelas
criaturas imundas que Deus criou! Através do mundo, os mentirosos, os ladrões, os assassinos, os perversos e os imundos dirão: “Ele matou
apenas um judeu!”
Stuart se calou por um momento. O padre estava diante dele e olhava-o firmemente.
— Por que não fala? — perguntou Stuart. — Por que não me diz que eu não devia ter atacado aquele demônio imundo pelo simples fato de ter
matado um judeu?
O padre então levantou a mão e bateu no rosto de Stuart não uma vez, mas muitas, com calma e firme deliberação. Stuart cambaleou até
chegar à parede e então ali se deixou ficar de olhos bem abertos.
O padre olhou-o e disse:
— Só lhe quero dizer uma coisa. Se você não tivesse ido matar Allstairs, eu teria ido como você foi. Devo-lhe minha gratidão.
Houve profundo silêncio na célula. Os dois homens se olhavam a uma distância que não chegava a metro e meio. O padre parecia uma estátua.
Estava muito pálido, mas não tremia.
— Que é que você pensa que eu tenho dentro do peito? — exclamou ele. — Um bloco de gelo? Uma pedra? Um pedaço de sebo? Não sabe
que é o coração de uma criatura humana, de um homem como você? Acha que debaixo destas roupas pretas se esconde um corpo sem vida e
sem sentimento? Sam era meu amigo, muito mais do que era seu. Fomos homens juntos. Conhecíamos um ao outro, como você jamais
conheceu qualquer de nós. Conhecíamos a alma um do outro. Quando ele foi morto, uma parte de mim morreu também. Nunca mais serei um
homem completo.
Falava com simplicidade e sem emoção na voz. Estava muito calmo. Sentou-se então no tamborete e moveu os lábios numa prece silenciosa.
Depois, curvou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.
— Deus me perdoe, porque há em meu coração a vontade de matar.
Stuart continuava imóvel, encostado à parede. Não podia afastar os olhos do amigo. Pouco a pouco, a angústia, a fúria alucinada lhe
desapareceram do rosto. Levou as mãos à cabeça. Por fim, dirigiu-se em passos incertos para o catre e sentou-se nele com a cabeça baixa.
Houve de novo silêncio na célula. O padre continuava a rezar em silêncio como se estivesse sozinho. Stuart sentia essas preces e tinha a
impressão de que as preces lhe penetravam todas as células do corpo em intolerável agonia.
Em dado momento, a chave girou na fechadura da porta. O carcereiro apareceu em companhia de dois homens, Robbie Cauder e Ezekiel
Simon, advogado de Joshua Allstairs. Era um homem pequeno e irrequieto, calvo e com uma expressão maliciosa nos olhos azuis.
— Ora, muito bem! — disse ele, logo que a porta se fechou. — Que é que os traz aqui? Um caso muito desagradável, mas de modo algum
irreparável! Não temos onde nos sentar, Juiz Cauder. Mas não faz mal. O que nos traz aqui não vai demorar muito.
Piscou o olho para Robbie, que estava muito sério, olhou Stuart com preocupação e franziu a testa olhando para o padre, fazendo um gesto que
indicava que o padre devia sair. Mas Robbie discordou dele, sacudindo gravemente a cabeça.
Robbie avançou e estendeu a mão que o padre apertou.
— Temos alguns assuntos para discutir, Padre Houlihan. Se tiver tempo, peço-lhe que fique. Foi muito bom encontrá-lo aqui. Tenho certeza de
que Stuart precisa do senhor.
— Posso ficar, se é esse o seu desejo, e se puder ajudar meu amigo —, disse o padre com dignidade.
Stuart havia recaído na sua apatia e não parecia ter tomado conhecimento da entrada dos dois homens.
Robbie hesitou e então sentou-se ao lado do parente. Olhou-o com triste gravidade e disse:
— Reaja, Stuart O assunto é sério e temos de falar com você.
As mãos de Stuart caíram-lhe lentamente do rosto. Olhou para Robbie e murmurou:
— Veio preparar minha defesa? Quer salvar-me das mãos do carrasco, não é?
— Que carrasco? — perguntou Robbie com impaciência. Tirou um lenço do bolso e entregou-o a Stuart. — Tome. Limpe o rosto. Reaja e ouça-
me, Stuart. Você pode ter sido imprudente, mas não é assassino. Allstairs não morreu. Está bem vivo, embora com um braço quebrado.
Stuart olhou-o e sua expressão mudou, voltando a ser contorcida e feroz.
— Não está morto! Não está morto! Ainda está vivo! Meu Deus!
O padre levantou-se com um grito. Agarrou o braço de Stuart e exclamou:
— Graças a Deus, ele não está morto! Não é por ele que digo isso, mas por você, Stuart! Graças te sejam dadas, Deus!
— Stuart não parece compartilhar de sua alegria, Padre Houlihan —, murmurou Robbie.
Stuart cerrou os punhos e murmurou:
— Terei de tentar matá-lo de novo!
Robbie disse então severamente:
— Não seja idiota como sempre foi! Procure usar a cabeça, se é que você a tem. Procure controlar-se. Tem de pensar em sua família. Vou
tomar providências para que fique aqui, a salvo de si mesmo, até recuperar o juízo.
Fez um gesto para o padre que forçou delicadamente o trêmulo Stuart a sentar-se no catre. Simon, o advogado, tinha olhado tudo com prazer e
interesse e disse então:
— Ah, tem o sangue quente. É melhor mesmo para ele passar alguns dias aqui. Estou de inteiro acordo. Uma pequena sentença de dez dias
por perturbação da ordem pública e agressão, não acha?
— Isso pode ser resolvido depois, disse Robbie com impaciência. — Vamos aos fatos, primeiro.
Fez uma pausa e então disse a Stuart com firmeza e calma:
— Há muitas testemunhas, vizinhos de Allstairs. Estão todos de seu lado. É uma felicidade para você que ele seja tão universalmente odiado.
Agora, tenho algumas perguntas para fazer-lhe. Procure responder sensatamente. Allstairs desmaiou em suas mãos antes que você pudesse
bater nele?
Só alguns momentos depois, Stuart conseguiu recuperar-se suficientemente para responder, com um gesto afirmativo.
— Isso confirma o depoimento das testemunhas —, disse Simon. — E do Sr. Allstairs também.
— E então você o arremessou de encontro à parede, fazendo-o quebrar o braço? — continuou Robbie.
— Esperava quebrar-lhe o pescoço. Meu desejo era que ele morresse.
Robbie franziu a testa e olhou para o advogado.
— O que ele diz não deve sair destas paredes, ouviu?
— Claro, claro —, disse Simon. — Nosso desejo é que tudo se resolva amigavelmente.
Robbie disse friamente:
— Os vizinhos e um polícia chegaram a tempo de ver o último ato desse caso desagradável. Alguns chegaram ao quarto antes que você tivesse
agarrado o velho... Dizem que você o agarrou pela nuca e ele perdeu os sentidos. Você então jogou-o longe. Caíram sobre você no momento
em que você ia liquidá-lo a pontapés ou a bengaladas. Tiveram muito trabalho para contê-lo, pois você se debatia como um cão danado que é
e só quando o polícia lhe assestou uma pancada com o cassetete foi que puderam trazê-lo para cá, o que não deixou de ser uma felicidade
para você.
Stuart nada disse. Tinha as mãos cruzadas sobre os joelhos e olhava para a frente.
— Vamos ser breves —, disse Simon. — O Sr. Allstairs declarou que não apresentará queixa criminal contra sua pessoa. O senhor é genro
dele. Ele mostra com isso discrição e, eu poderia dizer, tato. Não quer escândalos de família e deseja que o caso fique nisso mesmo. É muita
generosidade de meu cliente, na minha opinião.
Stuart levantou a vista e disse:
— Compreendo. Ele está com medo de que eu seja submetido a julgamento e comece a falar. Está com medo de que eu o acuse de
assassinato!
— Que tolice, meu caro senhor! — exclamou o advogado. — Que acusações absurdas ao meu venerável cliente! Como pode prová-las? Quem
são esses “assassinos” de quem fala? Pode apresentá-los em juízo? Parece-me que tudo isso é produto de sua imaginação. O infortunado Sr.
Berkowitz foi atacado à porta de sua casa por malfeitores desconhecidos que queriam roubá-lo e não matá-lo. Podemos dizer que...
exageraram. Mas a verdade é que o roubaram. Tiraram-lhe o dinheiro dos bolsos e um certo anel que ele usava desapareceu.
De repente, Stuart foi acometido de um verdadeiro acesso de fúria e desespero.
— Isso quer dizer que ele não vai ser punido pelo seu crime! Vai ficar impune como sempre ficou! Ficará impune para assassinar e roubar de
novo e continuar com sua vida imunda! Não! Quero ser julgado! Exijo uma oportunidade de acusá-lo e dizer tudo o que eu sei! Eu sei o que
Sam me contou quando íamos para casa juntos! Sei o que Sam me disse antes de morrer!
Apontou o dedo para o advogado e exclamou:
— Você sabe muito bem o que significa isso! Sabe o que isso vai significar para Allstairs! E ele sabe também! Foi por isso que ele o mandou
até aqui!
O sorriso afável de Simon desapareceu. O rosto dele se enfarruscou e ele disse friamente:
— Onde estão suas testemunhas, Sr. Coleman? Quem confirmará as suas acusações desvairadas? Quem lhe irá dar crédito? Não, convença-
se de que nada poderá fazer. O Sr. Allstairs sabe disso também. Entretanto, magnanimamente me deu instruções para retirar a queixa contra
sua pessoa!
— Magnanimamente? Quanta benevolência! Escute aqui, se Allstairs não estivesse com medo, não o mandaria aqui nessa missão hipócrita!
Ele não tem coragem de enfrentar minhas acusações num tribunal...
Simon meteu as mãos nos bolsos e olhou calmamente para Stuart.
— Vamos ser francos, Sr. Coleman. Não quero enganá-lo. O Sr. Allstairs tem realmente receio de enfrentar as suas acusações. Como vê, estou
sendo honesto com o senhor, embora não devesse. Em troca de seu silêncio, ele também guardará silêncio e o assunto ficará resolvido.
“Por outro lado, Sr. Coleman, examinemos o outro caminho. O Sr. Allstairs não retirará a queixa contra o senhor de agressão e tentativa de
homicídio. O senhor não sabe ficar calado e não vai negar que tinha a intenção de matá-lo. Além disso, há as testemunhas. Será levado a
julgamento. Fará então as suas acusações. As coisas poderão ser desagradáveis para meu cliente durante algum tempo e ele poderá até ser
encerrado numa célula como esta enquanto se procura apurar as suas acusações. Mas, e isso é um ponto que deve compreender
perfeitamente, não serão encontradas testemunhas que provem as suas alegações. Espera que os malfeitores apareçam espontaneamente e
se acusem, acusando o Sr. Allstairs? É ridículo esperar que isso aconteça. A polícia está procurando os homens, mas eu duvido muito de que
sejam encontrados. Esses criminosos têm uma maneira muito hábil de desaparecer. Como provará qualquer relação entre o Sr. Allstairs e os
criminosos? Com as palavras de um homem à morte? É verdade que o Sr. Berkowitz tinha tido a oposição do Sr. Allstairs, por um motivo que o
Sr. Allstairs considerava sinceramente da maior importância. O Sr. Allstairs tinha o plano de vender a Ilha do Rio em lotes a lavradores pobres
em condições muito generosas, a longo prazo e juros baixos. Não acha que a apresentação de documentos nesse sentido fará muito efeito no
tribunal, Sr. Coleman?
“Por outro lado, o Sr. Berkowitz desejava trazer para as terras uma horda de estrangeiros. Os estrangeiros não são muito desejados aqui, Sr.
Coleman, pelo menos agora. O sentimento geral do povo é contrário a esse projeto, meu caro, e o tribunal levará isso também em conta.
“Poderá dizer que o Sr. Berkowitz teve a oposição do Sr. Allstairs, mas a verdade é que neste caso o Sr. Allstairs conta com a solidariedade de
toda a população, como, aliás, sempre contou. Assim sendo, o Sr. Berkowitz lhe falou dessa oposição. Em seguida, o senhor o acha à morte.
Note que o encontrou sozinho e devo voltar dentro em pouco a esse aspecto do caso.
“Alega que o Sr. Berkowitz murmurou o nome de meu cliente antes de morrer. Mas que prova disso tinha o Sr. Berkowitz? Nenhuma! Além
disso, ninguém o ouviu murmurar esse nome. Só o senhor.
“O Sr. chega então a uma conclusão louca, infundada, melodramática. Sai correndo então para matar meu cliente baseado na pretensa
acusação de um homem brutalmente espancado, que não tinha qualquer justificação para a sua acusação. Meu cliente o perdoa por amor da
filha, que é sua mulher.
O padre se levantou com os olhos faiscantes e disse numa voz trêmula:
— O senhor é que está justificando um assassino! E quer que o Sr. Coleman também o justifique e se tome um cúmplice?
Robbie olhou o padre com desprazer e disse:
— Por favor, não seja quixotesco, Padre Houlihan! Não pode ser insensível aos argumentos tão bem fundamentados do Sr. Simon.
Simon levantou a mão com benevolência.
— O... Sr. Houlihan... tem evidentemente sentimentos muito carregados de emoção em relação ao Sr. Coleman. Deixemos isso de lado...
Em seguida, deu um passo na direção de Stuart, que o estava escutando em sombria estupefação. Baixou a voz que perdeu o seu tom de
satisfação.
— Há outro aspecto do caso no qual vou tocar agora, Sr. Coleman. Peço-lhe que preste atenção. Nas primeiras declarações incoerentes que
prestou a polícia, disse que tinha esquecido umas chaves que o Sr. Berkowitz dissera que ia dar-lhe. Essas chaves não foram encontradas no
corpo da vítima. Disse que voltou cerca de dez minutos depois de ter-se despedido do Sr. Berkowitz e o encontrou morrendo. Os vizinhos
afirmam que nada ouviram até que o senhor gritou pedindo socorro e então encontraram o Sr. Berkowitz em seus braços. Disse que ele tinha
sido assassinado e ninguém o ouviu falar de novo antes de morrer. Foi o senhor quem encontrou o Sr. Berkowitz à morte. Estava coberto com o
sangue dele. Além disso, descobriu-se, Sr. Coleman, que devia quatorze mil dólares ao Sr. Berkowitz, nunca tendo pago juros sobre essa
importância.
— Santa Mãe de Deus! — exclamou o Padre Houlihan, pálido como a morte. — Está por acaso acusando o Sr. Coleman de ter assassinado
seu melhor amigo?
Simon sorriu.
— Não estou acusando o Sr. Coleman de nada senão de indiscrição, leviandade e pertinaz cegueira. Estou apenas sugerindo que as coisas
podem tornar-se muito desagradáveis para ele se insistir num julgamento e fizer acusações absurdas e infundadas no tribunal.
O padre voltou-se para Robbie.
— Você está de acordo com isso? Você aprova isso, Robbie?
Robbie olhou-o friamente e respondeu:
— Não tenho outro remédio, Padre. Não ouviu os fatos? Allstairs acabará por livrar-se de tudo, se Stuart insistir na sua loucura. Mas Stuart não
se livrará. Será sentenciado a uma longa pena de prisão. Na pior das hipóteses, será acusado de homicídio. Todos os indícios são contra ele.
Se realmente é amigo dele, peço que o convença a ouvir a voz do bom senso. — Levantou-se, consultou o relógio: — Temos de sair agora.
Voltaremos dentro de uma hora. Espero sinceramente que nessa ocasião já o tenha convencido.
Hesitou, olhando para Stuart. Este parecia atordoado, com as mãos entre os joelhos e as feições contorcidas. Robbie respirou fundo.
— Sou forçado a pedir a Stuart que leve outro aspecto do caso em consideração. Todos os fatos de sua vida serão esmiuçados e divulgados
para deleite do público. Coisas absolutamente sem importância para o caso serão expostas e comentadas. Pessoas inocentes vão sofrer com
isso, como Marvina e a pequena Mary Rose, a esposa e a filha de Stuart. E, sem dúvida, muito provavelmente também, minha irmã Laurie.
Stuart reagiu violentamente ao ouvir isso. Não tinha mais os olhos apáticos. Levantou-os para Robbie, com furiosa indignação. Robbie fez um
sinal afirmativo.
— É verdade, Stuart Tudo será feito para denegri-lo, para apontá-lo como culpado aos olhos do júri. Sou advogado e sei. Você será
apresentado como um homem inteiramente sem caráter. Não recuarão diante de nada. E, se você não tem, eu tenho alguma consideração por
minha irmã. Peço-lhe que tenha também consideração por ela. Laurie é jovem e tem a vida toda pela frente. Está em suas mãos protegê-la ou
arruiná-la irremediavelmente. E ela não tem outra culpa senão a de amá-lo.
Tomou o braço de Simon e repetiu sem olhar para trás:
— Voltaremos dentro de uma hora.
O carcereiro abriu a porta e os dois saíram da célula.
O padre e Stuart ficaram sozinhos. Olharam-se por muito tempo. O padre deixou-se cair lentamente no tamborete. O silêncio entre os dois
naquele pequeno espaço era amargo e terrível.
Afinal, o padre disse numa voz entrecortada pelo sofrimento:
— Fomos vencidos pelas forças do mal!
Stuart parecia alucinado. Bateu furiosamente os punhos cerrados nos joelhos. Mas não dizia coisa alguma. O padre tinha a impressão de que
aquelas pancadas surdas eram vibradas diretamente em seu coração dolorido.
Disse então:
— Não temos outro refúgio, nem outro tribunal senão Deus. É a esse refúgio e a esse tribunal que devemos entregar nosso caso. Nós,
pessoalmente, nada podemos fazer.
CAPÍTULO 67
Estavam ao lado da sepultura onde Sam Berkowitz estava enterrado havia um mês. O cemitério tranquilo estava cheio de sol que brilhava sobre
a folhagem escarlate, verde e dourada do outono, derramando-se do brilhante azul-turquesa do céu. Os pássaros cantavam nas árvores as
suas despedidas outonais, lançando sombras ligeiras como flechas quando esvoaçavam acima da terra quente. O vento se levantava numa voz
cantante e melancólica, agitando as folhas caídas. Mas não havia outros sons. As sepulturas se estendiam pacificamente sob os céus, à
sombra dos ciprestes, dos bordos chamejantes e dos abetos negros.
O padre murmurou uma voz trêmula:
“A beleza de Israel está morta em teus altos; como caíram os poderosos!”
A voz se lhe estrangulou na garganta e ele baixou a cabeça com os olhos cheios de lágrimas. Stuart estava ao lado dele com o rosto marcado
pela dor e pelo desalento. Olhou para a sepultura de Sam e o ódio e o desespero nele eram como uma negra maré sobre a qual a lua jamais
brilharia. Moveu-se nervosamente ao lado do padre como se chorasse e cerrou os punhos, enquanto o Padre Houlihan continuava, como que
em meditação:
“Saul e Jônatas foram amáveis e agradáveis em suas vidas E na sua morte não foram divididos.
... ó, Jônatas, foste morto em teus altos.
Estou aflito por ti, meu irmão Jônatas.
Muito agradável foste para mim.
Teu amor por mim foi admirável,
Maior que o amor das mulheres...”
O Padre Houlihan tinha-se tornado um velho e o sofrimento pela perda do amigo lhe vergava o corpo e vincava o rosto. A sepultura estava
coberta com as últimas rosas do jardim do padre.
Stuart pensava: Pode chorar por ele, mas a mim isso não basta. Hei de encontrar um meio.
O padre ficou em silêncio durante algum tempo enquanto chorava. Depois, murmurou:
“Para os montes levanto os olhos:
De onde me virá socorro?
O meu socorro virá do Senhor,
Criador do Céu e da Terra.
Ele não permitirá que resvalem;
Não dormirá aquele que te guarda.
Não, não há de dormir, nem adormecer
O guarda de Israel.
O Senhor é teu guarda.
O Senhor é teu abrigo, sempre ao teu lado.
De dia, o sol não te fará mal,
Nem a lua durante a noite.
O Senhor te resguardará de todo o mal.
Ele velará sobre tua alma.
O Senhor guardará os teus passos
Agora e para todo o sempre.”
O Senhor te resguardará de todo o mal, pensou Stuart cheio de desolação. Mas não resguardou Sam. Deixou-o morrer sozinho e inocente. O
Senhor o puniu porque ele tinha um sonho de misericórdia e de amor. Homens vis o mataram pelo simples fato de que ele era um homem bom.
Sem poder mais conter-se, Stuart encaminhou-se para algumas árvores próximas e sentou-se num banco. A luz que o cercava, a própria paz
que reinava no cemitério, tudo isso lhe aumentava a angústia como se todos os objetos fossem acentuados por um traço lívido. Sam, Sam!
Onde está você, Sam? Não, Sam não está em lugar algum senão debaixo daquela sepultura e nada mais resta dele.
Havia apenas uma certeza que era a morte. Todos os sonhos, amores e esperanças do homem chegavam a esse ponto final, além do qual não
havia mais nada e, por fim, nem a lembrança. O sonho de Sam estava enterrado ali com ele e nunca se concretizaria, uma joia perdida no meio
do barro que nunca mais seria encontrada.
Um cansaço doentio e pesado caiu sobre Stuart. Pensou como nunca havia pensado até então na vida e os seus pensamentos nada
produziam senão tortura e desespero. Todos os desejos cessaram nele. Sam está morto, mas eu estou morto também, pensou ele. Chegava a
invejar o amigo, que não tinha mais no peito a dor pungente da vida.
O Padre Houlihan enxugou os olhos e olhou em volta. Viu Stuart sob as árvores e deu um suspiro. Sam descansava, mas aquele pobre homem
estava sofrendo verdadeiras torturas. Foi para perto do amigo e sentou-se ao lado dele. Começou a falar brandamente, como se estivesse
meditando em voz alta:
— Não pense que ele está morto, Stuart. Está mais vivo do que nós. Sei disso não pela fé que tenho, mas por uma convicção íntima. Não pense
que o sonho de Sam morreu com o corpo dele. O sonho de libertação, de amor, de segurança e de paz é uma luz que os mortos transmitem
aos vivos e que passará de mão em mão através dos tempos, ora brilhante, ora mortiça, ora oculta por pedras, árvores, montanhas, nevoeiros
e tempestades, mas nunca extinta. O espírito de Deus anima essa luz e quem pode apagá-la? Sam sabia disso e sabe ainda melhor agora.
Está num lugar maior onde trabalhará alegre e incessantemente com muitos outros para realizar o seu sonho.
Olhou para o dia que declinava e sorriu.
— Trabalhe, Sam. Reze, Sam. Nós rezaremos com você, dando-lhe nossas preces fracas e incertas, nossas débeis esperanças. Velaremos
com você, guardando a luz que você nos deu. Não nos esqueceremos. Não nos esqueça, Sam. Esteja conosco quando fraquejarmos e nossos
olhos ficarem cegos de desespero. Não nos esqueça. Esteja conosco porque nós o amamos.
Stuart teve um sorriso triste e apontou a sepultura:
— É ali que ele está e em mais lugar nenhum. Você sabe muito bem disso apesar de toda a sua conversa piedosa.
— Não —, disse o padre firmemente. — Ele não está ali. Está conosco, em torno de nós. Não pode senti-lo, Stuart? Quando falei perto da
sepultura dele, vi-o claramente, mas muito mais moço e mais forte e com os olhos cheios de paz. Cheguei a ouvir-lhe a voz. Ele orou comigo.
— Acredito que sinta o que diz, Grundy, mas para mim ele está completamente morto. Nunca duvidei disso. E espero que esteja mesmo morto.
É a única paz que ele poderá ter. Se ele se lembrasse de tudo o que aconteceu, seria intolerável para ele.
O padre nada disse e Stuart continuou:
— Tenho uma maneira muito melhor de provar que não me esqueci do que murmurar preces inúteis sobre uma sepultura. Veja isto.
Entregou um cartaz impresso ao Padre Houlihan.
O padre leu:
“Dez mil dólares de prêmio por qualquer informação que leve à prisão e condenação dos assassinos de Samuel Berkowitz, que foi morto em
Grandeville, Estado de Nova York, no dia 18 de setembro de 1863. (a.) Stuart Coleman, Estrada do Rio, Grandeville.”
— Mandei imprimir cinco mil cartazes desses e mandarei imprimir mais. Serão espalhados por todo o Estado e mais na Pensilvânia e em
Ohio. O mesmo anúncio será publicado em vinte jornais nas cidades principais. Tenho também uma “convicção”. Sei que isso vai dar resultado.
— Dez mil dólares — disse o padre. — Quem pode resistir a dez mil dólares? Sim, Stuart, isso vai dar resultado e Deus permita que dê.
Stuart murmurou, porém, com ódio:
— A princípio, quando se abriu o testamento de Sam e eu soube que ele me deixara esse dinheiro se morresse antes da compra da Ilha do
Rio, pensei em prosseguir com os planos de Sam sobre a ilha. Mas, como sabe, ela foi imediatamente vendida àquela víbora, Allstairs. O
imundo não teve o menor escrúpulo em fechar imediatamente a transação. Desse modo, não adiantava. Não podia gastar esse dinheiro
comigo. Reservei-o para pagar a quem me desse informações sobre os assassinos de Sam.
Embora precisasse muito desse dinheiro, pensou o Padre Houlihan. Pousou a mão no braço de Stuart e disse:
— Fez muito bem. E vai ter resultados — disse o padre. — Foi muito bom que Sam tivesse deixado para nós dois as suas ações nas lojas,
divididas igualmente. Ele sabia que nós precisávamos de aumentar o hospital. Usarei a renda de minhas ações para construir uma nova sala
de operação e para pagar o salário de um cirurgião de Nova York, um especialista que Sam conhecia muito bem, o Dr. Israel Goodman. Já
escrevi a ele convidando-o.
Stuart sorriu amargamente, mas não disse ao padre que não devia contar muito com essa “renda”, que se tornava de dia para dia mais
duvidosa.
Ficaram de novo em silêncio olhando para a sepultura de Sam. Por fim, o Padre Houlihan disse:
— Há sempre períodos de irracionalidade, crueldade e intolerância da humanidade, durante os quais a raça humana parece atacada de
loucura. São coisas que, como tempestades, se elevam do poço insondável do inferno e se espalham pelo mundo. Em cada geração, essas
tempestades se abatem sobre o mundo, devastando e destruindo. Mas, depois que passam, Deus e os homens continuam, estes exaustos e
ensanguentados, mas ainda com fé e ainda com esperança. Nada pode destruir o sonho de Deus, um sonho de paz eterna, de amor, de
trabalho e de fraternidade no mundo. Devemos saber e compreender isso. “Direi do Senhor que é meu refúgio e minha fortaleza, meu Deus em
Quem confio. Sua verdade será teu abrigo e teu escudo.
Não terás medo do terror à noite, nem da flecha que voa durante o dia, nem da peste que anda nas trevas, nem da destruição que devasta ao
meio-dia.” Sam era um soldado nos Exércitos do Senhor, Stuart. Caiu na batalha, é verdade. Mas não lutou em vão. O sonho dele, o sonho de
todos os homens bons, continua em marcha, triunfante. Algum dia, será realizado na terra e o mundo inteiro será um abrigo e um refúgio, cheio
de compreensão e fraternidade.
— Só sei de certo é que Sam está morto —, disse Stuart.
— E eu sei que ele está vivo —, afirmou o padre.
Caminharam juntos para as portas do cemitério. Voltaram-se para um último olhar para a sepultura de Sam, coberta de rosas e envolta na luz
da tarde.
O padre ergueu a mão e murmurou:
“O Senhor te abençoe e te guarde,
O Senhor faça Seu rosto brilhar sobre ti
E mostre graça por ti;
O Senhor erga o Seu semblante sobre ti
E te dê paz.”
Stuart murmurou, porém, com ódio:
— Não esquecerei, Sam! Eu os encontrarei. Dez mil dólares farão o que a justiça não pôde fazer!
CAPÍTULO 68
Desde que o homem tem tendência, no seu egocentrismo antropomórfico, a acreditar que a própria natureza participa de seus cataclismos
raciais e acompanha as suas paixões, acreditando que os “sinais” do céu têm a ele por objetivo, os habitantes da região do Norte suspeitaram
vagamente de que os terríveis rigores do inverno do período 1863-1864 foram de algum modo uma manifestação das forças da natureza
convulsionadas pelas convulsões humanas.
De qualquer modo, o povo foi de opinião que “nunca tinha havido tão terrível inverno”. Inquietos, alarmados, sofrendo privações e até fome,
aterrados ante as perspectivas de uma guerra interminável que acabaria por tirar-lhes filhos, dinheiro, propriedades e segurança, além dos
pequenos confortos e até das necessidades mínimas da vida, tiveram de enfrentar um inverno que em miséria, inclemência e desolação era um
prolongamento da angústia em que viviam.
O carvão era escasso, começava a haver falta de viveres, as lojas estavam quase vazias de tudo, o dinheiro havia misteriosamente
desaparecido e sempre, sempre os jovens partiam nas suas fardas azuis e não voltavam mais.
Mas o hospital que Stuart construíra estava cheio de feridos e moribundos e as freiras trabalhavam de rosto pálido e exausto, mãos delicadas e
vozes que não se queixavam. O ódio e a revolta tinham acabado por vencer a apatia do povo. Eram muitos os que odiavam o Presidente e o
culpavam da guerra que lhes infligia tanto sofrimento. Mas odiavam o Sul ainda mais como a causa da guerra. Dentro desse ódio universal, as
questões básicas da guerra eram esquecidas e o povo se ajustava sombriamente .ao sofrimento, às privações e à desesperança. A
sobrevivência da União, a Proclamação da Emancipação, a suspensão do direito de habeas corpus, os novos impostos pesados e o
recrutamento eram considerados com profunda apatia.
— Se não pudermos fundir esses espíritos e corações estrangeiros —, disse o Prefeito Cummings a Robbie Cauder uma noite —, se não
conseguirmos tirar das consciências as recordações da Europa e o apego a línguas e costumes estrangeiros, a República irá de novo correr
mortal perigo repetidas vezes. Devemos fazê-los compreender, por meios que estão acima de minha compreensão, que este país é habitado
por uma nova raça composta de todas as raças reunidas num só povo e que qualquer lealdade estrangeira não só é uma traição, mas implica
na dissolução deste país e no desmoronamento de um grande sonho.
Entretanto, a verdade era que o povo se preocupava mais com os seus sofrimentos e com o terrível inverno do que com as questões em jogo
na “luta gigantesca e sangrenta”.
O inverno tinha chegado cedo. Em outubro, tinham caído as primeiras e violentas nevadas, os primeiros ventos cortantes sopraram dos Lagos e
as primeiras sombras cobriram a terra. Em dezembro, a cidade estava isolada pela neve e transformada num longo cemitério branco de dunas
e montes brancos, batida por ventos tão violentos e cortantes como chicotadas, que abalavam as chaminés, arrancavam árvores e enchiam as
ruas de detritos que as tornavam intransponíveis.
Até nas casas da Rua Principal, da Avenida Delaware, da Rua Franklin, da Avenida Porter e da Avenida Richmond, havia frio. Só se aquecia
uma sala e nela as famílias se reuniam em torno das lareiras, tremendo de frio e de medo. Quanto aos pobres, reuniam-se junto ao fogão da
cozinha e, quando este se apagava, iam todos tremendo para a cama.
Joshua Allstairs tinha carvão suficiente. A sua lareira era um braseiro esplendente de calor e de conforto. Pensava no porão de sua casa onde
mais de dez toneladas estavam bem guardadas. Chegavam de sobra para o inverno e até para o inverno seguinte, se fosse necessário. A
lareira estava acesa em seu quarto também. Quanto aos criados, ele generosamente permitia que enchessem de brasa pequenos fogareiros a
fim de levá-los para os seus quartos enregelantes. Era preciso tratar bem os criados em tempos como aqueles. Havia no ar uma perigosa
fermentação que Joshua não deixava de sentir.
O braço estava tardando a sarar e ele ainda o levava numa tipoia de seda preta. Tinha-lhe sobrevindo também uma paralisia permanente de
modo que a grande cabeça branca se balançava num ritmo constante e leve. Nunca se recuperara por completo do terror daquela noite em que
Stuart o fora procurar para matá-lo. Um lado do rosto estava imobilizado num esgar petrificado e, como que em compensação, o outro lado do
rosto mostrava uma expressão mais maligna e terrível do que nunca.
Sorriu benevolamente para o seu visitante. Mas esse visitante, que raramente via os outros objetivamente ou até subjetivamente, não era
insensível ao aspecto aterrador do homem que o recebia. Angus não podia compreender como um homem tão velho, quase à beira da morte,
podia conservar um ódio tão ávido, uma malevolência tão vigilante.
Mas isso não lhe dizia respeito. Chegava a respeitar Joshua pela vitalidade que demonstrava. Quanto à sua vitalidade pessoal, que nunca fora
muito grande, andava muito baixa e exausta. As dores de cabeça eram quase constantes. De vez em quando, mascava rebuçados que lhe
tinham sido recomendados em virtude de “sua ação sobre o sistema nervoso”. Eram indicados como soporíferos. Serviam apenas, porém,
para amortecer a dor cruciante, de modo que suas faculdades mentais pudessem emergir brevemente. Nesses intervalos, sentia a inteligência
como uma faca desembainhada e rebrilhante ao longo do gume. Podia realmente visualizar essa faca. Quando a visão se tornava muito nítida,
mascava às pressas outro rebuçado com uma espécie de terror.
Joshua estava falando de um modo calmo e até simpático:
— Assim sendo, temos todos os fatos diante de nós, meu caro Angus. Nosso amigo Stuart possui agora 55% das ações da loja, graças ao
judeu que lhe deixou a metade dos 40% que tinha. Graças também ao judeu, aquele abominável padre possui 20%. Nas condições atuais,
essas ações não têm valor e isso compreende, por mais que me pese dizê-lo, os 25% que pertencem a sua mãe, meu jovem.
"Sabemos agora que as dívidas pessoais de Stuart sobem a vinte mil dólares em notas promissórias dadas por ele a bancos de Nova York a
Chicago, dinheiro esse que ele dissipou com mulheres indignas, joias, objetos de arte, sua casa e a sua extravagante maneira de viver acima
de suas posses.
Enquanto Joshua fazia essa enumeração, tocando cada um dos dedos da mão esquerda com o indicador da mão direita, os dedos estalavam
secamente. Angus sentiu um estremecimento, mas seu rosto não se alterou.
— O Sr. Schnitzel, seu prezado e inteligente sogro, emprestou-lhe o dinheiro para comprar essas notas no valor de vinte mil dólares. Comprou
também a hipoteca sobre a casa de Stuart e fez-lhe presente dela. Stuart ainda não sabe de nada disso. Certo?
— Está certo sim, Sr. Allstairs —, disse Angus na sua voz neutra e sem eco. Levou a mão à testa, viu que estava úmida e enxugou-a com o
lenço.
— Dou-lhe parabéns pela generosidade do Sr. Schnitzel, Angus. Isso também demonstra uma fé inabalável em você. Mas vamos continuar. A
falência das lojas será decretada. Não só o interesse de Stuart nelas perderá todo o valor, mas o seu também. Você sabe muito bem disso.
“Aqui está minha proposta. Eu lhe adiantarei o dinheiro para pagar a seus credores ou, melhor, aos credores de Stuart — negociantes,
industriais e importadores — a 50%. Em troca, serei seu sócio nas lojas. Essa guerra não pode durar muito mais tempo. Não terei qualquer
participação ativa na gerência do estabelecimento. Você será o gerente e administrador único, mediante um salário ou uma retirada que se
ajustará amigavelmente entre nós. A condição única para mim é que você force Stuart Coleman a sair por completo das lojas. Você está de
posse das promissórias assinadas por ele e da hipoteca da casa. Não terá muita dificuldade em conseguir isso, meu bom jovem!
Recostou-se na cadeira e sorriu angelicamente. Angus olhou para ele e sentiu uma repulsa íntima. O seu rosto estava tão frio e fixo como se ele
tivesse passado semanas exposto à neve.
Angus sacudiu a cabeça e disse:
— Sinto muito, Sr. Allstairs, mas não foi assim que planejei as coisas. Não pense que sou insensível à sua bondade. De modo algum. Ao
contrário, tenho muita admiração pela sua generosidade. Mas não pode ser assim e vou fazer-lhe outra proposta.
O rosto de Joshua se contraiu malevolamente. Chupou os lábios para dentro e agarrou o castão da bengala. Mas disse com voz branda:
— Muito bem, sou um homem cordato. Pode dizer qual é a sua proposta.
Angus franziu a testa e olhou para o fogo, imerso em profunda meditação. Começou então a falar, como se estivesse pensando em voz alta:
— Tenho muita amizade por aquelas lojas, Sr. Allstairs. Posso mesmo dizer uma profunda amizade. Elas são toda minha vida. Não conheço
nada mais. Há anos que venho sonhando em possuí-las sozinho. Não quero sócios, nem mesmo um sócio capitalista que não intervenha na
gerência. As lojas têm de estar inteiramente em minhas mãos. Venho trabalhando para isso há muitos anos.
Joshua, que no começo tinha mostrado impaciência, passara a escutar atentamente. Havia uma espécie de respeito em seus olhos de abutre.
Descansou o queixo no castão da bengala e olhou para Angus sem pestanejar. Refletiu que havia até um toque de paixão naquela voz de
morto. Era um tremor, um movimento como que de vida.
— O Sr. Schnitzel —, continuou Angus —, é mais que generoso. É magnânimo. Está disposto a adiantar-me qualquer importância necessária.
Entretanto, tem também enfrentado dificuldades com esta guerra e os vinte mil dólares que me emprestou para comprar as notas de Stuart, a
fim de que ele possa ser afastado das lojas, é tudo de que pode dispor no momento.
“Vamos supor, Sr. Allstairs, que o senhor decida agir por conta própria e execute as lojas. Não receberá senão dívidas. Não haverá nem um
gerente. A Comissão de Comércio, recém-criada em Nova York para defender o interesse dos negociantes, tomará tudo. Quanto lhe devem as
lojas, Sr. Allstairs? Dezoito mil dólares? Se agir judicialmente, perderá todo esse dinheiro.
“Mas suponhamos que, ao contrário, depois que eu tiver afastado Stuart, o senhor aceite promissórias minhas para serem amortizadas durante
um período de tempo razoável dos lucros obtidos das lojas, a juros de 8%, o que é quase ilegal. Como disse, essa guerra não pode durar
muito. Com dinheiro na mão, poderei sortir de novo as lojas nos negociantes de Nova York e Chicago. Posso ter as lojas numa base próspera,
apesar da guerra, dentro de seis meses. Não retirarei delas um só centavo para minhas despesas pessoais até que tudo esteja equilibrado.
“Creio que, com sua ajuda monetária, poderei liquidar os débitos de Stuart numa base de 50%. Já sondei discretamente a Comissão, que está
estudando o assunto e não pode deixar de concordar. Do contrário, perderá tudo. Sabe que se vender em leilão o que resta do estoque no
caso de liquidação total receberá no máximo 5%.
Joshua nada disse. Mas fazia sinais afirmativos com muito interesse.
Angus constatou sem a menor emoção:
— Reorganizarei completamente a firma. Terá o nome de Cauder & Companhia. Serei o proprietário único. Talvez seja uma obsessão comigo.
Mas eu sei que deve ser assim. O senhor está a par dos fatos. Sabe que as lojas devem 75 mil dólares aos bancos e negociantes, aos
atacadistas, industriais e importadores. Sabe de que eu preciso. Já lhe expus meus planos. Está inteiramente em suas mãos agora decidir o
que deve ser feito.
Houve um longo silêncio na sala. Mas o fogo crepitava fortemente na lareira. Joshua se encolheu em sua cadeira, passando a língua pelos
lábios e olhando fixamente para Angus.
Estendeu a mão trêmula para a campainha e perguntou:
— Vamos tomar um pouco de chá? Um chá reforçado talvez?
Angus fez um sinal afirmativo e disse em seguida firmemente:
— Há ainda outra coisa que eu quero discutir com o senhor. Peço-lhe que me escute atentamente, porque, pensando bem, isso deve agradar-
lhe. Precisarei de um gerente. Pretendo oferecer a Stuart o cargo de gerente das lojas com um salário, vamos dizer, de trezentos dólares
mensais. Afinal de contas, é meu parente. Não receberá, porém, qualquer outra remuneração. Não poderá recusar. Se assim fizer, morrerá de
fome. Sinto que é meu dever religioso e cristão oferecer-lhe isso. É claro que, se ele recusar, estarei dispensado de fazer mais qualquer coisa
por ele.
O rosto escuro de Joshua resplandeceu de perverso prazer enquanto todas as possibilidades das palavras de Angus lhe passavam pelo
espírito. Começou a rir e exclamou:
— Ah! Assim caem os poderosos! Que fim! Que justiça! Que justa punição! Se isso me vai agradar? Meu caro Angus, esse será o toque final e
magistral, a última vingança, a justiça decisiva! Como eu gostaria de estar presente quando você propusesse isso e ele aceitasse! Seria a
justificação de meu longo sofrimento às mãos daquele ímpio e mostraria como Deus é justo!
Angus retesou o corpo, parecendo mais alto e mais magro em sua cadeira. Levou de novo a mão à fronte e fechou os olhos num espasmo de
dor. Disse então:
— Não posso absolutamente concordar com isso, Sr. Allstairs. Sou um homem honesto. Creio na justiça e, por isso, acho que deverei ser justo
com Stuart. As lojas foram dele. Ele as amou, tinha orgulho delas e vivia para elas. O que lhe vou oferecer, por misericórdia e compaixão cristã,
ele não poderá recusar. Em caso contrário, verá as lojas se desmoronarem em torno dele e a sua casa perdida para sempre, ao mesmo tempo
que será reduzido à penúria. Ele pensará nas lojas e na casa. Pensará também na sua negligência em relação às lojas, sem tomar
conhecimento das contas e das dívidas. Sei que assim procedeu por medo, dominado por uma invencível relutância a conhecer das
consequências e enfrentar a realidade. Talvez não tivesse pensado que o dia do ajuste de contas sempre chega. Quanto às suas
prodigalidades, seus pecados, suas loucuras e suas desonestidades, isso cabe ao julgamento final de Deus.
CAPÍTULO 69
O Padre Houlihan não conseguia dormir. Ouvia o sibilar da neve nas vidraças. Ouvia os roncos de Walsh, estendido à frente de sua porta. O
vento uivava, fazendo tremer as vidraças. As árvores estalavam ante a constrição de ferro do gelo. A vida parecia ter-se retirado do mundo.
Havia uma profunda angústia na alma do padre. Não conseguia nem rezar. Era como se até seu espirito estivesse cercado de gelo, no fundo
da fenda escura de uma geleira. Eram intoleráveis a solidão e a desolação que sentia. Tinha-se levantado uma dezena de vezes e se ajoelhara
diante do crucifixo. Mas não tinha palavras nem fervor. A alma parecia embotada. Não podia chorar; não podia nem sequer pensar. Sentia-se
sozinho dentro de um universo hostil, batido pelos ventos do espaço escuro e infinito.
Sofria assim desde vários dias e evitava até seu amigo Stuart. O mal que o afligia não tinha nome. Sabia apenas que desejava a morte, coisa
que nunca lhe havia acontecido em toda sua longa vida.
Estava cheio de medo e desespero. Estava estendido rigidamente em sua cama estreita, fria como a morte apesar de uma verdadeira
montanha de cobertores. Mas tinha no cérebro um braseiro ardente, que palpitava e queimava.
Não era dado a analisar-se. Não podia identificar o início daquela doença mortal em sua alma. Teria sido a morte de Sam? Seriam as amargas
preocupações com que estava lutando Stuart? O afastamento de seus paroquianos ricos? A frieza com que o tratava o bispo? A guerra? Cada
um desses pensamentos fazia mais vivo o braseiro em seu cérebro. Talvez o que sentia fosse a soma de tudo isso. Mas por que Deus o
abandonara? Por que a prece não lhe vinha aos lábios? Sentia-se cercado pelo ódio da cidade. Não havia remédio para ele.
Espontânea e aterradoramente, as palavras de Jó lhe surgiram no espírito em letras de fogo: “Se: falo, nem por isso se aplaca minha dor; se
calo, estará ela consolada? A cólera de Deus me fere e me persegue: ele range os dentes contra mim. Meus inimigos dardejam os olhos contra
mim. Abrem a boca para me devorar; batem-me na face para me ultrajar, rebelam-se todos contra mim. Deus me entrega aos perversos, joga-
me nas mãos dos malvados. Meu rosto está vermelho de lágrimas, a sombra da morte estende-se sobre minhas pálpebras. Entretanto, não há
violência em minhas mãos e minha oração é pura.”
A sua profunda angústia se aguçou e foi como um gosto de cinzas e vitríolo em sua boca. Sabia agora a fonte de seu mal. Percebia o ódio do
povo, mesmo das pessoas que ele havia ajudado, que agora o cercava como uma nuvem de insetos venenosos a ferroá-lo e enchê-lo de
sofrimento. Lembrava-se das dezenas de cartas anônimas cheias de insultos e calúnias que tinha recebido. Via os rostos contorcidos de raiva
e de ódio das pessoas com quem se encontrava na rua. Via os bancos cada vez mais vazios de sua igreja, ouvia as vozes e mãos que se
levantavam contra ele. Por quê? Não havia culpa nele, assim esperava. Pensava humildemente que só havia tentado fazer a vontade de Deus.
Por que então era tão odiado?
De repente, o padre se levantou com os olhos cheios de lágrimas. Que tinha dito Jesus na Cruz? “Pai, Pai, por que me abandonais?” Ele
também sofrera aquela angústia e aquele terror, aquele desespero e aquele abandono! No fim, mesmo a sua divindade não bastara para
impedir Seu triste apelo a Deus, Sua consciência de excessiva maldade dos homens! Por que então devia ele, Michael Houlihan, mostrar-se
tão receoso, tão ignorante, tão aterrado? Ele, que era menos que pó aos pés de Cristo! Se o próprio Deus podia sentir-Se assim no último e
supremo momento de angústia, desolação e abandono, nessa última compreensão da monstruosidade humana, por que iria ele, um miserável
padre, sentir tamanha culpa na sua angústia?
Ajoelhou-se diante do crucifixo, com os olhos cheios de lágrimas. Mas estava sorrindo e murmurou em prece:
— Perdoa-me, Pai porque sou apenas um pobre homem miserável. Não aceitei o ódio, o mesmo ódio que Te seguiu. Pensei na minha
ignorância e presunção que poderia ser amado por fazer em pequena escala o que Tu fizeste e pelo que Te pagaram com ódio! Eu devia ser
amado enquanto Tu foste odiado! Que presunção de minha parte, que loucura, que pecado! Perdoa-me, Pai!
Ficou por muito tempo ajoelhado no frio cortante do quarto, com a cabeça entre as mãos. Mas estava em paz e cheio de uma pura e trêmula
alegria. O universo não estava mais repleto de mal, mas de amor e ternura com a presença de Deus.
Ouviu de repente gritos, correrias e sinos que tocavam. Levantou a cabeça, assustado. Ouviu o Padre Billingsley que batia na sua porta e o
chamava nervosamente. Então, a porta se abriu e o jovem padre apareceu tremendo, pálido como um fantasma, embrulhado num robe. Abriu a
boca, mas não pôde falar. O Padre Houlihan levantou-se lentamente, sentindo de novo o frio invadir-lhe o corpo todo. O Padre Billingsley
apontou para a janela e o Padre Houlihan voltou para lá os olhos, vendo então um clarão vermelho no céu.
Era a igreja! A bela igrejinha branca, que Stuart construíra com tanto amor e com tão imprudentes despesas.
— Meu Deus! — exclamou o Padre Houlihan. — Meu Deus!
Virou-se, como num pesadelo, para o outro padre. Mas o Padre Billingsley não estava mais ali. Saíra correndo e o Padre Houlihan lhe ouviu o
grito:
— A Eucaristia! É preciso salvar a Eucaristia!
As chamas envolviam a brancura de neve da igreja. A cruz de ouro se tornara uma cruz de fogo. Todos os vitrais mostravam um fundo vermelho.
Os incendiários tinham feito bem o seu trabalho. Não era possível salvar a igreja. E não foi possível salvar o Padre Billingsley que rompeu o
círculo dos bombeiros atordoados e entrou na igreja para morrer diante do altar em chamas com os braços abertos.
CAPÍTULO 70
Stuart levou o avaliador de Nova York para o armário boule que tanto apreciava e esperou enquanto o homem examinava minuciosamente o
móvel. Tinha os lábios apertados e a testa franzida. A atenção do avaliador foi atraída por algumas belas estatuetas de porcelana francesa no
armário e apertou os olhos pensativamente. Havia também um leque de marfim que pertencera a Maria Antonieta e ao qual o homem não foi
insensível.
Pouco depois, Stuart tinha nas mãos um cheque de sete mil dólares. Não olhou para o canto onde tinha estado seu armário e seus tesouros.
Guardou o cheque no bolso, jogou o capote sobre os ombros, puxou o chapéu para cima e saiu, pedindo que lhe aprontassem a carruagem.
Foi levado para a casa do Padre Houlihan. Do mesmo modo que não tinha olhado para o canto vazio onde tinha estado o armário em toda a
sua glória, não olhou para as ruínas enegrecidas da igrejinha perto da casa do padre.
Chegou à casa e foi recebido pela Sra. O’Keefe, que tinha envelhecido muito naquelas últimas semanas e cujos olhos viviam inchados de tanto
chorar. Stuart olhou para ela de testa franzida e com o coração compungido.
— Está frio aqui —, disse ele. — Por que não me disse? Mandei uma ordem de oito toneladas de carvão. Ainda não chegaram? Neste caso,
eu poderia mandar um pouco de carvão de minha casa. Isso é tolice.
Mas havia um pequeno fogo aceso no quarto do padre. Quando Stuart entrou, o Padre Houlihan voltou a cabeça com esforço da cama onde
estava deitado. Tentou sorrir. As mãos ainda estavam enfaixadas e uma queimadura lhe marcava o rosto. Stuart sentou-se perto dele e disse
sorrindo:
— Trouxe-lhe um excelente vinho do Porto, Grundy. Tome três cálices grandes por dia com um ovo, não se esqueça. Só isso basta para tirá-lo
dessa cama.
— Stuart —, murmurou o padre e não pôde mais falar, pelo aperto que sentia na garganta. Os olhos estavam amortecidos pelas lágrimas e pela
angústia.
Sim, refletiu Stuart, o mundo se tinha tornado intolerável para aquele velho inofensivo e bom. Falou, porém, desdenhosamente.
— Você tem de se levantar, Grundy. Não pode ficar aí deitado para sempre. Que é que seu novo assistente vai pensar quando chegar amanhã?
Você sempre teve muito ânimo, amigo velho. E ainda tem. Malone diz que não há razão alguma para que você não esteja de pé andando por aí.
O padre nada disse. Olhava para Stuart como se o amigo fosse uma fonte de vida e de consolação.
Stuart tirou o cheque do bolso e colocou-o em cima da cama.
— Aí estão sete mil dólares. O bastante para recomeçar a construção de uma igreja. Esta vai ser maior e mais bonita, Grundy. Vai ser de pedra
desta vez com belas portas italianas. Já encomendei as portas. Ninguém poderá vencê-lo, meu velho Grundy!
O padre pegou o cheque com as mãos enfaixadas, olhou-o e começou a chorar.
— Santo Deus! exclamou Stuart, limpando-lhe as lágrimas com o lenço. — Isso é lá maneira de receber um presente? Para mim, Grundy, você
tem o vício do choro como um bêbado tem o vício do uísque. Seja homem, Grundy, senão vou sair neste instante.
— Onde foi que você conseguiu esse dinheiro, Stuart? — perguntou o padre, falando com dificuldade. — Não posso aceitar, meu amigo. Você
precisa mais do que eu. Onde foi que conseguiu?
— Que importância tem isso? Foi... um dinheiro que recebi sem esperar. Arrisquei algum dinheiro na Wall Street e recebi isso sem esperar. É
tudo seu. Não preciso disso, palavra de honra.
O padre sacudiu a cabeça, tão emocionado que não podia falar.
— Não seja idiota, Grundy! Escute aqui. Você sempre teve vontade de me levar para sua igreja. Vou fazer um trato com você. Quando a igreja
estiver pronta, eu serei o primeiro a me sentar num banco, o da frente, está bem? Pode pregar a mim à vontade e eu lhe garanto que não vou
bocejar uma só vez. Pode dizer o que quiser e eu ouvirei com todo o respeito. De joelhos até, se você quiser.
As lágrimas do Padre Houlihan rolaram mais copiosamente. De repente, começou a sorrir. Por fim, quando Stuart o olhou surpreso, chegou a
rir. Ao ouvir esse som estranho a que já estava desabituada, a Sra. O’Keefe apareceu, espantada. O riso do Padre Houlihan redobrou e ele
olhou para a irmã, sacudindo o cheque na mão. Ela pegou o cheque e começou a chorar.
Stuart levantou-se.
— Claro que não vou ficar aqui para me afogar em lágrimas. Não se esqueça, Sarah. Três cálices grandes de vinho do Porto com um ovo
batido. E deixe as preocupações de lado, Grundy. Vou resolver tudo por você. Só quero vê-lo é fora dessa cama. Temos muito que andar
juntos, meu velho. Primeiro, você me aguenta e, depois, eu o aguentarei. Ainda vamos vencê-los todos, Grundy. Quando eu voltar aqui amanhã,
espero vê-lo lá embaixo, todo animado, recebendo o seu assistente com toda a dignidade.
O rosto do Padre Houlihan se fechou e ele balbuciou:
— Stuart, eu não posso. . .
— Chega de conversa. Você precisa de descansar. Já não lhe disse que vou resolver tudo por você? Não há motivo algum para que você fique
preocupado. Ora essa, Grundy, você bem sabe que eu daria a alma para ajudá-lo, embora eu duvide muito de que minha alma valha alguma
coisa. Já deve estar hipotecada ao diabo há muito tempo.
Mas a expressão do padre tinha mudado novamente e se mostrava solene e terna. Levantou a mão enfaixada e chamou Stuart. Então, fez muito
delicadamente o sinal da Cruz sobre ele e sussurrou:
— Deus o abençoe e proteja, Stuart. Se há uma hipoteca sobre sua alma, Deus está com ela e irá resgatá-la.
Fazia frio também na casa do bispo, apesar de todo o seu discreto conforto e sua austera dignidade. O bispo tinha distribuído com os pobres
quase todo o seu carvão. Mas estava sentado diante de um fogo diminuto, um pouco magro com seu rosto ascético e seus olhos vivos. A pedra
de seu anel brilhou à luz das velas enquanto ele batia com a mão no braço da cadeira. Olhou para Stuart e disse:
— Não acha, Sr. Coleman, que é um pouco de impertinência de sua parte, vir a esta casa pedindo, exigindo mesmo, o que chama de
“consideração” pelo Padre Houlihan? Não percebe a impropriedade de seu... pedido? Não posso lembrar-me em toda a minha vida, que tem
sido muito longa, de uma situação parecida. O senhor é protestante. Creio que nem mesmo um católico seria tão presunçoso num assunto que
só pode interessar a mim e ao Padre Houlihan. Eu poderia até chamar isso de insolência se não soubesse que apenas sua ignorância da
etiqueta eclesiástica determinou a sua visita.
— Oh... — murmurou Stuart com impaciência e se conteve a tempo. Lembrou-se de que sua irritação nenhum bem poderia fazer a seu amigo.
Dominou-se, mas ficou muito vermelho, literalmente engasgado com as palavras.
— Além disso —, continuou severamente o bispo —, não me agradou o fato de que me tivesse mandado uma delegação composta do
Prefeito, de seu parente o Juiz Cauder e de vários dignitários e pessoas importantes de Grandeville. Dá a entender em todos os seus atos que
eu sou incapaz de dirigir os negócios desta diocese. Ou, pior, que eu sou pessoalmente hostil ao Padre Houlihan. Na verdade, isso é
insultuoso. Desejo lembrar-lhe, Sr. Coleman, que os assuntos desta diocese são meus e não seus e, embora eu não seja insensível às suas
generosidades ou à sua amizade ao Padre Houlihan, é natural que não me agrade essa impertinência.
— Impertinência, bolas! — exclamou Stuart, que não se podia mais conter. — Todas essas frases estudadas não querem dizer nada. O que sei
é que nunca foi capaz de compreender o bom padre. Tem sido severo demais para com ele. Nunca o considerou um cavalheiro e sempre ficou
descontente com as atividades dele. Escreveu-me cartas de agradecimento e chamou-me aqui para me agradecer pessoalmente o que
considerou generosidade à sua Igreja. Nunca lhe ocorreu que o pouco que eu fiz foi feito exclusivamente por Grundy...
— Grundy?
— Sim, Grundy. Tenho um motivo pessoal para chamá-lo assim. Por favor, deixe-me acabar. Já me ouviu dezenas de vezes chamá-lo de
Grundy e não sei por que só agora se espanta. Pois bem, não ajudei Grundy porque ele fosse padre, mas apesar de ser padre. Gosto dele.
Acho-o um velho camarada formidável. É maravilhoso. É um santo. Reverencio o chão em que ele pisa. Tudo o que fiz — a igreja, a escola, o
convento, o hospital — foi por ele que fiz e não por sua Igreja. Dezenas de outras pessoas, que não são católicas, têm ajudado sua Igreja, a
meu pedido e insistência. Essas pessoas amam também e prezam muito o velho Grundy. Sabem que ele é um homem bom, sincero e integro.
Já lhe falei de meus planos para uma nova igreja. Se insistir em remover o bom velho, cancelo minha proposta. Rasgarei as plantas já feitas e
lhe prometo que sua Igreja não terá mais a ajuda de meus amigos também. Terá contra a sua pessoa todos os homens de bem da cidade,
católicos e protestantes.
— Está-me ameaçando, Sr. Coleman? — exclamou o bispo, muito vermelho. — Atreve-se a ameaçar-me?
— Sou capaz de atrever-me a tudo pelo velho Grundy! E aviso a Vossa Reverendíssima que, se o mandar para algum convento ou coisa que o
valha em nome da “disciplina”, vai-se arrepender amargamente disso. Lutarei até à morte pelo pobre homem cujo único pecado é ter amado
uma humanidade que não presta, acreditando nela e lutando por ela!
O bispo estava quase sem poder falar. Procurou recuperar o fôlego. Era-lhe difícil controlar-se e manter a dignidade. Falou por fim com a voz
embargada:
— Não lhe devo explicações, Sr. Coleman. Não tenho necessidade de dizer-lhe coisa alguma. Poderia pedir-lhe que saísse imediatamente
desta casa. Mas em atenção à sua bondade e generosidade, estou sendo paciente com o senhor.
“Venho há anos advertindo o Padre Houlihan de abster-se de atividades perigosas. Não cabe a um padre empenhar-se em agitações
populares e seculares. O trabalho do padre é salvar almas e administrar corretamente a sua paróquia. Mas o Padre Houlihan tem sido culpado
de falar a diversos grupos de operários recomendando-lhes que exijam o que ele chama de “melhores salários e condições de vida melhores”.
Tem sido um verdadeiro agitador, tratando de causas que não podem, nem devem interessar-lhe. Enfurece com isso homens influentes nesta
cidade, tanto católicos quanto protestantes. Chegou a ponto de pregar abertamente contra aquilo que ele gosta de chamar de intolerância, ódio
e opressão. Já o adverti muitas vezes...
Stuart levantou-se de um salto e exclamou:
— Quer que ele se limite a “salvar almas”? Que vem a ser na realidade “salvar almas”? Jogar água benta em homens que estão morrendo de
fome, proferir piedosas imbecilidades a respeito de crianças que morrem de subnutrição, aconselhar trabalhadores oprimidos a que sofram
com paciência o jugo da sua exploração? Já ouviu falar em revoluções, Reverendíssima? A despeito dos padres, tem havido sangrentas
revoluções porque o povo não pôde mais suportar os sofrimentos, a fome e as crueldades de seus senhores. E a Igreja tem sofrido com essas
revoluções porque se absteve de ficar ao lado dos humildes e dos desesperados, e quem Cristo amou, e contra aqueles a quem Ele detestou e
atacou. Já pensou na potência que a Igreja seria se se levantasse contra os assassinos, os tiranos e os opressores? O mundo está cheio de
ateus, de descrentes, de inimigos da religião porque os homens de Deus só de raro em raro acham que é de seu dever defender os que
sofrem e combater os que infligem esse sofrimento!
O bispo, com o rosto alterado, tentou levantar-se, mas ante as palavras apaixonadas de Stuart, deixou-se cair de novo na cadeira, mudo e
petrificado.
— Pode dar prazer a um grupo de bastardos, de patifes, se remover o velho Grundy de sua paróquia, onde tem servido com tanta fidelidade e
tanta ternura. Sim, a estes poderá agradar. Mas vai “enfurecer” de verdade dez mil amigos de Grundy e estes também são influentes e têm
poder. Já levou isso em consideração? Já pensou nos sentimentos que vão ter contra sua pessoa e contra sua Igreja?
O bispo ficou em silêncio. Olhou firmemente para Stuart e então suas mãos começaram a tremer. Esfregou o queixo e disse com voz bem
calma:
— Há muita verdade no que diz, Sr. Coleman. Eu sabia decerto que havia uma grande amizade entre o senhor e o Padre Houlihan. Não sabia
era que fosse tão grande. Creio que não pode deixar de ter muito valor um padre capaz de inspirar sentimentos tão fervorosos, especialmente
entre aqueles que não são de sua Igreja. Levarei esse fato em consideração na solução final do caso do Padre Houlihan. Madre Mary Elizabeth
intercedeu também por ele, o que me surpreendeu, pois eu não sabia que ela tivesse grande apreço por ele.
O bispo sorriu e Stuart teve uma grande sensação de alívio. Balbuciou:
— Obrigado, obrigado. Excelência, peço perdão de minha veemência e de alguma palavra menos respeitosa. Mas é que eu perco a cabeça
quando... Se pudesse tê-lo visto hoje como eu o vi muitos dias depois daquela calamidade, teria tido uma pena imensa dele. Se Vossa
Reverendíssima pudesse mandar-lhe uma palavrinha por meu intermédio ou talvez uma carta com alguma frase amável...
— Por favor, Sr. Coleman. Não preciso de sugestões.
— Asseguro a Vossa Reverendíssima que não houve impertinência de minha parte. Mas eu sei a alegria que isso daria a Grundy. Se receber
uma palavra sua, terá um grande consolo.
O sorriso do bispo era um pouco menos severo. Sacudiu a cabeça delicadamente.
— Deve permitir que eu dirija os assuntos de minha diocese à minha maneira.
— Sem dúvida, sem dúvida. Não falei por mal. — Stuart hesitou e seu rosto abatido assumiu de repente a animação simples da mocidade. —
Outra coisa, Excelência. Sei que tem conversado muitas vezes com Grundy a respeito do meu ingresso em sua Igreja. Devo-lhe confessar que
não tenho fé em coisa alguma e provavelmente nunca terei. Mas se Vossa Excelência quiser e tiver um pouco de bondade para com o velho
Grundy, terei prazer em fazer parte de sua Igreja...
O bispo arregalou os olhos. Em seguida, embora procurasse conter-se, começou a rir, a princípio fracamente, mas em ritmo crescente. Stuart o
olhava com a testa franzida e, quando o bispo parou a fim de tomar fôlego, disse com dignidade:
— Tenho prazer em ver que despertei o bom humor de Vossa Reverendíssima, mas devo confessar que não compreendo por quê.
— Não consideramos as almas mercadorias para serem negociadas, Sr. Coleman —, disse o bispo com alguma emoção na voz. — Não é
possível dizer: “Se fizer isto ou aquilo por mim eu lhe permitirei que salve a minha alma”. Um homem deve sentir um impulso irresistível de todo
o seu ser para entrar na Igreja. Não pode comprar favores com sua alma. A alma não lhe pertence para ser usada como moeda de suborno.
Mas estendeu a mão para Stuart e olhou-o com afetuosa curiosidade e especial consideração.
— O senhor me deu muito o que pensar, ainda que não saiba de que maneira. Não se preocupe inutilmente com seu amigo. Com a ajuda de
Deus, encontrarei uma solução misericordiosa.
CAPÍTULO 71
Stuart, de volta a casa, sentiu mais paz e mais esperança do que sentia desde muitos meses. Tinha a firme certeza de que nada de aflitivo iria
acontecer a seu amigo. O seu primeiro impulso tinha sido correr para a casa do padre a fim de dar-lhe a boa notícia, mas sentiu-se tolhido por
uma reserva rara nele. Talvez o velho Grundy ficasse escandalizado e apavorado com as notícias. Absurdo, mas aqueles homens do clero
sempre hesitavam antes de tomar o caminho direto. Preferiam os rodeios, os circunlóquios, os desvios, como se estivessem dançando um
complicado minueto e era preciso ter cuidado para fazer os gestos certos e as reverências exigidas sem perder o compasso. Tudo isso era
muito divertido.
Marvina e Mary Rose eram esperadas em casa na semana seguinte. Stuart, jogando a bengala, o chapéu e o sobretudo numa cadeira, ficou
muito contente em encontrar uma carta da filha, cheia de amor infantil e da alegria em voltar dentro em breve para casa e para o pai. Havia
muitas outras cartas que traziam nos envelopes o timbre de advogados de Nova York. Como sempre, Stuart deixou-as de lado e cobriu-as com
o jornal do dia. Uma vez fora da vista, não tinham muita possibilidade de aborrecê-lo. Havia também uma carta de Laurie. Abriu-a
impacientemente e começou a lê-la.
“Meu querido Stuart”, escrevera Laurie e, embora a sua caligrafia não fosse propriamente nervosa, não era possível deixar de perceber uma
leve alteração. “Como já lhe disse, sinto de todo o coração as coisas que o afligem e só desejo é que pudesse fazer alguma coisa para aliviá-
las. Sua última carta tinha doze páginas e nove continham a descrição dos sofrimentos de seu amigo, o padre, e imprecações contra os que
causaram esses sofrimentos e a morte do pobre Sam Berkowitz. Comovem-me muito essas provas da generosidade de seu coração e de sua
lealdade a seus amigos e sinto muito que até agora não tenha havido resposta a seus anúncios. Mas, sem dúvida alguma, haverá. Como você
disse, “Quem pode resistir a dez mil dólares?” Entretanto, ainda que eu lhe tivesse escrito sobre minhas críticas, mandando-lhe recortes, e lhe
descrevesse os aplausos que recebi por ocasião de minhas últimas atuações, você não me disse nada a respeito de tudo isso. Sei muito bem
que assuntos mais importantes lhe absorvem a atenção, mas a verdade é que minha vaidade foi gravemente ferida. Afinal de contas, seus
elogios valem mais para mim que os aplausos de milhares de pessoas e a adoração de estranhos. Mas já lhe disse isso tantas vezes que você
deve achar até enfadonho.
“Você diz que antes de ir buscar Marvina e Mary Rose nas montanhas, virá a Nova York. Que maravilha! Desde o Natal que não o vejo. Será
uma alegria excepcional para mim. Aqui em Nova York, acredita-se firmemente que a guerra terminará no começo do verão deste ano e, neste
caso, não haverá motivo para que eu não vá de novo para a Europa. Não desisti ainda de poder convencê-lo a ir comigo ou, antes, a
acompanhar-me durante três meses. Mas discutiremos isso quando nos virmos de novo e eu só desejo é que isso aconteça quanto antes.
Posso dizer-lhe, para terminar, que uso constantemente o broche e os brincos de brilhantes e pérolas que você me deu de presente de Natal e
ouço muitos elogios por eles. Como sempre, seu gosto é impecável.”
Stuart suspirou, guardando a carta no bolso. Até mulheres como Laurie não se podem desligar de seus imediatos e exigentes desejos
pessoais. Tinha sentido uma frieza na carta dela, uma estranheza majestosa, uma ofensa alheada. Sentiu-se de repente sozinho, abandonado,
cheio de uma cansada e dolorosa solidão. Parecia que até o amor era uma emoção ávida e não tinha compreensão nem ternura pelos
tormentos da alma da pessoa amada.
Uma criada estava tentando chamar-lhe a atenção e olhou-a com impaciência.
— O Sr. Cauder está esperando na sala —, disse ela. — O Sr. Angus Cauder.
Diabo, pensou Stuart, franzindo a testa. Que será que aquele cadáver ambulante quer de mim? Sem a menor ideia do que fosse, Stuart dirigiu-
se para a sala, com a cara mais fechada do que nunca. Parou à porta e olhou através da extensão dos tapetes, com considerável desprezo e
repulsa.
— Muito bem, Angus. Espero que não seja algum problema que o traz aqui.
Angus estava sentado diante do fogo. Levantou-se ao ouvir a voz de Stuart, vestido de preto como sempre e com o rosto ainda mais branco
nas sombras do crepúsculo de março. Não sorriu e disse:
— Infelizmente, Stuart, creio que o problema é por demais grave.
Stuart esqueceu o seu antagonismo e avançou para o outro, perguntando num tom mais quente e mais preocupado:
— Bertie? Alguma coisa aconteceu a Bertie?
Angus ficou um momento em silêncio e disse então friamente:
— Não, Stuart, felizmente não é nada com Bertie. O problema é com você, Stuart. Achei que devia vir falar-lhe aqui e não no escritório. É um
assunto extremamente reservado e urgente.
É Laurie então, pensou Stuart, e sorriu desdenhosamente. Sentou-se, tirou um charuto do bolso e acendeu-o demoradamente.
— Mas sente-se, homem, sente-se. Não há ainda nenhum cadáver nesta sala. Ou estarei enganado?
— De certo modo —, murmurou Angus, sentando-se.
— Hem? Que foi que você disse? — exclamou Stuart.
Mas Angus se sentou rigidamente numa cadeira em frente e olhava apenas para Stuart. Tinha uma pasta sobre os joelhos.
— Que é? — perguntou Stuart. — Diga logo. Deve ser coisa muito importante.
Quis infundir na voz uma nota de ironia, mas até a ele essa nota pareceu falsa.
— É muito importante, —disse Angus, sem qualquer inflexão na voz.
Abriu a pasta e tirou um maço de contas. Stuart reconheceu imediatamente que se tratava de contas. Não as vinha jogando na cesta havia
meses? Sentiu um baque no coração e uma onda de sangue lhe inundou o rosto. Mas levantou arrogantemente a cabeça e assumiu uma pose
altiva.
— Essas coisas aí serão por acaso contas? — perguntou ele, com pesado desprezo.
— São contas, sim, Stuart —, respondeu Angus, com absoluta calma. — São contas que não podem mais ser desprezadas. Importam num total
de setenta e cinco mil dólares e algumas já estão vencidas há mais de um ano, sendo devidas a atacadistas, industriais e importadores de
Chicago e Nova York. Há também avisos urgentes de vários bancos. Gostaria de verificar, Stuart?
Angus estendeu os papéis para Stuart, mas este não fez a menor menção de recebê-los. O coração tinha começado a bater aceleradamente.
Angus, que ainda estendia os papéis com a mão magra, disse:
— Em vista das preocupações destes últimos meses, você não deu a devida atenção a estas contas, Stuart. Posso compreender
perfeitamente isso. Mas elas se tornaram tão prementes que eu tive de vir até aqui para discutir a situação com você.
Stuart olhou para Angus demoradamente e disse numa voz um pouco surda:
— Isso é assunto para ser discutido no escritório. Peço-lhe que não insista. Sabe muito bem que eu não trato de negócios aos domingos.
Angus sorriu, mas não guardou as contas.
— O caso é tão urgente, Stuart, que devemos deixar de lado o fato de que hoje é domingo. As coisas não podem mais ser adiadas.
— Você está sendo bem impertinente, sabe? É apenas meu gerente. Torno a dizer que não vou discutir coisa alguma com você hoje em minha
casa.
Angus colocou as contas sobre os joelhos. O fogo crepitava na lareira. Uma tempestade estava começando e os primeiros flocos de neve
batiam nas vidraças. Disse então:
— Tenho aversão também a tratar de negócios aos domingos. Mas desde que certas coisas têm de ser resolvidas amanhã o mais tardar, sou
obrigado a discuti-las com você hoje.
Stuart sentiu de repente um ódio violento de Angus. Esse ódio se misturava com o desejo de fugir, de sair correndo daquela casa, de fugir de
tudo como havia muito estava fazendo. As contas nas mãos de Angus pareciam-lhe sentenças de morte. Se ele pudesse ao menos botar
aquele cadáver para fora da casa com suas contas e fechar a porta, talvez lhe fosse possível esquecer o terror que lhe atormentava as noites e
o seguia durante o dia; poderia esquecer como sempre esquecia.
— Temos de discutir tudo —, disse Angus. Tornou a abrir a pasta e tirou um maço menor de papéis. — Tenho aqui, Stuart, notas promissórias
assinadas por você num total de vinte mil dólares. Comprei-as com desconto. Está em condições de resgatá-las por vinte mil dólares?
Stuart firmou-se na cadeira, pois tinha dificuldade em respirar e sentia a sala rodar.
Angus guardou as promissórias na pasta com os movimentos precisos de um carrasco que prepara o machado.
— Minha pergunta foi pura formalidade, é claro —, disse ele. — Não tem possibilidade de resgatar estas promissórias.
Depois de dizer isso, recostou-se na cadeira. Começou a falar com voz mais forte ou que assim pareceu a Stuart.
— Já está vendo, Stuart, por que vim procurá-lo. A Comissão de Comércio de Nova York quer forçá-lo à falência e está disposta a requerê-la
dentro do prazo de dez dias.
A voz de Angus era a única e terrível realidade naquela sala sombria. Stuart ouvia as palavras fatais que o destruíam, que o arruinavam, que
subvertiam toda a sua vida como a convulsão final de um terremoto. A voz calma e neutra de Angus continuava sem pressa nem emoção como
a voz de um juiz que condenasse Stuart Coleman à morte.
— Deve compreender, Stuart, que seus direitos ou os de qualquer outro acionista não têm o menor valor desde que, no caso de falência, nada
restará. Por conseguinte, de amanhã em diante, estará absolutamente sem dinheiro e deverá aceitar as propostas que lhe vou fazer. Não terá
outro remédio.
“Se tentar lutar comigo, por vaidade insensata ou obstinação infantil, exigirei o pagamento destas promissórias e penhorarei esta casa. Se
proceder acertadamente, e não tenho dúvida de que é o que você fará depois de pensar bem no caso, compreenderá que a proposta que lhe
vou fazer é mais do que generosa, mais do que lhe seria possível esperar de mim.
“Você desprezou as lojas comercialmente. A ruína se aproximou a passos firmes e você fugiu dela. Várias vezes Berkowitz tentou discutir a
situação com você e você o fazia calar-se com meia dúzia de palavrões. Por fim, ele viu que nada poderia fazer. Compreendeu que era inútil,
como eu também compreendi. Mas ele não sabia o que devia fazer e eu sabia. Fiz tudo o que me foi possível. Agora, faço-lhe a proposta de
trezentos dólares por mês, o que o ajudará a manter a sua casa, cuja hipoteca está em minhas mãos. Acertarei tudo com você dentro do bom
senso e com um pouco de piedade porque você é meu parente e teve algumas gentilezas para comigo. — Ao dizer isso, os lábios de Angus se
contorceram, mas o seu tom de voz não se alterou. — Como meu gerente, você não terá de tomar conhecimento de detalhes que sempre lhe
foram onerosos e não terá as responsabilidades das quais há anos procura fugir. Não terá responsabilidades, mas terá apenas trezentos
dólares por mês. Com jeito, poderá manter esta casa. Mas seu estilo de vida terá de ser essencialmente modificado. O problema é seu. Você
terá de fazer os seus ajustamentos. Só lhe estou dando um conselho.
Tornou a guardar as contas na pasta. Stuart não se movia. Continuava jogado na cadeira como se tivesse sido fulminado.
Angus descansou as mãos entrelaçadas na pasta e olhou para o homem que havia abatido de maneira tão calma e impiedosa. Não havia em
suas feições paradas o menor sinal de compaixão, de arrependimento ou de pesar.
— Pode recusar a minha proposta de ser meu gerente com o salário mensal de trezentos dólares. É o único caminho que lhe resta. E eu acho
que seria um excelente gerente. Tem um jeito com a freguesia que eu confesso que não tenho. Mas, se recusar, não terá outra renda e, para
proteger minha hipoteca, eu seria obrigado a penhorar sua casa. Você não me deixaria outro recurso.
“Stuart, você tem dito muitas vezes que eu sou um avarento, um sujeito sem coração e sem emoções humanas. Mas tive sempre o maior apego
às lojas e foi por isso que convenci... bem, uma parte interessada, a me emprestar o dinheiro para liquidar os débitos das lojas com a
Comissão de Comércio numa base de 50%. A minha proposta já foi aceita. Pode-me chamar de insensível, mas sempre tive um sentimento
pelas lojas e agora estou mostrando que tenho também por você.
Esperou uma resposta, mas Stuart continuou calado.
— Outra coisa, Stuart. Sam Berkowitz deixou 20% de suas ações nas lojas para o Padre Houlihan. O padre deve perder qualquer renda
proveniente dessas ações se eu prosseguir nos meus planos. Mas, para comprar a boa vontade da comunidade católica e dos outros que
possam ter alguma simpatia pelo padre, vou fazer-lhe uma oferta generosa: dar-lhe-ei cinco mil dólares pelas ações que não valem
praticamente nada. Não sou obrigado a fazer isso, como sabe muito bem.
Pela primeira vez, Stuart se moveu. Era como se sentisse o impacto de uma faca nas entranhas e se debatesse. Levou as mãos à garganta
como se estivesse sendo estrangulado. Por mais estranho que fosse, esse gesto despertou alguma reação em Angus que também levantou as
mãos de repente e comprimiu fortemente as têmporas.
Stuart murmurou então:
— Há anos que você vem planejando isso, sempre à espera de uma oportunidade. Fez isso comigo deliberadamente.
Angus apertou com mais força as têmporas. O longo corpo magro contorceu-se na sua agonia particular. A sua respiração era mais alta e
sibilava no silêncio da sala.
— Sempre, através dos anos —, continuou Stuart —, você conspirou contra mim, cheio de ódio. Esperou muito tempo. Mas podia esperar.
Teve a paciência das serpentes. Teve a paciência de todos os homens maus.
Angus levantou a cabeça. O rosto branco estava reluzente de suor.
— Você me chama de “mau”. Mas você é que é o mau, Stuart Coleman. Você não merece de mim nenhuma consideração, nenhuma piedade,
nenhuma compaixão. Mas, justamente porque não sou mau, dei-lhe tudo isso. Está de acordo com sua natureza acusar-me daquilo que você
realmente é. Não há nada de bom em você. Você é um homem ímpio e lascivo! Seus amigos são pessoas perversas e inconfessáveis! Seu
nome é motivo de escândalo e de desprezo para os homens justos que respeitam as leis de Deus e do homem.
“Se eu fosse na verdade mau, aproveitaria este momento para arruiná-lo por completo e para expulsá-lo daqui com a aprovação de todos os
homens bons de Grandeville. Tenha cuidado, Stuart. Não me force a esse extremo.
Levantou-se. Mas teve de apoiar-se nas costas da cadeira, porque cambaleava um pouco. A dor em sua cabeça era violenta e quase o
cegava.
— Levei em consideração sua mulher e sua filha, vítimas naturais e inocentes de sua iniquidade e prodigalidade. Sendo você o que é, não
mostraria essa piedade para com os outros, não teria esse espírito de piedade cristã. Mas tenho compaixão por você e já lhe fiz minha
proposta. Aceite ou recuse. Fico dispensado de mais atenções para com você.
Abriu a boca de repente para tomar ar e agarrou com mais força as costas da cadeira. Stuart olhava-o firmemente, do fundo de seu tormento.
Foi então que aconteceu uma coisa estranha. Stuart começou a sorrir. Mas não era um sorriso de depressão, de crueldade ou de ódio. Havia
até nele alguma coisa de gentil e muito triste. Era incompreensível, porque só a intuição e o coração inspiravam Stuart. Disse então com voz
baixa e muito clara:
— Vá, Angus. Siga o seu caminho. E que Deus se compadeça de sua alma.
CAPÍTULO 72
— Mortificação? — disse Stuart sorrindo para o Padre Houlihan. — Talvez eu devesse estar-me sentindo mortificado, humilhado, insultado,
furioso. Mas, por mais estranho que seja, não estou. Não sei por quê. Acho que foi o rosto dele. Você devia ter visto o rosto , dele. Só pude foi
ter pena.
Mas o Padre Houlihan estava olhando para o rosto de Stuart. Este percebeu o olhar de amizade e de tristeza e disse de repente,
involuntariamente:
— Estou cansado.
Arrumou de novo as rosas de estufa que levara para o amigo e murmurou:
— Nunca me senti tão cansado quanto agora, nunca. Talvez esteja ficando velho. Não sei. Mas nada mais me parece ter muita importância, a
não ser descobrir os assassinos de Sam e vê-los punidos.
Virou-se para o padre.
— Não olhe para mim como se eu fosse digno de lástima, Grundy. Nunca pude tolerar que tivessem pena de mim. Além disso, vamos ser
lógicos. As lojas foram salvas. E eu tenho trezentos dólares por mês. Não tenho mais preocupações, nem responsabilidades, nem encargos. E
salvei minha casa. Quando Sam estava lá, era diferente. Mas agora, perdi todo o estímulo.
Tentou sorrir com bom humor ao ver a expressão de tristeza do amigo.
“Acabaram-se os colares de brilhantes, os objetos artísticos, as bengalas de castão de ouro, as garrafas de conhaque Napoleon, os bons
cavalos. Pensa que eu estou arrasado? Não, estou é cansado. Acha que mostro com isso falta de amor-próprio?
Mas o padre perguntou:
— Não tem ódio de Angus?
— Ódio? Não! Pois se eu lhe estou dizendo que vi o rosto dele!
O Padre Houlihan estendeu a mão para o amigo e Stuart a apertou com muito afeto.
— Sempre disse que você era um homem bom, Stuart É preciso que um homem tenha Deus dentro do coração para ter pena de quem o
destruiu.
— Não, Grundy, ninguém me destruiu. Eu mesmo é que me destruí. Mas pouco me importa. Levei uma boa vida. Muito boa mesmo.
O Padre Houlihan não acreditava muito em Stuart Na opinião dele, Stuart estava querendo enganar-se. No momento, sentia-se exausto,
atordoado e muito desolado para experimentar uma reação correspondente à enormidade do que acontecera. E tinha uma obsessão:
descobrir os assassinos de Sam Berkowicz.
— Vou ficar ausente por duas semanas ou mais. Cuide-se, ouviu, Grundy? Quando voltar, trarei um projeto do melhor estilo arquitetônico para
sua igreja. A antiga vai parecer até um brinquedo. Você vai ver.
Saiu e desamarrou seu cavalo. Seguiu através da neve suja que enchia as ruas. Levava a mão por um instante ao chapéu quando passava por
algum conhecido, indiferente aos comentários que sua presença suscitava. Estava muito cansado. Sentia o cansaço como cinza seca no corpo,
na boca, nos olhos.
Olhou para sua bela casa e pela primeira vez o coração lhe bateu um pouco mais depressa. Ah, ainda tinha sua casa. Não tinha mais receio de
perdê-la. Pagaria cem dólares por mês a Angus pela maldita hipoteca. Ficaria com duzentos. Teria de dispensar quase todos os empregados.
As cocheiras teriam de ser fechadas. Mas a babá de Mary Rose teria de ficar e uma cozinheira. Os olhos de Stuart se encheram de alegria. Em
breve, teria a filha a seu lado em sua casa. Pensando bem, tudo poderia ser muito pior.
Quando entrou na casa, depois de limpar cuidadosamente as botas enlameadas, encontrou o carcereiro que o esperava, muito ansioso.
— Sr. Coleman, tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. Depois, talvez o senhor queria ir até à cidade comigo. Aquele prêmio ainda
está em vigor?
Angus estava sentado ao lado de Joshua Allstairs no luxuoso gabinete particular do banco. Todos os papéis tinham sido assinados. Joshua se
recostou na sua cadeira e teve uma risadinha.
— O dia que espero há quinze anos Chegou afinal, meu caro Angus. É um dia lindo, muito lindo. A vingança de Deus sobre um homem mau me
foi entregue nas mãos. A probidade e a piedade cristãs foram reconhecidas. Fosso morrer em paz.
Angus assentiu. Juntou os papéis com sua meticulosidade costumeira e disse:
— Vejo aqui um documento muito interessante. Segundo ele, na hipótese de seu... de seu passamento, o seu interesse na firma deverá passar,
com todo o resto de seus bens, para um fundo a ser administrado em benefício de sua filha, a Sra. Coleman, e de sua neta, a Srta. Mary Rose.
Mas isso só se verificará se a Sra. Coleman se separar do marido dentro de sessenta dias depois de seu... passamento. Se isso não
acontecer o que é bem pouco possível, todos os bens serão administrados em benefício da Srta. Mary Rose até que ela complete trinta anos e
esteja casada. Excelentes disposições!
Joshua tomou a rir.
— Marvina é uma idiota. Sempre foi. Tive pouca dificuldade em convencê-la a me visitar secretamente. E adoro aquela filhinha dela. Tenho
certeza de que Marvina abandonará aquele homem abominável. Já discuti até o assunto com ela. Ela concorda com tudo. Sempre concorda
com tudo.
Um tentáculo de dor se estendeu pela testa de Angus. Levou a mão à testa e esfregou o lugar. Aquelas últimas semanas tinham-no tornado
mais pálido e mais magro, de modo que ele parecia mais do que nunca um cadáver. Joshua o olhou com uma curiosidade e um interesse
cruéis.
— A Sra. Coleman é muito feliz em ter um pai como o senhor —, disse gravemente Angus —, homem que sabe perdoar, que é generoso e
amoroso.
Joshua assentiu benignamente.
— Mas eu imagino que você será também um pai assim, Angus. Sua filhinha é muito linda. É uma pena que a mãe dela não esteja mais viva
para vê-la crescer.
O rosto de Angus se alterou. Guardou os papéis em sua pasta. Pensou em sua filha, Gerda, que estava começando a andar. Nada sentia no
coração ao pensar nela. A menina tinha os cabelos claros e os olhos azuis da mãe. Era filha dos avós e não dele. Sabia que a menina não
gostava dele e nem sequer o tolerava. Também por Gretchen, que tinha já seis meses de morta, não sentia qualquer emoção.
Tinha ostensivamente morrido de uma “febre dos pulmões” quando a filha tinha três meses. Mas Angus sabia, como sabia o médico, que ela
morrera de tanto comer. Tinha sido uma morte odiosa.
Joshua observou o rosto parado de seu jovem amigo e perguntou com falso interesse:
— Como vão suas dores de cabeça, meu jovem?
Angus sorriu lividamente.
— Continuam a afligir-me. Devia usar óculos, mas sempre me esqueço. Mas posso dizer que estou um pouco melhor. Minha sogra costuma
aplicar uma compressa de ervas à noite e isso me alivia consideravelmente a dor. Tenho esperança de que com o tempo tudo isso passe.
Olhou firmemente para Joshua. Ali estava um homem velho, mas ainda muito poderoso. E tinha sido muito generoso. Além disso, era um
“cristão” piedoso e devoto. Angus tinha um enorme respeito por ele. Sorriu e disse:
— Mais uma vez, Sr. Allstairs, muito obrigado por tudo. Sem sua ajuda, eu nunca poderia ter realizado as esperanças e os desejos de minha
vida.
Joshua estendeu a garra que lhe servia de mão.
— Meu jovem, durante toda a minha vida nunca me enganei com um homem. Soube desde o início quem era você. Iremos longe juntos, assim
espero!
Apertaram-se as mãos. Angus pegou o sobretudo e o chapéu.
— Vai jantar comigo, como de costume, na sexta-feira? — perguntou Joshua. — É uma coisa que espero sempre com ansiedade.
— Sem dúvida. Será um grande prazer para mim —, disse Angus.
Voltou-se para a porta. Mas esta se abriu de repente e mostrou o rosto assustado de um empregado do banco. O empregado foi
vigorosamente afastado e, então, Stuart e o Xerife deram entrada no gabinete.
Joshua deu um pequeno grito e se apoiou nos braços da cadeira como se quisesse levantar-se. O seu rosto se contraíra numa expressão
simiesca de ódio antigo e de medo. Angus recuou da porta, muito vermelho.
O rosto de Stuart, apesar de seu sorriso desvairado, estava terrível. Estuava de ódio, de vitória, de louca exultação. Entrou na sala e disse ao
Xerife, apontando Joshua:
— Ali está o seu assassino, o seu prisioneiro! Leve-o quanto antes!
Joshua se encolhia na cadeira como um montão de ossos trêmulos. Mas os olhos pareciam duas brasas. Olhava para Stuart e não para o
Xerife. Este trazia um documento na mão e disse com ar severo:
— Sr. Joshua Allstairs, tenho aqui um mandado de prisão pela sua cumplicidade no assassinato de Samuel Berkowitz. Queira acompanhar-me
imediatamente.
Houve um grito na sala, mas ninguém o ouviu. Partira de Angus que se encostava a uma parede, agarrando convulsivamente a pasta. Olhava
para Joshua e via o mal e o terror no rosto do velho.
— Que está dizendo? — exclamou Joshua. — Está louco?
— De modo algum, Sr. Allstairs —, disse o Xerife. — Prendemos hoje de manhã um homem chamado Wul Dobson. Foi perseguido no pátio da
estação quando procurava tomar um trem de carga para sair da cidade. Nessa ocasião, caiu sob a roda de um vagão e ficou terrivelmente
ferido. Com medo de morrer e querendo ficar em paz com sua consciência, mandou-me chamar e confessou que na noite de 12 de setembro
de 1863 foi contratado com um tal Fred Engels para assaltar Berkowitz. O homem que os contratou foi o senhor, Joshua Allstairs. Disse-nos
onde poderíamos encontrar Engels e nós já o prendemos. Engels confessou também a sua participação no crime. Declarou que ele e seu
companheiro receberam de sua mão para matar Berkowitz a importância de cinco mil dólares em dinheiro.
Joshua se agitava a cadeira com o rosto contorcido numa máscara horrenda. Apontou violentamente para Stuart, embora olhando para o
Xerife:
— É mentira, uma abominável mentira! Não tenho nada a ver com isso! Se há um assassino nesta sala, ali está ele! Se está bem lembrado, foi
ele que encontrou o judeu, seu amigo, mas a quem ele devia quatorze mil dólares! Xerife, exijo que os cúmplices dessa infame conspiração
contra mim sejam forçados a confessar quem é o verdadeiro assassino!
Cheio de raiva, Stuart avançou com os punhos cerrados para seu velho inimigo. Mas o Xerife lhe segurou o braço e disse:
— Calma, Stuart. Não adianta negar, Sr. Allstairs. Os dois homens confessaram e assinaram as suas confissões. Forneceram todos os
detalhes. Terá de acompanhar-me.
Joshua começou a gritar e a bater desvairadamente nos braços da cadeira. Praguejou. Foi abalado por uma convulsão de terror, de ódio e de
demência. O Xerife esperava. Stuart esperava, olhando para seu velho inimigo. Mas estava aterrado. Fechou os olhos. Não podia olhar para
aquela cara, que era a cara de um demônio.
O Xerife, calmo embora pálido, esperava, enquanto Joshua chorava, gemia, gritava, torcia as mãos sem sair da cadeira. Corria os olhos em
torno como um animal acuado à procura de uma oportunidade de fugir.
O Xerife disse então:
— Há outro crime que lhe é atribuído também, Sr. Allstairs. Trata-se do incêndio da igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança. Os dois
homens confessaram isso ao mesmo tempo que o outro e mais terrível crime. Só lhe estou dizendo isso para que veja que não tem
possibilidade de escapar à justiça desta vez.
Joshua voltou a murmurar e sua voz era como o ondular de uma cobra sobre a relva seca.
— Exijo a presença de meu advogado. Tenho de ver meu advogado. Reclamo justiça.
— E terá justiça —, disse o Xerife —, mas diante de um júri de seus pares. E agora, se me permite, está-me fazendo perder tempo. Peça
imediatamente sua carruagem.
Houve um súbito e horrível silêncio na sala, quebrado apenas pelo murmurar incoerente de Joshua, que tinha uma ponta de demência. Encolhia-
se na cadeira, torcendo as mãos. Os olhos chamejantes fuzilavam, sem nada ver. Os lábios se moviam incessantemente. Falava de coisas
estranhas, carregadas de ódio, de loucura e de fúria.
Por fim, os olhos dele focalizaram Stuart. Teve um sobressalto. Os dois homens se olharam no tremendo silêncio. Stuart disse então com voz
trêmula:
— Você tem levado uma longa vida de maldade e abominação. Roubou, destruiu, arruinou. E matou. Mas é um velho. Tenho pena de você de
todo o meu coração.
Ao ouvir isso, Joshua deu um monstruoso grito estridente, uivante, inumano. Stuart recuou e se afastou.
— Seja maldito, maldito até ao fundo do inferno! — gritou Joshua. — Que todos os tormentos do inferno o despedacem e devorem! Que você
apodreça e morra em suplícios! Que todos os demônios o dilacerem para sempre!
Stuart disse:
— Deus se compadeça de você, que é um velho.
Foi então que Joshua começou a proferir pavorosas pragas e blasfêmias. Batia freneticamente as mãos nos joelhos e pisava o chão com os
pés em cadência de tambor. Perdeu então o juízo e começou a uivar.
— Que horror! — exclamou o Xerife. — Não posso suportar isso. Quer ir pedir auxílio na polícia, Stuart?
Então, tão de súbito como ficara alucinado, Joshua se calou. Baixou os olhos para o chão. Começou a sorrir. Riu. Convulsões de riso
sacudiram-lhe o corpo mirrado. Encolheu-se ainda mais na cadeira. Estava completamente em silêncio. Apareceu então uma carranca de
demônio em seu rosto cinzento e enrugado. A carranca aumentou. O silêncio na sala era completo.
Stuart curvou-se para a frente a fim de examiná-lo. E então exclamou:
— Meu Deus! Acho que ele morreu! Conseguiu fugir!
CAPÍTULO 73
Stuart teve entrada no quarto de Angus. Entrou desconfiado, relutante e inquieto. Quando Angus o mandara chamar, sentira a princípio
incredulidade e, depois, apreensão. Ora, não tinha importância. Se o pobre imbecil petrificado pensava que poderia amontoar novas
calamidades sobre Stuart, ia ter uma decepção. Acreditava que o outro nada mais poderia fazer-lhe. Tinha deixado de temer calamidades. Era
irritante que Angus ainda estivesse tramando novas artes contra seu parente, mas era uma perda de tempo, no que tangia a Stuart. Estava
imune a novas devastações.
Não obstante, embora sorrisse melancolicamente ao entrar no quarto de Angus, preparou-se. Pensou vagamente que havia um limite para a
capacidade de tolerância de um homem.
Angus estava reclinado sobre os travesseiros. Uma enfermeira andava em torno dele na penumbra do quarto. Estava imóvel, com as mãos
caídas sobre a colcha de seda. O quarto estava tão escuro que Stuart não pôde a princípio ver do rosto do outro senão as cavidades escuras
dos olhos.
— Ora, ora —, disse Stuart com uma falsa tentativa de jovialidade —, pelo que vejo, temos um inválido aqui.
Angus moveu um pouco a cabeça e disse com uma voz estranhamente forte e pausada:
— Boa tarde, Stuart. Srta. Crump, quer ter a bondade de sair do quarto? Tenho alguns assuntos para discutir em particular com o Sr. Coleman.
Stuart não sabia o que fazer com o chapéu e a bengala que não lhe tinham sido tomados pela empregada que lhe abrira a porta. Equilibrou-os
nas pernas e tentou sorrir para Angus. Que coisa! O pobre-diabo estava acabado. Não sentia animosidade por Angus, mas apenas
compaixão. Se o infeliz queria gozar o seu triunfo ou ampliá-lo e isso pudesse dar-lhe alguma satisfação, que lhe fizesse muito bom proveito. Já
era castigo bastante para ele viver naquela horrível casa com um casal de salsicheiros. Se alguma coisa poderia dar-lhe alegria, muito bem. A
morte do velho Joshua fora evidentemente um choque para ele. Stuart sorriu subitamente triste.
Angus viu esse sorriso e perguntou:
— Você me odeia, não é mesmo, Stuart?
— Odiar você? Não, Angus. Por quê? Você agiu de acordo com sua consciência. — E acrescentou com intuitiva astúcia: — Não foi?
Angus não falou. A visão de Stuart já se estava habituando à escuridão e ele viu até que ponto Angus estava abatido e exausto. Mas ainda
havia nele um espírito inumano e indomável.
Stuart falou então com franqueza:
— Não sei por que você me mandou chamar em vista das circunstâncias. Achei isso muito estranho. Mas não sou capaz de recusar uma visita
a um doente e quando soube de sua enfermidade fiquei muito preocupado. Deve ter sido um choque muito grande ver o velho Allstairs morrer à
sua frente. Mas a verdade, Angus, é que ele se livrou do pior. Você, como amigo dele, devia estar satisfeito com isso.
Angus disse então em voz bem baixa:
— Soube que Marvina deixou você. Disseram-me hoje de manhã.
— É verdade. Foi uma condição imposta no testamento do pai. Ela se mostrou muito simpática e amável. Não pude deixar de dar-lhe razão.
Afinal de contas, eu não podia esperar que, em vista das circunstâncias, ela desistisse de uma fortuna por minha causa. Há muitos anos que
não vivemos como marido e mulher. Vivi inteiramente à minha moda. Ela me disse que prefere voltar para a velha casa da mãe na Pensilvânia,
onde tem parentes. Mas é claro que nada disso lhe interessa, Angus. Será que tem mais notícias más para mim?
— Não está sentido então? — perguntou Angus. — E Mary Rose?
— Concordei em não contestar qualquer ação de divórcio que Marvina requeira. Em troca, Mary Rose poderá viver comigo, caso a sua saúde
permita, tantos meses no ano quantos quiser. Tudo muito amigável, como vê. — Fez uma pausa, sorriu ironicamente e acrescentou: — Se está
preocupado com meus assuntos particulares, Angus, eu lhe agradeço muito o interesse. Mas se pretende discuti-los comigo, devo recusar. Não
posso admitir que sejam de sua conta.
— Vai-se casar com Laurie, Stuart?
Stuart levantou-se. Ficou de pé ao lado da cama por muito tempo em silêncio. Falou por fim com voz delicada e firme:
— Sinto muito que esteja doente, Angus. Mas não o cansarei mais. Só lhe posso dizer o seguinte: Seja o que for que Laurie e eu decidirmos, e
isso ainda vai demorar muito, será coisa que só diz respeito a nós dois.
Angus o olhou imperturbavelmente. Stuart pensou que talvez fosse a doença que dava a Angus aquela aparência. Os planos e ângulos do rosto
branco pareciam menos duros e acentuados.
— Sente-se por favor, Stuart.
Stuart tornou a sentar-se, perplexo. Que era que o pobre-diabo podia querer dele? No mesmo instante, a sua intuição começou a trabalhar.
Havia mais alguma coisa! Angus queria dizer alguma coisa e não tinha palavras! Aproximou-se do outro e exclamou impulsivamente:
— Por que está com tantos rodeios, Angus? Que é que você quer-me dizer? Posso ajudá-lo em alguma coisa?
— Fale comigo, Stuart. Basta que fale comigo. Diga-me o que quiser. Diga-me tudo o que está pensando...
— Sobre quê? — perguntou Stuart.
Ficou então em silêncio. A intuição lhe estava falando bem alto, tão alto que podia ouvir-lhe o clamor, mas não as instruções.
Angus fechou os olhos e murmurou
— Você foi muito bom para mim. Ainda me lembro de como eu me sentia infeliz e sozinho quando era garoto. Você encontrou a mim e a Laurie
no jardim. Laurie sentou-se no seu colo e você lhe contou uma história. Depois, nós jantamos com você. Era uma bela noite de abril. Nós nos
sentíamos tão sozinhos.
— Lembro-me como se fosse hoje. Eu... eu gostava muito de você, Angus. Parecia tão infeliz naquele tempo. Gostaria de ter tido mais
sensibilidade.
Mas Angus continuou a falar com os olhos fechados.
— Você foi muito bom. Só agora vejo como você foi bom. Sempre foi bom. É muito difícil de dizer. Faltam-me as palavras, Stuart.
Stuart sentiu uma leve fraqueza nas pernas e disse:
— Pode falar, Angus. Diga-me tudo o que quiser. Estou escutando.
Mas via claramente a grande pedra que pesava sobre o peito de Angus, esmagando-lhe a alma e abafando-lhe as palavras. Percebia a luta de
Angus para afastar aquela pedra, para libertar-se dela, daquilo que crescera com ele através da vida e o estava matando. Via muitas coisas
terríveis e arrasadoras e estava estarrecido.
— Fale, Stuart —, disse Angus. — Sobre qualquer coisa. Seus amigos. Sua vida.
— Mas nada há em minha vida que não seja sórdido, inútil ou frívolo —, disse Stuart, consumido pela compaixão. — Não tive nem sucesso na
vida. Só posso apontar como uma realização a minha casa.
— Nunca soube que você tinha tantos amigos. Você não faz uma ideia de quanto sou odiado por sua causa.
Stuart ficou admirado, mas disse prontamente:
— Tolice. Todos o acham inteligente, capaz, admirável. Se eu estava atravessado em seu caminho, a culpa era minha. Mereci o que aconteceu.
Você salvou as lojas. E por isso eu lhe sou muito grato. A princípio, não. Houve até uma hora em que tive vontade de matá-lo e teria feito isso
com prazer. Mas agora não. Isso passou.
Mas Angus disse:
— Fale-me daquilo em que você pensa, Stuart. Fale-me de tudo.
— Ora, Angus, penso em muitas coisas. Mas são na realidade coisas de pouca importância. Penso como foi bom ter Sam Berkowitz como
amigo, seu irmão Robbie, que é mais homem do que eu pensava, e o velho Grundy. Penso como tenho orgulho de Laurie e como quero bem a
minha filha. Penso nos anos que passei nas lojas e como as consegui formar. Penso nas camas macias em que dormi, nas belas mulheres que
conheci, na música que ouvi, nos vinhos que bebi, nas cartas que joguei. Penso também nas boas gargalhadas que dei na vida, pois tenho rido
mais do que o comum dos homens. Ora essa, meus pensamentos são os de qualquer outro homem. Nada de muito importante, de
emocionante ou com qualquer significação.
Angus deu um suspiro e murmurou:
— E eu penso nos passeios que você deu comigo quando eu era garoto. Penso nas coisas que você me disse. Não me esqueci de nenhuma.
Lembra-se da primeira noite em que me levou à casa do Padre Houlihan?
— Lembro-me, sim. Você levou a Bíblia com você e ficou escandalizado quando nós fomos jogar.
Ficou surpreso ao ouvir o som que partia de Angus. Com toda a certeza, não ouvira direito! Não podia ter sido um riso! Mas Angus estava
sorrindo, ainda que se tratasse do fantasma de um sorriso. Stuart não podia acreditar no que seus olhos viam. Perguntou então:
— Como vai da cabeça, Angus?
Mas Angus estava falando:
— Toda a minha vida, minha mãe me incutiu a ideia de que o dinheiro era tudo e nada havia que se comparasse ao dinheiro. Era o poder que
dominava o mundo, conquistava amigos e admiradores, impunha respeito até aos reis, cercava uma pessoa de uma muralha impenetrável,
enchendo-a de honras até diante de Deus. Quando um homem não tinha dinheiro é porque era merecidamente amaldiçoado pelo céu.
Stuart pensou que esses conceitos eram muito infantis e ficou um pouco confuso. Disse então:
— Bem, o dinheiro não deixa de ter o seu lugar...
Angus se moveu nervosamente na cama.
— Há coisas que eu não posso dizer. Não posso nem sequer pensá-las com alguma coerência. São grandes demais para mim. Sinto sempre
essa dor na cabeça. Não sei o que há de errado comigo. Nunca sei. Não há ninguém para me dizer, absolutamente ninguém. Você não pode,
Stuart. Nunca teve pensamentos como os meus.
Foi a intuição de Stuart que o fez dizer:
— Vou mandar o velho Grundy para você, Angus. Amanhã. Pode esperá-lo.
Levantou-se, numa precipitação febril.
— Vou falar agora mesmo com ele! Talvez possa vir ainda hoje. Ele sempre gostou de você, Angus. Falava muito de... de sua capacidade de
sacrifício. Lembra-se de como você tinha vontade de ser médico?
Angus não respondeu. Mas olhava de repente sem nenhuma reserva para Stuart e havia em seu rosto um fulgor como se alguma luz incidisse
em cheio sobre ele.
— Grundy costumava dizer que você tinha um ardente desejo, Angus... sacrificar-se pelos outros, viver para os outros. Não sei se ele estava
certo ou não. Vê às vezes coisas que eu não vejo. Mas é um homem muito bom. Vou mandá-lo falar com você, Angus. Hoje mesmo. Dentro de
uma hora.
Depois de alguma hesitação, colocou a mão nos dedos frios e rígidos que estavam sobre a colcha. Foi para ele uma completa surpresa ver
Angus cobrir com a outra mão a de Stuart. Os seus olhos se enevoaram e ele sentiu um aperto na garganta.
— Fique esperando Grundy, Angus. Só ele pode ajudá-lo e Deus sabe como você precisa de ajuda.
CAPÍTULO 74
— Deve compreender que sua entrada nesta casa está ocorrendo sob protesto e apenas por extrema tolerância —, disse a Sra. Schnitzel
cheia de majestade e olhando para o Padre Houlihan do alto de sua aversão e indignação.
— Minha senhora —, replicou calmamente o Padre Houlihan —, não posso ficar aborrecido quando se ressente da minha entrada numa casa
onde Jesus nunca foi admitido.
A Sra. Schnitzel não era particularmente brilhante e nem mesmo sofrivelmente perceptiva, de modo que teve de remoer durante duas horas
essa frase perfeitamente clara antes de perceber-lhe todo o impacto e ficar indignada. Mas, quando isso ocorreu, o Padre Houlihan já tinha
saído são e salvo.
Notou ela, porém, no momento, que o tom dele era pacífico e impregnado de amável reserva, de modo que permitiu que ele seguisse na sua
esteira até o quarto de Angus, segurando as enormes saias pretas como se receasse algum contágio. Escancarou a porta de Angus e
anunciou em voz alta:
— Meu caro, o... o senhor que queria ver está aqui. Lembre-se de que não pode receber visitas por muito tempo. Daqui a pouco, eu volto.
O Padre Houlihan entrou no quarto, esperou que a desconfiada Sra. Schnitzel se retirasse e se aproximou da cama de Angus. Sorriu para ele,
dissimulando a sua dolorosa surpresa diante do rosto abatido e dos olhos angustiados.
— Ora, meu rapaz, é triste ver você assim de cama —, disse ele com voz trêmula. — Mas, dentro em pouco, estará de novo de pé andando por
aí, não é mesmo?
— Tenha a bondade de sentar-se, Padre —, disse Angus, movendo a mão num gesto débil. A cabeça estava envolta em compressas
molhadas. O padre sentou-se com um suspiro, mas ainda sorrindo bravamente.
— É sua cabeça então? — perguntou ele. — Não está melhor?
— Isso não tem importância —, disse Angus num tom apático, tocando as compressas.
O padre hesitou. O rosto velho e cansado estava levemente luminoso na penumbra do quarto. Os seus olhos azuis eram bondosos e calmos,
repletos de luz.
— Já me disseram que eu tenho algum jeito com dores de cabeça. Posso tentar, Angus?
Angus nada disse. Fechou os olhos. O Padre Houlihan olhou com tristeza para o rosto pálido e magro. Ficara surpreso quando Stuart fora
procurá-lo, instando com ele para que fosse ver imediatamente Angus, mas ficara também, ainda que incrédulo, exultante. Stuart tinha-o feito
entrar à força em sua carruagem e o fizera seguir, de modo que de fora levado até aquela casa dentro de uma verdadeira névoa de confusão,
prece e conjecturas. Stuart tinha falado incoerentemente e ele não pudera saber grande coisa por ele. Angus mandara mesmo chamá-lo ou isso
era apenas uma ideia de Stuart? Não podia saber.
Sabia apenas que tinha à sua frente um homem enfermo e que sofria desesperadamente. E tanto a doença quanto o sofrimento provinham de
uma alma atormentada. Deixou de lado suas conjecturas, sua objetividade. Sentia e pensava com o coração. Livrou-se de toda a trepidação,
de toda a incerteza, de toda a confusão.
— Deixa-me tentar, Angus?
Angus moveu fracamente a cabeça numa impaciência exausta. O padre levantou-se, tirou cuidadosamente as compressas e pousou as mãos
nodosas na testa do jovem. Angus recebeu tudo isso, como se estivesse inconsciente. Padre Houlihan tocou suavemente a testa palpitante,
mas tinha os olhos fechados e rezava em silêncio. Sentia um impulso particular, mas já conhecido, como se estivesse recebendo forças de
alguma fonte externa e misteriosa e dirigisse o foco dessas forças para suas mãos e, delas, para a cabeça de Angus. Sentia-se cheio de
vibrações. Os momentos passaram. A vibração foi diminuindo até que cessou e a força desapareceu. O padre sentiu-se um pouco fraco e
tornou a sentar-se. Angus continuava imóvel na cama e parecia dormir.
Abriu por fim os olhos e fixou-os como se estivesse escutando alguma coisa. Mostrou então uma expressão de surpresa e disse:
— A dor passou.
O padre passou as costas da mão pela testa, sorriu tremulamente e disse:
— Deus é misericordioso.
Angus teve um sobressalto. Olhou-o e disse:
— Tinha esquecido de que estava aqui, Padre.
— Mas queria me ver, Angus?
Angus ficou calado por alguns momentos. Disse afinal em voz alta e apressadamente:
— Sim. Sim. Quero sempre vê-lo! Sempre!
Levantou um pouco o corpo nos travesseiros. Parecia galvanizado por uma força estranha. Apoiou-se num cotovelo. Começou a falar e suas
frases eram entrecortadas e desconexas. Mas o padre compreendia. Da confusão das palavras que ouvia, pôde reconstituir o retrato de corpo
inteiro de uma alma torturada, que se libertava dos limites que a confinavam e contemplava a sua insensatez e a sua angústia.
O Padre Houlihan tinha ouvido muitas confissões estranhas, mas nenhuma tão estranha quanto aquela. Tinha ouvido confissões de homens que
tinham lutado contra as forças do mal e as circunstâncias e tinham sido derrotados. Tinha ouvido confissões de fraquezas, de perfídias, de
traições, de imbecilidades. Mas nunca tinha ouvido a confissão de um homem que escolhera com deliberação, frieza e cálculo o mal dentro de
si mesmo sabendo que era o mal, mas racionalizando-o ao ponto de transformá-lo num bem maligno. Aceitara a avareza, a crueldade, a falta
de remorsos e a traição, sublimando tudo isso em virtudes justificadas por Deus, favorecidas pelo céu, aprovadas pelo homem e sancionadas
pela alma.
Escutava a voz de Angus e compreendia que ali estava um homem traído não pelas próprias fraquezas, nem por outros homens, mas por si
mesmo, tudo isso acompanhado de frases nobres, textos piedosos e virtude rígida. Sem dúvida, pensou o padre, o mundo está cheio de
homens assim, mas este é o primeiro que encontro. Estava profundamente aterrado. Sentia os seus valores desmoronados num montão
informe. Era possível um homem chegar a esses extremos sem ficar louco? Sim, podia iludir-se de maneira tão completa sem chegar à loucura.
O padre estava horrorizado. Haveria salvação para almas assim? Essas almas eram blindadas pela mais rigorosa virtude, armadas de
integridade, encouraçadas de um senso forte e desviado de justiça. Faziam coisas más e julgavam-nas boas, considerando-se puros aos olhos
dos anjos.
Não poderia dizer a Angus que ele era mentiroso e hipócrita porque isso não era verdade. Angus era cheio de integridade; não sabia o que
queria dizer hipocrisia. As forças do mal tinham-no destruído com palavras sagradas e gestos de santidade e o haviam tornado impenetrável à
misericórdia, à bondade, ao amor e à própria santidade.
— Não compreendo! — exclamou Angus. — Ainda não compreendo. E não há ninguém que me possa dizer! Que foi que eu fiz de mau? Mas
sei que tudo o que fiz foi errado e torcido. Sei disso, mas não posso ver onde, nem como!
Eu estava naquela sala quando Allstairs morreu ... e foi então que soube disso pela primeira vez, embora já tivesse uma ideia através de todos
esses anos. Ouvi ele, Stuart, dizer: “Deus se compadeça de sua alma”. O amigo dele tinha sido assassinado por Allstairs.
Fora arruinado por Allstairs. Allstairs perseguiu-o implacavelmente. Apesar disso, ele disse: “Deus se compadeça de sua alma”. Por que ele
disse isso, Padre? Quando ele disse isso, vi as coisas mais terríveis. Vi a mim mesmo. Por que Stuart disse isso?
Havia lágrimas nos olhos do padre e ele disse, profundamente comovido:
— Porque Stuart é um homem bom. Você não pode compreender isso, não é, Angus? Você não pode compreender que há uma bondade do
coração que não tem relação alguma com os atos de um corpo fraco ou as palavras de uma boca licenciosa. Há em alguns homens uma
bondade que o bom Deus chamou de “caridade”, o amor dos homens que é maior que a esperança, maior que a fé e que é mais amada por
Deus entre todas as virtudes. Stuart pode ser o que for, mas é cheio de amor, de compaixão e de caridade. Aos meus olhos e, como sei no
fundo do coração, também aos olhos de Deus, Stuart é um homem bom e abençoado e eu não tenho o menor receio por ele.
— E eu —, disse Angus, com uma calma neutra e de olhos voltados para o teto —, fazia coisas más e dizia que eram virtuosas.
Apontou uma pasta que estava numa mesa ao lado da cama.
— Quer fazer o favor de pegar aquela pasta, Padre?
O Padre apanhou a pasta e colocou-a em cima da cama. Tornou a sentar-se. Não podia compreender o tremor que lhe agitava o corpo, como
se coisas portentosas estivessem acontecendo naquele quarto.
Angus segurou a pasta e voltou a cabeça para seu velho amigo.
— Eu queria ser médico.
— Eu sei, Angus —, disse o padre com ansiedade, inclinando-se para a frente.
— É muito tarde agora. Estudei um pouco. Fiz visitas ao hospital. Mas é muito tarde agora para tudo isso. O pouco conhecimento que eu tenho
deve bastar.
— Bastar para que, Angus?
Os olhos de Angus se mostraram de repente cheios de vitalidade e de força.
— Para o que eu quero fazer! Para o serviço que eu quero prestar! Só o senhor pode ajudar-me, Padre!
Espantado, incrédulo, o padre escutou, umedecendo os lábios ressecados ao impulso de suas emoções descontroladas. Sentia o tremor de
seu coração enquanto escutava Angus, que falava com rapidez e com força cada vez maior. Várias vezes se benzeu e pensou como eram
estranhos e maravilhosos os caminhos de Deus. Às vezes, sacudia a cabeça e pensava que não era possível e que ele devia estar sonhando.
E murmurava intimamente: Graças Te sejam dadas, Pai! Sentia-se estuar de ardente alegria e de profunda humildade.
Angus tinha parado de falar. Estava de novo reclinado nos travesseiros. Mas sorria com o rosto iluminado e de novo com aparência jovem e
gentil. Estendeu a mão e o padre a tomou.
— Não me rejeitará? — perguntou ele com uma voz que era a de uma criança.
— Eu? Quem sou eu para rejeitá-lo? Deus recebe você, meu filho. Mas tenho de pensar. Vou ter de falar com o bispo... Mas tudo será
resolvido. O que Deus deseja não pode ser frustrado.
Angus abriu a pasta e tirou um papel que entregou ao padre.
— Leia isso, Padre, e diga-me se está direito.
O padre procurou os óculos com as mãos trêmulas. Leu o longo documento escrito com a letra miúda e firme de Angus. Leu até que a cabeça
começou a rodar.
Depois, largou o papel e olhou demoradamente para Angus. Os dois se sorriram.
Então, o padre se ajoelhou ao lado da cama e rezou. Angus escutou. Quando o padre acabou e continuou ajoelhado e de cabeça baixa, Angus
dormia como havia muito tempo não dormia.
CAPÍTULO 75
Parece-me, pensou Stuart ao chegar à casa de Janie na Avenida Porter, que não faço outra coisa agora senão visitas para consolar os outros.
Será que virei ministro ou padre? Não é do meu temperamento e eu detesto isso.
A atmosfera sombria da casa envolveu-o, apagando a lembrança do quente dia de maio que brilhava lá fora. A casa estava muito fria e úmida,
com todas as cortinas das janelas e todas as portas fechadas. Havia luto na casa e Stuart se aborrecia com o ar sombrio e a pesada
solenidade.
A criada lhe falou em voz baixa. Stuart subiu a escada atrás dela em direção aos aposentos de Janie. Não havia o menor som dentro da casa.
Entrou na sala de Janie e sentiu o cheiro forte de cânfora e alfazema. Vinha do sol forte lá fora e só momentos depois percebeu Janie na cama,
imóvel, tendo ao lado o filho Robbie e a chorosa esposa deste, Alice.
Robbie levantou-se ao ver Stuart entrar e estendeu-lhe a mão. Estava muito pálido, com os olhos vermelhos de falta de sono e de aflição. Mas,
como sempre, estava calmo e controlado, embora a mão estivesse fria e inerte.
Stuart, cheio de constrangimento e compaixão, cumprimentou Alice com a cabeça e olhou ansiosamente para Janie. Fez uma pergunta a
Robbie, apontando-a. Robbie encolheu os ombros.
— Está inconsolável —, disse ele. — É natural. Bertie era seu predileto.
E você, pensou Stuart, não está menos sentido. Procurou incertamente uma cadeira e, quando Robbie lhe indicou uma, sentou-se, sentindo-se
mal e quase um intruso naquele quarto de luto.
Alice enxugou os olhos. O seu belo rosto estava banhado de lágrimas. Robbie sentou-se ao lado dela, passando-lhe o braço pelo ombro. Não
olhou para a mãe. Mas olhou para a esposa com triste paixão e devoção como se a estivesse vendo pela primeira vez.
Calma, meu bem —, disse ele. — Você bem sabe que essa agitação não lhe faz bem.
De fato, Alice convalescia de uma forte gripe e só pouco antes se levantara da cama.
Ela descansou a cabeça no ombro do marido e tentou conter os soluços. Os dois se abraçavam com muita ternura e de vez em quando se
beijavam.
Stuart mostrou muito interesse por isso e ficou satisfeito. Observou-os com a curiosidade contente de uma criança e se esqueceu de Janie.
Quando se lembrou dela, foi com remorso. Levantou-se, foi na ponta dos pés até à cama e olhou para sua velha prima, sua velha amiga, sua
velha companheira de infância e sua velha inimiga. Janie tinha envelhecido. Estava dormindo sob o efeito de um sedativo prescrito pelo
médico. Era uma velha bruxa arruinada. Suspirava e murmurava no seu sono letárgico. Os cabelos ruivos se espalhavam desgrenhados pelo
travesseiro e o grande nariz estava pontudo e trêmulo.
Pobre coitada, pensou Stuart, cheio de pena. É duro para você que nunca amou mais ninguém. Você percorreu uma longa estrada, pobre
Janie. Devemos ser melhores amigos agora. Não lhe resta mais ninguém. Você nunca amou a ninguém senão a Bertie e, por isso, todos a
deixaram e têm apenas algumas lágrimas relutantes por você. Sim, devemos ser melhores amigos agora e seremos amigos quer você queira,
quer não... Lembra-se, Janie, do tempo em que assávamos batatas nas folhas secas do outono? E de como fazíamos planos para conquistar o
mundo inteiro? E como ríamos! Você tinha umas pernas danadas de magras, mas era ágil e trepava nas árvores como uma macaquinha. E
como corríamos pelos campos! Temos muito para lembrar, Janie, e lembraremos juntos, rindo.
Saiu do quarto em companhia de Robbie e Alice.
— É a primeira vez que ela dorme em duas noites —, disse Robbie quando chegaram à sala de estar embaixo.
Stuart foi até às janelas e abriu reposteiros e cortinas. O sol de maio entrou de roldão na sala. Ouviram-se vozes de crianças na rua. Uma
criada trouxe uma bandeja com cálices de vinho e bolos. Stuart entregou um cálice a Robbie e outro a Alice. Sorriu para eles e disse:
— À saúde do velho Bertie, que cumpriu o seu dever.
Alice disse numa voz entrecortada de lágrimas:
— Viu a carta do Presidente, Stuart? Uma bela carta! Diz que Bertie morreu em ação heroicamente, depois de salvar cinquenta homens da
morte certa. Uma carta maravilhosa! Temos orgulho de Bertie!
Estendeu a mão para o marido que a apertou imediatamente e sorriu para ela com uma triste ternura. Ela olhou para ele e disse:
— Temos muito orgulho dele, não é, Robbie? Era assim que ele queria morrer. Era um ótimo homem e nós o amávamos muito.
Robbie levou a mão dela aos lábios. Alice continuou a falar com um brilho nos olhos.
— Houve uma medalha também do Presidente. “Por bravura em ação.” Quando a pobre mãe estiver melhor, poderá compreender tudo e sentir-
se orgulhosa também.
Stuart tinha dúvidas a esse respeito. Seria preciso mais que uma medalha para consolar a pobre Janie. O coração dela estava em algum ponto
da Virgínia e nunca mais sairia de lá. De qualquer maneira, não falaria mais em voltar para a Inglaterra. Ficaria para sempre nos Estados
Unidos, onde Bertie tinha vivido e morrera em ação heroicamente.
Pensou por um instante em Bertie. Mas ele sempre fora um enigma para ele e Stuart encolheu os ombros.
Robbie não queria falar do irmão. Estava muito tranquilo e disse apenas:
— Desde o início, eu sabia que nunca mais iríamos vê-lo. Por isso, meu choque não foi muito grande.
Olhou à frente sem ver. Mas ainda segurava a mão de Alice e de vez em quando a beijava não mecanicamente, mas com terna paixão.
— Talvez fosse melhor para Bertie —, disse ele, como se estivesse pensando em voz alta. — Foi melhor, sim. Não posso sentir muito.
Olhou então para Stuart e não pôde deixar de sorrir.
— Como vai a vida, Stuart? Creio que devo dar-lhe parabéns.
Stuart procurou não parecer muito satisfeito naquela casa enlutada.
— Muito bem. Foi muito bom o que Angus fez, mas ainda não compreendo. Deixar-me 30% das ações das lojas, com controle completo das
mesmas. Para sua mãe ficaram 40%, cabendo os outros 30% à Igreja. E quem podia saber que ele queria ser católico? Está acima de minhas
forças e eu vejo que não compreendo absolutamente as pessoas.
— Quando Mamãe tiver tempo para pensar, vai haver uma explosão —, disse Robbie. -— Imaginem Angus entrar para um convento disposto a
ser um missionário para cuidar de leprosos. Ela vai ter motivo para conversar durante muitos anos.
— Foi tão estranho o que Angus fez —, disse Alice. — A bem dizer, eu nunca conheci Angus. Mas se isso lhe dá felicidade, nada mais importa.
Contudo, não deixa de ser muito estranho.
— Nem tão estranho assim —, disse Stuart de repente. — Ele realmente quis fazer uma coisa assim toda a sua vida. Ele tinha a vocação do
sacrifício. O velho Grundy me disse isso um dia. E eu estou começando a compreender as coisas, não com muita clareza ainda, mas já tenho
alguns vislumbres.
Robbie olhou-o com oculta e polida curiosidade. Que idade teria Stuart? Cerca de quarenta e cinco. Mas tinha o aspecto mais jovem do que
nunca. É verdade que tinha uma expressão de reserva nos olhos e uma sugestão de cansaço e tristeza. Era a expressão de um homem que
tinha sofrido muito e não podia esquecer o sofrimento. Entretanto, o rosto parecia mais liso e mais jovem e dele estavam desaparecendo as
marcas da dissipação. A pele tinha uma cor melhor e mais sadia. Robbie refletiu que havia alguns homens que eram como crianças ou
possuíam uma vitalidade insuspeitada. Seria uma questão de consciência tranquila? Ou de absoluta falta de consciência? Robbie tinha sempre
acreditado que Stuart era um homem bom, talvez um pouco estourado e violento, caprichoso, exaltado e indisciplinado. Mas, sempre, o destino
intervinha nos momentos mais críticos de sua vida, como se o destino fosse um pai amoroso, indulgente e compreensivo.
— Não me julgue impertinente, Stuart —, disse ele. — Mas agora tenha mais cuidado com as lojas.
Stuart riu.
— Como é que eu poderia deixar de ter cuidado se Angus, previdentemente, subordinou ao seu visto toda a contabilidade das lojas, Robbie? E
eu não gostei nada disso, fique sabendo! — Mas não havia desagrado em seus olhos. — É, ainda, estou de certo modo contente. Isso me tira
muitas responsabilidades dos ombros, especialmente desde que você tem de aprovar todas as compras que eu fizer e fiscalizar todas as
contas!
— Como vai Mary Rose? — perguntou Robbie.
— Muito melhor, graças a Deus. O velho Grundy tem rezado muito por ela. Afinal, está um pouco mais corada. Vai ficar comigo até ao outono,
quando voltará para a casa da mãe na Pensilvânia. Acho muito bom isso. Ela não pode suportar nossos invernos aqui no Norte.
Fez uma pausa durante a qual seu rosto se tornou mais brando ao pensar na filha e disse:
— Por favor, diga a Janie, sua mãe, que eu estive aqui e que sinto muito. Virei amanhã de novo. Ela deve reagir. Tem uma boa cabeça, é forte
e acabará tendo orgulho de nosso caro Bertie.
Robbie acompanhou-o até à porta. Viram carruagens que chegavam com amigas de Janie que iam visitá-la.
Robbie colocou a mão no braço de Stuart e disse:
— Fico satisfeito de vê-lo tão bem, Stuart. Não está muito aborrecido com o divórcio de Marvina?
— Não, meu caro. Você conduziu tudo de maneira magistral e eu lhe sou muito grato por isso.
— Perdoe-me, Stuart, mas, afinal de contas, Laurie é minha irmã.
— Já escrevi a Laurie. Não sei o que é que você tem com isso, mas não me importo de lhe dizer. Ela está querendo que eu abandone tudo e vá
viver com ela em Nova York depois de nosso casamento. Não quer que eu pense mais nas lojas. Não compreende que eu tenho também a
minha vida. Não sou um lacaio, Robbie. Escrevi-lhe, portanto, para dizer que a carreira dela é essencial e que eu a desejo mais que tudo e que
ela não me deve levar absolutamente em conta. Depois de nos casarmos, continuarei aqui e ela virá passar uns tempos comigo nos intervalos
das temporadas. Sempre que puder, irei vê-la em Nova York. Assim é que deve ser. Não sei se ela vai concordar ou não.
— Vai, sim, Stuart —, disse Robbie. — E vai respeitá-lo por isso. Não sei é se o invejo. Laurie é muito difícil, embora sempre tivesse gostado
muito de você. Felicidades, Stuart.
Stuart sorriu.
— Muito obrigado, Robbie. Sim, acho que ela poderá concordar. Um homem deve ter também o seu amor-próprio. Laurie pode ter mau gênio,
Robbie. Mas há nela alguma coisa que só eu descobri É muito gentil e boa por baixo de toda aquela aparência. Acabará concordando.
Robbie ficou olhando Stuart que descia a estreita escada de pedra. Pobre diabo! E, ainda mais, nas mãos de Laurie! Robbie não tinha ilusões
a respeito da irmã. Sabia que era uma pessoa difícil e autoritária. Haveria entre os dois brigas tremendas, recriminações, violências,
acusações e acessos de raiva. Mas não haveria tédio. Os dois se amavam, aqueles dois tipos estranhos. Laurie faria o que quisesse quando
estivesse cantando, e não falaria do que tivesse visto ou feito. Seria muito discreta e Stuart não faria perguntas. Queria apenas que ela o
amasse. Tinha idade bastante para ser pai dela, mas ela era uma mulher e ele seria sempre uma criança, sempre jovem.
As visitas vinham subindo a escada e olharam para Stuart com um misto de curiosidade e simpatia. Robbie viu-as chegar. O pesar que a
presença de Stuart havia de certo modo dissipado, envolveu-o de novo.
Mas havia nele também uma estranha e vaga paz.
CAPÍTULO 76
A ilha repousava nas suas névoas purpúreas. Algumas copas verdes de palmeiras emergiam da névoa e se agitavam contra o céu matinal. A
pequena povoação amontoada e branca ainda estava em silêncio. O céu era ainda de um azul-escuro e carregado e a leste o frágil crescente
da lua emergia do mar que era com de alfazema pálida franjada de prata. As vozes dos pássaros começaram a quebrar o silêncio vazio num
clamor ressoante de canto.
Acima da lua, uma estrela brilhava pura e viva.
Havia um navio no mar, mas ancorado a alguma distância da ilha. Dele foi baixado um bote com um marinheiro e um homem que vestia um
hábito de monge. Estava sentado na proa do bote e olhava para a ilha. Alguns rolos de fumaça se elevavam das chaminés escondidas. As
névoas começavam a dissipar-se. A ilha era uma joia de heliotrópio, verde e ouro.
O bote abicou à praia de coral. O monge desembarcou e olhou para o marinheiro que lhe fez uma saudação. Retribuiu a saudação, sorrindo. O
rosto era belo, pálido e muito doce à luz matinal.
Viu o bote afastar-se de volta ao navio. Voltou-se então e olhou para a povoação. Levou alguns minutos contemplando o lugar onde iria viver até
à morte. A alegria lhe brilhou de repente nos olhos.
Subiu a ladeira para a povoação. Levantou o rosto para o céu e começou a cantar. O velho frade que se apressava para ir ao encontro de seu
novo assistente parou atônito ao ouvir a voz maviosa.
Era o Hino à Estrela da Manhã de Robin Cauder.
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